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GÊNERO, SEXUALIDADE E PODER NO SETOR DE

TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO NO BRASIL: UM ESTUDO


MULTIDIMENSIONAL

Lucas Duarte Kelly 11


ESPM-SP

Clarissa Sanfelice Rahmeier2


ESPM-SP

Resumo
Este artigo analisa os códigos de poder na área de Tecnologia da Informação (TI) no
Brasil, revelando como os marcadores de gênero e sexualidade estão atrelados à
potência performativa do exercício da profissão de TI. Para tanto, empregamos uma
abordagem metodológica que integra pesquisa quantitativa (com 467 respostas) e
entrevistas qualitativas (envolvendo 19 profissionais), destacando os códigos
subalternizados decorrentes da discriminação de gênero e as complexidades
enfrentadas por mulheres e por homens não heterossexuais na sua integração no
setor. Em suma, nosso estudo expõe nuances de poder relacionadas ao gênero e
sexualidade, desafiando a concepção da hegemonia universal masculina nesse setor,
uma vez que reconhece a existência de diversas expressões de masculinidades.

Palavras-chave: Tecnologia; performatividade; mulheres; masculinidades;


hegemonia.

1. Introdução
Neste artigo, adentramos no território da Tecnologia da Informação (TI)
no Brasil, com o propósito de analisar as operações hegemônicas do setor. A
hegemonia é nesta pesquisa interpretada como uma construção relacional que opera
a homogeneização de determinada particularidade para a representação de um todo.
No setor de Tecnologia da Informação, a utilização do termo é referente aos atos
fundacionais generificados e heteronormativos que produzem a construção da
potência performativa do profissional de TI. Neste caso, a particularidade (gênero e

1
Estudante do curso de graduação em Ciências Sociais e do Consumo da ESPM-SP. E-mail:
lucas.kelly@acad.espm.br.
2
Professora do curso de graduação em Ciência Sociais e do Consumo da ESPM-SP. E-mail:
clarissa.sanfelice@espm.br.
2

sexualidade) determina o quão próximo da totalidade que corresponde à categoria


profissional de TI se está.
Nesse contexto, buscamos investigar os mecanismos de poder exercidos na
prática dessa profissão. Para isso, o objetivo deste artigo consiste em demonstrar os
matizes das questões de gênero que moldam esse cenário, as questões ligadas à
sexualidade masculina, para delinear, assim, os atos performativos que conferem a
potência performativa do profissional de TI. A noção de potência performativa
implica na existência de diferentes níveis de eficácia no exercício identitário dessa
profissão. Para aprofundar nossa compreensão, utilizamos abordagens quantitativas
e qualitativas para analisar em detalhes as operações hegemônicas no setor.
Ao realizarmos um movimento exploratório sobre as questões relacionadas
ao exercício dessa profissão, deparamo-nos com o problema proeminente da
disparidade de gênero neste campo. Segundo dados de 2022 conduzidos pela Catho
(ZOUBAREF, 2022), apenas 23,6% dos cargos técnicos na área são ocupados por
mulheres.
Compreendendo a sensibilidade subjacente à situação das mulheres neste
setor, realizamos inicialmente uma pesquisa quantitativa entre os profissionais da
área para investigar as principais questões que afetam o percurso das mulheres neste
campo. No dado que iremos destacar neste artigo, revela-se que 43,4% dos
profissionais que participaram do nosso questionário apontaram o desrespeito pelas
habilidades técnicas das mulheres como o principal motivo da discriminação de
gênero no setor, o que corresponde exatamente às respostas de 197 profissionais.
No cenário da TI, a linguagem técnica se destaca como atributo central e,
portanto, seu descrédito infere diretamente no exercício performativo dessa
profissão. Como será demonstrado ao longo do artigo, essa linguagem possui sua
efetividade intrinsecamente vinculada aos padrões estabelecidos pelos detentores
das ferramentas hegemônicas.
Ao falarmos do exercício identitário dessa profissão, a questão da
hegemonia masculina é o fator que mais se destaca. No entanto, buscaremos
questionar nesse artigo a universalização da categoria “homem” como um bloco
uníssono de poder, destacando a dificuldade no acesso aos campos de sociabilidade
enfrentadas por homens não heterossexuais no setor.

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Ambas as questões destacadas serão categorias úteis na análise dos atos


fundacionais que edificam a inteligibilidade do profissional de TI em seu mais alto
grau de potência, como será demonstrado, associadas ao gênero masculino e a
heterossexualidade.
Ao longo deste artigo, começaremos por explorar as principais razões que
contribuem para a desigualdade de gênero na tecnologia, ressaltando como o
declínio da presença feminina nesse setor está relacionado com a crescente ascensão
das tecnologias como ferramentas de poder na economia global. Além disso,
buscaremos demonstrar como a categoria "homem" não é homogênea, mas sim
multifacetada, abrangendo uma diversidade de experiências e identidades.
A principal abordagem teórica que orienta esta pesquisa deriva dos
estudos de gênero, fornecendo uma base sólida para uma exploração mais
aprofundada das questões intrínsecas à cultura organizacional da TI. A teoria da
performatividade emerge como a principal ferramenta conceitual, aplicada em
várias vertentes, como a concepção da potência performativa e a delineação dos
atos fundacionais que moldam o exercício dessa profissão.
Por meio da análise de dados quantitativos e qualitativos, reconhecendo
que o princípio subjacente às dinâmicas de poder é relacional, buscamos ao longo
deste artigo demonstrar quem detêm as ferramentas hegemônicas e em detrimento
de quem elas operam no setor de Tecnologia da Informação.

2. Metodologia
A metodologia empregada na pesquisa que resultou neste artigo consistiu
em uma abordagem que combina métodos quantitativos e qualitativos. Inicialmente,
foi feita uma exploração bibliográfica em livros e artigos de base teórica feminista a
fim de estabelecer os fundamentos teóricos que orientaram o desenvolvimento do
estudo. De acordo com Lima (2008), a pesquisa no campo bibliográfico consiste em
buscar na esfera dos artigos científicos, livros e outros documentos escritos,
conteúdos necessários para avançar nas investigações de uma temática de real
interesse do pesquisador.
Posteriormente, realizamos uma pesquisa quantitativa utilizando um
questionário misto, que combinou perguntas de roteiro fechado e perguntas abertas,
através da plataforma Google Forms. Os questionários foram distribuídos ao longo

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de 3 meses majoritariamente no Linkedin, sendo também utilizadas as plataformas


de mídia WhatsApp e Twitter para eventuais suportes. O cálculo amostral para
atingir uma confiabilidade de 95% e uma margem de erro de 5% foi baseado em dados
de 2022, obtidos pelo relatório setorial da Brasscom (2022), que relatam um total de
410.797 profissionais de TI no Brasil, o que resultou na necessidade de uma
amostragem de 384 participantes. Em nossa pesquisa, alcançamos respostas de 467
participantes voluntários.
A próxima etapa, que deu continuidade aos dados obtidos pelos
questionários, foi baseada em entrevistas em profundidade. A fim de explorar de
maneira acentuada informações e experiências dos participantes (DUARTE, 2005), a
entrevista foi o recurso metodológico escolhido para entender de forma ainda mais
consistente as dinâmicas de poder que envolvem gênero e sexualidade no setor de
Tecnologia da Informação.
A tipologia empregada foi o modelo de entrevistas semiestruturadas que,
segundo Trivinos (1990), parte de certos questionamentos básicos, apoiados em
teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo
campo de interrogativas frutos de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se
recebem as respostas do participante.
O critério inicial de seleção para as entrevistas foi o tamanho da empresa
em que os participantes estavam empregados. Optamos por entrevistar 19 pessoas
que trabalhavam em empresas de grande porte, com 250 ou mais funcionários, uma
vez que essas empresas costumam exercer um impacto mais significativo na cultura
organizacional. É relevante destacar que 81% dos participantes da pesquisa
quantitativa afirmaram estar empregados em empresas de grande porte, o que
tornou mais fácil a busca por voluntários em nossa base de dados.
A metodologia de análise das entrevistas em profundidade foi a análise de
conteúdo de Bardin. A análise de conteúdo qualitativa "considera a presença ou a
ausência de uma dada característica de conteúdo ou conjunto de características num
determinado fragmento da mensagem" (LIMA, 1994 apud CAREGNATO & MUTTI,
2006). Para realizar a análise de conteúdo com a metodologia de Bardin (CAREGNATO
& MUTTI, 2006) foram dados os seguintes passos: definição dos objetos a serem
analisados a partir das entrevistas; exploração; categorização; e análise do material
resultante. Os objetos definidos foram categorizados para identificar dois pontos

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chaves: 1) os relatos de discriminação enfrentados por mulheres no setor de TI; e 2)


as questões relacionadas às masculinidades, buscando entender como eram as
experiências de homens não heterossexuais nesse ambiente profissional.
No próximo tópico, aprofundaremos nossa análise das questões
relacionadas ao gênero e à tecnologia, contextualizando as dinâmicas que permeiam
esse setor.

3. Gênero e tecnologia
A primeira programadora de códigos foi uma mulher Matemática e escritora
inglesa, Ada Lovelace. A pioneira foi responsável, ainda na era vitoriana, por produzir
o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina (MARTINS, 2016). Segundo
relatório da Statista (2022):

Durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de mulheres programou e


operou o ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer) - o
primeiro computador programável de propósito geral do mundo - para
realizar cálculos. Os dois engenheiros homens que projetaram o ENIAC
receberam o devido reconhecimento por sua contribuição, mas as pioneiras
programadoras mulheres foram esquecidas por muito tempo.

As questões relacionadas ao gênero apresentam um desafio constante no


campo da tecnologia, abrangendo desde a supressão histórica do papel fundamental
das mulheres nessa esfera, até a notável falta de representatividade feminina no
setor de Tecnologia da Informação no cenário global atual. No Brasil, por exemplo,
os dados obtidos pela pesquisa quantitativa que desenvolvemos demonstram que as
pessoas que se identificam com o gênero feminino representam somente 27,8% do
total de trabalhadores em funções técnicas de empresas de Tecnologia da
Informação no Brasil. Entende-se por funções técnicas, os responsáveis por
desenvolvimento de sistemas, infraestrutura, suporte de TI, redes, dados, segurança
da informação, entre outros.
Conforme apontado no relatório da Statista (2022), a relevância do
software de computador na sociedade durante os anos 80, teve como reflexo direto
uma demanda significativa de profissionais qualificados nessa área. Como resultado
dessa percepção social da tecnologia como uma ferramenta de poder, "poucas
empresas estavam dispostas a colocar mulheres em tais cargos" (STATISTA, 2022).

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Estudos revelam, ainda, que a associação do monopólio da razão ao


universo masculino reforça cada vez mais o distanciamento das mulheres nesse
campo (DE SOUZA & TOSTA, 2020). Inclusive, a criação de estereótipos que associam
as tecnologias ao universo masculino é uma das justificativas para entender esses
dados. Segundo Hayes (2010), há uma correlação entre o período de crescimento
desses estereótipos, a partir de 1980, momento em que há uma cristalização dessa
área nas esferas econômicas e sociais, com a redução das mulheres em cursos de
graduação e mercado de trabalho nesse campo. Conforme dados colhidos no Brasil
pelo Censo da Educação Superior, em 2012 as mulheres representavam apenas 15%
em cursos de graduação voltados à tecnologia (CINTHO; MACHADO; MORO, 2016).
Vale ressaltar o que foi demonstrado na tese de Castro (2013) sobre o lugar
que ambos os gêneros ocupam no setor de TI no Brasil. As mulheres, no caso, ficam
mais nas áreas conhecidas como softs, isto é, ocupações que lidam mais com
questões comportamentais, como, por exemplo, relações interpessoais. Todavia,
como salientou a autora, “os homens, se concentram nas chamadas áreas hards, ou
seja, na elaboração e digitação dos códigos, na área que envolve cálculo e lógica,
ou, no código da CBO, na área de programação (CASTRO, 2013)”. Nessa mesma linha,
como ressalta o relatório da Statista (2022) "Quanto mais gerencial e técnico for o
cargo, menos provável é que uma funcionária do sexo feminino ocupe esse cargo. Ao
olhar para o topo da hierarquia corporativa, quase não se vê um rosto feminino".
Para compreendermos as questões de gênero neste contexto, vamos
começar por explorar a teoria que nos auxiliará nesse aprofundamento: a
performatividade de gênero segundo Judith Butler.

3.1. Performatividade de gênero em Judith Butler


Para Butler (2018), o gênero constitui-se como um conjunto de atos que
são reproduzidos dentro de uma estrutura rígida, que se repetem constantemente,
e acabam por se estabelecer no tempo, de forma a produzir a aparência de que são
naturalmente concebidos. Butler, ao referir-se ao conceito de gênero, fala em
performatividade, visto que performance “pressuporia a existência de um sujeito ou
um ator que está fazendo tal performance” (SALIH, 2016). Conforme a citação de
Nietzsche (1998, p. 14) utilizada por Butler em seu livro Problemas de Gênero, “não
existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção

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acrescentada à ação – a ação é tudo”, portanto, a identidade é assim,


performativamente constituída a partir das expressões de gênero, e não o contrário.
Nesse mesmo contexto, Hegel (1992) também abordou questões similares
ao afirmar que não há nada de ‘natural’ no ‘ser humano’, pois o ato de ser é
intrínseco ao tornar-se. É importante trazer aqui a visão de Borba, autor que traduz
como ocorre esse processo de “tornar-se” dentro da teoria da performatividade de
Butler:

Para a filósofa, enunciados como “é uma menina” ou “é um menino” não


simplesmente descrevem um estado de coisas anterior à enunciação, mas
fazem com que o corpo ao qual eles se dirigem entre em um processo
infindável (porém, não imutável) capturado pelas normas da matriz de
inteligibilidade de gênero. Assim, Butler coloca os indivíduos como seres
linguísticos, constituídos na linguagem e pela linguagem, pois são
compelidos discursivamente – através de enunciados como “é uma menina”
e “é um menino” – a se adequarem à gramática prescritiva do gênero que
chamamos de matriz da inteligibilidade (BORBA, 2014).

Butler (2004), entende o gênero como “uma prática do improviso no


interior de uma cena de constrangimento”. Ninguém nasce sabendo fazer gênero,
mas é interpelado por suas normas rígidas e contínuas que o condicionam para
performar um ideal esperado de acordo com determinado contexto social.
No Ocidente é comum que pais procurem descobrir o sexo biológico de
seus bebês antes do nascimento. Por exemplo, no momento da ultrassonografia,
quando pela voz do médico é revelado "é um menino!", diversos efeitos são
produzidos para fabricar a inteligibilidade desse novo ser, que começa a se efetuar
dentro do campo de sociabilidade. Há diversas formas de simbolizar esse rito
inaugural dentro desse campo. No Brasil, por exemplo, é frequente a realização do
chá de revelação, sendo comum que o menino seja representado pela cor azul e a
menina pela cor rosa. Logo que é revelado o sexo do bebê começa, por meio das
simbologias que representem em certos contextos o que é ser menino ou menina, o
processo de produção das identidades ligadas a essa revelação. Vale salientar que as
identidades são produzidas em diálogo com as normas, mas não exclusivamente por
elas, o que possibilita os espaços de agenciamento ao longo das construções
identitárias.

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Butler (2020) considera que o gênero é circunscrito dentro de uma


premissa regulatória que produz a inteligibilidade de certos processos de
generificação em detrimento de outros. Como traz Borba (2014, p.462):

[A generificação] será acompanhada por um sem-número de enunciados


tributários ao ato generificador fundacional: “é uma menina” será seguido
por “não diga palavrões”, “cruze suas pernas ao sentar”, “não pratique
esportes agressivos”, etc.; a “é um menino” segue “não chore”, “seja
forte”, “abra suas pernas ao sentar”, “fale grosso”, etc.; atos de fala que
visam conformar um corpo às normas de coerência entre sexo, gênero e
desejo que constituem a matriz de inteligibilidade (...)

Ao transpor para o universo da Tecnologia da Informação a compreensão


do gênero como "uma forma de poder social que produz o campo inteligível dos
sujeitos" (BUTLER, 2004), com efeito, cabe questionar: qual a direção dos códigos
fundacionais que moldam a potência performativa do profissional do setor de
Tecnologia da Informação?

4 A potência performativa dos códigos no setor de TI


Ao abordarmos a potência performativa dentro do setor de TI, nosso
propósito é esclarecer os distintos graus nos quais os códigos hegemônicos operam.
Para uma compreensão mais aprofundada dos diferentes níveis de funcionamento
das operações de poder na construção da inteligibilidade do profissional de TI, vamos
recorrer a um conceito crucial da linguagem de programação:

Para a informática, ainda, uma linguagem de programação pode ser de alto


nível - quando contém instruções complexas e poderosas, assemelhando-se
à linguagem natural humana - ou de baixo nível - quando suas instruções são
elementares e pouco poderosas, assemelhando-se à linguagem interna da
CPU, chamada comumente de linguagem de máquina (OLIVEIRA apud
MOURA, 2000, p. 175).

A distinção feita entre linguagem de alto nível e linguagem de nível baixo,


nesta pesquisa, transcende a linguagem processual para ilustrar o que denominamos
da potência performativa do profissional de TI. Enquanto os códigos subalternizados
representados por mulheres e homens não heterossexuais são percebidos com uma
menor capacidade performativa devido a suas atribuições básicas e de menor
influência condicionada pela não proximidade com a matriz de inteligibilidade, os

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códigos hegemônicos representados pelas masculinidades heterossexuais


constituem-se através dos poderosos efeitos de criação que englobam instruções
sofisticadas e potentes.
No entanto, compreender que a hegemonia é uma dinâmica de poder de
natureza relacional também implica compreender que os códigos hegemônicos
operam de maneiras diversas na subalternização. A seguir, abordaremos a
perspectiva de gênero, começando por discutir as questões de discriminação
enfrentadas pelas mulheres e, posteriormente, tratando das questões relacionadas
à sexualidade masculina.

4.1 Um bug generificado: uma análise das questões de gênero no setor de TI


As mensagens de erro desempenham um papel crucial ao alertar sobre
bugs nos códigos do sistema da programação. Em um contexto geral, o bug
representa uma discrepância entre o comportamento esperado de um sistema e o
comportamento real que ele exibe. No setor de TI o comportamento esperado para
um conjunto correto de instruções técnicas é o exercício da sua potência
performativa, isto é, a capacidade de criação. Entretanto, ao considerar o contexto
particular das mulheres na tecnologia, a situação é diferente.
De modo a esclarecer como ocorre a fragilidade da potência performativa
das mulheres nesse setor, iremos empregar uma abordagem análoga às ferramentas
de depuração geralmente utilizadas no setor para rastrear e corrigir erros,
permitindo verificar o estado de onde as dificuldades surgem. Primeiramente, para
elucidar o estado das coisas no setor de TI, é pertinente apontar que o desrespeito
por habilidades técnicas é o principal fator de discriminação de gênero segundo
quase 44% dos participantes do questionário da nossa pesquisa quantitativa.
Com base em nossa pesquisa, sugerimos que as interações técnicas
relatadas por mulheres no setor de TI possam ser consideradas como uma forma de
comunicação de nível mais baixo, ou seja, com um grau limitado no exercício da
potência performativa dessa profissão.
As declarações das participantes abaixo nos possibilitam rastrear os
desafios significativos relacionados ao caráter fragilizado da subalternização dos
códigos femininos:

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Quando o assunto é extremamente técnico, percebo que ainda é necessário


ter uma presença masculina para validar, mesmo que haja dados para
embasar o argumento. Isso é especialmente relevante em interações com
alto escalão ou ao se apresentar para diretores. (Participante oito, 13 de
junho de 2023).

Algo que acontece muito é quando uma tech leader mulher precisa
comprovar muito mais suas soluções do que os homens com o mesmo nível
de conhecimento. Ela precisa se esforçar para que suas opiniões sejam
aceitas e respeitadas, enquanto os homens têm suas ideias mais facilmente
acolhidas. (Participante sete, 5 de junho de 2023).

Os relatos acima são alguns exemplos que evidenciam a baixa eficácia


performativa que as mulheres exercem no setor de TI, uma vez que frequentemente
precisam validar suas ações junto aos homens. Como podemos observar nesse
recorte, esta operação de poder ocorre especificamente com as mulheres, e
considerando a linguagem técnica a principal ferramenta dessa profissão, podemos
inferir que as mulheres detêm os graus de menor índice performativo nesse setor.
Essa ferramenta de análise nos propicia notar como operam as dinâmicas
de poder nesse setor e como a questão de gênero é o principal problema que assola
as avenidas identitárias dessa profissão. Ao refletirmos sobre as questões referentes
às mulheres nesse setor, tomando emprestado a metáfora das avenidas de Kimberley
Crenshaw (2002): as mulheres de TI não estão habilitadas a dirigir livremente nos
cruzamentos dessa profissão. Cabe também destacar que não abordamos, devido aos
limites inerentes à pesquisa, as questões de outros marcadores sociais da diferença,
como raça e classe social. Porém, entendemos que as opressões se somatizam, o que
dificulta ainda mais a inserção de determinados marcadores sociais nos trânsitos
desse exercício identitário.
Entretanto, abordamos questões relacionadas à sexualidade e, como
veremos a seguir, discutiremos as dinâmicas das masculinidades nesse setor para
questionar a noção universal da hegemonia masculina nessa profissão.

4.2 Tirando os códigos do armário: uma análise dos campos de sociabilidade


dos homens não heterossexuais no setor de TI.
A definição de "homem", como apresentada por Kimmel (1987), é uma
construção social que varia de cultura para cultura, influenciada por fatores laborais,
étnicos, raciais e geracionais (ECCEL; GRISCI, 2011). Partindo dessa compreensão e

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entendendo que a sexualidade é um marcador da diferença que é produzido


culturalmente, podemos interpretar que a sexualidade é também um elemento
distintivo que contribui para a diferenciação de grupos identitários em nossa
sociedade.
Ampliando essa perspectiva para o âmbito da Tecnologia da Informação,
iremos explorar as dificuldades dos homens não heterossexuais nos acessos aos
campos de sociabilidade nesse setor, a que nos referimos como uma linguagem de
baixo nível, em um setor predominantemente heterossexual, devido ao seu menor
alcance. Os relatos abaixo elucidam alguns desses entraves:

Isso pode ser um entrave, pois as conversas desse grupo giram em torno de
temas que não me interessam, como carros, futebol, entre outros. Minhas
afinidades são diferentes, gosto de Ru Paul Drag Race, e os caras não sabem
nem o que é uma Drag. Essas vivências diferentes criam barreiras na
interação, tornando mais fácil conversar e me sentir melhor com mulheres.
Assuntos como moda, cabelo e maquiagem nos conectam. (Participante
nove, 30 de maio de 2023).

Foi o que eu disse, por exemplo, na área de TI, normalmente encontramos


homens formados em engenharia e carreiras mais técnicas. No entanto,
percebo que muitos gays preferem buscar outras carreiras. Poucos gays
costumam estar presentes em salas de aula de engenharia, o que sugere que
essa escolha pode estar relacionada ao que desejamos para o nosso futuro.
(Participante doze, 02 de junho de 2023).

As falas dos entrevistados acima, como "minhas afinidades são diferentes,


gosto de Ru Paul Drag Race, e os caras não sabem nem o que é uma Drag" e "poucos
gays costumam estar presentes em salas de aula de engenharia, o que sugere que
essa escolha pode estar relacionada ao que desejamos para o nosso futuro"
demonstram como a produção social do gosto é performada para construir categorias
binárias opostas, de modo a intensificar as diferenças entre grupos socialmente
dominantes e minoritários (BOURDIEU, 1987).
Como salientado por Butler, há uma sexualidade constitutiva do gênero, que
vai produzir uma legitimidade ao desejo heteronormativo, bem como uma não
legitimação ao desejo homossexual, com "piadas e desmoralizações que
frequentemente ocorrem", como relatado pelo participante a seguir:

No meu ponto de vista, o ambiente de trabalho é um meio onde muitas


pessoas acabam escondendo sua orientação sexual devido ao preconceito,

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piadas e desmoralizações que frequentemente ocorrem. Na empresa em que


estou atualmente, não conheço ninguém que seja abertamente gay. Mas, no
meu emprego anterior, trabalhei diretamente com um Product Owner (PO)
desde o primeiro dia. Conforme nossa amizade se desenvolvia, percebi que
ele era uma pessoa que se posicionava a favor da abertura para encarar
dificuldades relacionadas ao preconceito. Mesmo assim, ouvíamos piadas
relacionadas à sexualidade por parte de colegas mais velhos, com idades
entre 50 e 60 anos. Essas piadas não eram direcionadas diretamente a ele,
mas causavam desconforto. Não tenho certeza se eles sabiam que nosso
colega era gay ou se simplesmente não se importavam em esconder, né?
(Participante dezenove, 12 de junho de 2023).

O relato acima evidencia como a construção do poder normativo,


exemplificado pelo desejo heterossexual, em contraste com o desejo homossexual
considerado desviante, impacta a experiência de homens não heterossexuais. Eles
enfrentam dificuldades ao discutir abertamente sua sexualidade e ao acessar espaços
de convívio dominados pela matriz heteronormativa do setor de Tecnologia da
Informação. Importante ressaltar que, como Wittig aponta, o sistema heterossexual
funciona como um dispositivo social dentro da matriz de inteligibilidade (WITTIG,
1980).
Podemos observar também que muitas vezes minorias sociais formam
alianças por estarem em posições fora da matriz normativa, o que acaba por instituir
diferentes condições precárias ao exercício dessa profissão. Como relataram algumas
entrevistadas:

E foi bem tenso, assim, bem solitário. Ainda assim, tive a sorte de fazer
amizade com alguns gays que se tornaram meus melhores amigos até hoje.
Isso me isolou do restante da turma, que apresentava preconceitos que eu
não aceitava, e acabei não fazendo amizades com todos. Percebi que, nesse
ambiente, tinham grupinhos fechados que compartilham interesses comuns.
(Participante três, 05 de junho de 2023).

É a mesma coisa, a mesma coisa na verdade, em relação a piadas machistas


e coisas assim. Tipo de falar isso aí é coisa de mulher. E aí, não considerando
no caso que por serem gays essas piadas podem ofender. Não sei se expliquei
direito, mas tipo, é, mas nesse sentido agora de capacitação técnica assim,
tipo no caso do exemplo do técnico que eu dei, eu acho que eu não, porque
ele confia no técnico homem e não numa técnica mulher (Participante um,
3 de junho de 2023).

A análise dos relatos, tanto das mulheres quanto dos homens não
heterossexuais, evidencia uma variedade de níveis em que o poder opera. Embora se

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possam perceber vantagens amplas para os homens nesse setor, é essencial notar
que existem nuances de subalternização internas às próprias masculinidades. Esta
reflexão assume significância, pois frequentemente, ao abordar a hegemonia no
setor, a tendência é focalizar nos homens como uma categoria universal. No entanto,
é crucial questionar a universalização das categorias identitárias, compreendendo
que o poder desempenha diferentes papéis nos diversos fragmentos da sociedade.

5 Considerações finais
Considerando os elementos discutidos ao longo deste artigo, podemos
compreender a complexidade das dinâmicas de gênero e sexualidade que permeiam
o cenário do setor da Tecnologia da Informação no Brasil. Ao explorar as nuances do
setor, este estudo mergulhou nas operações de poder, revelando uma compreensão
mais profunda das dinâmicas de gênero e sexualidade que se manifestam nessa
conjuntura. Nessa investigação, ficou evidente a interseção entre o poder dominante
masculino e heteronormativo, com os códigos subalternizados das mulheres e
homens gays nesse cenário.
As lentes de gênero e sexualidade nos possibilitaram delinear os atos
performativos no exercício identitário da profissão de TI, indicando que altos níveis
de potência performativa estão relacionados à produção generificada e
heteronormativa desse exercício identitário.
Por conseguinte, esta pesquisa contribui para a compreensão de que as
masculinidades hegemônicas, ancoradas na heterossexualidade, marginalizam e
subalternizam em diferentes proporções mulheres e homens não heterossexuais. A
reflexão sobre essas questões possibilita o direcionamento de ações e políticas que
visem a desconstrução dos códigos hegemônicos, fomentando um ambiente
tecnológico mais inclusivo, igualitário e diversificado. Ao desafiar e reformular esses
códigos, conseguiremos superar algumas barreiras que mantêm as desigualdades de
gênero e sexualidade no setor de TI, transformando-o em um ambiente propício para
os agenciamentos de diversas identidades.
A figura abaixo (1), representa a construção de uma nuvem de palavras
realizada após os relatos voluntários de 192 participantes que descreveram um perfil
homogêneo de homens no setor de Tecnologia da Informação. As palavras mais
frequentemente citadas foram: classe média, homens, heterossexuais, branco e cis.

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Figura 1 — Cartografia dominante do setor de TI

Fonte: O autor (2023).

A imagem que propomos acima (1) é a cartografia do que chamamos de


masculinidades hegemônicas no setor de Tecnologia da Informação no Brasil. A figura
em questão trouxe uma importante reflexão para a pesquisa, que apesar dos insights
valiosos obtidos, apresenta algumas limitações. Uma delas reside na ausência de uma
análise que considere de forma mais abrangente as questões interseccionais, como
classe e raça no contexto do setor de Tecnologia da Informação no Brasil. A
interseção desses fatores pode agregar uma dimensão ainda mais profunda às
dinâmicas de gênero e sexualidade discutidas neste estudo, destacando como as
desigualdades podem ser agravadas pela interação de diferentes sistemas de
opressão. Reconhecer essas limitações não apenas proporciona um espaço para
futuras investigações mais abrangentes, mas também destaca a complexidade e a
multidimensionalidade das questões abordadas.
Além disso, é relevante mencionar que a pesquisa em questão resultou em
um novo estudo que está sendo conduzido pelo Centro de Estudos Brasileiros da
América Latina (CBEAL), com o objetivo de investigar o papel das mulheres negras
no setor de Tecnologia da Informação no Brasil. Essa vertente da pesquisa irá abordar
lacunas adicionais e contribuir para uma compreensão mais completa das
experiências das mulheres negras neste contexto.
Em última análise, este estudo quebra os códigos hegemônicos no setor de
TI, evidenciando a necessidade de desconstrução das narrativas hegemônicas em prol
de um ambiente mais inclusivo e diversificado. A conscientização sobre as dinâmicas
de gênero e sexualidade no campo da tecnologia é um passo crucial para a

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transformação desse cenário e para a construção de novos códigos que possam


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