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22 ARTIGO ORIGINAL

Stella R. Taquette
Doenças psicossomáticas na
adolescência

RESUMO
Definição de doença psicossomática. Mecanismos emocionais envolvidos na gênese da doença e na relação médico/paciente. Teorias
e abordagem psicossomáticas. Sintomas psicossomáticos mais comuns na adolescência.

UNITERMOS
Psicossomática; relação médico/paciente; sintomas psicossomáticos

Toda doença humana é psicossomática, já Essa visão mais holística do paciente torna-se
que incide num ser que tem corpo e mente inse- fundamental na adolescência, por ser esse um pe-
paráveis anatômica e funcionalmente. Por isso a ríodo de muitas e grandes transformações, com a
expressão doença psicossomática não é muito ade- vivência de novos conflitos e a reativação de anti-
quada, pois nela está subentendido que existem gos(7). Na adolescência, em especial, é indispensá-
outras doenças que não são psicossomáticas, ou vel a visão integral do ser humano.
seja, com separação entre psique e soma. Corpo É necessário enfatizar que a doença tem um
e mente são indivisíveis, e dentro dessa ótica todas caráter social e cultural, com base não só nas con-
as doenças são psicossomáticas, porque atingem dições sociais e econômicas da população, mas nas
tanto a psique como o soma. Entretanto, na visão relações sociais de produção(5). O adoecer sofre tam-
biologicista da medicina atual e na estrutura curri- bém profundas influências de questões sociocultu-
cular da maioria das escolas médicas, observa-se rais. Determinados sintomas em uma classe social
uma fragmentação do ser humano, que é estuda- podem não ser considerados como tais em outra.
do por partes e sistemas, e não como um todo. A percepção das sensações é desigual nas diversas
Em conseqüência, nesse quadro que se desenha, classes sociais. Por exemplo, as sensações que se se-
aprende-se a tratar de doenças, e não de pessoas guem a uma refeição farta podem representar mal-
doentes, que têm uma existência biológica, psico- estar, peso no estômago para as classes superiores,
lógica e social. mas, para as classes populares, podem significar
Este artigo visa destacar a importância dos euforia pós-prandial, estar forrado, satisfeito(2).
mecanismos emocionais envolvidos na gênese das A interpretação que os indivíduos dão à sua
doenças e na relação médico/paciente, valorizando doença e a seus sintomas difere conforme concei-
a psique e tentando compreender de forma global tos morais, culturais e religiosos. Essas diferenças
o que se passa com o paciente para oferecer um culturais delimitam formas de percepção e inter-
tratamento mais eficaz. pretação dos conflitos, provocando somatização
em uns e verbalização em outros. Os sintomas das
doenças têm representações diferentes para cada
pessoa. A relação do indivíduo com seu próprio
corpo determina sua forma de adoecer e os cuida-
Professora-adjunta FCM/UERJ; coordenadora de Atenção Primária do NESA/UERJ dos consigo mesmo.

volume 3  nº 1  janeiro 2006 Adolescência & Saúde


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Ao se atender um paciente, deve-se com- substrato anatômico que estabelece a ligação entre
preender o possível significado do sintoma expos- o afeto, o pensamento e o sistema visceral(9).
to. A doença não acontece por acaso nem é um Na teoria do desenvolvimento, segundo a
fato isolado na vida do indivíduo. Ela ocorre no psicanálise, o indivíduo no primeiro ano de vida
momento em que o organismo está vulnerável, em só reage aos estímulos externos através do siste-
função da história pessoal, da bagagem genética, ma nervoso vegetativo. Ele ainda não tem capaci-
da situação social. O organismo sofre agressões dade de verbalizar ou de se expressar por gestos,
dos meios interno e externo que perturbam a sua pois não dispõe de coordenação motora para isso.
homeostase, gerando então a doença. Portanto, nessa fase, a comunicação é pré-verbal
e as funções vegetativas são de grande ajuda na
compreensão dos processos psicossomáticos. A
TEORIAS PSICOSSOMÁTICAS possibilidade de somatizar é um mecanismo de
defesa fixado na fase oral do desenvolvimento.
Diversas teorias tentam explicar a relação Sempre que a relação mãe/filho não estiver boa, o
existente entre as manifestações biológicas e psi- bebê reagirá fisicamente(8). Essa fase inicial do de-
cológicas. Didaticamente podemos dizer que duas senvolvimento do ser humano, em que a relação
correntes se destacam. A primeira delas se baseia mãe/filho é fundamental, deixa marcas para o resto
no efeito que as emoções provocam no organismo da vida. Quando o indivíduo enfrentar momentos
através do sistema nervoso e seus neurotransmis- de crise, poderá reagir reativando processos psicos-
sores (psicofisiologia). A segunda corrente funda- somáticos com os quais resolverá seus problemas
menta-se na teoria psicanalítica, que tenta esclare- passados. Spitz(12), em seu trabalho de observação
cer alguns mecanismos psicológicos envolvidos na de bebês no primeiro ano de vida, chamou a aten-
gênese das doenças. ção para as reações psicossomáticas dos bebês que
Em relação à psicofisiologia, a literatura mé- não recebiam os cuidados adequados nesta fase. O
dica relata várias pesquisas. Alguns trabalhos clás- eczema infantil aparece como reação a um trata-
sicos, como o de Cannon(6), comprovam as mo- mento materno hostil e ansioso, sendo a depressão
dificações fisiológicas nos estados de fome, raiva anaclítica e o marasmo conseqüências da privação
e medo que acontecem por influência do sistema materna parcial ou total. O autor conclui que os
nervoso vegetativo. Outra teoria, a de McLean(10), distúrbios na formação das primeiras relações ob-
descreve como unidade funcional básica o arco jetais do bebê resultam provavelmente em grave
reflexo, que capta os estímulos do mundo exte- prejuízo às relações futuras do ser na adolescência
rior pela via aferente ou sensorial, assim como do e idade adulta.
mundo interior, e através do centro nervoso, que Winnicott(14), com sua larga experiência clíni-
se distribui ao longo do neuroeixo, alcança a via ca e pesquisas científicas, ressalta a importância dos
eferente ou efetora, a qual transmite os impulsos primeiros cuidados do bebê em sua vida futura. Ele
para vísceras, aparelho locomotor e outras regiões. ressalta que um desenvolvimento saudável da psi-
A esse conjunto de estruturas deu-se o nome de que humana favorece a evolução física e que dificul-
sistema límbico, que compreende o córtex cerebral dades emocionais podem gerar situações somáticas
(lobo temporal e zonas inferiores do lobo frontal), graves. Segundo a teoria psicossomática de Pierre
a área septal, o complexo amigdalóide, o hipocam- Marty(3), o indivíduo reage a traumas conforme sua
po e o hipotálamo. O sistema límbico, ao receber organização evolutiva mental. Cada pessoa tem uma
os estímulos internos ou externos, transforma-os forma peculiar de reagir e de somatizar os traumas,
numa atividade somática ou física (um grito, uma dependendo de sua história de vida e da bagagem
expressão facial, um movimento súbito do corpo, genética. O ser humano é um sistema complexo
uma alteração circulatória, digestiva, etc.). A per- de interações que pode estar em equilíbrio ou não.
cepção do sistema límbico não é intelectual. É o Um trauma externo pode ser mais desordenador

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para uns do que para outros, dependendo da orga- analisa a relação médico/paciente e constata que
nização interna de cada um. Quando uma pessoa o remédio mais usado em medicina é o próprio
sofre um trauma, há um movimento de desorga- médico, o qual também precisa ser conhecido em
nização interna que atinge primeiro as estruturas sua posologia, reações colaterais e toxicidade.
mais evoluídas, recentemente adquiridas durante o A anamnese da consulta clínica com aborda-
desenvolvimento. Conhecendo-se a economia psi- gem psicossomática objetiva conhecer o máximo
cossomática de uma pessoa, podemos prever seu a respeito do paciente, da sua doença e também
modo de reação mais provável diante dos traumas do ambiente em que vive. Às vezes o paciente faz
e como se organiza posteriormente. relatos que, aparentemente, não têm relação com
a doença, porém mais tarde se revelam extrema-
mente importantes na compreensão de seu qua-
ABORDAGEM PSICOSSOMÁTICA dro clínico. Alguns dados que normalmente não
são privilegiados na anamnese clínica tradicional
A freqüência em serviços de saúde de pacien- devem ser valorizados na abordagem psicossomá-
tes com sintomas denominados psicossomáticos é tica, como os listados a seguir:
grande. Segundo Smith(11), a incidência de proble- • perguntar ao paciente o que ele acha que tem,
mas psicológicos entre adolescentes americanos qual a possível causa de sua doença;
chega a aproximadamente 25% (ansiedade, de- • o que ele acha que faz melhorar os seus proble-
pressão, desordens alimentares e somatizações). mas;
No Brasil, Crespin (1986), em levantamento com • que conseqüências em sua vida pessoal a doença
630 adolescentes de consultório particular sobre tem causado;
os motivos das consultas, constatou que as quei- • investigar os vínculos mais significativos do pa-
xas sociopsicossomáticas foram as mais numero- ciente: mãe, pai, irmãos, amigos, namoradas (os);
sas, representando 32,69% do total. • perguntar sobre o cotidiano em família, na esco-
Entretanto, mesmo os sintomas que não são la e comunidade em que vive;
denominados psicossomáticos têm um conteúdo • investigar os modelos de somatização e de de-
psicológico latente que quase nunca é exterioriza- sordem orgânica familiar.
do e cuja compreensão é desejável para a melhora
da doença. Na abordagem psicossomática busca- A coleta desses dados e a anamnese tradicio-
se dar ênfase não só aos sintomas que levaram o nal ajudam a contextualizar melhor a doença. O
paciente ao serviço de saúde como à compreensão paciente se torna co-responsável pelo tratamento,
do seu conteúdo latente. deixando sua postura passiva para agir ativamente
Quando se identifica um componente psico- na sua melhora e proporcionar um menor custo
lógico importante que agrava a doença, o profissio- da terapia, com menos medicamentos e exames
nal de saúde encaminha o paciente a um psiquia- complementares.
tra ou psicólogo. Freqüentemente, entretanto, a
pessoa não aceita ou finge aceitar tal orientação e
não procura o psicoterapeuta. Quando o profissio- SINTOMAS PSICOSSOMÁTICOS
nal de saúde dá ouvidos às questões emocionais, COMUNS NA ADOLESCÊNCIA
identifica algumas causas e permite ao paciente
compreender que há sentimentos vinculados a Na adolescência, os sintomas psicossomáti-
seus sintomas, essa atitude torna mais provável a cos freqüentemente têm relação com o estágio de
aceitação da necessidade de se submeter à psico- desenvolvimento. Na fase precoce (11 a 14 anos),
terapia. Esse comportamento do profissional de as mudanças do corpo, a masturbação, a definição
saúde já caracteriza a psicoterapêutica. Balint(1), da identidade sexual são os principais fatores es-
em seu livro O Médico, Seu Paciente e a Doença, tressantes. Na adolescência média (14 a 17 anos),

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os conflitos que aparecem são de tentativa de in- nem com outros sintomas cardíacos ou respira-
dependência da família e em relação ao início dos tórios associados. O exame físico é normal. Deve
relacionamentos amorosos. Na fase tardia (17 a 20 ser observada com atenção a dor acompanhada
anos), os principais problemas são relativos a início de palpitações, que podem indicar a presença de
profissional, preocupações com o futuro, questões uma arritmia cardíaca. Quando não se encontram
espirituais e filosóficas. outros fatores orgânicos que justifiquem a dor,
Os sintomas psicossomáticos mais comuns na devem-se aprofundar as questões relacionadas a
adolescência são cefaléia, dor no peito, dor abdo- determinados tipos de estresse que não são regu-
minal e fadiga persistente(4, 13). larmente relatados, como abuso sexual, medo de
gravidez, etc. Às vezes a dor é similar a proble-
mas cardíacos ocorridos em familiares próximos.
CEFALÉIA O tratamento inclui orientação do paciente sobre
a possível origem dos sintomas, intervenção no
A investigação clínica habitual deve ser feita meio ambiente com afastamento dos possíveis
afastando-se alguma doença de base, como as de fatores estressantes, relaxamento, psicoterapia e
causa neurológica, oftalmológica, otorrinolaringo- medicamentos ansiolíticos ou antidepressivos nos
lógica, etc. A cefaléia sem causa orgânica bem de- casos mais graves.
finida geralmente é de intensidade leve ou mode-
rada, não impedindo o adolescente de continuar
exercendo as atividades normais do seu dia-a-dia. DOR ABDOMINAL
Freqüentemente é difusa, crônica, intermitente e
acontece no decorrer ou final do dia. Raramente o É uma dor geralmente mal definida, de lo-
paciente acorda com dor pela manhã ou no meio calização imprecisa, sem relação com a ingestão
da noite. É comum o adolescente relacionar a dor de alimentos ou com o funcionamento intesti-
a cansaço, estresse ou preocupação. Na investiga- nal. É crônica, de pequena ou moderada inten-
ção diagnóstica, o profissional de saúde deve ave- sidade, às vezes acompanhada de palidez e dor
riguar a presença de algo que esteja provocando de cabeça. A dor costuma melhorar com repou-
estresse nos ambientes em que o adolescente vive: so adequado, alimentação saudável, orientação
lar, escola, trabalho. Outro dado comum é a pre- sobre a abolição do uso do fumo e controle do
sença de cefaléia em membros da família. uso de chicletes, refrigerantes e bebidas alcoó-
A consulta clínica com abordagem psicos- licas.
somática favorece a compreensão, pelo paciente,
da origem dos sintomas, sendo um momento em
que ele tem a oportunidade de expor seus temo- FADIGA CRÔNICA
res. Isso provoca um alívio de sua ansiedade, pois
muitas vezes o adolescente pensa ter um proble- Os pais se queixam muito do cansaço e da so-
ma grave como um tumor cerebral. O tratamento nolência excessiva dos filhos adolescentes. Nesses
também pode ser feito com o controle do estresse casos deve ser investigada a associação com pro-
e com a administração de medicamentos analgési- blemas infecciosos, imunológicos e alérgicos crô-
cos, vasoconstritores e antidepressivos. nicos. A etiologia, porém, permanece mal defini-
da, e alguns autores atribuem tal cansaço crônico
a um quadro depressivo latente. A melhora dos
DOR NO PEITO sintomas se dá com orientação sobre mudança
de hábitos de vida, retomada de atividades físicas
Comum em pacientes ansiosos e deprimidos, prazerosas e o uso de antidepressivos em situações
geralmente não tem relação com esforço físico mais incapacitantes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ser cuidado. Alguns profissionais de saúde, quando


identificam que a origem dos sintomas do paciente
A abordagem psicossomática privilegia o não está numa patologia orgânica, tendem a clas-
doente, e não a doença, e tenta compreender seu sificar a doença como psicológica e desvalorizá-la,
significado. Relacionar um sintoma físico a um pro- não dando a devida atenção ao sofrimento do pa-
blema emocional requer cuidado, paciência e rara- ciente. Deve-se lembrar de que, mesmo não tendo
mente se consegue numa primeira consulta. Para um substrato anatômico que justifique o sintoma,
isso é necessário recolher uma história minuciosa, o paciente o sente e precisa, da mesma forma, de
focalizando a investigação no paciente, e não em ajuda para se livrar dele.
seus sintomas, e dar-lhe chance de expor seus sen- A abordagem psicossomática diminui o
timentos. A doença muitas vezes é uma escapa- tempo de tratamento, evita exames complemen-
tória de uma situação de conflito ou aparece pela tares desnecessários e abrevia o sofrimento do
necessidade de atenção e carinho, necessidade de paciente.

REFERÊNCIAS
1. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988.
2. Boltanski L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1989. 191p.
3. Debray R. O equilíbrio psicossomático e um estudo sobre diabéticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.
4. Greene JW, Walber LS. Psychosomatic problems and stress in adolescence. Pediatr Clin North Am 1997; 1557-71.
5. Laurell,AC. A saúde-doença como processo social. In: Nunes ED (org.). Medicina social: aspectos históricos e teóri-
cos. São Paulo: Global, 1983. p. 133-58.
6. Mello Filho J. Concepção psicossomática: visão atual. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
7. Outeiral JO. Distúrbios psicossomáticos na adolescência II. In: Maakaroun MF et al. Tratado de adolescência. Rio de
Janeiro: Cultura Médica Ltda., 1991. p. 533-40.
8. Pilz SC. Distúrbios psicossomáticos na adolescência I. In: Maakaroun MF et al. Tratado de adolescência. Rio de
Janeiro: Cultura Médica Ltda., 1991. p. 524-32.
9. Pinheiro R. Medicina psicossomática: uma abordagem clínica. São Paulo: Fundo Editorial Byk, 1992.
10. Pontes JF. Conceito de integração em medicina psicossomática. Arq Gastroenterol 1975; 12(2): 83-7.
11. Smith MS. Psychosomatic symptoms in adolescence. Med Clin N Am 1990; 76(5): 1121-34.
12. Spitz RA. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
13. Strasburger VC, Brown RT. Psychosomatic disorders. In: Strasburger VC, Brown RT. Adolescent medicine: a practical
guide. Little Brown and Company: Boston/Toronto/London, 1991. p.447-67.
14. Winnicott DW. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

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