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Zemaria Pinto

Por que estudamos literatura?


(aula zero)

Manaus

2024
Copyright © Zemaria Pinto, 2022
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação (CIP-Brasil)

P659p Pinto, Zemaria


Por que estudamos literatura? (aula zero) / Zemaria Pinto. -
Manaus: ofingidor, 2024.

695 KB
50 p.
ISBN: 978-65-00-97741-7

1. Estudos literários. 2. Literatura. I. Título


CDD 809

Aula inaugural do Curso de Letras da UFAM, turma de 2022, proferida


no dia 24 de janeiro de 2022.

Capa: Clara Nihil (sobre o quadro A estudante russa, de Anita Malfatti)


Diagramação: João Sebastião
Revisão: Clara Nihil
Sumário

Escrito depois para ser lido antes .................................................................... 6


Por mais realista que seja, literatura é só imaginação ................................... 8
Os gêneros literários, assim como o universo, estão em expansão ............... 9
Memórias: não podemos esquecer ............................................................... 11
Precisamos da literatura porque a vida não nos basta ................................. 12
Viajante ou nativo, o escritor amazônico tem a cabeça nas nuvens ............ 13
A independência e o modernismo: ficções de fricções ................................. 15
O inferno verde é o paraíso perdido? ............................................................ 16
A literatura da borracha: muito siso e pouco riso......................................... 18
A verdade da ficção e a ficção da verdade .................................................... 20
Viva a vaia! O esquisito como paradigma ..................................................... 21
Viva a vaia! O Modernismo começou pelo Expressionismo ......................... 22
Viva a vaia! O filho modernista mata o pai parnasiano ................................ 23
Psicanálise no inferno ou o Amazonas também é modernista .................... 24
A Grécia nunca foi aqui .................................................................................. 25
Revolução frustrada ....................................................................................... 26
A flor-mulher e o mandacaru ......................................................................... 27
Clube da Madrugada: vida inteligente no entorno do Teatro Amazonas .... 28
Os ceifadores precisam aprender a separar o joio do trigo .......................... 30
Deus não joga dados com o universo, mas se jogasse não aboliria o acaso 31
O feio e o belo são as duas partes de um todo que é só metade ................. 33
O autor deve morrer para que a obra tenha vida ......................................... 34
A máscara lírica muito além de Mr. Hyde ..................................................... 35
A máscara expressionista de Augusto dos Anjos .......................................... 36
Contra a pequenez provinciana, a máscara lírica de Bacellar ...................... 38
A única certeza é a dúvida ............................................................................. 39
Moto-contínuo ............................................................................................... 41
Sobre o autor .................................................................................................. 43
Há, provavelmente, duas atitudes básicas que dão origem aos dois
tipos fundamentais de ficção: ou se escreve de brincadeira, para
entretenimento próprio e dos leitores, para passar e fazer passar o
tempo, para distrair ou procurar alguns momentos de evasão
agradável; ou se escreve para investigar a condição humana, empresa
que não serve de passatempo nem é uma brincadeira nem é
agradável.

(Ernesto Sábato – O escritor e seus fantasmas)

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até


hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época
de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada,
fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia
a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim,
segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos
uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último
caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não
desertamos nosso posto.

(Érico Veríssimo – Solo de Clarineta – vol 1)


Escrito depois para ser lido antes

Esta introdução cumpre a função de sumário: dizer ao


ouvinte/leitor o que o espera nos próximos 50 minutos ou 6 mil
palavras. Em primeiro lugar, vamos falar de literatura – e só de literatura
– porque eu não saberia falar de linguística ou outro assunto correlato
ao curso de Letras. O segundo ponto é estabelecer uma conexão entre
a literatura objeto de nosso estudo e a vida cotidiana, a nossa vidinha
banal, que às vezes tratamos com certo desdém e até mesmo desprezo.
Com humor e ironia – duas características básicas da humanidade
–, vamos dar um passeio pela história (da literatura, claro, mas também
da vida real) e pela literatura (que não prescinde da história nem da vida
real, embora não seja nem uma coisa nem outra). Vamos falar muito da
literatura feita no Amazonas, proporcionalmente mais talvez do que
vocês terão oportunidade de estudar. Não consegui fugir disso, afinal,
sou apenas um escritor da Amazônia – orgulhoso dos nossos mitos e
lendas, dos quais me considero um humilde guardião. Além desta última
frase ter adjetivos demais, não esqueçam que posso estar sendo irônico.
Nunca se sabe.
Eu não poderia deixar de dar alguns toques de teoria literária, pois
sem ela não conseguimos estudar literatura – nem fazer análise, nem
história, muito menos crítica. Pronto, acabei de nomear os estudos
literários, mas enfatizo que a base de tudo é a teoria – que por ser
teoria, não é moldada em aço, mas em água, em ar ou espuma. Será isso

6
Por que estudamos literatura?
a modernidade líquida de que tanto falam, aplicada à literatura? Cá
entre nós, desconfio que não.
Método: palavra puxa palavra; assunto repuxa assunto. O tempo
descomunal ficou curto. Como não falar de pandemia, de política, de
desemprego, de fome? Esses assuntos, por mais que não apareçam
estarão sempre presentes, na medida em que a literatura é um reflexo
da história, um reflexo da vida.

7
Por que estudamos literatura?
Por mais realista que seja, literatura é só imaginação

Antes de responder à pergunta do título, precisamos responder a


pelo menos três outras questões. Primeira: a qual literatura nos
referimos? Sim, porque todo texto, para o bem ou para o mal, faz parte
de um tipo de literatura. A literatura que nos interessa é a literatura de
invenção, criada com finalidade artística, e que tenha reconhecido valor
estético. Ou seja: literatura enquanto arte. Literatura criada a partir da
imaginação, descompromissada com a realidade; porém, sem perder de
vista Aristóteles, para quem a natureza da arte é a imitação: não existe
uma literatura de ficção pura porque a sua referência enquanto ponto
de partida será sempre a realidade – não a realidade dos fatos, mas da
aparência dos fatos. E aí nos alinhamos a Immanuel Kant, para quem é
na imaginação que reside a arte da literatura. De maneira simplificada,
podemos dizer que a realidade da ficção, um paradoxo, é uma realidade
inventada, produto da imaginação, possível apenas nos estreitos limites
da arte.

8
Por que estudamos literatura?
Os gêneros literários, assim como o universo, estão
em expansão

A segunda pergunta é o desenvolvimento natural da primeira:


onde encontramos essa literatura? Os gêneros estão em expansão. A
literatura de ficção está em toda parte: poemas, contos, romances,
teatro, memórias, música popular, história em quadrinhos, cinema,
televisão – filmes, séries, novelas. E até nas chamadas redes sociais. A
chave para o enquadramento, nós vimos, é “valor estético”. (Um dia
destes eu descobri uma profissão que provavelmente vocês já
conhecem há muito tempo: a de roteirista de games... Os games são
literatura de ficção, também.)
Eu falei na chave para o reconhecimento estético do texto. No
meu livro O texto nu,1 que está na terceira edição, eu desenvolvi a teoria
da letra-poema, tentando orientar o leitor a identificar letra de música
que seja digna de ser classificada como poesia. É curioso como alguns
clássicos da chamada MPB são uma nulidade enquanto poesia. São
letras funcionais, que passariam despercebidas se não estivessem
conectadas à uma música inesquecível, cumprindo uma função
emotiva/informativa, prosaica. Já a letra poética está em um patamar
superior, onde a harmonia entre letra e música, em que ambas são
valorizadas, constrói alguns clássicos. A letra-poema é uma invenção de

1
PINTO, Zemaria. O texto nu – Teoria da Literatura: gênese, conceitos, aplicação. 3.
ed. Manaus: Valer, 2019. p. 149-158.

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Por que estudamos literatura?
outro nível: uma letra de música que se sustenta sozinha, que não
precisa da música para ser reconhecida como poesia. É claro que essas
ideias não estão isentas de polêmica. Então, o que não se enquadrar em
nenhuma das categorias antes citadas será chamado simplesmente de
letra ordinária.
Não podemos deixar de lembrar o Nobel de Literatura de 2016: o
compositor Bob Dylan. Depois do reconhecimento pelo significativo
prêmio, devemos deixar o pudor de lado e chamá-lo de poeta Bob
Dylan. Minha próxima aposta são os autores de histórias em
quadrinhos, de “graphic novels”. Roteiristas de cinema e TV já têm o
Oscar e o Emmy. Mas, é apenas uma questão de tempo.
No século 19, Verlaine conclui um de seus mais belos poemas,
afirmando: “e todo o resto é literatura”.2 Parafraseando o bardo
francês: no século 21, tudo é literatura!

2
Poema “Art Poétique”: “Et tout le reste est littérature.”

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Por que estudamos literatura?
Memórias: não podemos esquecer

Um gênero especialmente complicado são as memórias.


Enquanto gênero literário, as memórias situam-se em um ponto fluido,
entre o testemunho histórico e o relato ficcional. Mas o mecanismo que
deflagra as memórias é muito mais complexo que essas veredas que se
bifurcam: lembrança-esquecimento; memória afetiva, memória
seletiva; memória individual, memória coletiva – são apenas alguns dos
aspectos que envolvem o mecanismo da memória. E o mais terrível de
todos, o bicho-papão que nos espreita dos mais sombrios recônditos do
nosso ser: o inconsciente é também uma forma, incontrolável, de
memória.
As memórias distinguem-se da autobiografia na medida em que
esta busca o registro histórico e cronológico rigoroso, enquanto aquelas
trabalham a imaginação, compondo uma narrativa em que a
experiência vivida é mais importante que o documento dela resultante.
As memórias não são, portanto, um mero levantamento de fatos
passados, mas o estabelecimento de uma teia de relações com o
presente e com o futuro – por isso, as memórias podem ser
consideradas como literatura de invenção.

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Por que estudamos literatura?
Precisamos da literatura porque a vida não nos basta

Por fim, a terceira pergunta: para que serve a literatura? Tenho


certeza de que vocês já têm uma resposta, numa palavra: prazer?
Diversão? Fruição? Todas as anteriores? Nenhuma delas? Eu diria que
todas as anteriores e mais alguma coisa. A resposta clássica, abrangendo
todas as possibilidades acima é: precisamos da literatura porque a vida
não nos basta. A literatura leva ao devaneio, à fantasia. É como assumir
o controle dos próprios sonhos. Ler literatura exige um grau de
amadurecimento que ultrapassa a leitura mecânica: é preciso aprender
a estabelecer relações, nexos, conexões, links – com a tradição (o
passado) e a contemporaneidade (que contempla também o futuro).
Porque a literatura é a história contada como se os acontecimentos
fossem sonhados.
Se frei Gaspar de Carvajal, o dominicano que registrou a primeira
navegação de pessoas brancas pelo rio Amazonas, em 1542, não tivesse
se deixado levar pelo devaneio, hoje não seríamos quem somos:
amazônidas. O relato de Carvajal estabeleceu conexões entre a
mitologia grega, a mitologia nativa e a realidade que ele vivenciou.
Desse amálgama, nasceram páginas literárias históricas e páginas de
história que se tornaram literatura. Estava inaugurado, com toda pompa
e circunstância, o imaginário amazônico, e, de quebra, o que Todorov
chamaria, quatro séculos depois, de “maravilhoso hiperbólico”. Mas, o
que vem a ser esse imaginário amazônico?

12
Por que estudamos literatura?
Viajante ou nativo, o escritor amazônico tem a
cabeça nas nuvens

Fazendo uma analogia com a mais recente tecnologia de


armazenamento, a “cloud storage”, podemos dizer que o imaginário é
um mega-arquivo em uma fictícia nuvem de imagens mentais (não
iconográficas), resultantes da memória e da imaginação – portanto, dos
saberes – de uma coletividade.
Do ponto de vista literário, o imaginário amazônico é formado
principalmente pela mitologia, que tem origem em um tempo
indefinido, contaminada, nos últimos quinhentos anos, pelo contato
com saberes diversos de todos os pontos do planeta, pois o imaginário
é dinâmico e inconstante – e em estado de permanente mutação.
Mas, para o indivíduo que vem de fora dos domínios da região, o
primeiro contato – e primeiro choque – é com a paisagem. E a paisagem
é a selva. E a selva é um enigma. Como definir a selva para quem nunca
a viu? Podemos começar dando uma ideia de suas dimensões, usando a
mesma expressão que serviria para dar as dimensões do mar, do
deserto ou do espaço: imensidão. Mas isso seria uma incoerência,
porque a selva, plantada a céu aberto, é fechada. E se é fechada, é
limitada. Por outro lado, é muito fácil de entrar, mas é complicado sair
de sua estrutura labiríntica. Sob o sol, seu interior é escuro, sombrio.
Mas, há de ter os sentidos aguçados para vê-la, tocá-la, sentir o seu
cheiro e seu gosto – e, sobretudo, ouvi-la. Porque este é o sentido mais

13
Por que estudamos literatura?
exigido: o silêncio da floresta ocorre entre a algaravia carnavalesca de
um bloco de sujos e a suavidade quase tristeza de um conjunto de
câmara.
A selva se associa à água – dos rios, dos lagos, das corredeiras, das
cachoeiras, da pororoca, das enchentes, das vazantes, das chuvas
intermináveis e das tempestades devastadoras. Para o viajante, a água
é caminho, a selva é mistério.
É natural, portanto, que o escritor estranho à região eleja a
paisagem, item essencial do imaginário, como tema de maior destaque.
É desse uso da paisagem que nasce a dicotomia-clichê “edenismo x
infernismo”: para alguns autores, é o “paraíso perdido”; para outros,
apenas um “inferno verde”.
O escritor local, entretanto, que tem a paisagem incorporada ao
seu cotidiano, embora não a ignore, escolhe outros aspectos do
imaginário para explorar literariamente, especialmente a mitologia e a
simbologia da região. Ele ouve a voz do mito e compreende a razão do
símbolo.
Para efeito didático, portanto, identificamos dois tipos de
escritores que têm a Amazônia como matéria-prima: o viajante e o
nativo, contando entre estes os radicados. Viajantes são aqueles que
passaram por aqui – alguns nem passaram, aliás – e escreveram sobre a
Amazônia, servindo-se do imaginário.

14
Por que estudamos literatura?
A independência e o modernismo: ficções de fricções

Não foi o caso, claro, de Raul Bopp e Mário de Andrade, autores


de Cobra Norato e Macunaíma, dois ícones do Modernismo,
construídos a partir do imaginário amazônico, o que nos lembra que
neste ano da graça de 2022, além de eleições majoritárias, teremos o
bicentenário da “independência” e o centenário da Semana de Arte
Moderna, duas ficções. Explico. O Brasil não ficou independente em
1822, pelo simples fato de que continuamos devendo vassalagem ao
reino de Portugal, tendo inclusive de ceder D. Pedro (que aqui era
primeiro e em Portugal, apenas o quarto), deixando o país à deriva.
Independência mesmo foi a coça de 1889, derrubando o segundo Pedro
e instalando a primeira ditadura militar republicana do país, quando as
chamadas forças armadas tomaram gosto pela coisa. Quanto à SAM, foi
um fracasso enquanto festa, até porque o Modernismo já existia havia
uns bons cinco anos. Mas, os paulistas souberam usar a história para
nos impor o seu modernismo, que precisava das paradoxais bênçãos do
arcebispo, de um lado, e, de outro, dos líderes do Partido Integralista
(nazifascista) e do Partido Comunista (ainda leninista). Um dia vocês
lembrarão destas palavras. Eu mesmo só descobri isso fora do universo
das Letras.

15
Por que estudamos literatura?
O inferno verde é o paraíso perdido?

Ainda no capítulo viajantes, destaco a presença entre nós de


Euclides da Cunha, entre 1904 e 1905. Euclides é soberbo na análise das
relações de trabalho da economia baseada na extração da borracha.
Destaque-se o híbrido de conto, ensaio e poema em prosa “Judas
Asvero”, onde o mito cristão se transforma em alegoria do homem
local.3 Na apresentação de Inferno verde (1908), livro de contos de
Alberto Rangel, Euclides dá sua contribuição à expansão do imaginário
amazônico, especialmente relacionado à paisagem: “a Amazônia é a
última página, ainda a escrever-se, do Gênesis.”4 Há uma carga mítica
muito forte nessas palavras, aproximando Euclides da Cunha aos
primeiros navegadores do Novo Mundo, que tinham a pretensão de
encontrar o paraíso bíblico.
Mas o imaginário não alimenta apenas a literatura convencional,
porque parte dele é também literatura. Literatura oral, que deixa de sê-
lo quando vira livro, paradoxalmente, para eternizar-se. João Barbosa
Rodrigues, Brandão de Amorim e Nunes Pereira são três nomes para
guardar, responsáveis que foram pela recuperação da memória oral dos
povos amazônidas. Poranduba amazonense, Lendas em nheengatu e
português e Moronguetá são livros que deveriam ser lidos não apenas

3
CUNHA, Euclides. Amazônia, um paraíso perdido. Manaus: Valer, Governo do
Amazonas, EDUA, 2003. p. 117-126.
4
Ibidem, p. 354.

16
Por que estudamos literatura?
com o prazer proporcionado pela alta literatura, mas com o fervor e o
sentimento que merecem os livros sagrados. Mircea Eliade tem uma
classificação curiosa para essa literatura cosmogônica: aos mitos, que
explicam a origem de algo, ele chama de “histórias verdadeiras”, até
porque, sagradas, elas não podem ser questionadas, representando
verdadeiros dogmas de fé. Às lendas e aos contos populares,
entretanto, ele chama de “histórias falsas” – isto é, ficções.5 Tanto do
ponto de vista mundano-literário quanto do ponto de vista religioso,
ambas, histórias verdadeiras e histórias falsas, são nossa matéria de
trabalho – ainda que se chamem Torá, Bíblia ou Alcorão.

5
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Tradução: Manuela Torres. Lisboa: Edições 70,
1986. p. 15-19.

17
Por que estudamos literatura?
A literatura da borracha: muito siso e pouco riso

O ciclo econômico da borracha foi curto, mas muito rentável, para


as contas do decaído império e da nascente república. No âmbito
literário, entretanto, apresenta um considerável déficit: nada além de
alguns contos, meia dúzia de romances, uma ou outra peça de teatro,
um poema de fôlego. Além de um projeto frustrado, destinado a se
tornar um clássico: Um paraíso perdido, de Euclides da Cunha, o seu
“segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns textos que
antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história, de 1909,
sob o subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos
erradios, sob o mesmo título previamente escolhido pelo autor.6
O poema referido é A Uiara, de 1922, de Octavio Sarmento, do
qual falaremos mais adiante, em que, embora o motivo seja moderno –
uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a forma ainda vacila
num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do látex, de
1976, peça de Márcio Souza, tem o vaudeville como forma e o humor
carnavalizado como fim. Os contos e a quase totalidade dos romances
são de extração naturalista. As exceções são Dos ditos passados nos
acercados de Cassianã, de 1969, de Paulo Jacob, exarado numa
linguagem recriada, à maneira de Guimarães Rosa, mas afiliado ao
neorrealismo, que no Brasil tomou outros nomes, inclusive o execrável
“regionalismo”.

6
Amazônia, um paraíso perdido, citado como fonte em nota anterior.

18
Por que estudamos literatura?
A outra exceção é O amante das amazonas, de 1992, autoria de
Rogel Samuel, segundo o autor, baseado em fatos reais e paródia de
romance histórico. Professor de Teoria da Literatura, o poeta,
romancista e ensaísta constrói uma narrativa carnavalizada e
fragmentada, abrangendo mais de 70 anos de história, contando a saga
de Ribamar d’Aguirre de Souza, o narrador. Arquitetado sobre uma
plataforma combinatória de paródia, alegoria, intertextualidade e
metalinguagem, O amante das amazonas é o retrato expressionista de
uma época, cuja essência, mais de cem anos passados, ainda não foi
desvelada na sua integralidade.

19
Por que estudamos literatura?
A verdade da ficção e a ficção da verdade

Não poderia deixar de registrar o português Ferreira de Castro,


autor de A selva, de 1930, um equívoco literário, sempre citado como
“o grande romance amazônico”, mas apenas uma grande farsa, que, se
tem de positivo a ênfase à denúncia já feita por Euclides da Cunha mais
de 20 anos antes, perde-se numa narrativa pretensamente realista, mas
banal e eivada de equívocos – inclusive com relação à natureza, da qual
Castro foi péssimo observador. Paradoxalmente, entretanto, Ferreira de
Castro é cultuado como um gênio da raça, e estudos ditos sérios
confundem sua vida com a de seu personagem Alberto – e vice-versa.
Esses estudos, aliás, chegam ao cúmulo do plágio, num processo
autofágico dos próprios seguidores do autor. É um mito a ser
desconstruído. Porque mito não se destrói, se descontrói, buscando
anulá-lo, colocando a nu as mentiras que o enformam.7

7
PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer,
2021.

20
Por que estudamos literatura?
Viva a vaia! O esquisito como paradigma

“Toda unanimidade é burra!”, diria Nelson Rodrigues 20 ou 30


anos depois, mas os modernistas descobriram isso na carne: para eles,
a vaia era termômetro de inovação.
Eu disse, há pouco, que o Modernismo já existia havia uns bons
cinco anos antes de 1922. Ignorando as histórias oficiais e oficiosas,
guardo comigo a certeza de que o movimento que se convencionou
chamar de Modernismo começa mesmo em 1917, ainda que com vários
acontecimentos isolados e sem conexão uns com os outros.
Os fatos. O lançamento do livro Juca Mulato, de Menotti del
Picchia, cujo nacionalismo exacerbado viria depois a se tornar em
fascismo, dá ao país um herói caipira, fora dos padrões afrancesados da
época. É do mesmo ano Há uma gota de sangue em cada poema, de um
certo Mário Sobral, pseudônimo de um tímido Mário de Andrade, que
mereceu uma crítica consagradora de Manuel Bandeira: “o livro é ruim.
Mas de um ruim esquisito.” Naquele mesmo ano, Bandeira lança seu
primeiro livro, A cinza das horas, predominantemente simbolista, mas
de um simbolismo esquisito..., onde poemas como “Cartas de meu avô”,
“Poemeto irônico”, “Poemeto erótico” e “O anel de vidro” parecem
querer saltar em busca de outros livros futuros do autor.

21
Por que estudamos literatura?
Viva a vaia! O Modernismo começou pelo
Expressionismo

Mas, o acontecimento mais importante não foi na literatura e sim


nas artes plásticas: a exposição de Anita Malfatti, que após períodos de
estudos na Alemanha e nos Estados Unidos, voltara ao Brasil para botar
fogo no arraial, pintando sob a influência devastadora do
Expressionismo. Monteiro Lobato, outro nacionalista doente, com
tendências ligeiramente à esquerda, não gostou do que viu e publicou
um texto violento e covarde intitulado “Paranoia ou mistificação?”. Foi
a consagração de Anita, e a verdadeira fundação do Modernismo,
unindo no mesmo bloco os Andrade Mário e Oswald, e um grupo de
artistas e escritores de peso, que fariam, cinco anos depois, a Semana
de Arte Moderna.

22
Por que estudamos literatura?
Viva a vaia! O filho modernista mata o pai parnasiano

É importante dizer que havia alguma coisa no ar, além dos aviões
de carreira. O poema-ícone do Modernismo, “Os sapos”, de Manuel
Bandeira, que seria consagradoramente vaiado na SAM, foi publicado
no livro Carnaval, de 1919, onde o Simbolismo já cedera lugar a algo
ainda inominado, anunciado no poema de abertura do livro, “Bacanal”:
“Quero beber! cantar asneiras / no esto brutal das bebedeiras...”
Em 1921, Mário de Andrade publicou uma série de sete ensaios,
intitulada “Mestres do passado”, onde, com irônica reverência,
desconstrói criticamente o mito do Parnasianismo. A vaia solitária de
Mário de Andrade ecoa até hoje na alma dos parnasianos, que são lidos,
por quem não entende de poesia, como equívocos estéticos, quando
devem ser lidos associados ao seu tempo, à sua época. Não se iludam:
os parnasianos deixaram poemas de altíssima extração. Vocês só terão
o trabalho de descobri-los; afinal, cem anos de menosprezo não se
apagam com um simples parágrafo.

23
Por que estudamos literatura?
Psicanálise no inferno ou o Amazonas também é
modernista

No dia 7 de setembro de 1922, comemorando o centenário da tal


independência, o Diário Oficial do Amazonas publicava um longo poema
narrativo, com 978 versos decassílabos e esquema rímico irregular,
dividido em nove capítulos, que mostram a jornada do cearense Militão,
uma alegoria dos milhares de nordestinos que eram recrutados para
suprir a mão de obra nativa, insuficiente para atender à demanda dos
seringais. O autor, Octavio Sarmento, que morreria quatro anos depois,
só teria um livro publicado 81 anos depois de sua morte, em 2007: A
Uiara & outros poemas, organizado por este locutor que vos fala.
O porquê do esquecimento? A saga de um nordestino pobre, que
vivencia a experiência da morte cara a cara e depois enlouquece de
paixão e de desejo, não era, definitivamente, para os padrões da época,
um tema nobre. Embora, por vezes, exagerando nas cores, A Uiara é um
poema sóbrio, antecipador de toda a literatura que viria na sequência.
Com toques da nascente psicanálise, Sarmento mescla à paisagem – ora
infernal, ora edênica – aspectos diversos da mitologia amazônica,
construindo uma alegoria do que fora, na virada do século, a economia
baseada no produto da seringueira. Não resisto ao paralelo com Juca
Mulato, o poema de Menotti Del Picchia que, em 1917, retoma a
temática regionalista, esquecida desde os românticos, e antecipa o
Modernismo, trazendo a vida do homem comum para a poesia.

24
Por que estudamos literatura?
A Grécia nunca foi aqui

A Uiara é a fundação do Modernismo no Amazonas. Mas, isso fica


entre a gente. A crença geral é de que esse marco é o insípido Poemas
amazônicos, de Pereira da Silva, uma miscelânea romântico-
parnasiano-simbolista, vazada, às vezes, em versos livres e brancos, o
que dá a falsa impressão de modernismo. Não se lhe nega qualidade
poética, mas falta-lhe uma conexão com a própria contemporaneidade:
amazônicos, seus poemas estão ligados a um panteísmo helênico, que
soa falso e ingênuo, quase desonesto. À época com 35 anos, poderia ser
um aprendizado, mas, o poeta desistiu das musas e foi ser deputado
federal, onde, aliás, se deu muito bem.

25
Por que estudamos literatura?
Revolução frustrada

Um autor que merece destaque no nosso incipiente modernismo


– não pela sua poesia ou sua ficção, certamente – é Álvaro Maia. Seu
ensaio Canção de fé e esperança, de 1923, mistura política e poesia com
raro equilíbrio. Articulado em três níveis distintos – passado, 1823,
emancipação, frustrada, do Pará; presente, 1923, em plena agitação
tenentista; e futuro, 2023 –, o jovem político e poeta, inconformado
com a depressão econômica que fazia definhar o Amazonas, instigava
os seus pares, pois só a eles cabia a construção do futuro. Álvaro Maia
prega a revolução e até mesmo o separatismo, ao pensar no Amazonas
do futuro, exatamente o momento que vivemos agora. Será?

26
Por que estudamos literatura?
A flor-mulher e o mandacaru

Violeta Branca, aos 20 anos, publica Ritmos de inquieta alegria,


um livro libertário de uma mulher madura, lírico sem ser sentimental,
sensual sem ser vulgar. Violeta é um “luminoso poema de mocidade e
sol”. Trabalhando diversos aspectos do imaginário amazônico, inclusive
a paisagem, o espaço disponível é pequeno para dar a dimensão da
poesia dessa menina. Tratem de lê-la.
E para fechar o Modernismo no Amazonas, apresento-lhes as
revistas de Clóvis Barbosa, um modernista a ser resgatado: Redempção,
Equador e A selva. Todo mundo já ouviu falar, mas ninguém viu. Eu
elejo, proclamo e desafio: o paraibano Clóvis Barbosa é um caso a ser
investigado pelos pesquisadores da literatura amazonense. Parem de
inventar moda e procurem o que realmente interessa. Entre os seus
colaboradores, estavam Álvaro Maia, Pereira da Silva, Violeta Branca,
Nunes Pereira, Dalcídio Jurandir e Abguar Bastos – e também Mário de
Andrade, Jorge Amado, Tristão de Athayde e Raul Bopp, entre muitos
outros.

27
Por que estudamos literatura?
Clube da Madrugada: vida inteligente no entorno do
Teatro Amazonas

O movimento que convencionamos chamar de Clube da


Madrugada jamais foi um movimento estético no sentido que o léxico
dá a palavra, como “padrão ou corrente de pensamento buscando a
evolução de uma ou mais áreas do conhecimento humano”. Antes, o
Clube da Madrugada começou como um movimento no sentido de
“conjunto de ações visando, explicitamente, mudanças políticas e
sociais”. A partir desta acepção, afirmamos que o Clube da Madrugada
começou como um movimento político, que só muito depois enveredou
pela trilha estética, mesmo assim, de forma desorganizada, sem se
constituir em uma trilha uniforme, mas se multifacetando em vários
caminhos. Aliás, o Clube nasce de uma contradição: sem perspectivas
de futuro, aos jovens amazonenses – na expressão cunhada pelo sábio
Djalma Batista – só restava o “êxodo anual”, a senha para buscar outras
formas de vida fora do entorno do Teatro Amazonas. O Clube da
Madrugada amadurece durante cinco anos, até o ato formal, que de
formal não teve nada, da sua fundação, pelos que não aderiram ao
êxodo, em 1954. Até nisso eles quiseram ser modernistas. Mas, não
eram. Do ponto de vista estético, a literatura do Clube está ligada à
geração de 1945, formalista e antimodernista – embora não assumam
isso, porque era muito antipático ser antimodernista. Aliás, o é até hoje.

28
Por que estudamos literatura?
Dessa geração, era o jovem poeta Thiago de Mello, que, a rigor,
não era do Clube. Por ter aderido ao êxodo anual, fora para o Rio de
Janeiro no início doas anos 1940, com o intuito de estudar medicina, e
menos de uma década e meia depois já era considerado uma das
maiores vozes da poesia brasileira.

29
Por que estudamos literatura?
Os ceifadores precisam aprender a separar o joio do
trigo

As três gerações que construíram a história do Clube da


Madrugada – com ênfase na literatura e nas artes plásticas – constituem
um fenômeno a ser explicado, partindo do princípio científico de que
milagres são apenas improbabilidades estatísticas. Mas, outras
gerações vieram à luz, como não poderia deixar de ser, inferiores
numericamente, mas de qualidade estética a ombrear com a linha de
frente do Clube.
Temo, entretanto, pelo que observo, que o filtro da qualidade não
esteja adequado. A novíssima geração de analistas e críticos, da qual
vocês fazem parte, tem por obrigação regular esse filtro e não confundir
quantidade com qualidade. Um livro é apenas um livro – não um
passaporte para uma falsa eternidade – e assim deve ser lido. Cabe a
metáfora do evangelista Mateus: no tempo da colheita, é preciso
separar o joio do trigo.

30
Por que estudamos literatura?
Deus não joga dados com o universo, mas se jogasse
não aboliria o acaso

E já que falamos em Mateus, o evangelista guerrilheiro, na visão


de Pasolini, lembro que o sábio cristão Alceu de Amoroso Lima, o Tristão
de Athayde, distingue três espécies de relação entre literatura e religião:
unitiva, adversativa e indiferente.8 À relação unitiva pertence todo o
acervo de teologia e de filosofia religiosa, mas também obras de ficção,
como A divina comédia, de Dante, o Fausto, de Goethe, e Os Lusíadas,
de Camões. À relação adversativa corresponde a vasta produção oposta
àquela, em que se combate não só a ideia de religião, mas o conceito de
deus ou deuses. Não se trata de apologia demoníaca, mas da
compreensão de que o mal é parte da humanidade, e nenhum deus
deve interferir para mudar isso. De Lucrécio e Ovídio até Kafka,
passando por Rabelais, Voltaire, Baudelaire, Blake e Eça de Queirós, há
toda uma literatura em defesa desta tese. O poeta Gregório de Matos
divide-se entre as duas espécies: parte de sua obra dedica-se a criticar
e até escarnecer da Igreja; outra parte, significativa, é de uma
religiosidade contrita e sincera. A relação indiferente reúne a grande
maioria do cânone literário universal: são obras que não tomam partido

8
ATHAYDE, Tristão de. Religião e Literatura. In: Teoria, crítica e história literária.
Seleção: Gilberto Mendonça Teles e Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos; Brasília: INL, 1980. p. 117-121.

31
Por que estudamos literatura?
religioso ou se o fazem é apenas como pano de fundo para a ação
principal. Shakespeare e Jorge Luis Borges representam bem esse grupo.
É o caso também de Jorge Amado – ateu e comunista –, que, em todos
os seus livros, sem exceção, trata da religiosidade popular de forma
poética e sobretudo respeitosa.
Tristão de Athayde, um crítico feroz da má literatura, identifica
ainda, de bônus, as obras ditas “edificantes”, que buscam enquadrar-se
na categoria unitiva, em que literatura e religiosidade fundem-se numa
só ideia, mas essa intenção frustra-se porque “são obras
pseudoliterárias e pseudorreligiosas, embora impregnadas de boas
intenções, compostas para colocar a literatura a serviço da religião”. O
autor lembra a ferina frase de André Gide: “é com boas intenções que
fazemos má literatura.” Hoje, a literatura edificante recebe outro nome:
autoajuda – prenhe de boas intenções, porém, má literatura. E mais não
direi.

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Por que estudamos literatura?
O feio e o belo são as duas partes de um todo que é
só metade

Se o mal é parte da humanidade, não poderia deixar de ser parte


da literatura. Esta é uma bifurcação em que o caminho escolhido não
permite retorno – será para toda a vida. A escolha é entre a literatura
como um produto do belo, numa direção; e a literatura como um
produto da vida, em outra. Mas, atenção: definitivamente, a vida não é
bela. Como diria o jovem Victor Hugo, há quase duzentos anos, na vida
real e na vida imaginada, “o feio existe ao lado do belo, o disforme perto
do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a
sombra com a luz.”9 Se reconhecemos algo como belo é porque
conhecemos o feio. É dessa fusão entre o bem e o mal, o belo e o feio,
o trágico e o cômico que se faz literatura, desde sempre.

9
HUGO, Victor. Do grotesco ao sublime. 2. ed. Tradução: Célia Berrettini. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 26.

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Por que estudamos literatura?
O autor deve morrer para que a obra tenha vida

Não há nada mais triste e deprimente que a leitura de uma obra


tendo por baliza a biografia do autor. O autor deve morre na vida da
obra. Vamos repetir isso: o autor deverá estar morto para que a obra
possa ser considerada viva. O autor é apenas uma representação legal,
um nome associado à obra, direitos autorais, essas coisas – mas não é
ela. Alguns autores fazem questão de afirmar que escrevem sobre sua
vida. A maioria, borgeanamente, mente. Os que falam a verdade não
fazem literatura.
Essa questão fica mais clara na poesia. A possível poesia do “eu
empírico” (o poeta-autor) não nos interessa: é muita pretensão de um
autor achar que sua dor ou alegria individuais têm algum interesse para
a humanidade. Por outro lado, a locução “eu lírico”, usada para designar
a voz fictícia do poeta, é de uma simplificação atroz, só tendo sentido
na análise de poemas isolados, pois, num conjunto, qualquer conjunto
de poemas de qualidade de um autor de qualidade, deve prevalecer a
diversidade de vozes, a polifonia. Imagine-se uma antologia de um
determinado autor, representativa de sua obra ao longo do tempo.
Analisá-la sob a perspectiva de um eu lírico é limitar essa análise, pois,
com toda certeza, prevalecerá uma multiplicidade de “eus líricos”.

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Por que estudamos literatura?
A máscara lírica muito além de Mr. Hyde

Analisar poetas a partir da perspectiva da adoção de “máscaras


líricas”, me parece a melhor solução para a cacofonia promovida por um
“eu lírico” descontrolado. Por exemplo, Augusto dos Anjos: poeta e
poesia de alta tensão e densa complexidade, o autor, deliberadamente,
assume uma máscara, que é o desdobramento do eu lírico, um outro eu
lírico, sobre o qual Dr. Jekyll mantém total controle. Essa “máscara
lírica” quebra a conexão autor-eu lírico, assumindo-se como
personagem (persona = máscara), se expressando como tal, na sua
completude de máscara, sem nenhum vínculo físico com o autor, que
presta vassalagem a ela, sem largar os cordames. Fernando Pessoa
levaria ao extremo esse processo, na criação de seus principais
heterônimos – Caeiro, Campos e Reis.

35
Por que estudamos literatura?
A máscara expressionista de Augusto dos Anjos

Um bom começo para entender o funcionamento da máscara


lírica são os conhecidos “três sonetos ao pai”, de Augusto dos Anjos –
na verdade, publicados sempre juntos, mas sob o título genérico de
“Sonetos”. O primeiro, com a dedicatória “A meu pai doente”; o
segundo, “A meu pai morto”; ambos publicados em jornal seis dias após
o falecimento do pai do poeta. Nesses poemas, o eu lírico se funde ao
eu empírico, formando uma só voz poemática.
No primeiro poema, de extração simbolista – tendo por paisagem
de fundo um campo sem flores, de árvores nuas –, o sofrimento causado
pela doença do pai mescla-se ao sofrimento do filho impotente,
levando-o a questionar sua fé.
No segundo poema, parnasiano, cessa o sofrimento do pai e o
filho resigna-se diante da inevitabilidade da morte. A paisagem de fundo
é um “abismo de beleza” sob o “estrelado véu”. Em paz consigo mesmo,
o filho reconcilia-se com a fé, nas imagens do cordeiro e do carro de
Elias: “Meu Pai nessa hora junto a mim morria / Sem um gemido, assim
como um cordeiro!” E fechando o poema: “Mas pareceu-me, entre as
estrelas flóreas, / Como Elias, num carro azul de glórias, / Ver a alma
de meu Pai subindo ao Céu!”

36
Por que estudamos literatura?
O terceiro poema foi publicado sete anos após os dois primeiros,
quando a linguagem poética de Augusto dos Anjos já tomara um rumo
totalmente diferente dos anos iniciais, com a adoção de uma máscara
lírica – uma personagem que via o mundo em sua realidade
aterrorizante. Não se trata de um sonho ou de uma visão. A descrição
que a máscara lírica faz do corpo do pai vai além do mero registro
realista: ela se coloca junto a ele, apodrecendo sob a terra, e até o beija:
“Podre meu pai! (...) Em seus lábios que os meus lábios osculam...” À
parte, entretanto, a paisagem representada pelo corpo do pai em
decomposição, duas reflexões perpassam o poema: a certeza da morte,
regulada por uma lei biológica que vale tanto para o homem como para
as mais desprezíveis formas de vida, parasitárias, que devoram o corpo
inerte; e uma declaração de amor ao pai – amor eterno, não fosse a vida
efêmera.10

10
PINTO, Zemaria. A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Manaus:
Valer, 2012. p. 45-48.

37
Por que estudamos literatura?
Contra a pequenez provinciana, a máscara lírica de
Bacellar

Na lírica amazônica, cito o exemplo de Luiz Bacellar, que usa


máscaras líricas de acordo com a forma poemática adotada: soneto, em
Quatro movimentos; rondel, no Sol de feira; haicai, no Satori. São três
poetas diferentes. No seu primeiro livro, Frauta de barro, o poeta
desdobra-se em máscaras diversas. Para impor sua poesia esmagada
pela província, a máscara lírica bacellariana faz uma narrativa da
pequenez provinciana, a partir da perspectiva de um nobre trovador,
que dá ênfase à preparação do recital, para depois cantar – inicialmente,
uma poesia diurna, solar, que vai aos poucos impregnando-se de
angústia e melancolia. A segunda parte do recital são cantigas diversas,
concluindo com os cantares de amigo, que homenageiam outros poetas.

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Por que estudamos literatura?
A única certeza é a dúvida

Chegamos ao fim da nossa jornada. Não há clichê mais clichê que


esse. Mas, é um porto seguro. Outro clichezinho básico. Evitem. Aliás,
não usem nem por brincadeira. A literatura é o anticlichê, o antilugar-
comum, a antibanalidade. Sejam literários, não literatos: quem gosta de
estereótipos são os estereotipados, que se alimentam da própria
banalidade narcísica. E sabe o que mais? O senso crítico é um
aprendizado lento. “Achei lindo...” pode ser uma opinião, mas não é
crítica. Como crítico, você só tem que saber uma coisa: explicar a sua
opinião. E a sua opinião é uma construção de dúvidas, não de certezas.
Se a verdade tem dois lados (olha o clichezão aí, gente), duvide de
ambos e construa a sua síntese. Isto é dialética. Mas você pode ir mais
longe: se a verdade é uma abstração, a única certeza é a dúvida.
Alimente-se de dúvidas. Converse com suas dúvidas. Durma com suas
dúvidas.
Uma certeza banal: os jovens não leem mais. Outra: os jovens não
gostam de escrever. Mais outra: o livro de papel vai desaparecer. Destas
três, apenas a terceira é verdadeira: sinto muito informá-los, mas o livro
vai desaparecer, sim. E isso é tão certo quanto o fato de que os jovens
(e os velhos também) nunca leram e nunca escreveram tanto. Olhe em
redor. O que você acha que esse pessoal faz com essa maquininha
diabólica nas mãos?
Quanto ao livro, pensem que é apenas um suporte. O livro como
nós o conhecemos tem pouco menos de 600 anos, em mais de 3 mil

39
Por que estudamos literatura?
anos de literatura. Não precisamos ficar tristes, sabem por quê? Por que
a literatura não vai desaparecer, pelo menos pelos próximos 3 mil anos.
Fiquem tranquilos: o emprego de vocês está garantido, especialmente
agora que vocês já sabem porque estudamos literatura...
E para terminar, uma reflexão.

40
Por que estudamos literatura?
Moto-contínuo

Tudo muda, tudo passa,


tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Lentamente a História muda,


lentamente muda o Homem,
tão lentamente que às vezes
pensamos que estagnou.
As longas noites da História
passam-se tão lentamente
que nem nos apercebemos
quando o dia, enfim, chegou.

Tudo muda, tudo passa,


tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

41
Por que estudamos literatura?
Tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu:
os corpos e os vegetais,
a fé e a necessidade,
a volúpia e a vontade,
o desejo e o desalento.

Tudo o que é vivo apodrece,


o que é líquido evapora,
o sólido se deforma,
o fogo que queima apaga
e o ar, puro ou cinzento,
a cada instante renova-se,
e mesmo o pó se transporta
sob o trabalho dos ventos.

Tudo muda, tudo passa,


tudo está em movimento
sobre a terra e sob o céu,
inclusive o pensamento.

Muito obrigado!

42
Por que estudamos literatura?
Sobre o autor

I
Zemaria Pinto (José Maria Pinto de Figueiredo) nasceu em
Santarém-PA, a 6 de maio de 1957, vindo logo em seguida para Manaus,
onde seus pais – José Torres de Figueiredo, coariense, e Maria Sílvia
Pinto de Figueiredo, santarena – já haviam fixado residência desde o ano
anterior.
O ensino fundamental foi feito entre a Escola Santa Rita de Cássia,
da professora Cecília, e o Colégio Ruy Araújo, ambos na Cachoeirinha.
De intermédio, o salesiano Domingos Sávio, na Praça 14 de Janeiro, e
São Raimundo Nonato, em Santarém, dirigido pela Irmã Marília
Menezes, da congregação do Preciosíssimo Sangue.
Bacharel em Economia pela UFAM em 1981, especializou-se em
Análise de Sistemas da Informação. Em 1989, concluiu, pela UFAM, a
especialização em Literatura Brasileira, o que o credenciou a atuar como
professor substituto daquela instituição, até 2000, nas seguintes
disciplinas: Teoria da Literatura, Literatura Latina, Literatura Brasileira
e Literatura Amazonense. Em abril de 2012, obteve o grau de Mestre em
Estudos Literários, também pela UFAM, com a dissertação A invenção
do Expressionismo em Augusto dos Anjos.

II
Sua estreia em livro deu-se na antologia Marupiara, em 1988,
organizada por Anibal Beça e André Gatti, que o relacionaram entre os
poetas da “geração pós-madrugada”. Tem participação em mais de uma
dezena de antologias, com destaque para as seguintes:

43
Por que estudamos literatura?
- Marupiara (SCA/Gov. do Amazonas, 1988);
- Saciedade dos Poetas Vivos, Vol. IV (erótica), VI (haicai), IX
(homens) e XI (clássica) – (Blocos-RJ, 1993-1999);
- Hermanos, antologia poética Brasil-Cuba (Pórtico-BA, 1997);
- Haïku sans Frontière: Une Anthologie Mondiale, coletânea de
haicaístas do mundo inteiro (Les Editions David-Canadá, 1998);
- A Poesia Amazonense no Século XX, organizada por Assis Brasil
(Imago-RJ, 1998);
- A poesia se encontra na floresta – I encontro amazônico de poetas
da América Latina (Valer, 2001);
- Fauna e flora nos trópicos (Secult-CE, 2002);
- Poesia e poetas do Amazonas (Valer, 2006);
- Manaus 20 autores (Quixote-MG, 2013).

III
Participou do livro O mostrador da derrota: estudos sobre o teatro
e a ficção de Márcio Souza, organizado pelos professores Allison Leão e
Marcos Frederico Krüger (UEA Edições, 2013), com o capítulo “Deuses,
heróis, bufões: uma dramaturgia amazônica”.
Participou também do livro Suíte crítica: estudos sobre a poesia de
Luiz Bacellar, organizado pelos professores Allison Leão e Mariana
Vieira (NEPAN Editora, 2021), com o capítulo “Antologia lírico-
trovadoresca da Póvoa de Manaus: uma re/leitura de Frauta de barro”.

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Por que estudamos literatura?
Tem os seguintes trabalhos publicados em anais de Congressos:
- A motivação política na fundação do Clube da Madrugada, em I
Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário (UEA Edições,
2009);
- O teatro mítico de Márcio Souza, em II Colóquio Internacional
Poéticas do Imaginário (UEA Edições, 2010);
- A cidade expressionista de Augusto dos Anjos: uma leitura de “Os
doentes”, em IX Jornadas Andinas de Literatura Latino-
Americana – JALLA (Editora da UFF-RJ, 2010);
- Tragédia e chanchada no teatro de Márcio Souza, em III
Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário (EUA Edições,
2012);
- A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos, em I
Congresso Nacional de Literatura (UFPB, João Pessoa, 2012);
- Representações da Amazônia na relação de Carvajal: devaneio e
mistificação, em XIII Congresso Internacional da ABRALIC
(UEPB, Campina Grande-PB, 2013);
- Miniconto, microconto, nanoconto, contos são?, em Simpósio
Nacional do GEPELIP (UFAM, 2014).

Organizou, para a Academia Amazonense de Letras, os seguintes


livros:
- A Uiara & outros poemas, de Octavio Sarmento – (AAL/Valer,
2007);
- Águas do dia e da noite, estudos sobre a poesia, a ficção e a
ensaística de Elson Farias – (AAL/Reggo, 2019).

45
Por que estudamos literatura?
IV
Livros publicados:
- Por que estudamos literatura? (Autor, 2024, palestra);
- Os que andam com os mortos (Valer, 2023, contos);
- Tribuna Acadêmica (2004–2019) – discursos, palestras,
apresentações (2022, AAL/Reggo);
- O príncipe soberbo (Valer, 2021, infantil);
- A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade (Valer, 2020,
ensaio);
- A poesia expressionista de Augusto dos Anjos (Autor, 2020,
ensaio);
- Teatro e Resistência: a História no centro do palco (Autor, 2019,
ensaio);
- A história como metáfora e outros ensaios amorosos
(AAL/Reggo, 2018);
- Lira da Madrugada (Jiquitaia, 2014, ensaios);
- Viagens na casa do meu avô (Valer, 2014, infantil);
- Ensaios ligeiros (AAL, 2014, artigos, 2ª ed., 2022);
- Linguagem literária – prosa e poesia (Valer, 2014, didático);
- A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos (Valer,
2012, ensaio);
- O urubu albino (Valer, 2011, infantil; 2ª ed., 2018; 3ª ed., 2021);
- O beija-flor e o gavião (Valer, 2011, juvenil);
- A cidade perdida dos meninos-peixes (Valer, 2011, juvenil; 2ª ed.,
2020);
- O conto no Amazonas (Valer, 2011, ensaios);
- O texto nu (Valer, 2009, teoria literária; 2ª ed., 2011; 3ª ed., 2019);

46
Por que estudamos literatura?
- Dabacuri (Uirapuru, 2004, haicais);
- Nós, Medeia (Valer/SEC, 2003, teatro);
- Música para surdos (Valer, 2001, poesia);
- Análise literária das obras do vestibular (EDUA, 2000 e 2001,
ensaios; ambos em parceria com o professor Marcos Frederico
Krüger);
- Fragmentos de silêncio (EDUA, 1995, poesia; 2ª ed.,1996);
- Corpoenigma (EDUA, 1994, haicais).

No blog Palavra do Fingidor, além de contos e poemas esparsos,


tem três livros postados:
- Drops de pimenta (nanocontos, 2009-2010);
- Lábios que beijei (microcontos, 2013-2017);
- Bolero´s Bar (microcontos, 2020-2021).

V
Dramaturgo, é autor das seguintes peças:
- Nós, Medeia, premiada, em 2002, como o melhor texto adulto em
concurso da SEC, e encenada em 2011/2012/2013/2019;
- Papai cumpriu sua missão, encenada em 2000/2001;
- Diante da Justiça, encenada em 2003/2004;
- O beija-flor e o gavião, encenada em 2006/2007;
- Otelo solo, encenada em 2013/2014;
- Onde comem 3 comem 6 (Prêmio Myriam Muniz 2013), encenada
em 2014;

47
Por que estudamos literatura?
- Cenas da vida banal, A cidade perdida dos meninos-peixes e
Estrela de Belém, uma jornada ao ventre da floresta, inéditas,
tiveram leituras públicas.

VI
É membro da Academia Amazonense de Letras, onde ocupa a
cadeira 27, de Tavares Bastos, desde setembro de 2004, sucedendo ao
amigo Antísthenes Pinto. Membro do Instituto Geográfico e Histórico do
Amazonas, inaugurou, em fevereiro de 2016, a cadeira 59, de Nunes
Pereira.

48
Por que estudamos literatura?
Por que estudamos literatura? foi escrito
em dezembro/2021 e janeiro/2022.
Publicado por:

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