Você está na página 1de 26

Notícias Brasil Internacional Economia Saúde

'Papa de Hitler' ou 'salvador


dos judeus'?: quem foi Pio 12
e por que seu papel na 2ª
Guerra segue polêmico

13:09

Antes de se tornar papa, cardeal Pacelli foi núncio na Alemanha

Juan Francisco Alonso


BBC News Mundo

25 setembro 2023

"O mais atroz das coisas más, das pessoas más, é o silêncio
das pessoas boas."

Essa frase atribuída ao líder indiano Mahatma Gandhi (1869-


1948) ilustra perfeitamente a polêmica que durante décadas
envolveu a figura de Eugenio María Giuseppe Giovanni
Pacelli (1876-1958), que entre 1939 e 1958 ocupou o trono
de São Pedro, no Vaticano, sob o nome de Pio 12,
especialmente pelas suas ações durante a 2ª Guerra Mundial.

Uma polêmica que foi reavivada nos últimos dias com a


descoberta, nos arquivos do Vaticano, de uma carta enviada
em 1942 por um padre jesuíta alemão, membro da
resistência antinazista na Alemanha, ao secretário de Pio 12,
Robert Lieber.

Na carta, o religioso relatava o que estava acontecendo em


três campos de concentração (Belzec, Auschwitz e Dachau),
para onde eram enviados judeus e opositores.

A descoberta da epístola confirma que altos funcionários do


Vaticano, possivelmente incluindo o próprio papa, tinham há
muito conhecimento do extermínio dos judeus nos territórios
ocupados pelas forças de Adolf Hitler (1889-1945) e, apesar
disso, não o denunciaram publicamente.
Matérias recomendadas

'Meu pai se matou, e hoje sou padre e


especialista em suicídio'

As seitas cristãs da antiguidade em


que mulheres podiam ser 'padres'

Em áudio | 'Papa de Hitler' ou


'salvador dos judeus'?: quem foi Pio 12
e por que seu papel na 2ª Guerra segue
polêmico

Nossa Senhora de Medjugorje: a


controversa santa não aceita pela
Igreja

Esse silêncio é a razão pela qual muitos historiadores e


setores da comunidade judaica consideram o falecido
pontífice, que desde 2009 é um aspirante a santo, um
cúmplice do Holocausto.

Mas o silêncio papal foi decorrente da indiferença de Pio 12


ou foi parte de uma estratégia para evitar males maiores?
GETTY IMAGES

Em 2020, o papa Francisco ordenou a abertura de todos os


arquivos relativos ao pontificado de Pio 12 para esclarecer
dúvidas sobre ele

Fachada?

Durante os 19 anos de seu


pontificado, Pio 12 publicou
40 encíclicas e, embora oito
tenham sido publicadas
durante a guerra, nenhuma
delas menciona a
perseguição e o extermínio
de judeus e outras minorias.
Uma das poucas menções BBC Lê
públicas do papa ao
Podcast traz áudios com
genocídio perpetrado pelas
reportagens selecionadas.
forças de Hitler ocorreu na
véspera de Natal de 1942, Episódios
mesmo ano em que seu
secretário recebeu a carta
recém-encontrada.

"Este voto (a favor de um mundo mais justo) a humanidade


deve às centenas de milhares de pessoas que, sem culpa
própria, às vezes apenas por razões de nacionalidade ou raça,
se encontram destinadas à morte ou a uma aniquilação
progressiva", declarou Pio 12 em um discurso no rádio, sem
especificar qual grupo que estava sendo aniquilado.

Por quê? Não lhe interessava o destino dos judeus?

"Pio 12 escolheu a política do silêncio para salvar vidas",


defende Dom Vicente Cárcel Ortí, autor do livro Pio 12
(1939-1958): O papa defensor e salvador dos judeus, à BBC
News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

O historiador e pesquisador espanhol argumenta que o


pontífice optou por não confrontar publicamente os nazistas
para atingir dois objetivos: por um lado, não desencadear a
raiva de Hitler e assim evitar que a perseguição contra judeus
e católicos se intensificasse; por outro, lançar ao mesmo
tempo uma discreta operação humanitária.

"O papa ordenou a abertura das igrejas, escolas, conventos e


universidades de Roma para esconder os judeus romanos
(que viviam em Roma) (…) ele permaneceu em silêncio,
porque estava muito bem informado do que estava
acontecendo na Europa ocupada, como confirma este
documento que acabou de vir a público", acrescenta Cárcel
Ortí.
GETTY IMAGES

Pio 12 foi um anticomunista ferrenho e, por isso, não hesitou em


saudar com "alegria" o triunfo de Francisco Franco na Guerra
Civil espanhola
Segundo o especialista, o pontífice enviou núncios
(embaixadores), bispos, padres e freiras para resgatar
secretamente milhares de perseguidos.

Alguns autores afirmam que até 900 mil pessoas


conseguiram escapar dos campos de concentração graças a
essa operação.

"Estas coisas foram feitas porque o papa deu ordens


específicas para fazer todo o possível para salvar judeus",
afirma Cárcel Ortí.

Andrés Martínez Esteban, professor de História da Igreja da


Universidade de San Damaso, na Espanha, concorda.

Ele lembra que "nos arquivos do Vaticano há evidências que


comprovam que quando Roma foi invadida (em 1943) pelo
Exército nazista, foi pedido à comunidade judaica que
entregasse uma certa quantidade de ouro, e o papa deu
ordem às paróquias romanas para darem todo o ouro que
tivessem e assim ajudarem os judeus a fazer o pagamento."

No entanto, o pesquisador britânico John Cornwell rejeita


essa tese e garante que há poucas evidências para sustentá-
la.

"Não há dúvida de que muitos católicos — padres, freiras e


fiéis — em toda a Europa ocupada salvaram muitos judeus,
mas acho escandaloso que o Vaticano afirme que isso
aconteceu graças às instruções do papa", diz à BBC News
Mundo o autor do polêmico livro O Papa de Hitler.
"Há muito poucas evidências que indiquem que o papa tenha
pedido a seus subordinados que fizessem qualquer coisa para
salvar os judeus da perseguição", acrescenta.

GETTY IMAGES

Em 2009, o então Papa Bento 16 iniciou o processo de


beatificação do polêmico Pio 12, decisão que foi criticada pela
comunidade judaica

Menos é mais
Tanto Cárcel Ortí como Martínez Esteban argumentam que o
silêncio papal, em certa medida, ocorreu a pedido de bispos
alemães, holandeses e poloneses, temendo as consequências
que qualquer pronunciamento de uma autoridade
eclesiástica acarretava.
"Quando os bispos holandeses publicaram uma carta em
1942 condenando a perseguição nazista aos judeus na
Holanda invadida, o Exército alemão assaltou as igrejas e
conventos, e Edith Stein foi detida lá", recorda Martínez
Esteban.

Stein, hoje mais conhecida como Santa Teresa Benedita da


Cruz, era uma freira de origem judaica, que se converteu ao
catolicismo e morreu no campo de concentração de
Auschwitz, na Polônia.

Martínez Esteban afirma que Pio 12 não poderia falar


publicamente sobre o Holocausto porque havia graves
ameaças contra a Igreja Católica em todo o mundo, mas
particularmente nos territórios invadidos.

"Não esqueçamos que Roma foi invadida pelos nazistas", diz


ele.

Por sua vez, Cárcel Ortí defende haver documentos que


comprovam que Hitler planejou invadir o Vaticano e prender
Pio 12, e depois levá-lo prisioneiro para a Alemanha, tal
como Napoleão Bonaparte fizara com Pio 6º dois séculos
antes.

Cornwell, por sua vez, diz que a atitude de Pio 12 já era


questionável antes do conflito.

"Suas ações antes da guerra foram muito favoráveis aos


interesses nazistas", diz ele.
"Ele negociou (quando era cardeal, em 1933) diretamente o
Reichskonkordat, um tratado com a emergente Alemanha
nazista através da qual a Igreja Católica conseguiu continuar
a desenvolver as suas atividades na Alemanha,
especialmente mantendo as suas escolas abertas, mas em
troca prometeu não interferir nos assuntos políticos", lembra.

"Essa negociação implicou que os religiosos fossem proibidos


de fazer qualquer crítica ao Estado alemão e, graças a isso, os
jornais católicos, que eram muitos, também desapareceram",
explica.

Pio 12 vinha de uma família romana, aristocrata, muito


religiosa e com laços profundos com o papado: seu avô
paterno ocupou um alto cargo na Secretaria de Finanças do
Vaticano durante o pontificado de Pio 9 e um de seus primos
foi assessor de Leão 13.
GETTY IMAGES

Segundo os seus defensores, Pio 12 não condenou


publicamente o nazismo nem a perseguição aos judeus porque
não queria agravá-la
Em 1899, ele foi ordenado sacerdote e embora nunca tenha
realizado trabalho pastoral (em uma paróquia), conseguiu
ascender rapidamente.

Até a sua eleição como pontífice em 1939, o então cardeal


Pacelli serviu como Secretário de Estado do Vaticano (cargo
equivalente ao Ministro das Relações Exteriores no Brasil) e
assumiu diretamente as negociações do acordo entre a Igreja
e o novo governo nazista.

Isso porque na década anterior tinha sido núncio naquele


país.

Precisamente a sua experiência na Alemanha com os nazistas


foi, segundo alguns autores, a razão pela qual os seus
colegas cardeais o escolheram para chefiar a Santa Sé.

Eles acreditavam que suas habilidades diplomáticas


serviriam para apaziguar a sede de guerra de Hitler.
GETTY IMAGES

O caso da freira de origem judaica Edith Stein é citado por


especialistas como uma das consequências das críticas dos
hierarcas católicos aos nazistas

Uma campanha fabricada pela KGB


No final da 2ª Guerra Mundial, a imagem do pontífice parecia
imaculada e, após a sua morte em 1958, líderes judeus como
Golda Meir, que na época era chanceler de Israel e se tornaria
premiê daquele país de 1969 a 1974, exaltavam a sua figura.

"Durante os dez anos de terror nazista, quando o nosso povo


passou pelos horrores do martírio, o papa levantou a voz para
condenar os perseguidores e solidarizar-se com as suas
vítimas", escreveu Meir.

O rabino-chefe de Roma durante a guerra, Israel Anton


Zoller, não só se converteu ao catolicismo em 1945, como foi
batizado com o nome de Eugenio em homenagem ao papa.

No entanto, isso mudou na década de 1960, quando o


falecido escritor alemão Rolf Hochhuth publicou a sua obra
O Vigário, na qual questionava o silêncio papal durante a
guerra.

Cárcel Ortí, entretanto, diz que Hochhuth "foi financiado


pelos serviços secretos da antiga União Soviética (URSS), que
lançaram uma campanha difamatória contra a Igreja Católica
nos anos mais duros da Guerra Fria".

Mas qual era a motivação de atacar um papa já morto?

Para o historiador, "Pio 12 era anticomunista ferrenho e


contra ele foi implementada (logo depois de sua morte) uma
grande campanha para desacreditá-lo — chegaram a acusá-
lo de ser colaborador dos nazistas, quando ele era
exatamente o oposto", diz o especialista.

Atribui-se a Pio 12 a autoria da encíclica Mit brennender


Sorge ("Com ardente preocupação"), publicada em 1937 por
Pio 11, seu antecessor no cargo e na qual as políticas do
regime nazista eram duramente condenadas.
GETTY IMAGES

Os especialistas acreditam que as dúvidas sobre as ações de Pio


12 foram semeadas por uma campanha orquestrada pela KGB

Contudo, em abril de 1939, em um discurso radiofônico, o


pontífice mostrou o seu lado mais conservador ao declarar a
sua "imensa alegria" pela vitória do general Francisco Franco
(1892-1975) na Guerra Civil Espanhola contra seus rivais
republicanos e comunistas.

Para o bispo de Roma, o triunfo dos militares garantiu que a


Espanha continuaria a ser um "bastião inexpugnável da fé"
contra os "prosélitos do ateísmo materialista".
GETTY IMAGES

Alguns autores afirmam que o papa se arrependeu de não ter


feito mais pelos judeus
Beatificação paralisada
Os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam
que a decisão do papa Francisco de abrir todos os arquivos
do papado de Pio 12 não ajudará a resolver a controvérsia.

"Não vão esclarecer nem obscurecer nada, mas vão dizer o


que já sabíamos e quem tem uma ideia pré-concebida dele
não vai mudar de opinião", diz Cárcel Ortí.

Para Martínez Esteban, no entanto, não há interesse real em


investigar as ações de Pio 12.

Cornwell, por sua vez, também não espera grandes


novidades.

"Não há quase nada nos arquivos que indique o estado


mental do papa ou o que ele pensava pessoalmente. Não
existem cartas ou diários privados, portanto o que muitos
pesquisadores estão fazendo é adivinhar ou presumir quais
eram as intenções de Pio 12".

Quando um papa morre, é praxe queimar as suas cartas e


diários privados.

E, embora em 2009 o polêmico pontífice tenha sido


declarado "Venerável", o seu processo de beatificação está
paralisado, mas não só pela polêmica que o rodeia, mas
porque até agora não foi identificado nenhum milagre que
pudesse ser atribuído a ele, segundo autoridades
eclesiásticas.

Tópicos relacionados

Papa Francisco Igreja Católica Itália Cultura

História Europa Religião

Segunda Guerra Mundial

Histórias relacionadas

A carta que mostra


que papa Pio 12
provavelmente sabia
do extermínio nazista
em 1942 — antes do
que admite o Vaticano
20 setembro 2023

Principais notícias

Os pastores evangélicos perseguidos pela ditadura


Há 6 horas

Como Testemunhas de Jeová foram vigiadas,


interrogadas e punidas na ditadura: 'Maus exemplos
contra interesses nacionais'
27 março 2024

Quem foi Solange Hernandes, a 'dama da tesoura' que


foi maior nome da censura na ditadura militar
28 março 2024

Leia mais
A 'tempestade perfeita' que explica explosão de casos
de dengue no Brasil
27 março 2024

Bolsonaro se defende sobre ida a embaixada da


Hungria: 'Não há preocupação com prisão preventiva'
27 março 2024

O país onde se vendem mais fraldas para adultos do


que para bebês
27 março 2024
Ponte Rio-Niterói: mortes, atrasos, tentativa de CPI e
explosão de custos da ‘obra do século’ da ditadura
26 março 2024

Ageótipos: os diferentes tipos de envelhecimento — e


as vantagens de saber o seu
27 março 2024

Mais lidas

1 Qual a gravidade da crise vivida por Cuba e


como ela se compara ao período após
colapso da URSS
2 De onde surgiram as teorias de que Jesus e
Maria Madalena tiveram um
relacionamento amoroso
Última atualização: 28 março 2023

3 Quem foi Lilith, 'primeira mulher de Adão', e


por que ela renunciou ao Paraíso
Última atualização: 20 março 2023

4 Progressão continuada prejudica a


qualidade da educação no Brasil?

5 Ageótipos: os diferentes tipos de


envelhecimento — e as vantagens de saber o
seu

6 Salvador, 475 anos: por que cidade foi


escolhida para ser 1ª capital do Brasil

7 Como surgiram os batistas, cristãos que não


batizam crianças
Última atualização: 5 setembro 2023

8 O TikTok é mesmo um perigo para o


Ocidente?

9 O que comer antes de treinar — e por que a


refeição do dia anterior é mais importante
10 Zélio, o Caboclo das Sete Encruzilhadas: o
'fundador da umbanda' que não é bem
aceito por umbandistas atuais
Última atualização: 31 dezembro 2021

Por que você pode confiar na BBC

Termos de Uso Cookies

Sobre a BBC Contate a BBC

Política de privacidade Do not share or sell my info

© 2024 BBC. A BBC não se responsabiliza pelo conteúdo de sites


externos. Leia sobre nossa política em relação a links externos.

Você também pode gostar