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Pro-Posições Vol.

4 Nº 1[10] * março de 1993


Artigos

Educação Matemática: Uma Visão


do Estado da Arte
Ubiratan D'Ambrosio*

sa por um sistema escolar. A Matemá-


O que é Educação tica é a única disciplina escolar que é
Matemática ensinada aproximadamente da mesma
maneira e com o mesmo conteúdo para
todas as crianças do mundo. É a única
O que vem a ser Educação Matemá- disciplina que permite um estudo com-
tica? Um ramo da Educação? Sim. Não pardtivo avaliando rendimento esco-
se pode tirar Educação Matemática de lar, onde os instrumentos de avaliação
seulugar muito natural entre as várias são os mesmos (como foi o Second In-
áreas da Educação. Mas não seria tam- ternational Study of Mathematics
bém uma especialização da Matemáti- Education — SIMS e deverá ser o
ca? Claro. Tem tudo a ver com Mate- Third International Study of Mathe-
matica. E por que, então, distingui-la matics and Science — TIMS). A critica
como uma disciplina autônoma? Não a essa postura está na origem do Pro-
poderíamos simplesmente falar em grama Etnomatematica.
Educação Matemática como o estudo e Tem se procurado dar as ciéncias o
o desenvolvimento de técnicas ou mo- mesmo caráter de universalidade, so-
dos mais eficientes de se ensinar Ma- bretudo devido ao seu crescente estilo
temática? Ou como estudos de ensino e matematico. Mas as dificuldades tém
aprendizagem da Matemática? Ou sido enormes. O TIMS está procurando
como metodologia de seu ensino no sen- fazer face a essa dificuldade, e o que se
tido amplo? Claro, não se pode negar almeja é a elaboração de instrumentos
que a Educação Matemática aborda to- únicos de avaliagéo, integrando a Ma-
dos esses e inúmeros outros desafios da temática as ciéncias. Há dificuldades
Educação e, portanto, é tudo isso. Não
enormes, mas a integração parece ser
obstante, há certas especificidades que
a tendéncia. Em outros termos, é pos-
tornam a Educação Matemática mere-
sivel que vejamos a Matematica desa-
cedora de um espaço próprio.
parecendo como disciplina auténoma
A única disciplina que chegou, nos nas avaliagdes globais. E, conseqiiente-
sistemas educacionais, a atingir um mente, nas avaliagdes em geral. Apa-
caráter de universalidade foi a Mate- rentementeo final do parágrafo ante-
mática. Embora, a nosso ver, a descon- rior contradiz o tom do inicio deste
textualização da Matemática seja um trabalho. Se a Matemática é de tal for-
dos maiores equívocos da Educação ma abrangente e a Educagdo Matema-
moderna, o que efetivamente se cons- tica tem tantas especificidades, como
tata é que a mesma Matemática é en-
pensar na eliminacéo de testes especi-
sinada em todo o mundo, com algumas
ficos de Matematica, na sua integragéo
variantes que são bem mais estraté-
gias para se atingir um conteúdo uni-
versalmente acordado como devendo * Professor do Instituto de Matematica, Esta-
ser a bagagem de toda criança que pas- tistica e Ciéncia da Computação da UNICAMP.
Educação Matemática

às ciências e no seu possível desapare- no e que a partir do século XVII se


cimento dos currículos escolares como alastrou por todo o mundo com cres-
disciplina autônoma? Na verdade não cente importância. Essa essência, que
há contradição. Há, sim, um novo tipo alguns se sentiriam mais confortáveis
de desafio que é o reconhecimento da se eu dissesse simplesmente essência
sua presença total no sistema escolar, do que é chamado ciência moderna e
da sua penetração em todas as cama- tecnologia em vez de pensamento mo-
das da sociedade, mas sem uma identi- derno, se manifesta a partir do século
dade disciplinar restritiva. É óbvio que XVIII. Hoje é impossivel trabalhar em
estaremos assim encaminhando nos-
sas reflexões em direção a uma pós-dis- ciências biomédicas, por exemplo, sem
ciplinaridade. Surpreendentemente, a um instrumental matemático sofisti-
História nos ensina que essa fase está cado. A sociedade como um todo está
muito próxima da pré-disciplinaridade impregnada de Matemaética, a ponto de
que prevaleceu até o século passado e um famoso artigo publicado na década
que atinge primeiramente os setores de setenta narevista The Economist de
do conhecimento de maior abrangên- Londres ter, como titulo, “You can’t be
cia, como é o caso da Matemática. O seu a citizen of the XXt century without
desaparecimento dos sistemas escola- Mathematics”. Com o advento da In-
res reflete a sua integração total na formaética, essa importéncia ainda se
sociedade. A artificialidade de um tra- acentua. E isso não é menos verdade
tamento disciplinar nos sistemas esco- nas chamadas ciéncias humanas. As
lares se torna incompatível com sua vertentes mais ricas da Antropologia
presença muito natural no dia-a-dia. O tém na Matemética um importante
mesmo se passou com o falar e deverá se instrumento de trabalho, bem como a
passar com a redação, e sem dúvida esse
Psicologia. Da mesma maneira a His-
será o veículo de entrada da Informática
téria, incluida a Pré-Histéria e a Paleo-
no sistema escolar até atingir sua poten-
cialidade plena. Essa interpenetração grafia, assim como a Lingiiistica. E a
das disciplinas transforma radicalmen- Histéria da Arte recorre freqiiente-
te o papel dos educadores de transmis- mente & Matemaética, assim como a
sores de conhecimento para facilitado- prépria arte. Estaremos entrando no
res de aprendizagem. Esse novo papel é que Michelle Emmer (1992) chama de
evidente no ambicioso Projeto 2.061, da um novo renascimento. Igualmente, as
American Association for the Advance- religides sempre tém tido muito a ver
ment of Science (AAAS:1989). com a Matematica, sendo as adivinha-
ções (técnicas divinatérias que nos
aproximam dos deuses, que são aque-
Matemática como uma les que conhecem o futuro) quase sem-
forma de conhecimento pre baseadas em idéias mateméticas.
Existe mesmo uma Geometria Sagra-
e algumas da e uma Aritmética Sagrada. Não en-
considerações sobre contraremos, no cotidiano de todos os
povos ede todas as culturas, atividades
cognição que não envolvam alguma forma de
Matemaética. Repito, alguma forma de
A Matemática representa a essência Matemdtica. Mas não necessariamen-
do que é chamado pensamento moder- te a Matematica que estd nos curricu-
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los. E assim reconhecemos o espaço verdade, através do estudo da Mate-


para a Etnomatemática. matica se alcangava um estagio “supe-
Têm ocorrido, ao longo da História, rior”, e porisso os estudos matemaéticos
grandes polêmicas sobre a natureza da — no sentido de teorias abstratas como
Matemática, causando as mais acirra- as organizadas pelos gregos — eram
das controvérsias. Conseqiientemente, destinados à preparação das elites di-
a Matemética é também, de todos os rigentes, como se lê claramente na
setores do conhecimento, aquele-que Republica de Platao.
causa mais controvérsias filoséficas. É A complexidade da Matemaética, so-
aquele onde há maior discordéncia bretudo por suas relagdes com outras
epistemolégica. Desde posições radi- áreas de conhecimento e por suas im-
calmente construtivistas e empiricis- plicagdes sociais, politicas e econômi-
tas naturais, até posições de idealistas cas, justifica, desde a Antigiiidade, re-
puros e materialistas irredutiveis, os flexdes, teorias e estudos sobre seu en-
especialistas em Filosofia da Matemá- sino. Embora matematicas em formas
tica tém sido intransigentes em suas diversas, na verdade etnomatemati-
posigdes. A chamada Filosofia da Ma- cas, sejam partes de todas as culturas,
tematica talvez seja a área que sugere elas tém uma posição privilegiada no
as maiores contradigdes nos varios ra- mundo grego. São exercicios de refle-
mos da Filosofia. Desde a Antigiiidade xão por exceléncia, a forma mais alta
grega, na qual os impasses do irracio- do pensamento, algo como o jogo tão
nal e do infinito foram dominantes, até bem ilustrado por Hermann Hesse na
os dias de hoje, as correntes filosóficas sua obra maior O Jogo das Contas de
tém encontrado na Matematica suas Vidrot.
melhores armas para o confronto. O
préprio conceito de verdade é associado
com Matematica, eisso tem influéncias Algumas
notéveis na educação do individuo,
como observa Borba (1992), chegando considerações politicas
ao ponto de sistemas politicos e sobre-
tudo econdmicos repousarem sobre teo- A importancia da Matemaética foi
rias matematicas. efetivamente firmada no sistema esco-
Não se pode negar que ao se fazer o lar com o avango da ciéncia moderna e
ensino de uma disciplina com caracte- da tecnologia, sobretudo a partir do
risticas tão peculiares quanto a Mate- século XVIII, e ganhou um importante
miética, abre-se enorme espago para espaco na educação quando se atingiu
consideragdes especificas de cognição, a modernidade européia. No século
de organizago intelectual e social do passado as preocupagdes com o ensino
conhecimento e de politica, enfim, das da Matemática tiveram grande impul-
formas de explicitação, de entendimen- so gracas sobretudo & obra de Felix
to e de manejo da realidade. Não é sem Klein. Na verdade, foi também nessa
razdo que a raiz da qual se origina a época, meados do século XIX, que a
palavra Matematica, isto é, a raiz gre- Educacdo se estabeleceu como uma
ga matemata, significa justamente disciplina académica. Com o advento
isto: explicação, entendimento, manejo da educagéo para todos, conseqiiéncia
da realidade, objetivos muito mais am- natural da industrializagéo, e o apare-
plos que o simples contar e medir. Na cimento da universidade moderna na
Educação Matemática

Alemanha, surgiram as primeiras cá- durante o Congresso Internacional de


tedras de Educação. Quase ao mesmo Matemaética que se realizou em Roma,
tempo foram iniciadas as reflexões so- foi fundada a Comisséo Internacional
bre a Matemática como um assunto de Ensino de Matematica, precursora
escolar com especificidades tais que se da atual Comissdo Internacional de
justificavam reflexões especializadas Instrução Matematica (ICMI: Interna-
sobre seu ensino. tional Comission of Mathematics In-
A importância da industrialização é struction). A partir de entéo, a Comis-
evidente no esforço de Felix Klein, um são tem se reunido durante todos os
dos mais distinguidos matemáticos do Congressos Internacionais de Mate-
século passado, consagrado por suas matica, que se realizam a cada quatro
pesquisas em áreas abstratas de Aná- anos. Somente em 1968 decidiu-se rea-
lise. Ele defende a integração das vá- lizar, também quadrienalmente, o
rias modalidades de escolas superiores Congresso Internacional de Educagéo
na Alemanha justamente com o objeti- Matemética (ICME: International
vo de incentivar as ciências e a indús- Congress of Mathematics Education),
tria, e vê na Matemática Aplicada o organizado sob responsabilidade da
elemento essencial para isso. Assim ICMI, novo nome da comisséo fundada
prega uma preparação uniforme de em 1908 e que em 1950 se tornara uma
Matemática nas escolas secundárias, o comissão especializada da Unido Ma-
que permitiria, em todas as modalida- temática Internacional (IMU: Interna-
des de escolas superiores, um elevado tional Mathematical Union), uma das
nivel de estudos matematicos. As esco- ONGs (organizagdes ndo-governamen-
las secundárias já deveriam introduzir tais) sob tutela da UNESCO.
matemadticas mais avangadas, como
Geometria Analitica e Célculo, trata-
das com padrdes de rigor. Mas esses Educação Matematica
assuntos eram tratados com rigor so-
mente em cursos universitdrios, na
como uma disciplina
modalidade iniciada nas décadas de
1820 e 1830, por Augustin Cauchy. Um Desde o inicio do século pesquisas
tratamento rigoroso, visando ao ensino em Educação Matemadtica já haviam
secundério, não era disponivel. E Felix encontrado repercussão nos meios aca-
Klein propds-se a desenvolver um cur- dêmicos. Uma síntese histórica da pes-
riculode Mateméaticamoderna,incopo- quisa em Educação Matemática foi re-
rando os avangos da época. Natural- centemente publicada por Jeremy Kil-
mente, assim como acontece hoje, a patrick (1992).
formação de professores é essencial, e O aparecimento de uma literatura
um professor deve dominar o assunto própria, com livros e revistas especia-
de suas aulas de um ponto de vista lizadas, bem como de graus acadêmicos
critico e mais avangado. O curso de e de Departamentos de Educação Ma-
Felix Klein foi publicado na forma de temática, são indicadores decisivos no
um livro que se tornou clássico, tratan- reconhecimento de uma nova discipli-
do da Matematica Elementar de um na. A partir daí as especialidades co-
ponto de vista avangado. A preocupa- meçam a se caracterizar. Áreas de in-
ção com o ensino da Matemaética entre vestigação são definidas e se refletem
os mateméticos era tal que em 1908, na programação dos próprios congres-

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sos internacionais. O trabalho da Co- 7. variáveis instrucionais (calculado-


missão de Programa de um congresso ras e computadores, jogos, lições de
é efetivamente um trabalho de pesqui- casa, laboratórios matemáticos, ins-
sa sobre o estado da arte, onde se pro- trução programada);
cura analisar, na literatura, o que tem 8. testes;
recebido maior atenção dos pesquisa- 9. solução de problemas.
dores e naturalmente quais têm sido os Comojá dissemos o estudo de Begle
propulsores de novas direções. Os re- reflete a situação da época, sendo uma
sultados dessa pesquisa se traduzem análise crítica do estado da arte naque-
no programa do congresso. lle momento. O fato de os capitulos 3, 4
O Terceiro Congresso Internacional e 7 serem dominantes, com 20 a 25
de Educação Matemática — ICME 3 — péginas cada, de um total de 150, mos-
estabeleceu uma distribuição de áreas tra o grande tradicionalismo identifi-
bastante significativa, com um tronco cado por Begle. No final Begle diz que
vertical de acordo com faixas etárias e “pesquisas futuras devem ser precedi-
um tipo de terminalidade, e outro ho- das por uma revisão cuidadosa da lite-
rizontal, organizado de acordo com as ratura disponivel” (1979: 152), o que
áreas maiores de pesquisa. No total de em verdade justifica seu livro e sua
treze, essas classificações constituíram importancia até hoje. Seu livro é um
as sessões e também os capítulos das guia para essa revisdo sistemaética. Po-
atas do congresso, publicados pela rém, sua influéncia foi menor do que o
UNESCO em 1976. Elas de fato cons- esperado e, na minha percepção, a pro-
tituem um elenco das áreas de pesqui- posta de Karlsruhe ainda prevalece,
sa em Educação Matemática. Natural- embora sejam necessarias mudancas
mente ainda refletem muito do tradi- em um futuro néo-distante. O manual
cional. de pesquisa Grouws (1992) sintetiza as
Um passo muito importante na defi- áreas correntemente mais importan-
nição de áreas de pesquisa foi proposto tes e é um instrumento fundamental
por Edward G. Begle (1979). Sem se para o pesquisador em Educação Ma-
preocupar com o arranjo matricial ado- tematica.
tado em Karlsruhe, ele propôs capítu- Vamos tomar a proposta de
los que sintetizavam as áreas de pes- Karlsruhe como ponto de partida para
quisa mais intensas a partir da litera- nossas consideragdes e digressionar
tura especializada. Assim, a classifica- um pouco sobre o futuro. O tronco ver-
ção proposta por Begle estabelecia: tical, essencialmente subordinado a
faixas etérias, nos dá:
1. anatureza da Matemática e dos ob-
jetos matemáticos; 1. niveis pré-elementar e primério;
2. metas para Educação Matemática; 2. primeiro ciclo do ensino pés-elemen-
3. docentes (componentes afetivos, tar e ensino secundério;
treinamento, conhecimento, avalia- 8. ciclo superior da escola secundéria
ção); e a transição para a universidade;
4. variáveis curriculares; 4. nivel universitario;
5. variáveis discentes (afetivas, cogni- 5. educação de adultos e educagéo con-
tivas, comportamento); tinuada;
6. o ambiente (escola, sala, família, 6. formaçãoe vida profissional dos pro-
contexto cultural); fessores de Matemética.

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Educação Matemática

Embora sejam universalmente acei- fluenciada pelo mito de hierarquizagéo


tas essas divisões, pergunta-se: o que do aprendizado. Discutimos isso em
há de “sagrado” na distinção entre 1º, D’Ambrosio (1991).
2º e 3º graus de ensino? Hoje, quase
vinte anos após Karlsruhe, questiona-
se a própria idéia de terminalidade dos Educacdo Matematica
graus. O desenvolvimento do jovem de
hoje, as pressões para que mais cedo no contexto da
adquira autonomia e estabeleça famí-
lia, com responsabilidade pela sua ma-
educação em geral
nutenção, e para que tenha participa-
ção política efetiva, como é o caso do O parágrado anterior deixa bem cla-
Brasil, em que é dado o direito de voto ro que Educação Matemática tem tudo
a partir dos 16 anos, tornam questio- a ver com estrutura do sistema educa-
nável a estratificação nos graus tradi- cional. Os resultados dependem muito
cionais. A possibilidade de se entrar no da população alvo das avaliações, eisso
sistema de produção (isto é, emprego) se manifesta principalmente nos estu-
mais cedo, com uma retomada de estu- dos comparativos, que comentaremos
dos após alguns anos de experiéncia e a seguir.
com o conceito de educagdo permanen-
A grande expansão da educação a
te aparecem com maior freqiiéncia nos partir do final do século passado e que
estudos sobre o futuro da educação. O se manifesta com maior intensidade
recente livro de David A. Hamburg nos países menos desenvolvidos a par-
(1992), presidente da Carnegie Corpo- tir de meados deste século, leva à uni-
ration de Nova Iorque, nos d4 uma versalizaçãoda Educação Matemática.
visdo abrangente de quais principais Universalização no sentido pleno: en-
fatores determinam a vida de uma sinar Matemática para todos e, prati-
crianga ou de um jovem de hoje. A camente, a mesma Matemática em
conclusão é que ao atingir 18 anos o todo o mundo. Claro, o ponto de partida
Jjovem passou na escola cerca de 8% de para isso foi o período colonial, mas
sua vida. Pergunta-se: qual aprendiza- realmente se intensificou a partir dos
gem serd dominante? Aquela dos ban- anos 50. O conceito de uma “Matemá-
cos escolares (cerca de 12.000 horas) ou tica para o trabalho” tornou-se domi-
as cerca de 145.000 restantes? As teo- nante. No Brasil isso se manifestou
rias mais recentes de cognição revelam essencialmente na ênfase à profissio-
que a aprendizagem é um processo que nalização. Recomendo, em especial, a
se da continuamente e repousa na va- leitura da coletânea organizada por
riedade de experiéncias que se incorpo- Mary Harris (1991). Contudo, em pa-
ram à histéria do individuo (Varela et ralelo e ainda mais sutilmente temos
alii, 1991). Basicamente esse enfoque uma preocupação com a colocação da
coincide com aquele que eu proponho produção, essencial para a sobrevivên-
em D’Ambrosio (1988 e 1990). O essen- cia dos antigos impérios coloniais. À
cial é reconhecer que a todo instante, mudança do perfil do consumidor tor-
em qualquer ambiente, est4 se apren- naessencial o movimento “Matemática
dendo. Ora, isso afeta enormemente o para todos”, paralelo à grande ênfase
conceito de escola e em particular a em alfabetização nas línguas das anti-
Educagéo Matematica, ainda muito in- gas metrópoles coloniais. À agressão

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cultural e a remoção de capacidade crí- Educação Matemética estdo contem-


tica através da Matemática é manifes- pladas nesse elenco, fazendo cruzar
ta, como bem analisam Marilyn Fran- essa classificagéio de tronco horizontal
kenstein (1989) e Sharan-Jeet Shan e com as seis classificagdes verticais. Po-
Peter Bailey (1991), ao se propor a in- der-se-ia ceder à tentagdo cartesiana
tegração do desenho curricular no mo- de se classificar as areas de Educagéo
mento sócio-cultural do sistema esco- Matemética em um esquema matricial
lar. Igual posição é tomada por Sérgio de 6x7.
Nobre (1989). Na verdade, esses três
trabalhos fundamentais fazem eco,
através da Matemática, ao pensamen- Metas e objetivos
to de Paulo Freire, que propõe uma
educação crítica e não-alienante; em gerais do ensino da
essência, ver a educação como um ato
político, reconhecido e assumido. Na Matematica, sua
verdade, a postura de Paulo Freire com
relação à alfabetização e a ideologia
posição no curriculo e
reconhecida por Michel Apple ao intro- a nova pratica docente
duzir o conceito de currículo oculto tra-
zem, em simbiose, um componente que
Vamos destacar em especial o capi-
toca ainda mais de perto o interesse do
tulo relativo a metas e objetivos gerais.
mundo desenvolvido, que é a crítica ao
De fato, a partir de Karlsruhe as dis-
consumismo implícito. Naturalmente
cussdes sobre o porqué de se ensinar
é aí que se manifestam as grandes dis-
Matemética ganharam umaimportan-
torções culturais da Educação Mate-
mática e que nos levam a reconhecer a te dimensdo sécio-cultural e pode-se
dizer que representam o inicio de um
sua dimensão política (ver D'Ambrosio,
pensar mais abrangente sobre Educa-
1990).
ção Matemdtica. Esse pensar mais
Voltando ao ICME 3, em Karlsruhe,
abrangente é sintetizado no reconheci-
o tronco horizontal, com as outras sete
mento da importância de se contextua-
classificacdes, refere-se as áreas de
lizar a Educação Matematica. Tida tra-
pesquisa:
dicionalmente como universal, no sen-
tido de cruzar diferencas culturais e de
1. análise critica do desenvolvimento representar o único elo absolutamente
curricular; intercultural, a Matemética vem sendo
2. métodos e resultados de avaliação; cada vez mais encarada como um pro-
3. metas e objetivos gerais (aspectos duto cultural. Os trabalhos pioneiros
sécio-culturais); de A. Kroeber e de L. A. White, devi-
4. pesquisarelacionada com o processo damente reconhecidos por Raymond
de aprendizagem; Wilder (1981), tardaram a ser reconhe-
. anélise critica do uso da tecnologia cidos como essenciais para a Educagéo
o

educativa; Matemética. Igualmente, a dominén-


. interação com as outras disciplinas; cia da pesquisa conduzida por Jean
S0

. papel dos algoritmos e dos computa- Piaget e seus discipulos dava pouco
dores. espago parareflexdes culturais. Os tra-
Essencialmente, todas as dreas ain- balhos desenvolvidos na década de
da hoje fundamentais na pesquisa em trinta por L. S. Vygotsky e seus disci-

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Educação Matemática

pulos tornaram-se conhecidos somente Inevitavelmente a prática docente


mais tarde, e o componente sócio-cultu- sofrerá modificações profundas. Há
ral reforça sua importância. Em 1984 pouco espaço para um currículo defini-
realizou-se em Adelaide, Austrália, o doa priori, baseado em conteúdos acor-
ICME 5. Sem dúvida esse Congresso dados como sendo de importância. A
deu a dimenséo s6cio-cultural uma im- postura normativa será claramente
portancia fundamental (ver D’Ambro- superada ao se falar em currículo. A
sio, 1985). No congresso seguinte, o prépria conceituação do que é impor-
ICME 6, realizado em Budapeste em tante resultar4 de consideragdes de na-
1988, essa importancia consolidou-se. tureza sécio-cultural. Tanto para a
Havia sido criado em 1985 o Interna- pesquisa como para a docéncia serão
tional Study Group on Ethnomathe- essenciais uma postura etnogréfica e
matics — ISGEm —, um canal de co- um comportamento correspondente. O
municagéo entre educadores matemá- docente tradicional, cuja missdo é en-
ticos de todo o mundo, tendo como eixo sinar, não encontrard mais seu lugar
diretor os aspectos sécios-culturais. A na sala de aula e dar4 lugar ao anima-
Etnomatemaética sintetiza esse eixo. dor de atividades. O docente no seu
Embora ainda se consolidando como papel ser4 efetivamente o docente/pes-
uma 4rea de pesquisa, a Etnomatema- quisador, e o resultado de sua ação irá
tica penetrou nas consideragies da além da sala de aula (ver, a esse res-
Educação Matemaética através de vá- peito, o trabalho de Beatriz S. D’Am-
rios flancos. Encontrou seu reconheci- brosio nesta revista. (p.35) Ver tam-
mento na comunidade matemética, bém, para um enfoque mais geral que
atingindo uma situação de área de pes- o da Educação Matematica, Susan L.
quisa nas duas revistas b4sicas de re- Lytle e Marilyn Cochran-Smith, 1992).
feréncia, o Mathematical Reviews e o A atuação profissional do docente sera
Zentralblatt fur Mathematik. Também muito diferente, e creio que af est4 o xis
é uma área na principal revista de pes- da questão.
quisa em Educação Matemática, o O futuro da Educação Matematica
Journal for Research in Mathematics não depende de revisdes de conteúdo
Education, e constitui um capitulo do mas da dinamização da prépria Mate-
Handbook of Research on Mathematics maética, procurando levar nossa práti-
Teaching and Learning, de 1992, am- ca a geração de conhecimento. Tam-
bos publicados sob responsabilidade do pouco depende de uma metodologia
National Council of Teachers of Math- “mégica”. Depende essencialmente de
ematics. Recentemente a American o professor assumir sua nova posição,
Mathematical Society abriu, no seu reconhecer que ele é um companheiro
mensério Notices of the AMS, um espa- de seus estudantes na busca de conhe-
¢o para a Etnomatemaética. Filosófica e cimento, e que a Matemaética é parte
historicamente, isso representa uma integrante desse conhecimento. Um
nova postura com relação à Matemati- conhecimento que dia-a-dia se renova
cae, conseqientemente, com repercus- e se enriquece pela experiéncia vivida
sões em Educação Matemética. por todos os individuos deste planeta.

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Nota te, ciência da redução e da confrontação, como


método de resolução de equações), que deu ori-
1: Reflexões, teorias e estudos sobre Educação gem à palavra álgebra, assim como o próprio
Matemática vêm desde a Antiguidade. Embora nome do cientista deu origem à palavra algaris-
sem outra justificativa que a de ser um exercício mo. No livro, que é destinado essencialmente a
intelectual, a Matemática grega encontra algu- coisas práticas como heranças e divisão de pro-
mas poucas utilizações mesmo entre os próprios priedades, recusa-se a utilizar fontes gregas,
gregos. Não se vê praticidade na Matemática como Diofante e Euclides. Além de uma postura
abstrata dos gregos. Claramente era o jogo a culturalmente nacionalista, a busca de outras
motivação dominante. De outra maneira não se fontes mostra uma procura de enfoques mais
pode justificar a importância da restrição “ré- práticos e recorre somente a fontes hindus e
gua e compasso” na resolução de certos proble- hebraicas.
mas. Naturalmente explicações de natureza es- De fato, duas formas de Matemática se iden-
tética ou busca de perfeição falam a favor da tificam no mundo grego, a mathématique de la
falta de praticidade da Matemática abstrata. À maitrise e a mathématique de Uintelligibilité,
Matemática prática, aquela que serve no dia-: usando a terminologia de René Thom (Apologie
dia, coexistia como outra forma de conhecime: du logos, Paris, Hachette, 1990. p. 325). A pri-
to. Arquimedes foi talvez o primeiro matemáti- Tmeira é assimilada pelo mundo romano e pre-
co a usar seus conhecimentos, de forma um valece na Idade Média, enquanto a segunda é
tanto marginal, em seus engenhos. Entre os levada adiante pelos próprios gregos, sob domi-
romanos, o livro de Marcus Vitruvius Polio, De nação romana, e posteriormente pelo mundo
Architectura (cerca de 100 a.C.), ilustra bem a islâmico, chegando à exaustão já no século X.
utilizagéo de resultados mateméticos, alguns No Renascimento essa Matemática retoma sua
razoavelmente sofisticados, porém sem a preo- importância, e com o advento da ciência moder-
cupagdo de “provar” a validade dos resultados. na vai ganhando a posição de “padrão de rigor”,
Embora os árabes sejam creditados como conti- sendo até adotada como critério de verdade.
nuadores do pensamento matemético grego, “Tão certo como a Matemática” é uma expres-
sua contribuição nessa direção é modesta. É são incorporada à linguagem moderna e reflete
surpreendente que, para lidar com problemas um critério de verdade que se moldou na Mate-
práticos do dia-a-dia do mundo islâmico, a Ma- mática: rigorosa, precisa, desprovida do emo-
temática abstrata dos gregos tenha sido rejei- cional. Daí a definição de Gustave Flaubert
tada. Al-Khuwarizmi (780-850) é o mais impor- “Matemática, [a que] seca o coração”. (Bouvard
tante matemático árabe, autor do famoso trata- et Pecuchet em Dictionary of Received Ideas,
do Hisab aliabrwa'l — mugabalah (literalmen- Londres, Penguin Books, 1987).

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Educação Matemática

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Pro-Posições Vol. 4 Nº 1[10] * março de 1993

Neste trabalho procura- In this paper we try


Resumo mos identificar a Edu- AbStraCt to identify Mathemat-
cação Matemática como uma área autôno- ics Education as an autonomous research
ma de pesquisa em Educação, através de area in Education through reflexions on
considerações sobre a própria natureza da the nature of Mathematics itself. We look
Matemática. Abordamos aspectos históri- into historical, cognitive and political is-
cos, cognitivos e políticos da Matemática e sues in Mathematics and in its insertion
da sua inserção nos currículos escolares. À into school curricula. Next we look into the
seguir examinamos algumas tendências most recent trends in research in Mathe-
mais recentes da pesquisa em Educação matics Education, rapidly mentioning so-
Matemática, esboçando suas principais me of the main areas of interest. After
áreas de interesse. Após mencionar, em talking, also in a general form, about aims
linhas gerais, as metas e objetivos gerais and general objectives for the teaching of
do ensino de Matemática fazemos conside- Mathematics, we draw some conclusion
rações sobre o futuro da Educação (em about the future of Education, in particu-
particular da Educação Matemática), so- lar of Mathematics Education, about cur-
bre desenho curricular e sobre um novo ricular design and about a new role for the
papel reservado ao docente. teacher.

Palavras-chaves: Educação Matemática; Descriptors: Mathematics Education,


Ensino de Matemática; Cognição; Objeti- Mathematics teaching, cognition, objecti-
vos, Organização curricular. ves, curriculum design.

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