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HISTÓRIA

Quem foram os primeiros europeus?

Novos exames de restos mortais de antigos povoadores comprovam que a


Europa sempre abrigou diferentes povos, mesclando legados genéticos de
imigrantes vindos da África, do Oriente Médio e das pradarias da atual Rússia.

POR ANDREW CURRY


FOTOS DE RÉMI BÉNALI
PUBLICADO 9 DE AGO. DE 2019, 07:45
BRT, ATUALIZADO 5 DE NOV. DE 2020, 03:22 BRT

Três ondas de migrantes foram à Europa pré-histórica. Na última, 5 mil anos


atrás, vieram da atual Rússia os yamnayas, pastores e exímios cavaleiros que
ergueram montes funerários, como este, em Žabalj, na Sérvia.
FOTO DE RÉMI BÉNALI
IDEIA DE QUE NO PASSADO remoto existiram populações “puras” de europeus
ancestrais inspirou ideólogos mesmo antes dos nazistas. A mesma ideia há muito
tempo alimenta o racismo branco e, recentemente, estimulou os temores quanto ao
impacto dos imigrantes: temores que ameaçam dilacerar a União Europeia e agitar
o debate político nos Estados Unidos. Agora os cientistas estão propondo novas
respostas às perguntas sobre quem seriam de fato os europeus e de onde eles
vieram. E as suas constatações indicam que, desde a Era Glacial, o continente
sempre foi um caldeirão miscigenador.

Novas pesquisas apontam que os atuais europeus, de qualquer país do continente,


resultam de uma mistura de antigos legados genéticos originários da África, do
Oriente Médio e da estepe russa. Os indícios vêm de objetos coletados em sítios
arqueológicos, da análise de dentes e ossos antiquíssimos ali exumados, e dos
estudos linguísticos. Acima de tudo, porém, eles dependem de uma nova
disciplina: a paleogenética. A última década mostrou que hoje temos condições
de efetuar o sequenciamento de todo o genoma de seres humanos que
viveram há dezenas de milhares de anos. Além disso, avanços técnicos
recentes baratearam e facilitaram bastante esse procedimento: hoje,
um fragmento de esqueleto bem preservado pode ser sequenciado
a um custo de cerca de 500 dólares.
Em consequência, uma explosão de novos dados está transformando
a arqueologia. Apenas em 2018, os genomas de mais de mil indivíduos
pré-históricos foram analisados, sobretudo com base em ossadas
exumadas anos antes e preservadas em museus e laboratórios. O exame desses
genomas ancestrais proporciona o equivalente dos testes de DNA pessoais hoje
disponíveis, com a diferença de que se referem a indivíduos falecidos bem antes
da invenção da escrita, da roda ou da cerâmica. Essa informação genética é
assombrosamente completa: desde a cor do cabelo e dos olhos até a incapacidade
de digerir leite podem ser determinadas a partir de fragmentos de ossos e dentes
tão ínfimos que não chegam a pesar 40 miligramas. E tal como os testes de DNA,
os resultados revelam pistas da identidade e da origem dos antepassados dos seres
humanos antigos – e, também, de antiquíssimos movimentos migratórios.

A destreza dos yamnayas com os cavalos, que eles levaram à Europa, ainda se
nota em sua região de origem. No Museu Zaporizhzhya, na ilha ucraniana de
Khortytsya, um cavaleiro exibe as proezas acrobáticas que fizeram dos cossacos
temidos guerreiros desde o século 15.
Três grandes fluxos de pessoas moldaram o curso da pré-história europeia. Foram
imigrantes que levaram ao continente a arte e a música, a agricultura e as cidades,
os cavalos domesticados e a roda. Foram eles que introduziram as línguas indo-
europeias atualmente faladas em quase toda a Europa. E é bem possível que
também tenham levado a peste. As últimas contribuições importantes para o
perfil genético dos habitantes da Europa Ocidental e Central – os últimos desses
europeus pioneiros, por assim dizer – chegaram das estepes russas na mesma época
em que Stonehenge estava sendo erguido, quase 5 mil anos atrás. Eles concluíram
o processo.

Numa época tão preocupada com as migrações e as fronteiras nacionais, a ciência


comprova que a Europa é um continente de imigrantes – e sempre foi assim. “As
pessoas que hoje vivem em determinado lugar não são descendentes das pessoas
que ali viviam tempos atrás”, comenta o paleogeneticista David Reich, da
Universidade Harvard. “Não existem populações autóctones – e todos aqueles que
aspiram a uma pureza racial passada têm de lidar com a ausência de sentido desse
conceito.”

O DNA em dentes e ossos antigos permite entender melhor os deslocamentos


populacionais no decorrer do tempo. Em laboratórios como este, na cidade alemã
de Jena, cientistas mapearam padrões de migrações humanos no passado remoto.
TRINTA E DOIS ANOS ATRÁS, o estudo do DNA dos seres humanos contribuiu
para estabelecer o fato de que nós fazemos parte da mesma árvore genealógica.
Nós compartilhamos o mesmo relato de uma migração primordial: todas as pessoas
que vivem fora da África descendem de antepassados que saíram daquele
continente há mais de 60 mil anos. Há 45 mil anos, esses primeiros seres humanos
modernos se aventuraram pelo continente europeu, depois de terem passado pelo
Oriente Médio. Eles tinham tez escura e, talvez, olhos claros.
Na Suécia, entalhes em rocha (realçados com tinta vermelha) ecoam as mudanças
culturais geradas por grupos migrantes – a começar dos caçadores-coletores que
saíram da África na Era Glacial e avançaram para o norte à medida que recuavam
as geleiras. O DNA deles predomina nos países meridionais do Báltico.
Desde a África
Na época, a Europa era uma região inóspita. Camadas de gelo com espessura de
1,6 mil metros recobriam enormes áreas. Animais silvestres viviam apenas nos
locais em que as temperaturas eram mais amenas. Também havia outros seres
humanos, não iguais a nós: os neandertais, cujos antepassados tinham saído da
África centenas
de milhares de anos antes, e que já estavam adaptados ao frio e às condições
agrestes. Os primeiros europeus modernos subsistiam como caçadores e coletores
em pequenos grupos nômades. Eles se deslocavam ao longo dos rios, avançando
pelas margens do Danúbio desde a sua foz no Mar Negro até o centro e o oeste do
continente. Durante milênios, o impacto de tais grupos foi insignificante. O DNA
deles indica que se cruzaram com os neandertais – que, num período de 5 mil anos,
acabaram por desaparecer. Hoje, cerca de 2% do genoma de um europeu típico
consiste de DNA neandertal. Um africano típico, por sua vez, não tem nenhum
resquício neandertal no DNA.
Enquanto a Europa era tomada pela Era Glacial, os seres humanos modernos se
concentravam no sul, em que não havia geleiras, adaptando-se ao frio. Por volta
de 27 mil anos atrás, talvez existissem cerca de mil desses indivíduos. Eles
sobreviviam caçando mamíferos de grande porte, como mamutes, cavalos, renas e
auroques (os antepassados dos bois atuais). Nas cavernas que lhes serviam de
abrigo, eles deixaram pinturas e gravuras espetaculares de suas presas. Por volta
de 14,5 mil anos atrás, à medida que o clima ficava mais quente, os humanos foram
avançando para o norte. Nos milênios seguintes, eles aperfeiçoaram utensílios de
pedra cada vez mais requintados e se estabeleceram em povoados.

Os arqueólogos denominam esse período de mesolítico, ou a Idade da Pedra


intermediária. Na década de 1960, arqueólogos sérvios escavaram uma aldeia de
pescadores do período mesolítico, aninhada nas encostas íngremes de uma curva
do Danúbio, perto de um dos trechos mais estreitos do rio. Denominado Lepenski
Vir, o sítio arqueológico era um assentamento complexo que havia abrigado cerca
de uma centena de pessoas, desde cerca de 9 mil anos atrás.

Algumas das edificações continham esculturas entalhadas representando figuras


que mesclavam características humanas e de peixes. Os ossos achados ali indicam
que os moradores dependiam bastante da pesca no rio. “Na dieta deles, os peixes
chegavam a representar 70%”, afirma Vladimir Nojkovic, o responsável pelo sítio
arqueológico. “E viveram ali por uns 2 mil anos, até serem expulsos pelos
agricultores.”
Escavações no sítio de 10,3 mil anos em Boncuklu, na Turquia, revelaram que
pessoas viviam lá durante a transição para a agricultura. A pessoa enterrada aqui,
debaixo do chão de uma casa, provavelmente teria cultivado pequenos lotes de
trigo domesticado, e pode ter pastoreado cabras e ovelhas, enquanto continuava
a forragear.
Desde a Anatólia
PLANÍCIE DE KONYA, na Anatólia, é o centro da região cerealífera da Turquia
moderna, uma imensidão fértil em que se avistam tempestades chuvosas cobrindo
as montanhas no horizonte muito antes de as primeiras gotas começarem a marcar
a terra perto da gente. Essa região atrai lavradores, diz o arqueólogo Douglas Baird,
desde os primórdios da agricultura. Há mais de uma década, Baird está escavando
ali o povoado pré-histórico conhecido como Boncuklu. Nesse local, as pessoas
cultivaram duas variedades antigas de trigo – o farro e o einkorn –, e
provavelmente criavam pequenos rebanhos de ovelhas e cabras – tudo isso há uns
10, 3 mil anos, quase no início do período neolítico.

No decorrer de um milênio, a revolução neolítica, como é conhecida, difundiu-se


para o norte através da Anatólia e dali para o sudeste europeu. Até que, por volta
de 6 mil anos atrás, agricultores e criadores de animais eram encontrados em todo
o continente europeu. Há muito tempo, é evidente que a Europa adquiriu a prática
de cultivar a terra por intermédio da Turquia e do Levante, mas será que também
recebeu agricultores desses lugares? Durante décadas, muitos arqueólogos
estavam convencidos de que todo um conjunto de inovações – da agricultura aos
machados de pedra polida, entre outras – não havia chegado à Europa graças aos
grupos migrantes, e sim por intermédio de mercadores e de relatos orais,
transmitidos de um vale a outro, à medida que os caçadores-coletores que ali
viviam passavam a adotar novos utensílios e novos modos de vida.

Todavia, os indícios de DNA originários de Boncuklu ajudaram a mostrar que as


migrações desempenharam papel bem mais crucial. Os agricultores de Boncuklu
não se afastavam dos seus mortos, enterrando-os debaixo de suas casas. A partir
de 2014, Baird começou a enviar amostras de DNA extraídas de fragmentos de
crânios e dentes, achados em mais de uma dúzia de locais de sepultamento, para
laboratórios na Suécia, Turquia, Reino Unido e Alemanha.

Muitas dessas amostras haviam se deteriorado, e não foi possível recuperar


informações do DNA. Mais tarde, contudo, Johannes Krause e seus colegas no
Instituto Max Planck testaram amostras de uma parte específica, a petrosa, de ossos
temporais. De formato piramidal, essa parte ínfima do ouvido interno tem mais ou
menos o tamanho da ponta do dedo mínimo, e é um dos tecidos ósseos mais densos
do corpo.

Os pesquisadores constataram que ele preserva a informação genética por muito


tempo, mesmo depois de o DNA aproveitável ter sido apagado pelo calor no
restante do esqueleto. E os fragmentos ósseos petrosos de Boncuklu se mostraram
esclarecedores: o DNA extraído deles era compatível com o DNA de agricultores
que viveram e morreram, séculos depois, numa região centenas de quilômetros a
noroeste. Isso significa que os primeiros lavradores anatólicos haviam migrado,
difundindo os seus genes e o seu modo de vida. No decorrer de séculos, os seus
descendentes seguiram pelas margens
do Rio Danúbio, avançando além de Lepenski Vir até o meio do continente.
Outros cruzaram o Mediterrâneo em barcos, colonizando ilhas como a Sardenha e
a Sicília, e estabelecendo-se no sul da Europa, chegando mesmo ao território atual
de Portugal. Desde Boncuklu até as ilhas britânicas, a assinatura genética anatólica
está presente em toda parte em que houve o surgimento da agricultura. Esses
lavradores neolíticos quase sempre tinham tez clara e olhos escuros – o oposto dos
caçadores-coletores com os quais passaram a conviver em proximidade. “Eles
tinham outra aparência, falavam outras línguas... E se alimentavam de outro
modo”, comenta o arqueólogo David Anthony. “Quase sempre viviam isolados.”
Raros são os indícios de um grupo adotando os utensílios ou as tradições do outro.
“Não resta dúvida de que mantinham contato, mas não promoviam intercâmbio de
esposas e esposos”, afirma Anthony. “Ao contrário do que se diz nos cursos de
antropologia, não havia relações sexuais entre pessoas dos dois grupos.”
Uma mulher faz a colheita manual do trigo perto de Konya, na Turquia.
Lavradores da região da Anatólia introduziram técnicas agrícolas na Europa a
partir de quase 9 mil anos atrás. Aos poucos, agricultores e criadores de rebanhos
dominaram a maior parte do continente.
POR VOLTA DE 5 400 ANOS ATRÁS, tudo mudou. De uma ponta a outra da
Europa, os prósperos assentamentos neolíticos diminuíram ou sumiram. Esse
declínio dramático intriga os arqueólogos há décadas. “Vê-se claramente menos
objetos, menos pessoas, menos sítios”, comenta Krause. “E, sem nenhum
acontecimento importante, não temos como explicar isso.” Por outro lado, não se
conhece nenhum sinal de conflito ou violência de grandes proporções.

Depois de um intervalo de 500 anos, a população aparentemente voltou a crescer,


mas então aparece algo bem diferente. No sudeste da Europa, os assentamentos e
os cemitérios igualitários do neolítico dão lugar a montes funerários
característicos, baixos e arredondados (as mamoas), onde eram enterrados homens
adultos isolados. Mais ao norte, desde a Rússia até o Rio Reno, surge uma nova
cultura, conhecida como “cultura da cerâmica cordeada” por causa de suas vasilhas
de cerâmica. O Museu Estadual da Pré-História em Halle, na Alemanha, guarda
dezenas de sepulturas da cultura da época.

Os sepultamentos da cultura da cerâmica cordeada são de tal modo reconhecíveis


que os arqueólogos raramente têm de recorrer à datação por radiocarbono. Quase
sempre os homens estavam deitados sobre o lado direito do corpo, ao passo que as
mulheres eram enterradas sobre o lado esquerdo, ambos com os joelhos dobrados
para cima e o rosto voltado para o sul. Em certas sepulturas, as mulheres agarram
bolsas adornadas com dentes de dezenas de cães; os homens empunham machados
de guerra de pedra.

Os pesquisadores tinham a expectativa de que esses membros da cultura da


cerâmica cordeada estivessem estreitamente relacionados com os agricultores
neolíticos. Em vez disso, porém, o DNA deles continha genes específicos que eram
uma novidade na Europa da época – mas que, hoje, são detectáveis em quase toda
a população europeia. O que, afinal, se constatou foi que muitas das pessoas da
cultura da cerâmica cordeada eram mais aparentadas aos indígenas americanos que
aos lavradores europeus do neolítico. Isso só aprofundou o mistério em torno da
verdadeira identidade dessa gente.

NUMA LUMINOSA MANHÃ D E OUTUBRO, perto da cidadezinha sérvia de


Žabalj, o arqueólogo polonês Piotr Włodarczak e seus colegas vão de caminhonete
até uma mamoa de 4 700 anos. Nas margens do Danúbio, montes desse tipo, com
30 metros de diâmetro e 3 de altura, constituem os únicos acidentes topográficos.
De pé no alto, Włodarczak afasta uma lona para mostrar o que tem lá dentro: uma
câmara retangular contendo a ossada de um chefe, deitado de costas com os joelhos
dobrados. “Dá para notar uma mudança nas práticas de sepultamento por volta de
2 800 a.C.”, conta ele, agachado próximo ao esqueleto. “Os habitantes começaram
a erigir esses montes em escala maciça, com ênfase na individualidade de cada
morto, no papel dos homens, nas armas. Isso é uma novidade na Europa.”

Mas não era novidade 1,3 mil quilômetros a leste. Nas estepes do sul da atual
Rússia e do leste da Ucrânia, os nômades conhecidos como yamnayas, um dos
primeiros povos a domesticar cavalos no mundo, havia dominado a roda e montava
carroças que lhes permitiam seguir os rebanhos nas pradarias. Os yamnayas tinham
poucos assentamentos permanentes, mas enterravam os indivíduos mais
proeminentes, com adornos de bronze e prata, em imponentes montes funerários
que ainda se avistam nas estepes. Por volta de 2 800 a.C., revelam as escavações,
os yamnayas haviam começado a se dirigir para o oeste, provavelmente em busca
de pastagens mais viçosas. O monte escavado por Włodarczak perto de Žabalj é o
túmulo yamnaya mais a oeste que se encontrou até agora. Todavia, os indícios
genéticos mostram que muitos povos da cultura da cerâmica cordeada eram
descendentes dos yamnayas. Assim como no caso das ossadas
da cultura da cerâmica cordeada, os yamnayas tinham parentesco remoto com os
indígenas americanos – cujos ancestrais eram originários de uma região ainda mais
a leste, na Sibéria.
Os mascarados do Carnaval em Ottana, na ilha da Sardenha, representam o
domínio dos seres humanos sobre os animais, tema que remonta aos primórdios
da domesticação. O DNA dos primeiros agricultores europeus predomina nos
genes dos sardos atuais.
Desde a estepe
Em poucos séculos, outros povos com uma parcela significativa do DNA yamnaya
haviam se espalhado, chegando até às ilhas britânicas. Nessas e em outros locais,
quase nenhum dos agricultores já estabelecidos na Europa sobreviveu às investidas
desses recém-chegados oriundos do leste. Na região da atual Alemanha, “de 70%
a possivelmente 100% da população local foi substituída”, afirma Reich. “Algo de
muito dramático ocorreu há 4 500 anos.” Até então, os agricultores prosperavam
no continente por milênios. Estabelecidos desde a Bulgária até a Irlanda, muitas
vezes viviam em complexos assentamentos de centenas ou mesmo milhares de
moradores. De acordo com o arqueólogo Volker Heyd, havia até 7 milhões de
pessoas vivendo na Europa em 3000 a.C.
No início da construção de Stonehenge, 5 mil anos atrás, agricultores viviam nas
ilhas britânicas. Um milênio depois, quando a estrutura foi concluída, a
população neolítica havia sido substituída por descendentes dos yamnayas – que
talvez tenham levado a peste à região.
Para muitos arqueólogos, a ideia de que um bando de nômades poderia, em apenas
alguns séculos, tomar o lugar de uma civilização consolidada parece implausível.
“Como esses grupos descentralizados de pastores iriam tomar o lugar de uma
sociedade neolítica arraigada, mesmo que tivessem cavalos e fossem bons
guerreiros?”, pergunta o arqueólogo Kristian Kristiansen. Uma pista para isso
talvez esteja nos dentes de 101 indivíduos que viviam nas estepes e nas áreas
europeias mais ocidentais na mesma época em que teve início a migração para o
oeste dos yamnayas. Em sete das amostras, além do DNA humano, os geneticistas
também identificaram o DNA de uma variedade primitiva de Yersinia pestis – o
micro-organismo causador da Peste Negra, que matou cerca de metade de toda a
população do continente europeu no século 14.

À diferença da Peste Negra, disseminada por mosquitos, a sua versão anterior era
transmitida de uma pessoa para outra. Aparentemente, os nômades da estepe
haviam convivido com a doença durante séculos, talvez desenvolvendo alguma
imunidade ou resistência. E, assim como a varíola e outras doenças devastaram as
populações nativas das Américas, a peste, uma vez introduzida no continente pelos
yamnayas, poderia ter se espalhado facilmente pelos apinhados vilarejos
neolíticos. Isso poderia explicar tanto o colapso surpreendente como a rápida
difusão do DNA dos yamnayas. “As epidemias abriram o caminho para a expansão
yamnaya”, diz o biólogo evolutivo Morten Allentoft, responsável por identificar o
DNA dessa peste antiga. Mas só recentemente os indícios da peste foram
constatados em antigas ossadas e, até agora, ninguém topou com nada similar às
fossas repletas de esqueletos de vítimas que restaram da epidemia da Peste Negra,
no século 14. Se uma peste eliminou os agricultores neolíticos,
não sobrou dela nenhum vestígio evidente.
TENHAM OU NÃO sido portadores da peste, os yamnayas, sem dúvida, levaram
os cavalos domesticados e o modo de vida nômade, baseado em carroças, à Europa
neolítica. E, ao introduzirem ali armas e utensílios metálicos inovadores, é possível
que tenham contribuído para o início da Idade do Bronze no continente. Mais: a
chegada deles ao continente coincide com a época na qual os linguistas situam
a difusão inicial das línguas indo-europeias, uma família de centenas de idiomas
hoje falados desde a Irlanda até a Rússia e o norte da Índia. Considera-se que todos
tenham evoluído a partir de uma única língua protoindo-europeia, e a questão de
onde ela era falada, e por quem, é um tema debatido desde o século 19. Segundo
uma das hipóteses, os agricultores neolíticos da Anatólia é que a teriam introduzido
na Europa. Outra hipótese, proposta um século atrás pelo estudioso alemão Gustaf
Kossinna, sustenta que os indo-europeus eram uma antiga raça germânica
setentrional – a mesma população responsável pelos machados e utensílios de
cerâmica da cultura da cerâmica cordeada. Kossinna estava convencido de que a
etnicidade de um povo no passado podia ser deduzida dos objetos que ele havia
deixado para trás. Essa tribo de indo-europeus do norte da Alemanha, dizia ele,
havia se expandido e dominado uma área que se estendia quase até a atual Moscou.
Mais tarde, os nazistas recorreram a tais ideias como justificativa intelectual para
que a moderna “raça dominante” ariana ocupasse o leste da Europa.

Em parte por isso, depois da Segunda Guerra Mundial, toda a concepção de que
mudanças culturais antigas pudessem ser explicadas por migrações adquiriu uma
reputação duvidosa em certos círculos. Mesmo hoje, há arqueólogos que se sentem
incomodados quando geneticistas traçam flechas contundentes em mapas da
Europa. “Esse tipo de simplificação remonta a Kossinna e evoca velhos
demônios”, comenta o arqueólogo Volker Heyd, que é alemão.

O DNA, que gera informações diretas sobre a biologia dos seres humanos da
Antiguidade, acabou reforçando os argumentos contra a hipótese de Kossinna. Ao
documentar a progressiva difusão dos yamnayas e seus descendentes por toda a
Europa, os indícios do DNA confirmam a hipótese mais favorecida pelos
linguistas: a de que os protoindo-europeus saíram das estepes russas e migraram
para a Europa, e não o inverso. Em conjunto com as descobertas arqueológicas,
isso implica rejeitar a alegação, feita por Kossinna, de que existe na Europa alguma
raça pura, que poderia ser reconhecida por seus artefatos culturais. Todos os
europeus atuais resultam de uma mescla. O perfil genético de um europeu inclui
partes quase iguais dos yamnayas e dos agricultores anatólicos, com pitadas do
caçador-coletor africano. “Os exames de DNA estão solapando o paradigma
nacionalista de que sempre vivemos aqui e nunca nos misturamos com outros
povos”, diz Kristian Kristiansen. “Não há dinamarqueses, suecos ou alemães.”
Em vez disso, “somos todos russos, somos todos africanos”.
Fonte: https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2019/08/quem-foram-
os-primeiros-europeus Acesso em 26/01/2024.

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