Você está na página 1de 16

9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.

e2xxxx

As múltiplas faces do horror: o gótico e a weird fiction


em Junji Ito1

The multiple faces of horror: the gothic and the weird


fiction in Junji Ito

Luis Felipe Salviano2


Universidade Estadual do Rio de Janeiro

10.11606/2316-9877.Dossiê.2023.e216478

Resumo
O quadrinista japonês Junji Ito se mostra bastante influenciado pela literatura,
como pode ser comprovado a partir de entrevistas e de seu próprio trabalho que
conta, inclusive, com algumas transposições de obras literárias. Contudo, nosso
foco aqui recai em uma outra forma de diálogo entre os meios, abordando certos
paralelos que podem ser estabelecidos com duas obras literárias. O artigo
consiste em uma análise comparativa entre uma história do quadrinista, Nagai
aYume (Um Longo Sonho), e dois contos de horror: Dream of a Manikin, de
Thomas Ligotti, e Der Sandmann, de E.T. A. Hoffmann. Pretende-se, com isso,
identificar ressonâncias da literatura de horror nas criações do quadrinista, bem
como investigar como é feita a transposição de determinadas “atmosferas”.

Palavras-chave: Mangá. Histórias em quadrinhos. Horror. Literatura. Junji Ito


(autor).

Abstract
Japanese comic artist Junji Ito is much influenced by literature, as can be seen
in his interviews and his work, which even includes some adaptations of literary
works. However, our focus is on another form of dialogue between different
media, addressing certain parallels that can be established with two literary

1
Apresentado na Sessão Temática 10 - “Quadrinhos, Artes e Mídia”, modalidade remota, em 22
ago. 2023. Apresentação disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uAyQ4ZWQPB0.
Acesso em: 06 nov. 2023.
2
Mestrando em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista
da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES). Possui
graduação em Letras - Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ, 2021). Organizador do Simpósio Discente Territórios, Tecnologia
Cultura – TETECUL no PPGCOM-UERJ. Membro do grupo de pesquisa "POPMID: Reflexões
sobre Gêneros e Tendências em Produções Midiáticas". Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2848998824048857. Email: lfsalviano@hotmail.com. ORCID iD:
https://orcid.org/0009-0001-5558-9858.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


1
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

works. This article consists of a comparative analysis between Ito’s short story
Nagai Yume (Long Dream), and two horror stories: Dream of a Manikin, by
Thomas Ligotti, and Der Sandmann, by E.T. A. Hoffmann. The aim is to identify
resonances of horror literature in the comic artist's creations, as well as to
investigate how certain “atmospheres” are transposed between different media.

Keywords: Manga, Comics. Horror. Literature. Junji Ito (author).

Introdução

A ficção de horror encontra-se em um período prolífico. Presente em mídias tão


diversas como literatura, cinema, histórias em quadrinhos, pinturas e jogos
eletrônicos, narrativas dessa natureza possuem uma longa história, que
remonta, segundo França (2022, p. 55), a textos como o Livro das Revelações
da Bíblia. Contudo, o horror como gênero literário nasce na segunda metade do
século XVIII, sendo produto do romance gótico (Carroll, 1999, p. 16). Atualmente,
há obras de horror em várias expressões artísticas, como é o caso das histórias
em quadrinhos. Entre os criadores de destaque, um nome que emerge é o do
japonês Junji Ito. Este autor tem obtido uma popularidade crescente, que se
reflete no aumento da demanda por suas obras: após anos de escasso material
em português, desde 2020 o autor vem sendo publicado por diversas editoras,
como Pipoca & Nanquim, Devir e Darkside. As criações de Ito, como veremos,
estão enraizadas no supracitado estilo gótico e na categoria literária conhecida
como weird fiction, termo popularizado por H.P. Lovecraft em seus escritos e
correspondências, embora não tenha sido cunhado por ele.
Weird fiction é um termo sem definição exata, como apontado por S.T.
Joshi (2017, p. 2). Abarca diferentes obras e autores que possuem em comum
apenas o fato de lidarem com elementos e/ou seres extraordinários. No entanto,
é possível encontrar uma tentativa de definição na Encyclopedia of Science
Fiction (2005), que vai afirmar que:

A distinção entre fantasia e ficção científica não estava tão


clara nos anos 1930 como veio a estar em tempos
recentes. A weird fiction pode envolver vampiros, fadas ou
aliens, e a atmosfera costuma ser mais importante do que

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


2
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

o cenário ou o enredo (D’Amassa, 2005, p. 336, tradução


nossa).3

De fato, a noção de atmosfera é bastante abordada por Lovecraft em seu


ensaio O horror sobrenatural em literatura, publicado originalmente em 1927. O
escritor define a weird fiction por acarretar o que ele chama de “senso de pavor”
(Lovecraft, 2008, p. 18), e por evocar certa atmosfera, geralmente ligada ao
onírico e ao estranho. De modo similar, o filósofo Noël Carroll postula uma
diferença entre o “pavor artístico” e o “horror artístico” (Carroll, 1999, p. 63),
sendo o primeiro ligado a eventos sobrenaturais e inexplicáveis, e o segundo a
monstros.
Nesse sentido, é útil trazer o conceito de Stimmung, abordado por Hans
Ulrich Gumbrecht (2008). Não existe uma palavra em português que abarque
todas as possibilidades que o autor sugere com esse conceito, mas, segundo a
edição online do dicionário Michaelis, entre suas traduções mais comuns estão
os termos atmosfera, ambiência, clima e humor (Stimmung, 2016). Segundo o
autor, um texto não nos afeta apenas a partir da relação entre os seus
significados e a realidade material fora do texto, mas nos afeta também de forma
sensorial, sendo essencial olhar para as diversas sensações que um texto pode
produzir no leitor: um texto é capaz de “envolver” o leitor fisicamente e
emocionalmente (Gumbrecht, 2008, p. 216). É esse efeito sensorial que o autor
chama de Stimmung, que teria a ver, segundo ele, com os diversos cheiros,
cores, ruídos, sabores e “mudanças climáticas” que um texto pode evocar nos
leitores (Gumbrecht, 2008, p. 216). Inês Gil (2005, p. 17) também aborda essa
noção, embora proponha uma teoria mais voltada ao meio audiovisual. Para a
autora, a atmosfera está no domínio psíquico e afetivo, e se relaciona à nossa
memória.
Por outro lado, o já citado Noël Carroll, em A filosofia do horror ou
Paradoxos do coração (1999), apresenta uma visão do sentimento de horror que
ele chama de horror artístico, que se opõe aos horrores naturais (por exemplo,
desastres ecológicos e guerras). O horror artístico é o horror que “serve de nome
a um gênero que atravessa várias formas artísticas e vários tipos de mídia, cuja

3
The distinction between the fantasy and science fiction genres was not as clear-cut in the 1930s
as it has become in recent years. Weird fiction could involve vampires or fairies or aliens, and
atmosphere was often more important than setting or plot.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


3
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

existência já é reconhecida na linguagem ordinária” (Carroll, 1999, p. 27). Este


visa provocar determinadas emoções no público a partir de determinados
elementos ou situações. Essas situações incluem a presença dos monstros ou
as próprias reações das personagens, que, segundo o autor, fornecem
instruções “sobre a maneira como o público deve responder aos monstros da
ficção” (Carroll, 1999, p.33). No horror artístico, monstros são vistos pelas
personagens como impuros ou sujos; isso provoca uma série de reações nas
personagens, que por sua vez refletem na reação do leitor/espectador.
Aliando essas teorias, é possível afirmar que o horror, por pretender
causar determinadas emoções no leitor/espectador, se vale de recursos
sinestésicos de forma a criar uma ambiência amedrontadora, além de apresentar
personagens assustadas, angustiadas, enojadas etc. diante de figuras vistas
como monstruosas.
A partir disso, este artigo pretende fazer uma análise comparativa entre o
conto Nagai Yume (長い夢), de Ito, publicado em português com o título Um
longo sonho pela editora Pipoca & Nanquim (coletânea Calafrios, 2022) e os
contos Der Sandmann (publicado em 1817) de E.T.A. Hoffmann, conhecido no
Brasil como O homem de areia (Hoffman, 2019) e Dream of a manikin, de
Thomas Ligotti (1985). Buscamos investigar como o quadrinista Junji Ito
consegue atualizar e ressignificar gêneros clássicos do horror como o gótico e a
weird fiction, partindo da noção de atmosfera e dos pressupostos de Carroll. Ao
estudar sua relação com a literatura, compreenderemos como o autor faz para
transpor a atmosfera dessas histórias para seus mangás. No que diz respeito à
análise da narrativa dos quadrinhos, buscamos, também, o auxílio de alguns
conceitos de Groensteen (2015).
Começamos por um resumo da narrativa de Ito para, em seguida,
destacar alguns apontamentos sobre seus elementos. Depois, apresentamos um
resumo breve da narrativa de Ligotti e elencamos os pontos de convergência
entre as duas narrativas, privilegiando os aspectos que cada tipo de linguagem
possui para a criação dessa atmosfera. Na etapa seguinte, utilizamos a mesma
metodologia empregada para abordar o conto de Hoffmann. Esse texto pretende
demonstrar certas similaridades em estratégias de criação de atmosferas do
gênero do Horror dos dois contos apontados ressonando na narrativa de Junji
Ito.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


4
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

1 – Horror multifacetado

Nagai Yume se passa em um hospital, centrando-se em dois pacientes: Mami e


Mukouda. Mami possui um medo obsessivo da morte, algo que piora após ela
se assustar com outro paciente: trata-se de Mukouda, que chegou ao hospital
com queixas de ter sonhos muito longos. Ele tem a impressão de que seus
sonhos duram anos, séculos ou milênios e sente como se vivesse esse tempo
dentro dos sonhos. Conforme o médico Kuroda investiga, percebe que a duração
dos sonhos aumenta cada vez mais. O rapaz sempre acorda falando de um jeito
diferente do dia anterior, “como se o pensamento dele tivesse se perdido numa
outra dimensão, num universo diferente do nosso” (Ito, 2022, p. 202).
Mudanças corporais começam a ocorrer com Mukouda, que adquire uma
aparência monstruosa e faz com que Mami tenha um colapso, já que acredita ter
visto a morte encarnada. Posteriormente, o corpo de Mukouda se dissolve e se
torna pó, o que leva o médico a levantar a hipótese de que o espírito havia
deixado seu corpo e ficado preso no sonho. Uma substância desconhecida em
forma de cristais é encontrada no cérebro de Kuroda. Ao fim, o médico administra
a substância em Mami e justifica o ato dizendo que a moça tinha muito medo de
morrer, e isso seria uma forma de fazê-la viver para sempre. Diante do assombro
de seu assistente, o médico cogita a possibilidade de criar uma tecnologia capaz
de fazer a humanidade ter sonhos eternos, o que eliminaria para sempre o medo
humano da morte.
É importante ressaltar, em primeiro lugar, como a própria temática do
conto é importante na criação de uma atmosfera de inquietação e pavor.
Questões existenciais são levantadas a partir do insólito e de situações
inexplicáveis. O que move o conto é a insegurança acerca da natureza da nossa
realidade, sentimento compartilhado pelas personagens e pelo leitor, o que vai
ao encontro da afirmação de Carroll de que o horror artístico se baseia nessa
sinergia entre leitor e personagens. Esse senso de pavor vem do medo do que
é incompreensível, como descrito por Lovecraft (2008, p. 13). Em relação à
narrativa, a história termina sem uma explicação lógica para os estranhos
acontecimentos narrados. A falta dessa explicação é um elemento narrativo
importante para reforçar a atmosfera inquietante, já que fortalece o sentimento

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


5
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

de ruptura da ordem natural. A inquietação é criada a partir de elementos


estéticos e narrativos caóticos que mergulham o leitor em um mundo onírico. Em
seu livro A atmosfera no cinema, Inês Gil (2005), postula diferenças primordiais
entre as atmosferas de natureza onírica e as de natureza realista. Segundo a
autora,

O que diferencia as duas atmosferas é o naturalismo da


atmosfera da realidade, cuja função aproximar-se o mais
possível das atmosferas que existem no mundo real
enquanto que a atmosfera onírica tem sempre um efeito
artificial. (Gil, 2005, p. 47).

Ainda segundo a autora, atmosferas oníricas buscam “recriar um universo


que ultrapasse o nosso entendimento (como o do sonho, ou da ficção científica)”
(Gil, 2005, p. 48). Nagai Yume é constituído por uma atmosfera de tal natureza.
É como se existisse algo, uma entidade, energia ou aura, invisível ou
incompreensível tanto aos personagens quanto ao leitor, que exerce algum tipo
de influência oculta sobre os eventos narrados, mas que não obedece a
nenhuma ordem ou norma, sendo apenas uma manifestação do caos e entropia.
Como exemplos de elementos estéticos que reforçam esse sentimento, temos
os sombreamentos e a própria ausência de cores – retornando a Inês Gil (2005,
p. 60), a autora concorda que o preto e branco costuma conferir uma atmosfera
de onirismo às obras. Histórias dessa natureza também são abordadas por
Carroll, que as caracteriza como “histórias de pavor” (Carroll, 1999, p. 64). Esse
tipo de narrativa busca a fonte do horror em eventos misteriosos:

O acontecimento misterioso que remata essas histórias


causa uma sensação de incômodo e de assombro, talvez
de momentânea angústia e de pressentimento. Esses
acontecimentos são feitos para levar retoricamente o
público a ter a ideia de que forças não reconhecidas,
desconhecidas e talvez ocultas e inexplicáveis governam o
universo (Carroll, 1999, p. 64).

Carroll faz questão de diferenciar, contudo, esse tipo de história de horror


das histórias de horror focadas no monstro. Como já dito, a esta última ele dá o
nome de “horror artístico”, enquanto a primeira é classificada como “pavor
artístico”. Como veremos, a narrativa de Junji Ito possui traços de ambas, já que

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


6
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

a mutação física de Mukouda o transforma em uma figura monstruosa, mas


quem ou o que causa essa mutação é algo que está além da nossa
compreensão.
Em relação aos aspectos formais, faz-se útil analisar a primeira página do
quadrinho para se ter uma noção de alguns elementos usados na composição
dessa atmosfera. Lembremos que a leitura ocorre da direita para a esquerda,
assim como em outros
quadrinhos japoneses. A Figura 1 – Mami

personagem Mami
encontra-se deitada em
uma cama de hospital.
Sua expressão de
desespero é notória nos
dois primeiros quadros,
em especial no segundo,
em que há um
enquadramento em
detalhe de seu rosto,
permitindo que a
personagem “guie” a
reação do leitor, como
postulado por Carroll
(1999). Ao mesmo
tempo em que a
expressão facial sugere
que há algo errado, o
sombreamento aplicado
ao rosto da personagem
no segundo quadro
evoca uma sensação de
confusão mental que Fonte: Ito, 2022, p. 289. Acervo dos autores.

permeará a narrativa
(figura 1).

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


7
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Aqui é importante olhar para a forma como se dispõe o sistema espaço-


tópico, segundo Groensteen (2015). Para o teórico, histórias em quadrinhos
consistem em um sistema em que os diversos elementos (quadros, balões,
sarjetas etc.) interagem entre si, formando um artrologia, ou seja, uma
interdependência entre as partes. Portanto, a disposição e o tamanho de cada
quadro são significativos. No caso dos dois primeiros quadros, o autor emprega
a técnica de criar dois painéis com dimensões quase idênticas (em altura e
largura), a fim de retratar dois pontos de vista distintos da personagem. Por terem
as mesmas dimensões, isso cria uma sensação semelhante à de uma câmera
se aproximando.
Nesse contexto, também é relevante considerar a perspectiva de
Groensteen sobre um aspecto inerente à natureza das histórias em quadrinhos:
a presença de lacunas. Embora o autor reconheça que, como filmes e séries, os
quadrinhos representam uma forma narrativa predominantemente visual, eles se
distinguem por conter "fragmentos" de um universo que o leitor precisa
reconstruir (Groensteen, 2015, p. 19). Em outras palavras, não se trata de uma
narrativa com imagens em movimento, como nos filmes e nas séries, mas sim
de uma narrativa composta por imagens estáticas e fragmentadas. Há espaços
vazios entre cada imagem, e o sistema espaço-tópico auxilia na reconstrução
desses espaços. Por exemplo, entre os dois primeiros quadros, o leitor
“reconstrói” o movimento de zoom que uma câmera cinematográfica realizaria.
Portanto, na figura 1, destaca-se o fato de que o terceiro quadro se diferencia
em termos de formato e tamanho em relação aos dois anteriores, indicando o
que seria uma mudança de plano e perspectiva da “câmera”.
Outra cena relevante é a sequência que revela o estado físico mórbido de
Mukouda (figura 2). O médico Kuroda caminha junto de seu assistente, enquanto
fala sobre a gradual mudança física do paciente, afirmando que “é como ver a
evolução da humanidade no decorrer de um longo período histórico” (Ito, 2022,
p. 303). Após isso, os dois entram no quarto.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


8
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Figura 2 – Antes da virada de página.

Fonte: Ito, 2022, p. 303. Acervo dos autores.

Aqui, Ito utiliza uma de suas principais estratégias para criar tensão: a
virada de página. Nos quadros apresentados acima, Ito cria uma atmosfera de
tensão, já que o médico convida seu amigo (e o leitor) para ver o estado físico
de Mukouda, gerando apreensão em relação ao que será mostrado em seguida.
Essa sequência ocorre na página que precisa ser virada. Ao virar a página,
somos apresentados à mórbida aparência de uma pessoa cuja mente vagou pelo
universo durante milhares de anos.
Nota-se que Ito prioriza a representação da figura mórbida em detrimento
das outras personagens. A riqueza de detalhes é maior na representação do
monstro, que é mostrado da cintura para cima no primeiro quadro, e em seguida,
temos um enquadramento em detalhe de seu rosto.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


9
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Esse é um ponto de
Figura 3 –; Mukouda transformado.
virada na narrativa, já que,
até então, nenhum
elemento fantástico ou
sobrenatural havia sido
apresentado de forma
gráfica e explícita. A
narrativa, até então,
transitava entre a lucidez e o
delírio, deixando dúbia a
credibilidade dos relatos de
Mukouda. Havia sugestões
de que algo estava errado e
uma atmosfera inquietante
apresentada de forma sutil.
O que Ito apresenta, por fim,
é um pesadelo narrativo e
visual que persiste até o
final, e que não exige uma
explicação lógica, já que
emula a natureza
fragmentada e desordenada Fonte: Ito, 2022, p. 304. Acervo dos autores.

de um sonho.

2 – Sonhos com manequins

Junji Ito já afirmou em entrevistas ter sido influenciado por H.P. Lovecraft (Chik,
2019). Dito isso, não é difícil traçar um paralelo com outros autores associados
à weird fiction, como Thomas Ligotti, e identificar semelhanças entre suas
histórias, resguardadas as diferenças entre meios. Faremos então uma
comparação com o conto Dream of a manikin, de Ligotti, de forma a identificar
quais recursos são utilizados para a construção da atmosfera de horror em
mídias diferentes e como essas atmosferas são transpostas.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


10
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Dream of a Manikin é narrado em primeira pessoa por um psicólogo, a


partir de uma carta dirigida a uma segunda personagem, também psicóloga. A
narrativa é focada em uma paciente chamada Amy Locher, uma gerente de
empréstimos que fora encaminhada ao narrador por sua colega. Amy alega ter
pesadelos perturbadores em que ela é uma vendedora de loja de roupas
encarregada de vestir os manequins. Nos sonhos, conforme se aproxima do
trabalho, “ela é sobrecarregada por uma ansiedade amorfa sem fonte específica
(Ligotti, 2005, tradução nossa4). Após voltar para casa, deita-se em sua cama e
dorme novamente, o que faz com que outro sonho ocorra dentro desse sonho.
No novo sonho, ela está em seu quarto, mas uma versão diferente e dimorfa em
que tudo parece um uma peça de teatro. Amy alega sentir um silêncio pesado,
que “de alguma forma ‘eletrifica’ o sonho com estranhas correntes de força
sinalizando uma presença demoníaca oculta” (Ligotti, 2015, p. 47, tradução
nossa5).
O sonho prossegue até Amy perceber que o local está repleto de bonecas
que parecem humanas. Após sentir uma presença e se virar, o sonho acaba. Em
estado de choque, Amy olha para a parede branca atrás dela. Para sua surpresa,
ela vê na parede o rosto de um manequim feminino, que gradualmente se dissipa
até desaparecer. Amy solta um grito intenso e assim termina o sonho e eventos
relacionados a ele. Um senso de irrealidade toma conta da moça, que começa a
questionar sua própria identidade. Após ser hipnotizada, revela sentir uma figura
oculta em seu sonho, o chefe da loja de roupas que, no sonho, é interpretado,
como em uma peça, pela esposa do narrador.
Após Amy não comparecer a uma sessão agendada, o narrador suspeita
da veracidade de seus relatos e resolve investigar. Segue até o endereço
residencial fornecido por Amy, mas descobre que é, na verdade um endereço
comercial – uma loja de roupas. Para sua surpresa, o manequim na vitrine veste
o mesmo vestido xadrez que Amy usava na sessão que tiveram. O narrador
passa, então, a ter sonhos perturbadores e, no desfecho, o conto sugere a
existência de entidades incompreensíveis e malignas que manipulam a raça
humana e são acessadas através dos sonhos.

4
(…) she is overwhelmed by an amorphous anxiety without a specific source.
5
(…) somehow ‘electrifies’ the dream with strange currents of force betokening an unseen
demonic presence.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


11
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Trata-se, portanto, de uma história com elementos do pavor artístico


descrito por Carroll (1999). Isso é evidenciado pelas próprias escolhas lexicais
do autor durante o texto, já que é frequente, por exemplo, o uso da palavra
something (algo). Há a presença de entidades ou forças ocultas e indefinidas
que exercem algum tipo de influência maligna, o que é realçado pelo estilo do
conto, que se empenha em empregar uma linguagem que evoca imprecisão e
indefinição. Além disso, o horror é construído vagarosamente, algo visto em
passagens como “Outra vez nossa sonhadora experimenta um pavor
premonitório de algo desconhecido” (Ligotti, 2015, p. 47, tradução nossa 6). O uso
da linguagem a favor do horror também se faz presente quando o texto evoca
silêncios, sombras, sentimentos de irrealidade e uma “ansiedade amorfa sem
fonte específica”, como visto nos excertos já apresentados. Estes elementos
“envolvem” o leitor em uma Stimmung (ou atmosfera) de estranhamento, nos
termos de Gumbrecht (2008). Por outro lado, os elementos do horror artístico
também estão presentes, já que existe uma centralidade na figura dos monstros,
que aparecem nas formas dos manequins ou das entidades incompreensíveis,
e estes monstros preenchem as características que, segundo Carroll, são
necessárias em uma história de tal natureza: são impuros, sobrenaturais e letais
.
3 – Der Sandmann, de E.T.A. Hoffmann: um gótico weird

Embora a noção de weird fiction tenha se solidificado apenas no final do século


XIX, escritores ligados à corrente gótica já exploravam ideias que mais tarde
viriam a caracterizar esse tipo de narrativa. Traços como a confusão entre sonho
e realidade ou atmosferas inquietantes com desfechos dúbios já estavam
presentes em autores anteriores, de forma que Lovecraft (2008, p. 61) apontava
Edgar Allan Poe como um notável precursor desse estilo de ficção. Contudo,
antes de Poe, traços desse tipo de literatura já apareciam em outros lugares. Na
Alemanha, no início do século, despontava E.T.A. Hoffmann, figura de destaque
na literatura do país, reconhecido por Otto Maria Carpeaux como um "gênio do
conto gótico" (Carpeaux, 2008, p. 1478). Já segundo David Punter, “Hoffmann
apresenta uma remodelação psicológica dos temas góticos, explorando sonhos,

6
Once again our dreamer experiences a premonitory dread of something unknown.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


12
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

duplos e insanidade” (Punter, 2004, p. 127), o que significa dizer que Hoffmann
já apontava em direção aos caminhos que a literatura de horror tomaria mais
tarde, a partir de Poe, Lovecraft e seus seguidores.
O conto Der Sandmann é um dos melhores exemplos desse tipo de
remodelação psicológica apontada por Punter. A trama segue o paranoico
Natanael que, ao longo de sua vida, acredita estar sendo perseguido pela figura
do Homem de Areia, personificado pelo amigo de seu pai, o advogado Coppelius.
Trata-se de uma figura do folclore europeu que, segundo as lendas, sequestrava
crianças que se comportavam mal e jogava areia em seus olhos. Traumatizado
após ouvir essa história de sua mãe, Natanael passa a associar essa figura ao
amigo de seu pai, sobretudo após seu pai morrer em circunstâncias misteriosas
numa explosão. Após isso, Coppelius desaparece, e Natanael, já adolescente,
fica noivo de uma moça chamada Clara. Após ir estudar física em outra cidade,
encontra um vendedor de barômetros chamado Giuseppe Coppola, e acredita
se tratar do advogado amigo de seu pai. A partir desse ponto, eventos cada vez
mais insólitos começam a ocorrer.
A atmosfera onírica é reforçada por elementos narrativos como a
presença de Olímpia, uma estranha boneca por quem Natanael se apaixona e
acredita se tratar de uma humana. No âmbito estilístico, a descrição que
Natanael e os outros personagens fazem de Olímpia é um exemplo de como
criar uma atmosfera inquietante, já que, segundo o rapaz, ela “tinha o olhar de
tal modo parado que parecia não enxergar, era como se estivesse dormindo de
olhos abertos. Aquilo me provocou mal-estar, de modo que me afastei em
silêncio e fui para o anfiteatro ao lado.” (Hoffmann, 2019, p. 16). A patente apatia
da moça parecia chocar também outros personagens, que comentam sobre sua
“inércia e mudez cadavéricas” (Hoffmann, 2019. 32) e que “apesar da bela
aparência exterior, atribuíam [a Olímpia] uma estupidez incurável e, com isso,
pretendiam explicar por que Spallanzani a tinha mantido reclusa durante tanto
tempo.” (Hoffmann, 2019, p. 32). A moça se trata, como já dito, de uma autômata,
criação do professor de física de Natanael, Spallanzani, junto com o vendedor
de barômetros Coppola.
A vida de Natanael é marcada por obsessões. De um lado, a obsessão
pelo advogado Coppelius, que é visto pelo protagonista como a encarnação de
algum tipo de força cósmica capaz de fazer-lhe o mal. De outro, a obsessão por

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


13
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

Olímpia, cuja apatia e embotamento emocional, características inclusive opostas


às de sua noiva Clara, parecem exercer certo fascínio ao protagonista. De modo
semelhante ao que ocorre no conto de Junji Ito, aqui também há uma confusão
entre delírio e realidade: ainda que o protagonista já não consiga distinguir um
autômato de uma humana de verdade, há momentos em que a narrativa deixa
indícios de que talvez as crenças de Natanael possuam fundamento. Por
exemplo, há um momento em que Spallanzani chama o vendedor de barômetros
pelo nome do advogado. Outro paralelo que pode ser traçado com Nagai Yume
de Junji Ito é em relação à personagem Mami. Assim como ocorre com Natanael,
seu medo obsessivo a consome e a torna incapaz de diferenciar o real e o irreal,
de forma que acredita estar sendo perseguida por Mukouda, que a moça acredita
ser o Deus da morte.
A narrativa finaliza com o suicídio de Natanael e a reaparição, não de
Coppola, mas de Coppelius, o velho advogado que estava desaparecido desde
a infância do protagonista. Este assiste o suicídio aos risos:

Atraída pelo tumulto, uma pequena multidão se aglomerou


lá embaixo; em meio aos curiosos, achava-se o gigantesco
advogado Coppelius, que, acabando de chegar à cidade,
dirigira-se imediatamente à praça do mercado.
As pessoas queriam subir e conter o pobre alucinado, mas
Coppelius riu, dizendo:
“Ora, esperem, ele vai descer por conta própria.” E ficou
olhando para cima como os demais. (Hoffmann, 2019, p.
41).

Trata-se de um final dúbio, que não traz resposta para a pergunta que
permeia o conto: os acontecimentos narrados são verídicos ou delírios de
Natanael? De forma similar, Nagai Yume apresenta um final indefinido, que não
confere uma origem nem explica a natureza ou veracidade dos eventos
narrados.

4 – Considerações finais

Este artigo buscou discutir como os elementos do horror artístico se adaptam a


diferentes mídias, partindo da obra de Junji Ito, que se vale de influências de
outros meios para construir suas histórias. As obras discutidas aqui possuem

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


14
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

diversos pontos de convergência, seja no âmbito narrativo ou estilístico, ainda


que sejam provenientes de meios e épocas diferentes. Assim, alguns elementos
de obras mais antigas, como Der Sandmann, encontram ressonâncias em obras
recentes, seja nos quadrinhos ou na literatura.
Junji Ito constrói sua atmosfera a partir de recursos estéticos, narrativos e
temáticos, evocando inquietações e questões existenciais a partir de uma
narrativa insólita, com poucas respostas e muitas perguntas. Sua obra utiliza
alguns recursos exclusivos do meio dos quadrinhos, como a virada de página, a
artrologia e a presença de lacunas entres os quadros. Além disso, Ito se apropria
de recursos de outras linguagens, como cinema e literatura, para criar suas
atmosferas de horror.

Referências

CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Brasília: Senado


Federal, 2008.

CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou Paradoxos do coração. Campinas: Papirus,


1999.

CHICK, Kalai. Interview: Horror Manga Mastermind Junji Ito. Anime New Network
[homepage]. Publicado em: 17 set. 2019. Disponível em:
https://www.animenewsnetwork.com/interview/2019-09-17/horror-manga-mastermind-
junji-ito/.151216. Acesso em: 21 set. 2023.

D'AMASSA, Don. Encyclopedia of Science Fiction. New York: Facts on File, Inc., 2005.

FRANÇA, Júlio. Medo e literatura. In: FRANÇA, Júlio. Poéticas do mal: a literatura de
medo no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Acaso Cultural, 2022.

GIL, Inês. A atmosfera no cinema. Braga: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

GROENSTEEN, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Nova Iguaçu: Marsupial, 2015.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Reading for the Stimmung? About the Ontology of
Literature today. Boundary 2, v. 35, n, 3, p. 213-221, Fall 2008.

HOFFMANN, E.T.A. O homem de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ITO, Junji. Um longo sonho. In: CALAFRIOS. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2022. p.
289-320.

JOSHI, S.T. The weird tale. Seattle: Sarnath Press, 2017.

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


15
9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx9a Arte, São Paulo, SP, v. 11, 2023.e2xxxx

LIGOTTI, Thomas. Dream of a manikin. In: LIGOTTI, Thomas. Songs of a dead dreamer
and Grimscribe. London: Penguin books. 2011.

LOVECRAFT, Howard Philips. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo:


Iluminuras, 2008.

PUNTER, David. The Gothic. Malden, MA: Blackwell publishing, 2004.

STIMMUNG. In: Michaelis On-line. São Paulo: Melhoramentos, 2016. Disponível


em: https://michaelis.uol.com.br/escolar-alemao/busca/alemao-portugues/stimmung. Acesso
em: 27 set. 2023.

Recebido em: 28.09.2023


Aprovado em: 30.10.2023

São Paulo - Dossiê da 7a JIHQ.e216478


16

Você também pode gostar