Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/375958291
CITATIONS READS
0 38
7 authors, including:
All content following this page was uploaded by André Benassuly Arruda on 27 November 2023.
BRUTALISMOS
BRUTALISMOS
NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS
NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS
GOVERNAMENTALIDADES EM QUADROS DE GUERRA
QUE TORNAM VIDAS
GOVERNAMENTALIDADES PRECÁRIAS
EM QUADROS DE GUERRA
QUE TORNAM VIDAS PRECÁRIAS
Encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler
Encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler
COLEÇÃO
COLEÇÃO
Transversalidade
Transversalidade e Criação
e Criação
Ética,
Ética, Estética
Estética e Política
e Política
Volume
Volume 19 19
Flávia Cristina Silveira Lemos | Dolores Galindo | Pedro Paulo Gastalho
de Bicalho | Aluísio Ferreira de Lima | João Paulo Pereira Barros | Silvio
José Benelli | Felipe Sampaio de Freitas | Igor do Carmo Santos | Daiane
Gasparetto da Silva | André Benassuly Arruda | Daniele Vasco Santos | Leticia
Lages Assunção | Marcelo Ribeiro Mesquita | Luciana Batista da Silva
(Organizadores)
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA
E BIOPOLÍTICAS:
GOVERNAMENTALIDADES EM
QUADROS DE GUERRA QUE TORNAM
VIDAS PRECÁRIAS: encontros entre Michel
Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: O Autor
B886
Bibliografia
ISBN Coleção 978-85-444-1750-8
ISBN Volume Digital 978-65-251-4018-6
ISBN Volume Físico 978-65-251-4017-9
DOI 10.24824/978652514017.9
2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) João Ricardo Lebert Cozac (PUC-SP)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcelo Porto (UEG)
Élsio José Corá (UFFS) Marcia Alves Tassinari (USU)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Gloria Fariñas León (Universidade Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
de La Havana – Cuba) Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
de La Havana – Cuba) Virgínia Kastrup (UFRJ)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Luciano Rodrigues Costa (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
A quem se dedica à educação pública de qualidade e gratuita.
AGRADECIMENTOS
A todas as universidades das Regiões Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste
e Sul envolvidas com a participação nos textos desta coletânea nacional que articula
textos de educação inclusiva com a saúde coletiva a partir de um conjunto de processos
temáticos e analíticos das Psicologias e áreas afins. Nossa gratidão aos estudantes da
graduação e da pós-graduação presentes com seus estudos e experiências de estágio
e extensão. Nosso obrigada aos(às) pesquisadores(as) que enviaram resultados dos
trabalhos desenvolvidos em diversas universidades brasileiras de Norte a Sul do Brasil.
As universidades que estão presentes nesta coletânea nacional envolvem todas
as regiões do país e inúmeros estados brasileiros, de modo transdisciplinar. Os estudos
presentes nesta coletânea são resultados de pesquisas da pós-graduação em rede com a
graduação e diversas políticas públicas. Estão entre as universidades participante deste
livro: USP; UNESP; UFPA; UEPA; UFMG; UEMG; UFRGS; UFRA; IFPA; UFAM;
UFES; UFF; UERJ; UNIR; UFRJ; UFC; UFRN; UFT; UFCAT; UFMT; UFRRJ;
UNIFESPA; Universidade de Blumenau/FURB-SC; Escola Bahiana de Medicina e
Saúde Pública; Faculdade Católica Dom Orione-TO; Faculdade Estácio, em Belém
do Pará; Faculdade Estácio, em Castanhal-PA, Faculdade Estácio em Ananindeua-PA;
UNINASSAU, CESUPA e UNAMA.
As diferenças não são o problema, o problema é a hierarquia.
(Silvia Federici)
Introdução
Depois de tudo, somos todos governados e, sob este título, solidários. Porque
pretendem ocupar-se da felicidade das sociedades, governos arrogam-se o direito
de passar à conta dos lucros e perdas a infelicidade dos homens que suas decisões
provocam e que suas negligências permitem. É um dever dessa cidadania inter-
nacional sempre fazer valer, aos olhos e ouvidos dos governos, as infelicidades
dos homens pelas quais são responsáveis. A infelicidade dos homens não deve
jamais ser um resto mudo da política. Ela funda um direito absoluto de levantar-
-se e dirigir-se àqueles que detêm o poder. É preciso recusar a divisão de tarefas
que, muito frequentemente, propõe-nos: aos indivíduos, indignar-se e falar; aos
1 Este texto foi concebido a partir do capítulo de minha tese – Dos Direitos dos Governados em Michel Fou-
cault: crítica à governamentalidade e genealogia das práticas de insurreição – defendida junto ao PPGFIL
da UNISINOS em 2019.
22
Governo de si, governo dos outros. Esse é o fundamento de uma estreita rela-
ção entre a filosofia como forma de vida e as práticas dos direitos dos governados.
Por outro lado, essa também é uma das razoes pelas quais Foucault (2008) pretende
analisar os modos pelos quais os sujeitos podem construir suas experiências a partir
do que ele mesmo chamou de ontologia histórica de nós mesmos (FOUCAULT,
1984), isto é, a perspectiva política pela qual à atividade do intelectual se ocupa com
a problematização das práticas de poder e a visualização dos elementos alegóricos
das práticas de insurreição.
Entretanto, antes de prosseguirmos é necessário levantarmos o seguinte ques-
tionamento: que lugares, ocupam as vozes insurgentes dos governados no contexto
dessa ontologia histórica de nós mesmos proposta por Foucault? Uma das possibi-
lidades para a resposta de tal pergunta, recai em torno da correlação dos problemas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 23
Então, nesse texto consagrado a Dion, Plutarco lembra que Dion, jovem irmão de
Aristomaca, era um rapaz dotado de belíssimas qualidades: a grandeza da alma,
a coragem e a capacidade de aprender. No entanto, cheio de vida, jovem que era
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 25
da corte de um tirano como Dionísio, pois bem, ele havia sido habituado pouco
a pouco ao temor, à “servidão” e aos prazeres. E, por causa disso, era “cheio de
preconceitos” quer dizer que – isso em referência evidente a temas estoicos ou
estoicizantes – a própria qualidade da sua natureza não havia sido comprometida,
mas algumas opiniões falas tinham se depositado na sua alma, até o dia em que
o acaso – um gênio benevolente, diz Plutarco – fez Platão aportar na Sicília. É
aí que Dion conhece Platão, segue seu ensino e aproveita as lições que o mestre
lhe dá. Nesse momento, sua verdadeira e boa natureza reaparece e, diz ele – é aí
que se abordam as coisas – “na candura juvenil da sua alma”, Dion esperava que
Dionísio (seu tio, o tirano), “sob a influência das mesmas lições” que ele havia
recebido, experimentasse “os mesmos sentimentos” que ele havia recebido, que
ele e “se deixasse ganhar facilmente para o bem. Em seu entusiasmo, portanto,
ele fez tudo para que Dionísio entrasse em relação com Platão e escutasse suas
lições” (FOUCAULT, 2008, p. 48).
Tirania, felicidade e justiça são peças imprescindíveis para que uma dramatur-
gia parresíastica seja mais do que uma mera especulação linguística. Essa questão
é importante, para Foucault, uma vez que percorrer os horizontes de possibilidades
dessa prática, não significa categorizar os elementos de uma reflexão sobre o papel
da filosofia, mas compreendê-la como um gesto desdobrado na produção da coragem
da verdade, pois acima de tudo, praticar a fala franca compreende um ato de coragem
por parte do sujeito. A parresía designa portanto, o entrecruzamento do enunciado
ético com a atitude política do mais fraco perante o mais forte. Tal perspectiva ocu-
pa-se – independentemente do cenário – em introduzir uma prática provocativa cujas
consequências podem ser absolutamente imprevisíveis como foi o ocaso de Platão em
Siracusa. Diante de toda tirania praticada por Dionísio, Díon levanta-se no sentido de
apontar todas as deficiências da sua prática governamental, interpelando o próprio tio
a buscar nas orientações filosóficas de Platão, os elementos de uma outra prática de
governo e, consequentemente a adoção de outra forma de vida. Nesse acontecimento
conforme aponta Foucault (2008), o elemento parresiástico vale-se da convocação
da verdade, restando ao tirano duas alternativas possíveis: ou aceitar a convocação
feita por Dion ou tentar assassiná-lo. Como podemos perceber, a parresía é um traço
fundamental do vínculo formado entre o sujeito e a verdade no sentido de se procu-
rar afirmar algo, não importando as consequências desse ato. Circula em torno de
tal processo, a constatação de que nada se exige do parresiástes senão a agonística
da palavra. Tal agonística não deve ser vista como princípio estatutário, mas como
condição, como prática ontológica de governo.
Nesse sentido, é correto afirmarmos que o possível encantamento, por parte
de Foucault (2008), em relação ao exercício da parresía opera como uma fissura
voltada para a atividade estética como uma forma do sujeito interpelar as práticas
de governo. Isso significa que, no contexto dos direitos dos governados, a questão
fundamental passa pelas possibilidades de questionamento da governamentalização
da vida. Desse modo, as práticas dos governados acabam por produzir um novo
efeito de aproximação com a verdade. Uma problematização dos modos de governo
26
O exercício de uma palavra que persuada os que são comandados e que num jogo
agonístico dê liberdade aos outros que também querem comandar é, ao meu ver,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 27
o que constitui a parresía. Como, é claro, todos os efeitos que são associados a
tal luta e a tal situação. Primeiro: que a palavra que você pronuncia não persuada
e que a multidão se volte contra você. Ou ainda, que a palavra dos outros, à qual
você cede lugar ao lado da sua, não prevaleça sobre a sua. É esse risco político
da palavra que dá liberdade a outras palavras e se atribui como tarefa, não dobrar
os outros à sua vontade, mas persuadi-los, é isso que constitui o campo próprio
da parresía. Fazer essa parresía agir no âmbito da cidade, o que é, senão preci-
samente, e de acordo com o que foi dito há pouco, manipular, tratar ao mesmo
tempo, lidar ao mesmo tempo com o logos e com a pólis? Fazer o logos agir
na pólis – logos no sentido de palavra verdadeira, palavra sensata, palavra que
persuade, palavra que pode se confrontar com as outras palavras e que só ven-
cerá graças ao peso da sua verdade e da eficiência da sua persuasão –, fazer agir
essa palavra verdadeira, sensata, agonística, essa palavra de discussão no campo
da pólis, é nisso que consiste a parresía. E essa parresía, mais uma vez, nem o
exercício efetivo de um poder tirânico nem o simples estatuto de cidadão podem
proporcionar (FOUCAULT, 2008, p. 98).
Conforme essa fala sugere, a parresía configura-se como uma prática agonística
de liberdade e, no seu esplendor, ela assumia a tarefa de se tentar dissuadir, por meio
da palavra, todos os outros. Entretanto, diferentemente da retórica – que tinha por
função narrar os fatos, os acontecimentos buscando o convencimento por parte dos
seus interlocutores – a parresía se mostra em Íon como uma prática de risco, uma vez
que a enunciação de certas verdades poderia colocar em risco a vida do personagem
central da tragédia. Segundo Portocarrero (2011), estamos diante de um risco político
da palavra, uma manifestação que, não tinha como finalidade de dobrar à figura do
outro a uma determinada vontade, mas colocar-se em perigo por meio do discurso.
O procedimento parresiástico em Íon consiste, portanto, em fazer agir o logos
sobre a polis. Esse traço nos permite pensar que, diferentemente da política tradi-
cional – que prevê a filiação do Príncipe ao regime institucional da polis, a parresía
converge a prática da fala franca a partir dos contornos da polis. Nesse sentido, a
parresía precisa ser compreendida nos distintos desdobramentos e, um desses des-
dobramentos corresponde a aproximação desse gesto com a crise política. Toda crise
política coloca em evidência a necessidade de se pensar um local para o exercício da
coragem da verdade a partir das seguintes inquietações: como exercer a fala franca
no momento de decadência das instituições democráticas? E, como praticar a par-
resía quando a democracia deixa de ser uma atividade segura? Diferentemente de
uma saída abrupta permeada por uma solução arbitrária, a parresía se coloca como
ferramenta necessária para uma crítica dos eventos no nosso tempo presente e, nesse
sentido sua prática converge para a insurreição contra toda e qualquer forma de
governo que regula à vida por meio de dispositivos de controle.
O sentido dessa prática agonística no contexto dos direitos dos governados é
sublinhado pela capacidade de pensarmos um modo aletúrgico de luta, por meio da
manifestação do direito ao uso comum pelos insurgentes, a partir do momento em que
eles procuram ocupar uma posição estratégica e combativa no cenário político con-
temporâneo. As vozes dos governados, ilustram as razões pelas quais jamais podemos
28
2 Conforme aponta o Comitê Invisível, “O bairro de escritórios, o bairro das fábricas, o bairro residencial, os
espaços para relaxar, os espaços para diversão, o lugar onde se come, o lugar onde se trabalha, o lugar
onde se passeia, e os carros ou os ônibus que ligam tudo isso são resultado de um trabalho de formatação
da vida que é devastação de todas as formas de vida. Isso foi desenvolvido como método durante mais de
um século, por toda uma casta de organizadores, todo um exército cinzento de gestores. A vida e o homem
foram dissecados num conjunto de necessidades, para depois organizarem a síntese. Pouco importa que
tal síntese tenha tomado o nome de ‘planificação socialista’ ou de ‘mercado’. Pouco importa que isso tenha
levado ao fracasso das cidades-novas ou ao sucesso dos bairros da moda. O resultado é mesmo: deserto
e anemia existencial” (COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p. 104-105).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 31
Considerações finais
Convém manter presente no espírito esse lugar de publicação – isto é, uma revista
–, pela razão seguinte. É que, como vocês vão ver, esse texto sobre a Aufklärung
aplica, como um dos seus conceitos centrais, a noção de público, de Publikum. E
por essa noção de Publikum entende: primeiro a relação concreta, institucional,
ou em todo caso instituída, entre o escritor (o escritor qualificado, traduz-se em
francês: savant; Gelehrte: homem culto) e o leitor (o leitor considerado como
indivíduo qualquer). E é a função dessa relação entre leitor e escritor, é a análise
dessa relação – as condições em que essa relação pode e deve ser instituída e
desenvolvida – que vai constituir o eixo essencial da sua análise da Aufklärung
(FOUCAULT, 2008, p. 9).
da vida? Se atentarmos para o fato de que a resistência não é somente um gesto espon-
tâneo, talvez o grande problema das insurreições seja o de justamente percebermos
como é necessário compreendermos as condutas dos governados como elementos de
outras experiências de vida. Em uma sociedade neoliberal que confere à economia o
modelo de modulação das estratégias de saber, das práticas de poder e dos processos
de subjetivação, por excelência, os direitos dos governados se efetivam como uma
busca incessante, por parte dos sujeitos em efetivar um autogoverno. Autogoverno
este, que encontra suas verossimilhanças nas atitudes performáticas que nos lembram
constantemente o seguinte enunciado: ilegítimo não são os governos, mas a maneira
pela qual deixamo-nos, por vontade própria, sermos dependentes das arbitrariedades
dos dispositivos de gerenciamento da nossa própria vida.
34
REFERÊNCIAS
AVELINO, Nildo. Governamentalidade e democracia liberal: novas aborda-
gens em Teoria Política. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, p. 81-107,
2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-33522011000100004. Acesso em: 21 nov. 2021.
COMITÊ INVISÍVEL. Aos Nossos Amigos: crise e insurreição. São Paulo: N-1, 2016.
EURÍPIDES. Íon. Trad. do grego: Frederico Lourenço. Lisboa: Ed. Colibri, 2005.
FOUCAULT, Michel. Face Aux Gouvernements, les Droits le L’homme. In: FOU-
CAULT, Michel. Dits e Écrits IV: 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994. p. 707-708.
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Do Governo dos Vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
PLATÃO. Carta VII. Trad. do grego: José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. São
Paulo: Loyola, 2008.
PLUTARCO. Vidas Paralelas. Trad. do grego: Maria do Céu Fialho e Nuno Simões
Rodrigues. Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. Universidade de Coim-
bra, 2010.
VEYNE, Paul. Les Grecs Ont-ils Cru à Leurs Mythes? essai sur l’imagination cons-
tituent. Paris: Points, 2014.
DA MULTIDÃO AO PÚBLICO
NA TERCEIRA REPÚBLICA:
aproximações e diferenças entre
Gustave Le Bon e Gabriel Tarde
Felipe Figueiredo De Campos Ribeiro
Pedro Carvalho Souza
Introdução
3 Na Revolução de 1830, a ascendente burguesia industrial aliada à Casa dos Orléans destituiu a monarquia
absolutista da Casa de Bourbon que havia sido reinstaurada desde o Tratado de Viena. Na Primavera dos
Povos de 1848 a revolta generalizada das classes trabalhadoras urbanas e campesinas destituiu o “rei
burguês” Louis Philippe, constituindo, ao cabo do processo, a IIª República (a qual em menos de um ano
foi abolida por Louis Napoléon, seu primeiro presidente eleito democraticamente pelo Partido da Ordem).
A Comuna de Paris fora proclamada em março de 1871, em meio a Guerra Franco-Prussiana encabeçada
por O. von Bismarck, em sua bem sucedida tentativa de unificar o reino da Prússia. Entre 1886 e 1891, já no
período “pacífico” da IIIª República, deu-se a ascensão meteórica do General Boulanger, figura que suscitou
grande devoção popular a sua personalidade, nacionalismo exacerbado na sociedade civil (chauvinista,
em certos nacos desta, revolucionário, em outros), e apetites anti-institucionais em um sistema político
que elegeu maioria absoluta boulangista no parlamento. Em todos esses capítulos da história política da
França, as multidões urbanas agitadas e tumultuosas – as quais, em diversos momentos, foram efetivamente
manipuladas ou cooptadas por forças políticas mais poderosas e organizadas – cumpriram um papel não
apenas proeminente, mas decisivo. A propósito de como este amplo panorama de acontecimentos políticos
ocorridos ao longo do século XIX estiveram diretamente ligados às temáticas que animaram o debate sobre
a fundação das Ciências Sociais na França (em particular na ala anti dukheimiana a qual G. Tarde esteve
ligado), consultar Ginneken (1992), Nye (1975), e Moscovici (1985).
38
4 A psiquiatria francesa vinha manuseando o dito fenômeno da sugestão a partir da técnica da hipnose que
vinha sendo desenvolvida no interior dos hospitais, na lida com pacientes acometidos pelas chamadas psi-
coneuroses – em particular, com a histeria, sobre a qual o manuseio mostrava-se mais efetivo. Havia duas
escolas de pensamento – a de Slapêtrière (representada por J. M. Charcot) e a de Nancy (representada por
Liebeault e Bernheim) – que entre si entretinham um acirrado debate acerca da etiologia das psiconeuro-
ses. A primeira pretendia uma explicação estritamente fisiológica, a segunda, uma explicação psicológica,
alegando que qualquer pessoa em estado normal poderia vir a experimentar a hipnose (sobre este debate
ver GINNEKEN, op. cit. p. 138-149; LACLAU, 2013, p. 74-81). Tratava-se de sugerir que o estado mental do
homem imerso na multidão seria o mesmo daquele em que se encontraria a paciente psiquiátrica induzida –
no ambiente controlado do hospital, em uma relação interindividual direita – pela técnica hipnótica. O homem
em multidão estaria tão vulnerável à sugestão quanto o paciente psiquiátrico hipnotizado pelo médico.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 39
Este fenômeno vem se desdobrando em uma escala até então desconhecida, daí
sua absoluta novidade histórica. [...] O nascimento de uma forma de vida coletiva
sempre coincidiu com o surgimento de um novo tipo humano. Inversamente, o
declínio de uma dessas formas é sempre acompanhado pelo desaparecimento
de um tipo de homem. Estamos na era das sociedades de massa e do homem de
massa (MOSCOVICI, 1985. p. 16)5.
5 As citações diretas das obras em língua estrangeira utilizadas ao longo do artigo são todas de tradução nossa.
40
6 O termo (intelectuais) foi cunhado de forma depreciativa pelos antidreyfusards contra a classe intelectual (a
respeito da ligação desta com o movimento dreyfusard, consultar Vares (2014)) no intuito de desencorajá-la a
intervir no cenário político. No entanto, este termo foi reapropriado pelos próprios e alcançou reconhecimento
internacional, cujo significado passou a ser empregado tanto aos produtores culturais em suma quanto aos
que, dentre estes, desempenhavam papel político, ver em Sapiro (2012) e Ginneken (1992, p. 212-214).
7 O cenário da interação dos antidreyfusards em relação aos intelectuais era hostil não somente por conta
da sua ascensão decorrente das condições promovidas pelo iluminismo, mas observável em publicações
de autores ligados ao movimento e à igreja direcionadas à classe dos intelectuais nos quais estes últimos
eram responsabilizados por atentado contra a democracia, desrespeito à sociedade, insultos contra as
forças armadas, interferência em assuntos políticos ou que fogem ao seu escopo, dentre outros fatores. A
respeito consultar Vares (2012).
42
8 A própria “Les origines de la France contemporaine (1785-1893)” de H. Taine pode ser inserida nesse contexto.
9 Disciplina que despontava no mesmo ritmo do processo de colonizações, que consistia no estudo compara-
tivo de características físicas de fósseis humanos provenientes de “raças”, sexos e mesmo classes sociais
diferentes, para averiguar se haveria ou não diferenças anatômicas, morfológicas etc.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 43
por este estudo – assim como geralmente esteve associado a mal confessas ideolo-
gias políticas elitistas, tradicionalistas e, quase sempre, reacionárias. Tais posições
intelectuais, enquanto idealizadoras de uma imagem determinista que reduz o homem
em suas possibilidades de atuação (na medida em que seus comportamentos estão
ligados à impulsos instintivos, hereditários, “característicos da raça” e portanto pre-
dominantes sobre a sua própria consciência), efetivamente fomentaram argumentos
segundo os quais não restaria então senão aceitar a atual situação social, histórica,
econômica, política, jurídica etc. – isso quando estes não foram, na realidade, cha-
ves para a idealização de que seria possível, através de técnicas específicas, exercer
controle sobre a natureza profunda do homem a fim de promover a extinção das
características degenerativas (eugenia), a prevenir de situações sociais patogênicas
(aglomerações de multidões) etc.
Estes construtos de uma engenharia social concebida por elites, erguidos sob
comparações métricas e sofismas pseudocientíficos favoráveis à justificativa das
próprias posições como naturalmente superiores (superioridade racial hereditária,
distinção entre homem primitivo e homem civilizado etc.) costumaram ser empre-
gados com o propósito de obter poder e controle sobre populações excluídas e
exploradas – frequentemente insurgentes então. As observações de autores como Le
Bon que, sob o pretexto de descrever cientificamente as leis dos comportamentos
das multidões, convinham perfeitamente no sentido de “exorcizar” os temores de
uma burguesia assustada com a insurgência avassaladora de violências proletárias
e greves ameaçadoras.
Em suma, o panorama material sobre o qual pairavam os estudos teóricos
a respeito das multidões era marcado por esta tensão: dentre os diversos movi-
mentos políticos vigentes no território francês, uma onda conservadora, militar,
nacionalista, antidemocrática, antissemita e racista favorecia a tensão contra os
movimentos revolucionários republicanos, socialistas, contra a modernidade em
si e os intelectuais ligados à esta vertente. Todos, no entanto, atravessados pela
emergência dos avanços científicos, da industrialização, dos estudos sociológicos,
da modernização das técnicas de propaganda e dos meios de comunicação, sobre-
tudo os jornais e a imprensa.
A emergência da imprensa – bem como a sua popularização e massificação atra-
vés dos jornais impressos, sob os quais se difundiam, entre outras coisas, as opiniões
dos intelectuais e dos grandes publicistas – criou, neste cenário, as condições fun-
damentais para a expansão da opinião pública moderna. Já não se tratava da opinião
ditada pela aristocracia, que outrora detinha o monopólio da influência política, mas
do surgimento avassalador de uma verdadeira opinião de massa (GINNEKEN, 1992).
A crucialidade do movimento das massas e do seu fervor, assim como a influência
dos meios de comunicação na sociedade foram notórias, sobretudo, nas polêmicas
que marcaram e transformaram profundamente o território francês no fim do século
XIX, como a ascensão do general Boulanger e a condenação de Alfred Dreyfus,
onde a opinião pública veiculada pela mídia eleva a organização das multidões a
um novo patamar.
44
10 Sobretudo os estudos promovidos na obra Les origines de la France contemporaine, onde Taine postula
sua teoria sociológica que concebe a raça enquanto principal e fundamental fator explicativo da história
(OLIVEIRA, 1990).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 45
11 Características gerais mencionadas incessavelmente por Le Bon na obra Psychologie des foules sobretudo
ao longo dos primeiros dois capítulos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 49
12 Sobretudo as observações desenvolvidas nas obras Les lois de l'imitation (1890) e Les lois sociales: Esquisse
d’une sociologie (1898).
50
o cargo de Juge D’Instruction13, o qual manteve por oito anos (GIDDINGS, 1903).
Devido ao seu destaque nos campos da sociologia e da análise estatística criminal,
foi nomeado diretor da secção de estatística criminal do Ministério da Justiça em
Paris e professor de Filosofia Moderna no Collège de France em 190014, pouco antes
da sua morte.
Na obra L’opinion et la foule o autor empenha-se em apontar que as transfor-
mações sociais elevaram as multidões a um patamar superior, onde já não havia a
necessidade de união física para a existência de uma unidade mental (à distância):
o Público. Tarde esteve em favorável posição temporal e territorial para acompa-
nhar de perto as revoluções e os avanços tecnológicos na comunicação, sobretudo
as ocorrências do Dreyfus Affair. Estes fatores foram essenciais para formular uma
reavaliação da política de massa mais adequada a um contexto onde as figuras de
destaque, que outrora eram as multidões, passaram a ser “os escritores, os jornais e
a caneta” (GINNEKEN, 1992, p. 217).
A emergência de um novo “modo de agrupar indivíduos”, por assim dizer, o que
Gabriel Tarde conceitua como público, é o modelo social da modernidade que está
destinado a sobrepor as definições sócio-relacionais propostas na ideia de multidão.
Torna-se importante frisar, entretanto, que a multidão não deve ser de fato abando-
nada em sua totalidade, haja vista que a emergência do público deriva-se sobretudo
do fortalecimento da opinião de massa advinda do antigo modelo. Trata-se, portanto,
de um certo sentido de “obsolescência” do termo frente às novas dinâmicas comu-
nicacionais da civilização moderna que se adequam melhor à definição de público.
Este último, segundo o autor (1901, p. 9), “supõe, portanto, uma evolução mental e
social bem mais avançada do que a formação de uma multidão”.
Para Tarde, a multidão enquanto conceito geral de agrupamento foi o modelo
que perdurou desde os tempos mais antigos e apenas a partir do século XVI, com a
evolução da tipografia, é que podemos pensar nos primeiros esboços do que viria a
ser o público, conforme ilustra (1901, p. 10):
Havia um público na Idade Média? Não, mas havia feiras, peregrinações de mul-
tidões tumultuosas dominadas por emoções piedosas ou belicosas, cóleras ou
pânicos. O público só pôde começar a nascer após o primeiro grande desenvol-
vimento da invenção da imprensa, no século XVI.
13 Cargo no magistério francês responsável por instruir as investigações criminais no sentido de acusação e
encerramento dos casos. Tal cargo se assemelha, neste ponto, ao papel de investigador criminal.
14 Seu ingresso tardio à instituição acadêmica deu-se sobretudo mediante à proximidade com o meio elitista
e pelo contato com T. Ribot (que publicou alguns escritos de Tarde na sua Revue Philosophique). Seus
ideais políticos eventualmente entraram em conflito com a comunidade acadêmica mais ligada à vertente
progressista, sobretudo no debate com E. Durkheim. Consultar Ginneken (1992, p. 191-203).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 51
Em suma, a paixão pela atualidade progride com a sociabilidade, da qual ela não
é mais que uma das manifestações mais impressionantes. E como é próprio da
imprensa periódica [...] só tratar dos assuntos de atualidade, não devemos nos
surpreender com ver formar-se e estreitar-se entre os leitores habituais de um
mesmo jornal uma espécie de associação.
Considerações finais
Este artigo deu foco às circunstâncias históricas nas quais emergiram os estudos
psicossociológicos sobre o fenômeno das multidões, ao deslindamento dos dilemas
que sitiaram este termo genérico e abrangente. Nesta perspectiva, diante dos fatores
aqui abordados estamos aptos a concluir que, ao menos nas obras de maior destaque,
o termo geralmente trazia em seu bojo uma aversão de caráter elitista às classes popu-
lares e estava perpassado por ideais políticos ligados sobretudo à anti-democracia, ao
conservadorismo e aos nacionalismos de direita. Estes valores podem ser observados
tanto nos estudos anteriores quanto nos que de fato selecionamos, mesmo nos estudos
de G. Tarde, por mais técnicos e futuristas que pareçam ser.
Ainda que ambas as obras estejam, como já mencionamos, situadas em um
momento e contexto relativamente próximos e que estejam perpassados basicamente
por valores e ideais políticos bastante semelhantes, é possível perceber em Le Bon,
no entanto, a presença de um olhar predominantemente político e ideológico sobre
o fenômeno, o que nos leva a questionar até que ponto se trata realmente de uma
obra de cunho “científico”. Há, com muita frequência, a visão elitista (também
presente nos estudos de G. Tarde) de um homem individualizado e superior, cujo
patamar dificilmente o cidadão médio popular (ou o “homem da multidão”) estaria
propenso a alcançar.
Esta visão, em certa medida, também está presente nos estudos de G. Tarde.
Entretanto, não escapa a um olhar mais acurado que as próprias argumentações
de ambos os autores – sobretudo as de Tarde – conduzem, em última instância, à
percepção de que as ideias ou opiniões dos indivíduos (supostamente “solitários
e sábios”), longe de autônomas e originais, também são construídas de processos
sociais coletivos, ainda que mais longínquos, ruminosos, silenciosos e muitas vezes
anônimos. Por outro lado sua obra, apesar de tudo, está debruçada de antemão sobre
um amplo estudo sociológico que busca consistência e validação científica ao ponto
de propor uma ciência social estruturada. A ciência da opinião tardeana está ligada não
apenas ao contexto político, mas abrange o compartilhamento social da religiosidade,
do desejo e dos mais diversos caracteres culturais (REYNIÉ, 2005). Ao passo que
54
REFERÊNCIAS
À quoi sert le juge d’instruction?. Vie Publique. [S.l.] maio 2021. Disponível em:
https://www.vie-publique.fr/fiches/268568-quoi-sert-le-juge-dinstruction. Acesso
em: 8 abr. 2022.
CANDEA, Matei. The social after Gabriel Tarde: debates and assessments. 2. ed.
[S.l]: Routledge, 2019.
HUTTON, Patrick H. Popular Boulangism and the advent of mass politics in France,
1886-90. Journal of Contemporary History, [S.l.], v. 11, n. 1: 85-106, jan. 1976.
LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. Trad. Ivone Moura Delraux. Paris:
PUF, 1895. [S.l.]: Edições Roger Delraux, 1980.
MOSCOVICI, Serge. L’âge des foules: un traité historique de psychologie des masses.
([S.l.]: Editions Complexe, 1985) Chicoutimi: J.-M. Tremblay, 2009.
NYE, A. Robert. The origins of crowd psychology: Gustave Le Bon and the crises of
mass democracy in the Third Republic. 2. ed. London: Sage, 1975.
56
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. Paris: Alcan,
1901. São Paulo: Martins Fontes, 2005c.
TARDE, Gabriel. As Leis da Imitação. Trad. Carlos Fernandes Maia e Maria Manuela
Maia. (2. ed. Paris: F Alcan, 1895 [1890]) Porto, Portugal: Rés, s/d, 1976.
TARDE, Gabriel. As leis sociais. Esboço de uma Sociologia – Parte I. Trad. Mauro
Guilherme Pinheiro Koury. Paris: F Alcan, 1898. RBSE, João Pessoa, v. 3, n. 9,
p. 461-482, dez. 2004.
TARDE, Gabriel. As leis sociais. Esboço de uma Sociologia – Parte II. Tradução de
Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Paris: F Alcan, 1898. RBSE, João Pessoa, v. 4,
n. 10, p. 91-116, abr. 2005a.
TARDE, Gabriel. As leis sociais. Esboço de uma Sociologia – Parte III. Tradução
de Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Paris: F Alcan, 1898. RBSE, João Pessoa, v. 4,
n. 11, p. 190-212, ago. 2005b.
Introdução
15 Em 2021, as despesas com Segurança Pública somaram R$ 105 bilhões de reais (FBSP, 2022).
16 O perfil da população presa é o mesmo das vítimas das mortes violentas intencionais (MVI): a população
masculina, negra e jovem. Nos últimos anos houve intensificação do encarceramento de jovens negros,
67,5% da pop carcerária, e 46,4% com idade entre 18 e 29 anos (FBSP, 2022).
58
Capital racial
17 O recorte de gênero se justifica por estar sobrerrepresentados nas mortes violentas intencionais (MVI),
jovens negros, com 77,6% das vítimas de homicídio doloso, por exemplo, mas chega a 84,1% das vítimas
de mortes decorrentes de intervenções policiais. Quando aplicamos somente a categoria gênero, excluindo
raça, este percentual fica acima de 90% (FBSP, 2022).
18 Raça é tomada como uma construção social, política e dispositivo de um sistema de poder. Fenótipo racial
como o produto imagético dessa construção, tendo como base a cor da pele, traços fenotípicos, objetos e
coisas que foram associadas como pertencentes às identidades raciais.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 59
associações não estão totalmente equivocadas, uma vez que estamos tratando de uma
construção social e política de raça, e não de fatores biológicos. Não obstante, um
olhar mais acurado nos desvelará como há uma infinidade de aspectos e elementos das
construções políticas, históricas e culturais que subjazem as relações intersubjetivas
que foram e estão intimamente articuladas às noções de raças, consequentemente, às
identidades, como propriedades imanentes a elas. Estas associações são consequências
do transcurso do colonialismo onde o controle das distinções sociais, em coarticu-
lação à cor da pele e traços fenotípicos conformaram a construção das identidades
modernas no Brasil. Destarte, as identidades forjadas sob a matriz de significados
coloniais foram redefinidas de modo a posicionar as populações colonizadas à luz dos
sentidos da subordinação e marginalização social; determinando, consequentemente
a representação social. Observa Mbembe (2018, p. 31), que:
nem todos os negros são africanos e nem todos os africanos são negros. Apesar
disso, pouco importa onde eles estão. Enquanto objetos de discurso e objetos do
conhecimento, desde o início da época moderna, a África e o negro tem mergu-
lhado numa crise aguda tanto a teoria da nominação quanto o estatuto e a função
do signo e da representação.
19 Serão apresentadas as categorias de classificação com a identificação de cada grupo pelo nome da locali-
dade: Taquaril, Justinópolis, Morro das Pedras, Santo André e Sion. Categorias repetidas serão apresentadas
uma única vez. As análises serão, praticamente, as transcrições da pesquisa. Sendo assim, não serão
indicadas conforme padrão de citação.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 61
Indo para o pagode. Samba; Santo André: Baile de favela do Rio de Janeiro. Tudo
puta. Representa muito essas meninas aí, a maneira como elas se vestem. Pra mim é
tudo igual, não se valoriza; Sion: Três amigas numa festa fechada.
As classificações atribuídas às mulheres negras são fortemente carregadas de
um essencialismo cultural, gravitando em torno de atividades de entretenimento
consideradas ou vinculadas às pessoas negras (baile funk, rap, samba, pagode...).
Este dado nos permite inferir que essa leitura parte de uma experiência de vida em
um contexto específico, a partir da posição social e localização geográfica na cidade,
que os leva a estabelecer uma relação direta de familiaridade com a imagem, em
decorrência da rígida polarização racial nas classes antagonicamente posicionadas.
Outras classificações se destacam pelo contundente teor pejorativo, o que pode estar
associado, conforme constatou Collins (2019, p. 129) ao “mito da sexualidade da
cultura da subclasse negra20“. Segundo Gonzalez (2018, p. 49), “a mulher negra
desempenha um papel altamente negativo na sociedade brasileira nos dias de hoje,
dado o tipo de imagem que lhe é atribuído ou das formas de superexploração e
alienação a que está submetida”.
Percebe-se que as classificações mobilizadas para as mulheres brancas, de algum
modo, reforçam imagens também essencializadas, entretanto, opostas às mulheres
negras. Como afirma Gonzalez (2018, p. 44), “ser mulher negra no Brasil, repeti-
mos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo
racismo e pelo sexismo as colocam no mais baixo nível de opressão”. Para a teórica
feminista negra, Lélia Gonzalez, a tríplice discriminação envolve as dimensões de
raça, classe e sexo, assim como seu lugar na força de trabalho, o que é incontestável
nas classificações, e “expressa a universalidade das opressões interseccionais, orga-
nizadas em diversas realidades locais” (COLLINS, 2019, p. 369), interagindo numa
dinâmica de plasticidade multidimensional com feições diversas de acordo com o
contexto, instituições e agentes envolvidas(os).
As classificações marcadamente antagônicas fazem inferências e destaca a
posição social imaginada das mulheres nas imagens, e traduzem facilmente o ima-
ginário brasileiro sobre ser branca(o) e sua posição na estrutura e hierarquia social.
Isso fica ainda mais nítido quando as mesmas categorias não são mobilizadas para
as classificações das mulheres negras, e em nenhum dos segmentos de imagens isso
ocorreu. Uma rara exceção quanto aos interlocutores do Sion. Todavia, desvelou-se
como possíveis manipulações do discurso, que não se sustentaram. Veremos adiante.
Muda-se o contexto e as estruturas simbólicas das imagens, no entanto, as classi-
ficações seguem se referenciando ao fenótipo racial. Outras duas imagens, uma delas
situa uma mulher branca, e outra uma mulher negra, ambas sorrindo em contato com
notebook’s. O ambiente de fundo alude a um espaço corporativo, onde o destaque
das mulheres sugere alguma posição de liderança. Mulher negra: Taquaril: Estu-
dante. Biblioteca. Empresa; Justinópolis: advogada; Morro das Pedras: Professora.
Secretária; Santo André: Estagiária. Secretária; Sion: Mulher bem-sucedida como
20 Segundo Collins, tal inferência está relacionada à quantidade de jovens negras grávidas ou “empurrando
carrinhos de bebês” nos bairros pobres das grandes cidades.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 63
Sion: Não. É só um cara. Mas poderia ser um cara que vende drogas sintéticas. Mas
é porque a gente vê isso. O meio em que a gente tá a gente vê isso.
Com exceção dos interlocutores do Morro das Pedras, observa-se um consenso
ensurdecedor em torno das classificações desferidas à imagem do homem negro.
Consenso também em relação à imagem do homem branco, porém, sem exceções.
São elementos de extrema relevância, uma vez que não hesitam sobre a representa-
ção a que os remetem cada uma das imagens. Concordam sobre a aparência ser um
critério que levanta suspeita e define os parâmetros da “sujeição criminal” (MISSE,
2014). A linguagem assume proeminência, no grupo do Sion, quando na tentativa de
manipulação do discurso e classificação do homem negro fora do padrão de represen-
tação atrelada à criminalidade, ao fim e ao cabo afirmam tal condição. Seu subtexto
informa que há uma imagem, uma aparência previamente construída e reforçada do
que é reconhecido como traficante, que é similar à do homem negro. Para afirmar que
alguém quer se parecer um vampiro é necessário ter uma representação imagética
previamente construída deste significante.
Existe algo na verbalização das percepções que pode parecer invisível, embora
escancare nossas concepções racistas de mundo e a vivacidade do capital racial. A
maior parte dos grupos de interlocutores foram contundentes ao classificar o homem
negro como traficante. Lançando luzes à percepção racializada, especialmente quando
para o homem branco, prevalece uma unanimidade em não enxergá-lo como pas-
sível das mesmas classificações. Para os interlocutores do Santo André existe uma
possibilidade de ser traficante, porém, descartada por estar em zona nobre do Rio
de Janeiro. Sugerem ainda o homem branco como executivo, mesmo sem a imagem
trazer nenhuma referência ao padrão estético de um. Isso ganha outras proporções
quando um homem negro, mesmo dentro dos critérios estéticos de representação de
um executivo não foi cotejado como tal.
Os interlocutores do Sion concordam que o homem branco pode ser uma pessoa
que vende drogas sintéticas. A categoria traficante não é mencionada para sua classi-
ficação. Em outras palavras, há uma diferenciação nessa nomeação, aparentemente
decorrente tanto do tipo de droga vendida como pela forma, local da ação e público
consumidor; mas sobretudo, do fenótipo racial e outros elementos que permitiram o
reconhecimento como parte do grupo racial e social dos interlocutores do Sion. Sugere
uma espécie de deslocamento da imagem do homem branco da representação do que
entendem como traficante, pressupondo uma identidade previamente fixada nesta
classificação, especialmente quando consideram a possibilidade do homem negro
querer se assemelhar a um traficante21. Pelas narrativas e classificações em geral,
nota-se que a depreciação e sentenciamento do homem negro assume maior destaque
quando a negação, a cortesia e comedimento direcionados ao homem branco é a regra.
Como assevera Moore (2007) o fenótipo, desde as épocas mais longínquas, é
o atributo orientador de ações violentas. Sobretudo das(os) policiais contra jovens
negras(os) e pobres, enquanto para as(os) brancas(os) reserva-se a garantiria de pro-
teção e segurança. De fato, ergue-se a cor da pele (e demais elementos da composição
21 Termo associado a uma tipificação penal, conforme artigo 33 da lei 11.434/2006, e não a um perfil identitário.
66
Outra coisa que eu acho que influencia o policial assim é: eu conheço gente do
mesmo círculo social que eu, assim, que foi abordado com drogas, assim com
drogas mais pesadas e que não aconteceu nada. Mesmo assim não aconteceu nada
(Jovens do Sion).
22 Collins (2019) nomeou de “imagens de controle”, surgidas na era da escravidão e presentes na atualidade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 67
arbitrárias, tomando por base elementos da composição racial, tem poder real de
selecionar quem será interpelado ou não, reproduzindo e perenizando representações
sociais criminalizadas de um lado, e de outro, perpetuando um sistema de privilégios
e manutenção simbólica da imagem da “pureza”. Mas também da incolumidade e da
presunção previa e histórica da inocência.
As observações feitas pelos interlocutores da pesquisa sobre as fotos acima
são igualmente sintomáticas de uma “sistemática de repressão policial, dado que seu
caráter racista (segundo a polícia todo crioulo é marginal até que se prove o contrá-
rio) tem por objetivo próximo a imposição de uma submissão psicológica através
do medo” (GONZALEZ e HASENBALG, 1982, p. 16), que pode ser analisada por
meio das classificações dos interlocutores negros sobre as pessoas negras nas fotos.
Jovens negros: Taquaril: Muitos aí vai ser, nem todos. Justinópolis: Tudo ban-
dido, envolvidão; Morro das Pedras: Galera da biqueira; Santo André: Aí é favelão. Aí
é favela. Colando no baile. Aí é comunidade. Aí deve ter uns traficantes e o restante
é parente; Sion: Alguém aí vai ser. Eu acho que parece. É um grupo que claramente
eles são de classe mais baixa. Todos negros, eles parecem tá numa favela. Eu acho
muito provável que algum deles possa ter algum [envolvimento], só de ter vendido
alguma vez na vida. Não estou falando que é, não do crime organizado e que a maioria
é, mas é possível sim. Jovens brancos: Taquaril: Não; Justinópolis: Parecer num
parece não mas vai saber; Morro das Pedras: Não; Santo André: Playboy. Donos de
negócio. Amigos; Sion: Não.
Sem exceções os jovens negros da foto foram associados às posições de envol-
vimento pontual ou constante em atividades ilícitas e tráfico de drogas por todos os
grupos de interlocutores. A associação entre espaço físico (favela/periferia), posição
social (pobres) e raça ganha destaque nas classificações e tentativas de análises
realizadas para justificar as classificações. Há uma inferência de relação que denota
certo essencialismo racial, de trajetória, de classe social que inclina a percepção ao
exercício da classificação marginalizada direcionada aos jovens negros. No encontro
com os interlocutores de Justinópolis, ao ver a figura, alguém comentou: “negão
igual nós né”. Outro interlocutor do Santo André comenta: “Num é nada, mas quer
68
É esquisito, mas fica diferente. Eu já vi um cara com a mesma camisa que eu,
eu achei eu lombrado e achei o cara normal. Eu lá no Diamond, com a camisa
23 Bairro nobre de Belo Horizonte (classe alta): 29,40% dos domicílios apresenta rendimento nominal mensal
domiciliar per capita de mais de 5 a 10 salários mínimos, e 41,37% mais de 10 salários mínimos. 92,04%
da população é branca. 1,49% da população é preta e 6,42% parda (IBGE, 2010).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 69
[...] por causa da aparência né. O jeito de vestir, nós anda mais jogado (lombrado24).
O estilo né, blusa, boné, camisa de time, correntinha. Eles acham que quem anda
desse jeito é vagabundo (Jovens de Justinópolis).
Os policiais tava do outro lado. Eles deram o retorno e vieram até nós com a maior
ignorância, perguntando onde a gente tava, o que a gente tava fazendo; porque
que eu tava de chinelo, e blusa de time (Jovem do Morro das Pedras).
[...] quando você vê o boy você sabe. Até o jeito do cara andar. Tá no jeito de
vestir, ta no jeito de andar, ta no jeito de falar: a gíria (Jovem do Taquaril).
[...] parece que tem até uma diferença eles (playboy25) de chinelo e nós de chinelo.
“É a aparência!” (Jovens Taquaril).
24 O termo aparece em várias falas dos jovens e em grupos diferentes, embora utilizado para caracterizar
situações diferenciadas, o significado é sempre similar, podendo remeter à: mal vestido, feio, suspeito, mal-
-encarado entre outros.
25 O termo é muito utilizado e tem a intenção de expressar um sentido de branquitude masculina e jovem. Para
seu par feminino utilizam patricinha.
70
os rapazes com aparência que mistura signos de classe popular e cultura negra são
suspeitos de serem potenciais criminosos, ao passo que os rapazes de outra aparên-
cia, exibindo outros signos de classe e cultura, são portanto, estarem distantes de
atividades que mereceriam a vigilância da polícia (SINHORETTO, 2013, p. 103).
Nesta atmosfera estruturada por um capital racial, os aspectos mais sutis como
a hexis corporal, modo de expressar verbalmente são identificados ou reconhecidos
como distinções raciais. Neste caso, considera-se também pessoas brancas socializa-
das em localidades de maioria negra, e sob os mesmos habitus, apresentam práticas,
comportamentos, gostos e estilos que são considerados como próprios da população
negra. Deste modo, inconscientemente elas são dissociadas do significado social de
branquitude e aproximadas ao significado de negritude. É relevante considerar, que
as práticas sociais funcionam como “uma arte gímnica” definindo o jeito corporal
(MAUSS, 2015), como consequências das condições diferenciais de reprodução da
vida. Explica-nos Bourdieu que, assim
como valores nos gestos mais automáticos ou nas técnicas do corpo, na aparência,
mais insignificantes, por exemplo habilidades manuais ou maneiras de andar,
sentar-se, assoar-se e posicionar a boca para comer e falar; além dos princípios
mais fundamentais que exprimem diretamente a divisão do trabalho (BOURDIEU,
2007, p. 434).
A segregação racial, que se expressa também nos corpos, pode ser observada de
formas inquestionáveis, para usar as noções de Gonzalez (2018), na “divisão racial
28 Roupa de preto; música de preto; andar de preto; jeito de preto; falar como preto; lugar de preto; comida de
preto; coisa de preto etc.
72
A divisão em classes sociais se insere como mais uma das narrativas que rece-
bem endossos constantes dos planos da racionalidade ocidental, funcionando como
parâmetros de mensuração das capacidades humanas29. Remontando os mitos da
inferioridade/superioridade humana, bem como a ideologia do êxito pessoal.
29 Foucault (2008) nos mostra como o capital humano é mensurado por meio do nível de sucesso (posições
de prestígio social e capital econômico) alcançado pelos indivíduos nas sociedades modernas (liberais).
30 Em última análise, assemelha-se ao que Mbembe (2016) descreveu como a formação dos distritos onde
opressão e pobreza severas foram experimentadas com base na raça e na classe.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 73
31 Não houve critério prévio que não fosse as melhores condições de exequibilidade dos procedimentos
previstos para a pesquisa.
32 Territórios de Gestão Compartilhada (TGC) são 40 subdivisões territoriais definidas por características
homólogas entre as áreas, com a finalidade de servir de referência institucional para articular a discussão
do planejamento de médio e longo prazo, criando espaço para a democratização das decisões.
74
33 Foi citada e analisada conjuntamente em razão dos jovens participantes serem da Pedreira, ter familiares
ou fortes laços com a localidade, bem como um espaço de convivência cotidiana.
34 Das 43.171 pessoas assassinadas de 2013 a 2021, 85, 1% eram negras. 67,5% dos Jovens encarcerados
são negros. A probabilidade de ser assassinado para jovens brancos é de 1 para cada cem mil, enquanto
para jovens negros é de 4,5 para cada grupo de cem mil (FBSP, 2022).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 75
[...] igual meu irmão, meu irmão tá preso porque foi forjado. Eles pararam meu
irmão e pediram um revólver. Ele [policial] abriu uma sacola de drogas na
frente do meu irmão e disse que se não desse o revólver ia levar meu irmão
preso, meu irmão só falou com eles: vocês me liberam que vou buscar. Meu
irmão saiu vazado, não voltou mais não. Aí no outro dia, eles abordou meu
irmão no mesmo lugar. Já chegou abordou meu irmão: forjadão35 (Jovem
de Justinópolis)
[...] abordado não, chegou batendo mesmo. Eu saí igual uma bala menino. No
dia que eles (policiais) pararam nos três. Eles cismaram que a gente tinha que
dar eles um revólver. Uma hora com as mãos na cabeça, mais meia hora com
as mãos pra trás e mais meia hora no formigueiro (Jovens de Justinópolis).
É outra coisa também, tudo deles agora é pegar e olhar celular. Abordagem que não
existe, eles fazem isso aí pra tentar ver se saí lucrando alguma coisa em cima da
gente, eles querem lucrar com você que não deve nada para eles. Você encontra
com eles de madruga eles forjam você. Se eles não for com sua cara vai querer
te forjar, não arrumou nada na noite. Joga nocê uma carga de pó ali e é isso
mesmo, não tem ninguém para falar que você não tava com aquela carga
só tá eles, é sua palavra contra a dos policias (Jovens do bairro Santo André).
[...] se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma,
com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele
35 Forjar flagrantes é uma prática habitual, embora, extralegal, utilizada por policiais em localidades de maioria
negra. Serve, entre outras funções, a produzir submissão e antecedentes criminais que justificarão prisões e
assassinatos futuros. O FBSP (2022) informa que mais de 80% das prisões por porte de drogas tem apenas
o policial como testemunha.
76
pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando,
complementou. O policial tem que se adaptar àquele meio que ele está naquele
momento (ARAÚJO, 2017).
Rola uma divisão. Um cara da classe alta pode ter uma droga no bolso, é fi de juiz
e nós tudo aqui anda pá (Jovens de Justinópolis)
A família deles tem dinheiro, não vai tomar abordagem igual a gente toma... eles
sabem que se abordar igual aborda nós vai arrumar problema, porque vai além
(Jovem de Justinópolis).
Acho que eles nem abordam o cara pra revistar. Eles orientam o cara e manda
o cara sair andando. Agora abordar e colocar o cara na parede não (Jovens do
Santo André).
36 Como pretenderam, entre outros, Ribeiro (2006) ou Telles (2003). Bourdieu (2007) questionou o economi-
cismo nas ciências sociais, e demonstrou empiricamente que há outras propriedades tão relevantes quanto
o capital econômico na definição das fronteiras entre as classes sociais. Propriedades simbólicas produtoras
de valores que influem objetivamente no ordenamento do espaço social.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 79
37 Os quilombos eram constituídos de certa diversidade racial, ao contrário do que se pensa e se propagou
através do que foi e é contado sobre essa história (NASCIMENTO, 2018; GONZALEZ, 2018).
80
foi sugerido que outros jovens indicassem o pertencimento racial de seu colega. No
geral houve convergência entre a autodeclaração e a heteroidentificação. Poucos
foram os casos em que um jovem se autodeclarou pardo e foi identificado por seus
colegas como preto, ou o contrário. Um fator de relevância crucial para as análises
aqui depreendidas, é que em cada um dos grupos de periferia ou favela contou com
pelo menos um jovem branco38. Este, assim autodeclarado e igualmente heteroiden-
tificado. O grupo do Sion, por sua vez, foi composto homogeneamente por jovens
brancos, autodeclarados e heteroinditificados. A média de idade entre os interlocu-
tores da pesquisa, em todos os grupos, foi de 22 anos, e cada grupo contou com no
mínimo cinco participantes.
Foi possível constatar, por meio das percepções dos interlocutores, que nosso
senso de classificação é radicalmente determinado por um contexto histórico e político
que estabeleceu oposições viscerais sobre as representações sociais racializadas, seus
estilos e modos de vida, definindo, consequentemente, a imagem do perigo urbano.
Os relatos abaixo podem nos evidenciar tais hipóteses:
[...] uma vez estava indo, eu e esse cara aqui, ralar, e tinha duas véia na frente e
elas viu a gente e guardou a bolsa. Eu xinguei elas eu falei: tá achando que eu
vou te roubar dona? (Jovem de Justinópolis).
Então, tem essa estória que aconteceu comigo dois meses atrás. Essa situação
que o [outro jovem] deu foi exatamente o que aconteceu, na verdade. Eu tava na
minha rua, era aproximadamente oito horas da noite e tava passeando com meu
cachorro. Tava bem de noite e eu tava ouvindo música no meu celular. Aí, eu virei
a esquina, bem aqui nessa rua do lado da minha casa, e dei de cara com três jovens
negros. Os três de boné, short tactel, de chinelo e camisa de time. Assim, eu não
tive tempo nenhum pra pensar, minha primeira reação instintiva foi só olhar pra
baixo e basicamente atravessar a rua. Aí eu fiz isso, eles estavam bem do meu
lado, aí eles pararam na curva olharam pra mim e meio que falaram assim: ow, a
gente não é assaltante não. E foram embora. Realmente, isso me fez sentir muito
mal (Jovem do Sion).
38 Isto não foi colocado como critério para seleção dos jovens que compuseram o grupo. Aliás, vale informar
que não houve critério previamente estabelecido para além de ser jovem com idade entre 16 e 29 anos e
morador da localidade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 81
O cara é branco ele tem uma chance maior de ser alguém na vida, não vou [poli-
cial] sujar o nome desse cara agora pra fuder ele na frente, e o cara é negro a
chance de dar alguma coisa já é pequena então foda-se ele agora, ficha suja. Tipo
assim, isso é razoável, mas esse pensamento pode vir um pouco (Jovens do Sion).
Os roles da noite que a gente da favela é muito... assim... muito, com muita cau-
tela. Você encontra com polícia e eles querem te esculachar você, certo. Abre suas
pernas, dá seus procedimentos que é, você vê que é anormal né. Num é, num é
igual quando te pega você no centro como se fosse assim e te dá uma abordagem
tranquila, quando é na favela tem sempre um... um... vão supor, uma brecha a
mais (Jovem do Morro das Pedras).
E eu acho que as vezes eu, que o policial, ele sabe disso, ele sabe que se abordar
uma pessoa de classe mais alta que tem recurso não vai adiantar para nada. Acho
que pode ser um possível motivo. O pai é um cara influente e pode dar um pro-
blema até pro policial (Jovens do Sion).
O policial sabe diferenciar um jovem rico de um pobre: aquele ali é boy, aquele
é favelado (Jovem do Taquaril).
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer, II, I. São Paulo: Boi-
tempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder do soberano e a via da nua. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2010.
ARAÚJO, Fabio Alves. Das técnicas de fazer desaparecer corpos. Rio de Janeiro:
Lamparina, FAPERJ, 2014.
COSTA JUNIOR, Jair da. Capital Racial: poder simbólico e estrutura de dominação.
REVES – Revista Relações Sociais, 2021. v. 4, n. 4.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e
o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado em
Direito)- Universidade de Brasília, Programa de Pós-graduação em Direito, Brasília,
2006. Disponível em: https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliote-
cas:livro:2008;000817493. Acesso em: 6 jun. 2022.
GONZAGA, Yone Maria, COSTA JUNIOR, Jair. Capital racial e a perspectiva colo-
nial no século XXI. Rio de Janeiro: Revista M. Estudos Sobre a Morte, Os Mortos
E O Morrer, 2020, n. 5, v. 10.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. [S.l]: Diáspora africana, 2018.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petropólis, RJ: Vozes, 2014.
global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios
Sociales Contemporáneos y Pontifi cia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Rio de Janeiro: Arte & Ensaios – revista do ppgav/
eba/ufrj, 2018.
MOORE, Carlos. Racismo & sociedade: novas bases epistemológicas para entender
o racismo. Belo Horizonte: Mazza edições, 2007.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 1991.
REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo,
n. 28, p. 14-39, 1995.
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Classe, raça e mobilidade social no Brasil. Dados
– Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 49, n. 4, p. 833-873, 2006.
Introdução
7% 3%
100%
1%
13% 4%
90% 11%
25%
6%
80% 21%
70%
31%
22%
60%
50%
19% 85%
40%
68%
30%
50%
20%
34%
10%
0%
0 a 4 anos 5 a 9 anos 10 a 14 anos 15 a 19 anos
50,0
45,3
Taxa por 100 mil habitantes
45,0
40,0
35,0
30,0
25,0
20,0 17,9
15,0
10,0
5,1
5,0
0,0
Letalidade violenta
Preta Parda Branca
Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.
* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.
Quanto aos meios empregados nos crimes de letalidade violenta, verifica-se que
90,5% dos adolescentes e 51,9% das crianças foram mortos por disparo de arma de
fogo, sendo o principal recurso empregado na violência. Um dado evidenciado pelo
Dossiê é o elevado percentual (33,3%) de casos em que não foi possível identificar
o meio empregado no assassinato de crianças.
90
Além disso, o Dossiê permite verificar que as circunstâncias por trás das mortes
violentas de crianças e adolescentes assumem perfis distintos das de adultos no que
diz respeito à quantidade de vítimas fatais em uma mesma ocorrência. Quando as
vítimas de homicídio são crianças e adolescentes há maior participação nos homi-
cídios múltiplos. Do total de homicídios dolosos de adultos, 15% vitimaram mais
de uma vítima. Este percentual é quase o dobro para crianças e adolescentes (29%).
Crianças e
adolescentes
71% 29%
Grupo etário
Único Múltiplos
*Nesta análise não foi utilizada a base com recuperação da idade das vítimas, uma vez que esta recuperação não pode
ser realizada nos registros com mais de uma vítima.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 91
4,3% 13,2%
0,6%
28,6%
0,7%
0,3%
96,3% 70,4% 81,9%
* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.
Homicídio decorrente de
79% 13% 8%
intervenção policial**
Lesão corporal 60% 37% 3%
Homicídio decorrente de
1% (2) 96% (167) 3% (5)
intervenção policial
* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 93
*Nesta análise não foi utilizada a base com recuperação da idade das vítimas.
Chama a atenção que dos delitos contra crianças e adolescentes listados abaixo,
os homicídios decorrentes de intervenção policial representam a única forma de
violência em que não há conhecidos familiares dentre os autores do crime.
94
Distribuição dos delitos contra crianças e adolescentes por relação entre vítima e
autor – Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores percentuais)*
*Os registros dos meses de janeiro a março estão sujeitos a impactos da greve de policiais civis do estado do Rio de
Janeiro neste período. Os dados de letalidade violenta não foram impactados, tendo em vista que não houve suspensão
do registro durante o período da greve.
**Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.
experiência, a situação atual de violência nas grandes cidades brasileiras foi gerada
ao longo de um processo” (p. 21), como é o caso da cidade do Rio de Janeiro.
Após visita ao Brasil, em 2007, o relator especial da ONU sobre execuções extra-
judiciais, sumárias ou arbitrárias, Dr. Philip Alston, afirmou ter recebido “copiosas
alegações de que os inquéritos conduzidos pela Polícia Civil, especialmente sobre
mortes praticadas por policiais, são muitas vezes extremamente inadequados”. Ele
explicou que, com frequência, “os inquéritos não são corretamente registrados
e, que, eventualmente, as únicas evidências são uma descrição do local do crime
e uma declaração da Polícia”. O relator especial disse ainda que os problemas
referentes à investigação “são exacerbados nos eventos em que um policial mili-
tar registra uma morte como sendo um caso de ‘resistência’”. Repetidamente,
policiais civis relataram a ele que, “quando acontece um caso de resistência, eles
supõem que os policiais militares estavam lidando com criminosos e agindo em
legítima defesa”. O relator também recebeu “vários exemplos de policiais que por
negligência ou intencionalmente deixavam os inquéritos parados nas Delegacias
de Polícia, sem encaminhá-los ao Ministério Público” (ANISTIA INTERNA-
CIONAL, 2015, p. 66-67).
i) uma arma dentro de casa faz aumentar inúmeras vezes as chances de algum
morador sofrer homicídio, suicídio ou morte por acidente (principalmente crian-
ças); ii) a maior difusão de armas de fogo faz aumentar os homicídios motivados
por conflitos de gênero e interpessoais (como brigas de vizinho, no trânsito, nos
bares etc.); iii) quanto mais armas no mercado legal, mais armas migrarão para
o mercado ilegal, permitindo o acesso a criminosos não organizados em facções;
e iv) a posse de armas aumenta as chances de vitimização fatal para o próprio
portador, em caso de ataque, em vista do fator surpresa (INSTITUTO DE PES-
QUISA ECONÔMICA APLICADA, 2020, p. 11).
favelas, fatos que este texto não visa negar. Questiona-se, ainda assim, a situação de
crianças e adolescentes vítimas de homicídio por armas de fogo dentro de suas casas
sem que ali haja porte de arma. Cenas que se repetem e tornam o discurso acidental
banalizado diante de tantos “acidentes” e que não por coincidência, são frequente-
mente definidos enquanto efeitos colaterais40 quando causados por intervenção policial
a partir da política de segurança pública que opera nas favelas e periferias do país.
Nesse caso, não estamos falando do chamado crime não organizado, mas daqueles
frequentemente colocados em oposição a esse, os agentes do Estado, que acumulam
“acidentes” no país e em um dos estados em que a polícia mais mata sob expressivo
apoio da população pelo argumento de combate às facções e às drogas.
A reportagem “‘Mãe, fica tranquila, a gente tá dentro de casa’: as famílias
destruídas pela violência policial em plena pandemia”41 nos mostra esse cenário.
O título faz referência à última frase dita por João Pedro, de 14 anos, durante uma
conversa com sua mãe, que havia ligado para o filho preocupada com a presença de
um helicóptero na região em que o jovem estava. Logo após, João foi morto com um
tiro de fuzil dentro da casa dos primos com cerca de 70 disparos feitos por policiais
que entraram na casa alegando perseguição contra integrantes dos grupos armados
da região. Depois de ferido, o corpo de João foi levado ao helicóptero da polícia,
resultando em mais de 10 horas de procura pela família do jovem, até que o encon-
trassem em um necrotério, destino de muitos outros meninos negros que representam
a maioria das vítimas sob a lógica de violência presente nas políticas que norteiam
as ações da polícia brasileira (SILVA; SARDINHA; BICALHO, 2020).
No estado do Rio de Janeiro, a taxa de letalidade violenta observada ao longo
da série histórica42 se manteve acima de 40 por 100.000 habitantes até o final dos
anos 2000, atingindo a menor taxa em 2012, 28,7. No entanto, apesar da redução da
letalidade violenta no estado ter sido associada com a implantação das Unidades de
Polícia Pacificadora (UPPs), “[...] a expansão dessa iniciativa não foi orientada por
um critério que buscasse atender as áreas com maior incidência da violência letal”
(WILLADINO et al. 2019, p. 14).
De acordo com Ignácio Cano, Doriam Borges e Eduardo Ribeiro (2012), até o
momento da pesquisa realizada pelos autores, apenas o Decreto-lei nº 42.787 de 6
de janeiro de 2011 teria avançado em termos de estrutura, objetivos e organização
do programa, iniciado em 2008. “Na prática, isto quer dizer que o projeto das UPPs
avançou de forma experimental e pragmática, sem responder a um plano previamente
desenhado” (2012, p. 18). Nesse decreto, os autores relatam que “[...] as metas centrais
são a recuperação por parte do estado de territórios dominados por grupos criminosos
e o fim dos confrontos armados” (2019, p. 19). Esses objetivos, somados à diminuição
da criminalidade violenta, sobretudo a letal, são retomados posteriormente no Decreto
nº 45.186 de 17 de março de 2015, que regulamenta o programa.
Tendo em vista que a expansão das UPPs não foi orientada de forma a atuar nas
regiões com maior incidência da violência letal, vale investigar que outros possíveis
interesses atuaram em prol da iniciativa. A pesquisa realizada pelos três autores ante-
riormente citados se deu a partir das 13 primeiras UPPs, sendo o período analisado
entre janeiro de 2006 a novembro de 2010. Em suas análises, verificou-se que a
localização dessas unidades no tecido urbano passou por um processo evidentemente
seletivo com relação a agenda dos megaeventos na cidade e interesses políticos.
Concentrando essas instalações em regiões da Zona Sul, do Centro da cidade e ao
redor do estádio de futebol do Maracanã, pode-se perceber que tais unidades diziam
respeito a áreas turísticas, com intensa atividade comercial e elevada população
flutuante (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2012).
Após esse período, foi possível observar que outras Unidades de Polícia Pacifica-
dora foram sendo instaladas em diferentes regiões da cidade. No entanto, é importante
destacar que, apesar da expansão verificada, a instalação das UPPs não se expandiu
da mesma forma para as regiões dominadas pela milícia. Para Raquel Willadino,
Rodrigo Costa do Nascimento e Jailson Souza e Silva (2018), “[...] o fortalecimento
das milícias durante o período de implementação das UPPs se relaciona com decisões
políticas sobre o que deveria ser enfrentado” (p. 128). À exceção da UPP instalada na
região do Batan, Zona Oeste da cidade, a atuação em áreas dominadas por milícias não
estava dentro das prioridades estabelecidas pelo projeto (p. 128). Já em 2013, “[...]
os problemas relacionados à experiência se aprofundaram e os índices de letalidade
violenta no Rio de Janeiro voltaram a subir” (WILLADINO et al., 2019, p. 14). De
acordo com a cientista social Silvia Ramos, em 2017 “[...] todas as 39 Unidades
eram consideradas problemáticas, ao mesmo tempo em que o número de tiroteios
em diversas áreas da cidade e RM chegavam a números inéditos”43.
Um dos efeitos verificados em relação à crise das UPPs foi a presença da polícia
e dos grupos civis armados, ambos convivendo nas mesmas favelas. Em função disso,
os tiroteios passaram a ser rotineiros, mas com características diferentes da situação
anterior à ocupação da polícia pacificadora. Conforme apontam Raquel Willadino,
Rodrigo Nascimento e Jailson de Souza Silva (2018), com a presença das UPPs, os
conflitos não eram mais precedidos de anúncios por meio dos fogos, por exemplo,
colocando crianças e idosos em situação de maior vulnerabilidade, tendo em vista a
dificuldade de escapar da “linha do tiro”.
Em fevereiro de 2018, é decretada uma intervenção federal no estado do Rio de
Janeiro com o objetivo de “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”44.
A decisão foi questionada por diversos especialistas da área da Segurança Pública e do
[...] a intervenção federal não priorizou o combate à letalidade violenta. [...] Das
mortes violentas ocorridas no Rio durante a intervenção, 22,7% foram cometidas
por policiais e militares. [...] Quanto ao número de homicídios decorrentes de
intervenção policial, foram 1.375 mortos de fevereiro a dezembro de 2018, valor
+33,6% maior do que o contIabilizado em 2017 no mesmo período. Nenhuma
região do estado apresentou diminuição desses registros” (RAMOS, 2019, p. 4).
REFERÊNCIAS
ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho: homicídios cometidos pela
Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacio-
nal, 2015.
RAMOS, Silvia (coord.). À deriva: sem programa, sem resultado, sem rumo. Rio de
Janeiro: Observatório da Intervenção/CESec, abril de 2018.
RAMOS, Silvia (coord.). Intervenção federal: um modelo para não copiar. Rio de
Janeiro: CESeC, fevereiro de 2019.
1. Introdução
e fora dele: Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família
do Norte (FDN) e Guardiões do Estado (GDE), sendo esta última uma facção local.
A expansão das principais facções criminosas brasileiras para as regiões Norte e
Nordeste acarretou uma série de conflitos entre elas nas prisões e, como consequên-
cia, também, sobretudo, nas periferias urbanas (SÁ; AQUINO, 2018). Na realidade
cearense, segundo Sousa (2019, P. 46), “esses grupos formam um ‘exército’ de 18.667
‘combatentes’, somente internos (presos). Essa quantidade já é maior do que o efe-
tivo da Polícia Militar no Ceará que é de, aproximadamente, 16.000 profissionais”.
Ainda de acordo com Sousa (2019, p. 33), a facção “Guardiões do Estado/
GDE”, que diferentemente das outras, surge primeiro na periferia de Fortaleza e
depois chega aos presídios,
Sobre essa facção específica do Ceará, Paiva (2019, p. 170) pontua que:
A GDE, conhecida também pelos números 7.4.5, consiste numa reunião de pessoas
que fazem o crime, presos e egressos do sistema, dispostos a resistir ao comando
de grupos de fora do Estado, estabelecendo resistências e alianças para lutar pela
hegemonia do crime no Ceará. Gestada durante alguns anos, a fundação da GDE
é atribuída ao início de 2016. O coletivo conseguiu rápida expansão no sistema
prisional e nas periferias de todo o Ceará, despertando atenção desde o primeiro
momento pela juventude de seus integrantes.
“facção” a categoria nativa mais recorrente, sendo também comum expressões como
“o crime”, “o crime organizado”, “o comando”, “a família” ou “os irmãos”.
Embora reconheça os limites da categoria “facção”, Paiva (2019, p. 170) pontua
que as organizações assim reconhecidas localmente são constituídas por
Nessa dinâmica atual da violência no Ceará, dois aspectos nos chamaram aten-
ção na pesquisa anterior e que agora pretendemos dar maior ênfase: 1) relatos recor-
rentes sobre mudanças no cotidiano de jovens dessas territorialidades periféricas
por conta do acirramento da violência; 2) a grande quantidade de jovens periféricos
inscritos nessas organizações, o que provoca interrogações sobre modos de (des)sub-
jetivação juvenis agenciados nesses contextos e relações de poder. Interrogando-se
sobre fatores subjetivos que atravessam a inserção juvenil nas facções, Sousa (2019,
p. 42) pontua o seguinte:
Que aspectos psicossociais saltam aos olhos nas dinâmicas da violência letal
contra adolescentes e jovens em periferias urbanas no Ceará?
Nas discussões realizadas pelo VIESES desde 2017, lançamos mão das noções
de “necropolítica”, desenvolvida por Achille Mbembe (2003, 2016, 2017), e “capi-
talismo gore”, delineada por Sayak Valencia (2010, 2012), experimentando algumas
aproximações com a discussão de Judith Butler, ao tematizar guerras contemporâneas
sobre vidas precárias e (não) passsíveis de luto (BARROS et al., 2019).
Essas composições de ferramentas teóricas, aliadas aos estudos da feminista
Sayak Valencia (2010) sobre capitalismo, necropolítica, gênero e violência, permiti-
ram-nos traçar discussões no campo da psicologia social sobre as linhas de força que
atravessam a produção psicossocial da figura do adolescente/jovem popularmente
rotulado de “envolvido” (BARROS, 2019). No contexto cearense, são popularmente
chamados de “envolvidos” adolescentes/jovens a quem se atribui a inscrição nas
dinâmicas do mercado varejista de drogas ilícitas. Ainda que não estejam efetivamente
inscritos no tráfico, diversos adolescentes/jovens que habitam as margens urbanas são
também taxados como tal, pré-julgados por suas características raciais, econômicas,
por seu local de moradia e por sua vestimenta.
O “envolvido”, portanto, não se trata de todo e qualquer “bandido”, categoria
que vem sendo trabalhada por autores como Misse (2010), mas sim uma identidade
específica dentre os adolescentes “autores de ato infracional”. O “envolvido” aqui
considerado é a principal expressão local dos sujeitos (potencialmente) perigosos, a
quem são atribuídas características inerentes de mostruosidade (BARROS et al., 2019).
Destacamos a forte imbricação dessa produção psicossocial do “envolvido” com
tecnologias políticas de gestão da morte de sujeitos “desimportantes” e com variantes
110
Valencia (2012) chama atenção para alguns elementos que favorecem esse “capi-
talismo gore”: exigências de consumo excessivo ditadas pelas economias globais e
coloniais, a construção binária do gênero, o exercício despótico do poder por governos
autoritários, a espetacularização e mercantilização da violência:
O capitalismo Gore poderia ser entendido como uma luta intercontinental de (pós)
colonialismo distópico extremo; recolonizaram- se através dos desejos de hiper-
consumo implantados pelo neoliberalismo exacerbado e pela obediência acrítica à
ordem hegemônica masculinista para alcançar auto-afirmação e empoderamento.
Bem como um elo entre a economia sacrificial da morte e a produção de poder
como fatores que redefinem os limites do político. A morte como elemento que
questiona, perturba e desloca tanto o poder quanto o poder do Estado em sua
exclusividade em termos da aplicação da necropolítica (p. 89).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 111
Lembra Mbembe (2016) que, para Foucault, a raça foi sempre uma sombra
para o pensamento ocidental, ao passo que o racismo teve e tem função regular
a distribuição da morte, viabilizando as funções criminosas do Estado, já que é a
condição de aceitabilidade da condenação à morte pela atribuição de desumanidade
ou pela subjugação dos povos estrangeiros. Assim, desta vez retomando também
o diálogo com Arendt, Mbembe ressalta como política da morte e política da raça
estão imbricadas. Em sua discussão sobre “racismo de estado”, Foucault (2005)
aponta o nazismo como o grande exemplo de como o estado lançou mão do direito
de matar, articuladamente à gestão, proteção e cultivo da vida. Contudo, na reflexão
mbembeana, chama atenção ao seguinte ponto: a junção entre racismo, homicídio e
suicídio arquitetada pelo estado não teria sido apenas uma exceção vinda do estado
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 113
nazista. Mbembe (2017) sustenta que o traço colonialista e racista da biopolítica pode
ser exemplificado pela escravatura de negros:
4. Considerações finais
REFERÊNCIAS
BARROS, J. P. P. et al. “Pacificação” nas periferias: discursos sobre as violências
e o cotidiano de juventudes em Fortaleza. Revista de Psicologia da UFC, v. 9, n. 1,
p. 117-128, 2018.
COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de janeiro: Inter-
texto, 2001.
PAIVA. L. F. “Aqui não tem gangue, tem facção”: as transformações sociais do crime
em Fortaleza, Brasil. Caderno CRH, v. 32, n. 85, p. 165-184, 2019.
Apresentação
A problemática sobre a qual trata este artigo refere-se aos processos de exclu-
são, criminalização e extermínio da juventude, a partir do trabalho desenvolvido
no campo da psicologia nos Centros de Referência Especializados de Assistência
Social – Creas, da cidade de Vitória – Espírito Santo, com adolescentes e jovens em
cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Ele emerge a partir da
experiência como psicóloga e também como coordenadora, por dez anos habitando
espaços públicos do Sistema Único de Assistência Social – SUAS; emerge especial-
mente buscando dar visibilidade aos processos que tentam singularizar as diferentes
instituições que atravessam o dia-a-dia do cotidiano de adolescentes e jovens, em
sua maioria negros e pobres, que são encaminhados aos serviços de medidas socioe-
ducativas em meio aberto.
118
Por onde começar, se são tantas as histórias que atravessavam a vida desses
meninos e meninas? Quem são as personagens dessas histórias? Como a formação
em psicologia tem se pautado pela questão das medidas socioeducativas, assim como
pelas análises acerca de direitos humanos das comunidades periféricas? Ao optar
pela manutenção das histórias do dia a dia dessas famílias, meninos e meninas, fui
guiada por elas. O que trouxeram para esta escrita e para aqueles que a lerem? Emo-
ções desconcertantes que se entrelaçaram entre adolescentes e jovens, psicólogos e
aqueles que circulam pelos espaços de cumprimento de medidas socioeducativas em
meio aberto; possibilidade de caminhar por estradas sinuosas, nas quais as curvas
reservam o imprevisto, o inusitado dos acontecimentos.
Introdução
46 O Creas é uma unidade pública estatal que compõe a Política de Assistência Social, onde famílias e
indivíduos em situação de risco pessoal ou social – que vivenciaram casos de violação de direitos; vítimas
do trabalho infantil e de abandono; pessoas em situação de rua ou que tenham sofrido violências física,
psicológica e sexual ou mesmo foram discriminadas por razão de sua orientação sexual ou de sua etnia e
adolescentes que estejam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto – são atendidas.
120
47 “Do alto tá palmiado” vem da concepção de “tudo monitorado”, visto e vigiado do alto da comunidade pelos
olheiros do tráfico de drogas de cada território. A frase é muitas vezes pichada na entrada dos bairros de
periferia, fazendo alusão ao controle do tráfico de drogas, de toda a região.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 121
Século XX, quem seriam os dignos e quem seriam os viciosos, aqueles que poderiam
ser “cuidados” e teriam seus valores construídos através do trabalho e da moral, e
aqueles a quem deveriam ser designadas a prisão, o manicômio, os espaços de vigi-
lância e controle. Os corpos perigosos poderiam ser deixados pelo caminho, afinal,
mostravam-se como ameaça aos ‘cidadãos de bem”. Alguma “mera coincidência”
com os dias atuais?! Alguma semelhança com o olhar que é direcionado aos corpos
jovens em cumprimento de medidas socioeducativas?!
É também neste período que os espaços públicos serão considerados como
‘lugares do perigo’, das doenças, das mazelas e onde serão instrumentalizados os
considerados criminosos. Não por acaso, é neste mesmo período que fervilham movi-
mentos de resistência e contestação, manifestações populares não só na Europa, mas
também no Brasil; período em que as ruas são palco dos movimentos populares, e que
fazem desses espaços, lugares perigosos à ordem vigente. Assim, torna-se necessário
esvaziá-los, torná-los inertes através do perigo, fomentando o espaço privado como
o espaço do cuidado e da proteção.
Serão então modernizados os espaços públicos, tornando-os assépticos, transfor-
mando-os nos espaços do trabalho, que as ´balbúrdias´ e os perigos serão desmobili-
zados...ruas não mais como lugares de encontros, mas como espaço de produtividade,
vidas empurradas para a margem. O processo de urbanização dos Séculos XIX \
XX estará intimamente associado à pobreza, e por consequência, à reconstrução do
conceito de classes perigosas.
É neste período que os processos de urbanização irão se associar aos processos
de industrialização. Teremos então, no que concerne ao Município de Vitória, o iní-
cio da formação dos bairros tidos como economicamente vulneráveis, os chamados
“territórios da pobreza”.
se constituirão não só com total ausência do poder público, mas também a mercê
de toda sorte de invasões e domínio do comércio de drogas e armas.
Para esses bairros serão, mais uma vez, destinadas apenas a segurança pública
como forma de aproximação e “pseudo garantia de direitos”, militarizando seu
cotidiano e mantendo-se a precariedade da vida; vida que passará a valer tão pouco
que só será lembrada nas páginas policiais, quando a espetacular cobertura midiática
acerca da formação e estruturação das ditas facções criminosas se tornará rentável
e facilmente utilizada para operações policiais, invasões de residências, extermínio
de uma parcela muito específica da população – classe, raça e gênero serão bem
delimitados quando os “autos de resistência” forem lavrados.
O conceito de classes perigosas será reatualizado e fortalecido a cada notícia
veiculada pelos meios de comunicação; a ampla cobertura da mídia será acompa-
nhada pelos discursos de uso da força letal para o combate ao perigo eminente – o
confronto entre esses grupos; grupos que se colocarão através dos corpos negros
e franzinos que se esguiam pelas vielas dos morros da cidade. Para ele a prisão,
as medidas socioeducativas, o tiro de “12 ou ponto 40”, a comoção seletiva, a
punição mais severa que um corpo pode merecer – a morte. Para suas famílias
discursos de desestrutura, de falta de limites, ausência paterna, risco pessoal e
social balizados na falta.
São desses bairros pobres que emergem as famílias acompanhadas no Creas
Centro, assim como os adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioe-
ducativas. Importante mencionar que o Creas Centro foi fonte de dados para esta
escrita, visto que foi o campo de trabalho da autora. Os números de Setembro de
2019, contabilizam 79 famílias com adolescentes ou jovens em cumprimento de
medidas socioeducativas, destes, 95% eram oriundos de bairros com rendimento
médio mensal entre um e três salários mínimos, sendo também os bairros com par-
ticipação da população negra no total de habitantes por bairro acima de 50% (PMV,
2019). É de bairros pobres e negros que o sistema socioeducativo tem formada sua
massa de corpos.
São esses corpos que irão emergir quando Achille Mbembe trás para a discussão
o conceito de necropolítica, uma política de morte que se coloca enquanto regra para
o funcionamento do Estado, que se dará através do uso da força desproporcional e
do extermínio de alguns corpos; uma política que elege quem pode e deve morrer.
Esses corpos serão majoritariamente negros.
Mas, de fato, existe alguma concepção de direitos humanos que abarque, como
humanos, esses grupos vistos como marginalizados?! A construção de direitos huma-
nos como um especialismo fortalece a ideia de universalidade e essencialidade,
assim como torna vidas homogêneas, tirando delas toda forma de resistência. Como
nos afirma Coimbra:
É esse o “inimigo” que hoje compõe também boa parte das famílias em acom-
panhamento no Creas por conta das medidas socioeducativas em meio aberto, e que
tem como um de seus maiores desafios, sobreviver aos conflitos urbanos que tem se
constituído na cidade, mas também as intervenções violentas da polícia nas operações
policiais e aos “especialistas em direitos humanos”. Em meio a todas essas demandas
e incertezas, estamos nós, no fogo cruzado entre o exercício profissional e a produção
de novos sentidos para vida vistas como precárias.
48 O trabalho em grupo tem sido uma das estratégias para possibilitar aos adolescentes e jovens espaços
de fala, para que, de alguma forma, o ato infracional não seja o único caminho para construção de novos
projetos de vida. O grupo se configura como importante dispositivo para a atuação da psicologia na socioe-
ducação, com potencial de problematizar questões sociais e institucionais (RODRIGUES; OLIVEIRA, 2018;
ROSSATO; SOUZA, 2014).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 125
da cidade. Esses encontros nos causam inquietações e nos fazem constituir nossa
intervenção sempre pautada não em individualidades, e sim numa psicologia que
se produz no “entre” – a relação de quem escuta histórias de violência e de quem é
escutada; uma psicologia produzida através dos afetos para com o outro, mas tam-
bém para si e para o mundo como modo de intervir. Não cabe a nós o processo de
responsabilização pelo ato infracional, mas possibilitar o entendimento do que esse
ato se constituiu na vida dos sujeitos em cumprimento de medidas socioeducativas.
Neste contexto, ser psicóloga, atuar diretamente no cotidiano dessas famílias,
na soma dos acontecimentos da vida desses jovens – é a possibilidade de intervirmos
junto às relações e humanizarmos o desumanizado; isso implica em nos enveredar-
mos pelas histórias que não passam somente pelos atos infracionais, pelos conflitos
e pela morte; implica entendermos como essas comunidades-vidas funcionam tendo
acesso mínimo a políticas públicas, como constroem redes de sociabilidade, relações
comunitárias e, inclusive, como essas relações se transformam, em algum momento,
em conflitos armados. Como permitir que esses territórios e essas vidas jovens não
sejam vistos apenas pelo recorte do ato infracional e da violência, mas por um olhar
que, como nos aponta Rauter (2012) pode ser concebido como um sistema aberto
cuja prática é referida a um campo de dispersão do saber por oposição a um saber
que se pretenda universal e ordenado. Esse é o nosso maior desafio!
REFERÊNCIAS
ALVES, R. Perguntaram-me se acredito em Deus. Folha de São Paulo: 03.04.2007,
p. C2, 2007.
49 Para melhor compreensão sobre o assunto, consultar o livro: A história da sexualidade I – a vontade de
saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 131
Dizer que o poder no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que
o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir
toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população,
mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecno-
logias de regulamentação, de outra (FOUCAULT, 2005, p. 302).
50 A primeira vez que Foucault falou publicamente sobre a biopolítica foi na palestra realizada no Rio de Janeiro,
até então, estado da Guanabara, em 1974, por ocasião. O nascimento da medicina social. In: MACHADO,
Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.
132
Foucault defende que nisso, nessa questão intervém o racismo. O racismo como
mecanismo de Estado, diferente do racismo que existia antes, mecanismo funda-
mental do poder, como exercido nos Estados modernos. Esse racismo é o meio de
introduzir um corte, entre o que “deve viver e o que deve morrer”. É o que estabelece
uma cesura do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo
precisamente um domínio biológico. A raça, o racismo, é a condição de aceitabili-
dade de tirar a vida numa sociedade de normalização. “A função assassina do estado
só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo
racismo (Foucault, 2005, p. 306).
Foucault compreende que a partir direito de matar possibilitado pelo racismo, é
possível perceber como se estabeleceu um vínculo entre a teoria biológica do século
XIX e o discurso do poder, a ponto de possibilitar pensar as relações de colonização,
a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença
mental, a história das sociedades com suas diferentes classes. Esse racismo que se
desenvolve nessas sociedades modernas que funcionam baseadas no modo do bio-
poder, irrompendo pontos privilegiados em que o direito à morte é requerido. Esse
“racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio
colonizador. Quando for preciso matar pessoas, matar populações, matar civilizações,
como se poderá fazê-lo, se se funcionar no modo do biopoder? Através dos temas do
evolucionismo, mediante um racismo” (FOUCAULT, 2005, p. 307).
É nessa direção que se faz possível travar uma guerra contra a sua pró-
pria população.
Necropolítica
selvagens, morte e ficções que criam o efeito de verdade” (MBEMBE, 2018, p. 36).
Nesta direção, a distinção entre guerra e paz não é pertinente. Na colônia, a violência
constitui a forma original do direito, e a exceção proporciona a estrutura da soberania,
na qual, a soberania significa ocupação, relegando ao “colonizado a uma terceira
zona, entre o estatuto de sujeito e objeto” (MBEMBE, 2018, p. 39).
A soberania, segundo Mbembe, é a capacidade de definir quem importa e quem
não importa, quem é “descartável”, e quem não é. Para pensar como se dá essa
ocupação colonial contemporânea, Mbembe pensa a partir do caso palestino, onde,
segundo ele, ocorre um encadeamento de vários poderes: disciplinar, biopolítico e
necropolítico (MBEMBE, 2018, p. 48).
Mbembe conclui seu texto propondo que as formas contemporâneas que subju-
gam a vida ao poder de morte (necropolítica), reconfiguram profundamente as relações
entre resistência, sacrífico e terror. Propõe a noção de necropolítica e necropoder para
dar conta das várias maneiras pelas quais hoje se provoca a destruição máxima de
pessoas e “se cria ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social,
nas quais vastas populações são subjugadas a condições de vida que lhes conferem
o estatuto de ‘mortos-vivos’” (MBEMBE, 2018, p. 71).
Biopolítica e neoliberalismo
chamando de liberdade fosse uma espécie de universal. Foucault enfatiza que esta
prática governamental não se contentar em respeitar essa ou aquela liberdade, mas
ela é consumidora de liberdade, só conseguindo funcionar se existir efetivamente
certos números de liberdades, como a de mercado, do vendedor e do comprador, do
direito de propriedade, eventualmente, de liberdade de expressão, etc. Ao consumir
liberdade, essa nova razão governamental é obrigada a produzi-la. E organizá-la.
Trata de uma arte de governo que vai ser “gestora da liberdade”. Contudo, ao pro-
duzir e gerir essa liberdade também faz com que seja necessário, por outro lado,
estabelecer “limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.”
(FOUCAULT, 2008, p. 87).
Nesse jogo de gestão da liberdade, produção e, por ventura, limitação, própria
a razão governamental do liberalismo, Foucault identifica uma quantidade de inter-
venções governamentais necessárias. A liberdade, conclui Foucault, nesse regime de
governo não é um dado, é algo que precisa ser constantemente produzida, com todas
problemáticas de custo que esse jogo de produção de liberdade impõe a um regime
que busca governa sempre menos. Foucault, partindo desta questão, indaga: qual
será “o princípio de cálculo desse custo de fabricação da liberdade?” (FOUCAULT,
2008, p. 89). O princípio de cálculo é, segundo ele, o que se chama de segurança:
Mas Foucault vai além em sua análise sobre essa nova razão governamental.
O liberalismo se insere em mecanismos que terão, a cada instante, que arbitrar a
liberdade e a segurança. Essa análise será realizada em torno da noção de perigo.
O liberalismo, segundo ele, é uma arte de governar que busca constantemente
manipular interesses, por isso, precisa ser o gestor dos perigos e dos mecanismos
de segurança/liberdade, de modo que os indivíduos fiquem o menos exposto pos-
sível aos perigos. A ponto de Foucault dizer que o lema do liberalismo é “viver
perigosamente” (FOUCAULT, 2008, p. 90).
É nessa direção que Foucault percebe que os indivíduos são condicionados a
experimentar sua situação, sua vida, seu presente e futuro como portadores de perigo.
Uma educação para o perigo. Uma cultura do perigo. Diz ele: “por toda a parte vocês
veem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a condição, o correlato
psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem cultura do
perigo” (FOUCAULT, 2008, p. 91).
Esses procedimentos de gestão dos interesses e do jogo segurança/liber-
dade produzem uma série de consequências para essa arte governamental que é o
136
E essa concorrência não pode ser simplesmente algo inerente a sociedade, por conta
de uma tendência a construção de monopólios. Assim, não pode haver um laisse-
z-faire, pois a arte de governar neoliberal entende que precisa produzir os meios
para que esta concorrência ocorra, uma governamentalidade ativa, uma espécie de
justaposição total dos mecanismos de mercado indexados à concorrência e da política
governamental (FOUCAULT, 2008, p. 165). Se trata não mais de um laissez-faire,
mas de uma intervenção permanente.
Ou seja, Foucault enfatiza que se torna necessário governar para o mercado,
em vez de governar por causa do mercado. A economia de mercado, neste sentido,
não vai subtrair algo do governo, ao contrário, ela vai constituir o indexador geral
para todas as ações governamentais. Foucault percebe que no ordoliberalismo ale-
mão o objeto dessa ação governamental que tem o mercado como indexador é o
ambiente social. Essa sociedade regulada com base no mercado é submetida à dinâ-
mica concorrencial, se constituindo como uma sociedade empresarial, pautada por
uma espécie de ética social da empresa, a partir de uma racionalidade econômica.
Uma “política da vida” em que o indivíduo se moldasse a forma empresa. Esse é,
para Foucault, o escopo da política neoliberal. “Trata-se de fazer do mercado, da
concorrência e, por conseguinte, da empresa o que poderíamos chamar de poder
enformador da sociedade” (FOUCAULT, 2008, p. 203).
Uma sociedade indexada na multiplicidade e na diferenciação das empresas.
Essa arte de governar necessidade, para isso, de modificações profundas no sistema
de lei e na própria instituição jurídica, pois uma sociedade indexada no modelo
empresa é uma sociedade na qual há a multiplicação das superfícies de atrito entre
cada uma destas empresas, necessitando cada vez mais de uma arbitragem jurídica.
“Sociedade empresarial e sociedade jurídica, sociedade indexada à empresa e socie-
dade enquadrada por uma multiplicidade de instituições jurídicas são as duas faces
de um mesmo fenômeno” (FOUCAULT, 2008, p. 204).
Foucault percebe que a instituição e as regras do direito têm relações de condi-
cionamento recíprocos com a economia e o conjunto das correções e das inovações
institucionais que permitirão instaurar uma ordem social economicamente regulada
com base na economia de mercado é o que conhecemos como Estado de Direito. A
partir disso, Foucault vai estudar o neoliberalismo estadunidense e o que denomina
de governamentalidade neoliberal.
Esse neoliberalismo estadunidense é toda uma maneira de ser e de pensar. Uma
relação entre governados e governantes. Um desdobramento para toda a sociedade
do modelo empresa, um modelo de relações sociais, um modelo de existência,
uma forma de relação do indivíduo consigo mesmo, com o tempo. A construção de
valores morais e culturais, pontos de ancoragem concretos em torno do indivíduo.
Uma política da vida.
Uma característica importante desta governamentalidade neoliberal é a centra-
lidade da utilização das análises da economia de mercado para decifrar as relações
não-mercantis, os fenômenos sociais, assim como, o funcionamento e modo de ope-
ração do governo. A radicalização da generalização dessa racionalidade para toda a
sociedade, se constituindo como princípio de inteligibilidade, princípio de decifração
138
Neoliberalismo e necropolítica
É guerra!
normalização das situações extremas. Ele denomina como brutalismo essa forma
de naturalização da guerra civil. Pode-se reconhecer o brutalismo pela utilização,
na esfera civil, de técnicas próprias ao campo de batalha (MBEMBE, 2021, p. 47),
quando o Estado passa a cometer crimes comuns contra a população civil.
Segundo ele, a relutância em matar e a interdição do assassinato vêm sendo
corroídas. Os instintos outrora censurados vêm sendo liberados. As condutas de guerra
são valorizadas enquanto tais e migram para o campo civil. A desumanização se
torna uma prática habitual, a descarga das pulsões violentas passa a ser legitimada e
encorajada, reina a busca pelo dessemelhante e proliferam as técnicas de exculpação.
“A vida civil é regulada por unidades especiais. A limpeza se converte em programa.
Livrar-se de indivíduos sem que ninguém exija explicações se torna a norma, assim
como liquidar os feridos e matar os prisioneiros” (MBEMBE, 2021, p. 48).
Podemos perceber nitidamente que entre os contingentes racializados das socie-
dades pós-industriais, neste atual momento das políticas neoliberais, as escolhas de
mobilidade têm sido frequentemente limitadas ou à prisão domiciliar no gueto ou ao
encarceramento. No Brasil, como veremos a seguir, esse cenário trágico se amplia.
“Hoje em dia, a instituição carcerária desempenha, nos mesmos termos que a insti-
tuição fronteiriça, um papel preponderante na gestão global dos corpos virulentos e
‘em excesso’” (MBEMBE, 2021, p. 52). Tal diagnóstico vai ao encontro das análises
de Wacquant em relação ao que denominou Estado Penal (WACQUANT, 2001).
Visto a partir dos corpos racializados, aquilo que é chamado neoliberalismo é,
na realidade, para Mbembe, um gigantesco dispositivo de “bombeamento e carboni-
zação”. O brutalismo não opera sem uma economia política dos corpos. “É como uma
imensa fogueira. Os corpos racializados e estigmatizados são ao mesmo tempo sua
lenha e seu carvão, suas matérias-primas” (MBEMBE, 2021, p. 53). E no centro desse
dispositivo está a prisão. “Para a sua reprodução, ela precisa de todos os outros mini
dispositivos, a polícia, a prefeitura, a comarca, as finanças, os impostos, as multas,
em suma, incontáveis cadeias de punção” (MBEMBE, 2021, p. 54).
Essas formas contemporâneas do brutalismo, sinaliza ele, não se caracterizam
apenas pelo desmantelamento dos amortecedores sociais e da cobertura dos riscos.
Tais mutações do capitalismo contemporâneo não se referem apenas também às
desregulamentações das transações financeiras, à sujeição dos serviços públicos às
condições de rentabilidade do setor privado, à redução dos impostos para os ricos
ou à busca das boas graças aos provedores de liquidez, “ou, de modo mais geral,
pela tentativa de fazer o mercado substituir a democracia. Elas também podem ser
reconhecidas pela obsessão em abolir a política, uma das marcas distintivas do que
veio a ser conhecido como ‘liberalismo autoritário’” (MBEMBE, 2021, p. 143).
Acima de tudo, uma das principais transformações antropológicas da nossa
época, enfatiza Mbembe, é a “divisão da humanidade em múltiplas frações de classes
racialmente tipificadas. Trata-se, por um lado, da distinção entre pessoas humanas
solventes e pessoas insolventes. Por outro lado, continua ele, em escala global, trata-se
da divisão entre aquilo que Ètienne Balibar chama de ‘a parcela móvel da humani-
dade’ e a ‘humanidade errante’” (MBEMBE, 2021, p. 143). Mbembe pensou esta
questão a partir do conceito de devir negro do mundo, uma vez que para ele, pela
142
primeira vez na história humana, o nome “Negro deixa de remeter unicamente para
a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo
(predações de toda a espécie, desapossamento da autodeterminação e, sobretudo, das
duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo)” (MBEMBE, 2017, p. 18).
A este novo caráter, segundo ele, descartável e solúvel, à sua institucionalização
enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro, Mbembe chamou
de devir negro do mundo. Assim, assistimos a uma tendência de universalização da
condição que antes era reservada aos negros, mas, sublinha, sob a forma da inversão.
Essa condição consistia na redução da pessoa humana a uma coisa, a um objeto, a
uma mercadoria que se pudesse vender, comprar ou possuir (MBEMBE, 2020).
Mbembe (2020) continua, pois para ele, a produção de “sujeitos raciais” pros-
segue, é claro, mas sob novas modalidades:
O negro de hoje já não é apenas a pessoa de origem africana, marcada pelo sol
da sua cor (o ‘negro de superfície’). O ‘negro de fundo’ de hoje é uma categoria
subalterna da humanidade, um tipo de humanidade subalterna, essa parte supér-
flua e quase excedente de que o capital dificilmente precisará e que parece estar
condenada ao zoneamento e à expulsão (MBEMBE, 2020, p. 196).
Butler compreende que Foucault nos ajudou a articular essa distinção quando
falou sobre as estratégias bastante específicas do biopoder, a gestão da vida e da
morte, de forma que não requerem mais um soberano que decida e ponha em prática
explicitamente a questão sobre quem vai viver e quem vai morrer. Butler sinaliza
que Achille Mbembe elaborou essa distinção com seu conceito de necropolítica
(BUTLER, 2018, p. 17-18).
Uma importante sinalização de Butler (2018) é que a racionalidade neoliberal
exige a autossuficiência como uma ideia moral, ao mesmo tempo que as formas
neoliberais de poder “trabalham para destruir essa possibilidade no nível econômico,
estabelecendo todos os membros da população como potencial ou realmente precários,
usando até mesmo a ameaça sempre constante da precariedade para justificar sua
acentuada regulação do espaço público e a sua desregulação da expansão do mercado”
(Butler, 2018, p. 20). Esta autora comenta que no momento em que alguém se prova
incapaz de se adequar à norma da autossuficiência (quando alguém não consegue
pagar por assistência à saúde ou lançar mão de cuidados médicos privados), então
“essa criatura dispensável é confrontada com uma moralidade política que exige a
reponsabilidade individual ou que opera em um modelo de privatização do ‘cuidado’”
(BUTLER, 2018, p. 20).
De fato, estamos no meio de uma situação biopolítica na qual diversas popula-
ções estão cada vez mais sujeitas ao que Butler chama de “precarização”. Geralmente
induzido e reproduzido por instituições governamentais e econômicas, esse processo
adapta populações, com o passar do tempo, à insegurança e à desesperança; ele é
“estruturado nas instituições do trabalho temporário, nos serviços sociais destruídos
e no desgaste geral dos vestígios ativos da social-democracia em favor das modali-
dades empreendedoras apoiadas por fortes ideologias de responsabilidade individual
e pela obrigação de maximizar o valor de mercado de cada um como objeto máximo
de vida” (BUTLER, 2018, p. 21).
Outra análise importante sobre o neoliberalismo é realizada por Brown (2018).
Segundo ela, temos dificuldade em encontrar até mesmo uma nomenclatura que defina
o que estamos vivenciando. Pergunta ela: Trata-se de um autoritarismo, fascismo,
populismo, democracia não liberal, liberalismo democrático, plutocracia de extrema
direita? Ou outra coisa?
Para esta autora, há uma narrativa comum no campo progressista na qual
plutocratas conservadores manipularam os agora despossuídos das áreas rurais e
144
homens e 49 mil mulheres. Em 2020, a taxa era de 405 presos para cada 100 mil
habitantes. Em 2022, o número chegou a 434 pessoas encarceradas a cada 100 mil.
Em relação ao sistema prisional brasileiro, 45% dos presos são presos provisó-
rios, ou seja, a prisão provisória ou cautelar que deveria ser, como prevê a constitui-
ção, uma excepcionalidade, servindo para garantir o andamento regular do processo,
passa a ser um dispositivo banalizado e utilizado como metodologia de controle social,
parte da assistência penal preventiva (PASSETTI, 2007) de um estado de exceção
permanente no qual se sustenta um governo neoliberal. Tal modo de governança é tão
violento que só um Estado de Exceção para sustentá-lo. Em se tratando dos efeitos
da denominada guerra às drogas no Brasil, um dos mais marcantes é o extermínio
de uma massa incalculável de jovens pobres e negros. Na década de 90, auge do
neoliberalismo no Brasil (pelo menos até agora), somente a polícia do Rio de Janeiro
matava aproximadamente mil pessoas por mês, sendo a grande maioria, pessoas
com esse perfil, em virtude da famigerada guerra às drogas. Em 2017, o número de
pessoas mortas pela polícia no mesmo estado foi de 1.035 pessoas, o maior índice
desde 2009 (CERQUEIRA, 2017).
Em 2021, 1.356 civis morreram em ações policiais no estado do Rio, alta de
8,9% em relação a 202051. Mesmo durante a pandemia de Covid-19, quando as ações
policiais ocorreram sob a vigência de decisões do Supremo Tribunal Federal que
restringiu operações policiais durante a pandemia, autorizando apenas incursões em
circunstâncias excepcionais, ocorreram, em um intervalo de pouco mais de um ano,
três das cinco maiores chacinas policiais da história do estado do Rio de Janeiro52.
O proibicionismo, lógica que sustenta a denominada guerra às drogas, também
produzem como efeito direto uma política que causou um aumento de 23,3% nos
assassinatos de jovens durante a década entre 2006 e 2016. Os homicídios são a
causa de 49,1% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos, e 46% das mortes entre
20 a 24 anos. Esse índice é bem diferente do grupo de brasileiros entre 45 e 49
anos, por exemplo, que é de 5,5%. Com isso, em 11 anos, o Brasil enterrou 324.967
jovens assassinados. A taxa de homicídios de pessoas de 15 a 29 anos (65,5 mortos
por 100 mil habitantes) é o dobro da média nacional e mais de seis vezes a taxa
global de homicídios de jovens (10,4), segundo a Organização Mundial da Saúde
(CERQUEIRA, 2017).
Tais números e a reverberação deles em nossa sociedade corroboram a tese de
Batista (2012) para quem vivemos um processo de adesão subjetiva à barbárie. A
banalização desse extermínio também evidencia o que vários autores (BATISTA,
1988; NASCIMENTO, 2017; FLAUZINA, 2008) vêm denunciando há várias déca-
das, ou seja, o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) constituinte da sociedade bra-
sileira. Quando de sua visita ao Brasil, a pesquisadora estadunidense Deborah Small
(2016) definiu a política de guerra às drogas como uma política racista, pois, possi-
bilita ao Estado sua prática histórica de segregação e extermínio da população negra.
Considerações finais
Neste texto, pretendemos analisar alguns dos cursos realizados por Michel Fou-
cault para compreendermos o que o autor denominou como biopolítica e sua intenção
ao analisar genealogicamente as novas artes de governar que situou neste nascimento
da biopolítica, ou seja, o liberalismo e o neoliberalismo. Em seguida, seguimos em
direção a Achille Mbembe e sua definição de necropolítica, pois para a compreensão
desse necropoder, entendemos ser necessário analisar o que o autor denominou como
estado de guerra permanente e sua relação intrínseca com o neoliberalismo.
Consideramos que Mbembe ao partir dos estudos realizados por Foucault, situa
como ponto de referência para a sua análise, os territórios e processos históricos
marcados pelas lógicas da colonialidade e neocolonialidade (LIMA, 2018), chegando
ao conceito de necropolítica que rege tais territórios não estudados por Foucault.
Concordamos com Lima (2018), quando esta autora sinaliza a torção que Achille
Mbembe faz nos conceitos de biopoder/biopolítica, ampliando o debate para pensar
a vida e a morte a partir de contextos coloniais e neocoloniais, bem como na forma
como a ideia de necropolítica aparece e se consolida como “um território epistêmico
e metodológico que em muito contribui para pensar processos atuais no Brasil, [...]
que reiteram e atualizam elementos da colonialidade, principalmente traços do pro-
cesso escravocrata e do sistema de plantation, marcas estas presentes nas relações
sociorraciais” (LIMA, 2018, p. 23).
Mbembe ao longo de suas obras muitas vezes enfatiza que a ordem demo-
crática, a ordem da plantação e a ordem colonial mantiveram relações geminadas.
Estas relações estão longe de ter sido acidentais. Para ele, “democracia, plantação
e império colonial fazem objetivamente parte de uma mesma matriz histórica. Este
fato originário e estruturante é central a qualquer compreensão histórica da violência
da ordem mundial contemporânea” (MBEMBE, 2017, p. 43).
148
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e Capital. São Paulo: Ed, UBU, 2021.
BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria perfor-
mativa de assembleia. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2018.
53 Aqui utilizamos do exercício antropofágico quando fazemos menção ao “sujeito” da teoria freudiana, aquele
pretensamente movido por “forças internas” e conflitos inconscientes. No entanto, questionamos como a
constituição dessas referidas forças se dão em conjunto à estruturação de uma sociedade moderno-colonial
e seu modelo familista branco, burguês, patriarcal e heteronormativo produzindo violência e adoecimento
na constituição da estrutura psíquica, resultante de sua relação direta com uma estrutura social colonial.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 155
Existe uma frase, da qual não sabemos ao certo a origem, mas que conhecemos
usualmente como dito popular pelas ruas e textos de autoria anônima, sendo usual-
mente atribuída a Charles Baudelaire. A referida frase diz mais ou menos assim: “A
maior astúcia do diabo foi convencer-nos da sua não existência”. Seu sentido descreve
perfeitamente os maiores perigos das estratégias de captura a céu aberto da Socie-
dade de Controle (DELEUZE, 1992), na qual, muitas vezes, quanto mais livres nos
sentimos, mais submetidos estamos. Fazer-se invisível aos olhos das demais pessoas
poderia ser considerada uma das mais efetivas estratégias para a invulnerabilidade:
como ser atingido quando “não se existe”? Podemos considerar que tal engenhosi-
dade foi uma das muitas utilizadas pela colonialidade, pelo racismo e pelo machismo
em suas práticas de dominação, objetificação e aniquilação. É possível encontrar os
rastros dessa estratégia, em especial, na branquitude e sua neurose cultural diagnos-
ticada por Lélia Gonzalez (2020, p. 76).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 157
“Quem menos sabe da água é o peixe”, esse outro dito popular, também de ori-
gem incerta, nos permite fazer ver outra característica da colonialidade que marca em
especial a dinâmica psicopolítica da branquitude em suas estratégias de defesa dos
privilégios: a posição narcísica do pacto da branquitude (BENTO, 2022, p. 17-25).
A referência à aparente ignorância dos peixes com relação ao meio no qual vivem
fala dos processos de naturalização de uma paisagem instituída de modo a univer-
salizar uma certa situacionalidade como se ela não fora uma perspectiva construída
desde certas características que a atravessam (como as marcações de raça, gênero,
sexualidade, classe e deficiência, por exemplo, mas também englobando outros
aspectos que envolvem territorialidades existenciais). Assim, as pessoas brancas
imersas na branquitude e em sua lógica supremacista violenta, que lhes garante
uma série de privilégios, afirmam a inexistência da sua própria marcação racial nas
práticas de distinção societária do mesmo modo que o peixe alegaria ignorar o que
seria água no dito popular.
A união de ambos os ditos populares acima nos permite narrar parcialmente
a dinâmica psicopolítica ressentido-narcísica característica da branquitude, sendo,
também, parcialmente capaz de nos sensibilizar-inteligibilizar para a construção dos
modos de existir das masculinidades cisheteronormativas. A posição ressentido-nar-
císica fala de uma operação de definição de si pela negação do outro conjunta a um
processo de universalização-sacralização da posicionalidade normativa hegemônica
na modernidade-colonialidade. Trata-se do grande perigo operado pela dupla negação
narcísica da alteridade (do “outro” e de “si mesmo”) como ação principal da colo-
nialidade: a negação-aniquilação da diferença-alteridade pela redução desta a uma
ausência ontológica operada por práticas de domínio necropolítico (MBEMBE, 2017)
e a negação-denegadora que afirma a ausência da violência extrema como estratégia de
naturalizar a posição de privilégio construída por tais práticas, em uma naturalização
dos sistemas de opressão que reiteram as posições de privilégio. Dupla negação: por
um lado, a negação ontológica que busca dominar-aniquilar todes que escapam ao
esquadro branco, masculino, cisheteronormativo; por outro lado, a negação que busca
naturalizar a posição de privilégio construída pelas práticas moderno-coloniais necro-
políticas, de modo a negar a própria existência dos sistemas de opressão-privilégio
sustentados e sustentadores de uma trama delimitada por branquitudes, masculini-
dades cisheteronormativas, classe, entre outras marcas afeitas à norma (urbanidades
centrais, trabalho, individualismo, juventude, etc.). A primeira negação é afirmada
pela agressão brutal enquanto a segunda negação tenta, inutilmente, esconder a mão
que acaba de agredir: tal gesto violento se faz ver com nitidez exatamente na paz
e tranquilidade que outorga àqueles que ela defende. Falamos aqui, portanto, de
processos de subjetivação negacionistas pelos quais operamos a “negação nossa de
cada dia” da branquitude masculina e burguesa, que marca os espaços de privilégio
da modernidade-colonialidade. Processo de subjetivação narcísico-ressentido que
sustenta e naturaliza fronteiras operadas por uma trama de violências que constitui
um inconsciente coletivo traumático (FANON, 2008) no qual a violência psicopo-
lítica é ao mesmo tempo reiterada e negada em sua existência: a neurose cultural
158
e suas lógicas. No entanto, de fato, ao invés das palavras que negam as violências
(ou sua participação nelas) conseguirem dirimir a existência destas violações, o que
elas realmente fazem é reiterá-las ainda mais fortemente, uma vez mais, através desta
tentativa de deslegitimação da nítida e legítima experiência de quem é violentado(a).
Vivemos nitidamente em nossos dias a força da negação na luta pela manuten-
ção das violências: uma reação extrema, agitada e barulhenta, diante de pequenos
desvios nos privilégios há séculos usufruídos pela branquitude colonizadora em
nosso território. A oposição aguerrida às novas leis e políticas públicas que visam
reparações mínimas diante das violências centenárias, são um ótimo exemplo do
que ocorre quando as fronteiras do privilégio são atingidas: reagem ao menor dos
arranhões como se fora um rompimento fatal. Essa reação a qualquer possibilidade
de precisar olhar para o conflito racial e de como a branquitude age sobre ele costuma
se apresentar a partir de diferentes movimentos defensivos – geralmente, intensas
e nada constrangidas expressões de raiva; às vezes, sinalização de medo ou culpa;
comportamentos que conduzem a discussões agressivas e pouco produtivas, silêncio
como resposta ou fuga do debate – que manifestam o que Robin DiAngelo (2018,
p. 39-40) denominou fragilidade branca. A dinâmica narcísica vivenciada pelo pacto
colonial em prol do usufruto do privilégio da branquitude e da masculinidade responde
a qualquer tensionamento das suas lógicas com uma postura de incremento de vio-
lência conservadora e melancólico retrocesso imaginário no tempo em uma posição
narcísica-ressentida. Trata-se de uma nítida posição de ressentimento, na qual vemos
a luta das formas tornadas há muito hegemônicas de se manterem homogêneas em
nosso presente desde uma aguda negação a toda e qualquer mudança, sempre mirando
um passado idílico mítico no qual a sociedade teria vivido sem conflitos e em “paz”,
passado no qual, tal política narrativa da branquitude, apaga vergonhosamente todos
os fatos que evidenciam que a referida “paz” e “harmonia” nada mais era do que
cruel dominação: para isso, negam as constantes revoltas contra tal domínio, assim
como negam ou minimizam as violências extremas impetradas neste período tido
como ideal originário da civilização.
Deste modo, acompanhamos, atônitos, uma série de ações que explicitamente
declaram tal desejo de retorno ao que jamais cessou, ou seja, trata-se de um desejo
de intensificação de tal sistema racista que faz a manutenção dos privilégios da
branquitude. Falamos aqui de movimentos sociais bem formalizados e documentados
como, por exemplo, as revisões históricas que tentam minimizar o crime contra a
humanidade da escravatura, ou ainda, a retomada de diversas organizações declara-
damente Supremacistas Brancas. Mas falamos aqui, principalmente, de movimentos
psicossociais, que atravessam os antes referidos, mas se infiltram e alastram, por
exemplo, por nossas narrativas familiares, nosso campo de afetações e percepções
cotidianas, por nossos modos de morar, interagir socialmente etc.
Um dos movimentos mais desafiadores e necessários para pensarmos a bran-
quitude desde o campo acadêmico é a análise de implicação (FERREIRA, 2018):
voltar-se criticamente sobre as próprias linhas que possibilitam a referida crítica,
para percorrê-las e evidenciar suas implicações, suas lógicas, aquilo que sustenta tal
modo de pensar e é por ele sustentado, não apenas com o objetivo de complexificar
162
3. Encruzilhadas da Clinico-Política
a perda de espaço, visibilidade e voz (MOMBAÇA, 2021, p. 40). O seu fazer pode
ser traçado pela proposta de Glissant (2021), como a elaboração de uma narrativa
em teia que possa ingressar nesses fios emaranhados, realizar aberturas, se bifurcar
no enlace de (re)imaginarmos o mundo, “refazendo seu desenho geopolítico e afe-
tivo” (KIFFER; PEREIRA, 2021, p. 14), pois afinal, como criar para si um corpo
descolonizado (VEIGA, 2021)?
Como descolonizar a escuta? Como inscrever em nosso cotidiano as memórias
sangrentas que nossos antepassados tentaram ocultar? “A história enfrenta sempre
esse grande óbice: o silêncio sobre o que muito se calou ou escondeu. O que não
honra” (FIGUEIREDO, 2018, p. 8). Como reconhecer as heranças coloniais que
nos constituem e que em nossos corpos fazem morada? “Fala-se muito na herança
da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase
nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas
brancas” (BENTO, 2022, p. 23). Trata-se de visibilizar os privilégios materiais e
simbólicos da branquitude “gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperia-
lismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade” (SCHUCMAN,
2012, p. 23), porém, mais do que isto, é necessário nos implicarmos diariamente
com a luta antirracista.
Pensar em uma clínico-política atenta às questões a que nos propomos exige
deslocamentos e rupturas do ponto de vista concreto e subjetivo. Não é possível
andarmos pelo mundo como fazíamos antes de nos interrogarmos e de nos respon-
sabilizarmos pelos efeitos da nossa presença no tecido social. O silêncio onde apren-
demos a guardar os atos racistas que testemunhamos e protagonizamos ao longo da
vida precisa acabar. “Por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo
moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética
e politicamente responsável pela manutenção do racismo” (ALMEIDA, 2019, p. 52).
Um sujeito e uma clínica que se dizem neutros ainda estão comprometidos com
o pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2022). Até quando a violência perdurará
se atualizando nas tentativas de apagamento da história e de impugnação das políti-
cas de reparação justificadas sob um acordo implícito de proteção e perpetuação da
supremacia branca?
Se, por um lado, há o “medo de perder os privilégios obtidos pela estrutura
racista” (SCHUCMAN, 2014, p. 145), por outro, cria-se “uma aliança que expulsa,
reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e recordado pelo cole-
tivo” (BENTO, 2022, p. 25). Quando um sujeito branco se revolta com as cotas raciais
na universidade porque um membro de sua família não ingressou no curso pretendido,
alegando que as ações afirmativas “roubaram” o seu lugar, entende-se que há um
movimento contínuo para que o poder branco prevaleça sobre as outras identidades
raciais e as injustiças e desigualdades que lhe sustentam não sejam desveladas, assim
como a permanência de seus privilégios. Quando uma escola recebe inúmeras recla-
mações de pais brancos porque seus filhos aprenderam sobre as religiões de matriz
africana, mobilizando interesses e questionamentos, percebe-se mais uma vez que a
história que pode ser contada, no sentido de ser aceita e tolerada, é uma só.
164
REFERÊNCIAS
ACHEBE, Chinua. Dizendo nosso verdadeiro nome. Em: A educação de uma criança
sob o Protetorado Britânico. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 60-71.
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
FERREIRA, Ana Paula Moreira. O encontro da escrita com as vivências negras: uma
análise de implicação. In: Anais do XXX SIC UFRGS, 2018. Disponível em: https://
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/192262/Resumo_59522.pdf?sequence=1.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, Flávia; LIMA
Márcia (org.). Por um feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e
diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 75-93.
MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para a branquitude. In: CARONE, I.; BENTO, M.
A. (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento
no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2016. p. 65-103.
Introdução
Metodologia
57 O programa DPC (Distribuição e Controle dos Processos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro)
é utilizado pelas equipes técnicas e operadores do direito em diversas varas para acesso às informações
de processos e audiências.
172
Resultados e discussão
58 No Brasil, em 2019, 2,8 milhões de pessoas brancas e 7,2 milhões de pretos e pardos entre 4 a 29 anos
estavam fora de instituições de ensino. Em relação àqueles que já frequentaram e depois abandonaram a
escola, a taxa é de 27,1% para brancos e 71,8% para pretos e pardos (IBGE, 2020).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 173
porque não passou pelo processo de normalização das condutas, empreendido pela
escola, seja porque não permaneceu nele. Na perspectiva higienista, estar fora da
escola significa um incremento do potencial criminoso de uma juventude historica-
mente vista como perigosa ou em perigo de se tornar perigosa. As ideias de herança
positivista colam a noção de periculosidade aos adolescentes negros e periférios,
reforçando a “identidade criminosa” e o “estigma de delinquente”. Esse imaginário
social é a base de uma política de controle que criminaliza as vidas dessa população.
Assim, práticas discursivas racistas e classistas sobre a evasão escolar contribuem para
o controle, a neutralização e o aniquilamento dessa parcela da juventude brasileira.
Retornando aos nossos 377 adolescentes pesquisados, lembramos que apenas
145 deles estudavam no momento em que foram apreendidos pela força policial.
Entre eles, 76,6% estão em distorção de série-idade. A reprovação escolar acontece,
majoritariamente, quando a criança ou o adolescente não atinge a média exigida nas
provas regulares ou quando acontece um número elevado de faltas escolares. Essa
distorção série-idade marca a trajetória escolar da maioria dos jovens apreendidos,
o que indica que mesmo entre aqueles que estudam, a qualidade do ensino parece
precária. A defasagem escolar é um problema sistêmico no Brasil e atinge 20% dos
alunos matriculados na rede pública. Fatores como raça, classe, gênero, deficiên-
cia e região de moradia influenciam sua incidência (UNICEF, 2018), o que indica
que as desigualdades sociais estruturam o fenômeno. Assim, a distorção série-idade
contribui, e por vezes decorre, da falta de sentido do universo escolar nas realidades
sociais destes jovens.
Dentre os adolescentes que estudavam no momento da apreensão, 78,6% rece-
beram medida de internação provisória e 17,9% foram liberados. Dentre os que
não estudavam, 82,6% receberam medida de internação provisória e 16% foram
liberados. Ou seja, a aplicação da medida de internação provisória independe do
adolescente frequentar ou não a escola. Em outros termos, a escolarização não
impacta as decisões judiciais.
De acordo com o Estatuto, o poder público tem o dever de zelar por e garantir
os direitos infanto-juvenis. No entanto, a pesquisa aponta para uma atuação seletiva
do Estado, que captura um público específico para ocupar as instituições socioedu-
cativas e pune, ao aplicar a medida de internação de forma sistemática, sem buscar
ações efetivas para a garantia de direitos violados antes mesmo da apreensão policial.
Com a leitura das assentadas, constatamos que a única medida protetiva do direito
empreendida pelo poder público frente à evasão escolar é o encaminhamento para a
matrícula em uma escola. Todavia, essa ação isolada não coloca em xeque as ques-
tões estruturais produtoras do abandono escolar, tratando-o enquanto um problema
individualizado e pontual.
59 Expressão utilizada por Castel (1997) para designar os indivíduos considerados descartáveis no sis-
tema neoliberal.
60 https://www.cidadaocultura.com.br/como-responsabilizar-sem-ser-punitivista/
61 A partir dos movimentos sociais de luta pela garantia dos direitos infanto-juvenis e com a promulgação
do ECA em 1990, houve uma ampliação do acesso à política de educação (SIMAS; ARRUDA, 2022). O
analfabetismo diminuiu de 14,9 milhões em 2001 para 9,8 milhões em 2019. A taxa de escolarização de
crianças entre 4 e 5 anos atingiu 99,7% da população no mesmo ano. Em contrapartida, apenas 32,4% dos
adolescentes brasileiros entre 15 a 17 anos frequentam a escola (PNAD, 2019), o que indica a permanência
de um alto índice de evasão ao longo dos anos escolares.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 175
são estruturadas por desigualdades raciais e de classe que expulsam e capturam estes
jovens, respectivamente. Ambos os processos produzem discursos criminalizantes,
atribuindo a evasão escolar ou o cometimento do ato infracional à esfera individual.
Essa individualização expurga da instituição escolar e do sistema de justiça os
mecanismos racistas e classistas que organizam e orientam a inclusão e a exclusão
social das juventudes. Assim, a interface entre a evasão escolar e a seletividade
punitiva vai definindo os espaços que os adolescentes negros e periféricos ocupam
na nossa sociedade.
Diante deste cenário estarrecedor, nos perguntamos como atuar a fim de sub-
verter a lógica em curso e fortalecer a luta pela garantia dos direitos infanto-juvenis.
Convocamos a teoria de Paulo Freire e a proposta de práticas antirracistas e antipuni-
tivistas enquanto ferramentas políticas para pensarmos estratégias de enfrentamento
aos mecanismos de exclusão social.
Considerações finais
Propomos aqui uma reflexão sobre as nossas práticas que faça parte do fazer
socioeducativo em nome da emancipação e da autonomia, e não de resposta ao clamor
público por mais apreensões e de aniquilamento de potências e vidas.
Estabelecer uma perspectiva antirracista na análise acerca da seletividade puni-
tiva e da evasão escolar é desnaturalizar as “zonas do não-ser” (FANON, 2008): esse
sistema de poder racista que legitima a desigualdade entre seres humanos, essa zona
REFERÊNCIAS
BORDIEU, P; Champagne, P. Os excluídos no interior. A miséria do mundo. Petró-
polis-RJ: Editora Vozes, 2011.
SCHEINVAR, E. Quando a Escola não se reconhece como parte “do social”. Cader-
nos de Ensaios e Pesquisas. Faculdade de Educação. RJ, Universidade Federal Flu-
minense, v. 11, p. 75- 86, 2006.
Introdução
Ao seguir sua análise sobre este novo direito político, Foucault abdica de uma
análise a partir da teoria política, mas sim, como é de praxe na sua genealogia, no nível
dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. Uma primeira tecnologia que
aparece é aquela que se centra no corpo do indivíduo, cujos procedimentos visavam
assegurar sua distribuição espacial, aumentar-lhes a força útil, tendo em vista tornar
esses corpos úteis economicamente e dóceis politicamente, esta tecnologia foi cha-
mada por Foucault de uma tecnologia disciplinar do trabalho. A segunda tecnologia
que vai surgir na segunda metade do séc. XVIII está, segundo Foucault, em outro
nível da tecnologia disciplinar e que por isso não suprime esta. Este outro nível não
se refere mais ao corpo, ou homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem-espécie,
aos próprios processos da vida, e por isso vai ser chamada de biopolítica, diferente
da tecnologia disciplinar que pode ser vista como uma anátomo-política, já que atua
no nível do corpo (FOUCAULT, 1999).
Essa anátomo-política que compõe a disciplina vai se ocupar da “multiplicidade
dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos
individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos”
(FOUCAULT, 1999, p. 289). A biopolítica atua também sobre a multiplicidade dos
homens, mas atem-se naquilo que a multiplicidade forma, ao contrário de corpos,
“uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que
são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.”. Assim, essa
biopolítica vai ter como seus primeiros alvos de controle, primeiros objetos de saber,
os processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade, os problemas econô-
micos e políticos, e para isso vai lançar mão da medição estatística, das primeiras
demografias. Esses procedimentos aplicados à população vão permitir uma maior
quantificação dos principais processos da vida e regular estes processos a partir de
três domínios principais: a questão da natalidade, da mortalidade e da longevidade,
onde a biopolítica atua para fazer a vida se estender ao máximo, utilizando-se da
medicina para exercer a higiene pública, com campanhas de higiene e medicalização
da população; a questão da velhice, dos acidentes e das doenças, que vai fazer surgir
às instituições de assistência, de poupança, de seguridade; e por último, a questão
do meio geográfico, ou seja, do espaço, onde a preocupação com a organização da
cidade vai surgir (FOUCAULT, 1999).
É no encontro entre as duas principais tecnologias de poder do estado liberal,
o disciplinar e o regulamentar, o que se aplica ao corpo e aquele que se aplica à
população, a anátomo-política e a biopolítica, é neste encontro que vai ser possível
emergir a sociedade da norma. A norma como aquela que se aplica tanto a um corpo
que se disciplina, como a uma população que se regulamenta. Assim, a sociedade de
normalização se caracteriza por ser um poder que:
[...] tomou posse da vida, [...] incumbiu-se da vida, [...] conseguiu cobrir toda a
superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante
o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de
regulamentação, de outra (FOUCAULT, 1999, p. 302).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 185
É dentro desse poder, que tem como objeto e objetivo a vida, que Foucault vai
se perguntar como um
[...] poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de
aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de
desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como, nessas
condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a
morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos,
mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem essencialmente
o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder da morte,
como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?
(FOUCAULT, 1999, p. 304).
É para dar respostas a essas indagações, que Foucault vai se referir ao racismo,
que passa a se inserir nos mecanismos do Estado a partir da emergência do biopo-
der. Mas, afinal, como esse racismo vai compor essas novas tecnologias de poder e
fazer com que os mecanismos fundamentais do poder dos Estados modernos passem
fundamentalmente pelo racismo? Isso deve ser respondido através de outra pergunta
fundamental: o que é o racismo dentro desse biopoder? E Foucault nos dirá que é:
[...] o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incum-
biu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo
biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a
hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao con-
trário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo
do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população, uns grupos em relação aos outros. [...] Essa é a primeira função do
racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se
dirige o biopoder (FOUCAULT, 1999, p. 304).
ranking são do Pará, que são: Ananindeua, Marituba e Marabá. As duas primeiras
cidades compõem à Região Metropolitana de Belém. Ananindeua acaba por ser a
segunda cidade no Brasil com a maior taxa de homicídios por arma de fogo, com
uma taxa de 104,9%.
Esses dados apresentados expõem apenas uma face da violência que ocorre
no Estado, que nesse caso é prioritariamente uma questão urbana e que envolve
em grande parte a população jovem, negra e pobre das periferias da cidade. No
entanto, existem outras faces da violência no Estado que acometem principalmente
as populações rurais onde as novas fronteiras aparecem como um lugar vazio a ser
ocupado e utilizado por quem detém um poder econômico e político. Essa acaba
por ser uma das principais causas e razões das ameaças direcionadas a pessoas que
lutam por seus direitos no Pará. E para entendermos melhor esse quadro é importante
conhecer um pouco da história do Brasil e do Estado que acaba por desenhar essa
cartografia da morte.
O jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto, que há mais de 25 anos é o editor
do “Jornal Pessoal”, um jornal alternativo que circula em Belém do Pará e que, na
maioria das vezes, entra em confronto direto com os interesses dos principais donos
dos oligopólios midiáticos e das grandes multinacionais presentes na região, afirma
ter alguns testes que gosta de aplicar aos amazônidas e a todos aqueles que gostam
de dizer que são especialistas da região. Um dos testes que ele aplica, na verdade,
nada mais é do que um convite: “Você gostaria de comer uma costeleta assada de
aviú?”63. Se a reação à pergunta for levada com um bom humor de quem sabe que
aquela pergunta carrega certo tom irônico, é porque essa pessoa deve conhecer um
pouco mais de perto a região (PINTO; KZAM, 2012).
Esse “teste” induzido pelo jornalista, apesar de aparentemente ser uma “pega-
dinha” ou “brincadeira”, exemplifica algo muito comum na região. A presença de
inúmeros “especialistas” sobre a Amazônia que com seus aparatos tecnológicos cheios
de sofisticação capazes de fornecer inúmeras imagens de satélites dessa região, pouco
conhecem ou fazem parte daquilo que é produzido no que se refere aos saberes e
práticas daqueles que vivenciam e convivem com as riquezas que tanto aguçam a
cobiça desses especialistas. Não é à toa que, como afirma Gonçalves (2010), as ima-
gens que se apresentam da região amazônica é mais uma imagem “sobre” a região
do que “da” região.
Atentos ao risco que a afirmação de um olhar de “fora” e um olhar de “dentro”
da Amazônia pode trazer, é preciso antes esclarecer alguns pontos. É claro que em
termos analíticos, a ideia de olhares dicotomizantes sobre a Amazônia recai em um
jogo maniqueísta onde, a depender do seu “lado” no jogo, estarão possíveis respostas
para as problemáticas enfrentadas na região64. No entanto, quando trazemos esse
63 O aviú é o mais minúsculo dos camarões, com cerca de três centímetros de comprimento, que se come cozido.
Cada garfada deve carregar pelo menos uma dezena deles. Por isso a ironia na questão e a necessidade
de um conhecimento íntimo da cultura e gastronomia da região.
64 Uma analítica do poder, nos termos foucaultianos, visa escapar dessas análises dicotômicas para dar pas-
sagem às multiplicidades de forças que compõem as relações de poder. Nesse tipo de análise, também se
evita pensar os discursos em termos ideológicos, mas sim em disputas de saber-poder (FOUCAULT, 2013).
188
jogo do que está “dentro” e o que está “fora”, temos o intuito de usar uma estratégia
apontada por Foucault (1995) para pensar a economia das relações de poder:
Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em direção a uma nova econo-
mia de poder, que é mais empírica, mais diretamente relacionada à nossa situação
presente, e que implica relações mais estreitas entre teoria e prática. Ela consiste
em usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um
ponto de partida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste em usar essa resis-
tência como um catalisador químico de modo a esclarecer as relações de poder,
localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos utilizados.
Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela
consiste em analisar o poder através do antagonismo das estratégias (p. 234).
Queremos dizer com isso que, ao fazer uso desse jogo, pensamos os olhares de
“dentro” da Amazônia como possibilidades de analisar esse jogo a partir das resis-
tências forjadas dentro de um campo em que as lutas perfazem aqueles três tipos
que, de acordo com Foucault (1995, p. 235), no mesmo texto citado anteriormente,
apresenta como sendo característicos da nossa sociedade:
Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as formas de
dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que separam
os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a
si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as
formas de subjetivação e submissão). Acredito que na história podemos encontrar
muitos exemplos destes três tipos de lutas sociais, isoladas umas das outras ou
misturadas entre si. Porém, mesmo quando estão misturadas, uma delas, na maior
parte do tempo, prevalece.
Essa divisão analítica que Foucault propõe é interessante para pensarmos como
operam muitas das lutas que envolvem o contexto amazônico e como essa domina-
ção, exploração e formas de submissão, geralmente ocorre pela via do “estrangeiro”,
daquele que vem de fora para colonizar, submeter e se apropriar das riquezas que
fazem parte do território. Portanto, reiterando novamente o cuidado na divisão entre
o “autóctone” e o “forasteiro”, quando falamos em Amazônia essa divisão passa a
ser mais que um clichê ou um argumento retórico, mas um elemento histórico.
A figura historicamente forjada do “colonizador” passa a ser um tipo de subje-
tividade, que nos termos de Guattari (1986), poderia ser pensada mais enquanto uma
produção que é feita por máquinas territorializadas de um tipo que poderíamos chamar
de imperialista. O “colonizador” moldado por esse tipo de máquina mais tradicional
se configura como aquele que invadi, extrai e explora um território que não é o seu,
mas que tomado à força, passa a imperar sobre este de forma a dominar, explorar e
sujeitar o “colonizado” com as máquinas que compõem seu sistema-mundo.
Esse modo de subjetivação imperialista acaba por demarcar muitas das visões,
olhares, intervenções, projetos, que vão ser operados na Amazônia ao longo de sua
história. É claro que, pelo fato da história não ocorrer de maneira linear, outros devires
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 189
aparecem nesse entremeio para produzir maneiras de resistir perante essa maneira
imperialista de enxergar esse território. O encontro dessas forças pode ocorrer de
diversas maneiras, e podemos encontrar vestígios delas em diversos locais. Nessa
parte do trabalho, buscaremos trazer alguns desses vestígios deixados nos documentos
analisados e que trazem algumas das lutas que perfazem o solo paraense e amazônico.
Como dizíamos anteriormente, o olhar e a imagem construída sobre a Ama-
zônia foi forjada, sobretudo, por um olhar “estrangeiro”, e marcada quase sempre
por uma grande invisibilidade. Uma invisibilidade seletiva, claro, já que quando
se tratava de pensar na importância da Amazônia para o Brasil, sempre saltava aos
olhos sua grande riqueza “natural” que, como nos diz Velho (2009), garantiria ser-
mos finalmente o “país do futuro”. Velho (2009) nos traz um relato do antropólogo
Charles Wagley, que na década de 1950, fez uma descrição da região amazônica
que é interessante trazer aqui:
Essas áreas tropicais menos povoadas, como o vale amazônico, são de fato fron-
teiras. Atraem o nosso interesse não só por causa da sorte dos povos que as habi-
tam, mas também devido aos seus recursos inexplorados, a sua terra nova e a sua
potencialidade para uma ocupação futura. O vale amazônico, quase tão grande
como os Estados Unidos continentais, é uma das mais extensas dessas modernas
fronteiras tropicais. É também, possivelmente, a mais esparsamente povoada de
todas. O sistema de drenagem formado pelo grande Rio Amazonas e os seus muitos
tributários alcança seis nações sul-americanas [...] a maior parte do vale é brasileira
[...] A vida econômica do vale é claramente ‘primitiva e estagnada’. As técnicas
agrícolas utilizadas na Amazônia são principalmente as que foram herdadas dos
índios nativos, a agricultura de queimada. Em 1939 menos de meio por cento da
área total do Estado do Pará era cultivado, e isso era provavelmente um tanto
alto para o vale como um todo. O transporte se dá através de lentas embarcações
fluviais, a maioria das quais é movida a lenha. Existem apenas 1.600 milhas de
rodovias e 238 milhas de ferrovia em todo o vale. A indústria é primitiva e quase
inexistente. O comércio da região baseia-se na coleta de produtos da floresta, tais
como borracha, óleo de coco, peles e madeiras de lei tropicais. Serviços públicos,
tais como esgotos, luz elétrica e abastecimento de água são mínimos. [...] Até bem
recentemente apenas Belém e Manaus possuíam sistemas de esgotos e de abaste-
cimento de água, que eram claramente antiquados [...] Em vista de tais condições,
é bastante compreensível que a região amazônica do Brasil não tenha aumentado
de população de 1920 a 1940, enquanto o Brasil como nação experimentava um
incremento populacional de 36 por cento (VELHO, 2009, p. 182).
Foucault (2013) nos ensina em suas análises que devemos estar atentos àquilo
que se encontra “visível”, embora “não-dito” dentro de uma prática discursiva. A
descrição apresentada, embora “diga” diversas coisas, esconde dentro da sua própria
visibilidade inúmeras práticas discursivas cujos efeitos serão devastadores para a
Amazônia. Quando o antropólogo nos diz “essas áreas tropicais menos povoadas,
como o vale amazônico, são de fato fronteiras. Atraem o nosso interesse não só por
causa da sorte dos povos que as habitam, mas também devido aos seus recursos
190
inexplorados, a sua terra nova e a sua potencialidade para uma ocupação futura”, nos
mostra as descontinuidades de um discurso que se atualizará nos projetos direcionados
à Amazônia pelos governos brasileiros.
Tentativas de tomada do território amazônico ocorrem desde o período do Brasil
Colônia, onde espanhóis e holandeses buscaram conquistá-lo, o que gerou certo temor
das autoridades brasileiras da possibilidade de uma invasão estrangeira que tomasse
do Brasil essas terras tão valiosas. Esse discurso evidenciado de uma terra vazia e,
ao mesmo tempo, valorosa produzia uma necessidade de ocupar essa terra, antes
que fosse tomada, no intuito de explorar seus recursos. Assim, uma série de práticas
advindas principalmente do Estado brasileiro começou a incentivar a ocupação desse
território assentada em uma lógica desenvolvimentista (GONÇALVES, 2010).
Essa ocupação vai se dar, sobretudo, através da implantação de grandes projetos
que busquem integrar a Amazônia ao restante do país, com a construção de rodovias,
extrair os recursos minerais e aproveitar a potencialidade dos recursos hídricos,
instalando no território inúmeras hidrelétricas e grandes empresas, e promovendo a
ocupação através da criação de latifúndios, o que instalou uma das principais questões
de disputas em nosso território, ou seja, o problema da terra. Silva (2008) nos aponta
algumas características comuns desses grandes projetos de infra-estrutura que vêm
se instalar na Amazônia: a verticalização, fragmentação, insuficiência ou ausência
de políticas públicas adequadas à realidade regional e a violência como uma base
constitutiva da expansão do capital na região.
A verticalização e a fragmentação, por exemplo, são sintomáticas dos processos
que levam a ameaça de alguns defensores dentro dos documentos analisados. Segundo
Silva (2008), essas duas características se expressam na maneira com a qual esses
projetos são pensados e articulados, excluindo-se a participação efetiva da sociedade
local, onde de maneira vertical se produzem articulações dos grupos econômicos e
de segmentos sociais locais (parlamentares, burocracia governamental, empresários
e outros) na discussão e implantação desses projetos. Além disso, as implicações da
instalação de grandes projetos na Amazônia não apresentam uma visão abrangente
que acople o ambiente e as populações locais. Os danos econômicos, ambientais e
socioculturais permanecem e o que sobra no máximo são políticas compensatórias.
Sobre essas características, é exemplar o caso de um defensor do sexo masculino
e que já recebia proteção policial desde o ano de 2005, de acordo com o Relatório
de Monitoramento realizado pelo programa no ano de 2009. Esse defensor, que atua
na luta pelos direitos das comunidades camponesas e indígenas e pela preservação
ambiental na região amazônica, já denunciou a exploração sexual de adolescentes por
políticos e a emasculação e assassinato de meninos no Estado; vem denunciando a
atuação de latifundiários, grileiros, madeireiros e fazendeiros com práticas de traba-
lho escravo e de destruição ambiental; tem promovido o debate sobre a construção
da usina de Belo Monte que ameaça atingir comunidades indígenas e camponesas,
mas é de interesse de madeireiros e grandes empresários. As ameaças que começou
a receber e que culminaram no pedido de proteção vêm desde a morte da Irmã
Dorothy quando, por conta do trabalho conjunto, forneceu informações para que os
responsáveis pelo assassinato fossem presos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 191
O envolvimento nessas lutas que, como apontam, vão contra essas políticas
verticais na Amazônia lhe renderam inúmeras perseguições e ameaças. Em seu rela-
tório, por exemplo, o defensor relata que passou a sofrer diversas ameaças, seja
através de mensagens de policiais que ouviram “boatos” de planejamento de algum
atentado contra à vida do defensor, seja em manifestações em que esteve presente,
ou mesmo através de notícias de jornais. A partir daí, iniciou-se também um processo
que atravessa de forma muito comum à vida desses defensores que é a tentativa
de difamação e criminalização de sua imagem através de notícias de jornais que o
acusavam de roubo de madeira e formação de quadrilha, além da propagação de sua
imagem como um “porra-louca”.
O papel da mídia na vida desses defensores acaba por assumir um papel funda-
mental, seja por dar visibilidade a luta empreendida por esse sujeito, como também
divulgando informações que visem difamar e criminalizar a imagem desse defensor
diante da “opinião pública”. Vivendo em uma época regida pela égide da informação,
as diversas mídias acabam por serem verdadeiras armas de combate dessas lutas. A
todo o momento nos deparamos e nos confrontamos com informações provenientes
de grandes e pequenas mídias. Somos literalmente sufocados diante de tantas notí-
cias, informações, propagadas por veículos como televisão, rádio, internet expressas
diariamente por reportagens, manchetes, propagandas, que transmitem mensagens
com as quais, na maioria das vezes, não conseguimos dialogar e acabamos, por assim
dizer, nos sujeitando a essas informações e nos transformando em indivíduos, como
diria Guattari e Rolnik (2005).
Em um diálogo com esses autores, podemos perceber que a mídia, como um
importante agente transmissor de “cultura” da nossa sociedade, faz parte do que eles
chamam de “modos de produção capitalísticos” que se caracterizam não apenas por
um funcionamento exclusivo no “registro dos valores de troca, valores que são da
ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles
funcionam também através de um modo de controle da subjetivação” (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 21). É o que eles vão chamar de “cultura de equivalência”, pois
vai ocorrer uma equivalência entre o capital e a cultura de forma que estes vão agir
de forma complementar, na qual, o primeiro vai agir sobre a sujeição econômica, e
o segundo, na sujeição subjetiva.
Essa sujeição subjetiva é tão intensa que, por exemplo, Guareschi (2006) destaca
que nos países ocidentais as pessoas adultas assistem em média em torno de vinte
e cinco a trinta horas as suas televisões, e isso sem falar no tempo gasto escutando
rádio ou música estereofônica, lendo jornais, livros e revistas e durante o consumo de
outros produtos das grandes indústrias de comunicação de larga escala e transnacio-
nais. Isso significa dizer que é praticamente impossível nos constituir como sujeitos
hoje sem estabelecer alguma relação com a mídia, tal qual a sua ubiquidade dentro
da nossa sociedade. É por essa razão que esse tema aparece de forma tão recorrente
durante as práticas que promovem a criminalização desses defensores de direitos
humanos, pois a mídia aparece como um dispositivo que cria, forja, elabora imagens
cotidianas das lutas e movimentos a partir de olhares que não são universais, mas se
pretendem universalizantes.
192
existem no Brasil 9.477 veículos de informação, sendo que apenas uma minoria pro-
duz um conteúdo independente enquanto a maioria se vincula em redes com outros
veículos. Apesar de economicamente e tecnicamente a formação de redes ser algo
vantajoso, pois com isso se reduz gastos em termos de produção e ainda ocorre um
benefício da operação de marketing dos grandes grupos nacionais, como a Globo,
Record, SBT e Band, isso faz com que esses grandes grupos dominem o mercado
e produzam o conteúdo que será veiculado pela maioria dos veículos locais, o que
evita uma regionalização das programações.
Esse controle é que permite que a comunicação no Brasil e no mundo não
ocorra da maneira mais democrática, como se espera e como prevê a nossa própria
Constituição que proibi a formação de monopólio e oligopólio dos meios de comu-
nicação no nosso território. No entanto, na prática, o que se assiste é o domínio da
programação por essas grandes empresas que ditam, por exemplo, que o brasileiro
prefere um bom entretenimento à educação e cultura na grade televisiva.
Esse controle direto exercido por determinados grupos sobre a produção midiá-
tica no Brasil tem reflexos nas lutas pelas quais os defensores de direitos humanos e
os grupos e movimentos empreendem principalmente na Amazônia e no Estado do
Pará. Fonseca (2009), por exemplo, destaca como o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra (MST) vem sendo atacado por determinados veículos midiáticos
de forma intensa no Sudeste do País, como o jornal “O Estado de São Paulo” e,
principalmente, a revista “Veja”, da Editora Abril. Esta última se destaca pelo fato
de ser a revista semanal de maior tiragem no País e por representar os interesses
de uma classe historicamente contrária à reforma agrária, estando muitos de seus
proprietários ligados ao agronegócio. A intensidade da criminalização processada
pela revista contra o MST ocorre de forma tão intensa que Fonseca (2009) destaca
que, no período de janeiro a setembro de 2009, foram publicadas 11 matérias com
referências ao movimento nesta revista, e apenas nos meses de junho e julho não
tiveram registros sobre o MST.
E essas matérias quase sempre vinculam o MST a um movimento de vândalos,
arruaceiros, baderneiros, ou ligados a atitudes delituosas. Alguns títulos das matérias
exemplificam a forma como o movimento é abordado pela revista: “O Manual da
Guerrilha”; “Os inimigos da Vale”; “Eles invadem e também matam”; “Bolsa-Ba-
derna”; “Em defesa do direito a propriedade”; “Indiciados pela polícia de Pernambuco
seis integrantes do MST”; “Por dentro do Cofre do MST”; “Uma CPI para investigar
o MST” (FONSECA, 2009).
Essa criminalização sobre os movimentos sociais também ajuda a promover a
desarticulação dos embates que envolvem os defensores, além de vulnerabilizar a sua
condição por destituir sua rede de amparo e proteção. As organizações, movimentos,
associações que estão envolvidos grande parte dos defensores de direitos humanos
registrados nos documentos são, geralmente, suas únicas referências de luta. Na
maioria das vezes, se encontram a frente da gestão e organização do movimento e,
por essa razão, se encontram mais expostos a ataques e represálias daqueles com os
quais entram em conflito.
194
65 Com o termo sociedade civil não queremos unificar e universalizar a multiplicidade de práticas e de produ-
ções de verdade que aí estão em jogo, nem pretender estabelecer uma dicotomia entre esta e o Estado,
pois esse também é atravessado por uma multiplicidade de discursos. Queremos apenas apontar esse
espaço de dispersão próprio em que geralmente são colocados os coletivos e movimentos sociais no Brasil
e no mundo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 195
Considerações finais
A “sociedade civil” é uma dimensão da esfera pública, ela não pode ser “repre-
sentada” por nenhum grupo, o que significaria o abandono da ideia de uma esfera
aberta. A esfera pública é pública pois constitui espaço de diálogo, de encontro de
opiniões diferentes, que ninguém pode representar e do qual nenhum ator pode se
apropriar, já que estaria destruindo seus próprios fundamentos, homogeneizando
uma realidade cuja condição de existência é a diversidade (p. 71).
população de seus direitos e agir a partir de dispositivos jurídicos que passam, por-
tanto, a serem legítimos, apesar de serem parte de um regime de exceção, ou seja,
fora dos seus instrumentos de direito público. Isso só é possível com a criação de
um ser juridicamente inominável e inclassificável, como os detainees e os Lager,
personagens criados pelos nazistas.
Podemos conjurar que é essa “guerra civil” que se instala na Amazônia e que
permite a atualização de um Estado de Exceção e que vai criar como um de seus
personagens e alvos principais aqueles que lutam por direitos diversos, mas que se
encontram dentro do rol dos direitos considerados universais e pertencentes a todos
os humanos. As poucas mudanças nas políticas direcionadas à Amazônia são um
exemplo disso, pois permanece uma visão sobre essa região de um grande vazio
populacional, de uma terra de ninguém, em que as disputas por terra acabam em
morte e o sangue escorre sem qualquer tipo de intervenção do Estado. As grandes
empresas e multinacionais se instalam, expropriam as riquezas da região e deixam
apenas a miséria, os problemas ambientais e a exploração de mão de obra barata
e escrava (MELLO, 2006).
198
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
COIMBRA, C.; LOBO, L.; NASCIMENTO, M. Por uma invenção ética para os
Direitos Humanos. Psicologia Clínica, v. 20, n. 2, p. 89-102, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Brasil, 2008.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 11. ed. São Paulo: Edições Loiola, 2004.
FOUCAULT, M. Sobre a justiça popular. In: Microfísica do Poder. 25. ed. São Paulo:
Graal, 2012c.
FOUCAULT, M. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. 25. ed. São Paulo:
Graal, 2012d.
GOHN, M. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 4. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2012.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 201
PINHEIRO, P. S. O passado não está morto: nem passado é ainda. In: DIMENSTEIN,
G. Democracia em pedaços: direitos humanos no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
PINTO, L. F.; KZAM, A. A Amazônia Decifrada. Belém: edição dos autores, 2012.
REIS, E. F. O que se quer quando se pede por justiça? Sobre o Espírito de Vingança
e a atualidade do Homem do Ressentimento. Rio de Janeiro: Tese (Doutorado) –
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Depar-
tamento de Psicologia, 2013.
Introdução
Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo
mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas
as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces,
é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.
Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na
204
metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente
diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem
essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que
lhe eram estranhas (p. 58).
e dos filhos dos portugueses, foram os jesuítas, por mais de duzentos anos, os
educadores do Brasil. [...] Em 1585 a Companhia de Jesus já havia fundado no
Brasil três Colégios (Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco) e cinco Casas (Ilhéus,
Porto Seguro, Espírito Santo, São Vicente, São Paulo). Nos Colégios e nas Casas
haviam, de ordinário, escola de ler, escrever e algarismo, classes de humanidade,
latim, cursos de arte, lições de casos de consciência e teologia. Diferentemente
das Casas, que se sustentavam com esmolas, tinham os Colégios renda própria
– dotações do Rei de Portugal. Tanto os Colégios quanto as Casas tinham a seu
cuidado aldeias, nas quais alguns dos padres residiam (ARANTES, 1995).
Ela tinha por objetivo conter o avanço do que estava sendo pensado como
marginalidade infanto-juvenil para assegurar o futuro e o bem-estar da nação. Além
da visão repressiva, entra em cena uma racionalidade assistencialista que operava
com teorias funcionalistas e se apoiavam na lógica da Ditadura Militar instalada no
Brasil. Esta era materializada no ideário de segurança nacional e, neste momento,
a família pobre passa a ser compreendida como desorganizada e que poderia ori-
ginar jovens doentes e perigosos caso não fosse organizada e gerida por meio de
controles repressivos e assistencialistas.
A questão do dito menor, no entanto, não fora resolvida pela FUNABEM
e, somado a crise do Estado Militar, uma nova demanda de atendimento da polí-
tica de bem-estar do menor foi definida através do Código de Menores de 1979
(Lei 6.697/79), que veio coroar a PNBM, fundamentando-se nos mesmos preceitos
que nomeiam a figura do delinquente, o indivíduo perigoso, a associação pobreza-
-marginalidade e a ideia de defesa social, separando jovens abandonados de jovens
considerados perigosos e tomando a família pobre como culpada por estas situações.
Segundo Passetti (1982), essa associação entre classes sociais e criminalidade favo-
rece a reprodução e a manutenção de desigualdades e legitimava o recolhimento de
crianças e adolescentes na chamada “situação irregular”.
Desde o início da república brasileira, essas preocupações foram realizadas por
meio de medidas higienistas e moralizadoras da sociedade, na tentativa de salvar a
nação através da criança como explicitou Rizzini (1997): “[...] educar a criança era
cuidar da nação; moralizá-la, civilizá-la. Cuidar da criança e vigiar a sua formação
moral era salvar a nação” (p. 27), sendo a família constituída como sendo a primeira
responsável por essa educação, ensinando, principalmente, as normas sociais fun-
damentais e os valores essenciais a formação das crianças, seguida pela escola que
é responsável pela continuidade dessa educação (PASSETTI, 1987).
Nesse contexto, é possível identificar o crescimento da utilização do termo
menor para se referir a crianças e adolescentes que viviam no estigma que foi
produzido como lugar de marginalidade social, em geral, utilizado para jovens
oriundos de famílias classificadas em seu modo de viver como desorganizadas
e em situação irregular. O antigo Código de Menores de 1979 definia os jovens
pobres como menores vivendo em situação irregular que seriam as vítimas de
maus-tratos ou castigos imoderados, os que estão em perigo moral, os privados de
representação ou assistência legal, com desvio de conduta por inadaptação familiar
ou comunitária e os autores de infração penal. Ou seja, os oriundos de famílias
pobres (PASSETTI, 1987). A utilização desse termo evidencia preocupação com a
preservação da ordem social ameaçada por essa infância abandonada exposta aos
perigos da rua e das más companhias (LONDONO, 1991).
O ano de 1979 também foi marcado pela decisão da Assembleia das Nações
Unidas de declarar este o Ano Internacional da Criança e deu origem a elaboração da
Convenção Internacional dos Direitos da Infância, aprovada em 1989. Esse cenário
internacional e a pressão dos movimentos sociais em prol da redemocratização do
Brasil contribuíram para as discussões acerca dos direitos das crianças e dos adoles-
centes e para o movimento em defesa desses direitos.
208
Sendo alvo de muitas críticas, o Código Menores de 1979 foi, então, substituído
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990. Nesse período, entre o Código de Menores e sua substituição, o Fórum DCA
(Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente) foi criado (1988) com o objetivo de pressio-
nar a sociedade para uma mudança na legislação e aprovação da Emenda “Criança
Prioridade Nacional”. Ainda neste ano, foi promulgada a Constituição Federal que
incorporou as reivindicações em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes,
garantindo em seu art. 227 a criança como prioridade nacional (LONGO, 2010).
O ECA veio confirmar a adoção da Doutrina da Proteção Integral sinalizada pela
Constituição Federal de 1988, sendo um importante marco na luta pela garantia dos
direitos dessa parcela populacional e se contrapondo à lógica da situação irregular e
menorista bem característicos dos antigos códigos de menores de 1927 e 1979, pau-
tados em uma visão repressiva e assistencialista e que se valia de medidas higienistas
e moralizadoras da sociedade em uma tentativa de garantir o futuro do país através da
criança (RIZZINI, 1997). Fruto desses enfrentamentos, o Estatuto, portanto, é uma
ruptura com o estigma do menor e com a Doutrina da situação irregular e dispõe sobre
a proteção integral à criança e ao adolescente, baseado na concepção dos mesmos
como sujeitos de direitos universalmente reconhecidos e em condição peculiar de
pessoas em desenvolvimento, definindo que:
O Estatuto define o que é criança (até doze anos incompletos) e adolescente (de
doze a dezoito anos), sendo atravessado por diversas lutas de movimentos nacionais
e internacionais e múltiplos saberes. Ele garante a inimputabilidade dos mesmos,
estando as crianças sujeitas às medidas protetivas versadas no art. 101 do documento
e os adolescentes, às medidas socioeducativas referidas no art. 112, considerando
para a aplicação das mesmas a capacidade deles em cumpri-las, as circunstâncias e
a gravidade da infração (quando comprovada a autoria). As medidas socioeducati-
vas possíveis são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à
comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e privação de liberdade, sendo que
as restritivas de liberdade são de caráter excepcional, ou seja, quando nenhuma outra
medida formal adequada (BRASIL, 2011).
A fim de reafirmar as diretrizes do ECA sobre o caráter pedagógico das medidas
socioeducativas e, de tal modo, constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos
que estejam de acordo com a premissa da proteção integral e da inimputabilidade
dos adolescentes, contrapondo-se à elevação do rigor das mesmas e a tendência
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 209
Considerações finais
correções e das novidades institucionais para instaurar uma ordem social economi-
camente regulada, com base na economia de mercado do neoliberalismo.
O Brasil sendo, segundo a Constituição Federal de 1988, “um Estado Democrá-
tico, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais” (BRASIL,
1988) em um sistema econômico neoliberal, como pensar em garantia de direitos e
diminuição de desigualdades?
O ECA teria rompido, como proposto em lei, com o estigma do menor?
São inegáveis as mudanças com a concepção de crianças e adolescentes enquanto
sujeitos de direitos, mas as resistências a ele escancaram o que ainda persiste dos
antigos códigos e da colonização baseada nas desigualdades nas práticas datadas
da vigência do Estatuto.
212
REFERÊNCIAS
ALVIM, M. R. B.; VALLADARES, L. P. Infância e sociedade no Brasil: uma aná-
lise da literatura. Boletim Informativo Bibliográfico – BIB, n° 26. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará/Anpocs, 1988.
MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
PORTELLI, A. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, v. 14,
p. 25-39, fev. 1997.
REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Editora Claraluz, 2005.
RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas sociais para a infância
no Brasil.EDUSU/AMAIS Livraria e Editora, 1997.
WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA [A onda puni-
tiva]. Revan, 2003. COLEÇÃO Pensamento Criminológico nº 6.
ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito Penal Brasi-
leiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
ZALUAR, A. Cidadãos não vão ao paraíso: juventude e política social. São Paulo:
Editora Escuta; Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1994.
A PRODUÇÃO DE PRECARIEDADE
DA VIDA: uma clivagem entre
humanos e não humanos
Leticia Lages Assunção
Lílian Gabriela Rodrigues Lobato
Introdução
como reflexo da memória de verdade sobre si, cujo o propósito será de formular,
escrever e constituir desdobramentos, procurar as fissuras dentro desse processo de
criação de um sujeito dócil, útil e ágil.
Diante desse cenário, se faz pertinente apresentar modos alternativos de
existência que nos permitam vislumbrar linhas de fuga no cotidiano, a partir de
questionamentos e enfrentamentos do que se pode fazer um corpo em sua total
potência, para além das vias de adestramento e domesticação. Este texto é uma
tentativa de metamorfosear e provocar uma movência das vozes, que apesar dos
inúmeros esforços de silenciamento continuam ecoando enquanto performance de
resistência à docilização, ao empresariamento de si e as práticas de expansão dos
processos de medicalização da vida.
67 Para Espinosa (2005), as afecções referem-se ao corpo sendo afetado por outros corpos e pelo mundo, isto
é, as alterações experimentadas por esse encontro que podem aumentar ou reduzir nossa potência de agir.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 221
68 Expressão cunhada pelo antropólogo Erving Goffman (2012) em seu livro Os quadros da experiência
social para referir-se à construção da organização da experiência, isto é, aos marcos interpretativos que
nos permitem atribuir sentido a experiência. Em “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? “,
Butler sustenta a importância de pensarmos sobre o processo de enquadramento, isto é, sobre o ato de
direcionar e moldar nosso olhar para a apreensão de determinados conteúdos, neste caso, demarcando o
que entendemos por vida, ou seja, por vida passível de ser vivida.
69 Apesar de recusar a distinção estrita entre consciente e inconsciente, Butler parte do entendimento de que
formas de poder podem modelar nossa subjetividade inconscientemente, por isso, ao decorrer do texto a
filósofa adota a distinção postulada por Klein entre fantasia, compreendida como um “estado de consciência
análogo a um desejo ou devaneio”, e phantasia entendida como uma “atividade inconsciente que opera por
projeção e introjeção e confunde a fronteira entre o afeto que emerge de dentro do sujeito e aquele que
pertence a um mundo objetivo” (BUTLER, 2021, p. 60).
70 Para uma reflexão mais aprofundada sobre como o Direito é uma ordem violenta que se fortalece com a
captura de uma esfera da vulnerabilidade, cuja manutenção depende da reiteração dessa violência ver “Para
222
identidades são moldadas para atender com eficiência as demandas que dizem respeito
a produtividade e utilidade- um dos maiores recursos da burguesia para a constituição
do capitalismo industrial e desenvolvimento dos pilares do neoliberalismo: “Afinal,
somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e des-
tinados a um certo modo de viver ou morrer em função de discursos verdadeiros que
trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2018, p. 279). Tal poder
que não é o poder soberano, mas que se sobressai através da vigilância72 ao contar
com a eficácia de quem a produz e domina73: o poder disciplinar.
Para abarcar tais práticas de subjetivação, Michel Foucault vai propor pri-
meiramente interrogá-las, desconstruindo modos de vida, modos de pensar e agir
que foram moldados e cristalizados. O filósofo se interessava não apenas com as
72 Dentro dessa vigilância as coações disciplinares teriam que funcionar como mecanismo de dominação e
de camuflagem para o exercício de poder a partir dos discursos.
73 Esse domínio foi adquirido, sobretudo, no investimento do corpo pelo poder: o poder penetra no corpo e é
exposto por ele
74 Foucault, em seu curso Collège de France de 1978-79, evidenciou a compreensão do neoliberalismo como
uma nova racionalidade política, cujos desdobramentos ultrapassam a política econômica e do fortalecimento
do capital.
224
Parece que vivemos numa sociedade de poder disciplinar, ou seja, dotada de apa-
ratos cuja forma é a sequestração, cuja finalidade é a constituição de uma força
de trabalho e cujo instrumento é a aquisição de disciplinas ou hábitos. Parece-me
que desde o século XVIII se multiplicaram, refinaram e especificaram incessan-
temente mais aparatos para fabricar disciplinas, impor coerções, fazer contrair
hábitos (FOUCAULT, 2015, p. 215).
Enquanto a reclusão clássica lançava indivíduos para fora das normas, enquanto,
encerrando pobres, vagabundos e loucos, ela fabricava, escondia e às vezes, mos-
trava monstros, a sequestração moderna fabrica norma, e sua função é produzir
normais. Tem-se, portanto, uma série que caracteriza a sociedade moderna: cons-
tituição da força de trabalho – aparato de sequestração – função permanente de
normatização (FOUCAULT, 2015, p. 217).
75 Pretendemos colocar em xeque a discussão sobre a expansão das práticas e dos processos excludentes
de medicalização da vida que sustenta de certa forma uma volta para condutas regulares por meio de
produções de controle, de enquadramento e projeção de corpos dóceis e produtivos, e não de construir um
caminho de negação a toda contribuição da ciência ou da saúde, muito menos de extinguir a medicalização
como um todo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 225
76 Se corrobora uma disciplina que visa normalizar as transgressões pelo exercício do poder e da racionalidade,
pois se molda em meio às estruturas de exclusão e se fabrica racionais treinados pela interdição dos corpos.
Portanto, a disciplina opera por meio da normalização, na fabricação de um sujeito dócil, e em um processo
alienante de individualização.
77 É profícuo problematizar que a grande mudança está no lócus, não se medicaliza mais somente dentro dos
muros dos hospitais psiquiátricos, das prisões, das escolas, etc., mas esse processo também se faz em
céu aberto.
226
78 Em “Quadros de guerra”, Butler define biopolítica como uma modalidade de poder que apreende, controla
e administra a vida. Em “Pode-se levar uma vida boa numa vida ruim”, título da conferência proferida no
prêmio Adorno em 2012, Butler afirma que entende por biopolítica aqueles poderes que organizam a
vida, inclusive os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária como parte de
uma gestão mais ampla das populações através de meios governamentais e não governamentais, e que
estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si.
79 Termo cunhado por Mbembe em ensaio homônimo para descrever o uso do poder político e social com vistas
a determinação por meio de ações ou omissões quem pode permanecer vivo ou deve morrer. Para Diniz e
Carino (2019) Mbembe foi além de Foucault pois “mostrou como o biopoder é insuficiente para compreender
as relações de inimizade e perseguição contemporâneas, pois há uma necropolítica em curso para produzir
os ‘mundos de morte’”.
228
O ser do corpo ao qual essa ontologia se refere é um ser que está sempre entre-
gue a outros, a normas, a organizações sociais e políticas que se desenvolveram
historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar a
precariedade para outros. Não é possível definir primeiro a ontologia do corpo e
depois as significações que o corpo assume. Antes, ser um corpo é estar exposto
a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do corpo
uma ontologia social (BUTLER, 2019a, p. 15-16).
O abjeto seria tão regulado pelas instâncias de poder quanto o próprio ideal
postulado. Nesse âmbito, os dispositivos de poder governamental na sociedade
80 As investigações de Butler sobre direito ao luto remonta as reflexões em torno do valor das vidas perdidas pela
epidemia de HIV/AIDS nos EUA durante a década de 70 e se amplificam na formulação de sua teoria política
do luto após o ataque sofrido pelos EUA em 11 de setembro de 2001 (RODRIGUES, 2021). Cabe destaque
também a obra “O clamor de Antígona” (2000), na qual o luto é elevado por Butler à categoria ética e política.
81 A partir da leitura de Kristeva e Foucault, Butler (1993) sustenta que o abjeto está para além do que é reprimido,
consistindo em todo exterior que contorna e dá bordas ao sujeito e, sendo um espectro permanentemente
ameaçador da ordem e unidade estabelecida.
230
[Trata-se de] “expulsar do corpo social esses seres temíveis, mantendo-os temporá-
ria ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimen-
tos destinados a esse uso”. Essa prática de exclusão é chamada de “antropoemia”:
controlar as forças perigosas da nossa sociedade não é assimilá-las, mas excluí-las
(FOUCAULT, 2015, p. 4).
82 A demonstração de ordem nos espaços de reclusão se configura pelo símbolo de uma “polícia” que enclausura
se valendo de regras coercitivas, normas da razão e vigilância.
83 A arte de governar, tal como aparece em toda a literatura, deve responder essencialmente à seguinte
questão: como introduzir a economia – isto é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as
riquezas no interior da família- no nível da gestão de um Estado? A introdução da economia no exercício
político será o papel essencial do governo (FOUCAULT, 2018, p. 413).
232
possibilidade para a tomada de consciência dos motivos e métodos por meio dos quais
estamos sendo conduzidos. A crítica enquanto arte de não ser governado perpassa
pelo interrogar, subverter sem ser imediatamente colocado em uma “caixinha de
moldes”, sob o viés de controle e de medicalização.
Em síntese, a atitude crítica aparece como denúncia, como a arte do Fora,
da não-sujeição, do não-controle que pressupõe a parresia, a política do falar
franco, ou melhor, a coragem da verdade. A crítica é, portanto, o movimento pelo
qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder
e vice-versa; pois bem, a virtude será a arte da inservidão voluntária, aquela da
indocilidade refletida.
Dentre as possíveis linhas de fuga, a genealogia também se apresenta como
estratégia de problematização de práticas, naturalizações, moralismos e linearidades84.
Ajudando o sujeito a firmar a ética mediante a insurreição dos saberes sujeitados.
Nessa perspectiva, identificar quem são os sujeitos excretados da sociedade também
é uma proposta genealógica.
84 Essas linearidades (retas), sucessões que até detinham um objeto de pesquisa deram lugar a um jogo
de rompimentos, verdadeiras quebras em profundidade. Destarte, “a atenção se deslocou, ao contrário,
das vastas unidades que se descreviam como <<épocas>> ou <<séculos>> para fenômenos de ruptura”
(FOUCAULT, 1972, p. 10).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 233
Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos coloca em uma situação
solitária e, nesse sentido, despolitizada. Mas penso que o luto nos fornece um
sentido de comunidade política de ordem complexa, e isso acontece, antes de
mais nada, porque o luto traz à tona os laços relacionais que têm implicação
na teorização da nossa dependência fundamental e da responsabilidade ética
(BUTLER, 2019c, p. 22).
85 Ao longo das obras de Butler, o termo “despossessão” assume uma dupla valência, podendo ser compre-
endido no sentido material de não dispor de condições de minimização da precariedade, como também no
sentido simbólico no que se refere a forma como não apenas somos constituídos pelo outro, mas também
nos desfazemos nesse encontro.
234
À guisa de conclusão
REFERÊNCIAS
ACHILLE, Mbembe. Políticas da inimizade. Portugal: Antígona, 2017.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu editora, 2020.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? Trad. Luiz Paulo
Rouanet. Brasília: Casa das Musas, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 45. ed. Petrópolis (RJ):
Vozes, 2014.
RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do
gênero. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2021.
DO IMPOSSÍVEL ESTADO-NAÇÃO
ÀS EXPERIÊNCIAS DE INIMIZADE:
Brasil e a mitologia do “brutalismo isolado”
Caio Monteiro Silva
Pedro Renan Santos de Oliveira
Igor Monteiro Silva
Vico Dênis Sousa de Melo
de violência perpetrados por seus membros entre si? De que forma o Brasil enquanto
signatário da formação de uma sociedade democrática moderna ao estilo capitalista-
-liberal, pautada supostamente na prevenção da desordem e da violência a partir do
desenvolvimento de uma civilização de costumes, tolera seu brutalismo cotidiano?
Colaborar com o desenvolvimento com alguns olhares que possam auxiliar nas
reflexões sobre essas questões, embora sem compromisso com respostas objetivas
ou universais, são então o horizonte ético e político que constituem a intenciona-
lidade deste texto. Assim, diante de nossos propósitos nos colocamos a tarefa de
tornar inteligível o brutalismo cotidiano brasileiro pela reconexão com elementos
históricos os quais permitirão a constituição de nossa ordem social em seu modo
de presença atual. Além disso destacaremos alguns dos elementos que organizam
nosso horizonte social de forma a ordenar um dispositivo de temporalização capaz
de contribuir com os processos de reprodução social que conectam o Estado-Nação
liberal e o brutalismo cotidiano brasileiro.
a própria realização de um destino moral manifesto que, como nos disse Latouche
(1996), se dá no autoconvencimento de que uma certa avaliação de uma suposta
superioridade técnica europeia seria a constatação de sua superioridade e, portanto,
do seu direito de conduzir as relações no mundo colonial à sua maneira.
A colonização e o tráfico de populações negras escravizadas passam a ser dois
dos principais motores a regularem as ações sociais no território latino-americano. Por
parte dessa interação se operaram as forças destinadas a fazer convergir o modo de
presença das terras a serem colonizadas em uma colônia anexada a um sistema que a
torna elemento partícipe da realização das necessidades e valores europeus. Tivemos,
então, um processo de migração massiva na América Latina que protagonizaram a
realização de agendas políticas, econômicas e filosóficas através de ações extrativistas.
As configurações sociais latino-americanos, portanto, emergem de dois proces-
sos convergentes. O primeiro se dá pela codificação da diferença entre conquistado-
res e conquistados estabelecendo um padrão de poder baseado na ideia de raça. O
segundo por uma forma de controle do trabalho, dos recursos e dos produtos tendo
em vista um mercado mundial. São, então, fundadas um conjunto de identidades
sociais: negros, índios, mestiços, além da redefinição das identidades europeias que
passam não mais significar uma referência espacial ao lugar de origem e sim a terem
conotações raciais (QUIJANO, 1988). Na medida em que as relações fenotípicas
que marcavam a diferença entre conquistadores e conquistados estabelecem também
uma associação hierarquizada da relação social entre colonizadores e colonizados
estrutura-se a ordem hierárquica que condiciona identidades sociais e lugares sociais,
papéis sociais, tipos de trabalho correspondentes. Para Quijano (1988) foi a ideia de
raça que outorgou e legitimou as relações de poder e dominação envoltas na conquista
do continente americano.
Desta forma, é que se observará a participação fundamental das populações
negras escravizadas, como aponta Mbembe (2017), na sustentação do dispositivo
econômico da plantação. Para ele a designação racial não se reduz a uma compreen-
são apenas biológica, ao contrário diante da diferenciação racial se podia utilizar o
corpo negro como uma fonte de energia e combustível. O aspecto racial insere-se
na própria lógica da ordem social da colonização a qual consiste em naturalizar a
própria arbitrariedade violenta da hierarquização social.
Para Quijano (1988) desenvolve-se na América-Latina uma divisão racial do
trabalho, em que se apresentam, em oposição a Europa, ao mesmo tempo vários
tipos de controle do trabalho. A servidão, a escravidão, e a forma salário coexistiam
sendo seus respectivos atores sociais definidos pelo critério racial. Apenas espanhóis
e portugueses poderiam ser comerciantes e produtores independentes e por isso
receberem salário.
Especificamente tratando-se do Brasil, e considerando, a história da coloni-
zação como um dos mais importantes cenários do eurocentrismo, da ocidentali-
zação do mundo e da integração de nosso atual Sistema-Mundo, como nos disse
Wallerstein (2012), Portugal não encontrará de início as condições para a expansão
comercial desejada tal qual foi possível e se deu desde a primeira metade do século
XV no continente africano. Portugal, portanto, transformara sua forma habitual de
244
colonização partindo para um novo sistema que passou a aproveitar as fugas pelas
disputas político-religiosas travadas na Europa, considerações a respeito do clima e
da produção para o comércio, e a necessidade de organizar práticas de agricultura
que se somassem ao extrativismo tradicional tornando a escravidão a solução para a
realização do esforço do empreendimento colonial (PRADO JÚNIOR, 1999).
A maquinaria colonial só se tornou sedutora a partir do momento também em
que o português ao vir para o Brasil pudesse dispor de pessoas que trabalhassem
para ele (PRADO JÚNIOR, 1999). Para Silva (2021) é diante desse processo de
ocupação e povoamento que irão se estabelecer os modelos de associação íntima
propriamente latino-americanos. Para ele estes modelos em sua estrutura e função
são importados desde a Europa para a América e constituem-se pelas relações entre
europeus e entre europeus e autóctones.
Sabe-se que para além do repovoamento forçado e da relação de base escravista
com a população africana, os europeus no intuito da realização de seus propósitos
interagiram com as populações locais a partir de uma lógica binária e sustentada
também em práticas de violência. Essa relação se dava em entender toda a diversidade
dos povos nativos do que viria ser a América Latina a partir daqueles que “aceitavam”
fazer parte da cultura europeia e daqueles que se negavam e eram por isso inimigos
a serem exterminados. No Brasil, especificamente, como nos disse Silva (2021), os
portugueses designaram toda uma diversidade cultural indígena a partir da divisão
Tupi e Tapuia que traduziria aqueles que se aliaram de alguma forma aos portugueses
e aqueles que resistiram e por isso deveriam ser eliminados.
Temos, então, que as relações fundamentais que ordenaram as relações sociais
na colônia se deram pela ocupação e povoamento do território a partir daqueles que
eram tomados como perigosos para a metrópole. Esses que eram dispensáveis ao
convívio social das nações colonizadoras tornam-se aqueles que conduzirão o projeto
de dominação local em que sustentados pela força de trabalho de base escrava trans-
formarão o ecossistema local em um agrossistema na medida dos interesses europeus.
A estruturação do empreendimento colonial sustenta-se, portanto, em duas pernas
intersubjetivas: a imigração europeia dos indesejáveis para a colônia; a escravização.
O que passa a se observar como a ordem política, institucional e intersubjetiva da
formação latino-americana é como disse Quijano (1988) a incorporação da diversidade
dos elementos histórico-culturais em um único mundo dominado pela Europa. Para
ele todas as experiências históricas, os recursos e produtos articularam-se a ordem
europeia a partir de ações que se efetivaram como controles da subjetividade. Essas
ações foram a expropriação dos recursos pertencentes as populações colonizadas que
pudessem servir aos interesses europeus; a repressão sobre as formas de conhecimento
e o universo simbólico de interpretação objetiva e subjetiva da realidade por parte
das populações colonizadas; a doutrinação forçada para aprendizagem de todos os
aspectos culturais da Europa que pudessem ser úteis para a reprodução da dominação
seja ela material, tecnológica ou subjetiva.
Um bom exemplo disso era a leitura feita pelos europeus sobre as populações
negras escravizadas. Como disse Mbembe (2017) os escravizados eram vistos como
um corpo sem mundo, sem terra, reduzido apenas a sua energia a uma espécie de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 245
O que é preciso se colocar como questão desde o início deste tópico e levando
em consideração os aspectos desenvolvidos no item anterior é a afirmação de que o
regime colonial não é a oposição das outras formas de sociedade no mundo ocidental.
De forma distinta ao que se pode pensar de maneira mais intuitiva, essa relação social
bifurcada, essas comunidades de segregação são elas mesmas o motor de funciona-
mento dos próprios regimes ditos democráticos nos Estados-Nação independentes,
sejam eles periféricos ou centrais no nosso Sistema-Mundo.
Para Mbembe (2017) a sociedade de costumes, que em tese seria oposta à
sociedade colonial, aquela que substitui a violência pelos constrangimentos e pelo
248
monopólio da força por parte do Estado, opera sua paz a partir do usufruto de um
conjunto de paixões e satisfações agora incentivadas. O convite ao gozo de certas
paixões possíveis em alguns Estados e sua permissão ao bem-estar sustenta-se em
uma relação estreita e numa distância que é apenas aparente, já que a desigualdade
planetária e a institucionalização da violência em outros Estados são sua condição
sine qua non.
A história democrática moderna tem duas faces: um corpo solar e um corpo
noturno (MBEMBE, 2017). O império colonial e os estados colonizados relacionam-
-se de modo que a história interna destas “Sociedades-Estado” esteja vinculada aos
movimentos históricos externos e os impactos correlatos em suas disputas internas.
A aceitação da violência constitutiva dessa ordem social e a experiência de que haja
um controle dos conflitos que impeça as ações diretas entre os indivíduos fazem parte
de um mesmo jogo de certa produção de consciência.
Essa consciência organiza-se por processos como o que Dussel (1997) chamou
de consciencialização e poderíamos dizer que se mantém pelas narrativas mitológicas,
como já nos disse Mbembe (2017). Para o autor camaronês os regimes democráticos
atuais não poderiam se sustentar sem dissimular sua violência intrínseca. Explicamos
um pouco mais nas linhas seguintes.
A consciencialização é um termo utilizado por Dussel (1997) para discutir
processos de mitificação da consciência. Estes processos se dão pela manifestação
de conteúdos na consciência de forma que a relação com esses objetos emerja de
modo intuitivo, portanto, sob uma experiência vivencial imediata em seus sentidos e
significados. O que se colocará, portanto, como questão a este processo de formação
da experiência consciente estará na arbitrariedade dos limites que circunscreverão a
compreensão do que a consciência se dá a conhecer, ou pode conhecer.
A potência deste processo reside exatamente em que as experiências dos agen-
tes sociais sejam vivenciadas como naturais, como óbvias, como não tendo sido
mediadas. Esta é a condição de que estes indivíduos assumam como próprias, certa
inoculação de experiências sociais. Os limites em que se operam a possibilidade do
compreender não são contingenciais ao acontecimento, ou seja, não dependem dele,
ao contrário são eles constituintes deste acontecer.
A narrativa mitológica das sociedades modernas e a mitificação da consciência
são elementos que contribuem para o encobrimento de que a experiência colonial
reside na democracia. Para Mbembe (2017) o mundo colonial é o duplo da demo-
cracia: a mitologia cumpre a função de “distanciar” as relações de soberania que
conectam as democracias modernas com sua violência originária. Atenuar o máximo
possível a consciência de que as democracias ocidentais atuam espacializando a
violência e administrando-a em lugares específicos, são os princípios e fundamentos
que relacionam a narrativa mitológica e a mitificação da consciência.
Se a mitificação da consciência diz respeito a produção de uma experiência que
permite a vivência de um significado compreendido a partir de limites arbitrários, é
mais que possível pensar que a construção desses limites, sua consciencialização, para
usar o termo que Enrique Dussel (1997) utilizou, trata-se de uma ação política que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 249
problemas de saúde e não vítimas das lógicas de urbanização) até mesmo na adoção da
institucionalização da lógica da “mestiçagem” que, no fim e ao cabo, tentava promover
o branqueamento da sociedade e legitimação do etnicídio (já secular) da população
negra e indígena no país (VIVEIROS DE CASTRO, 2020), e mesmo na medicalização/
psiquiatrização dos não ajustados à lógica modernizante em vigor até na normatização
das famílias via ordem médica (COSTA, 1989), incluindo aí a lógica da infância como
objeto de controle da política pública (CASTRO, 2013; PATTO, 2015). Nesse último,
Irene Rizzini (2002) é taxativa ao lembrar-nos como as crianças, sob o discurso do
“perigo”, eram submetidas, por um lado, ao poder interventivo-policial do Estado que
entendia as crianças pobres, negras e periféricas como ameaçadoras da elite; enquanto
as crianças da classe média e setores abastados, como aqueles que mereciam o status
de protegidas pelas organizações sociais, viabilizadas e legitimadas pelo Estado.
O espancamento daquele corpo não é isolado. A morte é o caminho produzido
por engenhoso itinerário de violência que encontra no jovem negro e periférico o
seu endereço. Como exemplar nessa direção é preciso lembrar que o homicídio é a
principal causa de mortes de adolescentes de 16 e 17 anos, no Brasil e dessas mor-
tes por violência, 93% sexo masculino, sendo a maioria com baixa escolaridade e
morador das periferias das cidades. E, do ponto de vista do olhar racial, o mais agudo
indicador: desse universo de mortes violentas, morrem quase três vezes mais negros
que brancos no país (MDH, 2018).
O que esses dados, dentre tantas outras questões, podem apontar? O não isola-
mento do brutalismo. Esta morte que representa a brutalização de certas infâncias brasi-
leiras nada mais é que o prosseguimento da pavimentação de políticas de inimizade. Para
Mbembe (2017) os processos de inimizade nas sociedades atuais são miniaturizados,
são moleculares e se dão por técnicas de elisão material e simbólica. A condição própria
da vulnerabilidade social em um suposto Estado de Direito, ela mesma não seria um
processo de elisão material e por consequência simbólica? O “delito” da mendicância
não é ele mesmo um processo de inimizade, o qual é respondido na culminância de um
brutalismo escamoteado de ações de segurança? Nas sociedades de histórico colonial
não será preciso fazer uma inflexão sobre a análise foucaultiana presente no curso
“Em Defesa da Sociedade”. O Racismo de Estado não se apresentará apenas como a
ausência de atenção política para maximização da vida. Nas sociedades colonizadas o
“deixar morrer” é uma etapa complementar e constituinte que substancializará a própria
justificativa do desejo de aniquilação como aspecto de segurança.
O caso João Victor escancara e corporifica/encarna a contínua política de higie-
nização que habitam as infâncias e adolescências que merecem a morte por pedirem
esmolas, por sujarem as cidades, mancharem as marcas comerciais das empresas,
por denunciarem a falência da sociedade que “protege” suas crianças e adolescentes.
A brutalização é, sim, ato emblemático de eliminação do que representa o imundo.
Espancado e asfixiado até a morte por agentes de segurança de uma empresa pri-
vada que prestava serviço ao supermercado Carrefour, durante a saída da loja em
Porto Alegre, o caso ganhou repercussão nacional e lutas sincrônicas ao que havia
precedido, 6 meses antes – caso de repercussão mundial – o assassinato também por
asfixia do afro-americano George Floyd (G1, 2021b).
Como também é sabido, diferente do modo operado pelo aparthaied ocorrido
nos Estados Unidos da América, o Brasil tem em sua marca um largo histórico de
ocultamento de sua história fundamentalmente racista, objetivada pela escravização
dos povos africanos vindos forçosamente ao nosso continente. Sem instituir aquele
regime, estabeleceu, por outro lado, a mais duradoura escravidão na era moderna
apregoando-se, especialmente em teorias sociológicas de fundamento ideológico
negacionista, uma suposta democracia racial.
Nascido como conceito na década de 1930 e operado como ideologia por todo
o século XX e mesmo atualmente a democracia racial talvez seja dos mais efetivos
constructos que representou o pensamento colonial brasileiro em nome de pretensa
sociologia nacional, explicando não só o período pré-abolicionista como o pós-escra-
vagista. Teve como expressão máxima e criação conceitual o autor branco brasileiro
Gilberto Freyre e, como indica Cida Bento (2002), aponta que:
Mas já estaria em Roger Bastide, ainda no fim da década de 1950, uma das
primeiras críticas mais contundentes à ideologia da democracia racial, vertendo
as análises das questões raciais também a dimensão de classe. Batista (2020), ao
comentar Bastide, cita:
Aqui a discriminação sofrida não era pela etnia, mas especialmente pela cor da
pele e pelo continente de onde vieram. Sofreram mudanças e intervenções na
sua cosmovisão e nos seus hábitos e certamente mudaram lugares onde traba-
lharam e habitaram, interferiram com sua cultura, seu olhar, seu jeito de ser. [...]
Sofreram preconceitos, foram submetidos ao trabalho degradante, exaustivo e
humilhante e tiveram que lidar com o fato de serem outsiders e, por o serem,
foram mais explorados.
Como em uma fotografia límpida, o trecho acima relatava com precisão o caso
de congoleses em relação degradante de trabalho no Rio de Janeiro e anunciara com
eloquência o cotidiano de imersão cultural, social e laboral de Möise. O racismo a
chave central de compreensão do caso. O racismo o elemento estrutural para entender
a diferença entre o imigrante branco-europeu com direitos ao trabalho, propriedade,
cidadania e o africano, submetido ao trabalho em situação degradante. Lembremos
que os estudos raciais apontam que desde as imigrações do século XIX e XX no Brasil
o racismo é a estrutura da divisão social do trabalho, como remonta historicamente
a síntese abaixo de Cida Bento (2002):
Na verdade, o que se deu foi a mais cristalina discriminação racial com o objetivo
explícito, como veremos mais adiante, de excluir o negro, uma vez que os imi-
grantes que aqui vieram tinham o mesmo nível de preparo que o negro. Assim,
omissão e inércia não são bons conceitos para caracterizar a atitude da elite branca
da época (BENTO, 2002, p. 51).
– Quando a notícia chegou até nós, na terça de manhã, fomos ao IML, e a gente
já encontrou ele sem órgão nenhum, sem autorização da mãe, nem autorização
dele de ser doador de órgãos. Onde estão os órgãos? Nós não sabemos. Em menos
de 72h, ele foi dado como indigente – afirmou a prima Faida Safi, em entrevista
à TV Globo (EXTRA, 2022).
Para irmos direto ao ponto no caso desse brutalismo que acaba de ser reme-
morado: Möise atualiza o pelourinho dos quase quatrocentos anos de escravidão
– justo ele, um imigrante negro africano, refugiado político, vindo ao Brasil com
mãe e irmãos para fugir da guerra e fome em seu país – às dinâmicas societais do
século XXI. Apanhou e foi humilhado em público por capatazes representantes do
dono do estabelecimento por reivindicar o dinheiro como pagamento de seu trabalho
efetivado. Sem direitos trabalhistas garantidos, sem seguridade social realizada, foi
jogado a morte não só por cada um dos cinco homens que proferiram socos e ponta-
pés, pauladas e o asfixiaram, mas pela nossa história do brutalismo generalizado ao
preto que veio em diáspora de África à América.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2017.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro; Graal; 3.
ed; 1989.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: N-1 Edições, 2020.
GALEANO, Eduardo. Patas arriba: la escuela del mundo al revés. Madrid: Siglo
XXI de España Editores, 1998.
G1, Portal. Justiça de SP arquiva caso de menino morto há 3 anos no Habib’s sem
apontar ou punir culpados. Matéria publicada em 27/08/2020. Acessada em 21/06/2022,
disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/27/justica-de-sp-ar-
quiva-caso-de-menino-morto-ha-3-anos-no-habibs-sem-punir-culpados.ghtml
G1, Portal. Caso João Alberto: o que se sabe um ano depois do assassinato em
supermercado de Porto Alegre. Matéria publicada em 19/11/2021(a). Acessada
em 21/06/2022, disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noti-
cia/2021/11/19/caso-joao-alberto-o-que-se-sabe-um-ano-depois-do-assassinato-em-
-supermercado-de-porto-alegre.ghtml
G1, Portal. George Floyd: um ano depois, EUA relembram assassinato que desen-
cadeou protestos pelo mundo. Matéria publicada em 25/05/2021(b). Acessada em
21/06/2022, disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/05/25/geor-
ge-floyd-um-ano-depois-eua-relembram-assassinato-que-desencadeou-protestos-
-pelo-mundo.ghtml
RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a
infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
THIONG’O, Ngugi wa. Moving the Centre: The Struggle for Cultural Freedoms.
Nairobi: EAEP, 1993.
Compartilhamos com as/os leitoras/es como foi difícil escrever este texto, não
por falta de habilidade ou qualquer tipo de dificuldade com a escrita. A questão é
que as cenas que utilizamos como imagens-narrativas da violência cotidiana que
atravessa os corpos negros não cessam de inundar nossos olhares. É difícil escrever
sobre uma problemática de vida e de morte que não pára de nos aterrorizar a cada
dia, com mais e mais mortes. Estamos hoje, no caminho de finalização dessa escrita
que nos fez sangrar novamente ao insistir na tarefa de recordar com a esperança de
fazer cessar a repetição. Segundo Eduardo Galeano, recordar vem “do latim re-cor-
dis, voltar a passar pelo coração” (apud TAVARES et al., 2018, p. 253). É com o
coração sangrando diante de mais mortes aqui no Espírito Santo e massacres em série
no Estado do Rio de Janeiro, no mês de julho de 2022, que concluímos esta escrita,
buscando expor as lógicas que traduzem um governo que atua pelo racismo e pela
necropolítica, atualizando o fascismo na contemporaneidade.
Entendemos que é preciso erguer a voz e nos opormos aos ismos (fascismos,
racismos, sexismos) que fazem os corpos negros e periféricos tombarem. Assim, para
iniciar nossas conversas, evocamos duas imagens que podem se conectar e nos dizer
algo sobre o tempo: o Angelus Novus e a imagem de Sankofa. O Angelus Novus, ou
o anjo da história, é utilizado por Benjamin (1994) em uma de suas teses sobre o
conceito de história. Trata-se de uma pintura que:
[...] representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixa-
mente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo
da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde
nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acu-
mula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria
de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais
fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele
vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade
é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226).
o passado, catando o que a sociedade vê como lixo, como dejeto, com os pés no
presente, para não repetir o passado, transformando o futuro.
Uma outra imagem que acionamos é a figura de Sankofa, que é parte de um
conjunto de ideogramas chamados adinkra, representado por um pássaro mítico e um
coração estilizado, que volta a cabeça à cauda, que “simboliza a volta para adquirir
conhecimento do passado, a sabedoria e a busca da herança cultural dos antepassados
para construir um futuro melhor” (7GRAUS, 2022).
Por que acionar a recordação, conectando cenas-imagens de nossas e outras
histórias, para colocar em análise a violência contemporânea? Porque apostamos que é
preciso retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Diante da
imagem do Angelus e de Sankofa, que representam olhares diferentes, fazemos uma
relação entre imagens de diferentes épocas, pois “o presente atua como interlocutor
do passado e, consecutivamente, como locutor do futuro” (SANTOS, 2015, p. 19).
As cenas-imagens que serão apresentadas buscam o diálogo entre as temporali-
dades a fim de provocar fissuras no tempo linear e cronológico, pois falamos de tempo
de intensidades, nas marcas que tais cenas-imagens provocam em nossos corpos.
Na Cena 1 falaremos do Corpo-menino infame, acionando os infames da história.
Na Cena 2, narrativas de familiares de jovens atingidos pela violência no Estado
do Espírito Santo. Na Cena-imagem 3, a violência que captura o Estado, vivida e
revivida a céu aberto, sem nenhum pudor ou disfarce, como marca dos nossos dias.
Este texto busca tecer reflexões, a partir de três cenas do horror cotidiano de
quem habita peles negras, acerca da violência contemporânea, do racismo e da necro-
política, que reproduz os processos colonizatórios, atualizando as violências e as
mortes em corpos negros.
Avisamos, decerto não será um texto agradável, que busque apaziguar afetos,
ao contrário, as cenas buscam nos deslocar do lugar confortável de espectadores
das cenas da vida real. Não se trata aqui de uma obra fictícia, uma novela que mas-
cara a vida, mas de cenas tingidas com sangue, de corpos que têm nome, idade,
cor, território. Ao trazer essas cenas e histórias, operamos no sentido oposto àquele
que se produz com a espetacularização da violência na mídia tradicional, que se
transforma em entretenimento ou virtualização da realidade (ŽIŽEK, 2001), ao
situar o horror nesse campo de um outro excluído da humanidade. Se continuamos
apáticos e tranquilos diante de tanta violência, é por que essa operação de apazigua-
mento tem prevalecido, como nos descreve Clarice Lispector: “saber que sempre
fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros
furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer” (LISPECTOR,
1999, p. 124). Quando Conceição Evaristo (2020) propõe que as escrevivências não
são histórias “para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos
injustos” (p. 30), ela nos ensina uma estratégia política que pode ser fundamental
para fazer emergir esse real da morte violenta (BISPO, 2018). É preciso contá-lo
como algo que desperta, que desorganiza a ficção que nos justifica, faz estremecer
a nossa casa e nos incentiva a exercer a nossa revolta e amor, como diz Lispector,
que permanecem guardados.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 263
Tivemos um encontro fugaz, e talvez por isto mesmo marcante: seu corpo pas-
sou pelo meu na praça próxima ao Lar Dom João Batista (instituição que cuidava
de alguns meninos de rua, administrado pelo pároco da Catedral de Vitória-ES,
Cônego Ayrola), de onde o menino saíra em disparada. Logo à frente, sua corrida
foi interrompida por um grupo de homens, que o seguraram, acusando-o de roubo.
Em meio ao “julgamento”, gritos, empurrões. Logo veio o veredicto: culpado! O
menino então foi levado dali por dois homens. Entre o burburinho dos cidadãos, entre
as palavras de ordem proferidas, o silêncio, a mudez de quem não acompanhava a
velocidade dos fatos...
Silêncio que se quebra com o barulho de um tiro. O menino cai morto a poucos
metros dali. “Justiça” concretizada, corpo punido. A morte se apresenta e se con-
fronta com o ideal de entender o mundo, ilusão/desejo de um corpo psicóloga. Como
entender um menino julgado a céu aberto e morto em plena rua? Como entender
um ser humano tratado como dispensável? Por que a Constituição Federal (1988)
e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD) não foram garantidoras do
direito à vida? (SIQUEIRA, 2017, p. 1011).
Esta cena aconteceu em 1991, mesmo ano de entrada de uma das autoras deste
texto no curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito
Santo. O encontro com o menino e com sua morte se tornou um acontecimento,
algo que “opera uma ruptura no aqui e agora e estabelece uma descontinuidade
entre o passado e o futuro. Imprevisível, o acontecimento não pode ser objeto de
explicação, mas, tão somente de narração, pode-se mostrar o acontecimento, mas
ele não pode ser dito” (VILELA; BÁRCENA-ORBE, 2007).
Iniciamos com essa cena da vida cotidiana, para narrar vidas tecidas a fios de
ferro, como nos diz Conceição Evaristo (EVARISTO, 2014). O menino-infame teve
seu corpo tombado pela ação da milícia que atuava no bairro. Tomamos infame como
anuncia Foucault (2003) e Lobo (2008), como uma vida sem registro, sem história,
sem feito de glória, uma vida cinzenta, que se ilumina por um feixe de luz: o encontro
com o poder. Um corpo invisibilizado no cotidiano, que, ao encontrar o poder na
forma da violência feita por mãos adultas e brancas, é exterminado.
Importante tecer a conexão entre o infame e o racismo de estado, pois não são
quaisquer corpos que tombam diante do poder, há um corte, uma cisão, uma demar-
cação entre o que deve viver e o que deve morrer. Segundo Foucault (2005), não se
264
Ana Maria86 chamou uma de suas filhas, que estava de saída para a escola, e
pediu que ela trouxesse as fotos de Júnior, o filho mais velho. Eram pelo menos uns
dez pacotes de fotos envelhecidas pela vida, pelo viver intenso; falavam de Júnior
desde sua primeira festinha junina, quando o bairro ainda não sabia o que era asfalto
ou saneamento básico. Ana Maria passava devagarzinho cada foto e narrava sobre a
época vivida por eles, pela família. Era uma saudade tão real, tão intensa, que fazia
com que qualquer um se emocionasse, se transportasse diretamente para a história
narrada; era uma senhora magra, de olhar intenso, o rosto abatido pela vida hip-
notizava. Ela simplesmente não parecia aceitar que ele havia partido. Por mais que
ela fosse consciente, precisava crer que ele iria voltar, que o filho não havia morrido.
Júnior já não mais vive, fora assassinado pela polícia militar em um suposto
auto de resistência; mas, naquele instante, como em uma película antiga, sua história
é refeita, recontada, reatualizada e revivida. Ana Maria por vezes olha na direção
da porta de madeira, ainda com sinais visíveis do arrombamento do dia da morte do
filho; segundo ela, volta e meia vê o menino entrando por ali... volta e meia imagina
o que não fez, o que poderia ser diferente.
É como se a narrativa de Ana Maria fosse sempre feita e refeita, mas, de alguma
forma, nunca foi, de fato, ouvida. A insurgência dessa memória, redesenhando uma
história que não pode ser esquecida, demanda um olhar mais atento sobre o testemu-
nho de mães e familiares que perderam seus entes queridos para mortes cometidas
por grupos de extermínio, corpos que mesmo em vida, também foram atingidos pela
violência do Estado. Não como uma “contemplação” a esse “lugar de vítimas”, muito
86 Todos os nomes mencionados são fictícios. A história narrada faz parte de Tese de Doutorado “Tem dias
que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente ou foi o mundo então que
cresceu: memórias e histórias de familiares de atingidos pela violência no Espírito Santo” (MATEUS, 2012).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 265
Um memorial foi destruído. Era uma pequena parede, pintada de azul e ador-
nada singelamente no topo com umas poucas telhas. Uma placa retangular anunciava
a homenagem às 28 vítimas da chacina no Jacarezinho. Alguns jornais se referem
ao episódio como uma operação policial, sem dar muita importância à informação
de ter sido a mais letal da história. As mídias populares e matérias produzidas pelos
moradores da própria comunidade chamam de chacina. O memorial estampava esse
nome na placa retangular, que finalizava sua mensagem com as seguintes exortações:
“Nenhuma morte deve ser esquecida. Nenhuma chacina deve ser normalizada”.
Mas o memorial foi destruído.
Ele trazia, abaixo da placa principal, 28 pequenas placas com os nomes das
pessoas mortas. Para não serem esquecidas. Mas o memorial foi destruído. Cada
uma das placas de metal foi meticulosamente arrancada com um pé de cabra – ima-
gino que também com um olhar de ódio e talvez de medo ou de culpa. Uma corda
foi amarrada em um daqueles trambolhos pretos e blindados, semelhante ao famoso
caveirão, para ajudar a trazer a parede abaixo. Parede que, depois, foi destruída a
marretadas. O que havia naquelas placas e tijolos de tão ameaçador? Eram muitos
policiais, armados, e com um caveirão. Destruíram meticulosamente o memorial,
como se ele pudesse conter as almas dos mortos. Como se elas pudessem voltar para
testemunhar o que havia acontecido.
Essa cena nos convida a pensar um turbilhão de coisas, das quais gostaría-
mos de destacar algumas. Primeiro é que a vida insiste na memória. Por isso, a
memória é insurgente. Lélia Gonzalez propõe uma diferenciação entre consciência
e memória, situando esta última como “lugar de inscrições que restituem uma
história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que
se estrutura como ficção” (GONZALEZ, 2020, p. 78). Isso porque a história que
consta nos autos, que é escrita pela fé pública da polícia, busca encobrir as imagens,
as dores, as violências, mas também as histórias e as vidas que são cotidianamente
interrompidas. Se a consciência ou o discurso dominante, que prevalece na mídia e
nas instituições, exclui as lembranças e vivências, a autora propõe que “a memória
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 267
tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do
discurso” (GONZALES, 2020, p. 79).
Ao trazer, seja na oralidade seja na escrita, pedaços de histórias que não foram
contadas sobre os jovens que foram mortos, elas questionam a naturalização da
violência que, para se legitimar, precisa desumanizar o outro e matar também a sua
história e a sua reputação. Lacan utiliza uma noção bem sugestiva, ao comentar o
destino trágico de Antígona que, tendo sido emparedada viva numa caverna, experi-
menta uma segunda morte, como uma espécie de morte em vida, uma morte simbólica
como aniquilamento do ser no domínio do significante: “o destino de uma vida que
vai confundir-se com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte inva-
dindo o domínio da vida, vida invadindo a morte” (LACAN, 1959-60/1997, p. 301).
A destruição do memorial parece expor justamente o paradigma dessa segunda morte,
que não se contenta em ceifar a vida do corpo e busca atingir qualquer vestígio de
vida que tenha restado na memória ou na história.
Achille Mbembe (2018) demonstra que esse processo de mortificação sim-
bólica ganha sua eficácia com a face colonial da razão negra que cria o que Fanon
(1951/2020) e Neuza Souza (1983/2021) chamaram de mito negro. Essa face da
razão negra consiste em um conjunto de discursos e práticas, “um trabalho cotidiano
que consistiu em inventar, contar, repetir e promover a variação de fórmulas, textos
e rituais com o intuito de fazer surgir o negro enquanto sujeito racial e exteriori-
dade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização prática”
(MBEMBE, 2018, p. 61). Se no cotidiano esse discurso, que Mbembe chama de
consciência ocidental do negro, se transmite em várias referências que associam o
negro ao “irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico”
(SOUZA, 1983/2021, p. 57), nas páginas policiais tudo isso ajuda a compor uma
criminalização de sua existência que serve para justificar seu extermínio. Essa crimi-
nalização é frequentemente ampliada para os círculos familiares, para que qualquer
clamor por justiça caia antecipadamente no vazio.
A função política da memória não se esgota, pois, na importância que cada
história tem para o luto dos familiares daqueles que foram mortos. O direito ao luto
é um direito de cada uma das mães que ganha força e repercussão capaz de desafiar
a naturalização da morte quando alcança uma mobilização coletiva. Trata-se de outro
texto da razão negra, que busca recompor a história mobilizando os fragmentos das
experiências que foram silenciadas. “Essa escrita”, diz Mbembe (2018, p. 63), “se
esforça, aliás, por fazer surgir uma comunidade que precisa ser forjada a partir de
restos dispersos por todos os cantos do mundo”.
Nossos mortos têm voz! Anuncia o documentário dirigido por Fernando Sousa
e Gabriel Barbosa (2018), construído a partir das narrativas de mães e familiares
vítimas da violência policial na Baixada Fluminense. Ecoa também o Movimento
Mães de Maio, que publicou um Memorial dos nossos filhos vivos, para contar as
histórias das “vítimas invisíveis da democracia” (SILVA, 2019). Esse livro é um ato
político que traduz a luta de várias mães por justiça, reparação e memória. Resgata
histórias que desmistificam “as concepções racializadas da lei e da ordem e desa-
fia as retóricas mentirosas, falaciosas e perversas que o Estado produz” (ALVES,
268
2019, p. 181) contra os jovens e também contra as suas mães e todos aqueles que
buscam preservar a memória.
Conversando sobre o que essas 3 cenas juntas nos transmitiram, pudemos reto-
mar algumas ideias. A primeira delas, diz respeito a esses dois diferentes olhares para
a história: o primeiro olhar, fixo e assustado, faz-nos ver desolados que as mortes se
acumulam e se multiplicam. Na primeira cena, foi uma criança, na última, foram 28
pessoas entre crianças e jovens, a maior parte jovens negros. Sabemos, entretanto,
que há uma linha de continuidade entre a crueldade de matar uma criança – crueldade
protegida pelo manto da branquitude que se arvora como dona da cidade e do bem –
e a naturalização das chacinas que se repetem ainda hoje nas periferias, executadas
pela própria polícia que deveria proteger a comunidade. Com esse mesmo olhar
assustado, retomamos as perguntas de Foucault (2005): “Como, nessas condições,
é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar
matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus
próprios cidadãos?” (p. 305). Outras chacinas se sucederam desde que começamos
a nossa escrita e permanecemos assustados, sem saber quando isso vai parar.
Também resgatamos o outro olhar, o da Sankofa, que se situa no desafio polí-
tico de afirmar a vida nesse mundo de morte. Na primeira cena temos o olhar de
uma estudante que hoje, psicóloga e professora, transmite essa memória como um
modo de excitar insurgências. Na segunda, o olhar se amplia para além do menino.
Temos uma pesquisadora que escuta e escreve a história de uma mãe que, sozinha
em um pequeno quarto, guarda as relíquias de uma vida. Vida que, ao ser escrita e
contada, deixa de ser infame, ganha alguma repercussão. Na terceira cena, vemos
no memorial o exercício de um olhar coletivo que se insurge para não deixar tantas
vidas e histórias serem apagadas e mortas. Se não pudemos evitar a primeira morte,
ainda é possível se insurgir contra a segunda, a dilapidação simbólica da memória de
uma comunidade. Se a letalidade da violência se amplia, precisamos ampliar ainda
mais as nossas vozes para que o silenciamento não persista.
Considerações finais
Mas, para isso, precisamos que os alunos e alunas (sobre)vivam. Não desejamos
juntar corpos, contabilizar mortes, pois trabalhamos com potências e com a vida.
As portas da universidade precisam permanecer abertas para que novos horizontes
sejam gestados. Não aceitamos a barbárie atualizada na contemporaneidade pela
necropolítica como algo irremediável. Benjamin (1994), relatou a pobreza da expe-
riência instaurada pela modernidade, uma experiência que dizia da impossibilidade
de construir experiências compartilhadas. Vivendo o horror da guerra, o autor não
suporta e sucumbe diante da barbárie, mas nos aponta uma pista para que possamos
repensar a barbárie que nos atravessa no tempo do presente: “Barbárie? Sim. Res-
pondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie.
Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir
para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco”
(BENJAMIN, 1994, p. 116).
Se as guerras cotidianas matam o corpo, destruindo esperanças, famílias e
sonhos, arrastando tempos sombrios sobre nós, precisamos, sem ingenuidade ou
romantismos, acreditar que é possível (re)começar a cada dia, retomando o passado,
repensando o presente e transformando o futuro.
270
REFERÊNCIAS
7GRAUS. Sankofa: significado desse símbolo africano. In: 7GRAUS. Dicionário de
Símbolos - significado dos símbolos e simbologia. 2022. Disponível em: https://www.
dicionariodesimbolos.com.br/sankofa-significado-desse-simbolo-africano/. Acesso
em: 15 jul. 2022.
ALVES, D. Posfácio: Mãe dar à luz, o Estado Mata!. In: SILVA, D. M. (org.). Memo-
rial dos nossos filhos vivos: as vítimas invisíveis da democracia. Movimento mães
de maio (Coord. Ed). São Paulo: Nós por nós Editora, 2019. p. 176-181.
ARENDT, H. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e his-
tória da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. (Obras Escolhidas, v. 1).
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
MATEUS. L.G. Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente
estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu: memórias e histórias de fami-
liares de atingidos pela violência no Espírito Santo. Tese de Doutorado. Universidade
Federal Fluminense. Niterói, 2012.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
NOSSOS Mortos têm voz. Direção: Fernando Sousa e Gabriel Barbosa. Produção:
Gabriel Barbosa. Apoio Rede de Mães e Familiares na Baixada Fluminense, Rede de
Comunidades e Movimentos contra a Violência, Casa Fluminense. Rio de Janeiro:
Quiprocó Filmes, 2018. DVD.
SILVA, D. M. (org.). Memorial dos nossos filhos vivos: as vítimas invisíveis da demo-
cracia. Movimento mães de maio (Coord. Ed). São Paulo: Nós por nós Editora, 2019.
Introdução
Nos séculos XVII e XVIII os corpos individuais são marcados pela vigilância,
alinhamento, pelo treinamento que lhes dava força, por técnicas de racionalização,
que representam a tecnologia disciplinar. A técnica disciplinar “é centrada no corpo,
produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso
tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 2018, p. 209).
A partir da segunda metade do século XVIII o poder disciplinar vem a ser
integrado e modificado por uma nova tecnologia de poder, que vai se dirigir à vida
dos homens, à multiplicidade, ao nascimento, à morte, ao homem-espécie. E no
lugar da anatomopolítica do corpo humano, surge a biopolítica da espécie humana.
A biopolítica, nova tecnologia de poder, representa “um conjunto de processos
como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundi-
dade de uma população, etc.” (FOUCAULT, 2018, p. 204). Desse modo, alguns dos
primeiros objetos de saber e alvos de controle deste biopoder foram a natalidade,
a mortalidade, a morbidade e longevidade, os quais foram observados através de
medição estatística. A observação destes fenômenos possibilitou o surgimento de
uma medicina higienista, marcada pela normalização do saber e compartimentação
da informação, com um viés medicalizante.
Para além dessa esfera, a biopolítica tem como campo de intervenção as
categorias que se situam fora do campo da atividade laboral, as incapacidades bio-
lógicas, como a velhice, as enfermidades, os acidentes e as anomalias; e introduz
instituições de assistência e mecanismos de seguridade, poupanças e seguros. O
biopoder também tem como campo de intervenção a preocupação com os efeitos
do meio, das relações do homem enquanto espécie e ser vivo, e seus efeitos no
meio de existência.
A biopolítica introduz a noção de população, “população como problema
político, como problema a um só tempo científico e político, como problema
biológico e como problema de poder” (FOUCAULT, 2018, p. 206), e se dirige
aos fenômenos aleatórios que acontecem a esta população com determinada dura-
ção, a partir de uma regulamentação da vida e de todos os processos biológicos
do homem-espécie.
Nesse sentido, a biopolítica se caracteriza pelo poder de “fazer viver” e “dei-
xar morrer” e esta tecnologia de poder desloca o lugar da morte, uma vez que o
direito de intervir para fazer viver, para prolongar a vida e controlar acidentes,
coloca a morte fora dessa relação e desse domínio de poder. Na biopolítica, “o
poder deixa a morte de lado” (FOUCAULT, 2018, p. 208) e se preocupa com a
regulamentação da vida.
Desse modo, entende-se que a biopolítica:
[...] é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos
de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos
fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura con-
trolar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em
compensar seus efeitos. É uma tecnologia que visa, portanto, não o treinamento
individual, mas, pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança
do conjunto em relação aos seus perigos internos (FOUCAULT, 2018, p. 209).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 279
[...] para viver é preciso fazer morrer, mas o que era uma injunção guerreira, torna-
-se biológica (a morte do outro, da raça ruim, inferior degenerada, é o que vai deixar
a vida em geral mais sadia, mais pura); trata-se de eliminar, não os adversários, mas
os perigos, em relação à população e para a população (PELBART, 2018a, p. 59).
280
Por todas essas razões, o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra
nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer
87 As medidas de segurança são “institutos jurídicos construídos originalmente na Europa com fundamento
no positivismo criminológico”. A aplicação desses institutos se dá pela teoria da periculosidade, “pois trazia
a ideia de que o crime poderia ser prevenido, de forma que, submetido o delinqüente ao tratamento das
medidas de segurança, evitar-se-ia a prática de novas infrações penais” (CAETANO, 2019, p. 102-103).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 281
maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é
uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça
constantemente com fantasias geradas colonialmente, caracterizadas por terras
selvagens, morte e ficções para criar um efeito de real (MBEMBE, 2019, p. 36).
De acordo com Pelbart (2018a, p. 57), o biopoder pode ser caracterizado como
uma tecnologia de dupla face “por um lado as disciplinas, as regulações, anátomo-po-
lítica do corpo, por outro a biopolítica da população, a espécie, as performances do
corpo, os processos da vida – é o modo que tem o poder de investir a vida de ponta
a ponta”. Desse modo, o necropoder agrupa a necropolítica ao biopoder. Assim, a
necropolítica e o necropoder explicam:
88
282
É relatado ainda que pelo menos 10% dos escravos africanos morreram na
travessia da África para as colônias ou após o desembarque dos navios negreiros, os
quais tinham os corpos depositados em valas; além de receberem surras ao chegarem
às terras dos seus colonos, inclusive a ordem régia de 1699 isentava de punição legal
os moradores que matassem quilombolas. Corpos dessocializados, despersonalizados,
afastados da sociedade e reificados (PELBART, 2018b).
Nesse sentido, recorremos à noção de homo sacer, conceito trazido por Agam-
ben (2002), que representa o homem insacrificável e matável, conforme figura no
direito romano arcaico:
[homo sacer] é aquele que, julgado por um delito, pode ser morto sem que isso
constitua um homicídio, ou uma execução, ou uma condenação, ou um sacrilégio,
nem sequer um sacrifício. Subtrai-se assim à esfera do direito humano, sem por
isso passar à esfera do direito divino. Essa dupla exclusão é, paradoxalmente,
uma dupla captura: sua vida, excluída da comunidade por ser insacrificável, é
nela incluída por ser matável (PELBART, 2018a, p. 61-62).
Nesse sentido, a condição do louco criminoso pode ser considerada a mais grave
com relação às outras populações encarceradas, a saber: por serem considerados
irracionais não possuem as suas solicitações ouvidas; em algumas situações, não
conseguem avaliar a situação em que se encontram, não sabendo a motivação da per-
manência em manicômio judiciário; em virtude do uso de altas doses de medicações
psiquiátricas, as quais retiram as possibilidades de ser, de resistir e de estabelecer
laço social; e por outras vulnerabilidades que fazem parte da realidade das pessoas
em sofrimento psíquico no Brasil (WEIGERT, 2015).
Considerações finais
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2002.
BAPTISTA, L. A. A cidade dos sábios: reflexões sobre a dinâmica social nas grandes
cidades. São Paulo: Summus, 1999.
COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro: Inter-
texto, 2001
DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5). São
Paulo: Ed. 34, 2007.
89 Conceito cunhado por Conceição Evaristo a partir de um jogo que a autora fazia entre as palavras
“escrever” e “viver”, fundamentado na autoria de mulheres negras, a fim de provocar uma denúncia.
Para mais sobre o termo, ver entrevista da autora disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/
conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem/.
290
Sobre o uso da história de Ponciá Vicêncio, ela vai ao encontro dos concei-
tos de historicotidiano, colonialidade e colonialismo quando atualiza, por meio
da vivência e da memória, uma escrita que apresenta como os cotidianos das
pessoas da história narrada são produzidos com permanências de violências e
desigualdades estruturais como, por exemplo, o racismo. Sobre historicotidiano
e colonialidade, insta dizer que eles representam, respectivamente, o continuum
colonial que une a colonização aos dias atuais (JESUS, 2020) e “uma lógica glo-
bal de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência das colônias
formais” (MALDONADO-TORRES, 2020, p. 36).
Além dos conceitos mobilizados, trouxemos no título a palavra liminaridade
(TURNER, 1975) para pensar num conceito que evoca o sentido de “nem lá, nem
cá”, entre o riso constante e o choro e terror desenfreados, num espaço intersticial
que não contém nem um, nem o outro, onde uma vida se forja e acontece. Na limina-
ridade, a juventude negra e periférica, foco deste ensaio, moradora do bairro Bonfim,
adjacente à Escadaria do Trabalhador, é mantida num estado de não sujeito, humano,
não humano, despossuído de si e, portanto, matável. Isso é de extrema importância à
lógica da violência e terror produzidos pelo braço armado do Estado, a polícia militar,
que atualiza com cenas de terror e morte o que os vinculados às contribuições do
Afropessimismo90 chamariam de violência originária e morte social.
São sujeitos vivos e reais deste texto as(os) familiares de um jovem morto pela
Polícia Militar do Estado do Espírito Santo na última sexta-feira de junho de 2021
durante uma operação desta instituição no bairro Bonfim, especificamente no local
conhecido como Escadaria dos Trabalhadores.
Na história que apresentaremos a seguir, pretendemos trazer à cena um recorte
da morte de João, 17 anos, suas(seus) familiares, as reportagens que circularam na
mídia popular depois do ocorrido, fotos tiradas por uma das autoras e outras compa-
nheiras de trabalho e questões teórico-metodológicas como, por exemplo, a) o fato
de uma das autoras ser técnica de referência do serviço municipal que acompanha a
família de João há alguns anos e que, portanto, participa de muitas situações junto à
família, ser pesquisadora, que tenta, na prática, encontrar rastros das teorias e mate-
riais lidos no campo literário das Ciências Sociais, da Terapia Ocupacional Social,
das Teorias Raciais e da Juventude negra e periférica e jovem (de acordo com o
Estatuto da Juventude), negra e periférica; as três situações se misturam de maneira
indissociável. E aí está o desafio posto para todas nós.
Uma primeira questão metodológica que nos acomete é a dúvida entre usar ou
não o nome do adolescente e familiares. Optamos por não utilizar, mesmo que os
veículos de informação, em momento algum, garantiram a anonimidade da situação91.
90 Movimento intelectual que encara a negritude pelo prisma da escravidão perpétua, escravidão esta como
uma ontologia do terror que sujeita negros e negras ao lugar de não sujeitos, à morte social hereditária.
91 Art. 247. Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome,
ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 291
Muito pelo contrário. Apresentamos, então, João92, 17 anos, negro, morador da Esca-
daria do Trabalhadores, no bairro Bonfim, Vitória, ES.
Uma das autoras enquanto técnica do CREAS esteve na casa dos Cândida uma
semana antes do ocorrido. Lá do alto, João e Maurício (irmão) passavam os dias
soltando pipa, namorando, na casa de familiares, já que moravam todos no entorno.
O beco, que também é uma escadaria, é imensamente alto, com muitos degraus de
escada que facilitam a não descida de moradores e dificultam – é a desculpa que
muitos representantes dos serviços dão – a subida de representantes das políticas
públicas e sociais para garantir direitos como saúde, educação, lazer, entre outras.
“Do alto tá palmiado” quer dizer, entre outras coisas, que lá do alto tudo se
vê. Do alto, está dominado. Entre casas de madeira e alvenaria, muitos fios pelos
postes, mato crescendo desenfreadamente e um acúmulo grande de lixo; crianças
brincam sem roupas, pessoas ouvem, dentro de suas casas, músicas em alto e bom
tom dos mais distintos gêneros musicais (evangélicas, funk, pagode etc.). As portas
da maioria das casas dão direto para as escadas e que as não dão, localizam-se no
fundo de quintais de “chão batido”, protegidos por cercas de madeira e alvenaria.
Ali naquele beco também se vende de tudo: portinhas comerciais, tipo bares,
churrasquinho com molho de maionese caseira, bolos de bote, chup-chup e dentre
outras coisas que facilitam e possibilitam o mínimo de renda possível; a identificação
de pontos de comércio fica, geralmente, nas portas das casas, em plaquinhas escritas à
mão (vende-se chup-chup). Naquele ponto específico da escadaria, que fica acima do
meio dela, a maioria das pessoas é da mesma família (Os Cândida). No beco-escadaria
também tem uma igreja evangélica onde as pessoas frequentam às vezes. Dentre as
árvores que ainda restam saem muitas crianças descalças, rindo, correndo pelo beco
uma atrás da outra sob a forma de brincadeira, a mais divertida. A diversão é um
correr atrás do outro sem roupa e rindo desenfreadamente. Os/as adolescentes e jovens
costumam ficar por ali também, conversando, rindo, usando o celular, ouvindo música
alta, namorando e soltando pipa. O céu de outono e inverno, no alto do município de
Vitória, costuma ser coberto por pipas. Existe até um festival-competição organizada
informalmente, que ocorre aos domingos dentro do Cemitério de Maruípe. Este lugar,
que não é neutro diante da rivalidade entre os bairros, é um ponto de encontro das
pipas, para quem pode ir até ele. As brincadeiras e alegrias ocorrem mais durante o
dia, porque à noite é sempre um risco.
João chamava sua casa de mansão; de alvenaria e ainda sem o reboco, como
várias casas vizinhas, a casa é enorme e ali moram muitas pessoas. Em cima da casa
tem um terraço e um lugar onde soltar pipa parece ser mais interessante do que no
meio da própria escadaria. A última vez que uma das autoras viu João com vida, ele
que se atribua ato infracional: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em
caso de reincidência. § 1º Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança
ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos
que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente. § 2º Se o fato for
praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a
autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação.
92 Nome fictício para manter o sigilo da identidade do jovem.
292
estava lá, sorrindo e soltando pipa. Nas paredes da parte externa da casa, marcas de
bala de borracha e balas “de verdade”. A polícia, de acordo com a família e vizinhos,
sempre subia atirando e entrar na casa da família era de praxe. Sempre o faziam.
João e Maurício, seu irmão, eram acompanhados pela equipe de medidas socioe-
ducativas em meio aberto (em que uma das autoras fazia parte) há algum tempo e
desde o início do processo de acompanhamento, uma das maiores dificuldades e
entraves encontrados pela equipe era com relação à circulação de ambos. Diante da
violência externa e das constantes operações da polícia militar (PM) no local de sua
moradia, eles não desciam, pois tinham medo de descer e serem mortos numa dessas
operações, ou em batidas, ou em situações semelhantes. Os irmãos sempre andavam
juntos. Maurício, que é o mais velho, com 19 anos, sempre acompanhava João e, o
que um fazia, o outro fazia também.
Na semana anterior à morte de João, Beatriz, sua mãe, relatou que o filho estava
constantemente com medo das operações e que até para ir na padaria, que fica “no pé
da escadaria” era difícil e ele se recusava. Quem dirá para ir ao Centro de Referência
Especializada em Assistência Social (CREAS), que ficava do outro lado do morro
onde a família morava. Ia-se, portanto, até eles. Nessa ocasião, João nem desceu,
estava ocupado soltando pipa. Lá do alto acenou com um sorriso e continuou na sua
programação. Beatriz havia perdido um filho recém-nascido há pouco menos de um
mês e a equipe do Creas foi até lá junto com a equipe da Unidade Básica de Saúde
para se pensar, junto com a família, em encaminhamentos possíveis. A namorada de
João apareceu na janela naquele dia (ela morava em frente), também conversou um
pouco com as equipes e, pouco a pouco, foram chegando mais pessoas da família,
já que moravam todas ali.
Daniele, tia dos dois jovens, foi uma presença marcante. Passou aquele tempo
conversando com a equipe do Creas, levando-a até sua casa (um pouco mais acima
da casa de João). Ela compartilhou sua alegria em poder morar com as filhas em uma
casa separada do restante da família, uma vez que morar junto “dava muita confusão”
(SIC), mas também disse das dificuldades encontradas naquele terreno. Com muito
mato crescendo, ela disse que era um local propício para a PM se esconder e que
temia pela vida das crianças, que estavam sempre pelo quintal e/ou pela escadaria
durante as investidas dos policiais. Naquele dia acordou-se com a família algumas
possibilidades para contribuir com a resolução do problema do mato crescente, dentre
outras coisas que dizem respeito ao processo de acompanhamento.
A principal questão apontada por Daniele e Beatriz foi a alegria dos filhos e a
fala que apareceu constantemente foi “eles não estão envolvidos em nada aqui no
morro, meus filhos só ficam dentro de casa e quando não estão em casa, estão na
casa da tia, da namorada, ou aqui fora conversando” (SIC), todas as casas próximas
umas das outras. O medo de descer, de sair da escadaria e ir para a “baixada” também
apareceu várias vezes e a recomendação das mais velhas da família era para realmente
evitarem sair de suas casas.
Depois que a equipe do Creas saiu da casa da família, elaborou-se, a partir do
que fora dito, novas possibilidades de intervenção e encaminhamento. Começou-se
a mobilizar a rede (composta por instituições públicas, mas também por pessoas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 293
[...] o discurso está na ordem das leis [...] em toda sociedade a produção do
discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedi-
mentos de exclusão (FOUCAULT, 2011, p. 7-8).
294
Existe, no próprio historicotidiano, não uma história que se faz e que se fez
ali, mas uma atualização histórica de desigualdades e permanências que evocam
a violência originária93 e se aglutinam em uma ontologia do terror provocada pela
ação da PM nesta situação – mas não só. Essa narrativa, bastante comparável à
história de Ponciá e Vô Vicêncio, carrega oposições e contraposições de vida e de
morte. As questões que logo se colocam são: Onde começa uma (vida) e termina a
outra (morte) para uma vida negra que já nasce em morte social? – em referência à
Patterson (2018). Não poder descer do morro por medo, ainda que existisse vontade,
era permanência da vida ou atualização de uma morte social? João, de 17 anos, com
sonhos e desejos, ao ter medo de descer do morro e morrer já vivia sob a insígnia
da morte social? É possível morrer socialmente e continuar vivendo? Por último, e
não tão aliada ao afropessimismo, existe, como afirmou Mbembe (2018), uma vida
que pulsa diante da morte?
Foucault (2012) nos ajuda a pensar nos aprimoramentos dos artifícios de
governo, investidos na população (biopolítica) e no corpo (disciplina) tanto pelo
Estado quanto pelas diversas instituições, em uma teia de saber-poder e subjetivação.
Todavia, tal captura em “nome da vida” cria mecanismos de poder para regular
a sociedade, fazendo os acontecimentos do dia a dia se tornarem “normais” e, assim,
racionaliza-se essas “normalidades”, sem questioná-las, pois, é em nome de uma
suposta produção da vida que elas são constituídas.
Neste sentido, cabe aqui o que Foucault (2012) conceitua de Biopolítica, ou
seja, uma política sobre a vida como forma de controle, que consiga gerir economi-
camente a população, valorizando o “deixar viver” e o “fazer morrer” como forma
de controle em “favor da vida”.
A história de João se repete historicotidianamente no Brasil afora. Em Belford
Roxo94, crianças negras desaparecem sumariamente; em São Gonçalo, João Pedro95
é baleado e fica horas desaparecido, até que o corpo é entregue à família; e em Costa
Barros, também no Rio de Janeiro, cinco jovens são mortos a tiros pela polícia, após
saírem para comer um lanche96. Ainda que todos esses casos sejam revoltantes e ina-
ceitáveis, a repercussão na esfera pública de cada um deles é mediada e pautada pela
mídia, mais especificamente, pela mídia tradicional. Ou seja, depende dela o papel que
polícia, instituições, governos, vítimas e familiares vão assumir em cada narrativa,
a partir da forma como apresentam as histórias. A mídia, e na maior parte das vezes
a imprensa, tem o poder de dizer quão revoltante e inaceitável são essas histórias e
qual a importância devemos dar a elas, seus contextos, desfechos e investigações.
Em acordo com a Teoria do Agenda Setting, os veículos de comunicação de massa
93 Para Patterson (2018) a violência originária é aquela que define o espaço constante da morte e que define o
ser social. Esse ser vive consequências ontológicas indizíveis e tem a violência como fundamental produtor
de sua subjetividade.
94 Notícia disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/29/tres-meninos-desaparecem-
-em-belford-roxo-policia-realiza-buscas.ghtml.
95 Notícia disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-19/jovem-de-14-anos-e-morto-durante-
-acao-policial-no-rio-e-familia-fica-horas-sem-saber-seu-paradeiro.html.
96 Notícia disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/cinco-jovens-sao-fuzilados-dentro-de-carro-
-na-zona-norte-do-rio-18174696.html.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 295
detêm a capacidade delimitar o que consideram ter valor-notícia e que, portanto, deve
ser reportado, comentado e discutido. Não é à toa e nem imparcial o fato de alguns
casos ficarem por meses em evidência, enquanto outros recebem pequenas notas ou
passam desapercebido. E também não é por acaso que tragédias envolvendo jovens
de classes alta e média, os “universitários”, ganham repercussão bem distinta daquela
que envolve pessoas negras da periferia. E se, como já mencionado, a polícia entende
esses como corpos matáveis, a mídia tradicional muitas vezes segue a mesma linha.
O senso comum, as representações sociais, os estereótipos (MOSCOVICI, 2017;
NEWMAN, 1975; BIROLI, 2011) carregados do racismo estrutural permeiam a
sociedade de modo generalizado, e no enquadramento interpretativo de diferentes
veículos é comum que se encontre a existência de quadros dominantes (HANGAI,
2012). Sobre esses quadros, deve-se observar, para além da repercussão, o conteúdo e
o discurso ancorados às narrativas noticiadas. A Teoria do Enquadramento explica que
o próprio enfoque dado à notícia depende de escolhas editoriais, de visões de mundo
e de interesses múltiplos que muitas vezes são escondidos na forma de “verdade”.
Ou seja, essa proposição teórica sugere que o jornalismo proporciona à audiência
quadros interpretativos que orientam a interpretação e compreensão da realidade,
especialmente diante de fatos novos e que ainda demandam sentido (DAFLON;
FERES, 2012).
No caso do jovem João, todas essas nuances estão evidentes em reportagens
veiculadas na ocasião de seu assassinato. Para esta análise, assume-se de modo com-
parativo as notícias publicadas em um dos principais e mais tradicionais jornais do
estado, A Gazeta, e um veículo tido como o principal jornal “alternativo” do Espírito
Santo, o Século Diário.
Em uma breve busca na plataforma on-line de A Gazeta, a partir da palavra-
-chave “João Cândido” são encontradas 4 reportagens sobre o assunto, veiculadas
nos dias 15 e 16 de junho de 2021. O mesmo procedimento de coleta de dados na
plataforma on-line do Século Diário retorna, por sua vez, 6 reportagens, com datas
que estendem de junho a outubro de 2021. Tais resultados reforçam que a morte do
garoto não gerou grandes esforços noticiosos e repercussões, como ocorreu dentro da
própria comunidade onde morava. Contudo, há que se observar, que Século Diário
parece fazer um esforço para tratar da continuidade do caso, do acompanhamento
ao longo de alguns meses subsequentes, enquanto A Gazeta se limita a noticiar o
fato, concentrando-se em únicos dois dias, próximos ao evento, trazendo eventuais
e pontuais atualizações.
Mas nessa hitoricotidiano, em que a vida de um negro pouco vale, qual o teor
das notícias? Na perspectiva da imprensa tradicional, aqui representada por A Gazeta,
observa-se que João é um jovem da periferia, cuja a trajetória se resume a alguém
“que já tinha passagens” pela justiça. A vida que já é previamente assumida como
morte, faz com que o jornal não problematize a ação da Polícia Militar, não questione
precariedade do Estado de cuidar dos seus, não evidencie a idade do garoto e, por-
tanto, a prematuridade de uma vida perdida, e nem explicite a revolta de familiares,
amigos, vizinhos diante de um assassinato no quintal de casa. Nada disso dá tom às
notícias. A manchete é evidente quanto ao enquadramento de A Gazeta: é o histórico
296
“criminoso” de João que ganha destaque nas páginas do jornal, e que implicitamente
culpa a vítima e redime polícia, o Estado e todo o resto.
A Gazeta ENT
Polícia
POLÍCIA DIZ QUE JOVEM TINHA PASSAGENS
"Ele já é conhecido tanto pelas nossas guarnições quanto pelo nosso serviço de
inteligência. Ele tem duas passagens anteriores pela Justiça. Uma em 2018
quando com ele foram apreendidos duas armas de fogo, grande quantidade de
entorpecentes e uma granada; e uma em 2020 com uma pistola 9 mm também.
Há parentes dele que têm passagens pelo crime de tráfico de drogas, dois tios e
um irmão. Então já é um conhecido da polícia", disse.
A noite dessa quinta-feira (24) foi de terror para os moradores do Bonfim, no Território do
Bem, em Vitória. Uma ação policial culminou na morte do adolescente Danilo Cândido de
Jesus, de 16 anos, e deixou outro jovem baleado na perna. Em um vídeo que circula nas redes
sociais, uma mulher que se identifica como tia do rapaz assassinado relata que os policiais
estavam em um beco, de onde atiraram no jovem, que se encontrava no quintal de casa. "Eles
não socorreram, não ajudaram meu sobrinho", diz a moça no vídeo sobre a Polícia Militar
(PM).
Foto: DIvulgação.
Portanto, uma mesma história com várias versões ou vários olhares é o que
se apresenta. Não que isso signifique multiplicidade de informações, diversidade e
oportunidade para o público chegar a sua própria conclusão. O fato de dois veículos
terem noticiado de maneira distinta o assassinato, não significa que a população teve
acesso a ambos e nem que os dois veículos possuem o mesmo poder e credibilidade no
espaço social. Como é de praxe, a mídia tradicional tem muito mais espaço, audiência,
poder e voz na narrativa dos fatos na sociedade contemporânea. Século de Diário
apresenta-se como uma alternativa, como um canal de informação que alcança um
público específico, segmentado, que, em geral, atua para buscar especificamente esse
outro olhar. Portanto, tem alcance limitado e não compete pela atenção do público
de massa de forma equilibrada. Mas o veículo alternativo também é parcial, carrega
interesse e visões de mundo. E sua história também não é a mesma daquela vivenciada
e contada pela família, e nem pela que narramos aqui, da nossa própria perspectiva.
Sob o nosso olhar, consideramos oportuno fazer um paralelo ao capítulo “A
clínica do Sujeito”, que se encontra no texto Crítica da Razão Negra, de Achille
Mbembe (2018). Nele, após discorrer sobre as formas de sujeição e institucionalização
do negro no mundo, o autor nos ressalta que existe algo que pulsa ali. Na contramão
do que Patterson (2018) afirma, Mbembe (2018) convoca as formas de agência da
população negra para pensar na vida e no desejo de vida que pulsa diante de tanta
morte social e física. E nesse contexto, lembra-se que no dia 25/06, pela manhã,
coletivos juvenis auto-organizados do Território do Bem convocaram, por meio das
redes sociais Instagram e Whatsapp, um protesto no pé da Escadaria dos Trabalha-
dores, uma vez que a ostensiva PM havia passado a noite ali e até o meio-dia (em
25/06) seguia com suas balas de borrachas (misturadas com balas reais) direcionadas
à população, que pedia apenas que parassem.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 299
pôde ser visto no carnaval deste ano no município de Vitória. A pandemia de Covid
19 iniciada em 2020 perdura ainda em 2022 e as consequentes restrições ao carnaval
incidiram apenas sobre as festas de rua gratuitas que aglutinariam o povo preto e
pobre. Ao contrário disso, as festas privadas, em espaços cujo acesso estava restrito
ao pagamento, foram deliberadamente autorizadas, apesar de implicarem aglomera-
ções tanto quanto as do espaço das ruas97. Regras seletivas como as estabelecidas no
“Carnaval do Cercadinho”98 de 2022 em Vitória, dizem quem está autorizado a rir,
se divertir e brincar e quem tem direito apenas à tristeza e à interdição. Como afirma
Winny Rocha, representante do bloco AfroKizomba, maior bloco negro da capital
do ES, em seu artigo recente sobre o tema no jornal A Gazeta:
97 Em 1 de março de 2022, o bar da Zilda, espaço tradicional de manifestação cultural do samba e encontro
da população periférica, foi fechado e multado sob a acusação de provocar aglomeração, ao mesmo tempo
que acontecia em outros pontos da cidade aglomerações privadas, como o Festival Baile Voador no Clube
alvares Cabral. Ver: https://www.instagram.com/p/CalJfLwhmyR/?utm_medium=share_sheet e https://www.
instagram.com/p/B8wLzNyBiB-/?utm_medium=copy_link
98 Carnaval no cercadinho: com rua proibida, folia é só para quem pode pagar – texto de Winny Rocha,
disponível em: https://www.agazeta.com.br/artigos/carnaval-no-cercadinho-com-rua-proibida-folia-e-so-para-
-quem-pode-pagar-0222?utm_medium=redacao&utm_source=instagram Acesso em: 2 mar. 2022.
99 Entre os jovens, em 2019, a taxa foi 45,8 pcm.
302
100 Cefai (2017, p. 192) utiliza o termo campo de experiência coletiva para referir-se a “[...] modos de ver, dizer
e fazer de sentido comum, articulados por uma rede de números, categorias, tipos, relatos e argumentos
disponíveis que permitem apreender um estado de coisas como um problema identificável e reconhecível”.
Cefai (2017, p. 195-196) afirma ainda que o termo experiência pode ser entendido de três maneiras: uma
prova estética (os sentidos afetivos e estéticos são aquilo que, aquém dos raciocínios e julgamentos, nos
dão acesso ao mundo); uma experimentação prática e uma troca interacional.
304
REFERÊNCIAS
BIROLI, F. Mídia, tipificação e exercícios de poder: A reprodução dos estereótipos
no discurso jornalístico. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 6, p. 71-98, 2011.
CEFAI, Daniel. Públicos, Problemas Públicos, Arenas Públicas… O que nos ensina
o pragmatismo (Parte 2). Novos estudos. CEBRAP, São Paulo, v. 36, n. 2, p. 129-
142, out. 2017.
CERQUEIRA, Daniel. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível
em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia-
2021completo.pdf. Acesso em: 3 mar. 2022.
MELO, R.; SILVA, M. Programa Bronca Pesada: Violação dos direitos fundamentais,
sensacionalismo e espetacularização da violência na mídia pernambucana. Cadernos
de Graduação: Ciências Humanas e Sociais, v. 3, n. 2, p. 9-26, 2017.
ROCHA, Winny. Carnaval no cercadinho: com rua proibida, folia é só para quem
pode pagar. In: A Gazeta, em 17/02/2022. Disponível em: https://www.agazeta.com.
br/artigos/carnaval-no-cercadinho-com-rua-proibida-folia-e-so-para-quem-pode-pa-
gar-0222?utm_medium=redacao&utm_source=instagram. Acesso em: 2 mar. 2022.
Introdução
entre os mais jovens, para quem a autoestima é afirmada a partir da aceitação nas
mídias sociais, pelo olhar e aprovação do outro (conhecidos e desconhecidos).
Por exemplo, um livro digitalizado não é apenas um objeto que pode ser lido
em um e-reader por determinado público. Pela dataficação, é a ação de ler (e de
escrever) que é (são) quantificada(s) e analisada(s), gerando o conhecimento e
predições sobre, por exemplo, velocidade de leitura, citações mais destacadas por
leitores, poética da escrita etc. Essa ação vai além da digitalização em direção a
uma performatividade dos dados com vistas a balizar novas ações, comportamen-
tos e conhecimentos (LEMOS, 2021, p. 194).
Por fim, sobre a overdose de informação, o excesso de dados, pode-se dizer que se
trata de um processo imanente à história atual. A quantidade de informação gera
um mecanismo semelhante ao processo de imunização provocado pela vacina.
A imposição permanente de informações leva à neutralização destas por parte
do receptor, dada a impossibilidade de seu processamento na instantaneidade
(ALVES; MANCEBO, 2006, p. 51).
Estar fora das redes ou offline é também sentir e experimentar estar fora da
vida, onde algo sempre acontece e sempre é perdido, uma equação que resulta em
aumento da ansiedade e estresse. Nesse sentido, a vida digital tem sido extenuante ao
demandar dos indivíduos o autocontrole em meio a cultura da livre escolha, convocan-
do-os a produção de uma gestão individual dos usos das TICS, como silenciamento
das notificações dos aplicativos, definição de modos pessoais de uso e tentativas de
abandono do estado de alerta contínuo (SIBILIA; GALINDO, 2021).
No aumento da compressão espaço-tempo se amplia nossa capacidade de prestar
atenção a vários tópicos ao mesmo tempo, como estratégia para não se perder nada
nesse campo da multiplicação exponencial dos estímulos (SIBILIA; GALINDO,
2021). Como extensão desse fenômeno vemos o aumento da cobrança para que
possamos realizar várias tarefas ao mesmo tempo, em especial, para aqueles no
teletrabalho, devem desempenhar um verdadeiro malabarismo entre as demandas
do trabalho, as notificações dos aplicativos, as demandas da casa e, muitas vezes,
das crianças que também estiveram sem aulas durante os períodos de isolamento.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 313
Dessa forma, são criadas bolhas que lidam com a pandemia e, outras que for-
talecem o negacionismo, porém, ambas não dão conta de combater uma pandemia
sem políticas de saúde e controle da circulação do vírus. Além disso, os próprios
dispositivos algorítmicos compõem o cenário de produção de sofrimento quando
colocam ambas realidades em jogo. As de vidas que sempre estiveram na rua por
serem autorizadas, as de pessoas que tentam dar conta de uma realidade e vida virtual
para controle de contágio, precarizadas por essa sobrecarga sem estrutura. E por fim,
as que sempre estiveram expostas, negligenciadas pelo Estado. Nesse conflito, se
expõe o jogo de saúde de forma individual e empreendedora, sendo que o necessário
é a tomada coletiva pela garantia de direitos e saúde, algo que durante todo momento
pandêmico, em seus diferentes níveis, nos é e foi negado.
A digitalização da vida, as fake news e o contexto pandêmico expõem o bru-
talismo em curso nas sociedades contemporâneas. Para Mbembe (2021), o termo
brutalismo é trazido do campo da arquitetura para se referir a amplos processos de
demolição e da produção de reservas de obscuridade. Ou seja, trata-se de um “[...]
processo de despejo e evacuação, mas também de descarga dos recipientes e de
esvaziamento das substâncias orgânicas” (MBEMBE, 2021, p. 15). Nas palavras do
autor (MBEMBE, 2021, p. 15), “por brutalismo, refiro-me ao processo pelo qual o
poder como força geomórfica agora se constitui, se expressa, se reconfigura, atua e
se reproduz por fraturamento e fissuração”.
A Terra vem passando por mudanças aceleradas de degradação em que tudo
e todos os seres vivos se tornaram “fonte potencial de capitalização” na criação de
um novo mundo como efeito do brutalismo. Na criação desse novo mundo objetiva-
-se criar uma segunda natureza como efeito da ordenação gerada pela computação
digital –, uma natureza quantificada (MBEMBE, 2021). O brutalismo é o efeito da
justaposição de várias imagens da razão: “a razão econômica e instrumental, a razão
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 315
[...] corrobora com essa indissociabilidade o fato de que, embora tal prática só
possa realizar-se, por princípio, no âmbito de cada existência, ela não se dá iso-
ladamente. Primeiro porque seu motor não começa nem termina no indivíduo, já
que sua origem são os efeitos das forças que habitam cada um dos corpos que o
compõem [...] (ROLNIK, 2018, p. 38).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 317
Dessa forma, identificamos que não há guia para lidar com o sofrimento e,
nem resposta que possa abranger a complexidade dos novos modos de subjetivação
através da brutalização da vida, mas a partir de perguntas e reflexões podemos pensar
em caminhos, aberturas, linhas de fuga e deslocamentos para com o cerceamento do
nosso desejo e manutenção do mesmo pelo neoliberalismo. Nesses deslocamentos
acreditamos haver possibilidades de novas formas de viver a experiência subjetiva
do desejo por novos modos de vida e outros mundos possíveis. Além disso, nesse
emaranhado micro/macro, o desejo por novos mundos se faz urgente, não havendo
possibilidade dessa criação de forma separada. Essa aposta necessita passar pelo
que nos conecta de forma coletiva, para vivências de uma democracia para todos as
pessoas que ocupam a biosfera, para o que Mbembe (2021) chama de viventes, pois
não há outra forma de habitar o mundo que não passe pela busca desse em-comum
que nos foi tirado pelo desejo produtivo neoliberal.
Sendo assim, a verdadeira democracia só pode ser a dos seres vivos como um
todo. Essa democracia dos viventes exige um aprofundamento, não no sentido
do universal, mas no sentido do em-comum, e, portanto, um pacto de cuidado, o
cuidado do planeta, o cuidado prestado a todos os habitantes do mundo, humanos
e não humanos (MBEMBE, 2021, p. 61).
Ele se baseia na profunda convicção de que não há mais distinção entre seres vivos
e máquinas. A matéria em última instância é a máquina, isto é, nos dias de hoje,
o computador em seu sentido mais amplo, tanto nervo, cérebro, quanto realidade
318
Nos parece caro retomar o que está para além da produção, utilidade e pilha-
gem, precisamos retomar a imanência do viver para pensar em outras formas de
mundo. O encontro para além das telas precisa ter a importância devida, pois nele
nos deparamos com a diferença, a criação e a noção de que cada singularidade se
potencializa e produz um mundo em-comum. Reconhecemos todas as vantagens das
tecnologias, não é a intenção dessa escrita desqualificá-las, mas ao problematizá-las
entendemos a importância das práticas presenciais na noção de mundo em-mundo
compartilhado, de sensações que estão imbricadas a processos de saúde e de luta
por outras temporalidades menos aceleradas. Há urgência em ampliarmos as ideias
sobre nossas formas de habitar o planeta, flexibilizando as fronteiras e ampliando
a multiplicidade dos modos de vida, rompendo a estratificação de recursos que se
conecta com o cerceamento das subjetividades.
A pandemia e o incremento das TICS, com a intensificação do uso das telas para
boa parte das atividades cotidianas, trazem o aumento da noção de individualidade,
minimizando a importância das relações para nosso bem estar e também da noção de
pertencimento. Nos relatos clínicos, após mais de dois anos de pandemia, surge cada
vez mais a sensação de solidão, tédio e vazio, pois a exposição imagética constante
forja não apenas o tempo, mas também nossas sensações. Proposições para tais fugas
passam pela alteridade, pela aposta na troca das relações como processo de saúde e
criação de corpos coletivos.
101 Metaverso é a realidade virtual que possibilita a vivência através de avatares em espaços 3D. “ Nos espaços
em 3D do metaverso, você poderá interagir, aprender, colaborar e jogar muito além do que podemos imaginar”
(META; FACEBOOK, 2022).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 319
REFERÊNCIAS
ALVES, P.; MANCEBO, D. Tecnologias e subjetividade na contemporaneidade.
Estudos de psicologia. 2006, p. 45- 52. [online]. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/epsic/a/LvfWyf4hCy5BzTLvm4r5LBc/?lang=pt. Acesso em: 23 mar. 2022.
IBGE PNAD/COVID 19. Pesquisa Nacional por amostra de domicílio PNAD COVID
19. Maio de 2020, resultado mensal. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv101727.pdf. Acesso em: 15 jul. 2022.
KRENAK, A. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
MBEMBE, A. Brutalismo. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2021.
ROLNIK, S. Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada/Suely Rol-
nik. – São Paulo: n-1 edições, 2018. 208p.
SIBILIA, P.; GALINDO, M. A. Correndo para não perder nada: temporalidade ansiosa
e a frustração do (i)limitado. Civitas – Revista De Ciências Sociais, v. 21, n. 2, p. 203-
213, 2021. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.39950.
PESQUISA-INTERVENÇÃO COM
UM COLETIVO LGBTQIA+:
enfrentamentos e insurgências na periferia
do Grande Bom Jardim, em Fortaleza
Tadeu Lucas de Lavor Filho
Luciana Lobo Miranda
Violeta Maria Siqueira de Holanda
102 Adotamos a sigla LGBTQIA+ para apresentar as políticas de identidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Queer, Intersexos, Agêneros. O caractere “+” indica outras possibilidades de genderização
dos modos de vida além dos supracitados. O nome do coletivo juvenil foi suprimido por questões éticas na
apresentação desse capítulo.
103 Apesar da pesquisa de campo (coleta de dados) esteja concluída, o autor principal segue em desenvolvimento
do produto final, a tese de doutorado intitulada “Bricolagem, alianças e produção do comum”: Cartografia
das práticas culturais periféricas de coletivos juvenis em Fortaleza”. A pesquisa de doutoramento é vinculada
a Linha de Pesquisa Sujeito e Cultura na Sociedade Contemporânea no Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará (PPGP-UFC).
104 Curso de Especialização Latu Sensu em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
322
105 O termo trans se aplica ao campo identitário/alteritário de pessoas que assumem um gênero que diverge
daquele atribuído em função da sua condição sexual biológica.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 323
106 O território do Grande Bom Jardim é composto pela aglutinação geográfica de cinco bairros circunvizinhos:
Bom Jardim, Siqueira, Granja Portugal, Granja Lisboa e Canindézinho.
324
107 O conceito de interseccionalidade foi cunhado na literatura cientifica como uma lente metodológica de com-
preensão dos sistemas de privilégio e exclusão que operam nos modos de vidas, tendo como analisadores
de suas estruturas os marcadores sociais da diferença. Este conceito não apenas se aplica a estudar as
condições de injustiças sociais, como também de compreender o campo da exclusão social. In: CRENSHAW,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 325
Percurso metodológico
autor desse artigo e dois jovens moradores do GBJ. A execução da pesquisa aconteceu
entre outubro, novembro e dezembro de 2020 e janeiro e fevereiro de 2021, conta-
bilizando cinco (5) meses de execução de dois eixos metodológicos: 1) aplicação de
questionários quantitativos via Google Forms; 2) execução de nove (9) grupos focais
com diferentes grupos/coletivos juvenis/movimentos sociais do GBJ. Ratificamos
que para a construção desse estudo nos apoiamos apenas na análise e tratamento
de um (1) grupo de discussão especifico, cujo emblema é o direcionamento para as
questões da diversidade LGBTQIA+ no território.
Procedimentos110
Grupos de discussão
110 A pesquisa possui aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Ceará (UFC) sob parecer
nº 4.470.814.
328
Em sua trajetória de criação, para garantir essa visibilidade, o coletivo inicia seu
trabalho no GBJ por volta de 2018 visando não apenas identificar a representatividade
de uma comunidade diversificada de gêneros, mas uma comunhão de precarizações,
que mesmo maximizadas nesses corpos, também assolam a comunidade que vivem
das mesmas condições de pobreza e vulnerabilidade social (MAGALHAES, 2020).
Entrevistada 3: Eu acho que, no meu caso, pra galera que eu vejo também, enfim,
é não ter muita perspectiva. É não sonhar muito alto, é sempre ter o pé no chão
e é como se fosse meio que uma regra ter o pé no chão, você não pode voar. E
aí, eu acho que ser jovem na periferia é resistir duas vezes, porque você tem que
se impor perante a sociedade também, é quase claustrofóbico, mas renasce. É
isso, galera.
Entrevistado 2: Eu acho que a comunidade assim, mesmo que nós percebemos que
ainda há uma abertura, né, dentro das nossas questões dos nossos corpos, ela ainda
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 331
barra muito das questões, sabe? Eu acho que é um afronte mesmo da gente todo
santo dia, das nossas ações, de dizer que nós queremos realizar e nós precisamos
falar sobre nós e precisamos sobreviver, né? Então, a gente quebra esses paradig-
mas cotidianamente, né. Hoje por conta do coronavírus, na internet, mas antes
disso a gente estava nas ruas, em atividades que trouxessem muitas pessoas, muitos
de nós, e também muitas pessoas hétero, né, que eu acho importante também que
nesses processos de educação a gente eduque mesmo, reeduque essas pessoas que
são as pessoas que vão contra as nossas vidas, que não nos compreende, que não
nos aceita, e a gente precisa trabalhar com esse público.
Entrevistado 2: A gente se tornou, pelo curto período de vida que o coletivo tem,
nós nos tornamos referência, né, de ações, de chegar próximo de pessoas que
não se compreendiam LGBT, se martirizavam por isso porque não conseguiam
entender esse rolê, essa questão de gênero, né, que a gente acompanhou algumas
pessoas transexuais que se reconheceram muito jovens estavam tendo problemas
familiares e na escola, na questão também de aproximar outros equipamentos e
outros coletivos do território, pra conseguir também garantias de ações que as
pessoas não conseguiam dentro do território, suporte de saúde, como a testagem
rápida, que a gente conseguiu trazer pro Bom Jardim, como essa questão também
de uma voz mais ativa pra participar de momentos de tomada de decisões.
você, entendeu? Então eu acho que isso já é um grande impacto, e fora também
as ações que o [coletivo] vem promovendo (18/12/2020).
Entrevistado 2: Pra mim foi isso, como eu citei, eu me senti chegar num espaço
que eu não sentia mais à vontade, favorável, de ir pra outros espaços pra conseguir
falar sobre mim, pra conseguir me sentir quem eu sou, de pegar na mão do meu
companheiro, de beijá-lo, sem precisar ir pra Praia dos Crush, pra Boate Level, pra
Gentilândia, por que eu não crio esse lugar de afeto também e de respeito dentro
do meu território? Então partiu disso também, de eu querer me sentir totalmente
completo e pertencente a esse território que antes era muito embaçado pra mim,
porque eu tinha muitas questões sobre como as pessoas iam reagir. Quando eu
parei de pensar mais nas pessoas e pensei mais em mim e no que eu queria fazer
a partir daquilo, foi que eu entendi que um coletivo fazia de grande necessidade.
logo depois a gente chegou com o CCBJ mais o Sicrano1 pra compor o Miss Gay
Bom Jardim, inclusive eu participei como jurado e muitas ações assim.
Ainda nesse cenário das inserções do coletivo nas políticas públicas, existem
muitos percalços e desafios, sobretudo porque são poucos repasses de verbas do
Estado para o acolhimento desse segmento populacional, e principalmente pela
carência de oportunidades para que a população LGBTQIA+ estejam dentro de
diversos locais, do mundo do trabalho, da profissionalização, do lazer e da passa-
bilidade no próprio território.
Essas alianças feitas com algumas instituições no GBJ permitem que o coletivo
também possa utilizar desses espaços para serem palco de suas intervenções artísticas
e educativas. Isto porque, como já dito anteriormente, não apenas são produzidas
334
práticas culturais artísticas. O coletivo também se preocupa com o efeito que essas
intervenções reverberam nas pessoas que convivem na comunidade.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
AGUIÃO, Silvia. Não somos um simples conjunto de letrinhas”: disputas internas e
(re) arranjos da política “LGBT. Cadernos Pagu, p. 279-310, 2016.
BARROS, João Paulo Pereira; ACIOLY, Lilith Feitosa; RIBEIRO, Júlia Alves Dias.
Re-tratos da juventude na cidade de Fortaleza: direitos humanos e intervenções micro-
políticas. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 7, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016.
CAVALCANTE, Laisa Forte et al. Fórum de Escolas do Grande Bom Jardim: práticas
de enfrentamento à violência armada em territorialidades escolares de periferias de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 337
DIÓGENES, Glória. Cidade, arte e criação social: novos diagramas de culturas juve-
nis da periferia. Estudos avançados, v. 34, p. 373-390, 2020.
GOMES FILHO, Antoniel dos Santos et al. E quando as bichas, sapatão, travas e
trans caminham pelas ruas? Os emblemas sociais da caminhabilidade no Brasil.
Sociologias Plurais, v. 7, n. 1, 2021.
LAVOR FILHO, Tadeu Lucas de.”Spray nas mãos, afetos nos muros”: cartografia
de inter(in)venções do graffiti no cotidiano de jovens inventores. 2020.193f. Disser-
tação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em
Psicologia, Fortaleza (CE), 2020.
LOURO, Guacira Lopes. Corpo, escola e identidade. Rev. Educação & Realidade,
v. 25, n. 2, 2000. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/
viewFile/46833/29119. Acesso em: 4 fev. 2021.
MELO, George Souza. O caso de Dandara dos Santos: sobre a violência e o corpo
dissidente. Revista Periódicus, v. 1, n. 10, p. 72-84, 2018.
PORCHAT, Patricia; OFSIANY, Maria Caroline. Quem habita o corpo trans?. Revista
Estudos Feministas, v. 28, 2020.
de agir. In: PASSOS, Eduardo.; KASTRUP, Virgínia.; TEDESCO, Silvia (org.). Pistas
do Método da Cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – Volume 2.
Porto Alegre – RS: Sulina, 2014.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade,
v. 20, n. 2, 1995.
SOUSA, Ingrid Sampaio de; NUNES, Larissa Ferreira; BARROS, João Paulo Pereira.
Interseccionalidad, femi-geno-cidio y necropolítica: muerte de mujeres en las dina-
micas de la violencia en Ceará. Revista Psicologia Política, v. 20, n. 48, p. 370-
384, 2020.
1. Introdução
112 Cumpre dizer que a histeria, aqui, refere-se à sintomática própria ao surgimento da psiquiatria e da psica-
nálise, e não aos atuais quadros psiquiátricos e/ou a estrutura histérica, tal como formalizada por Lacan.
113 Trata-se de Allouch (2014), Ayouch (2015), Birman e Cunha (2012), Birman e Hoffmann (2017), Laufer e
Squverer (org., 2015), Silva e Verissimo (2022), Silva e Benelli (2013) e Silva (2022).
342
114 Nota-se o fato de que Foucault (2001) utiliza principalmente o termo “possessa”, pois é assim que aparece
na literatura que ele estuda e, aparentemente, a possessão atingia, naquele contexto, sobretudo as mulhe-
res religiosas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 343
gerar tais estorvos, iniciando assim uma revisão das tecnologias confessionais: por
um lado, muda-se a estilística na abordagem da confissão, agora mais indireta na
sondagem do desejo, com uma enunciação que procura dizer algo sem nomeá-lo
diretamente; por outro, começa-se a transferir institucionalmente os corpos possessos
para a medicina, numa primeira aliança inusitada entre Igreja, ciência e sociedade
civil, até então rivais pelo domínio discursivo de qualquer objeto.
Foucault (2001) considerou que podemos buscar a origem científica das doen-
ças nervosas, tais como a histero-epilepsia e a posterior histeria, na relação entre
a Igreja e a medicina por meio da “noção-aranha” (FOUCAULT, 2001, p. 269)
de convulsão, muito mais que no desenvolvimento da racionalidade científica do
objeto médico. De uma perspectiva da prática clínica, a pastoral católica serve de
introdução para uma nova perspectiva, qual seja, a da escuta do enfermo, que passa
a acompanhar o olhar para o enfermo (FOUCAULT, 2004a). A convulsão é uma
noção-aranha pois, segundo Foucault, “[...] enquanto forma paroxística da ação
do sistema nervoso” (FOUCAULT, 2001, p. 282) ela torna-se a primeira neuropa-
tologia, sendo o objeto médico privilegiado no campo das “doenças dos nervos”
(FOUCAULT, 2001, p. 282), dando abertura para tudo o que se forma depois disso
em termos de classificação de doenças e de técnicas terapêuticas. Do mesmo modo,
não vem da medicina antiga ou medieval o imbricamento estreito entre sexo e doença
nervosa, mas da filosofia agostiniana e das práticas confessionais. Neste sentido, a
convulsão foi a forma da medicina realizar uma codificação anatômica e médica para
a carne cristã. Se a concupiscência era a alma pecadora da carne, o gênero nervoso
é o corpo racional e científico dela.
Se, por parte da Igreja, ameniza-se a demanda de cura das possessões, do lado
da medicina acontece uma “desalienação” (FOUCAULT, 2001, p. 282) da psiquiatria,
que já não está fadada a lidar com o erro e o delírio, mas com doenças nervosas. Se
antes ela ficava entre a indeterminação do par voluntário-involuntário na origem das
patologias, a convulsão define uma “libertação involuntária de automatismos” (FOU-
CAULT, 2001, p. 282), circunscrevendo o primeiro “modelo neurológico de doença
mental” (FOUCAULT, 2001, p. 282). De uma perspectiva fenomênica, é notável
o contorno que converge os traços da possessa e da histérica, quais sejam: efeitos
somáticos inexplicáveis organicamente; paralisias, agitações extremas, cegueira,
mudez, gritos agonizantes etc. Neste mesmo sentido, do dispositivo confessional à
clínica psiquiátrica, há continuidade na produção de efeitos que ocorrem por uma
espécie de “erogenização” discursiva do corpo enfermo, colocado diante de uma
figura de poder supostamente capaz de curá-lo, não como se isso fosse naturalmente
necessário, mas socialmente produzido – algo semelhante ao cenário com o qual
Freud se defronta, já no final do século XIX.
A psicanálise aparece, no contexto deste solo epistêmico (FOUCAULT, 2000),
atrelada à histeria, como podemos verificar pela história da técnica freudiana em
sua relação com a clínica de Charcot e de Breuer (GAY, 1989). O continuum entre
Igreja e medicina na produção das doenças nervosas é, ao mesmo tempo, condição de
possibilidade para a psicanálise e determinante da sua necessidade de diferenciar-se
344
115 Estamos avisados de que não há sobreposição ou “sinônimo conceitual” entre as noções de inconsciente,
realidade e fantasia. No entanto, dado os limites que hora se impõem a este manuscrito, fundamentamo-nos
na coerência de uma leitura que os coloca em um mesmo encadeamento (GOES, 2012) que dá consistência
à noção de realidade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 345
116 Figura apresentada por Freud n’A Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1996a).
346
sujeito. É por isso que seu efeito não é estritamente moral, por exemplo, quando,
diante do significante do Diabo em relação ao significante do padre confessor, o
sujeito-carne aparece como corpo convulsionado, sujeito-efeito do único caminho
de satisfação para determinada pulsão inserida neste contexto imaginário-simbólico.
Perdurando historicamente, a função-cristã e sua incidência na produção de
realidades (do mesmo modo como poderíamos pensar a ciência) pode ser vista no
que parece ser seu principal produto ruidoso na atualidade, os fenômenos totalitários.
Os sujeitos inseridos neste contexto tendem a um processo de mortificação do Eu
(BENELLI; COSTA-ROSA, 2006), o que não é sem consequências para a relação
entre sintomas e modos de vida. É próprio às instituições de formação religiosa,
como o caso da formação de uma liderança em movimentos mais radicais, exigir
certa supressão das singularidades do “interno”.
Neste cenário, atua outra forma-função mais antiga, que Foucault denomina de
metanóia, a conversão propriamente cristã caracterizada por tender a uma “transsub-
jetivação” (FOUCAULT, 2010, p. 193) súbita e definitiva. Toda experiência anterior
à conversão deve ser subtraída em função da identificação massiva a uma nova rea-
lidade, a religiosa. Aqueles caminhos de elaboração da realidade antes percorridos
pelo sujeito são inibidos e a única via se torna a direção a uma Unidade, isto é, um
novo campo do Outro que, por referenciar-se em um Deus onipotente, finaliza-se
em si mesmo, sendo, no entanto, muito restrito e previamente determinado por uma
regra de vida (as regula vitae cristãs).
Em um panorama de tendência à unificação da realidade religiosa, surgem líde-
res que, em termos de subjetivação, representam muito mais um eu ideal do tempo
em que o Outro tinha todas as respostas (narcisismo imaginário), do que uma figura
simbólica que se oferece a uma relação dialética (em sentido lacaniano) que tende
aos Ideais de eu. Produz-se, assim, determinado sentimento de completude fruto da
fusão entre o eu e o Outro. Nestes casos, é comum vermos apenas dois caminhos
(BENELLI; COSTA-ROSA, 2006): 1) o fanatismo, como um trabalho incessante
de confirmação dos sentidos do Outro, que suprimem qualquer manifestação de um
desejo de diferenciação; 2) a intensificação do retorno do recalcado (a singularidade
suprimida), em forma de sintomas denegatórios e passagens ao ato. Nos sintomas
denegatórios testemunhamos um indivíduo estereotipado, já que o processo de nega-
ção da sua história e de suas angústias desaparece no momento em que ele precisa
propagar a nova realidade na posição de exemplo para novos membros.
Nas passagens ao ato, a impossibilidade de elaborar certas angústias criadas
ou tamponadas pela formação religiosa sobrevém como ações sem pensamento, por
exemplo, como Benelli e Costa-Rosa (2006) relatam, um sujeito que, fora da insti-
tuição na qual passara muito tempo escamoteando sua orientação sexual, persegue
outro sujeito desconhecido até o ponto em que “desperta”, perdido, depois de várias
horas. Assim, apesar da realidade ser um véu imaginário, a pulsão sempre tentará
ultrapassá-la em direção ao objeto que já não está mais “aí”, justamente aquele que
se perdeu com o advento da linguagem. Este movimento incessante questiona o
hermetismo das possibilidades de elaboração e de significação, que só acontece a
muito custo e gera um enorme desgaste sintomático. Acontece que uma tentativa de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 347
3. Notas de conclusão
REFERÊNCIAS
ALLOUCH, J. A psicanálise é um exercício espiritual? Resposta a Michel Foucault.
Campinas: Unicamp, 2014.
FREUD, S. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In: FREUD. S. Edi-
ção Standard Brasileira das obras completas, v.IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996c.
GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
Introdução
117 Emilio Garcia Méndez, assessor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para os Direitos
da Criança na América Latina, em seu livro “Infância e cidadania na América Latina”, dedica três dos doze
capítulos do livro à apresentação do Estatuto da Criança e do Adolescente brasileiro como a mais moderna
e perfeita legislação do mundo nessa área (GARCIA MÉNDEZ, 1998).
118 Apesar dos termos provisão social mínima e necessidades básicas parecerem equivalentes, eles guardam
diferenças marcantes do ponto de vista conceitual e político-estratégico. Mínimo tem a conotação de menor,
de menos, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social;
pressupõe também a supressão ou cortes de atendimento, tal como propõe a ideologia liberal. Já básico
expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável, requer
investimentos sociais de qualidade para preparar o terreno a partir do qual maiores atendimentos podem
ser prestados e otimizados. O básico é indispensável (isto é inegociável) e incondicional para todos, tendo
como precondição a gradativa otimização da satisfação das necessidades (PEREIRA, 2011).
354
desses direitos estão submetidas ao risco de sua própria negação em termos práticos,
quanto às garantias e às proteções concedidas legalmente.
Tal limitação tem ocorrido constantemente, no interior do próprio Estado, e
suscita um conflito entre a tentativa de garantir direitos sociais conquistados e o
crescente desmonte do Estado Social.
A partir deste contexto, necessário se faz observar as implicações decorrentes da
omissão do Estado e os reflexos sociais delas eminentes, e as consequências da falha
da promoção estatal no desenvolvimento humano e, por consequência, o processo
de criminalização da infância e da juventude que ocorre quando a promoção de tais
direitos não se concretiza. O Estado estaria produzindo as condições de negação à
vida e de exposição à morte a determinados grupos, incluindo entre eles, a criança e
adolescente, especificamente, os pobres.
Nesse sentindo, o conceito de Necropolítica (MBEMBE, 2018), ou seja, a
“política da morte”, nos ajuda a entender melhor esse mecanismo, portanto o presente
trabalho busca refletir os reflexos sociais da necropolítica nas políticas sociais e na
criminalização dos adolescentes.
119 Mbembe nasceu perto de Otélé nos Camarões Franceses, em 1957. Obteve seu Ph.D. em história na Uni-
versidade de Sorbonne em Paris, na França, em 1989. Foi professor assistente de História na Univer-
sidade Columbia, entre 1988 e 1991, pesquisador no Instituto Brookings entre 1991 e 1992, professor
associado de História na Universidade da Pensilvânia entre 1992 e 1996, diretor executivo do Conselho
para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África entre 1996 e 2000. Achille foi professor
visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley em 2001 e professor visitante na Universidade Yale em
2003. Atualmente é professor-investigador de História e Política no Instituto de Pesquisa W. E. B. Dubois
da Universidade Harvard.
120 Paul-Michel Foucault nasceu em Poities na França em 15 de outubro de 1926 e veio a falecer em 25
de junho de 1984, em decorrência da AIDS, com 58 anos. Filósofo francês deixou uma obra espessa e
ampla, composta pela escrita de doze livros, inúmeros artigos e manifestos políticos, chegando a lecionar
cursos e a conceder diversas entrevistas. O legado foucaultiano consiste em uma gama heterogênea de
temas, podendo ser divididos, segundo Machado (1981), em três diferentes períodos: o Arqueológico,
o Genealógico e o Ético. No primeiro período, destacam-se as obras: “História da Loucura” (1961), “As
palavras e as coisas” (1966), “A Arqueologia do Saber” (1969); no segundo, as obras: “Vigiar e Punir”
(1975), “História da sexualidade” (1976) e a “Microfísica do poder” (2006b). No terceiro período, Fou-
cault passou a investigar o tema da subjetividade, discutindo a ética como um campo desvinculado da
moral. Neste período, destacam-se as obras: “Subjetividade e verdade” (1980) e “A Hermenêutica do
sujeito” (1981).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 355
é o controle do domínio da vida pelo poder, para a necropolítica, o poder não incide
somente sobre a vida, mas também sobre uma série de medidas que produzem a morte
e criam condições para tal. É uma forma de gestão pela destruição dos corpos. Tudo
isso, porque o autor acredita que conceitos como de Foucault, já não podem expli-
car mais as formas contemporâneas, como o poder político exerce controle social,
através da morte. Mbembe quis atualizar o conceito de biopoder de Foucault (1999).
É justamente por isso que o termo necropolítica tem sido muito utilizado, por
teóricos, por movimentos sociais, para pensar questões de segurança pública, racismo,
vulnerabilidade social e, recentemente da pandemia de covid-19.
O que significa falar em medidas que produzem a morte? Uma das formas que
a necropolítica poderia atuar, é pela segregação de territórios. Aqui podemos pensar
na criação de zonas isoladas, para certos grupos da população, territórios esses com
vigilância interna e externa, com o objetivo de impedir deslocamento dessa popula-
ção e perpetuar a exclusão. Nessas áreas a vida cotidiana é militarizada, é instalado
o estado de exceção121, que seria permitido matar, sem grande preocupação com os
danos colaterais (sem grandes consequências).
Uma outra forma de medida que produz a morte, é a relação com o poder estatal
de criar zonas de “mortos vivos” em que indivíduos vivem com tão pouco, que a
distinção entre vida e morte é extremamente sutil, isso significa então que a necro-
política não é somente por fazer morrer, mas também pela ideia de deixar morrer. E
é nesse aspecto que se insere o reconhecimento dos direitos sociais fundamentais,
que foi expressamente previsto que ao Estado caberia a obrigação de garantir a
seus cidadãos, condições essenciais para uma existência digna, no entanto, esses
direitos dependem, para sua garantia, de uma ação concreta do Estado e da atuação
do Poder Executivo na execução das políticas públicas que assegurem os direitos
conquistados, mas tem ocorrido o crescente desmonte do Estado Social, processo
acirrado a partir de 2016 (RIGHETTI, 2006; NOBILE, 2016).
Isso acarreta de certa forma, uma ação necropolítica; deixar as pessoas morre-
rem sem assistência, na medida em que os direitos legalmente instituídos, não são
verdadeiramente efetivados, no cotidiano e na vida das pessoas.
A legislação é um dos aspectos fundamentais para a garantia de direitos e, mui-
tas vezes, resulta das reivindicações das lutas populares. A emergência dos direitos,
demanda práticas instituintes. À medida que os direitos vão se instituindo, a socie-
dade se mobiliza para concretizá-los, por meio da criação de serviços, programas e
projetos estatais ou creches, escolas etc., exigindo a implantação e a implementação
de políticas públicas.
É necessário deixar claro, que o conceito de necropolítica foi cunhado em 2003,
por Mbembe, no entanto, esse processo de desmonte das políticas sociais (inclusive
a política da criança e do adolescente), vem ocorrendo desde, a década de 1970, com
121 Estado de exceção é uma situação oposta ao Estado democrático de direito, em situações de suspensão
de direitos causada por descontrole institucional. Caracteriza-se pela suspensão temporária de direitos e
garantias constitucionais. O Estado de Exceção é uma situação de restrição de direitos e concentração de
poderes que, durante sua vigência, aproxima um Estado sob regime democrático do autoritarismo.
356
a implantação das políticas neoliberais em vários países do mundo, que teve e têm
efeitos deletérios na vida de milhões de pessoas e famílias da classe trabalhadora,
pois implicam na redução do Estado enquanto agente responsável em promover a
proteção social. Essas condições geram o empobrecimento da população, agravando
as expressões da “questão social”, cada dia mais evidentes e, têm como resposta por
parte dos estados nacionais o implante de políticas penais cada vez mais rígidas e
severas, visando o controle social.
O Brasil segue a mesma lógica e introduz, a partir da década de 1990, as políticas
neoliberais, que terão seus efeitos devastadores para os direitos sociais, recém-con-
quistados com a Constituição Federal de 1988.
Devemos lembrar que a política pública social não é uma atividade neutra,
linear, de atenção à pobreza ou à desigualdade social. Tampouco é concebida ou
formulada consensualmente, no âmbito do Estado, para ser aplicada à sociedade.
Ao contrário, revela-se um processo tenso, complexo e contraditório historicamente,
convertendo-se em conflito de interesses (IAMAMOTO, 2003).
Quando tais políticas de atendimento não são concretizadas no cotidiano, pode
acarretar consequências na vida de crianças, adolescentes e famílias. E quando o
Estado reduz as políticas sociais, para garantir a implementação de políticas basica-
mente repressivas e punitivas, buscando a criminalização; acaba agindo, prioritaria-
mente, sobre um grupo escolhido: o pobre.
Mas o que é uma política pública? Como elas são constituídas? Quais
são as características da política da criança e do adolescente?
Segundo Giovanni (2009), não existe uma grande teoria sobre as políticas públi-
cas. As políticas públicas podem ser examinadas de vários ângulos e cada um deles
representa um olhar diferente, que capta um determinado aspecto da realidade e,
certamente, com algum objetivo específico. Nós é que temos que fazer um recorte e
assumir a responsabilidade a respeito dessa delimitação.
Mas por que um tema ou questão torna-se o assunto de uma política pública?
Somos tentados a responder com uma evidência: há uma política pública, porque há
um problema a ser resolvido, como se a política pública apresentasse uma boa prática
ou como se a política pública devesse resolver os problemas dos necessitados. Essa
ideia está permeada de senso comum, pois nem toda demanda social se torna política
pública, como aponta o professor Giovanni (2009, p. 1-2):
Tal conceito vai além da ideia de que uma política pública é simplesmente uma
intervenção do Estado numa situação social considerada problemática. Mais do
que isso, penso a política pública como uma forma contemporânea de exercício
do poder nas sociedades democráticas, resultante de uma complexa interação entre
Estado e sociedade, entendida aqui num sentido amplo, que inclui as relações
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 357
É bem possível, que os grupos mais afetados pelos efeitos colaterais da pande-
mia sejam as populações mais vulneráveis (mulheres, mães solo, afrodescendentes,
indígenas, moradores das periferias e favelas, pessoas com deficiência, pessoas em
situação de rua, crianças e adolescentes pobres, etc...), com a impossibilidade de
sustento ou pela falta de assistência de um Estado que nunca se preparou para aten-
der essa população e, agora, com as consequências da pandemia da covid-19, tem
agravado a sua ineficácia.
O Estado brasileiro, ao se integrar no sistema normativo internacional de prote-
ção dos direitos humanos, adotou o referencial ético que deu a origem à Declaração
dos Direitos Humanos de 1948, optando pela proteção integral e irrestrita dos direitos
humanos. A Constituição estabelece que os procedimentos para garantia dos direitos
fundamentais sociais realizam-se, prioritariamente, por meio de atividades dos Pode-
res Legislativo e Executivo (com a implantação/implementação de políticas públicas).
Em relação aos direitos da criança e do adolescente, o Brasil se baseia no ECA,
aprovado pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e que passou a vigorar a partir
de 14 de outubro do mesmo ano. Trata-se da primeira lei aprovada de acordo com a
Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em consonância com a doutrina
das Nações Unidas para a proteção dos direitos da infância. O ECA articula-se ao
paradigma da proteção integral; considera as crianças e os adolescentes como sujeitos
de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. A legislação inspirada nas dire-
trizes da CF de 1988 é considerada um marco na proteção da infância e da juventude.
Anterior ao ECA, em 1927, tivemos o primeiro Código de Menores da América
Latina, aprovado pelo Decreto nº 5.083, do então Presidente Washington Luís, que
atribuiu ao Juiz de Menores do Rio de Janeiro, José Cândido Alburquerque de Mello
Mattos, a responsabilidade de sistematizar uma proposta. A principal característica
na política de atendimento, do Código de Menores era “a institucionalização para a
solução de problemas”.
No começo dos anos de 1970, houve o incremento das funções penais e poli-
ciais do Estado que foram ocupando lugar da política social, ocorreu os graduais
cortes orçamentários na Assistência, na saúde pública, no ensino, na moradia;
garantindo o deslocamento de recursos públicos de áreas sociais para a área de
segurança pública, ou seja, para garantir a implementação de políticas basicamente
repressivas e punitivas que envolveram tanto o setor penitenciário, como o judiciário
e policial (KILDUFF, 2009).
Esse processo acarretou e acarreta consequências, principalmente, na vida da
classe trabalhadora, alvo privilegiado de tais políticas, compreendidas, por alguns
críticos, como o processo de criminalização da pobreza. A crescente desigualdade
social, a precarização das condições de trabalho e da vida da classe trabalhadora
e, como resposta a tais questões, o Estado social foi transformando-se, em “Estado
penal” que nega à população direitos e trata as expressões da “questão social”,
como caso polícia.
Essa política de repressão penal foi iniciada nos Estados Unidos, através do
Programa Tolerância Zero, e tem como objetivo trazer mais segurança às cidades que,
nos últimos anos, estariam sofrendo com o aumento considerável da criminalidade
e violência urbana e tiveram como consequência o aumento do número de pessoas
encarceradas. A introdução da guerra na política de “tolerância zero”, não foi por
acaso e deve ser relacionada às mudanças no plano internacional, a partir dos anos
1970 e sobretudo nos anos 1980, mais precisamente depois de 1983, data em que
o Governo federal americano lança a “guerra contra as drogas”, o encarceramento
se aplica com enorme frequência e de forma severa aos pequenos consumidores e
pequenos vendedores de entorpecentes 123.
Segundo Wacquant124, essa política indicou o redimensionamento do agir do
Estado americano, em relação a intensificação das políticas repressivas, dando,
123 Conforme Wacquant (1999), iniciaram nos USA a campanha de penalização da pobreza e a promoção do
que se conheceu como a “teoria das janelas quebradas”, que sustentava enfaticamente a necessidade
de punir os pequenos, pois senão as demais janelas em pouco tempo estarão quebradas também. Uma
janela sem conserto é sinal que ninguém se preocupa com ela e, portanto, quebrar mais janelas não teria
custo algum. A teoria das “janelas quebradas” sustentava a necessidade de punir os pequenos delitos para
prevenir delitos mais graves (KILDUFF, 2009).
124 Loïc Wacquant (Montpellier, França, 1960) é professor de sociologia e pesquisador associado do Institute
for Legal Research na Boalt Law School da Universidade da Califórnia; pesquisador do Centre européen de
sociologie et de science politique em Paris. Seus interesses perpassam estudos comparativos sobre mar-
ginalidade urbana, dominação étnico-racial, pugilismo, o Estado penal, teoria social e a política da razão.
Wacquant tem como uma de suas principais influências teóricas Pierre Bourdieu, produziu o vídeo intitulado
“sociologia: um esporte de combate”, em que retrata um pouco do pensamento desse importante sociólogo
362
A principal tese de Lõic Wacquant em seu livro “As prisões da miséria”, recen-
temente traduzido para o português, é a emergência de um Estado penal con-
comitante ao desmonte das políticas sociais do Welfare State. Baseado em rica
documentação empírica, com densidade analítica, o autor sustenta sua tese ao
refletir sobre a adoção, praticamente universal, dos princípios de “tolerância zero”
criados pelos EUA para intensificar seus mecanismos de repressão à população
marginalizada. Wacquant revela que a adoção desses princípios cresce indepen-
dentemente dos índices de criminalidade e que, de fato, não repercute diretamente
neles. Analisa a estrutura repressora do Estado, dirigida prioritariamente às comu-
nidades consideradas mais “propensas” ao crime, ou seja, as populações que têm
uma inserção precarizada no mercado de trabalho e se encontram fora da cada vez
mais reduzida rede de proteção estatal. Com o olhar voltado para esses segmentos
sociais precarizados, o autor mostra como a rede de seguridade social montada
no pós-Segunda Guerra, durante a vigência do Estado fordista-keynesiano, dá
lugar não só ao fortalecimento do aparelho prisional estatal, mas também ao que
ele chama de social panoptismo, que é a vigilância sobre as eufemisticamente
denominadas “populações sensíveis” (JINKINS, 2001, p. 1).
do século XX com passagens cotidianas da vida e de sua ida ao Estados Unidos e nos movimentos de rua
na França. Outra influência teórica é Michel Foucault, que fornece elementos conceituais importantes para
a obra de Wacquant. A construção do discurso midiático a respeito dos guetos e a confusão conceitual que
dele decorre são classificadas pelo autor como ‘’instrumento de dominação’’ em sentido foucaltiano. Em
relação às críticas ao neoliberalismo e à análise de como ele se estrutura, surgem também as noções de
‘’disciplina e segurança’’, importantes na obra de Foucault. Esta influência está presente no livro “punir os
pobres”, editado no Brasil, em que ele apresenta o processo histórico de substituição do Estado caritativo
norteamericano pelo Estado Penal, de vigiar e punir, como também afirmou Foucault em torno do “encar-
ceramento” dos doentes mentais nos manicômios. Outra grande influência teórica de Wacquant foi William
Julius Wilson, sociólogo negro americano e professor de Harvard,. que os aproximou academicamente e
influenciou decisivamente a obra de Wacquant, especialmente no que diz respeito a suas análises acerca
da dominação racial e da marginalização da população pobre.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 363
Um fato nos chama a atenção sempre; em toda parte vedes duas classes bem
distintas de homens, dos quais uns se encontram sempre nos assentos dos acu-
sadores e dos juízes e os outros nos bancos dos réus e dos acusados. O que é
explicado pelo fato de que os últimos, por falta de recursos e de educação, não
sabem permanecer nos limites da probidade legal, tanto que a linguagem da lei
que se pretende universal é, por isso mesmo, inadequada; ela deve ser, se é para
ser eficaz, o discurso de uma classe a outra, que não tem nem as mesmas ideias
que ela, nem as mesmas palavras (FOUCAULT, 1999, p. 229).
Considerações finais
O ECA é fruto da CF 1988 que, em seu artigo 227, estabelece que crianças e
adolescentes formam um grupo de pessoas com direitos específicos e demandam
proteção integral do Estado, da família e da sociedade. É considerado internacional-
mente uma grande conquista no sentido da garantia dos direitos fundamentais e da
ampliação dos direitos sociais desse segmento da população.
No entanto, essa lei “não caiu do céu” e nem “surgiu no estalar do dedo”. Foram
necessárias várias articulações com os movimentos populares, entidades que atendiam
crianças, movimentos de crianças de rua, entre outros, que discutiam, principalmente,
que os direitos fossem estendidos as classes populares.
Sabemos que a lei sozinha não transforma a realidade, mas é um instrumento
poderoso e importante, que pode contribuir para mudanças significativas, tais como,
a exigência de políticas públicas para a redução da mortalidade infantil, exploração
do trabalho infantil, entre outros. As legislações são apenas um dos aspectos neces-
sários para a garantia de direitos. Esses direitos dependem, para sua garantia, de uma
ação concreta do Estado e da atuação do Poder Executivo na execução das políticas
públicas que assegurem os direitos conquistados.
A partir deste contexto, necessário se faz observar as implicações decorrentes da
omissão do Estado, os reflexos sociais delas eminentes, e as consequências da falha
da promoção estatal no desenvolvimento humano e, por consequência, o processo
de criminalização da infância e da juventude que ocorre quando a promoção de tais
direitos não se concretiza. O Estado estaria produzindo as condições de negação à
vida e de exposição à morte a determinados grupos, incluindo entre eles, a criança e
adolescente, especificamente, os pobres.
Nesse sentindo, o conceito de Necropolítica, ou seja, a “política da morte”, pro-
porciona uma compreensão dos reflexos sociais, diante do crescente desmonte das polí-
ticas sociais e a criminalização de crianças e de adolescentes na contemporaneidade.
366
REFERÊNCIAS
BENELLI, S. J. A Assistência Social no contexto da sociedade de segurança. Univer-
sidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras,
UNESP, Assis, SP: mimeo, 2021.
BRASIL. Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis
nos 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560,
de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro
de 2002 – Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada
pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasí-
lia, DF: Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 ago. 2009. Retificado no DOU de
2.9.2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
lei/l12010.htm. Acesso em: 3 jan. 2016.
BRASIL. Rede Nacional Primeira Infância. Plano Nacional pela Primeira Infância.
Brasília, 2010.
PILOTTI, F.; RIZZINI, I. (org.). A arte de governar crianças: a história das politicas
sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Interamerica Del Niño/Editora Universidade Santa Úrsula/Amais Livraria e Edi-
tora, 1995.
RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância
no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
Introdução
negro. Dessa forma, o fato de serem exploradas como se fossem homens, sendo vistas
apenas de forma lucrativa em sua mão de obra, reflete em suas descendentes negras
na atualidade, visto que há um espaço considerável ocupado pelo trabalho na vida das
mulheres negras, que reproduz esse padrão estabelecido no período da escravidão.
Diante disso, segundo Hilem Oliveira e Alessandra Texeira (2017), ressaltam
que atualmente o principal delito dessas mulheres encarceiradas estão relacionados
com o tráfico de drogas – cerca de 68% –, atreladas a crimes patrimoniais sem violên-
cia, cometidos geralmente por mulheres de baixa renda. Além disto, segundo Gabriela
Ormeño (2013), quando se analisa a história pregressa dessas mulheres, constata-se a
violência intrafamiliar, vivenciada tanto na infância, com a ocorrência de maus-tratos,
como na vida adulta, em que há um alto índice de tentativa de suicídio e violência
íntima entre parceiros, sendo possível perceber o ônus diante do acesso aos direitos
fundamentais das mulheres privadas de liberdade. Assim, vindo de pregressas vul-
nerabilidades e violações de direitos, estas mulheres são expostas a mais violências
ao adentrarem no espaço prisional, conforme afirmam Daniela Carvalho e Claudia
Mayorga (2017). De modo geral, em tal ambiente há a reprodução da estrutura de
violência da sociedade, demonstrando suas relações de poder, opressões e punições.
É neste sentido e diante da importância em analisar a realidade de mulheres
encarceradas que este artigo propôs-se investigar as violências estruturais patriarcais
vivenciadas por mulheres e relatadas no livro “Presos que menstruam: a brutal vida
das mulheres, tratadas com homens, nas prisões brasileiras”, na edição de 2015,
escrito pela jornalista Nana Queiroz. O livro, resultado de uma pesquisa que durou
quatro anos, possibilitou a construção de um panorama nacional das mulheres presas
a partir de suas narrativas.
O critério de escolha desse instrumento, deu-se pelos relatos advindos das
vivências dessas mulheres, que produziram uma perspectiva sensível dos fenôme-
nos presentes no âmbito carcerário. Essa qualidade pode ser compreendida quando
consideramos que a obra foi escrita por uma mulher, o que contribui para a ótica
próxima e empática da realidade feminina no cárcere, características ideais para os
objetivos da pesquisa. Do mesmo modo, o presente artigo também objetivou refletir
sobre a prática da/o psicóloga/o diante das demandas apresentadas, travando um
debate dentro da Psicologia Jurídica a partir dos estudos feministas, uma vez que estes
trazem contribuições para pensar nas relações de poder de gênero como constituinte
da subjetividade e da socialização, além de serem fundamentais para proposições
críticas e de políticas públicas.
Para tal, foi realizado uma revisão bibliográfica sobre o tema das mulheres no
cárcere. Os procedimentos adotados incluíram consultas às plataformas de pesquisa
Pepsic, Scielo, Portal CAPES e Bvs-psi, entre os anos de 2016 à 2018. Os critérios
de inclusão foram a utilização de artigos produzidos no Brasil. As palavras chaves
usadas foram, cárcere feminino, sistema prisional, mulher, prisão, maternidade,
gênero e direitos humanos. Elas foram utilizadas sozinhas e de modo combinado
com as outras, com o objetivo em obter maiores resultados, pois ao decorrer da
pesquisa observou-se pouca publicação sobre a temática em questão e o debate
dos estudos de gênero.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 371
126 Identificou-se 31 mulheres, das quais sete são reconhecidas como personagens principais e 24 tem suas
histórias citadas nos relatos destas mulheres apresentadas.
372
Como resultado de sua denúncia, afirma Jahyra Santos e Ivanna Santos (2017), em
1823, surgiu um movimento de mulheres, liderado por ela, propondo um instrumento
de regulação da situação carcerária, o Gaol Act (Lei do Objetivo), o qual solicitava
que todas as detidas fossem colocadas separadas dos homens e que sua supervisão
deveria se dar por pessoas do mesmo sexo.
Em um recorte brasileiro da história do cárcere, aponta-se que até 1830, no
Código Criminal do Império, para os sujeitos que cometiam delitos se recorria a
práticas de manutenção da “ordem pública”. As legislações vigentes fundamenta-
vam-se nas Ordenações Filipinas, com penas que objetivavam empregar castigos ao
comportamento delituoso, com sanções envolvendo penas corporais, humilhações e
até mesmo a morte. Outro momento histórico brasileiro importante, foi a mudança
do antigo regime para a instalação da República, em 1889. Os preceitos desse
período estavam pautados nos ideais do positivismo para a formação de uma nova
vida social. E, para isso, houve a formulação de reformas que primavam por uma
organização das prisões do país. Nesse momento, as modificações pensadas para
o sistema prisional, estenderam-se para o cárcere feminino (ANGOTTI; SALLA,
2018). Na qual as contravenções penais cometidas por mulheres começaram a ser
administradas por religiosas.
Em 1929, as Irmãs da Congregação do Bom Pastor D’Angers, irmandade
oriunda da França, trabalhavam visando a recondução da mulher aos padrões com-
portamentais valorizados pela sociedade, ou seja, buscavam ensinar trabalhos domés-
ticos e impor um conjunto de normas, como meio de resgatar os papéis sociais do
feminino (SANTOS; SANTOS, 2017). Assim, a expectativa da função do cárcere para
mulheres estava atrelada aos estereótipos femininos de criminalidade, visto que as
causas de detenção eram, por exemplo, a prostituição, a embriaguez, os escândalos,
o vício, ou seja, tudo que as afastava da moralidade repressiva sexual e doméstica.
Portanto, o projeto funcionava por meio da ideia de “salvação moral” de mulheres
consideradas desviantes (ANGOTTI; SALLA, 2018).
Em 1940, publica-se o Decreto da Lei nº 2.848, onde constatou que as mulhe-
res deveriam cumprir pena em estabelecimento especial, e que, na ausência deste,
em seção adequada de penitenciária. Um ano depois, o Código de Processo Penal
entrou em vigor e reforçou que a prisão da mulher deveria ser feita em seu estabe-
lecimento próprio. Todos esses dispositivos legais reforçavam a necessidade de um
espaço específico para as mulheres, com proteções e preocupações destinadas ao seu
universo e dignidade (SANTOS; SANTOS, 2017). Apesar dessas regulamentações,
constatou-se que o projeto de organização dos presídios persistia na improvisação
de espaços, mesmo com o aumento da população feminina.
Bruna Angotti e Salla (2018) consideram que, com base nesse percurso histó-
rico, pouco se sabe em relação ao aprisionamento de mulheres, o seu cotidiano, as
políticas e práticas nos espaços prisionais, principalmente acerca da saída das Irmãs
da gestão prisional, fato que demonstra a reduzida visibilidade científica acerca do
controle social e punição das mulheres. Além disso, esses dados do contexto histórico
podem ser acrescentados aos dados da atualidade, de forma a facilitar o entendimento
da amplitude relacionada à problemática do cárcere feminino.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 373
A atual política de guerra a drogas, regularizada em 2016, pela lei 11.343, escla-
rece o crescimento da população carcerária feminina, bem como o seu perfil. Esse
fenômeno de seletividade penal pode ser explicado com o acirramento da penalização
para os crimes de tráfico de drogas, sem benefício de extinções penais, com duração
de 5 a 15 anos. Além disso, a definição de diferenciação entre usuário e traficante,
segundo decisão judicial, no artigo 28 da Lei 13.343/06, requer uma análise de fato-
res, tais como: “[...] da natureza, quantidade de substância, local, condições em que
a ação de apreensão foi desenvolvida, circunstâncias sociais e pessoais, bem como
a conduta e aos antecedentes da pessoa analisada” (BORGES, 2018, p. 63). Então,
essas normatizações que focam no pequeno traficante legitima a criminalização de
mulheres em vulnerabilidade, em especial, de mulheres negras e periféricas.
Ainda segundo Juliana Borges (2018), com Marco Legal de Atenção à Primeira
Infância, instituído em março de 2016, a Presidenta Dilma Rousseff expandiu as nor-
mas para a prisão domiciliar como substituição à prisão preventiva, considerando os
vínculos familiares na maternidade, contudo desde essa data não houve progressos
nessa temática. Em acréscimo, aponta-se as diretrizes internacionais dos direitos da
mulher encarcerada, as Regras de Bangkok, promulgadas em 2010, que priorizam
as medidas alternativas à prisão.
Dessa forma, pode-se perceber que as relações de gênero, classe e raça são
indicativos para as diferenciações no encarceramento. Nesse sentido, constata-se as
violações que persistem ao longo do tempo, por isso a relevância em pensar em polí-
ticas criadas para o acolhimento do público feminino e suas particularidades dentro
do cárcere, visto que, mesmo com as evoluções históricas, as mulheres ainda estão
sujeitas a relações de poder e violações de direitos humanos, sem visibilidade para
sua subjetividade e singularidade (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2017). Em outros termos,
a estrutura opressora do encarceramento de mulheres reafirma diferentes formas de
ocultamento e marginalização, já que impera o modelo masculino que assegura a
inferiorização feminina. Nesse sentido, resta indagar-se de que forma esse controle
social se desdobra nesse cenário específico?
Resultados e discussões
motivação para essa prática ser a condição socioeconômica. Nesse último quesito,
ressalta-se ainda que o momento para a inserção na criminalidade ocorreu também
motivados por relacionamentos amorosos e/ou diante da participação familiar nesse
comércio. Outrossim, verificou-se que os padrões de afetividade (como os tipos de
cuidado) eram demarcados pela violência e abandono e que os relacionamentos
amorosos eram caracterizados pela precocidade e, mais uma vez, por violências de
gênero, inclusive, físicas.
Para introduzir a discussão acerca das relações de gênero, ressalta-se o conceito
de gênero proposto por Joan Scott, em 1988, que o define como uma forma primária
das relações de poder inscritas sobre os corpos, a partir da percepção da diferença
sexual, em determinado contexto histórico e político. Pensando nessa teorização,
utilizou-se das narrativas para estudar o modo que se estabelece as relações que
emergem nesse ambiente carcerário.
Nesse sentido, quando pensamos em cárcere privado, é importante questionar
qual é o público que ocupa esse espaço? Em resposta à essa reflexão, percebemos
que o sistema carcerário não foi construído pensando no público feminino, contudo
com o aumento de mulheres encarceradas passou a ficar evidente que esse grupo
também pertence à realidade carcerária, demostrando assim o caráter de violência e
exclusão social para estas mulheres, as quais têm suas demandas silenciadas, ficando
à margem da sociedade, como verdadeiros abjetos.
De acordo com essa perspectiva de diferença sexual e seus efeitos nas relações
de gênero, fica evidente a idealização androcêntrica desse local, pautada na mascu-
linidade, a qual pressupõe que o universo carcerário é masculino, associado a com-
portamentos violentos e daqueles que ocupam os espaços públicos, fato que também
reflete sobre os homens, tanto na sua subjetivação, como nas violências estruturais
que os impelem às violências urbanas. Enfatiza-se, portanto, a necessidade de pen-
sar nas especificidades femininas, objetivando valorizar as demandas vivenciadas
por estas mulheres, posto que é uma realidade, bem como a importância de debater
socialmente sobre tais temáticas.
A estrutura de funcionamento que propaga discriminação e silencia direitos
criados exclusivamente às mulheres, também as retiram do lugar de sujeito social,
conforme pode ser evidenciado na narrativa abaixo:
Certa vez, uma das celas tinha uma grande quantidade de fezes no vaso, ao mesmo
tempo em que as frutas eram descascadas na mesinha. O cheiro era nauseante.
A moradora do local, porém, parecia habituada, talvez aos constantes problemas
hidráulicos do presídio (QUEIROZ, 2015, p. 97).
Diante deste cenário, podemos refletir sobre a forma que as pessoas são reti-
radas do meio social, objetivando a limpeza da sociedade, e são depositadas em um
ambiente que fere a dignidade da pessoa humana, podendo comparar-se a um campo
de concentração, que serve como ocultação de culturas e singularidades. Nicolau
et al. (2017) pontuam que o cárcere, ao invés de possibilitar a reabilitação desse
público, pode contribuir no desenvolvimento de comportamentos autodestrutivos,
prejuízos psicológicos e transmissão de doenças, em razão do isolamento social,
incentivo ao trabalho mal remunerado com péssimas condições e técnicas correti-
vas. Em conformidade a esse pensamento, verificou-se uma das manifestações da
ideologia correcional na seguinte narrativa em que a detenta descreve a solitária:
“Ali, me disse a presa corajosa, elas eram deixadas, às vezes, por dez dias, comidas
por mosquitos que entravam pelas grades e perturbadas pela solidão, o tédio e o
silêncio” (QUEIROZ, 2015, p. 109).
A experiência dessa mulher retrata que o modo de organização do espaço no
cárcere funciona como mecanismo punitivo. Nesse sentido, a imperiosidade do con-
trole segundo Foucault (1987) é explicada por uma visão de que o corpo pode se
tornar objeto maleável, reduzido e desarticulado de sua individualidade, a fim de se
encaixar na maquinaria de poder da sociedade. Não investir em ações para mulheres
em condições de cárcere, deixando-as no ócio, também falaria do adestramento que
se propõe a estas, em que passividade e silenciamento são presentes. Dentro dessa
lógica, o fragmento de fala abaixo exemplifica a vivência de limitações e proibições
da mulher encarcerada:
376
É mais limpinho lá, mas é muita tranca, né? Quando você sente muita dor de
cabeça é porque a tranca é demais. Não fica aberto assim que você pode ir na
cela da outra, não dá. Se encontrar é só no pátio lá. É mais fim de semana que
fica aberto e você pode sair de manhã, mesmo que você não tiver visita, e entrar
de tarde, às quatro horas (QUEIROZ, 2015, p. 112).
As guarda têm as regras delas, e nós, as nossas. Tem um monte de coisas que
não podemos fazer e chamamos isso de disciplina. E quem sair dessa disciplina é
cobrada. E cada ação tem sua reação. Por isso que existem as facções dentro dos
presídios. Elas sempre têm uma pessoa que vai estar ali falando o que devemos
fazer (QUEIROZ, 2015, p. 122).
Neste sentido, Foucault (1987) atenta para noção de poder. Considerando-a uma
rede capilar que não se restringe ao Estado, mas às instituições como um todo e as
práticas discursivas destas, o poder existiria exatamente diante da possibilidade de
resistência, onde há tensão entre forças, vendo que as próprias presas compreendem
as facções como formas de resistir.
Como extensão reflexiva, percebe-se a influência direta na saúde das mulheres
encarceradas, assim como a violência física e a negligência de necessidades básicas,
em que, por uma falta de assistência à saúde, se intensifica a precariedade dentro
do cárcere. O excesso de presidiárias por cela, por exemplo, coibi o direito ao sono,
ao repouso e à privacidade, bem como a solidão também pode produzir sofrimento
psíquicos e adoecimentos.
Diante desse descaso, Jessica Cury e Mariana Menegaz (2017) observam que são
mínimos os suportes médicos e psicológicos para as detentas, expostas à presença de
doenças que se proliferam devido a insalubridade das celas, onde se encontra animais
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 377
por toda a parte, como ratos e baratas. Essas questões corroboram para a discussão
da ausência de higienização no local em que vivem, o que resulta em violações, não
somente físicas, mas também estruturais.
Perante essas questões, Wyara Melo et al. (2016), informam que são incontá-
veis as doenças que tomam conta do espaço prisional, ameaçando não somente a
vida das prisioneiras como também corroboram com a transmissão de doenças para
a população como um todo, por meio de visitas conjugais e pelo livramento dos
encarcerados. Revelando-se um problema de saúde pública, já que o movimento
de exclusão se mostra malogrado, visto que existem escapes de comunicação entre
esse lugar isolado e o resto da sociedade. O despreparo e o desleixo ao tratamento
das presidiárias se mostram por meio de uma informação relatada sobre um caso de
epidemia que ocorreu no cárcere. Em 2009, quando explodiu o surto da gripe H1N1,
os jornais da região de Votorantim anunciaram que três presas com suspeita da doença
estavam isoladas no banheiro da delegacia local (QUEIROZ, 2015, p. 104).
É óbvia a desordem do sistema carcerário perante as obrigações que são espe-
radas do Estado para o amparo desse público. Outro ponto a ser analisado sob uma
perspectiva de saúde é a higienização e a assistência de produtos íntimos, como pasta
de dentes, absorvente e papel higiênico, pois é disponibilizado o mínimo para viver
durante o mês. Retrato esse que visualizamos na seguinte fala: “Todo mês eles dão
um kit. No Butantã, dão dois papéis higiênicos, um sabonete, uma pasta de dente da
pior qualidade e um (pacote de) absorvente. Falta, né? E ninguém da nada de graça
pra ninguém – conta Gardênia” (QUEIROZ, 2015, p. 103).
Um exemplo que podemos tomar dessa experiência relacionado ao déficit na
assistência para essas mulheres, é a questão do absorvente. Enquanto mulheres sabe-
mos que, durante o ciclo menstrual, um pacote de absorvente pode não ser suficiente
para suprir a demanda e as especificidades nos ciclos. Diante disso, baseado em que
padrões, foi assumido que um pacote de absorvente, suportaria as singularidades
menstruais de cada mulher no ambiente carcerário? Compreendemos a existência
da diversidade feminina, não só em relação ao gênero, mas também em seu funcio-
namento biológico, pois cada organismo funciona de maneira distinta.
Em acréscimo, na região de Ribeirão Preto, no ano de 2013, houve uma repor-
tagem que retratava esse cenário repugnante, em que as mulheres encarceradas se
viam obrigadas a improvisar absorventes com miolo de pão, dado que o Estado não
se atentava em fornecer materiais higiênicos específicos ao seu sexo. Sob o ponto
de vista médico, conforme a notícia, o miolo de pão por ser um material orgânico,
possui maior probabilidade de causar infeções no organismo. Esses dados, mais uma
vez, compactuam com a ideia da falta de assistência em relação a essas mulheres.
Dando prosseguimento a análise acerca da singularidade feminina, trazemos
uma discussão em relação à maternidade e às influências da estrutura física sobre as
condições orgânicas e psicológicas das mulheres privadas de liberdade. Reforçando
esse raciocínio, Michele Okun et al. (2013) evidenciam os prejuízos que o sistema
carcerário causa em uma gravidez, devido a violência cotidiana e as necessidades
não atendidas como: sono, repouso, alimentação, segurança e amparo emocional.
378
Eu, por exemplo, estava grávida. Perdi meu filho faz dez dias, sangrei feito porco
e ninguém fez nada, não vi um médico. Agora, tô aqui cheia de febres. Vai ver o
corpinho tá apodrecendo dentro de mim (QUEIROZ, 2015, p. 107).
existe uma comoção para lhe promover atenção e assistência básica. Porém, o fato
de a mulher encarcerada ter infligido as leis, aparentemente, a torna desmerecedora
dos cuidados necessários para a sua saúde e do seu filho.
Faz-se necessário atentar ainda a importância em entender os efeitos do pacto
social sob o ideal de mulher, que é socialmente universalizado, no qual a maternidade
é algo indispensável em seu ciclo vital e que irá afetar o julgamento moral (e prisio-
nal) destas mulheres. Com isso, podemos compreender o que Alcântara et al. (2018)
pontuam em relação as sentenças dadas as mesmas, as quais são influenciadas por tais
concepções sendo punido não apenas o ato infracional, mas também “a mulher”, que
destoa de como agir, vestir, pensar, portar-se, falar e viver. Portanto, estas mulheres
rompem com ideário de sexo frágil, influenciável e submisso, no qual o sistema
penal passa a assumir a função de domesticação (CARVALHO; MAYORGA, 2017).
Resgatando a história do cárcere feminino, administrado inicialmente por
freiras, com o viés de ressocialização que buscava uma “salvação moral”, tendo a
religião como condutora do processo de domesticação da mulher no cárcere, para
sua passividade e redenção, refletimos sobre a permanência desse modelo na atuali-
dade, pois mesmo considerando a mudança da administração, ainda se pode encon-
trar práticas semelhantes para manutenção de padrão delimitado de feminilidade.
Contudo, ressalta-se a importância em não diminuir a relevância da espiritualidade,
uma vez que é utilizada, por uma grande parte dessa população, como suporte de
enfrentamento às dificuldades encontradas, desde que seja uma escolha de cuidado
e não uma imposição institucional.
Outro viés de análise acerca dessa domesticação do corpo feminino nas relações
de gênero, mostra-se no âmbito da visita íntima, em que Jessica Cury et al. (2017)
enfatizam que a mulher tem sua liberdade reprimida, em uma tentativa de conter seu
desejo sexual, sendo reflexo de uma sociedade machista e patriarcal. As mulheres
deveriam possuir amplos direitos sobre seu corpo e sua sexualidade, o que não é
verificado ao analisar a burocracia e a desigualdade de tratamento em comparação
com as visitas íntimas masculinas, e no pensar em um ambiente apropriado para
atender essa demanda:
Não podia namorar, mas nós dava um jeitinho – e ri mais um pouco. – No femi-
nino, aqui em São Paulo, só tem visita íntima é na Penitenciária da Capital e
Tremembé. O restante não tem. Aí a gente tem que improvisar. [...] A solução
encontrada pelo resto dos presídios da capital paulista foi, em vez de autorizar a
visita íntima oficialmente, fazer de conta que ela não existe e permitir que aconteça
nas celas, como fazia Safira (QUEIROZ, 2015, p. 131-132).
Dessa forma, cabe refletir o porquê do prazer sexual ser enxergado apenas
como uma prioridade masculina, reforçando uma ideologia andrôcentrica aplicada
em diversos contextos, como forma de violência estrutural. Diante da análise das
narrativas, observou-se a escassez de relatos referentes ao prazer sexual comparado
com as outras temáticas. Logo, nota-se que as próprias presas não percebem que
380
o não acesso ao prazer sexual se torna uma violação de direitos. O que nos leva a
seguinte indagação, por que a mulher não é vista como sujeito de desejos e prazeres?
Além disto, constata-se novamente o controle da sexualidade feminina e da
maternidade, pois ao mesmo tempo que para os homens é possível as visitas íntimas,
para as mulheres existe a preocupação relacionado à gravidez dentro do sistema prisio-
nal, tornando-se mais fácil proibi-la ou negá-la do que falar e trabalhar sobre educação
sexual, auto- conhecimento do corpo e sexualidade feminina, como se observa no
relato da coordenadora da pastoral carcerária: “[...] o problema disso é que não há
acesso a camisinha, remédio ou informação. Se o Estado não reconhece que acon-
tece, ele não tem que se responsabilizar pela prevenção” (QUEIROZ, 2015, p. 132).
Neste sentido, há um paradoxo, pois se a mulher engravida de um homem
encarcerado, sua gravidez e condições para criação da criança não são levadas em
consideração, naturalizando também a responsabilidade das mulheres na criação de
filhas/os. Além disso, caso seja uma decisão do casal, tira-se a possibilidade e esco-
lha dos parceiros de engravidarem e constituírem família durante o encarceramento,
relegando-os ao controle do Estado.
A violência estrutural também atinge a população feminina LGBTQIA+, uma
vez que no processo de encaminhamento do sistema carcerário é considerado as
características biológicas, prevalecendo uma idealização binária que desrespeita a
subjetividade e o modo de identificação sexual. Para tanto, a ignorância, por ser um
assunto não abordado no sistema carcerário, acaba promovendo violências, como
podemos visualizar no seguinte fragmento:
Ela me contou que tava tão assustada porque na Penitenciária de Sant’Anna uma
guarda tinha se passado por enfermeira pra examinar ela. Botou uma camisa
branca e uma luva e enfiou a mão nela. Depois, ela viu a guarda no corredor e
descobriu que não era enfermeira coisa nenhuma. Quando chegou aqui, me pediu
para escrever uma queixa contra a guarda. Escreveu. Não deu em nada. Manda-
ram-na de lá pra cá porque a aparência dela dava muito problema. Tinha presa
enlouquecida, um burburinho (QUEIROZ, 2015, p. 149).
E ainda:
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 381
Lei nº 10.792, tenha eliminado a necessidade dos exames criminológicos para a pro-
gressão de regime e para o livramento condicional, o setor do judiciário estabeleceu
uma permanência para essas atividades, construindo um caráter de opcionalidade
dos exames (NASCIMENTO et al., 2018).
Alimentando essa crítica, o posicionamento do Conselho Federal de Psicolo-
gia acrescenta que a atuação do profissional de psicologia não se limita apenas na
realização de exames criminológicos, como também busca realizar um trabalho para
além da elaboração de prognósticos criminológicos ou de aferição de periculosidade,
ressaltando a importância de lidar com questões sociais, sóciohistóricas, bem como
atuar visando o protagonismo e autonomia individual e coletiva.
Por fim, as consequências sociais oriundas das violências estruturais patriarcais,
contribuem para a manifestação dos efeitos psicológicos, efeitos esses que podem
ser percebidos ao longo da discussão, como podemos visualizar abaixo:
Certo dia, quando as celas estavam abertas, ela saiu em alta velocidade pelo
corredor gritando, desvairada, implorando por ajuda. Parou de joelhos aos pés do
carcereiro de plantão e pediu para ver um médico de cabeça antes que fosse tarde
demais. O homem dirigiu a ela um olhar sem vida e mandou que voltasse pra cela,
dormisse e deixasse de escândalo. Ela saiu correndo no mesmo desespero em que
havia chegado. [...] Quando voltaram à cela para ver se podiam ajudar em algo a
companheira, quase desfaleceram. Amélia havia se enforcado, como outras antes
dela, na grade da janela (QUEIROZ, 2015, p. 125).
Diante disso, pode-se dizer então que as configurações espaciais legitimam mor-
tes? A questão dos comportamentos autodestrutivos compactua com essa indagação.
O encarceramento promove aprisionamentos que rompem com a manifestação do
eu e quebram autonomias subjetivas, na qual se sedimenta a desvalorização da dor
que, de acordo com Goffman (2003), envolve degradações e humilhações deixando
marcas irremediáveis na vida do sujeito.
Outros elementos encontrados para os efeitos psicológicos são: a passividade,
sentimento de culpa e solidão. Entende-se que a passividade é um processo sóciohis-
tórico de subordinação opressor que se perpetua na atualidade das mulheres estuda-
das. Os sentimentos de solidão e culpa estão atrelados ao modo como se estabelece
as relações afetivas, demarcadas por diversas separações de vínculo, dentre elas de
pais, filhos, amigos e parceiros conjugais. Nesse item, faz-se necessário enxergar a
atuação da/o psicóloga/o nos efeitos psicológicos, visto que é responsável em lidar
com comportamento, sentimentos e sofrimento humano.
A frase supracitada refere-se ao desejo de uma dessas mulheres por ter voz,
representando as demais em seu anseio de serem reconhecidas em suas vivências e
experiências. Esquecidas e negligenciadas, estas mulheres ocupam lugar de abjeção
na sociedade: são violadas desde aspectos mais intrínsecos à sobrevivência, como
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 383
REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA, R. L. S.; SOUSA, C. P. C.; SILVA, T. S. M. Infopen Mulhe-
res de 2014 e 2018: Desafios para a pesquisa em Psicologia. Psicologia:
Ciência e Profissão, v. 38, n. 2, p. 88-101, 2018. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/1982-3703000212154.
ANGOTTI, Bruna; SALLA, Fernando. Apontamentos para uma história dos presí-
dios de mulheres no Brasil. Revista de história de las prisiones, n. 6, jan./jun. 2018.
BATISTA, Lázaro e Loureiro; LIMA, Ana Jéssica. “Será que ele vai me chamar
de mãe?”: maternidade e separação na cadeia. Psicologia Política, v. 17, n. 38,
p. 57-71, jan./abr. 2017.
CURY, Jessica Santiago; MENEGAZ, Mariana Lima. Mulher e o cárcere: uma histó-
ria de violência, invisibilidade e desigualdade social. In: SEMINÁRIO INTERNA-
CIONAL FAZENDO GÊNERO 11& 13THWOMEN’S WORLDS CONGRESSO.
Anais Eletrônicos [...]. Florianópolis, 2017.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
386
GRAÇA, Bianca C.; MARIANO, Michele M.; GUSMÃO, Maria A.J.X.; CABRAL,
Juliana F.; NASCIMENTO, Vagner F.; GLERIANO, Josué S.; HATTORI, Thalise
Y.; TRETTEL, Ana Cláudia P.T. Dificuldades das mulheres privadas de liberdade
no acesso aos serviços de saúde. Revista Brasileira Promoção Saúde, Fortaleza,
v. 31, n. 2, p. 1-9, abr./jun, 2018.
ORMEÑO, Gabriela Isabel Reyes. Family history of incarcerated women: Risk factors
and protection for children. 2013. 216 p. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) –
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam: uma brutal vida das mulheres – tratadas
como homens – nas prisões brasileiras. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.
SANTOS, Jahyra Helena Pequeno dos; SANTOS, Ivanna Pequeno dos. Prisões: Um
aporte sobre a origem do encarceramento feminino no Brasil. Disponível em: http://
www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=c76fe1d8e0846243.
SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para a análise histórica. 2. ed. RECIFE,
fev. 1995.
Introdução
Alguém poderia, desse modo, inventar uma fábula e ainda assim não teria ilus-
trado suficientemente bem quão lastimável, quão sombrio e efêmero, quão sem
rumo e sem motivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza; houve
eternidades em que ele não estava presente; quando ele tiver passado mais uma
vez, nada terá ocorrido (NIETZSCHE, 2007, p. 25).
Tal como essa fala sugere, o sentido da história não se compreende a partir de
sucessivos eventos lineares. Deste modo, percebe-se que os estudos genealógicos
compreendem o triplo efeito entre saber-poder-subjetivação e tal efeito recai sobre as
condições de possibilidades dos acontecimentos. A genealogia, portanto, não se ocupa
de interpretar ou desvelar aquilo que se encontra oculto, mas operar nos desvios,
nos acidentes, nas mudanças de percursos, nos elementos pelos quais as relações de
força fazem emergir formas de subjetividades a partir do embate permanente dessas
mesmas relações.
“A vida é tudo aquilo que se afirma”: ou como nos tornamos o que somos
para uma desconstrução das linearidades históricas, políticas e culturais nas quais
somos constituídos como sujeitos de múltiplas vontades de saber. Inspirado em toda
a potência corrosiva do pensamento nietzscheano, Foucault (1993) nos incita a per-
ceber que além de uma imediata destruição da metafísica da própria cientificidade,
é preciso, pois, desconstruirmos a nós mesmos, uma vez que somos constituídos nos
espaços dos jogos de objetivação e de subjetivação (BOGÉA, 2019).
É esse o contexto potente da genealogia, pois ela oportuniza pensar que, no
interior e no exterior de todo acontecimento, encontram-se a gargalhada, a astúcia
e a vingança das solenidades das origens (NIETZSCHE, 1976). Só podemos pensar
a relação entre a genealogia e a educação a partir de sua transversalidade e capila-
ridade, a partir dos elementos ligados aos dispositivos de poder, às estratégias de
saber e aos processos de subjetivação.
Mais do que uma experiência política, a própria educação é, para a genealogia,
um efeito de tensionamento que reflete, por um lado, a experiência dos processos de
disciplinarização dos corpos, mas também a elaboração de redes de discursividades
sobre os indivíduos e as tecnologias de individuação das subjetividades. Em Vigiar
e Punir (FOUCAULT, 2014) não interessa ao autor explorar a experiência social dos
primeiros espaços institucionais/escolares da Modernidade, mas sim tensionar, de
modo correlativo, a experiência de emergência da disciplina como efeito de verdade
responsável por produzir uma tecnologia da individualidade, ou seja, analisar como
as redes de dispositivos disciplinares interpelam o sujeito a se reconhecer como indi-
víduo. A genealogia despreza completamente todos os protocolos de uma educação
originária – quase uma substância imagética responsável por depositar nos educadores
uma vocação messiânica de salvar o que já foi pensado para ser um fracasso, por
mais que ocorram reformas, ou sejam pensadas disciplinas como projeto de vida – e
o processo de constituição de um sujeito autônomo e racional.
A educação, como relação de força, compreende a dispersão e as emer-
gências do perspectivismo em que a genealogia é responsável por investigar
os desdobramentos dos papéis políticos por meio dos efeitos de verdades dos
temas educacionais.
Sem sombra de dúvida, uma genealogia das formas de verdade dos espaços
educacionais deve interessar-se em percorrer os contornos pelos quais determinadas
verdades são inscritas nos diferentes campos da educação como modo de constituição
de sujeitos. O problema posto pelas pesquisas genealógicas compreende, portanto, os
elementos da produção política das relações não de uma verdade da educação, mas de
uma educação da verdade. Ou seja, trata-se de pensar a educação e seus problemas
em que são estudados os meticulosos processos responsáveis por fazer emergir e
“[...] conjurar a quimera da origem” (FOUCAULT, 1993, p. 61).
Ao tecermos um olhar foucaultiano para a educação sob as lentes da genea-
logia necessitamos, em primeiro lugar, renunciar à própria linearidade histórica
por meio da qual esse saber foi constituído – como se houvesse uma espessa
linha que ligaria o projeto grego de uma Paideia ao limiar do racionalismo e ilu-
minismo moderno. Por que, pergunta-se à genealogia, ao invés de retomarmos a
fábula desse processo humanista, não podemos instigar uma análise das práticas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 393
Uma das estratégias mais fecundas produzidas nos estudos foucaultianos sobre
o campo educacional está em interrogar o papel das formas de governo na organi-
zação de uma pedagogia do sujeito (GALLO, 2019; RESENDE, 2019). Governo
este que compreende as diferentes formas de gestão empregadas sobre os corpos
e populações mediante dispositivos de saber-poder. No caso específico do campo
educacional, trata-se de indagar como diferentes formas de governo, das disciplinas
à biopolítica, foram responsáveis por constituir diferentes sujeitos educacionais.
Desta indagação inicial surge uma multiplicidade de desdobramentos, abrindo novas
problematizações sobre ele.
394
O medo do fracasso social, o medo do que escola ensina, o medo do aluno não
aprender a aprender, o medo da evasão escolar, o medo da invasão da escola por
alunos desobedientes, o medo da ocupação da escola, o medo de não se qualificar
suficientemente, o medo da perda do emprego por deficit na qualificação, o medo
da falta do diploma, o medo da desatualização profissional, o medo de não ingres-
sar no ensino superior, o medo de que as crianças não se alfabetizem [...]. O medo
da educação, do professor, o medo do aluno, o medo da gestão governamental, o
medo da escola, o medo da educação, o medo da falta de educação.
Todos esses medos e, certamente muitos outros, enquadram o indivíduo num
sistema de perigo fazendo com que sua vida, entre a liberdade e a segurança,
esteja constantemente enredada num esquema de perigo que atravessa as práticas
do meio educacional. Tais medos não são, de forma alguma, devaneios ou meros
comportamentos de fundo psicológico. Ao contrário, trata-se do uso instrumental
do medo como técnica política capaz de instaurar um certo pavor diário, através
do que a lógica neoliberal ganha corpo, ou melhor, toma a alma dos indivíduos,
aprisionando seus corpos a essa forma de vida calcada na racionalidade que joga
com o medo e com a liberdade [...] (RESENDE, 2019, p. 127-128).
396
Considerações finais
Na introdução de O Uso dos Prazeres, Foucault (1998) aponta que uma genealo-
gia dos processos de subjetivação na sociedade ocidental constitui-se como uma ferra-
menta sobre as possíveis bifurcações entre os aparelhos de captura e as linhas de fuga.
Tal percurso compreende a dimensão do projeto metodológico da genealogia,
no sentido de se pensar as emergências e proveniências dos espaços de verdades
pelas quais nos reconhecemos enquanto sujeitos.
Do ponto de vista metodológico, as pesquisas genealógicas oportunizam
uma outra maneira de percebermos os embates entre as forças nos interstícios das
dinâmicas que envolvem a constituição de um sujeito historicamente objetivado e
subjetivado pelos jogos de verdade.
No contexto da educação, tais elementos oportunizam a investigação sistemática
em linhas cíclicas dos elementos responsáveis pela constituição de uma ontologia
histórica de nós mesmos. Nesse sentido, o projeto metodológico de uma genealogia
dos espaços educacionais refere-se muito mais aos modos pelos quais emerge uma
vontade de saber do sujeito pedagógico e seus processos de escolarização, do que
propriamente a dimensão efetiva de uma linearidade do saber educacional.
Mais do que nunca, a pirotecnia genealógica produzida por Foucault situa, nas
suas capilaridades os elementos estratégicos pelos quais os dispositivos de controle,
as formas de governamentalidades e as estratégias de operacionalização da biopo-
lítica são modulações em constantes processos de transformação e de produção de
modos de subjetividade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 399
REFERÊNCIAS
ARALDI VAZ, Rafael; SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y. Por uma história malcom-
portada: a historiografia antidisciplinar de Michel Foucault. História da Historio-
grafia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 14, n. 36,
p. 465–480, 2021. DOI: 10.15848/hh.v14i36.1717. Disponível em: https://www.
historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1717. Acesso em: 21 jun. 2022.
SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (org.). Neo-
liberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
Introdução
Em janeiro de 2022, uma pessoa que passava por uma rua na cidade de Rio
Branco, no Acre, filmou uma mulher negra que, na calçada de uma maternidade,
de pé com as mãos na cintura, observava uma criança que acabara de vir ao mundo
e em meio a poças de sangue, chorava desesperadamente. A filmagem foi enviada
para o portal de um jornal local e gerou grande repercussão, principalmente após a
publicação do vídeo no Instagram. Nada se sabe sobre a mulher, além da cor de sua
pele, que vivia em situação de rua e apresentava transtornos mentais. Na gravação,
é possível ouvir uma pessoa passar e repreendê-la, como se ela fosse responsável
por aquela situação. Segundo a reportagem, a mulher havia tentado atendimento na
maternidade e não tendo conseguido, entrou em trabalho de parto, dando à luz na
calçada. Depois de filmar a cena, a pessoa responsável pelo vídeo teria procurado
a recepção da maternidade que, no primeiro momento, não tomou nenhuma provi-
dência, mas após a insistência do mesmo, teria acolhido a mulher, estando a criança
sendo cuidada e a mãe atendida por psiquiatra (G1-AC, 2022). Outro episódio veicu-
lado numa reportagem sobre racismo na saúde, apresentou o seguinte contexto: uma
mulher negra de 42 anos, mãe de quatro crianças, com problemas de pressão alta e
gravidez de risco, foi internada numa maternidade para dar à luz, e em meio às dores,
enquanto suplicava para que lhe fosse dada anestesia e a intervenção de cesariana,
teve medicamentos injetados em seu corpo que aumentaram as dores e contrações e
a colocaram em risco de morrer (CARTA CAPITAL, 2020).
Esses dois casos ilustram um fenômeno recorrente na sociedade brasileira, e
que, por sua vez, tornou-se um problema jurídico e de saúde pública: A violência
402
obstétrica, que se define como todos os atos praticados contra a mulher no exercí-
cio de sua saúde sexual e reprodutiva, no tocante aos cuidados durante a gestação,
parto, puerpério, acompanhamento da saúde da criança etc. (LEITE, 2016; LEAL
et al., 2017). Trata-se, portanto, de uma violação à prerrogativa constitucional de
respeito ao direito à saúde e à dignidade humana (BRASIL, 1988) e se tornou uma
das mais cruéis expressões da violência de gênero, na medida em que incide sobre o
corpo de uma mulher em estado de grande vulnerabilidade física e emocional. Nos
relatos trazidos acima, além da violência obstétrica sofrida, as duas mulheres têm
em comum o fato de serem negras, evidenciando como o corpo da mulher negra
foi e é assujeitado a um processo de violência que vai desde a violação dos seus
corpos até a negação do direito de ser cuidada e assistida de maneira adequada em
suas necessidades específicas.
Lima (2016) ao pesquisar sobre raça e violência obstétrica no Brasil, se deparou
com informações que a fizeram refletir que a cor da pele e o gênero são fatores deter-
minantes no modo de viver e morrer de mulheres não brancas e pobres. Waiselfisz
(2016) sobre esse aspecto, aponta, a partir do Mapa da Violência 2015: Homicídios
de Mulheres no Brasil, dados que comprovam que a grande maioria das mulheres que
sofrem violência obstétrica são negras, de menor escolaridade e atendidas no setor
público, evidenciando, assim, a desigual distribuição de direitos apesar da apregoada
igualdade de todos perante a lei (BRASIL, 1988).
A ideia propagada pelo racismo científico e disseminada pelo racismo estrutural
de que pessoas negras têm uma constituição física diferente das pessoas brancas, faz
circular mitos que no caso de mulheres negras, têm reforçado a prática de violência
obstétrica contra elas, tal como o que afirma que as mulheres negras são mais fortes
e resistentes à dor do que as mulheres brancas (CARTA CAPITAL, 2020). Tendo
em vista esse senso comum, estudos desenvolvidos por um grupo de pesquisadores
da Fundação Oswaldo Cruz, levou à conclusão de que esses mitos resultam numa
maior incidência de casos de violência obstétrica sobre os corpos de mulheres negras,
levando a procedimentos descuidados que as submetem à sofrimentos desnecessários
e as colocam em estado de risco (LEAL et al., 2017).
Dentro do contingente de pessoas racializadas e empobrecidas, as mulheres
negras foram aquelas sobre as quais a escravidão atuou, para além da exploração de
seu trabalho, seja nas plantações ou nos serviços de natureza doméstica, de forma
ainda mais específica: a violência sobre seus corpos. Tendo essa violência perma-
necido e se estendido até os dias de hoje, assumindo diversas formas, sobretudo,
em virtude do entrecruzamento de múltiplas opressões no que diz respeito à gênero,
raça e classe, o que nos remete à reflexão sobre a existência de seres humanos
cujas vidas não são listadas como importantes (BUTLER, 2015) e cujos direitos,
apesar de previstos, não são minimamente respeitados, apontando, ainda, para o
que Saidiya Hartman (2021) denominou de “sobrevida da escravidão” em que “as
vidas negras ainda são desvalorizadas por um cálculo racial” que se manifesta em
“oportunidades incertas, acesso limitado à saúde e a educação, morte prematura,
encarceramento e pobreza” (HARTMAN, 2021, p. 17).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 403
qual vai além da definição de um poder que, para Foucault (1979), teria ultrapassado
as técnicas de violência e opressão explícitas e teria avançado para uma sociedade
de controle da vida, através de meios mais sofisticados, como a medicina, o estado
de segurança e outras tecnologias de construção de subjetividades. Para Agamben
(2010), seria necessário, entretanto, avançar nas discussões para explicar o porquê
de em determinados lugares, a despeito da democracia, havia práticas que nada
tinham a dever às violências da época da barbárie, muito pelo contrário, teriam sido
o próprio aperfeiçoamento dessas mesmas práticas em face do avanço do progresso.
Inspirado numa figura existente na antiguidade romana denominada Homo sacer,
uma figura que era incluída no Estado pela exclusão, ou seja, como fora da lei, e que
sob o ponto de vista da lei romana, não podia ser morto, mas que se morto, sua morte
não seria levada em conta, por não ser considerada uma vida politicamente relevante,
Agamben (2010) se apropriou do conceito para materializar sua tese. O autor analisou
o extermínio dos judeus na época do fascismo reinante na Europa, identificando nos
campos de concentração, uma figura semelhante ao Homo sacer romano, por terem
suspensos todos os seus direitos de cidadão, marcado pelo banimento e o abandono,
ampliando assim os horizontes dos estudos sobre biopolítica.
Nesse sentido, Agamben (2008) sinaliza que a biopolítica moderna não se trata
apenas do controle da vida, mas da produção de corpos para serem explorados até a
exaustão e passíveis de abandono e morte, e que os elementos presentes nos antigos
campos de concentração nazista sobrevivem, e que, em momentos de crise, vêm à tona
com a suspensão do Estado de Direito (AGAMBEN, 2004). Poderíamos salientar que
enquanto a segurança de determinados corpos estaria posta em xeque apenas mediante
uma crise, para certos grupos trata-se de uma constante, a exemplo do medo de um novo
golpe militar no Brasil, embora em determinadas regiões a intervenção militar nunca tenha
sido erradicada, mesmo com a decretação do fim do regime. Como aponta Ruiz (2010):
127 Sobre estudos decoloniais ver: QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo Cortez, 2010.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 405
[...] historicamente falando, uma das estratégias dos Estados dominantes sempre
passou por expandir e lançar terror, confinando as manifestações mais extremas a
um terceiro lugar radicalmente estigmatizado- a plantação durante a escravatura, a
colônia, o campo, o compoud durante o apartheid, o gueto, ou à semelhança dos
Estados Unidos contemporâneos, a prisão [...] (MBEMBE, 2017, p. 59).
128 Grifo do autor, que faz referência a uma citação de Carl Schmitt do livro Parlamentarisme et democratie.
Seul, Paris, 1998, p. 107.
406
como a Lei do Ventre Livre que garantia a liberdade para os filhos de mulheres
escravizadas nascidos a partir da promulgação da Lei (BORIS, 2017). Bento é
então certeira quando afirma que essa Lei apresenta o paradoxo do Estado Brasi-
leiro em produzir, concomitantemente, políticas de vida e de morte. Para a autora,
a Lei atuava no sentido de, discursivamente, atender os reclames do capitalismo
em relação à abolição da escravidão e o período da pré-industrialização, enquanto,
na prática, mantinha o regime escravocrata pela imensa dependência do país em
relação a ele.
Assim, na Lei do Ventre Livre, percebemos a estreita relação entre vida e morte
atuando sobre os corpos femininos, numa tentativa de manter intacta a estrutura
escravista, na medida que os filhos das mulheres escravizadas eram livres, mas não
suas mães. Os senhores continuavam sendo donos dos corpos negros femininos
escravizados, mas… para onde iriam seus filhos nascidos na vigência da Lei? A
Lei garantia que as crianças ficassem sob a responsabilidade dos senhores e de suas
mães até os 8 anos de idade, e depois desse período, os senhores, para compensar
os custos com as crianças, tinham duas opções: receber indenização por parte do
Estado ou utilizar os serviços do menor até os 21 anos de idade quando se tornariam
“livres” (BORIS, 2007). Não é necessário ir muito longe para perceber que a Lei
era uma falácia jurídica e que o intuito era satisfazer os novos rumos do capitalismo
com a nascente sociedade industrial, ao mesmo tempo que resolvia o problema que
a abolição do trabalho escravo desencadearia.
Nesse sentido, as observações de Bento (2018) reforçam a ideia de que a escra-
vidão atuou sobre os corpos negros femininos de forma específica, e que até hoje
esses corpos são violentados pelos agentes do próprio Estado, que diz criar leis para
protegê-las, numa verdadeira concomitância entre vida e morte, mantendo a desi-
gualdade entre raça, gênero e classe.
A partir disto, podemos inferir que o modo complexo como a escravidão atuou
sobre os corpos femininos sobrevive em situações de violência obstétrica como a
dos exemplos com os quais iniciamos esse capítulo, e nas inúmeras violações que,
a seu turno, incidem de forma mais recrudescida quando o corpo feminino é negro.
Ainda extremamente necessárias à economia capitalista, seja para exercer serviços
domésticos e de maternagem, mantendo as mulheres brancas na posição de libertas,
seja para limpar a cidade (VERGÈS, 2021), as mulheres negras e não – brancas
seguem reatulizando uma realidade que arrasta elementos não superados do período
da escravização no Brasil.
Angela Davis (2016) enfatiza que a questão da mulher negra escravizada era
controversa no tocante ao gênero. Além de serem exploradas até a exaustão, a autora
ressalta que apesar de serem mão de obra tão importante quanto a dos homens e ainda
reprodutoras de novas vidas escravas, as mulheres negras não recebiam tratamento
privilegiado por estarem grávida. Seus donos, embora procurassem garantir seu
papel de reprodutora ao máximo, quando estas estavam grávidas ou no puerpério,
não eram poupadas do trabalho duro nas lavouras ou do castigo cruel. Eram recor-
rentes os relatos de mulheres que após darem à luz, tinham que deixar seus filhos
para trabalhar nos campos e, impossibilitadas de amamentar, ficavam com as mamas
inchadas e cheias de dor, não conseguiam acompanhar o ritmo do trabalho, sendo por
isto, chicoteadas “até que sangue e leite escorressem, misturados, de suas mamas”
(DAVIS, 2016, p. 27).
Nesse sentido, ao olhar sobre a história da escravidão e as questões que envol-
vem violência de gênero no Brasil e em outros países que se constituíram sob o regime
escravocrata e suas reverberações na condição da mulher negra na contemporanei-
dade, precisamos observar aspectos sem os quais nossas análises podem produzir
lacunas importantes para uma melhor compreensão dessa temática. E nesse sentido, os
apontamentos de Davis (2016) alertam para o processo de desumanização sofrido por
esse grupo, destituídos de sua condição humana e reduzidas a matrizes reprodutoras
de filhos-mercadorias e cuja maternagem deveria voltar-se exclusivamente para os
filhos dos brancos, os mesmos que mais tarde também exerceriam sobre elas e sobre
os seus, poder de vida e de morte.
Davis (2016) nos adverte ainda sobre os discursos que tentam atribuir à mulher
negra, um tratamento privilegiado na escravidão, na medida em que se ocupavam
dos afazeres domésticos e dos cuidados com as crianças, sendo, portanto, tuteladas
pelos donos da casa e privilegiadas em relação aos homens, que se ocupariam dos
trabalhos mais duros e extenuantes. Entretanto, discursos como esse tentam invisi-
bilizar e/ou distorcer as violências de gênero que se somavam a todas as outras, ou
seja, ser mulher não era (como ainda não é) um privilégio, era antes um condicionante
de aumento de sentença.
Em se tratando da realidade brasileira, destacamos o mito da democracia racial
(GONZALEZ, 2020a, 2020b; CARNEIRO, 2019a; 2019b; NASCIMENTO, 2016;
MUNANGA, 2019; NASCIMENTO, 2021), a suposta miscigenação bem sucedida
em terras brasileiras e as estruturas de poder sustentadas pelo cisheteropatriarcado
(AKOTIRENE, 2019), constroem um panorama que coloca a mulher negra em
uma encruzilhada de opressões, que reatualiza violências e impõe uma máscara de
silenciamento (KILOMBA, 2019) cuja oposição, resistência e combate, facilmente
podem ser observados como ameaças a serem duramente combatidas, inclusive com
ações articuladas e dirigidas previamente, por aqueles que historicamente continuam
a usufruir da prerrogativa do ataque, enquanto um recurso social e politicamente
legítimo de autodefesa (DORLIN, 2020).
À vista disso, consideramos as contribuições teóricas e metodológica da inter-
seccionalidade, como ferramenta importante de análise nas discussões referentes à
408
Considerações finais
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo:
Boitempo.2004.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder Soberano e a vida nua. Trad. Henrique
Burigo.2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Coleção Feminismos Plurais. São
Paulo: Pólen, 2019.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
CARNEIRO, Sueli. Mulher negra. In: CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São
Paulo: Pólen Livros, p. 13-59, 2019b. Ano da primeira publicação: 1985.
COIMBRA, Cecília. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre
a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de
Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão.
Trad. José Luiz Pereira da Costa. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 413
HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. EcoPós. Dossiê Crise, Feminismo e Comu-
nicação, v. 23, n. 3, 2020.
LIMA, Kelly Diogo de. Racismo e violência obstétrica no Brasil. Recife [s.n], 2016.
(Monografia) Trabalho de Conclusão de Curso em Residência Multiprofissional
em Saúde Coletiva; Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo
Cruz, 2016.
NASCIMENTO, Beatriz do. Nossa democracia racial (1977). In: RATTS, Alex (org.).
Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, p. 62-67, 2021.
RUIZ, Castor. A Exceção Jurídica na biopolítica moderna. Revista IHU, São Leo-
poldo, v. 2, n. 5, p. 28-32, 2010. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/
edicao/343. Acesso e impressão em: 25 jul. 2019.
Uma separação tão estanque entre vida cultural e vida material, pressuposta
pelo materialismo histórico ortodoxo e por seus representantes neoconservadores,
poderia levar a uma perspectiva anacrônica sobre a realidade social (BUTLER,
2016, p. 233). Isso porque, pelo fato de que pressupõem uma cisão entre cul-
tura e política, ignoram a relação entre as condições de existência e as políticas
de identidade.
Publicado alguns meses antes naquele ano por Nancy Fraser, o livro “Justice
Interruptus”, seria para Butler um exemplo de como isso ocorre. Nele Fraser afir-
mou, à época, que a injustiça sofrida por lésbicas e gays era “essencialmente uma
questão de reconhecimento” (FRASER apud BUTLER, 2016, p. 238). Sob esse
argumento, a homofobia parecia não ter qualquer relação com a sociedade capi-
talista, como se homossexuais não fizessem parte da classe social explorada, não
estivessem em desvantagem na divisão do trabalho e “como questões meramente
de reconhecimento cultural, em vez de reconhecê-las como lutas seja por equidade
ao longo de toda a esfera da economia política, seja pelo fim da opressão material”
(BUTLER, 2016, p. 238).
Há décadas, o movimento operário e o movimento feminista – dentro de fora da
academia – localizaram a família burguesa como um ideal normativo que, na moder-
nidade, corresponde aos interesses de produção e reprodução do capital, amparado
pelo Estado e pela moralidade cristã (ENGELS, 1884/2019; FRASER; JAEGGI,
2020). Essa divisão do trabalho é marcada pelos papéis atribuídos aos gêneros e
pela regulação da sexualidade, então Butler considera importante termos em mente
a marginalização e o rebaixamento de homossexuais e pessoas com sexualidades e
identidades de gênero diversas, para uma compreensão realmente ampla das dinâ-
micas atuais de reconhecimento na sociedade capitalista.
No mesmo ano, a revista Social Text lançou a réplica direta de Nancy Fraser
(2017). Após agradecer Butler por não vilanizar o feminismo socialista da década
de 70, Fraser argumenta que suas diferenças como filósofas estão, exatamente, na
natureza que cada uma atribui ao capitalismo. A preocupação de Fraser é a de que
leitores(as) da revista poderiam, a partir das críticas de Butler, presumir erroneamente
que ela apoia marxistas neoconservadores, ou seja, que considerasse as opressões
de gênero e sexualidade como secundárias, “menos materiais” que as desigualdades
econômicas (FRASER, 2017, p. 124). Ao contrário, Fraser enfatiza compreender a
importância desses debates, tanto para a elaboração de políticas públicas que visam
reduzir as violências quanto para assegurar os direitos de cada vez mais pessoas,
conforme os ideais democráticos (Idem). Por acreditar que era necessário explicitar
qual seria o projeto coletivo de melhoria das condições de existência das pessoas,
desde as disputas feministas inseridas nessas vertentes filosóficas, abre-se um debate
epistemológico sobre as perspectivas materialista e pós-estruturalista, em que o hete-
rossexismo e o (des)reconhecimento têm destaque.
418
Para Fraser, o final da Guerra Fria marca um novo período histórico, uma con-
dição “pós-socialista”, em que a fragmentação entre a esquerda cultural e a esquerda
social. A diferença é que a última centraliza as discussões nas políticas de classe e a
primeira atribui muita importância a políticas de identidade (FRASER, 2006). Ela
insiste que essa cisão ainda existe na atualidade e, em suas publicações mais recentes
(FRASER, 2020; FRASER; JAEGGI, 2020), redistribuição e reconhecimento perma-
necem em dimensões separadas por essas duas perspectivas, ainda que a autora tenha
ressaltado uma relação direta entre elas, quando se trata da elaboração de políticas
públicas democráticas.
Com isso, vemos que Butler e Fraser apresentam críticas ao sujeito racional
moderno proposto pelo projeto Iluminista, ainda que elas tenham algumas divergên-
cias. O ponto em comum entre elas, enquanto filósofas feministas, é o alerta de que
há uma hegemonia da concepção do homem como sujeito do conhecimento, na qual
o pensamento particular masculino é considerado uma forma de dominação cujos
interesses são comumente interpretados como universais (BONOTE, 2021, p. 297),
ao mesmo tempo em que se produz a alteridade da condição da mulher. Para Bonote:
Em outras palavras, essa forma de análise das narrativas das metamorfoses foge
da pretensão de busca de algum universal que poderia oferecer a possibilidade de
dizer: eis aqui a identidade. Não se trata também de partir a priori de uma posi-
ção humanista para dizer: eis o que é a essência humana, eis o que é a natureza
humana, eis o que é a emancipação humana, eis o que é a liberdade humana etc.
(LIMA; CIAMPA, 2017, p. 6).
A esse respeito, Ciampa (2002, p. 134) ensina que “uma identidade coletiva
é quase sempre referida a uma personagem: nos exemplos, fala-se no singular de
‘negro’, ‘trabalhador’, ‘mulher’, ‘sem-terra’, ‘gay’ etc., cada um correspondendo a
um ou mais movimentos”. As políticas de identidade servem à formação e manu-
tenção dessas identidades, e podem ser tanto emancipatórias quanto regulatórias;
emancipatórias quando ampliam a possibilidade de existência na sociedade, garan-
tindo direitos para os indivíduos, ou regulatórias, quando criam regras normativas
que muitas vezes impedem que o indivíduo consiga sua diferenciação e, “aparece
na orientação feita ao estigmatizado no sentido de que se ele adotar uma linha cor-
reta ele terá boas relações consigo e será um homem completo, um adulto com
dignidade e auto respeito” (GOFFMAN, 1988, p. 134). Aqui aparece outra questão
complicada, quando pensamos nas políticas de identidade que, ao trabalhar com a
ideia de identidade coletiva, a perceber sob a heteronomia do indivíduo, negando a
experiência individual e atribuindo um sentido a priori que, se este aceita, pode ser
uma experiência de “não eu”.
Os projetos coloniais podem ser vistos como projetos que buscam ‘verdades’
sobre as pessoas colonizadas, na medida em que este conhecimento sirva aos
colonizadores de alguma forma (para invadir, ocupar, ridicularizar, assassinar,
por exemplo).
Quando o entrevistador insiste em saber o sobrenome de Malcolm X, ele quer
produzir duas coisas, discursivamente:
com Aline Rebouças e Deborah Antunes (SOARES et. al., 2022), reforçamos nosso
posicionamento quanto ao reconhecimento perverso, pautado pela passabilidade de
pessoas trans* sob a perspectiva cisheteronormativas, em que:
REFERÊNCIAS
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para
os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Contratempo, 2018.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. EcoPós. Dossiê Crise, Feminismo e Comu-
nicação, v. 23, n. 3, 2020.
LIMA, Aluísio Ferreira de; CIAMPA, Antonio da Costa. “Sem pedras o arco não
existe”: o lugar da narrativa no estudo crítico da identidade. Psicologia & Sociedade,
v. 29, e171330, 2017.
SOARES, Aline Rebouças Azevedo; LIMA, Stephanie Caroline Ferreira de; LIMA,
Aluísio Ferreira de; ANTUNES, Deborah Christina. Reconhecimento e inclusão pelo
consumo: a reprodução social do capitalismo. In: LEMOS, Flávia Cristina Silveira
et al. (org.). O dispositivo gênero-sexualidade-racismos e a educação libertária:
ensaios analíticos de Psicologia Social. Curitiba: CRV, 2022.
Introdução
O interesse latente por uma pretensa ordem – que se almeja alcançar, com base
em cálculos de probabilidade de riscos e intervenções direcionadas para tais – tende
428
A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma
descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 429
Por sua vez, a biopolítica visa ao controle em nível coletivo, a partir de práticas
de regulamentação capazes de promover o equilíbrio social. Por objetivar a garantia
da vida, busca estabilidade e regularidade, dando também destaque às potencialidades
dos sujeitos (FOUCAULT, 1999). Por essa perspectiva, há grande interesse no que
tange à população, em sua existência biológica. Assim, são vistos movimentos no
sentido de minimizar a ritualização da morte, em benefício de sua biologização, com
base em uma racionalidade que faz viver uns e deixa morrer outros:
As políticas públicas, que se aliam a essa lógica de controle das vidas e, conse-
quentemente, da produção de segurança, mostram-se atravessadas por uma espécie
de promessa da tranquilidade. Contudo, diante das expressivas desigualdades sociais,
cabe-nos problematizar a que preço são tecidas práticas nessa esfera (considerando a
produção de subjetividade em torno de uma segurança em nome apenas de alguns)
e de que maneira os discursos de determinadas áreas do conhecimento fortalecem
alianças entre seguridade e noções de normalidade, sustentadas no esquadrinhamento
de modos de viver. Para pensar tais questões, torna-se necessário também pôr em
evidência o que se tem criado em termos de promoção de vida, para além das forma-
lidades convencionadas por programas governamentais. Trata-se de outra política que
se ancora na dimensão estética, na invenção de possíveis no cotidiano das cidades.
Pelas vias informais, são encontrados meios de expressão que concernem a
mecanismos de resistência, ou seja, ao que não se deixou capturar por forças domi-
nantes. A política, nesse jogo, desponta como o fazer que demanda uma “partilha
do sensível”, tal como elucidou Rancière (2005), por pressupor a discordância na
construção de uma noção de comunidade política. Para esse autor, o caráter demo-
crático do fazer político depende da multiplicidade, que se articula à esfera sensível,
isto é, à estética. “A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar
a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos aconteci-
mentos. Para mim, é um dado permanente” (RANCIÈRE, 2010, p. 125).
Por essa perspectiva, torna-se interessante investigar de que maneira, na atua-
lidade, a sociedade tem reinventado seus modos de participação na vida política,
através de produções estéticas que remetem a formas de pensar específicas. Com
base nessa problematização inicial, cabe-nos perguntar de que maneira determi-
nados grupos marginalizados socialmente têm levantado suas pautas, articulando
alianças para além de uma atitude passiva de participação em programas instituídos
pelo Estado e suas ramificações.
para além do domínio do Estado, como forma de entender os aspectos morais, por
exemplo, que atravessam o governo das vidas tidas como infames.
O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e morte, como
se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a distinção entre
os meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos de crueldade. Aos
seus olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos,
em princípio não possui qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de
trágico e, por isso, o poder necropolítico pode multiplicá-lo infinitamente, quer em
pequenas doses (o mundo celular e molecular), quer por surtos espasmódicos – a
estratégia dos pequenos massacres do dia-a-dia, segundo uma implacável lógica
de separação, de estrangulamento de vivissecção, como se pode ver em todos
os teatros contemporâneos do terror e do contraterror (MBEMBE, 2017, p. 65).
Relatório realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refu-
giados (ACNUR), em fevereiro de 2018, indica o pedido de refúgio de 24.818
venezuelanos ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), tendo 10.963
destes solicitado residência temporária no país. Contudo, muitos, por não se
enquadrarem na categoria de refugiados, prevista na Lei nº 9.474/97, têm seus
pedidos de refúgio negado, embora possuam, segundo a nova Lei de Migração
(nº 13.445/2017), direito ao visto temporário humanitário, em razão de as crises
econômica e política do país de origem criarem condições de emergência para
esse significativo deslocamento (SOUZA; SILVEIRA, 2018).
Tal visto, por sua vez, por demandar taxas para sua obtenção, tem sido outra
dificuldade, considerando as precárias condições financeiras de muitos imigrantes
(SOUZA; SILVEIRA, 2018), mesmo que esteja prevista pela referida lei a isenção
do pagamento de taxas e emolumentos consulares para concessão de vistos ou para a
obtenção de documentos para regularização migratória, o que aponta descompassos
na execução das prerrogativas legais.
O estado de Roraima, sendo uma das principais portas de entrada dessas pessoas
para o contexto brasileiro, tem experimentado uma onda de conflitos diante desse
cenário, o que ficou bastante evidenciado, por exemplo, em práticas de xenofobia na
cidade de Pacaraima, com destaque para os ataques, por parte da população local, aos
acampamentos de imigrantes no dia 18 de agosto de 2018, como possível retaliação
a suposto roubo e espancamento de um cidadão local, gerando, assim, episódios de
expulsão de imigrantes da região, tão noticiados nas mídias nacionais e internacionais.
Contudo, levando em conta as desigualdades sociais tão comuns na Região
Norte do Brasil, cabe problematizar em que medida as práticas de segregação do
diferente também não indicam insatisfações da população com sua condição, no
município, o qual, a despeito de apresentar índice de desenvolvimento humano de
0,650 (valor considerado médio, pelas Nações Unidas), é fortemente atravessado por
desigualdades sociais que marcam a Amazônia, de modo geral.
No Pará, a chegada dos venezuelanos também registra, em sua capital, o campo
de tensões entre população local e esses imigrantes, sobretudo quanto aos conflitos
entre grupos em condições de vida mais precarizadas, tais como as pessoas em situa-
ção de rua, que passam a encontrar em seus tão comuns territórios outros também
em situação de extrema pobreza, implicando igualmente na absorção de tal segmento
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 435
Considerações finais
Os pobres urbanos são sempre definidos por carências. Vejamos algumas das
denominações: são “lumpemproletariado” porque não estão inseridos direta-
mente na estrutura produtiva; são “marginais” porque estão fora das regras da
legalidade ou habitam os confins das manchas urbanas; são “setores populares”
porque não conseguem se constituir como uma classe ou agregar-se a alguma; ou
são “párias”, porque [...] vivem isolados e passam sem ser vistos (FERRERAS;
SECRETO, 2013, p. 98).
Trata-se tão só, há que precisar, da luta e do futuro que há que sulcar custe o
que custar. Essa luta tem como finalidade produzir a vida, derrubar as hierar-
quias instituídas por aqueles que se acostumaram a vencer sem ter razão, tendo
a “violência absoluta”, nesse labor, uma função desintoxicadora e instituinte.
Essa luta tem uma dimensão tripla. Visa antes de mais destruir o que destrói,
amputa, desmembra, cega e provoca medo e cólera – o tornar-se-coisa. Depois,
tem por função acolher o lamento e o grito do homem mutilado, daqueles e
daquelas que, destituídos, foram condenados à abjecção; cuidar, e eventualmente,
curar aqueles e aquelas que o poder feriu, violou ou torturou ou, simplesmente,
enlouqueceu (MBEMBE, 2011, p. 2).
se faz do corpo na relação com o espaço público, não estando suprimidos ainda os
atravessamentos institucionais que visam a controlar os prazeres dos que se encontram
em condição de vulnerabilidade social.
A militância do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) – forma-
lizado em 2005 e que se distribui no país, por meio de representações de núcleos em
várias cidades – confere, nesse cenário, elemento fundamental para a organização das
pautas desse povo, tendo auxiliado, em 2009, durante o II Encontro Nacional sobre
População em Situação de Rua (Brasília), a discutir princípios da Política Nacional
para a População em Situação de Rua, a qual, no mesmo ano, foi instituída pelo
Decreto 7.053/09, visando a garantir o respeito à dignidade, o direito ao usufruto e
permanência na cidade e a garantia e defesa de direitos fundamentais (SILVA, 2014)
Para Ana Mota (2006), tais políticas são fruto das lutas sociais travadas espe-
cialmente com base em princípios de proteção às condições ligadas ao universo
do trabalho em um contexto capitalista, fortemente marcado pela racionalidade
neoliberal, a qual apresenta inúmeros obstáculos para a efetivação do está previsto
nos documentos oficiais. Assim, para a autora, a seguridade social se define como
esfera de disputas e negociações em um cenário em que imperam as demandas
do capital financeiro, o qual favorece outras estratégias de relação entre Estado,
sociedade e mercado, acarretando, conforme elucidam Santana, Serrano e Pereira
(2013), muitos tensionamentos frente às tentativas no país de integração das políticas
que buscam assegurar direitos sociais, bem como no que concerne às iniciativas de
universalização de seus provimentos.
Diante desses desafios, pensar o atendimento à pop rua e seus efeitos, dentro
de programas de seguridade, demanda ao mesmo tempo a reflexão sobre como essa
categoria se configura como o “público-alvo”, tendo como pano de fundo os recortes
produzidos pela biopolítica a grupos que se encontram comumente afastados de um
plano do trabalho formal, fazendo recair sobre eles estigmas que, em muitos momen-
tos, os deslegitimam na produção de outras formas de viver e de se relacionar com
os serviços públicos, a partir de suas demandas específicas.
De acordo com Damien Roy (2016), tem se intensificado o olhar para o fenô-
meno “pessoas em situação de rua” (ou, como se costuma popularmente chamar,
“moradores de rua”), organizando-o enquanto objeto de atenção e ação, por parte dos
poderes públicos. Assim, para o autor, é notório o movimento de transformação da
vida dessas pessoas em uma problemática e, “[...] à medida que ganha visibilidade
urbana, política e midiática, elas presenciaram o surgimento de uma gama crescente
de atores e lugares institucionais, de textos jurídicos, regulamentos e normas, de
discursos e de políticas públicas relativas a elas próprias” (p. 115), passando a se
configurar, principalmente, como população a ser abarcada por planos de governo.
Contudo, faz-se necessário atentar para o que há de singular em cada trajetória,
que escapa às categorizações que constituem geralmente os roteiros de atenção a esse
público nos serviços, nos quais papéis de acolhidos, pacientes e usuários são frequen-
temente visitados, em conformidade com o atendimento que lhes é prestado, dentro
dos equipamentos. Com base nessas reflexões, põe-se em questão a figura do usuário
como aquele que sai de um lugar passivo de quem circula pelos serviços para se fazer
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 439
notar, enquanto voz ativa, orientada e reconhecida na cidade, o que implica pensá-lo
em função de seus processos formativos também dentro das instituições, as quais,
em uma perspectiva politizada, seriam igualmente responsáveis por conduzir o seu
público em busca do conhecimento, o que poderia levar à autonomia do pensamento
e da ação. Para tanto, é imperioso evidenciar as disputas relativas a essas formações,
posto que, em muitos momentos, são apresentadas formas muito enrijecidas do que
é ser politizado, não abarcando as demandas de alguns, os quais poderiam tomar a
frente dos processos de militância da população de rua, por exemplo. Nessa direção,
pensar a produção do sujeito que aprende a lutar na relação com as forças institucio-
nais também é pensar a sua relação com a própria cidade, pois as forças estatizantes
circulam, ressoando em posturas que se dão para além das esferas dos serviços dos
quais usufruem, enquanto beneficiários das políticas de proteção social.
De acordo com Benelli (2012), o trabalho realizado nas instituições vinculadas
às políticas públicas de assistência social precisa abarcar uma dimensão psicossocial,
a partir da qual as práticas fujam de uma lógica psicologizante, ao mesmo tempo que
se distanciam de olhares que possam produzir um “[...] politicismo da vida social”
(p. 64), o que seria oportunizado pelo que chama de socialização extremada. Nesse
sentido, uma possibilidade para o exercício profissional seria criar condições onde
erro seja contemplado, a fim de que se permita a inovação para o acompanhamento
dos fluxos diários, pois uma postura mais segura poderia dificultar a acolhida dos
movimentos que surgem dos encontros. Por essa via, ao problematizar práticas insti-
tucionais que se propõem desenvolver atenção psicossocial, torna-se necessário estar
atento ao que se configura, em seu interior, em torno da busca da efetivação de uma
“[...] cidadania radicalmente democrática e popular” (p. 83).
Temos aí um processo bem real de luta; a vida como objeto político foi de algum
modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-
-la. Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas
políticas, ainda que estas últimas se formulem através da afirmação de direitos
(FOUCAULT, 1988, p. 136).
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
BAPTISTA, Luis Antonio. Politizar. In: FONSECA, Tania Mara Galli; NASCI-
MENTO, Maria Lívia do; MARASCHIN, Cleci (org.). Pesquisar na diferença: um
abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 187-190.
BAPTISTA, Luis Antonio; SILVA, Rodrigo Lages e. A cidade dos anjos do impror-
rogável. Rev. Polis e Psique, n. 7, v. 1, p. 49-73, 2017.
BATISTA, Vera Malaguti. Estado de polícia. In: KUCINSKI, Bernardo et al. (org.).
Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São
Paulo: Boitempo, 2015.
FOUCAULT, Michel. A Vida dos Homens Infames. In: MOTA, Manuel Barros da
(org.). Michel Foucault: Ética, estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. São Paulo:
Paz e Terra, 2014a.
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popu-
lar, 2015.
SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
SOUSA, Francisco Helder Ferreira de. O direito à cidade: meio ambiente urbano e
qualidade de vida para os povos ribeirinhos do baixo Amazonas no Estado do Pará.
Belém: Paka-Tatu, 2010.
Introdução
Deitei o João e a Vera e fui procurar José Carlos. Telefonei para a Central.
Nem sempre o telefone resolve as coisas. Tomei o bonde e fui. [...] fui falar
com a Policia Feminina que me deu a notícia do José Carlos que estava lá na
rua Asdrubal Nascimento onde funcionava o Juizado de Menores. Que alívio!
Só quem é mãe é que pode avaliar. [...] cheguei na rua Asdrubal Nascimento,
o guarda mandou-me esperar. Eu contemplava as crianças. Umas choravam,
outras estavam revoltadas com a interferência da lei que não lhes permite
agir a sua vontade. O José Carlos estava chorando. Quando ouviu a minha
voz, ficou alegre... percebi o seu contentamento. Olhou-me. E foi olhar mais
terno que eu já recebi hoje (Carolina Maria de Jesus, em Quarto de Despejo).
Às margens do Rio Tietê, Carolina Maria de Jesus escrevera seu relato docu-
mental e autobiográfico sobre o cotidiano da favela do Canindé. Em plenos anos 50,
marcados pela tentativa de avanço econômico e modernização de um país preso a
práticas que remontavam ao Brasil Colônia, a então catadora de lixo consegue, em
singelos escritos diários, mostrar ao leitor que os “50 anos em 5” faziam parte de
um plano político restrito a lugares específicos da cidade. A favela, definitivamente,
não era um deles. Era apenas um anexo da grande sala de visitas que se desenhava
em São Paulo (JESUS, 2014). Todos os que ali habitavam eram renegados, esque-
cidos e descartáveis aos olhos do Estado.
Carolina sentia na própria pele o que significava política e simbolicamente
ocupar esse lugar. Se de um lado, enquanto catadora de papel, a sujeira e o des-
carte atravessavam seu corpo, de outro a maternidade a lembrava cotidianamente
da sensação angustiante da panela e das barrigas vazias de seus filhos. Como
estratégia de sobrevivência, Carolina carregava para o trabalho junto a si sua
filha mais nova, Vera Eunice, enquanto seus filhos mais velhos ora ficavam sob
os cuidados da vizinhança, ora zelavam uns aos outros ou circulavam por entre
as ruelas da favela e da cidade.
Seu relato escancarava a realidade de diversas mães solas: Carolinas eram
convocadas aos então denominados Juizado de Menores a fim de prestar contas
pelas estratégias possíveis – e cabíveis – de cuidado com sua prole, todavia conside-
radas pela Justiça práticas de abandono, desamparo e maus tratos, pelas quais eram
446
129 SILVA, A. C. S.; ALBERTO, M. F. P. Fios Soltos da Rede de Proteção dos Direitos das Crianças e Adoles-
centes. Psicologia: Ciência e Profissão, n. 39, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-3703003185358.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 447
instituição da ação. Para tanto foi preciso, em primeiro lugar, compreender o funcio-
namento da rede sócio-assistencial e as falhas em relação à família – em destaque o
Conselho Tutelar – que levam à instauração do processo, analisando suas caracte-
rísticas organizacionais, seu funcionamento e tensões. Em seguida, conceituamos o
território e a rede de proteção integral, no intuito de compreender a articulação dos
agentes sociais frente ao processo de DPF, principalmente em relação à garantia da
convivência familiar e comunitária. Voltamos, como terceiro ponto, à proteção dos
acolhidos e ao fortalecimento dos vínculos familiares, capazes de promover ou não
a reintegração familiar, evidenciando o trabalho das unidades de acolhimento, dos
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência
Especializado em Assistência Social (CREAS). Em seguida, buscamos entender os
processos de criminalização da família e das mães pobres e o governo de conduta,
regido conforme o modelo burguês de cuidado e proteção.
130 Após 18 anos, o Bolsa Família fez seu último pagamento em novembro de 2021. Contudo, a escolha por
manter o auxílio no texto é parte do entendimento que a discussão em torno da família ainda recaía sob
sua vigência. Não é possível contemplar à discussão os programas que, em tesa, entrarão em vigor no ano
de 2021 como o Auxílio Brasil.
448
[...] lugar adequado para o atendimento das demandas, por vezes dividem o
mesmo espaço físico com outros órgãos; não possuem telefone, acesso à internet
131 ECA, Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescente serão
obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízos de outras pro-
vidências legais. E ainda: ECA, Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento
de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade compe-
tente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra
criança ou adolescente: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso
de reincidência.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 449
são prioridades no que tange à proteção integral, por que a medida que separa crianças
e jovens de sua família de origem é a mais aplicada no Estado?
Em um processo de DPF, o atendimento à família e as reuniões de rede visam
à proteção da criança. O objetivo é tratar, de modo conjunto e articulado, as neces-
sidades sociais, culturais e econômicas da família, a fim de alcançar a reintegração
familiar. Nessa rede costurada por diversos agentes, temos como base um tecido
móvel, dinâmico e relacional: o território. Sem a compreensão analítico-conceitual
do território e da rede, não se pode abarcar a complexidade dos atores sociais e
relações de poder que circundam o processo de DPF. É por meio da análise da rede
e do território que conseguimos entender como os agentes sociais se articulam
frente ao processo de DPF. É possível observar os nós que tensionam o processo,
contribuindo para manter a lógica menorista, fiscalizatória e caritativa ou, alternati-
vamente, para criar caminhos emancipatórios da população assistida pelas Políticas
Públicas, promovendo sua autonomia.
De acordo com Silva e Alberto (2019), a rede é o tecido de relações estabelecidas
em prol de uma finalidade comum – no caso, a proteção integral – que se interco-
nectam e desenvolvem ações em conjunto. Funciona ainda, segundo Burgos (2020),
com base em um método de trabalho elaborado em função de necessidades sempre
mutáveis, valorizando as relações pessoais, a troca de informações, as reuniões e a
tomada de decisões conjuntas de modo horizontal para fortalecer o compromisso entre
os atores. Podemos ver esse mecanismo em ação a partir das reuniões de casos de
DPF que ocorrem entre a rede: equipe técnica da IIVIJI, CRAS, CREAS, Conselho
Tutelar, Educação, CAPS, Unidade de Acolhimento etc.
Conforme leio o processo, vejo que o caso declinou para a Primeira Vara e fico um
pouco sem entender. A justificativa para o pedido de declínio é a falta de logra-
douro e consequente não localização da família de origem. Nesse sentido, argu-
menta-se que o território de referência deveria ser o da Instituição de acolhimento
e o juízo aceita o argumento. Afinal, o território de referência destinado é baseado
em que? Minha supervisora me explica que o território de referência é sempre o
endereço da família de origem ou extensa. Quando não localizados, o território
passa a ser o local de localização da criança. Nesse caso, ainda da IIVIJI. Fiquei
pensando nas questões envolvendo o território, e em como essa arbitrariedade
pode confundir e prejudicar o trabalho em Rede. Como fica a reunião agendada
para a semana que vem, se o caso declinou? A equipe técnica da Vara já estava
em contato com a rede; refazer esse circuito não iria gerar mais morosidade para
a colocação dessa criança em família substituta ou pela procura da família de
origem? Tudo me faz pensar em como esse território é frágil, com rachaduras,
árido. Como cada vez mais ele está escasso, por inúmeros motivos. Mas mesmo
assim trabalhamos sobre e com ele (DIÁRIO DE CAMPO, ago. 2021).
Nesse trecho, vemos que o processo é declinado para a IVIJI sob a justificativa
de que pautado no logradouro da acolhida, enquanto para equipe técnica e outros
atores o que se deve considerar para a demarcação do território de abrangência
é o endereço da família de origem ou o local onde a criança foi encontrada. Essa
imprecisão produz rupturas na troca de informações e, por extensão, no próprio fun-
cionamento da rede. Para Borges (2020), tais rupturas podem repercutir na atuação
dos profissionais e impactar diretamente a Política Pública, que é feita por quem a
concebe, mas principalmente pela prática de quem a executa.
Ainda nos chama atenção no excerto acima a convocação de uma noção de
território restrita ao endereço, ou seja, ao espaço geográfico, o que não alcança a
noção adotada pelos documentos das Políticas Públicas. Nascimento e Melazzo (2019)
mostram que, com frequência, a rede de proteção utiliza o termo território como
sinônimo de base geográfica, produzindo um reducionismo analítico que considera
apenas a localização e a proximidade. A perspectiva territorial, entendida desse modo,
perde sua dimensão móvel, não-estática, simbólica e imaterial. É o que vemos ocorrer
na prática de atendimento de famílias e mães no processo descrito acima, onde os
cuidados dispensados à família ficam limitados aos recursos disponíveis num dado
espaço geográfico, e o próprio diagnóstico das necessidades familiares se estreita,
dado que abandona dimensões simbólicas relevantes de suas demandas.
O território, tal como entendido e elaborado pelo SUS (Sistema Único de Saúde)
e SUAS (Sistema Único de Assistência Social), contém uma dimensão simbólica e
imaterial, derivada das relações sociais, e por isso mesmo relacional, processual,
móvel, em fluxo permanente. Nesse sentido, há uma relação indissociável entre ter-
ritório e população (NASCIMENTO; MELAZZO, 2019). A população que vive
determinado território interage com seu entorno, reconstruindo as relações sociais
e reformulando sua própria dinâmica interna, processo do qual resulta um ciclo de
todos-agem-sobre-todos. O território pode ser abstrato, idealizado, mas também é
452
vivido e sentido, englobando lugares que se singularizam por seu valor de uso e seu
alcance real, construindo trocas sociais e tornando visíveis relações desiguais.
Esse modo de se pensar o território explicita seu significado vivo, ou seja,
elucida como o sujeito o vive e experiencia. A favela do Canindé, tal como descrita
por Carolina de Jesus, evidencia essa representação das subjetividades coletivas.
A experiência de vida na favela de Carolina de Jesus nos permite pensar que o ter-
ritório a subjetiva, e vice-versa: ela salienta as relações com os vizinhos, as brigas
na favela, os habitantes lavando roupa ou tomando sol nas margens do Rio Tietê,
e os cuidados com sua prole. Um movimento constante que faz e desfaz Caroli-
na-favela, suas relações sociais e sua relação com o território, sempre dinâmicas.
Com suas denúncias diárias sobre os habitantes da favela, os políticos e falta de
comida, Carolina vai aos poucos definindo seu território-favela. Sem saber, ela
traduz o território como “território usado” (MILTON, 2007 apud NASCIMENTO;
MELAZZO, 2019) e nos ajuda a compreender a noção em seu sentido subjetivo e
imaterial, tal como utilizado pelas Políticas Públicas.
Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. as margens do rio são os lugares
do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. não mais se vê
os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. os homens desempregados
substituíram os corvos (JESUS, 2014, p. 54).
132 O IPS é formado por 36 indicadores dispostos em 12 componentes, distribuídos conforme 3 dimensões.
Os indicadores foram construídos com dados administrativos municipais, estaduais e federais e do Censo
Demográfico. Possui 3 grandes dimensões de análise, cada uma delas com seus respectivos componentes:
1) Necessidades Humanas Básicas (nutrição e cuidados médicos básicos, água e saneamento, moradia
e segurança pessoal); 2) Fundamentos do bem-estar (acesso ao conhecimento básico, acesso à informa-
ção, saúde e bem –estar, qualidade do meio ambiente); 3) Oportunidades (direitos individuais, liberdades
individuais, tolerância e inclusão e acesso ao ensino superior); Disponível em: https://www.data.rio/docu-
ments/base-de-dados-do-%C3%ADndice-de-progresso-social-ips-por-regi%C3%B5es-administrativas-ra-
-munic%C3%ADpio-do-rio-de-janeiro-2016-2018-2020/about.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 453
Até aqui, vimos o resultado da falha da preservação familiar pela rede. Nesse
ponto, nos salta aos olhos a ausência de significado dessas famílias para o Estado.
São vidas sem qualquer grandeza ou heroísmo, vidas que passíveis de definição
em poucas páginas banais ou em punhados de palavras. Só quando esses indiví-
duos ameaçam a ordem social é que recebem a atenção governamental. Ou melhor,
quando a vida dessas mães faceia o poder, “que espreitava que perseguira e prestara
atenção, mesmo que por um instante, em suas queixas e tumultos” (FOUCAULT,
2003, p. 206), é possível fazer aparecer o que até então não aparecia: a tentativa
de governar suas condutas e comportamentos pelo braço da justiça. É como se de
algum modo uma família fosse aleatoriamente escolhida em meio ao emaranhado
de invisibilidades, quando alguma prática, ação ou comportamento eleito ao acaso
passasse pelo crivo da intervenção, julgamento ou decisão. Como se, por um ins-
tante, o poder entrasse em contato com essa vida até então sem rastros e daí toda
uma trama se montasse ao seu redor.
É no processo judicial, destarte, que a trama se estreita. Toma-se o dito para o
escrito, “o insignificante cessa de pertencer ao silêncio [...], o detalhe sem importân-
cia, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum, podem e devem ser ditas, ou
melhor, escritas” (FOUCAULT, 2003, p. 213). Toda uma série de arquivos e autos
é produzida, convocando os saberes a opinar e colocar em exame as existências até
então ignoradas. Enquanto Carolina do Canindé apenas comparece ao Juizado de
Menores, nos anos 50, para levar José Carlos de volta à casa, hoje outras mais retor-
nam da Vara da Infância e Juventude sozinhas, de mãos atadas e na condição de rés
de um tipo específico de processo: a ação de Destituição do Poder Familiar (DPF).
No poder judiciário, a relação entre a família e a rede ganham outro contorno.
A diferença que se instaura quando essa família chega à justiça diz respeito, inclu-
sive, ao modo como ela passa a enxergar as práticas dos profissionais. Se antes a
família (ou a mãe) não via a rede como inimiga, as chances disso ocorrer aumentam
drasticamente. Com o filho acolhido e longe de seus cuidados, a justiça e toda a rede
se tornam inimigas. Temos aqui, portanto, uma dificuldade colocada de antemão
quando um caso é judicializado: o vínculo com a rede de proteção é ressignificado.
Após a instauração de ação pelo Ministério Público, a criança (ou o adolescente)
é encaminhada a uma instituição de acolhimento, no intuito de garantir sua proteção.
Enquanto isso, os genitores ou responsáveis são submetidos a uma série de proce-
dimentos a fim de promover, a médio ou longo prazo, a reintegração familiar (RF):
atendimentos com a equipe técnica da Vara, visitas domiciliares, encaminhamentos a
programas de transferência de renda condicionada, a atendimentos especializados no
uso abusivo de álcool e drogas, à assistência à saúde mental ou à assistência social...
454
Todas são medidas que visam assegurar o direito à convivência familiar e comuni-
tária, acautelado pelo art. 4º do ECA. Caso a reintegração não obtenha êxito, o juiz
responsável pelo caso defere o pedido de perda do poder familiar e a consequente
colocação da criança em família substituta, seja pelo plano da família acolhedora ou
da família extensa, seja pela inserção no Cadastro Nacional de Adoção.
Nesse percurso, temos duas frentes principais de intervenção: a criança e a
família. O modo como essas frentes respondam à intervenção será responsável por
promover, ou não, a união de crianças e adolescentes afastadas de suas famílias,
a reintegração familiar. Nesse processo complexo, as unidades ou instituições de
acolhimento são encarregadas de promover o restabelecimento e a preservação
de vínculos familiares, dado que são as instâncias encarregadas de mediar, de
acordo com a realidade de cada família, o plano de reconexão com a criança e
adolescente acolhidos e atentar aos programas e serviços disponíveis na rede,
reconectando-os às famílias.
Logo, há uma preparação prévia da família que funciona como elemento faci-
litador da reintegração, desde a inclusão em programas de moradia, educação e
alimentação até o acompanhamento e treinamento para o melhor exercício da paren-
talidade. Às unidades de acolhimento se atribui a comunicação com as autoridades,
informando periodicamente as condições da criança e da família, oferecendo um
estudo social e pessoal de cada família, além de manter os programas destinados
ao apoio parental, participar em reuniões de rede e do Plano Mater (2010)133, e das
audiências concentradas.
Como apontam Siqueira e Dell´Aglio (2011), a reunião entre famílias e crianças
acolhidas tem uma dimensão física, mas também psicológica. As autoras salientam a
importância da assistência em prol da conservação de laços afetivos e familiares, do
sentimento de conexão das crianças com os membros de sua família. Nesse sentido,
invocam o plano de visitação como importante estratégia. Dentre as vantagens do
plano de visitação, podemos citar o estímulo à aprendizagem dos pais em fornecer um
ambiente seguro para seus filhos, o sentimento de segurança transmitido à criança ao
ter ciência que seus familiares desejam manter contato com ela, o amadurecimento
da experiência da separação para os jovens, a valorização dos laços familiares como
oportunidades de aprendizagem e prática de novos comportamentos parentais. Em
suma, com um plano de visitação é possível promover o empoderamento familiar e
o senso de esperança de reagrupar trajetórias até aqui separadas.
Para tanto, as autoras compilam alguns balizadores134 para que esse plano seja
eficaz. No entanto, ao trazermos esses fatores para o contexto e a realidade brasileiros
133 O Plano Mater tem como objetivo buscar a celeridade na solução dos problemas que ensejam o aco-
lhimento, por meio do controle permanentemente e atualizado da situação vivenciada por cada infante
acolhido, de modo a evitar que crianças e adolescentes permaneçam nas instituições de acolhimento por
tempo indeterminado.
134 As autoras apontam a proximidade geográfica da unidade de acolhimento aos pais e familiares, o treina-
mento das equipes, um plano formal de visitação, a realização de um trabalho concomitante com a família
de origem, a intensidade gradual da visitação e o tipo de atividade desenvolvida como primordiais para a
eficácia das visitações e da consequente reintegração familiar.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 455
[A genitora] deixa seus filhos sob cuidados de uma vizinha, que leva e busca os
mesmos diariamente na escola, tendo em vista “a negligência da mãe no cuidado
com os filhos”. [...] além disso, ela não adere aos encaminhamentos feitos pelo
Creas e pelo CT. A Instituição afirma que não é favorável à reintegração.
se associa ao papel feminino, colocando a mãe como responsável pelo lar e pelos
filhos. Cleto, Covolan e Signorelli (2019) trazem situações de mulheres-mães que
possuem seus filhos acolhidos que estão, concomitantemente, em situação de vio-
lência doméstica e familiar.
tinham baixa frequência escolar, tendo alguns perdido suas vagas, inclusive. Além
disso, numa primeira Visita Domiciliar a residência, encontrou-se um ambiente
precário e de muita miséria, e presenciaram um cenário o qual nomearam de
trabalho doméstico infantil, onde a filha mais velha exercia o papel de cuidadora
do lar e dos irmãos. [...] outro ponto interessante discutido sobre o caso e em
relação à VD, foi à assistente social dizendo que sempre tenta fugir da noção de
higienização das casas que visita, mas que esse ponto é também importante para
construir uma análise. Ela disse, por exemplo, que enquanto conversava com a
mãe, via ratos passando perto dos materiais recicláveis recolhidos para venda
e avisou a genitora sobre fato, enfatizando a importância sobre a organização
daquele espaço. Nesse momento, houve uma pontuação interessante, no sentido
da equipe questionar o que é responsabilidade e omissão do Estado neste caso, e
o que é responsabilidade dos pais (DIÁRIO DE CAMPO, fev. 2019).
Nesse trecho, vemos um exemplo de estudo de caso que envolvia a DPF dos
pais de duas crianças. Nele, podemos exaltar dois aspectos que validam a primazia
do cuidado burguês: a nomeação do cuidado exercido pela irmã das crianças como
trabalho infantil e a descrição das condições de moradia da família. O cuidado pres-
tado pela irmã que não é visto como cuidado, e a condição da habitação cohabitada
por ratos são assumidos como responsabilidades da família, ignorando a omissão
do Estado. Em outras palavras, o Estado e seus aparatos institucionais coagem a
família pobre a se regular pelo crivo da família burguesa, que dispõe de condições
econômicas, aporte cultural e modos de viver muito distintos da realidade tratada.
Junto à valorização do cuidado burguês, o que vemos ocorrer desde o Brasil
Império é que as crianças que circulam nos grandes centros urbanos são em sua
maioria negras e pardas, fruto da promulgação da Lei do Ventre Livre. Enquanto as
elites brasileiras criam seus filhos no espaço privado de suas casas, o abandono de
crianças negras acontece e desafia o espaço coletivo. Desde então cresce o sentimento
de repulsa pelos infantes pobres, e o desprezo pelas famílias culpabilizadas por essa
condição (NASCIMENTO; CUNHA; VICENTE, 2008). As ideias higienistas, a
medicina social e o modelo burguês corroboram a condenação moral da família pobre
e de seus hábitos de vida. A infância em perigo passa a ser a infância perigosa e os
Códigos de Menores de 1927 e 1979, como seus próprios nomes salientam, elevam
esses ideais à condição de lei: agora as famílias e mães “desestruturadas” funcionam
na ilegalidade.
Mesmo após o ECA preconizar e incentivar a convivência comunitária,135 dis-
positivos tidos como ultrapassados, mas ainda presentes como tecnologia de poder
se associam aos modos de governar a vida na cidade, e na gestão da infância. Ainda
hoje, vemos que a circulação nos espaços urbanos privilegia a infância e a família
burguesas, mais protegidas e cuidadas. Às demais, às quais se nega a condição de
infância, são destinados os espaços de controle, coerção e punição (NASCIMENTO,
135 ECA, Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcio-
nalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta
seu desenvolvimento integral (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 459
2008). As mudanças trazidas pela nova legislação não foram suficientes para modi-
ficar o trato dado às famílias pobres. Ainda sujeitas à intervenção técnica e estatal, a
família pobre passa a ser denominada negligente.
Quando o Estatuto tornou ilegal a DPF por falta de condições materiais e finan-
ceiras, essa atualização do discurso permitiu a intervenção estatal.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, I. G. Processo de recepção e acolhida da criança em instituições de
acolhimento: proteção e/ou (re)vitimização? 2014. Tese (Doutorado) – Psicologia,
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto,
SP, Brasil, 2014.
BUTLER, J. Corpos em Aliança e as políticas da rua: Notas sobre uma teoria per-
formativa de assembleia. Tradução de F. S. Miguens. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018.
DATARIO. Base de dados do Índice de Progresso Social – IPS por Regiões Admi-
nistrativas (RA) – Município do Rio de Janeiro – 2016/2018/2020. 2020. Disponível
em: https://www.data.rio/documents/base-de-dados-do-%C3%ADndice-de-pro-
gresso-social-ips-por-regi%C3%B5es-administrativas-ra-munic%C3%ADpio-do-
-rio-de-janeiro-2016-2018-2020/about.
462
SILVA, A. C. S.; Alberto, M. F. P. Fios Soltos da Rede de Proteção dos Direitos das
Crianças e Adolescentes. Psicologia: Ciência e Profissão, n. 39, 2019. DOI: https://
doi.org/10.1590/1982-3703003185358.
Agamben observa que a zoé, a vida que antes era responsável apenas pela manu-
tenção das condições básicas do mero viver, emerge na era moderna como o
principal interesse de controle da política. É nesse sentido que Agamben defende
que nossa política não conhecesse outro valor, e consequentemente outro desvalor,
que a vida biológica (SOUZA, 2017, p. 65).
seria restringido a pura zoé. Desse modo, buscaremos mostrar como a dinâmica do
neoliberalismo se desenvolve uma zona específica onde a política das privatizações
atua privatizando, não apenas as empresas estatais, mas da vida dos sujeitos desti-
tuindo dos seus direitos essenciais.
No espaço das políticas neoliberais o sujeito apresenta-se, também, como
susceptível à captura pelos múltiplos dispositivos de subjetivação. Nessa direção,
investigamos se o empreendedorismo com foco na educação, ao funcionar como um
dispositivo de captura, se apropria da educação com ambições de cunho empresa-
rial. E por último trazemos à baila os modos pelos quais tal lógica empreendedora
contribuiria para a privatização dos direitos essenciais ao produzir um sujeito
prestador e consumidor de serviços.
136 Oikos no sentido grego refere-se ao espaço da casa e da vida doméstica em que as pessoas compõem a base
da sociedade. No espaço da casa, oikos, a vida biológica por meio dos cuidados domésticos é potencializada.
468
A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na
verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado
por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito,
externo e interno, se confundem (AGAMBEN, 2007, p. 36).
470
Então, na pólis, no sentido grego, abre espaço para que os arranjos políti-
cos modernos desenvolvam o lugar do bando em que a vida biológica é capturada
constantemente pelo aparato jurídico estatal. Segundo Souza (2017, p. 69) “[...] a
exclusão inclusiva da vida nua no Estado instaura a estrutura do bando que, por
sua vez, conserva a reunião da vida nua e do poder soberano”. O soberano aqui não
opera em sua relação com os súditos, mas a sua ação se dá nas zonas de indiferença
onde a lei pode ser suspensa. “Na exceção, a vida humana é excluída através de sua
inclusão numa zona de anomia onde a suspensão do direito coloca a vida sob total
vulnerabilidade. A exceção exclui dos direitos fundamentais e inclui numa zona de
anomia em que arbítrio da vontade do soberano se torna lei” (SOUZA, 2017, p. 63).
Segundo Souza (2017, p. 69-70) “A vida nua emerge, portanto, quando a vida
natural (zoé) nua é capturada da inclusão excludente ou exclusão inclusiva que reúne
soberania e exceção, isto é, quando a vida se torna vida abandonada”. Então é pos-
sível pensar que a captura da zoé se deu a partir de uma despolitização da bíos e a
politização da vida natural, exclusão/inclusiva. A partir da análise desenvolvida até
aqui, sobre a semântica agambeniana da politização da vida natural ou biológica pela
biopolítica moderna, podemos afirmar que os processos de captura da vida continuam
progressivamente em curso de forma múltipla e tênue. Dessa forma, com os novos
arranjos do capital neoliberal a vida tornou-se palco de processos de subjetivação
em que a vida é constantemente capturada.
Para tanto, cabe aqui discutir como a vida tornou-se suscetível de ser capturada e
de que forma esse processo de subjetivação acontece no contexto histórico do capital
neoliberal. Para desenvolver essa discussão recorremos ao conceito de dispositivo na
genealogia de Giorgio Agamben (2009), pois, segundo o autor, o dispositivo é qual-
quer coisa que desenvolve a função de capturar a vida de um sujeito e subjetivá-lo.
137 Jean Hyppolite foi professor no College de France ocupando a cátedra História do pensamento filosófico
até a sua morte em 1970. Hyppolite foi professor de Foucault e também seu orientador. Em 1970 Foucault é
nomeado para ocupar a cátedra do seu mestre Hyppolite passando a ser chamada de História dos sistemas
de pensamento.
472
138 Aristóteles compreende a substância enquanto uma “ser” (indivíduo) primário. Em segundo lugar, corres-
ponde ao gênero ou a espécie a qual o indivíduo pertence. Então a substância é cada ser que existe em sua
forma e que suporta os atributos: acidente e essência. O acidente é o atributo da substância que pode faltar
sem o “ser” perder sua essência e, no entanto, a essência é o atributo que não pode faltar na substância.
Em Aristóteles podemos compreender que a alma e a racionalidade são propriedades da criatura vivente
(ser humano), ou seja, é o que não pode faltar, pois, é a sua essência. Cada ser vivente possui sua forma
enquanto essência comum aos indivíduos da mesma espécie. A forma, então, é o que o indivíduo é, o corpo
em potência. Desse modo, segundo a concepção de Aristóteles (2001) o ser vivente (com vida) cresce, se
nutre e perece em si mesmo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 473
139 A pedagogia empreendedora é o que Fernando Dolabela (2003) propõe enquanto mudança radical na forma
de ensinar, rompendo com a educação tradicional. Essa pedagogia da ênfase no aprender a aprender, a ser
inovador, competidor, insistente e proativo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 475
[...] não é o conhecimento formalizado que pode ser aprendido nas escolas tradi-
cionais, principalmente as técnicas. Muito pelo contrário, crescem em importância
justamente aquelas formas de saber que não são formalizáveis ou substituíveis: o
saber da experiência, o discernimento, a capacidade de coordenação, de auto-or-
ganização e de comunicação (CRUZ; SARAIVA, 2012, p. 37).
140 A racionalidade neoliberal se impõe como uma nova norma de vida ou um ethos, sobretudo, para as cultu-
ras juvenis comandando as relações econômicas no mundo e transformando a sociedade e remodelando
as subjetividades.
476
141 Segundo Sylvio Gadelha Costa (2009) o capital humano, na racionalidade neoliberal, engloba a noção de
um conjunto de habilidades, capacidades e agilidades que podem ser potencializadas no sujeito usando-
-se dos investimentos financeiros e sua formação. São os atributos humanos que ao serem desenvolvidos
tornam-se valor de troca. Esse conjunto de aptidões humanas quando desenvolvidas adquirem um valor
de mercado. Então, é essa a noção de capital humano.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 477
sucesso quanto pelo seu fracasso. É nessa lógica que a governamentalidade neoliberal
se estrutura em torno da ideia de liberdade implicando ao sujeito o sentimento de
que é possível ser livre no pleno exercício de sua liberdade (FOUCAULT, 2008b).
Conforme Chignola (2015, p. 14) pode-se dizer que em nosso momento
histórico, o biopoder na semântica de Foucault, “[...] se liga ao trabalho de tipo
difuso, livre, precário. O seu modelo: o empreendedorismo autônomo”. O empreen-
dedorismo, como um modo de vida, atua na captura da vida legitimando um
processo de despolitização da bíos e destituindo-a de seus direitos essenciais,
mas ao mesmo tempo potencializa a produção de um sujeito microempresarial.
O empresariamento da vida significa responsabilizar o sujeito pelo investimento
em seu capital humano, privando-o da cobertura e da segurança social por parte
do Estado. Dispondo dessa noção o neoliberalismo vende a ideia de que o Estado
para ser mais eficiente deve privatizar, por exemplo, os direitos fundamentais
como a educação, a saúde e a segurança pública.
Assim, nas territorialidades do neoliberalismo os dispositivos de subjetivação
contribuem para a aceleração da precarização da vida, pois, o empreendedor autô-
nomo, por exemplo, é o resultado da dinâmica entre capital neoliberal e os múltiplos
dispositivos de subjetivação. Daí que a “[...] governamentalidade neoliberal trabalha
em um constante ajuste entre mercado e formas de subjetividade” (CHIGNOLA,
2015, p. 16) via investimento no capital humano pelos próprios indivíduos.
Levando em consideração a lógica dos dispositivos segundo Agamben (2009,
p. 48), nos espaços sociais, com suas ambiguidades, os sujeitos “[...] se apresentam
assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação
que não corresponde a nenhuma subjetivação real”. Os dispositivos em primeiro lugar
implicam um processo de subjetivação (AGAMBEN, 2009). Nos dispositivos disci-
plinares foucaultianos como a escola, a prisão e o hospital, por exemplo, os discursos
de saber e de poder, as disciplinas, as normas e a vigilância implicam em um processo
de subjetivação constante. É um processo que Agamben chama de assujeitamento.
Esse mecanismo de subjetivação implica também em um processo de dessubje-
tivação, pois o sujeito em um dado momento precisa ser reconstruído. Subjetivação
e dessubjetivação ocorre de forma simultânea. No entanto, “[...] os dispositivos com
os quais temos que lidar na atual fase do capitalismo é que estes não agem mais tanto
pela produção de um sujeito quanto por meio dos processos que podemos chamar
de dessubjetivação” (AGAMBEN, 2009, p. 47). No momento histórico do capital
empresarial, os processos de subjetivação e dessubjetivação tornaram-se, segundo
a compreensão do autor, indiferentes porque passam a produzir a noção de um
sujeito que aparentemente é uma máscara ou um telespectador executando diferentes
funções simultaneamente. Algo que difere dos dispositivos em Foucault, pois, nos
dispositivos disciplinares se produzem sujeitos domesticados, “[...] mas livres, que
assumem sua identidade e a sua “liberdade” de sujeitos no próprio processo do seu
assujeitamento” (AGAMBEN, 2009, p. 47).
A genealogia dos dispositivos em Agamben revela que na contemporaneidade
isso não ocorre da mesma forma. Por isso que ele introduziu em sua discussão
o conceito de profanação. “Sagrado e profano representam, pois, na máquina do
478
Considerações finais
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boi-
tempo, 2007.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a.
GODOY, Fernando Henrique Rovere De. Hannah Arendt e Giorgio Agamben – duas
visões do Estado de Direito. 2013. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de
Pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. 2013.
Em seis de fevereiro de dois mil e vinte e dois, o jovem Yago Corrêa de Souza,
com vinte e um anos de idade, morador do bairro Jacarezinho, situado na Zona Norte
do Rio de Janeiro, foi preso próximo a sua residência, ao sair para comprar pão para
um churrasco em família. Yago foi acusado de participação em um crime de tráfico
de entorpecentes. Contudo, não houve evidência alguma que pudesse ligar o jovem
ao ocorrido. Mesmo assim, Yago não deixou de passar pela experiência do encarce-
ramento, que ao inscrever-se em seu corpo, parece afirmar o lugar e papel social que
a sociedade direciona a jovens como ele. Sua prisão gerou protestos na comunidade
até a data de sua soltura, que se deu dois dias após.
“Hoje a favela nasceu!”, pronunciou a irmã do jovem em entrevista à rede de
notícias UOL, referindo-se à pressão social gerada pelos protestos que resultaram na
soltura do jovem e posteriormente no arquivamento do processo142.
***
Quando o crime acontece como a chuva que cai, ninguém mais grita “alto!”.
Quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis.
Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de verão (BRECHT, 1913-1956).
142 Justiça solta jovem negro preso enquanto comprava pão; 'alívio', diz irmã... – Disponível em: https://noticias.
uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/02/08/justica-solta-jovem-negro-preso-enquanto-comprava-pao-
-alivio-diz-irma.htm: Jovem preso ao comprar pão é solto pela Justiça; 'alívio', diz irmã (uol.com.br). Acesso
em: 18 fev. 2022.
484
Sufocamentos cotidianos
143 Música Primavera nos dentes, composta por João Ricardo e João Apolinário e interpretada pela banda Secos
e Molhados, liderada pelo cantor Ney Mato Grosso, em 1973. A música ficou conhecida por sua poesia de
afronta a ditadura, burlando a censura da época.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 485
No dia quatro de abril de dois mil e vinte e dois, a política genocida escreveu
uma de suas mais tristes cenas de terror. O jovem Cauã da Silva dos Santos, com
dezessete anos de idade, foi assassinado com dois tiros desferidos por policiais ao
sair de um evento que ocorria na comunidade do Dourado, no Rio de Janeiro, onde
residia. Seu corpo foi jogado em um valão próximo ao local, de onde os moradores
o retiraram na tentativa de socorrê-lo.
Cauã era lutador de jiu-jitsu e de luta livre, trabalhava em um ferro-velho e fazia
parte de um projeto social em sua comunidade. No dia anterior, havia comemorado
a classificação em uma competição mundial de luta. Entretanto, nem mesmo suas
batalhas diárias o levaram a obter a classificação social que hierarquiza as vidas
humanas, determinando quais vidas merecem e podem ser vividas e quais as vidas
que são consideradas abjetas e tornam-se, de tal modo, passíveis ao extermínio do
Estado. A ele foi negado não somente o direito de representar o país, mas a possibi-
lidade de um futuro, a própria existência.
Em nota, a polícia militar afirmou que havia entrado em confronto com cri-
minosos armados, que se jogaram no valão para escapar144. O fato suscitou fortes
protestos na comunidade, que contestou veementemente a versão da polícia. A família
do jovem em meio à dor, busca demonstrar a inocência de Cauã, impedindo que as
falsas acusações não somente encubram o brilho de sua existência, mas, produzam
a indiferença frente ao seu extermínio. O esforço para denunciar a injustiça ocorrida
torna-se uma necessidade quase que vital.
***
sobre uma população está relacionada ao poder de determinar quais são os corpos
matáveis. O cenário de morte e destruição torna-se ainda mais agravado frente ao
adensamento das condições de vulnerabilidade social, decorrentes da elevação dos
índices de pobreza e miséria na população brasileira nos últimos anos, agravados
pela pandemia de covid-19 e pela intensificação de discursos de ódio direcionados
às camadas populacionais tidas como minorias.
A omissão social frente à política genocida ancora-se em reflexões rasas que
tendem a culpabilizar os sujeitos por suas condições de vida e categorizar vidas em
“escalas hierárquicas”, determinando quais as vidas podem e merecem ser vividas
e quais as vidas cuja perda não deve ser lamentada, pois estão precarizadas de tal
forma que nem mesmo chegam a ser consideradas como vidas. São as vidas não
passíveis de luto, descritas por Butler (2015), as quais não é permitido ou validado
um luto público, pois, o estatuto de humanidade já havia lhes sido retirado. Jargões
como “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos”
inflamam discursos políticos cooptando a opinião pública, que reafirma seu apoio e
omissão frente a política de morte, levando ao entendimento de que há uma lógica
em curso que autoriza determinados tipos de violência, dependendo de quem a
pratica e contra quem é praticada. Ou seja, temos uma violência explicitamente
praticada e implicitamente aceita.
***
***
145 Reportagem disponível em: http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/dia-a-dia/noticia/2018/05/morte-de-jovem-
-registrada-em-video-e-tratada-como-feminicidio-pela-policia-civil-10346069.html.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 489
governo não foram suficientes para suprir as necessidades básicas. Assim, perce-
bemos nessa situação mais um modo de atuação da política de morte, selecionando
as vidas a serem preservadas e as que seriam sacrificadas em favor da manutenção
da economia e dos processos capitalistas.
***
***
Nem bem ainda recuperamos o fôlego que a pandemia nos tirou e nos deparamos
com mais uma cena estarrecedora, que vem por confirmar o avanço dos mecanismos
da brutalidade dos tempos atuais. No dia vinte e seis de maio, deste ano, Genivaldo
de Jesus Santos, com trinta e oito anos de idade, pai de dois filhos, foi torturado e
assassinado por policiais, na frente de diversas pessoas, inclusive seus familiares,
que nada puderam fazer para lhe socorrer147.
Genivaldo era negro, portador de esquizofrenia, estava sozinho e desarmado.
Foi abordado por conduzir uma motocicleta sem capacete e, após diversas agres-
sões, trancafiado no camburão da viatura com uma bomba de gás lacrimogênio, que
provocou a sua morte por asfixia. O sufocamento de Genivaldo é o sufocamento de
toda a sociedade, que se encontra imersa em uma contemporaneidade cada vez mais
brutalizada. O crime, por sua operacionalização nos remonta diretamente aos regimes
totalitários, conforme nos lembra o jornalista João Filho (2022)148, parafraseando
a música de Marcelo Yuka149: ““todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.
Depois dessa sessão de tortura sádica em Sergipe, poderíamos acrescentar que “todo
***
local estava sendo usado também para guardar os caixões que eram fornecidos pela
assistência social. Assim, os jovens que participavam dividiam o espaço com caixões
grandes e pequenos. Os de criança sempre os mobilizavam mais.
Talvez isso nos diga algo sobre o lugar que é reservado a estes jovens...
Um dos pequenos prazeres da vida de Pedro era quando passava por abordagens
policiais e não encontravam nada que lhe pudesse incriminar. Gostava de levantar
a camiseta e mostrar que não estava portando armas nem drogas. Apesar do frio na
barriga, da tensão e medo que sentia nesses momentos, a sensação que ele descrevia
era como se tivesse frustrado a expectativa de uma sociedade inteira sobre ele151.
***
***
***
É necessário que possamos pensar crítica e eticamente acerca dessas lutas cons-
tantemente impostas a determinados sujeitos, buscando também reconhecermo-nos
enquanto parte dessa sociedade que produz a desigualdade e a precarização extrema
de vidas. A cena de seres humanos em condições de vida tão degradantes, recorrendo
a atitudes extremas para alimentar-se, ressoa-nos demasiado incômoda possivelmente
porque nos aproxima de nossa própria precariedade enquanto seres humanos. Coloca
em evidência nossas necessidades mais básicas de sobrevivência e simboliza uma
realidade o qual estamos todos imersos, onde os direitos mais básicos, a alimentação, a
dignidade, a vida, podem ser negados, omitidos ou retirados. Butler (2006) nos explica
sobre a potência das imagens no sentido do reconhecimento da alteridade, contudo,
nos alerta para o nosso modo de percepção e assimilação, conforme a forma como nos
são apresentadas, os enquadramentos. De acordo com ela, os enquadramentos estão
em constante disputa. Contudo, a tarefa de subverter o enquadramento não pode ser
somente daqueles sobre os quais a opressão está posta. Há sempre uma implicação
coletiva, entendendo que ninguém está apartado da pólis, portanto, mesmo o silêncio
e a apatia exercem uma função neste sistema.
territórios, nos coloca frente a uma série de violências outras ainda maiores que são
orquestradas fora deles. Trata-se da violência da exclusão, da descartabilidade das
vidas e da indiferença, violências que são coletivas, muitas vezes amparadas no
medo e na inércia, que reforçam discursos de ódio e sustentam pequenos e grandes
fascismos cotidianos.
Nesse sentido, Deleuze e Guattari (1996) nos lembram de que tudo é político
e que “toda a política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (p. 83).
Constatamos deste modo que a ação de cada sujeito, seja ela afirmativa ou mesmo
de omissão, assume caráter político uma vez que possui a propriedade de confrontar,
desviar, subverter ou confirmar o modus operandi do sistema. Já Trindade e Fonseca
(2009) nos interpelam a pensar a possibilidade de uma política “da vida, dos acon-
tecimentos, da diferença”, elas assinalam que a vida é política em si mesma e que o
que se desenreda em seu seio é um jogo de forças e dominação, apoiada na cadeia dos
significantes forças-disputa-dominação. Sendo a dominação relacionada ao desejo,
afetando-se nos encontros e adquirindo caráter político a partir de sua finalidade para
o sujeito. Elas nos lembram ainda que os afetos, para Deleuze e Guattari (1997), são
“armas de guerra”. Assim, esses significantes devem ser corrompidos a cada novo
trabalho, sob o risco retornarmos ao estereótipo do signo do poder.
Ao recorrermos às reflexões de Foucault (2011), sobre as possibilidades de
transformação das relações de poder, alertamo-nos para a capacidade cada vez mais
elaborada e complexa de seu exercício, inclusive na própria criação e modulação
dos afetos e do desejo, que são influenciados pelos regimes de verdades construídos
e saberes produzidos. Retomando o pensamento Butleriano (2006), podemos inferir
que corromper os afetos implica atentarmo-nos a maneira politicamente regulada
como reconhecemos a vida, a humanidade, a perda e a violência. Para ela, a vida não
pode ser pensada de modo independente, e sim como algo que acontece mediante a
exposição e coabitação ética uns com os outros. De acordo com a autora, o desejo é
externo ao sujeito, se origina a partir das pessoas que o precederam e conserva certa
dimensão do externo, mesmo quando tomado pelo próprio sujeito. Assim, o outro
é condição de possibilidade para a vida afetiva. Para ela, a consciência está condi-
cionada pelo desejo, sendo ele dependente de uma base normativa que nos é prévia
como sujeitos e que também funciona como condição de possibilidade. A autora
coloca ainda que, para se tornar parte de um encontro ético, é necessário perceber e
reconhecer uma certa vulnerabilidade. Esse reconhecimento, quando efetivo, tem o
poder de mudar o sentido e a estrutura da própria vulnerabilidade. Assim, a noção da
própria vulnerabilidade é uma condição para a humanização, que se dá de diferentes
modos, a partir de normas variáveis de reconhecimento. De tal modo, para assumirmos
um posicionamento ético-político comprometido com a vida e com as diferenças, é
preciso aguçar nossos sentidos para ouvir as vozes que são há muito tempo silenciadas
e ver para além da violência espetacularizada com que são apresentados determinados
territórios, tornando-nos sensíveis ao que é invisibilizado.
Trata-se, portanto, do resgate da nossa capacidade de afetação, de reconheci-
mento da alteridade, do encontro com nossa própria vulnerabilidade no outro. Tarefa
que se faz fundamental nestes tempos de ataques à vida cada vez mais acirrados,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 495
não somente a vida humana, mas à natureza, à arte, à cultura, à ciência, aos devires
e a tudo que não representa um crescimento econômico, que é sempre direcionado
às classes mais favorecidas.
Uma análise dos tempos atuais, onde as possibilidades de afirmação da vida
parecem exaurir-se em meio a reiterados ataques de um poder que se atualiza de
modo cada vez mais intenso e perverso, conduz-nos à noção de esgotamento do
possível, de Deleuze (2012), que se dá a partir da constatação do insuportável. O
autor aponta quatro modos, não necessariamente excludentes entre si, sob os quais
se dá esse processo, que parecem apropriados para a compreensão do momento que
vivenciamos: exaurir as coisas que podem ser nomeadas, estancar os fluxos de vozes
que as falam, extenuar as potencialidades do espaço onde elas existem e o dissipar
a potência de suas imagens.
Temos, assim, o entrelaçamento das crises sanitária, política, econômica e até
mesmo humanitária, ambas com consequências sabidamente muito graves. Diante de
tal cenário, as palavras já não se fazem suficientes para descrever os fatos e evocar
os afetos que emergem. Além disso, há uma tentativa constante de silenciamento de
quem diverge do poder. As instituições democráticas de controle, discussão e regu-
lação dos exercícios de poder são constantemente atacadas, toda e qualquer forma de
expressão, denúncia, reivindicação ou revolta tende a ser estancada, descaracterizada,
criminalizada, capturada ou banalizada. E por fim, nossos afetos já se encontram
torpes frente a naturalização da brutalidade dos acontecimentos.
O esgotamento, contudo, exige a criação de possíveis outros, que se dão pela
via do acontecimento, e não o contrário, e que podem forjar brechas para novas
possibilidades de existência e de futuro. “Dar ao possível uma realidade que lhe
seja própria” (DELEUZE, p. 23).
[...] algo que é da ordem de uma urgência, mas que ao mesmo tempo, por sua
complexidade, não encontra solução única e final suficiente para resolvê-lo
de uma só vez. Falamos de algo que se constitui como uma espécie de busca,
de um por vir, de uma travessia sem garantias e inesgotável, de um direito ao
devir (FONSECA, 2017).
496
REFERÊNCIAS
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956 [seleção e tradução de Paulo César de Souza].
São Paulo: Editora 34, 2000.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo e la violência. Buenos Aires:
Paidós, 2006.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sér-
gio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução
de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São
Paulo: Escuta, 1998.
FONSECA, Tania Mara Galli. O destino não pode esperar: apontamentos sobre a ine-
lutável improrrogabilidade. Rev. Polis Psique, Porto Alegre, v. 7, n. 1, jan./abr. 2017.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo:
Ática, 1993.
TRINDADE, Daniel Dutra; FONSECA, Tania Mara Galli. Que política é possível
com o pensamento deleuziano? Revista Mal Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 9,
n. 1, p. 233-249, mar. 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S151861482009000100010&lng=pt&nrm=iso. Acesso em:
15 maio 2022.
Introdução
Público, pela Defensoria e por um membro da equipe técnica, sendo esse um psi-
cólogo ou assistente social vinculado à Vara da Infância e Juventude (VIJ). Este
profissional produz um relatório que é anexado ao processo. Na audiência, o juiz
decidirá se o adolescente aguardará a audiência de continuação em liberdade ou em
internação provisória. Caso seja liberado, retornará para casa com seu responsável.
Do contrário, será conduzido a uma unidade de internação provisória do Departa-
mento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), órgão estadual responsável pela
execução de medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade.
Esteja o adolescente em casa ou na unidade de internação, a audiência de
continuação será agendada e a data de retorno ao juízo é previamente agendada. O
prazo máximo para o agendamento da audiência de continuação, e de limite para
a internação provisória, é de 45 dias.
O NAAP funciona dentro de previsões legais e é uma ferramenta importante
para que o sistema atue com mais rapidez, mas não significa dizer que está efeti-
vamente contribuindo para a diminuição das internações provisórias. O problema
apontado pelo presente trabalho não é o NAAP em si, mas o conjunto das operações
do judiciário, pautadas pela lógica moral-punitivista que tem imperado no direito.
Não é por acaso e nem por coincidência que as vítimas desse abuso de poder
[...] sejam, quase sempre, cidadãos das classes marginalizadas e subalternas.
São os deserdados da lei, nascidos para cumprir um destino sem esperança e
sem expectativa, sobre os quais se abate, por isso e para isso, uma violência
cotidiana (THOMPSON, 1983, p. 25-26).
Passados apenas 35 anos do movimento pelos direitos civis ter garantido aos
negros estadunidenses o acesso efeito à cabine de votação, um século inteiro
após a abolição da escravidão, este direito lhes foi retirado pelo sistema penal,
por meio de uma interpretação das disposições jurídicas, cuja constitucionalidade
é, no mínimo, duvidosa, e que viola, em muitos casos (sobretudo nos dez estados
que praticam a exclusão penal do voto por toda a vida), as convenções interna-
cionais sobre os direitos humanos, devidamente ratificadas pelos Estados Unidos
(WACQUANT, 2007, p. 335).
gestão política; dizendo de outro modo, é preciso produzir o extermínio para lidar
com as contradições geradas pelo sistema neoliberal.
Grande parte da população legitima os mecanismos que produzem a morte de
determinados indivíduos, uma vez que os “cidadãos de bem” se percebem como víti-
mas em potencial dos “degenerados”155. Sob essa lógica, o extermínio dos anormais
aumenta a potência de vida dos normais, que são definidos a partir de critérios de
seletividade baseados na desigualdade racial.
O racismo é estrutural e estruturante, ou seja, habita nossas relações, as cons-
truções sociais e a forma como a sociedade se organiza. A dimensão ideológica do
racismo, cuja função é a manutenção da coesão social e a (re)produção da desigual-
dade racial, necessita da participação direta do poder político por meio da regulação
jurídica e extrajurídica. A incumbência das instituições é a propagação de um ima-
ginário social de unificação racial (ALMEIDA, 2018), e o silenciamento do debate
racial é ferramenta central na construção desse imaginário. Almeida (2018) afirma:
“Em um mundo em que a raça define a vida e a morte, não a tomar como elemento
de análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso
com a ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo” (p. 44). O mito da
democracia racial, na análise crítica de Ribeiro (2017), tem por propósito evitar a
apropriação social do tema, e fazer com que o racismo se esconda sob uma suposta
igualdade racial. Fanon (2008) provoca: ser indiferente à questão e assumir o silen-
ciamento é dar suporte à hegemonia branca.
Assim, o viés da branquitude é fundamental para o enfrentamento do racismo,
já que precisamos superar a naturalização que vê o branco como aquele que não
tem raça, em contraste com o negro, o ser racializado. Para Silva (2017), trazer a
branquitude a primeiro plano é o movimento que permite entender o racismo em
sua dimensão relacional, na lógica opressor-oprimido. O racismo não pode ser pen-
sado enquanto problema de pessoas não brancas. Ao entendê-lo como problema dos
oprimidos, contribuímos para dissimular a posição do opressor (CARDOSO, 2010);
evitar a discussão do papel do branco no racismo equivale a referendar os privilégios
estruturais desse grupo (BENTO, 2002).
A branquitude não é estática: ela depende das circunstâncias históricas e cultu-
rais que produzem o racismo estrutural (CARDOSO, 2010) e, por envolver processos
de subjetivação de pessoas brancas, também não é facilmente definida (DA SILVA,
2017). A identidade racial branca, assim como a de outros grupos raciais, é plural
(CARDOSO, 2010). O que se define como branquitude é uma posição de poder,
onde pessoas brancas se apresentam como padrão e as demais raças são definidas
como desviantes ou subalternas (BENTO, 2002). Não há discussão racial acerca da
branquitude pois ela não se implica na dinâmica das desigualdades raciais. Discu-
tir a estrutura racista que garante vantagens a pessoas brancas implica desnudar a
norma a partir da qual a branquitude se coloca; significa apontar a opressão branca
155 A escolha pelos termos “cidadão de bem” e “degenerados” remete à ideologia atual da extrema direita bra-
sileira, que sustenta a distinção característica da eugenia entre os puros e os desviantes, definidos através
de aspectos racistas e elitistas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 507
nas relações raciais; e requer banir o mito da meritocracia, pois “ser branco em uma
sociedade racializada sempre faz diferença” (BENTO, 2002, p. 172).
A identidade racial branca é um lugar social (BENTO, 2002) e, assim, é neces-
sário compreender o que significa fazer parte dessa identidade, o que é produzido a
partir dela e quais as experiências comuns vivenciadas pelos membros desse grupo.
O conceito de lugar de fala embasa essa discussão.
O lugar de fala (RIBEIRO, 2017) é uma tentativa de quebrar a universalidade
dos discursos, uma vez que as pessoas em posição socialmente privilegiada tendem
a tomar sua própria existência como norma, e a si mesmas como referência, inviabi-
lizando a autocrítica (BENTO, 2002). Ao compreender que esses discursos não são
neutros, o lugar de opressor se evidencia. E ao contrário, quando o branco considera
seu lugar de fala como grupo social, pode se responsabilizar e refletir sobre o próprio
papel na manutenção das desigualdades raciais.
Borges (2019) afirma que o sistema jurídico segue, ainda nos tempos atuais,
um “sistema racial de castas” (p. 87), uma vez que os brancos ocupam os cargos de
poder e os pretos são encarcerados. Segundo a autora, 67% da população prisional
é composta por pessoas negras, enquanto 69,1% dos servidores do Judiciário são
pessoas brancas. Entre ocupantes dos cargos de maior prestígio do Judiciário (juízes,
desembargadores e ministros), 84,5% são brancos. Fanon (2008) denuncia esse “mani-
queísmo delirante” que une pares antagônicos: bem-mal, bonito-feio, branco-negro.
Esses estereótipos, que sustentam o senso comum, habitam os sistemas normativos.
No caso do sistema judiciário brasileiro, podemos afirmar o “maniqueísmo delirante”
também como: presos-operadores do direito.
A seletividade punitiva, tal como alisada por Zaccone (2007), aponta para uma
gama de fatores que podem ser sintetizados em critérios raciais e socioeconômicos,
interligados. Tudo sugere que o racismo é a base fundante dos processos de crimina-
lização, e ajuda a naturalizar a punição no imaginário social. A apreensão de jovens
negros pela esfera policial é ratificada nas decisões judiciais, que parecem agir de
acordo com o senso comum de que os menores de outras épocas seriam os “semen-
tinhas do mal” da atualidade (RODRIGUES, 2009).
A atualização constante de lógicas de apreensão, aprisionamento e extermínio da
população preta, pobre e favelada/periférica é mais do que visível hoje em qualquer
visita às unidades socioeducativas ou prisionais, onde a maior parte da população em
privação de liberdade é preta. Além da massa de negros encarcerados, por si só um
dado eloquente, as políticas de “pacificação” de espaços periféricos e de operações
policiais que resultam em chacinas mostram outra face do controle dos segmentos
negros e pobres da população brasileira, ainda em amplo vigor no século XXI.
Infelizmente, não precisamos nos apoiar na literatura acadêmica para sustentar
nossos argumentos, uma vez que vivenciamos uma conjuntura política de agravo de
construção de zonas de exclusão, que se fortalecem a partir das criações das Unidades
de Polícia Pacificadora (UPPs) e das chacinas conduzidas por forças estatais. Com
157 O número de processos excede o número de adolescente porque há jovens que respondem por mais de
um processo no período analisado.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 509
158 Para aprofundamento no tema ver a notícia “Aliciamento de menores: justificativa dada pela polícia para a
operação no jacarezinho não consta em relatório de investigação.” Disponível em: https://revistaforum.com.
br/brasil/2021/5/11/aliciamento-de-menores-justificativa-dada-policia-para-operao-no-jacarezinho-no-consta-
-em-relatorio-de-investigao-96826.html.
510
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte, MG: Letra-
mento, 2018.
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o negro no imagi-
nário das elites do século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
“Quem defende a criança queer159?” É com essa indagação que Paul B. Pre-
ciado inicia uma de suas crônicas para debater qual a criança que setores da direita
francesa foram às ruas para defender, em 2013, por conta de um projeto de lei que
regulamentava o casamento, a adoção e a reprodução assistida por casais homoafe-
tivos. Quem defende?
No Brasil, em 2017, a mostra Queermuseu em Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul, que possuía obras de Volpi e Portinari, foi encerrada com um mês de ante-
cedência por receber críticas de pedofilia e zoofilia por grupos direitistas como
MBL (Movimento Brasil Livre). Mesmo com investigação e recomendação do
Ministério Público do estado de que a mostra deveria ser reaberta imediatamente
pois não havia qualquer indício de pedofilia, ela não foi retomada, num flagrante
caso de censura artística160.
159 Segundo Helena Vieira (2015, s.p.) “queer é uma palavra inglesa, usada por anglófonos há quase 400 anos.
[...] O termo ganhou o sentido de “viadinho, sapatão, mariconha, mari-macho” com a prisão de Oscar Wilde,
o primeiro ilustre a ser chamado de “queer”. Desde então, o termo passou a ser usado como ofensa, tanto
para homossexuais, quanto para travestis, transexuais e todas as pessoas que desviavam da norma cis-
-heterossexual”. Guacira Lopes Louro (2001, p. 546) aponta que “queer pode ser traduzido por estranho, talvez
ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. [...] este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é
assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de
oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de
onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade;
mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do
movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou
tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora”. Neste texto, o termo queer
é retomado enquanto possibilidade transgressiva e perturbadora das normatividades de gênero e sexuais.
160 “'Não há pedofilia', diz promotor após visitar exposição de diversidade sexual cancelada em Porto Alegre”
G1. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/nao-ha-pedofilia-diz-promotor-apos-
-visitar-exposicao-de-diversidade-sexual-cancelada-em-porto-alegre.ghtml.
512
Qual criança estes grupos defendem? Qual o tipo de adulto eles esperam
(obrigam) que estas crianças se tornem? Como o controle dos corpos opera na
produção de uma infância impossibilitada de experienciar o mundo em suas infi-
nitas possibilidades?
O texto aqui produzido é de carne, osso e muita tinta que construíram as
narrativas apresentadas. Para lembrar de Glória Anzaldúa, essas escritas evocam
realidades pessoais para atingir as realidades sociais. Escritas que nascem através
de sangue, pus e suor (ANZALDÚA, 2000) ao conectar-se com as nossas histórias
de vida. Jogamos fora algumas abstrações acadêmicas que amparam e justificam
a produção de um conhecimento científico sem implicações pessoais e, portanto,
políticas. Acreditamos que a nossa experiência vivida é critério de significado para
a validação do conhecimento. Pois, pensando com Patricia Hill Collins, toda ideia
tem um dono e a identidade desse dono é importante (COLLINS, 2020). Além
disso, não poderíamos esquecer de Donna Haraway ao afirmar que a objetividade
é corporificada, atribuindo-nos a missão de localizar os olhares que fundam e sus-
tentam o conhecimento científico em comunidades diferenciadas, nas quais o poder
se relaciona de modo particular e característico (HARAWAY, 1985).
Foi a indagação e o texto de Preciado que nos levou a refletir: quem nos pro-
tegia? Quais são as lembranças de infância que ajudaram a formatar quem somos
e o que queremos?
Praticantes da ciência psicológica, sabemos que a Psicologia defende a infância
como uma fase importante do desenvolvimento humano, tanto em seu nível psíquico,
como biológico e social161. Um momento que pode ser determinante, não necessa-
riamente como destino irremediável, mas como aquilo que nos ensinou a olhar as
coisas ao nosso redor e compreender como se dá as relações com o que nos cerca.
Aqui tratamos de duas narrativas: de uma mulher bissexual do sertão seridoense
do Rio Grande do Norte e de um homem trans do litoral de Alagoas. Gente que vive e
pensa o Nordeste diante das suas alegrias, tensões, rupturas, festa, violência e cultura.
Não as fantasiamos com imagens proféticas de uma invenção de mundo pronta pro
take cinematográfico; preferimos a história em disputa, os versos crus de quem sabe
que o corpo vibra quando a colonialidade brasileira o atravessa, inserindo signos
produtores de hierarquias de raça, gênero e classe.
Para Mignolo (2003 apud BALLESTRIN, 2013), a colonialidade está atrelada
ao saber, ao poder e ao ser, fundando aquilo que chamamos de modernidade, uma
modernidade que é consequência da experiência colonial. Produzimos esse texto por
atentar que a colonialidade tem relação direta com o controle exercido sobre nossos
corpos, gênero e sexualidade, violentando nossas infâncias de modo a nos privar de
estabelecer relações afetivamente potentes de segurança e proteção. Não somente nós,
mas uma infinidade de crianças não-normativas que são agredidas física, psicológica
e socialmente todos os dias.
Essa autonomia diante dos nossos corpos foi motivo de tensões, enquadramen-
tos, idas a profissionais da psicologia e psiquiatria, tudo como tentativa de produzir
em nós um senso de adequação à lógica de gênero e sexualidade colonial.
Por isso apostamos nesta escrita corporificada, pois, além de tudo, seguimos
as recomendações de Audre Lorde (1977) em nos comprometer com a linguagem e
seu poder. Disputando uma produção discursiva que durante muito tempo foi usada
para deslegitimar e nos posicionar como objetos e não produtores de conhecimento.
Além disso, essa escrita se produz com o exercício da raiva também apontado por
Lorde (2019).
Essa feminista do movimento negro e lésbico nos lembra que a raiva é um
afeto carregado de energia e de poder de transformação, a qual precisamos levar
a sério, pois se utilizada com precisão, este sentimento nos auxilia a enfrentar os
medos e os silêncios que carregamos de heranças coloniais, patriarcais, classistas,
sexistas e raciais em nossas histórias de vida.
Principalmente de alguns de nós, populações oprimidas e silenciadas, quando
somos seres desviantes das normas hegemônicas de vida, situadas no contexto da
América Latina e do Nordeste. Audre é muito sábia em nos lembrar que a raiva
pode sim nos adoecer. Virar ressentimento, até sintoma, quando a voltamos para
nós mesmos/as e acabamos “esquecendo” do poder coletivo que ela pode exercer.
Expressar a energia da raiva. Colocá-la em um lugar. Acessá-la para criar canais de
passagem para ela passar. Às vezes, até para o passado poder passar.
Como a gente abraça esse sentimento que muitas das vezes nos é insupor-
tável? Buscamos responder a isso através de nossas escritas. Pois, a insistência e
maior sabedoria de Audre Lorde, provavelmente, esteja neste ponto: “sobre a raiva
é melhor que aprendamos com ela para não nos esgotarmos entre as disputas de
nossas verdades [...] expressá-la é um modo de liberação e de libertação” (LORDE,
2019, p. 160). Que possamos nos unir nas expressões de nossas raivas. A forma
como cada um/uma de nós, em nossa singularidade, podemos acessá-la e não
virar elemento de negação no mundo externo, mas, principalmente, em nossos
mundos mais íntimos.
Por isso precisamos de ação e coragem, para reenquadrar alguns signos e
pensar o mundo além da lógica de felicidade domesticadora que culpabiliza pessoas
quando há incapacidade de experienciar determinados sentimentos, o que reverbera
lógicas normatizadoras da vida. Tudo que é normativo é redutor de potência criativa.
514
Nasci na cidade interiorana de Currais Novos, Rio Grande do Norte. Não porque
residia nesta cidade, mas porque em 1994 era lá que ficava o hospital de referência
162 O que chamamos atenção com a proposição do conceito de carrego colonial é que sob a intelegibilidade dos
esquemas de terror do colonialismo, há o reconhecimento da memória da ancestralidade como planos de
reconstituição existencial. É nesse sentido que as ações de terror mantidas por uma política de mortandade/
mortificação investem na produção do esquecimento. [...] o conceito dá o tom que as obras coloniais miram
o corpo material/imaterial daqueles que são alvos de seu sistema de violência e terror (SIMAS; RUFINO,
2019, p. 16).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 515
para partos que acolhia as mulheres puérperas da minha região. Minha avó, que se
tornara órfã aos 10 anos de idade, viveu por muitos anos nessa terra aclamada e
conhecida por muitos como Seridó, e viveu até o início da sua adolescência na zona
rural, na fazenda São Miguel.
Ela me contou que migrou para o meio urbano quando conseguiu uma bolsa
de estudos numa escola de ensino fundamental católica. Aprendeu a ler e a escre-
ver, mesmo fazendo grandes travessias em caminhonetes velhas do campo para a
cidade, todos os dias da semana, além de ter que se dedicar aos trabalhos domésticos
e do campo. Nos anos de 1960, em torno dos seus vinte e poucos anos, tornou-se
mãe de 4 mulheres e 1 homem, uma delas faleceu em seus primeiros anos de vida.
Foi professora, e logo mais diretora de escolas em uma pequena cidade a poucos
quilômetros de Currais Novos, que cresceu a partir do trabalho de agricultores e de
pequenos comerciantes, chamada Campo Redondo.
Um desses comerciantes era o meu avô. A minha avó, em quase 70 anos de casa-
mento, nunca deixou de nos lembrar a história deles dois e, até os tempos atuais, nos
conta, afirmando seus sentimentos pelo meu avô, sobre as memórias que configuram
aquilo que ela retrata como amor. Atualmente, ao falar dessas lembranças, ela me
disse que se casou não apenas por amar o meu avô. Neste momento, com um tom de
fala raivoso, ao mesmo tempo em que uma das suas mãos se fechava, demonstrando
uma espécie de fúria ao dobrar os seus dedos sob essa mão fortemente, afirmou que
naqueles tempos desejava casar-se para ter uma casa em que pudesse mandar.
Foi curioso ouvi-la naquele dia, eu acabara de defender o meu projeto de con-
clusão de Residência em Atenção Básica – na qual exerci o cargo de psicóloga e de
profissional de saúde – e na mesma semana estava lendo “Um teto todo seu”163 da
Virginia Woolf (2019), e estando também nos meus vinte e poucos anos, após mais
de 60 anos terem se passado para ela, eu também estava em busca de um teto todo
meu, assim como a minha avó. Pois, há quase dez anos, eu havia saído daquela cidade
onde eu não sentia que havia um lugar para mulheres como eu. Não em busca de
um casamento, mas de um lugar no qual eu pudesse afirmar o meu modo de viver.
Assim, ao começar essa narrativa falando um pouco da história da minha avó,
percebo o quanto os problemas de gênero sempre estiveram em evidência na minha
história enquanto mulher, interiorana, nordestina, pobre e LGBTQI+ e como con-
secutivamente esta condição me levou a ser medicalizada aos 14 anos de idade.
Naquele momento, comecei a ter as minhas primeiras crises de depressão e pude me
aproximar daquilo que classificam como loucura.
Desde pequena, eu nunca performatizei a feminilidade hegemônica. Não era
passiva e muito menos dócil, achava as brincadeiras para meninas entediantes.
Apesar de afetiva e atenciosa, sempre fui furiosa e raivosa. Preferia as brincadeiras
para meninos, como andar de bicicleta e me arriscar a levar quedas feias. Adorava o
163 Neste ensaio publicado em 1929, Woolf (2019) interpela o lugar das mulheres na literatura e na ficção.
Para isso questiona as condições de classe das mulheres e os efeitos que a pobreza produz sobre suas
vidas, demarcando a invisibilidade de escritoras nas produções literárias, em referências a obras clássicas
publicadas por homens.
516
a tomar dosagens fortes. Até o ponto em que eu não sentisse mais a minha existência.
Atualmente, lembro desse fragmento da minha história e penso que eu nunca quis
morrer, como alguns chegaram a pensar ou como os manuais de psicopatologia pode-
riam me enquadrar. Na verdade, essa história toda é sobre o quanto eu desejava viver.
Após esses episódios, lembro que acabei desistindo de usar os medicamentos,
porque a cada dia mais estragavam a minha memória. E eu precisava dela para
estudar e sair daquele lugar. Quando se é adolescente e contra hegemônico em uma
cidade do interior, o sonho de muitos é ir morar na capital. Como se pudesse haver
mais liberdade, mais vida e ousadia para nós. Na verdade, temos como deslumbre
que as nossas crenças e desejos não serão motivo para nos tornarmos marginalizados
ou excluídos, como se houvesse um lugar em que poderíamos ser livres, sem nos
sentirmos sufocados pelos discursos moralizantes ou patologizantes.
Esses discursos também chegam na capital, mas chegam com outras roupagens.
E foi migrando do interior para a cidade grande que eu e muitos outros amigos contra
hegemônicos (gays, lésbicas, bissexuais, ateus e feministas), que possuíam alguma
renda financeira ou foram beneficiados pelos programas de distribuição de renda das
universidades públicas, conseguimos sair de quadros de crises psicológicas severas.
Aquele lugar, definitivamente, naquela época, era morte para nós. Assim, colocá-
vamos todas as nossas expectativas no vestibular, como se entrar na universidade e
sair daquela cidade fosse salvar as nossas vidas.
Ao recordar esses fragmentos de memórias de quase 15 anos atrás, hoje, me
peguei bastante emocionada lendo uma crônica do Preciado (2019), que questionava
“quem defende os direitos das crianças queer?” Não é à toa que esse texto chegou até
mim nesses tempos, pensei. Uma vez que tenho buscado dar lugar a essa questão, nas
minhas reflexões íntimas, nos meus processos terapêuticos e em conversas afetuosas
que tenho tido com alguns amigos, que também viveram uma infância e adolescência
queer, e até na minha dissertação de mestrado falo sobre.
Tornei-me adulta. E ser uma adulta queer é diferente de ser uma adulta dentro
das normas da heterossexualidade principalmente no sertão nordestino, onde os rastros
da colonização possui suas marcas e historicidades. Inevitavelmente, essas marcas
em nossos corpos desviantes atravessam as nossas infâncias e consecutivamente, as
nossas histórias de vidas, criando feridas severas em nossos inconscientes.
Acerca desta discussão, Fanon (1952/2020) demonstra como o racismo estrutural
e os efeitos da colonização criam feridas severas em nossos inconscientes, a partir de
uma norma de vida ocidentalizada do mundo europeu, que reduziu o homem negro a
um objeto. Deste modo, para o autor, o corpo negro é inferiorizado em consequência
da supervalorização europeia atravessada por uma episteme colonializadora. Nessa
perspectiva, seus debates parecem se estender aos modos de vidas queer no sertão,
pois eles apontam que o sofrimento das pessoas ou aquilo que intitulamos como sofri-
mento psíquico, não está localizado em uma estrutura intrapsíquica ou edipiana do ser.
No entanto, está em toda produção de subjetividade de uma determinada cultura
que o (re)direciona e o atravessa e que está implicada com a exploração do capital e
com as estruturas raciais. Isso acontece na medida em que a medicina fundada pelos
saberes brancos e eurocêntricos busca individualizar o sofrimento das pessoas negras
518
estamos autorizados a sentir e sobre o que não estamos autorizados a fazer. Assim,
muitas vezes, esses traumas são silenciados do nosso próprio corpo, levando-nos
a enganá-lo por não serem acolhidos pela sociedade. O que reverbera que muitas
dessas crianças acabam sendo julgadas por não amarem quem as violentou. Tal
discussão, além de se conectar com o que Lima (2019) chama de trauma colonial,
se assemelha à percepção de trauma discutido pelo psicanalista Ferenczi. Gordar
(2012) nos ajuda a pensar sobre a teoria das vivências traumáticas trazidas por
esse autor, ao apontar que sua ideia sobre o trauma diz respeito a que uma situação
traumática só torna por si só uma experiência patogênica, quando o sofrimento da
vítima não é legitimado pelo outro ou pelo social. Assim, compreendo que muitas
dessas crianças feridas, na história de muitas de nós, são filhas de povos herdeiros
das heranças coloniais.
Assim, estabelecendo contatos com a criança queer que fui, muitas vezes
levada para muitos psicólogos pela minha família, que fazia questão de me silenciar,
talvez numa intenção “inocente” de me proteger e sem se dar conta da violência que
exerciam, penso como as normas de gênero produzem sequelas e feridas profundas
em nossos inconscientes.
Pois na minha infância, fui levada a psicólogos e psiquiatras não porque eu neces-
sitava de um corpo que acolhesse o meu sofrimento psíquico, mas para consertar a
criança ou adolescente “errada” que eu era. Não performava as feminilidades hege-
mônicas e quando contei para minha mãe, já adulta, que estava numa relação afetiva
com uma mulher, a primeira resposta que ela me deu sobre foi: “gostaria que você
fosse normal”.
Até hoje, reflito sobre essa resposta, muito analisadora, para pensar quantos
de nós, pessoas desviantes das normas de gênero, se sentem não pertencidas a
um lugar, inseguras na vida e no mundo, em certas relações que estabelecemos,
com problemas de autoimagem e autoconfiança, por que muitos desses discursos
dizem que não somos normais?
Demorei muito, até a vida adulta, para ir me despindo desses discursos e acolher
de forma amorosa a criança queer que fui. Se hoje escrevo sobre isso, é graças a ela
e a todas as outras crianças queer que fazem parte da minha existência. Se somos
“anormais”, somos também a resistência dentro de um mundo que não dá lugar às
diferentes formas de amar e existir.
Acolho com carinho a criança queer que fui e agradeço a ela por me tornar, a
mulher desviante que eu sou hoje todas as palavras que ela pode enunciar.
Esta é a terceira ou quarta vez que tento escrever esse texto, não sei ao certo,
em uma das tentativas tive que parar pois, no fluxo da escrita, acabei por dizer que
minha infância estava mais para uma coleção de traumas. Fiquei durante alguns
minutos lendo aquela frase e sendo acessado por uma infinidade de memórias que
por vezes esqueço que existem. Tive que parar de escrever.
Há uma ideia de certo modo comum que todas as pessoas que são LGBTQIAPN+
passam por infâncias transviadas, que desde cedo expressamos nossa subversão diante
do regime cis+hétero+patriarcal. No entanto, é necessário pontuar que há quem, diante
das inúmeras violências que exigem a adequação aos padrões normativos, vive durante
anos sem conseguir acessar ou ao menos nomear tudo o que sente, seguindo conven-
ções impostas até compreender quem se é. Não que este tenha sido necessariamente
o meu caso, mas esse texto também é para elas.
Nasci em 23 de junho de 1994, em Maceió, capital de Alagoas, nordeste brasi-
leiro, o terceiro em uma família de três filhos e uma filha. Pai funcionário público,
mãe dona de casa, que também se tornou funcionária pública; tudo parecia seguir
o fluxo na família de comercial de margarina. Nasci num momento duplamente
festeiro: São João e Copa do Mundo. Dois eventos que mobilizam nosso povo
para, através das brincadeiras, expurgar, nos encontros de rua, a dureza da vida
com a beleza das festas.
Criança tímida, observadora, calada, mas linguaruda quando teimava com uma
coisa: em dizer que era um menino. Sim, desde o momento que entendi que as coisas
tinham gênero e se nomeavam, bati o pé: é ele, não ela. Inventava mil explicações,
vivia entre livros e outras fantasias, tinha que haver alguma lógica para o motivo
que não me tratavam como o menino que eu era. Isso culminou no início do meu
processo psicoterápico aos cinco anos.
Minhas lembranças da infância são turvas, talvez pelo conflito contínuo entre
tentar ser alguém no mundo e o sentimento de não pertença ao que poderia o ser o meu
lugar. Às vezes tento me lembrar das sessões de terapia quando criança, confabulava
tanto que chego a ter dúvidas se algumas memórias são memórias ou invenções que
criava para não adoecer mais ainda, mas há algo que sempre ficou muito claro para
mim: foi durante a terapia que descobri na música um lugar de conforto. Lembro de
um tecladinho que tinha na sala e o som daquilo me encantava, ficava mexendo nas
teclas para conhecer aos poucos o som do instrumento.
A gestação também não foi fácil, tanto que nasci prematuro por conta de uma
pré-eclâmpsia. Conta minha mãe que para me acalmar ela sempre colocava música
e ficava fazendo carinho na barriga, queria que eu escutasse aquela música e me
acalmasse junto dela. Assim é até hoje, quando tudo está confuso, quando sinto
medo, quando preciso respirar, é na música que encontro a segurança necessária
para dar conta das demandas do mundo. Da barriga de minha mãe aos discos de
meu pai, passando pelo violão, cavaquinho e o tambor, é através da melodia dos
toques que harmonizo a vida.
Nisso tudo, minhas primeiras aproximações e referências musicais foram
caminhando para figuras como Cássia Eller, Renato Russo e Cazuza. Durante a
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 521
164 O processo de criação da diferença sexual é uma operação tecnológica de redução que consiste em extrair
determinadas partes da totalidade do corpo e isola-las para fazer delas significantes sexuais. [...] O sistema
522
Além disso, compreendo que para minha mãe, como mulher, o peso de errar na
criação dos filhos possuía um significado muito mais difícil que para meu pai. Não
fantasio o amor incondicional nas relações de parentesco, imaginem os tensionamen-
tos diários com uma criança que desde os cinco anos era insistente, que escondia
vestidos, ficava emburrado, dizia que não sairia de casa com aquele lalau na cabeça.
Ninguém havia lhes ensinado a ter um filho trans.
Certa vez minha mãe me disse “meu filho, eu estudava psicologia e nem na
faculdade havia uma matéria que, pelo menos, tocasse no assunto, se tivesse sabido,
naquela época, que havia nome para a situação toda, tudo teria sido diferente”. Não
duvido. Na dissertação de Laís Silva (2020), na qual ela analisa os currículos de
Psicologia de universidades públicas de Minas Gerais, a autora aponta que os debates
sobre gênero e sexualidade não ocupam nenhuma disciplina obrigatória e, quando
aparecem, encontram-se timidamente em disciplinas optativas que contam com um
número restrito para participação de alunos.
No seu trabalho, a autora demonstra que esses debates são uma atenção recente
da Psicologia, o que dialoga com o fato que historicamente a produção teórica deste
campo esteve ligada à uma perspectiva cisheteronormativa (MATTOS; CIDADE,
2016 apud CAVALCANTI et al., 2019) e que foi a legitimação dos saberes médicos e
psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise) para definir e nomear as questões de gênero
e sexualidade que produziram o caráter de anormalidade e patologização daqueles
considerados desviantes de gênero (BENTO, 2017).
Estar, hoje, no lugar de psicólogo (e de pesquisador) me faz pensar na possi-
bilidade de falar sobre a existência de crianças trans e de como criar saberes psi que
compreendam a clínica como um espaço em que estas experienciem sua infância,
para além da preocupação obsessiva com a sua inserção no mundo a partir de uma
existência que tem como régua a cisgeneridade, pois assume, ao trazer o conceito da
cisgeneridade para o escopo de sua produção, que todos os corpos são generificados
e que o que cisgeneridade produz é a subalternização de corpos não-cis.
Desse modo, não há como não tratar esta produção teórica também como um
lugar de cura, seguindo os passos ensinados por Bell Hooks: “quando nossa experiência
vivida da teorização está fundamentalmente ligada a processos de autorecuperação,
de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática” (HOOKS, 2013,
p. 85). Não se trata somente de ocupar espaços, de mastigar conceitos, de produ-
zir discursos, Hooks (2013) chama atenção para assumir como as experiências nos
moldam, nos afetam e, nessa medida, dão-nos a possibilidade de criação para pensar
um mundo além das dores e traumas que nos acessam, direcionando nossa produção
teórica com essa intenção.
É a expansão da nossa capacidade de invenção, de fazer arruaça, de teorizar, de
estabelecer trocas (acadêmicas, de afeto, de raiva, de sonhos) que afirmamos nossa
insistência na pulsão de vida.
Então, retomando a minha infância, penso que não havia modo de ser protegido,
por isso entendi, muito cedo, o peso do silenciamento. Guardei meu segredo a sete
chaves e fui driblando o mundo crescendo com a certeza de todos ao meu redor de que
era “lésbica”. Não houve um momento em que meus pais esperaram que eu chegasse
com um namorado em casa, mas com o que eles nunca contaram era que, um dia, o
namorado fosse eu.
O peso desse silenciamento resultou no medo que senti quando descobri, aos
14 anos, que havia um homem chamado Buck Angel165, um carecão que assim como
eu era homem e tinha vagina. Fiquei eufórico, mas guardei para mim, descobri um
mundo de possibilidades que só seriam possíveis no dia que fosse eu quem ditasse
todos os caminhos da minha vida.
Naquele momento, o menino que até então não tinha certeza de um nome,
começou a experienciar a ideia de ser chamado diferente, desenhava as imagens
de um rosto de cabelo curto, ralo, de óculos e barba. Desenhava com frequência,
acreditando que um dia, essa imagem se materializaria. Qual não foi minha surpresa
quando ano passado, esquentando uma comida no micro-ondas, vi meu reflexo no
espelho e lembrei das inúmeras vezes que rabisquei aquele desenho no caderno em
sala de aula. Aquele lapso de 10 segundos soou internamente como o abraço mais
bem dado que poderia dar ao menino sem nome que durantes anos se calou.
Audre Lorde (1977), em uma fala direcionada às mulheres sobre processos de
silenciamento, nos presentou com a seguinte reflexão:
165 Homem trans norte-americano, ativista pelo direito das pessoas trans, ator e produtor de filmes pornôs. É
possível saber mais sobre ele no site: https://buckangel.com/.
524
Foi pensando nessas palavras de Audre Lorde que, mesmo com toda a violência
que o silenciamento da criança que eu era me faz resistir a retomar as memórias de
minha infância, insisto na escrita, pois escrever estas palavras é parte da cura, é um
modo de abraçar o Benjamin menino que durante anos se calou, sem direito a nome, à
brincadeira, a ir à escola sem passar pelos constrangimentos de ser “diferente”, pelas
piadas em suas idas ao banheiro e pela dificuldade em criar vínculos de amizade,
pois nem menina o suficiente e nem menino como necessário.
Quando sambo hoje desajeitado, sambo pela alegria de permitir ao corpo que
brinque como sempre desejou brincar, que nos passos desengonçados encontre a
leveza corporificada da infância que lhe foi privada pois, até a dança, em vários
momentos, só lhe foi permitida dentro das normas binárias de gênero.
Retomando a canção de Cazuza: hoje eu acordei com medo, mas não cho-
rei, nem reclamei abrigo. Toco em meu rosto e sinto no volume da barba o abrigo
necessário para o menino que um dia fui materializado no homem que ele se tornou.
Sentir um abraço forte já não era medo, era uma coisa sua que ficou em mim e que
não tem fim, e que bom que o menino que há em mim sempre insistiu, sempre ficou,
sempre gritou, para que eu jamais esquecesse que ele estava ali. De repente a gente
vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa, morna e ingênua, que vai ficando no
caminho, que é escuro e frio, mas também bonito, porque é iluminado, pela beleza
do que aconteceu há minutos atrás.
A todas as crianças que fracassaram na ordem da cisheteronormatividade para
triunfar nas rasuras que inventam a vida pela beleza ordinária de um cotidiano para
além do gênero. Brinquemos.
Iniciamos esse texto com Paul B. Preciado e concluímos com ele. Se Pre-
ciado (2019) nos inspirou quanto aos seus escritos sobre a criança queer, há uma
outra crônica sua que reverbera em nossos corpos desviantes: “A coragem de ser
você mesmo”. Falamos sobre as nossas infâncias feridas e como a colonialidade
enquanto poder de norma se exerce em corpos desviantes, como os nossos. No
entanto, percebemos em nossas narrativas de vida que essas infâncias foram com-
postas de fragilidades e sobretudo de coragem. Essa coragem que nasce da força
também se exerce pela fragilidade, pois, como nos aponta o autor, é preciso que
percamos a coragem de fabricar normas, para nos encontrarmos numa revolução
da fragilidade:
[...] como eu as amo, minhas corajosas iguais, desejo que vocês também percam a
coragem. Desejo que lhes falte força para repetir a norma, que não tenham energia
para continuar fabricando identidade, que percam a determinação de continuar
acreditando que seus papéis dizem a verdade sobre vocês. E quando tiverem
perdido toda a coragem, loucas de covardia, desejo que inventem novos e frágeis
usos para seus corpos vulneráveis. É por amá-los que os desejo frágeis e não cora-
josos. Porque a revolução atua através da fragilidade (PRECIADO, 2019, p. 142).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 525
É revolução que atua através da fragilidade, uma fragilidade que, como aponta
Butler (2011) nos faz retomar o nosso humano e os limites da nossa capacidade
de fazer sentido. Quando retomamos essa fragilidade a partir de um novo enqua-
dramento, encontramos nela o sentido da coragem para subverter estas vidas pre-
cárias, traduzindo através do corpo a potência do que somos e de quem podemos
ser. Exercício que pode ser visto pela formação de políticas de coalizão. Uma vez
que, apostamos com Butler (2018) que elas são construídas por corpos em alian-
ças contingentes – entre mulheres e outras populações subalternas, permitindo
aos diferentes sujeitos e projetos políticos hegemônicos entrar em confronto nas
políticas feministas e de gênero.
Visto que, para Butler (2018, p. 76), as alianças contingentes são uma estratégia
de construir forças e poder político entre as diferentes vidas que são precarizadas
pelos poderes hegemônicos. Elas são formadas por um conjunto plural de pessoas e
de direitos coletivos e corporificados, que compreendem que a precariedade é algo
que atravessa seus corpos de formas diferentes, por mais que suas reinvindicações
defendam que as vidas sejam igualmente vivíveis. Essa construção de alianças for-
maria engendramentos coletivos que ligam diferentes grupos e pessoas, cruzando
diversos contextos linguísticos e culturais conectados às diversas raças, religiões,
sexualidades, classes e assim por diante.
Portanto, após sermos subjetivados pelas nossas infâncias queer em diferentes
lugares do Nordeste brasileiro é que refletimos bastante sobre o nosso lugar na Psi-
cologia e na pesquisa e da importância da formação de alianças contingentes dentro
desses espaços. Pois, é muito comum na nossa formação, ver algumas epistemolo-
gias fundamentadas nos saberes cientistas eurocêntricos, masculinizados e brancos,
colocando a Psicologia como salvadora de todas as complexidades da vida humana
e social. Uma discussão que é muito ampla e que cabe diversas análises dentro dela,
algo que não se esgota em um único texto.
Mas, o que continua nos chamando a atenção no campo da Psicologia, é a
barreira que por vezes encontramos quando se trata da construção dos debates neces-
sários sobre interseccionalidade entre raça, gênero, classe e território, dentro dos
seus campos práticos e teóricos. Por isso, acabam não acolhendo as subjetividades
de infâncias queer que estão/vivem em sofrimento psíquico. Muitas vezes, reduzem
os seus sintomas a classificações diagnosticas que não analisam e atravessam as
suas singularidades de vida. Os seus modos de viver, de adoecer e de se curar, não
se reduzem aos seus quadros sintomatológicos e psicopatológicos, que são cruéis e
atravessados por um jogo de complexidades sociais diversas, são determinados por
questões coletivas e políticas estruturadas pelo sistema capitalista, colonial, racial,
patriarcal e classista em que vivemos, não se restringindo a algo meramente indivi-
dual e intrapsíquico.
Isso se aplica a nós, enquanto psicólogas/os/es e pesquisadoras/es/us, que cos-
tumamos atender diversas pessoas nos territórios, nos consultórios particulares, nas
redes públicas de saúde ou em outras políticas públicas, além de ler, escrever e
construir trabalhos acadêmicos sem olharmos para a nossa própria história de vida,
pois são essas histórias que, muitas vezes, constroem a nossa maior revolução. Frágil
e corajosa.
526
REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do
terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/%25x. Acesso em: 19 jul. 2022.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
CAVALCANTI, Céu Silva; BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de; SPOSITO, Sandra
Elena. O lugar da Psicologia frente às orientações sexuais e identidades de gênero.
Psicologia, Ciência e Profissão, 2019, v. 39, p. 3-5. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/1982-3703000062019. Acesso em: 27 jul. 2022.
GONDAR, Jô. Ferenczi como pensador político. Cad. psicanal. [on-line], v. 34, n. 27,
p. 193-210, 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cadpsi/v34n27/a11.
pdf. Acesso em: 19 jul. 2022.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo. Ed. Rosa dos Tempos, 2019.
LOURO, Guacia Lopes. Teoria Queer – uma política pós-identitária para a edu-
cação. Estudos Feministas, 2001, p. 541-553. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/ref/a/64NPxWpgVkT9BXvLXvTvHMr/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 19
jul. 2022.
PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. São Paulo, SP: n-1 edições, 2014.
SILVA, Laís Ribeiro da. Psicologia e sexualidade: uma análise da formação acadê-
mica a partir os atravessamentos da (in)visibilidade de gênero e diversidade sexual nos
currículos. 2020. 104 f. Dissertação de mestrado (mestra) – Mestrado profissional em
educação sexual. Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara – SP, 2020.
SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato – a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro – RJ: Mórula Editorial, 2019.
528
SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Flecha no tempo. Rio de Janeiro – RJ: Mórula
Editorial, 2019.
SIMAS, Luiz Antônio. O corpo encantado das ruas. 9. ed., Rio de Janeiro – RJ:
Civilização Brasileira, 2021.
SIMAS, Luiz Antônio. Umbandas: uma história do Brasil. Rio de Janeiro – RJ:
Civilização Brasileira, 2021.
VIEIRA, Helena. Afinal, o que é a Teoria Queer? O que fala Judith Butler? Opera
Mundi – Diálogos do Sul, São Paulo – SP, Brasil, 25 de set de 2015. Disponível em:
https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/cultura/51728/afinal-o-que-e-a-teoria-
-queer-o-que-fala-judith-butler. Acesso em: 19 jul. 2022.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. 2. ed. Editora nova fronteira, 2019.
NO TERREIRO O ADIJÁ É
TOCADO... A PSICOLOGIA IRÁ
ESCUTA O CHAMADO?
Vincent Abiorana
Juliana da Silva Nóbrega
Era segunda-feira e fazia cerca de três meses que eu mal saía do quarto. Era
segunda-feira e eu me desesperava por não conseguir fazer pesquisa...
3. Apresentando o barracão
Em uma das conversas com a Mãe, ela contou que criou o Barracão na periferia
da cidade. No início, o Barracão era simples com chão de barro e quando chovia
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 533
Aparecem muitos com problema aqui, problemas iguais aos meus que eu procuro
ajudar, enfim, chega a ser uma grande família para nós, chega nós sentir falta,
quando dois dias, eu já sinto uma raiva horrível, não por interesse e sim por amor
que eu tenho como se fossem verdadeiros filhos, porque eu acho que uma palavra
mãe é uma palavra muito forte, é uma palavra que tanto respeita a espiritualidade
quanto a mãe carnal, então eu sou mãe duas vezes. Agradeço a Deus por me dar
essa sabedoria tão grande de respeitar meus filhos, minhas filhas. Para mim, não
tem diferença, eu gosto muito deles, gosto dos meus carnais e gosto dos meus
espirituais, né? Para mim, não tem diferença, a mãe é um coração só. Desde
quando você passa a me adotar como mãe, eu já sou sua mãe, eu já brigo, eu já
vou à luta com você, eu já vou lhe defender, tudo aquilo, se um dia eu passar e
ver alguém falando dos meus filhos materiais ou espirituais eu vou para cima, eu
vou defender como uma mãe (MÃE DE SANTO, 2020).
Inspirado em Lopes (2011) podemos entender que as pessoas buscam nos Ter-
reiros assistência financeira e material, bem como tratamento para o corpo, alma e
mente. Em rituais ou nos outros processos organizativos do cotidiano, circulam as
práticas discursivas umbandistas como movimentos de resistência social, culto a
Orixás e enlaces de amizade, amor e disputas.
As vivências no Terreiro são sociais, religiosas e familiares ao mesmo tempo que
refletem nos processos organizativos do terreiro e na disposição espacial. O espaço
em uma encruzilhada tem duas formas de acesso: a) pelo portão pequeno, na rua
principal e asfaltada, há entrada para casa (âmbito pessoal); b) pelo portão grande,
na rua encascalhada e reservada, há entrada para o terreiro.
Na calçada, há uma cruz branca (simboliza Oxalá) e plantas altas remetendo à
Oxóssi e natureza; Muro, portão grande e parte interna do barracão são vermelhos e,
quem entra na varanda, vê duas árvores de porte médio do lado direito e a Trunqueira
do Exu Veludo do lado esquerdo. Mais à frente há um espaço (Congá Menor), com
dois Tambores, onde ocorrem danças para Incorporação e ao lado desse espaço, há
um quarto onde pessoas da Gira (rodantes) se preparam para rituais.
Atrás da Trunqueira fica o tanque onde lavamos as louças e um banheiro impro-
visado em algumas festas. Ao lado desse espaço, há uma cerca mantendo os cachorros
presos e marcando passagem para ambiente semiprivado (cozinha). Essa cozinha é
subdividida: uma parte com dois armários, duas geladeiras, um freezer, uma mesa
de seis a oito lugares e, outra pequena parte, com fogão e uma geladeira. A cozinha
parecia ser lugar de transição entre casa e Casa, pois dava acesso ao espaço domés-
tico via portão, enquanto ainda era espaço de partilha de conversas e alimentos em
momentos alternativos aos rituais públicos.
Em dias sem sessões ou antes delas começarem, as pessoas mais próximas ficam
sentadas na cozinha conversando e comendo; quando aconteceram as Giras, a entrada
ficava mais restrita para pegar água ou cerveja para as pessoas ou Entidades. Após as
Giras ou durante as festas, a cozinha podia ser utilizada enquanto a comida era servida,
mas a partir de 2020 as comidas passaram a ser servidas na varanda perto do poço.
Além da necessidade nutritiva, a alimentação tem cumprido um papel psicosso-
cial relacionado à disponibilidade de alimentos, hábitos culturais, memória afetiva e
organização social. Marcada pela dimensão afetiva de partilha de encontros e valores,
a alimentação ganhou o sentido de comida, portanto, a comensalidade no terreiro
expressava sentidos de socialidades e de cuidado (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).
Na identidade brasileira, foram produzidos sentidos de oferecer em eventos
sociais algum tipo de comida e bebida que, de acordo com o contexto, como urbano
ou ruralizado, elitizado ou periférico, falavam da multiplicidade das práticas dis-
cursivas. Em meios rurais e periféricos, a comida era conectada à dimensão de
alimento, socialidade e trabalho que é uma lógica diferente da que tem operado no
meio urbano e elitizado (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).
O Barracão era um espaço periférico que repetia alguns ritos do meio rural de
compreender os momentos de alimentação como fonte de sustento, de momentos
de partilhas e cuidado. Ali circulavam sentidos de comida, como enlace afetivo e
material tanto que a Mãe e Miriam montaram um restaurante na varanda da frente
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 535
que havia se tornado mais uma fonte de renda e auxiliava no sustento junto com a
loja de artefatos religiosos que agora também funcionava no Barracão, os trabalhos
cobrados pela Mãe de Santo (como os cortes para Exus ou a leitura de búzios) e
as doações recebidas.
Esses arranjos econômicos eram organizados em horários opostos à realiza-
ção das Festas e Giras rotineiras que aconteciam aos sábados por volta das 20:00
horas, exceto quando havia alguma festividade como aniversários os quais eram
comemorados na data exata. As sessões começavam quando a Mãe tocava o Adijá
para chamar as pessoas da Gira que deviam ir ao quarto para se concentrar e orar, a
entrada desse quarto era restrita e quem não era rodante só ouvia algumas partes das
orações e alguns pontos.
Antes de iniciar a sessão, a Mãe Defumava a Casa queimando raízes e ervas
conhecidas por propriedades de limpeza e Cura espiritual como Benjoim, Alecrim e
Alfazema. A fumaça tinha cheiro forte que gerava a sensação de relaxamento, isto é,
purificava a energia da Casa e das pessoas ali presentes e a Mãe cantando Pontos de
Defumação andava pelo Barracão ao que cada pessoa estendia as mãos, passando-as
entre a fumaça e era abençoado.
A defumação é uma coisa bem sagrada quando você inicia as rezas antes de come-
çar a sessão, pois aquela defumação já vem de muitos e muitos anos. Defumação
é para espantar as coisas ruins, os Espíritos ruins. Nós cantamos para defumar, aí
depois nós cantamos que “já defumou, já incensou” e depois nós cantamos que
“na Umbanda cheira à defumação”. É, tudo nesse mundo tem um começo, um
meio e um fim. Nós cantamos para abrir, cantamos que estamos agradecidos por
aquela defumação e cantamos para desejar paz, amor e tranquilidade. Abrimos
nossa mesa que é para darmos passagens para os Espíritos de luzes, para o Mestre
vir trabalhar, porque o barracão já está preparado para receber aquelas Entidades
com muita luz. O essencial de uma casa ser defumada é porque a defumação
espanta as coisas ruins que, às vezes, vem com pensamentos negativos e aquela
fumaça tira as energias negativas e dá as positivas (MÃE DE SANTO, 2020).
e atenção à saúde mental principalmente de grupos que tem menos acesso ao exer-
cício de seus direitos sociais, como pessoas negras, idosas, pobres, das ruralidades,
mulheres, LGBTQIAPN+. Estar em grupos historicamente desvalorizados no Brasil,
mas encontrar suporte em determinados espaços é potente força motriz ao bem-estar,
como foi relatado por Gabriel:
Com esses dizeres, Gabriel deixou evidente como a saúde deve estar alinhada à
proteção, acolhimento, cuidado... São palavras que ao primeiro olhar podem conter
estritamente o mesmo significado, contudo se nos atentarmos aos exemplos de atitu-
des trazidos por ele e outras pessoas participantes da pesquisa podemos descortinar
“partes” da vida que são reconhecidas. Concerne ao zelo pelo corpóreo, mental,
emocional e espiritual toda a (re)produção de trabalho e educação no Terreiro levan-
do-nos a incorporar o entendimento de que saúde, no contexto umbandista, implica
em amorosa integração do todo.
[...] é, justamente, tentar a todo custo manter um certo legado normativo intacto. É
também, tentar conservar pactos narcísicos de opressão, discriminação e estigma,
perpetuando o silenciamento das múltiplas corporeidades possíveis na cultura.
Diante disso, pergunto-lhe: na sua formação, seja ela qual for, quantes autores
trans, não- bináries, não-branques, indígenas, travestis, feministas, LGBTQIA+
ou com deficiência você já leu ou tem lido? Quais são os efeitos de tais ausências
na nossa formação? Quais são os efeitos desses apagamentos e dessas invisibili-
dades na nossa escuta e prática? Cada vez mais se torna importante situarmos o
nosso lugar de escuta, que é fabricado por uma teoria que não é neutra e isenta
de uma historicidade que apaga os marcadores interseccionais de diferença. Se,
como nos avisa Gayatri Spivak (1988) e Djamila Ribeiro (2017), quem tem o
privilégio social tem o privilégio epistêmico, ainda cabe uma posição defensiva
ou de silenciamento? (STONA, 2021, p. 13).
saúde. Essa força simboliza a saúde e nos Terreiros é cuidada por meio dos saberes
em utilizar as Ervas e realizar os rituais de acordo com os ensinamentos das Entidades
e representações dos Orixás. Reconhecendo a natureza distinta dos saberes que fun-
damentam as práticas de cuidado em saúde nos terreiros e nos espaços biomédicos,
saberes estes muitas vezes conflitantes (FRANÇA; QUEIROZ; BEZERRA, 2016).
As medicinas populares evidenciavam os encontros entre conhecimentos das
etnias brancas, indígenas e negras deflagrando um movimento histórico e social
que por meio do trabalho e partilha de saberes se metamorfoseou “no cotidiano
da vida do campo e da cidade, no qual os ervateiros, raizeiros e parteiras colocam
seus conhecimentos à disposição da comunidade e assim organizam suas expe-
riências de vida e sua maneira de conceber o mundo” (FRANÇA; QUEIROZ;
BEZERRA, 2016, p. 106-107).
falam espinhela caída, outros falam peito aberto, né? Ele vem, reza, a gente fica
bem” (EKÉDI MIRIAM, 2020).
Esses saberes cumpriam papéis importantes nos sentidos de acolhimento, per-
tença ao grupo e formas de enfrentamento político aos sofrimentos sociais. Os saberes
do trabalho de cuidado eram, portanto, partilhas afetivas e políticas. Eram delicadezas
diante de um mundo duro e difícil...
Miriam levantou uma discussão muito importante sobre a hierarquização dos
conhecimentos e lembrou do dia em que fui lá precisando de acolhimento – aquele
que contei no tópico “Em meio ao caminho, forasteire (re)inicia” – e dos saberes
dela e da Célia. A Ekédi contou com muito orgulho que pôde me ajudar conforme
seus estudos.
Mas chega um determinado tempo que não é porque ele é formado que não vai
precisar de mim, precisar de você. Porque o Vincent chegou aqui um dia com
problema, ele poderia muito bem resolver o problema dele, mas ele precisou de
alguém, mesmo sendo formado entendeu? Ele precisou de alguém que escutasse
e que entendesse, para auxiliá-lo a sair daquilo que estava vivendo, está enten-
dendo? E, às vezes, uma palavra consegue tirar, uma palavra você desce e outra
você sobe. Porque, às vezes, uma palavra minha falando para ele... “Poxa, graças
a Deus a Miriam me auxiliou, me ajudou, contribuiu comigo de alguma forma”;
às vezes, a minha palavra sai um pouco errada porque não tenho estudo, né? Mas
eu tenho é, eu sou dotada de conhecimento, já me digo assim mesmo, não tenho
faculdade, não sou formada, a minha formatura eu já trouxe de berço, entendeu?
Eu entendo as pessoas, às vezes, eu entendo cada um dos meus irmãos aqui em
casa (EKÉDI MIRIAM, 2020).
5. Considerações finais
REFERÊNCIAS
ANDRADA, C. F. O método no centro: relatos de campo de uma pesquisa psicos-
social de perspectiva etnográfica. Psicologia USP, v. 29, n. 2, p. 236-245, 2018.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/Kc9KCMjnQqSCxYvN6FKrCP-
G/?lang=pt. Acesso em: 15 out. 2019.
CARLESSI, P. C. “Nessas matas tem folhas!” Uma análise sobre ‘plantas’ e ‘ervas’
a partir da umbanda paulista. 2016. 104 p. Dissertação (Mestrado em Ciências 98
Ambientais, Químicas e Farmacêuticas). Universidade Federal De São Paulo Campus
Diadema, São Paulo, 2016.
Nas palavras que costuram este texto salta o desejo de suscitar vozes de outras
mulheres, mulheres cujas trajetórias se desenham de forma singular e que são alvos
de um violento apagamento perante a memória colonial capitalista. Segundo María
Lugones (2014), a transformação civilizatória, arquitetada pelas forças imperialistas,
“justificava a colonização da memória e, consequentemente, das noções de si das
pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual, com a
terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica” (p. 938). É em uma tentativa de tecer um micro
movimento contrário a este apagamento, que iniciamos este texto.
Durante muito tempo, a literatura e a escrita têm sido fontes narrativas de
diversas mulheres, uma forma de registro, mesmo quando ficcional, de uma memória
social, de experiências de gênero que não se fixam em uma única referência, mas
que se constroem a partir de múltiplos entrecruzamentos. Escritoras, através das
palavras, buscam recriar um mundo de referências que vêm sendo esmagadas ao
longo do tempo pelo regime colonial (WALTER, 2018). Referenciar tais narrativas
é desestabilizar o status quo do sujeito universal, homem, branco, cis, heterossexual.
Assim como ressaltado por María Lugones (2014, p. 940), “descolonizar o gênero
é necessariamente uma práxis. É decretar uma crítica da opressão de gênero racia-
lizada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida
do social”. É no desafio de ler e imergir nestas perspectivas contra-hegemônicas que
nos encontramos. Em uma tentativa também de desestabilizar o feminismo que nos
constituiu durante muito tempo, um feminismo encoberto pelas vantagens sociais de
uma localização social branca e de classe média. É, portanto, uma busca por ampliar
olhares e escuta e de perceber privilégios diante das estruturas sociais, para que pos-
samos melhor nos responsabilizar diante de nossos gestos no mundo.
Como apontado por Donna Haraway (2009), nos localizarmos nas produções é
fundamental, pois o lugar em que nos situamos diz das nossas construções e proble-
matizações, é importante nomear onde estamos e onde não estamos. Nesta escrita,
portanto, nos encontramos, a partir de um olhar crítico, com os privilégios da bran-
quitude e tantos outros, e assumimos um olhar esfumaçado por estes lugares. Escre-
vemos também para buscar formas de compor nas trincheiras dos direitos sociais,
com outras mulheres que vivenciam experiências de gênero distintas, para compor
na luta contra as diversas formas de opressão. Neste contexto, a intenção é produzir
546
uma escrita pautando uma “relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias
e às práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão
que todas as posições contêm” (HARAWAY, 2009, p. 15).
A partir destas reflexões iniciais, objetivamos visibilizar como a literatura
produzida por algumas mulheres periféricas contemporâneas tem se constituído
enquanto ferramenta de criação e manutenção de memórias que abalam o status
do sujeito dominante. E, para além disso, como essa literatura inscreve a multi-
plicidade de existências engendradas pelos eixos de gênero, raça, classe, sexua-
lidade e outros. O pensamento que movimenta esta produção parte da percepção
de uma abertura para uma política contra colonial, a partir de contos produzidos
por mulheres consideradas periféricas, em uma perspectiva de tecer uma ética de
resistência feminista e decolonial.
Este capítulo, portanto, é tecido por textos literários produzidos por mulheres;
contos que narram distintas experiências de gênero. A partir de excertos dos contos
dialogamos com a luta contra colonial e a perspectiva interseccional. Os contos foram
escolhidos afetivamente, desde que fossem contemporâneos e que nos suscitassem
refletir sobre decolonialidade e interseccionalidade. O texto incita rachaduras diante
da história hegemônica? Trata-se de narrativa dissidente? Essas foram algumas
perguntas que nos fizemos. Procuramos narrativas que viabilizassem transver a
herança colonial capitalista. Os contos que compõe com as nossas reflexões são:
“Mais iluminada que as outras” (Jarid Arraes), “Vó a senhora é lésbica?” (Natália
Borges Polesso), “Dançamos pelo céu depois de toda chuva” (Brenda Bernsau),
“Mulheres dos espelhos” (Esmeralda Ribeiro).
Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que
me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de
minha revolta e a mim mesma também. [...] Escrevo porque a vida não aplaca
meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você.
[...] Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é
um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me
importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me
importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo
porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever
(ANZALDÚA, 2000, p. 232).
Gayatri C. Spivak (2010) em seu trabalho, faz um chamado que se alinha com a
reivindicação de Anzaldúa. Spivak convoca as mulheres intelectuais, para a “tarefa de
criar espaços de autorrepresentação e de questionar os limites representacionais, bem
como o seu próprio lugar de enunciação e sua cumplicidade no trabalho intelectual”
(p. 15). E neste sentido, convoca trabalharmos contra a subalternidade, produzindo
um discurso crítico capaz de influenciar e alterar a forma como apreendemos o
mundo contemporâneo.
Niederauer (2017) afirma que a literatura pode ser um campo da produção de
sentidos outros ao que a realidade apresenta, tornando possíveis processos de eman-
cipação. E nesta perspectiva nos encontramos também com a potencialidade política
166 O conceito da subalternidade é tomado a partir da literatura de Gayatri C. Spivak (2010), onde se entende
o sujeito subalterno enquanto aquele que integra as camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelo
modo de funcionamento capitalista. Aquele que não possui representação política, que não é concebido
como membro pleno no estrato social dominante.
548
da palavra. Segundo Brito Junior e Claudia Caimi (2018), no centro da política está
a palavra, e neste sentido, podemos considerar que a política e a poética estão indis-
sociavelmente conectadas desde sempre. Para os autores, “pensar a política como
emprego da palavra é pensá-la inclusive em termos poéticos’’ (s/p). A literatura é
recurso político, a ação política em seu cerne expõe uma subjetividade atuante que
reivindica o seu pertencimento social, e a palavra é ferramenta para subjetivar-se.
A literatura, como dito anteriormente, vem sendo utilizada por mulheres como
um dispositivo de resistência desde muito tempo. Segundo Rita Terezinha Schmidt
(2019, p. 66), no contexto da literatura nacional, “os textos de autoria de mulheres
levantam interrogações acerca de premissas críticas e formações canônicas, bem
como tencionam as representações dominantes calcadas no discurso assimilacio-
nista de um sujeito nacional não marcado pela diferença”. Este olhar para novas
formas de representação também é parte importante do trabalho desenvolvido por
Conceição Evaristo (2005). Evaristo, a partir do encontro da “escri-vida” dela e
de outras, na literatura produzida por mulheres negras, concebe a ideia de uma
escre(vivência), uma escrita que se compõe a partir da experiência de vida. Segundo
ela, “as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens
de uma autorrepresentação. Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito,
mas antes de tudo vivido” (EVARISTO, 2005, p. 6). Ou seja, a partir de Concei-
ção, podemos entender que para as mulheres negras, a literatura é um importante
espaço de construção de uma auto representação, que mantém a memória presente.
Neste sentido, “a escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as
desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer
inferiorizada, mulher e negra” (EVARISTO, 2005, p. 6).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 549
O Brasil nasce do estupro dos corpos das mulheres e das meninas indígenas, e, para
as mulheres indígenas, essa realidade histórica persiste, seja na nossa memória cole-
tiva, seja na realidade, tendo em vista que a maioria das violências e violações que
sofremos decorre dos grandes projetos desenvolvimentistas que seguem adentrando
em nossos territórios, assim como no passado (FIDELES et al., 2020, p. 195).
“Mas meu queixo me serve, não é trêmulo, e minha língua conhece toda sorte
de habilidades” (ARRAES, 2019, s/p). A língua, que possibilita o poder da palavra,
ser habilidosa com a língua, saber reivindicar. Uma mulher que reivindica um lugar,
é o que parece a personagem narrada por Jarid Arraes no conto “mais iluminada que
as outras”. Jarrid Arraes é escritora, poeta e cordelista brasileira, nascida em Juazeiro
do Norte (CE). Em suas obras evidencia figuras de mulheres, tendo publicado livros
como: As Lendas de Dandara (2016), Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis
(2017), Um buraco com meu nome (2018) e Redemoinho em dia quente (2019),
assim como outros títulos publicados em literatura de cordel. Vive em São Paulo
atualmente, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres, “um projeto pensado
especialmente para mulheres que escrevem ou querem escrever qualquer gênero
literário, mas que sentem insegurança no processo de escrita; seja porque conside-
ram que sua produção não é boa o suficiente, ou porque precisam de mais retorno de
552
outras pessoas” (Arraes, 2016)167. O conto faz parte de uma coletânea de narrativas
criadas por ela acerca das mulheres da região do Cariri, no Ceará. Por ser o lugar
de origem de Arraes, ela constrói um cenário imagético da cultura, e conta histórias
de mulheres diversas, inclusive colocando em cada conto suas personagens como
narradoras. No conto “mais iluminada que as outras” a narrativa se desenvolve do
início ao fim percorrendo o discurso de uma personagem.
“Eu ouvi e li, porque me disseram, que essa terra foi mais iluminada do que
as outras, já que os corpos navegados foram libertos quatro anos antes dos demais”
(ARRAES, 2019, s/p). No entanto, esta história ouvida faz parte de um contexto de
histórias sussurradas, onde os ouvidos captaram apenas superficialidades. A persona-
gem não se encontra em uma posição confortável para questionar a terra mais ilumi-
nada que as outras, mas seu corpo e sua historicidade lhe indicam dúvidas sobre esta
narrativa. “Por bastante tempo contado em calendário, não consegui me lembrar do
nome de quem liderou o quê, de quem fez, deixou de fazer, onde ou quando e por que
o Ceará ou o Cariri tinham a ver com isso. Eu nunca levantei a mão durante uma aula
e perguntei: professora, existiu escravidão no Cariri? Quem foi dono de escravos no
Cariri?” (ARRAES, 2019, s/p). Mas seu corpo lhe indica outras narrativas, ela se narra,
conta sobre si, sobre seu corpo, sua postura frente ao mundo, sua forma de existência:
Meus joelhos são duros e cuidados com cremes que custam mais de cinquenta
reais. As minhas digitais. Elas são tecnologias selvagens que desbloqueiam men-
sagens, segredos, ofensas, tratados, reconciliações, números que pagam. Eu não
devo os líquidos do meu corpo a ninguém. Quando vomito, tenho minhas razões.
Mas sou bicho e, quando entro num recinto, os mínimos besouros batem suas asas
translúcidas em inconveniência (ARRAES, 2019, s/p).
Esta mulher, ao narrar-se, cria visibilidades para si mesma, reivindica uma exis-
tência, produz resistências. Uma mulher resistente, a dor lhe acompanha, ela anseia
por respostas, mas já não é mais tempo de perguntas. “Eu gostaria de perguntar agora,
mas hoje estou longe de todos, mudei minha casa para o mundo de chão rachado e
convidei uma equipe de filmagem da televisão. Os jornalistas chegarão amanhã e
logo todos verão imagens de minha vaca morta e de meu mandacaru – é nele que
coço a consciência” (ARRAES, 2019, s/p).
Este conto pinça passagens do cotidiano de mulheres; e o faz anunciando a inti-
midade que tem com essas trajetórias. Memórias registradas ficcionalmente, artesania
contra apagamentos. Ao escrever o livro “Redemoinho em dia quente” (2019), Arraes
produz uma escrita que contempla estas tantas mulheres que viu no seu cotidiano.
E no conto “Mais iluminada que as outras” sua personagem visibiliza a si mesma,
processo doloroso, de reconhecimento de caminhos sociais percorridos, mas potente
enquanto registro de uma experiência singular.
Sinto muito, mas não posso levantar a questão e pedir uma lista histórica de
famílias que enriqueceram com os corpos negros torturados. Não posso usar
O conto encerra com a imagem desta mulher, o corpo que se constrói enquanto
uma narrativa viva de outras histórias, muitas vezes não contadas. “Aquece meu
corpo, me queima os fatos, me exibe monstruosa e com dentes pontiagudos. Esses
dois seios à mercê da gravidade de quem sou. E um cabelo que, espero, me faça
sombra” (ARRAES, 2019, s/p).
Nas leituras nos encontramos com mais um conto e outra autora… Desta vez
Natália Borges Polesso é quem nos perpassa. Polesso é escritora e pesquisadora
brasileira, nascida em Bento Gonçalves (RS), é doutora em Teoria da Literatura pela
PUCRS (2017), e vencedora do Prêmio Açorianos de literatura na categoria contos
(2013) e do Prêmio Jabuti (2016) com o livro “Amoras” (2015), onde está registrado
o conto que escolhemos para dialogar.
O conto “Vó a senhora é lésbica?” narra a perspectiva de Joana, que em uma
refeição de família, é pega de surpresa com seu primo perguntando para a avó Cla-
rissa, se ela era lésbica. Joana se assusta, pois tem medo de ser descoberta, já que
estava se relacionando amorosamente com uma colega da faculdade. A narrativa
toda se passa durante essa cena, ali Joana lembra do seu relacionamento, dos bons
momentos e relembra situações da sua infância, quando convivia com Carolina, que
na época denominava “amiga da avó”, mas que naquele momento se dá conta que
era a namorada da vó Clarissa. A avó era lésbica, assim como ela. A identificação
e o medo de ser descoberta pela família passavam diante de seus pensamentos. As
questões geracionais são percebidas por Joana:
[...] me ocorreu lembrar que a tia Carolina tinha sido casada com o seu Carlos. Me
ocorreu que talvez ela não pudesse ficar com a minha vó. Me ocorreu que nunca
tivessem dançado, nem bebido juntas, ou sim. Pensei na naturalidade com que
Taís e eu levávamos a nossa história. Pensei na minha insegurança de contar isso
à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei
os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de
todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas não consegui
perguntar (POLESSO, 2015, s/p).
notícias de uma experiência interseccional de ser mulher lésbica velha, já avó. Pres-
supomos que avó e neta são brancas e de classe média... Pobres não eram, pois há
muitos livros nas estantes e doces na mesa. Como se encontram e desencontram as
experiências da avó e da neta? Se a experiência da avó fosse menos silenciada na
família, será que mais facilmente se abririam passagens para os afetos da neta? O
conto nos possibilita o encontro com estas e tantas outras questões, abrindo espaço
para visibilizar outras possibilidades de existência.
Seguimos lendo, e encontramos o conto “Dançamos pelo céu depois de toda
chuva” de Brenda Bernsau. O conto faz parte da segunda edição de uma coletânea
intitulada “Vozes Trans” (2021), descrito como “Um grito de liberdade de pessoas
trans constantemente silenciadas, que reivindicam seu protagonismo e ampliam suas
vozes pela escrita” (Goodreads)168. Brenda Bernsau é escritora, nascida no Rio de
Janeiro (RJ), mas que vive no interior do estado. Começou a exercitar a escrita ainda
na adolescência, para alguns projetos de quadrinhos locais. Entre suas produções
estão: “Sophia, Alexia e o mundo além daqui” (2016), “Meninas a respeito do amor”
(2018), “No cosmo, assim como no coração” (2018).
O conto inicia com a personagem Tayane retornando à cidade da sua família.
Seus pais haviam falecido recentemente e seu irmão lhe chamou para resolver as
“consequentes papeladas”. Ao chegar em sua antiga casa, ela se encontra com um
senhor que a interpela por estar entrando no pátio. Ele desconfia de Tayane, pois
mora há muitos anos por ali e nunca tinha ouvido falar que os Santana tinham uma
filha. Para Tayane tal fato até poderia ser compreensível: “Compreensível, pensei,
afinal de contas os Santana – como ele disse – me expulsaram de casa quando eu
tinha o quê? Doze? Treze? Por aí. Não foi nenhum evento escandaloso, uma vez que
eles eram avessos a qualquer tipo de escândalo; inclusive, eu brincava – hoje em
dia isso era possível – e dizia que não havia sido expulsa de casa, mas convidada a
me retirar” (BERNSAU, 2021, s/p). Essa passagem nos remete ao livro “Transfe-
minismo” (2021) da pesquisadora e professora Letícia Nascimento, que ao explorar
as infâncias trans nos indica a violência dos dispositivos binários. Segundo ela “a
vigilância binária dos gêneros produz violências constantes, tratando de impedir
que crianças trans* femininas tenham uma infância livre, dado o sentimento de não
pertencimento ao domínio socialmente estabelecido como masculino – ou feminino,
no caso das infâncias trans* masculinas” (NASCIMENTO, 2021, p. 18).
O tema da memória da infância é um dos fios condutores do conto, uma vez que
a personagem tinha um interesse quase que arqueológico por memórias encobertas
pelo tempo. Dentre essas memórias, uma que por pouco não escapa é a mais valiosa,
havia uma terceira criança:
[...] não se tratava de nenhum parente, mas, sem dúvida, correspondia ao meu
maior interesse nesse breve – breve, assim espero – retorno a essa cidade. O
nome dela..., qual era o nome dela? Uma pequena gafe da minha parte. Lembro
do nome pelo qual a chamavam, seus pais, meus pais, os colegas da escola, mas
não consigo me lembrar do nome dela, do verdadeiro nome dela, aquele que ela
me disse em tom de confissão um dia, nós duas, alguns meses antes de tudo se
despedaçar, sentadas na varanda, as pedras vermelhas, cor de coração como ela
dizia, o clima pulsante, e então eu disse alguma besteira, qualquer coisa projetada
para machucar, um tipo de palavra-faca, vermelha não como a varanda, vermelha
cor de sangue (BERNSAU, 2021, s/p).
A personagem, tomada pelas lembranças de seu desterro, reflete que seu pai,
doutor Augusto, ao expulsá-la de casa garantiu que a maior motivação era seu poten-
cial, justificando que uma criança como ela precisaria viver as chances de um grande
centro. Tayane foi transferida para a casa do tio Armando, que já possuía outras três
crianças para criar. Augusto garantiu arcar com as despesas da criança, prometendo
ainda uma gratificação monetária, mas não tardou para as verdadeiras motivações
do desterro aparecerem diante do tio Armando, a transexualidade.
O conto segue com a chegada do irmão à casa. Ele se apresenta da mesma forma
que o pai, ambos “exibiam o mesmo porte de peito inchado, os mesmos óculos, o
mesmo cacoete de pigarrear antes de cumprimentar ou de tocar num assunto delicado”
(BERNSAU, 2021, s/p). Mas ele apresentava o uso de luvas, assim como o vizinho e
também o advogado que o acompanhava, algo que ela estranhava, pelo fato do clima
não ser propício para o uso. O irmão não quer abraçá-la, diz estar resfriado, mas não
apresenta nenhum aspecto doente. Durante o diálogo, o vizinho o alerta da invasão.
Para Tayane, o clone de doutor Augusto diz: “Não se ofenda, por favor. Precisamos
ser cuidadosos por aqui, não sei se você sabe, mas temos tido problemas com a tal
Criatura das Profundezas” (BERNSAU, 2021, s/p). Tayane lembra que a mulher que
lhe acompanhou na viagem também havia comentado sobre a tal criatura.
Foram Tayane, o irmão e o advogado da família para o interior da casa, para
a leitura da papelada do inventário. “Os bens seriam todos passados a Augusto de
Oliveira Santana e a T... de Oliveira Santana” (BERNSAU, 2021, s/p). Tayane aponta
o erro em relação ao seu nome, e refere que sem a alteração, recusaria o patrimônio.
O irmão se ofende com tal ato, considerando uma bobagem, o que a leva a outras
lembranças da infância. Aqui o conto vai delineando textualmente diversas violên-
cias que pessoas trans podem sofrer, como a não validação do seu nome social, o
distanciamento das relações familiares, a objeção social, entre outras. A escrita deixa
nítido que a experiência de pessoas trans no contexto contemporâneo é ainda muito
marcada pelo não reconhecimento das identidades, neste sentido, o texto produz um
movimento contrário, um movimento de afirmação.
A personagem recorda que o tio, quando descobriu sobre sua transexualidade,
tentou devolvê-la ao pai. Na rodoviária, enquanto os dois discutiam por telefone,
Tayane esforçava-se para não chorar. “Só quando aquela tristeza toda desabrochou
dos meus olhos, descobri se tratar não de lágrima, na verdade, mas de uma borboleta,
uma de asas amarelas e voo delicado. Segui sua trajetória, e mal me dei conta de
que me afastava do saguão, da rodoviária, da rua. Segui até que ela desaparecesse”
(BERNSAU, 2021, s/p). A borboleta levou a personagem a encontrar aqueles que
viriam a acolhê-la, como por exemplo, Amadeusa. E enquanto recordava de como
556
seguir o inseto ressignificou suas perspectivas sobre si, percebeu que na sala de leitura
da papelada, havia uma borboleta de igual cor e forma. Nesse ponto, pede licença e
sai perseguindo o voo do inseto.
O voo da borboleta leva Tayane até seu antigo quarto, que parecia congelado
no tempo, mas aquele encontro lhe avivou uma memória importante, ao encontrar o
seu diário: “Folheando-o, uma parte invisível do meu passado foi sendo resgatada.
Sobretudo a respeito dela, Francine; sim, Francine, o nome que me faltava, que não
me foi dito com a banalidade habitual, mas com um tipo vulnerável de confiança.
Estávamos sentadas naquela varanda, debaixo daquelas samambaias, ela, uma menina
recém-descoberta e eu, uma pessoa ainda perdida” (BERNSAU, 2021, s/p). A lei-
tura do diário conecta Tayane com todo o processo de Francine, uma amizade de
sua infância, descobrindo-se menina, e remete ao processo doloroso que em meio
à infância é marcado por muitas opressões, mas que tem seus pequenos prazeres na
experimentação do corpo. O que nos remete a outra passagem da Letícia Nascimento
(2021), quando conta da sua própria experiência de infância enquanto travesti.
Particularmente, como travesti, tive, desde a infância, uma experiência cruel com
o machismo e o sexismo, que cerceavam o meu poder de autodefinição, já que
não me reconhecia no papel de gênero masculino que me era imposto. Apesar
das dores, sempre tive respiros, prazeres clandestinos de uma infância transviada:
brincar de boneca, desfilar com vestidos de lençol amarrados, brincar de roda, fazer
comidinha com folhas. No encontro com as normas de regulação do meu gênero,
a infância foi um laboratório inventivo de outras corporalidades generificadas, isto
é, outros modos de produzir corporalidades e gêneros, compreendendo que não
somos naturalmente generificados, mas que há um processo de produção de nós,
de nossos gêneros, de nossos corpos (NASCIMENTO, 2021, p. 19).
com o bilhete, sentia que tinha feito uma pessoa que aprendeu sobre si mesma se
desaprender, ao reagir de forma negativa quanto às primeiras experimentações de
Francine. Mas antes que as lágrimas caíssem, percebeu que uma chuva torrencial caía
sobre a casa, mas só na casa, o restante da cidade permanecia seco. A chuva parecia
ter capacidade de quebrar as telhas, de destruir a casa, e neste contexto Tayane se
conecta com Amadeusa, aquela que a acolheu após ser rejeitada pela família.
Quem via o nosso grupo de fora, no geral, nos classificava ou como gangue ou
como seita: a seita da Amadeusa, ou seita das travestis. Ambos os nomes eram
descabidos. Nosso comportamento não fazia jus ao de uma gangue; de fato, havia
algum tipo de código implícito entre nós que reprovava atitudes criminosas, afinal,
o acolhimento que recebíamos era precisamente para evitar a necessidade. E não
éramos nenhuma seita. Ainda que frequentemente ouvíssemos o que Mamãe tinha
a dizer, ela era muito mais uma espécie de conselheira (BERNSAU, 2021, s/p).
Eu disse. Avisei. Augusto falou comigo. – Ele apresentava um tom meio trêmulo.
Não por falta de autoconfiança, imagino; talvez por ansiedade, uma vontade de ver
o que o gatilho tinha a oferecer. – Falou que se você aparecesse aqui de novo eu
podia fazer o que fosse preciso pra te expulsar. Família, sei. Você não é da família,
nem dos Santana, nem da de ninguém. Olha só pra você (BERNSAU, 2021, s/p).
“É ela, a criatura das profundezas. É ela. É terrível, como eu disse. Tomem cui-
dado” (BERNSAU, 2021, s/p). Assim diz uma voz em meio a multidão. A partir dali,
uma série de violências se efetivam, ela, agora tida como um monstro, é perseguida,
deve ser morta pela população horrorizada, que grita por esse aniquilamento pela
família, pelas crianças, entendendo que a existência daquele monstro era um risco
à vida deles. Neste ponto, o conto traça uma importante metáfora, as violências são
perpetradas pois a personagem é monstrificada, movimento recorrente na sociedade
perante às identidades dissidentes da cisnorma.
“Posso garantir a vocês: a única vida que está em perigo aqui é a minha. Queria
que tivessem me ouvido, e, me ouvindo, ponderassem e encontrassem algum sentido,
afinal, tudo me parecia um tanto óbvio” (BERNSAU, 2021, s/p). Mas o grupo de
moradores não ouvia Tayane, que no meio do desespero percebe sangue escorrer no
corpo do vizinho que lhe apontava a arma, ele logo percebe o olhar e retira as luvas,
de onde escorre o sangue. Ele diz que a culpa é dela, que sua existência monstrificada
causava o sangramento das mãos. Uma senhora da multidão reafirma a narrativa de
maldição, “essa maldição que faz nossas mãos sangrarem toda vez que entramos
em contato com um de vocês...” (BERNSAU, 2021, s/p). O vizinho tenta atirar
em Tayane, mas a arma escorrega das mãos, alguém da multidão sugere enterrar o
monstro, e decidem encaminhá-la para um local propício para o ato.
Durante o percurso, a personagem começa a visualizar beija-flores, os beija-
-flores bicavam uma mulher em específico, aquela que sugerira o enterro. Tayane
entende naquele momento que se tratava da mãe de Francine, e tenta alertá-la sobre
o que a filha está passando, enterrada no terreno da casa da família, enlameada, mas
não obtém sucesso. A mulher afirma que não tem filha nenhuma, que os monstros
levaram seu filho. Do céu caía chuva, que não desfazia a cobertura de lama sobre
Tayane. Homens a seguravam para garantir que não fugisse.
Neste meio tempo passaram a surgir borboletas, diversas se desprendiam do céu,
agora não existia mais chuva, apenas borboletas. O vizinho retornou, apontou-lhe a
arma e atirou. “Mas da sua arma não saiu outra coisa que não mais borboletas. Que
vieram até mim, e juntas às outras, cobriram-me de tal modo que o voo delas inspirou
meus pés a se separarem do chão” (BERNSAU, 2021, s/p). As borboletas lhe fizeram
de casulo, e aos poucos a lama foi se desfazendo. Tayane é acusada de magia pela
população que foge, somente a mãe de Francine se mantém. Tayane tenta alertar
sobre a situação da filha dela, dizendo que precisam salvá-la, mas a senhora diz que
enterrou o monstro e enterraria novamente, aquilo não era o filho dela.
Mas a senhora decidiu acompanhar Tayane, foram as duas até a casa abando-
nada, procurar Francine. “Sem muita surpresa, constatei que o abalo de outrora já não
parecia ter existido. A construção retomara seu aspecto anterior, aquele cabisbaixo e
choramingado, com o telhado completo novamente, a terra seca, tudo no lugar. Até
mesmo as penas de beija-flor” (BERNSAU, 2021, s/p). A senhora lhe questionava,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 559
onde estava o que Tayane queria mostrar, onde estava a suposta filha dela a ser salva.
A senhora começou a gritar com o invisível, queria que algo fosse feito, eram anos
de mãos sangrando, queria que parasse.
E ela continuava gritando, falando com o invisível para que desse as caras, porque
tinham contas para acertar, e que ele ia ver, ah, se ia. Até que algo se materia-
lizou diante de nós; não usou de grandes pirotecnias, foi como se já estivesse
lá durante esse tempo todo à nossa espera e apenas tivesse se despido da trivial
invisibilidade, um fenômeno que me remeteu aos efeitos especiais das primeiras
décadas do cinema (BERNSAU, 2021, s/p).
A criatura passou a argumentar com elas, dizia que Francine estava muito melhor
neste lugar que a colocara, chama Francine para o diálogo, que afirma não querer
sair para o mundo dos humanos. Na conversa, Tayane consegue convencer Francine
de que pode voltar ao mundo dos humanos, mas a criatura se coloca entre as duas,
afirma que Francine tem um acordo com ela, e que acordos não se quebram assim.
Beija-flores voltaram a surgir, levando a menina para os ares, que disse à criatura que
o acordo que tinham era baseado em medo, que ela queria buscar coragem. A criatura
alertou Tayane e Francine, “Isso nunca acaba, nunca, nunquinha. Vou continuar de
olho. Nas duas, dessa vez” (BERNSAU, 2021, s/p). Mas as duas ignoraram o alerta,
a mãe de Francine orientou Tayane a voar junto da filha, e ela envolta em borboletas,
também foi voar. “Borboletas vieram até mim e voei. Então, eu e Francine dançamos
pelo céu depois de toda a chuva” (BERNSAU, 2021, s/p).
O conto cria diversas metáforas para falar das violências que mulheres trans
sofrem, o uso de um universo fantástico possibilita a criação de alegorias potentes, o
sangue nas mãos da população, o entendimento de Tayane como um monstro apto a
destruir as famílias, o medo personificado na criatura que levou Francine. Ter cora-
gem de se reafirmar em uma sociedade extremamente violenta com corpos fora da
cisnorma é um desafio, o conto aponta para esta resistência, e indica a importância
das alianças entre mulheres trans neste processo.
Após o mergulho no conto de Brenda Bernsau, experienciamos outro encontro.
Agora nos encontramos com Esmeralda Ribeiro, escritora brasileira nascida em São
Paulo, membro Quilombhoje, grupo literário afro-brasileiro “que atua nos movimentos
de combate ao racismo e na construção de uma ‘Literatura Negra’, a partir do resgate da
memória e das tradições africanas e afro-brasileiras” (LITERAFRO, 2021)170. A autora
está presente em antologias de prosa e poesia negras em âmbito nacional e internacional.
O conto que trazemos para dialogar com a nossa escrita é “Mulheres dos espe-
lhos”, que integra a coletânea “Olhos de azeviche’’ (2017). Narra a história de uma
personagem que ao perder sua mãe herdou o casarão da família. No casarão, após a
reforma encontram-se uma série de espelhos. A personagem principal, que narra a
história, nos diz que tem desavenças com sua irmã, que ambas brigaram no velório da
mãe, e que até tentaram morar juntas, sem sucesso. Assim, ficou sozinha no casarão,
junto com a velha Abigail, empregada antiga da família.
Na infância, a narradora do conto relata que ouviu dizer que o casarão era mal-
-assombrado, por isso decidiu promover festas na casa. Em uma destas festas a velha
Abigail, que já se encontrava senil, apareceu cadavérica, assustando a todos. Neste
contexto, a personagem principal inicia uma série de ofensas dirigidas à velha, que
nada lhe diz. “Sete anos apenas duraram as minhas alegrias. Naquele dia da última
festa, acordara agitada e vira no espelho do meu quarto uma mulher de véu na cabeça,
virada de costas para mim. Só ouvira sua voz: ‘todos os dias o ouvido ouve aquilo
que ainda não ouviu’’’ (RIBEIRO, 2017, p. 72). Ao longo do tempo, mais mulheres
se juntaram àquela do espelho, lhe diziam frases, tocavam atabaques e agogôs. A
velha Abigail permanecia senil, no quarto e em posição fetal, sempre. A narradora
passa a desconfiar da sua própria sanidade, convida um homem bêbado para sua casa,
com a intenção de verificar se ele também enxergaria as mulheres dos espelhos, mas
ele só vê a sua própria imagem triste e magra. A empregada era a única que também
testemunhava as mulheres nos espelhos.
“Aquelas imagens nos espelhos. Uma empregada cadavérica e silenciosa.
Eu estava lúcida? Abigail teria morrido e virado um espírito?” (RIBEIRO, 2017,
p. 73). A personagem se questiona, as mulheres dos espelhos eram muitas, algumas
jovens, outras idosas, elas falavam em muitas vozes, mas o tom era dela. “Numa
dessas mudanças de lua a velha Abigail também se ajuntara às mulheres idosas dos
espelhos. Não. Talvez não fosse ela. Era real. Eu muitas vezes apertara seu rosto e
seu braços e sentira a consistência de seus ossos. Havia um mês que a empregada
não ficava lúcida. No quarto encontrava-se em posição fetal, fria e pálida, sem
aquela cor retinta” (RIBEIRO, 2017, p. 74).
Em uma tentativa desesperada tenta destruir todos os espelhos da casa, mas as
mulheres eram mais fortes e repetiam “as pessoas dentro da pessoa são numerosas
no interior da pessoa” (Ribeiro, 2017, p. 75). Movida pelo mesmo desespero, decide
contar ao amigo bêbado a história das mulheres dos espelhos, ele lhe promete segredo,
mas acaba contando o relato de bar em bar. A cidade inteira fica sabendo, a história
vai parar nos jornais e a personagem acaba virando chacota. “Abandonei o emprego.
Abandonei a minha casa. Abandonei aqueles espelhos. Abandonei aquelas mulheres
jovens e idosas, com seus atabaques e seus agogôs. Abandonei também o espírito da
velha Abigail” (RIBEIRO, 2017, p. 75).
Deixando tudo para trás, a personagem vai morar na rua, a bebida passa a tomar
conta dela que já não se reconhece mais.
quem acha essa história absurda, prefere ouvi-la a me perguntar: Qual é o segredo que
vocês, mulheres alcoólatras, escondem em seus espelhos?” (RIBEIRO, 2017, p. 76).
O conto parece fazer um interessante paralelo entre a memória da personagem com
as mulheres dos espelhos. Seriam as mulheres dos espelhos ancestrais da narradora?
Mulheres ao longo do tempo compartilham histórias, narrativas e contextos em comum.
No momento em que a personagem abandona as mulheres dos espelhos, de certa forma
abandona o reconhecimento de si mesma. A bebida é outro elemento importante neste
cenário, é parte do que insere a narradora de vez em um contexto de pouca lucidez. A
bebida é dita como forma de não manter memórias, mas elas parecem vivas no corpo
da narradora, que passa a viver de contar suas histórias em troca de cachaça.
Memória. Nos parece que estes escritos literários possuem rastros de memória.
As construções ficcionais são registros, recortes de experiências, as metáforas cons-
truídas buscam avivar a percepção de violências, apagamentos e dores, mas também
buscam demarcar uma experiência que não aceita manter o status quo, que resiste.
Gravar as palavras em texto produz um registro definitivo, uma inscrição perdurável
daquela experiência no mundo. Enquanto as políticas de apagamento se impõem às
mulheres periféricas, escritoras subalternizadas produzem, ao escreverem, um ato de
salvamento das memórias coletivas. De Souza (2021) nos aponta que há uma convo-
cação, principalmente nestes tempos duros que vivemos no Brasil contemporâneo,
para inscrevermos nossas memórias e inventarmos novas formas de inscrevermos
nossos traumas. “Na falta de uma política de Estado que cuide da memória, somos
convocados, um a um, a inventar novas formas de fazer inscrição dos traumas que
vivemos, recolher as cinzas destas brasas para poder ouvi-las. Só assim teremos
uma memória digna para um futuro efetivamente autêntico e não mera reprodução
do vivido” (p. 2).
Nos lembramos de Conceição Evaristo, que afirma a potencialidade da fusão
entre literatura e memória. Produzir, a partir da vivência, uma ficção, que inscreve a
vida na literatura, criando registros de uma memória social. Transformar-se em texto
literário, esta é a convocação de Evaristo, para ela o que a história hegemônica não
nos oferece, a literatura pode oferecer, podemos preencher um vazio histórico com a
ficção (EVARISTO, 2020). “Recordar é preciso. Impreciso é, muitas vezes, o desenho
amorfo no quase-vazio de nossa memória. Inventa-se, pois, uma história, preenche-se
com a fic-ção o vácuo produzido não pelo esquecimento, mas pelo desconhecimento
do evento histórico silenciado em sua profundeza. Cultivemos as nossas molhadas
lembranças, retirando o mofo do tempo” (EVARISTO, 2012, p. 160).
A literatura nos possibilita contar histórias que seriam desprezadas, reivin-
dicando visibilidades àquelas que sofrem com o apagamento colonial capitalista.
Neste sentido, além de produzir resistência, o texto literário elaborado por mulheres
periféricas produz esperança, na denúncia das violências, de serem ouvidas, de
não serem esquecidas. É uma possibilidade de virar a história, trapacear com as
estruturas dominantes.
562
REFERÊNCIAS
ARRAES, Jarid. Redemoinho em dia quente. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2019.
BRITO JUNIOR, Antonio Barros de; CAIMI, Claudia Luiza. Literatura, a emergência
do político. Nau literária. Porto Alegre, RS. v. 14, n. 2 (2018),[8] p., 2018.
DE SOUSA, Edson Luiz André. Sonhar juntos para não naufragar. PORTO ARTE:
Revista de Artes Visuais, v. 26, n. 45/46, 2021.
EVARISTO, Conceição. África: âncora dos navios de nossa memória. Via Atlântica,
n. 22, p. 159-166, 2012.
RIBEIRO, Esmeralda. Mulheres dos espelhos. In: LISBOA, Ana Paula et al. Olhos
de Azeviche. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
Mesmo que a rádio não toque, mesmo que a TV não mostre, aqui
vamos nós172
Pensar a vida nas cidades impõe o desafio de não a tomar de forma mera-
mente individualizante, e este princípio se conecta à inviabilidade de se construir
um conhecimento em psicologia que não esteja atrelado a um campo político e
ético na tentativa de continuar construindo saberes científicos diferentes daqueles
que já pautaram violências e estigmatizações e que ainda tem seus resquícios no
cotidiano das populações.
Se numa cidade observarmos apenas as edificações, sem levar em conta que
há vida humana entre elas, de um lado encontramos bairros que se encaixam em um
elevado padrão urbanístico, possuem alto valor de mercado e contam com investi-
mentos públicos e privados; de outro, coexistem nas mesmas urbes territórios com
características que os tornam perigosos e impróprios para a ocupação imobiliária e
expostas a riscos (ROLNIK, 1999; TABORDA; BERNARDES, 2020). Trata-se de
lugares que são alvo de regressões no investimento (MARICATO, 2001) e, tendo
em vista essa dinâmica, nos propusemos a refletir sobre a vida cotidiana em tais
territórios marginalizados a partir de uma produção artística que fala da vida e sua
sobrevivência, o rap. Essa produção envolve sons, rimas, batidas em um movimento
que leva muito mais que uma só vida ou uma só comunidade, mas expressa saberes
e experiências políticas compartilhadas de precarização e resistência da vida.
Para Butler (2015; 2018), toda existência é precária, uma vez que perece na
ausência de amparo e infraestrutura permanentes. Por consequência, é impossível
conceber a vida sem reconhecer o óbito como um destino do qual não podemos esca-
par, ainda que seja possível adiá-lo. Isso não significa, porém, que existe igualdade na
relação entre as pessoas e a morte. Pelo contrário – algumas populações são vítimas
de negligência sistêmica do Estado e residem em territórios que se tornam máquinas
de aniquilamento, situação politicamente induzida que maximiza suas exposições ao
risco e ao sofrimento (BERNARDES; TABORDA, 2020; BUTLER, 2018).
171 Este trabalho contou com o apoio de bolsas de iniciação científica e produtividade do CNPq.
172 FAMÍLIA 33. Essa é a bikera. 2016.
566
173 FAMÍLIA 33. Minha cara é o flagrante. 2021. Ao citar as músicas, opta-se por manter a forma como elas
são cantadas, mesmo que não corresponda à norma padrão da língua portuguesa.
174 FAMÍLIA 33. Maldade. 2016.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 569
mundo, sem beira e sem rumo”183. Inaugura-se, assim, um importante embate entre
as consequências da entrada na criminalidade, que inicialmente se desponta como
um campo de ganhos e acesso a experiências prazerosas de poder de compra e lazer,
mas que por outro lado impõe danos recorrentes à segurança de si mesmo, da família
e prejuízos relacionados à permanência no seu território.
Ao assumir esse conflito, os/as rappers evidenciam toda a tensão e a ansiedade
que resultam de incertezas sobre o futuro que lhes aguarda, o que mais uma vez
remete à insuficiência das redes públicas de suporte e garantia de direitos. Tal escassez
produz a necessidade de respostas autônomas e imediatas. Ainda que contraventoras,
elas demonstram que “os meninos tão cansado, agora eles querem se organizar”184.
No fim, o que observamos são os efeitos de uma ética individualista que se tornou
hegemônica em períodos recentes e responsabiliza o sujeito tanto por seu sofrimento
quanto por seu fim (BUTLER, 2018). Isso provoca uma condição de desamparo que
se manifesta nos episódios em que é “pobre matando pobre, rico cada vez mais rico,
Estado nos extorquindo com impostos abusivo que nunca são revertidos”185 e se
acentua quando “quem tentar bater de frente é perseguido e toma tiro”186.
Segundo Butler (2018), em um mundo que valoriza a ilusão de autossuficiência,
vidas que demandam maior suporte de instituições econômicas e estatais são tratadas
como dispensáveis por sua incapacidade de se enquadrar no esperado. Isso deriva
em uma discrepância notável entre os/as que são passíveis de defesa e aqueles/as
que podem ser descartados/as, expostos/as a violências diversas, ainda conforme a
autora. Nesse sentido, os/as rappers destacam as variadas modalidades de opressão
que enfrentam a saber: racismo, violências – estatal e de gênero –, privação de
recursos materiais básicos, violação do direito de acesso à saúde de qualidade, falta
de acessibilidade em transportes e vias públicas da cidade e assassinato sistemático
de algumas populações.
Os/as rappers frequentemente abordam na música uma série de reações des-
pertadas pelas opressões com as quais se deparam, a saber: dor, desespero, medo,
humilhação, decepção, aflição, luto e indignação. Mas estas não são as únicas res-
postas. Considerando que suas vidas enfrentam exposições exacerbadas ao risco, o
ato de sobreviver buscando qualidade e prazer nisso é uma forma de resistência por
si mesmo (BUTLER, 2018).
Tangencialmente, tais dinâmicas relativas à vida em comunidades vulnerabiliza-
das tendem a ser entendidas exclusivamente como pertencentes a uma esfera violenta
e triste de constante amedrontamento e insegurança. No entanto, o rap desponta neste
trabalho como um elemento que pode nos trazer subsídios dos campos teórico, político
e social para pensar disputas entre dimensões de imagens que se constroem sobre os
sujeitos e os espaços em que circulam, de forma que procuramos subdividir esses
elementos em dois: as imagens produzidas pelo rap acerca da vulnerabilização de
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria perfor-
mativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
CAMARGOS, R. “Se a história é nossa, deixa que nóis escreve”: os rappers como
historiadores. Artcultura, Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 78-92, 2018.
COIMBRA, C. Operação Rio. O mito das classes perigosas: um estudo sobre a vio-
lência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro:
Oficina do Autor e Intertexto, 2001.
CRUZ, M. M. Vozes das favelas na internet: disputas discursivas por estima social.
2007. 153 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
EMICIDA: AmarElo – É Tudo Pra Ontem. Direção de Fred Ouro Preto. São Paulo:
Laboratório Fantasma, 2020. (89min.). Disponível em: Netflix.
HOOKS, B. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Repre-
sentations. New York: Routledge, 2006.
LIMA et al. (org.). Covid-19 nas Favelas: cartografia das desigualdades. In: MATTA,
G. C.; REGO, S.; SOUTO, E. P.; SEGATA, J. (org.). Os impactos sociais da Covid-
19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2021. p. 85-193.
576
(VARGAS, 2005). É nesta perspectiva, que não se traduzem apenas como substâncias
que produzem algum tipo de alteração na psique ou no corpo, as quais têm sido, nos
últimos séculos, objeto de controle por parte do Estado; inclui-se também, nessa
categoria, os alimentos-drogas, bem como aqueles que nomeamos como fármacos
e/ou medicamentos (FREI; LOMONACO, 2019).
Estas últimas junto com as drogas “ditas” ilícitas irão ocupar um estatuto impor-
tante na contemporaneidade. O discurso médico classificará como positivas as prescri-
tas e negativas aquelas proscritas. Temos aí um duplo jogo de repressão/valorização
do consumo ditado por esse processo de medicalização e glamour farmacêutico, que
culmina no incentivo do consumo de drogas lícitas por um lado e, por outro lado,
criminaliza e patologiza o consumo das demais substâncias não prescritas.
É neste sentido que Gomes-Medeiros (2019) afirmam que os discursos de cri-
minalização convergem para a legitimação da ilegalidade no campo jurídico, trans-
formando usuários de determinadas drogas em delinquentes. Tal situação aponta para
a proteção de um idealismo de bem-estar no campo da saúde, mesmo que seja com
o uso das drogas prescritas, estas sim, autorizadas mediante a autoridade médica
patrocinadora da qualidade de vida.
Sendo signatário dessa lógica apresentada acima, o Brasil teve um longo período
de ausência de políticas de saúde comprometidas eticamente com as pessoas que
usam drogas. Na prática, durante várias décadas, o atendimento a estas pessoas se
baseava na internação como proposta de cessar o uso juntamente com a manutenção
da abstinência. De maneira geral, em boa parte do século XX, as medidas adotadas
com relação aos usuários abusivos de drogas foram propostas no âmbito da justiça
penal, em decorrência de um aparato legislativo que criminalizava as várias condutas
associadas à produção, ao comércio e ao uso (SILVA, 2015).
Foi apenas no final da década de 80, junto ao crescimento epidemiológico das
doenças que eram acometidas pelos usuários de drogas injetáveis, que surgiram os
primeiros projetos de prevenção no âmbito da saúde para essa população. Em Santos
(SP), no ano de 1989, surgiram propostas que capitaneadas pela gestão municipal
de saúde, se constituíram na criação de um programa de troca de seringas (PTS’s),
diversificando as ofertas de cuidado no âmbito da saúde. No entanto, diante de uma
ação judicial, tal projeto não teve avanço, uma vez que a Lei 6.368/76 criminalizava
quem “contribuísse” de qualquer forma para o uso de drogas. Além deste fato jurí-
dico, junta-se ao aspecto de uma sociedade marcada por preconceitos e acostumada
a abordagens repressivas, gerando dificuldade de aceitar medidas no âmbito da saúde
pública que se configurassem como tolerantes e ampliadas, neste caso, a partir da
perspectiva da redução de danos (RD)204.
Só na década de 1990, que tais ações puderam ser realizadas, agora sob a
égide de um ambiente acadêmico. Em 1994, foi fundado o Centro de Estudos e
204 Para a Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA) se refere à RD como um conjunto de políticas,
programas e práticas que visam primeiramente reduzir as consequências adversas para a saúde, sociais
e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente reduzir o seu consumo. Tem como
princípios: um forte compromisso com a saúde pública e os direitos humanos, a partir de uma ação que
foca em riscos e consequências adversas compondo a elaboração de políticas públicas, pela comunidade,
pelos pesquisadores, pelos redutores de danos e juntamente com as pessoas que usam drogas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 579
1. “Karenina, vou propor que nossa reunião da associação seja a tarde por-
que não estou conseguindo acordar. O remédio me deixa muito dopado
de manhã”.
2. “Não tenho como participar da audiência pública porque o remédio que o
psiquiatra passou agora me deixa confuso e aí eu me perco, esqueço das
coisas que quero falar... não vou conseguir falar assim. Melhor ir outra
pessoa que esteja melhor que eu”.
3. “Ontem na nossa oficina de teatro não consegui participar. Fiquei lá só
observando por que estava muito sonolento. Terminei dormindo deitado
lá no chão da sala. Não sei se vou conseguir me apresentar com vocês por
que não estou conseguindo participar da oficina”.
4. “A vida está muito dura. Antes era o crack que não me deixava bem para
vir para a reunião. Ou eu ficava muito chapado ou muito doido. Agora,
para deixar o crack, o psiquiatra me passou um remédio que é uma bomba!
Eu fico bem lento, confuso... falei para ele que não tá boa a coisa por que
não consigo trabalhar, não consigo fazer nada!”
5. “Eu por conta própria parei de tomar o remédio que o psiquiatra passou
por que eu queria tomar uma bebida no final de semana e ele me disse que
não podia misturar... Bebi e fui bebendo para me divertir um pouco, né?
Mas aí deu aquela crise, tive de me internar... Ai agora tenho de viver de
recordação de como é bom beber!”
6. “Não sei por que eu tomo tanto remédio. Tomo 15 comprimidos por dia,
acordo e vou dormir dopado, às vezes meio confuso. Antes eu estava
viciado na droga, agora é nesses remédio todos. Queria saber quando vou
me livrar disso tudo e me limpar de vez!”
Cada uma dessas vozes que temos escutado – de pessoas em sua maioria
muito pobres, que enfrentam problemas de saúde mental e que frequentemente não
conseguem se vincular a serviços de saúde mental no território – nos aponta um pro-
blema, nos inquieta e nos coloca desafios na produção do cuidado em saúde mental
e também na construção de formas de participação social e política dessas pessoas.
Elas nos fazem pensar nos amplos e já profundos processos de medicalização e
patologização de problemas sociais que estão relacionados às desigualdades sociais
e de gênero que vivem; na centralidade do uso de medicamentos psiquiátricos no
cuidado ofertado nas redes de saúde, na centralidade do uso de drogas como o álcool
e crack na vida cotidiana no enfrentamento das precariedades da vida e como fonte
de prazer que não encontram em outras instâncias da vida; no pouco investimento
das equipes de saúde no uso de tecnologias alternativas e na aposta do seu próprio
potencial para além do “saber médico”.
Observamos inquietos ainda as polaridades no vínculo com as redes de atenção
psicossocial: num pólo há uma alta dependência aos centros de atenção psicossocial
(CAPS), principalmente de usuários considerados “dóceis”, pela ausência de efetivos
582
Por ser uma metodologia grupal e participativa no Brasil, a GAM tem sido
desenvolvida a partir de alguns princípios. O primeiro princípio é o da autonomia,
entendida como ampliação de vida no plano comum, que se dá em relação com outras
pessoas e não solitariamente e que permite a construção de relações com as pessoas
e com as drogas, considerando que a produção de saúde no grupo se dá pela sua
normatividade vital, tal como proposta por Canguilhem (1990), como a capacidade
de criar novas normas de vida a partir dos conhecimentos que são ali desenvolvidos
na imanência da vida mesma.
O segundo princípio é o da cogestão, uma gestão distribuída e compartilhada, no
grupo, do grupo, “isto é, constrói-se na experiência GAM a partir da descentralização
da função do moderador” (PASSOS; PALOMBINI; CAMPOS et al., 2013, p. 32). O
intuito da cogestão é produzir espaços onde os papéis são intercambiáveis e o trabalho
dos participantes na condução do processo tem por objetivo experimentar práticas
inovadoras, dialogando com o paradigma da desinstitucionalização (ROTELLI, 2001).
Um outro princípio ainda é o da transversalidade, que consiste na produção de
deslocamentos e transposições que permitem o diálogo entre diferentes pessoas e seus
saberes com a afirmação desejável das diferenças, de modo a superar as hierarquias
584
4.2 GAM-Garanhuns
A ideia de dispositivo grupal assume um lugar importante para nós. Não toma-
mos a noção de indivíduo, numa perspectiva individualista e privada das práticas
sociais, como pivô da definição de uma estrutura grupal que marca dicotomias como
indivíduo-sociedade, grupo-sociedade (BARROS, 1994) mas tomamos como cami-
nho o reconhecimento e visibilização dos processos de subjetivação em constante
movimento dentro de uma composição de grupalidade (BARROS, 1994) e que se
constitui como um dispositivo.
Partimos da concepção de dispositivo como algo que se assemelha a um novelo
composto por conjuntos multilineares, linhas heterogêneas, processos em constante
desequilíbrio e variações nos quais os enunciados, as práticas, as pessoas (dentre
outros elementos de diferentes naturezas) são como vetores que engendram dife-
rentes direções, sentidos, movimentos e forças (DELEUZE, 1996). Na perspectiva
institucionalista que assumimos, nos preocupamos com a análise das linhas que o
compõe, dos planos de forças que ali se apresentam como condição não apenas de
produção de conhecimento, mas, sobretudo, de transformações sociais que se desdo-
bram no campo e no processo da pesquisa-intervenção, com ênfase nos movimentos
micropolíticos que se produzem a partir do funcionamento grupal.
Em ambas as experiências de pesquisa e trabalho com a GAM, vimos que o
dispositivo é fortemente atravessado: seja pela verticalidade da hierarquia institucio-
nal, que tende a uniformizar condutas a partir de modelos estabelecidos como, por
exemplo, o Guia GAM ser tomado como instrumento padronizado de facilitação e
ou pedagogia dos grupos; seja pela horizontalidade, que tende a homogeneizar os
pontos de vista pelos traços de identidade, por exemplo, a homogeneidade de um
grupo de usuários de álcool e outras drogas.
Ao mesmo tempo, tais uniformizações e verticalizações, na medida em que se
evidenciam através dos encontros, produziam também desestabilizações nas quais o
plano de transversalidade está sempre sob tensão: não há respostas finais, nem como
se acomodar em estereótipos. Entre os estereótipos mais frequentes estão: o lugar
de “dependente”, seja da droga, seja do medicamento ou do tratamento; a “recaída”
como fraqueza pessoal e falha moral; o uso de substância como “fuga da realidade”;
a condição de adição como “doença” que define as pessoas como “adictas”; cul-
pabilização dos usuários como responsáveis pela relação sempre entendida como
“danosa” com as drogas e não como saída subjetiva que eles encontram para viver.
A afirmação das experiências singulares de cada participante permitia ope-
rar questionamentos acerca dos lugares estereótipos acima citados, colocando em
588
Tal colocação fez com que emergisse diversos tensionamentos que corrobora-
ram para uma análise dos lugares de saber e poder, destacando diferentes posições
institucionais entre trabalhadores, usuários e pesquisadores na medida em que reco-
nhecemos desvios dos modelos e regularidades de funcionamento das instituições,
marcando uma diferença relativa ao habitual modus operandi destas instituições em
nossos cotidianos (FERREIRA; FEITOSA; AMORIM, 2020). Por vezes, marcavam
que “nos grupos terapêuticos tem pessoas que eu nunca ouvi a voz!” (usuário partici-
pante se referindo a um dos grupos terapêuticos de que participa no CAPS) enquanto
se afirmava a circularidade das falas e o compartilhamento de experiências dentro do
grupo GAM num movimento de autoanálise do próprio espaço grupal.
Seguimos nosso percurso constantemente nos direcionando ao campo de análise
de nossas implicações, uma vez que “ao colocarmos em xeque os lugares instituídos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 589
Drogas né? No caso porque o que a gente entende por droga seria o quê? A droga
ilícita. Na verdade, né? Porque existem drogas lícitas também, né? Medicamento
é droga também. É tanto que, assim, quando fala “drogaria”, não sei se vocês já
perceberam, “Drogaria”, “Drogaria Globo”, “Drogaria Pague Menos” ... De onde
será que vem esse nome? Drogaria! (Fala de um usuário do serviço participante
do grupo GAM em Natal-RN).
G. afirmou que se sente muito sonolento quando faz uso do Diazepam, o que
atrapalha sua vida laboral. Desenvolveu uma estratégia para lidar com isso. Relata
que quando aparece um trabalho, o que não tem acontecido com muita frequên-
cia, evita tomar o medicamento, pois não consegue dar conta de sua função de
cozinheiro quando está sonolento. Retoma o uso quando não está trabalhando
(Diário de Campo GAM Garanhuns-PE)
Para lidar com a insônia de quando acaba o medicamento, surgiram propostas
fitoterápicas com diversos chás, como capim santo, camomila, mulungu e suco
de maracujá (Diário de Campo GAM Garanhuns-PE).
Assim como as drogas lícitas e ilícitas podem ou não “bater bem com a
gente”, haviam também os “medicamentos que batem com a gente e outros
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 593
8. Para concluir
Por fim, muitos são os desafios pela frente, sobretudo quando consideramos a
perspectiva da integralidade da atenção em saúde mental e a necessidade de sustentar
horizontes clínico-políticos em tudo que fazemos. Nesse sentido, parece-nos impor-
tante considerar a necessidade de pensar essa estratégia com diferentes públicos, de
diferentes idades e condições clínicas e sociais. Como seria valioso a experiência com
adolescentes e jovens? Como seria uma GAM que pautasse de modo mais explícito
as questões de gênero relativas ao uso de drogas e medicamentos (não parece ser a
toa que na APS o GAM foi exclusivamente de mulheres e no CAPS AD foi majori-
tariamente de homens).
Além disso, temos aí uma perspectiva de pensar a gestão autônoma das várias
drogas e não apenas das drogas psiquiátricas nos diferentes contextos de cuidado,
incluindo aqueles que não estão circunscritos aos serviços de saúde. Como pensar
essa estratégia nos contextos dos movimentos e coletivos de pessoas que usam dro-
gas? É necessário, então, ampliar o foco de discussão do medicamento para o uso de
substâncias e para a ampliação do prazer e dos projetos de vida.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 595
REFERÊNCIAS
ALARCON, S. O diagrama das drogas: cartografia das drogas como dispositivo
de poder na sociedade brasileira contemporânea. Tese (Doutorado) – Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.
MELLO, R. P. Cuidar? de quem? de que? A ética que nos conduz. Curitiba: Appris, 2018.
Introdução
A violência contra a mulher pode ser definida como qualquer ato de violência de
gênero que resulte em algum sofrimento para a mulher ou possa gerar consequências
físicas, sexuais, psicológicas e morais, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou
600
Método
Resultados e Discussões
Acolhimento
“Eu me afino com a psicologia histórico cultural [...] e a partir desse olhar [...]
eu já vou na fala dela [mulher em atendimento] captando aspectos, como é uma
teoria que foca muito na subjetividade [...], então eu vou ver o que é que ela está
trazendo ali que é da subjetividade individual que já é um termo da teoria, o que é
da subjetividade social [...]” (Rubi, 27 anos).
O uso de uma teoria que leve em conta aspectos históricos e sociais da nossa
sociedade é fundamental, na medida em que permite uma intervenção diferenciada
fornecendo suporte a esse acolhimento relatado acima. Observa-se que a entrevistada
levou em conta o meio em que a usuária está inserida. Apesar de parecer óbvio a
princípio, isto pode resultar em uma intervenção mais apropriada. De acordo com
os relatos analisados, parece que isso não tem sido usual nas práticas cotidianas da
psicologia que ainda está atrelada à transmissão (ensino) de teorias e práticas que
resultam em um fazer tradicional.
A referência a uma intervenção mais apropriada denota um cuidado com essa
mulher enquanto sujeito de direitos, que precisa de atenção e cuidados de acordo
com sua demanda particular e subjetiva, negada social e historicamente por todo
um contexto patriarcal.
Nessa linha, é relevante voltar ao conceito de patriarcado, que diz respeito à
exploração e dominação que os homens exercem sobre as mulheres, fruto da ideo-
logia machista que foi construída historicamente. O que faz com que os homens
sejam condicionados a dominar e as mulheres a se submeterem a tal dominação
(SAFFIOTI, 2004; CFP, 2013).
Essa dominação exercida tem várias consequências. Dentre elas, destaca-se a
forma como a autonomia da mulher é minada ou destruída nesse processo de vio-
lência. Cria-se um estado de dependência por parte dessa mulher, em relações com
total ausência de cuidado e abusos constantes. Nesse contexto, é imprescindível ações
e abordagens que dialoguem com a retomada dessa autonomia e reconstrução da
mesma. O relato da entrevistada/o seguinte, nos dá uma pista de como é importante
dar atenção à necessidade de se trabalhar a autonomia das mulheres:
“Eu trabalho muito aqui a questão da autonomia da mulher, no sentido de
ouvi-la e buscar que ela tenha seu empoderamento, que ela decida sua questão [...]
de esperar o tempo dela, que eu acho que nesse processo, que é um processo longo,
ela já vai construir os mecanismos dela, no momento que ela pode parar e escolher,
e pensar no que ela quer fazer, ela já está se preparando para estar se modificando”
(Topázio, 39 anos).
É possível apreciar nessa fala aspectos de considerável relevância no acom-
panhamento de mulheres em situação de violência. Verifica-se a preocupação com
a escuta, ou seja, essa mulher tem algo a dizer que lhe foi negado ser dito, seja
pela ausência da escuta, seja pelo impedimento do seu livre exercício de falar, de
se colocar, a partir do seu lugar de vivência de suas dores. Depois, a/o psicóloga/o
mostra que não se trata apenas do fazer a escuta, mas é preciso fomentar o caminho
do enfrentamento, que tem como base o empoderamento dessa mulher, e a coloca
no lugar de poder tomar suas próprias decisões, reconhecendo o direito desse lugar.
606
Os outros relatos das entrevistas que não constam nesses exemplos, citam esse
processo de trabalho, mas não detalham como fazem e nem porque fazem. Nesse
sentido, optou-se por trazer os relatos que buscaram elucidar aspectos necessários
para a efetivação da Política de enfrentamento à violência contra mulheres.
A seguir, os registros serão no sentido da importância da atuação em rede, bem
como os limites e possibilidades da psicologia nesse campo.
Atuação em rede
A rede busca dar conta da violência contra a mulher, tendo em vista sua
complexidade e caráter multifatorial, com base nos eixos de prevenção, combate,
assistência e acesso aos direitos (BRASIL, 2011). O serviço relatado na fala abaixo
explana isso:
“Então a gente é como se fosse um CRAM itinerante. Só que como a gente
não está fixa em um lugar, a gente não pode passar muito tempo acompanhando essa
mulher, mas a estrutura é de um CRAM né, inclusive nossas normas técnicas são as
mesmas” (Rubi, 27 anos).
O serviço em questão vai até os municípios, atende mulheres em situação de
violência, capacita profissionais para esse atendimento, e se articula com a rede,
resultando em um grande avanço para a política de enfrentamento à violência contra
as mulheres, além de torna a atuação profissional desafiadora.
Para operacionalização e eficácia do funcionamento em rede, é imprescindível
a realização de avaliações frequentes dos serviços a fim de ampliá-los para atender
essas mulheres e aprimorar quaisquer entraves existentes (CFP, 2013). O que pode
ser exemplificado nas falas de Topázio e Esmeralda:
“A gente faz fiscalizações nas delegacias, a promotora vai olhar o aspecto jurí-
dico e eu vou olhar o aspecto psicológico e subjetivo, de como é feito o atendimento,
se há algum constrangimento da assistida, como é que está o espaço, se garante o
sigilo das informações, se ela está bem tratada, se está tendo algum assédio, como é
o espaço físico, se há o respeito às religiões dentro de lá” (Topázio, 39 anos).
Embora essa fiscalização seja algo necessário e relevante, vistorias pontuais
não garantem uma boa assistência no campo psicológico para as mulheres nesse
equipamento considerando a ausência de profissionais de psicologia em delegacias
da Mulher como a de Salvador. Sabe-se que no passado esse equipamento já contou
com essa profissional, portanto seria pertinente investigar esse fato. Em outra expe-
riência a profissional menciona:
“A gente senta e discute, com a coordenadora, os casos, e faz os encaminha-
mentos necessários para que essa coordenadora, depois entre em contato, com o
município com os serviços, os casos muito graves a gente encaminha pontualmente
[...] uma relação dos casos, de como foi, quais são os serviços, para que ela entre
contato, e procure saber como é que está, como é que elas estão encaminhando, se elas
estão dando conta [...] e depois a secretaria envia um relatório, para que o município
preencha” (Esmeralda, 30 anos)
Ao fiscalizar e avaliar os serviços onde as mulheres em situação de violência
são atendidas, a/o profissional de psicologia garante a eficácia da política do ponto
de vista oficial e possibilita que as/os demais profissionais que compõem a equipe
sejam devidamente instruídas/os, além de viabilizar que as usuárias não sejam revi-
timizadas. Entretanto, a qualidade do serviço prestado e outros suportes necessários
para enfrentar o avanço crescente do feminicídio parecem não ser viabilizados com
resultados positivos e nem avaliados.
Tendo em vista o reconhecimento da necessidade de melhor articulação dos
serviços, não se pode negar a importância da rede e do papel da/do Psicóloga/o,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 609
dentro desse espaço de atuação. Nesse campo de reflexão, cabe analisar os limites e
possibilidades da práxis nesse contexto.
Para finalizar, temos a última subcategoria que ilustra alguns limites e possibi-
lidades dentro da atuação profissional da psicologia.
A Política de Enfrentamento à violência contra a mulher por si só demonstra
já ser um avanço. Um dos aspectos foi a promoção e a criação de serviços espe-
cializados, entre eles os Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor.
Garantindo o eixo de prevenção e combate descrito na política (BRASIL, 2011).
A fala a seguir mostra um dos instrumentos utilizados na direção da prevenção:
“A gente também faz cartilhas. Por exemplo, a gente construiu esse material aqui,
uma cartilha voltada para os homens, para tentar de alguma forma, trabalhar com
esses homens” (Topázio, 39 anos).
Planejar e elaborar materiais que sejam informativos e educativos, pensando
em um trabalho com os agressores, algo que está preconizado na política, mas que é
raramente visto dentro dos serviços, é uma grande perspectiva futura para o enfren-
tamento à violência contra mulher, visto que trabalhar somente com as mulheres é
insuficiente, já que ela pode sair da relação abusiva, e esse homem ser o agressor
de uma outra mulher.
Além desse instrumento de tratamento no aspecto da prevenção, é preciso um
cuidado especial ao se fazer um encaminhamento. Deve-se ter internalizado que o
encaminhamento é para orientar e conduzir pessoas para outro serviço. Assim, é
importante que seja feito contato com as/os profissionais da instituição a qual a usuá-
ria vai ser encaminhada, para que o atendimento seja garantido. Além de conhecer
os serviços parceiros e suas atribuições (CFP, 2013). O relato a seguir mostra um
desafio de atuar na rede:
“Eu acho que, modos mesmo de compreensão do seu trabalho porque se eu
encaminho uma mulher seria interessante eu ter um retorno, de como ela está [...]
muitas vezes a gente tem que solicitar [...] muitas vezes a gente não recebe esse
retorno” (Cristal, 38 anos).
Eis um outro desafio: ao encaminhar a usuária a outro serviço, não deve signi-
ficar o desligamento total desse caso. É um desafio para a/o profissional, que muitas
vezes pensa que ao encaminhar a usuária, acredita que seu trabalho seguirá de maneira
eficaz. Para ter mais consistência com os encaminhamentos é preciso conhecer a rede,
fazer contato frequente com as/os profissionais dos demais serviços, buscar capacita-
ção, notícias sobre o prosseguimento de determinado caso, fazer relatórios dos casos
que se atende, conhecer a Lei e conhecer a política para as mulheres. Nem sempre
as/os profissionais estão engajadas/os na atuação dessa maneira e nessa amplitude.
Então, faz-se necessário sinalizar e refletir sobre essa questão.
A construção de novas práticas com criatividade, flexibilidade e fundamenta-
ção, além do desenvolvimento de metodologias de atendimento que colaborem para
610
Considerações finais
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, L. Três décadas de resistência feminista contra o sexismo e a violência
feminina no Brasil: 1976 a 2006. Sociedade e Estado, v. 24, n. 2, p. 401-438, 2009.
Introdução
O presente texto foi produzido a partir de uma profunda reflexão acerca dos aten-
dimentos em serviços de psicologia que ocorrem em diferentes contextos. Partimos
da crítica à clínica psicológica tradicional que parece operar uma espécie de “escuta
surda” (BAPTISTA, 1999) aos efeitos da sobrecodificação de fluxos e intensidades
do capitalismo e do racismo no Brasil, em especial os efeitos que se desdobram sobre
o corpo da mulher negra. As táticas e estratégias do poder que se lançam sobre o
corpo feminino preto é um debate amplamente qualificado dentro e fora do Brasil.
Destarte, caminhamos por elucubrações sobre racismo e capitalismo frente à diálogos
bem delineados a fim de vislumbrar as implicações éticas e políticas para a psicologia
em espaços de concretização dos modos de atender e cuidar do corpo feminino preto.
presente nas diversas áreas onde a Psicologia se inseriu, orientada pelos modelos
de atuação europeus e estadunidenses. Essas são questões também problematiza-
das por Rose (2008), quanto ao mito do nascimento da ciência psicológica. Ele
posiciona-a como uma ciência social, uma vez que a construção das tecnologias
de análise dos corpos/comportamento, deu-se sob a égide de uma necessidade
social volta à consolidação do capitalismo industrial. Assim, foi sendo tecido um
conjunto de dispositivos que afirmam a individualidade como uma de suas mais
eficazes ficções na sociedade contemporânea.
Conforme Morais e Lacerda Jr (2019), o capitalismo condicionou o apareci-
mento da categoria indivíduo como unidade social na vida moderna, ou seja, não
estava presente somente no modo de reprodução da vida material, mas na experiência
subjetiva de cada pessoa no mundo. E a Psicologia como saber científico cumpriu
a função de legitimar essa nova experiência subjetiva. Nesse aspecto, o desenvol-
vimento dessa nova ciência foi marcado pela legitimação das relações capitalistas,
com a interiorização da intimidade, e por um intenso processo de individualização.
A emergência da Psicologia como ciência só foi possível por ser compatível com
essa formação social capitalista.
Para Antunes (2017) a presença de correntes de pensamento europeu, tais
como o liberalismo e positivismo no século XIX foram elementos propulsores
para o delineamento do estatuto de ciência autônoma que foi conferido à Psicolo-
gia durante a passagem do século XIX ao século XX, originalmente na Europa e
nos Estados Unidos (ANTUNES, 2017). No Brasil Republicano, a Psicologia – e
outras disciplinas sobre o indivíduo – foi convocada a contribuir com a produção
de soluções para problemas em diversas áreas como educação, saúde, organização
do trabalho.
Em um contexto no qual o país intensificava seus processos de urbanização e
industrialização, Psicologia consolidou-se como ciência do indivíduo. De acordo com
Figueiredo (2008), ela alicerçou-se em princípios liberais que delinearam a expe-
riência de uma subjetividade privatizada, ao reconhecer os indivíduos como livres,
diferentes e capazes de ter pensamentos e desejos independentemente dos outros
membros da sociedade. O pensamento liberal, ao partir da definição de ser humano
como “indivíduo”, centraliza tudo no “eu”, no sujeito da proposição. O liberalismo
se define por duas dimensões centrais, em primeiro lugar, aquele que é um, singular,
único e a segunda, é que ele é um, mas não tem nada a ver com o outro, isto é, ele é
isolado, fechado sobre si mesmo (GUARESCHI, 2008, p. 29).
Certamente tais acontecimentos são correlatos ao quadro geral das ciências
sobre os homens, impulsionando novas práticas de governo das populações profun-
damente marcadas por uma concepção eurocentrada das instituições, das pessoas
e das coisas. No cenário atual, no qual vigora a governamentalidade neoliberal, é
fomentada a produção de subjetividades organizadas e mantidas pela individualização
das responsabilidades do ser no mundo, do homo œconomicus (HAMAN, 2012). À
vista disso se estruturam mecanismos que se esforçam para assegurar que os sujeitos
assumam valores baseados no mercado em todas as suas práticas, reunindo quanti-
dade significativa de “capital humano” para tornarem-se “empreendedores de si”.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 617
205 Neste texto consideramos a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, onde se considera
que pessoas negras são a soma de pretos e pardos, segundo critérios de autoidentificação.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 619
206 Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans, queers, pansexuais, agêneros, pessoas não binárias e intersexo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 621
A categoria cor é orientada pela concepção de raça, envolvendo por sua vez
discursos classificatórios sobre qualidades e característica. De modo interseccional,
incluindo os marcadores de gênero e classe social, os autores destacam que a raça é
uma categoria que então serve para classificar, hierarquizar e localizar determinadas
pessoas na sociedade. Nessa análise, o racismo é compreendido como um dos prin-
cipais impulsionadores da desigualdade no Brasil, produzindo sofrimento psíquico
às pessoas negras e contribuindo para naturalizações dessas injustiças sociais.
Em nosso país, assim como em outros da América Latina, a pobreza assume
uma das principais manifestações da questão social, possuindo relações diretas com
as raízes coloniais, escravocratas e com o sistema de monoculturas latifundiárias,
que imbrica o antagonismo entre classes, as dimensões étnico-raciais e de gênero
(MENDES; COSTA, 2018).
A pobreza tem cara no Brasil, exigindo que formulação de políticas públicas
considere essa condição como elemento de grande impacto nas condições concretas
de vida dos sujeitos, para que a população negra acesse os serviços públicos e haja o
enfrentamento coletivo dessas contradições, pois “o Estado brasileiro [...] quando não
mata, mantém a maioria da nossa população (negra) em condições de indigência mate-
rial e cultural, refém do paternalismo assistencialismo” (CARNEIRO, 2011, p. 93).
Entretanto, o marcador de classe social não é suficiente para analisar por si
só as transversalidades das situações de desigualdades sociais, como os modelos
de Psicologia social-comunitária privilegiavam nas décadas de 1960 e 1970. Uma
vez que é uma condição que afeta “mulheres, negros e negras, gays e lésbicas,
imigrantes, minorias étnicas através de sistemas distintos e inter-relacionados de
poder, é exigido de nós – profissionais e pesquisadores que advogam em favor da
equidade – uma ampliação de nossas leituras acerca dos elementos psicossociais”
(MAYORGA, 2014, p. 225). Incorporar como epistemologia o feminismo desco-
lonial na academia e na ciência – e no dia a dia dos serviços de atenção e cuidado
psicossocial – é romper com as fragmentações e assumir a contribuição com os
estudos interseccionais que também desmedicalizam quando desnaturalizam as
diferentes subalternizações que as mulheres vivenciam.
Para Mendes e Costa (2018) esse é um debate que vêm avançando nos estudos
da Psicologia, porém ainda se presencia a falta de legitimidade da categoria raça no
ensino e pesquisa na formação da psicóloga e do psicólogo, o que dificulta também a
abordagem das relações raciais no cenário técnico da materialização das práticas. Con-
tudo, Meurer e Strey (2012) salientam a importância das mudanças paradigmáticas
que emergiram de modo mais intenso nas décadas de 1970 e 1980, como a construção
de outras bases epistemológicas da Psicologia Social, sendo nesse período fundada a
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), que mesmo acompanhando
a tendência europeia, sinaliza para diferenças consistentes e próprias aos países da
América Latina, esboça-se a criação de uma nova Psicologia Social.
Contudo, a Psicologia no Brasil, com seus sessenta anos de regulamentação,
ainda é uma disciplina com formação e exercício majoritariamente branca, tendo
sua produção de conhecimento como reflexo dessa condição. Os currículos de psi-
cologia nas faculdades/universidades brasileiras são saturados do olhar colonialista,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 623
É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra
em igbo na qual sempre considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um
substantivo que em tradução livre, quer dizer “ser maior do que o outro”. Assim
como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo prin-
cípio de nkali: como elas são contadas e quantas são contadas, depende muito de
poder [...] O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa,
mas de fazer que ela seja sua história definitiva (ADICHIE, 2019, p. 22-23).
Considerações finais
REFERÊNCIAS
ADICHIE, C. N. O perigo da história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível e luto? Rev. e Trad.
Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
HAIDER, A. Armadilhas de identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo:
Veneta, 2019.
MAYORGA, C. Aborto: por que a autonomia das mulheres incomoda tanto? Boletim
UFMG, n. 1732, ano 37, 2014.
ROSE, N. Psicologia como uma ciência social. Psicol. Soc., v. 20, n. 2, p. 155-
154, 2008.
SAFATLE, V.; SILVA JR., N.; DUNKER, C. Neoliberalismo como gestão do sofri-
mento psíquico. Editora Autêntica: Belo Horizonte, 2021.
Introdução
Pois se trata de uma política pública, cujas intervenções se dão essencialmente nas
capilaridades dos territórios. Essa característica peculiar da política tem exigido
cada vez mais um reconhecimento da dinâmica que se processa no cotidiano das
populações (BRASIL, 2004, p. 16).
O tornar possível à existência, explicitado pelas autoras pode ser uma forma
de manobrar as disputas entre a memória oficial do espaço urbano e as memórias
colocadas como subterrâneas, marginalizadas (POLLAK, 1989), para ampliar as
análises locais sobre sua própria formação e gestão urbana, ao invés de reiterar os
discursos oficiais. O processo de subjetivação, de se tornar algo, complexificam-se aos
processos de dessubjetivação, de deixar de ser e viver, para ser e viver outro, tateando
assim as governamentalidades no território (SILVA; HUNING; GUARESCHI, 2020).
De acordo com Guareschi et al. (2007), é um complicador quando o conceito de
vulnerabilidade social é associado ao indivíduo apenas e não aos fatores que suscitam
a falta de acesso a bens e serviços, caracterizando a vulnerabilidade. Outro ponto é
que o conceito de vulnerabilidade não pode ser reduzido à situação de pobreza, mas
também pelas relações sociais racializadas, de orientação sexual, gênero e etnia.
Advertem sobre a naturalização dessa condição por meio de discursos que elevam a
responsabilidade individual, e a relevância de investigar a construção dessa narrativa
que leva essas pessoas a serem caracterizadas como vulneráveis.
Apesar da política de assistência social apontar que nos territórios há potencia-
lidades e não somente vulnerabilidades e riscos (BRASIL, 2011) um dos principais
objetivos dos acompanhamentos psicossociais é propiciar “a construção de novas
referências a serem vivenciadas nos espaços familiares e comunitários (BRASIL,
2011, p. 51)”, portanto, o cuidado está em não propagar uma naturalização desses
territórios como perigosos, pois segundo Lemos; Cruz; Souza (2015) os saberes psis
alinhados aos parâmetros médico-psicologizantes também agem em nome da redu-
ção dos riscos, perigos e crises sociais em uma sociedade de segurança, reduzindo a
multiplicidade dos modos de vida em práticas universalizadoras e padronizadoras.
E ainda Deltmann, Aragão e Margotto (2016) chamam atenção para que a Psi-
cologia no SUAS não se reduza a atendimento individuais, e a padronizações que
privatizam as práticas coletivas, bem como a necessidade em ultrapassar o imaginário
e encomenda de funções diagnósticas e terapêuticas, fundadas em um especialismo
psi como um expert.
não circular entre ela, por meio de controles que deveriam possibilitar a vida e saúde
das populações (FOUCAULT, 2008).
Teodoro (2019) reitera que o local escolhido para a instalação dos equipamentos
socioassistenciais como o CREAS é onde estão as famílias visualizadas como vulne-
ráveis e que vivenciam as desigualdades socioterritoriais. Dentre as desigualdades,
enumera-se: a redução da taxa de natalidade, a mulher como provedora da família,
o aumento da população idosa e pessoas em situação de rua, dos níveis de pobreza,
desemprego, baixa escolaridade e fluxo migratório.
Pereira (2007) e Teodoro (2019) expõem que descentralização se embasa na
noção de territorialização, como a localização dos centros e entidades socioassis-
tenciais em territórios e a realização de ação integradas. Sendo assim, quanto maior
densidade demográfica em um município, maior será a necessidade de mapear grupos
homogêneos, em municípios com menor índice populacional sua cobertura poderá ser
intermunicipal. Os dados censitários do Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística
(IBGE) quanto ao quadro demográfico e indicadores socioterritoriais são utilizados,
mas é desafiador definir classificações diante das diversidades históricas, geográficas,
econômicas e culturais brasileiras. Os CREAS são localizados em espaços que são
verificados pelo poder público municipal com grande incidência de casos de violência.
Desse modo, o mapeamento de grupos homogêneos como forma de enfrenta-
mento da intensa densidade demográfica ocorre para que a política pública consiga
planejar metodologicamente suas atuações. Para Deleuze; Parnet (1998, p. 44). o
agenciamento produz enunciados, agenciar é “estar no meio, sobre a linha de encontro
de um mundo interior e de um mundo exterior”. No agenciamento, há linhas que se
atravessam: a linha de fuga ou ruptura conjuga os movimentos de desterritorialização
e desestratificação; a segunda linha, molecular, quando as reterritorializações impõem
voltas e estabilizações quanto a desterritorialização operada; e a linha molar, quando
as reterriorializações se acumulam e se organizam (DELEUZE; PARNET, 1998).
Nesse aspecto os territórios existenciais não são estáveis e sim móveis, desterrito-
rializam e desestabilizam. Essa contribuição de Deleuze e Parnet (1998) contribuem
para se pensar a produção da diferença no SUAS para que o enfrentamento as reter-
ritorializações sejam pujantes nos processos de subjetivação.
os limites e possibilidades dessas ações. Chama atenção que na Amazônia onde essas
disputas pela terra são intensas e que interferem nas coletividades e nas desigualdades
sociais e econômicas, não estarem impressas de forma ampliada nos documentos
oficiais do SUAS que orientam as atuações profissionais.
Para Santos (2011), o território é onde desemboca todas as ações, todas as
paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história
do sujeito plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência. Afirma
que nas relações com o dinheiro globalizado, percebe-se conflitos e disputas, porque
o dinheiro global é fluido, abstrato, mas também despótico, impondo normas, adapta-
ções, racionalidades próprias do empresariado e dos governos mundiais. A presença
das empresas globais torna-se um fator de desorganização, desagregação, por meio
de interesses individualistas e particularistas.
Becker (2011) nos apresenta os cenários de ocupação (invasão) da Amazônia
nas décadas de 1970 e 1980 como processo repleto de sangue e lágrimas, marcando
mudanças em termos geopolíticos. Segundo a autora, até 1950 e 1960 a Amazônia
era vista como uma grande ilha, praticamente mais voltada para o exterior do que ao
território nacional. A conectividade prometida se daria, por exemplo, com a construção
das estradas. Uma outra mudança também seria de ordem econômica, ampliando de
uma área de extrativismo para exploração mineral e agropecuária. Isso também impli-
cou em mudanças de povoamento no que concerne ao processo de urbanização. Em
suma, foram produzidas percepções diversas a nível global, nacional, local e regional.
Tais analíticas desembocam na assistência social como problematizações da
complexidade multidimensional que envolve o território, sobretudo na Amazônia e
dos interesses do capital globalizado. Os conflitos de terra, a presença dos grandes
empreendimentos socioeconômicos viola os direitos dos povos originários como
exposto com os indígenas Tembé e pensar as implicações da atuação do SUAS e
especificamente do CREAS é salutar nesse cenário, seja pelos limites da política nesse
campo, seja pela ampliação dos debates necessários para apropriação e composição
de luta pela terra na garantia desse direito social.
Considerações finais
O território em si, para mim não é um conceito. Ele só se torna conceito utilizável
para análise social quando consideramos a partir do seu uso, a partir do momento
em que o pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam (p. 22).
Destarte, o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. Logo, ele é uma
produção deste (ibid, 2000). Assim, faz-se necessário validar expressões subjetivas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 641
deste espaço através do viver local e não minimizar tais elementos, no sentido da
concretização desse conceito na sua construção da vida diante das relações de poder,
onde, justamente, de produz tais desigualdades em suas várias faces.
Compreender tais complexidades que envolvem o conceito é problematizar
estudos que tangem as especificidades encontradas nos diferentes espaços territoriais
de uma determinada região. Quando falamos na Amazônia, essas relações de poder
muito emergem diante da exploração, tais como os conflitos de terra, os grandes
empreendimentos, a violação dos direitos dos povos originários, tais como dos/as
defensores/as da garantia dos direitos, dentre outros. E no que tange a Psicologia
diante de tais as implicações frente a atuação do SUAS?
Para a Psicologia, estar ao lado do enfrentamento às diversas formas de pro-
duções de sofrimento é seu dever ético-político (CFP, 2005). É agir diante da demo-
cratização do Estado e das subjetividades, em prol de produção de saúde psíquica e
bem-viver aos povos diversos.
REFERÊNCIAS
BAREMBLITT, G. Compêndio de Análise Institucional. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1992.
GUARECHI, Neuza; REIS, Carolina D.; HUNNING, Simone M.; BERTUZZI; Letí-
cia D. Intervenção na condição de vulnerabilidade social: um estudo sobre a produção
de sentidos com adolescentes do programa do trabalho educativo. Estudos e Pesquisas
em Psicologia, n. 1, ano 7, p. 17-27, 1. sem. 2007, Rio de Janeiro.
SILVA, Wanderson Viton Nunes da; HUNING, Simone Maria; GUARESCHI, Neuza.
Da Vulnerabilidade como Condição de Saber nas Pesquisas em Psicologia Social.
Psicologia: Ciência e Profissão, v. 40, p. 1-16, Distrito Federal, 2020.
THURY, João Paulo Carneiro; RIBEIRO, Érika Renata Farias. Tensões Territoriais:
os encontros e os conflitos na aldeia dos Tembé Turé-Mariquita em Tomé-Açu, Pará.
Boletim Amazônico de Geografia, v. 3, n5, p. 94-111, jan./jun. 2016, Pará.
O INTOLERÁVEL DAS COMUNIDADES
TERAPÊUTICAS BRASILEIRAS:
chamado a um grupo de informações
sobre as comunidades terapêuticas
Túlio Kércio Arruda Prestes
Pablo Severiano Benevides
Paulo Henrique Albuquerque do Nascimento
Introdução
Nenhum de nós pode ter certeza de escapar à prisão. Hoje, menos do que
nunca. Sobre nossa vida do dia-a-dia, o enquadramento policial estreita
o cerco: nas ruas e nas estradas; em torno dos estrangeiros e dos jovens.
O delito de opinião reapareceu: as medidas antidrogas multiplicam a
arbitrariedade. Estamos sob o signo do “vigiar de perto”. Dizem-nos que a
justiça está sobrecarregada. Nós bem o vemos. Mas e se foi a polícia que a
sobrecarregou? Dizem-nos que as prisões estão superpovoadas. Mas, e se foi a
população que foi superaprisionada? (FOUCAULT, 2006a, p. 2, grifo nosso).
A citação que trazemos como epígrafe deste trabalho está contida na publicação
“Manifesto do GIP” (FOUCAULT, 2006a) publicada em 1971 e assinada por J. M.
Domenach, M. Foucault e P. Vidal-Naquet, correspondendo ao manifesto de criação
do Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP). Esta publicação corresponde a um
manifesto mimeografado que foi distribuído à imprensa e todos os presentes na capela
Saint-Bernard de Montparnasse, no momento em que os militantes da “esquerda
proletária” que estavam presos faziam greves de fome para reivindicar a condição
de presos políticos (FOUCAULT, 2006a; ERIBON, 1990).
Nesse ínterim, a criação do GIP ocorre quase 2 anos após o “Maio de 1968”, e
é um exemplo da efervescência política que ainda ecoava de 1968, em um contexto
em que a “Esquerda Proletária” (Gauche Prolétarienne) é banida pelo governo fran-
cês e muitos membros do partido, incluindo o editor do jornal “A causa do povo”
(La cause du peuple), são presos (ERIBON, 1990; KARLSEN; VILLADSEN,
2014). Segundo Karlsen e Villadsen (2014) a prisão dos membros da “esquerda
proletária” fez com que as atividades políticas do grupo passassem a ocorrer dentro
da prisão. Inicialmente o grupo realizou greve de fome como forma de reivindicar
serem reconhecidos como presos políticos, o que lhe concederiam maiores direitos.
No início a ação não surtiu a repercussão esperada, entretanto ao longo do tempo
as greves de fome passaram a ser maiores e mais sistemáticas, incluindo os pre-
sos comuns no movimento, reivindicando o direito de que todos os presos, sem
646
exceção, fossem considerados presos políticos, “uma vez que qualquer violação das
leis instituídas pela burguesia era agora considerada um ato político” (KARLSEN;
VILLADSEN, 2014, p. 10).
Diante desta situação, Daniel Defert teria convidado Foucault a constituir uma
Comissão de Inquérito, entretanto, por problematizar o caráter judiciário desta expres-
são, Foucault decidiu utilizar a expressão “Grupo de Informação” para definir o grupo
(FOUCAULT, 2006a). O GIP foi singular não simplesmente pela mudança na nomen-
clatura, mas, sobretudo, por sua forma de funcionamento, ao buscar ser um grupo de
relações horizontais, não possuindo um líder específico, e agindo de modo a potencia-
lizar as vozes dos presidiários sem, contudo, assumir o lugar de falar destes.
Com efeito, a ideia do GIP era tornar visível, sobretudo, o que existia de intolerável
na vida no interior das prisões: as violências, os castigos, as violações de direitos, a
precarização da vida humana. Ora, mas o que o GIP, criado no início da década de 1970
poderia ter de comum com o que vivemos na contemporaneidade no Brasil? Além disso,
qual a vinculação fazemos deste com as Comunidades Terapêuticas (CTs) brasileiras?
Ora, na própria epígrafe que trazemos no início, os membros do GIP já alerta-
vam que as ações de repressão às drogas potencializam às arbitrariedades e levam
ao aprisionamento em massa (FOUCAULT, 2006a). Isso é uma realidade facilmente
constatada também por nós brasileiros quando – segundo dados do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (DEPEN, 2021) – no ano de 2021 um total
de 219.398 pessoas, o que representa 29,41% da população carcerária brasileira, tem
como tipo penal crimes enquadrados pela lei de drogas. Afora toda essa população
carcerária, gostaríamos nesse trabalho de chamar atenção para uma outra população
que se encontra confinada em CTs devido a problemas relativos ao uso abusivo e/ou
nocivo de drogas. Sobre o tamanho dessa população não temos dados precisos, e
muito menos um conhecimento preciso de que tipo de violências podem estar sendo
submetidas. O que nos dá pistas para pensar que se há uma vontade de nada saber sobre
o que acontece as prisões, esse desinteresse sobre o que acontece no interior das CTs
parece ser ainda maior.
Os membros do GIP convocavam-nos a produzir uma “intolerância ativa”,
para que nos tornássemos intolerantes com o que não pode, em hipótese alguma, ser
tolerado: “que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse de ser aceito”
(FOUCAULT, 2006b, p. 4). Em outra perspectiva, Butler (2018, p. 31) convoca-nos a
perceber que a vida possui uma condição de precariedade que nos torna responsáveis
e implicados pelas vidas uns dos outros: “A precariedade implica viver socialmente,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 647
isto é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do
outro. Isso implica estarmos expostos são somente àqueles que conhecemos, mas
também àqueles que não conhecemos”. Nesse ínterim, Butler (2018) descreve como
diferentes enquadramentos de poder determinam que vidas podem ser reconhecíveis
como vidas, e que vidas continuam existindo sem serem reconhecidas como vida, sem
serem passíveis de luto. Tentando pensar junto desses autores poderíamos acrescentar
os questionamentos: que vidas são passíveis de nossa intolerância ativa? Que vidas são
ou não passíveis de nossa indignação mesmo quando submetidas as piores sujeições?
Assim, da mesma forma que o Grupo de Informações sobre as Prisões buscava
discutir o problema da penalidade, ou do sistema penal, a partir do que acontecia nas
prisões como “subsolo do sistema penal, seu depósito de entulhos” (FOUCAULT,
2012, p. 137), seria necessário hoje realizar também um Grupo de Informações das
Comunidades Terapêuticas (GICT) e problematizar o problema da penalidade a partir
da internação (voluntária, involuntária ou compulsória) dos usuários de substâncias
psicoativas nesses espaços. Assim, se Foucault utilizou-se do GIP para a partir das
prisões levantar questões políticas de uma perspectiva diferente daquela encampada
por meio da análise da luta de classes, ou seja, da luta entre proletariado e burguesia,
algo semelhante poderá ser feito a partir de um GICT. De maneira que nosso intuito
com esse trabalho seria fazer um chamado público à construção de um Grupo de
Informações sobre as Comunidades Terapêuticas, ou, pelo menos, ressaltar a neces-
sidade de sabermos o que se passa no interior desses lugares destinados a receber
indivíduos que fazem uso nocivo de drogas, algo que de tão intragável a sociedade
em que vivemos prefere não ver, não saber, não se indignar.
Para a realização desta pesquisa nos serviremos de dois relatórios de inspeção
de CTs: o primeiro corresponde ao “Relatório de Inspeção Nacional das Comu-
nidades Terapêuticas” (CFP et al, 2017) e o segundo corresponde ao “Relatório
Diligência de Instrução na Comunidade Terapêutica ‘Desafio Jovem Maanaim’”
(MNPCT et al., 2020).
Antes de apresentarmos os relatórios de inspeção das CTs no Brasil e analisarmos
o porquê esses espaços terem -se constituído como locais de produção do intolerável,
é necessário inicialmente remontar brevemente ao contexto de emergência das CTs e
apresentar formas de entendê-las e/ou caracterizá-las.
207 Este observatório corresponde a uma organização da União Européia, sendo sediada em Lisboa, onde
recebe o nome “Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência”. Entretanto, a grande maioria
das publicações do observatório é em inglês, sendo também mais frequente a utilização da sigla EMCDDA
– European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction – para se referir ao observatório.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 649
Com efeito, as CTs podem ser entendidas como heterotopias de desvio, ou seja,
esses lugares outros em que os sujeitos que nossa sociedade acredita que fazem um
uso problemático de drogas, que não conseguem se autodisciplinar, são enviados para
aprenderem a se autogovernar. Lugares propositalmente à margem, lugares distantes,
de difícil acesso, em que o sujeito fica afastado da sua família, de seus amigos, de sua
comunidade. Lugares que, em geral, as pessoas preferem não saber o que acontece
exatamente, preferindo acreditar que dever algo de comunitário, de terapêutico, de
protetivo sendo realizado, sem, contudo, conhecer esta realidade.
De modo distinto, este trabalho pretende ser um convite justamente a saber o
que realmente se passa nesses lugares, o que acontece com estas pessoas. A saber,
afinal, quantas violências podem estar sendo engendradas com a justificativa de uma
terapêutica, de um cuidado e da proteção. Nesse sentido, este trabalho apresenta-se
como um chamado a criação a um Grupo de Informações sobre às CTs que possa
criar espaços de escuta e de ampliação das vozes daqueles que estão ou já passaram
por uma internação em CT. Um primeiro passo, ainda que pequeno, nessa direção é
explicitar, tornar visível o que outros já constataram sobre o funcionamento destas
CTs, por esse motivo, nos propomos a analisar o que os relatórios de inspeção nacio-
nal trazem sobre o modus operandi destas. Entretanto, antes de analisarmos esses
relatórios, convém apresentar como as CTs vem ganhando destaque nas políticas
públicas sobre drogas brasileiras.
O segundo ponto é que parece também ser em nome desse pressuposto mencio-
nado de “[...] construção de uma sociedade protegida do uso de drogas” (BRASIL,
2019, p. 3) que se justifica o estabelecimento de medidas de internamento, em espe-
cial, em CTs. É também a partir da noção ampla e imprecisa de proteção, que a PNAD
estabelece como primeiro objetivo “Conscientizar e proteger a sociedade brasileira
dos prejuízos sociais, econômicos e de saúde pública representados pelo uso, pelo
uso indevido e pela dependência de drogas lícitas e ilícitas” (BRASIL, 2019, p. 5).
Com efeito, o pressuposto assumido pela nova PNAD está em total sintonia
com o pressuposto idealista das CTs, de que a CT poderia proporcionar ao indivíduo
a convivência em um ambiente livre de drogas para que o usuário ao sair da CT possa
também estar, ele mesmo, livre das drogas. Não á toa, como mencionado anterior-
mente, essa nova PNAD cita diretamente as CTs como dispositivos pertencentes
a rede de atenção psicossocial, a tal ponto que um dos objetivos expressos seria
“Regulamentar, avaliar e acompanhar o tratamento, o acolhimento em comunidade
terapêutica [...]” (BRASIL, 2019, p. 7).
Portanto, diferentemente da PNAD de 2006 que em seu artigo 9º estabelecia
que “É vedada a realização de qualquer modalidade de internação nas comunidades
terapêuticas acolhedoras” (BRASIL, 2006, s.p.), a nova PNAD não só regulamenta
o acolhimento em CTs como estabelece que tratamento do usuário de substâncias
psicoativas em CT passa a ser um direito resguardado por tal política. Ademais, é
curioso que seja sempre em nome da consideração de uma suposta “visão holística
do ser humano” que tais dispositivos passam a ser reconhecidos como fazendo parte
de rede de atenção psicossocial:
Desta forma, ainda que o aceno às internações nas CTs já existisse desde a
PNAD de 2006, a partir de 2011, com a entrada das CTs na RAPS, e, sobretudo,
com a promulgação da nova PNAD de 2019, passa a ocorrer um maior endosso e
financiamento desse modelo de tratamento manicomial, que se baseia na privação
da liberdade do indivíduo como modo de tratamento.
[...] que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse de ser aceito.
Nossa inquirição não foi feita para cumular conhecimentos, mas para aumentar
nossa intolerância e fazer dela uma intolerância ativa. Tornemo-nos intolerantes
a propósito das prisões, da justiça, do sistema hospitalar, da prática psiquiátrica,
do serviço militar, etc. (FOUCAULT, 2006b, p. 4).
208 No relatório destaca-se que as informações sobre a data e os nomes das Comunidades Terapêuticas a
serem investigadas foi mantido em sigilo, de modo que as instituição não foram avisadas previamente, no
intuito de que os profissionais de fato conseguissem observar o cenário mais verossímil do que acontecia
no dia a dia dessas instituições.
656
As pessoas internadas não podem realizar chamadas, apenas receber, o que pre-
judica sobremaneira as possibilidades de comunicação. Foram obtidos relatos de
que os funcionários mentiriam para familiares que tentaram ligar para os internos,
dizendo que estes não queriam falar com aqueles, induzindo a pessoa a não mais
telefonar e isolando o interno ainda mais de seus entes queridos (SP 02 – Recanto
Vida Nova – Mairinque) (CFP et al., 2017, p. 58).
as CTs são tidas como parte de rede de atenção à saúde, pois estas são entendidas
como dispositivos que possibilitariam um tratamento holístico e integral do ser
humano. Na prática, o que os relatórios destacam é que esse “eixo teológico” resulta
na obrigatoriedade de realização de atividades religiosas como parte do tratamento,
a violação da liberdade de religiosa (com a proibição de que os usuários professem
outro tipo de fé diferente da seguida pela CT) e a violação da diversidade sexual e
de identidade gênero (CFP et al., 2017; MNPCT, 2020, s.p).
Finalmente, o 5º intolerável diz respeito a violação de direitos humanos ser algo
comum em todas as CTs inspecionadas. Os intoleráveis apresentados anteriormente
já possibilitam antever uma série de violação aos direitos humanos (violação do
direito de ir e vir, violação da liberdade religiosa, violação da diversidade de orien-
tação sexual e identidade de gênero, utilização de trabalhos forçados, tratamento
degradante, etc.), mas, é necessário insistir que a lista parece ser ainda mais extensa,
incluindo-se também a prática de tortura.
Com efeito, sob a insígnia legítima do “cuidado” uma das formas mais cruéis e
degradantes de tratamento são utilizados, a tortura. Em “Quadros de Guerra: quando
a vida é passível de luto?”, Butler (2018) utiliza-se dos conceitos de precariedade,
responsabilidade e de ser passível ou não de luto para analisar como uma vida deixa
de ser reconhecida como vida humana. Diante de tamanho “intolerável” que é a
tortura, para relacionarmos a expressão utilizada no GIP, Butler (2018, p. 64) afirma
a necessidade de “[...] refletir sobre por que a oposição à tortura é obrigatória e
como podemos extrair um importante sentido da responsabilidade global de uma
política que se oponha ao uso da tortura em todas as suas formas” (BUTLER, 2018,
p. 64). Com efeito, a autora destaca como as relações de poder estabelecem operações
diferenciais entre uma vida humana e uma vida inumana, posicionando a prática da
tortura como uma das formas mais violentas de degradação da vida humana, que
desqualifica alguém como humano e submete-o ao horror da tortura (idem, ibidem).
4. Considerações finais
Não cabe a nós sugerir uma reforma. Queremos apenas fazer conhecer
a realidade. E fazer conhecê-la imediatamente, quase a cada dia, pois o
tempo urge. Trata-se de alertar a opinião e mantê-la em alerta. Buscaremos
usar todos os meios de informação: cotidianos, hebdomadários, mensais.
Apelamos, portanto, a todas as tribunas possíveis (FOUCAULT 2006a, p. 2).
660
Diante de tudo o que foi apresentado nos relatórios de inspeção que mais pode-
mos concluir sobre o que acontece no interior das Comunidades Terapêuticas, se
não que estas não parecem ser nem “comunidades” nem tampouco “terapêuticas”?
A partir do que foi apresentado sobre o modus operandi das Comunidades
Terapêuticas brasileiras estas parecem em muito se distanciar da formulação de
Comunidade feita por Maxwell Jones, tido como fundador dessa modalidade de
tratamento, ou por Georges de Leon. Maxwell Jones supunha 1) relações horizon-
tais entre os membros da comunidade; 2) ambiente democrático; 3) participação da
família do usuário como membros ativos das decisões e procedimentos terapêuticos
realizados no interior da CT; 4) e inserção na comunidade como eixos centrais do
tratamento. Nas CTs brasileiras o que observamos a partir dos relatórios de inspeção
são 1) estabelecimento de hierarquias e relações verticais; 2) seguimento rígido de
regras, cujo desrespeito podem ocasionar castigos, tortura e/ou tratamento cruel
e degradante; 3) exclusão e incomunicabilidade com a família; 4) afastamento da
comunidade exterior seja pela proibição do direito de ir e vir como por meio de
estratégias de contenção física e medicamentosa, retenção de documentos de iden-
tificação e cartões bancários. Ademais, como vimos a proposta de CT de Maxwell
Jones parece emergir como contestação da falibilidade do modelo asilar, enquanto
no Brasil a CTs caracterizam-se justamente por seu caráter de assistência asilar.
Finalmente, se não são nem comunidades nem terapêuticas o que parece lhes
mais adequado a não ser denominadas de manicômios, de máquinas de produção
do horror e do intolerável que, entretanto, passam despercebidas com a escusa de
estarem produzindo um cuidado holístico? Como conclamam os membros do GIP,
urge que tornemos essa intolerância em uma intolerância ativa, daí, portanto, o
chamamento a um Grupo de Informações sobre as Comunidades Terapêuticas para
saber o que de fato acontecem nesses lugares, e rejeitarmos quaisquer situações em
que a vida esteja sendo aviltada.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 661
REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. D. C. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil.
2. ed. rev. e aum. 5 reimp. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010.
ERIBON, D. Michel Foucault 1926-1984. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Introdução
A Escola dos Annales, durante o século XX teve três grandes viradas: econô-
mica, sociológica e antropológica. Cada um destes momentos implicou em transfor-
mações específicas nos conceitos e metodologias face a questões postas à História
e a quem realizava os estudos históricos, no bojo de interrogações a respeito de
666
O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da
qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 667
e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental,
unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2008b, p. 7).
Ditos por pessoas ordinárias pegas a um só tempo pelo poder e por seu déficit
de saber, enunciam a mágoa, a pena, a raiva ou as lágrimas: são palavras de
sofrimento. Encontrá-los, retranscrevê-los, é uma primeira coisa, extremamente
importante: é tão raro em história escutar as falas. Apreender essa fala e traba-
lhá-la é responder à preocupação de reintroduzir existências e singularidades
no discurso histórico e desenhar, a golpes de palavras, cenas que são de fato
acontecimentos (FARGE, 2011, p. 16).
Tal via mostra-se de acordo com o olhar genealógico, o qual, segundo Foucault
(2012, p. 267-268), consiste no “[...] acoplamento do conhecimento com as memórias
locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse
saber nas táticas atuais”. Pela genealogia foucaultiana, é essencial estar atento aos
pormenores que constituem os acontecimentos, a fim de não perder de vista os efeitos
de poder gerados por saberes tidos como oficiais, científicos, legítimos.
668
Os historiadores narram tramas, que são tantas quanto forem os itinerários tra-
çados livremente por eles, através do campo factual bem objetivo (o qual é
divisível até o infinito e não é composto de partículas factuais); nenhum histo-
riador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido
e não pode passar toda a parte; nenhum desses caminhos é o verdadeiro ou é a
História. Enfim o campo factual não compreenderia lugares que se iria visitar e
que chamariam de acontecimentos: um fato não é um ser, mas um cruzamento
de itinerários possíveis (VEYNE, 2008, p. 45).
Por isso, trazer à tona os saberes locais, em vista, por exemplo, das pequenas
narrativas dos que compõem as cidades nas margens, também é uma forma de pro-
duzir a história local, que diz respeito às lutas do presente. Desse modo, a genealogia
pode ser tomada como “[...] um empreendimento para libertar da sujeição os saberes
históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um
discurso teórico, unitário, formal e científico” (FOUCAULT, 2012, p. 270).
Conforme sugerido por Ecléa Bosi (2003, p. 20), que “[...] a memória parte
do presente, de um presente ávido pelo passado”, abrigando caminhos em curvas
e desvios que chegam a nós pela fonte oral, a qual, de acordo com a autora, “[...]
mais sugere que afirma”. A noção do passado como relíquia sagrada a ser rememo-
rada, como origem de uma cultura supostamente pura a ser preservada e para qual
se deve retornar apresenta práticas racistas etnocêntricas como modelos a serem
seguidos e reproduzidos.
No intuito de buscar entender os meandros que compõem a produção discursiva,
torna-se oportuno revisitar Foucault (1971), o qual discorre a respeito da ritualização
que é conferida à pronunciação do discurso, ressaltando que, embora o desejo de
quem discurse seja o de não atrelar-se necessariamente ao que existe de categórico
e decisivo em sua fala, é preciso reconhecer que o discurso inserido em um contexto
institucional se encontra imerso na ordem das leis, tendo, assim, lugares específicos
para seu aparecimento e fortalecimento oriundo do poder dispensado pela instituição.
Tendo em vista essas inquietações, o autor questiona acerca dos perigos que podem
estar presentes no ato da fala e no processo de proliferação decorrente do discurso:
domínio do conteúdo a ser proferido em momentos específicos, nos quais são aber-
tos espaços de escuta, em função do lugar de representação. Estes espaços podem
singularizar os modos de existências quando pensados como diferenciação de vidas
na potencialidade de processos múltiplos pela transvaloração e do perspectivismo
históricos, na medida em que a História é deslocada das colonialidades e dos modelos.
Outro princípio de exclusão apresentado por Foucault (1971) é o de separação,
o qual pode segregar os discursos vistos como desarrazoados. Um dos exemplos
dados para ilustrar isso é o modo como se restringiu a circulação da fala do louco,
ao longo da história, a qual foi vista em um determinado período como palavra de
verdade e, em outro momento, como algo que não deveria ser escutado. Sobre os
dois casos, o autor enfatiza o quanto a fala da loucura não existia e funcionava como
lugar de exercício da separação. Para ele, embora se afirme que, na atualidade, tal
apartamento não exista mais ou está em processo de desaparecimento, percebe-se
que ele pode ser reafirmado por meio de aparatos de saber e de novas instituições
que contribuem para o surgimento de diferentes efeitos.
A distinção entre o que é verdadeiro e falso também se mostra como uma
questão que separa os discursos, fazendo com que surjam novas formas na vontade
da verdade, sendo importante considerar que esta, da mesma maneira que outros
sistemas de exclusão, está ancorada em uma racionalidade institucional, tendendo,
assim, a pressionar e coibir outros discursos. Diante disso, o discurso de verdade
aparece amparado por saberes de inúmeras áreas do conhecimento, as quais autorizam
até mesmo a palavra da lei:
acaso do discurso, ao trazer algo que está para além do que é comentado, bem como
ressalta o caráter de novidade não pelo que é dito, mas sim pelo acontecimento de seu
retorno. Partindo dessa lógica, é tratada ainda a questão do autor que, ao enfatizar a
noção de identidade, individualidade e eu, limita o acaso do discurso na prática do
comentário. No texto “A morte do autor”, Roland Barthes (2004) reflete sobre como,
em diferentes esferas, a figura do autor pode ser deslocada de uma noção individua-
lizante. A linguística, nesse sentido, contribui, ao sinalizar que:
Considerações finais
Este artigo trouxe um panorama das práticas presentes nas tensões existen-
tes entre os modos de fazer a História no tempo atual. A abertura na pesquisa
documental, assim como em outras metodologias e também nas diversas áreas do
conhecimento tem sido um processo doloroso e difícil, na medida em que expõe os
racismos, privilégios, feridas, silenciamentos, disputas, apagamentos, impedimen-
tos, violências e toda sorte de mecanismos de opressão, dominação, colonialidade,
genocídios e massacres que derramaram sangue e lágrimas nas páginas da História
e de tantos outros saberes, na modernidade. Se o poder não é apenas dominação,
tampouco se reduz a ser sinônimo de violência, como explicita Foucault (1995,
p. 243), em “O Sujeito e o Poder”:
De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age
direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma
relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete,
ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto
de si, outro pólo senão aquele de passividade, e, se encontra uma resistência, a
única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula
sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação
de poder: que o “outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente
reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que abra, diante da rela-
ção de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
BAPTISTA, Luis Antonio. Politizar. In: FONSECA, Tania Mara Galli; NASCI-
MENTO, Maria Lívia do; MARASCHIN, Cleci (org.). Pesquisar na diferença: um
abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 187-190.
BAPTISTA, Luis Antonio; SILVA, Rodrigo Lages e. A cidade dos anjos do impror-
rogável. Rev. Polis e Psique, n. 7, v. 1, p. 49-73, 2017.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo:
Ateliê, 2003.
DELEUZE, Gilles. Conversações. 1972 – 1970. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, por uma literatura menor. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2013.
FOUCAULT, Michel. A Vida dos Homens Infames. In: MOTA, Manuel Barros da
(org.). Michel Foucault: Ética, estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu
irmão: um caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
ROCHA, Marisa Lopes da; AGUIAR, Katia Faria de. Pesquisa-intervenção e a pro-
dução de novas análises. Psicologia: ciência e profissão, v. 4, n. 23, p. 64-73, 2003.
SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 675
SILVA, Daiane Gasparetto da.; LEMOS, Flávia Cristina Silveira Lemos; GALINDO,
Dolores. Coletivos e inventivos: construções heterotópicas na cidade aberta. In:
LEMOS, Flávia Cristina Silveira Lemos; GALINDO, Dolores; BICALHO, Pedro
Paulo Gastalho; OLIVEIRA, Flávio Valentim de; SANTOS, Igor do Carmo; SAN-
TOS, Arthur; ELMESCANY, Érica de Nazaré Marçal; ALMEIDA, Mário Tito Barros.
Criações transversais com Gilles Deleuze: artes, saberes e política. Curitiba: CRV,
2016. p. 385-398.
TÓTORA, Silvana Maria Corrêa; CHAIA, Miguel. Liderança Política: Virtù e Par-
resía. Contemporânea, v. 6, n. 2 p. 389-412, 2016.
Introdução
Busca-se com este texto pensar alguns elementos metodológicos de uma pes-
quisa com ferramentas analíticas de uma história documental, em conversações
com a governamentalidade e racismo, na interface com a Psicologia na América
Latina. Parte-se de contribuições de Michel Foucault e da História Cultural como
eixos analíticos e metodológicos bem como dos trabalhos de Martin-Baró, Cecília
Coimbra, Maria Aparecida Bento.
O psicólogo Martin-Baró, em um texto de 1989, intitulado “Psicologia Política
Latino-Americana”, sintetizou as questões centrais para a construção de uma Psico-
logia na América-Latina implicada com as problemáticas políticas dos povos desta
região. Atento para os contextos que se apresentavam ao “querer fazer” de psicólo-
gos(as), lançou no seu texto um questionamento sobre os desafios a serem enfrentados
e afirmou que suas práticas profissionais eram indissociáveis da reflexão política da
Psicologia, seus axiomas e técnicas. No bojo desta preocupação, perguntou: “o que
pode a psicologia contribuir para a resolução dos problemas do povo colombiano?” e
para “qual os impactos tem o nosso ‘quer fazer’ na configuração de nossa sociedade?”.
E, ao realizar estes questionamentos, enfatizou quais as relações entre Psicologia e
poder, definindo os caminhos de pesquisa não apenas para a Psicologia produzida na
Colômbia, mas para pesquisadores(as) latino-americanos(as) que se debruçam sobre
estas inquietações (MARTIN-BARÓ, 2013).
A escrita deste texto é atravessada em toda a sua extensão por esta perspectiva
de análise e busca contribuir para a problematização das relações de poder e saber
que perpassam a Psicologia brasileira na relação com a Psicologia Latino-americana,
tendo como recorte de análise as relações entre o Sistema Conselhos de Psicologia
e a problemática do racismo. Este tema é cada vez mais politicamente necessário
de ser trabalhado e enfrentado, diante das forças conservadoras que se demonstram
intensificadas e atualizadas no Brasil contemporâneo, ampliando as desigualdades
sociais ao mesmo tempo que provocam subjetivações intolerantes às diferenças e
678
Que avanço o cuidado tem se não valoriza a sua terra? Como um povo poderá
construir sua identidade se suas referências vêm todas de fora? Tais reflexões nos
fazem repensar toda história que nos foi ensinada como a “história do mundo”,
assim como repensar que modelo de subjetividade a Psicologia brasileira e lati-
no-americana tem para compreender sua gente (MARTINS; MOREIRA, 2019).
que estas articulam o previsto direito de liberdade com o controle justificado como
necessário para que as supostas naturezas possam fluir sem obstáculos. O governo
neoliberal dos outros incita os cidadãos livres a governar a si mesmos como livres,
mas também com responsabilidade, ou seja, dentro da liberdade individual de cada
um, seu limite é a sua prudência, inserida, por sua vez, em sua própria natureza psi-
cológica (ROSE, 1998). Temos aqui, uma espécie de liberdade autoregulatória pela
própria natureza da liberdade. A Psicologia encontra lugar em tais regimes, pois os
indivíduos devem ser governados não de forma autoritária, mas com base em julga-
mentos que visam objetividade, neutralidade e efetividade, estando de acordo com
os ideais de liberdade, igualdade e poder legitimado. A orientação dos indivíduos é
objeto dos “especialistas da subjetividade” que transpõem as questões da vida em
questões técnicas com o objetivo de aumentar a “qualidade de vida”.
As formas de liberdade que nós vivemos hoje estão intimamente ligadas a um regime
de individualização no qual os sujeitos não são meramente ‘livres para escolher’,
mas são obrigados a serem livres, ainda que sejam controlados pela norma, pelas
responsabilidades e pelas suas próprias naturezas (FERREIRA, 2009. p. 68-69).
branca (majoritária nos cursos, tanto no que diz respeito ao corpo docente quanto
discente), bem como em não refletir sobre as teorias eurocêntricas.
Em outra pesquisa realizada por Damasceno (2017) a conclusão resvalou sobre a
necessidade de se incluírem conteúdos sobre relações raciais na formação psicológica,
de forma a habilitar o (a) profissional a identificar o racismo como determinante da
saúde mental da população negra, necessitando de maior formação para o atendimento
adequado a clientes negros(as). A autora concluiu que o racismo na psicologia clínica
se torna presente por omissão: a invisibilização do racismo como gerador de sofri-
mento psicológico reverbera, por sua vez, tanto na teoria quanto no ensino-pesquisa,
e retorna na prática clínica universalizante e sugere que a clínica psicológica deve
rever a aplicação de forma universal das teorias, métodos e práticas criadas por e para
um único grupo, autodefinido como modelo para todos os povos; é necessário que
se considerem as especificidades da existência étnico-racial-cultural de cada povo.
O levantamento bibliográfico sobre o campo temático geral da Psicologia lati-
no-americana e a historização inicial do CFP, a composição de um estado da arte das
pesquisas que se avizinham a esta e a imersão exploratória inicial dos documentos
do CFP fez emergir um panorama geral que apontou a possibilidade destes aconteci-
mentos serem problematizados de forma fértil por meio dos conceitos relacionados
com a questão da governamentalidade, em Foucault no que diz respeito às artes
liberais de governo e as suas implicações para a gestão das liberdades, bem como
os conceitos de disciplina e biopolítica, o que suscitou questionamentos como: que
leitura podemos fazer do CFP em uma perspectiva do biopoder? Como os saberes
psicológicos brasileiros atrelados às artes liberais de governo estabelecem discursos
antirracistas e se fazem presentes nas produções do CFP? Como saberes antirracistas,
descoloniais e decoloniais, críticos do capitalismo como forma de poder colonial
são acoplados aos saberes psicológicos formulados nos modos liberais de governo
e como estas se fazem presentes?
A Psicologia brasileira e latino-americana tem proposto uma grande e expres-
siva demanda de releitura e de autocrítica no que tange ao fechamento em que se
encerravam na modernidade e na dificuldade em enfrentar os privilégios da bran-
quitude e os pactos com ideais liberais capitalistas, sobretudo, os de colonialidade e
os vinculados aos racismos. O Sistema Conselhos de Psicologia passou somente, a
partir efetivamente de 2007 a combater o racismo com um amplo conjunto de forças
e articulações políticas, acadêmicas, éticas e legais.
Vale salientar que é possível concluir que, apesar de muitos(as) conselhei-
ros(as) e integrantes das comissões relacionadas às ações do SCP ser relacionada
às universidades, ainda há um conjunto expressivo de desníveis discursivos entre
Conselhos profissionais de Psicologia e universidades face ao currículo de formação
da Psicologia brasileira.
Por fim, é relevante destacar o quanto o individualismo e culpabilização da
sociedade capitalista neoliberal, especialmente, vem se materializando nas práticas
psicológicas recorrentemente com fins de manutenção de pactos reprodutores de
privilégios e desigualdades. Portanto, resistências são necessárias e relevantes para
a fabricação de alianças que possibilitem rupturas com o racismo e outras práticas
de colonialidades.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 693
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE Jr., D. M. Discursos e Pronunciamentos: a dimensão retórica da
historiografia. In: LUCA, T. R. de; PINSKY, C. B. (org.). O historiador e suas fontes.
São Paulo: Contexto, 2010. p. 223-250.
Introdução
209 Segundo Marx e Engels (2007), n’A Ideologia Alemã, os três pressupostos fundamentais da concepção
materialista de toda a existência humana são a produção de meios materiais para a satisfação de necessi-
dades, o ato da procriação e a constituição da família.
698
Este ser, que antes de tudo é o resultado do seu próprio trabalho de transforma-
ção da realidade, é produzido por forças que são econômicas, materiais, objetivas
e por forças que são ideológicas, subjetivas. Um ser que, da forma como existe no
mundo e, especialmente, na sociedade capitalista, resulta de suas interações sociais
na sua comunidade, em sua família, no seu trabalho etc; mas resulta também dos
movimentos mais gerais correspondentes à divisão social em classes, onde uma
resguarda-se ao papel de garantir a sua reprodução às custas da exploração da outra.
Ora, visto que o conflito é intrínseco à todas estas esferas da vida social e ine-
rente às determinações econômico-ideológicas – sendo daí produzido o ser social
– ele está presente lá onde é produzido este ser, e mais do que isso, ele pode ser
observado e, observando-o, analisar a sua interação para a composição da estrutura e
da dinâmica do ser social. Este ser, portanto, que se diferencia substancialmente, por
exemplo, do ser inorgânico (LUKÁCS, 2018), possui particularidades que só podem
ser apreendidas quando observadas diretamente em seu processo de socialização.
É este o exercício que pretendo fazer, de modo ensaístico, tendo por base os
materiais que tenho acumulados, decorrentes das pesquisas de campo realizadas entre
2019 e 2021 e também das minhas experiências não sistematizadas, junto às comu-
nidades de Barcarena, atingidas pelos grandes projetos na região. Estes materiais,
antes de tudo, desembocaram em minha dissertação de mestrado em psicologia210,
agora, porém, apresento alguns elementos que não foram considerados na monogra-
fia, apresentando-os desde uma perspectiva etnográfica e buscando, essencialmente,
extrair algumas considerações sobre o viés analítico engendrado pela categoria de
conflito para a produção do atingido enquanto ser social, partindo, para tanto, de
contribuições dos próprios interlocutores.
210 Defendi minha dissertação de mestrado, intitulada QUANDO FALAM OS RIOS DA AMAZÔNIA: um estudo na
psicologia social crítica sobre o modo como são produzidos os atingidos por grandes projetos em Barcarena,
no Pará, em 31 de março de 2022; trabalho orientado pelo Prof. Dr. Leandro Passarinho Reis Júnior (PPGP/
UFPA), co-orientado pela Profa. Dra. Flávia Cristina Silveira Lemos (PPGP/UFPA) e avaliado pela Profa.
Dra. Edna Maria Ramos de Castro (NAEA/UFPA), pelo Prof. Dr. Aluízio Ferreira de Lima (PPGP/UFC) e
pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Freire Piani (PPGP/UFPA).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 699
Entre janeiro de 2019 e setembro de 2021 eu passei inúmeras vezes pelo Peteca,
sempre me impressionando, de um lado, com a enorme quantidade de caminhões se
movimentando ou parados em seus postos de combustível e, de outro, pela péssima
qualidade das estradas que lhe davam acesso. Quando a época era de muitas chuvas,
a lama atolava facilmente veículos de pouca tração e tornava alguns trechos intrafe-
gáveis para pedestres ou ciclistas. Em outros períodos, quando o tempo estava mais
seco, a poeira levantada pelos caminhões criava cortinas que prejudicavam a visão,
adentrava nas casas ao redor e dificultava a respiração.
No dia do ato o período era de chuva, ou melhor, de lama. Chovera a noite toda
e, às seis da manhã, um leve chuvisco ainda se mantinha. Eu estava com o Rafael,
companheiro no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), aguardando a che-
gada dos ônibus. Escondíamo-nos da chuva embaixo de um pequeno toldo de palha,
improvisado no local onde param as vans e micro-ônibus que percorrem Barcarena
entre a Sede, a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, o Núcleo Industrial e o Porto
São Francisco. Aquele cruzamento também era, portanto, a passagem de inúmeros
trabalhadores, estudantes e moradores das várias comunidades espalhadas pela região.
Ainda assim, contudo, o que predominava eram os caminhões: todos grandes, com
lonas pretas sobre a caçamba, placas de diversos estados do Brasil, seu cheiro de
diesel queimado e o som abafado do peso de mercadorias sequestradas, esburacando
a estrada e jogando lama e poeira sobre os nativos.
Confesso que, quando participei, em 10 de janeiro de 2019, da minha primeira
reunião com lideranças de Barcarena eu ainda tinha uma visão que, para não chamar
de ingênua, era, em muitos aspectos, um tanto quanto romântica. Essa visão, porém,
durou pouco tempo. Enquanto esperava o aparecimento repentino de cinco ônibus
lotados de manifestantes, revezando o lançamento agudo da visão entre os quatro
acessos do trevo, lembrava das muitas reuniões, assembleias e encontros informais
que participei com os líderes e presidentes de comunidades, diretores de associa-
ções e centros comunitários, dirigentes de sindicato rural, membros de colônia de
pescadores e conselhos municipais. Eu estive presente em quase todos os momentos
oficiais voltados à organização, preparação e planejamento do ato de 18 de fevereiro,
como representante do MAB; eu não estive, porém, nos grupos de WhatsApp das
comunidades, na casa de todas as lideranças, na sede das associações, nas reuniões e
negociações paralelas, extraoficiais à organização do ato que, como fui percebendo,
ocorriam a todo momento.
Já passava das sete horas quando avistamos um ônibus que, suspeitamos, receo-
sos, iria para o ato. Receosos porque nele só estava o motorista. Ele parou em um
posto e, quando lá chegamos, confirmamos a suspeita: ele fazia a rota das comuni-
dades de Tupanema e Arienga-Rio, mas quando passou ninguém aguardava, então
seguiu em frente. Subimos no ônibus e pedimos para o motorista nos levar ao local
do ato. Esperamos até às dez horas pelos outros quatro ônibus que também estavam
confirmados e levariam os moradores das comunidades Bom Futuro, Laranjal, São
Lourenço, Fonte Boa, Sítio Conceição, Burajuba, Sítio São João, Curuperé, Cupuaçú,
Tauporanga e Arrozal, mas nenhum apareceu.
700
211 Atribuí estes nomes fictícios aos atingidos e às atingidas que entrevistei em minhas pesquisas de campo, a
decisão pelo anonimato foi por questões de segurança, visto que todos e todas são lideranças que fazem
a luta contra os grandes projetos na região de Barcarena.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 701
Meu Deus, se um dia esses... essas bacias aí romperem, será que nós vamos ser
de novo outros igual o povo lá de Mariana, lá em Minas Gerais? Eu sinto muita
preocupação, mano. Eu moro aqui, eu amo morar aqui, mas ao mesmo tempo eu
fico muito preocupada, porque esse lado aqui tá... é o acesso pra Hydro. Essas
terras aqui vêm daí, e o que vier daí mano, vai atingir todo mundo pra cá; aí o
nosso rio não vai prestar mais.
Este medo e esta preocupação de Xingu, contudo, não são infundados, mas cor-
respondem, ao mesmo tempo, a uma análise acurada da realidade, que envolve tanto
fatores externos quanto internos a Barcarena, ou fatores que são gerais – do modo
de operação dos grandes projetos como meios de acumulação capitalista às custas
da exploração de bases naturais de elevada capacidade de produção de capital – e
também de fatores específicos, relacionados ao passivo histórico de outros crimes
cometidos pela Hydro e outras empresas em Barcarena. Xingu, primeiramente, com-
para o que pode advir da Hydro com o ocorrido na cidade mineira de Mariana, em
05 de novembro de 2015, quando houve o rompimento de uma barragem de rejeitos
minerais da Vale/BHP-Billiton que matou 19 pessoas e contaminou toda a bacia do
Rio Doce; por outro lado, ela sabe do que já ocorreu em Barcarena.
Entre os anos de 2000 e 2018 ocorreram 26 crimes de diferentes escalas e
proporções em Barcarena, cometidos por diferentes empreendimentos e empresas,
impactando rios e igarapés como Arienga, Arrozal, Dendê, Mucuruça, Murucupi, Pará
e Cururuperé. Em torno destes cursos d’água vivem milhares de pessoas, produzidas
como atingidas em decorrência da ganância, irresponsabilidade e ânsia desenfreada
por lucro dos grandes projetos. Apenas a Hydro, antes Alunorte, foi responsável por
pelo menos dez destes crimes, segundo levantamentos de MP-PA/MPF (2015), Bar-
carena Livre (2016) e Steinbrenner et al. (2020), sendo o maior deles o que ocorreu
entre os dias 17 e 18 de fevereiro de 2018 que, segundo o Relatório Final da CPI
instalada na Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA), atingiu 77 comunidades e,
portanto, dezenas de milhares de pessoas em torno da bacia hidrográfica do rio Pará
(PARÁ, 2018).
702
Tem situações hoje, em relação aos território, irreversível. Não tem como voltar
mais, não tem. Eu nem acredito que tem esse rio, hoje, possa ser revertido essa
situação. É uma situação irreversível, porque é anos e anos aí impactado, entendeu?
Então quando a empresa tem alguma punição, de algum crime ambiental, aí eles
chamam... eles chamam... é o TAC, né? Termo de Ajustamento de Conduta. A
justiça vai, dá pressão tudo “Ah, não, ela vai ter que assinar o TAC”. Esse TAC, eu
vejo uma maneira... ela é, na verdade, ela é uma forma dela justificar o crime pra
justiça. Esse eu vejo que é uma forma de justificar. “Olha, não, ela assinou o TAC,
ela justificou que ela assumiu o compromisso”. Isso não é verdade. Isso nunca
sai do papel... isso nunca sai do papel. É uma forma dela se defender na justiça.
704
Posso dizer que minha pesquisa de campo só foi possível graças a tarefa que
me coube, de contribuir, como militante do MAB, na organização do ato que virou
o pano de fundo das análises que venho fazendo. Foram estas primeiras semanas,
entre idas e vindas de Barcarena, que me possibilitaram conhecer melhor a cidade
e aprender a andar por ela, transitando entre várias comunidades, regiões urbanas e
rurais, por entre estradas e rios; foram também, estes contatos iniciais, que me levaram
a conhecer as quatro pessoas que entrevistei e pude observar os seus modos de vida.
Tocantins eu conheci no dia 10 de janeiro de 2019, em uma reunião na sala
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Belém; Amazonas, Tapajós e Xingu eu
conheci em momentos posteriores, em Barcarena, nas várias reuniões, assembleias
e conversas informais de preparação do ato. Todas estas quatro pessoas, portanto,
são atingidos e atingidas, moradores de comunidades de Barcarena e que fazem
parte de organizações, coletivos e entidades que defendem os direitos dos atingidos.
Tocantins e Xingu são da comunidade do Furo do Arrozal, moradores do Sítio Boa
Esperança; o primeiro, homem negro com o cenho franzido, é filiado ao Partido dos
Trabalhadores, dirigente no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
(STTR) de Barcarena e é, segundo ele “presidente do Conselho de Desenvolvimento
Rural. Faço parte do Conselho de Meio Ambiente e também sou presidente de uma
Associação de agricultores familiares, ribeirinhos extrativistas, assalariados rurais”.
Amazonas, por sua vez, é uma mulher que faz tudo que se possa imaginar,
Agente Comunitária de Saúde (ACS), integrante do MAB e da Associação dos
Moradores Ribeirinhos do Arrozal (AMORA). Tapajós e Xingu são de comunida-
des quilombolas, ele foi “nomeado líder” do Quilombo Sítio Conceição e faz parte
do Movimento Barcarena Livre, já ela é do Movimento pela Soberania Popular na
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 705
Mineração (MAM) e presidente do Quilombo Sítio São João. Todos são lideranças
na luta contra os grandes projetos em Barcarena, têm histórias, relatos e experiências
que envolvem diferentes momentos de denúncias e reivindicações em defesa dos
seus direitos.
Através da luta a produção dos atingidos ocorre como síntese do imperativo
marxiano de que os homens fazem a sua própria história (MARX, 2015), portanto,
fazem a si mesmos, são os sujeitos da sua produção. Mas a luta é resultado dos con-
flitos, das contradições e antagonismos que opõe os atingidos e os grandes projetos;
logo, os primeiros são produzidos, e produzem-se a si mesmos, como resultado da
existência material destes últimos.
Considerando o caráter antagônico em que se estabelece o processo de resistên-
cia dos atingidos, tendo em vista que estes, como trabalhadores, têm interesses que
divergem de modo oposto e inconciliável com os interesses dos grandes projetos, uma
das formas principais de luta empreendida tem se configurado, historicamente, como
a pressão popular através de manifestações, atos, caminhadas e denúncias públicas
dos crimes cometidos pelas empresas presentes em Barcarena. Neste processo, for-
jaram-se lideranças na região que obtiveram algumas conquistas. Tocantins (2020)
conta a história de uma dessas lutas:
No princípio nós fizemos uma denúncia quando teve a fuligem da Albras; ela
descia lá no Conde, que as casas ficavam todas cheias daquela fuligem, né? Que
houve a destruição de toda a pupunha... pupunhais do pessoal do cupuaçu. Nós
fizemos um movimento; fomos pra Belém – inclusive com parceria com a Uni-
versidade Federal – fazer a denúncia nos meios de comunicação, nas rádio, tele-
visão, jornal. Infelizmente a imprensa ela num dá muito ênfase pra essa questão
dos movimentos sociais; ela dá ênfase mais pra empresa. Saiu uma matéria bem
desse tamanhozinho assim, bem recortadozinho assim num cantinho; no jornal
não passou nada; na televisão aquela parte de televisão não mostraram nada disso
que nós fez. Mas saiu na Província do Pará e no Diário do Pará assim, uma maté-
ria com aquelas letra bem miudinha assim que... mas saiu! E as fotos da gente,
né? Que nós tivemos lá. Isso em 1993, 1993 que isso tava no auge desse.... Aí as
empresas, elas botaram uma espécie de uma... de um... elas trocaram os... como
é que diz? Os crivos lá do... das chaminés, né? Que era por lá que passava, aí deu
uma melhorada nesse processo.
lutas que a gente vai se juntar com outros companheiro, com outros parceiro, com
outras comunidades e com quem quiser vir pra luta com a gente, entendeu?” (ibidem).
A análise feita por Tocantins demonstra que a criminalização da luta dos atin-
gidos está imersa no processo mais amplo de criminalização da política e dos movi-
mentos sociais. No meio do povo, difundem-se histórias sobre as lideranças populares
que as retratam como safadas, corruptas e não confiáveis. Nas palavras de Amazonas
(2021): “o que eu acho é que a gente é muito tachado de... chamado de vagabundo,
de que não tem o que fazer, de ficar ganhando dinheiro alheio, entendeu?”. Esse
processo coloca os atingidos em luta uns contra os outros, forçando-os a desviarem
do foco central da luta contra os grandes projetos para resolverem os seus conflitos
internos – “Eles sempre distorce a nossa palavra, sabe? Eles distorce. Então é uma
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 707
coisa que eu vivo em luta com o povo. Assim, não com o povo… não com o meu
povo que me apoia, mas com o povo que é o contrário nosso, né?” (ibidem).
Historicamente, as promessas de emprego e crescimento econômico associados
às grandes empresas provocam divisões entre os atingidos, pois são muitos os que
acreditam nestas oportunidades. Porém, a história e o relato dos atingidos já vem
demonstrando que, para os moradores das comunidades – que perdem o seu território,
seus meios e modos de vida tradicionais – as poucas vagas que lhes são destinadas
são para o ocupar os postos mais precarizados de trabalho. Ainda assim, uma parcela
considerável dos atingidos continua acreditando nos empregos, posicionando-se em
oposição àqueles que lutam contra os grandes projetos:
Aí a gente, por exemplo, aqui, o pessoal da... desse lado aqui diz assim: “Não,
o sindicato não faz nada; não faz nada!’’. Não, na verdade, se a gente vai fazer
uma pesquisa, entre eles, eles preferem as empresas; eles defendem as empresas;
eles defendem os projetos, a instalação desses de.... Tá igual aquele caso lá de
Mariana, né? Que as pessoas foram atingido e depois foi feita uma pesquisa e
70% dizia que a empresa devia continuar por causa do emprego. Então é muito
complicado. Isso dá uma angústia na gente porque as pessoas preferem às vezes
a morte, né? Preferem achar que o projeto é a solução (TOCANTINS, 2020).
Quem disse que a gente conseguiria tirar uma Hydro daqui? Aí é pedi pra morrer.
Porque o povo…. Porque a Hydro ela dá emprego pra várias pessoas, né? Ela
mesmo, mas tem a terceirizada que emprega peão; e esse peão, sabendo que a
empresa vai acabar e sabendo de onde vem… é isso. Isso porque naquele, lá em
2018, foi quebrado vários contrato por causa daquele crime ambiental, né? A
gente já sofreu ameaça, imagine se uma empresa dessa saí (AMAZONAS, 2021).
por isso, dos movimentos mais gerais da luta de classes contra os grandes projetos
ou do modo de produção capitalista como produtor de contradições e antagonismos;
eles são, também, da ordem tanto da objetividade quanto da subjetividade, pois são
concretos e, ao mesmo tempo, dizem respeito às singularidades dos sujeitos atingidos.
Em 20 de janeiro de 2019, participei de uma reunião na comunidade Burajuba
onde, cumprindo com uma das táticas definidas para a realização do ato, de ampliar o
envolvimento das comunidades de Barcarena, compareceram representantes e presi-
dentes de diversas outras comunidades, como Arienga, São Lourenço, Sítio Conceição,
da Ilha Trambioca, Tupanema, de Vila do Conde, Vila dos Cabanos, dentre outras.
Desta reunião foi formado o comando do ato, composto por cerca de 10 pessoas, do
qual eu fazia parte mais os representantes das principais comunidades presentes; este
grupo teria tarefa de fazer a mobilização para o ato, garantir a estrutura, comunicação
e segurança para o dia, também seria a comissão responsável por elaborar a pauta de
reivindicações dos manifestantes e realizar qualquer tipo de negociação que se mos-
trasse necessária, seja com a empresa, com representantes do estado ou com a polícia.
Foi neste dia, também, que comecei a perceber alguns detalhes que só a aproxi-
mação das comunidades e seus presidentes começara a tornar possível: 1. as comu-
nidades São João e Burajuba ficavam uma de frente para a outra, cortadas por uma
estrada, antes elas eram uma só e, após sucessivos conflitos que envolviam a rea-
lização dos estudos do componente quilombola para a certificação pela Fundação
Cultural Palmares, elas se dividiram; 2. Amazonas, atual presidente da Associação
dos Moradores do Quilombo Sítio São João e Jurema212, autointitulada presidente da
Cainquiama e moradora da Comunidade Quilombola Burajuba, eram parentes – não
consegui saber o grau de parentesco – e nutriam entre si desavenças que remontavam
à cisão comunitária; 3. Socorro reivindicava para si a presidência da Cainquiama,
porém, outras pessoas diziam que ela não era mais presidente e que a diretoria da
associação estava sendo recomposta, segundo eles, ela usava a associação em bene-
fício próprio, apropriando-se privadamente do dinheiro coletivo, mas a Jurema, no
entanto, afirmava que foi ela quem criou a associação, junto a sua família e que, como
os demais familiares não eram mais associados, a ela cabia à presidência – ressalte-se
que Amazonas fez parte da fundação da Cainquiama e, nesta época, já presidia a
associação de outra comunidade.
Nesta reunião, também, conheci a Marilda e o Polinário; ambos se diziam
“lideranças do Conde” e reivindicavam certa autoridade e direito de participar das
decisões por comporem o Fórum Intersetorial de Barcarena, que conglomerava
representantes da sociedade civil, da prefeitura e das empresas no município. Pos-
teriormente, em momento diferentes, quando estava junto ao Polinário e a Marilda,
ambos me diziam que eu não devia confiar na Amazonas ou na Jurema e, em outras
situações, quando estava conversando separadamente com a Amazonas ou a Jurema,
ambas me diziam para não confiar, nem em uma e nem em outra, nem no Polinário
ou na Marilda. Comecei a pensar, que diante dos avisos, não deveria confiar em
ninguém, no entanto mantinho o diálogo com todos, comparecia às casas que era
212 As pessoas que não entrevistei, nomeei-as com nomes próprios, mas que não são os seus nomes verda-
deiros, pelos mesmos motivos pelos quais ocultei os nomes dos entrevistados.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 709
Conclusão
213 LEÃO, Bianca. Barcarena: 1 ano de vidas em suspenso e violação de direitos. Amazônia Real, 19 mar. 2019.
Disponível em: https://amazoniareal.com.br/barcarena-1-ano-de-vidas-em-suspenso-e-violacoes-de-direitos/.
Acesso em: 4 set. 2022.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 711
REFERÊNCIAS
AMAZONAS. Entrevista III. [mar. 2021]. Entrevista concedida a Robert Damasceno
Monteiro Rodrigues. Barcarena, 2021.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social. 2. ed. São Paulo: Boi-
tempo, 2018.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio
Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. In: MARX, Karl. A revolução antes
da revolução. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
MPF. Caso Hydro: histórico. Ministério Público Federal, 2020. Disponível em: http://
www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/paginas-especiais/paginas-caso-hydro/historico.
Acesso em: 2 nov. 2021.
MP-PA/MPF. Ação Civil Pública com pedido de liminar referente ao Inquérito Civil
Público nº 1.23.000.000661/2015-70. Ministério Público do Estado do Pará/ Ministé-
rio Púbico Federal – Procuradoria da República no Pará. 2015. Disponível em: http://
www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2016/acp-agua-potavel-barcarena.
Acesso em: 21 nov. 2020.
XINGU. Entrevista II. [dez. 2020]. Entrevista concedida a Robert Damasceno Mon-
teiro Rodrigues. Barcarena, 2020.
UBERIZAÇÃO: precariedade da
vida mediada pelo trabalho
Lucivaldo da Silva Araújo
Raphael Brito Neves
Ingrid Bergma da Silva Oliveira
...o ser humano não foi libertado da religião, ele recebeu liberdade religiosa.
Ele não foi libertado da propriedade, ele recebeu
liberdade para possuir propriedade.
Ele não foi libertado do egoísmo dos negócios, ele
recebeu liberdade para fazer negócios
(MARX, 1970, p. 362).
Introdução
Método
Resultados e Discussão
DIAS TRABALHADOS
6 7 6 6 7
(por semana)
MEIO DE TRANSPORTE
Bicicleta Bicicleta Motocicleta Motocicleta Motocicleta
UTILIZADO PARA TRABALHAR
A análise dos discursos dos colaboradores permitiu elencar três unidades de sen-
tido: a) “sobre trajetórias laborais”, que aborda o histórico ocupacional dos partícipes
e os motivos para realização do trabalho uberizado; b) “sobre a forma do trabalho
uberizado e suas repercussões”, que aborda sobre a maneira em que o trabalho é
realizado e como afeta a vida dos participantes da pesquisa; e c) “sobre a relação do
trabalhador com as plataformas”, que explora a perspectiva dos trabalhadores sobre
as plataformas em que trabalham.
Aí durante a pandemia, eu voltei pra Belém [...] voltei porque eu tenho uma
filha pequena de dois anos e durante a pandemia eu fiquei com dificuldade pra
trabalhar e ter com quem deixar ela (Alice).
à manutenção do lar e de cuidados aos filhos o que, por sua vez, acentuou a carga
de tarefas atribuídas às mulheres, somada à diminuição da rede de apoio devido ao
fechamento de escolas e creches em função do isolamento social (DORNA, 2021).
O participante Arthur, diferente dos demais, não teve ruptura com o trabalho
formal, já que o trabalho em aplicativos, na sua condição, ocorria concomitante ao
vínculo celetista.
Eu não ganho muito. Ganho um pouco mais que um salário mínimo, mas eu
faço faculdade particular e fora muitas dívidas que eu acabei adquirindo nos
últimos tempos, eu realmente ‘tava’ precisando de uma renda a mais no meu
orçamento (Arthur).
Busquei trabalho [de carteira assinada], mas foi muito difícil achar. Deixei vários
currículos e sabe como tá difícil, né? Um emprego hoje em dia. E... no caso pra
mim, que só tenho segundo grau completo, ficou muito difícil achar emprego.
Então parei de trabalhar um bom tempo, até surgir o aplicativo (Helena).
Eu saio de casa mais ou menos umas 8 horas. Aí eu fico das 8 até as 15h ou então
até descarregar o celular. Aí eu vou pra casa almoçar. Aí retomo 17:30 ou 18h,
e vou até o celular descarregar, por volta das 23h, meia noite, 1h, até quando a
bateria der, no caso (Miguel).
Ontem eu tava na área de ciclista, indo lá pra Júlio César fazer uma entrega. Alí
perto do elevado Daniel Berg, tinha um motorista lá esperando o sinal abrir. Aí
veio um carro de Uber® e não teve a mesma paciência que o da frente e veio por
trás e bateu em mim e em um colega meu. Meu tornozelo ficou muito machu-
cado, no caso ainda tá (Miguel).
214 De acordo com a American Occupational Therapy Association – AOTA (2020), Atividades de Vida Diária
– AVD’s, são aquelas orientadas para cuidar do próprio corpo e realizadas por rotina como tomar banho,
cuidar da higiene pessoal, alimentar-se, vestir-se, atividade sexual etc.
722
Pra mim, assim... minha vontade era ir em casa tomar um banho pra depois
continuar, mas não dá, que eu moro longe (Alice).
Alimentar, praticamente, a gente ainda não tem muito tempo. A gente, pratica-
mente, tem comprar algum lanche na rua. Água também a gente tem comprar já
e tomar no meio da correria. O banho só quando dá tempo de ir em casa, é um
banho rápido e volta pro trabalho (Miguel).
Eu, como eu evito o máximo gastar na rua eu trago de casa. Só que tipo, eu não
posso demorar pra comer, porque senão estraga na bolsa. Tem que ver o que eu
vou trazer. Mas geralmente eu trago meu almoço. Eu almoço no mínimo duas
horas da tarde. Ontem, por exemplo, eu esqueci de almoçar, já era quatro horas
da tarde e eu ainda não tinha almoçado e foi quando apertou a fome e eu lembrei
e eu tenho gastrite, nem devia ficar nessa alimentação (Alice).
Praticamente, no meu corpo o impacto é grande, né? Que antes de trabalhar com
aplicativo, no caso voltar, eu ‘tava’ pesando 70 kilos e agora eu ‘tô’ com 56 kilos.
Aí tudo isso por má alimentação, no caso. Comendo muito besteira (Miguel).
[...] eu mesmo já notei perda de peso em mim, mas acho que também seja pelo
fato de tá constantemente pedalando, né? Me alimentando mal querendo ou
não [...] (Arthur).
Às vezes, da vontade de sair, viajar, fazer alguma coisa, mas eu sei que pra mim
viajar eu teria que ter toda uma programação, porque eu vou gastar com a viagem
e vou ta deixando de receber também. Tem essa questão, tem que... tipo, planejar
em dobro, né? Porque além de tá gastando com a viagem eu vou ta deixando
de receber (Alice).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 723
Acaba que tenho que muitas vezes sacrificar entretenimentos, coisas como sair
pra uma festa ou mesmo comer em um lugar diferente. Isso faz tempo que eu não
faço por conta de justamente ter prioridades no momento (Arthur).
Aí a gente fica sem vida, fica praticamente um robô, não tem como não ficar
satisfeito. Pra eles a gente é um robô (Miguel).
Somos meros prestadores de serviço mesmo, mas acho que eles não têm nenhum
tipo de responsabilidade com a gente, pelo menos é o que eles acham. Pra eles
não têm nenhuma responsabilidade com a gente, então o que venha acontecer
com a gente no horário de trabalho, no horário que a gente tá logado na conta,
não é responsabilidade deles, eles só querem que a gente faça a entrega (Arthur).
Eu acho que sou tipo assim... um prestador de serviço pra plataforma (Heitor).
724
Ela [a empresa] só ouve o lado do cliente basicamente, o nosso ela não ouve.
No caso, quando eu tava fazendo entrega pelo aplicativo, tentei, porque tem uma
parte do aplicativo em que eles falam que eles reembolsam nosso dinheiro com
remédio que a gente gasta. No caso to tentando entrar em contato pra reembolsar
esse dinheiro e eles não respondem nada, so vai caindo, caindo lá as mensagem
e eles não respondem nada (Miguel).
É apertado, mas a gente tem que se organizar, porque o aplicativo não vai te dar
nenhum dinheiro pra manutenção do teu veículo, então vai ser tirado do que a
gente ganha mesmo e ponto. É questão da gente se organizar... mas vai depender
exclusivamente da gente. Com certeza não [é justo], né? Mas sinceramente se a
gente fosse parar pra olhar, acho que dificilmente a gente iria encontrar justiça
em qualquer tipo de empresa privada hoje em dia (Arthur).
atividade laboral, sob a lógica imposta pelas empresas de que esses trabalhadores
são autônomos e os aplicativos, mediadores do processo de trabalho, mesmo que
essas empresas-aplicativos exerçam controle da distribuição do trabalho através dos
algoritmos de inteligência artificial (ABÍLIO, 2019).
Bianchi, Macedo e Pacheco (2020) afirmam que a classificação do trabalho
em plataforma digital como empreendedorismo é errôneo, pois a vinculação dos
entregadores com essas plataformas apresenta os elementos básicos que tipificam
o vínculo empregatício, segundo a legislação brasileira, a saber: “[..] prestado por
pessoa física de forma personalista, a prática da remuneração, a não eventualidade
e a existência de subordinação” (p. 129).
Em relação à renda obtida no trabalho pelos aplicativos, ela se apresenta variável
em decorrência das horas trabalhadas, tipo de transporte utilizado para trabalhar e
score que os trabalhadores possuem na conta do aplicativo. A despeito dessa varia-
ção, os discursos dos entregadores sobre esse tema traduzem sentidos de frustração
e insatisfação com os honorários atuais.
[...] não tá tendo o retorno que eu desejava. Mas como eu te disse, por enquanto é
o que tem... eu só procuro agradecer a Deus cada dia e continuar, se surgir alguma
coisa melhor, a gente vai, mas por enquanto, vou ficar aqui mesmo (Arthur).
Outro elemento presente nos discursos diz respeito às formas de controle exer-
cidas pelas plataformas sobre os entregadores por meio da modelação da tarefa de
acordo com os objetivos dos aplicativos. As formas de controle nem sempre são explí-
citas nesse modelo produtivo, já que muitas delas se dão através de um controle sutil.
Positivo, é só quando eles dão um extra pra gente, que eles botam uma meta
pra gente bater, essa meta é como se fosse um bônus pra gente. Isso é raramente
que eles botam. Geralmente eles dão, só um extra de 1 real ou 2 por rota, num
tempo de duas horas no máximo. Aí, tem muito que não conseguem pegar cor-
rida, que quando tem esse bônus todo mundo quer fazer entrega nesse tempo. E
praticamente é pra ter mais entregadores na rua (Miguel).
[...] é que nem cartão de crédito. Tu vai usando, pagando direitinho, aí vai
aumentando o limite, entendeu? Então assim é o aplicativo, tu tem que vim todo
dia, tem que fazer a entrega direitinho, no tempo certo, tu em que ser gentil com
o cliente, essas coisa assim, entendeu? Aí, os pedido vêm, como isso, com teu
desempenho, vem mais corrida e teu tempo vai aumentando (Heitor).
Olha a pessoa que é “nuvem” no IFOOD® e tem uma conta boa e toca. assim...
aonde ele tiver logado, eles chamam o aplicativo dele. É a melhor coisa que tem,
cara. Só que aí tem aquela questão, né? Se o “nuvem” tirar férias, assim férias,
férias... parar de rodar um tempo o score cai... eu acho errado, claro. Acho
errado, particularmente. Mas é uma forma de obrigar a pessoa a se manter
ativa (Alice).
Aí, fica mais ruim [fazer entrega machucado], porque os clientes ficam reclamando
que demora. Aí eu tento forçar pra ir mais rápido e meu tornozelo não deixa. Aí
chega lá e eu tenho explicar para o cliente. Tem cliente que entende, né? Nosso
lado, mas tem cliente que não entende, aí começa a reclamar, entra em contato
com o suporte, muitas vezes a gente é bloqueado ou até banido, a nossa conta.
Aí se for banido nossa conta, não tem como trabalhar (Miguel).
Eu acho, às vezes, até desnecessárias, porque não vai mudar. A gente trabalha
por um aplicativo, então não é uma empresa... assim... uma empresa de carteira
assinada. Então eu acho, às vezes, desnecessárias essas paralizações, mas eu
não fico contra, nem a favor (Helena).
Os pontos de vista dos entregadores sobre as lutas sociais podem ser divididos
entre aqueles veem a necessidade de luta pela categoria e aqueles que, apesar de
enxergarem a precariedade do trabalho, acreditam se tratar de uma luta em vão devido
à ausência de vínculo empregatício com as empresas-aplicativo. Isso demonstra que
há ausência do reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe social, principal-
mente pela dificuldade de distinção entre trabalhadores e gestores, resultado de um
discurso massificante que não reconhece os entregadores/motoristas como trabalha-
dores empregados de empresa (DIAS, 2020).
A relação de poder exercida pelas empresas-aplicativo sobre os entregadores
influencia a forma, sentido e significado atribuídos à ocupação trabalho pelos entre-
vistados. A ausência de reconhecimento de vínculo empregatício e de seguridade
social traz significados de desamparo e insegurança. Outrossim, os ganhos baixos
geram frustração e o sentimento de desvalorização nos entregadores. Por fim, a
gestão gameficada modela o comportamento dos entregadores para que a forma da
ocupação trabalho atenda aos objetivos traçados pelas plataformas, gera maiores
lucros às empresas e precariza a vida de milhares de trabalhadores em Belém do
Pará e no mundo.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time?. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, abr. 2020.
HOCHMAN, B. et al. Desenhos de pesquisa. Acta Cir. Bras., São Paulo, v. 20, n. 2,
p. 2-9, 2005.
NASCIMENTO, Líbia Luíza Carneiro do; REIS, Cacilda Ferreira dos. As condições
de trabalho dos entregadores e entregadoras por aplicativos no Brasil durante a pan-
demia. Revista Princípios, s.l., n. 160, fev. 2021.
PEREIRA, Luana Texeira et. al. Caracterização das ocupações de moradores de uma
comunidade ribeirinha na Amazônia brasileira. Revista Ocupación Humana. s/l, v. 18,
n. 2, p. 5-19, 2018.
A
Análise institucional 286, 462, 595, 596, 631, 642, 643, 682
Antirracismo 153, 154, 156, 163, 164, 177, 178, 179, 685, 686
Antropologia 84, 120, 181, 324, 339, 440, 443, 674, 675, 680, 710
Atuação do psicólogo 124
Atuação policial 68, 78
B
Biopolítica 34, 84, 112, 113, 130, 131, 133, 134, 138, 140, 143, 145, 147,
148, 150, 184, 186, 200, 203, 210, 214, 227, 277, 278, 279, 280, 281, 287,
294, 310, 393, 395, 398, 404, 405, 413, 427, 428, 429, 430, 432, 438, 441,
465, 467, 468, 469, 470, 480, 481, 498, 505, 576, 637, 643, 661, 688, 691,
692, 693, 694, 695
Branquitude 60, 68, 69, 70, 144, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 161, 162,
163, 164, 165, 166, 253, 254, 255, 257, 259, 268, 487, 506, 510, 530, 541,
545, 620, 678, 680, 683, 692
Brutalismo isolado 239, 240, 247, 250
Brutalização 141, 150, 239, 240, 241, 247, 250, 251, 254, 255, 256, 307,
308, 309, 313, 314, 315, 316, 317, 319
C
Capitalismo gore 105, 109, 110, 111, 112, 116
Capital racial 57, 58, 59, 60, 61, 65, 66, 69, 70, 71, 77, 82, 83, 84
Cárcere feminino 370, 371, 372, 379
Centros de Referência 117, 118, 119, 447, 455, 602, 629, 643
Classes raciais 72
Colonialidade 59, 71, 85, 145, 147, 153, 154, 156, 157, 158, 160, 166, 245,
246, 253, 256, 258, 259, 289, 290, 293, 296, 300, 305, 404, 427, 510, 512,
518, 524, 527, 550, 551, 615, 617, 618, 619, 620, 623, 625, 626, 629, 669,
671, 678, 679, 680, 681, 687, 692, 694, 695
Comunidade terapêutica 580, 645, 646, 647, 648, 649, 650, 651, 654, 655,
656, 660, 661, 662, 663
Conselho de Psicologia 687
734
D
Democracia racial 72, 76, 145, 251, 252, 253, 254, 407, 410, 413, 487, 499,
501, 506, 508, 509, 619, 620, 678, 679
Descolonização 162, 164, 563, 621, 625, 626, 670, 680, 681, 687, 691
Descolonização da Psicologia 621, 625, 680, 681
Direitos humanos 96, 97, 101, 118, 119, 120, 122, 123, 124, 127, 178, 181,
183, 185, 186, 191, 192, 193, 194, 196, 198, 200, 201, 202, 206, 213, 258,
276, 302, 321, 333, 336, 358, 360, 369, 370, 373, 383, 484, 488, 505, 578, 584,
596, 599, 601, 603, 655, 656, 659, 663, 679, 680, 682, 683, 684, 686, 700, 743
Drogas 64, 65, 66, 67, 68, 75, 93, 97, 99, 109, 111, 112, 120, 122, 123, 127,
145, 146, 147, 150, 171, 273, 275, 323, 360, 361, 370, 373, 431, 442, 447,
453, 487, 488, 492, 516, 572, 577, 578, 579, 580, 581, 582, 583, 584, 586,
587, 588, 589, 590, 591, 592, 593, 594, 595, 596, 597, 598, 646, 647, 648,
650, 651, 652, 653, 654, 656, 658, 661, 662, 663, 674
E
Emancipação 165, 171, 176, 274, 324, 367, 394, 419, 433, 442, 459, 542,
547, 567, 674
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 735
Escravidão 66, 72, 79, 133, 140, 163, 205, 243, 244, 252, 256, 279, 280,
290, 296, 370, 375, 401, 402, 403, 406, 407, 410, 412, 413, 421, 433, 505,
552, 618, 619, 620, 658
Evasão escolar 169, 170, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 395
Exclusão social 105, 169, 170, 175, 176, 179, 180, 301, 324, 335, 363, 374,
427, 632, 678
F
Feminismo 62, 83, 109, 110, 149, 166, 167, 194, 258, 323, 324, 325, 337,
339, 340, 369, 370, 371, 383, 384, 385, 386, 412, 413, 415, 416, 417, 418,
422, 424, 513, 517, 525, 526, 527, 537, 543, 545, 546, 549, 550, 551, 562,
563, 601, 612, 621, 622, 625, 627, 628, 629, 672, 674
Flagrante 250, 499, 511, 568
Foucault 3, 4, 34, 35, 72, 82, 84, 96, 97, 102, 112, 129, 130, 131, 132, 133,
134, 135, 136, 137, 138, 139, 142, 143, 147, 148, 150, 183, 184, 185, 187,
188, 189, 192, 196, 198, 199, 200, 201, 203, 210, 213, 214, 215, 216, 219,
222, 223, 224, 225, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 236, 237, 263,
264, 268, 270, 273, 277, 278, 279, 286, 287, 293, 294, 304, 310, 311, 319,
322, 338, 341, 342, 343, 346, 347, 348, 349, 350, 351, 352, 354, 355, 362,
363, 364, 367, 371, 375, 376, 386, 389, 390, 391, 392, 393, 394, 395, 396,
398, 399, 400, 404, 412, 428, 429, 430, 431, 435, 437, 439, 440, 441, 442,
453, 462, 468, 470, 471, 472, 475, 477, 480, 481, 492, 494, 497, 503, 505,
510, 567, 575, 576, 619, 628, 633, 634, 636, 637, 638, 643, 645, 646, 647,
650, 651, 655, 657, 659, 662, 663, 666, 667, 668, 669, 670, 671, 672, 673,
674, 677, 678, 680, 681, 684, 685, 686, 687, 688, 692, 693, 694
Foucaultiana 113, 215, 229, 251, 253, 348, 354, 389, 390, 392, 403, 430,
465, 468, 470, 471, 635, 651, 667, 680, 686
G
Genealogia 136, 142, 180, 184, 199, 201, 214, 215, 219, 232, 233, 235, 237,
273, 389, 390, 391, 392, 393, 395, 397, 398, 399, 400, 470, 471, 472, 477,
478, 480, 625, 667, 668, 674, 694
Gestão Autônoma de Medicação – GAM 577, 582, 583, 584, 585, 586, 587,
588, 589, 590, 591, 592, 593, 594, 596, 597
Governamentalidade 34, 136, 137, 138, 139, 144, 214, 215, 231, 240, 304,
393, 394, 395, 396, 429, 430, 465, 475, 476, 477, 480, 481, 505, 569, 616,
628, 632, 636, 637, 638, 661, 677, 681, 687, 689, 690, 692
736
H
História cultural 665, 667, 677, 681, 682, 685, 686, 694
Horizonte ético 241, 587, 591
I
Infância 97, 118, 120, 170, 171, 181, 204, 205, 206, 207, 209, 212, 215, 216,
251, 257, 259, 289, 338, 353, 354, 358, 359, 361, 365, 366, 367, 368, 370,
373, 446, 449, 450, 452, 453, 457, 458, 462, 499, 500, 503, 507, 511, 512,
516, 517, 519, 520, 521, 522, 523, 524, 553, 554, 555, 556, 557, 560, 607
L
LGBTQIA+ 226, 321, 322, 323, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 332, 333, 334,
335, 336, 338, 340, 380, 515, 537, 620
Liderança 62, 322, 346, 670, 675, 699, 700, 704, 705, 706, 707, 708, 709, 710
M
Medidas socioeducativas 117, 118, 119, 120, 121, 122, 124, 125, 127, 169,
170, 174, 178, 208, 209, 213, 214, 292, 500
Mulheres encarceradas 370, 373, 374, 376, 377
Mulheres negras 61, 62, 289, 300, 302, 339, 369, 370, 373, 401, 402, 403,
406, 407, 408, 409, 410, 412, 527, 548, 549, 550, 615, 618, 621, 623
N
Necropolítica 3, 4, 77, 85, 87, 89, 91, 94, 105, 109, 110, 112, 113, 114, 115,
116, 122, 129, 132, 134, 138, 139, 140, 143, 145, 147, 148, 150, 160, 227, 236,
254, 261, 262, 269, 279, 280, 281, 282, 283, 287, 340, 353, 354, 355, 359,
360, 365, 367, 401, 403, 405, 410, 427, 442, 485, 486, 497, 498, 505, 627, 694
Neoliberalismo 19, 110, 111, 112, 123, 129, 134, 136, 137, 138, 139, 141,
142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 174, 175, 177, 195, 210,
211, 219, 223, 226, 227, 231, 234, 283, 309, 310, 314, 316, 317, 347, 356,
362, 363, 395, 396, 400, 422, 438, 465, 466, 467, 470, 473, 475, 476, 477,
478, 479, 480, 484, 486, 501, 503, 505, 506, 616, 617, 623, 624, 627, 628,
630, 636, 643, 684, 687, 689, 690, 692, 713, 719
P
Política pública 251, 356, 360, 451, 600, 611, 632, 638, 640
Políticas sociais 110, 206, 212, 216, 353, 354, 355, 356, 358, 359, 362, 365,
366, 367, 504
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 737
Q
Questão racial 57, 486, 501, 507, 549, 682, 691
R
Racismo 59, 62, 71, 72, 76, 77, 78, 85, 86, 97, 112, 113, 114, 116, 122, 125,
132, 133, 145, 146, 149, 150, 155, 156, 158, 160, 163, 165, 166, 178, 183,
185, 186, 210, 246, 251, 255, 256, 257, 261, 262, 263, 264, 273, 277, 279,
280, 284, 290, 295, 300, 302, 303, 304, 355, 360, 401, 402, 403, 410, 411,
412, 413, 425, 427, 431, 487, 501, 506, 508, 509, 510, 517, 518, 526, 527,
537, 549, 559, 568, 570, 573, 575, 606, 615, 617, 619, 620, 621, 622, 623,
624, 625, 626, 627, 628, 671, 677, 678, 679, 680, 681, 682, 683, 684, 685,
686, 687, 690, 691, 692, 693, 694, 695
Racismo de estado 97, 112, 113, 183, 185, 186, 251, 256, 261, 263, 264,
273, 277, 279, 284, 678
Racismo estrutural 146, 149, 165, 257, 295, 302, 303, 402, 410, 411, 501,
506, 510, 517, 537, 573, 575
Rap 61, 62, 300, 338, 565, 566, 567, 568, 569, 570, 571, 572, 573, 574
S
Saúde mental 105, 174, 274, 284, 286, 318, 453, 536, 538, 539, 577, 579,
580, 581, 582, 583, 584, 585, 591, 594, 596, 597, 598, 624, 627, 652, 656,
661, 663, 692, 693, 715, 729
Segregação 68, 70, 72, 146, 164, 209, 210, 247, 273, 279, 280, 355, 427,
431, 432, 434, 486
Seletividade punitiva 169, 170, 171, 173, 174, 175, 176, 178, 181, 498,
503, 508
Sexualidade 62, 63, 130, 131, 157, 200, 214, 325, 338, 342, 350, 354, 371,
379, 380, 383, 390, 416, 417, 421, 422, 425, 441, 481, 511, 512, 513, 514,
522, 526, 527, 546, 549, 553, 575, 606, 625, 669, 670
Silenciamento 220, 229, 268, 302, 312, 375, 407, 487, 491, 492, 495, 496,
501, 506, 507, 508, 514, 523, 524, 537, 553, 619, 623, 630, 665, 691
738
Situação de rua 119, 217, 358, 401, 427, 430, 431, 433, 434, 435, 437, 438,
443, 447, 462, 620, 638
Socioeducação 118, 122, 124, 127, 170, 171, 172, 174, 175, 178, 179, 180,
181, 209, 213, 214, 501, 505, 509
Subjetividade 34, 59, 102, 105, 108, 110, 153, 154, 155, 156, 157, 188, 191,
221, 222, 223, 225, 234, 235, 244, 254, 275, 284, 287, 294, 303, 308, 309,
310, 312, 314, 316, 317, 319, 320, 322, 323, 327, 329, 336, 338, 339, 344,
346, 348, 349, 350, 352, 354, 370, 373, 374, 380, 383, 389, 391, 392, 394,
395, 396, 397, 398, 418, 419, 422, 430, 436, 437, 440, 465, 466, 468, 470,
471, 473, 474, 476, 477, 478, 498, 506, 517, 518, 530, 548, 566, 567, 568,
573, 587, 590, 598, 603, 605, 615, 616, 617, 623, 624, 625, 636, 638, 641,
661, 665, 672, 678, 681, 685, 688, 689, 690, 697, 708, 723
T
Terapêutico 274, 277, 280, 343, 517, 544, 580, 584, 588, 591, 593, 617, 624,
636, 637, 645, 646, 647, 648, 649, 650, 651, 654, 655, 656, 657, 658, 660,
661, 662, 663, 691
Territorialidade 323, 331, 334, 489, 631, 632
Territorialidades 105, 108, 157, 322, 336, 465, 473, 477, 478, 479, 483, 565,
567, 572, 632
U
Umbanda 514, 529, 531, 535, 536, 538, 541, 543, 544
Unidades de acolhimento 447, 453, 454, 455, 459
Uso de drogas 171, 577, 578, 579, 580, 581, 593, 594, 652, 653, 654, 658
V
Violência contra a mulher 599, 600, 601, 603, 606, 608, 609, 611, 613
Visibilidade 108, 116, 117, 129, 163, 189, 191, 192, 209, 234, 254, 307, 321,
322, 323, 324, 326, 328, 329, 332, 334, 335, 371, 372, 373, 425, 430, 438,
527, 557, 579, 639, 667, 706
SOBRE OS AUTORES
Adriana Elisa de Alencar Macedo
Possui graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Espe-
cialização em Saúde Mental pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Mestre
em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutora em Psicologia
pela UFPA. Doutorado sanduíche na Universidade de Évora – Bolsista CAPES/2017.
PDSE 88881.134010/2016-01. Já atuou como Psicóloga no projeto Sentinela no
município de Bragança-Pará com crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Psicóloga na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Pará (FASEPA) – 2006
a 2018. Conselheira secretária do VIII plenário, gestão 2013 – 2016 e conselheira
vice-presidente do IX plenário, gestão 09/2016-09/2019 pelo Conselho Regional de
Psicologia- Pará e Amapá (CRP10). Coordenadora do Grupo de Trabalho de infân-
cias e juventudes do CRP10. Presidenta da Comissão de Orientação e Fiscalização
(COF) do CRP10. Conselheira Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
do Pará (CEDCA) – 2013 a 2017. Membro do Comitê Estadual de Enfrentamento à
Violência Sexual Contra a Criança e o Adolescente – Pará – 2013 a 2018. Conselheira
do conselho municipal de assistência social de Belém (CMAS) – 2017 a 2018. Inte-
grante do Fórum do direito da criança e adolescente do Pará – FDCA – 2013 a 2018.
Integrante da coordenação do núcleo ABRAPSO – BELÈM de 2015 a 2017. Entre
2015 e 2017 atuou como docente no Plano Nacional de Formação de Professores da
Educação Básica (PARFOR). Atualmente compõe a comissão de gênero e diversidade
sexual do CRP 16. Representante titular do CRP 16 no Conselho Estadual de Defesa
dos Direitos da Mulher do Estado do Espírito Santo ? CEDIMES e representante
suplente do CRP 16 no Conselho Estadual LGBT do Espírito Santo. Pesquisa sobre
subjetividades, sistema socioeducativo, infâncias e juventudes. Tem experiência na
área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente nos
seguintes temas: saúde mental, direitos humanos, violências, medidas socioeducativas,
políticas públicas, SINASE, história oral e pesquisa documental.
Amanda Cappellari
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2017)
e mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (2019). Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
Integrante do grupo de pesquisa GEPS.
Camila Bohn
Graduanda em Psicologia (UFRGS). Bolsista de iniciação científica (PIBIC/UFRGS)
e integrante do Coletivo Políticas do Narrar.
Dolores Galindo
Graduada em Psicologia-UFPE. Mestre e Doutora em Psicologia Social na PUC-SP.
Professora associada IV de Psicologia Social na UFMT.
Lutiane de Lara
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC/2006), Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS/2009 – Bolsa CNPq) e Dou-
torado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS/2015 – Bolsa CAPES). Atualmente realiza Pós-doutorado com bolsa
CNPq vinculado ao GEPS (Grupos de estudos em Psicologia Social, Políticas Públicas
e Produção de Subjetividade) do PPGPSI/UFRGS, coordenado pela professora Dra.
Lílian Rodrigues da Cruz. Trabalha com psicoterapia com ferramentas esquizoana-
líticas. Tem experiência na área da Psicologia, Saúde Coletiva e Políticas Públicas
com ênfase em Psicologia Social e Clínica Política. Pesquisa, principalmente, dentro
das áreas que envolvem os seguintes temas: Direitos Humanos, Neoliberalismo,
Biopolítica, Políticas Públicas de Saúde e Processos de Subjetivação.
Marilda Castelar
Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, Mestra em Multimeios pela UNICAMP,
Conselheira da Política Nacional de Saúde Mental da Bahia e Atuação de Profissio-
nais de Saúde nas Políticas Públicas para as Mulheres, editora científica da Revista
Psicologia Diversidade e Saúde, professora adjunta do Mestrado Profissional em
Psicologia e Intervenções em Saúde na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.