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MARISOL RODRIGUEZ VALLE


Mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPG-
SA/IFCS/UFRJ.

Artigo aceito para publicação em 22/09/05

resumo O objetivo deste artigo é analisar a abstract �e objective of this article is to


contrução social do bairro de Ipanema nos meios analyze the social construction of the quarter of Ip-
de comunicação. Realizo uma análise aprofundada anema in the media. I carry trough a comment on
de três livros e três suplementos de imprensa e es- three books and three supplements of the press and
tabeleço uma comparação entre as representações establish a comparison between the representations
sobre o passado e o presente do bairro. Veri�co os of the past and the present of the quarter. I verify
espaços, as personalidades, as visões de mundo e os the spaces, the personalities, the world visions and
estilos de vida que caracterizam a Ipanema de hoje the life style that characterize Ipanema of before and
e de ontem. today.
palavras-chave representações, bairro, espa- keywords representations, neighborhood, ur-
ços urbanos e estilo de vida. ban spaces, life style.

A província da ousadia taxas de aluguel, condomínio e impostos. Mui-


tas vezes me percebo como “peixe fora d’água”
Responder à pergunta “onde você mora?” nesse bairro, sobretudo ao constatar o elevado
pode ser constrangedor para muitos cariocas. A padrão de vida dos vizinhos ou quando pas-
simples menção ao nome do bairro é capaz de so em frente às vitrines das luxuosas grifes que
suscitar um conjunto de idéias sobre seu morador. se encontram nos arredores. Há, contudo, um
Quando a resposta é “Ipanema”, algumas reações aspecto simbólico muito forte em “morar em
como “que chique!” ou expressões faciais como a Ipanema”, e a força desse simbolismo se tra-
de levantar a sobrancelha revelam que existe um duz nas práticas e nos projetos dos indivíduos,
determinado imaginário sobre esse bairro. Expe- como foi o caso da escolha de minha mãe por
riências como essas fazem com que, em determi- morar ali apesar das conseqüências que essa
nadas circunstâncias, eu evite dizer onde moro ou decisão sempre acarretou. Em grande núme-
sinta vergonha de minha resposta. ro de sociedades urbanas, e de forma muito
No meu caso, o constrangimento se agrava marcante no Rio de Janeiro, o espaço constitui
por não me perceber como alguém que corres- elemento importante para a de�nição do status
ponda aos quesitos “típicos” do morador de dos indivíduos. Há, nessa cidade, uma nítida
meu bairro. Morar em Ipanema sempre signi- hierarquia de bairros e, através desta, os indiví-
�cou, sob meu ponto de vista, ter de sacri�car duos percebem a sociedade e se situam dentro
certas comodidades para poder pagar elevadas dela (Velho 1978).

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Estranhar o bairro em que se vive pode se contêm versões que produzem e reproduzem
converter em uma experiência bastante sig- concepções especí�cas sobre esse bairro. Foi a
ni�cativa, principalmente para quem preten- partir dessa percepção que o material no qual
de exercitar uma visão antropológica sobre o esperava obter informações “documentais” e
próprio meio social. Proporciona, talvez, uma “objetivas” se transformou em um objeto de
maior facilidade para “transformar o familiar re�exão para minha pesquisa.
em exótico”, como sugere Da Matta (1978). Neste trabalho realizo uma análise sobre
Este exercício re�exivo que pratico cotidiana- os meios de comunicação para compreender o
mente no bairro onde moro fez com que Ipa- modo como Ipanema é percebida, elaborada e
nema se tornasse, para mim, além de um local divulgada.1 Busco examinar os valores, símbolos
intrigante, um objeto a ser pesquisado. e noções que constroem o passado e o presen-
Uma vez decidida a realizar uma investiga- te do bairro comparando os diferentes espaços,
ção sobre Ipanema, iniciei uma busca por refe- personalidades e características que representam
rências bibliográ�cas sobre o local. Deparei-me a Ipanema de ontem e a de hoje. Considerando
com livros que continham descrições, fotos e que “Ipanema”, mais do que um espaço físico de-
comentários que em nada se assemelhavam ao limitado, exprime um conjunto de crenças e de
que costumo observar no bairro. A Rua Gar- representações culturalmente elaboradas, busco
cia D’Ávila, por exemplo, que me surpreende analisar o processo de construção social de um
às vésperas do Natal com seu tapete vermelho bairro emblemático da cidade do Rio de Janeiro.
estendido na calçada de lojas como Louis Vuit-
ton, Cartier, Mont Blanc e H. Stern, não ocu- Um bairro carioca
pava uma página sequer de tais livros. Aquelas
evidências que para mim atestam que Ipane- Ipanema possui 1,67 quilômetro quadrado.
ma é uma das localidades mais caras do Rio Seu território consiste em uma estreita faixa de
de Janeiro passavam quase despercebidas nessas terra, de formato quase retangular, banhada ao
obras sobre o bairro. O que encontrei foi uma sul pelo oceano Atlântico e ao norte pela Lagoa
certa regularidade no modo como os autores re- Rodrigo de Freitas. Em comparação com a maio-
tratam Ipanema, como por exemplo, através de ria dos bairros do Rio de Janeiro, Ipanema pode
uma referência constante a épocas passadas. A
Ipanema dos livros é uma Ipanema “de memó- 1. Os livros que constituem o material do trabalho são:
rias”, aparecendo como um local que vivenciou Ela é carioca (1999), de Ruy Castro; Ipanema, se não
me falha a memória (2000) de Jaguar e Os degraus de
grandes mudanças comportamentais, artísticas
Ipanema (1997), de Carlos Leonam. Dentre as ma-
e culturais nas décadas de 1960 e 1970. térias publicadas na imprensa no ano de 2004, esti-
Enquanto era transportada para uma Ipa- pulei como critério de seleção aquelas dedicadas ao
nema por mim desconhecida – um bairro aniversário de 110 anos do bairro de Ipanema. Utili-
“provinciano”, “boêmio” e “libertário” – os zei como objeto de re�exão suplementos dos jornais
jornais e revistas de grande circulação no Rio O Globo, Jornal do Brasil e da revista semanal Veja
Rio que apresentavam “Ipanema” estampada em suas
de Janeiro celebravam os 110 anos de uma
capas. Trata-se, respectivamente de Caderno Zona
Ipanema “moderna”, “luxuosa” e “cosmo- Sul – “Ipanema, 110 anos na vanguarda” (O Globo,
polita”. Notei, portanto, o caráter subjetivo 22.abr.2004); Caderno H – “O garotão de Ipane-
e simbólico das informações contidas nos ma – Ipanema 110 anos, edição especial” (Jornal do
meios de comunicação. Mais do que apresen- Brasil, 25.abr.2004) e “Ipanema 110 anos: Histórias
tar fatos sobre Ipanema, os livros e a imprensa e personagens do bairro mais charmoso da cidade”
(Veja Rio 26.abr.2004-02.maio. 2004).

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ser classi�cada como pequena, no entanto, suas o país”. O depoimento do Secretário Municipal
dimensões espaciais não são proporcionais às das Culturas também dissemina a mesma idéia:
simbólicas: Ipanema é entendida como um em- “Pela peculiaridade de Ipanema não poderíamos
blema de sua cidade e até mesmo de seu país. tombar apenas imóveis. Ipanema resume bem o
Essa representação aparece de diversas manei- espírito do carioca, seu comportamento, suas ati-
ras no material selecionado para este estudo, como tudes. E é isso que estamos preservando também”
por exemplo, através das noções de “moda”, “ca- (O Globo 20.jul.2003).
pital cultural”, “boemia” e “estilo de vida”: “Ipa- Ao considerar a relação metonímica que
nema está para o Rio como Paris para o mundo. se estabelece entre bairro, cidade e país, pode-
É sinônimo de moda. Tudo o que a menina de se pensar que as representações sobre Ipanema
Ipanema usa a caminho do mar, da universidade, apresentam dimensões mais amplas do que as de
das compras, as meninas de todo o Brasil copiam” um simples bairro e se estendem a um imaginário
(Jornal do Brasil: 8); “o bairro era a capital cultural sobre “ser carioca” e “ser brasileiro”. Apesar dis-
do Rio, e portanto, a capital cultural do Brasil” so, os elementos que estabelecem a ligação entre
(O Globo: 34); “Talvez seja impossível de�nir o o ipanemense, o carioca e o brasileiro, como os
carioca sem o espaço informal de cordialidade... conceitos de moda, boemia e estilo de vida, são
Em Ipanema, como bairro carioquíssimo que é, tratados aqui como típicos de Ipanema. É preci-
não podia faltar botequim” (Jornal do Brasil: 14) so ter em mente, contudo, que essa simbologia
e “Ipanema traduz um estilo de vida bem carioca: é capaz de transcender os limites territoriais de
praia, calçadão e espontaneidade” (O Globo: 16). 1,67 quilômetro quadrado desse lugar.
O livro de Ruy Castro sobre Ipanema ex-
pressa as mesmas idéias encontradas na impren- A Ipanema do passado
sa. O título Ela é carioca sugere que o bairro
não poderia estar localizado em outra cidade Nos suplementos de imprensa pesquisa-
que não fosse o Rio de Janeiro. Em abril deste dos, a idéia de moda é recorrentemente utili-
ano, esse escritor foi convocado por uma livraria zada para designar o passado de Ipanema: “Nos
para tratar o aniversário de 110 anos do bairro. anos 60 e 70, Ipanema viveu uma espécie de
Em suas primeiras palavras, Ruy Castro sugeriu fase áurea, exportando personagens, moda, ar-
que Ipanema é um bairro típico do Rio através tistas, posicionamentos políticos e modos de
da oposição “formalidade x informalidade” que vida” (Jornal do Brasil: 4). O bairro é quali�ca-
comumente se estabelece entre paulistas e ca- do como “Laboratório de moda... centro irra-
riocas. O autor negou que naquela ocasião faria diador de tendências” (O Globo:18) ou “Lugar
uma “palestra com viés acadêmico”, pois “isso onde não faltaram musas, modismos, aconteci-
só seria possível se Ipanema fosse em São Pau- mentos e polêmica” (Veja Rio: 12). Nos livros,
lo”, e preferiu denominar de “bate-papo” a sua a idéia também é freqüente. Jaguar acredita que
participação na homenagem ao bairro. o bairro “se intrometia na cidade e no estado,
A importância de um projeto de preservação ditava moda, hábitos e costumes para o Brasil e
cultural para o bairro de Ipanema fundamenta-se o mundo; cagava regras” (: 12).
no decreto publicado em julho de 2003, no Di- A concepção de moda utilizada para qua-
ário O�cial da Prefeitura do Rio de Janeiro, por li�car Ipanema não se relaciona somente ao
meio de considerações como estas: “...Ipanema, sentido mais comum de inovações nas vesti-
pela sua história, tornou-se uma referência do mentas ou nos acessórios de uso pessoal; en-
modo de vida do carioca, re�etindo-se em todo volve também outros signi�cados. A associação

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entre Ipanema e moda fundamenta-se na idéia O grupo de�nia-se como sendo orientado para a
de que os ipanemenses do passado tinham uma mudança. O vanguardismo implica na inovação,
habilidade peculiar de transgredir, criar e in- na invenção... ser um artista de vanguarda, por
ventar estilos de vida, comportamentos e ati- exemplo, implicaria não ser pessoalmente “qua-
tudes. Para ilustrar esta idéia não é preciso ler drado”, “careta”, “pequeno-burguês”. Mesmo as
os livros ou as matérias de jornais e revistas que pessoas que não desempenhavam uma atividade
falam sobre o bairro, bastando observar as foto- que não fosse considerada especialmente inova-
gra�as que se repetem nesse material. dora ou vanguardista aceitavam, em princípio, a
A praia serve como o cenário privilegiado importância de ser “aberto”, rejeitando as escalas
das imagens mais emblemáticas do passado de de valores das famílias de origem, consideradas
Ipanema, como a da atriz Leila Diniz grávida de hipócritas, repressivas etc. (: 63-64).
biquíni; a do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira
de “tanga” tomando uma limonada ou a de um Se Ipanema é entendida como um bairro
grupo de mulheres com os seios à mostra, rode- onde se desenvolveram comportamentos “van-
adas de repórteres e de curiosos. Ipanema teria guardistas”, é no espaço da praia – mais propício
sido, sob esse ponto de vista, um local pionei- para a exposição corporal – que as novas mora-
ro, onde nasceram costumes e comportamen- lidades de Ipanema ganharam um destaque pú-
tos que romperam com padrões tradicionais de blico. A partir da análise de Goldenberg (1995)
conduta. De acordo com os livros e o material sobre a trajetória da atriz Leila Diniz, pode-se
de imprensa, as atitudes ipanemenses teriam argumentar que é na praia que o corpo ipane-
sido posteriormente difundidas e até copiadas mense aparece sob sua forma “transgressora”,
em outros locais do Rio de Janeiro e do Brasil. “polêmica” ou “libertária”. Lembrando que na
A barriga grávida de uma personalidade pú- década de 1970 as mulheres grávidas evitavam
blica, o “topless” feminino e a semi-nudez de um freqüentar espaços como a praia ou procuravam
militante de esquerda são imagens estrategica- disfarçar suas barrigas com trajes de banho apro-
mente utilizadas para tornar concretas as idéias priados, Goldenberg (1995) sustenta que a bar-
de “moda”, “inovação” e “ousadia” que também riga grávida de Leila Diniz, tornada pública em
contribuem para o imaginário que associa Ipane- 1971, materializou e corpori�cou seus compor-
ma ao conceito de “vanguarda”. Percebe-se que tamentos transgressores. “A barriga grávida de
essas fotos não são selecionadas arbitrariamente, Leila Diniz, exibida de biquíni nas praias de Ipa-
já que são justamente aquelas em que a “trans- nema, é ainda hoje lembrada como símbolo da
gressão” está mais evidente por recair no próprio liberação da mulher no Brasil...” (: 208-209).
corpo das personalidades fotografadas. Para compreender a crença de que Ipanema
A partir da pesquisa de Velho (1998) sobre “lançou modas” é preciso atentar para o desta-
jovens da década de 1970, nota-se que a idéia que atribuído às personalidades desse bairro. O
de ser “vanguarda” aparece como um valor material pesquisado sugere que falar de Ipane-
fundamental para as camadas médias da zona ma não signi�ca apenas descrever um espaço
sul do Rio de Janeiro nessa década. Esse grupo geográ�co delimitado, mas principalmente,
apresentaria forte anseio por mostrar um esti- lembrar de indivíduos “ousados”, “irreveren-
lo de vida “vanguardista”, que se traduziria no tes” e “polêmicos”. O bairro recebe as mes-
valor atribuído ao tema da mudança como um mas quali�cações que são atribuídas aos seus
modo de se opor a uma visão de mundo tradi- freqüentadores e habitantes, o que faz pensar
cional e conservadora: em uma espécie de “contágio” que se estabelece

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entre o espaço e os indivíduos e vice-versa. O as representações elaboradas pelos livros e pela


ipanemense teria a capacidade de “contagiar” o imprensa recaem, muitas vezes, sobre espaços
bairro, ao mesmo tempo em que é contagiado especí�cos de Ipanema. Nem todas as ruas, casas
pelas características desse espaço. e esquinas recebem as mesmas quali�cações que
A imprensa endossa esta associação entre são atribuídas ao bairro como um todo. Existem
Ipanema e suas personalidades quando se refere localidades que recebem maior destaque por
ao “bairro de Tom e Vinícius”, “da Garota de “assumirem” o “espírito ipanemense”. É eviden-
Ipanema” e divulga as fotos da tanga de Gabei- te que os espaços emblemáticos do passado são
ra e da gravidez de Leila Diniz. O formato de precisamente aqueles onde os indivíduos “criati-
Ela é carioca – que se apresenta sob a proposta vos” e “que lançam modas” se encontravam.
de uma enciclopédia – também induz à idéia de Além da praia, antigos botequins são lem-
que cada indivíduo retratado na obra é porta- brados como locais da “efervescência” cultural
dor de uma de�nição particular. A descrição dos ipanemense da década de 1960. No livro de
comportamentos, manias, gostos, preferências e Ruy Castro, os botecos e “pés-sujos” ocupam
vontades de cada ipanemense, demonstra uma oito verbetes da enciclopédia: Bar Lagoa, Bo-
valorização das escolhas individuais e enfatiza o fetada, Calypso, Jangadeiro, Mau Cheiro, Va-
caráter autônomo de um grupo social, sobretu- randa, Veloso e Zeppelin. Na imprensa, esses
do de jovens de classes médias, que vivenciavam locais aparecem como os principais pontos de
de modo pioneiro no Brasil, um processo de encontro de artistas brasileiros, como os mú-
socialização marcadamente individualista. Ruy sicos da Bossa Nova e os cineastas do Cinema
Castro salienta, ainda, que a experiência com a Novo. O Caderno Zona Sul do Jornal O Globo
prática psicanalítica tornou-se recorrente entre diz que os artistas cariocas da década de 1960
aqueles jovens de Ipanema na década de 1970. “�zeram nascer uma nova Ipanema a partir dos
Não seria incorreto a�rmar que é apenas movimentos nascidos em mesas de bar. Crias
em sociedades que tomam o indivíduo como dessa geração foram a Bossa Nova e o Cinema
um valor moral que a moda poderia despontar Novo” (: 35). A imprensa especi�ca cada bar
como um tema possível para análise acadêmica. ipanemense segundo seu tipo de público: “Es-
A maneira como a maioria dos �lósofos, soci- critores e jornalistas reuniam-se no Zeppelin...
ólogos e historiadores concebem o fenômeno músicos no Veloso... Havia também o Jangadei-
– por meio de mecanismos constantes de imita- ro, reduto da Banda de Ipanema... e o pé-sujo
ção e de distinção – revela a tensão do indivíduo Mau Cheiro freqüentado pelo pessoal do Cine-
moderno ocidental que oscila entre o desejo de ma Novo” (Veja Rio: 14).
receber apoio e aceitação de grupos sociais e as Assim como o Mau Cheiro é pensa-
exigências internas e externas por criar os con- do como o “pé-sujo” do “pessoal do Cinema
tornos de uma individualidade singular. Esse Novo”, os músicos da Bossa Nova são recor-
“dualismo de nossa existência”, como se refere dados por freqüentar, principalmente, o Bar
Simmel (1988), auxilia o entendimento das Veloso. O signi�cado do Veloso como um dos
sociedades metropolitanas e individualistas co- espaços que associam a Bossa Nova ao bairro
laborando também para a compreensão da as- de Ipanema relaciona-se, em primeiro lugar, à
sociação entre Ipanema e a idéia de moda. criação de “Garota de Ipanema”, a música mais
Sem deixar de lembrar que o foco desta pes- famosa desse estilo musical. Em decorrência do
quisa é um bairro e, portanto, uma estrutura grande êxito alcançado por Garota de Ipanema
física delimitada, é interessante observar que no Brasil e no exterior – a canção está entre as

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mais executadas do mundo – a história da cria- tações artísticas brasileiras edi�ca-se por uma
ção dessa música, que envolve os compositores associação entre espaços e pessoas. O bairro
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a musa ins- como um todo é tomado por suas partes. A
piradora Helô Pinheiro e o bar Veloso, trans- valorização da praia e dos bares demonstra que
formou-se em uma lenda do bairro, narrada Ipanema não era apenas o local onde os indiví-
por todas as matérias analisadas: duos se encontravam, criavam e executavam os
acontecimentos pioneiros. Mais do que isso, o
Nenhuma canção nacional foi – e continua sen- bairro é entendido como um local propício para
do – tão executada quanto “Garota de Ipane- as inovações por servir de fonte de inspiração e
ma”.... A música de Tom e Vinícius, de 1962, motivo de celebração para os ipanemenses.
foi inspirada em Helô Pinheiro quando passa-
va a caminho do mar em frente ao bar Veloso O livro de Jaguar fornece outras evidências
– hoje Garota de Ipanema (O Globo: 38). de que os botequins foram importantes para
de�nir o passado de Ipanema. O autor expres-
Uma das mais executadas canções do mun- sa essa idéia a partir da caracterização dos ipa-
do foi composta em 1962, na casa de Tom Jo- nemenses, narrando histórias bem humoradas
bim. A idéia nasceu nas mesas do bar Veloso, ocorridas no espaço dos bares:
onde Tom e Vinícius passavam horas beberi-
cando, jogando conversa fora e observando Aquela história do coelho no Jangadeiros acho
as mulheres, entre elas a musa Helô Pinheiro que todo mundo já conhece. Quando um ga-
(Veja Rio: 14). roto gritou “papai, olha um coelho!” foi um alí-
vio geral. Ninguém ousava dizer que tinha um
A ligação entre o Cinema Novo e a Bossa Nova coelho correndo entre as mesas; pensavam que
com o bairro de Ipanema se faz pelo caráter estavam tendo alucinação alcoólica (: 52).
“vanguardista” desses dois movimentos; ambos
são entendidos como estilos artísticos que rom- Entre os “ipanemenhos padrões” descritos
peram com os padrões estéticos e musicais tradi- no livro de Jaguar, quase todos são apresenta-
cionais. Todavia, nota-se que o vínculo da Bossa dos como assíduos freqüentadores de bares e
Nova com o bairro aparece de modo ainda mais botecos, ou lembrados pelas “loucuras” come-
peculiar se comparado ao do Cinema Novo. tidas em estados alterados de consciência, sob
Como a própria imprensa menciona, embora a o efeito de bebidas alcoólicas. O próprio autor
troca de idéias entre os cineastas brasileiros se não se exclui dessa caracterização, desculpan-
desenrolasse nos botecos de Ipanema, os �lmes do-se, em pelo menos dois trechos do livro,
desse movimento voltaram-se para cenários nada pela sua “amnésia alcoólica” que o fez esquecer
parecidos com o bairro, como, por exemplo, o de pessoas ou “embaralhar as lembranças”. O
sertão nordestino. No caso da Bossa Nova, Ipa- estilo de vida boêmio do autor e de seus ami-
nema aparece não apenas como um ponto de gos de Ipanema está evidenciado no capítulo
encontro de seus principais representantes, mas dedicado ao “ipanemense ilustre” “Carlinhos
�gura também como temática de suas canções de Oli”:
mais famosas.
A construção simbólica de Ipanema como um Nunca marcamos encontro, mas durante anos a
bairro que “lançou moda” e que se consolidou gente se esbarrava na ronda dos bares... chegáva-
como vanguarda dos costumes e das manifes- mos em horários diferentes mas amiúde éramos os

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últimos a sair. Só íamos embora quando os garçons localidades, como é o caso do próprio Jaguar:
começavam a jogar baldes d’água nos nossos sapa-
tos. Numa dessas madrugadas, no Degrau, estáva- Nós, ipanemenses dos anos 60, estávamos nos
mos tomando a saideira em pé porque as cadeiras lixando para os limites geográ�cos do bairro.
já estavam empilhadas em cima da mesa. Carli- Eu mesmo, enchendo a boca falando em “nós,
nhos pagou a conta com um cheque que assinou ipanemenses”, morava em Copacabana.... Havia
contra a parede. Teve um ataque de fúria quando o uma espécie de imperialismo ipanemense. Como
cheque foi devolvido; a assinatura “José Carlos de grileiros, invadíamos a cidade e até o estado do
Oli” não conferia. O “veira” restante estava escrito Rio (: 17).
na parede (: 31-32).
Na obra de Ruy Castro essa idéia também
O trecho acima poderia representar uma des- é marcante já que nem todas as personalidades
continuidade nas representações sobre o bairro que aparecem em seu livro foram moradoras
de Ipanema, já que o bar mencionado locali- de Ipanema. Exemplos paradigmáticos da “au-
za-se no Leblon. Contudo, Jaguar insiste que, tonomia” que esse conjunto de representações
embora o seu grupo freqüentasse outros locais apresenta diante das fronteiras do bairro são os
da cidade, inclusive os bares da Lapa, Leblon e artistas internacionais que aparecem na enci-
Copacabana, o “clima” que emprestavam a esses clopédia desse autor.
ambientes era marcadamente “ipanemense”: Um verbete interessante é o de Isadora Dun-
can, que esteve de passagem pelo Rio de Janeiro,
As festas que Albino e eu dávamos na Estudan- em 1915, na seqüência de uma turnê mundial.
tina Musical, na praça Tiradentes, no Silvestre, Percebe-se que o que explica a presença dessa
em Santa Teresa, no Elite, na Praça da Repúbli- dançarina na “enciclopédia de Ipanema” não é
ca, e na Banda Portugal, na Presidente Vargas, somente o fato da artista ter conhecido a praia
eram festas ipanemenses... A turma de Ipanema do Arpoador durante sua estadia na cidade, mas
aprontava no Degrau (Leblon)... no Alfredão a percepção de que seu “per�l” assemelha-se ao
(Lido), no Bar Brasil (Lapa), na Gôndola, Ka- da típica mulher ipanemense, defendido por
takombe e Galeria Dezon (Copacabana)... e até Ruy Castro. O autor descreve Isadora Duncan
em Petrópolis (: 17). como “uma modernista radical, na dança e no
comportamento: escolhia os homens que queria
Com base nessa idéia de Jaguar, pode-se pen- como amantes, tinha �lhos com eles, dispensa-
sar que a categoria “Ipanema”, pensada como va-os de casar e aonde fosse, arrastava séquitos
um adjetivo que quali�ca pessoas, lugares e com- de todos os sexos” (: 174). Aqui, o bairro é as-
portamentos, não precisa estar necessariamente sociado não ao imaginário “boêmio”, mas às
vinculada ao espaço físico do bairro. Da mesma noções de “ousadia” e “liberdade”, que também
forma, “ipanemense” ou “ipanemenho” são iden- são empregadas na descrição de quase todas as
tidades utilizadas para designar pessoas que não mulheres da enciclopédia. A percepção de que
têm, necessariamente, um vínculo direto com os as ipanemenses teriam uma inclinação para
limites territoriais de Ipanema. Morar no bairro, romper com os papéis de gênero convencional-
por exemplo, não é uma condição necessária, nem mente prescritos aparece no seguinte trecho:
tampouco su�ciente, para que um indivíduo as-
suma essa identidade. De modo análogo, “ipane- As mulheres de Ipanema tinham desprezo por
menses típicos” podem ser habitantes de outras conceitos como virgindade, casamento burguês,

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fritar bolinhos, monogamia e maridinho-prove- Pasquim podem ser “bons para pensar” um tipo
dor-do-lar. Elas estudavam, trabalhavam, mo- de representação atribuído à Ipanema contra o
ravam sozinhas, namoravam quem quisessem qual voltaram-se alguns discursos acusatórios.
e não davam satisfações. Nada que �zessem era A associação entre Leila Diniz e o passado
chocante em Ipanema (: 210). de Ipanema é evidente. A atriz integrava a “tur-
ma de Ipanema” de que falam Jaguar e Carlos
Ao quali�car como “ipanemenses” a ameri- Leonam, e na enciclopédia de Ruy Castro sua
cana Isadora Duncan e as festas na Praça Tira- descrição possui um número de páginas supe-
dentes e em Santa Tereza, Ruy Castro e Jaguar rior ao da grande maioria dos demais verbetes.
sugerem que os aspectos simbólicos atribuídos à A imprensa também sustenta que “poucas mu-
Ipanema transcendem os limites territoriais do lheres encarnaram tão bem o espírito de Ipa-
bairro. Ao contrário do que pode parecer, esse nema. Bem-humorada, curiosa, transgressora,
aspecto somente comprova a importância do Leila Diniz foi a grande musa do bairro.” (Veja
espaço para a criação de classi�cações sociais. Rio: 13). Na célebre entrevista ao jornal O Pas-
Como sugeriu Mauss (1974) – ao pesquisar a quim, comenta Goldenberg (1995), Leila Di-
sociedade esquimó – e Halbwachs (1990) – ao niz transgrediu as regras de linguagem, negou
re�etir sobre o tema da memória – o espaço é os principais valores do campo artístico a�r-
uma categoria de pensamento que estrutura re- mando que escolhia o trabalho pela “patota” e
presentações e práticas sociais. Assim, embora pela diversão e mostrou viver sua sexualidade
o imaginário sobre Ipanema seja sólido o su�- de forma livre e intensa. A fotogra�a de sua
ciente a ponto de se desligar das fronteiras do gravidez de biquíni amplamente divulgada pela
bairro, é somente em referência àquele espaço imprensa da época (e de hoje também) simbo-
que esse conjunto de representações e de me- lizou a transgressão em relação aos usos do cor-
mórias se consolida, adquirindo sentido. po feminino, além de trazer para a polêmica a
São muitas as representações evocadas pela rejeição da atriz pelo casamento convencional
palavra “Ipanema”, podendo designar tanto e pelos papéis tradicionais de “ser mulher”. As-
estilos de vida “livres”, “transgressores” e “mo- sim, se a �gura de Leila Diniz é apropriada pe-
dernos” quanto “boêmios”, “criativos” e “infor- los meios de comunicação para exempli�car o
mais”. De uma maneira ou de outra, “Ipanema” “tipo ideal” ipanemense, isso se deve, em gran-
é uma categoria repleta de signi�cados, e vale de medida, pelo fato de a atriz ter demonstrado
a pena pensar que, se por um lado, essas ela- publicamente sua recusa a uma série de valores
borações são utilizadas para enaltecer o bairro, predominantes na sociedade brasileira das dé-
por outro, elas também podem assumir valores cadas de 1960 e 1970.
negativos e transformar a identidade “ipane- A partir das acusações que recaíram sobre os
mense” em uma categoria de acusação. comportamentos dessa atriz, é possível pensar
Para compreender de que modo “Ipanema” sobre o modo como a identidade “ipanemen-
simbolizou um rótulo negativo é interessante se” foi vivenciada como um rótulo negativo. O
buscar alguns emblemas capazes de traduzir trabalho de Goldenberg (1995) mostra que as
aquilo que se considera como o “espírito” do acusações de desvio variam conforme o grupo
bairro em épocas passadas. Dentre todas as per- que cria o rótulo. Enquanto Leila foi chamada
sonalidades, acontecimentos e lugares recor- de “puta” e de “subversiva” pela “direita”, a “es-
rentemente citados nos livros e na imprensa, querda” e as feministas da época acusavam-na
acredito que a atriz Leila Diniz e o jornal O de ser “alienada”, “super�cial” e “porra-louca”.

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Outro ícone do passado de Ipanema capaz por dentro das feministas” ou “Desculpe Dona
de colaborar para o entendimento das acusações Betty [Friedan], mas nós vamos dar cobertura
de desvio é o jornal O Pasquim. Vale dizer que os às furadoras da greve do sexo”.
três autores aqui analisados – Jaguar, Carlos Leo- Se Ipanema representava, de um lado, uma
nam e Ruy Castro – já trabalharam ou, pelo me- “ameaça” ao governo militar por ter sido, se-
nos, colaboraram com esse semanário. Em �ns gundo Ruy Castro, “um reduto permanente
de 1970, nove integrantes de O Pasquim foram de oposição que combateu ou criticou todos
presos pelo governo militar e o jornal foi man- os governos dos últimos sessenta anos” (: 11),
tido sob censura. Na enciclopédia ipanemense, muitas acusações dirigiam-se, por outro, à pos-
Ruy Castro defende que o jornal era “engraçado, tura excessivamente “descontraída” e à falta
provocativo e desrespeitoso, mesmo quando tra- de compromisso e seriedade dos ipanemenses
tava de assuntos sérios” (: 281) e faz ressalvas ao frente às questões mais “importantes” do país.
classi�cá-lo como um jornal de oposição: Talvez seja em referência a esses aspectos que o
autor comenta a condenação da cantora Nara
Nitidamente era um jornal “de esquerda” – mas Leão à “alienação de Ipanema” (: 59).
não da esquerda o�cial, do Partidão... ou mes- As acusações dirigidas a O Pasquim e à atriz
mo da esquerda estudantil, maoísta, que já co- Leila Diniz variaram conforme grupos sociais
meçara a assaltar bancos e a fazer caixa para a distintos. De um lado, sofreram perseguições
luta armada. Era uma esquerda de humoristas, por representarem uma ameaça à ideologia do
mais para festiva, tipo Ipanema, que os militares governo militar; eram considerados “perigosos”
ainda não levavam a sério (: 280). pelos segmentos mais conservadores da socie-
Era o apogeu da Esquerda festiva, da qual o Pas- dade brasileira da década de 1960. De outro,
quim era um alegre porta-voz, e do mito de Ipane- aos olhos dos militantes políticos de oposição
ma, de que ele foi o grande estimulador (: 282). ou das lutas feministas, esses ícones de Ipanema
simbolizavam o “desbunde”, a falta de serieda-
No livro Os degraus de Ipanema, Carlos Le- de e a alienação. Sob esse aspecto, os ipane-
onam mostra que as críticas dirigidas aos ipa- menses típicos ocupavam uma posição peculiar
nemenses eram uma preocupação para Jaguar, em um sistema de rotulação e de acusação. A
fundador d’O Pasquim, nas primeiras tiragens ameaça apresentada por esses jovens resultava
do jornal. Em resposta ao pedido de Carlos de uma condição que oscila entre pólos anta-
Leonam para colaborar com o tablóide, Jaguar gônicos, como o de “subversivo”, de um lado, e
teria advertido: “queremos fazer um jornal que o de “alienado”, de outro. Estes exemplos mos-
não seja rotulado de ipanemenho” (: 218). Se- tram de forma paradigmática a idéia de Becker
gundo Braga (1991: 193), uma acusação fre- (1971) segundo a qual não existem condutas
qüente que se fez a O Pasquim é que, apesar essencialmente desviantes, mas diferentes ma-
de crítico e politicamente avançado, o jornal neiras de se reagir a elas. Para o autor, o desvio
era machista. De acordo com o autor, embora não é criado por aquele que o realiza mas pelos
O Pasquim abrisse espaço para artigos escritos grupos que o classi�cam como desviante.
por colaboradoras que participavam das lutas
da mulher, ele também ironizava as feministas A Ipanema do presente
mais engajadas em algumas frases de capa como
“Pasquim – um jornal ao lado da mulher. E se Os autores aqui investigados sugerem que
for o caso, sobre e sob”; “Pasquim – Um jornal Ipanema não é mais como antes pois os locais

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e acontecimentos mais representativos de suas A Ipanema atual é retratada pela impren-


memórias, como os bares, a praia e a Banda sa por meio das categorias “luxo”, “charme” e
de Ipanema perderam o seu caráter distintivo e “so�sticação”. Essas noções ganham contornos
“autêntico”. Sob o ponto de vista de Jaguar e de mais especí�cos quando se observam quais são
Carlos Leonam, Ipanema é “aquela Ipanema”, as localidades percebidas como “luxuosas” e
ou seja, o bairro que marcou os “anos glorio- “so�sticadas”. O Caderno H do Jornal do Bra-
sos” de sua geração. Já o material de imprensa, sil, por exemplo, fundamenta o “glamour” de
embora também celebre o passado de Ipane- Ipanema quando ressalta que no bairro “es-
ma, apresenta uma versão mais positiva sobre tão reunidas as joalherias mais so�sticadas do
o bairro. Ipanema teria adquirido, segundo os mundo como Amsterdam Sauer, H. Stern,
jornais e revistas, novos atributos igualmente Mont Blanc, Cartier...” (: 4). Os restaurantes,
valorizados. Os maiores responsáveis por em- as livrarias e algumas lojas também aparecem
prestar um novo caráter ao bairro teriam sido como exemplos do caráter “moderno” e “re-
os serviços de alto luxo inaugurados nos últi- quintado” da região. A importância conferida a
mos anos em Ipanema. Esta idéia pode ser vista esse novo comércio para a nova feição do bairro
nos três suplementos pesquisados: se manifesta através da freqüência com que os
proprietários ou representantes desses locais são
Tudo está muito distante da velha Feira Hippie solicitados pela imprensa. As matérias abrem
que marcou os anos loucos do bairro. O comér- espaço para os indivíduos dessa categoria justi-
cio so�sticou-se para atender uma rica clientela �carem suas escolhas por Ipanema, e eles argu-
de várias partes do mundo....Ipanema se pro�s- mentam tratar-se de um local estratégico:
sionalizou... A maioria dos velhos casarões do
bairro já não existe mais. Eles deram lugar a ‘Hoje Ipanema é fundamental para projetar uma
hotéis de luxo, edifícios comerciais modernos e marca no país e internacionalmente. Como a
inteligentes ou a condomínios residenciais so�s- Rua Oscar Freire em São Paulo’, explica o esti-
ticados (Jornal do Brasil: 4). lista Tu� Duek, que inaugura na terça uma me-
galoja da sua Forum na Praça Nossa Senhora da
Além de uma volta ao passado, este especial Paz (Veja Rio: 14).
do Globo-zona sul revela que a história do bair-
ro, da qual fazem parte Tom Jobim e Vinícius de O prestígio conquistado por esse grupo en-
Moraes, continua sendo escrita, hoje, por em- volvido com o novo comércio do bairro é tal
presários da moda que, sediados em Ipanema, que eles são solicitados não apenas para discu-
exportam seu estilo de vida (O Globo: 16). tirem o caráter rentável ou promissor de Ipane-
ma, mas também para revelarem suas opiniões
Nas últimas décadas, enquanto os saudosistas la- pessoais sobre o bairro:
mentavam o �m do agito cultural que marcou o
bairro dos anos 40 aos 70, estilistas, designers e ‘Minha mulher está sempre descobrindo coisas
restaurateurs foram, aos poucos, mostrando mais fantásticas por aqui’, conta Rui Campos, o Rui
uma vocação de Ipanema... o bairro hoje é o mais da Livraria da Travessa.... ‘A gastronomia é hoje,
luxuoso shopping a céu aberto da cidade. É tam- sem dúvida, um dos trunfos de Ipanema’ diz
bém praia de modismos e corpos esculturais, mesa Angela Hall, gerente da Louis Vuitton e mora-
de inovações gastronômicas, vitrine de roupas e dora do bairro... ‘É um bairro cheio de vida’,
acessórios impecáveis (Veja Rio: 11). a�rma a arquiteta Bel Lobo, que deu forma a

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vários restaurantes e lojas da região... (Veja Rio: Ipanema �rma-se como endereço predileto
15-16). das grifes e atrai novos investidores. Entre eles,
Oskar Metsavaht, dono da Osklen há 15 anos,
Não é difícil imaginar que a imprensa de- que há apenas dois abriu a primeira loja no lo-
monstre outros interesses – para além da co- cal: – “Ipanema foi o bairro que escolhi para �n-
memoração do aniversário de 110 anos – para car a primeira loja internacional da Osklen...”
elaborar uma imagem positiva sobre Ipanema. (O Globo: 18).
Seria ingênuo desconsiderar os interesses econô-
micos dos meios de comunicação nos empresá- Alexandre Accioly, capa deste H, acredita em
rios atuantes no bairro. Nesse sentido, é possível Ipanema. Ele é seguramente quem mais inves-
pensar que muitas matérias acabam cumprindo te no bairro nos últimos anos... Somando tudo,
uma função publicitária que visa tornar mais são US$ 12 milhões jogados no pano verde que
atrativos os serviços dos anunciantes por meio hoje se tornou investir no Brasil (Jornal do Bra-
de uma exaltação do bairro onde estes se locali- sil: 11).
zam. De qualquer maneira, é possível re�etir que
se o passado do bairro – conforme expressam os Não é apenas a imagem de “proprietários de
livros – é elaborado por uma elite intelectual que negócios” que torna curiosa a aparição desses
se coloca como protagonista das memórias do dois indivíduos na imprensa. Accioly e Metsa-
bairro, a atualidade de Ipanema – como reve- vaht parecem “corpori�car” um tipo de represen-
la a imprensa – é elaborada por uma elite co- tação sobre o bairro. Nas fotogra�as e em alguns
mercial que também se inclui com destaque nas trechos presentes nessas matérias, os hábitos e as
representações simbólicas desse bairro. Pode-se preferências de ambos, como a prática de espor-
sugerir que os critérios que tornam determina- tes ao ar livre, são descritos por meio de uma re-
das pessoas “legítimas” para falar sobre Ipanema lação estreita com os espaços do bairro. A praia
variam segundo o recorte temporal que se pre- de Ipanema, por exemplo, é representativa de
tende abordar. Enquanto os portadores das “me- seus hábitos cotidianos, servindo inclusive como
mórias autênticas” ou do relato mais “con�ável” o cenário de quase todas as fotogra�as em que os
sobre o passado são artistas e intelectuais, a hie- dois aparecem nos jornais. A relação de Accioly
rarquia de credibilidade (Becker, 1977) se trans- com a praia surge na descrição de sua trajetória
forma quando o tema é a atualidade, em que os como morador do bairro desde a infância:
indivíduos que ganham maior legitimidade são
os representantes do comércio de luxo. Pedra do Arpoador, o point de suas tardes, onde
Dentre os pro�ssionais ligados ao campo da [Accioly] curtia o pôr-do-sol... Adulto, transfe-
moda e da gastronomia, há dois indivíduos que riu-se para a rede de vôlei em frente ao Country,
merecem atenção por receberem destaque nos onde dava plantão nos �ns de semana. Das nove
três suplementos analisados. São eles, Oskar até a noitinha’ (Jornal do Brasil: 11).
Metsavaht e Alexandre Accioly. O primeiro
é proprietário da cadeia de lojas Osklen, gri- Esse empresário foi eleito “O garotão de Ipa-
fe que vende roupas para um público jovem nema”, aparecendo em uma enorme fotogra�a
de classe média/alta. Já o segundo é sócio de de capa do Caderno H. Alto, de pele bronzeada
quatro restaurantes de elevado padrão relativa- e aparência jovial, o empresário está vestido com
mente recentes no bairro. Ambos são descritos camisa social, calças compridas e chinelo, sen-
como fortes investidores na região: tado à noite no calçadão da praia de Ipanema.

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Essa mistura de elegância com informalidade o passar dos anos, o per�l das musas de Ipa-
também é transmitida na foto do interior da nema também se modi�ca. Se Leila Diniz foi
matéria, onde Accioly está de trajes “sociais”, to- considerada musa do bairro na década de 1960,
mando água de coco mas com os pés descalços a imprensa atual elege a apresentadora de um
na praia. O texto localizado abaixo diz: “Coco programa televisivo de esportes como um ícone
verde, areia no pé e o privilégio de ser, desde da Ipanema de hoje. Cíntia Howlett já foi eleita
sempre, um garoto de Ipanema” (: 11). Outra “musa do verão” e é lembrada por habitar em
matéria ressalta que Accioly vive no edifício Cap uma localização de prestígio em Ipanema; em
Ferrat, “supra-sumo do luxo à beira-mar, onde um edifício de frente para a praia do Arpoador.
não se compra um imóvel por menos de 3,5 mi- Fotos ou depoimentos ligados a essa ipanemen-
lhões de dólares” (Veja Rio: 15). se são recorrentes em matérias sobre Ipanema:
De modo semelhante, Oskar Metsavaht
aparece no Caderno Zona Sul do jornal O Entre os rostos manjados de Ipanema está a
Globo com a praia ao fundo, vestindo uma ca- apresentadora Cíntia Howlett, moradora do
miseta que diz “United Kingdom of Ipanema”. Arpoador. Geração saúde, Cíntia corre no calça-
Seu depoimento é colocado em destaque abai- dão, nada, anda de bicicleta na ciclovia. “Minha
xo dessa fotogra�a: “Ipanema é muito privile- ginástica é Ipanema, e isso não tem preço”, ob-
giada, com uma vida cosmopolita integrada à serva. (Veja Rio: 16)
natureza” (: 20). Essa mesma opinião está pre-
sente na Veja Rio, que dedicou um trecho da Assim como os emblemas masculinos an-
reportagem para a apresentação das atividades teriormente citados, Cíntia Howlett também
físicas realizadas por Metsavaht em Ipanema: representa uma dimensão “nobre” combinada
a um estilo de vida “despojado”, “jovem” e “es-
“O bairro simboliza uma vida urbana integra- portivo”. No suplemento da revista Veja, outras
da com a natureza, o que não existe em ne- mulheres são assim percebidas na matéria de pá-
nhum lugar do mundo”, diz o estilista gaúcho gina dupla “Ipanema, uma jovem de 110 anos”.
Oskar Metsavaht, que há vinte anos mora, Na página direita, a fotogra�a revela uma mu-
surfa, corre, pedala e anda de skate no bairro. lher branca, jovem, cabelos lisos, de óculos es-
(Veja Rio: 16). curos, caminhando na calçada da Rua Visconde
de Pirajá: “A estilista Joana Saladini: compras a
A idéia de que Ipanema é um bairro de pes- pé pelas ruas do bairro” (: 11). Na outra página
soas “jovens”, “ricas” e “descoladas” também há uma garota de short e biquíni na praia com
está implícita na escolha de suas atuais musas. a seguinte descrição “A wakeboarder Juliana na
Esse bairro está fortemente associado a uma Praia de Ipanema: beleza no Posto 10.... corpo
dimensão lúdica que se constrói por meio de moldado pelo treino de wakeboard” (: 10-13).
uma exaltação de elementos “naturais”. A praia, Segundo a matéria, as duas moças de Ipanema
o mar, os coqueiros e a pedra do Arpoador, por “não hesitam em apontar o mesmo passatempo
exemplo, são símbolos que associam o bairro à para as horas vagas: bater perna de olho nas vi-
idéia de beleza. Insistindo na percepção de um trines que se espalham pelas ruas dali” (: 13).
contágio entre espaço e pessoas, Ipanema é per- Assim como um único ipanemense pode
cebida como um local que produz pessoas be- reunir as diferentes características atribuídas ao
las, sobretudo, mulheres. Na medida em que o bairro, o estilo de vida “descontraído” e “requin-
imaginário do bairro sofre transformações com tado” também pode ser identi�cado em uma

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mesma localidade. O Caderno Zona Sul destaca Ipanema é admirada no mundo inteiro e tem
que os restaurantes com varandas e mesas na cal- uma condição privilegiada com uma vida urba-
çada se multiplicaram em Ipanema nos últimos na cosmopolita integrada à natureza – diz Met-
anos e sugere que “sem perder a descontração da savaht, que estampou “Arpoador” e “Posto 9”
cidade praiana, eles têm o típico requinte ipane- em blusas da última coleção da Osklen e criou a
mense”(: 45). A Veja Rio destaca o “almoço na campanha “United Kingdom of Ipanema”, que
varanda” e a “vida saudável à beira mar” como dá a dimensão do quanto ele gosta do bairro (O
programas típicos de Ipanema: “além da vida Globo: 20).
saudável à beira-mar, programa em Ipanema é o
footing pelas ruas aos sábados, compras todos os Através dessa “jogada” publicitária nota-se
dias, almoços na varanda do Gula Gula, cinemi- que o bairro de Ipanema também se apresenta
nha no Estação” (Veja Rio: 16). sob a forma de um bem de consumo. O que
A categoria “Ipanema”, tal como é transmi- se vende na Osklen não são simples camisetas,
tida pelos jornais e revistas, parece representar mas um estilo de vida “ipanemense” que é so-
algo mais do que o espaço geográ�co de um cialmente valorizado.
bairro. Ela denota, acima de tudo, um estilo
de vida. A descrição de personalidades como Dois bairros, duas moralidades
Oscar Metsavaht, Alexandre Accioly e Cíntia
Howlett é apenas uma maneira de expressar A partir da análise sobre os livros e as matérias
algumas das representações associadas ao bair- de imprensa observou-se que, mais do que um
ro, como a de um lugar informal, com belezas território espacial, Ipanema é pensada como um
naturais, propício para os esportes e, ao mesmo adjetivo capaz de quali�car pessoas, comporta-
tempo, urbano, de elevado padrão e so�stica- mentos e estilos de vida. De uma visão de mun-
do. Essa junção de atributos se transfere para do orientada para a vanguarda comportamental,
os indivíduos do bairro. Ipanema teria produ- a criatividade artística e a boemia, o bairro passou
zido pessoas que assumem um estilo de vida a simbolizar uma dimensão “de elite”, inclinada
“esportivo” e “espontâneo” sem deixarem de ser para o consumo e para as atividades físicas.
“elegantes” e “cosmopolitas”. Notou-se, portanto, a elaboração de duas
Para tornar essas representações mais con- Ipanemas; uma do passado e outra do presen-
cretas, vale mencionar a estratégia do estilista te. Enquanto a primeira é caracterizada como
Oskar Metsavaht em explorar comercialmen- um bairro “transgressor”, que “lançou modas”,
te esse imaginário através da criação de uma a Ipanema atual é um local “so�sticado” e “des-
identidade “ipanemense” para sua grife de colado”. Essas duas construções simbólicas se
roupas Osklen. Vale lembrar que mesmo an- elaboram por meio de uma associação entre
tes da instalação da Osklen de Ipanema, a espaços e indivíduos, evidenciando-se através
marca, voltada para um público de elite, já de uma mudança nas personalidades e nos lo-
era identi�cada com as idéias de valores como cais tidos como emblemáticos do bairro. Se os
“juventude”, “esportes” e “natureza”. Com a ipanemenses do passado são artistas, cineastas e
chegada à Ipanema, a estratégia de marketing músicos, os de hoje são empresários, estilistas e
parece ter sido a de reforçar esses conceitos esportistas. Enquanto os bares representaram o
associando a Osklen a um estilo de vida típico “espírito ipanemense” do passado, as joalherias,
“de Ipanema”: os restaurantes e as grifes de roupa de�nem o
“espírito atual” desse bairro.

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Para ilustrar essas variações de imaginário é Referências bibliográ�cas


interessante re�etir sobre o per�l das musas e
sua relação com o principal espaço do bairro; BECKER, Howard. 1971. Los Extraños: sociología de la
a praia. Foi na praia que a musa de Ipanema desviación. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo.
_____. 1977. “De que lado estamos?”. In Uma teoria da
na década de 1960 – Leila Diniz – �cou pu-
ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar.
blicamente conhecida por seu comportamen- BRAGA, J.L. 1991. O Pasquim e os anos 70. Brasília:
to “transgressor”. As musas atuais de Ipanema UnB.
percebem a praia como o local da “ginástica” e DAMATTA, Roberto. 1978. “O ofício de etnólogo, ou
dos “esportes”. Se a praia “de antes” simbolizou como ter ‘anthropological blues’”. In A aventura socioló-
o espaço da “transgressão” às normas, onde o gica. Rio de Janeiro: Zahar.
_____. 1998. Nobres e Anjos: um estudo sobre tóxicos e hie-
corpo ipanemense se apresentou de modo “po-
rarquia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
lêmico” e “livre”, a praia de hoje é o local das GOLDENBERG, Míriam. 1995. Toda Mulher é meio
atividades físicas, da moralidade da boa forma Leila Diniz. Rio de Janeiro: Record.
onde o corpo valorizado é “trabalhado”, “sau- _____. 2002. Nu & Vestido. Rio de Janeiro: Record.
dável” ou “sarado” (Goldenberg 2002). HALBWACHS, Maurice. 1999. A memória coletiva. São
Esta pesquisa permitiu pensar sobre algumas Paulo: Vértice.
MAUSS, Marcel. 1974. “Ensaio sobre as variações sazo-
mudanças sociais dos últimos quarenta anos na
neiras das sociedades esquimó”. In Sociologia e Antro-
medida em que os valores utilizados para enalte- pologia. São Paulo: EPU/EDUSP (v. 2).
cer um bairro emblemático da cidade do Rio de SIMMEL, George. 1988. “La moda”. In Sobre la aventu-
Janeiro tornaram-se quase antagônicos. Embora ra. Barcelona: Editora Península.
permaneça a noção de um bairro lúdico, “bonito VELHO, Gilberto. 1978. A utopia urbana: um estudo de
por natureza” e propício para um estilo de vida antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar.
“descontraído” e “informal”, pode-se pensar em
uma mudança de atitude frente às normas so- Fontes de Pesquisa
cialmente prescritas. O signi�cado de Ipanema
CASTRO, Ruy. 1999. Ela é Carioca: uma enciclopédia de
como um bairro peculiar da cidade do Rio de
Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras.
Janeiro na década de 1960 foi construído por JAGUAR. 2000. Ipanema, se não me falha a memória. Rio
uma exaltação de aspectos contestadores e trans- de Janeiro: Relume Dumará.
gressores, como a liberação do corpo e da sexua- LEONAN, Carlos. 1997. Os degraus de Ipanema. Rio de
lidade, a arte de vanguarda e a boemia. De modo Janeiro: Record.
contrário, esse bairro é atualmente celebrado por “Ipanema, 110 anos na vanguarda”. 22.abr.2004. Cader-
no Zona Sul. O Globo.
representar uma conformidade com os valores
“O garotão de Ipanema – Ipanema 110 anos, edição espe-
predominantes, como a produtividade, a rique- cial”. 25.abr.2004. Caderno H. Jornal do Brasil.
za, o consumo, o corpo saudável e estético. “Ipanema 110 anos: Histórias e personagens do bairro
mais charmoso da cidade”. 26 abr. 2004-02 maio
2004. Veja Rio.

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