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Índice

Jogos de herança
O herdeiro perdido
A aposta final
Tradução
Isadora Sinay
Jennifer (Jen) Lynn Barnes nasceu em Oklahoma, nos Estados Unidos. Ela é graduada em
Psicologia, Psiquiatria e Ciências Cognitivas e pós-graduada por Cambridge e Yale. Jen
escreveu o primeiro romance aos dezenove anos e vendeu seus cinco primeiros livros
ainda na faculdade. Ela também escreveu roteiros originais para redes de televisão e é
uma das maiores especialistas em Psicologia do fandom e Ciência Cognitiva da ficção. Jen
é professora da Universidade de Oklahoma, onde ensina Psicologia e Redação. Jogos de
herança é seu primeiro livro publicado no Brasil pela Alt.
SUMÁRIO

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Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Capítulo 91
Epílogo
Agradecimentos
Para Samuel
CAPÍTULO 1

Quando eu era criança, minha mãe estava sempre inventando


jogos. O Jogo do Quieto. O Jogo do Quem Consegue Fazer o
Biscoito Durar Mais. O Jogo do Marshmallow, um eterno favorito,
que consistia em comer marshmallows enquanto vestíamos grossos
casacos de segunda mão e assim não precisávamos ligar o
aquecedor. O Jogo da Lanterna era o que jogávamos quando faltava
luz. Nós nunca andávamos quando saíamos para qualquer lugar –
nós sempre corríamos. O chão quase sempre era feito de lava. A
principal função dos travesseiros era a construção de fortes.
Nosso jogo mais prolongado se chamava Eu Tenho um Segredo,
porque minha mãe dizia que todo mundo devia ter pelo menos um
segredo. Em alguns dias ela acertava o meu. Em outros, não. Nós o
jogamos toda semana, até os meus quinze anos, quando um dos
segredos dela a levou para o hospital.
No momento seguinte, ela já não estava mais aqui.
— Sua vez, princesa. — Uma voz grave me trouxe de volta para o
presente. — Eu não tenho o dia todo.
— Não sou uma princesa — respondi, deslizando um dos meus
cavalos. — Sua vez, ancião.
Harry fechou a cara. Na verdade, eu não sabia o quão velho ele
era e não tinha ideia de como ele se tornou um sem-teto e passou a
morar no parque em que jogávamos xadrez todo dia de manhã. O
que eu sabia era que ele era um adversário formidável.
— Você é terrível — ele resmungou, espiando o tabuleiro.
Três movimentos depois, eu o tinha encurralado:
— Xeque-mate. Você sabe o que isso quer dizer, Harry.
Ele me olhou feio.
— Preciso aceitar que você pague o meu café da manhã.
Eram esses os termos da nossa aposta contínua. Quando eu
ganhava, ele não podia rejeitar a refeição grátis.
Em minha defesa, eu só me vangloriei um pouco.
— É bom demais ser a rainha.

Cheguei na escola em cima da hora. Eu tinha esse hábito de


sempre estar na corda bamba e ficar no limite das coisas. Com as
minhas notas isso não era diferente. Qual era o mínimo de esforço
que eu podia fazer e ainda tirar um A? Não que eu fosse
preguiçosa. Eu era pragmática. Pegar um turno extra no trabalho
valia somar 92 pontos em vez de 98, e ainda garantir o A.
Eu estava escrevendo o rascunho de um trabalho da aula de
inglês durante a aula de espanhol quando fui chamada na diretoria.
Meninas como eu deveriam ser invisíveis. Nós não éramos
convidadas para reuniões com o diretor. Nós causávamos tanto
problema quanto podíamos causar, o que no meu caso era nenhum.
— Avery — o diretor Altman me cumprimentou de uma forma que
não poderia ser chamada de calorosa. — Sente-se.
Eu me sentei.
Ele entrelaçou as mãos sobre a escrivaninha entre nós.
— Eu imagino que você saiba por que está aqui.
A menos que isso fosse por causa do jogo de pôquer que eu
organizava no estacionamento toda semana para poder pagar os
cafés da manhã de Harry – e às vezes os meus –, eu não tinha ideia
do que havia feito para chamar atenção da diretoria.
— Desculpa — respondi, tentando soar submissa o suficiente —,
mas não sei.
O diretor Altman deixou minha resposta no ar por um momento e
então me apresentou a um calhamaço de papéis grampeados.
— Esta é a prova de Física que você fez ontem.
— O.k. — eu disse.
Essa não era a resposta que ele estava esperando, mas era tudo
que eu podia dizer. Pela primeira vez na vida, eu tinha realmente
estudado. Eu não podia imaginar que tivesse ido mal o suficiente
para precisar de alguma intervenção.
— O sr. Yates corrigiu as provas, Avery. Você foi a única que
alcançou a nota máxima.
— Ótimo — eu disse, em um esforço deliberado para me impedir
de dizer “o.k.” de novo.
— Nada ótimo, mocinha. O sr. Yates cria intencionalmente provas
que desafiam as habilidades de seus alunos. Nunca, em vinte anos,
um aluno fez os 100 pontos. Entende qual é o problema?
Eu não consegui segurar minha resposta impulsiva.
— Um professor que aplica provas nas quais a maior parte dos
alunos não consegue passar?
O sr. Altman apertou os olhos.
— Você é uma boa aluna, Avery. Muito boa, dadas as
circunstâncias. Mas você não tem exatamente um histórico de ser
fora da curva.
Ele tinha razão, então por que eu sentia que tinha levado um soco
no estômago?
— Eu não deixo de ter simpatia pela sua situação — o diretor
Altman continuou —, mas eu preciso que você seja honesta comigo.
— Ele me olhou bem nos olhos: — Você sabia que o sr. Yates
mantém cópias de todas as provas na nuvem? — Ele achava que
eu tinha colado. Ele estava sentado ali, me encarando diretamente,
e eu nunca havia me sentido mais invisível. — Eu quero te ajudar,
Avery. Você tem ido muito bem, considerando o que a vida lhe deu.
Eu detestaria ver qualquer plano que você possa ter para seu futuro
ser prejudicado.
— Qualquer plano que eu possa ter? — repeti. Se eu tivesse um
sobrenome diferente, se eu tivesse um pai dentista e uma mãe dona
de casa, ele não agiria como se o futuro fosse algo no qual eu
apenas poderia pensar. — Eu estou no penúltimo ano — eu revidei,
cerrando os dentes. — Eu vou me formar no ano que vem com
crédito suficiente para pelo menos dois semestres da faculdade.
Minhas notas devem tornar possível uma bolsa de estudos na
UConn, que tem um dos melhores programas de Ciências Atuariais
do país.
O sr. Altman franziu a testa.
— Ciências Atuariais?
— Análise estatística de risco. — Era o mais perto que eu podia
chegar de uma dupla graduação em pôquer e matemática. Além
disso, era uma das graduações com mais empregabilidade do
planeta.
— Você é fã de riscos calculados, srta. Grambs?
Tipo colar? Eu não podia me dar ao luxo de ficar com mais raiva.
Em vez disso, me vi jogando xadrez. Marquei os movimentos na
minha mente. Meninas como eu não podem perder a cabeça.
— Eu não colei — respondi, com calma. — Eu estudei.
Arranjei tempo para estudar durante outras aulas, entre turnos do
trabalho, fiquei acordada até mais tarde do que deveria. Saber que o
sr. Yates era famoso pelas provas impossíveis me fez querer
redefinir o que era possível. Pela primeira vez, em vez de ficar só no
limite da nota boa, fiquei com vontade de ver o quão longe eu
poderia ir.
E isso foi o que eu ganhei pelo meu esforço, porque meninas
como eu não devem tirar dez em provas impossíveis.
— Eu faço a prova de novo — falei, tentando não soar furiosa ou,
pior, magoada. — Eu vou tirar a mesma nota outra vez.
— E o que você diria se eu contar que o sr. Yates preparou uma
nova prova? Todas as questões são novas, e tão difíceis quanto as
da primeira.
Eu sequer hesitei.
— Eu faço.
— Isso pode ser amanhã, no terceiro tempo, mas eu preciso
avisar que vai ser muito melhor pra você se…
— Agora.
O sr. Altman me encarou.
— Desculpe?
Esqueça parecer submissa. Esqueça ser invisível.
— Eu quero fazer a nova prova aqui, na sua sala, agora mesmo.
CAPÍTULO 2

— Dia difícil? — Libby perguntou.


Minha irmã era sete anos mais velha que eu e uma pessoa
bastante cordial – para o seu próprio bem, ou o meu.
— Estou bem — respondi. Contar da minha visita à sala de
Altman só a preocuparia e, até que o sr. Yates corrigisse minha
segunda prova, não havia nada a ser feito. — Recebi boas gorjetas
hoje à noite.
— Quão boas? — O estilo de Libby ficava em algum lugar entre o
punk e o gótico, mas em termos de personalidade ela era o tipo de
eterna otimista que acreditava ser possível uma gorjeta de cem
dólares aparecer como mágica em um buraco onde a maior parte
dos pratos custa $6,99.
Eu enfiei um punhado de notas amassadas na mão dela.
— Boas o suficiente pra ajudar a pagar o aluguel.
Libby tentou me devolver o dinheiro, mas eu saí do alcance antes
que ela conseguisse.
— Eu vou jogar esse dinheiro em cima de você — ela me avisou
com firmeza.
Eu dei de ombros.
— Eu simplesmente desviaria.
— Você é impossível. — Libby guardou o dinheiro de má vontade,
fez surgir uma bandeja com um muffin do nada e me olhou feio. —
Então aceite o muffin pra compensar.
— Sim, senhora.
Fui pegá-lo da mão estendida dela, mas então olhei para trás de
seu ombro, para o balcão da cozinha, e notei que ela tinha
preparado muito mais do que muffins. Ela também tinha feito
cupcakes. Senti meu estômago afundar.
— Ah, não, Lib.
— Não é o que você está pensando — ela justificou.
Libby fazia cupcakes quando queria pedir desculpas. Quando se
sentia culpada. Quando queria dizer “por favor, não fique brava
comigo”.
— Não é o que eu estou pensando? — murmurei. — Ele não vai
voltar?
— Vai ser diferente dessa vez — Libby prometeu. — E os
cupcakes são de chocolate!
Meu favorito.
— Nunca vai ser diferente — falei, mas, se eu fosse capaz de
fazê-la acreditar nisso, ela já teria acreditado.
Bem naquele momento, o namorado vai-e-vem de Libby – e que
gostava de socar paredes e se elogiar muito por não socar Libby –
entrou casualmente. Ele pegou um cupcake do balcão e me encarou
demoradamente.
— Ei, chave de cadeia.
— Drake… — Libby contestou.
— Estou brincando — ele sorriu. — Você sabe que estou
brincando, Libby, meu amor. Você e sua irmã só precisam aprender
a não levar tudo a sério.
Acabou de chegar e já está colocando a culpa de tudo na gente.
— Isso não é saudável — eu disse a Libby. Ele não queria que ela
me acolhesse e ele nunca parou de puni-la por isso.
— Esse apartamento não é seu — Drake respondeu.
— Avery é minha irmã — Libby insistiu.
— Meia-irmã — Drake corrigiu, e então sorriu de novo: —
Brincadeirinha.
Ele não estava brincando, mas também não estava errado. Libby
e eu tínhamos em comum um pai ausente e mães diferentes.
Quando éramos menores, só nos víamos uma ou duas vezes no
ano. Ninguém esperava que ela assumisse minha guarda dois anos
atrás. Ela era jovem. Ela mal dava conta de si mesma. Mas ela era
Libby. Amar as pessoas era sua especialidade.
— Se Drake vai ficar aqui — murmurei só para ela —, então eu
não fico.
Libby pegou um cupcake e o aninhou na sua mão.
— Estou fazendo o melhor que posso, Avery.
Ela era o tipo que só pensava em agradar as pessoas. Drake
gostava de a colocar no meio de nossas discussões. Ele me usava
para feri-la.
Eu não podia ficar ali esperando o dia em que ele não ia mais
socar somente as paredes.
— Se você precisar de mim — eu disse a Libby —, estou
morando no meu carro.
CAPÍTULO 3

Meu Pontiac velho estava caindo aos pedaços, mas pelo menos o
aquecedor funcionava. Quase sempre. Estacionei nos fundos do
restaurante, onde ninguém me veria. Libby me mandou uma
mensagem, mas eu não consegui me forçar a responder e fiquei só
encarando o celular. A tela estava rachada. Meu plano de dados era
praticamente nulo, então eu não podia entrar na internet, mas eu
tinha mensagens de texto ilimitadas.
Além de Libby, havia exatamente só mais uma pessoa na minha
vida para quem valia a pena escrever. Eu mandei uma mensagem
curta e simples para Max: você-sabe-quem voltou.
Nenhuma resposta. Os pais de Max adoravam instituir a “hora
sem celular” e confiscavam o dela com frequência. Eles também
eram famosos por monitorar as mensagens e foi por isso que eu
não escrevi o nome de Drake e não digitei uma única palavra a
respeito de onde eu passaria a noite. Nem a família Liu nem minha
assistente social precisavam saber que eu não estava onde deveria
estar.
Baixando o celular, olhei para minha mochila no banco do carona,
mas decidi que o resto da lição de casa podia esperar até de
manhã. Inclinei o banco para trás e fechei os olhos. Não consegui
dormir, então enfiei a mão no porta-luvas e peguei a única coisa de
valor que minha mãe havia me deixado: uma pilha de cartões-
postais. Dezenas deles. Dezenas de lugares aonde planejamos ir
juntas.
Havaí, Nova Zelândia, Machu Picchu. Olhando para cada uma
das fotos, eu me imaginei em qualquer lugar que não aqui. Tóquio.
Bali. Grécia. Não sei quanto tempo passei perdida com esses
pensamentos até que o celular tocou. Eu o peguei e vi a resposta de
Max para minha mensagem a respeito de Drake.
Aquele falha da pata. E então, um momento depois: Você está
bem?
Max tinha se mudado no verão depois do nono ano. A maior parte
da nossa comunicação era por escrito e ela se recusava a escrever
palavrões, caso seus pais vissem suas mensagens.
Então ela era criativa.
Estou bem, escrevi de volta e esse foi todo o incentivo que ela
precisava para despejar toda sua fúria por mim.
Aquele esgoto do capacho pode ir direto para a pata que piou e
comer um saco de corra!!!
Um segundo depois, meu telefone tocou.
— Você está mesmo bem? — Max perguntou quando atendi.
Olhei para os cartões-postais no meu colo e minha garganta
apertou. Eu ia sobreviver ao ensino médio. Eu ia me inscrever para
todas as bolsas de estudos que pudesse. Eu ia ter um diploma que
ia me abrir portas, me permitir trabalhar remotamente e pagar bem.
Eu ia viajar o mundo.
Eu soltei uma expiração longa e exausta, e então respondi à
pergunta de Max.
— Você me conhece, Maxine. Eu sempre dou a volta por cima.
CAPÍTULO 4

No dia seguinte, paguei o preço por ter dormido no carro. Todo o


meu corpo doía e eu precisei tomar um banho depois da aula de
educação física porque o papel toalha do banheiro do restaurante
não fazia milagres. Eu não tive tempo de secar meu cabelo, então
cheguei na aula seguinte com o cabelo pingando. Não era minha
melhor aparência, mas eu tinha estudado com as mesmas pessoas
a vida inteira. Eu era como o papel de parede.
Ninguém reparava em mim.
— Romeu e Julieta está cheio de provérbios, aqueles bocados de
sabedoria concisa que são uma afirmação de como o mundo e a
natureza humana funcionam. — Minha professora de inglês era
jovem e empolgada e eu suspeitei profundamente de que ela tinha
tomado café demais. — Mas vamos sair um pouco de Shakespeare.
Quem pode me dar um exemplo de um provérbio cotidiano?
Cavalo dado não se olha os dentes, pensei, enquanto minha
cabeça latejava e gotas de água escorriam pelas minhas costas.
Quem não tem cão caça com gato; a ocasião faz o ladrão.
A porta da sala se abriu. Uma auxiliar esperou que a professora
olhasse para ela, e então anunciou alto suficiente para que toda a
classe ouvisse:
— Avery Grambs, compareça à diretoria.
Eu imaginei que isso queria dizer que minha prova estava
corrigida.

Eu não era ingênua de esperar um pedido de desculpas, mas eu


também não esperava que o sr. Altman estivesse me aguardando
na antessala, muito menos sorrindo como se tivesse acabado de
receber uma visita do Papa.
— Avery!
Um alarme soou no fundo da minha mente, porque ninguém
nunca ficava feliz assim de me ver.
— Por aqui. — Ele abriu a porta da sua sala e eu notei um rabo
de cavalo azul neon familiar lá dentro.
— Libby? — Ela estava usando um uniforme estampado de
caveirinhas e nenhuma maquiagem, duas indicações de que ela
tinha ido até a escola direto do trabalho. No meio de um turno.
Auxiliares de enfermagem que trabalham em casas de repouso não
têm permissão para simplesmente ir embora no meio de um turno.
A menos que algo estivesse muito errado.
— O papai… — Eu não consegui completar a pergunta.
— Seu pai está bem.
A voz que deu essa declaração não pertencia a Libby ou ao
diretor Altman. Eu virei a cabeça e olhei para trás da minha irmã. A
cadeira do diretor estava ocupada por um cara não muito mais velho
que eu.
O que está acontecendo?
Ele estava usando um terno e parecia o tipo de pessoa que
deveria ter um séquito o seguindo.
— Pelo menos até ontem — ele continuou dizendo, com a voz
baixa, grave, controlada e precisa —, Ricky Grambs estava vivo,
bem e desmaiado em segurança em um quarto de hotel em
Michigan, a uma hora de Detroit.
Tentei não olhar para ele, mas falhei.
Cabelo claro. Olhos pálidos. Traços como pedra entalhada.
— Como você sabe disso? — exigi. Eu não sabia onde o inútil do
meu pai estava. Como ele sabia?
O garoto de terno não respondeu à pergunta. Em vez disso, ele
arqueou uma sobrancelha:
— Diretor Altman? Pode nos dar um momento?
O diretor abriu a boca, imagino que para protestar por ser tirado
de sua própria sala, mas a sobrancelha do menino se ergueu ainda
mais:
— Eu acredito que tínhamos um acordo.
Altman pigarreou e respondeu:
— Claro.
E, simples assim, ele se virou e saiu pela porta. Ela se fechou
atrás dele e eu voltei a encarar descaradamente o menino que o
tinha expulsado.
— Você me perguntou como eu sei onde seu pai está. — Os
olhos dele eram da mesma cor do seu terno: cinzentos, quase
prateados. — Seria melhor, por enquanto, que você só presumisse
que eu sei de tudo.
A voz dele teria sido agradável de ouvir se não fossem as
palavras.
— Um cara que acha que sabe de tudo — resmunguei. — Que
novidade.
— Uma garota de língua afiada — ele devolveu, focando os olhos
cinzentos nos meus, enquanto os cantos da boca se viravam para
cima.
— Quem é você? — perguntei. — E o que você quer? — de mim,
algo dentro de mim acrescentou. O que você quer de mim?
— Tudo que eu quero é passar uma mensagem. — Por motivos
que eu não conseguia bem definir, meu coração começou a bater
mais rápido. — Uma mensagem que se mostrou difícil de ser
comunicada pelos meios tradicionais.
— Talvez seja culpa minha — Libby disse mansamente ao meu
lado.
— O que pode ser sua culpa? — Eu me virei para encará-la, grata
por uma desculpa para tirar Olhos Cinzentos do meu campo de
visão e lutando contra a vontade de olhar para ele mais uma vez.
— A primeira coisa que você tem que saber — Libby disse, da
forma mais sincera que qualquer pessoa em um uniforme de
caveirinhas já disse alguma coisa — é que eu não tinha ideia de que
as cartas eram reais.
— Que cartas?
Pelo jeito, eu era a única pessoa na sala que não sabia o que
estava acontecendo e eu não conseguia não sentir que isso era
uma desvantagem, como estar parada num trilho de trem sem saber
de qual direção o trem está vindo.
— As cartas registradas — o menino de terno disse, sua voz me
envolvendo — que os advogados do meu avô têm mandado pra sua
casa já faz três semanas.
— Eu achei que era um golpe — Libby me disse.
— Eu te garanto que não é — o garoto respondeu, com a voz
sedosa.
Eu não era tonta de confiar em garantias dadas por caras bonitos.
— Deixe-me recomeçar. — Ele entrelaçou as mãos sobre a
escrivaninha entre nós, o dedão da sua mão direita circulando de
leve as abotoaduras no seu pulso esquerdo. — Meu nome é
Grayson Hawthorne. Eu estou aqui em nome de McNamara, Ortega
e Jones, um escritório de advocacia de Dallas que representa o
espólio do meu avô. — Os olhos pálidos de Grayson encontraram
os meus. — Meu avô morreu no início do mês. — Ele fez uma
pausa significativa. — Seu nome era Tobias Hawthorne. — Grayson
estudou minha reação ou, mais precisamente, a falta de uma. —
Esse nome significa alguma coisa para você?
A sensação de estar parada numa linha de trem voltou.
— Não — eu disse. — Deveria?
— Meu avô era um homem muito rico, srta. Grambs. E parece
que, além da nossa família e das pessoas que trabalharam com ele
por anos, você foi citada em seu testamento.
Eu ouvi as palavras, mas não conseguia processá-las.
— Seu o quê?
— Seu testamento — Grayson repetiu, um leve sorriso nos lábios.
— Eu não sei exatamente o que ele deixou para você, mas sua
presença na leitura do testamento foi exigida. Nós estamos adiando
isso há semanas.
Eu era uma pessoa inteligente, mas Grayson Hawthorne podia
estar muito bem falando sueco.
— Por que seu avô deixaria alguma coisa pra mim?
Grayson se levantou.
— É a pergunta de um milhão de dólares, não é? — Ele saiu de
trás da mesa e de repente eu sabia exatamente de qual direção
estava vindo o trem.
Dele.
— Eu tomei a liberdade de organizar a viagem pra você.
Isso não era um convite. Era uma convocação.
— O que te faz pensar… — eu comecei a dizer, mas Libby me
cortou.
— Ótimo! — ela disse, me lançando uma bela olhada.
Grayson sorriu com desdém.
— Eu vou deixar vocês duas sozinhas por um momento. — Os
olhos dele fitaram os meus por tempo suficiente para me deixar
desconfortável e, então, sem dizer uma palavra, ele saiu da sala.
Libby e eu ficamos em silêncio por cinco segundos inteiros depois
que ele saiu.
— Não me entenda mal — ela finalmente sussurrou —, mas acho
que talvez ele seja Deus.
Eu desdenhei.
— Certamente ele pensa que é. — Era mais fácil ignorar o efeito
que ele tinha em mim agora que ele não estava mais lá. Que tipo de
pessoa tinha uma autoconfiança tão absoluta? Estava lá em todos
os aspectos da sua postura e nas palavras que escolhia, em cada
interação. Poder era um fato da vida tão óbvio quanto a gravidade
para esse cara. O mundo se dobrava diante da vontade de Grayson
Hawthorne. O que o dinheiro não podia comprar aqueles olhos
provavelmente conseguiam.
— Comece do começo — pedi. — E não se esqueça de nada.
Ela brincou com as pontas escuras do seu rabo de cavalo azul.
— Algumas semanas atrás, nós começamos a receber umas
cartas, endereçadas a você, aos meus cuidados. Elas diziam que
você havia herdado um dinheiro, davam um número para ligarmos.
Eu achei que fosse um golpe. Tipo aqueles e-mails que dizem ser
de um príncipe estrangeiro.
— Por que esse Tobias Hawthorne, um homem que eu nunca
conheci, nunca nem ouvi falar, me colocou no testamento dele?
— Não sei dizer, mas isso — ela apontou com a cabeça na
direção da porta pela qual Grayson havia saído — não é um golpe.
Você viu como ele agiu com o diretor Altman? Qual você acha que é
o combinado deles? Uma propina… ou uma ameaça?
As duas coisas. Engolindo essa resposta, peguei meu celular e o
conectei ao wi-fi da escola. Depois de procurar por Tobias
Hawthorne, nós duas estávamos lendo uma manchete: FAMOSO
FILANTROPO MORRE AOS 78 ANOS.
— Você sabe o que filantropo significa? — Libby me perguntou,
séria. — Significa rico.
— Significa alguém que doa pra caridade — eu corrigi.
— Então… rico. — Libby me encarou. — E se você for a
caridade? Eles não teriam mandado o neto desse cara atrás de
você se ele só tivesse te deixado umas centenas de dólares. Devem
ser milhares. Você poderia viajar, Avery, ou usar para a faculdade,
ou comprar um carro melhor.
Eu podia sentir meu coração acelerando de novo.
— Por que um estranho deixaria qualquer coisa pra mim? —
insisti, resistindo ao impulso de sonhar, mesmo que só por um
segundo, porque, se eu começasse, não tinha certeza de que
conseguiria parar.
— E se ele conhecia a sua mãe? — Libby sugeriu. — Eu não sei,
mas eu sei que você precisa ir à leitura do testamento.
— Eu não posso ir — eu disse a ela. — Nem você. — Nós duas
faltaríamos ao trabalho. Eu perderia algumas aulas. Mas, por outro
lado… no mínimo, uma viagem levaria Libby para longe de Drake,
pelo menos por um tempo.
E, se isso for real… Já estava ficando difícil não pensar nas
possibilidades.
— Vão cobrir meus turnos pelos próximos dois dias — Libby me
informou. — Eu fiz alguns telefonemas, os seus turnos também já
estão cobertos. — Ela pegou a minha mão. — Vamos lá, Ave. Não
vai ser bom fazer uma viagem, só nós duas?
Ela apertou a minha mão. Depois de um momento, eu apertei a
dela de volta.
— Onde exatamente vão ler esse testamento?
— Texas! — Libby sorriu. — E eles não só compraram as nossas
passagens. Eles compraram passagens de primeira classe.
CAPÍTULO 5

Eu nunca tinha voado de avião. A três mil metros de altitude, eu


podia me imaginar indo além do Texas: Paris. Bali. Machu Picchu.
Esses lugares tinham sido sonhos para algum dia.
Mas agora…
Ao meu lado, Libby estava no paraíso, tomando seu drinque de
cortesia.
— Hora da foto! — ela declarou. — Chega mais perto e mostra o
bagulho.
Do outro lado do corredor, uma mulher olhou para Libby com
desaprovação. Eu não sabia se ela desaprovava o cabelo, a jaqueta
camuflada que ela estava usando, sua gargantilha com spikes, a
selfie que ela estava tentando tirar ou o volume no qual ela disse
bagulho.
Com minha expressão mais altiva, eu me inclinei na direção da
minha irmã e mostrei meu “bagulho”: uma porção de castanhas que
eu tinha ganhado quando entrei no avião.
Libby encostou a cabeça no meu ombro e tirou a foto. Ela virou o
celular para me mostrar.
— Eu te mando quando chegarmos. — O sorriso no rosto dela
estremeceu, só por um segundo. — Mas não é pra postar, está
bom?
Drake não sabe onde você está, sabe? Eu engoli o impulso de
lembrar a ela que ela podia ter uma vida. Eu não queria discutir.
— Não vou postar. — Não era um grande sacrifício da minha
parte. Eu tinha perfis nas redes sociais, mas em geral eu só os
usava para mandar DMs para Max.
E, falando nisso… peguei meu celular. Ele estava em modo avião,
o que significava nada de mensagens, mas a primeira classe tinha
wi-fi gratuito. Eu mandei um rápido resumo do que havia acontecido
para Max e depois passei o resto do voo obcecada lendo sobre
Tobias Hawthorne.
Ele tinha ganhado dinheiro com petróleo e então diversificado. Eu
já esperava, pelo modo como Grayson havia contado que seu avô
era um homem “rico” e porque o jornal usou a palavra filantropo, que
ele fosse algum tipo de milionário.
Eu estava errada.
Tobias Hawthorne não era só “rico” ou “bem de vida”. Não havia
nenhum eufemismo para o que Tobias Hawthorne era, exceto podre
de rico. Bilhões: com um b e plural. Ele era a nona pessoa mais rica
dos Estados Unidos e o homem mais rico do Texas.
Quarenta e seis ponto dois bilhões de dólares. Era isso que ele
valia. Os números sequer soavam reais. Então parei de me
perguntar por que um homem que eu nunca conheci tinha me
deixado algo em seu testamento – e comecei a me perguntar
quanto.
Max respondeu a mensagem pouco antes de aterrissarmos: Você
está me zoando, pata?
Sorri.
Não. Eu realmente estou num avião indo para o Texas neste
momento. Me preparando pra aterrissar.
A única resposta de Max foi: Pata Lerda.

Uma mulher de cabelo escuro vestindo um terninho todo branco


encontrou com Libby e eu no segundo em que saímos da área de
desembarque.
— Srta. Grambs. — Ela acenou com a cabeça para mim e então
voltou-se para Libby e acrescentou um segundo cumprimento. —
Srta. Grambs. — Ela se virou, esperando que a seguíssemos. Para
minha tristeza, nós duas fizemos isso. — Eu sou Alisa Ortega — ela
disse —, da McNamara, Ortega e Jones. — Outra pausa, então ela
me olhou de viés. — Você é uma jovem muito difícil de encontrar.
Eu dei de ombros.
— Eu moro no meu carro.
— Ela não mora no carro — Libby disse rapidamente. — Diga a
ela que não mora.
— Ficamos muito felizes que você pôde vir.
Alisa Ortega, da McNamara, Ortega e Jones, não esperou que eu
lhe dissesse coisa alguma e eu tive a impressão de que minha parte
nessa conversa não era necessária.
— Enquanto estiverem no Texas, considerem-se convidadas da
família Hawthorne. Eu serei seu contato com o escritório. Qualquer
coisa de que precisarem enquanto estiverem aqui, falem comigo.
Advogados não cobram por hora?, pensei. O quanto essa carona
estava custando para a família Hawthorne?
Eu nem considerei a possibilidade de essa mulher não ser uma
advogada. Ela parecia ter vinte e tantos anos. Falar com ela me
dava a mesma sensação de falar com Grayson Hawthorne. Ela era
alguém.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer por você? — Alisa
Ortega perguntou, andando na direção das portas automáticas sem
diminuir em nada o ritmo da caminhada, mesmo quando pareceu
que a porta não ia se abrir a tempo.
Eu esperei até ter certeza de que ela não ia dar de cara no vidro e
respondi:
— Que tal alguma informação?
— Você precisa ser mais específica.
— Você sabe o que diz o testamento? — perguntei.
— Não sei — ela respondeu, apontando para um sedã preto
esperando perto da calçada. Ela abriu a porta de trás para mim.
Entrei no carro e Libby me seguiu. Alisa se sentou no banco do
carona. O banco do motorista já estava ocupado. Eu tentei ver o
motorista, mas não consegui distinguir muito do seu rosto.
— Logo você vai descobrir o que diz o testamento — Alisa
respondeu, as palavras claras e sérias como aquele terno branco
que nem o diabo parecia poder sujar. — Todos nós descobriremos.
A leitura está marcada para assim que você chegar à Casa
Hawthorne.
Não a casa dos Hawthorne, mas a Casa Hawthorne, como se
fosse tipo uma mansão inglesa, com nome e tudo.
— É lá que vamos ficar? — Libby perguntou. — Na Casa
Hawthorne?
Nossas passagens de volta estavam marcadas para o dia
seguinte. Tínhamos levado roupas para uma noite.
— Vocês poderão escolher os quartos que quiserem — Alisa nos
garantiu. — O sr. Hawthorne comprou o terreno no qual a Casa foi
construída mais de cinquenta anos atrás e passou cada um desses
anos aumentando a maravilha arquitetônica que ele construiu ali. Eu
perdi a conta do total de quartos, mas são mais de trinta. A Casa
Hawthorne é… singular.
Esse foi o máximo de informação que conseguimos tirar dela. Eu
arrisquei.
— Eu imagino que o sr. Hawthorne também era singular?
— Bom palpite — Alisa disse. Ela olhou de volta para mim. — O
sr. Hawthorne gostava de bons palpites.
Um sentimento macabro passou por mim naquele momento,
quase como uma premonição. Será por isso que ele me escolheu?
— Quão bem você o conhecia? — Libby perguntou.
— Meu pai é advogado de Tobias Hawthorne desde antes de eu
nascer. — Alisa Ortega não estava ostentando poder agora. A voz
dela era suave. — Eu passei bastante tempo na Casa Hawthorne
quando era pequena.
Ele não era só um cliente para ela.
— Você tem alguma ideia de por que eu estou aqui? — perguntei.
— Por que ele teria deixado qualquer coisa pra mim?
— Você é do tipo que quer salvar o mundo? — Alisa me
perguntou, como se essa fosse uma pergunta perfeitamente normal.
— Sou? — arrisquei.
— Teve sua vida arruinada por alguém com o sobrenome
Hawthorne? — Alisa continuou.
Eu a encarei, então consegui responder com mais confiança
dessa vez.
— Não.
Alisa sorriu, mas o sorriso não chegou aos seus olhos.
— Sorte sua.
CAPÍTULO 6

A Casa Hawthorne ficava em uma colina. Imensa. Ampla. Parecia


um castelo – mais apropriada para a realeza que para uma casa de
campo. Havia meia dúzia de carros parados na frente e uma
motocicleta velha que devia ser desmontada e ter as partes
vendidas.
Alisa olhou a moto.
— Parece que Nash está em casa.
— Nash? — Libby perguntou.
— O neto Hawthorne mais velho — Alisa respondeu, tirando os
olhos da motocicleta e olhando para o castelo. — São quatro no
total.
Quatro netos. Eu não consegui impedir minha mente de lembrar
do Hawthorne que eu já tinha conhecido. Grayson. O terno sob
medida. Os olhos cinzentos quase prateados. A arrogância na forma
como ele me disse para considerar que ele sabia de tudo.
Alisa me lançou um olhar compreensivo.
— Um conselho de quem sabe do que está falando… nunca
perca a cabeça por um Hawthorne.
— Não se preocupe — respondi, tão irritada com a presunção
dela quanto com o fato de que ela conseguiu ler meus pensamentos
só de olhar para mim. — Eu mantenho minha cabeça sempre no
lugar.

O hall era maior que algumas casas, tinha fácil uns 90m2, como se a
pessoa que o construiu tivesse se preocupado em planejar uma
entrada que também pudesse ser usada como salão de baile. Arcos
de pedra ladeavam o hall e o teto era totalmente ornamentado, com
elaborados entalhes de madeira. Olhar para cima me deixou sem
fôlego.
— Vocês chegaram. — Uma voz familiar chamou minha atenção
de volta para a terra. — E bem na hora. Suponho que o voo de
vocês tenha sido tranquilo.
Grayson Hawthorne estava usando um terno diferente hoje. Esse
era preto – assim como sua camisa e gravata.
— Você — Alisa o cumprimentou com um olhar gélido.
— Devo imaginar que você ainda não me perdoou por interferir no
seu trabalho? — Grayson perguntou.
— Você tem dezenove anos — Alisa respondeu. — Você morreria
se agisse de acordo com sua idade?
— Talvez — Grayson abriu um sorriso reluzente. — E de nada.
Eu levei um segundo para entender que por interferir Grayson
quis dizer ter ido me buscar.
— Senhoritas — ele disse, se dirigindo a Libby e eu. — Posso
guardar os casacos de vocês?
— Vou ficar com o meu — respondi, me sentindo do contra e
considerando que uma camada a mais entre mim e o resto do
mundo não seria ruim.
— E o seu? — Grayson perguntou a Libby.
Ainda boquiaberta com o hall, Libby tirou seu casaco e entregou a
ele. Grayson passou por um dos arcos. Do outro lado havia um
corredor. Pequenos painéis quadrados contornavam a parede.
Grayson pôs a mão em um painel e empurrou. Ele girou a mão
noventa graus, apertou o painel seguinte e então, em um movimento
rápido demais para que eu entendesse, apertou pelo menos mais
dois. Eu ouvi um som de pop e uma porta apareceu, se destacando
do resto da parede ao abrir-se.
— Que raios… — eu comecei a dizer.
Grayson enfiou a mão e pegou um cabide.
— O armário de casacos.
Isso não era uma explicação. Era uma classificação, como se
aquele fosse um armário de casacos qualquer de uma casa velha
qualquer.
Alisa entendeu que aquilo era uma indicação para nos deixar aos
bons cuidados de Grayson e eu tentei pensar em algo para dizer
que não fosse só ficar ali com a boca aberta como um peixe.
Grayson foi fechar o armário, mas um som vindo do fundo o
impediu.
Primeiro eu ouvi um rangido e depois um estrondo. Houve um
farfalhar atrás dos casacos, e então uma figura entre as sombras
abriu caminho por eles e saiu para a luz. Um menino, talvez da
minha idade, talvez um pouco mais novo. Ele estava vestindo um
terno, mas sua semelhança com Grayson ia só até aí. O terno do
menino estava amassado como se ele tivesse tirado um cochilo – ou
vinte – vestido com ele. O paletó não estava abotoado. A gravata
em volta do seu pescoço não tinha nó. Ele era alto, o rosto era como
o de um bebê e o cabelo cacheado era desgrenhado e escuro. Seus
olhos eram castanho-claros, e sua pele era marrom.
— Estou atrasado? — ele perguntou a Grayson.
— Posso sugerir que você faça essa pergunta ao seu relógio?
— Jameson já chegou? — O menino de cabelo escuro reformulou
a pergunta.
Grayson endureceu.
— Não.
O outro menino sorriu.
— Então não estou atrasado! — Ele olhou por trás de Grayson,
para Libby e eu. — E essas devem ser nossas convidadas! Que
falta de educação do Grayson não nos apresentar.
Um músculo no maxilar de Grayson se contraiu.
— Avery Grambs — ele disse com formalidade — e a irmã dela,
Libby. Senhoritas, esse é meu irmão Alexander. — Por um
momento, pareceu que Grayson ia deixar por isso mesmo, mas
então arqueou a sobrancelha. — Xander é o bebê da família.
— Eu sou o neto bonito — Xander corrigiu. — Eu sei o que vocês
estão pensando. Esse chato ao meu lado preenche bem um terno
Armani. Mas, pergunto a vocês, ele pode fazer o universo acelerar
de zero a cem com seu sorriso, como uma jovem Mary Tyler Moore
encarnada no corpo de um James Dean multiétnico? — Xander
parecia só ter um modo de falar: rápido. — Não!— Ele respondeu à
própria pergunta. — Não, ele não pode.
Xander finalmente parou de falar por tempo suficiente para que
outra pessoa falasse.
— Prazer em te conhecer — Libby conseguiu soltar.
— Você passa muito tempo no armário de casacos? — perguntei.
Xander limpou as mãos nas calças.
— Passagem secreta — ele disse, agora tentando limpar as
calças com as mãos. — Esse lugar é cheio delas.
CAPÍTULO 7

Meus dedos estavam coçando para puxar meu celular e começar


a tirar fotos, mas resisti. Já Libby não tinha esse tipo de escrúpulo.
— Mademoiselle… — Xander deu um passo para o lado para
bloquear uma das fotos de Libby. — Uma pergunta: o que você acha
de montanhas-russas?
Eu achei que os olhos de Libby iam saltar para fora das órbitas,
de verdade.
— Esse lugar tem uma montanha-russa?
Xander sorriu.
— Não exatamente. — No segundo seguinte, o “bebê” da família
Hawthorne, que tinha lá seus um metro e oitenta de altura, estava
conduzindo minha irmã pelo hall.
Fiquei confusa. Como pode uma casa “não ter exatamente” uma
montanha-russa? Ao meu lado, Grayson deu uma risadinha
sarcástica. Percebi que ele olhava para mim e fiz uma careta
inquisidora:
— Que foi?
— Nada — ele respondeu, apesar de a tensão de seus lábios
sugerir outra coisa. — É só que… você tem um rosto muito
expressivo.
Não era verdade. Libby estava sempre dizendo que eu era difícil
de ler. Minha poker face bancava o café da manhã de Harry fazia
meses. Eu não era expressiva.
Não havia nada de notável no meu rosto.
— Eu peço desculpas por Xander — Grayson comentou. — Ele
tende a não adotar hábitos ultrapassados como pensar antes de
falar e ficar sentado por mais de três segundos. — Ele baixou os
olhos. — Ele é o melhor de nós, até nos seus piores dias.
— A srta. Ortega disse que vocês são em quatro. — Eu não
consegui me segurar. Eu queria saber mais sobre essa família.
Sobre ele. — Quatro netos, quero dizer.
— Eu tenho três irmãos — Grayson me disse. — Mesma mãe,
pais diferentes. Nossa tia Zara não tem filhos. — Ele olhou para trás
de mim. — E, falando nos meus parentes, eu acho que deveria me
desculpar de novo, por antecipação.
— Gray, querido!
Uma mulher corria em nossa direção, um furacão de movimento e
tecido. Quando sua saia esvoaçante enfim se assentou ao seu
redor, eu tentei estimar a idade dela. Mais do que trinta, menos do
que cinquenta. Para além disso, eu não sabia dizer.
— Eles estão nos esperando no salão principal — ela disse a
Grayson. — Ou estarão, em breve. Onde está seu irmão?
— Seja específica, mãe.
A mulher revirou os olhos.
— Não me venha com esse “mãe”, Grayson Hawthorne. — Ela se
virou para mim. — Parece que ele nasceu usando esse terno — ela
disse isso com o ar de quem estava me contando um grande
segredo —, mas Gray era um pestinha. Um verdadeiro espírito livre.
Era impossível mantê-lo vestido até ele ter uns quatro anos.
Francamente, eu nem tentava. — Ela parou e me avaliou sem se
preocupar em esconder o que estava fazendo. — Você deve ser
Ava.
— Avery — Grayson corrigiu. Se ele sentia alguma vergonha de
seu suposto passado como nudista infantil, não demonstrou. — O
nome dela é Avery, mãe.
A mulher suspirou, mas também sorriu, como se fosse impossível
para ela olhar seu filho e não se sentir profundamente deliciada por
sua presença.
— Eu sempre jurei que meus filhos me chamariam pelo meu
primeiro nome — ela me disse. — Eu os criei como iguais, sabe? Na
verdade, eu sempre imaginei que teria meninas. Quatro meninos
depois… — Ela deu de ombros da forma mais elegante do mundo.
Objetivamente, a mãe de Grayson era um exagero. Mas,
subjetivamente? Ela era irresistível.
— Você se importa de me dizer, querida, quando é seu
aniversário?
A pergunta me pegou de surpresa. Eu tinha uma boca. Ela
funcionava perfeitamente bem. Mas eu não conseguia acompanhá-
la e responder. Ela colocou uma mão no meu rosto.
— Escorpião? Ou capricórnio? Não é pisciana, claramente…
— Mãe — Grayson disse, e então se corrigiu. — Skye.
Eu levei um segundo para perceber que esse devia ser o nome
dela e que ele o usou para agradá-la e tentar interromper a
investigação astrológica.
— Grayson é um bom menino — Skye me disse. — Bom demais.
— Então ela me deu uma piscadela. — Ainda vamos conversar.
— Eu duvido que a srta. Grambs planeje passar tempo suficiente
para uma conversa em torno da lareira ou uma leitura de tarô. —
Uma segunda mulher, da idade de Skye ou um pouco mais velha, se
meteu na conversa. Se Skye era feita de tecidos esvoaçantes e
informação demais, essa mulher era toda saia lápis e pérolas.
— Sou Zara Hawthorne-Calligaris. — Ela me examinou, a
expressão no seu rosto tão austera quanto seu nome. — Você se
importa se eu perguntar… de onde você conhecia meu pai?
Um silêncio caiu sobre o hall cavernoso. Eu engoli em seco.
— Eu não conhecia.
Eu consegui sentir Grayson, do meu lado, me encarando de novo.
Depois de uma pequena eternidade, Zara me deu um sorriso tenso.
— Bom, nós agradecemos sua presença. Essas últimas semanas
têm sido desafiadoras, como você com certeza pode imaginar.
Essas últimas semanas, completei em pensamento, quando
ninguém conseguia me encontrar.
— Zara? — Um homem com o cabelo penteado para trás nos
interrompeu, passando um braço pela cintura dela. — O sr. Ortega
gostaria de dar uma palavrinha. — O homem, que eu entendi ser o
marido de Zara, sequer me notou.
Skye compensou a indiferença dele – e como.
— Minha irmã “dá palavrinhas” com as pessoas — ela comentou.
— Eu tenho conversas. Conversas adoráveis. Sendo bem sincera,
foi assim que acabei com quatro filhos. Conversas maravilhosas e
íntimas com quatro homens fascinantes…
— Eu te pago pra parar agora — Grayson disse com uma
expressão de sofrimento no rosto.
Skye deu um tapinha na bochecha do filho.
— Propina. Ameaças. Suborno. Você não poderia ser mais
Hawthorne se tentasse, querido. — Ela me deu um sorriso
compreensivo. — É por isso que o chamamos de “legítimo herdeiro”.
Havia algo na voz de Skye, algo na expressão de Grayson
quando sua mãe usou a expressão legítimo herdeiro, que me fez
pensar que eu havia subestimado violentamente o quanto a família
Hawthorne queria ler esse testamento.
Eles também não sabem o que há no testamento. De repente me
senti entrando em uma arena sem ter ideia de quais eram as regras
do jogo.
— Agora — Skye disse, passando um braço em volta de mim e
um em volta de Grayson —, por que não vamos para o salão
principal?
CAPÍTULO 8

O salão principal tinha dois terços do tamanho do hall. Logo de


cara, dava para ver uma enorme lareira de pedra com gárgulas
entalhadas nas laterais. Sim, gárgulas.
Grayson pôs Libby e eu em poltronas de espaldar alto e então
pediu licença e foi para a frente da sala, onde três senhores de terno
estavam de pé conversando com Zara e seu marido.
Os advogados.
Depois de alguns minutos, Alisa se juntou a eles e eu analisei os
outros ocupantes da sala. Um casal branco, mais velho, uns
sessenta anos pelo menos. Um homem negro, de uns quarenta
anos, com um porte militar, de pé com as costas para a parede e
mantendo uma clara linha de visão das duas saídas. Xander, com
quem claramente era outro irmão Hawthorne ao seu lado. Esse era
mais velho – vinte e poucos. Ele precisava de um corte de cabelo e
tinha combinado seu terno com botas de caubói que, assim como a
moto lá fora, já tinham visto dias melhores.
Nash, deduzi, lembrando do nome que Alisa havia informado.
Finalmente, uma mulher idosa se juntou à brigada. Nash
ofereceu-lhe o braço, mas ela pegou o de Xander. Ele a conduziu
diretamente até Libby e eu.
— Essa é a Nan — ele nos disse. — A mulher. A lenda.
— Volta para o seu canto. — Ela soltou o braço dele. — Eu sou a
bisavó dessa peste. — Nan se acomodou, não sem dificuldades, no
lugar vago ao meu lado. — Mais velha que o diabo e muito pior.
— Ela é uma fofa — Xander me garantiu, animado. — E eu sou o
favorito dela.
— Você não é meu favorito — Nan resmungou.
— Eu sou o favorito de todo mundo! — Xander sorriu.
— Parecido demais com aquele seu avô incorrigível. — Nan
grunhiu. Ela fechou os olhos e eu vi as mãos dela tremerem de leve.
— Homem horrível. — Havia carinho em suas palavras.
— O sr. Hawthorne era seu filho? — Libby perguntou gentilmente.
Ela trabalhava com idosos e era uma boa ouvinte.
Nan aproveitou a oportunidade para desdenhar de novo.
— Genro.
— Ele também era o favorito dela — Xander explicou. Havia algo
de mordaz em como ele disse isso. Não estávamos em um funeral.
Eles deviam ter enterrado o homem semanas atrás, mas eu
reconheci o luto, podia senti-lo – podia quase cheirá-lo.
— Você está bem, Ave? — Libby perguntou. Lembrei de Grayson
me dizendo o quanto meu rosto era expressivo.
Melhor pensar em Grayson Hawthorne do que em funerais e luto.
— Estou bem — respondi. Mas não estava. Mesmo depois de
dois anos, a saudade da minha mãe podia me atingir como um
tsunami. — Só vou lá fora rapidinho — eu disse, forçando um
sorriso. — Preciso de ar.
O marido de Zara me interceptou no caminho.
— Aonde você está indo? Já vamos começar. — Ele segurou meu
ombro com a mão.
Eu me desvencilhei. Não me importava com quem eram essas
pessoas. Ninguém punha as mãos em mim.
— Disseram que são quatro netos Hawthorne — eu disse, com a
voz gelada. — Pelas minhas contas, ainda falta um. Eu volto em um
minuto. Você nem vai notar que saí.
Acabei em um quintal nos fundos em vez de chegar à frente da
casa – se é que é possível chamar aquilo de quintal. O gramado era
imaculado. Havia uma fonte. Esculturas. Uma estufa. E, se
espalhando até onde eu conseguia ver, terra. Parte dela arborizada.
Parte exposta. Era fácil imaginar, parada ali e olhando ao longe, que
uma pessoa que saísse caminhando na direção do horizonte nunca
voltaria.
— Se sim é não e uma vez é nunca, então quantos lados tem um
triângulo? — A pergunta veio de cima. Eu ergui os olhos e vi um
garoto sentado na beira da varanda acima de mim, precariamente
equilibrado na grade de ferro. E bêbado.
— Você vai cair — eu disse a ele.
Ele deu um sorrisinho de desdém.
— Convite interessante.
— Não é um convite — respondi.
Ele me deu um sorriso descontraído.
— Não precisa se envergonhar de convidar um Hawthorne para o
que quer que seja. — Ele tinha o cabelo mais escuro que o de
Grayson e mais claro que o de Xander. E estava sem camisa.
Sempre uma boa ideia, no meio do inverno, considerei, ácida,
mas eu não consegui evitar que meu olhar desviasse de seu rosto.
Seu torso era esbelto, seu abdômen, definido. Ele tinha uma cicatriz
longa e fina que ia da clavícula ao quadril.
— Você deve ser a Garota Misteriosa — ele disse.
— Sou Avery — eu corrigi. Eu tinha ido até lá para escapar dos
Hawthorne e seu luto. Não havia nem sinal de preocupação no rosto
desse garoto, como se a vida fosse uma grande piada. Como se ele
não estivesse sofrendo como as pessoas lá dentro.
— Como você quiser, G. M. — ele respondeu. — Posso te chamar
de G. M., Garota Misteriosa?
Eu cruzei os braços.
— Não.
Ele passou as pernas pela grade e se levantou, cambaleando, e
eu tive uma revelação que me deu calafrios. Ele está sofrendo e
está em um lugar muito alto. Quando minha mãe morreu, eu não
tinha me permitido ceder para a autodestruição. Mas isso não quer
dizer que eu não tenha sentido vontade.
Ele passou o peso para um dos pés e esticou o outro.
— Não! — Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, o
garoto se virou e agarrou a grade com as mãos, se segurando na
vertical, deixando os pés flutuando no ar. Eu vi os músculos de suas
costas tensionarem, marcados entre suas escápulas, quando ele se
abaixou e soltou a grade.
Ele caiu bem ao meu lado.
— Você não devia estar aqui fora, G. M.
Não era eu quem estava sem camisa saltando de varandas.
— Nem você.
Eu me perguntei se ele estava percebendo o quanto meu coração
estava acelerado. Eu me perguntei se o dele estava sequer
batendo.
— Se eu faço o que devo com a mesma frequência que falo o que
não devo — os lábios dele se torceram —, então o que isso me
torna?
Jameson Hawthorne, eu pensei. De perto, eu consegui identificar
a cor dos seus olhos: um verde escuro e inescrutável.
— O que isso me torna? — ele repetiu com intensidade.
Eu parei de olhar para os olhos dele. E para seu abdômen. E seu
cabelo absurdamente cheio de gel.
— Um bêbado — eu disse, e então, porque eu consegui sentir
que uma resposta irritante estava a caminho, eu acrescentei mais
duas palavras. — É dois.
— O quê? — Jameson Hawthorne disse.
— A resposta pra sua primeira charada — respondi. — Se sim é
não e uma vez é nunca, então o número de lados de um triângulo
é… dois. — Eu alonguei minha resposta, mas sem me dar ao
trabalho de explicar como havia chegado a ela.
— Touché, G. M. — Jameson passou por mim, roçando seu braço
nu levemente no meu ao dizer isso. — Touché.
CAPÍTULO 9

Eu fiquei do lado de fora mais alguns minutos. Nada nesse dia


parecia real. E no dia seguinte eu estaria de volta a Connecticut com
algum dinheiro, se tivesse sorte, e uma história para contar. E
provavelmente nunca mais veria nenhum dos Hawthorne.
Eu nunca mais teria uma vista como aquela.
Quando voltei para o salão principal, Jameson Hawthorne havia
milagrosamente encontrado uma camisa – e um paletó. Ele sorriu
para mim e fez uma pequena saudação. Ao seu lado, Grayson ficou
tenso e contraiu o maxilar.
— Agora que estamos todos aqui — um dos advogados disse —,
vamos começar.
Os três advogados se posicionaram em triângulo. O que havia
falado tinha o cabelo escuro, pele marrom e a expressão confiante
de Alisa. Eu supus que ele era o Ortega em McNamara, Ortega e
Jones. Os outros dois – provavelmente Jones e McNamara –
estavam um de cada lado dele.
Desde quando é preciso quatro advogados para ler um
testamento?, pensei.
— Vocês estão aqui — o sr. Ortega disse, projetando sua voz por
todos os cantos da sala — para ouvir as últimas vontades e o
testamento de Tobias Tattersall Hawthorne. Segundo as instruções
do sr. Hawthorne, meus colegas distribuirão as cartas que ele
deixou para cada um de vocês.
Os outros homens começaram a andar em volta da sala,
entregando envelopes para cada um.
— Vocês podem abrir essas cartas quando a leitura do
testamento for concluída.
Eu recebi um envelope. Meu nome inteiro estava escrito em letra
de mão na frente. Ao meu lado, Libby ergueu os olhos para o
advogado, mas ele passou por ela e seguiu entregando envelopes
para os outros ocupantes da sala.
— O sr. Hawthorne estipulou que os seguintes indivíduos
precisavam estar presentes na leitura do testamento: Skye
Hawthorne, Zara Hawthorne-Calligaris, Nash Hawthorne, Grayson
Hawthorne, Jameson Hawthorne, Alexander Hawthorne e a srta.
Avery Kylie Grambs, de New Castle, Connecticut.
Eu me sentia tão exposta como se tivesse acabado de perceber
que estava sem roupas.
— Já que todos estão aqui — o sr. Ortega prosseguiu —, nós
podemos começar.
Libby deslizou a mão para segurar a minha.
— Eu, Tobias Tattersall Hawthorne — o sr. Ortega leu —, estando
são de corpo e mente, decreto que minhas posses mundanas,
incluindo todos os bens monetários e físicos, sejam distribuídos da
seguinte forma. Para Andrew e Lottie Laughlin, pelos anos de
serviço leal, eu deixo a soma de cem mil dólares para cada, com
posse vitalícia e livre de aluguel do Chalé Wayback, localizado no
limite oeste da minha propriedade no Texas.
O casal mais velho que eu tinha notado antes se abraçou. Tudo
que eu consegui pensar foi: CEM MIL DÓLARES. A presença dos Laughlin
não era obrigatória para a leitura do testamento e eles tinham
acabado de ganhar cem mil dólares. Cada um!
Eu precisei de muito esforço para me lembrar de como se
respirava.
— Para John Oren, chefe da minha equipe de segurança, e que
salvou minha vida mais vezes e das mais diversas formas do que eu
poderia contar, eu deixo o conteúdo da minha caixa de ferramentas,
atualmente no escritório de McNamara, Ortega e Jones, além da
soma de trezentos mil dólares.
Tobias Hawthorne conhecia essas pessoas, eu disse para mim
mesma, o coração aos saltos. Elas trabalhavam para ele. Elas eram
importantes para ele. Eu não sou nada.
— Para minha sogra, Pearl O’Day, eu deixo uma pensão de cem
mil dólares por ano, além de um fundo para despesas médicas
detalhado no apêndice. Todas as joias que pertenceram à minha
finada esposa, Alice O’Day Hawthorne, devem ser entregues à sua
mãe para que sejam distribuídas como ela achar adequado.
Nan replicou, mal-humorada:
— Não comecem a ter ideias — ela ordenou à sala em geral. —
Eu vou viver mais que todos vocês.
O sr. Ortega sorriu, mas então seu sorriso estremeceu. — Para…
— Ele fez uma pausa, e então recomeçou: — Para minhas filhas,
Zara Hawthorne-Calligaris e Skye Hawthorne, eu deixo fundos
necessários para pagar todas as dívidas adquiridas até o dia e hora
da minha morte. — O sr. Ortega fez outra pausa e seus lábios se
comprimiram. Os outros dois advogados olharam bem para a frente,
evitando olhar diretamente para qualquer membro da família
Hawthorne.
— Além disso, para Skye eu deixo minha bússola, para que ela
sempre encontre o verdadeiro norte, e para Zara, deixo minha
aliança de casamento, para que ela ame tão completa e
consistentemente quanto eu amei a mãe dela.
Outra pausa, mais desconfortável que a anterior.
— Prossiga — o marido de Zara disse.
— Para cada uma das minhas filhas — o sr. Ortega leu
lentamente —, além do que já foi discriminado, eu deixo uma
herança única de cinquenta mil dólares.
Cinquenta mil dólares? Eu mal tinha processado essas palavras e
o marido de Zara as repetiu, em voz alta, cheio de raiva. Tobias
Hawthorne deixou para as filhas menos do que para sua equipe de
segurança.
De repente, a referência de Skye a Grayson como o herdeiro
legítimo ganhou todo um novo significado.
— Isso é culpa sua — Zara acusou, se dirigindo para Skye. Ela
não ergueu a voz, mas soava fatal do mesmo jeito.
— Minha? — Skye respondeu, indignada.
— Papai nunca mais foi o mesmo depois que Toby morreu —
Zara continuou.
— Desapareceu — Skye corrigiu.
— Meu Deus, ouça o que você está dizendo! — Zara perdeu o
controle do seu tom de voz. — Você entrou na cabeça dele, não foi,
Skye? Fez um drama e o convenceu a nos ignorar e deixar tudo
para os seus…
— Filhos — a voz de Skye era límpida. — A palavra que você
está buscando é filhos.
— A palavra que ela está buscando é bastardos. — Nash
Hawthorne tinha o sotaque texano mais forte da sala. — Não é
como se não tivéssemos ouvido isso antes.
— Se eu tivesse tido um filho… — a voz de Zara falhou.
— Mas você não teve — Skye deixou que a irmã absorvesse
essas palavras. — Teve, Zara?
— Chega! — o marido de Zara interrompeu. — Nós vamos
resolver isso.
— Eu temo que não exista nada a ser resolvido — o sr. Ortega
disse, encerrando a briga. — Vocês vão descobrir que o testamento
é inquebrantável, e desencoraja fortemente qualquer um que queira
contestá-lo.
Eu entendi isso mais ou menos como calem a boca e sentem-se.
— Agora, se eu puder continuar… — O sr. Ortega voltou os olhos
para o testamento em suas mãos. — Para os meus netos, Nash
Westbrook Hawthorne, Grayson Davenport Hawthorne, Jameson
Winchester Hawthorne e Alexander Blackwood Hawthorne, eu
deixo…
— Tudo — Zara murmurou amargamente.
O sr. Ortega falou por cima dela.
— Duzentos e cinquenta mil dólares para cada, pagáveis em seus
aniversários de vinte e cinco anos e que até lá devem ser
administrados por Alisa Ortega, curadora.
— O quê? — Alisa soou chocada. — Quer dizer… mas que…?
— Que merda — Nash disse a ela, com um tom divertido. — A
frase que você está buscando, querida, é: que merda é essa?
Tobias Hawthorne não tinha deixado tudo para os netos. Dado o
tamanho da sua fortuna, ele havia deixado para eles uma esmola.
— O que está acontecendo aqui? — Grayson perguntou, cada
palavra mortal e precisa.
Tobias Hawthorne não deixou tudo para os netos. Ele não deixou
tudo para as filhas. Meu cérebro congelou bem ali. Meus ouvidos
chiavam.
— Por favor, todos vocês. — O sr. Ortega ergueu uma mão. —
Deixem-me terminar.
Quarenta e seis ponto dois bilhões de dólares, eu pensei, meu
coração atacando minhas costelas e minha boca parecendo uma
lixa. Tobias Hawthorne valia quarenta e seis ponto dois bilhões de
dólares e ele deixou para seus netos um milhão de dólares, ao todo.
Cem mil no total para suas filhas. Mais meio milhão para seus
empregados, uma pensão anual para Nan…
A equação matemática não fazia sentido. Não podia fazer sentido.
Um por um, os outros ocupantes da sala se viraram para mim.
— O restante das minhas posses — o sr. Ortega leu —, incluindo
todas as propriedades, bens financeiros e posses mundanas que
não foram até aqui especificadas, eu deixo para Avery Kylie
Grambs.
CAPÍTULO 10

Isso não está acontecendo.


Isso não pode estar acontecendo.
Eu estou sonhando.
Eu estou alucinando.
— Ele deixou tudo pra ela? — A voz de Skye soou aguda o
suficiente para me despertar do estupor. — Por quê? — A mulher
que havia cismado com meu signo astrológico e me brindado com
histórias sobre seus filhos e amantes havia desaparecido. Essa
Skye parecia capaz de matar alguém. Literalmente.
— Quem raios é ela? — A voz de Zara era estridente e clara
como um sino.
— Deve haver algum erro. — Grayson falou como uma pessoa
acostumada a lidar com erros. Propina, ameaça, suborno, eu
pensei. O que o “herdeiro legítimo” faria comigo? Isso não está
acontecendo, eu sentia isso a cada batida do meu coração, cada
inspiração, cada expiração. Isso não pode estar acontecendo.
— Ele está certo. — Minhas palavras saíram como um sussurro,
perdidas entre as vozes que se erguiam à minha volta. Eu tentei
falar novamente, mais alto. — Grayson está certo. — As cabeças
começaram a se virar na minha direção. — Deve haver algum erro.
— Minha voz era áspera. Eu sentia que tinha acabado de pular de
um avião. Como se estivesse em queda livre esperando meu
paraquedas abrir.
Isso não é real. Não pode ser.
— Avery. — Libby me cutucou nas costelas, claramente sugerindo
que eu deveria calar a boca e parar de falar em erros.
Mas não tinha como. Devia haver algum tipo de confusão. Um
homem desconhecido tinha acabado de me deixar uma fortuna de
bilhões de dólares. Coisas assim não acontecem, ponto.
— Viu? — Skye se agarrou ao que eu havia dito. — Até Ava
concorda que isso é ridículo.
Dessa vez eu tinha uma boa certeza de que ela havia errado meu
nome de propósito. O restante das minhas posses, incluindo todas
as propriedades, bens financeiros e posses mundanas que não
foram até aqui especificadas, eu deixo para Avery Kylie Grambs.
Agora Skye Hawthorne sabia meu nome.
Todos eles sabiam.
— Eu lhes garanto, não há nenhum erro. — O sr. Ortega me olhou
nos olhos, então voltou sua atenção para os outros. — E eu garanto
ao resto de vocês que a última vontade e o testamento de Tobias
Hawthorne são completamente inquebrantáveis. Como a maioria
dos detalhes restantes são do interesse apenas de Avery, vamos
parar com o drama. Mas deixe-me tornar uma coisa muito clara.
Segundo os termos do testamento, qualquer herdeiro que contestar
a herança de Avery abrirá mão completamente de sua parte.
A herança de Avery. Eu me sentia tonta, quase enjoada. Era
como se alguém tivesse estalado os dedos e reescrito as leis da
física, como se o coeficiente de gravidade tivesse mudado e meu
corpo não estivesse capacitado para lidar com isso. O mundo
estava girando fora do eixo.
— Nenhum testamento é tão incontestável — o marido de Zara
disse, sua voz ácida. — Não quando essa quantia de dinheiro está
em jogo.
— Você está falando — Nash Hawthorne exclamou — como
alguém que não conhecia muito bem o velho.
— Armadilhas atrás de armadilhas — Jameson murmurou. — E
charadas atrás de charadas. — Eu conseguia sentir seus olhos
verde-escuros me observando.
— Eu acho que você devia ir embora — Grayson me disse,
ríspido. Não era um pedido. Era uma ordem.
— Tecnicamente… — Alisa Ortega soava como se tivesse
engolido arsênico. — A casa é dela.
Claramente ela não sabia o que havia no testamento. Ela tinha
sido mantida no escuro, assim como o restante da família. Como
Tobias Hawthorne pôde pegá-los de surpresa assim? Que tipo de
pessoa faz isso com sua própria família?
— Eu não entendo — eu disse alto, tonta e anestesiada, porque
nada disso fazia nenhum sentido.
— Minha filha está correta. — O sr. Ortega manteve seu tom
neutro. — Você é dona de tudo, srta. Grambs. Não só da fortuna,
mas de todas as propriedades do sr. Hawthorne, incluindo a Casa
Hawthorne. Segundo os termos da sua herança, que eu ficarei feliz
de repassar com você, os atuais inquilinos podem permanecer, a
menos, ou até, que eles deem a você motivo para removê-los. —
Ele deixou que essas palavras pairassem no ar. — Sob nenhuma
circunstância — ele continuou com gravidade, suas palavras
prenhes de ameaça — esses inquilinos podem tentar remover você.
A sala ficou de repente silenciosa e imóvel. Eles vão me matar.
Alguém nessa sala vai me matar de verdade. O homem que eu
havia identificado como militar marchou para se colocar entre mim e
a família de Tobias Hawthorne. Ele não disse nada, cruzou os
braços e me manteve atrás dele, e o resto em seu campo de visão.
— Oren! — Zara repreendeu, chocada. — Você trabalha pra essa
família.
— Eu trabalhava para o sr. Hawthorne. — John Oren fez uma
pausa e ergueu um pedaço de papel. Eu precisei de um momento
para entender que era a carta que havia sido deixada para ele. — O
último pedido dele foi que eu continuasse a trabalhar para a srta.
Avery Grambs. — Ele olhou para mim. — Segurança. Você vai
precisar.
— E não só pra te proteger de nós! — Xander acrescentou à
minha esquerda.
— Dê um passo pra trás, por favor — Oren ordenou.
Xander ergueu as mãos.
— Paz — ele declarou. — Eu faço previsões tenebrosas, mas
venho em paz!
— Xan está certo — Jameson sorriu, como se tudo isso fosse um
jogo. — O mundo inteiro vai querer um pedaço seu, Garota
Misteriosa. Essa é a história do século.
História do século. Meu cérebro voltou a funcionar porque agora
havia todos os indícios de que isso não era uma piada. Eu não
estava alucinando. Eu não estava sonhando.
Eu era uma herdeira.
CAPÍTULO 11

Saí correndo. Quando notei, eu já estava do lado de fora. A porta


da frente da Casa Hawthorne bateu atrás de mim. O ar fresco bateu
no meu rosto. Eu tinha quase certeza de que estava respirando,
mas meu corpo todo parecia distante e anestesiado. Era assim a
sensação de choque?
— Avery! — Libby saiu correndo da casa atrás de mim. — Você
está bem? — Ela me estudou, preocupada. — E, além disso: você
está doida? Quando alguém te dá dinheiro, você não tenta devolver!
— Você tenta — eu aleguei, o ruído no meu cérebro tão alto que
eu não conseguia me ouvir pensar. — Toda vez que eu tento te dar
minhas gorjetas.
— Não estamos falando de gorjeta! — O cabelo azul de Libby
estava escapando de seu rabo de cavalo. — Estamos falando de
milhões.
Bilhões. Eu corrigi silenciosamente, mas minha boca
simplesmente se recusava a dizer essa palavra.
— Ave. — Libby apoiou uma mão no meu ombro. — Pense no
que isso significa. Você nunca mais vai precisar se preocupar com
dinheiro. Vai poder comprar o que quiser, fazer o que quiser. Sabe
os cartões-postais da sua mãe que você guardou? — Ela se inclinou
para a frente, encostando a testa na minha. — Você pode ir pra
qualquer lugar. Pense nas possibilidades.
Eu pensei, embora parecesse uma piada cruel, como se o
universo estivesse me enganando para desejar as coisas que
garotas como eu nunca deveriam…
A gigantesca porta da frente da Casa Hawthorne se abriu com
tudo. Eu dei um salto e Nash Hawthorne saiu. Mesmo usando um
terno, ele ainda parecia um perfeito caubói, pronto para encontrar
seu rival sob o sol do meio-dia.
Eu me preparei. Bilhões. Guerras aconteceram por muito menos.
— Relaxe, garota. — O sotaque texano de Nash era forte e
agradável, como uísque. — Eu não quero o dinheiro. Nunca quis.
Até onde eu sei, isso é o universo se divertindo um pouco com uma
gente que provavelmente merece.
O mais velho dos irmãos Hawthorne transferiu o olhar de mim
para Libby. Ele era alto, musculoso e bronzeado. Ela era pequena e
magrinha, sua pele clara contrastava com o batom escuro e o
cabelo azul neon. Os dois nem pareciam pertencer ao mesmo
planeta, mas, ainda assim, ali estava ele, dando um longo sorriso
para ela.
— Cuide-se, querida — Nash disse para minha irmã. Ele
caminhou para sua moto, colocou o capacete e, um momento
depois, já tinha sumido.
Libby ficou encarando a motocicleta.
— Retiro o que disse sobre Grayson. Talvez ele seja Deus.
Nesse momento nós tínhamos problemas maiores do que discutir
qual dos irmãos Hawthorne era o mais divino.
— Não podemos ficar aqui, Libby. Eu duvido que o resto da
família seja indiferente ao testamento igual a Nash. Nós precisamos
sair daqui.
— Eu vou com vocês — uma voz grave disse. Eu me virei. John
Oren estava na porta da frente. Eu não o ouvi abrindo.
— Eu não preciso de segurança — eu disse a ele. — Eu só
preciso sair daqui.
— Você vai precisar de segurança pelo resto da vida. — Ele foi
tão direto que eu nem consegui começar a discutir. — Mas olhe pelo
lado bom… — Ele apontou com a cabeça para o carro que tinha nos
trazido do aeroporto. — Eu também dirijo.

Eu pedi a Oren que nos levasse para um hotel de estrada. Em vez


disso, ele nos levou para o hotel mais chique que eu já tinha visto e
ele deve ter escolhido o caminho mais comprido, porque Alisa
Ortega estava nos esperando na recepção.
— Eu tive tempo para ler o testamento completo. —
Aparentemente essa era a versão dela de oi. — E trouxe uma cópia
para você. Sugiro irmos até os quartos de vocês para discutir os
detalhes.
— Nossos quartos? — repeti. Os porteiros usavam smokings.
Havia seis candelabros no lobby. Ali perto uma mulher estava
tocando uma harpa de um metro e meio de altura. — Nós não
podemos pagar por quartos nesse lugar.
Alisa me deu um olhar que era quase de pena.
— Ah, querida — ela disse, mas então recuperou seu
profissionalismo. — Você é a dona desse hotel.
— Eu… o quê? — Libby e eu estávamos recebendo aqueles
olhares de “quem deixou a ralé entrar?” dos outros hóspedes, eu
não poderia ser dona desse hotel.
— Além disso — Alisa continuou —, o testamento está sendo
autenticado. Deve levar algum tempo até o dinheiro e as
propriedades serem liberados, mas enquanto isso a McNamara,
Ortega e Jones vai pagar a conta de tudo que você precisar.
Libby franziu a testa.
— Isso é uma coisa que escritórios de advocacia fazem?
— Você provavelmente já deve ter concluído que o sr. Hawthorne
era um dos nossos clientes mais importantes — Alisa disse com
delicadeza. — Seria mais preciso dizer que ele era nosso único
cliente. E agora…
— Agora — eu disse, compreendendo a coisas — esse cliente
sou eu.

Eu levei quase uma hora para ler, reler e rerreler o testamento.


Tobias Hawthorne só havia colocado uma condição para minha
herança.
— Você deve viver na Casa Hawthorne por um ano, começando
em até três dias. — Alisa já tinha mencionado esse ponto pelo
menos duas vezes, mas eu não conseguia fazer meu cérebro
aceitá-lo.
— A única coisa que me separa de uma herança de bilhões de
dólares é que eu preciso me mudar pra uma mansão.
— Correto.
— Uma mansão onde várias das pessoas que esperavam herdar
esse dinheiro ainda moram. E eu não posso expulsá-los.
— Exceto por circunstâncias extraordinárias, correto também. Se
serve de consolo, é uma casa bem grande.
— E se eu me recusar? — perguntei. — Ou se a família
Hawthorne mandar me matar?
— Ninguém vai mandar matar você — Alisa disse calmamente.
— Eu sei que você cresceu com essa gente e tudo mais — Libby
disse a Alisa, tentando ser diplomática —, mas eles vão com
certeza, cem por cento, dar uma de Lizzie Borden pra cima da
minha irmã.
— Eu realmente preferia não ser assassinada com um machado
— enfatizei.
— Análise de risco: baixa — Oren murmurou. — Pelo menos em
se tratando de machados.
Precisei de um segundo para perceber que era uma piada.
— Estou falando sério!
— Acredite em mim — ele respondeu. — Eu sei. Mas eu também
conheço a família Hawthorne. Os meninos nunca machucariam uma
mulher e as mulheres vão atrás de você no tribunal, nada de
machados.
— Além disso — Alisa acrescentou —, no estado do Texas, se um
herdeiro morrer enquanto um testamento está sendo autenticado, a
herança não volta para o patrimônio do falecido, ela se torna parte
do patrimônio do herdeiro.
Eu tenho um patrimônio?, pensei, anestesiada.
— E se eu me recusar a ir morar com eles? — eu perguntei de
novo, um enorme caroço na minha garganta.
— Ela não vai recusar. — Libby lançou um olhar de laser na
minha direção.
— Se você não se mudar para a Casa Hawthorne em até três dias
— Alisa me disse —, sua parte da herança será doada pra caridade.
— Não vai para a família de Tobias Hawthorne? — perguntei.
— Não. — A máscara de neutralidade de Alisa caiu de leve. Ela
conhecia os Hawthorne havia anos. Ela podia estar trabalhando
para mim agora, mas ela não devia estar feliz com isso.
Ou estava?
— Seu pai escreveu o testamento, certo? — perguntei, tentando
entender a situação insana em que eu estava.
— Em reunião com os outros sócios do escritório — Alisa
confirmou.
— Ele te contou… — Eu tentei encontrar uma forma melhor de
dizer o que eu queria dizer, então desisti. — Ele te disse o porquê
de tudo isso?
Por que Tobias Hawthorne havia deserdado a família? Por que
deixar tudo para mim?
— Eu não acho que meu pai saiba a razão — Alisa disse. Ela me
espiou, a máscara de neutralidade caindo mais uma vez. — Você
sabe?
CAPÍTULO 12

— Pata que partiu. — Max tomou ar. — Baralho, pata que partiu. —
Ela baixou a voz até um sussurro e soltou um palavrão de verdade.
Já era mais de meia-noite para mim e duas horas mais cedo para
ela. Eu meio que esperava que a sra. Liu fosse surgir e confiscar o
celular dela, mas nada aconteceu.
— Como? — Max quis saber. — Por quê?
Eu olhei para a carta no meu colo. Tobias Hawthorne tinha me
deixado uma explicação, mas nas horas que se passaram desde
que o testamento foi lido, eu ainda não tinha conseguido abrir o
envelope. Eu estava sozinha, no escuro, sentada na varanda da
cobertura de um hotel do qual eu era dona, usando um roupão
felpudo que ia até o chão e que provavelmente custava mais do que
meu carro – eu estava petrificada.
— Talvez — Max disse, pensativa — você tenha sido trocada na
maternidade. — Max via muita televisão e tinha o que
provavelmente podia ser diagnosticado como vício em livros. —
Talvez sua mãe tenha salvado a vida dele muitos anos atrás. Talvez
ele deva toda a fortuna que tinha ao seu bisavô. Talvez você tenha
sido escolhida por um algoritmo computacional avançado que vai
desenvolver inteligência artificial qualquer dia desses!
— Maxine — desdenhei. De alguma forma isso foi o suficiente
para me permitir dizer em voz alta as palavras em que eu estava
tentando nem pensar. — Talvez meu pai não seja meu pai de
verdade.
Essa era a explicação mais racional, não era? Talvez Tobias
Hawthorne não tivesse deserdado a família em favor de uma
estranha. Talvez eu fosse da família.
Eu tenho um segredo… Eu imaginei a minha mãe. Quantas vezes
eu a tinha ouvido dizer exatamente essas palavras?
— Você está bem? — Max perguntou no outro lado da linha.
Olhei novamente para o envelope com meu nome escrito em letra
cursiva. Engoli em seco.
— Tobias Hawthorne me deixou uma carta.
— E você ainda não abriu? — Max disse. — Avery, macete…
— Maxine! — Mesmo do outro lado do telefone, eu conseguia
ouvir a mãe de Max ao fundo.
— Macete, mamãe. Eu disse macete. Tipo, um macete para você
entender… — Houve uma pequena pausa, e então: — Avery? Eu
preciso ir.
Os músculos do meu estômago se apertaram.
— Falamos em breve?
— Muito em breve — Max prometeu. — E, enquanto isso: Abra.
A. Carta.
Ela desligou. Eu desliguei. Coloquei meu dedão na aba do
envelope, mas uma batida à porta me salvou de seguir adiante.
Dentro da suíte, eu encontrei Oren posicionado em frente à porta.
— Quem é? — perguntei.
— Grayson Hawthorne — Oren respondeu. Eu encarei a porta e
Oren explicou. — Se meus homens o considerassem uma ameaça,
ele nunca teria conseguido chegar ao nosso andar. Eu confio em
Grayson. Mas, se você não quiser vê-lo…
— Não — eu disse. O que eu estou fazendo? Era tarde e eu
duvidava que a realeza americana gostasse da ideia de ser
destronada. Mas havia algo na forma como Grayson me olhava,
desde a primeira vez que nos vimos…
— Pode abrir — eu disse a Oren. Ele abriu e deu um passo para
trás.
— Você não vai me convidar pra entrar? — Grayson não era mais
o herdeiro, mas era impossível desconfiar disso pelo tom de voz
dele.
— Você não devia estar aqui — eu disse a ele, fechando melhor o
roupão.
— Eu passei a última hora dizendo a mesma coisa para mim
mesmo e, ainda assim, aqui estou eu. — Seus olhos eram duas
piscinas cor de chumbo, seu cabelo estava desarrumado, como se
eu não fosse a única sem conseguir dormir. Ele tinha perdido tudo.
— Grayson… — eu disse.
— Eu não sei como você fez isso. — Ele me cortou, sua voz
perigosa e suave. — Eu não sei o que você tinha com o meu avô ou
que tipo de golpe você deu aqui.
— Eu não…
— Eu estou falando, srta. Grambs. — Ele espalmou a mão na
porta. Eu estava errada sobre os olhos dele. Não eram piscinas.
Eram geleiras. — Não tenho ideia de como você conseguiu isso,
mas eu vou descobrir. Eu vejo você agora. Eu sei o que você é e do
que você é capaz, e não existe nada que eu não faria para proteger
minha família. Qualquer que seja o jogo aqui, não importa quanto
dure esse golpe… eu vou descobrir a verdade e Deus te ajude
quando isso acontecer.
Oren entrou no meu campo de visão, mas eu não esperei que ele
agisse. Empurrei a porta com força suficiente para fazer Grayson
recuar e então a bati. Com o coração acelerado, esperei que ele
batesse de novo, que ele gritasse do outro lado da porta. Nada.
Lentamente, abaixei a cabeça e meus olhos novamente foram
atraídos pelo envelope nas minhas mãos como metal por um ímã.
Com uma última olhada para Oren, eu me recolhi para o meu
quarto. Abra. A. Carta. Dessa vez, foi o que eu fiz, e tirei um cartão
do envelope. O corpo da mensagem só tinha duas palavras. Eu
encarei a página e li a saudação, a mensagem e a assinatura várias
e várias vezes.

Querida Avery,
Sinto muito.
T. T. H.
CAPÍTULO 13

Sinto muito? Sinto muito o quê? A pergunta ainda estava


ressoando na minha mente na manhã seguinte. Pela primeira vez
na vida, eu tinha dormido até tarde. Eu encontrei Oren e Alisa na
cozinha da nossa suíte conversando em voz baixa.
Baixa demais para que eu ouvisse.
— Avery. — Oren me viu primeiro. Eu me perguntei se ele tinha
contado a Alisa sobre Grayson. — Tem alguns protocolos de
segurança que eu queria revisar com você.
Tipo não abrir portas para Grayson Hawthorne?
— Você agora é um alvo — Alisa me disse com todas as letras.
Considerando que ela tinha insistido em dizer que os Hawthorne
não eram uma ameaça, eu precisei perguntar:
— Um alvo de quem?
— Paparazzi, claro. O escritório está segurando a história por
enquanto, mas isso não vai durar muito e temos outras
preocupações.
— Sequestro. — Oren não pôs nenhuma ênfase particular nessa
palavra. — Perseguição. As pessoas farão ameaças; elas sempre
fazem. Você é jovem e mulher e isso vai tornar tudo pior. Com a
permissão da sua irmã, eu vou organizar uma equipe para ela
também, assim que ela voltar.
Sequestro. Perseguição. Ameaças. Eu nem conseguia
compreender essas palavras.
— Onde está Libby? — perguntei, já que ele tinha dito “ela voltar”.
— Em um avião — Alisa respondeu. — Mais especificamente, no
seu avião.
— Eu tenho um avião? — Eu nunca ia me acostumar com isso.
— Você tem vários — Alisa me disse. — E um helicóptero, eu
creio, mas isso não vem ao caso. Sua irmã foi buscar suas coisas e
as dela. Considerando o prazo para que você se mude para a Casa
Hawthorne, e o que está em jogo, nós pensamos que seria melhor
que você ficasse aqui. Na verdade, nós gostaríamos que você se
mudasse esta noite.
— No segundo que essa notícia vazar — Oren disse com
seriedade —, você sairá na capa de todos os jornais. Você vai ser a
história principal em todos os canais, o maior assunto das redes
sociais. Para algumas pessoas, você será Cinderela. Para outras,
Maria Antonieta.
Algumas pessoas iam querer ser eu. Algumas iam me odiar com
as profundezas de suas almas. Pela primeira vez, eu notei a arma
no quadril de Oren.
— É melhor que você fique aqui — Oren disse, em um tom
controlado. — Sua irmã deve estar de volta esta noite.

Durante o resto da manhã, Alisa e eu jogamos o que eu


mentalmente chamei de Jogo de Revirar a Vida da Avery Em Um
Segundo. Saí do meu emprego. Alisa cuidou de me tirar da escola.
— E meu carro? — perguntei.
— Oren vai dirigir pra você no futuro próximo, mas nós podemos
trazer seu carro, se você quiser — Alisa ofereceu. — Ou você pode
escolher um carro novo para uso pessoal.
Pela forma como ela disso isso, dava para pensar que ela estava
falando de comprar chiclete no supermercado.
— Você prefere sedã ou SUV? — ela perguntou, segurando o
telefone de uma forma que sugeria que ela era perfeitamente capaz
de encomendar o carro clicando em apenas um botão. — Alguma
cor de preferência?
— Você precisa me dar licença um segundo — eu disse a ela. Eu
me enfiei de volta no meu quarto. A cama tinha uma pilha
ridiculamente alta de travesseiros. Eu subi na cama e me deixei cair
sobre a montanha de almofadas, então peguei meu celular.
Mensagens, ligações, DMs para Max, todas tiveram o mesmo
resultado: nada. Ela definitivamente estava com o celular confiscado
– e possivelmente seu notebook, o que significava que ela não
podia me aconselhar sobre qual é a resposta apropriada quando
sua advogada começa a falar de pedir um carro como se fosse um
baralho de uma pizza.
Isso é irreal. Menos de 24 horas antes, eu estava dormindo em
um estacionamento. O mais perto que eu chegava de esbanjar era o
eventual sanduíche de café da manhã.
Sanduíche de café da manhã. Harry. Eu me sentei na cama.
— Alisa? — chamei. — E se eu não quiser um carro novo, se eu
quiser gastar esse dinheiro em outra coisa… eu posso?

***

Bancar um lugar para que Harry ficasse – e fazê-lo aceitar – não


seria fácil, mas Alisa me disse para considerar isso resolvido. Esse
era o mundo no qual eu vivia agora. Eu só precisava dizer e as
coisas eram resolvidas.
Isso não ia durar. Não podia. Mais cedo ou mais tarde alguém ia
descobrir que isso é algum tipo de confusão. Então é melhor
aproveitar enquanto dura.
Esse foi o primeiro pensamento que tive quando fomos buscar
Libby. Quando minha irmã saiu do meu jatinho particular, eu me
perguntei se Alisa podia fazê-la entrar na Sorbonne, ou comprar
uma lojinha de cupcakes para ela, ou…
— Libby. — Todos os pensamentos na minha cabeça congelaram
no momento em que eu vi o rosto dela. Seu olho direito estava roxo,
inchado e quase não abria.
Libby engoliu em seco, mas não desviou o olhar.
— Se você disser “eu avisei”, eu vou fazer cupcakes de caramelo
todo dia e fazer você se sentir tão culpada que vai querer comer
todos.
— Tem algum problema sobre o qual eu deveria saber? — Alisa
perguntou a Libby, sua voz enganosamente calma enquanto ela
observava o hematoma.
— Avery odeia caramelo — Libby disse, como se esse fosse o
problema.
— Alisa — eu grunhi —, seu escritório tem um assassino de
aluguel à disposição?
— Não. — Alisa manteve seu tom perfeitamente profissional. —
Mas eu sou bem engenhosa. Tenho alguns contatos.
— Eu realmente não consigo saber se vocês estão brincando —
Libby disse, e então se virou para mim. — Eu não quero falar sobre
isso. E estou bem.
— Mas…
— Eu estou bem.
Eu consegui ficar de boca fechada e voltamos para o hotel. O
plano era terminar alguns últimos arranjos e ir imediatamente para a
Casa Hawthorne.
As coisas não aconteceram segundo o plano.
— Temos um problema. — Oren não parecia muito preocupado,
mas Alisa imediatamente soltou o celular. Oren apontou a varanda
com a cabeça. Alisa saiu, olhou para baixo e xingou.
Eu passei por Oren e saí para a varanda e vi o que estava
acontecendo. Lá embaixo, em frente à entrada do hotel, os
seguranças estavam lutando com o que parecia ser uma multidão
furiosa. Foi só quando um flash disparou que eu entendi o que era a
multidão.
Paparazzi.
E naquele segundo todas as câmeras apontaram para a varanda.
Para mim.
CAPÍTULO 14

— Eu achei que você tivesse dito que seu escritório tinha cuidado
disso.
Oren olhou feio para Alisa. Ela fechou a cara, fez três ligações,
uma em seguida da outra, duas delas em espanhol, e então voltou a
olhar para meu chefe de segurança.
— O vazamento não veio da gente. — Seus olhos fuzilaram Libby.
— Foi o seu namorado.
A resposta de Libby foi pouco mais que um sussurro.
— Meu ex.

— Me desculpem. — Libby já tinha pedido desculpas pelo menos


uma dúzia de vezes. Ela havia contado tudo a Drake, sobre o
testamento, as condições da minha herança, onde estávamos
ficando. Tudo. Eu a conhecia bem o suficiente para saber por que
ela fez isso. Ele devia estar bravo por ela ter sumido. Ela tentou
acalmá-lo. E, no momento em que ela contou sobre o dinheiro, ele
deve ter exigido vir junto. Ele teria começado a fazer planos para
gastar o dinheiro dos Hawthorne. E Libby, Deus a abençoe, deve ter
dito a ele que o dinheiro não era deles, não era dele.
Ele bateu nela. Ela terminou com ele. Ele foi falar com a
imprensa. E agora os paparazzi estavam ali. Uma horda caiu em
cima de nós quando Oren me levou para fora do hotel por uma porta
lateral.
— Lá está ela! — uma voz gritou.
— Avery!
— Avery, aqui!
— Avery, como é ser a adolescente mais rica dos Estados
Unidos?
— Como é ser a bilionária mais jovem do mundo?
— De onde você conhecia Tobias Hawthorne?
— É verdade que você é a filha ilegítima de Tobias Hawthorne?
Eu fui enfiada em um SUV. A porta se fechou, abafando o rugido
das perguntas dos repórteres. Bem no meio do nosso caminho, eu
recebi uma mensagem – e não era de Max. Era de um número
desconhecido.
Eu abri e vi um print de uma manchete. Avery Grambs: Quem é a
herdeira de Hawthorne?
Uma mensagem curta acompanhava a imagem.
Ei, Garota Misteriosa. Você é oficialmente famosa.

Havia mais paparazzi parados em frente aos portões da Casa


Hawthorne, mas, quando passamos por eles, o resto do mundo
sumiu. Não havia nenhuma festa de boas-vindas. Nada de
Jameson. Nada de Grayson. Nada de nenhum Hawthorne. Eu tentei
abrir a enorme porta da frente – trancada. Alisa desapareceu nos
fundos da casa. Quando ela finalmente reapareceu, ela tinha uma
expressão sofrida no rosto. Ela me deu um grande envelope.
— Legalmente — ela disse —, a família Hawthorne precisa lhe
dar as chaves. Na prática… — Ela apertou os olhos. — A família
Hawthorne é um pé no saco.
— Esse é um termo legal? — Oren perguntou secamente.
Eu abri o envelope e descobri que de fato a família Hawthorne
havia me dado chaves – algo em torno de uma centena delas.
— Alguma ideia de qual dessas abre a porta da frente? —
perguntei. Não eram chaves normais. Eram enormes e
ornamentadas. Todas elas pareciam antiguidades e cada uma era
distinta – designs diferentes, metais diferentes, tamanhos e
comprimentos diferentes.
— Você vai descobrir — alguém disse.
Ergui o olhar e me vi encarando um interfone.
— Pare de joguinhos, Jameson — Alisa ordenou. — Isso não é
tão engraçadinho quanto vocês todos acham.
Nenhuma resposta.
— Jameson? — Alisa tentou de novo.
Silêncio, e então:
— Eu tenho fé em você, G. M.
O interfone cortou e Alisa soltou uma expiração longa e frustrada.
— Deus me salve dos Hawthorne.
— G. M.? — Libby perguntou, aturdida.
— Garota Misteriosa — esclareci. — Pelo que eu entendi, isso é o
que Jameson Hawthorne acha que é um apelido. — Eu voltei minha
atenção para as chaves na minha mão. A solução óbvia era
experimentar todas. Supondo que uma dessas chaves abria a porta
da frente, uma hora eu daria sorte. Mas sorte não parecia suficiente.
Eu já era a menina mais sortuda do mundo.
Uma parte de mim queria merecer isso.
Eu passei pelas chaves, examinando seus desenhos e formas.
Uma maçã. Uma cobra. Um padrão ondeado, parecido com água.
Chaves para cada letra do alfabeto, em uma caligrafia rebuscada e
antiga. Chaves com números e chaves com formas, uma com uma
sereia e quatro chaves diferentes com olhos.
— Bem? — Alisa disse abruptamente. — Você quer que eu faça
uma ligação?
— Não. — Minha atenção foi das chaves para a porta. O desenho
dela era simples, geométrico – não combinava com nenhuma das
chaves que eu tinha visto até agora. Isso seria fácil demais, eu
pensei. Simples demais. Um segundo depois, um pensamento
paralelo se formou. Não é simples o suficiente.
Eu tinha aprendido isso jogando xadrez: quanto mais complicada
uma estratégia parecesse, menos provável era que o oponente
buscasse respostas simples. Se você consegue manter alguém de
olho no seu cavalo, então você pode capturá-lo com um peão. Olhe
além dos detalhes. Além das complicações. Eu reajustei meu foco
da base das chaves para a parte que realmente entrava na
fechadura. Embora as chaves tivessem tamanhos diferentes no
geral, a parte que ia na fechadura tinha um tamanho semelhante em
todas.
Não só um tamanho similar, eu percebi, olhando duas chaves lado
a lado. O padrão – o mecanismo que virava a fechadura – era
idêntico entre as duas. Eu passei para uma terceira chave. Mesma
coisa. Eu comecei a examiná-las, comparando cada chave com a
próxima, uma por uma. Igual. Igual. Igual.
Não havia uma centena de chaves na argola. Quanto mais rápido
eu passava por elas, mais certeza eu tinha. Havia apenas duas –
dezenas de cópias da chave errada, disfarçadas para parecerem
diferentes umas das outras, e então…
— Essa. — Eu finalmente cheguei a uma chave com um padrão
diferente das outras. O interfone chiou, mas, se Jameson ainda
estava do outro lado, ele não disse uma palavra. Coloquei a chave
na fechadura e a adrenalina correu pelas minhas veias quando ela
girou.
Eureca.
— Como você sabia qual chave usar? — Libby me perguntou.
A resposta veio pelo interfone.
— Às vezes — Jameson Hawthorne disse, soando estranhamente
contemplativo —, as coisas que parecem muito diferentes na
superfície são, na verdade, exatamente iguais no fundo.
CAPÍTULO 15

— Bem-vinda ao lar, Avery. — Alisa entrou no hall e se virou para


me olhar. Eu tinha parado de respirar, só por um instante, quando
entrei pela porta. Era como entrar no palácio de Buckingham ou no
castelo de Hogwarts e alguém te dizer que era seu.
— Descendo o corredor — Alisa disse —, temos um teatro, uma
sala de música, uma estufa, o solário… — Eu sequer sabia o que
eram metade dessas salas. — Você já conhece o salão principal, é
claro — Alisa continuou. — A sala de jantar fica mais para a frente,
depois a cozinha, a cozinha do chef…
— Tem um chef? — deixei escapar.
— Um sushiman, um chef italiano, um taiwanês, um vegetariano e
chefs confeiteiros de prontidão. — A voz que disse essas palavras
era masculina. Eu me virei e vi o casal mais velho da leitura do
testamento parado na entrada do salão principal. Os Laughlin,
lembrei. — Mas minha mulher cuida das refeições do dia a dia — o
sr. Laughlin continuou num resmungo.
— O sr. Hawthorne era um homem muito reservado. — A sra.
Laughlin me olhou. — Ele se virava com a minha comida na maior
parte dos dias porque ele não gostava de ter mais estranhos na
Casa do que o necessário.
Eu não tinha nenhuma dúvida de que ela estava falando casa
com C maiúsculo – e menos ainda de que ela me considerava uma
estranha.
— Há dezenas de funcionários à disposição — Alisa explicou. —
Todos eles recebem um salário de expediente integral, mas
trabalham sob demanda.
— Se algo precisa ser feito, tem alguém para fazer — o sr.
Laughlin disse —, e eu cuido para que seja feito da forma mais
discreta possível. Na maior parte das vezes, você nem vai saber
que estiveram aqui.
— Mas eu vou — Oren declarou. — O movimento de entrada e
saída da propriedade é monitorado com rigidez e ninguém passa
pelos portões sem ter seus antecedentes checados. Equipes de
construção, as equipes de faxina e jardinagem, todo massagista,
chef, cabeleireiro ou sommelier, todos eles precisam ser liberados
pela minha equipe.
Sommelier. Cabeleireiro. Chef. Massagista. Meu cérebro ficou
passando a lista. Era atordoante.
— A academia fica no fim desse corredor — Alisa disse, voltando
ao seu papel de guia. — Temos quadras de basquete e squash,
uma parede de escalada, um boliche…
— Um boliche? — eu repeti.
— Só quatro pistas — Alisa confirmou, como se fosse
perfeitamente razoável ter um pequeno boliche em casa.
Eu ainda estava tentando formular uma resposta apropriada
quando a porta da frente se abriu atrás de mim. No dia anterior,
Nash Hawthorne tinha dado a impressão de ser alguém que estava
fora da Casa – mas ali estava ele.
— Caubói motoqueiro — Libby sussurrou no meu ouvido.
Ao meu lado, Alisa ficou tensa.
— Se tudo estiver em ordem aqui, é melhor eu passar no
escritório. — Ela enfiou a mão no bolso do terninho e me deu meu
novo celular. — Eu salvei meu número, o do sr. Laughlin e o de
Oren. Se precisar de qualquer coisa, ligue.
Ela saiu sem dizer uma única palavra para Nash, e ele a observou
sair.
— Tome cuidado com essa aí — a sra. Laughlin aconselhou o
mais velho dos irmãos Hawthorne quando a porta se fechou. —
Nem o inferno tem a fúria de uma mulher rejeitada.
Isso esclareceu algo para mim. Alisa e Nash. Minha advogada
tinha me aconselhado a não perder a cabeça por um Hawthorne e,
quando ela perguntou se um deles já tinha estragado minha vida e
eu disse não, sua resposta havia sido sorte a sua.
— Não se convençam de que Li-Li está dormindo com o inimigo
— Nash disse à sra. Laughlin. — Avery não é inimiga de ninguém.
Não existem inimigos aqui. Era isso que ele queria.
Ele. Tobias Hawthorne. Mesmo morto, toma conta de tudo.
— Nada disso é culpa de Avery — Libby, que estava ao meu lado,
disse. — Ela é só uma menina.
Nash voltou sua atenção para minha irmã e eu consegui senti-la
tentando desaparecer. Nash reparou no olho roxo:
— O que aconteceu? — ele murmurou.
— Estou bem — Libby disse, erguendo o queixo.
— Estou vendo — Nash respondeu baixinho. — Mas, se você
quiser, pode me dizer um nome. Eu cuidaria disso.
Percebi o efeito que essas palavras tiveram em Libby. Ela não
estava acostumada a ter alguém além de mim no seu time.
— Libby — Oren chamou a atenção dela. — Se você tiver um
momento, eu gostaria de apresentá-la a Hector, que vai cuidar da
sua equipe. Avery, eu posso garantir pessoalmente que Nash não
vai assassiná-la com um machado ou permitir que você seja
assassinada com um machado enquanto eu estiver fora.
Nash riu disso e eu olhei feio para Oren. Ele não precisava dizer o
quanto eu desconfiava deles! Quando Libby seguiu Oren para as
profundezas da casa, tomei consciência da forma como o mais
velho dos irmãos Hawthorne a observava.
— Deixe Libby em paz — eu disse a Nash.
— Você é protetora — Nash comentou — e parece jogar sujo. Se
tem uma coisa que eu respeito são essas duas características
juntas.
Ouvimos um estrondo e então um baque ao longe.
— Esse — Nash refletiu — deve ser o motivo de eu estar aqui
neste momento em vez de estar vivendo uma agradável existência
nômade.
Outro baque.
Nash revirou os olhos.
— Isso vai ser divertido. — Ele começou a andar na direção de
um corredor próximo. Ele olhou por cima do ombro. — É bom você
vir junto, menina. Você sabe o que dizem sobre batismos de fogo.
CAPÍTULO 16

Nash tinha pernas longas, então o andar natural dele exigia que
eu corresse para acompanhar. Olhei para dentro de todos os
cômodos pelos quais passávamos, mas era tudo um grande borrão
de arte, arquitetura e luz natural. No fim de um longo corredor, Nash
abriu uma porta. Eu me preparei para ver evidências de uma luta.
Em vez disso, eu vi Grayson e Jameson em lados opostos de uma
biblioteca que me deixou sem fôlego.
O cômodo era circular. Estantes se erguiam por quatro ou cinco
metros e cada uma delas estava completamente cheia de livros
encadernados com capa dura. As estantes eram feitas de uma
madeira sólida e forte. Espalhadas pelo cômodo, quatro escadas de
ferro fundido espiralavam para as prateleiras mais altas, como os
pontos de uma bússola. No centro da biblioteca, havia um enorme
tronco de árvore com pelo menos uns três metros de diâmetro.
Mesmo de longe, consegui ver os anéis que marcavam a idade da
árvore.
Precisei de um momento para perceber que ela devia ser usada
como escrivaninha.
Eu poderia ficar aqui para sempre, pensei. Eu poderia ficar nessa
sala para sempre e nunca mais sair.
— Então — Nash disse, examinando casualmente os irmãos. —
Qual bunda eu preciso chutar primeiro?
Grayson ergueu os olhos do livro que estava segurando.
— Precisamos mesmo sempre sair na porrada?
— Parece que temos um voluntário para o primeiro round — Nash
disse, e então lançou um olhar inquisitivo pare Jameson, que estava
apoiado em uma das escadas de ferro. — Tenho um segundo da
sua atenção?
Jameson desdenhou.
— Não conseguiu ficar longe disso, conseguiu, irmão?
— E deixar a Avery sozinha com vocês, paspalhos? — Até Nash
mencionar meu nome, nenhum dos dois parecia ter notado minha
presença atrás dele, mas eu senti minha invisibilidade sumir naquele
exato momento.
— Eu não me preocuparia muito com a srta. Grambs — Grayson
disse, seus olhos cinzentos aguçados. — Ela claramente é capaz de
cuidar de si mesma.
Tradução: eu sou uma golpista gananciosa e desalmada e ele
consegue ver por trás da minha máscara.
— Não dê atenção ao Gray — Jameson disse, preguiçosamente.
— Nenhum de nós dá.
— Jamie — Nash disse. — Quieto.
Jameson o ignorou.
— Grayson está treinando para as Olimpíadas da Chatice e nós
realmente achamos que ele pode chegar lá se conseguir enfiar essa
vara um pouco mais fundo no…
Cupido, pensei, inspirada por Max.
— Chega — Nash grunhiu.
— Perdi alguma coisa? — Xander perguntou, entrando na
biblioteca. Estava vestido com o uniforme completo da escola
particular e com um único e fluido movimento tirou o blazer.
— Você não perdeu nada — Grayson disse. — E a srta. Grambs
já estava de saída. — Ele lançou um olhar pra mim. — Certamente
você quer se acomodar.
Eu que era a bilionária e ele ainda estava dando ordens.
— Espere um pouco. — Xander de repente franziu a testa,
examinando o clima da sala. — Vocês estavam brigando sem mim?
— Eu ainda não havia notado nenhum sinal visível de caos e
destruição, mas obviamente Xander tinha visto algo que eu não
percebi. — É isso que eu ganho por ser o único que vai para a
escola — ele disse com tristeza.
Ao ouvir a palavra escola, Nash olhou de Xander para Jameson.
— Nada de uniforme — ele notou. — Matando aula, Jamie? Serão
dois chutes na bunda então.
Xander ouviu a palavra chute na bunda, sorriu, se equilibrou na
ponta dos pés e saltou sem aviso, levando Nash para o chão. Só
uma luta amigável entre irmãos.
— Te peguei — Xander declarou triunfantemente.
Nash passou seu tornozelo em torno da perna de Xander e o
derrubou, prendendo-o contra o chão.
— Hoje não, irmãozinho. — Nash sorriu e em seguida lançou um
olhar muito mais maligno para os outros dois irmãos. — Hoje não.
Ali estavam eles – os quatro – como uma unidade. Eles eram os
Hawthorne. Eu não era. Eu sentia isso agora, de uma forma
concreta. Eles compartilhavam um laço que era impenetrável para
quem estava de fora.
— É melhor eu ir — disse.
Aquele não era o meu lugar e se eu ficasse tudo que eu poderia
fazer era ficar observando.
— Você não deveria estar aqui de qualquer forma — Grayson
respondeu, tenso.
— Aceita, Gray — Nash disse. — Está feito e você sabe tão bem
quanto eu que, se nosso avô fez isso, não há como desfazer. —
Nash virou a cabeça na direção de Jameson. — E, quanto a você:
tendências autodestrutivas não são tão encantadoras quanto você
imagina.
— Avery resolveu o desafio das chaves mais rápido do que
qualquer um de nós — Jameson disse casualmente.
Pela primeira vez desde que eu tinha entrado na sala, os quatro
irmãos ficaram em silêncio por algum tempo. O que está
acontecendo aqui?, me perguntei. O momento era tenso, elétrico,
quase insuportável, e então…
— Você deu as chaves pra ela? — Grayson quebrou o silêncio.
Eu ainda estava segurando o chaveiro. De repente, ele pareceu
muito pesado. Jameson não devia ter me dado isso.
— Nós somos legalmente obrigados a entregar…
— Uma chave — Grayson interrompeu Jameson e começou a
andar lentamente na direção dele, fechando o livro que tinha nas
mãos. — Nós somos legalmente obrigados a dar uma chave a ela,
Jameson, não as chaves.
Eu presumi que estavam brincando comigo. Na melhor das
hipóteses, eu achei que fosse um teste. Mas, pela forma como eles
estavam falando, parecia mais uma tradição. Um convite.
Um rito de passagem.
— Eu fiquei curioso pra saber como ela lidaria com elas. —
Jameson arqueou uma sobrancelha. — Você quer saber em quanto
tempo ela resolveu?
— Não! — Nash trovejou. Não entendi se ele estava respondendo
à pergunta de Jameson ou dizendo a Grayson que parasse de
avançar sobre o irmão.
— Posso me levantar agora? — Xander se intrometeu, ainda
preso embaixo de Nash e aparentemente em um humor melhor que
o dos outros três juntos.
— Não — Nash respondeu.
— Eu disse que ela era especial — Jameson murmurou enquanto
Grayson continuava a se aproximar dele.
— E eu te disse pra ficar longe dela — Grayson replicou,
chegando a pouco mais de um braço de distância de Jameson.
— Vejo que vocês dois voltaram a se falar! — Xander comentou
alegremente. — Excelente.
Nada de excelente, pensei, incapaz de desviar os olhos da
tempestade nascendo a alguns metros de distância. Jameson era
mais alto e Grayson tinha os ombros mais largos. O desdém na
expressão do primeiro era respondido com gelo na do segundo.
— Bem-vinda à Casa Hawthorne, Garota Misteriosa. — A
recepção de Jameson parecia ser mais para Grayson que para mim.
Qualquer que fosse o motivo dessa briga, não era só por causa dos
acontecimentos recentes.
Não era só por minha causa.
— Pare de me chamar de Garota Misteriosa. — Eu mal tinha
falado desde que tinha entrado na biblioteca, mas eu estava
cansada de ser uma espectadora. — Meu nome é Avery.
— Eu também estou disposto a te chamar de Herdeira —
Jameson sugeriu. Ele deu um passo à frente e ficou logo abaixo de
um raio de sol que entrava pela claraboia do teto. Com isso, ficou
frente a frente com Grayson. — O que você acha, Gray? Tem
alguma preferência de apelido para nossa nova senhoria?
Senhoria. Jameson estava esfregando na cara, como se ele
conseguisse suportar ser deserdado se isso significasse que o
herdeiro legítimo também havia perdido tudo.
— Eu estou tentando te proteger — Grayson disse baixo.
— Eu acho que nós dois sabemos — Jameson respondeu — que
a única pessoa que você quer proteger é a si mesmo.
Grayson ficou completamente, fatalmente quieto.
— Xander. — Nash se ergueu, puxando o irmão mais novo até ele
se levantar. — Por que você não leva Avery até a ala dela?
Isso pode ter sido uma tentativa de Nash para evitar que uma
linha fosse cruzada ou uma indicação de que isso já havia
acontecido.
— Vamos lá. — Xander bateu o ombro de leve no meu. —
Podemos pegar uns cookies no caminho.
Se essa era uma tentativa de dissipar a tensão na sala, não
funcionou, mas serviu para tirar a atenção de Grayson de cima de
Jameson por um momento.
— Nada de cookies. — A voz de Grayson saiu estrangulada,
como se sua garganta estivesse se fechando em volta das palavras,
como se o último golpe de Jameson o tivesse deixado totalmente
sem ar.
— Certo — Xander respondeu, animado. — Você é duro na
queda, Grayson Hawthorne. Nada de cookies. — Xander piscou
para mim. — Vamos pegar uns scones.
CAPÍTULO 17

— Gosto de chamar o primeiro scone de scone de treinamento. —


Xander enfiou um scone inteiro na boca e passou um para mim;
então engoliu e continuou com a aula. — É só no terceiro, não, no
quarto scone que você desenvolve algum tipo de experiência em
scones.
— Experiência em scones — eu repeti sem emoção.
— Sua natureza é cética — Xander notou. — Isso vai ser útil para
você nesses corredores, mas, se existe uma verdade universal na
experiência humana, é que um paladar refinado para scones não
surge da noite para o dia.
Notei Oren com o canto do olho e me perguntei se fazia tempo
que ele estava seguindo a gente.
— Por que estamos aqui falando de scones? — perguntei. Oren
tinha insistido que os irmãos Hawthorne não eram uma ameaça
física, mas, ainda assim! No mínimo, Xander devia estar tentando
tornar minha vida horrível. — Você não devia me odiar?
— Mas eu te odeio — Xander respondeu, devorando com
felicidade seu terceiro scone. — Caso você não tenha notado, eu
fiquei com os scones de blueberry e te dei — ele deu de ombros —
os de limão. Essa é a profundidade do meu ódio por você,
pessoalmente e também por princípios.
— Isso não é uma piada. — Eu sentia que tinha caído no País das
Maravilhas e então caído de novo, uma toca de coelho atrás da
outra em um círculo vicioso.
Armadilhas atrás de armadilhas, eu conseguia ouvir Jameson
dizendo. Charadas atrás de charadas.
— Por que eu te odiaria, Avery? — Xander finalmente perguntou.
O tom de sua voz tinha camadas de emoção que eu não havia
percebido antes. — Não foi você quem fez isso.
Tobias Hawthorne fez.
— Talvez você seja inocente. — Xander deu de ombros. — Talvez
você seja o gênio do mal que Gray parece achar que você é, mas,
no fim das contas, mesmo que você achasse que tinha manipulado
nosso avô para conseguir isso, eu te garanto que foi ele que
manipulou você.
Eu pensei na carta que Tobias Hawthorne tinha me deixado –
duas palavras, nenhuma explicação.
— Seu avô era uma peça — eu disse a Xander.
Ele pegou o quarto scone.
— Eu concordo. Em honra a ele, eu como esse scone. — Ele fez
exatamente isso. — Quer que eu te leve para o seu quarto agora?
Tem que haver alguma pegadinha nisso. Xander Hawthorne tinha
que ser mais do que aparentava.
— Só me mostre pra que lado é — respondi.
— Quanto a isso… — O caçula dos Hawthorne fez uma careta. —
Talvez a Casa Hawthorne seja meio difícil de transitar. Imagine, por
favor, que um labirinto teve um filho com Onde Está Wally? Só que o
Wally é o seu quarto.
Tentei colocar em outras palavras:
— Ou seja, a Casa Hawthorne tem uma disposição incomum.
Xander pegou um quinto e último scone.
— Alguém já te disse que você é boa com palavras?

— A Casa Hawthorne é a maior residência particular do estado do


Texas. — Xander me guiou escada acima. — Eu podia te dar a
metragem, mas seria só uma estimativa. O que realmente separa a
Casa Hawthorne de outras casas obscenamente grandes e com
ares de castelo não é tanto seu tamanho, mas a sua natureza. Meu
avô acrescentou pelo menos uma nova ala ou quarto por ano.
Imagine, por favor, que um desenho de M. C. Escher concebeu uma
criança com os projetos mais geniais de Leonardo da Vinci…
— Parou — ordenei. — Nova regra: você não pode mais usar
nenhuma comparação que envolva ter filhos quando for descrever
essa casa ou seus ocupantes, incluindo você mesmo.
Xander levou uma mão ao peito de forma melodramática.
— Cruel.
Eu dei de ombros.
— Minha casa, minhas regras.
Ele ficou boquiaberto. Eu mesma não acreditei que tinha dito isso,
mas havia algo em Xander Hawthorne que me fazia sentir que eu
não precisava pedir desculpas pela minha existência.
— Cedo demais? — perguntei.
— Eu sou um Hawthorne. — Xander me deu seu olhar mais altivo.
— Nunca é cedo demais para começar a falar coisas horríveis. —
Ele retomou sua função de guia. — Agora, como eu estava dizendo,
a ala leste é, na verdade, a ala nordeste, localizada no segundo
andar. Se você se perder, procure pelo velho. — Xander apontou
com a cabeça para um retrato na parede. — Essa foi a ala dele nos
últimos meses.
Eu já tinha visto fotos de Tobias Hawthorne on-line, mas, quando
eu olhei para o retrato, não consegui mais desviar os olhos. Ele
tinha o cabelo prateado e o rosto mais marcado do que eu tinha
notado. Seus olhos eram quase exatamente iguais aos de Grayson,
seu porte era o de Jameson, seu queixo, o de Nash. Se eu não
tivesse visto Xander ao vivo, talvez eu não reconhecesse uma
semelhança entre ele e o avô, mas estava ali, na forma como as
feições de Tobias Hawthorne se amarravam – não nos olhos, no
nariz ou na boca, mas algo na forma entre eles.
— Eu não o conhecia mesmo. — Parei de observar o retrato e
olhei para Xander. — Eu lembraria se tivesse conhecido.
— Você tem certeza? — Xander me perguntou.
Observei o retrato mais uma vez. Eu tinha visto aquele homem
alguma vez? Nossos caminhos haviam se cruzado, mesmo que por
um momento? Minha mente estava em branco, exceto por uma
única frase, se repetindo várias e várias vezes. Sinto muito.
CAPÍTULO 18

Xander me deixou sozinha para explorar a minha ala.


Minha ala. Eu me sentia ridícula só de pensar nessas palavras.
Na minha mansão. As primeiras quatro portas levavam a suítes,
cada uma delas de um tamanho que fazia uma cama king size
parecer pequena. Os closets podiam servir de quartos. E os
banheiros? Boxes do chuveiro com bancos embutidos e duchas com
um mínimo de três jatos diferentes cada. Banheiras gigantescas
com painéis de controle. Televisões embutidas em todos os
espelhos.
Atordoada, eu fui até a quinta e última porta do meu corredor. Não
é um quarto qualquer, eu percebi quando a abri. Um escritório.
Poltronas de couro imensas – seis delas – dispostas em formato de
ferradura e de frente para uma varanda. Prateleiras de vidro nas
paredes. Espaçados uniformemente pelas prateleiras, itens que
pareciam pertencer a um museu – geodos, armas antigas, estátuas
de ônix e de pedra. De frente para a varanda, no fundo da sala, uma
escrivaninha. Quando me aproximei, eu vi uma grande bússola de
bronze entalhada em sua superfície. Eu a tracei com os dedos. Ela
girou – noroeste – e um compartimento na escrivaninha se abriu.
Foi nessa ala que Tobias Hawthorne passou seus últimos meses,
pensei. De repente, eu não queria só olhar o compartimento aberto
– eu queria revirar cada gaveta da escrivaninha de Tobias
Hawthorne. Devia haver algo, em algum lugar, que pudesse indicar
o que ele tinha em mente para enfim entender qual a razão de eu
estar aqui, o motivo de ele ter preterido sua família por mim. Eu
tinha feito algo que o havia impressionado? Ele viu algo em mim?
Ou na minha mãe?
Observei o compartimento aberto mais de perto. Na parte interna
havia sulcos profundos que formavam a letra T. Passei meus dedos
por eles. Nada aconteceu. Então testei as outras gavetas.
Trancadas.
Atrás da escrivaninha havia estantes cheias de placas e troféus.
Me aproximei deles. A primeira placa tinha as palavras Estados
Unidos da América gravadas em um fundo dourado; embaixo delas
havia um selo. Eu precisei ler as letrinhas para entender que aquilo
era uma patente – e ela não estava no nome de Tobias Hawthorne.
A patente estava no nome de Xander.
Havia pelo menos mais meia dúzia de patentes naquelas
estantes, várias placas indicando recordes mundiais e troféus de
todos os tipos imagináveis. Um touro de bronze. Uma prancha de
surfe. Uma espada. Medalhas. Várias faixas pretas. Troféus de
campeonatos – alguns de campeonatos nacionais – que iam de
motocross a natação e pinball. Havia uma série de quatro gibis
emoldurados – super-heróis que eu reconhecia, do tipo que aparece
em filmes –, escritos pelos quatro netos Hawthorne. Um livro de arte
com fotografias trazia o nome de Grayson na lombada.
Isso não era só uma exposição. Era quase um altar – uma ode de
Tobias Hawthorne aos seus quatro netos extraordinários. E não
fazia sentido algum. Não fazia sentido essas quatro pessoas – três
delas ainda adolescentes – terem conquistado tanta coisa. E,
definitivamente, era totalmente ilógico um homem que mantinha
esse tipo de exposição em seu escritório decidir que nenhum dos
netos merecia herdar sua fortuna.
Mesmo que você achasse que tinha manipulado nosso avô,
Xander disse, eu te garanto que foi ele que manipulou você.
— Avery?
Assim que ouvi meu nome, eu me afastei dos troféus e
rapidamente fechei o compartimento da escrivaninha que eu havia
aberto.
— Aqui! — gritei, respondendo.
Libby apareceu na porta.
— Isso é surreal — ela disse. — Esse lugar todo é surreal.
— É uma forma de descrever. — Eu tentei focar na maravilha que
era a Casa Hawthorne e ignorar o olho roxo da minha irmã, mas
falhei. Parecia que o hematoma estava ainda pior agora.
Libby passou seus braços em volta do tronco, abraçando-se.
— Estou bem — ela disse quando percebeu que eu a encarava.
— Nem dói tanto.
— Por favor, diga que essa história acabou.
As palavras escaparam antes que eu conseguisse segurá-las.
Libby precisava de apoio agora, não de julgamento. Mas eu não
pude evitar pensar que Drake já tinha sido ex dela antes.
— Eu estou aqui, não estou? — Libby disse. — Eu escolhi você.
Eu queria que ela escolhesse a si mesma e disse isso a ela. Libby
deixou o cabelo cobrir seu rosto e se virou para a varanda. Ela ficou
em silêncio por um minuto antes de falar novamente.
— Minha mãe costumava me bater. Só quando ela estava muito
estressada, sabe? Ela era mãe solo e as coisas eram difíceis. Eu
conseguia entender isso. Eu tentei tornar tudo mais fácil.
Eu conseguia imaginá-la quando criança, apanhando e tentando
fazer as pazes com a pessoa que tinha batido nela.
— Libby…
— Drake me amou, Avery. Eu sei que ele amou e eu tentei tanto
entender… — Ela estava se abraçando com mais força agora. O
esmalte preto das suas unhas parecia novo. Perfeito. — Mas você
está certa.
Meu coração ficou apertado.
— Eu não queria estar.
Libby ficou ali mais alguns segundos, e então andou até a
varanda e abriu a porta. Eu a segui e nós duas saímos para sentir o
ar da noite. Lá embaixo havia uma piscina. Devia ser aquecida,
porque alguém estava nadando.
Grayson. Meu corpo o reconheceu antes que minha mente o
fizesse. Seus braços batiam contra a água em um nado borboleta
brutalmente eficiente. E os músculos das suas costas…
— Eu preciso te contar uma coisa — Libby disse ao meu lado.
Isso me ajudou a tirar os olhos da piscina – e do nadador.
— Sobre Drake? — perguntei.
— Não. Eu ouvi uma coisa. — Libby engoliu em seco. — Quando
Oren me apresentou à minha equipe de segurança, eu ouvi o
marido de Zara falando. Eles vão fazer um teste, um teste de DNA.
Com você.
Eu não tinha ideia de onde Zara e o marido haviam conseguido
uma amostra do meu DNA, mas eu não estava surpresa. Eu mesma
já tinha pensado isso: a explicação mais simples para incluir uma
completa estranha no testamento era eu não ser uma completa
estranha. A explicação mais simples era que eu era uma
Hawthorne.
Eu realmente não devia estar olhando desse jeito para o Grayson.
— Se Tobias Hawthorne for seu pai — Libby considerou —, então
nosso pai, meu pai, não é. E, se não temos o mesmo pai e mal nos
víamos quando crianças…
— Não ouse dizer que não somos irmãs.
— Você ainda ia me querer aqui? — Libby perguntou, seus dedos
brincando com sua gargantilha. — Se não somos…
— Eu quero você comigo — eu assegurei. — De qualquer jeito.
CAPÍTULO 19

Naquela noite, tomei o banho mais longo da minha vida. A água


quente era infinita. As portas de vidro do boxe não embaçaram com
o vapor. Era como ter uma sauna particular. Depois de me secar
com toalhas felpudas e enormes, eu coloquei meu pijama surrado e
me joguei no que eu tinha certeza de que eram lençóis de algodão
egípcio.
Não sei quanto tempo fiquei deitada ali até ouvir. Uma voz.
— Puxe o castiçal.
Eu me levantei em um sobressalto, me virando para ficar com as
costas contra a parede. Por instinto, peguei as chaves que tinha
deixado na mesinha de cabeceira caso precisasse de uma arma.
Meus olhos percorreram o quarto em busca de uma pessoa, mas
não havia ninguém.
— Puxe o castiçal em cima da lareira, Herdeira. A menos que
você queira que eu fique preso aqui atrás.
O estado de alerta do instinto de sobrevivência foi substituído por
uma irritação. Apertei os olhos para ver melhor a lareira de pedra no
fundo do quarto. E, sim, tinha um castiçal ali.
— Certeza de que isso pode ser qualificado como perseguição —
eu disse para a lareira, ou, mais precisamente, para o garoto do
outro lado dela. Ainda assim, eu não poderia não puxar o castiçal.
Quem resistiria a uma coisa assim? Peguei a base do castiçal e ele
resistiu. Então outra sugestão veio de trás da lareira.
— Não puxe para a frente. Vire para baixo.
Foi o que eu fiz. O castiçal girou com um clique e o fundo da
lareira se separou do chão, só um centímetro. Um momento depois,
eu vi dedos tateando o espaço e observei o fundo da lareira ser
erguido e desaparecer atrás da cornija, deixando uma abertura no
fundo da lareira. Jameson Hawthorne passou por ela. Ele se
endireitou, colocou o castiçal em sua posição inicial e a entrada que
ele tinha acabado de usar se cobriu de novo.
— Passagem secreta — ele explicou, desnecessariamente. — A
casa está cheia delas.
— Eu devia achar isso reconfortante? — perguntei. — Ou
assustador?
— Você que diz, Garota Misteriosa. Isso te deixa reconfortada ou
assustada? — Ele me deixou pensar por um momento. — Ou é
mais certo dizer que isso te deixa intrigada?
Na primeira vez que vi Jameson Hawthorne, ele estava bêbado.
Dessa vez, eu não senti o cheiro de álcool nele, mas me perguntei
quanto ele havia dormido desde a leitura do testamento. O cabelo
estava comportado, mas havia algo selvagem em seus olhos verdes
reluzentes.
— Você não está perguntando das chaves. — Jameson me deu
um pequeno sorriso torto. — Eu esperava que você fizesse
perguntas sobre elas.
Eu as ergui.
— Isso foi você.
Não era uma pergunta – e ele não tratou como uma.
— É uma pequena tradição familiar.
— Eu não sou da família.
Ele inclinou a cabeça para um lado.
— Você acredita nisso?
Eu pensei em Tobias Hawthorne e no teste de DNA que o marido
de Zara já tinha mandado fazer.
— Eu não sei.
— Seria uma pena — Jameson comentou — se fôssemos
parentes. — Ele me deu outro sorriso, longo e malicioso. — Você
não acha?
Qual era o meu problema com os meninos Hawthorne? Pare de
pensar no sorriso dele. Pare de olhar para os lábios dele. Só… pare.
— Eu acho que você já tem mais família do que consegue lidar. —
Cruzei os braços. — Eu também acho que você é muito menos sutil
do que acha que é. Você quer alguma coisa.
Eu sempre fui boa em matemática. Eu sempre fui lógica. Ele
estava ali, no meu quarto, flertando, por alguma razão.
— Todo mundo vai querer algo de você, Herdeira. — Jameson
sorriu. — A pergunta é: quantos de nós queremos algo que você
está disposta a dar?
Até mesmo o som da voz dele, a forma como ele formulava as
frases – eu me sentia querendo ir na direção dele. Isso era ridículo.
— Pare de me chamar de Herdeira — eu retruquei. — E se você
transformar essa resposta em algum tipo de charada, eu vou
chamar a segurança.
— Essa é a questão, Garota Misteriosa. Eu não acho que estou
transformando nada em uma charada. Eu não acho que preciso.
Você é uma charada, um quebra-cabeça, um jogo… o último jogo do
meu avô.
Ele me olhava com tanta intensidade que eu não ousei desviar os
olhos.
— Por que você acha que essa casa tem tantas passagens
secretas? Por que existem tantas chaves que não servem em
nenhuma fechadura? Todas as escrivaninhas que meu avô já
comprou têm um compartimento secreto. Há um órgão no teatro
que, se você tocar uma sequência específica de notas, revela uma
gaveta escondida. Toda manhã de sábado, desde que eu era
criança até a noite em que meu avô morreu, ele fazia meus irmãos e
eu nos sentarmos ao redor dele e nos dava uma pequena charada,
um quebra-cabeça, um desafio impossível, algo a ser resolvido. E
então ele morreu. E então… — Jameson deu um passo na minha
direção. — Você.
Eu.
— Grayson acha que você é uma mestra da manipulação. Minha
tia está convencida de que você deve ter sangue Hawthorne. Mas
eu acho que você é a charada final do meu avô, um último quebra-
cabeça a ser resolvido. — Ele deu outro passo à frente, ficando bem
perto de mim. — Ele escolheu você por um motivo, Avery. Você é
especial e eu acho que ele queria que nós, melhor dizendo, queria
que eu, descobrisse o porquê.
— Eu não sou um quebra-cabeça. — Eu estava sentindo meus
batimentos cardíacos no meu pescoço. Ele estava próximo
suficiente para ver minhas veias pulsando.
— Claro que é — Jameson respondeu. — Todos nós somos. Não
me diga que uma parte de você não está tentando nos desvendar.
Grayson. Eu. Talvez até Xander.
— Isso tudo é só um jogo pra você?
Ergui a mão para evitar que ele avançasse mais. Ele deu um
último passo, forçando a palma da minha mão contra o seu peito.
— Tudo é um jogo, Avery Grambs. A única coisa que podemos
decidir nessa vida é se jogamos pra ganhar. — Ele ergueu a mão
para afastar o cabelo do meu rosto e eu recuei bruscamente.
— Saia — murmurei. — Use a porta normal dessa vez.
Em toda minha vida, ninguém nunca tinha me tocado tão
suavemente quanto ele naquele momento.
— Você está com raiva — Jameson disse.
— Eu já disse… se você quer algo, peça. Não venha me falar
sobre como eu sou especial. Não toque o meu rosto.
— Você é especial. — Jameson baixou as mãos e as colocou no
bolso, mas a expressão determinada dos seus olhos não mudou. —
E o que eu quero é entender por quê. Por que você, Avery? — Ele
deu um passo para trás, me dando espaço. — Não me diga que
você também não quer saber.
Eu queria. Claro que queria.
Jameson ergueu um envelope e o colocou com cuidado sobre a
cornija.
— Eu vou deixar isso bem aqui. Leia e então me diga que isso
não é um jogo a ser vencido. Me diga que isso não é uma charada.
Então ele puxou o castiçal e, quando a passagem na lareira se
abriu, deu uma última flechada, bem no alvo:
— Pra você ele deixou toda a fortuna que tinha, Avery, e tudo que
ele deixou pra nós foi você.
CAPÍTULO 20

Muito tempo depois de Jameson ter desaparecido na escuridão e


a porta da lareira ter se fechado, eu ainda estava no mesmo lugar,
observando. Essa era a única passagem secreta para o meu
quarto? Em uma casa como essa, como eu poderia saber se estava
sozinha?
Por fim, eu me movi e peguei o envelope que Jameson tinha
deixado na cornija, embora tudo em mim se revoltasse contra o que
ele tinha dito. Eu não era um quebra-cabeça. Eu era só uma garota.
Eu virei o envelope e vi o nome de Jameson escrito na frente.
Essa é a carta dele. A que ele recebeu na leitura do testamento. Eu
ainda não tinha ideia do que significava a minha própria carta,
nenhuma ideia de pelo que Tobias estava pedindo desculpas. Talvez
a carta de Jameson esclarecesse algo.
Eu a abri e li. A mensagem era mais longa que a minha e fazia
ainda menos sentido.

Jameson,
Antes o mal que você conhece do que o mal que você não
conhece, será? O poder corrompe. O poder absoluto corrompe
de forma absoluta. Nem tudo que reluz é ouro. As únicas
certezas na vida são a morte e os impostos. Para lá, pela graça
de Deus, eu vou.
Não julgue.
— Tobias Tattersall Hawthorne

Na manhã seguinte eu já tinha memorizado a carta de Jameson.


Ela parecia ter sido escrita por alguém que não dormia havia dias –
maníaco, soltando um clichê atrás do outro. Mas, quanto mais as
palavras marinavam no meu cérebro, mais eu começava a
considerar a possibilidade de que Jameson estivesse certo.
Tem alguma coisa nessas cartas. Na de Jameson. Na minha.
Uma resposta – ou ao menos uma pista.
Saí da cama imensa e fui tirar meus celulares (sim, no plural), do
carregador quando percebi que meu aparelho antigo tinha
desligado. Com apertos fortes no botão de ligar e um pouco de sorte
eu consegui convecê-lo a voltar à vida. Eu nem sabia como começar
a explicar as últimas 24 horas para Max, mas eu precisava falar com
alguém.
Eu precisava de um choque de realidade.
O que eu tinha eram mais de cem ligações e mensagens
perdidas. De repente, ficou claro o motivo para Alisa ter me dado um
novo celular. Pessoas com quem eu não falava havia anos me
mandaram mensagem. Pessoas que tinham passado a vida me
ignorando imploravam pela minha atenção. Colegas de trabalho e
da escola. Até mesmo professores. Eu não tinha ideia de como
metade deles havia conseguido meu número. Eu peguei meu novo
celular, fiquei on-line e descobri que meu e-mail e as redes sociais
estavam ainda piores.
Eu tinha milhares de mensagens – a maioria de estranhos. Para
algumas pessoas, você vai ser Cinderela. Para outras, Maria
Antonieta. Os músculos do meu estômago se apertaram. Larguei os
dois celulares e me levantei, colocando a mão sobre a boca. Eu
devia ter previsto isso. Não era para ter sido nenhum choque. Mas
eu não estava pronta.
Como alguém poderia estar pronto para isso?
— Avery? — Uma voz, feminina, mas não a de Libby, chamou.
— Alisa? — Eu chequei antes de abrir a porta do quarto.
— Você perdeu o café da manhã. — Foi a resposta. Áspera,
profissional, definitivamente Alisa.
Eu abri a porta.
— A sra. Laughlin não tinha certeza do que você ia querer, então
ela fez um pouco de tudo. — Alisa me disse.
Uma mulher que eu não reconheci – vinte e poucos anos, talvez –
a seguiu para dentro do quarto com uma bandeja. Ela a apoiou na
minha mesinha de cabeceira, me observou com uma careta e saiu
sem dizer uma palavra.
— Eu achei que os funcionários só viessem conforme fosse
necessário — eu disse, me dirigindo para Alisa depois que a porta
fechou.
Alisa suspirou longamente.
— Os funcionários — ela disse — são muito, muito leais e estão
extremamente preocupados agora. Essa — Alisa apontou a porta
com a cabeça — é uma das novas. É de Nash.
Eu apertei os olhos, indagando:
— O que você quer dizer com “é de Nash”?
Alisa nunca perdia a compostura.
— Nash é um pouco nômade. Ele vai embora. Fica por aí. Ele
encontra algum buraco para trabalhar como barman por um tempo e
então, como uma mariposa na direção da luz, ele volta,
normalmente trazendo uma ou duas almas perdidas. Como você
deve imaginar, há muito trabalho na Casa Hawthorne e o sr.
Hawthorne tinha o hábito de empregar as almas perdidas de Nash.
— E a menina que acabou de sair? — perguntei.
— Ela está aqui há mais ou menos um ano. — O tom de Alisa não
deixava transparecer nada. — Ela morreria por Nash. A maior parte
deles morreria.
— E ela e Nash estão… — eu não tinha certeza de como formular
isso — envolvidos?
— Não! — Alisa cortou. Ela respirou fundo e continuou. — Nash
não deixaria algo acontecer com alguém sobre quem ele tem algum
tipo de poder. Ele tem suas falhas, entre elas um complexo de ser
uma espécie de salvador, mas ele não é desse tipo.
Eu não aguentava mais o elefante na sala, então resolvi falar:
— Ele é seu ex.
O queixo de Alisa se ergueu.
— Nós ficamos noivos por um tempo — ela concordou. — Éramos
jovens. Havia problemas. Mas, eu garanto, não tenho nenhum
conflito de interesse ao representá-la.
Noivos? Eu precisei ativamente impedir meu queixo de cair. Minha
advogada tinha planejado casar com um Hawthorne e ela achou que
isso não precisava ser mencionado?
— Se você preferir — Alisa disse, rígida —, eu posso arranjar
outra pessoa do escritório para ser seu assessor.
Eu me forcei a fechar a boca e tentei processar a situação. Alisa
não tinha sido nada além de profissional e parecia quase
assustadoramente boa em seu trabalho. Além disso, dada toda a
coisa do noivado ter terminado, ela tinha motivos para não ser leal
aos Hawthorne.
— Tudo bem — eu disse. — Não preciso de um novo assessor.
Isso conquistou um sorriso discreto dela.
— Tomei a liberdade de matricular você na Escola Heights
Country Day. — Alisa passou para o segundo item da sua lista com
uma eficiência matadora. — É a escola que Xander e Jameson
frequentam. Grayson se formou ano passado. Eu esperava que
você estivesse matriculada e pelo menos parcialmente aclimatada
antes de as notícias sobre a sua herança vazarem, mas vamos lidar
com os imprevistos. — Ela me olhou. — Você é a herdeira de
Hawthorne e não é uma Hawthorne. Isso vai chamar atenção, até
mesmo em um lugar como a Country Day, onde você estará longe
de ser a única com posses.
Posses. Quantos jeitos gente rica tinha de não usar a palavra
rica?
— Eu tenho certeza de que consigo dar conta de um bando de
garotos de escola particular — eu disse, embora eu não tivesse
certeza disso. Nenhuma certeza.
Alisa notou meus celulares. Ela se abaixou e pegou meu celular
antigo do chão.
— Eu vou me livrar disso para você.
Ela nem precisou olhar para a tela para perceber o que tinha
acontecido. O que ainda estava acontecendo, se a vibração
constante do meu celular era algum indício.
— Espera — eu disse a ela. Peguei o celular, ignorei as
mensagens e peguei o número de Max. Eu o transferi para o meu
novo celular.
— Eu sugiro que você regule com rigidez quem tem acesso ao
seu novo número — Alisa me disse. — Isso não vai parar tão cedo.
— Isso — eu repeti. A atenção da mídia. Estranhos me mandando
mensagem. Pessoas que nunca se importaram comigo decidindo
que éramos melhores amigos.
— Os alunos da Country Day serão um pouco mais discretos,
mas você precisa estar preparada. Por pior que pareça, dinheiro é
poder e o poder é magnético. Você não é mais a mesma pessoa de
dois dias atrás.
Eu quis contestar, mas, em vez disso, minha mente voltou para a
carta de Tobias Hawthorne para Jameson, suas palavras ecoando
na minha cabeça. O poder corrompe. O poder absoluto corrompe de
forma absoluta.
CAPÍTULO 21

— Você leu minha carta.


Jameson Hawthorne deslizou para dentro do SUV. Oren já tinha me
mostrado os recursos de segurança do carro. As janelas eram à
prova de balas e muito escuras e Tobias Hawthorne tinha vários SUVs
idênticos para quando era preciso soltar iscas.
Aparentemente ir para a Escola Heights Country Day não era uma
dessas ocasiões.
— Xander precisa de carona? — Oren perguntou do assento do
motorista, olhando para Jameson pelo retrovisor.
— Xan vai para a escola mais cedo às sextas — Jameson disse.
— Atividade extracurricular.
Pelo retrovisor, o olhar de Oren migrou para mim.
— Tudo bem ter companhia?
Se estava tudo bem ficar tão perto de Jameson Hawthorne, que
tinha saído de uma lareira para dentro do meu quarto na noite
passada? E tocado no meu rosto…
— Tudo bem — eu disse a Oren, esmagando a lembrança.
Oren virou a chave na ignição e então olhou por cima do ombro.
— Ela é o ouro — ele disse a Jameson. — Se houver um
incidente…
— Você vai salvá-la primeiro — Jameson completou. Ele apoiou o
pé no painel central e se reclinou contra a porta. — Meu avô sempre
dizia que os homens Hawthorne têm sete vidas. Eu não devo ter
gastado mais do que cinco das minhas até agora.
Oren se virou para a frente, deu partida no carro e lá fomos nós.
Mesmo através das janelas à prova de balas, eu consegui ouvir o
pequeno burburinho que se ergueu quando passamos pelos
portões. Paparazzi. Antes havia pelo menos uma dúzia. Agora era o
dobro – talvez mais.
Eu não me permiti remoer isso por muito tempo. Desviei o olhar
dos repórteres para Jameson.
— Aqui. — Eu enfiei a mão na minha bolsa e entreguei a ele a
minha carta.
— Eu mostrei o meu — Jameson disse, enfatizando ao máximo o
duplo sentido ali. — Você me mostra a sua.
— Cala a boca e lê.
Ele leu.
— Só isso?
Eu fiz que sim.
— Alguma ideia de por que ele estava pedindo desculpas? —
Jameson perguntou. — Algum dano enorme e anônimo à sua vida
no passado?
— Um. — Eu engoli em seco e desviei o olhar. — Mas, a menos
que você ache que seu avô foi responsável por minha mãe ter um
tipo sanguíneo extremamente raro e ter ficado bem no fim da lista
de transplantes, provavelmente podemos cortá-lo.
Eu queria soar sarcástica, não vulnerável.
— Depois falamos da sua carta. — Jameson fez a gentileza de
ignorar todos os traços de emoção na minha voz. — Vamos falar da
minha. Estou curioso, Garota Misteriosa, o que você achou dela?
Eu senti que isso era outro teste. Uma chance para mostrar o meu
valor. Desafio aceito.
— Sua carta está escrita usando provérbios — eu disse,
começando pelo óbvio. — Nem tudo que reluz é ouro. O poder
corrompe. Ele está dizendo que dinheiro e poder são perigosos. E a
primeira frase, Antes o mal que você conhece do que o mal que
você não conhece, será? Isso é óbvio, certo?
A família dele era o mal que Tobias Hawthorne conhecia – e eu
era o mal que ele não conhecia. Mas, se isso for verdade – por que
eu? Se eu era uma estranha, como ele tinha me escolhido? Um
dardo atirado num mapa? O algoritmo imaginário de Max?
E, se eu era uma estranha, por que ele estava pedindo
desculpas?
— Prossiga — Jameson incentivou.
Voltei a focar.
— As únicas certezas na vida são a morte e os impostos. Parece
pra mim que ele sabia que ia morrer.
— Nós nem sabíamos que ele estava doente — Jameson
murmurou. Isso me pegou. Tobias Hawthorne aparentemente era
um mestre em guardar segredos, como a minha mãe. Eu posso ser
o mal que ele não conhecia, mesmo se ele a conhecesse. Eu ainda
seria uma estranha mesmo se ela não fosse.
Eu conseguia sentir Jameson ao meu lado, me observando de
uma forma que me fazia imaginar se ele conseguia enxergar dentro
da minha cabeça.
— Para lá, pela graça de Deus, eu vou — eu disse, voltando para
o conteúdo da carta e determinada a ir até o fim com isso. — Em
circunstâncias diferentes, qualquer um de nós poderia estar na
posição do outro — deduzi.
— O menino rico se torna um mendigo. — Jameson tirou os pés
do console e se virou completamente na minha direção, seus olhos
verdes encontrando os meus de uma forma que colocou todo o meu
corpo em alerta. — E a menina que nasceu no lugar errado pode se
tornar…
Uma princesa. Uma charada. Uma herdeira. Um jogo.
Jameson sorriu. Se esse era um teste, eu tinha passado.
— À primeira vista — ele me disse —, parece que a carta traça o
que já sabemos. Meu avô morreu e deixou tudo para o mal que ele
não conhecia, assim causando um revés de fortuna para muitos. Por
quê? Porque o poder corrompe. E o poder absoluto corrompe de
forma absoluta.
Eu não poderia ter tirado os olhos dele nem se tivesse tentado.
— E você, Herdeira? — Jameson continuou. — Você é
incorruptível? É por isso que ele deixou a fortuna nas suas mãos?
— A expressão se insinuando nos cantos dos lábios dele não era
um sorriso. Eu não sabia bem o que era, mas era magnética. — Eu
conheço meu avô. — Jameson me encarou intensamente. — Tem
mais coisa aqui. Um jogo de palavras. Um código. Uma mensagem
escondida. Algo.
Ele me devolveu a carta. Eu a peguei e baixei os olhos.
— Seu avô assinou minha carta com iniciais — observei. — E a
sua com o nome inteiro.
— E o que nós podemos concluir disso? — Jameson perguntou
despreocupadamente.
Nós. Como um Hawthorne e eu tínhamos virado nós? Eu devia ter
ficado preocupada. Mesmo com as garantias de Oren e Alisa, eu
deveria estar mantendo distância. Mas havia algo nessa família.
Nesses garotos.
— Já estamos quase chegando — Oren falou do banco da frente.
Se ele estava acompanhando nossa conversa, não deu sinais. — A
administração da Country Day foi informada da situação. Eu aprovei
a segurança da escola anos atrás, quando os meninos foram
matriculados. Você vai ficar bem aqui, Avery, mas nunca, em
nenhuma circunstância, saia do campus. — Nosso carro passou por
um portão com vigias. — Eu estarei por perto.
Eu passei meus pensamentos das cartas – a de Jameson e a
minha – para o que me esperava fora do carro. Isso é uma escola?,
pensei, enquanto observava a paisagem do lado de fora da minha
janela. Parecia mais uma faculdade ou um museu, algo tirado de um
catálogo no qual todos os alunos eram bonitos e sorridentes. De
repente, o uniforme que tinham me dado parecia não pertencer ao
meu corpo. Eu era uma menina fantasiada, fingindo que usar uma
panela na cabeça podia transformá-la em astronauta, que espalhar
batom pelo rosto a tornava uma estrela.
Para o resto do mundo, eu era uma celebridade repentina. Eu era
motivo de fascínio – um alvo. Mas aqui? Como gente que cresceu
com esse tipo de dinheiro poderia me ver como algo além de uma
fraude?
— Eu odeio provocar e fugir, Garota Misteriosa… — A mão de
Jameson já estava na maçaneta quando o SUV freou. — Mas a última
coisa que você precisa no seu primeiro dia de aula é ser vista perto
de mim.
CAPÍTULO 22

Jameson sumiu em um instante. Ele desapareceu em um mar de


paletós borgonha e cabelos brilhantes e eu fiquei ali, ainda presa no
meu lugar, incapaz de me mover.
— É só uma escola — Oren me disse. — São só crianças.
Crianças ricas. Crianças cujo normal era provavelmente ser “só”
herdeiras de um neurocirurgião ou advogado famoso. Quando
pensavam em faculdade, elas provavelmente estavam falando de
Harvard ou Yale. E ali estava eu, usando uma saia xadrez plissada e
um blazer borgonha que tinha até um escudo azul-marinho com
palavras em latim que eu não sabia o que queriam dizer.
Eu peguei meu novo celular e mandei uma mensagem para Max.
É a Avery. Número novo. Me liga.
Olhando de novo para o banco da frente, eu coloquei minha mão
na porta. O trabalho de Oren não era me acalmar. Ele estava ali
para me proteger, mas não dos olhares que eu esperava receber no
momento em que pisasse fora do carro.
— Te encontro aqui no fim do dia? — perguntei.
— Estarei aqui.
Eu esperei um momento, caso Oren tivesse outras instruções, e
então abri a porta.
— Obrigada pela carona.

Ninguém estava me encarando. Ninguém estava cochichando. Na


verdade, enquanto eu andava em direção aos arcos duplos que
marcavam a entrada do prédio principal, eu tive a clara sensação de
que a ausência de reações era deliberada. Nada de encarar. Nada
de conversar. Só o mais leve dos olhares, de vez em quando.
Sempre que eu olhava para alguém, a pessoa desviava o olhar.
Eu disse a mim mesma que eles provavelmente estavam tentando
não fazer cena com a minha chegada, que isso era discrição – mas
ainda parecia que eu tinha entrado em um salão de baile onde todo
mundo estava dançando uma valsa complicada, girando, rodando
em volta de mim como se eu nem estivesse ali.
Quando enfim cheguei aos arcos, uma garota com cabelo preto e
comprido quebrou a tendência de me ignorar como um puro-sangue
derrubando um cavaleiro inexperiente. Ela me observou
intensamente e, uma por uma, as meninas em volta dela fizeram o
mesmo.
Quando eu cheguei perto delas, a menina de cabelo preto se
afastou do grupo e caminhou na minha direção.
— Meu nome é Thea — ela disse, sorrindo. — Você deve ser
Avery. — A voz dela era perfeitamente agradável, quase musical,
como uma sereia que sabia que, com o mínimo de esforço, podia
fazer marinheiros se jogarem no mar. — Posso te acompanhar até a
secretaria?

***

— A diretora é a dra. McGowan. Ela fez doutorado em Princeton.


Ela vai te prender na sala dela por pelo menos meia hora, falando
sobre oportunidades e tradição. Se ela oferecer café, aceite, ela
mesma torra e é de morrer. — Thea parecia bem ciente de que nós
duas estávamos recebendo muitos olhares. Ela também parecia
estar gostando. — Quando a dra. Mac te der seu horário, cuide pra
ter tempo de almoçar todos os dias. A Country Day usa o que eles
chamam de horário modular, o que quer dizer que operamos em um
ciclo de seis dias, embora só precisemos vir para a escola cinco
dias por semana. As aulas acontecem entre três a cinco vezes por
ciclo, então, se você não tomar cuidado, pode acabar com aulas na
hora do almoço nos dias A e B, mas quase nenhuma aula nos dias
C ou F.
— O.k. — Minha cabeça estava girando, mas eu me forcei a dizer
mais uma palavra. — Obrigada.
— As pessoas dessa escola são como as fadas da mitologia celta
— Thea disse casualmente. — É melhor não nos agradecer, a
menos que queira ficar devendo um favor.
Eu não soube como responder a isso, então não disse nada. Thea
não pareceu ficar ofendida. Enquanto ela me guiava por um longo
corredor com antigos retratos de turmas anteriores pelas paredes,
ela foi preenchendo o silêncio.
— Não somos tão ruins, na verdade. A maior parte de nós, pelo
menos. Enquanto você estiver comigo, vai ficar bem.
Isso me irritou.
— Eu vou ficar bem de qualquer forma — retruquei.
— É claro que vai — Thea disse, enfática. Ela estava se referindo
ao dinheiro. Deveria estar. Não deveria? Os olhos escuros de Thea
pousaram nos meus. — Deve ser difícil — ela disse, estudando
minha resposta com uma intensidade que seu sorriso nem tentava
esconder — viver naquela casa com aqueles garotos.
— É tranquilo — eu disse.
— Ah, querida — Thea sacudiu a cabeça. — Se existe uma coisa
que a família Hawthorne não é, é tranquila. Eles eram perturbados e
perversos antes de você chegar e continuarão assim quando você
for embora.
Embora. Para onde exatamente Thea pensava que eu iria?
Nós havíamos chegado ao fim do corredor, na porta da sala da
diretora. Ela se abriu e quatro meninos saíram em fila indiana. Todos
os quatro estavam sangrando. Todos os quatro estavam sorrindo.
Xander era o quarto. Ele me viu – e então viu com quem eu estava.
— Thea — ele disse.
Ela lhe deu um sorriso açucarado e então ergueu uma das mãos
até o rosto dele – ou mais especificamente até seu lábio
ensanguentado.
— Xander. Parece que você perdeu.
— Não existem perdedores no Clube da Luta do Embate Mortal
de Robôs — Xander disse estoicamente. — Apenas vencedores e
pessoas cujos robôs meio que explodem.
Eu pensei no escritório de Tobias Hawthorne – nas patentes que
eu tinha visto nas paredes. Que tipo de gênio era Xander
Hawthorne? E ele tinha perdido uma sobrancelha?
Thea prosseguiu como se isso não fosse exatamente algo para se
reparar.
— Eu estava mostrando pra Avery o caminho até a diretoria e lhe
dando algumas dicas de sobrevivência na Country Day.
— Que encantador! — Xander declarou. — Avery, a sempre
agradável Thea Calligaris por acaso mencionou que o tio dela é
casado com a minha tia?
O sobrenome de Zara era Hawthorne-Calligaris.
— Eu ouvi falar que Zara e seu tio estão procurando formas de
questionar o testamento. — Xander parecia estar falando com Thea,
mas eu tive a clara sensação de que ele estava me dando um aviso.
Não confie em Thea.
Thea deu de ombros elegantemente, sem se abalar.
— Eu não sei nada sobre isso.
CAPÍTULO 23

— Eu te matriculei nas aulas de Estudos Americanos e Filosofia da


Mente. Em Ciências e Matemática, você deve poder seguir com seu
currículo atual, considerando que nossa carga de estudos não
acabe sendo excessiva. — A dra. McGowan deu um gole em seu
café. Eu fiz o mesmo. Era tão bom quanto Thea tinha falado que
seria, e isso me fez considerar quanta verdade havia no restante de
suas palavras.
Deve ser difícil viver naquela casa com aqueles garotos.
Eles eram perturbados e perversos antes de você chegar e
continuarão assim quando você for embora.
— Agora — a dra. Mac, como ela insistia em ser chamada,
continuou —, em termos de eletivas, eu sugeriria a Construindo
Significado, que foca no estudo de como o significado é expresso
pelas artes e contém um forte componente de engajamento social
com museus, artistas e produções de teatro locais, além da
companhia de balé, da ópera e assim por diante. Considerando o
apoio que a Fundação Hawthorne tradicionalmente oferece a esses
projetos, eu acredito que o curso lhe será… útil.
Fundação Hawthorne? Eu consegui – por pouco – evitar repetir
essas palavras.
— Quanto ao restante da sua grade curricular, preciso que você
me conte um pouco sobre seus planos para o futuro. Quais são
suas paixões, Avery?
Estava na ponta da minha língua o que eu havia dito ao diretor
Altman. Eu era uma garota com um plano – mas esse plano sempre
tinha sido guiado pela praticidade. Eu tinha escolhido uma
graduação que me daria um bom emprego. A coisa prática a ser
feita agora era continuar seguindo o plano. Essa escola deveria ter
mais recursos que a minha antiga. Eles podiam me ajudar a ir bem
nas provas de seleção, maximizar os créditos para a faculdade
acumulados durante o ensino médio, me dar as condições ideais
para terminar a faculdade em três anos em vez de quatro. Se eu
fosse esperta, mesmo que Zara e o marido conseguissem de
alguma maneira desfazer o que Tobias Hawthorne havia feito, eu
poderia sair com alguma vantagem.
Mas a dra. Mac não tinha perguntado apenas sobre os meus
planos. Ela tinha perguntado sobre as minhas paixões, e, mesmo
que a família Hawthorne conseguisse contestar o testamento, eu
provavelmente ainda levaria alguma coisa. Quantos milhões de
dólares eles estariam dispostos a me pagar para desaparecer? Na
pior das hipóteses, eu provavelmente podia vender minha história
por mais do que o suficiente para pagar pela faculdade.
— Viajar — eu soltei. — Eu sempre quis viajar.
— Por quê? — A dra. Mac me observou. — O que te atrai em
outros lugares? A arte? A história? As pessoas e suas culturas? Ou
você se sente atraída pelas maravilhas do mundo natural? Você
quer ver montanhas e penhascos, oceanos e sequoias gigantes, a
selva tropical…
— Sim — eu disse, fervorosamente. Eu podia sentir lágrimas
ardendo nos meus olhos e eu não sabia bem por quê. — Pra tudo
isso. Sim.
A dra. Mac pegou a minha mão.
— Eu vou pegar uma lista de eletivas pra você dar uma olhada —
ela disse suavemente. — Eu entendo que intercâmbio não é uma
opção para o próximo ano por causa das suas circunstâncias
peculiares, mas nós temos programas maravilhosos que você pode
considerar depois. Você pode até considerar a ideia de atrasar um
pouco sua formatura.
Se alguém tivesse me dito uma semana antes que havia alguma
coisa que pudesse me tentar a passar um minuto além do
necessário no ensino médio, eu pensaria que essa pessoa estava
alucinando. Mas essa não era uma escola normal.
Nada mais na minha vida era normal.
CAPÍTULO 24

Max me ligou em torno de meio-dia. Na Heights Country Day, o


cronograma modular na prática deixava espaços no meu horário nos
quais eu não precisava estar em nenhum lugar específico. Eu podia
andar pelos corredores. Eu podia passar um tempo no estúdio de
dança, na câmara escura ou em um dos ginásios. Eu podia almoçar
na hora que quisesse. Então, quando Max me ligou e eu me enfiei
em uma sala vazia, ninguém me impediu ou se importou.
— Esse lugar é o paraíso — eu disse. — O Paraíso. De verdade.
— A mansão? — Max perguntou.
— A escola. — Respirei fundo. — Você devia ver a minha grade.
E as aulas!
— Avery — Max disse com firmeza. — É sério que você herdou
mais ou menos um bazilhão de dólares e quer falar sobre a sua
escola nova?
Havia muita coisa sobre as quais eu queria falar com ela. Eu
precisei pensar um pouco para lembrar o que ela já sabia ou não.
— Jameson Hawthorne me mostrou a carta que o avô deixou pra
ele e é uma coisa insana, toda sinuosa e cheia de charadas.
Jameson está convencido de que é isso que eu sou, um quebra-
cabeça a ser resolvido.
— Neste momento, eu estou vendo uma foto de Jameson
Hawthorne — Max anunciou. Eu ouvi uma descarga ao fundo e
percebi que ela devia estar no banheiro de uma escola que não era
tão flexível com o tempo dos estudantes quanto a minha. — Preciso
dizer, ele é trepável.
Eu levei um segundo para entender.
— Max!
— Só estou dizendo que ele parece gostar de trepar. Ele
provavelmente já trepou em árvores. Já deve ter trepado bem alto.
— Nem sei mais do que você está falando — eu disse a ela.
Eu quase podia ouvir seu sorriso.
— Nem eu! E vou parar agora porque não tenho muito tempo.
Meus pais estão pirando com tudo isso. Agora não é o momento
para eu matar aula.
— Seus pais estão pirando? — eu franzi a testa. — Por quê?
— Avery, você sabe quantas ligações eu recebi? Uma repórter
apareceu na nossa casa. Minha mãe está ameaçando desativar
minhas redes sociais, meu e-mail, tudo.
Eu nunca pensei na minha amizade com Max como muito pública,
mas ela também não era um segredo.
— Repórteres querendo te entrevistar — eu disse, tentando
compreender. — Pra falar de mim.
— Você viu as notícias? — Max me perguntou.
Eu engoli em seco.
— Não.
Ela fez uma pausa.
— Talvez… seja melhor não olhar. — Esse conselho disse muita
coisa. — É muita coisa, Ave. Você está bem?
Eu soprei um fio de cabelo para longe do meu rosto.
— Estou bem. Minha advogada e meu chefe de segurança me
garantiram que uma tentativa de assassinato é muito improvável.
— Você tem um guarda-costas — Max disse, impressionada. —
Filha da pata, sua vida é muito legal agora.
— Eu tenho funcionários, empregados, que me odeiam, aliás. A
casa não parece com nada que eu já tenha visto. E a família! Esses
meninos, Max. Eles têm patentes e recordes mundiais e…
— Agora estou vendo fotos de todos eles — Max disse. —
Venham para a mamãe, seus sapatos deliciosos.
— Sapatos? — eu repeti.
— Sapatinhos? — Ela tentou outra forma de dizer.
Eu ri. Eu não sabia o quanto precisava disso até conversar com
Max.
— Me desculpa, Ave. Preciso desligar. Me manda uma
mensagem, mas…
— … cuidado com o que vou dizer — eu completei.
— E, enquanto isso, compra algo legal pra você.
— Tipo o quê? — perguntei.
— Vou fazer uma lista — ela prometeu. — Te amo, pata.
— Te amo também, Max. — Mantive o telefone na orelha por um
ou dois segundos a mais depois que ela desligou. Queria que você
estivesse aqui.
Por fim, consegui encontrar a cantina. Havia talvez duas dúzias
de pessoas comendo. Uma delas era Thea. Ela puxou uma cadeira
de sua mesa com o pé.
Ela é sobrinha de Zara. E Zara quer que eu suma. Ainda assim,
fui até ela e me sentei.
— Desculpa se passei do limite essa manhã. — Thea olhou para
as outras meninas da mesa, todas elas tão impossivelmente lindas e
elegantes quanto ela. — É só que, na sua posição, eu ia querer
saber.
Eu reconheci a isca perfeitamente, mas não consegui me impedir
de perguntar.
— Saber o quê?
— Sobre os irmãos Hawthorne. Por muito tempo, todos os
meninos queriam ser eles e todo mundo que gostava de meninos
queria sair com eles. A aparência deles. O jeito de ser deles. —
Thea fez uma pausa. — Andar com os Hawthorne mudava a forma
como as pessoas olhavam pra você.
— Eu costumava estudar com Xander, às vezes — uma das
outras meninas disse. — Antes de… — Ela ficou quieta.
Antes do quê? Tinha algo nessa história que eu não sabia – algo
grande.
— Eles eram mágicos. — Thea tinha a expressão mais esquisita
do mundo no rosto. — E, quando você estava com eles, você
também se sentia mágica.
— Invencível. — Alguém se meteu.
Eu pensei em Jameson pulando de uma varanda do segundo
andar no dia em que nos conhecemos e em Grayson sentado na
mesa do diretor Altman e o expulsando da sala com um arquear de
sobrancelha. E em Xander, com seus um metro e noventa de altura,
sorrindo, sangrando e falando sobre robôs explodindo.
— Eles não são o que você pensa que são — Thea me disse. —
Eu não gostaria de viver numa casa com os Hawthorne.
Isso era uma tentativa de me deixar nervosa? Se eu saísse da
Casa Hawthorne – se eu me mudasse –, eu perderia minha
herança. Ela sabia disso? O tio dela a havia mandado dizer essas
coisas?
Quando eu cheguei hoje, esperava ser tratada como lixo. Eu não
ficaria surpresa se as meninas dessa escola tivessem ciúmes dos
garotos Hawthorne ou se todo mundo, homens e mulheres, tivesse
raiva de mim por eles. Mas isso…
Isso era outra coisa.
— Preciso ir. — Eu me levantei, mas Thea se levantou comigo.
— Pense o que você quiser de mim — ela disse. — Mas a última
menina dessa escola que se envolveu com os irmãos Hawthorne? A
última garota que passou horas e horas naquela casa? Ela morreu.
CAPÍTULO 25

Saí da cantina assim que terminei de engolir minha comida, sem


saber onde ia me esconder até a próxima aula e igualmente sem
saber se Thea estava mentindo. A última garota que passou horas e
horas naquela casa? Meu cérebro ficava repetindo essas palavras.
Ela morreu.
Desci por um corredor e estava virando em outro quando Xander
Hawthorne saiu de um laboratório próximo, segurando o que parecia
ser um dragão mecânico.
Tudo que eu conseguia pensar era no que Thea tinha acabado de
dizer.
— Você parece estar precisando de um dragão robótico —
Xander me disse. — Aqui. — Ele o colocou na minha mão.
— E o que eu deveria fazer com isso? — perguntei.
— Isso depende do quanto você gosta das suas sobrancelhas. —
Xander ergueu sua única sobrancelha bem alto.
Eu tentei pensar em uma resposta, mas nada veio. A última
garota que passou horas e horas naquela casa? Ela morreu.
— Está com fome? — Xander me perguntou. — O refeitório é
voltando por ali.
Por mais que eu detestasse dar vitória a Thea, eu estava com
medo – dele e de todas as coisas Hawthorne.
— Refeitório? — repeti, tentando soar normal.
Xander sorriu.
— É como se diz “cantina” em escola particular.
— Escola particular não é uma língua — eu apontei.
— E aí você vai me dizer que francês também não é. — Xander
deu um tapinha na cabeça do dragão robótico. Ele arrotou. Um fio
de fumaça saiu da sua boca.
Eles não são o que você pensa que são, eu ouvia o aviso de Thea
na minha cabeça.
— Você está bem? — Xander perguntou, e então estalou os
dedos. — Thea mexeu com você, não foi?
Eu lhe devolvi o dragão antes que ele explodisse.
— Eu não quero falar sobre Thea.
— O que acho ótimo, já que eu odeio falar sobre Thea — Xander
disse. — Nós deveríamos discutir sobre seu tête-à-tête com
Jameson na noite passada, então?
Ele sabia que o irmão tinha estado no meu quarto.
— Não foi um tête-à-tête.
— Você e sua birra com francês. — Xander me espiou. —
Jameson te mostrou a carta dele, não foi?
Eu não tinha ideia se isso deveria ser um segredo ou não.
— Jameson acha que é uma pista — eu disse.
Xander ficou quieto por um momento, então apontou com a
cabeça na direção oposta do refeitório.
— Venha.
Eu o segui, porque era isso ou encontrar outra sala vazia
aleatória.
— Eu sempre perdia — Xander disse de repente enquanto
entrávamos em mais um corredor. — Nas manhãs de sábado,
quando meu avô nos dava um desafio, eu sempre perdia. — Não
consegui imaginar porque ele estava me contando isso. — Eu era o
mais novo. O menos competitivo. O mais disposto a se distrair com
scones ou máquinas complexas.
— Mas… — eu incentivei. Eu podia ouvir pelo tom dele que havia
um “mas”.
— Mas — Xander respondeu —, enquanto meus irmãos estavam
se matando na corrida até a linha de chegada, eu estava
generosamente compartilhando scones com o velho. Ele era bem
falante, cheio de histórias, fatos e paradoxos. Você quer ouvir um?
— Um paradoxo?
— Um fato. — Xander mexeu as sobrancelhas, ou, melhor
dizendo, a sobrancelha. — Ele não tinha um nome do meio.
— Como assim?
— Meu avô foi batizado Tobias Hawthorne — Xander me disse. —
Sem nome do meio.
Eu me perguntei se o velho tinha assinado a carta de Xander da
mesma forma que havia assinado a de Jameson: Tobias Tattersall
Hawthorne. E ele tinha assinado a minha com iniciais – três iniciais.
— Se eu te pedisse pra me mostrar sua carta, você mostraria? —
perguntei.
Ele disse que normalmente ficava por último nos jogos do avô.
Isso não significava que ele não estivesse jogando esse.
— Mas qual seria a diversão nisso? — Xander me deixou na
frente de uma grossa porta de madeira. — Aqui você vai ficar a
salvo de Thea. Existem alguns lugares em que nem ela ousa se
meter.
Eu olhei pelo painel de vidro da porta.
— A biblioteca?
— O arquivo — Xander corrigiu astutamente. — É a palavra em
escola particular pra “biblioteca” e não é um lugar ruim pra passar o
tempo entre as aulas se você quer um tempo sozinha.
Hesitando, eu abri a porta.
— Você vem? — perguntei.
Ele fechou os olhos.
— Não posso.
Ele não ofereceu nenhuma explicação além dessa. Quando ele foi
embora, eu não consegui afastar a sensação de que eu realmente
não sabia de alguma coisa.
Talvez de várias coisas.
A última garota que passou horas e horas naquela casa? Ela
morreu.
CAPÍTULO 26

O arquivo parecia mais a biblioteca de uma universidade do que a


de uma escola. A sala era cheia de arcos e vitrais, rodeada de
infinitas estantes lotadas de livros de todo tipo e, no centro, havia
uma dúzia de mesas retangulares – as melhores, com luzes
embutidas e enormes lupas presas na lateral.
Todas as mesas estavam vazias, exceto por uma. Uma garota
estava sentada de costas para mim. Ela tinha cabelo ruivo, o
vermelho mais escuro que eu já tinha visto em alguém. Eu me
sentei a várias mesas de distância dela, de frente para a porta. A
sala estava silenciosa, exceto pelo som da outra garota virando as
páginas enquanto lia.
Eu tirei a carta de Jameson e a minha da bolsa. Tattersall. Eu
passei meu dedo pelo nome do meio com o qual Tobias Hawthorne
havia assinado a epístola de Jameson, então olhei as iniciais
rabiscadas na minha. A letra era a mesma. Ele usou o nome do
meio no testamento também. E se isso fosse uma armadilha? E se
isso fosse a única coisa necessária para invalidar os termos?
Mandei uma mensagem para Alisa. A resposta veio
imediatamente: mudou de nome legalmente, anos atrás. Tudo certo.
Xander tinha dito que seu avô havia nascido Tobias Hawthorne,
sem nome do meio. Por que ele me contou isso? Duvidando
profundamente de que um dia eu entenderia alguém com o
sobrenome Hawthorne, eu peguei a lupa presa na mesa. Ela era do
tamanho da minha mão. Eu coloquei as duas cartas lado a lado
embaixo dela e liguei as luzes embutidas na mesa.
Um ponto para as escolas particulares.
O papel era grosso o suficiente para a luz não o atravessar, mas a
lupa aumentou a letra para dez vezes o tamanho normal. Ajustei a
lupa, focando a assinatura da carta de Jameson. Então consegui ver
detalhes na letra de Tobias Hawthorne que eu não conseguira ver
antes. Um pequeno gancho em seus erres. Uma assimetria no T
maiúsculo. E ali, no seu nome do meio, havia um espaço notável, o
dobro do espaço entre duas outras letras quaisquer. Ampliado, o
espaço fazia o nome parecer duas palavras.
Tatters all. Tatters all.
— Tipo frangalhos em inglês? Ele deixou todos em frangalhos? —
eu me perguntei em voz alta.
Era um avanço, mas não parecia ser, não quando Jameson tinha
tanta certeza de que havia algo a mais na sua carta. Não quando
Xander tinha feito questão de me contar que seu avô não tinha
nome do meio. Se Tobias Hawthorne tinha legalmente mudado seu
nome para acrescentar um Tattersall, isso sugeria fortemente que
ele mesmo tinha escolhido o nome. Com que fim?
Ergui os olhos, lembrando de repente que eu não estava sozinha
na sala, mas a garota ruiva tinha ido embora. Então mandei outra
mensagem para Alisa: Quando TH mudou de nome?
Será que a mudança de nome corresponde ao momento em que
ele decidiu deixar a família na versão bilionária da expressão “em
frangalhos”, deixando tudo para mim?
Uma mensagem chegou um momento depois, mas não era de
Alisa. Era de Jameson. Eu nem tinha ideia de como ele havia
conseguido o número – do celular novo ou do velho.
Consigo entender agora, Garota Misteriosa. Você consegue?
Eu olhei em volta, sentindo que ele poderia estar me observando
pelas janelas, mas, ao que tudo indicava, eu estava sozinha.
O nome do meio?, eu digitei de volta.
Não.
Eu esperei e uma segunda mensagem veio um minuto depois.
A despedida.
Olhei o fim da carta de Jameson. Antes da assinatura, havia duas
palavras: não julgue.
Não julgue o patriarca Hawthorne por morrer sem contar para a
família que estava doente? Não julgue os jogos que ele estava
jogando do túmulo? Não julgue a forma como ele tinha puxado o
tapete de suas filhas e netos?
Reli a mensagem de Jameson e em seguida a carta, desde o
início. Antes o mal que você conhece do que o mal que você não
conhece, será? O poder corrompe. O poder absoluto corrompe de
forma absoluta. Nem tudo que reluz é ouro. As únicas certezas na
vida são a morte e os impostos. Para lá, pela graça de Deus, eu
vou.
Eu imaginei Jameson recebendo essa carta – querendo respostas
e ganhando clichês no lugar. Provérbios. Meu cérebro me deu o
termo alternativo e meus olhos voltaram para a despedida. Jameson
achava que estávamos procurando um jogo de palavras ou código.
Todas as frases dessa carta, exceto pelos nomes próprios, eram um
provérbio ou uma variação de um.
Todas as frases – exceto uma.
Não julgue. Eu tinha perdido quase toda a aula sobre provérbios
da minha ex-professora de inglês, mas havia um que eu conseguia
lembrar que começava com essas duas palavras.
Mandei mais uma mensagem para Jameson: Não julgue um livro
pela capa significa algo pra você?
A resposta dele foi imediata: Muito bem, Herdeira.
Então, um momento depois, ele escreveu: Com certeza significa.
CAPÍTULO 27

— Nós podemos estar vendo coisa onde não tem — eu disse


horas depois.
Jameson e eu estávamos na biblioteca da Casa Hawthorne, olhos
erguidos para as estantes que circulavam a sala, cheias de livros ao
longo do pé-direito de cinco metros.
— Hawthorne-feito ou Hawthorne-nascido, há sempre um enigma
a ser resolvido. — Jameson falou cantado, como uma criança
pulando corda. Mas, quando ele tirou os olhos das estantes para
olhar para mim, não havia nada de infantil em sua expressão. —
Tudo é alguma coisa na Casa Hawthorne.
Tudo, eu pensei. E todos.
— Você sabe quantas vezes na minha vida um dos quebra-
cabeças do meu avô me trouxe para a biblioteca? — Jameson se
virou lentamente. — Ele provavelmente está se revirando no túmulo
por eu ter demorado tanto tempo pra entender.
— O que você acha que estamos procurando? — perguntei.
— O que você acha que estamos procurando, Herdeira? —
Jameson tinha um jeito de fazer qualquer coisa parecer um desafio
ou um convite.
Ou os dois.
Foco, eu disse a mim mesma. Eu estava ali porque queria
respostas tanto quanto o garoto ao meu lado.
— Se a pista é um livro pela capa — eu disse, revirando a
charada na minha mente —, então eu suponho que estamos
procurando ou um livro ou uma capa, ou talvez uma discrepância
entre eles?
— Um livro com a capa trocada? — A expressão de Jameson não
dava pista do que ele achava dessa sugestão.
— Eu posso estar errada.
Os lábios de Jameson se torceram: não era bem um sorriso, mas
também não era desdém.
— Todo mundo está um pouco errado às vezes, Herdeira.
Um convite – e um desafio. Eu não tinha nenhuma intenção de
estar um pouco errada – não com ele. Quanto mais cedo meu corpo
se lembrasse disso, melhor. Eu me afastei de Jameson e dei uma
volta completa na biblioteca, lentamente, analisando o ambiente. Só
de olhar para as estantes me sentia na beira do Grand Canyon. Nós
estávamos completamente cercados de livros que se erguiam por
dois andares. Procurar por um livro com a capa trocada em uma
biblioteca tão grande, com estante tão altas…
— Deve haver milhares de livros aqui. Isso levaria horas — eu
disse.
Jameson sorriu, dessa vez um sorriso largo.
— Não seja ridícula, Herdeira. Levaria dias.

Trabalhamos em silêncio. Nenhum de nós fez uma pausa para


comer. Uma emoção corria pelo meu corpo toda vez que eu
percebia que estava segurando uma primeira edição. De vez em
quando, abria um livro e encontrava um autógrafo. Stephen King. J.
K. Rowling. Toni Morrison. Poucas vezes consegui parar de ficar
encarando, maravilhada, o que estava nas minhas mãos. Perdi a
noção do tempo, perdi a noção de todas as coisas, exceto do ritmo
de tirar livros da estante, abrir a capa, fechar a capa, recolocar o
livro. Eu podia ouvir Jameson trabalhando, eu podia senti-lo na sala
enquanto nos movíamos pelas estantes, cada vez mais perto um do
outro. Ele tinha assumido o andar de cima. Eu estava trabalhando
embaixo. Finalmente, eu ergui os olhos e o vi em cima de mim.
— E se estivermos perdendo tempo? — perguntei. Minha
pergunta ecoou pelo ambiente.
— Tempo é dinheiro, Herdeira. E você tem bastante pra gastar.
— Pare de me chamar assim.
— Eu preciso te chamar de alguma coisa e você não pareceu
gostar de Garota Misteriosa ou da abreviação.
Estava na ponta da minha língua fazer a observação de que eu
não o chamava de nada. Eu não tinha dito o nome dele uma única
vez desde que havia entrado na sala. Mas, por algum motivo, em
vez de dar essa resposta, eu olhei para ele e uma pergunta
diferente saiu da minha boca.
— O que você quis dizer no carro quando falou que a última coisa
que eu precisava era que alguém nos visse juntos?
Ele tirou, verificou e recolocou alguns livros na estante antes de
responder.
— Você passou o dia na excelente instituição que é a Heights
Country Day — ele disse. — O que você acha que eu quis dizer?
Ele sempre tinha que ser a pessoa fazendo as perguntas, sempre
tinha que inverter tudo.
— Não me diga que você não ouviu nenhum rumor — Jameson
murmurou lá de cima.
Eu congelei, pensando no que eu tinha ouvido.
— Eu conheci uma menina — eu disse, e me forcei a continuar
trabalhando na estante: tira o livro, abre a capa, fecha a capa,
guarda o livro. — Thea.
Jameson desdenhou.
— Thea não é uma menina. Ela é um redemoinho vestido de
furacão vestido de aço, e todas as garotas daquela escola vão atrás
dela, o que significa que eu sou persona non grata há um ano. —
Ele fez uma pausa. — O que ela te disse? — Jameson tentou soar
casual e ele teria me enganado se eu estivesse olhando para a cara
dele, mas sem sua expressão para vender a mentira de que ele não
se importava, eu percebi uma nota de preocupação em sua voz. Ele
se importava.
De repente, eu desejei não ter mencionado Thea. Causar
discórdia era provavelmente o objetivo dela.
— Avery?
Jameson usar meu nome de verdade confirmou que ele não só
queria uma resposta como precisava de uma.
— Thea ficou falando sobre essa casa — eu disse, com cuidado.
— Sobre como devia ser pra mim morar aqui. — Isso era verdade,
ou verdade o suficiente a ser revelada. — Falou sobre todos vocês.
— Ainda é uma mentira se você está escondendo o que importa,
mesmo quando o que você está dizendo é tecnicamente verdade —
Jameson afirmou com soberba.
Ele queria a verdade.
— Thea disse que havia uma menina e que ela morreu — falei
como quem arranca um band-aid, rápido demais para pensar no que
eu estava fazendo.
Lá em cima, o ritmo de trabalho de Jameson diminuiu. Eu contei
cinco segundos de silêncio completos antes de ele dizer:
— O nome dela era Emily.
Eu sabia, embora eu não conseguisse dizer como, que ele não
teria falado se eu estivesse olhando para ele.
— O nome dela era Emily — ele repetiu. — E ela não era só uma
menina.
Minha respiração falhou. Eu a retomei e continuei checando livros
porque eu não queria que ele soubesse quanta coisa eu tinha
percebido em seu tom de voz. Ele se importava com Emily. Ainda se
importa com ela.
— Sinto muito — eu disse, por ter mencionado isso e por ela ter
falecido. — Acho que devemos parar por hoje. — Era tarde e eu não
confiava que não diria outra coisa da qual me arrependeria.
O ritmo de trabalho de Jameson cessou e foi substituído pelo som
de passos enquanto ele descia pelas escadas de ferro fundido. Ele
se colocou entre mim e a saída.
— Mesma hora amanhã?
De repente pareceu urgente que eu não me permitisse olhar em
seus olhos verdes profundos.
— Estamos progredindo bem — eu disse, me forçando a seguir
para a porta. — Mesmo se não acharmos uma forma de acelerar o
processo, nós devemos conseguir examinar todas as estantes em
uma semana.
Jameson se inclinou na minha direção quando eu passei.
— Não me odeie — ele disse suavemente.
Por que eu odiaria? Eu senti minha pulsação acelerando na
garganta. Por causa do que ele tinha acabado de dizer ou por causa
do quanto ele estava perto de mim?
— Tem uma pequena chance de que não terminemos em uma
semana.
— Por que não? — perguntei, me esquecendo de evitar olhar
para ele.
Ele colocou seus lábios bem no meu ouvido.
— Essa não é a única biblioteca da Casa Hawthorne.
CAPÍTULO 28

Quantas bibliotecas tinha esse lugar? Foquei nesse pensamento


enquanto me afastava de Jameson – e não na sensação de ter o
corpo dele perto demais do meu nem no fato de que Thea não
estava mentindo quando ela disse que havia uma menina e que ela
tinha morrido.
Emily. Eu tentei em vão tirar esse sussurro da minha mente. O
nome dela era Emily. Cheguei à escada principal e hesitei. Se eu
voltasse para minha ala agora, se eu tentasse dormir, tudo que eu ia
fazer seria ficar repetindo a conversa com Jameson na minha
cabeça. Então olhei por cima do ombro para ver se ele tinha me
seguido – e encontrei Oren em seu lugar.
Meu chefe de segurança havia me dito que eu estava segura
aqui. Ele parecia acreditar nisso. Mas, ainda assim, ele me seguia –
e ficava invisível até querer ser visto.
— Se recolhendo? — Oren me perguntou.
— Não. — Eu nunca ia conseguir dormir, nem ia conseguir sequer
fechar os olhos. Então resolvi explorar. Avancei por um longo
corredor e encontrei um teatro. Parecia um teatro de ópera. As
paredes eram douradas. Uma cortina de veludo vermelho escondia
o que deveria ser o palco. Os assentos ficavam em um piso
inclinado. O teto era arqueado, e quando eu liguei um interruptor,
centenas de pequenas luzes despontaram ao longo do arco.
Eu me lembrei da dra. Mac me falando sobre o apoio que a
Fundação Hawthorne dava às artes.
A sala seguinte estava cheia de instrumentos musicais —
dezenas deles. Eu me inclinei para olhar um violino com um S
entalhado ao lado das cordas.
— É um Stradivarius.
Essas palavras soaram como uma ameaça.
Eu me virei e vi que Grayson estava na entrada. Eu me perguntei
se ele estava nos seguindo; por quanto tempo. Ele me encarou com
suas pupilas escuras e inescrutáveis e as íris de um cinza gélido.
— Você deveria tomar cuidado, srta. Grambs.
— Não vou quebrar nada — eu disse, me afastando do violino.
— Você deveria tomar cuidado — Grayson repetiu, com a voz
suave, mas fatal — com Jameson. A última coisa que meu irmão
precisa é de você e do que quer que isso seja.
Eu olhei para Oren, mas o rosto dele estava impassível, como se
ele não pudesse ouvir nada do que estávamos falando. Não é o
trabalho dele ficar ouvindo. O trabalho dele é me proteger – e ele
não vê Grayson como uma ameaça.
— O que você está chamando de isso? Você quer dizer eu? —
retruquei. — Ou os termos do testamento do seu avô? — Eu não
tinha virado a vida deles de cabeça para baixo. Mas eu estava lá e
Tobias Hawthorne não estava. Logicamente, eu sabia que minha
melhor opção era evitar confrontos e principalmente evitar Grayson
por completo. A casa era grande o suficiente.
Mas talvez ela não fosse tão grande assim, já que Grayson estava
ali, bem perto de mim.
— Minha mãe não sai do quarto há dias. — Grayson olhou para
mim, para dentro de mim. — Xander quase se explodiu hoje na
escola. Jameson só precisa de uma ideia ruim para arruinar a vida
dele e nenhum de nós pode sair da propriedade sem ser cercado
pela imprensa. Só os danos materiais que eles já causaram…
Não diga nada. Vá embora. Não se envolva.
— Você acha que isso é fácil pra mim? — perguntei. — Você acha
que eu quero ser perseguida por paparazzi?
— Você quer o dinheiro. — Grayson Hawthorne me olhou de
cima. — Como não ia querer, tendo crescido como cresceu?
Essa fala estava repleta de condescendência.
— Como se você não quisesse o dinheiro — retruquei. — Tendo
crescido como você cresceu? Pode ser que eu não tenha recebido
tudo de bandeja minha vida inteira, mas…
— Você não tem ideia — Grayson murmurou — do quanto é
despreparada. Uma garota como você?
— Você não me conhece — eu o interrompi. Uma onda de fúria
correu pelas minhas veias.
— Mas vou conhecer — Grayson prometeu. — Eu vou logo saber
tudo que há pra saber sobre você. — Cada osso no meu corpo me
dizia que ele era uma pessoa que cumpria suas promessas. — Meu
acesso ao dinheiro pode estar limitado no momento, mas o nome
Hawthorne ainda significa alguma coisa. Sempre vai haver pessoas
se matando para fazer um favor para qualquer um de nós. — Ele
não se moveu, não piscou, não era fisicamente agressivo de forma
alguma, mas emanava poder e sabia disso. — O que quer que você
esteja escondendo, eu vou descobrir. Todos os segredos. Em
poucos dias, eu terei um dossiê completo sobre todas as pessoas
na sua vida. Sua irmã. Seu pai. Sua mãe…
— Não fale da minha mãe. — Meu peito estava apertado.
Respirar era um desafio.
— Fique longe da minha família, srta. Grambs. — Grayson
passou por mim. Eu tinha sido mandada embora.
— Ou o quê? — perguntei, com ele já de costas para mim, e
então, possuída por algo que eu não sabia nomear, acrescentei: —
Ou o que aconteceu com Emily vai acontecer comigo?
Grayson paralisou, cada músculo do seu corpo ficou tenso.
— Não diga o nome dela. — Sua postura era de raiva, mas sua
voz parecia prestes a embargar. Como se eu o tivesse esfaqueado.
Não é só Jameson. Minha boca ficou seca. Não era só Jameson
que se importava com Emily.
Senti uma mão no meu ombro. Oren. A expressão dele era gentil,
mas claramente ele queria que eu deixasse esse assunto quieto.
— Você não vai durar um mês nessa casa. — Grayson tinha
conseguido se recompor o suficiente para fazer essa previsão como
um rei que impõe um decreto. — Na verdade, eu apostaria um bom
dinheiro que você vai embora em menos de uma semana.
CAPÍTULO 29

Libby me encontrou logo depois de eu ter voltado para o meu


quarto. Ela estava segurando uma pilha de eletrônicos.
— Alisa disse que eu devia comprar algumas coisas pra você.
Disse que você não comprou nada até agora.
— Não tive tempo. — Eu estava exausta, sobrecarregada e já
tinha passado do ponto em que conseguiria compreender qualquer
coisa que tivesse acontecido desde que me mudei para a Casa
Hawthorne.
Incluindo Emily.
— Pra sua sorte, a única coisa que eu tenho é tempo. — Ela não
parecia muito feliz com isso, mas, antes que eu pudesse investigar,
ela começou a colocar algumas coisas em cima da minha
escrivaninha. — Notebook novo. Um tablet. Um e-reader cheio de
livros românticos, caso você precise de um pouco de escapismo.
— Olha pra esse lugar — eu disse. — Minha vida é escapismo
neste momento.
Isso arrancou um sorriso de Libby.
— Você viu a academia? — Ela me perguntou e o espanto na sua
voz deixou claro que ela tinha visto. — Ou a cozinha do chef?
— Ainda não.
Mirei a lareira e me peguei espreitando, pensando. Será que tinha
alguém ali atrás? Você não vai durar um mês nessa casa. Eu não
achava que Grayson tinha dito isso como uma ameaça física e Oren
certamente não reagiu como se achasse que minha vida estava
sendo ameaçada. Mas, ainda assim, eu senti um arrepio.
— Ave? Tem uma coisa que eu preciso te mostrar. Libby abriu a
capa do meu novo tablet. — Só quero deixar claro que tudo bem se
você sentir vontade de gritar.
— Por que eu… — Fiquei sem palavras quando vi o que ela tinha
aberto. Era um vídeo de Drake.
Ele estava ao lado de um repórter. O cabelo penteado dele me
dizia que essa entrevista não tinha sido uma surpresa. A legenda na
tela dizia: Amigo da família Grambs.
— Avery sempre foi solitária — Drake dizia na tela. — Ela não
tinha amigos.
Eu tinha Max, e isso era tudo que eu precisava.
— Eu não estou dizendo que ela seja uma pessoa ruim. Eu acho
que ela só estava meio desesperada por atenção. Ela queria ser
importante. Uma garota assim, um homem rico e velho… — Ele
deixou a coisa no ar. — Vamos dizer que ela definitivamente tem
daddy issues.
Libby cortou o vídeo ali.
— Posso ver isso? — perguntei, apontando para o tablet com um
instinto assassino no meu coração e, provavelmente, nos meus
olhos.
— É a pior parte — Libby me garantiu. — Você quer gritar agora?
Não com você. Eu peguei o tablet e desci pelos vídeos
relacionados – todos eles eram entrevistas ou editoriais sobre mim.
Antigos colegas de classe. De trabalho. A mãe de Libby. Eu ignorei
as entrevistas até chegar a uma que não podia ignorar. Ela se
chamava simplesmente Skye Hawthorne e Zara Hawthorne-
Calligaris.
As duas estavam atrás de um púlpito, o que fazia aquilo parecer
algum tipo de coletiva de imprensa – é interessante lembrar que
Grayson me disse que sua mãe não saía do quarto havia dias.
— Nosso pai foi um grande homem. — O cabelo de Zara movia-
se com um vento fraco e a expressão do seu rosto era estoica. —
Ele foi um empreendedor revolucionário, um filantropo sem igual e
um homem que valorizava sua família acima de tudo. — Ela pegou
a mão de Skye. — Apesar de nosso luto por sua partida, fiquem
tranquilos que não deixaremos que suas obras morram com ele. A
Fundação Hawthorne vai continuar a operar. Os numerosos
investimentos do meu pai não sofrerão nenhuma mudança imediata.
Embora não possamos comentar a respeito das complexidades
legais da situação, eu posso garantir que estamos trabalhando com
as autoridades, especialistas em crimes contra idosos e uma equipe
de profissionais da saúde e do direito para esclarecer essa situação.
— Ela se virou para Skye, cujos olhos estavam marejados de
lágrimas, perfeita, fotogênica, dramática. — Nosso pai era um herói
— Zara declarou. — Nós não vamos permitir que, na morte, ele se
torne uma vítima. Para isso, nós estamos oferecendo à imprensa os
resultados de um teste de DNA que prova conclusivamente que, ao
contrário do que reportagens e especulações maliciosas dizem nos
tabloides, Avery Grambs não é resultado de uma infidelidade de
nosso pai, que foi fiel à sua amada esposa, nossa mãe, durante
todo o seu casamento. Nós, enquanto família, estamos tão
chocados com os acontecimentos recentes quanto todos vocês,
mas a genética não mente. Essa garota pode ser qualquer coisa,
menos uma Hawthorne.
O vídeo cortou. Atordoada, eu pensei na última frase de Grayson.
Eu apostaria um bom dinheiro que você vai embora em menos de
uma semana.
— Especialistas em crimes contra idosos? — Libby, ao meu lado,
estava chocada e incrédula.
— E as autoridades do direito — eu acrescentei. — Além de uma
equipe de médicos especialistas. Ela pode não ter dito que eu estou
sendo investigada por enganar um velho tomado pela demência,
mas com certeza deixou isso implícito.
— Ela não pode fazer isso. — Libby estava puta, uma verdadeira
bola de raiva gótica de rabo de cavalo azul. — Ela não pode dizer o
que quiser. Ligue pra Alisa. Você tem advogados!
O que eu tinha era uma dor de cabeça. Isso não era inesperado.
Dado o tamanho da fortuna em jogo, era inevitável. Oren tinha me
avisado que as mulheres iriam atrás de mim no tribunal.
— Vou ligar pra Alisa amanhã — decidi. — Agora eu vou para a
cama.
CAPÍTULO 30

— Elas não têm nada em que se apoiar, legalmente falando.


Eu não precisei ligar para Alisa no dia seguinte de manhã. Ela
apareceu atrás de mim.
— Fique tranquila, vamos acabar com isso. Meu pai vai se
encontrar com Zara e Constantine hoje mais tarde.
— Constantine?
— O marido de Zara.
O tio de Thea.
— Elas sabem, é claro, que têm muito a perder questionando o
testamento. As dívidas de Zara são consideráveis e não serão
pagas se ela abrir um processo. O que Zara e Constantine não
sabem, e meu pai vai deixar bem claro para eles, é que mesmo que
um juiz declare que o último testamento do sr. Hawthorne é nulo e
inválido, a distribuição dos bens seria então regida pelo seu
testamento anterior, e esse vai deixar a família Hawthorne com
ainda menos bens.
Armadilhas atrás de armadilhas. Lembrei do que Jameson tinha
falado depois que o testamento foi lido e então pensei na conversa
que eu tinha tido com Xander enquanto comíamos scones. Mesmo
que você achasse que tinha manipulado nosso avô, eu te garanto
que foi ele que manipulou você.
— Há quanto tempo Tobias escreveu seu testamento anterior? —
perguntei, imaginando se seu único propósito com o último
testamento tinha sido reforçar o anterior.
— Em agosto fez vinte anos. — Alisa cortou essa possibilidade.
— Tudo iria para a caridade.
— Vinte anos? — repeti. Isso foi antes de qualquer um dos netos
Hawthorne, exceto Nash, ter nascido. — Ele deserdou as filhas vinte
anos atrás e nunca avisou isso a elas?
— Aparentemente. E, em resposta ao que você perguntou ontem
— Alisa não era nada senão eficiente —, os registros do escritório
mostram que em agosto fez vinte anos que o sr. Hawthorne mudou
seu nome legalmente. Antes disso, ele não tinha um nome do meio.
Tobias Hawthorne tinha se dado um nome do meio ao mesmo
tempo que deserdou a família. Tattersall. Tatters All. Todos em
frangalhos. Com tudo que Jameson e Xander tinham me dito do
avô, isso parecia uma mensagem. Deixar dinheiro para mim – e,
antes de mim, para a caridade – não era a questão.
Deserdar a família era.
— Que raios aconteceu em agosto há vinte anos?
Alisa parecia estar ponderando sua resposta. Meus olhos se
apertaram e eu me perguntei se parte dela ainda era leal a Nash. E
à família dele.
— O sr. Hawthorne e a esposa perderam o filho naquele verão.
Toby. Ele tinha dezenove anos, era o filho mais novo. — Alisa fez
uma pausa, e então prosseguiu. — Toby tinha ido com vários
amigos para uma das casas de verão dos pais. Houve um incêndio.
Toby e mais três jovens faleceram.
Eu tentei compreender o que ela estava dizendo. Tobias
Hawthorne tinha tirado as filhas do testamento depois da morte do
filho. Ele nunca mais foi o mesmo depois que Toby morreu. Zara
disse isso quando achou que tinha sido deixada de lado em favor
dos filhos da irmã.
Eu procurei a resposta de Skye na minha mente. Desapareceu, foi
o que Skye respondeu, e Zara perdeu o controle.
— Por que Skye disse que Toby tinha desaparecido?
Alisa foi pega de surpresa pela minha pergunta – ela claramente
não se lembrava dessa conversa na leitura do testamento.
— Entre o fogo e a tempestade daquela noite — Alisa disse
quando se recuperou —, o corpo de Toby nunca foi encontrado.
Meu cérebro estava correndo para integrar essa informação.
— Zara e Skye não poderiam fazer o advogado delas argumentar
que o velho testamento é inválido também? — perguntei. — Que ele
foi coagido a escrever ou estava louco de dor, algo assim.
— O sr. Hawthorne assinava um documento reafirmando seu
testamento todo ano. — Alisa me disse. — Ele nunca o alterou, até
você.
Até eu. Todo o meu corpo formigou só de pensar nisso.
— Há quanto tempo foi isso?
— Ano passado.
O que pode ter acontecido para fazer Tobias Hawthorne decidir
que, em vez de deixar toda a sua fortuna para a caridade, ele ia
deixá-la para mim?
Talvez ele conhecesse minha mãe. Talvez ele soubesse que ela
morreu. Talvez ele sentisse muito.
— Agora, se você matou sua curiosidade, eu gostaria de voltar
aos assuntos mais urgentes. Eu acredito que meu pai pode controlar
Zara e Constantine. Então nosso maior problema de R. P. é… —
Alisa se aprumou. — Sua irmã.
— Libby? — Isso não era o que eu estava esperando.
— É melhor para todo mundo se ela passar desapercebida.
— Como ela poderia passar desapercebida? — perguntei. Essa
era a maior história do planeta.
— Pelo futuro próximo eu a aconselhei a ficar na propriedade —
Alisa disse e eu pensei no comentário de Libby de que tudo que ela
tinha era tempo. — Ela até pode pensar em um trabalho voluntário
no futuro, se quiser, mas, por enquanto, nós precisamos controlar a
narrativa, e sua irmã tem a tendência de… chamar atenção.
Eu não tinha certeza se isso era uma referência às escolhas
estéticas de Libby ou ao seu olho roxo. A raiva ferveu em mim.
— Minha irmã pode vestir o que quiser — eu disse diretamente.
— Ela pode fazer o que quiser. Se a alta sociedade do Texas e os
tabloides não gostam disso, o problema é deles.
— É uma situação delicada — Alisa respondeu com calma. —
Especialmente com a imprensa. E Libby…
— Ela não falou com a imprensa — eu disse, tão certa disso
quanto do meu próprio nome.
— O ex-namorado dela falou. A mãe dela falou. Ambos estão
procurando um jeito de lucrar com isso. — Alisa me olhou feio. —
Eu não preciso dizer a você que a maior parte dos ganhadores da
loteria descobrem que a vida deles ficou insuportável e se afundam
em pedidos e exigências da família e de amigos. Você,
abençoadamente, não tem muitos de nenhum dos dois. Para Libby,
contudo, é diferente.
Se fosse Libby quem tivesse herdado tudo, em vez de mim, ela
teria sido incapaz de dizer não. Ela teria distribuído dinheiro sem
parar, para qualquer um que conseguisse colocar as garras nela.
— Nós podemos considerar um pagamento único para a mãe dela
— Alisa disse, sempre prática. — Junto com um acordo de
confidencialidade que a impedisse de falar sobre você ou Libby com
a imprensa.
Meu estômago se revirou com a ideia de dar dinheiro para a mãe
de Libby. Aquela mulher não merecia um centavo. Mas Libby não
merecia ter que ver a mãe tentando vendê-la no noticiário.
— Certo — concordei, rangendo os dentes —, mas eu não vou
dar nada para o Drake.
Alisa sorriu, um lampejo de dentes.
— Nele eu vou pôr uma mordaça por diversão. — Ela me
estendeu um grosso fichário. — Enquanto isso, eu reuni algumas
informações-chave para você e alguém vai vir mais tarde para
cuidar do seu guarda-roupa e da sua aparência.
— Do quê?
— Libby, como você disse, pode vestir o que quiser, mas você
não tem esse luxo. — Alisa deu de ombros. — Você é a história
aqui. Se vestir para o papel é sempre o primeiro passo.
Eu não tinha ideia de como essa conversa havia começado com
questões legais e de relações públicas, desviou para a tragédia
familiar dos Hawthorne e acabou com minha advogada me dizendo
que eu precisava de uma transformação no meu jeito de ser e de
me vestir.
Eu peguei o fichário da mão estendida de Alisa e o joguei na
escrivaninha. Comecei a andar em direção à porta.
— Aonde você vai? — Alisa perguntou atrás de mim.
Eu quase respondi que estava indo à biblioteca, mas o aviso que
Grayson me deu no dia anterior ainda estava fresco na minha
mente.
— Esse lugar não tem uma pista de boliche?
CAPÍTULO 31

Era mesmo um boliche. Na minha casa. Tinha um boliche na


minha casa. Como me foi avisado, eram “só” quatro pistas, mas,
fora isso, tinha tudo que você poderia esperar de um boliche. Tinha
devolução de bola. Os pinos eram arrumados mecanicamente. Uma
tela touch para programar os jogos e monitores de cinquenta e cinco
polegadas mostrando a pontuação. Em tudo isso – as bolas, as
pistas, a tela, os monitores – estava gravado um elaborado H.
Eu tentei não entender isso como um lembrete de que nada disso
deveria ser meu.
Em vez disso, foquei em escolher a bola certa. Os sapatos certos
– porque havia pelo menos quarenta pares de sapatos de boliche
em uma estante. Quem precisa de quarenta pares de sapatos de
boliche?
Tocando a tela, eu coloquei minhas iniciais, AKG. Um instante
depois, uma mensagem de boas-vindas surgiu no monitor.

BEM-VINDA À CASA HAWTHORNE, AVERY KYLIE GRAMBS

Os pelos do meu braço se arrepiaram. Eu duvidava que


programar meu nome nisso tinha sido a prioridade de alguém nos
últimos dias. E isso significava…
— Foi você? — perguntei alto, dirigindo as palavras a Tobias
Hawthorne. Uma de suas últimas ações neste mundo tinha sido
programar essa mensagem?
Afastei o tremor que surgiu. No fim da segunda pista, havia pinos
já alinhados, esperando por mim. Peguei minha bola – cinco quilos,
com um H prateado estampado na superfície verde-escura. Quando
minha mãe ainda era viva, o boliche aonde íamos fazia uma
promoção mensal a noventa e nove centavos cada partida. Minha
mãe e eu íamos toda vez.
Eu desejei que ela estivesse comigo, e então me perguntei: se ela
estivesse viva, eu estaria ali? Eu não era uma Hawthorne. A menos
que o velho tivesse me escolhido aleatoriamente, a menos que eu
tivesse feito algo para chamar a atenção dele de alguma forma, sua
decisão de deixar tudo para mim tinha que ter algo a ver com ela.
Se ela estivesse viva, você teria deixado o dinheiro para ela? Pelo
menos agora eu não estava mais falando com Tobias Hawthorne em
voz alta. Pelo que você pede desculpas? Você fez algo com ela?
Não fez algo com ela – ou por ela?
Eu tenho um segredo… Minha mãe dizia em nossas brincadeiras.
Eu joguei a bola com mais força do que deveria e acertei apenas
dois pinos. Se minha mãe estivesse comigo, ela teria rido de mim.
Então me concentrei e joguei novamente. Cinco jogos depois, eu
estava coberta de suor e meus braços estavam doendo. Eu me
sentia bem – bem o suficiente para voltar e procurar a academia.
Complexo esportivo talvez fosse um termo mais preciso. De cara,
dei com a quadra de basquete. A sala se abria em forma de L, com
duas estantes com pesos e meia dúzia de aparelhos na parte menor
do L. Havia uma porta na parede dos fundos.
Já que eu estou brincando de ser Dorothy em Oz…
Eu a abri e olhei para cima. Uma parede de escalada se erguia
por dois andares. Uma figura subia a duras penas uma parte quase
vertical da parede, a pelo menos seis metros de altura, sem corda
de segurança. Jameson.
Ele deve ter sentido minha presença de alguma forma.
— Já escalou uma dessas? — ele gritou.
Na mesma hora eu lembrei do aviso de Grayson, mas dessa vez
eu disse para mim mesma que não dava a mínima para o que
Grayson Hawthorne tinha a me dizer. Eu andei até a parede de
escalada, plantei meus pés na base e fiz uma avaliação rápida de
onde colocar pés e mãos.
— É a primeira vez — respondi, escolhendo um dos apoios. —
Mas eu aprendo rápido.
Eu cheguei a uns dois metros de altura antes de a parede se
projetar em um ângulo desenhado para tornar as coisas mais
difíceis. Eu firmei uma perna em um apoio e a outra contra a parede
e estiquei meu braço direito até um apoio que estava um milímetro
longe demais.
Eu errei.
De cima de mim veio uma mão que agarrou a minha. Jameson riu
maliciosamente enquanto eu balançava no ar.
— Você pode soltar — ele me disse — ou eu posso tentar te
puxar.
Faça isso. Eu engoli as palavras. Oren não estava em lugar
nenhum e a última coisa que eu precisava, sozinha ali com um
Hawthorne, era ir mais alto. Em vez disso, eu soltei o braço dele e
me preparei para o impacto.
Depois que aterrissei, eu me ergui e fiquei observando Jameson
voltar a subir pela parede, seus músculos tensos sob sua fina
camiseta branca. Essa é uma má ideia, eu disse a mim mesma,
enquanto meu coração estava aos saltos. Jameson Winchester
Hawthorne é uma péssima ideia. Eu nem tinha percebido que me
lembrava do seu nome de meio até ele surgir na minha cabeça, um
sobrenome, assim como seu primeiro nome. Pare de olhar para ele.
Pare de pensar nele. Este ano vai ser complicado o suficiente
sem… complicações.
De repente, eu senti que estava sendo observada e me virei para
a porta – e vi Grayson me encarando diretamente. Seus olhos claros
estavam apertados e focados.
Você não me assusta, Grayson Hawthorne. Eu me forcei a desviar
os olhos dele, engoli em seco e me dirigi a Jameson.
— Te vejo na biblioteca.
CAPÍTULO 32

A biblioteca estava vazia quando eu passei pela porta de entrada


às 21h15, mas não ficou vazia por muito tempo. Jameson chegou às
21h30 e Grayson entrou às 21h31.
— O que vamos fazer hoje? — Grayson perguntou ao irmão.
— Nós? — Jameson questionou.
Grayson dobrou meticulosamente as mangas. Ele tinha trocado
de roupa depois de fazer exercício e usava uma camisa de gola
erguida como se fosse uma armadura.
— Um irmão mais velho não pode passar um tempo com seu
irmão mais novo e uma intrometida com intenções duvidosas sem
ser interrogado?
— Ele não confia em deixar nós dois sozinhos — eu traduzi.
— Eu sou uma flor delicada. — O tom de Jameson era
despreocupado, mas seus olhos contavam uma história diferente. —
Eu preciso de proteção e supervisão constante.
Grayson não se afetava com sarcasmo.
— É o que parece. — Ele sorriu, com a expressão afiada. — O
que vamos fazer hoje? — ele repetiu.
Eu não tinha ideia do que havia na voz dele que o tornava tão
impossível de ignorar.
— A Herdeira e eu — Jameson respondeu com clareza —
estamos investigando um palpite e sem dúvida perdendo uma
quantidade incalculável de tempo no que eu tenho certeza de que
você vai considerar um despropósito sem sentido.
Grayson franziu a testa.
— Eu não falo assim.
Jameson deixou que sua sobrancelha arqueada falasse por si só.
Grayson fez uma careta.
— E que palpite vocês dois estão investigando?
Quando ficou claro que Jameson não ia responder, eu respondi.
Não porque eu devia qualquer explicação a Grayson Hawthorne.
Mas porque parte de qualquer estratégia de sucesso, no longo
prazo, é saber quando usar as expectativas do seu oponente e
quando subvertê-las. Grayson Hawthorne não esperava nada de
mim. Nada bom.
— Nós achamos que a carta que seu avô deixou para o Jameson
tem uma pista sobre o que ele estava pensando.
— O que ele estava pensando — Grayson repetiu, seus olhos
afiados estudando a minha expressão — e por que ele deixou tudo
pra você.
Jameson se apoiou no batente da porta.
— É a cara dele, não é? — ele perguntou, se dirigindo ao irmão.
— Um último jogo?
Percebi no tom de voz de Jameson que ele queria que Grayson
respondesse que sim. Ele queria que o irmão concordasse e até
aprovasse. Talvez uma parte dele quisesse que eles fizessem isso
juntos. Por um segundo, eu vi uma faísca de algo nos olhos de
Grayson também, mas ela se apagou tão rápido que eu fiquei
pensando se a luz e minha mente tinham me enganado.
— Francamente, Jamie — Grayson comentou. — Eu fico surpreso
por você ainda achar que conhecia o velho.
— Eu sou cheio de surpresas. — Jameson deve ter notado que o
que esperava de Grayson não viria porque o brilho dos seus olhos
também se apagou. — E você pode ir embora na hora que quiser,
Gray.
— Eu acho que não — Grayson repetiu. — Antes o mal que você
conhece do que o mal que você não conhece. — Ele deixou essas
palavras no ar. — Será? O poder corrompe. O poder absoluto
corrompe de forma absoluta.
Meus olhos voaram para Jameson, que paralisou de uma forma
absoluta e assustadora.
— Ele te deixou a mesma mensagem — Jameson disse,
finalmente, se afastando do batente e andando de um lado para o
outro. — A mesma pista.
— Não é uma pista — Grayson contrapôs. — Mas uma indicação
de que ele não estava bem da cabeça.
Jameson se virou para ele.
— Você não acredita nisso. — Ele examinou a expressão de
Grayson, sua postura. — Mas talvez um juiz acredite. — Jameson
me lançou um olhar. — Ele vai usar a carta contra você, se puder.
Ele pode já ter dado sua carta para Zara e Constantine, eu
pensei. Mas, segundo o que Alisa havia me dito, isso não importaria.
— Havia outro testamento antes desse — eu disse, olhando de
um irmão para o outro. — Nele, seu avô deixou pra sua família
ainda menos. Ele não deserdou vocês por minha causa. — Eu
estava olhando para Grayson quando disse essas palavras. — Ele
deserdou toda a família Hawthorne antes mesmo de vocês
nascerem, logo depois que seu tio morreu.
Jameson parou de andar.
— Você está mentindo. — Todo o corpo dele estava tenso.
Grayson sustentou meu olhar.
— Não está.
Se eu fosse chutar como isso se desenrolaria, eu teria chutado
que Jameson acreditaria em mim e Grayson seria o cético.
Independentemente disso, os dois estavam me encarando agora.
Grayson foi o primeiro a quebrar o contato visual.
— Você pode me dizer logo o que acha que essa maldita carta
quer dizer, Jamie.
— E por que eu entregaria o jogo dessa forma? — Jameson
disse, rangendo os dentes.
Eles estavam acostumados a competir um com o outro, a correr
para a linha de chegada. Eu não conseguia afastar a sensação de
que eu realmente não devia estar ali entre eles.
— Você sabe, Jamie, que eu sou capaz de ficar aqui, nesta sala,
com vocês dois, indefinidamente? — Grayson disse. — Assim que
eu vir o que vocês estão fazendo, você sabe que eu vou deduzir. Eu
fui criado pra jogar, assim como você.
Jameson encarou o irmão com força, e então sorriu.
— A escolha é da intrometida com intenções duvidosas. — O
sorriso dele se encheu de desdém.
Ele espera que eu mande Grayson embora. Eu provavelmente
devia ter feito isso, mas era perfeitamente possível que
estivéssemos perdendo tempo e eu não tinha nenhuma objeção a
gastar o tempo de Grayson Hawthorne.
— Ele pode ficar.
Era possível cortar a tensão da sala com uma faca.
— Tudo bem, Herdeira. — Jameson me deu outro sorriso
selvagem. — Como você quiser.
CAPÍTULO 33

Eu sabia que as coisas iriam mais rápidas com mais um par de


mãos, mas eu não tinha antecipado como seria a sensação de estar
trancada em uma sala com dois Hawthorne – especialmente esses
dois. Enquanto trabalhávamos, Grayson atrás de mim e Jameson
acima, eu me perguntei se eles sempre tinham sido como água e
óleo, se Grayson sempre tinha se levado a sério demais, se
Jameson sempre tinha fingido não levar nada a sério. Eu me
perguntei se os dois tinham crescido com os rótulos de herdeiro e
reserva, uma vez que Nash tinha deixado claro que abdicaria do
trono Hawthorne.
Eu me perguntei se eles se davam bem antes de Emily.
— Não há nada aqui. — Grayson pontuou essa frase guardando
um livro na estante com um pouco de força demais.
— Por coincidência — Jameson comentou de cima —, você
também não tem que estar aqui.
— Se ela ficar, eu também ficarei.
— Avery não morde. — Enfim Jameson passou a me chamar pelo
meu nome de verdade. — E, sinceramente, agora que a questão de
sermos parentes foi descartada, eu toparia se ela quisesse me
morder.
Eu me engasguei com a saliva e considerei seriamente
estrangulá-lo. Ele estava provocando Grayson e me usando para
isso.
— Jamie? — Grayson soou calmo até demais. — Cale a boca e
continue procurando.
Eu fiz exatamente isso: tira o livro da estante, abre a capa, fecha
a capa, devolve o livro na estante. As horas passaram. Grayson e
eu caminhamos na direção um do outro. Quando ele estava perto o
suficiente para eu poder vê-lo com o canto do olho, ele falou, sua
voz quase inaudível para mim, e com certeza inaudível para
Jameson.
— Meu irmão está sofrendo pela perda de nosso avô. Com
certeza você pode entender isso.
Eu podia e eu entendia. Mas não disse nada.
— Ele busca sensações. Dor. Medo. Alegria. Não importa. —
Grayson tinha toda a minha atenção agora e ele sabia disso. — Ele
está sofrendo e precisa da sensação do jogo. Ele precisa que isso
signifique alguma coisa.
Isso, no caso, seria a carta do avô deles? O testamento? Eu?
— E você acha que não tem significado? — perguntei, mantendo
minha voz baixa. Grayson não achava que eu era especial, não
acreditava que esse era o tipo de quebra-cabeça que valia a pena
resolver.
— Eu não acho que você precisa passar de vilã dessa história pra
uma ameaça a essa família.
Se eu já não tivesse conhecido Nash, eu teria dito que Grayson
era o irmão mais velho.
— Você fica falando sobre o resto da família — eu disse. — Mas
isso não é só por causa deles. Eu sou uma ameaça pra você.
Eu tinha herdado a fortuna dele. Estava vivendo na casa dele. O
avô dele tinha me escolhido.
Grayson estava bem ao meu lado agora.
— Eu não me sinto ameaçado. — Ele não era fisicamente
imponente. Eu nunca o tinha visto perder o controle. Mas, quanto
mais perto ele chegava de mim, mais meu corpo entrava em alerta.
— Herdeira?
Eu me assustei quando Jameson me chamou. Instintivamente, eu
me afastei do irmão dele.
— Sim?
— Eu acho que encontrei alguma coisa.
Eu passei por Grayson e subi as escadas. Jameson tinha
encontrado alguma coisa. Um livro com a capa errada. Eu estava
presumindo isso, mas, no segundo que cheguei ao segundo andar e
vi o sorriso nos lábios de Jameson Hawthorne, eu soube que estava
certa.
Ele ergueu um livro de capa dura.
Eu li o título.
— Velejando ao longe.
— E embaixo… — Jameson gostava de performances por
natureza. Ele tirou a sobrecapa com um gesto dramático e me atirou
o livro. A trágica história do Doutor Fausto.
— Fausto — eu disse.
— O mal que você conhece ou o mal que você não conhece —
Jameson respondeu.
Podia ser uma coincidência. Nós podíamos estar vendo coisa
onde não tinha, como pessoas que tentavam prever o futuro
observando a forma das nuvens. Mas isso não impediu os pelos do
meu braço de se arrepiarem. Não impediu meu coração de acelerar.
Tudo é alguma coisa na Casa Hawthorne.
Esse pensamento soava com o meu pulso enquanto eu abria a
cópia do Fausto que tinha nas mãos. Ali, grudado com fita no lado
interno da capa, estava um quadrado vermelho transparente.
— Jameson — eu ergui os olhos do livro. — Tem alguma coisa
aqui.
Grayson devia estar ouvindo de onde estava no andar de baixo,
mas ele não disse nada. Jameson correu para o meu lado. Ele levou
os dedos até o quadrado vermelho. Ele era fino, feito de algum tipo
de filme plástico, cada lado com talvez uns dez centímetros de
comprimento.
— O que é isso? — perguntei.
Jameson pegou o livro das minhas mãos animadamente e
removeu o quadrado com cuidado. Ele o ergueu na direção da luz.
— Uma espécie de filtro. — Essas palavras vieram do andar de
baixo. Grayson estava no centro da sala, olhando para nós. —
Acetato vermelho. Uma das peças favoritas do nosso avô,
particularmente útil pra revelar mensagens escondidas. O texto do
livro está escrito em vermelho, por acaso?
Eu abri a primeira página.
— Tinta preta — eu disse.
Eu continuei folheando. A cor da tinta nunca mudava, mas
algumas páginas depois eu encontrei uma palavra que tinha sido
circulada a lápis. Uma onda de adrenalina correu pelas minhas
veias.
— O avô de vocês tinha o hábito de escrever nos livros?
— Na primeira edição de Fausto? — Jameson desdenhou.
Eu não tinha ideia de quanto dinheiro esse livro valia ou quanto de
seu valor tinha sido tirado com esse pequeno círculo na página, mas
no fundo eu sabia que tínhamos encontrado alguma coisa.
— Que — li a palavra em voz alta. Nenhum dos irmãos fez
qualquer comentário, então eu virei a página e encontrei mais uma.
Virei pelo menos cinquenta páginas até encontrar outra palavra
circulada.
— Uma… — Eu continuei virando as páginas. As palavras
circuladas começaram a aparecer com mais frequência, às vezes
em pares. — Existe…
Jameson pegou uma caneta em uma estante próxima. Ele não
tinha papel, então começou a anotar as palavras no dorso da sua
mão esquerda. — Continue.
Eu continuei.
— Um… existe. — Eu tinha chegado quase ao fim do livro. —
Caminho — disse, finalmente. Comecei a virar as páginas mais
devagar. Nada. Nada. Nada. Finalmente, tirei os olhos do livro. — É
isso.
Eu fechei o livro. Jameson ergueu sua mão na frente do corpo e
eu me aproximei para ver melhor. Eu peguei a mão dele e li as
palavras que ele tinha escrito ali. Onde. Uma. Existe. Um. Existe.
Caminho.
O que a gente deve fazer com isso?
— Mudar a ordem das palavras? — Era um jogo de palavras
comum.
Os olhos de Jameson acenderam.
— Onde existe uma…
Eu completei.
— Existe um caminho.
Os lábios de Jameson se curvaram para cima.
— Está faltando uma palavra — ele murmurou. — Vontade. É
outro provérbio. Onde existe uma vontade, existe um caminho. —
Ele sacudia o acetato vermelho na mão, para a frente e para trás,
enquanto pensava em voz alta. — Quando você olha por um filtro
colorido, as linhas dessa cor desaparecem. É um jeito de escrever
mensagens secretas. Você coloca o texto em cores diferentes. O
livro é escrito em tinta preta, então o acetato não deve ser usado no
livro. — Jameson estava falando mais rápido agora e a energia na
sua voz era contagiosa.
Grayson falou do epicentro da sala.
— Por isso a mensagem no livro indica onde usar o filme.
Eles estavam acostumados a jogar os jogos do avô. Eles tinham
sido treinados para isso desde que eram pequenos. Eu não tinha
sido, mas a troca entre eles tinha me dado o suficiente para ligar os
pontos. O acetato deveria revelar uma escrita secreta, mas não no
livro. Em vez disso, o livro, como a carta antes dele, continha uma
pista – nesse caso, uma frase com uma única palavra faltando.
Onde existe uma vontade, existe um caminho. Uma vontade,
como a expressa em um testamento.
— Quais são as chances — eu disse devagar, examinando o
quebra-cabeça na minha mente — de existir, em algum lugar, uma
cópia do testamento do avô de vocês escrita em tinta vermelha?
CAPÍTULO 34

Eu perguntei a Alisa sobre o testamento. Eu meio que esperava


que ela me olhasse como se eu tivesse pirado, mas, no segundo
que eu disse a palavra vermelho, a expressão dela mudou. Ela me
informou que eu poderia consultar o Testamento Vermelho, mas
antes precisava fazer uma coisa para ela. Essa coisa acabou
envolvendo uma dupla de consultores de estilo, um irmão e uma
irmã, que trouxeram o que parecia ser todo o estoque da Saks Fifth
Avenue para dentro do meu quarto. A mulher era pequenina e
silenciosa.
O homem era bastante alto, coisa de um metro e noventa e oito, e
fez uma rajada contínua de observações.
— Você não pode usar amarelo e eu te encorajaria a banir as
palavras laranja e creme do seu vocabulário, mas, fora isso,
qualquer outra cor é uma opção. — Estávamos os três no meu
quarto, junto de Libby e treze araras de roupas, dezenas de
bandejas de joias e o que parecia ser um salão de beleza completo
montado no banheiro. — Cores vivas, tons pastel, tons terrosos com
moderação. Você gosta de roupas sem estampa?
Olhei para a minha roupa: uma camiseta cinza e meu segundo
par de jeans mais confortável.
— Eu gosto de simples.
— Simples é uma mentira — a mulher murmurou. — Mas uma
mentira bonita às vezes.
Ao meu lado, Libby deu uma risada irônica e engoliu um sorriso.
Eu a fuzilei.
— Você está gostando disso, não é mesmo? — perguntei,
sombria. Então eu observei a roupa que ela estava usando. O
vestido era preto, o que era apropriado para Libby, mas o estilo
combinaria mais com um Country Club.
Eu tinha pedido que Alisa não a pressionasse.
— Você não precisa mudar como você… — eu comecei a dizer,
mas Libby me cortou.
— Eles me subornaram. Com botas. — Ela apontou para a
parede do fundo, cheia de botas, todas elas de couro, em tons de
roxo, preto e azul. Botas no tornozelo, na panturrilha, até mesmo um
par que ia até acima dos joelhos.
— Além disso — Libby acrescentou serenamente —, posso usar
joias macabras. — Se uma joia parecia ser assombrada, essa era a
praia de Libby.
— Você deixou que te transformassem em troca de quinze pares
de botas e umas joias macabras? — confirmei, me sentindo meio
traída.
— E umas calças de couro incrivelmente macias — Libby
acrescentou. — Valeu super a pena. Eu ainda sou eu, só que…
chique. — O cabelo dela ainda era azul. Seu esmalte ainda era
preto. E não era nela que eles estavam focados agora.
— Nós devíamos começar com o cabelo — o homem declarou ao
meu lado, examinando minhas mechas ofensivas. — Você não
acha? — ele perguntou para a irmã.
Não houve resposta, já que a mulher tinha desaparecido atrás de
uma das araras. Dava para ouvi-la mexendo nos cabides, mudando
a ordem das roupas.
— Volumoso. Nem totalmente ondulado, nem totalmente liso.
Você pode usá-lo das duas formas. — Esse homem gigante devia
estar em um time de futebol americano, não me dando conselhos
sobre cortes de cabelo. — Nada mais curto que cinco centímetros
abaixo do queixo, nada mais longo que no meio das costas.
Camadas suaves não fariam mal. — Ele olhou para Libby. — Eu
sugiro que você a deserde se ela quiser uma franja.
— Eu vou levar isso em consideração — Libby disse
solenemente. — Você vai sofrer se ele não for longo o suficiente pra
fazer um rabo de cavalo — ela me disse.
— Rabo de cavalo. — Isso me rendeu um olhar de censura do
atacante. — Você odeia seu cabelo e quer que ele sofra?
— Eu não odeio. — Eu dei de ombros. — Eu só não me importo.
— Isso também é uma mentira. — A mulher reapareceu de trás
da arara de roupas. Ela tinha meia dúzia de cabides cheios de roupa
nos braços e eu a observei pendurá-los virados para fora na arara
mais próxima. O resultado eram três combinações diferentes.
— Clássico. — Ela apontou para uma saia azul-gelo combinada
com uma camiseta de manga comprida. — Natural. — Ela se moveu
para a segunda opção, um vestido florido longo e solto que
combinava pelo menos uma dúzia de tons de vermelho e rosa. —
Patricinha com algo a mais. — A opção final incluía uma saia de
couro marrom, mais curta que qualquer roupa minha e
provavelmente mais justa também. Ela tinha sido combinada com
uma camisa social branca e um cardigã cinza.
— Qual te atrai? — o homem perguntou. Isso fez Libby rir de
novo. Ela estava definitivamente gostando demais disso.
— Todos são bons. — Eu dei uma olhada no vestido florido. —
Aquele ali parece pinicar.
Os stylists pareciam estar ficando com enxaqueca.
— Opções casuais? — Ele pediu à irmã, sofrendo. Ela
desapareceu e reapareceu com mais algumas peças, que juntou
aos conjuntos de estilo. Leggings pretas, uma blusa vermelha e um
cardigã branco que ia até o joelho se juntaram ao conjunto clássico.
Uma camisa de renda verde-água e uma calça verde-escura se
juntaram à monstruosidade florida e um suéter de cashmere largo e
jeans rasgados foram pendurados ao lado da saia de couro.
— Clássica. Natural. Patricinha com algo a mais. — A mulher
repetiu minhas opções.
— Eu tenho objeções filosóficas a calças coloridas — eu disse. —
Então esse cai fora.
— Não olhe as peças separadamente — o homem instruiu. —
Observe o look.
Revirar meus olhos para alguém com o dobro do meu tamanho
provavelmente não foi uma opção muito sensata.
A mulher se aproximou. Ela andava de forma leve, como se
pudesse passar por um canteiro de flores sem estragar nenhuma
delas.
— A forma como você se veste, a forma como arruma seu cabelo,
isso não é besteira. Não é superficial. Isso… — ela apontou para a
arara atrás de si — não é só roupa. É uma mensagem. Você não
está decidindo o que vestir. Você está decidindo que história você
quer que sua imagem conte. Você é a inocente, jovem e doce? Você
se veste para esse mundo de riqueza e maravilhas como se tivesse
nascido para ele ou você quer andar no meio: igual, mas diferente,
jovem, mas cheia de força?
— Por que eu preciso contar uma história?
— Porque, se você não contar a história, outra pessoa vai contar
por você. — Eu me virei e vi Xander Hawthorne parado na porta,
segurando um prato de scones.
— Consultoria de estilo, assim como construir máquinas de
Goldberg por lazer, é um trabalho que dá fome.
Eu queria repreendê-lo com o olhar, mas Xander e seus scones
eram à prova de cara feia.
— O que você sabe sobre consultoria de estilo? — resmunguei.
— Se eu fosse um cara, haveria no máximo duas araras de roupa
neste quarto.
— E, se eu fosse branco — Xander respondeu, sério —, as
pessoas não olhariam pra mim como se eu só fosse meio
Hawthorne. Quer um scone?
Eu murchei na hora. Era ridículo da minha parte pensar que
Xander não sabia como era ser julgado ou ter que viver a vida com
regras diferentes. E me peguei pensando como era para ele crescer
naquela casa. Crescer um Hawthorne.
— Posso pegar um de blueberry? — perguntei, em uma espécie
de versão pessoal de bandeira branca.
Xander me ofereceu um de limão.
— Não vamos nos antecipar.

Com só uma quantidade moderada de cara feia, acabei escolhendo


a opção três. Eu odiava a palavra patricinha quase tanto quanto
odiava a pretensão de ter algo a mais, mas, no fim das contas, eu
não podia fingir que era tola e inocente, e eu suspeitava fortemente
que qualquer tentativa de agir como se esse mundo fosse natural
para mim ia me pinicar – não fisicamente, mas bem no fundo.
A equipe deixou meu cabelo comprido, mas fez um corte em
camadas que revelou ondas do tipo acabei de acordar. Achei que
eles iam sugerir fazer luzes, mas eles escolheram o caminho
oposto: mechas sutis de um tom mais escuro e profundo que meu
castanho cinzento normal. Eles limparam minhas sobrancelhas, mas
as deixaram grossas. Eu fui instruída sobre os detalhes de uma
rotina de skincare elaborada e ganhei um tom bronzeado feito com
airbrush, mas mantiveram minha maquiagem ao mínimo: olhos e
lábios, nada mais. Ao me olhar no espelho, eu quase acreditei que
aquela garota que me encarava pertencia à Casa.
— O que você acha? — perguntei a Libby.
Ela estava de pé perto da janela, com a luz por trás dela, o celular
nas mãos e os olhos colados na tela.
— Lib?
Ela olhou para mim com a expressão de um animal selvagem
atordoado que eu conhecia muito bem.
Drake. Ele estava mandando mensagens para ela. Ela estava
respondendo?
— Você está ótima! — Libby soou sincera, porque estava sendo
sincera. Sempre. Sincera, honesta e muito, muito otimista.
Ele bateu nela, eu disse a mim mesma. Ele nos vendeu. Ela não
vai voltar com ele.
— Você está fantástica — Xander declarou de forma grandiosa.
— Você também não parece alguém que seduziu um velho pra tirar
bilhões dele, o que é bom.
— Mesmo, Alexander? — Zara anunciou sua presença com
quase nenhuma pompa. — Ninguém acredita que Avery seduziu o
seu avô.
A história (e imagem) dela transitava entre exalando classe e
seriedade. Mas eu tinha visto a coletiva de imprensa dela. Eu sabia
que, embora ela pudesse se importar com a reputação do pai, ela
não tinha nenhum apego particular à minha. Quanto pior eu
parecesse, melhor para ela. A menos que o jogo tivesse mudado.
— Avery. — Zara sorriu pra mim com tanta frieza quanto as cores
que usava. — Podemos conversar rapidamente?
CAPÍTULO 35

Zara não começou a falar imediatamente quando ficamos


sozinhas. Então decidi que, se ela não ia quebrar o silêncio, eu ia.
— Você falou com os advogados? — Essa era a explicação óbvia
para a presença dela.
— Falei. — Zara não ofereceu justificativas. — E agora eu estou
falando com você. Tenho certeza de que você pode me perdoar por
não ter feito isso antes. Como você pode imaginar, isso tudo foi um
certo choque.
Certo? Eu desdenhei e cortei as formalidades.
— Você deu uma coletiva de imprensa sugerindo fortemente que
seu pai estava senil e que eu estou sendo investigada pelas
autoridades por abuso de incapaz.
Zara se apoiou na ponta de uma escrivaninha antiga – uma das
poucas superfícies do quarto que não estava coberta de roupas ou
acessórios.
— Sim, bom, você pode agradecer aos seus advogados por
certas realidades não terem ficado aparentes mais cedo.
— Se eu não ganhar nada, você não ganha nada. — Eu não ia
deixar que ela desse voltas para falar o que queria.
— Você está… bonita. — Zara mudou de assunto e examinou
minha roupa nova. — Não é o que eu teria escolhido pra você, mas
está apresentável.
Apresentável, com algo a mais.
— Obrigada — eu grunhi.
— Você pode me agradecer quando eu tiver feito o que puder pra
facilitar essa transição pra você.
Eu não era tão ingênua a ponto de acreditar que ela tinha de
repente mudado de opinião. Se ela me desprezava antes, ela
continuava me desprezando. A diferença era que agora ela
precisava de alguma coisa. Cheguei à conclusão de que, se
esperasse tempo suficiente, ela me diria exatamente o que era essa
coisa.
— Eu não tenho certeza de tudo o que Alisa já te informou, mas,
além dos bens pessoais do meu pai, você também herdou o
controle da Fundação da família. — Zara examinou minha
expressão antes de prosseguir. — É uma das maiores fundações
privadas de caridade do país. Nós doamos mais de cem milhões de
dólares por ano.
Cem milhões de dólares. Eu nunca ia me acostumar com isso.
Números assim nunca iam parecer reais.
— Todo ano? — perguntei, chocada.
Zara sorriu, plácida.
— Juros compostos são uma coisa ótima.
Cem milhões de dólares por ano em juros – e ela só estava
falando da Fundação, não da fortuna pessoal de Tobias Hawthorne.
Pela primeira vez, eu realmente fiz as contas na minha cabeça.
Mesmo que impostos levassem embora metade de tudo e eu tivesse
uma média de ganhos de quatro por cento – eu ainda ganharia
quase um bilhão de dólares por ano. Sem fazer nada. Isso era
errado.
— Pra quem a Fundação dá seu dinheiro?
Zara se afastou da escrivaninha e começou a andar de um lado
para o outro.
— A Fundação Hawthorne investe em crianças e famílias,
iniciativas da saúde, avanço científico, desenvolvimento da
comunidade e artes.
Sob essas bandeiras, você poderia apoiar quase qualquer coisa.
Eu podia apoiar quase qualquer coisa.
Eu podia mudar o mundo.
— Eu passei toda a minha vida adulta gerenciando a Fundação.
— Os lábios de Zara se contraíram sobre seus dentes. — Existem
organizações que contam com o nosso apoio. Se você pretende se
envolver, tem uma forma certa e uma forma errada de fazer isso. —
Ela parou bem diante de mim. — Você precisa de mim, Avery. Por
mais que eu preferisse lavar as mãos, eu trabalhei muito e por muito
tempo e não quero ver esse trabalho desfeito.
Eu ouvi o que ela estava dizendo – e o que ela não estava.
— A Fundação te paga? — Eu contei os segundos até ela
responder.
— Eu tiro um salário compatível com o trabalho que faço.
Por mais satisfatório que fosse ser dizer a ela que seus serviços
não seriam mais necessários, eu não era tão impulsiva nem tão
cruel.
— Eu quero me envolver — eu disse a ela. — E não só pelas
aparências. Quero tomar decisões.
Problemas de moradia. Pobreza. Violência doméstica. Acesso a
cuidados preventivos. O que eu poderia fazer com cem milhões de
dólares por ano?
— Você é jovem o suficiente para acreditar que o dinheiro resolve
todos os males — Zara disse, com a voz quase nostálgica.
Palavras de uma pessoa tão rica que não consegue imaginar a
quantidade de problemas que o dinheiro pode resolver.
— Se você está falando sério sobre assumir um papel na
Fundação… — Zara parecia estar gostando de dizer isso tanto
quanto teria gostado de mergulhar numa lixeira ou fazer um
tratamento de canal —... então eu posso te ensinar o que você
precisa saber. Segunda-feira. Depois da escola. Na Fundação. —
Ela falou cada parte dessa ordem como uma frase separada.
A porta se abriu antes que eu pudesse perguntar onde
exatamente era a Fundação. Oren se posicionou ao meu lado. As
mulheres vão atrás de você no tribunal, ele tinha me dito. Mas agora
Zara sabia que não podia fazer isso.
E meu chefe de segurança não me queria sozinha com ela
naquela sala.
CAPÍTULO 36

No dia seguinte – domingo –, Oren me levou até a Ortega,


McNamara e Jones para ver o Testamento Vermelho.
— Avery. — Alisa nos recebeu na recepção do escritório. O lugar
era moderno: minimalista e cheio de aço cromado. O prédio parecia
grande o suficiente para manter mais de cem advogados, mas,
quando Alisa nos passou por uma recepcionista e pela segurança
até um elevador, eu não avistei vivalma.
— Você disse que eu sou a única cliente do escritório — eu
comentei quando o elevador começou a subir. — Qual é o tamanho
exato do escritório de vocês?
— Temos algumas divisões específicas — Alisa respondeu, séria.
— Os bens do sr. Hawthorne são muito diversificados. Isso requer
uma equipe diversificada de advogados.
— E o testamento sobre o qual eu perguntei está aqui?
No meu bolso eu levava um presente de Jameson: o filtro de
acetato que tínhamos descoberto preso na capa de Fausto. Contei a
ele que faria a visita ao escritório de advocacia e ele me deu o filtro
sem fazer perguntas, como se confiasse mais em mim do que em
qualquer um dos irmãos.
— O Testamento Vermelho está aqui. — Alisa confirmou e se
dirigiu para Oren: — Quanta companhia nós tivemos hoje? — Ela
perguntou. Por companhia ela queria dizer paparazzi. E por nós ela
quis dizer eu.
— Diminuiu um pouco — Oren relatou. — Mas é provável que
eles estejam empilhados na porta quando sairmos.
Se terminássemos o dia sem pelo menos uma manchete dizendo
algo do tipo “A adolescente mais rica do mundo visita advogados em
pleno domingo”, eu comeria uma das novas botas de Libby.
No terceiro andar, passamos por mais um posto de segurança, e
então, finalmente, Alisa me levou até uma sala num canto. Ela
estava mobiliada, mas praticamente vazia, com uma exceção. Bem
no meio de uma escrivaninha de mogno, estava o testamento.
Quando eu o notei, Oren já tinha se posicionado do lado de fora da
porta. Alisa não me seguiu quando fui em direção à mesa. À medida
que eu me aproximava, as letras saltavam aos meus olhos.
Vermelhas.
— Meu pai foi instruído a manter essa cópia aqui e mostrá-la para
você, ou para os meninos, se algum de vocês viesse atrás — Alisa
disse.
Eu me virei de volta para ela.
— Instruído — eu repeti. — Por Tobias Hawthorne?
— Naturalmente.
— Você contou a Nash?
Uma máscara fria caiu sobre o rosto dela.
— Eu não conto mais nada para Nash. — Ela me deu seu olhar
mais austero. — Se isso for tudo, vou deixá-la sozinha.
Alisa não perguntou o que eu estava pensando em fazer. Esperei
até ouvir a porta se fechar atrás dela, e então me sentei na
escrivaninha. Peguei o acetato do meu bolso.
— Onde existe uma vontade… — eu murmurei, colocando o
quadrado sobre a primeira página do testamento —... existe um
caminho.
Eu movi o acetato vermelho pelo papel e as palavras abaixo dele
desapareceram. Texto vermelho. Filme vermelho. Funcionou
exatamente como Jameson e Grayson haviam descrito. Se todo o
testamento estivesse escrito em vermelho, tudo desapareceria. Mas,
se por baixo do vermelho, houvesse outra cor, então qualquer outra
coisa escrita seria revelada.
Eu passei pelas doações iniciais de Tobias Hawthorne para os
Laughlin, Oren e sua sogra. Nada. Eu cheguei à parte sobre Zara e
Skye, e quando passei o filme vermelho por cima, elas
desapareceram. Foquei então na próxima frase.
Para os meus netos, Nash Westbrook Hawthorne, Grayson
Davenport Hawthorne, Jameson Winchester Hawthorne e Alexander
Blackwood Hawthorne…
Quando passei o filme pela página, as palavras desapareceram –
mas não todas. Quatro permaneceram.
Westbrook.
Davenport.
Winchester.
Blackwood.
Pela primeira vez, eu pensei no fato de todos os quatro filhos de
Skye terem o seu sobrenome, o sobrenome do avô. Hawthorne.
Todos os nomes do meio dos meninos também eram sobrenomes.
O sobrenome dos pais?, eu me perguntei. Enquanto meu cérebro
tentava compreender isso, segui pelo resto do documento. Parte de
mim esperava ver algo quando eu chegasse ao meu próprio nome,
mas ele desapareceu, assim como o resto do texto – tudo, exceto
pelos nomes do meio dos quatro netos Hawthorne.
— Westbrook. Winchester. Davenport. Blackwood — disse em voz
alta, guardando-os na memória.
E então eu mandei uma mensagem para Jameson – e me
perguntei se ele mandaria uma para Grayson.
CAPÍTULO 37

— Ei, calminha aí, menina. Onde é o incêndio?


Eu tinha acabado de chegar à Casa Hawthorne e estava correndo
para encontrar Jameson quando outro irmão Hawthorne entrou no
meu caminho. Nash.
— Avery acabou de ler uma cópia especial do testamento — Alisa
disse atrás de mim.
E ela tinha acabado de dizer que não contava mais nada para o
ex...
— Uma cópia especial do testamento… — Nash me encarou. —
Eu estaria correto de deduzir que isso tem algo a ver com a
baboseira na carta que o velho deixou pra mim?
— Sua carta — eu repeti, meu cérebro girando. Não devia ser
uma surpresa. Tobias Hawthorne tinha deixado pistas idênticas para
Grayson e Jameson. E para Nash também e provavelmente Xander.
— Não se preocupe — Nash cantarolou. — Eu vou passar essa.
Já disse, eu não quero dinheiro.
— O dinheiro não é a questão aqui — Alisa disse com firmeza. —
O testamento…
— É inquebrantável — Nash completou para ela. — Eu acho que
já ouvi isso uma ou duas vezes.
Alisa apertou os olhos.
— Você nunca foi muito bom em escutar.
— Escutar não significa concordar, Li-Li. — Nash usando esse
apelido, seu sorriso amigável e tom igualmente amigável, tudo isso
tirou todo o ar do cômodo.
— É melhor eu ir. — Alisa se virou subitamente para mim. — Se
você precisar de algo…
— Pode deixar, eu ligo — completei, me perguntando o quanto
minhas sobrancelhas tinham se erguido depois de presenciar essa
conversa deles.
Quando Alisa fechou a porta da frente atrás de si, ela a bateu com
força.
— Você vai me dizer pra onde está indo com tanta pressa? —
Nash me perguntou mais uma vez depois que ela saiu.
— Jameson me pediu pra encontrá-lo no solário.
Nash arqueou uma sobrancelha.
— Você tem alguma ideia de onde fica o solário?
Eu percebi um pouco atrasada que não tinha.
— Eu nem sei o que é um solário — admiti.
— Solários são superestimados. — Nash deu de ombros e me
examinou. — Me diga, menina, o que você normalmente faz no seu
aniversário?
Ele perguntou isso do nada. Eu sentia que devia ser uma
pegadinha, mas respondi mesmo assim.
— Como bolo?
— Todo ano nos nossos aniversários… — Nash olhou ao longe.
— Vovô nos chamava no seu escritório e dizia as mesmas três
palavras. Invista. Cultive. Crie. Então ele nos dava dez mil dólares
pra investir. Você consegue imaginar deixar que uma criança de oito
anos escolha ações? — Nash riu com desdém. — Então nós
escolhíamos um talento ou interesse para cultivar durante o ano,
uma língua, um hobby, uma arte, um esporte. Nada de economizar.
Se você escolhesse piano, um piano de cauda aparecia no dia
seguinte, aulas particulares começavam imediatamente e, no meio
do ano, você estaria nos bastidores do Carnegie Hall ganhando
dicas dos grandes talentos.
— Isso é incrível — eu disse, pensando em todos os troféus que
eu tinha visto no escritório de Tobias Hawthorne.
Nash não parecia muito impressionado.
— Vovô também nos dava um desafio todo ano — ele continuou
contando, sua voz endurecendo. — Uma tarefa, algo que
deveríamos criar até nosso próximo aniversário. Uma invenção, uma
solução, uma obra de arte de qualidade suficiente para ser exposta
em um museu. Alguma coisa.
Eu pensei nos quadrinhos que tinha visto emoldurados na parede.
— Isso não parece ser tão horrível assim.
— Não parece, né? — Nash disse, ruminando essas palavras. —
Venha. — Ele apontou a cabeça na direção de um corredor próximo.
— Eu te levo ao solário.
Ele começou a andar e eu precisei correr para acompanhá-lo.
— Jameson te contou das charadas semanais do velho? — Nash
perguntou enquanto andávamos.
— Sim — eu disse. — Contou.
— Às vezes, no começo do jogo, o velho apresentava uma
coleção de objetos. Um anzol, uma etiqueta, uma bailarina de vidro,
uma faca. — Ele sacudiu a cabeça, recordando. — E, quando o
quebra-cabeça tinha sido resolvido, pode apostar que não era nada
bom para a gente se não tivéssemos usado todos os objetos. — Ele
sorriu, mas não com os olhos. — Eu era muito mais velho. Eu tinha
uma vantagem. Jamie e Gray se juntavam contra mim e então
viravam um contra o outro no fim.
— Por que você está me contando isso? — questionei quando o
passo dele finalmente diminuiu até que ele parasse. — Por que me
contar essas coisas? — Sobre os aniversários, os presentes, as
expectativas.
Nash não respondeu imediatamente. Em vez disso, ele apontou
com a cabeça para um corredor próximo.
— O solário é a última porta à direita.
— Obrigada.
Eu andei na direção da porta que Nash tinha indicado e, um
pouco antes que eu chegasse ao meu destino, ele disse:
— Você pode achar que está jogando o jogo, querida, mas não é
assim que Jamie vê as coisas. — A voz de Nash era gentil, exceto
pelas palavras. — Nós não somos normais. Esse lugar não é normal
e você não é uma jogadora, menina. Você é a bailarina de vidro... ou
a faca.
CAPÍTULO 38

O solário era uma sala enorme com um teto de vidro abobadado e


paredes também de vidro. Jameson estava parado no meio,
banhado de luz e olhando para o domo acima dele. Como quando o
conheci, ele estava sem camisa. Também como quando o conheci,
ele estava bêbado.
Grayson não parecia estar em lugar nenhum.
— Qual é a ocasião? — perguntei, apontando com a cabeça para
a garrafa de uísque.
— Westbrook, Davenport, Winchester, Blackwood — Jameson
pronunciou os nomes, um por um. — Me diga, Herdeira, o que você
acha disso?
— São todos sobrenomes — eu disse, com receio. Fiz uma
pausa, e então pensei: Por que raios não? — Os pais de vocês?
— Skye não fala dos nossos pais — Jameson respondeu, sua voz
um pouco áspera. — Se depender dela, é uma situação tipo Athena
e Zeus. Nós somos dela e apenas dela.
Eu mordi o lábio.
— Ela me disse que teve quatro adoráveis conversas…
— Com quatro homens adoráveis — Jameson completou. — Mas
adoráveis o suficiente pra revê-los? Pra nos contar alguma coisa
sobre eles?
A voz dele endureceu.
— Ela nunca nem respondeu perguntas sobre nossos malditos
nomes do meio, e esse — ele pegou o uísque do chão e deu um
gole — é o motivo pra eu estar bebendo. — Ele apoiou a garrafa de
volta e fechou os olhos, deixando o sol bater em seu rosto e em
seus braços abertos por um momento mais longo. Pela segunda
vez, eu notei a cicatriz que descia pelo seu torso.
Notei cada respiração dele.
— Vamos? — Ele abriu os olhos. Seus braços baixaram.
— Vamos pra onde? — perguntei, tão fisicamente consciente da
presença dele que quase doía.
— Vamos lá, Herdeira — Jameson disse, dando um passo na
minha direção. — Você é melhor que isso.
Eu engoli em seco e respondi minha própria pergunta.
— Nós vamos visitar a sua mãe.

Ele me guiou pelo armário de casacos do hall. Dessa vez, eu prestei


atenção na sequência de painéis na parede que abria a porta.
Seguindo Jameson até o fundo do armário, abrindo caminho pelos
casacos pendurados ali, eu desejei que meus olhos se ajustassem
ao escuro para que eu pudesse ver o que ele faria em seguida.
Ele tocou algo. Puxou? Eu não conseguia identificar o quê. Logo
em seguida, eu ouvi o som de engrenagens girando e a parede no
fundo do armário deslizou para o lado. Se o armário estava escuro,
o que estava além dele era mais ainda.
— Pise onde eu pisar, Garota Misteriosa. E cuidado com a
cabeça.
Jameson usou o celular para iluminar o caminho. Eu tive a forte
sensação de que isso era por minha causa. Ele conhecia as voltas e
caminhos desses corredores secretos. Nós caminhamos em silêncio
por uns cinco minutos antes de ele parar e espiar pelo que eu só
podia presumir que fosse um olho mágico.
— Tudo liberado. — Jameson não especificou liberado de quem.
— Você confia em mim?
Eu estava parada em uma passagem secreta iluminada por um
celular, perto o suficiente dele para sentir o calor do seu corpo.
— De jeito nenhum.
— Bom. — Ele pegou a minha mão e me puxou mais para perto.
— Se segure.
Meus braços se curvaram em volta dele e o chão abaixo de nós
começou a se mexer. A parede ao nosso lado estava rodando e nós
estávamos rodando com ela, meu corpo pressionado contra o dele.
Jameson Winchester Hawthorne. O movimento parou e eu dei um
passo para trás.
Nós estávamos ali por um motivo – e esse motivo não tinha
absolutamente nada a ver com a forma como meu corpo se
encaixava no dele.
Eles eram perturbados e perversos antes de você chegar e
continuarão assim quando você for embora. Esse lembrete ecoou
na minha cabeça quando saímos para um longo corredor com
carpete vermelho e molduras douradas nas janelas. Jameson
caminhou na direção de uma porta no fim do corredor. Ele ergueu a
mão para bater.
Eu o impedi.
— Você não precisa de mim pra fazer isso — eu disse. — Você
não precisava de mim pra ver o testamento também. Alisa tinha
instruções pra deixar você vê-lo se pedisse.
— Eu preciso de você. — Jameson sabia exatamente o que
estava fazendo, a forma como ele me olhava, a curva dos seus
lábios. — Eu ainda não sei por que, mas preciso.
O aviso de Nash soou na minha cabeça.
— Eu sou a faca. — Eu engoli em seco. — O anzol, a bailarina de
vidro, o que quer que seja.
Isso quase pegou Jameson de surpresa.
— Você andou conversando com um dos meus irmãos. — Ele fez
uma pausa. — Não foi Grayson. — Os olhos dele se fixaram nos
meus. — Xander? — O olhar dele focou os meus lábios para depois
voltar a me encarar. — Nash — ele disse, certo dessa vez.
— Ele está errado? — perguntei. Eu pensei nos netos de Tobias
Hawthorne indo vê-lo nos seus aniversários. Esperavam que eles
fossem extraordinários. Esperavam que eles vencessem na vida. —
Eu sou só os meios para um fim, algo que vale a pena manter até
que você descubra como eu me encaixo no quebra-cabeça.
— Você é o quebra-cabeça, Garota Misteriosa. — Jameson
acreditava nisso. — Você pode cair fora — ele me disse —, decidir
que consegue viver sem essas respostas, ou pode consegui-las
comigo.
Um convite. Um desafio. Então eu disse a mim mesma que estava
fazendo isso porque eu precisava saber, não por causa dele.
— Vamos conseguir umas respostas — eu disse.
Quando Jameson bateu na porta, ela se abriu para dentro.
— Mãe? — ele chamou, e então corrigiu o tratamento. — Skye?
A resposta veio como o soar de sinos.
— Aqui dentro, querido.
Aqui, logo ficou claro, era o banheiro da suíte de Skye.
— Você tem um segundo? — Jameson parou bem em frente às
portas duplas do banheiro.
— Milhares deles. — Skye pareceu admirar sua resposta. —
Milhões. Entre.
Jameson ficou do lado de fora.
— Você está apresentável?
— Eu gosto de pensar que sim — a mãe dele respondeu. — Pelo
menos cinquenta por cento do tempo.
Jameson empurrou a porta do banheiro e eu pude contemplar a
maior banheira que eu já tinha visto na minha vida. A peça estava
sobre uma elevação, e os pés em garra da banheira. – dourados,
combinando com as molduras no corredor – chamaram a minha
atenção mais do que a mulher que estava na banheira.
— Mãe, você disse que estava apresentável. — Jameson não
pareceu surpreso.
— Estou coberta de bolhas — Skye respondeu, aérea. — Não dá
pra ficar mais apresentável que isso em uma banheira. Agora, diga
o que você quer.
Jameson olhou de volta para mim como quem diz e você
perguntou por que eu precisava do uísque.
— Eu vou ficar aqui — eu disse, me virando antes que visse algo
além de bolhas.
— Ah, não seja pudica, Abigail — Skye criticou de dentro do
banheiro. — Somos todos amigos aqui, não somos? Eu tenho uma
política de fazer amizade com todo mundo que rouba o que é meu
por direito.
Eu nunca tinha visto alguém ser passivo-agressivo nesse nível.
— Se você já terminou de irritar a Avery — Jameson interferiu —,
eu gostaria de conversar sobre uma coisa.
— Por que você está tão sério, Jamie? — Skye deu um suspiro
alto. — Sobre o que você quer conversar?
— Meu nome do meio. Eu já te perguntei antes se eu tenho o
nome do meu pai.
Skye ficou quieta por um momento.
— Me passe o champanhe, por favor.
Eu ouvi Jameson se mover no banheiro, eu imagino que pegando
o champanhe.
— E então? — ele perguntou.
— Se você fosse uma menina — Skye disse com ares de bardo
—, eu teria te dado o meu nome. Skylar, talvez. Ou Skyla. — Ela
deu o que eu imaginava ser um gole de champanhe. — Toby tinha o
nome do meu pai, você sabe.
A menção ao finado irmão chamou minha atenção. Eu não sabia
como ou por que, mas a morte de Toby tinha de alguma forma dado
início a tudo isso.
— Meu nome do meio — Jameson a recordou. — De onde você
tirou?
— Eu ficarei feliz em responder às suas perguntas, querido. —
Skye fez uma pausa. — Assim que você me deixar sozinha um
momento com sua adorável amiguinha.
CAPÍTULO 39

Se eu soubesse que ia acabar tendo uma conversa em particular


com uma Skye nua e coberta de bolhas, eu provavelmente teria
tomado um pouco de uísque também.
— Sentimentos negativos envelhecem. — Skye mudou de
posição na banheira, fazendo a água transbordar pelos lados. —
Não há muito que se possa fazer com mercúrio retrógrado, mas…
— Ela soltou um suspiro alto e teatral. — Eu te perdoo, Avery
Grambs.
— Eu não pedi perdão — eu respondi.
Ela continuou como se não tivesse me ouvido.
— Você vai, é claro, continuar a me dar uma modesta quantia
como auxílio financeiro.
Eu comecei a me perguntar se essa mulher estava realmente
vivendo em outro planeta.
— Por que eu te daria alguma coisa?
Eu esperei uma resposta áspera, mas tudo que eu recebi foi um
pequeno e indulgente hum, como se eu estivesse sendo ridícula
aqui.
— Se você não vai responder à pergunta de Jameson — eu disse
—, então vou embora.
Ela me deixou chegar à metade do caminho até a porta.
— Você vai me sustentar — ela disse, despreocupada — porque
eu sou a mãe deles. E eu vou responder à sua pergunta assim que
você responder à minha. Quais são as suas intenções com meu
filho?
— Como assim? — Eu me virei para encará-la antes de me
lembrar, um segundo tarde demais, por que eu estava tentando não
olhar para ela.
As bolhas ainda escondiam o que eu não queria ver, mas foi por
pouco.
— Você entrou na minha suíte com meu filho sem camisa e
sofrendo ao seu lado. Uma mãe se preocupa, e Jameson é especial.
Brilhante, como meu pai era. Como Toby era.
— Seu irmão... — eu disse, e de repente eu tinha perdido o
interesse em sair dali. — O que aconteceu com ele? — Alisa tinha
me dado um resumo, mas poucos detalhes.
— Meu pai arruinou Toby — Skye falou para a borda de sua taça
de champanhe. — Mimou demais. Ele seria o herdeiro, você sabe.
E, quando ele se foi… bom, ficamos Zara e eu. — A expressão dela
se escureceu, mas então ela sorriu. — E então…
— Você teve os meninos — completei. Eu me perguntei então se
ela os teve porque Toby havia falecido.
— Você sabe por que Jameson era o favorito de papai quando,
pela lógica, deveria ter sido o perfeito e dedicado Grayson? — Skye
perguntou. — Não era porque meu Jamie é brilhante, ou lindo, ou
carismático. Era porque Jameson Winchester Hawthorne é faminto.
Ele está em busca de algo. Ele está buscando desde o dia em que
nasceu. — Ela virou o resto do champanhe em um gole só. —
Grayson é tudo que Toby não era, e Jameson é igualzinho a ele.
— Ninguém é igual a Jameson. — Eu não tinha a menor intenção
de ter dito essas palavras em voz alta.
— Viu? — Skye me deu um olhar compreensivo, o mesmo que
Alisa tinha me dado no meu primeiro dia na Casa Hawthorne. —
Você é dele. — Skye fechou os olhos e se reclinou na banheira. —
Nós costumávamos perdê-lo quando ele era pequeno, sabe como é.
Por horas, às vezes por um dia. Nós tirávamos o olho um segundo e
ele desaparecia pelas paredes. E, todas as vezes que o
encontrávamos, eu o pegava no colo e o abraçava com força, e
sabia, nas profundezas da minha alma, que tudo que ele queria era
se perder de novo. — Ela abriu os olhos. — Isso é tudo que você é.
— Skye se levantou e pegou um roupão. Eu desviei o olhar
enquanto ela o vestia. — Só outra maneira de ele se perder. Era
isso que ela era também.
Ela.
— Emily — eu disse em voz alta.
— Ela era uma menina linda — Skye refletiu —, mas podia ter
sido feia, e eles a teriam amado da mesma forma. Havia alguma
coisa nela.
— Por que você está me contando isso? — perguntei.
— Você não é como Emily — Skye Hawthorne afirmou com
ênfase.
Ela se inclinou para pegar a garrafa de champanhe e encheu sua
taça. Ela andou na minha direção, descalça e pingando, e a
estendeu para mim.
— Eu descobri que bolhas são um remédio pra tudo. — O olhar
dela era intenso. — Vamos lá. Beba.
Ela estava falando sério? Eu dei um passo para trás.
— Eu não gosto de champanhe.
— E eu — Skye deu um longo gole — não escolhi o nome do
meio dos meus filhos. — Ela ergueu a taça como se estivesse
brindando a mim, ou à minha derrota.
— Se você não escolheu, então quem foi?
Skye terminou seu champanhe.
— Meu pai.
CAPÍTULO 40

Eu contei a Jameson o que sua mãe havia me contado.


Ele me encarou.
— Então nosso avô escolheu nossos nomes.
Eu conseguia ver as engrenagens na cabeça de Jameson
girando, e então… nada.
— Ele escolheu nossos nomes — Jameson repetiu, andando de
um lado para o outro pelo longo corredor como um animal
enjaulado. — Ele os escolheu e os destacou no Testamento
Vermelho. — Jameson fez mais uma pausa. — Ele deserdou a
família vinte anos atrás e escolheu nossos nomes do meio, exceto o
de Nash, pouco tempo depois. Grayson tem dezenove. Eu tenho
dezoito. Xan vai fazer dezessete mês que vem.
Eu conseguia senti-lo tentando fazer isso fazer sentido. Tentando
ver o que estávamos deixando passar.
— O velho estava jogando um longo jogo — Jameson disse,
todos os músculos do seu corpo se contraindo. — Um jogo que
durou a nossa vida toda.
— Os nomes precisam significar alguma coisa — eu afirmei.
— Pode ser que ele soubesse quem são os nossos pais —
Jameson considerou essa possibilidade. — Mesmo que Skye
achasse que estava mantendo segredo, não existiam segredos pra
ele. — Eu pude sentir pela voz de Jameson que havia algo por trás
dessas palavras, algo profundo, doloroso e horrível.
Quais dos seus segredos ele sabia?
— Nós podemos fazer uma busca — eu sugeri, tentando focar na
charada, e não nele. — Também podemos pedir a Alisa para
contratar um detetive particular para procurar por homens com
esses sobrenomes.
— Ou — Jameson contrapôs — você pode me dar umas seis
horas pra ficar sóbrio e eu vou lhe mostrar o que eu faço quando
estou montando um quebra-cabeça e empaco.

Sete horas depois, Jameson me passou pela passagem secreta da


lareira e me levou para a ala mais distante da casa – passando pela
cozinha, passando pelo salão principal e para dentro do que se
mostrou a maior garagem que eu já tinha visto. Mais parecia um
showroom, na verdade. Havia uma dúzia de motocicletas
empilhadas em uma estante gigantesca na parede e o dobro de
carros estacionados em semicírculo. Jameson foi passando por
eles, um por um. Ele parou em frente a um carro que parecia ter
saído de uma história de ficção científica.
— O Aston Martin Valkyrie — Jameson disse. — Um hipercarro
híbrido que atinge uma velocidade máxima de mais de trezentos
quilômetros por hora. — Ele apontou para o fim da fila. — Aqueles
três são Bugattis. O Chiron é meu favorito. Quase quinhentos
cavalos de força e nada mau na pista.
— Pista — eu repeti. — Tipo pista de corrida?
— Eles eram os bebês do meu avô — Jameson disse. — E
agora… — Um sorriso se formou lentamente no rosto dele. — Eles
são seus.
O sorriso era demoníaco. Era perigoso.
— De jeito nenhum — eu disse a Jameson. — Eu nem posso sair
da propriedade sem Oren. E eu não posso dirigir um carro desses!
— Por sorte — Jameson respondeu, caminhando para uma caixa
embutida na parede —, eu posso.
Havia uma espécie de quebra-cabeça na caixa, um tipo de cubo
mágico prateado com estranhas formas gravadas nos quadrados.
Jameson imediatamente começou a girar os quadrados, virando-os
e rearranjando-os de um jeito específico. A caixa se abriu. Ele
passou os dedos por algumas chaves, e então escolheu uma. —
Nada como a velocidade pra sair da própria cabeça e do próprio
caminho. — Ele começou a andar na direção do Aston Martin. —
Alguns quebra-cabeças fazem mais sentido a trezentos por hora.
— Cabem duas pessoas nessa coisa?
— Ora, Herdeira — Jameson murmurou —, achei que você nunca
fosse perguntar.

Jameson dirigiu o carro até uma plataforma que nos baixou para o
subsolo da Casa. Nós passamos por um túnel e, quando notei,
estávamos saindo por uma saída dos fundos que eu nem sabia que
existia.
Jameson não correu. Ele não tirou seus olhos da estrada. Ele só
dirigiu em silêncio. Sentada ao lado dele, eu sentia todas as
terminações nervosas do meu corpo acordando de ansiedade.
Essa é uma péssima ideia.
Ele deve ter avisado alguém com antecedência porque a pista
estava pronta para nós quando chegamos.
— O Martin não é tecnicamente um carro de corrida — Jameson
me disse. — Mas tecnicamente ele não estava nem à venda quando
foi comprado pelo meu avô.
E tecnicamente eu não deveria ter saído da propriedade. Nós não
deveríamos ter pegado o carro. Nós não deveríamos estar ali.
Mas, lá pelos duzentos quilômetros por hora, eu parei de pensar
em devia.
Adrenalina. Euforia. Medo. Não havia lugar na minha cabeça para
mais nada: a velocidade era tudo que importava.
Isso e o garoto ao meu lado.
Eu não queria que ele desacelerasse. Eu não queria que o carro
parasse. Pela primeira vez desde a leitura do testamento, eu me
sentia livre. Sem perguntas. Sem suspeitas. Ninguém me encarando
ou não encarando. Nada, exceto aquele momento, o aqui e o agora.
Nada além de Jameson Winchester Hawthorne e eu.
CAPÍTULO 41

Por fim, o carro parou. E, por fim, a realidade caiu nas nossas
cabeças. Oren estava lá, junto de uma equipe. Ops.
— Você e eu — meu chefe de segurança disse a Jameson no
mesmo instante em que saímos do carro — vamos ter uma
conversinha.
— Eu já sou grandinha — disse, vendo os reforços que Oren tinha
levado consigo. — Se você quiser gritar com alguém, grite comigo.
Oren não gritou. Mas ele me levou pessoalmente de volta ao meu
quarto e indicou que nós íamos “conversar” de manhã. Pelo tom de
Oren, eu não tinha certeza de que sobreviveria inteira a uma
conversa com ele.
Demorei para dormir naquela noite, meu cérebro estava uma
bagunça de impulsos elétricos que não queriam – não podiam –
parar de estalar. Eu ainda não tinha ideia do que pensar sobre os
nomes realçados no Testamento Vermelho, se eles eram mesmo
uma referência aos pais dos meninos ou se Tobias Hawthorne tinha
escolhido os nomes do meio dos netos por uma razão
completamente diferente.
Tudo que eu sabia era que Skye estava certa. Jameson tinha
fome. E eu também. Mas eu também conseguia ouvir Skye dizendo
que eu não importava, que eu não era Emily.
Quando eu finalmente adormeci, sonhei com uma garota
adolescente. Ela era uma sombra, uma silhueta, um fantasma, uma
rainha. E não importava quão rápido eu corresse, por corredores e
mais corredores, eu nunca conseguia alcançá-la.
Meu celular tocou antes do amanhecer. Grogue e mal-humorada,
eu fui atrás dele com toda a intenção de atirá-lo pela janela do
closet, então eu percebi quem estava ligando.
— Max, são cinco e meia da manhã.
— Três e meia pra mim. Onde você conseguiu aquele carro? —
Max não parecia nem um pouco sonolenta.
— Em uma sala cheia de carros? — respondi como quem pede
desculpas, e então meu cérebro acordou o suficiente para que eu
processasse o que a pergunta dela queria dizer. — Como você sabe
do carro?
— Foto aérea — Max respondeu. — Tirada de um helicóptero, e o
que você quis dizer com uma sala cheia de carros? Quão grande é
essa sala?
— Eu não sei — eu grunhi e rolei na cama. Claro que os
paparazzi tinham me pegado com Jameson. Eu nem queria saber o
que as revistas de fofoca estavam dizendo.
— Igualmente importante — Max continuou —, você está tendo
um romance tórrido com Jameson Hawthorne e eu deveria me
preparar pra um casamento na primavera?
— Não… — Eu me sentei na cama. — Não é isso.
— Que mentira do baralho.
— Eu preciso morar com essas pessoas por um ano. Eles já têm
motivos o suficiente pra me odiar. — Eu não estava pensando em
Skye, ou Zara, ou Xander, ou Nash quando disse isso. Eu estava
pensando em Grayson. Grayson e seus olhos cinzentos, seus
ternos e suas ameaças. — Me envolver com Jameson seria só jogar
mais lenha na fogueira.
— E que bela fogueira seria — Max murmurou.
Ela era, sem dúvida alguma, uma má influência.
— Eu não posso — eu reiterei. — E, além disso… teve uma
menina. — Eu pensei no meu sonho e me perguntei se Jameson
tinha levado Emily para andar de carro, se ela tinha jogado algum
dos jogos de Tobias Hawthorne.
— Ela morreu.
— Calma, baralho. O que você quer dizer com ela morreu?
Como?
— Eu não sei.
— Como você pode não saber?
Eu puxei meu cobertor em volta de mim.
— O nome dela era Emily. Você sabe quantas pessoas chamadas
Emily existem no mundo?
— Ele ainda pensa nela? — Max perguntou. Ela estava falando
de Jameson, mas meu cérebro voltou para o momento em que eu
tinha dito o nome de Emily para Grayson. Isso tinha arrebentado
com ele. Destruído mesmo.
Eu ouvi uma batida na porta.
— Max, eu preciso desligar.

Oren passou mais de uma hora revisando protocolos de segurança


comigo. Ele indicou que ficaria feliz em fazer isso todas as manhãs,
logo ao amanhecer, até eu aprender direito.
— Eu entendi — eu disse a ele. — Vou ser uma boa menina.
— Não, não vai. — Ele me olhou feio. — Mas eu vou ser melhor.

Meu segundo dia – e o início da primeira semana completa – na


escola particular acabou parecido com a semana anterior. As
pessoas se esforçavam para não me encarar. Jameson me evitava.
Eu evitava Thea. Eu me perguntei que fofoca Jameson achou que
provocaríamos se fossemos vistos juntos, me perguntei se tiveram
rumores quando Emily morreu.
Me perguntei como ela morreu.
Você não é uma jogadora. O aviso de Nash voltava para mim o
tempo todo, toda vez que eu notava Jameson nos corredores. Você
é a bailarina de vidro…
— Eu ouvi dizer que você gosta de velocidade. — Xander saltou
sobre mim de dentro do laboratório de física. Ele claramente estava
animado. — Deus abençoe os paparazzi, não é? Eu também ouvi
falar que você teve uma conversa muito especial com a minha mãe.
Eu não tinha certeza se ele estava buscando informações ou se
compadecendo.
— Sua mãe é uma figura e tanto — eu disse.
— Skye é uma mulher complicada — Xander assentiu com um ar
sábio. — Mas ela me ensinou a ler tarô e a hidratar minhas
cutículas, então quem sou eu pra reclamar?
Não era Skye que os tinha moldado, incentivado, colocado
desafios, esperado o impossível. Não era ela que os tinha tornado
mágicos.
— Todos os seus irmãos receberam a mesma carta do seu avô —
eu disse a Xander, examinando sua reação.
— É mesmo?
Apertei meus olhos um pouco.
— Eu sei que você também recebeu.
— Talvez, sim — Xander admitiu alegremente. — Mas,
hipoteticamente, se eu tivesse recebido, e se eu, hipoteticamente,
estivesse jogando esse jogo e quisesse, só dessa vez, e só
hipoteticamente, ganhar… — Ele deu de ombros. — Eu faria tudo
do meu jeito.
— O seu jeito envolve robôs e scones?
— O que não envolve? — Sorrindo, Xander me puxou para dentro
do laboratório. Como tudo na Country Day, ele parecia ter custado
um milhão de dólares. Provavelmente mais do que um milhão de
dólares, de fato. Mesas de laboratório curvas circulavam a sala.
Janelas que iam do chão ao teto tinham substituído três das quatro
paredes. Havia algo colorido escrito nas janelas, cálculos em letras
diferentes, como se rascunho fosse coisa do passado. Cada mesa
do laboratório tinha um grande monitor e um quadro branco digital.
E isso sem mencionar o tamanho dos microscópios.
Eu sentia que tinha acabado de entrar na NASA.
Só havia dois lugares vazios. Um era ao lado de Thea. O outro
era o mais longe possível de Thea, ao lado da garota que eu tinha
visto no arquivo. Seu cabelo vermelho-escuro estava preso em um
rabo de cavalo frouxo na nuca. Suas cores eram impressionantes,
do tipo que você não conseguia parar de encarar – cabelo vermelho
assim, pele pálida desse jeito –, mas seus olhos estavam voltados
para baixo.
Thea me notou e fez um gesto me convidando para sentar ao seu
lado. Olhei de volta para a garota ruiva.
— Qual a história dela? — perguntei a Xander. Ninguém estava
falando com ela. Ninguém estava olhando para ela. Ela era uma das
pessoas mais bonitas que eu já tinha visto e parecia ser invisível.
Uma parede.
— A história dela — Xander suspirou — envolve amor trágico, um
namoro falso, corações partidos, tragédias, relações familiares
perturbadas, penúria e um herói lendário.
Eu olhei feio para ele.
— Você está falando sério?
— Você já devia saber a essa altura — Xander respondeu,
descontraído — que eu não sou o Hawthorne sério.
Ele se sentou na cadeira ao lado de Thea e me deixou seguir até
a garota ruiva. Ela se mostrou uma parceira de laboratório decente,
quieta, focada e capaz de calcular quase qualquer coisa de cabeça.
Durante todo o tempo em que trabalhamos lado a lado, ela não me
dirigiu uma única palavra.
— Meu nome é Avery — eu disse quando terminamos e ficou
claro que ela não ia se apresentar.
— Rebecca. — A voz dela era suave. — Laughlin. — Ela viu a
mudança na minha expressão quando ela disse seu nome e
confirmou o que eu estava pensando. — Meus avós trabalham na
Casa Hawthorne.
Os avós dela comandavam a Casa Hawthorne e nenhum deles
parecia muito entusiasmado com a perspectiva de trabalhar para
mim. Eu me perguntei se foi por isso que eu ganhei apenas silêncio
de Rebecca.
Ela também não falou com nenhuma outra pessoa.
— Alguém já te mostrou como entregar as tarefas pelo tablet? —
Rebecca perguntou. A pergunta foi hesitante, como se ela
esperasse ser calada. Eu tentei compreender como alguém tão
bonita podia ser tão hesitante em relação a alguma coisa.
A todas as coisas.
— Não — eu disse. — Você poderia?
Rebecca me mostrou, enviando seus resultados com alguns
cliques na tela. Um momento depois, o tablet dela voltou à tela
principal. Ela tinha uma foto como fundo de tela. Nela, Rebecca
olhava para o lado enquanto outra garota, com cabelo cor de âmbar,
ria diretamente para a câmera. As duas tinham coroas de flores na
cabeça e os mesmos olhos.
A outra menina não era mais bonita que Rebecca –
provavelmente era até menos –, mas, de alguma forma, era
impossível desviar os olhos dela.
— Ela é sua irmã? — perguntei.
— Era. — Rebecca fechou a capa do tablet. — Ela morreu.
Meus ouvidos tiniram e eu soube então exatamente para quem eu
estava olhando. Eu senti que, em algum nível, eu sabia desde que
coloquei os olhos nela.
— Emily?
Os olhos esmeralda de Rebecca encontraram os meus. Eu entrei
em pânico, pensando que eu deveria ter dito outra coisa. Sinto muito
pela sua perda – algo assim.
Mas Rebecca não pareceu achar minha resposta estranha ou
inadequada. Tudo que ela disse, puxando o tablet para o colo foi:
— Ela teria ficado muito interessada em te conhecer.
CAPÍTULO 42

Eu não conseguia tirar o rosto de Emily da minha cabeça, mas eu


não tinha visto a foto de perto o suficiente para me lembrar dos
detalhes dos traços dele. Os olhos eram verdes. O cabelo era de um
loiro arruivado, como se a luz do sol estivesse batendo em um
âmbar. Ela usava uma coroa de flores na cabeça, mas não lembro
qual era o comprimento do cabelo. Não importa o quanto eu
tentasse visualizar seu rosto, a única outra coisa de que conseguia
me lembrar era que ela estava rindo e olhava bem de frente para a
câmera.
— Avery — Oren avisou do banco da frente. — Chegamos. É
aqui.
Aqui era a Fundação Hawthorne. Parecia que tinha se passado
uma eternidade desde que Zara tinha se oferecido para me mostrar
as coisas. Quando Oren saiu do carro e abriu minha porta, notei
que, pela primeira vez, não havia nenhum repórter ou fotógrafo à
vista.
Talvez esteja diminuindo, pensei enquanto entrava na recepção
da Fundação Hawthorne. As paredes eram pintadas de cinza-claro e
dezenas de enormes fotografias em preto e branco estavam
penduradas nelas, parecendo suspensas no ar. Centenas de fotos
menores cercavam as maiores. Pessoas. De todas as partes do
mundo, fotografadas em ação e em momentos, de todos os ângulos,
todas as perspectivas, diversas em todas as dimensões imagináveis
– idade, gênero, raça, cultura. Pessoas. Rindo, chorando, rezando,
jogando, comendo, dançando, dormindo, varrendo, abraçando –
tudo.
Eu pensei na dra. Mac me perguntando por que eu queria viajar.
Esse é o porquê.
— Srta. Grambs.
Ergui os olhos e vi Grayson. Eu me perguntei há quanto tempo ele
estava me observando analisar a sala e o que ele tinha percebido
no meu rosto.
— Eu vim me encontrar com Zara — eu disse, me defendendo do
inevitável ataque que viria dele.
— Zara não virá. — Grayson caminhou devagar na minha direção.
— Ela está convencida de que você precisa de alguma…
orientação. — Havia algo na forma como ele disse essa palavra que
a fez passar por todos os meus mecanismos de defesa e deslizar
para dentro da minha pele. — Por algum motivo, minha tia acredita
que essa orientação será mais bem recebida se vier de mim.
Ele estava com a mesma aparência do dia em que eu o conheci,
até mesmo a cor do terno Armani. Era o mesmo cinza-claro e
cristalino dos seus olhos – a mesma cor da sala. De repente, eu me
lembrei do livro de arte que eu tinha visto no escritório de Tobias
Hawthorne – um livro de fotografias com o nome de Grayson na
lombada.
— Você tirou essas fotos? — Eu tomei fôlego, encarando as fotos
à minha volta. Era um chute, mas eu costumo ser boa de chute.
— Meu avô acreditava que era preciso ver o mundo pra poder
mudá-lo. — Grayson me olhou e então observou ao redor. — Ele
sempre disse que eu tinha um bom olho.
Invista. Crie. Cultive. Lembrei do resumo que Nash fez da infância
deles e me perguntei quantos anos Grayson tinha quando segurou
uma câmera pela primeira vez, quantos anos tinha quando começou
a viajar o mundo, a vê-lo e a capturá-lo em fotos.
Eu nunca diria que ele era o irmão-artista.
Fiz uma careta, irritada por estar sendo forçada a pensar sobre
ele:
— Sua tia não deve ter notado que você está sempre me
ameaçando. E aposto que ela também não sabia sobre a
investigação a respeito da minha mãe. Caso contrário, ela jamais
teria chegado à conclusão de que eu preferiria trabalhar com você.
Os lábios de Grayson se contraíram.
— Zara não costuma deixar nada passar. E, quanto à
investigação… — Ele sumiu atrás do balcão da recepção e
reapareceu com duas pastas.
Olhei feio para Grayson, e ele arqueou uma sobrancelha.
— Você prefere que eu esconda os resultados da minha pesquisa
sobre você?
Ele ergueu uma pasta e eu a peguei. Ele não tinha o direito de
fazer isso, de se intrometer na minha vida e na da minha mãe. Mas,
quando olhei para a pasta nas minhas mãos, ouvi a voz da minha
mãe, clara como um sino, na minha cabeça: Eu tenho um segredo…
Então abri a pasta. Registros de emprego, certificado de óbito,
relatório de crédito, nenhum antecedente criminal, uma foto…
Eu apertei os lábios, tentando desesperadamente parar de olhar
para a imagem. Ela ainda era jovem na foto e estava comigo no
colo.
Eu me forcei a olhar para Grayson, pronta para atacá-lo, mas ele
calmamente me entregou a segunda pasta. Eu me perguntei o que
ele tinha descoberto sobre mim, se havia alguma coisa na pasta que
poderia explicar o que o avô dele tinha visto em mim. Eu a abri.
Dentro havia uma única folha de papel e estava branca.
— Essa é uma lista de tudo que você comprou desde que herdou
o dinheiro. As pessoas compraram coisas pra você, mas… —
Grayson baixou os olhos e observou a página. — Nada.
— Isso é algo semelhante a um pedido de desculpas? —
perguntei. Eu o surpreendi. Eu não estava agindo como uma
interesseira.
— Eu não vou me desculpar por ter sido protetor. Essa família já
sofreu o suficiente, srta. Grambs. Se eu fosse escolher entre você e
qualquer um deles, a minha escolha seria eles, sempre e todas as
vezes. No entanto… — Os olhos dele voltaram a me encarar. — Eu
posso ter te julgado mal.
Havia intensidade nas palavras e na expressão do rosto dele –
como se o garoto que aprendeu a ver o mundo estivesse me vendo.
— Você está errado. — Eu fechei a pasta e me virei de costas
para ele. — Eu tentei gastar o dinheiro. Uma boa quantia, até. Eu
pedi a Alisa pra encontrar uma forma de dá-lo a um amigo meu.
— Que tipo de amigo? — Grayson perguntou. Sua expressão se
alterou. — Um namorado?
— Não — respondi. Por que ele se importava se eu tinha um
namorado? — Um cara com quem jogo xadrez no parque. Ele mora
lá. No parque.
— Um sem-teto? — Grayson estava me olhando de forma
diferente agora, como se, em todas as suas viagens, ele nunca
tivesse visto algo assim. Assim como eu. Depois de um ou dois
segundos, ele saiu do transe. — Minha tia está certa. Você precisa
desesperadamente de educação.
Ele começou a andar e eu não tive escolha, exceto segui-lo, mas
eu me recusava a ficar atrás dele, como um patinho perseguindo a
mãe. Chegamos a uma sala de reuniões e ele abriu a porta para
mim. Eu passei rente a ele e mesmo esse microssegundo de
contato me fez sentir como se estivesse correndo a trezentos
quilômetros por hora.
De jeito nenhum. Era isso que eu teria dito a Max ao telefone.
Qual era o meu problema? Grayson tinha passado a maior parte do
tempo que nos conhecemos me ameaçando. Me detestando.
Ele fechou a porta da sala de reuniões e então se encaminhou até
a parede do fundo. Ela estava coberta de mapas: primeiro um
mapa-múndi, então cada continente, depois separados por países e,
por fim, até estados e cidades.
— Olhe pra eles — ele instruiu, apontando os mapas com a
cabeça —, porque é isso que está em jogo aqui. Tudo. Não uma só
pessoa. Dar dinheiro a indivíduos faz pouco.
— Faz muito — murmurei — pra essas pessoas.
— Com os recursos que você tem agora, você não pode mais se
dar ao luxo de se preocupar com o individual. — Grayson falava
como se essa fosse uma lição que tinha sido martelada para dentro
dele. Por quem? Seu avô? — Você, srta. Grambs, é responsável
pelo mundo.
Eu senti essas palavras como se fossem um fósforo aceso, uma
fagulha, uma chama.
Grayson ficou de costas para a parede de mapas.
— Eu adiei a faculdade por um ano pra aprender o funcionamento
da Fundação. Meu avô me incumbiu de fazer um estudo de formas
de doação, querendo melhorar o nosso sistema. Eu deveria fazer
uma apresentação nos próximos meses. — Grayson encarou com
dureza o mapa que estava pendurado na altura dos seus olhos. —
Agora eu imagino que eu tenha de fazer minha apresentação pra
você. — Ele parecia estar medindo o ritmo de suas palavras. — A
curadoria da Fundação possui sua própria burocracia. Quando você
fizer vinte e um anos, será sua, como todo o resto.
Isso o feria, mais do que qualquer um dos termos do testamento.
Eu pensei em Skye se referindo a ele como o herdeiro legítimo,
embora ela insistisse que Jameson tinha sido o favorito de Tobias
Hawthorne. Grayson tinha passado um ano sabático dedicado à
Fundação. Suas fotografias estavam penduradas na recepção.
Mas o avô dele me escolheu.
— Eu…
— Não diga que você sente muito. — Grayson encarou a parede
por mais um momento, e então se virou para mim. — Não lamente,
srta. Grambs. Seja digna do que recebeu.
Ele poderia ter me mandado virar fogo, terra ou ar. Uma pessoa
não podia ser digna de bilhões. Não era possível, para ninguém e
definitivamente não para mim.
— Como? — perguntei. Como eu poderia ser digna de qualquer
coisa?
Ele levou um tempo para responder e eu me peguei desejando
ser o tipo de garota que sabe preencher silêncios. O tipo com flores
no cabelo e que sorri despreocupada.
— Eu não posso te ensinar a ser nada, srta. Grambs. Mas, se
você quiser, eu posso te ensinar uma forma de pensar.
Afastei a lembrança do rosto de Emily.
— Estou aqui, não estou?
Grayson começou a andar pela sala, passando por cada um dos
mapas.
— A sensação de doar pra alguém que você conhece em vez de
um estranho pode ser melhor, ou de doar pra uma organização cuja
história te faz chorar, mas isso é seu cérebro te enganando. A
moralidade de uma ação depende, em última instância, do seu
resultado.
Havia uma intensidade na forma como ele falava, como ele se
movia. Eu não teria conseguido desviar os olhos ou parar de ouvir,
mesmo que tentasse.
— Nós não devemos doar porque nos sentimos de determinada
forma — Grayson me disse. — Nós devemos dirigir nossos recursos
pra onde uma análise objetiva diz que poderemos gerar o maior
impacto.
Ele provavelmente achou que o que estava dizendo era demais
para mim, mas, no momento em que ele disse análise objetiva, eu
sorri.
— Você está falando com uma futura estudante de Ciências
Atuariais, Hawthorne. Mostre seus gráficos.

Quando Grayson terminou, minha cabeça estava girando com todos


os números e projeções. Consegui ver exatamente como a mente
dele funcionava – e era perturbadoramente parecida com a minha.
— Entendo porque uma abordagem frouxa não funcionaria — eu
disse. — Problemas grandes exigem grandes ideias e grandes
intervenções…
— Intervenções amplas — Grayson corrigiu. — Estratégicas.
— Mas também precisamos espalhar nosso risco.
— Com uma análise de custo-benefício empiricamente orientada.
Todo mundo tem coisas que lhe são inexplicavelmente atraentes.
Pelo jeito, para mim, caras de terno e olhos cinzentos usando a
palavra empiricamente e presumindo que eu saiba o que eles
querem dizer são irresistíveis.
Tire sua mente do esgoto, Avery. Grayson Hawthorne não é para
o seu bico.
O telefone dele tocou e ele olhou para a tela.
— Nash — ele me informou.
— Vá em frente — eu disse a ele. — Atenda. — A essa altura, eu
precisava de uma pausa dele, mas também disso. Matemática eu
entendia. Projeções, eu conseguia compreender. Mas isso?
Isso era real. Isso era poder. Cem milhões de dólares por ano.
Grayson atendeu o telefone e saiu. Circulei pela sala, olhando os
mapas nas paredes e memorizando os nomes de todos os países,
todas as cidades, todas as vilas. Eu podia ajudar todos eles – ou
nenhum. Havia pessoas que podiam viver ou morrer por minha
causa, futuros bons ou ruins que aconteceriam por causa das
minhas escolhas.
Que direito eu tinha de fazer isso?
Atordoada, eu parei na frente do último mapa na parede.
Diferentemente dos outros, esse tinha sido desenhado à mão. Eu
precisei de um momento para notar que o mapa era da Casa
Hawthorne e da propriedade em volta. Meus olhos foram primeiro
para o Chalé Wayback, uma pequena construção escondida nos
fundos da propriedade. Então lembrei que, no testamento, Tobias
Hawthorne tinha deixado o Chalé para os Laughlin.
Os avós de Rebecca. De Emily. Fiquei imaginando se as meninas
iam visitá-los quando eram pequenas e quanto tempo elas
passaram ali e na Casa Hawthorne. Quantos anos tinha Emily
quando conheceu Jameson e Grayson?
Há quanto tempo ela morreu?
A porta da sala de reuniões se abriu atrás de mim. Foi um alívio
perceber que onde eu estava não daria para Grayson ver meu rosto.
Eu não queria que ele soubesse que eu estava pensando nela. Fingi
estar estudando o mapa, a geografia da propriedade, da floresta ao
norte chamada Black Wood a um pequeno riacho que corria pela
ponta oeste do terreno.
Black Wood. Li o nome mais uma vez e de repente meu sangue
estava correndo tão rápido que era ensurdecedor. Blackwood. E ali,
em letras pequenas, o pequeno corpo de água tinha um nome
também. West Brook.
Blackwood. Westbrook.
— Avery — Grayson falou quando chegou perto de mim.
— O quê? — falei, incapaz de afastar minha mente do mapa e
suas implicações.
— Era o Nash.
— Eu sei — eu disse. Ele tinha falado de quem era o telefonema
antes de atender.
Grayson colocou uma mão no meu ombro com delicadeza. Um
alarme soou na minha cabeça. Por que ele estava sendo tão gentil?
— O que Nash quer?
— É sua irmã.
CAPÍTULO 43

— Eu achei que você tinha falado que ia cuidar de Drake. — Meus


dedos se espremiam em volta do celular enquanto eu apertava
minha mão livre como se fosse socar alguém. — Por diversão.
Liguei para Alisa no momento em que cheguei ao carro. Grayson
tinha me seguido e se sentado no banco de trás, ao meu lado. Eu
não tinha tempo ou espaço mental para pensar na presença dele ao
meu lado. Oren estava dirigindo. Eu estava puta.
— Eu cuidei dele — Alisa me garantiu. — Você e sua irmã têm
ordens de restrição. Se Drake tentar entrar em contato ou chegar a
menos de trezentos metros de qualquer uma de vocês, por qualquer
motivo, ele pode ser preso.
Eu me esforcei para aliviar a força que fazia com minha mão livre,
mas continuei segurando o celular com firmeza.
— Então por que ele está nos portões da Casa Hawthorne neste
momento?
Drake estava lá. No Texas. Quando Nash ligou, Libby estava em
segurança dentro da Casa, mas Drake estava enchendo seu celular
com mensagens e ligações, exigindo falar com ela.
— Eu vou cuidar disso, Avery. — Alisa se recuperou quase
instantaneamente. — O escritório tem contatos na polícia local que
sabem ser discretos.
Naquele momento, ser discreta não era minha prioridade. Minha
prioridade era Libby.
— Minha irmã sabe sobre a ordem de restrição?
— Ela assinou os papéis. — Essa era uma bela garantia. — Eu
vou cuidar de tudo, Avery. Mas fique fora disso. — Ela desligou e eu
deixei a mão com o celular cair no meu colo.
— Você consegue dirigir mais rápido?
Libby tinha sua própria equipe de segurança. Drake não teria
chance de machucá-la fisicamente.
— Nash está com a sua irmã — Grayson falou pela primeira vez
desde que entramos no quarto. — Se esse cavalheiro tentar
encostar um dedo nela, eu te garanto que meu irmão terá prazer em
remover esse dedo.
Eu não tinha certeza se Grayson estava falando de separar o
referido dedo do corpo de Libby ou do de Drake.
— Drake não é um cavalheiro — eu disse a Grayson. — E eu não
estou só preocupada com ele ficar violento. — Eu estava
preocupada com ele ser doce, preocupada que, em vez de estourar,
ele fosse tão gentil e carinhoso que ela começasse a questionar o
hematoma desbotado em volta do olho.
— Se isso vai te fazer sentir melhor, eu posso mandar alguém
tirar ele da propriedade — Oren ofereceu. — Mas talvez isso cause
uma cena para a imprensa.
A imprensa? Meu cérebro começou a funcionar.
— Não havia nenhum paparazzi na Fundação. — Eu notei isso
quando chegamos. — Eles estão na Casa?
O muro em torno da propriedade conseguia manter a imprensa do
lado de fora, mas não havia nada impedindo-os de se congregar,
legalmente, em uma via pública.
— Se eu fosse de apostar — Oren comentou —, eu chutaria que
Drake ligou pra alguns repórteres pra garantir seu público.

Não havia nada de discreto na cena que nos recebeu quando Oren
encostou na entrada, depois de ter passado por uma verdadeira
horda de jornalistas. À frente, eu conseguia ver a forma de Drake do
lado de fora dos portões de ferro fundido. Havia mais dois outros
homens parados ao lado dele. Mesmo a distância, eu conseguia
distinguir os uniformes de polícia.
E os paparazzi também.
Pelo jeito, os amigos de Alisa não eram muito discretos. Eu rangi
os dentes e pensei na forma como Drake culparia Libby se ele fosse
filmado sendo arrastado pela polícia.
— Pare o carro — eu disparei.
Oren parou, então se virou de seu banco para me encarar.
— Eu te aconselharia a ficar no veículo.
Isso não era um conselho. Era uma ordem.
Eu peguei a maçaneta da porta.
— Avery! — O tom de Oren me fez congelar. — Se você vai sair,
eu vou sair primeiro.
Lembrei da nossa conversinha sobre segurança, então decidi não
testar Oren.
Ao meu lado, Grayson soltou o cinto de segurança. Ele tocou meu
pulso com suavidade.
— Oren está certo. Você não deveria ir lá fora.
Eu baixei os olhos para olhar a mão dele segurando a minha, e
depois de um segundo, ergui os olhos de novo.
— E o que você faria — eu disse —, até onde você iria pra
proteger a sua família?
Toquei no nervo sensível dele, e ele sabia disso. Ele tirou a mão
da minha, devagar o suficiente para eu sentir as pontas de seus
dedos roçando os nós dos meus. Com a respiração acelerada, abri
a porta do carro e me preparei. Drake era a maior história que a
imprensa tinha a respeito da herdeira de Hawthorne porque nós não
tínhamos oferecido algo maior. Ainda.
Com o queixo erguido, saí do carro. Olhem para mim. Eu sou a
história aqui. Andei pela entrada, na direção da rua. Eu estava
usando botas de salto e minha saia plissada da Country Day. O
blazer do meu uniforme grudou no meu corpo enquanto eu andava.
O cabelo novo. A maquiagem. A atitude.
Eu sou a história aqui. A notícia do dia não seria sobre Drake. Os
olhos do mundo não estariam sobre ele. Eu os manteria sobre mim.
— Coletiva de imprensa espontânea? — Oren perguntou baixo. —
Como seu guarda-costas, eu me sinto obrigado a avisar que Alisa
vai te matar.
Esse era um problema para a Avery do futuro. Balancei meu
cabelo perfeito e o joguei para trás e endireitei os ombros. O rugido
dos repórteres gritando meu nome ficava mais alto quanto mais
perto eu chegava.
— Avery!
— Avery, olhe pra cá!
— Avery, o que você tem a dizer sobre os rumores que…
— Sorria, Avery!
Fiquei bem na frente deles. Eu tinha a atenção de todos. Ao meu
lado, Oren ergueu uma mão e só com isso a multidão ficou em
silêncio.
Diga algo, eu preciso dizer algo.
— Eu… hm… — pigarreei. — Essa foi uma grande mudança.
Algumas risadas ao longe. Eu consigo fazer isso. No instante em
que eu pensei essas palavras, o universo me fez pagar por elas.
Uma briga começou atrás de mim, entre Drake e os policiais. Eu vi
algumas câmeras começando a sair de mim, vi as lentes tele dando
zoom nos portões.
Não só fale. Conte a história. Faça-os escutar.
— Eu sei por que Tobias Hawthorne mudou o testamento — eu
disse alto.
A resposta a esse anúncio foi elétrica. Havia um motivo para essa
ser a história da década, uma coisa que todo mundo queria saber.
— Eu sei por que ele me escolheu. — Eu os fiz olhar para mim e
só para mim. — Eu sou a única que sabe. Eu sei a verdade. — Eu
vendi essa mentira com tudo de mim. — E, se vocês publicarem
uma palavra que seja sobre esse projeto patético de ser humano
que está na entrada, qualquer um de vocês, eu tornarei minha
missão de vida garantir que vocês nunca descubram.
CAPÍTULO 44

Eu não processei a magnitude do que eu tinha feito até estar em


segurança dentro da Casa Hawthorne. Eu disse à imprensa que eu
tinha as respostas que eles queriam. Foi a primeira vez que eu falei
com eles, a primeira imagem real que qualquer um tinha de mim, e
eu havia mentido descaradamente.
Oren estava certo, Alisa ia me matar.
Encontrei Libby na cozinha, cercada de cupcakes. Literalmente,
centenas deles. Se ela já assava doces para pedir desculpas em
casa, o acesso a uma cozinha industrial com fornos triplos a havia
tornado incontrolável.
— Libby? — Eu me aproximei com cuidado.
— Você acha que agora eu deveria fazer red velvet ou caramelo
com flor de sal? — Libby estava segurando um saco de confeiteiro
com as duas mãos. Seu cabelo azul tinha escapado do rabo de
cavalo e estava grudado em seu rosto. Ela não me olhava nos
olhos.
— Ela está aqui há horas — Nash me disse. Ele estava reclinado
contra uma geladeira de aço inoxidável com os polegares apoiados
nos passadores dos jeans gastos. — O celular dela está tocando há
pelo menos o mesmo tanto de tempo.
— Não fale de mim como se eu não estivesse aqui. — Libby
ergueu os olhos dos cupcakes que estava confeitando e olhou para
Nash com reprovação.
— Sim, senhora. — Nash deu um sorriso largo e sensual. Eu me
perguntei há quanto tempo ele estava ali com ela e por que ele
estava ali.
— Drake já foi — eu disse a Libby, esperando que com isso Nash
entendesse que não era mais necessário. — Já cuidei disso.
— Eu que deveria cuidar de você. — Libby tirou o cabelo do rosto.
— Pare de me olhar assim, Avery. Eu não vou morrer.
— Claro que não, querida — Nash disse de seu lugar inclinado
contra a geladeira.
— Você… — Libby olhou para ele, uma faísca de irritação
acendendo seus olhos. — Você, cala a boca.
Eu nunca tinha ouvido Libby mandar alguém calar a boca na vida,
mas pelo menos ela não soava frágil ou ferida ou correndo o risco
de mandar mensagem para Drake. Eu pensei em Alisa dizendo que
Nash Hawthorne tinha um complexo de salvador.
— Calando a boca. — Nash pegou um cupcake e deu uma
mordida como se fosse uma maçã. — Se minha opinião serve pra
alguma coisa, eu voto no red velvet.
Libby se virou para mim.
— Então vou fazer de caramelo com flor de sal.
CAPÍTULO 45

Naquela noite, quando Alisa me ligou para fazer seu discurso eu-
não-posso-fazer-o-meu-trabalho-se-você-não-deixar, ela não
permitiu que eu dissesse uma palavra. Depois de uma despedida
tensa, que parecia mais uma retaliação, abri meu computador.
— Será que isso é tão ruim assim? — eu perguntei alto. A
resposta estava na primeira página de todos os sites: é bem ruim,
sim.
HERDEIRA DE HAWTHORNE GUARDA SEGREDOS.
O QUE AVERY GRAMBS SABE?
Eu mal me reconheci nas fotos que os paparazzi tinham tirado. A
garota nas fotos era bonita e cheia de uma fúria justificada. Ela
parecia tão perigosa e arrogante quanto um Hawthorne.
Não me sentia como aquela garota.
Achei que receberia uma mensagem de Max exigindo saber o que
estava acontecendo, mas, quando mandei uma mensagem para ela,
ela não respondeu. Quando eu estava para fechar o notebook,
lembrei de falar para Max que o motivo de eu não ter ideia do que
tinha acontecido com Emily era porque Emily era um nome muito
comum. Eu não tinha conseguido pesquisar por ela antes.
Mas agora eu sabia seu sobrenome.
— Emily Laughlin — eu disse em voz alta.
Então digitei o nome dela no campo de busca e acrescentei
Heights Country Day para refinar os resultados. Meus dedos
flutuaram acima da tecla “enter” por um tempo. Depois de um
momento, pressionei a tecla para acionar a busca.
O resultado foi um obituário, e nada mais. Nenhuma notícia.
Nenhum artigo sugerindo que uma adorada garota local havia
morrido de causa misteriosa. Nenhuma menção a Grayson ou
Jameson Hawthorne.
Havia uma foto com o obituário. Na foto, Emily estava sorrindo,
em vez de rindo, e meu cérebro absorveu todos os detalhes que eu
não havia notado antes. Seu cabelo tinha camadas e ela o usava
comprido. As pontas se viravam, mas o resto era liso e sedoso.
Seus olhos eram grandes demais para o seu rosto. A forma do seu
lábio superior me fez pensar em um coração. Ela tinha uma
constelação de sardas.
Toc. Toc. Toc.
Minha cabeça se ergueu com o barulho repentino e fechei o
notebook com força. A última coisa que eu queria era que alguém
soubesse o que eu tinha acabado de pesquisar.
Toc. Dessa vez eu fiz mais do que só ouvir. Liguei meu abajur,
coloquei os pés no chão e andei na direção do barulho. Quando eu
cheguei à lareira, eu já tinha uma boa certeza de quem estava do
outro lado.
— Você sabe usar portas? — perguntei a Jameson depois de usar
o castiçal para abrir a passagem.
Jameson arqueou uma sobrancelha e inclinou a cabeça para o
lado.
— Você quer que eu use uma porta?
Senti que o que ele estava realmente perguntando era se eu
queria que ele fosse normal. Lembrei de quando eu estava sentada
ao lado dele em alta velocidade e pensei na parede de escalada – e
na mão dele pegando a minha.
— Eu vi sua coletiva de imprensa. — Jameson estava com aquela
expressão no rosto de novo, aquela que me fazia sentir que
estávamos jogando xadrez e ele tinha acabado de fazer um
movimento pensado para ser encarado como um desafio.
— Não foi bem uma coletiva de imprensa, foi mais uma péssima
ideia — eu admiti, seca.
— Eu já mencionei — Jameson murmurou, me encarando de uma
forma que tinha que ser intencional — que eu amo péssimas ideias?
Quando ele apareceu do nada, eu achei que o tinha invocado ao
procurar pelo nome de Emily, mas agora eu estava entendendo o
que era essa visita noturna. Jameson Hawthorne estava ali, no meu
quarto, de noite. Eu estava de pijama e o corpo dele estava se
inclinando na direção do meu.
Nada disso era um acidente.
Você não é uma jogadora, menina. Você é a bailarina de vidro...
ou a faca.
— O que você quer, Jameson?
Meu corpo queria ir na direção dele. Minha parte racional queria
dar um passo para trás.
— Você mentiu para a imprensa — Jameson disse sem desviar os
olhos. Ele não piscou, nem eu. — O que você disse a eles… era
mentira, não era?
— Claro que era.
Se eu soubesse por que Tobias Hawthorne me deixou sua
fortuna, eu não estaria trabalhando com Jameson para tentar
descobrir. E não teria perdido o fôlego quando vi o mapa na
Fundação.
— Às vezes é difícil entender você — Jameson comentou. —
Você não é exatamente um livro aberto. — Ele fixou o olhar em
algum lugar próximo dos meus lábios. O rosto dele se moveu na
direção do meu.
Nunca perca a cabeça por um Hawthorne.
— Não me toque — pedi, mas, mesmo quando dei um passo para
trás, senti alguma coisa, a mesma coisa que eu tinha sentido
quando encostei em Grayson na Fundação.
Uma coisa que eu não deveria sentir – por nenhum dos irmãos.
— Nossa aventura da noite passada funcionou — Jameson disse.
— Arejar a cabeça me permitiu olhar para o quebra-cabeça com
novos olhos. Me pergunte o que eu descobri sobre nossos nomes
do meio.
— Não preciso — eu disse a ele. — Eu descobri também.
Blackwood, Westbrook, Davenport, Winchester. Não são apenas
nomes. São lugares, ou pelo menos os dois primeiros são. A floresta
Black Wood, o riacho West Brook. — Eu me foquei no quebra-
cabeça, e não no fato de que o quarto estava iluminado apenas por
um abajur e que estávamos próximos demais um do outro. — Eu
não estou certa quanto aos outros dois, mas…
— Mas… — Os lábios de Jameson se curvaram para cima,
mostrando seus dentes. — Você vai descobrir. — Ele levou os lábios
até a minha orelha. — Nós vamos, Herdeira.
Não existe nós. Não de verdade. Para você eu sou o meio para
um fim. Eu acreditava nisso. De verdade. Mas, de alguma forma, o
que eu acabei dizendo foi:
— Quer dar uma volta?
CAPÍTULO 46

Aquele não era só um passeio e nós dois sabíamos.


— A floresta Black Wood é enorme. Encontrar qualquer coisa ali
vai ser impossível se nós não soubermos o que estamos
procurando. — Jameson ajustou seu passo, lento e constante, ao
meu. — O riacho é mais fácil. Ele corre pelo comprimento da
propriedade, mas, se eu conheço meu avô, nós não estamos
procurando nada na água. Nós estamos procurando por algo em
cima ou embaixo da ponte.
— Que ponte? — perguntei.
Notei um movimento com o canto do olho. Oren. Ele ficou nas
sombras, mas estava ali.
— A ponte — Jameson respondeu — na qual meu avô pediu
minha avó em casamento. É perto do Chalé Wayback. Naquele
tempo, era só isso que meu avô possuía. Conforme seu império
cresceu, ele comprou as terras em volta. Ele construiu a Casa, mas
sempre manteve o Chalé.
— Os Laughlin moram lá agora — eu disse, vendo o chalé no
mapa. — Os avós de Emily.
Eu me sentia culpada só de dizer o nome dela, mas isso não me
impediu de observar a reação dele. Ele a amava? Como ela
morreu? Por que Thea culpa a família dele?
A boca de Jameson se contraiu.
— Xander falou que você teve uma conversinha com Rebecca —
ele disse, finalmente.
— Ninguém na escola fala com ela — eu murmurei.
— Correção — Jameson respondeu. — Rebecca não fala com
ninguém na escola. Isso já faz meses. — Ele ficou quieto por um
momento, o som de nossos passos abafando todo o resto. —
Rebecca sempre foi a quieta. A responsável. A que os pais
esperavam que fizesse boas escolhas.
— Não Emily — eu preenchi.
— Emily… — Jameson soava diferente quando dizia o nome dela.
— Emily só queria se divertir. Ela tinha uma doença cardíaca,
congênita. Os pais dela eram ridiculamente superprotetores.
Quando ela era criança, eles nunca a deixavam fazer nada. Ela fez
um transplante quando tinha treze anos e, depois disso, só queria
viver.
Não sobreviver. Não só aguentar. Viver. Eu pensei na forma como
ela ria para a câmera, selvagem e livre e um pouco consciente
demais, como se, quando a foto foi tirada, ela soubesse para o que
todos nós olharíamos mais tarde. Para ela.
Eu pensei na forma como Skye havia descrito Jameson. Faminto.
— Você a levou pra andar de carro? — perguntei. Se eu pudesse
ter voltado atrás, eu teria voltado, mas a pergunta ficou flutuando no
ar entre nós.
— Não tem nada que Emily e eu não fizemos. — Jameson falava
como se as palavras estivessem sendo arrancadas dele. — Nós
éramos iguais — ele disse, e então se corrigiu: — Na verdade, eu
pensei que nós éramos iguais.
Lembrei de Grayson dizendo que Jameson buscava sensações.
Medo. Dor. Alegria. Quais dessas Emily tinha sido para ele?
— O que aconteceu com ela? — perguntei. A busca na internet
não tinha dado respostas. Thea tinha dado a entender que os
Hawthorne eram de alguma forma culpados, que Emily tinha morrido
porque passava muito tempo na Casa Hawthorne. — Ela morava no
Chalé?
Jameson ignorou minha segunda pergunta e respondeu a
primeira.
— Grayson aconteceu com ela.
Eu sabia, desde o momento em que eu havia mencionado Emily
na frente de Grayson, que ela era importante para ele. Mas
Jameson parecia deixar claro o fato de que era ele quem estava
envolvido com ela. Não tem nada que Emily e eu não fizemos.
— O que você quer dizer com Grayson “aconteceu” com ela? —
Olhei para trás, mas não conseguia mais ver Oren.
— Vamos jogar um jogo — Jameson disse, sombrio, seu passo
acelerando um pouco quando chegamos a uma colina. — Eu vou te
contar uma verdade e duas mentiras sobre a minha vida e você
deve acertar qual é qual.
— Não deveriam ser duas verdades e uma mentira? — perguntei.
Talvez eu não tivesse ido a muitas festas na vida, mas eu também
não tinha crescido numa caverna.
— Qual é a graça — Jameson devolveu — de jogar com as regras
dos outros? — Ele me olhava como se esperasse que eu
entendesse isso.
Que eu o entendesse.
— Primeiro fato — ele começou a falar. — Eu sabia o que estava
no testamento do meu avô muito antes de você aparecer aqui.
Segundo fato: fui eu que mandei Grayson ir te buscar.
Nós chegamos ao topo da colina, e eu pude ver uma construção
ao longe. Um chalé e, entre nós e ele, uma ponte.
— Terceiro fato — Jameson disse, imóvel como uma estátua por
um segundo. — Eu vi Emily Laughlin morrer.
CAPÍTULO 47

Não joguei o jogo de Jameson. Eu não adivinhei qual das coisas


que ele tinha acabado de dizer era verdade, mas era impossível não
notar a forma como sua garganta tinha se apertado quando ele
disse essas últimas palavras.
Eu vi Emily Laughlin morrer.
Isso não esclarecia o que havia acontecido com ela. Não
explicava por que ele disse que Grayson havia acontecido com ela.
— Vamos voltar nossa atenção para a ponte, Herdeira? —
Jameson não pediu para eu adivinhar qual dos fatos era verdade.
Eu não tinha certeza de que ele realmente queria que eu o fizesse.
Tentei prestar atenção no cenário que estava na nossa frente. Era
pitoresco. Havia menos árvores bloqueando o luar. Era possível ver
a forma como a ponte se arqueava sobre o riacho, mas não a água
embaixo dela. A ponte era de madeira, com um corrimão e
balaustrada que pareciam ter sido trabalhosamente feitos à mão.
— Foi seu avô que construiu a ponte?
Eu nunca tinha encontrado Tobias Hawthorne, mas eu estava
começando a sentir que o conhecia. Ele estava em toda parte – no
quebra-cabeça, na Casa, nos meninos.
— Eu não sei se ele a construiu. — Jameson me deu um sorriso
de Gato da Alice, seus dentes brilhando sob o luar. — Mas, se nós
estivermos certos em relação a tudo isso, ele com certeza construiu
algo nela.
Jameson era excelente em fingir – fingir que eu nunca tinha
perguntado sobre Emily, fingir que ele não tinha acabado de me
dizer que a viu morrer.
Fingir que o que acontecia depois da meia-noite permanecia no
escuro.
Ele andou pela ponte. Atrás dele, eu fiz o mesmo. Era velha e
rangia um pouco, mas era sólida como uma rocha. Quando
Jameson chegou ao fim, ele voltou, seus braços esticados para os
lados, a ponta dos dedos correndo levemente pelo corrimão.
— Alguma ideia do que estamos procurando? — perguntei a ele.
— Eu vou saber quando encontrar.
Ele poderia ter dito quando eu encontrar, eu te aviso. Ele disse
que ele e Emily eram iguais, e eu não conseguia afastar a sensação
de que ele não esperaria que ela fosse só uma observadora
passiva. Ele não a teria tratado como só mais uma parte do jogo,
apresentada no início para ser útil no fim.
Eu sou uma pessoa. Eu sou capaz. Eu estou aqui. Eu estou
jogando. Peguei meu celular no bolso do casaco e liguei a lanterna.
Voltei para a ponte e joguei a luz sobre o corrimão, procurando
reentrâncias ou entalhes, alguma coisa assim. Meus olhos seguiram
os pregos na madeira, contando-os, medindo mentalmente a
distância entre cada um deles.
Quando eu terminei com o corrimão, eu me agachei e inspecionei
cada balaústre. Do outro lado, Jameson fez o mesmo. Quase
parecia que estávamos dançando, um estranho dueto à meia-noite.
Eu estou aqui.
— Eu vou saber quando encontrar — Jameson disse de novo,
com um tom entre um mantra e uma promessa.
— Ou eu que vou — corrigi.
Jameson ergueu os olhos para me olhar.
— Às vezes, Herdeira — ele disse —, você só precisa de um novo
ponto de vista.
Ele saltou e, de repente, estava em cima do corrimão. Eu não
conseguia ver a água embaixo, mas eu podia ouvi-la. Fora isso, o ar
da noite estava silencioso, até que Jameson começou a andar.
Era como observá-lo se equilibrando na varanda de novo.
A ponte não é tão alta. A água provavelmente não é muito funda.
Eu virei a lanterna na direção dele e me ergui de minha posição
agachada. A ponte rangeu embaixo de mim.
— A gente precisa olhar embaixo — Jameson disse. Ele se
segurou na parte externa da balaustrada, se equilibrando na beira
da ponte. — Agarre as minhas pernas — ele me disse, mas, antes
que eu conseguisse decidir por onde pegá-las ou entender o que ele
estava planejando fazer, ele mudou de ideia. — Não. Eu sou grande
demais. Você não vai conseguir me segurar. — Em um lampejo, ele
já estava do meu lado. — Eu vou ter que segurar você.

Teve muitas primeiras coisas que eu não consegui fazer depois que
minha mãe morreu. Primeiros encontros. Primeiros beijos. Primeiras
vezes. Mas essa primeira coisa em particular – ser pendurada para
fora de uma ponte por um garoto que tinha acabado de confessar
que tinha visto sua última namorada morrer – não estava
exatamente na minha lista.
Se ela estava com você, por que você disse que Grayson
“aconteceu” com ela?
— Não deixe seu celular cair — Jameson me disse. — E eu não
vou deixar você cair.
As mãos dele estavam firmes nos meus quadris. Eu estava de
cabeça para baixo, minhas pernas entre os balaústres, meu torso
pendurado para fora da ponte. Se ele soltasse, eu teria problemas.
O Jogo do Pendurado, eu quase conseguia ouvir minha mãe
falando.
Jameson ajustou seu peso, servindo como âncora para o meu. O
joelho dele está tocando o meu. As mãos dele estão em mim. Eu me
sentia mais consciente do meu próprio corpo, da minha própria pele,
do que em qualquer momento que eu conseguisse lembrar.
Não sinta. Só olhe. Eu iluminei a parte de baixo da ponte.
Jameson não soltou.
— Vê alguma coisa?
— Sombras — respondi. — Algumas algas. — Fiz um giro,
arqueando minhas costas de leve. O sangue estava indo todo para
minha cabeça. — As tábuas de baixo não são as mesmas que as de
cima — eu notei. — São pelo menos duas camadas de madeira. —
Contei as tábuas. Vinte e uma. Precisei de mais alguns segundos
para examinar a forma como as tábuas se juntavam na margem. —
Tem nada aqui, Jameson. Me puxa de volta.

***
Havia vinte e uma tábuas embaixo da ponte e, com base na conta
que eu tinha acabado de fazer, vinte e uma na superfície. Tudo
somava perfeitamente. Nada estava errado.
Jameson estava andando de um lado para o outro, mas eu
pensava melhor ficando parada. Ou eu pensaria melhor ficando
parada se eu não estivesse observando Jameson andar de um lado
para o outro. Ele tinha uma forma de se mover, uma energia
inexprimível, uma graça extraordinária.
— Está ficando tarde — eu disse, desviando o olhar.
— Era tarde desde o início — Jameson me disse. — Se você
fosse virar uma abóbora, já teria acontecido, Cinderela.
Mais um dia, mais um apelido. Eu não queria procurar entender
aquilo – eu não saberia nem por onde começar.
— Temos aula amanhã — argumentei.
— Talvez tenhamos. — Jameson foi até o fim da ponte, se virou e
voltou. — Talvez não. Você pode seguir as regras, ou pode fazê-las.
Eu sei o que prefiro, Herdeira.
E o que Emily preferia? Eu não conseguia deixar de pensar nisso.
Tentei focar o momento, o enigma que tínhamos. A ponte rangeu.
Jameson continuou andando. Limpei a mente. A ponte rangeu mais
uma vez.
— Espere! — Eu inclinei a cabeça para o lado. — Pare. —
Surpreendentemente, Jameson fez o que eu mandei. — Volte.
Devagar. — Eu esperei, apurando os meus ouvidos, e então ouvi o
rangido de novo.
— É a mesma tábua — Jameson concluiu no mesmo momento
que eu. — Toda vez. — Ele se abaixou para ver melhor. Eu me
ajoelhei também. A tábua não parecia diferente das outras. Eu
passei meus dedos por ela, tentando sentir algo, sem saber o que
procurava.
Ao meu lado, Jameson estava fazendo a mesma coisa. Sua mão
esbarrou na minha. Tentei não sentir nada e esperei que ele tirasse
a mão, mas, em vez disso, seus dedos deslizaram entre os meus,
entrelaçando nossas mãos em cima da tábua.
Ele pressionou.
Eu fiz o mesmo.
A tábua rangeu. Eu me inclinei na direção da tábua e Jameson
começou a girar nossas mãos, lentamente, de um lado da tábua
para o outro.
— Está mexendo. — Meus olhos se ergueram na direção dele. —
Bem pouco.
— Um pouco não é suficiente. — Ele afastou sua mão da minha
lentamente, seus dedos quentes e leves como uma pluma. —
Estamos procurando uma trava, algo que esteja impedindo a tábua
de girar por completo.
Por fim, encontramos pequenos nós na madeira onde a tábua se
conectava aos balaústres. Jameson pegou o da esquerda. Eu
peguei o da direta. Nos movendo ao mesmo tempo, apertamos.
Ouvimos um estalo. Quando voltamos ao meio e pressionamos a
tábua outra vez, e ela se moveu mais facilmente. Juntos, nós a
rodamos até que o fundo da tábua estivesse virado para cima.
Iluminei a madeira com a lanterna do celular. Jameson fez o
mesmo com o celular dele. Entalhado na superfície da madeira
havia um símbolo.
— Infinito — Jameson disse, passando o polegar pelo entalhe.
Eu inclinei a cabeça para o lado e adotei uma visão mais
pragmática.
— Ou um oito.
CAPÍTULO 48

A manhã chegou rápido demais. Não sei como me arrastei para


fora da cama e me vesti. Fiquei tentada a pular a parte do cabelo e
da maquiagem, mas me lembrei do que Xander tinha falado sobre
contar a minha história para que ninguém a contasse por mim.
Depois do que eu tinha aprontado com os jornalistas no dia
anterior, eu não podia me dar ao luxo de mostrar fraqueza.
Quando eu terminei de colocar o que eu mentalmente chamava
de minha pintura de guerra, ouvi uma batida à porta. Era a
empregada que Alisa tinha identificado como “uma das de Nash”
com uma bandeja com o café da manhã. A sra. Laughlin não havia
mandado uma bandeja dessas desde minha primeira manhã na
Casa Hawthorne.
Fiquei imaginando o que eu tinha feito para merecer essa.
— Toda terça-feira nossa equipe faxina a casa de cima a baixo —
ela informou depois de apoiar a bandeja. — Se você não se
importar, vou começar com seu banheiro.
— Sem problema, só vou pendurar minha toalha — eu disse e ela
me olhou como se eu tivesse anunciado minha intenção de fazer
yoga pelada bem na frente dela.
— Você pode deixar sua toalha no chão. Nós vamos lavá-la de
qualquer forma.
Isso parecia errado.
— Meu nome é Avery — eu me apresentei, embora ela
provavelmente já soubesse meu nome. — Qual é o seu nome?
— Mellie — ela não disse nada mais que isso.
— Obrigada, Mellie. — Ela me encarou, sem expressão. — Por
sua ajuda. — Eu pensei no fato de Tobias Hawthorne manter
estranhos fora da Casa Hawthorne o máximo possível. Mas, ainda
assim, havia toda uma equipe de limpeza às terças-feiras. Isso não
deveria ser uma surpresa para mim. Deveria ser mais
surpreendente que a equipe não faxinasse todo dia. E, ainda
assim…
Cruzei o corredor até o quarto de Libby porque eu sabia que ela
entenderia exatamente quão surreal e desconfortável era tudo isso.
Eu bati de leve, caso ela ainda estivesse dormindo, e a porta abriu
um pouco, só o suficiente para que eu notasse a poltrona e o pufe –
e o homem que estava ali.
As pernas compridas de Nash Hawthorne estavam esticadas
sobre o pufe, ainda calçando as botas. Um chapéu de caubói cobria
seu rosto. Ele estava dormindo.
No quarto da minha irmã.
Nash Hawthorne estava dormindo no quarto da minha irmã.
Eu fiz um som involuntário e dei um passo para trás. Nash se
mexeu e então me viu. Com o chapéu na mão, ele deslizou para
fora da poltrona e me encontrou no corredor.
— O que você está fazendo no quarto de Libby? — perguntei a
ele. Ele não estava na cama dela, mas ainda assim. Por que o
Hawthorne mais velho estava vigiando minha irmã?
— Ela está passando por um momento difícil — Nash disse, como
se isso fosse novidade para mim. Como se eu não tivesse lidado
com Drake no dia anterior.
— Libby não é um dos seus projetos — eu disse a ele. Eu não
tinha ideia de quanto tempo eles tinham passado juntos nos últimos
dias. Na cozinha ela pareceu achá-lo irritante. Libby não fica irritada.
Ela é um raio de sol gótico.
— Meus projetos? — Nash repetiu, apertando os olhos. — O que
exatamente Li-Li te disse?
Continuar usando um apelido para falar da minha advogada só
me lembrava que eles tinham sido noivos. Ele é o ex de Alisa. Ele
“salvou” Deus sabe quantas pessoas da equipe da Casa. E ele
passou a noite no quarto da minha irmã.
Isso não tinha como acabar bem. Mas, antes que eu pudesse
falar qualquer coisa, Mellie saiu do meu quarto. Ela não podia ter
terminado o banheiro tão rápido, então ela devia estar escutando.
Escutando Nash.
— Bom dia — ele disse a ela.
— Bom dia — ela respondeu com um sorriso. Depois ela olhou
para mim, olhou para o quarto de Libby, olhou para a porta aberta, e
parou de sorrir.
CAPÍTULO 49

Oren me encontrou no carro com um copo de café. Ele não disse


uma palavra sobre minha pequena aventura com Jameson na noite
anterior e eu não perguntei quanto ele tinha observado. Quando a
porta do carro se abriu, Oren se inclinou na minha direção.
— Não diga que eu não te avisei.
Eu não tinha ideia do que ele estava falando até que eu percebi
que Alisa estava sentada no banco da frente.
— Você parece cansada — ela comentou.
Eu entendi cansada como moderadamente menos impulsiva e,
portanto, menos propícia a causar um escândalo nos tabloides.
Fiquei pensando como ela teria descrito a cena que eu tinha visto no
quarto de Libby.
Isso não é nada bom.
— Espero que você não tenha planos para este fim de semana,
Avery — Alisa disse quando Oren deu a partida no carro. — Ou para
o próximo. — Nem Jameson nem Xander tinham se juntado a nós, o
que queria dizer que eu não teria nenhum alívio e claramente Alisa
estava de fato puta da vida comigo.
Minha advogada não pode me colocar de castigo, pode?
— Eu achei que ia conseguir manter você longe dos holofotes por
mais tempo — Alisa disse enfaticamente —, mas, já que esse plano
foi por água abaixo, você vai a uma festa para arrecadar fundos
para o câncer de mama neste sábado à noite e a um jogo no
próximo domingo.
— Um jogo? — repeti.
— NFL — ela disse, simplesmente. — Você é a dona do time.
Minha esperança é que sua presença em alguns eventos sociais
importantes dê assunto suficiente para a indústria da fofoca e assim
adie sua primeira entrevista até que você receba algum treinamento.
Eu ainda estava tentando absorver a notícia da NFL quando as
palavras treinamento colocaram um nó de nervoso na minha
garganta.
— Eu preciso…
— Sim — Alisa me disse. — Sim para a festa neste fim de
semana, sim para o jogo no próximo, e sim para o treinamento.
Parei de reclamar e não disse mais nenhuma palavra. Eu tinha
posto lenha na fogueira – e protegido Libby – sabendo que mais
cedo ou mais tarde eu ia me queimar.

Recebi tantos olhares quando cheguei à escola que me peguei


pensando se eu tinha sonhado que estive nos últimos dois dias na
Heights Country Day. Era isso que eu esperava desde o primeiro
dia. E, mais uma vez, Thea foi a primeira a fazer um movimento na
minha direção.
— Que coisa você fez — ela disse, em um tom que sugeria que o
que eu tinha feito era ao mesmo tempo errado e delicioso.
Inexplicavelmente, pensei em Jameson, no momento na ponte em
que os dedos dele tinham se entrelaçado nos meus.
— Você realmente sabe por que Tobias Hawthorne te deixou
tudo? — Thea perguntou, seus olhos acesos. — A escola toda está
falando disso.
— A escola toda pode falar sobre o que quiser.
— Você não gosta muito de mim — Thea notou. — Tudo bem, eu
sou uma perfeccionista bissexual hipercompetitiva que gosta de
ganhar e tem essa aparência. Não é novidade pra mim ser odiada.
Eu revirei os olhos.
— Eu não te odeio. — Eu ainda não a conhecia bem o suficiente
para odiá-la.
— Isso é bom — Thea respondeu com um sorriso satisfeito —,
porque vamos passar muito mais tempo juntas. Meus pais vão
viajar. Eles parecem acreditar que, se eu ficar sozinha, vou fazer
alguma besteira, então vou ficar com meu tio e, pelo que entendi,
Zara e ele estão morando na Casa Hawthorne. Eu acho que eles
ainda não estão prontos pra ceder a casa da família pra uma
estranha.
Zara vinha sendo gentil – ou pelo menos mais gentil. Mas eu não
fazia ideia de que ela tinha se mudado. Enfim, a Casa Hawthorne
era tão gigantesca que todo um time de beisebol poderia morar ali e
eu não faria ideia.
Até onde sabia, eu podia ser dona de um time de beisebol.
— Por que você ia querer ficar na Casa Hawthorne? — perguntei
a Thea. Ela que tinha me alertado contra o lugar.
— Ao contrário do que se acredita, eu nem sempre faço o que
quero. — Thea jogou seu cabelo escuro por cima do ombro. — Além
disso, Emily era minha melhor amiga. Depois de tudo que aconteceu
ano passado, quando se trata dos encantos dos irmãos Hawthorne,
eu sou imune.
CAPÍTULO 50

Quando eu finalmente consegui falar com Max, ela não estava


muito disposta a conversar. Algo estava errado com ela, mas não
conseguia perceber o quê. Ela não soltou nenhum palavrão falso
quando mencionei Thea se mudando para a casa e cortou nossa
conversa sem um único comentário sobre a aparência dos irmãos
Hawthorne. Eu perguntei se estava tudo bem. Ela disse que
precisava ir.
Xander, por outro lado, estava mais do que disposto a conversar
sobre o acontecimento Thea.
— Se Thea está aqui — ele me disse naquela tarde, baixando a
voz como se as paredes da Casa Hawthorne tivessem ouvidos —,
ela está armando algo.
— Quando você diz ela, quer dizer Thea? — perguntei, com
firmeza. — Ou sua tia?
Zara tinha me jogado para Grayson na Fundação e agora estava
colocando Thea na Casa. Eu reconhecia quando alguém estava
montando o tabuleiro, mesmo que eu não conseguisse ver a jogada
por baixo.
— Você está certa — Xander disse. — Eu duvido muito que Thea
tenha se voluntariado a passar um tempo com a nossa família. É
possível que ela tenha um desejo ardente de que abutres comam
minhas entranhas.
— Você? — perguntei. As questões de Thea com os irmãos
Hawthorne pareciam girar em torno de Emily, e isso queria dizer, eu
havia presumido, em torno de Jameson e Grayson. — O que você
fez?
— É uma história — Xander disse com um suspiro — que envolve
amores trágicos, namoro falso, tragédia, penúria… e possivelmente
abutres.
Lembrei de quando perguntei a Xander sobre Rebecca Laughlin.
Ele não falou nada que indicasse que ela era irmã de Emily e
murmurou quase exatamente o que havia acabado de dizer sobre
Thea.
Xander não me deixou ruminar por muito tempo. Em vez disso,
ele me arrastou para o que declarou ser sua quarta sala favorita na
Casa.
— Se você vai bater de frente com Thea — ele disse —, precisa
estar preparada.
— Eu não vou bater de frente com ninguém — eu disse com
firmeza.
— É adorável que você acredite nisso. — Xander parou onde um
corredor encontrava outro. Ele se esticou em todo o seu um metro e
oitenta de altura para tocar uma moldura boiserie na parede. Ele
deve ter acionado algum tipo de trava porque então puxou a
moldura na nossa direção e revelou um espaço atrás dela. Depois
enfiou sua mão no espaço e, um momento depois, uma porção da
parede se virou na nossa direção como uma porta.
Eu nunca ia me acostumar com isso.
— Bem-vinda à… minha toca! — Xander parecia estar pulando de
alegria por dizer essas palavras.
Eu entrei na sua “toca” e vi… uma máquina? Geringonça talvez
fosse um termo mais apropriado. Havia dezenas de engrenagens,
polias e correntes, uma série complicada de rampas interligadas,
vários baldes, duas esteiras, um estilingue, uma gaiola de pássaro,
quatro cata-ventos e pelo menos quatro balões.
— Aquilo é uma bigorna? — perguntei, franzindo a testa e me
inclinando para a frente para ver melhor.
— Aquilo — Xander disse, orgulhoso — é uma máquina de Rube
Goldberg. Acontece que eu sou três vezes campeão mundial de
construir máquinas que realizam coisas simples de formas
excessivamente complicadas. — Ele me deu uma bolinha de gude.
— Coloque isso no cata-vento.
Foi o que eu fiz. O cata-vento girou, enchendo um balão que
empurrou um balde…
Eu observei cada mecanismo disparar o próximo, então olhei para
o caçula dos Hawthorne com o canto do olho.
— O que isso tem a ver com a mudança de Thea?
Ele me disse que eu precisava estar preparada e depois me
trouxe até aqui. Aquilo era algum tipo de metáfora? Um aviso de que
as ações de Zara poderiam parecer complicadas, mesmo quando o
objetivo era simples? Uma explicação para a função de Thea?
Xander me deu um olhar enviesado, e então sorriu.
— Quem disse que isso tem alguma coisa a ver com Thea?
CAPÍTULO 51

Naquela noite, em homenagem à visita de Thea, a sra. Laughlin


preparou um jantar especial: um rosbife que derretia na boca,
acompanhado de um purê de batata com alho orgástico, aspargos
assados e brócolis. Para completar, três tipos diferentes de crème
brûlée.
Eu não conseguia deixar de achar bem revelador que a sra.
Laughlin tivesse feito tudo isso para Thea, mas não para mim.
Tentando não parecer mesquinha, eu me sentei para um jantar
formal na “sala de jantar”, que provavelmente deveria ser chamada
de “sala de banquete”. A mesa enorme estava posta para onze
pessoas. Eu cataloguei os participantes desse pequeno jantar de
família: quatro irmãos Hawthorne. Skye. Zara e Constantine. Thea.
Libby. Nan. E eu.
— Thea — Zara disse, sua voz agradável até demais —, como vai
o hóquei sobre grama?
— Estamos invictas nessa temporada — Thea respondeu e se
virou na minha direção. — Você já decidiu qual esporte vai praticar,
Avery?
Eu consegui resistir à vontade de desdenhar, mas por pouco.
— Eu não pratico esportes.
— Todo mundo na Country Day pratica um esporte — Xander
informou, antes de encher a boca de rosbife e revirar os olhos de
prazer enquanto mastigava. — É uma exigência real e verdadeira,
não uma invenção da mente deliciosamente vingativa de Thea.
— Xander — Nash disse em tom de advertência.
— Eu disse deliciosamente vingativa — Xander respondeu, se
fazendo de inocente.
— Se eu fosse um menino — Thea disse a ele com um sorriso
malicioso —, as pessoas me chamariam de ambiciosa.
— Thea. — Constantine reprovou, franzindo a testa.
— Certo. — Thea limpou os lábios com o guardanapo. — Nada de
feminismo na mesa de jantar.
Dessa vez eu não consegui engolir a risada irônica. Ponto para
Thea.
— Um brinde — Skye declarou do nada, erguendo sua taça de
vinho e enrolando as palavras o suficiente para ficar claro que ela já
estava bebendo antes.
— Skye, querida — Nan disse com firmeza —, você já considerou
ir se deitar?
— Um brinde — Skye repetiu, taça ainda erguida. — A Avery.
Pela primeira vez, ela tinha acertado meu nome. Eu esperei a
guilhotina cair, mas Skye não disse mais nada. Zara ergueu sua
taça. Uma a uma, todas as outras taças se ergueram.
Todas as pessoas dessa sala provavelmente tinham entendido a
mensagem. Nada de bom sairia de questionar o testamento. Eu
podia ser a inimiga, mas eu era também a pessoa com o dinheiro.
É por isso que Zara trouxe Thea para cá? Para se aproximar de
mim? É por isso que ela me deixou sozinha com Grayson na
Fundação?
— Um brinde a você, Herdeira — Jameson murmurou à minha
esquerda. Eu me virei para olhá-lo. Não o via desde a noite anterior.
Eu tinha uma boa certeza de que ele havia faltado à aula. Eu me
perguntei se ele tinha passado o dia na floresta, procurando a
próxima pista. Sem mim.
— A Emily — Thea acrescentou subitamente, sua taça ainda
erguida, seus olhos em Jameson. — Que ela descanse em paz.
A taça de Jameson caiu. Sua cadeira foi empurrada para trás com
força. Ao lado, os dedos de Grayson se apertaram em volta da
haste da sua taça, e os nós enbranqueceram.
— Theodora — Constantine sussurrou.
Thea deu um gole e adotou a expressão mais inocente do mundo.
— O quê?

Tudo em mim queria seguir Jameson, mas eu esperei alguns


minutos antes de pedir licença. Como se isso fosse impedir algum
deles de saber exatamente o que eu estava indo fazer.
No hall, eu apertei minha mão contra os painéis da parede, na
sequência que deveria revelar a porta do armário de casacos. Eu
precisava do meu casaco se ia me aventurar pela floresta Black
Wood. Eu tinha certeza de que Jameson tinha ido para lá.
Quando já estava pegando o cabide, uma voz falou atrás de mim.
— Eu não vou perguntar o que Jameson está aprontando. Nem o
que você está aprontando.
Eu me virei para Grayson.
— Você não vai me perguntar — repeti, observando a posição do
seu queixo e aqueles olhos cinzentos cheios de sagacidade —
porque já sabe.
— Eu estava lá na noite passada. Na ponte. — Havia arestas no
tom de Grayson, e elas não eram ásperas, mas afiadas. — Hoje de
manhã, eu fui ver o Testamento Vermelho.
— Eu ainda estou com o filtro — avisei, tentando não pensar no
fato de que ele tinha visto seu irmão e eu na ponte e não parecia
feliz com isso.
Grayson deu de ombros, seus braços marcando as linhas do
terno.
— Acetato vermelho é algo fácil de arranjar.
Se ele tinha visto o Testamento Vermelho, ele sabia que os nomes
do meio deles eram pistas. Eu me perguntei se ele tinha pensado
imediatamente nos pais. Eu me perguntei se isso o feria, como feria
Jameson.
— Você estava lá noite passada — falei, repetindo o que ele me
disse. — Na ponte.
Quanto ele tinha visto? O quanto ele sabia?
O que ele pensou quando Jameson e eu nos tocamos?
— Westbrook. Davenport. Winchester. Blackwood. — Grayson
deu um passo na minha direção. — São sobrenomes, mas também
são lugares. Eu achei a pista na ponte depois que você e meu irmão
foram embora.
Ele tinha nos seguido até ela. Ele encontrou o que nós
encontramos.
— O que você quer, Grayson?
— Se você for esperta — ele me avisou suavemente —, deve
ficar longe de Jameson. Longe do jogo. — Ele baixou os olhos. —
Longe de mim. — Houve um lampejo de emoção em seu rosto, mas
ele o escondeu antes que eu conseguisse saber exatamente o que
ele estava sentindo. — Thea está certa — ele disse com dureza, se
virando de costas para mim, se afastando de mim. — Nossa família,
nós destruímos tudo que tocamos.
CAPÍTULO 52

Pelo mapa, eu sabia mais ou menos onde ficava a floresta Black


Wood. Eu encontrei Jameson nos arredores, assustadoramente
quieto, como se ele não conseguisse se mover. Sem aviso, ele
quebrou a imobilidade e deu um soco furioso em uma árvore
próxima, rápido e forte, a casca ferindo sua mão.
Thea mencionou Emily. É isso que a menção ao nome dela faz
com ele.
— Jameson!
Eu já estava chegando bem perto dele. Ele se virou e olhou na
minha direção e eu parei, tomada pela sensação de que eu não
deveria estar ali, que eu não tinha o direito de ver nenhum dos
meninos Hawthorne sofrendo desse jeito.
A única coisa que eu consegui pensar em fazer foi tentar reduzir a
importância do que eu tinha acabado de ver.
— Quebrou algum dedo ultimamente? — perguntei,
despreocupada. O Jogo de Fingir Que Não Me Importo.
Jameson estava pronto e disposto a jogar. Ele ergueu a mão,
resmungando ao dobrá-la.
— Ainda estão inteiros.
Parei de encará-lo e observei o entorno. A área era tão
densamente arborizada que, se as árvores já não tivessem perdido
as folhas, nenhuma luz chegaria até o chão da floresta.
— O que você está procurando? — perguntei.
Talvez ele não me considerasse uma parceira de verdade na
caçada. Talvez não houvesse mesmo um nós, mas ele respondeu:
— Seu faro é tão bom quanto o meu, Herdeira.
Em volta de nós, galhos nus se esticavam para o alto,
esqueléticos e retorcidos.
— Você faltou à aula hoje pra fazer alguma coisa. Você tem um
palpite.
Jameson sorriu como se não conseguisse sentir o sangue se
empoçando nas suas mãos.
— Quatro nomes do meio. Quatro lugares. Quatro pistas,
entalhes, provavelmente. Símbolos, se a pista na ponte era um
infinito; números, se ela era um oito.
Eu me perguntei o que ele tinha feito para arejar a mente entre a
noite passada e sua vinda à floresta. Escalada. Corrida. Salto.
Desaparecer pelas paredes.
— Você sabe quantas árvores cabem em um hectare e meio,
Herdeira? — Jameson perguntou alegremente. — Duzentas, em
uma floresta saudável.
— E em Black Wood? — perguntei, dando um passo na direção
dele, e depois mais um.
— Pelo menos o dobro disso.
Era como o enigma da biblioteca. Ou o das chaves. Tinha que
haver um atalho, um truque que não estávamos vendo.
— Aqui. — Jameson se abaixou e colocou um rolo de fita
fluorescente na minha mão, deixando que seus dedos roçassem nos
meus ao fazê-lo. — Eu estou marcando as árvores conforme as
examino.
Tentei me concentrar nas palavras dele, e não no seu toque. Deu
certo, em parte.
— Tem que haver uma forma melhor — eu disse, girando a fita
nas minhas mãos enquanto meus olhos encontravam os dele mais
uma vez.
Os lábios de Jameson se torceram em um sorriso irônico e
descontraído.
— Alguma sugestão, Garota Misteriosa?

Dois dias depois, Jameson e eu ainda estávamos fazendo a coisa


do jeito difícil e não tínhamos encontrado nada. Ele estava cada vez
mais determinado. Jameson Winchester Hawthorne iria em frente
até bater em uma parede. Eu não imaginava o que ele faria para
passar dela dessa vez, mas, de vez em quando, eu o pegava me
olhando de uma forma que me fazia pensar que ele tinha algumas
ideias.
Era assim que ele estava me olhando agora.
— Não somos os únicos procurando a próxima pista — ele disse
quando o crepúsculo começou a dar lugar à noite. — Eu vi Grayson
com um mapa da floresta.
— Thea está me seguindo — eu disse, pegando um pedaço de
fita, totalmente consciente do silêncio à nossa volta. — Eu só
consigo me livrar dela quando ela encontra uma oportunidade de
importunar Xander.
Jameson passou por mim suavemente e marcou a próxima
árvore.
— Thea é rancorosa, e, quando ela e Xander terminaram, foi bem
feio.
— Eles namoraram? — Eu passei por Jameson e examinei a
próxima árvore, passando meus dedos pela casca. — Thea é
praticamente prima de vocês.
— Constantine é o segundo marido de Zara. O casamento é
recente e Xander sempre foi fã de ambiguidades.
Nada, nunca, era simples com os irmãos Hawthorne – e isso
incluía o que Jameson e eu estávamos fazendo agora. Desde que
tínhamos chegado ao centro da floresta, as árvores ficaram mais
distantes. À frente eu conseguia ver um grande espaço aberto, o
único lugar na floresta Black Wood onde a grama conseguiu crescer.
De costas para Jameson, eu segui para uma nova árvore e
comecei a passar a mão pelo tronco. Quase imediatamente, meus
dedos encontraram uma reentrância.
— Jameson. — Ainda não estava completamente escuro, mas a
luz estava fraca demais para que eu conseguisse ver o que tinha
encontrado até Jameson aparecer ao meu lado com uma luz extra.
Eu passei meus dedos lentamente pelas letras entalhadas na
árvore.

TOBIAS HAWTHORNE II

Diferentemente do primeiro símbolo que encontramos, essas


letras não eram uniformes. O entalhe não tinha sido feito com uma
mão firme. O nome parecia ter sido gravado por uma criança.
— Os Is no fim são um número romano — Jameson disse, com a
voz eletrizada. — Tobias Hawthorne Segundo.
Toby. Então ouvi um crack. Um eco ensurdecedor veio em
seguida e o mundo explodiu. Casca de árvore se espalhou para
todos os lados. Meu corpo foi jogado para trás.
— Abaixa! — Jameson gritou.
Não estava ouvindo direito. Meu cérebro não conseguia processar
o que eu estava escutando, nem o que tinha acabado de acontecer.
Estou sangrando.
Dor.
Jameson me agarrou e me puxou para o chão. Quando eu vi, o
corpo dele estava em cima do meu e o som de um segundo tiro
ressoou.
Arma. Alguém está atirando em nós. Eu sentia uma dor lancinante
no peito. Eu levei um tiro.
Ouvi passos cortando a floresta, e então Oren gritou.
— Fiquem no chão! — Com sua arma em punho, meu guarda-
costas se colocou entre nós e o atirador. Uma pequena eternidade
se passou. Oren saiu correndo na direção de onde os tiros tinham
vindo, mas eu sabia, com uma clareza que eu não poderia explicar,
que o atirador tinha sumido.
— Você está bem, Avery? — Oren se abaixou. — Jameson, ela
está bem?
— Ela está sangrando — Jameson disse. Ele tinha se afastado do
meu corpo e estava me olhando de cima.
Meu peito latejava logo embaixo da clavícula, onde eu tinha sido
atingida.
— Seu rosto. — O toque de Jameson era leve na minha pele. No
momento em que os dedos dele tocaram levemente a minha
bochecha, os nervos do meu rosto acordaram. Dor.
— Eles me acertaram duas vezes? — perguntei, atordoada.
— Eles não te acertaram. — Oren foi rápido em afastar Jameson
e passar suas mãos experientes pelo meu corpo, buscando os
danos. — Você foi atingida por lascas de madeira. — Ele cutucou a
ferida embaixo da minha clavícula. — O outro corte é só um
arranhão, mas a lasca foi fundo nesse. Vamos deixá-la aí até
podermos suturar.
Meus ouvidos ressoavam.
— Suturar. — Eu não queria ficar repetindo tudo o que ele estava
dizendo, mas era literalmente a única coisa que minha mente
conseguia fazer.
— Você teve sorte.— Oren se levantou e foi até a árvore que a
bala tinha acertado. — Alguns centímetros para a direita e nós
precisaríamos remover uma bala, e não lascas de madeira. — Meu
guarda-costas explorou um pouco além de onde a árvore tinha sido
atingida, até uma outra árvore atrás de nós. Em um movimento
preciso, ele tirou uma faca do cinto e a enfiou na árvore.
Eu precisei de um momento para notar que ele estava tirando a
bala que ficou cravada.
— Quem quer que tenha atirado já foi embora faz tempo — ele
disse, enrolando a bala no que parecia ser algum tipo de lenço. —
Mas talvez nós possamos rastrear isso.
Isso era a bala. Alguém tinha acabado de tentar atirar em nós. Em
mim. Meu cérebro finalmente estava conseguindo entender. Eles
não tinham mirado em Jameson.
— O que aconteceu aqui? — Pela primeira vez, Jameson não
parecia estar brincando. Parecia que o coração dele estava batendo
tão rápido e com tanta força quanto o meu.
— O que aconteceu — Oren respondeu, olhando ao longe — é
que alguém viu vocês dois aqui, decidiu que eram alvos fáceis e
puxou o gatilho. Duas vezes.
CAPÍTULO 53

Alguém tinha atirado em mim. Eu me sentia… anestesiada, mas


essa não era a palavra certa. Minha boca estava seca. Meu coração
estava batendo rápido demais. Eu sentia dor, mas era como se
estivesse sentindo de longe.
Choque.
— Eu preciso de uma equipe no quadrante nordeste. — Oren
estava ao telefone. Eu tentei prestar atenção no que ele estava
dizendo, mas eu não conseguia me concentrar em nada, nem
mesmo no meu braço. — Temos um atirador. Já fugiu,
provavelmente, mas vamos varrer o bosque por garantia. Tragam
um kit de primeiros socorros.
Assim que desligou, Oren voltou sua atenção para Jameson e eu.
— Venham comigo. Nós vamos ficar onde temos cobertura até a
equipe de apoio chegar. — Ele nos levou de volta para o sul da
floresta, onde as árvores eram mais densas.
A equipe não precisou de muito tempo para chegar. Chegaram
em jipes – dois deles. Dois homens, dois veículos. Assim que
encostaram, Oren passou as coordenadas: onde estávamos quando
atiraram, a direção da qual os tiros vieram e a trajetória das balas.
Os homens não disseram nada em resposta. Apenas puxaram
suas armas. Oren montou no jipe de quatro lugares e esperou que
Jameson e eu fizéssemos o mesmo.
— Você vai voltar para a Casa? — um dos homens perguntou.
Oren encarou seu subordinado.
— Vamos para o Chalé.

Na metade do caminho para o Chalé Wayback, meu cérebro


começou a funcionar de novo. Meu peito doía. Tinham me dado
uma compressa para colocar na ferida, mas Oren ainda não havia
cuidado dela. Sua prioridade era nos levar para um lugar seguro.
Ele está nos levando para o Chalé Wayback. Não para a Casa
Hawthorne. O chalé ficava mais próximo, mas eu não conseguia
afastar a sensação de que o que Oren realmente quis dizer aos
seus homens era que ele não confiava nas pessoas da Casa.
E ele me garantiu, inúmeras vezes, que eu estava segura. Que a
família Hawthorne não era uma ameaça. Que a propriedade inteira,
incluindo a floresta, era murada. E que ninguém podia passar pelo
portão sem passar pela segurança.
Oren não acha que estamos lidando com uma ameaça externa.
Eu engoli em seco e o peso em meu estômago aumentava
conforme eu processava o número limitado de suspeitos. Os
Hawthorne – e os funcionários da Casa.

Voltar para o Chalé Wayback parecia um risco. Eu não tinha


interagido muito com os Laughlin, mas eles nunca tinham me dado a
impressão de estarem felizes com a minha presença. Exatamente
quão leais eles são à família Hawthorne? Eu lembrei de quando
Alisa disse que os empregados de Nash.
Eles matariam por ele também?
A sra. Laughlin estava em casa quando chegamos no Wayback.
Não foi ela, pensei. Ela não teria conseguido voltar a tempo. Teria?
A mulher deu uma olhada em Oren, Jameson e eu, e nos colocou
para dentro. Se uma pessoa sangrando e sendo suturada em sua
mesa da cozinha era uma novidade, ela não demonstrou. Eu não
tinha certeza se a calma com que ela estava lidando com isso era
reconfortante ou suspeita.
— Vou fazer um chá — ela disse. Com o coração aos pulos, eu
me perguntei se era seguro tomar qualquer coisa que ela me desse.
— Tudo bem eu bancar o médico? — Oren perguntou, me
colocando em uma cadeira. — Eu tenho certeza de que Alisa pode
arranjar um cirurgião plástico sofisticado.
Nada disso era bom. Todo mundo estava tão certo de que eu não
seria morta a machadadas que eu tinha baixado a guarda. Esqueci
que pessoas foram assassinadas por muito menos dinheiro do que
eu tinha herdado. Eu tinha deixado cada um dos irmãos Hawthorne
passar pelas minhas defesas.
Não pode ter sido Xander. Eu não conseguia fazer meu corpo se
acalmar, não importava o quanto eu tentasse. Jameson estava
comigo. Nash não quer o dinheiro e Grayson não faria…
Ele não faria.
— Avery? — Oren insistiu com uma nota de preocupação em sua
voz grave.
Eu tentei fazer minha mente parar com esses pensamentos.
Fisicamente, me sentia enjoada. Pare de entrar em pânico. Eu tinha
uma lasca de madeira no meu corpo. Eu preferiria não ter uma lasca
de madeira em mim. Controle-se.
— Faça o que for preciso pra estancar o sangue — eu disse a
Oren. Minha voz só tremeu um pouco.
Tirar a lasca doeu. O antisséptico doeu bem mais. O kit médico
incluía uma dose de anestésico local, mas não havia quantidade de
anestésico suficiente para desviar minha consciência da agulha
quando Oren começou a costurar minha pele.
Foque isso. Deixe que doa. Depois de um momento, eu tirei os
olhos de Oren e segui os movimentos da sra. Laughlin. Antes de me
entregar meu chá, ela o misturou, bem, com uísque.
— Pronto. — Oren apontou com a cabeça para minha xícara. —
Beba o chá.
Ele tinha me levado ao chalé porque confiava nos Laughlin mais
que nos Hawthorne. Ele estava me dizendo que era seguro beber.
Mas ele tinha me dito várias outras coisas.
Alguém atirou em mim. Tentaram me matar. Eu poderia estar
morta. Minhas mãos tremiam. Oren as firmou. Com olhos cheios de
empatia, ele ergueu minha xícara de chá até sua própria boca e deu
um gole.
Está tudo bem. Ele está me mostrando que está tudo bem. Sem
saber se um dia conseguiria sair do estado de alerta, eu me forcei a
beber. O chá estava quente. O uísque era forte.
Ele desceu queimando pela minha garganta.
A sra. Laughlin me deu um olhar quase maternal, e então brigou
com Oren.
— O sr. Laughlin vai querer saber o que aconteceu — ela disse,
como se ela mesma não estivesse curiosa para saber o que tinha
acontecido a ponto de provocar a situação que se passava em sua
cozinha. — E alguém precisa limpar o rosto da pobrezinha. — Ela
me lançou um olhar compassivo e estalou a língua.
Antes, eu era uma estranha. Agora ela estava cuidando de mim
como uma galinha dos ovos. Só precisei de algumas balas.
— Onde está o sr. Laughlin? — Oren perguntou em tom causal,
mas eu ouvi a pergunta, e o que ela implicava. Ele não está aqui.
Ele atira bem? Ele faria…
Como se tivesse sido invocado, o sr. Laughlin entrou pela porta da
frente e a deixou bater atrás de si. Havia lama nas suas botas.
Da floresta?
— Algo aconteceu — a sra. Laughlin contou calmamente para o
marido.
O sr. Laughlin olhou para Oren, Jameson e eu – nessa ordem, a
mesma ordem na qual sua esposa tinha registrado nossa presença
–, e então se serviu de um copo de uísque.
— Protocolos de segurança? — ele perguntou asperamente para
Oren.
Oren assentiu, firme.
— Em todo vigor.
O sr. Laughlin se dirigiu para a esposa.
— Onde está Rebecca? — ele perguntou.
Jameson ergueu os olhos da sua xícara de chá.
— Rebecca está aqui?
— Ela é uma boa menina — o sr. Laughlin resmungou. — Vem
visitar, como deveria fazer.
Então onde ela está?
A sra. Laughlin colocou uma mão no meu ombro.
— Há um banheiro bem ali, querida, se você quiser se limpar —
ela me disse baixinho.
CAPÍTULO 54

A porta que a sra. Laughlin me indicou não levava diretamente ao


banheiro. Ela levava para um quarto com duas camas de solteiro e
pouca coisa além disso. As paredes estavam pintadas de lilás e as
duas colchas eram feitas com retalhos de tecido em tons de lavanda
e violeta.
A porta do banheiro estava ligeiramente aberta.
Caminhei até o banheiro tão dolorosamente consciente do
ambiente que eu sentia que poderia escutar um alfinete caindo a um
quilômetro de distância. Não tem ninguém aqui. Eu estou segura.
Está tudo bem. Eu estou bem.
Dentro do banheiro, eu chequei atrás da cortina do chuveiro. Não
tem ninguém aqui, eu disse mais uma vez. Eu estou bem. Consegui
tirar o celular do bolso e liguei para Max. Eu precisava que ela
atendesse, eu precisava não ficar sozinha com o que tinha
acontecido. A ligação caiu na caixa postal.
Eu liguei sete vezes e ela não atendeu.
Talvez ela não pudesse. Ou talvez ela não quisesse. Esse
pensamento me acertou com tanta força quanto olhar no espelho e
ver meu rosto ensanguentado e sujo. Eu encarei a mim mesma.
Eu ainda estava ouvindo o eco dos tiros.
Pare. Eu preciso me lavar – minhas mãos, meu rosto, as manchas
de sangue no meu peito. Abra a torneira, eu disse a mim mesma
com firmeza. Pegue a toalha. Eu mandei meu corpo se mover.
Mas ele não se mexia.
Então mãos que não eram as minhas passaram na minha frente e
abriram a torneira. Eu poderia ter me assustado. Eu poderia ter
entrado em pânico. Mas, de alguma forma, meu corpo relaxou com
aquela presença.
— Tudo bem, Herdeira — Jameson murmurou. — Eu estou aqui.
Eu não tinha ouvido Jameson entrar. Eu não sei quanto tempo eu
havia ficado ali, paralisada.
Jameson pegou uma toalha de rosto roxo-clara e a colocou sob a
água.
— Eu estou bem — eu insisti, tanto para mim mesma quanto para
ele.
Jameson aproximou a toalha do meu rosto.
— Você mente muito mal.
Ele passou a toalha pela minha bochecha, descendo até o
arranhão. Minha respiração ficou presa na garganta. Ele enxaguou a
toalha e sangue e sujeira mancharam a pia, então voltou a passá-la
na minha pele.
De novo.
E de novo.
Depois de limpar o meu rosto, ele pegou minhas mãos,
envolvendo-as com as mãos dele, e as colocou embaixo da água, e
foi tirando a sujeira dos meus dedos com os dele. Minha pele
respondeu àquele toque. Pela primeira vez, nenhuma parte de mim
me mandou me afastar. Ele estava sendo tão delicado. Não estava
agindo como se isso fosse só um jogo – como se eu fosse só um
enigma.
Ele pegou a toalha novamente e a passou pelo meu pescoço e
pelos meus ombros, pelas minhas clavículas e atrás delas. A água
estava morna. Eu me entreguei àquele toque. Essa é uma péssima
ideia. Eu sabia disso. Eu sempre soube, mas eu me permiti
concentrar no toque de Jameson Hawthorne, na forma como ele
estava cuidando de mim.
— Está tudo bem — eu disse e quase consegui acreditar nisso.
— Melhor que bem.
Eu fechei os olhos. Ele estava comigo na floresta. Eu senti seu
corpo em cima do meu. Me protegendo. Eu precisava disso. Eu
precisava de algo.
Abri os olhos e olhei para ele. Me concentrei nele. Lembrei de
quando estávamos a trezentos quilômetros por hora, da parede de
escalada, do momento em que o vi pela primeira vez na varanda.
Procurar sensações era mesmo tão ruim? Querer sentir alguma
coisa além do que era horrível era realmente tão errado?
Todo mundo está um pouco errado às vezes, Herdeira.
Algo cedeu dentro do mim e eu o empurrei suavemente contra a
parede do banheiro. Eu preciso disso. Seus olhos verdes profundos
encontraram os meus. Ele precisa também.
— Sim? — eu perguntei, com a voz embargada.
— Sim, Herdeira.
Meus lábios encostaram nos dele. Então ele me beijou,
delicadamente no início e depois com nenhuma delicadeza. Talvez
fosse o efeito do choque, mas, quando eu afundei minhas mãos nos
cabelos dele e ele agarrou meu rabo de cavalo e puxou meu rosto
para cima, eu consegui ver mil versões dele na minha cabeça:
Equilibrado no corrimão da varanda. Sem camisa e iluminado pelo
sol no solário. Sorrindo. Desdenhando. Nossas mãos se tocando na
ponte. Seu corpo protegendo o meu na floresta. Passando uma
toalha no meu pescoço.
Beijá-lo era como ter um fogo me queimando por dentro. Ele não
era suave ou doce, como tinha sido enquanto limpava o sangue e a
sujeira. Eu não precisava que ele fosse suave ou doce. Isso era
exatamente o que eu precisava.
Talvez eu pudesse ser o que ele precisava também. Talvez isso
não fosse de fato uma péssima ideia. Talvez as complicações
valessem a pena.
Ele parou de me beijar, e deixou seus lábios a um centímetro dos
meus.
— Eu sempre soube que você era especial.
Eu sentia sua respiração no meu rosto. Eu senti cada uma dessas
palavras. Eu nunca tinha me visto como especial. Eu fui invisível por
tanto tempo. Papel de parede. Mesmo depois de ter me tornado a
maior notícia do mundo, nunca me pareceu que alguém estava
prestando atenção em mim. No meu eu de verdade.
— Estamos tão perto agora — Jameson murmurou. — Eu sei que
estamos. — Havia uma energia na voz dele, como o zumbido de
luzes neon. — Alguém obviamente não queria que a gente visse
aquela árvore.
O quê?
Ele foi me beijar de novo e, com meu coração apertando, eu virei
o rosto para o lado. Eu pensei… eu não sei o que eu pensei. Que,
quando ele me disse que eu era especial, ele não estava falando do
dinheiro… ou do quebra-cabeça.
— Você acha que alguém atirou na gente por causa de uma
árvore? — Eu disse, as palavras grudando na minha garganta. —
Não foi por causa da fortuna que eu herdei e em que sua família
gostaria de pôr as mãos? Não foi por causa dos bilhões de motivos
que qualquer um com o sobrenome Hawthorne tem pra me odiar?
— Não pense nisso — Jameson sussurrou, pegando meu rosto
com as mãos. — Pense no nome de Toby gravado naquela árvore.
O infinito entalhado na ponte. — Seu rosto estava tão perto do meu
que eu ainda conseguia sentir sua respiração. — E se o quebra-
cabeça estiver tentando nos dizer que meu tio não está morto?
Era nisso que ele estava pensando enquanto alguém atirava em
nós? Quando estávamos na cozinha e Oren costurava minha ferida?
Quando me beijou? Porque, se a única coisa na qual ele conseguiu
pensar foi no enigma…
Você não é uma jogadora, menina. Você é a bailarina de vidro...
ou a faca.
— Ouve o que você está dizendo — eu exigi. Meu peito estava
apertado, mais apertado agora do que tinha estado na floresta, no
meio de tudo. Nada na reação de Jameson deveria me surpreender,
então por que estava doendo?
Por que eu estava deixando que doesse?
— Oren acabou de tirar uma lasca de madeira do meu peito — eu
disse, minha voz baixa —, e, se as coisas tivessem sido um pouco
diferentes, ele poderia estar tirando uma bala. — Eu dei a Jameson
um segundo para responder, só um. Nada. — O que acontece com
o dinheiro se eu morrer enquanto o testamento está sendo
autenticado? — Alisa tinha me dito que a família Hawthorne não se
beneficiaria, mas eles sabiam disso? — O que acontece se o
atirador me assustar e eu for embora antes de um ano? — Eles
sabiam que, se eu fosse embora, o dinheiro todo iria para a
caridade? — Nem tudo é um jogo, Jameson.
Eu vi algo brilhar nos olhos dele. Ele os fechou, só por um
instante, então abriu e se inclinou para a frente, seus lábios
dolorosamente perto dos meus.
— Essa é a questão, Herdeira. Se Emily me ensinou alguma
coisa, é que tudo é um jogo. Mesmo isso. Especialmente isso.
CAPÍTULO 55

Jameson saiu e eu não fui atrás dele.


Thea está certa, Grayson sussurrou no fundo da minha mente.
Nossa família, nós destruímos tudo que tocamos. Eu engoli as
lágrimas. Eu tinha levado um tiro, me ferido e sido beijada – mas,
com certeza, eu não tinha sido destruída.
— Eu sou mais forte que tudo isso.
Virei meu rosto para o espelho e me olhei bem nos olhos. Se
fosse para escolher entre ficar assustada, ferida ou puta, eu sabia o
que preferia.
Tentei ligar para Max mais uma vez e depois mandei uma
mensagem. Alguém tentou me matar e eu peguei Jameson
Hawthorne.
Se isso não arrancasse uma resposta, nada mais iria.
Voltei para o quarto. Embora eu tivesse me acalmado um pouco,
eu ainda procurei ameaças e encontrei uma: Rebecca Laughlin,
parada na porta. Seu rosto parecia mais pálido que o normal, seu
cabelo mais vermelho que sangue. Ela parecia em choque.
Será porque ela viu Jameson e eu? Ou porque seus avós
contaram a ela do atentado? Eu não poderia saber. Ela estava
usando botas de trilha pesadas e calça cargo, ambas sujas de lama.
Olhando para ela, tudo que eu conseguia pensar era que, se Emily
tinha sido pelo menos metade tão bonita quanto a irmã, não me
surpreendia que Jameson me olhasse e só pensasse no jogo do
avô.
Tudo é um jogo. Mesmo isso. Especialmente isso.
— Minha avó me mandou ver como você está. — A voz de
Rebecca era baixa e hesitante.
— Eu estou bem — respondi, e quase era verdade. Eu precisava
estar bem.
— Minha avó disse que atiraram em você. — Rebecca ficou na
porta, como se tivesse medo de se aproximar mais.
— Tentaram — eu esclareci.
— Fico feliz — Rebecca disse, e então pareceu constrangida. —
Quero dizer, fico feliz que não acertaram. É bom, certo, terem
atirado, mas não acertado? — Seus olhos se moveram nervosos de
mim para as camas de solteiro, observando as colchas. — Emily te
diria pra simplificar e dizer que atiraram em você. — Rebecca
parecia mais segura de si mesma me dizendo o que Emily teria dito
do que tentando ela mesma pensar em uma resposta apropriada. —
Houve uma bala. Você foi ferida. Emily diria que você tinha o direito
de fazer um certo drama.
Eu tinha o direito de olhar para todo mundo com suspeita. Eu
tinha direito a uma falha de julgamento motivada pela adrenalina. E
talvez eu tivesse o direito, só dessa vez, de insistir para ter
respostas.
— Você e Emily dividiam esse quarto? — perguntei. Isso ficou
óbvio quando eu observei melhor as duas camas. Quando Rebecca
e Emily vinham visitar os avós, elas ficavam aqui. — Roxo era sua
cor favorita quando criança ou a dela?
— Dela — Rebecca disse. Ela deu de ombros de leve. — Ela
costumava me dizer que minha cor favorita também era roxo.
Na foto delas que eu tinha visto, Emily estava olhando direto para
a câmera, bem no meio; Rebecca estava no canto, desviando os
olhos.
— Eu sinto que devia te alertar. — Rebecca não estava nem me
encarando mais. Ela andou até uma das camas.
— Me alertar sobre o quê? — perguntei, e, em algum lugar no
fundo da minha mente, registrei a lama nas botas dela e o fato de
que ela estava na propriedade, mas não com os avós, quando
atiraram em mim.
Só porque ela não parece uma ameaça, não quer dizer que não
seja.
Mas, quando Rebecca começou a falar de novo, não era sobre os
tiros.
— Eu devo dizer que minha irmã era maravilhosa. — Ela agiu
como se isso não fosse uma mudança de assunto, como se Emily
fosse sobre o que ela estava me alertando. — E ela era, quando ela
queria ser. Seu sorriso era contagioso. Sua risada era mais ainda, e,
quando ela dizia que algo era uma boa ideia, as pessoas
acreditavam nela. Ela era boa comigo, na maior parte do tempo. —
Rebecca encontrou meu olhar, de frente. — Mas ela não era tão boa
assim com aqueles meninos.
Meninos – no plural.
— O que ela fez? — perguntei. Eu deveria estar mais focada em
quem atirou em mim, mas parte de mim não conseguia ignorar a
forma como Jameson tinha mencionado Emily um pouco antes de
se afastar de mim.
— Em não gostava de escolher. — Rebecca parecia estar
pesando as palavras com cuidado. — Ela queria tudo mais do que
eu queria qualquer coisa. E na única vez que eu quis algo… — Ela
sacudiu a cabeça e interrompeu a frase. — Meu trabalho era manter
minha irmã feliz. Era algo que meus pais costumavam me dizer
quando éramos pequenas, que Emily estava doente, e eu não,
então eu deveria fazer o que fosse possível pra ela sorrir.
— E os meninos? — perguntei.
— Eles a faziam sorrir.
Eu li as entrelinhas do que Rebecca estava dizendo, do que ela
vinha dizendo. Em não gostava de escolher.
— Ela namorou os dois? — Tentei entender. — Eles sabiam?
— Não de início — Rebecca sussurrou, como se parte dela
achasse que Emily poderia nos ouvir conversando.
— O que aconteceu quando Grayson e Jameson descobriram que
ela estava namorando os dois?
— Você só está perguntando isso porque não conhecia Emily —
Rebecca disse. — Ela não queria escolher e nenhum dos dois
queria perder a namorada. Ela transformou a coisa em uma
competição. Um pequeno jogo.
E então ela morreu.
— Como Emily morreu? — eu perguntei, porque talvez nunca
mais tivesse uma abertura como essa, nem com Rebecca, nem com
os meninos.
Rebecca estava me olhando, mas eu tive a sensação de que ela
não estava me vendo. Que ela estava em outro lugar.
— Grayson me disse que foi o coração dela — ela sussurrou.
Grayson. Eu não conseguia pensar em nada além disso. Foi só
quando Rebecca saiu do quarto que eu percebi que ela não tinha
me falado sobre o que exatamente deveria me alertar.
CAPÍTULO 56

Só depois de mais três horas que Oren e sua equipe me liberaram


para voltar para a Casa Hawthorne. Eu fui em um dos jipes com três
guarda-costas.
Oren foi o único que falou.
— Em parte por causa da extensa rede de câmeras de segurança
da Casa Hawthorne, minha equipe conseguiu rastrear e verificar a
localização e os álibis de todos os membros da família Hawthorne,
além da srta. Thea Calligaris.
Eles têm álibis. Grayson tem um álibi. Eu senti uma onda de
alívio, mas, um momento depois, meu peito se apertou.
— E Constantine? — perguntei. — Tecnicamente, ele não é um
Hawthorne.
— Limpo — Oren respondeu. — Ele pessoalmente não empunhou
aquela arma.
Pessoalmente. Ler as entrelinhas me abalou.
— Mas ele pode ter contratado alguém?
Qualquer um deles pode ter contratado alguém. As palavras de
Grayson, dizendo que sempre haveria pessoas se matando para
fazer favores para sua família, voltaram à minha mente.
— Eu conheço um investigador forense — Oren respondeu. —
Ele trabalha com um hacker igualmente qualificado. Eles vão
investigar as finanças e os registros telefônicos de todo mundo.
Enquanto isso, minha equipe vai focar os funcionários.
Eu engoli em seco. Eu nem tinha conhecido a maior parte dos
funcionários. Eu não sabia exatamente quantos eram, ou quem
poderia ter tido a oportunidade, ou o motivo.
— Todos os funcionários? — perguntei. — Incluindo os Laughlin?
— Eles tinham sido gentis comigo quando eu voltei para a sala,
mas, naquele momento, eu não podia me dar ao luxo de confiar nos
meus instintos ou nos de Oren.
— Limpos — Oren respondeu. — O sr. Laughlin estava na Casa
durante o atentado e as câmeras de segurança confirmam isso. A
sra. Laughlin estava no Chalé.
— E Rebecca? — perguntei. Ela tinha ido embora da propriedade
logo depois de falar comigo.
Eu conseguia ver que Oren queria dizer que Rebecca não era
uma ameaça, mas ele não fez isso.
— Vamos verificar tudo — ele prometeu. — Mas eu sei que as
meninas Laughlin nunca aprenderam a atirar. O sr. Laughlin não
podia nem ter uma arma no Chalé quando elas estavam lá.
— Quem mais estava na propriedade hoje? — perguntei.
— Manutenção da piscina, um técnico de som fazendo algumas
atualizações no teatro, uma massagista e uma pessoa da limpeza.
Eu guardei essa lista na memória, então minha boca ficou seca.
— Quem da limpeza?
— Melissa Vincent.
O nome não me disse nada, mas então lembrei.
— Mellie?
Oren apertou os olhos.
— Você a conhece?
Eu pensei no momento em que ela tinha visto Nash em frente ao
quarto de Libby.
— Algo que eu deveria saber? — Oren perguntou, sem ser
realmente uma pergunta. Eu contei a ele o que Alisa tinha dito sobre
Mellie e Nash, o que eu tinha visto no quarto de Libby, o que Mellie
tinha visto. E então nós chegamos à Casa Hawthorne e eu vi Alisa.
— Ela é a única pessoa que eu liberei — Oren me garantiu. —
Francamente, ela é a única que eu pretendo liberar no futuro
próximo.
Eu provavelmente deveria ter achado isso mais tranquilizador do
que de fato achei.
— Como ela está? — Alisa perguntou a Oren assim que saímos
do jipe.
— Puta da vida — eu respondi, antes que Oren respondesse por
mim. — Dolorida. Um pouco aterrorizada. — Vê-la, e ver Oren ao
lado dela, rompeu a represa e uma torrente de acusações saiu de
mim. — Vocês dois me disseram que eu ficaria bem! Vocês juraram
que eu não estava em perigo. Vocês agiram como se eu estivesse
sendo ridícula quando mencionei assassinato.
— Tecnicamente — minha advogada respondeu —, você
especificou ser assassinada com um machado. E, tecnicamente —
ela seguiu explicando, rangendo os dentes —, é possível que tenha
havido uma negligência, legalmente falando.
— Que tipo de negligência? Você me disse que, se eu morresse,
os Hawthorne não ganhariam um centavo.
— E eu mantenho essa afirmação — Alisa disse enfaticamente.
— Contudo… — Ela claramente achava qualquer admissão de erro
pouco agradável. — Eu também lhe disse que, se você morresse
enquanto o testamento estivesse sendo autenticado, sua herança
passaria para seu espólio. E normalmente é assim.
— Normalmente… — eu repeti. Se eu tinha aprendido uma coisa
na última semana era que não havia nada de normal sobre Tobias
Hawthorne ou seus herdeiros.
— Contudo — Alisa continuou, sua voz tensa —, no estado do
Texas, é possível que o falecido acrescente uma cláusula no
testamento que exige que os herdeiros sobrevivam determinado
intervalo de tempo depois de sua morte para poderem herdar.
Eu li o testamento várias vezes.
— Eu tenho certeza de que me lembraria se houvesse algo no
testamento dizendo quanto tempo eu deveria evitar morrer pra
herdar. A única condição…
— Era que você deveria viver na Casa Hawthorne por um ano —
Alisa completou. — O que, devemos admitir, seria uma condição
difícil de cumprir se você estivesse morta.
Essa foi a negligência dela? O fato de que eu não poderia viver na
Casa Hawthorne se eu não estivesse viva?
— Então, se eu morrer… — Eu engoli em seco, e então lubrifiquei
a garganta. — O dinheiro vai para a caridade?
— Possivelmente. Mas também é possível que seus herdeiros
questionem essa interpretação com base na intenção do sr.
Hawthorne.
— Eu não tenho herdeiros — eu disse. — Eu nem tenho um
testamento.
— Você não precisa de um testamento para ter herdeiros. — Alisa
olhou para Oren. — A irmã dela está limpa?
— Libby? — Eu estava incrédula. Eles tinham conhecido a minha
irmã?
— A irmã está limpa — Oren disse a Alisa. — Ela estava com
Nash no horário do ocorrido.
Se ele tivesse explodido uma bomba, o efeito teria sido o mesmo
de dizer isso.
Por fim, Alisa recuperou a compostura e se virou para mim:
— Legalmente, você não pode assinar um testamento antes de
completar dezoito anos. O mesmo acontece com a burocracia que
tem a ver com a curadoria da Fundação. E essa foi a outra
negligência. Originalmente, eu estava focada apenas no testamento,
mas, se você for incapaz ou não estiver disposta a cumprir seu
papel como curadora, a curadoria passa — ela fez uma pausa
pesada — para os meninos.
Se eu morresse, a Fundação – todo o dinheiro, todo o poder, todo
o potencial – iria para os netos de Tobias Hawthorne. Cem milhões
de dólares por ano para serem doados. Você podia comprar muitos
favores com um dinheiro desses.
— Quem conhece bem os termos da Fundação? — Oren
perguntou, completamente sério.
— Zara e Constantine, certamente — Alisa disse imediatamente.
— Grayson — eu acrescentei, com a voz embargada, minhas
feridas latejando. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que ele
teria exigido ver ele mesmo os papéis da curadoria. Ele não me
machucaria. Eu queria acreditar nisso. Tudo que ele faz é me
alertar.
— Quando você consegue ter documentos que deixem o controle
da Fundação para a irmã de Avery caso ela morra? — Oren
perguntou. Se a questão era o controle da Fundação, isso me
protegeria, mas colocaria Libby em perigo também.
— Alguém vai me perguntar o que eu quero fazer? — perguntei.
— Consigo ter esses documentos amanhã — Alisa disse a Oren,
me ignorando. — Mas Avery legalmente não pode assiná-los até ter
dezoito anos, e, mesmo assim, não está claro se ela estaria
autorizada a tomar esse tipo de decisão antes de assumir o controle
completo da Fundação quando completar vinte e um anos. Até lá…
Eu tinha um alvo na testa.
— O que seria necessário pra evocar a cláusula de segurança no
testamento? — Oren mudou de tática. — Existem circunstâncias
nas quais Avery poderia expulsar os Hawthorne da Casa, correto?
— Nós precisaríamos de evidências — Alisa respondeu. — Algo
que ligue o indivíduo em questão a atos de assédio, intimidação ou
violência, e, mesmo assim, Avery só poderia expulsar o
responsável, não a família inteira.
— E ela não pode morar em outro lugar por enquanto?
— Não.
Oren não gostou disso, mas ele não perdeu tempo com
comentários desnecessários.
— Você não vai a lugar nenhum sem mim — Oren me disse, sua
voz como aço. — Nem na propriedade, nem na Casa. Lugar
nenhum, você entendeu? Eu estava sempre perto. Agora eu vou ser
uma barreira visível.
Ao meu lado, Alisa olhou com desconfiança para Oren.
— O que você sabe que eu não sei?
Depois de uma pausa, o guarda-costas respondeu:
— Minha equipe checou o arsenal. Nada está faltando.
Provavelmente a arma com que atiraram em Avery não era uma
arma dos Hawthorne, mas eu pedi para os meus homens as
filmagens dos últimos dias de qualquer forma.
Eu estava ocupada demais com o fato de a Casa Hawthorne ter
um arsenal para processar o restante da resposta.
— Alguém visitou o arsenal? — Alisa perguntou, sua voz quase
calma demais.
— Duas pessoas. — Oren parecia querer parar ali, pelo meu bem,
mas ele prosseguiu. — Jameson e Grayson. Ambos têm álibis, mas
os dois examinaram rifles.
— A Casa Hawthorne tem um arsenal? — Foi tudo que eu
consegui dizer.
— Estamos no Texas — Oren respondeu. — Toda a família
cresceu atirando, e o sr. Hawthorne era um colecionador.
— Um colecionador de armas — eu esclareci.
Eu nem era fã de armas de fogo antes de quase ter levado um
tiro.
— Se tivesse lido o fichário que deixei com você detalhando suas
posses — Alisa me cortou —, saberia que o sr. Hawthorne tinha a
maior coleção do mundo de armas do século XIX e início do século
XX, rifles Winchester, muitos deles valendo mais de quatrocentos mil
dólares.
A ideia de que alguém pagaria tanto dinheiro por um rifle era
desconcertante, mas eu mal notei o preço porque estava ocupada
demais pensando que havia um motivo para Jameson e Grayson
terem visitado o arsenal e examinado rifles, um motivo que não tinha
nada a ver com atirar em mim.
O nome do meio de Jameson era Winchester.
CAPÍTULO 57

Embora já fosse tarde da noite, eu fiz Oren me levar até o arsenal.


Enquanto eu o seguia por corredores e mais corredores, tudo que
eu conseguia pensar era que uma pessoa poderia se esconder para
sempre naquela casa.
E isso sem contar as passagens secretas.
Por fim, Oren parou em um longo corredor.
— É aqui.
Ele se colocou na frente de um espelho dourado e ornamentado.
Enquanto eu observava, ele passou sua mão pela lateral da
moldura. Eu ouvi um clique, e então o espelho se moveu na direção
do corredor, como uma porta se abrindo, revelando uma porta de
aço.
Oren deu um passo à frente e eu vi uma linha vermelha passar
pelo rosto dele.
— Reconhecimento facial — ele informou. — É só uma medida
adicional de segurança. A melhor forma de impedir que intrusos
abram um cofre é eles nem saberem que ele existe.
Por isso o espelho. Ele empurrou a porta.
— Todo o arsenal é revestido de aço reforçado — ele disse
enquanto entrávamos.
Quando eu ouvi a palavra arsenal, eu imaginei a cena de um
filme, com uma quantidade obscena de cartuchos pretos estilo
Rambo pendurados nas paredes. O que eu vi parecia mais um
Country Club. As paredes ostentavam armários de uma madeira cor
de cereja e uma mesa de entalhe intrincado e tampo de mármore
ocupava o centro da sala.
— Esse é o arsenal?
Havia um tapete no chão. Um tapete caro e felpudo que poderia
estar em uma sala de jantar.
— Não é o que você esperava? — Oren fechou a porta atrás de
nós. Ela fez um clique, e então ele fechou outras três trancas
rapidamente. — Há salas seguras por toda a casa. Essa é uma
delas, e também serve como abrigo contra tornados. Eu vou te
mostrar onde ficam as outras, por precaução.
Por precaução, caso alguém tente me matar. Em vez de pensar
nisso, eu me concentrei no motivo para ter ido até lá.
— Onde estão os Winchester? — perguntei.
— Há pelo menos trinta rifles Winchester na coleção. — Oren
apontou com a cabeça para uma das paredes. — Algum motivo
particular pra querer vê-los?
Um dia antes eu talvez tivesse guardado segredo, mas Jameson
não tinha me contado que ele tinha procurado, e possivelmente
encontrado, a pista que correspondia ao seu próprio nome do meio.
Eu não devia isso a ele.
— Eu estou procurando algo — eu disse a Oren. — Uma
mensagem de Tobias Hawthorne, uma pista. Um entalhe,
provavelmente um número ou símbolo.
O entalhe na árvore em Black Wood não era nenhum dos dois. No
meio do beijo, Jameson parecia convencido de que o nome de Toby
era a próxima pista – mas eu não estava tão certa. A letra não
combinava com o entalhe da ponte. Era irregular e infantil. E se
Toby tivesse gravado isso ele mesmo, quando era criança? E se a
verdadeira pista ainda estivesse no bosque?
Eu não posso voltar lá. Não enquanto não soubermos quem atirou
em mim. Oren podia examinar uma sala e me dizer que era segura.
Ele não podia fazer isso com toda uma floresta.
Ignorando a lembrança dos tiros – e de tudo que veio depois –, eu
abri um dos armários.
— Alguma ideia de onde seu antigo chefe poderia esconder uma
mensagem? — perguntei, focando intensamente as armas. — Em
qual arma? Em que parte dela?
— O sr. Hawthorne raramente me contava sobre suas coisas.
Nem sempre sabia como a mente dele funcionava, mas eu o
respeitava e esse respeito era mútuo. — Oren tirou um pano de uma
gaveta e o abriu sobre o tampo de mármore da mesa. Então ele foi
até o armário que eu tinha aberto e pegou um dos rifles.
— Nenhum deles está carregado — ele disse, sério. — Mas trate-
os como se estivessem. Sempre.
Ele colocou a arma em cima do pano e então passou os dedos
pelo cano de leve.
— Esse era um dos favoritos dele. Ele atirava muito bem.
Eu tive a impressão de que havia uma história por trás desse
comentário – uma que ele provavelmente nunca me contaria.
Oren deu um passo para trás e eu entendi isso como um sinal
para que eu me aproximasse. Tudo em mim queria se afastar do
rifle. As balas que tinham sido disparadas contra mim ainda estavam
frescas na minha memória. Minhas feridas ainda latejavam, mas eu
me forcei a examinar cada parte da arma, procurando por algo,
qualquer coisa, que pudesse ser uma pista. Então olhei para Oren e
perguntei:
— Onde entram as balas?

Eu encontrei o que estava procurando na quarta arma. Para


carregar um rifle Winchester, é preciso puxar uma alavanca no cabo.
Embaixo dessa alavanca, na quarta arma que examinei, havia duas
letras: U. M. A forma como tinham sido gravadas no metal fazia as
letras parecerem iniciais, mas eu as li como um número, para
combinar com o que tínhamos achado na ponte.
Não o infinito. Mas um oito. E agora: um.
Oito. Um.
CAPÍTULO 58

Oren me escoltou de volta para minha ala. Eu pensei em bater à


porta de Libby, mas era tarde, tarde demais, e não é como se eu
pudesse aparecer lá e dizer estão planejando assassinato, durma
bem!
Oren examinou meu quarto e então se posicionou em frente à
minha porta, com as pernas abertas na largura dos ombros e as
mãos ao lado do corpo. Ele precisava dormir em algum momento,
mas, quando a porta se fechou entre nós, eu soube que não seria
naquela noite.
Eu peguei meu celular do bolso e o encarei. Nada de Max. Ela era
noturna e tinha a vantagem de duas horas de fuso. Com certeza ela
não estava dormindo a essa hora. Eu mandei uma DM em todas as
suas redes sociais com a mesma mensagem que já tinha mandado
antes.
Por favor, responda, eu pensei, desesperada. Por favor, Max.
— Nada. — Eu não queria ter falado em voz alta. Tentando não
me sentir completamente sozinha, eu fui para o banheiro, coloquei
meu celular na bancada e tirei a roupa. Nua, eu me olhei no
espelho. Exceto pelo meu rosto e o curativo em cima dos pontos,
minha pele parecia intocada. Tirei o curativo. A ferida era vermelha e
raivosa, os pontos regulares e pequenos. Eu olhei para eles.
Alguém – com quase toda certeza alguém da família Hawthorne –
me queria morta. Eu poderia estar morta neste momento. Eu
visualizei seus rostos, um por um. Jameson estava comigo quando
os tiros foram disparados. Nash disse desde o início que não queria
o dinheiro. Xander não tinha sido nada além de receptivo. Mas
Grayson…
Se você for esperta, deve ficar longe de Jameson. Longe do jogo.
De mim. Ele tinha me avisado. Ele tinha me falado que sua família
destruía tudo que tocava. Quando eu perguntei a Rebecca como
Emily tinha morrido, não foi o nome de Jameson que ela mencionou.
Grayson me disse que foi o coração dela.
Eu liguei o chuveiro o mais quente que podia e entrei, virando
meu peito para longe do jato e deixando que a água quente batesse
nas minhas costas. Doeu, mas tudo que eu queria era tirar essa
noite de mim. O que tinha acontecido na floresta Black Wood. O que
tinha acontecido com Jameson. Tudo isso.
Eu desabei. Chorar no chuveiro não contava.
Depois de um minuto ou dois, eu me controlei e desliguei a água,
bem a tempo de ouvir meu celular tocando. Molhada e pingando, eu
me atirei sobre ele.
— Alô?
— É melhor você não estar mentindo sobre a tentativa de
assassinato. Ou o amasso.
Meu corpo amoleceu de alívio.
— Max.
Ela deve ter notado pelo meu tom que eu não estava mentindo.
— Que torra, Avery? Que baralhos está acontecendo aí?
Eu contei a ela, tudo, cada detalhe, cada momento, tudo que eu
estava tentando não sentir.
— Você precisa sair daí. — Pela primeira vez na vida, Max estava
completamente séria.
— O quê? — Eu estremeci e peguei uma toalha.
— Alguém tentou te matar — Max disse com uma paciência
exagerada —, então você precisa sair da assassinatolândia. Tipo
agora.
— Eu não posso ir embora — eu disse. — Eu preciso morar aqui
por um ano ou perco tudo.
— Então sua vida volta para o que era uma semana atrás. Isso é
tão ruim?
— Sim — eu disse, incrédula. — Eu estava vivendo no meu carro,
Max, sem nenhuma garantia de futuro.
— Palavra-chave: vivendo.
Eu enrolei a toalha em volta de mim.
— Você está dizendo que abriria mão de bilhões?
— Bom, minha outra sugestão envolve matar preventivamente
toda a família Hawthorne, mas eu fiquei com medo de que você
achasse isso um eufemismo.
— Max!
— Ei, não fui eu que peguei Jameson Hawthorne.
Eu queria explicar a ela exatamente como eu tinha deixado isso
acontecer, mas tudo que saiu da minha boca foi:
— Onde você estava?
— Oi?
— Eu te liguei, logo depois que aconteceu, logo antes da coisa
com Jameson. Eu precisava de você, Max.
Houve um silêncio longo e pesado do outro lado da linha.
— Eu estou bem — ela disse. — Tudo aqui está ótimo. Obrigada
por perguntar.
— Perguntar o quê?
— Exatamente. — Max baixou a voz. — Você sequer notou que
eu não estou ligando do meu celular? Estou com o telefone do meu
irmão. Eu estou presa. Totalmente presa, por sua causa.
Da última vez que conversamos, eu sabia que algo não estava
certo.
— O que você quer dizer por minha causa?
— Você realmente quer saber?
Que tipo de pergunta era essa?
— Claro que sim.
— Porque você não perguntou de mim desde que tudo isso
aconteceu. — Ela expirou longamente. — Vamos ser sinceras, Ave,
você mal perguntava de mim antes.
Meu estômago apertou.
— Isso não é verdade.
— Sua mãe morreu e você precisava de mim. E, com toda a coisa
de Libby e aquele esgoto do baralho, você realmente precisava de
mim. Aí você herdou bilhões e bilhões de dólares, então, claro, você
precisava de mim! E eu estava feliz de te apoiar, Avery, mas você
sabe o nome do meu namorado?
Eu revirei minha mente, tentando me lembrar.
— Jared?
— Errado — Max disse depois de um momento. — A resposta
certa é que eu não tenho mais um namorado porque peguei Jaxon
mexendo no meu celular, tentando mandar pra si mesmo prints das
nossas conversas. Um repórter ofereceu dinheiro por eles. — A
pausa dela foi dolorida dessa vez. — Você quer saber quanto?
Meu coração afundou.
— Sinto muito. Max.
— Eu também — Max disse, amarga. — Mas eu lamento
especialmente por ter deixado ele tirar fotos minhas. Fotos íntimas.
Porque, quando eu terminei com ele, ele mandou essas fotos para
os meus pais. — Max era como eu. Ela só chorava no chuveiro. Mas
a voz dela estava tremendo agora. — Eu nem sequer tenho
permissão pra namorar, Avery. O que você acha que aconteceu?
Eu nem conseguia imaginar.
— Do que você precisa? — perguntei a ela.
— Eu preciso da minha vida de volta. — Ela ficou quieta por um
momento. — Você sabe qual é a pior parte? Eu nem posso ficar
com raiva de você porque alguém tentou atirar em você. — A voz
dela ficou muito baixa. — E você precisa de mim.
Isso doeu, porque era verdade. Eu precisava dela. Eu sempre
tinha precisado dela mais do que ela precisava de mim porque ela
era minha amiga, singular, e eu era uma de muitas para ela.
— Me desculpa, Max.
Ela fez um som despreocupado.
— É, bom, da próxima vez que alguém tentar atirar em você, você
vai ter que me comprar algo bem legal pra compensar. Tipo a
Austrália.
— Você quer que eu pague uma viagem à Austrália pra você? —
perguntei, pensando que isso provavelmente podia ser
providenciado.
— Não! — A resposta dela foi animada. — Eu quero que você me
compre a Austrália. Você tem dinheiro pra isso.
Eu desdenhei.
— Eu não acho que está à venda.
— Então eu acho que sua única escolha é evitar levar um tiro.
— Eu vou tomar cuidado — prometi. — Quem quer que tenha
tentado me matar não vai ter outra chance.
— Bom. — Max ficou em silêncio alguns segundos. — Ave, eu
preciso ir. E eu não sei quando vou conseguir pegar outro celular.
Ou entrar na internet. Ou qualquer coisa.
Culpa minha. Eu tentei me dizer que isso não era adeus, não para
sempre.
— Te amo, Max.
— Também te amo, pata.
Depois que desligamos, eu fiquei sentada ali, de toalha, sentindo
que algo dentro de mim tinha sido arrancado. Depois de um tempo,
voltei para o quarto e vesti um pijama. Eu estava na cama,
pensando em tudo que Max havia dito, me perguntando se eu era
uma pessoa essencialmente egoísta ou carente, quando eu ouvi um
som que parecia alguém arranhando as paredes.
Eu parei de respirar e escutei. Ali estava o som de novo. A
passagem secreta.
— Jameson? — chamei. Ele era o único que tinha usado essa
passagem para o meu quarto, ou pelo menos o único que eu sabia.
— Jameson, isso não tem graça.
Não houve resposta, mas, quando eu me levantei e andei na
direção da lareira e fiquei muito quieta, eu poderia jurar que ouvi
alguém respirando do outro lado da parede. Eu agarrei o castiçal,
preparada para puxá-lo e encarar quem ou o que estivesse do outro
lado, mas então meu bom senso — e minha promessa para Max —
funcionou, e, em vez disso, eu abri a porta para o corredor.
— Oren? Tem uma coisa que você precisa saber.

Oren vasculhou a passagem secreta e desativou sua entrada para o


meu quarto. Ele também “sugeriu” que eu passasse a noite no
quarto de Libby, que não tinha acesso por passagens secretas.
Não era exatamente uma sugestão.
Minha irmã estava dormindo quando eu bati à porta. Ela acordou,
mas não exatamente. Eu me enfiei na cama com ela, e ela não
perguntou por que eu estava ali. Depois da minha conversa com
Max, eu tinha uma boa certeza de que não queria contar nada para
ela. A vida toda de Libby tinha sido virada de ponta-cabeça por
minha causa. Duas vezes. Primeiro quando minha mãe morreu, e
agora tudo isso. Libby já tinha me dado tudo. Ela tinha os próprios
problemas para lidar. Não precisava dos meus.
Embaixo das cobertas, eu abracei forte um travesseiro e rolei na
direção de Libby. Eu precisava ficar perto dela, mesmo que eu não
soubesse a razão. Os olhos de Libby se abriram de leve e ela se
aconchegou perto de mim. Eu me forcei a não pensar em mais nada
– nem na floresta, nem nos Hawthorne, nada. Eu deixei a escuridão
me tomar e dormi.
Eu sonhei que estava de volta ao restaurante. Eu era pequena,
cinco ou seis anos, e feliz.
Eu coloco dois sachês de açúcar em pé na mesa e junto suas
pontas, formando um triângulo que consegue ficar em pé sozinho.
“Pronto”, eu digo. Faço a mesma coisa com o próximo par de
sachês, então coloco um quinto sobre eles, horizontalmente,
conectando os dois triângulos que construí.
— Avery Kylie Grambs! — Minha mãe aparece na ponta da mesa,
sorrindo. — O que eu te disse sobre construir castelos de açúcar?
Eu sorrio largamente para ela.
— Só vale a pena se você conseguir chegar a cinco andares!
Acordei assustada. Eu me virei, esperando ver Libby, mas seu
lado da cama estava vazio. A luz da manhã estava entrando pela
janela. Fui até o banheiro de Libby, mas ela não estava lá também.
Eu estava me preparando para voltar para o meu quarto – e meu
banheiro – quando vi algo na bancada. O celular de Libby. Ela tinha
mensagens, dezenas delas, todas de Drake. Havia apenas três, as
mais recentes, que foram possíveis de ler sem a senha.
Eu te amo.
Você sabe que eu te amo, Libby-amor.
Eu sei que você me ama.
CAPÍTULO 59

Oren me encontrou no corredor no segundo em que saí da suíte


de Libby. Se ele tinha passado a noite toda acordado, não
aparentava.
— Fizemos um boletim de ocorrência relatando o que aconteceu
ontem — ele relatou. — Discretamente. Os detetives do caso estão
coordenando com a minha equipe. Nós todos concordamos que
seria bom pra nós, pelo menos por enquanto, que a família
Hawthorne não percebesse que há uma investigação. Jameson e
Rebecca foram comunicados da importância da discrição. Na
medida do possível, eu gostaria que você continuasse sua vida
como se nada tivesse acontecido.
Fingir que eu não tinha tido um encontro com a morte na noite
passada. Fingir que estava tudo bem.
— Você viu a Libby? — perguntei.
Libby não está bem.
— Ela desceu para o café da manhã uma meia hora atrás. — O
tom de Oren não revelava nada.
Eu pensei nas mensagens que vi e meu estômago apertou.
— Ela parecia bem?
— Sem danos. Todos os membros no lugar.
Não era isso que eu estava perguntando, mas, dadas as
circunstâncias, talvez devesse ser.
— Se ela está lá embaixo ao alcance dos Hawthorne, ela está
segura?
— A equipe de segurança dela está ciente da situação. Neste
momento eles não acreditam que ela esteja em risco.
Libby não era a herdeira. Ela não era o alvo. Eu era.
Eu me vesti e desci. Escolhi uma blusa de gola alta para esconder
meus pontos e cobri o arranhão na bochecha com maquiagem o
melhor que pude.
Na sala de jantar, uma seleção de doces tinha sido servida em um
aparador. Libby estava enrolada em uma grande poltrona no canto
da sala. Nash estava sentado na cadeira ao lado dela, com as
pernas esticadas e cruzadas na altura do tornozelo de suas botas
de caubói. Vigiando.
Entre mim e eles estavam quatro membros da família Hawthorne.
Todos com motivos para me querer morta, pensei quando passei por
eles. Zara e Constantine estavam sentados a uma ponta da mesa
de jantar. Ela estava lendo o jornal. Ele estava lendo em um tablet.
Nenhum dos dois prestou a menor atenção em mim. Nan e Xander
estavam na outra ponta da mesa.
Eu senti um movimento atrás de mim e me virei rapidamente.
— Alguém está assustada esta manhã — Thea declarou,
passando um braço pelo meu e me levando na direção do aparador.
Oren nos seguiu como uma sombra. — Você anda ocupada — Thea
murmurou no meu ouvido.
Eu sabia que ela me vigiava e que provavelmente a tinham
mandado ficar por perto e relatar o que visse. Quão perto ela estava
noite passada? O que ela sabe? Com base no que Oren tinha
falado, Thea não tinha pessoalmente atirado em mim, mas o
momento de sua mudança para a Casa Hawthorne não parecia ser
uma coincidência.
Zara tinha trazido a sobrinha por um motivo.
— Não banque a inocente — Thea me aconselhou, pegando um
croissant e o levando à boca. — Rebecca me ligou.
Eu engoli a vontade de olhar para Oren. Ele tinha dado a entender
que Rebecca ficaria de boca fechada sobre os tiros. Sobre o que
mais ele estava errado?
— Você e Jameson — Thea continuou, como se estivesse
passando sermão em uma criança. — No antigo quarto de Emily,
ainda por cima. Um pouco deselegante, não acha?
Ela não sabe do ataque. Essa percepção me tomou de repente.
Rebecca deve ter visto Jameson sair do banheiro. Ela deve ter
escutado. Deve ter entendido que nós…
— As pessoas estão sendo deselegantes sem mim? — Xander
perguntou, se enfiando entre Thea e eu e soltando o braço dela do
meu. — Que falta de educação.
Eu não queria suspeitar dele, mas, a essa altura, o estresse de
suspeitar ou não suspeitar ia me matar antes que qualquer um o
fizesse.
— Rebecca passou a noite no Chalé — Thea disse a Xander,
apreciando as palavras. — Ela finalmente quebrou seu ano de
silêncio e me mandou uma mensagem contando tudo. — Thea
parecia estar dando uma cartada final, mas eu não tinha certeza,
exatamente, de qual carta era essa.
Rebecca?
— Bex me mandou mensagem também — Xander disse a Thea.
Então ele me lançou um olhar como quem pede desculpas. — A
notícia se espalha rápido quando um Hawthorne fica com alguém.
Rebecca pode ter calado a boca sobre o atentado, mas ela
colocou um outdoor sobre o beijo.
O beijo não significou nada. O beijo não é o problema aqui.
— Você aí. Menina! — Nan apontou imperiosamente sua bengala
para mim e então para uma bandeja de doces. — Não faça uma
velha se levantar.
Se alguma outra pessoa tivesse falado comigo assim, eu teria
ignorado, mas Nan era ao mesmo tempo velhíssima e aterrorizante,
então eu fui pegar a bandeja. Eu me lembrei tarde demais de que
estava ferida. A dor me atingiu como um raio e eu prendi a
respiração.
Nan me encarou, só por um momento, então cutucou Xander com
sua bengala.
— Ajude-a, seu traste.
Xander pegou a bandeja. Eu deixei meu braço cair ao lado do
meu corpo. Quem me viu tremer? Eu tentei não encarar nenhum
deles. Quem já sabia que eu estava ferida?
— Você está machucada. — Xander colocou seu corpo entre
Thea e eu.
— Eu estou bem — respondi.
— Você decididamente não está.
Eu não sabia quando Grayson tinha entrado na sala, mas agora
ele estava bem do meu lado.
— Um momento, srta. Grambs? — O olhar dele era intenso. — No
corredor.
CAPÍTULO 60

Provavelmente eu não devia ir a lugar nenhum com Grayson


Hawthorne, mas eu sabia que Oren estaria por perto e eu queria
algo de Grayson. Eu queria olhá-lo nos olhos. Eu queria saber se
ele tinha feito isso comigo – ou se fazia ideia de quem tinha feito.
— Você está ferida. — Grayson não falou como se estivesse
perguntando. — Você vai me contar o que aconteceu.
— Ah, eu vou, é? — Olhei feio para ele.
— Por favor. — Grayson parecia achar essa palavra dolorosa ou
de mau gosto, ou os dois.
Eu não devia nada a ele. Oren tinha me pedido para não
mencionar os tiros. Da última vez que eu tinha falado com Grayson,
ele tinha me dado um aviso tenso. Ele ficaria com a Fundação se eu
morresse.
— Atiraram em mim. — Eu soltei a verdade porque, por motivos
que eu não saberia explicar, precisava ver a reação dele. —
Tentaram — esclareci depois de um momento.
Todos os músculos do maxilar de Grayson se contraíram. Ele não
sabia. Antes que eu pudesse sentir um pingo de alívio, Grayson se
dirigiu a Oren.
— Quando? — ele disparou.
— Noite passada — Oren respondeu, brusco.
— E onde você estava? — Grayson exigiu saber.
— Não tão perto quanto estarei de agora em diante — Oren
prometeu, encarando-o de cima.
— Lembram de mim? — Eu ergui a mão e paguei por isso. —
Assunto da conversa e indivíduo capaz?
Grayson deve ter notado a dor que o movimento me causou,
porque ele se virou e usou suas mãos para suavemente baixar a
minha.
— Você vai deixar Oren fazer seu trabalho — ele ordenou em voz
baixa.
Eu não foquei o tom dele, ou seu toque.
— E de quem você acha que ele está me protegendo? — Eu olhei
de forma incisiva para a sala de jantar. Eu esperei que Grayson
estourasse comigo por ousar suspeitar de qualquer pessoa que ele
amava ou que ele repetisse mais uma vez que escolheria qualquer
um deles em vez de mim.
Em vez disso, Grayson se dirigiu novamente a Oren.
— Se algo acontecer com ela, eu vou te responsabilizar
pessoalmente.
— Senhor Responsabilidade Pessoal — Jameson disse,
anunciando sua presença e caminhando na direção do irmão. —
Encantador.
Grayson rangeu os dentes, ao mesmo tempo que se deu conta:
— Vocês dois estavam na floresta Black Wood ontem à noite. —
Ele encarou o irmão. — Quem quer que tenha atirado nela poderia
ter acertado você.
— E que confusão seria — Jameson respondeu, cercando o
irmão — se alguma coisa tivesse acontecido comigo.
A tensão entre eles era palpável. Explosiva. Já dava para ver
como isso ia acabar: Grayson chamando Jameson de
inconsequente, Jameson se arriscando ainda mais para provar seu
ponto de vista. Quanto tempo levaria para Jameson falar de mim? O
beijo.
— Espero não estar interrompendo — Nash se juntou à festa. Ele
deu um sorriso desleixado e perigoso para os irmãos. — Jamie,
você não vai faltar à aula hoje. Você tem cinco minutos pra vestir
seu uniforme e entrar na minha caminhonete ou vou passar a levar
você amarrado. — Ele esperou que Jameson se afastasse, e então
se virou. — Gray, nossa mãe pediu uma audiência.
Tendo lidado com os irmãos, o mais velho dos Hawthorne voltou
sua atenção para mim.
— Imagino que você não precise de uma carona para a Country
Day.
— Ela não precisa — Oren respondeu, braços cruzados sobre o
peito. Nash notou sua postura e seu tom, mas antes que ele
pudesse responder, eu me intrometi.
— Eu não vou para a escola hoje. — Isso era novidade para
Oren, mas ele não fez objeção.
Nash, por outro lado, me deu exatamente o mesmo olhar que
tinha dado a Jameson quando falou que ia amarrá-lo.
— Sua irmã sabe que você vai matar aula numa bela tarde de
sexta-feira?
— Minha irmã não é problema seu — eu disse a ele, mas pensar
em Libby me lembrou das mensagens de Drake. Havia coisas piores
do que a ideia de Libby se envolvendo com um Hawthorne.
Presumindo que Nash não quer me ver morta.
— Todo mundo que mora ou trabalha nessa casa é problema meu
— Nash afirmou. — Não importa quantas vezes eu vá embora, ou
quanto tempo eu passe fora, as pessoas ainda precisam ser
cuidadas. Então… — Ele me deu o mesmo sorriso tranquilo. — Sua
irmã sabe que você vai matar aula?
— Eu vou falar com ela — eu respondi, tentando ver além do
caubói, o que estava por baixo dele.
Nash devolveu meu olhar examinador.
— Faça isso, querida.
CAPÍTULO 61

Eu disse a Libby que ia ficar em casa. Eu tentei achar as palavras


para perguntar sobre Drake, mas não consegui. E se Drake não
estiver só mandando mensagens? Essa ideia serpenteou para
minha consciência. E se ela tiver se encontrado com ele? E se ele a
tiver convencido a ajudá-lo a entrar escondido na propriedade?
Afastei essa linha de pensamento. Não tinha como “entrar
escondido” na propriedade. A segurança era firme e Oren teria me
dito se Drake estivesse no terreno ontem à noite. Ele teria sido o
principal suspeito – ou algo perto disso.
Se eu morrer, existe pelo menos uma chance de que tudo vá para
meus parentes mais próximos. Isso significa Libby – e nosso pai.
— Você está doente? — Libby perguntou, colocando o dorso da
sua mão na minha testa. Ela estava usando suas novas botas roxas
e um vestido preto de mangas compridas e rendadas. Ela parecia
estar a caminho de algum lugar.
De ver Drake? O pavor se acomodou no fundo do meu estômago.
Ou Nash?
— Dia da saúde mental — eu consegui dizer. Libby aceitou isso e
declarou que seria Dia das Irmãs. Se ela tinha planos, ela não
pensou duas vezes para cancelá-los por mim.
— Quer ir ao spa? — Libby perguntou, empolgada. — Eu fiz uma
massagem ontem e foi de morrer.
Eu quase morri ontem. Eu não disse isso e não contei a ela que a
massagista não viria hoje – ou tão cedo. Em vez disso, eu ofereci a
única distração que eu conseguia pensar que também me distrairia
de todos os segredos que eu estava guardando dela.
— Que tal me ajudar a achar uma Davenport?
Segundo a busca on-line que Libby e eu fizemos, o termo Davenport
era usado para se referir a dois tipos diferentes de mobília: um sofá
e uma escrivaninha. O sofá era um termo genérico, tipo gilete para
uma lâmina de barbear ou ducha para qualquer tipo de chuveiro,
mas uma escrivaninha Davenport se referia a um tipo específico de
mesa, famosa por suas gavetas e seus compartimentos secretos,
com um tampo que podia ser erguido para revelar outro
compartimento.
Tudo que eu sabia sobre Tobias Hawthorne me dizia que nós
provavelmente não estávamos procurando um sofá.
— Isso pode demorar um pouco — Libby comentou. — Você tem
ideia do tamanho desse lugar?
Eu tinha visto as salas de música, o ginásio, a pista de boliche, o
showroom de carros dos carros de Tobias Hawthorne, o solário… E
isso não era nem um quarto do que havia para ver.
— É enorme…
— Monumental — disse Libby, empolgada. — E, como eu sou
péssima publicidade, não tive nada pra fazer na última semana além
de explorar. — Esse comentário sobre publicidade tinha que ter
vindo de Alisa, e eu me perguntei quantas conversas elas tiveram
sem a minha presença. — Tem um salão de baile de verdade —
Libby continuou. — E dois auditórios, um para filmes e um com
camarotes e um palco.
— Eu vi esse — lembrei. — E a pista de boliche.
Os olhos contornados de preto de Libby se arregalaram.
— Você jogou?
O fascínio dela era contagioso.
— Eu joguei.
Libby sacudiu a cabeça.
— Nunca vai deixar de ser bizarro que essa casa tem uma pista
de boliche.
— Tem também um lugar pra treinar golfe — Oren acrescentou
atrás de mim. — E uma quadra de raquetebol.
Se Libby notou o quão perto ele estava de nós, ela não
demonstrou:
— Como vamos encontrar uma simples escrivaninha?
Eu olhei para Oren. Já que ele estava aqui, ele podia ser útil.
— Eu vi um escritório na nossa ala. Tobias Hawthorne tinha
outros?

A escrivaninha no outro escritório de Tobias Hawthorne também não


era uma Davenport. Havia três salas anexas a ele: um salão para
fumar, um salão de bilhar e…. Oren dava explicações quando
necessário. A terceira sala era pequena, sem janelas. No meio dela
havia o que parecia ser um enorme casulo branco.
— Tanque de privação sensorial — Oren me disse. — De vez em
quando, o sr. Hawthorne gostava de se desligar do mundo.

***

Libby e eu acabamos fazendo a busca por setores, da mesma forma


que Jameson e eu tínhamos procurado em Black Wood. Ala por ala
e sala por sala, nós seguimos pelos corredores da Casa Hawthorne
com Oren sempre alguns passos atrás de nós.
— E agora… o spa. — Libby abriu a porta. Ela parecia animada.
Era isso ou ela estava disfarçando algo.
Afastei esse pensamento e examinei o spa. Claramente não era o
lugar certo para encontrar a escrivaninha, mas isso não me impediu
de olhar em detalhes. A sala tinha o formato de L. Na parte
comprida do L, o chão era de madeira; na parte curta, era de pedra.
No meio da seção de pedra, havia uma pequena piscina quadrada
embutida no chão da qual subia um vapor. Atrás dela, havia um
boxe de vidro do tamanho de um quarto pequeno, com as torneiras
presas ao teto em vez de na parede.
— Jacuzzi. Sauna — alguém falou atrás de nós. Eu me virei e vi
Skye Hawthorne. Ela estava usando um roupão comprido preto
dessa vez. Ela andou até a parte maior do cômodo, tirou o roupão e
se deitou em uma cama de veludo cinza. — Cama de massagem —
ela disse, bocejando e vagamente coberta com um lençol. — Eu
chamei um massagista.
— A Casa Hawthorne está fechada pra visitantes no momento —
Oren disse, completamente indiferente à encenação dela.
— Bom, então... — Skye fechou os olhos. — Você vai precisar
abrir o portão para o Magnus.
Magnus. Eu me perguntei se era ele que estava na casa ontem.
Se ele tinha atirado em mim, a pedido dela.
— A Casa Hawthorne está fechada pra visitantes — Oren repetiu.
— É uma questão de segurança. Até segunda ordem, meus homens
têm instruções pra permitir apenas que funcionários essenciais
passem pelos portões.
Skye bocejou como um gato.
— Eu te garanto, John Oren, essa massagem é essencial.
Uma fileira de velas queimava em uma prateleira. A luz passava
pelas cortinas transparentes e uma música baixa e agradável
tocava.
— Que questão de segurança? — Libby perguntou de repente. —
Aconteceu alguma coisa?
Eu olhei para Oren de uma forma que eu esperava que fosse
impedi-lo de responder a essa pergunta, mas a verdade é que fiz
meu pedido na direção errada.
— Segundo meu Grayson — Skye disse a Libby —, aconteceu
algo feio em Black Wood.
CAPÍTULO 62

Libby esperou até que estivéssemos no corredor para perguntar.


— O que aconteceu na floresta?
Eu amaldiçoei Grayson por contar para a mãe dele, e eu mesma
por contar a Grayson.
— Por que você precisa de segurança extra? — Libby inquiriu.
Depois de um segundo e meio, ela se virou para Oren. — Por que
ela precisa de segurança extra?
— Houve um incidente ontem — Oren respondeu — com uma
bala e uma árvore.
— Uma bala? — Libby repetiu. — Tipo, de uma arma?
— Eu estou bem.
Libby me ignorou.
— Que tipo de incidente com uma bala e uma árvore? — ela
perguntou a Oren, seu rabo de cavalo azul balançando, indignado.
Meu chefe de segurança não podia, ou não queria, esconder mais
do que já tinha escondido.
— Não está claro se os tiros foram pra assustar Avery ou se ela
era realmente o alvo. O atirador errou, mas ela se feriu com os
detritos.
— Libby — eu disse, com ênfase —, eu estou bem.
— Tiros, no plural? — Libby nem parecia ter me ouvido.
Oren pigarreou.
— Eu vou deixar vocês sozinhas por um instante.
Ele se afastou um pouco ao longo do corredor. Ainda estava à
vista, ainda perto o bastante para nos ouvir, mas longe o suficiente
para fingir que não conseguia.
Covarde.
— Alguém atirou em você e você não me contou? — Libby não
ficava brava com frequência, mas, quando ficava, era épico. —
Talvez Nash esteja certo. Maldito! Eu disse que você no geral
cuidava de você mesma. Ele disse que nunca viu um adolescente
bilionário que não precisasse de um puxão de orelhas ocasional.
— Oren e Alisa estão cuidando da situação — respondi. — Eu
não queria te preocupar.
Libby colocou a mão em meu rosto e seus olhos notaram o
arranhão que eu tinha escondido.
— E quem está cuidando de você?
Era impossível não lembrar de Max dizendo “e você precisava de
mim” de novo e de novo. Eu olhei para baixo.
— Você já tem coisa suficiente pra se preocupar.
— Do que você está falando? — Libby perguntou. Eu a ouvi
inspirar rapidamente e soltar o ar. — Isso é por causa de Drake?
Pronto. Ela disse o nome. Agora as comportas estavam
oficialmente abertas e não tinha como controlar.
— Ele tem mandado mensagens pra você.
— Eu não respondo — Libby disse, na defensiva.
— Mas você também não bloqueou ele.
Ela não tinha uma resposta para isso.
— Você poderia ter bloqueado ele — eu disse, com a voz
embargada. — Ou pedido um telefone novo pra Alisa. Você pode
denunciá-lo por ter violado a ordem de restrição.
— Eu não pedi uma ordem de restrição! — Libby pareceu se
arrepender dessas palavras no segundo em que as disse. Ela
engoliu em seco. — E eu não quero um celular novo. Todos os
meus amigos têm esse número. O papai tem esse número.
Eu a encarei.
— Papai? — Eu não via Ricky Grambs havia mais de dois anos.
Minha assistente social tinha entrado em contato com ele, mas ele
não tinha feito uma mísera ligação para mim. Ele nem tinha ido ao
funeral da minha mãe. — Ele te ligou?
— Ele só… queria saber se estávamos bem, sabe?
Eu sabia que ele provavelmente tinha visto as notícias. Eu sabia
que ele não tinha o meu telefone novo. Eu sabia que ele tinha
bilhões de motivos para me querer agora, quando antes ele nunca
tinha se importado o suficiente para estar presente para qualquer
uma de nós.
— Ele quer dinheiro — eu disse a Libby, minha voz sem
expressão. — Assim como Drake. Assim como a sua mãe.
Mencionar a mãe dela foi golpe baixo.
— Quem Oren acha que atirou em você? — Libby estava se
esforçando para ficar calma.
Eu tentei o mesmo.
— Os tiros foram disparados de dentro da propriedade — eu
disse, repetindo o que tinham me falado. — Quem quer que tenha
atirado em mim tinha acesso.
— É por isso que Oren está reforçando a segurança — Libby
disse, as engrenagens de seu cérebro girando atrás de seus olhos
maquiados. — Só funcionários essenciais. — Seus lábios escuros
se tornaram uma linha fina. — Você devia ter me contado.
Eu pensei nas coisas que ela não tinha me contado.
— Me diga que você não se encontrou com Drake. Que ele não
veio aqui. Que você não o deixaria entrar na propriedade.
— Claro que não. — Libby ficou em silêncio. Eu não tinha certeza
se ela estava tentando não gritar comigo ou não chorar. — Eu vou
embora. — A voz dela estava firme… e feroz. — Mas, só pra
constar, irmãzinha, você ainda é menor de idade e eu ainda sou sua
guardiã legal. Da próxima vez que tentarem atirar em você, eu com
toda certeza preciso saber.
CAPÍTULO 63

Eu sabia que Oren tinha ouvido todas as palavras da minha briga


com Libby, mas eu também tinha uma boa certeza de que ele não ia
comentar nada.
— Eu ainda estou procurando a Davenport — eu disse, tensa.
Se eu precisava de distração antes, agora ela era obrigatória.
Sem Libby para explorar comigo, eu não conseguia me forçar a ir de
sala em sala. Nós já fomos ao escritório do velho. Onde mais
alguém manteria uma escrivaninha Davenport?
Eu me concentrei nessa questão, e não na minha briga com
Libby. Não no que eu tinha dito... mas no que ela não tinha.
— Eu fiquei sabendo — eu disse a Oren depois de pensar um
pouco — que a Casa Hawthorne tem várias bibliotecas. — Eu exalei
lentamente. — Você tem alguma ideia de onde elas ficam?

Duas horas e quatro bibliotecas depois, eu estava parada no meio


da número cinco. Ficava no segundo andar. O teto era inclinado. As
paredes eram forradas de estantes embutidas, cada prateleira com
a altura exata para uma fileira de livros de bolso. Os livros nas
prateleiras estavam gastos e cobriam cada centímetro das paredes,
exceto por uma grande janela de vitrais no lado leste. A luz passava
por ela, salpicando cores no chão de madeira.
Nenhuma Davenport. Isso estava começando a parecer inútil.
Essa trilha não tinha sido criada para mim. O quebra-cabeça de
Tobias Hawthorne não tinha sido desenhado pensando em mim.
Eu preciso de Jameson.
Eu cortei esse pensamento pela raiz, saí da biblioteca e voltei
para baixo. Eu tinha contado pelo menos cinco escadas diferentes
na casa. Essa era espiral, e, conforme eu descia, ouvi o som de um
piano ao longe. Eu o segui e Oren me seguiu até chegarmos à
entrada de um cômodo amplo e aberto. A parede dos fundos era
cheia de arcos. Embaixo de cada arco ficava uma enorme janela.
Todas as janelas estavam abertas.
As paredes eram forradas de pinturas, e, posicionado entre elas,
estava o maior piano de cauda que eu já tinha visto. Nan estava
sentada no banco do piano com os olhos fechados. Eu pensei que a
velha senhora estava tocando, até eu chegar mais perto e perceber
que o piano tocava sozinho.
Meus sapatos fizeram barulho quando me aproximei, e ela abriu
os olhos com o susto.
— Desculpa — eu disse. — Eu…
— Quieta — Nan ordenou. Seus olhos se fecharam de novo. A
música continuou em um crescendo, e então… silêncio. — Você
sabia que pode ouvir concertos nessa coisa? — Nan abriu os olhos
e pegou sua bengala. Não com pouco esforço, ela se levantou. —
Em algum lugar do mundo, um mestre toca, e aqui, apertando um
botão, as teclas se movem.
Os olhos dela se demoraram no piano, uma expressão quase
nostálgica no seu rosto.
— Você toca? — perguntei.
Nan resmungou.
— Eu tocava quando era mais nova. Ganhei um pouco de
atenção demais por isso e meu marido quebrou meus dedos para
acabar com a história.
A forma como ela disse, como se não fosse nada demais, era
quase tão chocante quanto o que ela tinha acabado de dizer.
— Isso é horrível — eu disse, furiosa.
Nan olhou para o piano e então para sua mão magra e
encurvada. Ela ergueu o queixo e olhou pelas enormes janelas.
— Ele teve um acidente trágico não muito depois disso.
Do jeito que Nan falou, ficou parecendo que ela mesma tinha
provocado esse “acidente”. Ela matou o marido?
— Nan, você está assustando a menina. — Uma voz que veio da
entrada advertiu.
Nan fungou.
— Se ela se assusta fácil assim, não vai durar nada aqui.
Com isso, Nan saiu da sala.
O mais velho dos Hawthorne voltou sua atenção para mim.
— Você avisou à sua irmã que está brincando de delinquente
hoje?
A menção a Libby me fez lembrar de nossa discussão. Ela está
falando com meu pai. Ela não queria uma ordem de restrição contra
Drake. Ela não quer bloqueá-lo. Eu me perguntei quanto disso tudo
Nash sabia.
— Libby sabe onde estou — respondi com firmeza.
Ele me olhou feio.
— Isso não é fácil pra ela, menina. Você está no olho do furacão,
onde há a calmaria. Ela está apanhando dele, por todos os lados.
Eu não chamaria levar um tiro de “calmaria”.
— Quais são suas intenções com a minha irmã?
Ele claramente achou minha pergunta engraçada.
— Quais são suas intenções com Jameson?
Não tinha ninguém naquela casa que não soubesse desse beijo?
— Você estava certo a respeito do jogo do seu avô.
Ele tinha tentado me avisar. Ele me disse exatamente por que
Jameson estava me mantendo por perto.
— Costumo estar sempre certo. — Nash passou os polegares
pelo passador do cinto. — Quanto mais perto do fim você chegar,
pior fica.
A coisa lógica a se fazer seria parar de jogar. Recuar. Mas eu
queria respostas e uma parte de mim – a parte que tinha crescido
com uma mãe que transformava tudo em um desafio, a parte que
tinha jogado seu primeiro jogo de xadrez aos seis anos – queria
ganhar.
— Por acaso você sabe onde seu avô pode ter enfiado uma
escrivaninha Davenport?
Ele riu.
— Você não aprende do jeito fácil, não é, menina?
Eu dei de ombros.
Nash pensou um pouco e então inclinou a cabeça para o lado.
— Checou as bibliotecas?
— A biblioteca circular, a de ônix, a que tem o vitral, a com os
globos, o labirinto… — Eu olhei para o meu guarda-costas. —
Foram todas?
Oren assentiu.
Nash inclinou a cabeça de lado.
— Não exatamente.
CAPÍTULO 64

Nash me fez subir dois lances de escada, descer três corredores e


passar por uma porta que tinha sido lacrada.
— O que é isso? — perguntei.
Ele diminuiu o passo por um momento.
— Essa era a ala do meu tio. O velho mandou fechar quando
Toby morreu.
Porque isso é normal, pensei. Tão normal quanto deserdar toda a
sua família por vinte anos e nunca falar sobre o assunto.
Nash acelerou de novo e finalmente nós chegamos a uma porta
de aço que parecia ser de um cofre, protegida por uma fechadura de
combinação numérica e uma alavanca com cinco travas. Nash virou
casualmente o botão – esquerda, direita, esquerda –, rápido demais
para que eu pudesse ver os números. Depois de um clique alto, ele
girou a alavanca. A porta de aço se abriu para um corredor.
Que tipo de biblioteca precisa desse tipo de segurança…
Meu cérebro estava terminando de pensar nisso quando Nash
passou pela porta e eu percebi que o que estava ali não era só uma
sala. Era uma ala inteira.
— O velho começou a construir essa parte da casa quando eu
nasci — Nash informou. O corredor à nossa volta estava forrado de
fechaduras, teclados de segurança, trancas e chaves, tudo
pendurado na parede como quadros. — Os Hawthorne aprendem
cedo a arrombar uma fechadura — Nash me disse enquanto
avançávamos pelo corredor.
Eu olhei para um quarto à esquerda e ali havia um pequeno avião,
não um brinquedo, mas um avião para uma pessoa de verdade.
— Isso era seu quarto de brinquedos? — perguntei enquanto
espiava as portas que ocupavam o resto do corredor, imaginando
que surpresas havia em cada cômodo.
— Skye tinha dezessete anos quando eu nasci. — Nash deu de
ombros. — Ela tentou brincar de mãe. Não deu certo. O velho tentou
compensar.
Construindo para você… isso.
— Vamos lá. — Nash me levou até o fim do corredor e abriu outra
porta.
— Fliperama — ele disse, mas era uma explicação
completamente desnecessária. Havia uma mesa de pebolim, um
bar, três máquinas de pinball e uma parede inteira de consoles.
Eu fui até uma das mesas de pinball, apertei um botão e ela ligou.
Eu olhei de volta para Nash.
— Eu posso esperar — ele disse.
Eu deveria manter o foco. Ele estava me levando para a última
biblioteca – e possivelmente onde estava a Davenport e a última
pista. Mas um jogo não ia matar ninguém. Eu puxei a alavanca e
lancei a bola.
Quando o jogo terminou, mesmo com minha pontuação bem
abaixo do recorde, a máquina pediu minhas iniciais e, quando eu as
inseri, uma mensagem familiar apareceu na tela.

BEM-VINDA À CASA HAWTHORNE, AVERY KYLIE GRAMBS!

Era a mesma mensagem que eu tinha recebido na pista de


boliche e, assim como daquela vez, senti o fantasma de Tobias
Hawthorne me rondando. Mesmo que você achasse que tinha
manipulado nosso avô, eu te garanto que foi ele que manipulou
você.
Nash foi para trás do bar.
— A geladeira está cheia de bebidas açucaradas. Qual é o seu
vício?
Eu me aproximei e vi que ele não estava brincando quando disse
cheia. Garrafas de vidro lotavam cada prateleira, com refrigerantes
de todos os sabores imagináveis.
— Algodão doce? — fiz uma careta. — Pera? Bacon e jalapeño?
— Eu tinha seis anos quando Gray nasceu — Nash disse, como
se isso fosse uma explicação. — O velho inaugurou esse quarto no
dia em que meu novo irmãozinho veio pra casa. — Ele abriu uma
garrafa com um líquido verde suspeito e deu um gole. — Eu tinha
sete anos quando veio Jamie e oito e meio quando Xander nasceu.
— Ele fez uma pausa, como se estivesse avaliando meu valor como
público. — Tia Zara e seu primeiro marido estavam com dificuldades
pra engravidar. Skye sumia por alguns meses e voltava grávida.
Lavou, está novo.
Talvez essa tivesse sido a coisa mais perturbadora que eu já tinha
ouvido.
— Quer um? — Nash perguntou, apontando a geladeira com a
cabeça.
Eu queria cerca de dez, mas me contentei com o sabor cookies e
creme. Eu olhei para Oren, minha sombra silenciosa esse tempo
todo. Ele não deu nenhum indício de que eu deveria evitar beber,
então eu abri a tampa e dei um gole.
— E a biblioteca?
— Estamos quase lá. — Nash caminhou para a próxima sala e
entrou. — A sala de jogos — ele disse.
No centro do cômodo, estavam quatro mesas. Uma mesa
retangular, uma quadrada, uma oval e uma redonda. As mesas
eram pretas. O resto da sala – paredes, chão e estantes – era
branco. As estantes ocupavam três das quatro paredes da sala.
Não são estantes de livros, percebi. Elas guardavam jogos.
Centenas, talvez milhares, de jogos de tabuleiro. Incapaz de resistir,
eu fui até a estante mais próxima e passei meus dedos pelas caixas.
Eu nunca nem tinha ouvido falar da maioria dos jogos.
— Meu avô — Nash disse baixinho — curtia colecionar coisas.
Eu fiquei em choque. Quantas tardes minha mãe e eu tínhamos
passado jogando jogos de tabuleiro que comprávamos usados em
vendas de garagem? Nossa tradição para os dias de chuva era abrir
três ou quatro tabuleiros e transformá-los em um único superjogo.
Mas isso? Havia jogos do mundo inteiro. Metade deles não tinha
caixas escritas em inglês. Eu imaginei os quatro irmãos Hawthorne
sentados em volta de uma dessas mesas. Sorrindo. Falando
besteira. Trapaceando um com o outro. Brigando por controle,
literalmente, talvez.
Afastei esse pensamento. Eu estava ali para encontrar a
Davenport, a próxima pista. Esse era o jogo atual, não os jogos
dessas caixas.
— E a biblioteca? — perguntei a Nash, tirando meus olhos das
caixas.
Ele apontou com a cabeça para o fim da sala, a única parede que
não estava coberta de estantes com jogos de tabuleiro. Não havia
porta. Em vez disso, havia o que parecia ser uma barra de pole
dance e, ao lado, uma espécie de rampa. Um escorregador?
— Onde fica a biblioteca?
Nash parou ao lado da barra e inclinou a cabeça na direção do
teto.
— Lá em cima.
CAPÍTULO 65

Oren subiu primeiro e então voltou – pela barra, não pelo


escorregador.
— Tudo o.k. Mas, se você tentar escalar, talvez abra um ponto do
seu ferimento.
O fato de Oren mencionar meu ferimento na frente de Nash me
disse algo. Ou ele queria ver a reação de Nash Hawthorne ou
confiava nele.
— Que ferimento? — Nash perguntou, mordendo a isca.
— Alguém tentou atirar em Avery — Oren disse com cuidado. —
Você não saberia algo sobre isso, não é, Nash?
— Se eu soubesse — Nash respondeu, com a voz baixa e letal
—, já teria sido resolvido.
— Nash! — Oren reprovou, olhando para ele de um jeito que
provavelmente significava fique fora disso. Mas, pelo que eu tinha
notado, “ficar fora disso” não era da natureza dos Hawthorne.
— Preciso ir agora — Nash disse casualmente. — Eu tenho umas
perguntas pra fazer ao meu pessoal.
Seu pessoal, incluindo Mellie.
Observei Nash sair pela porta e então me virei para Oren.
— Você sabia que ele ia falar com os funcionários.
— Eu sei que eles vão falar com ele — Oren corrigiu. — E, além
disso, você acabou com o elemento surpresa logo de manhã.
Eu contei a Grayson. Ele contou para a mãe. Libby já saiba.
— Desculpa por isso — pedi, e então olhei para o quarto de cima.
— Vou subir.
— Eu não vi uma escrivaninha lá — Oren me disse.
Eu andei até a barra e a agarrei.
— Vou subir de qualquer forma. — Eu comecei a me puxar para
cima, mas a dor me impediu. Oren estava certo. Eu não conseguiria
escalar. Eu me afastei da barra e olhei para a esquerda.
Se eu não conseguiria ir pela barra, teria que ser pelo
escorregador.

A última biblioteca da Casa Hawthorne era pequena. O teto formava


uma pirâmide. As estantes eram simples e só chegavam à minha
cintura. Estavam cheias de livros infantis. Gastos e amados, alguns
tão familiares que me davam vontade de me sentar e ler.
Mas não fiz isso porque, parada ali, eu senti uma brisa. Não vinha
da janela, que estava fechada. Parecia vir das estantes na parede
do fundo, mas não era bem assim. Quando me aproximei, descobri
que estava vindo de um espaço entre duas estantes.
Tem alguma coisa ali. Meu coração parou. Começando pela
estante da direita, eu prendi meus dedos em volta da prateleira de
cima e puxei. Eu não precisei puxar com força. A estante tinha uma
dobradiça. Quando eu puxei, ela virou para fora, revelando uma
pequena abertura.
Essa foi a primeira passagem secreta que eu descobri sozinha.
Isso era estranhamente excitante, como estar na beira do Grand
Canyon ou segurar um quadro inestimável nas mãos. Com o
coração acelerado, eu passei pela abertura e encontrei uma escada.
Armadilhas atrás de armadilhas e charadas atrás de charadas.
Alegre, eu desci as escadas. Quando me afastei da luz de cima,
precisei pegar meu celular e ligar a lanterna para poder ver aonde
estava indo. Eu devia chamar Oren. Eu sabia disso, mas estava
indo mais rápido agora – descendo os degraus, virando, girando, até
que cheguei ao fundo.
Ali, segurando a própria lanterna, estava Grayson Hawthorne.
Ele se virou na minha direção. Meu coração estava fora de
controle, mas eu não recuei. Olhei além de Grayson e vi o único
móvel que havia no cômodo.
Uma Davenport.
— Srta. Grambs — Grayson me cumprimentou e se dirigiu para a
escrivaninha.
— Você já encontrou? — perguntei. — A pista Davenport?
— Eu estava esperando.
Eu não conseguia entender o tom de voz dele.
— Esperando o quê?
Grayson levantou o olhar da escrivaninha e o brilho de seus olhos
prateados encontraram os meus no escuro.
— Jameson, eu acho.
Já fazia horas que Jameson tinha ido para a escola, horas desde
que eu tinha visto Grayson pela última vez. Quanto tempo ele ficou
ali esperando?
— Não é a cara de Jameson deixar passar o óbvio. O que quer
que seja esse jogo, nós somos o foco. Nós quatro. Nossos nomes
eram as pistas. Claro que encontraríamos algo aqui.
— Aqui embaixo? — perguntei.
— Na nossa ala — Grayson respondeu. — Nós crescemos aqui,
Jameson, Xander e eu. Nash também, eu acho, mas ele era mais
velho.
Eu me lembro de Xander me contando que Jameson e Grayson
costumavam se juntar para vencer Nash e depois se viravam um
contra o outro no fim do jogo.
— Nash sabe dos tiros. Eu contei pra ele.
Grayson me olhou de um jeito que eu não consegui bem discernir.
— O que foi? — perguntei.
Grayson sacudiu a cabeça.
— Agora ele vai querer te salvar.
— E isso é ruim?
Outro olhar, e mais emoção, bem mascarada.
— Você vai me mostrar onde se feriu? — Grayson perguntou, sua
voz não exatamente tensa, mas com algo estranho.
Ele provavelmente só quer saber quão feio foi, eu disse a mim
mesma, mas ainda assim o pedido me atingiu como um choque
elétrico. Meus membros pareciam insuportavelmente pesados. Eu
tinha uma consciência aguda de cada respiração que dava. O
espaço era pequeno. Nós estávamos perto um do outro, perto da
escrivaninha.
Eu tinha aprendido minha lição com Jameson, mas isso parecia
diferente. Como se Grayson quisesse ser quem ia me salvar. Como
se ele precisasse ser.
Eu ergui minha mão para a gola da blusa. Eu a puxei para baixo,
abaixo da minha clavícula, expondo minha ferida.
Grayson colocou a mão no meu ombro.
— Sinto muito que isso tenha acontecido com você.
— Você sabe quem atirou em mim? — Eu precisava perguntar,
porque ele tinha pedido desculpas e Grayson Hawthorne não era do
tipo que pedia desculpas. Se ele soubesse…
— Não — Grayson jurou.
Eu acreditei nele, ou pelo menos eu queria acreditar.
— Se eu sair da Casa Hawthorne em menos de um ano, o
dinheiro vai para a caridade. Se eu morrer, vai para a caridade ou
meus herdeiros. — Fiz uma pausa. — Se eu morrer, a Fundação
fica pra vocês quatro.
Ele precisava saber o que isso poderia significar.
— Meu avô devia ter deixado a Fundação pra nós desde o início.
— Grayson virou a cabeça, tirando o olhar da minha pele. — Ou
para Zara. Nós fomos criados pra fazer a diferença, e você…
— Eu não sou ninguém — completei, sentindo dor ao dizer essas
palavras.
Grayson sacudiu a cabeça.
— Eu não sei o que você é. — Mesmo na luz mínima das nossas
lanternas, eu conseguia ver o peito dele subindo e descendo com
cada respiração.
— Você acha que Jameson está certo? Que esse quebra-cabeça
do seu avô termina com as respostas pra tudo isso?
— Termina com alguma coisa. Os jogos do velho são sempre
assim. — Grayson fez uma pausa. — Quantos números você tem?
— Dois — respondi.
— Eu também. Faltam esse e o de Xander.
Eu franzi a testa.
— Xander?
— Blackwood. É o nome do meio de Xander. O West Brook era a
pista de Nash. Os Winchester eram a pista de Jameson.
Eu olhei de volta para a escrivaninha.
— E a Davenport é a sua.
Ele fechou os olhos.
— Depois de você, Herdeira.
Ele usar o apelido de Jameson para mim parecia significar alguma
coisa, mas eu não tinha certeza do quê. Voltei a minha atenção para
a tarefa que tínhamos. A escrivaninha era de madeira cor de bronze.
Quatro gavetas ficavam perpendiculares ao tampo. Eu testei uma
por vez. Vazias. Eu passei minha mão pela parte de dentro das
gavetas, procurando por algo fora do normal. Nada.
Sentindo a presença de Grayson ao meu lado, sabendo que eu
estava sendo observada e julgada, examinei o tampo da
escrivaninha, erguendo-o para revelar o compartimento embaixo.
Também estava vazio. Como fiz com as gavetas, passei meus
dedos pelo fundo e os lados do compartimento. Tinha uma
irregularidade no lado direito. No olho, eu estimei que a borda
deveria ter uns três centímetros, talvez quatro.
Largo o suficiente para um compartimento secreto.
Sem saber muito bem como abri-lo, voltei minha mão ao lugar em
que tinha sentido a irregularidade. Talvez fosse só uma emenda,
onde dois pedaços de madeira se encontravam. Ou talvez… Eu
pressionei a madeira com força e ela saltou para fora. Eu fechei
meus dedos em volta do bloco que tinha se soltado e o puxei para
fora da escrivaninha, revelando uma pequena abertura. Lá dentro
estava um chaveiro sem chave.
O chaveiro era de plástico, na forma do número um.
CAPÍTULO 66

Oito. Um. Um.


Naquela noite eu dormi mais uma vez no quarto de Libby. Mas
ela, não. Eu pedi a Oren para confirmar com a equipe de segurança
dela se ela estava bem e na propriedade.
Ela estava, mas ele não me disse onde.
Nada de Libby. Nada de Max. Eu estava sozinha – mais sozinha
do que já estava quando cheguei à Casa. Nada de Jameson. Eu
não o via desde que ele tinha saído de manhã. Nada de Grayson.
Ele não tinha ficado muito tempo comigo depois que achei a pista.
Um. Um. Oito. Era tudo em que eu conseguia me concentrar. Três
números, o que confirmava que a árvore de Toby na floresta era só
uma árvore. Se havia um quarto número, ele ainda estava lá. Com
base no chaveiro, a pista em Black Wood poderia aparecer em
forma de qualquer coisa, não só de entalhe.
Tarde da noite e já quase dormindo, eu ouvi algo parecido com
passos. Atrás de mim? Embaixo? O vento assobiava do lado de fora
da minha janela. Tiros me espreitavam na memória. Eu não fazia
ideia do que estava se esgueirando pelas paredes.
Eu só adormeci perto do amanhecer. E então sonhei com dormir.
— Eu tenho um segredo — minha mãe diz, sentando-se
alegremente na cama e me acordando. — Quer tentar adivinhar,
minha filha que tem quinze anos agora?
— Eu não vou jogar — resmungo, puxando os cobertores por
cima da cabeça. — Eu nunca acerto.
— Eu vou te dar uma dica — minha mãe insiste. — Porque é seu
aniversário. — Ela puxa os cobertores e se deita ao meu lado,
apoiando a cabeça no meu travesseiro. O sorriso dela é contagioso.
Eu finalmente cedo e sorrio também.
— Certo. Me dê uma dica.
— Eu tenho um segredo… sobre o dia em que você nasceu.
Acordei com minha advogada abrindo as persianas e uma dor de
cabeça.
— Bom dia, flor do dia — Alisa disse, com a força e segurança de
uma pessoa defendendo um caso no tribunal.
— Vai embora. — Imitando minha versão mais nova, eu puxei os
cobertores acima da cabeça.
— Desculpa — Alisa disse, sem soar nem um pouco arrependida.
— Mas você realmente precisa se levantar agora.
— Eu não preciso fazer nada — resmunguei. — Eu sou uma
bilionária.
Isso funcionou tão bem quanto eu esperava.
— Se você se lembra — Alisa respondeu, com a voz agradável
—, na tentativa de fazer um controle de danos depois da sua
coletiva de imprensa espontânea dessa semana, eu planejei sua
estreia na sociedade texana para esse fim de semana. Há um
evento de caridade para você ir hoje à noite.
— Eu mal dormi noite passada — eu apelei por sua piedade. —
Alguém tentou atirar em mim!
— Vamos lhe dar vitamina C e um analgésico. — Alisa não tinha
misericórdia. — Vamos sair em meia hora para comprar um vestido.
Você tem treinamento de imprensa à uma da tarde e cabelo e
maquiagem às quatro.
— Talvez a gente deva reagendar — eu disse. — Devido a
alguém querer me matar.
— Oren autorizou sairmos da propriedade. — Alisa me olhou feio.
— Você tem vinte e nove minutos para ficar pronta. — Ela espiou
meu cabelo. — Cuide bem da sua aparência. Vejo você no carro.
CAPÍTULO 67

Oren me escoltou até o SUV. Alisa e dois seguranças estavam


esperando dentro do carro – e não eram os únicos.
— Eu sei que você jamais planejaria fazer compras sem mim —
Thea disse como saudação. — Onde existir uma butique de alta
costura, lá eu estarei.
Eu olhei para Oren, esperando que ele a expulsasse do carro. Ele
não o fez.
— Além disso — Thea me disse em um sussurro altivo enquanto
colocava o cinto de segurança —, nós precisamos falar sobre
Rebecca.

O SUV tinha três fileiras de assentos. Oren e um segundo guarda-


costas se sentaram na frente. Alisa e um terceiro se sentaram atrás.
Thea e eu estávamos no meio.
— O que você fez com Rebecca? — Thea perguntou bem
baixinho, quebrando o silêncio quando considerou que os outros
ocupantes do carro não estavam ouvindo.
— Eu não fiz nada com Rebecca.
— Eu vou levar em consideração que você não caiu na armadilha
de Jameson Hawthorne com o propósito de desenterrar memórias
de Jameson e Emily. — Thea claramente achava que estava sendo
magnânima. — Mas é aí que minha generosidade termina. Rebecca
é dolorosamente linda, mas aquela menina chora feio. Eu sei como
ela fica depois de passar a noite toda chorando. Qualquer que seja
o problema dela, isso não é só por causa de Jameson. O que
aconteceu no chalé?
Tentei compreender do que ela estava falando: Rebecca sabe dos
tiros. Ela estava proibida de contar para qualquer um. Por que ela
choraria?
— Falando em Jameson — Thea mudou de tática. — Ele está
claramente arrasado e só posso presumir que te devo essa.
Ele está arrasado? Senti algo se acender no meu peito – um e se
–, mas afastei.
— Por que você odeia tanto esse cara? — eu perguntei a Thea.
— Por que você não odeia?
— Pra começar, por que você está aqui? — Franzi a testa. — Não
estou falando desse carro — eu corrigi, antes que ela mencionasse
butiques —, mas da Casa Hawthorne. O que Zara e seu tio pediram
que você fizesse?
Por que ficar tão perto de mim? O que eles queriam?
— O que te faz pensar que eles me pediram pra fazer alguma
coisa? — Era óbvio, pelo tom de Thea e seus gestos, que ela tinha
nascido em uma posição privilegiada e nunca a perdeu.
Existe uma primeira vez para tudo, pensei. Mas, antes que
pudesse expor meu caso, o carro encostou em frente a uma loja e
os paparazzi nos circularam em uma multidão ensurdecedora e
claustrofóbica.
Eu me afundei na cadeira.
— Eu tenho um shopping inteiro no meu armário. — Eu dei um
olhar sofrido para Alisa. — Se eu vestisse algo que já tenho, nós
não precisaríamos lidar com isso.
— É por isso — Alisa disse quando Oren saiu do carro e o rugido
dos repórteres aumentou — que viemos.
Eu estava ali para ser vista, para controlar a narrativa.
— Dê um belo sorriso — Thea murmurou no meu ouvido.

A butique que Alisa havia escolhido para esse passeio


cuidadosamente coreografado era o tipo de loja que só tem um de
cada vestido. Eles tinham fechado a loja toda para mim.
— Verde. — Thea puxou um vestido de festa da arara. —
Esmeralda, pra combinar com seus olhos.
— Meus olhos são cor de mel — retruquei. Eu dei as costas para
o vestido que ela estava segurando e me dirigi para a vendedora. —
Você tem algo menos decotado?
— Você prefere cortes mais fechados? — O tom da vendedora
era tão cuidadosamente neutro que eu tinha certeza de que ela
estava me julgando.
— Algo que cubra minhas clavículas — eu disse, e então olhei
para Alisa: E meus pontos.
— Você ouviu a srta. Grambs — Alisa disse com firmeza. — E
Thea está certa, traga algo verde.
CAPÍTULO 68

Por fim, encontramos um vestido. Os paparazzi tiraram suas fotos


enquanto Oren enfiava todas nós de volta no SUV. Quando demos a
partida, ele olhou pelo retrovisor.
— Colocaram os cintos?
Eu já tinha afivelado o meu. Ao meu lado, Thea colocou o dela.
— Já pensou em cabelo e maquiagem? — ela perguntou.
— O tempo todo — eu respondi em um segundo. — Não tenho
pensado em nada além disso. Uma garota precisa ter suas
prioridades.
Thea sorriu.
— E eu aqui pensando que todas as suas prioridades tinham o
sobrenome Hawthorne.
— Isso não é verdade — contestei.
Mas será que não era mesmo? Quanto tempo eu tinha passado
pensando neles? Quanto eu queria que Jameson estivesse falando
a verdade quando me disse que eu era especial? Com quanta
clareza eu ainda sentia Grayson examinando minha ferida?
— Seu guarda-costas não queria que eu viesse junto — Thea
murmurou quando pegamos uma estrada sinuosa. — Sua advogada
também não. Eu insisti, e você sabe por quê?
— Não tenho ideia.
— Isso não tem nada a ver com meu tio ou com Zara. — Thea
brincava com as pontas de seu cabelo escuro. — Eu só estou
fazendo o que Emily ia querer que eu fizesse. Lembre-se disso,
o.k.?
Sem aviso, o carro dançou na pista. Meu corpo entrou em modo
de pânico: lute ou fuja, mas essas opções não eram possíveis, pois
eu estava presa no banco. Eu virei minha cabeça na direção de
Oren, que estava dirigindo – e notei que o guarda no banco do
carona estava com a arma na mão, vigilante, pronto para agir.
Algo está errado. Nós não devíamos ter vindo. Eu não devia ter
confiado, nem por um momento, que estava segura. Alisa insistiu
nisso. Ela me queria na rua.
— Segurem firme — Oren gritou.
— O que está acontecendo? — perguntei. As palavras ficaram
presas na minha garganta e saíram como um sussurro. Eu vi um
lampejo de movimento do lado de fora da minha janela: um carro,
vindo na nossa direção, em alta velocidade. Eu gritei.
Meu subconsciente estava me mandando correr.
Oren deu outra guinada, o suficiente para evitar um impacto de
verdade, mas eu ouvi o som do metal arranhando outro metal.
Alguém está tentando nos tirar da pista. Oren pisou no acelerador.
Eu mal consegui ouvir o som das sirenes, sirenes de polícia, com a
cacofonia de pânico na minha cabeça.
Isso não pode estar acontecendo. Por favor, não deixe isso
acontecer.
Por favor, não.
Oren passou para a pista esquerda, na frente do carro que tinha
nos atingido. Ele virou o SUV, passando por cima do canteiro, e nos
colocou na direção oposta.
Eu tentei gritar, mas não consegui soltar um grito alto ou agudo.
Eu estava chorando e não conseguia parar.
Ouvi mais sirenes. Eu me virei para olhar pela janela de trás do
carro, esperando o pior, me preparando para um impacto, mas o
que vi foi o carro que tinha nos atingido girando. Em segundos, o
veículo estava cercado de viaturas.
— Estamos bem — eu sussurrei. Mas não acreditava nisso. Meu
corpo estava me dizendo que eu nunca ficaria bem de novo.
Oren desacelerou, mas não parou e não virou o carro.
— O que foi isso? — perguntei, minha voz alta o suficiente, em
tonalidade e volume, para conseguir quebrar vidros.
— Isso — Oren respondeu calmamente — foi alguém mordendo a
isca.
A isca? Fulminei Alisa com o olhar.
— Do que ele está falando?
No calor do momento, eu tinha pensado que tudo o que estava
acontecendo era culpa de Alisa. Eu tinha duvidado dela, mas a
resposta de Oren me sugeriu que talvez eu devesse culpar os dois.
— É por isso — Alisa disse, sua calma característica abalada,
mas não destruída — que viemos. — Foi a mesma coisa que ela
tinha dito quando vimos os paparazzi fora da loja.
Os paparazzi. Garantindo que seríamos vistos. A necessidade
absoluta de vir comprar um vestido, apesar de tudo que aconteceu.
Por causa de tudo que aconteceu.
— Você me usou de isca? — Eu não era de gritar, mas era o que
estava fazendo.
Ao meu lado, Thea recuperou sua voz e mais um pouco.
— Que raios está acontecendo aqui?
Oren saiu da estrada e freou em um sinal vermelho.
— Sim — ele me disse, pedindo desculpas —, nós te usamos e
nos usamos como isca. — Ele olhou na direção de Thea e
respondeu à pergunta dela. — Avery sofreu uma tentativa de
assassinato dois dias atrás. Nossos amigos da delegacia
concordaram em fazer isso do meu jeito.
— O seu jeito poderia ter nos matado! — Eu não conseguia fazer
meu coração parar de saltar. Eu mal conseguia respirar.
— Nós tínhamos reforços — Oren me garantiu. — Meu pessoal e
também a polícia. Eu não vou te dizer que você não estava em
perigo, mas, a situação sendo a que era, perigo não era uma
possibilidade que poderia ser eliminada. Não havia uma boa opção.
Você precisa continuar morando naquela casa. Em vez de esperar
por outro ataque, Alisa e eu criamos o que parecia ser uma
excelente oportunidade. Agora talvez tenhamos algumas respostas.
Primeiro, eles me disseram que os Hawthorne não eram uma
ameaça. Então eles me usaram para revelar a ameaça.
— Vocês podiam ter me contado — eu falei, áspera.
— Era melhor — Alisa me disse — que você não soubesse. Que
ninguém soubesse.
Melhor para quem? Antes que eu pudesse dizer isso, Oren
recebeu uma ligação.
— Rebecca sabe do que aconteceu com você? — Thea
perguntou ao meu lado. — É por isso que ela estava tão chateada?
— Oren — Alisa disse, ignorando Thea e eu. — Eles
apreenderam o motorista?
— Sim. — Oren fez uma pausa e eu o peguei me olhando pelo
retrovisor, seus olhos amolecendo de uma forma que fez meu
estômago revirar. — Avery, é o namorado da sua irmã.
Drake.
— Ex-namorado — eu corrigi, minha voz falhando.
Oren não respondeu à minha correção.
— Eles encontraram um rifle no porta-malas que, pelo menos à
primeira vista, condiz com as balas utilizadas. A polícia vai querer
falar com a sua irmã.
— O quê? — retruquei, enquanto meu coração ainda socava sem
descanso minhas costelas. — Pra quê? — Em algum nível, eu
sabia, eu sabia a resposta dessa pergunta, mas eu não conseguia
aceitar.
Eu não aceitaria.
— Se Drake é o atirador, alguém o colocou dentro da propriedade
— Alisa disse, sua voz estranhamente gentil.
Não foi Libby, eu pensei.
— Libby não faria…
— Avery — Alisa pôs uma mão no meu ombro —, se algo
acontecer com você, mesmo sem um testamento, sua irmã e seu
pai são seus herdeiros.
CAPÍTULO 69

Estes eram os fatos: Drake tinha tentado jogar o carro onde eu


estava para fora da pista. Ele tinha uma arma que provavelmente
combinava com as balas que Oren tinha recuperado. Ele tinha
antecedentes criminais.
A polícia tomou meu depoimento. Eles fizeram perguntas sobre os
tiros. Sobre Drake. Sobre Libby. Quando acabou, eu fui escoltada de
volta para a Casa Hawthorne.
A porta da frente se abriu antes que Alisa e eu chegássemos à
entrada.
Nash saiu exaltado da casa e diminuiu o passo quando nos viu.
— Você pode me dizer por que só agora eu estou sendo
informado de que a polícia arrastou Libby daqui? — ele perguntou a
Alisa.
Eu nunca tinha ouvido um sotaque sulista soar daquele jeito.
Alisa ergueu o queixo.
— Se ela não está sendo presa, ela não tem a obrigação de ir
com eles.
— Ela não sabe disso! — Nash esbravejou. Então ele baixou a
voz e a olhou nos olhos. — Se quisesse protegê-la, você a teria
protegido.
Essa frase tinha tantas camadas para revelar, mas eu não
consegui começar a identificá-las, não com meu cérebro focado em
outras coisas. Libby. A polícia está com Libby.
— O meu trabalho não é proteger toda história triste que aparece.
— Alisa revidou.
Eu sabia que ela não estava falando só de Libby, mas isso não
importava.
— Ela não é uma história triste — rosnei. — Ela é minha irmã!
— E, muito provavelmente, cúmplice de uma tentativa de
assassinato.
Alisa estendeu a mão para tocar o meu ombro. Eu recuei.
Libby nunca me machucaria. Libby nunca deixaria ninguém me
machucar.
Eu acreditava nisso, mas não conseguia dizer isso. Por que eu
não conseguia me expressar?
— Aquele canalha tem mandado mensagens pra ela — Nash
disse ao meu lado. — Eu estou tentando convencê-la a bloquear o
cara, mas ela se sente tão culpada…
— Culpada pelo quê? — Alisa insistiu. — Por que ela se sente
culpada? Se ela não tem nada a esconder da polícia, por que você
está tão preocupado com um depoimento?
Os olhos de Nash lampejaram.
— Você vai realmente ficar aí e agir como se nós dois não
tivéssemos sido criados pra tratar a frase “nunca fale com as
autoridades sem um advogado presente” como um mandamento?
Eu pensei em Libby sozinha numa cela. Ela provavelmente nem
estava em uma cela, mas eu não conseguia afastar essa imagem.
— Mande alguém até lá — eu pedi a Alisa, trêmula. — Do
escritório. — Ela abriu a boca para protestar e eu a cortei. — Faça
isso.
Eu ainda não estava com o dinheiro, mas em algum momento ia
estar. Ela trabalhava para mim.
— Considere feito — Alisa disse.
— E me deixem sozinha — esbravejei. Ela e Oren tinham me
deixado no escuro. Eles tinham se movido em volta de mim como
uma peça de xadrez em um tabuleiro. — Todos vocês — eu disse,
me dirigindo para Oren.
Eu precisava ficar sozinha. Eu precisava fazer tudo que pudesse
para evitar que eles plantassem uma única semente de dúvida,
porque, se eu não podia confiar em Libby…
Então eu não tinha ninguém.
Nash pigarreou:
— Você quer contar pra ela sobre a consultora de media training
esperando na sala, Li-Li, ou quer que eu faça isso?
CAPÍTULO 70

Eu concordei em encontrar a caríssima consultora contratada por


Alisa. Não porque eu tinha alguma intenção de ir ao baile de
caridade à noite, mas porque era uma forma de garantir que todas
as outras pessoas me deixassem sozinha.
— Hoje vamos trabalhar três pontos, Avery. — A consultora, uma
elegante mulher negra com um sotaque britânico chique, tinha se
apresentado como Landon. Eu não tinha ideia se isso era seu nome
ou sobrenome. — Depois do ataque desta manhã, vai haver mais
interesse na sua história e na de sua irmã do que nunca.
Libby não me machucaria, eu pensei, desesperada. Ela não
permitiria que Drake me machucasse. E então pensei: Ela não
bloqueou o número dele.
— As três coisas que vamos praticar hoje são o que dizer, como
dizer e como identificar coisas que você não deve dizer e se
esquivar. — Landon era elegante, precisa e mais estilosa que
qualquer um dos meus consultores de estilo. — Agora, obviamente,
vai haver algum interesse no infeliz incidente que ocorreu hoje de
manhã, mas sua equipe legal prefere que você diga o mínimo
possível sobre esse assunto.
Esse assunto é o segundo atentado à minha vida em três dias.
Libby não está envolvida. Não pode estar.
— Repita comigo — Landon me instruiu. — Eu estou grata por
estar viva e estou grata por estar aqui esta noite.
Eu bloqueei os pensamentos que me perseguiam o máximo que
pude.
— Eu estou grata por estar viva — eu repeti, com frieza — e estou
grata por estar aqui esta noite.
Landon me olhou feio.
— Como você acha que soou?
— Puta da vida? — chutei.
Landon me ofereceu gentilmente um conselho.
— Tente soar menos puta da vida. — Ela esperou um momento e
então examinou a forma como eu estava sentada. — Endireite os
ombros. Relaxe os músculos. Sua postura é a primeira coisa que o
cérebro do público vai captar. Se parecer que você está tentando se
dobrar sobre si mesma, se você se diminuir, isso passa uma
mensagem.
Revirando os olhos, eu tentei me sentar mais reta e deixei minhas
mãos caírem ao lado do corpo.
— Eu estou grata por estar viva e estou grata por estar aqui esta
noite.
— Não. — Landon sacudiu a cabeça. — Você quer soar mais
como uma pessoa de verdade.
— Eu sou uma pessoa de verdade.
— Não para o resto do mundo. Não ainda. Neste momento você é
um espetáculo. — Não havia nada cruel no tom de Landon. — Finja
que você está em casa. Na sua zona de conforto.
Qual era minha zona de conforto? Conversar com Max, que
estava desaparecida pelo futuro próximo? Me aninhar na cama com
Libby?
— Pense em alguém em que você confia.
Isso doeu tanto que eu me senti vazia por dentro e, ao mesmo
tempo, com vontade de vomitar. Eu engoli em seco.
— Eu estou grata por estar viva e estou grata por estar aqui esta
noite.
— Soa forçado, Avery.
Eu rangi os dentes.
— É forçado.
— Precisa ser? — Landon me deixou marinar essa pergunta por
um tempo. — Nenhuma parte de você está grata por ter recebido
essa oportunidade? De viver nessa casa? De saber que, não
importa o que aconteça, você e as pessoas que ama estarão
sempre amparadas?
Dinheiro era previsibilidade. Era segurança. Era saber que você
podia errar sem estragar a sua vida. Se Libby realmente deixou
Drake entrar na propriedade, se foi ele quem atirou em mim, ela não
tinha como saber que isso ia acontecer.
— Você não está grata por estar viva, depois de tudo que
aconteceu? Você queria morrer hoje?
Não. Eu queria viver. Viver de verdade.
— Eu estou grata por estar aqui — eu disse, sentindo as palavras
um pouco mais dessa vez — e estou grata por estar viva.
— Melhor, mas dessa vez… deixe que doa.
— Como assim?
— Mostre a eles que você é vulnerável.
Eu franzi o nariz.
— Mostre a eles que você é só uma garota comum. Igual a eles.
Essa é a chave da minha profissão. Quão real, quão vulnerável você
pode parecer sem se permitir realmente ser vulnerável?
Vulnerável não era a história que eu tinha escolhido contar
quando escolheram meu guarda-roupa. Eu deveria ter um algo a
mais. Mas garotas com lâminas afiadas também tinham
sentimentos.
— Eu estou grata por estar viva — eu disse — e estou grata por
estar aqui esta noite.
— Bom. — Landon assentiu de leve. — Agora vamos jogar um
joguinho. Eu vou lhe fazer perguntas e você vai fazer a única coisa
que eu absolutamente preciso que você domine antes de lhe deixar
sair daqui para a festa de gala de hoje à noite.
— E o que é? — perguntei.
— Você não vai responder às perguntas. — A expressão de
Landon era intensa. — Nem com palavras, nem com seu rosto. De
jeito nenhum, a menos e até que você receba uma pergunta que
pode, de alguma forma, responder com a mensagem-chave que já
praticamos.
— Gratidão — eu disse. — Et cetera, et cetera. — Eu dei de
ombros. — Não parece difícil.
— Avery, é verdade que sua mãe foi amante de Tobias Hawthorne
por muitos anos?
Ela quase me pegou. Eu quase cuspi a palavra não. Mas, de
alguma forma, eu me controlei.
— Você planejou o ataque de hoje?
Hein?
— Observe seu rosto — ela me disse, e então perguntou, sem
hesitar: — Como é seu relacionamento com a família Hawthorne?
Eu fiquei sentada, passiva, não me permitindo sequer pensar o
nome deles.
— O que você vai fazer com o dinheiro? O que você diria para as
pessoas que a chamam de golpista e ladra? Você se feriu hoje?
Essa última pergunta me deu uma abertura.
— Eu estou bem — eu disse. — Eu estou grata por estar viva e
estou grata por estar aqui esta noite.
Eu esperava ganhar um parabéns, mas não ganhei nenhum.
— É verdade que sua irmã namora o homem que tentou matar
você? Ela está envolvida no atentado à sua vida?
Eu não sabia se tinha sido a forma como ela enfiou a pergunta,
logo depois da minha resposta anterior, ou o quão perto da verdade
a pergunta chegou, mas eu não aguentei.
— Não. — As palavras escapuliram da minha boca. — Minha irmã
não teve nada a ver com isso.
Landon me olhou feio.
— A partir do início — ela disse, firme. — Vamos tentar de novo.
CAPÍTULO 71

Depois da minha sessão com Landon, ela me deixou no meu


quarto, onde meus consultores de estilo já estavam esperando. Eu
podia ter decidido não ir ao baile, mas Landon me fez reconsiderar:
que tipo de mensagem isso passaria?
Que eu estava com medo? Que eu estava me escondendo… ou
escondendo algo? Que Libby era culpada?
Ela não é. Eu repetia isso o tempo todo para mim mesma.
Eu estava fazendo o cabelo e a maquiagem quando Libby entrou
no meu quarto. Os músculos do meu estômago se apertaram, meu
coração saltou para a garganta. O rosto dela estava marcado de
maquiagem escorrida. Ela tinha chorado.
Ela não fez nada errado. Não fez. Libby hesitou por três ou quatro
segundos, e então se atirou em cima de mim, me prendendo no
maior e mais apertado abraço da minha vida.
— Me desculpa. Me desculpa, de verdade.
Por um segundo – exatamente um – meu sangue gelou.
— Eu devia ter bloqueado ele — Libby continuou. — Mas, se
serve de consolo, eu acabei de colocar meu celular no liquidificador.
E liguei o liquidificador.
Ela não estava pedindo desculpas por ajudar e conspirar com
Drake. Ela estava pedindo desculpas por não ter bloqueado o
número dele. Por ter brigado comigo quando eu quis que ela fizesse
isso.
Eu abaixei a cabeça e um par de mãos imediatamente ergueu
meu queixo de volta para que os stylists pudessem continuar seu
trabalho.
— Diga alguma coisa — Libby pediu.
Eu queria dizer a ela que acreditava nela, mas só dizer essas
palavras já parecia desleal, como um reconhecimento de que eu
cheguei a desconfiar dela.
— Você vai precisar de um celular novo — eu disse.
Libby deu uma risadinha estrangulada.
— E também de um liquidificador novo. — Ela limpou os olhos
com o dorso da mão direita.
— Sem lágrimas! — o homem me maquiando ordenou. Ele disse
isso para mim, não para Libby, mas ela se recompôs também. —
Você quer ficar como na foto que recebemos, certo? — O homem
me perguntou, agressivamente colocando mousse no meu cabelo.
— Claro — respondi. — Que seja. — Se Alisa tinha dado uma foto
a eles, essa era uma decisão a menos para mim, uma coisa a
menos para pensar.
Como a atual pergunta de um bilhão de dólares: se Drake atirou
em mim e não foi Libby que deixou ele entrar na propriedade –
quem foi?

Uma hora depois, eu estava encarando o espelho. Os cabeleireiros


tinham trançado meu cabelo, mas não era só uma trança. Eles
tinham dividido meu cabelo no meio e cada metade em terços. Cada
terço tinha sido seccionado e uma metade se enrolava na outra,
dando ao cabelo uma aparência espiralada, como uma corda.
Elásticos minúsculos e transparentes e uma quantidade insalubre de
spray de cabelo seguraram isso no lugar quando eles começaram a
fazer uma trança embutida em cada lado do meu cabelo. Eu não
tenho certeza do que aconteceu em seguida, além de que doeu
para caramba e exigiu as quatro mãos dos cabeleireiros e uma de
Libby, mas a última trança se enrolava em volta da minha cabeça,
emoldurando meu rosto de um dos lados. As tranças eram
multicoloridas e realçavam as luzes e as mechas loiras no meu
cabelo castanho acinzentado. O efeito era hipnotizante, diferente de
qualquer coisa que eu já tinha visto.
A maquiagem era menos dramática – natural, fresh e discreta,
exceto nos olhos. Eu não tenho ideia de que bruxaria eles fizeram,
mas meus olhos contornados de preto pareciam ter o dobro do
tamanho normal e estavam verdes – verdes de verdade, com
faíscas que pareciam mais douradas do que marrom.
— E a pièce de résistance… — Um dos stylists passou um colar
em volta do meu pescoço. — Ouro branco e três esmeraldas.
As pedras tinham o tamanho da unha do meu dedão.
— Você está linda — Libby disse.
Eu não parecia em nada comigo mesma. Eu parecia alguém que
pertencia a um baile desses e, ainda assim, eu quase desisti do
baile. A única coisa que me impediu de jogar a toalha foi Libby.
Se havia algum momento em que eu precisava controlar a
narrativa, era agora.
CAPÍTULO 72

Oren me encontrou no topo da escada.


— A polícia conseguiu alguma coisa com Drake? — perguntei. —
Ele assumiu ter atirado? Com quem ele está conspirando?
— Respire fundo — Oren me disse. — Drake fez mais do que se
incriminou, mas ele está tentando pintar Libby como a arquiteta.
Mas a história não faz sentido. Não temos nenhuma imagem dele
entrando na propriedade, e haveria, se, como ele afirma, Libby
tivesse aberto o portão pra ele. Nossa melhor hipótese no momento
é que ele entrou pelos túneis.
— Os túneis? — repeti.
— São como as passagens secretas na casa, mas eles passam
por baixo da propriedade. Eu sei de duas entradas e as duas são
vigiadas.
Eu ouvi o que Oren não tinha dito.
— Existem duas que você conhece, mas essa é a Casa
Hawthorne. Pode haver mais.

***

Eu deveria me sentir como uma princesa de contos de fadas a


caminho do baile, mas minha carruagem era um SUV idêntico ao que
Drake tinha atacado hoje de manhã. Nada dizia conto de fadas
como uma tentativa de assassinato.
Quem conhece a localização dos túneis? Era a pergunta do
momento. Se havia túneis que o chefe de segurança da Casa
Hawthorne sequer conhecia, eu duvidava muito que Drake os
tivesse encontrado sozinhos. Libby também não saberia deles.
Então quem? Alguém muito, muito familiarizado com a Casa
Hawthorne. Drake foi procurado por essa pessoa? Por quê? Essa
última pergunta era menos misteriosa. Afinal, por que cometer
assassinato você mesmo quando existe outra pessoa por aí
disposta a fazer isso por você? Tudo que era preciso saber era que
Drake existia, que ele já tinha sido violento outras vezes e que ele
tinha todas as razões do mundo para me odiar.
Dentro da Casa Hawthorne, nada disso era segredo.
Talvez o cúmplice dele tenha atiçado sua ganância contando que,
se algo acontecesse comigo, Libby seria minha herdeira.
Eles arranjaram um cara com antecedentes para fazer o trabalho
sujo e pagar a pena. Eu estava sentada no meu SUV blindado usando
um vestido de cinco mil dólares e um colar que provavelmente
poderia pagar pelo menos um ano de faculdade e me perguntava se
a prisão de Drake significava que o perigo havia passado – ou se
quem tinha lhe dado acesso ao túnel tinha outros planos para mim.
— A Fundação comprou duas mesas para o evento de hoje —
Alisa me disse do banco da frente. — Zara detestou ter que abrir
mão de qualquer lugar, mas, como tecnicamente a Fundação é sua,
ela não teve muita escolha.
Alisa estava agindo como se nada tivesse acontecido. Como se
eu tivesse todos os motivos para confiar nela quando eu sentia que
os motivos para não fazê-lo estavam se acumulando.
— Então eu vou me sentar com eles — eu disse, sem expressão.
— Os Hawthorne.
Um dos quais – pelo menos um – talvez ainda me quisesse morta.
— É bom para você se tudo parecer amigável entre vocês. —
Alisa precisava perceber o quanto isso soava ridículo, considerando
o contexto. — Se a família Hawthorne aceitá-la, isso vai ajudar a
afastar algumas das teorias menos simpáticas quanto às razões de
você ser a herdeira.
— E que tal a teoria pouco simpática de que um deles, pelo
menos um, me quer morta? — perguntei.
Talvez fosse Zara, ou seu marido, ou Skye, ou até mesmo Nan,
que meio que me contou que matou o marido.
— Ainda estamos em alerta — Oren garantiu. — Mas seria melhor
pra nós se os Hawthorne não percebessem isso. Se a esperança do
conspirador era culpar Drake e Libby, deixe que pensem que foram
bem-sucedidos.
Da última vez, eu tinha acabado com o elemento surpresa. Dessa
vez as coisas seriam diferentes.
CAPÍTULO 73

— Avery, aqui, por favor!


— Algum comentário sobre a prisão de Drake Sanders?
— Você pode comentar sobre o futuro da Fundação Hawthorne?
— É verdade que sua mãe uma vez foi presa por prostituição?
Se não fosse pelas sete rodadas de treinamento que eu tinha feito
antes, essa última teria me pegado. Eu teria respondido e minha
resposta seria cheia de palavrões, no plural mesmo. Em vez disso,
eu fiquei perto do carro e esperei.
E então a pergunta pela qual eu estava esperando veio.
— Com tudo que aconteceu, como você se sente?
Eu olhei diretamente para o repórter que fez a pergunta.
— Eu estou grata por estar viva — eu disse. — E eu estou grata
por estar aqui esta noite.

O evento era em um museu de arte. Nós entramos pelo andar de


cima e descemos por uma enorme escadaria de mármore até a sala
de exposição. Quando eu estava na metade do caminho, todo
mundo no salão estava ou me encarando ou não encarando de um
jeito que era ainda pior.
No fim da escadaria, eu vi Grayson. Ele usava um smoking
exatamente do mesmo jeito que usava um terno. Ele estava
segurando uma taça com um líquido transparente dentro. No
momento em que ele me viu, ele congelou, tão completa e
subitamente que pareceu que alguém tinha congelado o tempo.
Lembrei de nosso último encontro no cômodo escondido da
biblioteca, na forma como ele tinha olhado para mim e, por alguma
razão, achei que ele estava me olhando agora da mesma maneira.
Acho que eu o deixei sem fôlego.
Então ele derrubou a taça que tinha na mão. Ela atingiu o chão e
quebrou, fazendo os cacos de cristal se espalharem por todos os
lados.
O que aconteceu? O que eu fiz?
Alisa me cutucou para continuar andando. Eu terminei de descer
as escadas e os garçons correram para limpar o chão.
Grayson me encarou.
— O que você está fazendo? — A voz dele era gutural.
— Não entendi — eu disse.
— Seu cabelo — ele gaguejou. Ele ergueu sua mão livre até
minha trança, mas afastou os dedos antes que a tocassem,
cerrando o punho. — O colar. O vestido…
— Qual é o problema com eles?
A única palavra que ele conseguiu dizer em resposta foi um
nome.

Emily. Era sempre Emily. De alguma forma, eu fui até o banheiro


sem fazer parecer muito que eu estava fugindo. Eu me esforcei para
tirar meu celular da carteira de cetim preto que eu tinha ganhado,
incerta do que eu planejava fazer com o celular quando o pegasse.
Alguém parou do meu lado em frente ao espelho.
— Você está bonita — Thea disse, me olhando de lado. — Na
verdade, você está perfeita.
Eu a encarei, começando a compreender.
— O que você fez, Thea?
Ela baixou os olhos para seu celular, apertou alguns botões e,
logo depois, eu recebi uma mensagem. Eu nem sabia que ela tinha
meu número.
Eu abri a mensagem para ver a foto anexada e todo o sangue
deixou meu rosto. Nessa foto, Emily Laughlin não estava rindo. Ela
estava sorrindo para a câmera, um sorrisinho maldoso, como se
estivesse prestes a dar uma piscadela. Sua maquiagem era natural,
mas seus olhos pareciam artificialmente grandes e seu cabelo…
Estava exatamente igual ao meu.
— O que você fez? — perguntei de novo, dessa vez mais uma
acusação do que uma pergunta. Ela tinha se convidado para minha
ida às compras. Foi ela que sugeriu que eu usasse verde, como
Emily estava usando na foto.
Até mesmo meu colar era assustadoramente parecido com o dela.
Quando o cabeleireiro perguntou se eu queria seguir o exemplo
da foto e pensei que a sugestão era de Alisa. Eu achei que era a
foto de uma modelo. Não de uma garota morta.
— Por que você faria isso? — falei, corrigindo minha pergunta.
— É o que Emily ia querer. — Thea tirou um batom da bolsa. —
Se serve de consolo — ela disse, depois que terminou de deixar
seus lábios num vermelho-escuro reluzente —, eu não fiz isso com
você.
Ela tinha feito com eles.
— Os Hawthorne não mataram Emily — eu disparei. — Rebecca
disse que foi o coração dela.
Tecnicamente, ela tinha dito que Grayson tinha dito que foi o
coração dela.
— Quanta certeza você tem de que a família Hawthorne não está
tentando matar você? — Thea sorriu. Ela estava lá hoje de manhã.
Ela tinha ficado abalada. E agora ela estava agindo como se tudo
fosse uma piada.
— Tem uma coisa muito errada com você — eu disse.
Minha fúria não pareceu afetá-la.
— Eu te disse quando nos conhecemos que a família Hawthorne
era perturbada e perversa. — Ela encarou o espelho um momento a
mais. — Eu nunca disse que eu também não era.
CAPÍTULO 74

Eu tirei o colar e fiquei segurando-o na frente do espelho. O cabelo


era o maior problema. Tinha sido necessário duas pessoas para
montá-lo. Eu precisaria de um ato de Deus para soltá-lo.
— Avery? — Alisa enfiou a cabeça para dentro do banheiro.
— Me ajuda — pedi.
— Com o quê?
— Meu cabelo.
Eu estendi a mão para trás e comecei a puxá-lo, e Alisa pegou
minhas mãos e as segurou. Ela passou meus pulsos para sua mão
direita e trancou a porta do banheiro com a esquerda.
— Eu não devia ter insistido — ela disse, sua voz baixa. — Foi
coisa demais muito rápido, não foi?
— Você sabe com quem eu estou parecendo? — Eu enfiei o colar
no rosto dela. Ela o pegou das minhas mãos.
Ela franziu a testa.
— Com quem você está parecendo? — Essa parecia uma
pergunta honesta de uma pessoa que não gostava de fazer
perguntas para as quais ela não sabia a resposta.
— Emily Laughlin. — Eu não pude evitar um olhar para o espelho.
— Thea me vestiu igualzinho a ela.
Alisa precisou de um momento para processar a informação.
— Eu não sabia. — Ela fez uma pausa, considerando. — A
imprensa não vai saber também. Emily era só uma menina comum.
Não havia nada de comum em Emily Laughlin. Eu não sabia
quando eu tinha passado a acreditar nisso. No momento em que vi
a foto dela? Minha conversa com Rebecca? A primeira vez que
Jameson falou o nome dela ou a primeira vez que eu o mencionei
para Grayson?
— Se você passar mais tempo nesse banheiro, as pessoas vão
notar — Alisa me avisou. — Elas já notaram. Para o bem ou para o
mal, você precisa ir lá fora.
Eu tinha ido ao baile porque, de alguma forma perturbada, tinha
pensado que fazer uma cara feliz ia proteger Libby. Eu dificilmente
estaria ali se minha própria irmã tivesse tentado me matar, estaria?
— Certo — concordei, rangendo os dentes. — Mas, se eu fizer
isso por você, eu quero sua palavra de que você vai proteger minha
irmã de todas as formas que puder. Eu não me importo com qual é
seu lance com Nash ou qual é o dele com Libby. Você não trabalha
só pra mim mais. Você trabalha pra ela também.
Alisa engoliu o que quer que ela realmente quisesse dizer. Tudo
que saiu da boca dela foi:
— Você tem a minha palavra.

***

Eu só precisava sobreviver ao jantar. Uma dança ou duas. O leilão.


Era fácil falar. Alisa me guiou até um par de mesas que a Fundação
Hawthorne tinha reservado. Na mesa da esquerda, Nan era a rainha
dos grisalhos. A mesa da direita estava meio que cheia de
Hawthorne: Zara e Constantine, Nash, Grayson e Xander.
Eu me direcionei para a mesa de Nan, mas Alisa me impediu e
gentilmente me guiou para o lugar bem ao lado de Grayson. Alisa se
sentou na outra cadeira e deixou três lugares vazios – pelo menos
um deles eu presumi que fosse para Jameson.
Ao meu lado, Grayson não disse nada. Eu perdi a luta para não
observá-lo e o peguei olhando fixo para a frente, sem olhar para
mim ou para qualquer outra pessoa na mesa.
— Eu não fiz de propósito — murmurei, tentando manter a
expressão do meu rosto normal pelo bem do nosso público, tanto
convidados quanto fotógrafos.
— Claro que não — Grayson respondeu, seu tom rígido, as
palavras mecânicas.
— Eu tiraria a trança se pudesse — murmurei. — Mas não
consigo sozinha.
A cabeça dele baixou de leve, seus olhos se fecharam por só um
momento.
— Eu sei.
Eu fui tomada pela imagem mental de Grayson ajudando Emily a
soltar o seu cabelo, os dedos dele liberando a trança pouco a
pouco.
Meu braço esbarrou na taça de vinho de Alisa. Ela tentou pegá-la,
mas não foi rápida o suficiente. O vinho manchando a toalha de
mesa branca me fez perceber o que era óbvio desde o início, desde
o momento em que o testamento tinha sido lido.
Eu não pertencia a esse mundo – não a uma festa como essa,
não ao lado de Grayson Hawthorne. E nunca pertenceria.
CAPÍTULO 75

Consegui chegar ao fim do jantar sem ninguém tentar me matar e


Jameson não apareceu. Eu disse a Alisa que precisava de ar, mas
não fui para a parte externa. Eu não conseguiria enfrentar a
imprensa de novo tão cedo, então eu acabei em outra ala do museu,
Oren como uma sombra atrás de mim.
A ala estava fechada. As luzes eram fracas e as salas de
exposição estavam bloqueadas, mas o corredor estava aberto. Eu
caminhei pelo longo corredor, os passos de Oren atrás dos meus.
Em cima havia uma luz acesa e brilhante contrastando com os
arredores. A corda que bloqueava essa sala de exposição tinha sido
movida para o lado. Passar por ela pareceu com sair de um teatro
escuro para o exterior com sol. A sala estava clara. Até mesmo as
molduras dos quadros eram brancas. Havia só uma pessoa na sala,
usando um smoking sem o paletó.
— Jameson — eu disse o nome dele, mas ele não virou. Ele
estava parado em frente a uma pintura pequena, olhando com
intensidade a mais ou menos um metro de distância. Ele olhou para
mim quando eu comecei a caminhar na direção dele, mas voltou a
olhar para a pintura.
Você me viu, eu pensei. Você viu a forma como arrumaram meu
cabelo. A sala estava quieta o suficiente para eu conseguir ouvir
meu próprio coração batendo. Diga alguma coisa.
Ele apontou a pintura com a cabeça.
— Os quatro irmãos, de Cézanne — ele disse quando eu parei ao
seu lado. — Um favorito da família Hawthorne, por motivos óbvios.
Eu me forcei a olhar para a pintura, não para ele. Havia quatro
figuras na tela, seus rostos borrados. Eu conseguia distinguir as
linhas dos seus músculos. Eu quase podia vê-los em movimento,
mas o artista não estava atrás de realismo. Meus olhos focaram a
etiqueta dourada abaixo da pintura.
Quatro Irmãos. Paul Cézanne. 1898. Emprestado da coleção de
Tobias Hawthorne.
Jameson virou seu rosto para o meu.
— Eu sei que você encontrou a Davenport. — Ele arqueou a
sobrancelha. — Você chegou antes de mim.
— Grayson também — eu disse.
A expressão de Jameson se fechou.
— Você estava certa. A árvore em Black Wood era só uma árvore.
A pista que nós estamos procurando é um número. Oito. Um. Um.
Só falta um.
— Não existe nós — eu disse. — Você sequer me vê como uma
pessoa, Jameson? Eu sou apenas uma ferramenta?
— Talvez eu mereça isso. — Ele sustentou meu olhar por mais
um momento e então olhou de volta para a pintura. — O velho
costumava dizer que eu era hiperfocado. Eu não fui feito pra me
importar com mais de uma coisa por vez.
Eu me perguntei se essa coisa era o jogo – ou ela.
— Pra mim chega, Jameson. — Minhas palavras ecoaram na sala
branca. — Não dá mais. Seja isso o que for. — Eu me virei para ir
embora.
— Eu não me importo que você esteja usando a trança de Emily.
— Jameson sabia exatamente o que dizer para me fazer parar. —
Eu não me importo — ele repetiu — porque eu não me importo com
Emily. — Ele soltou uma respiração trêmula. — Eu terminei com ela
naquela noite. Eu estava cansado de seus joguinhos, eu disse a ela
que não aguentava mais e, algumas horas depois, ela estava morta.
Eu me virei para olhar para ele e seus olhos verdes, um pouco
injetados, me encararam.
— Sinto muito — eu disse, me perguntando quantas vezes ele
tinha voltado a essa última conversa.
— Venha comigo pra Black Wood — Jameson implorou. Ele
estava certo. Ele tinha um hiperfoco. — Você não precisa me beijar.
Você nem precisa gostar de mim, Herdeira, mas por favor, não me
deixe fazer isso sozinho.
Ele parecia vulnerável, real de uma forma que nunca tinha
parecido. Você não precisa me beijar. Ele falou isso como se
quisesse que eu o beijasse.
— Espero não estar interrompendo.
Jameson e eu olhamos para a entrada ao mesmo tempo. Grayson
estava ali e eu percebi que, do seu ponto de vista, tudo que ele teria
visto de mim quando entrou na sala era a trança.
Por um momento, Grayson e Jameson se encararam.
— Você sabe onde eu vou estar, Herdeira — Jameson me disse.
— Se alguma parte de você quiser me encontrar.
Ele passou por Grayson e saiu. Grayson acompanhou o irmão
com os olhos por um longo tempo antes de se dirigir a mim.
— O que ele disse quando te viu?
Quando ele viu meu cabelo, você quer dizer. Eu engoli em seco.
— Ele me disse que tinha terminado com Emily na noite em que
ela morreu.
Silêncio.
Eu me virei para olhar para Grayson.
Os olhos dele estavam fechados e cada músculo do seu corpo
estava contraído.
— Jameson te disse que eu a matei?
CAPÍTULO 76

Depois que Grayson foi embora, eu passei mais quinze minutos na


galeria – sozinha –, encarando o quadro de Cézanne antes que
Alisa mandasse alguém me buscar.
— Eu concordo — Xander disse, embora eu não tivesse falado
nada para ele concordar. — Que festa horrível. A proporção de
socialites pra scones é imperdoável.
Eu não estava no clima para piadas com scones. Jameson diz
que terminou com Emily. Grayson afirma que a matou. Thea está
me usando para punir os dois.
— Estou indo embora — eu disse a Xander.
— Você não pode ir embora ainda!
Eu olhei para ele.
— Por que não?
— Porque… — Xander sacudiu sua única sobrancelha. — Eles
acabaram de abrir a pista de dança. Você quer dar à imprensa algo
do que falar, não quer?

***

Uma dança. Era tudo que eu daria a Alisa – e aos fotógrafos – antes
de dar o fora daquela festa.
— Finja que eu sou a pessoa mais fascinante que você já
conheceu — Xander me aconselhou enquanto me acompanhava até
a pista de dança para uma valsa.
Ele estendeu uma mão para mim e então curvou seu outro braço
em volta das minhas costas.
— Aqui, vou te ajudar: todo ano, no meu aniversário, entre os sete
e doze anos, meu avô me dava um dinheiro pra investir e eu gastei
tudo em criptomoeda porque eu sou um gênio, e não porque eu
achei que criptomoeda era algo que soava bem. — Ele me girou
uma vez. — Eu vendi o que tinha antes do meu avô morrer por
quase cem milhões de dólares.
Eu o encarei.
— Você o quê?
— Viu? — ele disse. — Fascinante. — Xander seguiu dançando,
mas baixou os olhos. — Nem meus irmãos sabem disso.
— Em que seus irmãos investiram? — perguntei. Esse tempo
todo, eu estava presumindo que eles tinham ficado sem nada. Nash
tinha me contado da tradição de aniversário de Tobias Hawthorne,
mas eu não tinha pensado duas vezes nos “investimentos” deles.
— Não tenho ideia — Xander disse, animado. — Não era um
assunto que podíamos discutir.
Nós seguimos dançando e os fotógrafos aproveitaram a deixa.
Xander colocou seu rosto bem perto do meu.
— A imprensa vai achar que estamos namorando — eu disse,
enquanto minha mente ainda girava com essa revelação.
— Por acaso — Xander respondeu, altivo —, eu sou excelente em
namoros falsos.
— Quem exatamente você fingiu namorar? — perguntei.
Xander olhou para Thea.
— Eu sou uma máquina de Rube Goldberg — ele disse em
resposta —, eu faço coisas simples de formas complicadas. — Ele
fez uma pausa. — Foi ideia de Emily que Thea e eu namorássemos.
Em era, vamos dizer assim, persistente. Ela não sabia que Thea já
estava com alguém.
— E você concordou com o teatro? — perguntei, incrédula.
— Eu repito: eu sou uma máquina de Rube Goldberg humana. —
A voz dele suavizou. — E eu não fiz isso por Thea.
Então por quem? Eu precisei de um momento para juntar as
peças. Xander tinha mencionado namoros falsos duas vezes antes:
uma vez em relação a Thea e outra quando eu perguntei sobre
Rebecca.
— Thea e Rebecca? — perguntei.
— Profundamente apaixonadas — Xander confirmou. Thea me
disse que ela era dolorosamente linda. — A melhor amiga de Emily
e a irmã mais nova. O que eu poderia fazer? Elas acharam que
Emily não entenderia. Ela era possessiva com as pessoas que
amava e eu sabia como era difícil pra Rebecca contrariá-la. Só
dessa vez, Bex queria algo pra si.
Eu me perguntei se Xander gostava dela – se fingir namorar Thea
era sua forma torcida à la Rube Goldberg de dizer isso.
— Thea e Rebecca estavam certas? Que Emily não entenderia?
— Mais que certas. — Xander fez uma pausa. — Em descobriu
sobre elas naquela noite. Ela encarou como uma traição.
Naquela noite – a noite em que ela morreu.
A música terminou e Xander soltou minha mão, mantendo seu
outro braço em volta da minha cintura.
— Sorria para os repórteres — ele murmurou. — Dê uma história
pra eles. Olhe bem fundo nos meus olhos. Sinta o peso do meu
charme. Pense nos seus doces favoritos.
Os cantos dos meus lábios viraram para cima e Xander
Hawthorne me acompanhou para fora da pista de dança e até Alisa.
— Você pode ir embora agora — ela me disse, satisfeita. — Se
quiser.
Nossa, sim.
— Você vem? — perguntei a Xander.
O convite pareceu surpreendê-lo.
— Não posso. — Ele fez uma pausa. — Eu resolvi Black Wood.
— Isso conquistou toda a minha atenção. — Eu poderia vencer isso
tudo. — Xander olhou para seus sapatos de festa. — Mas Jameson
e Grayson precisam mais do que eu. Volte para a Casa Hawthorne.
Quando você chegar lá, vai ter um helicóptero te esperando. Peça
ao piloto para sobrevoar Black Wood.
Um helicóptero?
— Aonde você for — Xander me disse — eles irão atrás.
Eles, querendo dizer seus irmãos.
— Eu pensei que você queria ganhar — eu disse a Xander.
Ele engoliu em seco. Com força.
— Eu quero.
CAPÍTULO 77

Eu acreditei mais ou menos em Xander quando ele me prometeu


um helicóptero, mas ali estava ele, no gramado da frente da Casa
Hawthorne, com a hélice parada. Oren não me deixou pisar nele até
examiná-lo. Mesmo assim, ele insistiu em tomar o lugar do piloto. Eu
subi atrás e descobri que Jameson já estava ali.
— Encomendou um helicóptero? — ele me perguntou, como se
isso fosse uma coisa normal de se fazer.
Sentei ao lado dele e afivelei meu cinto.
— Estou surpresa que você me esperou pra decolar.
— Eu te disse, Herdeira. — Ele me deu um sorriso torto. — Eu
não quero fazer isso sozinho.
Por um segundo, foi como se nós dois estivéssemos de volta na
pista de corrida, acelerando para a linha de chegada, e então, do
lado de fora do helicóptero, um vulto preto chamou minha atenção.
Um smoking. Quando Grayson embarcou, era impossível decifrar
sua expressão.
Jameson te disse que eu a matei? O eco dessa pergunta na
minha mente era ensurdecedor. Como se tivesse ouvido, Jameson
se virou na direção de Grayson.
— O que você está fazendo aqui?
Xander me disse que, aonde eu fosse, os dois me seguiriam.
Jameson não me seguiu, eu me lembrei, todos os nervos do meu
corpo alertas. Ele chegou aqui primeiro.
— Posso? — Grayson me perguntou, apontando com a cabeça
um lugar vazio. Eu conseguia sentir Jameson me encarando,
desejando que eu dissesse não.
Eu assenti.
Grayson se sentou atrás de mim. Oren checou os cintos para ter
certeza de que estávamos seguros, então ligou o motor. Em um
minuto, o som das hélices era ensurdecedor. Meu coração saltou
para a garganta quando levantamos voo.
Eu tinha gostado de estar num avião pela primeira vez, mas isso
era diferente… era mais. O barulho, a vibração, a sensação mais
forte de que quase nada me separava do ar – ou do chão. Meu
coração batia forte, mas eu não conseguia ouvir. Eu não conseguia
ouvir meus pensamentos, não pensava na tristeza na voz de
Grayson quando ele fez aquela pergunta, não pensava na forma
como Jameson tinha falado que eu não precisava beijá-lo ou gostar
dele.
Tudo que eu conseguia pensar era em olhar para baixo.
Conforme voávamos acima de Black Wood, eu conseguia ver o
emaranhado de árvores lá embaixo – denso demais para que a luz
do sol penetrasse. Mas, quando meu olhar migrou para o centro da
floresta, as árvores rarearam, se abrindo em uma clareira bem no
centro. Jameson e eu estávamos nos aproximando da clareira
quando Drake começou a atirar. Eu tinha notado a grama, mas não
havia visto, não da forma como estava vendo agora.
De cima, a clareira, o anel mais claro de árvores que a cercavam
e a floresta externa mais densa formavam o que parecia um
comprido e estreito O.
Ou um zero.

Quando o helicóptero pousou, eu me sentia prestes a explodir para


fora da minha pele. Eu saltei para fora antes que a hélice tivesse
parado completamente, cheia de adrenalina e risonha.
Oito. Um. Um. Zero.
Jameson saltou na minha direção.
— Nós conseguimos, Herdeira. — Ele ficou bem na minha frente,
erguendo as mãos com as palmas para cima. Bêbada do barato do
helicóptero, eu fiz o mesmo e os dedos dele se entrelaçaram com os
meus. — Quatro nomes do meio. Quatro números.
Beijá-lo tinha sido um erro. Segurar as mãos dele agora era um
erro, mas eu não me importava.
— Oito, um, um, zero — eu disse. — Foi nessa ordem que
descobrimos os números, e é a ordem em que as pistas estão no
testamento. — Westbrook, Davenport, Winchester e Blackwood,
nessa ordem. — Uma combinação, talvez?
— Existe pelo menos uma dúzia de cofres na Casa — Jameson
refletiu. — Mas existem outras possibilidades. Um endereço…
coordenadas… e não há garantias de que a pista não está
embaralhada. Pra resolver isso, nós talvez tenhamos que reordenar
os números.
Um endereço. Coordenadas. Uma combinação. Eu fechei os
olhos, só por um segundo, só por tempo suficiente para meu
cérebro formular outra possibilidade.
— Uma data? — Todas as quatro pistas eram números com um
único digito. Para uma combinação ou coordenadas, eu esperaria
alguma pista com dois dígitos. Mas uma data…
O um ou o zero teriam que ir na frente. 1-1-0-8 seria 11/08.
— Onze de agosto — eu disse, e então passei pelo resto das
possibilidades. 08/11. — Oito de novembro. — 18/01. — Dezoito de
janeiro.
Então eu cheguei à última possibilidade, a última data.
Eu parei de respirar. Isso era uma coincidência grande demais
para ser uma coincidência.
— Dezoito do dez. Dezoito de outubro. — Eu inspirei. Todos os
nervos do meu corpo pareciam alerta. — É o meu aniversário.
Eu tenho um segredo, minha mãe tinha me dito no meu
aniversário de quinze anos, dois anos atrás, dias antes de ela
morrer, sobre o dia em que você nasceu…
— Não. — Jameson soltou minhas mãos.
— Sim — respondi. — Eu nasci em dezoito de outubro. E minha
mãe…
— Isso não é por causa da sua mãe. — Jameson cerrou os
punhos e deu um passo para trás.
— Jameson? — Eu não fazia ideia do que estava acontecendo.
Se Tobias Hawthorne tinha me escolhido por causa de algo que
havia acontecido no dia que eu nasci, isso era grande. Enorme. —
Pode ser isso. Talvez ele tenha cruzado o caminho da minha mãe
quando ela estava em trabalho de parto? Talvez ela tenha feito algo
pra ele quando estava grávida de mim?
— Para.
A palavra estalou como um chicote. Jameson estava me olhando
como se eu fosse uma aberração, como se eu estivesse louca,
como se me ver pudesse revirar estômagos, incluindo e
especialmente o dele.
— O que você…
— Os números não são uma data.
Sim, eu pensei com força. Eles são.
— Essa não pode ser a resposta — ele disse.
Eu dei um passo à frente, mas ele recuou. Eu senti um toque leve
no meu braço. Grayson. Por mais leve que fosse o toque dele, eu
tive a clara sensação de que ele estava me segurando.
Mas qual era a razão? O que eu tinha feito?
— Emily morreu — Grayson me disse, sua voz tensa — no dia
dezoito de outubro, um ano atrás.
— Aquele filho da puta doente — Jameson xingou. — Tudo isso,
as pistas, o testamento, ela, tudo isso por isso? Ele só achou uma
pessoa aleatória que nasceu nesse dia pra passar uma mensagem?
Essa mensagem?
— Jamie…
— Não fale comigo. — Jameson passou seu olhar de Grayson
para mim. — Foda-se tudo isso. Cansei.
Ele saiu andando noite adentro.
— Aonde você vai? — gritei.
— Parabéns, Herdeira — Jameson respondeu, sua voz pingando
qualquer coisa, menos felicitações. — Eu acho que você teve a
sorte de nascer no dia certo. Mistério resolvido.
CAPÍTULO 78

Tinha que haver mais no quebra-cabeça do que isso. Tinha que


ter. Eu não podia ser só uma pessoa aleatória nascida no dia certo.
Não pode ser isso. E minha mãe? E o segredo dela, o segredo que
ela tinha mencionado no meu aniversário, um ano inteiro antes de
Emily morrer? E a carta que Tobias Hawthorne tinha deixado para
mim?
Sinto muito.
Pelo que Tobias Hawthorne tinha que se desculpar? Ele não
escolheu aleatoriamente uma pessoa com o aniversário no dia
certo. Tem que ser mais do que isso.
Mas eu ainda lembrava das palavras de Nash: Você é a bailarina
de vidro... ou a faca.
— Sinto muito — Grayson disse ao meu lado. — Não é culpa de
Jameson ele ser assim. Não é culpa de Jameson… — o invencível
Grayson Hawthorne parecia estar com dificuldades para falar… —
que o jogo termine assim.
Eu ainda estava com a roupa do baile. Meu cabelo ainda estava
trançado como o de Emily.
— Eu deveria saber. — A voz de Grayson estava cheia de
emoção. — Eu sabia. No dia que o testamento foi lido, eu sabia que
tudo isso era por minha causa.
Eu pensei na forma como Grayson tinha aparecido no meu quarto
de hotel na noite do dia em que o testamento foi lido. Ele estava
com raiva, determinado a descobrir o que eu tinha feito.
— Do que você está falando? — Eu procurei respostas nos olhos
e no rosto dele. — Como isso pode ser por sua causa? E não me
diga que você matou Emily.
Ninguém, nem mesmo Thea, tinha chamado a morte de Emily de
assassinato.
— Eu matei — Grayson insistiu, sua voz baixa e vibrando de
intensidade. — Se não fosse por mim, ela não estaria onde estava.
Ela não teria pulado.
Pulado. Minha garganta ficou seca.
— Onde vocês estavam? — perguntei baixinho. — E o que tudo
isso tem a ver com o testamento do seu avô?
Grayson estremeceu.
— Talvez fosse pra eu ter te contado — ele disse depois de um
longo momento. — Talvez essa seja a questão desde o começo.
Talvez você seja desde o início igualmente um enigma… e uma
penitência. — Ele baixou a cabeça.
Eu não sou sua penitência, Grayson Hawthorne. Eu não tive
chance de dizer isso em voz alta antes que ele começasse a falar
de novo, e, quando ele começou, seria necessária uma intervenção
divina para fazê-lo parar.
— Nós a conhecíamos desde sempre. O sr. e a sra. Laughlin
trabalham na Casa Hawthorne há décadas. A filha e as netas deles
moravam na Califórnia. As meninas vinham visitar duas vezes por
ano, uma vez com os pais no Natal, e outra no verão, por três
semanas, sozinhas. Nós não as víamos muito no Natal, mas, nos
verões, nós todos brincávamos juntos. Era um pouco como um
acampamento de verão, na verdade. Você tem amigos de
acampamento que vê uma vez por ano e não participam do seu dia
a dia. Assim eram Emily e Rebecca. Elas eram tão diferentes de nós
quatro. Skye dizia que era porque eram meninas, mas eu sempre
achei que era porque eram duas irmãs, e Emily era a mais velha.
Ela era uma força da natureza, e os pais dela estavam sempre tão
preocupados que ela não se cansasse demais. Ela podia jogar
cartas com a gente e outros jogos mais tranquilos dentro de casa…
mas ela não podia ficar ao ar livre como nós ou correr. Ela nos fazia
levar coisas pra ela. Virou uma pequena tradição. Emily nos
mandava em uma caçada e quem achasse o que ela tinha pedido,
quanto mais peculiar e difícil de encontrar melhor, ganhava.
— O que vocês ganhavam? — perguntei.
Grayson deu de ombros.
— Nós somos irmãos. Não precisamos ganhar nada em particular,
só ganhar.
Isso fazia sentido.
— E então Emily conseguiu um transplante de coração — eu
disse. Jameson tinha me contado essa parte. Ele disse que depois
disso ela queria viver.
— Os pais dela continuaram protetores, mas Emily tinha passado
tempo suficiente em gaiolas de vidro. Ela e Jameson tinham treze
anos. Eu tinha catorze. Ela vinha toda animada no verão, o demônio
em pessoa. Rebecca estava sempre atrás de nós, mandando tomar
cuidado, mas Emily insistia que os médicos haviam dito que seu
nível de atividade só era limitado pela sua disposição. Se ela
conseguisse fazer, não havia motivo pelo qual ela não deveria. A
família se mudou pra cá de vez quando Emily tinha dezesseis anos.
Ela e Rebecca não ficavam na propriedade como durante as visitas,
mas meu avô pagou pra que elas frequentassem a escola particular.
Eu vi para onde isso estava indo.
— Ela não era mais só uma amiga de acampamento.
— Ela era tudo — Grayson disse, e ele não disse isso exatamente
como um elogio. — Emily tinha a escola inteira na palma da sua
mão. Talvez isso tenha sido culpa nossa.
Andar com os Hawthorne mudava a forma como as pessoas
olhavam pra você. A declaração de Thea me voltou à mente.
— Ou, talvez — Grayson continuou —, fosse só porque ela era
Em. Inteligente demais, bonita demais, boa demais em conseguir o
que queria. Ela não tinha medo.
— Ela queria você — eu disse. — E Jameson também. Ela não
queria escolher.
— Ela transformou isso num jogo. — Grayson sacudiu a cabeça.
— E nós jogamos. Eu gostaria de dizer que foi porque a amávamos,
que foi por causa dela, mas eu nem sei o quanto disso é verdade.
Nada é mais Hawthorne do que ganhar.
Emily sabia disso? Se aproveitou disso? Isso a feriu alguma vez?
— A questão é… — Grayson soluçou. — Ela não queria só a nós.
Ela queria o que nós podíamos dar a ela.
— Dinheiro?
— Experiências — Grayson respondeu. — Emoção. Carros de
corrida, motocicletas e lidar com cobras exóticas. Festas, clubes e
lugares em que não deveríamos estar. Era uma onda, pra ela e pra
nós. — Ele fez uma pausa. — Pra mim — ele corrigiu. — Eu não sei
exatamente o que era pra Jamie.
Jameson terminou com ela na noite em que ela morreu.
— Uma noite eu recebi uma ligação de Emily, tarde já. Ela disse
que tinha se cansado de Jameson, que tudo que ela queria era eu.
— Grayson engoliu em seco. — Ela queria comemorar. Tem esse
lugar chamado Portão do Diabo. É um penhasco que dá para o
golfo, um dos lugares mais famosos do mundo pra praticar salto de
penhasco. — Grayson baixou a cabeça. — Eu sabia que era uma
ideia ruim.
Eu tentei formar uma frase, qualquer uma.
— Quão ruim?
Ele tinha a respiração pesada agora.
— Quando chegamos lá, eu fui pra um dos penhascos mais
baixos. Emily foi lá para o topo, ignorando os sinais de perigo. Os
avisos. Era tarde da noite. Nós não devíamos estar ali. Eu não sabia
por que ela não queria esperar até de manhã, só soube depois,
quando eu percebi que ela tinha mentido sobre me escolher.
Jameson tinha terminado com ela. Ela tinha ligado para Grayson
e não queria esperar.
— Mergulhar do penhasco a matou?
— Não — Grayson disse. — Ela ficou bem. Nós estávamos bem.
Eu fui pegar nossas toalhas, mas, quando eu voltei… Emily nem
estava mais na água. Ela estava só deitada na areia. Morta. — Ele
fechou os olhos. — O coração dela.
— Você não a matou — eu disse.
— A adrenalina a matou. Ou a altitude, a mudança de pressão. Eu
não sei. Jameson não quis levá-la. Eu também não devia ter
aceitado.
Ela tomou suas decisões. Ela tinha consciência. Não era seu
trabalho impedi-la. Eu sabia instintivamente que não ia adiantar
nada dizer essas coisas, mesmo sendo verdade.
— Sabe o que meu avô me disse depois do funeral de Emily?
Família em primeiro lugar. Ele disse que o que tinha acontecido com
Emily não teria acontecido se eu tivesse colocado a família em
primeiro lugar. Se eu tivesse me recusado a participar, se eu tivesse
escolhido meu irmão em vez dela. — As cordas vocais de Grayson
se contraíram em sua garganta, como se ele quisesse dizer mais
alguma coisa, mas não pudesse. Finalmente, saiu. — Tudo isso é
por causa disso. Um-Oito-Um-Zero. Dezoito de outubro. O dia em
que Emily morreu. Seu aniversário. É a forma do meu avô de
confirmar o que eu já sabia, no fundo. Tudo isso, tudo, é por minha
causa.
CAPÍTULO 79

Quando Grayson foi embora, Oren me acompanhou de volta para


casa.
— Quanto da conversa você ouviu? — perguntei.
Minha mente era um emaranhado de pensamentos e emoções
que eu não sabia se estava pronta para lidar.
Oren me olhou.
— Quanto você quer que eu tenha ouvido?
Eu mordi minha boca por dentro.
— Você conhecia Tobias Hawthorne. Ele teria me escolhido pra
ser sua herdeira só porque Emily Laughlin morreu no dia do meu
aniversário? Ele decidiu deixar sua fortuna pra uma pessoa aleatória
nascida em dezoito de outubro? Fez uma loteria?
— Não sei, Avery. — Oren sacudiu a cabeça. — A única pessoa
que sabia o que Tobias Hawthorne estava pensando era o próprio
Tobias Hawthorne.

***

Percorri o caminho pelos corredores da Casa Hawthorne até chegar


à ala que eu compartilhava com a minha irmã. Eu não estava certa
de que Grayson ou Jameson voltariam a falar comigo. Eu não sabia
o que o futuro guardava, e a ideia de que eu tinha sido escolhida por
uma razão completamente trivial parecia um soco no estômago.
Quantas pessoas no planeta faziam aniversário no mesmo dia
que eu?
Parei no meio da escada, em frente ao retrato de Tobias
Hawthorne que Xander tinha me mostrado havia poucos dias, mas
que pareciam ter sido uma vida inteira atrás. Revirei minha mente,
como fiz daquela vez, por qualquer lembrança, qualquer momento
em que meu caminho tivesse cruzado o de bilionários. Eu olhei
Tobias Hawthorne nos olhos – os olhos cinzentos de Grayson – e
silenciosamente perguntei a ele por quê.
Por que eu?
Por que pedir desculpas?
Me veio a lembrança de minha mãe jogando Eu Tenho Um
Segredo. Alguma coisa aconteceu no dia em que eu nasci?
Encarei o retrato, examinando cada ruga no rosto do velho, cada
indício de personalidade na sua postura, até mesmo a cor pálida do
fundo. Nenhuma resposta. Meus olhos então se fixaram na
assinatura do artista.
Tobias Hawthorne X. X. VIII

Voltei a observar os olhos cinzentos do velho homem. A única


pessoa que sabia o que Tobias Hawthorne estava pensando era
Tobias Hawthorne. Isso era um autorretrato. E as letras ao lado do
nome?
— Numerais romanos — eu sussurrei.
— Avery? — Oren disse ao meu lado. — Tudo bem?
Em numerais romanos, X era dez, V era cinco e I era um.
— Dez. — Eu coloquei meu dedo embaixo do primeiro X, então o
movi pelo resto das letras, lendo-as como uma unidade. — Dezoito.
Me lembrando do espelho que escondia o arsenal, eu coloquei a
mão atrás da moldura do retrato. Eu não tinha certeza do que
estava procurando até encontrar. Um botão. Uma trava. Eu o apertei
e o retrato virou para fora.
Atrás dele, na parede, estava um teclado.
— Avery? — Oren disse de novo, mas eu já estava aproximando
meus dedos do teclado.
E se os números não forem a resposta final? Essa hipótese me
prendeu entre os dentes e não queria soltar. E se eles levassem até
a próxima pista?
Tentei a combinação óbvia.
Um. Oito. Um. Zero.
Ouvi um bipe, e então o topo do degrau abaixo de mim começou
a se erguer, revelando um compartimento. Eu me abaixei e enfiei a
mão dentro dele. Só havia uma coisa no degrau oco: um pedaço de
vidro colorido. Era roxo, em forma de octógono, com um pequeno
buraco em cima, pelo qual uma fita transparente e brilhante tinha
sido passada. Quase parecia um enfeite de Natal.
Quando eu ergui o vidro colorido pela fita, meus olhos
perceberam algo embaixo do degrau. Gravado na madeira, estava o
seguinte verso:

Topo da hora
Estou bem no alto
Saúde esse dia
Deixe a aurora de um salto
Um giro assim
e o que você vê?
Pegue dois de um só ato
E venha até mim
CAPÍTULO 80

Eu não sabia o que fazer com o enfeite de vidro ou como


interpretar as palavras que encontrei escritas embaixo da escada,
mas, enquanto Libby me ajudava a soltar o cabelo, uma coisa ficou
clara:
O jogo não tinha acabado.

Na manhã seguinte, com Oren atrás de mim, fui procurar Jameson e


Grayson. Eu encontrei o primeiro no solário, sem camisa e em pé
sob o sol.
— Vai embora — ele disse quando eu abri a porta, sem sequer
ver quem era.
— Eu encontrei uma coisa. Eu não acho que a data é a resposta,
pelo menos não é a resposta inteira.
Ele não respondeu.
— Jameson, você está me ouvindo? Eu encontrei uma coisa.
Pelo pouco tempo que eu o conhecia, ele era focado, obsessivo.
O que eu tinha nas mãos deveria ter causado pelo menos uma
fagulha de curiosidade, mas, quando ele se virou para me olhar,
seus olhos estavam sem vida e tudo que ele disse foi:
— Jogue no lixo com os outros.
Eu olhei em volta e vi, em uma lixeira próxima, pelo menos meia
dúzia de octógonos de vidro, idênticos ao que eu segurava, até com
a mesma fita.
— Os números dez e dezoito estão em todo canto dessa maldita
casa. — A voz de Jameson estava abafada, seus gestos contidos.
— Eu os vi gravados numa tábua no chão do meu armário. Essa
coisinha roxa estava embaixo.
Ele nem se deu ao trabalho de apontar a lixeira ou especificar a
qual peça de vidro ele estava se referindo.
— E os outros? — perguntei.
— Quando eu comecei a procurar por números, não consegui
parar, e, depois de ver — Jameson disse, sua voz baixa —, você
não consegue desver. O velho achou que era tão esperto. Ele deve
ter escondido centenas dessas coisas por toda a casa. Eu achei um
candelabro com dezoito cristais no círculo externo e dez no meio... e
um compartimento escondido embaixo. A fonte lá fora tem dezoito
quedas de água e dez rosas entalhadas no tanque. As pinturas na
sala de música… — Jameson baixou os olhos. — Todo lugar que
olho, todo lugar aonde vou, um lembrete.
— Você não vê? — perguntei, com firmeza. — Seu avô não
poderia ter feito tudo isso depois que Emily morreu. Vocês teriam
notado…
— Operários em casa? — Jameson disse, completando minha
frase. — O grande Tobias Hawthorne acrescentava um quarto ou
uma ala a esse lugar todo ano, e, numa casa desse tamanho, algo
sempre precisa ser substituído ou consertado. Minha mãe estava
sempre comprando novos quadros, novas fontes, novos
candelabros. Nós não teríamos notado nada.
— Dezoito de outubro não é a resposta — eu insisti, desejando
que ele me olhasse. — Você precisa ver isso. É uma pista, uma que
ele não queria que nós perdêssemos.
Nós. Eu disse nós, e era verdade. Mas isso não importava.
— Dezoito de outubro é resposta suficiente — Jameson disse,
virando as costas para mim. — Já disse, Avery. Não estou mais
jogando.

Grayson foi mais difícil de achar. Enfim, eu tentei a cozinha e


encontrei Nash em vez dele.
— Você viu Grayson? — perguntei.
A expressão de Nash era cuidadosa.
— Eu acho que ele não quer te ver, menina.
Na noite anterior, Grayson não tinha me culpado. Ele não tinha
estourado. Mas, depois que me contou de Emily, ele saiu de perto.
Tinha me deixado sozinha.
— Preciso falar com ele — expliquei.
— Dá um tempo pra ele — Nash aconselhou. — Às vezes, é
preciso abrir uma ferida antes que ela possa sarar.

Voltei para a escadaria da Ala Leste e novamente fiquei em frente


ao retrato. Oren recebeu uma ligação e, provavelmente por achar
que a ameaça à minha pessoa estava contida o suficiente e que,
portanto, ele não precisava me seguir pela Casa Hawthorne o dia
inteiro, pediu licença para sair para atendê-la.
Encarei Tobias Hawthorne.
Tinha parecido destino quando eu encontrei a pista em seu
retrato, mas, depois de falar com Jameson, eu soube que encontrá-
la não tinha sido um sinal, nem uma coincidência. A pista que eu
tinha encontrado era uma de muitas. Você não queria que eles
perdessem essa, eu falei em silêncio para o bilionário. Se ele
realmente tinha feito tudo isso depois da morte de Emily, sua
persistência parecia cruel. Você queria ter certeza de que eles não
esqueceriam o que aconteceu?
Esse jogo perturbador é só um lembrete, um lembrete constante,
de que a família deve estar em primeiro lugar?
E isso é tudo que eu sou?
Jameson tinha dito desde o início que eu era especial. Eu não
tinha notado até agora o quanto eu queria acreditar que ele estava
certo, que eu não era invisível, que eu não era um papel de parede.
Eu queria acreditar que Tobias Hawthorne tinha visto algo em mim
que tinha lhe dito que eu conseguiria encarar tudo isso, que eu
conseguiria aguentar os olhares e os holofotes, a responsabilidade,
as charadas, as ameaças – tudo. Eu queria ser importante.
Eu não queria ser a bailarina de vidro ou a faca. Eu queria provar,
pelo menos para mim mesma, que eu era alguma coisa.
Jameson podia ter cansado do jogo, mas eu queria ganhar.
CAPÍTULO 81

Topo da hora
Estou bem no alto
Saúde esse dia
Deixe a aurora de um salto
Um giro assim
e o que você vê?
Pegue dois de um só ato
E venha até mim

Eu me sentei nos degraus, encarando as palavras, então


examinei verso por verso, girando o pedaço de vidro na minha mão.
Topo da hora, eu imaginei um relógio na minha cabeça. O que está
no topo?
— Doze.
Foi a primeira ideia que veio à minha cabeça. O número no topo
da hora é doze. Como em um efeito dominó, esse primeiro
pensamento causou uma reação em cadeia na minha mente. Estou
bem no alto…
Alto o quê?
— Do sol, meio-dia.
Era um chute, mas as próximas duas linhas pareciam confirmar:
bem no meio do dia, quando já não é mais de manhã e saudamos o
que vem depois.
Eu passei para a segunda metade da charada e… não entendi
nada.

Um giro assim
e o que você vê?
Pegue dois de um só ato
E venha até mim

Foquei no pedaço de vidro colorido. Eu deveria girá-lo? Nós


precisávamos recolher todas as peças de alguma forma?
— Parece que você engoliu um esquilo. — Xander se jogou ao
meu lado na escada.
Eu definitivamente não parecia como quem engoliu um esquilo,
mas chutei que essa era a forma de Xander de perguntar se eu
estava bem, então deixei para lá.
— Seus irmãos não querem nada comigo — eu falei, baixinho.
— Acho que a gentileza que fiz mandando todos vocês pra Black
Wood juntos terminou em uma explosão. — Xander fez uma careta.
— Sendo justo, a maior parte do que faço acaba explodindo.
Isso arrancou uma risada de mim. Eu mostrei o degrau para ele.
— Olha, o jogo não acabou… — eu disse enquanto ele lia a
inscrição. — Encontrei isso noite passada, depois de Black Wood.
— Eu ergui o vidro colorido. — O que você acha disso?
— Na verdade, onde — Xander respondeu, pensativo — eu já vi
algo que parece com isso?
CAPÍTULO 82

Eu não ia ao salão principal desde a leitura do testamento. Suas


janelas com vitrais eram altas – algo como dois metros e meio de
altura para só uns noventa centímetros de largura –, e a parte mais
baixa ficava à altura da minha cabeça. O design era simples e
geométrico. No ponto mais alto, havia dois octógonos do mesmo
tamanho, tom, cor e corte que o que eu tinha nas mãos.
Eu inclinei meu pescoço para ver melhor. Um giro assim…
— O que você acha? — Xander perguntou.
Eu inclinei a cabeça para o lado.
— Acho que vamos precisar de uma escada.

Empoleirada no alto da escada, com Xander me segurando


embaixo, eu pressionei minha mão contra um dos octógonos do
vitral. De início nada aconteceu, mas, quando eu apertei do lado
esquerdo, o octógono rodou setenta graus, e então algo o fez parar.
Isso conta como um giro?
Eu virei o segundo octógono. Pressionar à esquerda e à direita
não deu em nada, mas apertar a parte de baixo, sim. O vidro girou
cento e oitenta graus e mais um pouco antes de voltar para o lugar.
Eu desci da escada, incerta do que eu tinha conseguido.
— Um giro assim — eu recitei. — E o que você vê?
Nós demos um passo para trás para ver de longe. O sol brilhava
através da janela, fazendo com que cores difusas iluminassem o
chão do salão principal. Os dois octógonos que eu tinha girado, em
contraste, projetavam feixes de luz roxa que se cruzavam em
determinado ponto.
O que você vê?
Xander se abaixou no lugar em que os feixes se cruzavam no
chão.
— Nada — ele disse, pressionando a tábua. — Achei que ela
fosse saltar ou ceder…
Eu voltei para a charada. E o que você vê? Eu via a luz. Eu via a
luz, eu via a luz refletida se cruzando… Como isso não deu em
nada, eu voltei a analisar a charada desde o início.
— Meio-dia — lembrei. — A primeira parte da charada se refere
ao fim da manhã. — As engrenagens do meu cérebro começaram a
girar mais rápido. — O ângulo da luz refletida deve depender pelo
menos um pouco do ângulo do sol. Talvez o giro assim só mostre o
que você precisa ver ao meio-dia.
Xander ruminou isso por um tempo.
— Nós podemos esperar — ele disse. — Oooou… — Ele
prolongou a palavra. — Podemos trapacear.
Nos espalhamos, pressionando as tábuas ao redor. Não faltava
muito para o meio-dia. Os ângulos não mudariam tanto. Fui batendo
com a palma da mão em cada tábua: Firme. Firme. Firme.
— Encontrou alguma coisa? — Xander perguntou.
Firme. Firme. Solta. A tábua embaixo da minha mão não chegou a
balançar, mas era mais frouxa que as outras.
— Xander… aqui!
Ele se juntou a mim, colocou sua mão na tábua e pressionou. A
tábua se ergueu. Xander a tirou e apareceu um pequeno botão de
girar. Eu o girei, sem saber o que esperar. Quando notei, Xander e
eu estávamos afundando. Todo o chão ao nosso redor estava
afundando.
Quando parou, Xander e eu não estávamos mais no salão
principal. Nós estávamos embaixo dele, e, bem na nossa frente,
tinha uma escada. Eu ia me arriscar por um caminho desconhecido
e apostava que essa era uma das entradas para os túneis que Oren
não conhecia.
— Temos que descer de dois em dois degraus — eu disse a
Xander. — São os próximos versos. Pegue dois de um só ato e
venha até mim…
CAPÍTULO 83

Não tenho ideia do que poderia acontecer se não tivéssemos


descido as escadas de dois em dois degraus, mas fiquei feliz que
não descobrimos.
— Você já esteve nos túneis? — perguntei a Xander quando
chegamos lá embaixo sem incidentes.
Xander ficou em silêncio tempo suficiente para fazer a pergunta
parecer significativa.
— Não.
Me concentrando, eu observei onde estava. Os túneis eram de
metal, como um cano gigante ou um sistema de esgoto, mas eram
surpreendentemente bem iluminados. Será iluminação a gás?, eu
me perguntei. Eu tinha perdido toda noção de quão profundo
estávamos. Na nossa frente, os túneis se abriam em três direções
diferentes.
— Pra que lado vamos? — perguntei.
Solenemente, ele apontou para a frente.
Eu franzi a testa.
— Como você sabe?
— Porque — Xander respondeu, animado — foi o que ele disse.
— Ele apontou para os meus pés. Eu olhei para baixo e soltei um
gritinho.
Eu precisei de um momento para perceber que, na base da
escada, assim como no salão principal, havia duas gárgulas. Porém,
a gárgula da esquerda tinha uma mão – e um dedo – apontando o
caminho.
Venha até mim.
Comecei a caminhar e Xander me seguiu. Eu me perguntei se ele
tinha alguma ideia de para onde estávamos indo.
Venha até mim.
Lembrei de Xander me falando que, mesmo se eu achasse que
tinha manipulado Tobias Hawthorne, era ele que tinha me
manipulado.
Ele está morto, pensei. Não está? Essa ideia me atingiu com
força. A imprensa certamente achava que Tobias Hawthorne tinha
morrido. A família dele parecia acreditar nisso. Mas eles tinham
realmente visto o corpo?
O que mais isso poderia significar? Venha até mim.

Cinco minutos depois, nós demos com uma parede. Não havia mais
para onde ir, nada para ver, nenhuma rota diferente que poderíamos
ter feito desde que tínhamos seguido por aquele caminho.
— Talvez a gárgula tenha mentido — Xander declarou, dando a
impressão de ter gostado muito do que disse.
Eu empurrei a parede. Nada. Eu me virei.
— Nós deixamos passar algo?
— Talvez — Xander disse, pensativo — a gárgula tenha mentido!
Eu olhei de volta por onde tínhamos vindo. Eu andei pelo caminho
devagar, observando cada detalhe do túnel. Pouco a pouco.
— Olhe! — eu disse a Xander. — Ali!
Era uma grade de metal presa ao chão do túnel. Eu me abaixei.
Havia um nome gravado no metal, talvez a marca da grade, mas o
tempo tinha apagado quase todas as letras. As únicas que sobraram
foram M… I… e M.
— Venha até mim — sussurrei.
Abaixei, peguei a grade com os dedos e puxei. Nada. Tentei
novamente, e ela saiu. Eu caí para trás, mas Xander me amparou.
Nós dois encaramos o buraco embaixo.
— É possível — Xander sussurrou — que a gárgula tenha falado
a verdade. — Sem esperar por mim, ele se enfiou no buraco… e
entrou. — Você vem?
Se Oren soubesse que eu estava fazendo isso, ele ia me matar.
Eu desci e me vi em uma pequena sala. Quão fundo estamos
agora? A sala tinha quatro paredes, três delas idênticas. A quarta
era feita de concreto. Três letras estavam entalhadas no cimento.
A. K. G.
Minhas iniciais.
Eu andei na direção das letras, transtornada, e então vi uma luz
vermelha passar por cima do meu rosto. Houve um bipe, e então a
parede de concreto se abriu ao meio, como uma porta de elevador.
Atrás dela havia uma porta.
— Reconhecimento facial — Xander disse. — Não importa qual
de nós encontrasse esse lugar. Sem você, não passaríamos pela
parede.
Pobre Jameson. Ele tinha feito todo aquele esforço para me
manter por perto, então me largou antes que eu pudesse cumprir o
meu papel. A bailarina de vidro. A faca. A garota com o rosto que
destranca a parede que revela a porta que…
— Que o quê? — Eu dei um passo à frente para examinar a porta.
Havia quatro telas touch, uma em cada canto da porta. Xander
tocou uma para acendê-la e uma imagem de uma mão fluorescente
surgiu.
— Oh-oh — Xander disse.
— Oh-oh o quê? — perguntei.
— Essa tem as iniciais de Jameson. — Xander passou para a
próxima. — Grayson. Nash. — Na última, ele parou. — E a minha.
Ele espalmou sua mão na tela. Ela apitou e eu ouvi o que parecia
ser uma tranca destravando.
Tentei a maçaneta.
— Ainda trancada.
— Quatro trancas. — Xander fez uma careta. — Quatro irmãos.
Meu rosto era necessário para chegar até ali. As mãos deles nos
levariam mais longe.
CAPÍTULO 84

Xander me deixou guardando a sala e disse que voltaria com os


irmãos.
Fácil falar. Jameson tinha deixado sua opinião bem clara. Grayson
não queria ser encontrado. Nash nunca tinha sido atraído pelo jogo
do avô. E se eles não vierem? O que quer que estivesse atrás
dessa porta era o que Tobias Hawthorne queria que achássemos.
Dezoito de outubro não era a resposta, não completamente.
De todas as pessoas no mundo nascidas no mesmo dia, por que
eu? E por que o bilionário me pedia desculpas?
São peças demais, pensei. Não consigo encaixar… nada disso.
Preciso de ajuda.
Acima de mim, eu ouvi passos. Abruptamente o som parou.
— Xander? — chamei. Nenhuma resposta. — Xander, é você?
Mais passos, se aproximando. Quem mais sabe desse túnel? Eu
estava tão focada em achar respostas e ir até o fim do desafio que
quase tinha esquecido: alguém na Casa Hawthorne tinha dado o
acesso dos túneis a Drake.
Esses túneis.
Encostei na parede. Eu conseguia ouvir alguém se movendo logo
acima de mim. Os passos pararam. Uma figura apareceu, iluminada
por trás e tampando minha única saída daquela sala. Mulher. Pálida.
— Rebecca?
CAPÍTULO 85

— Avery! O que você está fazendo aí embaixo?


Rebecca soou absolutamente normal, mas tudo que eu conseguia
pensar era que Rebecca Laughlin estava na propriedade na noite
em que Drake atirou em mim. Ela não tinha um álibi, porque,
quando eu cheguei ao Chalé Wayback, ela não estava lá, e seus
avós não sabiam onde ela estava. Ela tinha dito algo sobre me
avisar.
No dia seguinte, Rebecca parecia, segundo Thea, ter chorado.
Por quê?
— Onde você estava — perguntei a ela, minha boca seca — na
noite do atentado?
Rebecca fechou os olhos.
— Você não sabe como é… — ela disse baixinho. — Toda a
minha vida girou em torno de uma pessoa, e então um dia essa
pessoa simplesmente se foi.
Essa não era uma resposta para a minha pergunta. Eu pensei em
Thea me dizendo que só estava fazendo o que Emily gostaria que
fosse feito.
O que Emily gostaria que Rebecca fizesse comigo?
Xander precisava voltar o quanto antes.
— Foi culpa minha, sabe — Rebecca disse, ainda na parte
superior da escada, os seus olhos ainda fechados. — Emily estava
se arriscando muito. Eu contei aos nossos pais. Eles a puseram de
castigo, a proibiram de ver os Hawthorne. Mas Em tinha seus
truques. Ela convenceu nossos pais de que tinha cansado de
aprontar. Eles não a liberaram para encontrar com os meninos, mas
eles começaram a deixar que ela saísse com Thea de novo.
— Thea — eu repeti —, que você estava namorando em segredo.
As pálpebras de Rebecca se abriram de repente.
— Emily nos pegou juntas naquela tarde. Ela ficou… com raiva.
Assim que ficou sozinha comigo, ela me disse que o que Thea e eu
tínhamos não era amor, que, se Thea realmente me amasse, ela
nunca teria fingido estar com Xander. Emily disse… — Rebecca
estava tomada por suas lembranças. Totalmente. Violentamente. —
Ela me disse que Thea a amava mais… e que ela ia provar. Ela
pediu a Thea pra mentir sobre estarem juntas enquanto ela ia aos
penhascos. Eu implorei a Thea que não fizesse isso, mas ela disse
que, depois de tudo, nós devíamos isso a Em.
Emily teve permissão para sair na noite em que morreu porque os
pais acharam que ela estava com Thea.
— A maior parte das coisas que Emily convencia os meninos a
fazerem ela podia fazer, mas nem mesmo mergulhadores
profissionais não pulam do topo do Portão do Diabo. Teria sido
perigoso pra qualquer um, mas esse tanto de adrenalina, esse tanto
de cortisol, a mudança de altura e pressão, com o problema de
coração dela? — Rebecca estava falando tão baixo agora que eu
não tinha certeza se ela lembrava que eu estava ouvindo. — Eu
tentei contar aos meus pais o que ela estava fazendo, mas não
funcionou. Eu tentei implorar a Thea, e ela escolheu Emily em vez
de mim. Então eu decidi falar com Jameson. Era ele quem ia levá-la
até o Portão do Diabo.
Rebecca abaixou a cabeça e seu cabelo vermelho-escuro cobriu
seu rosto. Thea estava certa, Rebecca Laughlin era linda. Mas,
naquele momento, algo parecia errado nela.
— Eu tinha uma gravação — ela disse baixo — de Emily falando.
Ela costumava me contar tudo que os meninos faziam com ela, por
ela e pra ela. Ela gostava de ter um placar. — Rebecca fez uma
pausa e, quando voltou a falar, sua voz estava áspera. — Eu
mostrei a gravação pra Jameson. Eu disse a mim mesma que
estava fazendo isso pra proteger minha irmã, pra impedir que eles
fossem aos penhascos. Mas a verdade é que ela tinha tirado Thea
de mim.
Então você tirou algo dela, pensei.
— Jameson terminou com ela — eu disse. Isso ele tinha me
contado.
— Se ele não tivesse feito isso — Rebecca respondeu —, talvez
ela não tivesse precisado levar as coisas tão longe. Talvez ela
tivesse cedido e pulado de uma altura mais baixa. Talvez tivesse
ficado tudo bem. — A voz dela ficou ainda mais suave. — Se Emily
não tivesse visto Thea e eu juntas naquela tarde, se ela não tivesse
encarado nosso relacionamento como uma traição… talvez ela nem
tivesse precisado pular.
Rebecca culpava a si mesma. Thea culpava os meninos. Grayson
assumiu o peso de tudo isso para si mesmo. E Jameson…
— Sinto muito.
As desculpas de Rebecca me tiraram de meus pensamentos. O
tom de voz indicou que ela não estava mais falando de Emily. Ela
não estava falando de algo que tinha acontecido mais de um ano
atrás.
— Sente pelo quê? — perguntei.
O que você está fazendo aqui embaixo, Rebecca?
— Não é que eu tenha algo contra você. Mas é o que Emily teria
desejado.
Ela não está bem.
Eu precisava achar um jeito de sair dali. Eu precisava me afastar
dela.
— Emily teria te odiado por roubar o dinheiro deles. Ela teria
odiado a forma como eles olham pra você.
— Então você decidiu se livrar de mim — eu disse, ganhando
tempo. — Por Emily.
Rebecca me encarou.
— Não.
— Você sabia dos túneis e, de alguma forma, contou a Drake…
— Não! — Rebecca insistiu. — Avery, eu não faria isso.
— Você mesma disse. Emily desejaria que eu sumisse.
— Eu não sou Emily. — As palavras eram guturais.
— Então por que você está pedindo desculpas? — perguntei.
Rebecca engoliu em seco.
— O sr. Hawthorne me contou dos túneis num verão, quando eu
era pequena. Ele me mostrou todas as entradas, disse que eu
merecia algo só meu. Um segredo. Eu venho aqui quando preciso
fugir, às vezes, quando estou visitando meus avós, mas, desde que
Emily morreu, as coisas estão bem ruins em casa, então às vezes
eu entro por fora.
Eu esperei.
— E?
— Na noite do atentado, eu vi mais alguém nos túneis. Não disse
nada porque Emily não ia querer que eu dissesse. Eu devia isso a
ela, Avery. Depois do que eu fiz… eu devia isso a ela.
— O que você viu? — perguntei.
Ela não respondeu.
— Foi o Drake?
Rebecca me olhou nos olhos.
— Ele não estava sozinho.
— Quem estava com ele?
Eu esperei. Nada.
— Rebecca, quem mais estava no túnel com Drake?
Quem Emily ia querer que ela protegesse?
— Um dos meninos? — perguntei, sentindo o chão se abrir
embaixo de mim.
— Não — Rebecca respondeu, por fim, sussurrando. — A mãe
deles.
CAPÍTULO 86

— Skye?
Eu estava tentando compreender. Ela nunca pareceu ser uma
ameaça, não como Zara. Passivo-agressiva, claro, e mesquinha.
Mas violenta?
Somos todos amigos aqui, não somos? Eu conseguia ouvi-la
novamente. Eu tenho uma política de mundo que rouba o que é meu
por direito.
Lembrei que ela me ofereceu uma taça de champanhe, insistindo
que eu bebesse.
— Skye estava aqui embaixo com Drake na noite do atentado —
eu disse, me fazendo confrontar as implicações do que isso tudo
significava. — Ela deu a ele acesso à propriedade, provavelmente
até mostrou onde era a floresta.
Mostrou onde eu estava.
— Eu devia ter contado a alguém — Rebecca murmurou. —
Depois dos tiros, assim que eu entendi o que tinha visto… eu devia
ter contado.
— Sim. — A palavra saiu afiada, e foi pronunciada por alguém
que não era eu. — Devia ter contado. — Lá em cima, Grayson
entrou no meu campo de visão.
Rebecca se virou para olhá-lo.
— Era sua mãe, Gray. Eu não podia…
— Você podia ter me contado — Grayson disse baixinho. — Eu
teria cuidado disso, Bex.
Eu duvidava que os métodos de Grayson para cuidar disso
envolvessem entregar a mãe para a polícia.
— Drake fez mais uma tentativa — eu disse, fuzilando Rebecca.
— Você sabe disso, certo? Ele tentou nos jogar pra fora da estrada.
Ele podia ter me matado… e também Alisa, Oren e Thea.
Rebecca soltou um som distorcido no segundo em que eu disse o
nome de Thea.
— Rebecca — Grayson disse, sua voz baixa.
— Eu sei — Rebecca disse. — Mas Emily não ia querer…
— Emily se foi. — O tom de Grayson não era duro, mas suas
palavras deixaram Rebecca sem fôlego. — Bex. — Ele a fez olhá-lo.
— Rebecca. Eu vou cuidar disso, eu te prometo. Tudo vai ficar bem.
— Tudo não está bem — eu disse a Grayson.
— Pode ir agora — ele murmurou para Rebecca.
Ela saiu e nós ficamos sozinhos.
Grayson desceu para a sala escondida.
— Xander disse que você precisava de mim.
Ele tinha vindo. Talvez isso significasse mais se eu não tivesse
acabado de ter aquela conversa com Rebecca.
— Sua mãe tentou me matar.
— Minha mãe — Grayson retrucou — é uma mulher complicada.
Mas ela é da família.
E ele teria escolhido a família em vez de mim, todas as vezes.
— Se eu tivesse te pedido pra me deixar cuidar disso — ele
continuou —, você teria deixado? Eu posso garantir que nenhum
mal mais vai acontecer com você ou os seus.
Como exatamente ele podia garantir qualquer coisa não estava
claro, mas não havia dúvidas de que ele acreditava que podia. O
mundo se curva à vontade de Grayson Hawthorne, eu pensei no dia
em que o conheci, quão seguro de si ele parecia, quão invencível.
— E se eu apostar isso com você? — Grayson insistiu, já que eu
não respondi nada. — Você gosta de um desafio. Eu sei que gosta.
— Ele deu um passo na minha direção. — Por favor, Avery. Me dê a
chance de consertar isso.
Nada disso tinha conserto, mas ele só estava pedindo uma
chance. Eu não devo isso a ele. Eu não devo nada a ele. Mas…
Talvez tenha sido a expressão no rosto dele. Ou saber que ele já
tinha perdido tudo para mim. Talvez eu só quisesse que ele me
visse e pensasse em algo além de dezoito de outubro.
— Me desafie, então — eu disse. — Qual é o jogo?
Os olhos cinzentos de Grayson encontraram os meus.
— Pense num número — ele me disse. — De um a dez. Se eu
acertar, você me deixa cuidar da situação com a minha mãe do meu
jeito. Senão…
— Eu a entrego para a polícia.
Grayson deu meio passo na minha direção.
— Pense num número.
As chances estavam ao meu favor. Ele só tinha dez por cento de
chance de acertar. Eu tinha noventa por cento de chance de ele
errar. Eu levei um tempo escolhendo. Havia alguns números muito
óbvios. Sete, por exemplo. Eu podia escolher um extremo, um ou
dez, mas pareciam chutes fáceis também. Oito estava na minha
cabeça, pelos dias que passamos resolvendo a sequência
numérica. Quatro era o número de irmãos Hawthorne.
Se eu quero que ele não acerte, eu preciso de algo inesperado.
Sem rima, sem motivos.
Dois.
— Quer que eu anote o número?
— Onde? — Grayson perguntou baixo.
Eu engoli em seco.
— Como você sabe que eu não vou mentir se você acertar?
Grayson ficou quieto por alguns segundos, então falou:
— Eu confio em você.
Eu sabia com cada fibra do meu ser que Grayson Hawthorne não
confiava fácil, ou com frequência.
— Vá em frente.
Ele passou pelo menos tanto tempo gerando seu palpite quanto
eu tinha passado escolhendo meu número. Ele me olhou e eu podia
senti-lo tentando desvendar meus pensamentos e impulsos, me
resolver, como mais uma charada.
O que você vê quando olha para mim, Grayson Hawthorne?
Ele deu seu palpite.
— Dois.
Eu virei minha cabeça na direção do meu ombro, quebrando o
contato visual. Eu poderia ter mentido. Eu poderia ter dito que ele
estava errado. Mas não fiz isso.
— Bom chute.
Grayson soltou uma respiração curta, e então eu o senti
gentilmente virando meu rosto na direção do dele.
— Avery. — Ele quase nunca usava meu primeiro nome. Ele
gentilmente traçou meu queixo com os dedos. — Eu nunca mais vou
deixar alguém te machucar. Você tem a minha palavra.
Ele achava que podia me proteger. Ele queria me proteger. Ele
estava me tocando e tudo que eu queria era deixar. Deixar que ele
me protegesse. Deixar que ele me tocasse. Deixar que ele…
Passos. O ruído em cima me fez dar um passo para longe dele, e,
alguns momentos depois, Xander e Nash desceram para a sala.
Eu consegui olhar para eles, não para Grayson.
— E Jameson? — perguntei.
Xander pigarreou.
— Eu posso relatar que uma linguagem muito ofensiva foi usada
quando eu pedi a presença dele.
Nash desdenhou.
— Ele vai acabar vindo.
Então nós esperamos por cinco minutos, depois dez.
— É melhor vocês irem destrancando as de vocês — Xander
disse aos outros. — Suas mãos, por favor.
Grayson foi primeiro, depois Nash. Assim que as telas
escanearam as mãos deles, nós ouvimos o som de fechaduras se
abrindo, uma depois da outra.
— Três fechaduras já foram — Xander murmurou. — Falta uma.
Mais cinco minutos. Oito. Ele não vem, eu pensei.
— Jameson não vem — Grayson disse, como se tivesse pescado
o pensamento da minha mente com tanta facilidade quanto tinha
adivinhado meu número.
— Ele vem, sim — Nash repetiu.
— Eu não faço sempre o que me dizem?
Olhamos para cima e Jameson deu um pulo para dentro da sala.
Ele aterrissou entre seus irmãos e eu, indo quase até o chão para
absorver o choque. Ele se endireitou e então olhou nos olhos dos
irmãos, um por vez. Nash, Xander e Grayson.
Depois olhou para mim.
— Você não sabe a hora de parar, não é, Herdeira? — Isso não
parecia exatamente uma acusação.
— Sou mais forte do que pareço — respondi.
Ele me olhou por mais um momento e depois andou em direção à
porta. Ele espalmou a mão na tela com suas iniciais. A última
fechadura abriu e a porta destrancou. Ela se entreabriu – dois
centímetros, talvez três. Eu esperei que Jameson fosse entrar, mas,
em vez disso, ele voltou para a abertura e, agarrando as laterais
com as mãos, subiu para o andar superior.
— Aonde você vai? — perguntei.
Depois de tudo que tinha sido necessário para chegar até esse
ponto, ele não podia simplesmente ir embora.
— Para o inferno, quando chegar a hora — Jameson respondeu.
— Por enquanto, provavelmente para a adega.
Não. Ele não podia simplesmente ir embora. Ele tinha me
arrastado para dentro disso e agora ele devia ir até o fim. Eu saltei
na abertura, para ir atrás dele. Mas minhas mãos escorregaram.
Mãos fortes me agarraram por baixo – Grayson. Ele me empurrou
para cima e eu consegui sair e ficar de pé.
— Não vá embora — pedi.
Ele já estava andando. Quando ouviu a minha voz, ele parou, mas
não se virou.
— Eu não sei o que tem do outro lado daquela porta, Herdeira,
mas sei que o velho montou essa armadilha pra mim.
— Só pra você? — contestei, com firmeza na voz. — É por isso
que foi preciso dos quatro irmãos e do meu rosto pra chegar até
aqui? — Claramente Tobias Hawthorne queria que todos nós
estivéssemos aqui.
— Ele sabia que, qualquer jogo que ele deixasse, eu jogaria.
Nash talvez dissesse foda-se, Grayson ia se afundar nas
legalidades, Xander poderia estar pensando em mil e uma outras
coisas, mas eu ia jogar. — Eu via sua respiração ofegando e seu
sofrimento. — Então, sim, ele fez isso pra mim. O que quer que
esteja do outro lado daquela porta… — Jameson soltou outra
respiração trêmula. — Ele sabia. Ele sabia o que eu tinha feito e ele
queria ter certeza de que eu nunca ia esquecer.
— O que ele sabia? — perguntei.
Grayson apareceu ao meu lado e repetiu minha pergunta.
— O que o velho sabia, Jamie?
Nash e Xander também subiram para o túnel, mas minha mente
mal registrou a presença deles. Eu estava focada, completamente,
intensamente, em Jameson e Grayson.
— Sabia do que, Jamie?
Jameson se virou para encarar o irmão.
— Do que aconteceu em dezoito de outubro.
— Aquilo foi culpa minha. — Grayson andou para a frente,
pegando os ombros de Jameson com as mãos. — Eu que levei
Emily pra lá. Eu sabia que era uma má ideia e não me importei. Eu
só queria ganhar. Eu queria que ela me amasse.
— Mas eu segui vocês naquela noite. — A declaração de
Jameson ficou no ar por vários segundos. — Eu vi vocês dois
pularem, Gray.
De repente, era como se eu estivesse novamente com Jameson,
caminhando até a ponte. Ele tinha me contado duas mentiras e uma
verdade. Eu vi Emily Laughlin morrer.
— Você nos seguiu? — Grayson não conseguia compreender
isso. — Por quê?
— Masoquismo? — Jameson deu de ombros. — Eu estava puto.
— Ele fez uma pausa. — Quando você foi pegar as toalhas e eu…
— Jamie. — Grayson soltou as mãos. — O que você fez?
Grayson tinha me contado que foi buscar algumas toalhas e que,
quando ele voltou, Emily estava deitada na areia. Morta.
— O que você fez?
— Ela me viu. — Jameson desviou seu olhar do irmão e olhou
para mim. — Ela me viu e sorriu. Ela achou que tinha vencido. Ela
achou que eu ainda era dela, mas eu dei a volta e fui embora. Ela
chamou meu nome. Eu não parei. Eu a ouvi se engasgar. Ela estava
fazendo um barulhinho, como se estivesse sem conseguir respirar.
Eu levei a mão à boca, horrorizada.
— Eu achei que ela estava brincando comigo. Eu ouvi batidas na
água, mas não me virei. Eu estava a uns cem metros. Ela não
estava mais me chamando. Eu olhei pra trás. — A voz de Jameson
falhou. — Emily estava curvada, se arrastando pra fora da água. Eu
achei que ela estava fingindo.
Ele achou que ela estava tentando manipulá-lo.
— Eu só fiquei ali — Jameson disse, sem expressão. — Eu não
fiz nada pra ajudá-la.
Eu vi Emily Laughlin morrer. Eu achei que ia vomitar. Eu
conseguia imaginar a cena: Jameson estático, tentando mostrar a
ela que não era mais dela, tentando resistir.
— Ela desmaiou. Ela ficou imóvel e continuou imóvel. E então
você voltou, Gray, e eu fui embora. — Jameson estremeceu. — Eu
te odiei por levá-la àquele lugar, mas eu me odeio mais por tê-la
deixado morrer. Eu só fiquei ali e assisti.
— Foi o coração dela — eu disse. — O que você poderia…
— Eu podia ter tentado reanimá-la. Eu podia ter feito alguma
coisa. — Jameson engoliu em seco. — Mas não fiz. Eu não sei
como o velho sabia, mas ele me encurralou alguns dias depois. Ele
disse que sabia que eu tinha estado lá e perguntou se eu me sentia
culpado. Ele queria que eu te contasse, Gray, mas eu me recusei.
Eu disse que, se ele queria tanto que você soubesse que eu estava
lá, ele mesmo podia te contar. Mas ele não contou. No lugar… ele
fez isso.
A carta. A biblioteca. O testamento. O nome do meio deles. A data
do meu nascimento e da morte de Emily. Os números espalhados
por toda a propriedade. Os vitrais, a charada. A passagem pelo
túnel. A grade marcada com M.I.M. A sala escondida. A parede que
se move. A porta.
— Ele queria ter certeza — Jameson disse — de que eu nunca ia
esquecer.
— Não — Xander soltou. Os outros se viraram para ele. — Não é
isso — ele jurou. — Ele não estava ensinando uma lição. Ele queria
nós quatro aqui, juntos. Aqui.
Nash colocou a mão no ombro de Xander.
— O velho podia ser um belo canalha, Xan.
— Não é isso — Xander disse de novo, sua voz mais intensa do
que eu já tinha ouvido antes, como se ele não estivesse
especulando. Como se ele soubesse.
Grayson, que não tinha dito uma palavra desde a confissão de
Jameson, perguntou:
— O que exatamente você está dizendo, Alexander?
— Vocês dois pareciam fantasmas. Você era um robô, Gray. —
Xander estava falando rápido agora, quase rápido demais para que
o resto de nós acompanhasse. — Jamie era uma bomba-relógio.
Vocês se odiavam.
— E odiávamos a nós mesmos — Grayson concordou, sua voz
parecendo uma lixa.
— O velho sabia que estava doente — Xander admitiu. — Ele me
disse, logo antes de morrer. Ele me pediu pra fazer uma coisa pra
ele.
Nash apertou os olhos.
— E que coisa era essa?
Xander não respondeu. Grayson apertou os olhos.
— Você precisava garantir que nós íamos jogar.
— Era meu trabalho garantir que vocês fossem até o fim. —
Xander olhou de Grayson para Jameson. — Os dois. Se um de
vocês parasse de jogar, era meu trabalho atrair vocês de volta.
— Você sabia? — perguntei. — Esse tempo todo, você sabia pra
onde as pistas levavam?
Xander era quem tinha me ajudado a achar o túnel. Ele tinha
resolvido Black Wood. Mesmo bem no início…
Ele me disse que o avô não tinha um nome do meio.
— Você me ajudou — eu disse.
Ele tinha me manipulado. Me movido, como uma isca.
— Eu te disse que sou uma máquina de Rube Goldberg
ambulante. — Xander baixou os olhos. — Eu te avisei. Meio que
avisei. — Lembrei da vez que ele tinha me levado para ver a
máquina que havia construído. Eu perguntei o que aquilo tinha a ver
com Thea, e sua resposta tinha sido: Quem disse que isso tem algo
a ver com Thea?
Eu encarei Xander – o mais novo, mais alto e facilmente o mais
brilhante dos Hawthorne. Aonde você for, ele me disse no baile, eles
irão atrás. Esse tempo todo, eu pensei que Jameson estava me
usando. Eu achava que ele estava por perto por um motivo.
Nunca me ocorreu que Xander tinha seus motivos também.
— Você sabe por que seu avô me escolheu? — eu exigi saber. —
Você sabia a resposta esse tempo todo?
Xander ergueu as mãos na frente do corpo, como se ele achasse
que eu ia estrangulá-lo.
— Eu só sei o que ele quis que eu soubesse. Eu não tenho ideia
do que está do outro lado daquela porta. Eu só deveria trazer Jamie
e Gray até aqui. Juntos.
— Nós quatro — Nash corrigiu. — Juntos.
Lembrei do que ele me disse na cozinha: Às vezes você precisa
abrir uma ferida antes que ela possa sarar.
Era isso, então? Era esse o grande plano do velho? Me trazer
aqui, colocá-los em ação, esperar que o jogo fizesse a verdade
emergir?
— Não só nós quatro — Grayson replicou.
Então ele olhou para mim:
— Claramente esse jogo é pra cinco pessoas.
CAPÍTULO 87

Descemos de volta para a sala, um por vez. Jameson espalmou


sua mão na porta e a empurrou. A sala atrás dela estava vazia,
exceto por uma pequena caixa de madeira. Na caixa, havia letras –
letras douradas gravadas em peças douradas que pareciam ter
saído do jogo de Scrabble mais caro do mundo.
As letras na caixa formavam meu nome: AVERY KYLIE GRAMBS.
Havia quatro peças em branco, uma antes do meu primeiro nome,
uma depois do último e duas separando os nomes um do outro.
Depois de tudo que tinha acontecido – a confissão de Jameson e
então de Xander –, parecia errado que o peso de tudo isso caísse
em mim.
Por que eu? Esse jogo podia ter sido criado para reaproximar
Jameson e Grayson, para trazer segredos à tona, para sangrar o
veneno antes que ele se tornasse gangrena – mas, de alguma
forma, por algum motivo, ele terminava comigo.
— Parece que o rodeio é seu, menina. — Nash me disse,
apontando para a caixa.
Engolindo em seco, eu me ajoelhei. Eu tentei abrir a caixa, mas
estava trancada. Não havia um buraco de fechadura nem um
teclado para tentar uma combinação numérica.
— As letras, Herdeira — Jameson sugeriu.
Ele não conseguia se controlar. Mesmo depois de tudo, ele não
conseguia parar de jogar.
Eu toquei, hesitante, no A de Avery. Ele saiu da caixa. Uma por
uma, eu puxei as outras letras e as peças em branco, e percebi que
esse era o gatilho da fechadura. Eu encarei as peças, dezenove no
total. Meu nome. Essa claramente não era a combinação que
destrancava a caixa. Então qual era?
Grayson se abaixou ao meu lado. Ele organizou as letras, vogais
primeiro e as consoantes em ordem alfabética.
— É um anagrama — Nash comentou. — Rearranje as letras.
Meu instinto era que meu nome era só meu nome, não um
anagrama de nada, mas meu cérebro já estava vasculhando as
possibilidades. Avery era fácil de transformar em outras palavras,
duas delas só usando o espaço que estava na frente do nome para
separá-lo. Eu coloquei as peças de volta no topo da caixa,
encaixando-as no lugar até clicarem.
A very… Muito.
Eu coloquei outro espaço depois de very. Isso fez com que
restassem duas peças em branco e todas as letras do meu nome do
meio e sobrenome.
Kylie Grambs arranjado no método de Grayson era: A, E, I, B, G, K, L, M,
R, S, Y.
Big. Balm. Bale. Eu comecei a formar palavras em inglês, vendo
que opções cada uma me deixava, e então eu vi.
De uma vez, eu vi.
— Mas que brincadeira é essa — eu sussurrei.
— O quê? — Jameson estava cem por cento envolvido agora,
quisesse ele ou não. Ele se ajoelhou ao lado de Grayson e de mim
quando eu encaixei as letras uma por uma.
Avery Kylie Grambs – o nome que eu tinha ganhado no dia em
que nasci, o nome que Tobias Hawthorne tinha programado na pista
de boliche e na máquina de pinball e quem sabe em quais outros
lugares da Casa, se tornava, reordenado, a very risky gamble. Uma
aposta muito arriscada.
— Ele falava isso o tempo todo — Xander murmurou. — Que não
importava o que ele tinha planejado, talvez não funcionasse. Que
era…
— Uma aposta muito arriscada — Grayson completou, olhando
para mim.
Meu nome? Eu estava tentando processar essas informações.
Primeiro meu aniversário, agora meu nome. O que era isso? Essa
era a razão? Como Tobias Hawthorne tinha me achado, para
começo de conversa?
Eu coloquei a última peça em branco no lugar, e a tranca da caixa
soltou. A tampa se abriu. Lá dentro havia cinco envelopes, um para
cada um de nós.
Eu observei os meninos abrirem e lerem os deles. Nash xingou
baixo. Grayson encarou o seu. Jameson deu uma risadinha. Xander
enfiou o seu no bolso.
Então voltei minha atenção para o meu envelope. A última carta
que Tobias Hawthorne tinha me mandado não tinha explicado nada.
Ao abrir essa, eu esperava um esclarecimento. Como você me
encontrou? Por que você escreveu sinto muito na minha carta? Do
que pediu desculpas?
Não havia nenhum papel dentro do meu envelope, nenhuma
carta. A única coisa dentro dele era um único sachê de açúcar.
CAPÍTULO 88

Eu coloco dois sachês de açúcar na mesa e junto suas pontas,


formando um triângulo que consegue ficar de pé sozinho. “Pronto”,
eu digo. Faço a mesma coisa com o próximo par de sachês, então
coloco um quinto sobre eles, horizontalmente, conectando os dois
triângulos que construí.
— Avery Kylie Grambs! — Minha mãe aparece na ponta da mesa,
sorrindo. — O que eu te disse sobre construir castelos de açúcar?
Eu sorrio largamente para ela.
— Só vale a pena se você conseguir chegar a cinco andares!
No meu sonho, era onde a memória acabava, mas dessa vez,
segurando o açúcar na mão, meu cérebro deu um passo a mais.
Um homem comendo na mesa atrás de mim olha para trás. Ele
pergunta quantos anos eu tenho.
— Seis — eu digo.
— Eu tenho netos com a mesma idade que a sua — ele diz. —
Me diga, Avery, você sabe soletrar seu nome? Seu nome inteiro,
como sua mãe disse um minuto atrás?
Eu sei e é isso que eu faço.
— Eu o vi — murmurei. — Uma vez só, anos atrás, só por um
momento, de passagem. — Tobias Hawthorne tinha escutado minha
mãe dizendo meu nome completo e me pediu pra soletrá-lo.
— Ele amava anagramas mais que uísque — Nash disse. — E ele
era um homem que amava um bom uísque.
Tobias Hawthorne tinha rearranjado mentalmente as letras do
meu nome completo naquele momento? Isso tinha sido divertido?
Lembrei que Grayson tinha contratado alguém para investigar minha
vida. E a da minha mãe. Tobias Hawthorne tinha ficado curioso
sobre a gente? Ele tinha feito o mesmo?
— Ele deve ter acompanhado sua vida — Grayson disse, com
aspereza. — Uma menininha com um nome engraçado. — Ele
olhou para Jameson. — Ele devia saber a data do aniversário dela.
— E, depois que Emily morreu… — Jameson estava olhando para
mim agora, só para mim. — Ele pensou em você.
— E decidiu deixar toda a sua fortuna pra mim por causa do meu
nome? Isso é loucura.
— Você mesma disse, Herdeira. Ele não nos deserdou por você.
Nós não íamos ganhar o dinheiro de qualquer forma.
— Ia para a caridade — argumentei. — E você está me dizendo
que por impulso ele mudou um testamento que já tinha fazia vinte
anos? Isso é…
— Ele precisava de algo que chamasse nossa atenção —
Grayson disse. — Algo tão inesperado, tão impactante que só
poderia ser visto como…
—… um quebra-cabeça — Jameson completou. — Algo que não
pudéssemos ignorar. Algo pra nos acordar. Algo pra nos trazer até
aqui… nós quatro.
— Algo pra expurgar o veneno. — O tom de Nash era difícil de
identificar.
Eles tinham conhecido o velho, eu não. O que eles estavam
dizendo fazia sentido para eles. Aos olhos deles, isso não tinha sido
um impulso. Tinha sido uma aposta muito arriscada. Eu tinha sido
uma aposta muito arriscada. Tobias Hawthorne tinha apostado que
minha presença na casa ia balançar as coisas, que velhos segredos
seriam revelados, e que, de alguma forma, um último quebra-
cabeça mudaria tudo. Que, se a morte de Emily os tinha afastado,
eu podia reaproximá-los.
— Eu te disse, menina — Nash confirmou, ao meu lado. — Você
não é uma jogadora. Você é a bailarina de vidro... ou a faca.
CAPÍTULO 89

Oren me encontrou no instante em que eu pisei no salão principal.


Encontrá-lo ali me fez pensar por que ele tinha saído de perto de
mim. Tinha mesmo sido uma ligação ou Tobias Hawthorne tinha
deixado instruções para que ele nos deixasse terminar o jogo
sozinhos?
— Você sabe o que há lá embaixo? — perguntei ao meu chefe de
segurança. Ele era mais leal ao velho do que a mim. O que mais ele
te pediu para fazer?
— Além do túnel? — Oren respondeu. — Não. — Ele fez um
estudo de mim e dos meninos. — Eu deveria?
Eu pensei no que tinha acontecido enquanto Xander tinha saído
para buscar os irmãos. Em Rebecca e no que ela tinha me contado
lá embaixo. Em Skye. Eu olhei para Grayson. Os olhos dele
encontraram os meus. Havia uma pergunta, uma esperança, e mais
alguma coisa que eu não saberia como nomear.
Tudo que eu disse a Oren foi:
— Não.

***

Naquela noite, eu me sentei na escrivaninha de Tobias Hawthorne, a


que ficava na minha ala. Nas minhas mãos, estava a carta que ele
tinha me deixado.

Querida Avery,
Sinto muito.
T. T. H.
Eu tinha me perguntado pelo que ele sentia muito, mas estava
começando a achar que tinha invertido as coisas. Talvez ele não
tivesse deixado o dinheiro como um pedido de desculpas. Talvez ele
estivesse pedindo desculpas por deixar o dinheiro. Por me usar.
Ele me levou até ali por eles.
Dobrei a carta. Isso – tudo isso – não tinha nada a ver com a
minha mãe. Qualquer segredo que ela estivesse guardando, era
mais antigo que a morte de Emily. No fim das contas, toda essa
cadeia de eventos que mudou minha vida, explodiu minha cabeça e
tomou as manchetes não tinha nada a ver comigo. Eu era só uma
menininha com um nome engraçado que nasceu no dia certo.
Eu tenho netos, eu conseguia ouvir Tobias me dizendo, com a
mesma idade que a sua.
— Isso sempre foi por causa deles. — Eu disse em voz alta. — O
que eu faço agora?
O jogo acabou. O quebra-cabeça estava resolvido. Eu tinha
cumprido o meu propósito. E eu nunca tinha me sentido tão
insignificante na vida.
Meus olhos foram atraídos pela bússola embutida na superfície da
escrivaninha. Como da primeira vez que estive no escritório, eu girei
a bússola e o tampo da mesa se ergueu, revelando o compartimento
por baixo. Eu passei meu dedo de leve pelo T gravado na madeira.
E então eu olhei para minha carta, para a assinatura de Tobias
Hawthorne. T. T. H.
Voltei a prestar atenção na mesa. Jameson tinha me dito uma vez
que seu avô nunca havia comprado uma escrivaninha sem
compartimentos secretos. Tendo jogado o jogo, tendo morado na
Casa Hawthorne, eu não conseguia não ver as coisas diferente
agora. Eu pressionei a tábua de madeira na qual o T estava
gravado.
Nada.
Então eu coloquei meus dedos no T e empurrei. A madeira cedeu.
Click. E então voltou para o lugar.
— T — eu disse em voz alta. E então fiz a mesma coisa de novo.
Outro click. — T. — Eu encarei a tábua por um longo tempo antes
de ver: um espaço entre a madeira e o tampo da escrivaninha, na
base do T. Eu passei meus dedos por baixo e encontrei outra
reentrância e, acima dela, uma tranca. Eu soltei a tranca e a tábua
girou em sentido anti-horário.
Com o giro de noventa graus, eu não estava mais vendo um T.
Agora eu via um H. Apertei as três barras do H ao mesmo tempo.
Click. Um mecanismo de algum tipo foi acionado e a tábua
desapareceu dentro da mesa, revelando outro compartimento por
baixo.
T. T. H. Tobias Hawthorne tinha determinado que essa seria minha
ala. Ele tinha assinado minha carta com as iniciais, não com seu
nome. E essas iniciais tinham destrancado essa gaveta. Dentro
dela, havia uma pasta, parecida com a que Grayson tinha me
mostrado aquele dia na Fundação. Meu nome, meu nome completo,
estava escrito na parte de cima.
Avery Kylie Grambs.
Agora que eu tinha visto o anagrama do meu nome, eu não
conseguia desver. Incerta do que encontraria, e até do que eu
estava esperando, eu puxei a pasta e a abri. A primeira coisa que vi
foi uma cópia da minha certidão de nascimento. Tobias Hawthorne
tinha grifado minha data de nascimento – e a assinatura do meu pai.
A data fazia sentido. Mas a assinatura?
Eu tenho um segredo, minha mãe costumava dizer. Sobre o dia
em que você nasceu.
Eu não tinha ideia do que pensar disso – de nada disso. Eu
passei para a próxima página, e depois para a próxima, e a próxima.
Elas estavam cheias de fotos, quatro ou cinco por ano, desde
quando eu tinha seis anos.
Ele deve ter acompanhado sua vida, eu conseguia ouvir Grayson
dizendo. Uma menininha com um nome engraçado.
O número de fotos aumentou significativamente depois do meu
aniversário de dezesseis anos. Depois que Emily morreu. Havia
tantas, como se Tobias Hawthorne tivesse mandado alguém para
vigiar todos os meus movimentos. Você não poderia arriscar tudo
em uma estranha completa, eu pensei. Tecnicamente, era
exatamente isso que ele tinha feito, mas, olhando essas fotos, eu fui
tomada pela sensação de que Tobias Hawthorne tinha feito a lição
de casa.
Eu não era só um nome e uma data para ele.
Havia fotos minhas comandando jogos de pôquer no
estacionamento e fotos de mim carregando copos demais no
restaurante. Havia uma foto de mim com Libby em que estávamos
rindo e uma em que eu estava colocando meu corpo entre ela e
Drake. Havia uma foto minha jogando xadrez no parque e uma de
mim e Harry na fila para o café da manhã em que você só podia ver
a parte de trás das nossas cabeças. Havia até uma de mim no meu
carro, segurando uma pilha de cartões-postais na mão.
Fui fotografada até quando estava sonhando.
Tobias Hawthorne não tinha me conhecido, mas ele sabia sobre
mim. Eu posso ter sido uma aposta muito arriscada. Eu posso ter
sido parte do quebra-cabeça, e não uma jogadora. Mas esse
bilionário sabia que eu podia jogar. Ele não entrou nisso cegamente
e torceu para que o melhor acontecesse. Ele tinha tramado e
planejado, e eu tinha sido parte desse cálculo. Não apenas Avery
Kylie Grambs, nascida no dia em que Emily Laughlin havia morrido
– mas a menina das fotos.
Eu pensei no que Jameson tinha falado para mim na primeira
noite em que ele chegou ao meu quarto pelas passagens que
davam na lareira. Tobias Hawthorne tinha me deixado sua fortuna –
tudo que ele tinha deixado para eles era eu.
CAPÍTULO 90

Na manhã seguinte, bem cedo, Oren me informou que Skye


Hawthorne estava deixando a Casa Hawthorne. Ela estava se
mudando e Grayson tinha instruído a segurança a não permitir a
presença dela na propriedade.
— Alguma ideia da razão? — Oren me deu um olhar que sugeria
fortemente que ele sabia que eu sabia de alguma coisa.
Eu olhei para ele e menti.
— Não tenho ideia.

Encontrei Grayson na escada secreta, com a Davenport.


— Você expulsou sua mãe de casa?
Não era isso o que eu esperava que ele fosse fazer quando
ganhou nossa pequena aposta. Para o bem ou para o mal, Skye era
a mãe dele. Família primeiro.
— Minha mãe foi embora por vontade própria — Grayson disse
numa voz uniforme. — Ela foi convencida de que essa era a melhor
opção.
Melhor do que ser denunciada para a polícia.
— Você ganhou a aposta — eu disse a Grayson. — Você não
precisava…
Ele se virou e deu um passo, ficando no mesmo degrau que eu.
— Eu precisava, sim.
Se eu fosse escolher entre você e qualquer um deles, ele tinha
me dito, a minha escolha seria eles, sempre e todas as vezes.
Mas ele não fez isso.
— Grayson.
Eu estava bem perto dele. Na última vez que tínhamos estado
juntos naqueles degraus, eu tinha, literalmente, mostrado minhas
feridas. Desta vez, minhas mãos estavam subindo para o peito dele.
Ele era arrogante e terrível e tinha passado a primeira semana
depois que me conheceu determinado a transformar minha vida
num inferno. Ele ainda estava meio apaixonado por Emily Laughlin.
Mas, desde a primeira vez que eu o tinha visto, deixar de olhar para
ele tinha sido quase impossível.
E, ao fim daquilo tudo, ele tinha me escolhido. Em vez da família.
Em vez da mãe dele.
Hesitante, eu deixei que minha mão fosse do peito dele para seu
maxilar. Por um segundo, ele permitiu que eu o tocasse, e então
virou a cabeça.
— Eu sempre vou te proteger — ele disse, o maxilar tenso, seus
olhos sombrios. — Você merece se sentir segura na própria casa. E
vou te ajudar com a Fundação. Eu vou te ensinar o que você precisa
saber pra viver essa vida como se tivesse nascido pra ela. Mas
isso… nós… — Ele engoliu em seco. — Não pode acontecer, Avery.
Eu vi como Jameson olha pra você.
Ele não disse que não deixaria outra garota entrar no meio deles.
Mas não precisava.
CAPÍTULO 91

Fui para a escola e, quando voltei para casa, liguei para Max,
sabendo que ela provavelmente ainda estava sem celular. Minha
ligação caiu na caixa postal.
— Aqui é Maxine Liu. Eu fui sequestrada pelo equivalente
tecnológico de um convento virtual. Tenham um dia abençoado,
seus canalhas podres.
Eu tentei o celular do irmão dela e a ligação também caiu na caixa
postal.
— Você ligou pra Isaac Liu. — Max tinha tomado conta da caixa
postal dele também. — Ele é um irmão mais novo totalmente
tolerável e, se você deixar uma mensagem, ele provavelmente vai te
ligar de volta. Avery, pare de tentar ser assassinada. Você me deve
a Austrália!
Eu não deixei recado – mas eu planejei ver com Alisa o que seria
necessário para mandar toda a família Liu de primeira classe para a
Austrália. Eu não podia viajar até que meu tempo na Casa
Hawthorne tivesse acabado, mas Max podia.
Eu devia isso a ela.
Me sentindo sem rumo, doendo com o que Grayson tinha falado e
sem Max para me ajudar a processar, eu fui atrás de Libby. Nós
realmente precisávamos arranjar um celular para ela, porque uma
pessoa podia se perder naquela casa.
Eu não queria perder mais ninguém.
Poderia ter sido difícil encontrá-la, mas, quando eu cheguei perto
da sala de música, ouvi o piano tocando. Eu segui a música e
encontrei Libby sentada no banco do piano ao lado de Nan. As duas
estavam sentadas de olhos fechados, escutando.
O olho roxo de Libby finalmente tinha sumido. Vê-la com Nan me
fez pensar no trabalho que Libby tinha antes. Eu não podia pedir a
ela para só ficar sentada na Casa Hawthorne o dia todo sem fazer
nada.
Eu me perguntei o que Nash Hawthorne sugeriria. Eu poderia
pedir a ela para montar um plano de negócios. Talvez um food
truck?
Ou talvez ela também quisesse viajar. Até que o testamento fosse
autenticado, eu estava limitada no que podia fazer – mas a boa
gente da McNamara, Ortega e Jones tinha motivos para querer me
agradar. Logo o dinheiro seria meu. Logo ele sairia do fundo.
Logo eu seria uma das mulheres mais ricas e poderosas do
planeta.
A música do piano acabou e minha irmã e Nan ergueram os olhos
e me viram. Libby encarnou na hora a mãe protetora:
— Você tem certeza de que está bem? Você não parece bem.
Eu pensei em Grayson. Em Jameson. No que eu tinha ido fazer
ali.
— Estou bem — respondi, com a voz firme o suficiente para que
eu quase acreditasse.
Ela não se deixou enganar.
— Eu vou fazer alguma coisa pra você comer — ela disse. —
Você já comeu quiche? Eu nunca fiz quiche.
Eu não tinha muita vontade de provar um, mas cozinhar era a
forma de Libby demonstrar amor. Ela foi para a cozinha. Eu ia segui-
la, mas Nan me impediu.
— Fique aqui — ela ordenou.
Não havia nada que eu pudesse fazer exceto obedecer.
— Soube que minha neta está indo embora — Nan disse, rígida,
depois de me deixar passando nervoso por um tempo.
Pensei em enrolar e não responder direito, mas ela tinha provado
não ser do tipo que tem paciência para amenidades.
— Ela mandou me matar.
Nan desdenhou.
— Skye nunca gostou de sujar as mãos ela mesma. Na minha
opinião, se você quer matar alguém, deve ter ao menos a decência
de fazer isso com as próprias mãos, e fazer direito.
Essa provavelmente era a conversa mais estranha que eu já tinha
tido na vida, e isso não era pouco.
— Não que as pessoas sejam decentes hoje em dia — Nan
continuou. — Nenhum respeito. Nenhum respeito próprio. Nenhuma
coragem. — Ela suspirou. — Se minha pobre Alice pudesse ver
suas filhas agora…
Eu me perguntei como tinha sido para Skye e Zara crescer na
Casa Hawthorne. Como tinha sido para Toby.
O que os deixou perturbados assim?
— Seu genro mudou o testamento depois que Toby morreu. — Eu
estudei a expressão de Nan, me perguntando se ela sabia.
— Toby era um bom menino — Nan disse com aspereza. — Até
não ser mais.
Eu não tinha certeza de como entender isso.
As mãos dela tocaram um medalhão em volta do seu pescoço.
— Ele era a criança mais doce, esperta. Igualzinho ao pai,
costumavam dizer, mas, ah, aquele menino tinha uma dose de mim.
— O que aconteceu? — perguntei.
A expressão de Nan ficou sombria.
— Decepcionou a minha Alice. Decepcionou a todos nós, na
verdade. — Seus dedos apertaram o medalhão, e sua mão
estremeceu. Ela tensionou o maxilar e abriu o medalhão. — Olhe
pra ele — ela me disse, mostrando uma foto. — Olhe pra esse
menino doce. Ele tinha dezesseis anos nessa foto.
Eu me inclinei para ver melhor, me perguntando se Tobias
Hawthorne Segundo se parecia com algum dos sobrinhos. O que eu
vi me deixou sem fôlego.
Não.
— Esse é o Toby? — Eu não conseguia respirar. Não conseguia
pensar.
— Ele era um bom menino — Nan resmungou.
Eu mal a escutei. Eu não conseguia desviar meus olhos da
imagem. Eu não conseguia falar porque eu conhecia aquele
homem. Ele estava mais jovem na foto, muito mais jovem, mas
aquele rosto era inconfundível.
— Herdeira? — uma voz falou da porta. Eu olhei e vi Jameson
parado na entrada. Ele parecia diferente dos últimos dias. Mais leve,
de alguma forma. Vagamente menos raivoso. Capaz de oferecer um
sorrisinho torto para mim.
— O que deixou você sem ar?
Eu olhei de volta para o medalhão e minha inspiração queimou
meus pulmões.
— Toby — eu consegui dizer. — Eu o conheço.
— Você o quê? — Jameson andou na minha direção. Ao meu
lado, Nan ficou muito quieta.
— Eu jogava xadrez com ele no parque — eu disse. — Toda
manhã.
Harry.
— Isso é impossível — Nan disse, com a voz trêmula. — Toby
está morto há vinte anos.
Vinte anos atrás, Tobias Hawthorne tinha deserdado sua família
inteira. O que é isso? Que raios está acontecendo aqui?
— Você tem certeza, Herdeira? — Jameson estavam bem ao meu
lado agora. Eu vi como Jameson olha pra você, Grayson tinha dito.
— Você tem certeza absoluta?
Eu olhei para Jameson. Isso não parecia real. Eu tenho um
segredo, eu ouvi minha mãe dizendo, sobre o dia em que você
nasceu…
Eu peguei a mão de Jameson e apertei com força.
— Eu tenho certeza.
EPÍLOGO

Xander Hawthorne encarou a carta da mesma forma que tinha


feito todos os dias durante a última semana. À primeira vista, ela
dizia muito pouco.

Alexander,
Muito bem.
Tobias Hawthorne

Muito bem. Ele tinha levado seus irmãos ao fim do jogo. Ele tinha
levado Avery até lá também. Ele tinha feito exatamente como tinha
prometido – mas o velho tinha feito uma promessa para ele também.
Quando o jogo deles terminar, o seu vai começar.
Xander nunca tinha competido da mesma forma que os irmãos,
mas como ele queria. Ele não estava mentindo quando disse a
Avery que, só uma vez, ele queria ganhar. Quando eles chegaram à
última sala, quando ela abriu a caixa, quando ele rasgou seu
envelope, ele estava esperando… alguma coisa.
Uma charada.
Um quebra-cabeça.
Uma pista.
E tudo que ele tinha recebido eram essas palavras: Muito bem.
— Xander? — Rebecca disse suavemente ao lado dele. — O que
estamos fazendo aqui?
— Suspirando de forma melodramática — Thea disse, impaciente.
— Óbvio.
Ter conseguido levar as duas para o mesmo cômodo era um feito.
Ele nem estava certo da razão pela qual tinha feito isso, além do
fato de que ele precisava de uma testemunha. Testemunhas. Se
Xander fosse honesto consigo mesmo, ele tinha levado Rebecca
porque a queria ali, e tinha levado Thea, porque, senão…
Ele teria ficado sozinho com Rebecca.
— Existem vários tipos de tinta invisível — Xander disse a elas.
Nos últimos dias, ele tinha colocado um fósforo aceso no verso do
papel, aquecendo a superfície. Ele comprou uma lâmpada
ultravioleta. Ele tinha tentado todas as formas que conhecia para
encontrar uma mensagem secreta na carta, exceto uma.
— Mas só existe um tipo — ele continuou dizendo, com a voz
uniforme — que destrói a mensagem depois que ela for revelada.
Se ele estivesse errado, tinha acabado. Não haveria jogo, nem
vitória. Xander não queria fazer aquilo sozinho.
— O que exatamente você acha que vai encontrar? — Thea
perguntou a ele.
Xander olhou a carta uma última vez.

Alexander,
Muito bem.
Tobias Hawthorne.

Talvez a promessa do avô tenha sido uma mentira. Talvez, para


Tobias Hawthorne, Xander tivesse sido algo em que ele pensaria
depois. Mas ele precisava tentar. Ele olhou para a banheira ao seu
lado e a encheu de água.
— Xander? — Rebecca perguntou de novo, e sua voz quase o
desconcentrou.
— É agora ou nunca — Xander colocou animadamente sua carta
sobre a água e então a empurrou para baixo.
A princípio, ele achou que tinha cometido um erro terrível. Ele
achou que nada estava acontecendo. Então, lentamente, algumas
palavras apareceram nos dois lados da assinatura do avô. Tobias
Hawthorne, ele tinha assinado, sem nome do meio, e agora o motivo
para essa omissão estava claro.
A tinta invisível escureceu na página. Do lado direito da assinatura
havia apenas duas letras, formando um numeral romano: II. E à
esquerda havia uma única palavra. Encontre.
Encontre Tobias Hawthorne II.
AGRADECIMENTOS

Escrever este livro foi um desafio e uma alegria, e eu sou muito


grata às equipes (no plural!) incríveis que me apoiaram em cada
passo desse processo. Eu trabalhei com duas editoras fantásticas
neste projeto. Sou muito grata à Kieran Viola por reconhecer que
este era absolutamente o próximo livro que eu precisava escrever e
por me ajudar a trazer Avery, os irmãos Hawthorne e o mundo deles
à vida. Lisa Yoskowitz então conduziu o livro até a publicação, e sua
paixão e visão para este projeto, junto com seu conhecimento do
mercado e sua graça, tornaram o processo um sonho. Qualquer
autor teria sorte de trabalhar com qualquer uma dessas editoras; eu
sou incrivelmente abençoada por ter trabalhado com as duas!
Enormes agradecimentos a toda a equipe da Little, Brown Books
for Young Readers, especialmente Janelle DeLuise, Jackie Engel,
Marisa Finkelstein, Shawn Foster, Bill Grace, Savannah Kennelly,
Hannah Koerner, Christie Michel, Hannah Milton, Emilie Polster,
Victoria Stapleton e Megan Tingley. Agradecimentos especiais para
o meu relações-públicas Alex Kelleher-Nagorski, cujo entusiasmo
pelo projeto fez meu dia mais de uma vez; a Michelle Campbell, por
seu contato incrível com bibliotecários e professores, e a Karina
Granda, por seu trabalho na capa mais linda que eu já vi! Também
estou fascinada e em dívida com a artista Katt Phatt, que criou a
incrível arte da capa. Obrigada a Anthea Townsend, Phoebe
Williams e toda a equipe da Penguin Random House UK por sua
paixão e seu trabalho neste projeto, e à equipe da Disney-Hyperion,
que viu o potencial deste livro em 2018, quando ele só era uma
proposta de quatro páginas.
Elizabeth Harding é minha agente desde que eu estava na
faculdade e eu não poderia pedir uma advogada mais sábia e
incrível! A toda minha equipe na Curtis Brown – obrigada, obrigada,
obrigada. Holly Frederick defendeu os direitos para a TV deste livro.
Sarah Perillo fez um trabalho incrível com direitos estrangeiros (no
meio de uma pandemia, ainda por cima!). Obrigada também a
Nicole Eisenbraun, Sarah Gerton, Maddie Tavis e Jazmia Young.
Sou muito grata a todas vocês!
Sou imensamente agradecida à família e aos amigos que me
levaram ao fim da escrita deste projeto. Uma vez por semana,
Rachel Vincent se sentou na minha frente, no Panera, para me
incentivar, estava sempre disponível para trocar ideias e me fez
sorrir mesmo quando eu estava tão estressada que queria chorar.
Ally Carter está sempre ali para os altos e baixos da publicação.
Meus colegas e alunos na Universidade de Oklahoma têm me
apoiado de muitas formas. Obrigada a todos!
Finalmente, obrigada aos meus pais e marido, pelo apoio infinito,
e aos meus filhos, por me deixarem dormir o suficiente para
escrever este livro.
Confira nossos lançamentos,
dicas de leituras e
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Copyright © 2020 by Jennifer Lynn Barnes
Copyright da tradução © 2021 by Editora Globo S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.

Título original: The Inheritance Games

Editora responsável Veronica Gonzalez


Assistente editorial Lara Berruezo
Preparação de texto Fernanda Marão
Diagramação Ilustrarte Design e Produção Editorial
Projeto gráfico original Laboratório Secreto
Revisão Samuel Lima
Capa Katt Phatt Studio
Editora de livros digitais Ludmila Gomes
Produção do e-book Ranna Studio
Revisão do e-book Marina Pastore

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


(Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B241j
Barnes, Jennifer Lynn
Jogos de herança / Jennifer Lynn Barnes ; tradução Isadora Sinay. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Globo Alt, 2021.
432 p. ; 21 cm.

Tradução de: The inheritance games


ISBN impresso: 978-65-88131-19-0
ISBN digital: 978-65-55670-57-8

1. Romance americano. I. Sinay, Isadora. II. Título.

21-69569
CDD: 813
CDU: 82-31(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

1ª edição, 2021

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
Rua Marquês de Pombal, 25
20.230-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.globolivros.com.br
Tradução
Isadora Sinay
© Kim Haynes Photography

Jennifer (Jen) Lynn Barnes nasceu em Oklahoma, nos Estados


Unidos, e é autora best-seller da série Jogos de Herança, entre
outros títulos. Ela é graduada em Psicologia, Psiquiatria e Ciências
Cognitivas e pós-graduada por Cambridge e Yale. Jen escreveu seu
primeiro romance aos dezenove anos e vendeu seus cinco primeiros
livros ainda na faculdade. Ela também escreveu roteiros originais
para redes de televisão e é uma das maiores especialistas em
Psicologia do fandom e Ciência Cognitiva da Ficção. Jen é
professora da Universidade de Oklahoma, onde ensina Psicologia e
Redação.
www.jenniferlynnbarnes.com
@jenlynnbarnes
SUMÁRIO

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Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capìtulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Agradecimentos
Créditos
Para Charlie
CAPÍTULO 1

— Me conta de novo sobre a primeira vez que vocês jogaram


xadrez no parque.
O rosto de Jameson estava iluminado pela vela, mas mesmo na
penumbra eu via o brilho de seus olhos verde-escuros.
Nada — nem ninguém — fazia o sangue de Jameson Hawthorne
ferver como um bom mistério.
— Foi logo depois do enterro da minha mãe — respondi. —
Alguns dias, talvez uma semana.
Nós estávamos nos túneis subterrâneos da Casa Hawthorne —
sozinhos, onde ninguém mais escutaria. Fazia menos de um mês
que eu havia entrado na imponente mansão do Texas e uma
semana que havíamos resolvido o mistério de por que eu tinha sido
trazida até ali.
Se é que resolvemos esse mistério de verdade.
— Eu e minha mãe costumávamos caminhar no parque. —
Fechei os olhos para me concentrar nos fatos e não na intensidade
com que Jameson se agarrava a cada palavra minha. — Ela
chamava de Jogo de Andar sem Rumo. — Enrijeci ante a
lembrança, abrindo as pálpebras. — Alguns dias depois do enterro,
fui ao parque sem ela pela primeira vez. Quando cheguei perto do
lago, vi uma multidão reunida. Um homem estava deitado na
calçada, de olhos fechados, enrolado em cobertores esfarrapados.
— Sem-teto.
Jameson já tinha ouvido tudo aquilo antes, mas seu foco absoluto
em mim não vacilava.
— As pessoas acharam que ele estava morto, ou desmaiado de
bêbado. Então ele se sentou. Vi um policial abrir caminho pela
multidão.
— Mas você chegou nele primeiro — Jameson completou, seu
olhar no meu, a boca se curvando para cima. — E o convidou para
jogar xadrez.
Eu não esperava que Harry fosse aceitar a oferta, muito menos
que fosse ganhar.
— Depois disso, nós jogamos toda semana — continuei. — Às
vezes duas partidas por semana, até três. Ele nunca me contou
mais do que o nome.
O nome dele não era Harry de verdade. Ele mentiu. E era por isso
que eu estava nos túneis com Jameson Hawthorne. Era por isso
que ele tinha começado a me olhar como se eu fosse um mistério
de novo, um enigma que ele, e apenas ele, poderia solucionar.
Não podia ser uma coincidência que o bilionário Tobias
Hawthorne tivesse deixado sua fortuna para uma desconhecida que
conhecia seu filho “morto”.
— Você tem certeza de que era Toby? — Jameson perguntou, o
ar entre nós elétrico.
Naqueles dias, eu não tinha certeza de nada além disso. Três
semanas antes eu era uma garota normal, que ia me virando,
tentando desesperadamente sobreviver ao Ensino Médio, conseguir
uma bolsa de estudos e escapar. Então, do nada, fiquei sabendo
que um dos homens mais ricos do país havia morrido e me incluído
em seu testamento. Tobias Hawthorne tinha me deixado bilhões,
quase toda sua fortuna — e eu não tinha ideia do porquê. Jameson
e eu tínhamos passado duas semanas resolvendo enigmas e pistas
que o velho havia deixado para trás. Por que eu? Por causa do meu
nome. Por causa do dia em que nasci. Porque Tobias Hawthorne
havia apostado tudo na chance exígua de que eu, de alguma
maneira, pudesse reunir sua família despedaçada.
Ou pelo menos essa foi a conclusão a que nos levou o último jogo
do velho.
— Eu tenho certeza — falei com ferocidade. — Toby está vivo. E
se seu avô sabia disso, e sei que é um se bem grande, mas, se
sabia, precisamos presumir que ou ele me escolheu porque eu
conhecia Toby, ou ele de alguma maneira planejou nos reunir em
primeiro lugar.
Se tinha uma coisa que eu havia aprendido sobre o bilionário
falecido Tobias Hawthorne era que ele era capaz de orquestrar
quase qualquer coisa, manipular quase qualquer um. Ele adorava
enigmas, charadas e jogos.
Assim como Jameson.
— E se aquele dia no parque não foi a primeira vez que você
conheceu meu tio? — Jameson deu um passo na minha direção,
emanando uma energia demoníaca. — Pense nisso, Herdeira. Você
disse que a única vez que viu meu avô foi quando você tinha seis
anos e ele te notou na lanchonete onde sua mãe era garçonete. Ele
ouviu seu nome inteiro.
Avery Kylie Grambs, que rearranjado se tornava A Very Risky
Gamble, ou Uma Aposta Muito Arriscada. O tipo de nome que um
homem como Tobias Hawthorne iria lembrar.
— Foi isso — eu disse.
Jameson tinha chegado mais perto de mim. Perto demais. Todos
os garotos Hawthorne eram magnéticos. Maiores que a vida. Eles
tinham um efeito nas pessoas — e Jameson era muito bom em usar
isso para conseguir o que queria. Ele quer algo de mim.
— Por que meu avô, um bilionário do Texas com uma equipe
inteira de cozinheiros particulares à disposição, estava comendo em
uma espelunca em uma cidadezinha do Connecticut da qual
ninguém nunca ouviu falar?
Minha mente acelerou.
— Você acha que ele estava procurando alguma coisa?
Jameson deu um sorriso esperto.
— Ou alguém. E se o velho foi até lá procurar Toby e encontrou
você?
Havia algo na forma como ele pronunciou a palavra você. Como
se eu fosse alguém. Como se eu importasse. Mas Jameson e eu já
tínhamos passado por isso.
— E todo o resto é uma distração? — perguntei, desviando os
olhos dele. — Meu nome. O fato de Emily ter morrido no meu
aniversário. O quebra-cabeça que seu avô nos deixou... era tudo
mentira?
Jameson não reagiu ao som do nome de Emily. Enroscado em um
mistério, nada o distraía — nem mesmo ela.
— Uma mentira — Jameson repetiu. — Ou um disfarce.
Ele estendeu a mão para afastar uma mecha de cabelo do meu
rosto e todos os nervos do meu corpo entraram em alerta. Eu me
afastei.
— Pare de me olhar assim — falei, rígida.
— Assim como?
Cruzei os braços e o encarei.
— Você liga o charme quando quer alguma coisa.
— Que maldade, Herdeira. — Jameson era mais bonito com uma
expressão de desdém do que qualquer pessoa tinha o direito de ser.
— Tudo que quero é que você revire um pouco os arquivos da sua
memória. Meu avô era uma pessoa que pensava em quatro
dimensões. Ele poderia ter mais de um motivo para te escolher. Por
que matar dois coelhos com uma cajadada, ele sempre dizia,
quando você pode matar doze?
Havia algo na voz dele, na forma como ele ainda estava me
olhando, que teria tornado fácil me enrolar naquilo tudo. Nas
possibilidades. No mistério. Nele.
Mas eu não era o tipo de pessoa que cometia o mesmo erro duas
vezes.
— Talvez você esteja errado. — Virei o rosto para longe dele. — E
se seu avô não soubesse que Toby estava vivo? E se Toby foi quem
notou que o velho estava me observando? Considerando deixar
toda a fortuna para mim?
Harry, como eu o conhecia, tinha sido um belo jogador de xadrez.
Talvez aquele dia no parque não tivesse sido uma coincidência.
Talvez ele tivesse me procurado.
— Estamos deixando passar alguma coisa — Jameson disse,
andando até bem atrás de mim. — Ou talvez — murmurou,
diretamente na minha cabeça — você esteja escondendo algo.
Ele não estava completamente errado. Não era da minha
natureza abrir o jogo — e Jameson Winchester Hawthorne nem
fingia ser confiável.
— Entendi, Herdeira. — Eu quase conseguia ouvir seu sorrisinho
torto. — Se é assim que você quer jogar, por que não deixamos isso
interessante?
Eu me virei para encará-lo. Olhos nos olhos, era difícil não
lembrar que quando Jameson beijava uma garota não era hesitante.
Não era suave. Não era de verdade, lembrei. Eu era parte do
quebra-cabeça para ele, uma ferramenta a ser usada. Eu ainda era
parte do quebra-cabeça.
— Nem tudo é um jogo — falei.
— E talvez — Jameson devolveu, seus olhos acesos — seja esse
o problema. Talvez seja por isso que estamos girando as
engrenagens nesses túneis dia após dia, requentando o assunto,
sem chegar a lugar algum. Porque isso não é um jogo. Ainda. Um
jogo tem regras. Um jogo tem um vencedor. Talvez, Herdeira, o que
a gente precise para resolver o mistério de Toby Hawthorne seja
alguma motivação.
Eu apertei os olhos.
— Que tipo de motivação?
— Que tal uma aposta? — Jameson arqueou uma sobrancelha.
— Se eu resolver tudo isso primeiro, você precisa perdoar e
esquecer meu pequeno lapso de julgamento depois que
desvendamos Black Wood.
Black Wood foi onde descobrimos que a ex-namorada morta dele
tinha morrido no meu aniversário. Foi o momento em que ficou óbvio
que Tobias Hawthorne não havia me escolhido porque eu era
especial. Ele tinha me escolhido pelo que causaria neles.
Imediatamente depois, Jameson tinha me largado.
— E se eu ganhar — devolvi, encarando aqueles olhos verdes
dele —, você tem que esquecer que a gente se beijou e nunca mais
tentar me seduzir a te beijar de novo.
Eu não confiava nele, mas também não confiava em mim mesma
perto dele.
— Muito bem, Herdeira. — Jameson deu um passo a frente. Bem
ao meu lado, ele baixou a boca até minha orelha e sussurrou: — É
hora do jogo.
CAPÍTULO 2

Feita nossa aposta, Jameson saiu por um lado dos túneis e eu,
por outro. A Casa Hawthorne era imensa, enorme, grande o
suficiente para mesmo depois de três semanas eu ainda não ter
visto tudo. Era possível passar anos explorando o lugar e ainda não
conhecer todos os cantos, todas as passagens secretas e
compartimentos escondidos — sem contar os túneis subterrâneos.
Para minha sorte, eu aprendia rápido. Cortei caminho por baixo
da ala do ginásio até um túnel que passava por baixo da sala de
música. Passei por baixo do solário, então subi por uma escada
escondida até o salão principal, onde encontrei Nash Hawthorne
casualmente apoiado em uma lareira de pedra. Esperando.
— Ei, menina.
Nash nem pestanejou quando me viu surgir aparentemente do
nada. Na verdade, o mais velho dos irmãos Hawthorne dava a
impressão de que se toda a mansão desabasse, ele só continuaria
apoiado naquela lareira. Nash Hawthorne provavelmente inclinaria
seu chapéu de cowboy para a própria Morte.
— Ei — respondi.
— Imagino que você não tenha visto Grayson? — perguntou
Nash, o sotaque do Texas fazendo com que a frase soasse quase
preguiçosa.
Isso não serviu em nada para aliviar o impacto do que ele tinha
acabado de dizer.
— Não.
Mantive minha resposta curta e meu rosto impassível. Grayson
Hawthorne e eu estávamos mantendo distância.
— E eu imagino que você não saiba nada de uma conversa que
Gray teve com a nossa mãe logo antes dela se mudar?
Skye Hawthorne, a filha mais nova de Tobias Hawthorne e mãe
dos quatro netos Hawthorne, tinha tentado mandar me matar. A
pessoa que efetivamente tinha puxado o gatilho estava em uma cela
na cadeia, mas Skye tinha sido forçada a sair da Casa Hawthorne.
Por Grayson. Eu sempre vou te proteger, ele me disse. Mas isso…
nós… Não pode acontecer, Avery.
— Nem ideia — eu disse simplesmente.
— Imaginei. — Nash me deu uma piscadela. — Sua irmã e sua
advogada estão procurando por você. Ala leste.
Era uma frase carregada e tanto. Minha advogada era a ex-noiva
dele e minha irmã era…
Eu não sabia o que Libby e Nash Hawthorne eram.
— Obrigada — eu disse a ele, mas, quando cheguei ao topo da
escada em espiral da Ala Leste da Casa Hawthorne, não fui atrás de
Libby. Nem de Alisa. Eu tinha feito uma aposta com Jameson e
pretendia ganhar. Primeira parada: o escritório de Tobias
Hawthorne.
No escritório havia uma escrivaninha de mogno e, atrás dela, uma
parede com troféus, patentes e livros com o nome Hawthorne na
lombada — um impressionante lembrete visual de que não havia
nada de ordinário nos irmãos Hawthorne. Eles tinham recebido
todas as oportunidades e o velho esperava que eles fossem
extraordinários. Mas eu não tinha ido até ali admirar troféus.
Em vez disso, me sentei na escrivaninha e abri o compartimento
secreto que eu havia descoberto pouco tempo antes. Ele continha
uma pasta, e, dentro dela, havia fotos minhas. Incontáveis fotos,
cobrindo anos. Depois daquele encontro transformador na
lanchonete, Tobias Hawthorne tinha se mantido atualizado a meu
respeito. Tudo por causa do meu nome? Ou ele tinha algum outro
motivo?
Passei pelas fotos e puxei duas. Jameson estava certo, lá nos
túneis: eu estava escondendo algo dele. Eu tinha sido fotografada
com Toby duas vezes, mas nas duas vezes tudo que o fotógrafo
havia conseguido capturar do homem ao meu lado era sua nuca.
Tobias Hawthorne havia reconhecido Toby por trás? “Harry” tinha
percebido que estávamos sendo fotografados e virou sua cabeça de
propósito?
No que diz respeito a pistas, aquilo não era muita coisa. Tudo que
o arquivo provava era que Tobias Hawthorne já estava de olho em
mim havia anos quando “Harry” apareceu. Passei pelas fotos até
uma cópia da minha certidão de nascimento. A assinatura da minha
mãe era nítida, a do meu pai, uma mistura estranha de letra cursiva
e de forma. Tobias Hawthorne havia grifado a assinatura do meu
pai, assim como minha data de nascimento.
18/10. Eu sabia o significado daquilo. Grayson e Jameson haviam
amado uma garota chamada Emily Laughlin. A morte dela — no dia
18 de outubro — os havia separado. Mas por que Tobias Hawthorne
teria grifado a assinatura do meu pai? Ricky Grambs não era
ninguém. Nem se importava o suficiente para ligar quando minha
mãe morreu. Se fosse por ele, eu teria ido para uma família adotiva.
Encarando a assinatura de Ricky, desejei que o que quer que Tobias
Hawthorne estivesse pensando quando a grifou ficasse claro.
Nada.
No fundo da cabeça, ouvi a voz da minha mãe. Eu tenho um
segredo, ela me disse, muito antes de Tobias Hawthorne me incluir
em seu testamento, sobre o dia que você nasceu.
Ao que quer que ela estivesse se referindo, eu nunca ia adivinhar,
visto que ela não estava mais aqui. A única coisa que eu sabia com
certeza é que eu não era uma Hawthorne. Se o nome do meu pai na
certidão de nascimento não fosse prova suficiente, um teste de DNA
já tinha confirmado que eu não tinha sangue Hawthorne.
Por que Toby me procurou? Ele me procurou mesmo? Pensei no
que Jameson havia dito a respeito do avô matar doze coelhos com
uma cajadada. Passando pelo arquivo de novo, tentei encontrar
alguma faísca de significado. O que eu não estava vendo? Tinha
que ter alguma coisa…
Uma batida na porta foi o único aviso que tive antes da maçaneta
começar a girar. Com rapidez, recolhi as fotos e enfiei o arquivo de
volta no compartimento secreto.
— Aí está você. — Alisa Ortega, advogada, era um modelo de
profissionalismo. Ela ergueu as sobrancelhas, fazendo o que eu
havia mentalmente apelidado de Cara de Alisa. — Eu estaria correta
em imaginar que você se esqueceu do jogo?
— O jogo — repeti, sem saber de qual jogo ela estava falando. Eu
sentia que estava jogando desde o momento em que passei pela
porta da Casa Hawthorne.
— O jogo de futebol — explicou ela, ainda fazendo Cara de Alisa.
— Segunda parte da sua apresentação à sociedade texana. Com a
saída de Skye da Casa Hawthorne, as aparências são mais
importantes do que nunca. Precisamos controlar a narrativa. Essa é
uma história de Cinderela, não um escândalo, e isso significa que
você precisa fazer a Cinderela. Em público. O mais frequente e
convincentemente possível, começando ao fazer uso do seu
camarote de proprietária essa noite.
Camarote de proprietária. Lembrei.
— O jogo — repeti de novo, compreensão surgindo. — Tipo, o
jogo de futebol americano. Porque eu sou dona de um time de
futebol.
Aquilo ainda era tão absolutamente inacreditável que quase
conseguia me distrair da outra parte do que Alisa havia dito — a
parte sobre Skye. Pelo acordo que eu havia feito com Grayson, eu
não podia contar para ninguém do dedo da mãe dele na minha
tentativa de assassinato. Em troca, ele havia dado um jeito na
situação.
Como ele tinha prometido.
— Há quarenta e oito lugares na suíte do dono — disse Alisa,
entrando sem seu modo palestrante. — Um mapa geral dos
assentos é criado com meses de antecedência. Só VIPs. Não é só
futebol, é uma forma de comprar um lugar em uma dúzia de mesas.
Os convites são muito cobiçados por todo tipo de gente: políticos,
celebridades, CEOs. Eu pedi a Oren para checar todo mundo na
lista de hoje e teremos um fotógrafo profissional à disposição para
alguns registros estratégicos. Landon preparou um release para a
imprensa que vai sair uma hora antes do jogo. Só é preciso se
preocupar com…
Alisa deixou a frase no ar, educadamente.
Eu ri.
— Comigo?
— É uma história de Cinderela — lembrou Alisa. — O que você
acha que Cinderela usaria para seu primeiro jogo da NFL?
A pergunta tinha que ser capciosa.
— Algo assim?
Libby apareceu pela porta. Ela estava usando a camisa do time,
um cachecol combinando, luvas combinando e botas combinando.
Seu cabelo azul estava preso em maria-chiquinhas com um monte
de fitas azuis e douradas.
Alisa forçou um sorriso.
— Isso — ela me disse. — Algo assim… menos o batom preto, o
esmalte preto e a gargantilha.
Libby era basicamente a gótica mais alegre do mundo, e Alisa não
era fã do senso de moda da minha irmã.
— Como eu vinha dizendo — Alisa continuou enfaticamente —,
essa noite é importante. Enquanto Avery faz a Cinderela para as
câmeras, eu vou circular entre os convidados e ter uma noção
melhor do que eles pensam.
— Em relação a quê? — perguntei.
Tinham me dito várias vezes que o testamento de Tobias
Hawthorne era inquestionável. Até onde eu sabia, a família
Hawthorne havia desistido de tentar questioná-lo.
— Sempre cai bem ter mais alguns poderosos do seu lado —
disse Alisa. — E nós queremos nossos aliados tranquilos.
— Espero não estar interrompendo — falou Nash, como se
tivesse esbarrado com nós três por acaso, como se não tivesse sido
ele quem me avisou que Alisa e Libby estavam me procurando. —
Continue, Li-Li — disse para minha advogada. — Você estava
falando de tranquilidade?
— Nós precisamos que as pessoas saibam que Avery não está
aqui para bagunçar as coisas. — Alisa evitou olhar diretamente para
Nash, como uma pessoa que evita olhar para o sol. — Seu avô tinha
investimentos, sócios, relações políticas, e essas coisas exigem um
equilíbrio cuidadoso.
— O que ela quer dizer com isso — disse Nash, dirigindo-se a
mim — é que ela precisa que as pessoas pensem que o McNamara,
Ortega e Jones tem a situação totalmente sob controle.
A situação? Ou eu? Eu não gostava da ideia de ser marionete de
ninguém. Na teoria, pelo menos, o escritório deveria trabalhar para
mim.
Aquilo me deu uma ideia.
— Alisa? Lembra quando eu te pedi para mandar dinheiro para
um amigo meu?
— Harry, não foi? — Alisa respondeu, mas eu tive a clara
sensação de que a atenção dela estava dividida em três: minha
pergunta, seus grandes planos para a noite e a forma como os
lábios de Nash se curvaram para cima quando ele viu a roupa de
Libby.
A última coisa que eu precisava era minha advogada concentrada
na forma como o ex dela olhava para minha irmã.
— Isso. Você conseguiu mandar o dinheiro para ele? — perguntei.
A forma mais simples de conseguir respostas seria encontrar
Toby... antes que Jameson o fizesse.
Alisa desviou o olhar de Libby e Nash.
— Infelizmente — ela disse, ríspida —, meu pessoal não
conseguiu achar nenhum sinal do seu Harry.
Refleti sobre o que aquilo queria dizer. Toby Hawthorne havia
aparecido no parque dias depois da morte da minha mãe; menos de
um mês depois de eu ir embora, ele havia desaparecido.
— Agora — continuou Alisa, torcendo as mãos em frente ao corpo
—, quanto ao seu guarda-roupa…
CAPÍTULO 3

Eu nunca tinha visto um jogo de futebol americano na minha vida,


mas, sendo a nova proprietária do Texas Lone Stars, eu não podia
realmente dizer isso para a multidão de repórteres que cercou
minha SUV quando encostamos no estádio. Assim como não podia
admitir que a camisa de gola larga, que deixava meus ombros de
fora, e as botas de cowboy azul-metálico que eu estava usando
eram tão autênticas quanto uma fantasia de Halloween.
— Abra a janela — me disse Alisa —, sorria e grite “Vai, Lone
Stars!”
Eu não queria abaixar a janela. Eu não queria sorrir. Eu não
queria gritar nada, mas fiz tudo isso. Porque essa era uma história
de Cinderela, e eu era a estrela.
— Avery!
— Avery, olhe aqui!
— Como você se sente no seu primeiro jogo como nova
proprietária do time?
— Você tem algum comentário sobre os relatos de que você
agrediu Skye Hawthorne?
Eu não tinha recebido muito treinamento de mídia, mas sabia o
suficiente para me lembrar da regra principal quando repórteres
gritam perguntas sem parar: não responda. Basicamente, a única
coisa que eu podia dizer era que eu estava animada, grata,
impressionada e chocada da melhor maneira possível.
Então fiz meu melhor para transmitir animação, gratidão e
espanto. Quase cem mil pessoas iriam ao jogo daquela noite.
Milhões assistiriam ao redor do mundo, torcendo pelo time. Meu
time.
— Vai, Lone Stars! — gritei.
Assim que meu dedo tocou o botão de fechar a janela, alguém se
destacou da multidão. Não era um repórter.
Meu pai.
Ricky Grambs tinha passado a vida me tratando como uma
lembrança de última hora, se muito. Eu não o via fazia mais de um
ano. Mas agora que eu tinha herdado bilhões?
Lá estava ele.
Dei as costas para ele — e para os paparazzi — e fechei a janela.
— Ave?
A voz de Libby hesitou quando nossa SUV blindada desapareceu
para dentro da garagem particular sob o estádio. Minha irmã era
uma otimista. Ela acreditava no melhor das pessoas — até mesmo
de um homem que nunca tinha feito porcaria nenhuma por nós.
— Você sabia que ele estaria aqui? — perguntei em voz baixa.
— Não! — disse Libby. — Eu juro! — Ela mordeu o lábio,
borrando o batom preto. — Mas ele só quer conversar.
Aposto que quer.
Oren, meu chefe de segurança, estacionou a SUV e falou
calmamente em seu fone:
— Temos uma situação perto da entrada norte. Olhos apenas,
mas quero um relatório completo.
O bom de ser uma bilionária com uma equipe de segurança
lotada de membros aposentados das Forças Especiais era que as
chances de ser emboscada de novo eram quase nulas. Abafei os
sentimentos que a presença de Ricky havia trazido e saí do carro
para as entranhas de um dos maiores estádios do mundo.
— Vamos lá — falei.
— Só para constar — Alisa me disse ao sair do carro —, o
escritório é mais do que capaz de lidar com o seu pai.
E isso era o bom de ser a única cliente de um escritório de direito
multibilionário.
— Você está bem? — Alisa insistiu.
Ela não era exatamente do tipo sentimental. Era mais provável
que estivesse tentando avaliar se eu atrapalharia a noite.
— Estou bem — respondi.
— Por que não estaria?
Aquela voz — baixa e suave — veio do elevador atrás de mim.
Pela primeira vez em sete dias, eu me virei e olhei diretamente para
Grayson Hawthorne. Ele tinha cabelo claro, olhos cinza-gelo e
maçãs do rosto afiadas o suficiente para serem consideradas
armas. Duas semanas antes, eu teria dito que ele era o babaca
mais metido, moralista e arrogante que eu já tinha conhecido.
Mas eu não sabia o que dizer sobre Grayson Hawthorne agora.
— Por que — repetiu nitidamente, saindo do elevador — Avery
estaria algo diferente de bem?
— Meu pai inútil fez uma aparição lá fora — resmunguei. — Está
tudo bem.
Grayson me encarou, seu olhar perfurando o meu, e se virou para
Oren.
— Ele é uma ameaça?
Eu sempre vou te proteger, ele jurara. Mas isso… nós… não pode
acontecer, Avery.
— Não preciso que você me proteja — eu disse, ríspida, para
Grayson. — Quando se trata de Ricky, sou especialista em me
proteger.
Passei por Grayson, entrando no elevador do qual ele havia saído
um instante antes.
O truque em ser abandonada era nunca se deixar sentir falta de
alguém que partiu.
Um minuto depois, quando as portas do elevador se abriram na
suíte do proprietário, saí com Alisa de um lado e Oren do outro e
sequer olhei para Grayson. Como ele tinha descido de elevador
para me encontrar, obviamente já estivera ali, provavelmente
puxando o saco dos convidados. Sem mim.
— Avery. Você veio. — Zara Hawthorne-Calligaris usava um colar
delicado de pérolas. Havia algo em seu sorriso afiado que me fazia
sentir que ela provavelmente poderia matar um homem com aquelas
pérolas, se assim quisesse. — Eu não estava certa de que você
apareceria hoje.
E você estava bancando a anfitriã na minha ausência, concluí.
Pensei no que Alisa havia dito — a respeito de aliados, de jogadores
poderosos e da influência que podia ser comprada com um ingresso
para aquele camarote.
Como Jameson diria, que o jogo comece.
CAPÍTULO 4

A suíte do proprietário tinha uma vista perfeita da linha de


cinquenta jardas, mas, uma hora antes do chute inicial, ninguém
estava olhando pro campo. A suíte se estendia para o fundo e se
alargava, e quanto mais você se afastasse dos assentos, mais
parecia um bar ou boate chiques. Hoje, eu era a atração — uma
estranheza, uma curiosidade, uma boneca de papel vestida da
maneira certa. Pelo que pareceu uma eternidade, apertei mãos,
posei para os fotógrafos e fingi entender piadas de futebol
americano. Consegui não ficar boquiaberta quando vi uma cantora
pop, um ex-vice-presidente e um gigante da tecnologia que
provavelmente ganhava mais dinheiro no tempo que levava para
fazer xixi do que a maioria das pessoas ganhava em uma vida
inteira.
Meu cérebro simplesmente parou de funcionar quando ouvi a
frase “sua Alteza Real” e percebi que havia realeza de verdade
presente ali.
Alisa deve ter sentido que eu estava chegando ao meu limite.
— Está quase na hora de começar — ela disse, tocando meu
ombro de leve, provavelmente para me impedir de fugir. — Vamos te
levar ao seu assento.
Eu aguentei até o intervalo, e então escapei de verdade. Grayson
me interceptou. Sem dizer uma palavra, ele apontou com a cabeça
para um lado e começou a andar, confiante de que eu o seguiria.
Contra a minha vontade, o segui, e o que encontrei foi um
segundo elevador.
— Esse sobe — ele me disse.
Ir a qualquer lugar com Grayson Hawthorne era provavelmente
um erro, mas, já que a alternativa era mais conversa fiada, decidi
arriscar.
Subimos em silêncio no elevador. A porta se abriu para uma
salinha com cinco lugares, todos vazios. A visão do campo era
ainda melhor do que embaixo.
— Meu avô só aguentava socializar na suíte por um tempo antes
de ficar de saco cheio e subir para cá — Grayson me disse. — Meus
irmãos e eu éramos os únicos que podíamos vir com ele.
Eu me sentei e encarei o estádio. Havia tanta gente nas
arquibancadas. A energia, o caos, o volume da coisa eram
atordoantes. Mas ali estava silencioso.
— Eu achei que você viria ao jogo com Jameson. — Grayson não
fez nenhum movimento na direção de se sentar, como se não
confiasse em si mesmo ficando tão perto de mim. — Vocês dois têm
passado bastante tempo juntos.
Isso me irritou por motivos que eu nem conseguia explicar.
— Seu irmão e eu temos uma aposta rolando.
— Que tipo de aposta?
Eu não tinha nenhuma intenção de responder, mas, quando deixei
meu olhar vagar na direção dele, não consegui resistir a dizer a
única coisa que com certeza arrancaria uma reação.
— Toby está vivo.
Para outra pessoa, a reação de Grayson talvez não fosse notável,
mas vi o choque passando por ele. Seu olhar cinzento estava
grudado no meu.
— Como é?
— Seu tio está vivo e se diverte fingindo ser um sem-teto em New
Castle, Connecticut.
Eu provavelmente poderia ter sido um pouco mais delicada.
Grayson se aproximou. Ele se dignou a sentar ao meu lado, a
tensão em seus braços notável ao apertar as mãos entre os joelhos.
— Do que, precisamente, você está falando, Avery?
Eu não estava acostumada a ouvi-lo me chamar pelo nome. E era
tarde demais para voltar atrás.
— Eu vi uma foto de Toby no medalhão da sua avó. — Fechei os
olhos, voltando para aquele momento. — Eu o reconheci. Ele me
disse que se chamava Harry. Nós jogamos xadrez no parque toda
semana por mais de um ano. — Abri os olhos de novo. — Jameson
e eu não estamos certos de que história é essa... ainda. Nós
apostamos quem vai descobrir primeiro.
— Para quem você contou?
A voz de Grayson estava completamente séria.
— Da aposta?
— De Toby.
— Nan estava lá quando eu descobri. Eu ia contar a Alisa, mas…
— Não — Grayson me cortou. — Nenhuma palavra disso para
ninguém. Você entendeu?
Eu o encarei.
— Estou começando a sentir que não.
— Minha mãe não tem fundamento para questionar o testamento.
Minha tia não tem fundamento para questionar o testamento. Mas
Toby? — Grayson havia crescido como o herdeiro natural. De todos
os irmãos Hawthorne, era para ele que ser deserdado havia sido
mais difícil. — Se meu tio estiver vivo, ele é a única pessoa nesse
planeta que talvez consiga quebrar o testamento do velho.
— Você diz isso como se fosse uma coisa ruim — falei. — Pela
minha perspectiva, claro. Mas pela sua…
— Minha mãe não pode descobrir. Zara não pode descobrir. — A
expressão de Grayson era intensa, tudo nele focado em mim. — A
McNamara, Ortega e Jones não pode descobrir.
Na semana que Jameson e eu passamos discutindo aquela
reviravolta, ficamos completamente concentrados no mistério... não
no que poderia acontecer se o herdeiro perdido de Tobias
Hawthorne subitamente aparecesse vivo.
— Você não está nem um pouco curioso? — perguntei a Grayson.
— A respeito do significado disso?
— Eu sei o significado — respondeu ele, ríspido. — Estou te
dizendo o significado, Avery.
— Se seu tio estivesse interessado na herança, você não acha
que ele já teria se pronunciado, a essa altura? — perguntei. — A
menos que exista um motivo para ele estar se escondendo.
— Então deixe ele se esconder. Você tem alguma ideia do quão
arriscado…
Grayson não chegou a concluir a pergunta.
— O que é a vida sem algum risco, irmão?
Eu me virei na direção do elevador. Eu não tinha notado que ele
descera nem subira de volta, mas ali estava Jameson. Ele passou
por Grayson e se sentou na cadeira do meu outro lado.
— Algum progresso com a nossa aposta, Herdeira?
Eu ri.
— Lógico que você quer saber.
Jameson deu um sorriso irônico e abriu a boca para dizer outra
coisa, mas suas palavras foram interrompidas por uma explosão.
Mais de uma. Tiros. O pânico correu pelas minhas veias e, quando
notei, eu estava no chão. Cadê o atirador? Era igual a Black Wood.
Igualzinho a Black Wood.
— Herdeira.
Eu não conseguia me mover. Não conseguia respirar. E então
Jameson estava no chão comigo. Ele alinhou seu rosto ao meu e
pegou minha cabeça entre as mãos.
— Fogos de artifício — me disse. — São só fogos de artifício,
Herdeira, por causa do intervalo.
Meu cérebro registrou as palavras, mas meu corpo ainda estava
perdido na lembrança. Jameson estava lá em Black Wood comigo.
Ele tinha jogado seu corpo sobre o meu.
— Está tudo bem, Avery. — Grayson se ajoelhou ao lado de
Jameson, ao meu lado. — Não vamos deixar nada te ferir.
Por um momento longo e arrastado não houve nenhum som na
sala além de nossas respirações. A de Grayson. A de Jameson. E a
minha.
— Só fogos de artifício — repeti para Jameson, meu peito
apertado.
Grayson se levantou, mas Jameson permaneceu exatamente
onde estava. Ele me encarou, seu corpo contra o meu. Havia algo
quase carinhoso em sua expressão. Eu engoli em seco — e então
seus lábios se curvaram em um sorriso maldoso.
— Só para constar, Herdeira, eu tenho feito um progresso
excelente com a nossa aposta.
Ele deixou seu polegar traçar o contorno do meu maxilar.
Estremeci, então o olhei feio e me levantei. Pelo bem da minha
sanidade, eu precisava vencer aquela aposta. Rápido.
CAPÍTULO 5

Segunda-feira era dia de escola. Escola particular. Uma escola


particular com recursos aparentemente infinitos e um “currículo
modular”, o que me deixava com momentos aleatórios de tempo
livre espalhados pelo meu dia. Eu usava o tempo para cavar tudo
que pudesse sobre Toby Hawthorne.
Eu já sabia o básico: ele era o mais novo dos três filhos de Tobias
Hawthorne e, segundo todos os relatos, o favorito. Quando tinha
dezenove anos, ele e alguns amigos fizeram uma viagem para uma
ilha particular que a família Hawthorne possuía na costa do Oregon.
Lá aconteceu um incêndio fatal e uma tempestade horrível e o corpo
dele nunca foi encontrado.
A tragédia chegou aos jornais, e vasculhar as matérias me deu
mais alguns detalhes a respeito do que aconteceu. Quatro pessoas
haviam ido para a Ilha Hawthorne. Nenhuma tinha voltado viva. Três
corpos haviam sido encontrados. Presumiu-se que o de Toby tinha
se perdido no oceano revolto.
Descobri o que pude sobre as outras vítimas. Duas delas eram
basicamente clones de Toby: meninos de escolas particulares.
Herdeiros. A terceira era uma garota, Kaylie Rooney. Pelo que
entendi, era uma menina local, uma adolescente problemática de
uma pequena vila de pescadores no continente. Várias matérias
mencionavam que ela tinha ficha criminal — uma ficha juvenil
confidencial. Levei mais tempo para achar uma fonte — não
necessariamente confiável — dizendo que a ficha criminal de Kaylie
Rooney incluía drogas, agressão e incêndio intencional.
Ela começou o incêndio. Foi a história que a imprensa vendeu,
sem dizer com todas as letras. Três jovens promissores, uma jovem
mulher atormentada. Uma festa que saiu do controle. Tudo engolido
pelas chamas. Kaylie foi quem a imprensa culpou — algumas vezes
nas entrelinhas, algumas vezes explicitamente. Os meninos foram
celebrados, homenageados e elevados como ídolos brilhantes em
suas comunidades. Colin Anders Wright. David Golding. Tobias
Hawthorne II. Tanta inteligência, tanto potencial, perdidos cedo
demais.
Mas Kaylie Rooney? Ela era problema.
Meu celular vibrou e baixei o olhar para a tela. Uma mensagem —
de Jameson: Tenho uma pista.
Jameson estava no último ano na Heights Country Day. Ele
estava em algum lugar daquele campus magnífico. Que tipo de
pista?, pensei, mas resisti a dar a ele a satisfação de responder.
Finalmente, meu celular me informou que ele estava digitando.
Me diga o que você sabe, pensei.
Então a segunda mensagem finalmente chegou: Quer aumentar a
aposta?

***

O refeitório da Heights Country Day não se parecia em nada com


uma cantina de ensino médio. Longas mesas de madeira se
estendiam ao comprido pelo local. As paredes eram cobertas de
retratos. O pé-direito era alto e arqueado, e as janelas, feitas de
vitrais. Quando peguei a comida, olhei ao redor instintivamente, em
busca de Jameson — e encontrei outro irmão Hawthorne no lugar
dele.
Xander Hawthorne estava sentado a uma mesa, encarando
intensamente uma invenção que havia posto na superfície. A
engenhoca parecia um pouco um cubo mágico, mas alongado, com
blocos que podiam girar e se dobrar em todas as direções. Suspeitei
que era um original de Xander Hawthorne. Ele tinha me dito uma
vez que era o irmão mais propenso a ser distraído por máquinas
complexas — e scones.
Isso me fez pensar, enquanto eu o observava cutucar três blocos
para a frente e para trás com os dedos. Quando seus irmãos
estavam por aí jogando os jogos do avô, Xander com frequência
acabava dividindo os scones com o velho. Eles alguma vez falaram
de Toby? Só havia uma forma de descobrir. Cruzei a sala e me
sentei ao lado de Xander, mas ele estava perdido demais em
pensamentos para me notar. Para a frente e para trás, para a frente
e para trás, torcia os blocos.
— Xander?
Ele se virou na minha direção e piscou.
— Avery! Que surpresa agradável e não objetivamente
inesperada!
A mão direita dele deslizou para o lado direito do aparelho e para
um caderno que estava ali. Ele o fechou.
Eu entendi o gesto como um sinal de que Xander Hawthorne
estava aprontando alguma. Mas, bom, eu também estava.
— Posso te perguntar uma coisa?
— Depende — respondeu Xander. — Você planeja dividir esses
doces?
Eu baixei o olhar para o croissant e o cookie na minha bandeja e
deslizei esse último para ele.
— O que você sabe do seu tio Toby?
— Por que você quer saber? — Xander deu uma mordida no
cookie e franziu o cenho. — Tem cranberry desidratado nisso? Que
tipo de monstro mistura caramelo e cranberry?
— Só curiosidade — falei.
— Você sabe o que dizem sobre curiosidade — Xander me
alertou alegremente, dando outra mordida enorme no cookie. —
Curiosidade matou o… Bex!
Xander engoliu a mordida que tinha acabado de dar e seu rosto
se acendeu.
Segui o olhar dele até Rebecca Laughlin, em pé atrás de mim,
segurando uma bandeja e com a aparência que ela sempre tinha:
algum tipo de princesa saída direto de um conto de fadas. Cabelo
vermelho como rubis. Olhos impossivelmente grandes.
Com culpa no cartório.
Como se ela conseguisse ouvir meus pensamentos, Rebecca
rapidamente desviou os olhos.
— Eu achei que você podia precisar de ajuda — ela disse,
hesitante, a Xander — com o…
— A coisa! — Xander se inclinou para a frente, interrompendo-a.
Apertei os olhos e virei a cabeça de volta para o mais jovem dos
Hawthorne — e o caderno que ele havia fechado no momento em
que tinha me visto.
— Que coisa? — perguntei, desconfiada.
— É melhor eu ir — disse Rebecca atrás de mim.
— Você deveria se sentar e me ouvir reclamar de cranberries —
corrigiu Xander.
Depois de um longo momento, Rebecca se sentou, deixando uma
cadeira vazia entre nós. Seu olhar verde-claro se dirigiu a mim.
— Avery. — Ela baixou os olhos de novo. — Eu te devo
desculpas.
Da última vez que Rebecca e eu nos falamos, ela havia
confessado ter encoberto o papel de Skye Hawthorne na minha
tentativa de assassinato.
— Eu não estou certa de que quero isso — respondi, hostilidade
surgindo na minha voz.
Em um nível intelectual, eu entendia que Rebecca havia passado
a vida à sombra da irmã, que a morte de Emily a tinha destruído e
que ela sentia algum tipo de responsabilidade doentia para com a
irmã morta, o que implicava não dizer nada a respeito da trama de
Skye contra mim. Contudo, em um nível mais visceral: eu poderia
ter morrido.
— Você não está guardando um rancorzinho dessa história toda,
né? — perguntou Thea Calligaris, pegando o lugar que Rebecca
havia deixado vazio.
— Rancorzinho? — repeti. Da última vez que eu tinha ficado tão
perto de Thea, ela havia admitido que tinha armado para que eu
fosse à minha estreia na sociedade texana vestida como uma
menina morta. — Você faz joguinhos mentais. E Rebecca quase me
matou!
— O que posso dizer? — Thea deixou que seus dedos roçassem
os de Rebecca. — Somos garotas complicadas.
Havia algo deliberado naquelas palavras, naquele toque. Rebecca
olhou para Thea, olhou para as mãos dela — e então fechou os
dedos contra a palma e levou a mão ao colo.
Thea manteve o olhar em Rebecca por três longos segundos,
então se virou para mim.
— Além do mais — disse ela, insolente —, achei que esse seria
um almoço particular.
Particular. Só Rebecca, Thea e Xander, três pessoas que — da
última vez que vi — mal estavam se falando por razões complicadas
que envolviam, como Xander gostava de dizer, amor trágico,
namoro falso e tragédia.
— O que eu perdi aqui? — perguntei a Xander.
O caderno. A maneira como ele havia evitado minha pergunta
sobre Toby. A “coisa” com a qual Rebecca tinha ido ajudá-lo. E
Thea.
Xander se salvou de ter que responder, enfiando o resto do cookie
na boca.
— E aí? — insisti enquanto ele mastigava.
— O aniversário de Emily é na sexta — disse Rebecca de
repente.
A voz dela era baixa, mas o que ela havia acabado de dizer sugou
todo o oxigênio da sala.
— Estão arrecadando dinheiro para um memorial — acrescentou
Thea, me encarando. — Xander, Rebecca e eu marcamos esse
almoço particular para alinhar alguns planos.
Eu não estava certa se acreditava nela, mas, de qualquer forma,
aquela era claramente a deixa para que eu fosse embora.
CAPÍTULO 6

Tentar falar com Xander havia sido um fracasso. Eu já tinha ido o


mais longe possível lendo sobre o incêndio. E agora?, pensei,
descendo por um corredor comprido na direção do meu armário.
Falar com alguém que conhecia Toby? Skye era impossível, por
motivos óbvios. Eu também não confiava em Zara. Quem restava?
Nash, talvez? Ele devia ter uns cinco anos quando Toby
desapareceu. Nan. Talvez os Laughlin. Os avós de Rebecca
gerenciavam a propriedade dos Hawthorne havia anos. Com quem
Jameson anda falando? Qual a pista dele?
Frustrada, peguei o celular e mandei uma mensagem para Max.
Eu não esperava uma resposta, já que minha melhor amiga estava
em total isolamento tecnológico desde que minha reviravolta — e a
atenção da imprensa que a acompanhou — havia estragado a vida
dela. Mas, mesmo com a culpa que carregava pelo que minha fama
instantânea havia feito com Max, mandar mensagens para ela fazia
eu me sentir um pouco menos sozinha. Tentei imaginar o que ela
me diria se estivesse ali, mas tudo que consegui foi uma sequência
de palavrões falsos — e ordens severas para não acabar morta.
— Você viu as notícias? — Ouvi uma menina no final do corredor
perguntar em uma voz sussurrada quando parei em frente ao meu
armário. — Sobre o pai dela?
Rangendo os dentes, abafei o som das fofoqueiras. Abri o armário
e uma foto de Ricky Grambs me encarou. Ela devia ter sido cortada
de alguma matéria, porque havia uma manchete acima da foto: Eu
Só Quero Falar Com a Minha Filha.
Raiva fervia na boca do meu estômago — raiva por meu pai inútil
ter ousado falar com a imprensa, raiva por alguém ter colado aquela
matéria na porta do meu armário. Olhei em volta para ver se o
culpado se revelaria. Os armários da Heights Country Day eram
feitos de madeira e não tinham tranca. Era uma forma sutil de dizer
“pessoas como nós não roubam”. Que necessidade de segurança
poderia haver entre a elite?
Como Max diria, grandes lerdas. Qualquer um poderia ter
acessado meu armário, mas ninguém no corredor estava
observando minha reação. Eu me virei para rasgar a foto e foi
quando notei que quem quer que tivesse colado a foto também
havia coberto o fundo do meu armário com retalhos de papel
vermelho.
Não são retalhos, percebi, pegando um. Comentários. Durante as
três últimas semanas, eu havia feito um bom trabalho em me manter
offline, evitando o que os comentaristas de internet diziam a meu
respeito. Para algumas pessoas você será Cinderela, Oren havia
me dito quando recebi a herança. Para outras, Maria Antonieta.
Em caixa alta, o comentário na minha mão dizia ALGUÉM
PRECISA ENSINAR UMA LIÇÃO PARA ESSA VACA METIDA. Eu
devia ter parado ali, mas não fiz isso. Minha mão tremeu de leve
quando peguei o segundo comentário. Quando essa PUTA vai
morrer? Havia mais dezenas, alguns explícitos.
Um internauta só tinha postado uma foto: meu rosto, com um alvo
por cima, como se eu estivesse na mira de uma arma.

— É quase certo que isso foi só algum adolescente entediado


testando os limites — me disse Oren quando voltamos à Casa
Hawthorne naquela tarde.
— Mas os comentários… — Engoli em seco, algumas das
ameaças ainda gravadas no meu cérebro. — Eles são de verdade?
— Nada com que se preocupar — garantiu Oren. — Minha equipe
vigia essas coisas. Todas as ameaças são documentadas e
examinadas. Dos cento e pouco piores, até agora só dois ou três
mereceram que ficássemos de olho.
Tentei não me fixar nos números.
— O que você quer dizer com ficar de olho?
— Se não me engano — disse uma voz fria e controlada —, ele
está se referindo à Lista.
Ergui os olhos e vi Grayson a alguns passos de distância de mim,
vestindo um terno escuro, sua expressão inescrutável, exceto por
uma linha de tensão no maxilar.
— Que lista? — perguntei, tentando não prestar muita atenção em
seu maxilar.
— Você quer mostrar a ela? — perguntou Grayson calmamente a
Oren. — Ou eu mostro?

Tinham me dito que a Casa Hawthorne era mais segura que a Casa
Branca. Eu tinha visto os homens de Oren. Eu sabia que ninguém
entrava na propriedade sem uma verificação profunda de
antecedentes e que havia um extenso sistema de monitoramento.
Mas há uma diferença entre saber disso objetivamente e ver a
operação. A sala de vigilância estava coberta por monitores. A maior
parte da filmagem de segurança se concentrava no perímetro e nos
portões, mas havia alguns monitores que mostravam os corredores
da Casa Hawthorne, um por um.
— Eli — chamou Oren.
Um dos guardas que estava monitorando as transmissões se
levantou. Ele parecia ter uns vinte e poucos anos, com corte de
cabelo militar, muitas cicatrizes e olhos azuis brilhantes com uma
borda cor de âmbar na pupila.
— Avery — disse Oren —, esse é Eli. Ele vai te acompanhar na
escola, pelo menos até eu terminar uma análise completa da
situação com o armário. Ele é o membro mais jovem da nossa
equipe, então vai se misturar melhor do que o resto de nós.
Eli parecia um militar... parecia um guarda-costas. Não parecia
que ia conseguir se misturar na minha escola.
— Achei que você não estava preocupado com o meu armário —
eu disse a Oren.
O chefe de segurança me olhou nos olhos.
— Não estou.
Mas ele também não ia arriscar.
— O que, precisamente — disse Grayson, vindo por trás de mim
—, aconteceu no seu armário?
Senti um impulso breve e irritante de contar a ele, de deixá-lo me
proteger, como ele havia jurado que faria. Mas nem tudo era da
conta de Grayson Hawthorne.
— Cadê a lista? — perguntei, me afastando dele e voltando a
conversa para o motivo de eu estar ali.
Oren acenou com a cabeça para Eli e o jovem me deu uma lista,
literalmente. Nomes. O primeiro era RICKY GRAMBS. Eu franzi o
cenho, mas consegui ler o restante por alto. Havia talvez trinta
nomes no total.
— Quem são essas pessoas? — perguntei, minha garganta se
apertando em volta das palavras.
— Possíveis perseguidores — Oren respondeu. — Pessoas que
tentaram invadir a propriedade. Fãs intensos demais. — Ele apertou
os olhos. — Skye Hawthorne.
Isso me deu a entender que meu chefe de segurança sabia por
que Skye havia deixado a Casa Hawthorne. Eu tinha jurado segredo
a Grayson, mas aquela era a Casa Hawthorne. A maior parte dos
ocupantes era mais esperta do que devia para o próprio bem — e
de todo o resto.
— Você poderia me dar um momento com Avery? — Grayson fez
a Oren a gentileza de fingir que aquele era um pedido.
Pouco impressionado, Oren olhou para mim e arqueou uma
sobrancelha, perguntando. Fiquei tentada a manter Oren ali só por
despeito, mas, em vez disso, fiz que sim para meu chefe de
segurança e ele e seus homens lentamente saíram da sala. Eu meio
que esperava que Grayson fosse me questionar sobre por que eu
tinha contado a Oren sobre Skye, mas, quando nós dois ficamos
sozinhos, o questionamento nunca veio.
— Você está bem? — foi o que Grayson me perguntou. —
Entendo que isso é muita coisa para absorver.
— Estou bem — insisti, mas dessa vez não consegui juntar forças
para dizer a ele que eu não precisava de proteção.
Eu já sabia, objetivamente, que precisaria de segurança pelo
resto da minha vida, mas ver as ameaças no papel era diferente.
— Meu avô tinha uma Lista também — Grayson disse, baixo. —
Ossos do ofício.
Da fama? Da riqueza?
— Em relação à situação que discutimos noite passada —
Grayson continuou, sua voz baixa —, você entende agora por que
precisamos deixar pra lá? — Ele não disse o nome de Toby. — A
maior parte das pessoas na Lista perderia o interesse em você se
você perdesse sua fortuna. A maior parte delas.
Mas não todas. Encarei Grayson por um momento, meu olhar se
demorando no rosto dele. Se eu perdesse minha fortuna, perderia
minha equipe de segurança. Era isso que ele queria que eu
entendesse.
— Eu entendo — respondi, desviando meu olhar do de Grayson
porque eu também entendia o seguinte: eu era uma sobrevivente.
Cuidava de mim mesma. E eu não me permitiria querer ou esperar
nada dele.
Eu me virei e encarei os monitores de segurança. Um movimento
rápido em uma das transmissões chamou minha atenção. Jameson.
Tentei não ser óbvia ao observá-lo caminhar determinado por um
corredor que eu não sabia onde ficava. O que você está aprontando,
Jameson Hawthorne?
Ao meu lado, a atenção de Grayson estava em mim, não nos
monitores.
— Avery?
Ele parecia quase hesitante. Antes, eu não tinha certeza de que
Grayson Davenport Hawthorne, antigo herdeiro aparente, era capaz
de hesitar.
— Estou bem — falei de novo, me mantendo meio de olho na tela.
Um momento depois, a transmissão passou para outro corredor e
eu vi Xander, caminhando tão determinado quanto Jameson. Ele
carregava algo nas mãos.
Uma marreta? Por que ele teria uma…
A pergunta se interrompeu na minha mente, porque reconheci o
cenário de Xander e de repente soube exatamente aonde ele estava
indo. E eu apostaria meu último centavo que Jameson estava indo
para lá também.
CAPÍTULO 7

Em algum momento depois do desaparecimento e suposta morte


do seu filho, Tobias Hawthorne tinha fechado a ala de Toby. Eu a
havia visto uma vez: tijolos sólidos emparedando o que imaginei ser
uma porta.
— Desculpa — eu disse a Grayson —, eu preciso ir.
Eu entendia por que ele queria que eu deixasse essa história do
Toby para lá. Ele provavelmente não estava errado. Ainda assim…
Nem Oren nem seus homens me seguiram quando eu saí. As
ameaças na Lista eram externas. Por isso, eu podia seguir para a
ala de Toby sem uma sombra. Cheguei a tempo de ver Xander
erguer a marreta por cima do ombro. De rabo de olho, ele me viu.
— Não dê atenção a essa marreta!
— Eu sei o que você está fazendo — eu disse a ele.
— O que marretas foram colocadas nesse mundo de Deus para
fazer — respondeu Xander solenemente.
— Eu sei — repeti, esperando que ele absorvesse essas
palavras.
Xander baixou o lado útil da marreta até o chão. Seus olhos
castanhos me estudaram intensamente.
— O que você acha que sabe?
Eu levei meu tempo para responder:
— Eu sei que você não queria responder minha pergunta sobre
Toby. Eu sei que você, Rebecca e Thea estavam aprontando algo
no almoço hoje. — Eu estava construindo a reviravolta. — Eu sei
que seu tio está vivo.
Xander piscou, seu cérebro incrível se movendo ao que eu só
podia imaginar que fosse a velocidade máxima.
— O velho disse alguma coisa na sua carta?
— Não — eu disse. Tobias Hawthorne tinha deixado uma carta
para cada um de nós no final do último quebra-cabeça. — Ele disse
na sua?
Antes que Xander pudesse responder, Jameson veio ao nosso
encontro.
— Que festança! — Ele pegou a marreta. — Vamos em frente?
Xander a puxou de volta.
— É meu.
— A marreta — Jameson respondeu, solene — ou o que está
atrás da porta?
— Os dois — Xander disse por entre os dentes.
Havia uma nota de intensidade em sua voz que eu nunca tinha
ouvido nele antes. Xander era o mais novo dos irmãos Hawthorne.
O menos competitivo. O que sabia do último jogo do avô.
— É assim que vai ser? — Jameson estreitou os olhos. — Quer
brigar por ela?
Não me pareceu uma pergunta retórica.
— Xander, seu tio e eu nos conhecemos — interrompi, antes que
uma luta real começasse. — Conheci Toby logo depois que minha
mãe morreu.
Levei um minuto, talvez menos, para contar o resto. Quando
terminei, Xander me encarou, ligeiramente impressionado.
— Eu devia ter notado.
— O quê? — perguntei a ele.
— Você não era só uma parte do jogo deles — respondeu Xander.
— Claro que não. A mente do velho não funcionava assim. Ele não
te escolheu só por causa deles.
Eles sendo Grayson e Jameson. O jogo deles sendo o que já
tínhamos resolvido.
— Ele também deixou um jogo pra você — concluí lentamente.
Era a única coisa que fazia sentido. Nash havia me avisado uma
vez que o avô deles, muito provavelmente, nunca pretendera que eu
fosse uma jogadora.
Eu era a bailarina de vidro ou a faca. Uma parte do quebra-
cabeça. Uma ferramenta. Apertei os olhos para Xander.
— Conte a nós o que você sabe, ou me dê a marreta.
Não importavam as intenções do velho — eu não estava ali para
ser usada.
— Não tem muito o que contar! — Xander declarou alegremente.
— O velho me deixou uma carta me parabenizando por ter levado
meus irmão teimosos e muito menos bonitos até o final do jogo
deles. Ele assinou a carta como Tobias Hawthorne, sem a inicial do
meio, mas, quando a carta foi posta na água, a assinatura virou
“Encontre Tobias Hawthorne Segundo”.
Encontre Toby. O velho deixou o mais jovem dos netos com essa
tarefa. E havia uma boa chance de a única pista real que ele dera…
ser eu. Doze coelhos, uma cajadada.
— Eu acho que isso resolve a questão de se o velho sabia que
Toby estava vivo — Jameson murmurou.
Tobias Hawthorne sabia. Meu corpo todo vibrou com a revelação.
— Se sabemos a última localização conhecida de Toby — Xander
refletiu —, talvez a marretagem seja desnecessária. Meu plano era
revirar o quarto dele e ver se alguma pista aparecia, mas…
Sacudi a cabeça.
— Eu não tenho ideia de como encontrar Toby. Pedi a Alisa para
mandar dinheiro para ele, logo depois de herdar, antes mesmo de
saber quem ele era. Ele já tinha desaparecido.
Jameson inclinou a cabeça para o lado.
— Interessante.
— A ala de Toby é a pista que você mencionou mais cedo? —
perguntei a ele.
— Talvez seja — Jameson disse, sorrindo. — Ou talvez não seja.
— Longe de mim interromper essa conversa — Xander se
intrometeu —, mas é minha pista. E minha marreta! — Ele a ergueu
por cima do ombro.
Encarei a parede e me perguntei o que estaria atrás dela.
— Tem certeza disso? — perguntei a Xander.
Ele respirou fundo.
— A maior certeza que alguém segurando uma marreta já teve.
CAPÍTULO 8

A parede cedeu tão fácil que eu me perguntei se ela havia sido


feita para ser derrubada. Por quanto tempo Tobias Hawthorne havia
esperado que alguém marretasse a barreira que ele erguera? Que
alguém fizesse perguntas?
Que alguém encontrasse seu filho.
Quando passei pelo que havia restado dos tijolos, tentei imaginar
o que o velho estaria pensando. Por que ele mesmo não procurou
Toby? Por que não o trouxe para casa?
Encarei o longo corredor. O chão era feito de mármore branco. As
paredes eram completamente cobertas por espelhos. Eu me sentia
como se tivesse entrado em um parque de diversões. Em alerta,
desci lentamente o corredor, examinando. Havia uma biblioteca,
uma sala de estar, um escritório e, no final, um quarto tão grande
quanto o meu. Ainda havia roupas no armário.
Uma toalha estava pendurada perto de um enorme chuveiro.
— Há quanto tempo esse lugar está lacrado? — perguntei, mas
os meninos estavam em outro cômodo, e eu não precisava que eles
me dessem a resposta. Vinte anos. Aquelas roupas estavam
penduradas desde o verão em que Toby “morreu”.
Saindo do banheiro, vi as pernas de Xander escapando por baixo
de uma cama king size. Jameson estava passando as mãos por
cima de um armário. Ele deve ter achado algum fecho ou alavanca,
porque, um segundo depois, o topo do armário se ergueu como uma
tampa.
— Parece que Tio Toby era fã de contrabando — Jameson
comentou.
Eu subi na cômoda para ver melhor e notei um compartimento
longo e fino completamente forrado com minigarrafas de bebida.
— Encontrei um painel solto no chão — Xander chamou de
debaixo da cama.
Quando ele reapareceu, estava segurando um pequeno saco
plástico cheio de comprimidos — e outro cheio de pó.

A ala de Toby estava lotada de compartimentos secretos: livros


ocos, gavetas escondidas, um fundo falso no armário. Uma
passagem secreta no escritório levava para depois da entrada,
revelando que os espelhos que cobriam o corredor eram falsos. De
onde eu estava na passagem, via Jameson deitado de bruços no
chão, examinando os blocos de mármore um a um.
Eu o observei por mais tempo do que deveria, e depois voltei para
a biblioteca. Xander e eu havíamos examinado centenas de livros
em busca de compartimentos secretos. Os gostos do Toby de
dezenove anos eram ecléticos — havia de tudo, de histórias em
quadrinhos a filosofia grega, direito e terror barato. A única prateleira
das estantes embutidas que não estava cheia de livros emoldurava
um relógio que tinha uns vinte centímetros de altura e estava fixado
no fundo da estante. Estudei o relógio por um momento. Sem
movimento no ponteiro maior. Estendi a mão para testar se o relógio
estava preso com firmeza à prateleira.
Ele não se mexeu.
Eu quase o deixei ali, mas algum instinto em mim não permitiu.
Em vez disso, girei o relógio e ele rodou, se soltando. A frente do
relógio se soltou da parede. Não havia engrenagens dentro, nada
eletrônico. Em vez disso, encontrei um objeto chato e circular feito
de papelão. Ao inspecioná-lo mais de perto, notei dois círculos de
papelão concêntricos, presos com um prego no meio. Os dois
tinham letras ao redor.
— Um disco de cifra caseiro. — Xander me cercou para ver
melhor. — Viu que o A do disco de fora se alinha com o A do disco
menor? Gire qualquer um dos discos e letras diferentes se alinham,
o que gera um código de substituição simples.
Claramente, Toby Hawthorne havia sido criado da mesma
maneira que seus sobrinhos: jogando os jogos do velho. Você
estava jogando comigo, Harry?
— Espere um segundo — Xander se endireitou subitamente. —
Você ouviu isso?
Tentei escutar. Silêncio.
— Ouvi o quê?
Xander apontou o indicador para mim.
— Exatamente.
No segundo seguinte, ele saiu em disparada. Enfiei o disco de
cifra no cós da minha saia plissada e o segui. No corredor, Jameson
estava lentamente ajeitando um bloco de mármore no lugar.
Ele tinha encontrado alguma coisa — e aparentemente não
estava planejando compartilhar com seu irmão ou comigo…
— Aha! — Xander disse, triunfante. — Eu sabia que você estava
quieto demais.
Ele andou até onde Jameson estava e se agachou ao lado dele,
apertando o bloco que Jameson havia acabado de baixar. Eu ouvi
um som de estalo e o bloco se soltou, como se tivesse uma mola.
Olhando feio para Jameson, que me deu uma piscadela, eu me
ajoelhei ao lado de Xander. Embaixo do azulejo estava um
compartimento de metal. Ele estava vazio, mas eu vi uma inscrição
no fundo, gravada no metal.
Um poema.
— Fiquei com raiva de meu amigo — li em voz alta. — A ira
dividida enfim concluída. — Ergui o olhar. Jameson já estava se
levantando e indo embora, mas o olhar de Xander estava fixo na
inscrição e continuei. — Fiquei com raiva de meu inimigo: não
revelada, a ira fez morada.
As palavras ficaram no ar por alguns segundos depois de eu tê-
las pronunciado. Xander puxou seu celular.
— William Blake — ele disse depois de um momento.
— Quem? — perguntei.
Olhei novamente para Jameson, que havia dado meia-volta e
estava andando em nossa direção. Eu achei que ele estava fugindo,
mas na verdade ele estava pensando, concentração em movimento.
— William Blake — Jameson ecoou, uma energia quase caótica
marcando suas palavras e seus passos. — Poeta do século dezoito
e um favorito de Tia Zara.
— E de Toby, aparentemente — Xander acrescentou.
Encarei a inscrição. A palavra ira saltou aos meus olhos. Pensei
no álcool e nas drogas que havíamos encontrado no quarto de Toby.
Pensei no incêndio na Ilha Hawthorne e na forma como a imprensa
havia elogiado Toby como um jovem tão excepcional.
— Ele estava com raiva de algo — falei, a cabeça a mil. — Algo
que ele não podia dizer?
— Talvez — Jameson respondeu, pensativo. — Talvez não.
Xander me estendeu o celular.
— Aqui está o poema inteiro.
— “Uma árvore de veneno”, de William Blake — li.
— Resumindo — Xander disse —, a raiva escondida do autor
cresce e se torna uma árvore, essa árvore dá frutos, o fruto está
envenenado e o inimigo, que não sabe que eles são inimigos, come
a fruta. A coisa toda acaba com um cadáver. Bem atraente.
Um cadáver. Minha mente foi, descontrolada, para os três corpos
que haviam sido recuperados no incêndio da Ilha Hawthorne.
Quanta raiva Toby tinha naquele verão?
Não chegue a conclusões precipitadas, falei para mim mesma. Eu
não tinha ideia do que o poema significava — nenhuma ideia de por
que um garoto de dezenove anos teria aquelas palavras inscritas
em um compartimento secreto. Nenhuma ideia de se era mesmo o
trabalho de Toby, e não do pai. Até onde sabíamos, Tobias
Hawthorne podia ter feito aquilo depois que o filho desapareceu,
logo antes de lacrar a porta.
— Que raios vocês estão fazendo aqui?
A pergunta parecia ter sido arrancada à força da garganta de
alguém. Virei a cabeça na direção da porta. O sr. Laughlin estava
ali, do outro lado dos tijolos demolidos. Ele parecia cansado, velho e
quase magoado.
— Só colocando as coisas de volta no lugar delas! — disse
Xander alegremente. — Logo depois que…
O zelador não o deixou terminar. Ele passou pela abertura na
parede de tijolos e apontou o dedo para nós.
— Fora.
CAPÍTULO 9

Naquela noite, fiquei deitada na cama pensando no poema e


encarando o disco de cifra. Eu girei a roda menor e fiquei
observando-o gerar código após código. Para que exatamente Toby
tinha usado aquilo? As respostas não apareciam, mas finalmente o
sono veio. Acordei na manhã seguinte com “Uma árvore de veneno”
ainda na cabeça. Fiquei com raiva de meu amigo/a ira dividida enfim
concluída./Fiquei com raiva de meu inimigo:/não revelada,/a ira fez
morada.
Uma batida na minha porta interrompeu esse pensamento. Era
Libby. Ela ainda estava de pijama, de caveirinhas e com laços.
— Tudo certo? — perguntei.
— Só vim checar se você tinha acordado e estava se arrumando
para a escola.
Olhei feio para minha irmã. Libby nunca tinha, em sua história
como minha guardiã legal, me acordado para a escola.
— Jura?
Ela hesitou, o indicador direito cutucando o esmalte escuro da
mão esquerda, e então as comportas se abriram.
— Você sabe que o papai não planejou dar aquela entrevista,
certo? Ave, ele não fazia ideia de que a pessoa com quem ele
estava falando era um repórter.
Ricky tinha retomado o contato com Libby mais ou menos quando
a notícia da minha herança chegou à imprensa. Se ela queria dar
uma segunda chance a ele, era problema dela, mas ele não podia
usá-la como intermediária para falar comigo.
— Ele quer dinheiro — eu disse simplesmente. — E não vou dar
nenhum a ele.
— Eu não sou idiota, Avery. E não estou defendendo ele.
Ela estava, sim, defendendo ele, mas eu não tinha coragem de
dizer isso.
— É melhor eu me arrumar para a escola.

Minha rotina matinal levava cinco vezes mais tempo agora do que
levava antes de eu ter uma equipe de stylists, um consultor de mídia
e um “visual”. Quando terminei de aplicar oito loções diferentes no
rosto e pelo menos metade disso no cabelo, tomar café da manhã
estava fora de questão. Atrasada, corri para a cozinha — que não
deve ser confundida com a cozinha do chefe — para pegar uma
banana e fui recebida pelo som da porta do forno se fechando.
A sra. Laughlin se endireitou e limpou as mãos no avental. Ela
apertou os olhos castanhos suaves ao me ver.
— Posso te ajudar com alguma coisa?
— Banana? — perguntei. Algo na expressão dela tornou difícil
formar uma frase inteira. Eu ainda não estava acostumada a ter
funcionários. — Quer dizer, tem banana, por favor?
— Boa demais para café da manhã? — respondeu a sra.
Laughlin, rígida.
— Não — eu disse rapidamente. — É só que estou atrasada e…
— Não importa.
A sra. Laughlin conferiu o conteúdo de outro forno. Pelo que
haviam me dito, os Laughlin gerenciavam a propriedade havia
décadas. Eles não tinham ficado muito felizes quando eu a herdara,
mas tudo continuava a funcionar como um relógio.
— Pegue o que quiser. — A sra. Laughlin apontou, ríspida, para
uma fruteira. — Seu tipo de gente sempre faz isso mesmo.
Meu tipo de gente? Engoli o impulso de atirar uma resposta.
Claramente, eu tinha cometido algum erro. E, mais claramente
ainda, não queria estar na lista de inimigos dela.
— Se isso é por causa do que aconteceu com o sr. Laughlin
ontem… — eu disse, lembrando da forma como o marido dela havia
nos expulsado da ala de Toby.
— Fique longe do sr. Laughlin. — A sra. Laughlin limpou as mãos
no avental mais uma vez, com mais força. — Já é ruim o suficiente o
que você fez com a pobre Nan.
Nan? Minha resposta veio com minha próxima respiração. A
bisavó dos meninos tinha sido quem me mostrara uma foto de Toby.
Ela estava lá quando eu percebi que o conhecia.
— Nan te contou — eu disse lentamente. — Sobre Toby.
Pensei no aviso de Grayson, na importância daquele segredo
permanecer oculto.
Xander sabia — e a sra. Laughlin. Muito possivelmente o seu
marido também.
— Você devia ter vergonha — a sra. Laughlin disse com
ferocidade. — Brincando com os sentimentos de uma velha senhora
assim. E arrastando os meninos para o que quer que você estivesse
fazendo na ala de Toby? É crueldade, é isso que é.
— Crueldade? — repeti, e foi então que percebi: ela achava que
eu estava mentindo.
— Toby está morto — a sra. Laughlin disse, sua voz tensa. — Ele
se foi e toda a Casa ficou de luto por ele. Eu amava aquele menino
como se fosse meu. — Ela fechou os olhos. — E só de pensar em
você atormentando Nan, dizendo àquela pobre mulher que ele está
vivo… emporcalhando as coisas dele… — A sra. Laughlin forçou-se
a abrir os olhos. — Essa família já não sofreu o suficiente sem você
inventar algo assim?
— Eu não estou mentindo — eu disse, me sentindo enjoada. —
Eu não faria isso.
A sra. Laughlin apertou os lábios. Eu podia vê-la engolindo o que
quer que quisesse dizer. Em vez disso, ela me entregou uma
banana com rispidez.
— Vá para a aula.
CAPÍTULO 10

Como Oren havia dito, Eli ficou ao meu lado na escola. Apesar de
meu chefe de segurança ter prometido que ele iria “se misturar”, não
havia nada de discreto em uma menina de dezessete anos com um
segurança ao lado.
Estudos Americanos. Filosofia da Consciência. Cálculo. Criando
Sentido. Nas aulas, meus colegas não o encararam. Eles evitaram
encarar, de forma tão óbvia que foi pior. Quando cheguei na aula de
física, eu já estava pronta para me arriscar sozinha com os
comentaristas de internet e vândalos de armário do mundo.
— Você não pode esperar no corredor? — perguntei a Eli.
— Se eu quiser perder meu emprego — ele respondeu, simpático
—, claro.
Parte de mim precisava se perguntar se Oren estava mesmo
fazendo tudo aquilo por causa do incidente do armário — ou se era
porque Ricky estava na cidade causando problemas.
Tentando afastar o pensamento, desabei em uma cadeira. Em um
dia normal, o fato de que o laboratório de física da minha escola
lembrava a NASA ainda teria me provocado algum encanto, mas eu
tinha outras coisas em mente.
Logo antes da aula começar, Thea se sentou à minha bancada no
laboratório. Ela passou os olhos por Eli e então se voltou para mim.
— Nada mal — murmurou.
Minha vida era literalmente notícia de tabloide, mas pelo menos
Thea Calligaris achava meu novo guarda-costas gato.
— O que você quer? — perguntei em um sussurro.
— Coisas que eu não deveria querer — Thea refletiu. — Coisas
que não posso ter. Qualquer coisa que me digam que está fora de
alcance.
— O que você quer de mim? — esclareci, mantendo minha voz
baixa o suficiente para evitar que qualquer um além de Eli nos
ouvisse.
A aula começou antes que Thea se dignasse a responder, e ela
não falou de novo até que fossemos liberados para a tarefa de
laboratório.
— Rebecca e eu estávamos lá quando Sir Lance-Nerd afundou
aquela carta na banheira — Thea disse casualmente. — Sabemos
do novo jogo. — A expressão dela mudou e, por um milésimo de
segundo, Thea Calligaris pareceu quase vulnerável. — Foi a
primeira coisa em uma eternidade que fez Bex acordar.
— Acordar? — repeti.
Eu sabia que Thea e Rebecca tinham histórico. Sabia que elas
tinham terminado depois da morte de Emily, que Rebecca havia se
afastado de tudo e de todos.
Mas eu não tinha ideia de por que Thea esperava que eu me
importasse com qualquer uma delas.
— Você não a conhece — Thea me disse, sua voz baixa. — Você
não sabe o que a morte de Emily fez com ela. Se ela quiser ajudar
Xander com isso? Eu vou ajudar ela. E achei que você poderia
querer saber que nós sabemos sobre você-sabe-quem. — Sobre
Toby. — Nós estamos dentro. E não vamos contar pra ninguém.
— Isso é uma ameaça? — perguntei, apertando os olhos.
— Literalmente o oposto de uma ameaça.
Thea deu de ombros elegantemente, como se realmente não se
importasse se eu confiava nela ou não.
— Certo — eu disse.
Thea era sobrinha de Zara por casamento. Eu não teria confiado
o segredo sobre Toby estar vivo a ela, mas Xander tinha, o que não
fazia sentido, porque Xander nem gostava de Thea.
Decidindo que era inútil insistir, primeiro me concentrei no trabalho
no laboratório e depois no que tínhamos encontrado no quarto de
Toby na noite anterior. O disco de cifra. O poema. Havia mais
alguma coisa no quarto que nós deveríamos ter encontrado para
decodificar?
Ao meu lado, Thea colocou seu tablet na mesa. Eu olhei de
esguelha e notei que ela tinha feito a mesma busca que Xander
fizera um dia antes, por “Uma árvore de veneno”. Eu entendi disso
que Xander havia contado a ela — e portanto a Rebecca —
exatamente o que tínhamos encontrado.
Eu vou matá-lo, pensei, mas então meu olhar pescou um dos
resultados que a busca de Thea havia revelado: doutrina do fruto da
árvore envenenada.
CAPÍTULO 11

Voltando da escola para casa, fiz minha própria busca. A doutrina


do fruto da árvore envenenada era uma regra legal que dizia que
provas obtidas ilegalmente não eram admissíveis em um tribunal.
— Você está pensando. — Jameson estava ao meu lado no carro.
Alguns dias, ele e Xander pegavam carona na minha SUV blindada.
Em outros dias, não. Xander não estava ali dessa vez.
— Estou sempre pensando — respondi.
— É o que eu amo em você, Herdeira. — Jameson tinha o hábito
de sair jogando palavras que deveriam importar, como se não
significassem nada. — Quer compartilhar esses pensamentos?
— E revelar meu jogo? — devolvi. — Para você chegar primeiro e
me sabotar?
Jameson sorriu. Era seu sorriso lento, perigoso, inebriante,
desenhado para arrancar uma reação. Eu não reagi.
Quando chegamos à Casa Hawthorne, me recolhi na minha ala e
esperei quinze minutos antes de passar a mão em volta do castiçal
da lareira e puxá-lo. Esse movimento soltava uma tranca e o fundo
da lareira de pedra saltava para a frente o suficiente para eu passar
a mão por baixo e erguê-la. Oren tinha desabilitado a passagem
quando teve uma ameaça na propriedade, mas, uma vez que essa
ameaça foi resolvida, ela não precisou ficar desabilitada por muito
mais tempo.
Entrei na passagem secreta e encontrei Jameson esperando por
mim.
— Que bom te encontrar aqui, Herdeira.
— Você — eu disse a ele — é a pessoa mais irritante da face da
Terra.
Os lábios dele se curvaram para cima em um dos lados.
— Eu tento. Está voltando para a ala de Toby?
Eu poderia ter mentido, mas ele saberia que eu estava mentindo e
eu não queria esperar.
— Só tente não ser pego pelos Laughlin — falei.
— Você não aprendeu ainda, Herdeira? Eu nunca sou pego.

Respirando fundo, passei pelo entulho de tijolos e segui para o


escritório de Toby. Passei meus dedos pelas lombadas dos livros,
examinando-os prateleira por prateleira.
Nós tínhamos conferido todos os volumes que estavam ali, mas
apenas em busca de compartimentos secretos.
— Quer me contar o que está procurando? — Jameson
perguntou.
No dia anterior, eu havia notado a variedade de livros que Toby
Hawthorne lia. Histórias em quadrinhos e horror barato. Filosofia
grega e volumes de direito. Sem dizer uma palavra a Jameson,
puxei um dos livros de direito da estante.
Jameson levou menos de um minuto para entender o porquê.
— Fruto da árvore envenenada — murmurou atrás de mim. —
Genial.
Eu não tinha certeza se ele estava falando de mim... ou de Toby.
O índice do livro me dirigiu até a página onde estava a doutrina do
fruto da árvore envenenada. Quando cheguei à página em questão,
meu coração acelerou. Ali estava.
Algumas letras estavam rasuradas em alguns lugares. As
anotações seguiam por páginas. De vez em quando, um sinal de
pontuação era marcado — uma vírgula, um ponto de interrogação.
Eu não tinha papel, nem caneta, então usei meu celular para anotar
as letras, digitando-as cuidadosamente, uma por uma.
O resultado era uma sequência de consoantes e vogais que não
faziam sentido. Por enquanto.
— Você está pensando. — Jameson parou. — Você sabe de
alguma coisa.
Eu ia negar, mas não o fiz por um motivo bem simples.
— Eu encontrei um disco de cifra ontem — admiti —, mas estava
em neutro. Eu não sei o código.
— Números. — A resposta de Jameson foi imediata e elétrica. —
Precisamos de números, Herdeira. Onde você encontrou a cifra?
Fiquei sem ar. Andei até o relógio, o que eu tinha desmontado no
dia anterior. Eu o girei e encarei sua face: a hora estava congelada
em doze e o ponteiro dos minutos em cinco.
— A quinta letra do alfabeto é E — Jameson disse atrás de mim.
— A décima segunda é L.
Sem dirigir mais uma palavra a ele, corri para pegar o disco de
cifra no meu quarto.
CAPÍTULO 12

Jameson me seguiu. Lógico que seguiu. Tudo que me importava


era chegar lá primeiro.
Quando voltei à suíte, puxei o disco de cifra da gaveta da
escrivaninha. Eu combinei a quinta letra do disco de fora com a
décima segunda do de dentro. E e L. E então, com Jameson atrás
de mim, uma mão de cada lado meu, apoiadas na escrivaninha,
nossos corpos perto demais, comecei a decodificar a mensagem.
M-E-N-T-I-
No meio da primeira palavra, o ar escapou dos meus pulmões,
porque aquilo ia funcionar. Mentiras. Essa era a primeira palavra.
Segredos.
Ao meu lado, Jameson pegou uma caneta, mas a peguei de volta.
— Meu quarto — eu disse a ele. — Minha caneta. Meu disco de
cifra.
— Se você quer entrar em tecnicalidades, Herdeira, é tudo seu.
Não apenas o quarto e a caneta.
Eu o ignorei e transcrevi letra após letra, até que toda a
mensagem estivesse decodificada. Voltei e acrescentei espaços e
quebras de linha, e o que apareceu foi outro poema.
Que eu só podia deduzir ser um original de Toby Hawthorne.

Mentiras, segredos
Têm meu desprezo.
Veneno é a árvore,
Percebeu?
Envenenou S e Z e eu.
O tesouro conseguido
Está no buraco mais escondido.
A luz revelará tudo
Eu escrevi no…
Ergui os olhos. Jameson ainda estava se inclinando sobre mim, o
rosto tão perto do meu que eu conseguia sentir sua respiração.
Empurrando minha cadeira contra ele, me levantei.
— É isso — eu disse a ele. — Acaba aqui.
Jameson leu o poema em voz alta.
— Mentiras, segredos têm meu desprezo. Veneno é a árvore,
percebeu? Envenenou S e Z e eu. — Ele parou. — S de Skye, Z de
Zara.
— O tesouro escondido — continuei, então parei. — Que tesouro?
— Está no buraco mais escondido — Jameson continuou. — A luz
revelará tudo, eu escrevi no…
Ele ficou quieto, e no fundo da minha mente algo se encaixou.
— Está faltando uma palavra — eu disse.
— Que rima com tudo.
Um instante depois, Jameson estava em movimento — e eu
também. Voltamos correndo, um corredor após o outro, até a ala
abandonada de Toby. Paramos bem em frente à porta. Jameson
olhou para mim enquanto passava por ela.
A luz revelará tudo, eu escrevi no…
— Muro — Jameson sussurrou, como se tivesse pegado a
palavra direto dos meus pensamentos.
Ele estava ofegante, o suficiente para me fazer pensar que o
coração dele estava batendo ainda mais rápido do que o meu.
— Qual muro? — perguntei, alcançando-o.
Lentamente, Jameson girou trezentos e sessenta graus. Ele não
respondeu a pergunta, então soltei outra:
— Tinta invisível?
— Agora você está pensando como uma Hawthorne.
Jameson fechou os olhos. Eu quase conseguia senti-lo vibrando
de energia.
Todo meu corpo estava fazendo o mesmo.
— A luz revelará tudo.
As pálpebras de Jameson se abriram e ele se virou de novo, até
estarmos nos encarando.
— Herdeira, vamos precisar de luz negra.
CAPÍTULO 13

Acontece que nós precisávamos de mais do que uma luz negra


— e o membro da família Hawthorne que por acaso possuía sete
era Xander. Nós três cobrimos a suíte de Toby com elas.
Desligamos as luzes do teto e o que eu vi quase me deixou de
joelhos.
Toby não tinha escrito uma mensagem na parede do seu quarto.
Ele tinha escrito dezenas de milhares de palavras em todas as
paredes da suíte. Toby Hawthorne havia mantido um diário. Toda
sua vida estava documentada nas paredes da sua ala na Casa
Hawthorne. Ele não podia ter mais do que sete ou oito anos quando
começou a escrever.
Jameson e Xander ficaram em silêncio ao meu lado enquanto
líamos. O tom da escrita de Toby começava completamente oposto
a tudo mais que tínhamos encontrado — as drogas, a mensagem
que tínhamos decodificado, “Uma árvore de veneno”. Aquele Toby
estava fervilhando de raiva. Mas o Jovem Toby? Ele soava mais
como Xander. Havia uma energia indomada em tudo que ele
escrevia. Ele falava de fazer experimentos, alguns deles envolvendo
explosões. Ele adorava suas irmãs mais velhas. Ele passava dias
inteiros desaparecendo pelas paredes da Casa. Ele idolatrava o pai.
O que mudou? Essa era a pergunta que eu me fazia enquanto lia
cada vez mais rápido, acelerando pelo décimo segundo ano de
Toby, seu décimo terceiro, décimo quarto, décimo quinto. Um pouco
depois do seu décimo sexto aniversário, cheguei ao exato momento
em que tudo mudou.
Tudo que o registro dizia era: Eles mentiram.
Levou meses — talvez anos — antes que Toby colocasse em
palavras qual havia sido a mentira. O que ele tinha descoberto, por
que ele estava com raiva. Quando eu consegui a confissão, meu
corpo inteiro ficou mole.
— Avery? — Xander parou o que estava fazendo e se virou para
me olhar. Jameson ainda estava lendo em velocidade máxima. Ele
já devia ter lido o segredo que me petrificou, mas seu foco havia
seguido inalterado. Ele estava em modo caçada, e meu corpo
parecia estar desligando.
— Você está bem, campeã? — Xander me perguntou, levando
uma mão ao meu ombro.
Eu mal senti.
Não consegui dar mais nenhum passo. Não consegui ler mais
nenhuma palavra. Porque a mentira que Toby Hawthorne havia
mencionado, os segredos que ele citava em seu poema?
Eles tinham a ver com quem ele era.
— Toby era adotado. — Eu me virei para Xander. — Ninguém
sabia. Nem Toby. Nem as irmãs dele. Ninguém. Sua avó fingiu uma
gravidez. Quando Toby tinha dezesseis anos, ele encontrou alguma
coisa. Uma prova. Eu não sei o quê. — Eu não conseguia parar de
falar, não conseguia desacelerar. — Eles o adotaram em segredo.
Ele nem tinha certeza se era legal.
— Por que alguém manteria uma adoção em segredo?
Xander parecia realmente estupefato.
Era uma boa pergunta, mas eu mal conseguia processá-la,
porque tudo que eu conseguia pensar, sem parar, era que, se Toby
Hawthorne não era biologicamente ligado à família Hawthorne,
então ele não compartilhava um grama do DNA deles.
E os filhos dele também não.
— A letra dele… — engasguei com as palavras.
Estava nas paredes, a toda minha volta — e, prestando atenção,
reconheci algo que eu deveria ter notado no momento em que a
caligrafia havia deixado de ser um rabisco infantil.
A partir dos doze ou treze anos, Toby Hawthorne havia começado
a escrever de maneira estranha — uma mistura muito peculiar de
letra cursiva e de forma. Eu já tinha visto aquela caligrafia antes.
Eu tenho um segredo, eu conseguia ouvir minha mãe me dizendo,
menos de uma semana antes de morrer. Sobre o dia em que você
nasceu.
CAPÍTULO 14

Tarde da noite, eu estava sentada na enorme cadeira de couro


atrás da escrivaninha de Tobias Hawthorne, encarando minha
certidão de nascimento, a assinatura que o bilionário havia grifado.
O nome era do meu pai, mas a letra era igual aos escritos nas
paredes da ala de Toby.
Uma mistura peculiar de letra cursiva e de forma.
Toby Hawthorne assinou minha certidão de nascimento. Eu não
conseguia dizer as palavras em voz alta. Tudo que conseguia fazer
era pensar em Ricky Grambs. Quando eu tinha sete anos, já havia
cansado de deixá-lo me magoar — mas, aos seis, eu o idolatrava.
Ele surgia na cidade, me pegava no colo, me girava no ar. Ele me
chamava de sua menina e me dizia que tinha me trazido um
presente. Eu fuçava seus bolsos e o que quer que encontrasse ali
— uma caneta, trocados, uma bala de restaurante — eu guardava.
Levei anos para perceber que todos os tesouros que ele havia me
dado eram lixo.
Minha visão nublou e pisquei para segurar as lágrimas, encarando
a assinatura: o nome de Ricky, mas a letra de Toby.
Eu tenho um segredo sobre o dia em que você nasceu. Eu
conseguia ouvir minha mãe com tanta clareza como se ela estivesse
no quarto comigo. Eu tenho um segredo. Era um jogo que tínhamos
jogado minha vida inteira. Ela era ótima em adivinhar meus
segredos. Eu nunca adivinhava os dela.
Agora estava bem na minha frente. Grifado.
— Toby Hawthorne assinou minha certidão de nascimento.
Doía falar. Doía me lembrar de cada jogo de xadrez que eu havia
jogado com Harry.
Ricky Grambs não tinha atendido o telefone quando minha mãe
morreu. Mas Toby? Apareceu em dias. E se Toby era adotado, se
ele não era biologicamente um Hawthorne, então o exame de DNA
que Zara e o marido haviam feito não significava nada. Já não
eliminava a solução mais simples para a pergunta de por que Tobias
Hawthorne havia deixado sua fortuna para uma desconhecida.
Eu não era uma desconhecida.
Por que “Harry” havia me procurado logo depois que minha mãe
morreu? Por que um bilionário do Texas visitou uma lanchonete da
Nova Inglaterra onde minha mãe trabalhava quando eu tinha seis
anos? Por que Tobias Hawthorne havia me deixado sua fortuna?
Porque o filho dele é meu pai. Todo o resto — meu aniversário,
meu nome, todo o enigma que eu e os irmãos Hawthorne achamos
que havíamos resolvido — era exatamente o que Jameson havia
dito nos túneis: um disfarce.
Eu me levantei, incapaz de continuar parada mais um momento.
Eu não precisava de um pai havia muito tempo. Tinha aprendido a
não esperar nada. Tinha parado de deixar que doesse. Mas, ali,
tudo em que eu conseguia pensar era que, sim, Harry fechava a
cara quando eu ganhava dele no xadrez, mas seus olhos brilhavam.
Ele me chamava de princesa e menina terrível e eu o chamava de
ancião.
Engasguei, ofegante. Avancei na direção das portas duplas que
separavam o escritório da varanda. Passei correndo por elas, que
ricochetearam de volta.
— Toby Hawthorne assinou minha certidão de nascimento.
Minha voz arranhava minha garganta, mas eu precisava dizer as
palavras em voz alta. Eu precisava ouvi-las para acreditar nelas.
Engoli ar e tentei levar o que eu havia acabado de dizer até sua
conclusão lógica, mas não conseguia.
Eu fisicamente não conseguia dizer aquelas palavras, nem
mesmo pensar nelas.
Lá embaixo, vi um movimento na piscina. Grayson. Seus braços
cortavam a água em um nado de peito brutal e torturante. Mesmo de
longe, eu conseguia ver a forma como seus músculos pressionavam
a pele. Não importava por quanto tempo eu o observasse, seu ritmo
nunca mudava.
Eu me perguntei se ele estava nadando para escapar de algo.
Para silenciar os pensamentos na cabeça. Eu me perguntei como
era possível que observá-lo tornasse respirar mais fácil e mais difícil
ao mesmo tempo.
Finalmente, ele saiu da piscina. Como se guiado por algum tipo
de sexto sentido, sua cabeça virou para cima. Para mim.
Eu o encarei — através da noite, através do espaço entre nós. Ele
desviou o olhar primeiro.
Eu estava acostumada às pessoas irem embora. E era boa em
não esperar nada de ninguém.
Mas, quando entrei de volta no escritório, eu me peguei
encarando minha certidão de nascimento de novo.
Eu não conseguia fazer aquilo não importar. Não conseguia fazer
Toby — Harry — não importar. Embora ele tivesse mentido para
mim. Embora ele tivesse me deixado morar no meu carro e comprar
café da manhã para ele quando ele vinha de uma das famílias mais
ricas do mundo.
Ele é meu pai. As palavras vieram. Finalmente. Brutalmente. Eu
não podia voltar atrás. Todos os sinais apontavam para a mesma
conclusão. Eu me forcei a dizer em voz alta:
— Toby Hawthorne é meu pai.
Por que ele não me contou? Onde ele está agora?
Eu queria respostas. Não era um mero mistério que precisava ser
resolvido, nem mais uma camada de um quebra-cabeças. Não era
um jogo — não para mim.
Não mais.
CAPÍTULO 15

— Precisamos conversar.
Jameson me encontrou escondida no arquivo (biblioteca, em
linguagem de escola particular) no dia seguinte. Até então, ele tinha
mantido distância quando estávamos dentro dos limites da Heights
Country Day.
Não que tivesse mais alguém além de Eli por ali.
— Eu preciso terminar minha tarefa de cálculo.
Evitei olhar diretamente para ele. Eu precisava de espaço.
Precisava pensar.
— Hoje é dia E. — Jameson puxou uma cadeira ao lado da
minha. — Você tem bastante tempo livre.
O esquema de grade modular da Heights Country Day era
complicado o suficiente para que àquela altura eu ainda não tivesse
decorado meu próprio horário. Mas Jameson aparentemente tinha.
— Estou ocupada — insisti, irritada pela maneira como eu sempre
me sentia em sua presença. Pela maneira como ele queria que eu
me sentisse.
Jameson se inclinou para trás na cadeira, equilibrando-a em duas
pernas, então deixou que as duas pernas dianteiras pendessem e
se inclinou para sussurrar bem no meu ouvido:
— Toby Hawthorne é seu pai.

Segui Jameson. Eli, que não poderia ter ouvido o sussurro de


Jameson, me seguiu — saindo do prédio principal, cruzando o pátio
e descendo um caminho de pedra até o Centro de Artes. Lá dentro,
Jameson passou na frente dos estúdios até acabarmos no que uma
placa informava ser o Teatro Caixa Preta: uma sala enorme e
quadrada com paredes pretas, chão preto e refletores embutidos em
um teto preto. Jameson ligou uma série de interruptores e as luzes
acima acenderam. Eli assumiu posição perto da porta e segui
Jameson até o outro lado da sala.
— O que eu disse no arquivo — Jameson murmurou — era só
uma teoria. — O lugar era construído para ter uma boa acústica,
para que as vozes se amplificassem. — Me diga que estou errado.
Lancei um olhar para Eli e escolhi cuidadosamente minhas
palavras de resposta.
— Eu encontrei um compartimento escondido na escrivaninha do
seu avô. Ali estava uma cópia da minha certidão de nascimento.
Eu não disse o nome de Toby. Não iria dizer, não na frente de
outras pessoas.
— E? — Jameson incentivou.
— O nome era do meu pai. — Baixei tanto minha voz que
Jameson precisou se aproximar para ouvir. — A assinatura não era.
— Eu sabia. — Jameson começou a andar de um lado pro outro,
mas, antes de se afastar demais, virou-se na minha direção. —
Você entende o que isso significa, Herdeira? — perguntou, seus
olhos verdes acesos.
Eu entendia. Já tinha dito em voz alta uma vez. Fazia sentido,
mais sentido do que qualquer coisa que tinha feito desde que eu
chegara para a leitura do testamento.
— Podem ter outras explicações — soltei em uma voz rouca,
embora não acreditasse nisso.
Eu tenho um segredo. Minha mãe não tinha inventado o jogo do
nada. Durante toda a minha vida, ela havia me dito que havia algo
que eu não sabia.
Algo grande.
Algo a meu respeito.
— Faz todo sentido… de um jeito Hawthorne. — Jameson não
conseguia se conter. Se eu tivesse deixado, ele provavelmente teria
me levantado e girado no ar. — Doze coelhos, uma cajadada,
Herdeira. O que quer que tenha acontecido vinte anos atrás, o velho
queria te usar para puxar o filho pródigo de volta para o tabuleiro
agora.
— Não parece ter funcionado — eu disse, as palavras amargas
na minha boca.
Eu era a maior notícia do mundo. Eu não tinha ideia de onde Toby
estava, mas o contrário não era verdade.
Se ele é meu pai, então onde ele está? Por que ele não está
aqui?
Como se o pensamento o tivesse atraído na minha direção,
Jameson se aproximou.
— Vamos desistir da aposta — ele disse suavemente.
Eu ergui a cabeça para olhá-lo. Procurei por algum sinal no rosto
dele, algo que me mostrasse qual era a jogada dele.
— Isso é grande, Herdeira. — Se ele fosse qualquer outra
pessoa, sua voz teria soado gentil, mas o Jameson Hawthorne que
eu conhecia não era gentil. — Grande o suficiente para nenhum de
nós precisar de motivação extra. Nenhum de nós vai resolver isso
sozinho.
Havia algo inegável na forma como ele tinha dito a palavra nós,
mas resisti à atração.
— Eu estou no meio disso. — Teria sido tão fácil me deixar ser
sugada de volta. Me deixar sentir que éramos mesmo um time. —
Você precisa de mim.
Era o que explicava. A voz gentil. O nós.
— E você não precisa de ninguém?
Jameson deu um passo à frente. Apesar de todos os avisos
gritando no fundo da minha cabeça, quando ele estendeu a mão
para me tocar, eu não me afastei.
As doze horas anteriores haviam virado meu mundo de ponta-
cabeça. Eu precisava de… algo. Não precisava significar nada. Não
precisava envolver sentimentos.
— Certo — eu disse, minha voz áspera. — Vamos cancelar a
aposta.
Eu esperava que ele me beijasse naquele momento — que ele
aproveitasse meu momento de fraqueza para me empurrar contra a
parede e esperar que minha cabeça se inclinasse em sua direção,
esperasse por um sim. Ele parecia querer. Eu queria.
Em vez disso, Jameson deu um passo para trás e inclinou a
cabeça para o lado.
— O que você acha de tomar um ar?
Dois minutos depois, Jameson Hawthorne e eu estávamos em cima
do Centro de Artes. Dessa vez, Eli não teve chance de se posicionar
na porta antes que Jameson o trancasse para fora.
Meu guarda-costas bateu na porta do telhado, então a socou.
— Eu estou bem — gritei de volta, observando Jameson caminhar
até chegar bem na beirada do telhado. A ponta de seus sapatos
sociais estava para fora. O vento aumentou. — Tome cuidado —
alertei, embora ele nem soubesse o que era cuidado.
— Sabe o que é engraçado, Herdeira? Meu avô sempre dizia que
os homens Hawthorne têm sete vidas. — Jameson se virou de volta
para mim. — Os homens Hawthorne — repetiu — têm sete vidas.
Ele estava falando de Toby. O velho sabia que o filho tinha
sobrevivido. Ele sabia que Toby estava por aí. Mas ele nunca fez
mais do que deixar umas pistas, até aquela mensagem para Xander.
— Encontre Tobias Hawthorne Segundo — murmurei.
Depois de me olhar nos olhos por mais um momento, Jameson
desapareceu atrás de uma coluna e voltou com o que parecia ser
um rolo de grama sintética e um balde de bolas de golfe. Ele baixou
o balde, então desenrolou a grama. Jameson desapareceu uma
segunda vez, voltou com um taco de golfe e pegou uma bola do
balde. Colocou a bola na grama e alinhou sua tacada.
— Eu venho aqui em cima — ele disse, observando o bonito
bosque no fundo do campus — para escapar. — Com os pés
alinhados na largura dos ombros, ele agitou o taco para trás e deu a
tacada. A bola de golfe saiu voando do telhado do Centro de Artes
em direção ao bosque. — Não estou dizendo que acho que você
está sobrecarregada, Herdeira. Não estou dizendo que acho que
está magoada. Eu só estou dizendo — ele estendeu o taco de golfe
para mim — que às vezes é bom atingir algo com força.
Eu o encarei, incrédula, então sorri.
— Isso tem que ser contra as regras.
— Que regras? — Jameson desdenhou. Quando eu não fiz
menção de pegar o taco, ele pegou outra bola e preparou outra
tacada. — Me permita te contar um segredo dos Hawthorne,
Herdeira: nenhuma regra importa mais do que ganhar. — Ele parou,
só por um momento. — Eu não sei quem é meu pai. Skye nunca foi
o que pode se chamar de materna. O velho nos criou. Ele nos fez a
sua própria imagem. — Jameson deu a tacada e a bola saiu
voando. — Xan ficou com a mente dele. Grayson tem a seriedade.
Nash tem um complexo de salvador. E eu… — Outra bola. Outra
tacada. — Eu não sei quando é a hora de desistir.
Jameson se virou para mim e estendeu o taco mais uma vez. Eu
me lembrei de Skye me dizendo que a palavra que descreveria
Jameson era faminto.
Peguei o taco das mãos dele. Meus dedos roçaram os seus.
— Eu sou o que nunca desiste — Jameson reiterou. — Mas foi
Xander que ele incumbiu de encontrar Toby.
Do outro lado da porta, Eli ainda estava batendo. Eu deveria
acabar com o sofrimento dele. Olhei para Jameson. Eu deveria ir
embora. Mas não o fiz. Aquilo era o mais perto que Jameson já tinha
chegado de contar para mim como tinha sido a criação Hawthorne.
Andei até o balde de bolas e joguei uma na grama. Eu nunca
tinha segurado um taco de golfe antes. Eu não tinha ideia do que
estava fazendo, mas pareceu satisfatório. Às vezes, era mesmo
bom acertar alguma coisa.
Da primeira vez que tentei, errei a bola.
— Baixe a cabeça — Jameson me instruiu.
Ele foi para trás de mim e ajustou minha pegada, os braços
envolvendo os meus, guiando-os dos ombros até a ponta dos
dedos. Mesmo através do blazer do uniforme, eu conseguia sentir o
calor do corpo dele.
— Tente de novo — ele murmurou.
Dessa vez, quando fui para trás, Jameson foi também. Nossos
corpos se moviam em sincronia. Senti meus ombros girando, o senti
atrás de mim, senti cada centímetro do contato entre nós. O taco se
conectou com a bola e eu a vi voar.
Uma onda de emoção surgiu em mim e, dessa vez, não a abafei.
Jameson tinha me levado ali para extravasar.
— Se Toby é meu pai — eu disse, mais alto do que gostaria —,
onde ele esteve minha vida inteira?
Eu me virei para encarar Jameson, bem ciente de que estávamos
próximos demais um do outro.
— Você sabe como a cabeça do seu avô operava — eu disse a
ele com ferocidade. — Você conhece os truques dele. O que nós
deixamos passar?
Nós. Eu tinha dito nós.
— Toby “morreu” anos antes de você nascer. — Jameson sempre
me olhava como se eu tivesse a resposta. Como se eu fosse a
resposta. — Faz vinte anos desde o incêndio na Ilha Hawthorne.
Senti meus pensamentos entrarem em sincronia com os dele.
Fazia vinte anos do incêndio. Vinte anos desde que Tobias
Hawthorne havia revisado o testamento para deserdar toda a
família. E, simples assim, tive uma ideia.
— No último jogo que jogamos — recomecei, minha cabeça
latejando —, havia pistas escondidas no testamento do velho. —
Meu pulso acelerou e não tinha nada, quase nada, a ver com a
maneira como ele ainda estava olhando para mim. — Mas aquele
não era o único testamento do velho.
Jameson sabia exatamente o que eu estava dizendo. Ele via o
que eu via.
— O velho mudou o nome do meio para Tattersall logo após a
suposta morte de Toby. E, logo depois disso, ele escreveu um
testamento deserdando a família.
Engoli em seco.
— Você sempre diz que ele tinha truques favoritos. Quais você
acha que são as chances de o testamento antigo ser parte desse
quebra-cabeça?
CAPÍTULO 16

Com o vento soprando meu cabelo, liguei para Alisa do telhado


para perguntar sobre o testamento.
— Eu não sei de nenhuma cópia especial do testamento anterior
do sr. Hawthorne, mas a McNamara, Ortega e Jones certamente
tem um original arquivado que você pode consultar.
Eu sabia exatamente o que Alisa queria dizer quando falou
“especial”, mas, só porque não havia um equivalente do Testamento
Vermelho, não significava que era um beco sem saída. Ainda não.
— Quando posso vê-lo? — perguntei, meu olhar ainda em
Jameson.
— Antes, preciso que você faça duas coisas para mim.
Fechei a cara.
Quando eu pedira para ver o Testamento Vermelho, Alisa tinha
aproveitado meu pedido para me levar para um quarto com uma
equipe de stylists.
— Outra transformação, não — grunhi. — Porque isso é o mais
transformada que eu fico.
— Você anda perfeitamente apresentável atualmente — Alisa me
garantiu. — Mas eu vou precisar abrir um espaço na sua agenda
para uma reunião com Landon depois da escola.
Landon era consultora de mídia. Ela cuidava das relações
públicas e de me preparar para falar com a imprensa.
— Por que eu preciso me encontrar com Landon depois da aula?
— perguntei, desconfiada.
— Eu gostaria que você estivesse pronta para entrevistas no
próximo mês. Precisamos ter certeza de que somos nós que
estamos no controle da narrativa, Avery. — Alisa fez uma pausa. —
Não seu pai.
Eu não podia dizer o que eu queria dizer: que Ricky Grambs não
era meu pai. Não era a assinatura dele na minha certidão de
nascimento.
— Certo — eu disse, seca. — O que mais?
Alisa tinha dito que eram duas coisas.
— Eu preciso que você recupere o bom senso e deixe seu pobre
guarda-costas sair para esse telhado.

Depois da escola, eu me encontrei com Landon no salão oval.


— Da última vez que nos encontramos, eu te ensinei a não
responder perguntas. A arte de respondê-las é um pouco mais
complicada. Com um grupo de repórteres, você pode ignorar
perguntas que não quer responder. Em uma entrevista pessoal, isso
deixa de ser uma opção.
Eu tentei pelo menos parecer que estava prestando atenção no
que a consultora de mídia estava dizendo.
— Em vez de ignorar perguntas — Landon continuou, seu
sotaque britânico chique bem pronunciado —, você precisa
redirecioná-las, e precisa fazer isso de uma maneira que garanta
que as pessoas estejam interessadas no que você está dizendo, o
suficiente para não notarem quando você fizer um desvio bem na
direção de um dos seus argumentos planejados.
— Meus argumentos — ecoei, mas meus pensamentos estavam
no testamento de Tobias Hawthorne.
Os olhos castanho-escuros de Landon não deixavam passar
nada. Ela arqueou uma sobrancelha para mim e eu me forcei a me
concentrar.
— Ótimo — ela declarou. — A primeira coisa que você precisa
decidir é o que quer que as pessoas tirem de alguma entrevista.
Para fazer isso, você vai precisar formular um tema pessoal,
exatamente seis argumentos, e não menos do que duas dúzias de
anedotas pessoais que vão te humanizar e redirecionar qualquer
categoria de questionamento que você possa receber na direção de
um de seus argumentos.
— É só isso? — perguntei, seca.
Landon ignorou meu tom.
— Não exatamente. Você também precisa aprender a identificar
as perguntas “não”.
Eu podia fazer isso. Podia ser uma boa herdeirinha-celebridade. E
podia me controlar e não revirar os olhos.
— O que são perguntas “não”?
— São perguntas que você pode responder com uma só palavra,
normalmente “não”. Se você não puder desviar uma pergunta para
um ponto planejado, ou se falar muito for te fazer parecer culpada,
você precisa conseguir olhar o entrevistador nos olhos e, sem
parecer nada na defensiva, lhe dar essa resposta de uma palavra.
Não. Sim. Às vezes.
A forma como ela disse aquelas palavras pareceu tão sincera — e
ninguém nem tinha feito uma pergunta.
— Eu não tenho motivo nenhum para sentir culpa — apontei. —
Não fiz nada de errado.
— Isso — ela disse simplesmente — é exatamente o tipo de coisa
que vai te fazer soar na defensiva.

Landon me deu lição de casa e saí da nossa sessão determinada a


garantir que Alisa cumprisse sua parte da barganha. Uma hora
depois, Oren, Alisa, Jameson e eu estávamos a caminho do
escritório de McNamara, Ortega e Jones.
Para minha surpresa, Xander estava sentado em frente à porta
quando chegamos.
— Você falou para ele que estávamos vindo? — perguntei a
Jameson quando saímos da SUV.
— Não precisei — Jameson murmurou de volta, seus olhos se
apertando. — Ele é um Hawthorne. — Ele ergueu a voz a um
volume que Xander pudesse ouvir. — E é melhor não ter me
grampeado.
O fato de haver sequer a possibilidade de tecnologias de
segurança estarem envolvidas ali dizia muito sobre a infância deles.
— É um lindo dia para olhar uns documentos — Xander
respondeu alegremente, ignorando o comentário sobre ter
grampeado Jameson.
Nem Alisa, nem Oren disseram uma palavra quando nós cinco
entramos no prédio e subimos de elevador. Quando as portas se
abriram, minha advogada me levou até um escritório no canto com
um documento em cima da mesa. Déjà-vu.
Alisa fez para nós três uma Cara de Alisa.
— Eu vou deixar a porta aberta — ela anunciou, tomando posição
ao lado de Oren, do lado de fora da porta.
— Você fecharia a porta se eu prometesse muito sinceramente
não violentar sua cliente? — Jameson perguntou para ela, achando
graça.
— Jameson! — sibilei.
Alisa revirou os olhos.
— Eu literalmente te conheço desde que você usava fraldas —
ela disse a Jameson. — E você sempre causa problemas.
A porta ficou aberta.
Jameson olhou para mim e deu de ombros de leve.
— Culpado.
Antes que eu pudesse responder, Xander passou por nós para
chegar primeiro ao testamento. Jameson e eu nos apertamos ao
lado dele. Nós três lemos.

Eu, Tobias Tattersall Hawthorne, estando são de corpo e mente,


decreto que minhas posses mundanas, incluindo todos os bens
monetários e físicos, sejam dispostos da seguinte maneira:
No caso de eu falecer antes da minha esposa, Alice O’Day
Hawthorne, todos os meus bens e posses mundanas devem ser
passados para ela. No evento de Alice O’Day Hawthorne
falecer antes de mim, os termos do meu testamento deverão
ser os seguintes:
Para Andrew e Lottie Laughlin, por anos de serviço leal, eu
deixo uma soma de cem mil dólares para cada, com residência
vitalícia e livre de aluguel no Chalé Wayback, localizado no
limite oeste da primeira propriedade no Texas.

Xander bateu o dedo em cima dessa frase.


— Soa familiar.
A parte a respeito dos Laughlin havia aparecido no testamento
mais recente de Tobias Hawthorne também. Por instinto, dei uma
olhada no testamento na nossa frente em busca de outras
similaridades. Oren não era mencionado, mas Nan era, exatamente
nos mesmos termos que no testamento posterior de Tobias
Hawthorne. Então eu cheguei na parte a respeito das filhas
Hawthorne.

Para minha filha Skye Hawthorne, eu deixo minha bússola, para


que ela sempre encontre o verdadeiro norte. Para minha filha
Zara, deixo minha aliança de casamento, para que ela ame tão
completa e consistentemente quanto eu amei a mãe dela.

A formulação dessa parte também era familiar, mas, em seu


testamento final, Tobias Hawthorne também havia deixado para as
filhas dinheiro para cobrir todas as dívidas acumuladas até a data de
sua morte e uma herança única de cinquenta mil dólares. Nessa
versão, ele realmente as tinha deixado sem nada além de
bugigangas. Nash, o único neto Hawthorne que já tinha nascido
quando esse testamento foi escrito, sequer era mencionado. Não
havia nem uma provisão que permitisse à família Hawthorne
continuar vivendo na Casa Hawthorne. Em vez disso, o resto do
testamento era simples.

O resto do meu patrimônio, incluindo todas as propriedades,


bens monetários e todas as posses mundanas não citadas,
deve ser liquefeito e os lucros divididos igualmente entre as
seguintes instituições de caridade…

A lista que se seguia era longa — dezenas, no total.


Grudado na parte de trás do testamento de Tobias Hawthorne
estava uma cópia do testamento de sua mulher, contendo termos
quase idênticos. Se ela morresse primeiro, tudo ia para o marido. Se
ele falecesse antes dela, seus bens iam para a caridade — com as
mesmas doações para os Laughlin e Nan e nada deixado para Zara
e Skye.
— Sua avó sabia — eu disse aos meninos.
— Ela morreu logo antes de Grayson nascer — Jameson disse.
— Todo mundo disse que o luto por Toby a matou.
Será que o velho disse à esposa que seu filho ainda estava vivo?
Ele sabia — ou sequer suspeitava — da verdade quando esse
testamento foi escrito?
Eu voltei minha atenção para o documento e li de novo desde o
início.
— Só existem duas grandes diferenças entre este testamento e o
último — concluí.
— Você não está neste — Xander notou a primeira. — O que,
exceto em caso de viagem no tempo, faz sentido, dado que você só
nasceu três anos depois disso ser escrito.
— E as instituições de caridade. — Jameson estava em seu modo
concentrado. Ele sequer gastou um olhar com o irmão, ou comigo.
— Se há uma pista aqui, está nessa lista.
Xander sorriu.
— E você sabe o que isso significa, Jamie.
Jameson fez uma cara que sugeria que ele sabia, de fato, o que
significava.
— O quê? — perguntei.
Jameson deu um suspiro teatral.
— Não liguem para mim. Essa é minha aparência quando estou
me preparando para acabar dolorosamente entediado e
previsivelmente irritado. Se queremos os detalhes das instituições
de caridade nessa lista, tem um jeito eficiente de conseguir. Se
prepare para uma palestra, Herdeira.
Foi naquele exato momento que entendi o que ele estava dizendo
— e quem tinha a informação de que precisávamos. O membro da
família Hawthorne que conhecia intimamente seu trabalho de
caridade. Alguém para quem eu já tinha contado de Toby.
— Grayson.
CAPÍTULO 17

A Fundação Hawthorne estava exatamente igual à última vez que


eu tinha estado lá. As paredes ainda eram de um cinza-prateado
claro — a cor dos olhos de Grayson. Enormes fotografias em preto e
branco ainda estavam penduradas pela sala. O trabalho de
Grayson.
O lugar era Grayson — mas dessa vez Jameson e Xander
estavam lá como uma proteção entre nós dois.
— Se ele disser a frase altruísmo eficiente — Xander me avisou
com solenidade exagerada —, fuja.
Engoli minha risada. Uma porta se abriu e fechou ali perto e
Grayson entrou na sala. Seu olhar pousou em mim por um segundo
ou dois antes de passar para seus irmãos.
— A que devo essa honra, Jamie? Xan?
Xander abriu a boca, mas Jameson falou antes:
— Eu invoco o antigo ritual de Onã Lefa.
Xander pareceu assustado e então maravilhado.
— O quê? — disse.
Grayson estreitou os olhos para o irmão, então respondeu minha
pergunta:
— É um anagrama.
Eu levei menos de três segundos.
— Não fale.
— Exatamente — Jameson disse. — Uma vez que eu comece a
contar a ele o que tenho a dizer, meu adorado e querido irmão mais
velho não pode dizer uma única palavra até eu terminar.
— E nesse ponto, se assim quiser, eu posso invocar o sagrado
ritual de Rarusa. — Grayson espanou uma poeira imaginária do
punho de seu terno. — Eu acredito que essas regras expiraram
quando eu tinha dez anos.
— Eu não me lembro de terem expirado! — Xander falou.
Eu fiz um pequeno rearranjo mental da palavra que Grayson havia
dito e então sacudi a cabeça.
— A surra? Vocês têm que estar brincando.
— É uma surra amigável — Xander me garantiu. — Uma surra
fraternal. — Ele fez uma pausa. — Mais ou menos.
— Então? — perguntou Jameson, lançando um olhar a Grayson.
Em resposta, Grayson tirou o paletó e o deixou em uma mesa
próxima, provavelmente se preparando para a segunda parte do
pequeno ritual.
— O que quer que você tenha a me dizer, Jamie, sou todo
ouvidos.
— Nós fomos ver o testamento que o velho escreveu logo depois
que Toby “morreu”— Jameson estava levando seu tempo com o que
tinha a dizer, porque ele podia. — Sim, eu sei que você acha que
pedir para ver o testamento foi uma ideia ruim. Não, eu não tenho
nenhuma objeção particular a ideias ruins. Resumindo, nós
encontramos uma lista de instituições de caridade. Nós precisamos
que você as examine e veja o que você nota, se é que nota alguma
coisa.
Grayson arqueou uma sobrancelha.
— Ele não pode falar até que eu levante Onã Lefa — Jameson
me disse. — Vamos só apreciar o silêncio por mais um momento.
Uma veia pulsou na testa de Grayson.
— Vamos lá — eu disse a Jameson.
Ele expirou longamente.
— Se erga, Onã Lefa.
Grayson começou a dobrar as mangas da camisa social.
— Vocês dois não vão brigar, vão? — perguntei, preocupada. Eu
me virei para Xander. — Eles não vão brigar, vão?
— Quem sabe? — Xander respondeu alegremente. — Mas talvez
você e eu devêssemos esperar lá fora caso fique feio.
— Eu não vou a lugar nenhum — insisti. — Jameson, isso é
ridículo.
— Não sou eu que decido, Herdeira.
— Grayson! — chamei.
Ele se virou para me olhar.
— Eu preferiria mesmo que vocês esperassem lá fora.
CAPÍTULO 18

— Seus irmãos são uns idiotas — eu disse a Xander, andando de


um lado a outro em frente ao prédio.
Oren, que estava a alguns passos de distância, parecia estar se
divertindo.
— Está tudo bem — Xander afirmou. — É só o que irmãos fazem.
Eu duvidava muito.
O prédio estava silencioso.
— Pela tradição, o primeiro golpe é de Gray — Xander ofereceu,
solícito. — Ele normalmente escolhe uma rasteira. Clássico! Mas vai
cercar Jameson primeiro. Eles vão cercar um ao outro, na verdade,
e Gray vai entrar em seu modo avisos-e-ordens, o que faz Jamie
zoar com a cara dele e assim por diante, até o primeiro golpe ser
dado.
Veio um baque de dentro.
— E depois disso? — perguntei, estreitando os olhos.
Xander sorriu.
— Nós temos uma média de três faixas pretas cada um, mas
normalmente acaba em luta livre. Um deles vai imobilizar o outro.
Discute, discute, briga, briga e voilà.
Dado que Grayson tinha deixado bem claro que ele achava que
seguir o fio do desaparecimento de Toby era uma ideia ruim, eu
tinha um ou dois palpites a respeito de como seria aquela
discussão.
— Eu vou voltar pra dentro — resmunguei, mas, antes que eu
pudesse fazer isso, a porta do prédio se abriu.
Jameson estava ali, parecendo só um pouco desarranjado. Ele
não parecia machucado. Um pouco suado, talvez, mas não estava
sangrando, nem tinha hematomas.
— Imagino que não houve nenhuma surra? — eu disse.
Jameson sorriu.
— O que te faria pensar isso? — Ele olhou para Oren. — Se você
esperar aqui fora, tem minha palavra de que ela estará
perfeitamente a salvo do lado de dentro. É seguro.
— Eu sei. — Oren encarou Jameson. — Eu mesmo projetei a
segurança do prédio.
— Você pode nos dar um minuto, Oren? — pedi.
Meu chefe de segurança lançou um olhar feio na direção de
Jameson, então de Xander e então assentiu. Xander e eu seguimos
Jameson para dentro.
— Não se preocupe — Jameson murmurou quando Grayson
apareceu. — Eu peguei leve com ele.
Como Jameson, Grayson parecia ileso. Eu observei-o vestir de
volta o paletó.
— Vocês são dois idiotas — resmunguei.
— Que seja — Grayson respondeu. — Vocês querem minha
ajuda.
Ele não estava errado.
— Queremos, sim.
— Eu te disse que isso era uma ideia ruim, Avery.
O foco de Grayson estava em mim e apenas em mim. Era
intenso. Eu não estava acostumada às pessoas me protegerem.
Mas, naquele momento, proteção não era o que eu queria, ou
precisava, dele.
— Enquanto você e Jameson estavam brincando de MMA que
nem moleques de oito anos — disparei —, ele chegou a te contar
que Toby era adotado? — Engoli em seco e baixei o olhar, porque a
próxima parte era difícil de dizer. — Ele te contou sobre a minha
certidão de nascimento?
— Sua o quê? — Xander disse imediatamente.
Grayson me encarou. Ele era tão capaz quanto qualquer
Hawthorne de ler nas entrelinhas. Toby era adotado. Eu havia
mencionado minha certidão de nascimento. Todo mundo na sala
sabia por que aquela busca era importante para mim.
— Aqui está uma foto que eu tirei. — Estendi meu celular para
Grayson. — Essas são as instituições de caridade listadas no
testamento que seu avô escreveu logo depois que Toby
desapareceu.
Grayson conseguiu pegar o celular de mim sem nossos dedos
sequer roçarem. Ao meu lado, eu sentia o olhar de Jameson, tão
palpável quanto o do irmão.
— Há poucas surpresas nessa lista. — Grayson ergueu os olhos
do celular bem a tempo de me pegar observando-o. — A maioria
das organizações recebeu apoio regular, ou, pelo menos, uma
doação única bem considerável, da Fundação Hawthorne.
Eu me forcei a prestar atenção no que Grayson estava dizendo,
não na forma como seus olhos prateados encontravam os meus
quando ele falava.
— Você disse poucas surpresas — apontei. — Não nenhuma.
— De cabeça, eu vejo quatro organizações que não reconheço.
Isso não quer dizer que não tenhamos doado para elas antes…
— Mas é um começo. — A voz de Jameson vibrava com uma
energia familiar, familiar para mim, e com certeza para seus irmãos
também.
— O Instituto Allport — Grayson listou. — Casa Camden.
Caminho de Colin. E a Sociedade do Observatório de Rockaway
Watch. São as únicas quatro organizações nessa lista que eu nunca
vi nos registros da fundação.
Imediatamente meu cérebro começou a catalogar o que Grayson
tinha dito, brincando com as palavras e as letras, procurando um
padrão.
— Instituto, casa, caminho, observatório — tentei em voz alta.
— Observatório, casa, instituto, caminho — Jameson bagunçou a
ordem.
— Quatro palavras — Xander ofereceu. — E quatro nomes.
Allport, Camden, Colin, Rockaway.
Grayson se colocou entre nós, passando por Jameson, e seguiu
andando.
— Eu vou deixar vocês três com isso — ele disse. Perto da porta,
fez uma pausa. — Mas Jamie? Você está errado.
Então Grayson disse algo em um idioma que eu suspeitava
seriamente ser latim.
Os olhos de Jameson brilharam e ele respondeu na mesma
língua.
Eu olhei para Xander. As sobrancelhas do mais jovem dos
Hawthorne — bem, sobrancelha, na verdade, já que ele tinha
queimado a outra — levantaram. Ele claramente tinha entendido o
que tinha sido dito, mas não ofereceu uma tradução.
Em vez disso, ele me puxou para a porta — e para a SUV
estacionada lá fora.
— Vamos.
CAPÍTULO 19

No caminho de volta para a Casa Hawthorne, Jameson, Xander e


eu nos enterramos em nossos celulares. Eu supus que a missão
deles era a mesma que a minha: pesquisar as quatro instituições de
caridade que Grayson havia identificado.
Minha intuição é que elas poderiam não ser instituições de
caridade, que Tobias Hawthorne podia tê-las inventado como parte
do quebra-cabeça, mas uma série de buscas rapidamente
desmontou essa teoria. O Instituto Allport, a Casa Camden, o
Caminho de Colin e a Sociedade do Observatório de Rockaway
Watch eram todas organizações sem fins lucrativos registradas.
Descobrir os detalhes de cada uma levou mais tempo.
O Instituto Allport era uma unidade de pesquisa na Suíça
dedicada a estudar a neurociência da memória e da demência.
Desci pela página da equipe e li a biografia de cada um dos
cientistas. Então cliquei em algumas matérias a respeito dos últimos
testes clínicos do instituto. Perda de memória recente. Demência.
Alzheimer. Amnésia.
Eu pensei no assunto por um momento. Isso é uma pista? Do
quê? Olhei pela janela e notei o reflexo de Jameson no vidro. O
cabelo dele nunca conseguia decidir para que lado ia e, mesmo
perdido em pensamentos, o rosto dele estava sempre em
movimento.
Quando finalmente consegui voltar minha atenção para o celular,
minha próxima busca não foi uma das instituições de caridade. Foi a
melhor aproximação que consegui das palavras que Grayson havia
dito para Jameson na fundação.
Est unus ex nobis. Nos defendat eius. Como eu suspeitava, era
latim. Um tradutor on-line me disse que significava É um de nós.
Nós o protegemos. A resposta de Jameson, Scio, significava eu sei.
Eu só precisei de mais uma busca para perceber que a mesma
tradução se mantinha se ele fosse trocado por ela. Ela é uma de
nós. Nós a protegemos.
Talvez eu devesse ter me irritado com aquilo. Três semanas atrás,
provavelmente eu teria, mas três semanas atrás eu nunca teria
sonhado que eles poderiam me ver como um deles.
Que eu podia ser um deles, não só uma desconhecida
observando de fora.
Tentando não deixar a ideia me consumir, eu me forcei a passar
para a próxima instituição de caridade na minha lista. A Casa
Camden era um centro de reabilitação com internação para abuso
de substâncias e vício que se focava na “pessoa inteira”. O site era
lotado de depoimentos. A equipe era cheia de médicos, terapeutas e
outros profissionais. O lugar era lindo.
Mas o site não me deu nenhuma resposta.
Um instituto para pesquisa de memória na Suíça. Uma instituição
para tratamento de vício no Maine. Pensei nos comprimidos e no pó
que havíamos encontrado no quarto de Toby. E se Tobias
Hawthorne tivesse usado seu testamento — e essas quatro
instituições de caridade — para contar uma história? Talvez Toby
fosse um viciado. Talvez ele tivesse sido um paciente na Casa
Camden. Quanto ao Instituto Allport…
Não tive chance de concluir o pensamento antes de passarmos
pelos portões da propriedade. Enquanto serpenteávamos pela longa
entrada, espiei os garotos. Xander ainda estava concentrado no
celular, mas Jameson estava olhando bem em frente. No momento
em que o carro parou, ele saiu em disparada.
E lá se vai trabalhar nisso juntos.
— Ah, olhe — Xander disse, me cutucando na lateral. — Lá está
Nan. Olá, Nan!
A bisavó dos meninos olhou feio para Xander da varanda.
— E o que vocês andam aprontando? — ela perguntou, seca.
— Bagunça e malcriação — ele respondeu, solene. — Como
sempre.
Ela fechou a cara e ele saltou para a varanda e beijou o topo de
sua cabeça. Ela o afastou.
— Acha que pode me amolecer, é?
— Que pensamento horrível — Xander respondeu. — Eu não
preciso te amolecer. Eu sou seu favorito!
— Não é — Nan resmungou. Ela o cutucou com sua bengala. —
Se adianta. Quero falar com a menina.
Nan não perguntou se eu queria falar com ela. Só esperou que eu
me aproximasse, então pegou meu braço para se equilibrar.
— Caminhe comigo — ela ordenou. — Pelo jardim.
Ela não disse nada por pelo menos cinco minutos, enquanto
caminhávamos, a passos de lesma, por um jardim topiário. Arbustos
densos haviam sido moldados em forma de esculturas. A maioria
era abstrata, mas eu vi um elefante e não consegui impedir que uma
expressão incrédula tomasse conta do meu rosto.
— Ridículo — Nan desdenhou. — Isso tudo. — Depois de um
longo momento, ela se virou para mim. — Bem?
— Bem o quê?
— O que você tem feito para encontrar o meu menino?
A expressão dura de Nan tremeu de leve e ela segurou meu
braço com mais força.
— Estou tentando — eu disse baixo. — Mas não acho que Toby
queira ser encontrado.
Se Toby Hawthorne quisesse ser encontrado, ele poderia ter
voltado para a Casa Hawthorne a qualquer momento dos últimos
vinte anos. A menos que ele não se lembre. Aquela ideia me veio do
nada.
O Instituto Allport focava em pesquisa sobre memória —
Alzheimer, demência e perda de memória. E se essa fosse a história
que Tobias Hawthorne estava contando no testamento? E se seu
filho tivesse perdido a memória?
E se Harry não soubesse que ele era Toby Hawthorne?
A ideia de que talvez ele não tivesse mentido para mim quase me
derrubou. Eu me forcei a ir mais devagar. Estava chegando a
conclusões muito precipitadas. Eu nem sabia com certeza se as
quatro instituições haviam sido escolhidas para contar uma história.
— Você já ouviu falar em Casa Camden? — perguntei a Nan. — É
um centro de tratamento para…
— Eu sei o que é — Nan me cortou, sua voz áspera.
Não havia uma forma fácil de fazer a próxima pergunta.
— Sua filha e genro mandaram Toby para lá?
— Ele não era um viciado — Nan cuspiu. — Eu conheço viciados.
O menino só estava… confuso.
Eu não ia discutir com ela a respeito da escolha de palavras.
— Mas eles o mandaram para a Casa Camden, por causa da
confusão?
— Ele estava com raiva quando partiu e com raiva quando voltou.
— Nan sacudiu a cabeça. — Naquele verão… — Seu lábio tremeu.
Ela não terminou o que estava dizendo.
— Foi o verão do incêndio? — perguntei com suavidade.
Antes que Nan pudesse responder, uma sombra caiu sobre nós.
O sr. Laughlin entrou no caminho do jardim. Ele estava segurando
uma tesoura de poda.
— Tudo certo por aqui?
Ele fechou a cara e eu me lembrei da sra. Laughlin me chamando
de cruel.
— Tudo certo — respondi com a voz tensa.
O sr. Laughlin olhou na direção de Nan.
— Nós falamos sobre isso, Pearl — ele disse com gentileza. —
Não é saudável.
Obviamente, ele sabia o que eu tinha contado a Nan a respeito de
Toby. E obviamente não acreditava mais em mim do que sua
mulher.
Depois de um longo silêncio, o sr. Laughlin se virou de volta para
mim.
— Eu fiz alguns reparos na Casa. — Um músculo no maxilar dele
se tensionou. — Em uma das alas mais antigas. Quando as coisas
saem do lugar por aqui… — Ele me olhou. — As pessoas se
machucam.
Entendi então que uma das alas mais antigas era um código para
a de Toby. Eu não estava certa do que o caseiro queria dizer com
reparos até eu entrar na Casa Hawthorne e conferir.
A ala de Toby tinha sido selada de novo.
CAPÍTULO 20

No caminho entre a ala de Toby e a minha, eu me peguei olhando


por cima do ombro a cada metro. Quando entrei no meu corredor,
ouvi a voz de Libby.
— Você sabia disso?
— Você vai ter que ser um pouco mais específica, querida.
Era Nash, óbvio. Eu via a silhueta dele na entrada do quarto da
minha irmã.
— Sua namorada advogada. Esses papéis. Você sabia?
Eu não conseguia ver Libby, então não tinha ideia de com que
cara ela estava olhando para Nash, ou que papéis estava
segurando.
— Linda, se eu fosse você, não deixaria Alisa te ouvir se referindo
a ela como qualquer coisa minha.
— Não me chame de linda.
Não parecia da minha conta, então fui pé ante pé até a porta do
meu quarto, abri e deslizei para dentro. Ao fechar a porta atrás de
mim, acendi a luz. Uma brisa bateu no meu cabelo.
Eu me virei e vi que uma das enormes janelas na parede do fundo
estava aberta. Eu não deixei aquela janela aberta. Minha respiração
falhou e senti a batida do coração em cada centímetro do meu
corpo. Eu já tinha tido pesadelos assim antes. Primeiro você nota
uma coisa errada, e então…
Sangue. Os músculos da minha garganta se apertaram como um
torniquete. Tem sangue aqui. O pânico inundou meu corpo como
uma injeção de adrenalina bem no coração. Fuja. Fuja fuja fuja…
Mas eu não conseguia me mexer. Tudo que conseguia fazer era
encarar horrorizada o lençol branco esticado embaixo da minha
janela aberta, encharcado de sangue. Se mexa. Você precisa se
mexer, Avery. Em cima do lençol branco estava um coração.
Humano?
E atravessada no coração... uma faca. Meus pulmões pareciam
trancados. Meu corpo não escutava, não importava quantas vezes
eu dissesse a ele para correr. Tem uma faca. E um coração. E…
Soltei um som gutural. Eu ainda não conseguia correr, mas
consegui tropeçar para trás.
Tentei gritar, mas nenhum som saiu. Eu me sentia como daquela
vez na floresta Black Wood, sob o olhar de alguém que queria me
ver morta. Preciso sair daqui. Preciso…
— Respire, menina. — Nash tinha aparecido de repente. Ele
apoiou as mãos nos meus ombros e se abaixou, alinhando o rosto
com o meu. — Inspire e expire. Muito bem, menina.
— Meu quarto — sibilei. — Tem um coração no meu quarto. Uma
faca…
Uma expressão perigosa passou pelo rosto de Nash.
— Chame Oren — ele disse a Libby, que tinha aparecido ao
nosso lado. Quando Nash se virou novamente para mim, sua
expressão era gentil. — Inspire e expire — ele repetiu.
Eu inspirei freneticamente e tentei olhar para o meu quarto, mas o
mais velho dos irmãos Hawthorne deu um passo para o lado e me
impediu de ver qualquer coisa que não fosse o rosto dele. Ele
estava bronzeado e tinha a barba por fazer. Estava usando seu
característico chapéu de caubói. Seu olhar era firme.
Eu respirei.

— Eu já vi o que precisava ver. — Oren dirigiu essas palavras a


Nash. — É um coração de vaca, não humano. A faca é uma faca de
carne, da mesma marca que usamos nas cozinhas daqui.
Minha mente foi para a Lista. Perseguidores em potencial.
Ameaças.
— O lençol é um lençol Hawthorne — Oren continuou.
— Trabalho interno? — Nash perguntou, seu maxilar tensionando.
— Alguém da equipe?
— Provável — Oren confirmou. Ele se virou para mim. — Irritou
alguém ultimamente?
Consegui me controlar.
— Eu posso ter irritado os Laughlin.
Eu pensei na sra. Laughlin me chamando de cruel. No marido
dela, me avisando que pessoas podiam se machucar.
— Você acha que os Laughlin fizeram isso? — Libby perguntou
com olhos arregalados.
— Sem chance. — A resposta de Nash foi firme. Ele olhou para
Oren. — É mais provável que alguém na equipe tenha ficado
sabendo que o sr. e a sra. L estão fulos da vida por alguma coisa e
entendido que estava tudo liberado.
Oren digeriu isso.
— Você pode chamar alguém aqui para limpar isso? — perguntou
a Nash.
Nash respondeu com uma ligação.
— Mel? Preciso de um favor.
Eu reconheci a faxineira que surgiu alguns minutos depois. Mellie
tinha o hábito de olhar para Nash como se ele fosse o sol.
— Você pode cuidar disso para mim, querida? — Nash pediu,
apontando para a sujeira.
Mellie fez que sim, seu olhar castanho-escuro fixado no dele.
Alisa tinha me dito uma vez que Mellie era “uma das de Nash”. Eu
não tinha ideia de quanta gente na equipe da casa o mais velho dos
irmãos Hawthorne havia salvado — ou quantas das “minhas”
pessoas me viam como uma vilã que tinha roubado a herança de
Nash.
— Eu preciso que você fale com as pessoas por mim — Nash
disse a Mellie. — Deixe claro: não é temporada de caça. Não me
importa quem está fingindo que não viu, nem por quê. Chega.
Entendeu?
Mellie colocou uma mão no braço de Nash e fez que sim.
— Claro.
CAPÍTULO 21

— Acontecerão algumas mudanças no protocolo de segurança da


propriedade até resolvermos a situação — Oren me disse depois
que todo mundo havia saído. — Mas, antes de falarmos disso,
precisamos falar sobre os Laughlin. Mais especificamente,
precisamos falar sobre como você os irritou.
Procurei por uma maneira de responder sem revelar muita coisa.
— Jameson, Xander e eu estávamos mexendo na ala de Toby.
Oren cruzou os braços.
— Eu sei. Eu também sei por quê.
Oren tinha acesso aos sistemas de segurança — e um de seus
homens tinha estado na Caixa Preta naquela tarde. O que
exatamente Eli ouviu?
Meu chefe de segurança esclareceu as coisas para mim.
— Tobias Hawthorne Segundo. Vocês acham que ele está vivo.
— Eu sei que ele está.
Oren ficou em silêncio por um longo momento.
— Eu já te contei como comecei a trabalhar para o sr. Hawthorne?
Eu não tinha ideia de onde aquela pergunta havia saído.
— Não.
— Eu era um militar de carreira, dos dezoito aos trinta e dois
anos. Eu teria ficado até fazer vinte anos de trabalho, mas houve um
incidente. — A forma como Oren disse a palavra incidente gelou
minha espinha. — Todo mundo na minha unidade foi morto, exceto
eu. Um ano depois, quando o sr. Hawthorne me encontrou, eu
estava mal.
Eu não conseguia imaginar Oren fora de controle.
— Por que você está me contando isso?
— Porque — Oren disse — preciso que você entenda que eu
devo minha vida ao sr. Hawthorne. Ele me deu um propósito. Ele me
arrastou de volta para a luz. E a última coisa que me pediu foi para
ficar e liderar sua equipe de segurança. — Oren deixou que eu
absorvesse isso. — O que quer que eu precise fazer para te manter
segura — ele continuou, em voz baixa. — Eu vou fazer.
— Você acha que existe uma ameaça? — perguntei a ele. —
Real? Você está preocupado com quem deixou aquele coração?
— Estou preocupado — Oren respondeu — com o que você e os
meninos estão fazendo. Com os fantasmas que vocês estão
desenterrando.
— Toby está vivo — disparei com ferocidade. — Eu o conheci. Eu
acho que ele é…
— Pare — Oren ordenou.
Meu pai, terminei em silêncio.
— Grayson me mataria por te contar isso — falei. — Ele acha
que, se vazar que Toby está vivo…
Oren terminou minha frase por mim.
— A repercussão pode ser fatal.
— O quê?
Aquilo não era o que eu iria dizer. De forma alguma.
— Avery — Oren disse em voz baixa —, nesse momento a família
acredita que não existe nenhuma maneira eficaz de questionar o
testamento, nenhuma forma de conseguir a fortuna que o sr.
Hawthorne deixou para você. Zara e Constantine prefeririam lidar
com você herdando e o escritório de advocacia tomando as rédeas
do que com a fortuna passando para os seus herdeiros, isso
considerando que sua morte não contasse como quebrar os termos
do testamento, o que reverteria toda a fortuna para a caridade. O sr.
Hawthorne sempre pensou dez passos à frente. Ele atou a fortuna
deles a sua. Ele te deixou o mais segura que podia. Mas e se o
testamento não for tão rígido? E se houver outro herdeiro…
Alguém pode decidir que me matar vale a pena? Eu não perguntei
em voz alta.
— Você precisa ficar quieta — Oren me disse. — O que quer que
você e os meninos estejam fazendo, pare.

Eu não conseguia parar. Naquela noite, com um segurança a postos


bem na frente da minha porta, voltei à busca que tinha começado a
conduzir à tarde.
O Instituto Allport era um centro para pesquisa de memória. A
Casa Camden era uma unidade para tratamento de vício — e, com
base na minha conversa com Nan à tarde, Toby tinha sido um
paciente lá. Uma nova busca a respeito da Sociedade do
Observatório de Rockaway Watch me disse que Rockaway Watch
era uma pequena cidade costeira bem em frente à Ilha Hawthorne.
Kaylie Rooney era de Rockaway Watch. Eu levei uns bons quinze
minutos para juntar as coisas, mas, assim que consegui, os
neurônios no meu cérebro começaram a se agitar dolorosamente
rápido.
Havia uma história aí — uma que começava com Toby com raiva
e viciado, uma que envolvia o incêndio e os jovens que morreram lá.
E o Instituto Allport? Toby havia perdido a memória depois do
incêndio? Foi por isso que ele nunca voltou para casa?
Com um foco que poderia competir com o de Jameson, fiz uma
busca na última das instituições da lista de Grayson: o Caminho de
Colin. Eu já tinha verificado mais cedo que ela existia, mas não tinha
cavado mais fundo. Dessa vez, examinei o site. A primeira coisa que
vi na página inicial foi uma foto de um monte de alunos do primário
jogando basquete. Cliquei na aba que dizia Nossa História e li.

O Caminho de Colin oferece um ambiente seguro para o horário


depois da escola de crianças entre cinco e doze anos de idade.
Fundado em memória de Colin Anders Wright (foto à direita),
nós acreditamos em Brincar, Doar e Crescer — para que todas
as crianças possam ter um futuro.

Levei um segundo para reconhecer o nome. Como Kaylie Rooney,


Colin Anders Wright havia morrido na Ilha Hawthorne vinte anos
atrás. Quanto tempo a família de Colin levou para criar uma
instituição em sua memória?, me perguntei. Deve ter sido quase
imediatamente, para que o Caminho de Colin tenha sido incluído no
testamento antigo de Tobias Hawthorne. Busquei por notícias até
um mês depois do incêndio com o termo Caminho de Colin e
encontrei meia dúzia de artigos.
Logo depois do incêndio, então. Voltei para o site do Caminho de
Colin e fucei a seção de mídia — passei por anos, então décadas,
até chegar ao primeiro clipping disponível, uma espécie de coletiva.
Dei play no vídeo. Havia uma família na tela: uma mulher com
dois filhos pequenos, em pé atrás de um homem. De início, achei
que eram marido e mulher, mas logo ficou claro que eram irmãos.
— Essa foi uma tragédia horrível, da qual nossa família nunca vai
se recuperar. Meu sobrinho era um jovem incrível. Era inteligente e
determinado, competitivo, mas bondoso. Não há como saber que
bem ele teria feito nesse mundo se as ações de outros não lhe
tivessem roubado essa oportunidade. Eu sei que, se Colin estivesse
aqui, ele me diria para abandonar essa raiva. Ele me diria para me
concentrar no que importa. E então, junto com a mãe dele, seus
irmãos e minha esposa, que não pode estar aqui hoje, tenho orgulho
de anunciar a criação da Caminho de Colin, uma instituição de
caridade que vai se inspirar no espírito competitivo e generoso do
meu sobrinho para trazer o prazer do esporte, do trabalho em
equipe e da família para crianças carentes em nossas comunidades.
Havia algo na voz do homem que me chamou a atenção, algo
perturbador. Algo familiar. Quando a câmera se aproximou, notei
seus olhos.
Azul gelo, quase cinza. Quando ele terminou seu discurso,
repórteres chamaram sua atenção:
— Sr. Grayson!
— Sr. Grayson, aqui!
Uma legenda surgiu na parte de baixo da tela. Me sentindo
confusa e quase tonta, eu li o nome do tio de Colin Anders Wright:
Sheffield Grayson.
CAPÍTULO 22

Na manhã seguinte, Jameson me chamou do outro lado da lareira


e eu puxei o candelabro em cima dela para soltar a porta.
— Você encontrou o mesmo que eu? — ele me perguntou. —
Duas das quatro instituições têm conexões com vítimas do incêndio.
Ainda estou juntando o resto, mas tenho uma teoria.
— Sua teoria envolve Toby ter sido um paciente na Casa Camden
e potencialmente ter perdido a memória depois do incêndio? —
perguntei.
Jameson se inclinou na minha direção.
— Somos geniais.
Pensei no restante da minha descoberta. Ele não tinha
mencionado Sheffield Grayson.
— Herdeira? — Jameson se afastou e me examinou. — O que
foi?
Era óbvio para mim que ele não tinha procurado nada sobre o
Caminho de Colin além de onde tinha vindo seu nome. Era óbvio
que ele não tinha visto o vídeo que eu vi. Sem dizer uma palavra, eu
o abri para ele no celular, estendendo-o na sua direção. Enquanto
Jameson assistia, finalmente encontrei minha voz.
— Os olhos dele — apontei. — E seu sobrenome é Grayson. Eu
sei que Skye nunca contou nada a respeito do pai de vocês, mas
vocês todos têm sobrenomes como primeiros nomes. Você acha…
Jameson me devolveu o celular.
— Só tem um jeito de descobrir. — Ele veio para trás de mim. —
Nós podemos sair pela sua porta como pessoas normais, mas um
dos homens de Oren está estacionado ali fora e eu duvido que
qualquer pessoa da sua equipe de segurança vá te autorizar a
visitar minha mãe.
Ir visitar uma mulher que tinha tentado me matar era uma má
ideia. Eu sabia disso. Mas Grayson tinha dezenove anos, o que
significava que ele havia sido concebido vinte anos atrás — não
muito depois do incêndio na Ilha Hawthorne. Quais eram as chances
de isso ser uma coincidência? Coincidências não existiam na Casa
Hawthorne. E, naquele momento, a única pessoa que podia
responder nossas perguntas era Skye.
— Oren não vai ficar feliz com isso — eu disse a Jameson.
Ele sorriu.
— Nós vamos voltar antes que notem que saímos.

Jameson conhecia as passagens secretas como a palma de sua


mão. Ele nos levou para dentro da enorme garagem sem ninguém
ver, puxou uma motocicleta da parede e resolveu o quebra-cabeça
da caixa onde as chaves ficavam. No momento seguinte, estava
vestindo um capacete e estendendo outro para mim.
— Você confia em mim, Herdeira?
Jameson tinha vestido uma jaqueta de couro. Ele cheirava a
problemas. O tipo bom de problema.
— Nem um pouco — respondi, mas peguei o capacete da mão
dele e, quando ele subiu na moto, subi na garupa.
CAPÍTULO 23

Skye Hawthorne estava hospedada em um hotel de luxo — um


hotel que era meu. Era o tipo de lugar que tinha caviar no cardápio e
oferecia serviços de spa nos quartos. Eu não tinha ideia de como
Skye estava pagando por um quarto, nem mesmo se estava
pagando. A ideia de que aquela era a punição dela por um atentado
contra minha vida me enfurecia.
— Calma — Jameson murmurou ao meu lado quando bateu à
porta. — Nós precisamos que ela fale.
Fale primeiro, pensei. Mande a segurança retirá-la do local
depois.
Skye abriu a porta vestindo um robe de seda vermelho que tocava
a ponta dos seus dedos e esvoaçava ao seu redor quando ela se
movia.
— Jamie. — Ela sorriu para Jameson. — Que vergonha você não
ter vindo visitar sua pobre mãe até agora.
Jameson me deu um brevíssimo olhar de aviso, um claro deixe
que eu cuido disso.
— Eu sou um filho terrível — Jameson concordou, aumentando
seu charme ao nível de Skye. — Horrendo, mesmo, tão preocupado
com a pessoa que você tentou matar que mal pensei em como ter
sido pega deve ter sido difícil para você.
Eu não tinha dito uma palavra para Jameson a respeito do que a
mãe dele tinha feito, mas ele sabia que Skye havia se mudado.
Provavelmente não tinha levado muito tempo para entender que
Grayson a tinha forçado a se mudar — e por quê.
— O que seu irmão tem dito para você? — Skye exigiu, sem
especificar de qual irmão ela estava falando. — E você acredita
nele? Acredita nela…
— Acredito — Jameson disse, suave — que eu tenha encontrado
o pai de Grayson.
Isso fez Skye arquear uma sobrancelha.
— Ele estava perdido?
O papel de vítima derreteu como neve no sol.
— Sheffield Grayson — soltei o nome, forçando o olhar de Skye a
vir na minha direção. — O sobrinho dele morreu no incêndio da Ilha
Hawthorne, junto com seu irmão, Toby.
— Não sei do que você está falando.
— E eu não sei por que você acha que mentir para mim é uma
boa ideia, quando eu poderia te expulsar desse hotel — devolvi.
Eu pretendia deixar Jameson cuidar daquilo. Mesmo. Só que não
foi bem assim que aconteceu.
— Você? — Skye desdenhou. — Esse hotel está na minha família
há décadas. Você está iludida se acha…
— Que a gerência vai se importar mais em agradar a nova dona
em vez de você?
— Você não é adorável? — Skye voltou para dentro do quarto. —
Não fiquem parados aí — chamou. — Estão deixando entrar uma
corrente de ar.
Com um olhar para Jameson, cruzei a porta — e me vi quase
imediatamente acompanhada por Oren e Eli. Aparentemente, eu
estava sob mais vigilância do que tinha notado.
Skye parecia estar maravilhada com o surgimento da minha
equipe de segurança.
— Parece que temos uma festa. — Ela se sentou em uma chaise
longue e esticou as pernas. — Vamos aos negócios, que tal? Eu
tenho algo que você quer e gostaria de algumas garantias,
começando com ser muito bem-vinda a ficar nesta cobertura
indefinidamente.
Nem ferrando, pensei.
— Contraproposta — Jameson interrompeu antes que eu pudesse
responder. — Se você responder nossas perguntas, não vou contar
a Xander o que você fez. — Ele se deixou cair em um sofá ao lado
da chaise de Skye. — Tenho certeza de que Nash somou dois mais
dois. Eu descobri bem rápido. Mas Xan? Até onde ele sabe, esse é
só mais um passeiozinho seu. Eu detestaria ter que contar a ele
sobre seus impulsos assassinos…
— Jameson Winchester Hawthorne, eu sou sua mãe. Eu te
coloquei no mundo.
Skye pegou uma taça de champanhe que estava perto dela e
notei que havia uma segunda taça logo ali.
Ela não estava sozinha.
— No entanto — ela continuou, com um longo suspiro —, porque
estou me sentindo generosa, acho que posso responder uma ou
duas perguntas.
— Sheffield Grayson é o pai de Gray? — Jameson não perdeu
tempo.
Skye deu um gole.
— Não no que importa.
— Biologicamente — Jameson insistiu.
— Se você quer mesmo saber — Skye disse, encarando-o por
cima da taça —, então, sim, tecnicamente Sheff é o pai de Grayson.
Mas o que um pouco de biologia importa? Fui eu que criei todos
vocês.
Jameson riu.
— Segundo alguma definição.
— Sheffield Grayson sabe que tem um filho? — perguntei,
pensando só em Grayson, me perguntando o que isso ia significar
para ele.
Skye deu de ombros graciosamente.
— Eu não tenho a menor ideia.
— Você nunca contou a ele? — Jameson perguntou.
— Por que eu faria isso?
Eu a encarei.
— Você engravidou de propósito.
Nash tinha me contado aquela parte.
— Você estava sofrendo — Jameson disse suavemente. — Ele
também.
O tom pareceu afetar Skye de uma forma que nada mais tinha
conseguido.
— Toby e eu éramos muitos próximos. Sheff praticamente criou
Colin. Nós entendíamos um ao outro, por um tempo.
— Por um tempo — Jameson repetiu. — Ou por uma noite?
— Honestamente, Jamie, que diferença faz? — Skye estava
ficando impaciente. — Nunca faltou nada a vocês. Meu pai deu o
mundo a vocês. Os funcionários mimaram todos vocês. Vocês
tinham um ao outro e tinham a mim. Por que isso não foi suficiente?
— Porque — Jameson disse, sua voz rouca — nós não tínhamos
você de verdade.
Skye baixou a taça.
— Não ouse reescrever a história. Como você acha que foi para
mim? Filho após filho… e todos vocês preferiam meu pai.
— Eles eram crianças — eu disse.
— Os Hawthorne nunca são crianças, querida — Skye me disse,
arrogante. — Mas não vamos brigar. Nós somos uma família, Jamie,
e família é tão importante... Você não concorda, Avery?
Algo na pergunta e na forma como ela a havia feito era
profundamente perturbador.
— Na verdade — Skye continuou —, estou considerando ter mais
um filho. Ainda sou jovem o suficiente. Saudável. Meus filhos me
viraram as costas, mereço algo meu, não mereço?
Algo, pensei, meu coração se apertando por Jameson. Não
alguém.
— Você nunca contou a Sheffield Grayson que ele tinha um filho
— voltei ao assunto.
Quanto mais rápido eu pudesse tirar Jameson dali, melhor.
— Sheff sabia quem eu era — Skye disse. — Se ele quisesse ir
atrás, podia ter ido. Foi uma espécie de teste. Se eu não era
importante suficiente para que viessem atrás… então de que eles
me serviam?
Eles. Eu notei a escolha de palavras. Ela não estava falando só
do pai de Grayson.
Skye se encostou na chaise longue.
— Francamente, suspeito que Sheff saiba exatamente o resultado
de nosso tempo juntos. — Ela olhou nos olhos de Jameson. — Essa
família é tão famosa que qualquer homem com quem dormi só não
sabe que tem um filho se estiver morando em uma caverna.
Ela estava dizendo a ele que o pai dele — quem quer que fosse
— sabia.
— Já chega — eu disse, me levantando. — Vamos embora,
Jameson.
Ele não se mexeu. Eu levei a mão ao ombro dele. Depois de um
momento, ele ergueu uma das mãos para tocar meus dedos. Eu
deixei. Jameson Hawthorne não gostava de estar vulnerável. Ele
não gostava de precisar dos outros, não mais do que eu gostava.
— Vamos — repeti.
Nós tínhamos conseguido o que queríamos: confirmação.
— Você não quer ficar um pouco mais? — Skye perguntou. — Eu
adoraria te apresentar ao meu novo amigo.
— Seu amigo — Jameson repetiu, seus olhos indo para a
segunda taça de champanhe.
— Sua pequena herdeira o conhece — Skye disse, dando um
gole de champanhe. Ela esperou o comentário fazer efeito, esperou
a confusão realmente surgir antes de sorrir e atacar na jugular. —
Seu pai é um homem adorável, Avery.
CAPÍTULO 24

Skye Hawthorne. E Ricky. Skye Hawthorne estava tendo um caso


com Ricky.
Ele não é meu pai. Eu me agarrei a isso enquanto Oren e Eli nos
tiravam da suíte de Skye. Ricky Grambs não é meu pai. Ele também
não era “adorável”. Skye Hawthorne era caviar e champanhe e
Ricky era cerveja barata em banheiro de motel. Ele não tinha onde
cair morto. Mas ele tinha uma relação — por mais tênue que fosse
— comigo.
Eu sentia que ia vomitar. Na verdade, eu conseguia ouvir Skye
falando com um brilho de um bilhão de dólares nos olhos, estou
considerando ter outro filho. Era esse o plano dela? Ficar grávida do
meu meio-irmão? Não meu. Pensar nisso não era tão reconfortante
quanto deveria ser, porque qualquer filho de Ricky ainda seria o
meio-irmão de Libby — e eu faria qualquer coisa por Libby.
— Onde você estava com a cabeça? — Oren estourou quando
estávamos em segurança no elevador. — Uma mulher que tentou te
matar está tendo um caso com um homem que pode herdar uma
fortuna se você morrer e você abandonou sua equipe de segurança
para entrar em um quarto com ela?
Eu nunca tinha pensado em Ricky como um dos meus herdeiros,
mas eu era jovem demais para um testamento. O nome dele estava
na minha certidão de nascimento.
— Por que você não sabia? — rebati a Oren antes de conseguir
controlar a tempestade de emoções nas minhas entranhas. — Os
dois estão na sua lista, não estão? Como você podia não saber que
eles… — Deixei a frase pela metade, dando uma inspiração que
depois não consegui soltar.
— Você sabia — Jameson concluiu. Oren não negou. A porta do
elevador se abriu, e Jameson me puxou para fora. — Vamos
embora daqui, Herdeira.
Eli o bloqueou. Oren soltou meu braço da mão de Jameson.
Consegui sentir o exato momento em que as outras pessoas no
lobby notaram a nossa presença. O momento em que elas me
reconheceram.
— Ela não vai para lugar nenhum além da escola — Oren disse
em tom de voz baixo para Jameson.
A expressão dele era perfeitamente agradável. Meu chefe de
segurança sabia evitar escândalo.
Jameson inclinou a cabeça para me olhar. Ele era excelente em
escândalos. Havia um convite em seus olhos verdes — e uma
promessa. Se eu fosse com ele, ele daria um jeito de fazer nós dois
esquecermos do que havia acontecido.
Eu queria aquilo. Mas garotas como eu nem sempre têm o que
querem. Baixei os olhos.
— Jameson.
Minha voz era baixa. As pessoas estavam olhando. Com o canto
do olho eu vi alguém erguer um celular e tirar uma foto.
— Pensando melhor — Jameson disse, generosamente —, Oren
está certo. Melhor garantir, Herdeira. — Senti o olhar que ele me
deu em cada centímetro do meu corpo. — Por enquanto.
CAPÍTULO 25

Eli ficou do meu lado o dia todo. Toda hora que eu tentava ter
algum espaço, olhos azuis contornados de âmbar me encaravam.
Em certo ponto, ele me informou que Oren havia intensificado meus
protocolos de segurança — não só em Country Day, mas na
propriedade também. Eu não iria para lugar nenhum sem um
acompanhante.
Quando Oren foi nos buscar naquela tarde, Alisa estava no banco
de trás da SUV. A primeira coisa que ela fez depois que eu coloquei o
cinto de segurança foi me passar um tablet. Eu olhei para a tela e vi
uma foto, que tinha sido tirada no hotel. Os olhos de Jameson
estavam escuros e brilhantes e eu estava olhando para ele como
milhares de outras garotas provavelmente já haviam olhado para
Jameson Hawthorne.
Como se ele fosse importante.
A manchete dizia Tensões aumentam entre Herdeira e a Família
Hawthorne.
— Essa não é a mensagem que queremos passar — Alisa me
disse. — Eu já arranjei o controle de danos. Vai haver um evento
para levantar fundos em memória de alguém na Country Day
amanhã. Você e os irmãos Hawthorne irão.
Alguns adolescentes ficam de castigo, eu sou sentenciada a
eventos black-tie.
— Certo — concordei.
— Eu também preciso da sua assinatura nisso.
Alisa me entregou um formulário de três páginas. Eu me lembrei
da conversa que tinha escutado entre Libby e Nash e li as palavras
em negrito no formulário: Petição Para Emancipação de Menor.
— Emancipação? — eu disse.
— Você tem dezessete anos. Você tem residência permanente e
uma renda substancial. Sua guardiã legal está disposta a consentir,
e você tem o mais poderoso escritório de advocacia do estado atrás
de você. Não imaginamos ter qualquer dificuldade nisso.
— Libby consentiu? — perguntei. Ela não me parecera feliz com
os papéis.
— Eu posso ser bem persuasiva — Alisa disse. — E, com Ricky
na história, é a atitude certa. Quando você for emancipada, ele não
vai ter base para tentar nada no tribunal.
— E — Oren acrescentou do banco da frente — você poderá
assinar um testamento.
Quando eu fosse emancipada, Ricky não teria nada a ganhar com
a minha morte.
Alisa me deu uma caneta. Enquanto eu lia o formulário, pensei em
Libby. Então pensei em Ricky e em Skye — e assinei.
— Excelente — Alisa declarou. — Agora só temos um último
assunto que precisa da sua atenção.
Ela me estendeu um pedacinho de papel com um número
anotado.
— O que é isso? — perguntei.
— O celular novo da sua amiga Max.
Eu a encarei.
— Como assim?
Alisa apoiou a mão de leve no meu ombro.
— Eu arranjei um celular para ela.
— Mas a mãe dela…
— Nunca vai ficar sabendo — Alisa disse, seca. — Isso
provavelmente me torna uma péssima influência, mas você precisa
de alguém. Eu entendo, Avery. E você não quer que esse alguém
seja um Hawthorne. O que quer que esteja acontecendo entre você
e Jameson…
— Não tem nada acontecendo entre nós.
Isso me rendeu uma Cara de Alisa e um pouco mais.
— Primeiro o telhado, depois o hotel. — Ela fez uma pausa. —
Ligue para sua amiga Max. Deixe que ela seja sua pessoa. Não um
deles.
CAPÍTULO 26

— Sua pata maravilhosa.


Uma hora depois, Max atendeu o novo celular parecendo
realmente animada.
— Você recebeu o celular.
— É a coisa mais linda que já vi nessa mendita vida. Espere um
segundo. Preciso ligar o chuveiro.
Um segundo depois, conseguia ouvir água caindo.
— Você não está mesmo no chuveiro, está?
— Meus pais não precisam me escutar falando com você no meu
novo celular clandestino — Max respondeu. — Eu sou o próprio
007, Ave. Eu sou o baralho do James Bond, seus patos! E, sim, eu
estou no chuveiro. Disfarce, seu nome é Max.
Eu ri.
— Senti saudades. — Parei então, pensando nas nossas últimas
conversas. Max me acusou de tornar nossa amizade só sobre mim.
Ela não estava errada. — Eu sei que não…
— Não — Max me cortou. — Tá?
— Tá. — Hesitei por um ou dois segundos. — Nós estamos…
bem?
— Depende — Max respondeu. — Alguém tentou te matar
ultimamente?
Depois que atiraram em mim, Max queria que eu fosse embora,
mas sair da Casa Hawthorne significava abrir mão da herança. Para
ganhar o dinheiro, eu precisava ficar por um ano. Alisa tinha deixado
aquilo bem claro.
— Seu silêncio quanto à questão das pessoas tentando te matar é
profundamente perturbador.
— Eu estou bem — eu disse a Max. — É só…
— Só?
Tentei decidir por onde começar.
— Alguém deixou um coração de vaca ensanguentado no meu
quarto. Com uma faca.
— Avery! — Max suspirou. — Me conte tudo.

— Então, resumindo — Max disse —, o tio morto? Não está morto,


pode ser seu pai. Meninos gatos também são trágicos, todo mundo
quer um pedacinho de você e a mulher que tentou te matar está
trecando com seu pai?
Eu fiz uma careta.
— É mais ou menos isso.
— Você sabe o que eu queria de aniversário? — Max perguntou
calmamente.
O aniversário de Max. É amanhã.
— Um pouco menos de drama?
— Reproduções funcionais e em tamanho real dos três droids
mais amáveis do universo Star Wars — Max corrigiu. — E um pouco
menos de drama.
— Como você está? — perguntei.
Era a pergunta que eu tinha deixado de fazer muitas vezes antes.
— Maravilhosa — Max respondeu.
— Max.
— As coisas aqui estão… bem.
— Isso soa como uma mentira — eu disse.
O ex de Max havia mandado fotos comprometedoras para os pais
dela quando ela terminou com ele por ter tentado vender
informações sobre mim para a imprensa.
A vida dela definitivamente não estava bem.
— Eu estou pensando em participar de uma viagem missionária
— Max me disse. — Talvez bem longa.
Os pais de Max eram religiosos. Max também era. Não era só
algo que ela fazia por eles — mas eu nunca tinha ouvido ela falar de
viagens missionárias antes.
Quão ruins estão as coisas na casa dela? Na escola?
— Tem algo que eu possa fazer? — perguntei.
— Sim — Max respondeu, séria. — Você pode mandar aquele
projeto triste de pai que você tem tomar no mu e comer lerda. E um
baralho. Baralho e lerda, nessa ordem.
Havia um motivo para Max ser minha melhor amiga.
— Mais alguma coisa?
— Você pode me contar como é o abdômen de Jameson
Hawthorne — Max sugeriu inocentemente. — Porque eu vi aquela
foto de vocês dois e meu sexto sentido me diz que você entrou em
comunhão com ele.
— Não! — eu disse. — Não houve comunhão nenhuma.
— E por quê? — Max insistiu.
— Tem muita coisa acontecendo.
— Tem sempre muita coisa acontecendo — Max respondeu. — E
você não gosta de querer as coisas. — Ela parecia estranhamente
séria. — Você é muito boa em se proteger, Avery.
Ela não estava me dizendo nada que eu não soubesse.
— E daí?
— Agora você é uma bilionária. Você tem uma equipe inteira de
pessoas para te proteger. A forra do mundo é seu. Você pode querer
coisas. — Max desligou o chuveiro. — Você pode ir atrás do que
você quer.
— E quem disse que eu quero alguma coisa? — perguntei.
— Meu sexto sentido — Max respondeu. — E aquela foto.
CAPÍTULO 27

Eu não fiquei surpresa ao encontrar Eli posicionado em frente a


minha porta. Depois do incidente com o coração, eu provavelmente
podia esperar um segurança particular — mesmo dentro da
propriedade — pelo futuro próximo. No entanto, fiquei surpresa ao
ver Grayson ao lado de Eli. Ele estava usando um terno preto com
uma camisa social branca imaculada e sem gravata. Imediatamente
pensei na cena dele arregaçando suas mangas, se preparando para
brigar.
O que quer que Eli e Grayson estivessem conversando aos
sussurros, eles pararam quando cheguei no corredor.
— Você não me disse que alguém deixou um coração
ensanguentado no seu quarto. — Grayson Não Estava Feliz, e
ninguém expressava Não Feliz como Grayson Hawthorne. — Por
quê?
Estava claro pelo seu tom que Grayson esperava uma resposta.
Como regra geral, quando Grayson Hawthorne exigia algo, o mundo
obedecia.
— Quando eu teria te contado? — perguntei. — Eu não te vejo
desde que isso aconteceu. Com algumas exceções, você tem feito
um excelente trabalho de me evitar desde o início da semana.
— Eu não estou te evitando — Grayson disse, mas ele nem
conseguia dizer essas palavras sem desviar os olhos.
No fundo da mente, eu ouvi Max me dizer que eu não gostava de
querer coisas. Era irritante quando ela estava certa.
— Você foi ver minha mãe. — Grayson não colocou isso como
uma pergunta.
Eu olhei feio para Eli, que aparentemente tinha uma boca bem
grande.
— Ei — Eli disse, erguendo as mãos. — Eu não contei.
— Oren? — perguntei a Grayson com uma cara feia. — Ou Alisa?
— Nenhum deles — Grayson repetiu e trouxe seu olhar de volta
para o meu. — Eu vi uma foto sua no hotel. Sou mais do que capaz
de chegar a conclusões sozinho.
Tentei não interpretar demais aquela última frase, mas não
consegui deixar de pensar na conclusão a que Max tinha chegado
com aquela foto de Jameson e eu. Era por isso que Grayson estava
agindo assim?
Foi você quem se afastou, pensei. Isso é o que você queria.
— Se você precisava de algo de Skye — Grayson disse, sua voz
tensa —, era só pedir.
Eu me lembrei então do que eu precisava de Skye. O que ela
havia confirmado. De repente, nada mais importava.
— Você viu Jameson hoje? — perguntei a Grayson, sentindo meu
estômago apertar. — Ele não foi à escola. Ele… foi te encontrar?
— Não. — O maxilar de Grayson ficou tenso. — Por quê?
Jameson não tinha contado a Grayson sobre o pai dele, mas não
parecia certo que eu fizesse isso.
— Nós descobrimos uma coisa. — Eu baixei os olhos. — A
respeito das instituições de caridade no testamento.
— Você não para. — Grayson sacudiu a cabeça. Seus braços
permaneceram estáticos nas laterais do corpo, mas vi o polegar da
sua mão direita esfregando a parte de trás do indicador, uma
pequena perda de controle que me fez pensar que ele poderia estar
à beira de uma maior. — E nem — continuou — Jameson. — Então
ele se virou, tensão visível em seu pescoço e maxilar, embora sua
voz se mantivesse mortalmente calma. — Se você me der licença,
preciso de uma palavrinha com meu irmão.
CAPÍTULO 28

Eu segui Grayson. Eli me seguiu. Em defesa de Grayson, ele


desistiu de tentar me despistar bem rápido. Ele me deixou segui-lo
por todo o caminho até o terceiro andar, por uma série de
corredores sinuosos, subindo uma pequena escada de ferro fundido,
até uma alcova. Havia uma antiga máquina de costura no canto. As
paredes estavam cobertas de colchas. Grayson ergueu uma delas e
revelou um túnel baixo.
— Se eu te dissesse para voltar ao seu quarto, você iria? —
perguntou.
— De jeito nenhum — respondi.
Grayson suspirou.
— Daqui a uns dez passos você vai encontrar uma escada.
Ele ergueu a colcha e esperou, seu queixo apontando para baixo,
seu olhar no meu. O mundo podia se dobrar à vontade de Grayson
Hawthorne, mas eu, não.
Deixando Eli para trás, segui pelo túnel, engatinhando. Eu sentia
e ouvia Grayson atrás de mim, mas ele não disse uma palavra até
eu começar a subir a escada.
— Tem um alçapão no final. Tome cuidado. Ele emperra.
Engoli o impulso de me virar e olhá-lo e consegui abrir a porta e
passar por ela, piscando quando a luz do sol bateu nos meus olhos.
Eu estava esperando um sótão — não o telhado.
Olhando em volta, saí para uma área pequena e plana, de mais
um menos um metro e meio por um metro e meio, aninhada entre os
ângulos do telhado da Casa Hawthorne. Jameson estava apoiado
contra o telhado, seu rosto voltado para o céu, como se estivesse
tomando sol.
Nas mãos, ele tinha uma faca.
— Você guardou isso? — Grayson saiu para o telhado atrás de
mim.
Jameson, ainda de olhos fechados, girava a faca nas mãos. O
cabo se abriu em dois, revelando um compartimento interno.
— Vazio. — Jameson abriu os olhos e fechou o compartimento. —
Dessa vez.
A boca de Grayson se firmou em uma linha tensa.
— Eu invoco…
— Ah, não — falei com ferocidade. — Isso de novo, não. Ninguém
vai invocar nada!
Jameson encontrou meu olhar. Seus olhos verdes estavam
líquidos e sombreados.
— Você contou? — ele me perguntou.
— Contou o quê? — Grayson disse, áspero.
— Bem, isso responde. — Jameson se levantou. — Herdeira,
antes de começarmos a compartilhar segredos, vou precisar que
você me prometa um avião.
— Um avião? — Olhei incrédula para ele.
— Você tem vários. — Jameson sorriu. — Eu quero um
emprestado.
— Por que você precisa de um avião? — Grayson perguntou,
desconfiado.
Jameson dispensou a pergunta com um aceno de mão.
— Tudo bem — concordei. — Você pode pegar um dos meus
aviões. — Mais uma frase que nunca achei que diria.
— Por que — Grayson repetiu por entre os dentes — você precisa
de um avião?
Jameson olhou de volta para o céu.
— Caminho de Colin foi fundada em memória de Colin Anders
Wright.
Eu me perguntei se Grayson conseguia ouvir o tom por baixo da
voz de Jameson. Não era bem tristeza, não era bem
arrependimento, mas era alguma coisa.
— Colin foi uma das vítimas do incêndio na Ilha Hawthorne —
continuou ele. — A instituição foi fundada pelo seu tio.
— E? — Grayson estava ficando impaciente.
Jameson de repente olhou para mim. Ele não consegue dizer. Ele
não consegue ser a pessoa que vai contar isso.
Pressionei os lábios e inspirei.
— O nome do tio é Sheffield Grayson.
Um silêncio absoluto respondeu a afirmação. Grayson Hawthorne
não era uma pessoa que demonstrava muitas emoções, mas
naquele momento senti cada mudança sutil de sua expressão no
fundo do meu estômago.
— É por isso que vocês foram ver Skye — Grayson disse, a voz
estava tensa.
— Ela confirmou, Gray. — Jameson arrancou o band-aid. — Ele é
seu pai.
Grayson ficou quieto de novo e Jameson se moveu de repente,
jogando a faca para ele. A mão de Grayson rapidamente pegou-a
pelo cabo.
— Com certeza o velho sabia — Grayson disse, implacável. —
Durante vinte anos, Caminho de Colin esteve em seu testamento. —
Um músculo na garganta de Grayson se apertou. — Ele estava
tentando dizer algo a Skye?
— Ou ele estava deixando uma pista? — Jameson questionou. —
Pense nisso, Gray. Ele deixou uma pista para nós no testamento
novo. Talvez esse fosse um truque antigo, um que ele já tinha usado
antes.
— Isso não é só uma pista — Grayson disse, sua voz baixa e
dura. — Isso é meu… — Ele não conseguia dizer a palavra pai.
— Eu sei. — Jameson foi ficar em frente ao irmão, baixando sua
testa até que ela tocasse a de Grayson. — Eu sei, Gray, e se você
deixar isso ser um jogo, não precisa doer.
Eu estava tomada pela sensação de que não deveria estar ali,
que não deveria ver os dois assim.
— Nada precisa importar — Grayson respondeu em uma voz
estrangulada —, a menos que você permita.
Eu me virei para ir embora, mas Grayson notou meu movimento
com o canto do olho. Ele se afastou de Jameson e se virou para
mim.
— Esse Sheffield Grayson pode saber algo sobre o incêndio,
Avery. Sobre Toby.
Ele tinha acabado de ter o mundo revirado por uma revelação
sobre seu pai e estava pensando em mim. Em Toby. Na assinatura
na minha certidão de nascimento.
Ele sabia que eu não ia parar.
— Você não precisa fazer isso — eu disse a ele.
Grayson segurou o cabo da faca com mais força.
— Nenhum de vocês dois vai deixar isso pra lá. Se eu não posso
impedi-los, posso pelo menos garantir que alguém com um mínimo
de bom senso supervisione o processo.
Em um segundo, Grayson jogou a faca de volta para Jameson,
que a pegou.
— Eu vou arranjar o avião — Jameson sorriu para o irmão. — Nós
saímos ao amanhecer.
CAPÍTULO 29

O nós não me incluía. Para herdar, eu precisava viver na Casa


Hawthorne por um ano. Eu não tinha certeza se eu podia viajar, e,
mesmo que desse um jeito, eu não podia me meter naquilo.
Grayson tinha direito de conhecer seu pai sem me carregar junto.
Ele tinha Jameson, e eu não conseguia afastar a sensação de que
eles precisavam fazer aquilo juntos.
Sem mim.
Então fui para a escola no dia seguinte, me mantive discreta e
esperei. Entre as aulas, eu checava meu celular, esperando uma
atualização. Que eles tinham chegado em Phoenix. Que tinham feito
contato, ou que não tinham. Alguma coisa.
— Eu poderia te perguntar onde meus irmãos estão. — Xander
me alcançou no corredor. — E o que estão aprontando. Ou… — Ele
me deu um sorriso ridículo. — Poderia te trazer para o lado sombrio
da força com o poder atordoante do meu carisma.
— O lado sombrio? — repeti, rindo.
— Ajudaria se eu fosse atormentado? — Xander perguntou
quando chegamos na porta da minha próxima aula. — Eu posso ser
atormentado! — Ele fechou exageradamente a cara e então sorriu.
— Fala sério, Avery. É meu jogo. Eles são meus irmãos idiotas e
notavelmente menos carismáticos. Você precisa me por pra dentro.
— Sr. Hawthorne. — A professora Meghani lançou um olhar
divertido para ele. — A menos que eu esteja enganada, você não
está nessa aula.
— Estou livre até o almoço — Xander respondeu a ela. — E
preciso construir significado.
Em qualquer outra escola, aquilo não ia colar. Se ele não fosse
um Hawthorne, talvez não colasse ali também, mas a professora
Meghani permitiu.
— Na última aula — ela falou da frente da sala —, nós
conversamos a respeito do espaço branco nas artes visuais. Hoje,
eu quero que vocês trabalhem em pequenos grupos para
conceitualizar o equivalente em outras formas artísticas. O que
cumpre a função do espaço branco na literatura? No teatro? Na
dança? Como o significado pode ser construído, ou enfatizado, com
espaços e vazios propositais? Quando o nada se torna algo?
Eu pensei no meu celular. Na falta de comunicação vinda de
Jameson e Grayson.
— Quero duas mil palavras sobre esse assunto e um plano de
exploração artística até o fim da semana que vem. — A professora
Meghani bateu palmas. — Ao trabalho.
— Você ouviu a mulher — Xander disse ao meu lado. — Vamos
trabalhar.
Dei outra olhadela no meu celular.
— Estou esperando notícias dos seus irmãos — admiti, mantendo
a voz baixa e tentando parecer que estava refletindo profundamente
a respeito do verdadeiro significado da arte.
— Sobre o quê? — Xander incentivou.
A professora Meghani passou pela nossa mesa e eu esperei até
que ela não conseguisse mais ouvir antes de continuar.
— O nome Sheffield Grayson te diz alguma coisa? — perguntei a
Xander.
— Diz, sim! — ele respondeu, animado. — Eu criei um banco de
dados dos maiores doadores para todas as instituições de caridade
da nossa lista. O nome Sheffield Grayson aparece na lista
exatamente duas vezes.
— Por causa da Caminho de Colin — eu disse imediatamente. —
E…
— Casa Camden.
Guardei a informação para referência futura.
— Você já viu uma foto de Sheffield Grayson? — perguntei baixo
para Xander.
Você sabe quem ele é para o seu irmão?
Em resposta, Xander fez uma busca por imagem e soltou um
suspiro.
— Ah.
Xander de alguma forma convenceu a professora Meghani que eu
pretendia abordar o tema no ensaio por meio de uma comparação
entre o espaço branco na natureza e o espaço branco nas artes e
ela nos autorizou a passar o resto da aula lá fora. Quando
chegamos ao perímetro do bosque ao sul da quadra de beisebol,
Xander parou. Eu também — e, a quatro passos de distância, Eli
também.
— O que estamos esperando? — perguntei.
Xander apontou e vi Rebecca vindo na nossa direção a mais ou
menos uns cem metros de distância.
— Estou começando a entender por que você chama o seu lado
de lado sombrio da força — resmunguei.
— O velho tinha um fraco pela Rebecca — Xander me disse. —
Bex o conhecia bem, e não acho que ele esperava que eu fizesse
isso sozinho.
Apontei para mim mesma.
— Você não está sozinho.
— E você está no meu time? Não no de Jamie? — Xander me
lançou um olhar. — Ou de Gray?
— Por que precisa haver times? — perguntei.
— É o jeitinho deles. Os Hawthorne, quero dizer. — Rebecca
parou na minha frente. Quando me virei para encará-la, ela desviou
o olhar. — Você disse que tinha novidades? — ela perguntou a
Xander.
— Vamos esperar por Thea — Xander sugeriu.
— Thea? — grunhi.
— Ela é deliciosamente maquiavélica e detesta perder. — Xander
sequer se abalou. — Eu gosto do impacto disso nas minhas
chances.
— Ela também é sobrinha de Zara — não pude deixar de apontar.
— E odeia você e seus irmãos.
— Odeia é uma palavra forte — Xander desviou. — Thea só nos
ama de uma forma um tanto negativa e ocasionalmente violenta.
— Thea não vem — Rebecca disse, interrompendo minha
discussão com Xander.
— Ela não vem? — Xander ergueu sua única sobrancelha.
— Eu só… — Rebecca respirou e o vento bateu em seu cabelo
ruivo escuro. — Eu não posso, Xan. Não hoje.
O que tem hoje?
— Qual a nova pista? — Rebecca perguntou, sua expressão
implorando a Xander para não insistir mais. — O que sabemos?
Xander deu um pequeno aceno de cabeça e foi direto ao ponto.
— Um pessoa do nosso interesse é o pai de Grayson. Jamie e
Gray estão, imagino, fazendo contato. Até descobrirmos o que eles
descobriram, nossa única opção é seguir minha outra pista.
— Qual outra pista? — perguntei.
— A Casa Camden — Xander disse, decidido. — Cruzar seus
principais doadores com as vítimas da Ilha Hawthorne deu dois
resultados. A família de David Golding é apoiadora nível platina. O
tio de Colin Anders Wright doou uma única vez, mas uma quantia
muito generosa. Embora não tenha identificado nenhuma direção
direta do meu avô, tenho uma teoria.
— Toby foi um paciente lá — interrompi. — Nan me contou.
— Eu tenho quase certeza de que os três garotos passaram um
tempo na Casa Camden — Xander disse. — Acho que foi onde eles
se conheceram.
Pensei na cobertura do incêndio. A sugestão de que teria havido
uma festa intensa que saiu do controle. A forma como a tragédia
havia sido atribuída, repetidas vezes, a Kaylie Rooney, quando os
três exemplares jovens tinham saído da reabilitação direto para a
festa.
— Se os garotos se conheceram na Casa Camden — Rebecca
disse lentamente —, então…
— Exatamente! Então… o quê? — Xander alternava seu peso de
um pé para o outro.
— Isso nos diz algo sobre o estado mental deles naquele verão —
eu disse. — Antes do incêndio.
— Do incêndio — Rebecca repetiu — e das mortes deles. — Ela
fechou os olhos com força e, quando os abriu, sacudiu a cabeça e
começou a recuar. — Me desculpe, Xan. Eu quero jogar esse jogo.
Quero te ajudar. Quero poder fazer isso com você e vou, ok? Mas
não hoje.
CAPÍTULO 30

Eu levei mais tempo do que deveria para perceber que, quando


Rebecca disse no início da semana que o aniversário de Emily era
sexta — hoje —, ela não estava mentindo. Nem Thea, quando disse
que haveria um memorial.
O mesmo memorial ao qual Alisa planejava que eu fosse.
— Marquei uma sessão para você com Landon nessa tarde. Ela
tinha pouca disponibilidade, então talvez tenha que ser junto com
cabelo e maquiagem.
Coloquei o cinto de segurança e apertei os olhos para Alisa
enquanto Eli se acomodava no banco da frente.
— Você esqueceu de mencionar que o memorial de hoje era para
Emily Laughlin.
— Esqueci? — Alisa não soou nem um pouco culpada. — Country
Day vai construir uma nova capela em honra a ela.
Ouvi uma tosse do banco do motorista e percebi que não era
Oren quem estava dirigindo. O homem tinha cabelo mais claro e
mais comprido. Eu já estava quase acostumada a Eli me seguindo
na escola, mas aquela era a primeira vez desde a leitura do
testamento que Oren me perdia de vista em um deslocamento.
— Cadê o Oren? — perguntei.
— Ocupado com outra coisa — o motorista respondeu. — Houve
um incidente.
— Que tipo de incidente? — insisti.
Nenhuma resposta. Eu olhei para Alisa, mas ela deu de ombros e
redirecionou a conversa.
— Você não saberia por que Jameson e Grayson pegaram um de
seus jatinhos, saberia?
De volta à Casa Hawthorne, encontramos Oren esperando na porta,
junto do incidente com o qual ele estava lidando.
— Max?
Fiquei chocada ao vê-la. A gente não se encontrava
pessoalmente havia mais de um ano, mas lá estava Max, o cabelo
preto preso em dois coques bagunçados.
Ela sorriu para mim, então deu o olhar mais irritado do mundo
para Oren.
— Finalmente! Avery, você pode avisar ao Monsieur Guarda-
Costas aqui que eu não sou um risco de segurança?
Meu choque começou a passar.
— Max!
Eu dei um passo na direção dela e foi tudo de que Max precisava
para se atirar em mim. Ela me abraçou. Forte.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei.
Ela deu de ombros.
— Eu te disse que estava considerando uma viagem missionária.
Estou aqui para trazer o amor de Deus para esses pobres e
perdidos bilionários. É um trabalho difícil, mas alguém tem que fazê-
lo.
— Ela está brincando — eu disse a Oren. — Provavelmente.
Analisei Max mais de perto. Por mais feliz que estivesse em vê-la,
eu também sabia que seus pais não teriam aprovado a viagem. Ela
já estava na corda bamba com eles.
Foi então que percebi:
— Hoje é seu aniversário também.
— Também? — Por um segundo, vi uma emoção crua por trás
dos olhos de Max, mas ela ignorou. — Eu tenho dezoito anos. —
Max era legalmente uma adulta. Os pais a tinham expulsado ou ela
tinha ido embora sozinha? — Tem um quarto sobrando? — ela me
perguntou, cheia de coragem.
Eu apertei a mão dela.
— Devo ter uns quarenta.
Ela me deu o sorriso mais ousado e invencível que Maxine Liu
tinha.
— Então, o que uma garota precisa fazer por uma visita guiada
desse lugar?
Dez minutos depois, meu celular tocou. Eu olhei para a tela.
— Jameson — relatei.
Max me olhou.
— Não seja por isso. — Ela sorriu. — Finja que nem estou aqui.
Eu atendi a ligação.
— O que está acontecendo? Está tudo bem?
— Além do fato de que a mula do meu irmão se recusa a jogar
Bebida ou Desafio enquanto esperamos? — Jameson tinha um jeito
de fazer tudo parecer uma piada, de humor ácido ainda por cima. —
As coisas estão ótimas.
— Bebida ou Desafio? — perguntei. — Não… não responda. O
que exatamente vocês estão esperando?
Houve um momento de silêncio do outro lado da linha.
— Sheffield Grayson tem uma equipe de segurança que compete
com a nossa. Não tem como chegar perto do homem a menos que
ele queira.
Senti um aperto no peito.
— E ele não quer Grayson perto dele. — Pensar nisso doía. —
Ele está bem?
Jameson não respondeu a pergunta.
— Grayson tem cartões de visita… e, sim, eu ri da cara dele sem
parar por causa disso. Ele escreveu o contato do nosso hotel no
verso de um deles e deixou com o guarda na porta da propriedade
Grayson.
Quanto menos sério Jameson soava, mais eu sentia dor por ele.
— Então vocês estão esperando — concluí.
Houve um breve silêncio do outro lado da linha.
— Então estamos esperando.
Havia um peso no tom de Jameson. Ele ter me deixado ouvi-lo
era chocante.
— Não se preocupe, Herdeira — Jameson voltou para a
brincadeira. — Eu vou vencer a batalha do Bebida ou Desafio se
tivermos que esperar muito mais.
Quando encerrei a chamada, Max praticamente saltou em cima
de mim.
— O que ele disse?
***

— Então os garotos com quem você quer trecar pegaram um jatinho


seu emprestado para ir ao Arizona esperando que o pai misterioso
de um dos tais garotos saiba algo a respeito de um incêndio trágico
e fatal sei lá quantos anos atrás.
— É por aí — confirmei. — Só que eu não quero trecar com
ninguém.
— Só na cabeça e só com os olhos — Max disse, solene.
— Max! — repreendi e então virei o jogo. — Você quer me contar
o que está fazendo aqui? Nós duas sabemos que você não está
bem.
Max ergueu os olhos para o teto seis metros acima de nós.
— Talvez eu não esteja. Mas eu estou no meio de uma pista de
boliche que fica dentro da sua casa. Esse lugar é inacreditável!
Se ela queria distração, tinha vindo ao lugar certo.
— Agora, tem mais alguma coisa na Vida Doida da Avery
Bilionária que você deixou passar?
Eu sabia que era melhor não pressioná-la se ela não queria falar.
— Tem mais uma coisa — eu disse. — Lembra da Emily?
— Morreu e deixou destroços para trás? — Max disse
imediatamente. — O luto reverbera em todos os atores de sua
tragédia até hoje? Sim, me lembro da Emily.
— Hoje eu vou a um evento beneficente em nome dela.
CAPÍTULO 31

— Em que ponto estamos no desenvolvimento dos seus


argumentos e seu tema? — Landon me perguntou. Aparentemente,
ela não tinha problemas com me questionar enquanto meu rosto
estava sendo contornado e meu cabelo agressivamente penteado.
— Você tem um tema? — Max se meteu do meu lado. — É
derrote o patriarcado? Eu espero que seja derrote o patriarcado.
— Gostei — eu disse a Max. — Por que você não cria alguns
argumentos?
— Fique quieta. — Mãos firmes agarraram meu queixo.
Landon pigarreou.
— Eu não acho que isso seria prudente — ela me disse, olhando
delicadamente para Max.
— Destruir o patriarcado é sempre prudente — Max garantiu a
ela.
— Olhe para cima — o maquiador instruiu. — Vou começar seus
olhos.
Parecia muito mais macabro do que deveria soar. Fazendo
esforço para não piscar, rangi os dentes.
— Por que você não poupa tempo e esforço de todas nós e me
diz o que você quer que eu diga? — perguntei a Landon.
— Nós precisamos comunicar que você é alguém com quem as
pessoas se identificam, que está grata pela tremenda oportunidade
que recebeu e que tem boas relações com a família Hawthorne, e
também que é pouquíssimo provável que você cause caos a
indústrias de bilhões de dólares. — Ela deixou que um segundo se
passasse, então continuou. — Mas como você comunica essas
coisas é uma escolha sua. Se eu escrever o roteiro, vai soar como
um roteiro, então você precisa se esforçar, Avery. O que você pode
dizer sinceramente sobre toda essa experiência?
Eu pensei na Casa Hawthorne, nos meninos que moravam nela,
nos segredos embutidos nas próprias paredes.
— É incrível.
— Bom — Landon disse. — E?
Minha garganta apertou.
— Eu queria que minha mãe estivesse aqui.
Queria que ela pudesse me ver. Queria ter tido dinheiro, qualquer
dinheiro, quando ela ficou doente. Queria poder perguntar a ela
sobre Toby Hawthorne.
— Você está no caminho certo — Landon me disse. — Mesmo.
Mas, por enquanto, é melhor evitar mencionar sua mãe.
Se pudesse, eu a teria encarado, mas, em vez disso, meu queixo
estava puxado com força para trás e eu me encontrava encarando o
teto.
Por que ela não quer que eu fale da minha mãe?

***

Duas horas depois, eu estava enfiada em um vestido na altura do


joelho feito de seda lavanda, com um xale de renda preta
impossivelmente delicada. Em vez de sapatos de salto, eu estava
usando botas pretas de cano alto, de camurça e nem um pouco
confortáveis. Patricinha com algo a mais, meu visual.
Eu estava pensando em Landon — e na minha mãe.
— Pesquisei um pouco. — Max esperou que nós duas
estivéssemos sozinhas antes de compartilhar. — Parece que tem
um tabloide escrevendo histórias sobre sua mãe.
— E dizendo o quê? — perguntei.
Meu pulso acelerou. O vestido que me mandaram usar era justo o
suficiente para eu ter quase certeza de que dava para ver meu
coração batendo. A imprensa suspeita que ela tenha mentido a
respeito de quem é meu pai? Abafei o pensamento.
— O tabloide diz que sua mãe estava vivendo com um nome
falso. — Max me estendeu o celular dela. — Até agora ninguém
mais foi atrás da história, então provavelmente é só um monte de
lerda, mas…
— Mas Landon não quer que eu fale da minha mãe — completei.
Eu fechei meus olhos maquiados, só por um segundo. — Ela não
tinha família — eu disse a Max quando os abri. — Éramos só nós
duas.
Pensei em todos os palpites ridículos que tinha dado no jogo do
Eu Tenho Um Segredo. Eu já me enfiara no buraco da agente-
secreta-vivendo-com-uma-identidade-falsa mais de uma vez.
— Talvez faça sentido — Max disse. — Toby também não estava
vivendo com um nome falso?
Aquilo trouxe todo um mar de questões que eu vinha evitando.
Como, exatamente, minha mãe tinha acabado envolvida com o filho
de Tobias Hawthorne? Ela sabia quem ele realmente era?
Uma batida dura na porta invadiu meus pensamentos.
— Está pronta? — Alisa chamou.
— Você tem certeza de que não podemos pular isso? — devolvi.
— Você tem cinco minutos.
Eu me voltei para Max.
— Nós vestimos o mesmo tamanho — observei.
— E isso é interessante por quê? — Max perguntou, seus olhos
castanhos dançando.
Eu a levei para o meu armário e, quando abri as portas, ela
literalmente ficou sem ar com o que viu.
— Se vista, aniversariante. De jeito nenhum eu vou nesse troço
sozinha.
CAPÍTULO 32

O maior espaço interno na Heights Country Day se chamava Sala


Comum. Era parte sala de estar, parte ponto de encontro e, naquela
noite, tinha sido transformada. Cortinas douradas cercavam a sala.
A mobília tinha sido substituída por dezenas de mesas redondas
cobertas com toalhas de seda de um roxo profundo. A cor preferida
de Emily. Próximo à frente da sala, dois quadros enormes tinham
sido expostos em cavaletes dourados. Um era uma planta baixa da
nova capela. O outro era uma foto de Emily Laughlin. Eu tentei não
encará-la — e não consegui.
O cabelo de Emily era loiro acobreado, com ondas naturais que a
faziam parecer um pouco imprevisível. A pele dela era
insuportavelmente lisa, e seus olhos pareciam saber de tudo. Ela
não era tão linda quanto Rebecca, mas tinha algo no sorriso…
Não consegui deixar de pensar que talvez fosse bom que
Jameson e Grayson não estivessem ali. Eles tinham sido
apaixonados por ela, os dois. Talvez ainda sejam.
Ao meu lado, Xander bateu o ombro no meu. Alisa tinha lhe dado
ordens rígidas para ficar perto de mim, assim como ela
relutantemente havia designado Nash como acompanhante de Libby
para aquela noite. Parte do controle de danos que deveríamos fazer
era comunicar que eu tinha boas relações com a família Hawthorne
— o que era mais difícil na prática, já que Xander e Nash não eram
os únicos Hawthorne ali.
Do outro lado da sala, notei Zara e Constantine socializando.
— Nós precisamos circular — Alisa murmurou diretamente na
minha nuca.
Ela começou a conduzir Xander e eu na direção do quarteto de
cordas, e foi naquele exato momento que vi Skye Hawthorne. Ela
estava rindo com extravagância, cercada por admiradores — alguns
homens, algumas mulheres.
— O casal da esquerda é Christine Terry e o marido, Michael —
Alisa sussurrou. — Dinheiro de petróleo, terceira geração. Não é
gente que você quer como inimigos.
Traduzi isso como: gente que nós não queremos rindo com Skye.
— Eu vou te apresentar — Alisa me disse.
— Me ajude — pedi a Max sem fazer som.
— Eu ajudaria — ela sussurrou —, mas um garçom acabou de
passar e ele tinha camarão!
Dez segundos depois, eu estava apertando a mão de Christine
Terry.
— Skye estava nos contando que você não é muito fã de futebol
americano — o marido dela declarou, jovial e alto. — Alguma
chance de você decidir abrir mão dos Lone Stars?
— Você precisa desculpar meu marido — Christine me disse. —
Eu sempre digo a ele que há hora e lugar certos para negócios.
— E hora e lugar certos para futebol! — Michael trovejou.
— Avery não está pensando em abrir mão de nenhum bem no
momento — Alisa disse, calmamente. — Eu não sei o que poderia
ter dado essa ideia a alguém.
Por alguém ela queria dizer Skye, mas a mãe assassina dos
meninos era uma Hawthorne até os ossos, e não se abalou.
— A querida Avery é libriana — Skye miou. — Ambivalente, gosta
de agradar e é intelectual. Todos nós podemos ler nas entrelinhas.
— Ela fez uma pausa e então estendeu a mão para a direita. — Não
é mesmo, Richard?
A entrada dele não teria sido melhor se ela tivesse planejado.
Richard — que não era de forma alguma o nome de verdade de
Ricky — passou um braço pela cintura de Skye. Ela tinha vestido o
inútil em um terno caro, feito sob medida. Olhando para ele, tentei
me lembrar de que ele não era nada para mim.
Mas, quando ele sorriu, eu me senti com sete anos de idade e uns
dez centímetros de altura.
Agarrei Xander com mais força, mas ele se afastou subitamente
de mim. A uns dez metros de distância, vi os Laughlin. O sr. e a sra.
Laughlin pareciam claramente desconfortáveis em roupa de gala.
Rebecca estava ao lado deles e ao lado dela estava uma mulher de
uns quarenta ou cinquenta anos que parecia assustadoramente com
como Emily seria se tivesse ficado mais velha.
Eu vi a mulher — que eu só podia presumir ser a mãe das
meninas — virar uma taça cheia de vinho de um só gole. O olhar de
Rebecca encontrou o de Xander e um segundo depois ele tinha
sumido, me deixando com as graças da sua mãe.
— Eu já apresentei vocês ao pai de Avery? — Skye perguntou ao
grupo, seu olhar pousando em Christine Terry. — Eu sei por uma
boa fonte que ele vai pedir a guarda da nossa pequena herdeira
logo mais.

Quarenta minutos mais tarde, quando vi Ricky indo na direção do


bar, encarreguei Max de distrair Alisa para que eu pudesse
encurralá-lo sozinho.
— Por que a cara feia, Grilinho?
Ricky Grambs sorriu quando me aproximei dele. Ele era o tipo de
bêbado que tinha elogios efusivos para todo mundo. Eu devia ter
esperado o ataque de charme. O fato de que ele tinha me chamado
por um apelido não devia ter importado.
— Não me chame de Grilinho, meu nome é Avery.
— Deveria ter sido Natasha — ele declarou grandiosamente. —
Você sabia disso?
Minha garganta apertou. Ele era um inútil. Sempre tinha sido um
inútil. Baseado no que eu havia descoberto, provavelmente nem era
meu pai. Então por que falar com ele doía?
— Sua mãe tinha escolhido um nome do meio, então eu ia
escolher o primeiro. Sempre gostei do som de Natasha. — O
bartender se aproximou e Ricky Grambs não hesitou. — Mais uma
para mim — ele disse, e então deu uma piscadela. — E uma para
minha filha.
— Eu sou menor de idade — disparei, com frieza.
Os olhos dele brilharam.
— Você tem minha permissão, Grilinho.
Algo dentro de mim se partiu.
— Você pode enfiar sua permissão no…
— Sorria — ele murmurou, se inclinando na minha direção. —
Para a imprensa.
Eu olhei para trás e vi um fotógrafo. Alisa tinha me arrastado para
aquela festa para contar uma história, não fazer um escândalo.
— Você realmente devia sorrir mais, é uma menina tão bonita.
— Eu não sou tão bonita — eu disse baixo. — E você não é meu
pai.
Ricky Grambs aceitou uma garrafa de cerveja do barman. Ele a
levou aos lábios, mas eu vi seu charme à prova de balas balançar.
Será que ele sabe que não sou filha dele? É por isso que ele
nunca se importou? Por isso que eu nunca importei?
Ricky se recuperou.
— Eu posso não ter sido tão presente quanto nós dois queríamos,
Joaninha, mas nunca estive a mais do que um telefonema de
distância, e agora estou aqui para acertar as coisas.
— Você está aqui pelo dinheiro. — Precisei de toda força que
tinha para não gritar. Em vez disso, baixei tanto minha voz que ele
precisou se inclinar para ouvir. — Você não vai levar um centavo.
Meus advogados vão te enterrar. Você se recusou a aceitar a
guarda quando a mamãe morreu. Você acha que um juiz não vai
estranhar seu súbito interesse agora?
Ele espichou o queixo para a frente.
— Você não ficou sozinha depois da sua mãe. Minha Libby cuidou
bem de você.
Ele claramente esperava crédito por aquilo, apesar de também
nunca ter feito nada por Libby.
— Você nunca nem assinou minha certidão de nascimento —
sibilei.
Eu tinha certa esperança de que ele negasse. Em vez disso, ele
virou o resto da cerveja e deixou a garrafa vazia no bar. Eu o
encarei por um segundo ou dois, então peguei a garrafa, me virei e
andei na direção de Alisa, que ainda estava tentando fugir de Max.
Dei a garrafa à minha advogada.
— Eu quero um teste de DNA — sussurrei.
Alisa me encarou por um segundo, então controlou o rosto em
uma expressão perfeitamente agradável.
— E eu quero que você encontre meia dúzia de itens para dar
lances no leilão silencioso.
Aceitei os termos do acordo.
— Feito.
CAPÍTULO 33

Eu não fazia ideia de como um leilão silencioso funcionava, mas


Max, bêbada de camarão e de sua vitória distraindo Alisa,
rapidamente me atualizou sobre o que ela tinha conseguido pescar.
— Tem uma folha embaixo de cada item. Quem for dar um lance
anota o nome e o valor. Se você quiser cobrir o lance de alguém,
escreve seu nome embaixo do da pessoa.
Max andou até o que parecia ser um ursinho de pelúcia e
aumentou o lance em duzentos e cinquenta dólares.
— Você acabou de dar oitocentos dólares em um ursinho? —
perguntei, chocada.
— Um ursinho de pelúcia de pele de vison — Max me disse. — A
Brincos de Pérolas ali está acompanhando de perto esse leilão. —
Minha melhor amiga apontou com a cabeça para uma senhora que
parecia ter seus setenta anos. — Ela quer esse urso e não liga se
for preciso quebrar o pescoço de algum filho da pata para conseguir.
Realmente, alguns minutos depois a mulher passou pelo ursinho
e anotou outro lance.
— Eu sou uma filantropa — Max declarou. — Até agora já custei
dez mil dólares às pessoas dessa sala!
Considerando todos os fatores, realmente devia ser ela a
herdeira. Sacudindo a cabeça, circulei pela sala procurando itens
disponíveis. Arte. Joias. Uma vaga de estacionamento exclusiva.
Quanto mais eu andava, mais caros ficavam os itens. Bolsas de
marca. Uma escultura Tiffany. Um jantar para dez pessoas com um
cozinheiro gourmet particular. Uma festa para cinquenta pessoas em
um iate.
— Os itens realmente grandes vão para o leilão ao vivo — Max
me disse. — Pelo que entendi, você doou a maioria deles.
Aquilo era irreal. Minha vida nunca ia deixar de ser irreal.
— Pessoalmente — Max disse, adotando um sotaque esnobe —,
acho que você deveria dar um lance nos ingressos para o Masters
em Augusta. Com acomodação.
Eu a olhei bem nos olhos.
— Eu não faço ideia do que isso significa.
Ela sorriu.
— Nem eu!
Alisa tinha me mandado dar lances, então circulei a sala de novo.
Havia uma cesta de maquiagem cara. Garrafas de vinho e uísque
com lances que quase fizeram meus olhos saltarem do rosto.
Ingressos para bastidores de shows. Pérolas antigas.
Nada daquilo era minha cara.
Eventualmente, vi um relógio antigo. A descrição dizia que tinha
sido entalhado por um técnico de futebol aposentado da Country
Day. Era simples, mas perfeito. Do outro lado da sala, Alisa me fez
um aceno, confirmando. Eu engoli em seco e aumentei o lance atual
pelo que a página me disse ser o mínimo.
Eu me sentia enjoada.
— É por uma boa causa — Max me garantiu. — Mais ou menos.
A escola não precisava de uma nova capela mais do que eu
precisava de uma escultura de bronze de um caubói montado em
um touro selvagem saltando, mas eu dei um lance naquele também.
Dei um lance em uma aula com um confeiteiro local por Libby e
dobrei o lance do ursinho de vison por Max. E então eu vi a foto.
Eu sabia, antes mesmo de baixar os olhos, que era de Grayson.
— Ele tem um ótimo olho.
Eu me virei e vi Zara ao meu lado.
— Você vai dar um lance? — perguntei.
Zara Hawthorne-Calligaris arqueou uma sobrancelha para mim.
Então, sem dizer uma palavra, ela aumentou o lance que eu havia
dado no relógio antigo.
— Bem, costa — Max sussurrou ao meu lado. — Eu tenho
certeza de que ela acabou de te desafiar para um duelo de gente
rica.
— Calma lá, campeã — Xander apareceu ao meu lado.
— Onde você estava? — perguntei, irritada.
— Ajudando Rebecca com a mãe dela. — A voz de Xander
estava estranhamente baixa. — Ela não se dá bem com vinho.
Não tive a oportunidade de aprofundar mais aquela afirmação
antes que Alisa viesse nos levar até a nossa mesa.
— Jantar à la carte — ela me disse. — Seguido do leilão ao vivo.
Consegui me sentar, comer minha salada com o garfo certo e não
derrubar nada na toalha de seda. Então as coisas pioraram um
pouco. Um estrondo alto quebrou o murmúrio de conversas
educadas. Todo mundo na sala se virou e viu Rebecca, linda e
pálida, tentando ajudar a mãe a se levantar. Os cavaletes com a foto
de Emily e a planta haviam sido derrubados. A mãe de Rebecca
soltou o braço da mão da filha e tropeçou de novo.
De repente, Thea estava lá, ajoelhada entre Rebecca e a mãe.
Thea disse algo para a mulher atormentada e mesmo do outro lado
da sala pude ver a expressão no rosto de Rebecca, como se ela
tivesse acabado de se lembrar de mil coisas que vinha tentando
desesperadamente esquecer.
Como se aquele momento e a forma com que Thea pegou sua
mão pudesse destruí-la da melhor e da pior maneira possível.
Um momento depois, Libby estava lá, tentando ajudar a mãe de
Rebecca a se levantar, e a mulher, sofrendo, explodiu.
— Você.
Ela apontou um dedo para Libby. Minha irmã estava usando um
vestido preto social. Seu cabelo azul estava alisado e sedoso. Em
vez de um colar, ela usava uma fita preta amarrada no pescoço. Ela
estava o mais discreta que Libby poderia estar, mas a mãe de
Rebecca a olhava como se ela fosse monstruosa.
— Eu te vi com ele. Aquele menino Hawthorne.
Ela conseguiu se levantar.
— Nunca confie em um Hawthorne — ela disse com a voz
arrastada. — Eles levam tudo embora.
— Mãe — sussurrou Rebecca, ecoando na sala.
A mãe dela se dissolveu em soluços. Libby percebeu quantas
pessoas a estavam encarando e fugiu. Eu corri atrás dela e ignorei
Alisa quando ela tentou me chamar de volta. Quando passei por
Rebecca, Thea e a mãe de Rebecca, ouvi a mulher bêbada
choramingar as mesmas palavras, de novo e de novo:
— Por que todos os meus bebês morrem?
CAPÍTULO 34

Alcancei Libby lá fora e vi que Nash tinha chegado antes.


— Ei, querida — ele murmurou. — Volte para dentro. Você não
fez nada de errado.
Libby ergueu a cabeça e olhou para mim por cima do ombro dele.
— Desculpe, Ave. Quando eu a vi cair, entrei em piloto
automático. — Antes das nossas vidas virarem de ponta-cabeça,
Libby era assistente de enfermagem em um lar de idosos. Ela sorriu.
— Foi exatamente o que Alisa queria dizer quando ela me mandou
não fazer escândalo hoje.
— O que foi que ela te disse? — Nash perguntou, a voz baixa e
perigosa.
Libby deu de ombros.
— Você não tinha como saber que a mãe de Rebecca ia explodir
assim — eu disse a Libby e então lancei um olhar para Nash, que
deu um suspiro.
— Ela é filha dos Laughlin. Cresceu na propriedade. Foi antes de
mim, ela é uns quinze anos mais velha que Skye. Do que eu peguei,
o relacionamento entre o sr. e a sra. L e a filha sempre foi um pouco
tenso. Depois que eles perderam Emily… — Nash sacudiu a
cabeça. — Ela culpou minha família.
Jameson e Grayson tinham estado lá na noite que Emily morreu.
— Ela disse que todos os seus bebês morriam — murmurei.
Com atraso, processei o fato de que ela estava olhando na cara
de Rebecca, sua filha viva, quando disse aquilo.
— Abortos espontâneos — Nash disse, baixo. — Ela e o marido
eram mais velhos quando começaram a tentar ter filhos. A sra.
Laughlin mencionou uma vez que eles perderam vários bebês antes
de Emily nascer.
Se eu pensasse em qualquer uma daquelas coisas por mais
tempo, ia começar a ter ainda mais pena de Rebecca Laughlin.
— Você está bem? — perguntei para Libby.
Ela fez que sim e olhou para Nash.
— Você pode nos dar um minuto?
Com uma última olhada na minha irmã, Nash saiu e Libby se
voltou para mim.
— Avery, o que você disse para o papai mais cedo?
Eu não ia ter aquela conversa com ela.
— Nada.
— Eu entendo — Libby me disse. — Você odeia ele e você tem
todo o direito. E, sim, a coisa com Skye é meio estranha, mas…
— Estranha — repeti. — Libby, ela tentou me matar!
Levei três segundos inteiros para notar o que eu havia feito.
Libby me encarou.
— Como assim? Quando?
Libby sabia que Skye havia se mudado, mas não sabia por quê,
pensei.
— Você contou para a polícia? — ela exigiu.
— É complicado — disse, tentando desviar do assunto.
Eu estava tentando pensar em como explicar a promessa que
tinha feito a Grayson, mas Libby não me deu mais do que um
segundo.
— E eu não sou — ela disse baixo, seu queixo projetado para a
frente.
De início não entendi o que ela estava dizendo.
— Como assim?
— Eu não sou complicada — Libby esclareceu. — É isso que
você acha. É o que você sempre achou. Eu sou otimista demais,
confio demais nos outros. Nunca fiz faculdade. Não penso do
mesmo jeito que você. Dou chances demais às pessoas. Sou
ingênua…
— Pra que tudo isso? — perguntei.
Uma mecha de cabelo azul caiu no rosto de Libby quando ela
baixou o olhar.
— Esquece — ela disse. — Eu assinei os papéis da
emancipação. Logo mais, você oficialmente não vai ter que me
ouvir. Nem ao papai. Nem a ninguém. — A voz dela falhou. — É
isso que você quer, certo?
Eu não tinha pedido para ser emancipada. Foi tudo ideia de Alisa,
mas eu reconhecia que era provavelmente a coisa certa a fazer.
— Lib, não é assim.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, meu celular
tocou.
Era Jameson.
Eu ergui o olhar da tela de volta para Libby.
— Eu preciso atender — eu disse a ela. — Mas…
Libby só sacudiu a cabeça.
— Faça o que tem que fazer, Ave… E vou tentar não fazer mais
escândalo.
CAPÍTULO 35

— Alô?
Por um momento houve silêncio no telefone.
— Avery?
Reconheci aquela voz baixa e profunda em um segundo. Não é
Jameson.
— Grayson? — Ele nunca tinha me ligado antes. — Aconteceu
alguma coisa? Você está…
— Jameson me desafiou a ligar.
Nada, literalmente nada naquela frase fazia sentido.
— Jameson o quê?
— Jameson quando, Jameson onde, Jameson quem? — Era
Jameson ao fundo, sua voz assumindo um tom musical, sua
entonação quase filosófica.
— Eu estou no viva-voz? — perguntei. — E Jameson está
bêbado?
— Ele não deveria estar — Grayson disse, parecendo realmente
perturbado. — Ele nunca recusa desafios.
Grayson não estava arrastando as palavras. Sua fala não estava
lenta. Sua voz me cobriu, me cercou, mas subitamente me ocorreu
que Grayson talvez estivesse bêbado.
— Deixa eu adivinhar — eu disse. — Vocês estão jogando Bebida
ou Desafio.
— Você é muito boa em adivinhar as coisas — Grayson, bêbado,
me disse. — Você acha que o velho sabia de você? — O tom dele
era apressado, quase confessional. — Você acha que ele sabia que
você era… você?
Ouvi um baque ao fundo. Houve uma longa pausa e então um
deles — eu apostava em Jameson — começou a gargalhar.
— Precisamos ir — Grayson disse com muita dignidade, mas,
quando foi desligar o telefone, deve ter apertado o botão errado,
porque eu ainda conseguia ouvi-los.
— Acho que nós dois concordamos — Jameson disse — que é
hora de Bebida ou Desafio dar lugar a Bebida ou Verdade.
Uma pessoa melhor provavelmente teria desligado naquele
momento, mas eu aumentei o volume do meu celular ao máximo.
— O que você disse para Avery — ouvi Jameson perguntar — na
noite em que resolvemos o quebra-cabeça do velho?
Grayson não tinha dito nada para mim naquela noite. Mas no dia
seguinte, depois de mandar Skye embora, ele tivera muito a dizer.
Eu sempre vou te proteger. Mas isso… nós… não pode acontecer,
Avery.
— Porque, logo depois disso — Jameson continuou —, ela foi
comigo para os túneis.
Grayson começou a dizer alguma coisa que eu não consegui
ouvir, mas então ele parou.
— A porta — Grayson disse, claro como o dia.
Ele parecia atordoado.
Alguém está batendo à porta, percebi. Ouvi alguns sons
abafados. E então escutei o pai de Grayson.
De início, não consegui distinguir totalmente as palavras sendo
trocadas, mas em algum ponto a conversa se aproximou do celular,
ou o celular foi para mais perto da conversa, porque de repente eu
podia ouvir cada palavra.
— Você obviamente não está surpreso em me ver.
Era Grayson. Ela tinha ficado sóbrio bem rápido.
— Eu construí três empresas diferentes do zero. Você não
conquista o que eu conquistei sem ficar de olho em incidentes em
potencial. Riscos em potencial. Francamente, meu jovem, eu
esperava que Skye tivesse te contado a meu respeito anos atrás.
Um nó no meu estômago se apertou. Pobre Grayson. Seu pai o
via como um risco.
— Você era casado quando eu fui concebido. — O tom de
Grayson era neutro, quase perigoso. — Ainda é. Você tem filhos. Eu
não posso imaginar que você esteja feliz com minha interrupção da
sua vida, então vamos ser breve, não é melhor?
— Por que você não vai direto ao ponto e me diz por que vocês
realmente estão aqui? — Era uma exigência. Uma ordem. — Você
recentemente foi cortado da fortuna da família. Em termos
financeiros, você pode ter descoberto que tem certas…
necessidades.
— Você acha que estamos aqui por dinheiro? — Era Jameson.
— Eu aprendi que a explicação mais simples é com frequência a
certa. Se você está aqui para ser pago…
— Não estou.
Todo meu corpo ficou tenso. Eu conseguia imaginar Grayson,
cada músculo de seu corpo rígido, mas a expressão fria e
controlada. Suborno. Ameaça. Propina. Grayson tinha sido criado
para ser formidável. Havia um motivo para ele já ter mencionado a
esposa do homem.
— Por motivos que não compartilharei com você — eu o ouvi
dizer —, estou investigando o que aconteceu vinte anos atrás na
Ilha Hawthorne.
A pausa que respondeu às palavras me disse que Sheffield
Grayson não estava esperando aquilo.
— Ah, é?
— Minhas fontes me levam a crer que a cobertura que a imprensa
fez da tragédia é, vamos dizer… incompleta.
— Que fontes?
Eu quase conseguia ouvir o sorriso de Grayson.
— Vou fazer um acordo com você. Você me conta o que as
notícias deixaram de fora e eu te conto o que minhas fontes
disseram sobre Colin.
Ao ouvir o nome do sobrinho, a voz de Sheffield Grayson ficou
baixa demais para que eu escutasse. O que quer que ele tenha dito,
Grayson reagiu na defensiva.
— Meu avô era o homem mais honrado que conheço.
— Diga isso para Kaylie Rooney — a voz de Sheffield ficou
audível novamente, retumbante. — Quem você acha que deu essa
história de bandeja para a imprensa? Quem você acha que
esmagou qualquer coisa vagamente prejudicial à família dele?
A resposta de Grayson ficou abafada. Ele havia virado de costas?
— Toby Hawthorne era um moleque mimado. — Era Sheffield de
novo. — Não tinha respeito pela lei, por seus próprios limites, por
ninguém além de si mesmo.
— E Colin não era assim? — Jameson estava cutucando o
homem. Funcionou.
— Colin estava passando por um período difícil, mas teria saído
dessa. Eu o teria arrastado para fora dessa. Ele tinha a vida inteira
pela frente.
De novo, a resposta saiu abafada:
— Aquela menina Rooney nunca deveria ter estado lá! —
Sheffield explodiu. — Ela era uma criminosa. Os pais dela?
Criminosos. Primos, avós, tias e tios? Criminosos.
— Mas o incêndio não foi culpa dela. — A voz de Grayson estava
mais alta, mais clara. — Você deu a entender isso.
— Você sabe quanto eu paguei a detetives particulares para
conseguir respostas reais? — Sheffield estourou. — Provavelmente
só uma fração do que o seu avô pagou à polícia para enterrar o
relatório. O incêndio na Ilha Hawthorne não foi um acidente. Foi
criminoso, e a pessoa que comprou o combustível foi seu tio Toby.
CAPÍTULO 36

Quando a linha ficou em silêncio, chamei o nome de Grayson,


então o de Jameson. De novo. E de novo. Ninguém me ouviu. Eu
desliguei e liguei de volta, mas ninguém atendeu.
Não importou quantas vezes eu ligasse, ninguém atendia.
Eu estava preocupada — com Grayson, com a raiva quase
descontrolada que ouvi na voz do pai dele. Por baixo daquela
preocupação, minhas entranhas estavam se revirando por outro
motivo. O que você fez, Harry?
Se o fato de que Toby Hawthorne sobreviveu ao incêndio fosse de
conhecimento público, o pai dele teria conseguido abafar o
escândalo? A polícia teria sido comprada tão facilmente —
aceitando que eles tinham sido comprados — se não fosse uma
tragédia sem sobreviventes?
Se ele começou o incêndio… Eu não consegui ir muito além
disso, então pensei em Tobias Hawthorne. Por que o bilionário tinha
deserdado toda a família depois do incêndio na Ilha Hawthorne? Por
que usar seu testamento para apontar o que tinha acontecido lá,
quando ele aparentemente pagou um bom dinheiro para encobrir?
— Avery. — Os saltos de Alisa batiam na calçada com um rápido
clic, clic, clic enquanto ela se aproximava. — Você precisa voltar. O
leilão ao vivo vai começar.

Eu sobrevivi ao resto da noite. Como Max havia prometido, a


maioria dos itens no leilão ao vivo tinha sido doada por… mim. Uma
semana em uma casa de quatro quartos em Ábaco, nas Bahamas.
Duas semanas em Santorini, Grécia, avião particular incluído. Um
castelo na Escócia para ser usado como local de casamento.
— Quantas casas de férias você tem? — Max me perguntou no
caminho para casa.
Sacudi a cabeça.
— Não sei.
— Você poderia olhar o fichário que eu te dei — Alisa sugeriu do
banco da frente.
Eu mal a escutei, mas naquela noite, depois de mais seis ligações
inúteis e horas revirando a conversa com o pai de Grayson na
minha cabeça, saí da cama e andei até a escrivaninha. O fichário
em questão estava bem ali. Alisa tinha me dado semanas antes,
como introdução à minha herança.
Eu folheei até me ver encarando uma villa na Toscana. Um chalé
em Bora Bora. Um castelo de verdade nas Highlands escocesas.
Era surreal. Páginas e mais páginas. Eu devorei as fotos. Patagônia.
Santorini. Kauai. Malta. Seychelles. Um apartamento em Londres.
Apartamentos em Tóquio, Toronto e Nova York. Costa Rica. San
Miguel de Allende…
Eu me sentia tendo uma experiência extracorpórea, como se
fosse impossível sentir o que eu estava sentindo e ainda continuar
de carne e osso. Minha mãe e eu havíamos sonhado em viajar. No
fundo do meu armário gigante estava uma mala surrada que eu
trouxera de casa, com uma pilha de cartões-postais em branco.
Minha mãe e eu tínhamos imaginado viajar àqueles lugares. Eu
queria ver o mundo.
E o mais perto que eu tinha chegado eram cartões-postais.
Uma bola de emoção subiu pela minha garganta. Virei mais uma
página e parei de respirar. A cabana na fotografia parecia ter sido
construída na lateral de uma montanha. O teto nevado era triangular
e dezenas de luzes iluminavam a pedra marrom como lanternas.
Que lindo.
Mas não foi isso que tirou o ar dos meus pulmões. Cada músculo
do meu peito apertou quando levei os dedos até o texto no topo da
página, onde estavam descritos os detalhes da casa. Ficava nas
Montanhas Rochosas, podia-se chegar e sair de esqui, oito quartos
— e a casa tinha um nome.
Verdadeiro Norte.
CAPÍTULO 37

— Para minha filha Skye Hawthorne, eu deixo minha bússola, para


que ela sempre encontre o verdadeiro norte — recitei na manhã
seguinte, andando de um lado para o outro em frente a Max,
incapaz de me conter. — A parte da bússola e do verdadeiro norte
estava nos dois testamentos de Tobias Hawthorne — continuei. — O
mais velho foi escrito vinte anos atrás. As pistas naquele testamento
não podiam ter sido pensadas para os netos Hawthorne, não
originalmente. — Se havia uma conexão entre aquela parte do
testamento e a casa que eu tinha herdado no Colorado, a
mensagem era explicitamente para Skye. — Esse jogo era para as
filhas de Tobias Hawthorne.
— Filhas, plural? — Max perguntou.
— O velho deixou um item para Zara também. — Minha mente, a
mil, tentou relembrar as palavras exatas. — Para minha filha Zara,
eu deixo minha aliança de casamento, para que ela ame tão
completa e consistentemente quanto eu amei a mãe dela.
E se também fosse uma pista?
— Uma das peças do quebra-cabeça está em Verdadeiro Norte —
eu disse. — E se há mais uma, deve ter a ver com aquela aliança.
— Então — Max disse animada —, primeiro vamos ao Colorado e
depois roubamos um anel.
Era tentador. Eu queria ver a Verdadeiro Norte. Queria ir para lá.
Queria experimentar pelo menos uma fração do que aquele fichário
me dizia que meu novo mundo poderia oferecer.
— Eu não posso — disse, frustrada. — Não posso ir para lugar
nenhum. Eu preciso ficar aqui por um ano para herdar.
— Você pode ir para a escola — Max apontou. — Então
obviamente você não precisa ficar trancada na Casa Hawthorne
vinte e quatro horas por dia. — Ela sorriu. — Avery, minha amiga
bilionária, quanto tempo você acha que levaríamos para voar de
jatinho até o Colorado?

Eu liguei para Alisa e ela chegou em menos de uma hora.


— Quando o testamento diz que eu preciso morar na Casa
Hawthorne por um ano, o que isso significa, exatamente? O que
constitui morar na Casa Hawthorne?
— Por que a pergunta? — Alisa repetiu, piscando.
— Max e eu estávamos olhando o fichário que você me deu.
Todas aquelas casas de férias.
— De jeito nenhum — Oren falou da porta. — É arriscado demais.
— Eu concordo — Alisa disse com firmeza. — Mas como eu
tenho a obrigação profissional de responder a sua pergunta: o
apêndice do testamento deixa explícito que você não pode passar
mais de três noites por mês fora da Casa Hawthorne.
— Então nós poderíamos ir ao Colorado. — Max estava feliz da
vida.
— De jeito nenhum — Oren disse a ela.
— Dado o que está em jogo aqui, eu concordo. — Alisa fez a
Cara de Alisa mais Cara de Alisa de todos os tempos. — E se
alguma circunstância te impedisse de voltar a tempo?
— Eu tenho aula na segunda — argumentei. — Hoje é sábado.
Eu só ficaria fora por uma noite. Isso nos dá bastante margem.
— E se houver uma tempestade? — Alisa contra-argumentou. —
E se você se machucar? Uma coisa dá errado e você perde tudo.
— E você também.
Eu me virei para a porta e vi uma desconhecida parada ali.
Uma mulher de cabelo castanho, calças cáqui e uma blusa branca
simples. Depois de um tempo, reconheci o rosto dela.
— Libby?
Minha irmã tinha pintado o cabelo de um castanho médio discreto.
Eu não a via com cabelo de uma cor humana normal desde…
nunca.
— Isso é uma trança embutida? — perguntei, horrorizada. — O
que aconteceu?
Libby revirou os olhos.
— Você faz parecer que eu fui sequestrada e tive meu cabelo
trançado a força.
— Você foi? — perguntei, só meio brincando.
Libby virou-se novamente para Alisa.
— Você estava dizendo a minha irmã que não pode permitir que
ela faça alguma coisa?
— Ir ao Colorado — Max explicou. — Avery tem uma casa lá, mas
os guardiões dela aqui acham que viajar é muito arriscado.
— Não é decisão deles, é? — Libby baixou os olhos para o chão,
mas sua voz era firme. — Até que Avery seja emancipada, eu sou a
guardiã legal dela.
— E eu controlo seus bens — Alisa respondeu. — O que inclui os
aviões.
Olhei de esguelha para Max.
— Acho que poderíamos comprar uma passagem.
— Não — Alisa e Oren responderam ao mesmo tempo.
— Já pararam para pensar que Avery precisa de uma folga? —
Libby ergueu o queixo. — De… — a voz dela falhou. — Tudo isso?
Senti uma pontada de culpa, porque eu não estava
sobrecarregada por tudo isso. Eu estava bem. Mas Libby não está.
Dava para ouvir no tom dela. Quando eu herdara, ela tinha perdido
tudo. Seu emprego. Seus amigos. Sua liberdade de sair sem um
guarda-costas.
— Libby…
Ela não me deixou falar mais do que o nome dela.
— Você estava certa sobre Ricky, Ave. — Ela sacudiu a cabeça.
— E Skye. Você estava certa e eu fui burra demais para ver.
— Você não é burra — eu disse, firme.
Libby puxou a ponta da trança.
— Skye Hawthorne me perguntou quem eu achava que um juiz
acharia mais respeitável: o novo e melhorado Ricky ou eu.
Era por isso que ela tinha pintado o cabelo. Era por isso que ela
estava vestida assim.
— Você não precisava ter feito isso — falei. — Você não…
— Precisava, sim — Libby me cortou com suavidade. — Você é
minha irmã. Cuidar de você é meu trabalho. — Libby se voltou para
Alisa com os olhos em chamas. — E se minha irmã precisa de uma
folga, você e seu escritório de um bilhão de dólares podem muito
bem dar um jeito de arranjar uma folga para ela.
Capìtulo 38

Oren e Alisa concordaram com um fim de semana em Verdadeiro


Norte. Ir naquela manhã de sábado, voltar no domingo à noite —
uma noite fora. Oren levaria uma equipe de seis homens. Alisa iria
junto para tirar algumas “fotos espontâneas” que Landon poderia
passar para a imprensa. Nosso itinerário me dava pouco menos de
trinta e seis horas para descobrir o que Tobias Hawthorne havia
deixado para a filha em Verdadeiro Norte — sem que Alisa notasse
o que eu estava procurando.
A caminho do aeroporto, mandei uma mensagem para Jameson.
Outra. Eu disse a mim mesma que não precisava me preocupar com
ele e Grayson. Que eles provavelmente estavam bêbados, de
ressaca ou seguindo uma nova pista sem mim. Eu disse a eles
aonde estava indo — e o porquê.
Alguns minutos depois, recebi uma resposta. Não de Jameson —
de Xander. Te encontro no avião.
— Certo — murmurei. — Ele definitivamente tem algum tipo de
vigilância no celular de Jameson.
Max arqueou uma sobrancelha para mim.
— Ou no seu.

— Eu juro solenemente que não estou vigiando ninguém que não


compartilhe pelo menos 25% de DNA comigo. — No mundo de
Xander, isso servia como um cumprimento. — E em outras ótimas
notícias, Rebecca e Thea vão se juntar a nós nesse adorável
passeio ao Colorado.
Max me deu um olhar de esguelha.
— Estamos felizes que “Rebecca” e “Thea” estão vindo?
Ela pontuou os nomes fazendo aspas com os dedos, como se
suspeitasse que eram nomes falsos, embora eu definitivamente as
tivesse mencionado antes para ela.
— Estamos resignadas — eu disse a Max, olhando feio para
Xander.
Ele me disse uma vez que Grayson e Jameson tinham um
histórico de se aliarem durante os jogos do velho. Eles também
tinham o hábito de trair um ao outro, mas, para Xander, o fato de
que seus irmão tinham ido encontrar Sheffield Grayson sem ele
provavelmente parecia simplesmente outra aliança.
Eu não podia culpá-lo por juntar seu time.
— Maxine — Xander ofereceu a minha melhor amiga seu melhor
sorriso de Xander Hawthorne. — Não tem nada que eu admire mais
do que uma mulher que usa aspas com os dedos. Posso perguntar:
o que você acha de robôs que às vezes explodem?

O interior do jatinho — meu jatinho particular — tinha assentos de


luxo para vinte pessoas e parecia mais uma sala de reuniões de
luxo do que um meio de transporte. A equipe de segurança se
sentou na frente e, atrás deles, Alisa e Libby se sentaram em
cadeiras de couro diante de uma mesa com tampo de granito. Nash,
que tinha se enfiado junto, estava esticado em dois assentos do
outro lado da mesa, de frente para Libby e Alisa. Desconfortável.
Mas pelo menos a tensão devia manter os três ocupados, o que
permitia que nós, menores de dezenove anos, cuidássemos de
negócios no fundo do avião.
Dois sofás de camurça extralongos estavam colocados ali, com
outra mesa de granito entre eles. Max e eu nos sentamos de um
lado da mesa. Xander, Rebecca e Thea se sentaram do outro. Um
prato de doces estava na mesa entre nós, mas eu estava mais
concentrada no “time” de Xander. Algo na forma como o corpo de
Rebecca se inclinava na direção de Thea me fez pensar na
expressão que eu tinha notado no rosto de Rebecca no leilão.
— Nós não sabemos o que estamos procurando. — Xander
mantinha a voz baixa o suficiente para que os adultos na frente do
avião não ouvissem. — Mas nós sabemos que o velho deixou para
Skye. Estará dentro ou muito perto da cabana e provavelmente vai
ter o nome de Skye.
— Temos mais alguma coisa? — Rebecca perguntou. — Alguma
formulação de palavras específicas de antes da pista?
— Muito bem, jovem Padawan. — Xander inclinou a cabeça para
ela.
— Sem referências de Star Wars — Thea retrucou. — Ouvir você
falar em nerd me dá dor de cabeça.
— Você sabia que eu estava citando Star Wars. — Xander lançou
um olhar triunfante a ela. — Eu ganhei!
— Desculpa — Rebecca disse para Max e eu. — Eles são assim.
Eu tive a clara sensação de vislumbrar como os três eram antes.
O celular de Rebecca tocou na mesma hora, e ela baixou o olhar.
Cabelo ruivo-escuro cobriu seu rosto de alabastro. Quase consegui
ver ela se encolher.
— Algum problema? — perguntei.
Eu me questionei se era a mãe dela que estava ligando.
— Tudo certo — Rebecca disse por trás de uma muralha de
cabelo.
Ela não estava bem. Não era um segredo. Eu sabia desde aquela
noite nos túneis, quando ela tinha confessado. Eu só vinha me
esforçando muito para não ligar.
Com uma expressão determinada no rosto, Thea pegou o telefone
que tocava.
— Telefone da Rebecca — ela atendeu, pressionando-o contra a
orelha. — Thea falando.
Rebecca levantou a cabeça abruptamente.
— Thea!
— Está tudo bem, sr. Laughlin. — Thea esticou a mão para se
defender da tentativa de Rebecca de pegar o telefone de volta. —
Bex só cochilou. Você sabe como ela é no avião. — Thea se virou
para bloquear Rebecca de novo. — Claro, eu falo para ela. Se
cuidem. Tchau.
Thea desligou e virou o rosto na direção de Rebecca.
— Seu avô desejou boa viagem. Ele vai cuidar da sua mãe.
Agora… — Thea atirou o celular na mesa e se virou para o restante
de nós. — Acredito que Rebecca perguntou sobre a formulação da
pista.
Max me cutucou na lateral.
— No voo particular, a gente pode falar no celular!
Não respondi, porque tinha acabado de notar o quanto Xander
estava quieto. Ele não tinha respondido a pergunta original de
Rebecca, então eu o fiz.
— Uma bússola. A pista que nos colocou na direção de
Verdadeiro Norte estava na parte do testamento de Tobias
Hawthorne em que ele deixava sua bússola para Skye.
— Ah — Thea disse inocentemente. — Tipo a bússola antiga que
Xander está escondendo no bolso?
Xander fechou a cara para ela. Max se esticou na direção do
prato de doces e atirou um croissant na cabeça de Xander.
— Tá enrolando a gente? — perguntou ela.
— Eu vejo que nossa amizade nascente chegou à fase dos
croissants — Xander disse a ela. — Fico feliz.
— Você também está escondendo coisas — acusei. — Você está
com a bússola que o velho deixou para Skye?
Xander deu de ombros.
— Um Hawthorne está sempre preparado.
E aquele era o jogo dele.
— Posso ver? — pedi.
Relutantemente, Xander me deu a bússola. Eu a abri e encarei a
superfície. Era simples, não parecia cara.
Um celular tocou — e não era o de Rebecca. Era o meu.
Baixando os olhos, notei que Jameson tinha finalmente respondido
minhas mensagens.
A mensagem dele tinha exatamente três palavras: Te encontro lá.
CAPÍTULO 39

Olhei para fora da janela quando o avião começou a descer. Ao


longe, tudo que eu via eram montanhas, nuvens e neve, mas logo
consegui distinguir as árvores. Um mês antes, eu nunca tinha
sequer andado de avião. Agora estava em um voo particular. Não
importava o quanto tentasse me concentrar na tarefa que tinha, eu
não conseguia conter a vontade de me perder na vastidão da vista
fora da janela.
Eu não conseguia afastar a sensação de que aquela vida nunca
deveria ter sido minha.

Aterrissamos em uma pista de voo particular. Levou meia hora — e


três enormes SUVS — para chegarmos a Verdadeiro Norte, que
ficava aninhada no alto da montanha, longe da cidadezinha turística
abaixo.
— A casa tem acessos para entrar e sair de esqui — Alisa
informou a mim e a Max no trajeto. — É particular, mas há uma trilha
que leva até o chalé embaixo.
Quando Verdadeiro Norte surgiu, notei que as fotos não a tinham
capturado devidamente. O telhado triangular estava branco de neve.
A casa era enorme, mas de alguma maneira ainda parecia uma
extensão da montanha.
— Eu liguei com antecedência para que o caseiro abrisse a casa
— Alisa disse enquanto ela, Oren, Max e eu saíamos para a neve.
— Devemos ter comida. Tomei a liberdade de pedir que roupas
apropriadas fossem entregues a vocês, meninas.
— A mim — Max sussurrou, maravilhada, enquanto absorvia a
visão a sua frente.
— É lindo — eu disse a Alisa.
Um sorriso suave cruzou os lábios da minha advogada e seus
olhos fizeram ruguinhas nos cantos.
— Essa propriedade era uma das favoritas do sr. Hawthorne —
Alisa me disse. — Ele sempre era diferente aqui em cima.
Uma segunda SUV idêntica estacionou ao lado da nossa e Libby
saiu, seguida por Nash e mais homens de Oren. Meia dúzia de fios
de cabelo de Libby havia se libertado da trança embutida, agitando-
se com força no vento da montanha.
— Fui informada que Grayson e Jameson irão se juntar a nós —
Alisa disse, deliberadamente virando de costas para Nash e minha
irmã. — O que quer que você faça — ela avisou —, não deixe
nenhum Hawthorne te desafiar para uma Queda.
CAPÍTULO 40

A parte interna da casa combinava perfeitamente com o exterior. O


pé direito da sala era de dois andares, com enormes vigas expostas.
O chão era de madeira, as paredes tinham painéis de madeira e
tudo — a mobília, os tapetes, as luzes — era gigantesco. Peles
cobriam o enorme sofá de couro — mais macias do que qualquer
coisa que eu já tivesse tocado.
Fogo crepitava em uma lareira de pedras e andei até lá,
hipnotizada.
— São quatro quartos nesse andar, dois no porão e dois em cima.
— Alisa fez uma pausa. — Eu te coloquei no maior quarto desse
andar.
Eu me virei de costas para o fogo e tentei fazer minha próxima
pergunta parecer natural.
— Na verdade… qual era o quarto de Skye?

A escada que levava ao terceiro andar era ladeada por fotos de


família. Parecia quase… normal. As molduras não eram caras. As
fotos eram espontâneas. Havia versões muito mais novas de
Grayson, Jameson e Xander, com as cabeças para fora de uma
barraca. Outra do que parecia ser um jogo de briga de galo entre os
quatro irmãos. Uma de Nash abraçando Alisa. E subindo mais havia
fotos dos filhos de Tobias Hawthorne.
Incluindo Toby.
Tentei não encarar as fotos de Toby Hawthorne aos doze anos,
aos catorze, aos dezesseis, e buscar algum tipo de semelhança
comigo mesma. Não consegui. Havia uma foto em particular... era
impossível desviar os olhos. Toby estava no meio de duas meninas
adolescentes que presumi serem Zara e Skye. A foto obviamente
tinha sido tirada em Verdadeiro Norte. Os três estavam usando
esquis. Os três estavam sorrindo.
Eu achei que talvez o sorriso de Toby se parecesse um pouco
com o meu.
No alto da escada, Max e eu deixamos as malas no quarto que
nos disseram que havia sido de Skye. Olhando por cima do ombro,
fechei a porta.
— Procure por compartimentos secretos — eu disse a Max
enquanto examinava um baú de madeira. — Gavetas secretas,
painéis soltos, fundos falsos na mobília, esse tipo de coisa.
— Claro — Max disse, esticando a palavra enquanto me
observava examinar rápido o baú de madeira. — Com certeza. Isso
é uma coisa que eu sei fazer.
Eu não esperava ser recompensada imediatamente, mas, depois
da busca na ala de Toby, eu sabia como procurar. Não achei nada
que chamasse atenção até tentar o armário. Havia roupas
penduradas nas araras e suéteres dobrados nas prateleiras.
Nenhum deles parecia o que eu esperaria que Skye vestisse
atualmente. Revirei os itens um por um e eventualmente cheguei na
jaqueta de esqui que Skye estava usando na foto nas escadas.
Quantos anos ela tinha quando usara aquilo? Quinze? Dezesseis?
As roupas tinham passado esse tempo todo no armário?
Um baque soou do outro lado da parede do armário e então eu
ouvi um estalo. Afastando as roupas, vi um raio de luz no fundo do
armário e encontrei a fonte. Ali, cortada diretamente na parede,
ficava uma pequena porta. Eu empurrei e a parede se moveu, me
permitindo entrar em uma pequena passagem.
A passagem tinha cheiro de cedro. Tateei as paredes até
encontrar um interruptor. No momento em que o acendi, vi um par
de olhos.
Alguém deu um passo na minha direção.
Eu recuei aos tropeços, olhando direto nos olhos — e abafando
um grito quando os reconheci.
— Thea!
— Que foi? — ela disse com um sorrisinho de desdém. —
Nervosa?
Atrás dela, vi Rebecca ao lado de uma segunda porta, idêntica à
que estava atrás de mim.
— De quem é esse quarto? — perguntei.
— Era de Zara — Rebecca murmurou. — É onde vou ficar.
Thea se virou e lhe deu um olhar significativo.
— Bom saber.
Passando por elas, explorei o quarto de Zara e encontrei um
armário quase idêntico ao de Skye. As roupas nas araras tendiam
mais para uma paleta azul-gelo, mas, como o armário de Skye,
parecia congelado no tempo.
— Encontrei alguma coisa — Thea anunciou de dentro da
passagem. — E de nada.
Eu recuei. Rebecca me seguiu e Max se enfiou para dentro da
passagem pelo outro lado. Era apertado, mas eu consegui me
ajoelhar ao lado de Thea, que estava segurando uma tábua de
madeira nas mãos.
Uma das tábuas do chão, notei quando ela a deixou de lado para
enfiar a mão no compartimento que tinha revelado.
— O que é? — perguntei quando ela puxou um objeto.
— Uma garrafa de vidro? — Max se inclinou na direção de Thea
para ver melhor. — Com uma mensagem dentro. Uma mensagem
em uma forra de uma garrafa! Agora sim.
— Forra?
Thea arqueou uma sobrancelha para Max, então se levantou e
passou por mim, voltando para o quarto de Zara. Ela virou a garrafa
de ponta-cabeça em uma escrivaninha e, sacudindo um pouco, tirou
de dentro um pequeno pedaço de papel. Quando Thea tentou
desenrolá-lo, notei que ele estava amarelado pela ação do tempo.
— Chuto que isso é bem velho — Max disse.
Pensei no testamento de Tobias Hawthorne.
— De, tipo, vinte anos atrás?
Porém, quando Thea acabou de desenrolar o papel, a letra que vi
na carta não era a de Tobias Hawthorne. Era uma letra cursiva, com
um enfeite ocasional, limpa o suficiente para passar por uma fonte
datilografada.
Feminina.
— Eu não acho que isso é o que viemos procurar — falei.
Eu tinha mesmo achado que seria tão fácil? Ainda assim, li a
mensagem. Todas nós lemos.
Você sabia e você fez mesmo assim. Nunca vou te perdoar por
isso.
— Fez o quê? — Thea perguntou. — Sabia o quê?
Eu disse o óbvio em voz alta:
— Esses quartos eram de Zara e Skye.
— Pela minha experiência, Zara não é exatamente inclinada a
pedir perdão. — Thea olhou na direção de Rebecca. — Bex?
Alguma ideia? Você conhece a família Hawthorne melhor do que
ninguém.
Rebecca não respondeu imediatamente. Pensei na foto que tinha
visto de Zara, Skye e Toby sorrindo. Os três já haviam sido próximos
alguma vez?
Veneno é a árvore, percebeu? Toby tinha escrito. Envenenou S e
Z e eu.
— E aí? — perguntei a Rebecca. — Você já escutou alguma
discussão entre Zara e Skye?
— Ouvi muitas coisas quando era criança. — Rebecca deu de
ombros. — As pessoas prestavam atenção em Emily, não em mim.
Thea colocou uma das mãos no ombro de Rebecca. Por um
momento, Rebecca buscou o toque de Thea.
— Eu não sei quem fez o quê contra quem — Rebecca disse,
baixando o olhar para a mão de Thea. — Mas sei… — Ela deu um
passo para se afastar de Thea. — Que algumas coisas são
imperdoáveis.
Por que eu sentia que ela não estava falando de Zara e Skye?
— As pessoas não são perfeitas — Thea disse a Rebecca. —
Não importa o quanto tentem. Não importa o quanto odeiem
demonstrar fraqueza. As pessoas cometem erros.
Os lábios de Rebecca se abriram, mas ela não disse nada.
Max ergueu as sobrancelhas e então se virou para mim.
— Então — ela disse alto. — Erros.
Eu me virei novamente para olhar pela janela e me concentrar na
tarefa. Que “erro” havia envenenado a relação de Zara e Skye?
CAPÍTULO 41

Eu estava olhando pela maior janela do térreo quando uma nova


SUV estacionou lá fora. Jameson saiu dela primeiro, então Grayson.
Os dois estavam usando óculos de sol. Eu me perguntei se estavam
de ressaca, se eles tinham dormido na noite anterior, depois
daquela conversa com o pai de Grayson.

Levei quinze minutos para conseguir ficar sozinha com um deles.


Jameson e eu acabamos em uma varanda. A condensação da
minha respiração era visível no ar. Eu o atualizei do que tinha
descoberto. Ele escutou, em silêncio e imóvel.
Nenhum desses era um adjetivo que eu associaria a Jameson
Hawthorne.
Quando terminei, Jameson virou de costas para a vista da
montanha e se apoiou na balaustrada coberta de neve. Ele ainda
estava vestido para o Arizona. Seus cotovelos estavam expostos,
mas ele agia como se nem sentisse o frio.
— Eu também tenho algo para te contar, Herdeira.
— Eu sei.
— Sheffield Grayson acredita que Toby causou o incêndio na Ilha
Hawthorne.
Os olhos de Jameson ainda estavam escondidos pelos óculos de
sol, o que tornava difícil saber o que ele estava sentindo, se é que
estava sentindo alguma coisa.
— Eu sei — repeti. — Grayson esqueceu de desligar o celular
ontem. Eu não ouvi tudo, mas peguei o principal. A última coisa que
ouvi foi que Toby tinha comprado combustível. Então o celular
desligou. Eu tentei ligar para vocês dois. Várias vezes. Mas ninguém
atendeu.
Jameson não disse nada por quatro ou cinco segundos. Eu não
tinha certeza se ele ia responder qualquer coisa ao que eu tinha
acabado de dizer.
— O babaca deixou bem claro que não quer nada com Gray. Ele
disse que Colin era o mais perto que ele teria de um filho.
Jameson engoliu em seco e, embora seus olhos ainda estivessem
encobertos pelos óculos de sol, eu conseguia sentir como aquelas
palavras o tinham afetado.
Eu nem queria pensar no impacto que elas tinham tido em
Grayson.
— Pela primeira vez, Skye não estava mentindo. — A voz de
Jameson era baixa. — O pai de Grayson sempre soube dele.
Eu estava acostumada com Jameson flertando ou revirando
charadas, se equilibrando perigosamente na beirada de telhados e
jogando toda cautela pela janela. Ele não deixava que as coisas se
tornassem importantes. Não deixava que elas ferissem.
Se eu tirasse aqueles óculos de sol, o que eu veria?
Dei um passo na direção dele. A porta da varanda se abriu. Alisa
olhou para mim, olhou para Jameson, olhou pra o passo de
distância entre nós e me deu um sorriso direto.
— Pronta para as pistas?
Não. Eu não podia dizer isso. Eu não podia botar as cartas na
mesa e revelar que o motivo para a viagem não tinha nada a ver
com uma escapada de inverno. Qualquer que fosse nosso plano
para revirar o resto da casa, teríamos que ser sutis.
— Eu… — busquei uma resposta apropriada. — Eu não sei
esquiar.
Grayson apareceu na porta atrás de Alisa.
— Eu te ensino.
Jameson o encarou. Eu também.
CAPÍTULO 42

O “acesso direto” de Verdadeiro Norte significava que saíamos


direto para as pistas. Tudo que precisávamos fazer era sair pela
porta dos fundos, colocar os esquis e ir.
— Tem uma trilha fácil aqui — Grayson me disse depois de me
mostrar o básico. — Se descermos o suficiente por ela, chegaremos
às áreas mais cheias da montanha.
Olhei de volta para Oren e um de seus homens. Não era Eli; era
um homem mais velho. Oren tinha dito que ele era o especialista
ártico. Porque todo bilionário do Texas precisava de um especialista
ártico na equipe de segurança.
Eu cambaleei nos esquis. Grayson estendeu a mão para me
firmar. Por um momento, ficamos ali parados, o corpo dele apoiando
o meu. Então, lentamente, ele deu um passo para trás e pegou
minhas mãos, me puxando para a frente na leve inclinação perto da
casa, esquiando de costas enquanto fazia isso.
— Me mostre sua parada — ele disse.
Sempre dando ordens. Não reclamei. Virei meus pés para dentro
e consegui parar sem cair… por pouco.
— Bom.
Grayson Hawthorne chegou a sorrir, mas então notou que estava
sorrindo, como se fosse proibido que sua boca fizesse aquilo perto
de mim.
— Você não precisa fazer isso — murmurei, baixando minha voz
para evitar que os outros ouvissem. — Você não precisa me ensinar
nada. Nós podemos dizer a Alisa que eu amarelei. Não estou aqui
para esquiar.
Grayson me deu um olhar — um olhar de quem sabe tudo, nunca
está errado, não é questionado.
— Ninguém vai acreditar que você amarelou — ele disse.
Pelo modo que ele falou, até parecia que eu era destemida.
Levei cinco minutos para perder um esqui. A trilha ainda era
relativamente reservada. Além dos meus guarda-costas, era como
se Grayson e eu estivéssemos sozinhos na montanha. Ele deslizou
para recuperar meu esqui com a facilidade de alguém que esquia
desde que aprendeu a andar. Ao voltar para o meu lado, ele
derrubou o esqui na neve, então pegou meus cotovelos nas mãos.
Aquela tarde estava sendo o dia em que ele mais havia me
tocado — de todos.
Eu me recusava a deixar que aquilo significasse qualquer coisa.
Enfiei o esqui de volta e repeti o que tinha dito a ele antes:
— Você não precisa fazer isso.
Ele soltou meus braços.
— Você estava certa.
Inédito: Grayson Hawthorne admitindo que alguma outra pessoa
estava certa sobre alguma coisa.
— Você disse que eu vinha te evitando, e eu estava mesmo. Eu
prometi que ia te ensinar o que você precisava saber para viver
essa vida.
— Como esquiar?
Eu me via no reflexo dos óculos de esqui dele, mas não via seus
olhos.
— Como esquiar — Grayson disse. — Para começar.

Nós chegamos à parte de baixo e Grayson me ensinou a pegar um


teleférico de esqui. Oren foi na nossa frente; o outro guarda foi
atrás.
Fiquei sozinha com Grayson: dois corpos, um teleférico, nossos
pés pendurados enquanto subíamos a montanha. Eu me peguei
espiando-o. Ele tinha baixado os óculos, então eu via todas as
linhas do seu rosto. E seus olhos.
Depois de alguns segundos, decidi que não ia passar a subida
toda em silêncio.
— Eu ouvi sua conversa com Sheffield — eu disse baixo a
Grayson. — A maior parte, de qualquer forma.
Lá embaixo, eu via esquiadores descendo a montanha. Olhei para
eles em vez de para Grayson.
— Estou começando a entender por que meu avô deserdou os
filhos. — Grayson não soava como ele mesmo, assim como
Jameson não tinha soado. A diferença é que a noite anterior tinha
deixado Jameson mais reservado e parecia ter tido o efeito oposto
em seu irmão. — Se Toby começou aquele incêndio, se meu avô
precisou encobrir, e então Skye… — Ele parou, abruptamente.
— Skye o quê?
Nós passamos por um trecho com árvores cobertas de neve.
— Ela procurou Sheffield Grayson, Avery. O homem culpava
nossa família pela morte do sobrinho. Ele dormiu com ela por
despeito. Só Deus sabe por que Skye fez isso, mas eu fui o
resultado.
Olhei para ele de uma forma que o forçou a retribuir o olhar.
— Você não pode se sentir culpado por isso — eu disse com a
voz firme. — Puto? — continuei. — Claro. Mas não culpado.
— O velho deserdou toda a família mais ou menos quando eu fui
concebido. — Grayson se protegia daquela verdade mesmo
enquanto a pronunciava. — Foi Toby mesmo a gota d’água ou… fui
eu?
Ali estava Grayson Hawthorne demonstrando fragilidade. Você
nem sempre precisa carregar o peso do mundo — ou da sua família
— nos seus ombros. Eu não disse isso.
— O velho te amava — foi o que disse. Eu não tinha certeza de
muita coisa quando se tratava do bilionário Tobias Hawthorne, mas
daquilo eu tinha. — Você e seus irmãos.
— Nós fomos a chance dele fazer algo certo. — A voz de Grayson
estava tensa. — E olha o quanto ele acabou decepcionado... com
Jameson, comigo.
— Isso não é verdade — eu disse, sentindo a dor dele. Deles.
Grayson engoliu em seco.
— Você se lembra da faca que Jameson levou para o telhado?
A pergunta me pegou de surpresa.
— Aquela com o compartimento secreto?
Grayson inclinou a cabeça. Eu não via os músculos do seu ombro
e pescoço, mas conseguia imaginá-los por baixo da jaqueta de
esqui, se contraindo.
— Tinha uma sequência para um enigma que meu avô construiu
anos atrás. A faca era parte dela.
Por motivos que eu nem conseguia dizer, os músculos da minha
própria garganta se apertaram.
— E a bailarina de vidro? — perguntei.
Grayson olhou para mim como se eu tivesse acabado de dizer
algo muito inesperado. Como se eu fosse inesperada.
— Isso. Para ganhar o jogo, nós precisávamos quebrar a
bailarina. Jameson, Xander e eu entendemos errado a parte
seguinte. Caímos na armadilha. Nash não. Ele sabia que a resposta
estava nos cacos. — Havia algo na forma como ele estava olhando
para mim. Algo que eu sequer tinha uma palavra para descrever. —
Meu avô nos disse que, quando se conquistava o tipo de poder e
dinheiro que ele tinha, as coisas se quebravam. Pessoas. Eu
costumava pensar que ele estava falando dos filhos.
— Veneno é a árvore — citei suavemente. — Percebeu?
Envenenou S e Z e eu.
— Exatamente. — Grayson sacudiu a cabeça e, quando voltou a
falar, as palavras saíram ásperas. — Mas eu estou começando a
acreditar que não entendemos a questão. Eu tenho pensado nas
coisas, e pessoas, que nós quebramos. Todos nós. Toby e as
vítimas do incêndio. Jameson e eu e…
Ele não conseguia dizer, então eu disse por ele:
— Emily. Não é a mesma coisa, Grayson. Vocês não a mataram.
— Essa família quebra coisas. — O tom de Grayson não vacilava.
— Meu avô sabia disso e ele te trouxe para cá mesmo assim. Ele te
colocou no tabuleiro.
Grayson queria que eu ficasse a salvo, e eu não estava. Tendo
herdado a fortuna Hawthorne, talvez eu nunca ficasse a salvo de
novo.
— Eu não sou a bailarina de vidro — afirmei. — Eu não vou
quebrar.
— Eu sei que não. — A voz de Grayson estava quase
embargada. — Então eu não vou mais te evitar, Avery. Não vou ficar
te mandando parar de fazer coisas que sei que você não consegue
parar, que não vai parar. Eu sei o que Toby é para você, o que ele
significa para você. — A respiração de Grayson estava pesada. —
Eu sei, melhor do que ninguém, por que você não consegue parar.
Grayson tinha conhecido seu pai. Ele tinha olhado nos olhos dele
e descoberto o que significava para o homem. E, sim, a resposta
para a pergunta tinha sido nada, mas ele sabia por que eu não
podia deixar o mistério de Toby para lá.
— Então você está dentro? — perguntei a Grayson, meu coração
parando por um segundo.
— Estou. — Ele disse essa palavra como um juramento. Ela ficou
no ar entre nós e então ele engoliu em seco. — Como seu amigo.
Amigo. A palavra tinha arestas. Era Grayson se afastando, me
mantendo a uma certa distância. Fingindo que ele estabelecia as
regras.
Teria doído, se eu tivesse deixado, mas não deixei.
— Amigos — repeti, fixando meu olhar no final da subida, que se
aproximava rapidamente.
— Deslize para o lado — Grayson me disse. Sempre profissional.
— Incline as pontas do esqui para cima. Se incline para a frente e
vá.
A cadeira me deu um pequeno impulso e deslizei para a frente,
lutando para manter o equilíbrio. Eu não precisava de Grayson
Hawthorne para fazer isso. Apenas com a força da minha vontade,
mantive os esquis embaixo de mim e consegui parar.
Viu? Eu não preciso que você me segure. Eu me virei para meu
amigo Grayson, um sorriso se espalhando pelo rosto, pronta para
me gabar — e foi então que eu vi os paparazzi.
CAPÍTULO 43

Oren e o especialista ártico me levaram de volta a Verdadeiro


Norte em um tempo impressionante. Eli e outro guarda estavam
esperando quando chegamos lá.
— Vasculhe o perímetro — Oren disse aos seus homens. — Se
alguém precisar de um lembrete de que isso é uma propriedade
privada, sintam-se livres para fornecer a informação.
— Eu acho que acabou o esqui — eu disse.
Na teoria, era bom. Eu tinha uma desculpa para ficar em
Verdadeiro Norte e fazer o que tinha vindo fazer. Menos tempo na
montanha com Grayson.
Abafando o pensamento, tirei meus esquis. Grayson fez o mesmo
e fomos na direção da casa, mas, antes de chegarmos na porta dos
fundos, uma bola de neve caiu do telhado bem nos nossos pés.
Eu olhei para cima bem a tempo de ver Jameson saltando. Ele
aterrissou ao meu lado, usando esquis, sem bastões à vista.
— Entrada triunfal — Grayson disse, seco.
— Eu tento.
Jameson sorriu e sacudiu um objeto em suas mãos. Levei um
segundo para notar que era uma foto.
Por que ele está segurando uma foto? Era Jameson Hawthorne.
Estávamos ali por um motivo. Eu sabia por quê. Meu coração
acelerou.
— Isso é… — comecei a dizer.
Jameson deu de ombros.
— O que posso dizer? Eu sou bom mesmo. — Ele colocou a foto
nas minhas mãos preguiçosamente, então se virou e pegou um par
de bastões de esqui apoiados na lateral da casa. — E eu desafio
você — ele disse a Grayson — para uma Queda.
A foto era a que eu tinha visto na escada, dos três filhos de Tobias
Hawthorne. Jameson não tinha me dado nenhuma informação antes
de sumir, mas, enquanto descia as escadas na direção do porão,
virei a moldura e vi a imagem entalhada atrás.
A superfície de uma bússola.
Eu estava tão absorta no que vira que quase esbarrei em
Rebecca. E Thea. Thea e Rebecca, percebi, dando um passo para
trás. A primeira pressionava a segunda contra a parede da escada.
As mãos de Rebecca estavam no rosto de Thea. O cabelo de Thea
parecia ter sido arrancado do rabo de cavalo.
Elas estavam se beijando.
As últimas palavras que as ouvi trocar ressoaram nos meus
ouvidos. Algumas coisas são imperdoáveis. As pessoas não são
perfeitas.
Thea me notou, mas não interrompeu o beijo até os olhos verdes
de Rebecca se arregalarem de forma quase cômica. Mesmo assim,
Thea levou um bom tempo para se afastar da outra.
— Avery — Rebecca parecia morta de vergonha. — Isso não é…
— Da sua conta — Thea completou, erguendo os cantos da boca.
Eu desviei das duas.
— Concordo.
Aquele beijo proibido, e provavelmente irresponsável, não era
problema meu.
A foto nas minhas mãos era. Então eu desci o que faltava da
escada, como uma mulher com uma missão. No andar de baixo,
encontrei Max apoiada nos ombros de Xander, inspecionando as
pás de um ventilador.
— Ele é muito alto — Max me disse em tom de aprovação. — E
só me derrubou uma vez!
Thea e Rebecca entraram atrás de mim. Xander lançou um olhar
feio para elas, mas continuei concentrada.
— Jameson me deu isso. — Ergui o tesouro e me sentei em uma
imensa poltrona de camurça. — Uma foto da escada. — Eu a
coloquei virada no colo. — Olhem a parte de trás.
Max desceu dos ombros de Xander e todo mundo se juntou em
volta de mim.
— Tire o fundo da moldura — Xander disse imediatamente.
Eu o encarei.
— Vamos precisar de uma chave de fenda.

Quatro minutos depois, nós cinco estávamos enfiados no terceiro


andar, no quarto que tinha sido de Skye. Eu removi o último
parafuso e ergui a parte de trás da moldura. Embaixo dela, atrás da
foto de Toby, Zara e Skye, estava um pedaço de papel de caderno
dobrado ao meio. Dentro dele estava outra foto.
A foto tinha claramente sido tirada mais ou menos na mesma
época que a que estava exposta na moldura. Zara e Skye estavam
usando as mesmas jaquetas. As duas pareciam adolescentes. Zara
estava com um braço em volta de Skye e outro em volta de um
menino que parecia um pouco mais velho que as duas. Ele tinha o
cabelo bagunçado e um sorriso matador.
Eu virei a foto. Não havia legenda no verso. Max se inclinou para
pegar o pedaço de papel dobrado em volta da foto.
— Vazio — ela disse.
— Por enquanto — Xander corrigiu.
Max não entendeu o que ele estava dizendo imediatamente. Ela
não estava acostumada com os Hawthorne e seus jogos.
— Tinta invisível? — Rebecca perguntou, antes que eu tivesse a
chance. — Na foto ou no papel em que ela estava?
— Quase certo — Xander respondeu. — Mas vocês sabem
quantos tipos diferentes de tinta invisível existem?
— Muitos? — Thea disse, seca.
Xander suspirou longamente.
— Meu chute é que isso é só meia pista. O velho deixou metade
com Skye e metade com…
— Zara — completei. — A aliança.
Cuidadosamente, peguei a página em branco da mão de Max. Eu
não tinha ideia de como deveríamos usar uma aliança para fazer
escrita aparecer nessa página, mas via a lógica no que Xander
estava dizendo. Era a lógica Hawthorne.
A lógica de Tobias Tattersall Hawthorne.
Ele deu a si mesmo um nome do meio como sinal de que
pretendia deixar todos eles em frangalhos. Ele usou aquele nome
para assinar um testamento e escondeu pistas no testamento para
suas filhas. Eu sabia que aquele jogo não era originalmente feito
para nós. Eu sabia que estávamos ali para encontrar a pista de
Skye. Comecei a refletir.
— O que vocês acham que essa foto significaria para Skye? —
perguntei, erguendo a foto que estava escondida atrás dos filhos
sorridentes de Tobias Hawthorne. Skye, Zara e um cara. — Quem é
ele? — perguntei, e então pensei na mensagem que tínhamos
encontrado na garrafa escondida nas tábuas do chão, na passagem
entre os quartos de Skye e Zara.
Você sabia e você fez mesmo assim. Nunca vou te perdoar por
isso.
— Meu sexto sentido — Max anunciou — está agora ligado a
essa foto e eu estou recebendo mensagens claras sobre comunhão
e abdomens.
Elas brigaram por causa de um garoto, pensei. Do mesmo jeito
que Jameson e Grayson tinham brigado por Emily Laughlin.
— Jameson só te deu isso? — Xander desabou na cama. — Ele
encontrou e só deu para você?
Eu fiz que sim. Eu sabia que Xander estava incomodado por não
ter sido ele quem encontrou a pista.
— E cadê o Jameson agora? — Xander perguntou, soando um
pouco mais irritado do que eu já tinha ouvido antes.
Eu pigarreei.
— Ele desafiou Grayson para algo chamado Queda.
— Sem mim? — Xander parecia realmente ofendido. — Ele te
deu isso e desafiou Grayson para uma Queda? — Xander colocou-
se de pé em um pulo. — É isso. Acabaram os bons modos. Chega
de Xander Bonzinho. Avery, posso ver essa foto?
Eu dei a ele a foto de Zara, Skye e o garoto de cabelo bagunçado.
Um segundo depois, Xander estava saindo pela porta.
— Aonde você está indo? — Rebecca e eu perguntamos juntas.
Max correu para alcançá-lo.
— Aonde nós estamos indo? — ela corrigiu.
Xander lançou um olhar feio para nós — embora não tão feio.
— Para o chalé.
CAPÍTULO 44

De alguma forma, convenci Alisa a aprovar outra pequena


aventura: uma última sessão de fotos. Oren não ficou muito feliz,
mas tive a nítida sensação de que não era a primeira vez que ele
precisava cuidar de um passeio até o chalé na base da montanha.
— Meu avô proibiu a Queda quando eu tinha uns doze anos —
Xander anunciou na SUV enquanto descíamos. — Muitos ossos
quebrados.
— Porque isso não é nada preocupante — Max disse, animada.
— Os Hawthorne... — Thea desdenhou.
— Se comporte. — Rebecca olhou feio para ela.
— É só uma aposta amigável de quem amarela primeiro no
teleférico — Xander nos garantiu. — Você sobe no teleférico até
alguém gritar “queda”. E então você — Xander deu de ombros —
cai.
— Você pula do teleférico? — Eu o encarei.
— A primeira pessoa a gritar é o desafiante. Se a outra pessoa
negar, o desafiante precisa cair. Se a outra pessoa aceitar o desafio,
ele cai e ganha uns quinze segundos de vantagem na corrida.
— Corrida? — Max e eu dissemos juntas.
— Até embaixo — Xander esclareceu.
— Essa é a coisa mais idiota que eu já ouvi na vida — eu disse a
Xander.
— Talvez — Xander respondeu, teimoso. — Mas assim que
terminarmos no chalé, eu vou ter ganhado.

No chalé, fomos levados pela sala de jantar principal até uma alcova
particular com vista para as pistas mais ao longe. Dois dos homens
de Oren se posicionaram à porta enquanto meu chefe de segurança
ficou colado em mim.
— Você senta aqui — Alisa me disse. — Bebe um chocolate
quente. Nós tiramos umas fotos, e te tiramos daqui.
Aquele era o plano dela. Nós tínhamos o nosso: identificar o
menino da foto. Xander parecia pensar que parte da equipe do chalé
trabalhava ali havia décadas. Dada a segurança em cima de mim,
eu não esperava investigar por conta própria, mas Max e Xander
eram outra história.
Assim como Thea e Rebecca.
Oren deixou os quatro saírem para o banheiro com um único
guarda. Quando voltaram, dez minutos depois, o guarda-costas
parecia estar com enxaqueca.
— Essas duas — Max me disse, apontando com a cabeça para
Thea e Rebecca — são bem uteis para arrancar informações dos
outros.
— Thea é melhor no flerte — Rebecca murmurou.
Thea olhou nos olhos de Rebecca.
— E você aprende bem rápido.
— O que elas descobriram? — perguntei para Max e Xander.
— O cara na foto trabalhava na montanha. — Max estava
claramente adorando aquilo. — Ele era um instrutor de esqui, tinha
vinte e poucos anos. Fazia sucesso com as mulheres.
— Vocês conseguiram o nome? — perguntei.
Foi Xander quem deu a resposta.
— Jake Nash.
Jake. Meu cérebro girava. Nash.
CAPÍTULO 45

Com aquela bomba, Xander foi encontrar Jameson e Grayson.


Horas depois, os três irmãos voltaram das pistas, machucados e
cansados. Jameson sentou-se devagar em uma poltrona com o
encosto alto.
— Não deixe cair sangue nisso aí — Grayson ordenou.
— Nem em sonho — Jameson respondeu. — Qual sua opinião
sobre vomitar naquele vaso?
— Você é um idiota — Grayson respondeu.
— Vocês todos são idiotas — corrigi. Eles se viraram para mim.
Eu estava usando pijamas grossos de inverno, parte do guarda-
roupa de Verdadeiro Norte que Alisa tinha encomendado para mim.
— Xander contou o que encontramos?
— O que eu encontrei, Herdeira — Jameson me corrigiu, dando
um sorriso. — Eu sei da foto. A página com o que podemos
presumir ser uma provável mensagem de algum tipo, escrita com
tinta invisível.
Grayson me estudou por um momento, então se virou para
Xander.
— O que mais vocês descobriram?
— Só para constar — Xander disse grandiosamente, mancando
até se sentar na lareira —, eu ganhei a Queda. — Ele olhou para
seus pés. — E posso ter esquecido de mencionar que o cara na foto
é o pai de Nash.
A afirmação teve o exato efeito que deveria — em Jameson e
Grayson. Eu não estava surpresa. Depois do que tínhamos
descoberto no chalé, aquela era a conclusão lógica. Os quatro
irmãos Hawthorne tinham sobrenomes como nomes. O pai de
Grayson era Sheffield Grayson. O cara na foto — o cara que Zara
estava abraçando — era Jake Nash.
Você sabia, o bilhete no armário dizia, e você fez mesmo assim.
— Vocês vão contar a Nash? — perguntei aos meninos.
— Me contar o quê?
Eu me virei e vi Nash na porta, Libby ao seu lado.
— Contar o quê? — Ela apertou os olhos para o silêncio que se
seguiu. — Fala sério, Ave — Libby grunhiu. — Chega de segredos.
Ela era o motivo para eu ter conseguido fazer a viagem, e não
tinha ideia do porquê.
Na minha frente, Grayson se levantou.
— Nash, podemos conversar lá fora um minuto?

Sozinha com Libby, só tive um ou dois segundos para decidir o que


contar. Olhando aquele cabelo castanho sem graça, sabendo de
tudo que ela abriu mão por mim, foi uma decisão
surpreendentemente fácil.
Contei tudo. Sobre Harry e quem ele realmente era. Sobre o que
tínhamos descoberto na ala de Toby. Sobre minha certidão de
nascimento e as caridades no testamento e por que eu queria vir
para Verdadeiro Norte.
— Eu sei que é muita coisa de uma vez — eu disse.
Libby piscou quatro ou cinco vezes. Eu esperei que ela dissesse
alguma coisa. Qualquer coisa.
— O que Grayson e Jameson estão contando para Nash lá fora?
— ela perguntou finalmente.
Não havia por que guardar mais nada, então eu respondi a
pergunta.
— Então o pai de Nash… — ela disse.
— Provavelmente é Jake Nash — confirmei.
— E o seu pai…
Libby me olhou e engoliu em seco.
Meu pai é Toby Hawthorne.
— Faz sentido — murmurei. Incapaz de olhar nos olhos dela, me
virei para uma enorme janela ali perto. — Foi Toby quem assinou
minha certidão de nascimento e nós nos conhecemos logo depois
que minha mãe morreu. Eu acho que ele estava ficando de olho em
mim. Acho que ele queria que nos conhecêssemos. — Fiz uma
pausa. — Eu acho que Tobias Hawthorne sabia de tudo.
— E é por isso que ele te deixou o dinheiro. — Libby sabia ler as
entrelinhas tão bem quanto eu. — Se seu pai não é Ricky — ela
disse lentamente —, então você e eu não somos realmente…
— Se você disser que não somos irmãs, eu vou te dar uma
voadora aqui e agora.
Eu estava preparada para fazê-lo, mas Libby pareceu decidir não
me tentar.
— Você tentou encontrá-lo? — ela me perguntou. — Toby?
Baixei os olhos.
— Antes mesmo de saber quem ele era. O pessoal de Alisa não
encontrou nem sinal dele.
Libby soltou um grunhido de desdém. Bem alto.
— Ou isso é o que Alisa Ortega diz. Ela sabe quem ele é?
Ergui o olhar para ela.
— Não.
— Então o quanto você acha que sua advogada priorizou procurar
por um sem-teto aleatório com quem você costumava jogar xadrez?
— As mãos de Libby subiram para sua cintura. — Você tentou
encontrá-lo? Esqueça os jogos. Esqueça as pistas. Você realmente
procurou esse homem?
Quando ela colocou as coisas dessa forma, eu me senti meio
ridícula. De dentro do jogo de Tobias Hawthorne, tudo que eu tinha
feito fazia perfeito sentido. Mas olhando de fora? Nós estávamos
lidando com tudo aquilo da forma mais complicada possível.
— Você viu o quanto foi difícil convencer Oren e Alisa a me
deixarem vir para cá — falei. — De jeito nenhum eles vão me deixar
voar para New Castle atrás de Toby.
— Você quer que eu vá? — A pergunta soou insegura, mas Libby
superou bem rápido a hesitação. — Eu poderia ir para casa.
Ninguém iria questionar por que quero fazer isso. Posso levar
seguranças comigo.
— Os paparazzi vão te seguir — avisei. — Você é notícia por
associação.
Libby passou a mão pela trança embutida e sorriu.
— Agora eu sou discreta. Acho que os paparazzi nem vão me
reconhecer.
Tudo que eu conseguia pensar naquele momento é que deveria
ter contado a verdade a ela dias antes. Qual era meu problema? Por
que eu fazia tanto esforço para manter distantes as pessoas que
mais importavam?
— Combinado, então — Libby declarou. — Você vai voar de volta
para a Casa Hawthorne e eu vou levar o outro avião para
Connecticut.
— Uma correção, querida. — Nash voltou para a sala. Eu não
conseguia ler a expressão dele, ou os efeitos da bomba que seus
irmãos tinham acabado de soltar. — Nós vamos.
CAPÍTULO 46

Um pouco depois da meia-noite, Max me cutucou.


— O que foi? — Eu pisquei para ela e, depois de alguns
segundos, meus instintos de sobrevivência apitaram. — Está tudo
bem?
— Tudo bem — Max me disse. Ela sorriu, maliciosa. — Ótimo,
até. — Ela me cutucou de novo. — Jameson Hawthorne está na
jacuzzi.
Apertei os olhos, rolei na cama e cobri a cabeça com o edredom.
Ela o puxou de volta.
— Você me ouviu? Jameson Hawthorne está na jacuzzi. É uma
situação de alerta máximo do baralho.
— Qual é a sua com Jameson? — perguntei.
— Qual é a sua com Jameson? — Max devolveu.
Por motivos que eu nem conseguia explicar, não a expulsei da
minha cama. Respondi a pergunta.
— Ele não me quer — eu disse a Max. — Não de verdade. Ele
quer o mistério. Ele quer me manter por perto até poder me usar. Eu
sou parte do quebra-cabeça para ele.
— Mas… — Max começou — você gostaria de ser usada por ele?
Pensei em Jameson: o brilho nos olhos quando ele sabia de algo
que eu não sabia, o sorriso torto, a forma como tinha protegido meu
corpo quando os tiros começaram em Black Wood — e depois
pegara meu rosto entre as mãos quando o som dos fogos de
artifício me fizera mergulhar em memórias ruins. O jeito irritante que
ele tinha de me chamar de Herdeira. Jogar golfe no telhado. Meu
corpo agarrado ao dele na garupa da moto. A curva exata de seus
lábios quando ele me disse para ser discreta — por enquanto.
— Você gosta dele.
Max parecia satisfeita demais.
— Talvez eu goste da forma como me sinto quando estou com
ele. — Eu escolhi minhas palavras com muito cuidado. — Mas não é
tão simples.
— Por causa de Grayson.
Encarei o teto e pensei no teleférico.
— Nós somos amigos.
— Não — Max corrigiu. — Eu e você somos amigas. Grayson é a
manifestação física do seu estilo de apego evitativo. Ele não se
permite querer você. Você não quer que te queiram. Todo mundo
mantém distância. Ninguém se machuca e ninguém se dá bem.
Max me deu seu melhor olhar de melhor amiga irritada.
— E por que você se importa? — perguntei a ela. — Desde
quando você está tão interessada na minha vida amorosa?
— Na sua falta de — Max corrigiu, dando de ombros. — Minha
vida explodiu. Meus pais não atendem minhas ligações. Eles
também não deixam meu irmão falar comigo. Nesse momento você
é tudo que eu tenho, Ave. Eu quero que você seja feliz.
— Você tentou ligar para os seus pais?
Eu não queria insistir demais, mas queria apoiá-la.
Max olhou para baixo.
— Não é a questão. A questão é que Jameson Hawthorne está na
jacuzzi. — Ela cruzou os braços. — E o que você vai fazer com
isso?
CAPÍTULO 47

As roupas que Alisa tinha encomendado para mim incluíam trajes


de banho de marca: um biquíni preto com contorno dourado.
Estreitando os olhos, eu o vesti, e rapidamente me cobri com um
roupão que ia até o chão, daquele tipo impossivelmente macio que
eu imaginava que usavam em spas de luxo. A jacuzzi ficava no
térreo. Só quando cheguei à porta dos fundos notei que Oren estava
me seguindo.
— Você não vai me dizer pra ficar dentro de casa? — perguntei a
ele.
Ele deu de ombros.
— Tenho homens no bosque.
Lógico que tinha.
Levei a mão à maçaneta, respirei fundo e saí para o ar congelante
da noite. Quando o frio me atingiu, ficou impossível hesitar. Fui até a
jacuzzi. Era grande o suficiente para caberem oito pessoas, mas
Jameson era o único ali. Seu corpo estava quase inteiro submerso.
Tudo que eu conseguia ver era o rosto dele inclinado para o céu, as
linhas do pescoço e um pouquinho dos ombros.
— Você parece estar pensando.
Eu me sentei no lado mais longe dele, puxei o roupão para cima e
enfiei as pernas na água, até os joelhos. Vapor subiu pelo ar e eu
estremeci.
— Eu estou sempre pensando, Herdeira. — O olhar verde de
Jameson continuava fixo no céu. — É o que você ama em mim.
Eu estava com frio demais para fazer qualquer coisa além de tirar
o roupão e deslizar para dentro da água quente. Meu corpo resistiu,
então relaxou com a pontada de calor. Senti meu rosto corando.
Jameson olhou para mim.
— Algum palpite sobre o que estou pensando?
Pouco mais de um metro nos separava, e não parecia muito, não
com ele me olhando daquele jeito. Eu sabia o que ele queria que eu
pensasse que ele estava pensando.
Mas eu conhecia ele.
— Você está pensando na aliança.
Jameson mudou de posição, deixando parte do peitoral fora da
água.
— A aliança — ele confirmou. — É o próximo passo, obviamente,
mas pegá-la de Zara pode ser um desafio.
— Você gosta de desafios.
Ele foi para o lado, aproximando-se de mim.
— Eu gosto.
Isso é culpa de Max, pensei, meu coração batendo em um ritmo
impiedoso contra as costelas.
— A Casa Hawthorne tem um cofre. — Jameson parou a mais ou
menos trinta centímetros de mim. — Mas nem eu sei onde fica.
Precisei de toda minha força para me concentrar no que ele
estava dizendo — e não no corpo dele.
— Como isso é possível?
Jameson deu de ombros, a água lambendo seus ombros e peito.
— Tudo é possível.
Engoli em seco.
— Eu poderia pedir para vê-lo. — Fiz o que pude para parar de
encará-lo e pigarreei. — O cofre.
— Poderia — Jameson concordou, com um daqueles sorrisos
devastadores de Jameson Winchester Hawthorne. — Você é quem
manda.
Desviei o olhar. Foi necessário, porque de repente me lembrei do
pouco que aquele biquíni cobria.
— Nós só precisamos achar a aliança de casamento que seu avô
deixou para sua tia. — Tentei continuar distante. — Então, de
alguma maneira, esse anel vai nos ajudar a tornar a tinta invisível
um pouco mais…
— Visível? — Jameson sugeriu. Ele se inclinou na minha direção
para olhar nos meus olhos. Por três segundos inteiros, nenhum de
nós conseguia desviar o olhar. — Tá bom, Herdeira — Jameson
murmurou. — No que eu estou pensando agora?
Eu avancei, e, simples assim, nossos corpos estavam separados
por meros centímetros.
— Não é na aliança — falei.
Deixei minha mão subir para a superfície da água.
— Não — Jameson concordou, a voz baixa e convidativa. — Não
é na aliança. — Ele ergueu uma das mãos até a minha. Nós não
nos tocamos, não exatamente. Ele deixou o braço flutuar, a um fio
de cabelo da minha pele submersa. — A questão é: — Jameson
disse, cortando as enrolações — no que você está pensando?
Virei a mão e toquei a dele, elétrica.
— Não na aliança.
Pensei em Max me dizendo que eu podia querer as coisas.
Naquele momento, eu só queria uma coisa.
Só pensava em uma coisa.
Eu me mexi de novo na água. O resto do espaço entre nós
desapareceu. Levei a boca à de Jameson e ele me beijou, com
força. Meu corpo se lembrava. Eu o beijei de volta.
Era como se a jacuzzi estivesse pegando fogo, como se nós dois
estivéssemos ardendo e eu só quisesse arder mais. As mãos dele
encontraram as laterais do meu rosto. As minhas estavam enfiadas
no cabelo dele.
— Isso não é de verdade — murmurei quando a boca dele
começou a descer pelo meu pescoço, na direção da água.
— Me parece bem de verdade.
Jameson estava sorrindo, mas não deixei que me enganasse.
— Nada é de verdade para você — sussurrei, mas a mágica era
que eu não me importava. Não precisava ser de verdade para ser
certo. — Isso… nós dois… — Deixei minha boca roçar a dele. —
Não precisa ser nada além do que é. Sem sentimentos complicados.
Sem obrigações. Sem promessas. Sem expectativas.
— Só isso — Jameson sussurrou e puxou meu corpo com força
contra o seu.
— Só isso.
Era melhor do que andar na garupa de uma moto indo a
quinhentos quilômetros por hora, ou subir em telhados a cinquenta
andares de altura. Não era só a adrenalina, nem o perigo. Eu me
sentia completamente, absolutamente no controle. Eu me sentia
irrefreável.
Como se nós fôssemos irrefreáveis.
E então, sem aviso, Jameson congelou.
— Não se mexa — ele sussurrou, sua respiração visível no ar
entre os nossos lábios. — Oren? — Jameson chamou.
Eu fiz o que ele me disse para não fazer. Me mexi, girando o rosto
na direção da floresta, minhas costas para ele, para ver o que ele
estava vendo. Um movimento. E olhos.
— Eu cuido dela — Oren disse a Jameson, e, de repente, meu
chefe de segurança me puxou para fora da jacuzzi.
O ar gelado me atropelou como um caminhão. Adrenalina correu
por mim quando Oren bradou uma ordem:
— Eli, vai!
O guarda mais jovem, posicionado perto das árvores, saiu
correndo na direção do intruso. Eu tentei seguir seus movimentos,
como se fazer isso de alguma forma pudesse me deixar mais
segura. Eu estou bem. Oren está aqui. Estou bem. Então por que eu
não conseguia me lembrar de como se respirava?
Oren me empurrou para dentro de casa.
— O que foi isso? — perguntei, ofegante. — Quem era? — Meu
cérebro deu a partida. — Paparazzi? Tiraram fotos?
A ideia era aterrorizante.
Oren não respondeu. Em algum nível, notei que Grayson tinha
ouvido a comoção. Alguém enrolou uma toalha em volta de mim.
Não foi Jameson. Nem Grayson.
Levou cinco minutos até Eli voltar.
— Eu o perdi.
Ele estava ofegante.
— Paparazzi? — Oren perguntou.
Os olhos azuis brilhantes de Eli se apertaram até que tudo que eu
conseguia ver era o círculo âmbar no meio.
— Não. Era um profissional.
A frase caiu como uma bomba. Senti meus ouvidos latejarem.
— Um profissional de quê? — perguntei.
Oren não respondeu.
— Faça as malas — ele me disse. — Vamos embora ao
amanhecer.
CAPÍTULO 48

Olhei pela janela do avião, observando a montanha ficar cada vez


menor e mais distante até o jatinho atingir a altitude de cruzeiro. Eu
mal tinha dormido, mas não me sentia cansada.
— O que Eli quis dizer com profissional? — perguntei. —
Profissional de quê? — Desviei minha atenção da vista lá fora para
Max, que estava sentada ao meu lado. Eu a tinha atualizado de
tudo, do incidente de segurança e da jacuzzi. — Um detetive
particular? Um espião?
— Um assassino! — Max disse alegremente. Ela lia muitos livros
e assistia a muitas séries de TV. — Desculpa. — Ela ergueu uma
mão e tentou parecer menos animada com a última reviravolta. —
Assassinos, ruim. Tenho certeza de que o cara no bosque não era
um assassino letal de uma liga milenar de assassinos mortais.
Provavelmente.
Antes de herdar, eu teria dito a Max que ela estava doida, mas
“Quem iria querer me matar?” não era uma pergunta mais tão sem
sentido. Era uma pergunta com respostas. Skye. Pensei no
confronto com Ricky na festa. Libby tinha brigado com ele também.
Se ela tinha dito a ele que eu estava me emancipando, se ele
dissera a Skye que o bilhete premiado estava indo embora…
O que exatamente eles fariam? Ele é um dos meus herdeiros. Se
algo acontecer comigo…
— Ninguém vai te machucar. — Grayson estava sentado na
minha frente, Jameson ao seu lado. — Não é, Jamie? — O tom de
Grayson ficou mais áspero. Tive a sensação de que ele não estava
falando só do homem na floresta.
— Se eu não tivesse tanta confiança em nosso afeto fraterno um
pelo outro — Jameson respondeu, lânguido —, acharia esse
comentário um pouco agressivo.
— Agressivo? — Xander repetiu, falsamente horrorizado. —
Gray? Nunca.
— Então — eu disse antes que a situação pudesse piorar —,
quem está a fim de um amigável jogo de pôquer?

— Eu pago.
Encarei Thea. Ela era boa de pôquer, mas eu era melhor.
Thea baixou a mão: um full house. Eu baixei a minha: o mesmo.
Mas áses eram altos, e eu tinha dois. Fui coletar as apostas, mas
Jameson me impediu.
— Não tão rápido, Herdeira. Eu ainda estou dentro. E eu tenho…
— Ele me deu um sorrisinho malandro que me fez sentir que estava
de volta na jacuzzi. — Nada.
Ele mostrou as cartas.
— Você sempre falou demais — Thea disse.
Ao lado dela, o celular de Rebecca tocou. Rebecca olhou para
ele. Dessa vez, quando Thea foi pegá-lo, Rebecca foi mais rápida.
— Não.
O celular tocou de novo. E de novo. Thea conseguiu ver a tela e
sua expressão mudou.
— É sua mãe. — Thea tentou fazer Rebecca olhar para ela. —
Bex?
Rebecca desligou o celular.
— Não foi isso que eu quis dizer — Thea disse. — Talvez você
devesse ver o que ela quer.
Rebecca pareceu se curvar um pouco.
— Eu já estou quase em casa.
— Bex, sua mãe…
— Não me diga do que ela precisa. — A voz de Rebecca era
suave, mas todo seu corpo parecia vibrar intensamente. — Você
acha que eu não sei que ela não está bem? Você honestamente
acha que eu preciso que você me diga isso?
— Não, eu…
— Ela olha para mim e é como se eu nem estivesse lá. —
Rebecca encarou tanto a mesa que parecia que ia furá-la. — Talvez
se eu fosse mais parecida com Em, talvez se eu fosse melhor em
ser importante…
— Você é importante. — A voz de Thea era quase gutural.
— Sabe — Max disse desconfortável —, essa conversa parece
meio particular, então talvez…
— Não o suficiente. — A voz de Rebecca ficou frágil. — Foi
divertido correr por aí, brincar de detetive, fingir que o mundo real
não existe, mas não pode ser só assim.
— Assim como? — Thea pegou a mão de Rebecca.
— Assim. Você encontrando motivos para encostar em mim. —
Rebecca puxou sua mão da de Thea. — Eu deixando. Você era o
meu mundo e eu teria feito qualquer coisa por você. Mas eu te
implorei para não encobrir Emily naquela noite e você…
— Não faça isso. — Se Thea fosse qualquer outra pessoa, ela
pareceria estar implorando.
— Se eu fosse melhor em ser importante… — Rebecca falou
mais alto. — Se, uma vez na minha vida, eu tivesse sido suficiente
para alguém, para a menina que eu amava, minha irmã talvez ainda
estivesse viva.
Thea não tinha resposta. Fez-se silêncio de novo. Um silêncio
dolorido, desconfortável, torturante.
Foi Jameson quem acabou com o sofrimento de Thea.
— Então, Herdeira — ele disse, mudando de assunto como quem
joga uma coberta na fogueira. — Como vamos fazer para conseguir
aquele anel?
CAPÍTULO 49

Quando voltamos à Casa Hawthorne, pedi a Oren para me mostrar


o misterioso cofre dos Hawthorne. Ele me levou para vê-lo, sozinha.
Nós ziguezagueamos pelos corredores até chegarmos a um
elevador. Quando a porta do elevador se abriu e me preparei para
entrar, Oren me impediu. Ele apertou o botão de chamar mais uma
vez, segurando o indicador sobre ele.
— Escaneamento de digital — ele me disse.
Depois de um momento, a parede dos fundos do elevador
começou a deslizar, revelando uma pequena passagem.
— O que acontece se alguém abrir a porta enquanto o elevador
está em outro andar? — perguntei.
— Nada. — Os lábios de Oren se abriram em um sorriso muito
sutil. — A passagem só se abre se o elevador estiver presente.
— Quais digitais podem abrir? — perguntei.
— Nesse momento? — Oren devolveu. — As minhas e as de
Nan.
Não as de Zara. Não as de Skye. E não as minhas. No
testamento de Tobias Hawthorne, ele tinha deixado todas as joias da
esposa para a mãe dela. Quando o testamento foi lido, aquilo tinha
parecido trivial, mas, enquanto caminhávamos na direção de uma
porta de cofre verdadeira — do tipo que você esperaria ver em um
banco —, não parecia mais trivial.
— Se tudo no cofre dos Hawthorne pertence a Nan… — comecei
a dizer.
— Não é tudo — Oren interrompeu. — Nan tem as joias da
falecida sra. Hawthorne, mas o sr. Hawthorne também tinha uma
coleção impressionante de relógios e anéis, além de peças que ele
comprou por motivos artísticos e sentimentais. As joias da sra.
Hawthorne foram passadas para Nan, mas muitas peças com
qualidade de museu são suas.
— Qualidade de museu? — Eu engoli em seco. — Estou me
preparando para ver as joias da coroa?
Eu só estava meio brincando.
— De que país? — Oren respondeu, e não estava brincando. —
Qualquer coisa com valor de mais de dois milhões de dólares fica
fora da propriedade, em um lugar mais seguro.
A tranca do cofre soltou. Oren girou a alavanca da porta e a abriu.
Prendendo a respiração, entrei em uma sala de aço ladeada, do
chão ao teto, por gavetas de metal. Fui até uma aleatoriamente.
Quando a abri, vitrines surgiram: três, cada uma com um par de
brincos estilo lágrima: diamantes, maiores do que o de qualquer
anel de noivado que eu já tivesse visto. Abri mais três ou quatro
gavetas e pisquei. Várias vezes.
Meu cérebro se recusava a computar.
— Você está procurando por algo em particular? — Oren me
perguntou.
Desviei os olhos de um rubi com metade do tamanho do meu
punho.
— A aliança — consegui dizer. — De Tobias Hawthorne.
Oren me encarou por um ou dois segundos, então foi até a
parede do fundo. Ele puxou uma gaveta, então outra e eu me vi
encarando uma dúzia de relógios Rolex e um par de abotoaduras de
prata.
— O anel está escondido? — perguntei, meus dedos indo para
um dos relógios.
— Se o anel não está nessa gaveta, ele não está aqui — Oren
disse. — Meu palpite é que o sr. Hawthorne o colocou no envelope
que foi dado para Zara na leitura do testamento.
Em outras palavras, eu estava cercada por uma fortuna em joias,
mas a única coisa de que precisava não estava ali.
CAPÍTULO 50

— Você vai precisar de ajuda se quiser procurar na ala de Zara.


Grayson aparentemente estava falando sério quando prometeu
me ajudar a ir até o fim daquilo.
— Gray é ótimo em distrações — Jameson disse solenemente. —
Atribuo isso a sua impressionante habilidade de ser chato e prolixo
quando necessário.
Grayson não mordeu a isca.
— Vamos precisar garantir que Constantine fique longe também.
— Eu também sou excelente na arte da distração — Max
ofereceu. — Atribuo isso a minha habilidade de imitar qualquer um
de meus espiões fictícios quando necessário.
— Grayson e Max podem cuidar do perímetro. — A voz de
Xander estava estranhamente baixa. — Jameson, Avery e eu
examinamos a ala.
Rebecca tinha sumido no momento em que o avião aterrissou.
Thea não tinha se demorado muito depois que Rebecca foi embora.
O time de Xander o tinha abandonado, mas ele não ia recuar.
Ele não ia deixar Jameson e eu procurarmos o anel sozinhos.
— Essa é uma péssima ideia. — Eli nem fingiu que não estava
ouvindo.
E é por isso que esperamos até Oren estar de folga, pensei.

A porta da ala de Zara tinha pelo menos três metros de altura — e


estava trancada.
— Você quer arrombar? — Jameson perguntou a Xander. — Ou
eu faço isso?
Dois minutos depois, nós três estávamos dentro. Grayson e Max
tinham ficado para trás e assumido postos nas pontas do corredor.
Eli resmungou enquanto me seguia para dentro da fera.
Uma rápida inspeção me mostrou que havia sete portas ao longo
do corredor principal da ala de Zara. Atrás de três delas
encontramos quartos, cada um do tamanho de uma suíte inteira.
Duas das três suítes estavam claramente sendo usadas.
— Zara e o marido dormem em quartos diferentes? — perguntei a
Jameson.
— Não sei — ele respondeu.
— Não quero saber — Xander acrescentou, animado.
Vi sapatos masculinos em um quarto. O outro estava imaculado.
Zara. Havia uma lareira de mármore perto do fundo do quarto.
Estantes embutidas cobriam a parede à esquerda. Havia livros nas
estantes, volumes grossos com capas de couro. O tipo de livro que
uma pessoa exibia, não lia.
— Se eu fosse uma pessoa cujas estantes são assim — murmurei
—, onde eu guardaria minhas joias?
— No cofre — Xander respondeu, cutucando um entalhe na
parede.
Jameson passou por mim, deixando seu corpo esbarrar no meu.
— E esse cofre — Jameson me disse — com certeza está
escondido.
Levou dez minutos para nossa busca compensar: um controle
remoto grudado em uma estante, atrás de um dos livros com capa
de couro. Eu o puxei da parede e olhei melhor o controle, que tinha
só um botão.
— Bem, Herdeira… — Jameson me lançou um sorriso. — Faz as
honras?
Vendo aquele sorriso, voltei para a jacuzzi. Não havia motivo para
pensar naquilo. Nenhum motivo para pensar em Jameson daquela
forma no momento.
Apertei o botão.
Quando as enormes estantes começaram a se mexer,
desaparecendo lentamente para dentro das paredes, encarei o que
estava escondido atrás delas.
— Mais estantes — constatei, confusa. — E… mais livros?
Fileiras de edições econômicas estavam empilhadas, duas por
prateleira. Romances. Ficção científica. Mistérios e histórias
paranormais. Tentei imaginar Zara lendo uma história romântica, ou
uma ópera espacial, ou o tipo de mistério que tinha um gato e uma
bola de lã na capa — e não consegui.
— Se tirarmos os livros dessas estantes vamos encontrar outro
controle? — Xander postulou. — E mais estantes? E outro controle?
E… — Ele se interrompeu.
Levei um segundo para perceber o que ele tinha ouvido: o som de
saltos contra o chão de madeira.
Zara.
Jameson me puxou para dentro do armário. Se estava difícil não
pensar na jacuzzi antes, ali era impossível.
— Parabéns para a distração de Gray — ele murmurou no meu
pescoço enquanto me puxava para perto e desaparecíamos no que
pareciam araras infinitas de roupas.
Fiquei imóvel, mal respirando e consciente demais de que ele
estava fazendo a mesma coisa atrás de mim.
Xander deve ter se escondido também, porque, por muitos
segundos, o único som no quarto foi o baque dos saltos de Zara.
Mandei meu coração parar de bater com tanta força, tentando me
manter concentrada em acompanhar os movimentos de Zara — não
na forma como o meu corpo estava encaixado no de Jameson.
Não no fato de sentir o coração dele batendo também.
Os passos pararam logo em frente ao armário. Eu senti a
respiração de Jameson na minha nuca e contive um calafrio. Não se
mexa. Não respire. Não pense.
— O guarda-costas na porta entrega o jogo — Zara falou, a voz
clara como um sino e afiada como uma faca. — É melhor vocês
saírem.
Jameson pressionou um dedo contra os meus lábios, então saiu
de nosso esconderijo, me deixando no escuro, ainda sentindo o
fantasma de seu toque.
— Eu esperava que pudéssemos conversar — ele disse à tia.
— Claro — Zara respondeu suavemente. — Afinal, a melhor
forma de começar uma conversa frequentemente envolve se
esconder no armário do seu parceiro de conversa. — Ela espiou
para além de Jameson, examinando as araras de roupas onde eu
ainda estava escondida. — Estou esperando.
Depois de um longo momento, eu saí.
— Agora — Zara disse —, explique.
Engoli em seco.
— Seu pai te deixou a aliança dele.
— Eu sei — Zara respondeu.
— Vinte anos atrás, quando o velho revisou o testamento pela
primeira vez para deserdar vocês, ele te deixou exatamente a
mesma coisa. — Jameson acrescentou.
Zara arqueou uma sobrancelha para nós.
— E?
— Podemos vê-la? — Isso foi Xander, que tinha posto a cabeça
para fora do banheiro. Embora tivesse sido ele quem fez a pergunta,
fui eu quem recebi a resposta.
— Me permita entender — Zara disse, olhando por cima de
Jameson, bem na minha direção. — Você, para quem meu pai
deixou basicamente tudo, quer a única coisa que ele deixou para
mim?
— Dito dessa forma — Max disse, aparecendo na porta —,
parece meio esgoto.
Atrás dela, pude ver Eli. Ele não agia como se Zara fosse uma
ameaça.
— Cinco minutos. — Jameson entrou em modo de negociação. —
Só nos dê cinco minutos com a aliança. Deve ter algo que você
quer. Dê sua oferta.
Mais uma vez, a atenção de Zara se concentrou em mim.
— Cinco milhões de dólares. — O sorriso dela nem chegou perto
de tocar os olhos. — Eu dou a vocês cinco minutos com a aliança
do meu pai — ela anunciou — pela pechincha de cinco milhões de
dólares.
CAPÍTULO 51

— Cinco milhões de dólares? — repeti enquanto saíamos da ala


de Zara e íamos ao escritório de Tobias Hawthorne para traçar uma
estratégia. — Cinco. Milhões. De. Dólares. Zara acha mesmo que
Alisa vai concordar em assinar um cheque desses?
O testamento ainda estava em condicional. Mesmo depois que o
espólio fosse processado, eu era menor de idade. Havia
responsáveis. Eu quase conseguia ouvir minha advogada jogando
termos como dever fiduciário.
— Ela está brincando com a gente.
Jameson parecia mais compenetrado do que indignado.
Grayson inclinou sua cabeça para o lado.
— Talvez seja sensato…
— Eu consigo o dinheiro — Xander soltou.
Os irmãos o encararam.
— Você quer pagar cinco milhões de dólares para Zara nos
mostrar a aliança do seu avô? — eu disse, chocada.
— Espera. — Grayson estreitou os olhos. — Você tem cinco
milhões de dólares?
Todo ano, nos aniversários deles, os netos Hawthorne ganhavam
dez mil dólares para investir. Xander tinha passado anos enfiando a
parte dele em criptomoeda, então vendeu tudo na hora certa, e
aquele dinheiro não era parte do espólio de Tobias Hawthorne. Era
de Xander — e aparentemente os irmão dele não sabiam do fato até
o momento.
— Olha, bacaca — Max disse, apontando um dedo para Xander
—, ninguém vai dar cinco milhões para ninguém. Nós só temos que
dar outro jeito de conseguir a aliança.
— Você ainda é menor de idade — Grayson disse a Xander em
voz baixa. — Se Skye descobrir que você tem esse dinheiro…
— Está em um fundo — Xander garantiu a ele. — Nash é o
responsável. Skye não vai chegar nem perto.
— E você acha que Nash vai te deixar fazer um cheque de cinco
milhões de dólares para Zara? — perguntei, incrédula.
Parecia tão provável quanto Alisa me deixar acessar os fundos.
— Eu posso ser muito persuasivo — Xander insistiu.
— Tem outro jeito. — Jameson tinha aquela expressão no rosto, a
que me dizia que ele tinha encontrado um jeito de passar esse jogo
de xadrez para três dimensões. — Nós faremos uma troca.
Grayson apertou os olhos.
— E o que, precisamente, você acha que nossa tia iria trocar pela
aliança de casamento do pai dela?
Jameson sorriu para mim enquanto respondia, como se eu e ele
estivéssemos naquilo juntos. Como se ele esperasse que eu
antecipasse suas palavras.
— A da mãe dela.

***

Eu não sabia muito sobre a falecida Alice O’Day Hawthorne, mas


sabia quem tinha herdado suas joias. Encontramos Nan na sala de
música, sentada em uma pequena poltrona, olhando pelas janelas
que iam do chão ao teto e davam vista para a piscina e a
propriedade além dela.
— Não fiquem parados aí — Nan ordenou sem se virar. —
Ajudem uma velha senhora.
Nós entramos na sala. Grayson ofereceu um braço para a bisavó,
mas ela olhou além dele, para mim.
— Você, menina.
Eu a ajudei a se levantar. Nan se apoiou na bengala e examinou
nós cinco.
— Quem é essa aí? — a velha resmungou, apontando Max com a
cabeça.
— É minha amiga, Max — Xander respondeu.
— Sua amiga Max? — repeti.
— Eu prometi construir um drone para ela — Xander disse
alegremente. — Agora somos amigos íntimos. Mas essa não é a
questão.
— Nós precisamos da sua ajuda, Nan. — Grayson voltou para o
motivo de estarmos aqui.
— Precisam, é?
Nan riu do bisneto, então olhou para mim. Ela estava com a cara
fechada, mas o raio de esperança em seus olhos era de partir o
coração.
Sem querer, pensei nos Laughlin me dizendo o quanto eu estava
sendo cruel por brincar com a velha senhora. Nan amava Toby. Ela
queria que nós o encontrássemos.
Vamos esperar que ela queira o suficiente para nos dar o anel.
Respirei fundo.
— Nós encontramos uma mensagem que seu genro deixou para
Skye, logo depois do desaparecimento de Toby. — Mensagem
provavelmente era esticar um pouco a coisa, mas era menos
complicado do que a verdade. — Achamos que o velho deixou uma
mensagem similar para Zara e que, juntas, elas podem nos levar até
Toby de alguma maneira.
— Mas, para termos o que precisamos de Zara — Jameson
interrompeu —, precisamos oferecer algo em retorno.
— E o que seria esse algo?
Nan apertou os olhos.
Jameson olhou para Grayson. Nenhum deles queria dizer.
— Nós precisamos da aliança de casamento da sua filha — eu
disse simplesmente. — Para podermos trocá-la pela do seu genro.
Nan bufou.
— Zara sempre foi uma coisinha estranha e quieta.
— Sinto que vem uma história por aí. — Xander esfregou as
mãos. — Nan conta as melhores histórias.
Nan atacou-o com a bengala.
— Não tente me amolecer, Alexander Hawthorne.
— É isso que estou fazendo? — Xander perguntou
inocentemente.
Nan fechou a cara, mas ela não conseguia resistir ao público.
— Zara era uma criança tímida, que gostava de livros. Diferente
da minha Alice, que gostava de atenção. Eu lembro quando Alice
estava grávida de Zara, o quanto ela estava exultante com a ideia
de ter uma garotinha para mimar. — Nan sacudiu a cabeça. — Mas
Zara nunca gostou muito de ser mimada. Isso enlouquecia minha
Alice. Eu dizia a ela que a menina só era sensível, que só precisava
endurecer um pouco. Eu disse a ela que era com Skye que ela
precisava se preocupar. Aquela criança saiu sapateando do útero.
Pensei na foto de Toby, Zara e Skye. Eles pareciam tão felizes —
antes de Toby descobrir os segredos e as mentiras, antes de Skye
ficar grávida de Nash, antes de Zara passar de quieta e leitora para
a força gelada e hipercontrolada que se tornou.
— Quanto à aliança — Jameson disse, colocando seu charme em
ação. — O velho deixou para Zara a mesma coisa em vários
testamentos: seu anel de casamento para que ela ame tão completa
e consistentemente quanto eu amei a mãe dela. Essa aliança é uma
pista.
— Não muito. Consistentemente? — Nan resmungou. —
Completa? Deixando para a própria filha uma maldita aliança e mais
nada? Tobias nunca foi tão sutil quanto ele gostava de pensar.
Levei um segundo para entender o que ela estava dizendo. Ele
deixou para Zara sua aliança de casamento e uma mensagem a
respeito de ser constante no amor para dizer algo.
— Constantine é o segundo marido de Zara. — Grayson não
deixava passar nada. — Vinte anos atrás, quando Toby
desapareceu, Zara era casada com outra pessoa.
— Ela estava tendo um caso — Xander não formulou a frase
como uma pergunta.
Nan se virou para a janela e encarou a propriedade.
— Eu dou a vocês o anel de Alice — ela disse abruptamente. Ela
começou a andar lentamente em direção à porta e vi Eli parado ali
fora. — Quando o derem a ela, digam a Zara que não vou julgá-la.
Ela endureceu bem e todos nós fazemos o que precisamos fazer
para sobreviver.
CAPÍTULO 52

A aliança de casamento de Alice Hawthorne não era o que eu


tinha imaginado. O diamante, um único, era pequeno. Os anéis, que
tinham sido grudados, eram finos e feitos de ouro. Eu estava
esperando platina e uma pedra do tamanho do nó do meu dedo,
mas aquela não era uma joia extravagante.
Parecia ter custado algumas centenas de dólares, no máximo.
— Você devia levá-lo a ela. — Jameson desviou o olhar do anel
para o meu rosto. — Sozinha, Herdeira. Zara obviamente vê isso
como uma questão entre vocês duas.
Vi algo escrito na parte interna do anel: 8-3-75. Uma data, pensei.
Oito de março de mil novecentos e setenta e cinco. A data do
casamento?
— Avery? — Grayson deve ter visto algo no meu rosto. — Tudo
certo?
Peguei meu celular e tirei uma foto da parte interna do anel.
— Hora de fazer uma troca.

***

— Nan só… te deu? — Zara não conseguiu evitar engasgar nessas


palavras. — Legalmente. Ela transferiu a posse para você.
Senti que aquilo podia dar errado muito rápido, então repeti por
que estava ali.
— Nan me deu esse anel para trocar com você pelo do seu pai.
Zara fechou os olhos. Eu me perguntei o que ela estaria
pensando, do que ela estaria se lembrando. Então, Zara pegou uma
corrente delicada em volta do pescoço e puxou um grosso anel de
prata de dentro da camisa de renda. Ela fechou o punho em volta
dele, então abriu os olhos.
— O anel do meu pai — ela concordou com a voz rouca — em
troca do da minha mãe.
A mão dela tremeu ao abrir o fecho da corrente. Eu lhe dei o anel
de Alice Hawthorne e ela me deu o anel do velho. Incapaz de resistir
ao impulso, girei o anel na minha mão em busca da inscrição e lá
estava — outra data: 9-7-48.
— A data de nascimento dele? — perguntei, tateando no escuro.
Zara não precisava olhar o anel para saber do que eu estava
falando. Era a única coisa que o pai tinha deixado para ela. Eu não
tinha dúvidas de que ela o tinha analisado com pente fino.
— Não — Zara disse, rígida.
— Da sua mãe?
— Não.
Ela respondeu de uma forma que claramente desencorajava mais
perguntas, mas eu precisava fazer uma última.
— E oito de março de mil novecentos e setenta e cinco? Foi o dia
em que eles se casaram?
— Não, não foi — Zara respondeu. — Agora, se você puder, por
favor, pegar esse anel e sair, eu agradeço.
Andei na direção da porta, então hesitei.
— Você não ficou curiosa? — perguntei a Zara. — Com a
inscrição?
Silêncio. Comecei a achar que ela não tinha intenção de
responder, mas, assim que fechei a mão em volta da maçaneta,
Zara me surpreendeu.
— Não precisei ficar curiosa — ela disse, tensa.
Olhei de volta para ela.
Zara sacudiu a cabeça, segurando com firmeza o anel da mãe.
— É um código, óbvio. Um dos joguinhos dele. Eu deveria
decodificá-lo. Seguir a pista até onde ela me levar.
— E por que não fez isso?
Se ela sabia que havia um sentido na herança, por que não tinha
jogado?
— Porque não quero saber o que mais meu pai tinha a dizer —
Zara apertou os lábios, e algo na expressão dela a fez parecer
décadas mais jovem. Vulnerável. — Nunca fui suficiente para ele.
Toby era seu favorito, depois Skye. Eu era a última, não importava o
que fizesse. Isso nunca ia mudar. Ele deixou sua fortuna para uma
completa desconhecida em vez de deixá-la para mim. O que mais
eu poderia precisar saber?
Zara não parecia mais tão formidável.
— Nan disse para eu te dizer algo. — Eu pigarreei. — Ela disse
para te dizer que todos nós fazemos o que precisamos para
sobreviver.
Zara soltou uma risada baixa e seca.
— É a cara dela. — Ela parou. — Eu nunca fui a favorita dela
também.
A árvore é veneno, Toby havia escrito. Percebeu? Envenenou S e
Z e eu.
— Seu pai também deixou uma pista para Skye.
Eu não sabia por que estava dizendo aquilo. Eu não deveria estar
dizendo nada. Grayson tinha sido muito claro em seu aviso: Zara e
Skye não podiam descobrir que Toby estava vivo.
— Em Verdadeiro Norte, imagino?
Zara de fato era uma Hawthorne. Ela tinha visto o significado do
testamento. Ela só não se importava. Não, pensei. Ela se importava.
Ela só não ia dar a ele a satisfação de jogar.
— Ele deixou uma foto para Skye — eu disse, baixo. — De você,
ela e um cara chamado Jake Nash.
Zara prendeu a respiração. Parecia que eu tinha dado um tapa
em seu rosto.
— Agora seria um bom momento para você ir embora — ela
disse.
No caminho, deixei a aliança de seu pai em uma mesinha. Eu já
tinha decorado a data, tinha conseguido o que precisava.
Não tinha motivo para eu tirar aquilo dela também.
CAPÍTULO 53

Tarde da noite, nós cinco mergulhamos na história da família


Hawthorne, procurando significado naquelas datas. Oito de março
de 1975. Nove de julho de 1948. Tobias Hawthorne tinha nascido
em 1944. Alice tinha nascido em 1948 — mas em fevereiro, não
julho. Eles tinham se casado em 1974. Zara havia nascido dois anos
depois, Skye, três anos depois disso, e Toby, dois anos depois, em
1981. Tobias Hawthorne tinha pedido sua primeira patente em 1969.
Ele fundou sua primeira empresa em 1971.
Um pouco antes da meia-noite, recebi um telefonema de Libby.
Atendi com uma pergunta.
— Encontrou alguma coisa?
Nós podíamos estar em um beco sem saída, mas Libby tinha
passado horas em New Castle. Ela tinha tido tempo de perguntar
por Harry. Tempo de procurar por ele.
— Ninguém na cozinha voluntária o vê há semanas. — O tom da
minha irmã era difícil de entender. — Então tentamos o parque.
— Libby? — Eu conseguia ouvir meu coração batendo no silêncio
que se seguiu. — O que você encontrou?
— Nós falamos com um homem mais velho. Frank. Nash tentou
suborná-lo.
— Não funcionou, não é? — perguntei. Mais silêncio. — Lib?
— Ele não ia contar nada, mas então ele me olhou por um minuto
e perguntou se meu nome era Avery. Nash disse que era.
Eu deveria ter estado lá. Deveria ter sido eu falando com Frank.
— O que ele disse?
— Ele me deu um envelope com seu nome. Uma mensagem de
Harry.
O mundo parou. Toby tinha me deixado uma mensagem. Eu
queria parar o pensamento aí, mas não consegui. Meu pai… me
deixou… uma mensagem.
— Tire uma foto do envelope — eu disse a Libby, recuperando
minha voz. — E da carta. Eu mesma quero lê-la.
— Ave… — A voz de Libby ficou muito baixa.
— Tira logo! — eu disse com urgência. — Por favor.
Menos de um minuto depois, as fotos chegaram. Meu nome
estava escrito no envelope, em uma letra conhecida, parte cursiva,
parte de forma. Fui para a próxima foto — a mensagem — e meu
coração afundou até o estômago.
As únicas palavras que Toby Hawthorne tinha para mim eram
PARE DE PROCURAR.

Eu não conseguia dormir. O dia seguinte era segunda-feira. Eu tinha


aula e, daquele jeito, iria encarar o teto a noite toda. Saí da cama,
fui até o armário e puxei a mala esgarçada que tinha trazido de
casa. Abri o bolso lateral e puxei os cartões-postais da minha mãe
— a única coisa que eu tinha dela.
Eu tenho um segredo. Eu conseguia ouvi-la falando. Conseguia
ver seu sorriso, como se ela estivesse comigo.
— Por que você não me contou logo? — sussurrei.
Por que ela tinha fingido que meu pai era outra pessoa? Por que
Toby não tinha sido parte da minha vida?
Por que ele não queria que eu procurasse por ele agora?
Algo se partiu dentro de mim, e, antes que notasse, eu estava
andando. Para fora do meu quarto, passando por Oren, que estava
posicionado em frente a minha porta. Mal ouvi suas reclamações.
Meu passo acelerou, e, quando virei para a ala de Toby, eu já estava
correndo.
A parede de tijolos me recebeu. Os Laughlin pensaram que a ala
de Toby não era da minha conta. Tinham me avisado para manter
distância. Eu tinha entrado no meu quarto e o encontrado
ensanguentado, e, naquele momento, eu não me importava se eles
tinham feito aquilo, ou se fora qualquer outro membro da equipe. Eu
não me importava com quem estava me perseguindo no bosque em
Verdadeiro Norte, ou quem tinha “decorado” meu armário. Eu não
me importava com Ricky Grambs, com Skye Hawthorne, nem com
os nós dos meus dedos que ralei ao socar a parede.
Toby achava que podia me mandar parar de procurar? Ele não
queria ser encontrado?
Ele não tinha o direito de me mandar parar. Ninguém tinha. Oren
me segurou e eu lutei contra ele. Eu queria lutar com alguém. Oren
me permitiu. Ele não ia deixar que eu me machucasse, mas não ia
me impedir de descontar nele. Aquilo só me deixou com mais raiva.
Eu me soltei dele e avancei na direção dos tijolos.
— Herdeira.
De repente, Jameson estava entre mim e a parede. Tentei parar,
mas não consegui a tempo e meu punho encontrou o peito dele. Ele
nem piscou.
Abri a mão, encarando-o, percebendo o que tinha acontecido e
horrorizada por ter batido nele.
— Desculpa.
Eu não tinha motivo para perder o controle assim. Toby tinha me
dito para parar de procurar? Ele não queria ser encontrado? E daí?
Por que isso importava para mim?
— Me diga do que você precisa.
Jameson não estava flertando. Ele não estava sendo enigmático.
Ele não estava me usando, não que eu conseguisse notar.
Soltei um suspiro longo e cansado.
— Preciso derrubar essa maldita parede.
Jameson fez que sim. Ele olhou para Oren parado atrás de mim.
— Vamos precisar de uma marreta.
CAPÍTULO 54

Tijolo por tijolo, derrubei a parede, e, quando meus braços não


conseguiam mais levantar a marreta, Jameson assumiu meu lugar.
Com um último golpe, ele abriu espaço suficiente para que eu
passasse pelos destroços.
Jameson entrou atrás de mim.
Oren nos deixou ir. Ele nem tentou ir atrás. Ficou posicionado na
entrada da ala de Toby, vigiando caso alguém decidisse que não
deveríamos estar ali.
— Você deve achar que fiquei doida.
Olhei para Jameson enquanto caminhava pelo chão de mármore
do corredor de Toby.
— Eu acho — Jameson murmurou — que você finalmente se
soltou.
Eu me lembrei da sensação da sua pele sob meus dedos na
jacuzzi. Aquilo era me soltar. Isso era eu, me agarrando a alguma
coisa. Eu nem sabia a quê.
— Ele não quer que eu o encontre.
Dizer as palavras em voz alta as tornava concretas.
— O que sugere — Jameson acrescentou — que ele acha que
nós podemos conseguir.
Nós.
Entrei no quarto de Toby. As luzes negras ainda estavam lá.
Jameson as ligou. O texto ainda estava, literalmente, nas paredes.
— Eu venho pensando — Jameson disse como se fosse uma
confissão, como se a mente dele não estivesse sempre em
movimento. — O velho não deixou uma tarefa impossível para
Xander. Ele deixou um jogo, feito originalmente para Zara e Skye. E
isso significa que, se seguirmos isso até o fim, vai ter um fim. Isso
tudo está levando a algum lugar. Eu consigo sentir.
Dei um passo na direção dele. Então outro. E mais outro.
— Você também consegue sentir, né? — Jameson disse quando
cruzei o espaço entre nós.
Eu conseguia sentir. A caçada ganhando força. A perseguição se
fechando. Em algum momento, descobriríamos o que as datas nos
anéis significavam. Nós estávamos indo em frente. Jameson e eu.
Eu o pressionei contra a parede do armário. Eu via as letras de
Toby em volta dele, mas não queria pensar em Toby, que tinha me
mandado parar de procurar por ele.
Não queria pensar em nada, então beijei Jameson. Daquela vez,
não foi forte, nem frenético. Foi suave, lento, aterrorizante e perfeito.
E, pela primeira vez na vida, eu não me senti sozinha.
CAPÍTULO 55

No dia seguinte, na escola, não esperei que Jameson fosse atrás


de mim. Eu fui atrás dele.
— E se os números não forem datas?
A pergunta o fez deixar escapar um sorriso lento, sinuoso e
sedutor.
— Herdeira, você tirou as palavras da minha boca.

Eu tinha certa esperança de acabar no telhado de novo, mas


Jameson me levou a um dos “casulos de estudo” do centro de
ciências. Basicamente, era uma salinha quadrada na qual as
paredes, teto e chão tinham sido pintados com material de lousa
branca. Havia duas cadeiras com rodinhas no centro da sala e nada
mais.
Eli começou a nos seguir e Jameson entendeu isso como um
sinal para descer a mão pelas minhas costas e levar os lábios ao
ponto onde meu pescoço encontrava a linha do meu maxilar. Eu
arqueei o pescoço e Eli corou vermelho-vivo e saiu da sala.
Jameson fechou a porta — e começou a trabalhar. Havia cinco
canetas grudadas nas costas de cada cadeira. Jameson pegou uma
e começou a escrever na parede bem em frente à cadeira.
— Oito, três, sete, cinco — ele disse.
Cantei os próximos quatro números de memória enquanto ele
continuava escrevendo.
— Nove, sete, quatro, oito.
Escrever os números sem os traços liberou incontáveis
possibilidades.
— Uma senha? — perguntei a Jameson. — Um PIN?
— Não são dígitos suficientes para um telefone ou CEP. —
Jameson deu um passo para trás, se sentou em uma das cadeiras e
a empurrou. — Um endereço. Uma combinação.
Voltei para o momento em que ele e eu tínhamos saído de um
helicóptero com uma sequência diferente de números. O ar entre
nós estava elétrico, como ali. A gente estava voando e trinta
segundos depois, ele se afastara.
Mas dessa vez era diferente, porque estávamos na mesma
página. Não havia expectativas. Eu estava no controle.
— Coordenadas — eu disse.
Tinha sido uma das sugestões de Jameson da última vez.
Ele virou a cadeira e deslizou até mim, a empurrando com os
calcanhares.
— Coordenadas — ele repetiu, os olhos acesos. — Nove-sete-
quatro-oito. Considerando que os números já estão na ordem
correta, nove tem que ser o número de graus. Noventa e sete é alto
demais.
Lembrei da aula de geografia da quinta série.
— Latitudes e longitudes vão de menos noventa a noventa.
— Vocês não sabem a valência de nenhum dos números, claro.
Jameson e eu giramos a cabeça na direção da porta. Xander
estava ali. Eu vi Eli, o rosto ainda vermelho, atrás dele. Xander
entrou, fechou a porta e, sem hesitar, saltou em uma voadora e
imobilizou Jameson no chão.
— Quantas vezes eu tenho que dizer? — O mais jovem dos
Hawthorne exigiu. — Esse é meu jogo. Ninguém vai resolver isso
sem mim. — Ele puxou a caneta da mão de Jameson e se levantou.
— Foi uma voadora amigável — ele me garantiu. — No geral.
Jameson revirou os olhos.
— Não sabemos a valência dos números. — Ele ecoou a última
coisa que Xander havia dito antes da voadora. — E também não
sabemos qual é a latitude e a longitude, então nove graus pode ser
nove graus norte, sul, leste ou oeste.
— Oito-três-sete-cinco. — Peguei outra caneta em uma das
cadeiras e sublinhei os números na lousa em diferentes
combinações. — Os graus podem ser oito ou oitenta e três.
Jameson sorriu.
— Norte, sul, leste ou oeste.
— Quantas possibilidades no total? — Xander refletiu.
— Vinte e quatro — Jameson e eu respondemos ao mesmo
tempo.
Xander nos olhou.
— Tem alguma coisa acontecendo aqui que eu deveria saber? —
ele perguntou, apontando para nós dois.
Jameson me deu um breve olhar.
— Nada importante.
Ele disse nada como se fosse algo.
— Não é da minha conta! — Xander declarou. — Mas só para
constar: os pombinhos estão errados. São bem mais do que vinte e
quatro possibilidades.
Jameson estreitou os olhos.
— Eu sei fazer conta, Xan.
— E eu sei humildemente informá-lo, irmão, que existem três
formas de listar coordenadas. — Xander sorriu. — Graus, minutos,
segundos. Graus, minutos decimais. E graus decimais.
— Com apenas quatro dígitos — Jameson insistiu —,
provavelmente são graus decimais.
Xander piscou para mim.
— Mas provavelmente nunca basta.

— Oceano Pacífico — Jameson gritou e eu anotei a localização ao


lado das coordenadas designadas. — Oceano Índico. Baía de
Bengala.
Xander continuou de onde o irmão tinha parado.
— Oceano Ártico. Oceano Ártico de novo.
Os dois estavam colocando coordenadas em uma busca no
mapa. Meu coração acelerava a cada localização que eles diziam. O
Ártico. Não podia ser para onde essa pista estava nos levando,
podia? E isso considerando que esses números fossem mesmo
coordenadas.
— Calotas polares da Antártida — Jameson ofereceu. — Vezes
quatro.
Quando terminamos, o número de localizações reais que não
ficavam no Ártico era muito menor do que eu esperava. Havia duas
na Nigéria, uma na Libéria, uma em Guiné e uma na…
— Costa Rica — eu disse alto, inicialmente incerta sobre por qual
motivo a localização tinha chamado minha atenção, mas um
momento depois eu me lembrei da última vez que tinha lido as
palavras Costa Rica: no fichário.
— Você está com aquela cara — Jameson me disse, sorrindo. —
Você sabe de alguma coisa.
Fechei os olhos e me concentrei na memória, não nos lábios dele.
A herança de Skye tinha nos levado a Verdadeiro Norte, uma das
muitas casas de férias da família Hawthorne — agora minha. Tentei
me lembrar das páginas que tinha olhado na noite do leilão.
Patagônia, Santorini, Kauai, Malta, Seychelles…
— Cartago, Costa Rica. — Abri os olhos. — Tobias Hawthorne
tinha uma casa lá. — Peguei meu celular e olhei a latitude e
longitude de Cartago, então virei a tela para os meninos. — É isso.
Tentei me lembrar da aparência da casa de Cartago, mas tudo
que eu conseguia visualizar era a vegetação em volta e flores,
brilhantes, exuberantes e imensas.
— Nós precisamos ir para a Costa Rica. — Xander não parecia
odiar a ideia.
— Não posso — eu disse, frustrada.
Precisei brigar para ir ao Colorado. De jeito nenhum Oren e Alisa
iriam aprovar uma viagem internacional, não quando eu só podia
passar mais duas noites fora da Casa Hawthorne no mês.
— Xander também não vai.
Pela segunda vez, me vi virar em direção à porta. Thea estava ali.
— Você está deixando qualquer um entrar? — falei para Eli.
A resposta que ganhei veio abafada, mas entendi as palavras
“não é meu trabalho”.
— Rebecca precisa de você — Thea disse a Xander. Pela
primeira vez desde que a conheci, ela não estava usando
maquiagem, parecia quase mortal. — Ela não veio à aula hoje. É a
mãe dela. Eu sei que é. Rebecca não me atende, então vai ter que
ser você.
Não restavam dúvidas de que era a morte para Thea precisar
pedir aquilo a ele, mas ali estava ela.
Esperei que Xander reclamasse. Quantas vezes ele tinha dito que
esse era o jogo dele? Mas Xander só encarou Thea por um
momento, então se virou para Jameson.
— Acho que você vai pra Cartago.
Jameson me olhou. Eu estava preparada para que ele me pedisse
outro avião. Em vez disso, a expressão do rosto dele mudou.
— Você pode ligar para Libby e Nash?
CAPÍTULO 56

— Não faz sentido — eu disse a Max naquela tarde. — Jameson


nunca abandona um enigma. O que ele está fazendo aqui?
Nash e Libby tinham concordado em ir para a Costa Rica. Eu
estava sentada no quarto, encarando a foto da casa de Cartago. Um
quarteto de colunas sustentava um telhado de azulejos acima de
uma grande varanda, mas a casa em si era pequena, tinha menos
de noventa metros quadrados.
— Talvez ele não esteja fazendo nada — Max disse.
Apertei os olhos.
— É o Jameson Hawthorne. Ele sempre está fazendo alguma
coisa.
Uma batida seca na porta interrompeu o que quer que Max fosse
dizer em resposta. Fui abrir, irritada que parte de mim não
conseguisse pensar em Jameson sem deixar de pensar na
sensação de quando seus lábios roçaram de leve o meu pescoço.
Abri a porta e vi alguém segurando uma pilha alta de toalhas
brancas e felpudas. As toalhas bloqueavam o rosto da pessoa, e
minha mente foi para o coração ensanguentado que alguém —
provavelmente um funcionário — havia deixado no meu quarto. Dei
um passo para trás. Meu pulso acelerou. Então Eli apareceu.
— Ela está liberada — ele me disse.
Eu fiz que sim e dei um passo para trás. A pessoa segurando as
toalhas passou por mim. Mellie. Ela não nos disse uma palavra, e
seguiu para o banheiro.
— Nunca vou me acostumar com alguém lavando minha…
Não cheguei a dizer a palavra roupa, porque um grito perturbador
cortou o ar. Meu corpo respondeu antes do meu cérebro, me
lançando para o banheiro bem a tempo de ver Mellie batendo a
porta do armário.
— Cobra — ela sibilou. — Tem uma cobra no seu…
Eli me puxou de volta para o quarto. Eu o ouvi fazendo uma
ligação e menos de dois minutos depois meu quarto estava cheio de
guardas.
— Que corra é essa?! — Max explodiu. — Ela disse cobra?
— Cascavel. — Oren puxou Max e eu de lado. — Morta… não era
um perigo real.
Olhei nos olhos dele e disse o que ele não estava dizendo:
— Só uma ameaça.

Alguém queria me assustar. Quem — e por quê? No fundo, parte de


mim sabia a resposta. Uma hora depois, eu voltei à ala de Toby.
Max foi comigo — e Oren também.
Toda a ala tinha sido selada novamente.
Eu me virei para Oren.
— Os Laughlin fizeram isso.
Eu não tinha certeza se estava falando da parede ou da cobra.
Eles não querem que eu faça perguntas sobre Toby.
— O nível de ameaça foi examinado — Oren me disse. — Ele vai
continuar sendo examinado e nós vamos responder de acordo.
— Avery?
Eu me virei e vi Grayson descendo o corredor na nossa direção.
Ele sempre parecia tão controlado, tão certo de que o mundo se
dobraria a sua vontade. Se ele queria que eu ficasse segura, eu
ficaria segura.
— Imagino que você tenha ficado sabendo da cobra — respondi,
seca.
— Fiquei. — Grayson arqueou uma sobrancelha para Oren. —
Tenho certeza de que já estão cuidando disso.
Oren nem se dignou a responder.
— Eu também falei com Jameson. — O tom de Grayson não
revelava nada. Eu me vi com Jameson na escola, na ala de Toby, na
jacuzzi, e precisei desviar o olhar dos penetrantes olhos prateados
de Grayson. — Entendi que estamos em modo de espera.
Levei um momento para entender que, quando ele disse que falou
com Jameson, se referia aos números — a Cartago. Não a nós.
— Pensei que talvez — Grayson disse simplesmente — você
quisesse uma distração.
— Que tipo de distração? — Max perguntou, seu tom inocente o
bastante para me fazer pensar que a pergunta não era nada
inocente.
— Uma distração amigável — respondi com firmeza.
Era tudo que Grayson e eu éramos. Amigos.
Ele ajeitou o paletó e sorriu.
— Alguma de vocês, senhoritas, está a fim de um jogo?
CAPÍTULO 57

A sala de jogos da Casa Hawthorne deixou Max em um estado de


alegria quase apoplética. A sala era cheia de estantes, as estantes
cheias com centenas — talvez milhares — de jogos de tabuleiro do
mundo todo.
Nós começamos com Descobridores de Catan. Grayson nos
dizimou. Seguimos por mais quatro jogos, nenhum dos quais eu
conhecia. Enquanto debatíamos a escolha seguinte, Jameson
entrou na sala.
— Que tal um velho clássico Hawthorne? — ele sugeriu
maliciosamente. — Strip Boliche.
— Que corra é Strip Boliche? — Max perguntou, então virou para
mim com olhos brilhantes.
Não ouse, eu disse a ela em silêncio.
— Não importa! — Max sorriu. — Avery e eu topamos.

Strip Boliche era exatamente o que parecia, ou seja, envolvia


boliche e, se você falhasse, striptease.
— O objetivo é derrubar o mínimo de pinos — Jameson explicou.
— Mas você precisa tomar cuidado, porque, quando a bola acaba
na canaleta, você perde uma peça de roupa.
Eu senti o calor subindo até as minhas bochechas. Todo meu
corpo estava quente — quente demais. Aquela era uma péssima
ideia.
— Essa é uma péssima ideia — Grayson disse.
Por um ou dois segundos, ele e Jameson entraram em uma
disputa silenciosa.
— Então por que você está aqui? — Jameson retrucou,
caminhando para pegar uma bola de boliche verde-escura
estampada com o brasão dos Hawthorne. — Ninguém está te
forçando a jogar.
Grayson não se mexeu, nem eu.
— Então, teoricamente — Max disse —, eu quero derrubar
nenhum pino ou apenas um, o que eu conseguir sem jogar a bola na
canaleta?
Quando Jameson respondeu, seus olhos verdes estavam fixos
nos meus.
— Teoricamente.

Logo ficou claro que ser bom em Strip Boliche exigia precisão e uma
alta tolerância a risco. Da primeira vez que Jameson arriscou
demais e a bola caiu na canaleta, ele tirou um sapato.
Então outro sapato.
Uma meia.
Outra meia.
A camisa.
Tentei não olhar para a cicatriz que corria pelo torso dele, tentei
não me imaginar tocando seu peito. Em vez disso, me concentrei
em jogar na minha vez. Eu estava perdendo — feio. Cheguei até a
fazer um strike, de tão determinada a evitar a canaleta.
Dessa vez, arrisquei um pouco mais. Quando derrubei um único
pino, suspirei. Grayson foi em seguida e perdeu o paletó. Max
chegou ao sutiã de bolinhas. Então foi a vez de Jameson de novo e
a bola se agarrou ao lado da pista até o final — e caiu na canaleta.
Eu tentei — sem sucesso — desviar os olhos quando os dedos de
Jameson foram na direção do cós do jeans.
— Me ajude, Xesus — Max murmurou ao meu lado.
Sem aviso, a porta da sala se abriu com tudo e Xander invadiu a
pista de boliche, então deslizou até parar. Ele estava ofegante o
suficiente para eu me perguntar por quanto tempo ele estava
correndo.
— Sério? — Xander sibilou. — Vocês estão jogando Strip Boliche
sem mim? Esqueça. Foco! Isso sou eu focando.
— Focando no quê? — perguntei.
— Tenho notícias — Xander soltou.
— Que tipo de notícias? — Max perguntou.
Xander olhou na direção dela. Ele definitivamente notou o sutiã de
bolinhas.
— Foco — Max o lembrou. — Que tipo de notícias?
— Rebecca está bem? — Jameson perguntou, e eu me lembrei
da conversa entre Xander e Thea.
— Em algum valor de bem — Xander disse. A frase não fez
sentido para ninguém além de Xander, mas ele foi em frente. —
Thea estava certa. A mãe de Rebecca está tendo um dia difícil. Teve
vodca envolvida. Ela contou uma coisa a Rebecca.
— Que tipo de coisa?
Foi a vez de Jameson incentivar Xander a desembuchar. A calça
de Jameson ainda estava no lugar, mas o botão de cima tinha sido
aberto.
Ok, agora eu preciso focar.
— Avery, você se lembra do que a mãe de Rebecca disse no
memorial, sobre todos os seus bebês morrerem?
— Nash disse que aconteceram abortos — eu disse baixo. —
Antes de Rebecca.
— Foi o que Bex achou que ela estava dizendo também —
Xander disse baixo.
— Mas não era?
Eu o encarei, sem a menor ideia de para onde isso estava indo.
— Ela estava falando de Emily — Grayson disse, a voz sofrida.
— Emily — Xander confirmou. — E Toby.
Eu senti o mundo ficar lento ao meu redor.
— Do que você está falando?
— Toby era um Laughlin. — Xander engoliu em seco. — Rebecca
não sabia. Ninguém sabia. Os pais dela tinham quarenta anos
quando tiveram Emily, mas vinte e cinco anos antes, ou seja, para
os matemáticos entre nós, quarenta e dois anos atrás, quando a
mãe de Rebecca era uma adolescente vivendo no Chalé Wayback…
— Ela ficou grávida — Jameson disse o óbvio.
— E o sr. e a sra. Laughlin encobriram? — Grayson estava
determinado a encontrou respostas. — Por quê?
Xander ergueu os ombros o máximo que pôde, então os deixou
cair no gesto de dúvida mais elaborado do mundo.
— A mãe de Rebecca não quis explicar, mas ela tagarelou para
Bex, em detalhes, sobre como quando uma das filhas Hawthorne
ficou grávida anos depois, ela não precisou esconder sua gravidez.
Ela pôde ficar com o bebê.
Skye não foi forçada a dar Nash para adoção. Eu me lembrei do
que a mãe de Rebecca dissera a Libby no memorial. Nunca confie
em um Hawthorne. Eles levam tudo.
— A mãe de Rebecca queria ficar com o bebê? — perguntei,
horrorizada. — Eles a obrigaram a dá-lo? E por que eles a forçariam
a esconder a gravidez?
— Eu não sei dos detalhes — Xander disse —, mas, segundo
Rebecca, a mãe dela nem ficou sabendo que os Hawthorne tinham
adotado o bebê. Ela pensou que nossa avó realmente tinha ficado
grávida de um menino e que o bebê dela tinha sido adotado por um
desconhecido.
Aquilo era aterrorizante. É por isso que eles mantiveram a adoção
de Toby em segredo? Para que ela não soubesse que o filho dela
estava bem aqui?
— Mas conforme Toby cresceu… — Xander deu de ombros de
novo, o movimento mais discreto dessa vez.
— Ela descobriu?
Imaginei abrir mão de um bebê e então perceber que uma criança
que você viu crescer era, na verdade, sua.
Imaginei ser Toby descobrindo esse segredo.
— Rebecca está proibida de ver qualquer um de nós. — Xander
fez uma careta. — A mãe dela disse que a família Hawthorne só
toma. Ela disse que nós não seguimos regras e não nos importamos
com quem ferimos. Ela culpa nossa família pela morte de Toby.
— E de Emily — Grayson acrescentou, áspero.
— Por tudo.
Xander se sentou, bem onde ele estava. A sala ficou quieta. Max
e Jameson não estavam usando blusas. Eu tinha um sapato a
menos, sabia instintivamente que nosso jogo de Strip Boliche tinha
acabado e nada disso importava, porque tudo em que eu conseguia
pensar era que a mãe de Rebecca pensava que Toby estava morto.
Assim como o sr. e a sra. Laughlin.
CAPÍTULO 58

No dia seguinte, antes da aula, fui atrás da sra. Laughlin. Eu a


encontrei na cozinha e pedi a Eli para nos dar um momento. O
máximo que ele me deu foi uns dois metros de distância a mais.
A sra. Laughlin estava sovando massa. Ela me viu com o canto do
olho e sovou com mais força.
— O que posso fazer por você? — ela perguntou, tensa.
Eu me preparei, porque tinha quase certeza de que aquilo não ia
acabar bem. Provavelmente eu devia ter ficado de boca fechada,
mas tinha passado quase toda a noite pensando que, se a mãe de
Rebecca era a mãe de Toby, então os Laughlin não tinham só visto
Toby crescer. Eles não o tinham amado só porque ele era amável.
Ele era neto deles. E isso me torna…
Apertei os lábios, então decidi que a melhor forma de arrancar um
band-aid era com rapidez.
— Eu preciso falar com você sobre Toby — falei, mantendo a voz
baixa.
Bam. A sra. Laughlin ergueu a massa e a jogou de volta com
destreza, então limpou as mãos no avental e virou a cabeça para
me olhar nos olhos.
— Me escute, mocinha. Você pode ser dona da Casa. Você pode
ser tão rica que chega a ser um pecado. Você podia ser dona do
Sol, por mim, mas eu não vou te deixar machucar todo mundo que
amou aquele menino, cavando essa história e…
— Ele era seu neto. — Minha voz vacilou. — Sua filha ficou
grávida. Vocês esconderam a gravidez e os Hawthorne adotaram o
bebê.
A sra. Laughlin ficou pálida.
— Quieta — ela ordenou, sua voz ainda mais trêmula do que a
minha. — Você não pode andar por aí dizendo coisas assim.
— Toby era seu neto — repeti. Minha garganta parecia estar
inchando e meus olhos começaram a arder. — E eu acho que ele é
meu pai.
A boca da sra. Laughlin se abriu, então se curvou, como se ela
estivesse a ponto de gritar comigo e tivesse ficado sem ar. Suas
duas mãos foram para o balcão coberto de farinha e ela o agarrou
como se o que eu tivesse acabado de dizer ameaçasse a deixar de
joelhos.
Dei um passo na direção dela. Eu queria tocá-la, mas não abusei
da sorte. Em vez disso, estendi a pasta que eu tinha pegado no
escritório de Tobias Hawthorne. A sra. Laughlin não a pegou. Eu não
tinha certeza se ela conseguiria.
— Aqui — eu disse.
— Não. — Ela fechou os olhos e sacudiu a cabeça. — Não, eu
não vou…
Peguei uma única folha da pasta.
— Essa é minha certidão de nascimento — falei, baixinho. —
Olhe a assinatura.
E, bendita seja, ela olhou. Ouvi uma inspiração dura e então ela
finalmente me olhou de volta.
Meus olhos estavam ardendo mais, mas continuei. Não queria
parar, porque parte de mim estava aterrorizada com o que ela
poderia dizer.
— Aqui estão algumas fotos que Tobias Hawthorne mandou um
detetive particular tirar de mim, pouco antes dele morrer.
Coloquei três fotos no balcão. Duas minhas jogando xadrez com
Harry, uma das duas mostrando nós dois na fila para comprar um
sanduíche. Toby não estava olhando para a câmera em nenhuma
delas, mas desejei que a sra. Laughlin olhasse bem para o que ela
conseguia ver — o cabelo, o corpo, a forma como ele se colocava.
Que ela o reconhecesse.
— Esse homem — eu disse, apontando com a cabeça para as
fotos. — Ele apareceu logo depois que minha mãe morreu. Achei
que ele fosse um sem-teto. Talvez fosse. Nós jogávamos xadrez no
parque toda semana, às vezes todo dia. — Eu conseguia ouvir a
emoção na minha própria voz. — Ele e eu tínhamos uma aposta
que, se eu ganhasse, ele tinha que me deixar comprar o café da
manhã dele, mas, se ele ganhasse, eu não podia nem oferecer. Eu
sou competitiva e boa de xadrez, então eu ganhava bastante… mas
ele ganhava mais.
A sra. Laughlin fechou os olhos, mas eles não ficaram fechados
por muito tempo, e, quando ela os abriu, olhou bem para as
fotografias.
— Poderia ser qualquer um — ela disse com rispidez.
Engoli em seco.
— Por que você acha que Tobias Hawthorne me deixou toda sua
fortuna? — perguntei baixo.
A respiração da sra. Laughlin ficou ofegante. Ela se virou para me
olhar e, ao fazer isso, vi toda a emoção que eu estava sentindo
espelhada nos olhos dela, e mais um pouco.
— Ah, Tobias — ela sussurrou. Foi a primeira vez que a ouvi
chamar seu antigo patrão de qualquer coisa que não sr. Hawthorne.
— O que você fez?
— Nós ainda estamos tentando descobrir — eu disse, uma bola
de emoção subindo pela minha garganta. — Mas…
Não consegui terminar a frase, porque, de repente, a sra. Laughlin
me abraçou, me agarrando como se sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO 59

A parte ruim do horário modular é que em alguns dias minhas


aulas eram tão apertadas que eu mal tinha tempo de almoçar.
Aquele era um desses dias. Eu tinha exatamente um módulo —
vinte e dois minutos — para ir ao refeitório, comprar comida, comer
e me arrastar de volta para o laboratório de física do outro lado do
campus.
Na fila, recebi uma mensagem de Libby: uma foto, tirada da janela
do avião. O oceano lá embaixo era de um azul-esverdeado
brilhante. A terra ao longe era coberta por árvores. Aparecendo por
entre as árvores, estava o que reconheci como o topo de uma
maravilha arquitetônica. A Basílica de Nuestra Señora de los
Ángeles, em Cartago.
Cheguei à frente da fila e paguei. Quando me sentei para comer,
tudo em que conseguia pensar era que Libby e Nash estavam
aterrissando em Cartago. Eles iriam até a casa. Eles encontrariam
alguma coisa. E, de alguma forma, o quebra-cabeças que Tobias
Hawthorne tinha deixado para as filhas — e então para Xander —
começaria a fazer sentido.
— Posso me sentar?
Ergui o olhar e vi Rebecca, e, por um momento, só fiquei olhando
para ela. Ela tinha cortado o cabelo comprido e ruivo-escuro na
altura do queixo. As pontas estavam desiguais, mas algo na forma
como ele se abria em volta do rosto dela a fazia parecer quase de
outro mundo.
— Claro — eu disse. — Fique à vontade.
Rebecca se sentou. Sem o cabelo comprido para escondê-la, os
olhos dela pareciam impossivelmente grandes. O peito dela subiu e
desceu, indicando uma respiração profunda.
— Xander te contou — ela disse.
— Contou — respondi, e então meu senso de empatia me
venceu, porque, por mais louca que a revelação fosse para mim,
deve ter sido pior para ela. — Não espere que eu te chame de Tia
Rebecca.
Isso tirou uma risada surpresa dela.
— Você soou como ela agora — ela me disse depois de um
momento. — Emily.
Foi naquele exato instante que eu percebi que, se Rebecca era
minha tia, Emily também tinha sido. Pensei em Thea, me vestindo
como Emily. Nunca achei que fôssemos parecidas, mas, quando
Grayson tinha me visto descer as escadas naquele baile de
caridade, parecia que tinha visto um fantasma.
Há algo de Emily em mim?
— Seu pai… — comecei a perguntar a Rebecca, mas não sabia
bem como formular minha pergunta. — Há quanto tempo seus pais
estão juntos?
— Desde o ensino médio — Rebecca disse.
— Então seu pai era o pai de Toby?
Rebecca sacudiu a cabeça.
— Eu não sei. Eu não tenho nem cem por cento de certeza de
que meu pai sabe que houve um bebê. — Ela desviou o olhar. —
Meu pai ama minha mãe, aquele amor de conto de fadas, imenso,
ao qual nem os filhos se comparam. Ele mudou de nome quando
eles se casaram. Ele deixou ela tomar todas as decisões do
tratamento médico de Emily.
O que eu entendi disso foi que, se a mãe de Rebecca tinha
adorado Emily e ignorado Rebecca, o pai dela havia apoiado aquela
decisão também.
— Me desculpe — Rebecca disse baixo.
— Pelo quê? — perguntei.
Por mais perturbados que fossem os segredos da família
Laughlin, não era eu quem tinha crescido na sombra de Toby. Aquilo
havia afetado a vida de Rebecca mais que a minha.
— Me desculpe pelo que fiz com você — Rebecca esclareceu. —
Pelo que eu não fiz.
Pensei na noite em que Drake tentou me matar. Depois de um
beijo desastroso com Jameson, eu tinha acabado em um quarto
sozinha com Rebecca. Nós tínhamos conversado. Se ela tivesse me
contado ali o que sabia sobre Drake e Skye, não teria havido nada
para desculpar.
— Eu tenho tentado tanto ficar bem. — Rebecca não estava nem
olhando para mim. — Mas não estou. O poema que Toby deixou? O
de William Blake? Eu tenho uma cópia no meu celular e fico lendo
várias vezes e tudo em que consigo pensar é que queria ter lido isso
antes, porque, quando eu era mais nova, enterrei toda minha raiva.
Não importava o que Emily queria, ou do que eu precisasse abrir
mão por ela, eu devia achar razoável. Deveria sorrir. E da única vez
que me permiti ter raiva, ela…
Rebecca não conseguia dizer, então eu disse por ela.
— Morreu.
— Isso me estragou e eu estraguei as coisas e eu me arrependo
muito mesmo, Avery.
— Tudo bem — eu disse, e, para minha surpresa, era verdade.
— Se serve de consolo — Rebecca continuou —, estou com raiva
agora, finalmente, e de tanta gente.
Pensei em sua briga com Thea no avião e na mensagem
absolutamente irritante que Toby tinha me deixado.
— Eu também estou com raiva — eu disse a Rebecca. — E, aliás:
gostei do seu cabelo.
CAPÍTULO 60

Quando Oren buscou Eli e eu na escola, Alisa estava no banco do


carona — e Landon, no banco de trás, digitando furiosamente no
celular.
— Está tudo bem — Alisa me garantiu, o que era o oposto de
tranquilizador. — Está tudo sob controle, mas…
— Mas o quê? — Olhei para Landon. — O que ela está fazendo
aqui?
Houve um momento de silêncio. Foi tudo que Alisa precisou para
moldar sua resposta.
— Skye e seu pai estão se oferecendo para uma entrevista
conjunta para quem pagar mais. — Alisa suspirou irritada. — Se
queremos esmagar essa história, Landon vai ter que fazer valer a
pena para esse pagador enterrar.
Eu tinha coisa suficiente na cabeça nos últimos dias para mal ter
pensado em Ricky Grambs. Tentei ler nas entrelinhas do que Alisa
tinha dito.
— Você está dizendo que vai subornar quem comprar a
entrevista?
Landon finalmente ergueu os olhos do celular.
— Sim e não — ela ponderou antes de voltar a atenção para
Alisa. — Monica acha que pode fazer a rede colaborar, mas temos
que garantir Avery e pelo menos um Hawthorne.
— Eles vão pagar pela exclusividade de Skye? — Alisa
perguntou. — Incluindo um acordo impedindo Skye e Grambs de
levar a história para outro lugar?
— Eles vão pagar. Eles vão enterrar. — Landon apertou a ponte
do nariz, como se estivesse sentindo uma enxaqueca chegar. —
Mas o mais tarde que concordam em fazer a entrevista com Avery é
amanhã à noite.
— Meu Deus. — Alisa sacudiu a cabeça. — Ela dá conta?
— Eu estou sentada bem aqui — apontei.
— Vai ter que dar. — Landon falou por cima de mim. — Mas
vamos precisar apertar.
— Apertar o quê, exatamente? — perguntei.
Todo mundo no carro ignorou a pergunta.
— Se a entrevista de Avery não for exclusiva — Alisa disse a
Landon —, está fechado.
A resposta de Landon foi automática:
— Eles vão querer um embargo em outras entrevistas por pelo
menos um mês.
— Três semanas — Alisa retrucou. — E só se aplica a Avery,
nenhum agregado.
Desde quando eu tinha agregados? Eu não era candidata à
presidência.
— Qual Hawthorne ofereço como parte do pacote? — Landon
perguntou, toda profissional.
Meu cérebro estava se esforçando para acompanhar, mas eu
estava bem certa de que o que estava acontecendo ali era que
iríamos dar minha primeira entrevista para quem comprasse a de
Skye, com a condição de que a entrevista com Skye e Ricky nunca
fosse ao ar e quem quer que a comprasse proibisse contratualmente
a dupla de falar com qualquer outra pessoa.
— Por que a gente se importa com a entrevista deles? — eu
disse.
— A gente se importa — Alisa disse enfaticamente. Então ela se
virou para Landon. — E você pode dizer a Monica que nós
garantimos uma entrevista na quarta à noite com Avery e…
Grayson.
CAPÍTULO 61

— Grayson, chegue um pouco mais perto de Avery. Incline a


cabeça na direção dela.
Landon tinha arrumado o salão de chá para um ensaio de
entrevista. Já estávamos na sétima tentativa. Como Alisa tinha feito
Grayson concordar com aquilo, eu não fazia ideia, mas ali estava
ele, sentado rígido na cadeira ao meu lado. Como Landon instruíra,
ele inclinou as pernas levemente na direção das minhas.
Instintivamente, espelhei o movimento dele, mas fiquei constrangida
e em dúvida, porque Landon não tinha pedido para eu me mexer.
Meu corpo tinha gravitado na direção do dele sozinho.
— Bom. — Landon assentiu com a cabeça para nós, então se
concentrou em Grayson. — Lembre-se da sua mensagem principal.
— Tem sido um momento difícil para minha família — Grayson
disse, cada centímetro dele o herdeiro aparente que um dia tinha
sido. — Mas algumas coisas acontecem por um motivo.
— Bom — Landon repetiu. — Avery?
Eu deveria responder ao que Grayson tinha dito. Quanto mais
falássemos um com o outro, mais fácil seria vender que eu tinha
boas relações com a família Hawthorne.
— Algumas coisas acontecem por um motivo — repeti, mas as
palavras saíram sem vida. — Eu nunca acreditei nisso — admiti. Eu
podia quase ouvir Landon grunhir internamente. — Quer dizer, é, as
coisas acontecem por um motivo, mas na maior parte do tempo o
motivo não é o destino ou porque era predestinado. É porque o
mundo é um saco, ou alguém aí está sendo um babaca.
Um músculo no maxilar de Grayson se contraiu de leve. Ele ficava
bem o suficiente com aquela expressão que eu levei um segundo
para perceber que ele estava fazendo muito esforço para não rir.
— Vamos tentar evitar a palavra babaca, que tal? — Landon
disse, seu sotaque britânico mais pronunciado. — Avery, precisamos
que você projete gratidão e espanto. Tudo bem sentir que é muita
coisa ao mesmo tempo, mas precisa ser muita coisa da melhor
forma possível.
Gratidão. Espanto. Eu devia ser algum tipo de menina inocente e
tudo que Grayson precisava fazer era sentar ali com aquelas maçãs
do rosto e aquele terno e ser um Hawthorne.
— Avery está certa. — Grayson ainda estava no modo entrevista.
Ele projetava confiança, poder transbordava de sua voz, como se
fosse um imortal se dignando a explicar aos humanos o que eles
devem acreditar, pensar e fazer. — Todos nós tomamos decisões, e
essas decisões afetam outras pessoas. Elas ressoam pelo mundo, e
quanto mais poder você tem, mais elas ressoam. O destino não
escolheu Avery. — O tom de Grayson não aceitava discussões. —
Meu avô, sim. Talvez nós nunca saibamos dos motivos dele, mas
não tenho dúvidas de que ele as tinha. Ele sempre tinha.
Tudo em que eu podia pensar era que nós sabíamos os motivos
— ou pelo menos tínhamos teorias. Mas eu não poderia dizer aquilo
na frente de Landon. Não podia admitir em rede nacional.
Quando você não pode contar a verdade, eu conseguia ouvir
Landon me ensinando, conte uma verdade.
— Eu gostaria de saber quais eram esses motivos — eu disse.
Com certeza, acrescentei silenciosamente. Olhei para Grayson. —
Às vezes parece que os Hawthorne só sabem, sempre. Como se
vocês tivessem sempre muita certeza de tudo.
O olhar de Grayson encontrou o meu.
— Não de tudo.
Tinha algo na forma como ele me olhou quando disse aquelas
palavras que me fez perceber que talvez eu fosse a única pessoa no
planeta capaz de fazer Grayson Hawthorne se questionar,
questionar as decisões que tinha tomado.
Como a decisão de se afastar de mim. De sermos amigos.
Landon uniu as mãos.
— Avery, esse é o mais natural que já te ouvi soar. Muito aberta!
E, Grayson, você é perfeição pura. — Como se ele precisasse que
alguém dissesse aquilo. — Só lembrem-se disso, vocês dois:
respostas curtas se eles perguntarem sobre o atentado à vida de
Avery. Grayson, não tenha medo de parecer que a está protegendo.
Avery, você sabe o resto das suas perguntas “não”.
Se perguntarem se sei alguma coisa sobre o passado da minha
mãe: não.
Se perguntarem o que fiz para acabar no testamento de Tobias
Hawthorne: nada.
— Grayson, sempre que possível, fale do seu avô. E dos seus
irmãos! O público vai amar, e queremos que eles saiam com a ideia
de que seu avô sabia exatamente o que estava fazendo quando
escolheu Avery e de que ninguém está preocupado. E, Avery?
— Gratidão — eu disse rapidamente. — É muita coisa ao mesmo
tempo. Vão se identificar comigo. Um dia estou me esforçando para
pagar a conta de luz e no outro sou a Cinderela. Eu não sei ainda o
que vou fazer com o dinheiro, só tenho dezessete anos. Mas
gostaria de ajudar pessoas.
— E? — Landon incentivou.
— Algum dia eu quero conhecer o mundo. — Isso era algo que
tínhamos concordado como argumento, que me fazia parecer
sonhadora, inocente e impressionada. E era verdade.
— Perfeito — Landon disse. — Mais uma vez, do início.
CAPÍTULO 62

Quando Landon finalmente nos deixou ir embora, o sol estava


começando a se pôr.
— Você parece querer bater em alguma coisa — Grayson
observou.
Ele estava se preparando para seguir seu caminho e eu estava
me preparando para seguir o meu, provavelmente indo encontrar
Max.
— Não quero bater em nada — respondi em um tom que não fez
nada para confirmar a afirmação.
Grayson inclinou a cabeça para o lado e seu olhar foi direto para o
meu.
— O que você acha de uma luta de espadas?

Grayson me levou pelo jardim topiário até uma parte da propriedade


que eu nunca tinha visto antes.
— Isso é… — eu comecei a dizer.
— Um labirinto? — Grayson tinha um jeito próprio de sorrir: boca
fechada, levemente desigual. — Estou surpreso por Jamie nunca ter
te trazido aqui.
No momento em que ele mencionou Jameson, fui atingida pela
sensação de que não deveria estar ali — não com Grayson. Mas
nós éramos só amigos, e o que quer que Jameson e eu fôssemos
naquele momento, vinha sem compromisso.
Era aquele o objetivo.
Voltei minha atenção ao labirinto. As sebes que formavam as
paredes eram mais altas do que eu e densas. Dá para se perder aí.
Fiquei parada na entrada, Grayson ao meu lado.
— Me siga — ele disse.
Eu segui. Quanto mais pro fundo do labirinto íamos, mais eu me
concentrava em decorar o caminho — e não a forma como ele se
movia, em seu corpo à minha frente.
Direita. Esquerda. Esquerda de novo. Reto. Direita. Esquerda.
Finalmente, chegamos ao que eu imaginei ser o centro: uma
grande área quadrada cercada por luzinhas. Grayson se ajoelhou e
afastou a grama com os dedos, revelando algo de metal ali
embaixo. No crepúsculo, não vi exatamente o que ele fez, mas, um
momento depois, escutei um som mecânico e o chão começou a se
mover.
Meu primeiro pensamento foi que ele tinha aberto a entrada dos
túneis, mas, quando me aproximei, vi um compartimento de aço
embutido no chão, com uns dois metros de comprimento, um de
largura e não muito fundo. Grayson enfiou a mão no compartimento
e removeu dois objetos compridos enrolados em tecido. Ele apontou
com a cabeça para o segundo e eu me ajoelhei, desembrulhando o
pano e revelando um brilho metálico.
Uma espada.
Ela tinha quase um metro de comprimento, pesada, com um cabo
em formato de T. Passei os dedos pelo cabo, então ergui os olhos
para Grayson, que estava desembrulhando uma segunda espada.
— Montantes — ele disse, destacando a palavra. — Italianas.
Século quinze. Elas provavelmente deveriam estar em um museu
em algum lugar, mas…
Ele deu de ombros.
Ser um Hawthorne era assim. Isso provavelmente deveria estar
em um museu, mas eu e meus irmãos preferimos usar para bater
nas coisas.
Fui pegar uma espada, mas Grayson me impediu.
— Com as duas mãos — ele disse. — Uma montante é feita para
ser usada com as duas mãos.
Envolvi o punho da espada com as mãos e consegui me levantar.
Grayson colocou sua própria espada com cuidado no tecido em
que ela estava enrolada antes e veio por trás de mim.
— Não — ele disse suavemente. — Assim. — Ele ergueu minha
mão direita, diretamente embaixo da cruz do T. — Guarda-mão —
ele me disse, apontando com a cabeça essa parte da espada. Ele
apontou com a cabeça a ponta do cabo. — Pomo. Nunca coloque a
mão no pomo. Ele tem sua própria função. — Ele posicionou minha
mão esquerda acima do pomo, um pouco abaixo da minha direita.
— Agarre a espada com os dedos de baixo das duas mãos.
Mantenha os de cima soltos. Você se mexe e a espada se mexe.
Não lute contra o movimento dela. Deixe que ela faça o trabalho por
você.
Ele deu um passo para trás e pegou a própria espada.
Lentamente, ele demonstrou.
— Eu não deveria estar usando algum tipo de… espada de
treino? — perguntei.
Grayson olhou nos meus olhos.
— Provavelmente.
Era uma péssima ideia. Eu sabia. Ele sabia. Mas eu tinha
passado cinco horas sendo preparada para uma entrevista que eu
absolutamente não queria dar, uma entrevista que eu só precisava
dar por causa de Ricky — que não era meu pai — e Skye, que
provavelmente tinha contratado o intruso em Verdadeiro Norte.
Às vezes, tudo de que uma garota precisa é uma ideia muito ruim.

— Observe sua postura. Deixe que a espada te guie, não o


contrário.
Eu me corrigi e Grayson me deu um levíssimo aceno.
— Desculpa por tudo isso — eu disse.
— É bom você pedir desculpas. Está ficando largada de novo. Já.
Ajustei minha postura e minha pegada.
— Desculpa pela entrevista — especifiquei, revirando os olhos.
Grayson lentamente colocou sua espada em contato com a
minha, o movimento tão perfeitamente controlado que fui tomada
pela sensação de que ele poderia cortar um fio de cabelo em dois
se quisesse.
— Não faz diferença — ele me garantiu. — Eu sou um
Hawthorne. Como regra, nós estamos prontos para a imprensa aos
sete anos. — Ele deu um passo para trás. — Sua vez — ele me
disse. — Controle.
Não falei nada até minha espada tocar a dele — com um pouco
mais de força do que eu queria.
— Ainda assim, me desculpe por você ter sido arrastado para
essa entrevista.
Grayson baixou sua espada e começou a arregaçar as mangas.
— Você se sentiu mais culpada por causa dessa entrevista do que
quando fui deserdado.
— Isso não é verdade. Eu me senti culpada, mas você estava
ocupado demais sendo um babaca para notar.
Grayson me deu seu olhar mais austero.
— Vamos tentar evitar usar a palavra babaca, que tal?
A imitação que ele fez de Landon foi perfeita. Sorrindo, golpeei de
novo, dessa vez deixando que a espada me guiasse, ciente de cada
músculo do meu corpo e cada centímetro do dele. Parei a espada
um microssegundo antes que tocasse a lâmina dele. Ele deu um
passo à frente. Dois.
Montantes não são feitas para serem usadas tão de perto. Ele
ainda se aproximou mais, forçando minha lâmina a ficar na vertical,
até não haver nada além de centímetros e duas espadas
separando-o de mim. Eu podia ver a respiração dele, ouvi-la, senti-
la.
Os músculos nos meus ombros e braços começaram a doer —
mas o resto do meu corpo doía ainda mais.
— O que estamos fazendo? — sussurrei.
Ele fechou os olhos. O corpo dele estremeceu. Ele se afastou e
baixou a espada.
— Nada.
CAPÍTULO 63

Naquela noite, quando não consegui dormir, eu disse a mim


mesma que foi porque ainda não tínhamos tido notícias de Libby e
Nash. Cada mensagem que mandei continuou sem ser lida e sem
resposta. Era isso que estava me mantendo acordada tão tarde que
eu com certeza acordaria no dia seguinte com olheiras. Não era
Grayson.

Na noite seguinte, eu ainda não tinha tido notícias de Libby, e


Grayson Hawthorne e eu estávamos sentados um ao lado do outro,
sob uma enchente de luzes, com Monica Winfield sorrindo para a
câmera.
Eu não estou nada pronta para isso.
— Avery, vamos começar com você. Nos conte o que aconteceu
no dia que o testamento de Tobias Hawthorne foi lido.
Era uma pergunta fácil. Gratidão. Espanto. Aberta. Eu dava conta
daquilo — e dei. Grayson respondeu sua primeira pergunta fácil com
a mesma naturalidade.
Ele até conseguiu fazer contato visual comigo da primeira vez que
disse meu nome.
Ganhamos mais duas perguntas fáceis cada, antes de Monica
passar para um território mais espinhoso.
— Avery, vamos falar da sua mãe.
Respostas curtas, eu conseguia ouvir Landon me dizendo. E
sinceras.
— Ela era maravilhosa — eu disse com ferocidade. — Eu daria
tudo para tê-la comigo agora.
Foi curto e foi sincero — mas também deu abertura para mais
uma pergunta.
— Você deve ter ouvido alguns dos… rumores.
Que minha mãe estava vivendo com um nome falso. Que ela era
uma golpista. Eu não podia me irritar. Desvie a pergunta. Era o que
eu devia fazer: começar a falar da minha mãe, mas terminar falando
sobre o quão grata e impressionada eu estava e o quão normal eu
era.
Ao meu lado, Grayson se inclinou para a frente.
— Quando o mundo está observando cada movimento seu,
quando todo mundo sabe seu nome, quando você é famoso só por
existir, você para de acompanhar os rumores bem rápido. Da última
vez que eu chequei, eu supostamente estava namorando uma
princesa e meu irmão Jameson tinha tatuagens bem questionáveis.
Os olhos de Monica se acenderam.
— Ele tem?
Grayson encostou-se em sua cadeira.
— Os Hawthorne guardam segredo.
Ele era bom naquilo — muito melhor do que eu —, e assim a
entrevistadora foi desviada do assunto da minha mãe.
— Sua família tem ficado bem quieta a respeito de toda essa
situação — ela disse a Grayson. — A última coisa que o mundo
ouviu foi sua tia Zara dando a entender que poderia haver uma
solução jurídica para o seu dilema.
A última declaração pública de Zara tinha mais ou menos me
acusado de abuso de idosos.
— Você pode dizer muitas coisas sobre o meu avô — Grayson
respondeu com suavidade —, mas Tobias Hawthorne não era
famoso por deixar brechas.
Algo na forma como ele falou deixou evidente que o assunto
estava encerrado. Como ele faz isso?
— Avery — Monica voltou seu foco para mim. — Nós falamos um
pouco da sua mãe. Vamos falar do seu pai.
Era uma das minhas perguntas “não”. Eu dei de ombros.
— Não há muito a dizer.
— Você é menor de idade, correto? E sua guardiã legal é sua
irmã, Libby?
Eu sabia para onde aquilo estava indo. Só porque o canal não ia
passar a entrevista de Ricky e Skye, não significava que Monica não
tivesse guardado as declarações deles para referência. Ela ia me
perguntar da custódia.
Não se eu desviar.
— Libby me acolheu quando minha mãe morreu. Ela não
precisava ter feito isso. Ela tinha vinte e três anos. Por nosso pai
nunca ter sido presente, não tínhamos passado muito tempo juntas.
Nós éramos quase desconhecidas, mas ela me acolheu. Ela é a
pessoa mais amorosa que eu já conheci na vida.
Essa era uma das verdades fundamentais da minha existência e
eu não precisava trabalhar para vendê-la.
— Eu acho que isso é algo que Avery e eu temos em comum —
Grayson acrescentou ao meu lado.
Ele não elaborou, o que forçou Monica a dar sequência.
— O quê?
— Se for atacar nossos irmãos — ele disse a ela, o sorriso afiado,
o olhar cheio de avisos —, você precisa passar por nós primeiro.
Era aquele o Grayson que eu tinha conhecido semanas antes:
pingando poder e perfeitamente ciente de que poderia sair vencedor
de qualquer batalha. Ele não fazia ameaças, porque não precisava.
— Você quis proteger seus irmãos depois que percebeu que seu
avô tinha essencialmente os cortado do testamento? — Monica
perguntou a ele.
Eu senti que ela queria que Grayson dissesse que tinha rancor de
mim. Ela queria achar os buracos na mensagem que ele vinha
passando.
— Pode-se dizer que sim. — Grayson sustentou o olhar dela,
então desviou para olhar deliberadamente para mim. — Acho que
todos nós protegemos Avery agora. Não é algo que meus irmãos ou
eu esperamos que as pessoas entendam, mas a simples verdade é
que não somos normais. Nosso avô não nos criou para sermos
normais, e era isso que ele queria. Esse é seu legado. — O olhar
dele me queimava. — Ela é.
Ele vendeu cada palavra — tanto que eu quase acreditei que ele
realmente achava que eu era especial.
— E você não tem ressalvas com toda essa situação? — Monica
insistiu.
Grayson lhe deu seu sorriso de lobo.
— Nenhuma.
— Nenhum desejo de reverter o testamento?
— Eu já te disse: isso não pode ser feito.
O truque para responder suas perguntas “não” era uma confiança
perfeita e inabalável na resposta. Grayson era mestre daquela arte.
— Mas se você pudesse? — Monica perguntou.
— Isso era o que meu avô queria — Grayson respondeu, voltando
a sua mensagem principal. — Meus irmãos e eu temos sorte, mais
sorte do que quase qualquer um assistindo a essa entrevista. Nós
tivemos todas as oportunidades e temos muito do velho em nós.
Nós construiremos nosso próprio caminho. — Ele olhou para mim
de novo, mas dessa vez o gesto pareceu mais coreografado. —
Algum dia, o que eu fizer de mim mesmo vai colocar a sua fortuna
pra comer poeira.
Eu sorri. Toma essa, Monica.
— Avery, como é quando Grayson diz essas palavras: sua
fortuna?
— Surreal. — Eu sacudi a cabeça. — Antes da leitura do
testamento, quando eu sabia que tinham me deixado algo, mas eu
não sabia o quê, imaginei que Tobias Hawthorne tinha me deixado
alguns milhares de dólares. E mesmo assim? Já teria mudado
minha vida.
— Então como é isso?
— Surreal — repeti, projetando cada gota de gratidão, espanto e
encanto que eu tinha sentido naquele momento.
— Você sente que tudo pode desaparecer?
Ao meu lado, Grayson se mexeu de leve, virando o corpo na
minha direção. Mas eu não precisava da proteção dele. Eu estava
arrasando.
— Sim.
— E se eu dissesse a vocês dois que pode haver um outro
herdeiro?
Fiquei parada, meu rosto congelado. Eu não podia arriscar nem
olhar para Grayson, mas me perguntei se ele tinha sentido que algo
estava errado no momento anterior, se tinha sido por isso que se
mexeu. Eu podia ver todas as maneiras com que a entrevistadora
vinha conduzindo àquilo. Ela tinha perguntado a Grayson sobre
reverter o testamento — duas vezes. Ela tinha me perguntado como
eu me sentiria se tudo desaparecesse.
— Avery, você sabe o que o termo preterido significa no contexto
do direito de herança?
Meu cérebro não conseguia se atualizar rápido o suficiente. Toby.
Ela não pode saber de Toby. Skye não sabe. Ricky não sabe.
— Eu…
— Tipicamente, se refere a um herdeiro que ainda não nasceu no
momento da morte do falecido, mas, interpretada de forma um
pouco mais ampla, nosso especialista diz que pode se referir a
qualquer herdeiro que não estivesse “vivo” no momento da morte.
Ela sabia. Olhei de esguelha para Grayson. Não pude evitar. O
olhar dele estava focado na entrevistadora enquanto falava:
— Eu tenho certeza de que seus especialistas te contaram que,
no estado do Texas, uma filho preterido só tem direito a uma parcela
equivalente à dos outros filhos do falecido. — Os olhos de Grayson
estavam afiados, assim como seu sorriso de boca fechada. — Como
meu avô deixou muito pouco para suas filhas, mesmo que ele
tivesse de alguma maneira concebido um filho antes de sua morte,
isso dificilmente alteraria a distribuição de seus bens.
Naquele momento, Grayson não parecia ter dezenove anos. Ele
não tinha apenas tirado da cabeça um precedente legal — ele
deliberadamente ignorara o fato de que Monica tinha deixado claro
que não estava falando de algum filho não nascido.
— Sua família tem realmente procurado brechas, não tem? —
Monica disse, mas não era uma pergunta. — Talvez eles devessem
ter uma conversa com nossos especialistas, porque não está claro,
baseado no precedente, se um filho que se presumiu morto teria
direito só à parte dos irmãos ou à parcela deixada a esse filho em
um testamento anterior.
Grayson a encarou.
— Acho que não estou acompanhando.
Ele estava. Claro que sim. Ele só estava escondendo melhor do
que eu, porque tudo que eu conseguia fazer era ficar lá sentada em
silêncio e pensar em um nome sem parar.
Toby.
— Você tinha um tio. — Monica ainda estava focada em Grayson.
— Ele morreu — Grayson disse, áspero. — Antes mesmo de eu
nascer.
— Em circunstâncias trágicas e suspeitas. — Monica virou seu
rosto para mim. — Avery.
Ela apertou um botão em um controle que eu nem tinha notado
que ela estava segurando. Um trio de fotos surgiu em uma tela
grande atrás de nós.
As mesmas fotos que eu tinha mostrado à sra. Laughlin no dia
anterior.
— Quem é esse homem?
Engoli em seco.
— Meu amigo. Harry. — Conte uma história. — Nós jogávamos
xadrez no parque.
— Você tem muitos amigos de quarenta anos?
Quando você não pode contar a verdade, conte uma verdade.
Conte uma história.
— Ele era o único que conseguia capturar minha rainha. Nós
tínhamos uma aposta: se eu ganhasse um jogo, ele me deixava
comprar o café da manhã dele. Eu sabia que ele não tinha dinheiro
para comprar para si mesmo. Eu tinha medo de que ele talvez não
comesse nada sem isso, mas ele odiava caridade, então eu
precisava ganhar, com justiça.
Eu teria deixado Landon orgulhosa — mas Monica não se deteve.
— Então é sua declaração que esse homem não é Tobias
Hawthorne Segundo?
— Como você ousa? — A voz de Grayson vibrava de intensidade.
Ele se levantou. — Minha família já não sofreu o suficiente? Nós
acabamos de perder meu avô. Arrastar essa tragédia…
— Avery. — Monica sabia quem era o elo fraco. — Esse é ou não
é o filho supostamente falecido de Tobias Hawthorne? O verdadeiro
herdeiro da fortuna Hawthorne?
— Essa entrevista acabou.
Grayson se virou para bloquear a câmera e me ajudou a me
levantar. Ele olhou nos meus olhos e, embora ele não tivesse dito
uma palavra, eu o ouvi com clareza: nós precisamos sair daqui.
Ele me empurrou para as coxias, onde Alisa estava tentando
passar pela segurança. Monica nos seguiu, um câmera com uma
portátil atrás dela.
— Qual sua relação com Toby Hawthorne? — ela gritou atrás de
mim.
O mundo estava caindo a minha volta. Nós não tínhamos nos
preparado aquilo. Eu não estava pronta. Mas eu tinha uma resposta
para aquela pergunta. Eu tinha uma verdade e, se eles sabiam de
tudo aquilo, qual seria o problema em contar o resto?
Qual a sua relação com Toby Hawthorne?
— Eu sou sua…
Antes que eu pudesse dizer a palavra filha, Grayson inclinou a
cabeça e pressionou seus lábios contra os meus. Ele me beijou para
me salvar do que eu estava prestes a dizer. Por uma pequena
eternidade, nada no mundo existia fora daquele beijo.
Os lábios dele. Os meus.
Pelas aparências.
CAPÍTULO 64

O beijo terminou quando nós dois fomos levados para longe das
câmeras e para dentro de um elevador. Meu coração estava aos
saltos. Meu cérebro estava uma bagunça. Meus lábios estavam…
todo meu corpo estava…
Eu não tinha palavras.
— Que raios foi isso? — Alisa esperou que a porta do elevador
fechasse antes de explodir.
— Isso foi uma emboscada — Landon respondeu, o sotaque
chique não conseguindo aliviar essas palavras. — Se você esconder
informação de mim, eu não posso te impedir de cair em uma
emboscada. Alisa, você sabe como eu opero. Se você não me
permitir fazer meu trabalho, então, sendo direta, não é mais meu
trabalho.
A porta do elevador se abriu e Landon saiu.
Como Max diria: baralho. Meu olhar tentou encontrar o de
Grayson, mas ele nem olhava na minha direção. É como se não
conseguisse.
— Eu vou perguntar mais uma vez — Alisa disse, sua voz baixa.
— Que raios foi isso?
— Você vai ter sua resposta — Oren disse a ela. — No carro. Nós
precisamos ir agora. Eu mandei dois dos meus homens para o carro
e usei a isca. Vamos pelos fundos. Andem.

Nós saímos para o estacionamento antes que os abutres


chegassem. Alisa nos deixou mofar no silêncio por um minuto inteiro
antes de voltar a falar. Dessa vez ela não perguntou o que estava
acontecendo.
— Quem sabia? — exigiu. — Quem sabia?
Eu baixei o olhar.
— Eu sabia.
— Óbvio. — Alisa passou seu olhar para Grayson. — Você vai
mentir e me dizer que não sabia? — Então ela olhou para o banco
do motorista. — Oren?
Meu chefe de segurança não respondeu.
— Isso vai ser mais fácil se começarmos do início — Grayson
disse, soando mais calmo do que deveria. Como se nunca
tivéssemos nos beijado. — Você se lembra de quando Avery te
pediu para localizar um conhecido dela, para quem ela gostaria de
prover uma ajuda econômica?
— Harry.
A memória de Alisa era uma peneira e eu sabia, nos meus ossos,
que ela nunca ia esquecer o que tinha acabado de acontecer. Ela
provavelmente não perdoaria, também.
— Toby — corrigi. Olhei para Grayson. Você não pode fazer isso
por mim. Você não pode me proteger como fez lá dentro. — Eu não
sabia quem ele era na época — continuei —, mas então vi uma foto
dele no medalhão de Nan.
— Você devia ter me contado. Imediatamente. — Alisa estava
com raiva, furiosa o suficiente para soltar uma impressionante lista
de palavrões, alguns em inglês, outros, não. — E você não deveria
ter contado a mais ninguém.
Ela fuzilou Grayson com o olhar, então era bem claro a quem
estava se referindo.
— Xander já sabia — Grayson disse baixo. — Meu avô deixou
uma pista para ele.
Isso acalmou Alisa, mas só um pouco.
— Claro que deixou. — Ela expirou, inspirou e então repetiu esse
processo duas ou três vezes. — Se você tivesse me contado, Avery,
eu poderia ter cuidado disso. Nós poderíamos ter contratado uma
equipe para…
— Encontrá-lo? — eu disse. — Sua equipe já procurou.
— Existem equipes — Alisa me disse — e equipes. Eu tenho um
dever fiduciário para com o espólio, para com você. Eu não poderia
usar milhões para encontrar Harry, mas para encontrar Toby?
Puxei o celular e abri a foto que Libby tinha me mandado da
mensagem de Toby.
— Ele não quer ser encontrado.
Passei o celular para as mãos dela.
— Pare de procurar — ela leu as palavras em voz alta,
completamente inabalada. — Quem tirou isso? Onde foi tirada?
Verificamos a letra?
Respondi às perguntas na ordem que foram enunciadas.
— Libby. New Castle. A letra definitivamente é a de Toby.
Alisa revirou os olhos na direção do céu.
— Você mandou Libby atrás dele?
Eu estava me preparando para dizer a ela que não havia nada de
errado com Libby, quando Grayson esclareceu a situação.
— E Nash.
Alisa levou uns quatro ou cinco segundos para se recuperar do
fato de que Nash sabia — e de que ele estava com Libby naquele
momento.
— E você — ela disse, acalorada, a Grayson. — Você teve tempo
de pesquisar o precedente legal, mas não te ocorreu falar com um
advogado?
Grayson baixou os olhos para a abotoadura da manga direita,
considerando uma resposta. Ele deve ter se decidido por
honestidade, porque, quando voltou seu olhar para Alisa, tudo que
ele disse foi:
— Nós não podíamos ter certeza de a quem você era leal.
Dessa vez, Alisa não demonstrou raiva. Ela parecia a ponto de
chorar.
— Como você pode me dizer isso, Gray? — Ela examinou a
expressão dele em busca de uma resposta e eu lembrei que ela
tinha crescido com a família Hawthorne. Ela tinha conhecido
Grayson, Jameson e Xander durante toda a vida deles. — Quando
foi que eu virei o inimigo? Eu sempre só fiz o que o velho queria de
mim — ela falou, como se as palavras estivessem sendo
fisicamente arrancadas dela. — Vocês têm alguma ideia de quanto
isso me custou?
Era óbvio pelo seu tom de voz que ela não estava só falando do
testamento, de mim ou de qualquer coisa que tivesse acontecido
depois da morte de Tobias Hawthorne. Ela o chamou de “o velho”,
da mesma forma que eles o chamavam, quando eu só tinha ouvido
ela se referir a ele como sr. Hawthorne ou Tobias Hawthorne até
então. E quando ela falou do que ser leal ao velho tinha lhe
custado…
Ela está falando de Nash.
— Estou mantendo esse império por um fio. — Alisa esfregou
raivosamente o rosto com o dorso da mão e notei que uma única
lágrima tinha escapado. Sua expressão deixou bem claro que seria
a última. — Avery, eu vou cuidar dessa situação. Vou apagar esse
incêndio. Vou fazer o que precisa ser feito, mas da próxima vez que
você guardar um segredo de mim, a próxima vez que você mentir
para mim? Eu mesma vou te jogar aos lobos.
Eu acreditei nela.
— Tem mais uma coisa. — Engoli em seco, porque não tinha
como melhorar a história. — Bem, duas coisas. Primeiro: Toby era
adotado, e sua mãe biológica era a então adolescente filha dos
Laughlin.
Alisa me encarou por uns bons três segundos. Então ela arqueou
a sobrancelha, esperando a outra coisa.
— E segundo — continuei, pensando no momento em que
Grayson tinha me impedido de dizer aquilo para as câmeras, e no
modo —: eu tenho motivos para acreditar que Toby é,
provavelmente, meu pai.
CAPÍTULO 65

— Bem — Max disse, desabando na minha cama. — Podia ter sido


melhor. — Ela tinha visto a entrevista. O mundo todo tinha. — Você
tem certeza de que está bem?
Grayson tinha me avisado, desde o início, para não seguir esse
fio. Ele tinha me avisado para não contar para ninguém sobre Toby...
e para quantas pessoas eu tinha contado?
Quando chegamos de volta à Casa Hawthorne, eu tinha tentado
falar com ele, mas minha boca havia se recusado a dizer uma única
palavra.
— Grayson não precisava ter me beijado — eu disse a Max, as
palavras explodindo para fora da minha boca, como se eu não
tivesse coisas muito mais importantes em que pensar. — Ele
poderia ter me interrompido.
— Pessoalmente, achei essa reviravolta deliciosa — Max
declarou. — Mas você parece uma borra de um cervo pego na borra
da estrada.
Era como eu me sentia.
— Ele não devia ter me beijado.
Max sorriu.
— Você beijou de volta?
Os lábios dele. Os meus.
— Eu não sei! — gemi de volta.
Max me deu seu olhar mais inocente.
— Você quer que eu puxe a filmagem?
Eu tinha beijado de volta. Grayson Hawthorne tinha me beijado e
eu tinha beijado de volta. Eu tinha pensado na noite anterior, no
labirinto. A forma como ele tinha corrigido minha postura. Nossa
proximidade.
— O que estou fazendo? — perguntei a Max, me sentindo como
em um labirinto. — Jameson e eu estamos…
— O quê? — Max incentivou.
Sacudi a cabeça.
— Eu não sei.
Eu sabia o que Jameson e eu deveríamos ser: adrenalina,
atração, o calor do momento. Sem compromissos. Sem emoções
complicadas.
Então por que eu me sentia como se o tivesse traído?
— Feche os olhos — Max me aconselhou, fechando os seus. —
Se imagine na beira de um penhasco, o mar lá embaixo. O vento
está soprando seu cabelo. O sol está se pondo. Você deseja, de
corpo e alma, uma coisa. Uma pessoa. Você ouve passos atrás de
você. Você se vira. — Max abriu os olhos. — Quem é?

O problema com a pergunta de Max era que ela assumia que eu era
capaz de desejar, de corpo e alma, qualquer coisa. Qualquer um.
Quando eu me imaginei naquele penhasco, me imaginei sozinha.
Tarde da noite, bem depois de Max ter ido para o quarto dela, fiz
buscas para ver o que as pessoas estavam falando da entrevista
desastrosa. A maior parte das manchetes chamavam Toby de “o
herdeiro perdido”. Skye já estava dando entrevistas.
Aparentemente o contrato de sigilo dela não cobria aquilo.
Nos comentários de quase todos os artigos havia especulação de
que eu tinha transado com Grayson para trazê-lo para o meu lado.
Algumas pessoas estavam afirmando que ele não era o único
Hawthorne com quem eu tinha transado. Não deveria importar
estranhos estarem me chamando de puta — ou pior —, mas
importava.
Da primeira vez que ouvi aquela palavra, outra criança no primário
a tinha usado para descrever minha mãe. Eu não conseguia me
lembrar de ela um dia ter namorado alguém, mas eu existia e ela
nunca tinha sido casada, o que para algumas pessoas era
suficiente.
Fui até o armário e puxei a mala com os cartões-postais — os que
minha mãe tinha me dado. Havaí. Nova Zelândia. Machu Picchu.
Tóquio. Bali. Passei por eles enquanto me lembrava de quem eu
era, quem ela tinha sido. Era com aquilo que sonhávamos, não com
um príncipe encantado.
Não algum tipo de amor épico à beira-mar.
Eu não sei por quanto tempo fiquei sentada ali quando ouvi um
barulho. Passos. Minha cabeça girou. Da última vez que eu tinha
conferido, Oren estava a postos em frente ao meu quarto. Ele tinha
me avisado que a notícia ter vazado poderia me colocar em risco.
Uma voz falou do outro lado da lareira.
— Sou eu, Herdeira.
Jameson. Isso devia ter sido um alívio. Conhecendo ele, eu
deveria ter me sentido mais segura. Mas, de alguma forma, quando
passei a mão em volta do candelabro na lareira, a última coisa que
eu me sentia era segura.
Abri a passagem.
— Imagino que você tenha visto a entrevista?
Jameson entrou no meu quarto.
— Não foi seu melhor momento.
Esperei que ele dissesse algo sobre o beijo.
— Jameson, eu não…
Ele levou um dedo aos meus lábios. Não chegou a me tocar, mas
meus lábios queimaram mesmo assim.
— Se sim é não — ele disse, seus olhos nos meus — e uma vez
é nunca, então quantos lados tem um triângulo?
Era uma charada que ele tinha jogado para mim, no dia que nos
conhecemos. Naquela época, eu tinha resolvido convertendo tudo
em números. Se você codificasse sim — ou a presença de algo —
como um e não — a ausência dessa coisa — como zero, então as
duas primeiras partes da charada eram redundantes. Se um é igual
a zero, quantos lados tem um triângulo?
— Dois — respondi, como tinha dito daquela vez, mas não
conseguia deixar de pensar se Jameson estava se referindo a um
tipo diferente de triângulo, envolvendo ele, Grayson e eu.
— Uma menina chamada Elle encontra um cartão na sua porta. A
frente do envelope diz tu, o remetente diz Elle. Entre eles, dentro do
envelope, ela encontra uma letra, então passa o resto do dia
embaixo da terra. Por quê?
Eu queria dizer a ele para parar com os jogos, mas não
conseguia. Ele tinha lançado uma charada, eu precisava resolver.
— A frente do cartão diz tu, o remetente diz Elle —pensei
enquanto falava. — Ela passa o dia todo embaixo da terra.
Havia um brilho nos olhos de Jameson, um que me lembrava do
tempo que nós tínhamos passado embaixo da terra. Eu quase podia
vê-lo, iluminado pela tocha, andando de um lado pro outro. E então
vi o método no tipo particular de loucura de Jameson.
— A letra dentro do envelope é N — eu disse baixo.
Provavelmente existiam mil adjetivos para descrever o sorriso de
Jameson Hawthorne, mas o que me parecia mais verdadeiro era
devastador. Jameson Winchester Hawthorne tinha um sorriso
devastador.
Eu recomecei.
— A frente do envelope diz tu — continuei, resistindo ao impulso
de dar um passo à frente. — O verso diz Elle, escrito…
— E-L — Jameson completou minha frase. Então ele deu um
passo à frente. — Mais um N e temos túnel, e é por isso que ela
passou o dia embaixo da terra. Você ganhou, Herdeira.
Nós estávamos próximos demais e uma sirene de alarme
disparou no fundo da minha cabeça, porque, se Jameson tinha visto
Grayson me beijar em rede nacional, e se ele estava ali agora, se
movendo na minha direção — então quais eram as chances de não
ser por minha causa?
Quais eram as chances de eu ser só mais um prêmio a ser
conquistado? Um território a ser marcado?
— Por que você está aqui? — perguntei a Jameson, embora
soubesse a resposta, tivesse acabado de pensar na resposta.
— Eu estou aqui — ele disse com outro sorriso devastador —
porque eu apostaria cinco dólares que você não está vendo as
mensagens no celular.
Ele estava certo.
— Eu desliguei — respondi. — Estou pensando em jogá-lo pela
janela.
— Eu aposto mais cinco dólares que você não acerta a estátua no
pátio.
— Dez — eu disse a ele — e fechamos negócio.
— Infelizmente — ele respondeu —, se você jogasse o celular
pela janela, não receberia a mensagem de Libby e Nash.
Eu o encarei.
— Libby e Nash…
— Encontraram alguma coisa — Jameson me disse. — E estão
vindo para casa.
CAPÍTULO 66

Acordei ao amanhecer e encontrei Oren parado bem em frente a


minha porta.
— Você passou a noite inteira aqui? — perguntei a ele.
Ele me olhou.
— O que você acha?
Ele tinha me avisado que, se a notícia de Toby se espalhasse,
seria um risco de segurança. Eu não tinha ideia de como a notícia
havia se espalhado, mas ali estávamos.
— Certo.
— Considere-se em uma coleira de dois metros — Oren me disse.
— Você não vai sair do meu lado até essa história morrer. Se ela
morrer.
Fiz uma careta.
— Quão ruim é?
A resposta de Oren foi direta.
— Tenho Carlos e Heinrich na entrada da sua ala. Eles já
precisaram mandar embora Zara, Constantine e os dois Laughlin,
em alguns casos à força. Isso sem nem mencionar o que Skye
tentou nos portões, na frente dos paparazzi.
— Quantos paparazzi? — perguntei, hesitante.
— O dobro do que já vimos antes.
— Como isso é possível?
Eu já era notícia de primeira página antes da entrevista da noite
anterior ir ao ar.
— Se tem uma coisa que o mundo ama mais que uma herdeira
acidental — Oren respondeu —, é um herdeiro perdido.
Ele muito deliberadamente não disse “eu te avisei”, mas eu sabia
que era nisso que ele estava pensando.
— Desculpa por isso — eu disse.
— Eu também peço desculpas.
— Por que você tem que pedir desculpas? — perguntei,
debochada.
A resposta de Oren não foi nada debochada.
— Quando eu disse que estaria a dois metros de você o tempo
todo, quis dizer eu, pessoalmente. Nunca devia ter delegado essa
responsabilidade, sob nenhuma circunstância.
— Você é humano — eu disse. — Tem que dormir.
Ele não respondeu, então cruzei os braços.
— Cadê o Eli?
— Eli foi removido da propriedade.
— Por quê? — perguntei, mas meu cérebro já estava a mil.
Oren tinha me pedido desculpas. Ele se culpava por ter permitido
que outra pessoa entrasse na minha equipe de segurança imediata,
e essa outra pessoa tinha sido expulsa da Casa Hawthorne.
Eli estava fazendo a minha segurança quando fui conversar com
a sra. Laughlin sobre Toby.
— Ele vazou as fotos — respondi a minha própria pergunta.
Eli tinha passado mais de uma semana na minha guarda. Ele
tinha estado em posição de escutar… muita coisa.
— Eli não é tão bom em apagar suas pegadas digitais quanto
meu homem é em descobrir fantasmas digitais — Oren me disse,
sua voz como aço. — Ele vazou as fotos. Provavelmente também é
o responsável pelo coração e pela cobra.
Eu encarei Oren.
— Por quê?
— Eu dei a ele sua proteção na escola. Ele obviamente queria
que isso fosse estendido para a propriedade. Eu confiei em Eli. Essa
confiança foi obviamente um erro. Por qualquer motivo,
possivelmente um pagamento da imprensa, ele queria ficar mais
próximo de você. Eu não notei. Devia ter notado.
Eu nunca tinha me sentido insegura perto de Eli. Ele não tinha me
machucado, e ele podia ter feito isso, se era seu objetivo. Por
qualquer motivo, repeti as palavras de Oren na minha cabeça.
Possivelmente um pagamento da imprensa.
Pensei no ex-namorado de Max, que tinha tentado acessar o
celular dela para poder vender nossas mensagens. No meu “pai” e
em Skye vendendo suas histórias. No pagamento que Alisa tinha
arranjado, lá no início, para que a mãe de Libby assinasse um
acordo de sigilo.
Eu estava começando a entender que pelo resto da minha vida as
pessoas que eu conhecesse, as pessoas de quem ficasse próxima
— sempre haveria a chance de me verem como uma fonte de
pagamento.
— Essa é a segunda vez que um erro de julgamento meu te
custou muito — Oren disse, rígido. — Se você sentir a necessidade
de contratar novos seguranças, tenho certeza de que Alisa
poderia…
— Não! — eu disse.
Se Alisa contratasse alguém, a lealdade dessa pessoa estaria
com ela. Quaisquer erros que Oren tivesse cometido, eu acreditava
que ele estava comigo. Ele faria o que pudesse para me proteger,
porque Tobias Hawthorne havia pedido isso a ele.
— Sim? — Oren disse, nervoso.
Eu levei um segundo para notar que ele não estava falando
comigo. Ele estava usando um fone e falava com um de seus
homens. Em quantos deles podemos confiar? Quantos deles me
venderiam pelo pagamento certo?
— Deixe-os entrar — Oren ordenou, e se voltou para mim. — Sua
irmã e Nash chegaram nos portões.
CAPÍTULO 67

Esperei por Libby e Nash no escritório de Tobias Hawthorne e pedi


que a segurança deixasse que Grayson, Jameson e Xander
voltassem. Mandei mensagens para que os meninos viessem me
encontrar e esperei sozinha, exceto por Oren, que estava a menos
de dois passos de distância. Eu estava ansiosa e a ponto de
estourar. Por que Libby levou tanto tempo para me responder? O
que eles encontraram em Cartago?
— Avery, fique atrás de mim.
Oren deu um passo à frente, puxando a arma. Eu não tinha ideia
do porquê, até seguir sua linha de visão até a vitrine na parede dos
fundos, a que tinha prateleiras e mais prateleiras de troféus dos
Hawthorne. A parede estava se mexendo, rodando na nossa
direção.
Fui para trás de Oren. Ele deu um passo à frente e chamou a
pessoa atrás da parede.
— Se identifique, eu tenho uma arma.
— Eu também.
Zara Hawthorne-Calligaris entrou na sala, parecendo a caminho
de algum brunch no clube de campo. Ela estava usando um twin-
set, calças sociais e sapatilhas clássicas e neutras.
E estava segurando uma arma.
— Baixe-a.
Oren mirou sua arma em Zara.
A arma dela ficou firme. Zara deu a Oren sua expressão menos
impressionada.
— Acho que todos nós sabemos que sou a Hawthorne menos
assassina da minha geração — ela disse, sua voz alta e clara —,
então vou ficar feliz em baixar a minha se você baixar a sua, John.
Eu esquecia, na maior parte do tempo, que Oren tinha um
primeiro nome.
— Não faça isso — Oren disse a ela. — Eu não quero atirar em
você, Zara, mas não se engane, eu vou. Baixe sua arma e podemos
conversar.
Zara não se abalou.
— Você me conhece, John. Intimamente. — O tom dela nunca
mudou, mas não havia como não entender o que ela tinha querido
dizer com isso. — Você realmente acredita que sou capaz de
machucar uma criança?
A “criança” em questão era claramente eu, mas isso passou
batido. Meu coração estava batendo com tanta força que eu sentia
que ia deixar um hematoma nas minhas costelas, mas ainda assim
consegui falar:
— Intimamente? — perguntei a Oren.
— Não desde a morte do meu pai, eu te garanto — Zara me
disse. — John sempre foi muito claro quanto a suas prioridades.
Primeiro meu pai e então você.
Vinte anos antes, quando Tobias Hawthorne tinha deixado sua
aliança de casamento para Zara, ele estivera apontando a
infidelidade dela. Ela já estava casada com um homem diferente,
mas o texto no testamento de Tobias Hawthorne tinha permanecido
o mesmo.
Ela estava tendo outro caso. Com Oren.
— Você não deveria estar aqui, Zara — Oren disse, a mira da
arma nunca oscilando.
— Não deveria? — perguntou. Depois de um longo momento, ela
baixou a arma, colocando-a na escrivaninha. — Se seus homens
tivessem me permitido entrar de uma forma mais tradicional, eu não
precisaria vir escondida como uma ladra e, se eu tivesse certeza de
que você não me arrastaria para fora, não precisaria de uma arma.
Mas aqui estamos. No entanto, como demonstração de boa vontade
que nenhum de vocês merece, desde que ninguém tente me
expulsar, minha arma vai ficar bem onde está, nessa escrivaninha.
Depois de um longo momento, Oren baixou a própria arma e Zara
se virou para mim.
— Mocinha, você vai me contar que loucura foi aquela no jornal
noite passada. Agora. — Toby era irmão dela. Eu só podia tentar
imaginar qual tinha sido a reação dela ao que ouvira.
— Fale — Zara me disse. — Você me deve ao menos isso.
Considerando tudo, eu provavelmente devia, mas, antes que eu
pudesse dizer uma palavra, uma voz falou, vinda da porta.
— Você não prefere ouvir de nós, Tia Z?
Nós três nos viramos e vimos Jameson. Grayson e Xander
estavam ao seu lado. Até ali, Zara tinha conseguido manter sua
expressão disciplinada em uma mistura de desdém e calma, mas,
no momento em que viu os sobrinhos, a máscara rachou.
Era a primeira vez desde que eu tinha entrado pela porta da Casa
Hawthorne que me ocorreu que ela os amava.
— Por favor — Zara disse baixo. — Meninos. Só me contem de
Toby.
E eles contaram, se revezando, passando pela história inteira com
uma eficiência brutal. Quando Grayson disse a ela que Toby era
adotado, ela inspirou com dureza, mas não disse nada. Ela não
reagiu até Xander dizer a ela o que Rebecca tinha contado.
— A filha dos Laughlin… — Zara deixou a frase pela metade. —
Ela foi para a faculdade quando eu ainda estava no fundamental e
nunca voltou, só quando Emily nasceu, anos mais tarde.
Eu me perguntei se Zara estava imaginando, como eu tinha feito,
o quanto deve ter sido doloroso para a mãe de Rebecca. Eu me
perguntei se ela estava questionando, como eu tinha feito, o que
poderia ter levado os Laughlin e os pais dela a serem tão cruéis.
— É tão fácil — Zara murmurou — para todas as pessoas erradas
terem filhos.
O silêncio atingiu a sala como um caminhão.
Zara foi a primeira a passar por cima dele.
— Continuem — ela disse aos meninos. — Soltem o resto. Nessa
família, sempre tem o resto.
Só havia um pouco mais. Zara já sabia da foto que o pai dela
havia deixado para Skye em Verdadeiro Norte. Isso deixava só o
fato de que, junto com aquela foto, ele tinha deixado uma página em
branco e que os números dentro das alianças haviam nos levado
para Cartago, onde Libby e Nash tinham encontrado alguma coisa.
— E, por favor, me digam: o que vocês encontraram? — Zara
perguntou, e notei que Libby e Nash tinham chegado.
Sem querer, dei um passo na direção deles. Era isso. Tudo vinha
caminhando para aquele momento. Eu me sentia caindo a mil
quilômetros por hora.
— Nós encontramos meu pai — Nash disse. — E isso.
Ele ergueu um pequeno frasco com pó roxo.
— Seu pai? — repeti. — Jake Nash?
Pensei na foto de Zara, Skye e o cara de cabelo bagunçado.
Nash apontou Zara com a cabeça.
— Ele perguntou de você.
Uma vulnerabilidade sincera transpareceu nas feições de Zara.
— Eu entendi que você era apaixonada por ele — Nash disse
baixo.
Zara sacudiu a cabeça.
— Você não entendeu.
— Você era apaixonada por ele — Nash repetiu. — Skye foi atrás
dele e eu fui o resultado. — Vi um músculo na garganta de Nash se
apertar. — Mesmo assim — ele disse baixo —, você não me odiou.
Zara sacudiu a cabeça.
— Como eu poderia? Foi fácil ficar longe quando você era bebê.
Eu me casei. Estava começando minha própria vida. Mas então
você virou um garotinho. Um garotinho maravilhoso, e a novidade já
tinha passado para Skye, então você ficava muito sozinho, porque
ela nunca estava lá
— Mas você estava — Nash respondeu. — Por um tempo. Minha
memória é um pouco vaga, mas, antes de Toby morrer, você
cuidava de mim.
— Eu encontrei Jake — Zara disse baixo. — Por você.
Lentamente, as engrenagens do meu cérebro começaram a girar.
Na época em que Tobias Hawthorne tinha reescrito seu testamento
pela primeira vez — logo depois da “morte” de Toby —, Zara estava
tendo um caso. Tobias Hawthorne sabia disso.
— Você e o pai de Nash? — eu disse.
— Levei a Jake fotos do filho dele — Zara respondeu, fria. — Eu
estava trabalhando para convencê-lo a desobedecer meu pai, a ser
parte da vida de Nash, mas então ele desapareceu ninguém sabe
para onde. Cartago, aparentemente, no que eu só posso imaginar
que tenha sido obra do meu pai.
— Ele é o caseiro da propriedade de Cartago desde então —
Nash confirmou. — O velho deu a ele instruções firmes que, se um
dia você aparecesse, ele deveria te dar isso. — Nash apontou de
novo para o frasco em suas mãos. — Levou um tempo para Libby e
eu o convencermos a dar para a gente.
Eu olhei o pó no frasco. Era daquilo que precisávamos para
decodificar a mensagem de Skye. É isso. Vinte anos antes, Tobias
Hawthorne tinha tramado um quebra-cabeça para colocar suas
filhas na trilha da verdade. A trilha tinha levado à foto tirada antes
que a relação delas se quebrasse — e a Jake Nash, por causa de
quem elas aparentemente tinham brigado.
— Estou com o bilhete de Verdadeiro Norte — Xander disse. —
Acho que todos nós sabemos o que precisamos fazer com esse pó.
— Vocês, Hawthorne, e sua tinta invisível — eu disse, sacudindo
a cabeça. — Precisamos de mais alguma coisa além do pó?
— Um pincel de maquiagem — Zara respondeu imediatamente.
Então os meninos falaram, os quatro ao mesmo tempo:
— E uma fonte de calor.
CAPÍTULO 68

A página em branco foi desdobrada e estendida. O pó foi


despejado sobre a página, o pincel o espalhou pela superfície da
carta. E era uma carta. Isso ficou claro no momento em que a fonte
de calor — uma lâmpada que estava perto — foi aplicada.
Palavras apareceram na página em uma letra pequenina e
uniforme — a letra de Tobias Hawthorne. Tudo que eu vi antes de
Zara agarrar a carta foi a abertura: Querida Zara, Querida Skye.
Zara foi para o canto do quarto. Conforme ela lia, seu peito subia e
descia, arfante. Em certo ponto, lágrimas transbordaram e
começaram a desenhar uma trilha em seu rosto. Finalmente, ela
soltou a carta. Ela caiu de suas mãos, flutuando suavemente até o
chão.
Os meninos estavam todos congelados no lugar, como se nunca
tivessem visto a tia derramar uma única lágrima até aquele
momento. Lentamente, eu avancei. Zara não me mandou parar,
então me abaixei para pegar a carta e li.

Querida Zara, querida Skye,


Se vocês estão lendo isso, então estou morto. Eu não
consigo dizer o quanto sinto muito por tê-las deixado assim —
ou quão necessário eu acredito que o que fiz por vocês
realmente é. Sim, por vocês, não com vocês.
Se vocês estão lendo isso, minhas filhas, então deixaram de
lado suas diferenças por tempo suficiente para seguir a trilha
que deixei. Se isso aconteceu, então tudo que fiz serviu a pelo
menos um propósito. E talvez, minhas queridas, vocês agora
estejam prontas para o outro.
Como vocês já devem ter entendido, dependendo do quanto
examinaram as instituições de caridade para as quais deixei
minha fortuna, o irmão de vocês não faleceu na Ilha Hawthorne.
Disso eu estou certo. Ele foi, até onde fui capaz de entender,
tirado do oceano, gravemente queimado, por um pescador
local. Só isso já me levou anos para descobrir. Eu escrevi e
reescrevi essa carta para vocês incontáveis vezes, conforme
minha investigação do desaparecimento do irmão de vocês
evoluía.
Eu nunca o encontrei. Cheguei perto uma vez, mas encontrei
outra coisa no lugar dele. Eu só posso concluir que Toby não
quer ser encontrado. O que quer que tenha acontecido na ilha,
ele vem fugindo disso por metade da sua vida.
Ou, talvez, ele venha fugindo de mim.
Eu cometi erros com todos vocês. Zara, eu pedi demais de
você em alguns momentos e te dei muito pouco da minha
aprovação em outros. Skye, de você eu nunca pedi o suficiente.
Eu tratei vocês duas diferentes porque eram mulheres.
Eu feri Toby mais do que a todos.
Não vou cometer os mesmos erros com a próxima geração.
Vou incentivá-los, todos em igual medida. Eles vão aprender a
tornar os outros prioridades. Vou fazer por eles tudo que eu
deveria ter feito por vocês, incluindo isso: nenhum de vocês
verá minha fortuna. Há coisas que fiz das quais não me
orgulho, legados que vocês não deveriam ter que carregar.
Saiba que eu amo vocês, as duas. Encontrem seu irmão.
Talvez, quando eu não estiver mais aqui, ele finalmente pare de
fugir. Abaixo vocês encontrarão uma lista de lugares pelos
quais tracei o paradeiro dele nos últimos doze anos. Em um
cofre no Banco Nacional Montgomery, número 21666, vocês
encontrarão um relatório policial a respeito do incidente na Ilha
Hawthorne, assim como um amplo arquivo montado pelos meus
investigadores ao longo dos anos.
Vocês encontrarão a chave do cofre na minha caixa de
ferramentas. Há um fundo falso. Tenham coragem, minhas
queridas. Sejam fortes. Sejam honestas.
Sinceramente,

Seu pai
Eu ergui os olhos da carta e os garotos vieram até mim —
Grayson, Jameson e Xander. Nash, Libby e Oren ficaram onde
estavam. Zara caiu de joelhos atrás de mim.
Enquanto os meninos liam a carta, processei seu conteúdo. Nós
tínhamos a confirmação de que Tobias Hawthorne sabia que o filho
estava vivo, que estava procurando por ele e que, como Sheffield
Grayson havia afirmado, o velho tinha enterrado um boletim policial
a respeito do que havia acontecido na ilha. Poderia haver mais
detalhes no cofre, quando encontrássemos a chave.
— A caixa de ferramentas — eu disse de repente. Eu me virei
para Oren. — Tobias Hawthorne te deixou a caixa de ferramentas
dele.
Era parte do testamento atualizado. O velho tinha percebido que
Oren estava transando com Zara? Foi por isso que ele o tornou
parte disso? Tobias Hawthorne tinha escrito a frase esses últimos
doze anos na carta, sugerindo que ela não tinha sido atualizada
recentemente. Oito anos. Ele escreveu isso oito anos atrás.
Quando Tobias Hawthorne havia atualizado seu testamento no
ano anterior, me deixando tudo, ele tinha criado uma nova trilha a
ser seguida. Um novo jogo. Uma nova tentativa de reparar os laços
da sua família que haviam se rompido. Mas ele havia incluído as
mesmas palavras para Zara e Skye — as mesmas pistas.
Ele tinha continuado acrescentando informação ao cofre nos
últimos oito anos?
— O que vocês acham que ele quis dizer — Grayson disse
lentamente — com legados que não deveríamos ter que carregar?
— Eu me importo menos com isso — Jameson respondeu — do
que com a lista no final. O que você acha dela, Herdeira?
Ter acabado entre Jameson e Grayson deveria ter sido
desconfortável. Deveria ter sido insuportável — mas, naquele
momento, não era.
Lentamente, voltei meus olhos para a carta, para a lista. Havia
dezenas de lugares listados, espalhados por todo o mundo, como se
Toby nunca tivesse ficado em um lugar por muito tempo. Mas, um a
um, certos lugares me chamaram a atenção. Waialua, Oahu.
Waitomo, Nova Zelândia. Cusco, Peru. Tóquio, Japão. Bali,
Indonésia.
Eu literalmente parei de respirar.
— Herdeira? — Jameson disse.
Grayson deu um passo na minha direção.
— Avery?
Oahu era uma das ilhas do Havaí. Cusco, no Peru, era a cidade
mais próxima de Machu Picchu. Meus olhos desceram pela lista.
Havaí. Nova Zelândia. Machu Picchu. Tóquio. Bali. Encarei a
página.
— Havaí — eu disse alto, minha voz trêmula. — Nova Zelândia.
Machu Picchu. Tóquio. Bali.
— Pra um fugitivo — Xander comentou —, ele deu suas voltas.
Sacudi a cabeça. Xander não via o que eu estava vendo. Ele não
poderia.
— Havaí, Nova Zelândia, Machu Picchu, Tóquio, Bali. Eu conheço
essa lista.
Tinham mais. Pelo menos cinco ou seis que eu reconhecia. Cinco
ou seis lugares que eu tinha imaginado conhecer. Lugares que eu
havia segurado na minha mão.
— Os cartões-postais da minha mãe — sussurrei e saí correndo.
Oren foi atrás de mim e os outros não demoraram.
Cheguei ao quarto em questão de segundos, ao armário em
menos ainda, e logo eu estava segurando os postais na minha mão.
Não havia nada escrito no verso, nenhum carimbo. Eu nunca tinha
questionado onde minha mãe os tinha conseguido.
Ou de quem.
Ergui os olhos para Jameson e Grayson, Xander e Nash.
— Vocês, Hawthorne — eu disse em um sussurro embargado —,
e sua tinta invisível.
CAPÍTULO 69

Uma luz negra revelou a escrita nos cartões-postais, da mesma


maneira que tinha feito com as paredes de Toby. A mesma letra.
Toby tinha escrito aquelas palavras. As respostas que estávamos
buscando — tinha uma chance de que todas estivessem ali, mas
precisei de toda força que tinha só para ler a abertura, igual em
todos os postais.
— Querida Hannah — li —, igual para a frente e para trás.
Hannah. Pensei na acusação dos tabloides de que minha mãe
estava vivendo com uma identidade falsa. Eu tinha passado minha
vida inteira pensando que ela era Sarah.
As palavras nos postais se nublaram diante de mim. Lágrimas.
Nos meus olhos. Meus pensamentos estavam distantes, como se
tudo estivesse acontecendo com outra pessoa. O quarto a minha
volta estava cheio da expectativa elétrica do momento, do que eu
tinha acabado de descobrir, mas tudo que eu conseguia pensar era
que o nome da minha mãe era Hannah.
Eu tenho um segredo… Quantas vezes tínhamos jogado?
Quantas chances ela teve de me contar?
— Bem — Xander se intrometeu —, o que eles dizem?
Todo mundo estava em pé. Eu estava no chão. Todo mundo
estava esperando. Eu não consigo fazer isso. Não conseguia olhar
para Xander — ou Jameson ou Grayson.
— Eu queria ficar sozinha — eu disse, minha voz áspera contra a
minha garganta. Eu entendi então como Zara deveria ter se sentido
lendo a carta do pai. — Por favor.
Houve um momento de silêncio e então:
— Todo mundo pra fora.
Perceber que foi Jameson quem tinha dito essas palavras,
Jameson, que estava deliberadamente se afastando do quebra-
cabeça — por mim —, me abalou profundamente.
O que ele queria com isso?
Em instantes, os Hawthorne tinham saído. Oren estava a
respeitosos dois metros de distância. E Libby se ajoelhou ao meu
lado.
Olhei para ela de relance e ela apertou minha mão.
— Eu já te contei do meu aniversário de nove anos? — Libby
perguntou.
Através da neblina, eu consegui sacudir a cabeça.
— Você tinha uns dois anos nessa época. Minha mãe odiava
Sarah, mas às vezes ela a deixava cuidar de mim. Minha mãe
sempre dizia que não contava como caridade se fosse aquela vaca,
porque, se não fosse por Sarah e você, talvez Ricky tivesse voltado
para nós. Ela dizia que sua mãe devia a ela e sua mãe agia como
se devesse, para poder ficar comigo. Para eu poder ficar com você.
Eu não me lembrava de nada assim. Libby e eu mal nos víamos
quando éramos menores — mas, se eu tinha dois anos, não me
lembraria de muito mesmo.
— Minha mãe me deixou na sua casa por quase uma semana. E
foi a melhor semana da minha vida, Ave. Sua mãe me fez bolinhos
de aniversário e ela tinha uns colares baratos de carnaval e acho
que usamos uns dez, cada uma. Ela tinha mechas de cabelo falsas
em um arco-íris de cores néon e nós as usamos no cabelo. Ela te
ensinou a cantar “Feliz aniversário”. Minha mãe nem ligou, mas
Sarah me colocou para dormir toda noite na cama dela. Ela dormia
no sofá e você entrava na minha cama e sua mãe beijava nós duas.
Toda noite.
As lágrimas nos meus olhos estavam rolando.
— E quando minha mãe voltou e viu o quanto eu estava feliz…
ela nunca mais me deixou ir à sua casa. — A respiração de Libby
ficou ofegante, mas ela conseguiu sorrir. — O que quero dizer é que
você sabe quem era sua mãe, Avery. Nós duas sabemos. E ela era
maravilhosa.
Fechei os olhos. Eu me forcei a parar de chorar, porque Libby
estava certa. Minha mãe era maravilhosa. E se ela tinha mentido
para mim ou guardado segredos demais — talvez tivesse sido
necessário.
Respirando fundo, voltei para os cartões-postais. Eles não tinham
data, então era impossível dizer em que ordem haviam sido escritos;
não tinham carimbo, então nunca tinham sido postos no correio.
Espalhei os postais pelo chão e comecei com o mais à esquerda,
mirando a luz negra nele. Lentamente, o li.
Absorvi cada palavra.
Havia coisas naquele primeiro postal que não entendi —
referências cujo significado haviam se perdido com a minha mãe.
Mas, quase no fim, tinha algo que chamou minha atenção. Eu
espero que você tenha lido a carta que te deixei naquela noite.
Espero que alguma parte de você tenha entendido. Espero que você
vá para muito, muito longe e nunca olhe para trás, mas, se você um
dia precisar de qualquer coisa, espero que você faça exatamente
como eu te disse para fazer naquela carta. Vá a Jackson. Você sabe
o que deixei lá. Você sabe o que vale.
— Jackson — eu disse, minha voz fraca.
O que Toby tinha deixado para minha mãe em Jackson? No
Mississippi? Estava na lista de Tobias Hawthorne?
Deixando o primeiro postal de lado, segui lendo e percebi que
Toby nunca tinha pretendido enviar aquelas mensagens. Ele estava
escrevendo para ela, mas para ele mesmo. Os postais deixavam
claro que ele estava se mantendo longe dela de propósito. A única
outra coisa clara é que eles estavam apaixonados. Epicamente
apaixonados, do tipo sou incompleto sem você, do tipo que
acontece só uma vez na vida.
O tipo de amor no qual eu nunca tinha acreditado.
O cartão seguinte dizia:

Querida Hannah, igual para a frente e para trás,


Você se lembra daquele dia na praia? Quando eu não sabia
se andaria de novo e você me xingou até eu conseguir? Parecia
que você nunca tinha xingado antes na vida, mas, ah, como
você estava sendo sincera. E quando eu dei aquele passo e te
xinguei de volta, você se lembra do que disse?
“É um passo”, você cuspiu. “E agora?”
A luz vinha por trás de você e o sol estava afundando no
horizonte e pela primeira vez em semanas parecia que meu
coração tinha finalmente se lembrado de como bater.
E agora?

Era difícil ler as palavras de Toby sem sentir uma onda de


emoção. Minha vida inteira, minha mãe nunca tinha se envolvido
com ninguém além de Ricky. Eu nunca tinha visto alguém adorá-la
como ela merecia ser adorada. Levei mais tempo para me
concentrar nas implicações das palavras. Toby estava ferido — o
suficiente para não ter certeza se andaria de novo — e minha mãe o
tinha xingado?
Pensei no que o velho tinha dito em sua carta para Zara e Skye, a
respeito do pescador puxando Toby para fora da água. Quão ferido
ele estava? E onde minha mãe tinha entrado?
Com a cabeça girando, continuei lendo. Outro cartão e então mais
outro e eu percebi que, sim, minha mãe tinha estado lá, em
Rockaway Watch, depois do incêndio.

Querida Hannah, igual para a frente e para trás,


Na noite passada, sonhei que me afogava e acordei com seu
nome nos lábios. Você era tão silenciosa naqueles primeiros
dias. Você se lembra disso? Quando nem aguentava olhar para
mim. Não falava comigo. Você me odiava. Eu sentia, e fui
horrível com você. Eu não sabia quem eu era ou o que eu tinha
feito. Eu não me lembrava de nada da minha vida na ilha. Mas,
ainda assim, fui horrendo. A abstinência era uma fera, mas fui
pior. E você estava lá e eu sei, hoje, que não merecia nada de
você. Mas você trocou meus curativos. Me segurou. Me tocou,
com mais bondade do que eu poderia ter merecido.
Sabendo o que sei agora, eu não sei como você fez. Eu
deveria ter me afogado. Deveria ter queimado. Meus lábios
nunca deveriam ter tocado os seus, mas pelo resto da minha
vida, Hannah, ó, Hannah — eu vou sentir cada beijo. Sentir seu
toque quando eu estava meio morto e totalmente podre e você
me amou apesar de mim mesmo.

— Ele perdeu a memória. — Ergui os olhos para Libby. — Toby.


Jameson e eu achamos que ele poderia ter tido amnésia, havia uma
sugestão no velho testamento de Tobias Hawthorne. Mas essa carta
confirma. Quando ele conheceu minha mãe, ele estava ferido e em
abstinência, provavelmente de algum tipo de droga, e não sabia
quem era.
Ou o que tinha feito. Eu pensei no incêndio. Na Ilha Hawthorne e
nas três pessoas que não tinham sobrevivido. Minha mãe era de
Rockaway Watch? Ou de alguma outra cidade próxima?
Mais postais, mais mensagens. Uma após a outra, sem respostas.

Querida Hannah, igual para a frente e para trás,


Desde a ilha, morro de pavor da água, mas sigo me forçando
a embarcar em navios. Eu sei que você me diria que não
preciso, mas preciso, sim. O medo é bom para mim. Eu me
lembro muito bem de como era quando não sentia nenhum.
Se eu tivesse te conhecido então, seu toque teria me
atingido? Você teria me odiado até me amar? Se tivéssemos
nos conhecido em outro momento, em circunstâncias
diferentes, eu ainda sonharia com você toda noite — e me
perguntaria se você sonha comigo?
Eu deveria abrir mão de você. Quando tudo voltou de
repente, quando entendi o que você vinha escondendo de mim,
prometi que iria. Prometi a mim mesmo. Prometi a você.
Prometi a Kaylie.

O nome me fez congelar. Kaylie Rooney. A local que tinha morrido


na Ilha Hawthorne. A menina em quem Tobias Hawthorne tinha
colocado muito da culpa por meio da imprensa. Vasculhei o resto
dos cartões-postais, procurando por algo que me dissesse o que
exatamente eu deveria entender das palavras de Toby, e finalmente
— finalmente — eu encontrei, perto do final de uma mensagem que
começava com um tom muito mais sonhador.

Eu sei que nunca mais vou te ver de novo, Hannah. Que eu não
mereço. Eu sei que você nunca vai ler uma palavra que eu
escrever e, porque você nunca vai ler isso, eu sei que posso
dizer o que você me proibiu de dizer muito tempo atrás.
Me desculpe.
Me desculpe, Hannah, ó, Hannah. Me desculpe por fugir no
meio da noite. Me desculpe por ter te deixado me amar uma
fração do quanto eu vou, até o dia em que morrer, te amar. Me
desculpe pelo que fiz. Pelo incêndio.
E eu nunca vou parar de pedir desculpas pela sua irmã.
CAPÍTULO 70

Irmã. A palavra ecoou sem parar na minha mente. Irmã. Irmã.


Irmã.
— Toby pediu desculpas a minha mãe, a Hannah, pela irmã dela.
— Os pensamentos estavam se chocando uns com os outros no
meu cérebro, como um engavetamento de dez carros, uma
cacofonia ensurdecedora. — E em outro postal ele mencionou
Kaylie. Kaylie Rooney, a menina que morreu no incêndio na Ilha
Hawthorne. Algum tempo depois disso, minha mãe ajudou a cuidar
de Toby. Ele não se lembrava do que tinha acontecido, mas disse
que ela o odiava. Ela deveria saber.
— Saber o quê? — Libby perguntou, me lembrando de que eu
não estava falando sozinha.
Pensei no incêndio, no relatório policial enterrado. Sheffield
Grayson dizendo que Toby tinha comprado combustível.
— Que Toby era responsável pela morte da irmã dela.
No segundo seguinte, eu estava com o notebook aberto, fazendo
mais uma busca na internet por Kaylie Rooney. De início, não
encontrei nada que eu não tivesse visto antes, mas então eu
comecei a acrescentar termos de busca. Tentei irmã e não deu em
nada. Tentei família e encontrei a única entrevista com um membro
da família Rooney. Não era uma entrevista muito boa. Tudo que o
repórter tinha tirado da mãe de Kaylie era, e eu cito, “Minha Kaylie
era uma boa menina e aqueles ricos escrotos a mataram”. Mas
também havia uma foto. Um retrato da… minha avó? Tentei
considerar aquela possibilidade. Então ouvi a porta se abrir atrás de
mim.
Max enfiou a cabeça para dentro do quarto.
— Venho em paz. — Ela se enfiou pela porta e passou por Oren.
— Bom avisar que venho armada apenas de sarcasmo. — Max
parou bem ao meu lado e saltou para cima da escrivaninha. — O
que estamos fazendo?
— Olhando uma foto da minha avó. — Dizer as palavras as
tornava um pouco mais concretas. — A mãe da minha mãe. Talvez.
Max encarou a foto.
— Sem talvez — ela disse. — Ela até parece sua mãe.
A mulher na foto estava de cara fechada. Eu nunca tinha visto
minha mãe de cara fechada. Ela usava o cabelo preso em um coque
apertado e minha mãe sempre usava o dela solto. Vinte anos antes,
aquela mulher parecia décadas mais velha do que minha mãe
quando ela morreu.
Ainda assim, Max estava certa. Os traços eram os mesmos.
— Como ninguém fez essa conexão? — perguntou, incrédula. —
Todos esses rumores sobre a sua mãe, todo mundo tentando
encontrar uma conexão entre você e os Hawthorne e ninguém
pensou em olhar para a família de uma menina que eles
basicamente assassinaram? E os parentes da sua mãe e as
pessoas que a conheciam quando jovem? Alguém deve ter
reconhecido, quando você virou notícia. Por que ninguém avisou a
imprensa?
Eu pensei em Eli, me vendendo por um pagamento. Que tipo de
cidade era Rockaway Watch, para ninguém ter feito o mesmo?
— Eu não sei — respondi. — Mas sei que o que quer que Tobias
Hawthorne tenha deixado naquele cofre, o relatório policial, os
arquivos da investigação, eu quero ver tudo. Eu preciso ver. Agora.
CAPÍTULO 71

Oren pegou a chave na caixa de ferramentas, mas não a entregou


para mim. Ele a entregou para Zara e me mandou me arrumar para
a escola.
— Você ficou louco? — perguntei a ele. — Eu não vou para a
escola.
— É o lugar mais seguro para você agora — Oren disse. — Alisa
vai concordar comigo.
— Alisa está cuidando do controle de danos da entrevista —
respondi. — Eu tenho certeza de que a última coisa que ela quer é
que eu apareça em público. Ninguém vai questionar por que eu iria
querer ficar em casa.
— Country Day não é pública — Oren me disse.
Alguns segundos depois, ele estava com Alisa no viva-voz e ela
repetiu o que ele tinha acabado de dizer: era para eu vestir meu
uniforme de escola particular, fazer minha melhor cara e fingir que
nada tinha acontecido.
Se tratássemos aquilo como uma crise, seria visto como uma
crise.
Como eu tinha prometido manter Alisa informada, contei tudo a
ela. Ainda assim, ela não mudou de ideia.
— Aja normalmente — ela me disse.
Eu não agia normalmente havia semanas. Porém, menos de uma
hora depois, estava em minha saia xadrez, com uma camisa branca
e um blazer vinho, meu cabelo bagunçado do jeito certo e um
mínimo de maquiagem, exceto pelos olhos. Patricinha com algo a
mais, para que o mundo todo visse — ou pelos menos os alunos da
Escola Heights Country Day.
Eu me sentia como no primeiro dia. Ninguém olhava diretamente
para mim, mas a forma como não olhavam era muito mais suspeita.
Jameson e Xander deslizaram para fora do carro depois de mim e
se posicionaram dos meus dois lados. Pelo menos dessa vez
éramos eu e os Hawthorne contra o mundo.

Sobrevivi ao dia pouco a pouco, mas, na hora do almoço, não


aguentava mais. Não aguentava mais os olhares. Não aguentava
mais fingir que estava tudo normal. Não aguentava mais fingir que
estava feliz. Eu estava me escondendo — ou tentando — no arquivo
quando Jameson me encontrou.
— Você parece alguém que precisa de uma distração — ele me
disse.
A alguns metros de distância, Oren cruzou os braços.
— Não.
Jameson deu seu olhar mais inocente para o meu guarda-costas.
— Eu te conheço — Oren respondeu. — Eu conheço suas
distrações. Você não vai levá-la para saltar de paraquedas. Ou pular
de asa-delta na praia. Nada de pistas de corrida. Nada de
motocicletas. Nada de lançamento de machado…
— Lançamento de machado?
Olhei para Jameson, intrigada.
Ele se voltou para Oren.
— O que você acha de telhados?

Dez minutos depois, Jameson e eu estávamos no topo do Centro de


Artes. Ele abriu a grama e arrumou uma bola.
— Fique longe da beira — Oren me disse e então,
deliberadamente, virou as costas para nós dois.
Eu esperei que Jameson me perguntasse dos cartões-postais.
Esperei que ele flertasse comigo, me tocasse, usasse os métodos
Jameson Hawthorne para arrancar a resposta de mim. Mas tudo
que ele fez foi me dar um taco.
Eu me posicionei para a tacada. Parte de mim queria que ele
viesse ficar atrás de mim, queria seus braços grudados aos meus.
Jameson no telhado. Grayson no labirinto. Minha cabeça estava
uma zona. Eu estava uma zona.
Soltei o taco.
— Minha mãe era irmã de Kaylie Rooney — eu disse.
E assim começou. Era difícil colocar em palavras tudo que eu
tinha descoberto, mas consegui. Quanto mais eu falava, mais fácil
era ver Jameson pensando.
Quanto mais ele pensava, mais perto de mim chegava.
— O que você acha que Toby deixou em Jackson que vale tanto?
— ele perguntou. — E onde em Jackson? — Jameson me estudou
como se meu rosto tivesse as respostas. — Quanto tempo durou a
amnésia de Toby? Por que continuar “morto” depois que a memória
dele voltou?
— Culpa. — Eu quase engasguei com a palavra, embora não
pudesse explicar por quê. — Toby se odiava quase tanto quanto
amava minha mãe.
Era a primeira vez que eu tinha dito aquela última parte em voz
alta. Toby Hawthorne amava minha mãe. Ela o amava. Tinha sido
um amor épico à beira-mar. Literalmente. Só saber disso fazia eu
sentir que estava mentindo para mim mesma toda vez que fingia
que eu não tinha sentimentos, que as coisas não precisavam ser
complicadas.
Que eu poderia ter o que queria sem desejar nada de verdade, de
corpo e alma.
— Herdeira?
Havia uma pergunta nos olhos verde-escuros de Jameson. Eu
não estava certa do que ele estava pedindo, do que queria de mim.
Do que eu queria dele.
— Olá, olá! — Xander enfiou a cabeça para fora da porta. —
Aconteceu de eu ter meu ouvido colado à porta. Posso ter escutado
alguma coisa. Tenho uma sugestão!
Jameson parecia disposto a efetivamente estrangular o irmão.
Olhei para Oren, que ainda estava fazendo questão de ignorá-lo. Eu
quase conseguia ouvi-lo pensando: não é o meu trabalho.
— Ligue para ela!
Xander atirou algo em mim. Foi só quando peguei que notei que
era o celular dele e que um número já tinha sido discado.
— Ligue para quem? — Jameson perguntou, estreitando os olhos.
— Sua avó — Xander me disse. — Como eu disse, sem querer
ouvi algumas coisas enquanto minha orelha estava casualmente na
porta. A mãe de Kaylie Rooney é sua avó, Avery. Essa é uma peça
do quebra-cabeça que nunca tivemos antes, e esse — ele apontou
com a cabeça para o celular — é o telefone dela.
— Você não precisa ligar — Jameson me disse, o que fazia tanto
sentido quanto o fato de que ele havia se afastado voluntariamente
dos cartões-postais.
— Não. — Engoli em seco. — Preciso, sim.
Meu coração saltou para a garganta só de pensar nisso, mas
apertei o botão de discar. A linha chamou, chamou e chamou sem
que ninguém atendesse e sem que fosse para a caixa-postal. Eu
não conseguia desligar, então só deixei tocar, até que, finalmente,
alguém atendeu. Tudo que consegui dizer foi alô e meu nome antes
da pessoa que atendeu me interromper.
— Eu sei quem você é. — De início eu pensei que a voz grave era
de um homem, mas, conforme as palavras foram vindo, percebi que
era uma mulher. — Se a inútil da minha filha tivesse te ensinado
alguma coisa sobre essa família, você não teria ousado ligar para
mim.
Eu não estava certa do que esperava. Minha mãe sempre tinha
me dito que ela não tinha família. Ainda assim, cada palavra que a
mãe dela — minha avó — disse me cortou.
— Se aquela putinha não tivesse fugido, eu mesma teria enfiado
uma bala nela. Você acha que quero um centavo do seu dinheiro
sujo, menina? Acha que somos uma família? Desligue esse celular.
Esqueça meu nome. E, se você tiver sorte, vou garantir que essa
família, que essa cidade inteira, esqueça o seu.
O som do outro lado da linha foi cortado. Eu fiquei ali, congelada,
o celular ainda na orelha.
— Tudo bem aí, amiga? — Xander perguntou.
Eu não conseguia responder. Eu não conseguia dizer nada. Você
acha que quero um centavo do seu dinheiro sujo, menina? Você
acha que somos uma família?
Eu nem tinha certeza de que estava respirando.
Se aquela putinha não tivesse fugido…
Jameson veio ficar ao meu lado. Ele tocou nos meus ombros. Por
um segundo, achei que ele ia me forçar a olhar para ele, mas ele
não o fez. Ele me levou até a beira do telhado. Bem na beira, tanto
que Oren me chamou, mas, em resposta, tudo que Jameson fez foi
abrir meus braços, até que os meus e os dele estivessem em um T.
— Feche os olhos — ele sussurrou. — Respire.
Se aquela putinha não tivesse fugido…
Eu fechei os olhos. Respirei. Eu o senti respirando. O vento
aumentou. E eu contei tudo a eles.
CAPÍTULO 72

Quando a suv passou pelos portões da Casa Hawthorne naquela


tarde, eu ainda estava abalada. Para minha surpresa, Zara
encontrou Jameson, Xander e eu na entrada. Pela primeira vez
desde que eu havia conhecido a primogênita de Tobias Hawthorne
ela parecia algo aquém de perfeita. Seus olhos estavam inchados.
Os cabelos soltos estavam grudados na testa. Ela estava segurando
uma pasta. A pasta tinha só uns três centímetros de largura, mas
mesmo isso foi o suficiente para me fazer congelar.
— Era isso que estava no cofre? — Xander perguntou.
— Você quer um resumo? — Zara perguntou, fria. — Ou preferem
ler vocês mesmos?
— Os dois — Jameson disse.
Primeiro, uma visão geral, e então iríamos examinar os materiais
em busca de indiretas sutis, pistas, qualquer coisa que Zara
pudesse ter deixado passar.
Cadê o Grayson? A pergunta veio à minha mente sem ser
convidada. Alguma parte de mim esperava que ele estivesse ali,
esperando. Mesmo que ele mal tivesse falado comigo desde a
entrevista. Mesmo que mal conseguisse olhar para mim.
— Resumo? — pedi a Zara, me forçando a me concentrar.
Zara abaixou o queixo de leve, assentindo.
— Toby vinha entrando e saindo da reabilitação fazia um ou dois
anos quando desapareceu. Ele obviamente estava com raiva,
embora na época eu não soubesse por quê. Pelo que meu pai
conseguiu descobrir, Toby conheceu outros dois garotos na
reabilitação. Todos eles saíram para viajar juntos naquele verão.
Parece que os meninos foram festejando e dormindo por aí, país
afora. Uma jovem em particular, uma garçonete em um bar onde os
meninos pararam, foi bem informativa quando o investigador do meu
pai a encontrou. Ela disse ao investigador exatamente o que Toby
vinha cheirando e exatamente o que ele tinha dito na manhã depois
de terem relações sexuais.
— O que ele disse? — Xander perguntou.
A voz de Zara nem estremeceu.
— Ele disse a ela que ele iria colocar fogo em tudo.
Encarei Zara por um momento, então meu olhar foi para
Jameson. Ele tinha estado lá quando Sheffield Grayson afirmou que
Toby era responsável pelo incêndio. Mesmo depois de ler os
cartões-postais e ver o tipo de culpa que Toby carregava, alguma
parte de mim ainda pensava que o incêndio tinha sido um acidente,
que Toby e seus amigos estavam bêbados, ou chapados, e que as
coisas saíram do controle.
— Toby chegou a especificar em que ele iria botar fogo? —
Jameson perguntou.
— Não — Zara manteve a resposta sucinta. — Mas logo antes de
chegarem a Rockaway Watch, ele comprou uma boa quantidade de
combustível.
Ele começou o incêndio. Ele matou todos eles.
— Isso estava no relatório policial? — consegui perguntar. — O
que Toby disse sobre botar fogo em tudo… A polícia sabia?
— Não — Zara respondeu. — A mulher para quem Toby disse
aquilo não tinha ideia de quem ele era. Mesmo quando nossos
investigadores particulares a encontraram, ela continuou no escuro.
A polícia nunca a encontrou. Nunca tiveram motivo para isso. Mas
eles sabiam do combustível. Pelo que os investigadores do incêndio
perceberam, a casa na Ilha Hawthorne tinha sido encharcada. O gás
tinha sido ligado.
Senti a mão indo para minha boca. Um som escapou por entre
meus dedos, algo entre um engasgo horrorizado e um miado.
— Toby não era idiota. — A expressão de Jameson estava dura.
— A menos que isso fosse algum tipo de pacto suicida, ele teria um
plano de contingência para ter certeza de que ele e os amigos não
ficariam presos nas chamas.
Zara fechou os olhos com força.
— Aí está a questão — ela sussurrou. — A casa estava
encharcada de combustível. O gás estava ligado, mas ninguém
nunca acendeu um fósforo. Houve uma tempestade com raios
naquela noite. Toby provavelmente estava planejando queimar a
casa a uma distância segura. Os outros podem ter ajudado. Mas
nenhum deles realmente ateou o fogo.
— Raios — Xander disse, horrorizado. — Se o gás já estava
ligado, se eles tinham encharcado as tábuas com combustível…
Eu conseguia imaginar. A casa tinha explodido? Eles ainda
estavam dentro? Ou o fogo tinha se espalhado rapidamente pela
ilha?
— Durante meses, meu pai acreditou que Toby tinha realmente
morrido. Ele convenceu a polícia a enterrar o relatório. Não era
incêndio intencional, tecnicamente. Na melhor das hipóteses era
uma tentativa de incêndio.
E eles nunca concluíram a tentativa.
— Por que a polícia não culpou os raios? — perguntei.
Eu tinha lido os artigos na imprensa. Eles não mencionavam o
clima. O quadro que haviam pintado era de uma festa adolescente
que tinha saído do controle. Três meninos exemplares haviam
morrido… e uma menina que não era tão exemplar, nascida no lugar
errado.
— A casa queimou como uma bola de fogo — Zara respondeu
simplesmente. — Conseguiam ver do continente. Era óbvio que não
era só um raio. E a menina que estava lá com eles, Kaylie Rooney,
tinha acabado de sair do reformatório por incêndio intencional. Era
mais fácil desviar a culpa na direção dela do que da natureza.
— Se ela era menor — Xander disse lentamente —, a ficha
estaria em sigilo.
— O velho tirou do sigilo. — Jameson não formulou a frase como
pergunta. — Qualquer coisa para proteger o nome da família.
Eu entendia por que a mãe da minha mãe havia chamado a
fortuna de Tobias Hawthorne de dinheiro sujo. Ele a tinha deixado
para mim em parte por culpa?
— Eu não sentiria tanta pena de Kaylie Rooney — Zara disse, fria.
— O que aconteceu com ela… o que aconteceu com todos eles…
foi uma tragédia, lógico, mas ela não era inocente. Pelo que o
investigador conseguiu deduzir, a família Rooney trafica
praticamente todas as drogas que passam por Rockaway Watch.
Eles têm uma reputação impiedosa, e Kaylie, com quase toda
certeza, já estava enfiada nos negócios da família.
Se a inútil da minha filha tivesse te ensinado alguma coisa sobre
essa família, você não teria ousado me ligar. A conversa que eu
tinha tido naquela tarde voltou para mim.
Se aquela putinha não tivesse fugido, eu mesma teria enfiado
uma bala nela.
Se o que Zara estava contando sobre a família da minha mãe era
verdade, então aquela frase provavelmente não tinha sido uma
metáfora.
— E o pescador que tirou Toby da água? — perguntei, tentando
me concentrar nos fatos do caso e não pensar muito a respeito das
origens da minha mãe. — O arquivo dava algum detalhe disso?
— A tempestade daquela noite foi severa — Zara respondeu. —
Incialmente, meu pai acreditou que nenhum barco havia saído, mas
finalmente o investigador falou com alguém que jurava que um
barco tinha saído para a água durante a tempestade. O dono era
praticamente um ermitão. Ele mora em uma cabana perto de um
antigo farol abandonado em Rockaway Watch. Os locais ficam longe
dele. Com base nas discussões que o investigador teve com as
pessoas da cidade, a maioria acha que ele não bate muito bem da
cabeça. Daí, sair de barco no meio de uma tempestade assassina.
— Ele encontra Toby — eu disse, pensando alto. — O tira da
água. O leva para casa. E ninguém fica sabendo.
— Meu pai acreditava que Toby tinha perdido a memória, embora
não esteja claro se foi resultado de uma lesão ou do trauma
psicológico. De alguma maneira, esse homem, Jackson Currie,
conseguiu cuidar dele até que ficasse bem.
Não só o homem, pensei. Minha mãe também estava lá. Ela tinha
ajudado a cuidar dele.
Eu estava tão ocupada pensando na minha mãe e reconstruindo
essa parte da história na minha cabeça que perdi o resto do que
Zara havia dito. O nome que ela havia dito.
— Jackson — Jameson ofegou. — Herdeira, o nome do pescador
era Jackson.
Eu congelei, só por um instante. Eu espero que você vá para
muito, muito longe, Toby tinha escrito, mas, se você um dia precisar
de qualquer coisa, espero que você faça exatamente como eu te
disse para fazer naquela carta. Vá a Jackson. Você sabe o que
deixei lá. Você sabe o que vale.
Não Jackson, Mississippi.
Jackson Currie. O pescador que tirou Toby da água.
— O que eu não entendo — Zara disse — é por que Toby estava
tão determinado a fugir quando ele recuperou a memória, supondo
que ele a recuperou. Ele deveria saber que nossa segurança
poderia protegê-lo de qualquer ameaça. Os Rooney podem até
comandar Rockaway Watch, mas é uma cidade pequena. Eles são
gente pequena com um alcance pequeno e a situação legal já tinha
sido arranjada. Toby poderia ter vindo para casa, mas ele lutou
contra isso.
Ele não voltou para casa porque não achava que merecia. Tendo
lido os cartões-postais, eu entendia Toby. Não era assim que eu
teria me sentido se tivesse feito o que ele fez?
Um toque me arrancou desse pensamento. Meu celular. Eu baixei
os olhos. Grayson estava ligando.
Eu voltei para o momento em que ele tinha me beijado. Eu o tinha
beijado de volta. Desde então, não tínhamos nem conseguido olhar
um na cara do outro. Não tínhamos conversado de verdade. Então
por que ele estava me ligando?
Cadê ele?
— Alô? — atendi.
— Avery. — Grayson se demorou no meu nome, só por um
momento.
— Onde você está? — perguntei.
Houve uma pausa do outro lado da linha e então ele me mandou
um convite para passar para uma conversa em vídeo. Eu aceitei, e a
primeira coisa que vi foi seu rosto. Olhos cinzentos, maçãs do rosto
altas, maxilar duro. No sol, seu cabelo loiro-claro parecia platinado.
— Depois de um pouco de persuasão, Max me contou o que
estava escrito nos seus cartões-postais — Grayson disse. — A
respeito da sua mãe. Você lembra quando eu te disse que estava
dentro? Que ia te ajudar? — Ele virou o celular e eu vi ruínas.
Ruínas queimadas. Árvores queimadas. — É isso que estou
fazendo.
— Você foi à Ilha Hawthorne sem a gente? — Xander estava
absolutamente indignado.
Ele fez isso por mim. Eu não tinha certeza de como deveria me
sentir a respeito daquilo, visto que, se ele tivesse esperado algumas
horas, nós poderíamos ter ido juntos. Não parecia ser um gesto
grandioso. Parecia ser Grayson fugindo.
Mantendo sua promessa o mais longe de mim que podia.
— Ilha Hawthorne — Grayson confirmou, em resposta à acusação
de Xander. — E Rockaway Watch. Eu não diria que os locais são
simpáticos, mas estou otimista que vou encontrar a peça que falta,
qualquer que seja.
Ele estava otimista que ele encontraria a resposta. Ele tinha
sequer considerado me incluir?
— Rockaway Watch — Xander disse lentamente.
O nome da cidade ecoou na minha mente. Rockaway Watch. A
família da minha mãe. De repente, eu tinha preocupações bem
maiores do que o que o comportamento de Grayson significava ou
deixava de significar — ou o que ele fazia ou não me fazia sentir.
— Grayson. — Minha voz soou urgente, mesmo nos meus
próprios ouvidos. — Você não entende. Minha mãe mudou de nome
e saiu desse lugar porque a família dela é perigosa. Eu não sei o
que eles sabem sobre Toby. Eu não sei se é por isso que eles a
odiavam tanto… mas eles culpam os Hawthorne pela morte da filha
deles. Você precisa sair daí.
Ao meu lado, Oren xingou. Grayson virou o telefone de volta e
aquele olhar cinzento encontrou o meu.
— Avery, eu já te dei motivos para acreditar que eu seja
particularmente avesso a perigo?
Grayson Hawthorne era arrogante o suficiente para se considerar
a prova de balas — e honrado suficiente para levar uma promessa
até o fim.
— Você precisa sair daí — repeti.
No momento seguinte, Jameson enfiou a cabeça por cima do meu
ombro e gritou para o irmão:
— Você está atrás de um homem chamado Jackson Currie. Ele é
um recluso que vive perto de um farol abandonado. Fale com ele.
Veja o que ele sabe.
Grayson sorriu e aquele sorriso me cortou, tanto quanto o beijo.
— Entendido.
CAPÍTULO 73

Passou-se mais de uma hora antes de termos notícias de Grayson


novamente, e Oren passou uma boa parte do tempo pedindo
favores na costa oeste. Eu não era a única preocupada com a
segurança de um Hawthorne nas redondezas da cidade de
Rockaway Watch.
Quando meu celular tocou de novo, Grayson não estava feliz com
a equipe de segurança que tinha caído sobre ele.
— Você o encontrou? — Jameson se espremeu ao meu lado para
falar com o irmão. — Jackson Currie?
— Ele tem um vocabulário exuberante — Grayson reportou. — E
o entorno da cabana dele é cheio de armadilhas.
— Papai e os investigadores dele tiveram problemas semelhantes
— Zara disse atrás de nós. — Eles nunca arrancaram uma palavra
do homem. Grayson, você deveria vir para casa. Isso é um erro.
Existem outras pistas que podemos seguir.
Em qualquer outra circunstância, eu teria perguntado quais eram
as pistas, mas tudo em que conseguia pensar era que Toby tinha
dito para minha mãe ir até Jackson se ela precisasse de algo. Isso
parecia sugerir que, se minha mãe aparecesse, ele teria aberto a
porta.
— Você consegue chegar perto o suficiente para me colocar no
telefone com ele? — pedi.
— Supondo que ninguém tente me impedir… — Grayson olhou
por cima do ombro, para o que eu só podia concluir que era sua
equipe de segurança, e então se voltou para olhar direto para a
câmera, direto para mim. — Posso tentar.

A cabana de Jackson Currie era mesmo uma cabana. Eu teria


apostado dinheiro que ele mesmo a construíra. Não era grande. Não
tinha janelas.
Grayson bateu no que parecia ser uma porta de metal. Pensando
bem, talvez cabana seja a palavra errada, pensei. O que Jackson
Currie havia construído se parecia mais com um bunker.
Grayson bateu de novo e tudo que conseguiu foi que uma grande
pedra fosse atirada nele de algum lugar alto.
— Eu não gosto disso — disse Oren, duro.
Nem eu, mas estávamos tão perto — não só de Toby, mas de
respostas. Eu tenho um segredo…
Eu sabia de tanta coisa que não sabia antes. Talvez eu soubesse
tudo, mas não conseguia afastar a sensação de que aquela era
minha oportunidade — talvez minha última oportunidade — de saber
com certeza, de conhecer minha mãe de uma forma que nunca a
tinha conhecido.
De entender o que ela e Toby tiveram.
— Veja se ele fala comigo — pedi a Grayson. — Diga a ele… —
Minha voz falhou. — Diga a ele que a filha de Hannah está no
telefone. Hannah Rooney.
Era a primeira vez que eu tinha digo o nome de batismo da minha
mãe. O nome que ela nunca tinha me contado.
A imagem na tela do celular ficou embaçada por um momento.
Grayson devia ter abaixado o celular. Eu o ouvi ao fundo, gritando
algo.
Fale comigo, pedi a Jackson Currie de longe. Me conte tudo e
qualquer coisa que você sabe. Sobre Toby. Sobre minha mãe. Sobre
o que quer que Toby tenha deixado com você.
— Eu falei. — O rosto de Grayson voltou ao foco. — Sem
resposta. Acho que nós…
Eu nunca ouvi o resto do que Grayson achava, porque, um
momento depois, ouvi o som peculiar de metal batendo em metal.
Fechaduras, percebi, sendo abertas.
Grayson virou a câmera a tempo de eu ver a porta de metal se
abrir. Tudo que vi de início foi a barba enorme de Jackson Currie,
mas então apareceram os olhos dele, apertados.
— Cadê ela? — resmungou.
— Aqui — eu disse, minha voz quase um grito. — Eu estou aqui.
Eu sou a filha de Hannah.
— Não. — Ele cuspiu. — Não confio em telefones.
Com isso, ele bateu a porta.
— O que ele quer dizer? — Jameson perguntou. — Por que não
confiar?
Meus pensamentos estavam em outro lugar. Nós sabíamos que
Jackson Currie falaria comigo. Ele não falaria com Grayson. Ele não
tinha falado com os investigadores de Tobias Hawthorne. Ele era
paranoico, basicamente um ermitão. Ele não confiava em telefones.
Mas ele falaria comigo — pessoalmente.
— Eu te ligo de volta — eu disse a Grayson.
Então fiz outra ligação, para Alisa:
— Eu posso passar três noites por mês longe da Casa
Hawthorne. Até agora eu só passei uma.
CAPÍTULO 74

Alisa não gostou da minha ideia de visitar a Ilha Hawthorne. Oren


gostou menos ainda. Mas não havia como me impedir.
— Certo — Oren me olhou feio. — Eu vou arranjar segurança
para você. — Os olhos dele se estreitaram. — E só para você.
Ao meu lado, Xander se ergueu de um salto.
— Protesto!
— Negado! — A resposta de Oren foi imediata. — Entraremos em
uma situação de ameaça alta. Eu quero, no mínimo, uma equipe de
segurança de oito pessoas no chão. Não podemos ter nenhuma
distração. Avery é o pacote, o único pacote, ou eu vou amarrar
vocês três em cadeiras e deixar por isso mesmo.
Nós três. Meu olhar encontrou o de Jameson. Eu esperei que ele
discutisse com Oren. Jameson Winchester Hawthorne nunca tinha
ficado de fora de nada em sua vida. Ele não era capaz disso. Então
por que ele não estava tentando negociar?
Jameson notou algo em como eu estava olhando para ele.
— O que foi?
— Você não vai reclamar disso?
Eu o encarei.
— Por que eu reclamaria, Herdeira?
Porque você joga para ganhar. Porque Grayson já está lá. Porque
esse era nosso jogo — seu e meu —, antes que fosse de mais
alguém. Eu tentei parar ali. Porque seu irmão me beijou. Porque,
quando eu e você nos beijamos, você sente, assim como eu.
Eu não ia dizer nada daquilo em voz alta.
— Certo. — Mantive o olhar em Jameson por mais um momento,
então me virei para Oren. — Eu vou sozinha.
Levei um pouco mais de quatro horas para voar do Texas até a
costa do Oregon. Incluindo o translado para o aeroporto em cada
ponta, foram quase cinco. Cheguei na porta de Jackson Currie — ou
o que se podia chamar de porta — ao anoitecer.
— Está pronta? — Grayson perguntou ao meu lado, sua voz
baixa.
Eu fiz que sim.
— Seus homens precisam ficar para trás — Grayson disse a
Oren. — Eles podem montar um cerco, mas eu apostaria muito
dinheiro que Currie não vai abrir a porta se Avery aparecer com seu
próprio exército.
Oren acenou com a cabeça para seus homens e fez algum tipo de
gesto, e eles se espalharam. Se tudo acontecesse como o
planejado, a família da minha mãe nunca saberia que eu estivera ali.
Mas, se eles descobrissem, criminosos de segunda não fariam nem
sombra no poder dos Hawthorne.
Meu poder, agora. Eu tentei acreditar nisso quando avancei e bati
à porta de Jackson Currie. A primeira batida foi hesitante, mas
depois soquei a porta.
— Estou aqui! — eu disse. — De verdade, dessa vez. — Sem
resposta. — Meu nome é Avery. Eu sou filha de Hannah. — Se eu
tivesse ido até lá e ele ainda não abrisse a porta para mim, eu não
saberia o que fazer. — Toby escreveu cartões-postais para minha
mãe — segui gritando. — Ele disse que, se um dia precisasse de
algo, ela deveria vir aqui. Eu sei que você salvou a vida de Toby
depois do incêndio. Eu sei que minha mãe te ajudou. Sei que eles
estavam apaixonados. Eu não sei se a família dela descobriu, o que
aconteceu exatamente…
A porta se abriu.
— Aquela família sempre descobre — Jackson Currie resmungou.
No telefone eu não tinha notado o quanto ele era grande. Devia
ter pelo menos dois metros de altura e o porte dos homens de Oren.
— Foi por isso que minha mãe mudou de nome? — perguntei a
ele. — Por isso que ela fugiu?
O pescador me encarou por um momento, sua expressão dura
como pedra.
— Você não se parece muito com Hannah — ele grunhiu. Por um
momento aterrorizante, achei que ele ia bater a porta na minha cara.
— Exceto pelos olhos.
Com isso, ele deixou que a porta terminasse de abrir e Oren,
Grayson e eu o seguimos para dentro.
— Só a menina — Jackson Currie rosnou sem sequer se virar.
Eu sabia que Oren ia discutir.
— Por favor — eu disse a ele. — Oren, por favor.
— Eu fico na porta. — A voz de Oren era como aço. — Ela fica no
meu campo de visão o tempo todo. Você não chega a menos de um
metro dela.
Esperei que Jackson Currie fosse ficar indignado, mas ele
assentiu.
— Gostei dele — ele me disse e então deu outra ordem. — O
menino fica fora também.
O menino. Grayson. Ele não gostou de se afastar por mim, mas o
fez. Eu me virei por só um momento para vê-lo sair.
— É assim, então? — Currie me perguntou, como se naquele
momento ele tivesse visto algo que eu não queria mostrar.
Eu me voltei para ele.
— Por favor, só me conte da minha mãe.
— Não há muito o que contar — ele disse. — Ela vinha dar uma
olhada em mim de vez em quando. Sempre me enchendo para ir ao
hospital por causa de qualquer arranhãozinho. Ela estava estudando
para ser enfermeira. Não era ruim de pontos.
Ela estava na faculdade de enfermagem? Parecia um fato tão
banal de descobrir sobre a minha mãe.
— Ela te ajudou a cuidar de Toby depois que você o tirou da
água?
Ele assentiu.
— Ajudou. Não posso dizer que gostou, mas ela estava sempre
falando de algum juramento.
O juramento de Hipócrates. Eu revirei a memória e me lembrei
das linhas gerais dele.
— Nunca com malévolos propósitos.
— Era a coisa mais doida que um Rooney poderia dizer — Currie
resmungou. — Mas Hannah sempre foi a Rooney mais doida.
Os músculos na minha garganta apertaram.
— Ela te ajudou a cuidar de Toby apesar de saber quem ele era.
Apesar de culpá-lo pela morte da irmã.
— Você está contando a história, ou eu?
Eu fiquei quieta e, depois de um ou dois segundos, meu silêncio
foi recompensado.
— Ela amava a irmã, sabe? Sempre disse que Kaylie não era
igual ao resto. Hannah ia tirar ela daqui.
Minha mãe não podia ser mais do que três ou quatro anos mais
velha do que eu quando tudo tinha acontecido. Kaylie deveria ser
sua irmã mais nova. Eu queria chorar. Eu nem sabia o que mais
perguntar, mas fui em frente.
— Quanto tempo Toby passou aqui depois do acidente?
— Três meses, mais ou menos. Ele se recuperou quase
completamente nesse meio-tempo.
— E eles se apaixonaram.
Houve um longo silêncio.
— Hannah sempre foi a Rooney mais doida.
Em outras circunstâncias, talvez fosse mais difícil para eu
entender, mas se Toby estivesse sofrendo de amnésia, ele não
saberia o que aconteceu na ilha. Ele não saberia de Kaylie — ou
quem ela era para minha mãe.
E minha mãe tinha um coração enorme. Ela podia odiá-lo no
início, mas ele era um Hawthorne, e eu sabia bem demais que os
meninos Hawthorne tinham um jeitinho próprio.
— O que aconteceu depois de três meses? — perguntei.
— A memória do menino voltou. — Jackson sacudiu a cabeça. —
Eles tiveram uma briga enorme naquela noite. Ele chegou bem perto
de se matar, mas ela não deixou. Ele queria se entregar, mas ela
não deixou ele fazer isso também, não.
— Por que não? — perguntei.
Por mais apaixonada que ela estivesse, Toby era responsável por
três mortes. Ele tinha planejado começar um incêndio naquela noite,
mesmo que nunca tivesse acendido o fósforo.
— Quanto tempo você acha que a pessoa que matou Kaylie
Rooney iria durar em qualquer prisão por aqui? — Jackson
perguntou. — Hannah queria fugir, só os dois, mas o menino disse
que não. Ele não podia fazer isso com ela.
— Fazer o que com ela? — perguntei.
Minha mãe acabou fugindo de qualquer maneira. Mudado de
nome. Três anos depois, apareci eu.
— E eu lá conseguia entender eles? — Jackson Currie
resmungou. — Aqui.
Ele jogou algo aos meus pés. Atrás de mim Oren se movimentou,
mas não fez objeção quando eu me mexi para pegar o objeto no
chão. Era um embrulho de linho. Ao desenrolar, encontrei duas
coisas: uma carta e um pequeno disco de metal, do tamanho de
uma moeda.
Eu li a carta. Não precisei de muito tempo para entender que era
a carta que Toby tinha mencionado nos postais.

Querida Hannah, igual para a frente e para trás,


Por favor, não me odeie — ou, se o fizer, me odeie pelos
motivos certos. Me odeie por ter raiva e ser egoísta e estúpido.
Me odeie por ficar chapado e decidir que pôr fogo no píer não
era suficiente — nós precisávamos queimar a casa para pegar
meu pai onde dói. Me odeie por deixar os outros jogarem o jogo
comigo — por tratar isso como um jogo. Me odeie por ser quem
sobreviveu.
Mas não me odeie por ir embora.
Você pode me dizer quantas vezes quiser que eu nunca teria
acendido o fósforo. Você pode acreditar nisso. Nos dias bons,
talvez eu também acredite. Mas três pessoas ainda estão
mortas por minha causa. Eu não posso ficar aqui. Não posso
ficar com você. Eu não te mereço. Eu também não vou para
casa. Não vou deixar meu pai fingir que isso não aconteceu.
Mais cedo ou mais tarde, ele vai descobrir. Ele sempre
descobre. E vai vir atrás de mim, Hannah. Ele vai tentar
melhorar as coisas. E, se eu deixar ele me encontrar, se eu
deixá-lo sibilar com sua língua de mel no meu ouvido, talvez
comece a acreditar nele. Posso acabar tentado a deixá-lo lavar
meus pecados, de um jeito que só bilhões podem fazer, para
que eu e você vivamos felizes para sempre. Mas você merece
mais que isso. Sua irmã merecia mais. E eu mereço
desaparecer.
Eu não vou me matar. Você me arrancou essa promessa e eu
vou cumpri-la. Eu não vou me entregar. Mas não podemos ficar
juntos, eu não posso fazer isso com você. Eu te conheço — sei
que me amar deve te machucar. E eu não quero te machucar
de novo.
Vá embora de Rockaway Watch, Hannah. Sem Kaylie, não
tem nada te prendendo aqui. Mude de nome. Comece de novo.
Você ama contos de fadas, eu sei, mas eu não posso ser seu
felizes para sempre. Não podemos ficar aqui em nosso
pequeno castelo para sempre. Você precisa encontrar um novo
castelo. Você precisa seguir em frente. Você precisa viver, por
mim.
Se você precisar de qualquer coisa, vá até Jackson. Você
sabe o que o círculo vale. Você sabe por quê. Você sabe de
tudo. Talvez você seja a única pessoa nesse planeta que me
conhece de verdade.
Me odeie, se puder, por todos os motivos pelos quais eu
mereço. Mas não me odeie por ir embora enquanto você
dormia. Eu sei que você não me deixaria ir e eu não conseguiria
me despedir.

Harry

Ergui o olhar, meus ouvidos latejando.


— Ele assinou como Harry.
Jackson inclinou a cabeça para o lado.
— Era como eu chamava ele antes de saber seu nome. É como
Hannah chamava ele também.
Algo cedeu dentro de mim. Fechei os olhos e deixei minha cabeça
cair, só por um momento. Eu não tinha ideia do que havia
acontecido com Toby entre sair da cabana vinte anos atrás e a
morte da minha mãe. Se ele era meu pai, ele tinha que tê-la
encontrado em algum momento. Eles teriam que ter ficado juntos de
novo, pelo menos uma vez.
— Ele me encontrou depois que ela morreu — sussurrei. — Ele
me disse que seu nome era Harry.
— Ela morreu? — Jackson Currie me encarou. — A pequena
Hannah?
Eu fiz que sim.
— Causas naturais.
Dado o contexto, parecia importante esclarecer. Jackson se virou
de repente. Um segundo depois, ele estava revirando armários. Ele
jogou outro objeto em mim, chegando perto o suficiente para que
nossos dedos se tocassem dessa vez.
— Eu devia dar isso a Harry — ele grunhiu —, se ele um dia
voltasse. Hannah os mandou para cá, todo ano. Mas se ela se foi…
parece certo dar a você.
Olhei para o que ele tinha acabado de me entregar. Eu estava
segurando outro pacote de cartões-postais.
CAPÍTULO 75

Uma coisa foi ler as cartas de amor de Toby para minha mãe.
Outra completamente diferente foi ler as dela para ele. Ela soava
como ela mesma, tanto que eu conseguia ouvir sua voz a cada
palavra que lia.
Ela o amava. Meu peito apertou. Doía amá-lo e ela o amou
mesmo assim. Eu inspirei e expirei. Ele a deixou e ela o amou
mesmo assim. Essa linha de pensamento circulou pela minha
cabeça repetidamente enquanto voltávamos para a pista aérea onde
os jatinhos estavam esperando. O que minha mãe e Toby tinham
era trágico, complicado e envolvente, e, se os cartões-postais
tinham deixado uma coisa clara, é que ela teria feito tudo de novo.
— Você está bem? — Grayson perguntou ao meu lado, como se
estivéssemos sozinhos na SUV, como se não estivéssemos cercados
pelos homens de Oren.
Havia mais duas SUVS, uma na nossa frente e outra atrás. Havia
quatro homens armados, incluindo Oren, só nesse carro.
— Não — respondi. — Na verdade, não.
Minha vida toda eu tinha crescido sabendo que eu era suficiente
para minha mãe. Ela não namorava. Ela não queria nada de Ricky,
não precisava de nada. A vida dela era cheia de amor. Ela era cheia
de amor — mas romance? Não era algo de que ela precisava. Não
era algo que ela quisesse. Nem era algo a que ela estivesse aberta
— e eu finalmente sabia por quê.
Porque ela nunca tinha deixado de amar Toby.
Feche os olhos, eu conseguia ouvir Max me dizendo. Se imagine
em um penhasco, o mar lá embaixo. O vento está soprando seu
cabelo. O sol está se pondo. Você deseja, de corpo e alma, uma
coisa. Uma pessoa. Você ouve passos atrás de você. Você se vira.
Quem é?
E minha resposta tinha sido: ninguém.
Mas depois de ter lido só alguns dos postais da minha mãe?
Estava ficando cada vez mais difícil ignorar a presença de Grayson
ao meu lado, mais difícil não pensar em Jameson. Meus olhos
ardiam, embora não houvesse nenhum motivo para eu estar
chorando.
Encarei, através das lágrimas, os postais que minha mãe tinha
escrito para Toby e me forcei a continuar lendo. Logo, o foco do que
minha mãe estava escrevendo mudou do que eles tinham para um
outro tipo de história de amor. A partir daquele ponto, todos os
postais falavam de mim.
Avery deu seus primeiros passos hoje.
A primeira palavra de Avery foi “oh-oh!”.
Hoje, Avery inventou um jogo que combinava Candyland, Cobras
e Escadas e damas.
E por aí ia, até que os postais pararam. Até ela morrer.
Minha mão tremia, segurando o último postal. A mão de Grayson
foi até a minha.
— Ela escreveu isso — eu disse, minha voz falhando na garganta
— contando para Toby de mim.
Não podia ter ficado mais claro: ele era mesmo meu pai. Eu vinha
trabalhando com aquela hipótese havia tanto tempo que não devia
ter sido um choque.
Ao meu lado, o telefone de Grayson tocou.
— É Jameson — ele disse.
Meu coração parou e então se estabilizou.
— Atenda — eu disse a Grayson, tirando minha mão da dele.
Grayson fez o que pedi.
— Estamos a caminho do avião — ele disse a Jameson.
Ele vai querer saber o que eu encontrei. Eu sabia disso, conhecia
Jameson. Ergui o pequeno disco de metal que Jackson Currie tinha
me dado.
— Foi isso que Toby deixou com Jackson.
Grayson encarou o disco, então colocou Jameson em uma
chamada de vídeo para que ele também pudesse ver.
— O que você acha que isso é? — perguntei.
O disco era dourado e tinha talvez uns dois centímetros de
diâmetro. Parecia algum tipo de moeda, mas nenhum que eu já
tivesse visto. De um lado estavam gravados nove círculos
concêntricos, enquanto o outro era liso.
— Não parece valer muito — Jameson comentou. — Mas, nessa
família, isso não significa nada.
O som da voz dele fez algo comigo, algo que não devia ter feito.
Algo que não teria feito antes de eu ler os postais da minha mãe.
Feche os olhos, eu conseguia ouvir Max me dizendo. Quem está
lá?
— Estamos chegando — Oren anunciou, sucinto; para quem, eu
não sei. — Vasculhem o avião.
Quando chegamos na pista aérea, ele abriu a minha porta e três
seguranças me acompanharam até o avião. Atrás de mim, Grayson
tinha desligado a chamada de vídeo, mas ainda estava na linha com
Jameson.
Minha mente estava cheia de imagens dos dois — e das palavras
que minha mãe tinha escrito para Toby.
O ar da noite estava ficando cada vez mais frio. Enquanto eu
andava na direção do jatinho, um vento brutal começou e, de
repente, foi substituído por uma quietude súbita e completa. Eu ouvi
um único bipe e então o mundo explodiu. Em fogo. Em nada.
CAPÍTULO 76

Tudo doía. Eu não escutava. Eu não enxergava. Quando imagens


embaçadas finalmente começaram a se formar, tudo que eu vi foi
fogo. Fogo e Grayson, parado a uns trinta metros de distância de
mim.
Eu esperei que ele viesse correndo.
Eu esperei.
Eu esperei.
Ele não veio.
E então não havia mais nada.

O mundo a minha volta estava escuro e eu ouvi uma voz.


— Vamos jogar um jogo.
Eu não sabia se estava em pé ou deitada. Eu não sentia meu
corpo.
— Eu tenho um segredo.
Se eu tinha olhos, eu os abri. Ou talvez eles já estivessem
abertos? De qualquer forma, fiz algo e o mundo se encheu de luz.
— Estou cansada de jogar — eu disse a minha mãe.
— Eu sei, querida.
— Estou tão cansada — eu disse.
— Eu sei. Mas eu tenho um segredo, Avery e você precisa
jogar… só mais uma vez, só por mim. Tá bom, querida? Você não
pode soltar.
Eu ouvi um bipe longo e distante. Um relâmpago passou pelo meu
corpo.
— Afastem-se! — uma voz gritou.
— Vamos lá, Avery — minha mãe sussurrou. — Eu tenho um
segredo…
Outro relâmpago passou por mim.
— Afastem-se!
Eu queria parar de respirar. Queria ir para um lugar em que o
relâmpago, o fogo e a dor não pudessem me tocar.
— Você precisa lutar — minha mãe disse. — Você precisa
aguentar firme.
— Você não é real — sussurrei. — Você está morta. Então ou isso
é um sonho e você nem está aqui ou eu estou…
Morta também.
CAPÍTULO 77

Eu sonhei que estava correndo pela Casa Hawthorne. Cheguei a


uma escada e, no fim dela, vi uma menina morta. De início, pensei
que fosse Emily Laughlin, mas então me aproximei — e percebi que
era eu.

Eu estava parada na beira do mar. Toda vez que a crista de uma


onda vinha na minha direção, eu me preparava para que ela me
engolisse inteira.
Mas toda vez, quando a escuridão se anunciava, eu ouvia uma
voz: Jameson Winchester Hawthorne.

— Seu filho da puta. — As palavras cortaram a escuridão de uma


forma que nada mais tinha feito desde que eu chegara ali. Era a voz
de Jameson de novo, mas mais alta, mais afiada, como o fio de uma
faca. — Ela estava morrendo e você ficou parado! E não me diga
que foi o choque.
Tentei abrir os olhos. Tentei… mas não consegui.
— Você deve saber, Jamie, como é ficar ali e ver alguém morrer.
— Emily. Tudo sempre volta para Emily com você.
Eu queria dizer a eles que estava ouvindo, mas não conseguia
mexer a boca. Tudo estava escuro. Tudo doía.
— Sabe o que eu acho, Gray? Acho que toda essa pose de mártir
é uma mentira que você contou para você mesmo. Eu não acho que
você se afastou de Avery por mim. Acho que você precisava de uma
desculpa para traçar um limite e ficar seguro atrás dele.
— Você não sabe do que está falando.
— Você não consegue seguir em frente. Não conseguia quando
Emily estava viva, não importava o que ela fizesse, e não consegue
agora.
— Acabou? — Grayson estava gritando.
— Avery estava morrendo e você não conseguiu correr para ela.
— O que você quer de mim, Jamie?
— Você acha que eu não comprei a mesma briga? Eu quase me
convenci de que, enquanto Avery fosse uma charada ou um enigma,
enquanto eu só estivesse jogando, ficaria tudo bem. Bom, bela
piada, porque, no meio do caminho, eu parei de jogar.
Eu estou ouvindo vocês. Estou ouvindo cada palavra. Eu estou
bem aqui…
— O que você quer de mim?
— Olhe para ela, Gray. Olhe para ela, porra! Est unus ex nobis.
Nos defendat eius.
Ela é uma de nós. Nós a protegemos. O que quer que Grayson
tenha dito em resposta, se perdeu com o som de uma onda
quebrando.

***

Eu estava sentada em frente a um tabuleiro de xadrez. Na minha


frente estava um homem que eu não via desde os meus seis anos
de idade.
Tobias Hawthorne pegou sua rainha, então a baixou de volta. Em
vez disso, ele colocou três novas peças no tabuleiro. Um saca-
rolhas. Um funil. Uma corrente.
Eu olhei para elas.
— Não sei o que fazer com isso.
Silenciosamente, ele colocou um quarto objeto no tabuleiro: um
disco de metal.
— Também não sei o que fazer com isso.
— Não olhe para mim, mocinha — Tobias Hawthorne respondeu.
— Esse é o seu inconsciente. Tudo isso… é um jogo que você fez,
não eu.
— E se eu não quiser mais jogar? — perguntei.
Ele se inclinou para trás e pegou a rainha mais uma vez.
— Então pare.
CAPÍTULO 78

A primeira coisa que notei foi a pressão no meu peito. Parecia que
um bloco de cimento estava me segurando. Eu lutei contra o peso e,
como se um interruptor tivesse sido ligado, cada nervo do meu
corpo começou a gritar. Meus olhos se abriram.
A primeira coisa que vi foi a máquina, então os tubos. Muitos
tubos, conectados ao meu corpo.
Eu estou no hospital, pensei, mas então o resto do mundo entrou
em foco a minha volta e eu percebi que não era um quarto de
hospital. Era meu quarto. Na Casa Hawthorne.
Segundos se arrastaram lentamente. Eu precisei de toda a força
que tinha para não arrancar os tubos do meu corpo. A memória
desceu a minha volta. A voz de Jameson — e de Grayson.
Relâmpagos e fogo e…
Uma bomba.
Um monitor próximo começou a soar como algum tipo de alarme
e, no momento seguinte, uma mulher usando um jaleco branco
correu para dentro do quarto. Quando eu a reconheci, achei que
estava sonhando de novo.
— Dra. Liu?
— Bem-vinda de volta, Avery. — A mãe de Max me deu um olhar
de quem não está pra brincadeiras. — Preciso que você se deite e
respire.

Eu fui cutucada, revirada e dopada com remédios para a dor.


Quando a dra. Liu liberou Libby e Max para entrarem no quarto, eu
estava me sentindo chapadíssima.
— Eu dei um pouco de morfina a ela — ouvi a dra. Liu dizer a
Libby. — Se ela quiser dormir, deixe.
Max se aproximou da minha cama, o mais hesitante que eu já a
tinha visto.
— Sua mãe está aqui — eu disse.
— Correto — Max respondeu, sentando-se ao lado da cama.
— Na Casa Hawthorne.
— Muito bem — Max disse. — Agora, me diga que ano é hoje,
quem é o presidente e qual irmão Hawthorne você vai deixar trecar
com você até cansar primeiro.
— Maxine! — A dra. Liu soou como se fosse ela quem estivesse
com a cabeça estourando.
— Desculpe, mamãe — Max disse. Ela se virou para mim. — Eu
liguei para ela quando Alisa te trouxe de volta para cá. Dona
Advogada meio que roubou seu lindo corpinho em coma do hospital
no Oregon e todo mundo ficou bravo pra borra. Nós não íamos
deixar ela chamar os médicos dela. Precisávamos de alguém em
quem pudéssemos confiar. Posso ter sido deserdada, mas não sou
idiota. Eu liguei. A grande dra. Liu veio.
— Você não foi deserdada — a mãe de Max disse, rígida.
— Eu me lembro bem de ser — Max respondeu. — Vamos
concordar em discordar.
Se me dissessem, algumas horas antes, que Max e a mãe
estariam no mesmo quarto e não seria doloroso, desconfortável ou
dolorosamente desconfortável, eu não teria acreditado.
Algumas horas antes. Meu cérebro se agarrou àquela ideia e eu
percebi o óbvio: se tinha dado tempo de Alisa me roubar do hospital
e tempo de Max ligar para a mãe dela…
— Quanto tempo eu fiquei apagada? — perguntei.
Max não respondeu, não de imediato. Ela olhou de volta para a
mãe, que assentiu. Max abriu a boca, mas Libby falou antes.
— Sete dias.
— Uma semana inteira?
O cabelo de Libby tinha sido pintado de novo — não de uma cor,
mas de dezenas. Pensei no que ela tinha dito a respeito de seu
aniversário de nove anos. Nos bolinhos que minha mãe tinha feito
para ela e nas cores néon que tinha colocado em seu cabelo. Eu me
perguntei quanto tempo da sua vida Libby tinha passado tentando
reconquistar aquele único momento perfeito.
— Me disseram que você poderia não acordar.
A voz de Libby estava trêmula.
— Eu estou bem — falei, mas então percebi que não fazia ideia
se era verdade.
Olhei de esguelha para a dra. Liu.
— Seu corpo está se recuperando bem — ela me disse. — O
coma foi induzido. Nós tentamos te acordar dois dias atrás, mas
havia um inchaço inesperado no seu cérebro. Já está sob controle.
Olhei para a porta atrás dela.
— Os outros sabem? — perguntei. — Que eu acordei?
Os meninos sabem?
A dra. Liu foi até o meu lado.
— Vamos dar um passo de cada vez.
CAPÍTULO 79

Finalmente, deixaram Oren entrar para me ver.


— A bomba foi plantada dentro do motor do avião… a
investigação sugere que ela estava lá há dias e foi ativada
remotamente. — Oren tinha feridas parcialmente cicatrizadas na
lateral do queixo e no dorso das mãos. — Quem quer que tenha
ativado a explosão deve ter calculado mal as coisas. Se você
estivesse dois passos mais perto, teria morrido. — A voz dele ficou
mais tensa. — Dois dos meus homens não resistiram.
Uma culpa devastadora passou por mim, uma agulha de gelo bem
no meu coração. Eu me senti pesada e anestesiada.
— Me desculpe.
Oren não disse que eu não precisava pedir desculpas. Ele não
disse que, se eu não tivesse forçado a ida a Rockaway Watch, seus
homens ainda estariam vivos.
— Espere… — Eu o encarei. — Você disse que a bomba foi
plantada dias antes de explodir? Então os Rooney… — o motivo
para termos levado tanta segurança conosco — não foram eles
que…
— Não — Oren confirmou.
Alguém plantou aquela bomba.
— Ela deve ter sido plantada em algum momento depois de irmos
a Verdadeiro Norte. — Tentei ser lógica, ver com distanciamento,
sem pensar no fogo, nos relâmpagos, na dor. — Aquele homem em
Verdadeiro Norte, o profissional… — Minha voz falhou. — Para
quem ele estava trabalhando?
Antes que Oren pudesse responder, ouvi o som familiar de saltos
altos no chão de madeira. Alisa apareceu na porta. Ela entrou e,
quando seu olhar caiu sobre mim, apoiou-se em uma cômoda
próxima, os dedos agarrando a borda com tanta ferocidade que os
nós ficaram brancos.
— Graças a Deus — ela murmurou. Ela fechou os olhos,
procurando calma, e os abriu de novo. — Obrigada por dizer a seus
homens para baixarem a guarda.
Isso era para Oren, não para mim.
— Você tem cinco minutos — ele disse com frieza.
Dor passou pelas feições de Alisa e eu me lembrei do que Max
havia dito. Alisa tinha me trazido para cá sem permissão. Com
minha vida em jogo, ela tinha agido para salvar minha herança.
— Não me olhe assim — Alisa disse, para mim dessa vez. —
Funcionou, não foi?
Eu estava aqui. Estava viva. E ainda era bilionária.
— Me custou muito. — Alisa sustentou meu olhar. — Me custou
essa família. Mas funcionou.
Eu não sabia o que dizer.
— Como está a investigação policial da bomba? — perguntei. —
Nós temos alguma ideia de quem…
— A polícia efetuou uma prisão ontem. — O tom de Alisa ficou
mais seco, direto ao ponto. Familiar. — Foi um trabalho profissional,
claro, mas a polícia o rastreou até Skye Hawthorne e… — Ela teve a
decência de hesitar, só por um momento. — Ricky Grambs.
A resposta não deveria ter me surpreendido. Não deveria ter
importado, mas, por um segundo, me vi com quatro anos de idade.
Vi Ricky me erguendo e me colocando nos seus ombros.
Engoli em seco.
— O nome dele está na minha certidão de nascimento. Se eu
morrer, ele e Libby são meus herdeiros.
Era a mesma música, em um tom diferente, cortesia de Skye
Hawthorne.
— Tem algo que você precisa saber — Alisa me disse, baixo. —
Nós recebemos o teste de DNA que você pediu.
Claro, eu tinha apagado por uma semana.
— Eu sei — eu disse. — Ricky não é meu pai.
Alisa caminhou até ficar ao meu lado.
— Aí é que está, Avery. Ele é, sim.
CAPÍTULO 80

Eu encarei minha certidão de nascimento. A assinatura. Não fazia


sentido. Nenhum. Todas as pistas apontavam na mesma direção.
Toby tinha me procurado depois da morte da minha mãe. Ele tinha
assinado minha certidão de nascimento. Ele e minha mãe tinham
sido apaixonados. Tobias Hawthorne tinha me deixado sua fortuna.
Eu tenho um segredo, minha mãe tinha me dito, sobre o dia que
você nasceu.
Como era possível que Toby não fosse meu pai?
— Lado de cima, lado de baixo, lado de dentro, lado de fora, lado
esquerdo, lado direito. — Jameson Hawthorne estava parado na
porta. Quando eu o vi, algo se encaixou. Era a sensação de uma
onda caindo em cima de mim, finalmente. — O que está faltando?
— Jameson perguntou. Ele andou na minha direção e eu segui cada
passo. Ele repetiu a charada. — Lado de cima, lado de baixo, lado
de dentro, lado de fora, lado esquerdo, lado direito. O que falta?
Ele parou ao lado da cama, bem ao meu lado.
— Lado contrário — sussurrei.
Ele me encarou: meus olhos, as linhas do meu rosto, como se o
estivesse bebendo.
— Devo dizer, Herdeira, que não sou fã de comas.
Jameson soava o mesmo, ácido e tentador de uma maneira
sombria, mas a expressão em seu rosto era uma que eu nunca tinha
visto.
Ele não estava brincando.
Eu me lembrei de algo parecido com um sonho. Bom, bela piada,
porque, no meio do caminho, eu parei de jogar. Jameson Hawthorne
e eu tínhamos um acordo. Sem sentimentos. Sem complicação. Não
era para ser um amor épico.
— Eu vim te ver — Jameson me disse. — Todos os dias. O
mínimo que você poderia ter feito era acordar enquanto eu estava
aqui, iluminado de maneira trágica, impossivelmente bonito,
esperando.
Se imagine em um penhasco, o mar lá embaixo. O vento está
soprando seu cabelo. O sol está se pondo. Você deseja de corpo e
alma uma coisa. Uma pessoa. Você ouve passos atrás de você.
Você se vira.
Quem é?
— Todos os dias? — perguntei, minha voz raspando a garganta.
Eu me lembrava de estar na beira do mar, eu me lembrava de uma
voz. Jameson Winchester Hawthorne.
— Sem falta, Herdeira. — Jameson fechou os olhos, só por um
instante. — Mas se não sou eu quem você quer ver…
— Claro que eu quero te ver. — Era verdade. Eu podia dizer. —
Mas você não precisa…
Me dizer que sou especial. Me dizer que sou importante.
— Preciso — Jameson interrompeu — preciso, sim. — Ele
afundou ao meu lado na cama, levando os olhos ao nível dos meus.
— Você não é um prêmio a ser conquistado.
Eu não estava ouvindo aquilo. Ele não estava dizendo aquilo. Não
podia estar.
— Você não é um enigma, uma charada, nem uma pista. —
Jameson estava inteiramente concentrado. Em mim. Todo em mim.
— Você não é um mistério para mim, Avery, porque no fundo nós
somos iguais. Você pode não ver isso. — Ele me deu um olhar
longo e penetrante. — Você pode não acreditar nisso… por
enquanto. — Ele ergueu as mãos, o punho levemente fechado. —
Mas ninguém além de nós dois teria voltado aos destroços daquela
bomba para procurar isso.
Ele abriu a mão e eu vi um pequeno disco de metal na sua palma.
Todos os músculos do meu corpo se contraíram. Tudo em mim
queria ir na direção dele.
— Como você…
Jameson deu de ombros, e o gesto, como o sorriso dele, era
devastador.
— Como não?
Ele me encarou por mais um momento, então pressionou o disco
contra a minha mão. Eu senti os dedos dele na minha palma. Ele os
deixou ali por um momento, então deslizou-os para o meu pulso.
Eu prendi a respiração e olhei do rosto de Jameson para o disco.
Círculos concêntricos marcavam o metal de um lado. O outro lado
era liso.
Ele ainda estava deslizando os dedos pelo meu braço.
— Você já descobriu o que é? — perguntei, cada nervo do meu
corpo aceso.
— Não. — Jameson sorriu, aquele sorriso torto e devastador de
Jameson Hawthorne. — Eu estava esperando você.
Jameson não era paciente. Ele não esperava. Ele vivia com o pé
no acelerador.
— Você quer descobrir. — Eu o encarei, sentindo o olhar dele em
mim. — Juntos.
— Você não precisa dizer nada. — Jameson se levantou. Eu
ainda sentia o fantasma do toque dele no meu braço. Eu via a veia
do meu pulso e sentia meu coração batendo. — Você não precisa
me beijar agora. Você não precisa me amar agora, Herdeira. Mas
quando você estiver pronta… — Ele levou a mão até a lateral do
meu rosto. Eu me encostei nela. A respiração dele ficou ofegante e,
então, ele puxou a mão de volta e apontou com a cabeça o disco na
minha mão. — Quando você estiver pronta, se um dia você estiver
pronta, se for eu… só gire esse disco. Cara, eu te beijo. — A voz
dele falhou de leve. — Coroa, você me beija. E, de qualquer forma,
vai significar algo.
Eu encarei o disco na minha mão. Ele tinha o tamanho de uma
moeda. Todas as pistas que havíamos seguido, todas as trilhas que
tinham sido deixadas, levavam àquilo.
Engoli em seco e olhei de volta para Jameson.
— Toby não era meu pai — eu disse e então corrigi o tempo
verbal. — Ele não é meu pai.
Toby Hawthorne estava por aí em algum lugar. Ele ainda não
queria ser encontrado.
Ao meu lado, Jameson inclinou a cabeça, os olhos brilhando.
— Bem, então, Herdeira… Que o jogo comece.
CAPÍTULO 81

Eu sobrevivi àquele dia. Àquela noite. Ao dia seguinte. À noite


seguinte. E assim foi. Na manhã que fui liberada para voltar à
escola, ouvi um barulho do outro lado da minha lareira.
Jameson. Fui até lá e fechei a mão em volta do candelabro.
Inspirando, eu o puxei para frente.
Não era Jameson quem estava do outro lado.
— Thea?
Eu estava confusa. Não tinha ideia do que ela estava fazendo na
Casa Hawthorne ou de por que tinha vindo pela passagem. Meu
olhar foi para a porta. Oren estava no corredor. Mesmo com Skye e
Ricky na prisão, ele estava se mantendo próximo.
— Não diga nada — Thea me implorou, sua voz baixa. — Preciso
que você venha comigo. É o Grayson.
— Grayson? — repeti.
Ele tinha sido como um fantasma na Casa desde que eu tinha
acordado. Ele não queria me ver, ou não conseguia me encarar. Eu
o tinha visto nadando todas as noites.
— Ele está com problemas, Avery.
Thea parecia ter chorado, o que me assustou, porque Thea
Calligaris não chorava. Ela não aceitava ser vulnerável.
Ela não aceitava estar assustada.
— O que está acontecendo? Thea.
Ela desapareceu de volta na passagem. Eu a segui e, um instante
depois, mãos me agarraram por trás. Alguém colocou um pano
úmido sobre a minha boca e nariz. Eu não conseguia respirar. Eu
não conseguia gritar.
O cheiro no pano era excessivamente doce. Tudo começou a
escurecer a minha volta e a última coisa que ouvi foi Thea.
— Eu precisei fazer isso, Avery. Eles estão com Rebecca.
CAPÍTULO 82

Acordei amarrada a uma cadeira antiga. A sala a minha volta


estava lotada de caixas e bugigangas. O lugar parecia ter sido
encharcado de gasolina.
Duas pessoas estavam na minha frente: Mellie, que parecia
prestes a vomitar a qualquer momento. E Sheffield Grayson.
— Onde estou? — perguntei, e então a memória do que tinha
acontecido na passagem voltou com tudo. — Cadê Thea? E
Rebecca?
— Eu te garanto que suas amigas estão bem.
Sheffield Grayson estava vestindo um terno. Ele tinha me
amarrado a uma cadeira no que parecia algum tipo de depósito e
ele vestia um terno.
Ele tem os olhos de Grayson.
— Sinto muito por tudo isso — o pai de Grayson disse, limpando
uma poeira do punho de sua camisa. — O clorofórmio. As amarras.
— Ele fez uma pausa. — A bomba.
— A bomba? — repeti.
A polícia tinha prendido Ricky e Skye semanas antes. Eles tinham
um motivo e havia provas… tinha que haver, para uma prisão.
— Não entendi.
— Eu sei que não. — O pai de Grayson fechou os olhos. — Eu
não sou um homem mau, srta. Grambs. Eu não tenho nenhum
prazer… nisso.
Ele não especificou o que isso era.
— Você me sequestrou — eu disse, rouca. — Estou amarrada a
uma cadeira. — Ele não respondeu. — Você tentou me matar.
— Te ferir. Se eu quisesse que você morresse, meu homem teria
programado a explosão em outro momento, não teria?
Pensei em Oren me dizendo que, se eu estivesse alguns passos
mais perto do avião quando a bomba foi detonada, eu teria morrido.
— Por quê? — perguntei baixo.
— O quê? A bomba ou… — Sheffield Grayson apontou para as
amarras nos meus pulsos. — O resto?
— Tudo.
Minha voz tremeu. Por que me sequestrar? Por que me trazer
para cá? O que ele está planejando fazer comigo?
— Culpe seu pai. — Sheffield Grayson desviou os olhos e, por
motivos que eu não sabia identificar exatamente, isso me causou
um calafrio. — Seu verdadeiro pai. Se Tobias Hawthorne Segundo
não fosse tão covarde, eu não precisaria ir tão longe para atraí-lo.
A voz do meu sequestrador era calma, autoritária. Como se fosse
ele quem estivesse sendo racional.
Meu peito apertou, ameaçando expulsar o ar dos pulmões, mas
me forcei a respirar, a continuar concentrada. Fique viva.
— Toby — chamei. — Você está atrás de Toby.
— A bomba deveria ter funcionado. — Sheffield começou a dobrar
as mangas da camisa, um movimento furioso… e familiar. — Você
foi levada às pressas para o hospital. Foi notícia no mundo todo. Eu
estava pronto. A armadilha estava pronta. Tudo que restava fazer
era esperar que o imbecil viesse para o seu lado, como qualquer pai
com alguma dignidade faria. E então sua advogada teve a audácia
de te remover.
Para a Casa Hawthorne, com toda aquela segurança.
— Então aqui estamos — Sheffield Grayson disse —, por mais
infeliz que isso seja.
Tentei ler nas entrelinhas do que ele estava dizendo. Tinha ficado
claro, pelo encontro que Grayson tivera com o pai, que o homem
culpava Toby pela morte de Colin. Meu sequestrador devia ter
descoberto, de alguma forma, que Toby estava vivo. Ele se
convencera de que eu era a filha de Toby.
E o lugar cheirava a gasolina.
— Desculpa. — A voz de Mellie tremeu. — Não deveria ser assim.
Meu coração martelava. Meu corpo gritava para que eu fugisse,
mas eu não podia. Eu não tinha ideia de por que Mellie teria ajudado
aquele homem a me sequestrar — ou do que exatamente ele
planejava fazer comigo.
— Toby não vai vir atrás de mim — falei. Emoção subiu pela
minha garganta e eu a engoli. — Ele não é meu pai. — Isso doeu…
mais do que deveria ter doído. — Não sou nada para ele.
— Eu tenho motivos para acreditar que ele está na cidade. Ele
pôs a cabeça para fora do buraco onde vem se escondendo por
tempo suficiente para eu conferir. Você é a filha dele. Ele vai vir
atrás de você.
Era como se ele não estivesse me ouvindo.
— Eu não sou filha dele.
Eu desejei ser. Acreditei que era.
Mas não era.
O olhar dolorosamente familiar de Sheffield Grayson encontrou o
meu.
— Eu tenho um teste de DNA que diz outra coisa.
Eu o encarei. O que ele tinha dito não fazia sentido. Alisa tinha
feito um teste de DNA. Ricky Grambs era meu pai. Isso significava,
obviamente, que Toby não era.
— Não entendi.
Eu realmente não entendia.
Não conseguia entender.
— Mellie aqui foi muito prestativa e conseguiu uma amostra do
seu DNA. Eu adquiri uma amostra do de Toby na investigação da
Ilha Hawthorne anos atrás. — Sheffield Grayson se endireitou. — O
resultado foi definitivo. Você tem o sangue dele. — Sheffield me deu
um sorriso gelado. — E você realmente deveria pagar melhor seus
funcionários.
Pela primeira vez, olhei para Mellie, realmente olhei para ela. Ela
não me olhava nos olhos. Tinha sido ela quem me dopara na
passagem?
Por quê? Como Eli, ela tinha me vendido por dinheiro?
— Pode ir agora, querida — Sheffield Grayson disse a ela.
Mellie se arrastou na direção da porta.
Ela vai me deixar aqui. Pânico começou a subir pelo meu corpo.
— Você acha que ele só vai te deixar ir embora? — eu disse
enquanto ela saía. — Você acha que ele é o tipo de homem que
deixa pontas soltas? — Eu não conhecia Sheffield Grayson. Eu nem
conhecia Mellie, na verdade, mas tudo em mim me dizia que eu não
podia permitir que ela me deixasse sozinha com ele. — O que você
acha que Nash diria se soubesse o que você está fazendo?
Ela hesitou, mas continuou andando. Eu estava ficando
descontrolada… e ela se afastava cada vez mais. O som dos
passos ficou mais baixo.
— E agora — Sheffield Grayson me disse, na mesma voz calma e
autoritária — nós esperamos.
CAPÍTULO 83

Toby não viria. Mais cedo ou mais tarde, meu sequestrador


perceberia isso. E quando percebesse… bem, ele não podia só me
liberar.
— O que te faz pensar que Toby está por perto? — Tentei não
soar amedrontada. Tentei não ficar amedrontada. Raiva era
melhor… muito melhor. — Como ele saberia que você me
sequestrou? Ou para onde vir?
Ele não é meu pai. Ele não vem.
— Eu deixei pistas — Sheffield disse, inspecionando uma de suas
abotoaduras. — Um joguinho para seu pai jogar. Entendo que os
Hawthorne são dados a esse tipo de coisa.
— Que tipo de pistas?
Nenhuma resposta.
— Como você mandou pistas para ele se não sabe onde ele
está?
Nenhuma reação.
Era inútil. Toby tinha me mandado parar de procurar por ele. Ele
vinha se escondendo havia décadas. Eu não era sua filha.
Ele não viria.
Era o único pensamento que meu cérebro era capaz de produzir.
Ele ressoou na minha mente repetidas vezes até que ouvi passos.
Eram pesados demais para serem de Mellie.
— Ah. — Sheffield Grayson inclinou a cabeça. Ele andou na
minha direção, me examinando, então levou uma das mãos até o
meu rosto e colocou dois dedos embaixo do meu queixo. Ele o
levantou. — É importante que você saiba, Avery: isso não é pessoal.
Eu me afastei, mas foi inútil. Eu ainda estava presa. E não ia a
lugar nenhum. Os passos seguiam se aproximando.
Alguém estava vindo atrás de mim. Mas provavelmente não era a
pessoa que ele estava esperando.
— E se você estiver errado? — perguntei, apressando as
palavras. — E se a pessoa que encontrou suas pistas não for Toby?
O que você vai fazer se for Jameson? Xander? Grayson?
O som do nome do filho dele — do nome dele — fez Sheffield
Grayson pausar por um brevíssimo momento. Ele fechou os olhos
de novo por um instante, então os abriu, resoluto e se protegendo
de qualquer pensamento indesejado que minha pergunta tivesse
despertado.
— Essas eram as coisas do meu sobrinho. — Sheffield apontou
para os itens no depósito. A voz dele ficou mais dura. — Nunca
consegui me desfazer delas.
Os passos estavam quase lá. Sheffield Grayson se virou na
direção da entrada do depósito. Ele puxou a arma do paletó.
Finalmente, os passos pararam quando um homem apareceu. Ele
tinha feito a barba desde a última vez que eu o tinha visto, mas
ainda usava camadas de roupas sujas e gastas.
— Harry.
Era o nome errado, eu sabia, mas não consegui impedir a palavra
de passar pelos meus lábios. Ele está aqui. Ele veio. Lágrimas
marejaram meus olhos e abriram caminho pelas minhas faces
quando o homem que eu conhecia como Harry ignorou Sheffield
Grayson, ignorou a arma e olhou para mim.
— Menina horrorosa. — A voz de Toby era carinhosa. Ele me
chamava de várias coisas quando jogávamos xadrez, essa era uma
delas. Especialmente quando ele ganhava. — Solte-a — ele disse
ao meu sequestrador.
Sheffield Grayson sorriu, a arma firme.
— Irônico, não é? Meu filho tem o sobrenome Hawthorne e sua
filha, não. E agora… — Ele saiu lentamente do depósito, na direção
de Toby. — Sou eu quem tem o fósforo.
Eu não vi um fósforo, mas ele tinha uma arma. O lugar tinha sido
coberto de combustível. Se ele disparasse…
— Entre aqui — Sheffield ordenou.
Toby fez o que ele tinha mandado.
— Avery não é minha filha.
A voz dele era uniforme.
Eu não sou. Sou?
— Ele diz que tem um teste de DNA — eu disse a Toby, ganhando
tempo, tentando pensar em alguma maneira, qualquer maneira, de
sair dali antes do lugar pegar fogo.
A alguns passos de mim, Tobias Hawthorne Segundo desviou os
olhos de Sheffield Grayson — e da arma — só por um momento.
— Rainha para torre cinco — ele me disse.
Era um movimento no xadrez, um que eu tinha usado no nosso
último jogo, uma enganação.
Enganação. Meu cérebro conseguiu se prender àquilo. Ele vai
distrair Sheffield. Eu testei a firmeza das amarras que me
mantinham na cadeira. Elas estavam tão apertadas quanto um
minuto antes, mas uma onda de adrenalina me atingiu e pensei no
fato de que mães às vezes erguem carros de cima de seus bebês
durante momentos de crise. A cadeira era uma antiguidade. Com
pressão suficiente, eu conseguiria quebrar os braços dela?
— Eu te disse. — Toby voltou a atenção para o homem com a
arma. — Avery não é minha filha. Eu não sei que tipo de teste de
DNA você acha que tem, mas, quando Hannah ficou grávida, fazia
anos que eu não a via.
Eu tentei me concentrar na cadeira, não nas palavras dele, e
deslizei as amarras até a parte mais fina da madeira.
— Você veio atrás da menina. — Sheffield Grayson soava
diferente. Mais duro. — Você está aqui. — Ele baixou a voz. — Você
está aqui e meu sobrinho não está.
Era claramente uma acusação… e o homem com a arma era o
juiz, o júri e o carrasco.
— Ele te odiava — Toby retrucou.
— Ele seria grande — Sheffield disse, determinado. — Eu iria
torná-lo grande.
Toby nem pestanejou.
— O incêndio foi ideia de Colin, sabia? Eu vivia dizendo que
queria pôr fogo em tudo e ele me desafiou a cumprir minha palavra.
— Você é um mentiroso.
Eu puxei os braços para cima. De novo. E de novo. Joguei o peso
do meu corpo, e o braço direito da cadeira cedeu. O barulho foi alto
suficiente para eu esperar que Sheffield Grayson virasse o olhar
para mim, mas ele estava cem por cento concentrado em Toby.
— Colin me desafiou — Toby falou outra vez —, mas não foi culpa
dele eu aceitar o desafio. Eu estava com raiva. E chapado. E a casa
na Ilha Hawthorne era importante para o meu pai. Eu iria cuidar para
que todo mundo estivesse longe. Nós deveríamos ter assistido ao
incêndio de longe.
O segundo braço da cadeira cedeu e Toby ergueu a voz.
— Nós não contávamos com os relâmpagos.
Sheffield Grayson andou na direção dele.
— Meu sobrinho está morto. Queimado, por sua causa.
O lugar inteiro tinha sido encharcado de combustível. No fundo,
eu sabia por quê. Queimado, por sua causa.
— Eu sou o que sou — Toby respondeu. — Se você quiser me
matar, não vou lutar contra isso. Mas solte Avery.
Os olhos de Sheffield Grayson — os olhos de Grayson — viraram
na minha direção.
— Eu sinto muito, de verdade — ele me disse. — Mas não posso
deixar testemunhas para trás. Diferente de algumas pessoas, não
gosto da ideia de desaparecer durante décadas. Minha família
merece mais que isso.
— E Mellie? — perguntei, ganhando tempo. — Ou o homem que
plantou a bomba?
— Você não precisa se preocupar com isso.
Sheffield mirou a arma em Toby. Ele ainda estava calmo, ainda no
controle.
Ele vai matar nós dois. Eu ia morrer ali, com Toby Hawthorne. O
Toby da minha mãe. Não. Eu me levantei, pronta para lutar, ciente
de que não adiantava — mas o que mais eu deveria fazer?
Eu me lancei à frente. No mesmo minuto, uma arma disparou. O
som foi ensurdecedor.
Eu esperava uma explosão. Esperava queimar. Em vez disso, vi
Sheffield Grayson cair no chão. Um instante depois, Mellie
apareceu, seus olhos arregalados e fora de foco, segurando uma
arma.
CAPÍTULO 84

— Eu o matei — Mellie parecia atordoada. — Eu… Ele estava


segurando uma arma. E ele ia… E eu…
— Calma — Toby murmurou.
Ele deu um passo à frente e tirou a arma da mão dela. Mellie
deixou.
O que aconteceu aqui? Tentando não olhar para o corpo no chão
— para o pai de Grayson —, eu saí do depósito.
— Não entendi. — Provavelmente era o maior eufemismo da
minha vida. — Você me vendeu, Mellie. Você foi embora. Por que
você…
— Não deveria ter sido assim. — Mellie sacudiu a cabeça e, por
alguns segundos, parecia que ela não conseguiria parar de sacudi-
la. — E nós não te vendemos. Nunca foi por dinheiro.
Nós?, pensei, tonta
— Quem é nós? — Toby perguntou.
Em resposta, Mellie engoliu em seco e ergueu um dedo na
direção do olho. De início, não entendi bem o que ela estava
fazendo, mas então ela removeu uma lente de contato. Eu andei até
ela e ela piscou para mim. A lente que ela tinha tirado era colorida.
O olho esquerdo dela ainda era castanho, mas seu olho direito era
de um azul vibrante com um círculo âmbar bem no meio. Como os
de Eli.
— Meu irmão e eu concordamos que era eu quem deveria usar
lentes de contato — Mellie disse, sua voz ainda um pouco trêmula.
— Eli é seu irmão. — Minha cabeça estava a mil. — Ele criou uma
ameaça contra mim para poder ficar próximo, então ele vazou
informação sobre Toby para a imprensa. E então você…
— Não deveria ter sido assim — Mellie repetiu. — Nós só
estávamos tentando arrancar Toby do esconderijo. Nós só
queríamos conversar. Quando o sr. Grayson ofereceu ajuda…
— Você me sequestrou para ele.
— Não! — A resposta de Mellie foi instantânea. — Quer dizer…
mais ou menos. — Ela sacudiu a cabeça de novo. — Depois que
Grayson e Jameson foram visitá-lo no Arizona, Sheffield Grayson
mandou um homem segui-los até Verdadeiro Norte. Para vigiá-los.
Eu pensei no profissional no bosque. Oren tinha me tirado da
jacuzzi e mandado um de seus homens atrás do intruso.
— Eli pegou o cara — Mellie continuou. — Ele o imobilizou e
então… eles conversaram.
— Sobre mim? — Eu parei. — Sobre Toby?
Mellie não respondeu nenhuma das perguntas.
— Nós não sabíamos para quem o homem estava trabalhando —
ela disse. — Não de início. Mas todos nós queríamos a mesma
coisa.
Toby.
— Então Eli vazou aquelas fotos — constatei, minha garganta
apertando. — E, alguns dias depois, alguém explodiu meu avião.
— Não fomos nós! Eli e eu nunca quisemos te ferir. Nós nunca
quisemos ferir ninguém. — O olhar de Mellie foi para Toby. — Nós
só precisávamos conversar.
— Por quê? — exigi, mas Mellie não respondeu.
Agora que tinha olhado para Toby, ela não conseguia parar de
encará-lo.
— Eu te conheço? — ele perguntou a ela, franzindo o cenho.
Mellie baixou os olhos.
— Você conhecia a minha mãe.
O mundo se abriu embaixo dos meus pés — subitamente,
abruptamente. Sheffield Grayson disse que tinha um teste de DNA
me ligando a Toby. Eu prendi a respiração. Mas Toby não é meu pai.
Não era meu DNA.
— Essa é minha mãe. — Mellie puxou o celular e mostrou uma
foto a Toby. — Eu não espero que você se lembre dela. Com
certeza ela foi só mais uma noite agitada naquele seu verão.
No verão que ele “morreu”, pensei. Na minha frente, Toby olhou
para a foto e eu me lembrei de Zara dizendo que os investigadores
de Tobias Hawthorne tinham falado com pelo menos uma mulher
que havia transado com Toby naquele verão. A mãe de Mellie?
À minha frente, eu vi Toby chegar à mesma conclusão.
— Sheffield Grayson disse que você deu a ele uma amostra de
DNA para testar — eu disse, encarando Mellie. — Ele estava certo
de que eu era filha de Toby. — Eu olhei para Toby e meu estômago
revirou. — Mas não sou. Sou?
— Não de sangue. — Toby sustentou meu olhar por mais um
momento, então se voltou para Mellie. — Você está certa. Eu não
me lembro da sua mãe.
— Eu tinha cinco anos — Mellie disse a ele. — Eli tinha seis.
Nossos pais estavam mal e, de repente, minha mãe ficou grávida.
Ela não sabia seu nome. Ela não sabia que tipo de dinheiro você
tinha.
— Mas você descobriu? — eu disse.
Eu não conseguia parar de encarar Mellie. Alisa tinha me dito uma
vez que ela era uma das que Nash tinha “salvado” de circunstâncias
infelizes. Eu não tinha ideia de quais eram as circunstâncias, mas
não podia ser coincidência que ela e o irmão tinham acabado
trabalhando para os Hawthorne.
Por quanto tempo eles tinham planejado aquilo?
— Você disse que sua mãe ficou grávida — Toby disse baixo. —
Ela teve o filho?
O filho, eu pensei, meu estômago afundando. O filho dele. O DNA
que Mellie tinha dado a Sheffield Grayson, o DNA que tinha vindo
como ligado ao de Toby — não era meu.
— Minha irmã — Mellie respondeu. — O nome dela é Evelyn. Mas
a chamamos de Eve.
Eu vi algo — uma nota de emoção — nos olhos de Toby.
— Um palíndromo.
— Ela mesma escolheu — Mellie respondeu baixo —, quando
tinha três anos de idade, por esse motivo. Ela tem dezenove agora.
— Mellie se virou para mim. — E tudo que você tem deveria ser
dela.
Pela primeira vez, ouvi a certeza queimando o tom de Mellie e
entendi que, embora ela não quisesse que eu me ferisse, era um
risco que estava disposta a aceitar, porque Toby Hawthorne tinha de
fato uma filha.
Só não era eu.
O velho sabia? Mellie tentou contar para ele?
— O que você quer de mim? — Toby perguntou.
— Eu quero que cuidem de Eve — Mellie disse com ferocidade.
— Ela é uma Hawthorne.
Meu olhar foi para Toby.
— E uma Laughlin — eu disse baixo.
Eu não era a bisneta da sra. Laughlin. Eu não era sobrinha de
Rebecca, sobrinha de Emily. Eve era.
Era ela quem pertencia àquele lugar.
Engoli em seco.
— Leve-a à Casa Hawthorne. — As palavras rasparam minha
garganta, mas eu não ia ceder à dor. — Tem espaço suficiente.
— Não. — A voz de Toby era como uma adaga.
Mellie desceu furiosamente pelo celular e enfiou outra foto na cara
dele.
— Olhe para ela — exigiu. — Ela é sua filha, e você não tem ideia
de como foi a vida dela.
Toby olhou a foto. Sem querer, dei um passo à frente. Eu olhei
também e, no segundo que vi o rosto da irmã de Mellie, parei de
respirar.
Eve era a cara de Emily Laughlin. Cabelo loiro arruivado, como a
luz do sol passando pelo âmbar. Olhos de esmeralda, grandes
demais para o rosto dela. Lábios de coração, uma constelação de
sardas.
— Minha filha não vai para a Casa Hawthorne — Toby disse a
Mellie. — Se você levá-la até mim, vou garantir que ela será
cuidada. Discretamente.
— O que isso quer dizer? — perguntei, finalmente recuperando
minha voz.
Toby estava falando em ir embora. Como se ele só fosse sumir.
Depois de tudo que eu tinha passado, tudo pelo que Jameson,
Xander, Grayson e eu tínhamos feito para procurá-lo.
— Você promete? — Mellie encarou Toby como se eu nem
estivesse ali.
— Eu prometo. — O olhar de Toby foi de encontro ao meu. —
Mas, primeiro — ele continuou suavemente —, Avery e eu
precisamos conversar a sós.
CAPÍTULO 85

— Você vai mantê-la em segredo? — exigi quando Mellie não


podia mais nos ouvir. — Eve?
Toby pegou meu cotovelo e me guiou para a saída.
— Tem um carro lá fora — ele me disse. — A chave está no
contato. Entre nele e vá para o norte.
Eu o encarei.
— É isso? — eu disse. — É só isso que você tem a me dizer?
O rosto de Eve, o rosto de Emily, ainda estava fresco na minha
memória.
Toby esticou o braço e afastou o cabelo da minha testa.
— No meu coração — ele sussurrou —, você sempre foi minha.
Engoli em seco.
— Mas biologicamente eu não sou.
— A biologia não é tudo.
Eu soube naquele momento que isso eu tinha acertado: Toby
tinha me procurado depois que minha mãe morreu. Ele vinha me
observando. Ele queria saber se eu estava bem.
— Minha mãe e eu tínhamos um jogo — eu disse a ele, fazendo
esforço para não chorar. — Nós tínhamos muitos jogos, na
verdade… mas esse, o favorito dela, era sobre segredos.
Ele olhou ao longe por um momento.
— Eu a fiz prometer que ela nunca ia te contar… de mim, da
minha família. Mas se era só um jogo, se você adivinhasse… — Ele
olhou de volta para mim e seus olhos estavam brilhando. — Maldita
Hannah.
— Como raios eu iria adivinhar? — As palavras explodiram para
fora da minha boca. Eu estava subitamente furiosa, com ela, com
ele. — Ela disse que tinha um segredo sobre o dia em que eu nasci.
Toby não disse nada.
— Você assinou minha certidão de nascimento.
Eu queria respostas. Ele me devia pelo menos isso.
Ele levou uma das mãos ao meu rosto.
— Houve uma tempestade naquela noite — ele disse baixo. — A
pior que eu já vi… incluindo a da Ilha Hawthorne. Eu não deveria
nem estar lá. Eu tinha conseguido ficar longe de Hannah por três
longos anos. Mas algo me trouxe de volta. Eu queria vê-la de novo,
mesmo que não pudesse deixar que ela me visse. Ela estava
grávida. A previsão estava anunciando um furacão. E ela estava
sozinha. Eu ia ficar longe. Ela nunca deveria saber que eu estava lá,
mas a energia acabou… e ela entrou em trabalho de parto.
Comigo. Eu não conseguia dizer aquilo, não conseguia dizer
nada, não conseguia nem dizer a ele que minha mãe era capaz de
tomar suas próprias decisões.
— A ambulância não chegou a tempo — Toby disse, sua voz
ficando embargada. — Ela precisava de alguém.
— Você — consegui dizer uma palavra, só uma.
— Eu te trouxe ao mundo, Avery Kylie Grambs.
Ali estava. O segredo da minha mãe. Toby estivera lá na noite em
que nasci. Ele fizera meu parto. Eu me perguntei o que minha mãe
tinha sentido ao vê-lo depois de anos. Eu me perguntei se ele a
tinha chamado de Hannah, ó, Hannah, e se ela tinha tentado
convencê-lo a ficar.
— Avery Kylie Grambs — repeti as últimas palavras que Toby
tinha me dito. Havia algo na forma como ele dissera meu nome
completo. — É um anagrama. — Engoli em seco de novo, e, por
algum motivo, a força que vinha segurando minhas lágrimas cedeu.
— Mas você já sabia disso.
Toby não negou.
— Sua mãe tinha escolhido o nome do meio. Kylie… igual a
Kaylie, com uma letra a menos.
Aquilo me atingiu. Eu nunca soube que tinha o nome da irmã da
minha mãe. Eu nunca tinha ouvido falar de Kaylie.
— Hannah estava decidida a te dar o sobrenome de Ricky —
Toby continuou —, mas não gostava do nome que ele tinha
escolhido.
Natasha.
— Ricky não estava lá. — Pisquei para segurar as lágrimas e
olhei para Toby. — Você estava.
— Alguma coisa Kylie Grambs. — Toby sorriu e deu de ombros.
— Eu não resisti.
Ele era um Hawthorne. Ele amava quebra-cabeças, charadas e
códigos.
— Você escolheu meu nome. — Não era uma pergunta. — Você
sugeriu Avery.
— A Very Risky Gamble, uma aposta muito arriscada. — Toby
baixou os olhos. — O que eu fiz naquela noite. O que Hannah tinha
feito quando cuidou de mim, sabendo o que a família dela faria se
descobrisse.
Uma aposta muito arriscada — o motivo para Tobias Hawthorne
ter me deixado sua fortuna. Ele tinha reconhecido as digitais do filho
no meu nome? Ele tinha suspeitado, no momento que ouviu o
nome, que eu era um laço com Toby?
— Quando a ambulância chegou, eu desapareci — Toby
continuou. — Entrei escondido no hospital uma última vez para ver
vocês duas.
— Você assinou minha certidão de nascimento — eu disse.
— Com o nome do seu pai, não o meu. Era o mínimo que ele
devia a ela.
— E você foi embora.
Eu o encarei, tentando não o odiar por isso.
— Eu precisava.
Uma espécie de fúria se ergueu dentro de mim.
— Não, não precisava.
Minha mãe tinha sido apaixonada por ele. Ela tinha passado a
vida toda dela apaixonada por ele e eu nem sequer sabia.
— Você precisa entender. Os recursos do meu pai eram
ilimitados. Ele nunca parou de procurar por mim. Eu precisava
seguir em movimento se queria permanecer morto.
Pensei em Tobias Hawthorne, comendo em uma lanchonete
vagabunda em New Castle, Connecticut. Ele tinha levado seis anos
para saber que Toby tinha estado lá?
Ele tinha achado que o filho voltaria?
Tinha entendido quem minha mãe era?
Tinha pensado, por um momento que fosse, que eu era filha de
Toby?
— O que você vai fazer agora? — perguntei, minha voz
arranhando a garganta como lixa. — O mundo sabe que você está
vivo. Seu pai está morto. Até onde sabemos, Sheffield Grayson era
a única pessoa que sabia que o velho havia enterrado o relatório
policial a respeito da Ilha Hawthorne. Ele era o único que sabia…
— Eu sei o que você está pensando, Avery. — Os olhos de Toby
endureceram. — Mas não posso voltar. Eu prometi a mim mesmo,
muito tempo atrás, que nunca iria esquecer o que fiz, que nunca
seguiria em frente. Hannah não deixou que eu me entregasse, mas
o exílio é o que eu mereço.
— E o que os outros merecem? — perguntei com veemência. —
Minha mãe merecia morrer sem você? Ela merecia passar a vida
toda apaixonada por um fantasma?
— Hannah merecia o mundo.
— Então por que você não o deu a ela? — perguntei. — Por que
se punir era mais importante do que o que ela queria?
Por que era mais importante que o que eu queria?
— Eu não espero que você entenda — Toby me disse
suavemente, mais suavemente do que ele já tinha falado comigo
sendo Harry.
— Eu entendo — respondi. — Você não vai continuar
desaparecido porque precisa. Você está fazendo uma escolha e é
egoísta. — Pensei no sr. e na sra. Laughlin, na mãe de Rebecca. —
O que te dá o direito de enganar as pessoas que amam você?
Tomar esse tipo de decisão pelos outros?
Ele não respondeu.
— Você tem uma filha agora — eu disse a ele em voz baixa.
Ele olhou para mim e sua expressão não vacilou.
— Eu tenho duas.
Em um segundo, a fúria deu lugar a devastação. Tobias
Hawthorne Segundo não era meu pai. Ele não tinha me criado. Eu
não carregava uma gota do seu sangue.
Mas tinha acabado de me chamar de filha.
— Eu quero que você saia daqui, princesa. Entre no carro e dirija
para o norte.
— Não posso fazer isso — eu disse. — Sheffield Grayson está
morto! O corpo está aqui. A polícia vai querer saber o que
aconteceu. E por mais doido que tenha sido o que Mellie fez, ela
não merece ser presa por assassinato. Se contarmos à polícia o que
aconteceu…
— Eu conheço homens como Sheffield Grayson. — A expressão
de Toby mudou, e era completamente impossível decifrá-la. — Ele
escondeu seus rastros. Ninguém sabe onde ele está, nem atrás de
quem ele estava. Não vai haver nada ligando-o ao depósito, nada
que sequer sugira que ele esteve na propriedade.
— E daí? — eu disse.
Toby olhou além de mim por um momento.
— Eu sei mais do que gostaria de saber a respeito do que é
necessário para algo, ou alguém, desaparecer.
— E a família dele? — perguntei. A família de Grayson. — Eu não
posso deixar você…
— Você não está me deixando fazer nada. — Toby tocou meu
rosto. — Menina horrorosa — sussurrou. — Você ainda não
aprendeu? Ninguém deixa um Hawthorne fazer seja lá o que for.
Era verdade.
— Isso é errado — repeti.
Ele não podia só sumir com aquele corpo.
— Eu preciso, Avery. — Toby foi implacável. — Por Eve. Os
holofotes, o circo da mídia, os rumores, os perseguidores, as
ameaças… eu não posso te salvar disso, Avery Kylie Grambs. Eu
salvaria se pudesse, mas é tarde demais. O velho fez o que fez. Ele
te puxou para o tabuleiro. Mas se eu ficar nas sombras, se fizer isso
desaparecer, se eu desaparecer… então podemos salvar Eve.
Nunca tinha ficado mais claro: para Toby, o nome Hawthorne, o
dinheiro… era uma maldição. Veneno é a árvore, percebeu?
Envenenou S e Z e eu.
— Não é de todo mal — eu disse. — Deixando de lado sequestros
e tentativas de assassinato, eu estou me dando bem.
Era uma afirmação ridícula, mas Toby sequer riu.
— E você vai continuar bem, enquanto eu continuar morto. — Ele
parecia tão certo. — Vá. Entre no carro. Dirija. Se alguém te
perguntar o que aconteceu, alegue amnésia. Eu vou cuidar do resto.
Era isso mesmo. Ele ia mesmo ir embora de mim. Ia desaparecer
de novo.
— Eu sei da adoção — eu disse, desesperada para mantê-lo ali,
para fazê-lo ficar. — Eu sei que sua mãe biológica era a filha dos
Laughlin e que ela foi forçada a te entregar para adoção. Eu sei que
você culpa seus pais por guardar segredos, por arruinar vocês três.
Mas suas irmãs… elas precisam de você.
Skye estava em uma cela de prisão, mas ela não era culpada —
dessa vez, pelo menos. Zara era mais humana do que gostaria de
admitir. E Rebecca? A mãe dela ainda estava de luto por Toby.
— Eu li os cartões-postais que você escreveu para minha mãe —
continuei. — Eu falei com Jackson Currie. Eu sei de tudo… e estou
te dizendo: você não precisa mais ficar longe.
— Você soa igualzinha a ela. — A expressão de Toby abrandou.
— Eu nunca conseguia ganhar uma discussão com Hannah. — Ele
fechou os olhos. — Algumas pessoas são inteligentes. Algumas
pessoas são boas. — Ele abriu os olhos e colocou as mãos em
meus ombros. — E algumas pessoas são os dois.
Eu sabia, como um tipo estranho de premonição, que aquele
momento nunca iria me deixar.
— Você não vai ficar, vai? — perguntei. — Não importa o que eu
diga.
— Eu não posso.
Toby me puxou. Eu nunca tinha sido muito de abraços, mas, por
um momento, me deixei ser envolvida.
Quando Toby finalmente me soltou, enfiei a mão no bolso e puxei
um disco de metal, o que ele tinha dito para minha mãe que era
valioso.
— O que é isso?
Era a última pergunta que eu tinha para ele. A última chance que
eu tinha de fazê-lo ficar.
Toby se mexeu como um raio. Em um segundo o disco estava na
minha mão, no segundo, estava na dele.
— Algo que vou levar comigo — ele disse.
— O que você não está me contando? — perguntei.
Ele sacudiu a cabeça.
— Menina horrorosa — ele sussurrou, a voz carinhosa.
Pensei na minha mãe, em cada palavra que ela tinha escrito a ele
sobre mim, na forma como ele tinha vindo atrás de mim.
Você tem uma filha, eu disse a ele.
Eu tenho duas.
— Eu vou te ver de novo um dia? — perguntei, minha garganta se
fechando com essas palavras.
Ele se inclinou para a frente, deu um beijo na minha testa e se
afastou.
— Seria um aposta muito arriscada.
Eu abri a boca para responder, mas a porta do depósito se abriu.
Homens surgiram. Os homens de Oren.
Meu chefe de segurança se colocou entre mim e Toby Hawthorne
e então lançou um olhar mortífero para o único filho de Tobias
Hawthorne.
— Acho que é hora de termos uma conversinha.
CAPÍTULO 86

Eu não pude ouvir as palavras trocadas entre Oren e Toby. Fui


levada para a SUV e, quando Oren assumiu seu lugar no banco do
motorista alguns minutos mais tarde, notei que ele tinha deixado
vários dos seus homens lá dentro.
Pensei em Sheffield Grayson, morto no chão. No plano de Toby
para o corpo.
— Desovar cadáveres é parte do seu trabalho? — perguntei a
Oren.
Ele olhou nos meus olhos pelo retrovisor.
— Você quer uma resposta sincera pra isso?
Olhei pela janela. O mundo embaçou quando a SUV acelerou.
— Skye e Ricky não plantaram aquela bomba — contei. Tentei me
concentrar nos fatos, não na enchente de emoções que eu mal
estava conseguindo controlar. — Foi armação.
— Dessa vez — Oren disse. — Skye já tentou mandar te matar
uma vez. Os dois são ameaças. Sugiro deixá-los esfriar a cabeça na
cadeia pelo menos até sua emancipação sair.
Quando eu fosse legalmente uma adulta, quando pudesse
escrever meu próprio testamento, Ricky e Skye não teriam mais
nada a ganhar com a minha morte.
— Rebecca. — Eu me inclinei para a frente na cadeira de repente,
me lembrando. — Thea ajudou Mellie a me sequestrar porque
alguém estava com Rebecca.
— Já foi resolvido — Oren me disse. — Elas estão bem. Você
também. O resto da família não precisa saber.
Pelo tom dele, não parecia nada demais. O sequestro. O corpo.
Encobrir.
— Era assim com o velho? — perguntei. — Ou eu só tenho sorte?
Pensei em Toby, poupando Eve do meu destino, como se herdar a
fortuna tivesse sido menos uma bênção que uma maldição.
— O sr. Hawthorne tinha uma lista. — Oren levou tempo para
responder. — Era um tipo de lista diferente da sua. Ele tinha
inimigos. Alguns deles tinham recursos, mas, no geral, nós
sabíamos o que esperar. O sr. Hawthorne tinha um jeito para
antecipar as coisas.
Eu estava começando a achar que, se eu queria sobreviver sendo
a herdeira Hawthorne, precisaria começar a fazer o mesmo.
Precisaria aprender a pensar como o velho.
Doze coelhos, uma cajadada.

De volta à Casa Hawthorne, Oren deixou claro que pretendia me


acompanhar até o quarto. Quando chegamos à escadaria principal,
eu pigarreei.
— Vamos precisar fechar a passagem — eu disse a ele. —
Permanentemente.
Eu parei na frente da escadaria, na frente do retrato de Tobias
Hawthorne. Não pela primeira vez, encarei o velho. Ele sabia quem
Mellie e Eli eram? Ele sabia de Eve? Eu tinha certeza de que ele
teria feito um teste de DNA em mim em algum momento. Ele sabia
que eu não era filha de Toby… não de sangue.
Mas ele ainda tinha me usado para atrair Toby — assim como
Sheffield Grayson fizera, como Mellie e Eli fizeram. Você não é uma
jogadora, Nash tinha me dito uma eternidade atrás. Você é a
bailarina de vidro… ou a faca.
Talvez eu fosse os dois. Talvez eu fosse uma dúzia de coisas,
escolhidas por uma dúzia de razões diferentes — nenhuma delas
tendo nada a ver com quem eu era ou com o que me tornava
especial.
Olhei nos olhos do retrato e pensei no meu sonho — em jogar
xadrez com o velho. Você não me escolheu. Você me usou. Você
ainda está me usando. Mas a partir dali?
Eu não seria mais usada.
CAPÍTULO 87

Uma hora depois, eu estava em busca de um Hawthorne.


— Tenho uma coisa para te contar.
Xander estava em seu “laboratório”, um quarto escondido no qual
ele construía máquinas que faziam coisas simples de formas
complicadas.
— Uma coisa para me contar? É possível que você esteja me
confundindo com um dos meus irmãos? — ele perguntou. — Porque
ninguém me conta nada.
Ele estava mexendo em algum tipo de mecanismo de catapulta
em miniatura, parte de uma complicada reação em cadeia nascida
do cérebro de Xander Hawthorne.
— Esse era seu jogo — eu disse. — O velho o deixou para você.
— Ou assim parecia. — Xander colocou uma bola de metal na
catapulta. — No início.
Eu olhei para ele.
— Como assim?
— Jameson tem seu foco. Grayson sempre termina o que
começa. Mesmo Nash, ele pode pegar o caminho mais longo, mas
ele é feito para ir do ponto A ao ponto B. — Xander terminou de
mexer e finalmente se virou para me olhar. — Mas eu? Eu não sou
assim. Eu começo no ponto A e, em algum momento do caminho,
acabo no cruzamento entre cento e vinte e sete e roxo. — Ele deu
de ombros. — É parte do meu charme. Meu cérebro gosta de
digressões. Eu sigo os caminhos que encontro. O velho sabia disso.
— Xander deu de ombros. — Ele esperava que eu colocasse a bola
para rolar dessa vez? Sim. Mas onde eu acabaria? — Xander se
afastou do trabalho e observou a máquina de Rube Goldberg que
tinha construído por inteiro. — O velho sabia muito bem que não
seria no ponto B.
Eu precisava contar para alguém o que tinha acontecido. Eu o
tinha escolhido porque sentia que devia isso a ele — como se o
universo ou talvez o avô dele devessem isso a ele. Mas Xander
parecia muito com alguém que não queria aquela conclusão.
Alguém que não precisava dela.
— Então onde você acabou? — perguntei.
Xander se inclinou para a frente e lançou a catapulta. A bolinha de
metal voou para um funil, espiralou por uma série de rampas e
bateu em uma alavanca que derrubou um balde de água, que por
sua vez soltou um balão…
Finalmente a máquina inteira se abriu, relevando a parede por
trás. A parede estava coberta de fotos — fotos de homens que
tinham pele marrom. As legendas embaixo das fotos me informavam
que todos eles tinham o sobrenome Alexander.
Eu pensei no jogo que tínhamos passado as últimas semanas
jogando. Sheffield Grayson. Jake Nash. Era aquele o desvio que o
velho esperava que Xander pegasse?
— Você quer saber o que descobri? — perguntei a Xander.
— Claro — ele disse, disposto. — Mas antes que eu esqueça:
duas coisas. — Ele ergueu o dedo indicador e o médio. — Primeiro,
esse é o telefone de Thea. — Ele me deu um pedaço de papel com
um número rabiscado. — Eu deveria ligar para ela e avisar que você
está viva.
Franzi o cenho.
— Então por que me dar o telefone dela? — perguntei.
— Porque — Xander respondeu — quando se trata de Thea,
nunca é demais prevenir.
Eu estreitei os olhos.
— Qual a segunda coisa? — perguntei, desconfiada.
Xander apertou um botão e a parede deslizou, revelando uma
segunda oficina.
— Voilà!
Meus olhos se arregalaram quando eu vi o que havia na oficina.
— Isso são…
— Reproduções em tamanho real dos três androides mais
amáveis do universo Star Wars. — Xander sorriu. — Para Max.
CAPÍTULO 88

— Suas patas lindas. — Max ficou mais do que feliz com a oferta
de Xander, o suficiente pra demorar um momento para me olhar em
tom de reprovação. — Eu me sinto obrigada a te avisar que você
está um pouco pálida e a grande dra. Liu não vai gostar disso.
O que entendi foi que minha médica não iria gostar nada de saber
o que eu tinha aprontado nas doze horas anteriores.
— Obrigada. — Esperei até que Max olhasse para mim antes de
continuar. — Por ter trazido sua mãe para cá.
Eu conhecia minha melhor amiga bem o suficiente para saber que
não tinha sido uma ligação fácil.
— É, bem… — Max deu de ombros. — Obrigada. Por ter se
explodido.
Por te dar um motivo para ligar — e por ter dado a ela um motivo
para atender.
— Você acha que vai para casa logo?
Eu não queria que Max fosse embora, mas, ao mesmo tempo,
minha melhor amiga tinha sua própria vida e eu não conseguia me
impedir de pensar que ela ficaria mais segura bem longe da Casa
Hawthorne. Longe de mim, da família Hawthorne, de tudo que eu
tinha herdado junto com os bilhões de Tobias Hawthorne.
Árvore envenenada e todo o resto.

Quando Thea ligou, quase não atendi. Era por isso que Xander tinha
me dado o telefone dela. Ainda assim…
— Alô? — eu disse pesadamente.
Houve um momento de hesitação e então:
— Investiguei e descobri quem vandalizou seu armário. Foi um
calouro. Você quer o nome?
Tontinha. Eu estava esperando um pedido de desculpas.
— Não. — Fiquei tentada a deixar por isso mesmo, mas não
consegui. — Rebecca está bem?
— Ela está abalada, mas bem. — A voz de Thea era suave, mas
ela estragou o efeito com uma risada alta de desdém. — Bem o
suficiente para gritar comigo por ter te colocado em risco.
— É, bem… — Dei de ombros, embora Thea não pudesse me
ver. — Quem é Rebecca para falar?
Eu poder brincar com aquilo era prova do quão longe Rebecca e
eu tínhamos chegado.
— Eu tinha uma escolha. — A voz de Thea tremeu. Ela era
diabólica, complicada e mais um milhão de outras coisas, mas não
era cruel. Ela estava preocupada comigo. — Eu precisava escolher
ela. Você entende isso, Avery? — Thea não esperou a minha
resposta. — Para mim, sempre vai ser Rebecca. Ela não acredita
nisso, mas não importa quanto tempo demore, eu vou continuar
escolhendo ela.
Eu nunca tinha entendido como era quando uma pessoa era tudo
para você, como era olhar para aquela pessoa e saber. Eu nunca
tinha acreditado que era capaz disso. Não queria ser capaz disso.
Quando Thea e eu desligamos, fui ver Grayson.
CAPÍTULO 89

Eu contei a Grayson o que tinha acontecido com o pai dele. Não


contei a ele sobre Eve. O tempo todo, o rosto dele era como uma
pedra.
— Você parece querer quebrar alguma coisa — eu disse a ele.
Ele sacudiu a cabeça.
Eu o fiz olhar para mim.
— Que tal uma luta de espadas?

Grayson corrigiu minha postura.


— Deixe que a espada faça o trabalho por você — ele me
lembrou e, naquele momento, eu me lembrei de mais.
Do dia em que eu o tinha conhecido. Quão arrogante ele era,
quão seguro de si e do seu lugar no mundo. Pensei na primeira vez
que o peguei realmente olhando para mim e na forma como ele
tinha me dito que eu tinha um rosto expressivo. Pensei em acordos
negociados e promessas feitas e momentos roubados e palavras
ditas em latim.
Mas, ainda mais, pensei nas formas que nós dois éramos
parecidos.
— Eu tive um sonho — eu disse a ele. — Quando estava em
coma. Você e Jameson estavam brigando. Por minha causa.
— Avery… — Grayson baixou a espada.
— No meu sonho — continuei —, Jameson estava com raiva
porque você não correu na minha direção. Porque eu estava lá à
beira da morte e você não conseguiu se mexer. Mas, Grayson? —
Esperei que ele olhasse para mim, com seus olhos prateados e o
peso do mundo nos ombros. — Eu não estou com raiva. Eu passei
minha vida inteira não correndo na direção de ninguém. Sei como é
só ficar ali… e não ser capaz de fazer mais nada. Sei como é perder
alguém.
Eu pensei na minha mãe e então em Emily.
— Sou especialista em não querer as coisas. — Segurei minha
espada por mais um momento, então a baixei, da mesma forma que
ele tinha baixado a dele. — Mas estou começando a perceber que a
pessoa que eu preciso ser, a pessoa que estou me tornando… ela
não é mais essa garota.
Eu tinha ganhado o mundo. Era hora de parar de viver com medo,
hora de tomar as rédeas.
Era hora de arriscar.
CAPÍTULO 90

— Srta. Grambs, você entende que, se for emancipada, você será


legalmente considerada uma adulta. Você será responsável por si
mesma. Será cobrada como uma adulta. Você está literalmente
abrindo mão do resto da sua infância.
Durante as seis semanas anteriores eu tinha levado um tiro,
explodido, sido sequestrada e desfilada por aí como a encarnação
viva das histórias de Cinderela. Para o mundo eu era um escândalo,
um mistério, uma curiosidade, uma fantasia.
Para Tobias Hawthorne, eu tinha sido uma ferramenta.
— Eu entendo — respondi ao juiz.
E então tinha acabado.
— Parabéns — Alisa disse quando saímos do tribunal. Os
homens de Oren abriram caminho pelos paparazzi e eu segui para a
SUV. — Você é uma adulta. — Alisa parecia muito orgulhosa. — Pode
escrever seu próprio testamento.
Eu me inclinei no assento e pensei em quanto cuidado minha
advogada estava colocando em gerenciar minha imagem pública,
quanto ela queria que o mundo acreditasse que o escritório de
advocacia estava tomando as decisões.
Eu sorri.
— Posso fazer bem mais que isso.

Três horas depois, encontrei Jameson no telhado. Ele estava


segurando uma faca conhecida nas mãos. Fingiu que ia jogá-la para
mim e meu coração acelerou.
O olhar dele encontrou o meu e meu coração acelerou ainda
mais.
— Tenho muita coisa para te contar. — O vento bateu no meu
cabelo, soprando-o em volta do meu rosto. — Eu encontrei Toby,
cara a cara. Ele tem uma filha, mas não sou eu. Ela é igualzinha a
Emily Laughlin.
Os olhos verdes de Jameson eram insondáveis.
— Estou intrigado, Herdeira.
Enfiei a mão no bolso e puxei uma moeda. Parecia mais perigoso
do que andar na garupa de uma motocicleta, acelerar em uma pista
de corrida ou levar um tiro em Black Wood. Não era só uma onda.
Era um risco — um que a velha Avery nunca teria sido capaz de
assumir.
Com o olhar no de Jameson, abri meus dedos, revelando a
moeda na minha palma.
— Toby levou o disco — falei. — A gente talvez nunca saiba o que
era.
Os lábios de Jameson se curvaram.
— Essa é a Casa Hawthorne, Herdeira. Sempre vai ter outro
mistério. Quando você achar que encontrou a última passagem
secreta, o último túnel, o último segredo embutido nas paredes…
sempre vai haver mais um.
Havia uma energia na voz dele quando falou sobre a Casa.
— É por isso que você a ama. — Olhei bem nos olhos dele. — A
Casa.
Ele se inclinou para a frente.
— É por isso que eu amo a Casa.
Ergui a moeda.
— Não é o disco — eu disse. — Mas às vezes temos que
improvisar.
Meu coração estava acelerado. Eu estava vibrando com a mesma
energia que tinha ouvido no tom dele.
E, como Jameson, eu a amava.
— Cara, você me beija — eu disse. — Coroa, eu te beijo. E dessa
vez… — Minha voz falhou. — Significa alguma coisa.
Jameson me deu um daqueles devastadores e tortos sorrisos de
Jameson Winchester Hawthorne.
— O que você está dizendo, Herdeira?
Joguei a moeda no ar e, enquanto ela girava, pensei no que tinha
acontecido. Em todas as coisas.
Eu tinha encontrado Toby.
Eu sabia o segredo da minha mãe.
E entendia, mais do que nunca, por que meu nome tinha
chamado a atenção de um bilionário que eu só tinha visto uma única
vez. Talvez fosse tudo que havia nisso. Ou talvez eu fosse uma
cajadada para doze coelhos, a maioria deles ainda desconhecida.
Como Jameson tinha dito, era a Casa Hawthorne. Sempre haveria
outro mistério. Como eu, Jameson sempre seria levado a resolvê-
los.
A moeda aterrissou.
— Coroa — eu disse. — Eu te beijo.
Passei os braços ao redor do seu pescoço. Pressionei meus
lábios contra os dele. E, dessa vez, que bela piada… porque eu não
estava jogando.
Não era nada.
Era o início… e eu estava pronta para ser ousada.
AGRADECIMENTOS

Este livro foi escrito e revisado na primavera e no verão de 2020,


quase todo enquanto eu estava trancada em casa com meu marido
e meus filhos pequenos; Jogos de herança foi publicado pela
primeira vez em setembro de 2020, no meio da pandemia. Devido
ao trabalho incansável e apoio incrível da minha equipe editorial
maravilhosa, o livro de alguma maneira conseguiu encontrar seu
público durante esse período tumultuado. Mais do que qualquer
outro livro ou série que escrevi, este tem uma dívida incrível de
gratidão para com as pessoas sem as quais ele simplesmente não
teria acontecido.
Primeiro, eu gostaria de agradecer a minha equipe incrível na
Little, Brown Books for Young Readers. O que vocês fizeram pela
série Jogos de Herança e por mim, como autora, me impressiona e
enche de humildade. Eu não tenho ideia de como tive tanta sorte
para trabalhar com um grupo de pessoas cujo entusiasmo, ética,
generosidade e brilhantismo generalizado são tão fora de qualquer
medida que as medidas nem estão mais visíveis. O que todos vocês
fizeram por esses livros — em tempos sem precedentes e
incrivelmente desafiadores, além de tudo! — é mais incrível do que
eu poderia expressar. Eu fico com lágrimas nos olhos só de pensar
em tudo que essa equipe fez para levar Jogos de herança e O
herdeiro perdido até as mãos dos leitores.
Obrigada à minha incrível editora Lisa Yoskowitz, cuja brilhante
mente editorial só se iguala à gentileza e graça que ela estende
àqueles com quem trabalha. Poder trabalhar juntas de novo foi um
sonho realizado.
Obrigada a Megan Tingley e Jackie Engel; eu nem consigo
começar a expressar a absoluta alegria que foi ser publicada pela
LBYR sob a liderança de vocês.
Enorme agradecimento à capista Karina Granda e à artista Katt
Phatt; as capas que vocês deram às edições originais de Jogos de
herança e O herdeiro perdido não são nada menos que perfeitas. Eu
sorrio literalmente toda vez que olho para elas!
Às minhas incríveis equipes de marketing e publicidade, obrigada,
obrigada, obrigada por ajudar Jogos de herança e O herdeiro
perdido a encontrar tantos leitores. Obrigada a Emilie Polster, que
tem sido uma defensora incrível desses livros desde o primeiro dia,
e a Bill Grace, Savannah Kennelly, Christie Michel, Victoria
Stapleton, Amber Mercado e Cheryl Lew por seu trabalho tremendo
com O herdeiro perdido, assim como a Katharine McAnarney e
Tanya Farrell pela ajuda de vocês com o primeiro livro! Um enorme
agradecimento também vai para a maravilhosa equipe de vendas da
LBYR: Shawn Foster, Danielle Cantarella, Celeste Risko, Anna
Herling, Katie Tucker, Claire Gamble, Naomi Kennedy e Karen
Torres.
Eu também sou incrivelmente grata à equipe de produção, que fez
de tudo para configurar nosso cronograma de forma que eu pudesse
sair de licença-maternidade com um bebê novo no meio do
processo. Obrigada, Marisa Finkelstein, Barbara Bakowski, Virginia
Lawther e Olivia Davis. Obrigada também a Lisa Cahn, Janelle
DeLuise e Hannah Koerner, por ajudar a dar vida a essa série em
áudio e no exterior.
Além da minha equipe editorial nos Estados Unidos, eu gostaria
também de agradecer à minha maravilhosa equipe editorial do
Reino Unido, incluindo Anthea Townsend, Phoebe Williams, Ruth
Knowles, Sara Jafari, Jane Griffiths, Kat McKenna, Rowan Ellis e
todo mundo na Penguin Random House UK!
Obrigada também a Josh Berman, que está adaptando Jogos de
herança para a televisão. Josh, você foi uma das primeiras pessoas
a ler Jogos de herança, e sua crença nesse projeto significa muito.
Para o restante da equipe trabalhando duro nesse projeto, incluindo
Grainne Godfree, Jeffrey Frost, Jennifer Robinson, Alec Durkheimer
e Sam Lion — obrigada!
Esse é meu vigésimo segundo livro e fui incrivelmente sortuda de
ter Curtis Brown como minha agência desde que eu mesma era
basicamente uma criança! Obrigada, Elizabeth Harding, por lutar por
mim durante todos esses anos. Holly Frederick, obrigada não
apenas por ter encontrado uma maravilhosa casa para esses livros
em Hollywood, mas também por seu feedback perspicaz durante os
primeiros estágios do primeiro livro. Obrigada, Sarah Perillo, por seu
trabalho incrível defendendo essa série ao redor do globo. E
obrigada ao restante da minha equipe na Curtis Brown, incluindo
Nicole Eisenbraun, Sarah Gerton, Michaela Glover, Madeline Tavis e
Jazmia Young.
Escrever é uma profissão solitária; neste ano, a solidão foi
elevada um tanto. Sou grata a todos os amigos de escrita que
tornaram o processo menos isolado. Obrigada a Ally Carter, Rachel
Vincent, Emily Lockhart, Sarah Mlynowski e toda a BOB pela
quantidade tremenda de apoio literário e aos colegas autores que
foram apoiadores incríveis dessa série, incluindo Katharine McGee,
Karen McManus, Kat Ellis, Dahlia Adler e muitos outros.
Como provavelmente já está claro a esta altura, a escrita e
publicação deste livro foram um verdadeiro trabalho em equipe. Por
este livro, escrito em um dos períodos mais difíceis e caóticos da
minha vida, também tenho uma dívida enorme a minha equipe em
casa. Obrigada, Avery Eshelman e Ruth Davis, por ajudar a cuidar
dos meus filhos enquanto eu escrevia, e obrigada a minha família
por TUDO. Anthony, eu não poderia ter pedido um parceiro melhor.
Obrigada por tudo que você faz; eu não poderia ter feito isso sem
você. A minha mãe e ao meu pai, obrigada por sempre estarem a
apenas um telefonema de distância e por tudo que vocês fizeram
para nos ajudar nesse período difícil. E aos meus filhos, obrigada
pelos carinhos e diversão, mas também por entenderem que às
vezes a mamãe precisa escrever!
Finalmente, obrigada a VOCÊ, caro leitor! Depois de todos esses
anos e vinte e dois livros, ainda estou maravilhada por as histórias
que escrevo serem lidas por pessoas como você.
Confira nossos lançamentos, dicas de leituras e
novidades nas nossas redes:
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Copyright © 2021 by Jennifer Lynn Barnes
Copyright da tradução © 2022 by Editora Globo S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.

Título original: The Hawthorne Legacy

Editora responsável Paula Drummond


Assistente editorial Agatha Machado
Preparação de texto Sofia Soter
Diagramação Ilustrarte Design e Produção Editorial
Projeto gráfico original Laboratório Secreto
Revisão Isabel Rodrigues
Capa Katt Phatt Studio
Editora de livros digitais Ludmila Gomes
Produção do e-book Ranna Studio

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


(Decreto Legislativo nº 54, de 1995).

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B241h
Barnes, Jennifer Lynn
O herdeiro perdido / Jennifer Lynn Barnes ; tradução Isadora Sinay. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Globo Alt, 2022.
432 p. (Jogos de herança ; 2)

Tradução de: The hawthorne legacy


Sequência de: Jogos de herança
ISBN impresso: 978-65-88131-46-6
ISBN impresso: 978-65-55670-57-8

1. Ficção americana. I. Sinay, Isadora. II. Título. III. Série.

22-75460
CDD: 813
CDU: 82-3(73)

Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

1ª edição, 2022

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
Rua Marquês de Pombal, 25
20.230-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.globolivros.com.br
JENNIFER LYNN BARNES
Tradução
Isadora Sinay
© Kim Haynes Photography

Jennifer (Jen) Lynn Barnes nasceu em Oklahoma, nos Estados


Unidos, e é autora best-seller da série Jogos de Herança, entre
outros títulos. Ela é graduada em Psicologia, Psiquiatria e Ciências
Cognitivas e pós-graduada por Cambridge e Yale. Jen escreveu seu
primeiro romance aos dezenove anos e vendeu seus cinco primeiros
livros ainda na faculdade. Ela também escreveu roteiros originais
para redes de televisão e é uma das maiores especialistas em
Psicologia do Fandom e Ciência Cognitiva da Ficção. Jen é
professora da Universidade de Oklahoma, onde ensina Psicologia e
Redação.

www.jenniferlynnbarnes.com
@jenlynnbarnes
SUMÁRIO

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Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Um ano depois...
Agradecimentos
Para William
CAPÍTULO 1

— Precisamos falar do seu aniversário de dezoito anos.


As palavras de Alisa ecoaram pela maior das cinco bibliotecas da
Casa Hawthorne. Estantes que iam do chão ao teto ocupavam dois
andares, nos envolvendo em volumes de capa dura e encadernação
de couro, muitos inestimáveis, cada um deles uma lembrança do
homem que havia construído aquela sala.
Aquela casa.
Aquela dinastia.
Quase imaginei o fantasma de Tobias Hawthorne me observando
quando me ajoelhei e passei a mão pelo chão de mogno, buscando
irregularidades nos vincos.
Como não encontrei nenhuma, me levantei e respondi à
declaração de Alisa.
— Precisamos? Precisamos mesmo?
— Legalmente? — A formidável Alisa Ortega arqueou uma
sobrancelha para mim. — Precisamos. Você pode já ter sido
emancipada, mas, nos termos da sua herança…
— Nada muda quando eu fizer dezoito — falei, examinando a sala
em busca do meu próximo passo. — Eu não vou herdar até ter
morado na Casa Hawthorne por um ano.
Eu conhecia minha advogada bem o suficiente para saber que era
daquilo que ela realmente queria falar. Meu aniversário era em
dezoito de outubro. Eu alcançaria a marca de um ano na primeira
semana de novembro e instantaneamente me tornaria a
adolescente mais rica do planeta. Até lá eu tinha outras
preocupações.
Uma aposta para ganhar. Um Hawthorne para vencer.
— Seja como for… — Alisa era tão fácil de deter quanto um trem
em alta velocidade. — Com seu aniversário chegando, devemos
discutir algumas coisas.
Bufei, rindo.
— Quarenta e seis bilhões de coisas?
Alisa me olhou, exasperada, e eu me concentrei na missão. A
Casa Hawthorne era cheia de passagens secretas. Jameson tinha
apostado que eu não conseguiria encontrar todas. Olhando o
enorme tronco de árvore que servia de escrivaninha, enfiei a mão na
bainha dentro da minha bota e puxei a faca para testar uma
rachadura natural na superfície da mesa.
Eu tinha aprendido do pior jeito que não podia ir a lugar nenhum
desarmada.
— Checagem de choro! — Xander “sou uma máquina de Rube
Goldberg que anda e fala” Hawthorne enfiou a cabeça para dentro
da biblioteca. — Avery, em uma escala de um a dez, o quanto você
precisa se distrair nesse momento e quão apegada você é a suas
sobrancelhas?
Jameson estava do outro lado do mundo. Grayson não tinha
ligado desde que havia ido para Harvard. Xander, meu
autodeclarado BFFH — Best Friend Forever Hawthorne —,
considerava seu dever sagrado me manter animada na ausência
dos irmãos.
— Um — respondi. — E dez.
Xander fez uma pequena mesura.
— Então adieu.
Em um piscar de olhos, ele havia sumido.
Algo definitivamente ia explodir nos dez minutos seguintes. Eu me
virei de volta para Alisa e analisei o resto do cômodo: as estantes
que pareciam infinitas, as escadas de ferro fundido que espiralavam
para cima.
— Só diga o que você veio dizer, Alisa.
— Pois é, Lee-Lee — disse uma voz profunda, açucarada e
arrastada vinda do corredor. — Nos ilumine.
Nash Hawthorne assumiu posição na porta, seu característico
chapéu de caubói puxado para baixo.
— Nash. — Alisa usava seu terninho como uma armadura. — Isso
não é da sua conta.
Nash se recostou no batente da porta e cruzou preguiçosamente
o pé direito sobre o tornozelo esquerdo.
— Se a menina me mandar sair, eu saio.
Nash não confiava em Alisa comigo. Fazia meses.
— Está tudo bem, Nash — falei. — Você pode ir.
— Eu imagino que sim.
Nash não fez sinal de desencostar do batente. Ele era o mais
velho dos quatro irmãos Hawthorne, acostumado a pastorear os
outros três. Ao longo do último ano, tinha estendido o hábito a mim.
Ele e minha irmã “não estavam namorando” há meses.
— Não é noite do não namoro? — perguntei. — Não significa que
você deveria estar em outro lugar?
Nash tirou o chapéu de caubói e deixou que o olhar firme
pousasse no meu.
— Eu aposto — disse ele, se virando para sair da sala — que ela
quer falar com você sobre abrir um fundo.
Eu esperei até que Nash não pudesse ouvir antes de me virar
para Alisa.
— Um fundo?
— Eu só queria que você soubesse das suas opções. — Alisa
tinha a típica facilidade dos advogados em se esquivar de respostas
específicas. — Vou montar um dossiê para que você dê uma
olhada. Agora, quanto ao seu aniversário, existe também a questão
da festa.
— Sem festa — respondi imediatamente.
A última coisa que eu queria era transformar meu aniversário em
um evento que fosse parar nas manchetes e explodisse em
hashtags.
— Você tem uma banda favorita? Ou um cantor? Precisamos de
uma atração.
Senti meus olhos se apertarem.
— Sem festa, Alisa.
— Tem alguém que você quer na lista de convidados?
Quando Alisa se referia a alguém, não estava falando de gente
que eu conhecia, e sim de celebridades, bilionários, socialites,
realeza…
— Sem lista de convidados — insisti —, porque não vou dar uma
festa.
— Você realmente deveria considerar a imagem… — começou
Alisa, e eu me desliguei da conversa.
Eu sabia o que ela ia dizer. Ela vinha dizendo a mesma coisa
havia quase onze meses. Todo mundo ama uma história de
Cinderela.
Bem, essa Cinderela tinha uma aposta para ganhar. Analisei as
escadas de ferro fundido. Três espiralavam em sentido anti-horário.
Mas a quarta… Eu andei até ela e subi os degraus. Ao chegar no
segundo andar, passei os dedos por baixo da estante em frente à
escada. Uma alavanca. Eu a puxei, e toda a prateleira curva se
virou para trás.
Número doze. Dei um sorriso malicioso. Toma essa, Jameson
Winchester Hawthorne.
— Sem festa — repeti para Alisa, e desapareci parede adentro.
CAPÍTULO 2

À noite, subi na cama, os lençóis de algodão egípcio frescos e


macios contra minha pele. Enquanto esperava pela ligação de
Jameson, minha mão foi parar na mesinha de cabeceira, onde
estava um pequeno broche de bronze em forma de chave.
— Escolha uma das mãos.
Jameson estende os dois punhos. Eu toco sua mão direita e ele
abre os dedos, me mostrando a palma vazia. Tento a esquerda,
mesma coisa. Então ele fecha meus dedos em um punho. Eu os
abro e lá está o broche, na palma da minha mão.
— Você resolveu as chaves mais rápido que qualquer um de nós
— lembra Xander. — Já passou da hora disso!
— Desculpa, menina — diz Nash, com a voz arrastada. — Já faz
seis meses. Você é uma de nós agora.
Grayson não diz nada, mas, quando eu me atrapalho para colocar
o broche e o derrubo, ele o pega antes que caia no chão.
A memória queria levar a outra — Grayson, eu, a adega —, mas
não deixo. Nos últimos meses, eu desenvolvera meus próprios
métodos de distração. Peguei o celular, abri um site de
financiamento coletivo e fiz uma busca por despesas médicas e
aluguel. Ainda faltavam seis semanas para a fortuna Hawthorne ser
minha, mas os sócios da McNamara, Ortega e Jones já tinham me
arranjado um cartão de crédito basicamente ilimitado.
Manter doação anônima. Cliquei naquela opção repetidas vezes.
Quando o celular finalmente tocou, eu me recostei e atendi.
— Alô.
— Preciso de um anagrama da palavra pelada.
Havia um zumbido de energia na voz de Jameson.
— Não precisa, não — falei, e me virei de lado. — Como está aí
na Toscana?
— O lugar de origem do Renascimento Italiano? Cheia de
estradas sinuosas e vales, onde uma neblina matinal se ergue ao
longe e as florestas estão cheias de folhas de um vermelho tão
brilhante que o mundo todo parece estar pegando fogo da melhor
maneira possível? Essa Toscana?
— Isso — murmurei. — Essa Toscana.
— Já vi melhores.
— Jameson!
— Do que você quer saber primeiro, Herdeira: Siena, Florença ou
as vinícolas?
Eu queria tudo, mas havia um motivo para Jameson estar usando
o habitual ano sabático dos Hawthorne para viajar.
— Me fale da mansão.
Você encontrou alguma coisa?
— Sua mansão toscana foi construída no século dezessete.
Supostamente é um sítio, mas parece mais um castelo, e é cercada
por mais de quarenta hectares de oliveiras. Tem uma piscina, um
forno a lenha para pizzas e uma enorme lareira de pedra original.
Dava para imaginar. Vividamente — e não só porque tinha um
fichário com fotos.
— E quando você conferiu a lareira?
Eu não precisava perguntar se ele tinha checado a lareira.
— Eu encontrei uma coisa.
Eu me sentei, meu cabelo caindo pelas costas.
— Uma pista?
— Provavelmente — respondeu Jameson. — Mas para qual
quebra-cabeça?
Todo meu corpo estava eletrizado.
— Se não me contar, eu vou acabar com você, Hawthorne.
— E eu — respondeu Jameson respondeu — adoraria ser
acabado.
Meus lábios traidores ameaçaram sorrir. Sentindo o gosto da
vitória, Jameson me deu a resposta:
— Eu encontrei um espelho triangular.
Simples assim, meu cérebro deu a largada. Tobias Hawthorne
tinha criado os netos com quebra-cabeças, enigmas e jogos. O
espelho provavelmente era uma pista, mas Jameson estava certo:
não tínhamos como saber de que jogo. De qualquer forma, não era
atrás disso que ele estava viajando o mundo.
— Nós vamos descobrir o que o disco era — disse Jameson,
praticamente lendo minha mente. — O mundo é o tabuleiro,
Herdeira. Só precisamos continuar jogando os dados.
Talvez, mas não estávamos seguindo uma trilha, nem jogando um
dos jogos do velho. Estávamos tateando no escuro, esperando que
existissem respostas lá fora, respostas que nos diriam por que um
pequeno disco, parecido com uma moeda e gravado com círculos
concêntricos, valia uma fortuna.
Por que o único filho de Tobias Hawthorne, nomeado em sua
homenagem, tinha deixado o disco para minha mãe.
Por que Toby o tinha pegado de mim antes de desaparecer e se
fazer de morto de novo.
Toby e o disco eram minhas últimas conexões com a minha mãe,
e ambos tinham sumido. Doía pensar naquilo por muito tempo.
— Encontrei outra passagem secreta hoje — falei de repente.
— É mesmo? — respondeu Jameson, o equivalente verbal de
estender uma das mãos no início de uma valsa. — Qual você
encontrou?
— Biblioteca circular.
Do outro lado da linha telefônica houve um silêncio breve, mas
inconfundível.
Então entendi.
— Você não sabia dessa.
A vitória era tão doce.
— Quer que eu te conte onde é? — ronronei.
— Quando eu voltar — murmurou Jameson —, eu mesmo
descubro.
Eu não fazia ideia de quando ele ia voltar, mas logo meu ano na
Casa Hawthorne terminaria. Eu estaria livre. Poderia ir a qualquer
lugar, fazer qualquer coisa — todas as coisas.
— Aonde você vai agora? — perguntei a Jameson.
Se eu me deixasse pensar demais em todas as coisas, eu me
afundaria nelas — em desejo, em saudades, em acreditar que eu
poderia ter tudo.
— Santorini — respondeu Jameson. — Mas é só dizer, Herdeira,
e...
— Continue. Continue procurando — falei, minha voz ficando
rouca. — Continue me contando tudo.
— Tudo? — repetiu Jameson em um tom baixo e grave que me
fez pensar no que nós dois poderíamos estar fazendo se eu
estivesse lá com ele.
Eu me virei de barriga para baixo.
— O anagrama que você estava procurando? É pedala.
CAPÍTULO 3

As semanas passaram em uma mistura de bailes beneficentes e


provas da escola, noites conversando com Jameson e tempo
demais me perguntando se Grayson um dia atenderia a droga do
telefone.
Foco. Afastando tudo da mente, eu mirei. Olhando pela mira da
arma, inspirei, expirei e atirei — e atirei de novo e de novo.
A propriedade Hawthorne tinha de tudo, inclusive sua própria sala
de tiro. Eu não era chegada em armas. Não era minha praia. Mas
estar indefesa também não era. Forçando meu maxilar a relaxar,
baixei a arma e tirei a proteção de ouvido.
Nash examinou meu alvo.
— Bom arranjo, menina.
Teoricamente, eu nunca precisaria de uma arma, nem da faca na
minha bota. Na teoria, a propriedade Hawthorne era impenetrável, e,
quando eu saía para o mundo, sempre era acompanhada de
seguranças armados. Contudo, desde que fora nomeada no
testamento de Tobias Hawthorne, eu tinha levado um tiro, quase
explodido e sido sequestrada. A teoria não tinha impedido os
pesadelos.
Nash ter me ensinado a revidar, sim.
— Sua advogada já te trouxe os documentos para o fundo? —
perguntou casualmente.
Minha advogada era a ex dele, que ele conhecia bem demais.
— Talvez — respondi.
A explicação de Alisa ainda ecoava nos meus ouvidos:
Normalmente, com um herdeiro da sua idade, haveria certas
garantias determinadas. Como o sr. Hawthorne preferiu não instalá-
las, é uma opção que você mesma deveria considerar. Segundo
Alisa, se eu colocasse o dinheiro em um fundo, poderia nomear um
responsável por cuidar e aumentar a fortuna por mim. Alisa e os
sócios da McNamara, Ortega e Jones estavam, é claro, dispostos a
servir como os responsáveis, com o entendimento de que não me
negariam nada que eu pedisse. Um fundo revogável apenas
diminuiria a pressão até que você esteja pronta para tomar as
rédeas totalmente.
— Me lembre, por favor — disse Nash, se inclinando para me
olhar nos olhos —: qual é a nossa regra sobre jogo sujo?
Ele não era nem de longe tão sutil quanto imaginava quando se
tratava de Alisa Ortega, mas respondi a pergunta mesmo assim.
— Não existe jogo sujo se você ganhar.
CAPÍTULO 4

Na manhã do meu aniversário de dezoito anos — e do primeiro dia


das férias de outono da celebrada Escola Heights Country Day —,
eu acordei e vi um vestido de festa indescritivelmente lindo
pendurado na porta do quarto. Era comprido, de um verde azulado
escuro, com um corpete marcado por dezenas de milhares de
minúsculas pedrinhas pretas que formavam um padrão delicado e
hipnotizante.
Era um vestido de parar o trânsito. De cair o queixo.
Um vestido que alguém usaria para uma festa de gala que daria
manchetes e explodiria em hashtags. Droga, Alisa. Fui até o vestido,
me sentindo rebelde — até que vi o bilhete pendurado no cabide. ME
VISTA SE TIVER CORAGEM.
Não era a letra de Alisa.

Encontrei Jameson na borda do bosque Black Wood. Ele estava de


smoking branco, bem-vestido até demais, e parado ao lado de — eu
juro por Deus — um balão de ar quente.
Jameson Winchester Hawthorne. Eu corri como se o vestido não
me impedisse, como se eu não tivesse uma faca amarrada na coxa.
Jameson me pegou, nossos corpos colidindo.
— Feliz aniversário, Herdeira.
Alguns beijos eram suaves e macios — e outros eram como fogo.
Finalmente, a noção de que tínhamos público conseguiu invadir
meu cérebro. Oren era discreto, e não estava olhando para a gente,
mas meu chefe de segurança obviamente não ia deixar Jameson
Hawthorne sair voando comigo sozinho.
Eu me afastei, relutante.
— Um balão? — perguntei a Jameson, seca. — Sério?
— Eu deveria te avisar, Herdeira… — disse Jameson, e se jogou
por cima da borda da cesta, aterrissando agachado. — Sou
perigosamente bom com aniversários.
Jameson Hawthorne era perigosamente bom em várias coisas.
Ele estendeu a mão para mim. Eu a aceitei e nem tentei fingir que
tinha me acostumado com aquilo — com tudo aquilo, qualquer parte
daquilo, com ele. Dali a milhão de anos, a vida que Tobias
Hawthorne tinha me deixado ainda me deixaria sem fôlego.
Oren entrou no balão depois de mim e fixou o olhar no horizonte.
Jameson soltou as cordas e acendeu a chama.
Nós subimos.
No ar, com o coração na garganta, eu olhei para a Casa
Hawthorne lá embaixo.
— Como se dirige isso? — perguntei a Jameson enquanto tudo,
exceto nós dois e meu guarda-costas muito discreto, ficava menor e
mais distante.
— Não se dirige — disse Jameson, me abraçando. — Às vezes,
Herdeira, tudo que podemos fazer é reconhecer para qual direção o
vento está soprando e planejar um percurso.

O balão era só o começo. Jameson Hawthorne não fazia nada pela


metade.
Um piquenique secreto.
Um passeio de helicóptero até o Golfo.
Fuga dos paparazzi.
Uma dança lenta, descalços na praia.
O oceano. Um penhasco. Uma aposta. Uma corrida. Um desafio.
Eu vou me lembrar disso. Essa era minha sensação na volta de
helicóptero para casa. Eu vou me lembrar de tudo. Dali a anos, eu
ainda sentiria aquilo tudo. O peso do vestido, o vento no rosto. Areia
quente na pele e morangos cobertos de chocolate derretendo na
língua.
Ao pôr do sol, já estávamos quase em casa. Tinha sido o dia
perfeito. Sem multidões. Sem celebridades. Sem…
— Festa — falei quando o helicóptero se aproximou da
propriedade Hawthorne e notei o que aparecia lá embaixo.
O jardim de topiária e o gramado ao lado estavam iluminados por
milhares de luzinhas... e isso nem era o pior.
— É melhor aquilo não ser uma pista de dança — falei, séria.
Jameson manobrou o helicóptero para a aterrissagem, jogou a
cabeça para trás e sorriu.
— Você não vai falar nada da roda-gigante?
Claro que ele tinha precisado me tirar da Casa.
— Vou te matar, Hawthorne.
Jameson desligou o motor.
— Por sorte, Herdeira, os Hawthorne têm sete vidas.
Quando desembarcamos e caminhamos na direção do jardim, eu
me virei para Oren e estreitei os olhos.
— Você sabia disso — acusei.
— Eu posso ter sido apresentado a uma lista de convidados para
vetar.
A expressão do meu chefe de segurança era completamente
impossível de interpretar... até a festa aparecer na nossa frente.
Então ele quase sorriu.
— Eu também posso ter vetado alguns dos nomes na lista —
acrescentou.
E por alguns, logo notei, ele quis dizer quase todos.
A pista de dança estava coberta de pétalas de rosa e iluminada
por cordões cruzados de luzes delicadas, brilhando suavemente
como vagalumes. Um quarteto de cordas tocava à esquerda de um
bolo que eu teria esperado ver em um casamento da realeza. A
roda-gigante girava ao longe. Garçons de smoking carregavam
bandejas de champanhe e aperitivos.
Mas não havia convidados.
— Gostou?
Libby apareceu ao meu lado. Ela estava vestida como a princesa
de um conto de fadas gótico, e sorria de orelha a orelha.
— Eu queria pétalas de rosa preta, mas assim ficou bom também
— acrescentou.
— O que é isso? — Suspirei.
Minha irmã esbarrou o ombro no meu.
— Estamos chamando de baile da introvertida.
— Não tem ninguém aqui.
Senti meu próprio sorriso aumentar.
— Não é verdade — respondeu Libby, animada. — Eu estou aqui.
Nash torceu o nariz para a comida chique e se nomeou responsável
pela churrasqueira. O sr. Laughlin está comandando a roda-gigante
sob a supervisão da sra. Laughlin. Thea e Rebecca estão em um
momento superdiscreto atrás das esculturas de gelo. Xander está
de olho na sua surpresa, e aqui estão Zara e Nan!
Eu me virei bem a tempo de ser cutucada por uma bengala. A
bisavó de Jameson me olhou feio enquanto a tia dele nos observava
com humor austero.
— Você aí, menina — disse Nan, o que era basicamente sua
própria versão do meu nome. — O decote desse vestido te faz
parecer uma meretriz.
Ela sacudiu a bengala para mim e então resmungou:
— Eu aprovo.
— Eu também — ressoou uma voz à minha esquerda. — Feliz
aniversário para baralho, sua luta linda.
— Max?
Eu a encarei, então olhei de volta para Libby.
— Surpresa!
Ao meu lado, Jameson fez um gesto de desdém.
— Alisa pode ter ficado com a impressão de que haveria uma
festa muito maior.
Mas não havia. Era só... a gente.
Max me abraçou.
— Me pergunte como vai a faculdade!
— Como vai a faculdade? — perguntei, ainda totalmente chocada.
Max sorriu.
— Menos divertida que o Combate Mortal de Salto da Roda-
Gigante.
— Combate Mortal de Salto da Roda-Gigante? — repeti.
Era a cara de Xander. Eu sabia com certeza que os dois tinham
mantido contato.
— Quem está ganhando? — perguntou Jameson, inclinando a
cabeça para o lado.
Max respondeu, mas, antes que eu pudesse processar o que ela
estava dizendo, vi um movimento com o canto do olho; ou talvez eu
tenha só sentido. Sentido ele. Vestido todo de preto, usando um
smoking de dez mil dólares que nem outros caras usam moletons
esfarrapados, Grayson Hawthorne entrou na pista de dança.
Ele voltou para casa. Esse pensamento foi acompanhado pela
lembrança da última vez que eu o tinha visto. Grayson, destruído.
Eu ao lado dele. De volta ao presente, Grayson Hawthorne deixou
que seus olhos se demorassem nos meus por só um momento,
então se virou para o restante da festa.
— Combate Mortal de Salto da Roda-Gigante — falou, com
calma. — Isso nunca acaba bem.
CAPÍTULO 5

Na manhã seguinte, acordei e vi o vestido de festa jogado na ponta


da cama. Jameson estava dormindo ao meu lado. Eu engoli o
impulso de traçar seu maxilar com os dedos, de tocar suavemente a
cicatriz que descia pelo seu peito.
Eu já tinha perguntado uma dúzia de vezes de onde vinha aquela
cicatriz, e ele tinha me dado uma dúzia de respostas diferentes. Em
algumas versões, o culpado era uma pedra afiada. Um para-raios.
Um para-brisa.
Um dia eu teria a resposta de verdade.
Eu me permiti mais um momento ao lado de Jameson, então saí
da cama, peguei meu broche Hawthorne, me vesti e desci as
escadas.

Grayson estava na sala de jantar, sozinho.


— Eu não achei que você voltaria para casa — falei, de alguma
forma conseguindo me sentar na frente dele.
— Tecnicamente, não é mais minha casa.
Mesmo em um volume baixo, a voz de Grayson inundava o
espaço como a maré.
— Em pouco tempo tudo nesse lugar será oficialmente seu —
acrescentou.
Não era uma condenação nem uma reclamação. Era um fato.
— Nada precisa mudar por causa disso — eu disse.
— Avery.
Olhos claros e penetrantes encontraram os meus.
— Precisa — continuou. — Você precisa.
Antes de eu aparecer, Grayson era o suposto herdeiro. Ele era
praticamente especialista no que alguém precisava fazer.
E eu era a única que sabia: por baixo daquele exterior controlado
e invencível, ele estava desmontando. Eu não podia dizer isso, não
podia demonstrar que estava sequer pensando nisso, então
continuei no assunto.
— E se eu não conseguir fazer isso sozinha? — perguntei.
— Você não está sozinha.
Grayson deixou o olhar se demorar no meu, então cuidadosa e
deliberadamente quebrou o contato visual.
— Todo ano, nos nossos aniversários — disse depois de um
momento —, o velho nos chamava para seu escritório.
Eu já tinha ouvido isso antes.
— Invista. Cultive. Crie — falei.
Desde pequenos, em todo aniversário, os irmãos Hawthorne
tinham recebido dez mil dólares para investir. Também fora dito a
eles para escolherem um talento ou um interesse para cultivar, e
que nenhum gasto seria poupado nesse cultivo. Finalmente, Tobias
Hawthorne lançava um desafio de aniversário: algo para eles
inventarem, criarem, fazerem ou fabricarem.
— Investir... você logo vai ter resolvido. Cultivar... você deveria
escolher algo que quer para si. Não uma coisa ou uma experiência,
mas uma habilidade.
Eu esperei que Grayson me perguntasse o que eu iria escolher,
mas ele não o fez. Em vez disso, tirou um livro de couro do bolso
interno do paletó e o deslizou pela mesa.
— Quanto ao seu desafio de aniversário, você vai precisar bolar
um plano — falou.
O couro era de um marrom escuro e quente, macio ao toque. As
bordas das páginas eram levemente desiguais, como se o livro
tivesse sido encadernado à mão.
— É melhor começar com um bom entendimento das suas
finanças. Daí, pense no futuro e mapeie seu tempo e seus
compromissos financeiros pelos próximos cinco anos.
Eu abri o livro. As páginas beges e grossas estavam em branco.
— Anote tudo — instruiu Grayson. — Então arranque e escreva
de novo. De novo e de novo, até ter um plano que funcione.
— Você sabe o que faria na minha posição.
Eu teria apostado minha fortuna inteira que em algum lugar ele
tinha um diário, e um plano, todo dele.
Grayson voltou a me olhar.
— Eu não sou você.
Eu me perguntava se havia alguém em Harvard, uma única
pessoa, que o conhecia pelo menos um décimo tão bem quanto
seus irmãos e eu.
— Você prometeu que ia me ajudar — escapou antes que eu
pudesse me conter. — Você disse que me ensinaria tudo que eu
precisava saber.
Eu sabia que não deveria lembrar Grayson Hawthorne de uma
promessa quebrada. Eu não tinha o direito de pedir isso dele, de
pedir nada dele. Eu estava com Jameson. Eu amava Jameson. E,
durante toda a vida de Grayson, todo mundo tinha esperado coisas
demais.
— Desculpa — voltei atrás. — Isso não é problema seu.
— Não me olhe como se eu estivesse quebrado — ordenou
Grayson, áspero.
Você não está quebrado. Eu tinha dito isso a ele. Ele não tinha
acreditado em mim na época. Ele não acreditaria naquele momento
também.
— Alisa quer que eu coloque o dinheiro em um fundo — falei,
porque o mínimo que eu devia a ele era mudar de assunto.
Grayson respondeu arqueando a sobrancelha.
— Claro que quer.
— Eu ainda não concordei com nada.
Um sorriso leve puxou as pontas da boca dele.
— Claro que não.
Oren apareceu na porta antes que eu pudesse responder.
— Acabei de receber uma ligação de um dos meus homens — me
disse ele. — Tem alguém no portão.
Um aviso soou na minha mente, porque Oren era perfeitamente
capaz de cuidar sozinho de visitantes indesejados. Skye? Ou Ricky?
A mãe de Grayson e o inútil do meu pai não estavam mais presos
por um atentado contra mim que, surpreendentemente, eles não
tinham planejado. Nem por isso haviam deixado de ser ameaças.
— Quem é? — perguntou Grayson, com a expressão afiada.
Oren me olhou nos olhos enquanto respondia a pergunta.
— Ela diz que se chama Eve.
CAPÍTULO 6

Durante meses eu havia mantido a existência da filha de Toby em


segredo para todo mundo, exceto Jameson. Porque Toby tinha me
pedido... mas não só por isso.
— Eu preciso cuidar disso — eu disse com uma calma que
absolutamente não sentia.
— Presumo que minha ajuda não seja necessária?
O tom de Grayson era despreocupado, mas eu o conhecia. Sabia
que ele entenderia minha recusa de ajuda como prova de que
estava pisando em ovos com ele.
Os Hawthorne não deveriam quebrar, a voz dele sussurrou na
minha memória. Especialmente eu.
Naquele momento, eu não podia me dar ao luxo de convencer
Grayson Hawthorne de que, na minha opinião, ele não era fraco,
quebrado nem ferido.
— Agradeço a oferta — eu disse a ele —, mas está tudo bem.
A última coisa de que Grayson precisava era ver a menina no
portão.
Enquanto Oren me levava até lá, minha mente corria. O que ela
está fazendo aqui? O que ela quer? Tentei me preparar, mas, assim
que vi a filha de Toby na frente do portão, uma onda de emoção me
atingiu. O cabelo ruivo flutuava com uma brisa suave. Mesmo de
costas, mesmo usando um vestido branco esfarrapado e manchado,
ela era luminosa.
Ela não deveria estar aqui. Toby tinha sido claro: ele não podia me
salvar do legado de Tobias Hawthorne, mas podia salvar Eve. Da
imprensa. Das ameaças. Da árvore envenenada, pensei, saindo da
SUV.
Eve se virou. Ela se mexia como uma dançaria, ao mesmo tempo
graciosa e livre, e, no momento em que seu olhar encontrou o meu,
eu perdi o fôlego.
Eu sabia que Eve era a cara de Emily Laughlin.
Eu sabia.
Mas vê-la era como erguer os olhos e encontrar um tsunami se
formando. Ela tinha o cabelo loiro-arruivado de Emily, os olhos de
esmeralda de Emily. O rosto em forma de coração, a boca, o
delicado conjunto de sardas.
Vê-la iria matar Grayson. Poderia ferir Jameson, mas iria matar
Grayson.
Eu preciso tirá-la daqui. Essa ideia martelava minha cabeça, mas,
quando cheguei ao portão, meus instintos mandaram outro alerta.
Olhei para a estrada.
— Deixe-a entrar — eu disse a Oren.
Eu não via nenhum paparazzi, mas a experiência tinha me
ensinado o perigo das teleobjetivas, e a última coisa de que
Jameson ou Grayson precisavam era ver o rosto daquela menina
em todos os sites de fofoca da internet.
O portão se abriu. Eve deu um passo na minha direção.
— Você é Avery — disse ela, e respirou, trêmula. — Eu sou...
— Eu sei quem você é.
As palavras saíram mais duras do que eu pretendia, e foi naquele
momento que vi sangue seco em uma têmpora dela.
— Ah, que inferno — falei, me aproximando. — Está tudo bem?
— Eu estou bem.
Eve fechou os dedos com força na alça da bolsa surrada que
carregava a tiracolo.
— Toby não está — acrescentou.
Não. Minha mente se rebelou. Minha mãe tinha amado Toby. Ele
tinha cuidado de mim depois que ela se fora. Ele precisa estar bem.
A respiração ficou presa no meu peito, e eu deixei que Oren nos
levasse para trás da SUV, escondidas de olhos e ouvidos curiosos.
— O que aconteceu com Toby? — perguntei, com urgência.
Eve apertou os lábios.
— Ele disse que, se alguma coisa acontecesse com ele, eu
deveria te procurar. E, olha, eu não sou ingênua, tá? Eu sei que
você provavelmente não me quer aqui — falou, como uma pessoa
acostumada a ser indesejada. — Mas eu não tinha para onde ir.
Quando fiquei sabendo de Eve, propus trazê-la para a Casa
Hawthorne. Toby tinha vetado a ideia. Ele não queria que ninguém
soubesse de sua existência. Então por que a tinha mandado para
mim? Comprimindo todos os músculos da barriga e do rosto, me
forcei a dar atenção à única coisa importante.
— O que aconteceu com Toby? — repeti, com a voz baixa e
gutural.
O vento bateu nos cabelos de Eve. Ela abriu a boca rosada.
— Levaram ele embora.
O ar abandonou meus pulmões, meus ouvidos zumbiram, meu
senso de gravidade foi distorcido.
— Quem? — perguntei. — Quem o levou?
— Eu não sei — disse Eve, abraçando a si mesma em um gesto
protetor. — Toby me encontrou uns meses atrás, e me disse quem
ele era. Quem eu era. Estávamos indo bem, só nós dois, mas na
semana passada alguma coisa aconteceu. Toby viu alguém.
— Quem? — perguntei de novo, a palavra arrancada de mim.
— Não sei. Toby não quis me contar. Ele só disse que precisava ir
embora.
Toby faz essas coisas, pensei, com os olhos ardendo. Ele vai
embora.
— Você disse que alguém o levou.
— Estou chegando lá — disse Eve, ríspida. — Toby não queria
me levar, mas não lhe dei escolha. Eu disse que, se ele tentasse me
deixar para trás, eu falaria com a imprensa.
Apesar de uma foto vazada e alguns rumores de tabloide,
nenhum veículo de mídia tinha sido capaz de sustentar as
afirmações de que Toby estava vivo.
— Você o chantageou para te levar junto?
— Se você estivesse no meu lugar — respondeu Eve, algo quase
suplicante em seu tom —, teria feito o mesmo.
Ela baixou os olhos, os cílios impossivelmente longos projetando
sombras no rosto.
— Toby e eu desaparecemos, mas alguém estava na nossa cola,
nos caçando que nem um predador. Toby não queria me dizer de
quem estávamos fugindo, mas, na segunda-feira, disse que
precisávamos nos separar. O plano era nos encontrarmos três dias
depois. Eu esperei. Fiquei escondida, como ele tinha me ensinado.
Ontem, apareci no lugar que combinamos.
Ela sacudiu a cabeça, os olhos verdes brilhando.
— Toby, não — concluiu.
— Talvez ele tenha repensado — eu disse, querendo que fosse
verdade. — Talvez...
— Não — insistiu Eve, desesperada. — Toby nunca mentiu para
mim. Ele nunca quebrou uma promessa. Ele não... — se
interrompeu. — Alguém o levou. Você não acredita em mim? Eu
posso provar.
Eve afastou o cabelo do rosto. O sangue seco que eu tinha visto
era só a ponta do iceberg. A pele em volta do corte era um
hematoma repulsivo, uma mistura de preto e roxo.
— Alguém te bateu.
Até Oren falar, eu tinha quase esquecido que ele estava ali.
— Com a coronha de uma arma, eu diria — continuou ele.
Eve nem olhou para ele. O olhar verde e brilhante continuou firme
em mim.
— Toby não apareceu no nosso ponto de encontro, mas outra
pessoa apareceu — disse ela, deixando o cabelo cobrir o
machucado. — A pessoa me agarrou por trás e me disse que, se eu
soubesse o que era bom para mim, eu esqueceria Toby Hawthorne.
— A pessoa usou o nome dele? — consegui formular a pergunta.
Eve fez que sim.
— É a última coisa de que me lembro. Me deram uma pancada, e
eu desmaiei. Quando acordei, vi que tinham roubado tudo que eu
tinha. Até reviraram meus bolsos.
Sua voz tremeu de leve, e então ela se controlou.
— Toby e eu tínhamos escondido uma mala para emergências:
uma muda de roupa para cada um, algum dinheiro.
Eu me perguntei se ela sabia com quanta força ela estava
segurando a mala.
— Eu comprei uma passagem de ônibus e vim para cá —
continuou. — Até você.
Você tem uma filha, eu tinha dito a Toby quando soube de Eve.
Eu tenho duas, ele respondera. Engolindo a mistura de emoções
dentro de mim, eu me virei para Oren.
— Deveríamos chamar a polícia.
— Não — disse Eve, e pegou meu braço. — Você não pode dizer
que um homem morto desapareceu, e Toby não me disse para ir à
polícia. Ele me disse para vir até você.
Senti a garganta apertar.
— Alguém te atacou. Isso podemos denunciar.
— E quem — retrucou Eve — vai acreditar em uma menina como
eu?
Eu tinha crescido pobre. Eu tinha sido assim: uma garota de quem
ninguém esperava muito, tratada como se valesse menos, porque
tinha menos.
— Envolver a polícia pode nos deixar de mãos atadas — disse
Oren. — Deveríamos nos preparar para um pedido de resgate. Caso
não recebamos um pedido assim...
Eu nem queria pensar no significado da pessoa que tinha levado
Toby não estar atrás de dinheiro.
— Se Eve contar onde ela deveria encontrar Toby, você pode
mandar uma equipe para reconhecimento? — perguntei a Oren.
— Imediatamente — disse ele.
Ele se virou abruptamente para algo, ou alguém, atrás de mim.
Ouvi um som vindo daquela direção, um som engasgado e quase
animalesco, e eu soube, mesmo antes de me virar, o que veria ali.
Quem veria ali.
— Emily?
Grayson Hawthorne tinha visto um fantasma.
CAPÍTULO 7

Grayson Davenport Hawthorne era uma pessoa que valorizava


controle — de toda situação, de toda emoção. Quando avancei um
passo, ele recuou.
— Grayson — falei, baixinho.
Não havia palavras para a forma como ele estava olhando para
Eve, como se ela fosse um sonho, toda esperança e todo tormento,
tudo.
Os olhos cinza-prateados dele se fecharam.
— Avery, você deveria...
Grayson se forçou a respirar. Ele se endireitou e arrumou a
postura.
— Não é seguro ficar perto de mim agora, Avery.
Levei um momento para perceber que ele achava que estava
alucinando. De novo. Quebrando. De novo.
Me diga de novo que não estou quebrado.
Eliminando o espaço entre nós, peguei Grayson pelos ombros.
— Ei — eu disse suavemente. — Ei. Olhe para mim, Gray.
Aqueles olhos claros se abriram.
— Não é Emily — falei, olhando nos olhos dele, e não deixei que
ele desviasse o olhar. — E você não está alucinando.
Grayson olhou por cima do meu ombro.
— Eu vejo...
— Eu sei — eu disse, levando a mão ao rosto dele e o forçando a
me olhar. — Ela é de verdade. Seu nome é Eve.
Eu não sabia se ele estava me ouvindo, muito menos se estava
processando o que eu dizia.
— É a filha de Toby — continuei.
— Ela parece...
— Eu sei — eu disse, a mão ainda no rosto dele. — A mãe de
Emily era mãe biológica de Toby, lembra?
Toby tinha sido adotado pela família Hawthorne em segredo,
ainda recém-nascido. Alice Hawthorne tinha fingido uma gravidez
para esconder a adoção, fazendo-o passar por seu próprio filho.
— Isso torna Eve uma Laughlin de sangue — continuei. — É a
semelhança familiar.
— Eu pensei...
Grayson se calou. Um Hawthorne não admitia fraqueza.
— Você sabia — disse Grayson, baixando os olhos para mim, e
finalmente afastei a mão de seu rosto. — Você não está surpresa de
vê-la, Avery. Você sabia.
Eu ouvi o que ele não estava dizendo: aquela noite na adega... eu
sabia.
— Toby queria que a existência dela ficasse em segredo — falei,
dizendo para mim mesma que era por isso que eu não havia
contado a ele. — Ele não queria essa vida para Eve.
— Quem mais sabe? — insistiu Grayson naquele tom de herdeiro,
o que fazia perguntas soarem obrigatórias, como se ele estivesse
fazendo um favor à pessoa que estava questionando ao pedir em
vez de arrancar a resposta da cabeça dela.
— Só Jameson — respondi.
Depois de um momento demorado e torturante, Grayson olhou
para trás de mim, para Eve, a emoção evidente em cada músculo
do seu maxilar. Eu não sabia quanto de seu tormento era porque ele
achava que eu o considerava fraco e quanto era por causa dela. De
qualquer forma, Grayson não se escondeu da dor. Ele andou até
Eve, deixando que viesse, como um homem sem camisa saindo
para a chuva congelante.
Eve o encarou. Ela deveria ter sentido a intensidade do momento
— dele —, mas se afastou disso.
— Olha, eu não sei o que está acontecendo aí — disse ela, com
um gesto para o rosto de Grayson. — Mas foi uma semana muito
cansativa. Eu estou imunda. Eu estou com medo — disse, com a
voz falha, e se virou para mim. — Então você vai me convidar para
entrar e deixar seus capangas descobrirem o que aconteceu com
Toby, ou vamos ficar parados aqui?
Grayson piscou, como se estivesse vendo ela — Eve — pela
primeira vez.
— Você está ferida.
Ela olhou para ele de novo.
— Eu estou puta.
Eu engoli em seco. Eve estava certa. Cada segundo que
passávamos lá fora era um segundo em que Oren e sua equipe
estavam cuidando de mim em vez de encontrar Toby.
— Vamos — eu disse, as palavras arranhando minha garganta
que nem pedras. — Vamos voltar para a Casa.
Oren abriu a porta de trás da SUV. Eve entrou e, quando eu a
segui, me perguntei se era assim que Pandora se sentira ao abrir
aquela caixa.
CAPÍTULO 8

Eu deixei Eve usar meu chuveiro. Dado o número de banheiros na


Casa Hawthorne, reconheci a decisão pelo que era: eu queria ficar
de olho nela.
Só esqueci de considerar o fato de que Jameson ainda estava na
minha cama. Eve não pareceu notá-lo no caminho para o banheiro,
mas Grayson, sim — e Jameson definitivamente notou Eve. No
momento em que a porta do banheiro se fechou atrás dela, ele se
levantou da cama.
Sem camisa.
— Me conte tudo, Herdeira.
Eu busquei na expressão dele alguma pista do que ele estava
sentindo, mas Jameson Hawthorne era o jogador de pôquer perfeito.
Ver Eve tinha que ter provocado alguma emoção nele. O fato de que
escondia aquilo de mim me atingiu com tanta força quanto o fato de
Grayson não conseguir desviar os olhos da porta do banheiro.
— Não sei por onde começar — falei.
Eu não conseguia dizer o que precisava: foi Toby.
Jameson foi até mim a passos largos.
— Me diga do que precisa, Herdeira.
Grayson finalmente desviou o olhar da porta do banheiro. Ele se
abaixou, pegou uma regata do chão e a jogou na cara do irmão.
— Se veste.
De alguma forma, o olhar comicamente irritado que Jameson
lançou para Grayson era exatamente do que eu precisava. Eu contei
aos dois tudo que Eve tinha me dito.
— Eve não conseguiu dar muitos detalhes para Oren —
completei. — Ele está juntando uma equipe para analisar o lugar do
sequestro, mas...
— Eles provavelmente não vão encontrar muita coisa a essa
altura — concluiu Grayson.
— Que conveniente — comentou Jameson. — O que foi? — disse
quando Grayson estreitou os olhos gelados. — Eu só estou dizendo
que tudo que temos agora é a história de uma desconhecida que
apareceu na nossa porta e nos convenceu a deixá-la entrar.
Ele estava certo. Nós não conhecíamos Eve.
— Você não acredita nela?
Grayson normalmente não era do tipo que fazia perguntas quando
as respostas já estavam aparentes, então sua fala veio com um
fundo de hostilidade.
— O que posso dizer? — disse Jameson, e deu de ombros de
novo. — Eu sou um canalha desconfiado.
E Eve é a cara de Emily, pensei. Jameson não estava imune
àquilo. Nem de longe.
— Eu não acho que ela está mentindo — falei.
O machucado.
— Você não acharia mesmo — me disse Jameson, com
suavidade. — E nem — disse a Grayson com um tom bem diferente
— você.
Era uma clara referência a Emily. Ela tinha enganado os dois,
manipulado os dois, mas Grayson a tinha amado até o fim.
— Você sabia — disse Grayson, andando até Jameson. — Você
sabia que ela estava por aí, Jamie. Você sabia que Toby tinha uma
filha, e não disse uma palavra.
— Você vai mesmo me falar de segredos, Gray?
Do que ele está falando? Eu nunca tinha dito uma palavra a
Jameson a respeito das coisas que o irmão havia confessado para
mim na calada da noite.
— No mínimo — enunciou Grayson, em voz baixa e mortal —,
devemos nossa proteção a essa garota.
— Por causa da aparência dela? — disse Jameson, jogando o
desafio.
— Porque ela é filha de Toby — respondeu Grayson —, e isso a
torna uma de nós.
Toquei meu broche. Eve é uma Hawthorne. Pensar naquilo não
deveria ter doído. Não era novidade. Eve era filha de Toby, mas já
estava claro para mim que Grayson não a via como uma prima. Ela
não é parente de sangue deles. Eles não cresceram juntos. Então,
quando Grayson disse que ela era uma deles, que eles deviam
proteção a ela, tudo em que consegui pensar foi que ele já tinha dito
palavras parecidas sobre mim.
Est unus ex nobis. Nos defendat eius.
— Podemos, por favor, nos concentrar em Toby? — falei.
Grayson deve ter percebido algo no meu tom, porque recuou.
Cedeu.
Eu me virei para Jameson.
— Finja por um segundo que você confia em Eve. Finja que ela
não se parece em nada com Emily. Finja que ela está falando a
verdade. Além da busca de Oren, qual nosso próximo passo?
Era aquilo que Jameson e eu fazíamos: perguntas e respostas,
ver o que outras pessoas deixavam passar. Se ele não pudesse
fazer aquilo comigo, se ver Eve o tivesse abalado tanto assim...
— Motivo — finalmente respondeu. — Se queremos descobrir
quem levou Toby, precisamos saber por que ele foi levado.
Logicamente, eu conseguia pensar em três possibilidades gerais.
— Querem algo dele. Querem usá-lo como barganha — falei, e
engoli em seco. — Ou querem feri-lo.
Sabem o nome dele. De alguma maneira, souberam como
encontrá-lo.
— Tem que haver algo que estamos deixando passar — eu disse.
Eu precisava que fosse um quebra-cabeça. Eu precisava que
houvesse pistas.
— Você mencionou que Eve disse que a pessoa que a atacou
revirou os bolsos dela. — Jameson tinha um jeito de brincar com os
fatos de uma situação, girá-los como uma moeda sendo passada de
um dedo para outro. — Então o que estavam procurando?
O que Toby tinha que alguém poderia querer o suficiente para
raptá-lo? O que poderia valer esse tipo de risco?
O que cabe em um bolso? Meu coração quase explodiu no peito.
Que mistério Jameson e eu tínhamos passado os últimos nove
meses tentando resolver?
— O disco. — Suspirei.
A porta do banheiro se abriu. Eve estava ali, enrolada em uma
toalha branca, o cabelo molhado escorrendo pelo pescoço. Estava
nua, exceto por um medalhão no pescoço. Grayson fez muito
esforço para não olhar para ela.
Jameson olhou para mim.
— Você precisa de alguma coisa? — perguntei a Eve.
O cabelo dela era mais escuro quando molhado, menos notável.
Sem isso como distração, os olhos pareciam maiores, as maçãs do
rosto, mais pronunciadas.
— Curativo — respondeu Eve, sem demonstrar constrangimento
por estar ali de toalha. — Meu corte abriu no chuveiro.
— Eu te ajudo — ofereci antes que Grayson o fizesse.
Quanto mais rápido eu cuidasse de Eve, mais rápido eu poderia
voltar para Jameson e para a possiblidade que tinha acabado de
criar.
E se a pessoa que levou Toby estivesse atrás do disco? Com a
cabeça a mil, levei Eve de volta ao banheiro.
— Que disco? — perguntou ela por trás de mim.
Eu puxei um kit de primeiros socorros e lhe entreguei. Ela o pegou
de mim, os dedos roçando nos meus.
— Quando eu entrei no quarto, vocês estavam falando do que
aconteceu com Toby — insistiu, teimosa. — Você mencionou um
disco.
Eu me perguntei o que mais ela teria ouvido, e se era de
propósito. Talvez Jameson estivesse certo. Talvez não pudéssemos
confiar nela.
— Pode não ser nada — eu disse, afastando a pergunta.
— O que pode não ser nada? — insistiu Eve.
Como não respondi, ela soltou outra pergunta feito uma bomba:
— Quem é Emily?
Eu engoli em seco.
— Uma garota.
Não era mentira, mas estava tão longe da verdade que eu não
poderia deixar por isso mesmo.
— Ela morreu. Vocês duas... são parentes.
Eve escolheu um curativo e afastou o cabelo molhado do rosto.
Eu quase ofereci para ajudá-la, mas algo me impediu.
— Toby me disse que era adotado — disse ela, colocando o
curativo no lugar. — Mas ele não quis me dizer nada a respeito da
família biológica... ou dos Hawthorne.
Ela esperou, como se quisesse que eu lhe dissesse algo. Como
não fiz isso, ela baixou o olhar.
— Eu sei que você não confia em mim — disse ela. — Eu
também não confiaria. Você tem tudo e eu não tenho nada, e eu sei
o que isso parece.
Eu também. Por experiência, eu também.
— Eu não queria vir até aqui — continuou. — Eu não queria pedir
nada a você... ou a eles.
A voz dela falhou.
— Mas eu quero Toby de volta. Eu quero meu pai de volta, Avery.
Ela fixou o olhar esmeralda no meu, irradiando uma intensidade
que quase se assemelhava à dos Hawthorne.
— E eu vou fazer qualquer coisa, qualquer coisa, para conseguir
o que eu quero, mesmo que seja te implorar por ajuda. Então, por
favor, Avery, se você sabe de alguma coisa que possa nos ajudar a
encontrar Toby, só me diga.
CAPÍTULO 9

Eu não contei a Eve sobre o disco. Eu justifiquei para mim mesma


que, até onde eu sabia, não havia nada para contar. Nem todo
mistério era um quebra-cabeça elaborado. A resposta nem sempre
era elegante e cuidadosamente desenhada. E mesmo que o
sequestro de Toby tivesse a ver com o disco, onde isso nos
deixava?
Sentindo que eu devia algo a Eve, pedi à sra. Laughlin para
preparar um quarto para ela. Lágrimas rolaram no momento em que
a velha mulher viu sua bisneta. Não havia como esconder quem Eve
era.
Não havia como esconder que ela pertencia àquele lugar.

Horas mais tarde, eu estava sozinha no escritório de Tobias


Hawthorne. Eu disse a mim mesma que estava fazendo a coisa
certa, dando espaço a Jameson e Grayson. Ter visto Eve havia
despertado um trauma. Eles precisavam processar o acontecido, e
eu precisava pensar.
Abri o compartimento secreto da escrivaninha e peguei a pasta
que Jameson e eu guardávamos ali. Abrindo-a, encarei o desenho
que eu tinha feito: um pequeno disco, do tamanho de uma moeda
de 25 centavos, gravado com círculos concêntricos. Da última vez
que eu tinha visto aquele pedaço de metal, Toby o arrancara das
minhas mãos. Eu tinha perguntado a ele o que era. Ele não havia
respondido. Tudo o que eu sabia era o que lera em uma mensagem
que Toby um dia tinha escrito para minha mãe: que, se um dia ela
precisasse de qualquer coisa, ela deveria ir até Jackson. Você sabe
o que deixei lá, Toby havia escrito. Você sabe o que vale.
Eu encarei o desenho. Você sabe o que vale. Vindo do filho de um
bilionário, era quase inimaginável. Nos meses desde que Toby havia
partido, Jameson e eu tínhamos examinado livros sobre arte e
civilizações antigas, sobre moedas raras, tesouros perdidos e
grandes descobertas arqueológicas. Até tínhamos pesquisado
organizações como a Maçonaria e a Ordem dos Templários.
Espalhando a pesquisa na mesa, busquei algo que tivéssemos
deixado passar, mas não havia registro do disco em lugar nenhum,
e a busca global de Jameson nas casas de férias dos Hawthorne
também não tinha resultado em nada significativo.
— Quem sabe do disco? — me deixei pensar em voz alta. —
Quem sabia o que valia e que Toby estava com ele?
Quem sequer sabia com certeza que Toby estava vivo e onde
encontrá-lo?
Tudo que eu tinha eram perguntas. Parecia errado Jameson não
estar ali fazendo-as comigo.
Sem querer, enfiei a mão mais fundo no compartimento escondido
para pegar outro arquivo, aquele que o bilionário Tobias Hawthorne
tinha montado sobre mim. O velho sabia de Eve? Eu não conseguia
ignorar a sensação de que, se Tobias Hawthorne soubesse da filha
de Toby, eu não estaria ali. O bilionário tinha me escolhido em
grande parte pelo efeito que aquilo teria na sua família. Ele tinha me
usado para forçar os meninos a confrontar suas questões, para
trazer Toby de volta ao tabuleiro.
Deveria ter sido ela.
Um estalo soou atrás de mim. Eu me virei e vi Xander saindo da
parede. Só de olhar a cara dele, eu sabia que meu BFFH tinha visto
nossa hóspede.
— Eu venho em paz — anunciou seriamente. — Eu venho com
torta.
— Ele vem comigo — disse Max, que entrou no quarto atrás de
Xander. — Que lerda de baralho está acontecendo, Avery?
Xander colocou a torta na escrivaninha.
— Eu trouxe três garfos.
Entendi o significado do tom pesado dele.
— Você está chateado.
— De dividir essa torta?
Desviei os olhos.
— Por causa de Eve.
— Você sabia — me disse Xander, com mais mágoa do que
acusação.
Eu me forcei a olhar nos olhos dele.
— Sabia.
— Todas aquelas vezes em que jogamos Golfe de Biscoito juntos
e você não achou que valia a pena mencionar? — disse Xander,
cortando um pedaço da torta, que sacudiu. — Você pode não ter
notado, mas eu sou excelente em guardar segredos! Minha boca é
um túmulo.
Max fez um gesto de desdém..
— A expressão não é “eu sou um túmulo”?
— Eu sou mais uma montanha-russa dentro de um labirinto
enterrado em uma pintura de M.C. Escher que está em outra
montanha-russa — disse Xander, e deu de ombros. — Mas minha
boca é um túmulo. Me pergunte sobre todos os segredos que estou
guardando.
— Que segredos você está guardando? — perguntou Max,
obediente.
— Eu não posso te contar!
Xander enfiou o garfo de forma triunfante na torta.
— Então, se eu tivesse dito que Toby tinha uma filha por aí
exatamente igual a Emily Laughlin, você não teria contado a
Rebecca? — falei, me referindo à irmã de Emily e amiga mais antiga
de Xander.
— Eu definitivamente, cem por cento, totalmente... teria contado a
Rebecca — admitiu Xander. — Em retrospecto, que bom que não
me contou. Excelente decisão, mostra um critério firme.
Meu celular tocou. Olhei para o aparelho e então de volta para
Xander e Max.
— É Oren.
Com o coração martelando até os ouvidos, atendi.
— O que sabemos? — perguntei.
— Não muito. Ainda não. Eu mandei uma equipe para o lugar
onde Eve diz que deveria encontrar Toby. Não havia evidência física
de luta, mas, com um pouco de esforço, encontramos o registro de
uma ligação para a emergência feita horas antes do momento em
que Eve diz que apareceu.
Minha mão segurou o telefone com mais força.
— Que tipo de ligação?
— Denúncia de tiroteio — disse Oren, sem medir palavras. —
Quando uma viatura chegou, a cena já estava limpa. Atribuíram a
fogos de artifício ou ao escapamento de um carro.
— Quem ligou para a emergência? — perguntei. — Alguém viu
alguma coisa?
— Minha equipe está trabalhando nisso — disse Oren, e fez uma
pausa. — Enquanto isso, eu mandei um dos meus homens seguir
Eve enquanto ela estiver na Casa.
— Você acha que ela é uma ameaça?
Por impulso, minha mão foi, de novo, para o broche Hawthorne.
— Meu trabalho é tratar todo mundo como ameaça — respondeu
ele. — Nesse momento, o que eu preciso é que você me prometa
que vai ficar quieta e não vai fazer nada.
Olhei para a pesquisa espalhada pela mesa.
— Minha equipe e eu vamos descobrir tudo que pudermos o mais
rapidamente possível, Avery — insistiu ele. — Toby pode ser o alvo,
mas também pode não ser.
Eu franzi o cenho.
— O que isso quer dizer?
— Nos dê vinte e quatro horas e eu te digo.
Vinte e quatro horas? Eu deveria ficar ali sentada sem fazer nada
por um dia inteiro? Encerrei a ligação.
— Oren acha que Eve é uma ameaça? — perguntou Max em um
sussurro dramático.
Xander fez uma careta.
— Nota mental: cancelar a festa de boas-vindas.
Pensei em Oren me dizendo para deixá-lo cuidar disso, então em
Eve jurando que tudo que queria era encontrar Toby.
— Não — eu disse a Xander. — Não cancele nada. Eu quero
conhecer Eve melhor.
Eu precisava saber se podia confiar nela, porque, se pudesse,
talvez ela soubesse de algo que eu não sabia.
— Está pensando em alguma coisa específica? — perguntei.
Xander juntou as mãos.
— Eu acredito que nossa melhor opção para examinar a verdade
sobre o misterioso personagem Eve seja... Escadas e Serpentes.
CAPÍTULO 10

A versão Hawthorne de Escadas e Serpentes não era um jogo de


tabuleiro. Xander me prometeu que explicaria melhor quando Eve
concordasse em jogar. Concentrada nessa tarefa, fui até a ala
Versalhes. No alto da escada leste, encontrei Grayson parado como
uma estátua na entrada da ala, vestido com um terno completo
prateado, o cabelo loiro molhado da piscina.
Uma festa na piscina. A memória me acertou e não queria largar.
Grayson está habilmente desviando de todas as perguntas
financeiras que me fazem. Eu olho para a piscina. Uma criança
pequena está perigosamente equilibrada na borda. Ela se inclina
para a frente, cai e não volta. Antes que eu possa me mexer ou
mesmo gritar, Grayson sai correndo.
Com um único movimento, ele mergulha na piscina, totalmente
vestido.
— Cadê Jameson? — perguntou Grayson, me trazendo de volta
para o presente.
— Provavelmente em algum lugar onde não deveria estar —
respondi honestamente —, tomando péssimas decisões e jogando a
cautela para os infernos.
Eu não perguntei a Grayson o que ele estava fazendo em frente à
ala Versalhes.
— Eu vi que Oren botou um homem atrás de Eve.
Grayson quase conseguiu fingir que estava falando sobre o
tempo, mas um comentário nunca era só um comentário quando
vinha dele.
— É o trabalho de Oren garantir que estou segura.
Eu não acrescentei que, em outras circunstâncias, Grayson
consideraria aquele o trabalho dele também.
Est unus ex nobis. Nos defendat eius.
— Oren não deveria estar preocupado comigo — disse Eve,
surgindo no corredor, de cabelo seco e caindo em ondas suaves. —
Sua equipe de segurança deveria estar totalmente concentrada em
Toby.
Eve deixou que seu olhar verde vibrante fosse de mim para
Grayson, e me perguntei se ela reconhecia o efeito que tinha nele.
— O que eu preciso fazer para te convencer que não sou uma
ameaça? — perguntou.
Ela estava olhando para Grayson, mas fui eu quem respondi:
— Que tal um jogo?

— Escadas e Serpentes dos Hawthorne — vociferou Xander, parado


em frente a uma pilha de travesseiros, escadas de corda, ganchos
de escalada, ventosas e cordas de nylon. — As regras são bem
simples.
A lista de coisas complicadas que Xander Hawthorne considerava
serem “bem simples” era longa.
— A Casa Hawthorne tem três quedas, equivalentes às
Serpentes, entradas para passagens secretas que envolvem, vamos
dizer assim, um salto — continuou Xander.
Eu sorri. Já tinha encontrado todas as três.
— Tem escorregadores nas paredes da sua mansão? —
desdenhou Max. — Ricaços do cadete.
Xander não se ofendeu.
— Algumas quedas são mais vantajosas que outras. Se algum
jogador encontrar uma queda antes de você, ela é congelada por
três minutos, então todo mundo precisa de um desses — disse
Xander ao pegar um travesseiro e o sacudir de forma suave, mas,
de alguma maneira, ameaçadora. — Uma batalha precisa
acontecer.
— A versão de Escadas e Serpentes dos Hawthorne inclui briga
de travesseiro? — perguntou Max em um tom que me fez pensar
que ela estava imaginando todos os quatro irmãos Hawthorne
atirando travesseiros uns nos outros, possivelmente sem camisa.
— Guerra de travesseiro — corrigiu Xander. — Quando você
conquistar sua queda e chegar ao térreo, você sai da Casa e então
começa uma corrida de quem escala até o teto pelo lado de fora.
Eu examinei o equipamento de escalada aos nossos pés.
— Podemos escolher uma escada?
— Não é simplesmente — corrigiu Xander austeramente —
escolher uma escada.
Grayson quebrou o silêncio que tinha adotado no momento em
que Eve havia saído para o corredor:
— Nosso avô gostava de dizer que qualquer escolha que vale
alguma coisa tem um preço.
Eve o examinou.
— E o preço de equipamento de escalada é...
Grayson respondeu ao olhar inquisidor dela com um todo seu.
— Um segredo.
Xander elaborou.
— Cada jogador confessa um segredo. A pessoa com o melhor
segredo pode escolher o equipamento de escalada primeiro, e por
aí vai. A pessoa com o segredo menos impressionante fica por
último.
Eu estava começando a ver porque Xander tinha escolhido aquele
jogo.
— Agora — continuou, esfregando as mãos. — Qual alma
corajosa quer ir primeiro?
Eu olhei para Eve, mas Grayson interveio.
— Eu vou.
Ele fixou seus olhos prateados à frente. Eu não sabia o que
esperar, mas definitivamente não era ele dizendo, sem nenhuma
entonação que fosse:
— Eu beijei uma garota em Harvard.
Ele... não, eu não ia concluir o pensamento. O que Grayson
Hawthorne fazia com a boca não era problema meu.
— Eu fiz uma tatuagem — ofereceu Max, com um sorriso. — É
bem nerd e em um lugar que não vou revelar. Meus pais não podem
descobrir nunca.
— Me conte mais — disse Xander — dessa tatuagem nerd.
Grayson arqueou uma sobrancelha para o irmão e eu tentei
pensar em algo que faria Eve sentir que precisava se abrir.
— Às vezes — eu disse, baixo — sinto que Tobias Hawthorne
cometeu um erro.
Talvez isso não fosse um segredo. Talvez fosse óbvio. Mas a
parte seguinte era mais difícil de dizer.
— Que ele deveria ter escolhido outra pessoa.
Eve me encarou.
— O velho não cometia erros — disse Grayson com aquele tom
que nos desafiava a discordar, e recomendava fortemente que não o
fizesse.
— Minha vez — disse Xander, e levantou a mão. — Eu descobri
quem é meu pai.
— É o quê?
Grayson virou a cabeça para o irmão. Skye Hawthorne tinha
quatro filhos, cada um de um pai diferente, nenhum dos quais ela
tinha identificado. Nash e Grayson tinham descoberto os pais deles
no ano anterior. Eu sabia que Xander estava procurando o dele.
— Eu não sei se ele sabe de mim — disse Xander, apressado. —
Eu não fiz contato. Não tenho certeza se vou. E, pelas regras
sagradas de Escadas e Serpentes, nenhum de vocês nunca pode
mencionar isso de novo a menos que eu mencione antes. Eve?
Com o restante de nós ainda concentrado em Xander, Eve se
inclinou e pegou um gancho de escalada. Quando eu me virei para
olhá-la, ela estava passando um dedo pela borda.
— Quase vinte e um anos atrás, minha mãe ficou bêbada e traiu o
marido, e eu fui o resultado.
Ela não olhou nos olhos de ninguém.
— O marido dela sabia que eu não era dele, mas eles seguiram
casados. Eu costumava pensar que se eu fosse boa o suficiente...
esperta o suficiente, doce o suficiente, algo o suficiente... o homem
que todos fingíamos que era o meu pai pararia de me culpar por ter
nascido.
Ela jogou o gancho de volta no chão.
— A pior parte era que minha mãe me culpava também.
Grayson se inclinou na direção dela. Eu nem tinha certeza se ele
sabia que estava fazendo isso.
— Conforme fiquei mais velha — continuou Eve, sua voz baixa,
mas áspera —, percebi que não importava quão perfeita eu fosse.
Eu nunca seria boa o suficiente, porque eles não queriam que eu
fosse perfeita ou extraordinária. Eles queriam que eu fosse invisível.
Qualquer emoção que Eve estivesse sentindo estava escondida
demais para ser vista.
— E isso é a única coisa que eu nunca serei — concluiu.
Silêncio.
— E seus irmãos? — perguntei.
Até então, eu tinha estado tão concentrada na semelhança entre
Eve e Emily, no fato de que ela era filha de Toby, que não tinha
pensado nos outros membros da sua família ou no que tinham feito.
— Meios-irmãos — disse Eve, absolutamente sem entonação.
Tecnicamente, os irmãos Hawthorne eram meios-irmãos.
Tecnicamente, Libby e eu também. Mas não havia como confundir o
tom de Eve: significava algo diferente para ela.
— Eli e Mellie vieram para cá com desculpas falsas — eu disse.
— Por sua causa.
— Eli e Mellie nunca fizeram nada por mim — respondeu Eve, sua
voz rouca, sua cabeça erguida. — No Natal, quando eu tinha cinco
anos, e eles tinham presentes sob a árvore e eu não? Nas reuniões
de família para as quais todo mundo ia, menos eu? Toda vez que eu
ficava de castigo por existir um pouco alto demais? Toda vez que eu
precisava implorar por uma carona para casa porque ninguém se
dava ao trabalho de me buscar? — disse ela, e baixou os olhos. —
Se meus irmãos vieram para a Casa Hawthorne, com certeza não
foi por minha causa. Eu não troquei uma palavra com nenhum deles
em dois anos.
O olhar esmeralda brilhante voltou a mim.
— Isso é pessoal o suficiente para você? — perguntei.
Senti uma pontada cortante de culpa. Eu me lembrei de como
tinha sido chegar na Casa Hawthorne como alguém de fora, e
pensei de repente na minha mãe e na forma como ela teria recebido
a filha de Toby de braços abertos.
E no que ela diria se pudesse me ver interrogando-a agora.
Votos foram computados. Segredos, pontuados. Equipamento,
escolhido.
E então era hora da corrida.
CAPÍTULO 11

Aqui está o que eu descobri a respeito de Eve durante o jogo de


Escadas e Serpentes: ela era competitiva, não tinha medo de altura,
tinha alta tolerância a dor e definitivamente reconhecia o efeito que
causava em Grayson.
Ela se encaixava ali, na Casa Hawthorne, com os Hawthorne.
Era isso que estava na minha cabeça quando agarrei a borda do
telhado. Uma mão baixou e se fechou no meu pulso.
— Você não é a primeira — disse Jameson, em um tom que
comunicava claramente que ele sabia como eu me sentia sobre
isso. — Mas também não é a última.
Essa honra acabaria com Xander e Max, que tinham passado
tempo demais em uma briga de travesseiros. Eu olhei para além de
Jameson, para a parte em que o telhado ficava reto.
E vi Grayson e Eve.
— Em uma escala de chato até murcho — brincou Jameson —,
como ele está?
Deus livre Jameson Hawthorne de ser pego abertamente
preocupado com o irmão.
— Honestamente? — perguntei e mordi o lábio, mantendo-o entre
meus dentes por tempo demais, e então baixei a voz. — Eu estou
preocupada. Grayson não está bem, Jameson. Eu acho que seu
irmão não está bem há muito tempo.
Jameson andou até a borda do telhado — bem na borda — e
olhou para a enorme propriedade.
— Os Hawthorne não podem, como regra geral, estar de qualquer
outro jeito.
Ele também estava sofrendo, e, quando Jameson Hawthorne
sofria, ele corria riscos. Eu o conhecia e sabia que só existia uma
forma de fazê-lo confessar a dor e expurgar o veneno.
— Taiti — eu disse.
Era um código que eu não usava à toa. Se Jameson ou eu
disséssemos Taiti, o outro precisava ficar metaforicamente nu.
— Seu aniversário foi o segundo aniversário da morte de Emily —
disse Jameson, seus ombros e costas tensos por baixo da camisa.
— Quase consegui não pensar nisso, mas agora não seria o pior
momento para você me dizer que eu não a matei.
Eu fui até ele, bem na borda do telhado, ignorando a queda de
dezoito metros.
— O que aconteceu com Emily não foi sua culpa.
Jameson virou a cabeça para mim.
— Também não seria o pior momento para me dizer que não está
com ciúmes de Eve estar tão perto de Grayson.
Eu queria saber o que ele estava sentido. Aquilo era parte do
sentimento, parte do efeito de pensar em Emily.
— Não estou com ciúmes — eu disse.
Jameson me olhou bem nos olhos.
— Taiti.
Ele tinha me mostrado o dele
— Ok — eu disse, rouca. — Talvez eu esteja, mas não é só por
causa de Grayson. Eve é a filha de Toby. Eu quis ser. Achei que era.
Mas não sou, e ela é, e agora, de repente, ela está aqui, conectada
com esse lugar, com todos vocês... e não, eu não gosto disso, e me
sinto mesquinha por me sentir assim.
Eu me afastei da borda.
— Mas vou contar a ela sobre o disco — concluí.
Quer eu pudesse ou não confiar em Eve, eu confiava que nós
queríamos a mesma coisa. Eu entendia melhor como devia ter sido
para ela conhecer Toby, ser desejada.
Antes que Jameson pudesse questionar minha decisão sobre o
disco, Max se arrastou até o telhado e desabou.
— Pooooooonte que partiu — falou, alongando a palavra. — Eu
nunca mais faço isso.
Xander subiu atrás dela.
— Que tal amanhã? Na mesma hora?
A aparição deles fez Grayson e Eve virem na nossa direção.
— E aí? — disse Eve, a expressão manchada de vulnerabilidade,
a voz dura. — Passei no seu teste?
Em resposta, puxei o desenho do disco do bolso e o entreguei a
Eve.
— Da última vez que eu vi Toby — eu disse lentamente —, ele
pegou esse disco de mim. Nós não sabemos o que é, mas sabemos
que vale uma fortuna.
Eve encarou o desenho e voltou a me olhar.
— Como você sabe disso?
— Ele o deixou para minha mãe. Tinha uma carta.
Era o máximo que eu conseguia contar a ela.
— Ele já te contou alguma coisa a respeito disso? — perguntei. —
Você tem alguma ideia de onde ele guardou o disco?
— Não — disse Eve, e sacudiu a cabeça. — Mas se alguém levou
Toby para conseguir isso... — A respiração dela falhou. — O que
vão fazer se ele não entregar a eles?
E, pensei, enjoada, o que farão com ele quando encontrarem o
disco?
CAPÍTULO 12

Naquela noite, a única coisa que afastou meus pesadelos foi o


corpo de Jameson perto do meu. Sonhei com minha mãe, com Toby,
com fogo e ouro. Acordei com o som de gritos.
— Eu vou esganá-lo!
Havia um total de uma pessoa que conseguia irritar minha irmã.
Com Jameson começando a se mexer, saí da cama e fui até o
corredor.
— Outro chapéu de caubói? — chutei.
Havia dois meses que Nash vinha comprando chapéus de caubói
para Libby. Um arco-íris de cores e estilos. Ele gostava de deixá-los
em lugares que ela iria encontrar.
— Olhe isso! — exigiu Libby.
Ela levantou o chapéu. Era preto com uma caveira, e ossos em
strass no centro e spikes de metal na lateral.
— É a sua cara — eu disse a ela.
— É perfeito! — disse Libby, indignada.
— Aceite, Lib. Vocês são um casal.
— Nós não somos um casal — insistiu Libby. — Essa não é
minha vida, Ave. É a sua.
Ela baixou o olhar, e o cabelo, pintado de preto com pontas
multicoloridas, caiu na frente do rosto.
— E a experiência me ensinou que eu sou completamente
incompetente quando se trata de amor. Então — disse Libby,
jogando o chapéu de caubói na minha cara —, eu não estou
apaixonada por Nash Hawthorne. Nós não somos um casal. Nós
não estamos namorando. E ele definitivamente não está apaixonado
por mim.
— Avery — chamou Oren, anunciando sua presença.
Eu me virei para ele, o coração acelerado.
— O que foi? — perguntei. — Toby?
— Isso chegou com um mensageiro no meio da noite — disse
Oren, e me passou um envelope com meu nome escrito em uma
letra elegante. — Eu examinei, e não tem nenhum traço de veneno,
explosivos ou gravadores.
— É um pedido de resgate? — perguntei.
Se fosse um pedido de resgate, eu poderia ligar para Alisa, fazê-
la pagar.
Sem esperar por uma resposta, peguei o envelope de Oren. Era
pesado demais para ser só uma carta. Meus sentidos ficaram
aguçados, o mundo à minha volta entrou em câmera lenta, e eu o
abri.
Dentro, encontrei uma única folha de papel... e um conhecido
disco dourado.
Que raios? Ergui os olhos.
— Jameson!
Ele já estava vindo até mim. Nós estávamos errados. As palavras
morreram, presas na minha garganta. A pessoa que sequestrou
Toby não estava atrás do disco.
Eu o encarei, a cabeça a mil.
— Por que o sequestrador de Toby mandaria isso para você? —
perguntou Jameson. — Prova de vida?
— Prova de que estão com ele — corrigi a contragosto, porque
aquilo não era prova de vida. — E o fato de terem me mandado —
eu continuei, me empertigando. — Significa que a pessoa que levou
Toby não sabe o que o disco vale, ou...
— Ou não liga.
Jameson colocou uma mão no meu ombro.
Toby está bem. Ele precisa estar. Ele tem que estar. Com o disco
queimando na minha mão como um ferro quente, fechei o punho e
me forcei a ler a mensagem que o acompanhava. O papel era de
linho, caro. As letras tinham sido escritas em vermelho-sangue.

I G Ç
RE CHE
E DET

— É isso? — disse Jameson. — Não tem mais nada?


Examinei o envelope.
— Nada — falei, e toquei a tinta vermelha, sentindo o estômago
revirar. — Isso é tinta, não é?
Vermelho-sangue.
— Eu não sei — disse Jameson com intensidade —, mas eu sei o
que diz.
Encarei as letras espalhadas pela página.

I G Ç
RE CHE
E DET
I G DOR

— É um truque simples — explicou Jameson. — Um dos favoritos


do meu avô. Você decodifica a mensagem pegando uma sequência
de letras e recombinando-as nos espaços em branco. São três
letras nesse caso.
Com o coração martelando as costelas, eu tentei me concentrar.
Que três letras poderiam ir entre I e G ou RE e CHE?
Depois de alguns segundos, consegui enxergar. Lentamente, com
cuidado, meu cérebro chegou na resposta, letra por letra.
— V.I.N.
Respirei fundo. VIN. Completa, a mensagem era qualquer coisa,
menos reconfortante.
— Vingança — me forcei a dizer em voz alta. — Revanche.
Vendeta.
Decodificada, a última linha parecia mais com uma assinatura.
Olhei para Jameson, que a leu por mim.
— Vingador.
CAPÍTULO 13

Eu mandei uma mensagem para Grayson e Xander. Quando nos


encontraram na biblioteca circular, trouxeram Eve. Sem dizer uma
palavra, ergui o disco. Hesitante, Eve o pegou de mim e a sala ficou
em silêncio.
— Quanto você disse que isso valia? — perguntou ela, dando um
suspiro entrecortado.
Sacudi a cabeça.
— Não sabemos, exatamente... mas muito.
Foram mais quatro ou cinco segundos antes de Eve me devolver
o disco com relutância.
— Tinha alguma mensagem? — perguntou Grayson, e eu passei
o papel para ele. — Eles não pediram resgate — notou, quase
calmo demais.
Meu peito queimava como se eu tivesse prendido a respiração por
tempo demais, embora eu não tivesse.
— Não — respondi. — Não pediram.
No dia anterior, eu tinha pensado em três motivos para o
sequestro. O sequestrador queria algo de Toby. O sequestrador
queria usar Toby como barganha.
Ou o sequestrador queria feri-lo.
Uma das opções parecia muito mais provável.
Xander espichou o pescoço por cima do ombro de Grayson para
olhar melhor o bilhete. Ele decodificou a mensagem tão rápido
quanto Jameson.
— Um tema de vingança. Que animado.
— Vingança pelo quê? — perguntou Eve, desesperada.
A resposta óbvia tinha me ocorrido no momento em que
decodificara a mensagem, e me acertou de novo com a força de
uma pá na boca do estômago.
— A Ilha Hawthorne — eu disse. — O incêndio.
Mais de duas décadas antes, Toby tinha sido um adolescente
inconsequente e descontrolado. O incêndio que o mundo presumira
que tinha tirado sua vida também tirara a vida de outros três jovens.
David Golding. Colin Anders Wright. Kaylie Rooney.
— Três vítimas — disse Jameson, e começou a circular pela sala
como uma pantera prestes a dar o bote. — Três famílias. Quantos
suspeitos isso nos dá no total?
Eve andou também, na direção de Grayson.
— Que incêndio?
Xander se meteu entre eles.
— O que Toby acidentalmente, mas meio que de propósito,
causou. É uma história longa e trágica envolvendo brigas com pais,
adolescentes bêbados, incêndio premeditado e um maldito
relâmpago.
— Três vítimas — repeti o que Jameson tinha dito, mas meus
olhos foram para Grayson. — Três famílias.
— Uma a sua — respondeu Grayson. — E uma a minha.
A irmã da minha mãe tinha morrido no incêndio da Ilha
Hawthorne. O bilionário Tobias Hawthorne tinha salvado a reputação
da própria família ao colocar a culpa do incêndio nela. A família de
Kaylie Rooney, a família da minha mãe, estava cheia de criminosos.
Do tipo violento.
Do tipo que odiava os Hawthorne.
Eu me virei e andei na direção da porta sentindo o estômago
pesado.
— Preciso dar um telefonema.
Em um dos enormes e sinuosos corredores da Casa Hawthorne,
disquei um número que só tinha discado uma vez antes, tentando
ignorar a memória que ameaçava tomar conta de mim.
Se a inútil da minha filha tivesse te contado alguma coisa sobre
essa família, você não teria ousado ligar para mim. A mulher que
tinha dado à luz e criado minha mãe não era exatamente do tipo
materno. Se aquela putinha não tivesse fugido, eu mesma teria
enfiado uma bala nela. Da última vez que eu tinha ligado, me
disseram para esquecer o nome da minha avó e que, se eu tivesse
sorte, ela e o restante da família Rooney esqueceriam o meu.
E, ainda assim, ali estava eu, ligando de novo.
Ela atendeu.
— Você acha que é intocável?
Eu entendi a recepção como sinal de que ela tinha reconhecido
meu número, o que significava que eu não precisava dizer nada
além de:
— Você está com ele?
— Quem raios você pensa que é? — A voz áspera e rouca dela
me atingiu como um chicote. — Acha mesmo que não posso te
atingir, senhorita Poderosa? Acha que está segura nesse seu
castelo?
Tinham me dito que a família Rooney era de bandidos pequenos,
que seu poder era ofuscado pelo da família Hawthorne, e da
herdeira Hawthorne.
— Eu acho que seria um erro te subestimar — falei.
Fechei a mão esquerda em um punho e, com a direita, agarrei o
telefone.
— Você. Está. Com. Ele? — insisti.
Houve uma pausa longa e calculada.
— Um daqueles netos Hawthorne bonitinhos? — disse ela. —
Talvez eu esteja... e talvez ele não esteja mais tão bonitinho quando
você recebê-lo de volta.
A menos que ela estivesse me enganando, tinha acabado de
mostrar a mão. Eu sabia onde os netos Hawthorne estavam. Mas se
os Rooney não sabiam que Toby tinha desaparecido... se eles não
sabiam ou acreditavam que ele estava vivo, eu não poderia
demonstrar que ela tinha chutado errado.
Então joguei o jogo dela.
— Se você está com Jameson, não coloque um dedo nele...
— Me diga, menina, o que dizem sobre cão que ladra?
— Não morde — falei, sem mudar de entonação.
— Por aqui temos um ditado diferente.
Sem aviso, a linha explodiu em latidos e uivos ferozes, cinco ou
seis cachorros pelo menos.
— Eles estão famintos, são bravos e gostam de sangue —
continuou ela. — Pense nisso antes de ligar para esse número de
novo.
Eu desliguei, ou talvez tenha sido ela. Os Rooney não estão com
Toby. Tentei me concentrar nisso.
— Tudo bem aí, menina?
Nash Hawthorne tinha modos gentis e um timing notável.
— Tudo bem — sussurrei.
Nash me puxou para um abraço, a camiseta branca surrada e
macia contra meu rosto.
— Eu tenho uma faca na bota — murmurei na camiseta dele. —
Sou excelente atiradora. Sei jogar sujo.
— É isso aí, menina — disse Nash, me fazendo cafuné. — Quer
me contar do que isso se trata?
CAPÍTULO 14

Na biblioteca, Nash examinou o envelope, a mensagem e o disco.


— Os Rooney não estão com Toby — anunciei. — Eles são
implacáveis, e se soubessem com certeza que Toby está vivo,
provavelmente estariam se esforçando para dar a cara dele para
uma matilha de cães comer, mas tenho quase certeza de que não
estão com ele.
Xander ergueu a mão direita.
— Eu tenho uma pergunta sobre caras e cachorros.
Estremeci.
— Você nem quer saber.
Grayson se apoiou na borda de uma das escrivaninhas de tronco,
desabotoando o paletó.
— Eu posso igualmente liberar os Grayson.
Eve olhou para ele.
— Os Grayson?
— Meu progenitor e sua família — explicou Grayson, seu rosto
como pedra. — Eles são parentes de Colin Anders Wright, que
morreu no incêndio. Sheffield Grayson abandonou a esposa e as
filhas alguns meses atrás.
Era mentira. Sheffield Grayson estava morto. A meia-irmã de Eve
o matara para me salvar e Oren havia encoberto tudo. Mas Eve não
deu sinal de saber disso, e, com base no que ela havia contado a
nós sobre os irmãos, fazia sentido.
— Rumores colocam meu suposto pai em algum lugar das ilhas
Cayman — continuou Grayson com suavidade. — E eu tenho ficado
de olho no resto da família.
— A família Grayson sabe de você? — perguntou Jameson ao
irmão.
Sem brincadeiras, sem sarcasmo. Ele sabia o que família
significava para Grayson.
— Não vi necessidade de que soubessem — respondeu. — Mas
posso te garantir que, se a esposa, a irmã ou as filhas de Sheffield
Grayson tivessem dedo nisso, eu saberia.
— Você contratou alguém — disse Jameson, e estreitou os olhos.
— Com que dinheiro?
— Invista. Cultive. Crie — disse Grayson, e não deu nenhuma
outra explicação antes de se levantar. — Se cortamos as famílias de
Colin Anders Wright e Kaylie Rooney, resta apenas a família da
terceira vítima: David Golding.
— Vou mandar alguém investigar — falou Oren, sem sequer sair
das sombras.
— Parece que você faz bastante isso — comentou Eve, com um
olhar para ele.
— Herdeira.
Jameson de repente parou de andar. Ele pegou o envelope no
qual a mensagem havia vindo.
— Isso estava endereçado para você.
Eu ouvi o que ele estava dizendo, a possibilidade que ele tinha
visto.
— E se Toby não for o alvo da vingança? — falei devagar. — E se
for eu?
— Você tem muitos inimigos? — perguntou Eve.
— Na posição dela — murmurou Grayson —, é difícil não ter.
— E se estivermos olhando para isso do jeito errado?
Quando Xander andava de um lado para o outro, não era em uma
linha reta ou em círculos.
— E se o importante não for a mensagem? — continuou a
perguntar. — E se devêssemos estar concentrados no código?
— O jogo — traduziu Jameson. — Nós todos reconhecemos esse
jogo de palavras.
— Pode crer — disse Nash, e enfiou os polegares nos bolsos da
calça jeans surrada. — Nós estamos procurando alguém que sabia
como o velho jogava.
— Como assim, como o velho jogava? — perguntou Eve.
Grayson respondeu, resumindo:
— Nosso avô gostava de quebra-cabeças, charadas, códigos.
Durante anos, Tobias Hawthorne tinha dado um desafio aos netos
toda manhã de sábado — um jogo para jogar, um quebra-cabeça
complexo a ser resolvido.
— Ele gostava de nos testar — falou Nash. — Criar as regras.
Nos ver dançar.
— Nash tem traumas de avô — confidenciou Xander a Eve. — É
uma história trágica, mas envolvente de...
— Você não quer terminar essa frase, irmãozinho.
Não havia nada de explicitamente perigoso ou ameaçador no tom
de Nash, mas Xander não era tonto.
— Claro que não! — concordou Xander.
Meus pensamentos corriam.
— Se estamos procurando alguém que conhece os jogos de
Tobias Hawthorne, alguém perigoso e amargo com rancor de mim...
— Skye — disseram Jameson e Grayson ao mesmo tempo.
Tentar me matar não tinha funcionado muito bem para a mãe
deles. Mas, dado que Sheffield Grayson a tinha culpado por uma
tentativa de assassinato que ela não tinha cometido, não tentar me
matar também não tinha dado muito certo para Skye Hawthorne.
E se essa fosse a próxima jogada dela?
— Precisamos confrontá-la — disse Jameson imediatamente. —
Falar com ela... pessoalmente.
— Eu vou ter que vetar essa ideia — interveio Nash, andando
sem pressa até Jameson.
— Como é aquele velho ditado? — refletiu Jameson. — Você não
manda em mim? É algo assim. Não, espere, eu lembrei! É você não
manda em mim, pulha.
— Excelente variedade de gírias — comentou Xander.
Jameson deu de ombros.
— Eu agora sou um homem viajado.
— Jamie está certo — disse Grayson, conseguindo conter uma
careta. — A única forma de arrancar alguma coisa de Skye é cara a
cara.
Ninguém podia machucar Grayson, machucar qualquer um deles,
como Skye.
— Mesmo se ela estiver por trás disso — eu disse —, ela vai
negar tudo.
Era o que Skye fazia. Na cabeça dela, ela era sempre a vítima, e,
quando se tratava dos filhos, sabia bem como pisar no calo.
— E se mostrarem o disco a ela? — sugeriu Eve, baixo. — Se ela
o reconhecer, talvez possam usar isso para fazê-la falar.
— Se Skye tivesse qualquer ideia do que o disco vale — respondi
—, ela definitivamente não o teria mandado para mim.
Skye Hawthorne tinha sido quase completamente deserdada. De
jeito nenhum ia abrir mão de qualquer coisa valiosa.
— Então, se ela tentar conseguir o disco — afirmou Grayson,
altivo —, nós saberemos que ela está ciente do seu valor e, logo,
não está por trás do sequestro.
Eu encarei Grayson.
— Eu não vou deixar nenhum de vocês fazer isso sem mim.
— Avery — interveio Oren, que saiu das sombras com um olhar
em parte paterno, em parte comandante militar. — Eu aconselho
fortemente evitar qualquer tipo de confronto com Skye Hawthorne.
— Pessoalmente, acho silver tape mais eficiente que conselhos
— disse Nash a Oren, casualmente.
— Está acertado, então! — disse Xander, alegremente. —
Reunião de família ao estilo Hawthorne!
— Hum, Xander?
Max apareceu na porta com uma aparência amassada. Ela erguia
um celular.
— Você deixou isso na mesinha de cabeceira.
Mesinha de cabeceira? Olhei para Max. Eu sabia que ela e
Xander eram amigos, mas aquele não era um amarrotado amigável.
— Rebecca mandou mensagem — disse Max a Xander,
ignorando meu olhar de forma suspeita. — Ela está vindo para cá.
Eu estava tão distraída com a ideia de Max e Xander terem
passado a noite juntos que levou um momento para que eu
absorvesse o restante. Rebecca. Ver Eve iria destruir a irmã de
Emily.
— Novo plano — anunciou Xander. — Eu vou pular a reunião de
família. Vocês podem me contar depois.
Eve franziu o cenho.
— Quem é Rebecca?
CAPÍTULO 15

Oren dirigia e Nash ia no banco do carona. Mais dois guarda-


costas se acomodaram na parte de trás da SUV, o que me deixou na
fileira do meio, com Jameson de um lado e Grayson do outro.
— Você não deveria estar em um voo de volta para Harvard?
Jameson se inclinou para a frente, por cima de mim, para olhar
feio para o irmão.
Grayson arqueou uma sobrancelha.
— E daí?
— Me diga que estou errado — disse Jameson. — Me diga que
você não ficou por causa de Eve.
— Existe uma ameaça — disparou Grayson. — Alguém fez um
movimento contra nossa família. Claro que eu fiquei.
Jameson estendeu o braço em volta de mim para agarrar Grayson
pelo terno.
— Ela não é Emily.
Grayson não se alterou. Não revidou.
— Eu sei disso.
— Gray.
— Eu sei disso!
Da segunda vez, as palavras de Grayson saíram mais altas, mais
desesperadas.
Jameson o soltou.
— Apesar do que você parece acreditar — cuspiu Grayson —, do
que vocês dois parecem acreditar, eu sei cuidar de mim mesmo.
Grayson era o Hawthorne que havia sido criado para liderar. O
que nunca tinha permissão para precisar de qualquer coisa ou
qualquer um.
— E você está certo, Jamie, ela não é Emily. Eve é vulnerável de
formas que Emily nunca foi.
Os músculos no meu peito apertaram.
— Deve ter sido um jogo de Escadas e Serpentes muito
esclarecedor — disse Jameson.
Grayson olhou pela janela, desviando o rosto de nós dois.
— Eu não consegui dormir ontem. Eve também não — disse, a
voz controlada, o corpo imóvel. — Eu a encontrei perambulando
pelos corredores.
Pensei em Grayson beijando uma garota em Harvard. Em
Grayson vendo um fantasma.
— Perguntei se o hematoma na têmpora doía — continuou
Grayson, os músculos do maxilar marcados e rígidos. — E ela me
disse que alguns garotos gostariam que ela dissesse que sim. Que
algumas pessoas preferem pensar que garotas como ela são fracas.
Ele ficou em silêncio por um segundo ou dois.
— Mas Eve não é fraca. Ela não mentiu para nós. Ela não pediu
nada, exceto ajuda para encontrar a única pessoa no mundo que a
vê pelo que ela é.
Pensei em Eve falando do quanto ela tinha tentado ser perfeita
quando criança. E então pensei em Grayson. Nos padrões
impossíveis que ele se impunha.
— Talvez não seja eu quem precisa de um lembrete de que essa
garota é ela mesma — disse Grayson, a voz afiada como uma faca.
— Mas vá em frente, Jamie, me diga que sou tendencioso, que não
sou confiável. Que sou frágil e fácil de ser manipulado.
— Não — interveio Nash do banco da frente.
— Eu ficarei feliz em discutir todos os seus defeitos — disse
Jameson a Grayson — em ordem alfabética e com muitos detalhes.
Vamos só resolver isso primeiro.

Isso nos levou a um bairro cheio de mansões pré-fabricadas. Antes,


o tamanho dos terrenos e das casas teria me impressionado, mas,
em comparação com a Casa Hawthorne, as construções enormes
pareciam totalmente comuns.
Oren estacionou na rua e, quando começou a recitar nosso
protocolo de segurança, tudo em que eu conseguia pensar era
como Skye Hawthorne acabou aqui?
Eu não tinha acompanhado o que havia acontecido com ela
depois que a promotoria retirou as acusações de assassinato e
tentativa de assassinato, mas tinha esperado encontrá-la em
farrapos, ou no luxo completo — não nos subúrbios.
Tocamos a campainha e Skye abriu a porta, usando um vestido
verde-água solto e óculos de sol.
— Ora, que surpresa — disse ela, olhando os meninos por cima
dos óculos de sol. — Se bem que eu tirei mesmo uma carta de
mudança hoje de manhã. A Roda da Fortuna, seguida do Oito de
Copas invertido — suspirou. — E meu horóscopo falava de perdão.
Os músculos no maxilar de Grayson ficaram tensos.
— Não viemos te perdoar.
— Me perdoar? Gray, querido, por que eu precisaria do perdão de
alguém?
Isso vindo da mulher cujas acusações tinham sido abandonadas
apenas porque tinha sido presa pelo atentado errado contra a minha
vida.
— Afinal — continuou Skye, entrando na casa e gentilmente nos
permitindo acompanhar —, eu não joguei vocês na rua, joguei?
Grayson tinha forçado Skye a sair da Casa Hawthorne — por
mim.
— Eu garanti que você tivesse para onde ir — disse ele, rígido.
— Eu não deixei vocês apodrecerem na prisão — continuou Skye,
dramática. — Eu não forcei vocês a implorar a amigos por
advogados decentes. Honestamente! Não venham vocês me
falarem de perdão. Não fui eu quem abandonei vocês.
Nash arqueou uma sobrancelha.
— Questionável, não acha?
— Nash — disse Skye, e estalou a língua. — Você não está um
pouco velho para guardar rancores infantis? Você, especialmente,
deveria entender: não fui feita para ficar parada. Uma mulher como
eu pode até morrer de inércia. É mesmo tão difícil entender que sua
mãe também é uma pessoa?
Ela podia destroçá-los sem nem tentar. Mesmo Nash, que tinha
tido anos para superar a falta de instintos maternos de Skye, não
estava imune.
— Você está usando uma aliança — interrompeu Jameson com
uma observação perspicaz.
Skye lhe deu um sorrisinho tímido.
— Essa coisinha? — disse, acenando com o que devia ser um
diamante de três quilates na mão esquerda. — Eu teria convidado
vocês para o casamento, meninos, mas foi uma coisinha pequena
no cartório. Vocês sabem que detesto espetáculos, e, considerando
como eu e Archie nos conhecemos, um casamento civil pareceu
mais adequado.
Skye Hawthorne vivia pelo espetáculo.
— Um casamento civil pareceu mais adequado — repetiu
Grayson, digerindo o que ela queria dizer e estreitando os olhos. —
Você se casou com seu advogado de defesa?
Skye deu de ombros elegantemente.
— Os filhos e netos de Archie estão sempre insistindo para que
ele se aposente, mas meu querido marido vai exercer direito
criminal até morrer de velhice.
Em outras palavras: sim, ela tinha se casado com o advogado, e
sim, ele era significativamente mais velho do que ela e
possivelmente não passaria muito tempo nesse mundo.
— Agora, se vocês não vieram implorar o meu perdão... — disse
Skye, e examinou cada um de seus três filhos. — Então por que
estão aqui?
— Um pacote chegou na Casa Hawthorne hoje — disse Jameson.
Skye se serviu de uma taça de espumante.
— Ah, é?
Jameson puxou o disco do bolso.
— Você não saberia o que é isso, saberia?
Skye Hawthorne congelou por um segundo. Suas pupilas
dilataram.
— Onde vocês acharam isso? — perguntou, avançando para
pegar da mão dele, mas, como um mágico, Jameson fez a “moeda”
desaparecer.
Skye reconheceu. Eu via a fome nos olhos dela.
— Diga o que é — ordenou Grayson.
Skye olhou para ele.
— Sempre tão sério — murmurou, estendendo a mão para tocar o
rosto dele. — E a sombra nesses olhos...
— Skye — chamou Jameson, desviando a atenção dela de
Grayson. — Por favor.
— Bons modos, Jamie? Vindos de você? — retrucou Skye, e
abaixou a mão. — Estou chocada, mas, mesmo assim, não tem
muita coisa que eu possa dizer. Eu nunca tinha visto essa coisa
antes.
Ouvi as palavras dela com cuidado. Ela nunca tinha visto.
— Mas você sabe o que é — eu disse.
Por um momento, Skye me encarou como se fôssemos duas
jogadoras nos cumprimentando antes de uma partida.
— Seria uma pena se alguém encontrasse seu marido — se
intrometeu Nash — e o avisasse de algumas coisas.
— Archie não vai acreditar em uma palavra do que você disser —
respondeu Skye. — Ele já me defendeu de acusações falsas uma
vez.
— Eu aposto que sei uma ou duas coisas que ele acharia
interessante — disse Nash, e se apoiou na parede, esperando.
Skye olhou para Grayson. De todos eles, era ele em quem ela
ainda tinha mais efeito.
— Eu não sei muito — cedeu. — Eu sei que a moeda era do meu
pai. Eu sei que o grande Tobias Hawthorne me interrogou por horas
quando ela sumiu, descrevendo-a várias vezes. Mas não fui eu
quem a peguei.
Eu disse o que todos nós estávamos pensando:
— Foi Toby.
— Meu pequeno Toby estava com tanta raiva naquele verão... —
disse Skye, fechando os olhos, e por um momento não pareceu
perigosa ou manipuladora, nem mesmo coquete. — Eu nunca soube
o porquê.
A adoção. O segredo. As mentiras.
— No fim, meu querido irmãozinho fugiu e levou isso como
presente de despedida. Com base na reação do nosso pai, Toby
escolheu muito bem a vingança. Para arrancar esse tipo de resposta
com alguém com o dinheiro do meu pai? — falou Skye, e abriu os
olhos de novo. — Devia ser muito preciosa.
Vá a Jackson. As instruções de Toby para minha mãe ecoavam
na minha mente. Você sabe o que deixei lá. Você sabe o que vale.
— Você não está com Toby — Jameson foi direto ao ponto. —
Está?
— Você está admitindo — disse Skye, perspicaz — que meu
irmão está vivo?
— Responda — ordenou Grayson.
— Eu não estou com nenhum de vocês mais, estou? Nem com
Toby. Nem com vocês, meninos.
Skye parecia estar quase sofrendo, mas o brilho nos olhos dela
era um pouco afiado demais.
— Honestamente, do que exatamente você está me acusando,
Grayson? — continuou Skye, pegando um drinque. — Você age
como se eu fosse um monstro.
A voz dela ainda estava alta e clara, mas intensa. Pela primeira
vez, vi uma semelhança entre ela e os filhos, especialmente entre
ela e Jameson.
— Todos vocês agem, mas a única coisa que eu já quis foi ser
amada.
Tive a súbita sensação de que aquela era a verdade de Skye,
pelo ponto de vista dela.
— Mas quanto mais eu precisava de amor, quanto mais eu
desejava, mais indiferente o mundo se tornava. Meus pais. Os pais
de vocês. Até mesmo vocês, meninos.
Skye tinha dito a Jameson uma vez que ela deixava os homens
depois que engravidava como um teste: se realmente a quisessem,
iriam atrás dela.
Mas nenhum deles tinha ido.
— Nós te amamos — disse Nash, de uma maneira que me fez
pensar no garotinho que ele devia ter sido. — Você era nossa mãe.
Como não amaríamos?
— Era isso que eu dizia para mim mesma, cada vez que
engravidava.
Os olhos de Skye brilharam.
— Mas nenhum de vocês foi meu por muito tempo. Não importava
o que eu fizesse, vocês eram primeiro do avô de vocês, e meus só
em segundo lugar.
Skye deu outro gole, sua voz se tornando mais indiferente.
— Papai nunca me considerou uma jogadora no grande jogo,
então fiz o que pude. Eu lhe dei herdeiros.
Ela olhou para mim.
— E vejam como isso acabou — falou, e deu de ombros de leve.
— Então para mim chega.
— Você realmente espera que a gente acredite que você vai jogar
a toalha? — perguntou Jameson.
— Querido, eu não me importo muito com o que vocês acreditam.
Mas prefiro ser dona do meu próprio reino do que aceitar restos do
dela.
— Então você está desistindo de tudo? — perguntei, encarando
Skye Hawthorne, tentando adivinhar alguma verdade. — Da Casa
Hawthorne? Do dinheiro? Do legado do seu pai?
— Você sabe qual é a maior diferença entre milhões e bilhões,
Ava? — perguntou Skye. — Porque, a partir de certo ponto, não é o
dinheiro.
— É o poder — disse Grayson ao meu lado.
Skye ergueu a taça para ele.
— Você realmente teria sido um herdeiro maravilhoso.
— Então é isso? — perguntou Nash, olhando em volta do hall
enorme. — Esse é seu reino agora?
— Por que não? — respondeu Skye, aérea. — Papai nunca me
viu como uma boa jogadora, de qualquer forma.
Ela deu de ombros elegantemente outra vez.
— Quem sou eu para decepcioná-lo?
CAPÍTULO 16

A caminhada pela longa entrada foi tensa.


— Bem, eu, pelo menos, achei uma variedade agradável —
declarou Jameson. — Nossa mãe não é a vilã dessa vez.
Ele podia agir como se fosse à prova de balas, como se a frieza
de Skye não o tocasse, mas eu o conhecia melhor que isso.
— Minha parte favorita, pessoalmente — continuou solenemente
—, foi ser culpado de nunca tê-la amado suficiente, embora eu
precise dizer que o lembrete de que fomos concebidos em uma
tentativa vã de garantir os doces, doces bilhões dos Hawthorne
nunca é inútil.
— Cala a boca.
Grayson tirou seu paletó e virou à direita.
— Aonde você vai? — gritei para ele.
Grayson se virou.
— Eu prefiro caminhar.
— Vinte e nove quilômetros? — perguntou Nash.
— Eu prometo a vocês, todos vocês, mais uma vez... — Grayson
arregaçou as mangas da camisa, o movimento estudado, enfático.
— Que eu sei cuidar de mim mesmo.
— Fale de novo — encorajou Jameson —, mas dessa vez ainda
mais que nem um robô.
Eu olhei feio para Jameson. Grayson estava sofrendo. Os dois
estavam.
— Você está certa, Herdeira — disse Jameson, erguendo as
mãos, derrotado. — Eu estou sendo terrivelmente injusto com robôs.
— Você está procurando briga — comentou Grayson, a voz
perigosamente neutra.
Jameson deu um passo na direção do irmão.
— Uma caminhada de vinte e nove quilômetros também serve.
Durante vários segundos, os dois se encararam em silêncio.
Finalmente, Grayson inclinou a cabeça.
— Não espere que eu fale com você.
— Nem sonharia com isso — respondeu Jameson.
— Vocês dois estão sendo ridículos — eu disse. — Vocês não
podem andar de volta até a Casa Hawthorne.
Àquela altura, eu realmente deveria saber que não se diz a um
Hawthorne que ele não pode fazer alguma coisa.
Eu me virei para Nash.
— Você não vai dizer nada? — perguntei a ele.
Em resposta, Nash abriu a porta da SUV para mim.
— Eu vou na frente.

Sozinha na fileira do meio, passei o caminho de volta para a Casa


Hawthorne em silêncio. Skye tinha definitivamente afetado os filhos.
Grayson iria se fechar. Jameson iria transbordar. Eu só podia
esperar que os dois chegassem em casa ilesos. Sofrendo por eles,
eu me perguntava quem tinha tornado Skye tão desesperada para
ser o centro do mundo de alguém que nem conseguia amar os
próprios filhos por medo de que eles não a amassem de volta o
suficiente.
Em algum nível, eu sabia a resposta. Papai nunca me considerou
uma jogadora no grande jogo. Eu voltei ainda mais, para um poema
que Toby tinha escrito em código. Veneno é a árvore, percebeu?
Envenenou S e Z e eu.
— Skye adorava estar grávida. — Nash quebrou o silêncio na SUV,
olhando para mim do banco da frente. — Eu já te contei isso?
Eu sacudi a cabeça.
— O velho a paparicava. Ela passava a gravidez inteira na Casa
Hawthorne, até fazia um ninho. E quando tinha um bebê novo, os
primeiros dias eram mágicos. Eu me lembro de ficar na porta,
vendo-a amamentar Gray logo depois deles voltarem do hospital.
Tudo o que ela fazia era olhar para ele e cantarolar baixinho. O
bebê Gray era um carinha quieto, solene. Jamie gritava. Xander se
sacudia. — Nash imitou com a cabeça. — E toda vez, naqueles
primeiros dias, eu pensava: talvez ela fique.
Eu engoli em seco.
— Mas ela nunca ficou.
— Pelo que Skye conta, o velho nos roubou. A verdade é que foi
ela quem colocou meus irmãos nos braços dele. Ela os deu para
ele. O problema nunca foi que ela não nos amasse... ela só gostava
mais de todo o resto.
A aprovação do pai. A fortuna dos Hawthorne. Eu me perguntei
quantos bebês Nash viu a mãe abandonar antes de decidir que não
queria fazer parte disso.
— Se você tivesse um bebê... — comecei.
— Quando eu tiver um bebê — veio a resposta profunda e
dolorida —, ela vai ser meu mundo inteiro.
— Ela? — repeti.
Nash se acomodou em seu lugar.
— Eu consigo imaginar Lib com uma menininha.
Antes que eu pudesse responder àquilo, Oren recebeu uma
ligação.
— O que você conseguiu? — perguntou assim que atendeu. —
Onde?
Oren freou a SUV em frente ao portão.
— Houve uma invasão — disse a nós. — Um sensor foi acionado
nos túneis.
A adrenalina inundou minha corrente sanguínea. Levei a mão à
faca na minha bota, não para puxá-la, só para lembrar que eu não
estava indefesa. Finalmente, meu cérebro se acalmou o suficiente
para que eu me lembrasse das circunstâncias de quando saíra da
Casa Hawthorne.
— Eu quero equipes vindo dos dois lados — ia dizendo Oren.
— Pare — interrompi. — Não é uma invasão.
Respirei fundo.
— É Rebecca.
CAPÍTULO 17

Os túneis que passavam por baixo da propriedade Hawthorne


tinham menos entradas do que as passagens secretas. Anos antes,
Tobias Hawthorne tinha mostrado as entradas para uma jovem
Rebecca Laughlin. O velho tinha visto uma menina vivendo nas
sombras da irmã doente, e dissera a Rebecca que ela merecia algo
próprio.
Eu a encontrei no túnel embaixo das quadras de tênis. Guiada
apenas pela lanterna do celular, me aproximei dela. O túnel
terminava em uma parede de concreto. Rebecca estava ali,
encarando-a, o cabelo ruivo indomado, o corpo esguio rígido.
— Vá embora, Xander — disse ela.
Parei a alguns passos de distância dela.
— Sou eu.
Ouvi Rebecca inspirar, trêmula.
— Vá embora, Avery.
— Não.
Rebecca era boa em usar o silêncio como arma, ou escudo.
Depois da morte de Emily, ela tinha se isolado, enroscada no
silêncio.
— Eu tenho o dia inteiro — falei.
Rebecca finalmente se virou para me olhar. Para uma garota
bonita, ela chorava feio.
— Eu conheci Eve. Nós contamos a ela a verdade sobre a adoção
de Toby. — Ela inspirou uma lufada de ar. — Ela quer conhecer
minha mãe.
Claro que queria. A mãe de Rebecca era a avó de Eve.
— Sua mãe dá conta disso? — perguntei.
Eu só tinha encontrado Mallory Laughlin algumas vezes, mas
estável não era uma palavra que eu teria usado para descrevê-la.
Quando adolescente, ela tinha dado Toby bebê para adoção, sem
saber que os Hawthorne o tinham adotado. Seu bebê tinha estado
tão perto, durante anos, e ela não sabia, não naquela época.
Quando finalmente tivera outro filho, duas décadas mais tarde,
Emily tinha nascido com uma doença cardíaca.
E agora Emily tinha morrido. E, até onde Mallory sabia, Toby
também.
— Eu não estou dando conta disso — disse Rebecca. — Elas se
parecem tanto, Avery. — Rebecca soava além da raiva, além da dor,
a voz um mosaico de emoções demais para serem contidas em um
só corpo. — Ela até fala que nem Emily.
Toda a vida de Rebecca quando nova tinha girado em torno da
irmã. Ela tinha sido criada para se diminuir.
— Você precisa que eu te diga que Eve não é Emily? —
perguntei.
Rebecca engoliu em seco.
— Bem, ela não parece me odiar, então...
— Te odiar? — perguntei.
Rebecca se sentou e levou os joelhos ao peito.
— A última coisa que Em e eu fizemos foi brigar. Você sabe o
quanto ela teria me feito suar para ser perdoada por isso? Por estar
certa?
Elas tinham brigado por conta dos planos de Emily para aquela
noite, os planos que a mataram.
— Droga — disse Rebecca, tocando as pontas do cabelo ruivo
repicado —, ela me odiaria por isso também.
Eu me sentei ao lado dela.
— Pelo cabelo?
Parte da tensão nos músculos de seu corpo inteiro estremeceu.
— Emily gostava do nosso cabelo comprido.
Nosso cabelo. O fato de que Rebecca conseguia dizer aquilo sem
notar o quanto era doido, mesmo então, me fez querer socar alguém
por ela.
— Você é uma pessoa independente, Rebecca — falei, desejando
que ela acreditasse. — Você sempre foi.
— E se eu não for boa em ser uma pessoa independente?
Rebecca estava diferente nos últimos meses. Ela tinha uma
aparência diferente, se vestia diferente, ia atrás do que queria. Ela
tinha aceitado Thea de volta.
— E se tudo isso for só o universo me dizendo que eu não posso
seguir em frente? Nunca — continuou, o queixo trêmulo. — Talvez
eu seja uma pessoa horrível por querer isso.
Eu sabia que ver Eve iria magoá-la. Eu sabia que reviraria o
passado, da mesma forma que tinha acontecido com Jameson, com
Grayson. Mas aquilo era Rebecca, até a carne.
— Você não é uma pessoa horrível — falei, mas não tinha certeza
de que eu poderia fazê-la acreditar. — Você já contou a Thea sobre
Eve?
Rebecca se levantou e enfiou a ponta do coturno surrado no
chão.
— Por que eu faria isso?
— Bex.
— Não me olhe assim, Avery.
Ela estava sofrendo. Não ia parar de doer tão cedo.
— O que eu posso fazer? — perguntei.
— Nada — disse Rebecca, e pude ouvir algo se partindo dentro
dela. — Porque agora eu preciso descobrir como contar para minha
mãe que ela tem uma neta igualzinha à filha que teria escolhido
manter, se o universo a tivesse deixado escolher entre Emily e eu.
Rebecca estava ali. Ela estava viva. Era uma boa filha. Mas sua
mãe ainda conseguia olhar bem na cara dela e dizer em prantos que
todos os seus bebês morriam.
— Quer que eu vá contar para sua mãe com você? — perguntei.
Rebecca sacudiu a cabeça, as pontas desiguais do cabelo
ondulando com uma corrente de ar.
— Eu sou melhor em querer coisas agora do que eu era antes,
Avery — disse, e se endireitou, uma linha invisível de aço descendo
por sua coluna. — Mas eu não posso ter o luxo de querer você
comigo para isso.
CAPÍTULO 18

Eu fiquei nos túneis depois que Rebecca foi embora, em dúvida,


então voltei à Casa Hawthorne e saí por uma escada escondida que
dava no salão principal. Quando voltou o sinal do celular, puxei o
gatilho e telefonei.
— A que devo essa muito duvidosa honra?
Thea Calligaris tinha aperfeiçoado a arte do desdém verbal.
— Oi para você também, Thea.
— Deixe-me adivinhar — disse ela, impertinente. — Você precisa
desesperadamente de uma ajuda fashion? Ou talvez algum dos
Hawthorne esteja em colapso?
Eu não respondi, então ela corrigiu o palpite:
— Mais de um?
Um ano antes, eu nunca teria imaginado que nós duas seríamos
qualquer coisa que remotamente parecesse amigas, mas tínhamos
conquistado uma a outra... mais ou menos.
— Eu preciso te contar uma coisa.
— Bem — respondeu Thea, coquete —, eu não tenho o dia todo.
Caso você tenha perdido o recado, meu tempo é muito valioso.
No verão, Thea tinha viralizado. Em algum lugar entre Saint Barth
e as Maldivas, ela tinha se tornado uma Influencer, com I maiúsculo.
Então ela tinha voltado para Rebecca.
Não importa quanto tempo demore, Thea tinha me dito uma vez.
Eu vou continuar escolhendo ela.
Eu contei tudo a ela.
— Quando você diz que essa menina é igualzinha a...
— É igualzinha mesmo — repeti.
— E Rebecca...
Rebecca ia me matar.
— Elas acabaram de se conhecer. Eve quer conhecer a mãe de
Bex.
Por três segundos inteiros, Thea caiu em um silêncio pouco
característico.
— Isso é zoado, mesmo pelos padrões dos Hawthorne e
adjacentes.
— Você está bem? — perguntei.
Emily tinha sido a melhor amiga de Thea.
— Eu não trabalho com vulnerabilidade — respondeu Thea. —
Não combina com a minha estética de megera.
Ela parou.
— Bex não queria que você me contasse isso, né? — perguntou.
— Não exatamente.
Eu quase ouvi Thea dando de ombros, ou tentando.
— Só por curiosidade — disse ela com leveza —, exatamente
quantos Hawthorne estão mesmo em colapso agora?
— Thea.
— Se chama schadenfreude, Avery. Mas, honestamente, os
alemães deveriam inventar uma palavra que captasse com mais
precisão a emoção de sentir uma satisfação mesquinha em saber
que os canalhas mais arrogantes do mundo também têm
sentimentos minúsculos.
Thea não era tão fria quanto gostava de fingir que era, mas eu
sabia que não devia denunciar isso quando se tratava dos
Hawthorne.
— Você vai ligar para Rebecca? — perguntei.
— E deixar que ela desligue na minha cara? — respondeu Thea,
ácida, e deixou passar um momento. — Claro que vou.
Ela tinha deixado Rebecca ir uma vez. Não ia deixar de novo.
— Agora, se isso é tudo, eu tenho um império para construir e
uma garota para perseguir.
— Cuide dela, Thea — eu disse.
— Vou cuidar.
CAPÍTULO 19

Oren esperou eu desligar o telefone para demonstrar que estava


ali. Ele apareceu e eu forcei meu cérebro a se concentrar.
— Alguma novidade? — perguntei.
— Nenhuma sorte no rastreio do mensageiro, mas a equipe que
eu mandei para o ponto de encontro de Toby e Eve voltou a dar
notícias.
A memória de uma palavra ecoou na minha mente: tiroteio.
— Você descobriu quem ligou para a emergência? — perguntei,
me agarrando à calma da mesma forma que uma pessoa pendurada
em um abismo de quinze metros se agarra ao que conseguir
alcançar.
— O telefonema foi feito de um armazém vizinho. Minha equipe
achou o proprietário. Ele não faz ideia de quem ligou, mas tinha uma
coisa para nós.
Uma coisa. A maneira como Oren falou me deu a sensação de
que meu estômago tinha sido forrado de chumbo.
— O quê?
— Outro envelope.
Oren esperou que eu processasse a informação antes de
continuar:
— Foi enviado noite passada, por mensageiro, impossível de
rastrear. O dono do armazém foi pago em dinheiro para entregar o
envelope a qualquer um que perguntasse sobre uma ligação de
emergência. O pagamento chegou com o pacote, então é
igualmente impossível de rastrear.
Oren estendeu o envelope.
— Antes de você abrir... — começou.
Eu o arranquei das mãos dele. Dentro, havia uma foto de Toby, o
rosto roxo e inchado, segurando um jornal com a data do dia
anterior. Prova de vida. Eu engoli em seco e virei a foto. Não havia
nada no verso, nada no envelope.
Ontem ele estava vivo.
— Nenhum pedido de resgate? — perguntei, engasgada.
— Não.
Olhei de novo para os hematomas de Toby, o rosto inchado.
— Você conseguiu descobrir alguma coisa sobre a família de
David Golding? — perguntei, tentando me controlar.
— No momento, estão no estrangeiro — respondeu Oren. — E as
finanças estão limpas.
— E agora? Nós sabemos onde Eli e Mellie estão? E Ricky?
Constantine Calligaris ainda está na Grécia?
Eu odiava o quanto parecia frenética e a maneira como minha
mente estava saltando de possiblidade em possiblidade sem
descanso: os meios-irmãos de Eve, meu pai, o recém-separado
marido de Zara, quem mais?
— Eu venho rastreando os quatro indivíduos que você acabou de
mencionar há mais de seis meses — relatou Oren. — Nenhum deles
chegou a menos de trezentos quilômetros do lugar de interesse no
momento em que Toby foi levado, e não tenho motivos para
desconfiar de qualquer tipo de envolvimento de nenhum deles.
Oren fez uma pausa.
— Eu também investiguei Eve — acrescentou.
Pensei em Eve se entregando inteira naquele jogo de Escadas e
Serpentes e no que Grayson tinha dito sobre ela no carro.
— E? — perguntei baixo.
— A história dela confere. Ela saiu de casa no dia em que fez
dezoito anos, cortou o contato com toda a família, incluindo os
irmãos. Isso foi dois anos atrás. Ela era garçonete e ia ao trabalho
regularmente, até desaparecer com Toby semana passada. Dos
dezoito anos até conhecer Toby alguns meses atrás, vivia em aperto
financeiro e morava com o que pareciam ser uns colegas de quarto
horríveis. Indo mais fundo e voltando alguns anos, eu encontrei um
registro de um incidente na escola em que cursou o ensino médio,
envolvendo Eve e um aparentemente adorado professor. Palavra
dele contra a dela.
A expressão de Oren endureceu.
— Ela tem motivos para desconfiar de autoridades — concluiu.
E quem, Eve tinha me perguntado, vai acreditar em uma garota
como eu?
— O que mais? — perguntei a Oren. — O que você não está me
contando?
Eu o conhecia bem o suficiente para saber que tinha alguma
coisa.
— Nada em relação a Eve.
Oren me encarou por um longo momento, então enfiou a mão no
bolso da camisa e me entregou um pedaço de papel.
— Essa é uma lista dos membros da sua equipe de segurança e
nossos associados próximos que foram abordados com ofertas de
emprego nas últimas três semanas — acrescentou.
Eu fiz uma conta rápida. Treze. Não podia ser normal.
— Abordados por quem? — perguntei.
— Empresas de segurança particular, no geral — respondeu
Oren. — Variadas demais para eu achar confortável. Não há
denominador comum na propriedade das diferentes empresas, mas
uma coisa assim não acontece a menos que alguém esteja fazendo
acontecer.
Alguém que queria buracos na minha segurança.
— Você acha que isso está relacionado ao sequestro de Toby? —
perguntei.
— Não sei — disse Oren, seco. — Meus homens são fiéis e bem
pagos, então as tentativas deram errado, mas eu não estou
gostando disso, Avery... de nada disso.
Ele me olhou.
— Sua amiga Max pretende voltar à faculdade amanhã de manhã
— continuou. — Eu gostaria de mandar uma equipe de segurança
com ela, mas ela está... relutante.
Eu engoli em seco.
— Você acha que Max está em perigo?
— Ela pode estar.
A voz de Oren era firme. Ele era firme.
— Eu seria negligente se, a essa altura, não presumisse que você
é o alvo de uma agressão concentrada e com várias frentes —
explicou. — Talvez seja. Talvez não seja. Mas, até concluirmos o
contrário, eu não tenho escolha além de proceder como se
houvesse uma ameaça importante... e isso significa presumir que
qualquer pessoa próxima a você pode ser o próximo alvo.
CAPÍTULO 20

Eu não sabia o que ia ser mais difícil: convencer Max a deixar que
Oren lhe desse um guarda-costas ou mostrar aquela foto de Toby
para Eve. Acabei indo atrás de Max primeiro e encontrei ela e Eve
na pista de boliche com Xander, que segurava uma bola de boliche
em cada mão.
— Eu chamo essa jogada de o helicóptero — entoou ele,
erguendo os braços para o lado.
Mesmo nos momentos mais sombrios, Xander era Xander.
— Você vai derrubar uma delas no seu pé — eu disse.
— Tudo bem — respondeu Xander, alegremente. — Eu tenho
dois pés!
— Skye sabia alguma coisa do disco? — perguntou Eve,
passando por Xander e Max. — Ela está envolvida?
— Não para a segunda pergunta — eu disse. — E a primeira não
é importante agora.
Engoli em seco. Meu plano de confrontar a situação com Max
primeiro tinha ido por água abaixo.
— O importante é isso — falei, e passei para Eve a foto de Toby,
desviando o rosto.
Eu não conseguia olhar, mas não olhar não ajudava. Dava para
sentir Eve ao meu lado, encarando a foto. A respiração dela era
audível e irregular. Ela tinha sentido, assim como eu.
— Se livre disso.
Eve derrubou a foto. Aumentou o tom de voz.
— Tire isso daqui.
Eu me abaixei para pegar a foto, mas Xander largou as bolas de
boliche e chegou antes de mim. Ele pegou o celular. Enquanto eu
observava, ele ligou a lanterna e a passou pelo verso da foto.
— O que você está fazendo? — perguntou Max.
— Ele está checando se tem alguma mensagem escondida no
grão do papel — respondi.
Se algumas partes da página fossem mais densas do que outras,
a luz não penetraria tão bem. Eu não tinha querido olhar tão de
perto para a foto, para o rosto de Toby, mas, agora que Xander tinha
puxado a lanterna, meu cérebro trocou de marcha. E se tiver algo a
mais nessa mensagem?
— Vamos precisar de luz negra — falei. — E uma fonte de calor.
Se estávamos lidando com alguém que conhecia os jogos de
Tobias Hawthorne, tinta invisível era definitivamente possível.
— É para já! — disse Xander.
Ele me passou a foto, então saiu correndo da sala.
— O que vocês estão fazendo? — me perguntou Eve, com a voz
seca.
Eu estava analisando a foto, olhando para além das feridas de
Toby.
— O jornal — falei de repente, com força. — O que Toby está
segurando.
Peguei meu celular e tirei uma foto da foto, para poder ampliar.
— O artigo de primeira página — continuei, e adrenalina me
inundou. — Algumas letras estão apagadas. Vê essa palavra? Pelo
contexto, dá para saber que deveria ser crise, mas o E está
apagado. Mesma coisa com o U nessa palavra. Então S, outro E. M.
Deslizando para o computador do boliche, eu cliquei no botão
para incluir um novo jogador e digitei as cinco letras que eu já tinha
lido, então continuei. No total, havia vinte letras apagadas no artigo.
L. Digitei a última, então voltei e acrescentei espaços. Apertei
enter e a mensagem surgiu na tela de pontuação. EU SEMPRE VENÇO NO
FINAL.
Eu sabia que alguém estava brincando conosco, comigo. Mas
aquilo deixou muito mais claro que o sequestrador de Toby não
estava só jogando comigo. Estava jogando contra mim.
Quando Xander voltou trazendo uma luz negra em uma das mãos
e um abajur Tiffany no outro, deu uma olhada nas palavras na tela e
as deixou de lado.
— Escolha ousada de nome — disse, me dirigindo um olhar
esperançoso. — Seu?
— Não.
Eu me recusava a ceder à escuridão que queria vir. Em vez disso,
me virei para Max.
— Eu vou precisar que você concorde em levar um guarda-costas
amanhã.
Max abriu a boca, provavelmente para protestar, mas Xander
cutucou o ombro dela.
— E se te conseguirmos um moreno misterioso com um passado
trágico e um fraco por cachorrinhos? — disse ele, em tom insistente.
Depois de um longo momento, Max o cutucou de volta.
— Fechado.
Quando as coisas se acertassem pelo menos um pouco, eu e ela
teríamos uma longa conversa sobre cutucões, mesas de cabeceira
e a amizade entra ela e Xander Hawthorne. Mas por enquanto...
Eu me virei para Oren, um medo novo me acertando tarde
demais.
— E Jameson e Grayson? Eles ainda não chegaram em casa.
Se qualquer um próximo de mim podia ser um alvo, então...
— Tenho um homem com cada um deles — respondeu Oren. — A
última notícia que tive é que os meninos ainda estavam juntos e as
coisas estavam ficando feias. Feias estilo Hawthorne — esclareceu.
— Nenhuma ameaça externa.
Dado o estado emocional deles depois da conversa com Skye,
feio estilo Hawthorne era provavelmente o melhor que podíamos
esperar.
Eles estão seguros. Por enquanto. Com uma sensação
claustrofóbica, me voltei para as palavras na tela. EU SEMPRE VENÇO NO
FINAL.
— Pronome da primeira pessoa do singular — falei, porque era
mais fácil dissecar a mensagem do que me perguntar o que vencer
significava para a pessoa que estava com Toby. — Isso sugere que
estamos lidando com um indivíduo, não um grupo. E as palavras no
final parecem indicar que houve perdas no caminho.
Eu respirei, pensei e me forcei a ver mais que aquilo nas palavras.
— O que mais? — perguntei.
Duas horas e meia depois, Jameson e Grayson ainda não tinham
chegado em casa, e eu estava pirando. Eu já tinha revirado a
mensagem, a foto e o envelope, caso houvesse mais alguma coisa
ali dentro. Mas nada que eu fazia parecia adiantar.
Vingança. Revanche. Vendeta. Vingador. Eu sempre venço no
final.
— Estou odiando isso — disse Eve, a voz baixa e aguda. — Eu
odeio me sentir impotente.
Eu também odiava.
Xander olhou de Eve para mim.
— Vocês duas estão emburradas? — perguntou. — Porque Avery,
eu sou, como sempre, seu BFFH, e você sabe qual é a pena por ficar
emburrada.
— Eu não vou jogar Pega Xander — falei.
— O que é Pega Xander? — perguntou Max.
— O que não é Pega Xander? — respondeu Xander, filosófico.
— Isso tudo é uma piada para você? — perguntou Eve, dura.
— Não — disse Xander, subitamente sério. — Mas às vezes o
cérebro começa a andar em círculos. Não importa o que você faça,
os mesmos pensamentos continuam se repetindo, de novo e de
novo. Você fica preso em um ciclo e, dentro do ciclo, não enxerga
além dele. Você vai continuar pensando nas mesmas possibilidades,
à toa, porque as respostas que você precisa... estão além do ciclo.
Distrações não são só distrações. Às vezes elas quebram o ciclo, e
quando você sai, quando o cérebro para de girar...
— Você vê coisas que não tinha notado antes — concluiu Eve, e
encarou Xander por um momento. — Certo. Traga as distrações,
Xander Hawthorne.
— É muito perigoso dizer isso — avisei.
— Não dê bola para Avery! — instruiu Xander. — Ela só está um
pouco tímida por causa do Incidente.
Max riu.
— Que incidente?
— Não importa — disse Xander —, e, em minha defesa, eu não
esperava que o zoológico mandasse um tigre de verdade. Agora...
— disse ele, e tocou o queixo. — O que queremos fazer? O Chão É
Lava? Guerra de Esculturas? Assassinos da Gelatina?
— Desculpa — disse Eve, esganiçada, e se voltou para a porta.
— Não vai dar.
— Espera! — gritou Xander atrás dela. — O que você acha de
fondue?
CAPÍTULO 21

Na Casa Hawthorne, fondue envolvia doze panelas de fondue


acompanhadas por três fontes gigantescas de chocolate. A sra.
Laughlin montou tudo na cozinha profissional em uma hora.
Distrações não são apenas distrações, lembrei. Às vezes você
precisa delas para quebrar o ciclo.
— Em termos de fondue de queijo — declarou Xander —, temos
gruyère, gouda, cheddar com cerveja, fontina, chällerhocker...
— Ok — interrompeu Max —, você está inventando essas
palavras.
— Estou? — disse Xander em sua voz mais galante. — Para
mergulhar, temos baguete, pão de fermentação natural, bolacha,
crouton, bacon, presunto cru, salame, sopressata, maçã, pera e
vários vegetais, grelhados ou crus. E então temos os fondues de
sobremesa! Para os puristas entre nós, temos fontes de chocolate
amargo, chocolate ao leite e chocolate branco. Combinações mais
criativas de sobremesas estão nas panelas. Eu recomendo muito o
chocolate duplo com caramelo salgado.
Observando a enorme variedade de opções do que mergulhar nas
sobremesas, Max pegou um morango em uma das mãos e uma
bolacha na outra.
— Joga para cá! — gritou Xander, correndo para trás. — Acerta o
ângulo!
Max atirou a bolacha, que Xander pegou com a boca. Sorrindo,
Max mergulhou o morango em uma das panelas de sobremesa, deu
uma mordida, então gemeu.
— Forra, como isso é bom.
Quebre o ciclo, pensei, então comecei a circular pelas opções,
morrendo a cada mordida. Ao meu lado, Eve lentamente começou a
fazer o mesmo.
Com a boca cheia de bacon, Xander pegou um garfo de fondue e
o ergueu como uma espada.
— En garde!
Max se armou. O resultado foi caos. O tipo de caos que terminou
com Max e Xander encharcados com o conteúdo das fontes e Eve
levando uma banana com chocolate amargo no peito.
— Eu peço um perdão achocolatado — disse Xander.
Max o acertou com um pão.
Eve baixou os olhos para a sujeira na blusa.
— Era minha única camiseta.
Eu olhei para Max. Você e eu vamos conversar em breve. Então
me virei para Eve.
— Venha — eu disse. — Vou te dar uma blusa.

— Isso é seu armário?


Eve estava chocada. Araras, armários e prateleiras se erguiam
pelos quatro metros de parede, tudo abarrotado.
— Pois é — falei, me lembrando de como eu tinha me sentido
quando trouxeram as roupas. — Você devia ver o closet no quarto
que era da Skye. Tem cento e setenta metros quadrados, dois
andares e um bar de champanhe.
Eve encarou as roupas.
— Fique à vontade — falei, mas ela não se mexeu. — Sério —
insisti. — Pegue o que quiser.
Ela tocou uma blusa verde-clara, mas congelou quando sentiu o
tecido. Eu não era ligada em moda, mas a maciez incrível de roupas
caras, a sensação delas, era o que ainda me pegava também.
— Toby não queria que eu me envolvesse com isso — disse Eve,
que continuava olhando a blusa. — A mansão. A comida. As roupas.
Ela inspirou fundo, audível.
— Ele odiava esse lugar. Odiava. E quando eu perguntava por
que, tudo que ele dizia era que a família Hawthorne não era o que
parecia ser, que a família dele tinha segredos — continuou, e
finalmente puxou a blusa verde do cabide. — Segredos sombrios.
Talvez até perigosos.
Eu pensei em todos os segredos dos Hawthorne que eu tinha
descoberto desde que chegara: não apenas a verdade a respeito da
adoção de Toby ou o papel dele no incêndio na ilha Hawthorne, mas
todo o resto.
Nan matou o marido. Zara traiu seus dois. Skye deu o sobrenome
dos pais como nome dos filhos e pelo menos um deles era um
homem perigoso. Tobias Hawthorne subornou o pai de Nash para
manter distância. Jameson viu Emily Laughlin morrer.
E isso sem contar os segredos que eu mesma tinha ajudado a
criar desde que chegara. Eu tinha permitido que Grayson encobrisse
o envolvimento da mãe no atentado contra minha vida e colocasse
toda a culpa no ex-namorado abusivo de Libby. Tinha feito vista
grossa quando Toby e Oren decidiram que o corpo de Sheffield
Grayson precisava desaparecer.
Na minha frente, Eve ainda estava esperando que eu dissesse
alguma coisa.
— Vou deixar você se vestir — falei.
De volta ao quarto, me peguei pensando em quais outros
segredos dos Hawthorne eu ainda não sabia. Voltei para a foto de
Toby e me permiti olhar diretamente em seus olhos.Isso é por causa
de você, de mim ou dessa família? Quantos inimigos nós temos?
Uma batida invadiu meus pensamentos. Abri a porta e encontrei o
sr. Laughlin ali — e Oren, junto com o guarda de Eve, postado no
corredor.
— Perdoe a interrupção, Avery. Trouxe uma coisa para você.
O velho caseiro trazia um carrinho cheio de longos rolos de papel.
Outra entrega especial? Meu coração acelerou.
— Foi uma entrega?
— Eu mesmo que achei.
Por mais ásperos que fossem os modos do sr. Laughlin, havia
algo quase gentil em seus olhos cor de musgo.
— Você acabou de fazer aniversário — explicou. — Todo ano,
depois do aniversário dele, o sr. Hawthorne fazia planos para a
próxima expansão da casa.
Tobias Hawthorne nunca tinha terminado a Casa Hawthorne. Ele
acrescentava algo todo ano.
— Aqui estão as plantas — disse o sr. Laughlin, e apontou o
carrinho com a cabeça enquanto o levava para dentro do quarto. —
Uma para cada ano desde que começamos a construção. Pensei
que você poderia querer vê-las se estiver planejando seu próximo
acréscimo.
— Eu? Acrescentar algo à Casa Hawthorne?
Eve entrou no quarto, vestindo a blusa de seda verde. Por um
momento, ela encarou as plantas da mesma forma que tinha
encarado as roupas no meu armário. Até que alguém apareceu na
porta.
Jameson. O rosto e corpo dele estavam cobertos de lama. A
camisa estava rasgada, e o ombro, sangrando.
O sr. Laughlin passou um braço em volta do ombro de Eve.
— Vamos, mocinha. É melhor irmos embora.
CAPÍTULO 22

— Você está sangrando — eu disse a Jameson.


Ele mostrou os dentes em um sorriso maldoso.
— Também estou perigosamente perto de sujar... tudo.
Havia lama no rosto e no cabelo dele. As roupas estavam
ensopadas, a camisa grudada no abdômen, me permitindo ver cada
linha de músculo por baixo.
— Antes que você pergunte — murmurou Jameson —, eu estou
bem e Gray, também.
Eu me perguntei se Grayson Hawthorne tinha uma gota de lama
sequer na roupa.
— Oren disse que as coisas ficaram feias estilo Hawthorne.
Eu olhei feio para Jameson. Ele deu de ombros.
— Skye sempre dá um jeito de mexer com a nossa cabeça —
disse Jameson, sem elaborar a respeito da lama, do sangue ou do
que exatamente ele e Grayson tinham aprontado. — No fim das
contas, descobrimos o que precisávamos. Skye não está envolvida
no sequestro.
Desde então, eu já tinha descoberto muito mais. Contei tudo a
Jameson em um jorro de palavras: a foto de Toby, a mensagem que
o sequestrador tinha escondido nela, os comentários de Eve a
respeito de segredos sombrios e perigosos, o que Oren tinha me
dito a respeito das tentativas de contratar minha equipe de
segurança.
Quanto mais eu falava, mais perto Jameson chegava de mim, e
mais perto eu precisava ficar dele.
— Não importa o que eu faça — falei, nossos corpos se tocando
—, sinto que não estou chegando a lugar nenhum.
— Talvez seja esse o objetivo, Herdeira.
Eu reconheci o tom na voz dele, um tom que conhecia tão bem
quanto cada uma das suas cicatrizes.
— No que você está pensando, Hawthorne?
— A segunda mensagem muda as coisas.
Jameson fechou os braços ao meu redor. Senti a lama molhar
minha blusa, o calor do corpo dele através da roupa.
— Nós estávamos errados — falou.
— Sobre o quê? — perguntei.
— A pessoa com quem estamos lidando... ela não está jogando
um jogo Hawthorne. Nos jogos do velho, as pistas estão sempre em
sequência. Uma pista leva a outra, se você souber resolvê-la.
— Mas, dessa vez — falei, seguindo a linha de raciocínio dele —,
a primeira mensagem não nos levou a lugar nenhum. A segunda
mensagem só veio.
Jameson ergueu a mão para tocar meu rosto, me sujando mais de
lama.
— Ou seja, as pistas do jogo não são sequenciais. Resolver uma
não vai magicamente te levar à próxima, Herdeira, não importa o
que você faça. Ou o sequestrador de Toby só quer te deixar
assustada, e nesse caso são só ameaças vagas, sem um desenho
maior...
Eu o encarei.
— Ou? — perguntei, porque ele tinha dado a alternativa.
— Ou — murmurou Jameson — tudo é parte da mesma charada:
uma resposta, muitas pistas.
Os ossos do quadril dele pressionaram de leve meu estômago.
— Uma charada — repeti, minha voz áspera. — Quem levou
Toby... e por quê?
Vingança. Revanche. Vendeta. Vingador. Eu sempre venço no
final.
— Uma charada incompleta — continuou Jameson. — Montada
pouco a pouco. Ou uma história... e estamos à mercê do narrador.
A pessoa que liberava dicas, pistas que não davam em lugar
nenhum sozinhas.
— Nós não temos o necessário para resolver isso — falei,
odiando o que estava dizendo e o quão derrotada eu soava. —
Temos?
— Ainda não.
Eu queria gritar, mas, em vez disso, ergui os olhos para ele. Vi um
corte aberto na parte de baixo de sua mandíbula e ergui a mão para
levantar seu queixo.
— Isso está feio.
— Pelo contrário, Herdeira, sangue fica ótimo em mim.
Xander não era o único Hawthorne especializado em distrações.
Como precisava disso, e não gostava nada daquele corte no
queixo dele, eu me permiti ser distraída.
— Vamos fazer um jogo — sugeri. — Eu aposto que você não
consegue tomar banho e tirar toda essa lama antes que eu encontre
o que precisamos do kit de primeiros socorros.
— Eu tenho uma ideia melhor.
Jameson inclinou a boca na direção da minha. Estiquei o
pescoço. Mais lama no meu rosto, nas minhas roupas.
— Eu aposto — contrapôs — que você não consegue tirar toda
essa lama antes que eu...
— Antes que você o quê? — murmurei.
Jameson Winchester Hawthorne sorriu.
— Adivinhe.
CAPÍTULO 23

— Sua vez.
Estou de volta ao parque, jogando xadrez com Harry. Toby. No
momento em que penso no nome dele, o rosto muda. A barba
some, seu rosto fica roxo e inchado.
— Quem fez isso com você? — pergunto, a voz ecoando até que
eu mal escute meus pensamentos. — Toby, você precisa me contar.
Se eu conseguisse fazê-lo me contar, eu saberia.
— Sua vez.
Toby bate o cavalo preto em uma nova posição no tabuleiro.
Olho para baixo, mas não consigo mais ver nenhuma das peças.
Há apenas sombras e neblina onde elas deveriam estar.
— Sua vez, Avery Kylie Grambs.
Giro a cabeça, porque não é a voz de Toby que está falando.
Tobias Hawthorne me encara do outro lado da mesa.
— A questão da estratégia — diz ele — é que você sempre tem
que pensar sete movimentos à frente.
Ele se debruça na mesa.
No momento seguinte, me agarra pelo pescoço.
— Algumas pessoas matam dois coelhos com uma cajadada só
— diz, me estrangulando. — Eu mato doze.

Acordei congelada, paralisada no meu próprio corpo, com o coração


na garganta, incapaz de respirar. Foi só um sonho. Consegui
inspirar oxigênio e saí da cama rolando, aterrissando agachada.
Respire. Respire. Respire. Eu não sabia que horas eram, mas ainda
estava escuro lá fora. Olhei para a cama.
Jameson não estava lá. Isso acontecia às vezes quando o
cérebro dele não queria parar. A única pergunta naquela noite era:
parar o quê?
Tentando afastar os últimos vestígios do sonho, prendi a faca na
bainha e fui procurá-lo, indo até o escritório de Tobias Hawthorne.
O cômodo estava vazio. Nada de Jameson. Eu me peguei
olhando a parede de troféus que os netos Hawthorne tinham
ganhado — e não apenas troféus. Livros que tinham publicado,
patentes que tinham registrado. Prova de que Tobias Hawthorne
havia tornado seus netos extraordinários.
Ele os tinha feito à sua imagem e semelhança.
O bilionário morto tinha sempre pensado sete movimentos à
frente, matado doze coelhos com uma cajadada só. Quantas vezes
os meninos tinham me dito aquilo? Ainda assim, eu não conseguia
deixar de sentir que meu subconsciente tinha me dado um aviso —
e não era a respeito de Tobias Hawthorne.
Alguém mais estava por aí, montando estratégias, pensando sete
passos à frente. Um narrador contando uma história e fazendo suas
jogadas.
Eu sempre venço no final.
Com a frustração crescendo dentro de mim, abri a porta da
varanda. Deixei que o ar da noite acertasse meu rosto, o inspirei. Lá
embaixo, Grayson estava na piscina, nadando na calada da noite, a
água iluminada o suficiente para eu ver sua silhueta. No momento
em que o vi, a memória tomou conta de mim.
Um copo de cristal na mesa em frente a ele. Suas mãos nas
laterais do copo, os músculos tensos, como se pudesse explodir a
qualquer momento. Não me deixei afundar na memória, mas outro
fragmento dela me acertou de toda forma enquanto eu via Grayson
nadar lá embaixo.
— Você salvou aquela menininha — digo.
— Irrelevante — respondeu, o olhar prateado e assombrado
encontrando o meu. — Ela foi fácil de salvar.
Outra luz externa se acendeu lá embaixo. O sensor de movimento
da piscina. Levei a mão à faca e estava prestes a chamar a
segurança quando vi a pessoa que tinha disparado o sensor.
Eve estava de camisola, uma camisola minha, que eu não me
lembrava de ter emprestado. Ia até o meio da coxa. Uma brisa
soprou o tecido no segundo antes de Grayson vê-la. Dali, eu não
enxergava a expressão deles. Eu não ouvia o que diziam.
Mas vi Grayson sair da piscina.
— Avery.
Eu me virei.
— Jameson. Eu acordei e você tinha saído.
— É a insônia dos Hawthorne. Eu estava com a cabeça cheia.
Jameson passou por mim e olhou para baixo. Interpretei o gesto
como permissão para também olhar de novo. Para ver Grayson
passar um braço em volta de Eve. Ele está molhado. Ela não se
importa.
— Quanto tempo você teria ficado aqui olhando para eles se eu
não tivesse chegado? — perguntou Jameson, um tom estranho na
voz.
— Eu já te disse, estou preocupada com Grayson.
Minha boca estava seca.
— Herdeira — disse Jameson, virando-se para mim. — Não foi
isso que eu quis dizer.
Um nó subiu pela minha garganta.
— Você vai ter que ser mais específico.
Lenta e deliberadamente, Jameson me empurrou contra a parede.
Ele esperou, como sempre fazia, que eu assentisse, e então acabou
com o espaço entre nós. Esmagou a minha boca contra a dele.
Enrosquei as pernas em seus quadris enquanto ele me prendia na
parede
Jameson Winchester Hawthorne.
— Isso foi bem... específico — falei, tentando recuperar o fôlego.
Ele ainda estava me segurando, e eu não podia fingir que não
sabia por que ele precisava me beijar assim.
— Eu estou com você, Jameson — insisti. — Quero estar com
você.
Então por que você se importa com como Grayson olha para ela?
A pergunta estava viva no ar entre nós, mas Jameson não a fez.
— Sempre seria Grayson — disse ele, me soltando.
— Não — insisti.
Estendi o braço e o puxei de volta.
— Para Emily — concluiu Jameson. — Sempre seria Grayson. Ela
e eu... nós éramos parecidos demais.
— Você não é nada parecido com Emily — falei, feroz.
Emily tinha manipulado eles dois. Tinha colocado um contra o
outro.
— Você não a conheceu — disse Jameson. — Você não me
conheceu naquela época.
— Eu te conheço agora.
Ele olhou para mim com uma expressão que doeu.
— Eu sei da adega, Herdeira.
Meu coração parou, minha garganta se fechando na expiração
que não conseguia soltar. Imaginei Grayson de joelhos na minha
frente.
— O que você acha que sabe?
— Gray estava mal — disse Jameson, e seu tom combinava
perfeitamente com a expressão no rosto dele, cavernosa e cheia de
alguma coisa. — Você foi ver como ele estava. E...
— E o que, Jameson?
Eu o encarei, tentando me ancorar no momento, mas incapaz de
afastar completamente a memória que eu não tinha direito de
guardar.
— E no dia seguinte Grayson não conseguia olhar para você.
Nem para mim. Ele foi para Harvard três dias antes do previsto.
Então eu entendi.
— Não — insisti. — O que quer que você esteja pensando,
Jameson... eu nunca faria isso com você.
— Eu sei disso, Herdeira.
— Sabe mesmo? — perguntei, porque a voz dele tinha ficado
embargada.
Ele não estava agindo como se soubesse.
— Não é em você que eu não confio.
— Grayson não...
— Também não é no meu irmão — disse Jameson, e me olhou de
um jeito sombrio e perturbado, cheio de desejo. — Lealdade nunca
foi meu forte, Herdeira.
Parecia algo que Jameson teria dito quando acabamos de nos
conhecer.
— Não diga isso — falei. — Não fale de você mesmo assim.
— Gray sempre foi tão perfeito — disse Jameson. — É absurdo o
quanto ele era bom em praticamente tudo. Se estivéssemos
competindo, em qualquer coisa, sinceramente, e eu quisesse
ganhar, eu não conseguiria se fosse o melhor. Eu precisava ser pior.
Eu precisava passar de limites que ele não passaria, arriscar...
quanto maior e mais impensável para ele, melhor.
Eu pensei em Skye, na vez em que me contara que Jameson
Winchester Hawthorne era faminto.
— Eu nunca aprendi a ser bom ou honrado, Herdeira — disse
Jameson, e levou as mãos ao meu rosto, enfiou os dedos no meu
cabelo. — Eu aprendi a ser ruim das formas mais estratégicas
possíveis. Mas agora? Com você? — falou, e sacudiu a cabeça. —
Eu quero ser melhor do que isso. Eu quero. Eu nunca quero que
você... que nós, que isso, se torne um jogo.
Ele passou o polegar pelo meu maxilar, os dedos roçando de leve
minhas maçãs do rosto.
— Então se você decidir que não tem certeza disso, Herdeira, de
mim... — continuou.
— Eu tenho certeza — falei, pegando suas mãos.
Pressionei os nós dos dedos dele na minha boca e percebi que
estavam inchados.
— Tenho mesmo, Jameson.
— Você precisa ter. — Havia urgência nas palavras de Jameson,
uma necessidade. — Porque eu sou terrível em sofrer, Herdeira. E
se o que temos agora, se tudo que temos agora, começar a parecer
outra competição entre Grayson e eu, outro jogo... Eu não confio
que não vá jogar.
CAPÍTULO 24

Na manhã seguinte, acordei com a cama vazia e alguém batendo


à minha porta.
— Eu vou entrar — gritou Alisa.
Ela tentou abrir a porta, mas Oren a impediu do corredor.
— Eu podia estar pelada — resmunguei alto, rapidamente me
enfiando em calças de moletom de grife antes de dizer a Oren para
deixá-la entrar.
— E poderia contar com a minha discrição se estivesse —
respondeu Alisa, seca. — Confidencialidade entre cliente e
advogado.
— Isso foi uma piada? — perguntei.
Em resposta, Alisa colocou uma mala de couro na minha cômoda.
— Se isso for mais papelada — falei —, eu não quero.
Eu já tinha preocupações o suficiente sem pensar na papelada do
fundo... nem no diário que Grayson tinha me dado, cujas páginas
ainda estavam em branco.
— Não é papelada.
Alisa não esclareceu o que a mala era. Em vez disso, fez o que
eu chamava de Cara de Alisa.
— Você deveria ter me ligado — falou. — Assim que alguém
apareceu dizendo ser filha de Toby Hawthorne, você deveria ter me
ligado.
Olhei para Oren, me perguntando se ele tinha mudado de ideia e
contado a ela sobre Eve.
— Por quê? — perguntei a Alisa. — O testamento foi aprovado.
Eve não é uma ameaça jurídica.
— Não é só por causa do testamento. O bilhete ameaçador que
você recebeu...
Bilhetes, no plural. Olhei para Oren e ele sacudiu a cabeça de
leve; não tinha sido ele quem tinha contado nada daquilo a ela.
Alisa revirou os olhos para nós dois.
— Essa é a parte em que você me diz, equivocadamente, que
está tudo sob controle.
— Eu a aconselhei a não chamar você — disse Oren, sem
rodeios. — Era uma questão de segurança, não uma questão
jurídica.
— Jura, Oren?
Por um segundo, Alisa pareceu magoada, mas logo converteu a
emoção em irritação profissional extrema.
— Vamos falar do elefante na sala, que tal? — disse ela. — Sim,
eu corri um risco quando Avery estava em coma, mas se eu não a
tivesse trazido de volta para a Casa Hawthorne naquele momento,
ela não teria uma equipe de segurança. Os termos do testamento
eram inescapáveis. Você entende, Oren? Se eu não tivesse feito o
que fiz, Avery não poderia viver na Casa Hawthorne com toda essa
segurança sofisticada. Você não poderia pagar sua equipe —
continuou Alisa, e o encarou com dureza. — Ela estaria na rua sem
nada. Então, sim, eu assumi um risco calculado, e graças a Deus.
Ela se virou para mim.
— Já que eu sou a única nesse quarto que pode dizer que toma
decisões inteligentes e adequadas sob pressão... — continuou. —
Quando as coisas começarem a pegar fogo, é bom você pegar o
telefone.
Eu fiz uma careta.
— Do jeito que as coisas foram — resmungou Alisa —, eu
precisei ficar sabendo disso por Nash.
Levei um susto tão grande que respondi:
— Nash te ligou?
— Ele nem aguenta estar no mesmo cômodo que eu — disse
Alisa suavemente —, mas ligou. Porque ele sabe que eu sou boa no
meu trabalho.
Ela andou até mim, os sapatos de salto estalando no chão de
madeira.
— Eu não posso te ajudar se você não deixar, Avery, nem com
isso, nem com tudo que você está prestes a ter que enfrentar.
O dinheiro. Ela estava falando da minha herança... e do fundo.
— O que aconteceu, Alisa? — perguntou Oren, de braços
cruzados.
— O que te faz achar que aconteceu alguma coisa? — perguntou
Alisa, fria.
— Instinto — respondeu meu chefe de segurança. — E o fato de
que alguém vem tentando esburacar a equipe de segurança de
Avery.
Quase dava para ver Alisa arquivar aquela informação.
— Eu fiquei sabendo de uma campanha de difamação — disse
ela, pagando Oren na mesma moeda. — Sites de fofoca, no geral.
Nada com que você precise se preocupar, Avery, mas um dos meus
contatos na imprensa me disse que o preço para fotos suas com
qualquer um dos Hawthorne inexplicavelmente triplicou. Enquanto
isso, pelo menos três empresas nas quais Tobias Hawthorne
possuía ações consideráveis estão enfrentando... turbulências.
Oren estreitou os olhos.
— Que tipo de turbulência?
— Mudança de CEO, escândalo repentino, investigação da
vigilância sanitária...
Vingança. Revanche. Vendeta. Vingador. Eu sempre venço no
final.
— Na parte dos negócios, o que estamos procurando? —
perguntou Oren a Alisa.
— Riqueza. Poder. Contatos — respondeu Alisa, travando o
maxilar. — Eu estou cuidando disso.
Ela estava cuidando disso. Oren estava cuidando disso. Mas não
estávamos nem um pouco mais perto de uma resposta, nem de
recuperar Toby, e não havia nada que eu pudesse fazer. Uma
charada incompleta. Uma história... e nós estamos à mercê do
narrador.
— Eu aviso assim que souber de alguma coisa — disse Alisa. —
Enquanto isso, precisamos manter Eve feliz, longe da imprensa e
sob vigilância, até que a firma possa examinar o melhor rumo. Eu
desconfio que seja o caso de uma combinação modesta, em troca
de um acordo de confidencialidade.
Em pleno modo de advogada, Alisa nem fez uma pausa antes de
seguir para o outro tópico na lista:
— Se, em algum momento, um resgate precisar ser arranjado, a
firma pode cuidar disso também.
Era para aí que estávamos indo? O final da história, quando a
charada estivesse completa? O sequestrador de Toby estava só me
posicionando onde queria para fazer exigências?
— Eu vou mandar minha equipe mantê-la informada — disse
Oren, seco, a Alisa.
Minha advogada assentiu como se não esperasse nada menos,
mas eu senti que Oren confiar nela de novo era importante.
— Eu suponho que a única questão que resta seja aquilo — disse
Alisa, e apontou com a cabeça para a bolsa de couro que tinha
deixado na cômoda. — Quando eu atualizei os sócios sobre a
situação atual, me deram essa bolsa e seu conteúdo para te
entregar, Avery.
— O que é isso? — perguntei, me aproximando da cômoda.
— Eu não sei — disse Alisa, a expressão perturbada. — As
instruções do sr. Hawthorne foram que a bolsa deveria ser mantida
segura e fechada, a menos que certas condições se dessem, e
nesse caso ela deveria ser imediatamente entregue a você.
Eu encarei a bolsa. Tobias Hawthorne tinha me deixado sua
fortuna, mas a única mensagem que eu já tinha recebido dele era
um total de duas palavras: sinto muito. Eu estendi a mão para tocar
a bolsa de couro.
— Que condições?
Alisa pigarreou.
— Nós deveríamos te entregar isso caso um dia você conhecesse
Evelyn Shane.
Eu me lembrava vagamente que Eve era apelido de Evelyn —
mas então outra coisa me bateu. O velho sabia de Eve. A revelação
me acertou como farpas nos pulmões. Eu tinha suposto que o
bilionário morto não sabia da filha verdadeira de Toby. Em certo
ponto, eu tinha começado a acreditar que, no fundo, que só tinha
sido escolhida para herdar porque Tobias Hawthorne não tinha
notado que havia alguém por aí que cabia em seus propósitos
melhor do que eu.
Uma cajadada que matava a mesma quantidade de coelhos. Uma
bailarina de vidro mais elegante. Uma faca mais afiada.
Mas ele sempre soubera de Eve.
CAPÍTULO 25

Alisa foi embora. Oren assumiu sua posição no corredor e tudo


que eu conseguia fazer foi encarar a bolsa. Mesmo sem abri-la, eu
sabia com certeza o que encontraria lá dentro. Um jogo.
O velho tinha me deixado um jogo.
Eu queria chamar Jameson, mas tudo que ele tinha dito à noite
ainda estava ali, como um fantasma na minha mente. Eu não sabia
quanto tempo passara encarando o último presente de Tobias
Hawthorne antes de Libby enfiar a cabeça para dentro do meu
quarto.
— Panqueca de bolinho?
Minha irmã estendeu um prato com uma pilha alta de sua última
invenção, então seguiu a direção do meu olhar.
— Nova bolsa de computador? — chutou.
— Não — respondi.
Peguei as panquecas de Libby e contei a ela sobre a bolsa de
couro.
— Você vai... abri-la? — perguntou minha irmã, inocentemente.
Eu queria ver o que estava na bolsa. Eu queria muito jogar um
jogo que efetivamente fosse para algum lugar. Mas abrir a bolsa
sem Jameson parecia admitir que havia algo errado.
Libby me passou um garfo e eu notei a pele do seu pulso
esquerdo. Alguns meses antes, ela tinha feito uma tatuagem, uma
única palavra que ia de um osso a outro, logo abaixo da mão.
SOBREVIVENTE.
— Ainda está pensando no que quer no outro pulso? — perguntei.
Libby olhou para o braço.
— Talvez minha próxima tatuagem possa ser... abra a bolsa,
Avery!
O entusiasmo na voz dela me lembrou do momento em que
descobrimos que eu tinha sido citada no testamento de Tobias
Hawthorne.
— Que tal amor? — sugeri.
Libby estreitou os olhos.
— Se for por causa de mim e Nash...
— Não é — eu disse. — É só por sua causa, Lib. Você é a pessoa
mais amorosa que eu conheço.
Ela já tinha sido magoada por tanta gente que amava que, depois
disso, parecia ver seu coração enorme como uma fraqueza, mas
não era.
— Você me acolheu — eu a lembrei — quando eu não tinha
ninguém.
Libby encarou os dois pulsos.
— Abra logo a droga da bolsa.
Eu hesitei de novo, então me irritei. Era meu jogo. Pela primeira
vez, eu não era parte do quebra-cabeça, uma ferramenta, e sim
uma jogadora.
Então, jogue.
Eu peguei a bolsa. O couro era macio. Explorei as alças com os
dedos. Teria sido a cara do velho deixar uma mensagem gravada no
couro. Quando não encontrei nada, abri o fecho e levantei a parte
da frente.
No bolso principal, encontrei quatro coisas: um vaporizador
portátil, uma lanterna, uma toalha de praia e uma bolsa de tela cheia
de letras magnéticas. À primeira vista, a coleção de objetos parecia
aleatória, mas eu sabia que não era. Sempre havia um método por
trás da loucura do velho. No início de cada um dos desafios que
dava aos meninos nas manhãs de sábado, o bilionário espalhava
uma série de objetos. Um anzol, uma etiqueta, uma bailarina de
vidro, uma faca. No final do jogo, todos os objetos tinham servido a
um propósito.
Sequencial. Os jogos do velho são sempre sequenciais. Eu só
preciso descobrir por onde começar.
Procurei nos bolsos laterais e fui recompensada com mais dois
objetos: um pen-drive e um círculo de vidro azul-esverdeado. Esse
último tinha o tamanho de um prato de jantar e a grossura de duas
moedas de 25 centavos empilhadas, e era translúcido o suficiente
para eu enxergar através dele. Quando ergui o vidro e olhei por ele,
pensei no pedaço de acetato vermelho que Tobias Hawthorne tinha
deixado dentro da capa de um livro.
— Isso pode servir para decodificar alguma coisa — disse a Libby.
— Se conseguirmos achar algo escrito no mesmo tom azul-
esverdeado do vidro...
Minha cabeça ficou a mil com as possibilidades. Era assim para
os meninos Hawthorne depois de tantos anos jogando os jogos do
velho? Cada pista os lembrava de outra que já tinham resolvido
antes?
Libby correu para a escrivaninha e pegou meu notebook.
— Aqui. Testa o pen-drive.
Eu o enfiei, me sentindo no limite de alguma coisa. Um único
arquivo surgiu: AVERYKYLIEGRAMBS.MP3. Olhei para o meu nome e
rearranjei mentalmente as letras. A very risky gamble. Uma aposta
muito arriscada. Cliquei no arquivo. Depois de uma breve espera, fui
atingida por uma onda de som indecifrável, quase ruído branco.
Controlei o impulso de cobrir as orelhas.
— Melhor abaixar? — perguntou Libby.
— Não.
Eu pausei, e puxei o áudio de volta para o início. Depois de me
preparar, aumentei o volume. Quando dei play, não ouvi apenas
ruído, mas também uma voz, só que de jeito nenhum conseguiria
distinguir as palavras. Era como se o arquivo tivesse sido
corrompido. Eu sentia que estava ouvindo alguém que não
conseguia emitir um som completo.
Toquei a faixa seis, sete, oito vezes, mas repetir não ajudava.
Tocar em velocidades diferentes não ajudava. Baixei um aplicativo
que me permitia tocá-la ao contrário. Nada.
Eu não tinha o necessário para que o arquivo fizesse sentido.
Ainda.
— Tem que ter alguma coisa aqui — eu disse para minha irmã. —
Uma pista que dispare as coisas. Podemos não entender o arquivo
agora, mas, se seguirmos a trilha que o velho deixou, o jogo pode
nos contar como restaurar o áudio.
Libby arregalou os olhos.
— Você está falando exatamente que nem eles. O jeito que você
disse o velho, parece que o conhecia.
De certa forma, eu sentia que o conhecia mesmo. Pelo menos, eu
sabia como os Hawthorne pensavam, então, dessa vez, não só
passei os dedos pelo couro da bolsa. Inspecionei detalhadamente a
bolsa inteira, procurando qualquer coisa que pudesse ter deixado
passar, e então examinei os objetos um a um.
Comecei com o vaporizador, que liguei na tomada. Abri o
compartimento que teria água. Depois de verificar que estava vazio,
acrescentei água, com certa esperança de que algum tipo de
mensagem aparecesse nas laterais.
Nada.
Encaixei o compartimento e esperei até que a luz acendesse.
Afastando o vaporizador do meu corpo, eu o experimentei.
— Funciona — falei.
— Devemos testar ele nessa bolsa, que provavelmente custa dez
mil dólares e com certeza não deveria ser passada com
vaporizador? — perguntou Libby.
Nós tentamos, sem resultado. Pelo menos nada que se
relacionasse com o quebra-cabeça. Voltei a atenção para a lanterna,
ligando-a e desligando-a, e examinei o compartimento de pilha para
garantir que não continha nada além de pilhas. Desdobrei a toalha
de praia e me levantei para ver o desenho de cima.
Listras pretas e brancas, sem falhas inesperadas na estampa.
— Então só resta isso — falei, abrindo a bolsa de tela e jogando
as dezenas de letras magnéticas no chão. — Talvez escreva a
primeira pista?
Comecei a separar as letras: consoantes em uma pilha, vogais na
outra. Achei um 7 e comecei uma terceira pilha para números.
— Quarenta e cinco peças no total — falei ao terminar. — Doze
números, cinco vogais e vinte e oito consoantes.
Enquanto falava, puxei as cinco vogais: uma de cada, A, E, I, O e
U. Não me pareceu coincidência, então comecei a puxar as
consoantes também — uma de cada letra, até eu ter todo o alfabeto
representado, com sete letras deixadas para trás.
— Essas são as que sobraram — eu disse a Libby. — Um B, três
Ps e três Qs.
Fiz a mesma coisa com os números, puxando cada dígito de um a
nove e voltando a atenção para as sobras.
— Três quatros — falei, e encarei o que eu tinha. — B, P, P, P, Q,
Q, Q, 4, 4, 4.
Repeti aquilo algumas vezes. Uma frase me veio à mente: antes
de P e B. Pensei nela por um momento, então deixei para lá. O que
eu não estava vendo?
— Não que eu seja exatamente um gênio — se meteu Libby —,
mas não acho que você vá tirar palavras dessas letras.
Nenhuma vogal. Considerei começar de novo, jogando com as
letras de uma maneira diferente, mas não consegui.
— São três de cada — eu disse —, exceto pelo B.
Peguei o B e passei o polegar por sua superfície. O que eu não
estava vendo? P, P, P, Q, Q, Q, 4, 4, 4, mas só um B. Fechei os
olhos. Tobias Hawthorne tinha montado o quebra-cabeça para mim.
Ele deveria ter motivos para acreditar não apenas que a solução era
possível, mas também que eu podia resolvê-lo. Pensei no arquivo
que o bilionário tinha mantido a meu respeito. Imagens de mim
mesma fazendo todo tipo de coisa, de trabalhar em uma lanchonete
a jogar xadrez.
Pensei no meu sonho.
Então eu vi — primeiro na minha mente e, quando abri os olhos,
bem na minha frente. P, Q, 4. Puxei as três peças para baixo e
repeti o processo. P, Q, 4. Quando vi o que tinha restado, meu
coração saltou para a garganta, martelando como se eu estivesse
na beira de uma cachoeira.
— P, Q, B, quatro — falei, ofegante.
— Cobertura de cream cheese e corpetes de veludo preto! —
respondeu Libby. — Estamos dizendo combinações aleatórias de
coisas, né?
Eu sacudi a cabeça.
— O código... não são palavras — expliquei. — São notações de
xadrez... descritivas, não algébricas.
Depois da morte da minha mãe, muito antes de eu sequer ouvir o
nome Hawthorne, eu tinha jogado xadrez no parque com um homem
que conhecia como Harry. Toby Hawthorne. O pai dele sabia disso
— sabia que eu jogava, sabia com quem eu jogava.
— É uma forma de controlar seus movimentos e os do seu
oponente — falei, sentindo uma onda de energia correr pelas veias.
— Esse aqui, P-Q4, é a abreviação de peão para casa quatro da
rainha, queen. É um movimento comum de abertura, que
frequentemente é respondido com o preto fazendo o mesmo
movimento, peão para casa quatro da rainha. Então o peão branco
vai para a casa quatro do bispo da rainha.
P-QB4.
— Então — disse Libby com um tom sábio —, xadrez.
— Xadrez — repeti. — O movimento... é chamado de gambito da
rainha. Quem está jogando com as brancas coloca o segundo peão
em posição de ser sacrificado, por isso é considerado um gambito.
— Por que você sacrificaria uma peça? — perguntou Libby.
Pensei no bilionário Tobias Hawthorne, em Toby, em Jameson,
Grayson, Xander e Nash.
— Para controlar o tabuleiro — respondi.
Era tentador ler um significado maior naquilo, mas eu não podia
me demorar. Já tinha a primeira pista. Ela ia me levar a outra.
Comecei a andar.
— Aonde você vai? — gritou Libby atrás de mim. — E quer que
eu mande Jameson nos encontrar? Ou Max?
— Ao salão de jogos — falei, e cheguei à porta antes de
responder a segunda parte da pergunta, sentindo o estômago se
retorcer. — E chame a Max.
CAPÍTULO 26

Estantes embutidas cobriam as paredes, todas transbordando de


jogos.
— Você acha que os Hawthorne já jogaram tudo isso? —
perguntou Max a Libby e eu.
Havia centenas de caixas naquelas estantes, talvez até mil.
— Tudo, sim — falei.
Não havia nada mais Hawthorne do que ganhar.
Se o que nós temos agora, se tudo que temos agora, começar a
parecer outra competição entre Grayson e eu, outro jogo... Eu não
confio que não vá jogar.
Fechei aquela porta na minha mente.
— Estamos procurando tabuleiros de xadrez — falei, me
concentrando. — Deve haver mais de um. E enquanto estamos
procurando... — acrescentei, com um olhar significativo para minha
melhor amiga. — Max pode nos atualizar da situação com Xander.
Melhor o drama romântico dela que o meu.
— Tudo que envolve Xander é uma situação — disse Max, se
esquivando. — Ele é especialista em situações!
Olhei para as caixas na estante mais próxima, em busca de jogos
de xadrez.
— Verdade — concordei e esperei, sabendo que ela cederia.
— É... novo — disse Max, se abaixando para olhar as prateleiras.
— Tipo, muito novo. E você sabe que eu odeio rótulos.
— Você ama rótulos — falei, passando os dedos por jogo atrás de
jogo. — Você literalmente tem mais de um rotulador.
Tabuleiro de xadrez! Vitoriosa, puxei a caixa da estante e
continuei procurando.
— A situação... Xander, eu. É... divertida. Relacionamentos
deveriam ser divertidos?
Eu pensei em balões de ar quente, helicópteros e dançar
descalços na praia.
— Quer dizer, eu nunca cheguei a ser amiga de um cara antes de
virar outra coisa — continuou Max. — Tipo, mesmo na ficção,
amigos que viram casal... nunca foi a minha praia. Eu sou mais de
tragédia condenada, almas gêmeas supernaturais, inimigos que
viram casal. Épico, sabe?
— Não dá para ser mais épico que os Hawthorne — disse Libby, e
então, como se tivesse sido pega no flagra, se corrigiu, voltando a
atenção para a estante e puxando o segundo tabuleiro de xadrez.
— Sabe o que Xander fez quando eu tive minha primeira prova na
faculdade? — disse Max, tagarelando. — Antes das coisas ficarem
românticas? Ele me mandou um buquê de livros.
— O que é um buquê de livros? — perguntou Libby.
— Exatamente! — disse Max. — Exatamente, forra.
— Você gosta dele — traduzi. — Muito.
— Vamos só dizer que eu estou definitivamente reconsiderando
meus clichês favoritos.
Max se levantou de um salto com uma caixa de madeira na mão.
— Número três — declarou.
No final, eram seis. Eu examinei as caixas, procurando por
alguma coisa escrita no papelão, gravada no metal ou entalhada na
madeira. Nada. Verifiquei se não faltava nenhuma peça, então enfiei
a mão na bolsa de couro e puxei a lanterna. Até onde eu sabia, era
só uma lanterna normal, mas eu estava metida com os Hawthorne
havia tempo suficiente para saber que existiam dezenas de tipos de
tinta invisível. Pensando nisso, joguei a luz em cada um dos seis
tabuleiros de xadrez. Depois, inspecionei cada peça. Nada.
Frustrada, ergui o olhar — e vi Grayson na porta, na contraluz. Na
memória, eu ainda o via abraçar Eve. Ele está molhado. Ela não se
importa.
Eu me levantei.
— Xander está procurando você — disse Grayson a Max, seco.
— Eu sugeri que ele mandasse uma mensagem, mas ele diz que
seria trapacear.
Max se virou para mim.
— Xander vai me levar ao aeroporto.
Eu detestava aquilo.
— Tem certeza de que precisa ir? — perguntei, tristeza pesando
na boca do meu estômago.
— Você quer que eu jubile na faculdade e acabe com as chances
de fazer pós-graduação ou virar médica ou advogada?
Bufei profundamente.
— Oren está mandando alguém com você?
— Me garantiram que meu novo guarda-costas é
excepcionalmente melancólico, com muitas camadas ocultas —
disse Max, e me abraçou. — Me ligue. Constantemente. E você! —
disse quando se virou e passou por Grayson. — Cuidado com onde
mira essas maçãs do rosto, cara.
E, simples assim, minha melhor amiga desapareceu.
Grayson ficou parado na porta, como se uma linha invisível
passasse no batente.
— O que é tudo isso? — perguntou, olhando para a bagunça
espalhada na minha frente.
Seu avô me deixou um jogo. Eu não disse isso a Grayson. Não
podia. Precisava encontrar Jameson e contar a ele primeiro.
Libby interpretou meu silêncio como sinal para sair e se espremeu
entre Grayson e a porta.
— Eu conversei com Eve ontem — disse Grayson, que devia ter
decidido não insistir com os tabuleiros de xadrez. — As coisas estão
difíceis para ela.
Para mim também. Para Jameson também. Para ele também.
— Eu achei que ajudaria — disse Grayson — se ela visse a antiga
ala de Toby.
Eu me lembrei do comentário de Eve a respeito dos segredos dos
Hawthorne. Se havia um lugar da Casa Hawthorne repleto de
segredos, era a ala abandonada que Tobias Hawthorne tinha
mantido fechada por anos.
— Eu sei que Toby é importante para você, Avery — disse
Grayson, e deu um passo na minha direção, cruzando a linha
invisível e entrando na sala. — Imagino que deixar que Eve veja a
ala dele possa parecer uma invasão de algo que era só seu até
pouco tempo atrás.
Desviei os olhos e me sentei entre as peças de xadrez.
— Tudo bem.
Grayson avançou de novo e se agachou ao meu lado, apoiando
os braços nos joelhos e deixando o paletó se abrir.
— Eu te conheço, Avery. E sei como é uma desconhecida
aparecer na Casa Hawthorne e ameaçar o chão sob os seus pés.
Eu tinha sido essa desconhecida para ele.
Lutando contra o que parecia ser uma vida inteira de memória, me
concentrei no Grayson presente ali.
— Vou fazer um acordo com você — eu disse.
Jameson era apostas; Grayson era acordos.
— Eu mostro a ala de Toby para Eve se você me contar como
você está — propus. — Como está de verdade.
Eu esperava que ele desviasse os olhos, mas não foi o que fez. O
olhar prateado se manteve fixo no meu, sem piscar, sem hesitar.
— Tudo dói.
Apenas Grayson Hawthorne poderia dizer isso e ainda soar
completamente inabalável.
— Dói o tempo todo, Avery, mas eu sei o homem que fui criado
para ser — falou.
CAPÍTULO 27

Eu disse a Grayson que ele podia levar Eve à ala de Toby e ele me
informou que não era aquele o acordo. Eu tinha dito que eu
mostraria a Eve a ala de Toby. Eu tinha uma boa suspeita de que ele
estava indo para a piscina.
Pegando a bolsa e levando-a comigo, cumpri minha parte da
barganha.
Eve diminuiu o passo quando a ala de Toby surgiu. Ainda havia
destroços visíveis da parede de tijolos que o velho tinha erguido
décadas antes.
— Tobias Hawthorne fechou essa ala no verão que Toby
desapareceu — eu disse a Eve. — Quando descobrimos que Toby
ainda estava vivo, viemos aqui atrás de pistas.
— O que vocês descobriram? — perguntou Eve, o tom um pouco
espantado enquanto passávamos pelo resto dos tijolos e
entrávamos no hall de Toby.
— Muitas coisas.
Eu não culpava Eve por querer saber.
— Para começar, isso — falei.
Eu me ajoelhei para soltar um dos blocos de mármore do chão.
Embaixo dele havia um compartimento vazio, a não ser por um
poema gravado no metal.
— “Uma árvore de veneno” — falei. — Um poema do século
dezoito escrito por um poeta chamado William Blake.
Eve se ajoelhou e passou a mão pelo texto, lendo-o em silêncio
sem inspirar ou expirar uma única vez.
— Em suma — eu disse —, Toby, quando adolescente, parecia se
identificar com o sentimento de raiva... e o que custava para
escondê-lo.
Eve não respondeu. Ela só ficou lá, com os dedos sobre o poema,
sem piscar. Era como se eu tivesse deixado de existir, como se o
mundo todo tivesse.
Levou pelo menos um minuto antes dela erguer o olhar.
— Desculpa — disse, sua voz falhando. — É só que... o que você
acabou de dizer sobre Toby se identificar com esse poema... poderia
estar me descrevendo. Eu nem sabia que ele gostava de poesia.
Ela se levantou e girou, observando o resto da ala.
— O que mais? — perguntou.
— O título do poema nos levou a um texto jurídico na estante de
Toby — contei, o ar pesado de memória. — Em uma seção a
respeito da doutrina do fruto da árvore envenenada encontramos
uma mensagem codificada que Toby deixou antes de fugir... outro
poema, um que ele mesmo escreveu.
— O que dizia? — perguntou Eve, seu tom quase urgente. — O
poema de Toby?
Eu tinha relido as palavras tantas vezes que as sabia de cor.
— Mentiras, segredos, têm meu desprezo. Veneno é a árvore,
percebeu? Envenenou S e Z e eu. O tesouro conseguido está no
buraco mais escondido. A luz revelará tudo. Eu escrevi no...
Deixei no ar, como o poema fazia. Esperava que Eve o
terminasse para mim, completasse a palavra que Jameson e eu
sabíamos que cabia no final. Muro.
Mas ela não fez isso.
— O que ele quis dizer com isso de tesouro conseguido? —
perguntou Eve, sua voz ecoando pela suíte vazia de Toby. —
Revelará o quê?
— A adoção dele, imagino. Ele mantinha um diário nas paredes,
escrito com tinta invisível. Ainda tem algumas lâmpadas de luz
negra nesse quarto, de quando lemos. Vou ligá-las e apagar as
outras luzes.
Eve fez um gesto para me impedir.
— Eu posso fazer isso sozinha?
Eu não estava esperando aquilo, e minha reação instintiva foi
recusar.
— Eu sei que você tem tanto direito de estar aqui quanto eu,
Avery... ou mais. É sua casa, né? Mas eu só…
Eve sacudiu a cabeça, então baixou o olhar.
— Eu não pareço com a minha mãe — disse, e tocou as pontas
do cabelo. — Quando eu era criança, ela mantinha meu cabelo
curto... uns cortes tigela feios e tortos que ela mesma fazia. Ela
disse que era porque não queria ter que cuidar dele, mas, quando
cresci, quando eu comecei a cuidar do meu cabelo e deixá-lo
crescer, ela soltou que o tinha mantido curto porque mais ninguém
na nossa família tinha cabelo que nem o meu.
Eve inspirou.
— Ninguém tinha olhos que nem os meus. Nem um dos meus
traços sequer. Ninguém pensava do mesmo jeito que eu, nem
gostava das coisas que eu gostava, nem sentia as coisas da mesma
forma.
Ela engoliu em seco.
— Eu saí de casa no dia em que fiz dezoito anos. Eles
provavelmente teriam me expulsado, de qualquer jeito. Alguns
meses depois, eu me convenci de que talvez tivesse família em
algum lugar. Fiz um daqueles testes de DNA. Mas... nada.
Ninguém remotamente ligado aos Hawthorne teria mandado o DNA
para um desses bancos de dados.
— Toby te encontrou — lembrei Eve suavemente.
Ela assentiu.
— Ele também não se parece muito comigo. E é uma pessoa
difícil de conhecer. Mas aquele poema...
Não a fiz dizer mais nada.
— Eu entendo — falei. — Tudo bem.
Enquanto eu saía, pensei na minha mãe e em todas as nossas
semelhanças. Ela tinha me dado minha resiliência. Meu sorriso. A
cor do meu cabelo. A tendência a proteger meu coração... e a
capacidade, uma vez que eu baixasse a guarda, de amar com
ferocidade, profundidade, incondicionalmente.
Sem medo.
CAPÍTULO 28

Encontrei Jameson na parede de escalada. Ele estava lá no alto,


onde os ângulos se tornavam traiçoeiros, o corpo grudado na
parede por pura força de vontade.
— Seu avô me deixou um jogo.
Minha voz não era alta, mas chegou lá.
Sem hesitar um momento, Jameson soltou a parede.
Ele estava alto demais. Consegui imaginá-lo caindo da forma
errada. Praticamente ouvi os ossos quebrando. Mas, como da
primeira vez em que eu o vi, ele aterrissou agachado.
Quando se levantou, não dava sinal de ter um arranhão.
— Eu odeio quando você faz isso — falei.
Jameson abriu um sorriso de desdém.
— É possível que eu tenha sido privado de atenção materna na
infância, exceto quando estava sangrando.
— Skye notava se você estava sangrando? — perguntei.
Jameson deu de ombros.
— Às vezes.
Ele hesitou, só por uma fração de segundo, então deu um passo à
frente.
— Me desculpa pela noite passada, Herdeira. Você nem pediu
Taiti.
— Você não precisa pedir desculpas — eu disse a ele. — Só me
pergunte do jogo que seu avô projetou para ser entregue para mim
se, e quando, Eve e eu nos conhecêssemos.
— Ele sabia dela? — perguntou Jameson, tentando entender. —
Complicado. Até onde você chegou no jogo?
— Resolvi a primeira pista. Agora estou procurando um tabuleiro
de xadrez.
— Tem seis na sala de jogos — respondeu Jameson
automaticamente. — É quantos precisamos pra jogar xadrez
Hawthorne.
Xadrez Hawthorne. Por que eu não estava surpresa?
— Eu encontrei os seis. Você sabe se tem um sétimo em algum
lugar?
— Eu não sei se tem — disse Jameson, com aquele olhar que era
parte encrenca, parte desafio. — Mas você ainda tem aquele
fichário que a Alisa montou, com os detalhes da sua herança?

Eu encontrei um item no índice do fichário: tabuleiro de xadrez, real.


Fui até a página indicada e li, passando pela descrição o mais
rápido que conseguia. O jogo era avaliado em cerca de meio milhão
de dólares. As peças eram feitas de ouro branco cravejadas de
quase dez mil diamantes pretos e brancos. As fotos eram de tirar o
fôlego.
Só havia um lugar em que aquele tabuleiro de xadrez poderia
estar.
— Oren — gritei em direção ao corredor, sabendo que ele estaria
por ali. — Preciso que você nos leve até o cofre.

Da última vez em que eu estivera no cofre Hawthorne, tinha


perguntado brincando se ele continha joias da coroa, e Oren
respondera muito seriamente: De qual país?
— Se o que vocês estão procurando não estiver aqui — disse
Oren, enquanto eu e Jameson examinávamos as gavetas de aço
enfileiradas nas paredes —, algumas peças ficam em um lugar
ainda mais seguro, fora da propriedade.
Jameson e eu começamos o trabalho com cuidado, abrindo
gaveta atrás de gaveta. Eu consegui não me deter em nada até
chegar em um cetro feito de ouro brilhante entremeado com algum
outro metal mais leve. Ouro branco? Platina? Eu não fazia ideia,
mas não era o material que chamara minha atenção. Era o desenho
do cetro. O trabalho do metal era impossivelmente detalhado. O
efeito era delicado, mas perigoso. Beleza e poder.
— Vida longa à Rainha — murmurou Jameson.
— O gambito da rainha — falei, a mente a mil.
Talvez não estivéssemos procurando um jogo de xadrez. Antes
que eu pudesse seguir com esse raciocínio, contudo, Jameson abriu
outra gaveta e falou de novo:
— Herdeira.
Havia algo diferente em seu tom.
Olhei para a gaveta que ele tinha aberto. Então é essa a
aparência de dez mil diamantes. Cada peça do jogo era magnífica, e
o tabuleiro parecia uma mesa cravejada de joias. Segundo o
fichário, quarenta artesãos tinham passado mais de cinco mil horas
criando aquele jogo de xadrez; dava para notar.
— Quer fazer as honras, Herdeira?
Era meu jogo. Tomada por um sentimento elétrico conhecido,
examinei cada peça, começando com os peões brancos e seguindo
até o rei. Então fiz a mesma coisa com as peças pretas, que
brilhavam com diamantes negros.
A parte de baixo da rainha preta tinha uma emenda. Se eu não
estivesse procurando, não a teria notado.
— Preciso de uma lente de aumento.
— Que tal uma lupa de joalheiro? — sugeriu Jameson. — Deve
ter alguma por aqui.
Acabamos encontrando: uma lente pequena e sem cabo, apenas
um cilindro. Pela lupa, notei que o que eu tinha visto como uma
emenda na rainha preta era, na verdade, uma fenda, como se
alguém tivesse cortado uma linha finíssima na base da peça. Ao
espiar pela fenda, eu vi alguma coisa.
— Tinha mais alguma ferramenta de joalheria junto da lupa? —
perguntei a Jameson.
Nem a lixa mais fina que ele me trouxe cabia na fenda, mas
consegui enfiar a ponta, que encontrou alguma coisa.
— Pinça? — ofereceu Jameson, seu ombro roçando o meu.
Lixa. Pinça. Lupa.
Lixa. Pinça. Lupa.
Suor pingava das minhas têmporas quando finalmente consegui
prender a pinça na ponta de alguma coisa. Um pedaço de papel
preto.
— Eu não quero rasgar — falei.
Os olhos verdes de Jameson encontraram os meus.
— Você não vai rasgar.
Devagar, com cuidado, puxei o pedaço de papel. Não era maior
do que o papelzinho enfiado em um biscoito da sorte. Tinta dourada
marcava a superfície, em uma letra que eu reconhecia bem até
demais.
A única mensagem que Tobias Hawthorne já tinha me deixado era
dizendo que ele sentia muito. Finalmente, eu podia acrescentar mais
duas palavras.
Eu me virei para Jameson e li em voz alta:
— Não respire.
CAPÍTULO 29

Uma pessoa parava de respirar quando estava impressionada ou


aterrorizada. Quando estava se escondendo e qualquer som poderia
denunciá-la. Quando o mundo estava pegando fogo, o ar cheio de
fumaça.
Jameson e eu examinamos todos os detectores de fumaça da
Casa Hawthorne.
— Você está sorrindo — falei, frustrada quando o último não deu
em nada.
— Eu gosto de desafios — disse Jameson, e me lançou um olhar
que me lembrava que eu tinha sido um desafio para ele. — E talvez
esteja com saudade das manhãs de sábado. Pode dizer o que
quiser da minha infância, mas chata não foi.
Eu pensei na varanda.
— Você não se importava de ser posto contra os seus irmãos? —
perguntei. Contra Grayson? — Ser obrigado a competir?
— Os sábados eram diferentes — disse Jameson. — Os quebra-
cabeças, a tensão, a atenção do velho. A gente vivia para esses
jogos. Nash talvez não, mas Xander, Grayson e eu, sim. Gray às
vezes até relaxava, porque os jogos não recompensavam perfeição.
Eu e ele fazíamos aliança contra Nash, pelo menos até perto do fim.
Tudo mais que nosso avô fez... tudo que nos deu, tudo que
esperava de nós, era para moldar a próxima geração dos
Hawthorne como extraordinária. Mas as manhãs de sábado,
aqueles jogos... eram para nos mostrar que já éramos
extraordinários.
Extraordinários. Eu pensei. E parte de alguma coisa. Era aquele o
canto da sereia dos jogos de Tobias Hawthorne.
— Você acha que é por isso que seu avô me deixou esse jogo? —
perguntei.
O bilionário tinha planejado meu jogo apenas para o caso de eu
conhecer Eve. Será que ele sabia que eu ia começar a questionar
sua decisão todo-poderosa de me escolher no momento em que ela
aparecesse? Que ele queria me mostrar do que eu era capaz?
Que eu era extraordinária?
— Eu acho — murmurou Jameson, aproveitando as palavras —
que meu avô deixou três jogos quando morreu, Herdeira. E os
primeiros dois nos contaram algo de por que ele escolheu você.

Não respire. Nós não resolvemos a pista naquela noite. O dia


seguinte era segunda-feira. Oren me liberou para ir à escola, desde
que ele ficasse ao meu lado. Eu podia ter dito que estava doente e
ficado em casa, mas não fiz isso. O jogo tinha se mostrado uma
distração eficiente, mas Toby ainda estava em perigo e nada
conseguia afastar minha cabeça daquilo por muito tempo.
Eu fui à escola porque queria que os paparazzi que meu oponente
tinha gentilmente jogado em cima de mim como cachorros tirassem
uma foto minha de cabeça erguida.
Queria que a pessoa que sequestrou Toby notasse que eu não
tinha caído.
Queria que fizesse seu próximo movimento.
Passei os tempos livres no Arquivo — como chamavam a
biblioteca na escola particular. Eu estava quase terminando a tarefa
de cálculo que tinha ignorado durante o feriado quando Rebecca
entrou. Oren deixou que ela passasse.
— Você contou para Thea.
Rebecca andou na minha direção.
— Isso é tão ruim assim? — perguntei... a uma distância segura.
— Ela é incansável — resmungou Rebecca.
Provando o argumento, Thea apareceu na porta atrás dela.
— Achei que você gostasse de incansável.
Só Thea conseguia fazer aquilo parecer um flerte naquelas
circunstâncias. Rebecca olhou de má vontade para a namorada.
— Até que gosto.
— Então você vai amar essa parte — disse Thea. — Porque é a
parte em que você para de resistir, para de brigar comigo, para de
fugir dessa conversa e relaxa.
— Eu estou bem, Thea.
— Não está — disse Thea, insistente. — E não precisa estar, Bex.
Não é mais seu trabalho estar bem.
A respiração de Rebecca falhou.
Eu sabia quando minha presença não era necessária.
— Eu vou embora — falei, e nenhuma delas nem pareceu me
ouvir.
No corredor, fui informada por um funcionário que estavam
procurando por mim na sala do diretor.
A sala do diretor? Não é o diretor em si?
No caminho, puxei conversa com Oren.
— Você acha que alguém informou a escola sobre a minha faca?
Eu me perguntava quão a sério escolas particulares levavam suas
políticas de armas quando se tratava de alunos prestes a herdar
bilhões. Contudo, quando Oren e eu chegamos na sala, a secretária
me cumprimentou com um sorriso alegre.
— Avery.
Ela estendeu um pacote. Não era um envelope, mas uma caixa.
Meu nome estava escrito na superfície, em uma letra familiar e
elegante.
— Isso foi entregue para você.
CAPÍTULO 30

Oren se apossou do pacote. Foram horas até eu consegui-lo de


volta. Quando consegui, já estava escondida na segurança dos
muros da Casa Hawthorne, e Eve, Libby e todos os irmãos
Hawthorne me encontraram na biblioteca circular.
— Sem bilhete dessa vez — relatou Oren. — Só isso.
Olhei o que parecia ser uma caixinha de joias: quadrada, um
pouco maior que a minha mão, possivelmente uma antiguidade. A
madeira era de um tom de cereja-escuro. Uma linha dourada fina
contornava as bordas. Fui abrir a tampa, então percebi que a caixa
estava trancada.
— Trava com segredo — explicou Oren, e apontou com a cabeça
para a frente da caixa, onde havia seis rodas agrupadas em pares.
— Foi acrescentada recentemente, me parece. Eu fiquei tentado a
forçar a abertura, mas, dadas as circunstâncias, preservar a
integridade da caixa pareceu uma prioridade.
Depois de dois envelopes, o fato de que o sequestrador de Toby
tinha enviado um pacote parecia uma evolução. Eu não queria
pensar no que poderia encontrar dentro da caixa. O primeiro
envelope continha o disco, e o segundo, uma foto de Toby
espancado. Em questão de provas, de lembrete do que estava em
jogo e de quem detinha o poder...
Quanto tempo até o sequestrador começar a mandar pedaços?
— O segredo pode ser só uma senha — disse Jameson, que
encarava a caixa como se enxergasse através dela, dentro dela. —
Mas também existe a possiblidade de que os números em si sejam
uma pista.
— O pacote foi enviado para a escola? — perguntou Grayson, o
olhar afiado. — E chegou até a sala do diretor? Quem quer que
tenha enviado sabe contornar os protocolos de segurança da
Country Day.
Isso por si só parecia uma mensagem: a pessoa que tinha
enviado aquilo queria que eu soubesse que podiam me alcançar.
— Seria melhor — afirmou Oren calmamente — você planejar
faltar a escola alguns dias, Avery.
— Você também, Xan — acrescentou Nash.
— E deixar alguém nos fazer fugir e nos esconder? — perguntei,
e olhei de Oren para Nash, furiosa. — Não. Eu não vou fazer isso.
— Vamos fazer o seguinte, menina — disse Nash, inclinando a
cabeça para o lado. — Vamos disputar no braço. Eu e você. Quem
ganhar faz as regras e quem perder não reclama.
— Nash — disse Libby, e olhou para ele com um olhar de
censura.
— Se não gostou disso, Lib, não vai querer saber o que eu penso
da sua segurança.
— Oren e Nash estão certos, Herdeira — disse Jameson,
pegando a minha mão. — Não vale o risco.
Eu tinha uma boa certeza de que Jameson Hawthorne nunca
tinha dito aquelas palavras na vida.
— Podemos parar de discutir? — pediu Eve, sua voz aguda e
tensa. — Nós precisamos abrir a caixa. Agora. Precisamos abrir
essa caixa o mais rápido possível e...
— Evie — murmurou Grayson. — Precisamos tomar cuidado.
Evie?
— Pela primeira vez — declarou Jameson —, eu concordo com
Gray. Cuidado não é a pior ideia aqui.
Isso também não era a cara de Jameson.
Xander se virou para Oren.
— Quanta certeza nós temos de que essa caixa não vai explodir
no segundo em que a abrirmos?
— Muita — respondeu Oren.
Eu me forcei a fazer a próxima pergunta, a pergunta, mesmo que
não quisesse.
— Alguma ideia do que está aí dentro?
— Pela cara do raio-X — respondeu Oren —, um celular.
Só um celular. O alívio tomou conta de mim aos poucos, que nem
a sensação voltando para uma perna dormente.
— Um celular — repeti.
Isso significava que o sequestrador de Toby planejava ligar? O
que acontece se eu não atender?
Não me permiti me demorar na pergunta. Em vez disso, voltei a
atenção para os meninos.
— Vocês são Hawthorne. Quem sabe abrir uma trava de
segredo?
A resposta era: todos eles. Em dez minutos, tinham descoberto o
segredo: quinze, onze, trinta e dois. Quando a tranca abriu, Oren
pegou a caixa, inspecionou o conteúdo e me devolveu.
A parte de dentro da caixa estava forrada com veludo vermelho-
escuro. Um celular estava aninhado no tecido. Peguei o aparelho e
o virei, procurando qualquer coisa fora do normal, antes de voltar a
atenção para a tela. Tentei a mesma sequência do segredo como
senha. Quinze. Onze. Trinta e dois.
— Entrei.
Cliquei nos ícones do celular um por um. O álbum de fotos estava
vazio. O aplicativo do tempo mostrava o clima local. Não havia
notas, nem mensagens, nem lugares salvos no mapa. No relógio,
encontrei um cronômetro em contagem regressiva.
12 HORAS, 45 MINUTOS, 11 SEGUNDOS…
Olhei para o grupo, sentindo cada tique do cronômetro no fundo
do estômago. Eve disse o que eu estava pensando.
— O que acontece quando chegar no zero?
Sentindo o estômago apertado, pensei em Toby, no que eu não
tinha encontrado na caixa. Jameson entrou na minha frente, o olhar
verde firme em mim.
— Esqueça o cronômetro por enquanto, Herdeira. Volte para a
tela principal.
Eu fiz isso e, conforme a fúria aumentava, conferi o restante do
celular. Não havia nenhuma música. A página inicial do navegador
de internet era um mecanismo de busca, sem nada de especial.
Cliquei no calendário. Havia um evento marcado para começar na
terça-feira, às seis da manhã. Quando o cronômetro chegar no zero,
notei.
Tudo que o evento do calendário dizia era Nvi. Virei o celular para
que os outros pudessem ler.
— Nvi? — disse Xander, franzindo a testa. — Uma sigla, talvez?
Ou as duas últimas letras sejam um numeral romano.
— N-seis — disse Grayson, pegando o próprio celular e fazendo
uma busca. — As duas primeiras coisas que aparecem quando eu
busco a letra com o numeral são um formulário federal e uma droga
chamada desipramina, um antidepressivo.
Revirei aquilo na cabeça, mas não consegui encontrar sentido.
— Que tipo de formulário federal?
— Financeiro — respondeu Eve, lendo por cima do ombro de
Grayson. — Comissão de Valores Mobiliários. Parece ter algo a ver
com empresas de investimento?
Investimento. Poderia haver algo aí.
— Mais alguma coisa? — cuspiu Nash. — Sempre tem mais
alguma coisa.
Aquele não era exatamente um jogo Hawthorne, mas os truques
eram os mesmos. Cliquei no ícone do e-mail, que só levou a uma
janela com instruções para configurar essa função. Finalmente,
naveguei até o histórico de chamadas do celular. Vazio. Cliquei na
caixa postal. Nada. Mais um clique me levou aos contatos do
celular.
Havia exatamente um número gravado no celular. Salvo com o
nome de ME LIGUE.
Inspirei fundo.
— Deixa que eu ligo — disse Jameson. — Eu não posso te
proteger de tudo, Herdeira, mas posso te proteger disso.
Jameson não era o Hawthorne que eu normalmente associava a
proteção.
— Não — falei.
O pacote tinha sido enviado para mim. Eu não podia deixar mais
ninguém fazer aquilo por mim, nem mesmo ele. Liguei antes que
alguém pudesse me impedir e coloquei no viva-voz. Meus pulmões
se recusaram a respirar até o segundo em que alguém atendeu.
— Avery Kylie Grambs.
A voz que atendeu era masculina, grave e suave, com uma
entonação que soava quase aristocrática.
— Quem é? — perguntei, tensa.
— Pode me chamar de Lucas.
Lucas. O nome reverberou na minha mente. A pessoa do outro
lado da linha não soava particularmente jovem, mas era impossível
lhe dar uma idade. Tudo que eu sabia era que nunca tinha falado
com ele antes. Se tivesse, eu teria reconhecido aquela voz.
— Cadê o Toby? — exigi.
Em resposta, recebi só uma risadinha.
— O que você quer?
Nenhuma resposta.
— Pelo menos me diga que ainda está com ele.
Que ele ainda está bem.
— Eu estou com muitas coisas — disse a voz, finalmente.
Segurando o celular com tanta força que minha mão começou a
latejar, eu me agarrei aos últimos vestígios de controle. Seja
esperta, Avery. Faça-o falar.
— O que você quer? — perguntei de novo, com mais calma.
— Curiosa, é?
Lucas brincava com palavras como um gato brincando com um
rato.
— Boa palavra, curiosa — continuou, sua voz como veludo. —
Pode significar que você está ansiosa para aprender ou saber de
alguma coisa, mas também que é estranha, ou incomum. É, acho
que essa descrição se aplica muito bem a você.
— Então a questão sou eu? — perguntei, rangendo os dentes. —
Você quer que eu fique curiosa?
— Eu sou só um velho — veio a resposta — com um gosto por
charadas.
Velho. Quão velho? Não tive tempo de examinar a questão, ou o
fato de que ele tinha falado de si mesmo do mesmo jeito que os
netos de Tobias Hawthorne falavam do falecido bilionário.
— Eu não sei que tipo de jogo doente é esse — falei com
aspereza.
— Ou talvez você saiba exatamente que tipo de jogo doente é
esse.
Quase dava para ouvir ele curvar a boca em um sorriso afiado
como faca.
— Você tem a caixa — disse ele. — Tem o celular. Você vai
descobrir a próxima parte.
— Que próxima parte?
— Tique-taque — respondeu o velho. — O cronômetro está
contando o tempo para nossa próxima ligação. Você não vai gostar
do que acontecerá com seu Toby se não tiver minha resposta até lá.
CAPÍTULO 31

O que descobrimos? Tentei me concentrar nisso, e não na


ameaça, no cronômetro diminuindo.
O sequestrador de Toby tinha se referido a si mesmo como velho.
Ele tinha me chamado pelo meu nome completo.
Ele brincava com palavras... e com pessoas.
— Ele gosta de charadas — eu disse em voz alta. — E de jogos.
Eu conhecia alguém que cabia naquela descrição, mas o
bilionário Tobias Hawthorne estava morto. Ele estava morto havia
um ano.
— O que exatamente deveríamos descobrir? — perguntou
Grayson, seco.
Eu olhei para Jameson por reflexo.
— Deve ter alguma coisa para encontrar ou decodificar — eu
disse —, que nem nos pacotes anteriores.
— A próxima parte da mesma charada — murmurou Jameson,
sincronizado comigo.
Eve olhou para nós dois.
— Que charada?
— A charada — disse Jameson. — Quem é ele? Por que está
fazendo isso? As duas primeiras pistas foram relativamente fáceis
de decifrar. Ele dificultou dessa vez.
— A gente deve ter deixado alguma coisa passar — eu disse. —
Algum detalhe na caixa, no pacote, ou...
— Eu gravei a ligação — disse Xander, erguendo o celular. —
Caso tenha alguma pista no que ele disse. Além disso...
— Temos o segredo — completou Jameson. — E a entrada no
calendário.
— Nvi — falei em voz alta.
Por instinto, verifiquei a caixa em busca de compartimentos
secretos. Não havia nenhum. Não havia mais nada no celular, nem
nada que chamasse a atenção quando escutamos a conversa com
o sequestrador de Toby pela segunda vez. Nem pela terceira.
— Você consegue rastrear a ligação? — perguntei a Oren,
tentando pensar à frente, olhar o problema por todos os lados. —
Nós temos o número.
— Eu posso tentar — respondeu Oren, calmo —, mas, a menos
que nosso oponente seja muito menos inteligente do que parece, o
número não vai estar registrado, e a ligação foi roteada pela
internet, não por uma torre telefônica, com o sinal dividido por
milhares de endereços de IP que cobrem o mundo todo.
Senti a garganta apertar.
— A polícia poderia ajudar?
— Não podemos chamar a polícia — sussurrou Eve. — Ele pode
matar Toby.
— Perguntas discretas poderiam ser feitas a um contato confiável
na polícia sem que se dê detalhes — disse Oren. — Infelizmente
meus contatos de mais confiança foram recentemente transferidos.
Não tinha jeito de ser coincidência. Ataques aos meus interesses
comerciais. Tentativas de esburacar minha equipe de segurança.
Paparazzi na minha cola. Contatos na polícia transferidos. Eu
pensei no que Alisa dissera que estávamos procurando. Riqueza.
Poder. Conexões.
— Toque a gravação de novo — eu disse a Xander.
Meu BFFH fez o que pedi e, dessa vez, quando a conversa
terminou, Jameson olhou para Grayson.
— Ele disse que Avery poderia chamá-lo de Lucas. Não que seu
nome era Lucas.
— Isso é importante? — perguntei.
Grayson sustentou o olhar de Jameson.
— Pode ser.
Eve começou a dizer alguma coisa, mas o som de um celular
tocando a calou. Não era o descartável. Era o meu. Olhei de relance
para a tela. Thea.
Eu atendi.
— Estou meio ocupada, Thea.
— Nesse caso, você quer primeiro a notícia ruim ou a notícia
pior?
— Está tudo bem com a Rebecca?
— Alguém tirou uma foto de Eve em frente ao portão da Casa
Hawthorne. Acabou de ser publicada.
Eu fiz uma careta.
— Essa é a notícia ruim, ou...
— Foi publicada — continuou Thea — no maior site de fofoca da
internet, junto de uma foto de Emily e uma matéria sobre os rumores
de que Emily Laughlin foi morta por Grayson e Jameson Hawthorne.
CAPÍTULO 32

Primeiro mandei mensagem para Alisa. Lidar com escândalos


como aquele era parte do trabalho dela. Contar para os meninos e
para Eve foi mais difícil. Forçar minha boca a dizer as palavras era
que nem quebrar meu calcanhar. Um momento de deslize. Um ruído
doente. O choque. Então o choque passou.
— Que coisa escrota — cuspiu Nash.
Ele respirou fundo, e então voltou o olhar atento para os irmãos.
— Jamie? Gray?
— Estou bem — disse Grayson, com o rosto rígido como pedra.
— E, mantendo minha superioridade geral em nossa relação
fraternal — acrescentou Jameson com um sorriso sardônico um
pouco afiado demais —, eu estou mais do que bem.
Aquilo era coisa do Lucas. Tinha que ser.
Eve abriu o site de fofoca no celular e o encarou. Sua própria foto.
A de Emily.
Eu voltei para o momento na ala de Toby em que ela tinha me dito
que não se parecia com ninguém da família.
— Por que estão dizendo que vocês a mataram? — perguntou
Eve, com a voz trêmula.
Ela não ergueu os olhos do celular, mas eu sabia para quem
estava fazendo a pergunta.
— Porque — respondeu Grayson, a voz afiada — é verdade.
— Nem fodendo que é — xingou Nash.
Ele olhou em volta, para o resto de nós.
— Qual é a regra do jogo sujo? — perguntou.
Ninguém respondeu.
— Gray? Jamie? — insistiu, e voltou seu olhar para mim.
— Não existe jogo sujo — eu disse, baixo — se você ganhar.
Eu queria ganhar. Queria recuperar Toby. Queria acabar com o
babaca que o tinha sequestrado, que tinha feito aquilo com
Jameson, Grayson e Eve.
— Jogo sujo? — perguntou Eve, finalmente desviando o olhar do
site. — É assim que vocês chamam isso? Meu rosto vai estar por
toda parte.
Era exatamente o que Toby não queria.
— Canhão de glitter — disse Xander.
Eu olhei feio para ele. Não era a hora para brincadeiras nem
purpurina.
— Isso aqui é um canhão de glitter — insistiu Xander. — Se
explodir no meio de um jogo, faz uma bagunça enorme. Vai se
espalhar por todo lado, grudar em todo canto.
A expressão de Grayson endureceu.
— E o relógio corre enquanto a gente limpa.
— Enquanto tenta limpar — disse Libby suavemente.
Ela tinha ficado quieta durante tudo aquilo, mas minha irmã tinha
empatia de sobra, e não precisava conhecer Grayson, Jameson,
nem mesmo Eve, tão bem quanto eu para entender o golpe que eles
tinham levado.
— Algumas coisas são difíceis de limpar — concordou Nash em
um tom lento e constante, seu olhar encontrando Libby como se
fosse a coisa mais natural do mundo. — Você acha que finalmente
limpou tudo. Está tudo bem. E aí cinco anos depois...
— Ainda tem glitter no banheiro de Grayson — completou Xander.
Tive a impressão de que não era uma metáfora.
— Lucas fez isso — eu disse. — Ele armou isso. Ele detonou a
bomba. Ele nos quer distraídos.
Ele quer o relógio correndo. Ele quer que a gente perca.
Tique-taque.
Eve desligou o celular e o jogou com força na mesa.
— Dane-se o glitter — disse ela. — Eu não quero descobrir o que
vai acontecer com Toby se o cronômetro chegar no zero.
Nenhum de nós queria.
Xander tocou a conversa com Lucas de novo e nós colocamos as
mãos à obra.
CAPÍTULO 33

Seis horas, dezessete minutos, nove segundos...


Estava chegando ao ponto em que eu nem precisava mais olhar
as horas. Eu só sabia. Não estávamos chegando a lugar nenhum.
Tentei desanuviar, mas ar fresco não ajudou. Dar dinheiro
anonimamente para pessoas que precisavam não ajudou.
Eu voltei para dentro, e cheguei na biblioteca circular bem a
tempo de ouvir o celular de Xander tocar. Ele era a única pessoa
que eu conhecia que usava os doze primeiro dígitos de pi como
toque. Depois de uma conversa estranhamente sóbria, ele trouxe o
celular para mim.
— Max — murmurou.
Eu peguei o celular.
— Deixe-me adivinhar — eu disse, levando o aparelho à orelha.
— Você viu as notícias?
— O que te faz pensar isso? — respondeu Max. — Eu só liguei
para falar do meu guarda-costas. Piotr se recusa terminantemente a
escolher uma música tema, mas, fora isso, nossa relação de
guarda-costas e costas-guardadas está indo muito bem.
Só Max mesmo faria piada com precisar de segurança. Por minha
causa. Eu não conseguia deixar de me sentir responsável, assim
como eu não conseguia deixar de sentir que Eve tinha sido exposta
ao mundo só porque tinha tomado a péssima decisão de pedir a
minha ajuda.
Era meu nome nos envelopes, meu nome na caixa. Era eu quem
estava na mira de Lucas, mas qualquer pessoa perto de mim
poderia ser pega no fogo cruzado.
— Eu sinto muito — disse a Max.
— Eu sei — respondeu minha melhor amiga. — Mas não se
preocupe. Eu vou escolher uma música tema para ele.
Ela fez uma pausa.
— Xander mencionou um... canhão? — perguntou.
A história toda escapou, que nem água demolindo uma barragem
quebrada: a entrega do pacote, a caixa, o celular, a ligação para
“Lucas”... e seu ultimato.
— Você parece uma pessoa que precisa pensar em voz alta —
opinou Max. — Prossiga.
Prossegui. Fui falando e falando, esperando que meu cérebro
descobrisse algo diferente para dizer dessa vez. Cheguei ao evento
no calendário e disse:
— Achamos que Nvi pudesse ser uma referência para um
formulário da comissão de valores imobiliários, N-seis. Passamos
horas tentando rastrear os formulários de Tobias Hawthorne. Acho
que Nvi também pode ser uma sigla, ou iniciais, mas...
— Nvi — repetiu Max. — N-V-I?
— Isso.
— N-V-I — repetiu ela. — Tipo Nova Versão Internacional?
Eu inclinei a cabeça.
— Nova versão internacional de quê?
— Da B-Í-B-L-I-A... e agora eu vou passar a noite com músicas da
escola dominical na cabeça.
— A Bíblia — repeti, e de repente fez sentido. — Lucas.
— Meu segundo evangelho favorito — notou Max. — No fundo,
João sempre será o mais querido.
Eu mal a escutei. Meu cérebro estava indo rápido demais,
imagens surgindo na minha mente, fragmentos de memória se
empilhando.
— Os números.
O segredo pode ser só uma senha, Jameson tinha dito, mas
também existe a possibilidade de que os números em si sejam uma
pista.
— Que números? — perguntou Max.
Meu coração batia forte contra as costelas.
— Quinze, onze, trinta e dois.
— Você está me zoando, forra? — perguntou Max, maravilhada.
— Eu vou resolver uma charada Hawthorne?
— Max!
— O evangelho de Lucas — disse ela —, capítulo quinze,
versículos onze até trinta e dois. É uma parábola.
— Qual? — perguntei.
— A parábola do filho pródigo.
CAPÍTULO 34

Nenhum de nós dormiu mais do que três horas naquela noite.


Lemos todas as versões de Lucas 15:11-32 que encontramos, todas
as interpretações da parábola, toda referência a ela.
Nove segundos no cronômetro. Oito. Eu observava a contagem
diminuir. Eve estava ao meu lado, sentada sobre os pés. Libby
estava do meu outro lado. Os meninos estavam em pé. Xander tinha
o gravador a postos.
Três. Dois. Um…
O celular tocou. Eu atendi e coloquei no viva-voz para todo mundo
poder ouvir.
— Alô.
— Bem, Avery Kylie Grambs?
O uso do meu nome completo não passou desapercebido.
— Lucas, capítulo quinze, versículos onze a trinta e dois — falei,
mantendo a voz calma e estável.
— O que tem Lucas, capítulo quinze, versículos onze a trinta e
dois?
Eu não queria dançar para ele.
— Eu resolvi o quebra-cabeça. Me deixe falar com Toby.
— Muito bem.
Houve um silêncio e então eu ouvi a voz de Toby.
— Avery. Não...
O resto da frase foi cortado. Meu estômago afundou. Senti a fúria
serpentear pelo meu corpo.
— O que você fez com ele?
— Me fale sobre Lucas, capítulo quinze, versículos onze a trinta e
dois.
Ele está com Toby. Eu preciso jogar do jeito dele. Tudo que eu
podia fazer era torcer para que meu adversário alguma hora
mostrasse a mão.
— O filho pródigo exigiu a herança mais cedo — eu disse,
tentando não deixar nenhuma das emoções que eu sentia
transparecer na minha voz. — Ele abandonou a família e gastou a
fortuna que tinha recebido. Mas, apesar de tudo isso, o pai o
recebeu quando ele voltou.
— Um jovem perdulário — disse o homem — vagando pelo
mundo... ingrato. Um pai benevolente, pronto para recebê-lo em
casa. Mas, se a minha memória não falha, há três personagens
nessa história, e você só mencionou dois.
— O irmão — falou Eve, se levantando, antes que eu tivesse a
chance. — Ele ficou e trabalhou com o pai durante anos sem ser
recompensado.
Houve um silêncio do outro lado da linha. E então o golpe de uma
faca verbal.
— Eu só falo com a herdeira. A que Tobias Hawthorne escolheu.
Eve se encolheu, como se tivesse sido acertada, com os olhos
úmidos e a expressão fria. Do outro lado da linha, ouvi apenas
silêncio.
Ele tinha desligado?
Em pânico, agarrei o celular com mais força.
— Estou aqui!
— Avery Kylie Grambs, há três personagens na parábola do filho
pródigo, não é mesmo?
O ar deixou meus pulmões.
— O filho que foi embora — eu disse, soando mais calma do que
me sentia. — O filho que ficou. E o pai.
— Por que não refletimos sobre isso?
Houve uma outra longa pausa e então:
— Eu entrarei em contato.
CAPÍTULO 35

Refletir foi assim: Libby foi fazer café, porque, quando a coisa
ficava feia, ela cuidava das outras pessoas. Grayson ajeitou o paletó
e deu as costas para o resto de nós. Jameson começou a andar de
um lado a outro, que nem uma pantera pronta para dar o bote. Nash
tirou o chapéu de caubói e ficou olhando para ele com uma
expressão sombria. Xander saiu correndo da sala e Eve baixou a
cabeça entre as mãos.
— Eu não devia ter dito nada — disse ela, rouca. — Mas depois
que ele cortou Toby...
— Eu entendo — eu disse a ela. — E não teria feito diferença
você ficar em silêncio. Teríamos acabado exatamente no mesmo
lugar.
— Não exatamente — disse Jameson, parando bem na minha
frente. — Pense no que ele disse depois que Eve interrompeu... e a
forma como ele falou de você.
— Como a herdeira — respondi e então me lembrei do resto. — A
que Tobias Hawthorne escolheu.
Eu engoli em seco.
— A história do filho pródigo trata de herança e perdão — falei.
— Todo mundo que acha que Toby foi sequestrado como parte de
um enorme complô de perdão — disse Nash, cujo sotaque não
suavizou em nada as palavras — levante a mão.
Todas as nossas mãos seguiram abaixadas.
— Nós já sabemos que é questão de vingança — falei, dura. —
Que é questão de vitória. Essa é só mais uma peça da mesma
maldita charada que não é para a gente resolver.
Agora era eu quem não conseguia mais ficar parada. A raiva não
estava só fervilhando; estava queimando.
— Ele quer que a gente fique doido, revirando isso sem parar —
eu disse, andando até a escrivaninha de tronco de árvore e me
apoiando nela, com força. — Ele quer que a gente reflita. E qual é o
propósito? — perguntei, muito perto de socar a madeira. — Ele
ainda não terminou, e não vai nos dar o necessário para resolver
isso até querer que seja resolvido.
Eu entrarei em contato. Nosso adversário era como um gato que
tinha pegado um rato pelo rabo. Ele estava me prendendo e
soltando para criar a ilusão de que, talvez, se eu fosse esperta, eu
poderia escapar, sendo que ele não tinha o menor medo de que eu
realmente fizesse isso.
— Precisamos tentar — disse Eve, com leve desespero.
— Eve está certa — disse Grayson, e se virou para nós... para
ela. — Isso não vai além das nossas capacidades só porque nosso
oponente acha que vai.
Jameson apoiou as mãos ao lado das minhas na mesa.
— As outras duas pistas foram vagas. Essa é menos. Às vezes dá
para resolver até charadas parciais.
Por mais fútil que parecesse, por mais raiva que eu sentisse, eles
estavam certos. Nós precisávamos tentar. Por Toby.
— Estou de volta! — exclamou Xander, surgindo na sala. — E
trouxe acessórios!
Ele estendeu a mão, mostrando três peças de xadrez: um rei, um
cavalo e um bispo.
Jameson foi pegar as peças, mas Xander deu um tapa na mão
dele.
— O pai — disse Xander, balançando o rei, que colocou na mesa.
— O filho pródigo — descreveu, e baixou o cavalo. — E o filho que
ficou.
— O bispo como o filho fiel — comentei quando Xander colocou a
última peça na mesa. — Belo toque.
Olhei as três peças. Um jovem perdulário, vagando pelo mundo...
ingrato. A lembrança daquela voz tinha grudado em mim como óleo.
Um pai benevolente, pronto para recebê-lo em casa.
Eu peguei o cavalo.
— Pródigo significa esbanjador. Nós todos sabemos como era
Toby quando adolescente. Ele atravessou o país bebendo e
transando com todo mundo, foi responsável pelo incêndio que
matou três pessoas e permitiu que a família achasse que ele estava
morto por décadas.
— E, durante tudo isso — refletiu Jameson, pegando o rei —,
nosso avô não queria nada além de receber em casa seu filho
pródigo.
Toby, o pródigo. Tobias, o pai.
— Então só resta o outro filho — disse Grayson, andando até a
mesa.
Nash também se aproximou, deixando apenas a silenciosa Eve
no canto.
— O que trabalhou com lealdade — continuou Grayson — e não
recebeu nada.
Ele conseguiu dizer aquilo como se não tivesse significado para
ele, mas aquela parte da história era conhecida dele... de todos
eles.
— Nós já falamos com Skye — eu disse, pegando o bispo, o filho
leal. — Mas Skye não é a única irmã de Toby.
Eu odiava sequer dizer aquilo, porque fazia meses que eu não via
a filha mais velha de Tobias Hawthorne como inimiga.
— Não é Zara — disse Jameson com o tipo de intensidade que eu
associava a ele e apenas a ele. — Ela é Hawthorne o suficiente
para fazer isso, se quisesse, mas, a menos que acreditemos que o
homem na ligação era um ator, uma fachada, nós sabemos quem é
o terceiro personagem da história.
Vingança. Revanche. Vendeta. Vingador.
Eu sempre venço no final.
Os três personagens na história do filho pródigo.
Cada peça da charada tinha nos contado algo a respeito do nosso
oponente.
— Se Toby deve ser o filho pródigo que não merece o que tem —
falei, sentindo o corpo todo tenso —, e Tobias Hawthorne é o pai
que o perdoou, o único papel que sobra para o sequestrador de
Toby é o do outro filho.
Outro filho. Fiquei completamente imóvel enquanto absorvia essa
possiblidade.
Xander levantou a mão.
— Alguém mais está se perguntando se temos um tio secreto por
aí e ninguém ficou sabendo? Porque, a essa altura, tio secreto
parece caber bem na cartela de bingo dos Hawthorne.
— Eu não acredito — disse Nash, firme, certo, sem pressa. — O
velho não era exatamente escrupuloso, mas ele era fiel... e bem
possessivo com qualquer um ou qualquer coisa que considerasse
dele. Além do mais, nós não precisamos ir atrás de tios secretos.
Eu entendi o que ele quisera dizer exatamente no mesmo
momento que Jameson.
— Não era Constantine no telefone — disse ele —, mas...
— Constantine Calligaris não foi o primeiro marido de Zara —
completei.
Tobias Hawthorne pode ter tido só um filho, mas ele tinha mais de
um genro.
— Ninguém nunca fala do primeiro cara — mencionou Xander. —
Nunca.
Um filho, afastado da família, ignorado, esquecido. Olhei para
Oren.
— Cadê Zara?
A pergunta era pesada, dado o histórico dos dois, mas meu chefe
de segurança respondeu como o profissional que era.
— Ela acorda cedo para cuidar das rosas.
— Eu vou — disse Grayson.
Ele não estava pedindo permissão nem se oferecendo.
Eve finalmente se juntou ao restante de nós na escrivaninha. Ela
ergueu os olhos para Grayson, marcas de lágrimas no rosto.
— Eu vou com você, Gray.
Ele ia aceitar. Eu sabia só de olhar para ele, mas não discuti. Não
me permiti dizer uma única palavra.
Mas Jameson me surpreendeu.
— Não. Vá você com Grayson, Herdeira.
Eu não tinha ideia do que fazer com aquilo — se ele ainda não
confiava em Eve, se não confiava em Grayson com Eve, ou se
estava apenas tentando combater seus demônios, deixar de lado a
rivalidade de uma vida inteira, e confiar em mim.
CAPÍTULO 36

Grayson e eu encontramos Zara na estufa. Ela estava usando


luvas brancas de jardinagem que cobriam as mãos como uma
segunda pele e segurava uma tesoura de poda tão afiada que
provavelmente cortaria osso.
— A que devo essa honra?
Zara virou a cabeça para nós, a expressão em seus olhos
anunciando friamente o fato de que ela era uma Hawthorne e, por
definição, não deixava passar nada.
— Desembuchem — insistiu. — Vocês querem alguma coisa.
— Nós só queremos conversar — disse Grayson, simplesmente.
Zara passou o dedo de leve por um espinho.
— Os Hawthorne nunca querem só conversar.
Grayson não discordou.
— Seu irmão Toby foi sequestrado — disse ele, com aquela
habilidade impressionante de dizer coisas importantes como se
fossem simples fatos. — Não houve nenhum pedido de resgate,
mas recebemos várias comunicações vindas de seu sequestrador.
— Toby está bem? — perguntou Zara, dando um passo na
direção de Oren. — John... meu irmão está bem?
Ele olhou nos olhos dela com gentileza e lhe deu o que podia.
— Ele está vivo.
— E você ainda não o encontrou? — exigiu Zara.
O tom dela era puro gelo. Eu vi o exato momento em que ela
lembrou com quem estava falando e percebeu que, se Oren não
conseguia encontrar Toby, havia uma boa chance de que ele não
pudesse ser encontrado.
— Nós achamos que pode haver alguma conexão familiar entre
Toby e a pessoa que o sequestrou — eu disse.
A expressão de Zara oscilou, como ondas correndo pela água.
— Se vocês vieram aqui fazer acusações, sugiro que parem de
enrolar e me acusem logo.
— Não estamos aqui para te acusar de nada — disse Grayson,
com uma calma absoluta e inabalável. — Precisamos te perguntar
sobre seu primeiro marido.
— Christopher? — perguntou Zara, e arqueou uma sobrancelha.
— Eu garanto que não precisam.
— O sequestrador de Toby vem mandando pistas — eu disse,
apressada. — A mais recente envolve a história bíblica do filho
pródigo.
— Nós estamos procurando — afirmou Grayson — alguém que
via Tobias Hawthorne como um pai e sentiu que não ganhou o que
merecia. Nos conte de Christopher.
— Ele era tudo que se esperava de mim.
Zara ergueu a tesouras para cortar uma rosa branca. Cortem-lhe
a cabeça.
— Família rica, conexões políticas, charmoso — continuou.
Riqueza, Alisa tinha dito. Poder. Conexões.
Zara deitou a rosa branca em uma cesta preta e cortou mais três.
— Quando eu pedi o divórcio, Chris foi até meu pai e agiu como o
filho dedicado, esperando totalmente que o velho colocasse bom
senso na minha cabeça.
Foi a vez de Grayson arquear uma sobrancelha.
— O quanto ele foi destruído?
Zara sorriu.
— Eu te garanto que o divórcio foi civilizado.
Em outras palavras: completamente.
— Mas não importa — acrescentou ela. — Christopher morreu em
um acidente de barco logo depois que tudo foi finalizado.
Não, eu pensei, em uma reação visceral e impulsiva. Mais um
beco sem saída, não.
— E a família dele? — perguntei, sem querer desistir.
— Ele era filho único, e os pais também já faleceram.
Eu me senti que nem o rato que tinha imaginado, como se
tivessem me feito pensar que eu tinha uma chance quando, na
verdade, nunca tivera. Mas eu não podia desistir.
— É possível que seu pai tenha tido outro filho? — perguntei,
voltando àquela ideia. — Além de Toby?
— Um herdeiro preterido que não saiu de baixo de uma pedra
depois que o testamento foi lido? — respondeu Zara, altiva. — Com
bilhões em jogo? Pouco provável.
— Então o que estamos deixando passar? — perguntei, com mais
desespero na voz do que eu queria admitir.
Zara considerou a pergunta.
— Meu pai gostava de dizer que nossas mentes têm o hábito de
nos fazer escolher entre duas opções, quando, na verdade, existem
sete. O dom dos Hawthorne sempre foi ver todas as sete.
— Identificar as premissas implícitas na nossa própria lógica —
disse Grayson, citando claramente um ditado que lhe tinha sido
ensinado —, e então invalidá-las.
Eu pensei naquilo. Quais premissas tínhamos? Que Toby é o filho
pródigo, Tobias o pai. Era a interpretação óbvia, dada a história de
Toby, mas era aquele o problema das charadas. A resposta não era
óbvia.
E, no primeiro telefonema, o sequestrador de Toby tinha se
referido a si mesmo como um velho.
— O que acontece se tirarmos Toby da história? — perguntei a
Grayson. — Se seu avô não for o pai da parábola?
Meu coração martelava.
— E se ele for um dos filhos? — continuei.
Grayson olhou para a tia.
— O velho chegou a falar com você da família dele? Dos pais?
— Meu pai gostava de dizer que não tinha família, que viera do
nada.
— Era o que ele gostava de dizer — confirmou Grayson.
Na minha cabeça, tudo que eu via eram as três peças de xadrez.
Se Tobias Hawthorne era o bispo ou o cavalo... quem poderia ser o
rei?
CAPÍTULO 37

— Precisamos encontrar Nan — disse Jameson imediatamente,


quando Grayson e eu voltamos. — Ela é provavelmente a única
pessoa viva que pode nos contar se o velho tem alguma família da
qual Zara não sabe.
— Encontrar Nan — explicou Xander a Eve, no que pareceu ser
uma tentativa de animá-la — é tipo brincar de Onde está Wally?, só
que nesse caso o Wally gosta de bater nas pessoas com a bengala.
— Ela tem lugares favoritos na Casa — eu disse.
A sala do piano. O salão de cartas.
— É terça de manhã — comentou Nash, seco.
A capela — disse Jameson, olhando para cada um dos seus
irmãos. — Eu vou — sugeriu, e se virou para mim. — Quer dar uma
caminhada?

A capela Hawthorne, localizada depois do labirinto e diretamente ao


oeste das quadras de tênis, não era grande, mas era de tirar o
fôlego. Os arcos de pedra, bancos esculpidos à mão e vitrais
elaborados pareciam obra de dezenas de artesãos.
Nós encontramos Nan sentada em um banco.
— Não deixe o vento entrar — gritou ela, sem sequer se virar para
ver com quem estava gritando.
Jameson fechou a porta da capela, e nos juntamos a ela no
banco. Nan estava de cabeça baixa e olhos fechados, mas de
algum modo parecia saber exatamente quem tinha se juntado a ela.
— Menino sem vergonha — brigou com Jameson. — E você,
garota! Esqueceu do nosso pôquer semanal ontem, foi?
Eu fiz uma careta.
— Desculpa. Andei distraída.
Distraída era pouco.
Nan abriu os olhos apenas para estreitá-los para mim.
— Mas agora que você quer conversar, não importa se estou
ocupada?
— Podemos esperar a senhora terminar a oração — falei,
devidamente envergonhada, ou pelo menos tentando fingir.
— Oração? — resmungou Nan. — Eu estou é dando opinião ao
Criador.
— Meu avô construiu essa capela para Nan ter algum lugar para
gritar com Deus — informou Jameson.
Nan pigarreou.
— Aquele velho gagá ameaçou me construir um mausoléu no
lugar. Tobias nunca achou que eu viveria mais que ele.
Isso provavelmente era a coisa mais perto de uma abertura que
teríamos.
— Seu genro tinha alguma família de origem? — perguntei. —
Pais?
— Acha o quê, menina? Que ele surgiu adulto da cabeça de
Zeus? — desdenhou Nan. — Tobias sempre achou que fosse um
deus.
— Você o amava — disse Jameson, suavemente.
Nan deu uma engasgada.
— Como se fosse meu filho.
Ela fechou os olhos por um ou dois segundos, então os abriu e
continuou:
— Ele tinha pais, eu imagino. Pelo que lembro, Tobias dizia que
eles o tinham tido mais velhos e não sabiam muito o que fazer com
um menino como ele.
Nan olhou para Jameson.
— As crianças Hawthorne podem ser difíceis — comentou.
— Então ele foi um filho temporão — resumi. — Eles tinham
outros filhos?
— Depois de Tobias, duvido que ousassem.
— E quanto a irmãos mais velhos? — perguntou Jameson.
Um pai, dois filhos...
— Nada disso também. Quando Tobias conheceu minha Alice,
estava verdadeiramente sozinho. O pai tinha morrido de um ataque
do coração quando Tobias era adolescente. A mãe durou só um ano
mais que o pai.
— E quanto a mentores? — perguntou Jameson, e eu quase o
enxergava montando dezenas de cenários diferentes. — Figuras
paternas? Amigos?
— O negócio de Tobias nunca foi fazer amigos. O negócio dele
era fazer dinheiro. Ele era um canalha determinado, persistente e
brutal — disse Nan, com a voz trêmula. — Mas ele foi bom com a
minha Alice. Comigo.
— Família primeiro — disse Jameson em voz baixa ao meu lado.
— Nenhum homem construiu impérios sem fazer uma ou duas
coisas das quais não se orgulhasse, mas Tobias não deixava isso ir
para casa com ele. Suas mãos nem sempre estavam limpas, mas
ele não as levantou uma única vez... não para Alice, para os filhos,
nem para vocês, meninos.
— Você o teria matado se ele tivesse feito isso — disse Jameson,
afetuosamente.
— Olha essa sua boca — ralhou Nan.
Suas mãos nem sempre estavam limpas. A simples frase me vez
voltar à primeira mensagem que tínhamos recebido do sequestrador
de Toby. Naquele momento, tinha parecido que o alvo da vingança
era Toby ou eu. Mas e se fosse o próprio Tobias Hawthorne?
E se aquilo, tudo aquilo, fosse desde sempre a respeito do velho?
E se eu for só a escolhida dele? E se Toby for só o filho perdido
dele? A possibilidade ocupou minha mente e a agarrou como unhas
cravando a carne.
— O que seu genro fez? — perguntei. — Por que as mãos dele
não estavam limpas?
Nan não deu nenhuma resposta.
Jameson pegou a mão dela.
— Se eu te contasse que alguém quer se vingar da família
Hawthorne...
Nan deu um tapinha afetuoso no rosto dele.
— Eu diria a essa pessoa para entrar na fila.
CAPÍTULO 38

Identificar as premissas. Questioná-las. Invalidá-las. Ao sair da


capela, eu sentia que uma concha em volta do meu cérebro tinha
sido aberta, e possibilidades vinham de todos os lados.
O que eu teria feito se presumisse desde o início que Toby fora
sequestrado como vingança por algo que seu pai fizera? Pensei em
Eve falando de segredos dos Hawthorne — segredos sombrios,
talvez até perigosos — e em Nan e sua conversa sobre impérios e
mãos sujas.
O que Tobias Hawthorne tinha feito no caminho para o topo?
Depois de juntar tanto dinheiro e poder, o que tinha feito com
aquilo? E com quem?
Considerando possíveis passos em velocidade máxima, eu me
virei para Oren.
— Você rastreava as ameaças contra Tobias Hawthorne, quando
era chefe de segurança dele. Ele tinha uma Lista, que nem a minha.
Lista, L maiúsculo. Pessoas que precisam ser vigiadas.
— O sr. Hawthorne tinha uma Lista, sim — confirmou Oren. —
Mas era um pouco diferente da sua.
Minha Lista era cheia de desconhecidos. Desde o momento em
que eu tinha sido nomeada como herdeira de Tobias Hawthorne,
tinha sido jogada em uma espécie de palco mundial que
automaticamente vinha com ameaças de morte na internet e
potenciais perseguidores, pessoas que queriam ser eu e pessoas
que queriam me machucar.
Era sempre pior depois que alguma notícia saía na mídia. Tipo
agora.
— A Lista do meu avô por acaso seria uma lista de pessoas com
quem ele ferrou? — perguntou Jameson a Oren.
Ele via o mesmo que eu: se o sequestrador de Toby estava
contando uma história de inveja, vingança e triunfo sobre um velho
inimigo, a Lista de Tobias Hawthorne era um belo lugar para
começar.

Jameson e eu atualizamos os outros e Oren mandou entregarem a


Lista a nós no solário. A sala tinha paredes e tetos de vidro, então
dava para sentir o sol na pele de qualquer lugar. Depois de ter
virado quase a noite toda, nós sete precisávamos de toda ajuda
possível para ficarmos acordados.
Especialmente porque aquilo ia levar um tempo.
Tobias Hawthorne não tinha apenas uma lista de nomes. Ele tinha
pastas e arquivos como o que tinha montado sobre mim, mas para
centenas de pessoas. Centenas de ameaças.
— Você monitorava toda essa gente? — perguntei a Oren,
encarando a pilha de arquivos.
— Não era exatamente um monitoramento ativo. O importante era
saber a aparência e os nomes dessas pessoas, e ficar de olho —
disse Oren, com sua habitual expressão calma, impenetrável e
profissional. — Os arquivos foram coisa do sr. Hawthorne, não
minha. Eu só podia vê-los se a pessoa começasse a aparecer.
Naquele momento, nós não tínhamos rosto nem nome algum,
então me concentrei no que de fato tínhamos.
— Estamos procurando um homem mais velho — falei, em voz
baixa. — Alguém que foi ultrapassado e traído por Tobias
Hawthorne.
Eu queria que tivéssemos mais algum ponto de partida.
— Pode haver uma conexão familiar, ou semelhante, ou talvez só
uma história em torno de três pessoas — continuei.
— Três homens — disse Eve, parecendo ter recuperado a voz, a
garra e o controle. — Na parábola, são todos homens. E esse cara
sequestrou Toby, não Zara, nem Skye. Ele levou o filho.
Ela claramente tinha pensado naquilo. Eu dei uma olhada em
Grayson e a expressão dele me fez pensar que não tinha pensado
sozinha.
— Bem — disse Xander, tentando nos animar. — Não é pouca
coisa!
Voltei a atenção para as pastas, pilhas e pilhas de arquivos que
me deixaram com uma sensação pesada no estômago.
— Quem quer que esse homem seja — eu disse —, qualquer que
seja sua história com Tobias Hawthorne, o que quer que ele tenha
perdido... ele agora é rico, poderoso e tem conexões.
CAPÍTULO 39

Quando cada um de nós já tinha examinado uns três ou quatro


arquivos, nem a luz do sol entrando por todos os lados podia afastar
a sombra que tinha se instalado na sala.
Isso era o que eu sabia antes de ler os documentos: Tobias
Hawthorne tinha registrado suas primeiras patentes no final dos
anos sessenta, início dos setenta. Pelo menos uma tinha se
mostrado valiosa, e ele tinha usado o lucro para financiar a compra
de terras que o tornaram um nome importante no mercado de
petróleo do Texas. Ele finalmente tinha vendido a petroleira por mais
de cem milhões de dólares, e depois disso a tinha diversificado com
um toque de Midas que havia transformado milhões em bilhões.
Tudo isso era informação pública. A informação dos arquivos
contava as partes da história que o mito de Tobias Hawthorne havia
escondido. Aquisições hostis. Concorrentes levados à falência.
Processos abertos com o único propósito de falir a outra parte. O
bilionário implacável tinha o hábito de encontrar uma oportunidade
de mercado e entrar sem piedade naquele espaço, comprando
patentes e empresas menores, contratando os melhores e os
usando para destruir a concorrência, antes de simplesmente mudar
para outra indústria, outro desafio.
Ele pagava bem aos funcionários, mas, quando o vento mudava
ou os lucros secavam, os mandava embora sem pensar duas vezes.
O negócio de Tobias Hawthorne nunca foi fazer amigos. Eu tinha
perguntado a Nan exatamente o que o genro havia feito que não lhe
dava orgulho. A resposta estava ao redor de nós, e era impossível
ignorar os detalhes em qualquer um dos arquivos só porque não
correspondiam ao que estávamos procurando.
Olhei a pasta na minha mão: Seaton, Tyler. Parecia que o sr.
Seaton, um engenheiro biomédico genial, tinha sido pego por uma
das mudanças de direção de Tobias Hawthorne depois de sete anos
de serviço leal e lucrativo. Seaton fora demitido. Como todos os
funcionários dos Hawthorne, tinha recebido um generoso plano de
demissão, que incluía uma extensão do seguro de saúde. Contudo,
a extensão chegara ao fim, e uma cláusula de não concorrência nas
letrinhas miúdas do contrato tinha tornado quase impossível para
ele encontrar outro emprego.
E outro seguro de saúde.
Engolindo em seco, eu me forcei a encarar as imagens no
arquivo. Fotos de uma garotinha. Marian Seaton. Ela tinha sido
diagnosticada com câncer aos nove anos de idade, logo antes do
pai perder o emprego.
Ela tinha morrido aos doze.
Enjoada, eu me forcei a continuar examinando o arquivo. A folha
final continha informações financeiras a respeito de uma transação,
uma doação generosa que a Fundação Hawthorne tinha feito para o
Hospital Pediátrico St. Jude.
Aquele era Tobias Hawthorne, bilionário, equilibrando a balança.
Não é equilíbrio.
— Você sabia disso? — disse Grayson, em voz baixa, com os
olhos prateados concentrados em Nash.
— Qual “disso” estamos falando, irmãozinho?
— Que tal comprar patentes de uma viúva por um centésimo do
que valiam? — perguntou Grayson, atirando o arquivo no chão,
antes de pegar outro. — Ou se fazer de investidor anjo quando o
que realmente queria era aos poucos comprar o suficiente da
empresa para fechá-la e abrir caminho para outro de seus
investimentos?
— Eu voto nos contratos que dão a ele controle de toda a
propriedade intelectual dos funcionários — disse Jameson, e parou.
— Mesmo que propriedade intelectual não tenha sido desenvolvida
em horário de trabalho.
Do outro lado da sala, Xander engoliu em seco.
— Vocês não querem mesmo saber o que ele fez na indústria
farmacêutica.
— Você sabia? — perguntou Grayson a Nash de novo. — É por
isso que você sempre viveu com um pé pra fora? Por isso que não
aguentava estar sob o teto do velho?
— Por isso que você salva pessoas — disse Libby, baixo.
Ela não estava olhando para Nash. Estava olhando para os
próprios pulsos.
— Eu sabia quem ele era.
Nash não disse mais do que isso, mas dava para ver a tensão no
maxilar sob a barba por fazer. Ele baixou a cabeça e a aba do
chapéu de caubói escondeu seu rosto.
— Vocês se lembram do saco de vidro? — perguntou Jameson
aos irmãos de repente, com dor na voz. — Era o quebra-cabeça
com a faca. A gente tinha que quebrar a bailarina de vidro para
encontrar três diamantes dentro dela. A pista era me conte o que é
real, e Nash ganhou porque o resto de nós se concentrou nos
diamantes...
— E eu dei ao velho uma bolsa com vidro quebrado de verdade
— completou Nash.
Algo na voz dele fez Libby parar de olhar para os próprios pulsos
e ir colocar a mão silenciosa no braço dele.
— O vidro quebrado — disse Grayson, uma onda de tensão
correndo pelo seu corpo. — O sermão que ele passou, dizendo que,
para fazer o que ele tinha feito, sacrifícios eram necessários. Coisas
eram quebradas. E se você não limpasse os cacos...
Xander completou a frase, o pomo-de-adão subindo e descendo:
— As pessoas se machucavam.
CAPÍTULO 40

Trinta e seis horas se passaram — nenhuma notícia do


sequestrador de Toby, uma horda crescente de paparazzi no portão
e tempo demais passado no solário com os arquivos do Tobias
Hawthorne sobre seus inimigos. Seus muitos inimigos.
Eu terminei os arquivos na minha pilha. Os quatro irmãos
Hawthorne também. Libby também. Eve também. Nada
correspondia. Nada cabia. Eu não queria admitir que tínhamos
quebrado a cara de novo. Eu não queria me sentir encurralada ou
vencida, como se todas as pessoas a minha volta tivessem levado
vários socos no estômago para nada.
Então eu continuei voltando ao solário, relendo arquivos que os
outros já tinham lido, mesmo sabendo que os Hawthorne não tinham
deixado nada passar. Que os arquivos estavam marcados neles a
fogo.
Assim que Jameson terminara de ler a própria pilha, tinha
desaparecido para trás das paredes. O único motivo para eu saber
que ele não tinha partido para algum lugar desconhecido do outro
lado do mundo era que o outro lado da cama estava quente quando
eu acordei. Grayson tinha ido para a piscina, se levando além do
ponto da resistência humana várias vezes seguidas, e Nash, ao
terminar, tinha desviado da imprensa na porta, se esgueirado para
um bar e voltado às duas da manhã com a boca arrebentada e um
cachorrinho trêmulo enfiado dentro da camisa. Xander mal comia.
Eve parecia pensar que não precisava dormir e que, se conseguisse
decorar cada detalhe de cada arquivo, uma resposta apareceria.
Eu entendia. Nós duas não falávamos de Toby, do silêncio de seu
sequestrador, mas era o que nos movia.
Eu entrarei em contato.
Peguei outra pasta, uma dos poucas que ainda não tinha
examinado, e a abri. Vazia.
— Você leu esse? — perguntei a Eve, meu coração socando as
costelas com uma força súbita e chocante. — Não tem nada aqui.
Eve ergueu o olhar do arquivo que vinha examinando havia vinte
minutos. A esperança desesperada nos olhos dela reluziu e morreu
quando viu o arquivo ao qual eu me referia.
— Isaiah Alexander? Tinha uma página aí antes. Só uma. Arquivo
curto. Outro funcionário rejeitado, demitido de algum laboratório
Hawthorne. Doutorado, estrela promissora... e agora o cara não tem
nada.
Nem riqueza. Nem poder. Nem conexões. Nada do que a gente
está procurando.
— Então cadê a página? — perguntei, a questão me roendo.
— Importa? — Eve disse, seu tom desinteressado, irritação
manchando seus traços impressionantes. — Talvez tenha ido parar
em outro arquivo.
— Talvez — eu disse. Fechei o arquivo e meu olhar foi parar na
etiqueta. Alexander, Isaiah. Eve tinha dito o nome, mas eu não tinha
processado... Não até agora.
O nome do pai de Grayson era Sheffield Grayson. O pai de Nash
se chamava Jake Nash. E o nome de Xander era apelido de
Alexander.

Encontrei meu BFFH no laboratório. Era um quarto escondido cheio


da coleção mais aleatória de objetos que se poderia imaginar.
Alguns artistas transformavam objetos cotidianos em comentário
artístico. Xander fazia isso, mas na versão engenheiro. Em se
tratando de mecanismos de conforto emocional dos irmão
Hawthorne, o dele provavelmente era o mais saudável da Casa.
— Eu preciso falar com você.
— Pode ser sobre usos alternativos de armas medievais? —
pediu Xander. — Porque tenho umas ideias.
Aquilo era preocupante em muitos níveis, e tão a cara de Xander
que eu quis chorar, abraçá-lo ou fazer qualquer coisa além de
mostrar aquele arquivo e obrigá-lo a falar comigo a respeito de uma
coisa que ele tinha deixado bem claro durante o Escadas e
Serpentes que não queria mencionar.
— Esse é seu pai? — perguntei suavemente. — Isaiah
Alexander?
Xander se virou para mim. Então, como se tomasse uma decisão
muito séria, ergueu a mão e cutucou a ponta do meu nariz.
— Bop.
— Você não vai me distrair — falei, a exasperação que eu
normalmente teria sentido substituída por uma emoção mais
carinhosa e dolorosa. — Vamos lá, Xan. Eu sou sua BFFHH. Fale
comigo.
— Bop duplo — disse Xander, apertando novamente meu nariz.
— Pra que o H a mais?
— Honorária. Vocês me tornaram uma Hawthorne honorária,
então eu sou sua BFF Hawthorne Honorária. Fale.
— Bop tri... — começou Xander, mas desviei antes que ele
encostasse no meu nariz.
Eu me endireitei, peguei a mão dele suavemente na minha e a
apertei. Era Xander, então não havia uma gota de acusação quando
fiz a pergunta seguinte.
— Você pegou a página que estava nessa pasta?
Xander sacudiu a cabeça enfaticamente.
— Eu nem sabia que Isaiah estava na Lista. Mas eu
provavelmente posso te contar o que estava no arquivo dele. Eu
passei vários meses meio que criando o meu próprio.
Não reprimi o impulso de abraçá-lo. Com força.
— Eve disse que ele era um doutor que foi demitido de um
laboratório Hawthorne — falei quando me afastei.
— É por aí — respondeu Xander, seu tom alegre uma cópia da
cópia da verdade. — Mas ainda tem a época. É possível que Isaiah
tenha sido demitido mais ou menos quando eu fui concebido. Talvez
porque eu fui concebido? Quer dizer, talvez não! Mas talvez?
Coitado do Xander. Eu pensei no que ele tinha dito em Escadas e
Serpentes.
— É por isso que você não entrou em contato com ele?
— Eu não posso simplesmente telefonar pra ele — disse Xander,
com um olhar de queixa. — E se ele me odiar?
— É impossível te odiar, Xander — eu disse a ele, com um aperto
no peito.
— Avery, eu fui odiado a vida inteira.
Algo no tom dele me fez pensar que pouca gente entendia como
era ser Xander Hawthorne.
— Não por quem te conhece — insisti com ferocidade.
Xander sorriu e algo nisso me fez querer chorar.
— Você acha que tem problema — disse ele, soando mais jovem
do que eu jamais o vira — eu ter amado aqueles jogos de sábado
de manhã? Ter amado crescer aqui? Ter amado o grande e terrível
Tobias Hawthorne?
Eu não podia responder aquilo por ele, por nenhum deles. Eu não
podia fazer os últimos dias doerem menos. Mas uma coisa eu podia
dizer.
— Você não amava o grande e terrível Tobias Hawthorne. Você
amava o velho.
— Eu era o único que sabia que ele estava morrendo — disse
Xander, e se virou para pegar o que parecia um diapasão, mas não
fez nenhum movimento para acrescentá-lo ao que quer que
estivesse inventando. — Ele manteve segredo de todo o resto por
semanas. Ele queria minha companhia no final, e sabe o que ele me
disse? A última coisa?
— O que foi? — perguntei baixo.
— Quando isso acabar, você vai saber que tipo de homem eu fui,
e que tipo de homem você quer ser.
CAPÍTULO 41

Eu voltei para o solário de mãos abanando, tendo esbarrado em


mais um beco sem saída. Eu entrarei em contato. A promessa
sinistra ecoava na minha cabeça quando virei uma esquina e vi o
guarda de Eve. Eu o cumprimentei com a cabeça, olhei brevemente
para Oren e então abri a porta do solário.
Lá dentro, Eve estava sentada na frente de um arquivo espalhado
no chão, com um celular nas mãos. Tirando fotos.
— O que você está fazendo? — perguntei, assustada.
Eve ergueu os olhos.
— O que você acha que estou fazendo? — perguntou ela, com a
voz falhando. — Eu preciso dormir. Eu sei que preciso dormir, mas
não consigo parar. E não posso tirar os arquivos dessa sala, então
eu pensei...
Ela sacudiu a cabeça, lacrimejando, com o cabelo cor de âmbar
caído na frente do rosto.
— Esqueça — falou. — É idiota.
— Não é idiota. E você precisa mesmo dormir.
Todos nós precisávamos.

Fui conferir a ala de Jameson antes de voltar para a minha. Ele não
estava lá também. Eu me lembrei de como tinha sido quando eu
havia descoberto que minha mãe não era quem eu pensava que ela
era. Senti que estava novamente de luto pela morte dela, e a única
coisa que tinha ajudado fora Libby me lembrar do tipo de pessoa
que minha mãe tinha sido, me provar que eu a conhecia, sim, de
todas as maneiras importantes.
Mas o que eu podia dizer para Jameson, ou Xander, ou qualquer
um deles, a respeito de Tobias Hawthorne? Que ele realmente era
genial? Estratégico? Que tinha alguns farrapos de consciência? Que
se importava com a própria família, mesmo tendo deserdado todos
eles em favor de uma desconhecida?
Eu pensei nas últimas palavras que o bilionário dissera a Xander:
Quando isso acabar, você vai saber que tipo de homem eu fui, e que
tipo de homem você quer ser. Quando o quê acabasse? Quando
Xander tivesse encontrado seu pai? Quando todos os jogos que
Tobias Hawthorne tinha planejado antes de morrer tivessem sido
jogados?
A ideia atraiu meu olhar para a bolsa de couro na cômoda. Eu
tinha passado dois dias consumida pela charada doentia do
sequestrador de Toby e pela esperança, por menor que fosse, de
que estávamos chegando mais perto de resolvê-la. Mas a verdade
era que toda a reflexão não tinha nos levado a lugar nenhum.
Provavelmente tinha sido proposta para não nos levar a lugar
nenhum... até que a charada fosse finalizada.
Eu entrarei em contato.
Eu detestava aquilo. Eu precisava de alguma vitória. De uma
distração. Quando isso acabar, você vai saber que tipo de homem
eu fui. Lentamente, caminhei até a cômoda, pensando em Tobias
Hawthorne e naqueles arquivos, e peguei a bolsa.
Com movimentos metódicos, espalhei os objetos que ainda não
tinha usado. O vaporizador. A lanterna. A toalha de praia. O círculo
de vidro. Falei em voz alta a última pista que Jameson e eu
havíamos desvendado:
— Não respire.
Eu esvaziei a mente. Depois de um momento, meu olhar se fixou
na toalha, e então no círculo azul-esverdeado. Essa cor. Uma
toalha. Não respire.
Com uma clareza súbita e visceral, compreendi o que tinha que
fazer.
As pessoas paravam de respirar quando estavam aterrorizadas,
surpresas, chocadas, tentando ficar quietas, cercadas por fumaça...
ou embaixo d’água.
CAPÍTULO 42

Uma luz com sensor de movimento acendeu quando entrei no


pátio. Na minha cabeça, por um breve momento, eu vi a piscina
como ela era de dia, com a luz refletindo na água e os azulejos do
fundo a tornando de um azul-esverdeado tão impressionante quanto
o Mediterrâneo.
O mesmo tom do pedaço de vidro que eu levava na mão direita.
Eu estava com a toalha de praia na esquerda. Claramente, eu
precisaria me molhar.
De noite, a água era mais escura, sombria. Eu escutei Grayson
nadando antes de vê-lo, e senti o momento exato em que ele notou
minha presença.
A mão de Grayson Davenport Hawthorne bateu na borda da
piscina. Ele se levantou.
— Avery.
A voz dele era baixa, mas, na quietude da noite, chegava longe.
— Você não deveria estar aqui — falou.
Comigo estava implícito.
— Você deveria estar dormindo — insistiu.
Grayson, sempre cheio de deveria e precisaria. Os Hawthorne
não deveriam quebrar, falou a voz dele no fundo da minha memória.
Especialmente eu.
Afastei a lembrança o máximo que pude.
— Tem alguma luz aqui fora? — perguntei.
Eu não queria ter que lidar com a escuridão toda vez que eu
ficasse parada, e não conseguia me forçar a olhar para Grayson,
para seus olhos claros e penetrantes, como eu tinha feito naquela
noite.
— Tem um painel de controle embaixo do pórtico.
Consegui encontrá-lo e acendi as luzes da piscina, mas acabei
ligando também uma fonte sem querer. Água espirrou para cima em
um arco magnífico enquanto a luz da piscina passava por várias
cores: rosa, roxo, azul, verde, violeta. Parecia que eu estava vendo
fogos de artifício. Parecia mágica.
Mas eu não tinha descido para ver mágica. Um toque desligou a
fonte. Outro interrompeu o ciclo de cores na luz.
— O que você está fazendo? — perguntou Grayson, e eu sabia
que ele estava perguntando por que eu estava ali, com ele.
— Jameson te contou da bolsa que seu avô deixou para mim? —
perguntei.
Grayson se afastou da parede, ondulando a água enquanto
ponderava sobre sua resposta.
— Jamie não me conta tudo.
Os silêncios nas frases de Grayson sempre diziam muito.
— Sendo justo, tem muita coisa que eu não conto pra ele —
acrescentou.
Foi o mais perto que ele já tinha chegado de mencionar aquela
noite na adega, as coisas que tinha confessado para mim.
Ergui o círculo de vidro.
— Esse foi um dos vários itens em uma bolsa que seu avô instruiu
que deveria ser entregue para mim se Eve e eu nos
conhecêssemos. Tinha também...
— O que você disse?
Sem aviso, Grayson saiu da água. Era outubro e estava fresco o
suficiente para ele estar congelando, mas ele fazia uma boa
imitação de alguém totalmente incapaz de sentir frio.
— Quando eu conheci Eve, um dos jogos do seu avô começou.
— O velho sabia?
Grayson estava tão imóvel que, se a luz da piscina não estivesse
acesa, teria desaparecido na escuridão.
— Meu avô sabia de Eve? — perguntou. — Ele sabia que Toby
tinha uma filha?
Eu engoli em seco.
— Sabia.
Todos os músculos no corpo de Grayson ficaram tensos.
— Ele sabia — repetiu com ferocidade —, e deixou ela lá? Ele
sabia e não disse uma palavra para nenhum de nós?
Grayson andou na minha direção, passando por mim. Ele se
apoiou na parede do pórtico, as mãos espalmadas, os músculos das
costas tão tensos que parecia que as escápulas iam arrebentar a
pele.
— Grayson?
Eu não disse mais do que isso. Não sabia o que mais dizer.
— Eu dizia a mim mesmo que o velho amava a gente — afirmou
Grayson, com a precisão de um cirurgião que cortava a carne
saudável para chegar à doente. — Que, se cobrava de nós padrões
impossíveis, era pelo motivo nobre de forjar seus herdeiros como
precisavam ser. E se o grande Tobias Hawthorne era mais duro
comigo do que com meus irmãos, eu dizia que era porque eu
precisava ser mais. Eu acreditava que ele tinha me ensinado honra
e dever porque ele era honrado, porque sentia o peso do seu dever
e queria me preparar para isso.
Grayson bateu a mão na parede com força suficiente para a
superfície áspera arranhar a pele.
— Mas as coisas que ele fez? Os segredinhos sujos naqueles
arquivos? Saber de Eve e deixá-la ser criada por pessoas que a
tratavam como inferior? Fingir que essa família não devia nada à
filha de Toby? Não há nada de honrado nisso — disse Grayson,
tremendo. — Em nada disso.
Eu pensei em Grayson, que nunca se permitia quebrar porque
sabia o homem que tinha sido criado para ser. Pensei em Jameson,
dizendo que Grayson tinha sempre sido tão perfeito.
— Nós não sabemos há quanto tempo seu avô sabia de Eve —
falei. — Se foi uma descoberta recente, se ele sabia que ela era
parecida com Emily, talvez tenha achado que seria dolorido
demais...
— Talvez ele achasse que eu era fraco demais — disse Grayson,
e se virou para me olhar. — É isso que você está dizendo, Avery,
por mais que tente fazer parecer outra coisa.
Dei um passo na direção dele.
— O luto não te torna fraco, Grayson.
— O amor, sim — disse Grayson, e sua voz ficou brutalmente
grave. — Eu deveria estar acima de tudo isso. Emoção.
Vulnerabilidade.
— Por que você? — perguntei. — Por que não Nash? Ele é o
mais velho. Por que não Jameson, ou Xan...
— Porque deveria ter sido eu.
Grayson inspirou, ofegante. Quase dava para vê-lo brigar com a
porta da jaula onde guardava suas emoções, querendo trancá-la
mais uma vez.
— Durante minha vida toda, Avery, deveria ser eu — continuou. —
Era por isso que eu precisava ser melhor, por isso que eu precisava
me sacrificar, ser honrado e colocar a família em primeiro lugar, por
isso que eu nunca podia perder o controle... porque o velho não ia
durar pra sempre, e era eu quem deveria assumir as rédeas quando
ele se fosse.
Deveria ter sido Grayson, pensei. Não eu. Um ano depois, e parte
de Grayson ainda não conseguia aceitar aquilo, mesmo sabendo
que o velho nunca tivera realmente a intenção de deixar sua fortuna
para ele.
— E eu entendi, Avery, eu entendi por que o velho teria olhado
para essa família, olhado para mim, e decidido que não éramos
dignos do legado dele. — A voz de Grayson falhou. — Eu entendi
por que ele pensaria que eu não era bom o suficiente... e você era.
Mas se o grande Tobias Hawthorne não era honrado? Se qualquer
limite podia ser ultrapassado para seu ganho pessoal? Se “família
em primeiro lugar” era só uma mentira de merda que ele me
contou? Então por quê?
Grayson ergueu o olhar para mim.
— Qual foi o propósito, Avery, de tudo isso?
— Eu não sei.
Minha voz soava tão áspera quanto a dele. Hesitando, levantei
novamente o círculo de vidro.
— Mas talvez tenha algo a mais nisso, um pedaço do quebra-
cabeça que nós não sabemos...
— Mais jogos — disse Grayson, e bateu novamente na parede. —
O velho babaca está morto há um ano, e ainda controla tudo.
Minha mão direita estava segurando o vidro azul-esverdeado. Eu
soltei a toalha com a esquerda e a estendi na direção dele.
— Não — suspirou Grayson, virando-se para passar por mim. —
Eu já te disse antes, Avery. Eu estou quebrado. Eu não vou quebrar
você também. Volte para a cama. Esqueça esse pedaço de vidro ou
o que mais estava naquela bolsa. Pare de jogar os jogos do velho.
— Grayson...
— Só pare.
Aquilo soou definitivo de uma forma que nada mais entre nós
nunca fora. Eu não disse nada. Não fui atrás dele. E, quando a
forma como ele tinha me dito para parar ecoou na minha mente, eu
pensei em Jameson, que nunca parava.
Na pessoa que eu era com Jameson.
Eu andei até a água. Tirei a calça e a camiseta, deixei o vidro na
borda da piscina e mergulhei.
CAPÍTULO 43

Deslizei pela água com os olhos abertos. O mosaico azul-


esverdeado no fundo da piscina me atraía, iluminado pelas luzes
que eu tinha acendido. Nadei até mais perto, então passei a mão
pelos azulejos, notando tudo: aquela cor, a suavidade, a variação
em corte e tamanho dos pequenos azulejos, a forma como tinham
sido instalados, quase em espiral.
Eu me impulsionei para longe do fundo e, quando passei pela
superfície, nadei até a lateral. Com o círculo de vidro em uma das
mãos, me empurrei pela borda do lado raso com a outra. Em pé,
submergi o vidro e afundei. Não respire.
Filtrados pelo vidro, os azulejos azul-esverdeados desapareciam.
Por baixo deles, vi um desenho mais simples: quadrados, alguns
claros, alguns escuros. Um tabuleiro de xadrez.
Sempre havia um momento naqueles jogos em que eu era
atingida por uma percepção quase física de que nada que Tobias
Hawthorne já tinha feito na vida era sem camadas de propósito.
Todas aquelas adições à Casa Hawthorne — quantas delas
continham um de seus truques, só esperando pelo jogo certo?
Armadilhas atrás de armadilhas, Jameson tinha me dito uma vez,
charada atrás de charadas.
Eu subi para tomar ar, a imagem do tabuleiro de xadrez marcada
na mente. Eu pensei em Grayson me dizendo para não jogar, em
Jameson, que deveria estar jogando ao meu lado. E então esvaziei
tudo aquilo. Pensei nas pistas que tinham vindo antes daquela: o
gambito da rainha, levando ao jogo de xadrez real, que levava a não
respire. Mergulhei de novo, levantei o vidro e ocupei mentalmente
os quadrados com peças.
Eu joguei o gambito da rainha na minha mente. P-Q4. P-Q4. P-
QB4.
Sem piscar, decorei a localização dos quadrados envolvidos nos
movimentos, então subi para tomar ar. Deixei o vidro na borda da
piscina e saí da água, e o ar da noite foi um choque brutal.
P-Q4, pensei. Concentrada, mergulhei até o fundo. Por mais que
empurrasse ou cutucasse o mosaico de azulejos que formava o
primeiro quadrado, nada acontecia. Nadei até o segundo, mas ainda
nada, então subi para respirar de novo, nadei novamente para a
lateral, saí mais uma vez, com frio, tremendo, pronta.
Puxei ar e mergulhei de novo. P-QB4. A localização do último
movimento no gambito da rainha. Dessa vez, quando pressionei os
azulejos, um girou, batendo no seguinte e no seguinte, como um
mecanismo mágico.
Observei a reação em cadeia, peça a peça, com medo até de
piscar, morta de medo daquilo, o que quer que fosse, só durar um
momento. Um último azulejo girou e toda a seção — o quadrado
que eu tinha visto através do vidro — se abriu. Com os pulmões
começando a queimar, enfiei os dedos por baixo. Esbarrei em
alguma coisa.
Quase. Quase.
Meu corpo estava me dizendo para voltar à superfície — gritando
para que eu fosse para a superfície —, mas enfiei os dedos embaixo
do azulejo de novo. Dessa vez, consegui puxar um pacote fino, um
instante antes de o compartimento começar a fechar.
Dei impulso, chutei e irrompi na superfície da água. Ofeguei e
continuei ofegando, puxando o ar da noite sem parar. Nadei até a
lateral da piscina. Quando busquei a borda, outra mão agarrou a
minha.
Jameson me puxou para fora da água.
— Não respire — murmurou.
Eu não perguntei onde ele tinha estado, nem mesmo se estava
bem. Eu só ergui o pacote que tinha tirado do fundo da piscina.
Jameson se inclinou para pegar a toalha de praia e a enrolou em
volta de mim.
— Muito bem, Herdeira.
Seus lábios tocaram os meus e o mundo ficou eletrizado, cheio de
antecipação e da emoção da caçada. Era assim que eu e ele
deveríamos ser: sem fugir, sem nos esconder, sem recriminações,
sem arrependimentos.
Só nós dois, perguntas e respostas e o que podíamos fazer
quando estávamos juntos.
Fui abrir o pacote e descobri que estava selado a vácuo. Jameson
me estendeu uma faca. Eu a reconheci. A faca, do jogo dos vidros
quebrados.
Pegando-a dele, cortei o pacote. Lá dentro havia uma bolsa à
prova de fogo. Eu a abri e encontrei uma fotografia desbotada. Três
pessoas, três mulheres, em frente a uma enorme igreja de pedra.
— Você as reconhece? — perguntei a Jameson.
Ele sacudiu a cabeça e eu virei a foto. Na parte de trás, na letra
familiar de Tobias Hawthorne, estava um lugar e uma data.
Margaux, França, 19 de dezembro de 1973.
Eu vinha jogando os jogos do bilionário havia tempo suficiente
para o meu cérebro se grudar imediatamente à data. 19/12/1973. E
então à localização.
— Margaux? — perguntei, alto. — Se pronuncia tipo Margô?
Podia significar que estávamos procurando por uma pessoa com
aquele nome... mas, em um jogo dos Hawthorne, também podia
significar muitas outras coisas.
CAPÍTULO 44

Jameson me fez entrar no banho quente, e minha mente ficou


acelerada. Decodificar a pista exigia separar significado de
distração. Havia quatro elementos: a fotografia; o nome Margaux; a
localização na França e a data, que podia ser uma data de verdade
ou um número que precisava ser decodificado.
Muito provavelmente, alguma combinação dos quatro elementos
era importante, e o resto era só distração, mas qual era qual?
— Três mulheres — disse Jameson, e pendurou uma toalha
aquecida na porta do box. — Uma igreja no fundo. Se escanearmos
a foto, podemos tentar uma busca por imagem...
— O que só ajudaria — completei, a água fervendo na pele
gelada — se existir uma cópia dessa mesma foto on-line.
Ainda assim, valia tentar.
— Devíamos tentar localizar a igreja, descobrir o nome —
murmurei, o vapor ficando mais espesso no ar. — E podemos falar
com Zara e Nan. Ver se elas reconhecem alguma das mulheres.
— Ou o nome Margaux — acrescentou Jameson.
Através do vapor no box, ele era um borrão de cores: comprido,
magro, familiar de um jeito que chegava a doer.
Desliguei a ducha, me enrolei na toalha e pisei no tapete do
banheiro. Jameson me olhou nos olhos, o rosto iluminado pelo luar
da janela, o cabelo, uma bagunça que meus dedos queriam tocar.
— Temos também que considerar a data — murmurou. — E o
restante dos objetos na bolsa.
— Um vaporizador, uma lanterna, um pen-drive — listei. —
Podemos usar o vaporizador e a lanterna na foto... e na bolsa onde
ela estava.
— Restam três objetos — disse Jameson, com um leve sorriso. —
E três já foram usados. Isso nos coloca na metade, e meu avô diria
que é um bom ponto para dar um passo pra trás. Voltar ao começo.
Considerar o contexto e o objetivo.
Senti minha boca se abrir, os cantos se erguendo.
— Nenhuma instrução foi dada. Nenhuma pergunta, nenhuma
partida.
— Nenhuma pergunta, nenhuma partida — repetiu Jameson, em
voz baixa e suave. — Mas a gente sabe o gatilho. Você conheceu
Eve.
Jameson remoeu isso por um momento, então se virou. Seus
olhos verdes pareciam focados em algo que ninguém além dele
conseguia ver, como se um milhão de possibilidades se mostrasse
de repente diante dele em constelações no céu.
— O jogo começou quando você conheceu Eve, o que quer dizer
que ele pode nos dizer algo sobre você ou algo sobre Eve, algo
sobre o porquê de meu avô ter escolhido você em vez de Eve, ou...
Jameson se virou de novo, preso na teia dos próprios
pensamentos. Era como se tudo mais tivesse deixado de existir, até
mesmo eu.
— Ou — repetiu, como se fosse a resposta. — Eu não notei no
início — disse, a voz baixa e carregada de energia elétrica. —, mas
agora que parece que o velho pode estar no centro do ataque…
O olhar de Jameson voltou para o mundo real.
— E se… — falou.
Jameson e eu vivíamos para aquelas duas palavras: E se? Eu as
senti.
— Você acha que pode existir uma conexão — falei — entre o
jogo que seu avô me deixou e todo o resto?
O sequestro de Toby. O velho com um gosto por charadas.
Alguém me atacando por todos os lados.
Minha pergunta firmou Jameson, e seu olhar saltou para o meu.
— Eu acho que esse jogo foi entregue a você porque Eve
apareceu aqui. E o único motivo para Eve aparecer aqui foi porque
houve um problema. Sem problema, sem Eve. Se Toby não tivesse
sido sequestrado, ela não estaria aqui. Meu avô sempre pensou
sete passos à frente. Ele via dezenas de variações do que poderia
acontecer, se planejava para toda eventualidade, fazia uma
estratégia para cada futuro possível.
Às vezes, quando os meninos falavam do velho, eles o faziam
parecer mais do que mortal. Mas havia limites ao que uma pessoa
podia prever, limites para as estratégias vindas até das mentes mais
brilhantes.
Jameson pegou meu queixo na mão e inclinou minha cabeça
suavemente para trás, para cima, para ele.
— Pense nisso, Herdeira. E se a informação necessária para
descobrir quem sequestrou Toby estiver nesse jogo?
Minha garganta apertou, o corpo todo sentindo a onda de
esperança com força física.
— Você acha mesmo que pode estar? — perguntei, minha voz
falhando.
Sombras passaram pelos olhos de Jameson.
— Talvez não. Talvez eu esteja indo longe demais. Talvez eu só
esteja vendo o que quero ver, vendo-o da forma que quero vê-lo.
Eu pensei nos arquivos, em Jameson desaparecendo pelas
paredes da Casa Hawthorne.
— Eu estou aqui — eu disse a ele suavemente. — Eu estou bem
aqui, com você, Jameson Hawthorne.
Pare de fugir.
Ele estremeceu.
— Diga Taiti, Herdeira.
Eu levei a mão ao pescoço dele.
— Taiti.
— Quer saber a pior parte? Porque a pior parte não é saber o que
meu avô faria, e fez, para ganhar. É saber, nas minhas entranhas e
nos meus ossos, com cada fibra do meu ser, o porquê. É saber que
tudo que ele já fez para vencer eu teria feito também.
Jameson Winchester Hawthorne é faminto. Fora aquilo que Skye
me dissera nas minhas primeiras semanas na Casa Hawthorne.
Grayson era dedicado e Xander, brilhante, mas Jameson fora o
favorito do velho porque Tobias Hawthorne também tinha nascido
faminto.
Doía vê-los como semelhantes.
— Não diga isso, Jameson.
— Para ele, era tudo estratégia — disse Jameson. — Ele via
conexões que outras pessoas deixavam passar. Todas as outras
pessoas jogavam xadrez em duas dimensões, mas Tobias
Hawthorne via a terceira e, quando reconhecia a jogada da vitória,
ele agia.
Nada é mais Hawthorne que vencer.
— Não é só porque poderia fazer — eu disse a Jameson com
ferocidade — que você teria feito.
— Antes de você, Herdeira? Eu teria, sim, sem dúvida — disse
ele, a voz intensa. — Eu nem consigo odiá-lo agora. Ele é parte de
mim. Ele está em mim.
Jameson tocou de leve meu cabelo, então enroscou os dedos
nele.
— Mas mais que tudo, Avery Kylie Grambs — continuou —, eu
não consigo odiá-lo porque ele me levou até você.
Ele precisava que eu o beijasse, e eu precisava também. Quando
Jameson finalmente se afastou — só um centímetro, então dois —,
meus lábios doeram de saudade dos dele. Ele levou a boca a minha
orelha.
— Agora, de volta ao jogo.
CAPÍTULO 45

Nós trabalhamos até quase de manhã, dormimos um pouco,


acordamos entrelaçados. Falamos com Nan e Zara, brincamos com
os números, identificamos a igreja, que nem ficava na França, muito
menos em Margaux. Voltamos aos objetos na bolsa: um
vaporizador, uma lanterna, o pen-drive.
No meio da manhã, já estávamos andando em círculos.
Como se tivesse adivinhado a necessidade de nos tirar disso,
Xander mandou uma mensagem para Jameson. Jameson me
mostrou o celular. SOS.
— Uma emergência? — perguntei.
— Mais uma convocatória — explicou Jameson. — Vamos.
Chegamos ao corredor e demos de cara com Nash, que estava
saindo do quarto de Libby com as roupas do dia anterior, segurando
uma pequena, agitada e peluda bolinha marrom de caos.
— Espero mesmo que você não tenha tentado dar esse
cachorrinho incrivelmente fofo pra minha irmã — falei.
— Não tentou — disse Libby, entrando no corredor vestindo uma
camiseta estampada com EU COMO QUEM ACORDA CEDO e calça preta de
pijama. — Ele é mais esperto que isso. Esse cachorro é um
Hawthorne.
Libby estendeu a mão para fazer carinho na orelha do filhote.
— Nash a encontrou em um beco. Uns bêbados babacas a
estavam cutucando com uma vara — explicou.
Conhecendo Nash, eu duvidava que a história tivesse acabado
bem pros bêbados babacas.
— Ele a salvou — continuou Libby, abaixando a mão. — É o que
ele faz.
— Eu não sei, querida — disse Nash, dando uma coçadinha no
cachorro, de olho na minha irmã. — Eu estava bem mal. Talvez ela
tenha me salvado.
Eu pensei no pequeno Nash vendo Skye com seus irmãozinhos,
vendo-a abandoná-los. E então pensei em Libby me acolhendo.
— Recebeu o SOS de Xander? — perguntou Jameson ao irmão.
— Recebi — respondeu Nash.
— SOS? — disse Libby, franzindo o cenho. — Xander está bem?
— Ele precisa de nós — disse Nash a minha irmã, deixando o
cachorro lamber seu queixo. — Nós temos direito a um SOS por ano.
Se chega uma mensagem dessas, não importa onde você está ou o
que está fazendo. Você larga tudo e vai.
— Xander só não disse ainda aonde ir — acrescentou Jameson.
Bem na hora, o celular de Jameson vibrou. O de Nash também.
Uma série de mensagens chegaram rapidamente. Jameson inclinou
o celular para que eu pudesse ver.
Xander tinha mandado quatro fotos, cada uma com um pequeno
desenho. A primeira era um coração com VEM CÁ escrito no meio.
Desci até a segunda foto e franzi o cenho.
— Isso é um macaco andando de bicicleta?
Libby foi até Nash e pegou o celular do bolso dele. Havia algo de
íntimo no gesto, nele a deixar fazer aquilo, nela saber que ele
deixaria.
— O macaco parece estar rindo, tipo RÁAA! — comentou Libby.
Nash olhou para a foto.
— Pode ser um lêmure — opinou.
Eu sacudi a cabeça e olhei para a terceira foto: Xander tinha
desenhado uma árvore com um buraco no meio. A quarta imagem
era um elefante em um pula-pula dizendo ÊEEEEEE!
Eu olhei para Jameson.
— Você tem alguma ideia do que isso significa?
— Como estabelecido previamente, SOS significa que Xander está
nos chamando — disse Jameson. — Pelas regras dos Hawthorne,
essa convocação não pode ser ignorada. Quanto às imagens...
resolva sozinha, Herdeira.
Eu olhei para as imagens de novo. O coração. Os animais rindo e
gritando.
— A árvore é oca, se isso ajudar — disse Nash.
O cachorrinho latiu.
Vem cá. Rá. Oca. Ê. Eu pensei… e finalmente juntei tudo.
— Você deve estar brincando — falei para Jameson.
— O que foi? — perguntou Libby.
Jameson abriu um sorriso.
— Os Hawthorne nunca brincam com karaokê.
CAPÍTULO 46

Cinco minutos depois, estávamos no teatro Hawthorne — que


não deve ser confundido com o cinema Hawthorne. O teatro tinha
palco, cortina de veludo vermelho, plateia e camarotes, a coisa toda.
Xander estava no palco, segurando um microfone. Uma tela tinha
sido instalada atrás dele e devia haver um projetor em algum lugar,
porque “SOS!” dançava na tela.
— Eu preciso disso — disse Xander no microfone. — Vocês
precisam disso. Todo mundo precisa disso. Nash, eu já deixei a
Taylor Swift pra você. Jameson, prepare a coreografia, porque o
palco está te chamando, e todos nós sabemos que seu quadril é
completamente incapaz de falsidades. Quanto a Grayson...
Xander parou.
— Cadê o Gray? — perguntou.
— Grayson Hawthorne perdendo o karaokê? — disse Libby. — Eu
estou chocada, devo dizer. Chocada.
— Gray tem uma voz tão grave e suave que você vai acabar
literalmente em prantos quando ele cantar alguma coisa tão
antiquada que até vai dar para acreditar que ele passou os anos
cinquenta de ternos chiquérrimos ao lado de seu melhor amigo,
Frank Sinatra — jurou Xander, voltando o olhar para seus irmãos. —
Mas Gray não está aqui.
Jameson olhou para mim.
— Não se ignora uma mensagem de SOS — me disse ele. — Não
importa o que aconteça.
— Cadê o Grayson? — insistiu Nash.
Foi então que eu ouvi: um som entre estilhaços e madeira
lascada.
Jameson saiu correndo do teatro. Outro barulho de algo
quebrado.
— Sala de música — disse ele.
Xander saltou do palco.
— Meu dueto vai ter que esperar!
— Com quem você ia fazer um dueto? — perguntou Libby.
— Comigo mesmo! — gritou Xander enquanto corria para a porta,
mas Nash o pegou.
— Calma aí, Xan. Deixe o Jamie ir — disse Nash, e olhou para
mim. — Vá você também, menina.
Eu não tinha certeza do que Nash achava que estava
acontecendo ali, ou por que tinha tanta certeza de que Jameson e
eu éramos de quem Grayson precisava.
— Enquanto isso — disse Nash a Xander —, me passa o
microfone.

Enquanto Jameson e eu descíamos o corredor, uma música


lindamente dolorida começou a tocar ao violino. A porta da sala de
música estava aberta, e, quando entrei, vi Grayson parado em frente
às janelas abertas, de terno sem paletó e camisa desabotoada, com
um violino pressionado contra o queixo. Sua postura era perfeita,
cada movimento, suave.
O chão na frente dele estava coberto de lascas de madeira.
Eu não lembrava quantos violinos ultracaros Tobias Hawthorne
tinha comprado para cultivar a habilidade musical do neto, mas
parecia que Grayson tinha destruído pelo menos um.
A canção chegou à nota final, tão aguda e doce que era quase
insuportável. Então houve silêncio e Grayson baixou o violino, se
afastou das janelas e ergueu o instrumento de novo, acima da
cabeça.
Jameson pegou o braço do irmão.
— Não.
Por um momento, os dois se debateram, dor e fúria aparentes.
— Gray. Você não está machucando ninguém além de si mesmo.
Isso não fez efeito, então Jameson partiu para a jugular.
— Você está assustando a Avery. E ignorou o SOS do Xander.
Eu não estava assustada. Eu nunca sentiria medo de Grayson...
mas podia sentir dor por ele.
Grayson baixou lentamente o violino.
— Peço desculpas — me disse, a voz quase calma demais. — É
sua propriedade que estou destruindo.
Eu não me importava com a minha propriedade.
— Você toca lindamente — eu disse a Grayson, controlando a
vontade de chorar.
— Beleza era esperado — respondeu Grayson. — Técnica sem
arte não vale nada.
Ele olhou para os restos do violino que tinha destruído.
— A beleza é uma mentira — declarou.
— Me lembre de te zoar por dizer isso mais tarde — disse
Jameson a ele.
— Me deixem — ordenou Grayson, nos dando as costas.
— Se soubesse que era uma festa — cantarolou Jameson —, eu
teria pedido comida.
— Uma festa? — perguntei.
— Festa de lamentação — disse Jameson, com um sorriso
irônico. — Vi que você se vestiu para a ocasião, Gray.
— Você está certo — disse Grayson, andando na direção da
porta. — É autoindulgente. Eu estou acima disso.
Jameson estendeu a perna para fazê-lo tropeçar, e então
começou. Eu entendi por que Nash tinha mandado Jameson. Às
vezes Grayson Davenport Hawthorne precisava de uma briga... e
Jameson ficava feliz em ajudar.
— Solte tudo — disse Jameson, batendo a cabeça na barriga de
Grayson. — Coitadinho.
Tobias Hawthorne não tinha esperado apenas beleza. Os quatro
netos Hawthorne eram também quase letais.
Grayson virou Jameson de costas, e atacou para matar. Eu
conhecia Jameson bem o suficiente para saber que ele só tinha se
deixado dominar.
Todos os músculos no corpo de Grayson estavam tensos.
— Eu achei que nós tínhamos decepcionado ele — disse, sua voz
baixa. — Achei que não éramos suficiente. Que eu não era
suficiente, que não era digno. Mas me diga, Jamie: devíamos ser
dignos do quê?
— Ele jogava para ganhar — grunhiu Jameson sob o irmão. —
Sempre. Você não pode dizer que é uma surpresa.
— Você está certo — disse Grayson, sem soltá-lo. — Ele era
implacável. Ele nos criou para sermos iguais. Especialmente eu.
Jameson olhou nos olhos do irmão.
— Dane-se o que ele queria. O que você quer, Gray? Porque nós
dois sabemos que você não se permite querer nada há muito tempo.
Os dois estavam presos em um jogo de quem conseguia ficar
sério por mais tempo: olhos cinza-prateados e olhos verdes
profundos, um par apertado e o outro arregalado.
Grayson desviou o olhar primeiro, mas não soltou o braço do
pescoço de Jameson.
— Eu quero recuperar Toby. Por Eve.
Houve uma pausa e então Grayson virou a cabeça para mim, a
luz refletida no cabelo loiro quase como uma auréola.
— Por você, Avery.
Fechei os olhos, só por um momento.
— Jameson acha... nós dois achamos... que pode haver uma
conexão entre o sequestro de Toby e o jogo que seu avô me deixou.
Que pode nos dizer alguma coisa.
Grayson voltou a olhar o irmão, então o soltou e se levantou
abruptamente.
Eu continuei:
— Eu sei que você não queria jogar...
— Eu vou — disse Grayson, as palavras cortando o ar.
Então estendeu a mão para Jameson e o levantou, o que deixou
os dois a meros centímetros de distância um do outro.
— Eu vou jogar e vou vencer — disse Grayson com a força de
uma lei absoluta —, porque nós somos quem somos.
— Nós sempre seremos — disse Jameson.
Por mais que me aproximasse dos irmãos Hawthorne, sempre
haveria coisas compartilhadas entre eles que eu mal conseguiria
imaginar.
— Aqui, Herdeira — disse Jameson, afastando o olhar do irmão, e
tirou do bolso a foto, que passou para mim. — Foi você quem
encontrou essa pista. Você quem deveria explicar.
Parecia importante: Jameson me aproximando de Grayson em
vez de me afastando.
Estendi a foto e os dedos de Grayson tocaram nos meus quando
ele a pegou.
— Não sabemos quem são essas mulheres — falei. — Tem uma
data atrás. E uma legenda. Nós podemos explicar o que já fizemos.
— Não precisa — disse Grayson, com o olhar afiado. — O que
mais estava na bolsa que meu avô te deixou?
Eu fui buscá-la e, quando voltei, Grayson e Jameson estavam
mais afastados. Os dois estavam ofegantes, e a expressão deles
me fez pensar no que tinha acontecido enquanto eu não estava.
— Aqui — falei, ignorando a tensão na sala.
Espalhei os três objetos restantes no jogo e os identifiquei:
— Um vaporizador, uma lanterna, um pen-drive.
Grayson deixou a fotografia ao lado dos objetos. Depois do que
pareceu uma pequena eternidade, ele virou a foto para ler a legenda
mais uma vez.
— A data nos dá números — disse Jameson. — Um código ou...
— Não é um código — murmurou Grayson, pegando o
vaporizador. — É uma safra.
Lento e inexorável, seu olhar gravitou até o meu.
— Precisamos descer na adega — declarou.
CAPÍTULO 47

Quando abri a porta da adega, muito daquela noite me voltou: o


coquetel, a forma como Grayson tinha habilmente desviado todas as
pessoas que queriam só um minutinho para me falar de uma
oportunidade financeira única, a menininha na piscina. Grayson
mergulhando para salvá-la.
Eu me lembrava dele saindo da água, do terno Armani
encharcado. Grayson nem sequer pedira uma toalha. Ele nem agira
como se estivesse molhado. Eu me lembrei das pessoas falando
com ele, da menininha voltando para os pais. De um breve lampejo
que tivera do rosto dele — dos olhos dele — logo antes de
desaparecer por essa escada.
Eu sabia que ele não estava bem, mas não fazia ideia do motivo.
Foco no jogo. Tentei me manter no momento, presente, ali, com
os dois. Jameson desceu primeiro pelos degraus de pedra em
espiral. Eu ia logo atrás, pisando onde ele pisava, sem ousar olhar
para Grayson, na retaguarda.
Encontre a próxima pista. Eu deixei que aquilo fosse minha luz,
meu foco, mas, assim que chegamos ao fim da escada de pedra, o
ambiente apareceu: uma sala de degustação com uma mesa antiga
da cerejeira mais escura possível. Havia cadeiras dos dois lados da
mesa, os braços esculpidos com leões na extremidade: um par
atento, outro rugindo.
E assim eu fui levada de volta.
As linhas do corpo de Grayson são arquitetônicas: os ombros
simétricos, o pescoço reto, apesar da cabeça e dos olhos baixos.
Uma taça de cristal está na mesa diante dele. Suas mãos estão
espalmadas, uma de cada lado da taça, os músculos tensos, como
se ele fosse se levantar a qualquer momento.
— Você não devia estar aqui.
Grayson não desvia os olhos da taça, nem do líquido âmbar que
está bebendo.
— E é seu trabalho me dizer o que eu devo ou não devo fazer? —
retruco.
A pergunta parece perigosa. Só estar aqui já parece, por motivos
que nem consigo começar a explicar.
— Alguém te disse alguma coisa? — pergunto. — Na festa...
alguém te chateou?
— Eu não me chateio fácil — diz Grayson, as palavras afiadas.
Ele ainda não desviou os olhos da taça e eu não consigo deixar
de achar que eu não deveria estar vendo isso.
Que ninguém deveria ver Grayson Hawthorne assim.
— O avô da criança.
O tom de Grayson é controlado, mas eu vejo a tensão no pescoço
dele, como se as palavras quisessem sair rugindo, rasgando a
garganta.
— Você sabe o que ele me disse?
Grayson ergue a taça e engole o que resta nela, até a última gota.
— Ele disse que o velho teria ficado orgulhoso de mim.
E aí está, a coisa que faz Grayson estar aqui embaixo, bebendo
sozinho. Eu atravesso o cômodo para me sentar na cadeira em
frente à dele.
— Você salvou aquela menininha.
— Irrelevante.
Olhos prateados assombrados encaram os meus.
— Ela foi fácil de salvar.
Ele pega a garrafa, serve exatamente dois dedos na taça, aqueles
olhos gelados atentos. Há tensão em seus dedos, nos pulsos, no
pescoço, no maxilar.
— A verdadeira medida de um homem é quantas coisas
impossíveis ele conquista antes do café da manhã.
De repente eu entendo que Grayson está arrasado porque não
acredita que Tobias Hawthorne tinha ou teria orgulho dele, não por
salvar aquela menina nem por nenhuma outra coisa.
— Ser digno — continua — requer ser ousado.
Ele ergue a taça até a boca de novo e bebe.
— Você é digno, Grayson — digo, tomando a mão dele na minha.
Grayson não se afasta. Fecha os dedos em punho por baixo das
minhas mãos.
— Eu salvei aquela menina. Eu não salvei Emily.
Isso é um fato, uma verdade entalhada na alma dele.
— Eu não te salvei.
Ele ergue os olhos para mim.
— Uma bomba explodiu, você acabou deitada no chão, e eu só
fiquei ali parado.
A voz dele vibra de intensidade. Por baixo do meu toque, eu o
sinto vibrar também.
— Tudo bem. Eu estou bem — digo, mas fica claro que ele não
ouve, não quer ouvir. — Olhe para mim, Grayson. Eu estou bem
aqui. Eu estou bem. Nós estamos bem.
— Os Hawthorne não deveriam quebrar.
O peito dele sobe e desce.
— Especialmente eu.
Eu me levanto e vou até o lado dele da mesa, sem soltar a mão
dele em nenhum momento.
— Você não está quebrado.
— Estou — diz, ágil e brutal. — Sempre estarei.
— Olhe para mim — digo, mas ele não olha, e eu me abaixo. —
Olhe para mim, Grayson. Você não está quebrado.
Os olhos dele encontram os meus. Nossos peitos sobem e
descem em uníssono.
— Emily estava na minha cabeça — diz, e percebo algo ofegante
e mal contido em sua voz. — Eu a escutei depois que a bomba
explodiu, como se ela estivesse bem ali. Como se fosse verdade.
Isso é uma confissão. Eu estou em pé e ele está sentado, as
costas retas, a cabeça abaixada.
— Eu passei semanas alucinando com a voz dela. Ela passou
semanas sussurrando para mim.
Grayson ergue o olhar até a minha direção.
— Me diga de novo que eu não estou quebrado.
Eu não penso. Eu só pego a cabeça dele entre as minhas mãos.
— Você a amava, e a perdeu — começo a dizer.
— Eu falhei com ela e ela vai me assombrar até a minha morte.
Grayson fecha os olhos.
— Eu deveria ser mais forte do que isso. Eu queria ser mais forte
do que isso. Por você.
Essas duas últimas palavras quase me destroem.
— Você não precisa ser nada por mim, Grayson.
Espero até que ele abra os olhos, até que esteja olhando para
mim.
— Isso — digo. — Você. É suficiente.
Ele cai da cadeira de joelhos, fechando os olhos de novo, a
imensidão do momento a nossa volta. Eu me ajoelho, o abraço.
— Você é suficiente — digo de novo.
— Nunca vai ser suficiente.
A memória estava por toda a parte. Eu sentia Grayson se
encolher em si mesmo, em mim. Eu o sentia estremecer. E então
ele me dissera para ir embora e eu fugira porque, no fundo, sabia o
que estava implícito quando dissera que nunca seria suficiente. Ele
falava de nós. Do que éramos... e não éramos. Do que tinha se
quebrado naquelas semanas quando Emily sussurrara no ouvido
dele.
O que poderia ter acontecido.
O que teria acontecido.
O que não poderia mais acontecer.
No dia seguinte, Grayson tinha ido embora para Harvard sem se
despedir. Ele estava de volta, bem ali atrás de mim, e estávamos
fazendo aquilo.
Grayson, Jameson e eu.
— Por aqui.
Grayson apontou com a cabeça para uma porta de vidro à direita.
Quando a abriu, uma lufada de ar frio acertou meu rosto. Passando
pela porta, soltei uma expiração longa e lenta, quase esperando
enxergá-la, nebulosa e branca no ar gelado.
— Esse lugar é enorme.
Eu me mantive no presente por pura força de vontade. Sem mais
flashbacks. Sem mais “e se”. Eu me concentrei no jogo. Era o
necessário. O que eu precisava e o que eles dois precisavam de
mim.
— Tecnicamente são cinco adegas, todas conectadas — explicou
Jameson. — Essa é para vinho branco. Por ali é tinto. Se continuar
seguindo, você chega em uísque escocês, bourbon e outros
uísques.
Ali embaixo havia uma fortuna só em álcool. Pense nisso. Em
nada além disso.
— Estamos procurando um vinho tinto — a voz de Grayson cortou
meus pensamentos. — Um bordeaux.
Jameson pegou minha mão. Eu aceitei e ele deu um passo pra
longe, deixando os dedos escorregarem pelos meus, um convite
para segui-lo enquanto ele passava para a sala seguinte. Eu fui.
Grayson passou por mim e por Jameson, serpenteando pelos
corredores, examinando as prateleiras. Finalmente, ele parou.
— Chateau Margaux — disse, puxando uma garrafa da estante
mais próxima. — 1973.
A legenda da fotografia. Margaux. 1973.
— Quer adivinhar pra que serve o vaporizador? — me perguntou
Jameson.
Uma garrafa de vinho. Um vaporizador. Eu peguei de Grayson o
Chateau Margaux, o analisando. A resposta surgiu devagar.
— O rótulo — eu disse. — Se tentarmos arrancá-lo, pode rasgar.
Mas vapor vai soltar o adesivo...
Grayson passou o vaporizador para mim.
— Faça as honras.
CAPÍTULO 48

No verso do rótulo da única garrafa de Chateau Margaux 1973 na


coleção de Tobias Hawthorne havia um desenho. Um rascunho a
lápis de um cristal em forma de lágrima.
— Uma joia? — sugeriu Grayson, mas eu já tinha estado no cofre.
— Não — falei devagar, imaginando o cristal do desenho e
lembrando.
Onde eu já vi isso antes?
— Acho que estamos procurando um lustre — declarei.

Havia oito lustres de cristal na Casa Hawthorne. Nós encontramos o


que estávamos procurando no salão de chá.
— Vamos subir? — perguntei, esticando o pescoço para o pé-
direito de seis metros. — Ou essa coisa vai descer?
Jameson passou por um painel na parede. Então apertou um
botão e o lustre lentamente desceu ao nível dos olhos.
— Para limpar — explicou.
A mera ideia de limpar aquela monstruosidade me deu
palpitações. Devia ter pelo menos mil cristais no lustre. Com um
deslize, dava para quebrar todos.
— E agora? — Suspirei.
— Agora — me disse Jameson — nós vamos um por um.
Examinar os cristais individualmente demorou. De tempos em
tempos, eu passava por Jameson ou Grayson, ou um deles passava
por mim.
— Esse aqui — disse Grayson de repente. — Olhe as
irregularidades.
Jameson o alcançou em um segundo.
— Gravura? — perguntou.
Em vez de responder ao irmão, Grayson se virou e passou o
cristal para mim. Eu o encarei, mas, se havia uma mensagem ou
pista contida no cristal, eu não enxergava a olho nu.
Podemos usar uma lupa, pensei. Ou...
— A lanterna — sussurrei.
Enfiei a mão na bolsa de couro. Ao pegar a lanterna, respirei
rápido. Levantei o cristal e joguei a luz nele, e as irregularidades
fizeram a luz refratar. De início, o resultado era incompreensível,
mas então girei o cristal e tentei de novo.
Dessa vez, o feixe da lanterna refratado formou uma mensagem.
Ao encarar a luz projetada no chão, não havia como não entender
as palavras: um aviso.
NÃO CONFIE EM NINGUÉM.
CAPÍTULO 49

Um calafrio subiu pelo meu pescoço, como a sensação de estar


sendo observada por trás, ou de estar com grama até o joelhos e
ouvir o sibilo de uma cobra. Apertei o cristal, sem desviar o olhar.
NÃO CONFIE EM NINGUÉM.
— O que isso significa? — perguntei, o estômago forrado de
pavor, quando finalmente olhei de Jameson para Grayson em rápida
sucessão. — É uma pista?
Nós ainda tínhamos um objeto na bolsa. Ainda não tinha acabado.
Talvez as letras do aviso pudessem ser rearranjadas, ou a primeira
letra de cada palavra formasse uma sigla ou...
— Posso ver o cristal? — pediu Jameson.
Eu o entreguei e ele lentamente o girou sob o feixe da lanterna
até encontrar o que estava procurando.
— Ali, no alto — falou. — Três letras, pequenas e fracas demais
para ver sem a luz.
— Fin? — disse Grayson, a pergunta carregada de tensão.
— Fin — confirmou Jameson, me devolvendo o cristal, e levou o
olhar verde-escuro ao meu. — Tipo fim, Herdeira. Acabou. Isso não
é uma pista. Isso é o resultado.
Meu jogo. Possivelmente a última herança de Tobias Hawthorne.
E era isso? Não confie em ninguém.
— E o pen-drive? — falei.
O jogo não podia ter terminado. Isso não podia ser tudo que
Tobias Hawthorne tinha deixado para nós.
— Distração? — sugeriu Jameson. — Ou talvez o velho tenha te
deixado um jogo e um pen-drive. De qualquer forma, isso começou
com a entrega da bolsa e termina aqui.
Cerrando a mandíbula, eu endireitei o cristal no feixe da lanterna
e as palavras reapareceram no chão. NÃO CONFIE EM NINGUÉM.
Depois de tudo, era isso que o bilionário tinha para mim? Meu avô
sempre pensou sete passos à frente, ouvi Jameson dizer. Ele via
dezenas de variações do que poderia acontecer, se planejava para
toda eventualidade, fazia uma estratégia para cada futuro possível.
Que tipo de estratégia era aquela? Eu deveria achar que o
sequestrador de Toby estava mais perto do que parecia? Que as
garras dele eram longas e qualquer um podia estar com ele? Eu
deveria questionar todo mundo a minha volta?
Dê um passo para trás, pensei. Volte ao começo. Considere o
contexto e seu objetivo. Eu parei. Respirei. E pensei. Eve. O jogo
tinha começado quando nos conhecemos. Jameson tinha teorizado
que seu avô previra algo a respeito do problema que trouxera Eve
até lá, mas e se fosse mais simples do que isso?
Muito, muito mais simples.
— O jogo começou porque Eve e eu nos conhecemos — falei,
cada palavra saindo da minha boca com a força de um tiro, embora
fossem pouco mais altas que um sussurro. — Ela foi o gatilho.
Meus pensamentos voaram para a noite anterior. Para o solário,
os arquivos e Eve no celular.
— E se “não confie em ninguém” — falei devagar — na verdade
for “não confie nela”?
Até eu dizer aquilo, não tinha notado o quanto tinha baixado a
guarda.
— Se o velho queria que você desconfiasse apenas de Eve, a
mensagem não diria não confie em ninguém. Diria não confie nela
— falou Grayson, como alguém que não poderia estar nada menos
do que certo, muito menos errado.
Mas eu pensei em Eve pedindo para ser deixada sozinha na ala
de Toby. A forma como ela tinha olhado as roupas no meu armário.
Quão rapidamente tinha colocado Grayson do lado dela.
Se Eve não se parecesse tanto com Emily, ele a estaria
defendendo assim?
— Ninguém inclui Eve por definição — apontei. —
Necessariamente. Se ela for uma ameaça...
— Ela. Não. É. Uma. Ameaça.
As cordas vocais de Grayson pressionavam sua garganta. Na
minha cabeça, eu ainda o via de joelhos na minha frente.
— Você não quer que ela seja — falei, tomando cuidado para não
me permitir sentir demais.
— E você quer, Herdeira? — perguntou Jameson de repente,
buscando o meu olhar. — Você quer que ela seja uma ameaça?
Porque Gray está certo. A mensagem não foi “não confie nela”.
Jameson era quem tinha desconfiado de Eve desde o início! Eu
não estou com ciúmes. Não é isso.
— Ontem — eu disse, minha voz falhando —, eu peguei Eve
tirando fotos dos arquivos no solário. Ela tinha uma desculpa.
Pareceu plausível. Mas nós não a conhecemos.
Você não a conhece, Grayson.
— E seu avô nunca a trouxe aqui — continuei. — Por quê?
Voltei a olhar para Jameson, querendo que ele se prendesse à
questão.
— O que ele sabia de Eve que nós não sabemos? — insisti.
— Avery.
Oren falando meu nome da porta foi o único aviso que eu tive.
Eve entrou no salão de chá, de cabelo molhado e usando o
vestido branco do dia em que tinha chegado.
— Ele sabia de mim? — perguntou, e olhou de mim para
Grayson, a imagem da devastação. — Tobias Hawthorne sabia de
mim?
Eu jogava pôquer bem, em boa parte porque sabia notar um blefe,
e aquilo — o queixo dela tremendo, a voz endurecendo, a
expressão dolorida nos olhos, a tensão na boca, como se ela não
fosse deixar que os lábios virassem para baixo — não parecia um
blefe.
Mas uma voz no fundo da minha cabeça disse quatro palavras:
Não confie em ninguém.
No segundo seguinte, Eve estava andando na minha direção.
Oren entrou no meio e Eve ergueu o olhar, como se estivesse
tirando um momento para se controlar. Tentando não chorar.
Ela estendeu o celular.
— Pegue — cuspiu Eve. — Senha 3845.
Eu não me mexi.
— Vá em frente — disse Eve, e sua voz soou mais profunda, mais
áspera. — Veja as fotos. Veja o que quiser, Avery.
Senti uma pontada de culpa e olhei para Jameson. Ele estava me
observando atentamente. Não me permiti reagir, nem por um
instante, quando Grayson se colocou ao lado de Eve.
Baixando o olhar, me perguntando se tinha cometido um erro,
digitei no celular a senha que Eve me dera. A tela desbloqueou e eu
naveguei pelo álbum. Ela não tinha deletado a foto que eu a tinha
visto tirar, e identifiquei o arquivo que tinha fotografado.
— Sheffield Grayson.
Eu me virei para Eve, mas ela sequer olhava para mim.
— Me desculpe — disse ela a Grayson, em voz baixa. — Mas ele
é a pessoa mais rica em todos aqueles arquivos. Ele tem motivo.
Ele tem recursos. Eu sei que você disse que não tinha sido ele,
mas...
— Evie — disse Grayson, e a olhou, aquele olhar de Grayson
Hawthorne que queimava na memória porque dizia tudo que ele
mesmo não iria dizer. — Não é ele.
Sheffield Grayson estava morto, mas Eve não sabia disso. E ela
estava certa: ele tinha ido atrás de Toby. Só não agora.
— Se não for Sheffield Grayson — disse Eve, a voz falhando —,
não temos nada.
Eu conhecia aquele sentimento: o desespero, a fúria, a frustração,
a perda súbita de esperanças. Mas eu ainda olhei de volta para o
celular de Eve e desci pelas fotos. Não confie em ninguém. Havia
mais três fotos do arquivo de Sheffield Grayson, algumas do quarto
de Toby, e só. Se ela tivesse tirado fotos de qualquer outro arquivo
ou de qualquer outra coisa, as tinha apagado. Eu voltei mais e
encontrei uma foto de Eve e Toby. Ele parecia estar tentando afastar
a câmera, mas estava sorrindo. E ela também.
Havia mais fotos dos dois, de meses antes. Exatamente como ela
tinha dito.
Se o velho quisesse que você desconfiasse só de Eve, a
mensagem não teria dito não confie em ninguém. Teria dito não
confie nela.
Uma onda de dúvida passou por mim, mas abri as ligações. Havia
várias ligações recebidas, mas ela não tinha atendido nenhuma.
Também não tinha feito nenhuma. Fui para as mensagens e logo
percebi por que ela estava recebendo tantas ligações. A história. A
imprensa. Quando estivera em uma situação parecida, eu tinha
precisado comprar um celular novo. Continuei passando pelas
mensagens, pois precisava saber se havia mais, e finalmente
cheguei em uma que simplesmente dizia: Precisamos nos encontrar.
Ergui os olhos.
— De quem é essa? — perguntei, virando o celular para ela.
— Mallory Laughlin — retrucou Eve. — Ela deixou recados
também. Pode verificar o número.
Ela baixou o olhar.
— Eu acho que ela viu fotos minhas. Rebecca deve ter dado meu
número para ela. Eu desliguei o celular quando a história vazou para
me concentrar em Toby, mas não me serviu de nada — disse Eve, e
inspirou com dificuldade. — Eu cansei dos joguinhos doentes desse
babaca.
Ela ergueu o queixo, e seus olhos esmeralda ficaram rígidos
como diamantes.
— E eu não vou ficar onde não me querem — declarou. — Eu não
posso.
Eu sentia a situação sair do meu controle como areia escorrendo
pelos meus dedos.
— Não vá — disse Grayson a Eve, as palavras suaves.
E então ele se virou para mim e a suavidade sumiu.
— Diga a ela para não ir.
Era o tom que ele usava comigo logo que eu tinha herdado, o tom
feito para avisos e ameaças.
— É sério, Avery.
Grayson olhou para mim. Eu esperava que seus olhos estivessem
gelados ou em chamas, mas não estavam de um jeito nem de outro
— Eu nunca pedi nada a você.
Era palpável na voz dele: as muitas, muitas coisas que ele nunca
tinha pedido.
Eu sentia Jameson me observar, e não fazia ideia do que ele
queria ou esperava que eu fizesse. Tudo que eu sabia era que, se
Eve fosse embora, se ela saísse da Casa Hawthorne e passasse
pelos portões, para a linha de fogo, e algo acontecesse com ela,
Grayson Hawthorne nunca me perdoaria.
— Não vá — eu disse a Eve. — Me desculpe.
Era sincero, mas também não era. Porque aquelas palavras não
me deixavam em paz: não confie em ninguém.
— Eu quero conhecer Mallory — disse Eve, de queixo erguido. —
Ela é minha avó. E pelo menos ela não sabia de mim.
— Eu vou te levar até ela — disse Grayson, baixo, mas Eve
sacudiu a cabeça.
— Ou Avery me leva — disse ela, a voz igualmente cheia de
desafio e ofensa —, ou eu vou embora.
CAPÍTULO 50

Oren não gostou da ideia de eu sair da Casa Hawthorne, mas,


quando ficou claro que eu não seria dissuadida, ele mandou equipes
de segurança para as três SUVs. Quando partimos, um trio de
veículos idênticos passou pelo portão, deixando a horda de
paparazzi sem saber em qual deles Eve e eu estávamos.
Xander era o único Hawthorne com a gente. Ele tinha vindo por
Rebecca, não por Eve, e Eve tinha concordado. Deixamos Grayson
e Jameson para trás.
— Como ela é? — perguntou Eve a Xander quando passamos
pelos paparazzi. — Minha avó?
— A mãe de Rebecca sempre foi... intensa — respondeu Xander,
desviando minha atenção da janela escura. — Ela era cirurgiã, mas
quando Emily nasceu e descobriram o problema no coração dela,
Mallory largou tudo para se dedicar a cuidar de Em.
— E então Emily morreu — disse Eve, baixo. — E...
— Cabum — disse Xander, fazendo um movimento de explosão
com os dedos. — A mãe de Bex começou a beber. O pai dela vive
em umas viagens de trabalho que duram meses.
— E agora eu estou aqui.
Eve olhou para as próprias mãos: os dedos finos, as unhas
irregulares.
— Então isso vai dar supercerto — murmurou ela.
Provavelmente era uma subestimação. Eu tinha mandado
mensagem para Thea para avisá-la. Sem resposta. Abri as redes
sociais dela e me peguei encarando as últimas quatro fotos que ela
tinha postado. Três delas eram autorretratos em preto e branco. Em
um deles, Thea encarava diretamente a câmera, rímel pesado nos
olhos, o rosto marcado de lágrimas. Na segunda, estava encolhida,
com os punhos cerrados, quase nenhuma roupa visível no corpo.
Na terceira, mostrava o dedo do meio das duas mãos.
Ao meu lado, Eve olhou meu celular.
— Eu acho que gosto dessas ainda mais que da poesia.
Parecia ser verdade. Tudo que ela dizia soava assim. Esse era o
problema.
Eu me concentrei na quarta foto de Thea, a mais recente, a única
colorida no conjunto. Havia duas pessoas na foto, as duas rindo,
abraçadas: Thea Calligaris e Emily Laughlin. Era a única com uma
legenda: Ela era MINHA melhor amiga e VOCÊ não sabe do que está
falando.
Fiquei abismada com a enorme quantidade de comentários na
foto, e olhei para Xander.
— Thea está fazendo controle de danos.
Eu não podia lutar contra os sites de fofoca, mas ela podia.
Xander inclinou o celular para mim.
— Ela postou um vídeo também.
Ele apertou play.
“Vocês podem ter ouvido certos... rumores.” A voz de Thea era
sedutora. “Sobre ela.” A foto de Thea e Emily surgiu na tela. “E
eles.” Uma foto de todos os quatro irmãos Hawthorne. “E ela.” Uma
foto de Eve. “Isso. É. Uma. Bagunça.” Thea movia o corpo a cada
palavra, uma dança cativante que fazia tudo aquilo parecer menos
calculado. “Mas são minha bagunça. E esses boatos sobre Grayson
e Jameson Hawthorne e minha melhor amiga morta? Não são
verdade.” Thea se inclinou na direção da câmera até seu rosto
ocupar a tela inteira. “E eu sei que não é verdade porque fui eu
quem os inventou.”
O vídeo terminou de repente, e Xander inclinou a cabeça para
trás.
— Ela é de longe o indivíduo mais magnífico e aterrorizante que
eu já fingi namorar.
Eve olhou para ele.
— Você finge namorar muita gente?
Ela parecia tão normal. Eu não tinha encontrado nada no celular
dela. Mas eu precisava manter a guarda levantada.
Não precisava?
CAPÍTULO 51

Rebecca abriu a porta antes mesmo de batermos.


— Minha mãe está bem ali — disse a Eve em voz baixa.
Respirando fundo, Eve passou por Rebecca.
— Em uma escala de um a pi — murmurou Xander —, quão
grave está?
Rebecca puxou a mão e tocou três dedos na palma dele. A pele
normalmente branca estava vermelha e ferida nas cutículas e nas
articulações dos dedos.
Três, em uma escala de um a pi. Dado o valor de pi,
definitivamente não era bom.
Rebecca levou Xander e eu por uma pequena entrada, até a sala
onde Eve e a mãe dela estavam. A primeira coisa que eu notei
foram os globos de neve na estante. Pareciam ter sido polidos até
brilharem. Na verdade, tudo que eu via parecia ter sido limpo
recentemente, como se tivesse sido esfregado várias vezes.
As mãos de Rebecca. Eu me perguntei se a limpeza tinha sido
ideia dela... ou da mãe.
— Rebecca, era para ser um assunto de família.
Mallory Laughlin não desviou os olhos de Eve, mesmo quando
Xander e eu aparecemos.
Rebecca baixou o olhar, o cabelo vermelho-rubi caindo no rosto.
Ela sempre parecia o tipo de pessoa que um artista iria querer
pintar. Mesmo parcialmente escondida, havia uma beleza de conto
de fadas na dor estampada em seu rosto.
Eve pegou a mão da avó.
— Eu pedi para Avery vir comigo. Toby... ele a considera família
também.
Ai. Mesmo que Eve não quisesse me fazer sentir culpada, foi ao
mesmo tempo brutal e eficiente.
— Que ridículo.
Mallory se sentou e, quando Eve fez o mesmo, se inclinou na
direção dela, absorvendo sua presença como um homem engolindo
areia em uma miragem no deserto.
— Por que meu filho daria qualquer atenção a essa menina
quando você está bem aqui? — continuou ela, levando a mão até o
rosto de Eve. — Quando você é tão perfeita.
Ao meu lado, Rebecca inspirou por entre os dentes.
— Eu sei que pareço a sua filha — murmurou Eve. — Deve ser
difícil.
— Você se parece comigo — disse a mãe de Rebecca, sorrindo.
— Emily também. Eu me lembro de quando ela nasceu. Olhei para
ela e só conseguia pensar que ela era eu. Emily era minha e
ninguém ia tirá-la de mim, nunca. Eu disse a mim mesma que nunca
faltaria nada para ela.
— Eu sinto muito — sussurrou Eve.
— Não sinta — respondeu Mallory, com a voz chorosa. — Você
voltou para mim.
— Mãe — interrompeu Rebecca, sem desviar os olhos do chão.
— Já falamos disso.
— E eu te disse que não preciso que você, nem ninguém, me
infantilize — veio a resposta de Mallory, afiada suficiente para cortar
vidro. — O mundo é assim, sabe — continuou, voltando a atenção
para Eve e soando ainda mais maternal. — Você precisa aprender a
tomar o que você quer... e nunca deixar que alguém tome o que
você não quer dar.
Mallory colocou a mão no rosto de Eve.
— Você é forte — falou. — Como eu. Como Emily era.
Dessa vez, não houve resposta audível de Rebecca. Eu encostei
o ombro de leve no dela, um gesto silencioso e proposital de estou
aqui. Eu me perguntei se Xander se sentia tão inútil quanto eu
parado ali, vendo as cicatrizes mais antigas dela se abrirem.
— Posso perguntar uma coisa? — disse Eve a Mallory.
Mallory sorriu.
— Qualquer coisa, querida.
— Você é minha avó. Seu marido está aqui? Ele é meu avô?
A resposta de Mallory foi controlada.
— Não precisamos falar disso.
— Tudo que eu sempre quis é saber de onde venho — disse Eve
a ela. — Por favor?
Mallory a encarou por um longo tempo.
— Você pode me chamar de mãe? — perguntou suavemente.
Eu vi Rebecca sacudir a cabeça, não para a mãe ou para Eve,
nem para ninguém. Ela só estava sacudindo porque aquela não era
boa ideia.
— Me conte sobre o pai de Toby? — pediu Eve. — Por favor,
mãe?
Mallory fechou os olhos, e eu me perguntei que lugares mortos
dentro dela tinham ganhado vida quando Eve dissera aquela
pequena palavra.
— Eve — falei, seca, mas a mãe de Rebecca falou por cima de
mim.
— Ele era mais velho. Muito atraente. Muito misterioso. A gente
se encontrava às escondidas pela propriedade, até mesmo na Casa.
Eu podia andar livremente por lá na época, mas era proibida de
trazer visitas. O sr. Hawthorne valorizava privacidade. Ele teria
ficado doido se soubesse o que eu aprontava, o que fazíamos
naqueles corredores vazios.
Mallory abriu os olhos.
— Meninas adolescentes e o proibido — falou.
— Qual era o nome dele? — perguntou Rebecca, dando um
passo na direção da mãe.
— Isso realmente não é da sua conta, Rebecca — disparou
Mallory.
— Qual era o nome dele? — Eve incorporou a pergunta de
Rebecca.
Talvez ela quisesse fazer uma gentileza, mas foi cruel, porque ela
conseguiu resposta.
— Liam — sussurrou Mallory. — O nome dele era Liam.
Eve se inclinou para a frente.
— O que aconteceu com ele? Seu Liam?
Mallory endureceu como uma marionete cujas cordas fosse
puxadas de repente.
— Ele foi embora — disse ela, calma, calma até demais. — Liam
foi embora.
Eve pegou as mãos de Mallory nas suas.
— Por que ele foi embora?
— Ele só foi.
A campainha tocou e Oren andou a passos largos até a porta. Eu
o acompanhei até o hall. Fechando a mão na maçaneta, ele deu
uma ordem, sem dúvida para um dos seguranças do lado de fora.
— Fechem — disse Oren, e olhou para mim por cima do ombro.
— Fique parada, Avery.
— Por que Avery vai ficar parada? — perguntou Xander, entrando
no hall ao meu lado.
Rebecca deu um passo para segui-lo, então hesitou, congelada
em seu purgatório particular, presa entre nós e as palavras sendo
murmuradas entre Eve e sua mãe.
Meu cérebro respondeu à pergunta de Xander antes que Oren
pudesse articulá-la.
— Essa é a primeira vez que eu saio da propriedade desde que o
último pacote foi entregue — notei. — Você está esperando outra
entrega.
Em resposta, meu chefe de segurança abriu a porta com a arma
em punho.
— Oi pra você também — disse Thea, seca.
— Não ligue pra Oren — cumprimentou Xander. — Ele te
confundiu com uma ameaça menos passivo-agressiva.
O som da voz de Thea quebrou o gelo que tinha grudado os pés
de Rebecca no chão.
— Thea. Eu queria ter te ligado, mas minha mãe pegou meu
celular.
— E alguém desligou o meu — disse Thea, olhando de Rebecca
para mim. — Enquanto eu estava no banho, alguém entrou na
minha casa, no meu quarto, desligou meu celular e deixou isso ao
lado dele, com instruções manuscritas para trazer aqui.
Thea estendeu um envelope. Era de um dourado-escuro, brilhante
e reluzente.
— Alguém invadiu sua casa? — perguntei, em um sussurro.
— Seu quarto? — perguntou Rebecca, colocando-se em um
segundo ao lado de Thea.
Oren tomou posse do envelope. Ele tinha criado uma armadilha
para o mensageiro ali, mas a mensagem tinha sido entregue em
outro lugar. Para Thea.
Você viu as fotos dela? Aquele vídeo?, perguntei silenciosamente
ao sequestrador de Toby. É isso que ela ganha por me ajudar?
— Eu tinha um guarda na sua casa — disse Oren a Thea. — Ele
não relatou nada fora do comum.
Eu encarei o envelope na mão de Oren e meu nome completo
escrito na frente. Avery Kylie Grambs. Algo em mim se soltou e eu
agarrei o envelope e o virei, notando um selo de cera que o
mantinha fechado.
O desenho do selo me deixou sem ar. Anéis de círculos
concêntricos.
— É como o disco — falei, as palavras se prendendo na minha
garganta.
— Não abra — disse Oren. — Eu preciso garantir...
O restante das palavras dele se perdeu no ruído da minha mente.
Meus dedos rasgaram o envelope, como se meu corpo estivesse
em piloto automático, a todo vapor. Quando rasguei o selo, o
envelope se desdobrou, revelando uma mensagem escrita no
interior em tinta prateada.
363-1982.
Era só isso. Só sete dígitos. Um número de celular? Não tinha
código de área, mas...
— Avery! — gritou Rebecca, e notei que o papel em minhas mãos
tinha pegado fogo.
As chamas devoraram a mensagem. Eu o derrubei e em
segundos o envelope e os números não eram nada além de cinzas.
— Como... — comecei a dizer.
Xander veio para o meu lado.
— Eu sei fazer isso com um envelope — disse ele, e hesitou. —
Honestamente? Eu já fiz isso com um envelope.
— Eu te disse para esperar, Avery.
Oren me olhou com o que eu só podia descrever como uma Cara
de Pai. Eu claramente estava encrencada com ele.
— O que a mensagem dizia? — perguntou Rebecca.
Xander apareceu com uma caneta e uma folha de papel em forma
de bolinho, aparentemente do nada.
— Escreva tudo de que você se lembra — me disse ele.
Fechei os olhos, imaginando o número. E então escrevi: 363-
1982.
Virei o papel para Xander.
— Mil novecentos e oitenta e dois — disse Xander, concentrado
nos números depois do hífen. — Pode ser um ano. Dia trezentos e
sessenta e três, o que seria vinte e nove de dezembro.
29 de dezembro, 1982.
— Para mim é um telefone — desdenhou Thea.
— Foi o que eu pensei primeiro também — murmurei. — Mas não
tem código de área.
— Havia alguma coisa que pudesse indicar a localização? —
perguntou Xander. — Se deduzirmos um código de área, teremos
um número para ligar.
Um número para ligar. Uma data para checar. E quem sabe mais
quantas outras possibilidades havia? Poderia ser uma cifra,
coordenadas, uma conta bancária...
— Eu recomendo voltarmos para a Casa Hawthorne
imediatamente — interrompeu Oren, a expressão pétrea. — Quer
dizer, se você ainda estiver interessada em me deixar fazer meu
trabalho, Avery.
— Me desculpa — falei.
Eu confiava minha vida a Oren e não precisava deixar o trabalho
dele mais difícil do que já era.
— Eu vi o selo no envelope e algo em mim saiu de controle —
expliquei.
Anéis de círculos concêntricos. Quando Toby fora sequestrado, eu
tinha pensado que o disco podia ser parte do motivo, mas, quando o
sequestrador o devolvera, imaginei que estivesse errada.
E se não estivesse?
E se o disco sempre tivesse sido parte da charada?
— O número pode ser uma distração — disse Xander, se
balançando de leve sobre os calcanhares. — O selo pode ser a
mensagem.
— Saiam!
Eu me virei de volta para a sala. Mallory Laughlin estava andando
na nossa direção.
— Eu quero que todos vocês saiam da minha casa!
Nossa presença nunca tinha sido bem-vinda, muito menos com
fogo.
— Senhora — disse Oren, e ergueu uma mão. — Eu recomendo
que nós todos voltemos para a Casa Hawthorne.
— É o quê? — perguntou Thea, estreitando os seus olhos cor de
mel.
Oren olhou para ela.
— Planeje uma estadia prolongada. Chame de festa do pijama.
— Você acha que Thea corre perigo — disse Rebecca, e olhou
pelo cômodo. — Que todos nós corremos.
— Invasão é um passo além — disse Oren, comedido. —
Estamos lidando com um indivíduo que já provou estar disposto a
usar intermediários para chegar a Avery. Ele usou Thea para
mandar a mensagem dessa vez, e não só no sentido literal.
Eu posso chegar a qualquer um. Você não pode protegê-los. Era
aquela a mensagem.
— Isso é ridículo — cuspiu a mãe de Rebecca. — Eu não vou
com o senhor a lugar nenhum, sr. Oren, e nem minhas filhas.
— Filha — disse Rebecca, baixo.
Eu senti meu coração se contorcer.
Oren não desistiu.
— Temo que, mesmo que elas e a senhora já não estivessem em
risco, essa visita as tenha colocado no radar do nosso vilão. Por
mais que não queira ouvir, sra. Laughlin…
— É doutora, na verdade — explodiu a mãe de Rebecca. — E eu
não me importo com o risco. O mundo não pode tirar mais de mim
do que já tirou.
Eu me aproximei de Rebecca, que abraçava a própria cintura
como se tudo que conseguisse fazer fosse ficar ali parada,
apanhando.
— Isso não é verdade — disse Thea, baixo.
— Thea — disse Rebecca, a voz esganiçada. — Não.
Mallory Laughlin deu um olhar carinhoso para Thea.
— Uma menina tão boa — disse, e se virou para Rebecca. — Eu
não sei por que você precisa ser tão mal-educada com as amigas
da sua irmã.
— Eu não sou — disse Thea, a voz como aço — uma boa
menina.
— Você precisa vir com a gente — disse Eve a Mallory. — Eu
preciso saber que você está segura.
— Ah.
A expressão de Mallory suavizou. Houve algo de trágico no
momento em que a tensão cedeu, como se essa fosse a única coisa
impedindo-a de desmoronar.
— Você precisa de uma mãe — disse ela a Eve, e a ternura na
voz era quase dolorosa.
— Venha para a Casa Hawthorne — insistiu Eve. — Por mim?
— Por você — concordou Mallory, sem sequer olhar para
Rebecca. — Mas eu não vou pôr os pés na mansão. Durante todos
esses anos, Tobias Hawthorne me deixou acreditar que meu menino
estava morto. Ele nunca me disse que eu tinha uma neta. Já foi ruim
ele ter roubado meu bebê, já foi ruim aqueles meninos terem
matado minha Emily... eu não vou pisar na Casa.
— A doutora pode ficar no Chalé Wayback — disse Oren,
conciliador. — Com seus pais.
— Eu fico com você — disse Rebecca, baixo.
— Não — retrucou a mãe dela, irritada. — Você não gosta tanto
dos Hawthorne, Rebecca? Então fique com eles.
CAPÍTULO 52

Oren chamou uma das SUVs de disfarce para levar Mallory,


Rebecca e Thea de volta para a propriedade. Eve escolheu ir com
elas em vez de com Xander e eu, e, quando a segunda SUV encostou
na Casa, nem ela nem Mallory estavam lá dentro.
— Eve disse para te avisar que ela vai ficar no chalé — falou
Rebecca, e baixou os olhos. — Com a minha mãe.
Eu não vou ficar onde não me querem, ouvi Eve dizer. Não posso.
Senti outra pontada de culpa e então me perguntei se era esse o
objetivo.
— Ela disse que vai tentar descobrir sozinha o que o número
significa — acrescentou Thea. — Mas não aqui.
Se Eve fosse confiável, eu a tinha magoado. De verdade. Mas se
ela não fosse...
Eu me virei para Oren.
— Ainda tem um segurança com Eve?
— Um para ela — confirmou meu chefe de segurança —, um para
Mallory, seis cuidando dos portões, mais quatro no perímetro
imediato, e três ao meu lado na Casa.
Eu deveria ter me sentido mais segura, mas só conseguia pensar
em não confie em ninguém.

Alisa estava esperando por mim no hall. Oren devia saber, mas não
me avisou.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, um pequeno borrão
virou em um corredor latindo.
Um instante depois veio Libby, correndo logo atrás.
— Casa muito grande! — arfou. — Cachorro rápido! Odeio
malhar!
— Você já deu nome a ela? — perguntou Xander quando o filhote
se aproximou da gente.
Libby parou de correr e se curvou, apoiando as mãos nos joelhos.
— Eu disse pra você escolher um nome, Xander. Ela é...
— Um cachorro Hawthorne — completou Xander. — Como quiser.
Ele ergueu o cachorrinho e o aconchegou junto ao peito.
— Nós te chamaremos de Tiramisu — declarou.
— Isso é coisa de Nash, eu imagino? — perguntou Alisa, e
estendeu a mão para acariciar a orelha do cãozinho. — Um aviso —
disse suavemente para o filhote —: Nash Hawthorne nunca amou
nada que não tenha abandonado.
Libby encarou Alisa por um momento, então afastou o cabelo
suado dos olhos contornados com lápis preto.
— Veja só — disse sem se abalar. — Hora de malhar.
Quando minha irmã foi embora, estreitei os olhos para Alisa.
— Precisava mesmo disso?
— Temos problemas maiores agora.
Alisa estendeu o celular. Havia uma notícia na tela. “As pessoas
estão ficando nervosas”: Herdeira Hawthorne prestes a assumir o
controle. Aparentemente, o Market Watch, portal de informações
financeiras, não levava muita fé nas minhas capacidades. Todos os
empreendimentos nos quais Tobias Hawthorne tinha sido um
investidor importante estavam cheios de apreensão.
— O ataque continua — murmurei. — Eu não tenho tempo para
isso.
— E não é você quem vai precisar cuidar de coisas assim —
respondeu Alisa — se você estabelecer um fundo.
Não confie em ninguém. Pensei no aviso de novo. Será que
Tobias Hawthorne estava se referindo ao aspecto financeiro?
Quanto mais perto eu chegava da marca de um ano, mais Alisa
insistia, e mais perto ela e a firma ficavam de perder o controle.
— Deixe ela em paz, Alisa.
Ergui os olhos e vi Jameson andar na nossa direção. Ele estava
de camisa social branca e bem passada, dobrada até o cotovelo.
— Um fundo não é necessário. Avery pode se virar com
consultores financeiros.
— Consultores financeiros não vão acalmar os ânimos de
ninguém a respeito da ideia de uma menina de dezoito anos mandar
em uma das maiores fortunas do mundo — disse Alisa a Jameson,
com um sorriso de lábios fechados conclusivo. — A percepção é
importante — falou, e se virou para mim. — Falando nisso, tem
outra coisa que você precisa ver.
Ela pegou o celular de mim, abriu outra página e o passou de
volta. Dessa vez, eu me peguei olhando para o site de fofocas de
celebridades que tinha dado o furo sobre Emily e Eve.
Troca-troca de Hawthorne? Herdeira Hawthorne e seu agitado
novo estilo de vida.
Embaixo da manchete havia uma série de fotos. Jameson de
terno e eu de vestido de festa, dançando na praia. Um still de uma
entrevista que eu tinha feito com Grayson meses antes... quando ele
tinha me beijado. A última foto era com Xander, nós dois parados na
varanda da casa de Rebecca menos de uma hora antes.
Eu não tinha notado que os paparazzi tinham nos visto lá. Se bem
que talvez não tenham sido os paparazzi. Estava ficando difícil não
achar que nosso adversário estava em toda parte.
— Vamos olhar pelo lado positivo — sugeriu Xander. — Eu estou
um gato nessa foto.
— Não tem motivo para Avery ver uma coisa dessas — disse
Jameson com firmeza.
Jameson Winchester Hawthorne em modo de proteção era algo
para memorar.
— A percepção é importante — reiterou Alisa.
— Nesse momento — respondi, passando o celular de volta para
ela —, outras coisas são mais importantes. Me diga que você
descobriu alguma coisa, Alisa. Quem está dando as ordens?
Ela dissera que estava cuidando daquilo dias antes, e desde
então eu não tinha ouvido uma palavra.
— Você sabe quantas pessoas existem no mundo com um
patrimônio de pelo menos duzentos milhões de dólares? — disse
Alisa calmamente. — Umas trinta mil. Existem oitocentos bilionários
só nos Estados Unidos, e isso não precisaria de bilhões.
— Precisaria de conexões.
Olhei para o alto da escada, para Grayson, que desceu para se
juntar a nós, mas não chegou a olhar para mim. Ele estava todo de
preto, mas não de terno.
— O que quer que você tenha — disse Grayson a Alisa —, mande
pra mim.
Finalmente, finalmente, os olhos dele encontraram os meus.
— Cadê Eve?
Parecia que ele tinha me batido.
— No chalé — respondeu Rebecca. — Com minha mãe e meu
vô.
— Se descobrirmos alguma coisa — falei, tentando não deixar o
olhar dilacerador de Grayson me dilacerar —, vamos chamá-la.
— Se descobrirmos... — disse Jameson, me encarando com a
precisão de um laser. — O quê?
— A pessoa que sequestrou Toby está ficando mais agressiva —
disse Oren.
— Como assim, mais agressiva? — insistiu Alisa.
Xander levou Tiramisu até o rosto e falou com a voz da filhote.
— Não se preocupem. O incêndio foi bem pequeno.
— Que incêndio? — perguntou Jameson, eliminando o espaço
entre nós e pegando minha mão. — Conte, Herdeira.
— Outro envelope. A mensagem pegou fogo quando entrou em
contato com o ar. Sete números.
O polegar de Jameson traçou o dorso da minha mão.
— Bem, Herdeira. Que comece o jogo.
CAPÍTULO 53

Nós tínhamos duas possíveis pistas: o selo e o número.


Considerando que não estávamos mais perto de identificar o disco
do que Jameson e eu estivéramos meses antes, optei por me
concentrar no número.
Dividir e conquistar não era um lema da família Hawthorne, mas
poderia muito bem ser. Grayson assumiu a parte financeira:
registros bancários, corretoras de investimento, transações. Xander,
Thea e Rebecca ficaram com o ângulo da data: 29 de dezembro,
1982. Isso deixava uma miríade de possibilidades para Jameson e
eu, entre elas o número de telefone. Se realmente nos faltava um
código de área, então completar isso levaria a duas coisas: primeiro,
nos daria um número para ligar; segundo, nos daria uma
localização.
Uma pista de onde Toby está preso? Ou outra peça da charada?
— Existem mais de trezentos códigos de área nos Estados
Unidos — disse Jameson.
— Vou imprimir uma lista — falei, mas o que eu realmente queria
era perguntar nós estamos bem?
Depois de meia hora de telefonemas — cada código de área
seguido por 363-1982 —, nenhuma das minhas tentativas tinha
completado. Em uma pausa, eu digitei o número em uma busca de
internet e passei o olho pelos resultados. Um processo envolvendo
práticas discriminatórias de habitação. Um cartão de baseball
valendo mais de dois mil dólares. Um hino do Hinário da Igreja
Episcopal de 1982.
Um telefone tocou. Eu ergui os olhos. Thea levantou o celular
dela.
— Número bloqueado — falou, e, porque era Thea Calligaris e
não conhecia o significado das palavras hesitar ou ponderar, ela
atendeu.
Dois segundos depois, ela passou o celular para mim. Eu o
apertei na orelha.
— Alô?
— Quem sou eu? — disse uma voz, aquela voz.
A pergunta não só me deixou doida; ela vinha me enlouquecendo
havia dias, e eu me perguntei se ele tinha ligado para o celular de
Thea só para me lembrar de que tinha chegado até ela.
— Me diga você — respondi.
Ele não ia saber que me abalava. Não naquele momento.
— Eu já disse.
A voz dele era suave como sempre, sua cadência distinta.
Jameson pegou a lista de códigos de área e rabiscou uma
mensagem: PERGUNTE DO DISCO.
— O disco — falei. — Você sabia o que era.
Eu parei para permitir uma resposta que nunca veio.
— Quando você o mandou de volta como prova de que estava
com Toby, você conhecia seu valor.
— Intimamente.
— E quer que eu adivinhe? O que é, o que tudo isso significa?
— Adivinhar — disse o sequestrador de Toby em voz sedosa — é
para aqueles fracos demais, em mente e espírito, para saberem.
Soou como algo que Tobias Hawthorne teria dito.
— Eu instalei um programa no celular da sua amiguinha. Eu
venho rastreando vocês, escutando vocês. Você está aí, no
santuário dele, não está?
O escritório de Tobias Hawthorne. Era isso que ele queria dizer
com santuário. Ele sabia onde estávamos. O celular na minha mão
pareceu sujo, ameaçador. Eu queria jogá-lo pela janela, mas me
contive.
— Por que importa onde eu estou? — perguntei.
— Eu me canso de esperar.
De alguma forma, aquilo soou mais ameaçador do que qualquer
palavra que eu já tinha ouvido o homem dizer.
— Olhe para cima — disse ele, e desligou.
Eu passei o celular para Oren.
— Ele fez alguém instalar um programa para nos espionar.
Então por que tinha desistido?
Porque quer que eu saiba que ele está em toda parte.
Oren derrubou o celular e pisou nele com força. O gritinho
indignado de Thea foi abafado por uma cacofonia de pensamentos
na minha cabeça.
— Olhe para cima — repeti, e olhei para Jameson. — Ele me
perguntou se eu estava no santuário do seu avô, mas acho que ele
sabia a resposta. E ele me disse para olhar para cima.
Eu inclinei a cabeça para o teto. Era alto, com vigas de mogno e
painéis feitos sob medida. Se olhe para cima fosse parte de uma
das charadas de Tobias Hawthorne, eu já estaria pegando uma
escada, mas não estávamos lidando com Tobias Hawthorne.
— Ele estava escutando a gente — falei, sentindo aquilo como
óleo na minha pele. — Mas, mesmo que ele tenha hackeado a
câmera de Thea, não teria conseguido me ver. Então onde alguém
imaginaria que estou nessa sala se não soubessem onde estou
sentada?
Andei até a escrivaninha de Tobias Hawthorne. Eu sabia que ele
tinha passado horas sentado ali, trabalhando, montando estratégias.
Eu me coloquei na posição dele, e me sentei atrás da escrivaninha.
Olhei para ela como se estivesse trabalhando, então olhei para
cima. Quando não funcionou, pensei em como nem Jameson, nem
Xander conseguiam pensar sentados. Eu me levantei e andei até o
outro lado da escrivaninha. Olhe para cima.
Olhei e me peguei diante da parede de troféus e medalhas que os
netos Hawthorne tinham ganhado: campeonatos nacionais de todas
as coisas, de motocross até natação e pinball; troféus de surfe,
esgrima e rodeio. Eram os talentos que os netos de Tobias
Hawthorne tinham cultivado. Era o tipo de resultado que ele
esperava.
Também havia outras coisas nas paredes: quadrinhos escritos
pelos Hawthorne; um livro de arte com as fotografias de Grayson;
algumas patentes, a maior parte em nome de Xander.
As patentes, percebi num susto. Cada certificado tinha um
número. E cada número, pensei, o mundo de repente nítido e em
hiperfoco, tem sete dígitos.
CAPÍTULO 54

Nós procuramos a Patente dos EUA número 3631982. Era uma


patente de utensílio dada em 1972, com dois donos: Tobias
Hawthorne e um homem chamado Vincent Blake.
Quem sou eu?, perguntara o homem no telefone. E quando eu
pedira para me dizer, ele dissera que já o tinha feito.
— Vincent Blake — falei, me virando para os meninos. — Seu avô
já mencionou ele?
— Não — respondeu Jameson, energia e intensidade emanando
dele como uma tempestade. — Gray? Xan?
— Todos sabemos que o velho tinha segredos — disse Grayson,
tenso.
— Eu não sei de nada — disse Xander.
Ele se enfiou na minha frente para ver melhor a tela do
computador, então desceu até a informação da patente e parou em
um desenho do objeto.
— É um mecanismo para perfurar poços de petróleo — falou.
Isso chamou minha atenção.
— É como o avô de vocês ganhou o dinheiro dele, pelo menos de
início.
— Não com essa patente — desdenhou Xander. — Olha. Bem
aqui!
Ele apontou para o desenho, para algum detalhe que eu nem
conseguia distinguir.
— Eu não sou exatamente um especialista em engenharia de
petróleo, mas até eu vejo que isso aqui é o que chamariam de um
defeito fatal. O projeto deveria ser mais eficiente do que a tecnologia
anterior, mas… — disse Xander, e deu de ombros. — Detalhes,
detalhes, coisas chatas... o resumo é que essa patente não vale
nada.
— Mas essa não é a única patente que o velho pediu em setenta
e dois — disse Grayson, a voz gelada.
— Qual a outra patente? — perguntei.
Alguns minutos depois, Xander a abriu.
— O objetivo desse mecanismo é o mesmo — falou, olhando o
desenho —, e dá para ver alguns elementos da mesma estrutura
geral, mas essa aqui funciona.
— Por que alguém pediria duas patentes no mesmo ano com
projetos tão parecidos? — perguntei.
— Patentes de utensílio cobrem a criação de tecnologias novas
ou melhoradas — disse Jameson, e veio para trás de mim, o corpo
tocando no meu. — Quebrar uma patente não é fácil, mas pode ser
feito se você der um jeitinho de contornar o que a patente anterior
afirmava ser único. Você precisa quebrar cada inovação
individualmente.
— É o que essa patente faz — acrescentou Xander. — Pense
nisso como um quebra-cabeça de lógica. Esse projeto muda só o
suficiente para não sustentar um caso de infração... e então
acrescenta a peça nova, o que forma a base da sua inovação. E foi
essa peça nova que tornou a patente valiosa.
Essa patente só tinha um dono: Tobias Hawthorne. Minha mente
estava a mil.
— Seu avô registrou uma patente ruim com um homem chamado
Vincent Blake. Então imediatamente registrou, sozinho, uma patente
melhor e que não infringia a anterior, mas que tornava a anterior
completamente sem valor.
— E que rendeu milhões ao nosso avô — acrescentou Grayson.
— Antes disso, ele estava trabalhando em poços de petróleo e
brincando de inventor à noite. E depois...
Ele se tornou Tobias Hawthorne.
— Vincent Blake — falei, sentindo meu peito apertar meu coração
acelerado. — É com ele que estamos lidando. É ele que está com
Toby. E é por isso que ele quer vingança.
— Uma patente?
Ergui os olhos e vi Eve.
— Eu mandei mensagem para ela — disse Grayson, prevenindo
qualquer desconfiança que a súbita aparição dela pudesse me
causar.
— Tudo isso — continuou Eve, a emoção palpável em seu tom —
por causa de uma patente?
Quem sou eu?, Vincent Blake tinha me perguntado. Mas esse não
era o fim. Não poderia ser. Eu pensei que a charada fosse quem
sequestrara Toby e o porquê. Mas e se houvesse um terceiro
elemento, uma terceira pergunta?
O que ele quer?
— Precisamos saber com quem estamos lidando.
Grayson não soava em nada como o menino arrasado da adega.
Ele soava mais do que capaz de lidar com ameaças.
— Vocês realmente nunca ouviram falar desse cara? —
perguntou Thea. — Ele é rico, poderoso e odeia sua família pra
caramba, e vocês nunca nem ouviram o nome dele?
— Você sabe tão bem quanto eu — respondeu Grayson — que
existem tipos diferentes de rico.
Jameson me jogou o celular e eu passei os olhos pela informação
que tinha puxado de Vincent Blake.
— Ele é do Texas — notei, e o estado de repente pareceu muito
menor. — Patrimônio de pouco menos de meio bilhão de dólares.
— Dinheiro antigo de petróleo — disse Jameson, e olhou nos
olhos de Grayson. — O pai de Blake achou ouro líquido no boom do
petróleo dos anos trinta no Texas. No final dos anos cinquenta, um
jovem Vincent herdou tudo. Ele passou mais duas décadas no
petróleo, aí mudou pra pecuária.
Isso não nos dizia nada a respeito do que o homem era realmente
capaz de fazer... ou do que ele queria.
— Ele deve ter uns oitenta anos agora — falei, tentando me ater
aos fatos.
— Mais do que o velho — afirmou Grayson, o tom equilibrado na
corda bamba entre frio e despreocupado.
— Tenta acrescentar o nome do seu avô nos termos de busca —
eu disse a Jameson.
Além da patente, descobrimos outra coisa: um perfil em uma
revista dos anos oitenta. Como a maior parte da cobertura da
ascensão meteórica de Tobias Hawthorne, o perfil mencionava que
seu primeiro emprego tinha sido trabalhando em um poço de
petróleo. A diferença era que o artigo também mencionava o nome
do dono desse poço.
— Então Blake era chefe dele — remoeu Jameson. — Imagine
isso: Vincent Blake é dono da empresa inteira. É o fim dos anos
sessenta, início dos setenta, e nosso avô não é nada além de um
peão.
— Um peão com grandes ideias — acrescentou Xander,
tamborilando os dedos rapidamente na coxa.
— Talvez Tobias leve uma das ideias para o chefe — sugeri. — O
movimento ousado dê certo e eles acabem colaborando no projeto
de uma nova tecnologia de perfuração.
— Nesse ponto — continua Grayson com uma calma letal —,
nosso avô trai um homem rico e poderoso para conseguir uma
fortuna em propriedade intelectual.
— E tal homem poderoso não acaba com ele na justiça? —
perguntou Xander, cético. — Mesmo que a segunda patente não
infrinja a primeira, um homem rico poderia ter enterrado um zé-
ninguém em despesas jurídicas.
— Então por que ele não fez isso? — perguntei, o corpo vibrando
com a adrenalina que sempre vinha acompanhada de descobrir o
tipo de resposta que levava a mais mil perguntas.
Nós sabíamos quem estava com Toby.
Nós sabíamos do que aquilo se tratava.
Mas ainda havia detalhes me torturando, ocupando os cantos da
minha mente. O disco. Os três personagens da história. Qual o
objetivo? O que ele quer?
— Alguém deve saber mais da conexão entre Blake e seu avô —
disse Eve, e olhou para cada um dos Hawthorne.
Eu pensei no próximo passo. Tobias Hawthorne tinha se casado
com Alice em 1974, só dois anos depois da patente ser registrada. E
quando Jameson tinha perguntado a Nan sobre amigos ou
mentores, a resposta dela tinha sido que o negócio de Tobias
Hawthorne nunca fora amigos.
Ela não tinha dito uma palavra sobre mentores.
CAPÍTULO 55

Dessa vez, eu fui ver Nan sozinha.


— Vincent Blake.
Deixei o disco de metal na mesa da sala de jantar onde Nan
estava tomando chá. Ela fez um som de desdém vagamente na
minha direção.
— Isso deveria ser um suborno?
Ou Nan também não fazia ideia do que era o disco, ou estava
blefando.
— Tobias Hawthorne trabalhava para um homem chamado
Vincent Blake no início dos anos setenta. Pode ter sido antes dele e
Alice começarem a namorar...
— Não foi — resmungou Nan. — Namoro longo. O tonto insistia
que queria subir na vida antes de dar um anel para minha Alice.
Nan estava lá. Ela lembra.
— Tobias e Vincent Blake colaboraram em uma patente — eu
disse, tentando ignorar as batidas incessantes do meu coração. — E
então seu genro deu um golpe em Blake e o deixou de fora de um
empreendimento que valia milhões.
— Foi mesmo?
Por um momento, pareceu que isso fosse tudo que Nan ia dizer,
até que ela franziu o cenho.
— Vincent Blake era rico e se achava mais poderoso que Deus.
Ele se apegou a Tobias, colocou-o embaixo de sua asa.
— Mas? — insisti.
— Nem todo mundo ficou feliz com isso. O sr. Blake gostava de
colocar seus protegidos um contra o outro. O filho dele era jovem
demais para ser um fator naquela época, mas o sr. Blake deixava
bem claro para os sobrinhos que ser da família não dava um passe
livre para ninguém. O poder precisava ser merecido. Precisava ser
conquistado.
— Conquistado — repeti.
Pensei naquela primeira ligação com Blake. Eu sou só um velho
que gosta de charadas. Esse tempo todo nós pensamos que o
sequestrador de Toby estava jogando um dos jogos de Tobias
Hawthorne. Mas e se Tobias Hawthorne tivesse aprendido com
Vincent Blake? E se, antes de orquestrar aqueles jogos nos
sábados de manhã, ele tivesse sido um jogador?
— O que aconteceu? — insisti com Nan. — Se Tobias era
próximo de Blake, por que traí-lo?
— Os sobrinhos que eu mencionei? Eles queriam mandar um
recado. Marcar território. Colocar Tobias no devido lugar.
— O que eles fizeram?
— Não havia nenhuma sra. Blake naquela época — resmungou
Nan. — Ela tinha falecido quando o menininho deles nasceu e a
criança não devia ter mais do que quinze anos quando o sr. Blake
começou a convidar Tobias para o jantar. Eventualmente, Tobias
começou a levar minha Alice junto. O sr. Blake se afeiçoou a ela
também, mas ele era um tipo específico de homem.
Ela me deu um olhar.
— O tipo que acreditava que garotos eram assim mesmo — disse.
— Ele... — falei, e nem consegui terminar a frase. — Eles...
— Se você está pensando no pior, a resposta é não. Mas se você
está pensando que os sobrinhos atacaram Tobias por meio de Alice,
que a assediaram, agrediram e um deles chegou até a segurá-la e
forçar seus lábios nos dela... bem, então.
Nan já tinha deixado fortemente implícito, mais de uma vez, que
tinha matado o primeiro marido, um homem que quebrara os dedos
dela por tocar piano um pouco bem demais. Eu desconfiava
profundamente de que ela teria castrado os sobrinhos de Victor
Blake se tivesse tido sequer metade de uma chance.
— E Blake não fez nada? — perguntei.
Nan não respondeu e eu me lembrei de como ela tinha
caracterizado o homem: um tipo que acha que garotos são assim
mesmo.
— E foi então que seu genro decidiu sair — chutei, a imagem
ficando mais nítida.
— Tobias parou de sonhar com trabalhar para Blake e decidiu se
tornar ele. Uma versão melhor dele. Um homem melhor.
— Então ele registrou duas patentes — eu disse. — Uma na qual
eles tinham trabalhado juntos e então uma diferente... uma melhor.
Por que Blake não o processou?
— Porque Tobias o venceu justamente. Ah, foi meio malandro,
talvez, e uma traição, com certeza, mas Vincent Blake admirava
alguém que soubesse jogar seu jogo.
Um homem rico e poderoso tinha deixado um jovem Tobias
Hawthorne se dar bem, e em troca Tobias Hawthorne o tinha
eclipsado... bilhões para seus milhões.
— Blake é perigoso? — perguntei.
— Homens como Vincent Blake e Tobias... são sempre perigosos
— respondeu Nan.
— Por que a senhora não contou isso para Jameson e eu antes?
— Foi há mais de quarenta e cinco anos — desdenhou Nan. —
Você sabe quantos inimigos essa família fez desde então?
Eu pensei nisso.
— Seu genro tinha uma lista de ameaças. Blake não estava nela.
— Então Tobias não devia considerar Blake uma ameaça... isso,
ou ele pensou que a ameaça tinha sido neutralizada.
— Por que Blake sequestraria Toby? — perguntei. — Por que
agora?
— Porque meu genro não está mais aqui para mantê-lo afastado.
Nan pegou a minha mão e a segurou com força. A expressão no
rosto dela ficou carinhosa.
— É você quem está tocando o piano agora, menina — falou. —
Homens como Vincent Blake... eles vão quebrar todos esses seus
dedos se você deixar.
CAPÍTULO 56

Enquanto eu voltava para os outros, pensei no fato de que Vincent


Blake tinha dirigido todas as cartas para mim. E tinha deixado claro
no telefone que não falaria com mais ninguém além da “herdeira”.
É você quem está toando o piano agora, menina... As palavras de
Nan ainda estavam ecoando na minha cabeça quando saí para o
hall e escutei uma conversa sussurrada ecoando pelas paredes do
salão principal.
— Não faça isso — dizia Thea, em voz baixa e intensa. — Não se
encolha.
— Não estou me encolhendo.
Rebecca.
— Não fique triste, Bex.
Rebecca entendeu o significado da ênfase.
— Fique com raiva. Odeie sua mãe, odeie Emily e Eve, me odeie
se precisar, mas não ouse desaparecer.
No segundo em que me viu, Jameson cruzou o hall.
— Alguma coisa?
Eu engoli em seco.
— Vincent Blake trouxe seu avô para seu círculo íntimo. Ele o
tratou como família... ou a versão dele de família, de qualquer
forma.
— O filho pródigo?
Os olhos de Jameson se acenderam.
— Eve?
Era Grayson, e ele estava gritando. Eu examinei o hall. Oren,
Xander, Thea e Rebecca vindo do salão. Mas nada de Eve.
Grayson apareceu.
— Eve foi embora. Ela deixou um bilhete. Ela está indo atrás de
Blake.
— E o guarda dela? — perguntei a Oren.
Foi Grayson quem respondeu.
— Ela foi ao banheiro, o despistou.
— Deveríamos ficar preocupados? — jogou Xander.
Homens como Vincent Blake e Tobias, ouvi o aviso de Nan, são
sempre perigosos.
— Eu vou atrás dela — disse Grayson, e levantou as mangas da
camisa com ferocidade, como se estivesse se preparando para uma
briga.
— Grayson, pare — falei com urgência. — Pense.
A fuga de Eve não fazia sentido. Ela achava que podia só
aparecer na porta de Vincent Blake e exigir Toby de volta?
Jameson se colocou entre Grayson e eu. Ele sustentou meu olhar
por um ou dois segundos, então se virou para o irmão.
— Sossegue, Gray.
Grayson parecia não conhecer o significado da palavra. Ele era
como pedra: imóvel, os músculos do maxilar travados.
— Eu não posso deixá-la na mão de novo, Jamie.
De novo. Meu coração apertou. Jameson colocou a mão no
ombro do irmão.
— Eu invoco Onã Lefa.
Grayson xingou.
— Eu não tenho tempo...
— Arranje. Tempo.
Jameson se inclinou para a frente e disse alguma coisa, não ouvi
o quê, diretamente no ouvido de Grayson. Onã Lefa era um rito
Hawthorne; significava que Grayson não podia falar até Jameson
terminar.
Quando Jameson terminou de sussurrar furiosamente no ouvido
dele, Grayson ficou muito quieto. Eu esperei ele começar uma briga,
usar seu direito de responder o que Jameson havia dito de forma
física. Mas, em vez disso, Grayson Davenport Hawthorne foi embora
com duas e apenas duas palavras.
— Eu desisto.
— Desiste de quê? — perguntou Rebecca.
Thea soltou um ruído alto de desdém.
— Esses Hawthorne...
— Herdeira? — disse Jameson, e se virou para mim. — Eu
preciso falar com você. A sós.
CAPÍTULO 57

Jameson me levou ao terceiro andar, para uma sala de


ferromodelismo. Havia dezenas de trens e o dobro de trilhos
montados em mesas de vidro. Jameson apertou um botão na lateral
de um dos trens. Com seu toque, a parede atrás de nós se abriu no
meio, relevando uma sala escondida do tamanho e formato de uma
cabine de telefone antiga. As paredes eram todas feitas de placas
de pedras preciosas, um preto metálico e brilhante em metade do
espaço e um branco iridescente na outra metade.
— Obsidiana — disse Jameson. — E cristal de ágata.
— O que estamos fazendo aqui, Jameson? — perguntei. — O que
você precisa me dizer?
Parecia que estávamos na beira de algo. Um segredo? Uma
confissão? Jameson apontou com a cabeça para a sala de pedras
preciosas. Eu entrei. O teto acima de mim brilhava multicolorido,
com mais pedras preciosas.
Eu percebi tarde demais que Jameson não tinha me seguido para
a sala.
A porta atrás de mim se fechou. Eu levei um segundo para
processar o que tinha acontecido. Jameson me prendeu aqui.
— O que você está fazendo? — gritei, e bati na parede. —
Jameson!
Meu celular tocou.
— Me deixe sair daqui — exigi no segundo em que atendi.
— Eu vou deixar — prometeu Jameson do outro lado da linha. —
Quando nós voltarmos.
Nós. De repente, entendi por que Grayson tinha aberto mão do
seu direito de brigar pós-Onã Lefa.
— Você prometeu que vocês iam atrás de Eve juntos.
Jameson não disse que eu estava errada.
— E se ela for perigosa? — perguntei. — Mesmo que tudo que
ela queira seja Toby de volta, você honestamente consegue dizer
que ela não trocaria você ou Grayson por ele? Nós mal a
conhecemos, e a mensagem do seu avô dizia...
— Herdeira, você já me viu fugir do perigo?
Fechei os dedos em punho. Jameson Winchester Hawthorne vivia
pelo perigo.
— Se você não me deixar sair daqui, Hawthorne, eu vou...
— Você quer saber da minha cicatriz? — falou Jameson na voz
mais suave que eu já tinha ouvido, e eu soube imediatamente de
que cicatriz ele estava falando.
— Eu quero que você abra a porta.
— Eu voltei — falou, deixando as palavras no ar. — Para o lugar
onde Emily morreu... Eu voltei.
O coração de Emily tinha parado depois de ela saltar de um
penhasco.
— Jameson...
— Eu saltei de um lugar perigosamente alto, como ela tinha feito.
Nada aconteceu da primeira vez. Nem da segunda. Mas na
terceira...
Eu via a cicatriz na memória, descendo por todo o tronco de
Jameson. Quantas vezes eu tinha passado os dedos por suas
bordas, sentindo a pele suave dos lados da barriga dele?
— Tinha uma árvore caída embaixo d’água. Eu só via um galho,
não fazia ideia do que estava por baixo. Achei que tinha evitado a
coisa toda, mas estava errado.
Imaginei Jameson se jogando de um penhasco, batendo na água.
Imaginei um galho afiado atravessando a carne dele, mal diminuindo
sua velocidade.
— Eu não senti dor de início. Eu vi sangue na água... e aí senti.
Como se a minha pele estivesse pegando fogo. Eu fui até a borda
com o corpo gritando. De alguma forma, consegui ficar de pé. O
velho estava bem ali. Ele nem notou o sangue, não me perguntou se
eu estava bem, não gritou. Tudo que ele disse, olhando meu corpo
ensanguentado de cima a baixo, foi Agora já deu?
Eu me apoiei na parede da gaiola preciosa.
— Por que você está me contando isso agora?
Eu ouvia o som dos passos dele do outro lado da linha.
— Porque Gray vai continuar pulando até doer. Ele sempre foi o
irmão sólido, Herdeira. O que nunca hesita, nunca desiste, nunca
duvida. E, agora, ele perdeu o chão e eu preciso ser o irmão forte.
— Me leve com vocês — eu disse a Jameson.
— Só dessa vez — disse ele, com dor na voz —, deixe ser eu a
proteger você, Avery.
Ele tinha usado meu nome.
— Eu não preciso que você me proteja. Você não pode me deixar
aqui, Jameson!
— Não posso. Não deveria. Preciso. Essa bagunça é da minha
família, Herdeira.
Pela primeira vez, não havia nada de malicioso no tom de
Jameson, nenhum duplo sentido.
— Nós precisamos limpá-la — declarou.
— E quanto a Eve? — perguntei. — Você sabe o que seu avô
disse. Não confie em ninguém. Grayson não está pensando direito,
mas você...
— Eu estou pensando mais claro do que nunca. Eu não confio em
Eve.
A voz dele era baixa e dolorida.
— A única pessoa em quem eu confio, com tudo que sou e tudo
que posso ser, Herdeira, é você.
E então Jameson Winchester Hawthorne desligou o celular.
CAPÍTULO 58

Eu ia esganar Jameson. Nós dóis éramos corridas, apostas e


desafios, não isso.
Tentei ligar para Oren, mas caiu na caixa postal. Libby não
atendeu, o que provavelmente significava que o celular estava
descarregado. Tentei Xander, então Rebecca. Eu estava a meio
caminho de ligar para Thea quando lembrei que o celular dela tinha
sido destruído. Tentando me acalmar, peguei minha faca, planejei
um assassinato e doei dez mil dólares para desconhecidos pagarem
o aluguel.
Finalmente, mandei uma mensagem para Max. Jameson me
trancou na masmorra mais cara do mundo, escrevi. Ele está com
uma ideia idiota de me proteger.
A resposta de Max não demorou. AQUELE ESCROTO DE OLHOS VERDES.
Eu sorri mesmo sem querer e digitei de volta: Você xingou.
Max respondeu correndo: Prefere “banana arrogante e
paternalista que pode enfiar a lerda do paternalismo esgoto na forra
do mu”?
Eu ri, e finalmente me acalmei o suficiente para examinar por
completo a sala de pedras preciosas. Duas paredes de obsidiana,
pensei. Duas paredes de ágata branca. Cutucar as paredes não me
levou a nenhuma alavanca de saída, mas revelou que as pedras
tinham sido entalhadas em tijolos, e que, se apertasse a parte de
cima ou de baixo dos tijolos, eles rodavam. Rodar um tijolo preto o
tornava branco. Rodar um tijolo branco o tornava preto.
Eu pensei em todas as vezes que tinha visto Xander brincar com
um quebra-cabeça portátil, então espichei o pescoço, notando todos
os detalhes das paredes, do teto e do chão. Jameson não tinha me
prendido em uma masmorra.
Ele tinha me prendido em um desafio de escape.
Três horas depois, eu ainda não tinha encontrado o padrão correto,
e a cada minuto me perguntava se Jameson e Grayson já tinham
alcançado Eve. Avisos de todo tipo giravam na minha mente.
Não confie em ninguém.
Qualquer um próximo de você pode ser o próximo alvo.
Eu me canso de esperar.
Nos meus momentos mais baixos, pensei em como Eve tinha
jurado fazer qualquer coisa — qualquer coisa — para ter Toby de
volta.
Não pense nela. Nem neles. Nem em nada disso. Encarei a sala
brilhante a minha volta, a opulência, a beleza, e tentei não sentir que
as paredes estavam se fechando.
— Brilhante — murmurei. — Opulência. E diamantes?
Eu já tinha tentado dezenas de desenhos: A letra H, um tabuleiro
de xadrez, uma chave...
Tentei um diamante preto em cada uma das paredes brancas, um
diamante branco em cada uma das pretas. Nada. Frustrada, passei
a mão por um dos diamantes, apagando-o.
Clique.
Arregalei os olhos ao ouvir o som. Dois diamantes pretos, um
diamante branco, nada na outra parede de obsidiana. Com um
segundo clique, um painel saltou do chão. Eu me abaixei para ver
melhor. Não era um painel. Era um alçapão.
— Finalmente!
Sem pensar nem hesitar, pulei na escuridão. Peguei o celular e
liguei a lanterna, então segui as voltas da passagem sinuosa até
chegar a uma escada. Subi e cheguei em um teto... e outro alçapão.
Espalmando as mãos, empurrei até ele ceder, então me ergui
para um quarto, mas não era um que eu já tivesse visto antes. Uma
guitarra surrada de seis cordas estava apoiada na parede a minha
frente; uma cama king-size feita do que parecia ser madeira de
demolição estava à esquerda. Eu me virei e vi Nash empoleirado em
um banquinho de metal ao lado de uma grande bancada de madeira
que parecia fazer as vezes de cômoda.
Ele estava bloqueando a porta.
Eu andei até ele.
— Estou indo — falei, a raiva borbulhando. — Não tente me
impedir. Eu vou atrás de Jameson e Grayson.
— É mesmo?
Nash não se mexeu do banquinho.
— Eu te ensinei a lutar porque achei que você pensava, menina
— disse ele, e se levantou, sua expressão suave. — Pensei errado?
Nash me deu um segundo para remoer a pergunta, então deu um
passo ao lado, abrindo caminho pra porta.
Droga, Nash. Eu expirei longamente.
— Não.
Eu pensei para além da fúria e da preocupação, dos pensamentos
sombrios e repetidos. Eu estava com três horas de desvantagem e
não era como se Oren fosse deixar Jameson e Grayson saírem
correndo sozinhos.
— Se você quiser silver tape emprestada quando aqueles
cabeças de ovo voltarem — falou Nash —, posso ser convencido.
— Obrigada, Nash.
Um pouco mais calma, saí para o corredor e vi Oren.
— Jameson, Grayson e Eve — falei imediatamente, uma faísca
na minha voz. — Qual o status?
— Seguros e rastreados — relatou Oren. — Eve chegou até o
complexo de Blake, mas não lhe permitiram entrar. Os meninos
chegaram lá pouco depois e a convenceram a desistir. Estão todos
voltando agora.
O alívio me acertou, abrindo caminho para que a irritação
voltasse.
— Você deixou Jameson me trancar!
— Você estava bem — disse Oren, com a boca trêmula. —
Segura.
— Vejam! — ressoou uma voz do outro lado de Oren. — Os
heróis chegam para a batalha! Avery será libertada!
Eu olhei atrás de Oren e vi Xander, Thea e Rebecca chegando.
Xander trazia um enorme escudo de metal que parecia ter sido
tirado direto do braço de um cavaleiro medieval.
— Eu juro por tudo que há de mais sagrado — sussurrou Thea —,
se você disser mais alguma palavra sobre luta medieval, Xander...
Eu contornei Oren.
— Agradeço o “resgate”, Xan, mas você não podia atender o
celular?
Eu olhei para Rebecca.
— Você também não?
— Desculpa — disse Rebecca. — Meu celular estava no
silencioso. Nós estávamos espairecendo.
Ela virou os olhos verdes para Thea.
— Jogando sinuca — acrescentou.
Olhei para Thea. O suéter dela estava rasgado no ombro, e o
cabelo, notavelmente menos que perfeito. As duas podiam estar na
sala de bilhar ou no fliperama, mas de jeito nenhum estavam
jogando sinuca. Pelo menos Rebecca não parecia mais uma sombra
dela mesma.
— Qual a sua desculpa? — perguntei para Xander.
Ele passou o escudo para o lado.
— Venha ao meu escritório.
Revirei os olhos, mas o segui.
Xander usou o escudo para nos bloquear de Oren, então me
levou por um corredor.
— Eu mergulhei fundo nas posses de Vincent Blake, atuais e
antigas — admitiu Xander. — Blake foi o único fundador do
Laboratório de Inovação VB — disse, e parou, se preparando. — Eu
reconheci o nome. O VB é onde Isaiah Alexander foi trabalhar logo
depois de ser demitido.
O pai de Xander trabalhou para Vincent Blake. A ideia foi como
um dominó na minha mente, derrubando outra e mais outra peça.
São três personagens na parábola do filho pródigo, não são?
O rei, o cavaleiro e o bispo. O filho que se manteve fiel.
— Isaiah Alexander ainda trabalha para Blake? — perguntei para
Xander, minha mente girando.
— Não — disse Xander enfaticamente. — Já faz quinze anos que
não. E eu sei o que você está pensando, Avery, mas não tem como
Isaiah ter se envolvido no sequestro de Toby. Ele é mecânico, tem
sua própria oficina, e a outra mecânica que trabalha para ele está de
licença-maternidade, então ele está trabalhando em dobro há
semanas.
Xander engoliu em seco.
— Mas ainda assim... — continuou. — Ele pode saber alguma
coisa que nos dê uma vantagem. Ou conhecer alguém que saiba de
alguma coisa. Ou conhecer alguém que conheça alguém que
saiba...
Thea, prestativa, cobriu a boca de Xander com a mão.
O arquivo. A cadeia de dominós na minha mente chegou ao final
e eu inspirei fundo. O arquivo de Isaiah Alexander estava vazio e
Xander não pegou a página.
Quais as chances da página faltando mencionar Vincent Blake?
Eve pegou. Podia ser precipitado. Podia não ser justo. Eu não
podia dizer a ninguém.
Com todo o corpo vibrando, eu contornei o escudo de Xander e
olhei para Oren, que — para surpresa de ninguém — tinha nos
seguido.
— Jameson, Grayson e Eve estão voltando para cá? — perguntei,
cortando as palavras. — Eles estão seguros e vigiados pelos seus
funcionários, e estarão durante as próximas três horas?
Oren apertou os olhos, a expressão suspeita.
— O que você vai fazer se eu disser sim?
Isso nos dá três horas. Eu olhei para Xander.
— Acho que precisamos falar com Isaiah. Mas se você não
estiver pronto...
— Eu nasci pronto!
Xander ergueu seu escudo e abriu um sorriso muito Xander
Hawthorne, então deixou a pose cair.
— Mas, antes de irmos, abraço em grupo? — pediu.
CAPÍTULO 59

Uma hora depois, estávamos estacionados, com uma enorme


equipe de segurança a tiracolo, em frente a uma oficina de cidade
pequena, e tínhamos despistado os paparazzi na estrada. Só tinha
um homem trabalhando dentro do lugar. Ele estava embaixo de um
carro quando entramos.
— Vocês vão ter que esperar.
A voz de Isaiah Alexander não era grave nem aguda.
Eu esperava, por Xander, que ele não estivesse realmente
envolvido em nada daquilo.
— Precisa de uma mãozinha? — ofereceu Xander.
Quando algumas pessoas ficam nervosas, elas se fecham.
Xander tagarelava.
— Eu sou muito bom com coisas mecânicas, a menos, ou talvez
especialmente, que sejam inflamáveis.
Isso arrancou do homem uma risada.
— Falou como alguém com tempo livre demais.
Isaiah Alexander deslizou por baixo do carro e se levantou. Ele
era alto, como Xander, mas tinha ombros mais largos. A pele dele
era de um marrom mais escuro, mas seus olhos eram iguais.
— Procurando emprego? — perguntou a Xander, como se garotos
desgarrados aparecessem ali o tempo todo com um trio de garotas
e vários guarda-costas de acompanhantes.
— Eu sou Xander — disse Xander, e engoliu em seco. —
Hawthorne.
— Eu sei quem você é — disse Isaiah, direto, mas de alguma
forma gentil. — Procurando emprego?
— Talvez.
Xander passou o peso de um pé para o outro e então voltou a
tagarelar, nervoso.
— Eu provavelmente devo avisar que já desmontei quatro
Porsches e meio de forma irreparável nos últimos dois anos. Mas,
em minha defesa, foi culpa deles, e eu precisava das partes.
Isaiah aceitou calmamente a justificativa.
— Gosta de construir coisas, é?
A pergunta — e a leve curva pra cima de seus lábios — quase me
desmontou, então eu nem podia imaginar o quanto tinha atingido
Xander.
— Você não está surpreso em me ver.
Xander soava chocado, e isso vindo de uma pessoa que podia
literalmente se dar um choque e continuar como se nada tivesse
acontecido.
— Eu achei que você ficaria — soltou. — Surpreso. Ou que não
saberia quem eu sou. Eu preparei um fluxograma mental que
programava minha reação em relação ao seu nível exato de
surpresa e conhecimento.
Isaiah Alexander olhou para o filho com uma expressão firme.
— Ele era tridimensional?
— Meu fluxograma mental? — disse Xander, e jogou as mãos pro
alto. — Claro que era tridimensional! Quem faz fluxogramas
bidimensionais?
— Nerds? — sugeriu Thea. — Me pergunte quem faz fluxogramas
tridimensionais, Xander — sussurrou.
— Thea — cutucou Rebecca.
— Eu estou ajudando — insistiu Thea, e o pior é que Xander
pareceu mesmo se controlar um pouco.
— Você sabia de mim? — perguntou a Isaiah, em voz baixa, mas
mais intensa do que nunca.
Isaiah olhou nos olhos de Xander.
— Desde antes de você nascer.
Então por que você não estava lá?, pensei com uma ferocidade
que me tirou o ar. Meu próprio pai tinha sido majoritariamente
ausente, mas aquele era Xander, rei das distrações e do caos, meu
BFFH, que sabia daquele homem havia meses, mas só tinha ido até
ali por mim.
Eu não suportaria a ideia dele se magoar.
— Você quer que eu vá embora? — perguntou Xander a Isaiah,
hesitante.
— Eu teria te perguntado se você quer um emprego — respondeu
Isaiah — se eu quisesse?
Xander piscou. Várias vezes.
— Eu vim aqui porque eu preciso falar com você sobre Vincent
Blake — disse ele, como se essa fosse a única coisa que conseguia
dizer dentre as milhares ressoando no seu cérebro.
Isaiah arqueou uma sobrancelha.
— Parece um desejo, mais do que uma necessidade.
— Isso é o que dizem sobre repetir o almoço — respondeu
Xander, voltando a tagarelar —, e é uma grande mentira.
— Quanto ao almoço — disse Isaiah —, concordamos.
Então ele se virou, espiando um carro próximo.
— Eu trabalhei para Blake por pouco mais de dois anos,
começando logo depois de você nascer.
Xander respirou fundo.
— Logo depois que trabalhou para o meu avô?
Isaiah pareceu enrijecer com a menção de Tobias Hawthorne.
— Durante todo o tempo que eu trabalhei para Hawthorne, a
competição tinha tentado me roubar. Toda vez, seu avô melhorava o
meu contrato. Eu tinha vinte e dois anos, era um prodígio, no topo
do mundo... até que não era mais.
Isaiah abriu o capô do carro.
— Depois que Hawthorne me demitiu — continuou —, as ofertas
secaram bem rapidinho. Eu fui de jovem, ousado e voando com um
salário de seis dígitos a intocável do dia para a noite.
— Por causa de Skye — disse Xander, tenso.
Isaiah ergueu o rosto para olhar Xander.
— Eu tomei minhas próprias decisões quanto a sua mãe, Xander.
— E o velho castigou você por elas — respondeu Xander, como
uma criança apertando um hematoma para ver o quanto doía.
— Não foi um castigo — disse Isaiah, e voltou sua atenção para o
carro. — Foi uma estratégia. Eu era um menino de 22 anos tão
cheio de dinheiro que nunca imaginei que ele ia parar de entrar. Eu
tinha gastado a maior parte do que tinha ganhado, então, quando fui
demitido e posto na lista proibida, eu convenientemente não tinha os
recursos para brigar muito pela guarda.
Não foi por causa de Skye. Eu percebi com um susto o que Isaiah
Alexander estava dizendo. Tobias Hawthorne tinha demitido Isaiah
por causa de Xander. Não porque o velho estivesse descontente
com a concepção de seu neto mais novo, mas porque se recusava a
compartilhá-lo.
— Então você só abriu mão do seu filho? — perguntou Rebecca a
Isaiah com dureza.
Ela não era uma pessoa que sabia lutar por si mesma, mas lutaria
por Xander sempre.
— Eu consegui juntar o suficiente para um advogado de terceira
categoria abrir um processo quando Xander nasceu. O tribunal
pediu um teste de paternidade. Mas veja só, ele veio negativo.
Dizia o homem com os olhos de Xander. O sorriso de Xander. O
homem que tinha ouvido a palavra “fluxograma” e perguntado se
Xander o tinha feito em três dimensões.
— Skye me chamou de Alexander.
Xander não era, por natureza, uma pessoa quieta, mas sua voz
estava quase inaudível.
— Eles falsificaram o exame de DNA — acrescentou.
— Eu não podia provar — disse Isaiah a ele. — Eu não podia
chegar perto de você.
Ele mexeu em alguma coisa, então bateu o capô do carro.
— E eu não conseguia um emprego. Daí Vincent Blake.
— Eu não quero falar de Vincent Blake — disse Xander, com
tanta intensidade que eu esperei que começasse a gritar. Em vez
disso, sua voz baixou para um sussurro. — Você está dizendo que
me queria?
Eu pensei no quanto tinha desejado que Toby fosse meu pai em
vez de Ricky Grambs, em Rebecca crescendo invisível e Eve se
mudando no dia em que fizera dezoito anos. Pensei em Libby, com
uma mãe que tinha lhe ensinado que ela merecia um parceiro que a
degradava e controlava, na fome de Jameson e na perfeição
punitiva de Grayson, os dois competindo por uma aprovação que
estava sempre fora de alcance.
Eu pensei em Xander e no medo que ele tivera de vir até aqui.
Você está dizendo que me queria? A pergunta ecoava em volta
de todos nós.
Isaiah respondeu:
— Eu ainda quero.
Xander fugiu. Em um segundo ele estava ali, no seguinte tinha
saído pela porta.
— Nós vamos atrás dele — disse Rebecca, levando Thea com
ela. — Pergunte o que precisar, Avery, porque Xander não
consegue. E não deveria precisar.
A porta bateu atrás de Rebecca e Thea, e eu ergui os olhos para
Isaiah Alexander. Seu filho é maravilhoso, pensei. Você nunca pode
magoá-lo. Mas eu me forcei a me concentrar no motivo para
estarmos ali, nas perguntas que Xander não conseguia fazer.
— Então depois que você foi demitido e posto na lista proibida,
Vincent Blake só surgiu do nada e te ofereceu um emprego?
Isaiah me examinou por tanto tempo que eu me senti com quatro
anos de idade e dez centímetros de altura. Mas o que quer que ele
tenha visto no meu rosto, me rendeu uma resposta.
— Blake chegou em mim no meu ponto mais baixo, me disse que
não tinha medo de Tobias Hawthorne e que, se eu também não
tivesse, nós poderíamos fazer grandes coisas juntos. Ele me
ofereceu uma posição como chefe do novo laboratório de inovação.
Eu tinha liberdade para inventar o que quisesse, desde que fizesse
isso em nome dele. Eu tinha dinheiro de novo. Tinha liberdade.
— Então por que pediu demissão? — perguntei.
Era um chute, mas meu instinto dizia que era um bom chute.
— Eu comecei a notar coisas que não deveria — disse Isaiah,
calmamente. — O padrão está lá se você procurar por ele. Pessoas
que entram no caminho de Vincent Blake... não duram muito.
Acidentes aconteciam. Pessoas desapareciam. Nada que ninguém
pudesse provar. Nada que pudesse ligar Blake, mas, quando notei o
padrão, eu não consegui esquecer. Eu sabia para quem eu estava
trabalhando.
Nós tínhamos ido ali em parte para descobrir do que Vincent
Blake era capaz. Eu finalmente sabia.
— Então eu pedi demissão — disse Isaiah. — Eu peguei o
dinheiro que tinha ganhado, e guardado dessa vez, e comprei esse
lugar para nunca mais ter que trabalhar para outro Vincent Blake ou
Tobias Hawthorne.
O que tinha acontecido com Isaiah não era certo. Nada daquilo
era certo.
Rebecca e Thea reapareceram. Xander não estava com elas.
— Tem uma loja de rosquinhas no fim da rua — disse Rebecca,
ofegante. — O nível da situação é uma dúzia de geleia com creme.
Eu olhei de volta para Isaiah.
— Parece que precisam de você — disse ele, voltando
calmamente a atenção para o carro no qual estava trabalhando. —
Eu estarei aqui.
CAPÍTULO 60

Rebecca e Thea me levaram até a loja de rosquinhas e ficaram


esperando na rua. Eu encontrei Xander sentado sozinho a uma
mesa, empilhando as rosquinhas. Pelas minhas contas, eram cinco.
— Veja só! — declarou Xander. — A torre inclinada de creme
bávaro!
— Onde estão as outras sete rosquinhas? — perguntei,
entendendo a dica dele e não forçando demais logo de cara.
Xander sacudiu a cabeça.
— Eu tenho muitos arrependimentos.
— Você literalmente acabou de pegar mais uma — apontei.
— Eu me arrependeria dessa rosquinha — afirmou Xander
enfaticamente.
Eu suavizei a voz.
— Você acabou de descobrir que a família Hawthorne falsificou
um teste de paternidade para manter seu pai, que te queria, longe
da sua vida. Tudo bem estar com raiva ou devastado, ou...
— Eu não sou excelente em demonstrar raiva, e devastação é
mais coisa de pessoas que param por tempo suficiente pra deixar o
cérebro se concentrar na tristeza. Minha especialidade fica
exatamente na interseção entre entusiasmo sem limites e infinito...
— Xander.
Eu estendi a mão por cima da mesa e peguei a dele. Por um
momento, ele só ficou ali, olhando nossas mãos.
— Você sabe que eu te amo, Avery, mas não quero falar sobre
isso.
Xander puxou sua mão de baixo da minha.
— Eu não quero ter que te explicar o que eu não quero te explicar.
Eu só quero terminar essa rosquinha, e depois comer suas quatro
melhores amigas rosquinhas também, e me parabenizar por
provavelmente não vomitar.
Eu não disse mais uma palavra. Só fiquei ali com ele até Oren
aparecer na minha visão periférica. Ele inclinou a cabeça para a
direita. Xander e eu tínhamos sido notados, provavelmente por um
morador local, mas, quando se tratava da família Hawthorne e da
herdeira Hawthorne, nada ficava local por muito tempo.

Eu voltei para a oficina de Isaiah.


— Você quer que a gente espere lá fora? — perguntei a Xander.
— Não. Eu só quero que você me dê aquele disco de metal —
respondeu Xander. — Imagino que esteja com ele.
Estava comigo e o dei a ele, porque naquele momento teria feito
qualquer coisa que Xander quisesse.
Ele abriu a porta e voltou devagar até o carro no qual Isaiah
estava trabalhando.
— Eu preciso te perguntar duas coisas. Primeiro, o que você
pensa de máquinas de Rube Goldberg?
— Nunca fiz uma — respondeu Isaiah, e olhou nos olhos de
Xander. — Mas tendo a pensar que precisam de catapultas.
Xander assentiu, como se fosse uma resposta aceitável.
— Segundo, você já viu algo parecido com isso antes?
Ele estendeu o disco para Isaiah, os dois muito mais altos que
qualquer outra pessoa ali.
Isaiah pegou o disco de Xander.
— Onde raios vocês arranjaram isso?
— Você sabe o que é — disse Xander, os olhos brilhando. —
Algum tipo de artefato?
— Artefato?
Isaiah sacudiu a cabeça, devolvendo o disco para Xander, que o
devolveu para mim.
— Não — continuou. — Isso é o cartão de visitas do sr. Blake. Ele
sempre chamou de brasão da família.
Eu pensei no selo de cera no envelope da última mensagem, que
tinha o mesmo símbolo.
— Eu acho que ele tinha, o quê, umas cinco dessas moedas? —
continuou Isaiah. — Se você tivesse um desses selos, significava
que tinha a bênção de Blake para brincar no império dele como
quisesse... até desagradá-lo. Se isso acontecesse, tiravam o selo de
você junto com o status e o poder. Era como Blake mantinha a
família em rédeas curtas. Toda pessoa que tinha uma gota do
sangue dele ou da mulher falecida dele lutou com unhas e dentes
para ganhar um desses.
Eu considerei as implicações.
— Só família?
— Só família — confirmou Isaiah. — Sobrinhos, sobrinhos-netos,
primos de primeiro grau.
— E o filho de Blake? — perguntei.
Nan tinha mencionado que ele tinha um filho.
— Eu ouvi falar de um filho — respondeu Isaiah. — Mas ele foi
embora anos antes de eu aparecer.
O filho pródigo, pensei de repente, uma onda de adrenalina
correndo pelas veias.
— Como assim, o filho de Vincent Blake foi embora? — perguntei
a Isaiah.
— Foi isso — disse Isaiah, e olhou fixamente para mim. — O filho
foi embora a certa altura e não voltou. É parte do que tornou os
selos tão valiosos. Não havia nenhum herdeiro direto para a fortuna
da família. Diziam as más línguas que, quando Blake morresse,
qualquer um que tivesse um desses — Isaiah apontou com a
cabeça para o disco — levaria uma parte.
Isaiah tinha dito que eram cinco selos. Isso significava que o disco
nas minhas mãos valia algo em torno de cem milhões de dólares.
Eu pensei em Toby e nas instruções que ele tinha deixado para
minha mãe sobre ir até Jackson se ela precisasse de alguma coisa.
Você sabe o que deixei lá, ele tinha escrito. Você sabe o que vale.
— Mais de vinte anos atrás, Toby Hawthorne roubou isso do pai
— falei, e encarei o selo, as camadas de anéis concêntricos. — Mas
por que Tobias Hawthorne tinha um dos selos da família Blake? De
jeito nenhum Blake estava planejando deixar um quinto da fortuna
para um bilionário que o tinha traído.
Isaiah deu de ombros, mas havia algo duro no gesto, como se ele
se recusasse a dar a Tobias Hawthorne ou Vincent Blake qualquer
espaço na sua cabeça.
— Eu já disse o que sei. E preciso voltar ao trabalho — falou, e
olhou para Xander. — A menos que...
Por um momento, eu ouvi a mesma incerteza no tom dele que eu
tinha ouvido em Xander quando eu perguntara a ele sobre o arquivo
de seu pai.
— Eu quero conversar — disse Xander, as palavras apressadas.
— Eu quero, quer dizer, se você quiser.
— Certo, então — disse Isaiah.
O restante de nós estava prestes a sair pela porta quando
Rebecca parou e se virou.
— Qual era o nome do filho de Vincent Blake? — perguntou, um
tom estranho em sua voz.
— Faz muito tempo — disse Isaiah, mas então olhou de volta
para Xander e suspirou. — Só me deixe pensar um minuto... Will —
falou Isaiah, e estalou os dedos. — O nome do filho era Will Blake.
Will Blake. Por um segundo eu não estava mais na oficina de
Isaiah. Eu estava na ala de Toby na Casa Hawthorne, lendo um
poema inscrito no metal.
William Blake. “Uma árvore de veneno”.
CAPÍTULO 61

E se Toby não tivesse escolhido o poema apenas por causa das


emoções que expressava? E se os segredos e mentiras sobre os
quais ele tinha escrito fossem além da adoção secreta?
Por que Tobias Hawthorne tinha aquele selo?
Rebecca, Thea e eu demos a Xander tempo com seu pai. O
restante de nós esperou na SUV. Eu fiz Oren virar a esquina; assim,
se os paparazzi aparecessem na loja de rosquinhas, iriam notar
minha SUV, não a oficina de Isaiah. Enquanto esperávamos, minha
mente corria. William Blake. O selo da família Blake. Vingança.
Revanche. Vendeta. Vingador.
Quando Xander entrou na SUV, não disse uma palavra sobre o pai.
— Manda ver nesses pensamentos pensadores — me disse ele.
Eu o analisei por um momento. Seus olhos castanhos estavam
firmes e brilhantes, então obedeci.
— O que Vincent Blake está fazendo agora, sequestrar Toby,
jogar comigo... Não acho que nada disso seja por causa de uma
patente registrada cinquenta anos atrás.
O número da patente tinha nos contado com quem estávamos
lidando. Nós tínhamos presumido que também tinha nos dado o
motivo, mas estávamos errados.
— Eu acho que isso é por causa do filho de Vincent Blake — falei.
— O filho pródigo — murmurou Xander. — Will Blake.
Um jovem perdulário. A voz peculiar de Vincent Blake ressoou na
minha mente. Vagando pelo mundo, ingrato. Um pai benevolente,
pronto para recebê-lo em casa. Mas, se a minha memória não falha,
há três personagens nessa história...
Tudo apontava para a terceira pessoa da história ser Tobias
Hawthorne. Se fosse o caso, talvez Xander estivesse errado.
— E se Will não for o pródigo? — falei. — No telefone, Blake
enfatizou que há três personagens na parábola do filho pródigo. O
pai...
— Vincent Blake — completou Thea.
Eu fiz que sim.
— O filho que trai a família, pega o dinheiro e foge... e se esse
não for o filho de verdade de Vincent Blake? E se for o homem que
ele tinha trazido para dentro da família? O jovem Tobias Hawthorne.
Nan disse que o filho de Blake era mais novo na época, quinze
quando seu avô tinha... — comecei, e fiz as contas. — Vinte e
quatro.
— Aos quinze anos, o filho de Vincent Blake podia não ter idade
para deter um desses selos — disse Xander, pensando alto —, mas
tinha idade para testemunhar a traição.
Todo meu corpo estava vivo e alerta, horrorizado e fascinado.
— Testemunhar a traição — ecoei — e se perguntar por que seu
pai tinha deixado um zé-ninguém ferrar com ele e ainda roubar
milhões?
Isso colocava Will Blake na posição de filho que tinha ficado, o
bom filho, chateado com a traição do filho pródigo ser
recompensada em vez de punida.
Há três personagens na história do filho pródigo, não é?
Vingança. Revanche. Vendeta. Vingador.
Eu sempre venço no final.
— A questão é — disse Xander —: por que Toby deixou um
poema de um poeta chamado William Blake escondido em sua ala,
anos atrás?
— E quais são as chances — acrescentei, um pensamento
saltando no meu cérebro — de que Will tivesse um dos selos da
família Blake quando desapareceu?
Se o selo em posse de Tobias Hawthorne tinha pertencido ao filho
de Vincent Blake...
Parecia que estávamos correndo na direção de um penhasco.
— Quando Will Blake sumiu?
Rebecca não estava olhando para nenhum de nós. A luz vinda da
janela batia no cabelo dela. Seu tom era rouco e intenso.
Eu peguei o celular e fiz uma busca. Então mais uma. Finalmente,
eu tive certeza: na última vez em que Vincent Blake tinha sido
fotografado publicamente com o filho, Will tinha vinte e poucos anos.
— Quarenta anos atrás? — estimei. — Mais ou menos.
Rebecca...
— Will é um apelido para William — disse Rebecca, sugando até
a última molécula de oxigênio do carro. — Mas outro apelido é Liam.
CAPÍTULO 62

Mallory Laughlin não tinha revelado muita coisa a respeito do


homem que a tinha engravidado. Ela tinha dito que ele era mais
velho, muito charmoso. Que seu nome era Liam. E quando Eve
tinha perguntado o que havia acontecido com Liam, tudo que ela
dissera foi que ele tinha ido embora.
Se Liam fosse Will Blake…
Se ele tivesse procurado uma menina de dezesseis anos vivendo
na Casa Hawthorne...
Se tivesse engravidado a menina...
E se Will não fosse visto havia mais de quarenta anos... mais ou
menos...
Perguntas se somavam na minha cabeça. Toby sabia ou
suspeitava que Will Blake era seu pai biológico? Vincent Blake sabia
que Toby era seu neto? É por isso que ele o sequestrou? E se o
selo que Toby tinha roubado do pai realmente pertencesse ao filho
de Vincent Blake... como tinha ido parar na mão de Tobias
Hawthorne, para começo de conversa?
O que aconteceu com Will Blake?
Se mais cedo estávamos correndo em direção ao precipício,
nesse momento eu já estava em queda livre.
Assim que chegamos à Casa Hawthorne e saí correndo da SUV,
Jameson estava ali. Ele parou a centímetros de mim, intensidade
emanando de seu corpo. Tudo que tínhamos descoberto estava
prestes a sair da minha boca quando ele falou:
— Qual o seu problema, Herdeira?
Eu o encarei, incredulidade dando lugar à raiva que ferveu e
explodiu de mim.
O meu problema? Foi você quem me trancou no desafio de
escape mais caro do mundo!
— Para te manter segura — enfatizou Jameson. — Vincent Blake
é poderoso, tem conexões e vai continuar indo atrás de você, Avery,
porque é você quem detém as chaves do reino. E eu não sei se ele
quer o que você tem ou se quer botar fogo em tudo, mas, de
qualquer forma, como eu posso te manter segura se você não me
deixar?
Eu sabia que Jameson me amava, e isso me irritava, porque
nosso amor não devia ser assim.
— Você não tem que me manter nada! — disparei.
Ele tentou desviar o olhar, mas eu não deixei.
— Me pergunte o que descobrimos.
Ele não perguntou.
— Me pergunte, Jameson.
Eu conseguia ver a vontade nele, vê-lo lutar consigo mesmo.
— Me prometa primeiro.
— Prometer o quê? — perguntei.
— Que você vai tomar mais cuidado. Que eu não vou chegar em
casa e descobrir que você sumiu de novo.
Eu não sabia bem como dizer aquilo de um jeito que ele
acreditasse, então espalmei as mãos em seu peito e encarei
aqueles olhos verdes que eu conhecia melhor que quaisquer outros.
— Eu não vou ficar trancada aqui, e não é seu papel me trancar.
Eu não preciso da sua proteção.
— É isso que você quer!
Jameson soava como se as palavras tivessem sido arrancadas
dele. Respirando com dificuldade, ele enroscou os dedos nos meus.
— É o que você sempre quis — falou. — Um babaca arrogante e
com senso de dever que tenta ser honrado e morreria para proteger
a garota que ama.
Eu congelei. Logicamente, eu sabia que meu coração ainda
estava batendo. Que eu ainda estava respirando. Mas não parecia.
Eu enxergava os outros pela visão periférica, mas não conseguia
me mexer, não conseguia pedir a Jameson para baixar a voz, não
conseguia me concentrar em mais nada além do verde dos olhos
dele, nas linhas do seu rosto.
— Eu não sou Grayson — me disse ele, destroçado pelas
palavras.
— Eu não quero que você seja — falei, em súplica, sem nem
saber bem pelo quê.
— Quer, sim — insistiu Jameson, o tom de voz baixo. — E nem
importa, porque isso não é pose, Herdeira. Eu não estou brincando
de ser superprotetor nem fingindo que, pela primeira vez na vida,
quero fazer a coisa certa.
Ele levou a mão ao meu rosto, então para a minha nuca, e senti o
toque dele em cada centímetro do meu corpo.
— Eu te amo — falou. — Eu morreria para te proteger. Eu te faria
me odiar para te proteger, porque cacete, Avery... algumas coisas
são preciosas demais para apostar.
Jameson Winchester Hawthorne me amava. Ele me amava e eu o
amava. Mas eu não sabia como fazê-lo acreditar que, quando eu
dizia que não queria que ele fosse Grayson, eu estava falando a
verdade.
— Isso é quem eu quero ser — disse Jameson, rouco —, por
você.
Eu desejei, de repente, que não estivéssemos no gramado da
Casa Hawthorne. Que fosse meu aniversário de novo ou que a
marca de um ano já tivesse passado, e estivéssemos do outro lado
do mundo, vendo de tudo, fazendo de tudo, tendo tudo. Eu desejei
que Toby nunca tivesse sido sequestrado, que Vincent Blake não
existisse, que Eve nunca tivesse aparecido...
Eve, pensei de repente, e então percebi algo que deveria ter
notado muito mais cedo. Se o filho de Vincent Blake fosse pai de
Toby, isso tornava Eve a bisneta do homem.
Eve e Vincent Blake são parentes. As palavras explodiram na
minha cabeça como uma bomba. Eu pensei em Eve me contando
do teste de DNA pelo correio, na forma como tinha conquistado minha
confiança porque eu achara entender a importância de Toby para
ela, como deveria ser finalmente se sentir desejada, finalmente ter
uma família que a queria.
Mas e se essa família não fosse Toby?
E se outra pessoa a tivesse encontrado primeiro?
Eu pensei em quando mostrara a ela a ala de Toby, o momento
em que tinha mencionado “A árvore de veneno” e dito o nome do
poeta: William Blake. Eve tinha caído de joelhos e lido o poema sem
parar. Ela reconheceu o nome.
— Herdeira.
Jameson ainda estava me olhando e eu soube, só pelo toque leve
dos polegares nas minhas maçãs do rosto, que ele sabia que minha
mente tinha voado. Ele não me culpou. Não me pediu mais nada.
Tudo que ele disse foi:
— Me conte.
Então eu contei.
E ele me contou que Eve estava no Chalé Wayback. Com
Grayson.
CAPÍTULO 63

Oren e dois de seus funcionários levaram Jameson e eu ao Chalé


Wayback. Rebecca não foi conosco, não quis ir conosco. Thea e
Xander ficaram com ela.
Eu toquei a campainha sem parar até a sra. Laughlin abrir.
— Grayson e Eve — falei, tentando soar mais calma do que me
sentia. — Eles estão aqui?
A sra. Laughlin me deu um olhar que provavelmente já tinha sido
usado com gerações de crianças Hawthorne.
— Estão na cozinha com a minha filha.
Eu fui até lá, Jameson atrás de mim, Oren diretamente a minha
esquerda, seus seguranças alguns passos atrás dele. Encontramos
Eve sentada a uma velha mesa de madeira, em frente a Mallory.
Grayson estava de pé atrás de Eve, como um anjo da guarda
desgarrado.
Eve virou o rosto para nós e me perguntei se eu estava
imaginando a expressão maliciosa nos olhos dela, imaginando-a
examinando a situação, me examinando, antes de falar.
— Alguma atualização?
Uma, pensei. Eu sei que você é parente de Vincent Blake.
— Eu tentei ir buscar Toby — continuou Eve, atenta —, mas não
consegui. Alguém me trouxe de volta.
Esse alguém estava muito perto dela.
— Grayson — eu disse. — Eu preciso falar com você.
Eve se virou para olhar para ele. Havia algo delicado na forma
como o cabelo dela caía pelo ombro, algo quase hipnotizante na
forma como ela ergueu os olhos para ele.
— Grayson — repeti, minha voz urgente e baixa.
Jameson não me deu a chance de falar o nome do irmão uma
terceira vez.
— Avery descobriu algo que você precisa saber. Lá fora, Gray.
Agora.
Grayson andou na nossa direção. Eve veio junto.
— O que você descobriu? — perguntou ela.
— O que você espera que eu tenha descoberto... ou que eu não
tenha descoberto?
Eu não pretendia dizer aquilo em voz alta, mas, quando escapou,
notei a reação dela.
— O que isso quer dizer? — estourou Eve, algo como mágoa
passando por seu rosto.
Foi tudo fingimento? Esse tempo todo... foi tudo fingimento? Meu
olhar foi até a corrente em volta do pescoço dela e voltei para o
momento em que ela tinha saído do meu banheiro usando nada
além de uma toalha e um medalhão. Por que Eve, que tinha
insistido em ter passado a vida inteira sem ninguém, usaria um
medalhão?
O que estava dentro dele?
Um pequeno disco de metal. Isaiah tinha dito que eram cinco, que
Vincent Blake os dava exclusivamente para a família. E Eve era da
família.
— Abra seu medalhão — falei, dura. — Me mostre o que está
dentro dele.
Eve ficou muito quieta. Eu me mexi, estendendo o braço na
direção dele, mas Grayson pegou minha mão. Ele me lançou um
olhar frio como uma lasca de gelo.
— O que você está fazendo, Avery?
— Vincent Blake tinha um filho.
Eu não queria fazer aquilo ali, na frente de Mallory e da sra.
Laughlin, mas já era.
— O nome dele era Will — continuei. — Eu acho que ele era o pai
de Toby. E isso? — falei, e puxei o selo da família Blake, o que tinha
estado com Toby quando ele desaparecera. — Era com quase toda
certeza de Will. Blake os dava para membros da família de quem ele
gostava.
Eu sentia Eve me observar. O rosto dela estava imóvel... muito
cuidadosamente imóvel.
— Não é mesmo, Eve? — perguntei.
— Você não tem o direito — estourou a voz aguda de Mallory
Laughlin — de vir aqui e dizer nada disso. Nada disso.
Ela olhou para além de mim, para a sra. Laughlin.
— Você vai ficar aí parada e deixar ela fazer isso? — exigiu, a voz
subindo uma oitava. — Essa é a sua casa!
— Eu acho que seria melhor — me disse a sra. Laughlin, rígida —
você ir embora.
Eu tinha passado um ano conquistando ela e o restante da
equipe. Eu tinha ido de inimiga desconhecida para aceita. Não
queria perder aquilo, mas não podia recuar.
— Ele se apresentou como Liam — eu disse baixo, olhando para
Mallory. — Ele não disse à senhora quem realmente era... ou por
que estava aqui.
A sra. Laughlin deu um passo na minha direção.
— Você precisa ir.
— Will Blake foi atrás da sua filha — eu disse, me virando para a
mulher que tinha servido como governanta da propriedade durante
quase toda sua vida. — Ele devia ter uns vinte e poucos anos. Ela
só tinha dezesseis. Ela trouxe ele escondido para a propriedade...
até mesmo para dentro da Casa — continuei. — Provavelmente foi
ideia dele.
Uma expressão de dor forçou a sra. Laughlin a fechar os olhos.
— Pare com isso — implorou ela. — Por favor.
— Eu não sei o que aconteceu — prossegui —, mas sei que Will
Blake não é visto desde então. E, por algum motivo, a senhora e
seu marido deixaram que os Hawthorne adotassem seu neto e o
fizessem passar por filho deles, mesmo para a mãe do bebê.
Um ruído agudo escapou da garganta de Mallory.
— A senhora estava tentando protegê-los, não estava? —
perguntei suavemente para a sra. Laughlin. — Sua filha e Toby.
Estava tentando protegê-los de Vincent Blake.
— Do que ela está falando?
Eve voltou para Mallory, então se abaixou, inclinando a cabeça de
forma a olhar diretamente nos da avó biológica.
— Você precisa me contar a verdade — continuou. — Inteira. Seu
Liam... ele não foi só embora, foi?
Então vi o que ela estava fazendo... o que vinha fazendo.
— É por isso que você está aqui — notei. — O que Vincent Blake
ofereceu se você levasse respostas para ele?
— Já chega — me disse Grayson, duro.
— Não chega mesmo, não — respondeu Jameson, queimando ao
meu lado.
— Você sabe o que esse colar significa para mim, Grayson —
disse Eve, o punho cobrindo o medalhão. — Você sabe por que eu o
uso. Você sabe, Grayson.
— Não confie em ninguém — eu disse, meu tom confrontando o
dela. — Foi essa a mensagem do velho. Sua última mensagem,
Gray. Porque, se Eve está aqui, Vincent Blake pode não estar muito
longe.
Eve virou o corpo para o de Grayson, cada movimento um estudo
de graça e fúria.
— Quem se importa com a mensagem final de Tobias Hawthorne?
— perguntou, sua voz falhando no final da pergunta. — Ele não me
queria, Grayson. Ele escolheu Avery. Eu nunca seria suficiente para
ele. Você sabe como isso é, Gray. Melhor do que qualquer um...
você sabe.
Eu o sentia deslizar por entre meus dedos, mas não podia parar
de lutar.
— Você insistiu para perguntarmos a Skye sobre o selo — eu
disse, encarando Eve. — Você anda procurando segredos
profundos e sombrios da família Hawthorne. Você insistiu sem parar
por respostas sobre o pai de Toby...
Uma única lágrima rolou pelo rosto de Eve.
— Avery.
Eu reconheci o tom de Grayson. Era o menino que tinha sido
criado como herdeiro. O que não precisava sujar as mãos para
colocar um adversário no lugar.
Eu voltei a ser sua inimiga, Gray?
— Eve não te fez nada — cortou a voz de Grayson, como um
bisturi de cirurgião. — Mesmo que o que esteja dizendo sobre os
pais de Toby seja verdade, Eve não tem culpa da família dela.
— Então a faça abrir o medalhão — eu disse, minha boca seca.
Eve andou na minha direção. Quando ela chegou a três passos
de distância, Oren se mexeu.
— É perto o suficiente.
Sem dizer uma palavra para ele ou para qualquer um, Eve abriu o
medalhão. Dentro dele havia a foto de uma menininha. Eve, eu
percebi. Seu cabelo estava curto e torto, e o rosto, magro.
— Ninguém gostava dela — disse Eve. — Ninguém teria colocado
uma foto dela em um medalhão.
Eve me olhou nos olhos e, embora parecesse vulnerável, eu
pensei ter visto algo por baixo daquela vulnerabilidade.
— Então eu uso isso como um lembrete — continuou —: mesmo
se ninguém mais me amar, eu posso. Mesmo que ninguém mais me
ponha em primeiro lugar, eu posso.
Ela estava ali admitindo que se colocaria em primeiro lugar, mas
era como se Grayson não conseguisse enxergar.
— Chega — ordenou ele. — Você não é assim, Avery.
— Talvez, Gray — respondeu Jameson —, você não a conheça
tão bem quanto acha.
— Saiam! — trovejou a sra. Laughlin. — Saiam, todos vocês!
Nenhum de nós se mexeu, e a mulher estreitou os olhos.
— Essa é a minha casa. O sr. Hawthorne nos deu a ocupação
vitalícia e gratuita.
A sra. Laughlin olhou para a filha, então para Eve, e finalmente se
virou para mim.
— Você pode me despedir, mas não pode me despejar, e você vai
sair da minha casa.
— Lottie — disse Oren, baixo.
— Nada de Lottie, John Oren — disse a sra. Laughlin, e o fuzilou
com o olhar. — Leve sua garota, leve os meninos... e saia daqui.
CAPÍTULO 64

— Qual o seu problema? — explodiu Grayson assim que saímos.


— Você ouviu uma palavra do que eu disse lá dentro? —
perguntei, meu coração quebrando como vidro estilhaçado,
pedacinho por pedacinho. — Você ouviu o que ela disse? Ela vai se
colocar em primeiro lugar, Grayson. Ela odeia seu avô. Nós não
somos a família dela. Blake é.
Grayson parou de andar na direção da SUV. Ele ficou rígido,
cuidando das abotoaduras da camisa e limpando uma poeira
imaginária da lapela do terno.
— Claramente — disse ele, em tom quase régio —, eu me
enganei quanto a você.
Senti como se ele tivesse jogado água fria no meu rosto. Como se
tivesse me batido.
E então eu vi Grayson Hawthorne ir embora.
Um cara que acha que sabe de tudo, eu me ouvi dizer uma vida
inteira atrás.
Uma garota de língua afiada.
Eu ouvia Grayson me dizer que eu tinha um rosto expressivo,
dizer a Jameson que eu era uma deles, em latim para que eu não
entendesse. Eu sentia Grayson corrigir minha pegada em uma
espada, o via pegar meu broche Hawthorne antes que caísse no
chão. Eu o via deslizar um diário encadernado à mão pela mesa de
jantar.
— Oren pode colocar homens vigias no chalé — disse Jameson
ao meu lado.
Ele sabia o quanto eu estava sofrendo, mas fez a gentileza de
fingir que não.
— Se Eve for uma ameaça — continuou —, podemos contê-la.
Eu me virei para olhá-lo.
— Você sabe que isso não é por causa de Grayson e eu — falei,
me forçando a esquecer a imagem de Grayson indo embora. — Me
diga que você sabe disso, Jameson.
— Eu sei — respondeu ele — que eu te amo e que, por mais
improvável que seja, você me ama.
O sorriso de Jameson estava menor, mas não menos torto do que
o normal.
— Eu também sei que Gray é o melhor de nós dois — continuou.
— Ele sempre foi. O filho melhor, o neto melhor, o Hawthorne
melhor. Eu acho que é por isso que eu queria tanto que Emily me
escolhesse. Pela primeira vez, eu queria ser o escolhido. Mas
sempre foi ele, Herdeira. Eu era uma brincadeira para ela. Ela
amava ele.
— Não — falei, e sacudi a cabeça. — Ela não amava. Não é
assim que se trata as pessoas que se ama.
— Você não trata assim — respondeu Jameson. — Você é
honrada, Avery Kylie Grambs. Quando você ficou comigo, ficou
comigo. Você me ama, com as cicatrizes e tudo. Eu sei disso,
Herdeira. Eu sei.
Ao dizer aquelas palavras, Jameson dizia a verdade. Ele
acreditava nelas.
— É tão horrível — continuou — que eu queira ser um homem
melhor para você?
Eu pensei na nossa briga.
— Melhor é ser meu amigo e meu parceiro e perceber que não
pode tomar decisões por mim. Melhor é você fazer eu me ver como
uma pessoa capaz de qualquer coisa. Eu saltaria de um avião com
você, Jameson, faria snowboard na encosta de um vulcão com
você, apostaria tudo que eu tenho em você, em nós, contra o
mundo. Você não pode fugir e assumir riscos e esperar que eu fique
para trás em uma gaiola de ouro que você criou. Não é isso que
você é, e não é isso o que eu quero.
Eu não sabia como dizer aquilo de forma que ele realmente me
ouvisse.
— Você — falei, me aproximando — sempre me tornou ousada. É
você quem me tira da minha zona de conforto.Você não pode me
empurrar de volta agora.
Jameson me olhou como se estivesse tentando memorizar cada
detalhe do meu rosto.
— Eu esqueci Emily — disse ele. — Gray, não. E eu sei, no fundo
da alma, que, se tivesse, ele poderia ter te amado. Ele teria amado.
Com tudo que você é, Herdeira, que outra escolha ele teria?
— Sempre vai ser você — eu disse a Jameson.
Ele precisava ouvir aquilo. Eu precisava dizer, mesmo que sempre
passasse por cima de tanta coisa.
Em resposta, Jameson me deu outro sorriso torto.
— É em momentos assim, Herdeira, que eu queria não ter me
apaixonado por uma garota tão boa de blefe.

***

Jameson foi embora, como Grayson tinha feito.


— Vamos te levar de volta para a Casa — disse Oren.
Ele não ofereceu nenhum comentário a respeito do que tinha
acabado de acontecer.
Eu não me permiti pensar em Jameson ou Grayson. Em vez
disso, pensei no resto, no filho perdido de Vincent Blake, em
vingança e nos jogos que Blake nunca ia parar de jogar comigo. As
notícias nos tabloides, os paparazzi, agressões financeiras de todos
os cantos, a tentativa de esburacar minha equipe de segurança,
todo o tempo me provocando por estar com Toby.
Pistas e mais pistas.
Charadas e mais charadas.
Eu estava farta. Quando voltei para a Casa, fui pegar o celular
que Blake tinha me mandado. Liguei para o único número dele que
eu tinha e, como ele não atendeu, comecei a fazer outras ligações,
do meu telefone verdadeiro — para todas as pessoas que tinham
recebido um almejado convite para o camarote de proprietária do
meu time de futebol americano, para cada jogador na sociedade
texana que tinha tentado se aproximar de mim em um baile
beneficente, para cada pessoa que queria meu investimento em
uma oportunidade financeira.
Dinheiro atraía dinheiro. Poder atraía poder. E eu estava cansada
de esperar pela próxima pista.
Levou algum tempo, mas encontrei alguém que tinha o celular de
Vincent Blake e estava disposto a me dar sem fazer perguntas. Meu
coração batia com a força de um soco no peito quando disquei o
número.
Quando Blake atendeu, nem me dei ao trabalho de fingir.
— Eu sei de Eve. Eu sei do seu filho.
— Sabe?
Perguntas e charadas e jogos. Chega.
— O que você quer? — perguntei.
Eu me perguntei se ele conseguia ouvir minha raiva e cada grama
de emoção enterrada por baixo.
Eu me perguntei se isso o fazia pensar que estava ganhando.
— O que eu quero, Avery Kylie Grambs? — disse Vincent Blake,
que parecia estar achando graça. — Adivinhe.
— Eu cansei de adivinhar.
Silêncio me respondeu do outro lado da linha, mas ele ainda
estava lá. Ele não desligou. E não seria eu quem ia quebrar o
silêncio.
— Não é óbvio? — disse Blake, finalmente. — Eu quero a
verdade que Tobias Hawthorne escondeu de mim durante todos
esses anos. Eu quero saber o que aconteceu com meu filho. E eu
quero que você, Avery Kylie Grambs, escave o passado e me traga
o corpo dele.
CAPÍTULO 65

Vincent Blake acreditava que o filho estava morto. Ele acreditava


que o corpo estava ali. Pensei no selo da família Blake, no fato de
que Toby o tinha roubado, na reação do pai quando ele tinha feito
isso.
Você sabe o que deixei lá, Toby tinha escrito para minha mãe
havia muito tempo. Você sabe o que vale. Um Toby adolescente
tinha roubado o selo e deixado uma cópia de “Uma árvore de
veneno”, de William Blake, escondida para que o pai encontrasse.
— Ele queria que você soubesse que ele sabia a verdade.
Parecia de alguma maneira adequado me dirigir a Tobias
Hawthorne. Era o legado dele.
Tudo aquilo.
— O que você fez — sussurrei — quando descobriu o filho de
Vincent Blake na sua propriedade?
Quando percebera que um homem tinha vindo atrás dele por meio
de uma menina de dezesseis anos. A menina podia ter se
acreditado apaixonada, mas Tobias Hawthorne não teria visto assim.
Will Blake tinha vinte e tantos anos. Mallory, só dezesseis.
E, diferente de Vincent Blake, Tobias Hawthorne não acreditava
que garotos eram assim mesmo.
O que aconteceu com ele?, ouvi Eve perguntar. Seu Liam. E tudo
que Mallory Laughlin dissera foi: Liam foi embora.
Por que ele foi embora?
Ele só foi.
Eu comecei a caminhar e acabei na antiga ala de Toby, lendo os
versos de “Uma árvore de veneno” e o diário que Toby tinha mantido
em tinta invisível nas paredes. Entendi a raiva do jovem Toby de
uma forma que não entendia antes. Ele sabia de alguma coisa.
Sobre o pai.
Sobre o motivo pelo qual a adoção tinha sido mantida em
segredo.
Sobre Will Blake e a decisão de esconder o único neto de um
homem perigoso à vista de todos. Eu pensei no poema de Toby, o
que tínhamos decifrado meses antes.

Mentiras, segredos,
têm meu desprezo.
Veneno é a árvore,
percebeu?
Envenenou S e Z e eu.
O tesouro conseguido
está no buraco mais escondido.
A luz revelará tudo
eu escrevi no...

— Muro — completei, como tinha feito antes.


Mas dessa vez meu cérebro estava vendo tudo por novas lentes.
Se Toby sabia o que o selo era quando o roubara, ele sabia quem
Will Blake era, quem Vincent Blake era. E se Toby sabia disso...
Do que mais sabia?
O tesouro conseguido
Está no buraco mais escondido.
Quando eu recitara o poema para Eve, ela tinha me perguntado
revelará o quê?. Ela estava procurando respostas, provas. Um
corpo, pensei. Ou, sendo mais realista, a essa altura, ossos. Mas
Eve ainda não tinha encontrado nada. Se tivesse, Blake não teria
dado a tarefa para mim.
Eu quero a verdade que Tobias Hawthorne escondeu de mim
durante todos esses anos. Eu quero saber o que aconteceu com
meu filho.
A Casa Hawthorne estava cheia de lugares escuros:
compartimentos escondidos, passagens secretas, túneis enterrados.
Talvez Toby só tivesse encontrado o selo. Ou talvez tenha
encontrado restos humanos. Pensar nisso era horrível, porque parte
de mim já suspeitava, lá no fundo, que era isso que estávamos
procurando, antes mesmo de Vincent Blake me dizer.
O filho dele tinha ido para lá. Ele tinha ido atrás de uma criança
sob a proteção de Tobias Hawthorne. Na casa dele.
Onde um homem como Tobias Hawthorne esconderia um corpo?
Oren tinha se livrado do corpo de Sheffield Grayson; de que
forma, eu não tinha certeza. Mas o filho de Vincent Blake tinha
desaparecido muito antes de Oren começar a trabalhar para o
velho. Naquela época, a fortuna Hawthorne era nova e
consideravelmente menor. Tobias Hawthorne provavelmente nem
tinha segurança.
Naquela época, a Casa Hawthorne era só mais uma mansão.
Tobias Hawthorne acrescentava algo todo ano. A ideia grudou na
minha mente; meu coração pulsou pelas veias.
E, de repente, eu soube por onde começar.

Peguei as plantas que o sr. Laughlin tinha me dado. Cada uma


detalhava um acréscimo que Tobias Hawthorne tinha feito à Casa
Hawthorne nas décadas desde que ela tinha sido construída. A
garagem. O spa. O cinema. A pista de boliche. Desenrolei planta
atrás de planta, projeto atrás de projeto. A parede de escalada. A
quadra de tênis. Encontrei projetos de gazebo, cozinha externa,
estufa e muito mais.
Pense, eu disse para mim mesma. Havia camadas de propósito
em tudo que Tobias Hawthorne havia feito, tudo que tinha
construído. Eu pensei no compartimento no fundo da piscina, nas
passagens secretas da Casa, nos túneis por baixo da propriedade,
em tudo aquilo.
Havia milhares de lugares onde Tobias Hawthorne podia ter
escondido seu segredo mais profundo. Se eu encarasse aquilo
aleatoriamente, não ia chegar a lugar nenhum. Precisava ser lógica.
Sistemática.
Coloque as plantas em ordem cronológica, pensei.
Apenas algumas plantas tinham os anos marcados, mas cada
conjunto mostrava como o acréscimo proposto seria integrado à
Casa ou à propriedade em volta. Eu precisava encontrar a primeira
planta, aquela em que a Casa estava em sua versão menor e mais
simples, e partir daí.
Examinei página a página até encontrar: a Casa Hawthorne
original. Devagar, com cuidado, arrumei o restante das plantas em
ordem. Quando amanheceu, eu tinha terminado metade, mas já era
suficiente. Com base nos poucos conjuntos que tinham datas,
consegui calcular os anos do resto.
Eu tinha me concentrado na pergunta errada quando estava na
ala de Toby. Não onde Tobias Hawthorne teria escondido um corpo
— quando? Eu sabia o ano em que Toby tinha nascido, mas não o
mês. Isso me permitiu separar dois conjuntos de projetos.
No ano anterior ao nascimento de Toby, Tobias Hawthorne tinha
construído a estufa.
No ano do nascimento de Toby, tinha sido a capela.
Eu pensei em Jameson dizendo que seu avô tinha construído a
capela para Nan gritar com Deus, e então pensei na resposta de
Nan. Aquele velho gagá ameaçou me construir um mausoléu no
lugar.
E se não tivesse sido uma ameaça? E se Tobias Hawthorne só
tivesse decidido que era óbvio demais?
Onde um homem como Tobias Hawthorne esconderia um corpo?
CAPÍTULO 66

Passando pelos arcos de pedra da capela, eu examinei o espaço:


os bancos delicadamente esculpidos, os vitrais elaborados, um altar
de mármore branco puro. Cedo assim, a luz entrava do leste,
banhando todo o espaço nas cores dos vitrais. Eu estudei cada
painel, procurando por algo.
Uma pista.
Nada. Passei pelos bancos. Eram só seis. O trabalho de
carpintaria era cativante, mas, se escondia algum segredo —
compartimentos disfarçados, um botão, instruções —, eu não
consegui encontrá-lo.
Isso me deixou com o altar. Ele chegava até o meu peito e tinha
um pouco mais de um metro e oitenta de comprimento e uns
noventa centímetros de profundidade. Em cima do altar havia um
candelabro, uma Bíblia dourada e brilhante, e uma cruz prateada.
Examinei cuidadosamente cada item e então me ajoelhei para ler o
texto gravado na frente do altar.
Uma citação. Passei os dedos pela inscrição e li em voz alta. “Não
atentando nós às coisas que se veem, mas às que não se veem;
porque as que se veem são temporais, e as que não se veem são
eternas.”
Soava bíblico. Era cedo para ligar para Max, então digitei a
citação no celular e ele me deu um versículo da Bíblia: 2 Coríntios
4:18.
Pensei em Blake usando outro versículo da Bíblia como
combinação para a tranca. Quanto os jogos dele o jovem Tobias
Hawthorne tinha jogado?
— Não atentando nós às coisas que se veem — eu disse em voz
alta —, mas às que não se veem.
Encarei o altar. O que não se vê?
Eu me ajoelhei em frente ao altar e passei os dedos por ele: de
cima para baixo, da esquerda para a direita, por cima e por baixo.
Fui para trás do altar, onde encontrei um leve espaço entre o
mármore e o chão. Eu me inclinei para olhar, mas não enxerguei
nada, então enfiei os dedos no espaço.
Quase imediatamente, senti uma série de círculos em alto relevo.
Meu primeiro instinto foi apertar um, mas eu não queria ser
impulsiva, então continuei explorando até ter contado todos. Eram
três fileiras de círculos em alto relevo, com seis em cada.
Dezoito, no total. 2 Coríntios 4:18, pensei. Isso significava que eu
precisava apertar quatro dos dezoito círculos? Se sim, quais quatro?
Frustrada, me levantei. Com Tobias Hawthorne, nada era fácil.
Circulei o altar de novo, examinando o tamanho. O bilionário queria
construir um mausoléu, mas não tinha feito isso. Tinha construído
aquela capela, e eu não conseguia deixar de notar que, se o pedaço
imenso de mármore fosse oco, teria espaço suficiente para um
corpo.
Eu dou conta disso. Encarei o versículo inscrito no que
desconfiava ser o túmulo de Will Blake.
— Não atentando nós às coisas que se veem — li em voz alta de
novo —, mas às que não se veem; porque as que se veem são
temporais e as que não se veem são eternas.
As que não se veem.
O que era fixar o olhar em algo que não se via? Eu não tinha
como olhar os círculos em relevo. Eu não os via. Eu precisava senti-
los. Com meus dedos, pensei, e de repente, em um momento, eu
soube o que a inscrição significava — não no sentido bíblico, mas
para Tobias Hawthorne.
Eu sabia exatamente como deveria ver o que não se via.
Peguei o celular e pesquisei como se escrevia números em
braille. Quatro. Um. Oito.
Eu me agachei de novo atrás do altar, deslizei os dedos por baixo
do mármore e apertei apenas os círculos indicados. Quatro. Um.
Oito.
Ouvi um estalo e olhei para a parte de cima do altar. Um pedaço
do mármore tinha se separado do resto. Destravado.
Passei o candelabro, a Bíblia e a cruz para o chão. O pedaço que
tinha se soltado devia ter uns cinco centímetros de grossura, e era
pesado demais para eu mexer sozinha.
Olhei para Oren, que estava de guarda, como sempre.
— Preciso da sua ajuda — eu disse a ele.
Ele me olhou por um bom tempo antes de soltar um palavrão em
voz baixa e ir me ajudar. Deslizamos a placa de mármore, e não foi
preciso muito movimento para notar que meus instintos estavam
certos. A parte de dentro do altar era oca. Havia um espaço grande
suficiente para um corpo.
Mas não havia restos. Em vez disso, encontrei uma mortalha, um
pano que poderia ter sido enrolado em um esqueleto ou cadáver.
Quando essa capela e esse altar foram terminados, teria sobrado
algo além de ossos? Eu não senti cheiro de morte. Ao me esticar
para enfiar a mão e mover a mortalha, vi que o mármore dentro da
cripta improvisada tinha sido vandalizado com uma letra familiar.
Toby.
Eu me perguntei quanto tempo ele tinha levado para entalhar,
enraivecido, as sete palavras no mármore. Eu me perguntei se tinha
sido ali que ele tinha encontrado o selo da família Blake. Eu me
perguntei o que mais ele tinha encontrado ali.
EU SEI O QUE VOCÊ FEZ, PAI.
Essas eram as palavras que ele tinha deixado para trás, as
palavras que Tobias Hawthorne teria encontrado se, depois da fuga
de Toby, fosse conferir se seu segredo permanecia guardado.
E então eu vi uma última coisa no que um dia devia ter sido o
túmulo de Will Blake.
Um pen-drive.
CAPÍTULO 67

Fechei a mão em volta do pen-drive. Quando o puxei, minha mente


já estava a mil. O pen-drive com certeza não estava no túmulo havia
vinte anos. Ele parecia novo.
— Sabe, Avery, eu queria estar surpresa por você ter chegado
aqui primeiro, mas não estou.
Eve. Virei a cabeça e a vi parada na porta da capela, embaixo de
um arco de pedra.
— Algumas pessoas só têm mesmo esse toque mágico —
continuou, suavemente, andando na minha direção, na direção do
altar. — O que você encontrou aí?
Ela soava hesitante, vulnerável, mas, no segundo em que Oren
entrou no caminho dela, a expressão em seu rosto piscou como
uma lâmpada um segundo antes de queimar.
— Deveria haver restos mortais ali — disse Eve, com calma,
calma demais. — Mas não tem, não é?
Ela inclinou a cabeça para o lado, o cabelo caindo em suaves
ondas âmbar enquanto seu olhar desviava para o pen-drive na
minha mão.
— Eu vou precisar que você me dê isso — falou.
— Você está doida? — perguntei.
Não notei o movimento das suas mãos até ser tarde demais.
Ela tem uma arma. Eve segurava a arma da forma como Nash
tinha me ensinado a segurar a minha. A arma dela está apontada
direto pra mim. O pensamento não devia ter sido registrado, mas eu
tinha uma faca na minha bota. Eu tinha passado todo aquele tempo
treinando. Então, quando meu corpo deveria estar entrando em
pânico, uma calma sobrenatural se instalou em mim.
Oren puxou sua pistola.
— Baixe essa arma — ordenou.
Era como se Eve nem tivesse ouvido, como se a única pessoa
que ela conseguisse ver ou ouvir fosse eu.
— Onde você arranjou uma arma? — falei, tentando ganhar
tempo, examinar a situação. — De jeito nenhum você teria entrado
na propriedade com isso naquela primeira manhã.
No momento em que falei, pensei em Eve fugindo no segundo em
que “descobrira” o nome de Vincent Blake.
— Baixe a arma! — repetiu Oren. — Eu te garanto que eu consigo
atirar antes de você, e eu nunca erro.
Eve deu um passo à frente, completa e lindamente destemida.
— Você vai mesmo deixar seu guarda-costas atirar em mim,
Avery?
Aquela era outra Eve. As camadas de proteção, a vulnerabilidade,
a emoção crua, tudo tinha desaparecido.
— Você ajudou Blake a sequestrar Toby, não foi? — falei, certeza
passando por mim como uma onda de calor.
— Eu não teria precisado fazer isso — respondeu Eve, seu tom
suave e duro — se Toby tivesse se aberto. Se tivesse concordado
em me trazer aqui. Mas ele se recusou.
— Essa é a última vez que eu vou dizer para você baixar essa
arma! — vociferou Oren.
— Eu ainda sou filha de Toby — disse Eve, adotando uma
expressão familiar e espantada, mantendo a mão firme na arma. —
E honestamente, Avery, como você acha que Gray vai se sentir se
Oren atirar em mim? O que acha que vai acontecer se aquele
menino lindo e perturbado entrar aqui e me encontrar sangrando no
chão?
Quando ela mencionou Grayson, eu o procurei instintivamente,
mas ele não estava lá. Com o corpo tremendo de raiva enterrada,
me virei para Oren.
— Baixe a arma — eu disse a ele.
Meu chefe de segurança entrou diretamente na minha frente.
— Ela baixa primeiro.
Com uma expressão arrogante, Eve baixou sua arma. Oren pulou
nela no mesmo instante, a derrubou e a conteve.
Eve olhou para mim do chão da capela e sorriu.
— Se quiser Toby de volta, eu quero o que você encontrou
naquela tumba.
Ela chamou de tumba, e dissera mais cedo que deveria haver
restos humanos ali. Eu me perguntei como ela tinha chegado àquela
conclusão, e me lembrei de onde eu a tinha deixado, e com quem.
— Mallory.
— Ela admitiu que Liam não foi embora. Eu acredito que as
palavras exatas dela tenham sido “foi tanto sangue” — disse Eve,
olhando o altar. — Então cadê o corpo?
— Isso é realmente tudo que te importa? — perguntei a ela.
Desde o início, ela tinha me dito que só havia uma coisa que
importava para ela. Eu estava começando a pensar que não era
uma mentira, só que seu propósito único não tinha nada a ver com
Toby.
Nunca tinha sido por causa de Toby.
— Me importar é uma receita para me machucar, e eu não deixo
ninguém me machucar há um bom tempo.
Eve sorriu de novo, como se ela estivesse em vantagem, não
presa no chão.
— Sendo justa, eu te avisei, Avery. Eu te disse que, se eu fosse
você, também não confiaria em mim. Eu te disse que faria qualquer
coisa, qualquer coisa, para conseguir o que quero. Eu te disse que
invisível é a única coisa que eu nunca serei.
— E Toby — falei, encarando-a, a compreensão doentia vindo a
mim — queria que você se escondesse.
— Blake me quer do lado dele — disse Eve, com zelo na voz. —
Eu só preciso me provar primeiro.
— Você ainda não tem um dos selos, não é? — perguntei.
Eu pensei em Nan dizendo que Vincent Blake não dava a
ninguém, nem mesmo à família dele, um passe livre.
— Eu vou conseguir um — disse Eve, a voz queimando com a
fúria de um propósito. — Me dê esse pen-drive e talvez você
também possa ter o que quer.
Ela fez uma pausa, então enfiou uma estaca bem no coração.
— Toby.
Eu odiava até ouvi-la dizer o nome dele.
— Como você pôde fazer isso? — falei, pensando na foto que
Blake tinha mandado, nos hematomas no rosto dele, e então nas
fotos de Toby e Eve na câmera dela. — Ele confiou em você.
— É fácil fazer as pessoas confiarem em você — comentou Eve
suavemente — se você deixá-las te verem sangrar.
Eu pensei nos hematomas que ela tinha quando aparecera ali, e
me perguntei se ela tinha mandado alguém bater nela.
— Você pode passar a vida toda tentando não sofrer — continuou
Eve, a voz alta e clara —, mas fazer as pessoas sofrerem por você?
Esse é o poder verdadeiro.
Pensei em Toby me dizendo que tinha duas filhas.
— Me dê o pen-drive — disse Eve de novo, os olhos ainda
queimando —, e você nunca mais vai ter que me ver de novo, Avery.
Eu vou conseguir meu selo e você pode ficar com esse lugar e
esses meninos todos pra você. Todo mundo ganha.
Ela estava louca. Oren a estava contendo. Ela tinha vindo até mim
com uma arma. Ela não estava em posição de negociar.
— Eu não vou te dar nada — eu disse.
Um movimento. Eu virei a cabeça na direção da porta da capela.
Grayson estava ali, contra a luz, o olhar grudado em Oren, que
ainda estava contendo Eve.
— Solte-a — ordenou Grayson.
— Ela é uma ameaça — disse Oren, seco. — Ela apontou uma
arma para Avery. O único lugar onde vou soltá-la é bem longe de
todos vocês.
— Grayson — falei, enjoada. — Não é o que parece...
— Me ajude — implorou Eve a ele. — Pegue o pen-drive que está
com Avery. Não deixe tirarem isso de mim também.
Grayson a encarou por mais um momento, então caminhou
lentamente na minha direção. Ele pegou o pen-drive da minha mão.
Eu só fiquei parada. Sentindo como se meu corpo tivesse sido
esvaziado, eu o vi se virar para Eve.
— Eu não posso te deixar ficar com isso — disse Grayson
suavemente.
— Grayson... — dissemos eu e Eve ao mesmo tempo.
— Eu escutei.
Eve não se abalou.
— O que quer que você tenha escutado, você sabe que eu não
sou a vilã aqui, Grayson. Seu avô... ele me devia mais que isso. Ele
te devia mais que isso, e você e sua família não devem nada a
Avery.
O olhar de Grayson encontrou o meu.
— Eu devo a ela mais do que ela imagina.
Uma represa se quebrou dentro de mim, e toda a dor que eu não
tinha me deixado sentir me inundou, e com ela tudo mais que eu
sentia, e já tinha sentido um dia, por Grayson Hawthorne.
— Você é tão ruim quanto seu avô era — tentou Eve. — Olhe
para mim, Grayson. Olhe para mim.
Ele olhou.
— Se você deixar Oren me expulsar daqui ou chamar a polícia, se
tentar me forçar a voltar para Vincent Blake de mãos abanando, eu
te juro que eu vou encontrar um penhasco e me jogar.
Havia algo feroz, insano e selvagem na voz de Eve, algo que
vendia totalmente a ameaça.
— O sangue de Emily está nas suas mãos — continuou ela. —
Você quer o meu também?
Grayson a encarou. Eu o via reviver o momento em que tinha
encontrado Emily. Eu via o efeito que a ameaça específica de Emily
— um penhasco — tinha nele. Eu via Grayson Davenport
Hawthorne se afogar, lutar em vão contra a corrente. E então eu o vi
parar de lutar e deixar que as memórias, o luto e a verdade
tomassem conta dele.
E então Grayson inspirou.
— Você já é uma menina crescida — disse a Eve. — Você faz
suas próprias escolhas. O que quer que você faça depois que Oren
te chutar daqui... é com você.
Eu me perguntei se ele estava falando sério. E se ele acreditava
nisso.
— Essa é a sua chance — disse Eve, se debatendo nas mãos de
Oren. — Isso é redenção, Grayson. Eu sou sua, e você poderia ser
meu. É por sua culpa que Emily morreu. Você podia tê-la impedido...
Grayson deu um único passo na direção dela.
— Eu não devia ter precisado impedir — disse ele, e baixou os
olhos para o pen-drive em sua mão. — E isso seria inútil para você.
— Não tem como você saber disso.
Eve era um bicho arisco, lutando contra Oren com toda sua força.
— Imaginando que esse pen-drive seja coisa do meu avô — disse
Grayson —, você precisaria de um decodificador para qualquer
arquivo fazer sentido. Um Hawthorne nunca deixa qualquer
informação de valor desprotegida.
— Eu quebro a criptografia — disse Eve, sem se importar.
Grayson arqueou uma sobrancelha para ela.
— Não sem um segundo drive.
Um segundo drive.
— Você não pode fazer isso comigo, Grayson. Nós somos iguais,
você e eu.
Havia algo na forma como Eve falava, algo na voz dela, que me
fez pensar que ela acreditava mesmo naquilo.
Grayson nem piscou.
— Não somos mais.
Um instante depois, os seguranças de Oren entraram com tudo
pela porta.
Oren se virou para mim.
— Como você quer lidar com isso, Avery?
Eve tinha apontado uma arma para mim. Aquilo, pelo menos, era
um crime. Mentir para a gente não era. Nos manipular não era. Eu
não podia provar mais nada. E ela não era o inimigo de verdade.
A ameaça de verdade.
— Faça seus homens tirarem Eve da propriedade — eu disse a
Oren. — Nós vamos lidar diretamente com Vincent Blake daqui pra
frente.
Eve não fez eles precisarem arrastá-la.
— Você não venceu — me disse ela. — Ele vai continuar vindo, e,
mais cedo ou mais tarde, todos vocês vão pedir a Deus que isso
tivesse acabado aqui.
CAPÍTULO 68

Oren me deixou sozinha com Grayson na capela.


— Eu te devo desculpas.
Olhei nos olhos de Grayson Hawthorne, tão claros e penetrantes
quanto da primeira vez que eu os tinha visto.
— Você não me deve nada — eu disse, não por compaixão, mas
porque doía me permitir pensar em quanta coisa eu tinha esperado
dele.
— Devo, sim.
Depois de um longo momento, Grayson desviou os olhos.
— Eu — falou, como se aquela única palavra lhe custasse tudo —
tenho me castigado há muito tempo. Não só pela morte de Emily,
mas por cada fraqueza, cada erro de cálculo, cada...
Ele parou, como se a garganta tivesse se fechado de repente em
volta das palavras. Eu o vi forçar uma respiração ofegante.
— O que quer que eu fosse ou fizesse — continuou —, nunca era
suficiente. O velho estava sempre ali, pedindo mais, melhor.
Uma vez cheguei a pensar que a confiança dele era impenetrável.
Que ele era arrogante e incapaz de duvidar de si mesmo,
completamente seguro do próprio poder.
— E então — disse Grayson — o velho se foi. E aí... você chegou.
— Grayson.
O nome dele ficou engasgado na minha garganta.
Grayson só olhou para mim, os olhos claros na sombra.
— Às vezes, a gente faz uma ideia de uma pessoa... de quem ela
é, de como seríamos juntos. Mas às vezes é só isso: uma ideia. E
há muito tempo eu tenho medo de amar a ideia de Emily mais do
que eu seria capaz de amar qualquer pessoa de verdade.
Era uma confissão, uma condenação e uma maldição.
— Isso não é verdade, Grayson.
Ele me olhou como se o ato de fazer isso fosse doloroso e doce.
— Você nunca foi só uma ideia, Avery.
Eu tentei não sentir que o chão estivesse de repente se abrindo.
— Você odiava a ideia de mim.
— Mas não você — falou, as palavras igualmente doces,
igualmente dolorosas. — Você, nunca.
Algo cedeu dentro de mim.
— Grayson.
— Eu sei — disse ele, rouco.
Eu sacudi a cabeça.
— Você ainda está tão convencido de que sabe de tudo.
— Eu sei que Jamie te ama.
Grayson me olhou como se olha para uma obra de arte em uma
redoma, como se quisesse me tocar, mas não pudesse.
— E eu vi como você olha para ele — continuou —, como vocês
dois são juntos. Você está apaixonada pelo meu irmão, Avery —
disse, e hesitou. — Me diga que não está.
Eu não podia fazer isso. Ele sabia que eu não podia.
— Eu estou apaixonada pelo seu irmão — falei, porque era
verdade.
Jameson era parte de mim, parte de quem eu tinha passado o
último ano me tornando. Eu tinha mudado. Se não tivesse, talvez as
coisas pudessem ter sido diferentes, mas não havia como voltar
atrás.
Eu era quem eu era por causa de Jameson. Eu não tinha mentido
ao dizer a ele que não queria que ele fosse mais ninguém.
Então por que aquilo era tão difícil?
— Eu queria que Eve fosse diferente — disse Grayson. — Eu
queria que ela fosse você.
— Não diga isso — sussurrei.
Ele me olhou uma última vez.
— Há muitas coisas que nunca direi.
Ele estava se preparando para ir embora, e eu precisava deixá-lo,
mas não conseguia.
— Me prometa que não vai embora de novo — pedi a Grayson. —
Você pode voltar pra Harvard. Pode ir aonde quiser, fazer o que
quiser... só prometa que não vai nos afastar de novo.
Eu levei a mão ao meu broche Hawthorne. Eu sabia que ele tinha
um igual. Eu sabia, mas tirei o meu e o coloquei nele de qualquer
forma.
— Est unus ex nobis. Você disse isso para Jameson uma vez,
lembra? Ela é uma de nós. Bem, vale para você também, Gray.
Grayson fechou os olhos, e eu fui tomada pela sensação de que
nunca esqueceria a imagem dele parado ali, sob a luz dos vitrais.
Sem armadura. Sem fingimentos. Cru.
— Scio — disse Grayson.
Eu sei.
Baixei os olhos para o pen-drive na mão dele.
— Eu tenho o outro — falei. — É o objeto que ainda não usamos
na bolsa de couro, lembra?
Grayson abriu os olhos. Ele saiu da luz.
— Você vai chamar meus irmãos? — perguntou. — Ou eu
chamo?
CAPÍTULO 69

Xander conectou o primeiro pen-drive no computador, arrastou o


arquivo de áudio para o desktop e então removeu o drive e o trocou
pelo que estava na tumba. Ele arrastou o segundo arquivo para o
desktop também.
— Toque o primeiro — instruiu Jameson.
Xander tocou. Uma fala distorcida e incompreensível preencheu o
ar, uma rajada de ruído branco.
— E o segundo? — perguntou Nash.
Desde que eu o conhecera, ele resistia a dançar a música do
velho. Mas ele estava ali. Estava se envolvendo.
O único arquivo no segundo pen-drive também era de áudio.
Estava tão bagunçado quanto o primeiro.
— O que acontece se você tocar os dois juntos? — perguntei.
Grayson tinha dito que, para um arquivo fazer sentido, seria
preciso um decodificador. Isolados, os arquivos não eram nada além
de barulho. Mas, com os dois pen-drives, os dois arquivos...
Xander abriu um aplicativo de edição de áudio e jogou nele os
arquivos. Ele os alinhou, então clicou em uma sequência de botões
que os fez tocar.
Combinados, o resultado não era chiado.
“Olá, Avery”, disse uma voz masculina, e eu senti a mudança no
ar, neles. “Eu e você não nos conhecemos. Imagino que você tenha
pensado bastante nisso.”
Tobias Hawthorne. Na única vez em que o tinha encontrado, eu
tinha seis anos de idade. Mas ele era onipresente naquele lugar. A
Casa Hawthorne era marcada por ele. Cada quarto. Cada detalhe.
Os meninos também.
“Toda grande vida deve ter pelo menos um grande mistério, Avery.
Eu não vou pedir desculpas por ser o seu.” Tobias Hawthorne era
um homem que não se desculpava por muita coisa. “Se você
passou noites e madrugadas em claro se perguntando ‘por que
eu?’… Bem, minha cara, você não é a única. O que é a condição
humana, se não por que eu?”
Eu sentia a mudança em cada um dos irmãos Hawthorne ao ouvir
as palavras de Tobias Hawthorne, a cadência de sua fala.
“Quando jovem, eu me acreditava destinado à grandeza. Eu lutei
por isso, eu pensei meu caminho até o topo, eu trapaceei, eu menti,
eu fiz o mundo se curvar a minha vontade.” Houve uma pausa, e
então: “Eu dei sorte. Agora, posso admitir isso. Estou morrendo, e
não é lentamente. Por que eu? Por que esse corpo está cedendo?
Por que estou sentado em um palácio que eu mesmo construí, se
existem outros por aí com mentes como a minha? Eu dei sorte.
Lugar certo, hora certa, ideias certas, mente certa.” Ele respirou
audivelmente. “Se ao menos fosse só isso.”
“Se você estiver ouvindo esta mensagem, então a situação ficou
tão difícil quanto eu supus. Eve está aí, e certos acontecimentos te
levaram a encontrar a tumba que um dia abrigou o maior segredo
dessa família. Quanto, eu me pergunto, você descobriu sozinha,
Avery?”
Toda vez que ele dizia meu nome, sentia como se ele estivesse
ali, naquele cômodo. Que ele me via. Que estava me observando
desde o momento em que eu passara pela grandiosa entrada da
Casa Hawthorne.
“Porém”, continuou ele, um tipo estranho de sorriso na voz, “você
não está sozinha, está? Olá, meninos.”
Eu senti Jameson se mexer, o braço encostando no meu.
“Se vocês de fato estiverem aí com Avery, então pelo menos uma
coisa aconteceu como eu pretendia. Vocês sabem muito bem que
ela não é sua inimiga. Talvez, se eu tiver escolhido tão bem quanto
acho que escolhi, ela tenha alcançado um lugar dentro de vocês que
eu nunca alcançaria. Devo ousar dizer que ela remendou vocês?”
— Desligue — disse Nash, mas nenhum de nós lhe deu ouvidos.
Eu nem sei se ele estava falando sério.
“Eu espero que tenham gostado do jogo que deixei para vocês.
Se sua mãe e tia encontraram e jogaram os delas, não sei dizer. A
probabilidade que eu calculei sugere que é incerto, e é por isso,
Xander, que eu te deixei a sua tarefa. Confio que você tenha
procurado por Toby. E Avery, eu acredito, do fundo do meu coração,
que Toby tenha te encontrado.”
Cada palavra que o homem falecido dizia tornava toda a situação
muito mais assustadora. Quanto do que tinha acontecido desde sua
morte ele tinha previsto? Não só previsto, mas planejado, nos
empurrando como peões?
“Se vocês estiverem escutando isso, é alta a probabilidade de
Vincent Blake ter se revelado uma ameaça clara e presente. Eu
esperava durar mais que esse patife. Por anos, ele e eu mantivemos
uma espécie de armistício. De início, se considerava magnânimo
por ter me liberado. Mais tarde, quando começou a se ressentir da
minha crescente fortuna, meu poder, meu status... bem, essas
coisas o mantiveram sob controle. Eu o mantive sob controle.”
Houve outra pausa, que pareceu mais afiada, ensaiada.
“Mas, agora que eu me fui e Blake sabe o que eu desconfio que
saibam, Deus acuda todos vocês. E se Eve estiver aí, se Blake
souber ou até mesmo suspeitar o que eu escondi dele durante todos
esses anos, então ele está a caminho. Atrás da fortuna. Atrás do
meu legado. Atrás de você, Avery Kylie Grambs. E por isso, sim, eu
peço desculpas.”
Eu pensei na carta que Tobias Hawthorne tinha me deixado. A
única explicação que eu tinha recebido no início. Sinto muito.
“Mas melhor você do que eles.” Tobias Hawthorne parou. “Sim,
Avery. Eu realmente sou babaca a esse ponto. Eu pintei um alvo na
sua testa. Mesmo que a verdade emergisse, eu vi a probabilidade.
Quando eu não estivesse mais aí para mantê-lo sob controle, Blake
iria avançar de qualquer forma. Temporada de caça, ele chamaria:
jogar o jogo, destruir todos os oponentes, tomar o que é meu. E é
por isso, minha cara, que tudo agora é seu.”
Eu sabia que eu era uma ferramenta. Eu sabia que ele tinha me
escolhido para me usar. Mas eu não tinha percebido, não tinha
sequer desconfiado, que Tobias Hawthorne tinha me escolhido
como herdeira porque eu era descartável.
“Eu conheci sua mãe, você sabe.” O bilionário não parou. Ele
nunca parava. “Uma vez, quando acreditei que ela era meramente
uma garçonete, e outra vez, depois de deduzir que ela era Hannah
Rooney, o grande amor do meu único filho. Pensei em usá-la para
encontrar Toby. Eu tentei — insisti, ameacei, subornei, manipulei. E
você sabe o que sua mãe me disse, Avery? Ela me disse que sabia
quem Vincent Blake era, o que tinha acontecido com o filho dele e
onde Toby tinha escondido o selo da família Blake, e que, se eu
chegasse perto dela, ou de você, ela derrubaria todo o castelo de
cartas.”
Eu tentei imaginar minha mãe ameaçando um homem como
Tobias Hawthorne.
“Você sabia do selo?”, perguntou Tobias, seu tom quase casual.
“Você sabia do segredo mais sombrio dessa família? Eu acho que
não, mas sou um homem que criou um império sempre, sempre,
questionando minhas próprias premissas. Minha especialidade são
contingências. Então aqui estamos, Avery Kylie Grambs. A
menininha com o nome engraçado. Uma chave mestra para tantas
fechaduras.”
“Eu tive seis semanas do meu diagnóstico até agora. Mais duas,
acho, até meu leito de morte. Tempo suficiente para encaixar as
últimas peças no lugar. Tempo suficiente para organizar um último
jogo com muitas, muitas camadas. Por que você, Avery? Para atrair
os meninos uma última vez? Para legar a eles um mistério digno
dos Hawthorne, o quebra-cabeça de uma vida? Para uni-los através
de você? Sim.” Ele disse a palavra sim como um homem que se
deliciava em dizê-la. “Para tirar Toby das sombras? Para fazer na
morte o que não fui capaz de fazer na vida, e forçá-lo a voltar ao
tabuleiro? Sim.”
O som do meu próprio corpo de repente me atordoou. Os
batimentos do coração. Cada respiração que eu de alguma maneira
conseguia dar. O ruído do sangue nos ouvidos.
“E”, continuou Tobias Hawthorne, com um ar de determinação,
“para minha enorme vergonha, para atrair o foco e a atenção de
Blake, e a atenção e o foco de todos os meus inimigos, que sem
dúvida são muitos, para você.”
Sim. Ele não disse dessa vez, mas eu pensei, e então pensei em
Nan me dizendo que era eu quem estava tocando o piano, e que
homens como Vincent Blake quebrariam todos os meus dedos se
pudessem.
“Chamemos de distração”, disse o bilionário morto. “Eu precisava
de alguém para atrair o fogo, e quem melhor do que a filha de
Hannah Rooney, dada a remota chance de ela ter te contado meu
segredo? Você dificilmente teria razão para revelá-lo quando o
dinheiro fosse seu.”
Armadilhas atrás de armadilhas e charadas atrás de charadas. As
palavras que Jameson tinha me dito muito tempo antes voltaram
para mim, seguidas por algo que Xander tinha dito. Mesmo que
você achasse que tinha manipulado nosso avô para conseguir isso,
eu garanto que foi ele quem manipulou você.
“Mas tome isso como consolo, minha aposta muito arriscada: eu
te observei. Eu te conheci. Enquanto você atrai o fogo para longe
daqueles que eu mais amo, saiba que eu acredito que existe ao
menos uma fagulha de chance de que você sobreviva aos golpes
que vai levar. Você pode ser testada pelo fogo, mas não precisa
queimar.”
“Se você estiver ouvindo isso, Blake está a caminho.” O tom de
Tobias Hawthorne estava mais intenso. “Ele vai te encurralar. Ele vai
te esmagar. Ele não terá piedade. Mas ele também vai te
subestimar. Você é jovem. Você é mulher. Você não é ninguém. Use
isso. Meu maior adversário, e agora o seu, é um homem de honra.
Vença-o, e ele honrará a vitória.”
Algo no tom de Tobias Hawthorne fez com que as palavras
soassem não só como um conselho, mas também como um adeus.
“Meus meninos.” Hawthorne soava como se estivesse sorrindo de
novo, um sorriso torto como o de Jameson, duro como o de
Grayson. “Se vocês estiverem de fato escutando isso, me julguem o
quão duramente quiserem. Eu fiz meus pactos com muitos diabos.
Acreditem que falhei. Me odeiem, se precisarem. Deixem que sua
raiva acenda uma chama que o mundo nunca vai apagar.”
“Nash. Grayson. Jameson. Xander.” Ele disse os nomes deles, um
por vez. “Vocês foram a argila e eu fui o escultor, e foi a alegria e a
honra da minha vida tornar vocês homens melhores do que eu
jamais serei. Homens que podem amaldiçoar o meu nome, mas que
nunca vão esquecê-lo.”
Minha mão encontrou a de Jameson e ele a segurou como se sua
vida dependesse disso.
“Preparar, meninos”, Tobias Hawthorne disse na gravação.
“Apontar. Já.”
CAPÍTULO 70

Silêncio nunca tinha soado tão alto. Eu nunca tinha visto os


irmãos Hawthorne tão quietos — todos eles, como se tivessem sido
injetados com veneno paralisante. Por maior que eu tivesse achado
o impacto de escutar a verdade da boca de Tobias Hawthorne, ele
não era uma influência fundamental da minha vida.
Eu me forcei a falar, porque eles não conseguiam.
— Bem que vocês sempre disseram que o velho gostava de
matar dez coelhos com uma cajadada só.
Jameson levantou o rosto e me olhou, então soltou uma risada
rouca e dolorida.
— Doze.
Doze coelhos com uma cajadada. Eu tinha sido avisada. A partir
do momento em que recebera um molho com cem chaves, até
antes, eu tinha sido avisada por cada um dos irmãos Hawthorne.
Armadilhas atrás de armadilhas. E charadas atrás de charadas.
Mesmo que você achasse que tinha manipulado nosso avô para
conseguir isso, eu te garanto que foi ele quem manipulou você.
Nessa família, nós destruímos tudo que tocamos.
Você não é uma jogadora, menina. Você é a bailarina de vidro...
ou a faca.
E então havia a mensagem que o próprio Tobias Hawthorne me
deixara, lá no início: sinto muito.
— Nós fizemos exatamente o que ele achou que faríamos. —
Xander acordou e começou a se mexer, gestos ferozes, peso nos
calcanhares. — Todos nós. Desde o início.
— Aquele filho da puta — disse Nash, com um longo assovio,
então se apoiou na parede. — Quão perigoso achamos que Vincent
Blake é?
A pergunta soava casual e calma, mas dava para imaginar Nash
enfrentando um touro enfurecido com exatamente a mesma
expressão.
— Perigoso a ponto de precisar de uma isca. — A calma de
Grayson era de um tipo diferente da de Nash, gelada e controlada.
— Nós estamos lidando com uma família cuja fortuna, embora
significativamente menor, é muito mais antiga do que a nossa. Não
é possível saber que pessoas ou instituições Blake controla.
— O velho tirou nós quatro do tabuleiro — disse Jameson, com
um palavrão. — Ele nos criou para lutar, mas nunca quis essa luta
para a gente.
Eu pensei em Skye dizendo que o pai dela nunca a tinha
considerado uma jogadora no grande jogo, então na carta que
Tobias Hawthorne tinha deixado para as filhas. Havia uma parte em
que ele dizia que nenhum deles veria a fortuna dele. Há coisas que
fiz das quais não me orgulho, legados que vocês não deveriam ter
que carregar.
A verdade tinha estado ali, bem na nossa frente, havia meses.
Tobias Hawthorne tinha me deixado sua fortuna para que, no caso
de seus inimigos atacarem depois da sua morte, eles me
atacassem. Ele tinha escolhido seu alvo com cuidado, me posto
como engrenagem de uma máquina complicada.
Doze coelhos, uma cajadada.
Se você estiver ouvindo isso, Blake está a caminho. Ele vai te
encurralar. Ele vai te esmagar. Ele não terá piedade. Eu sentia algo
endurecer dentro de mim. Tobias Hawthorne não tinha previsto
exatamente como Vincent Blake viria atrás de mim. Hawthorne não
sabia que Toby seria pego na trama de Blake, mas sabia muito bem
do que o homem era capaz. E seu único consolo para mim tinha
sido que ele achava que eu tinha uma fagulha de chance de
sobreviver.
Eu queria detestar Tobias Hawthorne, ou ao menos julgá-lo, mas
tudo em que conseguia pensar eram as palavras que ele tinha me
deixado. Você pode ser testada pelo fogo, mas não precisa queimar.
— Aonde você vai? — gritou Jameson atrás de mim.
Eu não olhei para trás, não conseguia me fazer olhar para
nenhum deles.
— Fazer uma ligação.
Vincent Blake atendeu no quinto toque, por si só uma demonstração
de poder.
— Que coisinha pretensiosa você é, não?
Você é jovem. Você é mulher. Você não é ninguém. Use isso.
— Eve foi embora — falei, afastando qualquer sinal de emoção do
meu tom. — Você não tem mais um infiltrado.
— Você parece muito segura disso, Avery Kylie Grambs.
Blake estava achando graça, como se minha tentativa de jogar o
jogo dele não fosse nada além disso, de um divertimento.
Ele quer que eu acredite que ele tem mais alguém dentro da Casa
Hawthorne. Ficar em silêncio um momento a mais que fosse seria
visto como sinal de fraqueza, então eu falei:
— Você quer a verdade sobre o que aconteceu com seu filho.
Você quer que os restos mortais dele sejam encontrados e
devolvidos a você.
Minha respiração queria ficar curta, mas eu blefava melhor do que
isso.
— O que, além de Toby, você vai me dar se eu te entregar o que
você quer? — perguntei.
Eu não sabia onde estava o que restasse de William Blake. Mas
só é possível jogar com as cartas que recebemos. Blake pensava
que eu tinha algo que ele queria. Sem Eve, eu podia ser a única
maneira que ele tinha de conseguir.
Eu precisava de uma vantagem. Precisava de barganha. Talvez
fosse aquilo.
— O que eu vou te dar?
O divertimento de Blake se converteu em algo mais profundo,
mais perverso.
— O que, além de Toby, eu tenho que você quer? — continuou. —
Fico muito feliz por você ter perguntado.
A ligação caiu. Ele tinha desligado na minha cara. Encarei o
celular.
Um momento depois, Oren entrou na minha visão periférica.
— Tem um mensageiro no portão.
CAPÍTULO 71

Não fazia sentido interrogar a pessoa que tinha entregado o


pacote. Nós sabíamos de quem era. Nós sabíamos o que ele queria.
— Tudo bem? — perguntou Libby quando um dos seguranças de
Oren apareceu no hall com o pacote.
Eu sacudi a cabeça em negativa. O que quer que isso seja,
definitivamente não está tudo bem.
Oren completou o exame de segurança inicial, então passou os
conteúdos e o pacote para mim: uma caixa de presente grande o
suficiente para conter um suéter; dentro dela, treze envelopes de
tamanho padrão para cartas; dentro de cada envelope, um retângulo
de plástico fino e transparente impresso com um desenho abstrato
em preto e branco. Olhar para cada uma das folhas sozinhas era
como fazer aqueles testes com manchas de tinta.
— Empilhe — sugeriu Jameson.
Eu não sabia quando ele tinha chegado, mas não estava sozinho.
Os quatro irmãos Hawthorne me cercaram. Libby ficou para trás,
mas só um pouco.
Coloquei uma folha em cima da outra, os desenhos se
combinando para formar uma única imagem, mas não era tão fácil.
Claro que não era. Havia quatro direções para cada folha, para cima
ou para baixo, frente ou verso.
Eu senti as folhas com a ponta dos dedos, localizando o lado em
que a tinta havia sido impressa. Na velocidade da luz, comecei a
combinar as folhas pelo canto inferior esquerdo, usando as imagens
para me guiar.
Um, dois, três, quatro, não, essa está errada. Eu continuei, uma
folha em cima da outra, em cima de mais outra, até uma imagem
emergir. Uma fotografia em preto e branco.
Na foto, Alisa Ortega deitada em um chão de terra, a cabeça
caída de lado, os olhos fechados.
— Ela está viva — disse Jameson ao meu lado. — Desmaiada.
Mas não parece...
Morta, eu terminei por ele. O que eu tenho que você quer? Eu
conseguia ouvir Vincent Blake dizendo. Fico muito feliz por você ter
perguntado.
— Li-Li — disse Nash, que dessa vez não soou calmo.
Eu engoli em seco.
— Existe alguma chance de ela fazer parte disso? — perguntei,
me odiando por sequer dar vida à pergunta, por deixar Blake me
afetar tanto.
— Nenhuma — disse Nash, cuspindo cada palavra com uma
ferocidade quase inumana.
Eu olhei para Jameson e Grayson.
— Seu avô disse não confie em ninguém, não apenas não confie
nela. Ele pelo menos considerou a possiblidade de Blake infiltrar
mais alguém no meu círculo.
Eu olhei de volta para o corpo aparentemente inconsciente de
Alisa.
— E nesse momento Alisa e o escritório dela têm muito a perder
se eu não concordar com um fundo — continuei.
O poder por trás da fortuna. A capacidade de mover montanhas e
fazer homens.
— Você pode confiar em Alisa — disse Nash, áspero. — Ela é fiel
ao velho, sempre foi.
Libby se aproximou e levou uma das mãos às suas costas, e ele
virou a cabeça para olhá-la.
— Não é o que você está pensando, Lib. Eu não gosto dela
assim, mas não é só porque as coisas não dão certo com uma
pessoa que ela deixa de ser importante.
— Ninguém nunca deixa de ser importante — disse Libby, como
se as palavras fossem uma revelação — para você.
— Nash está certo. De jeito nenhum Alisa é parte disso — disse
Jameson. — Vincent Blake a sequestrou, como sequestrou Toby.
Porque ela trabalha para mim.
— Esse babaca não pode fazer isso — xingou Grayson, com uma
intensidade poderosa que eu não via nele havia meses. — Vamos
destruí-lo.
Vocês não podem. Era por isso que Tobias Hawthorne os tinha
deserdado, por isso que ele tinha atraído o foco de Blake para mim
e para as pessoas de quem eu gostava. Oren tinha dado um
guarda-costas para Max. Tinha trazido Thea e Rebecca para a
Casa. Tinha fechado todos os acessos a pessoas que Blake poderia
usar para me afetar, mas Alisa não estava sob vigilância.
Ela estava por aí, jogando seus próprios jogos.
Com as mãos trêmulas, eu liguei para ela. De novo. E de novo.
Ela não atendia.
— Alisa sempre atende — falei em voz alta, e me forcei a olhar
para Oren. — Agora podemos chamar a polícia?
Toby era um homem morto. Não podíamos denunciar o
desaparecimento de um morto. Mas Alisa estava bem viva, e
tínhamos a foto para provar que algo tinha acontecido.
— Blake teria alguém, talvez vários alguéns, no alto escalão de
todas as delegacias locais.
— E eu não tenho? — perguntei.
— Você tinha — disse Oren, no passado, e me lembrei do que ele
tinha dito a respeito da onda de transferências recentes.
— E o FBI? — perguntei. — Eu não estou nem aí para o caso não
ser federal. Tobias Hawthorne tinha gente, e essa gente agora é
minha. Né?
Ninguém respondeu, porque, por mais gente que Tobias
Hawthorne tivesse no bolso, eu não tinha ninguém. Não sem Alisa
nos bastidores.
Xeque. Quase dava para ver o tabuleiro, as peças em movimento,
a jogada de Vincent Blake para me encurralar.
— Li-Li não iria querer que chamássemos as autoridades.
Nash parecia estar com dificuldades para recuperar a voz. Ela
saiu em um ruído lento e profundo.
— A ótica — falou.
— Você não se importa com a ótica — eu disse a ele.
Nash tirou o chapéu de caubói, seus olhos sombrios.
— Eu me importo com muitas coisas, menina.
— O que precisamos fazer — perguntou Libby, feroz — para
recuperar Alisa?
Fui eu quem respondi à pergunta.
— Encontrar um corpo, ou o que sobrou dele depois de quarenta
anos.
Nash estreitou os olhos.
— É melhor isso ser uma bela de uma explicação.
CAPÍTULO 72

Assim que eu terminei de explicar, Nash saiu andando, a


expressão sugerindo que aquilo era um mau sinal. Libby foi com ele.
Pensando no próximo passo, perguntei a Xander onde Rebecca e
Thea estavam.
— No chalé — disse Xander, com solenidade rara. — Bex estava
ignorando os telefonemas da mãe, mas aí a avó dela ligou, depois
que Eve...
Depois que Eve arrancou a verdade de Mallory, completei em
silêncio. Forçando minha mente a se concentrar naquela verdade e
no que ela significava para nós, levei os meninos ao meu quarto e
mostrei as plantas a eles.
— Estão em ordem cronológica — eu disse. — Eu usei a
cronologia para encontrar a reforma feita logo que Toby foi
concebido: a capela. O altar era feito de uma pedra oca.
Engoli em seco.
— Uma tumba — continuei. — Mas não encontrei um corpo lá, só
o pen-drive, que seu avô deve ter escondido pouco antes de morrer,
e uma mensagem entalhada na pedra por Toby faz tempo.
— Não que você precise de outro apelido — comentou Xander —,
mas gosto de Sherlock. O que a mensagem dizia?
Olhei para além de Xander, para Jameson e... Grayson não
estava ali. Eu não sabia bem quando o tínhamos perdido. Não me
deixei pensar no porquê.
— Eu sei o que você fez, pai — respondi à pergunta de Xander.
— Interpretei que em algum momento depois de Toby descobrir que
era adotado e antes de fugir aos dezenove anos...
— Ele descobriu sobre Liam — completou Jameson.
Eu pensei em todas as mensagens que Toby tinha deixado para o
pai: “Uma árvore de veneno” escondido embaixo de um azulejo no
chão; um poema composto em código em um livro de direito; as
palavras dentro do altar.
O altar vazio.
— Toby encontrou o corpo — falei em voz alta, tornando a ideia
concreta. — Provavelmente eram ossos, àquela altura. Ele roubou o
selo, mudou os restos mortais de lugar, deixou uma série de
mensagens para o velho e então saiu em uma jornada
autodestrutiva pelo país, que terminou com o incêndio na Ilha
Hawthorne.
Eu pensei em Toby, na sua colisão com a minha mãe e nas
formas que o amor deles poderia ter sido diferente se Toby não
tivesse sido destruído pelos segredos horríveis que carregava.
O verdadeiro legado Hawthorne.
Eu entendia finalmente por que Toby estava tão determinado a
ficar longe da Casa Hawthorne. Eu compreendia por que ele tinha
querido proteger minha mãe — sua Hannah, igual para a frente e
para trás — e mais tarde, quando ela morreu e eu já tinha sido
envolvida nessa bagunça, por que ele tinha precisado ao menos
tentar proteger Eve de tudo que vinha junto da fortuna Hawthorne.
Da verdade por trás da árvore de veneno. De Blake.
— O tesouro conseguido — falei em voz alta, encarando as
plantas — está no buraco mais escondido...
— Os túneis?
Jameson estava atrás de mim, logo atrás. Eu senti a sugestão
dele tanto quanto ouvi.
— É possível — falei, e então puxei quatro outros conjuntos de
plantas. — As outras são essas, os acréscimos feitos na Casa
Hawthorne na época em que Toby deve ter descoberto e movido os
restos. Ele pode ter se aproveitado da construção de alguma forma.
Toby tinha dezesseis anos quando descobrira que era adotado,
dezenove quando deixara a Casa Hawthorne para sempre. Eu
imaginei equipes escavando o terreno para cada acréscimo. O
tesouro conseguido está no buraco mais escondido...
— Esse aqui — disse Jameson com urgência, se ajoelhando
sobre as plantas. — Herdeira, olhe.
Eu vi o que ele tinha visto.
— O labirinto.
Jameson e eu fomos para o labirinto. Xander foi buscar reforços.
— Começamos do lado de fora e vamos entrando? — me
perguntou Jameson. — Ou vamos para o centro do labirinto e
espiralamos para fora?
Parecia certo, de alguma forma, sermos só nós dois. Jameson
Winchester Hawthorne e eu.
As cercas-vivas tinham cerca de dois metros e meio de altura e o
labirinto cobria uma área quase tão grande quanto a Casa. Levaria
dias para procurarmos por tudo. Talvez semanas. Talvez mais. Onde
quer que Toby tivesse escondido o corpo, seu pai não tinha
encontrado, ou tinha escolhido não arriscar mudá-lo de lugar.
Eu imaginei homens plantando as cercas-vivas.
Imaginei um Toby de dezenove anos, no meio da noite, de alguma
maneira dando um jeito de esconder os ossos do homem
responsável por metade do seu DNA.
— Começamos no centro — eu disse a Jameson, a voz ecoando
no espaço a nossa volta — e espiralamos para fora.
Eu conhecia o caminho que nos levaria ao coração do labirinto.
Eu tinha estado lá antes, mais de uma vez — com Grayson.
— Eu imagino que você não saiba aonde ele foi, ou sabe,
Herdeira?
Jameson tinha um jeito de fazer toda pergunta parecer um pouco
maliciosa e um pouco afiada, mas eu sabia, eu sabia, o que estava
realmente perguntando.
O que estava sempre tentando não perguntar a si mesmo quando
se tratava de Grayson e eu.
— Eu não sei onde Grayson está — eu disse a Jameson, e então
virei à esquerda, sentindo a garganta apertar. — Mas eu sei que ele
vai ficar bem. Ele confrontou Eve. Acho que ele finalmente deixou
Emily para trás, finalmente se perdoou por ser humano.
Vire à direita. À esquerda. Esquerda de novo. Em frente. Já
estávamos quase no centro.
— E agora que Gray está bem — disse Jameson, bem atrás de
mim —, agora que é tão deliciosamente humano e pronto para
esquecer Emily...
Cheguei ao centro do labirinto e me virei para encarar Jameson.
— Não termine essa pergunta.
Eu sabia o que ele ia perguntar. Eu sabia que ele não estava
errado em perguntar. Ainda assim, doía. E o único jeito de fazê-lo
parar de perguntar, a ele mesmo, a mim, a Grayson, era se eu
desse a ele a verdade completa e sem disfarces.
A verdade em que eu não tinha me deixado pensar com muita
frequência nem muita clareza.
— Você estava certo quando disse que eu estava blefando —
falei. — Eu não posso dizer que sempre teria sido só você.
Ele passou por mim, até o compartimento escondido no chão
onde os Hawthorne guardavam as espadas. Eu escutei ele abrir o
compartimento, o escutei procurar.
Porque Jameson Winchester Hawthorne estava sempre à procura
de algo. Ele não conseguia parar. Nunca ia parar.
E eu também não queria parar.
— Eu não posso dizer que sempre teria sido você, Jameson,
porque não acredito em destino nem predestinação... eu acredito
em escolha.
Eu me ajoelhei ao lado dele e deixei meus dedos explorarem o
compartimento.
— Você me escolheu, Jameson, e eu escolhi me abrir para você,
para todas as possibilidades de nós dois, de uma forma que eu
nunca tinha me aberto para ninguém.
Max tinha me dito uma vez para me imaginar parada em um
penhasco, olhando o oceano. Era onde eu me sentia, porque o amor
não era só uma escolha, e sim dezenas, centenas, milhares de
escolhas.
Todo dia era uma escolha.
Eu passei pelo compartimento com as espadas, tateando o chão
no centro do labirinto, procurando, ainda procurando.
— Deixar você entrar — eu disse a Jameson, nós dois ajoelhados
a passos de distância —, nos tornar nós dois... isso me mudou.
Você me ensinou a querer.
A querer as coisas.
A querer ele.
— Você me tornou faminta — eu disse a Jameson — por tudo. Eu
agora quero o mundo.
Olhei nos olhos dele de uma forma que o desafiava a desviar o
olhar.
— E eu quero com você.
Jameson se aproximou bem quando meus dedos encontraram
alguma coisa enterrada na grama, enfiada no solo.
Um objeto pequeno, redondo e metálico. Não é o selo da família
Blake. Só uma moeda. Mas o tamanho, a forma...
Jameson levou as mãos para o meu rosto. Seu polegar roçou de
leve meus lábios. E eu disse as duas palavras que com certeza
pegariam a fagulha nos olhos dele e a transformariam em fogo.
— Cave aqui.
CAPÍTULO 73

Meus braços estavam doendo quando o solo finalmente cedeu,


revelando uma câmara subterrânea — parte dos túneis, mas uma
parte que eu nunca tinha visto.
Antes que eu pudesse dizer uma palavra, Jameson saltou para a
escuridão.
Eu desci com mais cuidado e aterrissei ao lado dele, agachada.
Então me levantei, acendendo a lanterna do celular. A sala era
pequena, e estava vazia.
Nenhum corpo.
Examinei as paredes e vi uma tocha. Prendendo os dedos em
volta dela, tentei puxá-la da parede, sem sucesso. Deixei meus
dedos explorarem a argola de metal que mantinha a tocha no lugar.
— Tem uma trava aqui — eu disse. — Ou algo assim. Eu acho
que roda.
Jameson colocou a mão em cima da minha e, juntos, giramos a
tocha para o lado. Houve um som de arranhão, então um sibilo, e a
tocha pegou fogo.
Jameson não soltou, e nem eu.
Puxamos a tocha acesa da argola e, quando as chamas se
aproximaram da superfície da parede, iluminaram palavras na
caligrafia de Toby.
— Eu nunca fui um Hawthorne — eu li em voz alta.
Jameson deixou a mão cair, até eu ser a única segurando a tocha.
Lentamente, circulei o perímetro da sala. A chama revelou palavras
em todas as paredes.
Eu nunca fui um Hawthorne.
Eu nunca serei um Blake.
Então o que isso me torna?
Li a mensagem na última parede e meu coração apertou.
Cúmplice.
— Tente o chão — me disse Jameson.
Eu baixei a tocha, tomando cuidado com o fogo, e uma última
mensagem se iluminou. Tente de novo, pai.
O corpo não estava ali.
Nunca estivera ali.
Uma luz veio de cima. Sr. Laughlin. Ele nos ajudou a sair da sala,
em silêncio o tempo todo, sua expressão absolutamente ilegível, até
o momento em que eu tentei me afastar do centro e voltar ao
labirinto, quando ele parou bem na minha frente.
Me bloqueando.
— Eu fiquei sabendo de Alisa.
A voz do caseiro era sempre áspera, mas a dor visível em seus
olhos era nova.
— O tipo de homem que sequestra uma mulher... não é nem um
homem.
Ele fez uma pausa.
— Nash me procurou — disse ele, hesitante. — Ele me pediu
ajuda, e aquele menino nem deixava a gente ajudar ele a amarrar
os sapatos quando era pequeno.
— O senhor sabe onde estão os restos mortais de Will Blake —
eu disse, dando voz ao que tinha entendido. — É por isso que Nash
o procurou e pediu sua ajuda.
O sr. Laughlin se forçou a me olhar.
— É melhor deixar algumas coisas enterradas.
Eu não ia aceitar aquilo. Não podia. A raiva serpenteou por mim,
queimando nas minhas veias. Raiva de Vincent Blake, Tobias
Hawthorne e desse homem que deveria trabalhar para mim, mas
sempre colocaria a família Hawthorne em primeiro lugar.
— Eu vou botar isso tudo abaixo — jurei.
Algumas situações exigiam um bisturi, mas aquela? Traga as
serras elétricas.
— Eu vou contratar operários para desmontar esse labirinto. Eu
vou trazer cachorros farejadores. Eu vou queimar tudo para ter Alisa
de volta.
O corpo do sr. Laughlin tremia.
— Você não tem o direito.
— Vô.
Ele se virou e Rebecca apareceu. Thea e Xander a seguiam, mas
o sr. Laughlin mal os notou.
— Isso não está certo — disse ele a Rebecca. — Eu prometi para
mim mesmo, para sua mãe, para o sr. Hawthorne.
Se eu tinha alguma dúvida de que o caseiro sabia onde o corpo
estava, aquela afirmação a apagou.
— Vincent Blake sequestrou Toby também — eu disse. — Não só
Alisa. O senhor não quer seu neto de volta?
— Nem ouse falar do meu neto para mim — disse o sr. Laughlin,
ofegante.
Rebecca colocou uma mão tranquilizadora no braço dele.
— Não foi o sr. Hawthorne quem matou Liam — disse ela, baixo.
— Foi?
O sr. Laughlin estremeceu.
— Volte para o chalé, Rebecca.
— Não.
— Você era uma menina tão boazinha — resmungou o sr.
Laughlin.
— Eu me diminuía.
O aço de Rebecca era de um tipo sutil.
— Mas aqui, com você, eu não precisava fazer isso — continuou.
— Eu vivia para as poucas semanas que passávamos aqui todo
verão. Eu te ajudava. Lembra? Eu gostava de trabalhar com as
mãos, de sujá-las.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu nunca podia me sujar em casa — falou.
Quando Emily era nova e sua saúde, vulnerável, a casa de
Rebecca provavelmente era toda asséptica.
— Por favor, volte para o chalé.
O tom e os maneirismos do sr. Laughlin combinavam
perfeitamente com os da neta: um aço quieto e discreto. Até aquele
momento, eu nunca tinha visto a semelhança entre os dois.
— Thea, leve ela de volta.
— Eu amava trabalhar com você — disse Rebecca ao avô, o sol
batendo em seu cabelo vermelho-rubi. — Mas tinha uma parte do
labirinto que você sempre insistiu em tratar sozinho.
Senti o estômago revirar. Rebecca sabe onde cavar.
— Emily parecia a sua mãe — disse sr. Laughlin, rouco. — Mas
você tem a mente dela, Rebecca. Ela era brilhante. Ainda é.
Ele engasgou com as duas palavras seguintes:
— Minha menininha.
— Não foi o sr. Hawthorne quem matou o filho de Vincent Blake
— disse Rebecca, suavemente. — Foi?
Não houve resposta.
— Eve se foi. Mamãe ficou louca quando não conseguiu encontrá-
la. Ela disse...
— O que quer que sua mãe tenha dito — interrompeu o sr.
Laughlin, duro —, pode esquecer, Rebecca.
Ele olhou dela para o horizonte.
— É assim que isso funciona. Todos nós fizemos a tarefa de
esquecer.
Por mais de quarenta anos, o segredo ia apodrecendo. Tinha
afetado todos eles: duas famílias, três gerações, uma árvore de
veneno.
— Sua filha só tinha dezesseis anos — comecei com o que eu
sabia. — Will Blake era um homem feito. Ele apareceu aqui para se
provar.
— Ele usou sua filha — disse Xander, assumindo por mim — para
vigiar o nosso avô.
— Will usou e manipulou sua filha de dezesseis anos. Ele a
engravidou — continuou Jameson, indo direto ao cerne da questão.
— Eu dei minha vida para a família Hawthorne. Eu não devo isso
para nenhum de vocês.
A voz do sr. Laughlin não era só dura. Estava vibrando de fúria.
Eu sentia por ele. De verdade. Mas aquilo não era teoria. Não era
um jogo. Podia muito bem ser questão de vida ou morte.
— Nos mostre a parte do labirinto onde ele não te deixava
trabalhar — pedi a Rebecca.
Ela deu um passo e o sr. Laughlin a agarrou pelo braço. Com
força.
— Solte-a — disse Thea, erguendo a voz.
Rebecca olhou nos olhos de Thea só por um momento, então se
virou de volta para o avô.
— Minha mãe está perturbada. Ela começou a tagarelar. Me
contou que Liam ficou com raiva quando descobriu do bebê. Ele ia
deixá-la, então ela roubou uma coisa da Casa, do escritório do sr.
Hawthorne. Ela disse a Liam que ela tinha algo que ele podia usar
contra Tobias Hawthorne, só para ele encontrar com ela de novo.
Mas, quando ele veio, quando ela foi entregar o que tinha pegado,
não estava na bolsa dela.
Eu os imaginei em algum lugar isolado. No bosque Blackwood,
talvez.
— Tobias.
Primeiro, isso foi tudo que o sr. Laughlin conseguiu dizer, o nome
do bilionário morto.
— Ele os estava espionando — continuou. — Ele seguiu Mal
naquele dia. Ele não sabia por que ela tinha roubado dele, mas
estava decidido a descobrir.
— O que ele descobriu — concluiu Jameson — foi o filho adulto
de Vincent Blake se aproveitando de uma menina adolescente sob a
proteção dele.
Eu pensei no motivo para Tobias Hawthorne ter se voltado contra
Blake, para começar. Garotos são assim mesmo.
— O babaquinha do Liam ficou com raiva quando Mal não pôde
lhe dar o que tinha prometido. Ele ficou frio, disse a ela que ela não
era nada. Quando se virou para ir embora, ela tentou impedi-lo, e
aquele monstro ergueu a mão para minha menininha.
Eu tive a sensação muito forte de que, se Will Blake se levantasse
dos mortos naquele minuto, o sr. Laughlin o colocaria a sete palmos
do chão de novo.
— No segundo em que Liam ficou agressivo, o sr. Hawthorne saiu
de onde estava escondido para fazer algumas ameaças bem
diretas. Mal tinha dezesseis anos. Havia leis.
O sr. Laughlin suspirou, um som rouco e feio.
— O homem devia ter saído correndo como o rato que era, mas
Mal... ela não queria que Liam fosse embora. Ela o ameaçou
também, disse que ia contar ao pai dele sobre o bebê.
— Will precisava da aprovação do pai para manter o selo — falei,
pensando na rédea curta com que Vincent Blake mantinha a família.
— Mais do que isso, se ele tinha vindo até aqui para se provar para
Blake, para impressioná-lo... a ideia de fazer o oposto?
Eu engoli em seco.
— Liam se descontrolou e avançou nela. Mal... ela revidou —
disse o sr. Laughlin, fechando os olhos. — Eu cheguei bem quando
o sr. Hawthorne estava tirando o homem de cima da minha filha. Ele
controlou o babaca, prendeu os braços dele atrás das costas e
então...
O sr. Laughlin se forçou a abrir os olhos e olhou para Rebecca.
— Então minha menininha pegou um tijolo. Ela foi pra cima dele,
rápido demais para que eu a impedisse. E não só uma vez... ela
bateu nele várias e várias vezes.
— Foi legítima defesa — disse Jameson.
O sr. Laughlin baixou os olhos, então se forçou a me olhar, como
se precisasse que eu, entre todo mundo ali, compreendesse.
— Não foi, não.
Eu me perguntei quantas vezes Mallory tinha batido em seu Liam
antes que a contivessem. Eu me perguntei se a tinham contido.
— Eu a controlei — disse o sr. Laughlin, com a voz pesada. — Ela
não parava de dizer que achara que ele a amava. Ela achava...
Não havia lágrimas nos olhos dele, mas um soluço escapou de
seu peito.
— O sr. Hawthorne me disse para ir embora. Ele me disse para
pegar Mal e tirá-la de lá.
— Liam estava morto? — perguntei, minha boca quase
dolorosamente seca.
Não havia um pingo de remorso no rosto do caseiro.
— Ainda não.
Will Blake estava respirando quando o sr. Laughlin o deixara
sozinho com Tobias Hawthorne.
— Sua filha tinha acabado de atacar o filho de Vincent Blake —
disse Jameson, criado para descobrir verdades escondidas, para
transformar tudo em um quebra-cabeça e resolvê-lo. — Naquela
época, nossa família não era rica ou poderosa o suficiente para
protegê-la. Ainda não.
— Você sabe o que aconteceu depois que você saiu? —
perguntou Rebecca depois de um silêncio longo e doloroso.
— Pelo que entendi, ele precisava de cuidado médico — disse o
sr. Laughlin, e olhou para nós, um de cada vez. — Pena que não foi
atendido.
Eu imaginei Tobias Hawthorne parado ali, vendo um homem
morrer. Deixando-o morrer.
— E depois? — perguntou Xander, estranhamente quieto.
— Eu nunca perguntei — disse o sr. Laughlin, rígido. — E o sr.
Hawthorne nunca me disse.
Minha mente correu pelos anos, por tudo que sabíamos.
— Mas quando Toby moveu o corpo... — comecei a dizer.
O sr. Laughlin fixou o olhar de volta no horizonte.
— Eu sabia que ele tinha enterrado alguma coisa. Quando Toby
fugiu e o sr. Hawthorne começou a fazer perguntas, eu entendi bem
rápido o que era.
E nunca disse nada, eu pensei.
— Mostre a eles o lugar, se precisar, Rebecca — disse o sr.
Laughlin, e tirou suavemente o cabelo da neta da frente do rosto
dela. — Mas se Vincent Blake perguntar o que aconteceu, você vai
proteger a sua mãe. Você vai dizer a ele que fui eu.
CAPÍTULO 74

Nós encontramos os restos mortais.


Eu puxei o celular, pronta para ligar para Blake, mas, antes de
completar a ação, ele tocou. Olhei para a identificação de chamada
e parei de respirar.
— Alisa? — perguntei, e forcei meus pulmões a funcionarem de
novo. — Você...
— Vai matar Grayson Hawthorne? — disse Alisa, calma. — Vou.
Vou, sim.
Só de ouvir a voz dela — e a completa normalidade do seu tom
—, uma onda de alívio passou por mim. Era como se eu estivesse
carregando peso e pressão em excesso em cada célula do meu
corpo, e de repente a tensão toda se dissipasse.
Só então processei o que Alisa tinha dito.
— Grayson? — repeti, meu coração parando.
— É por isso que Blake me liberou. Foi uma troca.
Eu devia ter entendido quando ele não viera com a gente
encontrar o corpo. Grayson Hawthorne e seus grandes gestos.
Frustração, medo e algo quase dolorosamente vulnerável
ameaçavam trazer lágrimas aos meus olhos.
— Seu irmão está brincando de cordeiro do sacrifício — eu disse
a Jameson, tentando deixar que a primeira emoção silenciasse o
resto.
Xander ouviu minha afirmação tensa e Nash apareceu atrás dele.
— Alisa? — disse ele.
— Ela está bem — relatei.
E dessa vez vamos cuidar dela.
— Oren, você pode pedir para alguém trazê-la para cá? — pedi.
Oren acenou brevemente com a cabeça, e a expressão nos olhos
dele traía quão feliz estava por ela estar bem.
— Me dê o telefone e eu coordeno um ponto de busca.
Eu passei o celular para ele.
— Isso não muda nada — disse Jameson. — Blake ainda está em
vantagem.
Ele estava com Grayson. Havia uma simetria aterrorizante
naquilo. Tobias Hawthorne tinha roubado o neto de Vincent Blake;
então Vincent Blake tinha roubado o de Tobias Hawthorne.
Ele tem Toby. Ele tem Grayson. E eu tenho os restos mortais do
filho dele. Tudo que eu precisava fazer era dar a Vincent Blake o
que ele queria, e aquilo tudo terminaria.
Ou pelo menos era o que Blake queria que eu acreditasse.
Mas a mensagem final de Tobias Hawthorne não tinha só me
alertado que Blake viria atrás da verdade, de provas. Não, Tobias
Hawthorne tinha me dito que Blake viria atrás de mim, que ele me
encurralaria, me esmagaria e não teria piedade. Tobias Hawthorne
esperava um ataque completo a seu império. Supondo que ele havia
previsto corretamente, Vincent Blake não queria só a verdade.
Ele está a caminho. Atrás da fortuna. Atrás do meu legado. Atrás
de você, Avery Kylie Grambs.
Mas Tobias Hawthorne — o homem manipulador e maquiavélico
que era — também achava que eu tinha uma fagulha de chance. Eu
só precisava ser mais esperta que Blake.
Tome isso como consolo, minha aposta muito arriscada: eu te
observei. Eu te conheci. As palavras correram pelo meu corpo como
sangue, meu coração batendo em um ritmo brutal e sem descanso.
Tobias Hawthorne acreditava que Blake iria me subestimar.
No telefone, ele tinha me chamado de menininha.
O que eu podia deduzir daquilo? Que ele espera que eu reaja,
não aja. Que acha que eu nunca vou olhar para a frente.
Eu me forcei a parar, a desacelerar, a pensar. A minha volta, os
outros estavam brigando aos gritos por causa do nosso próximo
passo. Eu ignorei o som da voz de Jameson, de Nash, de Xander,
de Oren, de todo mundo. E, por fim, voltei para o gambito da rainha.
Eu pensei em como exigia ceder controle do tabuleiro. Exigia uma
perda.
E funcionava melhor quando o oponente pensava que era um erro
de principiante, em vez de estratégia.
Um plano tomou forma na minha mente. Ele se calcificou. E eu fiz
uma ligação.
CAPÍTULO 75

— O que você acabou de fazer?


Jameson me olhou como tinha olhado na noite em que me dissera
que eu era o último quebra-cabeça do avô dele, como se, depois de
tanto tempo, ainda houvesse coisas em mim, coisas de que eu era
capaz, que podiam surpreendê-lo.
Como se quisesse conhecê-las todas.
— Eu liguei para as autoridades e denunciei que restos mortais
foram encontrados na Casa Hawthorne.
Isso provavelmente era óbvio, se eles tinham escutado. O que
Jameson estava perguntando era o porquê.
— Longe de mim dizer o óbvio — se intrometeu Thea —, mas o
objetivo de desenterrar isso aí não era fazer a troca?
Eu sentia Jameson me analisar, seu cérebro passando pelas
possibilidades do meu.
— Eu tenho outra ligação para fazer — eu disse.
— Para Blake? — perguntou Rebecca.
— Não — respondeu Jameson por mim.
— Não tenho tempo de explicar — falei para todos eles.
— Você está jogando com ele.
Jameson não colocou isso como uma pergunta.
— Blake disse para levar o corpo para ele, e o corpo será, sim,
devolvido a ele. Em algum momento. E, quando isso acontecer, eu
não terei violado nenhuma lei.
Era mais fácil pensar naquilo como uma partida de xadrez. Tentar
ver os movimentos do meu oponente antes que ele os fizesse. Criar
iscas para os movimentos que eu queria, bloquear ataques antes
que acontecessem.
Xander arregalou os olhos.
— Você acha que, se tivesse levado os restos para ele, ele teria
usado a ilegalidade disso contra você?
— Eu não posso me dar ao luxo de dar a ele mais munição.
— Porque, claro, isso tudo gira em torno de você.
A voz de Thea estava perigosamente agradável, o que nunca era
um bom sinal.
— Thea — disse Rebecca, baixo. — Deixa pra lá.
— Não. Essa é sua família, Bex. E, por mais que você tente, por
mais raiva que consiga sentir... sempre vai ser importante para você
— disse Thea, e ergueu uma mão para o rosto de Rebecca. — Eu te
vi lá com a sua mãe.
Rebecca parecia querer se perder nos olhos de Thea, mas não se
permitiu.
— Eu sempre pensei que havia algo de errado comigo — disse
ela, sua voz falhando. — Emily era tudo para minha mãe, e eu era
uma sombra, e pensei que o problema fosse eu.
— Mas agora você sabe — disse Thea suavemente — que nunca
foi você.
O trauma de Mallory era o trauma de Rebecca, provavelmente o
de Emily também.
— Eu cansei de viver nas sombras, Thea — disse Rebecca, e se
virou para mim. — Traga a luz. Conte a verdade pro mundo. Faça
isso.
Não era exatamente meu plano. Havia uma jogada que me
permitiria proteger as pessoas que precisavam ser protegidas. Uma
sequência, se eu conseguisse executá-la.
Se Blake não a antecipasse.
Denunciar o corpo era só o primeiro passo. O segundo passo era
controlar a narrativa.
— Avery — Landon atendeu o telefone no terceiro toque. — Me
corrija caso eu esteja errada, mas nosso relacionamento profissional
terminou algum tempo atrás.
Eu tinha contratado outros representantes de relações públicas e
consultores de mídia desde então, mas, para o que eu estava
planejando, eu precisava da melhor.
— Eu preciso falar com você sobre um corpo morto e a história do
século.
Silêncio, o suficiente para eu me perguntar se ela tinha desligado
na minha cara. Então Landon ofereceu duas palavras, o sotaque
britânico seco.
— Estou ouvindo.

Joguei Tobias Hawthorne embaixo do ônibus. Completamente e sem


piedade. Homens mortos não podiam ser seletivos a respeito de
suas reputações, e isso valia duas vezes para homens mortos que
tinham me usado como ele fizera.
Tobias Hawthorne tinha matado um homem quarenta anos antes,
e encoberto o assassinato. Era a história que eu estava contando, e
era uma história e tanto.
— Aonde você vai? — gritou Jameson atrás de mim quando eu
encerrei a chamada com Landon.
— Ao cofre — respondi. — Preciso de uma coisa antes de ir
confrontar Vincent Blake.
Jameson correu para me alcançar. Ele passou por mim, então se
virou assim que eu dei um passo que deixou seu corpo perto demais
do meu.
— E o que você precisa do cofre? — perguntou Jameson.
— Se eu te contar — eu disse —, você vai tentar me trancar de
novo?
Jameson ergueu a mão até minha nuca.
— É arriscado?
Eu não desviei o olhar.
— Muito.
— Que bom.
Com os olhos verdes intensos, ele deixou o polegar traçar o
contorno do meu queixo.
— Para vencer Blake, vai precisar ser — falou.
Algumas palavras eram só palavras, e outras eram como fogo. Eu
o senti se acender dentro de mim, se espalhar, arder como qualquer
beijo. Estamos de volta.
— E quando você vencê-lo — continuou Jameson —, porque
você vai vencê-lo...
Nenhuma sensação no mundo era igual a ser vista por Jameson
Hawthorne.
— Eu vou precisar de um anagrama para a palavra tudo —
declarou.
CAPÍTULO 76

Depois do cofre, eu cheguei até o hall antes do caos cair em cima


de mim na forma de uma Alisa Ortega furiosa.
— O que você fez?
— Bem-vinda de volta — disse Oren secamente para ela.
— O que eu precisava fazer — respondi.
Alisa inspirou fundo, supostamente tentando se acalmar.
— Você não esperou eu chegar aqui porque sabia que eu te diria
que falar com a polícia era má ideia.
— Você teria me dito que chamar a polícia por causa de Blake era
má ideia — respondi. — Então não a chamei por causa disso.
— A polícia local chegou ao portão — me informou Oren. —
Considerando as circunstâncias, meus funcionários não podem
impedir a entrada. Suspeito que agentes especiais não estejam
longe.
Alisa massageou as têmporas.
— Eu posso resolver isso.
— Não é problema seu — eu disse a ela.
— Você não tem ideia do que está fazendo.
— Não — eu respondi, encarando-a. — Você não tem ideia do
que eu estou fazendo. É diferente.
Eu não tinha tempo nem vontade de explicar tudo para ela.
Landon tinha me prometido duas horas de vantagem, mas só.
Qualquer demora além disso e nós poderíamos perder a
oportunidade de controlar a narrativa.
Se eu esperasse demais, Vincent Blake teria muito tempo para se
reorganizar.
— Eu fico feliz por você estar bem — eu disse a Alisa. — Você fez
muita coisa por mim desde que o testamento foi lido. Eu sei disso.
Mas a verdade é que a fortuna de Tobias Hawthorne vai estar nas
minhas mãos logo mais.
Eu não gostava de jogar assim, mas eu não tinha escolha.
— A única pergunta que você precisa se fazer é se você ainda
quer ter um emprego quando isso acontecer — declarei.
Nem eu sabia bem se estava blefando. De jeito nenhum eu daria
conta daquilo sozinha, e, mesmo que tivesse duvidado dela, eu
confiava em Alisa mais do que confiaria em qualquer outra pessoa
que eu pudesse contratar. Por outro lado, ela tinha o hábito de me
tratar como criança, a mesma criança deslumbrada e atordoada que
nunca tinha tido dois centavos que eu era ao chegar.
Para enfrentar Vincent Blake, eu precisava crescer.
— Você vai afundar sem mim — me disse Alisa. — E levar um
império com você.
— Então não me force a fazer isso sem você — respondi.
Fixando seu olhar em mim com uma precisão quase assustadora,
Alisa acenou de leve com a cabeça. Oren pigarreou.
Eu me virei para ele.
— Essa é a parte em que você começa a falar de silver tape?
Ele arqueou uma sobrancelha para mim.
— Essa é a parte em que você ameaça meu emprego?
No dia em que o testamento de Tobias Hawthorne tinha sido lido,
eu tentara dizer a Oren que eu não precisava de segurança. Ele
respondera calmamente que eu precisaria de segurança pelo resto
da vida. Nunca tinha sido uma questão de se ele iria me proteger.
— Isso não é só um emprego para você — eu disse a Oren,
porque sentia que devia isso a ele. — Nunca foi.
Ele tinha me dito meses antes que devia a vida a Tobias
Hawthorne. O velho tinha dado um propósito a Oren, arrastado-o
para longe de um lugar muito escuro. Seu último pedido para meu
chefe de segurança tinha sido que Oren me protegesse.
— Eu achei que ele tinha feito um gesto nobre — disse Oren,
baixo — ao me pedir para cuidar de você.
Oren era minha sombra constante. Ele tinha escutado a
mensagem de Tobias Hawthorne. Ele sabia qual era o meu
propósito, e isso certamente tinha colocado o dele sob uma nova
luz.
— Seu chefe te pediu para cuidar da minha segurança. Cuidar de
mim... — falei, e minha voz falhou. — Isso foi você.
Oren me deu o menor dos sorrisos, então se permitiu voltar ao
modo guarda-costas.
— Qual o plano, chefe?
Eu peguei o selo da família Blake do bolso.
— Isso — falei, o deixando cair na palma da mão, e fechei os
dedos. — Nós vamos para o rancho de Blake. Eu vou usar isso para
passar pelos portões. E eu vou sozinha.
— Eu tenho a obrigação profissional de dizer que não gosto desse
plano.
Eu olhei com simpatia para Oren.
— Você gostaria mais se eu te disser que vou dar uma coletiva de
imprensa bem na frente dos portões dele para que o mundo todo
saiba que estou lá dentro?
Vincent Blake não podia me tocar com os paparazzi de olho.
— Você vai acabar com isso, Oren? — disse Nash, que
claramente tinha ouvido nossa conversa, caminhando na nossa
direção. — Porque, se não for, faço eu.
Como se tivesse sido arrastado pelo caos, Xander escolheu
aquele momento para aparecer também.
— Isso não é da sua conta — eu disse a Nash.
— Boa tentativa, menina.
O tom de Nash nunca anunciava que a patente dele era maior
que a sua, mas, por mais casual que fosse sua fala, ficava sempre
cem por cento claro quando era uma carteirada.
— Isso não vai rolar — declarou.
Nash não ligava para eu ter dezoito anos, ser dona da Casa, não
ser irmã dele de verdade ou lutar pra caramba se ele tentasse me
impedir.
— Você não pode proteger nós quatro para sempre — falei.
— Eu posso muito bem tentar. Você não quer me testar nessa,
querida.
Olhei para Jameson, que conhecia bem os riscos de testar Nash.
Jameson olhou nos meus olhos e então olhou para Xander.
— Leopardo voador? — murmurou Jameson.
— Suricato escondido! — respondeu Xander, e, um instante
depois, eles caíram em cima de Nash em uma tática aérea
sincronizada muito impressionante.
Numa briga de um para um, Nash venceria qualquer um deles.
Mas era mais difícil ter vantagem com um irmão pendurado no
tronco e outro prendendo os pés e as pernas.
— Melhor irmos — eu disse a Oren.
Nash era uma tempestade de palavrões atrás de nós. Xander
começou a declamar uma riminha fraternal.
— Oren — berrou Nash.
Meu chefe de segurança sequer deu sinal da graça que talvez
estivesse achando.
— Desculpa, Nash. Eu não sou burro de me meter no meio de
uma briga Hawthorne.
— Alisa... — Nash começou a dizer, mas me intrometi.
— Eu quero você comigo — eu disse para minha advogada. —
Você vai esperar com Oren, do lado de fora.
Nash deve ter sentido o cheiro da derrota, porque parou de tentar
desalojar Xander dos pés.
— Menina? — gritou. — É bom você jogar sujo.
CAPÍTULO 77

O rancho de Vincent Blake ficava duas horas e meia para o norte e


ocupava quilômetros da divisa entre o Texas e Oklahoma. Pegar o
helicóptero diminuiu nosso tempo de viagem para quarenta e cinco
minutos, mais o trânsito no solo. Landon tinha feito sua parte, então
a imprensa chegou logo depois de mim.
— No dia de hoje — eu disse a eles em um discurso que tinha
ensaiado —, os restos mortais de um homem que acreditamos ser
William Blake foram encontrados na propriedade Hawthorne.
Eu me ative ao roteiro. Landon tinha planejado perfeitamente o
momento de vazar a informação — a história que ela tinha plantado
já tinha sido publicada, mas era a filmagem do que eu estava
dizendo que a definiria. Eu entreguei a história: William Blake tinha
agredido fisicamente uma mulher menor de idade, e Tobias
Hawthorne tinha intervindo para protegê-la. As autoridades estavam
investigando, mas, com base no que nós mesmos conseguimos
descobrir, esperávamos que a autópsia revelasse que Blake morrera
de trauma na cabeça.
Tobias Hawthorne tinha administrado os golpes.
A última parte podia não ser verdade, mas era chamativa. Era
uma história. E eu estava ali para prestar meus pêsames à família
do falecido, em meu nome e no dos Hawthorne restantes.
Eu não respondi perguntas. Em vez disso, me virei e andei até a
entrada da propriedade de Vincent Blake. Eu sabia, porque tinha
pesquisado, que o Rancho Legado tinha mais de cem mil hectares,
mais de mil quilômetros quadrados.
Eu parei embaixo de um enorme arco de tijolos, parte de um muro
igualmente enorme. O arco era grande o suficiente para um ônibus
passar por baixo. Quando me aproximei, uma caminhonete preta
correu na minha direção, vinda de dentro do complexo, por uma
estrada de terra.
Atrás daquele muro havia mais de trinta mil hectares de área
cultivada, mais de mil poços de petróleo produtivos, a maior coleção
particular de cavalos quarto de milha do mundo e um número
realmente impressionante de cabeças de gado.
E em algum lugar atrás daquele muro, em todos aqueles
hectares, havia uma casa.
— Você está prestes a invadir uma propriedade privada.
Os homens que saíram da caminhonete preta estavam vestidos
de trabalhadores da fazenda, mas se moviam como soldados.
Torcendo para não ter errado — porque, se eu tivesse errado, o
mundo todo veria o erro —, eu respondi:
— Mesmo se eu tiver um desses?
Abri os dedos só o suficiente para que vissem o selo.
Menos de um minuto depois, eu estava na cabine da
caminhonete, correndo na direção do desconhecido.

Foram dez minutos inteiros antes da casa aparecer. O motorista,


que definitivamente estava armado, não tinha dito uma palavra para
mim.
Baixei os olhos para o selo na minha mão.
— Você não perguntou onde eu o consegui.
Ele não desviou os olhos da estrada.
— Quando alguém tem um desses, a gente não pergunta.

Se a Casa Hawthorne parecia um castelo, a casa de Vincent Blake


lembrava uma fortaleza. Era feita de pedra escura, as linhas retas
interrompidas apenas por duas gigantes colunas redondas que se
erguiam em torreões. Uma varanda de ferro fundido contornava o
segundo andar. Eu quase esperava uma ponte levadiça, mas, em
vez disso, havia uma sacada.
Eve estava naquela sacada, o cabelo âmbar voando com a brisa.
Os seguranças de Blake me seguiram quando eu caminhei na
direção dela. Quando subi na sacada, Eve se virou, um movimento
estratégico pensado para me forçar a acompanhá-la.
— Tudo isso teria sido bem mais fácil — disse ela — se você
tivesse me dado o que pedi.
CAPÍTULO 78

Eve não me levou para dentro da casa. Ela me levou para os


fundos. Um homem estava lá. Ele tinha a pele queimada de sol e o
cabelo grisalho raspado. Eu sabia que ele devia ter uns oitenta
anos, mas parecia estar mais perto de sessenta e cinco, e em forma
para correr uma maratona.
Ele estava segurando uma espingarda.
Enquanto eu observava, ele apontou a arma em direção ao céu.
O som do tiro foi ensurdecedor e ecoou pelo campo enquanto um
pássaro caía no chão. Vincent Blake disse algo, que não escutei, e
o maior cão de caça que eu já tinha visto saiu atrás da presa.
Blake baixou a arma. Devagar, ele se virou para mim.
— Por aqui — falou, naquela voz suave e quase aristocrática que
eu reconhecia perfeitamente do telefone —, nós comemos o que
matamos.
Ele estendeu a arma e alguém correu para pegá-la dele. Então
Blake andou na nossa direção. Ele se acomodou em uma mureta de
cimento ao lado de um espaço para uma enorme fogueira, e Eve me
levou até lá — até ele.
— Onde estão Grayson e Toby?
Era a única saudação que aquele homem ia conseguir de mim.
— Aproveitando minha hospitalidade.
Blake olhou para a caixa grande que eu estava carregando. Sem
dizer uma palavra, eu a abri. Eu tinha passado no cofre para pegar o
jogo de xadrez real. Quando tinham me permitido entrar nas terras
de Blake, eu fizera Oren passá-lo discretamente para mim.
Eu o coloquei em frente a Blake, uma espécie de oferenda.
Ele pegou uma das peças, examinou a quantidade de diamantes
negros brilhantes, a perfeição do desenho, então desdenhou e jogou
a peça de volta.
— Tobias sempre foi espalhafatoso.
Blake levantou a mão direita e alguém colocou um facão nela.
Meu coração saltou para a garganta, mas tudo que o rei daquele
reino fez foi tirar um pequeno pedaço de madeira do bolso.
— Um jogo que você mesmo entalha — me disse ele — funciona
igual.
Essa não é uma faca de entalhar. Eu não o deixei me intimidar a
ponto de responder em voz alta. Em vez disso, me inclinei para a
frente e pus ao lado dele na mureta o selo que eu tinha mostrado
para entrar.
— Acredito que isso seja seu — falei, e apontei com a cabeça
para o jogo de xadrez que tinha trazido. — E chamaremos aquilo de
presente.
— Eu não te pedi um presente, Avery Kylie Grambs.
Eu olhei nos olhos de ferro dele.
— Você não me pediu nada. Você me mandou conseguir seu
filho, e você vai tê-lo de volta.
Àquela altura, Blake sem dúvida já tinha ouvido as histórias que
Landon tinha vazado. Havia uma boa chance de ele ter assistido à
minha coletiva de imprensa.
— Quando a investigação terminar — continuei —, as autoridades
irão mandar os restos mortais para você. Se vale de alguma coisa,
eu sinto muito pela sua perda.
— Eu não perco, Avery Kylie Grambs — disse Blake, cuja faca
reluziu no sol enquanto raspava a madeira. — Meu filho, por outro
lado, parece ter perdido bastante coisa.
— Seu filho engravidou uma menor de idade, e a agrediu quando
ela teve a audácia de ficar devastada por notar que ele só a estava
usando para chegar perto suficiente para atacar Tobias Hawthorne.
— Hummmm — murmurou Blake, um som muito mais ameaçador
do que deveria ser. — Will tinha quinze anos quando Tobias e eu
nos afastamos. O menino ficou furioso por termos sido traídos. Eu
precisei dissuadi-lo da ideia de que nós tínhamos sido qualquer
coisa. O que tinha acontecido era entre Tobias e eu.
— Tobias te venceu.
Era meu primeiro golpe naquele pequeno duelo verbal entre nós.
Blake nem sentiu.
— E veja no que isso deu para ele.
Eu não tinha certeza se era uma referência ao fato de que a única
pessoa que já tinha vencido Vincent Blake tinha se mostrado uma
das mentes mais formidáveis da sua geração, ou uma previsão
satisfeita de que todas as conquistas de Tobias Hawthorne não
seriam nada no final.
O bilionário estava morto, sua fortuna pronta para ser tomada.
— Seu filho o detestava — tentei de novo, com um tipo diferente
de ataque. — E ele estava desesperado para se provar para você.
Blake não negou. Em vez disso, afastou a faca da madeira e
testou o fio no polegar.
— Tobias devia ter me deixado lidar com Will. Ele sabia o tipo de
inferno que viria de causar mal ao meu filho. Escolhas, mocinha,
têm consequências.
— E como você teria lidado com o que seu filho fez a Mallory
Laughlin?
— Isso não vem ao caso.
— E garotos são assim mesmo — atirei de volta. — Não é
mesmo?
Blake me estudou por um momento, então apoiou a faca na
perna.
— Eu entendi que você tem alguns amigos no portão.
— O mundo inteiro sabe que estou aqui — eu disse. — Eles
sabem o que aconteceu com seu filho.
— Sabem mesmo? — disse Eve, um tom de desafio na voz.
Ela devia ter ouvido coisas suficiente de Mallory para questionar a
história que eu estava contando.
— Já chega, Eve — disse Blake, ríspido, e Eve engoliu em seco
enquanto seu bisavô olhava de uma para a outra. — Eu não devia
ter mandado uma menininha fazer o trabalho de um homem.
Menininha. No telefone, ele tinha me chamado assim também.
Tobias Hawthorne estava certo. Eu era jovem, eu era mulher. E
aquele homem ia me subestimar.
— Se eu tivesse trazido os restos mortais do seu filho — falei —,
você teria me chantageado por ter quebrado a lei.
— Te chantageado para que, eu me pergunto?
Blake queria dizer que eu deveria me perguntar.
Eu sabia que era uma vantagem para mim ele achar que estava
por cima, então eu precisava tomar cuidado.
— Se Grayson e Toby não saírem daqui comigo, eu darei outra
entrevista na saída.
Era perigoso ameaçar um homem como Vincent Blake. Eu sabia
disso. Mas também sabia que precisava que ele acreditasse que era
aquela minha jogada. Minha única jogada.
— Uma entrevista? — Isso me rendeu outro murmúrio. — Você
vai contar a eles sobre Sheffield Grayson?
Eu tinha antecipado que ele responderia ao meu movimento, mas
eu não tinha previsto como, e, de repente, eu não conseguia mais
controlar meus batimentos. Não conseguia manter o rosto
totalmente imóvel.
— Eve pode ter fracassado na tarefa principal — disse Blake —,
mas ela é uma Blake, e nós jogamos pra vencer. Eu ainda estou
considerando se ela mereceu isso.
Ele ergueu um disco dourado idêntico ao que eu tinha colocado
na mureta.
— Mas a informação que ela me trouxe quando voltou era...
impressionante — acrescentou.
Informação. A respeito do que aconteceu com o pai de Grayson.
Eu pensei no arquivo, nas fotos no celular de Eve.
— Eu li nas entrelinhas — disse Eve, curvando a boca em um
sorriso. — O pai de Grayson desapareceu e, com base no que eu
consegui juntar, ele sumiu logo depois de alguém orquestrar um
atentado contra você. Sheffield Grayson tinha motivo para ser esse
alguém. Eu não tinha provas, claro, mas então...
Eve deu de ombros.
— Eu liguei para Mellie — falou.
A irmã de Eve era quem tinha atirado em Sheffield Grayson. Ela o
tinha matado para salvar Toby e eu.
— A irmã que nunca fez nada por você? — perguntei, minha
garganta árida.
— Meia-irmã.
A correção me disse que Eve não tinha mentido a respeito do que
sentia pelos irmãos.
— Foi uma reunião muito comovente, especialmente quando eu
disse que a perdoava.
Eve torceu a boca.
— Que eu estava ao lado dela. Mellie está devastada de culpa,
sabe. Pelo que ela fez. Pelo que você encobriu.
Eu tinha sido retirada do depósito quando o sangue de Sheffield
Grayson ainda estava fresco no chão.
— Eu não encobri nada.
Blake levou a lâmina de volta para a madeira e começou a
entalhar de novo, em movimentos lentos e suaves.
— John Oren encobriu.
Eu tinha ido até ali com um plano, mas não tinha antecipado
aquilo. Eu achara que, ao chamar a polícia por causa dos restos
mortais de Will Blake, tiraria de seu pai uma vantagem necessária.
Eu não tinha previsto que Vincent Blake tinha vantagem de sobra.
— Parece — comentou o homem suavemente — que estou na
dianteira de novo.
Ele nunca tinha duvidado.
— O que você quer? — perguntei.
Eu deixei-o ver minha angústia sincera, mas, por dentro, a parte
lógica do meu cérebro assumiu. A parte que gostava de quebra-
cabeças. A parte que via o mundo em camadas.
A parte que tinha ido até ali com um plano.
— Qualquer coisa que eu quiser de você — disse Blake —, eu
terei.
— Eu aposto com você em um jogo — propus, improvisando e
deixando meu cérebro se ajustar, acrescentando uma nova camada,
mais uma coisa que precisava dar certo. — Xadrez. Se eu ganhar,
você esquece Sheffield Grayson e garante que Eve e Mellie façam o
mesmo.
Blake pareceu achar graça, mas eu via algo muito mais sombrio
do que divertimento brilhando em seus olhos.
— E se você perder?
Eu tinha um ás na manga, mas não podia jogá-lo, ainda não. Não
se eu quisesse pelo menos uma fagulha de chance de sair dali com
o tipo de vitória de que precisava.
— Um favor — eu disse, o coração destruindo minhas costelas. —
Logo mais eu terei controle da fortuna Hawthorne. Bilhões. Um favor
vindo de alguém na minha posição tem que valer algo.
Vincent Blake não pareceu muito tentado pela minha oferta. Claro
que não, porque ele já tinha um plano próprio para a fortuna de
Tobias Hawthorne.
Depois de um momento, no entanto, o divertimento ganhou.
— Um jogo parece adequado, mas eu não vou jogar com você,
menininha. Eu vou, porém, deixar que ela jogue.
Ele apontou com a cabeça na direção de Eve, então inclinou a
cabeça para o lado, considerando.
— E Toby — acrescentou.
— Toby? — falei, rouca.
Eu odiava como eu estava soando, como estava me sentindo. Eu
não podia deixar minhas emoções tomarem o controle. Precisava
pensar. Precisava modificar meu plano, de novo.
— Meu neto perguntou de você — me disse Blake. — Pode-se
dizer que eu tenho um talento para reconhecer pontos sensíveis.
Vincent Blake tinha sequestrado Toby para me atingir, para
conseguir que Eve entrasse na Casa Hawthorne. Eu percebi,
naquele momento, que Blake sem dúvida tinha me usado contra
Toby também.
— Eve — disse ele, sua voz carregando o peso de uma ordem
que nenhuma pessoa viva ousaria desobedecer. — Por que você
não vai buscar seu pai?
CAPÍTULO 79

Os hematomas de Toby estavam sarando, e ele precisava fazer a


barba. Essas foram as duas primeiras coisas que eu pensei,
seguidas imediatamente por dezenas de outras a respeito dele, da
minha mãe e da última vez em que eu o tinha visto, cada
pensamento acompanhado por uma onda de emoções que
ameaçavam me derrubar.
— Você não deveria estar aqui.
Toby controlou qualquer emoção que pudesse estar sentindo, mas
a intensidade em seu olhos me disse que estava mantendo a
compostura por um fio.
— Eu sei — respondi, e torci para meu tom fazê-lo perceber que
eu não estava só dizendo que sabia que não deveria estar ali.
Eu sei quem Blake é. Eu sei do que ele é capaz. Eu sei o que
estou fazendo.
Para que aquilo funcionasse, Toby não precisava confiar em mim,
mas eu precisava que ele não me atrapalhasse.
— Vocês vão jogar um jogo — disse Vincent Blake a Toby. —
Vocês três. Uma espécie de torneio que vai consistir em três
partidas.
Blake ergueu um único dedo e apontou de Toby para Eve.
— Meu neto e sua filha.
Um segundo dedo subiu.
— Meu neto e a menina que não é sua filha.
Toby e eu. Ai.
— E... — continuou Blake, erguendo um terceiro e último dedo —
Avery e Eve, uma contra a outra.
O homem nos deu alguns segundos para processar isso, então
continuou:
— Quanto ao incentivo... bem, isso precisa valer alguma coisa.
Algo na forma como ele disse valer me deu calafrios.
— Se ganhar as suas duas partidas, você pode ir embora — disse
Blake a Toby. — Desaparecer como quiser. Você nunca mais vai ter
notícias minhas, e eu vou permitir que o mundo continue a pensar
que você está morto. Se perder uma das suas partidas, você ainda
pode ir, mas não como um homem morto. Você vai confirmar para o
mundo que Toby Hawthorne está vivo e nunca mais vai
desaparecer.
Toby nem reagiu. Eu não tinha certeza se Blake esperava reação.
— Se perder suas duas partidas — continuou o velho com um
movimento dos lábios no qual eu não confiava —, você não vai
voltar à vida como Toby Hawthorne. Você vai aceitar ficar aqui de
livre e espontânea vontade como Toby Blake.
— Não! — protestei. — Toby, você...
Toby me cortou com a menor mudança em sua expressão: um
aviso.
— Quais são os termos para elas? — perguntou ao avô.
Blake absorveu a resposta de Toby, satisfeito, e se virou para Eve.
— Se vencer uma das suas partidas — disse a ela —, você
ganhará isso.
Ele mostrou um selo da família Blake para Eve.
— Se perder as duas, você estará a serviço de quem quer que
receba isso de mim no seu lugar.
Havia algo profundamente perturbador na forma como ele tinha
dito serviço.
— Se ganhar suas duas partidas — terminou Blake, com a voz
sedosa —, eu te dou os cinco.
Todos os cinco selos. Uma corrente elétrica passou pelo ar. Isaiah
tinha dito que quem tivesse um selo quando Vincent Blake morresse
tinha direito a um quinto da fortuna dele. Blake tinha acabado de
prometer a Eve que, se conseguisse ganhar de Toby e de mim, ela
herdaria tudo dele.
Todo o poder. Todo o dinheiro. Tudo.
— Quanto a você, a aposta muito arriscada de Tobias
Hawthorne... — disse Vincent Blake, com um sorriso. — Se perder
as duas, eu vou aceitar aquele favor que você ofereceu, um cheque
em branco, digamos, para ser descontado quando eu quiser.
Toby encontrou meu olhar. Não. Ele não protestou em voz alta.
Depois de um momento, eu desviei os olhos. Nenhum aviso que ele
pudesse me dar seria novidade. Dever um favor a Vincent Blake era
uma péssima ideia.
— Se vencer pelo menos um jogo — continuou Blake —, eu solto
Grayson Hawthorne para você, com a garantia de que não receberei
aqui mais ninguém sob a sua proteção.
Receber era um jeito de colocar a coisa, mas, enquanto incentivo,
era atraente. Atraente até demais. Se ele está disposto a manter as
mãos longe das pessoas que amo, deve ter outros meios de me
atingir. Outras formas de poder.
Outro plano para tirar tudo de mim.
— Se ganhar os dois jogos — prometeu Blake —, eu também vou
jurar segredo no caso de Sheffield Grayson.
Toby estremeceu. Claramente, ele não sabia daquela pequena
informação que o avô biológico estava guardando.
— Esses termos são aceitáveis para vocês? — perguntou Blake a
Toby apenas, como se eu e Eve fossemos dar respostas óbvias.
Toby rangeu os dentes.
— Sim.
— Sim — disse Eve, viva de uma forma que fazia todas as outras
versões dela parecerem desbotadas e incompletas.
Quanto a mim...
Blake vai honrar sua palavra. Se eu ganhasse as duas partidas, a
verdade sobre o pai de Grayson seguiria enterrada. As pessoas que
eu amo estariam seguras. Blake ainda viria atrás de mim. Ele
encontraria um jeito de destruir a mim e a tudo que eu amo, mas
teria limites em seu poder.
— Eu concordo com os seus termos — falei, embora ele nunca
tivesse me dado a opção de fazer outra coisa.
Blake se virou para o reluzente jogo de xadrez de quinhentos mil
dólares que eu tinha dado a ele.
— Bem, então. Comecemos?
CAPÍTULO 80

Toby e Eve foram primeiro. Eu tinha jogado contra Toby o suficiente


para saber que ele podia terminar tudo nos primeiros doze
movimentos, se quisesse.
Ele deixou ela ganhar.
Blake deve ter concluído a mesma coisa, porque, quando o
tabuleiro foi recolocado para minha partida contra Toby, o velho
pegou sua faca.
— Se conceder a vitória nesta partida também — disse a Toby,
pensativo —, eu vou pedir a Eve para me oferecer o braço e usar
isso para abrir uma veia.
Se Eve ficou perturbada com a implicação de que seu bisavô
estava pronto para abri-la ao meio, ela não demonstrou. Em vez
disso, segurou com força o selo que tinha ganhado e manteve o
olhar no tabuleiro.
Eu assumi minha posição e olhei nos olhos de Toby. Fazia mais
de um ano que não jogávamos juntos, mas, no segundo em que
mexi meu primeiro peão, foi como se não tivesse se passado tempo
nenhum. Harry e eu estávamos de volta ao parque.
— Sua vez, princesa.
Toby não estava se controlando, mas fez o melhor para me deixar
à vontade, para me lembrar que, mesmo se ele jogasse seu melhor,
eu já tinha ganhado dele.
— Não sou uma princesa — repeti minha fala no nosso roteiro e
deslizei meu bispo pelo tabuleiro. — Sua vez, ancião.
Toby estreitou os olhos de leve.
— Não seja arrogante.
— Belas palavras para um Hawthorne — respondi.
— É sério, Avery. Não seja arrogante.
Ele está vendo algo que eu não estou.
— Eve — disse Vincent Blake, agradavelmente. — Seu braço?
Com o queixo estável, Eve estendeu-o a ele. Blake encostou a
ponta da faca na pele dela.
— Jogue — disse ele a Toby. — E sem mais dicas para a menina.
Houve uma hesitação, um único segundo, e então Toby fez o que
tinha sido instruído. Eu examinei o tabuleiro e vi por que ele tinha
me avisado sobre a arrogância. Levou três movimentos, mas então:
— Xeque — resmungou Toby.
Eu examinei o tabuleiro, todo de uma vez. Eu tinha três
movimentos possíveis, e ponderei todos eles. Dois me levavam a
Toby dando xeque-mate em cinco movimentos. Isso significava que
eu estava presa no terceiro. Eu sabia como Toby iria responder, e
daí eu tinha quatro ou cinco opções. Deixei meu cérebro correr,
permitindo que as possibilidades se desenrolassem lentamente.
Tentei não pensar muito no fato de que, se Toby me vencesse, o
encobrimento da morte de Sheffield Grayson seria exposto. Ou isso,
ou eu teria que dar a Blake algo muito mais significativo que um
favor para mantê-lo quieto.
O homem seria meu dono.
Não. Eu ia dar conta. Tinha um jeito. Minha vez. Dele. Minha.
Dele. Movimento a movimento, cada vez mais rápido, nós jogamos.
Então, finalmente, uma expiração deixou meu peito.
— Xeque.
Percebi o momento exato em que Toby viu a armadilha que eu
tinha criado.
— Menina terrível — sussurrou, rouco, e a ternura nos olhos dele
quase me derrubou.
Vez dele. Minha. Dele. Minha.
E então, finalmente, finalmente...
— Xeque-mate — eu disse.
Vincent Blake manteve a faca no braço de Eve mais um
momento, antes de baixá-la devagar. Seu neto tinha perdido, e o
entendimento do que aquilo significava me tomou, torcendo minhas
entranhas.
Toby tinha perdido as duas partidas. Ele era de Blake.
CAPÍTULO 81

— Eu espero mais da próxima vez — disse Vincent Blake a Toby.


— Você agora é um Blake, e os Blake não perdem para menininhas.
Eu encontrei o olhar de Toby.
— Me desculpa — falei, baixo e urgente.
— Não se desculpe — disse Toby, e tocou meu rosto. — Eu vejo
muito da sua mãe em você.
Aquilo parecia demais um adeus. Desde o momento em que Eve
tinha passado pelos portões da Casa Hawthorne eu estava
determinada a tê-lo de volta. E aí...
— Eu vou...
As palavras pararam, a pergunta entalada na minha garganta.
— Posso te ver? — perguntei.
Você tem uma filha, me ouvi dizer.
Eu tenho duas.
Blake não deu a Toby a chance de responder. Ele passou a
atenção para Eve. Ela se deliciava, como se ele fosse o sol e ela
tivesse o tipo de pele que não queima. Pela primeira vez, em vez de
olhar para ela e ver Emily, eu vi algo diferente.
A intensidade de Toby. De Blake.
— Se eu ganhar esse jogo... — continuou ela, aço e encanto em
seu tom.
— É seu — confirmou Blake. — Tudo. Mas, antes de
começarmos...
Blake ergueu um dedo e um membro da equipe de segurança
correu até ele.
— Você poderia buscar nosso outro hóspede para a srta.
Grambs?
Grayson. Eu não me deixei acreditar totalmente que ele estava
bem até vê-lo, e então me permiti pensar no que tinha ganhado —
não só a liberdade dele, mas a promessa de que ninguém
importante para mim seria recebido ali de novo.
— Avery.
Os olhos azul-acinzentados de Grayson, suas íris geladas e
claras contra o preto-escuro das pupilas, se fixaram nos meus.
— Eu tinha um plano — falou.
— Sacrifício impulsivo? — respondi. — É, eu notei.
Eu o puxei para perto e falei diretamente no ouvido dele:
— Eu te disse, Grayson, nós somos família.
Eu o soltei. O tabuleiro foi montado uma última vez. Eve com as
brancas. Eu com as pretas. Com dezenas de milhares de diamantes
brilhando entre nós, nos enfrentamos em um jogo que valia muita
coisa.
Com base no nível de jogo de Eve contra Toby, eu não tinha
antecipado o desafio que logo me vi enfrentar. Era como se ela
tivesse assistido ao meu jogo contra o pai dela, internalizado
dezenas de novas estratégias e aprendido como eu via o tabuleiro.
Ela está jogando pra ganhar. Eu estava desesperada para salvar
Oren, e não tinha ideia de que crime eu tinha cometido ao não
denunciar a morte de Sheffield Grayson. Mas Eve? Ela estava
jogando pelas chaves do reino, por riqueza e poder inimagináveis.
Pela aceitação de alguém por quem estava desesperada para ser
aceita.
O resto da sala sumiu até eu não ouvir mais nada além dos sons
do meu próprio corpo, não ver mais nada além do tabuleiro. Levou
mais tempo do que eu previa, mas, finalmente, eu vi minha abertura.
Eu podia dar xeque em três movimentos, xeque-mate em cinco.
E então eu podia ir embora com Grayson, sabendo que Vincent
Blake teria muito menos formas de vir atrás de mim.
Mas ele ainda virá.
Os ataques aos meus interesses financeiros, os paparazzi, jogar
jogos e me encurralar. Ele vai continuar. Essa ideia cresceu na
minha mente, empurrando meu foco da partida contra Eve para o
panorama maior.
Para mim, aquele não era o jogo final.
Eu podia vencer, e ainda sairia dali nada melhor do que quando
Tobias Hawthorne tinha morrido. Ainda seria temporada de caça.
Um homem que Tobias Hawthorne temera tanto que o fizera deixar
sua fortuna para uma desconhecida ainda estaria mirando em mim.
Mesmo sem violência, mesmo com a segurança física garantida,
Vincent Blake ainda encontraria uma forma de destruir qualquer um,
todo mundo, e tudo que estivesse em seu caminho.
Essa vitória contra Eve não seria suficiente.
Eu precisava jogar um jogo maior. Eu precisava olhar além do
tabuleiro, jogar dez movimentos à frente, não cinco, pensar em três
dimensões, não duas. Se eu vencesse Eve, Vincent Blake me
mandaria embora, e faria isso sabendo que eu era mais do que ele
tinha suposto. Ele ajustaria suas expectativas para o futuro.
Você é jovem, a voz de Tobias Hawthorne ecoava na minha
mente. Você é mulher. Você não é ninguém. Use isso. Se eu desse
uma desculpa para Vincent Blake continuar me subestimando, ele
continuaria.
Eu tinha ido até ali com um plano em mente. O torneio não era
parte do plano, mas eu podia usá-lo.
Jogar xadrez não era só questão de antecipar os movimentos do
oponente. Era preciso plantar os movimentos na mente deles, jogar
iscas. Ao ouvir a gravação que o velho tinha deixado para nós,
Xander ficara maravilhado com o fato de que Tobias Hawthorne
previra exatamente o que faríamos após sua morte, mas Hawthorne
não tinha só previsto.
Ele tinha manipulado. Nos manipulado.
Se quisesse vencer Blake, eu precisava fazer a mesma coisa.
Então eu não usei a abertura que Eve tinha me dado. Não a venci
em cinco movimentos.
Eu deixei ela me vencer em dez.
Notei o momento exato em que Eve percebeu que o império de
Vincent Blake estava a seu alcance, e o momento, logo depois,
quando os olhos de Toby brilharam. Ele desconfiava que eu tinha
entregado o jogo?
Meu oponente de verdade desconfiava também?
— Muito bem, Eve.
Blake ofereceu a ela um pequeno sorriso satisfeito e Eve brilhou,
dando um sorriso luminoso. Blake se virou para mim e Grayson.
— Vocês dois podem ir.
Os homens dele nos cercaram e eu não precisei fingir meu
pânico.
— Espere! — exclamei, soando desesperada, e sentindo o
desespero, porque, mesmo que fosse um risco calculado, eu não
tinha como saber se não tinha errado o cálculo. — Me dê outra
chance!
— Tenha alguma dignidade, criança — disse Blake, que se
levantou e deu as costas para mim enquanto o cão de caça
retornava e jogava um pato morto aos seus pés. — Ninguém gosta
de maus perdedores.
— Você ainda pode ter um favor — gritei quando a equipe de
segurança de Blake começou a me expulsar. — Um último jogo. Eu
contra você.
— Eu não preciso de um favor seu, menina.
Tudo bem, tentei dizer a mim mesma. Existe outra opção. Uma
opção para a qual eu tinha ido preparada. Uma opção para qual eu
tinha me planejado. O presente do jogo de xadrez, o fato de que
Alisa estava esperando por mim do lado de fora... eu sempre
soubera qual seria meu gambito.
O que precisaria ser.
— Então não ofereço um favor — falei, tentando manter o pânico
e o desespero para que ele não visse o profundo sentimento de
calma crescendo dentro de mim. — E quanto ao resto?
Grayson olhou com dureza na minha direção.
— Avery.
Vincent Blake ergueu uma mão e seus homens deram um passo
silencioso para trás.
— O resto do que, exatamente?
— Da fortuna Hawthorne — falei, com pressa. — Minha advogada
anda atrás de mim para assinar esses documentos há semanas.
Tobias Hawthorne não amarrou minha fortuna a um fundo. A boa
gente da McNamara, Ortega e Jones está nervosa com uma
adolescente tomando as rédeas, então Alisa organizou uma
papelada que colocaria tudo em um fundo até eu fazer trinta anos.
— Avery.
A voz de Toby era baixa e cheia de advertência. Parte de mim
queria acreditar que ele só estava me ajudando com a pose de
desesperada, mas ele provavelmente estava oferecendo um aviso
genuíno de cuidado.
Eu estava arriscando demais.
— Se você jogar contra mim — eu disse a Blake, apontando com
a cabeça para o tabuleiro — e vencer, eu vou assinar os
documentos e tornar você o responsável pelo fundo.
Quando viera, eu estava contando com o ego de Blake para fazê-
lo pensar que podia ganhar de mim, mas havia a chance de ele
perceber que eu tinha sugerido xadrez especificamente por ter uma
boa chance de vencer. Mas agora?
Ele tinha me visto jogar.
Ele tinha me visto perder.
Ele pensava que eu estava fazendo a oferta por impulso, porque
eu tinha perdido.
Ainda assim, ele me fitou com olhos atentos e o sorriso mais
desconfiado do mundo.
— Agora, por que você faria uma coisa dessas?
— Eu não quero que ninguém saiba de Sheffield Grayson —
cuspi. — E eu li a papelada! Com um fundo, o dinheiro ainda
pertenceria a mim. Eu só não iria controlá-lo. Você teria que
prometer liberar qualquer compra que eu quisesse fazer, me deixar
gastar todo o dinheiro que eu quisesse, sempre que eu quisesse.
Mas tudo que eu não puder gastar? Você quem vai decidir como
será investido.
Você sabe a maior diferença entre milhões e bilhões?, Skye
Hawthorne tinha perguntado o que parecia uma pequena eternidade
antes. Porque, a partir de certo ponto, não é o dinheiro.
Era o poder.
Vincent Blake não queria nem precisava da fortuna de Tobias
Hawthorne para gastá-la.
— Tudo isso, pelo dobro ou nada? — perguntou Blake, direto.
Como Tobias Hawthorne, o homem na minha frente pensava sete
passos à frente. Ele sabia que eu tinha outra carta na manga.
Mas, com sorte, só uma.
— Não — admiti. — Se vencer, você ganha o controle de tudo,
totalmente, até eu fazer trinta anos ou você estar a sete palmos do
chão. Mas, se eu ganhar, você garante que qualquer boato sobre
Sheffield Grayson vai continuar enterrado e me dá sua palavra de
que isso acaba aqui.
Era aquele o plano. Sempre fora o plano. Meu maior adversário, e
agora o seu, é um homem de honra, me dissera Tobias Hawthorne.
Vença-o, e ele honrará a vitória.
— Se eu ganhar — continuei —, o armistício que você tinha com
Tobias Hawthorne se estenderá a mim. Fim da temporada de caça.
Eu lhe lancei um olhar duro, que eu suspeitava profundamente
que ele achava engraçado.
— Você me deixa ir — acrescentei —, como deixou ir o jovem
Tobias Hawthorne, muito tempo atrás.
Eu desejei que ele me visse como impulsiva, que me visse
improvisar porque tinha perdido. Eu sou jovem, eu sou mulher, eu
não sou ninguém. E você acabou de ver Eve ganhar de mim no
xadrez.
— Como eu posso saber que você vai manter seu lado do
acordo? — perguntou meu adversário.
Eu precisei de tudo que tinha para não permitir que nem uma
sombra de vitória pulsasse por mim.
— Se você aceitar a aposta — falei, toda inocência e bravata —,
nós faremos duas ligações: uma para seu advogado, e uma para a
minha.
CAPÍTULO 82

— Que raios você está fazendo? — sibilou Alisa.


Nós duas estávamos supostamente sozinhas, mas, mesmo sem
ninguém visivelmente escutando, eu não queria explicar nada que
pudesse mostrar minhas cartas para Blake.
— O que preciso fazer — eu disse, esperando que Alisa lesse
muito mais no meu tom.
Eu tenho um plano.
Vai dar certo.
Você precisa confiar em mim.
Alisa me encarou como se eu tivesse ganhado chifres.
— Você não precisa fazer isso de jeito nenhum.
Eu não ia ganhar a discussão, então nem tentei. Só esperei ela
perceber que eu não ia desistir.
Quando percebeu, Alisa xingou baixo e desviou o olhar.
— Você sabe por que Nash e eu terminamos o noivado? —
perguntou em um tom que era calmo demais para as palavras que
tinha dito e para nossa situação. — Ele não queria que o avô
mandasse nele, nem em mim. Estava muito determinado, e
esperava que eu também abrisse mão de tudo ligado aos
Hawthorne.
— E você não conseguiu.
Eu não sabia bem onde ela queria chegar.
— Nash foi educado para ser extraordinário — disse Alisa. — Mas
não foi só a educação dele que o velho influenciou, então eu fiquei,
sim.
Alisa falava com secura, se recusando a dar às palavras mais
importância do que precisava.
— Eu fiz o que Nash deveria ter feito — continuou. — Isso me
custou tudo, mas, antes do sr. Hawthorne falecer, ele estipulou para
o meu pai e os outros sócios que seria eu quem cuidaria das coisas
com você — disse, e baixou os olhos. — Eu até escuto o que o
velho diria da bagunça que eu fiz. Primeiro, me deixei ser
sequestrada, e agora, isso.
A bagunça que ela pensava que eu estava fazendo.
— Ou talvez — falei, em um tom que capturou sua atenção —
você tenha feito exatamente o que ele te ensinou a fazer,
exatamente o que ele escolheu você para fazer.
Eu desejei que ela entendesse o significado da minha ênfase. Ele
não escolheu só você. Ele também me escolheu, Alisa... e talvez eu
esteja fazendo exatamente o que ele escolheu para mim.
Devagar, a expressão nos olhos profundos e castanhos dela
mudou. Ela sabia que eu estava dizendo para ela acreditar que eu
tinha sido escolhida por um motivo. Que era aquele o motivo.
Era nossa jogada.
— Você faz alguma ideia de como isso é arriscado? — me
perguntou Alisa.
— Sempre foi — respondi —, desde o momento em que Tobias
Hawthorne mudou seu testamento.
Essa era sua aposta muito arriscada, e a minha também.
CAPÍTULO 83

Blake deixou que eu jogasse com as peças brancas, então o


primeiro movimento era meu. Comecei com o gambito da rainha. Só
uns doze movimentos depois Vincent Blake percebeu que meus
instintos iam além das manobras clássicas. Em mais quatro
movimentos, ele tomou meu bispo, o que me permitiu executar uma
sequência que terminava comigo tomando a rainha dele.
Aos poucos, movimento a movimento e contra-ataque a contra-
ataque, Vincent Blake notou que nosso nível era muito mais
equilibrado do que ele tinha imaginado.
— Eu agora vejo — me disse ele — o que você está fazendo.
Ele via o que eu tinha feito. A jovem com quem ele estava
jogando não era a mesma que tinha perdido para Eve. Eu o tinha
enganado, e ele sabia disso, mas já era tarde.
Em quatro movimentos, pensei, meu coração batendo de um jeito
incessante e brutal, eu ganho dele.
Depois de dois, ele percebeu que eu o tinha encurralado. Ele se
levantou, deitando o rei e entregando a partida. Ouro branco estalou
quando a peça bateu no tabuleiro incrustado de joias, o rei de
diamante negro brilhando ao sol.
Vincent Blake era um homem poderoso, um homem rico, um
oponente formidável, e ele tinha me subestimado.
— Pode ficar com o tabuleiro de xadrez — eu disse a ele.
Por um momento, eu senti Blake lutando consigo mesmo. Os
advogados estavam ali para garantir o meu lado da barganha, não o
dele. Eu prometo que não vou te destruir lenta e estrategicamente
não era um termo possível de determinar juridicamente. Eu tinha
apostado tudo na única garantia que Tobias Hawthorne me dera.
Que, se eu vencesse Blake, ele honraria a vitória.
— O que acabou de acontecer aqui? — questionou Eve.
Vincent Blake me deu um último olhar duro e então se endireitou.
— Ela ganhou.
CAPÍTULO 84

Vincent Blake iria honrar nossa aposta, mas ele nunca mais queria
me ver em sua propriedade.
— Acompanhem Avery, Grayson e a srta. Ortega de volta ao
portão — ordenou aos seguranças. — Cuidem de dispersar a
imprensa antes deles chegarem.
Uma mão se fechou em volta do meu braço, sugerindo
exatamente que tipo de “acompanhamento” eu teria. Mas, no
momento seguinte, o homem que tinha me agarrado estava no chão
e Toby estava em cima dele.
— Eu os acompanho — disse ele.
Os homens de Blake olharam para o chefe.
Vincent Blake deu um sorriso generoso a Toby.
— Como quiser, Tobias Blake.
O nome era um lembrete afiado: eu podia ter ganhado minha
aposta, mas Toby tinha perdido a dele. Com uma mão nas minhas
costas, ele me levou embora, circulando a casa.
Nós quase tínhamos chegado à saída quando uma voz falou atrás
de nós.
— Parem.
Eu queria ignorar Eve, mas não podia. Devagar, me virei para
encará-la, ciente de que Grayson estava exercendo um controle de
aço sobre qualquer impulso que pudesse ter de fazer o mesmo.
— Você me deixou ganhar — disse Eve.
Era uma acusação, furiosa e baixa. Ela olhou para Toby.
— Você também entregou seu jogo? — perguntou a ele, sua voz
tremendo.
Quando Toby não respondeu, Eve se virou de volta para mim.
— Ele entregou? — exigiu saber.
— Faz diferença? — perguntei. — Você conseguiu o que queria.
Eve tinha os cinco selos. Ela era a única herdeira do império de
Blake.
— Eu queria — sussurrou Eve, a voz baixa, mas brutalmente
feroz —, pela primeira vez na vida, provar para alguém que eu era
boa suficiente.
O olhar dela a traiu, indo para Grayson, mas ele não se virou.
— Eu queria que Blake me enxergasse — continuou Eve,
voltando a me olhar —, mas agora a única coisa que ele vai ver
quando olhar para mim é você.
Eu tinha usado Eve para vencer Blake, e ela estava certa: ele
nunca esqueceria.
— Eu te enxerguei, Eve — disse Grayson, a voz sem emoção, o
corpo imóvel. — Você poderia ter sido uma de nós.
A expressão de Eve hesitou e, por um brevíssimo momento, eu
me lembrei da menininha no medalhão. Então a pessoa na minha
frente se endireitou, um olhar altivo assumindo suas feições como
uma máscara de porcelana.
— A menina que você conheceu — disse ela a Grayson — era
uma mentira.
Se ela achava que ia arrancar alguma reação de Grayson
Davenport Hawthorne, estava errada.
— Tire-os daqui — disse Eve, virando bruscamente a cabeça para
Toby. — Agora.
— Eve... — começou a dizer Toby.
— Eu mandei vocês irem embora — disse ela, e uma fagulha de
vitória, dura e cruel, brilhou nos olhos cor de esmeralda. — Você vai
voltar.
Foi como uma flecha no meu coração. Toby não tem escolha.
Sem hesitar, ele me levou para longe da filha, e só voltou a falar
depois de chegar à caminhonete comigo, Alisa e Grayson.
— O que você fez com Blake foi muito arriscado — me disse
Toby, meio censura, meio elogio.
Eu dei de ombros.
— Foi você quem escolheu meu nome.
Avery Kylie Grambs. A very risky gamble, uma aposta muito
arriscada. Toby tinha ajudado a me trazer para o mundo. Ele tinha
me dado meu nome. Ele tinha vindo a mim quando minha mãe
morrera. Ele tinha me salvado quando eu precisava ser salva.
E eu ia perdê-lo de novo.
— O que acontece agora? — perguntei a ele, meus olhos
começando a arder, minha garganta apertada.
— Eu me torno Tobias Blake.
Toby sabia da verdade a respeito da sua linhagem fazia duas
décadas. Se ele quisesse aquela vida, já a estaria vivendo.
Eu pensei nas palavras que ele tinha escrito na câmara embaixo
do labirinto. Eu nunca fui um Hawthorne. Eu nunca serei um Blake.
— Você não precisa fazer isso — eu disse a ele. — Você poderia
fugir. Você conseguiu passar anos escondido de Tobias Hawthorne.
Poderia fazer a mesma coisa com Blake.
— E dar àquele homem justificativa para invalidar o trato com
você? — cortou Alisa. — Se invalidar uma aposta no conjunto, ele
pode facilmente argumentar que invalidou todas elas.
— Eu não vou fugir dessa vez — disse Toby, decidido.
Segui o olhar dele até Eve, que estava na varanda de novo, seu
cabelo âmbar voando com a brisa, parecendo plenamente uma
rainha conquistadora de outro mundo.
— Você vai ficar por ela.
Eu não queria que tivesse soado como uma acusação de traição.
— Eu vou ficar por vocês duas — respondeu Toby e, por um
momento, eu vi nós dois, ouvi nossa última conversa.
Você tem uma filha.
Eu tenho duas.
— Ela ajudou Blake a te sequestrar — falei, áspera. — Ela me
usou... usou todos nós.
— E, quando eu tinha a idade dela — respondeu Toby, abrindo a
porta da caminhonete e fazendo um gesto para eu entrar —, matei a
irmã da sua mãe.
Eu queria protestar, dizer que ele não tinha começado o incêndio,
mesmo que tivesse encharcado a casa de gasolina, mas ele não
deixou.
— Hannah achava que eu tinha redenção.
Mesmo depois de tanto tempo, Toby não podia mencionar minha
mãe sem se comover.
— Você acha mesmo que ela iria querer que eu abandonasse
Eve? — perguntou.
Eu senti um soluço preso em algum lugar.
— Você podia ter me contado — eu disse, minha voz raspando na
garganta. — De Blake. Do corpo. Por que estava tão determinado a
ficar nas sombras.
Toby levou a mão ao meu rosto, e afastou uma mecha de cabelo
da minha têmpora.
— Eu teria feito muitas coisas diferente se pudesse viver essa
vida de novo.
Eu pensei no que tinha dito a Jameson sobre destino,
predestinação e escolha. Eu sabia por que Tobias Hawthorne tinha
me escolhido. Eu sabia que aquilo nunca tinha sido por minha
causa. Mas, diferente de Toby, eu não tinha arrependimentos. Eu
teria feito aquilo, tudo aquilo, de novo.
O jogo de Tobias Hawthorne não tinha me tornado extraordinária.
Tinha me mostrado que eu já era.
— Eu vou te ver de novo? — perguntei a Toby, minha voz
falhando.
— Blake não vai me manter em prisão domiciliar.
Toby esperou que Alisa e Grayson subissem depois de mim,
então fechou a porta do lado do carona e contornou para o outro
lado da caminhonete. Quando falou de novo, foi do assento do
motorista.
— E o Texas, na verdade, não é tão grande, especialmente visto
do topo.
Dinheiro. Poder. Status. Meu caminho e o de Vincent Blake
provavelmente iriam se cruzar de novo, assim como o meu e de
Toby. O meu e de Eve.
— Aqui — disse Toby, e colocou um pequeno cubo de madeira na
minha mão antes de dar a partida. — Eu fiz uma coisa pra você,
menina terrível.
O apelido quase me desmontou.
— O que é isso?
— Blake não me deu muita coisa para me entreter, só madeira e
uma faca.
— E você não usou a faca? — perguntou Grayson ao meu lado.
O tom dele deixou muito claro o tipo de uso que ele teria
aprovado.
— Você teria usado — argumentou Toby —, se achasse que seu
sequestrador poderia atingir Avery?
Toby tinha me protegido. Ele tinha feito algo para mim.
Você tem uma filha.
Eu tenho duas.
Eu baixei os olhos para o cubo de madeira nas minhas mãos,
pensando na minha mãe, naquele homem, nas décadas e tragédias
e pequenos momentos que tinham levado todos nós até ali.
— Cuide dela — disse Toby a Grayson quando os limites da
propriedade de Blake surgiram. — Se cuidem.
A imprensa tinha sido retirada, mas Oren e seus seguranças
ainda estavam ali esperando, assim como Jameson Winchester
Hawthorne.
Grayson viu o irmão e respondeu pelos dois:
— Vamos cuidar.
CAPÍTULO 85

— O cavaleiro retorna com a donzela em perigo — declarou


Jameson quando me aproximei.
Ele olhou para Grayson.
— Você é a donzela — acrescentou.
— Imaginei — disse Grayson, sem demora.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei a Jameson, mas a
verdade era que eu não me importava por que ele tinha vindo,
apenas que ele estava ali.
Nós tínhamos vencido — depois de tudo, eu tinha vencido —, e
Jameson era a única pessoa no planeta capaz de entender
exatamente e por completo o que eu tinha sentido no momento em
que notara que meu plano daria certo.
O barato. A onda. O encanto de adrenalina.
O momento em que a vitória estivera ao meu alcance tinha sido
como parar na beira da catarata mais forte do mundo, o rugido do
momento bloqueando todo o resto.
Como saltar de um penhasco e descobrir que eu sabia voar.
Como Jameson e eu, e Jameson-e-eu, e eu queria reviver tudo
com ele.
— Achei que você precisava de uma carona pra casa — me disse
Jameson.
Eu olhei para além dele, esperando ver a McLaren, um dos
Bugattis ou o Aston Martin Valkyrie, mas em vez disso meu olhar
encontrou um helicóptero, menor do que o que Oren tinha usado
para me levar até ali.
— Eu tenho quase certeza de que você não podia aterrissar esse
helicóptero ali — disse Grayson ao irmão.
— Sabe o que dizem sobre permissão e perdão? — respondeu
Jameson, então voltou a me olhar com uma expressão familiar,
igualmente eu te desafio e eu nunca vou te abandonar. — Quer
aprender a voar?

Naquela noite, eu girei nas mãos o cubo que Toby tinha me dado.
Arranhei o dedo na borda e notei que era feito de peças interligadas.
Trabalhando devagar, resolvi o quebra-cabeça, desmontei o cubo e
dispus as peças na minha frente.
Em cada uma, ele tinha entalhado uma palavra.
Eu
Vejo
Muito
Da
Sua
Mãe
Em
Você
E foi então, mais do que no momento em que eu tinha derrotado
Blake, que eu soube.

***

Na manhã seguinte, antes de todo mundo acordar, eu fui até o salão


principal e acendi a lareira gigantesca. Eu podia ter feito aquilo no
meu quarto ou em qualquer uma das dezenas de outras lareiras da
Casa Hawthorne, mas parecia certo voltar ao cômodo onde o
testamento tinha sido lido. Eu quase via os fantasmas ali: todos nós,
naquele momento.
Eu, pensando que herdar alguns milhares de dólares mudaria
minha vida.
Os Hawthorne, descobrindo que o velho tinha deixado a fortuna
para mim.
As chamas aumentavam cada vez mais na lareira e eu olhei para
os papéis que tinha na mão: os documentos do fundo que Alisa
tinha organizado.
— O que você está fazendo?
Libby, de pantufas em forma de caixão, se aproximou, engolindo
um bocejo. Eu levantei os papéis.
— Se eu assinar isso, meus bens vão ficar presos em um fundo,
pelo menos por um tempo.
Todo aquele dinheiro. Todo aquele poder.
Libby olhou de mim para a lareira.
— Bem — disse ela, o mais animada que uma pessoa usando
uma outra camiseta que diz EU COMO QUEM ACORDA CEDO já soou —, o que
você está esperando?
Eu baixei os olhos para os documentos, ergui-os para a lareira... e
joguei tudo ali. As chamas lamberam as páginas, devorando o
juridiquês e, com ele, a opção de delegar o poder e
responsabilidade que eu tinha recebido para outras pessoas. Eu
sentia algo em mim começar a se soltar, como as pétalas de uma
tulipa se abrindo no início do florescimento.
Eu era capaz daquilo.
Eu ia fazer aquilo.
Se o último ano tinha sido algum tipo de teste, eu estava pronta.

Eu comecei a levar o caderno de couro que Grayson tinha me dado


para toda parte. Eu não tinha um ano para fazer planos. Tinha dias.
E, sim, havia conselheiros financeiros, uma equipe jurídica e um
status quo com o qual eu podia contar se quisesse ganhar tempo,
mas não era isso que eu queria.
Não era o plano.
No fundo, eu sabia o que queria fazer. O que precisava fazer. E
todos os advogados, conselheiros financeiros e investidores
poderosos do estado do Texas... eles não iam gostar.
CAPÍTULO 86

Na noite mais importante da minha vida, eu estava em frente a um


espelho de corpo inteiro, usando um vestido longo vermelho-escuro
digno de uma rainha. A cor era insuportavelmente viva, mais escura
que um rubi, mas igualmente luminosa. Fios dourados e pedras
preciosas delicadas se combinavam para formar veios discretos que
subiam sinuosos pela saia rodada. O corpete era simples, ajustado
no meu corpo, com mangas vermelhas esvoaçantes e transparentes
que beijavam meus pulsos.
No pescoço, eu usava um único diamante em formato de lágrima.
Cinco horas e doze minutos. A ansiedade aumentava dentro de
mim. Logo, meu ano na Casa Hawthorne teria terminado.
Nada seria igual novamente.
— Se arrependeu de deixar Xander te convencer a dar essa
festa?
Eu me virei do espelho para a porta, onde Jameson estava
parado, de smoking branco e colete vermelho, do mesmo tom
escuro do meu vestido. O paletó estava desabotoado, a gravata-
borboleta preta um pouco torta e um pouco frouxa.
— É difícil me arrepender com um Hawthorne de smoking — falei,
um sorriso curvando a boca quando me aproximei dele. — E hoje
vai ser meu tipo de festa.
Nós estávamos chamando de Festa da Contagem Regressiva.
Que nem de Réveillon, Xander tinha dito ao propor o evento, mas à
meia-noite você vira bilionária!
Jameson estendeu uma das mãos, com a palma para cima. Eu a
peguei e nossos dedos se entrelaçaram, a ponta do meu indicador
tocando a pequena cicatriz na parte interna do dele.
— Para onde primeiro, Herdeira?
Eu sorri. Diferente do baile introvertido, aquela noite era minha
ideia, uma festa rotativa na qual nós passaríamos uma hora em
cinco locais diferentes da Casa Hawthorne, fazendo a contagem
regressiva para a meia-noite. A lista de convidados era pequena: os
de sempre, menos Max, que estava presa na faculdade e
participaria por ligação de vídeo no fim da festa.
— O jardim de esculturas.
Os olhos verdes de Jameson estudaram meu rosto.
— E o que faremos no jardim de esculturas? — perguntou, uma
quantidade apropriada de suspeita no tom dele.
Eu sorri.
— Adivinha.

— O nome do jogo é pique-molha.


Vestindo um smoking azul-brilhante que parecia pertencer a um
tapete vermelho e segurando o que devia ser a maior pistola d’água
do mundo, Xander estava realmente em seu habitat.
— O objetivo é: completa dominação aquática — continuou.
Cinco minutos depois, eu me enfiei atrás de uma escultura de
bronze de Teseu e o Minotauro. Libby já estava ali, agachada no
chão, o vestido vintage dos anos 1950 levantado até as coxas.
— Como você está? — perguntou Libby, mantendo a voz baixa.
— Grande noite.
Espiei por trás do Minotauro, então recuei.
— Neste momento, estou sendo caçada — falei, e sorri. — Como
você está?
— Pronta.
Libby baixou os olhos para os balões d’água que segurava nas
mãos e para seu par de tatuagens: SOBREVIVENTE em um pulso, e no
outro... CONFIANÇA.
Passos. Eu me preparei no momento em que Nash escalou Teseu
e aterrissou entre Libby e eu, segurando o que parecia ser uma
pistola d’água derretida.
— Jamie e Gray uniram forças. Xander arranjou um lança-
chamas. Isso nunca é bom sinal — disse Nash, e olhou para mim.
— Você ainda está armada. Ótimo. Controlada e calma, menina.
Sem piedade.
Libby se inclinou por trás de Nash para olhar nos meus olhos.
— Lembre — disse ela, o olhar dançando —, não é jogo sujo se
você ganhar.
Eu virei a pistola de água para Nash no momento em que ela o
acertou com um balão de água.

***

Às oito, a festa passou para a parede de escalada. Jameson se


arrumava ao meu lado.
— Encharcada e de vestido longo — murmurou ele. — Vai ser um
desafio.
Torci o cabelo molhado e respinguei água nele.
— Estou pronta.
Às nove, passamos para a pista de boliche. Às dez, seguimos
para a oficina de cerâmica, uma sala com rodas de oleiro e um
forno.
Quando deu onze horas e nós passamos pelo labirinto de
corredores da Casa Hawthorne até o fliperama, nossos vestidos e
smokings tinham sido encharcados, rasgados e sujos de argila. Eu
estava exausta, dolorida e preenchida de uma empolgação que
desafiava qualquer descrição.
Era isso.
Era a noite.
Era tudo.
Era a gente.
No fliperama, quatro chefs particulares nos encontraram, cada um
com um prato exclusivo para apresentar. Ensopado de carne em
longo cozimento, acompanhado de pãezinhos de porco tão macios
que deveriam ser ilegais. Risoto de lagosta. Os dois primeiros pratos
quase me fizeram chorar, e isso antes de eu morder um sushi que
parecia uma obra de arte bem quando o último chef pôs fogo na
sobremesa.
Eu olhei para Oren. Era ele quem tinha liberado os cozinheiros
para entrarem ali naquela noite.
— Você precisa provar isso — eu disse a ele. — Tudo isso.
Observei Oren ceder e provar o pãozinho de porco, e então senti
outra pessoa me observando. Grayson estava de smoking prateado
com linhas rígidas e angulares, sem gravata-borboleta, a camisa
abotoada até o alto.
Eu achei que ele ia manter distância, mas andou até mim, sua
expressão atenta.
— Você tem um plano — comentou, em voz baixa, suave e
segura.
Meu coração acelerou. Eu não tinha só um plano. Eu tinha O
Plano.
— Eu o escrevi — disse a Grayson. — E então reescrevi, várias e
várias vezes.
Ele era o Hawthorne no qual eu mais tinha pensado enquanto
fazia aquilo, aquele cuja reação eu menos podia prever.
— Fico feliz — me disse Grayson, as palavras lentas e
deliberadas — por ter sido você.
Ele deu um passo para trás, abrindo caminho para Jameson
deslizar para o meu lado.
— Você já decidiu — me perguntou Jameson — que sala vai
acrescentar à Casa Hawthorne esse ano?
Eu me perguntei se ele sentia minha ansiedade, se ele tinha
alguma ideia de para o que estávamos fazendo contagem
regressiva.
— Eu tomei muitas decisões — eu disse.
Alisa ainda não tinha chegado, mas ela logo estaria ali.
— Se você estiver planejando construir uma corrida de obstáculos
que desafie a morte no lado sul do bosque Black Wood — disse
Xander, saltitando, em êxtase após uma vitória no skee-ball —,
conte comigo! Eu tenho uma dica de onde arranjar uma gangorra de
dois andares por um preço razoável.
Eu sorri.
— O que você faria — perguntei a Jameson — se fosse
acrescentar uma sala?
Jameson puxou meu corpo contra o dele.
— Centro de paraquedismo, acessível por uma passagem secreta
na base da parede de escalada. Quatro andares de altura, parece
só outra torre pelo lado de fora.
— Fala sério — disse Thea, que apareceu segurando um taco de
sinuca. Ela usava um vestido longo e prateado que deixava faixas
largas de pele bronzeada à mostra e cuja fenda ia até a coxa. — A
resposta correta é obviamente salão de baile.
— O hall tem o tamanho de um salão de baile — apontei. —
Tenho certeza de que é usado assim há décadas.
— E ainda assim — retrucou Thea — segue não sendo um salão
de baile
Então se virou de volta para a mesa de sinuca, onde ela e
Rebecca estavam enfrentando Libby e Nash. Bex se debruçou na
mesa, mirando o que parecia ser uma tacada impossível, o smoking
de veludo verde se apertando contra o peito, cabelo vermelho-
escuro penteado para um lado e caindo no rosto.
O mundo tinha aceitado minha versão da morte de Will Blake. A
culpa tinha ficado totalmente em cima de Tobias Hawthorne. Mas,
quando Toby tinha reaparecido, milagrosamente vivo, e anunciado
que ia mudar seu nome para Tobias Blake, a imprensa não levara
muito tempo para descobrir que ele era filho de Will, ou para
começar a especular a respeito de quem era a mãe biológica de
Toby.
Rebecca tinha deixado claro que ainda não se arrependia de ter
aberto o jogo.
Ela deu a tacada e Thea caminhou de volta até ela, lançando a
Nash um olhar de conquista.
— Ainda confiante, caubói?
— Sempre — retrucou Nash.
— Isso — disse Libby, encontrando o olhar dele — é um
eufemismo.
Nash abriu um sorriso.
— Com sede? — perguntou pra minha irmã.
Libby cutucou o peito dele.
— Tem um chapéu de caubói na geladeira, não tem?
Ela olhou para os pulsos, então andou até a geladeira e pegou um
refrigerante cor-de-rosa e um chapéu de caubói de veludo preto.
— Eu uso isso — disse ela a Nash — se você pintar as unhas de
preto.
Nash deu a ela o que só poderia ser descrito como um sorriso de
caubói.
— Das mãos ou dos pés?
Um chorinho atrás de mim me fez virar para a porta. Alisa estava
ali, segurando um filhote bem agitado.
— Eu a encontrei na galeria — me informou ela, seca. — Latindo
para um Monet.
Xander pegou o cachorrinho e a ergueu, murmurando para ela.
— Sem comer Monets — falou com voz de bebê. — Tiramisu feia.
Ele deu a ela o maior e mais tonto sorriso do mundo.
— Cachorro feio — continuou. — Só por causa disso... você
precisa fazer carinho em Grayson.
Xander jogou o filhote no irmão.
— Você está pronta pra isso? — perguntou Alisa ao meu lado
enquanto Grayson deixava o filhote lamber o nariz dele e desafiava
os irmãos para uma rodada de pinball segurando-o-cachorrinho.
— O máximo que vou ficar.
Trinta minutos. Vinte. Dez. Nenhuma quantidade de vitórias ou
perdas em sinuca, air hockey nem pebolim, nenhuma quantidade de
pinball com cachorrinho nem de tentar bater o recorde em dezenas
de jogos de fliperama podia me distrair de como o relógio avançava.
Três minutos.
— O truque para uma boa cara de blefe — murmurou Jameson —
não é deixar o rosto imóvel. É pensar em outra coisa em vez das
cartas, a mesma coisa o tempo todo.
Jameson Winchester Hawthorne me ofereceu a mão e, pela
segunda vez naquela noite, eu a peguei. Ele me puxou para uma
dança lenta, do tipo que não precisava de música.
— Você está fazendo sua cara de blefe, Herdeira.
Eu pensei em voar por uma pista de corrida, parar na beira do
telhado, andar na garupa da moto dele, dançar descalça na praia.
— Duto — eu disse.
James arqueou uma sobrancelha.
— Tipo de água?
— É seu anagrama — eu disse a ele — para tudo.
Meu celular tocou antes que ele pudesse responder, era uma
chamada em vídeo de Max. Eu atendi.
— Cheguei na hora pra contagem regressiva? — perguntou,
gritando por cima do que parecia ser uma música muito alta.
— Você está com seu champanhe? — perguntei.
Ela ergueu uma taça. Bem na hora, Alisa apareceu ao meu lado
segurando uma bandeja da mesma coisa. Eu peguei uma taça e
olhei nos olhos dela. Quase na hora.
— Piotr — disse Max, séria — se recusa totalmente a aceitar uma
taça no serviço. Porém, ele escolheu uma música tema. Eu o
ameacei com musicais.
— Essa é a minha garota! — gritou Xander.
— Mulher — corrigiu Max.
— Essa é a minha mulher! De uma forma totalmente não
possessiva e absolutamente não patriarcal!
Max ergueu sua taça para brindá-lo.
— Do baralho.
— Está na hora.
Jameson apareceu ao meu lado de novo. Eu me encostei nele
enquanto os outros se reuniam ao meu redor.
— Dez... Nove... Oito...
Jameson, Grayson, Xander e Nash.
Libby, Thea e Rebecca.
Eu.
Alisa ergueu uma taça de champanhe, mas ficou afastada do
grupo. Ela era a única que sabia o que estava prestes a acontecer.
— Três...
— Dois...
— Um.
— Feliz ano-novo! — gritou Xander.
No momento seguinte, tinha confete voando por toda parte. Eu
não fazia ideia de onde Xander tinha arranjado confete, mas ele
continuou a jogá-lo pro alto, aparentemente do nada.
— Feliz vida nova — corrigiu Jameson.
Ele me beijou como se fosse noite de ano-novo, e eu aproveitei.
Eu tinha sobrevivido a um ano na Casa Hawthorne. Eu tinha
completado as condições do testamento de Tobias Hawthorne. Eu
era uma bilionária. Uma das pessoas mais ricas e poderosas do
planeta.
E eu tinha O Plano.
— Posso? — me perguntou Alisa.
Nash estreitou os olhos. Ele a conhecia e isso significava que
sabia muito bem quando ela estava aprontando alguma coisa.
— Pode — eu disse a Alisa.
Ela ligou a televisão de tela plana e colocou em um canal
financeiro. Levou um ou dois minutos, mas então o aviso de URGENTE
apareceu na tela.
— Precisamente que tipo de urgência? — me perguntou Grayson.
Deixei que o repórter respondesse por mim.
— Nós acabamos de receber a notícia de que a herdeira
Hawthorne, Avery Grambs, herdou oficialmente os bilhões deixados
a ela pelo falecido Tobias Hawthorne. Descontados impostos e
levando em conta a inflação do último ano, o valor atual da herança
é estimado em mais de trinta bilhões de dólares. A srta. Grambs
anunciou que...
O repórter se interrompeu, as palavras morrendo na garganta.
Pela segunda vez na minha vida, eu senti todos os olhos de uma
sala se virarem para mim. Havia uma simetria estranha entre aquele
momento e o momento logo antes do sr. Ortega ler os termos finais
do testamento de Tobias Hawthorne.
— A srta. Grambs anunciou — tentou o repórter de novo, com a
voz esganiçada — que, valendo a partir da meia-noite, ela assinou
documentos transferindo noventa e quatro por cento da sua herança
para um fundo beneficente que será totalmente distribuído nos
próximos cinco anos.
Estava feito. Era oficial. Eu não podia desfazer, mesmo que
quisesse.
Thea foi a primeira a quebrar o silêncio.
— Que raios?
Nash se virou para a ex-noiva.
— Você a ajudou a doar todo esse dinheiro?
Alisa ergueu o queixo.
— Os sócios da firma nem sabem.
Nash soltou uma risada baixa.
— Você vai ser despedida, sem dúvida.
Alisa sorriu, não o sorriso tenso e profissional que normalmente
usava, mas um de verdade.
— Segurança profissional não é tudo — disse ela, e deu de
ombros. — E acontece que eu aceitei uma nova vaga em um fundo
beneficente.
Eu não conseguia olhar para Jameson. Nem Grayson. Nem
mesmo Xander ou Nash. Eu não tinha pedido a permissão deles. Eu
também não ia pedir perdão. Em vez disso, ergui o queixo, como
Alisa tinha feito.
— Logo mais todos vocês receberão convites para se juntarem ao
comitê da Fundação Hannah Igual Para a Frente e Para Trás.
Silêncio.
Dessa vez, foi Grayson quem o quebrou.
— Você quer que a gente te ajude a doar tudo?
Eu olhei nos olhos dele.
— Eu quero que vocês me ajudem a encontrar as melhores ideias
e as melhores pessoas para determinar como doar tudo.
Libby franziu o cenho.
— E a Fundação Hawthorne?
Além da fortuna de Tobias Hawthorne, eu também tinha herdado o
controle de seu empreendimento beneficente.
— Zara concordou em continuar por mais alguns anos enquanto
eu estiver ocupada de outras maneiras — respondi.
A Fundação Hawthorne tinha seu próprio regimento, que colocava
uma porcentagem mínima e máxima de bens que podiam ser
doados por ano. Eu não podia esvaziá-la, mas podia garantir que
minha fundação tivesse regras diferentes.
Que minha herança não fosse ficar separada para a caridade por
muito tempo.
Sorrindo, eu passei uma folha de papel para Libby.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Informação de acesso para cerca de dez sites diferentes nos
quais eu te inscrevi — eu disse a ela. — Ajuda mútua, no geral, e
microempréstimos para mulheres empreendedoras em países em
desenvolvimento. A nova fundação vai cuidar das doações oficiais,
mas nós duas sabemos como é precisar de ajuda e não ter para
onde ir. Eu separei dez milhões por ano para você, para isso.
Antes que ela pudesse responder, joguei algo para Nash. Ele
pegou, então examinou o que eu tinha jogado. Chaves.
— O que é isso? — perguntou, seu sotaque forte com a graça que
estava achando naquela reviravolta.
— Isso — eu disse a ele — são as chaves para o novo food truck
de cupcakes da minha irmã.
Libby me encarou, arregalando os olhos, boquiaberta.
— Eu não posso aceitar isso, Ave.
— Eu sei — falei, sorrindo. — É por isso que dei as chaves para
Nash.
Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, Jameson entrou
na minha frente.
— Você vai doar — disse, a expressão dele tão misteriosa para
mim quanto tinha sido no dia em que nos conhecemos — quase
tudo que o velho deixou para você, tudo que ele escolheu para
você...
— Eu vou manter a Casa Hawthorne — eu disse a ele. — E
dinheiro mais do que suficiente para mantê-la. Talvez eu até
mantenha uma ou duas casas de férias, depois de visitar todas elas.
Depois de nós visitarmos todas elas.
— Se Tobias Hawthorne estivesse aqui — declarou Thea —, ele
ia ficar doido.
Todo aquele dinheiro. Todo aquele poder. Dispersado, de forma
que nenhuma pessoa pudesse controlá-lo de novo.
— Eu acho que isso é o que acontece — disse Jameson, sem
nunca desviar o olhar do meu, a boca curvada em um sorriso —
quando você faz uma aposta muito arriscada.
UM ANO DEPOIS...

— Eu estou aqui hoje com Avery Grambs. Herdeira. Filantropa. Ela


mudou o mundo... e tem só dezenove anos. Avery, nos conte, como
é estar na sua posição com tão pouca idade?
Eu tinha me preparado para aquela pergunta e para toda pergunta
que a entrevistadora pudesse fazer. Ela era a única para quem eu
tinha dado uma entrevista no ano anterior, uma magnata da mídia
cujo nome era sinônimo de esperteza e sucesso. E, mais
importante, ela mesma era uma humanitária.
— Divertido? — respondi e ela riu. — Eu não quero soar modesta
— falei, projetando a sinceridade que sentia. — Estou ciente de que
sou basicamente a pessoa mais sortuda do mundo.
Landon tinha me dito que a arte de uma entrevista como aquela
— íntima, muito aguardada, com uma entrevistadora que era um
atrativo quase tão grande quanto eu — era fazer tudo soar como
uma conversa, fazer o público sentir que éramos só duas mulheres
conversando. Honestas. Abertas.
— E a questão — continuei, o encanto na minha voz ecoando
pela sala da Casa Hawthorne onde a entrevista estava acontecendo
— é que nunca fica normal. Você nunca se acostuma.
Ali naquela sala, que a equipe tinha passado a chamar de A Toca,
era fácil se sentir encantada. A Toca era pequena, pelos padrões da
Casa Hawthorne, mas cada aspecto dela, do chão de madeira
reutilizada às poltronas de leitura ridiculamente confortáveis, tinha
minha marca.
— Você pode ir para qualquer lugar — disse a entrevistadora,
discretamente combinando com o encanto na minha voz. — Fazer
qualquer coisa.
— E eu fiz — eu disse.
Estantes embutidas forravam as paredes da Toca. Em cada lugar
que eu fora, eu tinha achado um souvenir, uma lembrança da
aventura que eu tinha vivido ali. Arte, um livro na língua local, uma
pedra do chão, algo que tinha me tocado.
— Você foi a todo lugar, fez todas as coisas... — disse a
entrevistadora, com um sorriso sabido. — Com Jameson
Hawthorne.
Jameson Winchester Hawthorne.
— Você está sorrindo — me disse ela.
— Você também iria sorrir — respondi — se conhecesse
Jameson.
Ele seguia exatamente como sempre tinha sido, buscando
emoção, perseguindo sensações, assumindo riscos... e muito mais
que isso.
— Como ele reagiu quando descobriu que você iria doar uma
parte tão grande da fortuna da família?
— Ele ficou chocado no início — eu admiti. — Mas, depois, se
tornou um jogo... para todos eles.
— Todos os Hawthorne?
Eu tentei não dar um sorriso grande demais.
— Todos os meninos.
— Os meninos, ou seja, os irmãos Hawthorne. Metade do mundo
está apaixonada por eles, agora mais do que nunca.
Não era uma pergunta, então eu não respondi.
— Você disse que, depois que o choque da sua decisão passou,
doar o dinheiro se tornou um jogo para os irmãos Hawthorne?
Tudo é um jogo, Avery Grambs. A única coisa que podemos
decidir nessa vida é se jogamos para ganhar.
— Estamos em uma corrida contra o tempo para encontrar as
causas e as organizações certas para doar o dinheiro — expliquei.
— Você criou sua fundação com o requisito de que todo o dinheiro
tinha que ser doado em cinco anos. Por quê?
Essa pergunta era mais fácil do que ela pensava.
— Grandes mudanças exigem grandes ações — eu disse. —
Acumular o dinheiro e distribuí-lo lentamente ao longo do tempo
nunca pareceu a direção certa.
— Então você abriu o espaço para os especialistas.
— Especialistas — confirmei. — Acadêmicos, pessoas com os
pés no chão, e mesmo só pessoas com grandes ideias. Nós
abrimos inscrições para vagas no comitê, e agora somos mais de
cem trabalhando na fundação. Nossa equipe inclui de ganhadores
do Nobel e do prêmio MacArthur a líderes humanitários,
profissionais médicos, sobreviventes de violência doméstica,
pessoas encarceradas e uma dúzia de ativistas com menos de
dezoito anos. Juntos, nós trabalhamos para gerar e avaliar planos
de ação.
— E analisar propostas — disse a entrevistadora, mantendo o
mesmo tom pensativo. — Qualquer um pode enviar uma proposta
para a Fundação Hannah Igual Para a Frente e Para Trás?
— Qualquer um — confirmei. — Nós queremos as melhores
ideias e as melhores pessoas. Você pode ser qualquer um, vindo de
qualquer lugar. Você pode sentir que não é ninguém. Nós queremos
ouvir você.
— De onde você tirou o nome da fundação?
Eu pensei em Toby, na minha mãe.
— Isso — eu disse ao mundo todo que estava assistindo — é um
mistério.
— E falando em mistérios... — A mudança no tom me sugeriu que
estávamos prestes a falar sério. — Por quê?
A entrevistadora deixou a pergunta no ar e então continuou:
— Por que, tendo recebido uma das maiores fortunas do mundo,
você escolheu doar quase tudo? Você é uma santa?
Eu dei uma risada de desdém, o que provavelmente não pegava
bem na frente de milhões de espectadores, mas não consegui me
conter.
— Se eu fosse uma santa — falei —, você acha mesmo que eu
teria guardado dois bilhões de dólares para mim?
Eu sacudi a cabeça, meu cabelo escapando de trás dos ombros.
— Você entende quanto dinheiro é isso? — insisti.
Eu não estava sendo hostil, e esperava que meu tom deixasse
isso claro.
— Eu poderia gastar cem milhões de dólares por ano — expliquei
—, todo ano, pelo resto da minha vida, e ainda existiria uma boa
chance de que eu teria mais dinheiro quando morresse do que
tenho agora.
Dinheiro gerava dinheiro, e quanto mais se tinha, maior a taxa de
retorno.
— E, francamente — falei —, eu não posso gastar cem milhões
de dólares por ano. Literalmente não consigo! Então, não. Eu não
sou uma santa. Se pensar com cuidado, eu sou bem egoísta.
— Egoísta — repetiu ela. — Por doar vinte e oito bilhões de
dólares? Noventa e quatro por cento de todos os seus bens, e você
acha que as pessoas deveriam perguntar por que você não fez
mais?
— Por que não? Alguém me disse uma vez que a questão de
fortunas como essa, em certo ponto, não é mais o dinheiro, porque
não dá para gastar bilhões nem se tentasse. É o poder — falei, e
baixei os olhos. — E eu só não acho que alguém deveria ter tanto
poder assim. Eu certamente não deveria.
Eu me perguntei se Vincent Blake estava assistindo, ou Eve, ou
qualquer um dos poderosos que eu tinha conhecido desde que
havia herdado.
— E a família Hawthorne está mesmo bem com isso? —
perguntou a entrevistadora.
Ela também não estava sendo hostil. Só curiosa e profundamente
empática.
— Os meninos? — insistiu. — Grayson Hawthorne abandonou
Harvard. Jameson Hawthorne teve problemas com a lei em pelo
menos três continentes diferentes nos últimos seis meses. E foi dito
recentemente que Xander Hawthorne está trabalhando como
mecânico.
Xander estava trabalhando com Isaiah, tanto na oficina dele
quanto em várias novas tecnologias com as quais eles estavam
muito animados. Grayson tinha saído de Harvard para colocar toda
a força da sua mente no projeto de doar o dinheiro. E o único motivo
para Jameson ter sido preso, ou quase preso, tantas vezes era que
ele não conseguia recusar um desafio.
Especificamente os meus.
O único motivo para eu não ter manchetes parecidas é que eu era
melhor em não ser pega.
— Você esqueceu de Nash — eu disse, à vontade. — Ele é
barman e trabalha experimentando cupcakes nos fins de semana.
Eu estava sorrindo, emanando o tipo de contentamento — sem
falar divertimento — que uma pessoa não podia fingir. Os irmãos
Hawthorne não estavam, como ela tinha sugerido, perdidos. Eles
estavam, todos eles, exatamente onde deveriam estar.
Eles tinham sido esculpidos por Tobias Hawthorne, formados e
forjados pelas mãos do bilionário. Eles eram extraordinários e, pela
primeira vez na vida, não estavam vivendo sob os pesos de suas
expectativas.
A entrevistadora notou meu sorriso e mudou de assunto, de leve.
— Você tem algum comentário a respeito dos boatos de que Nash
Hawthorne está noivo da sua irmã?
— Eu não presto muita atenção em boatos — consegui dizer com
seriedade.
— Qual seu próximo passo, Avery? Como você mesma apontou,
você ainda tem uma enorme fortuna. Algum plano?
— Viajar — respondi imediatamente.
Nas paredes a nossa volta havia pelo menos trinta souvenires,
mas havia ainda muitos lugares onde eu não tinha estado.
Lugares onde Jameson ainda não tinha aceitado um desafio
duvidoso.
Lugares onde poderíamos voar.
— E — continuei —, depois de um ano ou dois, eu vou me
matricular em ciências atuariais na Universidade do Connecticut.
— Ciências atuariais? — perguntou ela, as sobrancelhas
arqueadas. — Na Universidade do Connecticut?
— Análise de risco estatístico — eu disse.
Havia pessoas no mundo que construíam modelos e algoritmos
cujos conselhos meus consultores financeiros ouviam. Eu tinha
muito a aprender antes de começar a gerenciar os riscos sozinha.
E, além disso, no momento em que eu falara da Universidade do
Connecticut, Jameson tinha começado a falar de Yale. Você acha
que aquelas sociedades secretas precisam de um Hawthorne?
— Certo, viagem. Faculdade. O que mais?
A entrevistadora sorriu. Ela estava se divertindo.
— Você deve ter planos para algo divertido — continuou. — Essa
foi a maior história de Cinderela do mundo. Nos dê só um gostinho
do tipo de extravagância com a qual a maioria das pessoas só pode
sonhar.
As pessoas assistindo provavelmente esperavam que eu falasse
de iates, joias ou aviões particulares — ilhas particulares até. Mas
eu tinha outros planos.
— Na verdade — falei, bem ciente da mudança no meu tom
conforme a animação crescia dentro de mim —, eu tenho, sim, uma
ideia divertida.
Era o motivo para eu ter concordado com a entrevista. Sutilmente,
eu abaixei a mão na lateral da poltrona, onde eu tinha guardado um
cartão dourado gravado com um desenho complicado.
— Eu já te disse que seria difícil gastar todo o dinheiro que dois
bilhões de dólares geram em um ano — falei —, mas o que eu não
contei é que não tenho a intenção de aumentar minha fortuna. Todo
ano, depois de orçar meus gastos, analisar qualquer mudança no
meu patrimônio e calcular a diferença, eu vou separar o restante
para a doação.
— Mais doações beneficentes?
— Eu tenho certeza de que haverá muito mais trabalho
beneficente no meu futuro, mas isso é por diversão.
Não tinha muita coisa que eu queria comprar. Eu queria
experiências. Eu queria continuar aumentando a Casa Hawthorne,
mantê-la e garantir que a equipe se mantivesse empregada. Eu
queria garantir que nunca faltasse nada a ninguém que eu amo.
E eu queria isso.
— Tobias Hawthorne não era um homem bom — falei, séria —,
mas ele tinha um lado humano. Ele amava quebra-cabeças,
charadas e jogos. Todo sábado de manhã, ele apresentava um
desafio para os netos, pistas a serem decifradas, conexões a serem
feitas, um quebra-cabeça complicado e cheio de etapas para ser
resolvido. O jogo levava os meninos por toda a Casa Hawthorne.
Eu os imaginava na infância tão facilmente quanto conseguia
imaginá-los agora. Jameson. Grayson. Xander. Nash. Tobias
Hawthorne tinha sido um homem difícil. Ele jogava para vencer,
passava de limites que nunca deveria passar, esperava perfeição.
Mas os jogos? Os que os meninos jogaram quando eram
menores, os que eu tinha jogado? Esses jogos não tinham nos
tornado extraordinários.
Eles mostraram que nós já éramos.
— Se tem uma coisa que os Hawthorne me ensinaram — eu
disse — é que eu gosto de um desafio. Eu gosto de jogar.
Como Jameson tinha dito uma vez, sempre haveria mais mistérios
para resolver, mas eu sabia, bem no fundo, que tínhamos jogado o
último jogo do velho.
Então eu estava planejando um jogo todo meu.
— Todo ano, eu vou organizar um concurso, com um prêmio
significativo em dinheiro, do tipo que muda vidas. Alguns anos, o
jogo será aberto ao público em geral. Em outros... bem, talvez você
se veja recebendo o convite mais exclusivo do mundo.
Não era o jeito mais responsável de gastar dinheiro, mas, depois
que eu tivera a ideia, não conseguia abandoná-la, e, depois que
mencionara para Jameson, não tinha como voltar atrás.
— Esse jogo — disse a entrevistadora, com os olhos atentos. —
Esses quebra-cabeças. Você vai criá-los?
Eu sorri.
— Eu terei ajuda.
Não só dos meninos. Alisa às vezes participava dos jogos de
Tobias Hawthorne quando era menor. Oren estava cuidando da
logística. Rebecca e Thea, quando juntas, eram completamente
diabólicas nas contribuições para o que eu vinha chamado de O
Maior Jogo.
— Quando o primeiro jogo vai começar? — perguntou a mulher
na minha frente.
Era a pergunta pela qual eu estava esperando. Ergui o cartão
dourado e o mostrei para a câmera, com o desenho virado para o
lado de fora.
— O jogo — eu disse, minha voz cheia de promessa — começa
agora.
AGRADECIMENTOS

Quando escrevi Jogos de herança e O herdeiro perdido, eu não


tinha certeza de que encontrariam um público grande o suficiente
para justificar um terceiro livro. Eu tinha esperado e planejado —
PLANEJADO MUITO — poder compartilhar as reviravoltas que eu sabia que
aguardavam Avery, mas A aposta final só existe pelo apoio incrível
que os primeiros dois livros receberam do meu time editorial,
livreiros, bibliotecários e leitores. Sou realmente grata por todo
mundo que tornou essa livro possível.
Minha editora, Lisa Yoskowitz, advogou incansavelmente por
esses livros desde o momento em que leu Jogos de herança. É
difícil descrever o quanto os insights editoriais dela foram valorosos.
Muitas partes de A aposta final são resultado direto dos incríveis
instintos de Lisa sobre o que uma história precisa, e as habilidades
dela me inspiram a fazer tudo o que posso para levar os
personagens, a narrativa e o mundo a outro patamar. Além disso,
por mais grata que eu seja pela nossa parceria criativa, sou
igualmente agradecida pela graça, compreensão e suporte que Lisa
oferece em cada etapa do processo editorial. Escrevi este livro
durante o primeiro ano do meu bebê, no meio da pandemia,
enquanto lidava com ajuda inconstante para cuidar dele. Lisa, eu
não teria conseguido sem você!
Minha agente, Elizabeth Harding, tem sido uma campeã para os
meus livros desde que eu mal tinha saído da adolescência. Dezoito
anos e vinte e três livros depois, sou muito grata por tudo que ela
fez e continua a fazer por mim e meus livros. Elizabeth, trabalhar
com você é uma alegria!
Devo muita gratidão ao meu time maravilhoso da Little, Brown for
Young Readers. Sou maravilhada com a criatividade, visão e
trabalho que foram empregados para levar essa série a tantas
mãos! Obrigada para a designer da capa original, Karina Granda, e
a artista Katt Phatt, por criarem uma capa tão linda para A aposta
final. Vocês capturaram o livro perfeitamente e o resultado não
poderia ter sido nada além de estonteante! Outro grande obrigada
para a estrela de produção Marisa Finkelstein, que operou mágica
com o cronograma para me dar tanto tempo com o livro quanto
possível. Marisa, agradeço muito por todo o trabalho que você fez
para que o livro tivesse o que precisava e quando precisava — e em
um prazo apertado, uau!
Obrigada também a Megan Tingley e Jackie Engel pelo incrível
apoio à série. A Shawn Foster, Danielle Cantarella, Celeste Risko,
Anna Herling, Katie Tucker, Claire Gamble, Leah CollinsLipsett e
Karen Torres por colocar esse livro na frente dos leitores em todos
os lugares. A Victoria Stapleton, Christie Michel e Amber Mercado
por tudo o que fizeram para conectar bibliotecas e leitores à série. A
Cheryl Lew, Savannah Kennelly, Emilie Polster e Bill Grace por fazer
e manter esses livros visíveis por tanto tempo. A Virginia Lawther,
Olivia Davis, Jody Corbett, Barbara Bakowski e Erin Slonaker em
sua ajuda para tornar A aposta final pronto para os leitores. A
Caitlyn Averett pela ajuda em cada etapa do processo. A Lisa Cahn
e Christie Moreau pelo trabalho nos audiolivros da série. E a Janelle
DeLuise e Hannah Koerner por encontrarem uma casa tão
fantástica para a série no Reino Unido! Obrigada também ao meu
time editorial britânico na Penguin Random House, especialmente
Anthea Townsend, Phoebe Williams, Jane Griffiths e Kat McKenna.
Minha equipe incrível na Curtis Brown tem feito mais pela série
Jogos de Herança do que eu jamais imaginei ser possível! Um
obrigada gigante a Sarah Perillo, por ajudar a levar Jogos de
Herança para leitores no mundo todo, e a Holly Frederick por fazer
sua magia na parte de televisão! Sou também muito agradecida pela
ajuda de Mahalaleel M. Clintom, Michaela Glover e Maddie Tavis.
Eu quis ser escritora desde os cinco anos de idade, e uma das
coisas mais legais de viver esse sonho tem sido me tornar parte de
uma comunidade incrível de autores de livros para jovens. Obrigada
a Ally Carter, Maureen Johnsson, E. Lockart e Karen M. McManus,
por serem parceiros de conversas deliciosas nos eventos virtuais
que ajudaram a lançar essa série. Rachel Vincent está sempre lá
quando preciso falar sobre alguma parte do livro que não consigo
resolver, e sou muito grata pelos nossos dias de escrita semanais!
Obrigada também aos meus outros amigos autores; faz muito tempo
desde que vi muitos de vocês pessoalmente, mas vocês são o
motivo de a comunidade que encontrei parecer um lar.
Finalmente, obrigada a minha família. Por anos, enquanto eu
conciliava um trabalho que demandava muito, a escrita e ser mãe
de três filhos, as pessoas se perguntavam, Como você dá conta de
tudo? E a resposta sempre foi Eu não faço tudo sozinha, tenho
muita ajuda e apoio. Obrigada aos meus pais por serem os
melhores que alguém poderia pedir. Eles são meus maiores fãs,
uma fonte inesgotável de apoio, aqueles que entrariam em um carro
e dirigiriam por duas horas para olharem meus filhos e me trazerem
comida quando o dia simplesmente não tinha horas suficiente. Meu
pai, Bill Barnes, também ajudou a revisar esse livro, e meus pais me
ajudaram a criar o mundo em que os Hawthorne vivem respondendo
a diversas perguntas dos mais variados assuntos!
Obrigada ao meu marido, Anthony, que é um parceiro em todos
os sentidos da palavra. Não consigo imaginar um marido ou pai
melhor, e sou muito grata por tudo o que você faz. Por último,
obrigada aos meus três filhinhos, o mais velho tendo cinco anos
quando comecei a escrever esse livro, pelos aconchegos,
aprenderem a entreter a si mesmos de vez em quando e por
trazerem tanta alegria para a minha vida.
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novidades nas nossas redes:
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Copyright © 2022 by Jennifer Lynn Barnes
Copyright da tradução © 2022 by Editora Globo S.A.

Os direitos morais do autor foram garantidos.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a
expressa autorização da editora.

Título original: The Final Gambit

Editora responsável Paula Drummond


Assistente editorial Agatha Machado
Preparação de texto Sofia Soter
Diagramação Ilustrarte Design
Projeto gráfico original Laboratório Secreto
Revisão Isabel Rodrigues e Luiza Miceli
Capa Katt Phatt Studio
Editora de livros digitais Ludmila Gomes
Produção do e-book Ranna Studio

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto


Legislativo nº 54, de 1995).

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B241a
Barnes, Jennifer Lynn
A aposta final / Jennifer Lynn Barnes ; tradução Isadora Sinay. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Globo Alt,
2022.
(Jogos de herança ; 3)

Tradução de: The final gambit


Sequência de: O herdeiro perdido
ISBN impresso: 978-65-88131-65-7
ISBN digital: 978-65-88131-72-5

1. Romance americano. I. Sinay, Isadora. II. Título. III. Série.


22-79769
CDD: 813
CDU: 82-31(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

1ª edição, 2022

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
Rua Marquês de Pombal, 25
20.230-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.globolivros.com.br
Table of Contents
Capa
Folha de rosto
Sobre a autora
Sumário
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Capítulo 91
Epílogo
Agradecimentos
Créditos
Capa
Folha de rosto
Sobre a autora
Sumário
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capìtulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Agradecimentos
Créditos
Capa
Folha de rosto
Sobre a autora
Sumário
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Um ano depois...
Agradecimentos
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