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Aracaju/SE
2022
DECLARAÇÃO DE CONFORMIDADE DO TRABALHO DE CONCLUSÃO
DE CURSO II PARA DEPÓSITO NA COORDENAÇÃO E DEFESA NA
BANCA
Eu, Professora Dra. Ma. Mônica Silva Silveira, orientadora do aluno Jeadi Frazão
Bezerra Júnior na pesquisa e desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso em sua
fase de projeto, intitulado: Contrarreforma Psiquiátrica e os desafios do movimento
antimanicomial, declaro que este encontra-se apto e autorizado por mim para depósito
junto à coordenação, assim como em condições de submissão à apreciação da banca
examinadora.
_______________________________________________
ASSINATURA
TERMO DE CIÊNCIA DE PRAZO MÁXIMO PARA ENTREGA DA VERSÃO
FINAL DO PROJETO PARA ALUNOS DO 10º PERÍODO
Eu, aluno Jeadi Frazão Bezerra Júnior, orientado pela Professora Dra. Ma. Mônica
Silva Silveira na ênfase acadêmica, autor do projeto intitulado Contrarreforma
Psiquiátrica e os desafios do Movimento Antimanicomial, dou ciência que devo entregar
a versão final do meu trabalho de conclusão de curso, até dia 01 de julho de 2022,
diretamente na coordenação do curso, sob pena de ter minha nota zerada pelo não
cumprimento deste prazo. Fico ciente também, que em caso de dúvida, devo procurar esta
mesma coordenação para conhecer o dia da solenidade acima referida.
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ASSINATURA
JEADI FRAZÃO BEZERRA JÚNIOR
Aracaju/SE
2022
JEADI FRAZÃO BEZERRA JÚNIOR
APROVADO EM 02/06/2022
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AVALIADORA: Psicóloga Rita de Cássia Nascimento Luz – IJBA
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AVALIADOR: Professor MsC. Marcel Maia de Oliveira Gomes – UFS
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ORIENTADORA: Professora Dra. Ma. Mônica Silva Silveira – UFS
Ao meu pai (in memoriam) e minha mãe, por terem me ensinado
o valor incomensurável da educação.
“Em 1925, alguns artistas e escritores franceses que atuavam em nome da
‘revolução surrealista’ dirigiram aos diretores de hospitais psiquiátricos um
manifesto que terminava com estas palavras: ‘Amanhã, na hora da visita, quando
vocês tentarem sem a ajuda de dicionário algum comunicar-se com estes
homens, poderão recordar e reconhecer que só têm sobre eles uma
superioridade: a força” (Franco Basaglia)
“Administrar os ‘pendores críticos’ dos agentes sociais ou a ‘loucura’ é para o
Estado uma questão de sobrevivência; subverter esta administração – em que
pesem suas formas menos ou mais repressivas -, não é uma prática isolada mas
articulada e já pensada numa concepção global da história e das classes. Ou
então não é nada senão forma de fortalecer as instituições às quais se combate”
(Carlos Henrique de Escobar)
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a duas pessoas que, infelizmente, não poderão assistir a banca
de defesa ou ler este trabalho, mas estiveram presentes e foram determinantes em diversos
outros momentos da minha vida: minha avó materna (Generosa Caldas Sampaio) e meu
pai (Jeadi Frazão Bezerra). Sei que ambos estariam orgulhosos e seriam meus mais fiéis
apoiadores.
A minha mãe, Maria do Socorro Caldas Sampaio, mulher de fé, força e coragem que criou
a mim e ao meu irmão com tanto carinho e cuidado, nos ensinando a valorizar a
solidariedade e o altruísmo, sem deixar de nos direcionar para compreender as nuances
das relações humanas, dos laços de amizade e amor, do reconhecimento e da união,
aprendizados que levaremos para toda a vida.
Ao meu irmão, Victor Ryan Sampaio Frazão, por aguentar meus silêncios e respostas
breves, por saber respeitar o tempo dos outros (e por estar aprendendo a respeitar o
próprio tempo) e por continuar me surpreendendo cotidianamente com suas perguntas.
A minha amiga, amor e camarada Mariana Isla, que desde meados de 2020 compartilha
comigo a vida, as experiências, as lutas, reflexões, festas, comemorações e mesas de bar,
os anseios, angústias, desejos, vontades e prazeres do corpo e da alma. Dedico à ela as
palavras de um intelectual e poeta amplamente citado no texto e admirado por nós dois
sob várias formas: “Nenhum sistema que não é capaz de abraçar com carinho a mulher
que amo e acolher generosamente minha amada classe é digno de existir./ Está, então,
decidido: Vamos mudar o mundo, transformá-lo de pedra em espelho para que cada um,
enfim, se reconheça./ Para que o trabalho não seja um meio de vida./ Para que a morte
não seja o que mais a vida abriga./ Para que o amor não seja uma exceção, façamos agora
uma grande e apaixonada revolução” (Mauro Luís Iasi em Uma razão a mais para ser
anticapitalista).
A Professora Fernanda Hermínia Oliveira Souza, pelos riquíssimos aprendizados na
disciplina de Psicologia Social II (da qual fui monitor por um semestre) e posteriormente,
de Psicologia Jurídica, mas também pelo incentivo à pesquisa, problematização e crítica,
sinalizando para o intercâmbio de ideias sem dogmatismos, mas também sem abandonar
pressupostos éticos, sociais e políticos.
Ao professor, mestre e amigo Francisco Diemerson de Sousa Pereira, pelos bons
ensinamentos, reflexões, conselhos, conversas e partilhas sensíveis, intelectuais e
afetivas.
Aos professores Evanildo Vasco Vianna, Aline Andrade Rabelo, Marcel Maia de Oliveira
Gomes e Fernando Antônio Nascimento Silva, por me proporcionarem as bases e
caminhos para compreensão dos movimentos sociais, instituições e políticas públicas nos
campos da saúde e saúde mental, sem os quais este trabalho não existiria.
Aos amigos e amigas com os quais mantive relações duradouras, de confiança,
confidência e lealdade: Milena, André, Evelyn, Sara, Rita e Ellen. Aos recém-chegados
em termos de amizade, mas não por isso menos importantes: Maria Bomfim, Elizabeth
Rocha, Jenifa Nascimento, Maria Gabriela, João Vitor e Letícia Nascimento, além de
colegas de turma, de outros cursos e instituições que me atravessaram durante esse
processo de formação.
A minha orientadora, Dra. Mônica Silva Silveira, pelas valiosas sugestões e
contribuições.
Aos camaradas da União da Juventude Comunista (UJC), Juventude e Escola de Quadros
do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que completou, no dia 25 de março de 2022, um
século de lutas ao lado da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, sindicais,
estudantis e populares no Brasil.
Cito, com certa licença poética-temporal, as palavras de Ferreira Gullar: “Eles eram
poucos./ E nem puderam cantar muito alto a Internacional./ Naquela casa de Nitéroi em
1922./ Mas cantaram e fundaram o Partido./ Eles eram apenas nove./ O jornalista
Astrojildo, o contador Cordeiro, o Gráfico Pimenta./ O sapateiro José Elias, o vassoreiro
Luis Peres, os alfaiates Cedon e Barbosa./ O ferroviário Hermogênio e ainda o barbeiro
Nequete, que citava Lênin a três por dois./ Em todo o País./ Eles eram mais de setenta./
Sabiam pouco de marxismo./ Mas tinham sede de justiça./ E estavam dispostos a lutar
por ela./ Faz cem anos que isso aconteceu./ O PCB não se tornou o maior partido do
Ocidente nem mesmo do Brasil./ Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis./
Tem que falar dele./ Ou estará mentindo”.
Jeadi Frazão Bezerra Júnior
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
2 REFERENCIAL TEÓRICO .................................................................................... 14
2.1 Gênese e desenvolvimento do Movimento Antimanicomial e da Reforma
Psiquiátrica Brasileira .............................................................................................. 14
2.2 Movimento Antimanicomial e Políticas Públicas de Saúde Mental ............... 20
2.3 Movimento Antimanicomial e Contrarreforma Psiquiátrica: desafios e
reflexões ..................................................................................................................... 27
3 OBJETIVOS........................................................................................................... 34
3.1 Objetivo Geral ..................................................................................................... 34
3.2 Objetivos Específicos .......................................................................................... 34
4 MATERIAIS E MÉTODOS ..................................................................................... 35
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 37
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1 INTRODUÇÃO
Segundo o autor, a atuação política dos psicólogos teve como foco a democracia
participativa, a consciência cidadã, a defesa dos direitos humanos e a aliança entre o
capital e o trabalho para a conquista progressiva de direitos.
Contudo, com os desdobramentos e agravamentos da crise estrutural do
capitalismo, observou-se as tentativas de esgarçamento da democracia e do pacto social
da Nova República cuja maior expressão está na Constituição de 1988, pondo em xeque
os direitos trabalhistas, previdenciários, à saúde e à educação, além dos demais processos
de desmonte das conquistas obtidas por meio das lutas populares que, nesse momento, se
desenvolvem a solavancos e de forma reativa, com manifestações pontuais que não
possibilitam a resistência ao desmonte e tampouco a esperada contraofensiva.
b) O curso “SUS, Capitalismo e Saúde” promovido pela Fundação de Estudos
Políticos, Econômicos e Sociais Dinarco Reis, particularmente nas aulas ministradas
pelos pesquisadores André Vianna Dantas (Fiocruz), Áquilas Mendes (USP), Mauro Iasi
(UFRJ) e Daniela Albrecht (UERJ), que propuseram excelentes reflexões sobre análise,
organização e lutas pela saúde pública, universal e popular através do debate crítico da
esquerda marxista sobre a Estratégia Democrático-Popular (EDP).
Ocorre que para esses autores as Estratégias não dizem somente sobre os objetivos
e interesses de classe, mas também podem colaborar para compreender os marcos de
transformação da subjetividade e da consciência social. Nesse sentido, este trabalho
poderá oferecer contribuições fundamentais em alguns campos, que, no processo de
escrita se encontram interligados: Psicologia, Saúde Mental e Política (sobretudo no que
se refere à relação contraditória e permeada por impasses entre o Movimento
Antimanicomial e o Estado brasileiro).
O referencial teórico utilizado oferece os primeiros passos para compreender a
transformação da subjetividade (e da consciência) de classe no ciclo Democrático-
Popular (1980-2016) e suas consequências mais imediatas, como a fragmentação e
invisibilidade das classes subalternas e, conjuntamente, a intensificação e combinação de
formas de exploração e opressão sobre o conjunto dos trabalhadores.
Ao mesmo tempo, o exame histórico e a análise crítica dos processos de
desenvolvimento do Movimento Antimanicomial, da Reforma e da Contrarreforma
Psiquiátrica poderão oferecer novos olhares, horizontes de perspectivas e possibilidades
de atuação política (para a Psicologia, o Movimento Antimanicomial e o campo da saúde
mental) que deem conta de ao menos elencar os desafios do tempo presente visando a
transformação social.
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2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 Gênese e desenvolvimento do Movimento Antimanicomial e da Reforma
Psiquiátrica Brasileira
bases teóricas hegemônicas entre a esquerda brasileira nas décadas seguintes (DANTAS,
2017). O segundo, “A questão democrática na área da saúde”, elaborado por membros do
CEBES, tornar-se-á referência política para o campo da saúde no país (AMARANTE,
2020).
Em meio à conjuntura de luta contra a ditadura e, posteriormente, sob o impacto
da Queda do Muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética em 1992, a
questão democrática teve peso decisivo nas estratégias de luta das classes trabalhadoras
(DANTAS, 2017).
Para Carlos Nelson Coutinho (1979) a ampliação de organizações de sociedade
civil e de sujeitos políticos de base que estavam lutando pelo fim da ditadura empresarial-
militar exigia a unificação destes em um bloco democrático e popular que serviria para
extirpar os elementos ditatoriais no processo de transição democrática e criar as condições
para a democratização da economia rumo ao socialismo.
Entre os organismos deste bloco democrático e popular estava também o
emergente Movimento Antimanicomial e, mais especificamente, o MTSM, que
enfrentava desde a sua criação em 1978 o debate sobre institucionalizar ou não o
movimento, isto é, ingressar ou não nas instituições e, mais especificamente, no aparelho
de Estado (AMARANTE, 1995; ALBRECHT, 2017, 2020).
No início dos anos 1980, o advento da cogestão interministerial - modalidade de
convênio entre os Ministérios da Previdência e Assistência Social (MPAS) e o da Saúde
(MS), que previa a colaboração do primeiro no custeio, planejamento e avaliação das
unidades hospitalares do segundo -, o debate sobre a institucionalização do Movimento
ganha contornos mais nítidos. A ocupação de cargos em órgãos estatais passa a ser vista
como tática de mudança por dentro ou indicação de cooptação das lideranças e do projeto
do MTSM pelo Estado (AMARANTE, 1995).
Não obstante a discussão, na segunda metade da década de 1980 o aparelho de
Estado estava ocupado por militantes do MTSM que assumiram posições de coordenação
das políticas de saúde mental. Nesse período, é realizada a 8° Conferência Nacional de
Saúde (1986) e a I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), ambos momentos de
ampla participação social e abertura do Estado onde debates sobre participação popular e
autonomia do Movimento foram travados (ALBRECHT, 2017).
Vale notar que, à época, o setor de saúde mental do Ministério da Saúde se opunha
as ideias reformadoras e de participação social na construção das políticas públicas. Por
isso, a I Conferência Nacional de Saúde Mental é realizada por pressão dos militantes do
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produção social da loucura. Nesse sentido, a transformação das relações entre a sociedade
e a loucura impunha aliar-se ao movimento popular e a classe trabalhadora organizada
(MANIFESTO DE BAURU, 1987, n.p.).
Durante o ano de 1987 começam a ser desenvolvidas experiências assistenciais
coerentes com as críticas do Movimento Antimanicomial, como o Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), na cidade de São Paulo e o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS)
em Santos. (AMARANTE, 2020). Em 1988, é promulgada a Constituição Federal e, nela,
inscreve-se o Sistema Único de Saúde (SUS), fruto da conjuntura de retomada da luta dos
trabalhadores e da Reforma Sanitária Brasileira (DANTAS, 2018).
No ano seguinte, com base na experiência de Santos, foi desenvolvido o Projeto
de Lei 3.657, de autoria do Deputado Paulo Delgado, que propunha a extinção progressiva
dos manicômios e sua substituição por outros serviços. Embora o texto tenha sido
apresentado pelo deputado, ele vinha sendo elaborado por um grupo de participantes do
MTSM (AMARANTE, 2020).
Desde então, a Luta Antimanicomial traduziu-se em evidentes conquistas, obtidas
por meio da institucionalidade. O Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG),
proposto em 1989, passou 12 anos em tramitação, sendo aprovado como Lei 10.216 em
2001, contando, entretanto, com alterações significativas em relação ao projeto original.
Em meio a isto, leis e portarias estaduais foram criadas com o propósito de reorientar o
modelo de assistência psiquiátrica e atenção à saúde mental no Brasil (AMARANTE,
2020; ALBRECHT, 2017, 2019).
Previa-se, com a aprovação da Lei 10.216/2001, a extinção progressiva dos
hospitais psiquiátricos e sua substituição por uma complexa rede de serviços comunitários
em que o cuidado em liberdade constaria enquanto elemento terapêutico. O Movimento
Antimanicomial, nessa perspectiva, contribuiu para o fortalecimento e ampliação dos
serviços públicos comunitários de atenção psicossocial no Brasil (DESINSTITUTE &
WEBER, 2021).
Por isso, quando nos referirmos à Movimento Antimanicomial, nesse projeto,
estaremos abordando um conjunto amplo da luta de um campo (da saúde mental,
incluindo aí os profissionais, técnicos, etc.) que culmina nas transformações das políticas
públicas de saúde mental que foram chamadas de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB).
De acordo com Daniela Albrecht (2017) também se pode utilizar, sem prejuízo de
compreensão, os termos Movimento pela Reforma Psiquiátrica ou Luta Antimanicomial
para designar esse mesmo conjunto de lutas.
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Portanto, vale assinalar que a Reforma Psiquiátrica Brasileira foi gestada pari
passu à consolidação do neoliberalismo no Brasil (SILVA & GOMES, 2019), gerando
dificuldades particulares na medida em que nos países periféricos do capitalismo “o
suporte prévio de bem-estar social para suas populações, quando da entrada no
neoliberalismo, é muito pequeno ou mesmo nulo” (MASCARO, 2013, p. 194).
Nos governos de Lula e Dilma a conciliação entre a demanda neoliberal e as
políticas sociais foram conduzidas através da aparência de ampliação da participação
popular, transformando as consultas públicas em rituais administrativos, de modo que não
pudessem ameaçar elementos importantes de sustentação dos governos (MIGUEL, 2019;
MENDES & CARNUT, 2020).
Em 2004, no primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva, no lugar de convocar
a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, realizou-se um Congresso Nacional dos
Centros de Atenção Psicossocial. A IV Conferência Nacional de Saúde Mental –
Intersetorial só é convocada em 2010 após diversas manifestações e pressões advindas
dos movimentos sociais no campo da saúde (AMARANTE & NUNES, 2019;
AMARANTE, 2020).
No 4° Congresso Brasileiro de Saúde Mental da Associação Brasileira de Saúde
Mental, em 2014 (primeiro governo Dilma) foi lançada a campanha pela V Conferência,
que não logrou aceitação por parte do Ministério da Saúde, à época comandado pelo
sanitarista Arthur Chioro (AMARANTE, 2020).
Em meio aos governos petistas, o partido deliberadamente trabalhou na direção
de esvaziamento dos movimentos sociais, com políticas de cooptação das lideranças,
engessamento das agendas e sufocamento de demandas (MIGUEL, 2019). O Movimento
Antimanicomial não passa ileso por este processo, pois que as transformações da saúde
mental se desenvolvem em vetor contrário ao fortalecimento do Movimento, que se
fragiliza substancialmente antes mesmo dos governos petistas (ALBRECHT, 2019).
Não obstante tais dificuldades, ainda sob o último governo de FHC, conquistou-
se – através da Portaria GM/MS 1.220/00, a viabilização do Serviço Residencial
Terapêutico em Saúde Mental, programa de residências para internos que estavam há
mais de dois anos em hospitais psiquiátricos (AMARANTE, 2020).
Através da Portaria GM/MS 251/02, foram estabelecidas diretrizes e normas para
a assistência hospitalar em psiquiatria, regulamentou-se a internação psiquiátrica (algo
que diminuiu o número de internações) e criou-se o Programa Nacional de Avaliação dos
Serviços Hospitalares (PNASH) que avaliaria periodicamente hospitais psiquiátricos
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públicos e privados conveniados ao SUS. E, por meio da Portaria GM/MS 336/02, foi
dada uma nova classificação e regulamentação para os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS) (AMARANTE, 2020).
Em 2006, durante o primeiro governo Lula, os gastos federais com ações extra-
hospitalares no campo da saúde mental representavam 56% dos recursos da área,
tendência que permanece nos anos seguintes (DESINSTITUTE & WEBER, 2021).
Entretanto, refletindo a problemática do Sistema Único de Saúde, as políticas públicas de
saúde mental também foram subfinanciadas.
Entre os anos de 2001 e 2010, os investimentos no campo da saúde mental
variaram entre 2,3% e 2,7% do Gasto Federal com ações e serviços públicos de saúde
como um todo, sendo que nos países desenvolvidos os investimentos na saúde mental
chegam à 5% do gasto total no campo da saúde (COSTA E MENDES, 2020).
No ano de 2011, surgem – com a publicação da Portaria n° 3.088, que cria a Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS) - inovadoras propostas de cuidado a pessoas em uso
problemático de substâncias. Entretanto, essa Portaria inclui as Comunidades
Terapêuticas (CT), que são instituições questionadas no campo político e acadêmico 1,
além de desaprovadas nas Conferências Nacionais de Saúde Mental e, mais
especificamente, na IV Conferência (AMARANTE, 2020). De acordo com Silva &
Gomes (2019) isto significa que a Reforma ainda engatinhava quando enfrentou seus
primeiros retrocessos.
Entre os anos de 2011 e 2014, os valores investidos no campo da saúde mental
variaram entre 2,6 e 1,9% dos Gastos Federais com ações e serviços públicos de saúde
(COSTA & MENDES, 2020). Não seria imprudente considerar que essa diminuição nos
gastos com a saúde mental está associada ao fato de que, desde 2010, as Comunidades
Terapêuticas vêm recebendo incentivos na2s esferas Federal, Estadual e Municipal,
dificultando o fortalecimento da RAPS (SILVA & GOMES, 2019; DESINSTITUTE &
WEBER, 2021).
1
Além disso, o Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas do Conselho Federal de
Psicologia (CFP) em parceria com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e
a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) identificou nas Comunidades Terapêuticas:
isolamento ou restrição do convívio social; internação de pacientes (incluindo adolescentes) de modo
involuntário; utilização de práticas de castigo e punição, que vão desde a execução de tarefas repetitivas à
perda de refeições e violência física; privação de sono, uso irregular de contenção mecânica ou química;
práticas de tortura e tratamento cruel ou degradante (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).
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Antimanicomial. Entretanto, ele só será aprovado como Lei 10.216 em 2001. Os doze
anos de tramitação pelos quais passou foram permeados por disputas políticas em âmbito
parlamentar, implicando em transformações significativas em relação ao projeto original
(ALBRECHT, 2019; PRADO, SEVERO & GUERRERO, 2020).
De acordo com Amarante (2020) o debate em torno da aprovação do projeto
favoreceu a intensificação das manifestações favoráveis e contrárias. Houve também o
surgimento de associações de familiares contrárias ao projeto, como a Associação dos
Familiares dos Doentes Mentais (AFDM), apoiada e financiada pela Federação Brasileira
de Hospitais (FBH).
Para Prado, Severo e Guerrero (2020) o artigo mais fundamental do projeto
original, que proibia a construção e expansão de novos hospitais e leitos psiquiátricos
transformou-se em outro que se limitava à determinação do funcionamento terapêutico
dos hospitais e leitos e à normatização da assistência oferecida, subvertendo a ideia
original e o propósito da lei. De acordo com Luzio & Yasui (2010) a lei aprovada mantém
a estrutura hospitalar existente, regulando as internações e acenando timidamente para
uma proposta de mudança do modelo de assistência.
Como argumentamos no primeiro capítulo, é em meio ao surgimento de uma
modalidade de convênio entre os Ministérios da Previdência e Assistência Social (MPAS)
e o da Saúde (MS) chamada de cogestão interministerial em 1980 que os debates sobre a
institucionalização do Movimento Antimanicomial ganham contornos nítidos. Por um
lado, a entrada no aparelho do Estado significaria uma tática de mudança por dentro. Por
outro, era vista como indicativo de “cooptação” das lideranças e do projeto do Movimento
Antimanicomial, à época MTSM, pelo Estado.
Ainda em 1980, ao falar sobre a privatização da assistência psiquiátrica no Brasil
e debater as tentativas de modernização ou de aperfeiçoamento técnico do modelo em
vigência, Lima (1980) argumenta que o mal da assistência psiquiátrica no Brasil é
estrutural. Por isso, as propostas do Movimento não poderiam se limitar à racionalização
da assistência psiquiátrica, como se propunha em ambos os Ministérios, mas sim basear-
se numa mudança estrutural em que a saúde não fosse objeto de lucro.
Vale lembrar que o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental em seu II
Congresso Nacional ocorrido em Bauru, em 1987, demonstrava compreensão similar. À
época, entendia-se que o Estado que gerenciava os serviços de assistência psiquiátrica era
responsável pelos próprios mecanismos de exploração e produção social da loucura.
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voltava para a ascensão das lideranças de classes aos postos estratégicos no Estado,
gerando, ao contrário do que se esperava - isto é, uma democracia de massas com espaços
próprios de organização -, um mercado consumidor de massas relacionado à uma
participação democrática que se revelou cogestora do capital (DANTAS, 2018).
Quanto a isto, o autor supracitado argumenta na obra Do Socialismo à
Democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira e no artigo A Questão
Democrática e a Reforma Sanitária Brasileira: um debate tático e estratégico como a
Reforma Sanitária Brasileira e o Movimento Sanitário operaram como microcosmo das
lutas de classes, isto é, como uma luta setorial que se insere no conjunto mais amplo das
lutas mais gerais da sociabilidade capitalista (DANTAS, 2017, 2018).
Sobre estratégia e tática, o autor argumenta que a estratégia do Movimento
Sanitário se baseava no Estado, as conquistas viriam pela via democrática, e a tática
visava a ocupação dos espaços institucionais e a promoção das lutas nas bases. Entretanto,
a recusa a combater à ordem burguesa levará o Movimento a um forte apelo pela via
institucional como tática fundamental, tendo em vista a predominância do aspecto
institucional e da questão democrática na Estratégia vocalizada (DANTAS, 2017, 2018).
O campo da saúde mental e, mais especificamente, o Movimento Antimanicomial,
foi um dos campos onde os elementos da Estratégia Democrático-Popular ganharam
maior densidade, visto que antes mesmo dos governos petistas os militantes do
Movimento Antimanicomial ocupavam trincheiras no aparelho do Estado, desenvolvendo
o “programa” da Reforma Psiquiátrica (ALBRECHT, 2019).
Ainda de acordo com Dantas (2018) a ocupação dos espaços institucionais por
parte do movimento sanitário pôs em segundo plano a construção e elaboração da unidade
teórica e política do Movimento. Nesse sentido, poder-se-ia supor que a fragmentação, o
imobilismo e a dispersão política do Movimento Antimanicomial, de que falava
Vasconcelos (2012, 2012b) tenha sido um fator determinante para a reinvenção da
instituição psiquiátrica, isto é, para o processo de remanicomialização da assistência à
saúde mental no Brasil (ALBRECHT, 2019; COSTA & MENDES, 2020).
Ora, em meio ao desenvolvimento da Estratégia Democrático-Popular e da
Reforma Psiquiátrica, o próprio ambiente de trabalho passou a significar espaço de
militância política, levando a perspectivas voluntaristas de profissionais que buscavam
transformar as relações com a loucura no âmbito dos saberes e da cultura, mas que não
desenvolveram instrumentos de avaliação das políticas sociais e suas relações com as
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Soma-se a isto o fato de que ao menos desde 1993 (data do I Encontro Nacional
do Movimento de Luta Antimanicomial) compreende-se que a construção de um novo
lugar para social na cultura se daria no âmbito da cultura, das práticas culturais
(AMARANTE & OLIVEIRA, 2019). Aparentemente, tal concepção espraia-se entre o
campo da Luta Antimanicomial. Em artigo publicado um ano antes na Revista Saúde em
Debate, Campos (1992) argumentava que a Luta Antimanicomial não significava pôr
abaixo o manicômio, mas modificar as práticas e a cultura psiquiátrica dominante.
De acordo com Iasi (2013) a forma de consciência social predominante no século
XXI tende a dissociar as esferas de exploração e opressão, ocultando a dimensão geral do
modo de produção que as articula e, consequentemente, permitindo que alterações de
forma rearticulem as instituições e práticas opressivas em outros patamares, de modo a
garantir a mesma ordem social contra a qual os grupos e movimentos se confrontavam.
Isto parece correto na medida em que, para Albrecht (2019), a dimensão cultural,
valorizada enquanto parte de um projeto de transformação da sociedade, ganha autonomia
em relação aos mecanismos que a produzem. Nesse sentido, o debate Estratégico do
Movimento, que se colocava no âmbito da Estratégia Democrático-Popular, parece ter
desaparecido por completo, gerando um recuo da consciência de classe que coincide com
o recuo do conjunto da classe trabalhadora no desenvolvimento e realização da Estratégia
Democrático-Popular.
O ciclo histórico-político que se encerra, isto é, o Democrático-Popular, têm sido
marcado por uma forte ofensiva da burguesia sobre os trabalhadores, que se encontram
fragilizados e fragmentados por conta da crise de sua consciência de classe, que os leva à
invisibilidade e fragmentação, de modo que amplos setores da população se veem presos
às ideologias conservadoras, neofascistas, fundamentalistas, etc. (BOECHAT, 2017;
IASI, 2019b).
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3 OBJETIVOS
3.1 Objetivo Geral
4 MATERIAIS E MÉTODOS
REFERÊNCIAS
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no
Brasil. – Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.
AMARANTE, Paulo. Autobiografia de um movimento: quatro décadas de reforma
psiquiátrica no Brasil (1976-2016). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020.
AMARANTE, Paulo. NUNES, Mônica. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma
sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 23 (6), 2019, p. 2067-
2074
ALBRECHT, Daniela. Consciência antimanicomial em tempos democrático-populares:
caminhos de um movimento. In: PASSOS, R. G.; COSTA, R. A.; SILVA, F. G. (Org).
Saúde Mental e os desafios atuais da Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Gramma,
2017, p. 283-312.
ALBRECHT, Daniela. Movimentos antimanicomiais, estratégia democrático popular e
consciência de classe: notas introdutórias. In: IASI, M., FIGUEIREDO, I. M., NEVES,
V. A estratégia democrático-popular: um inventário crítico. Marília: Lutas
Anticapital, 2019.
ANDERSON, Perry. Brasil à parte: 1964-2019. Tradução Alexandre Barbosa de Souza
et al. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2020.
BASAGLIA, Franco. Las técnicas psiquiátricas como instrumentos de liberación o de
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ANEXOS