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Boletim da Comissão de Direito Civil, Direito Processual Civil e Defesa do Consumidor

Junho de 2020.

CONTRATOS DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS NA PANDEMIA DO COVID-19

- Introdução

A Constituição da República de 1988 conferiu à educação posição de destaque,


erigindo-a como direito social e individual fundamental.

As diretrizes e bases da educação nacional estão dispostas na Lei 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, que estrutura o funcionamento do sistema educacional, organiza as
atribuições em regime de colaboração da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e
define as regras basilares para os diferentes níveis e modalidades de educação e ensino.

Dentre os princípios constitucionais que devem nortear a educação, destaca-se o


caráter pluralístico de ideias e o princípio da coexistência de instituições públicas e privadas,
denotando a consagrada função socializadora do ensino.

Releva destacar, os serviços educacionais prestados por estabelecimentos privados


são regidos também pela Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do
Consumidor), que estabelece normas de ordem pública e interesse social, preconizadas
igualmente em nível constitucional.

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A partir da Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, diversas medidas de enfrentamento
da emergência de saúde pública foram decretadas pelos representantes dos Poderes
Constituídos da República Federativa do Brasil, objetivando a proteção da coletividade e a
contenção da pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), especialmente as
medidas de isolamento e de quarentena, com restrição da circulação de pessoas e suspensão
das mais diversas atividades econômicas.

Tais medidas impactam severamente as relações jurídicas de Direito Privado, a ponto


de ensejar projeto no Senado Federal, recentemente transformado na Lei 14.010, de 10 de
junho de 2020, que dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações
jurídicas de Direito Privado no período da pandemia.

E no âmbito das atividades educacionais e das relações contratuais delas oriundas os


impactos foram sensivelmente graves. Passou-se a adotar como única alternativa capaz de
evitar consequências ainda mais desastrosas a suspensão das atividades presenciais nos
estabelecimentos de ensino.

Some-se a isso que muitos alunos e responsáveis financeiros de alunos sofreram


perda ou diminuição de receitas no período, e passaram a ter dificuldades em manter os
pagamentos das mensalidades escolares, agravando ainda mais a já dramática situação.

Como resultado, houve comprometimento do planejamento didático, logístico e


financeiro de todos os envolvidos na relação educacional, embora em graus diferentes.

É bem verdade que está em curso no Estado o denominado Plano São Paulo, disposto
no Decreto n. 64.994, de 28 de maio de 2020, que prevê a retomada gradual das atividades
econômicas em atuação coordenada com os Municípios e a sociedade civil, contudo, ainda
não há previsão de retorno das aulas presenciais nos estabelecimentos de ensino, e de
qualquer maneira persiste ainda o dilema notadamente quanto à obrigatoriedade ou não da
redução das mensalidades escolares.
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- Da adoção do método de Ensino à Distância

O Ministério da Educação, por meio da Portaria MEC 343, de 17 de março de 2020,


e por meio de outros atos normativos, autorizou, em caráter excepcional, a substituição de
disciplinas presenciais em andamento por utilização de ferramentas e tecnologias de
informação e comunicação que permitam a manutenção do método de ensino à distância, em
instituições de educação integrantes do sistema federal de ensino.

Na rede pública estadual de São Paulo, a Secretaria da Educação disponibilizou


aplicativo, em caráter precário, para os alunos acompanharem as aulas à distância. No
Município de Osasco, a Secretaria de Educação celebrou parceria com entidades civis para
disponibilizar plataforma digital de atividades pedagógicas e recreativas aos alunos durante
a suspensão das aulas presenciais.

Por sua vez, as instituições privadas dos diversos escalões da educação vêm buscando
auxílio de ferramentas tecnológicas de videoconferência e outros sistemas de ensino à
distância para evitar a paralisação das atividades educacionais.

De acordo com a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes


e bases da educação nacional, a educação escolar se compõe de: a) educação básica, formada
pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; e b) de educação superior.

Faz-se importante destacar, assim, que as relações educacionais são escalonadas e


devem ser observadas as regras próprias de cada etapa ou nível da educação.

Cabe esclarecer que a lei preconiza a carga horária mínima de 800 (oitocentas) horas
anuais para a educação infantil e para o ensino fundamental, distribuídas por um mínimo de
200 (duzentos) dias de efetivo trabalho escolar, e a carga horária mínima de 1000 (mil) horas
anuais para o ensino médio, com previsão de aumento progressivo para 1400 (mil e
quatrocentas) horas anuais, distribuídas por um mínimo de 200 (duzentos) dias de efetivo

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trabalho escolar. Já para a educação superior a lei flexibiliza expressamente o atingimento
da frequência mínima de 200 (duzentos) dias de trabalho acadêmico, nas instituições que
adotam programa de ensino à distância.

No entanto, diante da necessidade de suspensão das aulas presenciais nos


estabelecimentos de ensino de todos os escalões, devido às medidas de enfrentamento da
emergência de saúde pública, editou-se a Medida Provisória 934, de 1º de abril de 2020,
dispondo normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e superior.

Dispensou-se, em caráter excepcional, a obrigatoriedade da observância do mínimo


de dias de efetivo trabalho escolar na educação básica, desde que cumprida a carga horária
mínima anual estabelecida nos dispositivos legais pertinentes.

E as instituições de educação superior ficaram dispensadas da obrigatoriedade de


observância do mínimo de dias de efetivo trabalho acadêmico, com fundamento no disposto
no artigo 47, §3º, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Contudo, é preciso ter a noção de que cada etapa da educação possui princípios e fins
específicos, e há diferenças profundas entre a educação básica e a superior. A dispensa das
aulas presenciais na educação básica, notadamente no ensino fundamental, revela-se
sensivelmente prejudicial ao aproveitamento pedagógico e esbarra ainda em princípios
básicos positivados no ordenamento jurídico.

Veja-se que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prevê no seu artigo
32, §4º, que o ensino fundamental será obrigatoriamente presencial, permitindo-se o ensino
à distância apenas como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.

Assim, em razão da situação emergencial de enfrentamento da pandemia as


instituições de ensino são excepcionalmente facultadas a adotar métodos alternativos de

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ensino à distância, salientando-se que a educação básica, especialmente o ensino
fundamental, tem como regra o método presencial.

Cabe ressalvar, ainda, que a referida Medida Provisória 934 dispensa o atingimento
do efetivo trabalho escolar presencial, porém, os estabelecimentos escolares não estão
desobrigados a concluir o ano letivo com a observância da carga horária mínima, devendo
para tanto atender satisfatoriamente o conteúdo programático.

De um lado há as instituições de ensino, forçadas a adaptações para manterem


minimamente suas atividades, garantindo assim a continuidade do ano letivo; e de outro lado
há as famílias empenhadas em desenvolver o auxílio necessário para que seus filhos
consigam adaptar-se a tamanha mudança e por fim consigam absorver o conteúdo proposto.

- Da questão da redução das mensalidades escolares

No que tange às instituições privadas de ensino, adentrando propriamente a seara da


defesa do consumidor, a questão da redução das mensalidades escolares vem se revelando
um dilema jurídico e social.

Inicialmente, tenha-se presente que a Constituição Federal atribuiu competência


privativa à União para legislar sobre direito civil, esfera na qual se insere o direito
obrigacional e contratual (artigo 22, inciso I, da CR/88).

Outrossim, a Constituição Federal atribui competência legislativa concorrente à


União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislarem sobre produção, consumo e
responsabilidade por dano ao consumidor (artigo 24, incisos V e VIII, da CR/88).

À míngua de legislação federal positivando a obrigatoriedade da redução das


mensalidades escolares pelas instituições privadas de ensino, e tendo em vista a cláusula
geral da legalidade segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
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coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, inciso II, da CR/88), foram iniciados projetos de
lei no Congresso Nacional dispondo sobre a redução de, no mínimo, 30% (trinta por cento)
no valor das mensalidades das instituições de ensino fundamental, médio e superior da rede
privada cujo funcionamento esteja suspenso em razão da emergência de saúde pública
(Projetos de Lei 1119/2020 da Câmara dos Deputados e 1163/2020 do Senado Federal).

Ao que consta, porém, a tramitação de tais projetos de lei encontrou resistência nas
Casas Legislativas, de modo que alguns Estados tomaram a iniciativa de legislar sobre o
tema, preconizando a obrigatoriedade da redução das mensalidades escolares.

No Estado do Ceará, por exemplo, o Projeto de Lei 77 de 2020 (já sancionado) prevê
a redução das mensalidades da rede privada de ensino, bem como a proibição da cobrança
de juros e multas pela inadimplência das mensalidades durante o período da pandemia.

Ocorre que, por versar sobre direito obrigacional, matéria reservada à competência
privativa da União, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino ajuizou no
Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6423, suscitando a
inconstitucionalidade da lei estadual que visa o controle de preços das mensalidades,
alegando, ademais, que a norma viola o princípio constitucional da livre iniciativa.

Semelhantemente, no Estado de São Paulo, o Projeto de Lei 203 de 2020, de autoria


do Deputado Rodrigo Gambale, do PSL, dispõe sobre a redução proporcional das
mensalidades da rede privada de ensino durante o período de contingência da pandemia.

De acordo com a proposição legislativa paulista, ficam as instituições de ensino


fundamental e médio da rede privada do Estado de São Paulo obrigadas a reduzirem as suas
mensalidades em, no mínimo, 30% (trinta por cento) durante o período que durar o plano de
contingência da pandemia. De igual modo, dispõe que as unidades de ensino superior da
rede privada que adotem o meio de aulas presenciais devem reduzir as suas mensalidades.

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Estabelece, ainda, o projeto de lei paulista que o descumprimento ensejará a
aplicação de multas nos termos do Código de Defesa do Consumidor, pelos órgãos
responsáveis pela fiscalização, em especial, a autarquia de Proteção e Defesa do Consumidor
do Estado de São Paulo – Fundação PROCON-SP.

Ao que parece, tendo em vista os precedentes do Supremo Tribunal Federal, não


seria admissível a intervenção estadual impondo a redução de preços dos serviços das
instituições educacionais privadas, além de tratar-se mormente de direito obrigacional,
matéria reservada à competência legislativa da União.

De qualquer modo, tem vigência na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, o direito


básico do consumidor de revisão das cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes
que as tornem excessivamente onerosas (artigo 6º, inciso V).

Cabe salientar que a revisão ou resolução dos contratos de consumo dispensa a


imprevisibilidade exigida pelo artigo 478 do Código Civil, bastando um fato novo que cause
a quebra da base objetiva do negócio, da proporcionalidade das prestações.

Com isso, os estudantes ou seus responsáveis financeiros que tiveram seus


rendimentos afetados negativamente no período da pandemia poderão valer-se de medida
judicial para pleitear a resolução ou revisão contratual, com fundamento no princípio da
onerosidade excessiva superveniente.

Além disso, na hipótese de as instituições educacionais não cumprirem


adequadamente o programa curricular o caso será de responsabilidade pelo vício do serviço,
ensejando as medidas alternativas preconizadas no §1º do artigo 18, da Lei 8.078, de 1990,
sem prejuízo da reparação integral dos danos causados.

Uma nova situação se instalou. As circunstâncias próprias do momento de celebração


do contrato não estão mais presentes. Aos alunos não são mais ofertadas as mesmas formas,
nem a mesma qualidade de ensino; não há mais fruição dos diversos espaços disponíveis no
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ambiente tradicional, como laboratórios, espaços de vivências praticas, quadras, bibliotecas,
salas de artes; tampouco o importante apoio pessoal dos profissionais.

Nesse cenário, entretanto, recomenda-se a cautela contra as posições extremadas,


haja vista que as dificuldades excepcionais recaem sobre todas as partes envolvidas, e há
sobretudo elevado interesse social na manutenção das instituições de ensino.

Ademais, pela ótica do consumidor, a preservação das instituições de ensino faz-se


importante até mesmo para assegurar a existência da concorrência na oferta dos serviços,
que acarreta melhores condições de qualidade e preço de fornecimento.

Destarte, faz-se necessário olhar para as relações educacionais de maneira sensível,


buscando reequilibrá-las, tendo em vista as mudanças bruscas experimentadas.

O Código de Defesa do Consumidor, de caráter protetivo, vale-se também dos


princípios da boa-fé e do equilíbrio, tendo-os entre os seus postulados mais importantes,
prescrevendo o procedimento da lealdade e da cooperação entre os participantes da relação
de consumo, visando a harmonização dos interesses envolvidos, a fim de que o princípio da
livre iniciativa econômica seja viabilizado sem prejuízo da defesa do consumidor.

Há ainda que se considerar que não se revela desejável a judicialização prematura


das questões contratuais, tendo em vista o já caótico e assoberbado funcionamento do
Judiciário no País, de modo que, ainda que não sejam legalmente obrigadas a oferecer
redução nas mensalidades, as instituições de ensino da rede privada desempenham papel
social relevante na justa negociação extrajudicial com seus consumidores, por imperativo
dos princípios da boa-fé e da função social dos contratos educacionais.

DIEGO VINICIUS SOARES BONETTI DEBORA ROMAN LOPEZ

Presidente da Comissão Vice-Presidente

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Comissão de Direito Civil, Direito Processual Civil e Defesa do Consumidor

Gestão “Unidos pela Ordem” – Triênio 2019/2020

Maria José Soares Bonetti

Presidente

Alexandre Volpiani Carnelós

Vice-Presidente

José Carlos Barbosa Molico

Secretário-Geral

Ariadne Garcia de Oliveira

Secretária-Adjunta

Darlan Rocha de Oliveira

Diretor Tesoureiro

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