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CINTRA, F.A.; SAWAIA, B.B. A significação do glaucoma e a mediacão dos significados de velhice na perspectiva
Vygotskiana: subsídios para a educação à saúde. Rev.Esc.Enf.USP, v.34, n.4, p. 339-46, dez. 2000.
RESUMO
Visando obter subsídios para a educação à saúde de idosos portadores de glaucoma, realizou-se o estudo coin três sujeitos
glauco matosos, acima de 60 anos, por meio de entrevista individual e grupal. Foram identificados e analisados os sentidos
e significados da doença e da própria vida e a relação entre eles, na perspectiva vygotskiana. A significação do glaucoma
se configura no decurso da constituição emocional dos sujeitos e das suas experiências, reestruturando a sua subjetividade
e a realidade em que vivem. A motivação central dessa significação é a esperança na cura da doença, a manutenção da
autonomia e da independência.
ABSTRACT
The ob je ctive was to ob tain suppo r t to the heal th education of el derl y wi th gl auco ma. We in terviewe d
th ree gl aucoma p ati en ts, wi th age s above 60 ye ar s, in divi du all y , p rio r to a group se ssion . We i den tif ied
an d an al yzed th e sen se s and me ani n gs of gl auco ma an d of l if e i tsel f as wel l th e rel ati o n sh ip b e twe en
th e m, f ro m th e V y go tsk y ' s pe r spe cti v e . The signif ican ce of gl aucoma take s f orm during the p atien t' s
emo tion al con sti tu tion an d experiences, re modell ing of their sub jective con di tion and thei r l ives. The
cen tr al mo tiv ation in thi s signif icance i s the hope of a cure f or gl au coma an d the desire to preserve the
autonomy and independence.
* Resumo de Tese de Doutorado apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, em 1998.
** Enfermeira. Professor Assistente Doutor no Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências Médicas,
niversidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo. e-mail: fernanda@fcm.unicamp.br
*** Psicóloga Social. Professor Doutor Associado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo.
Orientadora da tese. e-mail: pssocial@exatas.pucsp.br
Na análise nossa preocupação foi buscar o Todos os sujeitos revelam desconhecimento sobre a
que era comum aos sujeitos, mas também doença, acompanhado por uma insegurança, o que
interessava-nos as contradições e ambigüidades. justifica, em parte, a contraditoriedade que aparece
Foi procurando entender e relacionar as em seus discursos. Eles apontam, ao mesmo tempo, o
ambigüidades, que pudemos compreender o nervoso e a hereditariedade como causas do glaucoma,
subtexto. E foi através do subtexto que e o associam ao processo de envelhecimento. Além
percebemos a motivação e a afetividade que destas, outras causas são mencionadas, como: a luz do
estavam por trás da significação construída sol, a insônia e a alimentação.
em relação ao glaucoma. Analisando o subtexto e
Podemos, assim, afirmar que os sujeitos
o intertexto de cada discurso, identificamos os
buscam explicações para o glaucoma, fazendo uma
sentidos e significados que emergiam dos
associação de causalidade, a qual é mediada pelos
discursos, e agrupamo-los em grandes "unidades
significados daquilo que permanece, ou seja, das
de significados", as quais convergiram para as
representações cristalizadas de doença e de outras
"unidades temáticas" centrais.
que permeiam o senso comum, bem como pelos
Para cada sujeito foram identificadas sentidos que as manifestações relacionadas à
as "unidades temáticas" comuns, que emergiram doença e ao envelhecimento têm para eles no
dos discursos na entrevista individual. Nas presente.
reuniões grupais, as mesmas unidades temáticas
foram identificadas. Nestas unidades temáticas, 2. "Mudando a vida"
foram agrupados os sentidos e significados
Ao se reportarem às suas vidas após o
que eram comuns, procurando-se, desse modo,
identificar as semelhanças, as diferenças, as diagnóstico do glaucoma, todos os sujeitos expressam
contradições e ambigüidades. uma mudança, a qual eles associam na maioria das
vezes ao glaucoma e, em menor proporção, muitas
vezes de forma oculta, ao envelhecimento. Mas, ao
mesmo tempo, eles negam essa mudança, chegando
IV. RESULTADOS E DISCUSSÃO a afirmar que nada mudou.
Os sujeitos resistem às mudanças que
acompanham o processo de envelhecimento, gerando
As "unidades temáticas" foram
um movimento de tensão entre perceber que a vida
intituladas como: "Explicando as causas",
está mudando e, concomitantemente, negar essa
"Mudando a vida", "Sintomas, tratamento e
mudança. Esse movimento de contraditoriedade
prognóstico: revelando a necessidade de
revela a mediação do significado fossilizado de
orientações", "(Re)construindo significados sobre o
velhice que permanece em nossa sociedade, como
glaucoma", e "Enfrentando o glaucoma e o
perío do si mboli zado po r perdas, decadênci a,
envelhecimento".
inutilidade e dependência.
1. "Explicando as causas" Dentre os múltiplos sentidos e significados
construídos acerca da mudança na vida após o
Todos os sujeitos buscam explicações para o diagnóstico do glaucoma, a preocupação e o nervoso
glaucoma, tentando, por meio delas, conhecer as destacam-se pela freqüência e a relevância com que
suas cau sas e encontrar si gni fi cado s que aparecem nos discursos. Eles são apontados como
me lh o r respondam às configurações já decorrentes do glaucoma e das alterações
existentes, as quais se constituem na sua própria proporcionadas por essa doença, e, que agravam os
história de vida. Para isso eles recorrem ao problemas existentes.
passado, particularmente às experiências com Todos os sujeitos estabelecem uma relação
esta e outras doenças, ao momento de vida atual entre glaucoma e envelhecimento, remetendo o
e, ainda, ao destino, que é apontado como uma envelhecimento à predisposição e convivência com
força sobrenatural. doenças e à dependência médica e medicamentosa.
A idade avançada, para eles, implica no aumento no
Reportando-se ao passado, os sujeitos o
consumo das drogas. -
reconstroem através da lembrança dos eventos
marcados pelo tempo. BOSI (1994), na sua obra A falta de informações sobre o glaucoma, além
sobre lembrança de velhos, considera que "fica o de constituir um dos elementos que gera
que significa". Contudo, na perspectiva insegurança, revela-se como a base afetivo-volitiva
vygotskiana, entendemos que o que fica não é para demonstrar que têm plena capaci dade
apenas o que a experiência significou (de maneira cognitiva. Todos manifestam a importância de
direta) para o sujeito. O que fica é a significação conhecer a doença, reforçando a capacidade cognitiva
da experiência, mediada pelos significados que revelam possuir, e destacando que a idade não
socialmente construídos, e pela própria história de representa um fator limitante para a aprendizagem,
vida de cada indivíduo. Assim, ao lembrar, os visto que sempre é tempo para aprender.
sujeitos reconfiguram os significados à luz da
constituição da sua vida psíquica.
4. "(Re)construindo significados sobre o sujeitos, é que pudemos perceber esse paradoxo entre
glaucoma" a confiança e a resistência ao discurso científico.
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Rev.Esc.Enf. USP, v.34, n.4, p. 339 -46,dez. 2000.
A Significação do glaucoma e a medicação dos significados... Fernanda Aparecida , Baber Cintra, Bader Burihan Sawaia
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indivíduo pelo seu fracasso em cuidar de si, e
situações distintas, mostrou-nos como a retórica do acentuando o descompromisso com a solidariedade.
discurso muda de acordo com a intersubjetividade
estabelecida. Nesse movimento aparecem ambi- 7.Finalizando, conforme analisa SAWAIA (1997), a
güidades e contraditoriedades, reveladas pelas educação para a saúde deve dar força ao sujeito, sem
mudanças nos significados e pelo papel que o sujeito excluir a responsabilidade do Estado, da comunidade
assume na intersubjetividade. e do outro, na promoção da qualidade de vida.
Finalizando, acreditamos que a significação do
glaucoma não pode ser compreendida apenas como
uma construção semiótica vinculada às REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
manife staçõe s orgânicas da doença ou às BEARD, K. Fármacos en geriatria. In: ORGANIZACIÓN
representações que circulam no discurso científico PA NA M ERI CA NA D E L A S ALUD. La a ten ció n de l os
ou no senso comum. Ela é um processo complexo e ancianos: un desafio para los anos noventa. Washington,
1994. p.267-74. (Publicación científica, 546).
seletivo, orientado por um sentido dominante e
comum aos sujeitos: o medo da perda da identidade BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 3.ed.
de pessoa ativa e independente. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
CINTRA, F.A. et al. Avaliação de programa educativo para
A significação do glaucoma se desenvolve e se portadores de glaucoma. Rev.SaúdePúbl., v.32, n.2, p.172-7,
configura no decurso da própria constituição 1998.
e mo ci o nal e das e x pe riê n ci as do s su je i to s, COSTA, V.P. et al. O que os pacientes sabem sobre glaucoma?
reestruturando a sua condição subjetiva e a realidade Arq.Bras.Oftal., v.58, n.1, p.36-41, 1995.
em que vive. Ela é, portanto, um processo que se DIAZ, R.B. Adesão ao tratamento medicamentoso em pacientes
constitui na intersubjetividade. idosos. In: PAPALÉO NETTO, M. Gerontologia. São Paulo,
Atheneu,1996. p.230-41.
DIOGO, M.J.D.; CEOLIM, M.F.; CINTRA, F.A. Grupo de atenção à
V. RECOMENDAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO saúde do idoso (GRASI): relato de experiência de implantação
À SAÚDE em um hospital universitário. In: CONGRESSO BRASILEIRO
DE GERIATRIAE GERONTOLOGIA, 11, Rio de Janeiro, 1997.
1.0s programas de educação à saúde, Programa. Rio de Janeiro, SBGG - RJ, 1997. p.70./Resumo/.
especialmente os grupos educativos, não podem GOES, M. C. R. de. A nat ur eza social do desenv olv iment o
ignorar a constituição subjetiva dos sujeitos e, por psicológico. In: Cadernos CEDES 24 - Pensamento e
conseguinte, a intersubjetividade; linguagem, 2.ed. Campinas, Papirus, 1991. p.17-24.
2.Para os grupos educativos, consideramos HUME, A.L.; OWENS, N.J. Drugs and the elderly. In: REICHEL,
importante a realização de um encontro individual W. (ed.) Care of the elderly: clinical aspects of aging. 4.ed.
Baltimore, Williams & Wilkins, 1995. p.41-63.
com os participantes dos grupos, previamente às
reuniões iniciais, o qual possibilitará a emergência KOZULIN, A. La psicologia de Vygotsky. Madri, Alianza,
1994. cap,4, p.111-47.
de senti dos e signi fi cados relevantes para a
compreensão dos discursos dos sujeitos; MEDINA, N.H. et al. Morbidade ocular em idosos da cidade de
São Paulo -SP, Brasil. Arq.Bras.Oftal., v.56, p.276-83, 1993.
3.Na educação à saúde para idosos não se pode
MOLON, S.I. A questão da subjetividade e da constituição
menosprezar a sua capacidade cognitiva, mas do sujeito nas reflexões de Vygotsky. São Paulo, 1995.
considerar as suas individualidades, motivações e 174p. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade
potencialidades para uma participação efetiva no Católica de São Paulo.
cuidado à saúde. PINO, A. As categorias de público e privado na análise do
4.Conforme afirma SAWAIA (1995:163), para processo de internalização. Educação & Sociedade, n.42,
a p ro mo ção da s aú de n ão ba st a " mi n i s t ra r p.315-27, 1992.
medicamentos ou ensinar novos conhecimentos e PINO, A. Processos de significação e constituição do sujeito.
padrões comportamentais. É preciso atuar nas Temas em Psicologia, n.1, p.17-24, 1993.
n e ce s si d a de s e e mo çõ e s q u e me de i a m ta i s REY, F.G. Epistemología cualitativa y subjetividad. São
conhecimentos e práticas, isto é, na base afetivo- Paulo, EDUC, 1997.
volitiva do comportamento". SAWAIA, B.B. Dimensão ético-afetiva do adoecer da classe
trabalhadora. In: LANE, S.T.M.; SAWAIA, B.B. (orgs.) Novas
5.En tende mo s, assi m, que o respei to à veredas da psicologia social. São Paulo, Brasiliense/
autonomia e à individualidade, bem como o EDUC, 1995. p.157-68.
reconhecimento dos idosos como pessoas ativas e SAWAIA, B.B. Afetividad y temporalidad en el cuerpo teórico-
interativas, é fundamental para o envolvimento dos metodológico de la Psicologia Social: una reflexión sobre el
idosos nos programas de educação à saúde. proceso de salud y enfermedad. /Trabalho apresentado na 9.
6.Por outro lado, é preciso cuidado para não Jornadas Venezolanas de Psicologia Social, Coro, 1997/.
transformar a autonomia e a individualidade em VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. 4. ed. São
individualismo, o que ocorre quando se acentua a Paulo, Martins Fontes, 1991.
subjetividade como qualidade independente da VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. 3.ed. São Paulo,
intersubjetividade face a face, culpabilizando o Martins Fontes, 1993.