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DOI: 10.22456/2316-2171.

128892
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ESPAÇO ABERTO
A VELHICE E A PSICANÁLISE EM DIÁLOGO: A ENVELHESCÊNCIA E A EXPERIÊNCIA DE
ESTRANHEZA

Amanda Khalil Suleiman Zucco¹


¹ Graduada em Educação Física e Dança.
Mestre em Educação. Pesquisadora bolsista
PROSUC/CAPES na Universidade de Caxias do
Sul. E-mail: akszucco@ucs.br.

Em tempos contemporâneos, um bom solo para o cultivo da vida é reconhecido a partir de uma juventude
vitalícia que se mostra por meio de corpos jovens, belos, saudáveis e ativos. De maneira geral, nosso olhar
está encoberto por concepções modernas, que não veem o sujeito velho com “bons olhos”. “O velho é
chamado a confrontar a desqualificação do corpo envelhecido, marcado, no social, pelos estigmas de
decadência, feiura, doença e aproximação da morte”. (PY, 2004, p.44). Essa perspectiva estigmatizada em
relação à velhice pode ser reconhecida nos discursos médicos e reproduzida nos discursos sociais. Nesse
sentido, ainda é possível identificar, por meio desses discursos, maneiras de prevenir e evitar a velhice, como
se ela fosse sinônimo de doença.
No entanto, ao dedicarmos nosso olhar para o envelhecimento humano, ainda hoje somos afetados por
inúmeros discursos que constituem nossa visão, uma vez que falar de velhice significa, antes de tudo, falar da
existência humana. E por si só, isso já nos introduz distintas implicações, perspectivas e compreensões.
Embora possamos reconhecer os diversos enigmas que circundam a velhice, considerando sua impossibilidade
de determinação, apreensão ou controle, há questões que solicitam nossa atenção.
É diante desse contexto que a obra Envelhescência: o trabalho psíquico na velhice, da psicanalista e
professora do curso de Psicologia da PUCPR, Flávia Maria de Paula Soares, vem indicar outra perspectiva por
meio de seus estudos sobre a temática. O livro, publicado em 2020, possui 177 páginas e 7 capítulos nos quais
discute teoricamente a velhice e sua vinculação com a psicanálise a partir do conceito de envelhescência.
Na introdução da obra chamada “Envelhescência: de que se trata?”, Soares lança ao leitor
questionamentos centrais que irão acompanhar todo percurso de discussão dos demais capítulos. Além disso,
o texto introdutório apresenta uma breve definição de envelhescência, a partir de Manoel Tosta Berlinck
(2000, p. 19), o qual afirma que “ela é um trabalho psíquico necessário para recriar uma experiência – a de
viver a velhice”. Tudo indica que essa explanação inicial visa a possibilitar uma leitura fluída para auxiliar no
entendimento dos conceitos fundamentais na pesquisa de Soares.
Já no segundo capítulo, intitulado “O Conceito da velhice: da gerontologia à psicanálise”, a autora se dirige:
i) ao posicionamento da problemática sobre a definição da velhice; ii) à apresentação de perspectivas
epistemológicas que delineiam essa concepção; e, iii) à fundamentação da psicanálise como um novo olhar
epistemológico para pensar a velhice. A partir da problemática posicionada com um excelente aporte teórico,
a autora persegue, nesse caminho transdisciplinar – que perpassa as áreas da Geriatria, Gerontologia,
Sociologia e Psicologia – alguns questionamentos e entendimentos que circundam o campo social e discute a
hegemonia do discurso médico que passa a fundamentar a abordagem da velhice na atualidade.

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Estud. Interdiscipl. envelhec, Porto Alegre, 2023, vol. 28 1
2 ZUCCO, Amanda.
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A autora apresenta-nos um percurso que irá abordar a Geriatria e suas consequências sobre o conceito da
velhice. Para tanto, ela retrata que: “A velhice como categoria populacional é herdeira dos avanços da
medicina” (SOARES, 2020, p.23). Graças à duração média e ao aumento da expectativa de vida da população,
gerados devido aos controles epidemiológicos e à diminuição de doenças infecciosas, a velhice será
evidenciada como uma categoria populacional que requer uma maneira própria de atenção e cuidados. Será
a partir desse aumento significativo que a medicina moderna voltará seu olhar para compreender o processo
específico de envelhecimento.
Desse modo, Soares (2020) explica que o termo geriatria, proposto pelo médico Ignatz Leo Nascher em
1909, corresponderá a uma especialidade da medicina que se preocupará com o processo de degeneração
celular caracterizado por processos patológicos do envelhecimento, estabelecendo, assim, uma interligação
entre velhice e doença. Dessa forma, a autora ressalta que os saberes técnicos-médicos da época expressavam
“o desgaste biológico aproximava a velhice da doença” e, devido a isso, “a prevenção da doença tornava-se a
prevenção da velhice” (SOARES, 2020, p. 28). Será a partir do nascimento da Geriatria na modernidade que os
saberes técnicos da medicina tratarão o envelhecimento humano associado à doença. Embora a Gerontologia
tenha o intuito de propor uma perspectiva multidisciplinar, a autora afirma que, na prática, ela ainda persegue
a verticalização de um saber médico predominantemente valorizado, no qual torna a velhice um objeto
positivado, isto é, uma abordagem que refere um padrão de referência universal e trata o sujeito velho de
maneira generalizada, autorizando um determinado parâmetro de diagnóstico e intervenção. Logo, é possível
confirmar, segundo a obra Ideologia da Velhice escrita por Eneida Gonçalves de Macedo Haddad, que o
conjunto de representações formulado pela geriatria e pela gerontologia as posiciona como “detentoras dos
segredos da velhice” (2016, p.195), pois reorganiza os modos de viver dos idosos que, por serem tratados
como objetos do saber dessas ciências, são reduzidos a gerontinos, apagando as suas singularidades enquanto
seres históricos.
Ao referir-se ao campo de estudo da senescência, que define os padrões normais que envolvem cultural e
socialmente o envelhecimento como um processo de declínio biológico e a senilidade determinada pelas
patologias, Soares (2020) colocará em xeque a visão da velhice que a geriatria afirmou. Isso porque, em vez
de reafirmar as psicopatologias pela perspectiva da geriatria, que observa as alterações dos aspectos psíquicos
e sociais como consequências inerentes ao processo de envelhecimento e adota uma certa “indiferença diante
de sua manifestação” (SOARES, 2020, p. 29), a autora apresenta a psicanálise como um novo olhar
epistemológico para pensar a velhice. Será, desse modo, amparada nessa área que a dimensão psicopatológica
também afirmará sua natureza psíquica, contrapondo, assim, uma determinação puramente orgânica. A
psicopatologia em psicanálise fundará, portanto, a subjetividade que constitui um estilo próprio de cada
sujeito. Em outras palavras, o que até então as psicopatologias salientavam como diagnóstico de demências
atrelado ao processo de envelhecimento, agora estas estão atreladas às histórias de vida dos sujeitos velhos.
A pesquisadora destaca que, a partir do deslocamento proposto pela psicanálise de Freud, o sujeito velho
ocupará um lugar diferente daquele construído socialmente. Com isso, ela expõe a descoberta freudiana como
possibilidade na qual o sujeito pode se reconhecer na narrativa de sua história, no transcorrer de sua palavra,
no eco de sua voz, no depoimento de seu ponto de vista, que ganha outros contornos e simbologias ao ser
revelado àquele que o escuta. No estudo sobre psicanálise e velhice, ao tratar da experiência clínica, Altman
afirma que os idosos se mostraram dispostos a falar de si próprios e “reconstruir sua história interna para a
integração das experiências de vida” (2011, p. 200), usufruindo assim, de uma oportunidade para elaboração
de conflitos e de questões ligadas ao processo envelhecimento. Essa manifestação é postulada como um
sintoma do qual contém implicitamente um saber que, ao ser exposto em direção ao psicanalista, orienta-se
para ser ouvido como “uma tentativa de cura” (SOARES, 2020, p. 40).

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Estud. Interdiscipl. Envelhec., 2023, vol. 28
Envelhescência: o trabalho psíquico na velhice 3
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No terceiro capítulo, intitulado “Clínica, os casos, a ficção e a metapsicologia”, a escritora traz para a cena
textual uma descrição de quatro histórias com o intuito de expor a clínica na velhice, bem como as
especificidades que envolvem tal intervenção. É importante reafirmar que o caso clínico não condiz, consoante
Soares, “como uma descrição objetiva do relato, da história, ou mesmo da experiência da análise, mas sim
uma construção que tem caráter ficcional” (2020, p. 64). Nesse sentido, a riquíssima descrição dos casos
clínicos traz para o leitor uma relação de aproximação, tanto com este Outro – que, narrado pela psicanalista
expõe-nos sua experiência da velhice – tanto com a técnica da psicanálise, que se constitui através da “regra
fundamental” a partir da “associação livre e atenção flutuante” (p. 65).
Já o quarto capítulo, que se apresenta com o mesmo título da obra, “Envelhescência: o trabalho psíquico
na velhice” – retoma o conceito principal, o da envelhescência. Será na entrada da velhice que haverá uma
disjunção do corpo com aquilo que parece não envelhecer. No desenvolvimento do capítulo, a autora expõe,
sob o viés de Berlinck (2000), a envelhescência como uma possível resposta ao desencontro – que, segundo a
abordagem da psicanálise, resultará num encontro – do corpo que envelhece com o psiquismo que se mantém
sempre atual.
Isso significa que a envelhescência indicará caminhos outros para reconhecer esse processo de
estranhamento em que o corpo deixa de ser apenas considerado pela dimensão fisiológica do organismo,
passando a ser visto pela psicanálise como “aparelho psíquico” (SOARES, 2020, p. 90), do qual é erógeno,
sobredeterminado pelo prazer/desprazer e pela cultura. “Assim, o corpo passa a ser não só orgânico, fonte de
pulsões, mas também corpo erógeno, investido libidinalmente pelo outro, fonte de desejo, prazer e dor”
(CHERIX, 2015, p.41). Será esse corpo erógeno que sofrerá tanto declinações biológicas, quanto influências e
transformações do mundo sociocultural. Será esse mesmo corpo que, em conformidade com seu psiquismo,
poderá ou não dar continuidade àquilo que gere libido. Isso se aplica, segundo Soares (2020), ao modo como
cada sujeito adota diferentes recursos psíquicos durante a vida e se subjaz no exercício singular de
experimentação da velhice. Nesse contexto, o sujeito velho é um ser afetado pelo outro e pelo mundo que
habita, constantemente transformado e modificado conforme as relações que vivencia. Porém, conforme a
autora, ter esse alicerce simbólico, construído durante a existência do indivíduo, não significa que se haver
garantias que orientem sua manutenção ou que impeçam a intervenção de traumas.
Ao longo do quinto capítulo, intitulado “A envelhescência no singular: caminhos para uma generalização”,
a professora e psicanalista retoma alguns pontos e aspectos específicos dos casos clínicos para propor uma
articulação com alguns conceitos psicanalíticos. Nessa proposta, as personagens dos casos clínicos – Caroline,
Irina, Mauser e Ivone – são tiradas para dançar junto à envelhescência. Por meio desse enfoque, a autora
analisa cuidadosamente algumas questões que se impuseram em relação às especificidades da clínica com
sujeitos velhos e apresenta algumas contingências impostas pela velhice. Além disso, apresenta, a passos
ritmados, pontos de reflexão que buscam esclarecimentos a partir do cruzamento de aspectos singulares
presentes na descrição dos casos com as concepções psicanalíticas.
No penúltimo capítulo, intitulado “O pathos do/no analista”, Soares aborda a afetação que constitui o
psicanalista. Do mesmo modo que a subjetividade perfaz a fala daquele que entrega suas histórias, ela
também está implicada naquele que escuta. É diante de tal relação que se é possível modos diversos de viver
a envelhescência tanto por aquele que fala quanto por aquele que escuta. Isso quer dizer que o observador
externo é provocado em seu trabalho de escuta das histórias, por questões de ordem existencial.
No entanto, a autora defende que “há uma estrangeiridade dada pela velhice que a coloca como exterior”
(SOARES, 2020, p. 162). Isso significa que ainda sim, haverá uma distância que separa o sujeito, sua velhice e
a relação com pacientes idosos. Será neste viés que ela admitirá seus questionamentos que retratam sua
impotência diante de acontecimentos e suas possibilidades de ação que podem, de alguma maneira, aliviar
um fim mórbido.
4 ZUCCO, Amanda.
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Aliás, a pesquisadora destaca que em alguns momentos percebeu-se espectadora de certos


acontecimentos e notou em si um medo inicial de aproximação quando chegou na instituição. Além da própria
possibilidade de “resgatar a posição subjetiva”, como destacado pela autora, isso nos faz reconhecer a
condição de exterioridade que ainda se impõe à velhice e a coloca tantas vezes distanciada em nossa
sociedade. Diante disso, a expressão sartreana -“velho é o outro”- ganha voz a partir da filósofa Simone de
Beauvoir, na obra “A velhice”, ao nos afirmar que: “Antes que se abata sobre nós, a velhice é uma coisa que
só concerne aos outros” e, consequentemente, isso nos impede de “ver nos velhos nossos semelhantes”
(BEAUVOIR, 2018, p.11). Tão logo, é possível reconhecermos em nossa sociedade o desafio de vencermos a
distância que busca nos separar da velhice – colocando-a sempre como exterior - e vemos que sua
estrangeiridade nos adverte a possibilidade de nos assemelharmos à ela.
Seguindo para as considerações finais, no último capítulo, Soares (2020, p. 167) retoma sua afirmativa
inicial da velhice como um fenômeno complexo, alegando que a ela é “simultaneamente vivenciada de
maneira particular, mas também é um acontecimento universal essencialmente humano”. Contudo, a autora
parece esmorecer ao reiterar que, infelizmente, a hegemonia do discurso médico ainda prevalece e impera
sobre a velhice no cotidiano da clínica. Tal cenário viabiliza, com maior facilidade, o risco do clínico dicotomizar
a leitura em posicionamentos psicologicistas ou organicistas que reduzem o sujeito por sua condição frágil na
velhice. Dessa forma, a tarefa da psicanálise persiste em realizar sua grande contribuição com os sujeitos
velhos, na medida em que cria possibilidades de “escuta em transferência” (p.169) e torna-se capaz de facilitar
o processo de envelhescência.
O texto reserva-nos, ao longo do seu desenvolvimento, um olhar que nos convida a reconhecer o efeito da
dimensão subjetiva e, respectivamente, dos laços sociais, na constituição do sujeito velho. Tal proposta, coloca
em destaque a escuta clínica como possibilidade para gerar ressignificação dos sentidos da existência e criar
condições para dialogar com a experiência de estranheza que se vive na velhice.
À guisa de conclusão, a obra nos indica outra perceptiva e, por conseguinte, propõe uma leitura sobre a
velhice que está além do reducionismo presente nos discursos médicos e propagado através das crenças
sociais. Deste modo, é possível abrir espaços para que a velhice seja investigada por outras áreas, sendo
reconhecida pela complexidade que condiz o processo de envelhecimento, discutida segundo a pluralidade
que constitui e perfaz a historicidade dos sujeitos, bem como considerada pela singularidade das experiências
que transformam e formam os distintos modos de existir. Nesse caminho, a problematização do devir velho,
proposto por Tótora, irá indicar que a velhice deixe de ser somente uma fase cronológica para compor novos
modos de existência e constituir-se “para fazer a vida recriar-se a cada momento como se fora o derradeiro
dia” (2015, p. 40-41). Pois, não há como seguirmos cegamente – como denúncia e renuncia a obra resenhada
– padrões de referência que tratam a velhice de maneira generalizada. Sendo assim, é imprescindível gerar e
considerar outros discursos que circunscrevem a inauguração da velhice e a redirecionam em busca de novas
possibilidades de composição da existência. Logo, diferentes instancias e a própria concepção de
envelhescência proposta no livro de Soares (2020) – como trabalho psíquico necessário para recriar a
experiência de viver o envelhecimento - são idôneos para produzir discursos legítimos capazes de acolher e
discutir a pluralidade que diz respeito à velhice.

Referências
ALTMAN, Miriam. O envelhecimento à luz da psicanálise. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v.44, n.80, p.193-
206, 2011.

BEAUVOIR, Simone de. A velhice. 2ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.

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Estud. Interdiscipl. Envelhec., 2023, vol. 28
Envelhescência: o trabalho psíquico na velhice 5
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BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.

CHERIX, Kátia. Corpo e envelhecimento: uma perspectiva psicanalítica. Revista da Sociedade Brasileira de
Psicologia Hospitalar, Rio de Janeiro, v.18 n.1. 2015.

HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. A ideologia da velhice. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2016.

PY, Ligia. Velhice nos arredores da morte. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

SOARES, Flavia Maria de Paula. Envelhescência: O Trabalho Psíquico na Velhice. Curitiba: Appris, 2020.

TÓTORA, Silvana. Velhice: uma estética da existência. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2015, 230 p.

Submissão: 28/12/2022
Aceite: 21/05/2023

Como citar o artigo:

ZUCCO, Amanda Khalil Suleiman. A velhice e a psicanálise em diálogo: a


envelhescência e a experiência de estranheza. Estudos interdisciplinares
sobre o Envelhecimento, Porto Alegre, v. 28, e128892, 2023. DOI:
10.22456/2316-2171.128892
6 ZUCCO, Amanda.
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Estud. Interdiscipl. Envelhec., 2023, vol. 28

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