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Corpo, psiquismo

e experiência
saúde, sintoma e doença são manifestações que resultam de
um jogo complexo de forças quase sempre desconhecidas
do indivíduo. toda doença é ainda uma tentativa de
alcançar um equilíbrio da economia psicossomática

por Rubens Marcelo Volich

A
s relações entre corpo e psiquismo são uma
realidade que sistematicamente se manifesta
através da experiência de cada um.
Das mais simples vivências cotidianas, como a
aceleração do ritmo cardíaco diante da lembrança de um en-
contro amoroso, até as complexas descobertas experimen-
tais da psiconeuroimunologia, que comprovam a redução
do número de glóbulos brancos e das defesas imunológicas
em pessoas que vivem momentos depressivos, é infinita a
gama de manifestações que revelam as interações perma-
nentes e indissociáveis entre funções orgânicas e psíquicas.
Apesar de seu caráter quase intuitivo e das fortes evi-
dências encontradas pela pesquisa experimental, em mui-
tas situações clínicas essas relações são negligenciadas,
produzindo situações paradoxais. Na medicina, apesar dos
enormes avanços diagnósticos e terapêuticos alcançados
em todas as especialidades, não são raros os casos em que
o autor os médicos deparam com pacientes cujas queixas e sintoma-
Rubens Marcelo Volich é psicanalista, doutor tologia permanecem refratários a todos esses progressos.
pela Universidade de Paris VII e professor do curso de
psicossomática psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. As dificuldades encontradas nessas situações origina-
É autor de Psicossomática, de Hipócrates à psicanálise e de ram diferentes termos que tentam descrever os quadros
Hipocondria – Impasses da alma, desafios do corpo, e co-
organizador e autor dos livros da série Psicossoma, todos
apresentados por esses pacientes: doenças “funcionais”,
editados pela Casa do Psicólogo. “psicossomáticas”, “idiopáticas”, sintomas de “somatiza-
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ção”. Essas denominações em geral se apresentam como da experiência humana.
diagnósticos de exclusão, resultantes da impossibilidade Desde seus primeiros modelos, a psicanálise trouxe
de identificação das dinâmicas etiológicas das queixas e da importante contribuição a essa investigação. Diante da per-
sintomatologia ou do caráter surpreendente de suas evolu- plexidade e incompreensão provocadas nos médicos pelas
ções. Os tratamentos prescritos, geralmente sintomáticos, manifestações corporais histéricas (paralisias, anestesias,
trazem alívio, porém não resolvem o problema do paciente, cegueiras, convulsões, entre outros), sintomas que pareciam
que volta a apresentar os mesmos ou outros quadros sin- não respeitar organizações anatômicas, fisiológicas e neu-
tomáticos e muitas vezes é submetido a uma sucessão de rológicas, nem tampouco apresentar lesões nos órgãos ou
encaminhamentos a diversos especialistas, com os quais sistemas atingidos, Freud revelou a existência de relações
as mesmas dificuldades se repetem. particulares entre formas de expressão corporal e dinâmicas
A necessidade não apenas de reconhecer mas, sobretu- psíquicas específicas. Referidos a uma anatomia imaginária,
do, compreender e tratar em sua plenitude os fenômenos carregados de significados, marcados pela história e por
relacionados às interações entre corpo e psique deu origem episódios específicos da vida da pessoa, os sintomas his-
a diversas hipóteses. Numa perspectiva fenomenológica, téricos evidenciam a capacidade de expressão, através do
Karl Jaspers sugeriu o termo somatopsicologia para des- corpo, de um conflito psíquico inconsciente. Reconhecendo
crever o fato de que toda sensação e toda reação expressiva e considerando a importância dos processos somáticos
manifestam-se através de funções corporais que se prestam presentes na sintomatologia, a grande contribuição da
como sede da alma. Esta, por sua vez, determina as quali- psicanálise foi ter desenvolvido instrumentos específicos
dades das experiências dessas funções. Utilizada em 1818 para a observação e escuta de dimensões da experiência do
por J. Heinroth, a palavra psicossomática é atualmente mais corpo que transcendem o substrato orgânico dessa experi-
conhecida, apesar de questionada. Por meio dela, muitos ência e se prestam à manifestação, ao compartilhamento
modelos teóricos buscam descrever e explicar as relações com o outro e à transformação através da linguagem e do
causais existentes entre as dimensões corporais e psíquicas universo simbólico.
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Teorias de Melanie Desde o início do século 20, o modelo da ao mesmo tempo que propôs a sensibilização
Klein, Donald histeria inspirou a investigação das relações dos médicos para as vivências psíquicas de seus
Winnicott e Pierre
Fedida contribuíram para etiológicas entre conflitos psíquicos e diversas pacientes, um caminho pelo qual enveredaram
ampliar a a metapsicologia doenças orgânicas como asma, eczema, psoría­ todos os pioneiros da psicossomática, como
e entender melhor o se, retocolite, úlcera e muitas outras. Até hoje, Georg Groddeck, Felix Deutsch, Franz Alexander,
sofrimento de pessoas com
varios quadros psíquicos
essa visão conversiva do adoecer impregna Michael Ballint e muitos outros.
certa compreensão popular do adoecimento, Na esteira desses pioneiros (e de Melanie
quando se afirma que uma pessoa “somatiza Klein, René Spitz, Donald Winnicott, Pierre
por problemas emocionais”. Marty, Pierre Fédida e vários outros) desenvol-
veu-se toda uma vertente teórico-clínica que,
descarga somática ampliando a compreensão da metapsicologia
Porém, ao propor o conceito de neuroses atuais, psicanalítica, atualmente oferece possibilida-
o próprio Freud apontou para os limites do mo- des de tratamento não apenas para pacientes
delo da conversão histérica (uma psiconeurose) que apresentam sintomatologia orgânica, mas
para a compreensão de algumas expressões e também para psicóticos, borderlines, adictos
doenças orgânicas. Diferentemente das organi- e com transtornos de caráter, ou seja, pessoas
zações histéricas, nas quais é possível encon- que vivem os efeitos das fragilidades decorren-
trar sentidos simbólicos para os sintomas, ele tes da precariedade de suas vivências infantis,
observou que nas neuroses atuais (neurose de de seu desenvolvimento, do esgarçamento
angústia, neurastenia e hipocondria) parecia ha- de seu tecido psíquico, de suas fragilidades
ver uma descarga direta da excitação pulsional narcísicas, da pobreza de seu mundo objetal
pelas vias somáticas com pouca ou nenhuma e de representações.
elaboração mental da excitação, nem derivação Com efeito, apesar das diferenças entre
ou correspondência com dinâmicas psíquicas. essas formas de manifestação, a clínica reve-
Em razão dessas características, Freud desa- la a existência de uma perfeita continuidade
conselhava o tratamento psicanalítico para pa- funcional e de modos de organização entre
cientes com neuroses atuais e doenças orgâni- esses quadros, tanto do ponto de vista do
cas. Sándor Ferenczi reconheceu as dificuldades desenvolvimento humano, como no da ma-
apontadas por Freud para o tratamento dessas nifestação patológica.
manifestações, porém insistiu na importância A partir dessa constatação, a psicossomá-
do referencial teórico que a psicanálise vinha tica psicanalítica desenvolve uma perspectiva
desenvolvendo para a apreensão da experiência teórica e clínica que permite compreender
subjetiva e para o acompanhamento clínico dos que as manifestações ou as queixas centradas
pacientes com doenças orgânicas, tanto no no corpo são apenas uma das modalidades
âmbito da própria psicanálise como no meio possíveis de expressão do sofrimento huma-
médico. Ferenczi sugeriu a necessidade de outra no. Por sua vez, apesar da predominância
postura do terapeuta e de modificações no dis- da expressão psíquica, os sintomas psico-
positivo clínico para lidar com esses pacientes, patológicos constituem outra vertente para
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a manifestação desse sofrimento. Mesmo de fome, nos mobilizam a buscar alimentos O processo
considerando os mecanismos fisiológicos e capazes de acalmá-la e de satisfazer essas terapêutico
psiconeuroimunológicos implicados nesses necessidades fisiológicas.
processos, é fundamental compreender a Diante das ameaças da natureza ou da
deve não
perspectiva intersubjetiva e histórica segundo civilização, desde sempre buscamos abrigo apenas
a qual se desenvolvem e se organizam esses nas mais primitivas cavernas ou em moder- eliminar
mecanismos em suas relações com as funções nos condomínios, protegidos por sofisticados sintomas,
psíquicas e com a regulação do funcionamen- sistemas de segurança. As necessidades de
to vital. A preponderância de uma ou de outra sobrevivência e de proteção incitam formas de mas ajudar
dessas formas de expressão é fruto da história organização coletiva que, ao mesmo tempo que a pessoa a
de cada um, no contexto de uma interação tentam criar formas mais eficientes de produ- compreender
permanente entre fatores constitucionais, ção de recursos e de proteção, tiveram como
condições do ambiente e suas experiências corolário a criação de regras de convivência, aspectos
de vida, modeladas pelo tecido relacional expectativas do grupo com relação a seus mem- de sua de
estabelecido, desde o nascimento, com as bros e leis que regulam e muitas vezes cerceiam vida que os
demais pessoas de convívio. comportamentos e iniciativas individuais.
Para lidar com exigências e necessidades
geraram
sobrevivência e proteção como essas, e com muitas outras, o ser huma-
Ao longo da vida, somos permanentemente no busca em princípio alcançar os melhores
confrontados com exigências, incitações e ape- recursos possíveis. Seu grau de desenvolvimen-
los que partem do interior de nosso organismo to, de eficiência e de qualidade depende de sua
(instintos, processos biológicos, pulsões), da história de vida: seu patrimônio genético, suas
realidade em que vivemos (ambiente, condi- experiências infantis, suas condições materiais
ções e recursos sociais) e das pessoas que nos de vida, suas experiências afetivas, relacionais,
cercam (família, amigos, colegas de trabalho, socioculturais etc. Nesse contexto, modulado
comunidade). Os complexos mecanismos pelas relações do indivíduo com seus seme-
metabólicos do corpo, por exemplo, exigem lhantes, gradualmente se desenvolvem dife-
o aporte de carboidratos, proteínas e sais mi- rentes recursos orgânicos, comportamentais e
nerais, entre outros, que, através da sensação psíquicos, de complexidade crescente.

Diferentemente
das organizações
histéricas, nas quais
é possível encontrar
sentidos simbólicos para
os sintomas, ele observou
que nas neuroses atuais
(neurose de angústia,
neurastenia e hipocondria)
parecia haver uma descarga
direta da excitação pulsional
pelas vias somáticas
com pouca ou nenhuma
elaboração mental da
excitação, nem derivação
ou correspondência com
dinâmicas psíquicas

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Após o nascimento,
o bebê integra de
maneira cada vez mais
específica e diferenciada
movimentos e funções
antes desorganizados:
a convergência ocular, a
coordenação motora, a
discriminação auditiva,
o reconhecimento e a
distinção entre pessoas
familiares e estranhas, a
memória, a imaginação, o
pensamento, a linguagem,
entre outros

A filogênese revela que, ao longo da evo- Denominamos materna a função de “pe-


lução, os seres vivos mais complexos e mais lícula protetora”, através da qual o adulto de
tardios apresentam características desenvol- certa forma “empresta” ao bebê seus próprios
vidas a partir daquelas presentes em seres recursos mais desenvolvidos enquanto os da
mais simples e primitivos. Na ontogênese, criança ainda não puderem se desenvolver. A
o desenvolvimento de cada ser humano se função materna e continua se manifestando sob
inicia através de seu elemento mais essencial, as mais diversas formas através de inúmeras
a reprodução celular, formando estruturas e pessoas ao longo de toda a vida, sendo essencial
funções de complexidade crescente. Durante para o desenvolvimento e o equilíbrio da econo-
a gestação, a partir de uma única célula indife- mia psicossomática do bebê, para a integração
renciada, desenvolvem-se gradativamente os das funções orgânicas, motoras e psíquicas. Ela
tecidos, os órgãos, os sistemas vitais, o feto se constitui também como importante para-
como um todo. Após o nascimento, o bebê digma para a função terapêutica. As condições
integra de maneira cada vez mais específica promovidas pela função materna propiciam à
e diferenciada movimentos e funções antes criança a descoberta e o acompanhamento de
desorganizados: a convergência ocular, a seus próprios ritmos, a percepção, a interpre-
coordenação motora, a discriminação audi- tação e a resposta aos contatos corporais, as
tiva, o reconhecimento e a distinção entre vocalizações e os gestos e a organização de
seres familiares e estranhos, a memória, a seus comportamentos e funções.
imaginação, o pensamento, a linguagem,
entre outros. integração e desintegração
Apesar de “completo” do ponto de vista Uma vez presentes as mínimas condições ne-
biológico, ao nascer o bebê é um ser imaturo cessárias no contexto das relações vividas pelo
e desamparado, incapaz de sobreviver por si sujeito, as interações entre funções corporais
só. Sua vida e seu crescimento dependem da e psíquicas constituem organizações, estru-
presença de outro ser humano, geralmente os turas, hierarquias e dinâmicas cada vez mais
pais, que além de satisfazer suas necessida- complexas. O objetivo da complexificação do
des vitais (alimentação, proteção, cuidado), desenvolvimento humano é responder aos
também assumem inicialmente funções que o estímulos e solicitações internos e externos e
bebê ainda não é capaz de assumir (reconhe- assegurar o equilíbrio de vida da pessoa por
cer, discriminar, agir, pensar), protegendo-o de meio de organizações e modos de funciona-
estímulos que ele é incapaz de assimilar, de mento mais evoluídos. Porém, perturbações
ameaças que não pode reconhecer nem evitar. do desenvolvimento, ou situações desorgani-
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zadoras do equilíbrio vital, podem impedir a realidade e conflitos que deles decorrem. Na-
formação ou a utilização de recursos, que se turalmente, além da demissão, comum aos
revelam insuficientes para lidar com a inten- três, o segundo trabalhador corre o risco de
sidade das solicitações e com as condições a pagar pelos danos que provocou ao carro do
que o sujeito se encontra submetido. Para ele diretor, e o terceiro pode ter um comprome-
alcançar ou recuperar o equilíbrio, as intera- timento de gravidade variável de sua saúde.
ções entre corpo e psiquismo podem respon- Marty destaca a importância dos recursos
der a essas solicitações por meio de reações psíquicos, por ele denominados mentaliza-
anacrônicas, primitivas, menos elaboradas do ção, como reguladores da economia psicos-
que é ou já foi capaz. somática. A mentalização consiste em opera-
Apesar de potencialmente orientar-se para ções de representação e simbolização através
a formação de funções cada vez mais comple- das quais o aparelho psíquico busca regular
xas, organizadas e hierarquizadas, o equilíbrio as energias instintivas e pulsionais, libidinais
da economia psicossomática é algumas vezes e agressivas. A fantasia, o devaneio, o sonho,
alcançado pelo desencadeamento de mo- a criatividade, os recursos metafóricos da lin-
vimentos regressivos e de desorganização, guagem são portanto funções essenciais de
mobilizando modos de funcionamento mais regulação do equilíbrio psicossomático. Fa-
primitivos. Segundo Pierre Marty, o adoeci- lhas durante o desenvolvimento ou experiên-
mento, orgânico ou psíquico, pode ser um dos cias de vida desorganizadoras, traumáticas,
recursos para a regulação da homeostase do comprometem a estrutura, o funcionamento
indivíduo, de suas relações com o meio e com e a disponibilidade dos recursos psíquicos,
os outros humanos. As vias orgânica, motora de forma duradoura ou temporária. Diante
e de pensamento representam nessa ordem dessas deficiências e da indisponibilidade
uma hierarquia progressiva de recursos que dos recursos mais evoluídos são mobilizados
podem ser utilizados com tal finalidade. Os recursos mais primitivos, da ordem da motri-
recursos psíquicos são o grau economicamen- cidade ou mesmo da exacerbação de reações
te mais elaborado de organização e funciona- orgânicas como tentativas de reequilibrar a
mento, por permitirem que sejam poupados economia psicossomática.
recursos da motricidade e da desorganização Observando pessoas que tendem a reagir
somática, mais primitivos, menos “eficientes” aos conflitos internos e externos através de
para lidar com estímulos e conflitos. manifestações somáticas, Joyce McDougall
Consideremos, por exemplo, diferentes relata que muitas delas se revelam superadap-
reações diante de uma demissão injusta. Um tadas à realidade e mesmo às dificuldades de
trabalhador reage escrevendo uma carta de pro- sua existência. Em seu comportamento, são
testo à direção da empresa, buscando negociar frequentemente impelidas à ação em vez de
com os responsáveis por sua demissão. Outro, lidar com os conflitos por meio da elabora-
incapaz dessa atitude, exprime sua revolta ção psíquica, solicitando permanentemente
chutando o carro do responsável por recursos dos objetos do mundo exterior a realização
humanos. Um terceiro, sem poder realizar as de funções que deveriam ser asseguradas
ações precedentes, pode acatar a decisão em por objetos internos simbólicos ausentes ou
silêncio, aparentemente sem nenhuma contra- comprometidos. Muitos dos pacientes que
riedade e, eventualmente, apresentar mais tarde apresentam esse tipo de comportamento
algum tipo de disfunção somática. procuram seus médicos completamente
Na vida, muitas situações podem provocar alienados de outros sofrimentos que não os
esses três tipos de reações, com diferentes corporais. Por seu caráter concreto, real e
consequências que delas decorrem em bene- urgente, os sintomas orgânicos capturam o
fício ou prejuízo para o sujeito. De forma es- médico e o paciente numa visão limitada da
quemática, elas evidenciam três modalidades vida do paciente e da doença.
hierarquicamente diferentes de organização A impossibilidade do desenvolvimento dos
dos recursos psicossomáticos para lidar com recursos mais evoluídos da economia psicos-
as exigências vitais, com os outros e com a somática ou a desorganização desses recursos
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em situações críticas de vida podem tornar uma de intensidade leve ou moderada (frustração
pessoa vulnerável às afecções somáticas, a por uma derrota esportiva) enquanto outras,
comportamentos de risco como adições, a atos mais bem estruturadas, conseguem preservar
impulsivos e acidentes. As três vias possíveis sua organização e lidar de forma satisfatória
para lidar com as solicitações vitais e do am- com acontecimentos potencialmente intensos
biente – orgânica, motora e pensamento – são (a morte de um próximo).
também os caminhos potenciais da doença.
O indivíduo bem organizado no plano recursos terapêuticos
psíquico poderá desenvolver a partir de uma É evidente, portanto, a importância e o interesse
situação conflitual uma manifestação psico- para todos os profissionais da saúde, e para o
patológica, da ordem das neuroses ou das médico em particular, de ampliar seus recursos
psicoses, de intensidade e duração variáveis, diagnósticos e terapêuticos de forma a incluir
geralmente sem maiores riscos de desorga- a compreensão da economia psicossomática
nizações comportamentais ou somáticas. do paciente. A avaliação dos elementos clíni-
A pessoa com falhas estruturais ou agudas cos, anatomofisiopatológicos, bioquímicos
das funções psíquicas pode tentar encontrar, e radiológicos geralmente utilizados para o
através da motricidade ou das vias orgânicas, diagnóstico e para acompanhar a evolução do
as vias de descarga e de organização da exci- paciente é enriquecida quando se consideram
tação e dos conflitos vividos por não dispor os recursos deste para lidar com suas situações
de recursos mentais (sonhos, fantasias, me- de vida, com os conflitos a ela inerentes e com
canismos de defesa psíquicos) para lidar com a própria doença. No plano terapêutico, os tra-
essas experiências. Observa-se então a mani- tamentos médicos podem ser potencializados
festação de descargas pelo comportamento por técnicas que enriquecem e promovem os
(impulsividade, toxicomanias, transtornos recursos da economia psicossomática para
de caráter), ou ainda, como último recurso, o propiciar ao paciente o funcionamento segundo
aparecimento de perturbações, sintomatolo- níveis mais evoluídos.
gias e doenças somáticas. Vários autores apontam que ainda é grande
É importante considerar que, apesar de a dificuldade dos médicos de diagnosticar e
seu caráter mais primitivo e desviante, toda tratar a pluralidade e a heterogeneidade de
doença – mental, comportamental ou somá- manifestações dos fenômenos de somatiza-
tica – é ainda uma tentativa do humano de ção, bem como de reconhecer o sofrimento
alcançar um equilíbrio. A gravidade dessa psíquico (como depressão e ansiedade)
doença depende da qualidade dos recursos do subjacente à sintomatologia orgânica. Essas
sujeito para enfrentar tensões e conflitos mas dificuldades são perturbadoras para o pacien-
também da intensidade e da duração destes. A te, provocando efeitos negativos na relação
manutenção do equilíbrio psicossomático em terapêutica e no tratamento, sendo também
patamares mais primitivos dependerá da dura- responsáveis pelo excesso de procedimentos
ção da tensão e da capacidade do organismo médicos e pela insatisfação com o médico e
de reorganizar-se para responder de maneira com o serviço de saúde.
mais elaborada a tais situações. O enfoque quase exclusivo na queixa
Assim, evidencia-se que o caráter trau- somática faz com que as dificuldades diag-
mático de uma experiência não é inerente à nósticas ou a impossibilidade de descobrir
natureza de um acontecimento (a perda de um as causas orgânicas de tais queixas sejam
ente querido ou uma frustração, por exemplo), ansiógenas para o paciente, muitas vezes
mas depende da conjunção das intensidades sem que o médico consiga lidar com elas. O
afetivas mobilizadas por tais acontecimentos conhecimento das dinâmicas subjacentes à
com os recursos dos quais dispõe o indiví- economia psicossomática pode ser um meio
duo para lidar com eles. Ou seja, algumas de superar grande parte dessas dificuldades e
pessoas fragilizadas do ponto de vista da suas consequências, diminuindo as consultas
economia psicossomática podem ficar bas- e os procedimentos desnecessários, com seus
tante perturbadas diante de acontecimentos eventuais efeitos iatrogênicos.
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divulgação
cena de Alphaville (1965), de Jean-Luc Godard: na trama, cidade é comandada por computador que aboliu os
sentidos; Joyce McDougau fala de pessoas com comportamentos superadaptados com o mundo interno empobrecido

Também no âmbito psicoterapêutico é Percebemos, portanto, a importância


fundamental perceber e lidar com os efeitos de considerar, na clínica e no tratamento, a
das desorganizações e das manifestações história do desenvolvimento do paciente que
corporais do sofrimento. Há momentos em evidencia a inter-relação permanente entre fa-
que a palavra, a interpretação e a transferência tores orgânicos, psíquicos e o meio ambiente,
chegam a seus limites, e é por meio de atu- mediados pela qualidade da presença de seus
ações e expressões corporais que o paciente semelhantes. É nesse contexto que se organiza
ainda tenta comunicar-se com o terapeuta. a economia psicossomática que, no processo para SABER mais
Ele é convocado ao encontro do paciente de vida, pode em alguns momentos encontrar Psicossomática, de Hipócra-
nos terrenos mais primitivos da existência seu equilíbrio tanto em condições saudáveis tes à psicanálise. R. Volich.
como em processos patológicos. Casa do Psicólogo, 2000 (7a
deste, que muitas vezes se coloca em risco edição, revista e ampliada,
de adições, atuações impulsivas ou mesmo A saúde, o sintoma e a doença são manifes- 2010).
de doenças graves. tações que resultam de um jogo complexo de Psicossoma IV – Corpo, his-
tória, pensamento. R. Volich,
Ao compreender a função dessas ma- forças quase sempre desconhecidas do indiví- F. C. Ferraz e W. Ranña. Casa
nifestações no momento vivido por quem duo. Diante do sofrimento, paciente e terapeuta do Psicólogo, 2008.
o procura, o psicoterapeuta pode ajudar a devem não apenas eliminá-lo mas compreender A clínica dos farrapos, por
uma clínica psicanalítica das
promover no paciente seus melhores modos a história a partir da qual ele se constituiu. Não desorganizações. R. Volich,
de funcionamento com relação aos recursos se trata apenas de tentar atribuir um sentido a em Percurso, no 24, págs. 85-
que lhe são imediatamente disponíveis. O essa história. Trata-se, sobretudo, de propiciar 98, janeiro de 2005.
Psicossoma III – Interfaces
horizonte terapêutico visa propiciar a evolu- ao paciente um acolhimento e uma escuta que, da psicossomática. R. Volich,
ção e o enriquecimento dessas capacidades simultaneamente aos procedimentos necessá- F. C. Ferraz e W. Ranña. Casa
e, em especial, dos recursos psíquicos e rios ao tratamento e à cura das manifestações do Psicólogo, 2003.
A nova criança da desordem
representativos, através de um trabalho de somáticas de uma doença, possam também psicossomática. L. Kreisler.
figuração, de criação e instalação do espaço promover o desenvolvimento de recursos que Casa do Psicólogo, 1999.
onírico e lúdico. A descrição da instauração lhe permitam lidar com conflitos e impasses da A psicossomática do adulto.
P. Marty. Artes Médicas, 1994.
do espaço potencial e da constituição dos vida com menos riscos à integridade física e à
As psiconeuroses de defe-
objetos transicionais, feita por Winnicott, própria existência. Através dessa função tera- sa. Sigmund Freud. Edição
é pertinente para a compreensão dos mo- pêutica, esperamos também que essa pessoa Standard Brasileira das Obras
psicológicas completas de Sig-
vimentos fundamentais dessa verdadeira que sofre consiga realizar-se através de modos mund Freud (E.S.B.) III. Ima-
clínica das desorganizações. de vida mais satisfatórios. e
m c go, 1981.

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