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Uma Parábola

sobre a Origem da
Criatividade

P odem dizer que a inspiração veio de Platão, com o Diálogo


de Timeu, mas nem por isso esta parábola tem pretensões
maiores. Aparece aqui como ficção, simplesmente para ilus-
trar uma base sobre a qual viajaremos: a importância da criativi-
dade para o ser humano.
Peço paciência, amigos, pois ela não é uma parábola sim-
ples: envolve personagens de descrição difícil, mas cada um pode
imaginá-la como quiser, sem prejuízo da história. Vou além, se a
leitura deste capítulo mostrar-se maçante, por favor, pulem-no,
pelo menos por enquanto; leiam, porém, agora os comentários,
na página 24, para registrar o sentido da parábola. OK?
Era uma vez duas entidades, que entre nós poderiam ser
chamadas de seres superiores. Ocupadas em analisar uma massa
de matéria solta no espaço, as entidades automaticamente come-
çaram a trocar seus pensamentos sobre o que fazer com ela. Men-
tes avançadas não discutem; daí um diálogo sem argumentações,
com o simples sentido de se encontrar a complementaridade dos
conceitos de cada uma.

- Estamos vendo aqui matéria, que também é matéria-


prima.
- Certo, devemos observá-la assim; e, considerada como
matéria-prima, sempre o seria para compor sua própria e mais
perfeita integração no todo.

UMA PARÁBOLA SOBRE A ORIGEM DA CRIATIVIDADE 7


- Claro, e talvez com um sistema menos primário do que
esse.
- Sim, sistemas desenvolvidos sempre são mais interes-
santes, tanto para a parte como para o todo.
- Incluiria uma dinâmica maior, que tenderia a ser tam-
bém evolutiva.
- Evolutivo é um conceito que lembra construtivo. Mais
interessante ainda.
- Talvez então começar com uma energia mais liberada,
nessa massa estável.
- Certo, energia que provoque maior entropia do sistema,
tendendo a modificar o padrão atual.
- Uma possibilidade imediata seria o desenvolvimento de
subsistemas autorreprodutivos.
- Sim, vida.
- Vida que, ao evoluir, se transformará em organismo,
com uma interação cada vez maior com o meio.
- Lembro que a evolução é sempre mais linear do que
incerta e pode compor um ciclo repetitivo, filho da compulsiva
busca de equilíbrio.
- Sem discordar, ocorre-me que essa repetitividade, vinda
da linearidade, é condição básica na composição de sistemas.
- Certo, temos assim que o fenômeno "linearidade com
repetitividade" é uma questão de montagem de ciclos.
- Entendo, mas me parece que podemos deixar uma expe-
riência comprovar até onde nossos pensamentos estão corretos
e articulados.
- Concordo, e acho que a palavra construtivo pode ser a
chave dessa proposição.
- Sem dúvida, e acrescento que a viabilização dessa chave
pode ser dada pelo conceito de anomalia.
- Então vamos acionar o aparecimento de vida, como
pensamos, mas incluindo nela uma semente de anomalia, para
escapar da linearidade, que sempre se traduz em processos len-
tos, sem saltos.
- Sugiro, pois, que uma das espécies do sistema vivo tenha
em si uma compulsão para o não lógico.

8 CRIATIVIDADE
- Certo, mas obviamente essa compulsão deve ser uma
faculdade articulada com o sentido lógico viabilizador do sub-
sistema.
- Claro, e por oscilar entre a lógica própria dos sistemas e
sua compulsão própria, teremos um ser com o que poderíamos
chamar de "livre-arbítrio".
- Vai ser uma experiência muito interessante mesmo, pois
a manifestação de vida, com essa complexidade, acabará de-
senvolvendo um ser com um discernimento que o aproximará
bastante de nosso nível.
- Hum! Ocorre-me que ele terá forçosamente algo de nós.
- Sim, e ocorre-me também que talvez nós mesmos seja-
mos a manifestação de uma experiência anterior, igual à que
estamos armando.
- É uma hipótese interessante; o ser que pode evoluir e
interar-se lógica e não logicamente com seu sistema pode tor-
nar-se um ser como nós.
- Talvez baste para isso uma adesão à ética.
- Hum! Parece-me que, possuindo essas características,
ele não poderá sobreviver sem a ética.
- Bem lembrado. OK, vamos testar tudo e ver o que fará
esse ser assim dotado.
- Podemos batizá-lo de "ser criativo"?
-Fechado. •

UMA PARÁBOLA SOBRE A ORIGEM DA CRIATIVIDADE 9


C0MENTÁKI05

Ecos do Capítulo 1
(Especulando e comentando)

Parábola filosófica para quê?


Aos que pularam a leitura da parábola, dou aqui um es-
boço de sinopse: duas entidades resolvem criar um mundo (se-
ria o nosso?) a partir de um processo evolutivo da matéria, e
chegam à conclusão de que essa dinâmica, para ser otimizada,
deve incluir a criatividade. Sem ela, tudo fica linear e lento.
Para quem conhece a personagem do Doutor Spock, da
série 'Jornada nas Estrelas", temos aí um tipo de seu diálogo
lógico, que não é novidade. Abstraindo-se certo pedantismo,
próprio das mentes que se julgam perfeitas, o papo chega a
ser interessante, apesar de parecer confuso, por sua densida-
de. Toda mensagem muito densa é cansativa, salvo para os ex-
tremamente interessados. Aqui, reparem, chega-se à beira da
caracterização de um entendimento entre dois computadores,
coisa até desagradável para pessoas sensíveis.
Apesar da frieza do entendimento lógico-pragmático, ve-
mos brechas nesse contexto duro: reparem que uma entida-
de, ao dizer claro, entra no campo do "certo e errado". Vejam
como. Se "é claro", isto é, se não cabe controvérsia, existe o
pressuposto de que há evidência. A evidência vem de um valor
que se sobrepõe a outro, dentro de uma situação de, no míni-
mo, mais conveniência, menos atrito. Portanto, quando a enti-
dade diz "claro", faz um leve comentário sobre uma obviedade
- percebe-se já aí um traço de emoção.
Há mais: na troca de informações há algo comunitário,
portanto ético, quando discutem o que é melhor para o sistema.
E ética, eu juro, tem muito a ver com criatividade em sua acep-
ção sadia, como veremos mais adiante.
Analisando um trecho do diálogo, vê-se que as entidades
se mostram agentes de um princípio de dinâmica universal.
Bem, seja quem for esse tipo de ser, sua ação está aqui de acor-
do com a física atual, que afirma que nada é inerte e imutável
no universo, o que torna o movimento natural e, portanto, de-

10 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

sejável. A dinâmica compreende uma mudança constante, que


acontece sempre tendendo do caos para o equilíbrio, o qual,
ao se estabelecer, pela absorção de anomalias, volta a ser caos
(nova teoria dos sistemas entrópicos, de Illia Prigogine). Os
sistemas tratam o desequilíbrio de forma organizadora, e isso
é feito de modo mais eficiente nos organismos auto-reprodu-
tivos. Daí, usarem vida para otimizar o processo. Se fôssemos
perguntados sobre essa idéia dos seres, teríamos de admitir
que ela é lógica e boa, vocês não concordam?
Vemos também que em outro trecho o diálogo aborda
a interatividade. Como é mesmo? Puxa, a colocação poderia
ser menos "densa". Mas vamos tentar dissecá-la. As entidades
concordam que a interação (inter-ação, uma parte agindo so-
bre a outra) tende a compor o equilíbrio em ciclos (processos
repetitivos). Certo, isso se vê, por exemplo, nos vegetais, seres
vivos que interagem bem com o ambiente; eles têm ciclos que
vão de menos de um mês (rabanetes), a mais de um século (al-
guns pinheiros). Assim, a linearidade da qual elas falam vem
da evolução lógica, que acaba traduzindo-se em ciclos. E o que
isso tem a ver com criatividade? Bom, pensemos em evolução/
inovação: a própria natureza inova para evoluir (Darwin). E a
inovação não é irmã da criatividade?
Nessa história, a vida inteligente foi planejada com uma
pitada de "anomalia" ou "não lógica", simplesmente. Alguém
poderia dizer que isso seria um lado "não in-
teligente" do organismo? Reparemos o que
as entidades queriam: uma aceleração de
processos. E elas planejavam isso por uma Se o homem nunca
via que conseguia articular a linearidade com fugisse da norma,
a anomalia, funcionando esta como uma es-
pécie de fermento para ativar o crescimento teria um comporta-
da massa. Está aí esboçada uma elementar mento repetitivo e
"defesa" do comportamento não lógico, pai
da criatividade. Ele constitui-se em um ele- seria só um mamífe-
mento acelerador da dinâmica de sistemas, ro a mais na Terra.
quando não a própria dinâmica.
Se tudo isso está parecendo aborrecido
a vocês, talvez esta parte do livro devesse ser "pulada" ou pre-
terida, de acordo com as "instruções" para a leitura. Queiram
conferir, sim?

UMA PARÁBOLA SOBRE A ORIGEM DA CRIATIVIDADE 11


COMENTÁRIOS

Concluindo, adivinho, aqui vocês já devem estar-se lem-


brando do mais famoso exercício do livre-arbítrio, aquele li-
gado ao consumo do fruto proibido. Calma. Acho que algum
paralelo estabelecido aqui não é desrespeitoso. Apenas colhe o
que há de "anomalia" em nossa espécie sob o ângulo de quem
observa a dinâmica do sistema. A compulsão para a "não nor-
ma", apesar de reprimida automaticamente pelo sistema, é um
claro ativador do processo. Faz parte dele, é-lhe útil. Se não
existisse, talvez o homem fosse um mamífero a mais, e sua
participação no todo seria igual à de outros, como a baleia ou
o sagüi, que não comem alimentos proibidos a eles. •

12 CRIATIVIDADE
Como e Por Que
a Criatividade é
Universal

A parábola do capítulo anterior, usando o caminho da fanta-


sia, propõe uma reflexão sobre a diferença específica que
existe entre o raciocínio do homem e qualquer outro tipo
de atividade similar a esse raciocínio encontrada nos demais seres
vivos de nosso planeta.
Podemos analisar o assunto partindo do "raciocínio asso-
ciativo" de animais, como o cachorro de Pavlov, ou da "reação
associativa" de plantas, principalmente das chamadas sensitivas.
Verificaremos que as ações provocadas por associações sempre se
processam pelo aproveitamento de experiências anteriores e se
constituem em um tipo de reação a estímulos. Já o homem soma
a esse tipo de raciocínio associativo sua capacidade de "ir além",
construindo hipóteses, conjecturando, sonhando, enfim. Expe-
riências anteriores são, portanto, processadas por nós de forma
definitivamente única. Podemos afirmar que a espécie humana
tem capacidade inata e exclusiva de raciocinar construtivamente.
Essa capacidade produz o que tranqüilamente pode ser chamado
de criatividade.

Quando digo capacidade inata, falo do potencial que nos é


próprio. Daí a afirmação de que nós todos somos criativos, o que
só pode ser contestado em termos de grau. Também se chega a
essa convicção pelo fato aceito de que "todas as crianças são cria-
tivas", e que seu potencial inato vai depois sendo bloqueado no
processo de socialização. Verdade que há diferenças: assim como

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 13


nascem pessoas mais altas e mais baixas, também há gente com
maior ou menor capacidade criativa.
A capacidade de cada um é utilizada e desenvolvida em fun-
ção do meio, de seus estímulos, das limitações que apresenta e
dos bloqueios que impõe. Há muitas limitações, às vezes enormes.
Por isso, costumo defender, para os que estão entrando no as-
sunto, que, seja qual for o potencial próprio da pessoa, o simples
rompimento dos bloqueios ou a prática pela tentativa, que tende
a desenvolver a capacidade, já serão suficientes para que o com-
portamento criativo se destaque da média.
Bem, agora assim colocada a questão da universalidade da
capacidade criativa, podemos partir para a análise de como esta
se manifesta. O que queremos dizer realmente, quando falamos
"criatividade"? Qual a definição, o modelo, o padrão?

Definições pessoais de criatividade


A abordagem prática do tema criatividade, neste livro, pode-
ria passar ao largo das definições, mas correria o risco de colidir
com expectativas criadas pela adoção mental de uma ou outra
definição, na cabeça de alguns leitores.
Todos nós, para uso próprio, guardamos algo parecido com
uma definição de criatividade. A maioria de nós, entretanto, não
se comprometeria com um enunciado exato e definitivo, porque o
assunto é amplo e um pouco escorregadio, gerador de perguntas
como: Inteligência inclui criatividade? Criatividade é um dom? É
produto de insights? De neuroses? Há vários tipos e níveis?
Vê-se, portanto, que uma só definição teria de abranger mui-
tas facetas do tema. Mas acho impossível existir um enunciado
que contemple todos os aspectos e satisfaça a todas as pessoas.
Enfrentando esse problema, ao precisar fornecer uma base con-
ceituai, no início de cursos e workshops, e até mesmo em palestras,
criei a seguinte solução: cada pessoa pode formular sua própria
definição, a partir de exemplos discutidos. É o que faremos aqui.
Antes dos exemplos, algumas considerações.

viii CRIATIVIDADE
Manifestações de criatividade
"Ao criar, a pessoa encontra seu eu, seu mundo, seu Deus."
Erich Fromm

Não é difícil concordarmos com Erich Fromm, mas, refletin-


do sobre esse bom encontro, sempre guardamos uma tendência
de julgá-lo, enquanto ato de criar, uma quase exclusividade do
campo das artes. O que é natural, pois os artistas têm a base de
sua atuação na criatividade.
Entretanto, a vertente da expressão e da comunicação, em
que se pode encontrar desde Da Vinci até Gilberto Gil, é apenas
a mais evidente (e talvez a mais charmosa) face da criativida-
de - qualidade que não é somente própria do homem, mas tam-
bém muito mais inerente a ele do que se costuma pensar, o que
é exaustivamente defendido neste livro. Criatividade vai muito
além das artes.
Focalizaremos aqui, portanto, a criatividade em outros se-
tores, mais presos ao dia a dia, porém tão importantes, como o
das artes, principalmente no que toca à frase de Erich Fromm: a
realização pessoal.

Dona Maria e Niemeyer criando


Muitos autores dividem atos criativos em ní-
veis de relevância, classificando-os de acordo com
sua interferência no contexto. Certo, a receita origi-
nal de um prato, criada pela mulher que precisava
aproveitar sobras, não pode ser colocada no mesmo O comportamen-
plano de um projeto arquitetônico premiado. Ou
pode? Ambos não são atos criativos, produtos da
to criativo facilita
ruptura das normas, eclodidores de uma nova rea- a vida, a partir do
lidade? A dona de casa e o arquiteto não tiveram o
mesmo tipo de satisfação pessoal, só que em inten-
cotidiano. Impro-
sidades diferentes? Talvez. visar um novo
Sem esquecermos isso, vamos focalizar criati- prato usando so-
vidade utilizada na solução de problemas e na des-
coberta de oportunidades, conscientes da importân- bras é um ato de
cia dessa abordagem, já que esses são os campos criatividade.

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 15


da sobrevivência e do desenvolvimento do homem. A partir do
domínio criativo do fogo, ele se impôs aos animais mais fortes,
solucionando um de seus primeiros problemas. Mais tarde, com a
invenção/descoberta da roda, acionou o progresso, descobrindo
as oportunidades geradas pela ausência de atrito. Apenas para
efeito de facilitar a comunicação, batizamos essa vertente de
"criatividade aplicada". Como poderia ser criatividade prática, ou
objetiva, ou não artística etc.
Vamos começar lembrando memoráveis "sacadas criativas"
nesse campo, digamos assim, profissional.

Exemplos exemplares
Primeiro exemplo: a cidade de Barcelona, diante do proble-
ma de alojar 20 mil atletas, nas olimpíadas de 92, construiu um
conjunto de apartamentos, em uma área recuperada da deteriora-
ção urbana; os apartamentos foram vendidos com financiamento
privilegiado para habitantes locais (resolvendo um problema de
déficit residencial), mas com a condição de serem entregues após
terem sido utilizados como alojamentos do evento esportivo.
Segundo exemplo: os fabricantes de creme dental Colgate
haviam recebido uma máquina automática que processava todos
os insumos e soltava o produto pronto, tampado, embalado, em
uma seqüência veloz, que seria maravilhosa não houvesse um pe-
queno e renitente defeito oculto: de vez em quando saia um tubo
prontinho, mas cheio só de ar. Após um sem-número de tentativas
infrutíferas de conserto, a solução veio de um palpite dado quase
casualmente por um dos trabalhadores que assistiam aos esforços
dos técnicos. "Por que vocês não colocam aí na saída um ventila-
dor que sopre para fora os tubos vazios?
Terceiro exemplo: a Ikeda era uma fabricante de implemen-
tos agrícolas, a braços com uma das periódicas crises do setor.
Ao mesmo tempo em que apresentava considerável capacidade
ociosa, percebeu que os operários estavam aproveitando o tem-
po vago e os restos de materiais disponíveis para fazer pequenas
churrasqueiras de uso próprio. Em lugar de adotar soluções nor-
mais, enxugando quadros, recolhendo as sobras ou simplesmente
proibindo a prática, a Ikeda abriu uma nova linha de produtos,
passando a fabricar e vender churrasqueiras - atividade que logo
se tornou tão ou mais importante que a anterior.

16 CRIATIVIDADE
Os três casos mostram criatividade aplicada, fora da vertente
das artes. A fabricação de churrasqueiras, mais que resolver pro-
blemas, representa uma autêntica descoberta de oportunidade. O
caso do ventilador é uma típica solução de problema e, finalmen-
te, o exemplo de Barcelona é uma soma de solução de problema
com a descoberta de oportunidade. Vemos aí campos de aplicação
da criatividade que são estimulantes e que se estendem aos mais
diversos setores de atividade, independente de propósitos especí-
ficos de expressão ou comunicação - não precisamos ser artistas
para nos beneficiarmos de uma performance criativa.

Desenvolvimento do comportamento
criativo
Ao lado daquelas constantes observações de alunos e par-
ticipantes de grupos, em começo de cursos e workshops, do tipo
"eu não sou criativo", noto também uma restrição, na maioria
das vezes muda, quanto à possibilidade de aproveitar as infor-
mações para o desenvolvimento de sua criatividade. Há pouco
crédito quanto aos resultados do investimento (tempo e dinheiro)
de frequentar um evento que promete mais criatividade para si.
Pessimismo normal? Ou a falta de fé se baseia em experiên-
cias anteriores? Descobri que o "pé pra trás" se explica, em grande
número de casos, pela anterior leitura, infrutífera, de um livro ou
artigo do tipo "como fazer" ou de algum vídeo de treinamento
sobre o tema. Relatos pessoais me mostraram uma situação bem
comum: a pessoa se arma de esperanças ao iniciar a leitura, não
se decepciona com o conteúdo ("era tudo tão bacana"), mas, ao
terminar, não consegue pôr em prática o que pensou ter aprendi-
do, alvo pequenas exceções relativas a alguns dias ou a algumas
circunstâncias.
Certo, constata-se que há bons e maus conjuntos de informa-
ções. Há livros melhores e piores, há o perigo das traduções infiéis
e, quanto a cursos, há também, além dos problemas advindos de
circunstâncias, o perigo da falta de sintonia entre as expectativas
(e bases de conhecimento) do aluno e a natureza do curso. Contu-
do, não obstante a existência de todas essas variáveis, o problema
da decepção geralmente vem de outro lado: sempre há expectati-
va de mudança própria, como produto das informações recebidas.

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 17


Mas a criatividade pessoal não eclode com o conhecimento de
recursos e receitas, que é o que traz a maioria dos conjuntos de
informações. O exercício do potencial de criatividade liga-se à psi-
cologia do indivíduo, como o comportamento se liga à personali-
dade. Adianta pouco adotar novas práticas, se elas se constituem
tão somente em "estruturas". Eu frisei tão somente porque as
estruturas podem ser muito úteis, se forem aplicadas pela pessoa
também engajada em um processo de desenvolvimento de seu
comportamento criativo. Aqui chegamos ao "X" da questão: não
tenho conhecimento de qualquer técnica (nem acredito que exis-
ta) que possa tornar a pessoa "mais criativa".

Características do comportamento
criativo
O comportamento criativo é produto de uma visão de vida,
de um estado permanente de espírito, de uma verdadeira opção
pessoal quanto a desempenhar um papel no mundo. Essa base
mobiliza no indivíduo seu potencial imaginativo e desenvolve
suas competências além da média, nos campos dependentes da
criatividade.
Quando digo "além da média", estou lembrando o princí-
pio, já defendido aqui, de que criatividade é uma característica
de nossa espécie. Como tal, ela está presente em nosso compor-
tamento normal, em um nível às vezes até imperceptível para
a maioria. Há cientistas que defendem ser a própria linguagem
oral do homem um exercício de criatividade, porque ela tem um
mecanismo de "improviso", e este só se viabiliza pela habilidade
criadora. Portanto, o que chamamos de comportamento criativo é
uma forma de exercer o potencial imaginativo em um nível que,
por estar acima da média, se torna evidente.

A questão do engajamento pessoal


Voltando ao fio da meada, toda a minha experiência no cam-
po da criatividade aplicada, somada às pesquisas no campo aca-
dêmico, traz-me a convicção de que o processo descrito como um
engajamento total para o exercício da criatividade às vezes de-

18 CRIATIVIDADE
pende de determinação (ato volitivo), outras vezes é inato e ain-
da outras é produto das circunstâncias, pois estas sempre podem
"empurrar" a pessoa para um destino específico.
O engajamento pela determinação pode ser exemplificado
pela pessoa que descobre de alguma forma o prazer do ato de
inovar, com um gratificante sentimento de estar interferindo no
mundo, e assim passa a procurar melhor qualificação no campo
da criatividade. Pesquisa, lê, faz cursos e, o que é mais importante
do qualquer outra coisa, tenta, tenta, tenta. Não desanimando
com insucessos ou erros, acaba rompendo seus bloqueios e otimi-
zando seu potencial. Adquire, por vontade própria, a capacidade
de criar como um ato normal de exercício de sua personalidade.
O engajamento inato é mais raro e caracteriza-se pela ten-
dência compulsiva de questionar, mudar, inventar novas maneiras
de fazer as coisas. Aparece desde a infância, período em que todos
somos naturalmente mais criativos por termos poucos condicio-
namentos ou mesmo nenhum. Se o mundo não consegue reprimir
esse indivíduo, ele passará a vida, tentando realizar-se via criati-
vidade. Como o sistema é implacável e sólido, poucos conseguem
grande sucesso como um Thomas Edison. Mas seguem compulsi-
vamente sua tendência inata.
Já o engajamento resultante de circunstâncias é de longe o
mais interessante para ser analisado, por revelar que o chamado
homem comum pode tornar-se o homem criativo. Quem acom-
panha o desempenho do pessoal em empresas está cansado de
ver exemplos assim: um "apagado" ou "comportado" funcionário,
de repente, ao ser colocado em uma função que o motiva, e que
exige de si o máximo, transforma-se em pessoa dinâmica e cria-
tiva. Algumas vezes a transferência é planejada para queimar de
vez alguém não produtivo, e revela que a pessoa apenas estava
no lugar errado. Estudantes apáticos muitas vezes se tornam bri-
lhantes, ao mudar de escola. Filhos ganham iniciativa ao sair de
casa, cônjuges mudam de personalidade ao ficarem sós, equipes
inteiras se transformam ao mudar de líder.

Pessoa criativa, pessoa comum


No campo específico da criatividade, os estímulos do meio
são decisivos para criar o aqui chamado engajamento total. E,
quando este acontece, vem confirmar aquele princípio, hoje já

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 19


bem aceito pela ciência, defendido na década
de 60 por Abraham Maslow, um dos pais da
Criatividade é carac- psicologia humanista: "O homem criativo não é
terística da espécie o homem comum ao qual se acrescentou algo; o
homem criativo é o homem comum do qual nada
humana: "O homem se tirou."
criativo não é o ho- Comparando-se dois tipos de engajamen-
mem comum ao qual to, no caso este último, produto das circunstân-
cias, com o inato, que se caracteriza principal-
se acrescentou algo; mente pela compulsividade, descobrimos coi-
o homem criativo é sas interessantes. O indivíduo que nasce com
o comportamento criativo como que fazendo
o homem comum do parte de sua personalidade tem uma postura
qual nada se tirou." de "viciado pelo novo" diante do mundo. Cla-
ro que o exercício de sua compulsão inclui o
Abraham Maslow prazer, mas este sequer é procurado como um
fim. Ao acabar cada tarefa de criação, a pes-
soa relaxa com a sensação de dever cumprido, perante si própria.
Quando não tem obrigações de criar, ele descobre desafios no
cotidiano, imaginando modificações em tudo, ou até mesmo fica
"treinando", como no caso de um diretor de arte meu conhecido,
que começa a criar layouts em guardanapos de papel, já na segun-
da semana de férias.
Com o indivíduo que as circunstâncias tornaram criativo
acontece algo diferente: ele passa a deslumbrar-se com o prazer
que advém de sua criatividade e torna-se também um fã dessa
condição, nova para si, adquirindo o "vício" não pela via com-
pulsiva, mas pelo caminho hedonístico. Busca o prazer de criar,
pelo prazer da conquista do "novo". Descobre, sem analisar por
que, que o novo é irmão do diferente e que o diferente, quando
relevante, é chamado de criativo. O conceito de relevância é
muito mais aplicado à criatividade no dia a dia ou no campo
profissional do que nas artes, que têm outro compromisso com
a realidade. O funcionário criativo percebe que suas idéias são
chamadas de devaneios e rejeitadas quando não se articulam
com a realidade, isto é, quando não apresentam evidentes van-
tagens que compensem o risco que as mudanças sempre apre-
sentam, em algum grau.

20 CRIATIVIDADE
Uns nascem, outros se formam
Temos assim uma diferença notável entre o criativo compul-
sivo e o criativo circunstancial. Mas aquele, inato, quando con-
segue atingir um bom nível de exercício de seu potencial, acaba
tendo a mesma postura que o circunstancial. A consciência dessas
condições e de como as coisas funcionam em cada caso pessoal é
importante para este último tipo, o dos que desejam exercer me-
lhor sua criatividade. Tipo em que, a rigor, deve estar a maioria
de vocês, leitores deste livro.
O desenvolvimento do comportamento criativo também se
estabelece quando os estímulos circunstanciais são os de "neces-
sidade de solução". Essa vertente é a mais comum que se encontra
no campo profissional. O ambiente das empresas, cada vez mais
mutante, traz constantes problemas de adaptação, o que também
explica por que a criatividade está sendo cada vez mais valori-
zada nas organizações. As soluções são um "novo obrigatório",
indispensável até para a sobrevivência no mercado. Fora dessa
vertente mais comum, as condições de mudança também estimu-
lam o uso da criatividade na "descoberta de oportunidades", que
se constituem em uma especulação com o novo.
Dentro desse panorama, encontramos denominadores co-
muns no desenvolvimento da criatividade pessoal. Trabalhando
com eles, por meio de diálogos com alunos e de pesquisa em áreas
da Psicologia, cheguei a uma teoria de como pode funcionar o
processo que nos leva a desenvolver o comportamento criativo.
Essa teoria foi com o tempo ilustrada por uma metáfora, para uso
em aulas, que estará no próximo capítulo. •

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 21


COMENTÁRIOS

Ecos do Capítulo 2
(Especulando e comentando)

Universalidade?
Califórnia, adorável Califórnia, é o lugar onde há mais
intelectuais alternativos do. que em qualquer outra parte do
mundo. Só São Francisco tem mais de 300 publicações espe-
culativas e/ou esotéricas..
Uma amostra da cultura da região é Itzac Bentov, autor
lido e respeitado até nos meios acadêmicos americanos. Pois
bem, seu livro (prefaciado por William Tiller, cientista da Uni-
versidade de Stanford), traduzido para o português, À espreita
do pêndulo cósmico, que basicamente explora princípios uni-
versais de oscilação e sincronicidade, traz algumas teorias das
quais me apodero e transformo em argumentação para defen-
der a tese de a criatividade constituir-se em uma característica
de nossa espécie.
Vejam só que interessante. Bentov, que não parte das dife-
renças entre seres vivos e a matéria em geral, montou um qua-
dro com os níveis do que ele chama de consciência, definindo
esta como a capacidade de resposta a estímulos, presentes até
nos átomos (que se alteram com raios ultravioleta). De acordo
com a teoria, há uma possibilidade de medir o nível de cons-
ciência, que é mínimo nos átomos, aumenta nos vírus, nos ani-
mais, e em grau maior atinge o que ele chama de faixa de
nossa realidade comum. Ele não pára aí, definindo faixas em
que o homem, desenvolvendo sua consciência, também pode
situar-se: a realidade emocional, a mental, a intuitiva, e chega
por fim aos níveis espirituais, com a idéia de uma consciência
plena universal, que me parece ser sua idéia de Deus.
A escala de Bentov inspira-se na existência de uma per-
cepção cada vez mais sutil e de uma resposta cada vez mais
refinada. E chega então ao ponto em que vejo contida a defesa
da criatividade como característica da espécie, com base na
idéia do "livre-arbítrio". Vale a pena transcrever o trecho que
trata disso:

22 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

"...uma rocha conterá menos consciência que uma


planta ou um cão. Isso deixa à rocha um menor grau de
controle sobre o seu meio ambiente, um menor número
de respostas possíveis e, em conseqüência, menos livre-
arbítrio (se é que se pode falar em livre-arbítrio de uma
rocha). Todavia, não nos esqueçamos de que nós, seres
humanos, também usufruímos de um livre-arbítrio limi-
tado. Seu grau, bem como nossa capacidade para con-
trolar ou criar nosso próprio meio ambiente, serão tanto
maiores quanto mais para cima nos movermos na escala
da evolução."

Esse "movimento" na escala da evolução tanto pode ser


uma simples mudança da visão do observador ao longo da
escala, como a alteração advinda da dinâmica de nossa cons-
ciência indo em direção ao que ele chama de livre-arbítrio, já
que em outros trechos do livro ele trata desse desenvolvimento.
Contudo, o que Bentov chama de livre arbítrio, eu interpreto
como algo mais do que só a liberdade de escolher, porque ele
o coloca no contexto de respostas refinadas a estímulos sutis.
Vê-se assim que não se trata só de liberdade de escolha, mas
também de um desenvolvimento da capacidade de raciocinar
mais complexamente e construtivamente. Para meu propósito,
aí está o X da questão: animais e plantas interagem com o
ambiente, processam estímulos, mas nenhum com essa caracte-
rística peculiar ao ser humano. Daí minha defesa, com a ajuda
de Bentov, de que essa qualidade, que pode ser tranqüilamente
traduzida por criatividade, seja uma característica da espécie
humana. E uma proposição digna de ser pensada, se não estiver
desde logo aceita. Ela se insere em um painel de estudos da
mente, que o crescente interesse pelo tema está fazendo surgir.
Estudos sobre o raciocínio do homem estão em pauta. Há
abordagens multidisciplinares como a do Projeto Zero de Har-
vard, do qual o livro Estruturas da mente (de Howard Gardner),
é um exemplo. Há interessantes abordagens comparativas "ho-
mem versus computador", das quais o livro A mente nova do
rei (de R. Penrose) é um exemplo. Existem outras abordagens
científicas que chegam até a neurologia, hoje já mapeando fun-
ções do cérebro, e aí o livro Left brain, right brain (de Springer
e Deutsch) é exemplo. Há teorias novas sobre a mente, como a

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 23


COMENTÁRIOS

exposta no livro The right brain (de T. R. Blakeslee), que afirma


ser o hemisfério cerebral direito nosso próprio inconsciente.
De posse de informações como essas, facilmente se chega
ao princípio aqui chamado de "universalidade" da criatividade.
E a convicção não se estabelece somente atra-
vés de um raciocínio lógico, apesar de resis-
tir a sua análise; ela vem como uma dedução
O clichê "Eu não sou intuitiva. Aconteceu comigo e estou certo de
que será fácil suceder com vocês. As verda-
uma pessoa criativa" des definitivas e a própria sabedoria, já dizia
é uma propaganda Buda, repousam na intuição, não na razão.

subversiva que deve Consideremos, portanto, o clichê "eu


não sou uma pessoa criativa" como uma pro-
ser ignorada em paganda subversiva, a ser ignorada, em nossa
nossa conquista do conquista do maravilhoso país da criativida-
de. Todos já somos naturais dele. Exploremo-
maravilhoso país da lo, como donos.
criatividade. Para finalizar, confesso que tudo isso aí
acima não está muito coerente com o tom dos
comentários dos outros capítulos, feitos mais
com (e para) o lado direito do cérebro. Peço que vocês relevem
esse fato, já que não encontrei local mais adequado a esses
quase devaneios. Mas os considero muito úteis, no contexto
geral. OK?

Definir criatividade? Exemplificar?


Durante muito tempo, usei nos inícios de cursos e
workshops uma faixa de seis metros de pano, onde se lia: "A
Imaginação é Mais Importante que o Conhecimento. Ass.: Al-
bert Einstein." Estendida na parede, a frase produzia algum
impacto, como eu queria, e passava a ser tema de discussão,
que objetivava provocar, entre os participantes, uma reflexão
sobre a importância da criatividade. Geralmente, eram pessoas
muito condicionadas pelo respeito ao conhecimento científico,
pelas normas e pela obediência ao pensamento lógico.
Dessa discussão partíamos para a definição de criativida-
de; eu apresentava uma, provisória, algo como "a competência

24 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

de raciocinar construtivamente, pensando o novo/relevante".


Contudo, o que eu realmente propunha é que cada pessoa,
após a discussão anterior, formulasse sua própria definição, ex-
traída da análise de exemplos da criatividade aplicada ao dia a
dia, que ali eu apresentava, então.
Nunca foi fácil chegar a um nível alto de cooptação, pois a
base era viciada. Para a grande maioria (principalmente entre
nós, ocidentais), cartesianismo, mecanicismo, pragmatismo e
o "dois e dois são quatro" agem como arquétipos culturais,
para não dizer paradigmas, a serem obedecidos. O restante,
e dentro deste o pensamento não lógico, cheira a especulação
ou misticismo. O que não pode ser matematicamente provado
passa para o lado do esotérico. Não duvidem: certa vez, ao
comentar com um colega professor o livro para mim muito im-
portante, "Diálogo Entre Cientistas e Sábios", que ele também
havia lido, ouvi este tipo de conclusão: "O livro é interessan-
te, Predeba, mas faz parte de uma moda recente que valoriza
muito o pensamento não científico; parece que estamos numa
Renascença às avessas."
Os participantes de meus cursos, com quem comentava
a frase de Einstein, por outro lado, também não deixavam de
apresentar certo respeito e interesse pela criatividade, até por-
que estavam inscritos no evento. Mas, como se constata na
apreciação do público em geral, criatividade era para eles um
campo reservado quase exclusivamente a artistas e a pessoas
superdotadas.
Quanto perde a humanidade por não existir um consenso
de que criatividade é uma característica natural da espécie hu-
mana e de que seu exercício é absolutamente cotidiano! Todos
ganhariam muito mais estímulo e perderiam muitos bloqueios
para o exercício de suas potencialidades. Bem, e ao se enfren-
tar o problema elementar de uma definição, o problema apare-
ce. O que mais ocorre de imediato são afirmações como estas:
"Criatividade é coisa de gênios, como Einstein ou Da Vin-
ci."
"Criatividade e loucura estão próximas."
"Criatividade é subproduto de uma neurose."
Ah! isso também passa por suas cabeças? Este livro vai
tentar provar o contrário, estabelecendo um diálogo com a ra-

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 25


COMENTÁRIOS

zão de vocês. A tese da universalidade da criatividade não é


nova, sequer corajosa. Mas sempre é discutível, e talvez as-
sim o seja por uma questão de nomenclatura. Porque a grande
maioria acha que a palavra criatividade não inclui as ações ino-
vadoras do cotidiano, e só se lembra dos gênios criativos, fre-
qüentemente loucos como um Van Gogh ou neuróticos como
poetas que se suicidam.
Bem, voltemos aos exemplos, que valem mais que argu-
mentos. Os casos descritos pretendem defender o conceito de
criatividade no dia a dia como uma forma interessante, mas
absolutamente normal de ação, ao alcance de
todos. Analisem um por um, verificando como
eles são representativos, dentro do que cada
Exemplo torto de um de nós está cansado de ver acontecer por
aí.
raciocínio especu- Só para brincar um pouco, acrescento
lativo/inovador: o aqui um exemplo desse tipo de raciocínio es-
peculativo/construtivo/inovador: o conto do
conto do vigário. O vigário. Querem coisa mais engenhosa? E o
estelionatário nada malandro vigarista está a rigor sendo nada
mais que um "criativo aético".
mais é que um "cria-
É bom também trazer aqui mais um caso
tivo aético". real de que tomei conhecimento, para que
se pense em criatividade em nosso dia a dia.
Aqui vai: uma grande casa foi desocupada
pelo banco que a alugava e o inquilino que chegou para mon-
tar ali um restaurante encontrou, no lugar em que ia instalar
a copa, um antigo e pesadíssimo cofre. O banco, avisado, in-
formou que era artigo fora de uso, doado a uma instituição de
caridade. Esta, por sua vez, não tinha recursos para a caríssima
remoção, renunciando ao bem. Solução criativa do inquilino:
abrir, ao lado do cofre, um buraco no chão e aí enterrar o tram-
bolho para sempre. Criatividade, aqui, para solucionar um pro-
blema trivial, mas enorme.
A esta altura, creio que será fácil ter na cabeça de cada
um de nós uma definição própria de criatividade. Ela também
pode nascer da reflexão sobre uma metáfora que uso em cur-
sos: imaginem um balão tripulado, cujo vôo eficiente acontece
pelo balanceamento entre o gás e o lastro. Se tivesse gás de-
mais, ele se perderia. Com lastro excessivo não sairia do chão.

26 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

Pois bem, na metáfora temos o exercício da criatividade como


um voo de balão, no qual o gás seria a fantasia e o lastro sua
tangência com a realidade (relevância).
Mas, seja qual for a definição adotada, deverá estar pró-
xima de algo que trata da competência mental de raciocinar
de forma diferente do computador, isto é, articulando o que
não é previsto pela lógica com a própria lógica. Se não hou-
ver a articulação, não é criatividade, é só fantasia. Existindo a
articulação, a idéia passa a ser relevante, e aí caracteriza-se a
criatividade. Coisa de gente normal, que só se destaca da mé-
dia pelo exercício desbloqueado de suas potencialidades.

Criatividade? Por quê? Para quê?


Minha experiência como professor de cursos de criativi-
dade e monitor de workshops me leva às deduções que estão aí.
O ângulo do assunto está focalizado racionalmente pelo lado
esquerdo do cérebro. Vejam que aí eu afirmo, e o faço sincera-
mente, ser o comportamento criativo (aquele além da média)
o produto de uma visão de vida, com um engajamento total.
Existe, porém, uma ressalva quanto a isso, e ainda bem
que a mesma prática que me trouxe as referidas conclusões
também me levou à descoberta de um ângulo restritivo da
questão. Digo ainda bem, porque assim meu discurso fica me-
nos radical, mais realista, e passa a abranger aspectos não lógi-
cos que só nosso hemisfério direito ajuda a explorar.
O fato relatado a seguir originou-se em uma noite de
1992, na Faculdade Cásper Libero, quando quase 300 estudan-
tes assistiam a minha palestra sobre criatividade. Já contarei o
que ocorreu, que me levou a um posicionamento interessante
sobre o tema. Posicionamento que eu relato, depois de fazer
aqui um "parêntese filosófico", à guisa de preâmbulo.
(Filosofando, afirmo que seria ótimo se, ao viajarmos, não
esquecêssemos o destino. É comum as atividades da viagem ocu-
parem tanto o viajante que ele acaba considerando o trajeto
como um objetivo em si e perde de vista o destino real. Viagem
nada mais é que a ida de um lugar para o outro. Não é um pas-
seio, onde estamos, aí sim, curtindo a movimentação. Verdade é

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 27


COMENTÁRIOS

que podemos fazer a viagem e passear, ao mesmo tempo, mas isso


não é comum.
Essa consideração deságua em uma reflexão sobre o com-
portamento criativo, que pode ser considerado uma atividade
parcial (algo como um trajeto) dentro de um todo maior que é o
sentido de nossa vida (algo como um destino). Como o sentido da
vida inclui sempre a felicidade, ela é mais importante que o com-
portamento criativo. Este deve ser almejado, portanto, à medida
que trouxer felicidade.
Se a vocês ocorre de imediato que exercer a criatividade é
gratificante em si e os faz feliz, está aí o caso da viagem a passeio.
Mas esse exercício só deve ser cultivado se não for sofrido. Se ele
se tornar uma obrigação difícil de ser cumprida, há algo erra-
do. Porque aí, insistindo, vocês estariam esquecendo o verdadeiro
destino de sua viagem, da viagem de suas vidas: ser feliz.)
Agora conto o que sucedeu na Cásper Libero. Os estu-
dantes me ouviam defender as vantagens de saber desprezar
normas, quando o mister é conseguir chegar a soluções cria-
tivas e inovadoras. Acho que fui até bem-sucedido, o que na
hora deduzi pela pergunta de uma aluna, muito sincera, sobre
sua dificuldade para sair fora do trilho das coisas certinhas. À
medida que ela falava ia ficando mais veemente, e o auditó-
rio inteiro fez um silêncio de expectativa, primeiro para ouvir
aquele depoimento, muito humano, e depois pela curiosidade
de saber o que eu diria.
"Professor, tento, disse ela, com emoção. Deus sabe como
faço força, mas não consigo. Eu já tinha consciência disso que
o senhor fala, que querer tudo certinho não é bom, mas acho
que nasci assim quadrada, e simplesmente fico me debatendo
contra isso. Deve haver alguma coisa que eu possa fazer, pois
até mesmo um guardanapo, dobrado de maneira errada, me
incomoda. Eu preciso ver as coisas na ordem certa, senão sin-
to uma compulsão para corrigir. Isso tem remédio? Por favor,
diga, o que eu faço?"
Senti uma responsabilidade muito grande, naquele mo-
mento. E, talvez, movido mais por respeito humano, minha
mente fez um malabarismo para dar uma resposta honesta
que fosse boa para ela e para aquele mundo de estudantes me
olhando. Acho que por felicidade tive um insight.

28 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

"Pare com isso", eu disse. "Olhe, minha


cara, eu penso que nós viemos ao mundo
para sermos felizes e não para sermos criati-
vos. Em que pese eu ter dito aqui que a cria-
Nosso verdadeiro
tividade é sensacional, e nos faz maiores, e destino deve ter a di-
não há por que fugirmos de seus estímulos, reção da felicidade.
pense que cada um de nós é uma pessoa, com
um individualismo precioso, que devemos Criatividade será só
cultivar. A criatividade não é uma porta única uma estrada.
para a realização pessoal, e daí para a felici-
dade. Se as práticas para exercer uma postura
inovadora não estão de acordo com a parte mais profunda de
sua personalidade, não há por que insistir. Vivendo tranqüila,
procurando crescer a partir de seu jeito, você achará outras
portas mais adequadas a sua natureza. Que não é pior nem
melhor que a natureza dos outros, é simplesmente sua manei-
ra. Não fique se cobrando ser menos adequada às normas, nem
se envergonhe de o ser. Exerça sua individualidade, e isto, sim,
pode ser uma chave, uma solução."
Raramente me senti tão realizado como naquele momen-
to, com as palmas que minha resposta provocou. E, refletindo
depois, vi que o estímulo da pergunta da aluna havia provo-
cado uma instantânea mas delicada análise do assunto. E a
conclusão, para mim, permanece muito válida, até hoje.*
Nossa verdadeira viagem é em direção à felicidade. Cria-
tividade é só uma estrada. •

T
A conclusão foi enriquecida, posteriormente, por meio do contato com a Human
Dynamics, novo ramo da psicologia que explica nossas tendências pessoais. No apên-
üce, ao final deste livro, há algumas informações sobre HD.

COMO E POR QUE A CRIATIVIDADE É UNIVERSAL 29


3
Processo do
Desenvolvimento
da Criatividade
aceitar, plena ou parcialmente, o conceito de que criativi-
ade, como um tipo de raciocínio construtivo que se aplica
o dia a dia, é uma característica da espécie, vocês, acre-
dito, tenderão também a aceitar, plena ou parcialmente, uma ex-
plicação de como se dá o exercício desse potencial, o que estará
contido na metáfora que em seguida descreverei.
Antes, contudo, cabe uma observação: a aceitação plena ou
parcial daquele princípio de universalidade (todos somos criati-
vos em algum grau) e uma reflexão que solidifique essa idéia são
fatores extremamente úteis para pessoas que desejam engajar-se
em um processo de desenvolvimento da sua capacidade criativa.
Porque dentro delas se estabelecerá um posicionamento positivo,
que em níveis variados significará "sou capaz". Ora, como a cria-
tividade tem uma estreita dependência com o estímulo próprio e
interior para a tentativa, esse pensamento positivo representará
uma grande ajuda.

A terra e a semente
Vamos à metáfora. Imaginem que o potencial criativo, por
ser comum a todos nós, possa ser simbolizado pela terra, onde
plantamos nossas sementes, e que em tese é disponível à espécie
humana. Nossa semente, neste caso, será o símbolo da disposição

30 CRIATIVIDADE
favorável para o assunto criatividade. Assim começamos a me-
táfora, que se presta bem a ser representada visualmente, o que
sempre faço em classe. Desenho a terra que é o p o t e n c i a l cria-
tivo, e a sementinha, que é a disposição favorável.
Disposição favorável é pouco mais que "não oposição". Não
obstante isso, a oposição deve ser rara, no caso da criatividade.
Mas a disposição favorável é uma força tangível, que se expres-
sa de muitas formas. Como exemplo, ela pode ser a admiração
que sentimos, com uma pontinha de inveja, quando encontramos
uma solução criativa. "Como não pensei nisso antes?" "Puxa, eles
não têm mais o que inventar!" "Que saída inteligente!" Essas são
reações pessoais que ocorrem nas ocasiões mais prosaicas, como
quando vemos uma embalagem com um sistema fácil de abertu-
ra, ou em casos mais complexos, como o de uma solução habili-
dosa que facilita nosso caminho no trânsito. Se admiramos esses
fatos criativos, temos dentro de nós a semente, que com maior
ou menor frequência aparece germinando, na forma das idéias
criativas que nos ocorrem.

O broto cresce
Bom, nossa imagem já tem uma plantinha brotada da ter-
ra. Em nossa metáfora, colocamos a seu redor uma quantidade
adequada de adubo para otimizar seu crescimento, e esse adubo
é o que chamamos de p r o p o s i ç ã o de ação. No desenho, faço
um montinho ao lado da pequena planta. E a proposição de ação,
que representa um ato volitivo e concreto, pode ser exemplifica-
da pela determinação para tomar uma iniciativa, a partir de um
investimento de esforço e/ou tempo, em direção à criatividade.
Em uma criança, por exemplo, poderia ser algo como "vou treinar
para usar meus lápis de cor", ou, em um adulto, "vou tentar pôr
em prática a técnica que esse livro ensina, para desbloquear mi-
nha criatividade".

Adubando, dá
Nesse ponto, a metáfora mostra o crescimento da planta, que
passa a ser uma árvore de tamanho regular. Ela é produto da ação
do adubo e simboliza a atitude que passamos a apresentar para

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE 31


o tema criatividade em nossas vidas. Atitude que é um posicio-
namento interno, como uma forma de sentir as coisas relativas à
criatividade. Ela terá vindo do aprofundamento e da potencializa-
ção da disposição favorável. Tende a integrar-se à personalidade,
por tornar-se um fator permanente de apreciação e julgamento.
Exemplo: a pessoa com atitude criativa reagiria ativamente e com
prazer ao desafio de achar um novo caminho para atingir um ob-
jetivo, como também ao estímulo de uma folha em branco. Essa
atitude tende a valorizar o lado "lúdico" das tentativas, e assim
acaba tornando agradável o processo.

O sol da prática
Prosseguindo com os fatores simbolizados dessa forma, te-
remos agora sobre nossa árvore a ação benéfica de uma boa dose
de sol e chuva, para ela vicejar e produzir frutos normalmente.
Na metáfora, o sol é o símbolo do que chamamos de prática
engajada. Trata-se de algo mais que a simples prática pelas ten-
tativas ocasionais ou decorrentes de estímulos circunstanciais,
como, por exemplo, a necessidade de arrumar desculpas criativas
para freqüentes atrasos na entrega dos pedidos, na empresa onde
trabalhamos.
A prática engajada vem com a adoção de uma abordagem
ou técnica específica, que irá balizar nossas ações. O engajamento
não requer disciplina total de obediência a determinado sistema
ou escola. Pode aproveitar várias técnicas, cruzando-as e soman-
do-as. Mas constitui-se, isto sim, em uma prática sempre mais
consciente do que a da tentativa casual. Isso talvez se viabilize por
meio de pequenos "balanços" de ações já tomadas, verificando, à
luz da técnica que procuramos usar como padrão, quando pode-
ríamos ter agido de forma diferente para obter melhores resul-
tados. Sob essa forma, a prática é consciente e traz benefícios
cumulativos, pois as experiências e suas avaliações passam a dei-
xar registros que facilitam as tentativas seguintes.

A chuva da consciência
Após a ação do sol, que na metáfora se desenha brilhando
sobre a árvore, vamos agora ao que se representa por uma nuvem
que faz chover: é o a u t o c o n h e c i m e n t o .

32 CRIATIVIDADE
Aqui, chegamos a um ponto importante e
delicado do processo, pois se sabe que o auto-
conhecimento é uma conquista valiosa e nunca
Os benefícios do
muito fácil, produto de outro processo, o do autoconhecimento
aperfeiçoamento pessoal. Ele não vem de um
simples exercício de vontade, é uma procura
transcendem em
que pode durar muito tempo, por vezes a vida muito seu objetivo
toda.
pertinente à
O autoconhecimento é mesmo necessário
ao processo do tornar-se criativo? Não afirma-
criatividade.
mos isso categoricamente, até porque temos
conhecido na prática muitos criadores profissionais, como publi-
citários e arquitetos, que estavam longe de ser pessoas centradas
em uma boa imagem de si próprias. Neuróticos e desajustados
também podem tornar-se criativos, mas aqui analisamos a ques-
tão por seu lado saudável, focalizando a capacidade criativa mui-
to mais como Abraham Maslow a via, como uma qualidade do
homem comum, sem bloqueios, em um processo de crescimento
(self-actualizing people) e de realização pessoal.
Afirmamos, contudo, que o autoconhecimento é extrema-
mente valioso para o desenvolvimento da capacidade criativa e
pode ser uma meta consciente da pessoa que deseja aperfeiçoar-
se no campo da criatividade. Claro que os benefícios do auto-
conhecimento transcenderão muito o objetivo pertinente à cria-
tividade. Tanto melhor. Talvez o comportamento criativo seja,
procurado dessa forma, um instrumento para o aperfeiçoamento
pessoal geral. E eu tendo a dizer que o é, pelo que tenho visto
na prática. Todas as pessoas envolvidas com o assunto em nosso
meio, professores e alunos, dão testemunhos que confirmam: a
prática da criatividade deixou suas vidas mais interessantes as fez
crescer como pessoas.

A grande copa adulta


Prosseguimos com a complementação da metáfora. Nossa
árvore, já inteiramente formada e recebendo a ação do sol e da
chuva, terá uma grande e definitiva copa, que simboliza aqui o
c o m p o r t a m e n t o criativo. Trata-se de um modo próprio de
ser, incorporado à personalidade individual, que se caracteriza
por uma atuação acima da média no exercício de suas potencia-

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE 33


lidades criativas, dentro das atribuições assumidas na vida. A
pessoa evidencia esse comportamento criativo quando sua atu-
ação no dia a dia já se mostra naturalmente acima da média,
nesse campo. E uma pessoa que se coloca, em seu meio, de forma
"interferente-relevante-inovadora". Essa maneira de ser costuma
gerar uma provocação freqüente por parte dos que a cercam: "Dê
uma idéia para isso, você que é uma pessoa criativa." A partir daí,
há um estímulo permanente para a pessoa exercer sua criativida-
de, o que passa a acontecer de forma cada vez mais freqüente. O
comportamento criativo tem assim uma retroalimentação, o que
pode ser chamado defeedback.

Os frutos palpáveis
As idéias criativas, na forma de puros insights ou de soluções
arduamente raciocinadas, são simbolizadas nessa metáfora pelos
frutos que a árvore produz, denominados f a t o s criativos. Nada
têm a ver, na maioria dos casos, com obras-primas de grandes per-
sonalidades criativas. Trata-se da manifestação prática da criativi-
dade no dia a dia, geralmente responsável pelo que chamamos de
inovação. São atos originais e relevantes pensados para a solução
de problemas, para a descoberta de oportunidades ou caminhos
novos, na vida profissional e nas atividades de todo dia. Poderia
ser, por exemplo, imaginar uma forma mais fácil de chegar a uma
fonte de lucro ou prazer, como uma família, que conheci, que
descobriu um jeito original de usar o calor do sol para desidratar
sobras de alimentos, para sua conservação.
Os fatos criativos podem ser definidos
pelo que eles trazem de ganho mais rápido (e
não previsto) em qualquer linha da evolução.
Os fatos criativos Modificam o status quo de alguma forma, seja
com uma nova receita de bolo ou com uma
distinguem-se da nova concepção arquitetônica.
manifestação cria- Os fatos criativos distinguem-se das mani-
tiva nas artes pelo festações criativas nas artes pelo compromisso
deles com a realidade e as circunstâncias. Sim,
compromisso deles em ambos os campos há uma ruptura, mas a
com a realidade e os criatividade artística tem um compromisso
maior com a estética e a conquista de novas
resultados. formas de expressão.

34 CRIATIVIDADE
Claro que o mecanismo da produção dos fatos criativos, que
mais interferem no contexto do que são relatados e admirados, se
processa nas mesmas áreas mentais que os gênios usam em suas
criações maiores. Aqui, há um paralelo evidente entre a ação do
homem criativo e a criatividade artística. Esta, entretanto, é fru-
to de outros estímulos, vocações e circunstâncias. A criatividade
aplicada no dia a dia é um exercício natural e sadio e pode ser
facilmente desenvolvida por todos nós.

A escada para a colheita


Nossa metáfora está quase pronta. Ela revela um processo
que pode se completar com mais um simbolismo: a escada que é
usada para facilitar a colheita dos frutos. Essa escada represen-
ta os r e c u r s o s conhecidos para estimular o aparecimento das
idéias criativas. Brainstorm é um recurso. A técnica do "pensa-
mento paralelo", de Edward De Bono, é outro. Réguas heurís-
ticas, sistemas analógicos, indutores de estado alfa, estruturas
de problem-solving e check-list, como outros tantos recursos, são
eficientes para a eclosão de idéias criativas, como a escada é efi-
ciente para facilitar a colheita dos frutos. Mas esses recursos não
colaboram na produção do fato criativo. Em geral, a utilização
contínua de recursos faz esgotar-se a fonte, e as pessoas envolvi-
das nessas circunstâncias veem-se logo como limões espremidos,
enfrentando o stress que advém de tentativas cada vez mais pro-
blemáticas para criar.
Essa visão do processo explica um fato bem comum: pessoas
compram livros sobre criatividade, concordam com tudo o que
eles ensinam, mas acabam decepcionadas, pois a leitura não as
tornou mais criativas. Faltou um engajamento total, interior, indi-
vidual, detalhado aqui na metáfora da árvore.
O que se pretende neste livro é mostrar caminhos para a
chegada de cada um a esse engajamento, que em última análise
tem o objetivo de desbloquear e desenvolver seu próprio poten-
cial de criatividade. Essa viagem ao encontro de sua capacidade
tem sido feita por meus alunos e participantes de workshops com
resultados sempre positivos, em graus diversos. A viagem não só
é possível, como também entusiasmante e altamente gratificante.

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE 35


O delicioso consumo dos frutos
Esta observação final pode acrescentar mais um detalhe à
metáfora. Colhendo-se os frutos, teremos material para fazer com
eles um delicioso suco, que simboliza o r e s u l t a d o gratificante
da criatividade aplicada. É um resultado prático e evidente, em
forma de reconhecimento ou lucro direto, que se obtém com a
produção de fatos criativos. Todos sabem que a pessoa reconheci-
da como criativa passa a ser mais valorizada, elogiada, mais bem
paga, bem como verifica ela própria que em todos os aspectos de
sua vida, da sobrevivência financeira até o amor, tudo fica mais
fácil com a ajuda da criatividade. •

36 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

Ecos do Capítulo 3
(Especulando e comentando)

Metáforas, parábolas e alegorias.


Por quê?
Não que eu precise ou queira justificar-me pelo fato de
abusar dos simbolismos, como o deste capítulo, comparando o
desenvolvimento do comportamento criativo com o crescimento
de uma árvore. Como, porém, deve haver muitos leitores pareci-
dos com meu amigo Nelson Garcia, alérgico a metáforas, preciso
dividir com eles algumas informações sobre a estreita ligação
entre essas figuras de comunicação e o exercício da criatividade.
E algo que vai além da habilidade de dar colorido às mensagens
e chega a atingir o nível de uma massagem mental.
Entre as coisas que aprendi nos dois anos em que dirigi o
Departamento de Criatividade Aplicada da ESPM, reportando-
me diretamente ao Nelson como Diretor Acadêmico, estava
a forma de provocá-lo. Se a ocasião ensejava a oportunidade
marota de deixá-lo contrariado, uma metáfora fazia mais su-
cesso do que o aparecimento de uma barata em sua sala. Assim
como esta seria imediatamente atacada, esmagada ou chutada
para fora, o autor da "analogia lúdica" era escarnecido e quase
convidado a retirar-se.
Por quê? Metáforas vêm de longe. Desde quando se tem
registros, o homem usou essas figuras de comunicação, que
transcendem suas qualidades simplesmente eufêmicas. Insis-
tindo na pergunta: para que procurar, o que pode ser julga-
do à luz de uma apreciação lógica, os caminhos mais longos?
Por que não ser "honestamente direto", "curto e grosso", como
Nelson preferia? Há razões profundas, acreditem.
Para começar, a linguagem simbólica faz-nos utilizar os
dois hemisférios cerebrais, o que facilita a recepção do signi-
ficado. Além disso, ao atingir melhor as áreas emocionais, no
caso o hemisfério direito, o não verbal, o significado ganha
consistência e amplitude. Isso explica como as pessoas em ge-
ral recebem bem os simbolismos e recordam o conteúdo das

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE 37


COMENTÁRIOS

mensagens muito melhor do que se elas fossem transmitidas


apenas pelo caminho mais lógico, aquele que utiliza a codifi-
cação do alfabeto.
Torna-se defensável até um princípio de que ao nos co-
municarmos simbolicamente, estaremos utilizando nossas ca-
pacidades de forma mais plena. A propósito, o livro O cérebro
do japonês defende interessante teoria de que o oriental usa
mais sua intuição, em relação ao ocidental, por uma simples
contingência: a de sua linguagem escrita e falada ter uma co-
dificação deficiente, em matéria de exatidão, em comparação
com a comunicação da linguagem ocidental.
Segundo essa teoria, o estímulo resultante da codificação
precária, ainda em relação à linguagem do ocidental, obriga
a criança que está aprendendo a comunicar-se a ativar fun-
ções do hemisfério direito do cérebro, buscando significados
além da lógica dos signos. Isso lhe dá um tipo de vantagem,
a do maior exercício de uma potencialidade, que tende a ser
atrofiada na criança ocidental. Dessa forma, a comunicação
do oriental se processa por uma articulação entre os dois he-
misférios: o esquerdo, que decodifica as informações de forma
matemática, e o direito, que acrescenta valores emocionais ao
conjunto.
Esperem, não passamos a defender, citando essa teoria,
uma superioridade do padrão oriental de pensamento. Aqui,
estamos, isto sim, registrando uma diferença, e esta tem a ver
com o exercício do raciocínio não lógico e, por extensão, com
a criatividade. Daí se chega até a explicar, talvez, por que o
oriental tem mais afinidade com os hai-kais e bonsais do que
com a pesquisa científica que leva a Prêmios Nobel.
Ah! Então criatividade é uma competência meio inútil, do
ponto de vista científico? Hum! Até há pouco tempo, a única
resposta a essa conclusão apressada seria a de lembrar, por um
lado, as artes, com seu valor próximo aos ideais mais refinados
das sociedades e, por outro lado, a utilidade do pensamento
intuitivo e suas manifestações em ritos e mitos, para estabiliza-
ção emocional de culturas sem as angústias peculiares ao ho-
mem ocidental. Falo do que diz Campbell, em seu livro O poder
do mito e também daquele estereótipo do "velho sábio chinês"
e da tranqüilidade do índio brasileiro, que só agora, contami-
nado por nossos valores racionais, aprendeu a suicidar-se.

38 CRIATIVIDADE
COMENTÁRIOS

Pois é, essa seria a resposta ao questionamento da utilida-


de prática da criatividade, até um tempo recente. Mas hoje, na
era pós-Física Quântica, o melhor uso do raciocínio não lógico
(com a valorização da emoção, da intuição e da criatividade)
começa a tornar-se indispensável para a sobrevivência dessa
nossa civilização armada pelo cartesianismo e cultivada por
valores mecanicistas e pragmáticos, questão bem explorada
por Antônio Damásio, em seu livro O erro de Descartes.
Finalizando, desenvolvi a conclusão de que metáforas e
outros simbolismos, apesar de serem vulneráveis a ataques da
lógica, contribuem diretamente para o exercício da criativida-
de, da seguinte forma:

1. O simbolismo faz a mensagem levar o pensamento


para o campo do não lógico, mexendo com o hemis-
fério direito do cérebro de quem a formula e de quem
a recebe. É um exercício de "não lógica" que ajuda a
desenvolver nossa competência criativa.
2. O simbolismo, que sempre facilita a síntese, também
ajuda a criar um significado essencial/conceituai para
a mensagem, levando sua apreciação para um campo
menos exato, terreno da criatividade, que passa a ser
transitado. No campo didático esse princípio é muito
usado (mais vale um exemplo que mil explicações).
3. Nós ocidentais temos clara tendência viciosa para o
racionalismo, e o exercício da comunicação simbólica
também contribui para desatrofiar nossa capacidade
de raciocinar de forma menos bitolada que a do com-
putador. No Capítulo 8, abordo de forma prática a li-
mitação do raciocínio exclusivamente lógico.

Termino aqui, simbolicamente falando, como quem aca-


bou de dançar um frevo em um salão recém-encerado. Viram
como eu não caí? Ou caí? •

PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE 39

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