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Revolucionário, Flusser antecipou questões sobre o


papel da imagem nos dias de hoje
Cesar Baio
Publicado em: 12 de maio de 2017

A câmera no espelho, foto do Google Art Project*

O filósofo Vilém Flusser (1920-1991), tcheco naturalizado brasileiro, foi um dos primeiros a
perceber a importância das tecnologias de informação na sociedade que emergia na segunda
metade do século 20. Embora, no Brasil, seu reconhecimento ainda esteja em grande parte
restrito ao campo da teoria da fotografia, atualmente sua obra é considerada uma das mais
fecundas abordagens filosóficas para pensar o papel da imagem e a condição existencial
humana na contemporaneidade.

Com estilo próprio e não-acadêmico, Flusser elegeu o ensaio como gênero ideal, a partir do
qual desenvolveu uma escrita provocativa e irônica. Ao longo de sua trajetória, abordou temas
tão diversos como os gestos, a escrita, o exílio, o diabo, o abismo, a história da cultura, a
natureza, a arte, a cultura brasileira, a comunicação, as imagens técnicas, dentre numerosos
outros. Suas análises ficaram conhecidas pelos jogos de palavras baseados na lógica e na
etimologia, a linguagem recoberta de floreios, a sucessiva contraposição de argumentos, o
existencialismo bastante particular e uma maneira própria de aplicar o método de redução
fenomenológica de Edmund Husserl [filósofo alemão fundador da fenomenologia]. Além de
não se preocupar em apresentar suas referências, Flusser re-escrevia seus argumentos em
diferentes versões e idiomas, dificultando o acesso ao conjunto mais amplo de sua produção.
Características estas que seduziram muitos intelectuais e artistas, mas que também
confundiram e aborreceram tantos outros, principalmente no campo acadêmico.

Sua morte prematura não permitiu que Flusser conhecesse alguns dos aparelhos de produção e
circulação de imagens mais recentes, tais como os smartphones e a internet. No entanto, o
pensador não apenas anteviu o surgimento dessas tecnologias, como também, com acurada
precisão, elaborou previsões sobre os desdobramentos sociais, políticos, éticos e estéticos
potencialmente inscritos na chamada revolução tecnocientífica, que promoveu a integração
definitiva da ciência e da tecnologia à lógica do sistema capitalista. Da recente influência dos
algoritmos inteligentes na campanha presidencial norte-americana ao papel da internet nos
levantes populares em diferentes países, das consequências da manipulação dos códigos
genéticos para o ser humano à supremacia das narrativas sobre os fatos que marca a pós-
verdade, muitos dos fenômenos que caracterizam a sociedade contemporânea estão
virtualmente presentes nas análises do filósofo.

Não por acaso Flusser escolheu a fotografia como um de seus objetos filosóficos prediletos. A
fotografia seria a primeira e a mais simples daquelas que Flusser concebeu como “imagens
técnicas”, produzidas por aparatos técnicos de codificação através de um processo complexo
mais ou menos automático. Para ele, a corrida científica e tecnológica que conduziu à atual
sociedade em rede, globalizada e orientada pelo capitalismo informacional é resultado de uma
postura existencial estritamente tecnicista em relação ao mundo. Compreender o papel das
imagens técnicas, neste contexto, seria fundamental para tentar escapar da sua lógica
funcionalista.

Talvez tenha sido necessário chegar até o estágio atual da sociedade pós-industrial para
compreender o alcance do pensamento do filósofo, uma vez que agora é possível delinear com
precisão os problemas que surgem quando as máquinas passam da produção de “coisas”
(capitalismo industrial) à produção de símbolos (capitalismo informacional). A partir de sua
perspectiva filosófica da questão, Flusser afirma que a fotografia teria sido criada visando
registrar eventos do mundo e os cristalizar em cenas que servissem como documentos da
história, como uma espécie de memória de uma suposta linha do tempo universal. No entanto,
na condição atual, teria sido a política que passou a ser feita para ser capturada em imagens, de
modo que, todos os grandes eventos políticos passaram a ser produzidos visando disputar
espaço nas mídias eletrônicas. Com isso, seria a própria imagem que estaria determinando os
acontecimentos do mundo. Segundo o filósofo, neste contexto, a imagem técnica funcionaria
como um “voodoo técnico”, com a manipulação da imagem atuando diretamente na realidade.
Mas como enfrentar os problemas de um mundo (in)formado pelas tecnologias da informação
e comunicação, no qual nossas maneiras de pensar e existir são altamente influenciados pela
mediação eletrônica?

É justamente ao elaborar uma resposta para esta problemática que a fotografia é entendida
por Flusser de uma maneira radicalmente diferente de muitos outros teóricos da imagem de
sua época. Dentre suas concepções mais polêmicas está a ideia de que a fotografia não é um
espelhamento ou um decalque da realidade, como o conceito clássico de representação poderia
dar a entender. Com seu estilo provocador, Flusser é categórico ao dizer que o objeto físico
“não é a causa da fotografia como o é a pata do cachorro para o traço na neve”. O filósofo
inverte o ponto de vista para afirmar que, se quisermos analisar uma imagem, não devemos
nos perguntar sobre a relação dela com o objeto fotografado, mas olhar na direção contrária e
nos perguntar o que se projeta daquela imagem em direção ao mundo. Ou seja, de que maneira
aquela imagem afeta o contexto no qual está inserida. Sua argumentação toma por base a
expressão husserliana de “dar significado” (Sinngebung) para dizer que as imagens técnicas se
apresentam como resultado de um gesto que procura “conferir significado” ao mundo.

Flusser defende que é preciso conhecer por dentro esses aparatos de produção de imagens, se
apropriar de suas estruturas e jogar contra eles, usá-los com propósitos contrários ao que
determina o programa inicial e projetar modelos de mundo que não aqueles próprios à lógica
que os originou. Para o filósofo, quem estiver interessado em estabelecer uma crítica cultural
válida deve procurar deixar transparente a “caixa-preta” dos aparatos, de modo a dar a ver
ideologias, valores e intenções nelas programadas e que, geralmente, permanecem encobertos
por suas complexidades e impessoalidades. Esta postura passaria por procedimentos de
subversão direta na dimensão interna de máquinas técnicas como câmeras, computadores,
projetores e circuitos de TV. E também por uma atuação menos tecnológica e mais consciente
das dinâmicas econômicas, sociais, éticas e políticas nas dimensões mais abstratas dos sistemas
de financiamento, produção, circulação e exibição midiática.

Outra operação válida, segundo Flusser, seria a utilização destes mesmos aparatos para a
criação de mundos ficcionais que permitissem colocar em cheque a lógica tecnocientífica de
produção e legitimação de verdades, assim como produzir formas de existência estranhas às
nossas, que fossem poderosas o bastante para promover uma crítica à funcionalização da vida
humana, tal como fez o próprio Flusser no seu livro Vampyroteuthis Infernalis, criado em
colaboração com o artista francês Louis Bec.

A essa capacidade de pensar e atuar por meio de imagens, tornando visíveis as ideologias
atualmente manipuladoras e de jogar contra elas, Flusser denominou tecno-imaginação. Para
ele, tecnoimaginação não seria apenas a contestação, mas a superação da lógica atual,
operacionalizada por uma atitude que se vale da situação estabelecida com interesses
diferentes daqueles inicialmente codificados nos aparatos. Trata-se de uma atitude lúdica e
ironicamente reformuladora do programa atual. Esta maneira de se posicionar diante do
mundo, para ele, conduziria a um novo modo de existir, nomeado por Flusser como Homo
ludens. A nova existência seria, por princípio, nômade. E poderia estar, a um só tempo, dentro
do sistema para conhecer seu funcionamento e fora para pensá-lo criticamente. Jogar contra o
aparato seria, assim, a única maneira viável de se contrapor a um mundo determinado por
aparelhos e a última possibilidade de exercício da liberdade.

A importância do pensamento de Flusser na atualidade tem sido reconhecida por um número


cada vez maior de teses, livros, projetos artísticos e eventos acadêmicos. Nos últimos anos,
dentre as iniciativas que mais se destacaram, estão o prêmio que leva o nome do filósofo,
oferecido anualmente pelo Transmediale – Festival for Media Art and Digital Culture, um dos
mais respeitados eventos artísticos da Europa; a exposição Without Firm Ground – Vilém
Flusser and the Arts, promovida pelo ZKM | Center for Art and Media e pelo Vilém Flusser
Archive; o lançamento de Flusseriana: an intellectual toolbox, uma publicação em inglês,
português e alemão, que faz uma apresentação teórica de mais de duzentos termos que
aparecem na obra do filósofo; a tradução para o inglês de livros fundamentais para uma
compreensão mais ampla do pensamento do autor; no Brasil, a abertura do Arquivo Vilém
Flusser São Paulo, que promoveu a digitalização, impressão e a disponibilização de todo o
acervo original do Vilém Flusser Archive Berlin em espaço aberto à comunidade de
pesquisadores brasileiros e latino-americanos; e a exposição Flusser: as dores do espaço, que
será realizada ainda este ano em São Paulo.///

Cesar Baio é professor adjunto do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do


Ceará (UFC) e concluiu seu doutoramento em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. É autor
do livro Máquinas de imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade.

* A câmera no espelho: os autorretratos acidentais da câmera-robô do Google Art Project, no


Palais Garnier de Paris, lembram, muitos anos depois, o mundo das máquinas discutido por
Vilém Flusser. As imagens de tela, extraídas do projeto que oferece visitas virtuais a museus e
galerias de arte do mundo todo, foram encontradas pelo artista espanhol Mario Santamaría.

Tags: Filosofia, fotografia, Vilém Flusser

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