Você está na página 1de 16

Corpo e psique: da dissociação à unificação — algumas

implicações na prática pedagógica

Lucia Helena Pena Pereira


Universidade Federal de São João del-Rei

Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar a unicidade corpo/psique


e os bloqueios de expressão pessoal, provenientes da dissociação
dessas dimensões, que dificultam as atividades profissionais e a
própria vida. A formação do professor exige mais que a aquisição
de conteúdos e técnicas de ensino. Transformações mais profun-
das na prática pedagógica implicam uma mudança de atitude dos
educadores, uma nova postura diante da vida e da educação, não
apenas uma mudança cognitiva com a aquisição de conhecimen-
tos, mas também mudanças emocional, corporal e espiritual, uma
aprendizagem da integração das várias dimensões do ser huma-
no. É necessário saber como superar ou minimizar bloqueios que
a vida exigiu como proteção como nos mostram os estudos de
Wilhelm Reich e alguns de seus continuadores — Alexander
Lowen, Stanley Keleman e David Boadella —, que dão fundamen-
tação teórica a esta pesquisa. É preciso saber como criar possibi-
lidades de transformar padrões que são adquiridos pela formação
acadêmica e que acabam por se cristalizar como evidenciam es-
tudos pedagógicos aqui considerados. Uma das formas viáveis
para tal são as atividades expressivas, dentre elas as atividades
lúdicas e de arte-educação. As relações se constituem no ambiente
social, o processo de crescimento se dá no contato com o outro, na
percepção das diferenças, na aceitação da multiplicidade de pensa-
mentos, na avaliação de seu próprio fazer. As teorias aqui considera-
das são significativas para os estudos na área da Educação na medi-
da em que apontam possibilidades de um novo olhar para a prática
de sala de aula e as relações que nela se estabelecem.

Palavras-chave

Corpo-psique — Prática pedagógica — Atividades expressivas —


Autocuidado.

Correspondência:
Lucia Helena Pena Pereira
Rua Dr. Martins Ferreira, 171 ap. 101
36307-230 – São João del-Rei – MG
e-mail: luciahelenapp@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 151
Body and psyche: from dissociation to unification —
implications for pedagogical practice

Lucia Helena Pena Pereira


Universidade Federal de São João del-Rei

Abstract

The objective of this work is to analyze the body/psyche unity and the
hindrance to personal expression that arises from the dissociation of
these two dimensions, complicating professional activities and life
itself. The education of a teacher requires more than just the
acquisition of contents and teaching techniques. More profound
changes in the pedagogical practice entail a change of attitude from
educators, a new stance before life and education, and not merely a
cognitive change with the acquisition of knowledge, but also
emotional, bodily and spiritual changes, learning to integrate the
various dimensions of the human being. It is necessary to know how
to overcome or minimize barriers that life imposed as protections, as
shown by the works of Wilhelm Reich and his followers — Alexander
Lowen, Stanley Keleman and David Boadella —, which constitute the
theoretical background for the present study. It is necessary to know
how to create opportunities to transform patterns acquired in the
academic formation, which eventually congeal, as disclosed by the
psychological investigations considered here. One possible way to do
that is through expressive activities, such as ludic activities and art-
education. Relations are constituted in the social environment; the
process of growth takes place in the contact with the other, in the
perception of the differences, in accepting the multiplicity of thinking,
in evaluating one’s own doings. The theories considered here are
meaningful for the studies in the field of Education insofar as they
point to the possibility of a new outlook on the classroom practices
and the relations established therein.

Keywords

Body-psyche — Pedagogical practice — Expressive activities — Self-care.

Contact:
Lucia Helena Pena Pereira
Rua Dr. Martins Ferreira, 171 ap. 101
36307-230 – São João del-Rei – MG
e-mail: luciahelenapp@uol.com.br

152 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008
O programa de pesquisa que tem sido ritual —, gera limitações ao desenvolvimento do
desenvolvido ao longo de minha caminhada aca- ser humano como enfatizam Damásio (1996) e
dêmica tem como enfoque central a investigação Maturana (2001).
das dificuldades de expressão criativa e das rela- O objetivo deste texto é abordar a ques-
ções interpessoais que trazem empecilhos para o tão da unicidade corpo-psique como aspecto
cotidiano da sala de aula e à própria vida. Viven- essencial para a formação do ser humano.
do os desafios da formação de futuros professo- Corpo e psique são faces do ser humano em
res, minha pesquisa de doutoramento me levou a sua totalidade, o que implica que o corpo ex-
aprofundar estudos na relação indissociável entre pressa os afetos da psique e a psique expressa
pensamento, sentimento e ação, que nos ajudam a fluidez ou a rigidez do corpo.
a refletir sobre as dificuldades experienciadas no
processo educacional, a entender alguns de seus O problema e uma possibilidade
porquês, a buscar formas de minimizá-las e a vislumbrada
superar obstáculos.
Ensinar e aprender são aspectos funda- Considerando-se que a racionalidade, o
mentais da ação docente que não se dissociam. corpo, a emoção, a ludicidade, o imaginário e
Não há ensino se não há aprendizagem. Na a espiritualidade são importantes para a integri-
verdade, o educador cria condições para que a dade do ser humano, minhas pesquisas têm
aprendizagem ocorra, pois, sozinho, será inca- buscado a ampliação desse campo de conheci-
paz de gerar o processo de construção de mentos e possibilidades de intervenção para que
conhecimento do aluno. Freire enfatiza que, futuros educadores, ou aqueles que já exercem
“nas condições de verdadeira aprendizagem, os a profissão, invistam em um permanente pro-
educandos vão se transformando em reais sujei- cesso de autoformação e de melhor relaciona-
tos da construção e da reconstrução do saber mento consigo mesmos e com o outro para que
ensinado, ao lado do educador, igualmente su- possam atuar com mais abertura em sua práti-
jeito do processo”. Se não houver um saber ca pedagógica, beneficiando seus educandos.
apreendido na sua razão de ser, ou seja, apreen- Soma e psique são uma totalidade e a atitude
dido pelos educandos, não poderemos falar de corporal interfere no processo de construção da
um saber ensinado. Essas condições, de que nos ordem social e nos processos de libertação,
fala Freire (2004), autonomia e consciência do indivíduo, como
comprovam as teorias de Wilhelm Reich e de
[...] implicam ou exigem a presença de edu- seus continuadores. Essa constatação traz uma
cadores e educandos criadores, instigadores, questão fundamental: se houver excessiva va-
inquietos, rigorosamente curiosos, humildes lorização da racionalidade em detrimento da
e persistentes. (p. 26) corporeidade, do sensível, do lúdico e da emo-
ção, teremos possibilidades de exercer nosso
Isso implica um envolvimento intelectu- ofício de educadores com uma visão integrada
al, corporal e emocional. do ser humano?
Enquanto nos mantivermos aprisionados É importante pensarmos em uma educa-
ao modelo chamado tradicional, que vem se ção voltada para a formação integral do ser
perpetuando ao longo dos séculos, não have- humano, que leve em consideração seus pen-
rá espaço para mudanças mais profundas nas samentos, seu corpo, seus sentimentos e sua
práticas pedagógicas. O intelecto é uma das espiritualidade, que o capacite a viver numa
dimensões fundamentais do ser humano, entre- sociedade pluralista em constante processo de
tanto, se tomada dissociadamente das outras mudança. Isso requer, como observa Moraes
dimensões — a emocional, a corporal e a espi- (1997), além do desenvolvimento

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 153
[...] das dimensões cognitiva e instrumen- mas deve produzir conhecimentos, permitir a
tal, o trabalho, também, da intuição, da aquisição de experiência, contribuir para a re-
criatividade, da responsabilidade social, flexão ou avançar debates sobre as questões
juntamente com os componentes éticos, abordadas, que deverão ser divulgadas poste-
afetivos, físicos e espirituais. (p. 211) riormente. Assinala ainda esse autor que, com
a pesquisa-ação, os pesquisadores desejam in-
Assim, a educação, como propõe o rela- vestigações em que “as pessoas implicadas te-
tório da UNESCO, assinado por Delors (2001), nham algo a ‘dizer’ e a ‘fazer’”, ou seja, que
deverá oferecer meios que ajudem o aluno a tenham um papel ativo nas diferentes etapas do
aprender a aprender, aprender a pensar, a con- processo investigativo, o que é bem diferente
viver e a amar. Uma educação que o ajude a
formular hipóteses, criar possibilidades, tomar [...] de simples levantamento de dados ou
decisões. Uma educação que considere não relatórios a serem arquivados. Com a pes-
apenas o plano individual, mas também o pla- quisa-ação os pesquisadores pretendem
no coletivo, uma vez que somos indivíduos e desempenhar um papel ativo na própria re-
seres sociais, aprendendo e constituindo-nos alidade dos fatos observados. (p. 16)
na relação com o mundo que nos cerca.
O cuidado com esses aspectos esteve
Procedimentos metodológicos presente nesta pesquisa, em um trabalho con-
junto da pesquisadora e dos participantes.
A pesquisa que deu origem a este trabalho A intervenção formativa com os educa-
foi estruturada em duas partes. Primeiramente, a dores consistiu da participação em um curso de
pesquisa bibliográfica permitiu a fundamentação extensão, realizado na Faculdade de Educação
teórica da proposta apresentada. Foram analisa- — FACED, da Universidade Federal da Bahia, em
das as teorias de William Reich e de alguns de que teoria e prática foram desenvolvidas,
seus continuadores — Alexander Lowen, Stanley totalizando 80 horas de atividades, e o subse-
Keleman e David Boadella —, que dão sustenta- qüente acompanhamento aos professores em
ção à proposta desenvolvida; foi definida a visão suas escolas, que proporcionaram uma coleta
de atividades expressivas, sendo abordados estu- de dados numerosos: relatos da percepção das
dos pedagógicos que lhe dão corpo; foram vivências escritos após cada aula; observações
traçadas as relações com as teorias centrais para da pesquisadora durante o curso; depoimentos
que se estabelecessem os elos fundamentais de dos participantes durante todo o processo;
transferência das teorias psicossomáticas para a entrevistas inicial e final; observações em sala
prática pedagógica; também foram analisadas de aula; e entrevistas com os alunos dos 18
possibilidades e dificuldades de sua utilização na professores participantes da pesquisa que leci-
formação de educadores. onavam disciplinas diferenciadas.
A pesquisa-ação foi o método conside- Os participantes do curso foram selecio-
rado mais adequado para os estudos desenvol- nados tendo presentes os seguintes pré-requi-
vidos, uma vez que houve uma ação planejada sitos: os educadores deveriam estar em sala de
com objetivo de minimizar limitações profissi- aula, atuar de 5ª a 8ª série do Ensino Funda-
onais, solucionar, na medida do possível, difi- mental ou Ensino Médio, e ter disponibilidade
culdades existentes, ou ainda, no limite das para participar da pesquisa.
possibilidades, promover transformações pesso- Antes de apresentar a visão dos autores
ais dos educadores envolvidos. Como considera fundantes da relação corpo-psique como su-
Michel Thiollent (2002), a pesquisa-ação não porte teórico da investigação, julgo significativo
se constitui apenas pela ação ou participação, fazer algumas considerações sobre a pesquisa

154 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...


científica como prática instituída ao longo entre todos os fenômenos físicos, biológicos,
desse tempo de quase um século que se pas- psicológicos, culturais, sociais, assim como, natu-
sou desde que Wilhelm Reich iniciou seus estudos, ralmente, os educacionais. Do ponto de vista
e sobre algumas pesquisas nesse campo da relação individual, essa visão de totalidade implica
corpo-mente que se constituem em possibilidades
de enriquecimento das investigações que venho [...] um novo diálogo criativo entre a ‘mente’
aprofundando em relação a suas implicações pe- e o ‘corpo’, entre o interior e o exterior, sujeito
dagógicas. Após essas apresentações, analisarei e objeto, hemisfério cerebral direito e esquer-
algumas possibilidades de flexibilizar as couraças, do, consciente e inconsciente, indivíduo e
que resultam na dissociação corpo-psique, che- seu contexto, ser humano e natureza. (p. 85)
gando a algumas considerações finais que apon-
tam a unificação corpo-psique como um caminho Pesquisadores e estudiosos de áreas di-
viável para a formação integral do ser humano. ferenciadas, nas últimas décadas, se unem na
confirmação de que corpo e mente constituem
A questão corpo-psique no uma totalidade, contrariando a visão dualista de
âmbito da investigação alguns, dentre os quais, António Damásio e
científica: a compreensão sobre a Humberto Maturana.
unicidade As pesquisas de Damásio (1996), que tra-
zem um novo olhar sobre a relação corpo-men-
O controle dos dados pela ciência, que te, lançam novos desafios para a compreensão da
buscava eliminar incertezas, dúvidas, impreci- formação do indivíduo e para pesquisas no campo
sões, era e continua sendo uma forma de po- da Educação. Ao questionar a dicotomia corpo-
der, uma forma de dominar e controlar o mun- mente, fruto da visão cartesiana e da primazia da
do. No entanto, a ciência hoje se depara com racionalidade, o pesquisador lança a desafiante
o incerto, o indeterminado, o complexo. A in- hipótese, que desenvolve em suas pesquisas de
falibilidade e unicidade da ciência se transforma- neurobiologia, da dependência existente entre a
ram em um mito, embora quebrar os padrões emoção e a razão. Segundo o neurologista,
instituídos e ser original exijam fôlego, coragem,
significando enfrentar críticas e pressões. o corpo contribui para o cérebro com mais
Capra (1988) observa que o começo do do que a manutenção da vida e com mais
século XX presenciou uma grande transformação do que os efeitos modulatórios. Contribui
da ciência. Da concepção mecanicista de Descar- com um conteúdo essencial para o funcio-
tes e Newton, passou-se para uma visão sistêmica. namento da mente normal. (p. 257)
Tal mudança não foi facilmente aceita pelos ci-
entistas da época. A exploração do mundo atô- O autor defende a tese de que a ausên-
mico e subatômico os fez entrar em contato com cia da emoção e dos sentimentos pode afetar
uma nova e desafiante realidade. A teoria da re- a racionalidade, pois,
latividade e a teoria quântica trouxeram uma nova
compreensão da estrutura da matéria e de que [...] os níveis inferiores do edifício neural da
massa é energia condensada. Trouxeram, tam- razão são os mesmos que regulam o pro-
bém, a necessidade de um novo olhar. Uma nova cessamento das emoções e dos sentimentos
leitura de mundo se fez imprescindível, assim [...]. Esses níveis inferiores mantêm relações
como uma mudança nos posicionamentos dian- diretas e mútuas com o corpo propriamente
te do mundo que se mostra e da própria vida. dito, integrando-o desse modo na cadeia de
Como sinaliza Moraes (1997), começa a emergir operações que permite os mais altos vôos em
a consciência da interdependência e inter-relação termos da razão e da criatividade. (p. 233)

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 155
Em O mistério da consciência, Damásio corpo para a existência da emoção. Segundo
(2000) afirma que “as emoções são parte dos essas pesquisas, tem-se considerado, também, a
mecanismos biorreguladores com os quais nasce- importância da emoção no processo de apren-
mos equipados, visando à sobrevivência” (p. 77). der, uma vez que, por meio desta, se intensifica
Observa que, embora se considere como emo- a evocação de fatos novos durante a aprendiza-
ções aquelas chamadas emoções primárias ou gem. Afirma o pesquisador que os processos
universais (alegria, tristeza, raiva, medo...), há mentais se relacionam com o corpo:
outros tantos comportamentos que se incluem
no rol das emoções, sendo consideradas emo- [...] todos esses processos — emoção, senti-
ções secundárias ou sociais (ciúme, culpa, mento e consciência — dependem de repre-
embaraço, orgulho entre outras). Há ainda as sentações do organismo. Sua essência co-
denominadas pelo pesquisador de emoções de mum é o corpo. (p. 359)
fundo, como bem-estar ou mal-estar, calma ou
tensão. Também se incluem sob o rótulo emo- Maturana (1997) analisa a visão parcial
ção os impulsos, as motivações e os estados de que se tem do homem caracterizado como um
dor ou prazer. Esclarece que discutir o papel bi- ser racional. Segundo o autor, “a presença fun-
ológico das emoções é significativo para os estu- damental do emocionar em tudo o que faze-
dos da consciência. As emoções exercem um mos, e que nos conecta com nossa história
papel biológico indispensável, pois fazem com biológica de mamíferos e primatas, não é uma
que os organismos, automaticamente, tenham limitação de nossa humanidade, mas, ao con-
comportamentos necessários à sobrevivência. Por trário, é nossa condição de possibilidade en-
exemplo: o medo produz um comportamento que quanto seres humanos” (p. 278). Nossa cultu-
permite, em situações de risco, a autopreservação. ra, devido à supervalorização da razão como
A biorregulação sempre ocorre. Entretanto, quan- uma forma de nos distinguir dos outros ani-
do há consciência da existência das emoções, mais, desvaloriza as emoções. No entanto, fri-
ainda, outro nível de regulação se apresenta, sa o autor, as emoções não restringem a razão:
como enfatiza Damásio (2000):
[...] as emoções são dinâmicas corporais
A consciência permite que os sentimentos que especificam os domínios de ação em
sejam conhecidos e, assim, promove inter- que nos movemos. Uma mudança emocio-
namente o impacto da emoção, permite nal implica uma mudança de domínio de
que ela, por intermédio do sentimento, ação. Nada nos ocorre, nada fazemos que
permeie o processo de pensamento. Por não esteja definido como uma ação de um
fim, a consciência torna possível que qual- certo tipo por uma emoção que a torna
quer objeto seja conhecido — o ‘objeto’ possível. (p. 92)
emoção e qualquer outro objeto — e, com
isso, aumenta a capacidade do organismo Para Maturana (2001), dizer que o hu-
para reagir de maneira adaptativa, atento mano é caracterizado pela razão significa um
às necessidades do organismo em questão. antolho, ou seja, significa a aceitação de con-
A emoção está vinculada à sobrevivência de ceitos e afirmações sem refletir sobre elas:
um organismo, e o mesmo se aplica à cons-
ciência. (p. 80) [...] não vemos o entrelaçamento cotidiano
entre razão e emoção, que constitui nosso
Uma série de experimentos recentes sobre viver humano e não nos damos conta de
o aprendizado, segundo Damásio (2000), vem que todo sistema racional tem um funda-
fornecendo dados que corroboram o papel do mento emocional. (p. 15)

156 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...


Damásio e Maturana, por percursos dife- concluindo que a mesma energia alimenta esses
rentes, constatam que, sem as emoções e os dois aspectos, gerando a relação e a mútua influ-
sentimentos, a racionalidade pode ser obstruída. ência entre atitudes corporais e atitudes psíqui-
O corpo dá condições para que emoções e cas. Psique e corpo são faces de uma totalidade.
sentimentos existam. Também estabelecem re- O ser humano é, ao mesmo tempo, corpo e psi-
lações indissociáveis entre o biológico e o so- que; dialeticamente, a psique determina o corpo
cial ou cultural. Corpo, emoções e linguagem e o corpo determina a psique. O caminho percor-
se entrelaçam na ação e nas interações. Assim rido para chegar a essa concepção foi longo,
sendo, minha pesquisa se assenta sobre essa cuidadoso e difícil devido às muitas pressões
compreensão de que corpo e psique são uma sofridas por parte da comunidade psicanalítica e
totalidade corpo-psique, tomando esses ele- de outros segmentos da sociedade.
mentos como manifestações da mesma realida- Reich (1995; 1998) desenvolveu o concei-
de: o ser humano. Por isso, é assumido que to de couraças musculares ou de caráter, que são
atuar na psique do ser humano implica rever- defesas criadas pelo ego, parte do indivíduo com
berações no seu corpo, e atuar no corpo impli- a qual administra sua relação com o mundo. O
ca reverberações na psique, ou seja, atuar no caráter, para Reich, não é algo inato, mas sim uma
corpo ou na psique significa atuar no ser hu- estrutura resultante de situações vividas, de um
mano como um todo. A expressividade do ser processo de construção histórica. É com ele que
humano dá-se por meio dessa totalidade. vivemos nosso cotidiano, que somos e que nos
A seguir, dentro dessa perspectiva mais relacionamos. Nossa história de vida está ligada
recente da pesquisa científica sobre o ser huma- diretamente às situações que vivenciamos, ou seja,
no, considerarei autores que dão fundamentos a mantém vinculação com a cultura e a sociedade
esta investigação. A seqüência de autores consi- em que nos formamos.
dera Wilhelm Reich como fundante desse enten- Com a restrição das expressões espontâne-
dimento, seguido por alguns de seus discípulos e/ as, em conseqüência da necessidade de o indiví-
ou desdobradores de seu pensamento: Alexander duo se adaptar ao seu meio sociocultural, ocorre
Lowen, Stanley Keleman e David Boadella. a estase de energia resultante dessa contenção, ou
seja, a estagnação dessa energia, que se concen-
Wilhelm Reich e seus estudos trará em pontos determinados, deixando outros
sobre as interações mente- sem energia suficiente, provocando alterações.
corpo Essas alterações tanto ocorrem pela falta de ener-
gia em determinada parte do corpo quanto pelo
Na área da Psicologia e da Psiquiatria, as excesso de energia de forma bloqueada (estase),
pesquisas e a prática clínica de Wilhelm Reich sem movimento, sem fluidez, também, em alguma
abriram caminhos que vêm sendo percorridos por parte do corpo. A persistência de um conflito ou
novos teóricos que foram enriquecendo, ampliando de conflitos semelhantes entre as próprias neces-
e aprofundando os fundamentos básicos por ele sidades e o mundo externo percebido como ame-
estabelecidos, entre os quais a concepção primei- açador faz com que o ego torne-se rígido para se
ra de que soma e psique são partes indissociáveis. proteger. É nesse processo que se forma o caráter
Reich, psiquiatra austríaco e discípulo de neurótico, ou seja, um modo de reação crônico,
Freud, iniciou suas atividades terapêuticas com a que funciona de forma automática.
teoria psicanalítica em que se fundamenta boa É importante percebermos que a forma
parte de seu trabalho. Foi um dos primeiros a corporal é a marca de nossa história e qual seu
sistematizar a relação entre o corpo e o psiquismo significado para que tenhamos podido viver
na sociedade científica ocidental. Postulou a essa história. O conceito de couraça muscular
unidade funcional entre o psíquico e o somático, de caráter de Reich nos ajuda nessa compreen-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 157
são. Criamos as couraças como formas de pro- vida em nós, em nossas ações; permite maior
teção para passar pelas várias situações que a envolvimento com as atividades que nos cabe
vida nos apresenta. O ideal seria não tê-las, pois, realizar; e é o equilíbrio entre expansão e con-
embora diminuam a dor, também amortecem o tração que gera essa possibilidade como vere-
prazer, mas elas existem para que sobrevivamos mos no próximo item.
às pressões e às dificuldades com que nos con-
frontamos. No entanto, ter esse conhecimento é Contração e expansão: o
o primeiro passo para gerar transformações. movimento da vida
Segundo Lowen (1984), discípulo de Reich,
As funções biológicas fundamentais de
[...] músculos tensos só podem ser libera- contração e de expansão foram observadas tanto
dos através de movimentos expressivos, isto no psíquico quanto no somático. Essas duas
é, movimentos nos quais a atividade ex- funções básicas se relacionam com o funciona-
pressa sentimentos reprimidos. Enquanto mento do sistema nervoso vegetativo ou autô-
um movimento é feito mecanicamente, os nomo. Esse sistema regula processos corporais
impulsos reprimidos são retidos e não se con- básicos como respiração, pulsação cardíaca, cir-
segue nenhuma liberação de tensão. (p. 53, culação, digestão, entre outras. Sua ação foge ao
grifos meus) controle voluntário, daí ser autônomo. Possui
uma subdivisão: o sistema nervoso simpático e
A afirmação de Lowen nos leva a enten- o parassimpático, que funcionam de forma
der a importância de o indivíduo expressar antitética, como analisa Reich (1995):
suas emoções, sua forma de ver e compreender
o que o cerca. Quando não se tem a possibi- O sistema nervoso parassimpático opera na
lidade de ser autêntico, de agir com esponta- direção da expansão ‘para fora do eu, em
neidade, isso se registra no corpo mediante ten- direção ao mundo’, do prazer e da alegria;
sões musculares, ou seja, do encouraçamento. ao contrário, o sistema nervoso simpático
Estar vivo não significa apenas ter o cora- opera na direção da contração ‘para longe
ção batendo, respirar e se locomover. Muito mais do mundo, para dentro do eu’, da tristeza,
que isso, estar vivo se marca pela possibilidade de do desprazer. O processo vital consiste em
estar presente no mundo, de se inserir em seu uma contínua alternância entre expansão e
movimento, de sentir, de se expressar, não se contração. [...] No mais alto nível psíquico, a
estagnando em determinados padrões ou idéias expansão biológica é experimentada como
paralisantes. Corporalmente, isso se manifesta por prazer; a contração é experimentada como
meio da mobilidade, da respiração ritmada e pro- desprazer. No campo dos fenômenos instin-
funda e do fluxo da energia corporal. tivos, a expansão funciona como uma exci-
Com a perda de nossa capacidade de tação sexual, e a contração funciona como
expressar o que sentimos e pensamos, vamos angústia. Em um nível fisiológico mais pro-
perdendo nossa autenticidade, nossa esponta- fundo, a expansão corresponde ao funcio-
neidade. Observa Lowen (1989) que a perda da namento parassimpático e a contração ao
autenticidade tem como conseqüência a perda funcionamento simpático. (p. 245-246)
da própria sensação de ser. É muito comum
abrirmos mão de nossa expressão mais autên- O sistema simpático, que mantém cone-
tica e assumirmos uma imagem que acabamos xão com as glândulas supra-renais, mobiliza o
por aceitar como verdadeira. corpo para enfrentar emergências, para lutar ou
O maior fluxo de energia que gera níveis fugir. Diante de situações que se mostrem
maiores de pulsação faz com que haja mais ameaçadoras para a pessoa, quer pela possibili-

158 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...


dade da dor ou do perigo, o simpático é ativa- é o arcabouço, o recurso de sua manifestação.
do. Os sentidos entram em estado de alerta, as Afinal, nele, dão-se todas as nossas vivências de
pupilas se dilatam, o coração bombeia mais sensações, movimentos, sentimentos e pensa-
sangue, a pressão sanguínea aumenta, assim mentos. Ele é o nosso meio de estar e se ex-
como o consumo de oxigênio. O sangue é leva- pressar no mundo.
do para o interior do corpo para oxigenar mais Reich (1998) considera que as palavras
intensamente os órgãos vitais e a musculatura. não são capazes de expressar plenamente o
O sistema parassimpático tem uma ação funcionamento do organismo vivo uma vez que
oposta, sua identificação com as sensações de este está além de todas as idéias e todos os
prazer é evidente. O corpo se expande e a pele conceitos verbais. Seu funcionamento é anterior
é irrigada pelo fluxo sangüíneo, tornando-se à existência de uma linguagem e representa-
mais aquecida, a ação cardíaca se torna mais ções verbais. Afirma ele:
lenta e relaxada, a respiração mais calma e pro-
funda, os olhos, mais brilhantes. O organismo vivo se expressa em movimen-
Essas experiências trazem para Reich a tos; por isso falamos de movimentos expres-
confirmação da unicidade psicofísica, ratificam sivos. O movimento expressivo é uma carac-
o “conceito unitário do organismo”. Sejam as terística inerente ao protoplasma. Distingue o
emoções reativadas tendo como ponto de par- organismo vivo de todos os sistemas não-vi-
tida o psiquismo ou o corpo, são produzidos vos. [...] No sentido literal, ‘emoção’ significa
excitações e movimentos plasmáticos. O que se ‘mover para fora’, ao mesmo tempo, é um
move é a energia orgone ou bioenergia, con- ‘movimento expressivo’. Assim, o movimento
tida nos fluidos do corpo. do protoplasma expressa uma emoção, e a
Com suas pesquisas, inicia-se um longo emoção ou a expressão de um organismo
caminho de terapias bioenergéticas, de estudos está incorporada no movimento. (p. 332)
e experiências que fundamentam uma nova
visão do ser humano, unindo instâncias até No entanto, como destaca Reich, a emo-
então vistas como formas isoladas – a corpo- ção pode se expressar mediante a imobilidade ou
ral, a emocional, a mental e a social. Reich rigidez. Pode parecer estranho, mas se retomar-
(1995) detectou que o psíquico e o somático mos o conceito da identidade funcional corpo-
são dois processos paralelos que atuam recipro- psique, veremos que nos protegemos das emo-
camente um sobre o outro. Pôde constatar que ções por meio das couraças musculares, que
“a estrutura psíquica é ao mesmo tempo uma restringem nossa expressividade. Assim, a ausên-
estrutura biofísica que representa um estado cia de mobilidade ou de fluidez é uma forma
específico indicativo da interação das forças pela qual o organismo se expressa, expressão de
vegetativas de uma pessoa” (p. 255). Frisa ele: emoções que as palavras não são capazes de
manifestar. A vida se expressa por intermédio de
Todo impulso psíquico é funcionalmente nosso corpo, de um maior ou menor fluxo de
equivalente a uma excitação somática defi- energia, do brilho dos olhos ou da sua opacida-
nida. A idéia de que as funções do mecanis- de, do calor da pele ou da ausência de vitalidade
mo psíquico funcionam apenas por si mes- na mão que se estende, do prazer da convivên-
mas e influenciam o mecanismo somático, cia ou da fuga pra dentro de si mesmo.
que também funciona por si mesmo, não A linguagem humana, além de sua fun-
está de acordo com fatos reais. (p. 290) ção social de comunicação, também funciona
como defesa ou como recurso de ocultamento.
O ser humano é um sujeito, sede de suas Isso pode ocorrer de forma consciente, o que
complexas interações constitutivas, cujo corpo pode ser observado facilmente na verborragia

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 159
de políticos, nos discursos educacionais, nas ma análise, não permitir que ela se expresse
mais variadas situações do cotidiano. Entretan- com toda sua intensidade.
to, a linguagem verbal pode funcionar como A teoria de Reich e a de seus continuadores,
defesa inconsciente para que a linguagem ex- aqui considerados, são significativas para os estu-
pressiva do núcleo biológico não seja acessada. dos na área da Educação, na medida em que
Ou seja, funciona como uma forma de evitar o apontam possibilidades de um novo olhar para o
contato consigo mesmo. corpo na prática pedagógica e maior compreensão
Para Reich (1998), o caráter pode ser das relações indissociáveis entre corpo, sentimen-
genital ou neurótico. O primeiro caracteriza o tos e pensamento. Reich sempre se preocupou em
ideal na perspectiva reicheana – um comporta- apontar a possibilidade de prevenir neuroses me-
mento auto-regulado e produtivo, a capacidade diante uma mudança nas práticas educativas. Sua
de resolver conflitos de uma forma não neuróti- teoria nos ajuda, ainda, a compreender o signifi-
ca. O caráter neurótico indica uma estrutura de cado das atividades expressivas na sala de aula,
caráter marcada pela cronificação, pela rigidez, inclusive para a formação do educador.
por mecanismos repetitivos de ação e proteção Agressões e choques, situações vividas e
automáticos, que inibem as possibilidades de sentidas vão se imprimindo em cada célula,
mobilidade do indivíduo, portanto, inibem uma criando uma imagem somática, emocional, psi-
expressão mais espontânea. As vicissitudes da cológica. No entanto, o padrão assumido in-
vida produzem o caráter, que vai expressar-se por conscientemente pode ser modificado, como
meio do ego, que só existe enquanto o sujeito enfatiza Keleman (1992; 1996), e duas das
age, selecionando e controlando sua forma de formas de possibilitar essa transformação são o
ação, mesmo que de forma inconsciente. É esse cuidar de si e as atividades expressivas, que
sujeito que é mais fluido ou mais estático, con- considero, em última análise, também como um
gelado. O congelamento é expresso pelo caráter cuidar-se. Cuidar de si, nesse sentido, significa
neurótico; a fluidez pelo caráter genital. dar possibilidades de que às contrações (tensões,
sustos, dificuldades...) se sigam as expansões
Falamos de um ‘caráter genital’ quando as (relaxamento, acolhimento, situações prazerosas,
reações emocionais não são regidas por um apoio...). A ludicidade e as atividades de arte-
automatismo rígido, quando a pessoa é ca- educação oferecem possibilidades para esse pro-
paz de reagir de uma maneira biológica a cesso de expansão, de restauração de um esta-
uma situação particular. (p. 336) do de inteireza, de maior centramento, de estar
bem: possibilidades para a expressão própria, o
Nem sempre podemos ou devemos expres- que será considerado no próximo item.
sar tudo que sentimos ou pensamos, mas essa é
uma situação diferente daquela em que o indiví- Atividades expressivas e
duo perde a capacidade de fazê-lo e de percebê- autocuidado: em busca da
lo. O organismo encouraçado não é capaz de se flexibilização das couraças
liberar de suas próprias couraças nem de expres-
sar suas emoções biológicas básicas. A sala de aula, entre outros ambientes
Como frisa Reich (1991) em O assassina- vitais e sociais, da mesma forma que pode ser
to de Cristo, em que analisa o distanciamento um espaço que dá maior consistência ao en-
do homem de si mesmo, do contato com seu couraçamento, pode ser também um local para
centro energético, se privando das próprias fon- a flexibilização das couraças e reequilíbrio do
tes de vida, “não há nada mais destrutivo do fluxo energético do ser humano. Uma das pos-
que a Vida anulada e contrariada por esperan- sibilidades de promover esse reequilíbrio é a
ças frustradas” (p. 9). Anular a vida é, em últi- utilização das atividades expressivas na prática

160 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...


pedagógica escolar. As atividades expressivas de mundos possíveis, de novas possibilidades
(dentre elas estão as atividades lúdicas e as de ser e de sentir como analisa Duarte Jr.
atividades de arte-educação) atuam sobre a (1983). Ostrower (1987) complementa essa
energia, logo mobilizam soma e psique, cons- idéia ao afirmar que
tituindo-se em uma experiência integradora.
Observa Luckesi (2000) que nosso ego, tendo [...] inata ou até mesmo inerente à constituição
em vista nossa história de vida e as agressões humana, a sensibilidade não distingue somen-
sofridas, se manifesta com constrições e defe- te artistas ou alguns poucos privilegiados. Em
sas, portanto, é “controlador”. As atividades si, ela é patrimônio de todos os seres huma-
expressivas propiciam que vivenciemos um esta- nos, [...] todo ser humano que nasce, nasce
do de consciência que nos libertam temporari- com um potencial de sensibilidade. (p. 12)
amente desse controle, o que permite a expres-
são da criatividade, ou seja, uma expressão mais No entanto, como qualquer potencial,
original, mais própria, sem julgamentos prévios, precisa ser desenvolvido. A autora enfatiza,
sem os limites rígidos do perfeccionismo. Na ainda, que “como o próprio viver, o criar é um
verdade, elas atuam sobre a energia aprisionada, processo existencial” (p. 56). É por meio do
que mais equilibradas ou flexibilizadas, abrem exercício de sua criatividade em todos os âm-
como que brechas, possibilitando contato mais bitos de sua existência que o ser humano con-
profundo conosco. Esse contato se faz, na mai- figura sua vida e lhe dá sentido.
oria das vezes, de forma efêmera, mas mesmo Arte-educação e ludicidade são proces-
sendo fugaz, permite-nos novas percepções, um sos que se entrelaçam, formando uma trama de
maior conhecimento de nós mesmos e possibi- cores, formas, brilhos e sons. Uma tessitura de
lidades de mudança. pensamentos, sentimentos e ações, de estímu-
As atividades lúdicas podem ser uma lo à criatividade, à expressão pessoal, ao con-
brincadeira, um jogo ou qualquer outra ativida- tato consigo e com o outro. Envolvem adultos,
de que possibilite instaurar um estado de intei- jovens ou crianças, cada grupo com suas pecu-
reza: uma dinâmica de integração grupal ou de liaridades e necessidades expressivas, gerando
sensibilização, atividades de artes plásticas entrega e integração, estimulando a percepção
(massa de modelar, recorte e colagem, dese- sensorial, soltando amarras, deixando precon-
nhos, pinturas, construção de fantoches, entre ceitos para trás.
outras), uma das muitas expressões dos jogos Quando verbalizamos ou nos movimenta-
dramáticos, exercícios de relaxamento e respi- mos de forma espontânea, entramos em conta-
ração, uma ciranda, atividades rítmicas, entre to com o pulsar de nossa energia, integramos
outras. Mais importante, porém, do que o tipo corpo e psique. As atividades expressivas permi-
de atividade, é a forma como é orientada e tem a manifestação, em qualquer idade, daqui-
como é experienciada, e o porquê de estar lo que as brincadeiras infantis permitem à crian-
sendo realizada. Ela deve permitir que cada um ça manifestar: a ação do impulso criativo, a
possa se expressar livre e solidariamente, unin- espontaneidade do ser humano, a alegria de
do razão e emoção. estar inteiro naquele momento, enfim, a auto-
As atividades de arte-educação vêm expressão. O lúdico para o adulto ou o adoles-
abrindo cada vez mais espaços para pesquisas, cente não significa brincar como a criança, e sim
devido a sua importância para o desenvolvi- estar imerso em sua atividade, vivenciá-la com
mento do educando, tanto cognitivo quanto entrega. É estar pulsando. Como observa Lowen
emocional e motor. A arte agiliza nossa imagi- (1984), “quando estamos identificados com uma
nação, amplia os limites da intelecção, abre atividade, fluímos livre e espontaneamente. O
espaço para o sonho, a fantasia, para a criação prazer é esse fluxo de sentimentos” (p. 23).

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 161
Eva Reich (1998) afirma que medo e do e sem se projetar no futuro, dando-lhe a
raiva contidos endurecem o organismo, contra- possibilidade de experimentar-se inteiro no
riamente ao amor e à alegria que o suavizam. aqui-agora, a vivenciar a plenitude da experi-
Nossos sentimentos provocam uma mobilização ência, a libertar o ego que deseja controlar
em nosso corpo: tudo — presente, passado, futuro. Uma proposta
educativa expressiva, propiciando o encontro
Um sentimento não é uma idéia ou uma ima- do sujeito consigo mesmo, pode permitir a
ginação — é um acontecimento energético descoberta de limites e possibilidades. O proces-
no corpo. Existe algo que flui dentro de nós. so, naturalmente, tem ritmos e resultados dife-
Quando estamos felizes, nos esticamos, nos renciados, dependendo da forma como cada um
expandimos para o mundo. Quando temos seja tocado pelas atividades, das situações
medo, nos retraímos para dentro de nós mes- vivenciadas ao longo da sua vida, mas as pos-
mos. Nesse movimento, o que flui de lá para sibilidades de crescimento e reorganização inter-
cá é nossa energia vital. (p. 29) na existem. Vivenciar um presente mais pulsante,
com maior fluxo de energia vital, é cuidar do
As atividades expressivas propiciam que futuro, prevenindo a formação de novas coura-
o indivíduo vivencie sua inteireza e sua auto- ças e, também, mobilizar e transformar qualida-
nomia em um tempo-espaço próprio, particular. des do passado, o que aponta para o aspecto
Esse momento de encontro consigo mesmo curativo dos momentos de expressão criativa.
gera possibilidades de maior conhecimento de Como enfatiza Pereira (1992), quando
si e do outro, estimulando o cuidado. Entender temos a possibilidade de entrar em contato com
e vivenciar essa experiência exige a entrega, o nossa sensibilidade e expressá-la corporalmente,
que se torna inviável no fazer mecânico, no ou seja, não só por meio da verbalização, mas
fazer por fazer. de gestos, de atividades artísticas e lúdicas,
O cuidado, como enfatiza Boff (1999), é podemos nos libertar
o que se opõe ao descuido e ao descaso. Cui-
dar não é apenas um ato, mas uma atitude. Não [...] de padrões arraigados e castradores,
se trata de apenas dedicar um momento de tomar consciência do poder expressivo de
atenção, de zelo ou desvelo, “representa uma nosso corpo, abrir infinitas perspectivas
atitude de ocupação, preocupação, de respon- para um trabalho mais criativo, crítico, hu-
sabilização e de envolvimento afetivo com o mano e prazeroso. (p. 141)
outro” (p. 34). É a base que possibilita a exis-
tência humana enquanto humana. Freire (1987) enfatiza que “ninguém edu-
Cuidar implica a busca de qualidade de ca ninguém, ninguém educa a si mesmo, os ho-
vida, o investimento no próprio processo de mens educam-se entre si, mediados pelo mundo”
crescimento, fundamenta-se na co-responsabi- (p. 52). É a abertura para a transformação, para a
lidade, na solidariedade, na ética, no respeito aprendizagem, para o desvelamento do mundo e
como qualidades fundamentais da convivência o comprometimento com isso que propiciam a
entre as pessoas. aprendizagem. A ressonância, ou seja, um ambiente
A utilização das atividades expressivas propício para a espontaneidade e a aceitação, cria
não tem por objetivo trabalhar com o passado, espaço favorável a essa abertura e a esse compro-
mas sim mobilizar as tensões e, conseqüente- metimento. Uma prática em que estejam presentes
mente, as emoções aprisionadas que dificultam as atividades expressivas pressupõe a humanização
a expressão espontânea do ser humano, au- nas relações, a presença da ressonância. Só pode-
mentando sua vitalidade. Traz o sujeito para o mos estar presentes de fato quando nos colocamos
momento presente, desvinculando-se do passa- inteiros naquilo que fazemos.

162 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...


Criar um padrão de ressonância significa espaço físico, falta de material pedagógico, dire-
estar presente, vivenciar o aqui-agora, o que se ção, coordenação, grade curricular, entre outros.
passa a nossa volta, sentir o ambiente, a energia Muitas vezes, esses pontos são citados como a
que flui na troca com o outro. Significa estabele- causa da impossibilidade de uma mudança em
cer uma relação mais autêntica, deixando cair a suas práticas em sala de aula. Não se pode negar
máscara da autoridade, que se confunde com o que dificuldades existem, mas sempre podemos
autoritarismo, da pseudo-segurança, de dono da gerar algumas transformações no espaço de nos-
verdade. Temos muitos medos, entre eles o de sas salas de aula dependendo de nossa visão de
perder o controle das situações, da sala de aula, de mundo e de educação, como muitos dos profes-
termos nosso saber colocado em xeque, de deixar sores graduados ou em formação acabam por
que nossas fraquezas se mostrem, enfim, de que constatar, realizando uma prática diferenciada.
nossa humanidade seja desvelada. Esquecemos, Paulo Freire (1987), em diálogo com Ira
muitas vezes, que a verdadeira autoridade é con- Shor, discute os muitos entraves e o medo que
quistada e não imposta. Ela é conquistada pelo fazem parte do cotidiano do professor e a ne-
respeito que temos por nossos educandos e que cessidade de ter coragem para vencer os mui-
estes têm por nós, pelo comprometimento que tos obstáculos com que nos defrontamos na
assumimos com nosso trabalho. Falar de sentimen- prática pedagógica. Pela nossa própria forma-
tos, de amor, de solidariedade soa como pieguice ção, nós, educadores, não estamos preparados
para muitos. Vivenciá-los destrói esse mito. E as para usar o espaço da sala de aula como um
atividades expressivas são recursos que nos dão espaço possível de transgredir e transformar. A
possibilidades de superar muitas das barreiras que vontade de mudar e o medo ou as dificuldades
construímos a nosso redor, como formas de nos de investir em processos de mudança são facil-
proteger e evitar o sofrimento. Entretanto, quan- mente observáveis nas mais diversas situações.
to mais barricadas erguemos por medo de tornar Como afirma Freire (1992), o conheci-
nossa relação mais humana e mais vulnerável, mais mento “requer sua ação transformadora sobre
dificuldades criamos para que a expressão criativa a realidade. Demanda uma busca constante.
se manifeste, assim como maiores possibilidades Implica invenção e reinvenção”. O ser humano
de criar interferências que dificultam a dinâmica estabelece relações com o mundo mediante
das atividades didático-pedagógicas. suas ações que deixam suas marcas. “Atuando,
É importante que haja a percepção e a transforma: transformando, cria uma realidade
consciência sobre o ser humano em si mesmo e na que, por sua vez, ‘envolvendo-o’, condiciona
sua interação com as complexas relações sociais. sua forma de atuar” (p. 27-28).
O ser humano é um sujeito, sede de suas comple- Assmann (1995) afirma que “enquanto
xas interações constitutivas, cujo corpo é o arca- organismo vivo somos também um sistema
bouço, o recurso de sua manifestação. Afinal, nele, perceptivo e cognitivo”. A partir do que nos
dão-se todas as nossas vivências de sensações, vem “de fora”, se dá a nossa construção ativa
movimentos, sentimentos e pensamentos. Ele é o da imagem do real. O mundo se forma, se cria
nosso meio de estar e se expressar no mundo. somente a partir da leitura que dele fazemos,
“corporalizada no sistema auto-organizativo
Considerações finais que somos”. Dessa forma, não se pode pensar
a educação, a política ou a espiritualidade (nem
Um aspecto muito presente nos acompa- o si mesmo, complementaria eu) sem que se
nhamentos que faço a educadores já graduados tenha como referência a corporeidade.
durante pesquisas e àqueles que estão em forma-
ção durante seus estágios supervisionados são as Enfim, nenhum ideal se concebe como ide-
queixas quanto às dificuldades institucionais — al, nenhum ideal se encaminha e nenhum

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 163
ideal se cumpre a não ser enquanto ligado Keleman (1996) observa que, geralmen-
à mediação da Corporeidade dos seres des- te, as atitudes são consideradas um conjunto
te mundo. (p. 90-91) mental, mas vão além disso, pois há compo-
nentes musculares, emocionais e mentais.
Não podemos dissociar a singularidade
da pessoa do educador, sua história de vida e Se eu tiver atitudes rígidas, elas não defini-
sua atuação profissional. São fios que tecem rão apenas o meu sistema rígido de cren-
uma totalidade. Sua formação profissional, os ças: definirão também o sistema rígido de
rituais acadêmicos vividos, suas transformações sentimentos e o sistema rígido de ações
pessoais, a aquisição de novos saberes irão en- pertencentes ao meu rígido conjunto cor-
riquecendo a trama desse tecido que se cons- poral. Não é apenas meu pensamento que
trói ao longo de sua vida. está densamente contido. É o meu corpo
A nossa capacidade expressiva exige, an- todo que não pode se mover livremente,
tes de tudo, uma percepção adequada de nós que não pode sentir livremente. (p. 42)
mesmos por intermédio de nosso corpo, tanto
física quanto energeticamente falando, o que As dificuldades do cotidiano, que deixam
implica o exercício da autopercepção. Isso sig- suas marcas nos corpos, revelando-se em gestos,
nifica perceber as próprias emoções, a própria posturas e movimentos, refletindo-se sobre a for-
postura, as próprias limitações, os pontos onde ma de ser, de atuar no dia-a-dia e de se comuni-
se concentra tensão ou fluidez. Se não somos car, interferem no processo intelectual e emocio-
capazes de nos perceber e de nos apropriarmos nal, podendo gerar formas de controle e alienação
um pouco de nós mesmos, teremos maior difi- como analisa Pereira (2005). Dessa forma, é signi-
culdade em nos colocarmos no mundo com a ficativo que consideremos a unicidade soma-psi-
força de nossa expressividade. Ter consciência que na formação de nossos educandos e na de
de que nossa capacidade de expressão sofre nossos futuros educadores, buscando investir em
restrições e entender o que as causa é um pas- pesquisas nessa direção. A unidade soma-psique,
so importante para sua modificação, mesmo que vem sendo estudada por várias áreas de co-
que não seja tão simples por serem já antigas nhecimento, aponta-nos um novo caminho para a
e arraigadas. E por isso mesmo, quanto mais formação do ser humano, integrando pensamen-
cedo nossos educandos puderem desenvolver tos, sentimentos, movimentos e espiritualidade.
uma expressão mais espontânea, mais facilmen- Educar significa contribuir para o cres-
te poderão desenvolver sua capacidade de usar cimento do educando, para sua formação, me-
a própria voz. lhora da sua qualidade de vida, para sua auto-
Após a análise das teorias trazidas para nutrição, o que significa contribuir para a sua
a construção deste trabalho, podemos retornar felicidade: é, sobretudo, um ato amoroso.
à questão inicialmente colocada: se houver ex- Boadella (1992), citando Russel e Russel, afirma
cessiva valorização da racionalidade em detri- que amar é propiciar ao outro o conhecimento de
mento da corporeidade, do sensível, do lúdico si mesmo. E considero que conhecer a si mesmo
e da emoção, teremos possibilidades de exercer é o primeiro passo para adquirir recursos para
nosso ofício de educadores com uma visão lidar com as próprias dificuldades. Olhar mais para
integrada do ser humano? Certamente a res- si e para o corpo significa abrir-se para o outro
posta é não. A dissociação entre soma e psique também e entrar em contato com possibilidades
gera uma visão fragmentada do ser humano. de ação e de transformação individual e coletiva.

164 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...


Referências bibliográficas

ASSMANN, H. Paradigmas educacionais e corporeidade


corporeidade. 3 ed. Piracicaba: UNIMEP, 1995.

BOFF, L. Sa ber cuidar


Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

BOADELLA, D. Correntes da vida


vida: uma introdução à Biossíntese. Tradução de Cláudia Soares Cruz. 2 ed. São Paulo: Summus,
1992.

CAPRA, F. O ponto de mutação


mutação. Tradução de Álvaro Cabral. 7 ed. São Paulo: Cultrix, 1988.

DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes


Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.

______. O mistério da consciência


consciência. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DELORS, J. Educação
Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI. 5 ed. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC; UNESCO, 2001.

DUARTE JR., J.-F. Por que arte-educação? Campinas: Papirus, 1983.

FREIRE, P. Peda gog


Pedagog ia da autonomia
gogia autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

______. Extensão ou comunicação? Tradução de Rosisca Darcy de Oliveira. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

______. Peda gog


Pedagog ia do oprimido
gogia oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

KELEMAN, S. Ana tomia emocional


Anatomia emocional: a estrutura da experiência. Tradução de Myrthes Suplicy Vieira. 3 ed. São Paulo: Summus,
1992.

______. O corpo diz sua mente


mente. Tradução de Maya Hantower. São Paulo: Summus, 1996.

LOWEN, A. Prazer
Prazer: uma abordagem criativa da vida. Tradução de Ibanez de Carvalho Filho. 6 ed. São Paulo: Summus, 1984.

______. Medo da vida


vida. Tradução de Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1989.

LUCKESI, C. C. Educação, ludicidade e prevenção das neuroses futuras: uma proposta pedagógica a partir da Biossíntese. In:
_____. (Org.). Ludopeda gog
Ludopedagog ia – Ensaios 11: Educação e Ludicidade. Salvador: Gepel, 2000. v. 1, p. 9-41.
gogia

MATURANA, H. et al. (Org.). A ontolog ia da realidade


ontologia realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.

______. Emoções e lingua gem na educação e na política


linguagem política. Tradução de José Fernando Campos Fortes. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2001.

MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente


emergente. Campinas: Papirus, 1997.

OSTROWER, F. Cria tividade e processos de criação


Criatividade criação. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

PEREIRA, L. H. P. Bioexpressão
Bioexpressão: a caminho de uma educação lúdica para a formação de educadores. 2005. 403 p. Tese
(Doutorado em Educação)- Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. 2005.

______. Decodificação crítica e expressão criativa


criativa: seriedade e alegria no cotidiano da sala de aula. 1992. 167 p. Dissertação
(Mestrado em Tecnologia Educacional)- Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 1992.

REICH, W. O assassina to de Cristo


assassinato Cristo. Tradução de Carlos Ralph Lemos Viana. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

______. A função do orgasmo


orgasmo: problemas econômico-sexuais da energia biológica. Tradução de Maria da Glória Novak. 19 ed.
São Paulo: Brasiliense, 1995.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.1, p. 151-166, jan./abr. 2008 165
______. Análise do caráter
caráter. Tradução de Ricardo Amaral do Rego. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. Energ ia vital pela bioenergética sua


Energia ve
suave
ve. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Summus, 1998.

THIOLLENT, M. Metodolog ia da pesquisa-ação


Metodologia pesquisa-ação. 11 ed. São Paulo: Cortez, 2002.

Recebido em 12.12.06
Aprovado em 18.02.08

Lucia Helena Pena Pereira, mestre em Educação/UERJ; doutora em Educação/UFBA; coordenadora do NECCEL/UFSJ –
Núcleo de Estudos Corpo, Cultura, Expressão e Linguagens –, cadastrado no CNPq; orientadora do PIBIC (CNPq/UFSJ e
FAPEMIG); vice-Coordenadora do Curso de Pedagogia; é professora de Didática, Prática de Ensino, Arte-Educação e
Bioexpressão.

166 Lucia Helena PEREIRA. Corpo e psique: da dissociação...

Você também pode gostar