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“Terra”, de Caetano Veloso:

uma análise estética e histórica.

Daniel Conti do Nascimento

Pós-Graduando em Canção Popular – Faculdade Santa Marcelina

RESUMO

Este artigo procura realizar uma análise dos elementos históricos e estéticos que

envolvem a canção “Terra”, de Caetano Veloso. Através de informações sobre os

acontecimentos que precederam e inspiraram sua composição – as primeiras fotos do

planeta Terra visto do espaço, e a prisão de Caetano no final de 1968 – esta análise tem

por objetivo compreender como tais fatos contribuíram para a concepção estética desta

música. Para isto, será utilizado como referência o fonograma que faz parte do álbum
(1)
“Muito (Dentro da Estrela Azulada)”, lançado em julho de 1978 pelo próprio

compositor.

LEVANTAMENTO DOS DADOS HISTÓRICOS

Suplente do cosmonauta russo Yuri Gagarin, German Titov teve que amargar a

decepção de não ser o primeiro homem a voar para o espaço e com isso dar aos

soviéticos um passo à frente dos americanos na corrida espacial, pouco antes do ápice

(1)
No site oficial do compositor: http://www.caetanoveloso.com.br/biografia.php
“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

da Guerra Fria. Ambos igualmente preparados para missão, Gagarin foi escolhido por

ser oriundo da classe proletarizada, fato que vinha de encontro aos ideais comunistas da

antiga União Soviética, enquanto Titov pertencia à classe média russa (2).

No entanto, na missão seguinte Titov foi incumbido, entre outras tarefas, de registrar as

primeiras imagens da Terra azul descrita por Gagarin na primeira expedição. Para isso

recebeu um treinamento intensivo no manuseio de câmeras, e filmou o planeta durante

as aproximadamente 25 horas em que deu 17 voltas e meia na órbita do planeta. Dos

carretéis de 300 milímetros utilizados para a filmagem é que saíram as primeiras fotos,

que mostram, conforme a própria descrição dada por Titov ao centro de controle russo,

“(...) a Terra e um grande rio, embora haja muitas nuvens”. (3)

Amplamente divulgadas, as fotos estavam na revista Manchete, dada por Dedé a

Caetano na cela da prisão onde o compositor esteve preso por dois meses, entre o fim de

1968 e começo de 1969. Em seu livro “Verdade Tropical”, Caetano comenta o

momento no qual viu “pela primeira vez as tais fotografias”, aproximadamente oito

anos depois do feito de Titov, e como toda a circunstância de sua prisão o influenciou

para escrever, outros anos mais tarde, a canção “Terra”.

“Eram as primeiras fotos em que se via o globo inteiro – o que provocava forte

emoção, pois confirmava o que só tínhamos chegado a saber por dedução e só

víamos em representações abstratas – e eu considerava a ironia de minha

situação: preso numa cela mínima, admirava as imagens do planeta inteiro, visto

do amplo espaço. Anos depois, já de volta à Bahia, compus uma canção de que

ainda gosto muito (“Terra”) e cuja letra começa por referir-se a esse momento.

Dirigindo-me à Terra, nos primeiros versos da canção, comento as tais

fotografias ‘onde apareces inteira, porém lá não estavas nua e sim coberta de

(2)
WINTER, Otton Cabo e PRADO, Antonio Fernando Bertachini de Almeida. A Conquista do Espaço: do Sputnik à Missão
Centenário. São Paulo, Editora Livraria da Física, 2007. pp. 43-48.
(3)
EFE. Primeiras fotos do planeta Terra completam 50 anos. Disponível em
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,primeiras-fotos-do-planeta-terra-completam-50-anos,755597,0.htm. 08/08/2011.
“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

nuvens’. Esse acercamento sensual que se insinua na consideração de que a

Terra não estava ‘nua’ nas páginas da revista, embora no instante de fazer a

canção eu não me desse conta, me veio à mente sem dúvida por causa das outras

fotografias que mais me impressionavam na cela do PQD: as de mulheres

seminuas que me enchiam de desejo e com que sonhava todas as noites.” (4)

CONSIDERAÇÕES ESTÉTICAS SOBRE A CANÇÃO

Embora em seu comentário Caetano se detenha a mencionar a primeira estrofe da letra,

é possível notar em toda a concepção da canção elementos que fazem menção à Terra

de forma ambígua, ora como o planeta em que vivemos, outrora como personificação da

sensualidade feminina.

Logo na introdução, surge apenas um violão executando repetidamente um único acorde

– mais precisamente, um Sol maior. Aliás, esta também a tonalidade da canção, ou seja,

o eixo sobre o qual sua melodia e seus acordes giram, gerando uma inevitável analogia

com o fato de a Terra rodar em torno do Sol. A ausência de outros instrumentos também

cria uma sensação de solidão, também análoga ao sentimento de Caetano durante sua

prisão. Este mesmo violão, tocado de forma dedilhada, traz uma alternância repetida nas

suas notas mais graves (os baixos, caminhando circularmente entre a tônica e a terça

maior), que sugere que Caetano está caminhando em círculos, como se andando dentro

de sua pequena cela.

Ao mesmo tempo, este movimento de baixos possibilita uma sensação de movimento

lento, similar à ausência de gravidade, que se contrapõe à subdivisão rítmica feita em

semicolcheias no restante do dedilhado, sugerindo certa ansiedade e antecipando os

primeiros versos de Caetano.


(4)
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. Pp. 393.
“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

Quando eu me encontrava preso / Na cela de uma cadeia /

Foi que eu vi pela primeira vez / As tais fotografias /

Em que apareces inteira / Porém lá não estavas nua /

E sim coberta de nuvens / Terra, Terra...

A melodia inicia-se em modo lídio (5) e no registro grave da voz de Caetano, evoluindo

gradativamente e chegando a extrapolar uma oitava no final da primeira estrofe. Inicia-

se o jogo de sedução: ao mesmo tempo em que fica evidente o vislumbramento que a

Terra quase nua provoca no compositor/intérprete, este tenta também seduzi-la (Terra

como signo de mulher) através de um contorno melódico misterioso e envolvente que

chega ao ápice em “de nuvens”, com a primeira mudança harmônica que surge desde o

começo da canção – um acorde de Dó Maior. Surge também um segundo instrumento,

um violão de 12 cordas, fazendo harmônicos que, nesse contexto, sugerem a imagem de

estrelas brilhando. Neste momento, a melodia relaxa e volta a descer suavemente,

transitando entre o modo lídio e o jônio. A letra passa a se dirigir diretamente ao objeto

desejado por Caetano, formando o refrão que se repetirá durante toda a música:

Por mais distante / O errante navegante /

Quem jamais te esqueceria?

A partir deste momento, todos os elementos melódicos e harmônicos da composição já

foram apresentados. Inclusive, a harmonia da música toda se resume a seis acordes,

(5)
O modo lídio equivale a uma escala maior (modo jônio) com a alteração de sua quarta nota em meio tom para cima. Na
canção “Terra”, a tonalidade de Sol no modo lídio fica evidente com a presença constante da nota Dó sustenido na melodia da
primeira parte. No restante da canção, ocorre a incidência tanto do Dó sustenido como do Dó natural, este ultimo característico
do modo jônio.
“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

todos em formato de tríades – que, neste contexto, sugere uma simplicidade de quem

tem poucos elementos à mão naquele momento (“preso na cela de uma cadeia”). Desta

forma, a harmonia da canção coloca-se a serviço de uma atenção maior ao discurso

conduzido pela relação letra-melodia.

Estas duas partes da canção se repetem algumas vezes. Os únicos elementos novos que

surgem são as letras diferentes para cada primeira parte e os elementos de arranjo que

entram aos poucos, intensificando cada vez mais o jogo de sedução. Na estrofe seguinte,

Caetano reafirma a Terra como signo feminino e objeto de desejo:

Ninguém supõe a morena / Dentro da estrela azulada /

Na vertigem do cinema / Mando um abraço pra ti /

Pequenina como se eu / Fosse o saudoso poeta /

E fosses a Paraíba / Terra, Terra...

Neste momento, somam-se ao arranjo elementos de percussão e alguns efeitos de

ambiência, feitos por um piano elétrico. Estes novos elementos se encarregam de

renovar o ambiente e o interesse pelo assunto já apresentado na primeira estrofe. O

violão de 12 cordas, inclusive, tem uma sonoridade que transita entre a de um sitar

indiano e de uma viola caipira, intensificando assim o clima de mistério e de

“acercamento”.

Eu estou apaixonado / por uma menina terra /


“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

Signo do elemento terra / do mar se diz terra à vista /

Terra para o pé firmeza / Terra para a mão carícia /

Outros astros lhe são guia / Terra, Terra...

Nesta estrofe, o violão de 12 cordas dobra a melodia cantada, sublinhando o

encantamento de Caetano pela “menina terra” – a personificação do planeta Terra e o


(6)
seu signo feminino (provavelmente, a própria Dedé ). Trazendo um sentido

astrológico, a “morena dentro da estrela azulada” de “signo de elemento terra” teria

como característica a predominância do caráter racional, da moderação e o receio de sair

do estado de equilíbrio, ou seja, “um sentido de coerência que a faz ver o mundo de uma

só e da mais óbvia maneira: através da forma sensível e concreta. Não há grande


(7)
contradição, mas também não há grandes voos da imaginação.” Então, ainda em seu

movimento de sedução, o compositor ressignifica novamente a palavra terra,

materializando-a em seu estado puro e palpável, oferecendo a sua menina terra “terra à

vista, terra para o pé firmeza”.

Eu sou um leão de fogo / Sem ti me consumiria

A mim mesmo eternamente / E de nada valeria

Acontecer de eu ser gente /E gente é outra alegria

Diferente das estrelas / Terra, Terra...

(6)
Não foi possível localiza a data de nascimento de Dedé até o fechamento deste artigo.
(7)
QUEIROZ, Gregório José Pereira de. AS QUALIDADES PRIMITIVAS NA ASTROLOGIA. São Paulo, Editora
Pensamento, 1989. pp. 24-25.
(8)
Também no site oficial do compositor: http://www.caetanoveloso.com.br/biografia.php
“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

Nesta parte, Caetano utiliza ainda a astrologia como fio condutor. Nascido em 7 de
(8)
agosto , o compositor é do signo de Leão e regido pelo elemento fogo, que se

caracteriza pela “predominância do caráter emocional, sendo esses elementos

caracterizados por excessos e por uma disposição impulsiva (ou compulsiva) de caráter

exteriorizante (...)”(9). E vê na “menina terra”, pelas características já mencionadas

anteriormente, um ponto de auto equilíbrio, uma possibilidade de chão. No arranjo, essa

informação se reflete na entrada do contrabaixo elétrico – o instrumento mais grave da

canção e que, por isso, entra como alicerce harmônico de todos os outros instrumentos -

exatamente na palavra Terra.

De onde nem tempo nem espaço / que a força mande coragem /

Pra gente te dar carinho / durante toda a viagem /

Que realizas do nada / através do qual carregas /

O nome da tua carne / Terra, Terra...

Voltando a se dirigir à Terra como planeta (“carregas o nome da tua carne”),

subentende-se nesta estrofe uma abordagem de cunho ecológico (“que a força mande

coragem / pra gente te dar carinho / durante toda a viagem”). E, pela primeira vez,

repete o refrão duas vezes antes de ir para a estrofe seguinte.

Nas sacadas dos sobrados / da velha São Salvador /

Há lembranças de donzelas / do tempo do imperador /

(9)
QUEIROZ, Gregório José Pereira de. AS QUALIDADES PRIMITIVAS NA ASTROLOGIA. São Paulo, Editora
Pensamento, 1989. pp. 24.
“Terra”, de Caetano Veloso: uma análise estética e histórica.

Tudo tudo na Bahia / Faz a gente querer bem /

A Bahia tem um jeito / Terra, Terra...

Para finalizar, Caetano reverencia seu estado natal. O clima de mistério se intensifica

ainda mais com a entrada de um sitar no arranjo, contrapondo-se com esta última

estrofe. Aparentemente desconexa de todo o contexto da letra, este trecho faz conexão

com o verso “do mar se diz terra à vista”, significando a Bahia como o chão do Brasil, o

ponto de partida para toda a nossa história.

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