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Este suplemento faz parte integrante do Diário de Notícias de 10 de outubro de 2020 e não pode ser vendido separadamente

Data da fundação do
1864.

Harari
II 10 de outubro de 2020_1864.

Porque não foi


o hipopótamo à Lua?
Yuval Harari
explica tudo
N
ove dias mais e regressa às
TEXTO João Céu e Silva livrarias a mais recente e
inteligente explicação da
história da humanidade, que
vendeu 16 milhões de livros e foi
Depois de 512 páginas traduzida para 60 línguas:
que fizeram o mundo descobrir Sapiens, de Yuval Noah Harari.
em 2015 uma nova visão Desta vez não há desculpa para
falhar as explicações de ciência e
da história do homem, de história do autor israelita que
o historiador israelita Yuval Noah se tornaram leitura obrigatória
para Barack Obama ou Bill
Harari regressa com um quarto Gates, além de que Yuval Harari
livro (na realidade, serão quatro está sempre “presente” ao longo
das páginas em que os autores
volumes)... Mas não é um inédito, de comics, David Vandermeulen
antes a adaptação radical e Daniel, desmontaram o texto
original e o ilustraram (na foto
em formato de novela gráfica em baixo).
daquele que foi o seu maior Como se fosse o apresentador de
um documentário televisivo,
sucesso: Sapiens – História Breve Harari é presença constante na
da Humanidade. narrativa e salta de época para
1864. _10 de outubro de 2020 III
época “traduzindo” os factos da de grande parte da humanidade
evolução da humanidade desde atual. Harari não esconde o
os tempos mais antigos até aos desejo de se apresentar como se
mais recentes. estivesse em direto nesta
A grande questão que Harari exploração artística do passado
quer esclarecer é a de como um humano, utilizando todas as
“insignificante macaco dominou possibilidades que a evolução
o planeta Terra, foi capaz de tecnológica proporciona. Assim,
dividir o átomo, de voar até à mostra o primeiro encontro
Lua e manipular o código entre os sapiens e os neandertais
genético da vida”. Como explicar através de quadros dos grandes
esta viagem da humanidade pintores, a extinção dos mamutes
desde um tempo em que todas como um filme apocalíptico, a
as espécies eram iguais? Se as ação dos predadores que
palavras de Yuval Harari já eram habitaram o planeta como serial
claras no seu ensaio, agora com killers, para chegar a uma etapa
a ilustração das suas ideias o fundamental da evolução da
resultado é ainda mais incisivo. espécie que reina entre todas as
E como uma imagem vale por outras, a que acumulou todo o
mil palavras, logo à página 13 conhecimento de milhares de
está um desenho de um gerações anteriores.
hipopótamo sobre a Lua, O trio que está por trás desta
vestindo um fato espacial, em adaptação gráfica de Sapiens
que se pergunta porque não considera que o livro vai prender
afirma “É um pequeno passo a atenção dos que fogem dos
para os hipopótamos mas um calhamaços científicos por via
salto gigante para os mamíferos” da sua linguagem inovadora,
em vez da frase épica que o expressiva e humorística.
astronauta Neil Armstrong disse Mesmo que os temas sejam
quando se transformou no sérios, como refere Yuval Harari
primeiro homem a pisar um a propósito de alguns assuntos:
chão que não o da Terra. o processo que levou a moeda a
Na novela gráfica rebatizada transformar-se no melhor
Sapiens – A Origem da sistema de troca ou como o
Humanidade (Ed. Elsinore), o capitalismo se tornou na
historiador aposta em cativar “religião” mais bem-sucedida
aqueles que se mantêm desde que foi inventado. A única
distantes dos conhecimentos da resposta que não tem é a do
história e da ciência em 248 porquê de a humanidade ter
páginas ilustradas e a cores, atingido um grau de saber tão
criando uma nova abordagem gigantesco e não ser mais feliz PUB
visual, mais própria para o gosto do que os seus antepassados.

“Eu quero
O que disse
a pensar que a maneira como as o nacionalismo era uma força
pessoas hoje vivem as suas vidas bastante fraca, e a maioria das
é a única possível. Raramente conhecer a nações de hoje não tem mais de
história para
Harari nas
nos damos conta de que o um século de existência.
mundo que conhecemos é o O indivíduo foi criado pelo
resultado acidental de poder ir além Estado e pelo mercado
dela e
entrevistas ao DN
acontecimentos históricos modernos, na sua luta para
aleatórios que condicionam não quebrar o poder das famílias e
só a tecnologia, a política e
entender comunidades tradicionais. Os
economia, mas até a maneira a verdade direitos humanos são uma
como pensamos e sonhamos.
É assim que o passado nos
que não história inventada nos últimos
três séculos, que não tem base
primeira entrevista de agarra pela parte de trás da é o resultado na biologia. Não há direitos

A Yuval Noah Harari para


Portugal foi em maio de
2017, por ocasião do lançamento
cabeça, e vira o nosso olhar para
um único futuro possível.
Sentimos o aperto do passado
de aconteci-
mentos
inscritos no nosso ADN.
A maioria das religiões que
conhecemos hoje nasceu apenas
do ensaio Homo Deus, e a
segunda a propósito de 21 Lições
desde que nascemos, por isso
nem sequer nos apercebemos
históricos nos últimos dois ou três mil anos
e sofreu profundas mudanças
para o Século XXI (ambos da dele. O estudo da história visa aleatórios.” nos últimos séculos. Não são
editora Elsinore). O ensaio reduzir esse aperto e permitir- verdades eternas, mas criações
Sapiens esteve sempre presente -nos virar a cabeça mais humanas. Algumas dessas
e quando se lhe perguntou se os livremente, pensar de maneira “As pessoas criações podem ter sido muito
leitores teriam aprendido diferente e ver muitos mais estão a matar- benéficas, é claro, mas para
alguma lição, a sua resposta foi: futuros possíveis. conhecer a verdade sobre nós
“Não estou certo de que o Se não conhecermos a história, -se por todo o mesmos precisamos ir além de
objetivo do estudo da história facilmente confundimos os seus lado por puras todas essas criações humanas.
seja aprender lições práticas. Na acidentes com a nossa verdadeira É por isso que a história me
minha opinião, devemos estudar essência. Por exemplo, ficções. Por interessa tanto.
a história não para aprender pensamos em nós mesmos isso é tão
com o passado, mas para nos como pertencendo a uma
libertarmos dele. Cada um de determinada nação, acreditamos
importante
nós nasce num mundo numa religião, vemo-nos como para mim
particular, governado por um
sistema particular de normas e
indivíduos e acreditamos que
temos certos direitos naturais.
distinguir
valores, e uma determinada No entanto, o nacionalismo, o a realidade
ordem económica e política.
Como nascemos nele, tomamos
individualismo, os direitos
humanos e a maioria das
da ficção.”
a realidade circundante como
natural e inevitável, e tendemos
religiões são desenvolvimentos
recentes. Antes do século XVIII, Harari
IV 10 de outubro de 2020_1864.

De narrador
sentado
na cadeira,
Harari salta
para a viagem
do homem
enquanto
rei da Terra.
1864. _10 de outubro de 2020 V

No século XXI,
a principal
ambição
humana
não será
meramente
o controlo
da fome,
das epidemias
e da guerra,
mas sim a de
transformar os
humanos em
deuses. E digo
isto no sentido
literal. Os seres
humanos
esforçar-se-ão
por adquirir
capacidades
que foram
inicialmente
pensadas como
capacidades
divinas.
Em particular,
a capacidade
de manipular
e criar vida.
Yuval Harari
ao DN

Harari
VI 10 de outubro de 2020_1864.

No passado, os
seres humanos
pensavam que
as guerras eram
uma parte
natural do
mundo e
somente Deus
poderia trazer
a paz à Terra.
Mas ao longo
das últimas
décadas, os
seres humanos
descobriram
que têm o poder
de trazer a paz
à Terra por si
mesmos, se
tomarem as
decisões certas.
Ainda há guerras
em algumas
partes do
mundo, eu vivo
em Israel, por
isso sei muito
bem disso, mas
grandes partes
do mundo estão
completamente
livres da guerra.
Yuval Harari
ao DN
1864. _10 de outubro de 2020 VII

Na maioria dos
países, hoje,
comer de mais
tornou-se um
problema muito
pior do que
a fome. No
século XVIII,
Maria Antonieta
supostamente
aconselhou
as massas
famintas a que,
se ficassem sem
pão, comessem
bolos. Hoje, os
pobres seguem
este conselho à
letra. Enquanto
os habitantes
ricos de Beverly
Hills comem
salada de alface
e tofu cozido
a vapor com
quinoa, nos
bairros da lata
e guetos os
pobres engolem
bolos industriais,
pacotes de
aperitivos
salgados,
hambúrgueres
e pizas.
Yuval Harari
ao DN

Harari
VIII 10 de outubro de 2020_1864.

Até agora
a busca da
humanidade
pela felicidade
não foi muito
bem-sucedida.
Somos hoje
muito mais
poderosos do
que alguma
vez fomos e a
nossa vida é
certamente mais
confortável do
que no passado,
mas é duvidoso
que sejamos
muito mais
felizes do que
os nossos
antepassados.
Uma explicação
é que a felicidade
depende menos
de condições
objetivas e mais
das nossas
expectativas.
No entanto,
quando as coisas
melhoram, as
expectativas
aumentam.
Yuval Harari
ao DN
1864. _10 de outubro de 2020 IX

Eu tento ser
realmente como
um drone que
voa a grande
altitude e
observa tudo o
que acontece na
Terra sem tomar
partidos. No
entanto,
ao contrário
de um drone
ou de uma
inteligência
artificial,
eu não me foco
apenas nos
acontecimentos
materiais. Tento
compreender
como as pessoas
se sentem e dou
um lugar central
no meu livro às
questões éticas
e filosóficas.
Não vale a pena
escrever
história se nos
esquecermos da
dimensão ética.
Yuval Harari
ao DN

Harari
X 10 de outubro de 2020_1864.
Em 2018, Ridley Scott
decidiu adaptar
o bestseller
Sapiens – História Breve
da Humanidade.
Ridley Scott O projeto continua
por concretizar, mas não
ou a ficção como ciência deixa de ser revelador do
gosto do cineasta inglês,
não tanto pela ficção
científica, mas sim
TEXTO João Lopes pela especulação
cinematográfica através
F
oi há pouco mais de dois anos, no verão de
2018, que Ridley Scott anunciou a sua decisão de dados da ciência.
de adaptar Sapiens – História Breve da
Humanidade, o bestseller de Yuval Noah Harari sobre
o modo como o homem se tornou a espécie
dominante do planeta Terra. Em boa verdade, não se imediatamente associa ao seu nome: Alien, entre nós
sabe como o projeto evoluiu, se para um lançado com o subtítulo O Oitavo Passageiro.
documentário cinematográfico, se para uma série
televisiva. De qualquer modo, o anunciado A sua invulgar eficácia nasce da hábil conjugação de
envolvimento de Asif Kapadia, “oscarizado” pelo seu dois vetores tradicionais, um de ficção científica,
documentário Amy (2015), sobre Amy Winehouse, faz outro enraizado no cinema de terror: por um lado,
prever uma abordagem em que a observação dos temos uma nave espacial que transporta uma
factos se pode cruzar com uma elaborada vibração pequena tribo humana numa missão muito para lá
dramática. do aconchego do planeta Terra; por outro lado, há um
monstro alienígena cujos poderes parecem
Na trajetória de Scott, tal ambivalência não é indestrutíveis. Tudo isso acontece, não num universo
estranha. Vários dos seus filmes estão marcados por alternativo, de cenários mais ou menos artificiosos,
temas que envolvem a origem e o destino da mas através do reforço (científico, justamente) dos
humanidade, seja em termos históricos seja no plano elementos de encenação: a dimensão fantástica do
simbólico. Afinal de contas, com Exodus: Deuses e Reis horror eclode, assim, no interior de cenários
(2014), ele arriscou mesmo no domínio da epopeia recheados de elementos realistas.
bíblica, fazendo o retrato de Moisés e Ramsés II – não
será, convenhamos, um dos momentos mais felizes Mesmo não esquecendo as muitas diferenças de tom
da sua filmografia, mas não deixa de ser um desafio a e abordagem, talvez se possa dizer que filmes como
uma tradição de Hollywood que tem em Os Dez Alien e Blade Runner são herdeiros diretos do
Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, o seu realismo cenográfico que Stanley Kubrick pôs em
clássico absoluto. prática com o seu emblemático 2001: Odisseia no
Espaço (1968), além do mais contando com o
Seja como for, a eventual adaptação de Sapiens não aconselhamento (científico) de técnicos da NASA.
pode ser desligada da sua atração pelos exercícios de
investigação e especulação científica. Blade Runner E não deixa de ser curioso relembrar que o triunfo de
(1982), por certo o título mais mítico da sua vasta Scott (inglês, nascido em 1937) nas estruturas globais
filmografia, pode servir de sintoma exemplar. de Hollywood seja inseparável da sua consolidação
também como produtor. Foi, aliás, muito cedo na sua
Claro que Blade Runner vive, antes de tudo mais, de carreira, em 1970, que ele e o seu irmão, Tony Scott
um “sentimento” indissociável da grande tradição da (1944-2012), formaram a companhia Scott Free,
ficção científica, tendo aliás como ponto de partida o nome associado à maior parte dos respetivos
clássico Do Androids Dream of Electric Sheep?, trabalhos de realização.
romance de Philip K. Dick publicado em 1968.
E escusado será sublinhar que o filme, protagonizado Ironicamente, mesmo com aqueles dois títulos tão
por Harrison Ford, gerou uma imensa e contrastada marcantes na evolução das matrizes da ficção
descendência, incluindo a sequela Blade Runner 2049 científica, Ridley Scott assinou algumas das suas
(2017), dirigida por Denis Villeneuve, projeto do qual realizações mais originais em domínios bem
Scott se foi distanciando (considerando-o mesmo diferentes. Um bom exemplo poderá ser Thelma e
demasiado longo), ainda que o seu nome nele figure Louise (1991), filme com a notável dupla Susan
como produtor executivo. Sarandon/Geena Davis que há muito entrou nas
referências obrigatórias de um certo feminismo
Blade Runner, mais do que uma variação sobre cinéfilo. Ou ainda O Conselheiro (2013), não um dos
matrizes da ficção científica, talvez se possa seus grandes sucessos de bilheteira, mas seguramente
classificar como uma ficção que integra a ciência, um dos filmes mais crus e desencantados que já se
experimentando os seus limites. Isto porque a fizeram sobre o tráfico de drogas.
existência dos “replicantes”, essenciais em toda a
estrutura dramática do filme, exponencia uma Será que vamos poder ter brevemente uma recriação
questão de fundo, obviamente herdada do livro de (cinematográfica ou televisiva) do livro de Yuval Noah
Dick. A saber: será que a proliferação de entidades Harari?… Não sabemos, mas é um facto que na
“robóticas” ou “humanoides” poderá fazer diluir a agenda de projetos de Scott como produtor/
VÍTOR HIGGS/DN

própria noção de humanidade? /realizador está mais uma história anterior à ação de
Alien. Sem data anunciada, essa “prequela” irá juntar-
A pergunta remete-nos para o filme que, de facto, -se às outras duas que ele também dirigiu:
conferiu a Scott um decisivo estatuto artístico, Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017).
industrial e comercial. Surgiu três anos antes de Blade Científica ou não, a ficção alimenta-se dos seus
Runner, portanto em 1979, e talvez continue a ser o próprios monstros.
título que a maioria dos espectadores mais

Harari
1864. _10 de outubro de 2020 XI
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XII 10 de outubro de 2020_1864.

responsável por essa verdadeira lufada de ar


A FIGURA CARL SAGAN 1934-1996 fresco em Portugal. Fala-se até da “geração
Gradiva”, os muitos jovens que cresceram
fascinados com essas leituras.”

O cientista que aos sábados à Foi o início de uma bela amizade entre o
cientista e o editor. Carlos Fiolhais passou a

tarde nos prendia ao cosmos colaborar em traduções e prefácios e a dar


sugestões de obras. E em 1991 escreveu o seu
primeiro livro, o Física Divertida. O físico afirma
ter sido um tempo grande na ciência portuguesa:
“Lembro-me com saudade do José Mariano
Gago, que também era admirador de Sagan e que
decidiu apostar na divulgação da ciência.” E a
de outros livros, alguns dos quais alcançando o seguir, uma passagem de testemunho: “Para
TEXTO Leonídio Paulo Ferreira estatuto de bestsellers mundiais. Em Portugal mim foi muito estimulante receber das mãos de
foram praticamente todos publicados pela um editor ‘valente’ o testemunho da coleção

A
queles sábados à tarde, no início dos anos Gradiva. Destaco O Mundo Infestado de Ciência Aberta a partir do número 200. Posso pôr
1980, a ver os episódios de Cosmos na RTP, Demónios, em que defende a ciência contra a no currículo que dirijo a coleção que tem os
são inesquecíveis. Para o adolescente que pseudociência. Nesse livro previu a atual livros do Sagan, que tocaram tantas mentes de
eu era (e até hoje), Carl Sagan passou a ser situação no mundo, onde se encontra uma todas as idades. O seu exemplo serve-me a mim
sinónimo de cientista, capaz de explicar dos ‘mistura explosiva’ entre poder e ignorância. e a vários outros de inspiração.”
micróbios aos buracos negros. “Sagan não só foi Tentou também o cinema de ficção científica,
um grande cientista na área da astrofísica com o filme Contacto, baseado num romance Não fui para um curso de ciências, mas Sagan,
– estudou o efeito estufa em Vénus, defendeu a com o mesmo título, sobre um eventual Gould e Feyman fazem parte das minhas leituras
existência de mares em luas de Júpiter e Saturno, encontro de civilizações e no qual apareciam de adolescência e jovem adulto. E Guilherme
ajudou em projetos da NASA de sondas no ‘buracos de verme’, túneis cósmicos permitidos Valente é para mim um nome incontornável.
sistema solar e trabalhou na possibilidade de pela teoria da relatividade geral de Einstein. Sobre Cosmos, e sobretudo sobre o cientista que
vida extraterrestre – como foi um grande Infelizmente já não pôde ver o filme. O seu morreu em 1996, o editor diz: “Para além do
comunicador de ciência, talvez o maior até hoje. grande sucesso deveu-se à sua presença pessoal, cientista de referência distinguido na sua área de
Ele usou todos os meios ao seu alcance para mas também e principalmente à sua capacidade investigação, Sagan dominava um largo espectro
fazer chegar a ciência ao grande público e nessa imaginativa. Para apresentar a história do de conhecimento científico e humanístico. Um
área o seu maior feito foi a série televisiva cosmos, desde o Big Bang, inventou um aluno português de Cornell contava-me que ele
Cosmos. Uma Viagem Pessoal emitida em 1980, calendário anual em que os primeiros humanos era um utilizador mítico da singular biblioteca
transmitida em mais de 60 países e que atingiu só apareciam às 22h24m do dia 31 de dezembro. da universidade, com inúmeros originais de
mais de 600 milhões de espectadores”, afirma Inventou igualmente a expressão ‘pálido ponto documentos preciosos de todo o mundo – aberta
Carlos Fiolhais, físico português e ele próprio azul’ para designar a Terra, vista por uma sonda toda a noite, note-se. Tudo isso está presente nos
grande divulgador da ciência, autor de livros bem ao longe no sistema solar. Falava dos biliões seus vários livros e particularmente na obra-
como Física Divertida, Nova Física Divertida, e biliões de estrelas e fez-nos sonhar com as -prima Cosmos. Um clássico hoje mais atual do
Darwin aos Tiros (com David Marçal) ou viagens a elas. E expunha como o ser humano que nunca. Sagan divulgou a ciência mais de
A Ciência em Portugal. era filho das estrelas.” ponta no limiar do que viria e por isso nem na
vertente científica da obra necessitaria hoje de
Depois da série produzida pela BBC e a Polytel e Verdadeiro entusiasta de Sagan, o professor da significativos acrescentos.”
emitida primeiro pela PBS, li o livro, na verdade Universidade de Coimbra destaca como as
o guião de Sagan para a produção do metáforas do cientista americano, nascido em Também rendido à genialidade de Sagan, cuja
documentário. Sugestão de um professor de 1934 numa família operária de judeus vindos da figura e voz funcionavam às mil maravilhas na
Geografia, em Setúbal. E Carlos Fiolhais Ucrânia, “eram muito atraentes, por exemplo: comunicação de ciência, Guilherme Valente
acrescenta: “Também foi um formidável sucesso, ‘Se queres fazer uma boa tarte de maçã a partir sublinha: “Quanto à mensagem vibrante que
mostrando que os livros não são inimigos da do início, tens primeiro de inventar um perpassa o Cosmos ela ecoa hoje ainda com mais
ciência. Ele escreveu, além desse, duas dezenas universo.’ Ou: ‘O cosmos está dentro de nós. força no leitor, convocando o melhor de nós, da
Somos feitos da matéria das estrelas. Somos um nossa humanidade – e é por isso, penso eu, que
meio para o universo se autoconhecer.’ Ou ouvir, ver, ler Carl Sagan comove até às lágrimas,
ainda: ‘Pretensões extraordinárias requerem como em muitos momentos tive ocasião de
provas extraordinárias.’ A mensagem dele em sentir e observar.”
Cosmos é muito clara no final: nós somos a
consciência do universo, no sentido em que só Sobre a defesa do legado de Sagan, volto a Carlos
nós, que saibamos, o podemos compreender. Fiolhais, que diz: “Nunca conheci o Sagan
É nossa missão compreender o universo. Como pessoalmente, mas tenho a impressão que através
ele disse numa frase lapidar: ‘A nossa ambição dos livros e dos filmes, o conheço intimamente.
deve ser o conhecimento.’ Em resumo, foi Sagan Quem o conhece bem mais intimamente é a sua
que nos ensinou o nosso lugar no cosmos, que mulher Ann Druyan, que visitou Portugal e a
parece insignificante mas que afinal é quem há pouco pude entrevistar, juntamente com
extraordinário”. o jornalista Vasco Trigo, a propósito do seu livro
Cosmos. Mundos Possíveis, que é uma
Carlos Fiolhais estava a doutorar-se na homenagem muito pessoal a Sagan”.
Alemanha quando surgiu a série e o livro. Tinha
24 anos. E confessa que “Sagan e outros autores Terceira mulher do cientista americano, Ann
de divulgação científica alimentaram o meu Druyan é mãe de um dos seus cinco filhos.
desejo de saber mais ciência e de a dar a saber Vários deles também escrevem sobre ciência,
aos outros”. E lembra-se especialmente de um perpetuando o apelido, mas também a
capítulo de Cosmos intitulado “A persistência da mensagem, de Carl Sagan.
memória”, onde Sagan faz “um extraordinário
elogio do livro”. Prossegue: “Citei-o muitos anos
mais tarde na sala do Senado quando tive a
honra de ser diretor da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra. Regressado a Portugal
em 1982, apercebi-me de que existia uma nova
editora, que começava a publicar os livros dele (e
de outros: Richard Feynman, Hubert Reeves,
Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, etc.).
Contactei o editor, Guilherme Valente, que era o Harari

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