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VILÉM FLUSSER E A COMUNICAÇÃO NA PÓS-HISTÓRIA

Prof. Dr. Paulo Roberto Andrade de Almeida


NEAD/DFIME/UFSJ
pandrade@ufsj.edu.br

Resumo: O objetivo do presente artigo é propor uma reflexão sobre o pensamento do filósofo tcheco-
brasileiro Vilém Flusser, especialmente no que se refere à comunicação no período por ele
denominado de pós-história. Partindo de Língua e realidade, o autor expõe a coluna dorsal de seu
edifício teórico, que seria desenvolvido em fase posterior, quando retorna ao solo europeu. Assim, a
partir de uma perspectiva fenomenológica, sua preocupação se debruça sobre as formas
contemporâneas de comunicação, através de aparelhos programados, que alienam e fazem com que
o homem perca o sentido de sua existência. A pesquisa bibliográfica que sustenta o presente trabalho
sugere, desde escritos do próprio autor, o resgate da poiésis que, pelo seu caráter intersubjetivo,
permite ao homem a experiência da liberdade.

Palavras-chave: Língua; Realidade; Aparelhos; funcionários; programas.

Abstract: The goal of this article is to propose a reflection on the thought of the Czech-Brazilian
philosopher Vilém Flusser, especially with regard to communication in the period he called post-
history. Starting from Language and reality, the author exposes the dorsal column of his theoretical
building, which would be developed at a later stage, when he returns to European soil. Thus, from a
phenomenological perspective, his concern focuses on contemporary forms of communication,
through programmed gadget, which alienate and cause man to lose the meaning of his existence. The
bibliographical research that supports the present work suggests, from the author's own writings, the
rescue of poiesis which, due to its intersubjective character, allows man to experience freedom.

Key words: Language; Reality; Gadget; Employee; Software.

Na antiguidade, os gregos opunham techné a physis, para designar o que era


produzido pelo homem, em oposição ao que era fruto da natureza. Na modernidade,
porém, com o desenvolvimento e autonomização das ciências, notadamente a partir
de Descartes, Bacon e Galileu, o cálculo matemático permitiu uma clara distinção
entre ciência e tecnologia e o campo das artes, em geral.
Vilém Flusser, em conferência proferida em 1982, observou que a
modernidade conduziu o termo techné à compreensão de conhecimento objetivo,
seguro, rigoroso, relegando a segundo plano o tipo de conhecimento caracterizado
como subjetivista, ligado às formas estéticas e, portanto, sem valor epistemológico.
Assim, a modernidade conceberia dois tipos de produção humana: um,
destinado aos guetos (museus, teatros e galerias), para onde acorreriam as massas
a apreciar a arte, expressão das emoções e do belo e outro, caracterizado pela
objetividade do conhecimento e, consequentemente, separado da estética. Tal
distinção é perniciosa, aos olhos de Flusser, na medida em que distancia o
conhecimento humano do plano ético e político. Ora, entende o filósofo tcheco-
brasileiro que o conhecimento humano é sempre intersubjetivo, em que pese sua
inserção no mundo e na cultura da sociedade.
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Na ótica flusseriana, arte e técnica devem ser coesas, no sentido de


garantirem o sentido da vida, pois ambas estão estreitamente relacionadas com os
valores, com a convivência das pessoas e com as expectativas da sociedade.
Na fase em que Flusser desenvolveu seus trabalhos na Europa, ocupou-se de
temas ligados ao desenvolvimento do capitalismo avançado. Observou, então, que a
tecnocracia, por si só, não responde às grandes questões existenciais do homem.
Ademais, o problema do advento das culturas de massas o afligia.
Daí, a referência ao que chama de pós-história, ou sociedade pós-industrial
ou, ainda, sociedade pós-Auschwitz. Trata-se de um momento marcado pela
manipulação das pessoas por aparelhos e imagens técnicas.
Aparelhos não são, nem produzem bens de consumo, mas informações, que
são codificadas e são usadas para dominar, programar e controlar todo o trabalho
humano. Vale observar que a morte de Flusser é anterior ao advento das redes
sociais e dos smartphones. A perspectiva ensejada pelo seu pensamento sugere
que hoje diria que aparelhos controlam toda a vida humana, através de sites e
aplicativos. Seus temas seriam algo em torno a Inteligência artificial, biologia
sintética, relações no ciberespaço, etc.
As informações produzidas por tais aparelhos são monitoradas e
armazenadas por grandes empresas e órgãos de inteligência dos governos, como
estratégias de vigilância e controle social.
Flusser analisa a máquina fotográfica, como protótipo dos aparelhos
produtores de imagens técnicas, referindo-se ao seu programa como caixa preta, ou
seja, como mecanismo complexo e obscuro, não acessível à experiência humana
cotidiana. Desse modo, o cidadão comum não tem conhecimento da lógica que
subjaz a todo este complexo de programas que determina e conduz seus destinos, à
revelia de sua vontade.
Flusser sugere a aproximação entre as imagens técnicas, de caráter
científico, circunscritas às universidades e centros de pesquisas, as imagens
artísticas, igualmente herméticas, confinadas nos guetos e a vida das pessoas que,
massificadas, são despojadas tanto da ciência quanto das artes (cf. FLUSSER,
2011). Na verdade, o que se constata é uma alienação das massas, que apenas
consomem o produto dessas informações, aspecto que atinge também os
funcionários que, ao funcionarem segundo o programa do aparelho, não se
expressam como liberdade.
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A propósito da ideia de funcionário, Gustavo Bernardo tece uma breve


comparação entre o que diz Hannah Arendt e a perspectiva que orienta a reflexão
de Flusser:
Hannah Arendt, ao estudar a banalidade do mal, se perguntou como gente
insignificante foi transformada pelo aparelho nazista em funcionários
poderosos. Flusser tentou olhar o outro lado do problema: gente
responsável e culta sendo transformada em funcionários insignificantes que
promovem, sem o perceber, males gigantescos, adequados aos aparelhos
agigantados que os empregam (BERNARDO, 2002, p. 176).

É preciso resgatar o que Flusser chama de poiesis, a arte, para que o


homem, retornando ao centro do mundo, possa emancipar-se do modelo
tecnocrático e projetar o sentido da própria existência. Não se trata de otimismo
ingênuo, pois mesmo afeitos a uma cultura aparelhística, somos pessoas cujo
potencial criativo é imprescindível à nossa vida. Não se reporta aqui, certamente, à
arte elitizada e despolitizante dos guetos, mas ao insight criador, que atua tanto na
ciência, como na filosofia, na arte, na política, na economia, etc. Seu ponto de vista
fica evidente na conferência de 1982, quando afirma: “toda proposição científica e
todo dispositivo técnico tem qualidade estética, assim como toda obra de arte tem
alguma qualidade epistemológica”.

A Filosofia da linguagem

No Brasil não se alimenta o hábito de grandes discussões filosóficas fora dos


círculos acadêmicos. No interior das universidades elas são escassas, pelo própria
estrutura organizacional do ensino. Provavelmente, isso acontece porque a tradição
filosófica valorizada sempre foi predominantemente europeia – mais recentemente,
norte-americana – e porque nossa educação acadêmica sempre enfatizou mais o
estudo de determinadas questões, em determinados autores, do que a elaboração
de um pensamento próprio e original.
No período que se estende desde a chegada de Flusser ao Brasil (1940) até
sua viagem à Europa, no início da década de 1970, Vílém Flusser escreveu uma
importante e pouco discutida parte de sua obra. Sua formação como pensador e
escritor aconteceu no Brasil, no entanto, tornou-se um autor reconhecido,
principalmente como um teórico dos media, apenas depois que voltou para a Europa
e publicou, em 1983, Filosofia da caixa preta, na Alemanha. Foi naturalizado
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brasileiro na década de 1950. Era autodidata e não obteve formação acadêmica


institucionalizada.
Na década de 1970, a reforma universitária direcionou todos os professores
de Filosofia da USP ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas e o pensador tcheco-brasileiro não teve seu contrato renovado,
provavelmente devido à falta de comprovação de seus títulos acadêmicos.
Entretanto, como era admirado como professor e debatedor de ideias, muitos de
seus alunos o visitavam com frequência para discutir ideias no terraço de sua casa.
Flusser publicou mais de trinta livros – primeiro em português e, depois,
através de autotradução, em outras línguas – e escreveu centenas de artigos para
revistas especializadas, como a Revista Brasileira de Filosofia e o Suplemento
Literário, além de jornais populares, como a Folha de S. Paulo e O Estado de S.
Paulo. Hoje, sua obra se encontra traduzida para mais de 20 línguas. Sua produção
está organizada, desde 1992 e encontra-se salvaguardada em edições originais em
alemão e, sobretudo, em português, em arquivos digitalizados de textos, além de
dezenas de horas de áudio e vídeo no Vilém Flusser Archiv, na Universidade das
Artes - UdK (Berlim) e, também, no Arquivo Vilém Flusser São Paulo, no campus
Ipiranga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP.
Sua autobiografia filosófica consta de onze capítulos, dedicados a
personalidades com as quais travou intenso diálogo no período em que esteve no
Brasil: Milton Vargas, Vicente Ferreira da Silva, que considerava o melhor e talvez o
único filósofo brasileiro, João Guimarães Rosa, Miguel Reale, Haroldo de Campos,
Dora Ferreira da Silva e José Bueno, além dos imigrantes que conheceu no Brasil,
Samson Flexor, Alex Bloch, Romy Fink e Mira Schendel.
Na trama de suas ideias, qualquer assunto parece digno de nota: desde a
ameba e a menopausa até os banheiros domésticos, como vemos nos manuscritos
não publicados do Flusser Archiv – tudo pode ser acolhido filosoficamente. Com
efeito, assevera Norval Baitello Júnior (2014, p. 35): “O que a gente vê hoje, no
mundo, é a descoberta de um pensador muito instigante, provocador, polêmico e
complexo, que escreveu sobre a mulher, assim como escreveu sobre o diabo, sobre
Pelé, futebol, arte, tecnologias da comunicação e filosofia”.
Mas, a tese central sobre a qual alicerça todo seu edifício teórico é a da
identidade entre língua e realidade. A rigor, tal ideia não é nova na tradição filosófica
greco-ocidental. Ela pode ser captada nas entrelinhas de Parmênides, na
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antiguidade, como em Leibniz, Frege, Wittgenstein, Apel e Gadamer, mais


recentemente, pensadores que indicam a aproximação da ideia de que ser é poder
ser expresso. Flusser pretende radicalizar a ideia, sugerindo certa identidade entre a
realidade e a língua.
Flusser afirma que é inerente à existência humana organizar as aparências
caóticas, procurando uma estrutura que as articule, fixando-as em um sistema de
referências hierarquizado. O caos é irreal, porque é algo a que não temos acesso,
todavia, ele é realidade em potência, pois pode vir a ser cosmos. A estrutura que
metamorfoseia o caos em cosmos é a língua.
A língua é um sistema simbólico que fixa as aparências em palavras e
estabelece regras para coordená-las, permitindo o acesso ao conhecimento. Vale
dizer: a língua cria a realidade, porque cria a apreensibilidade e a
compreensibilidade. Portanto, há um caráter ontológico na língua, na media em que
ela cria – ou possibilita meu acesso – ao ser das coisas.
Sob tal perspectiva, se a língua não é universal, a estrutura da realidade é
relativa à estrutura das diferentes línguas. Assim, cada língua tem sua própria
estrutura ontológica, seu próprio sistema de categorias. Este aspecto levou Flusser a
valorizar de modo especial a língua portuguesa, por se tratar de uma língua sem
tradição filosófica e, em decorrência, mais plástica e flexível, oportunizando o
desenvolvimento de um pensamento sério, criativo e livre da rigidez da tradição
filosófica europeia.
Fora da língua, há nada. O que há para além dela é o vazio do inapreensível.
Realidade significa realidade para nós, humanos, que transformamos o caos em
cosmos. Sem a mediação de uma língua, o sujeito sequer se constituiria: "No íntimo
sentimos que somos possuídos por ela [a língua], que não somos nós que a
formulamos, mas que é ela que nos formula." (FLUSSER, 2007, p. 37). Não há
mundo nem sujeito anterior à língua. Tudo é parte dessa rede autopoiética de
significações, chamada por Flusser de língua (e realidade).
A realidade é o esquema em que se dá a experiência humana do mundo. A
rigor, só o ser humano tem realidade, porque ela é composta pelas estruturações
ordenadoras que possibilitam a apreensão e a compreensão das aparências ou
fenômenos desordenados.
Real é, pois, aquilo que se manifesta dentro de um horizonte de significações
possíveis para o indivíduo. Algo se torna real, porque se realiza, porque passa a ser
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apreendido pelos intelectos que participam da realidade: "A filosofia, a religião, a


ciência e a arte são os métodos pelos quais o espírito tenta penetrar através das
aparências até a realidade e descobrir a verdade. O esforço abrange, portanto, todo
o território da civilização humana" (FLUSSER, 2007, p. 32).
Vale observar que tal ontologia conduz a uma revisão de conceitos
consagrados, como verdade, realidade e conhecimento, pois se restringem a um
modo específico de estruturação cultural. Isso não quer sugerir que não exista
conhecimento, realidade e verdade, mas que eles não são absolutos. A lógica, a
matemática e a ciência continuam válidas, porém, de uma maneira mais modesta:
não valem para uma suposta realidade em si, mas para certo tipo de realidade que,
dentre todas as possibilidades de ordenação, tornou-se a nossa.
Segundo Flusser, a cultura ocidental levou séculos para perceber que a
religião e a filosofia não são verdades fundamentais, mas modelos de compreensão
do cosmos e que outros modelos podiam coexistir. Diferentes religiões e diferentes
filosofias podem coexistir, sem se preocupar com o problema de qual delas encerra
maior verdade. O mesmo deve ocorrer com a ciência e a matemática, que ainda
conservam o estatuto de conhecimento e de verdade oficial, que a religião cristã
mantinha na Idade Média.
Flusser não é um cético, nem niilista. Apenas defende uma relativização da
realidade, que não costumava ser admitida pela rigidez dos sistemas ontológicos
tradicionais. A realidade é relativa, porque é identificada com a língua.
A fixação de um conceito concebido como correto e verdadeiro é uma forma
de cristalizar as informações, de arrefecer as tentativas de compreensão e as
discussões a respeito do tema. No pensamento flusseriano, a arte é o princípio
ontológico que se contrapõe à estagnação, à fixação e à cristalização da língua,
visto que cada palavra é uma espécie de obra de arte colocada na realidade.
A própria língua é uma obra de arte coletiva, constituída por incontáveis
gerações de intelectos que colaboraram para sua produção e significância. Ela
encerra toda a sabedoria da raça humana. Ela nos liga aos nossos antepassados e
nos permite preparar as gerações vindouras.
Essa bela caracterização flusseriana da língua como uma imensa obra de arte
coletiva explica que língua, realidade, arte e humanidade são concepções
primordiais e inseparáveis. Flusser cria, em certo sentido, um amálgama entre
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estética, ontologia e ética: o ser ou a realidade é a língua, que é uma criação


humana.
A realidade é linguística. Os dados nos são fornecidos pelos sentidos. Porém,
ainda caóticos ou inarticulados. Esses dados serão articulados e organizados de
forma significativa pelo intelecto humano. Ora, o intelecto é "o campo onde ocorrem
organizações linguísticas" (FLUSSER, 2011, p. 51). Os seres humanos enxergam e
tocam as coisas, quando elas passam a adquirir um significado, pois ver e tocar já
são modos de gerar significado - são nossos modos de apreender as coisas. Toda
percepção sensível acontece no âmbito de significações vivas, que é a língua.
Flusser defende a tese de que não há outra fonte de significação além da
linguagem. As palavras são símbolos significativos, logo, apontam para algo, mas
não para a realidade ingênua dos realistas. Algo que signifique para mim. Língua e
realidade formam-se simultaneamente, como os dois lados de uma moeda.
A natureza, em geral, embora conserve a ilusão de ser algo anterior ao
intelecto, existe somente na medida em que é concebida linguisticamente. Flusser
observa:
Aquilo que chamamos de coisas naturais, as pedras, as estrelas, a chuva,
as árvores, a fome, são fenômenos reais, porque são conceitos, palavras.
As relações entre os fenômenos são reais, porque formam pensamentos,
frases (FLUSSER, 2007, p. 190).

Na mesma direção, aponta a Professora Débora Pazetto de Ferreira, ao


afirmar que:
a ciência contemporânea, como a física quântica, depara-se cada vez mais
com o reconhecimento de que a natureza e suas leis são perspectivas
linguísticas e de que a verdade tem mais a ver com o poder explicativo e/ou
pragmático de certas formulações do que com a adequação de leis naturais
à natureza. O ilustre problema da verdade como adaequatio rei et
intellectus, na metafísica, que conduz à dúvida cartesiana sobre como saber
se os nossos pensamentos se adéquam às coisas tal como elas são em si
mesmas, só faz sentido porque essa metafísica pressupôs de maneira
inquestionável a cisão entre res cogitans e res extensa, como se fossem
duas substâncias independentes (FERREIRA, 2018, p. 46).

A língua, a realidade, o intelecto, as estruturas culturais não surgem do nada.


Formam-se lenta e continuamente. Por isso, há vários níveis de intelecto e de
língua, desde o balbucio até a oração, que coexistem tanto quanto as existências
históricas, pré-históricas e pós-históricas – assuntos importantes e amplamente
conhecidos pelos estudiosos de Flusser, que são desenvolvidos na fase europeia de
sua filosofia.
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O nada ou o caos que circunda a realidade não é o absolutamente vazio, mas


a potencialidade de gerar língua. Nada é o indizível, o ainda-não-tornado-língua.
Indizível porque ainda não dito. Portanto, o nada é fonte da realidade, do vir-a-ser.
Para além ou aquém da linguagem, não se pode dizer como as coisas são, nem que
elas são.
Com efeito, o autor inicia Língua e realidade explicando que o espírito
humano cria a língua, porque não suporta um mundo caótico: "O espírito, em sua
vontade de poder, recusa-se a aceitá-lo. [...] Uma das ânsias fundamentais do
espírito humano em sua tentativa de compreender, governar e modificar o mundo é
descobrir uma ordem" (FLUSSER, 2007, p. 31). Ou seja, o ser humano é dotado de
vontade, que se contrapõe à incompreensibilidade e à falta de significação do caos.
É dotado de uma forma de superá-las, a saber, a criação da língua, que ordena o
caos em cosmos.
Trata-se de uma tendência rumo à abstração da língua, isto é, rumo à
cristalização dos pensamentos ou frases criados pela vontade humana. As diversas
línguas se identificam com as diversas realidades – já o dissemos, pois essa tese
inaugural fundamenta as principais ideias que o autor desenvolve, posteriormente –
mesmo quando se torna um renomado teórico dos media, da comunicação, da
fotografia, do design etc. Isso significa que a fase europeia e mais conhecida da sua
obra se sustenta a partir de ideias originais, elaboradas na fase brasileira e bem
menos conhecida de seu pensamento.
Flusser deixou o Brasil em 1972, trinta e um anos depois que chegou, fugindo
da perseguição nazista. Viveu, inicialmente na Itália e, depois, na França e na
Alemanha. Em meados da década de 70, passou a ocupar-se mais especificamente
das situações provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo avançado, como o
crescimento da cultura de massas, a crise da ciência e a autoridade inexorável das
tecnologias de ponta, como a telemática e a microeletrônica. Com essas novas
preocupações, sem dúvida influenciadas pelo retorno ao solo europeu, o pensador
tcheco-brasileiro se dedica a um projeto de compreensão ampla dos sintomas
daquele tempo, tendo como referência a ideia de uma sociedade pós-industrial ou,
sociedade pós-Auschwitz.
Nessa época, quando retorna à Europa, em 1972, Flusser escreve A
fenomenologia do brasileiro, obra editada originalmente em alemão, com o título
de Brasil, ou à procura de um novo homem: por uma fenomenologia do
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subdesenvolvimento (Brasilien oder nach dem neuen Menschen: Für eine


Phänomenologie der Unterentwicklung), publicada apenas em 1994.
A originalidade das ideias de Flusser relaciona-se intimamente com as
condições em que foram criadas, isto é, com sua ausência de formação universitária
e com o afastamento em relação às principais discussões da filosofia europeia, na
época. Isso permitiu que seu pensamento se desenvolvesse de uma forma bastante
livre, individual, heterogênea e múltipla, em diálogo com outras áreas e com
importantes intelectuais e artistas brasileiros.
Flusser foi acolhido como um intelectual de referência na Europa, antes
mesmo que fosse reconhecido no Brasil e, embora nos últimos anos seu
pensamento venha sendo cada vez mais respeitado pelos pesquisadores brasileiros,
a fase europeia de sua filosofia continua em destaque. Atentar para o período no
qual o autor desenvolveu uma filosofia da linguagem bastante original, no contexto
do nosso país, é relevante não apenas porque impulsiona o escasso estudo da
cultura filosófica brasileira, mas também porque oferece outro ângulo para
aprofundar a leitura a respeito de um intelectual tão singular.

O Arquivo Flusser

Originalmente armazenados na Universidade das Artes de Berlim, na


Alemanha, milhares de documentos, manuscritos e publicações de Vilém
Flusser (1920 – 1991). O Arquivo Flusser consta de 11.500 textos que somam 30 mil
páginas, divididas em 358 pastas.
O arquivo brasileiro é fruto do apoio de Edith Flusser, viúva do filósofo, e de
um acordo firmado em 2012, entre Norval Baitello Júnior e Siegfried Zielinski, diretor
do Arquivo em Berlim, junto de Martin Rennert, reitor da Universidade das Artes. O
primeiro acervo foi organizado em 1992 – um ano após a morte de Flusser – a
princípio em Haia, na Holanda, e depois em Munique, na Alemanha. Chega ao Brasil
com aporte da PUC-SP e apoio da FAPESP-SP e do Instituto Goethe.
Com o Arquivo, Flusser volta ao Brasil, afirma Baitello Júnior. Para o
professor, o conteúdo do arquivo pode trazer novas leituras à obra de Flusser,
pensador que ele considera ser “mal compreendido ou distorcido em seu
pensamento”, tanto no Brasil quanto na Alemanha.
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A rigor, em Bodenlos: uma autobiografia filosófica, termo que significa sem


chão, sem terra, sem fundamentos, Flusser assume a condição de eterno migrante.
Não lança raízes. Não tem pátria, nem sistemas.
Concebendo a linguagem como o lugar onde se cria a realidade, a literatura
pode ser entendida como o espaço em que aflora o senso da realidade. Isto tem,
sob a ótica flusseriana, algo de religiosidade. Ele afirma:
Real é aquilo no que acreditamos. Durante a era pré-cristã o real era a
natureza [...] Durante a Idade Média o real era o transcendente, que é o
Deus do cristianismo. Mas a partir do século XV o real se problematiza. A
natureza é posta em dúvida. Perde-se a fé no transcendente. Com efeito,
nossa situação é caracterizada pela sensação do irreal e pela procura de
um senso novo de realidade. Portanto, pela procura de uma nova
religiosidade (FLUSSER, 2002b, p. 13).

A pós-história

Há fortes indícios de que ao percorrer a história das imagens técnicas,


Flusser concebera a ideia de pós-história. Em Filosofia da caixa preta, ele
estabelece, num pequeno glossário, a distinção entre o que chama de pré-história,
período caracterizado pela ausência de conceitos, mas dominado por ideias. Ou
seja, um momento em que prevalecem as imagens, mas não há textos escritos; o
período que corresponderia à história caracterizar-se-ia pela “tradução linearmente
progressiva de ideias em conceitos, ou de imagens em textos” (2002, p. 77) e o
“processo circular que retraduz textos em imagens”, concebido, finalmente, como
pós-história (Idem, ibidem).
Filosofia da caixa preta é uma obra traduzida para pelo menos quinze
idiomas, depois de ter sido lançada na Alemanha, em 1983 e traduzida, dois anos
mais tarde, pelo próprio autor e publicada no Brasil. A reedição da obra, em 2002,
ganhou o subtítulo Ensaios para uma futura filosofia da fotografia, expressão que
intitula o glossário disposto ao final da obra.
No âmbito da obra, é preciso observar que fotografia carrega o sentido
arquetípico, que quer designar todo o universo de imagens mediadas pela
tecnologia. Trata-se de uma expressão que reflete as sociedades contemporâneas,
nas quais se usam mais imagens que textos no processo comunicativo.
Ao estabelecer o seu conceito de comunicação, Flusser faz a distinção entre
discursos e diálogos. Entende que aqueles visam à objetividade e têm a função de
difundir conhecimento, enquanto esses têm como meta a intersubjetividade e
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funcionam como produtores de conhecimento novo. Para Flusser, o lado perverso


da pós-história é que, mesmo diante das amplas possibilidades de desenvolvimento
dos diálogos, nela predominam os discursos, o que é sintoma de uma crise profunda
na sociedade contemporânea.
A obra Fenomenologia do brasileiro, publicada na Alemanha, em 1994 e, no
Brasil, em 1998, ganhou o subtítulo em busca de um novo homem, quando da
tradução realizada pelo próprio autor. Ela reflete um pouco o cenário brasileiro
anterior aos anos 1970, mas seu eixo temático se debruça mesmo sobre uma
abordagem fenomenológica acerca do modus vivendi do cidadão brasileiro. O que
Flusser busca nesta obra é uma apreciação do status quo do homem comum, que
nasce e vive no Brasil e o ideal de que o homem contemporâneo se transforme no
homo ludens, ciente de que joga com sua existência e que jogam com ele.
Maria Helena Varela, ligada à Universidade de Évora (Portugal), ao avaliar os
escritos flusserianos, observa que o autor tcheco enxerga no brasileiro uma certa
ontologia poi-ética que, nascida a partir da linguagem, é autêntica. Ela destaca:
Não há qualquer atitude messiânica do filósofo tcheco em relação ao Brasil.
O Brasil é apenas um dos vários lugares (não de muitos) em que surgem
sintomas que tornam possível uma esperança. Dialogar com ele, sentir a
experiência afetiva de outra língua no colorido metafísico do português
brasileiro, na versatilidade táctil de seu significante politicamente incorreto,
em ressonância com a oração do coração e a noite do sensível, seduz o seu
[Flusser] espírito fenomenológico, no claro-escuro de uma cumplicidade que
insere, mas não integra (VARELA, 2001, p. 444).

É curioso observar que Flusser detecta, com certa intimidade e prazer,


aspectos típicos do brasileiro comum, ao dizer, por exemplo, que “o brasileiro é
homem do palpite genial, e não do planejamento” (1998, p. 53). Ou mesmo, dizendo
em relação ao Brasil, de modo geral, no que tange ao acolhimento do imigrante,
intelectual, na segunda metade do século XX:
Um ambiente que não lhe opõe obstáculo digno de nota, nem incentivo para
engajar-se nele. Se quiser viver nesse ambiente como homem livre, deve
abrir sua própria picada. Homem livre significa homem que vê sua própria
situação de fora, projeta um mapa sobre ela e age de acordo, que dá
sentido ao seu ambiente, vive de acordo com este sentido, e assim, o
transforma num mundo da sua vida. E, para que este sentido dado não seja
mera fantasia, procura desvendar a realidade da situação em que vive.
Portanto: pronto a alterar-se, a fim de alterar o mundo (FLUSSER, 1998, p.
56).

Referindo-se, de forma mais acentuada, à questão política, no livro Ficções


Filosóficas (1998), afirma que a consciência coletiva revela uma desilusão total com
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os valores da sociedade, o que lhe permite constatar “o abandono desses valores e


sua substituição pela inautenticidade do bate-papo [...]” (FLUSSER, 1998, p. 77ss).

Considerações finais

Como na Idade Média, a escrita era protagonizada pela Igreja, que detinha,
junto às elites, acesso à alfabetização e os monges informavam as pessoas, sem
que elas fossem capazes de decifrar as informações, assim, na atualidade, uma elite
comanda os modelos de conhecimentos e de vivências, através de códigos
matemáticos e outros programas computadorizados, de decifração inacessível à
grande parcela da população. Apenas os especialistas dominam os códigos de
decifração. Em decorrência de tal espectro, personalidades importantes, como
presidentes de países, políticos, dirigentes de nações perdem, significativamente,
seu poder de decisão, deixando as grandes decisões a cargo de analistas de
sistemas, especialistas em informática e cientistas que têm acesso aos códigos.
As pessoas desejam informações, não mais objetos. O mundo das não-coisas
desafia a humanidade ao desmaterializar a existência, transformando-a em cálculos,
pontos e números. A produção industrial é relegada a segundo plano, pois o que se
pretende é a produção de informações.
Isto se torna cada vez mais evidente, à medida que países e grandes grupos
financeiros se dispõem de informações privilegiadas (armas atômicas, engenharia
genética, farmacêutica, aviação, sistemas informáticos, etc), dominam e exploram,
cobrando preços altíssimos, subjugando a humanidade. As coisas (toda matéria
bruta) perderam valor, enquanto as não-coisas (símbolos, software, fama) ganharam
importância e valor.
Quando se fala do desaparecimento do espaço público, quer-se dizer que há
o desaparecimento do diálogo, da opinião pública. As estruturas da sociedade como
a família, sindicato, classes, também começam a desaparecer.
Flusser não tem dúvida de que o “novo homem não é mais uma pessoa de
ações concretas, mas sim um performer (Spieler): homo ludens, e não homo faber.
Para ele a vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo. Não se trata
mais de ações, e sim de sensações” (FLUSSER, 2007b, p. 58). O que se verifica é
que o mundo das não-coisas provoca virada radical na existência humana. Não se
trata aqui de uma profecia, mas está diante de nossos olhos, que a humanidade
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caminha para um totalitarismo programador, uma sociedade composta de


programadores e programados.
O problema não é tanto as máquinas (aparelhos) se tornarem autônomas.
Mas, as pessoas que estão envolvidas com essas máquinas, os funcionários que
estão perdendo a condição de seres humanos. O mesmo ocorre quando o homem é
dominado pelo aparelho burocrático, cujo trabalho consiste numa repetição contínua
de tarefas, tornando-se um homem-software.

REFERÊNCIAS:

BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre a imagem,


comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014.

BERNARDO, Gustavo. A Dúvida de Flusser: Filosofia e Literatura. Rio de Janeiro:


Globo, 2002.

FERREIRA, Débora Pazetto de. Vilém Flusser: um filósofo da linguagem brasileiro.


Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 2, p. 37-54, Abr./Jun., 2018.

FLUSSER, Vílem. Criação científica e artística. In: Conferências Maison de La


Culture. Chalon, 1982.

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