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A clínica psicanalítica contemporânea e as novas abordagens para o desvalimento

A clínica psicanalítica contemporânea e


as novas abordagens para o desvalimento
The contemporary psychoanalytic clinic and
the new approaches of helplessness
Maria Helena Nemitz Alcaraz Gomes
Liliana Haydee Alvarez

Resumo
Na clínica contemporânea, existe a tendência à predominância de pacientes carentes de uma
vida com funcionamento simbólico, não registrado nos primórdios das etapas evolutivas. São
pacientes com fixações traumáticas da época em que o aparelho psíquico é ainda incapaz de
atender as demandas das vicissitudes endógenas e exógenas. Este trabalho propõe uma refle-
xão sobre novas formas de prática psicanalítica, que, repensadas a partir dos estudos de Freud,
buscam, em fases pré-edipianas, estudar as vicissitudes de um ambiente não empático e não
acolhedor, as quais provocam estados de desvalimento expressos por sintomas psicossomá-
ticos ou adições. Esse ambiente não provedor nos primeiros tempos de vida pode propiciar
patologias tóxicas, como transtorno alimentar, anorexia, psoríase, asma, entre tantos outros.
Abordamos um caso clínico de desvalimento psíquico com sintomas psicossomáticos, em que
a comunicação virtual foi empregada como forma de falar sobre seu sofrimento.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica contemporânea, Desvalimento, Metapsicologia freudia-


na, Libido intrassomática, Comunicação virtual.

Desvalimento psíquico: latada pelo sujeito, pode-se pensar em uma


abordagens contemporâneas estratégia clínica capaz de definir uma di-
Em vivências cotidianas, deparamo-nos com reção para o trabalho. Estudando Sigmund
sintomas que são próprios do mundo con- Freud ([1923] 1969), observa-se que esse foi
temporâneo, sintomas considerados os mais o esquema seguido em suas pesquisas. Freud
inusitados para ser incluídos em um trata- articulava a reconstrução da forma à medida
mento psicanalítico. Acolhendo pacientes que os sintomas neuróticos se definiam. Para
portadores dos traços mencionados a seguir, ele, estes eram gerados a partir das formações
o terapeuta costuma ser impulsionado a ve- substitutivas, resultantes do trabalho do pré-
rificar a origem da patologia que se manifes- consciente, articulando-se com os conteúdos
ta, quando as queixas podem indicar a forma inconscientes, com as maneiras de defesas,
de produção dessa manifestação. Com escu- com o conflito de Édipo e com a castração.
ta apurada, é possível observar, no discurso Tanto os grupos de pacientes neuróticos
do paciente, seu tipo de vida, as dificuldades quanto o de narcisistas têm algo em comum:
que enfrenta, sua gestualidade e a forma de de alguma maneira, seus sintomas respon-
produção dessas manifestações. dem a um mundo simbólico. Há simbolismo
Ao constatar a forma de produção que de menor ou maior grau, de maior ou menor
deu luz à manifestação de desvitalização re- complexidade. Há simbolismo. Mesmo nas

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alucinações dos pacientes mais regressivos, tudes negativas na fase da libido intrassomá-
que são os esquizofrênicos, há um quantum tica (40 primeiros dias do bebê). A diferença
de representações. fundamental entre o vazio existencial e o eu
O que se entende por representações? constituído está na questão do mundo re-
Essa é a peculiaridade fundamental das pato- presentacional simbólico, em que funciona a
logias de desvalimento, nas quais não foram qualidade do pensar e do significar, sendo o
instaurados nem o simbolismo, nem as re- aspecto qualitativo o diferencial. São pacien-
presentações. Para Green (1988), representar tes que não falam dos próprios sentimentos.
ou reapresentar é o objetivo do trabalho ana- Por exemplo, os pacientes psicossomáticos
lítico. O sujeito em terapia manifesta vicissi- não vão dizer: “Estou com raiva, estou triste,
tudes da vida pregressa, pois todo indivíduo estou invejoso”. Na melhor das hipóteses di-
é resultado de uma estrutura que combina rão: “Estou cansado, me dói o braço, me dói
fragmentos de representações passadas. Nin- a nuca”, o que, laconicamente, expressará o
guém é somente depressivo ou tampouco só que se passa.
psicossomático, ou ainda adicto, ou somente Pacientes com quadros neuróticos reve-
autista. Pode haver um fragmento dominan- lam-se mais conectados com o exógeno, com
te. Contudo, subjacente a este estarão outros, a realidade externa. As patologias do vazio
que, se trabalhados em análise, poderão aflo- estão associadas ao corpo, com fixações no
rar e, pouco a pouco, auxiliar na reconstru- aparelho psíquico, o qual é extremamente
ção da psique. Constituem traços, resíduos, vinculado ao psicossomático.
construtos inconscientes. O desvalimento, profundamente estuda-
Quando chegam ao consultório pacientes do e pesquisado por Maldavsky (1992), in-
manifestando sintomas, sendo possível de- clui o psicossomático entre os componentes
tectar desvalimento dominante, há o ques- dessa temática. Seus estudos foram elabora-
tionamento: será que o paciente está em crise dos a partir da teoria de Freud e de alguns
de identidade ou de despersonalização tem- pós-freudianos. Para Maldavsky e colabora-
porárias? Ou será que houve falhas no con- dores (2007), essa temática do desvalimento
texto do sujeito em seus tempos primordiais coincide com o ponto de fixação do ego e o
de construção da subjetividade? ponto de fixação libidinal (devido ao am-
Nessas crises vitais, existe um descom- biente contextual não empático), com de-
passo nas energias psíquicas, por serem elas fesas denotando desestimação dos estados
uma reprodução da energia física. No caso afetivos.
em que a libido estanca na psique do bebê,
pode instalar-se, a partir daí, a desvitaliza- O afeto é uma forma de qualificar, de tornar
ção física, em decorrência de fixações im- conscientes os processos pulsionais, e, ao
portantes. mesmo tempo, na medida em que é consequ-
Como registrou Freud ([1915] 1969, ência da empatia dos progenitores, também é
p. 13), “As pulsões estão entre a psique e o uma forma de estabelecer um nexo com a vi-
soma, exigindo trabalho para chegar à meta”. talidade dos processos pulsionais destes, mas
Ocorre que a patologia como efeito do trau- existem indivíduos nos quais essa conquista
ma surge devido à desvitalização do aparelho psíquica precoce não se desenvolveu ou se ar-
psíquico, pois este absorverá todas as ener- ruinou de maneira transitória ou duradoura:
gias, em função da elaboração e do processo nessas situações, a subjetividade fica compro-
dos estímulos internos e externos. metida, ao menos parcialmente, e em seu lu-
O desvalimento e as patologias que o gar costumam aparecer alterações somáticas
acompanham, de acordo com Maldavsky (Maldavsky et al., 2007, p. 17-18, tradução
(1992), costumam ser resultantes de vicissi- nossa).

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Freud ([1923] 1969) afirma que, nesses primeiríssimas folhas, com um primeiro es-
tempos primordiais, em que os registros são trato, organizando memórias, até culminar,
eminentemente internos no bebê, em que finalmente na lógica, que corresponde ao
há tão somente o Id, o Ego estará em fase de pré-consciente verbal, à linguagem, permi-
construção e organização. Há corpo e ener- tindo, assim, o acesso à consciência. O pro-
gia neuronal circulante tão somente. O bebê cesso será contínuo até chegar à consciência
estará envolvido com as funções cardíacas, secundária, vinculada à linguagem verbal.
pulmonares e digestivas. A qualificação implica uma modificação
Os pacientes em desvalimento permane- das quantidades em uma unidade de tem-
cerão com fixações importantes na primeira po (ritmo). O prazer é pura qualidade. Para
fase do Ego primitivo, fase essa em que serão Freud ([1915] 1969), somente será registra-
registrados os afetos expressos em despren- da qualidade se houver prazer. Caso a vivên-
dimentos libidinais nas fases mais avançadas cia seja desprazerosa, irá se registrando e se
do sujeito. Por isso, essa é a primeira forma formando um vazio na psique do bebê, não
de memória que tem o ser humano que não haverá registro do sentir de si, prejudicando
depende de representações; depende somen- a instauração da primeira fase, base para a
te de estados afetivos, dos cuidados e do hol- formação da consciência secundária, na qual
ding propiciado ao bebê (Winnicott, 2013). estariam instalados o simbolismo e a repre-
De acordo com Maldavsky (1996, p. 176): sentação (1895 [1950] 1988).

[...] as relações de um indivíduo com seu Uma abordagem do desvalimento


ambiente serão a base para o surgimento da David Maldavsky , psicanalista argentino,
consciência, tanto afetiva quanto sensorial. desenvolve há mais de 30 anos, a partir de
Temos afirmado que a percepção só adquire estudos das teorias de Freud, uma pesquisa
significado e é acompanhada por consciência sobre problemas e patologias do desvalimen-
quando envolvida com a qualificação afetiva. to. Para ele, as patologias referidas nos sinto-
Então, essa percepção-consciência pode cul- mas de desvalimento advêm de uma relação
minar em falha mnêmica. O surgimento da muito arcaica, não empática e não acolhedo-
qualificação implica o desenvolvimento da ra, especialmente nos primeiros 40 dias do
consciência ligada ao afeto, ponto no qual bebê.
fica evidente o valor do outro, do semelhante De acordo com o autor, os registros mnê-
(Tradução nossa). micos serão possibilitados quando o bebê re-
cebe, percebe, sente e registra afetos. Na falta
Se o bebê é atendido de maneira amorosa, de um outro empático com o bebê, o afeto
se está satisfeito, se está sustentado de ma- processado poderá transformar o processo
neira acolhedora e equilibrada, sem agitação, do afeto. Nesse caso, na idade adulta os efei-
com a temperatura correta, poderá descon- tos dos transtornos dos afetos, um deles pode
trair-se, terá uma expressão de paz e confor- ser a abulia, que aparece no lugar do sentir,
to com a experiência de plenitude e harmo- com uma dor carente de representação no
nia. Trata-se de um estado afetivo chamado sujeito, originando um vazio existencial em
de estado de base. Constitui o fundamento lugar dos afetos, propiciando possíveis falhas
do sentimento de si, do sentir que se está nas bases da subjetivação. Com base nessa
vivo e bem. perspectiva, entende-se alterações na origem
Para Maldavsky e colaboradores (2007), da consciência e da subjetividade. Em muitos
nesses primeiros 40 dias do bebê, esses pro- dos casos de desvitalização e apatia do sujei-
cessos vão se organizando, e é na fase da to, os motivos e as raízes são pesquisados nas
libido intrassomática que se formarão as vicissitudes desse período arcaico vital.

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Para Maldavsky e seu grupo de pesquisa- sua teoria, do conceito de Winnicott (2013)
dores (2000), incluem-se nessa abordagem de falso self, agregando que o fracasso das de-
pacientes com traços autistas, neuroses tóxi- fesas habituais frente ao desamparo psíquico
cas e traumáticas, doenças psicossomáticas, poderá propiciar somatização da dor mental.
adições, transtornos alimentares, perturba-
ções do sono, violência vincular, promiscui- Desestimação
dade e outras patologias, que, do ponto de do afeto (repúdio do afeto)
vista psicopatológico, diferem das neuroses, Os pacientes descritos acima, em suas ma-
das psicoses e das perversões. nifestações pulsionais, apresentam uma
tendência a deixar-se morrer – identificada
Sintomas psicossomáticos: como apatia –, sendo sua defesa mais inci-
correntes teóricas dente a desestimação do afeto, o que denota
Surgiram, na psicanálise, duas correntes para prejuízo no desenvolvimento da subjetivida-
compreender a somatização. Uma delas ten- de. Tal fator resulta de qualidades inexisten-
ta explicar a psicossomática com o modelo tes, ou muito pobres, registradas na psique a
da conversão histérica descrita por Freud. partir dos vínculos estabelecidos no ambien-
Faz da histeria o modelo de toda somatiza- te familiar.
ção, estendendo ao pré-genital o processo de No que diz respeito à estratificação da
conversão simbólica. Muitos dos autores que primeira tópica de Freud (inconsciente, pré-
defendem essa ideia estão próximos da teo- consciente e consciente), nas patologias do
ria das relações objetais e da teoria kleiniana. desvalimento, a instância desinvestida é a
Uma segunda corrente busca opor as psi- consciência, mais precisamente a consciên-
coneuroses de defesa (obsessões, fobias e cia originária, anterior às marcas mnêmicas
histeria, em particular) às neuroses atuais. e às representações, com registros sensoriais
Em outras palavras, opõe o sintoma conver- capturados do ambiente, que poderá ser em-
sivo histérico ao sintoma psicossomático. pático ou hostil.
Atualmente, contudo, entende-se que as in- De acordo com a segunda tópica de
terpretações de fenômenos de somatização Freud, cuja instauração do Ego permanece,
derivam das duas posições anteriores, ambas em parte, no Id, pacientes da clínica do des-
relacionadas com sintomas que têm expres- valimento evidenciam subjetivação do Ego
são no corpo, determinadas pelo sistema frágil e insegura, sem clareza de si mesmos
freudiano (conversão histérica e neuroses de como sujeitos com independência psíquica.
angústia). Freud ([1850] 1988) distinguiu uma cons-
De acordo com Marty (1963), isso seria ciência oficial, que chamou de secundária,
produto de um desamparo inicial, propicia- implicada na formulação “fazer consciente
do por demandas do bebê não atendidas, o inconsciente”, e uma consciência anterior,
vinculado a uma mãe narcísica, que promo- originária, a qual denominou de neuronal,
ve um vazio psicológico, em desacordo com que consiste na captação de vitalidade, força
seus ritmos pulsionais e com suas necessida- ou manifestação pulsional como fundamento
des básicas, de modo a não contribuir para da subjetividade. Para ele, os conteúdos ini-
o desenvolvimento ou o desdobramento do ciais da consciência são a percepção, da qual
espaço simbólico, da fantasia, abrindo-se ca- derivam as marcas mnêmicas, e os afetos, os
minho para a ação direta corporal. primeiros a se desenvolver como algo novo
McDougall (2001) defende que os fenô- e diferente dos processos mentais puramen-
menos psicossomáticos podem ser evitados te quantitativos da época de recém-nascido.
quando uma organização neurótica serve de Para Maldavsky e colaboradores (2007),
“escudo” contra a somatização. Vale-se, para em determinadas manifestações psicopato-

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lógicas, em situações de fixações traumáti- Deve-se ainda destacar que a apatia que
cas prevalentes, observa-se uma tendência resulta da carência de qualificação do afeto
a processar os conflitos mediante alterações pode ser substituída pelo pânico e, em outros
internas. Caso a libido não tenha sido esti- momentos, pela fúria, a qual se oferece como
mulada e deslocada para as zonas erógenas um caminho para retornar à inércia letárgica.
periféricas (como caminho para estabelecer Destacam Maldavsky e colaboradores
uma circulação pulsional intersubjetiva), (2007) que os estados de desvitalização pa-
formar-se-á uma aderência ao próprio cor- recem ser o efeito de uma defesa contra Eros
po, com um estado de estancamento, o que, pela ação da pulsão de morte, podendo im-
em muitos casos, poderá manifestar-se como pedir que se acumule energia de reserva na
somatizações. Freud destaca: psique do sujeito.
Freud explicitou ([1923] 1969) que a au-
[...] efetivamente no início da vida psíquica, sência da energia de reserva impede o indi-
a ação específica não esta descoberta e esta- víduo de realizar ações específicas para tra-
belecida como método de tramitar uma exi- mitar as exigências pulsionais amorosas ou
gência pulsional. Agrega então que, enquan- hostis, próprias ou do outro, despertando no
to isso não ocorrer, a pulsão e processada ego uma angústia automática, a qual surge
por alterações internas. Sendo, desse modo, como corolário da desvitalização.
esse o critério inicial de processamento da
pulsão (Freud, [1850] 1988 apud Malda- Grupos de estudos
vsky, 1996, p. 188). na Argentina tratando do desvalimento
Há grupos de estudos na Argentina, para os
Somatização: desvitalização ou apatia quais pacientes psicossomáticos são consi-
Maldavsky (1995) denominou tais patologias derados dentro de um grupo mais extenso.
somáticas como “depressão sem consciência”, Para esses grupos de trabalho, não se trata
ou seja, sujeitos sem registros sensoriais de de patologias tóxicas, em que são incluídas
qualificações, provenientes do afeto, em tem- adições, transtornos alimentares, neuroses
pos primordiais. A etapa evolutiva em que se traumáticas, consideradas dentro do estado
cria o cenário que dá origem à depressão sem de desvalimento psíquico.
afeto é aquela que surge da vida psíquica, a De acordo com Maldavsky (1992), esse
partir do encontro entre um substrato neu- estado é o produto de um déficit de funcio-
roquímico, o recém-nascido e um mundo namento egoico libidinal determinante da
extracorporal, conectado com sua mãe, em constituição de um fragmento anímico co-
sua capacidade de entender e decodificar as mandado por uma corrente psíquica, na qual
demandas do bebê. a desestimação do afeto é usada como defesa,
Para o autor, quando não registra empa- capaz de conduzir ao dano orgânico.
tia, a figura materna se inscreve na mente da A corrente psíquica que sustenta os as-
criança como um interlocutor arbitrário que pectos psicossomáticos em uma estrutura
contraria a realidade, ao que ele denomina de personalidade (derivando daí, em grande
de “déspota louco”, a cujo domínio absolu- proporção, algumas das características de
to o paciente sucumbe, tornando-se um ser pacientes psicossomáticos) está organizada
desvitalizado ou vivo inanimado: em torno de um estancamento libidinal tó-
xico como resultado de fixações no erotismo
Viver significa ser amado e, se isso não ocor- intrassomático e no ego real primitivo.
rer, o eu ego resigna-se a si mesmo, causando Nesses pacientes, há uma articulação de-
uma baixa no investimento libidinal narcisista fensiva cuja defesa central e frequente é a
(Maldavsky, 1996, p. 195, tradução nossa). desestimação dos afetos, sem condições de

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qualificar os sentimentos devido à existência etc. Em algumas sessões, chegou com o sem-
do registro de quantidades tão somente, que blante cerrado porque alguma coisa dera er-
se descarregam no soma via alterações orgâ- rado. Conforme ia relatando os fatos, foi in-
nicas , fazendo com que a fonte coincida com duzido a lembrar-se do que ocorreu durante
o objeto da pulsão. o dia. Era possível perceber a existência de
muita raiva, tristeza e ressentimento devido
Fragmento a sua situação física, mas ele não expressava,
de um atendimento psicanalítico só dizia que estava cansado, sem energia; não
Otávio tem perto de 50 anos, é solteiro, mora havia nele subsídios para qualificar esse esta-
com os pais e auxilia o pai no negócio. Veio do energético.
ao consultório em busca de ajuda, por não Pacientes assim não aprenderam a de-
suportar a irritação na pele e os pruridos re- codificar os sentimentos, a refletir sobre o
sultantes de psoríase, conforme o diagnósti- porquê dos fatos, nem puderam desenvol-
co médico. De acordo com os relatos do pai, ver formas de pensar estratégias. Aparentam
que procurou tratamento para a coluna na um vazio imenso, com uma vida nebulosa,
clínica, o filho fora rejeitado pela mãe devido sem iniciativa e sem muitas perspectivas.
ao fato de ela estar, na época da gravidez des- Enquanto terapeuta, a partir do sentimento
se filho, com um bebê de três meses. Outro empático, é necessário emprestar a própria
motivo seria que a esposa gostaria de ter tido subjetividade para que o paciente aprenda a
uma menina, uma vez que já havia gerado refletir sobre seus sentimentos, por exemplo,
dois filhos homens. Ao nascer, Otávio estava nomeando o que se passou antes de sentir-se
asfixiado com o cordão umbilical, resultando desvitalizado. Possivelmente, foi desacatado,
em anoxia. Mais tarde, no colégio, foi cons- pressionado, tratado com indiferença ou se-
tatado que o menino apresentava dificulda- gregado.
des de aprendizagem. Há quatro anos, tentou Passados dois anos, as lesões do Otávio
suicídio duas vezes. foram se debelando, por conta de sua dedi-
Otávio chegou às sessões terapêuticas cação ao tratamento. Estando o paciente en-
relatando fatos dos pais, dos vizinhos, dos quadrado na clínica do desvalimento, nem a
irmãos; todos os relatos eram monótonos, atenção flutuante, nem a tentativa de afrou-
como se ele próprio não existisse. No início, xar a resistência, nem o processo de transfe-
antes de frequentar a terapia, permanecia a rência funcionam.
maior parte do tempo no quarto, por vergo- Nesses casos, o terapeuta ajudará a deco-
nha das feridas que se estendiam pelas per- dificar os relatos e as queixas, auxiliando na
nas, pelos braços e pelas costas. Havia nele formação de significados para que o pacien-
um olhar vago e quase um desespero pelo in- te possa dar início ao processo de simboli-
cômodo das erupções e dos pruridos na pele. zação e qualificação dos seus sentimentos,
Iniciaram-se as sessões com incertezas como também dar maior valor a sua própria
sobre a possibilidade de realmente ajudar existência, que acompanha uma baixa au-
o paciente, semelhante a um caminhar sob toestima, devido à falha na constituição do
neblina; e ele, com grandes expectativas de eu como sujeito, instaurada, muito precaria-
melhora. Com todo o acolhimento terapêu- mente, nos primórdios da sua existência.
tico e uma escuta bem apurada, foi possível Otávio sentia-se solitário muitas vezes em
observar que Otávio tinha muita dificuldade seu quarto, e o único refúgio e forma de sen-
em expressar sentimentos. Expressava-se em tir-se vivo era navegar na internet ou comu-
quantidades, por exemplo: quanto vendeu nicar-se pelo Facebook. Dessa maneira, sem
na loja do pai, quanto gastou com remédios, o contato físico, virtualmente, tinha a ilusão
quanto tempo levava no trajeto até a clínica, de que estava realmente interagindo com

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outras pessoas ou parentes. Para ele, essa era valimento, com sintomas psicossomáticos
uma ferramenta que o retirava um pouco da ou adições.
letargia, da tristeza e do sentir-se só. Pacientes com déficits patogênicos, cuja
Alvaréz (2013), discorrendo em sua tese subjetivação se encontra fragilizada, apre-
as características da vida infantil e de víncu- sentam, em seu lugar, um vazio existencial,
los, menciona que os efeitos posteriores de com estado de estupor, sem conexão com a
desconexões iniciais podem resultar em um realidade. São pacientes que chegam ao con-
desconhecimento dos afetos e desejos infan- sultório denotando uma construção incom-
tis, que passam a ser substituídos pelas aspi- pleta do aparelho psíquico, sem noção de si
rações paternas. mesmos enquanto sujeitos independentes.
De acordo com a autora, é comum ver De acordo com vários estudiosos, essas
pais que se impõem sobre a vida anímica dos manifestações psíquicas na fase da ado-
filhos, com dificuldades enormes em consi- lescência ou na vida adulta são produto de
derar os desejos deles, ou perguntar por eles, vivências de desamparo inicial, nos primór-
impondo-lhes, em lugar disso, as próprias dios da existência do bebê, denominada por
respostas. Essa era a forma de tratamento Freud de fase do Ego real primitivo. Tal esta-
dos pais com relação a Otávio, pois o pai fa- do é propiciado por demandas não atendi-
lava por ele, decidia por ele de modo despó- das, seja de uma mãe narcísica, seja de uma
tico a vida do filho. Com esse procedimento, cuidadora não disponível às demandas do
é gerado, pouco a pouco, um sentir de invali- bebê. Registra-se, assim, em lugar de quali-
dez diante da vida. dades decorrentes de afetos, um vazio psico-
Para esses pacientes, o outro não foi cons- lógico, com o sentir de desamparo rítmico e
tituído como diferente, capaz de ser interlo- afetivo, que contraria o registro narcísico na
cutor, capaz de ser receptor de seus desejos e psique do bebê.
de seus projetos. Não há um outro em quem
se possa confiar ou a quem se possa pedir
ajuda. É como viver em um mundo onde é
necessário se autoabastecer com a sensação
de não poder confiar em ninguém.
Acreditam que não interessa o que te-
nham a dizer de si próprios. Então, quando
falam, fazem-no a partir do que supõem que
o outro quer escutar, devendo o terapeu-
ta estar atento a esse detalhe. São pacientes
que muitas vezes se apresentam com uma fa-
chada não genuína, caracterizada por certa
adulação e um comportamento sobreadap-
tado ao meio vivenciado em determinado
momento.

Considerações finais
Esta pesquisa de referenciais nos propõe
reflexões sobre novas práticas psicanalíti-
cas, que, repensadas a partir dos estudos de
Freud, buscam, em fases pré-edipianas, estu-
dar as vicissitudes de um ambiente não em-
pático e não acolhedor, propiciador de des-

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Recebido em: 02/05/2016


Aprovado em: 03/05/2016

Sobre as autoras

Maria Helena Nemitz Alcaraz Gomes


Psicanalista do Círculo Psicanalítica do RS.
Especialista em Medicina Chinesa.
Doutoranda em Psicologia
na Universidad de Ciencias
Empresariales y Sociales (UCES), Buenos Aires.
E-mail: <clinivida.rs@terra.com.br>

Liliana Haydee Alvarez


Doutora em Psicologia.
Master em Patologías do Desvalimiento.
Docente titular do Doutorado em Psicologia.
Coordenadora acadêmica do Instituto
de Altos Estudios en Psicología
y Ciencias Sociales da UCES (IAEPCIS),
Buenos Aires.
Coordenadora acadêmica
do Laboratório Universitário
de Psicanálise de Casais e Família.

Endereço para correspondência

Maria Helena Nemitz Alcaraz Gomes


E-mail: <clinivida.rs@terra.com.br>

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