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Novos Odisseus, antigas Odisseias

ou das pessoas com necessidades


especiais diante da simples
necessidade de aprender uma língua
estrangeira
Marcus Vinícius Liessem Fontana1

Resumo: Assim como os antigos navegadores gregos do


épico poema de Homero, capitaneados pelo herói Odisseu
(ou Ulisses), as pessoas com necessidades especiais precisam
vencer cotidianamente inúmeros obstáculos para ter acesso à
educação, tanto mais quando se pensa na aprendizagem de uma
língua estrangeira, devido as suas indiscutíveis peculiaridades.
Neste trabalho, usando como metáfora elementos da Odisseia
e também da Ilíada, procuro traçar um painel geral sobre as
múltiplas deficiências e as relações que as pessoas com essas
deficiências desenvolvem com a educação, colocando ênfa-
se especial nas implicações para o ensino-aprendizagem de
línguas estrangeiras. Com o suporte das pesquisas que tenho
desenvolvido ao longo dos últimos oito anos, debruço-me
mais atentamente à deficiência visual, apoiando-me nela como
ponto focal para aprofundar essas discussões. Ao detalhar o
que é deficiência visual e como aprendem as pessoas colhi-
das por essa deficiência, aproveito para demonstrar como as
novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs)
1 Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Católica de Pelotas. Professor
Assistente do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal de Santa
Maria. E-mail: marcusfontana2011@gmail.com

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podem contribuir para solucionar algumas das dificuldades
pelas quais passam essas pessoas. O papel dos programas
leitores de tela, como o Jaws, o Virtual Vision e o NVDA,
a importância do uso abundante de arquivos de áudio com
conteúdos didáticos, o universo de oportunidades criado pelos
audiolivros e as inúmeras possibilidades que se abrem com o
desenvolvimento das técnicas de audiodescrição, que tornam
a imagem, estática ou dinâmica, acessível à pessoa cega, são
alguns dos aspectos explorados. Tudo isso é finalizado com
a discussão sobre a importância dos professores em todo este
processo, especialmente em seu papel de emancipadores.

Introdução

Velho e cansado de tantas batalhas, resta ao rei Mene-


lau, no poente de seus dias, a alegria de presenciar a festa de
bodas de seus filhos. O banquete é farto e a música, alegre.
Malabaristas e dançarinas exóticas, vindos do misterioso
Oriente, encantam os comensais. Quando a mais bela entre
as belas entra no salão, contudo, toda língua se cala. Os pre-
sentes compreendem: não foi à toa que tantos pereceram em
batalha por esta mulher. Ela é Helena e em seu nome reinos
convulsionaram. Sua graça e a perfeição de suas formas só são
superadas pela harmonia de sua voz. Ela canta. É um canto
triste. Seus lábios entoam a história dos bravos gregos que
tombaram diante dos portões de Troia.
Próximo a Menelau, à mesa principal, há um grego que
chora. Sua presença, jovem e viril, quase imberbe, contrasta
com a decadência senil do rei, que, comovido com o pranto
sentido, ergue-se e toca-lhe o ombro: “Por que choras, meu
filho? São apenas velhas histórias...” O jovem ergue a cabe-
ça, combalido, e, por trás da névoa que encobre seus olhos,
de voz embargada, responde: “Choro porque é meu pai este
Odisseu a quem vossa esposa canta, entre tantos outros nomes

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de indiscutível valor. Choro porque não creio em sua morte
e sigo chorando porque tampouco posso ter certeza de que
vive.” Os olhos do rei sorriem em resposta: “És, então, o jovem
Telêmaco. Alegra-me que aqui estejas! Tenho ouvido sobre
tua busca. Guarda, portanto, o que te digo: se há alguém capaz
de ter sobrevivido aos mares infestados das traiçoeiras sereias
e resistido aos feitiços das perversas bruxas que dominam as
ilhas daqui até a amaldiçoada Troia, este é teu pai. Tem fé!
Nunca meus olhos viram alguém como o valente Odisseu.
Ninguém mostrou tanto valor quanto ele dentro do cavalo
de madeira, onde estavam os mais bravos entre os bravos.”
Mundo entalhado pelas façanhas de deuses, homens e
super-homens, a epopeia escrita pelo mestre Homero, sem
dúvida, é muito mais brilhante que a minha frágil reprodução
nas linhas precedentes. Seja como for, minha ideia aqui não é
submergir meu leitor no clima épico e mítico do poeta grego,
mas criar um enlace com a história de um homem ímpar:
Odisseu (ou Ulisses)! Os caminhos por ele trilhados me ser-
virão de metáfora para demonstrar as dificuldades pelas quais
passam as pessoas com diferentes deficiências que querem
aprender uma língua estrangeira – ou mesmo educar-se em
qualquer nível.
Herói como tantos que povoaram o imaginário grego,
Odisseu foi conhecido por sua bravura e engenhosidade. Foi
este guerreiro a mente por trás do estratagema conhecido
como “o cavalo de Troia”, que culminou na vitória dos gregos
sobre os troianos. Ainda que remeta à Guerra de Troia, porém,
a cena inicialmente descrita jamais foi comentada na Ilíada,
mas é parte do outro poema épico do autor, a Odisseia, mais
especificamente da narração da busca de Telêmaco pelo pai
que, ao concluir a guerra, tenta voltar para casa e vê-se na
contingência de enfrentar tantos obstáculos, que doze anos
se passam até que ele consiga retornar à casa e aos braços de
sua amada Penélope, mãe de Telêmaco.

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Qual a relação disto, então, com o tema deste artigo,
envolvendo aprendizagem de línguas estrangeiras e pessoas
com necessidades especiais? Ora, peçamos inspiração ao ve-
lho Homero e usemos a Ilíada e a Odisseia como metáforas.
Pensemos em uma guerra de dez anos ou uma viagem em
mares tempestuosos por doze, e ainda assim estaremos longe
das dificuldades concretas pelas que passam as pessoas com
necessidades especiais para aprender uma língua estrangeira
(ou qualquer outro tema em um sistema formal de educação).
Os gregos venceram Troia em dez anos. Odisseu voltou ao lar
em doze. A maioria das pessoas com necessidades especiais,
entretanto, luta ainda para ter acesso à educação num país com
uma história secular em ensino formal, tanto mais no que diz
respeito à aprendizagem de uma língua estrangeira.
Neste artigo, faço um breve apanhado sobre pesquisas e
iniciativas práticas que têm sido desenvolvidas no sentido de
apoiar a aprendizagem de línguas estrangeiras para pessoas
com necessidades especiais, demonstrando que há ainda um
longo caminho pela frente. Após um preâmbulo geral, contudo,
detenho-me naquela que é minha área específica de interesse
há cerca de oito anos: o ensino de línguas estrangeiras media-
do por tecnologias a pessoas com deficiência visual (PDVs).

1. Nossos Odisseus

Antes de discutirmos a questão da acessibilidade, é im-


portante que conheçamos, ainda que não da maneira profunda
que seria merecida, devido ao curto espaço que permite um
artigo acadêmico, os atores envolvidos neste processo. Em
síntese, precisamos ter pelo menos uma noção das diversas
necessidades especiais que o professor pode encontrar em
suas aulas, sejam elas presenciais ou online.

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A primeira delas é a deficiência física. Conforme Battistel
(2011), a deficiência física, como a maioria das outras, pode ocor-
rer por questões congênitas, mas também por acidentes ou algum
tipo de enfermidade. A pessoa com deficiência física apresenta
dificuldades ou impossibilidade de mover os membros superiores
e/ou inferiores ou pode ter sofrido algum tipo de alteração nesses
membros que a impossibilitem de usá-los plenamente. A pessoa
com deficiência física não necessariamente terá qualquer tipo de
deficiência cognitiva, sensorial ou de linguagem, mas a possi-
bilidade de associação de diferentes déficits é algo concreto. Ao
não haver associações, entretanto, a pessoa com deficiência física
poderá acompanhar as disciplinas escolares em que se envolva de
maneira bastante similar a de pessoas não sujeitas a deficiências.
No campo das línguas estrangeiras, por exemplo, tem plenas
condições de desenvolver sua aprendizagem, tornando-se tão
bom usuário da língua-meta quanto qualquer pessoa que não
esteja sujeita a este tipo de deficiência.
No outro polo, podemos dizer que temos as diferentes
deficiências mentais, que, conforme Menezes, Canabarro e
Munhoz (2011), apontam para um funcionamento intelectual
abaixo da média, podendo ser representada por dificuldades
de comunicação, baixas habilidades sociais, déficit de auto-
nomia em vários sentidos. É importante, entretanto, ter claro
que essas deficiências não têm relação com doenças mentais,
como esquizofrenia ou paranoia. As deficiências mentais se
manifestam, em geral, na primeira infância e raramente acima
dos dezoito anos. No que diz respeito à aprendizagem, elas
são um limitador, mas não um impedimento, já que através
de estimulações adequadas, as pessoas com este tipo de de-
ficiência têm condições de aprender. Suas possibilidades de
desenvolvimento são “determinadas não exclusivamente pelas
suas limitações orgânicas, mas principalmente pelas vivências
possibilitadas a essas pessoas” (Menezes, Canabarro
e Munhoz, 2011, p.152).

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Um terceiro tipo de necessidade especial é caracterizado
pela deficiência auditiva, que é a perda parcial ou total das
percepções auditivas sonoras (CASARIN, 2011). Pessoas com
perdas leves de audição podem compensar o problema com
aparelhos auditivos, que amplificam os sons externos. Aque-
las pessoas com perda importante de audição ou perda total
baseiam seus processos de aprendizagem, sobretudo, na visão.
O uso de imagens e da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)
é fundamental para que uma pessoa surda possa desenvolver
suas habilidades em qualquer área. Casarin (2011) defende
que o currículo escolar deve contemplar, para as pessoas
surdas, o estudo comparativo entre LIBRAS e outras línguas
de sinais do mundo. Também aponta que a leitura e a escrita
em língua portuguesa, para os surdos, devem ser trabalhadas
com as mesmas perspectivas do ensino de línguas estrangei-
ras. Desde este ponto de vista, nada impede que uma pessoa
surda aprenda a escrita e a leitura de outras línguas ainda, da
mesma maneira.
Já no campo dos transtornos globais do desenvolvimen-
to, segundo Alves e Guareschi (2011), encontramos pessoas
com alterações neuropsicomotoras, dificuldades em termos
de relações sociais e transtornos na comunicação. As autoras
chamam atenção ao fato de que há diferença entre deficiência
mental e doença mental. As pessoas com transtornos globais
do desenvolvimento costumam ser confundidas com pessoas
com deficiência mental, porém suas características de desen-
volvimento e de aprendizagem são bastante diferentes. Entre
os transtornos globais estão a Síndrome de Rett, o Autismo, o
Transtorno Desintegrativo da Infância (psicoses) e a Síndrome
de Asperger. São pessoas que não necessariamente apresentam
inteligência abaixo da média, mas possuem estilos cognitivos
muito particulares, sendo, em geral, bastante aptas à aprendi-
zagem de línguas estrangeiras, desde que se tomem as medidas
necessárias para estimular essa aprendizagem.

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Há, também, entre as necessidades especiais, aquelas
próprias de pessoas com altas habilidades ou superdotação.
Conforme Vieira (2011), são pessoas com habilidades acima
da média, elevado comprometimento com as tarefas a que
se dedicam e graus impressionantes de criatividade. Essas
pessoas podem apresentar grande facilidade com línguas
estrangeiras, restando aos professores criar ambientes que
estimulem sua criatividade e dando-lhes a necessária liberdade
para que desenvolvam seus processos cognitivos particulares.
Deixei para o final a deficiência visual, tema que corres-
ponde ao trabalho específico que venho desenvolvendo há
cerca de oito anos e sobre o qual quero me deter de maneira
mais atenta nas próximas páginas. Conforme Mon (1998), a
deficiência visual apresenta dois aspectos possíveis: a cegueira
e a baixa visão. A cegueira, por sua vez, pode ser caracterizada
de duas formas: a cegueira total ou visão zero, em que a pessoa
não é capaz de diferenciar entre luz e escuridão, e a cegueira
grave ou quase total, em que há uma mínima percepção das
variações luminosas. No que diz respeito à visão subnormal
ou baixa visão, incluem-se as pessoas que apresentam apenas
3/10 da visão normal. Para ter isso mais claro, posso dizer que
Mon (1998) explica que acuidade visual é total em 10/10, po-
dendo ser reduzida sob diversas circunstâncias antes de chegar
no nível de 3/10, considerado como visão subnormal. Quanto
ao campo visual, os ângulos considerados normais são de 90º
na parte externa ou temporal, 60º na interna ou nasal, 50º na
parte superior e 70º na inferior. Pessoas com visão subnormal
possuem um campo visual menor ou igual a 20 graus. Embora
tenham grandes dificuldades, as pessoas de baixa visão ainda
conseguem recorrer a este sentido para realizar algumas de suas
tarefas cotidianas. Para isso, podem necessitar de iluminação
ou lentes especiais, tipos ampliados, entre outros recursos.
Segundo Sá (2011), para as pessoas cegas, o “ensino de
línguas deve priorizar a conversação, em detrimento de recur-

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sos didáticos visuais, que devem ser explicados verbalmente”
(p.184). Particularmente, creio que a questão é mais ampla e
as possibilidades são maiores, mas deixarei para discutir isso
mais adiante neste artigo. Na próxima seção, trato sobre os
tipos de barreiras que as pessoas com necessidades especiais
costumam encontrar.

2. As muralhas de Troia

E lá estavam os gregos, sitiando a cidade inexpugnável.


Batalhas intermináveis, privações, festas para contentar as
tropas inquietas, algumas vitorias, outras tantas derrotas...
Mas as muralhas continuavam lá. Isso é exatamente o que
podemos notar no que diz respeito à educação e às pessoas
com necessidades especiais. Apesar de algumas iniciativas de
organizações não-governamentais e algumas leis e projetos
que buscam maquiar a ineficiência do Estado para tratar dessas
questões, pouco tem sido feito de fato. Para essas pessoas, as
barreiras físicas e comunicacionais estão presentes o tempo
todo.
Por barreiras físicas, entenda-se todo tipo de barreira
arquitetônica ou obstáculo que impeça o livre trânsito de uma
pessoa com qualquer tipo de deficiência. Por exemplo, cal-
çadas quebradas, falta de rampas, falta de corrimões, falta de
sinalização adequada – seja visual, sonora ou tátil, transportes
públicos inadequados, inexistência de elevadores etc. Boa par-
te desses obstáculos deveriam ser solucionados pelo Estado.
Nas universidades espalhadas pelo Brasil, que deveriam ser
centros de excelência em termos de inclusão, notam-se falhas
absurdas que denotam um descaso preocupante. Por outro
lado, o surgimento dos núcleos de acessibilidade mostram um
potencial transformativo dentro dessas instituições. Sempre
quando esses núcleos não sejam criados para cumprir um
requisito burocrático e desenvolvam um trabalho concreto no

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sentido de criar condições para que as parcelas da população
com necessidades educacionais especiais sejam efetivamente
incluídas, há uma boa perspectiva de que essas barreiras co-
mecem gradualmente a desaparecer.
Como barreira informacional, qualificamos todo tipo de
empecilho para que se estabeleça a relação dialógica tendente
à construção do conhecimento, como a falta de qualificação
dos professores da rede de ensino, a falta de intérpretes de LI-
BRAS, o reduzido número de educadores especiais formados
e o ainda menor número desses profissionais nas escolas, a
má vontade de alguns professores para atender a esse público
da maneira como necessitam – ou merecem, a inexistência de
material adaptado de acordo com as diversas deficiências e
mesmo o número excessivo de alunos nas salas de aula. Aqui
é importante notar a força do papel social que cada professor
exerce. Longe de querer colocar sobre os ombros dos pro-
fessores a responsabilidade pela inação estatal, parece-me
fundamental que os próprios professores deem-se conta do
quanto são capazes de fazer para, pelo menos, minimizar as
barreiras informacionais. Cada professor, por meio de um
processo de formação contínua, pesquisas e mesmo pela
simples mistura de interesse e criatividade, pode estabelecer
grandes avanços neste campo. Os pequenos passos que cada
um é capaz de dar são tendentes à criação de uma nova cultura
inclusiva na Educação.
Diante dessas muralhas que nos contemplam, creio que
cabe uma breve reflexão. As pessoas com necessidades espe-
ciais nascem nestas condições. Quando não, é porque a vida,
de alguma maneira, em algum momento, impôs-lhes algum
tipo de dificuldade, de limitação. Em uma sociedade iguali-
tária, democrática e progressista, como se supõe a nossa, não
seria de se esperar que essas pessoas, se não têm igualdade de
condições tivessem, pelo menos, igualdade de oportunidades?
Não seria desejável que a sociedade, como célula alimentada

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e movida pela diversidade, buscasse se adaptar para acolher
da melhor maneira as diferenças inerentes ao ser humano? E
o Estado, como núcleo organizador da sociedade, não deve-
ria se responsabilizar de fato e de direito por promover com
presteza as reformas necessárias para que a inclusão aconteça
concretamente? Aqueles que puderem concordar com pelo me-
nos algumas dessas reflexões, certamente entenderão quando
afirmo que não há pessoas deficientes, mas sim sociedades de-
ficientes. Deficientes em acolher seus cidadãos, em reconhecer
e aceitar a diversidade e, a partir daí, estabelecer ferramentas
que propiciem um desenvolvimento mais igualitário.
Ao haver mais igualdade de oportunidades, estamos
criando o cenário necessário para que todas as pessoas,
independentemente de suas limitações, possam transpor as
muralhas da exclusão.

3. Modernos cavalos de Troia

Felizmente, nem tudo está perdido para nossos bravos


Odisseus. Apesar das aparentemente intransponíveis muralhas
que nossa sociedade lhes impõe, há alguns cavalos de Troia
espalhados por aí que rompem com a lógica da exclusão. Esses
cavalos de Troia são chamados modernamente de tecnologias
assistivas (TAs), “um auxílio que promoverá a ampliação de
uma habilidade funcional deficitária” (BERSCH e MACHA-
DO, 2011, p. 67).
As TAs, portanto, possibilitam que pessoas com ne-
cessidades especiais consigam suplantar suas dificuldades
específicas, atuando, em várias situações, de maneira muito
similar às pessoas que não as têm. Os avanços tecnológicos
têm criado novas oportunidades neste sentido e apontam para
um processo contínuo de aproximação de habilidades, a tal
ponto que a tendência que se apresenta é que no futuro as

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diferenças por dificuldades físicas e mesmo mentais se não
forem eliminadas, serão, pelo menos, intensamente reduzidas.
Na figura 1, coloco, como exemplo, a imagem de um atleta
paraolímpico, um militar estadunidense que perdeu parte de
sua perna esquerda, substituiu-a por uma prótese e corre em
eventos de competição.

Figura 1 – Atleta paraolímpico

Além deste tipo de prótese, há aquelas que são capazes


de substituir uma mão ou um braço (figura 2), os aparelhos
auditivos e um sem número de tecnologias que têm avançado
intensamente nos últimos tempos. Novas pesquisas surgem a
cada dia. Miguel Nicolelis, por exemplo, grande pesquisador
brasileiro de renome internacional, neurocientista vinculado à
Duke University, tem realizado pesquisas com objetivos ambi-
ciosos. Caso seus esforços sigam obtendo resultados positivos, é
bem possível que em poucos anos seja possível ver tetraplégicos
se movimentando através de próteses comandadas por chips
implantados no cérebro, pessoas com paralisia cerebral sendo
reabilitadas, entre outras maravilhas (NICOLELIS, 2011). Até

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mesmo pesquisas para eliminar a cegueira, como as que estão
sendo feitas pelo Dr. Keith Mathieson, da Universidade de Glas-
gow, Escócia, com próteses inspiradas nas câmeras fotográficas
digitais, têm sido realizadas com boas perspectivas. Tudo isso
remete à teoria da ciborguização, também chamada transuma-
nismo. Conforme autores como Haraway (1991), Chislenko
(1995) e Clark (2003), é apenas natural que a integração entre
o ser humano e as novas tecnologias vá se tornando paulatina-
mente mais íntima, a ponto de ficarem cada vez mais tênues
os limites entre o humano e o tecnológico. No processo de nos
tornarmos cada vez mais máquinas, pelo que se pode depreender
desses autores, estaríamos, na verdade, nos humanizando mais,
uma vez que a ciborguização rompe barreiras e cria condições
mais igualitárias entre as pessoas.

Figura 2 – Prótese de braço e mão

Dentro do nosso tema de interesse, as tecnologias assisti-


vas apresentam, ainda, uma face voltada especificamente para
as necessidades educacionais: órteses com canetas acopladas,
tesouras adaptadas para quem tem dificuldades motoras,
jogos pedagógicos em alto relevo e EVA2 para pessoas com
2 Espuma Vinílica Acetinada, material sintético usado em produtos infantis, material
escolar etc.

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deficiência visual, teclados de computador expandidos para
pessoas com deficiência visual ou com dificuldades motoras,
jogos para aprendizagem de LIBRAS, órteses para digitação,
impressora braile, relógios e outros aparelhos dotados de
síntese de voz, lousa magnética, relógio de parede em libras,
tecnologias de reconhecimento de voz e transcrição, tapetes
sensoriais, máquina de relevos táteis, alfabeto e números
imantados, entre outros.

4. Por trás das muralhas

Com o apoio das tecnologias assistivas e de leis mais


modernas, atualmente as pessoas com necessidades especiais
têm a possibilidade de um acesso mais amplo à Educação.
Nem sempre essa possibilidade se converte em fato. Os pos-
síveis avanços ainda dependem da formação de profissionais
docentes mais bem qualificados, com o estabelecimento de
cursos que proporcionem capacitação específica adequada
a quem pretende trabalhar com o público com necessidades
especiais. A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) é
um entre alguns exemplos notáveis. Seu Centro de Educação
proporciona à comunidade o curso de graduação em Educação
Especial, que forma profissionais preparados para atuação
na “docência em classes especiais ou escolas especiais que
atendam alunos com dificuldades de aprendizagem, déficit
cognitivo e surdez nas etapas da Educação Infantil e dos anos
iniciais do Ensino Fundamental” (http://w3.ufsm.br/edespe-
cial/), além de serviços de apoio pedagógico, salas de recursos,
classes hospitalares e mesmo em ambiente domiciliar, sempre
com o fito de incluir essas crianças na sociedade. A univer-
sidade também oferece este curso na modalidade EaD, com
financiamento da CAPES pelo sistema Universidade Aberta
do Brasil. Os profissionais formados neste curso sabem o que
fazer para minorar as dificuldades pelas quais passam as pes-

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soas com necessidades especiais, criando condições favoráveis
para que essas pessoas alcancem o amplo desenvolvimento
de suas potencialidades. Inclusive, as próprias pessoas com
necessidades especiais podem tornar-se educadores especiais.
Esta iniciativa santamariense não é única, claro, encontrando
similares dignos de menção em outros lugares, como na Uni-
versidade Federal de São Carlos (UFSCar) e nos programas
de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e da Universidade de São Paulo (USP).
Como anunciei inicialmente, porém, minha preocupação
aqui, além de traçar um breve panorama das necessidades es-
peciais, é ocupar-me de como essas pessoas podem aprender
línguas estrangeiras. No que diz respeito ao ensino-aprendi-
zagem de línguas, como na educação de modo geral, a cada
necessidade especial corresponde uma determinada dinâmica
e determinados materiais que precisam ser empregados para o
ensino-aprendizagem. Comecemos pelas pessoas com surdez.
Para as pessoas com deficiência auditiva ou surdas, a
compreensão de como aprendem a língua portuguesa pode lan-
çar alguma luz sobre a questão. Como a língua materna dessas
pessoas é LIBRAS, elas acabam aprendendo o português como
uma língua estrangeira. Originalmente, elas aprendem o que
se pode chamar de um léxico quirêmico – do grego kiros, mão
– que contém sinais lexicais. Essa aprendizagem não permite
que se faça uma relação com o português, uma língua com um
léxico fonêmico-visêmico. Isso significa que há um grande
abismo entre a língua composta por sinais e aquela composta
por sons e letras (CAPOVILLA, 2011). A língua portuguesa,
portanto, deve ser ensinada ao surdo sob uma perspectiva de
ensino de segunda língua. Sob esta perspectiva, as dificuldades
que existirão para a aprendizagem do português devem ser as
mesmas para a aprendizagem da escrita e da leitura de qualquer
língua estrangeira. Também se sabe que há variações de sinais
entre uma língua de sinais e outra no mundo, aliás, dentro do

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mesmo país há variações regionais, como as temos na língua
oral e escrita do português (vocabulário, expressões, gírias e
mesmo construções sintáticas). Isso pode facilitar que pessoas
surdas compreendam as variações que também ocorrem nas
línguas estrangeiras.
Ubá (2008) narra uma experiência realizada junto a
alunos surdos, universitários, em um curso de inglês criado
como projeto-piloto especialmente para eles, na Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Em suas palavras:

As aulas ministradas pautaram-se pela exploração


de elementos visuais, todos os textos materializados
nos gêneros textuais selecionados (avisos, anúncios
publicitários, sinopses de filme, tiras, charges, entre
outros) continham imagens, figuras que dialogavam
e complementavam o texto. Certamente, essa escolha
permitiu uma compreensão mais adequada do texto.
Constantemente os alunos faziam questionamentos
sobre as situações apresentadas nas leituras, mos-
trando entenderem as relações entre imagem e texto.
(UBÁ et al, 2008, p. 1635)

Como se percebe a ênfase na imagem é uma das grandes


chaves para o ensino de língua estrangeira para este público.
No que diz respeito às deficiências mentais ou intelectu-
ais, a professora Fabiana Lasta Beck Pires (2010) desenvolveu
um trabalho bastante relevante durante sua pesquisa de dou-
torado na Universidade Federal de Pelotas. Reunindo alunos
voluntários do Curso de Licenciatura em Espanhol da UFPel,
professores em formação, portanto, ela realizou uma interven-
ção em um grupo de nove alunos com déficit intelectual de
uma escola especial. A intervenção deu-se entre os anos 2007
e 2009 e envolveu uma série de atividades eminentemente
práticas de aprendizagem de língua espanhola, com músicas,
jogos, brincadeiras, charadas, textos, caça-palavras etc. Na

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conclusão de seu trabalho, a professora mostrou-se impres-
sionada com a capacidade dos alunos de “memorização” de
palavras na língua estrangeira e sua rapidez ao resolver desa-
fios lógicos envolvendo a língua. Mostrou-se convencida de
que as pessoas com deficiências intelectuais são plenamente
capazes de aprender línguas estrangeiras e que essa aprendiza-
gem, inclusive, reflete no domínio da língua materna e numa
melhor compreensão leitora, entre outros aspectos.
Já no campo da deficiência visual, chamo atenção ao
caso de um professor de língua espanhola que foi formado
pela Universidade Federal de Santa Maria. Em um artigo que
publiquei em 2012 (CULAU e FONTANA, 2012), discuto bre-
vemente algumas das dificuldades pelas quais ele passou para
conseguir seu diploma: transporte público de má qualidade,
calçadas esburacadas, prédios pouco acessíveis, intolerância
e despreparo de alguns professores foram apenas alguns dos
fatores que dificultaram seu avanço. Felizmente, pode contar
com colegas solícitos e extremamente entusiasmados em
ajudá-lo. Nas aulas, no sistema presencial, gravava em áudio
o que os professores diziam e usava a reglete para anotações
em braile. Em seu trabalho de conclusão de curso, teve a fe-
licidade de encontrar uma professora disposta a aprender os
rudimentos da linguagem braile para orientá-lo na escrita de
uma monografia em torno da literatura em língua espanhola.
Ao fim dos anos de graduação, tornou-se uma prova viva de
que uma pessoa cega é plenamente capaz não apenas de con-
cluir um curso superior, como também tem todas as condições
de atuar como professor e de tornar-se um usuário competente
de uma língua estrangeira.
Ainda no que diz respeito à deficiência visual, em minha
dissertação de mestrado (FONTANA, 2009), tratei de uma ini-
ciativa de sucesso produzida na Europa, o Eurochance (http://
eurochance.brailcom.org/index?lang=es;keep_language=1),
apoiado pelo programa Leonardo da Vinci da Comissão Euro-

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peia, que promove cursos de inglês e alemão online, voltados
especificamente para deficientes visuais. Organizado em uma
página de internet extremamente simples e acessível e baseado
em um processo de autoaprendizagem, o projeto reúne vários
relatos de ex-alunos que obtiveram sucesso com o método.
Em um projeto que desenvolvi em 2008 para o público defi-
ciente visual, usei as ideias deste projeto como base. Como a
deficiência visual é meu foco de pesquisa no que diz respeito
à acessibilidade, na próxima seção, discuto um pouco mais
a este respeito.

5. Duas (ou três) experiências com cegueira

No ano de 2007, estava trabalhando como professor subs-


tituto na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e cursando
o Mestrado em Linguística Aplicada na Universidade Católica
de Pelotas (UCPel). Tinha como colega, na UFPel, meu antigo
orientador de Iniciação Científica, professor Elton Luiz Verga-
ra Nunes, que me despertou para o tema da cegueira. À época
da Iniciação Científica, poucos anos antes, o professor tinha
um projeto chamado Audioteca Virtual de Letras em que seus
orientandos, eu inclusive, liam e gravavam poemas em espa-
nhol e português. Esses poemas eram disponibilizados online
para que pessoas com deficiência visual pudessem escutá-los.
Durante este período, fiquei bastante sensibilizado com os co-
mentários de apoio que recebíamos de pessoas cegas de todo
o Brasil, contentes pelo simples fato de poderem usufruir de
uma leitura feita por voz humana, no conforto de suas casas,
por meio do singelo ato de clicar um botão do teclado. Neste
ponto, creio que é importante que o leitor entenda como um
cego lida com o computador.
Em primeiro lugar, como digitam? Observe que o teclado
– e isso é um padrão internacional, regulamentado aqui pela
ABNT – possui uma pequena saliência, algo como um traço

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em alto relevo nas teclas “f” e “j”. Para o cego, estas saliên-
cias indicam o lugar onde deve apoiar seus indicadores. Uma
pessoa cega, letrada, obviamente, que queira aprender a lidar
com o computador precisa ser instruída a este respeito. Logo,
o vidente que a instrui precisa ajudá-la a encontrar a posição
das outras teclas a partir destas primeiras. A pessoa com defi-
ciência visual ou PDV fará um exercício de memorização da
linha alfabética central do teclado, para logo passar às linhas
superior, inferior, numérica e, finalmente, às teclas especiais
e suas funções. É um exercício cansativo, normalmente lento,
um tanto aborrecido, porém indispensável. Mas como é que o
cego sabe o que está teclando? É preciso que haja uma pessoa
sempre a seu lado para acompanhar e confirmar seu trabalho?
Não! Para que uma pessoa sem o sentido da visão possa usar o
computador, precisará do auxílio de um programa de compu-
tador chamado leitor de tela. Um leitor de tela é um software
que decodifica o que aparece na tela do computador e, por meio
de um sistema de síntese de voz, “lê” para o cego o que está
aparecendo. Assim, quando a PDV tecle “e”, o computador
“dirá” “e”. Da mesma maneira, o leitor de tela vai guiando a
pessoa cega através das telas, dos comandos, indicando onde
é precisa teclar enter ou inserir outro comando. Como se vê,
a interação entre uma pessoa com deficiência visual e um
computador é um processo bem mais complexo do que aquele
que experimenta uma pessoa vidente, que usa os ícones da
tela de maneira mais ou menos intuitiva, por isso, há normas
internacionais de acessibilidade que pretendem garantir que
certos critérios sejam seguidos a fim de que qualquer pessoa
possa ter acesso a qualquer página disponível na internet. Se-
guir estas normas é prestar um serviço em nome da cidadania.
Atualmente, há um número expressivo de leitores de
tela disponíveis no mercado, com diferentes características.
Muito comentado tem sido o NVDA, software livre, gratuito,
com um bom repertório de vozes em sua base de dados. Há

288
vozes masculinas e femininas para as mais diferentes línguas.
O NVDA foi baseado no JAWS, programa norte-americano
pago – e caro – que durante muitos anos foi considerado por
muitos o que havia de melhor no mercado. Hoje, além do
NVDA, o JAWS compartilha espaço também com o Virtual
Vision, inicialmente uma encomenda da Fundação Bradesco
para que seus clientes cegos pudessem usar os caixas eletrô-
nicos e que acabou disseminado no mercado. Há ainda os que
mencionam o DOSVOX como um software de leitura de tela.
O DOSVOX foi desenvolvido pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e foi inspirado pelas necessidades de
um de seus alunos, que colaborou com a equipe de acessibili-
dade da Universidade na sua criação. Na verdade, entretanto,
apesar de ser uma importante iniciativa em favor da inclusão,
este programa não lê a tela, mas cria um ambiente próprio,
uma espécie de sistema operacional (veja-se o nome inspirado
no antigo MS-DOS ou Microsoft Disk Operating System)
com várias ferramentas, como editor de texto, calculadora,
jogos etc.
Estabelecida de maneira mais ou menos clara esta relação
do cego com o computador, retomo a questão da Audioteca:
mobilizado pelo carinho tão grande que pessoas cegas de
todo o Brasil demonstravam pelo antigo projeto, seguro de
que desejava seguir trabalhando com essas pessoas, optei,
em meu projeto de Mestrado, por criar e acompanhar o de-
senvolvimento de um curso de leitura em língua espanhola
online que contemplasse essa parcela da população. O curso
foi batizado como ¡Oye la Lengua!� (http://sites.google.com/
site/oyecurso/) e seu formato foi inspirado no já comentado
curso europeu Eurochance (http://eurochance.brailcom.org/
index?lang=es;keep_language=1).
A construção prática do curso foi uma tarefa relativa-
mente simples, mas que exigiu uma pesquisa prévia bastante
intensa e a colaboração de vários alunos meus da UFPel, todos

289
de nível avançado, e alguns professores, todos trabalhando de
forma voluntária e gratuita. Utilizando os recursos disponí-
veis no Google Sites, criamos uma página bastante simples
e acessível, exclusivamente construída a partir de textos
escritos e arquivos de áudio. Junto com a equipe, selecionei
cinco gêneros textuais bastante variados, conforme é possível
identificar na figura 3, e selecionei os textos. Disponibilizei
os textos em sua forma escrita e com a ajuda de dois cola-
boradores nativos de língua espanhola, um uruguaio e outro
espanhol, fiz as gravações dos textos em um laboratório de
informática disponível na Universidade, utilizando, para sua
edição, o excelente software gratuito Audacity. A partir dos
textos, foram elaborados exercícios de compreensão. Os
cursistas escutavam os áudios e respondiam as questões em
português, já que o objetivo era simplesmente a compreensão
dos textos e não o desenvolvimento integrado das habilidades
linguísticas de produção e compreensão oral e escrita. Esses
cursistas, pessoas cegas de todo lugar do Brasil e de Portugal,
foram mobilizadas através de divulgação em sites especializa-
dos. Para dar feedback a suas respostas, meus colaboradores
foram instruídos sobre a prática do tutor na Educação a Dis-
tância e ajudaram-me a corrigir as tarefas, orientar e identificar
aspectos que precisavam ser melhorados.
O curso se desenvolveu ao longo de um semestre e seus
resultados foram bastante satisfatórios, ajudando-me a ter uma
visão mais clara sobre os processos de ensino-aprendizagem
das PDVs, comprovando que essas pessoas são plenamente
capazes de aprender a língua em interação mediada por com-
putador e instigando-me o desejo de promover um curso de
mais longa duração para esse público, envolvendo a prática de
todas as habilidades linguísticas, o que só se tornou possível no
momento em que me tornei professor efetivo da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM).

290
Figura 3 – Página de abertura do curso ¡Oye la Lengua!

Em 2009, ingressei, após concurso, na UFSM e no início


de 2010 registrei o projeto Para Além da Visão: um estudo
do processo de ensino-aprendizagem de língua espanhola em
EaD para deficientes visuais (http://w3.ufsm.br/alemdavisao/
- figura 4), apelidado, simplesmente, de Além da Visão. Desde
então, o grupo de pesquisa que consegui constituir com alu-
nos de graduação dos cursos de licenciatura em espanhol da
Universidade, nas modalidades presencial e à distância, tem
trabalhado no sentido de criar um curso de extensão online
de língua espanhola para pessoas com deficiência visual. A
primeira etapa foi a discussão sobre os conteúdos, aspectos
relevantes, ordem e forma de apresentação. Decidido que
teríamos um curso de quatro semestres dividido em vinte
unidades, cinco por semestre, o grupo partiu para a escrita
das unidades, sempre baseadas em um tema gerador, e a
elaboração dos respectivos exercícios, envolvendo compre-
ensão auditiva, escrita e fala (entendemos que a habilidade
de leitura, no caso específico deste público, confunde-se com
a habilidade auditiva). Uma segunda etapa implicou a grava-
ção de todas as unidades em áudio e a edição desses áudios.
A terceira e a quarta etapas, que estão sendo desenvolvidas

291
concomitantemente, dizem respeito à montagem das páginas
contendo cada uma das unidades e a posta em prática dessas
unidades. A montagem é realizada dentro da própria página
do projeto, seguindo o modelo acessível já disponível. A
execução do curso conta hoje com um grupo-piloto de dez
cursistas cegos que reunimos a partir de um convite lançado
na rede em comunidades e sites especializados.

Figura 4 – Página de abertura do projeto Além da Visão

Dois aspectos precisam ser mencionados sobre essas


duas últimas etapas. A respeito da montagem, a equipe tentou,
em um primeiro momento, usar o Moodle institucional, um
ambiente virtual de aprendizagem próprio para cursos online,
para desenvolver o curso. As dificuldades que os cursistas
tiveram para lidar com as ferramentas do ambiente e mesmo
para conseguir acessar o campo de introdução de login e senha
foram tão grandes, que essa ideia acabou sendo abortada. Em
um segundo momento, já utilizando o modelo mais simples
de página acessível, tivemos entre os cursistas convidados da
Associação de Cegos e Deficientes Visuais de Santa Maria,
porém havia aqueles que não tinham habilidades com o com-
putador e acabaram desistindo. Isso serviu-nos de alerta para
próximas oportunidades. A experiência do ¡Oye la Lengua! foi

292
exitosa porque seus alunos foram obtidos por meio da própria
rede de computadores e, portanto, subentende-se que tinham
pelo menos as habilidades mínimas para navegar. Nesse outro
caso, com alunos escolhidos fora da rede, é preciso primeiro
instrumentalizá-los, algo que levaremos em conta em uma
próxima edição.
Os resultados com o novo curso, estando o primeiro
módulo de cinco unidades em fase de conclusão, são anima-
dores, mas merecem uma análise mais detalhada em artigo
específico. Como complemento do curso, contamos ainda com
a Audioteca Virtual, inspirada na antiga audioteca da UFPel, e
cujo objetivo é servir de apoio aos cursistas – e a quem mais
desejar – fornecendo-lhes leituras de textos literários em lín-
gua espanhola que podem ajudá-los não só na compreensão
de elementos linguísticos, como também no desenvolvimento
de conhecimentos culturais e no fomento do simples prazer
de lidar com a língua-meta. As páginas da Audioteca contam
com links de acesso simples através dos quais os interessados
podem baixar os textos que lhes interessam e disponibilizam
sempre uma foto do autor. O objetivo é que, em breve, todas
estas fotos seja audiodescritas, para que além dos textos e
das minibiografias que disponibilizamos, os usuários cegos
tenham condições de ter, pelo menos, uma noção das feições
e do aspecto geral de cada autor.
Outra iniciativa que se irmana ao curso é o projeto Voces
(http://coral.ufsm.br/voces/ - figura 5). Nele, um grupo de es-
tudantes voluntários da UFSM busca contato com falantes na-
tivos de todos os cantos do mundo, por meio, principalmente,
das redes sociais. Esses nativos são convidados a ler um texto
pré-elaborado pela equipe do projeto e a dar um testemunho
livre sobre algum aspecto que julgue interessante de seu país
e gravar tudo isso em um arquivo de áudio mp3. Logo, esses
arquivos são catalogados e disponibilizados online para que
os interessados tenham acesso às variações geográficas ou

293
diatópicas da língua espanhola. Isso tem a intenção de sanar
dúvidas sobre a pronúncia e colocar os estudantes em contato
com a diversidade linguística do espanhol.

Figura 5 – Página de abertura do projeto Voces

Como se pode ver até o momento, os mares da acessi-


bilidade são amplos, vastos, quase imensuráveis. Navegá-los
é tarefa para valentes Odisseus. Procurei deter-me nas pos-
sibilidades que as tecnologias abrem para quem é deficiente
visual, pois é um tema que domino e ao mesmo tempo me
apaixona. Ainda que tenha dado essa ênfase, fiz um esforço
por não excluir outras necessidades especiais e, pelo menos,
deixar a mensagem de que é possível fazer algo para que
pessoas com diferentes deficiências tenham acesso ao estudo
de línguas estrangeiras e à educação de maneira geral. O que
mais faz falta, porém, é que surjam mais profissionais enga-
jados nesse tipo de pesquisa. Profissionais que se dediquem
a encarar as deficiências apenas como outra maneira de viver
a vida e que, movidos por esse sentimento, sejam capazes
de criar as condições necessárias para que todas as pessoas
tenham possibilidades, pelo menos, similares de aprender e

294
de se situar no mundo, na sociedade. É pensando nisso que
teço meus comentários finais na próxima seção.

Considerações finais ou manifesto antilotófago

Chegam Odisseu e seus companheiros a uma ilha paradi-


síaca perdida em meio ao mar tempestuoso. Do navio, avistam
uma praia de areias branquíssimas. Ao longe, campos floridos,
cujo perfume se estende sobre o mar, sobrepujando mesmo
o odor já costumeiro da maresia. A beleza é impressionante,
hipnótica. Odisseu, entretanto, marinheiro experimentado,
pede que três entre seus subalternos se voluntariem para bai-
xar à terra e realizar uma inspeção prévia, alertando-os dos
perigos ocultos que a ilha pode carregar. Três entre os mais
jovens colocam-se à disposição. Estão cansados da viagem
e excitados pela possibilidade de encontrar comida, vinhos e
mulheres.
Os três tripulantes chegam à praia e atravessam o trecho
de areia sem qualquer sobressalto. Logo, vindos do meio dos
campos floridos, nativos com olhos sonâmbulos se aproximam
e lhes dão as boas-vindas. Para os visitantes, oferecem vinho
abundante e comida farta. Lindas mulheres dançam em sua
homenagem. É o sonho dos marinheiros perdidos. Muito mais
do que poderiam esperar. Em meio ao banquete, um estranho
fruto desconhecido chama-lhes a atenção pelo sabor peculiar
e extremamente agradável. É o fruto do lótus, explicam-lhes
os nativos, sua comida preferida. Logo, os marinheiros entram
num frenesi dionisíaco, seguido de um torpor que lhes rouba
os sentidos. Quando despertam, tudo o que querem é mais um
pouco do viciante fruto. Sua missão está esquecida.
Na historia escrita por Homero, Odisseu desce à ilha com
mais alguns dos seus e retira os companheiros narcotizados
à força das garras dos lotófagos, amarrando-os no barco para

295
que não tentem voltar, dependentes que estão do raro fruto.
São os lotófagos, portanto, um simbolismo das pessoas que
se alienam, das que nada fazem e incitam os demais a nada
fazerem. Em última análise, são as pessoas que obstaculizam
as mudanças, os inertes, os que se recusam a pensar.
A essa reflexão, associo uma citação da professora Maria
Teresa Eglér Mantoan, grande referência nacional quando se
fala de inclusão e acessibilidade:

[...] temos que reverter a situação da maioria de


nossas escolas, as quais atribuem aos alunos as
deficiências que são do próprio ensino ministrado
por elas [...] Estamos habituados a repassar nossos
problemas para outros colegas, os “especializados”,
e, assim, não recai sobre nossos ombros o peso de
nossas limitações profissionais. (MANTOAN, 2003,
p. 28)

Com isso, quero dizer que nós, professores, sejamos de


línguas estrangeiras ou de outras áreas, temos uma grande res-
ponsabilidade para com as pessoas com necessidades educa-
cionais especiais. Hoje, ainda há grandes lacunas que precisam
ser preenchidas para que pessoas com diferentes deficiências
tenham oportunidades melhores e sejam, realmente, incluídas
no nosso sistema social. Isso só acontece com educação de
qualidade que, por sua vez, só se torna realidade com base na
pesquisa, na reflexão, no debate, na colaboração.
Em Honneth (2011), encontramos a importância do
reconhecimento mútuo como conceito ético capaz de criar
equilíbrio nas relações sociais. É só reconhecendo o outro
como ser humano, em suas necessidades, debilidades e forças
que conseguimos construir uma sociedade mais justa. Não
atender a esse imperativo reflete em injustiças de todo tipo,
que, por sua vez, redundam em conflitos. Há uma necessidade
premente, portanto, de que as pessoas com necessidades espe-

296
ciais sejam realmente acolhidas na sociedade e a porta desse
acolhimento se dá pela educação. Para Fromm (2000), o con-
ceito de reconhecimento se confunde com amor. Segundo ele:

A pessoa que ama corresponde. A vida de seu irmão


não é apenas um problema do seu irmão, mas é tam-
bém um problema seu. Ela se sente responsável por
seus semelhantes, tanto quanto se sente responsável
por si. (FROMM, 2000, p. 35)

Não quero, com isso, dizer que esta e todas as questões


sociais devem recair exclusivamente sobre os ombros dos
professores. Seria absurdo. Mas não podemos negar nosso
papel fundamental nessa dinâmica. Estamos em uma posição
de responsabilidade. Segundo o mesmo Fromm:

Hoje, responsabilidade muitas vezes significa


denotar um dever, algo imposto de fora. Mas res-
ponsabilidade, em seu verdadeiro sentido, é um ato
inteiramente voluntário; é minha resposta às neces-
sidades, expressas ou não, de outro ser humano. Ser
“responsável” significa ser capaz de “corresponder”,
e estar pronto para tal. (FROMM, 2000, p. 34)

Para concluir a reflexão em cima da obra de Fromm,


vejamos o que ele diz do papel do professor:

Em épocas anteriores da nossa cultura, ou na China e


na Índia, a pessoa mais valorizada era a que possuía
as mais elevadas qualidades espirituais. O professor
mesmo não era apenas, e nem sequer principalmente,
uma fonte de informação: sua função era transmitir
certas atitudes humanas. (FROMM, 2000, p. 145)

Se somos capazes de concordar que a Educação é base


para uma sociedade mais justa e igualitária, temos semelhante
noção do papel do professor neste movimento. Esta retomada

297
de consciência é fundamental para a revitalização da dignidade
da profissão e para que possamos atender às demandas de uma
sociedade líquida, cambiante, mutável, como defende Bauman
(2001). Para que os novos Odisseus consigam navegar sobre
o mar tempestuoso e chegar em segurança a seu destino, te-
mos que adotar, como professores, o papel de Atena, deusa
da sabedoria e da estratégia, que ajudou o herói a vencer os
obstáculos com astúcia e criatividade. Claro, não somos deu-
ses nem devemos ver-nos como tais, longe disso. Tudo o que
quero dizer com essa metáfora é que nossos novos Odisseus
merecem nosso reconhecimento, nossa responsabilidade e
nosso amor.

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