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Brutalismos, necropolítica e biopolíticas: governamentalidades em quadros de


guerra que tornam vidas precárias: encontros entre Michel Foucault, Achille
Mbembe e Judith Butler

Book · November 2023

CITATIONS READS

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7 authors, including:

Flávia Cristina Silveira Lemos Dolores Galindo


Federal University of Pará Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
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SEE PROFILE SEE PROFILE

Igor Santos André Benassuly Arruda


Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará UNIFESSPA
11 PUBLICATIONS 1 CITATION 12 PUBLICATIONS 5 CITATIONS

SEE PROFILE SEE PROFILE

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ORGANIZADORES:
Flávia Cristina Silveira Lemos | Dolores Galindo | Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Aluísio Ferreira de Lima | João Paulo Pereira Barros | Silvio José Benelli
Felipe Sampaio de Freitas | Igor Do Carmo Santos | Daiane Gasparetto da Silva
André Benassuly Arruda | Daniele Vasco Santos | Letícia Lages Assunção
ORGANIZADORES:
Flávia Cristina SilveiraRibeiro
Marcelo Lemos Mesquita
| Dolores Galindo | Pedro
| Luciana Pauloda
Batista Gastalho
Silva de Bicalho
Aluísio Ferreira de Lima | João Paulo Pereira Barros | Silvio José Benelli
Felipe Sampaio de Freitas | Igor Do Carmo Santos | Daiane Gasparetto da Silva
André Benassuly Arruda | Daniele Vasco Santos | Letícia Lages Assunção
Marcelo Ribeiro Mesquita | Luciana Batista da Silva

BRUTALISMOS
BRUTALISMOS
NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS
NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS
GOVERNAMENTALIDADES EM QUADROS DE GUERRA
QUE TORNAM VIDAS
GOVERNAMENTALIDADES PRECÁRIAS
EM QUADROS DE GUERRA
QUE TORNAM VIDAS PRECÁRIAS
Encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler
Encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler

COLEÇÃO
COLEÇÃO
Transversalidade
Transversalidade e Criação
e Criação
Ética,
Ética, Estética
Estética e Política
e Política
Volume
Volume 19 19
Flávia Cristina Silveira Lemos | Dolores Galindo | Pedro Paulo Gastalho
de Bicalho | Aluísio Ferreira de Lima | João Paulo Pereira Barros | Silvio
José Benelli | Felipe Sampaio de Freitas | Igor do Carmo Santos | Daiane
Gasparetto da Silva | André Benassuly Arruda | Daniele Vasco Santos | Leticia
Lages Assunção | Marcelo Ribeiro Mesquita | Luciana Batista da Silva
(Organizadores)

BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA
E BIOPOLÍTICAS:
GOVERNAMENTALIDADES EM
QUADROS DE GUERRA QUE TORNAM
VIDAS PRECÁRIAS: encontros entre Michel
Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: O Autor

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

B886

Brutalismos, necropolítica e biopolíticas: governamentalidades em quadros de guerra que


tornam vidas precárias: encontros entre Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler / Flávia
Cristina Silveira Lemos et al. (organizadora). – Curitiba : CRV, 2023.
758 p. (Coleção Transversalidade e Criação: Ética, Estética e Política, v. 19)

Bibliografia
ISBN Coleção 978-85-444-1750-8
ISBN Volume Digital 978-65-251-4018-6
ISBN Volume Físico 978-65-251-4017-9
DOI 10.24824/978652514017.9

1. Psicologia 2. Brutalismos – Necropolítica 3. Neoliberalismos 4. Psicologia –


Subjetividades 5. Saúde – Sociedade I. Lemos, Flavia Cristina Silveira. et al. org. II. Título
III. Série.

CDD 194 CDU 1


Índice para catálogo sistemático
1. Michel Foucault – 194
2. Achille Mbembe – 199
3. Judith Butler – 191

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) João Ricardo Lebert Cozac (PUC-SP)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcelo Porto (UEG)
Élsio José Corá (UFFS) Marcia Alves Tassinari (USU)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Gloria Fariñas León (Universidade Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
de La Havana – Cuba) Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
de La Havana – Cuba) Virgínia Kastrup (UFRJ)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Luciano Rodrigues Costa (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
A quem se dedica à educação pública de qualidade e gratuita.
AGRADECIMENTOS
A todas as universidades das Regiões Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste
e Sul envolvidas com a participação nos textos desta coletânea nacional que articula
textos de educação inclusiva com a saúde coletiva a partir de um conjunto de processos
temáticos e analíticos das Psicologias e áreas afins. Nossa gratidão aos estudantes da
graduação e da pós-graduação presentes com seus estudos e experiências de estágio
e extensão. Nosso obrigada aos(às) pesquisadores(as) que enviaram resultados dos
trabalhos desenvolvidos em diversas universidades brasileiras de Norte a Sul do Brasil.
As universidades que estão presentes nesta coletânea nacional envolvem todas
as regiões do país e inúmeros estados brasileiros, de modo transdisciplinar. Os estudos
presentes nesta coletânea são resultados de pesquisas da pós-graduação em rede com a
graduação e diversas políticas públicas. Estão entre as universidades participante deste
livro: USP; UNESP; UFPA; UEPA; UFMG; UEMG; UFRGS; UFRA; IFPA; UFAM;
UFES; UFF; UERJ; UNIR; UFRJ; UFC; UFRN; UFT; UFCAT; UFMT; UFRRJ;
UNIFESPA; Universidade de Blumenau/FURB-SC; Escola Bahiana de Medicina e
Saúde Pública; Faculdade Católica Dom Orione-TO; Faculdade Estácio, em Belém
do Pará; Faculdade Estácio, em Castanhal-PA, Faculdade Estácio em Ananindeua-PA;
UNINASSAU, CESUPA e UNAMA.
As diferenças não são o problema, o problema é a hierarquia.
(Silvia Federici)

Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão


generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do
desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro.
(Milton Santos)

Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita


revela: os medos, as raivas, a força de uma mulher sob uma
opressão tripla ou quádrupla. Porém, neste ato reside nossa
sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder.
(Gloria Anzaldúa)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO,����������������������������������������������������������������������������������������� 19

PARA UMA AGONÍSTICA DA PALAVRA: a parresía e os direitos dos


governados em Michel Foucault��������������������������������������������������������������������� 21
Rodrigo Diaz De Vivar Y Soler

DA MULTIDÃO AO PÚBLICO NA TERCEIRA REPÚBLICA:


aproximações e diferenças entre Gustave Le Bon e Gabriel Tarde���������������� 37
Felipe Figueiredo De Campos Ribeiro
Pedro Carvalho Souza

CAPITAL RACIAL E AS CIFRAS DO GENOCÍDIO: a contabilidade não


deve ser um fator objetivo e isolado���������������������������������������������������������������� 57
Jair da Costa Júnior

MORTES CHEIAS DE VIDA E VIDAS CHEIAS DE MORTE:


necropolítica e violência letal contra crianças e adolescentes no contexto
do Rio de Janeiro�������������������������������������������������������������������������������������������� 87
Laíza da Silva Sardinha
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

DINÂMICAS DA VIOLÊNCIA EM PERIFERIAS URBANAS DO


CEARÁ: diálogos teóricos entre as categorias “necropolítica’ e
“capitalismo gore”������������������������������������������������������������������������������������������ 105
João Paulo Pereira Barros
Carla Jéssica de Araújo Gomes
Luis Fernando de Souza Benício
Aldemar Ferreira da Costa
Raimundo Cirilo de Sousa Neto
Jéssica Silva Rodrigues
Laisa Forte Cavalcante
Lívia Lima Gurgel
Larissa Nunes Ferreira
Lúcia Maria Bertini

DO ALTO TÁ PALMIADO: uma reflexão acerca dos processos de


exclusão, criminalização e extermínio da juventude, a partir do trabalho
do(a) psicólogo(a) com medidas socioeducativas em meio-aberto na
cidade de Vitória-ES�������������������������������������������������������������������������������������� 117
Luizane Guedes Mateus

NEOLIBERALISMO E NECROPOLÍTICA: um necessário poder de


morte para um sistema que mata������������������������������������������������������������������ 129
Rafael Coelho Rodrigues
O PARADOXO DOS CORPOS DESCOLONIZADOS: a luta pelo
exercício antirracista em uma clínico-política da branquitude����������������������� 153
Camila Bohn
Brida Emanoele Spohn Cezar
Luis Artur Costa
Matheus da Cunha Salles
Monique Navarro Souza
Thayna Miranda da Silva

MECANISMOS DE EXCLUSÃO SOCIAL DA JUVENTUDE


BRASILEIRA: evasão escolar e seletividade punitiva��������������������������������� 169
Mariane Lopes Bechuate
Giuliana Volfzon Mordente
Fernanda Bottari Lobão dos Santos
Hebe Signorini Gonçalves

AMAZÔNIA E BIOPODER: racismo de estado e de sociedade no deixar


morrer e matar em nome da vida������������������������������������������������������������������ 183
Igor do Carmo Santos
Flávia Cristina Silveira Lemos
Paula Arruda
André Benassuly Arruda
Vitor Igor Fernandes Ramos
Ragner Santiago Boaventura
Michelle Ribeiro Corrêa

BIOPOLÍTICA E HISTÓRIAS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE


NO BRASIL�������������������������������������������������������������������������������������������������� 203
Thaís de Souza Nogueira
Flávia Cristina Silveira Lemos
Dolores Galindo
Márcia Roberta de Oliveira Cardoso
Patrícia Furtado Félix
Ragner Santiago Boaventura
Matheus Silva de Souza

A PRODUÇÃO DE PRECARIEDADE DA VIDA: uma clivagem entre


humanos e não humanos������������������������������������������������������������������������������ 219
Leticia Lages Assunção
Lílian Gabriela Rodrigues Lobato

DO IMPOSSÍVEL ESTADO-NAÇÃO ÀS EXPERIÊNCIAS DE


INIMIZADE: Brasil e a mitologia do “brutalismo isolado”����������������������������� 239
Caio Monteiro Silva
Pedro Renan Santos de Oliveira
Igor Monteiro Silva
Vico Dênis Sousa de Melo
CENAS DA VIDA (MORTE) COTIDIANA: infames, racismo de estado e
necropolítica�������������������������������������������������������������������������������������������������� 261
Fabio Santos Bispo
Luizane Guedes Mateus
Luziane de Assis Ruela Siqueira

CRIME E LOUCURA: racismo de estado e políticas de morte em um


manicômio judiciário�������������������������������������������������������������������������������������� 273
Jullyanne Rocha São Pedro
Maria Teresa Nobre

JUVENTUDE NEGRA E “HISTÓRICOTIDIANO” DO MUNICÍPIO DE


VITÓRIA-ES: na liminaridade entre o choro e a alegria������������������������������� 289
Adriana Elisa de Alencar Macedo
Elisa Fabris de Oliveira
Rovana Patrocinio Ribeiro
Sandra Mara Pereira

PANDEMIA E DIGITALIZAÇÃO: cartografias da brutalização da vida������� 307


Patrícia dos Passos
Lutiane de Lara
Lilian Rodrigues da Cruz

PESQUISA-INTERVENÇÃO COM UM COLETIVO LGBTQIA+:


enfrentamentos e insurgências na periferia do Grande Bom Jardim, em
Fortaleza������������������������������������������������������������������������������������������������������� 321
Tadeu Lucas de Lavor Filho
Luciana Lobo Miranda
Violeta Maria Siqueira de Holanda

A CARNE CONVULSIONADA: possessão, histeria e fenômenos


totalitários������������������������������������������������������������������������������������������������������ 341
Samuel Iauany Martins Silva
Silvio José Benelli

NECROPOLÍTICA: efeitos nas políticas sociais na criminalização de


adolescentes no contemporânea������������������������������������������������������������������ 353
Carmen Sílvia Righetti Nóbile
Luciana Batista da Silva

VIOLÊNCIAS ESTRUTURAIS PATRIARCAIS RELATADAS


POR “PRESOS QUE MENSTRUAM”: uma análise da prática da/o
psicóloga/o a partir de estudos feministas���������������������������������������������������� 369
Cássia Silva Bastos Silva
Fernanda dos Santos Brito
Jessica O. Goulart Rodrigues
Barbara Araújo Sordi
Márcio Bruno Barra Valente
AGRIMENSAR E DIAGRAMAR AS SUPERFÍCIES: a genealogia
como método de pesquisa em educação������������������������������������������������������ 389
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler
Rafael Araldi Vaz
Camila Gabriela Pollnow
Patricia Tatiana Raasch

NECROPOLÍTICA E SOBREVIDA DA ESCRAVIDÃO: notas sobre


violência obstétrica em corpos de mulheres negras e não brancas������������� 401
Tatiana de Souza Santos Neves
Maria da Conceição Gomes da Silva
Aluísio Ferreira de Lima

CONDIÇÕES DE RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DE


GÊNERO: contribuições da teoria crítica feminista contemporânea e da
psicologia social crítica���������������������������������������������������������������������������������� 415
Stephanie Caroline Ferreira de Lima
Aluísio Ferreira de Lima

NECROPOLÍTICA, DESFILIAÇÃO SOCIAL E PESSOAS EM


SITUAÇÃO DE RUA������������������������������������������������������������������������������������ 427
Daiane Gasparetto da Silva
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ana Carolina Farias Franco
Daniele Vasco Santos
Heidyane Katrine Santos Moreno
Matheus Silva de Souza

TRAJETÓRIAS INTERROMPIDAS: para pôr fim à destituição do


Estado ao poder familiar������������������������������������������������������������������������������� 445
Caroline Carmona Vasques Mata
Hebe Signorini Gonçalves

A CAPTURA DA “BÍOS” NA “ZOÉ” E A PRECARIZAÇÃO DA VIDA


NAS TERRITORIALIDADES NEOLIBERAIS�������������������������������������������� 465
Gleidson Gonçalves Queiroz
Fernando Luiz Zanetti

VIDAS PRECÁRIAS, TERRITORIALIDADES, ÉTICA E


RESISTÊNCIAS������������������������������������������������������������������������������������������� 483
Kellen Maria Sodré Machado
Lílian Rodrigues da Cruz

MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E AS AUDIÊNCIAS DE


APRESENTAÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO��������������������������� 499
Fernanda Bottari Lobão dos Santos
Mariane Lopes Bechuate
Hebe Signorini Gonçalves
HOJE EU ACORDEI COM MEDO, MAS NÃO CHOREI: narrativas
autobiográficas sobre infância, psicologia, gênero e sexualidade���������������� 511
Iasmin Sharmayne Gomes Bezerra
Benjamin Vanderlei dos Santos

NO TERREIRO O ADIJÁ É TOCADO... A PSICOLOGIA IRÁ ESCUTA


O CHAMADO?��������������������������������������������������������������������������������������������� 529
Vincent Abiorana
Juliana da Silva Nóbrega

LITERATURA E INTERSECCIONALIDADES: resistência feminina


decolonial������������������������������������������������������������������������������������������������������ 545
Adrieli Pacheco Sperandir
Amanda Cappellari
Lilian Rodrigues da Cruz

TRILHAR A CIDADE ESCUTANDO O RAP: reflexões sobre vidas e


territorialidades urbanas�������������������������������������������������������������������������������� 565
Júlia de Carvalho dos Santos
Sandy Hellen de Lima Cavalcante Santos
Cristian Emanuel Silva de Lima
Ricardo Ferreira Marques
Simone Maria Hüning

SAÚDE MENTAL, USO DE DROGAS E GESTÃO AUTÔNOMA


DA MEDICAÇÃO (GAM): inquietações e experiências em diferentes
territórios������������������������������������������������������������������������������������������������������� 577
Ana Karenina de M. Arraes Amorim
Indianara Maria Fernandes Ferreira
Leandro Roque da Silva
Wamberto Silva Medeiros

ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES: práticas


de psicólogas em serviços especializados���������������������������������������������������� 599
Melissa Dias dos Santos
Alice Oliveira Silva dos Santos
Verena Souza Souto
Marilda Castelar

INCIDÊNCIAS ÉTICAS E POLÍTICAS NA CIÊNCIA PSICOLÓGICA:


problematização sobre a colonialidade nos modos de atender e cuidar de
mulheres negras�������������������������������������������������������������������������������������������� 615
Fernanda Cristine dos Santos Bengio
Rafaele Habib Souza Aquime
Thiago de Sousa Soares
Mônica Ewans Muniz Da Costa
O ANALISADOR TERRITÓRIO COMO EIXO ORGANIZATIVO
DO TRABALHO NO CREAS EM UM MUNICÍPIO DA AMAZÔNIA
PARAENSE�������������������������������������������������������������������������������������������������� 631
Rafaele Habib Souza Aquime
Valber Luiz Farias Sampaio
Cyntia Santos Rolim
Péricles de Souza Macedo

O INTOLERÁVEL DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS


BRASILEIRAS: chamado a um grupo de informações sobre as
comunidades terapêuticas���������������������������������������������������������������������������� 645
Túlio Kércio Arruda Prestes
Pablo Severiano Benevides
Paulo Henrique Albuquerque do Nascimento

HISTÓRIA ORAL, MICRO-HISTÓRIA E A PESQUISA DOCUMENTAL


COM GRUPOS SUBALTERNIZADOS������������������������������������������������������� 665
Daiane Gasparetto da Silva
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ana Carolina Farias Franco
Lívia Valeska Santana Souza
Cristiane de Souza Santos
Ciro César da Silva Lopes
Anne Caroline Dias Pragana

PSICOLOGIA NA AMÉRICA LATINA E A QUESTÃO DO RACISMO


COMO GOVERNAMENTALIDADE������������������������������������������������������������ 677
André Benassuly Arruda
Flávia Cristina Silveira Lemos
Bruno Jaý Mercês de Lima
Leticia Lages Assunção
Lucíola Santana Pastana Silva
Alan Christian de Souza Santos

O QUE ERA PRA SER E NÃO FOI: o conflito na produção dos


atingidos por grandes projetos em Barcarena, Par������������������������������������ 697
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues

UBERIZAÇÃO: precariedade da vida mediada pelo trabalho���������������������� 713


Lucivaldo da Silva Araújo
Raphael Brito Neves
Ingrid Bergma da Silva Oliveira

ÍNDICE REMISSIVO����������������������������������������������������������������������������������� 733

SOBRE OS AUTORES�������������������������������������������������������������������������������� 739


APRESENTAÇÃO
O presente livro busca abordar questões importantes da sociedade contempo-
rânea, em especial, as que implicam em interrogar violências, violações de direitos
e intoleráveis do presente. São textos escritos por pesquisadores(as) que lutam na
trincheira das margens em que o Estado Democrático de Direito tem sido desgastado
e intensivamente restringido, no neoliberalismo.
Observa-se nos capítulos a maturidade dos trabalhos e de quem os produziu
em termos das análises realizadas e da crítica afinada entre os textos, autores(as),
alianças universitárias e dos grupos de pesquisa que estão representados pelos escritos
potentes apresentados.
PARA UMA AGONÍSTICA DA
PALAVRA: a parresía e os direitos dos
governados em Michel Foucault1
Rodrigo Diaz De Vivar Y Soler

Introdução

A finalidade deste texto consiste em pensar as correlações entre a parresía e


os direitos dos governados em Michel Foucault. Nos seus últimos anos de vida o
intelectual francês desenvolve o que, grosso modo, chamamos de história política
da governamentalidade. Esse projeto envolve diferentes perspectivas pelas quais
Foucault ocupa-se em problematizar as formas pelas quais as estratégias de governo
envolvem, desde o controle das condutas, como também à produção de diferentes
tecnologias da constituição do sujeito. No contexto da parresía essa história política da
governamentalidade envolve, as maneiras pelas quais a coragem da verdade envolve
o governo de si e dos outros a partir de um diagrama que perfila as experiências
políticas, éticas e estéticas, das práticas de veridicção.
Ao elaborar esse diagnóstico Foucault (2008) demonstra como as relações
entre verdade, poder, resistência e governo devem ser compreendidas como bifur-
cações cujos efeitos vão além das maneiras habituais de pensarmos às lutas polí-
ticas e sociais do nosso tempo presente. Dessa forma, é correto afirmarmos que o
emblema da parresía não é somente uma construção histórica da filosofia antiga,
mas a composição de um quadro cuja performance das atitudes das escolas filosó-
ficas da Antiguidade como o estoicismo, o epicurismo e o cinismo compreendem
as ressonâncias que são inscritas no que Foucault (1994) chama de direitos dos
governados, uma possível experiência dos elementos pelos quais nossas resistências
tornam-se possíveis, pois:

Depois de tudo, somos todos governados e, sob este título, solidários. Porque
pretendem ocupar-se da felicidade das sociedades, governos arrogam-se o direito
de passar à conta dos lucros e perdas a infelicidade dos homens que suas decisões
provocam e que suas negligências permitem. É um dever dessa cidadania inter-
nacional sempre fazer valer, aos olhos e ouvidos dos governos, as infelicidades
dos homens pelas quais são responsáveis. A infelicidade dos homens não deve
jamais ser um resto mudo da política. Ela funda um direito absoluto de levantar-
-se e dirigir-se àqueles que detêm o poder. É preciso recusar a divisão de tarefas
que, muito frequentemente, propõe-nos: aos indivíduos, indignar-se e falar; aos

1 Este texto foi concebido a partir do capítulo de minha tese – Dos Direitos dos Governados em Michel Fou-
cault: crítica à governamentalidade e genealogia das práticas de insurreição – defendida junto ao PPGFIL
da UNISINOS em 2019.
22

governos refletir e agir. É verdade: os bons governos, gostam da santa indignação


dos governados, por mais que permaneça lírica. Creio que é preciso dar-se conta
de que, muito frequentemente, são os governos que falam, só podem e querem
falar. [...] A vontade dos indivíduos deve inscrever-se em uma realidade de que
os governos quiseram reservar-se o monopólio, esse monopólio que é preciso
arrancar pouco a pouco e a cada dia (FOUCAULT, 1994, p. 707-708).

Essa perspectiva adotada por Foucault em relação à luta política empreendida


pelos governados, sem sombra de dúvidas, faz emergir uma condição histórica dos
agenciamentos políticos da nossa atualidade. Entretanto, tal perspectiva não se ins-
creve em uma alegoria das instâncias jurídicas e normativas tradicionais. A prática
dos direitos dos governados reflete uma resistência política pela insurgência dos
movimentos populares, dos bloqueios, das passeatas e das greves gerais captadas
pelo olhar atento da genealogia. Acima de tudo, as provocações lançadas por Fou-
cault nos fazem perceber como a era da biopolítica abre uma dobra no que se refere
as práticas de insurreição cuja constatação é: nenhum governo poderá – seja liberal,
seja conservador – escapar das revoltas dos governados.
Por mais que a biopolítica nos ensine que as atrocidades cometidas pelos dis-
positivos de governamentalização da vida estejam diretamente atreladas aos aparatos
políticos e, que as formas de exceção repousam pacientemente nos umbrais do nosso
tempo presente, as insurreições dos governados vem nos mostrar que, a proliferação
de novas formas de subjetividade, operam o corte das formas miúdas de fascismo
aos quais somos assujeitados.
É nesse sentido, que a parresía deve ser compreendida como uma atitude per-
manente da atividade pela qual sinalizam-se os elementos de uma crítica perante
as estratégias de saber, as práticas de poder e os processos de subjetivação. É desse
modo, que nos ocuparemos em pensar a perspectiva de uma agonística da palavra
como estratégia de resistência dos governados.

“Palavras são como flechas no coração do poder”: genealogia da


parresía e os direitos dos governados

Governo de si, governo dos outros. Esse é o fundamento de uma estreita rela-
ção entre a filosofia como forma de vida e as práticas dos direitos dos governados.
Por outro lado, essa também é uma das razoes pelas quais Foucault (2008) pretende
analisar os modos pelos quais os sujeitos podem construir suas experiências a partir
do que ele mesmo chamou de ontologia histórica de nós mesmos (FOUCAULT,
1984), isto é, a perspectiva política pela qual à atividade do intelectual se ocupa com
a problematização das práticas de poder e a visualização dos elementos alegóricos
das práticas de insurreição.
Entretanto, antes de prosseguirmos é necessário levantarmos o seguinte ques-
tionamento: que lugares, ocupam as vozes insurgentes dos governados no contexto
dessa ontologia histórica de nós mesmos proposta por Foucault? Uma das possibi-
lidades para a resposta de tal pergunta, recai em torno da correlação dos problemas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 23

de governo, das práticas de veridicção e da relação do sujeito consigo mesmo por


meio da parresía. Ao final de A Hermenêutica do Sujeito Foucault (2016) aponta
que a parresía é uma ilustração pela qual o sujeito afirma uma determinada verdade
colocando-se em risco iminente. Já em O Governo de Si e dos Outros Foucault
(2008), a problemática da parresía é retomada, como uma forma do sujeito exercer
a prática do governo pela atitude aristocrática da coragem e da fala franca. Desse
modo, é correto afirmarmos que, no contexto das artes de governo a parresía, é de
fundamental importância para o exercício de uma experiência política autêntica.
Em relação aos direitos dos governados, a parresía se configura como um pro-
cedimento responsável pela emergência de novas formas de subjetividades capazes
de promover outros modelos de governo para além dos aparelhos de captura da
biopolítica. Nesse sentido, ao promover uma história da parresía Foucault (2008)
acaba por constituir um duplo procedimento: em primeiro lugar, pelo fato da parresía
configurar-se como um emblema das práticas de governo. Em segundo lugar, pelo
fato de que o elemento fundamental da parresía – no caso, a coragem da verdade –
se constitui na aleturgia, ou seja, um modo de se enunciar a verdade a partir de um
ethos. Entretanto, tal ethos está circunscrito em um elemento de problematização
cujo desdobramento se inscreve no que Foucault (2008) chama de modo de vida ou
agonística da palavra.
A chave para a compreensão desse duplo procedimento consiste portanto, na
articulação empreendida por Foucault entre o governo de si e dos outros e a filosofia
como forma de vida. Certamente influenciado por toda uma corrente de pensamento
cuja proveniência remonta aos trabalhos de Dumézil (1995), Hadot (1995), Veyne
(2014) e Jaeger (1988) Foucault, procura compreender como essa prática pode ser
um importante indicativo para a contextualização de formas alegóricas de existências
perfiladas pela autonomia, pela coragem da verdade e pela adoção de formas de vida
responsáveis por interpelar os aparelhos de capturas. No mundo antigo, a coragem
da verdade era constantemente evocada por conta de seu aspecto longitudinal, qual
seja, o do pensamento configurar-se como uma prática dos modos de governo em que
o sujeito afirma determinada verdade colocando em risco a sua própria existência.
Tal opinião é compartilhada por Rojas ao afirmar que:

Em seu curso no Collège de France ministrado entre janeiro de 1982, Foucault


questionou a historicidade da constituição filosófica do sujeito nas suas relações
com os jogos da verdade. Ao resgatar a história das práticas de si em movimento,
mostrando que elas são historicamente constituídas e passam por transformações,
Foucault procurou mostrar que tal problemática não está ligada à verdade de
acordo com uma necessidade transcendental, mas em que medida essas relações
são historicamente constituídas, não por uma essência, mas por formas históricas
do sujeito em relação a si mesmo. Já não se trata de um assunto em termos de
uma substância, mas em termos de um eu variável e formal. Mostrando assim,
a “precariedade” histórica de tal problemática como necessidade de se livrar da
figura do sujeito jurídico-moral determinado pela obediência à lei e à objetivação
do sujeito do conhecimento, para fazer emergir outras possibilidades de consti-
tuição do sujeito (ROJAS, 2012, p. 5).
24

Mas, as questões que permanecem são: quais as ressonâncias da parresía no con-


texto dos direitos dos governados? Quais as implicações de um conceito tão distante da
nossa racionalidade política contemporânea? O problema político da parresía consiste
na coragem do sujeito em produzir certa ordem específica de discurso responsável por
garantir, por meio da audácia, que o governante seja interpelado constantemente quanto
ao exercício do seu governo. Trata-se, para Foucault (2008) de pensar os efeitos da
parresía como elemento fundamental responsável por lembrar todo governante que
além de governar os outros, ele deve governar, primeiramente, a si mesmo.
Tal constatação nos conduz, ao fato de que o procedimento genealógico foucaul-
tiano em torno do governo como objeto de análise nos cursos Segurança, Território,
População (2011), Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2012), Do Governo dos
Vivos (FOUCAULT, 2013), Subjetividade e Verdade (FOUCAULT, 2017), A Herme-
nêutica do Sujeito (FOUCAULT, 2016), O Governo de Si e dos Outros (FOUCAULT,
2008) e A Coragem da Verdade (FOUCAULT, 2009) configura-se como um elemento
imprescindível para os agenciamentos das lutas políticas do tempo presente. Desde
a emergência da noção de governamentalidade, passando pelo nascimento da razão
de Estado até o estudo sobre as práticas de si. Ocorre que, todas essas formas de
governo parecem encontrar na parresía o ponto crucial que conecta o governo de si
e dos outros ao papel da crítica no contexto da atividade política. Não por acaso que
Foucault, mostra-se inclinado em perceber a crítica como tarefa de uma ontologia
histórica pela sistematização de uma atitude-limite de resistências contra as práticas
de governo provenientes da biopolítica. Nesse sentido, a relação da parresía com os
direitos do governados consiste, segundo Candiotto (2014) em perceber os efeitos
da coragem da verdade como elementos das vozes que se insurgem perante os efeitos
de governamentalização da vida. Essas vozes insurgentes, essa multiplicidade de
governados que colocam as suas próprias vidas em jogo desafiando tudo aquilo que
se julga insuperável: os sistemas corporativos, o mercado econômico, o terrorismo de
Estado, as formas de exceção travestidas de democracia, enfim um conjunto infindável
de dispositivos regulatórios que parecem desconhecer limites quanto a expropriação
das garantias fundamentais. Percebemos que é em torno dessa problematização que
Foucault (2008) formulará a hipótese sobre o valor de que a parresía efetiva-se por
meio de uma incessante atualização e, ao mesmo tempo, de uma busca pelo seu
sentido originário.
Essa busca inicia-se por meio de um texto de Plutarco (2010) cujo título é: Vidas
Paralelas. Nele, encontramos, segundo Foucault, à figura de Díon, como responsável
por ser o anfitrião de Platão (2008) em Siracusa. A respeito desse acontecimento
registrado na Carta VII, Foucault (2008) insiste que não é o discípulo de Sócrates
quem pratica a parresía, mas sim Díon. É exatamente este último o responsável por
problematizar à precariedade do governo de Dionísio:

Então, nesse texto consagrado a Dion, Plutarco lembra que Dion, jovem irmão de
Aristomaca, era um rapaz dotado de belíssimas qualidades: a grandeza da alma,
a coragem e a capacidade de aprender. No entanto, cheio de vida, jovem que era
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 25

da corte de um tirano como Dionísio, pois bem, ele havia sido habituado pouco
a pouco ao temor, à “servidão” e aos prazeres. E, por causa disso, era “cheio de
preconceitos” quer dizer que – isso em referência evidente a temas estoicos ou
estoicizantes – a própria qualidade da sua natureza não havia sido comprometida,
mas algumas opiniões falas tinham se depositado na sua alma, até o dia em que
o acaso – um gênio benevolente, diz Plutarco – fez Platão aportar na Sicília. É
aí que Dion conhece Platão, segue seu ensino e aproveita as lições que o mestre
lhe dá. Nesse momento, sua verdadeira e boa natureza reaparece e, diz ele – é aí
que se abordam as coisas – “na candura juvenil da sua alma”, Dion esperava que
Dionísio (seu tio, o tirano), “sob a influência das mesmas lições” que ele havia
recebido, experimentasse “os mesmos sentimentos” que ele havia recebido, que
ele e “se deixasse ganhar facilmente para o bem. Em seu entusiasmo, portanto,
ele fez tudo para que Dionísio entrasse em relação com Platão e escutasse suas
lições” (FOUCAULT, 2008, p. 48).

Tirania, felicidade e justiça são peças imprescindíveis para que uma dramatur-
gia parresíastica seja mais do que uma mera especulação linguística. Essa questão
é importante, para Foucault, uma vez que percorrer os horizontes de possibilidades
dessa prática, não significa categorizar os elementos de uma reflexão sobre o papel
da filosofia, mas compreendê-la como um gesto desdobrado na produção da coragem
da verdade, pois acima de tudo, praticar a fala franca compreende um ato de coragem
por parte do sujeito. A parresía designa portanto, o entrecruzamento do enunciado
ético com a atitude política do mais fraco perante o mais forte. Tal perspectiva ocu-
pa-se – independentemente do cenário – em introduzir uma prática provocativa cujas
consequências podem ser absolutamente imprevisíveis como foi o ocaso de Platão em
Siracusa. Diante de toda tirania praticada por Dionísio, Díon levanta-se no sentido de
apontar todas as deficiências da sua prática governamental, interpelando o próprio tio
a buscar nas orientações filosóficas de Platão, os elementos de uma outra prática de
governo e, consequentemente a adoção de outra forma de vida. Nesse acontecimento
conforme aponta Foucault (2008), o elemento parresiástico vale-se da convocação
da verdade, restando ao tirano duas alternativas possíveis: ou aceitar a convocação
feita por Dion ou tentar assassiná-lo. Como podemos perceber, a parresía é um traço
fundamental do vínculo formado entre o sujeito e a verdade no sentido de se procu-
rar afirmar algo, não importando as consequências desse ato. Circula em torno de
tal processo, a constatação de que nada se exige do parresiástes senão a agonística
da palavra. Tal agonística não deve ser vista como princípio estatutário, mas como
condição, como prática ontológica de governo.
Nesse sentido, é correto afirmarmos que o possível encantamento, por parte
de Foucault (2008), em relação ao exercício da parresía opera como uma fissura
voltada para a atividade estética como uma forma do sujeito interpelar as práticas
de governo. Isso significa que, no contexto dos direitos dos governados, a questão
fundamental passa pelas possibilidades de questionamento da governamentalização
da vida. Desse modo, as práticas dos governados acabam por produzir um novo
efeito de aproximação com a verdade. Uma problematização dos modos de governo
26

torna-se possível no momento em que compreendemos o vínculo com a verdade sob


a perspectiva do risco. Mais do que nunca, os limiares das vozes insurgentes dos
governados nos lembra que, embora todos possam se vincular a uma verdade, somente
os parresiástes sabem que esse vínculo lhes pode cobrar um preço muito alto. Já que,
pensar a prática parresiástica no campo dos direitos dos governados empreende o
que Foucault (2008) chama de genealogia do discurso político.
Nesse caso, a construção de tal projeto se caracteriza como uma maneira de se
proceder uma análise sobre a governamentalidade, a partir dos modos pelos quais os
sujeitos vinculam-se a determinada forma de verdade. Se pudermos pensar criticamente
com Foucault as práticas dos governados como uma ressonância dessa coragem da
verdade, poderemos compreender como tais estratégias desconstroem os universais em
que foram solidificadas as experiências políticas na nossa sociedade desde a emergência
da Modernidade. De um modo geral, o que essas práticas parecem sinalizar é que contra
toda uma regulação brutal dos modos de vida que não se enquadram nos dispositivos
de governamentalização, emergem estratégias políticas diacrônicas no sentido de pen-
sarmos conceitos como democracia e liberdade a partir das suas radicalizações. Na
opinião de Avelino (2011), o sentido político da parresía expressado pela genealogia
foucaultiana, possui como elemento central o problema do governo como prática ale-
túrgica e como processo de subjetivação. Trata-se, portanto, de uma condição, de uma
batalha, de uma intensa investigação que ultrapassa todos os limites da biopolítica, no
sentido de pensar o ato da fala franca. Desse modo, é correto afirmarmos que as práticas
de insurreição procedem, por meio da parresía, do direito de falar sobre a política de
maneira digna, pressuposto este básico de toda atitude parresiástica.
Para Foucault, a parresía é um exercício contra as atrocidades de governo. Ela
não se ampara na legitimidade da soberania, uma vez que ela se constitui como o
exercício da condição contrária aos totalitarismos pela agonística da palavra. Um
exemplo significativo dessa condição é a leitura promovida por Foucault da tragédia
Íon (EURÍPEDES, 2005). Nessa peça, Foucault se ocupa em pensar o papel político
da parresía no contexto da democracia pericliniana, mais especificamente, o final
desse modelo democrático logo após a guerra peloponésica. Ou seja, um momento
de alta turbulência pela qual Atenas passava no sentido de pensar as novas condições
para o exercício da política e da cidadania. Ademais em Íon, os possíveis impactos
das decisões tomadas pela política da época. Decisões essas que conduziriam a uma
reorganização da conjetura democrática ou mesmo da emergência da tirania. De
fato, a parresía emerge como a maneira pela qual deve ser pensada uma espécie de
gesto contra as formas arbitrárias de poder. O ensinamento presente em Íon desdobra
a condição de uso da fala franca como a grande busca dos postulantes ao governo.
Nesse contexto, a personagem de Íon é alguém que procura, antes de exercer o poder,
a partir da condição originária do uso da palavra por meio do que Foucault chama
de jogo agonístico de liberdade, pois:

O exercício de uma palavra que persuada os que são comandados e que num jogo
agonístico dê liberdade aos outros que também querem comandar é, ao meu ver,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 27

o que constitui a parresía. Como, é claro, todos os efeitos que são associados a
tal luta e a tal situação. Primeiro: que a palavra que você pronuncia não persuada
e que a multidão se volte contra você. Ou ainda, que a palavra dos outros, à qual
você cede lugar ao lado da sua, não prevaleça sobre a sua. É esse risco político
da palavra que dá liberdade a outras palavras e se atribui como tarefa, não dobrar
os outros à sua vontade, mas persuadi-los, é isso que constitui o campo próprio
da parresía. Fazer essa parresía agir no âmbito da cidade, o que é, senão preci-
samente, e de acordo com o que foi dito há pouco, manipular, tratar ao mesmo
tempo, lidar ao mesmo tempo com o logos e com a pólis? Fazer o logos agir
na pólis – logos no sentido de palavra verdadeira, palavra sensata, palavra que
persuade, palavra que pode se confrontar com as outras palavras e que só ven-
cerá graças ao peso da sua verdade e da eficiência da sua persuasão –, fazer agir
essa palavra verdadeira, sensata, agonística, essa palavra de discussão no campo
da pólis, é nisso que consiste a parresía. E essa parresía, mais uma vez, nem o
exercício efetivo de um poder tirânico nem o simples estatuto de cidadão podem
proporcionar (FOUCAULT, 2008, p. 98).

Conforme essa fala sugere, a parresía configura-se como uma prática agonística
de liberdade e, no seu esplendor, ela assumia a tarefa de se tentar dissuadir, por meio
da palavra, todos os outros. Entretanto, diferentemente da retórica – que tinha por
função narrar os fatos, os acontecimentos buscando o convencimento por parte dos
seus interlocutores – a parresía se mostra em Íon como uma prática de risco, uma vez
que a enunciação de certas verdades poderia colocar em risco a vida do personagem
central da tragédia. Segundo Portocarrero (2011), estamos diante de um risco político
da palavra, uma manifestação que, não tinha como finalidade de dobrar à figura do
outro a uma determinada vontade, mas colocar-se em perigo por meio do discurso.
O procedimento parresiástico em Íon consiste, portanto, em fazer agir o logos
sobre a polis. Esse traço nos permite pensar que, diferentemente da política tradi-
cional – que prevê a filiação do Príncipe ao regime institucional da polis, a parresía
converge a prática da fala franca a partir dos contornos da polis. Nesse sentido, a
parresía precisa ser compreendida nos distintos desdobramentos e, um desses des-
dobramentos corresponde a aproximação desse gesto com a crise política. Toda crise
política coloca em evidência a necessidade de se pensar um local para o exercício da
coragem da verdade a partir das seguintes inquietações: como exercer a fala franca
no momento de decadência das instituições democráticas? E, como praticar a par-
resía quando a democracia deixa de ser uma atividade segura? Diferentemente de
uma saída abrupta permeada por uma solução arbitrária, a parresía se coloca como
ferramenta necessária para uma crítica dos eventos no nosso tempo presente e, nesse
sentido sua prática converge para a insurreição contra toda e qualquer forma de
governo que regula à vida por meio de dispositivos de controle.
O sentido dessa prática agonística no contexto dos direitos dos governados é
sublinhado pela capacidade de pensarmos um modo aletúrgico de luta, por meio da
manifestação do direito ao uso comum pelos insurgentes, a partir do momento em que
eles procuram ocupar uma posição estratégica e combativa no cenário político con-
temporâneo. As vozes dos governados, ilustram as razões pelas quais jamais podemos
28

nos esquecer que um dos pressupostos fundamentais da democracia é a isegoria.


Eis portanto, o caráter de radicalização da prática parresiástica a qual vincula-se o
pensamento foucaultiano. Ele oportuniza pensarmos que não são somente as leis ou
o direito que limitam as ações de governo, mas também a fala franca. As estridentes
e infames vozes que problematizam os modos de controle e de governamentalização
da vida, como também colocam em suspenso todo estatuto de normalização das prá-
ticas de governamentalidade. A parresía dos governados incita-nos a perceber como,
na realidade, os paradigmas de governo só podem ser ultrapassados quando aquele
que é desprestigiado dentro das práticas de poder vem a público desarticular todas
as práticas que tensionam seus efeitos em relação às estratégias de saber, às práticas
de poder e os processos de subjetivação. Foucault procura ressaltar que a parresía
opera um triplo efeito nas relações entre o jogo agonístico, o sujeito e a verdade.
Em primeiro lugar, ela tensiona a produção discursiva dos enunciados das formas de
veridicção e a objetivação do sujeito. Em segundo lugar, ela problematiza as práticas
de poder a partir dos modos pelos quais o sujeito é governado e, por fim, ela constrói
uma crítica aos modos de constituição do sujeito por meio do governo de si e dos
outros. Seria possível rastrearmos os contornos desse triplo movimento da parresía
na nossa atualidade? Embora Foucault (2009) não deixe isso muito claro, ao final
da primeira aula de A Coragem da Verdade ele sublinha o fato de que, muito embora
não possamos vivenciar a presença da parresía em seu esplendor – como ocorrera na
Antiguidade – isso não significa que não possamos reconhecer os traços da prática
parresiástica em certos gestos performativos, pois segundo Foucault:

O discurso revolucionário, quando assume a forma de uma crítica da sociedade


existente, desempenha o papel de discurso parresiástico. O discurso filosófico,
como análise, reflexão sobre a finitude humana e crítica de tudo o que pode, seja
na ordem do saber, seja na ordem da moral, extravasar os limites da finitude
humana, desempenha um pouco o papel da parresía. Quanto ao discurso científico,
quando ele se desenrola – e não pode deixar de fazê-lo, em seu desenvolvimento
mesmo – como crítica dos preconceitos, dos saberes existentes, das instituições
dominantes, das maneiras de fazer atuais, desempenha justamente esse papel
parresiástico (FOUCAULT, 2009, p. 29).

Conforme aponta Foucault, tanto o discurso revolucionário, como o discurso


filosófico e discurso científico colocam-se como emblemas da parresía no momento
em que se problematiza uma determinada condição. Mais especificamente, no con-
texto do discurso revolucionário esse ato envolve a recusa em assujeitar-se perante
determinadas formas de governo. Na opinião de Marzocca (2013), a parresía designa
uma atitude para a prática revolucionária por meio da radicalização da democracia.
Tal constatação nos leva a perceber as ressonâncias dessa perspectiva já que a cora-
gem da verdade é de fundamental importância para que o jogo democrático não se
torne apenas uma prática burocrática e aparentemente representativa. Mais do que
nunca, a prática revolucionária nos mostra que uma democracia precisa ser pensada
a partir de uma experiência voltada, não para a hegemonia das identidades, mas sim
pela afirmação da diferença.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 29

Nesse sentido, a correlação do movimento político da parresía com os direitos


dos governados desdobrasse em uma análise empreendida por Foucault na qual pode-
mos visualizar os contornos dessa problemática inscrita no movimento continuo e
descontinuo contra toda forma de reatividade. Pensar tal correlação implica também
na constatação de que a questão posta às práticas dos governados é: quais as condi-
ções de possibilidades presentes em grupos historicamente marginalizados a partir
da afirmação das suas diferenças? A colocação desse problema convoca nosso olhar
sobre o papel e a importância da noção de governo trabalhada por Foucault em seus
escritos. A relação entre governados e os dispositivos de governo passa pelo valor
dado a democracia, que segundo Foucault, deve ser pensada de outra maneira, isto é,
não somente como um dispositivo jurídico garantido por determinadas instituições,
nem tampouco como emblema ideológico inscrito na tradição da Revolução Fran-
cesa, mas sim como choque entre as forças, como um dever de se falar francamente
promovendo uma problematização das suas fragilidades e precariedades.
Dito de outro modo, no contexto da cultura grega, a grande questão era o modo
de se exercer a politéia democrática. Ou seja, uma maneira de se perceber a democra-
cia não somente pelo exercício do poder, mas sim pela especificidade de uma prática
de governo, em que os governados podiam manifestar uma aleturgia da fala franca
aos seus governantes. Na nossa atualidade, os direitos dos governados produzem
uma experiência ética na política compreendendo a democracia como um processo
que envolve o exercício do governo como algo a ser permanentemente questionado.
Aletheia, politéia e ethopoiesis. Três paradigmas deixados pela atividade filosó-
fica e que são retomadas na nossa contemporaneidade pelas insurreições dos gover-
nados. Esse tripé é responsável pela inscrição de modos de veridicção perante o
questionamento das formas de governo. Nesse sentido, quando um militante vem a
público proferir determinada verdade, pelo discurso, ou pelo uso do seu próprio corpo,
ele está de certa maneira, incitando a todos a promover outras formas de vida, mostra
também que existe uma tênue linha que separa o tolerável do intolerável. A parresía
dos governados compreende uma problematização da democracia institucional pelo
risco e, nesse contexto, as suas práticas aletúrgicas assumem os contornos de uma
experiência regrada pelos efeitos de, ao mesmo tempo, resistir aos dispositivos de
governo e construir uma relação de um governo de si mesmo e dos outros. Por conta
de tais aspectos é que a atividade parresiástica dos governados constituem uma
ameaça permanente ao establishment dos modos de governamentalização da vida e
da biopolítica. Segundo Fontaine (2012), tais práticas procuram implodir os efeitos
regulatórios sobre a vida denunciando suas precariedades e fazendo emergir outras
forças já que elas denotam a elaboração de um enfrentamento dirigido contra toda
forma de arbitrariedade.
Conforme podemos observar, uma prática política corrosiva nos direitos dos
governados implica uma atitude constante de se perceber as manifestações da ver-
dade que são produzidas por meio do confronto e da resistência. As lutas empregadas
por grupos estigmatizados não representam somente a busca por uma aceitação da
sociedade, mas sim a intensificação de um devir minoritário. Tratam-se de pequenas
máquinas nômades de guerra produzindo a experiência de jogos de verdade e seus
30

efeitos, constituindo a coragem da verdade. São esses adjetivos que promovem os


direitos das resistências como alegorias de enfrentamento por meio da vida militante.
A parresía dos governados deve ser concebida como um signo da aleturgia.
Trata-se não somente de evocar um efeito, mas estabelecer uma relação com a ver-
dade por meio de uma batalha pela vida a qual entra em cena a estética da existên-
cia, o exercício de um processo de diferenciação em relação aos modos de vida.
Essas vozes insurgentes acabam por elaborar, portanto, um ethos contra as formas de
governamentalidades. O movimento referendado pelas insurreições dos governados
é uma atitude de resgate e, ao mesmo tempo, de atualização de uma morada na qual
a veridicção é um trabalho do sujeito sobre si mesmo.
Muito embora devamos reconhecer o delicado momento histórico pelo qual
passamos é, de fundamental importância percebermos a deflagração das lutas
provenientes de grupos minoritários que se deixam capturar pelos dispositivos
de governo. Grupos que simplesmente agem, e como tal, adotam suas próprias
práticas de veridicção2.
Podemos entender que as práticas dos governados efetivam-se pela política do
dizer verdadeiro como um novo e atento olhar sobre os modos de vida. Nesse sentido,
essa perspectiva consolida-se como uma estratégia que rastreia, nos seus limiares
os atos de insubordinação que compõem uma espécie de homologia contemporânea
entre logos e bios. Mas, em que consiste, exatamente essa homologia entre logos
e bios? Em primeiro lugar, devemos levar em conta que o logos está relacionado à
coragem da verdade pelo fato do sujeito colocar a sua vida à prova. Ou seja, o fato
dele prestar contas, pelo aperfeiçoamento de si mesmo e a adoção de um estilo de
vida voltado para os seus princípios e, principalmente ao estilo de verdade a qual
ele se vincula. Em segundo lugar, o bios ocupa um duplo sentido político e ontoló-
gico que, aos olhos de Foucault, que se encontra inscrito pela relação entre forma
de veridicção e governo. Ambas compreendidas como elementos constituintes de
uma estética responsável por tornar a vida uma obra de arte. Parresía, logos e bios
efetivam-se, portanto, domínios preponderantes do governo de si mesmo e dos outros
no contexto das práticas dos governados.
De todo modo, o que os últimos trabalhos empreendidos por Foucault nos
mostram é que, os elementos dessa estética da existência correspondem às condições
de possibilidade de uma verdadeira vida. Uma verdadeira vida inscrita na aleturgia
do governo de si e dos outros como elemento intrínseco à coragem da verdade. Esse
contexto da verdadeira vida fora minuciosamente analisado por Foucault ao estudar as

2 Conforme aponta o Comitê Invisível, “O bairro de escritórios, o bairro das fábricas, o bairro residencial, os
espaços para relaxar, os espaços para diversão, o lugar onde se come, o lugar onde se trabalha, o lugar
onde se passeia, e os carros ou os ônibus que ligam tudo isso são resultado de um trabalho de formatação
da vida que é devastação de todas as formas de vida. Isso foi desenvolvido como método durante mais de
um século, por toda uma casta de organizadores, todo um exército cinzento de gestores. A vida e o homem
foram dissecados num conjunto de necessidades, para depois organizarem a síntese. Pouco importa que
tal síntese tenha tomado o nome de ‘planificação socialista’ ou de ‘mercado’. Pouco importa que isso tenha
levado ao fracasso das cidades-novas ou ao sucesso dos bairros da moda. O resultado é mesmo: deserto
e anemia existencial” (COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p. 104-105).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 31

implicações do cinismo. Entretanto, antes que prossigamos é necessário realizarmos


o seguinte questionamento: por que o cinismo configura-se como o paradigma, por
excelência dessa verdadeira vida?
A esse respeito Foucault nos adverte que o cinismo configura-se, dentro de
todo um conjunto de escolas filosóficas da Antiguidade, na que melhor representa
o papel da correlação entre a atitude filosófica e a forma da vida de uma fala franca
carregada de insolência. Na opinião de Chaves (2016), o vínculo fundamental era
aquela regrada pelo escândalo. O escândalo de se praticar uma verdade responsável
por lançar o cínico no mundo como sujeito da errância. Dessa forma para Foucault,
o cínico se apresenta como um parresiástes responsável por levar ao extremo tal
prática. Esse indicativo nos leva a perceber como o cínico posiciona-se perante o
mundo, perante a sua própria vida desde suas vestimentas até os seus gestos, fazendo
dele um estranho personagem que opta em produzir uma ruptura radical em relação
as formas de governo. O emblema de uma verdade cínica configura-se como a pró-
pria condição para o exercício de uma vida militante. Tomando esse mesmo cinismo
como emblema de um modo de vida performativo podemos ler, nas entrelinhas do
pensamento foucaultiano, as possibilidades de compreendermos a problematização
das formas de governo não somente como a busca incessante por parte do sujeito em
estabelecer uma relação entre discurso e vida, mas também pela radicalidade de tomar
a si mesmo como forma, como alegoria capaz de visibilizar cada gesto convertendo-o
em espaço de um dizer verdadeiro a partir da aleturgia. Esse coração selvagem do
cínico possui, para Foucault, uma força vital incomensurável em relação à verdade.
É justamente dentro dessa vida marcada pelo escândalo da verdade cínica que
podemos rastrear os indicativos de uma crítica em relação a biopolítica e a razão de
Estado. Nesse caso, a aleturgia se manifesta como um gesto de produção da verdade
cujo impacto se dá na estetização radical da existência contra as formas de governo.
O que parece despertar o encantamento de Foucault com a vida cínica, seria o fato de
que não estamos diante de um mero desafio intelectual de compreensão da realidade,
ou pior, uma mera aplicação de leituras conceituais que pouco contribuem para uma
problematização das lutas políticas. Nesse sentido, a herança deixada pelos cínicos
se constitui pela constituição do sujeito como aquele que produz o martírio da ver-
dade. Perspectiva pela qual Foucault elabora a crítica em relação aos dispositivos
da biopolítica pelos modos em que os sujeitos produzem uma performatividade crua
em relação aos processos de assujeitamento.
A vida como escândalo da verdade implica no despojamento radical da própria
existência. Trata-se, nesse caso, de oportunizar um processo de subjetivação vol-
tado para os elementos de uma dramaturgia da verdade e, no caso das práticas dos
governados, implica perceber como os insurgentes promovem uma prática viva, uma
atitude que contamina as engrenagens das formas de governamentalidade. Impacto,
portanto, do cinismo nas práticas políticas aproximando o discurso revolucionário
de um dizer verdadeiro não da tomada do Estado ou do Capital, mas pela adoção de
outro modo de vida. Conforme podemos observar, os direitos dos governados e as
práticas revolucionárias são elementos imprescindíveis para as alegorias das formas
de vida marcadas pela estética da existência.
32

Considerações finais

A nossa contemporaneidade é a época das insurreições. A propósito de tal


constatação, podemos cumpre ressaltar que as insurgências dos governados refle-
tem várias práticas, cujos jogos de tensão opõem à governamentalização da vida as
possíveis fissuras que se abrem no estreito espaço de radicalização da política e das
experiências éticas. Uma genealogia das práticas de insurreição em Michel Foucault
refere-se ao fato de que, se existe uma multiplicidade de controles, existem inúme-
ras formas de resistirmos às tecnologias de assujeitamentos da subjetividade. Neste
sentido, penar a agonística da palavra por meio da parresía, significa a ilustração de
uma ontologia histórica de nós mesmos procurando rastrear, às formas pelas quais
grupos historicamente marginalizados pela máquina capitalística, promovem outras
possíveis formas de vida.
Nas duas primeiras aulas de O Governo de Si e dos Outros Foucault (2008)
sublinha o fato de que a ontologia histórica de nós mesmos é uma ilustração das
práticas de resistências dos governados. Dentre as condições de possibilidades desse
escrito, encontra-se a tese de que ele é responsável por inaugurar uma reflexão sobre
a noção de publikum, pois de acordo com Foucault:

Convém manter presente no espírito esse lugar de publicação – isto é, uma revista
–, pela razão seguinte. É que, como vocês vão ver, esse texto sobre a Aufklärung
aplica, como um dos seus conceitos centrais, a noção de público, de Publikum. E
por essa noção de Publikum entende: primeiro a relação concreta, institucional,
ou em todo caso instituída, entre o escritor (o escritor qualificado, traduz-se em
francês: savant; Gelehrte: homem culto) e o leitor (o leitor considerado como
indivíduo qualquer). E é a função dessa relação entre leitor e escritor, é a análise
dessa relação – as condições em que essa relação pode e deve ser instituída e
desenvolvida – que vai constituir o eixo essencial da sua análise da Aufklärung
(FOUCAULT, 2008, p. 9).

Ou seja, a agonística da palavra, trata-se de uma tipologia na qual podemos


encontrar, na relação entre o intelectual e o público leigo, os elementos de uma ativi-
dade prática em torno de uma história do tempo presente. Nesse sentido, direcionar
os olhos para a atualidade significa percebermos os desdobramentos daquilo se vive.
Dos tensionamentos existentes como uma espécie de jogo de espelhos no qual não
podemos nos furtar em respondermos as atribuições políticas, econômicas, sociais
e culturais disso que chamamos contemporaneidade. A parresía é um emblema dos
direitos dos governados. Uma atitude e uma interrogação sobre as nossas condições
a partir da constatação de que o fundamento das práticas dos governados desdobrasse
perante os modos de subjetivação de outras formas de vida. De fato, quando pensamos
os elementos de uma ontologia histórica de nós mesmos, não nos limitamos a perce-
bermos as lutas políticas como um projeto revolucionário da tomada de consciência,
mas sim uma questão de transversalidade.
Em linhas gerais, o problema consiste em nos debruçarmos constantemente
sobre a questão: quais linhas de fuga são construídas perante a governamentalização
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 33

da vida? Se atentarmos para o fato de que a resistência não é somente um gesto espon-
tâneo, talvez o grande problema das insurreições seja o de justamente percebermos
como é necessário compreendermos as condutas dos governados como elementos de
outras experiências de vida. Em uma sociedade neoliberal que confere à economia o
modelo de modulação das estratégias de saber, das práticas de poder e dos processos
de subjetivação, por excelência, os direitos dos governados se efetivam como uma
busca incessante, por parte dos sujeitos em efetivar um autogoverno. Autogoverno
este, que encontra suas verossimilhanças nas atitudes performáticas que nos lembram
constantemente o seguinte enunciado: ilegítimo não são os governos, mas a maneira
pela qual deixamo-nos, por vontade própria, sermos dependentes das arbitrariedades
dos dispositivos de gerenciamento da nossa própria vida.
34

REFERÊNCIAS
AVELINO, Nildo. Governamentalidade e democracia liberal: novas aborda-
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DA MULTIDÃO AO PÚBLICO
NA TERCEIRA REPÚBLICA:
aproximações e diferenças entre
Gustave Le Bon e Gabriel Tarde
Felipe Figueiredo De Campos Ribeiro
Pedro Carvalho Souza

Introdução

O cenário em que surgiram os primeiros projetos de Ciências Sociais na França


das últimas décadas do século XIX era polarizado. De um lado havia o grupo ligado
à É. Durkheim, de outro, seus opositores, dentre os quais G. Tarde mostrou-se o
mais qualificado à posteridade (CONSOLIM, 2010). Enquanto aquele, na esteira do
positivismo então em voga, estabeleceu como objeto de sua nova ciência os fatos
sociais (que dariam conta dos padrões cristalizados nas representações psíquicas
coletivas e nos comportamentos de grupos de indivíduos por instituições estáveis), o
grupo dos anti-durkheimianos estivera fortemente debruçado sobre o fenômeno das
multidões (THIEC, 1981). Estas – que insurgiram-se sem cessar ao longo de todo
o século XIX e estiveram diretamente ligadas às grandes instabilidades e transfor-
mações políticas vividas naquele país no mesmo período3 – eram recorrentemente
interpretadas por este segundo grupo do qual Tarde estivera próximo tematicamente
(tratava-se de autores como H. Taine, H. Fournial e G. Le Bon) como entidades
“altamente emocionais e irracionais, destrutivas mais do que construtivas, e carentes
de um líder forte” (GINNEKEN, 1992, p. 6). Tal interpretação era feita a partir das

3 Na Revolução de 1830, a ascendente burguesia industrial aliada à Casa dos Orléans destituiu a monarquia
absolutista da Casa de Bourbon que havia sido reinstaurada desde o Tratado de Viena. Na Primavera dos
Povos de 1848 a revolta generalizada das classes trabalhadoras urbanas e campesinas destituiu o “rei
burguês” Louis Philippe, constituindo, ao cabo do processo, a IIª República (a qual em menos de um ano
foi abolida por Louis Napoléon, seu primeiro presidente eleito democraticamente pelo Partido da Ordem).
A Comuna de Paris fora proclamada em março de 1871, em meio a Guerra Franco-Prussiana encabeçada
por O. von Bismarck, em sua bem sucedida tentativa de unificar o reino da Prússia. Entre 1886 e 1891, já no
período “pacífico” da IIIª República, deu-se a ascensão meteórica do General Boulanger, figura que suscitou
grande devoção popular a sua personalidade, nacionalismo exacerbado na sociedade civil (chauvinista,
em certos nacos desta, revolucionário, em outros), e apetites anti-institucionais em um sistema político
que elegeu maioria absoluta boulangista no parlamento. Em todos esses capítulos da história política da
França, as multidões urbanas agitadas e tumultuosas – as quais, em diversos momentos, foram efetivamente
manipuladas ou cooptadas por forças políticas mais poderosas e organizadas – cumpriram um papel não
apenas proeminente, mas decisivo. A propósito de como este amplo panorama de acontecimentos políticos
ocorridos ao longo do século XIX estiveram diretamente ligados às temáticas que animaram o debate sobre
a fundação das Ciências Sociais na França (em particular na ala anti dukheimiana a qual G. Tarde esteve
ligado), consultar Ginneken (1992), Nye (1975), e Moscovici (1985).
38

chaves do pensamento evolucionista (biologia) e, sobretudo, da psicopatologia que


se desenvolvia no seio da psiquiatria francesa, na qual os fenômenos da sugestão e
da hipnose ganhavam destaque4.
Desde Taine, o termo “multidão” [foule] passou a ser geralmente empregado por
esse grupo de autores para designar fenômenos como aglomerações físicas, tumultos
e agitações em espaços urbanos, no âmbito dos quais uma unidade psicológica se
formaria – cujos padrões afetivos e comportamentais seriam distintos e independentes
daqueles dos indivíduos tomados isoladamente. Lançando mão dos seus conceitos
de opinião e de público, Tarde foi o autor que melhor desprendeu-se dessa ideia de
multidão, no sentido restrito que este termo possuía até então, para elaborar uma
teoria mais sistemática e englobante do social per se, em seus processos de formação,
estabilização, transformação etc.
Considerando este cenário, se procedemos à análise comparada das obras de
Tarde e G. Le Bon – sobretudo a respeito da passagem da categoria de “multidão” para
a de “público” – diferenças importantes saltam aos olhos: enquanto Le Bon revisita
na sua obra a já difundida concepção de “multidão”, Tarde apresenta um ponto de
vista atualizado e atento aos novos paradigmas presentes no contexto – mesmo que o
intervalo de tempo entre ambas as publicações não tenha sido senão o de pouco mais
de cinco anos. E cabe ressaltar que o conceito de “público” que discutiremos neste
ensaio (em oposição ao de multidão) foi concebido já em um momento amadurecido
do pensamento de Tarde, uma espécie de consequência lógica e coerente de toda uma
base de pressupostos teóricos (imitação, invenção, etc.) que já haviam sido alinhava-
dos em obras anteriores a L’opinion et la foule, como Les Lois de L’Imitation (1890)
e Les Lois Sociales: esquisse d’une sociologie (1898). Desnecessário observar que a
elaboração de um tal conceito não pode ser compreendida retrospectivamente senão
tomando-se em consideração um número de transformações técnicas que marcaram
o século XIX na Europa: da popularização do jornal ao incremento das tecnologias –
surgidas no bojo da segunda revolução industrial – que facilitaram o deslocamento e
a comunicação (as estradas de ferro, as máquinas de locomoção à vapor, o telégrafo,
a energia elétrica etc.).
O objetivo geral deste artigo é contextualizar os processos sociais e históricos
ao longo dos quais se sucederam as diversas teorias a respeito do fenômeno da
“multidão”, apontando o modo com o qual este objeto era concebido e estudado
pelos teóricos ligados ao tema, os aspectos políticos que o sitiaram e outros fatores

4 A psiquiatria francesa vinha manuseando o dito fenômeno da sugestão a partir da técnica da hipnose que
vinha sendo desenvolvida no interior dos hospitais, na lida com pacientes acometidos pelas chamadas psi-
coneuroses – em particular, com a histeria, sobre a qual o manuseio mostrava-se mais efetivo. Havia duas
escolas de pensamento – a de Slapêtrière (representada por J. M. Charcot) e a de Nancy (representada por
Liebeault e Bernheim) – que entre si entretinham um acirrado debate acerca da etiologia das psiconeuro-
ses. A primeira pretendia uma explicação estritamente fisiológica, a segunda, uma explicação psicológica,
alegando que qualquer pessoa em estado normal poderia vir a experimentar a hipnose (sobre este debate
ver GINNEKEN, op. cit. p. 138-149; LACLAU, 2013, p. 74-81). Tratava-se de sugerir que o estado mental do
homem imerso na multidão seria o mesmo daquele em que se encontraria a paciente psiquiátrica induzida –
no ambiente controlado do hospital, em uma relação interindividual direita – pela técnica hipnótica. O homem
em multidão estaria tão vulnerável à sugestão quanto o paciente psiquiátrico hipnotizado pelo médico.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 39

que precederam e favoreceram a evolução conceitual multidão -> público, ocorrida


no interior do pensamento de Gabriel Tarde. Isto, dando ênfase às rápidas transfor-
mações tecnológicas daquele período (no âmbito da informação e da comunicação)
que deram as condições para que Tarde pudesse conceber a elaborar seus conceitos
de “público” e “opinião”.
Para a consecução de tais objetivos, procederemos primeiramente (para melhor
visualizar a passagem multidão -> público) a um retorno ao contexto histórico da
frança do final do século XIX, no qual perceberemos um conturbado cenário social
e político, em meio ao qual o advento de líderes fortes e certos fenômenos midiá-
ticos até então inexistentes nos farão ver melhor o solo no qual nasceram as ideias
de G. Tarde e de G. Le Bon, bem como seus posicionamentos morais e políticos a
respeito dos fenômenos de massa e todas as suas nuances. Em um segundo tempo,
procederemos a uma interpretação mais focada na obra L’opinion et la foule (1901),
de Gabriel Tarde. Isso, sem deixar de recorrer um pouco a outras anteriores, nas quais,
quando necessário, certos conceitos mais basilares poderão ser melhor detalhados e
sistematizados, a fim de estabelecer melhor a primeira.

1. A perigosa era das multidões: da antropologia colonial aos primeiros


estudos sobre psicologia das multidões

Trazendo consigo a carga dos eventos que eclodiram fervorosamente ao longo


do Séc XIX, o fenômeno das multidões pressionou os estudiosos do comportamento
humano além de, diante dos avanços tecnológicos na comunicação e no transporte,
apresentar evidentes mudanças estruturais (GINNEKEN, 1992). Naturalizou-se a
emergência de multidões organizadas, definidas, inclinadas a permanecerem sólidas
com o passar do tempo (LE BON, 1895). Neste sentido, a percepção de tais transfor-
mações e o desconhecimento acerca do fenômeno trouxe um – muito frequente nas
obras publicadas neste contexto – certo medo e sentimento de “ameaça à civilização”.

Este fenômeno vem se desdobrando em uma escala até então desconhecida, daí
sua absoluta novidade histórica. [...] O nascimento de uma forma de vida coletiva
sempre coincidiu com o surgimento de um novo tipo humano. Inversamente, o
declínio de uma dessas formas é sempre acompanhado pelo desaparecimento
de um tipo de homem. Estamos na era das sociedades de massa e do homem de
massa (MOSCOVICI, 1985. p. 16)5.

As dúvidas relacionadas aos movimentos das multidões, frequentemente vistas


como “aberrações” descontroladas – amiúde associadas ao que se compreendia como
“fenômenos emocionais de mulheres e crianças” –, eram muitas e suas motivações ou
a causa das suas ligações internas, até então, permaneciam ininteligíveis. Os estudos
que pretendiam compreender este objeto atribuíam ao mesmo um teor psicopatológico
(LE BON, 1895). Além disso, as multidões suscitaram um intenso debate sobre a
questão da sua responsabilização jurídica: o debate – do qual o médico Le Bon se

5 As citações diretas das obras em língua estrangeira utilizadas ao longo do artigo são todas de tradução nossa.
40

afastara, mas do qual Tarde, na condição de juiz de Direito, participara como um de


seus principais expoentes (ao lado de nomes como os de Fournial e Sighele) – sobre
as então chamadas “multidões criminosas”.
Haja vista que os estudos acadêmicos acerca do comportamento humano em
geral eram cargo de autores da medicina, biologia, psiquiatria e antropologia, os
paradigmas sociais – antes de autores como Tarde e Durkheim – foram encarados
sob o viés naturalista e evolucionista. As noções de raça, hereditariedade, atavismo,
estudos sobre a constituição craniana e cerebral reuniram-se às ideologias liberais,
darwinismo social e abordagens biologicistas que buscavam compreender os fenôme-
nos sociais como “soma de indivíduos” ou através de comparações com organismos/
grupos de animais (CANDEA, 2019; MUCCHIELLI, 2001).
A composição destes fatores foi o que norteou as primeiras noções sobre o fenô-
meno, sobretudo nas décadas que precederam as primeiras grandes obras empenhadas
em desenvolver o que seria a “psicologia das multidões”. Tanto o viés naturalista e as
noções biologicistas quanto a consciência do embasamento e constituição do conteúdo
disponíveis na época têm reflexo observável na obra de Le Bon e, posteriormente,
Tarde – muito embora a respeito deste último, haja vigoroso empenho em romper
com as tradições metodológico-científicas vigentes.

A tensão entre a aristocracia e outras classes

As difundidas ideias da ameaça representada pela eclosão das massas, diante


deste cenário, tratam-se na realidade de uma corrente irrestritamente contaminada
por intenções políticas. Conforme supramencionado, os resultados dos antagonismos
e processos revolucionários emergentes nas décadas anteriores ainda ressoavam
pela França ao final do século XIX, cujas consequências, foram a queda do sistema
monárquico e, concomitantemente, a corrosão dos aspectos tradicionais vigentes no
país. Conforme observa Vares (2014), após a decorrente ascensão da administração
republicana emergiu um grupo que, caracterizado pelo apreço aos ideais conservado-
res – a saber, os valores religiosos e tradicionais que sustentavam a defesa do governo
aristocrático (GINNEKEN, 1992) –, viram os seus ideais gradativamente dissolver.
Justamente por este motivo, ansiavam pelo retorno ao poder e estavam dispostos a
conturbar, de qualquer maneira possível, o já agitado contexto sociopolítico francês.
O contexto de crise econômica e colapso social, decorrentes das sucessivas
derrotas e revoltas no território, gerou a necessidade (para esta elite aristocrática),
de constituir a figura de um inimigo ao qual se pudesse ater a culpa da atual situação
francesa e desviar a atenção popular do desprestígio que assolava a classe, juntamente
aos oficiais e toda a ala pró-nacionalista deste cenário (VARES, 2014). Os escolhidos
para ocupar este problemático lugar foram sobretudo os judeus, mas, para além disto,
diversas críticas foram lançadas em direção a outros grupos e fatores.
Dentre estes (idem, 2014), o repúdio ao advento de uma modernidade – caracte-
rizada pela destruição da civilização e das instituições (como família, igreja e afins),
em detrimento da industrialização, da ciência, e do igualitarismo – consequente do
legado iluminista seria um primeiro fator. Os ideais iluministas, do ponto de vista
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 41

conservador, seriam responsáveis pela crise na França e em boa parte da Europa.


Desenvolveram-se de fato (desde o século XVIII) a autonomia intelectual e científica,
em decorrência do aumento dos níveis de escolarização, desenvolvimento das uni-
versidades e, consequentemente, a ascensão dos paradigmas científico e tecnológico.
Estes fatores favoreceram a ascensão da classe dos “intelectuais” enquanto categoria
social, e este termo passou a ser amplamente reconhecido sobretudo durante o Dreyfus
Affair6 (SAPIRO, 2012). A classe intelectual foi responsabilizada por promover o
individualismo e a anarquia, além do desrespeito aos militares, e interferência em
assuntos de estado7.
Em segundo lugar, destaca-se o esforço da classe conservadora em direcionar
a culpa pelo declínio francês – notadamente, a derrota da nação na Guerra Franco-
-Prussiana – para um fator que vinha ganhando destaque ao longo das revoluções:
as multidões. O empenho dos pensadores elitistas era notável – sustentados em estu-
dos como os de Le Bon, Taine e demais correntes biologicistas, caracterizadas pela
presença do determinismo biológico, das concepções de raça e hereditariedade, dos
estudos contemporâneos em criminologia e sociólogos ligados à vertente darwinista
– no sentido de apontar a avassaladora repercussão das multidões e sua característica
capacidade “catalisadora” de instituições sociais como responsáveis pelo enfraqueci-
mento e destruição da civilização, na qual os valores tradicionais viam-se perdendo a
força (GINNEKEN, 1992). A ameaça pautada no viés antidemocrático tornou ainda
mais agudo o conflito entre estas correntes. Este cenário pode ser ilustrado por um
trecho de Le Bon (1895, p. 3) no qual o autor enfatiza que:

Enquanto nossas crenças antigas estão cambaleando e desaparecendo, enquanto


os velhos pilares da sociedade estão desmoronando, o poder das multidões é a
única força à qual nada ameaça e cujo prestígio só cresce. A era em que estamos
entrando será verdadeiramente a ERA DAS MULTIDÕES.

As críticas direcionadas a quaisquer movimentos associados à multidão giravam


em torno da ameaça que esta representava aos construtos das civilizações ao longo do
tempo e, não somente a sua comutação súbita por caracteres efêmeros e passageiros
(valores considerados característicos das massas), como também a substituição do
“homem tradicional” pelo “homem emocional e efêmero da multidão”. Atenta-se
(idem, 1895) frequentemente para uma era de anarquia, a importância histórica de

6 O termo (intelectuais) foi cunhado de forma depreciativa pelos antidreyfusards contra a classe intelectual (a
respeito da ligação desta com o movimento dreyfusard, consultar Vares (2014)) no intuito de desencorajá-la a
intervir no cenário político. No entanto, este termo foi reapropriado pelos próprios e alcançou reconhecimento
internacional, cujo significado passou a ser empregado tanto aos produtores culturais em suma quanto aos
que, dentre estes, desempenhavam papel político, ver em Sapiro (2012) e Ginneken (1992, p. 212-214).
7 O cenário da interação dos antidreyfusards em relação aos intelectuais era hostil não somente por conta
da sua ascensão decorrente das condições promovidas pelo iluminismo, mas observável em publicações
de autores ligados ao movimento e à igreja direcionadas à classe dos intelectuais nos quais estes últimos
eram responsabilizados por atentado contra a democracia, desrespeito à sociedade, insultos contra as
forças armadas, interferência em assuntos políticos ou que fogem ao seu escopo, dentre outros fatores. A
respeito consultar Vares (2012).
42

uma caricata multidão irracional, maleável, hipnotizada, sujeita às ordens de um líder,


propensas a reconduzirem a civilização ao comunismo primitivo e, portanto, a uma
“era das multidões” perigosa e fatal para as elites.
A ameaça das multidões inquietava sobretudo as classes dominantes. A ciência
moderna, que decola com a Segunda Revolução Industrial, asseverava seus ideais
de domínio sobre a natureza e para isso recebiam frequentes reforços da burguesia –
ávida por novas tecnologias que garantissem o incremento do potencial de produção.
Seus representantes de destaque, apesar de particulares diferenças, demonstravam
concordância no que concerne a tematizar os comportamentos das multidões a par-
tir da psicopatologia e da criminologia, garantindo certa legitimidade científica ao
arcabouço teórico inserido por aqueles nas ciências sociais e políticas. Nesse sen-
tido, a constituição da imagem das multidões provém de um debate paradigmático a
respeito da história da constituição e dissolução de uma fronteira social que separa
o normal do patológico.
Este conjunto de saberes associados ao fenômeno das massas – sobretudo em
território francês – resultava de uma disputa intelectual em restabelecer o passado de
domínio social das elites. Nesta perspectiva, corroboravam com os ideais de todo um
grupo político que enfatizava os efeitos deletérios, “antinaturais”, “irracionais”, etc.,
de se dividir o poder com o povo. Neste contexto, uma profusão de estudos vinha
sendo publicada, que teorizava sobre as origens e o funcionamento dos processos
sociais, culturais, políticos e da civilização per se8. Estes escritos constantemente
abordavam as massas e multidões de modo a desconsiderar as razões sociais por
trás dos movimentos populares e, deste modo, enfatizavam artificialmente as suas
características associadas à irracionalidade, cuja hereditariedade era considerada
inerente à existência de povos intelectualmente inferiores e justificativa tanto para
a desigualdade quanto para a concepção de que a sociedade deveria ser governada
pelos superiores.
Os autores em destaque neste artigo não raramente alinhavam-se a estes ideais,
H. Taine é frequentemente citado por Tarde em diversas das suas obras e considerava
que sua obra Les origines de la France contemporaine continha “senão a síntese,
pelo menos os elementos básicos para uma boa psicologia das multidões e das
classes” (GINNEKEN, 1992. p. 48-49). O discurso de Le Bon, que desqualificava
as multidões a partir de um saber supostamente ancorado na ciência natural e não
mais na religião, virá a se encaixar perfeitamente neste projeto. Desde o fim dos
anos de 1870 ele esteve bastante envolvido com estudos de raça e com a então cha-
mada antropologia física9, e estendeu seus estudos na década seguinte para a área
da antropologia colonial.
De fato, não há novidade no fato de que a tendência em se interpretar fenômenos
históricos e sociais a partir desta região epistemológica (biologia) era recorrente – e a
“época de ouro” de tais pretensões foram justamente o recorte temporal enquadrado

8 A própria “Les origines de la France contemporaine (1785-1893)” de H. Taine pode ser inserida nesse contexto.
9 Disciplina que despontava no mesmo ritmo do processo de colonizações, que consistia no estudo compara-
tivo de características físicas de fósseis humanos provenientes de “raças”, sexos e mesmo classes sociais
diferentes, para averiguar se haveria ou não diferenças anatômicas, morfológicas etc.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
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por este estudo – assim como geralmente esteve associado a mal confessas ideolo-
gias políticas elitistas, tradicionalistas e, quase sempre, reacionárias. Tais posições
intelectuais, enquanto idealizadoras de uma imagem determinista que reduz o homem
em suas possibilidades de atuação (na medida em que seus comportamentos estão
ligados à impulsos instintivos, hereditários, “característicos da raça” e portanto pre-
dominantes sobre a sua própria consciência), efetivamente fomentaram argumentos
segundo os quais não restaria então senão aceitar a atual situação social, histórica,
econômica, política, jurídica etc. – isso quando estes não foram, na realidade, cha-
ves para a idealização de que seria possível, através de técnicas específicas, exercer
controle sobre a natureza profunda do homem a fim de promover a extinção das
características degenerativas (eugenia), a prevenir de situações sociais patogênicas
(aglomerações de multidões) etc.
Estes construtos de uma engenharia social concebida por elites, erguidos sob
comparações métricas e sofismas pseudocientíficos favoráveis à justificativa das
próprias posições como naturalmente superiores (superioridade racial hereditária,
distinção entre homem primitivo e homem civilizado etc.) costumaram ser empre-
gados com o propósito de obter poder e controle sobre populações excluídas e
exploradas – frequentemente insurgentes então. As observações de autores como Le
Bon que, sob o pretexto de descrever cientificamente as leis dos comportamentos
das multidões, convinham perfeitamente no sentido de “exorcizar” os temores de
uma burguesia assustada com a insurgência avassaladora de violências proletárias
e greves ameaçadoras.
Em suma, o panorama material sobre o qual pairavam os estudos teóricos
a respeito das multidões era marcado por esta tensão: dentre os diversos movi-
mentos políticos vigentes no território francês, uma onda conservadora, militar,
nacionalista, antidemocrática, antissemita e racista favorecia a tensão contra os
movimentos revolucionários republicanos, socialistas, contra a modernidade em
si e os intelectuais ligados à esta vertente. Todos, no entanto, atravessados pela
emergência dos avanços científicos, da industrialização, dos estudos sociológicos,
da modernização das técnicas de propaganda e dos meios de comunicação, sobre-
tudo os jornais e a imprensa.
A emergência da imprensa – bem como a sua popularização e massificação atra-
vés dos jornais impressos, sob os quais se difundiam, entre outras coisas, as opiniões
dos intelectuais e dos grandes publicistas – criou, neste cenário, as condições fun-
damentais para a expansão da opinião pública moderna. Já não se tratava da opinião
ditada pela aristocracia, que outrora detinha o monopólio da influência política, mas
do surgimento avassalador de uma verdadeira opinião de massa (GINNEKEN, 1992).
A crucialidade do movimento das massas e do seu fervor, assim como a influência
dos meios de comunicação na sociedade foram notórias, sobretudo, nas polêmicas
que marcaram e transformaram profundamente o território francês no fim do século
XIX, como a ascensão do general Boulanger e a condenação de Alfred Dreyfus,
onde a opinião pública veiculada pela mídia eleva a organização das multidões a
um novo patamar.
44

2. Influência das massas em eventos políticos no final do século XIX

Ao cabo do século, o cenário sociopolítico francês era resultado de um ema-


ranhado de influências. A princípio, assentado sobre as questões da Segunda Revo-
lução Industrial e, por consequência, fervorosamente atravessado pelos seus novos
paradigmas sociais e instrumentais. Posteriormente, considerarmos também o fato
de que a França, à esta altura, já sofria – além das polêmicas revoltas e da crise
social e econômica – com a recuperação de sucessivas derrotas, sobretudo na guerra
franco-prussiana, que resultaram na disseminação de um sentimento de revanchismo
entre o povo. Conforme destaca Oliveira (1990), a humilhação frente a este cenário
somou-se aos resíduos traumáticos da Comuna de Paris – fatos sobre os quais se
debruçaram autores como H. Taine – resultando em um influente conglomerado
de fatores composto, principalmente, pelo nacionalismo, revanchismo, antissemi-
tismo, antiparlamentarismo, anticlericalismo e militarismo à frente em boa parte
dos movimentos sociais.
A estes fatores, ligava-se o advento da modernidade e um novo olhar social para
elementos como a industrialização dos meios de produção, a ascensão dos movimen-
tos operários e o desenvolvimento de novos estudos teórico-sociológicos. Estes eram
sintomas da emergência voraz de uma cultura urbana e um sinal da necessidade de
reformulação das práticas políticas para viabilizar as demandas da sociedade moder-
na-urbana-industrial (HUTTON, 1976). A França encarava, ainda – além da corrosão
dos valores nacionalistas sobretudo acentuada neste contexto da modernidade –, dois
elementos de fatal transformação política, a saber: a adoção do sufrágio masculino
(GINNEKEN, 1992) e a lei do direito à liberdade de imprensa na década de 1880. A
elite nacionalista via, por um lado, a necessidade de adotar novos métodos políticos
para atrair mais eleitores e, por outro lado, a liberdade de imprensa em conjunto com
a eclosão (ainda muito jovem) do jornal impresso elevaram gradualmente o poder
de alcance das práticas políticas.
Este processo de renovação, portanto, foi notório nos movimentos sociais que
sucederam a década de 1880. Um movimento de suma importância foi a Liga dos
Patriotas, fundada em 1882. O principal líder do movimento, o poeta nacionalista
Paul Déroulède, disseminava uma ideologia antidemocrática fundamentada em
estudos como os de H. Taine10. A inclinação da Liga, em suma, era introduzir na
juventude francesa o espírito militar e incitar ainda mais o sentimento revanchista.
No entanto, para além disto, a Liga atingiu destacou-se principalmente pela nova
metodologia da prática política (OLIVEIRA, 1990): foi primeva na introdução de
métodos de propaganda e na promoção de ações organizadas de rua. O mais notá-
vel caractere político do movimento era justamente a elaboração organizacional
complexa dos movimentos políticos e a difusão midiática dos valores ideológicos.
Além de estruturar manifestações de rua, banquetes, palestras e eventos diante do

10 Sobretudo os estudos promovidos na obra Les origines de la France contemporaine, onde Taine postula
sua teoria sociológica que concebe a raça enquanto principal e fundamental fator explicativo da história
(OLIVEIRA, 1990).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 45

uso da propaganda veiculada pelo jornal, as ações do movimento empenharam


um importante papel nas campanhas de um movimento que, posteriormente, ficou
conhecido como Boulangismo (HUTTON, 1976).
Além do panorama cerceado pelo revanchismo e pela crise econômica, a cres-
cente democracia de massa era uma desconhecida e esmagadora realidade e a difi-
culdade política em lidar com este fenômeno era evidente. O Boulangismo nasce,
de certa forma, em decorrência destes fatores, a cobertura da influência boulangista
não era senão um sinal do posicionamento popular frente à crise e ao desemprego
(idem, 1976). Uma das principais bandeiras do movimento era “abrir oportunidade
ao povo” para a participação política, o que refletia a base do movimento de massa
que estava por vir: tinha como principal característica um posicionamento político/
ideológico confuso e mal estruturado. A campanha era desenvolvida em caráter
nacionalista e militar, por um lado (conhecido inclusive por representar a ameaça
de um golpe militar) e, por outro lado, contou – diante do conteúdo massificador e
populista – com a ajuda dos operários, das camadas mais pobres e de extremistas
de esquerda (OLIVEIRA, 1990).
Além da posição confusa, o Boulangismo também se situava entre diferentes
eras da propaganda política: posterior à vertente revolucionária e à política de longa
data do século passado e precedente à política de massa e à implementação da propa-
ganda organizada. A campanha boulangista, portanto, utilizava-se, ao mesmo tempo
da imagem mitológica e contagiosa que cerceava a figura do General Boulanger
(militar, simples e honesto), e do seu incomparável sucesso em reunir massas, como
também foi reconhecido pelo investimento na tecnologia industrial e na construção
publicitária da sua imagem. Boulanger promoveu a reorganização das forças armadas,
introdução de inovações instrumentais em relação à engenharia, ao arsenal bélico,
aos meios de comunicação e resumiu processos burocráticos. Um outro empreendi-
mento chama atenção de Ginneken (1992): a implementação de um departamento
profissional de imprensa. Não obstante, a esta altura, diversos jornais boulangistas
saturavam a população com informações em massa (HUTTON, 1976).
A campanha boulangista, relativamente primitiva, que misturava a publicidade
(ainda em pequena proporção) com a campanha populista de massa, contou com
um nível organizacional elaborado em distribuição (além dos jornais) de panfletos,
histórias, fotografias do General e afins, concatenados com a ajuda da metodolo-
gia publicitária promovida pela Liga dos Patriotas (idem, 1976). Foi, dentre outros
fatores, justamente por conta desta ligação que a figura de Boulanger foi concebida
como ameaça à democracia, impedindo Boulanger de assumir o poder. Ao cabo deste
processo, era fato que o cenário político e social francês ainda carregava os resíduos
advindos da ação boulangista: os já instaurados sentimentos de evanchismo, nacio-
nalismo, antissemitismo agora seguidos de revoluções na infraestrutura da comuni-
cação. O crescimento exponencial da imprensa e do jornal, poucos anos depois, e a
sua ligação à política de massas foi notória em um outro episódio (também militar)
posteriormente conhecido como Dreyfus Affair.
Nos anos posteriores ao caso de Boulanger, isto é, na última década do século
XIX, os padrões de comunicação – até agora já pré-estabelecidos e devidamente
46

implementados – evoluíram absurdamente tanto em termos qualitativos como quanti-


tativos. Com o favorecimento da lei de imprensa, os jornais populares (que há muito
já circulavam entre a população) tomaram muito mais engajamento e impulsionaram
ainda mais o seu alcance. O crescimento do jornalismo, paralelamente à evolução de
outros meios de comunicação como o telégrafo e o telefone, certamente ampliou a
um patamar infinitesimal os horizontes do cidadão francês moderno.
Neste contexto, o oficial de artilharia Alfred Dreyfus (de ascendência judaica) foi
condenado à prisão perpétua por alta traição após supostas evidências de vazamento
de informações haverem sido capturadas em seu ambiente de trabalho. O processo
judicial e as suas repercussões apresentaram sucessivos equívocos até que, apenas
com ajuda de influências externas, ficou provada a sua inocência. A origem judaica
do oficial, segundo Vares (2014), foi responsável não apenas pela abertura de um
debate absurdamente atrativo como também por atenuar ainda mais as rivalidades
políticas já conhecidas até este ponto. O caso em si era apenas mais um processo
judicial e sem muitas atrações, exceto a injustiça estatal/midiática e o fato de que
a inocência do réu era clara. O maior destaque deste episódio concentra-se efetiva-
mente na altíssima abrangência das repercussões promovidas pela imprensa, cujo
alcance resultou na divisão ideológica da sociedade francesa – haviam, de um lado,
os defensores da inocência de Dreyfus, que ficaram conhecidos como Dreyfusards
e, de outro lado, os favoráveis à sua condenação, Anti-dreyfusards – além de trans-
formações no campo científico.
A influência da comunicação e, sobretudo, dos seus veículos, atingiu não ape-
nas o processo de disseminação ideológica (tanto a defesa de Dreyfus quanto na sua
acusação), mas atravessou o contexto do caso como um todo. Tanto influenciou na
mobilização social como na comprovação da inocência do oficial que o resultado
não seria o mesmo sem a ajuda da circulação dos jornais. Esta última, adiante, foi
quem reverberou no ambiente científico: o debate que pairava no campo intelectual,
acerca das multidões, ainda era aquele sustentado sob o viés da influência da raça
e da hereditariedade, “Dreyfus era culpado porque era judeu” (OLIVEIRA, 1990,
p. 55). Diante da sua inocência comprovada, para Mucchielli (2001), o discurso da
antropologia racial tornava-se ilegítimo, e, consequentemente, se a raça já não era de
fato um parâmetro efetivo no comportamento humano, a resposta para esta pergunta
deveria ser investigada em outros fatores como a cultura, as crenças, os valores etc.
Neste sentido, as descrições da multidão promovidas por Le Bon encontravam-se
em vias de insuficiência diante do que era possível depreender da observação das
manifestações populares promovidas neste caso: As organizações antes insurgentes
e destrutivas ganharam um caráter mais sutil, as manifestações físicas e agressivas
eram cada vez menos frequentes e, em contrapartida, crescia o seu peso nos jornais
e na mídia onde, consequentemente, a abrangência que antes era local e efêmera
passou a revelar um caráter mais duradouro e abrangência assustadoramente larga.
A dinâmica das multidões, nesse sentido, não se estruturava em grupos físicos reu-
nidos, mas erguia-se em torno de uma unidade mental formada a longas distâncias
por números tão grandes que se tornava incogitável o seu agrupamento.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 47

3. As teorias psicossociais de Le Bon e Tarde: da multidão ao público

Outros fatores foram de grande relevância para o engajamento dos jornais na


transmissão de opinião pública, sobretudo a força da classe dos intelectuais que,
conforme Ginneken (1992), foi aproveitada no sentido de desenvolverem o papel de
líderes: fixaram-se os olhos no potencial intelectual de influência sobre a opinião e,
consequentemente, na sua utilidade para a democracia de massa, tornando gradati-
vamente a batalha das multidões em uma dinâmica de públicos. Os autores Le Bon
e Tarde sobre, evidentemente destacaram-se neste contexto, assim como este serviu
também de fortíssima fonte na construção dos estudos daqueles. Por conseguinte,
estes estudos são marcados pelo curioso fato de apresentarem certa contemporanei-
dade. Publicadas em 1895 e 1901, respectivamente, as obras Psychologie des foules e
L’opinion et la foule indicam não apenas foco no mesmo objeto, mas trazem autores
de mesma nacionalidade, temporalidade e, possivelmente, de vivências semelhantes.

G. Le Bon e a psicologia das multidões

A princípio, Gustave Le Bon, autor de Psychologie des foules (1895), além do


amplo engajamento na nascente psicologia das multidões, estava ligado a diversas
outras áreas acadêmicas incluindo antropologia, medicina, física, e as nascentes
psicologia e sociologia. Sua está associada à uma linhagem provincial de funcioná-
rios públicos e militares, formou-se em medicina na Escola de Medicina de Paris na
década de 1860, época na qual também crescia a influência das ciências positivis-
tas. Era reconhecido como popularizador da medicina e antropologia colonial, mais
precisamente engajado na medicina militar, afastando-se da medicina legal e da
criminologia em ascensão neste período (GINNEKEN, 1992). A precedência biolo-
gicista e a influência dos estudos como a sugestão e a hipnose estiveram presentes
em diversas pesquisas envolvendo classificação estrutural craniana e seus posteriores
estudos sobre as multidões.
Considerando o histórico de publicações sócio e antropológicas que a antecede-
ram, esta obra alavancou a popularidade de Le Bon enquanto divulgador de ciência
sobre os estudos sociais. Consolim (2004) observa um alto impulsionamento criativo
sobre o termo “multidão” diante da repercussão da obra que, sobretudo considerando
a imprecisão e vagueza do termo, possibilitou o seu uso como ferramenta para a inva-
lidação das manifestações populares, instituições republicanas, e afins, corroborando
ideologicamente com o confuso viés nacionalista-liberal. Para Consolim, os valores
conservadores e antidemocráticos de Le Bon certamente foram reforçados neste
panorama: a participação das massas na Revolução Francesa, guerra franco-prussiana
e as revoltas de comuna é um fator de destaque na obra Psychologie des foules, na
qual buscou sintetizar o funcionamento das multidões – ou melhor, das camadas
populares quando agregadas – de forma mais profunda em termos de psíquicos
e estruturais. Movimentos de massa como os insurgentes em torno da ascensão e
queda do Boulangismo satisfazem perfeitamente a sua teoria e são frequentemente
tomados como exemplo.
48

Os apontamentos de Le Bon denotam um conceito polêmico e caricato, marcado


fundamentalmente por uma via proximal que observa o surgimento das massas a
partir do agregado imediato de pessoas e, posteriormente, em uma via mais distante
na qual a causa do fenômeno deve ser investigada a partir das raízes da cultura, da
hereditariedade e da raça – não obstante é possível observar um momento em que o
limiar entre a multidão e a civilização propriamente dita torna-se cada vez mais tênue.
A caricatura do indivíduo da multidão para Le Bon define-se no regresso
ao estado primitivo da humanidade. A pluralidade dá ao “homem da multidão” o
ímpeto da impulsividade, temperamento descontrolado, paixões exacerbadas e baixa
propensão ao raciocínio. O raciocínio médio de uma multidão é muito menor que
o de qualquer indivíduo sozinho, portanto, esta é incapaz de pensar por si mesma
e consequentemente está propensa somente à ação. A figura de um líder que tome
a frente do movimento – cuja influência é responsável por manter a coesão – é
indispensável neste ponto11.
Há, para Le Bon, uma súbita diferença entre uma multidão qualquer e a “mul-
tidão psicológica”, premissa essencial para compreender o que intitula como “lei
psicológica da unidade mental”: o autor (1895, p. 18) afirma que:

Em determinados momentos, meia dúzia de homens pode constituir uma mul-


tidão psicológica, ao passo que centenas de homens reunidos por acaso podem
não constituí-la. Por outro lado, um povo inteiro, sem que haja uma aglomeração
visível, pode constituir uma multidão sob a ação de determinadas influências.

Um aglomerado de indivíduos reunidos ao acaso, não constitui o que para ele


seria uma multidão psicológica, é necessário que haja uma causa muito específica e
compartilhada por todos os indivíduos simultaneamente. A característica primordial
de uma multidão psicológica é a condição de que os indivíduos ligados componham
um grupo cuja atuação resulta em um componente com características psicológicas
novas e totalmente distintas dos comportamentos particulares.
Neste sentido, não há a necessidade de que os mesmos estejam de fato reu-
nidos para que a multidão esteja condicionada a existir, uma vez que ela conti-
nua funcionando “inconscientemente” ainda que haja dispersão. No entanto – e
estejamos atentos a esta condição – não há em Le Bon indícios de uma multidão
que de fato funcione integralmente a longas distâncias, é necessário que haja um
estímulo no sentido de reagrupar os membros para que de fato a multidão esteja
consolidada como tal. Sobre isso, afirma que “bastará que haja alguma chance de
reuni-los para que seus atos assumam imediatamente as características especiais
dos atos de uma multidão” (Idem, 1895, p. 18).
Da mesma maneira, concebe que as causas por trás do fenômeno da multidão
não são tão facilmente identificáveis como os efeitos em si, e diante disso propõe
que tais causas devam ser investigadas na existência de uma estrutura inconsciente

11 Características gerais mencionadas incessavelmente por Le Bon na obra Psychologie des foules sobretudo
ao longo dos primeiros dois capítulos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 49

que desempenha um papel fundamental tanto na multidão quanto no funcionamento


da inteligência como um todo: “A vida consciente do espírito representa apenas uma
parte muito pequena em relação à sua vida inconsciente” (Idem, 1895, p. 20). Esta
concepção do inconsciente, no entanto, não se trata do inconsciente substancialmente
psicológico – que será introduzido pela psicanálise a partir do século XX. As causas
por trás das ações da multidão (e também a vida consciente como um todo) provém de
um inconsciente cuja constituição está assentada em fatores atávicos, Le Bon (1895,
p. 20.) aponta que “Nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente
criado sobretudo por influências hereditárias. Este substrato contém os inúmeros
resíduos ancestrais que constituem a alma da raça”.
Para além dos atos das multidões, evidencia-se também a investigação acerca
do modo com o qual as multidões adquirem características próprias. Este ponto
recai em em outras diversas discussões sobre fatores como a importância do líder,
criminalidade, heroísmo, características culturais e inatas e diversos outros. Recebem
um importantíssimo destaque, neste caso, condições que perpassam os indivíduos
e a civilização como um todo, os quais apresentam similar importância no embasa-
mento das próximas teorias: o contágio mental, a hipnose e – fator que se tornará
fundamental nas próximas teorias sociais – a opinião de massa.

A sociologia de Gabriel Tarde e “a era do público”

Enquanto Le Bon desenvolvia seus estudos sobre as multidões, Gabriel Tarde


ainda era ligado ao debate da criminologia das multidões, estando os seus estudos a
respeito do público e da comunicação ainda em estado embrionário (GINNEKEN,
1992). A dinâmica publicitária presente na ascensão do boulangismo, os jornais que
marcaram influência no caso Dreyfus e a sua avolumada distribuição em massa em
paralelo ao desenvolvimento dos meios de comunicação, foram exponencialmente
incrementados neste curto período de tempo entre ambas as publicações. Portanto,
dada sua notável importância, estes fatores não poderiam passar despercebidos em
uma análise social mais acurada. Gabriel Tarde ocupou-se desta responsabilidade no
desenvolvimento da sua obra L’opinion et la foule (1901), cujo reconhecimento e
destaque estiveram assentados sobre a rigorosa análise sociológica que a precedeu12
e sobre a adoção do desenvolvimento tecnológico como fator essencial. Estes pilares
garantiram que o autor pudesse considerar a dinâmica das massas e o mistério da sua
ligação não mais sob o velho (e já muito questionado) ponto de vista da biologia,
mas sob um novo e mais moderno paradigma: a comunicação.
Não muito diferente de Le Bon, Tarde provém de família de grande status,
conhecida pelas sucessivas ocupações de cargos na magistratura e no direito (CAN-
DEA, 2019. p 7). Gabriel Tarde foi um juiz, filósofo, criminologista e estudioso dos
fenômenos sociais. Nasceu em 1843 em Sarlat, saiu para os estudos em direito e
retornou posteriormente para desenvolver a carreira no magistério, onde alcançou

12 Sobretudo as observações desenvolvidas nas obras Les lois de l'imitation (1890) e Les lois sociales: Esquisse
d’une sociologie (1898).
50

o cargo de Juge D’Instruction13, o qual manteve por oito anos (GIDDINGS, 1903).
Devido ao seu destaque nos campos da sociologia e da análise estatística criminal,
foi nomeado diretor da secção de estatística criminal do Ministério da Justiça em
Paris e professor de Filosofia Moderna no Collège de France em 190014, pouco antes
da sua morte.
Na obra L’opinion et la foule o autor empenha-se em apontar que as transfor-
mações sociais elevaram as multidões a um patamar superior, onde já não havia a
necessidade de união física para a existência de uma unidade mental (à distância):
o Público. Tarde esteve em favorável posição temporal e territorial para acompa-
nhar de perto as revoluções e os avanços tecnológicos na comunicação, sobretudo
as ocorrências do Dreyfus Affair. Estes fatores foram essenciais para formular uma
reavaliação da política de massa mais adequada a um contexto onde as figuras de
destaque, que outrora eram as multidões, passaram a ser “os escritores, os jornais e
a caneta” (GINNEKEN, 1992, p. 217).
A emergência de um novo “modo de agrupar indivíduos”, por assim dizer, o que
Gabriel Tarde conceitua como público, é o modelo social da modernidade que está
destinado a sobrepor as definições sócio-relacionais propostas na ideia de multidão.
Torna-se importante frisar, entretanto, que a multidão não deve ser de fato abando-
nada em sua totalidade, haja vista que a emergência do público deriva-se sobretudo
do fortalecimento da opinião de massa advinda do antigo modelo. Trata-se, portanto,
de um certo sentido de “obsolescência” do termo frente às novas dinâmicas comu-
nicacionais da civilização moderna que se adequam melhor à definição de público.
Este último, segundo o autor (1901, p. 9), “supõe, portanto, uma evolução mental e
social bem mais avançada do que a formação de uma multidão”.
Para Tarde, a multidão enquanto conceito geral de agrupamento foi o modelo
que perdurou desde os tempos mais antigos e apenas a partir do século XVI, com a
evolução da tipografia, é que podemos pensar nos primeiros esboços do que viria a
ser o público, conforme ilustra (1901, p. 10):

Havia um público na Idade Média? Não, mas havia feiras, peregrinações de mul-
tidões tumultuosas dominadas por emoções piedosas ou belicosas, cóleras ou
pânicos. O público só pôde começar a nascer após o primeiro grande desenvol-
vimento da invenção da imprensa, no século XVI.

Este conceito de público, marcado pela ainda limitada capacidade de produção


tipográfica, no entanto, representa uma classe que “não se compunha muito mais do
que de uma pequena elite de ‘homens de bem’ que [...] liam sobretudo, [...] um pequeno
número de livros escritos para um pequeno número de leitores” (Idem, 1901, p. 11).

13 Cargo no magistério francês responsável por instruir as investigações criminais no sentido de acusação e
encerramento dos casos. Tal cargo se assemelha, neste ponto, ao papel de investigador criminal.
14 Seu ingresso tardio à instituição acadêmica deu-se sobretudo mediante à proximidade com o meio elitista
e pelo contato com T. Ribot (que publicou alguns escritos de Tarde na sua Revue Philosophique). Seus
ideais políticos eventualmente entraram em conflito com a comunidade acadêmica mais ligada à vertente
progressista, sobretudo no debate com E. Durkheim. Consultar Ginneken (1992, p. 191-203).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 51

Apenas a partir do século XIX, em consequência da modernidade e das transformações


decorrentes da industrialização – onde a energia elétrica passou a estar presente na
maioria das casas e com ela a ampliação de diversas possibilidades tecnológicas –
sobretudo no que tange à automação elétrica, que fomentou o crescimento exponencial
da produção gráfica, foi possível o crescimento dos jornais e outros veículos de mídia
impressa à um alcance massivo.
Para Antunes (2008), a expansão da imprensa não seria possível sem a existência
da tipografia, do telégrafo e da ferrovia. Tão logo crescem estes fatores é que passamos
a observar que, conforme o Tarde (1901, p. 12), “estava reservado ao século XIX, por
seus meios de locomoção aperfeiçoada e de transmissão instantânea do pensamento
a qualquer distância” a ascensão do público tardeano de fato. É este motivo que o
torna mais adequado à modernidade que a organização concebida pela multidão: a
sua existência ainda persiste, mas não é suficiente para explicar a dinâmica social se
considerarmos estes fatores. A respeito, o autor (1901. p. 12.) observa que “uma mul-
tidão não poderia aumentar além de um certo grau, estabelecido pelos limites da voz
e do olhar, sem logo fracionar-se ou sem tornar-se incapaz de uma ação de conjunto”.
A capacidade infinitesimal de abrangência e a possibilidade do contágio a longas
distâncias, sem que seja necessário o contato físico, aliás, são fatores fundamentais
para definir o que é de fato o público tardeano, conforme ilustra (1901, p. 11):

Um público especial só se delineia a partir do momento, difícil de precisar, em que


os homens dedicados aos mesmos estudos foram em número demasiado grande
para poderem se conhecer pessoalmente, percebendo que os vínculos de uma certa
solidariedade entre eles só se estabeleciam por comunicações impessoais de uma
freqüência e de uma regularidade suficientes.

O aumento da capacidade de produção atendeu não apenas aos interesses da


imprensa como também fomentou outros meios de comunicação como as propa-
gandas ou os livros, e neste sentido cabe responder o porquê de estes últimos não
sustentarem a responsabilidade de promover a ligação dos indivíduos no público,
recaindo apenas aos jornais este papel. Este é um ponto fundamental no qual o autor
trata de resolver sob a sustentação de um profundo estudo sociológico no qual irá
estabelecer a ligação do público ao conceito de opinião.
Em suma, Gabriel Tarde é responsável por uma teoria sociológica que causou
um amplo debate no nascimento da Sociologia francesa, sobretudo entre autores como
René Worms e Émile Durkheim. Em primeiro lugar, no que responde ao assunto que
abordamos, a obra Les lois de l’imitation (1890) traz consigo dois conceitos funda-
mentais, a saber: a) A invenção, que, por tratar-se de “uma forma de simpatia, de
comunhão entre o homem social e a Natureza” (REYNIÉ, 2005. p. 7), caracteriza-se
pelo fato de que o seu “inventor” não o é de fato, mas que esta seria na verdade uma
“descoberta” – ou, (TARDE, 2005b, p. 182) “que o mérito do inventor limitava-se a
colher um fruto prestes a cair” – logicamente consequente da síntese de informações
que, repassadas de pessoa para pessoa, chegam à sua consciência; b) A imitação, cujo
papel primordial é, antes de tudo, a formação da sociedade per se (Idem, 1976. p 59),
52

é característica essencial do humano: um processo dialético a partir do qual cultura é


repassada entre descendentes e qualquer outra informação é transmitida boca-a boca.
Para além disto, é por meio da imitação que as invenções caminham entre o seio da
civilização e tornam-se fatos sociais, ela dá à invenção a possibilidade de propagar-se
infinitamente até que outros fatores interfiram no processo.
Posteriormente, Tarde traz na obra Les lois sociales: Esquisse d’une sociologie
(1898) outros conceitos que marcam e organizam as dinâmicas de propagação das
informações. O autor concebe o estudo do fenômeno social – ou mesmo qualquer
outro estudo inclinado à considera-se científico – deve estar assentado sobre três
processos fundamentais, dos quais: a) A repetição (2004) trata-se do da caracterís-
tica comum aos fenômenos que consiste na apresentação de semelhanças, tanto as
observadas a priori quanto aquelas identificadas em observações mais profundas; b) A
oposição (2005a), entretanto, representa a característica também comum aos fenô-
menos correspondente à presença de dessemelhanças e assimetrias, que igualmente
devem ser identificadas e aprofundadas cientificamente; e, por fim, c) A adaptação
(2005b), processo no qual o acoplamento lógico de fenômenos resulta em harmo-
nias e ajustamentos que permitem tanto o seu aprimoramento quanto a agregação de
outros conglomerados até que verdadeiras redes, tecidos ou grandes conjuntos de
fenômenos se formem.
A Opinião, neste sentido, representa efetivamente a aplicação prática destes
conceitos previamente estruturados diretamente ao fenômeno social. Trata-se do
resultado final do processo de propagação das ideias (as invenções) em meio a
civilização através da repetição que, processadas em termos de repetição, oposi-
ção e adaptação, terminam por constituírem grandes redes de indivíduos e infor-
mações: o público. Devido a este fator, a ligação do público se torna mais forte
conforme a imitação – isto é, a sociabilidade – se torna mais intensa e quão mais
as informações (conglomerados de ideias sintetizadas) se mantêm atualizadas.
Tarde (2005c, p. 8) ilustra que:

Em suma, a paixão pela atualidade progride com a sociabilidade, da qual ela não
é mais que uma das manifestações mais impressionantes. E como é próprio da
imprensa periódica [...] só tratar dos assuntos de atualidade, não devemos nos
surpreender com ver formar-se e estreitar-se entre os leitores habituais de um
mesmo jornal uma espécie de associação.

Portanto, a viabilidade do público tardeano está ligada diretamente à sensação


de atualidade que somente a vida urbana moderna foi capaz de conduzir. A questão
da integração entre os conceitos de público e opinião (Idem, 2005c. p. 59) respon-
de-se na ideia de que “A opinião está para o público, nos tempos modernos, assim
como a alma está para o corpo”. Portanto, de maneira lógica, conforme avançam
os recursos facilitadores da interação social e da difusão de informações, também
avança a abrangência de formação da opinião e, consequentemente, modificam-se
as dinâmicas dos laços que unem o público.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
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Estes três pequenos fatores: moda (atualidade), velocidade e abrangência são


fundamentais para esta evolução. O simples desenvolvimento das formas de comu-
nicação favorece de fato um alcance cada vez mais global, mas é fundamental que
este desenvolvimento seja acompanhado também por uma proporcional velocidade
de propagação das ideias, o que garante, no fim das contas, que as informações
sejam ao mesmo tempo globais e atuais – fator ideal para a união dos públicos. Tarde
propõe um estado social ideal onde, se considerássemos a similitude total entre os
cérebros e uma capacidade de comunicação absolutamente global, instantânea e sem
interferências, uma ideia nascente em qualquer ponto do globo tomaria prontamente
incidência sobre toda a humanidade, aponta (1895. p. 135), “É para este ideal [...]
que caminhamos a passos largos”.

Considerações finais

Este artigo deu foco às circunstâncias históricas nas quais emergiram os estudos
psicossociológicos sobre o fenômeno das multidões, ao deslindamento dos dilemas
que sitiaram este termo genérico e abrangente. Nesta perspectiva, diante dos fatores
aqui abordados estamos aptos a concluir que, ao menos nas obras de maior destaque,
o termo geralmente trazia em seu bojo uma aversão de caráter elitista às classes popu-
lares e estava perpassado por ideais políticos ligados sobretudo à anti-democracia, ao
conservadorismo e aos nacionalismos de direita. Estes valores podem ser observados
tanto nos estudos anteriores quanto nos que de fato selecionamos, mesmo nos estudos
de G. Tarde, por mais técnicos e futuristas que pareçam ser.
Ainda que ambas as obras estejam, como já mencionamos, situadas em um
momento e contexto relativamente próximos e que estejam perpassados basicamente
por valores e ideais políticos bastante semelhantes, é possível perceber em Le Bon,
no entanto, a presença de um olhar predominantemente político e ideológico sobre
o fenômeno, o que nos leva a questionar até que ponto se trata realmente de uma
obra de cunho “científico”. Há, com muita frequência, a visão elitista (também
presente nos estudos de G. Tarde) de um homem individualizado e superior, cujo
patamar dificilmente o cidadão médio popular (ou o “homem da multidão”) estaria
propenso a alcançar.
Esta visão, em certa medida, também está presente nos estudos de G. Tarde.
Entretanto, não escapa a um olhar mais acurado que as próprias argumentações
de ambos os autores – sobretudo as de Tarde – conduzem, em última instância, à
percepção de que as ideias ou opiniões dos indivíduos (supostamente “solitários
e sábios”), longe de autônomas e originais, também são construídas de processos
sociais coletivos, ainda que mais longínquos, ruminosos, silenciosos e muitas vezes
anônimos. Por outro lado sua obra, apesar de tudo, está debruçada de antemão sobre
um amplo estudo sociológico que busca consistência e validação científica ao ponto
de propor uma ciência social estruturada. A ciência da opinião tardeana está ligada não
apenas ao contexto político, mas abrange o compartilhamento social da religiosidade,
do desejo e dos mais diversos caracteres culturais (REYNIÉ, 2005). Ao passo que
54

os escritos Le Bon, apesar das aparências, caracterizaram-se mais acentuadamente


pela militância política estigmatizante e, no limite, antidemocrática (CONSOLIM,
2004). E aqui está uma das principais diferenças teóricas entre os dois autores: Le
Bon não foi capaz de conceber a influência do paradigma da comunicação sobre o
fenômeno, e por este motivo, a obra de Tarde revela-se mais concatenada aos pro-
cessos tecnocientíficos de modernização (dos meios de comunicação) e, portanto,
incomparavelmente mais frutífera nos atuais tempos virtuais, marcado pela internet,
pelas redes sociais e pelo algoritmo.
Neste caminho, notamos enquanto obstáculo mais pertinente a dificuldade de
acesso à algumas entre as obras de fundamental relevância para esta pesquisa. Embora
a assiduidade deste tema tenha elevado-se nos últimos anos, o esquecimento dos
seus principais autores manteve escassas as traduções e atualizações, e reduzida a
circulação dos seus livros. A deixa para futuros trabalhos, neste sentido, fica assentada
na importância da obra de G. Tarde para os fenômenos mais hodiernos. A obra deste
autor, apesar de datar mais de um século no passado, apresenta assustadora coerência
com os assuntos mais abordados nos dias de hoje: informação, estatística e dados. São,
portanto, muito diversas as possibilidades de utilizar-se da perspectiva tardeana na
abordagem destes fatores e, porventura, vislumbrar os paradigmas comunicacionais
que nos esperam mais adiante.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 55

REFERÊNCIAS
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CAPITAL RACIAL E AS CIFRAS
DO GENOCÍDIO: a contabilidade não
deve ser um fator objetivo e isolado
Jair da Costa Júnior

Introdução

A atuação das policias no Brasil vem apresentando historicamente resultados


nefastos quanto às expectativas que se tem em relação à política de segurança pública.
Também por este motivo, apresenta-se como um problema público e um fenômeno
que mobiliza diversas áreas do conhecimento científico. Um dos principais pro-
blemas levantados, para além dos gastos15 astronômicos de recursos públicos, é a
seletividade racial que tem determinado uma alta desproporcionalidade racial no
“acesso” ao sistema de justiça, bem como aos constrangimentos sociais causados
pela violência policial cotidiana: letalidade policial, a transformação dos territórios
de maioria negra em verdadeiros “campos de concetrationes” e, consequentemente,
o encarceramento16 em massa.
A contabilização dos pares raciais que dão entrada no sistema de justiça, seja
por meio das abordagens, do registro de boletins de ocorrência, no sistema prisio-
nal ou nos necrotérios, partem do registro de nascimento ou da heteroidentificação
realizada pelo agente público. Este seria um dado irrelevante caso a questão racial
no Brasil não apresentasse nuances exponencialmente complexas que remontam
sua constituição como Estado nação, que tem em sua gênese o colonialismo como
estrutura, dentre outros aspectos que conformam tanto sua dimensão objetiva, quanto
a subjetiva, compondo um universo de fatores relevantes na determinação de seu
tônus ante a realidade social. Vale mencionar ainda, os elementos de caráter simbó-
lico negligenciados por pesquisadoras(es), teóricas(os) e analistas, por adesão aos
mito-ideologias racialistas, má fé ou ausência de tato analítico ao desconsiderem
as informações mais substanciais, embora latentes, que configuram as percepções
individuais e coletivas em torno da compreensão do sentido e da multidimensiona-
lidade das questões raciais em nossa sociedade. É pertinente, portanto, despertar as
atenções para as formas como as leituras e interpretações do fenômeno do genocídio
da juventude negra no Brasil podem estar ofuscando algumas de suas matizes, con-
sequentemente, amenizando-o, uma vez que se encontram subsumidas em narrativas
de cunho essencialistas e racionalistas.

15 Em 2021, as despesas com Segurança Pública somaram R$ 105 bilhões de reais (FBSP, 2022).
16 O perfil da população presa é o mesmo das vítimas das mortes violentas intencionais (MVI): a população
masculina, negra e jovem. Nos últimos anos houve intensificação do encarceramento de jovens negros,
67,5% da pop carcerária, e 46,4% com idade entre 18 e 29 anos (FBSP, 2022).
58

Sustentado nos levantamentos de uma pesquisa qualitativa, com a finalidade de


compreender os elementos que consubstanciam as abordagens policiais, acessados
por meio da percepção de jovens do sexo masculino17, residentes em diferentes terri-
tórios, que apresentam fenótipos raciais diferentes, presumindo pertencimentos raciais
distintos, apresenta-se análises inovadoras referentes ao fenômeno em questão. Foram
realizados grupos focais onde os jovens falaram de aspectos diversos de suas vivências
e, sobretudo, do encontro ou não com a polícia. Para apreensão da noção que permeia
a percepção racial18 dos jovens, foram apresentadas imagens de pessoas em situações
similares, de fenótipos raciais distintos a fim de apontarem uma classificação sobre
cada uma. A título de demonstração, e em razão dos limites de extensão deste artigo,
apenas quatro imagens serão apresentadas. O resultado apontou certa homogeneidade
nas classificações; e no tocante à relação com a polícia municiou-me de elementos
suficientes para considerar a hipótese de uma rigorosa e criteriosa seleção racial.
Para tanto, o artigo apresenta uma breve síntese do conceito de capital racial,
enquanto categoria analítica que emergiu da compreensão das classificações emitidas
pelos interlocutores, bem como das percepções sobre eles próprios na relação com
outras pessoas, outros territórios e a polícia. Com base no conceito de capital racial
e as possibilidades analíticas que ele nos abre, serão apresentados dados relevantes
da pesquisa de modo que a(o) leitora(o) possa compreender suas configurações e
abrangência. Subsequentemente será discutido, a partir dos elementos da pesquisa e
dos entrelaçamentos críticos, a sustentação da tese principal da pesquisa, e, portanto,
deste artigo: a polícia aborda, forja, espanca, encarcera e assassina, exclusivamente
jovens negros; questionando o viés racionalista contido nos dados que informam que
84,1% das(os) jovens vítimas da polícia são negras(os), inferindo, na relação, que
16% das(os) jovens vítimas das policias sejam brancas(os).
A heteroidentificação realizada pela(os) policiais, assim como as pessoas socia-
lizadas no Brasil, e em muitos casos, a própria autodeclaração, é perpassada pela
avaliação de elementos e atributos que extrapolam a cor da pele. Apesar dela ser o
marcador social “essencial” e critério de seleção, é lida também símbolo de posição
social. Portanto, ser branco ou negro no Brasil remonta-se, genealogicamente a uma
condição social. Por mais que a cor da pele figure como signo inextrincável e foco das
práticas racistas, há outros elementos e atributos, associados como pertencentes à cul-
tura e a identidade negra que fazem funcionar os mecanismos da racialidade/biopoder.

Capital racial

É comum nas abordagens sobre relações raciais associarem a identificação das


diferentes raças, de maneira substancialista à cor da pele e traços fenotípicos. Tais

17 O recorte de gênero se justifica por estar sobrerrepresentados nas mortes violentas intencionais (MVI),
jovens negros, com 77,6% das vítimas de homicídio doloso, por exemplo, mas chega a 84,1% das vítimas
de mortes decorrentes de intervenções policiais. Quando aplicamos somente a categoria gênero, excluindo
raça, este percentual fica acima de 90% (FBSP, 2022).
18 Raça é tomada como uma construção social, política e dispositivo de um sistema de poder. Fenótipo racial
como o produto imagético dessa construção, tendo como base a cor da pele, traços fenotípicos, objetos e
coisas que foram associadas como pertencentes às identidades raciais.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 59

associações não estão totalmente equivocadas, uma vez que estamos tratando de uma
construção social e política de raça, e não de fatores biológicos. Não obstante, um
olhar mais acurado nos desvelará como há uma infinidade de aspectos e elementos das
construções políticas, históricas e culturais que subjazem as relações intersubjetivas
que foram e estão intimamente articuladas às noções de raças, consequentemente, às
identidades, como propriedades imanentes a elas. Estas associações são consequências
do transcurso do colonialismo onde o controle das distinções sociais, em coarticu-
lação à cor da pele e traços fenotípicos conformaram a construção das identidades
modernas no Brasil. Destarte, as identidades forjadas sob a matriz de significados
coloniais foram redefinidas de modo a posicionar as populações colonizadas à luz dos
sentidos da subordinação e marginalização social; determinando, consequentemente
a representação social. Observa Mbembe (2018, p. 31), que:

nem todos os negros são africanos e nem todos os africanos são negros. Apesar
disso, pouco importa onde eles estão. Enquanto objetos de discurso e objetos do
conhecimento, desde o início da época moderna, a África e o negro tem mergu-
lhado numa crise aguda tanto a teoria da nominação quanto o estatuto e a função
do signo e da representação.

Como linguagem ordenadora do sistema-mundo moderno capitalista branco


heterossexista, o racismo possui uma sócio-lógica própria que se verga sobre as
estratégias de justificação da exclusão racial/social, em termos biológicos e culturais;
constituindo assim, raça, enquanto uma categoria política e social e signo essencial
de distinções sociais definidas por laços de reciprocidade antagônica, uma vez que
capital econômico e capital cultural constituem as propriedades mais eficazes para
sua sustentação. As distinções são a essência do capital simbólico, e este, por sua vez,
remonta às categorias da percepção e da linguagem, inteligíveis a todas(os) de modo
que as reconheçam e as atribuam (inconscientemente) valores de ordem relacional. É
nesse sentido que o conceito de capital racial nos auxilia a compreender e a descamar
a mutidimensionalidade das questões raciais.
A escravização moderna, diferente da exercida em qualquer outro período
da história mundial, foi regida eminentemente pelo caráter econômico e social
(MOORE 2005; HALL, 2013; MBEMBE, 2018). Sendo sua finalidade precípua
produzir riqueza para as(os) escravizadoras(es), as(os) dominadoras(es), às expensas
da exploração e pauperização das pessoas escravizadas. Neste sentido, “trabalho e
subjetividade são categorias centrais para compreensão do surgimento, manipulação
e conversão de diferenças consideradas raciais em capital simbólico, o que dá origem
ao que se definiria como capital racial” (COSTA-JUNIOR, 2018, p. 171). Nos mos-
tra Quijano (2005) que a colonialidade do poder, como propriedade intersubjetiva
incorporada do colonialismo, tem como pedra angular a classificação hierárquica da
população mundial baseada na condição racial/étnica como elemento constitutivo
do padrão de exploração capitalista. Trata-se de “uma nova tecnologia de domina-
ção/exploração, neste caso raça/trabalho, articulou-se de maneira que aparecesse
como naturalmente associada, o que, até o momento, tem sido excepcionalmente
bem-sucedido” (QUIJANO, 2005, p. 119). Vale acrescentar, que:
60

Isso se expressou, sobretudo, numa quase exclusiva associação da branquitude


social com o salário e logicamente com os postos de mando da administração
colonial. Assim, cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma
raça particular. Consequentemente, o controle de uma forma específica de trabalho
podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo específico de gente dominada
(QUIJANO, 2005, p. 119).

Com a extinção do sistema escravocrata, a população negra foi largada à sua


própria sorte; se antes, mera força bruta escravizada a serviço da produção de riqueza
para as(os) colonizadoras(es); hoje, força bruta (e especializada) liberta a serviço da
produção de riqueza para população branca. A alteração da condição de escravizada
para liberta pouco alterou na condição socioeconômica, no reconhecimento social,
no status social ou na representação social dessa população. A sociedade liberal que
emergiu do colonialismo conserva suas estruturas sociais, incluindo a superestrutura,
e as hierarquias sociais, herdando, consequentemente, a estratificação ou polarização
racial e suas respectivas distinções afiliando-as às classes sociais. Para Mbembe
(2016, p. 128) “mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história
como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o
pensamento e a prática das políticas do Ocidente”, manifestando-se na rígida conver-
gência da homogeneização racial em polos diametralmente opostos da estratificação
social. Vale reforçar, conforme assevera Costa-Junior, que:

O controle de acesso às posições socioprofissionais de status privilegiado, asso-


ciado às distinções sociais, funcionando como preditoras de uma suposta essência
conferida pelas diferenças “reconhecidas” como raciais, foi a forma mais eficaz de
controle das hierarquias sociais, manutenção de privilégios e a subtração simbó-
lica do valor das pessoas negras e, consequentemente, a inferência de um capital
humano inferior (COSTA-JUNIOR, 2021, p. 9).

As percepções dos interlocutores19 da pesquisa, manifestas por meio das clas-


sificações sobre as imagens, nos desvela a operacionalização naturalizada de um
capital racial enquanto apreensão codificada, inteligível e compartilhada em nossa
sociedade. As primeiras imagens apresentadas foram de dois homens, um negro e
um branco, ambos sorrindo, em trajes formais: camisa branca com gravata em tons
de cinza e paletó preto. Homem branco: Taquaril: Um cara desses não trabalha no
depósito não; Justinópolis: Empresário. Advogado. Trabalho em banco. Galã de pro-
paganda; Morro das Pedras: Ator. Deputado; Santo André: Executivo. Patrão; Sion:
Passa ideia de uma pessoa bem-sucedida. Homem negro: Taquaril: Segurança do
Justin Biber. Safado. Deputado; Justinópolis: Garçom. Porteiro de prédio. Estudante.
Pastor; Morro das Pedras: Professor. Enterro da sogra; Santo André: Trabalhador.

19 Serão apresentadas as categorias de classificação com a identificação de cada grupo pelo nome da locali-
dade: Taquaril, Justinópolis, Morro das Pedras, Santo André e Sion. Categorias repetidas serão apresentadas
uma única vez. As análises serão, praticamente, as transcrições da pesquisa. Sendo assim, não serão
indicadas conforme padrão de citação.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 61

Representa a porcentagem de negro na faculdade. Pai de família ao mesmo tempo


bem vestido; Sion: Satisfeito. Empresário. Diretor de empresa.
Observa-se que nas classificações atribuídas ao homem branco predominam
categorias socioprofissionais consideradas de status social privilegiado. Os inter-
locutores do Taquaril utilizam-se de uma técnica de demarcação oposicional da
classificação para afastar o que acreditam não ser condizente à imagem do homem
branco. Este exercício, conferido pelo imaginário da posição racial ideal é central
e revelador das idiossincrasias do capital racial. As classificações atribuídas ao
homem negro apresentam alguma variação, no entanto, em sua grande maioria,
destacam-se categorias socioprofissionais consideradas igualmente de baixo status
social. Excetuando-se o grupo do Sion, que manifestou opinião similar aos quesi-
tos profissionais atribuídos ao homem branco. Chama atenção o termo “safado”,
por seu potencial pejorativo, e as classificações dos interlocutores do Santo André,
nas quais presume-se haver um esforço do homem negro em se aproximar de uma
representação que se afasta da convencional, seja por estar em um espaço onde
supostamente a vestimenta seja um valor, igualmente ao fato de tal vestimenta não
ser habitual para um homem negro pai de família. Os referenciais denotativos do
prestígio social não estão associados às pessoas negras.
Podemos observar, que para os interlocutores das demais localidades, diferente
do Sion, ser negro ou branco marca posições que constroem significativamente as
representações concebidas e compartilhadas no segmento social em que se inserem.
A referência à religião evangélica adquire maior sentido analítico enquanto elemento
que compõe a percepção dos interlocutores moradores de localidades consideradas
favela e periferia, em relação à ausência dessa categoria nas falas dos interlocutores
da localidade considerada nobre. Talvez se explique pela configuração diferenciada de
suas experiências, em que essas imagens lhes são familiares ou estranhas, ou diferem
em sentido quando o que demarca a diferença é a cor da pele, como fica evidente nas
demais classificações. Segundo Feltran (2010, 2011), no conteúdo narrativo do neope-
tencostalismo é notório enquanto instância conformadora de percepções na dinâmica
das periferias. É também no plano religioso que se observa uma substancial alteração
das concepções morais, uma vez que a população das periferias, que se declarava
quase homogeneamente católica, apresenta-se gradativamente nas últimas décadas
ao neopetencostalismo. O que nos indica sua marcante presença nessas localidades.
As próximas observações referem-se às duas imagens de um grupo formado
por três mulheres negras, e outro por três mulheres brancas. Todas estão sorrindo e as
imagens sugerem ambientes de entretenimento. Um detalhe é que uma das mulheres
negras tem nas mãos uma garrafa de água mineral, enquanto na mesa das mulheres
brancas há uma garrafa de cerveja e copos. Mulheres brancas: Taquaril: Patricinhas.
Pessoas de famílias bem-sucedidas; Justinópolis: Boate; Morro das Pedras: Cara de
patricinha; Santo André: Só lôra. Parece aqueles eventos de moda, São Paulo Fashion
Week; Sion: um grupo de amigas num festejo. Mesmo padrão, todas usando roupas
muito parecidas e os cabelos também. Mulheres negras: Taquaril baladeira. Rap
debaixo do viaduto; Justinópolis: Baile funk. Depois de meia noite ninguém conta;
Morro das Pedras: Mulheres que trabalharam a semana inteira e estão dando um rolê.
62

Indo para o pagode. Samba; Santo André: Baile de favela do Rio de Janeiro. Tudo
puta. Representa muito essas meninas aí, a maneira como elas se vestem. Pra mim é
tudo igual, não se valoriza; Sion: Três amigas numa festa fechada.
As classificações atribuídas às mulheres negras são fortemente carregadas de
um essencialismo cultural, gravitando em torno de atividades de entretenimento
consideradas ou vinculadas às pessoas negras (baile funk, rap, samba, pagode...).
Este dado nos permite inferir que essa leitura parte de uma experiência de vida em
um contexto específico, a partir da posição social e localização geográfica na cidade,
que os leva a estabelecer uma relação direta de familiaridade com a imagem, em
decorrência da rígida polarização racial nas classes antagonicamente posicionadas.
Outras classificações se destacam pelo contundente teor pejorativo, o que pode estar
associado, conforme constatou Collins (2019, p. 129) ao “mito da sexualidade da
cultura da subclasse negra20“. Segundo Gonzalez (2018, p. 49), “a mulher negra
desempenha um papel altamente negativo na sociedade brasileira nos dias de hoje,
dado o tipo de imagem que lhe é atribuído ou das formas de superexploração e
alienação a que está submetida”.
Percebe-se que as classificações mobilizadas para as mulheres brancas, de algum
modo, reforçam imagens também essencializadas, entretanto, opostas às mulheres
negras. Como afirma Gonzalez (2018, p. 44), “ser mulher negra no Brasil, repeti-
mos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo
racismo e pelo sexismo as colocam no mais baixo nível de opressão”. Para a teórica
feminista negra, Lélia Gonzalez, a tríplice discriminação envolve as dimensões de
raça, classe e sexo, assim como seu lugar na força de trabalho, o que é incontestável
nas classificações, e “expressa a universalidade das opressões interseccionais, orga-
nizadas em diversas realidades locais” (COLLINS, 2019, p. 369), interagindo numa
dinâmica de plasticidade multidimensional com feições diversas de acordo com o
contexto, instituições e agentes envolvidas(os).
As classificações marcadamente antagônicas fazem inferências e destaca a
posição social imaginada das mulheres nas imagens, e traduzem facilmente o ima-
ginário brasileiro sobre ser branca(o) e sua posição na estrutura e hierarquia social.
Isso fica ainda mais nítido quando as mesmas categorias não são mobilizadas para
as classificações das mulheres negras, e em nenhum dos segmentos de imagens isso
ocorreu. Uma rara exceção quanto aos interlocutores do Sion. Todavia, desvelou-se
como possíveis manipulações do discurso, que não se sustentaram. Veremos adiante.
Muda-se o contexto e as estruturas simbólicas das imagens, no entanto, as classi-
ficações seguem se referenciando ao fenótipo racial. Outras duas imagens, uma delas
situa uma mulher branca, e outra uma mulher negra, ambas sorrindo em contato com
notebook’s. O ambiente de fundo alude a um espaço corporativo, onde o destaque
das mulheres sugere alguma posição de liderança. Mulher negra: Taquaril: Estu-
dante. Biblioteca. Empresa; Justinópolis: advogada; Morro das Pedras: Professora.
Secretária; Santo André: Estagiária. Secretária; Sion: Mulher bem-sucedida como

20 Segundo Collins, tal inferência está relacionada à quantidade de jovens negras grávidas ou “empurrando
carrinhos de bebês” nos bairros pobres das grandes cidades.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 63

trabalhadora. Designer. Algum profissional que mexe com computador. Mulher


branca: Taquaril: Empresária com certeza; Justinópolis: Diretoria de uma empresa;
Morro das Pedras: Advogada; Santo André: Executiva. Aí sim uma empresária. Agora
a outra pra mim era secretária. Patamar alto. Se precisar falar com ela, aquela secreta-
ria bate um gancho pra ela: tem tal pessoa aqui; Sion: Um trabalho gerencial talvez.
Interessa refletir sobre os possíveis motivos para que cada uma das mulheres nas
imagens seja classificada em categorias e representações tão distintas e hierarquica-
mente desniveladas. Por meio de um prisma relacional, nota-se que as classificações
diferenciais, para além da hierarquização de categorias socioprofissionais atribuídas,
denotam um concomitante reforço da posição da mulher branca, como na afirmação
dos interlocutores do Taquaril, seguidos pelos do Santo André. Em suas colocações,
afirmam a posição da mulher branca em relação a mulher negra, estabelecendo uma
hierarquização de funções, não simplesmente separando-as, mas colocando uma
subalterna à outra. Segundo Bell Hooks (2022, p. 77), “como o sistema de plantation
não existe mais, o mundo do trabalho cotidiano torna-se o local onde esse domínio
pode ser representado e reencenado repetidas vezes”. Observa-se que as conexões
estabelecidas para mulher branca praticamente não variaram, as categorias foram,
em certa medida, convergentes quando pensamos em status e prestígio social.
Na discussão entre os participantes do mesmo local, os motivos dessa hie-
rarquização não são ditos de forma nítida, o que expressa o sentido velado da
classificação e seus possíveis pontos de sustentação. Essa diferenciação sugere
que a mulher negra não se encontra representada nos esquemas mentais da mesma
forma que a mulher branca, ou de uma maneira que os permita vislumbrar posições
similares ou hierarquicamente compatíveis para ambas. Uma espécie de alegoria
colonial na contemporaneidade.
A atribuição de posição feita à mulher branca em relação à negra, é igualmente
percebida na classificação feita pelos interlocutores do Sion, ainda que se dissimule
uma proximidade pela linguagem. Permite perceber como a ausência do termo “tra-
balhadora”, para mulher branca, pode denotar um potencial reconhecimento de uma
posição “natural”, ou minimamente esperada, em razão de seu fenótipo racial em
relação às categorias socioprofissionais acessíveis. Estar na referida posição não
requisita ser bem-sucedida como trabalhadora, não há aparente destaque em sua
trajetória que exija adjetivação complementar, ela aparenta estar “no seu lugar”. O
que reforça a premissa interseccional entre raça, gênero, classe, sexualidade e etc..
Reafirmando, consequentemente, que as propriedades raciais são inextrincavelmente
imbricadas às propriedades de classe, ambas enquanto categorias do discurso ideoló-
gico e dispositivos do sistema-mundo-moderno. Na relação oposta, a mulher negra é
posicionada necessariamente como uma “mulher bem-sucedida como trabalhadora”.
Neste caso, o termo “trabalhadora” adjetiva uma pessoa que alcançou sucesso e ocupa
um lugar onde se entende que não estaria de outra forma que não fosse trabalhando
arduamente. Para a análise relacional, sua posição na sociedade é reforçada hierar-
quicamente de forma tão natural quanto a da mulher branca.
As interações sociais analisadas em um contexto específico remontam uma
noção de coletividade que é fundamental para compreender os fenômenos sociais.
64

Exige abandonar o pensamento essencialista e incluir a dimensão relacional das


representações, das identidades, do reconhecimento social e das funções. Isso resulta
na constatação de que nenhum individuo pertencente a uma sociedade cria em sua
mente um conceito, uma noção de identidade ou representação, sem que este encontre
um sentido amplamente incorporado e compartilhado por meio de uma linguagem
comum. Assim, tendo a linguagem como mediadora para apreensão dos sentidos e
compreensão das funções e representações, ela deve ser vista como mais que um
simples instrumento de comunicação verbal ou mapa conceitual, mas como um amplo
conjunto de representações e expressão de sentidos. Como explica Hall: “a lingua-
gem se apresenta, portanto, como o segundo sistema de representação envolvido no
processo global de produção de sentido [...] para que assim correlacionemos nossos
conceitos e idéias com as palavras escritas, sons pronunciados ou imagens visuais”
(HALL, 2016, p. 36).
Nas atividades com os interlocutores da pesquisa foram apresentados grupos
de imagens. Em um deles, especificamente continha imagens de pessoas jovens,
de ambos os sexos e fenótipos raciais distintos. Para cada imagem deste grupo foi
solicitado que expressassem se seria possível presumir algum tipo de envolvimento
em atividades ilícitas (tráfico de drogas – em qualquer nível – ou outras). Serão apre-
sentadas na sequência, apenas duas duplas de imagens e suas respectivas reflexões,
em razão, assim acredito, de seu maior potencial explicativo das questões discutidas
neste artigo.

Fonte: Foto extraída da internet� Fonte: Foto extraída da internet�

Homem negro: Taquaril: Se eu fosse policial eu pararia ele. Se vê um cara


desses na rua o policial pensa: eu vou parar ele, a cara dele. As pessoas julgam pela
aparência; Justinópolis: Eu daria 300 anos de cadeia para ele. É bandido. A cara de
mau dele, é bandido. Um traficante das antiga; Morro das Pedras: Não. Santo André:
Aí sim oh, aí pode ser traficante; Sion: Não. Ele quer parecer [traficante]. Homem
branco: Taquaril: Não; Justinópolis: Não; Morro das Pedras: Não; Santo André: Esse
tá no Leblon se exercitando, pode ser que seja um traficante, mas é Ipanema. Aparenta
ser um playboy. Executivo. Não aparenta ser traficante não. Também acho que não;
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 65

Sion: Não. É só um cara. Mas poderia ser um cara que vende drogas sintéticas. Mas
é porque a gente vê isso. O meio em que a gente tá a gente vê isso.
Com exceção dos interlocutores do Morro das Pedras, observa-se um consenso
ensurdecedor em torno das classificações desferidas à imagem do homem negro.
Consenso também em relação à imagem do homem branco, porém, sem exceções.
São elementos de extrema relevância, uma vez que não hesitam sobre a representa-
ção a que os remetem cada uma das imagens. Concordam sobre a aparência ser um
critério que levanta suspeita e define os parâmetros da “sujeição criminal” (MISSE,
2014). A linguagem assume proeminência, no grupo do Sion, quando na tentativa de
manipulação do discurso e classificação do homem negro fora do padrão de represen-
tação atrelada à criminalidade, ao fim e ao cabo afirmam tal condição. Seu subtexto
informa que há uma imagem, uma aparência previamente construída e reforçada do
que é reconhecido como traficante, que é similar à do homem negro. Para afirmar que
alguém quer se parecer um vampiro é necessário ter uma representação imagética
previamente construída deste significante.
Existe algo na verbalização das percepções que pode parecer invisível, embora
escancare nossas concepções racistas de mundo e a vivacidade do capital racial. A
maior parte dos grupos de interlocutores foram contundentes ao classificar o homem
negro como traficante. Lançando luzes à percepção racializada, especialmente quando
para o homem branco, prevalece uma unanimidade em não enxergá-lo como pas-
sível das mesmas classificações. Para os interlocutores do Santo André existe uma
possibilidade de ser traficante, porém, descartada por estar em zona nobre do Rio
de Janeiro. Sugerem ainda o homem branco como executivo, mesmo sem a imagem
trazer nenhuma referência ao padrão estético de um. Isso ganha outras proporções
quando um homem negro, mesmo dentro dos critérios estéticos de representação de
um executivo não foi cotejado como tal.
Os interlocutores do Sion concordam que o homem branco pode ser uma pessoa
que vende drogas sintéticas. A categoria traficante não é mencionada para sua classi-
ficação. Em outras palavras, há uma diferenciação nessa nomeação, aparentemente
decorrente tanto do tipo de droga vendida como pela forma, local da ação e público
consumidor; mas sobretudo, do fenótipo racial e outros elementos que permitiram o
reconhecimento como parte do grupo racial e social dos interlocutores do Sion. Sugere
uma espécie de deslocamento da imagem do homem branco da representação do que
entendem como traficante, pressupondo uma identidade previamente fixada nesta
classificação, especialmente quando consideram a possibilidade do homem negro
querer se assemelhar a um traficante21. Pelas narrativas e classificações em geral,
nota-se que a depreciação e sentenciamento do homem negro assume maior destaque
quando a negação, a cortesia e comedimento direcionados ao homem branco é a regra.
Como assevera Moore (2007) o fenótipo, desde as épocas mais longínquas, é
o atributo orientador de ações violentas. Sobretudo das(os) policiais contra jovens
negras(os) e pobres, enquanto para as(os) brancas(os) reserva-se a garantiria de pro-
teção e segurança. De fato, ergue-se a cor da pele (e demais elementos da composição

21 Termo associado a uma tipificação penal, conforme artigo 33 da lei 11.434/2006, e não a um perfil identitário.
66

identitária) como um signo, na afirmação do poder simbólico, que através de surdas


injunções e os chamados silenciosos dirigem-se às estruturas mentais, e, ao mesmo
tempo, aos seus corpos como forma de exigências tácitas de reverenciamento ou
violências, segundo o perfil racial em interação, expondo um “regime racializado de
representação” (HALL, 2016).
Solidamente enraizado no mais profundo do habitus de uma sociedade que teve
o mais robusto sistema colonial, aos gostos e repulsas, aos estilos apreciados e aos
estilos depreciados, as afinidades e hostilidades, fantasmagorias e temores, em sua
coalescência, desvela-se o fundamento inconsciente onde repousa as idiossincrasias
oposicionais das representações raciais; muitas vezes, erroneamente convertidas em
propriedades de classe. Trata-se de uma forma axiomática de reverenciamento da
ordem simbólica como reprodução da ordem social determinada pelas construções
sociais e políticas. Reverencia-se, portanto, não à pessoa que na aparência apresenta
determinados signos e símbolos, ou, do lado oposto, desvaloriza-se, mas à ordem
social que constituiu tais signos como respeitáveis ou desprezíveis. O aspecto mais
notável, embora tácito, da ordem social por influência da ordem simbólica, se expressa
também nos elementos mobilizados de forma binária na conformação da sujeição
criminal. Assevera Hall (2016), que “a relação entre ‘coisas’, conceitos e signos se
situa, assim, no cerne da produção do sentido na linguagem, fazendo do processo que
liga esses três elementos o que chamamos de representação” (HALL, 2016, p. 38).
Pelos dados empíricos apresentados, ao passo que evidenciam a mobilização
de um capital racial, permitem compreender os mecanismos objetivos e simbólicos
construídos e compartilhados política e socioculturalmente que interagem inconscien-
temente (ou não) na fundamentação e legitimação das ações repressivas do Estado
contra a população negra, agregando ainda elementos reconhecidos ou associados
às identidades raciais, como: objetos, músicas, roupas e o jeito corporal. Sugerindo
que as coisas também são racializadas à medida que são lidas como próprias de um
grupo ou de outro. Nesta sócio-lógica relacional, se por um lado a polícia justifica
sua atuação seletiva, de outro legitima o privilégio de uma vida sem constrangi-
mentos públicos ou medo do extermínio, e exime as(os) jovens brancas(os) de suas
responsabilidades criminais ante os atos ilícitos praticados. Assevera Carneiro (2005,
p. 76), que “o biopoder aciona o dispositivo de racialidade para determinar quem
deve morrer e quem deve viver”. Afinal, como informaram os interlocutores do Sion:
“mas é porque a gente vê isso, o meio em que a gente tá a gente vê isso”. Ou, em
outro momento:

Outra coisa que eu acho que influencia o policial assim é: eu conheço gente do
mesmo círculo social que eu, assim, que foi abordado com drogas, assim com
drogas mais pesadas e que não aconteceu nada. Mesmo assim não aconteceu nada
(Jovens do Sion).

Um sistema racializado de classificações22 binánárias institucionalizado na ação


policial e no sistema de justiça como um todo que, ao se apropriar de categorizações

22 Collins (2019) nomeou de “imagens de controle”, surgidas na era da escravidão e presentes na atualidade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 67

arbitrárias, tomando por base elementos da composição racial, tem poder real de
selecionar quem será interpelado ou não, reproduzindo e perenizando representações
sociais criminalizadas de um lado, e de outro, perpetuando um sistema de privilégios
e manutenção simbólica da imagem da “pureza”. Mas também da incolumidade e da
presunção previa e histórica da inocência.
As observações feitas pelos interlocutores da pesquisa sobre as fotos acima
são igualmente sintomáticas de uma “sistemática de repressão policial, dado que seu
caráter racista (segundo a polícia todo crioulo é marginal até que se prove o contrá-
rio) tem por objetivo próximo a imposição de uma submissão psicológica através
do medo” (GONZALEZ e HASENBALG, 1982, p. 16), que pode ser analisada por
meio das classificações dos interlocutores negros sobre as pessoas negras nas fotos.

Fonte: Foto extraída da internet. Fonte: Foto extraída da internet.

Jovens negros: Taquaril: Muitos aí vai ser, nem todos. Justinópolis: Tudo ban-
dido, envolvidão; Morro das Pedras: Galera da biqueira; Santo André: Aí é favelão. Aí
é favela. Colando no baile. Aí é comunidade. Aí deve ter uns traficantes e o restante
é parente; Sion: Alguém aí vai ser. Eu acho que parece. É um grupo que claramente
eles são de classe mais baixa. Todos negros, eles parecem tá numa favela. Eu acho
muito provável que algum deles possa ter algum [envolvimento], só de ter vendido
alguma vez na vida. Não estou falando que é, não do crime organizado e que a maioria
é, mas é possível sim. Jovens brancos: Taquaril: Não; Justinópolis: Parecer num
parece não mas vai saber; Morro das Pedras: Não; Santo André: Playboy. Donos de
negócio. Amigos; Sion: Não.
Sem exceções os jovens negros da foto foram associados às posições de envol-
vimento pontual ou constante em atividades ilícitas e tráfico de drogas por todos os
grupos de interlocutores. A associação entre espaço físico (favela/periferia), posição
social (pobres) e raça ganha destaque nas classificações e tentativas de análises
realizadas para justificar as classificações. Há uma inferência de relação que denota
certo essencialismo racial, de trajetória, de classe social que inclina a percepção ao
exercício da classificação marginalizada direcionada aos jovens negros. No encontro
com os interlocutores de Justinópolis, ao ver a figura, alguém comentou: “negão
igual nós né”. Outro interlocutor do Santo André comenta: “Num é nada, mas quer
68

ostentar: camisa de quinhentos; tênis de mil e bermuda de quinhentos. Eu me visto


assim e não mexo com nada de errado”. Inferindo, consequentemente, que há uma
conotação associada a tal estilo, para algumas pessoas ou grupo.
Ainda no que tange à condição de suspeito, os interlocutores do Santo André se
colocaram mais autoafirmativos no tocante a estarem menos propensos às abordagens
violentas. Muito embora sejam abordados pela polícia corriqueiramente, conforme
os vários relatos apresentados. O grupo do Taquaril se posicionou mais dividido,
alguns temem a intervenção da polícia enquanto outros afirmam ter consciência de
seus direitos, bem como dos deveres da polícia, apesar de assistirem e serem alvos,
cotidianamente da atuação policial e de uso de força desproporcional. Já os interlo-
cutores de Justinópolis e Morro das Pedras, de forma mais homogênea, manifestam
contundentemente medo da polícia. Os interlocutores do Sion são indiferentes à
essa realidade. Em suas experiências a polícia representa proteção. A fala de um
interlocutor do Morro das Pedras traduz bem este antagonismo: “Eu colo muito na
cachoeira lá do Mangabeiras23, aí eu passo lá na ruinha assim. As casas tudo escrito
com plaquinha da Polícia Militar, tipo, é: eu sou amigo da polícia militar”. Foi notável
como a colocação provocou uma série de manifestações de rejeição e medo da polícia
durante as conversas. Comentários, risadas e manifestações gestuais questionavam
o fato de alguém, no Brasil, ser amigo dessa polícia.
Apesar de haver um reconhecimento identitário dos interlocutores das localida-
des considerados favela ou periferia, há um concomitante reforço das representações
pejorativas que pensam sobre eles. Fato que revela, incontestavelmente, como se
encontra configurada, inconscientemente a imagem e representação da criminalidade
que vê no outro e não em si. Uma hipótese possível, revela-se na oficalização diante
da ação do Estado, tanto no fomento à segregação espacial, como na manutenção de
localidades desprovidas de infraestrutura e serviços básicos e em condições dignas,
como também na sistemática presença do aparelho repressivo na aplicação de violên-
cias variadas contra essas populações, como formas de engendramento do genocídio
(CARNEIRO, 2005; FLAUZINA, 2006).
Houve igualmente, identificação dos interlocutores da localidade considerada
nobre com as imagens de jovens brancos. Porém, sem vinculação determinista dos
interlocutores com tráfico de drogas ou atividades ilícitas. Mas sim com os sentidos
da branquitude, como na imagem anterior. Diante disso, vale questionar: o que leva
as(os) jovens negras(os), pobres e moradoras(es) de favelas e periferias a legitimar
os pressupostos que justificam as ações arbitrárias e violentas das polícias, apesar de
se reconhecerem como possíveis alvos dessas ações? Algumas falas podem auxiliar
a refletir sobre tais indagações:

É esquisito, mas fica diferente. Eu já vi um cara com a mesma camisa que eu,
eu achei eu lombrado e achei o cara normal. Eu lá no Diamond, com a camisa

23 Bairro nobre de Belo Horizonte (classe alta): 29,40% dos domicílios apresenta rendimento nominal mensal
domiciliar per capita de mais de 5 a 10 salários mínimos, e 41,37% mais de 10 salários mínimos. 92,04%
da população é branca. 1,49% da população é preta e 6,42% parda (IBGE, 2010).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 69

do cruzeiro. Fica diferente... na gente e no playboy... é esquisito isso, eu já pen-


sei nisso, mas o cara vai estar com a sua roupa e vai ficar diferente (Jovem
do Taquaril).

[...] por causa da aparência né. O jeito de vestir, nós anda mais jogado (lombrado24).
O estilo né, blusa, boné, camisa de time, correntinha. Eles acham que quem anda
desse jeito é vagabundo (Jovens de Justinópolis).

Os policiais tava do outro lado. Eles deram o retorno e vieram até nós com a maior
ignorância, perguntando onde a gente tava, o que a gente tava fazendo; porque
que eu tava de chinelo, e blusa de time (Jovem do Morro das Pedras).

[...] quando você vê o boy você sabe. Até o jeito do cara andar. Tá no jeito de
vestir, ta no jeito de andar, ta no jeito de falar: a gíria (Jovem do Taquaril).

[...] parece que tem até uma diferença eles (playboy25) de chinelo e nós de chinelo.
“É a aparência!” (Jovens Taquaril).

As falas analisadas em seu conjunto indicam haver um pensamento homogê-


neo sobre a representação simbólica dos objetos destacados, de forma a associar,
diretamente à constituição identitária, e por tais apropriações assumem significados
diferentes. Em outros termos, é conferido à pessoa e não ao produto de forma iso-
lada, pois, irá requisitar ainda, outros marcadores simbólicos para sua confirmação.
É nesse sentido que capital racial incorpora, igualmente, a taxionmia das coisas e a
hexis corporal como marcadores. A taxionomia das coisas, como parte interagente
do mundo social, participa de um jogo de codificação simbólica sendo classificada
consoante aos agentes ou grupos que delas se apropriam, tomando de empréstimo
símbolos e recebendo sentido social, participando, concomitantemente da constituição
identitária de um grupo. É o que informa de seu ordenamento no mundo social. As
coisas participam da construção das identidades revelando os gostos e estilos de vida,
servindo de suporte para afirmação de seus significados. A determinante expressiva
da apropriação e propensão para aquisição de objetos e coisas, bem como das práticas
sociais, que influem diretamente na linguagem, no estilo de vida e na hexis corporal,
encontra seu fundamento na vivência ou socialização racial. O que foi racialmente
codificado, segue sendo racialmente significado, atualizado e incorporado.
Em pesquisa realizada por Reis (2002) em Salvador, Bahia buscou-se averi-
guar, partindo da percepção de policiais, quais elementos compõem o tipo suspeito.
“O que mais se destacava nos relatos era o cabelo rastafári como um estigma de
marginalidade, um jeito de andar meio gingado (nomeado pelos PMs como tombo)”

24 O termo aparece em várias falas dos jovens e em grupos diferentes, embora utilizado para caracterizar
situações diferenciadas, o significado é sempre similar, podendo remeter à: mal vestido, feio, suspeito, mal-
-encarado entre outros.
25 O termo é muito utilizado e tem a intenção de expressar um sentido de branquitude masculina e jovem. Para
seu par feminino utilizam patricinha.
70

(REIS, 2002, p. 190). O elemento destacado como “tombo”, peculiaridade do jeito


de andar meio gingado foi igualmente citado pelos interlocutores. A pesquisa de
Sinhoretto (2013), realizada em quatro Estados26 brasileiros, evidencia que de fato,
“a vestimenta e a postura corporal são consideradas indícios empíricos a fundamentar
a suspeita policial” (SINHORETTO, 2013, p. 103). Convergindo às conclusões de
Sinhoretto, um dos dados que sobressai na pesquisa, é que mesmo os jovens brancos
moradores de localidades consideradas favelas ou periferias são constantemente inter-
pelados pela polícia. Embora em menores proporções que os jovens negros desses
mesmos locais, mas ainda sim com intensa regularidade. Como foi possível observar
com os interlocutores do grupo da localidade considerada nobre, que nunca27 foram
interpelados pela polícia em suas vidas. As diferenças entre o jovem branco de classe
média e alta, para o jovem branco pobre, além da “divisão racial do espaço”, reside no
plano da incorporação dos símbolos que foram instituídos como sendo pertencentes
à cultura e identidade negra, em oposição aos considerados da cultura e identidade
branca, incluindo a hexis corporal. Constata Sinhoretto que:

os rapazes com aparência que mistura signos de classe popular e cultura negra são
suspeitos de serem potenciais criminosos, ao passo que os rapazes de outra aparên-
cia, exibindo outros signos de classe e cultura, são portanto, estarem distantes de
atividades que mereceriam a vigilância da polícia (SINHORETTO, 2013, p. 103).

Nesta atmosfera estruturada por um capital racial, os aspectos mais sutis como
a hexis corporal, modo de expressar verbalmente são identificados ou reconhecidos
como distinções raciais. Neste caso, considera-se também pessoas brancas socializa-
das em localidades de maioria negra, e sob os mesmos habitus, apresentam práticas,
comportamentos, gostos e estilos que são considerados como próprios da população
negra. Deste modo, inconscientemente elas são dissociadas do significado social de
branquitude e aproximadas ao significado de negritude. É relevante considerar, que
as práticas sociais funcionam como “uma arte gímnica” definindo o jeito corporal
(MAUSS, 2015), como consequências das condições diferenciais de reprodução da
vida. Explica-nos Bourdieu que, assim

como valores nos gestos mais automáticos ou nas técnicas do corpo, na aparência,
mais insignificantes, por exemplo habilidades manuais ou maneiras de andar,
sentar-se, assoar-se e posicionar a boca para comer e falar; além dos princípios
mais fundamentais que exprimem diretamente a divisão do trabalho (BOURDIEU,
2007, p. 434).

A segregação racial, que se expressa também nos corpos, pode ser observada de
formas inquestionáveis, para usar as noções de Gonzalez (2018), na “divisão racial

26 Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal.


27 Um interlocutor do Sion narrou uma única abordagem policial em toda sua vida e faz questão de enfatizar
que ocorreu devido ao fato de um amigo pedir seda para enrolar um baseado a um policial apaisano. Enfatiza
também que não houve nenhum ato de violência e foram liberados em poucos segundos de abordagem.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 71

do trabalho”, na “divisão racial do espaço”, consequentemente, na divisão racial


da população em classes sociais, como legados do colonialismo. Capital racial é
uma engrenagem do poder simbólico constitutivo de sociedades de passado colonial
(colonizadas/colonizadores), estruturado desde sua gênese, para a eternização e êxito
de um sistema-mundo-moderno supremacista branco capitalista. Enquanto elemento
estruturante dos códigos de comportamento de uma sociedade, capital racial é capital
de produção de distinção social tendo por base a raça, e inserido no arcabouço das
categorias da percepção, torna-se reconhecível, inteligível e passível de atribuição de
valor. Um atributo essencialmente relacional, inerente às relações sociais mobilizado
por meio de classificações e hierarquizações na reprodução de pressupostos distin-
tivos imputados aos pares raciais de modo binário e opositor, expressando um con-
junto de valorações morais e competências sociais. Nessa perspectiva, capital racial
encontra-se arraigadamente ancorado no habitus, portanto, de trajetória longínqua
participando do processo de socialização dos agentes e, consequentemente, inserido
nas práticas sociais e institucionais mais cotidianas, pressupostos de ofuscamento
seu caráter de violência. Nos elucida Costa-Junior que:

Capital racial, portanto, não se restringe meramente à estética identitária “raciali-


zada”, mas, sobretudo, ao sentido construído social, histórica e politicamente em
torno da noção de raça. Apesar de estar associada diretamente ao fenótipo, deve
ser compreendido como uma relação social. Neste entendimento, o fenótipo como
estética identitária que remonta à noção de raça agrega, em sua composição, uma
série de atributos sociais como o jeito de andar, de falar, de se vestir, de gesticular,
localização geoespacial, bem como de hábitos e costumes, músicas até produtos
de consumo que são associados a cada uma dos polos raciais em relação de forma
essencialista e binária (COSTA-JUNIOR, 2021, p. 9).

Sendo que as distinções atribuídas as coisas, traduzidas pela visão economicista


como distinções de classes sociais, por situarem no contexto de sociedades capita-
listas que negam o racismo enquanto estrutura social e estruturante das relações,
são distinções28 de caráter eminentemente raciais. Neste contexto, o subtexto das
formulações economicista de classes sociais, ou mesmo da luta de classes, é mais
um mecanismo ideológico de desvirtuamento da gênese dos fenômenos sociais e da
própria realidade social; “aqui, a categoria raça acaba por se diluir numa temática
econômica (economicista, melhor dizendo) uma vez que a discriminação não passa de
um instrumento manipulado pelo capitalista” (GONZALEZ, 2018, p. 62). Argumenta
Quijano (2009), que as ‘classes sociais’ foram conceitualmente separadas de raça e
suas recíprocas relações tomadas como externas: “as ‘classes sociais’ foram diferen-
ciadamente distribuídas entre a população do planeta com base na colonialidade do
poder” (QUIJANO, 2009, p. 110). O colonialismo gestou e pariu um sistema-mundo
moderno que se dissimula em estratégias discursivas, manipulando ideologicamente
seus princípios originários que, tanto no plano objetivo quanto simbólico visam
consubstanciar as desigualdades raciais/sociais. Evidentemente,

28 Roupa de preto; música de preto; andar de preto; jeito de preto; falar como preto; lugar de preto; comida de
preto; coisa de preto etc.
72

a originalidade do contexto colonial é que as realidades econômicas, as desigual-


dades, a enorme diferença dos modos de vida não conseguem nunca mascarar as
realidades humanas [...] é patente que aquilo que fragmenta o mundo é primeiro
o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça (FANON, 2005, p. 56).

A divisão em classes sociais se insere como mais uma das narrativas que rece-
bem endossos constantes dos planos da racionalidade ocidental, funcionando como
parâmetros de mensuração das capacidades humanas29. Remontando os mitos da
inferioridade/superioridade humana, bem como a ideologia do êxito pessoal.

Territórios e classes raciais: porque aqui não houve segregação oficial

A extinção do sistema escravocrata sem a devida reparação ou indenização das


trabalhadoras(res) escravizados (negros e indígenas) proporcionou a manutenção
de uma população exposta aos desígnios do novo contexto social, político e econô-
mico. Criou-se uma classe de pessoas totalmente desprovida de condições materiais
para participação na sociedade em emergência, com o agravante do racismo como
mecanismo que cerra fileiras ao acesso dessa população a posições de prestígio
social, consequentemente, relegando-a aos espaços considerados homólogos à con-
dição subalterna. Analisa Gonzalez (2018, p. 98) que “um dos legados concretos
da escravidão diz respeito à distribuição geográfica da população negra, isto é, sua
localização periférica em relação às regiões e setores econômicos hegemônicos”.
Aliás, este foi mais um dos mecanismos de controle das hierarquias e das distinções
entre os grupos racialmente opostos, e modo de operacionalização da segregação30
no país da democracia racial.
O acesso às posições de prestígio, incluindo nas instâncias do Estado que outrora
fora garantido pela familiaridade e capital social, passou a ser assegurado e justificado
pelos diplomas escolares. Constata Gonzalez (2018), que apesar da elevação do nível
de instrução da população brasileira no período de 1950/1973, a população negra con-
tinua com um imenso déficit em relação à população branca, sendo, por conseguinte,
menos beneficiária dos retornos possíveis da escolarização. Este abismo relacional
dos níveis de educação começa a ser alterado de forma mais substancial apenas em
2003, com expansão do sistema de ensino superior e a instituição de políticas de
inclusão (cotas e ações afirmativas). A despeito dessa significativa alteração, em
curso, o racismo ainda se constitui “como um dos critérios de maior importância na
articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições da estrutura de classes
e no sistema de estratificação social” (GONZALEZ, 2018, p. 98).
Ao Estado brasileiro como a principal instância de ordenamento social, e criada
para este fim pelos detentores do poder na sociedade colonial, foi incumbida a missão
de dar continuidade aos modos operandi do colonialismo, atuando, consequentemente,

29 Foucault (2008) nos mostra como o capital humano é mensurado por meio do nível de sucesso (posições
de prestígio social e capital econômico) alcançado pelos indivíduos nas sociedades modernas (liberais).
30 Em última análise, assemelha-se ao que Mbembe (2016) descreveu como a formação dos distritos onde
opressão e pobreza severas foram experimentadas com base na raça e na classe.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 73

“como um mediador necessário que impede a desarticulação sistêmica através da


coerção aberta” (GONZALEZ, 2018, p. 96). Da mesma forma que o Estado é respon-
sável pela configuração racialmente referenciada dos territórios nas cidades, também
é o responsável pelas políticas que serão destinadas ou não a cada localidade. Como
herança colonial, as clivagens raciais observadas nos territórios, expõe a face mais
perversa e explicita de nossa sociedade e as políticas de controle, confinamento e
definição da vida e da morte dessas populações, conforme enfatiza Carneiro (2005),
“o dispositivo de racialidade/biopoder é um instrumento de produção e reprodução
sistemática de hierarquias raciais” (CARNEIRO, 2005, p. 94).
No Brasil, raça e classe são categorias que se encontram intimamente imbri-
cadas. Pensar em pobreza é supor uma pessoa negra, ao passo que pensar em uma
pessoa negra é relacioná-la à pobreza”. O que, segundo Fanon (2005), faz co-fundir-se
causa e consequência: a pessoa é rica por ser branca, ou é branca por ser rica. Uma
breve síntese de algumas informações sobre as localidades31 onde os interlocutores da
pesquisa residem nos apresentará uma noção sobre como este fenômeno condiciona
as percepções individuais e o imaginário social conformando consensos inscientes.
O Taquaril é uma área ocupada “irregularmente” na década de 1980, composto
por três regiões contíguas que totalizam 18.539 habitantes. Deste montante, 13.571
são negras(os) (73,41%), 23,89% se autodeclaram brancas(os) e, 2,70% amarela(o).
Está localizado no território de gestão compartilhada (TGC)32 que registra o maior
índice de vulnerabilidade juvenil (IVJ/BH) de Belo Horizonte, com 72,8 pontos. De
2013 a 2015 registrou-se 74 mortes de jovens de 15 a 29 anos sendo que 12 são con-
sideradas(os) brancas(os) ou amarelas(os) e 62 pardas(os), pretas(os) ou indígenas.
A renda domiciliar per capta da localidade não é homogênea. No Conjunto Taquaril
e no Taquaril, mais de 90% dos domicílios se concentram nos rendimentos de até 2
salários mínimos. A Cidade Jardim Taquaril apresenta 51,92%, dos domicílios nesta
mesma faixa salarial.
O Morro das Pedras é uma região composta por oito vilas, ocupada em 1930 fruto
da realocação de famílias retiradas de outras áreas da cidade (hoje áreas consideradas
nobres). A área abrigava uma pedreira e servia de aterro sanitário. Ocupava a região, há
pelo menos 100 anos, a comunidade quilombola dos Luizes. Somadas, as populações
das oito vilas totalizam 15.216 habitantes. Destes, 76,43% se autodeclaram negras(os),
22,89% se consideram brancas(os) e, 0,89% amarelas(os). O índice de vulnerabilidade
juvenil é de 60,2. De 2013 a 2015 foram registrados 24 assassinatos de jovens entre 15
e 29 anos, sendo 8 identificadas/os brancas/os ou amarelas/os e 18 pretas(os), pardas(os)
ou indígenas. No conjunto das oito vilas, a distribuição da renda nominal mensal per
capta domiciliar vai variar. Contudo, em todas, o percentual de domicílios com renda
de até dois salários mínimos está acima de 65%, com destaque para Chácara Leonina,
Santa Sofia e Vila Antena, com mais de 80% dos domicílios nesta faixa de renda.

31 Não houve critério prévio que não fosse as melhores condições de exequibilidade dos procedimentos
previstos para a pesquisa.
32 Territórios de Gestão Compartilhada (TGC) são 40 subdivisões territoriais definidas por características
homólogas entre as áreas, com a finalidade de servir de referência institucional para articular a discussão
do planejamento de médio e longo prazo, criando espaço para a democratização das decisões.
74

O Santo André é fruto da ocupação operária para construção da cidade de Belo


Horizonte em 1897. Localizado na região da Lagoinha, área contígua ao centro da
cidade e considerada desorganizada em razão dos padrões construtivos. Região de
gente pobre e também reduto da zona bohemia, artistas e classe média. O Santo
André, tem 7.411 habitantes, 41,69% consideram-se brancas(os), 15,30% são pre-
tas(os), 41,55% pardas(os) – 57,04% negras(os) – e 0,19% indígena. A Pedreira
Prado Lopes33 tem 4.453 habitantes. Destes, 21,85% se autodeclaram brancas(os),
26,32% pretas(os), 51,54% pardas(os) – 77,88% negras/os – e 0,02% indígenas.
Os dois bairros estão localizados na TGC Noroeste 1 (NO1), onde, de 2013 a 2015
foram assassinados 39 jovens de 15 a 29 anos, dos quais 32 são negras(os) e 7 são
brancas(os) ou amarelas(os). Na Pedreira Prado Lopes 86,55% dos domicílios apre-
sentam renda nominal mensal domiciliar per capta de até dois salários mínimos. No
Santo André esse percentual cai para 71,66% dos domicílios; 12,58% dos domicílios
apresentam renda de até três salários mínimos e 8,63% até cinco.
O Sion teve sua ocupação iniciada em 1920, e localiza-se em área privilegiada,
vizinha da Serra do Curral, cartão postal e área de preservação ambiental na capital.
Faz parte do seleto grupo de bairros nobres composto por: Anchieta, Carmo Cru-
zeiro, Mangabeiras e São Pedro. Situado na região centro-sul registra uma população
de 19.700 habitantes, entre os quais, 89,71% são considerados brancas(os), 1,06%
pretas(os), 8,82% pardas(os) – 9,92% negras(os) – e 0,04% indígena. Segundo o
índice de vulnerabilidade juvenil, duas(dois) jovens foram assassinados na região,
ambas(os) negras(os). A renda domiciliar nominal per capta de 80,87% dos domicílios
está acima de três salários mínimos. Sendo que, 35,07% está na faixa entre cinco e
dez salários mínimos e 26,07% está acima de dez salários mínimos.
A majoritária predominância racial se destaca nas informações sobre cada uma
das localidades. Quando comparamos as demais com a localidade de predominância
racial branca, as diferenças de renda se destacam, juntamente com a informação
sobre a quantidade e a cor/raça das(os) jovens assassinadas(os). Mesmo em locais de
maioria branca as pessoas assassinadas são negras. Para Fanon (2005), a diferença
entre as zonas ocupadas pelos “colonos” e pelo “colonizados”, se observa desde a
infraestrutura às imputações de classificações, representações sociais desiguais e
opositoras, e tem na figura do policial a linha demarcatório de seus limites, sendo “o
interlocutor legítimo e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime
de opressão é o policial e o soldado” (FANON, 2005, p. 54). Completa Fanon (2005),
que nas sociedades capitalistas isso pode sofrer um arrefecimento em razão do respeito
à ordem estabelecida, embora se traduza como fundamento da mesma violência.
É necessário nos atermos à composição racial das localidades consideradas fave-
las ou periferias, conforme demonstrado acima, uma vez que retratam ou recompõem
os percentuais das cifras34 do genocídio negro no Brasil. É imprescindível acrescentar

33 Foi citada e analisada conjuntamente em razão dos jovens participantes serem da Pedreira, ter familiares
ou fortes laços com a localidade, bem como um espaço de convivência cotidiana.
34 Das 43.171 pessoas assassinadas de 2013 a 2021, 85, 1% eram negras. 67,5% dos Jovens encarcerados
são negros. A probabilidade de ser assassinado para jovens brancos é de 1 para cada cem mil, enquanto
para jovens negros é de 4,5 para cada grupo de cem mil (FBSP, 2022).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 75

as informações sobre pessoas desaparecidas contabilizam um montante de 65.225,


em 2021. Registrando um aumento de 3,7% em relação a 2020 (FBSP, 2022). Em
pesquisa realizada no Rio de Janeiro, sobre pessoas desaparecidas, Araújo (2015)
constata que majoritariamente são oriundas dos “territórios da pobreza urbana”.
Este dado nos aponta para o significado de ser branca(o) ou negra(o), para além da
constatação objetiva da cor da pele, mas como construção intersubjetiva, cultural e
política que agrega símbolos de pertencimento, uma vez que as(os) jovens brancas(os)
nas estatísticas são as(os) residentes em localidades de maioria negra. Esta relação
pode ser melhor expressa por meio das falas dos interlocutores sobre a atuação da
polícia nas respectivas localidades:

[...] igual meu irmão, meu irmão tá preso porque foi forjado. Eles pararam meu
irmão e pediram um revólver. Ele [policial] abriu uma sacola de drogas na
frente do meu irmão e disse que se não desse o revólver ia levar meu irmão
preso, meu irmão só falou com eles: vocês me liberam que vou buscar. Meu
irmão saiu vazado, não voltou mais não. Aí no outro dia, eles abordou meu
irmão no mesmo lugar. Já chegou abordou meu irmão: forjadão35 (Jovem
de Justinópolis)

[...] abordado não, chegou batendo mesmo. Eu saí igual uma bala menino. No
dia que eles (policiais) pararam nos três. Eles cismaram que a gente tinha que
dar eles um revólver. Uma hora com as mãos na cabeça, mais meia hora com
as mãos pra trás e mais meia hora no formigueiro (Jovens de Justinópolis).

É outra coisa também, tudo deles agora é pegar e olhar celular. Abordagem que não
existe, eles fazem isso aí pra tentar ver se saí lucrando alguma coisa em cima da
gente, eles querem lucrar com você que não deve nada para eles. Você encontra
com eles de madruga eles forjam você. Se eles não for com sua cara vai querer
te forjar, não arrumou nada na noite. Joga nocê uma carga de pó ali e é isso
mesmo, não tem ninguém para falar que você não tava com aquela carga
só tá eles, é sua palavra contra a dos policias (Jovens do bairro Santo André).

Os relatos acima demonstram explicitamente como há uma relação de homo-


logia na percepção sobre as pessoas e seus respectivos espaços. Onde a presença
da polícia é constante e ostensivamente violenta, (in)discriminadamente. Em 2017,
o novo comandante da Rota de São Paulo, enfatizou a “necessidade” de adoção de
práticas diferenciadas conforme a localidade e seus habitantes, se periferia ou área
nobre. Sua fala é sintomática de uma percepção racializada e hierarquizada dos
espaços e populações:

[...] se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma,
com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele

35 Forjar flagrantes é uma prática habitual, embora, extralegal, utilizada por policiais em localidades de maioria
negra. Serve, entre outras funções, a produzir submissão e antecedentes criminais que justificarão prisões e
assassinatos futuros. O FBSP (2022) informa que mais de 80% das prisões por porte de drogas tem apenas
o policial como testemunha.
76

pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando,
complementou. O policial tem que se adaptar àquele meio que ele está naquele
momento (ARAÚJO, 2017).

Tanto os relatos como o trecho da fala do comandante, evidenciam como os


discursos construídos tendo como referência as classes sociais dissimulam o legado
histórico do estabelecimento de privilégios garantidos à população branca, e que, de
certa forma, encobre o racismo que subjaz a construção das representações sociais
desiguais, e define o foco dos dispositivos de Estado. Discurso repetido por policiais,
uma vez que há uma concomitante negação generalizada sobre o reconhecimento de
uma atuação pautada na discriminação racial, admitindo, a contrapelo, a filtragem
por classe social (SINHORETTO, 2013; REIS, 2002). Este quadro fica ainda mais
nítido, quando comparamos com as falas dos interlocutores do Sion, que na percep-
ção dos jovens de favela e periferia encontra base real de apoio, já que esses não são
interpelados pela polícia, de maneira geral.

Rola uma divisão. Um cara da classe alta pode ter uma droga no bolso, é fi de juiz
e nós tudo aqui anda pá (Jovens de Justinópolis)

A família deles tem dinheiro, não vai tomar abordagem igual a gente toma... eles
sabem que se abordar igual aborda nós vai arrumar problema, porque vai além
(Jovem de Justinópolis).

Acho que eles nem abordam o cara pra revistar. Eles orientam o cara e manda
o cara sair andando. Agora abordar e colocar o cara na parede não (Jovens do
Santo André).

Os interlocutores do Sion, afirmam não ter a presença da polícia na localidade.


Quando indagados sobre onde veem a polícia, localizam há alguns quilômetros, “na
Praça da Liberdade tem sempre uma viatura” (Jovem do Sion); ou, em situação de
oferta de segurança pública para serviços privados: “lá no espetinho tá sempre dois
policiais, mas que tipo assim, eu acho que eles vão porque são amigos da galera, dos
proprietários” (Jovem do Sion). Percebemos então, que “essas políticas podem ser
vistas como profundamente ‘racializadas’, porque essas restrições foram direcionadas
às pessoas de cor” (COLLINS, 2019, p. 387). Constata Sinhoretto (2013, p. 133) que
“o território de residência, a vestimenta, ‘estereótipos’ explicitamente ensinados a
policiais em processo de treinamento e identificação de outras características, sinais
culturais e ‘estilo de vida’ do jovem negro periférico”.
O racismo, enquanto fenômeno social, nos convoca a refletir sobre a importância
de abdicar do pensamento economicista. Dissociar classe de raça, traduz-se em uma
postura do pensamento hegemônico, portanto, sem teor crítico e credor das artima-
nhas ideológicas da razão ocidental. Negligenciando o caráter e a função histórica e
política da raça, servindo de cobertor para o amortecimento e manutenção do mito da
democracia racial e substrato para o discurso meritocrático, bem como para consolidar
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 77

estratégias sócio-políticas que legitimam o controle social, o confinamento (territorial


ou carcerário) e a continuidade das estratégias de genocídio da população negra.
A institucionalização do capital racial que, a despeito de produzir valores e
garantir privilégios, especialmente para as pessoas brancas de classe média ou alta,
estabelece uma vinculação direta de posições e produtos como símbolos desses privi-
légios. Essa alquimia só é possível em uma sociedade onde se observa a permanência
de uma estrutura de organização colonial escravista, que teve a(o) branca(o) como
colonizadora(o) e proprietário de tudo, inclusive dos corpos de pessoas negras (os),
e a população negra, por outro lado, que nada tinha além da vida condicionada pela
vontade das pessoas brancas. Essa, talvez, seja uma das formas que nos permita
pensar de maneira mais prática, como ocorre a atualização das estruturas mentais de
um passado colonial para os dias atuais.
Analogicamente, as ações ou omissões do Estado brasileiro destinadas às loca-
lidades de maioria negra, traduz-se no paradigma do estado de exceção, conforme
enfatizou Agabem (2010), ao estabelecer uma comparação com os campos de con-
centrationes. As favelas e periferias, são a materialização do que Agamben (2010),
definiu como “um espaço de exceção: ele é um pedaço de território que é colocado
fora do ordenamento jurídico normal [...] aquilo que nele é excluído é, segundo o
significado etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído por sua própria
exclusão” (AGAMBEN, 2010, p. 165). Uma espécie de medida policial, extralegal,
que autoriza tomar sob custódia uma população sem nenhuma conduta penal rele-
vante, transformando esses espaços em verdadeiros campos de concentrtiones, onde
se prima pela afirmação da mais absoluta conditio inhumana de sua população; com
a suspensão de todos os direitos constitucionais. Nessa perspectiva, “o estado de
exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisório de perigo
factício e tende a confundir-se com a própria norma” (AGAMBEN, 2010, p. 164).
Segundo Oliveira (2014), as origens das ações do Estado podem ser facilmente
encontradas na sociedade colonial, uma vez que:

põe em ação práticas que promovem o sistemático genocídio de pessoas que


possam de algum modo ser tidas como ameaçadoras ou inconvenientes, sobretudo
se pertencentes a grupos desfavorecidos na escala social [...] inclusive o uso da
tortura, morte e ocultamento de corpo (OLIVEIRA, 2014, p. 147).

Operando a necropolítica como mecanismo de poder na definição da vida e da


morte, e o racismo como determinante da imagem do perigo, portanto, dos corpos
passíveis de intervenção (MBEMBE, 2016). Segundo Araújo, nestes territórios e à
sua respectiva população:

o próprio estatuto de ser humano é colocado à prova, sendo aqueles considerados


‘não humanos’ [...] Eles podem ser humilhados, torturados, maltratados, assas-
sinados, sem que isso viole as regras consensuais de justiça. Ao contrário, esses
procedimentos podem ser considerados desejáveis e até mesmo indispensáveis
(ARAÚJO, 2015, p. 154).
78

As fronteiras raciais dos territórios e suas respectivas classificações, são afir-


madas na escala da geopolítica global, e repetida em todas as escalas geoespaciais,
desde as configurações dos Estados-nação às suas respectivas subdivisões internas.
As demarcações reconhecidas como “centro” ou “periferia”, mobilizam estes mesmos
significados e traduzem suas fórmulas em suas estruturas e populações.
Os imperativos que outrora regeram e justificaram a dominação moderna dos
povos não europeus por serem considerados raças inferiores, na contemporaneidade
foram convertidos aos imperativos da ordem economicista do sistema-mundo-mo-
derno liberal exercendo os mesmos efeitos. Estes imperativos foram universalizados
em co-assimilação às narrativas racialistas, obscurecendo o caráter originário da
desumanização de alguns povos, grupos e suas subsequentes linhas geracionais. O
racismo não é uma categoria passível de controle ou conversão em fórmulas arit-
méticas para mensuração de sua abrangência ou eficácia36. Sendo assim, portanto,
desqualificado pelas lógicas da razão ocidental como fenômeno determinante da
ordem social, converte-se no principal dispositivo de justificação do extermínio direto
ou da abreviação da vida pela imposição de condições indignas à população negra.

A dimensão subjetiva da objetividade dos condicionantes da


atuação policial

É comum nos estudos na área da segurança pública estabelecer uma drástica


cisão entre o período precedente à instituição da polícia no seio do Estado, definido
nas três últimas décadas finais do império (ROSEMBERG, 2008, 2012; MAUCH,
2007, 2011; BARBOSA, 2014) como marco de seu nascedouro, apagando as influên-
cias de seus predecessores coloniais. Este recorte elimina a história estruturante, o
princípio fundador que informa sobre as práticas dessa instituição no contexto brasi-
leiro. Situa-se no século XVII os primeiros esboços do que podemos considerar uma
política de segurança pública, gestada pelas “Câmaras de Senado”. “Era um modo
de governo aprovado pela Coroa para um conjunto de indivíduos cujo a situação
(estratégica, comercial, social ou demográfica) era tal, que merecia o reconhecimento
de municipalidade” (RUSSEL-WOOD, 2012, p. 16). Os cargos de vereança eram
restritos aos “nobres da terra”, portugueses de nascença ou descendência: fazendeiros,
pecuaristas, mercadores, traficantes de escravos, ex-soldados, mineradores e, às vezes,
médicos ou juristas com educação universitária. O termo “republica” já era utilizado,
juntamente com as noções de “bem comum” e “boa ordem”, para referir-se a um
ordenamento social, que eram inseparáveis e aplicáveis ao comportamento humano.
Neste modelo efetivava-se terceirizações ou subcontratações para a realização
de serviços essenciais para o bem geral dos municípios. Os contratos camarários
mais importantes eram: “’renda de aferição’, ‘renda de ver’, ‘renda de meias patacas’

36 Como pretenderam, entre outros, Ribeiro (2006) ou Telles (2003). Bourdieu (2007) questionou o economi-
cismo nas ciências sociais, e demonstrou empiricamente que há outras propriedades tão relevantes quanto
o capital econômico na definição das fronteiras entre as classes sociais. Propriedades simbólicas produtoras
de valores que influem objetivamente no ordenamento do espaço social.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 79

e de ‘renda de carceragem’” (RUSSEL-WOOD, 2012, p. 29). Para os contratos de


carceragem era possível contar com “uma fonte regular de receita, se possível sem
se incomodar com os salários para os serviços, além de garantir estabilidade e con-
tinuidade para eles” (RUSSEL-WOOD, 2012, p. 29). Contribuíam integralmente
(dinheiro, comida e mão-de-obra, pólvora e balas) com as forças militares, para
incursões em quilombos; “licitavam ou pagavam, numa base per capta, capitães-do-
-mato que capturassem ou matassem escravos fugidos” (RUSSEL-WOOD, 2012,
p. 30). Os capitães-do-mato era uma “instituição disseminada por toda colônia como
milícia especializada na caça de escravos fugidos e destruição de quilombos” (REIS,
1995, p. 17). Eram agentes institucionalizados, além do fato de atuarem juntamente
às tropas oficiais (ALENCASTRO, 2000), fazendo operar uma espécie de simbiose
entre as práticas militares e as táticas dos capitães-do-mato. Observa Rosemberg,
que nos primeiros anos de criação da instituição, que:

A força policial se mostrava vulnerável aos estímulos do derredor, o qual, a des-


peito da nova ordem institucional introduzida pela abolição da escravidão e pelos
princípios republicanos, ainda se jungia às mesmas experiências que se pretendiam,
em teoria, eliminar (ROSEMBERG, 2012, p. 338).

O fato é que a polícia, enquanto dispositivo de Estado, substitutivo dos capi-


tães-do-mato, fora criada para o controle e a repressão da população negra e pobre.
O foco de suas atenções era facilmente delimitado, pela localização geográfica nas
cidades, a cor da pele e as distinções sociais. Assim, como os antigos quilombos37 na
colônia, as favelas e periferias sempre tiveram um percentual de pessoas consideradas
brancas. E as classes altas, também, embora ínfimo, sempre tiveram um percentual
de pessoas negras. Importa destacar que, raça, no contexto brasileiro, sempre foi
sinônimo de posição social, e a cor da pele é lida como símbolo de gradações da
hierarquia social. Dessa forma, como mera continuidade dos circuitos coloniais, nas
favelas e periferias os mitos foram atualizados para a linguagem urbana moderna. O
continum racial observado no Brasil é resultado dos estupros praticados na jornada
colonial. Algumas pessoas mestiças, de pele clara, eram consideradas brancas, quando
assumidas por seus pais, enquanto outras tinham o mesmo destino das demais pessoas
negras, a escravidão. Até mesmo as alforrias obedeciam aos critérios de gradação da
cor da pele. Os mestiços foram mais beneficiados nas manumissões que os africanos
e crioulos de pele escura. O estabelecimento de distinções sociais foi um meio para
manter as distâncias entre os grupos racializados. Controlava-se desde a vestimenta,
aos costumes, aos espaços, as manifestações religiosas e culturais entre outros aspec-
tos da vida; especialmente quando a liberdade deixa de ser, idealmente, “um atributo
do homem branco” (MATTOS, 2013, p. 44).
No início das atividades de realização de cada um dos grupos focais foi solicitado
que cada um dos presentes indicasse seu pertencimento racial. Subsequentemente,

37 Os quilombos eram constituídos de certa diversidade racial, ao contrário do que se pensa e se propagou
através do que foi e é contado sobre essa história (NASCIMENTO, 2018; GONZALEZ, 2018).
80

foi sugerido que outros jovens indicassem o pertencimento racial de seu colega. No
geral houve convergência entre a autodeclaração e a heteroidentificação. Poucos
foram os casos em que um jovem se autodeclarou pardo e foi identificado por seus
colegas como preto, ou o contrário. Um fator de relevância crucial para as análises
aqui depreendidas, é que em cada um dos grupos de periferia ou favela contou com
pelo menos um jovem branco38. Este, assim autodeclarado e igualmente heteroiden-
tificado. O grupo do Sion, por sua vez, foi composto homogeneamente por jovens
brancos, autodeclarados e heteroinditificados. A média de idade entre os interlocu-
tores da pesquisa, em todos os grupos, foi de 22 anos, e cada grupo contou com no
mínimo cinco participantes.
Foi possível constatar, por meio das percepções dos interlocutores, que nosso
senso de classificação é radicalmente determinado por um contexto histórico e político
que estabeleceu oposições viscerais sobre as representações sociais racializadas, seus
estilos e modos de vida, definindo, consequentemente, a imagem do perigo urbano.
Os relatos abaixo podem nos evidenciar tais hipóteses:

[...] uma vez estava indo, eu e esse cara aqui, ralar, e tinha duas véia na frente e
elas viu a gente e guardou a bolsa. Eu xinguei elas eu falei: tá achando que eu
vou te roubar dona? (Jovem de Justinópolis).

Então, tem essa estória que aconteceu comigo dois meses atrás. Essa situação
que o [outro jovem] deu foi exatamente o que aconteceu, na verdade. Eu tava na
minha rua, era aproximadamente oito horas da noite e tava passeando com meu
cachorro. Tava bem de noite e eu tava ouvindo música no meu celular. Aí, eu virei
a esquina, bem aqui nessa rua do lado da minha casa, e dei de cara com três jovens
negros. Os três de boné, short tactel, de chinelo e camisa de time. Assim, eu não
tive tempo nenhum pra pensar, minha primeira reação instintiva foi só olhar pra
baixo e basicamente atravessar a rua. Aí eu fiz isso, eles estavam bem do meu
lado, aí eles pararam na curva olharam pra mim e meio que falaram assim: ow, a
gente não é assaltante não. E foram embora. Realmente, isso me fez sentir muito
mal (Jovem do Sion).

Sinhoretto (2013) evidencia que em todos os Estados pesquisados a filtragem


dos alvos para as abordagens policial tem seu fundamento nos aspectos culturais
intrínsecos da cultura, estética e identidade negra. No Distrito federal o “kit peba”,
em São Paulo, os símbolos da cultura hip hop, em Minas Gerais e Rio de Janeiro o
funkeiro. Estes são apenas aspectos manifestos, fruto das atualizações das distinções
coloniais nas sociedades liberais. Nos critérios da seleção operados pelos agentes
da segurança pública, interseccionam os atributos cujos os signos estão inscritos
no corpo (aparência e modos corporais) em conjunção a símbolos adscritos que
adornam estes corpos, compondo uma estética identitária lida como pertencente ao
grupo negro. São marcadores raciais, inscritos no corpo, o próprio corpo negro visto

38 Isto não foi colocado como critério para seleção dos jovens que compuseram o grupo. Aliás, vale informar
que não houve critério previamente estabelecido para além de ser jovem com idade entre 16 e 29 anos e
morador da localidade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 81

como um signo, adornado por símbolos associados como próprios da cultura e da


identidade negra, que portados por jovens pobres, lidos como brancos, de modos
corporais idênticos, são lidos como negros e se tornam alvos preferenciais da polícia.
Os limites da atuação do policial não são pautados em parâmetros técnicos seguros,
mas sim, na percepção do agente que aciona seu arcabouço de valores e imaginário
social. Algumas falas dos interlocutores nos elucidam sobre isso:

O cara é branco ele tem uma chance maior de ser alguém na vida, não vou [poli-
cial] sujar o nome desse cara agora pra fuder ele na frente, e o cara é negro a
chance de dar alguma coisa já é pequena então foda-se ele agora, ficha suja. Tipo
assim, isso é razoável, mas esse pensamento pode vir um pouco (Jovens do Sion).

Ele [policial] está prejudicando a gente, que num é ninguém (Jovem


de Justinópolis).

Os roles da noite que a gente da favela é muito... assim... muito, com muita cau-
tela. Você encontra com polícia e eles querem te esculachar você, certo. Abre suas
pernas, dá seus procedimentos que é, você vê que é anormal né. Num é, num é
igual quando te pega você no centro como se fosse assim e te dá uma abordagem
tranquila, quando é na favela tem sempre um... um... vão supor, uma brecha a
mais (Jovem do Morro das Pedras).

Essas informações evidenciam a rigorosa seletividade racial, quando o contra-


pondo expressa uma experiência de total proteção e ausência de contato com a polícia
em situação de suspeição vivida por jovens brancos: “Nunca tive nenhuma aborda-
gem com a polícia, alguma. Nunca conversei com nenhum policial. Nem problema
algum” (Jovens do Sion). “Com certeza. Toda vez que eu vi alguém sendo abordado
pela polícia parecia ser alguém de alguma comunidade, mais pobre ou vulnerável [...]
Eu acho que aqui no Brasil, como a grande parte da população mais pobre é negra”
(Jovem do Sion). Segundo Sinhoretto (2013, p. 104), “os policiais entrevistados estão
convencidos de que são capazes de identificar objetivamente uma clivagem [classe
e raça] da outra. Admitem a filtragem de classe, mas negam que ela seja produtora
de uma desigualdade racial inscrita na ação policial”.

E eu acho que as vezes eu, que o policial, ele sabe disso, ele sabe que se abordar
uma pessoa de classe mais alta que tem recurso não vai adiantar para nada. Acho
que pode ser um possível motivo. O pai é um cara influente e pode dar um pro-
blema até pro policial (Jovens do Sion).

O policial sabe diferenciar um jovem rico de um pobre: aquele ali é boy, aquele
é favelado (Jovem do Taquaril).

Pelos motivos já demonstrados, a discricionariedade e a decisão de aplicação


da lei estão intimamente comprometidas com a seletividade racial. Muniz (2012) é
defensora do policiamento ostensivo geoespacializado e do uso do critério discricio-
nário, como forma de evitar a prevaricação.
82

O modelo verdadeiramente profissional sustenta que a natureza do trabalho poli-


cial exige que os policiais que fazem policiamento desfrutem de amplos poderes
discricionários para que possam executar suas atividades de forma apropriada.
Disto resulta que a oportunidade de controle no uso destes poderes feito pela
administração policial resulta menos da sua extensão e mais do estabelecimento
de bases técnicas tanto para a definição de critérios válidos de atuação, quanto
para o processo de aprendizado continuado dos policiais (MUNIZ, 2012, p. 23).

A questão é que em sociedades de passado colonial, onde a ordem social é regida


por um capital racial, a discricionariedade, essa capacidade de diferenciar inscrita
na percepção, obedece a preceitos estritamente raciais. Como nos alerta Bourdieu,
“por aí, é o fundamento de uma colusão implícita entre todos os agentes que são
produtos de condições e de condicionamentos semelhantes [...] acordo imediato nas
maneiras de julgar e de agir que não se supõe nem a comunicação das consciências”
(BOURDIEU, 1998, p. 128). Sendo, segundo Foucault (2008, p. 27), a segurança, “a
gestão controlada por estimativas e probabilidades”, apoiada em dados materiais, o
foco geoespacializado e racializado das ações produzirá, consequentemente, a justi-
ficação consentida para as intervenções do Estado, operando a lógica da homeóstase
(FOUCAULT, 2005). O ponto central das indagações e hipóteses levantadas neste
artigo, reside no plano mais inconsciente das percepções, que faz com que a polícia,
bem como qualquer outra pessoa socializada no Brasil, consiga identificar, mesmo
em pessoas brancas, signos e símbolos que são associados à cultura e à identidade
negra. Dessa forma, agindo exclusivamente em localidades de maioria negra, a polícia
não enxerga ali pessoas brancas em razão de um conjunto de atributos e elementos
constitutivo das percepções históricas e politicamente configuradas, bem como da
inserção no campo, que por sua vez já é determinante do foco das ações. Nesse sen-
tido, os assassinatos, flagrantes forjados, encarceramentos, torturas e outras formas de
subjugação e desumanização, são direcionadas a pessoas negras e outras lidas como
negras, por compartilharem de uma experiência comum, que as inserem como partes
integrantes de um grupo social. Caetano Veloso expressou de maneira magistral a
correlação essencialista entre raça e classe na canção “Haiti”, de 1993, estendendo
o sentido de negritude às pessoas brancas pobres, ou quase pretas de tão pobres, por
uma socialização e convivência em territórios de maioria negra. Nesta perspectiva,
é possível afirmar, que os elementos de ordem subjetiva, das construções políticas e
socioculturais, são os definidores da realidade objetiva, consequentemente, das cifras
catastróficas do genocídio negro no Brasil.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 83

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MORTES CHEIAS DE VIDA E VIDAS
CHEIAS DE MORTE: necropolítica e
violência letal contra crianças e adolescentes
no contexto do Rio de Janeiro
Laíza da Silva Sardinha
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Introdução

De acordo com o 15º anuário do Fórum de Segurança Pública (2021), documento


responsável por compilar e analisar dados a respeito da Segurança Pública no Brasil,
em que pese o país ter atingido o ápice de Mortes Violentas Intencionais (MVI) em
2017, os dois anos seguintes, 2018 e 2019, passaram por reduções sucessivas dessas
mortes. No entanto, em 2020, verificou-se um crescimento de 4% das MVI em relação
ao ano anterior. Em função disso, os autores evidenciam que além das milhares de
mortes por covid-19 durante o ano de 2020, ainda tivemos o crescimento das Mortes
Violentas Intencionais, “categoria que soma homicídios dolosos (83% do total da cate-
goria em 2020), latrocínios (2,9% da categoria em 2020), lesões corporais seguidas
de morte (1,3% da categoria em 2020) e mortes decorrentes de intervenções policiais
(12,8% da categoria em 2020)” (LIMA; BUENO; ALCADIPANI, 2021, p. 21).
De acordo com a publicação, o Brasil possui 138 municípios com população
igual a superior a 100 mil habitantes com taxas de Mortes Violentas Intencionais
acima da média nacional, respondendo, juntos, por 37,3% de todas as MVI do
país. Desses dados, os autores chamam atenção para o fato de que 138 municí-
pios possuem muito mais peso do que os outros 5.432 municípios brasileiros na
determinação das tendências das MVI. Em relação a esses dados, o Rio de Janeiro
aparece no anuário como o estado com o maior número de municípios de 100 mil
habitantes ou mais que têm taxas de MVI superiores à média nacional (LIMA;
BUENO; ALCADIPANI, 2021).
Ainda de acordo com o documento, pelo menos 6.122 crianças e adolescentes
foram mortas de forma violenta e intencional no Brasil em 2020, o que representa
uma alta de 3,6% em relação aos 5.912 casos registrados no ano anterior. Conforme é
relatado na pesquisa realizada, são 12.034 brasileiras e brasileiros que não chegaram
à fase adulta em função da violência, o que representa 17 casos oficiais por dia ao
longo dos anos de 2019 e 2020. A cada duas horas, pelo menos, mais uma dessas
vidas se perdem (REINACH, 2021).
Por meio de uma análise mais detalhada sobre as Mortes Violentas Intencionais,
verifica-se que em 2020 quase a metade dos casos de morte de crianças de 0 a 4 anos
88

(47%) é provocada por agressão (22%) e “outros” (25%). No entanto, a agressão se


torna menos expressiva entre as vítimas de 5 a 9 anos (6%) e as armas de fogo pas-
sam a ser o instrumento utilizado em 50% dos crimes. Quando chegamos nas faixas
etárias de 10 a 14 anos e 15 a 19 anos, temos as armas de fogo sendo utilizadas em
65% e 85% das mortes, respectivamente:

Vítimas de MVI por faixa etária e instrumento utilizado (%)

7% 3%
100%
1%
13% 4%
90% 11%
25%
6%
80% 21%

70%
31%
22%
60%

50%
19% 85%
40%
68%
30%
50%
20%
34%
10%

0%
0 a 4 anos 5 a 9 anos 10 a 14 anos 15 a 19 anos

Arma de Fogo Arma Branca Agressão Outros

Outros dados importantes observados no anuário são referentes ao preenchi-


mento dos locais em que as mortes acontecem. As informações do tipo de local onde
ocorreram os crimes estão preenchidas em aproximadamente metade dos registros
apenas. Nesses, as mortes violentas de crianças de 0 a 4 anos acontecem majorita-
riamente nas residências (43%) (REINACH, 2021). No entanto, isso se modifica
conforme as idades aumentam, quando o percentual de crimes que ocorrem em
via pública passa a ser maior que aqueles que se dão nas residências das vítimas. A
autora descreve, então, que “o tipo de crime letal que mais acomete adolescentes no
Brasil tem natureza na violência urbana”, fazendo a avaliação de que para discutir
a violência letal de crianças e adolescentes é preciso tratar também do fenômeno da
violência urbana (REINACH, p. 232).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 89

Necropolítica dirigida a crianças e adolescentes (pretas) no estado do


Rio de Janeiro

Publicado em 2018, o Dossiê Criança e Adolescente apresenta um panorama


geral da vitimização de crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro, território
no Brasil em que se constata a maior vulnerabilização de crianças e adolescentes
negras e negros a diversas formas de violência. Em seguida, discute-se o perfil e a
série histórica da letalidade violenta no estado, chamando atenção para o agrava-
mento da violência letal contra crianças e adolescentes ocorrido na última década,
seguindo a tendência nacional, conforme apontam a autora e o autor Flávia Manso
e Luciano Gonçalves (2018).
Como é possível verificar, a taxa de letalidade violenta para crianças e adoles-
centes pretos no estado é de 45,3 vítimas por 100 mil habitantes negros de 0 a 17
anos, ou seja, quase nove vezes maior do que a taxa entre as crianças e adolescentes
brancos (5,1 vítimas). Já a taxa para crianças e adolescentes considerados pardos é
de 17,9 vítimas por 100 mil habitantes pardos de 0 a 17 anos, o que representa três
vezes mais do que para brancos. A partir desses dados, o documento identifica que
em relação a morte intencional violenta, o tom da pele é um importante fator de
vulnerabilização a ser considerado.

Letalidade violenta de crianças e adolescentes segundo a cor –


Estado do Rio de Janeiro – 2017 (taxa por 100 mil habitantes de 0 a 17 anos)*
N = 635

50,0
45,3
Taxa por 100 mil habitantes

45,0
40,0
35,0
30,0
25,0
20,0 17,9
15,0
10,0
5,1
5,0
0,0
Letalidade violenta
Preta Parda Branca
Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.
* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.

Quanto aos meios empregados nos crimes de letalidade violenta, verifica-se que
90,5% dos adolescentes e 51,9% das crianças foram mortos por disparo de arma de
fogo, sendo o principal recurso empregado na violência. Um dado evidenciado pelo
Dossiê é o elevado percentual (33,3%) de casos em que não foi possível identificar
o meio empregado no assassinato de crianças.
90

Distribuição dos meios empregados na letalidade violenta de crianças e


adolescentes – Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores absolutos e percentuais)*
Crianças Adolescentes
Meio empregado Nº abs. Distribuição (%) Nº abs. Distribuição (%)
Arma de fogo 14 51,9% 550 90,5%
Arma branca 3 11,1% 7 1,2%
Asfixia 1 3,7% 3 0,5%
Paulada 0 0,0% 1 0,2%

Pedrada 0 0,0% 1 0,2%


Não informado 9 33,3% 46 7,6%
Total 27 100,0% 608 100,0%

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.


* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.

Além disso, o Dossiê permite verificar que as circunstâncias por trás das mortes
violentas de crianças e adolescentes assumem perfis distintos das de adultos no que
diz respeito à quantidade de vítimas fatais em uma mesma ocorrência. Quando as
vítimas de homicídio são crianças e adolescentes há maior participação nos homi-
cídios múltiplos. Do total de homicídios dolosos de adultos, 15% vitimaram mais
de uma vítima. Este percentual é quase o dobro para crianças e adolescentes (29%).

Homicídios dolosos únicos ou múltiplos por grupo etário –


Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores percentuais)*

Crianças e
adolescentes
71% 29%
Grupo etário

Adultos 85% 15%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Único Múltiplos

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.

*Nesta análise não foi utilizada a base com recuperação da idade das vítimas, uma vez que esta recuperação não pode
ser realizada nos registros com mais de uma vítima.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 91

Estatização da violência: análise necessária para a pesquisa


em necropolítica

À época da construção do Dossiê, o Brasil ocupava a posição de terceiro país


com o maior número de crianças e adolescentes assassinados no mundo. Em primeiro
e segundo lugar, respectivamente, estavam México e El Salvador (WAISELFISZ apud
MANSO; GONÇALVES, 2018). Para verificação do dado de 635 crianças e adoles-
centes assassinados no estado do Rio de Janeiro em 2017, o documento se baseou
nos registros de ocorrência da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ),
cruzando-se tais informações com dados da Secretaria de Estado de Saúde do Rio
de Janeiro em função dos registros em que não constava a idade das vítimas. Em
função disso, o documento sinaliza a possibilidade desse dado estar subestimado em
função da ausência de idade em 13,8% dos registros de ocorrência de violência letal.
Quanto à participação dos quatros delitos que integravam a violência letal, veri-
ficou-se que os homicídios decorrentes de intervenção policial foram responsáveis
por mais de um quarto (28,6%) da letalidade violenta em adolescentes, conforme o
gráfico a seguir:

Delitos que compõem a letalidade violenta por faixa etária –


Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores absolutos e percentuais)*
Crianças Adolescentes Adultos
3,7%

4,3% 13,2%
0,6%
28,6%

0,7%
0,3%
96,3% 70,4% 81,9%

Homicídio doloso Lesão corporal seguida de morte

Latrocínio Homicídio decorrente de intervenção

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.

* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.

Da comparação entre a série histórica de homicídio decorrente de intervenção


policial por faixa etária, verifica-se que o crescimento foi mais acentuado para as
vítimas adolescentes, cuja taxa cresceu 68% de 2007 para 2017. De acordo com o
documento, dos 174 homicídios decorrentes de intervenção policial contra crianças
e adolescentes em 2017, 79% desses eram negros, com os meninos representando
95% das vítimas.
92

O próximo gráfico mostra a distribuição dos delitos contra crianças e adolescen-


tes por cor e evidencia a maior vulnerabilização de crianças e adolescentes negros e
pardos, sendo a maior parte das vítimas em quase todas as violências listadas.

Distribuição dos delitos contra crianças e adolescentes por cor –


Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores percentuais)*

Homicídio doloso** 83% 14% 3%

Homicídio decorrente de
79% 13% 8%
intervenção policial**
Lesão corporal 60% 37% 3%

Violência sexual 59% 36% 5%

Violência psicológica 55% 42% 3%

Violência moral 52% 46% 2%

Violência patrimonial 47% 50% 3%

Periclitação da vida e da saúde 46% 42% 12%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Negra e parda Branca Sem informação

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.

Ainda sobre o perfil das vítimas, há a predominância do sexo masculino. Con-


forme o Gráfico 10, 95% (167 vítimas) dos homicídios decorrentes de intervenção
policial e 89% (403 vítimas) dos homicídios dolosos foram perpetrados contra crian-
ças e adolescentes do sexo masculino.

Distribuição dos delitos da letalidade violenta contra crianças e adolescentes por


sexo – Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores percentuais e absolutos)*

Homicídio decorrente de
1% (2) 96% (167) 3% (5)
intervenção policial

Homicídio doloso 11% (48) 89% (403) 1% (3)

Latrocínio 25% (1) 75% (3)

Lesão corporal seguida de morte 67% (2) 33% (1)

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Feminino Masculino Sem informação

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.

* Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 93

Do total de homicídios decorrentes de intervenção policial contra crianças


e adolescentes, 52,9% aparecem com outro delito associado. Percebe-se que os
delitos relacionados a tráfico ou lei de drogas apareceram em 36,4% dos registros
de homicídios decorrentes de intervenção policial de crianças e adolescentes no
estado do Rio de Janeiro, além dos delitos relacionados à arma de fogo (porte e
posse), presentes em 30,0%, e desobediência e resistência, em 18,2%, conforme
o gráfico a seguir:

Delitos registrados junto a homicídios decorrentes de intervenção policial de


crianças e adolescentes – Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores percentuais)*

Tráfico ou lei de drogas 36,4%


Arma de fogo 30,0%
Desobediência ou resistência 18,2%
delitos

Roubo (carga ou veículos) 6,4%


Lesão corporal decorrente da intervenção policial 5,5%
As categorias não são excludentes
Receptação 4,5%
Corrupção de menores 3,6%
Apreensão 1,8%
Dano 0,9%
Adulteração de sinal identificador de veículo 0,9%

0,0% 5,0% 10,0% 15,0% 20,0% 25,0% 30,0% 35,0% 40,0%

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.

*Nesta análise não foi utilizada a base com recuperação da idade das vítimas.

Sobre isso, consta no Dossiê a seguinte análise envolvendo crianças e adoles-


centes moradores das chamadas áreas pobres da cidade:

Existe no estado um enorme problema quanto à cooptação de jovens por facções


do crime organizado que exercem o controle armado em áreas pobres. Muitas
vezes, esses jovens recrutados participam como soldados do tráfico e ficam
na linha de frente em confrontos com a polícia ou facções rivais (MANSO;
GONÇALVES, 2018, p. 23).

Chama a atenção que dos delitos contra crianças e adolescentes listados abaixo,
os homicídios decorrentes de intervenção policial representam a única forma de
violência em que não há conhecidos familiares dentre os autores do crime.
94

Distribuição dos delitos contra crianças e adolescentes por relação entre vítima e
autor – Estado do Rio de Janeiro – 2017 (valores percentuais)*

Periclitação da vida e da saúde 50% 0% 42% 7%

Lesão corporal 39% 8% 44% 9%

Violência Psicológica 35% 12% 46% 7%

Violência Sexual 32% 8% 50% 9%

Violência Moral 24% 14% 52% 10%

Tentativa de homicídio 10% 2% 39% 49%

Homicídio doloso 2%1% 19% 78%

Homicídio decorrente de intervenção policial 66% 34%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Conhecido familiar Conhecido não familiar Nenhuma ou outra Sem informação

Fonte: ISP com base em dados da PCERJ.

*Os registros dos meses de janeiro a março estão sujeitos a impactos da greve de policiais civis do estado do Rio de
Janeiro neste período. Os dados de letalidade violenta não foram impactados, tendo em vista que não houve suspensão
do registro durante o período da greve.

**Os delitos de homicídio doloso e homicídio decorrente de intervenção policial foram contabilizados com recuperação
de idade realizada a partir do cruzamento dos registros de ocorrência com dados da Secretaria de Estado de Saúde do
Rio de Janeiro.

Espacialização da violência: análise necessária para a pesquisa


em necropolítica

Após analisar o perfil e a série histórica da violência letal contra crianças e


adolescentes, o Dossiê discute a sua distribuição espacial, a chamada espacializa-
ção, destacada como um dos aspectos mais relevantes a respeito das análises feitas
sobre a violência letal. De acordo com os autores, tal análise visava a identificação
de possíveis correlações e padrões espaciais, referentes à localização e à concen-
tração geográfica das ocorrências. A partir dos dados obtidos, foi possível construir
dois mapas relativos à distribuição, em números absolutos, das vítimas crianças e
adolescentes de letalidade violenta no estado do Rio de Janeiro por município do
fato e por município de residência das vítimas na data do fato, respectivamente. Os
dois mapas indicam que a região metropolitana do Rio de Janeiro concentra a maior
parte da letalidade.
Além disso, foram representadas as 25 áreas com maior concentração de locais
de residência de vítimas crianças ou adolescentes na data do fato e as 25 áreas de
maior concentração das vítimas na região metropolitana. Com isso, é possível verificar
que muitas áreas de concentração dos locais de residência possuem sobreposição com
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 95

as áreas de concentração dos locais de ocorrência dos casos de letalidade violenta.


Por essa sobreposição entre as duas classes de áreas de concentração, verifica-se
que há uma proximidade relativa entre os locais de concentração das mortes e de
moradia das vítimas.
A análise feita pelo Dossiê ressalta que a letalidade violenta contra essas crianças
e adolescentes tende a se intensificar quanto mais próximo estão de uma área sujeita
ao chamado controle ilegal do território, fazendo com que os autores concluam que
a letalidade violenta contra crianças e adolescentes possa ser entendida como um
dos efeitos nocivos das relações de poder sobre o espaço no Rio de Janeiro. Outra
informação espacial relevante diz respeito à medida da distância entre o local do
fato e o local de residência da vítima na data do fato. Os dados indicam que grande
parte das vítimas morre perto de casa. Em 20% dos casos, a vítima morre a alguns
quarteirões de distância de casa. Na metade dos casos, as vítimas morrem a uma
distância do local de residência de até 3 km e em 80% dos casos verificados, até 10
quilômetros do local de moradia.
Dessa forma, o Dossiê chega à conclusão de que as relações entre letalidade
violenta e poder sobre o espaço se mostram evidentes nos casos letais contra crianças
e adolescentes verificados em 2017, chamando atenção para as áreas em que há con-
trole “ilegal” do território por parte de “grupos criminosos”. Em determinada parte,
a autora e o autor sugerem em nota de rodapé a leitura de um estudo que trata do
tema da letalidade violenta associado ao “controle ilegal do território”. Nesse estudo,
intitulado “Letalidade violenta e controle ilegal do território no Rio de Janeiro”, o
autor diz que, embora o Estado e os chamados grupos criminosos “tenham objetivos
completamente diferentes, suas ações trazem consequências semelhantes no uso de
suas potestades” (GONÇALVES, 2017, p. 5).
No entanto, sabemos que a habitual dicotomização entre “polícia” e “crimino-
sos”, não dá conta das complexidades que se concretizam no território e serve, muitas
vezes, para encobrir a criminalidade exercida por agentes do Estado ao mesmo tempo
em que naturaliza a criminalização de determinados grupos e espaços da cidade.
Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar que a produção de sujeitos-criminoso está
“diretamente relacionada a regimes de poder e saber” (BARBOSA; BICALHO,
2013, p. 106), sendo forjada nas práticas sociais e podendo sofrer modificações ao
longo do tempo. Além disso, marcar os objetivos de ambos como “completamente
diferentes” diz respeito mais sobre a construção desses sujeitos do que, de fato, a
forma como eles operam.
A análise que se faz das favelas como espaços “controlados ilegalmente” por
“criminosos”, relacionando a influência do “controle ilegal” ao agravamento da leta-
lidade violenta, resulta em interpretações problemáticas e aponta para falas comuns
sobre o território das favelas quando se discute violência na cidade. Ao reduzir um
cenário histórico complexo a lugares-comuns, invisibiliza-se os processos por detrás
das demais relações de poder estabelecidas no território favelado e da própria história
que constitui a cidade. Para o geógrafo Andrelino Campos (2005), assim como “a
situação presente em qualquer sociedade não é resultado de alguns poucos anos de
96

experiência, a situação atual de violência nas grandes cidades brasileiras foi gerada
ao longo de um processo” (p. 21), como é o caso da cidade do Rio de Janeiro.

Contexto Rio de Janeiro

Quando se trata de homicídios decorrentes de intervenção policial, “A falta de


apuração e de responsabilização das mortes causadas por agentes do Estado caracte-
riza o tratamento predominante dos casos e tem sido denunciada há anos por movi-
mentos de familiares de vítimas, pesquisadores e organizações de Direitos Humanos”
(WILLADINO; NASCIMENTO; BRITO; GOMES; BARBOSA, 2019, p. 20-21). De
acordo com a pesquisa “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela Polícia
Militar na cidade do Rio de Janeiro”, de 2015, sobre mortes provocadas pela Polícia
Militar na cidade do Rio de Janeiro referentes ao período de 2005 a 2014, nos casos
em que o autor do homicídio se trata de um agente policial, a impunidade se intensi-
fica devido a falhas no processo de investigação. “Essa impunidade alimenta o ciclo
de violência e revela problemas na investigação criminal e no sistema de Justiça
Criminal como um todo, o que inclui a Polícia Civil, o Ministério Público e o Poder
Judiciário” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 65). De acordo com o relatório:

Após visita ao Brasil, em 2007, o relator especial da ONU sobre execuções extra-
judiciais, sumárias ou arbitrárias, Dr. Philip Alston, afirmou ter recebido “copiosas
alegações de que os inquéritos conduzidos pela Polícia Civil, especialmente sobre
mortes praticadas por policiais, são muitas vezes extremamente inadequados”. Ele
explicou que, com frequência, “os inquéritos não são corretamente registrados
e, que, eventualmente, as únicas evidências são uma descrição do local do crime
e uma declaração da Polícia”. O relator especial disse ainda que os problemas
referentes à investigação “são exacerbados nos eventos em que um policial mili-
tar registra uma morte como sendo um caso de ‘resistência’”. Repetidamente,
policiais civis relataram a ele que, “quando acontece um caso de resistência, eles
supõem que os policiais militares estavam lidando com criminosos e agindo em
legítima defesa”. O relator também recebeu “vários exemplos de policiais que por
negligência ou intencionalmente deixavam os inquéritos parados nas Delegacias
de Polícia, sem encaminhá-los ao Ministério Público” (ANISTIA INTERNA-
CIONAL, 2015, p. 66-67).

Quanto aos chamados casos de resistência serem automaticamente associados a


presença de “criminosos”, Luís Benício (2018) relata que, “no cotidiano das periferias,
os autos de resistência são incorporados na prática policial não como averiguação,
mas como a legitimação da sua prática ilegal” (p. 127). Na quarta conferência de “A
Verdade e as Formas Jurídicas”, Michel Foucault (1996) diz que “A noção de peri-
culosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de
suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a
uma lei efetiva, mas da virtualidade de comportamento que elas representam” (p. 85).
No entanto, a legitimação da prática ilegal exercida por policiais só é possível a
partir da desumanização da população negra, atualizada em diferentes instrumentos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 97

ao longo da história. Para Foucault (2008), é a emergência do biopoder que possibilita


não o surgimento, mas a inserção do racismo de Estado como mecanismo fundamental
do poder. Aqui, os inimigos não são adversários no sentido político do termo, mas um
perigo biológico. Para o autor, “[...] o racismo é indispensável como condição para
poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassínia
do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder,
pelo racismo” (2008, p. 306).
Apesar de não haver oficialmente pena de morte no Brasil, seguimos tendo
crianças, adolescentes e jovens negros e favelados alimentando as estatísticas de
homicídios decorrentes de intervenção policial nas favelas por serem associados ao
“tráfico de drogas”. Ainda que não seja necessária a comprovação da sua inocên-
cia, bastando apenas apresentar o estereótipo matável, a validação dessas mortes se
intensifica quando há, de fato, algum tipo de envolvimento com o comércio varejistas
de drogas.

Considerações finais: quais novos possíveis para qual futuro?

O Observatório de Favelas e o Instituto de Estudos da Religião (Iser), em


parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), apresentaram
alguns resultados de uma pesquisa chamada “Vidas adolescentes interrompidas – um
estudo sobre 25 mortes violentas no Rio de Janeiro”39, de 2021, fruto da análise de
25 mortes violentas de adolescentes ocorridas em 2017 na Zona Norte da capital,
região considerada a mais letal da cidade. Neste mesmo ano, a Área de Planejamento
3.3, que abrange 20 bairros da Zona Norte e os complexos de favelas da Pedreira,
Chapadão e Acari, concentrou o maior número de mortes violentas de adolescentes.
Deste grupo, os pesquisadores tiveram acesso à documentação de 25 adolescentes,
analisando-se os microdados do Instituto de Segurança Pública (ISP); registros de
ocorrência e laudos da Polícia Civil e cadastros de atendimentos das vítimas pela
rede municipal de Educação, Saúde e Assistência Social e Direitos Humanos, além
de informações do Centro de Pesquisas do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Dos 25 adolescentes, 23 vítimas morreram por arma de fogo, incluindo nove


mortes decorrentes de intervenção policial. Em 17 dos casos, o estudo mostra que
não houve perícia no local (etapa essencial do trabalho investigativo) e que na
maioria das ocorrências a cena do crime foi alterada pela remoção das vítimas (o
que deve ocorrer apenas quando há possibilidade de socorro). Em todos os regis-
tros de ocorrência, o relato de como ocorreu a morte se baseou exclusivamente
na narrativa dos policiais, sem que tivessem sido ouvidas outras testemunhas.
Em todos os laudos, os peritos registraram a impossibilidade de realizar exames
de raio-X. Dos 25 casos, só em dois houve denúncia à Justiça. Até o momento,
três anos depois, só em dois casos as investigações avançaram na direção de

39 Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/estudo-aponta-descaso-perante-


-mortes-violentas-de-adolescentes-no-rio-de-janeiro. Acesso em: 20 maio 2021.
98

responsabilizar os autores (COMITÊ PARA PREVENÇÃO DE HOMICÍDIOS


DE ADOLESCENTES NO RIO DE JANEIRO, 2021).

Nesse sentido, não é de se espantar que ao discorrer sobre mortes decorrentes


de intervenção policial, estarmos lidando com baixíssimos índices de resolução dos
crimes contra a vida (WILLADINO et al., 2019). De acordo com estudo publicado
pelo Instituto Sou da Paz no ano de 2017, “A investigação e processamento de
homicídios por parte das instituições que compõem o sistema de justiça criminal e
segurança no Brasil é ineficaz e ineficiente, de acordo com os diagnósticos disponí-
veis” (INSTITUTO SOU DA PAZ, 2017, p. 5).
O último Atlas da Violência (2020) traz como importante reflexão a influência
da flexibilização da política de acesso a armas e munição no aumento da violência
letal intencional. Utilizando-se de algumas pesquisas internacionais alinhadas com
90% dos achados científicos sobre o tema, o Atlas permite verificar uma forte rela-
ção entre o aumento dos crimes violentos e legislações flexíveis ao acesso à arma
de fogo. Na contramão das evidências científicas alertando para um maior controle
das armas de fogo e aperfeiçoamento das legislações que orientam esse processo,
temos presenciado uma série de medidas visando a disseminação às armas de fogo
e munição e tornando mais dificultada a capacidade de rastreamento de munições.
Sancionado em dezembro 2003, o Estatuto do Desarmamento teve como obje-
tivo a redução da circulação de armas e estabelecimento de penas rigorosas para
crimes como o porte ilegal e o contrabando. Uma legislação que se somou ao ECA
enquanto “instrumentos importantes na diminuição da escalada de crescimento dos
assassinatos de crianças no Brasil” (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA
APLICADA, 2020, p. 32), apesar de não terem sido suficientes para superar a infeliz
e histórica realidade de homicídios contra criança e adolescentes. Vale dizer que o
Atlas da Violência analisa que a relação entre as mudanças na política de acesso a
armas e munição e o aumento ou diminuição de crimes violentos letais intencionais
decorre de quatro circunstâncias:

i) uma arma dentro de casa faz aumentar inúmeras vezes as chances de algum
morador sofrer homicídio, suicídio ou morte por acidente (principalmente crian-
ças); ii) a maior difusão de armas de fogo faz aumentar os homicídios motivados
por conflitos de gênero e interpessoais (como brigas de vizinho, no trânsito, nos
bares etc.); iii) quanto mais armas no mercado legal, mais armas migrarão para
o mercado ilegal, permitindo o acesso a criminosos não organizados em facções;
e iv) a posse de armas aumenta as chances de vitimização fatal para o próprio
portador, em caso de ataque, em vista do fator surpresa (INSTITUTO DE PES-
QUISA ECONÔMICA APLICADA, 2020, p. 11).

Chama a atenção o primeiro item que coloca as crianças em destaque nas


situações em que a morte pela presença de armas em casa é causada por acidente e
o terceiro item, que relaciona a facilitação do acesso a armas a mais “criminosos”
portando estas no mercado ilegal, se referindo aos grupos civis armados atuantes nas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 99

favelas, fatos que este texto não visa negar. Questiona-se, ainda assim, a situação de
crianças e adolescentes vítimas de homicídio por armas de fogo dentro de suas casas
sem que ali haja porte de arma. Cenas que se repetem e tornam o discurso acidental
banalizado diante de tantos “acidentes” e que não por coincidência, são frequente-
mente definidos enquanto efeitos colaterais40 quando causados por intervenção policial
a partir da política de segurança pública que opera nas favelas e periferias do país.
Nesse caso, não estamos falando do chamado crime não organizado, mas daqueles
frequentemente colocados em oposição a esse, os agentes do Estado, que acumulam
“acidentes” no país e em um dos estados em que a polícia mais mata sob expressivo
apoio da população pelo argumento de combate às facções e às drogas.
A reportagem “‘Mãe, fica tranquila, a gente tá dentro de casa’: as famílias
destruídas pela violência policial em plena pandemia”41 nos mostra esse cenário.
O título faz referência à última frase dita por João Pedro, de 14 anos, durante uma
conversa com sua mãe, que havia ligado para o filho preocupada com a presença de
um helicóptero na região em que o jovem estava. Logo após, João foi morto com um
tiro de fuzil dentro da casa dos primos com cerca de 70 disparos feitos por policiais
que entraram na casa alegando perseguição contra integrantes dos grupos armados
da região. Depois de ferido, o corpo de João foi levado ao helicóptero da polícia,
resultando em mais de 10 horas de procura pela família do jovem, até que o encon-
trassem em um necrotério, destino de muitos outros meninos negros que representam
a maioria das vítimas sob a lógica de violência presente nas políticas que norteiam
as ações da polícia brasileira (SILVA; SARDINHA; BICALHO, 2020).
No estado do Rio de Janeiro, a taxa de letalidade violenta observada ao longo
da série histórica42 se manteve acima de 40 por 100.000 habitantes até o final dos
anos 2000, atingindo a menor taxa em 2012, 28,7. No entanto, apesar da redução da
letalidade violenta no estado ter sido associada com a implantação das Unidades de
Polícia Pacificadora (UPPs), “[...] a expansão dessa iniciativa não foi orientada por
um critério que buscasse atender as áreas com maior incidência da violência letal”
(WILLADINO et al. 2019, p. 14).
De acordo com Ignácio Cano, Doriam Borges e Eduardo Ribeiro (2012), até o
momento da pesquisa realizada pelos autores, apenas o Decreto-lei nº 42.787 de 6
de janeiro de 2011 teria avançado em termos de estrutura, objetivos e organização
do programa, iniciado em 2008. “Na prática, isto quer dizer que o projeto das UPPs
avançou de forma experimental e pragmática, sem responder a um plano previamente
desenhado” (2012, p. 18). Nesse decreto, os autores relatam que “[...] as metas centrais
são a recuperação por parte do estado de territórios dominados por grupos criminosos

40 Disponível em: http://www.ineac.uff.br/index.php/noticias/item/501-licenca-para-matar-e-operacoes-diarias-


-geram-recorde-de-mortos-pela-policia-no-rj. Acesso em: 5 jul. 2021.
41 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55582716?at_medium=custom7&at_
custom1=%5Bpost+type%5D&at_custom2=facebook_page&at_custom4=84C15656-55AC-11EB-8A50-
EC240EDC252D&at_campaign=64&at_custom3=BBC+Brasil. Acesso em: 5 jul. 2021.
42 Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf. Acesso em:
10 out. 2019.
100

e o fim dos confrontos armados” (2019, p. 19). Esses objetivos, somados à diminuição
da criminalidade violenta, sobretudo a letal, são retomados posteriormente no Decreto
nº 45.186 de 17 de março de 2015, que regulamenta o programa.
Tendo em vista que a expansão das UPPs não foi orientada de forma a atuar nas
regiões com maior incidência da violência letal, vale investigar que outros possíveis
interesses atuaram em prol da iniciativa. A pesquisa realizada pelos três autores ante-
riormente citados se deu a partir das 13 primeiras UPPs, sendo o período analisado
entre janeiro de 2006 a novembro de 2010. Em suas análises, verificou-se que a
localização dessas unidades no tecido urbano passou por um processo evidentemente
seletivo com relação a agenda dos megaeventos na cidade e interesses políticos.
Concentrando essas instalações em regiões da Zona Sul, do Centro da cidade e ao
redor do estádio de futebol do Maracanã, pode-se perceber que tais unidades diziam
respeito a áreas turísticas, com intensa atividade comercial e elevada população
flutuante (CANO; BORGES; RIBEIRO, 2012).
Após esse período, foi possível observar que outras Unidades de Polícia Pacifica-
dora foram sendo instaladas em diferentes regiões da cidade. No entanto, é importante
destacar que, apesar da expansão verificada, a instalação das UPPs não se expandiu
da mesma forma para as regiões dominadas pela milícia. Para Raquel Willadino,
Rodrigo Costa do Nascimento e Jailson Souza e Silva (2018), “[...] o fortalecimento
das milícias durante o período de implementação das UPPs se relaciona com decisões
políticas sobre o que deveria ser enfrentado” (p. 128). À exceção da UPP instalada na
região do Batan, Zona Oeste da cidade, a atuação em áreas dominadas por milícias não
estava dentro das prioridades estabelecidas pelo projeto (p. 128). Já em 2013, “[...]
os problemas relacionados à experiência se aprofundaram e os índices de letalidade
violenta no Rio de Janeiro voltaram a subir” (WILLADINO et al., 2019, p. 14). De
acordo com a cientista social Silvia Ramos, em 2017 “[...] todas as 39 Unidades
eram consideradas problemáticas, ao mesmo tempo em que o número de tiroteios
em diversas áreas da cidade e RM chegavam a números inéditos”43.
Um dos efeitos verificados em relação à crise das UPPs foi a presença da polícia
e dos grupos civis armados, ambos convivendo nas mesmas favelas. Em função disso,
os tiroteios passaram a ser rotineiros, mas com características diferentes da situação
anterior à ocupação da polícia pacificadora. Conforme apontam Raquel Willadino,
Rodrigo Nascimento e Jailson de Souza Silva (2018), com a presença das UPPs, os
conflitos não eram mais precedidos de anúncios por meio dos fogos, por exemplo,
colocando crianças e idosos em situação de maior vulnerabilidade, tendo em vista a
dificuldade de escapar da “linha do tiro”.
Em fevereiro de 2018, é decretada uma intervenção federal no estado do Rio de
Janeiro com o objetivo de “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”44.
A decisão foi questionada por diversos especialistas da área da Segurança Pública e do

43 Disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php?title=UPP:_a_fal%C3%AAncia_de_um_programa_


para_mudar_a_pol%C3%ADcia&oldid=2098. Acesso em: 10 jan. 2020.
44 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9288.htm. Acesso em: 8
mar. 2020.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 101

Direito, inclusive, a respeito de sua inconstitucionalidade. Em nota técnica conjunta


elaborada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério
Público Federal sobre a Intervenção, os autores chamaram a atenção para os vícios
presentes no decreto, representando “graves violações à ordem constitucional e,
sobretudo, aos direitos humanos”45.
Em uma iniciativa coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cida-
dania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, foi lançado o primeiro relatório
do Observatório da Intervenção com o objetivo de acompanhar e divulgar os fatos
relacionados à intervenção. Nessa publicação, Silvia Ramos (2018) diz que o Governo
Federal decidiu acionar, às pressas, um dos dispositivos previstos na Constituição
para situações de descontrole local, alegando o restabelecimento da ordem e a con-
tenção do avanço do “crime organizado” no estado. Para a autora, a medida estava
relacionada a interesses políticos, tendo em vista que, com o decreto da Intervenção,
não é possível fazer alterações na Constituição. Diante da dificuldade que o governo
à época vinha experimentando para a votação da reforma da previdência, a Interven-
ção Federal trouxe uma saída para adiar o debate político em torno do tema. Além
disso, o decreto se utilizou do discurso do agravamento da violência no estado em
um momento em que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) vinham enfren-
tando diversas dificuldades. Com o fim da Intervenção, foi produzido um relatório
de avaliação da gestão do Gabinete da Intervenção Federal pelo Observatório da
Intervenção. Nele, concluiu-se que:

[...] a intervenção federal não priorizou o combate à letalidade violenta. [...] Das
mortes violentas ocorridas no Rio durante a intervenção, 22,7% foram cometidas
por policiais e militares. [...] Quanto ao número de homicídios decorrentes de
intervenção policial, foram 1.375 mortos de fevereiro a dezembro de 2018, valor
+33,6% maior do que o contIabilizado em 2017 no mesmo período. Nenhuma
região do estado apresentou diminuição desses registros” (RAMOS, 2019, p. 4).

Frente a esses resultados obtidos, pode-se perceber que as intervenções e demais


respostas estatais, para além de não terem solucionado problemas estruturais, também
agravaram a perspectiva bélica e letal da atuação no campo da segurança pública.
Novos possíveis para um possível futuro demandam enfrentamentos às lógicas que
estruturam o país, ao medo que se impõe como operador político, às desigualdades
que nos constituem como população.

45 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/coordenacao/notas-tecnicas/notas-tecnicas-1/


nota-tecnica-conjunta-no-01-2018-2a-ccr-e-pfdc.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
102

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plantação-das-UPPs.pdf Acesso em: 24 jan. 2020.
DINÂMICAS DA VIOLÊNCIA EM
PERIFERIAS URBANAS DO CEARÁ:
diálogos teóricos entre as categorias
“necropolítica’ e “capitalismo gore”
João Paulo Pereira Barros
Carla Jéssica de Araújo Gomes
Luis Fernando de Souza Benício
Aldemar Ferreira da Costa
Raimundo Cirilo de Sousa Neto
Jéssica Silva Rodrigues
Laisa Forte Cavalcante
Lívia Lima Gurgel
Larissa Nunes Ferreira
Lúcia Maria Bertini

1. Introdução

Este artigo visa discutir mudanças e peculiaridades nas dinâmicas da violência


em periferias urbanas no Ceará, apresentando a potência heurística das noções de
necropolítica, de Achille Mbembe, e capitalismo gore, de Sayak Valencia.
Tal discussão é fruto de um acúmulo das reflexões do VIESES: Grupo de Pes-
quisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação, ligado ao
Departamento de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Ceará (UFC), a partir de pesquisas, extensões e atividades de
ensino em torno de aspectos psicossociais da violência em territorialidades urbanas e
seus efeitos nas trajetórias, experiências e condições de saúde mental de juventudes,
seus familiares e trabalhadores sociais nesses contextos.

2. Mudanças e peculiaridades nas dinâmicas da violência no Ceará:


fragmentação das disputas territoriais e inscrição de jovens em “facções”.

Trabalhos como o de Paiva (2019) e Sousa (2019), ao falarem das transfor-


mações sociais do crime no Ceará, traçam um importante panorama do cenário da
correlação de forças entre organizações criminosas com atuação dentro e fora do
sistema prisional cearense, evidenciando padrões de continuidade e atualização de
tipos de crime e violências na história da sociedade cearense. Essas leituras sobre
as transformações e peculiaridades da criminalidade violenta no Ceará apontam a
existência de quatro principais facções criminosas atuando dentro do sistema prisional
106

e fora dele: Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família
do Norte (FDN) e Guardiões do Estado (GDE), sendo esta última uma facção local.
A expansão das principais facções criminosas brasileiras para as regiões Norte e
Nordeste acarretou uma série de conflitos entre elas nas prisões e, como consequên-
cia, também, sobretudo, nas periferias urbanas (SÁ; AQUINO, 2018). Na realidade
cearense, segundo Sousa (2019, P. 46), “esses grupos formam um ‘exército’ de 18.667
‘combatentes’, somente internos (presos). Essa quantidade já é maior do que o efe-
tivo da Polícia Militar no Ceará que é de, aproximadamente, 16.000 profissionais”.
Ainda de acordo com Sousa (2019, p. 33), a facção “Guardiões do Estado/
GDE”, que diferentemente das outras, surge primeiro na periferia de Fortaleza e
depois chega aos presídios,

[...] consegue, sendo nativa, representar melhor o conjunto da tradição de violên-


cia e crime da sociedade local, promovendo atualizações e reconfigurações em
fazeres criminais historicamente reincidentes, e incorporando elementos sociais
de discursos que fazem as suas falas e ações soarem e aparecerem como vendetta
social diante de corações e mentes subjugados e socialmente humilhados.

Sobre essa facção específica do Ceará, Paiva (2019, p. 170) pontua que:

A GDE, conhecida também pelos números 7.4.5, consiste numa reunião de pessoas
que fazem o crime, presos e egressos do sistema, dispostos a resistir ao comando
de grupos de fora do Estado, estabelecendo resistências e alianças para lutar pela
hegemonia do crime no Ceará. Gestada durante alguns anos, a fundação da GDE
é atribuída ao início de 2016. O coletivo conseguiu rápida expansão no sistema
prisional e nas periferias de todo o Ceará, despertando atenção desde o primeiro
momento pela juventude de seus integrantes.

Ainda conforme Paiva (2019), as gangues e quadrilhas de traficantes que atua-


vam no Ceará nos anos 90 e início dos anos 2000 ofereceram as condições objetivas
para o processo de adesão aos grupos criminais atuantes no estado. Pesquisas como
a de Diógenes (1999) mostraram como as periferias de Fortaleza, nos anos de 1990,
contavam com a atuação de “gangues”, grupos formados eminentemente por jovens
que compartilhavam códigos e linguagens singulares, além de maneiras próprias de
se relacionarem dentro e fora de seus territórios. Os conflitos entre tais grupos, nas
ruas ou em bailes funks, eram comuns, mas a presença de armas de fogo e, conse-
quentemente, a letalidade dessas disputas não eram tão pujantes como atualmente.
Como ressalta Paiva (2019, p. 171), “esses grupos eram compostos por ‘cabras-ma-
chos’, que ‘se garantiam’ e afirmavam sua masculinidade diante de outros homens,
heterossexuais e viris”.
Esses grupos criminosos passaram a ser responsáveis pela criação de dinâmi-
cas de governo locais que acarretam formas de dominação e sujeição de populações
periféricas de Fortaleza, afetando especialmente jovens negros. Essas organizações
criminosas, como endossa esse autor, tem recebido variadas denominações, sendo
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 107

“facção” a categoria nativa mais recorrente, sendo também comum expressões como
“o crime”, “o crime organizado”, “o comando”, “a família” ou “os irmãos”.
Embora reconheça os limites da categoria “facção”, Paiva (2019, p. 170) pontua
que as organizações assim reconhecidas localmente são constituídas por

[...] associações, relacionamentos, aproximações, conflitos e distâncias neces-


sárias entre pessoas comprometidas em fazer o crime, desenvolvendo relações
afetivas profundas, laços sociais elaborados como os de família, e um sentimento
de pertença desenvolvido pela crença em determinadas orientações políticas
e éticas que a sustentam. São coletivos móveis de pessoas que fazem o crime
como um meio de integrar a sociedade, pois não visam à sua destruição, e
sim à participação em um sistema de bens materiais e simbólicos agenciados
de múltiplas maneiras. Em alguma medida, as facções são coletivos compos-
tos por convergências de intencionalidades de alcances variados, com pessoas
ocupando posições privilegiadas nos esquemas do coletivo e outras atuando
em suas margens.

Em 2016, uma mudança significativa da dinâmica da violência no Ceará ficou


conhecida localmente como “pacificação”, uma repactuação dessas facções como
forma de se estabelecerem nesse cenário fragmentado. A “pacificação” foi um fenô-
meno ambíguo, pois promoveu, por um lado, a diminuição sistêmica e significativa
do número de crimes de homicídio e, de outra parte, a consolidação/fortalecimento
das facções no exercício do controle social das periferias, muitas vezes utilizando-se
de coersão, ameaças e práticas de tortura (BARROS et al., 2018).
Assim, o término do “acordo de paz” entre as facções deu início ao maior con-
flito armado vivido no Estado do Ceará, acarretando 5.134 crimes violentos, letais
e intencionais no ano de 2017, o maior registro de assassinatos da história local,
levando em conta dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social
(SSPDS-CE). A configuração do crime no Ceará, após a “pacificação”, passou a
se caracterizar pela formação de dois blocos rivais: GDE e PCC, de um lado, e, de
outro, CV e FDN (SOUSA, 2019). Nessa nova dinâmica, não só se intensificaram
os homicídios como também passaram a ser mais comuns episódios de chacina.
Pelo menos 5 chacinas de 2015 para cá ganharam ampla repercussão: “chacina de
Messejana”, na madrugada do dia 11 para o dia 12 de novembro de 2015; Chacina
da “mansão” do Porto das Dunas, em Aquiraz, em 03 de junho de 2017; A Chacina
de Cajazeiras, em 27 de janeiro de 2018; a Chacina da Cadeia Pública de Itapajé, em
29 de janeiro de 2018; a Chacina do Mangue da Barra do Ceará; em 05 de março de
2018 e a Chacina do Benfica, em 09 de março de 2018.
Esse cenário em consolidação caracteriza-se pela fragmentação, acirramento das
disputas territoriais e espetaculização violenta por meio de suplícios e demonstrações
públicas de crueldade, sendo essa espetacularização da violência e exibição de força
um dos elementos principais para dissuasão e afirmação dos grupos criminais que
atuam no Ceará (SOUSA, 2019). Além do aumento dos crimes violentos letais e
intencionais, acompanhado do aumento de chacinas,
108

Uma ‘nova’ economia do castigo chamaria a atenção da sociedade, reeditando o


suplício em tempos modernos. Penas – aplicadas pelo crime aos seus membros
vacilantes e indisciplinados e principalmente aos seus inimigos e devedores – que
produzem certa quantidade de sofrimento passível de ser apreciada, comparada
e hierarquizada, uma graduação calculada de sofrimento (SOUSA, 2019, p. 41).

Nessa dinâmica atual da violência no Ceará, dois aspectos nos chamaram aten-
ção na pesquisa anterior e que agora pretendemos dar maior ênfase: 1) relatos recor-
rentes sobre mudanças no cotidiano de jovens dessas territorialidades periféricas
por conta do acirramento da violência; 2) a grande quantidade de jovens periféricos
inscritos nessas organizações, o que provoca interrogações sobre modos de (des)sub-
jetivação juvenis agenciados nesses contextos e relações de poder. Interrogando-se
sobre fatores subjetivos que atravessam a inserção juvenil nas facções, Sousa (2019,
p. 42) pontua o seguinte:

A configuração atual do crime e da violência no Ceará exige pessoas aventureiras


que vivam intensamente, que suportem orientar as suas vidas por valores con-
traditórios e conflitantes, que possam relativizar a importância da vida humana
diante de um modo de viver que se orienta, principalmente, com base na aventura,
coragem, valentia, honra e vingança; e que tenham no consumismo capitalista
uma das suas principais motivações. Essas pessoas devem ser capazes de executar
com frieza a “lei-suplício” que normatiza e disciplina a empresa criminal e lhe
possibilita se impor como agente de guerra e de paz, ante um Estado impotente
que perde gradativamente o monopólio do uso da força. O novo tipo de agente
de que essas formas de desvios e violências necessitam precisa levar uma vida
com características hedonistas que justifique, pela intensidade, a possibilidade
de uma existência efêmera, abreviada pela dinâmica insalubre do crime. Nessas
circunstâncias forja-se mais do que “soldados” para facções criminosas, pois se
edifica um novo tipo de gente, que vive e ostenta o crime como estilo de vida. De
“tribos indígenas” a grupos políticos, galeras de pichação, torcidas organizadas
ou gangues de rua, a história do Ceará coleciona inúmeros exemplos de crimes e
violências que não têm, necessariamente, os ganhos financeiros como principal
motivação, e, em alguns casos, são impulsionados por questões simbólicas como
a afirmação da valentia, da honra, ou mesmo a ocupação do espaço público e o
direito à visibilidade social.

Nos anos de 2018 e 2019, assistimos à diminuição dos homicídios no Brasil


e também no Ceará, em comparação com o ano de 2017, de acordo com dados do
Monitor da Violência, criada pelo portal G1 em parceria com o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP) e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universi-
dade de São Paulo. No primeiro semestre de 2019, por exemplo, o Ceará registrou
uma diminuição de 53% dos homicídios. Mais do que a políticas governamentais,
essa diminuição pode estar relacionada à própria oscilação da dinâmica dos grupos
criminosos, cuja tensão passou a ser momentaneamente menor mediante armistí-
cios e pactos, ainda que frágeis, de não-agressão como forma de diminuir custos e
aumentar lucros.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 109

Tanto é que, em 2020, a violência letal contra jovens em contextos periféricos


voltou a se intensificar, o que ratifica a pertinência social e acadêmica desta pesquisa.
No Ceará, particularmente, essa situação de violência se agravou ainda mais no
período da pandemia, atingindo de maneira mais letal as periferias e as populações
negras. É o que atesta a nota técnica do Comitê de Prevenção e Combate à Violência
(CPCV, 2020), a qual destaca alguns pontos dessa dinâmica psicossocial da violên-
cia nos 5 primeiros meses do ano em curso: 1) aumento do número de mortes por
agressão no estado, sobretudo em sua capital, durante o período de distanciamento
social; 2) a média diária de assassinatos nos 4 primeiros meses do ano de 2020 foi
mais que o dobro da de 2019; 3) em janeiro de fevereiro de 2020, o Ceará teve o
maior crescimento de homicídios do país, com destaque para o mês de fevereiro,
que coincidiu com a paralisação de policiais militares no estado; 4) em apenas 4
meses de 2020, o ceará alcançou a lamentável marca de 67,39% do total de crimes
que registrou em 2019, sendo necessário destacar que a situação pode ser ainda mais
grave, tendo em vista as subnotificações; 5) a situação de letalidade é mais dramática
para adolescentes e jovens (mais de dois adolescentes mortos por dia).

3. Necropolítica, “capitalismo gore” e a produção de


juventudes “matáveis”.

Que aspectos psicossociais saltam aos olhos nas dinâmicas da violência letal
contra adolescentes e jovens em periferias urbanas no Ceará?
Nas discussões realizadas pelo VIESES desde 2017, lançamos mão das noções
de “necropolítica”, desenvolvida por Achille Mbembe (2003, 2016, 2017), e “capi-
talismo gore”, delineada por Sayak Valencia (2010, 2012), experimentando algumas
aproximações com a discussão de Judith Butler, ao tematizar guerras contemporâneas
sobre vidas precárias e (não) passsíveis de luto (BARROS et al., 2019).
Essas composições de ferramentas teóricas, aliadas aos estudos da feminista
Sayak Valencia (2010) sobre capitalismo, necropolítica, gênero e violência, permiti-
ram-nos traçar discussões no campo da psicologia social sobre as linhas de força que
atravessam a produção psicossocial da figura do adolescente/jovem popularmente
rotulado de “envolvido” (BARROS, 2019). No contexto cearense, são popularmente
chamados de “envolvidos” adolescentes/jovens a quem se atribui a inscrição nas
dinâmicas do mercado varejista de drogas ilícitas. Ainda que não estejam efetivamente
inscritos no tráfico, diversos adolescentes/jovens que habitam as margens urbanas são
também taxados como tal, pré-julgados por suas características raciais, econômicas,
por seu local de moradia e por sua vestimenta.
O “envolvido”, portanto, não se trata de todo e qualquer “bandido”, categoria
que vem sendo trabalhada por autores como Misse (2010), mas sim uma identidade
específica dentre os adolescentes “autores de ato infracional”. O “envolvido” aqui
considerado é a principal expressão local dos sujeitos (potencialmente) perigosos, a
quem são atribuídas características inerentes de mostruosidade (BARROS et al., 2019).
Destacamos a forte imbricação dessa produção psicossocial do “envolvido” com
tecnologias políticas de gestão da morte de sujeitos “desimportantes” e com variantes
110

do capitalismo que potencializam essas políticas de morte. Isso implica deslocar o


debate sobre violência urbana do sujeito para os processos de subjetivação engendrados
por complexas tramas de saber-poder, em contraposição a abordagens naturalizantes e
individualizantes sobre as inscrições das juventudes nas dinâmicas d/a criminalidade
violenta (COIMBRA, 2001)
Pusemos em análise códigos, gramáticas, narrativas e modos de (des)subjetivação
imanentes ao fenômeno da violência armada contra adolescentes e jovens no Brasil
que produzem tais segmentos sociais ao mesmo tempo como “morríveis” (abando-
nados de forma a inviabilizar suas vidas ou relegados a uma sobrevida) e “matáveis”
(alvos de extermínio físico), tomando como ilustração a realidade do Ceará. Nosso
ponto de partida é de que “os envolvidos”, perversamente (in)visibilizados como
infratores ou virtuais autores de infração, são “metáforas da violência”, como bem
defendeu Sales (2007). Mais que isso, sustentamos o seguinte argumento: a produção
de tais adolescentes/jovens é um emblema da maquinaria necropolítica operante no
contexto brasileiro.
Sayak Valencia (2010, 2012), uma das referências do feminismo decolonial,
aponta que a presença insidiosa do crime organizado, do militarismo e deficitários
investimentos em políticas sociais em contextos periféricos é expressão do que ela
chama de “Capitalismo Gore”. A autora cria esse termo como uma ferramenta em suas
análises sobre as conexões entre as dinâmicas da violência no México e o neolibera-
lismo, a globalização e a performance política da construção binária do gênero. Em
Valencia (2012, p. 84), ele é assim definido:

Com este termo nos referimos ao derramamento de sangue explícito e injustificado,


à alta porcentagem de vísceras e desmembramentos, muitas vezes misturados com
a precarização econômica, o crime organizado, a construção binária de gênero e
os usos predatórios dos corpos, tudo isso através da violência mais explícita como
ferramenta de “necroempoderamiento” Portanto, quando falamos sobre o capitalismo
gore nos referimos a uma transvalorização de valores e práticas (econômicas, polí-
ticas, sociais e simbólicas) que são realizadas (de maneira mais visível) na fronteira
e em territórios vulneráveis de todo o mundo.

Valencia (2012) chama atenção para alguns elementos que favorecem esse “capi-
talismo gore”: exigências de consumo excessivo ditadas pelas economias globais e
coloniais, a construção binária do gênero, o exercício despótico do poder por governos
autoritários, a espetacularização e mercantilização da violência:

O capitalismo Gore poderia ser entendido como uma luta intercontinental de (pós)
colonialismo distópico extremo; recolonizaram- se através dos desejos de hiper-
consumo implantados pelo neoliberalismo exacerbado e pela obediência acrítica à
ordem hegemônica masculinista para alcançar auto-afirmação e empoderamento.
Bem como um elo entre a economia sacrificial da morte e a produção de poder
como fatores que redefinem os limites do político. A morte como elemento que
questiona, perturba e desloca tanto o poder quanto o poder do Estado em sua
exclusividade em termos da aplicação da necropolítica (p. 89).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 111

Como expressão do “capitalismo gore” no Brasil contemporâneo, destacam-se


as consequências do quadro de intensificação de conflitos territoriais e da violência
armada nas periferias urbanas, notadamente o aumento de homicídios de adolescentes
e jovens negros e pobres em periferias Brasileiras, sendo o estado do Ceará e a cidade
de Fortaleza emblemas desse processo.
Segundo a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017), ten-
dências mais autoritárias são observadas em pessoas que sentem mais medo, o que
torna plausível relacionar a intensificação de lógicas punitivo-penais e a produção
generalizada do medo.
Ao relacionar classe social e intensificação dessa volúpia punitivo-penal,
Rodrigues (2009, p. 39) afirma que “o quadro da insegurança foi pintado com o
sangue dos pobres e dos historicamente excluídos”. Isto é, para considerar devi-
damente a escalada dos homicídios no Brasil, há que se levar em conta o processo
de criminalização da pobreza (COIMBRA, 2001) como legitimador dessas mortes.
Articulada a essa gestão diferencial da pobreza, tal problemática é uma das brutais
expressões da continuidade do que Nascimento (2016) chama de “genocídio do
negro brasileiro”.
No cenário atual de agravamento da criminalidade violenta no Ceará, além da
intensificação de disputas entre facções criminosas que se fortaleceram ou foram
criadas nos últimos anos, aspecto já trabalhado acima, alterando significativamente
a própria cartografia psicossocial dos territórios periféricos e, com efeito, o coti-
diano dos seus moradores, se comparadas à década de 1990 e início dos anos 2000,
épocas marcadas pela atuação de gangues, como bem destaca trabalhos como o
de Diógenes (1999), outro aspecto que chama atenção é o recrudescimento de um
modelo militarizado de segurança pública operado por ações predominantemente
ostensivas e à luz do paradigma da “guerra às drogas”, que se centra na figura
do “inimigo interno”, cada vez mais associada a jovens negros, pobres e do sexo
masculino nomeados como “envolvidos”. De acordo com dados fornecidos pela
própria SSPDS, analisados pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios
na Adolescência, entre o primeiro semestre de 2013 e os mesmos meses de 2017,
houve um aumento de 444% das mortes por intervenção policial no Ceará – no caso
apenas de adolescentes, esse aumento chegou a 600%. Por sua vez, o incremento
político e orçamentário dessa política militarizada de segurança pública no estado
também tem feito crescer o número de mortes de policiais, que apresentou elevação
de 54% no intervalo entre o primeiro semestre de 2013 e o igual período de 2017
(CCPHA, 2017).
Nesse cenário, Barros (et al., 2018), em artigo sobre o assunto, mostram como
os discursos de jovens e profissionais que atuam com jovens em dois dos principais
territórios com elevação dos homicídios em 2017 apontam para o fortalecimento
da capacidade de cooptação de juventudes pelo tráfico de drogas, em um contexto
neoliberal de dramática fragilização das já insuficientes redes de proteção social
juvenis, e para o fato de que jovens da periferia se encontram cada vez mais em um
“fogo cruzado” em que a condição de descartabilidade de suas vidas se torna ainda
mais expressiva.
112

Aspecto verificado sobretudo a partir de 2017, a expulsão de moradores de


territórios da periferia da cidade sob o domínio de organizações ligadas aos mer-
cados ilegais de drogas e armas, produzindo “refugiados urbanos”, é um fenômeno
que ilustra um aspecto do “capitalismo gore” para o qual Valencia (2012) chama
atenção: o necroempoderamento, neste caso realizado por organizações que dispu-
tam os mercados ilegais de drogas e armas, alimentando-se do “proibicionismo”.
A problemática dos “refugiados urbanos” torna ainda mais exposta a situação
de “cidadania escassa” (SALES, 2007) na qual vive a maioria das populações
periféricas. Sales (2007) argumenta que as históricas e marcantes desigualdades
sociais, agravadas pelo neoliberalismo e o encolhimento do papel do Estado na
garantia de direitos sociais, são ainda mais aviltantes para segmentos infantojuve-
nis, especialmente negros, e seus familiares em situação de pobreza, expondo-os
a inúmeras violências, como as que são perpetradas por grupos criminosos e
seus “necroempoderamentos”.
São nítidas as conexões da discussão acerca do conceito de “Capitalismo Gore”
trazido por Valencia (2010, 2012), com a categoria “necropolítica”, trabalhada por
Mbembe (2016, 2017).
A necropolítica trata-se de uma tecnologia de poder que fazem funcionar maqui-
narias econômicas e simbólicas voltadas para a gestão da morte.
Ao mesmo tempo em que toma as discussões de Michel Foucault sobre Biopoder
como ponto de partida e demonstra sua pertinência, Mbembe (2016) aponta sua insu-
ficiência para compreender as complexas práticas contemporâneas articuladas a uma
política que prioriza a aniquilação de inimigos. Para o autor camaronês, o contexto
de ocupação colonial em vigor na contemporaneidade nas periferias do capitalismo
se caracteriza pela combinação entre disciplina, biopolítica e necropolítica.
Ressalta Mbembe que:

O poder (e não necessariamente o poder estatal), refere-se e apela continuamente


à exceção, à emergência e à noção ficcional do inimigo. Ele decida-se igual-
mente à produção dessa mesma exceção e emergência e do inimigo ficcional
(MBEMBE, 2017, p. 115-116).

Lembra Mbembe (2016) que, para Foucault, a raça foi sempre uma sombra
para o pensamento ocidental, ao passo que o racismo teve e tem função regular
a distribuição da morte, viabilizando as funções criminosas do Estado, já que é a
condição de aceitabilidade da condenação à morte pela atribuição de desumanidade
ou pela subjugação dos povos estrangeiros. Assim, desta vez retomando também
o diálogo com Arendt, Mbembe ressalta como política da morte e política da raça
estão imbricadas. Em sua discussão sobre “racismo de estado”, Foucault (2005)
aponta o nazismo como o grande exemplo de como o estado lançou mão do direito
de matar, articuladamente à gestão, proteção e cultivo da vida. Contudo, na reflexão
mbembeana, chama atenção ao seguinte ponto: a junção entre racismo, homicídio e
suicídio arquitetada pelo estado não teria sido apenas uma exceção vinda do estado
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 113

nazista. Mbembe (2017) sustenta que o traço colonialista e racista da biopolítica pode
ser exemplificado pela escravatura de negros:

De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: a perda de um lar, a


perda de direitos do corpo de cada um, ou de cada uma, e a perda de um estatuto
político. Essa tripla perda é idêntica à da dominação absoluta, a da alienação
natal e à da morte social (expulsão da humanidade total). [...] A condição vio-
lenta da vida do escravo manifesta-se através da predisposição do capataz para
se comportar de maneira cruel e temperamental e do espetáculo da dor infligida
ao corpo do escravo. A violência torna- se uma característica comportamental,
como o uso do chicote ou o assassinato do próprio escravo (MBEMBE, 2017,
p. 122-123).

Articulando a noção foucaultiana de racismo de estado, como condição de


aceitabilidade da matança em uma sociedade na normalização, definindo quem deve
viver e quem deve morrer para a segurança dos viventes, com o conceito de Estado de
exceção, trazido por Agamben, a necropolítica suscita a criação da figura do “inimigo
ficcionalizado”, isto é, um outro que ameaça a vida e segurança dos “cidadãos”. A
produção desse inimigo ficcionarizado seria uma ferramenta útil para conferir ares
de normalidade e “civilidade” a bárbaras formas de matar, gerando pouca como-
ção social.
Esse processo psicossocial de fabricação do inimigo ficcionarizado é um dos
principais traços da necropolítica no cotidiano brasileiro. Isso porque aqui é possí-
vel se visualizar continuidade desses processos de dominação racista na produção
criminalizante da figura do adolescente e jovem “envolvido”, constituído como um
“não cidadão”, destituído de estatuto político. Seriam os “envolvidos” uma forte
imagem do amplo espectro populacional que Mbembe (2017) denominou de “escra-
vos contemporâneos”, em relação aos quais se aplicaria um dos mais importantes
princípios do trabalho colonial: o da separação e diferenciação. Articulado ao trabalho
de separação e diferenciação, sempre esteve o trabalho de desumanização, segundo
Mbembe (2016).

4. Considerações finais

A potência elucidativa da discussão mbembeana sobre necropolítica frente ao


cenário de violência urbana vivido no Brasil também está na sua discussão sobre
a continuidade das relações colonialistas na atualidade. Dessa maneira, é possível
dizer que as favelas brasileiras são espécie de colônias contemporâneas, as quais se
configuram como locais onde a violência do estado de exceção se dá de modo mais
contundente e onde estão os inimigos a serem aniquilados, como o são os “envol-
vidos”. A respeito das colônias, Mbembe (2017, p. 127) diz o seguinte: “em si, as
colônias são o local, por excelência, onde os controles e as garantias da ordem jurídica
podem ser suspensos – a zona onde a violência do estado de exceção está condenada
a operar ao serviço da civilização”.
114

Nessa ótica, o princípio necropolítico é movido pelo racismo colonial e se qua-


lifica pela destruição organizada por economia sacrificial, que, para funcionar, precisa
que algumas vidas passem a não ter valor e suas perdas sejam habituais. Dessa forma,
a naturalização das mortes de adolescentes, atribuindo-lhes a pecha de “envolvidos”,
é uma das consequências dessa política de produção de “inimigos” no contexto da
violência armada no cotidiano das periferias, seja pela atuação das facções criminosas,
seja pelo próprio Estado, por ação ou omissão. Como aponta Mbembe (2016), a paz
não é consequência natural da guerra que metaforiza o cotidiano das colônias, guerra
essa que não está submetida a regras institucionais. Isso permite inclusive um olhar
crítico sobre ações truculentas que se autointitulam de “pacificação” nas periferias
urbanas atualmente. Como atualização das colônias, ali também a gama de ações
que reivindicam para si o signo da paz “mais parece adquirir a face de uma guerra
sem fim” (MBEMBE, 2017, p. 126). Por meio da necropolítica, as manifestações
de violência, sob a aparência de legalidade, têm nas colônias contemporâneas um
espaço para se estabelecer.
Em fecundo diálogo com Fanon, Mbembe (2017) lembra como as tecnologias
necropolíticas em operação nas periferias se sustentam em processos de estigma-
tização e criminalização de certos sujeitos hoje. Afinal, os lugares ocupados pelos
colonizados são lugares de má fama, onde moram sujeitos igualmente de má fama,
os quais, por tal razão, podem nascer, sobreviver e morrer de qualquer forma.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 115

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a partir do trabalho do(a) psicólogo(a)
com medidas socioeducativas em meio-
aberto na cidade de Vitória-ES
Luizane Guedes Mateus

Apresentação

Pensei inúmeras formas para a “apresentação” dessa história – artigo; embora


de fácil compreensão, não conseguia trazer a estas folhas “claras” e assepticas, algo
que as fizessem falar. Somente lendo alguns fragmentos literários pude perceber
que essa história falava por si só, e que só mesmo textos errantes poderiam fazê-la
emergir. Para essa emergência, optei então por um errante apaixonado pelas palavras,
Rubem Alves:

Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com versos de Chico: Saudade é


o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu. Qual é a mãe que
mais ama?! A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que arruma o
quarto para o filho que não vai voltar?! Sou um construtor de altares. Construo
altares à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia e
música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me aquecem. Mas o
abismo permanece escuro e silencioso (ALVES, 2007, p. C2).

A problemática sobre a qual trata este artigo refere-se aos processos de exclu-
são, criminalização e extermínio da juventude, a partir do trabalho desenvolvido
no campo da psicologia nos Centros de Referência Especializados de Assistência
Social – Creas, da cidade de Vitória – Espírito Santo, com adolescentes e jovens em
cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto. Ele emerge a partir da
experiência como psicóloga e também como coordenadora, por dez anos habitando
espaços públicos do Sistema Único de Assistência Social – SUAS; emerge especial-
mente buscando dar visibilidade aos processos que tentam singularizar as diferentes
instituições que atravessam o dia-a-dia do cotidiano de adolescentes e jovens, em
sua maioria negros e pobres, que são encaminhados aos serviços de medidas socioe-
ducativas em meio aberto.
118

O caminhar junto à familias e indivíduos ditos em situação de risco social ou


que tiveram seus direitos violados, através de suas narrativas, o pensar juventude e as
práticas de extermínio e violação de direitos humanos em voga diuturnamente, assim
como o percurso do cumprimento, ou não, das medidas socioeducativas em meio
aberto, foram os caminhos que me apresentaram muitas possibilidades – armadilhas,
das quais lanço mão nessa escrita – capturas e inquietações sobre a importância e
as implicações do trabalho e da formação em psicologia, assim como a potência da
construção de novos olhares para a juventude negra e pobre dos territórios da cidade
de Vitória, pela via da discussão em direitos humanos.
Como “transgredir” a história oficial?! Como contar, recontar, mas principal-
mente afirmar tantas outras histórias vivenciadas por jovens, em sua maioria negros,
a partir do olhar da psicologia, sem soar mecânico ou adestrador de relações sociais?!
Este é o fio condutor desse artigo.

Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando


pensei em escrever sobre a realidade, já que essa ultrapassa. Qualquer que seja o
que quer dizer ´realidade´. O que narrarei será meloso? Tem tendência, mas então
agora mesmo seco e endureço tudo (LISPECTOR, 2006, p. 17).

Por onde começar, se são tantas as histórias que atravessavam a vida desses
meninos e meninas? Quem são as personagens dessas histórias? Como a formação
em psicologia tem se pautado pela questão das medidas socioeducativas, assim como
pelas análises acerca de direitos humanos das comunidades periféricas? Ao optar
pela manutenção das histórias do dia a dia dessas famílias, meninos e meninas, fui
guiada por elas. O que trouxeram para esta escrita e para aqueles que a lerem? Emo-
ções desconcertantes que se entrelaçaram entre adolescentes e jovens, psicólogos e
aqueles que circulam pelos espaços de cumprimento de medidas socioeducativas em
meio aberto; possibilidade de caminhar por estradas sinuosas, nas quais as curvas
reservam o imprevisto, o inusitado dos acontecimentos.

Introdução

Para analisarmos os processos de exclusão, criminalização e extermínio da


juventude, a partir do trabalho desenvolvido no campo da psicologia nos Centros
de Referência Especializados de Assistência Social – Creas, da cidade de Vitória –
Espírito Santo, é preciso compreender inicialmente as medidas socioeducativas em
meio aberto e sua execução na referida cidade.
As medidas socioeducativas são regulamentadas pelo Sistema Nacional de Aten-
dimento Socioeducativo – SINASE (Lei nº 12.594, 2012). Elas têm como público,
adolescentes de 12 a 18 anos incompletos, que podem chegar aos 21 anos no decor-
rer do cumprimento; a estes foi atribuída autoria de ato infracional, ato este que
recebeu a aplicação de uma medida socioeducativa por um juiz da Vara da Infância
e da Juventude. De forma mais diretiva, as medidas socioeducativas objetivam a
responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 119

incentivando a sua reparação; a integração social do adolescente; a garantia de direitos


individuais e sociais; e a desaprovação da conduta infracional (Lei nº 8.069, 1990).
Considera-se uma medida socioeducativa em meio aberto aquela que não possui
restrição de liberdade. Na cidade de Vitória estas medidas são cumpridas nos espaços
públicos municipais denominados CREAS – Centros de Referência Especializados
de Assistência Social46, que são unidades públicas da Política de Assistência Social,
onde são atendidas famílias e indivíduos que estão em situação de risco social ou
tiveram seus direitos violados.
Estes espaços contam com equipes de acompanhamento especializado compos-
tas por psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, assessores jurídicos,
pedagogos e educadores sociais. Estas equipes são responsáveis pelo acompanha-
mento da medida, assim como do atendimento as famílias e aos adolescentes em
questão. A proposta é, através de atividades educativas e culturais, assim como aten-
dimentos psicossociais e reinserção nos espaços comunitários e escolares, integrar
a função de acolhimento e co-responsabilidade pelo cumprimento da determinação,
reconstruindo projetos de vida junto a estes adolescentes e seus familiares.
De acordo com o trabalho desenvolvido nos espaços de execução das medidas
socioeducativas em meio aberto, o atendimento deve ser orientado no sentido de
garantir acesso aos direitos até então “negados” aos adolescentes e jovens. Siqueira
(2016) aponta que o ato infracional visibiliza uma série de violações de direitos a
qual a vida dos adolescentes é submetida. A equipe fica encarregada de operar esse
sistema devendo assim, encaminhar os adolescentes/jovens e suas famílias com rela-
ção a providências que garantam condições de “superação da vivência infracional”
e construção de projetos de vida que possam se dar fora da via da ilegalidade. Tais
pressupostos são efetuados a partir do Plano Individual de Atendimento (PIA), ela-
borado com o objetivo de atender as particularidades de cada sujeito. Mas quem são
esses adolescentes? Como a psicologia se insere nesse contexto de “superação da
vivência infracional” e como pensar direitos humanos nessa ceara?!
Importante iniciar nossas análises pensando as medidas socioeducativas em
meio aberto para além dos adolescentes, uma vez que não devem ser entendidas como
“individuais” e focadas no cumprimento individual do que se aplica para “superar”
o ato infracional. Elas estão inseridas em um conjunto de condições econômicas e
sociais nas quais adolescentes e jovens estão imersos em seus territórios, majorita-
riamente pobres. Isso implica dizer que a medida socioeducativa em meio aberto tem
uma relação direta com as relações e vivências desses meninos e meninas em sua
história diária, uma vez que não se encontram em restrição de liberdade.
Um dos pontos que tem sido forte nessa vivência na cidade de Vitória diz res-
peito aos conflitos urbanos que a capital do Espírito Santo tem vivenciado. Conflitos
que irão nos levar a outro ponto dessa escrita, a questão dos direitos humanos e o
extermínio da juventude negra.

46 O Creas é uma unidade pública estatal que compõe a Política de Assistência Social, onde famílias e
indivíduos em situação de risco pessoal ou social – que vivenciaram casos de violação de direitos; vítimas
do trabalho infantil e de abandono; pessoas em situação de rua ou que tenham sofrido violências física,
psicológica e sexual ou mesmo foram discriminadas por razão de sua orientação sexual ou de sua etnia e
adolescentes que estejam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto – são atendidas.
120

Do alto da palmiado47, corre não! Os conflitos urbanos na cidade de


Vitória e sua relação com a questão dos direitos humanos da população
pobre e negra

Para compreendermos o contexto atual em que se constrói a narrativa dos con-


flitos urbanos como principal expoente para o crescimento da violência na cidade
de Vitória\ES, assim como extermínio da juventude negra – majoritária entre ado-
lescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, é preciso estruturar
uma breve análise acerca do conceito de classes perigosas.
Alguns discursos serão produzidos ao longo da história, de acordo com a neces-
sidade de homogeneização e sujeição de alguns grupos, especialmente negros e
pobres. Estes discursos serão utilizados especialmente para dar certos lugares a estes
grupos, como o lugar de perigo, daquele que pode, e porque não, deve ser combatido
e exterminado. Uma dessas produções, amplamente disseminada nos dias atuais pelos
meios de comunicação, diz respeito ao alardeado aumento da violência ocasionado
pelo domínio das grandes cidades pelas chamadas facções criminosas, assim como
da ausência de controle por parte das forças de segurança, desse fenômeno.
Produção que não emerge nos dias atuais, muito menos é retilínea, natural ou
processual. Trata-se de uma construção que, ao longo da história, ganhará corpo e
se revestirá de ‘verdades’, através do conceito de classes perigosas. Este conceito
ganhará força a partir do Movimento Higienista do Século XIX e começo do Século
XX, mais especificamente no ordenamento e reordenamento de algumas teorias. Não
obstante, é possível esbarrar nesse momento histórico, com produções legitimadas
como científicas, que apontarão caraterísticas anatômicas para a identificação de “cri-
minosos natos” – Antropologia Criminal – assim como aquelas que irão considerar
relevante aplicar o conceito de seleção natural aos humanos, classificando-os como
“bem nascidos” ou não, de acordo com suas características genéticas – a Eugenia.
Essas e outras teorias irão construir um caminho que irá separar, diferenciar
e elencar aqueles que merecem viver, daqueles cujos corpos podem ser deixados
pelo caminho – corpos virtuosos e corpos viciosos, como elencava o Tratado das
Degenerecências (MOREL, 1857). Todas estas teorias terão um ponto comum – irão
apontar como inferiores pessoas com deficiência, com transtornos mentais, presos,
negros e pobres; todas elas construirão um percurso de processos de exclusão, sujei-
ção e confinamento, onde deverão sobreviver os mais fortes, mais aptos, superiores,
aqueles considerados de “raça pura” – brancos.
Para a manutenção e perpetuação dessa superioridade, médicos, juristas, peda-
gogos, urbanistas, psicólogos e assistentes sociais construirão modelos ideais de
família, de infância, de mulher, de juventude; construções que serão consolidadas
através de modelos de família, de comportamentos, de vida laborativa. Essas constru-
ções possibilitarão a separação que definirá, já no final do Século XIX e começo do

47 “Do alto tá palmiado” vem da concepção de “tudo monitorado”, visto e vigiado do alto da comunidade pelos
olheiros do tráfico de drogas de cada território. A frase é muitas vezes pichada na entrada dos bairros de
periferia, fazendo alusão ao controle do tráfico de drogas, de toda a região.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 121

Século XX, quem seriam os dignos e quem seriam os viciosos, aqueles que poderiam
ser “cuidados” e teriam seus valores construídos através do trabalho e da moral, e
aqueles a quem deveriam ser designadas a prisão, o manicômio, os espaços de vigi-
lância e controle. Os corpos perigosos poderiam ser deixados pelo caminho, afinal,
mostravam-se como ameaça aos ‘cidadãos de bem”. Alguma “mera coincidência”
com os dias atuais?! Alguma semelhança com o olhar que é direcionado aos corpos
jovens em cumprimento de medidas socioeducativas?!
É também neste período que os espaços públicos serão considerados como
‘lugares do perigo’, das doenças, das mazelas e onde serão instrumentalizados os
considerados criminosos. Não por acaso, é neste mesmo período que fervilham movi-
mentos de resistência e contestação, manifestações populares não só na Europa, mas
também no Brasil; período em que as ruas são palco dos movimentos populares, e que
fazem desses espaços, lugares perigosos à ordem vigente. Assim, torna-se necessário
esvaziá-los, torná-los inertes através do perigo, fomentando o espaço privado como
o espaço do cuidado e da proteção.
Serão então modernizados os espaços públicos, tornando-os assépticos, transfor-
mando-os nos espaços do trabalho, que as ´balbúrdias´ e os perigos serão desmobili-
zados...ruas não mais como lugares de encontros, mas como espaço de produtividade,
vidas empurradas para a margem. O processo de urbanização dos Séculos XIX \
XX estará intimamente associado à pobreza, e por consequência, à reconstrução do
conceito de classes perigosas.
É neste período que os processos de urbanização irão se associar aos processos
de industrialização. Teremos então, no que concerne ao Município de Vitória, o iní-
cio da formação dos bairros tidos como economicamente vulneráveis, os chamados
“territórios da pobreza”.

Formam-se os chamados ‘territórios da pobreza’, de um modo geral, espaços que


não foram ainda valorizados pelo mercado imobiliário; verdadeiros guetos que
sempre amedrontaram as camadas “mais favorecidas. Na história das cidades cons-
tata-se como tais territórios, à medida que são valorizados economicamente, têm
suas populações empurradas para outras regiões menos importantes. As chamadas
periferias sobrevivem sem as mínimas condições de saneamento básico, mora-
dias, transportes, etc – espaços onde, segundo o discurso hegemônico, vicejam a
violência, o banditismo, a criminalidade (COIMBRA, 2001, p. 81).

Importante observarmos que todo o processo de formação desses bairros na


cidade de Vitória, terá como base, entre as décadas de 1940\1950, a vinda de um
grande contingente de migrantes do Nordeste do Brasil, especialmente do Estado da
Bahia, em busca de inserção no mercado de trabalho, moradia e melhores condições
de vida. Será também um processo marcado por embates para uso dos espaços da
cidade, tendo uma grande parcela dessas famílias sido “empurrada” para regiões sem
urbanização da cidade, acarretando o crescimento populacional nas áreas de morro e
encostas, assim como de proteção ambiental. Será assim que bairros como Piedade,
Caratoíra, Fonte Grande, Forte São João, Alagoano, Ilha do Príncipe e tantos outros
122

se constituirão não só com total ausência do poder público, mas também a mercê
de toda sorte de invasões e domínio do comércio de drogas e armas.
Para esses bairros serão, mais uma vez, destinadas apenas a segurança pública
como forma de aproximação e “pseudo garantia de direitos”, militarizando seu
cotidiano e mantendo-se a precariedade da vida; vida que passará a valer tão pouco
que só será lembrada nas páginas policiais, quando a espetacular cobertura midiática
acerca da formação e estruturação das ditas facções criminosas se tornará rentável
e facilmente utilizada para operações policiais, invasões de residências, extermínio
de uma parcela muito específica da população – classe, raça e gênero serão bem
delimitados quando os “autos de resistência” forem lavrados.
O conceito de classes perigosas será reatualizado e fortalecido a cada notícia
veiculada pelos meios de comunicação; a ampla cobertura da mídia será acompa-
nhada pelos discursos de uso da força letal para o combate ao perigo eminente – o
confronto entre esses grupos; grupos que se colocarão através dos corpos negros
e franzinos que se esguiam pelas vielas dos morros da cidade. Para ele a prisão,
as medidas socioeducativas, o tiro de “12 ou ponto 40”, a comoção seletiva, a
punição mais severa que um corpo pode merecer – a morte. Para suas famílias
discursos de desestrutura, de falta de limites, ausência paterna, risco pessoal e
social balizados na falta.
São desses bairros pobres que emergem as famílias acompanhadas no Creas
Centro, assim como os adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioe-
ducativas. Importante mencionar que o Creas Centro foi fonte de dados para esta
escrita, visto que foi o campo de trabalho da autora. Os números de Setembro de
2019, contabilizam 79 famílias com adolescentes ou jovens em cumprimento de
medidas socioeducativas, destes, 95% eram oriundos de bairros com rendimento
médio mensal entre um e três salários mínimos, sendo também os bairros com par-
ticipação da população negra no total de habitantes por bairro acima de 50% (PMV,
2019). É de bairros pobres e negros que o sistema socioeducativo tem formada sua
massa de corpos.
São esses corpos que irão emergir quando Achille Mbembe trás para a discussão
o conceito de necropolítica, uma política de morte que se coloca enquanto regra para
o funcionamento do Estado, que se dará através do uso da força desproporcional e
do extermínio de alguns corpos; uma política que elege quem pode e deve morrer.
Esses corpos serão majoritariamente negros.

O racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do


biopoder, ‘este velho direito soberano de matar’. Na economia do biopoder, a
função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções
assassinas do Estado (MBEMBE, 2018).

O operar da necropolítica será visto com extrema facilidade nos territórios


pobres das cidades, e mais especialmente ainda nos bairros pobres de Vitória, espaços
de moradia dos adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa,
onde as concepções de direitos humanos não imperam.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 123

Mas, de fato, existe alguma concepção de direitos humanos que abarque, como
humanos, esses grupos vistos como marginalizados?! A construção de direitos huma-
nos como um especialismo fortalece a ideia de universalidade e essencialidade,
assim como torna vidas homogêneas, tirando delas toda forma de resistência. Como
nos afirma Coimbra:

A quem interessa produzir neste mundo neoliberal de controle globalizado – onde


o biopoder tenta dominar e expropriar tudo e, em especial, gerir e controlar a
própria vida – direitos humanos como mais um especialismo? A quem interessa
fortalecer e naturalizar direitos humanos como essenciais e universais, homo-
geneizando-os e, com isso, despotencializando-os? Sabemos que podemos estar
falando sobre e em nome dos direitos humanos e tendo práticas que, em realidade,
estão produzindo/fortalecendo a opressão, o constrangimento e os maus encontros
(COIMBRA, 2006, p. 1).

É essa opressão que produz, nas comunidades periféricas, índices de óbitos


altos, causados, em sua maioria, por agentes do estado, contra os corpos majorita-
riamente negros. São ações que têm um único alvo: corpos negros.
É nesses bairros que a criminalidade violenta vem sendo fortemente relacionada
ao sexo masculino e ao grupo etário dos jovens de 15 a 29 anos. Segundo dados do
Atlas da Violência 2019, observando especificamente o grupo de homens jovens,
a taxa de homicídios por 100 mil habitantes chega a 130,4 em 2017. Dos 35.783
jovens assassinados em 2017, 94,4% (33.772) eram do sexo masculino. No que se
refere à evolução das taxas de homicídios de homens jovens no país, observou-se
um aumento de 38,3% entre 2007 e 2017. No período mais recente, de 2016 a 2017,
essa mesma taxa cresceu 6,4%. Será nesses adolescentes e jovens, negros e pobres,
que será colada a figura do traficante, aquele cujo imaginário social irá transformar
no responsável por todas as mazelas da cidade, desde os crimes violentos, até os
conflitos urbanos.

No comando desse grande negócio é identificada, em seu aspecto político e legal,


a figura do ‘narcotraficante’, cujo estereótipo, construído pelo discurso oficial e
divulgado pela mídia, aponta para o protótipo do criminoso organizado, violento,
poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida
em nossa legislação outrora como ‘entorpecente’, e hoje, genericamente, como
‘droga’. Toda a atual política de repressão ao comércio de drogas ilícitas está
voltada a combater este ‘inimigo’ da sociedade, Como delegado de polícia acabei
por encontrar uma realidade diversa daquela que nos é apresentada diariamente,
enquanto ‘verdade’. Os criminosos autuados e presos pela conduta descrita como
tráfico de drogas são constituídos por homens e mulheres extremamente pobres,
com baixa escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos com drogas sem
portar nenhuma arma. Desprovidos do apoio de ‘qualquer’ organização, são os
‘narcotraficantes’ que superlotam os presídios e casas de detenção (D’ELIA,
2007, p. 11).
124

É esse o “inimigo” que hoje compõe também boa parte das famílias em acom-
panhamento no Creas por conta das medidas socioeducativas em meio aberto, e que
tem como um de seus maiores desafios, sobreviver aos conflitos urbanos que tem se
constituído na cidade, mas também as intervenções violentas da polícia nas operações
policiais e aos “especialistas em direitos humanos”. Em meio a todas essas demandas
e incertezas, estamos nós, no fogo cruzado entre o exercício profissional e a produção
de novos sentidos para vida vistas como precárias.

A atuação do psicólogo no contexto da socioeducação: andando


entre muros...

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu, em 2012, referências


técnicas para atuação de psicólogos no trabalho com medidas socioeducativas em
meio aberto, trazendo à discussão algumas questões importantes para o exercício
profissional na socioeducação. Nesse documento, são elencados como principais
recursos para a atuação do psicólogo a escuta, o encaminhamento e a orientação.
Mas, como construir espaços de escuta e produção de sentidos em meio ao que
chamam de “celeiro de bandidos”?! Como o lugar do psicólogo e também de sua
formação se constituem em meio a todos os desafios do trabalho em bairros periféricos
e na atuação com adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas
sem que, o encontro entre psicologia e defesa de direitos humanos não se configure
também como um especialismo?!
Apostamos em muitos caminhos, mas o que mais nos faz brilhar os olhos é o
de confiança e construção de vínculos, procurando não transformá-los em mais uma
encruzilhada, tampouco usar o lugar de “infratores” como palco para a busca por
culpados pela violência que assola a cidade, ou justificativa para endurecimento dos
processos penais que já assolam tanto a juventude pobre e negra do país.
Colocamos nossos corpos prontos a acolher, a afiar a escuta para não deixar que
sejamos também vozes que ecoam o lugar da sina, da captura pelo lugar do perigo. A
ideia é não nos fecharmos nos domínios de saber, nos quais somos colocados como
psicólogos. Como nos convida Rauter (2012), é no deslocamento de conceitos que
buscamos atuar, tencionando olhares para que possamos enxergar seres humanos em
processos singulares de formação.
Para nos deslocarmos dos conceitos, tem sido extremamente importante ouvir
as experiências e narrativa desses adolescentes, jovens e suas famílias, tanto indi-
vidualmente quanto em grupos48, seja na construção do PIA – Plano Individual de
Atendimento, ou nos passeios pela cidade, visitando espaços que os adolescentes
nunca estiveram antes, como museus, escolas de artes, observatórios e planetários

48 O trabalho em grupo tem sido uma das estratégias para possibilitar aos adolescentes e jovens espaços
de fala, para que, de alguma forma, o ato infracional não seja o único caminho para construção de novos
projetos de vida. O grupo se configura como importante dispositivo para a atuação da psicologia na socioe-
ducação, com potencial de problematizar questões sociais e institucionais (RODRIGUES; OLIVEIRA, 2018;
ROSSATO; SOUZA, 2014).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 125

da cidade. Esses encontros nos causam inquietações e nos fazem constituir nossa
intervenção sempre pautada não em individualidades, e sim numa psicologia que
se produz no “entre” – a relação de quem escuta histórias de violência e de quem é
escutada; uma psicologia produzida através dos afetos para com o outro, mas tam-
bém para si e para o mundo como modo de intervir. Não cabe a nós o processo de
responsabilização pelo ato infracional, mas possibilitar o entendimento do que esse
ato se constituiu na vida dos sujeitos em cumprimento de medidas socioeducativas.
Neste contexto, ser psicóloga, atuar diretamente no cotidiano dessas famílias,
na soma dos acontecimentos da vida desses jovens – é a possibilidade de intervirmos
junto às relações e humanizarmos o desumanizado; isso implica em nos enveredar-
mos pelas histórias que não passam somente pelos atos infracionais, pelos conflitos
e pela morte; implica entendermos como essas comunidades-vidas funcionam tendo
acesso mínimo a políticas públicas, como constroem redes de sociabilidade, relações
comunitárias e, inclusive, como essas relações se transformam, em algum momento,
em conflitos armados. Como permitir que esses territórios e essas vidas jovens não
sejam vistos apenas pelo recorte do ato infracional e da violência, mas por um olhar
que, como nos aponta Rauter (2012) pode ser concebido como um sistema aberto
cuja prática é referida a um campo de dispersão do saber por oposição a um saber
que se pretenda universal e ordenado. Esse é o nosso maior desafio!

Concluindo o que não tem conclusão: como seguir com medidas


socioeducativas que não possibilitam vida?!

Em constante contramão, nosso caminho se faz ao caminhar. Identificamos, jun-


tas e juntos, que a juventude em cumprimento de medidas socioeducativas no muni-
cípio de Vitória é, muitas vezes, àquela que não comparece em espaços garantidos
por direito, a saber, escolas, unidades de saúde, espaços culturais presentes na cidade,
dentre outros que, na lógica pela qual a cidade de Vitória é nutrida, se localizam em
lugares proibidos, inimigos e que oferecem risco de morte. Entretanto, dentre as idas
e vindas e como sujeitos sociais que são, esta juventude segue reagindo e existindo.
Pautadas em um pensamento e uma prática críticos, o fazer da psicologia con-
siste em não reduzir as experiências e as relações com estes adolescentes e jovens,
mas em desvelar alternativas concretas para lidarmos com as condições cotidianas,
haja vista que o cotidiano está no centro das histórias e não fora delas. Desta forma,
para nós se faz necessário o diário compartilhar com a juventude acompanhada, com
seus familiares e com suas formas de existência e resistência expressas nas solturas
de pipa, no funk e nas mais variadas manifestações de uma vida digna, seja indivi-
dualmente ou em grupo, uma vez que em todas essas possibilidades vislumbramos
coletivizar afecções.
Cabe ressaltar que ao lidarmos diretamente com o território e com o que ele nos
apresenta frente às medidas socioeducativas, não deixamos escondida e negligenciada
a principal causa dos atos infracionais se perpetuarem na vida desses meninos e
meninas, a saber, a perversidade da ausência proposital do estado, o racismo forjado
nas instituições, nos discursos, nas práticas e no dia a dia.
126

Seja em momentos em grupo ou individuais, em visita domiciliar ou em ati-


vidades nos parques da cidade, dentro do Creas ou fora dele, o nosso compromisso
ético e político enquanto psicólogos é o de evidenciar e tentar destruir esse lugar do
perigo que se cola aos corpos desses adolescentes e jovens e que limita sua existência
ao ato infracional, desmantelando-os, rasurando suas histórias e deslegitimando seu
funcionamento, manifesto em recusas de emprego, batidas policiais, olhares tortos
na rua e práticas cotidianas que reiteram a política de morte. Nosso compromisso
com a medida socioeducativa em meio aberto é justamente afastar dela a ideia de
punição, castigo e sina, fazendo com que adolescentes e jovens consigam romper
com as práticas infracionais, ainda que estas façam parte de um contexto maior que
sua própria existência.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 127

REFERÊNCIAS
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p. C2, 2007.

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ção) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito
Santo, Vitória.
NEOLIBERALISMO E
NECROPOLÍTICA: um necessário poder
de morte para um sistema que mata
Rafael Coelho Rodrigues

Foucault inicia seu curso do ano de 1978, denominado Segurança, território,


população, com a definição do que no curso do ano anterior chamou de biopoder,
ou seja, um conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana,
“constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa polí-
tica, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT, 2008,
p. 3). No curso do ano de 1976, Em defesa da Sociedade, Foucault dizia que um
dos fenômenos fundamentais do século XIX foi a assunção da vida pelo poder,
“uma tomada de poder do homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do
biológico” (FOUCAULT, 2005, p. 286). Foucault percebe que há um deslocamento
nas estratégias de poder, principalmente transformações do direito público, que vai
complementando o direito de soberania que, segundo ele, seria um direito de fazer
morrer e deixar viver, no qual “o efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce
a partir do momento em que o soberano pode matar” (FOUCAULT, 2005, p. 286).
Tal deslocamento, vai penetrando, perpassando e transformando o direito de sobe-
rania, se constituindo como um “poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver
e de ‘deixar’ morrer”.
Entre os séculos XVII e XVIII, Foucault observa o início de uma problematiza-
ção no campo do pensamento político, com o surgimento de mecanismos, técnicas,
tecnologias de poder centradas no corpo individual. Uma série de procedimentos pelos
quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais, produzindo um
campo de visibilidade. Técnicas sobre corpos objetivando o aumento da força útil,
técnicas de racionalização de um poder que visa se exercer de “modo menos oneroso
possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de
escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia
disciplinar do trabalho” (FOUCAULT, 2005, p. 288). Uma tecnologia de poder que
tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode
e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados,
eventualmente, punidos.
Porém, durante a segunda metade do século XVIII, crê que aparece uma tecno-
logia de poder de outra ordem, que integra a tecnologia do poder disciplinar, a modi-
ficando parcialmente, mas não a suprime, pois, é de outro nível, outra escala, tendo
como superfície de suporte instrumentos totalmente diferentes. Essa nova tecnologia
de poder, não se dirige ao corpo, mas a espécie, essa massa global, afetada por pro-
cessos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento,
a morte, a produção, a doença etc. Foucault sinaliza que “[...] depois de uma primeira
130

tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização,


temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante, mas
que é massificante [...]” (FOUCAULT, 2005, p. 289). Uma tecnologia de poder que
age sobre o corpo, enquanto outra, age sobre a espécie. Depois de uma anátomo
política do corpo humano, uma biopolítica da espécie humana.
Essa nova tecnologia de poder, essa biopolítica, trata de processos como a
proporção dos nascimentos e dos óbitos, da taxa de reprodução. São fenômenos
como esses de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, na metade do século
XVIII, constituem os primeiros objetos de saber e alvos de controle biopolítico. Essa
biopolítica ao compreender as doenças como fenômenos de população, introduz a
medicina como função de higiene pública, com organismos de coordenação de dos
tratamentos médicos, adquirindo aspectos de campanha de aprendizado da higiene e
de medicalização da população (FOUCAULT, 2005). Outro campo de intervenção da
biopolítica são os fenômenos dos quais uns são universais e outros acidentais, como
os acidentes, as anomalias. Em relação a esses fenômenos essa biopolítica introduz
além de instituições de assistências, que já existiam há muito tempo, mecanismos
muito mais sutis, economicamente mais racionais, segundo ele, como os seguros, a
poupança individual e coletiva, a seguridade.
Outro domínio de preocupação da biopolítica seria a cidade e os problemas que
lhe concernem. Mas, enfatiza Foucault, não é a sociedade com que se lida com essa
nova tecnologia de poder que denomina biopolítica, mas sim com a população. A
população como problema político, como problema biológico, e como problema de
poder. A biopolítica se dirige aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa popu-
lação considerada em sua duração. Essa biopolítica implanta mecanismos com funções
muito distintas daquelas oriundas dos mecanismos disciplinares. São mecanismos que
tratam de previsões, estimativas estatísticas, de medições globais, buscando intervir
não diretamente sobre os indivíduos, mas intervir no nível daquilo que são as determi-
nações desses fenômenos no que eles têm de global. Baixar a mortalidade, aumentar
a longevidade, estimular a natalidade, estabelecendo mecanismos reguladores que,
nessa população global com seu campo aleatório, “pode fixar um equilíbrio, manter
uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em
suma, de instalar mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente
a uma população de seres vivos [...]” (FOUCAULT, 2005, p. 293-294).
Um domínio importante sinalizado por Foucault no qual atuam em níveis dis-
tintos a tecnologia disciplinar e a tecnologia de poder da regulamentação é o eixo
da sexualidade49. A sexualidade enquanto comportamento corporal, dependendo de
um controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância permanente e, por
outro lado, a sexualidade também “se insere e adquire efeitos, por seus efeitos pro-
criadores, em processos biológicos amplos que concernem a população. A sexualidade
exatamente nessa encruzilhada do corpo e da população. Portanto, ela depende da
disciplina, mas depende também da regulamentação” (FOUCAULT, 2005, p. 300).

49 Para melhor compreensão sobre o assunto, consultar o livro: A história da sexualidade I – a vontade de
saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 131

A importância que a medicina da sexualidade obteve no século XIX, observa


Foucault, pode ter seu princípio nessa posição privilegiada da sexualidade entre orga-
nismo e população, entre corpo e fenômenos globais. A medicina é um saber-poder
que incide ao mesmo tempo sobre o organismo e sobre os processos biológicos, tendo
efeitos tanto disciplinares quanto regulamentadores ou previdenciários50.
O elemento que circula entre a disciplina e a regulamentação, que se aplica, da
mesma forma, ao corpo e à população, que permite a um só tempo controlar a ordem
disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica
é, conclui Foucault, a norma. A esse fenômeno, Foucault denomina de sociedade de
normalização. Uma sociedade na qual se cruzam, conforme uma articulação ortogonal,
a norma da disciplina e a norma da regulamentação.

Dizer que o poder no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que
o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir
toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população,
mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecno-
logias de regulamentação, de outra (FOUCAULT, 2005, p. 302).

Diferente da tecnologia de poder disciplinar, a partir da qual se buscava um


treinamento individual realizado por um trabalho sobre o corpo, considerando o
indivíduo em um nível do detalhe, mas, passa a se tratar de, mediante mecanismos
globais de equilíbrio, de regularidade, de considerar os processos vitais, biológicos
da espécie humana, de assegurar sobre eles mecanismos de regulamentação. Foucault
demonstra que aquém do poder absoluto que é o poder de soberania, que consiste
em poder fazer morrer, “essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia de poder
sobre a ‘população’ enquanto tal [...], um poder contínuo, que é o poder de ‘fazer
viver’” (FOUCAULT, 2005, p. 294). A soberania fazia morrer e deixava viver. Esse
poder que denomina como de regulamentação, ao contrário, consiste em “fazer viver
e deixar morrer”.
Essa tecnologia de poder de regulamentação ou previdenciário, essa biopolítica,
é cada vez menos, sinaliza Foucault, o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito
de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no ‘como’ da vida, “a partir do
momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar
a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por
diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade
do poder” (FOUCAULT, 2005, p. 295-296).
Essa tecnologia de poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, esse
biopoder tem como paradoxos nos seus próprios limites de exercício. Ou seja, como
essa tecnologia de poder que desde o século XIX tem como objeto e objetivo a vida,
em aumentar sua duração, vai exercer o direito de matar, como “exercer a função da
morte, num sistema político centrado no biopoder?” (FOUCAULT, 2005, p. 304).

50 A primeira vez que Foucault falou publicamente sobre a biopolítica foi na palestra realizada no Rio de Janeiro,
até então, estado da Guanabara, em 1974, por ocasião. O nascimento da medicina social. In: MACHADO,
Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.
132

Foucault defende que nisso, nessa questão intervém o racismo. O racismo como
mecanismo de Estado, diferente do racismo que existia antes, mecanismo funda-
mental do poder, como exercido nos Estados modernos. Esse racismo é o meio de
introduzir um corte, entre o que “deve viver e o que deve morrer”. É o que estabelece
uma cesura do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo
precisamente um domínio biológico. A raça, o racismo, é a condição de aceitabili-
dade de tirar a vida numa sociedade de normalização. “A função assassina do estado
só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo
racismo (Foucault, 2005, p. 306).
Foucault compreende que a partir direito de matar possibilitado pelo racismo, é
possível perceber como se estabeleceu um vínculo entre a teoria biológica do século
XIX e o discurso do poder, a ponto de possibilitar pensar as relações de colonização,
a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da doença
mental, a história das sociedades com suas diferentes classes. Esse racismo que se
desenvolve nessas sociedades modernas que funcionam baseadas no modo do bio-
poder, irrompendo pontos privilegiados em que o direito à morte é requerido. Esse
“racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio
colonizador. Quando for preciso matar pessoas, matar populações, matar civilizações,
como se poderá fazê-lo, se se funcionar no modo do biopoder? Através dos temas do
evolucionismo, mediante um racismo” (FOUCAULT, 2005, p. 307).
É nessa direção que se faz possível travar uma guerra contra a sua pró-
pria população.

Necropolítica

Mbembe (2018) pensa na soberania como o que reside, em grande medida, no


poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, sendo exata-
mente os limites da soberania matar ou deixar viver. “Ser soberano é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder”
(MBEMBE, 2018, p. 5). Este autor nos pergunta sob quais condições práticas se
exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte, quem é o sujeito dessa lei e
se a noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em
que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do
assassinato do inimigo seu objeto primeiro e absoluto. Considera que a guerra é um
meio de alcançar a soberania tanto quanto uma forma de exercer o direito de matar.
E considerando a guerra uma forma de política, indaga qual o lugar dado à vida, à
morte e ao corpo humano e como estes estão inscritos na ordem do poder.
Em seu ensaio, Mbembe explora a relação do biopoder com as noções de
soberania e de estado de exceção. O autor se preocupa com formas de soberania
“cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas uma instrumentalização
generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e
populações” (MBEMBE, 2018, p. 10-11). Este modo de funcionar não é, segundo
ele, uma espécie de ruptura com a modernidade, mas constituem seu “nomos do
espaço político em que ainda vivemos”.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 133

A soberania como direito de matar é possível através de uma base normativa


calcadas no estado de exceção e no que o autor denomina relações de inimizade. Em
tais circunstâncias, o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente
se refere e apela à emergência e a uma noção ficcional de inimigo. Mbembe nos
lembra que essa relação entre política e morte que só pode funcionar em um estado
de emergência, em Foucault, se dá a partir do funcionamento do racismo. Outra
consideração de Mbembe, é que é inteiramente justificável que o racismo tenha um
lugar proeminente na racionalidade própria do biopoder, afinal, a raça foi a sombra
sempre presente no pensamento e nas políticas do Ocidente, especialmente, quando se
trata de imaginar a desumanidade a ser exercida sobre eles (MBEMBE, 2018, p. 18).
Mbembe cita Foucault quando este afirma que o direito soberano de matar e
os mecanismos de biopoder estão inscritos na forma em que funcionam todos os
Estados modernos, sendo o Estado nazista o mais completo exemplo de um Estado
exercendo o direito de matar. Assim, continua citando Foucault, esse Estado tornou
a gestão, a proteção e o cultivo da vida coextensivos ao direito soberano de matar,
organizando e expondo seus próprios cidadãos à guerra.
Porém, Mbembe afirma que qualquer relato histórico do surgimento do ter-
ror moderno precisa tratar da escravidão que, para ele, pode ser considerada “uma
das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a
própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura
emblemática e paradoxal do Estado de exceção” (Mbembe, 2018, p. 27).
Para Mbembe, as relações entre a vida e a morte, a política de crueldade e os
símbolos do abuso tendem a se embaralhar no sistema de plantation, e menciona
ser interessante notas que é nas colônias e sob o regime do apartheid que surge uma
forma peculiar de terror.

A característica mais original dessa formação de terror é a concatenação entre o


biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio. A raça é, mais uma vez, crucial
para esse encadeamento. [...] A conquista colonial revelou um potencial de vio-
lência até então desconhecido. O que se testemunha na segunda guerra mundial
é a expansão dos métodos anteriormente reservados aos ‘selvagens’ aos povos
‘civilizados’ da Europa” (MBEMBE, 2018, p. 31-32).

Ao distinguir regiões do mundo disponíveis para a apropriação colonial e colocar


a Europa em outro lado, foi produzida a separação entre guerra entre Estados e o
que ocorria nas colônias, vistas como regiões como não sendo organizadas de forma
estatal, se constituindo como zonas em que guerra e desordem, “figuras internas e
externas da política, ficam lado a lado ou se alternam. Mbembe aponta que as colô-
nias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial
podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente
opera a serviço da ‘civilização’” (MBEMBE, 2018, p. 35).
Por uma série de razões enumeradas por Mbembe, o direito soberano de matar
não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Sublinha que “o terror colonial se
entrelaça constantemente com um imaginário colonialista, caracterizado por terras
134

selvagens, morte e ficções que criam o efeito de verdade” (MBEMBE, 2018, p. 36).
Nesta direção, a distinção entre guerra e paz não é pertinente. Na colônia, a violência
constitui a forma original do direito, e a exceção proporciona a estrutura da soberania,
na qual, a soberania significa ocupação, relegando ao “colonizado a uma terceira
zona, entre o estatuto de sujeito e objeto” (MBEMBE, 2018, p. 39).
A soberania, segundo Mbembe, é a capacidade de definir quem importa e quem
não importa, quem é “descartável”, e quem não é. Para pensar como se dá essa
ocupação colonial contemporânea, Mbembe pensa a partir do caso palestino, onde,
segundo ele, ocorre um encadeamento de vários poderes: disciplinar, biopolítico e
necropolítico (MBEMBE, 2018, p. 48).
Mbembe conclui seu texto propondo que as formas contemporâneas que subju-
gam a vida ao poder de morte (necropolítica), reconfiguram profundamente as relações
entre resistência, sacrífico e terror. Propõe a noção de necropolítica e necropoder para
dar conta das várias maneiras pelas quais hoje se provoca a destruição máxima de
pessoas e “se cria ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social,
nas quais vastas populações são subjugadas a condições de vida que lhes conferem
o estatuto de ‘mortos-vivos’” (MBEMBE, 2018, p. 71).

Biopolítica e neoliberalismo

Foucault, em seu curso Nascimento da Biopolítica, que segue os cursos


precedentes, Em defesa da sociedade e Segurança, território e população, inicia
reconstruindo o que denomina “arte de governar”, a fim de realizar um estudo
da racionalização da prática governamental no exercício da soberania política
(FOUCAULT, 2008, p. 4).
Ao situar seu estudo em meados do século XVIII, Foucault observa uma trans-
formação importante que, para ele, vai caracterizar de modo geral o que chama
de razão governamental moderna. Esta transformação é sinalizada por ele como
sendo a instauração de um princípio de limitação da arte de governar que já não
lhe era extrínseco, como lhe era o direito no século XVII. Essa limitação passa a
ser intrínseca a racionalidade governamental, se constituindo como uma espécie de
regulação interna. Esse novo tipo de cálculo realizado por essa racionalidade, cál-
culo que busca sempre não governar demais, Foucault demonstra ser o liberalismo
(FOUCAULT, 2008, p. 28).
Ao buscar realizar um estudo sobre a biopolítica, Foucault identifica um núcleo
central de problemas relacionados a população, sendo a partir daí que a biopolítica
pode se formar. Porém, ele considera que a análise da biopolítica só pode se reali-
zada quando se compreende o regime geral dessa razão governamental que passa a
se constituir como uma questão de verdade, de verdade econômica no interior desta
razão governamental que é o liberalismo.
A noção de liberdade está no cerne da prática de governo do liberalismo. Fou-
cault ressalta, porém, que não cabe um estudo para saber se no liberalismo houve
mais ou menos liberdade do que nos regimes anteriores, como se isso que está
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 135

chamando de liberdade fosse uma espécie de universal. Foucault enfatiza que esta
prática governamental não se contentar em respeitar essa ou aquela liberdade, mas
ela é consumidora de liberdade, só conseguindo funcionar se existir efetivamente
certos números de liberdades, como a de mercado, do vendedor e do comprador, do
direito de propriedade, eventualmente, de liberdade de expressão, etc. Ao consumir
liberdade, essa nova razão governamental é obrigada a produzi-la. E organizá-la.
Trata de uma arte de governo que vai ser “gestora da liberdade”. Contudo, ao pro-
duzir e gerir essa liberdade também faz com que seja necessário, por outro lado,
estabelecer “limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.”
(FOUCAULT, 2008, p. 87).
Nesse jogo de gestão da liberdade, produção e, por ventura, limitação, própria
a razão governamental do liberalismo, Foucault identifica uma quantidade de inter-
venções governamentais necessárias. A liberdade, conclui Foucault, nesse regime de
governo não é um dado, é algo que precisa ser constantemente produzida, com todas
problemáticas de custo que esse jogo de produção de liberdade impõe a um regime
que busca governa sempre menos. Foucault, partindo desta questão, indaga: qual
será “o princípio de cálculo desse custo de fabricação da liberdade?” (FOUCAULT,
2008, p. 89). O princípio de cálculo é, segundo ele, o que se chama de segurança:

Ou seja, o liberalismo, a arte liberal de governar vai se ver obrigada a determinar


exatamente em que medida e até que ponto o interesse individual, os diferentes
interesses – individuais no que têm de divergentes uns dos outros, eventualmente,
oposto – não constituirão um perigo para o interesse de todos. Problema de segu-
rança: proteger o interesse coletivo contra os interesses individuais. Inversamente,
a mesma coisa [...]. A liberdade e a segurança, o jogo liberdade e segurança –
é isto que está no âmago dessa nova razão governamental [...] (FOUCAULT,
2008, p. 89).

Mas Foucault vai além em sua análise sobre essa nova razão governamental.
O liberalismo se insere em mecanismos que terão, a cada instante, que arbitrar a
liberdade e a segurança. Essa análise será realizada em torno da noção de perigo.
O liberalismo, segundo ele, é uma arte de governar que busca constantemente
manipular interesses, por isso, precisa ser o gestor dos perigos e dos mecanismos
de segurança/liberdade, de modo que os indivíduos fiquem o menos exposto pos-
sível aos perigos. A ponto de Foucault dizer que o lema do liberalismo é “viver
perigosamente” (FOUCAULT, 2008, p. 90).
É nessa direção que Foucault percebe que os indivíduos são condicionados a
experimentar sua situação, sua vida, seu presente e futuro como portadores de perigo.
Uma educação para o perigo. Uma cultura do perigo. Diz ele: “por toda a parte vocês
veem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a condição, o correlato
psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem cultura do
perigo” (FOUCAULT, 2008, p. 91).
Esses procedimentos de gestão dos interesses e do jogo segurança/liber-
dade produzem uma série de consequências para essa arte governamental que é o
136

liberalismo. A conjunção entre tecnologias de poder disciplinar e o liberalismo com


mais controle e intervenção para garantir as liberdades é uma delas. Outra, são as
intervenções econômicas do tipo Keynes, mais intervencionistas, necessárias na
primeira metade do século XX, contribuem para o que Foucault identifica como
crises do liberalismo. No entanto, essas crises do liberalismo, segundo ele, podem
ser compreendidas como crises do próprio capitalismo, sendo, para ele, crises do
dispositivo de governamentalidades.
A partir dessas crises do liberalismo, Foucault detalha o movimento que vai se
constituindo com uma espécie de fobia do Estado, nesse modo de governamentali-
dade liberal, que busca fazer frente aos problemas vividos por essa governamentali-
dade. Assim, Foucault identifica no que se convencionou chamar de neoliberalismo
alemão um importante movimento. Pois, pós segunda guerra mundial, em 1848,
devido as exigências colocadas a reestruturação do Estado Alemão destruído na
guerra, é a imposição de uma liberdade econômica que vai permitir uma soberania
política. É na Alemanha pós segunda guerra que veremos muito nitidamente a impo-
sição da ideia de uma fundação legitimadora do Estado sobre o exercício garantido
de uma liberdade econômica. A economia produz legitimidade para o Estado, que
é seu avalista. Para Foucault, a economia é criadora do direito público. Na Alema-
nha se foi da economia para o Estado. A liberdade econômica produz um consenso
político. “A adesão a esse sistema liberal produz como subproduto, além da legitimi-
dade jurídica, o consenso, é a produção de bem-estar por esse crescimento que vai,
simetricamente à genealogia ‘instituição econômica – Estado’” [...] (FOUCAULT,
2008, p. 115). Ou seja, a economia produz sinais políticos que permite funcionar
as estruturas, produz mecanismos e justificações de poder. Sublinha, Foucault: “a
história tinha dito não ao Estado alemão. Agora é a economia que vai lhe possibilitar
afirmar-se” (FOUCAULT, 2008, p. 116).
Algo fundamental de ser percebido é que a partir da refundação do Estado ale-
mão, a partir de sua economia e da liberdade econômica que o sustentou, ocorre um
movimento de legitimação do Estado pela economia. Foucault aponta que o objetivo
primeiro, histórico e politicamente, do neoliberalismo é como tornar o Estado acei-
tável e limita-lo ao mesmo tempo (FOUCAULT, 2008, p. 140). Uma diferenciação
necessária ocorre em relação ao liberalismo, pois essa doutrina de governo praticava
uma liberdade de mercado definida pelo Estado e mantida de certo modo sob vigi-
lância estatal. Já os ordoliberais alemães, invertem completamente essa fórmula, e
adotam a liberdade de mercado como princípio organizador e regulador do Estado,
um Estado sob vigilância do mercado e não o contrário.
Para Foucault (2008), o que é decisivo no neoliberalismo, tanto em sua versão
alemã quanto em sua forma estadunidense, denominada por ele, como anarcolibe-
ralismo, é a pretensão do mercado servir de princípio, de forma e de modelo para o
funcionamento do Estado, em um processo de formalização para o Estado e para a
sociedade. Mas para esse processo no qual a economia de mercado busca enformar o
Estado e reformar a sociedade ocorreram alguns deslocamentos fundamentais entre
o liberalismo e esse ordoliberalismo. São eles, primeiro: o entendimento que não é a
troca o modelo fundamental de uma economia de mercado, mas sim, a concorrência.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 137

E essa concorrência não pode ser simplesmente algo inerente a sociedade, por conta
de uma tendência a construção de monopólios. Assim, não pode haver um laisse-
z-faire, pois a arte de governar neoliberal entende que precisa produzir os meios
para que esta concorrência ocorra, uma governamentalidade ativa, uma espécie de
justaposição total dos mecanismos de mercado indexados à concorrência e da política
governamental (FOUCAULT, 2008, p. 165). Se trata não mais de um laissez-faire,
mas de uma intervenção permanente.
Ou seja, Foucault enfatiza que se torna necessário governar para o mercado,
em vez de governar por causa do mercado. A economia de mercado, neste sentido,
não vai subtrair algo do governo, ao contrário, ela vai constituir o indexador geral
para todas as ações governamentais. Foucault percebe que no ordoliberalismo ale-
mão o objeto dessa ação governamental que tem o mercado como indexador é o
ambiente social. Essa sociedade regulada com base no mercado é submetida à dinâ-
mica concorrencial, se constituindo como uma sociedade empresarial, pautada por
uma espécie de ética social da empresa, a partir de uma racionalidade econômica.
Uma “política da vida” em que o indivíduo se moldasse a forma empresa. Esse é,
para Foucault, o escopo da política neoliberal. “Trata-se de fazer do mercado, da
concorrência e, por conseguinte, da empresa o que poderíamos chamar de poder
enformador da sociedade” (FOUCAULT, 2008, p. 203).
Uma sociedade indexada na multiplicidade e na diferenciação das empresas.
Essa arte de governar necessidade, para isso, de modificações profundas no sistema
de lei e na própria instituição jurídica, pois uma sociedade indexada no modelo
empresa é uma sociedade na qual há a multiplicação das superfícies de atrito entre
cada uma destas empresas, necessitando cada vez mais de uma arbitragem jurídica.
“Sociedade empresarial e sociedade jurídica, sociedade indexada à empresa e socie-
dade enquadrada por uma multiplicidade de instituições jurídicas são as duas faces
de um mesmo fenômeno” (FOUCAULT, 2008, p. 204).
Foucault percebe que a instituição e as regras do direito têm relações de condi-
cionamento recíprocos com a economia e o conjunto das correções e das inovações
institucionais que permitirão instaurar uma ordem social economicamente regulada
com base na economia de mercado é o que conhecemos como Estado de Direito. A
partir disso, Foucault vai estudar o neoliberalismo estadunidense e o que denomina
de governamentalidade neoliberal.
Esse neoliberalismo estadunidense é toda uma maneira de ser e de pensar. Uma
relação entre governados e governantes. Um desdobramento para toda a sociedade
do modelo empresa, um modelo de relações sociais, um modelo de existência,
uma forma de relação do indivíduo consigo mesmo, com o tempo. A construção de
valores morais e culturais, pontos de ancoragem concretos em torno do indivíduo.
Uma política da vida.
Uma característica importante desta governamentalidade neoliberal é a centra-
lidade da utilização das análises da economia de mercado para decifrar as relações
não-mercantis, os fenômenos sociais, assim como, o funcionamento e modo de ope-
ração do governo. A radicalização da generalização dessa racionalidade para toda a
sociedade, se constituindo como princípio de inteligibilidade, princípio de decifração
138

das relações sociais e dos comportamentos individuais. Ao mesmo tempo, trata-se


de avaliar toda ação governamental em termos de eficácia, em termos de oferta e
procura, ou seja, análises mercantis. Não mais um laissez-faire do liberalismo, mas,
pelo contrário, a partir da análise mercantil das ações governamentais, o mercado
já não é um princípio de autolimitação do governo, mas um princípio virado contra
ele, uma espécie de tribunal econômico que pretende aferir a ação do governo em
termos estritamente de economia e de mercado.
Incursão da análise econômica em todo o campo social, tido como não-econô-
mico. Para os teóricos neoliberais, a economia é a ciência do comportamento humano
como uma relação entre fins e meios raros que têm usos mutuamente excludentes.
Ou seja, a economia como análise do comportamento humano e da racionalidade
interna deste comportamento, buscando compreender qual cálculo fez um indivíduo
que o fez decidir por um fim e não outro possível. Uma análise de uma programação
estratégica da atividade dos indivíduos. Por isso, Safatle menciona que economia e
psicologia são duas faces de uma mesma moeda (SAFATLE, 2020).
Foucault cita vários teóricos deste neoliberalismo que pensam que o trabalho
possibilita uma renda para o trabalhador. E essa renda é o produto ou o rendimento de
um capital. Por capital, entendem tudo o que pode ser, de uma maneira ou de outra,
uma fonte de renda futura. Por conseguinte, a partir daí, se se admite que o salário é
uma renda, o salário é, portanto, a renda de um capital. Ora, qual é o capital de que o
salário é a renda? Pois bem, é o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que
tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário [...]. O trabalho comporta
uma capital, isto é, uma aptidão, uma competência [...] (FOUCAULT, 2008, p. 308).
A aptidão a trabalhar, a competência, o poder fazer alguma coisa, tudo isso não
pode ser separado de quem é competente e pode fazer essa coisa. Competência como
máquina que vai produzir fluxos de renda. O próprio trabalhador aparece como uma
empresa para si mesmo, uma espécie de homo oeconomicus, como empresário de si
mesmo, no qual ele é seu próprio capital. Esse capital é denominado como capital
humano, na medida em que essa competência-máquina de que ele é a renda não pode
ser dissociada do indivíduo que é seu portador. Esse capital humano é composto,
assim, de elementos inatos e adquiridos. Daí a perspectiva de perceber a educação
como investimento em produzir determinadas competências, entendidas como cons-
titutivas de capital humano.
Nessa perspectiva, esse homo oeconomicus, esse sujeito de interesse é o que per-
mite a governamentalidade neoliberal. As técnicas de produção e controle das variáveis
do meio social e ambiental, as tecnologias comportamentais estadunidenses começam,
nesse período, ao agenciar interesses, permitir toda uma governamentalidade.

Neoliberalismo e necropolítica

Se alongamos a análise em torno do estudo sobre o liberalismo e o neolibe-


ralismo realizado por Foucault, foi para que pudéssemos compreender a relação
existente, para esse autor, entre o que ele entendia por biopolítica e essas novas artes
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 139

governamentais. Mas da década de oitenta do século XX, quando ocorre a morte de


Foucault e os tempos atuais, há inúmeros deslocamentos nesta arte de governo deno-
minada neoliberalismo. Um destes deslocamentos é a governamentalidade neoliberal
realizada a partir da ditadura militar chilena, e o que essa experimentação permite
como novas tecnologias de governo, principalmente em países que foram colonizados.
Talvez seja nesta direção que consigamos perceber uma das aproximações possíveis
entre essa espécie de neoliberalismo somente possível a partir de uma ditadura ou em
países com herança colonial, e o que Mbembe definiu como necropoder/necropolítica.
Para isso, buscaremos compreender a seguir quais são as características deste
neoliberalismo autoritário e como ele foi sendo possível nesses países que foram
colonializados (embora algumas de suas características autoritárias possam ser vistas,
cada vez mais também em outros países). Buscaremos compreender como, a partir
disso, o neoliberalismo exerce uma política que faz com que uma parcela cada vez
maior de sua própria população seja exposta a um poder que promove a morte.

É guerra!

Estas leituras do atual momento do capitalismo e da racionalidade neoliberal


que a implementa, embora divergentes em vários aspectos, parecem se aproximar
no que tange a violência do Estado, necessária para a efetivação das políticas eco-
nômicas que vem aumentando consideravelmente a desigualdade social, racial e de
gênero. Tudo leva a crer que esta política seja uma continuação da guerra por outros
meios, sendo que a paz que ela parece proporcionar “libera tecnicamente o processo
material ilimitado da guerra total” (LAZZARATO; ALLIEZ, 2021; PELBART, 2019).

Estamos em guerra. Guerra contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres,


contra os indígenas, contra os craqueiros, contra a esquerda, contra a cultura, contra
a informação, contra o Brasil. A guerra é econômica, política, jurídica, militar,
midiática. É uma guerra aberta, embora denegada; é uma guerra total, embora
camuflada; é uma guerra sem trégua e sem regra, ilimitada, embora queiram nos
fazer acreditar que tudo está sob a mais estrita e pacífica normalidade institucional,
social, jurídica, econômica. Ou seja, ao lado da escalada generalizada da guerra
total, uma operação que a abafa em escala nacional. Essa suposta normalização
em curso, essa denegação, essa pacificação pela violência – eis o modo pelo
qual um novo regime esquizofrênico parece querer instaurar sua lógica, em que
guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e
governabilidade, neoliberalismo e guerra civil. Nada disso é possível sem uma
corrosão da linguagem, sem uma perversão da enunciação, sem uma sistemática
inversão do valor das palavras e do sentido do próprio discurso, cujo descrédito
é gritante (PELBART, 2017).

Alliez e Lazarato (2021) contestam a separação que Foucault realiza em relação


ao conceito de poder e o de guerra, e sinalizam que o “capitalismo e o liberalismo
carregam as guerras em seu seio como as nuvens carregam a tempestade” (ALLIEZ;
LAZZARATO, p. 17, 2021). Trata-se, para esses autores, de uma guerra contra a
140

própria população, uma guerra de classes, de raças, de sexos, de subjetividades. Essa


guerra mantém e aprofunda as clivagens que atravessam nossas sociedades. Modelo
do colonialismo que se dá hoje na metrópole, no que Pelbart denomina uma “espécie
de endocolonialismo” (PELBART, p. 73, 2019).
Essa guerra permanente é contrainsurrecional e, não visa, logicamente, a segu-
rança ou a paz, mas a manutenção de um estado de insegurança generalizado, de
medo difuso, que justifique precisamente a mobilização incessante, securitária ou
salvacionista, desde que ela produza ao mesmo tempo uma espécie de pacificação.
Não seria mais uma guerra visando objetivos políticos do Estado, mas do capital.
Para Mbembe (2017), o Estado securitário realiza uma guerra civil silenciosa. Esse
Estado securitário necessita fomentar constantemente um estado de insegurança
que lhe possibilite existir.
Deleuze e Guattari (2008) também perceberam que a administração de uma
grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de peque-
nos medos, “toda uma insegurança molecular permanente, a tal ponto que a fórmula
dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por
uma micropolítica da insegurança” (DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 94).
As múltiplas guerras em curso hoje contra as populações atestam que o que se
governa são as divisões no seio da população, a distribuição diferencial da precarie-
dade – é isso a biopolítica contrainsurrecional. Sua matriz continua sendo a guerra
colonial, que nunca foi entre Estados, mas sim “dentro e contra a população, onde as
distinções entre paz e guerra, entre combatentes e não combatentes, entre o econô-
mico, o político e o militar nunca tiveram lugar”. Como mostrou Mbembe (2018), a
escravidão colonial foi o protótipo dessa necropolítica. “A colônia representa o lugar
em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder a margem
da lei e onde a paz costuma ter o rosto de uma ‘guerra sem fim’” (MBEMBE, 2018,
p. 32). Mbembe identifica o mundo colonial como uma espécie de cria da democra-
cia, não se constituindo como uma antítese da ordem democrática, mas sendo seu
duplo, uma face noturna. Para ele, não existe democracia sem seu duplo, sua colônia,
pouco importando o nome dado ou sua estrutura. Ela não é exterior a democracia.
Não está necessariamente situada extramuros. A democracia carrega a colônia em seu
seio, assim como a colônia carrega a democracia, não raro sob a forma de máscara”
(MBEMBE, 2020, p. 53).
Para Alliez e Lazzarato (2021), há uma relação entre dispositivos de segurança e
a democracia que, segundo Agamben (2004), pode ser pensado partir do conceito de
estado de exceção, sendo este, um dispositivo da máquina de guerra do capital, para
Alliez e Lazarato. Nesta espécie de democracia securitária (AUGUSTO; WLLKE,
2019), há a necessidade permanente da construção de inimigos para que o Estado
utilize seu poder de matar, a face mais autoritária de um Estado que ao diminuir as
políticas no âmbito da assistência à população, precisa se fortalecer para combater
esta própria população, nesta espécie de guerra permanente que se tornou a política
dessas democracias securitárias.
Mbembe denomina o momento quando o assassinato deixa de ser uma exceção,
a transposição do estado de guerra para dentro de um estado civil, acarretando uma
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 141

normalização das situações extremas. Ele denomina como brutalismo essa forma
de naturalização da guerra civil. Pode-se reconhecer o brutalismo pela utilização,
na esfera civil, de técnicas próprias ao campo de batalha (MBEMBE, 2021, p. 47),
quando o Estado passa a cometer crimes comuns contra a população civil.
Segundo ele, a relutância em matar e a interdição do assassinato vêm sendo
corroídas. Os instintos outrora censurados vêm sendo liberados. As condutas de guerra
são valorizadas enquanto tais e migram para o campo civil. A desumanização se
torna uma prática habitual, a descarga das pulsões violentas passa a ser legitimada e
encorajada, reina a busca pelo dessemelhante e proliferam as técnicas de exculpação.
“A vida civil é regulada por unidades especiais. A limpeza se converte em programa.
Livrar-se de indivíduos sem que ninguém exija explicações se torna a norma, assim
como liquidar os feridos e matar os prisioneiros” (MBEMBE, 2021, p. 48).
Podemos perceber nitidamente que entre os contingentes racializados das socie-
dades pós-industriais, neste atual momento das políticas neoliberais, as escolhas de
mobilidade têm sido frequentemente limitadas ou à prisão domiciliar no gueto ou ao
encarceramento. No Brasil, como veremos a seguir, esse cenário trágico se amplia.
“Hoje em dia, a instituição carcerária desempenha, nos mesmos termos que a insti-
tuição fronteiriça, um papel preponderante na gestão global dos corpos virulentos e
‘em excesso’” (MBEMBE, 2021, p. 52). Tal diagnóstico vai ao encontro das análises
de Wacquant em relação ao que denominou Estado Penal (WACQUANT, 2001).
Visto a partir dos corpos racializados, aquilo que é chamado neoliberalismo é,
na realidade, para Mbembe, um gigantesco dispositivo de “bombeamento e carboni-
zação”. O brutalismo não opera sem uma economia política dos corpos. “É como uma
imensa fogueira. Os corpos racializados e estigmatizados são ao mesmo tempo sua
lenha e seu carvão, suas matérias-primas” (MBEMBE, 2021, p. 53). E no centro desse
dispositivo está a prisão. “Para a sua reprodução, ela precisa de todos os outros mini
dispositivos, a polícia, a prefeitura, a comarca, as finanças, os impostos, as multas,
em suma, incontáveis cadeias de punção” (MBEMBE, 2021, p. 54).
Essas formas contemporâneas do brutalismo, sinaliza ele, não se caracterizam
apenas pelo desmantelamento dos amortecedores sociais e da cobertura dos riscos.
Tais mutações do capitalismo contemporâneo não se referem apenas também às
desregulamentações das transações financeiras, à sujeição dos serviços públicos às
condições de rentabilidade do setor privado, à redução dos impostos para os ricos
ou à busca das boas graças aos provedores de liquidez, “ou, de modo mais geral,
pela tentativa de fazer o mercado substituir a democracia. Elas também podem ser
reconhecidas pela obsessão em abolir a política, uma das marcas distintivas do que
veio a ser conhecido como ‘liberalismo autoritário’” (MBEMBE, 2021, p. 143).
Acima de tudo, uma das principais transformações antropológicas da nossa
época, enfatiza Mbembe, é a “divisão da humanidade em múltiplas frações de classes
racialmente tipificadas. Trata-se, por um lado, da distinção entre pessoas humanas
solventes e pessoas insolventes. Por outro lado, continua ele, em escala global, trata-se
da divisão entre aquilo que Ètienne Balibar chama de ‘a parcela móvel da humani-
dade’ e a ‘humanidade errante’” (MBEMBE, 2021, p. 143). Mbembe pensou esta
questão a partir do conceito de devir negro do mundo, uma vez que para ele, pela
142

primeira vez na história humana, o nome “Negro deixa de remeter unicamente para
a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo
(predações de toda a espécie, desapossamento da autodeterminação e, sobretudo, das
duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo)” (MBEMBE, 2017, p. 18).
A este novo caráter, segundo ele, descartável e solúvel, à sua institucionalização
enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro, Mbembe chamou
de devir negro do mundo. Assim, assistimos a uma tendência de universalização da
condição que antes era reservada aos negros, mas, sublinha, sob a forma da inversão.
Essa condição consistia na redução da pessoa humana a uma coisa, a um objeto, a
uma mercadoria que se pudesse vender, comprar ou possuir (MBEMBE, 2020).
Mbembe (2020) continua, pois para ele, a produção de “sujeitos raciais” pros-
segue, é claro, mas sob novas modalidades:

O negro de hoje já não é apenas a pessoa de origem africana, marcada pelo sol
da sua cor (o ‘negro de superfície’). O ‘negro de fundo’ de hoje é uma categoria
subalterna da humanidade, um tipo de humanidade subalterna, essa parte supér-
flua e quase excedente de que o capital dificilmente precisará e que parece estar
condenada ao zoneamento e à expulsão (MBEMBE, 2020, p. 196).

Compreender esse processo de produção de pessoas como descartáveis, é cru-


cial para perceber a função deste estado de guerra permanente. Este neoliberalismo,
principalmente, em países com herança colonial e escravocrata, como, por exemplo,
o Brasil, necessita de práticas cada vez mais autoritárias para gestão dos sobrantes
à lógica do capital.
Muitas análises vêm sendo construídas sobre este neoliberalismo. Importante
sinalizarmos aqui, aquilo que percebemos a partir da genealogia do neoliberalismo,
realizada por Foucault e já descrita aqui, ou seja, que este é mais do que um sistema
econômico, sendo toda uma maneira de reger a vida, os pensamentos, o imaginário
social, se constituindo como uma racionalidade.
Neste sentido, tem-se presenciado mundo a fora, principalmente, a partir da
crise do sistema financeiro em 2008, que a crise do capitalismo é, na verdade, uma
estratégia na qual o capital consegue produzir mais capital. A crise se torna perma-
nente e, assim, se torna uma estratégia de governo (DARDOT; LAVAL, 2016). O
governo pela crise, assim como o Capitalismo de Desastre (KLEIN, 2008), possibilita
que todas as reformas do Estado, até então impensadas, sejam implementadas em
tempo recorde. Direitos trabalhistas, direitos à educação e saúde públicas, direitos à
cidade, direito ao comum, vão se tornando aos poucos, mercadoria. É a privatização
dos meios de vida.
Para Butler (2018), neste momento, a economia neoliberal estrutura cada vez
mais as instituições e os serviços públicos, o que inclui escolas e universidades, faz
com que as pessoas, em números crescentes, estejam perdendo suas casas, benefícios
previdenciários e perspectivas de emprego. Há, segundo esta autora, de uma maneira
nova, a ideia de que algumas populações são consideradas descartáveis:
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 143

Existe trabalho temporário ou não existe trabalho nenhum, ou existem formas


pós-fordistas de flexibilização dos povos trabalhadores. Esses desenvolvimen-
tos, reforçados pelas atitudes predominantes em relação ao seguro de saúde e à
seguridade social, sugerem que a racionalidade do mercado está decidindo quais
saúdes e vidas devem ser protegidas e quais não devem. É claro que há diferenças
entre políticas que buscam explicitamente a morte de determinadas populações
e políticas que produzem condições de negligência sistemática que na realidade
permitem que as pessoas morram (BUTLER, 2018, p. 17).

Butler compreende que Foucault nos ajudou a articular essa distinção quando
falou sobre as estratégias bastante específicas do biopoder, a gestão da vida e da
morte, de forma que não requerem mais um soberano que decida e ponha em prática
explicitamente a questão sobre quem vai viver e quem vai morrer. Butler sinaliza
que Achille Mbembe elaborou essa distinção com seu conceito de necropolítica
(BUTLER, 2018, p. 17-18).
Uma importante sinalização de Butler (2018) é que a racionalidade neoliberal
exige a autossuficiência como uma ideia moral, ao mesmo tempo que as formas
neoliberais de poder “trabalham para destruir essa possibilidade no nível econômico,
estabelecendo todos os membros da população como potencial ou realmente precários,
usando até mesmo a ameaça sempre constante da precariedade para justificar sua
acentuada regulação do espaço público e a sua desregulação da expansão do mercado”
(Butler, 2018, p. 20). Esta autora comenta que no momento em que alguém se prova
incapaz de se adequar à norma da autossuficiência (quando alguém não consegue
pagar por assistência à saúde ou lançar mão de cuidados médicos privados), então
“essa criatura dispensável é confrontada com uma moralidade política que exige a
reponsabilidade individual ou que opera em um modelo de privatização do ‘cuidado’”
(BUTLER, 2018, p. 20).
De fato, estamos no meio de uma situação biopolítica na qual diversas popula-
ções estão cada vez mais sujeitas ao que Butler chama de “precarização”. Geralmente
induzido e reproduzido por instituições governamentais e econômicas, esse processo
adapta populações, com o passar do tempo, à insegurança e à desesperança; ele é
“estruturado nas instituições do trabalho temporário, nos serviços sociais destruídos
e no desgaste geral dos vestígios ativos da social-democracia em favor das modali-
dades empreendedoras apoiadas por fortes ideologias de responsabilidade individual
e pela obrigação de maximizar o valor de mercado de cada um como objeto máximo
de vida” (BUTLER, 2018, p. 21).
Outra análise importante sobre o neoliberalismo é realizada por Brown (2018).
Segundo ela, temos dificuldade em encontrar até mesmo uma nomenclatura que defina
o que estamos vivenciando. Pergunta ela: Trata-se de um autoritarismo, fascismo,
populismo, democracia não liberal, liberalismo democrático, plutocracia de extrema
direita? Ou outra coisa?
Para esta autora, há uma narrativa comum no campo progressista na qual
plutocratas conservadores manipularam os agora despossuídos das áreas rurais e
144

suburbanas estadunidenses, esvaziadas de empregos decentes e aposentadoria, esco-


las, serviços e infraestrutura, enquanto os gastos sociais minguavam e o capital ia à
caça de mão de obra barata e de paraísos fiscais. “Uma sinfonia de valores familiares
cristãos, acompanhada de hinos louvando a branquitude [...], misturando patriotismo
com militarismo, cristandade, famílias, mensagens racistas, associadas ao capitalismo
desenfreado” (BROWN, p. 12). Após 2008, soma-se a esse quadro a narrativa sorra-
teiramente construída nos Estados Unidos, na qual a responsabilidade pela catástrofe
econômica foi transferida de Wall Street para Washington, alegando que os imigrantes
ilegais, as políticas afirmativas e os gastos sociais eram a fonte do problema. Enquanto
isso, segue a autora, os Estados ao redor do mundo, socorriam os bancos deixando
às minguas as pessoas comuns, dando origem a uma segunda onda conservadora ao
neoliberalismo, mais rebelde, populista e repulsiva (BROWN, 2019).
Esse novo populismo de extrema direita “sangrou da ferida do privilégio des-
tronado que a branquitude, a cristandade e a masculinidade garantiam àqueles que
não eram nada nem ninguém” (BROWN, 2019, p. 12). Para ela, o ressentimento,
fruto da corrosão neoliberal, de toda forma de vida não monetizada, associado as
justificativas pelos danos das políticas econômicas neoliberais manipuladas, com a
imagem de um passado mítico de famílias felizes, integras, heterossexuais, quando
mulheres e minorias raciais “sabiam seus lugares”, formam um quadro argumentativo
da esquerda sobre o cenário no qual nos encontramos. Segundo Brown, esta narrativa
não está errada, porém, incompleta.
Para ela, essa narrativa não registra as forças que sobredeterminam a forma
radicalmente antidemocrática desta rebelião e, assim, tende a alinhá-la ao fascismo
de outrora. Ela não considera a demonização do social e do político por parte da
governamentalidade neoliberal, nem a valorização da moralidade tradicional e dos
mercados como seus substitutos; “não reconhece a desintegração da sociedade e
o descrédito do bem público pela razão neoliberal. Não capta o niilismo crescente
que desafia a verdade e transforma a moralidade tradicional em arma política”
(BROWN, 2019, p. 15).
Essas características constituintes do neoliberalismo contemporâneo colocam em
xeque aquilo que denominamos democracia. Para Casara (2017), a figura do Estado
democrático de direito, se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exer-
cício do poder, e o principal desses limites era constituído pelos direitos e garantias
fundamentais. Segundo ele, o que temos configurado não dá mais conta de explicar
e nomear o Estado que se apresenta. Hoje, este autor defende que poder-se-ia falar
em Estado Pós-democrático (CASARA, 2017), pois do ponto de vista econômico,
essa configuração do estado retoma com força as propostas do neoliberalismo, ao
passo que, do “ponto de vista político, se apresenta como um mero instrumento de
manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e ampliação das condições
de acumulação do capital e geração dos lucros” (CASARA, 2017, p. 17).
Casara salienta que, atualmente, não se trata de ocasionalmente, o Estado recor-
rer a um instrumento autoritário em plena democracia, mas de reconhecer que esse
Estado não pode mais ser tido como democrático, em especial, diante da forma como
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 145

trata os direitos e as garantias fundamentais. A crise, que é uma constante do modo


de funcionamento do capitalismo, se transforma em modo de governo (CASARA,
2017; DARDOT; LAVAL, 2016) e possibilita este modo de funcionar do Estado.

E o Brasil com isso?

Concordamos com Lima (2018) que defende a ideia de um acoplamento entre


os diagramas de poder – soberania-disciplina-biopoder-biopolítica-necropolítica, se
configurando numa “bio-necropolítica que nos coloca frente aos desafios atuais para
pensar a emergência e pulverização microcapilares das relações e mecanismos de
poder, principalmente em contextos sociais advindos dos processos de colonização
e onde os elementos de colonialidade ainda são fortes” (Lima, 2018). Nestes contex-
tos, segundo a autora, a vida (bios) não foi o lugar historicamente onde as redes de
poder encontraram territórios privilegiados, mas a morte e a possibilidade do matável
constituiu o organizador das relações sociais.
Pensar hoje no genocídio da população negra bem como todas as questões e
vicissitudes transversalizadas pela raça, enquanto ficção materializada em corpos-sub-
jetividades, convoca a noção de bio-necropolítica como analisador, principalmente
no que se refere às formas de pensar o que vem a ser “a democracia e a construção
de uma vida em comum em contextos brasileiros onde uma gramática sociorracial se
sustentou durante muito tempo no mito da democracia racial e na cordialidade como
traço distintivo fazendo do racismo à brasileira um crime perfeito” (LIMA, 2018).
O Brasil tem sido descrito como uma espécie de laboratório desta nova etapa do
neoliberalismo, assim como, podemos creditar ao Chile, anteriormente, essa função
durante sua ditadura militar. Talvez uma das marcas mais elegíveis desta caracteri-
zação seja a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como emenda do teto dos
gastos públicos, que estabelece um novo regime fiscal, tornando constitucional a
política econômica de austeridade pelos próximos vinte anos. Essa medida é avaliada
pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a medida econômica mais drástica
do mundo contra direitos sociais.
Outro vetor marcante do atual cenário brasileiro é o extermínio da juventude
pobre e negra que vem sendo possível em larga medida pela política de guerra às dro-
gas que, ao analisarmos seus números e efeitos diretos na sociedade, percebe-se que é,
na verdade, um dispositivo através do qual o Estado brasileiro opera seu necropoder.
De 2002 até 2014, o número de pessoas presas no Brasil aumentou 267,32%4.
O número de presos em 2017 chegou a 726.0005, fazendo com que o país alcançasse
a triste marca de terceiro maior encarcerador do mundo. Isto num momento no qual
a maior parte dos países diminui o número de pessoas presas. Em relação ao número
total de detentos, o Brasil hoje tem 394.800 vagas no sistema penitenciário, ou seja,
um déficit de mais de 300 mil vagas (RODRIGUES, 2022).
Hoje o país tem 919 mil presos, o que o coloca em terceiro lugar no ranking
internacional, perdendo apenas para China e Estados Unidos, segundo o Conselho
Nacional de Justiça (2022). Segundo o levantamento do CNJ, estão presos 867 mil
146

homens e 49 mil mulheres. Em 2020, a taxa era de 405 presos para cada 100 mil
habitantes. Em 2022, o número chegou a 434 pessoas encarceradas a cada 100 mil.
Em relação ao sistema prisional brasileiro, 45% dos presos são presos provisó-
rios, ou seja, a prisão provisória ou cautelar que deveria ser, como prevê a constitui-
ção, uma excepcionalidade, servindo para garantir o andamento regular do processo,
passa a ser um dispositivo banalizado e utilizado como metodologia de controle social,
parte da assistência penal preventiva (PASSETTI, 2007) de um estado de exceção
permanente no qual se sustenta um governo neoliberal. Tal modo de governança é tão
violento que só um Estado de Exceção para sustentá-lo. Em se tratando dos efeitos
da denominada guerra às drogas no Brasil, um dos mais marcantes é o extermínio
de uma massa incalculável de jovens pobres e negros. Na década de 90, auge do
neoliberalismo no Brasil (pelo menos até agora), somente a polícia do Rio de Janeiro
matava aproximadamente mil pessoas por mês, sendo a grande maioria, pessoas
com esse perfil, em virtude da famigerada guerra às drogas. Em 2017, o número de
pessoas mortas pela polícia no mesmo estado foi de 1.035 pessoas, o maior índice
desde 2009 (CERQUEIRA, 2017).
Em 2021, 1.356 civis morreram em ações policiais no estado do Rio, alta de
8,9% em relação a 202051. Mesmo durante a pandemia de Covid-19, quando as ações
policiais ocorreram sob a vigência de decisões do Supremo Tribunal Federal que
restringiu operações policiais durante a pandemia, autorizando apenas incursões em
circunstâncias excepcionais, ocorreram, em um intervalo de pouco mais de um ano,
três das cinco maiores chacinas policiais da história do estado do Rio de Janeiro52.
O proibicionismo, lógica que sustenta a denominada guerra às drogas, também
produzem como efeito direto uma política que causou um aumento de 23,3% nos
assassinatos de jovens durante a década entre 2006 e 2016. Os homicídios são a
causa de 49,1% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos, e 46% das mortes entre
20 a 24 anos. Esse índice é bem diferente do grupo de brasileiros entre 45 e 49
anos, por exemplo, que é de 5,5%. Com isso, em 11 anos, o Brasil enterrou 324.967
jovens assassinados. A taxa de homicídios de pessoas de 15 a 29 anos (65,5 mortos
por 100 mil habitantes) é o dobro da média nacional e mais de seis vezes a taxa
global de homicídios de jovens (10,4), segundo a Organização Mundial da Saúde
(CERQUEIRA, 2017).
Tais números e a reverberação deles em nossa sociedade corroboram a tese de
Batista (2012) para quem vivemos um processo de adesão subjetiva à barbárie. A
banalização desse extermínio também evidencia o que vários autores (BATISTA,
1988; NASCIMENTO, 2017; FLAUZINA, 2008) vêm denunciando há várias déca-
das, ou seja, o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) constituinte da sociedade bra-
sileira. Quando de sua visita ao Brasil, a pesquisadora estadunidense Deborah Small
(2016) definiu a política de guerra às drogas como uma política racista, pois, possi-
bilita ao Estado sua prática histórica de segregação e extermínio da população negra.

51 Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/05/por-que-o-numero-de-pessoas-


-mortas-por-policiais-aumentou-no-rio-em-2021.ghtml. Acesso em: 2 set. 2022.
52 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/22/com-castro-rj-tem-3-das-5-
-chacinas-policiais-mais-letais-da-historia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 3 set. 2022.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 147

Nesta perspectiva, sublinhamos que além dos efeitos diretos do proibicionismo


e da política de guerra às drogas apontados, como o encarceramento em massa e o
extermínio da população jovem e negra, outro efeito precisa ser reiterado. Há prejuízo
significativo no acesso à saúde também desta parcela da população. No âmbito da
saúde pública, Gomes-Medeiros et al. (2019) enfatizam que o proibicionismo, como
forma específica de abordagem da problemática das drogas pelo Estado, cumpre papel
determinante no estabelecimento de padrões de acesso, riscos e necessidades de saúde.
A dificuldade de acesso aos serviços de saúde que esses jovens enfrentam, a
partir do estigma já mencionado, relaciona-se também à lógica da abstinência, asso-
ciada a moral do proibicionismo, que atravessa vários destes serviços. Esta perspec-
tiva preconiza que o usuário da substância precise, necessariamente, parar de usar
a substância, mesmo que este não seja seu objetivo. Nesta direção, entendemos que
a política de guerra às drogas implementada pelo Estado brasileiro, mesmo quando
governado por políticos mais próximos das pautas populares, é um dispositivo desta
bio-necropolítica, objeto de análise deste texto.

Considerações finais

Neste texto, pretendemos analisar alguns dos cursos realizados por Michel Fou-
cault para compreendermos o que o autor denominou como biopolítica e sua intenção
ao analisar genealogicamente as novas artes de governar que situou neste nascimento
da biopolítica, ou seja, o liberalismo e o neoliberalismo. Em seguida, seguimos em
direção a Achille Mbembe e sua definição de necropolítica, pois para a compreensão
desse necropoder, entendemos ser necessário analisar o que o autor denominou como
estado de guerra permanente e sua relação intrínseca com o neoliberalismo.
Consideramos que Mbembe ao partir dos estudos realizados por Foucault, situa
como ponto de referência para a sua análise, os territórios e processos históricos
marcados pelas lógicas da colonialidade e neocolonialidade (LIMA, 2018), chegando
ao conceito de necropolítica que rege tais territórios não estudados por Foucault.
Concordamos com Lima (2018), quando esta autora sinaliza a torção que Achille
Mbembe faz nos conceitos de biopoder/biopolítica, ampliando o debate para pensar
a vida e a morte a partir de contextos coloniais e neocoloniais, bem como na forma
como a ideia de necropolítica aparece e se consolida como “um território epistêmico
e metodológico que em muito contribui para pensar processos atuais no Brasil, [...]
que reiteram e atualizam elementos da colonialidade, principalmente traços do pro-
cesso escravocrata e do sistema de plantation, marcas estas presentes nas relações
sociorraciais” (LIMA, 2018, p. 23).
Mbembe ao longo de suas obras muitas vezes enfatiza que a ordem demo-
crática, a ordem da plantação e a ordem colonial mantiveram relações geminadas.
Estas relações estão longe de ter sido acidentais. Para ele, “democracia, plantação
e império colonial fazem objetivamente parte de uma mesma matriz histórica. Este
fato originário e estruturante é central a qualquer compreensão histórica da violência
da ordem mundial contemporânea” (MBEMBE, 2017, p. 43).
148

Infelizmente, se torna cada vez mais explícito que o neoliberalismo passou a se


constituir como uma ditadura do mercado, uma espécie de poder de soberania que para
uma quantidade maior de pessoas vem operando para a instrumentalização generali-
zada da existência humana e a destruição o material de corpos humanos e populações.
Entendemos que Mbembe amplia de modo fundamental as reflexões desenvol-
vidas por Foucault, ao introduzir questões como a colonial, o sistema escravocrata e o
modelo de plantation como elementos fundamentais para entender tanto a biopolítica
quanto a necropolítica. Cabe a nós, ampliarmos tais análises e conseguirmos criar
nossas máquinas de guerra contra esse modo de racionalidade que vem expondo cada
vez mais pessoas a condição de matáveis.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 149

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O PARADOXO DOS CORPOS
DESCOLONIZADOS: a luta
pelo exercício antirracista em uma
clínico-política da branquitude
Camila Bohn
Brida Emanoele Spohn Cezar
Luis Artur Costa
Matheus da Cunha Salles
Monique Navarro Souza
Thayna Miranda da Silva

1. Colonização, colonialismo e suas especificidades. Como emerge a


possível produção de uma clínica antirracista engajada pela branquitude?

O presente estudo tem como objetivo, a partir da realidade produzida pela


herança colonial sobre nossos corpos e sobre as redes constituintes de existências,
produzir um exercício de descolonizar o pensamento, a escuta e redirecionar para
pensarmos em uma clínica que se posicione de modo crítico à branquitude (BENTO,
2022), assim como possíveis ações engajadas com o antirracismo nos espaços psis.
Esse movimento é imprescindível e potente diante de conjunturas genocidas e racis-
tas que repercutem no Brasil, assim como em outros tipos de territórios do planeta,
cada um em sua especificidade. Conjunturas essas que são realizadas absortas em um
sistema profundamente enraizado de um olhar hierarquizado capitalista que mira de
cima a história da colonização, ao impor uma suposta neutralidade.
A colonialidade está diretamente implicada nos modos de pensar e produzir
conhecimento no Ocidente. O pensamento colonial, enquanto espinha dorsal do capi-
talismo, produz relações assimétricas que, por sua vez, estão diretamente relacionadas
com o pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2022), a manutenção da hegemonia
e seus privilégios. Por conseguinte, as produções de conhecimentos são pautadas
e produzidas a partir da perspectiva do colonizador, excluindo conteúdos teórico,
empírico, cultural, social, e de tantas outras esferas, que são anulados pelo poder
da metrópole, causando sofrimento psíquico e violências epistêmicas aos que são
colocados historicamente na posição de inferioridade em relação a essas narrativas.
A colonialidade do ser, conceito desenvolvido por Nelson Maldonado-Torres
(2007), diz respeito à experiência do colonialismo e os efeitos da mesma nos modos
de subjetivação de uma sociedade. O conceito emerge como um desdobramento da
colonialidade do poder (QUIJANO, 2010), e torna-se fundamental para pensar os
efeitos da colonialidade nos processos clínicos e políticos de uma clínica antirracista
154

engajada pela branquitude. Assim, esse movimento diz respeito a direcionarmos


nossa atenção aos agenciamentos que ocorrem nesses espaços, profundamente mar-
cados pela colonialidade e suas múltiplas sutilezas. Falar em colonialismo é falar
sobre mortes. E aqui no presente estudo serão feitas reflexões no que diz respeito
às dimensões psíquico políticas dessa morte, e possíveis ações de enfrentamento.
Para dar conta dos desdobramentos que nos propomos a fazer, é necessário
considerar as dimensões econômicas, sociais e analisar a experiência singular. Em
específico, nos interessa não somente a construção social do negro para o Ocidente,
senão principalmente a do branco em suas constituições de processos de subjetivação,
pois os elementos de ordem política também são de interesse de uma clínica enga-
jada com o antirracismo. Aqui cabe ressaltar que esse movimento de deslocamento
do pensar a respeito das racializações e de sua construção social, encontra muitas
dificuldades pelo caminho. Sendo a principal delas uma profunda desimplicação de
brancos nesse esforço coletivo, como uma espécie de resistência da branquitude em
encarar esse assunto que não pode mais ser adiado, a qual foi chamada de fragilidade
branca (DIANGELO, 2018).
Desse modo, torna-se essencial um desvelamento desse conforto racial inerente
às pessoas brancas, que se esquivam de encarar seus privilégios, não se deixando
ser permeados por esse transporte de conteúdo entre as diferentes perspectivas de
narrativa. A autora aponta que o universalismo como justificativa de que somos
todos humanos, ao mesmo tempo encurrala a branquitude quando quer se valer de
seu paradoxo para justificar que não são todos os brancos que contribuem para essa
situação, mas apenas os brancos “ruins”, gerando uma nova discussão que pretende
desviar da principal. Ou seja, a branquitude que se incomoda e que sente desconforto
em ser questionada e intimada a permanecer no debate, esquece-se que negros viven-
ciam cotidianamente essa experiência não somente a nível das ideias, mas também
a níveis físicos da pele.
O mal estar, para Freud (2010), não se trata somente de uma oposição socie-
dade e indivíduo, mas o quanto o sujeito53 interioriza e o quanto esses movimentos
provocam uma tensão interna. No entanto, como podemos pensar o mal estar em
uma sociedade colonial? Quais são as particularidades? Como se dá a experiência
subjetiva, os conflitos, em uma sociedade estruturada pela colonização? De acordo
com Deivison Faustino (2020), enquanto acontece um movimento político de domi-
nação das narrativas pelo colonizador, também acontece uma tensão a nível dos
sujeitos que foram subjetivados, na medida em que vão se percebendo possivelmente
diferentes do modo de narrativa central globalizado e difundido como padrão. Esse
padrão de narrativa atravessa a sociedade, valorizando quem procura se aproximar e
subjugando quem se diferencia. Essa organização procura manter uma rota de inércia

53 Aqui utilizamos do exercício antropofágico quando fazemos menção ao “sujeito” da teoria freudiana, aquele
pretensamente movido por “forças internas” e conflitos inconscientes. No entanto, questionamos como a
constituição dessas referidas forças se dão em conjunto à estruturação de uma sociedade moderno-colonial
e seu modelo familista branco, burguês, patriarcal e heteronormativo produzindo violência e adoecimento
na constituição da estrutura psíquica, resultante de sua relação direta com uma estrutura social colonial.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 155

de perspectiva de mundo que orbita ao redor de suas vontades, evitando encontrar-se


com narrativas não moldadas por ela.
Tais questões, conforme Frantz Fanon (1961) são impostas a partir das invasões
e genocídio dos povos originário das américas e guerras coloniais, assim como na
Argélia, e da instituição do sistema economico capitalista nesses territórios. O autor
nos diz que não aconteceu apenas o genocídio físico, mas o desmembramento das
relações, na sociedade moderna, a partir da ruptura no processo de modernização,
levando a um epistemicídio (GROSFOGUEL, 2016) que deslegitima as experiências
que cada corpo é capaz de vivenciar. O autor explicita um eurocentrismo para pensar
o sujeito, a experiência psíquica, em desconsiderar essas violências promovidas pelo
Ocidente, e aqui reforçamos também como essas omissões se reiteram nas relações
nos espaços clínicos.
Na concepção de humano forjada pelo colonizador, de acordo com o autor,
existe uma zona de não ser árida de onde pode brotar uma aparição autêntica. Na
maioria dos casos, o mal estar colonial (FAUSTINO, 2020), a angústia e as crises
existenciais, são permitidas e emergem como questões autorizadas somente ao branco.
O negro nesse sentido, não desfruta do privilégio de descer ao inferno e abraçar seus
monstros. Pois para a branquitude (BENTO, 2022), ele habita o lugar do não ser, o
lugar da própria monstruosidade, que tem sua experiência vivida (FANON, 2008)
negada de acesso a qualquer reflexão interna.
Uma sociedade com processos de discriminação sistemáticos, representam a
impossibilidade de viver a zona do não ser, de encarar com suas faltas, incompletudes,
no seu processo de subjetivação. O racismo impede as pessoas negras de viver a sua
subjetividade de forma sadia. O humano negro não é um humano, ele é um negro.
Só aparece enquanto específico, enquanto coisificado, objetificado pelo colonizador,
e jamais enquanto aberto às suas infinitas possibilidades de existência e se pensar a
partir dela (FAUSTINO, 2020). Esses movimentos foram excluídos de seu universo
social em um mundo colonial construído pelos brancos. E esse processo de raciali-
zação, conforme o autor, é produto da sociedade colonial.
O colonialismo, para Frantz Fanon (2008) provoca várias inserções das pessoas
negras na sociedade. Essas são de ordem ambígua. Em certos momentos, os negros
representam nada, em outros, são lidos somente força de trabalho. Nesses termos,
essa ambiguidade imposta pelo branco é devastadora pra subjetividade e a construção
subjetiva do negro.
E não representa apenas a matriz de poder, mas uma forma objetiva própria do
capitalismo, da Europa de apropriação de riquezas, forma objetiva de exploração e
organização do mundo. Assim, o colonialismo compõe e materializa o mundo e inte-
rioriza e compõe nossa dimensão simbólica da sociedade. Isto é, o que Fanon (2008)
nos diz é que o colonialismo é um discurso forjado em contexto que o outro não
pode ser considerado como humano. Para o autor, a ideia de universal de sujeito que
a Europa trata como humanidade, é a racialização do outro na experiência europeia.
Tudo que acontece no território europeu é da dimensão humana, e a experiência em
outros lugares, não são tematizados pelos brancos, ou quando são, são objetificadas
e inferiorizadas, tratadas como selvagens.
156

A estrutura social que temos hoje no Ocidente, decorre da dinâmica de relações


que se constituíram a partir das colonizações da América e em África pelo europeu.
Em outras palavras, a sociedade moderna se montou às custas da exploração dos
territórios, dos corpos e do trabalho realizado pelos nativos e/ou por povos seques-
trados e escravizados, que nutriu essa estrutura racista que permanece enraizada
até hoje no âmago da contemporaneidade. Porém, este é um lado que costuma ser
estrategicamente “esquecido”, desimportando os povos colonizados, que seguem
perdendo vidas, políticas, culturas e narrativas.
O movimento descolonial vem dialogar com essa naturalização de uma inferio-
ridade de raças promovida por esse sistema que sabota a voz dos colonizados, uma
vez que resiste em ser permeada por múltiplos olhares. Assim, favorecer a infiltração
de narrativas ditas como despadronizadas em relação à principal estruturante, parece
ser um caminho de potência para constituirmos tempos de maior intersecção dos sabe-
res, contempladores do maior número de vidas possíveis e de seus modos de existir.
A sociedade moderna é produzida pelo pacto da branquitude (BENTO, 2022),
mas para o negro, de acordo com Deivison Faustino (2020) enquanto colonizado,
ele não compõe o pacto, pois nesse contexto, ele não é um sujeito, mas somente
objeto. O colonialismo nesse sentido é produzido pela ausência do pacto para o
negro, ele é produzido pelo desmantelamento dos pactos anteriores e a imposição
de outras relações assimétricas.
Assim, a questões que se colocam, é como a psicologia se omite dessas ques-
tões, quando se propõe a pensar a subjetividade e o adoecimento psíquico? Sobre
o ponto de vista da branquitude, que tipo de relação que o branco cria e continua
a criar no mundo? E como a branquitude (BENTO, 2022) se percebe na produção
desse pacto e desmentalamento do mesmo, para uma possível produção de uma
clínica política antirracista?

2. Querer-se invisível e universal: por uma clínico-política que desloque


a dupla negação psicopolítica da branquitude

Existe uma frase, da qual não sabemos ao certo a origem, mas que conhecemos
usualmente como dito popular pelas ruas e textos de autoria anônima, sendo usual-
mente atribuída a Charles Baudelaire. A referida frase diz mais ou menos assim: “A
maior astúcia do diabo foi convencer-nos da sua não existência”. Seu sentido descreve
perfeitamente os maiores perigos das estratégias de captura a céu aberto da Socie-
dade de Controle (DELEUZE, 1992), na qual, muitas vezes, quanto mais livres nos
sentimos, mais submetidos estamos. Fazer-se invisível aos olhos das demais pessoas
poderia ser considerada uma das mais efetivas estratégias para a invulnerabilidade:
como ser atingido quando “não se existe”? Podemos considerar que tal engenhosi-
dade foi uma das muitas utilizadas pela colonialidade, pelo racismo e pelo machismo
em suas práticas de dominação, objetificação e aniquilação. É possível encontrar os
rastros dessa estratégia, em especial, na branquitude e sua neurose cultural diagnos-
ticada por Lélia Gonzalez (2020, p. 76).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 157

“Quem menos sabe da água é o peixe”, esse outro dito popular, também de ori-
gem incerta, nos permite fazer ver outra característica da colonialidade que marca em
especial a dinâmica psicopolítica da branquitude em suas estratégias de defesa dos
privilégios: a posição narcísica do pacto da branquitude (BENTO, 2022, p. 17-25).
A referência à aparente ignorância dos peixes com relação ao meio no qual vivem
fala dos processos de naturalização de uma paisagem instituída de modo a univer-
salizar uma certa situacionalidade como se ela não fora uma perspectiva construída
desde certas características que a atravessam (como as marcações de raça, gênero,
sexualidade, classe e deficiência, por exemplo, mas também englobando outros
aspectos que envolvem territorialidades existenciais). Assim, as pessoas brancas
imersas na branquitude e em sua lógica supremacista violenta, que lhes garante
uma série de privilégios, afirmam a inexistência da sua própria marcação racial nas
práticas de distinção societária do mesmo modo que o peixe alegaria ignorar o que
seria água no dito popular.
A união de ambos os ditos populares acima nos permite narrar parcialmente
a dinâmica psicopolítica ressentido-narcísica característica da branquitude, sendo,
também, parcialmente capaz de nos sensibilizar-inteligibilizar para a construção dos
modos de existir das masculinidades cisheteronormativas. A posição ressentido-nar-
císica fala de uma operação de definição de si pela negação do outro conjunta a um
processo de universalização-sacralização da posicionalidade normativa hegemônica
na modernidade-colonialidade. Trata-se do grande perigo operado pela dupla negação
narcísica da alteridade (do “outro” e de “si mesmo”) como ação principal da colo-
nialidade: a negação-aniquilação da diferença-alteridade pela redução desta a uma
ausência ontológica operada por práticas de domínio necropolítico (MBEMBE, 2017)
e a negação-denegadora que afirma a ausência da violência extrema como estratégia de
naturalizar a posição de privilégio construída por tais práticas, em uma naturalização
dos sistemas de opressão que reiteram as posições de privilégio. Dupla negação: por
um lado, a negação ontológica que busca dominar-aniquilar todes que escapam ao
esquadro branco, masculino, cisheteronormativo; por outro lado, a negação que busca
naturalizar a posição de privilégio construída pelas práticas moderno-coloniais necro-
políticas, de modo a negar a própria existência dos sistemas de opressão-privilégio
sustentados e sustentadores de uma trama delimitada por branquitudes, masculini-
dades cisheteronormativas, classe, entre outras marcas afeitas à norma (urbanidades
centrais, trabalho, individualismo, juventude, etc.). A primeira negação é afirmada
pela agressão brutal enquanto a segunda negação tenta, inutilmente, esconder a mão
que acaba de agredir: tal gesto violento se faz ver com nitidez exatamente na paz
e tranquilidade que outorga àqueles que ela defende. Falamos aqui, portanto, de
processos de subjetivação negacionistas pelos quais operamos a “negação nossa de
cada dia” da branquitude masculina e burguesa, que marca os espaços de privilégio
da modernidade-colonialidade. Processo de subjetivação narcísico-ressentido que
sustenta e naturaliza fronteiras operadas por uma trama de violências que constitui
um inconsciente coletivo traumático (FANON, 2008) no qual a violência psicopo-
lítica é ao mesmo tempo reiterada e negada em sua existência: a neurose cultural
158

(GONZALEZ, 2020, p. 76) constitui psicopoliticamente processos de libidinização


dos ideais de eu da colonialidade de modo a tentar inviabilizar outras produções
desejantes que escapem a sua lógica. A lógica colonial da branquitude e do patriar-
cado executa com maestria tal dupla negação, da alteridade (pela violência extrema
e constante) e de si mesmos (naturalização-universalização da posicionalidade de
privilégio e ocultação das violências que sustentam tal posição), de modo a produzir
uma aparentemente intransponível redoma que serve de lar confortável e acolhedor
para alguns poucos e aprisionamento torturante da própria vida e do próprio desejo
para todes demais. Como a água para o peixe ou o próprio diabo nos ditos antes
citados, a branquitude, a masculinidade e a cisheteronorma se fazem “invisíveis”
exatamente por estarem às vistas de todos o tempo todo ao tomarem o inconsciente
coletivo (FANON, 2008), ao invadirem o próprio imaginário e a produção desejante
dos mais diversos coletivos.
Edith Piza (2017, p. 66-67) traça uma comparação entre uma porta de vidro e os
mecanismos da branquitude ao discutir como, especialmente no âmbito acadêmico, os
sujeitos brancos demonstram sentirem-se muito mais apropriados para falar sobre a
realidade das pessoas negras – e até de um certo racismo sofrido por sujeitos negros,
mas cujas práticas são de autoria de “ninguém” – do que para debater a partir do
reconhecimento do papel das pessoas brancas nas relações étnico-raciais. Uma série
de narrativas que buscam fazer crer na invisibilidade da branquitude serviriam, então,
para justificar a falta de percepção das pessoas brancas em relação a suas práticas e
a sua própria existência racializada até o momento em que forem expostas explici-
tamente a essas informações, como se só aí fossem forçadas a se chocar contra um
vidro imaculadamente transparente, não marcado. O fato para o qual Piza chama
atenção está relacionado à noção de que, mesmo que fosse possível essa impecável
transparência do vidro existir, ele precisaria estar cercado por diversos elementos
bastante evidentes que dariam sustentação à estrutura da porta, como a moldura que
contorna o vidro e a fechadura.
São comuns as afirmações de sujeitos brancos, principalmente daqueles que
começam a se deslocar ao encontro de posicionamentos coerentes com práticas antir-
racistas, que falam sobre um desconhecimento acerca da branquitude como essa cons-
trução da ideia de superioridade racial branca que acaba lhes garantindo privilégios
simbólicos e materiais (SCHUCMAN, 2012, p. 7) ou sobre os pactos narcísicos da
branquitude como esse acordo de cumplicidade entre pessoas brancas que, apesar
de não verbalizado, age constantemente pela garantia da continuidade dos seus pri-
vilégios (BENTO, 2022, p. 18). Embora a ausência de domínio conceitual sobre tais
termos seja até esperada em um país cujas camadas brancas, historicamente, adotoram
a tematização do negro (RAMOS, 1995) como uma das estratégias para tornarem-
-se ainda mais brancas e mais próximas ao ideal de sujeito europeu, seria possível
não perceber como as práticas de favorecimento às pessoas brancas se mostram no
cotidiano das relações no Brasil? Há mesmo como as dinâmicas de manutenção dos
privilégios destinados aos brancos permanecerem tão imperceptíveis assim quando
convivemos diariamente com casos tão escancarados quanto a situação repercutida
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 159

em 202154 da assessoria de mercado de grandes empresas que, em foto publicada


em um rede social voltada às relações de trabalho, exibia sem constrangimentos, no
topo da sua sede, o agrupamento das dezenas de homens brancos que compunham o
seu quadro de funcionários? Estudar ou exercer a docência ao longo de anos apenas
ao lado de pares brancos nas universidades poderia realmente não produzir sequer
sutis choques contra esse vidro intacto da branquitude?
Por maior que seja o número de situações analisadoras que explicitem o quanto
a branquitude está à mostra nas sociedades marcadas pela dominação racial, é habi-
tual que a resposta de uma pessoa branca diante da apresentação de tais evidências,
ainda assim, caminhe rumo à negação – ou apelando para justificativas baseadas em
uma infundada meritocracia, ou insistindo na ideia de que as dinâmicas que susten-
tam essa estrutura são invisíveis. Para Ruth Frankenberg (2004), a noção de uma
branquitude imperceptível é uma fantasia das pessoas brancas, entendendo que, na
verdade, a branquitude só se faria invisível nos momentos em que escolheria não
dizer seu nome, o que contribui para que as suas práticas e a existência das pessoas
brancas seja colocada em posição normativa. O sujeito branco, então, acaba por se
denominar nesse lugar da hegemonia, da norma e da supremacia ao nomear e marcar
“aquele Outro” que ele se esforça para demonstrar que não é (FRANKENBERG,
2004, p. 311), ou seja, ao negar a humanidade plena às Outridades a partir de uma
série de produções estigmatizantes que constroem esse “Não-Ser”, o branco afirma-se
enquanto o Ser (CARNEIRO, 2005, p. 99). Diante de tal trama, nos perguntamos
como podemos operar intervenções clínico-políticas que desloquem a branquitude de
sua posição narcísico-ressentida ao fazê-la reconhecer o duplo processo de negação
que lhe constitui?
Essa estratégia que busca naturalizar-esconder a violência que sustenta um
sistema de privilégios-dominação de modo a universalizar-invisibilizar a posição dos
violadores-privilegiados nos recorda duas histórias trazidas em um ensaio de Chinua
Achebe (2012) no qual ele nos recorda que é fundamental sabermos nomear tanto
as violências quanto os violadores, pois apenas assim poderemos erigir resistências
diante destes e suas ações. O autor retoma duas histórias, uma europeia e outra afri-
cana, nas quais o ato de esconder o próprio nome é utilizado como estratégia máxima
de defesa ou vantagem. Inicialmente, ele nos fala de Ulisses, da Odisseia de Homero,
na caverna do ciclope. Ulisses se nomeia para o cíclope como sendo “ninguém” e,
por isso, o herói da saga grega perfura o globo ocular solitário deste que lhe aprisiona
e consegue fugir em meio à confusão provocada, pois o cíclope grita aos colegas
de caverna que havia sido agredido por “ninguém”. Diante desta fala, os demais
ciclopes não sabiam ao certo como reagir, compreendendo que nada havia ocorrido.
Chinua Achebe, no mesmo ensaio, nos fala também da história do jabuti que foi aos
céus levado pelos pássaros para uma festa, não antes sem convencê-los de que seria
costume em tais festas cada um assumir um pseudônimo, ao que declarou que o seu
seria “todo mundo”. Quando na festa, ao servirem o banquete, logo perguntou “para

54 Fato e imagem disponíveis no site: https://www.nexojornal.com.br/perspectiva/2021/08/15/


Brancos-do-topo-para-o-topo-como-uma-foto-exp%C3%B5e-privil%C3%A9gios.
160

quem são tantas deliciosas iguarias?”. Os anfitriões responderam prontamente “para


todo mundo”, ao que ele se vira para os pássaros que o levaram avisando: “viram, é
tudo para mim, mas podem comer as sobras após eu saciar minha fome”.
Vemos que os usos dos conceitos de “ninguém” e de “todo mundo” são duas
formas de nomear que desviam da possibilidade de delimitar, ao menos vagamente,
a trama de condições de possibilidade que constituem uma posicionalidade: tornam
impossível divisar a singularidade-especificidade de quem fala, de quem faz e, assim,
tal qual a astúcia referida por Baudelaire, permite a negação da própria existência
para usufruir os privilégios de tal existir “universalizado”. Há espaços em que fala-se
sobre as violências racistas sofridas por uma Outridade, mas não se aborda quem
é o sujeito violentador e beneficiário de tais ações. Porém, nos espaços em que há
reconhecimento acerca das estruturas racistas, torna-se comum também a reprodução
de narrativas que dizem que “o racismo está em todo o lugar”, “todos nós somos
racistas”, “ninguém está livre de cometer um deslize” ou “todo branco é privilegiado”,
expressões que acabam servindo a uma desresponsabilização dos sujeitos brancos,
que, então, sentem que não precisam assumir uma postura ativa que busque romper
com a reprodução de violências e deslocar privilégios.
Do mesmo modo, a necropolítica da colonialidade persiste entre nós misturan-
do-se perigosamente com a paisagem de nossas existências ao ponto de não mais
divisarmos suas violências em nosso horizonte do viver: vemos aqui a grande relevân-
cia de tomarmos o campo dos imaginários, da cognição, dos afetos, das percepções e
das práticas, em suas molecularidades cotidianas, enquanto um importante território
para intervenções clínico-políticas as quais nos auxiliem a deslocar tais negações da
colonialidade de modo a, por um lado, promover um estilhaçamento dos esquadros
alterocidas (MBEMBE, 2018) coloniais em seus modos de visibilizar as alterida-
des como negação e, por outro lado, evidenciarmos as posições de privilégio e as
violências que as sustentam. Divisar nas paisagens existenciais as lógicas racistas,
misóginas, cisheteronormativas, capacitistas, de modo a operar uma clínico-política
capaz de intervir-problematizar tais questões, evitando, assim, sua naturalização e
decorrente universalização indevida.
Quanta negação narcísico-ressentida é necessária para não ver o que está a
todo momento diante dos próprios olhos? Tal negação absurda é constantemente
repetida como um mantra por um conjunto de homens brancos, burgueses, cis e
heteros, os quais insistem em negar a existência de tais lógicas opressoras em nosso
meio social. “Isso é coisa da sua cabeça” ou “Isso é um exagero, não é para tanto”,
ou “Eu mereci!”, costumam vaticinar quando confrontados com alguém que expli-
cita os pactos narcísicos (BENTO, 2022, p. 17-25) e suas máquinas necropolíticas
de manutenção de privilégios. Tais homens, costumam atribuir o machismo e o
racismo a tempos passados e lugares estrangeiros, ou ainda, acusam outras pessoas
de possuírem estes atributos, jurando não compactuarem com tais práticas: um gesto
ritual obsessivo de controle que tenta expurgar-negar a existência do óbvio, ou seja,
de que eles seguem sendo privilegiados por tal sistema e que certamente carregam
elementos deste em seu campo sensivel-inteligível, afinal, seus modos de existir
foram erigidos em meio a tais linhas e não há como estar por completo alheio a elas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 161

e suas lógicas. No entanto, de fato, ao invés das palavras que negam as violências
(ou sua participação nelas) conseguirem dirimir a existência destas violações, o que
elas realmente fazem é reiterá-las ainda mais fortemente, uma vez mais, através desta
tentativa de deslegitimação da nítida e legítima experiência de quem é violentado(a).
Vivemos nitidamente em nossos dias a força da negação na luta pela manuten-
ção das violências: uma reação extrema, agitada e barulhenta, diante de pequenos
desvios nos privilégios há séculos usufruídos pela branquitude colonizadora em
nosso território. A oposição aguerrida às novas leis e políticas públicas que visam
reparações mínimas diante das violências centenárias, são um ótimo exemplo do
que ocorre quando as fronteiras do privilégio são atingidas: reagem ao menor dos
arranhões como se fora um rompimento fatal. Essa reação a qualquer possibilidade
de precisar olhar para o conflito racial e de como a branquitude age sobre ele costuma
se apresentar a partir de diferentes movimentos defensivos – geralmente, intensas
e nada constrangidas expressões de raiva; às vezes, sinalização de medo ou culpa;
comportamentos que conduzem a discussões agressivas e pouco produtivas, silêncio
como resposta ou fuga do debate – que manifestam o que Robin DiAngelo (2018,
p. 39-40) denominou fragilidade branca. A dinâmica narcísica vivenciada pelo pacto
colonial em prol do usufruto do privilégio da branquitude e da masculinidade responde
a qualquer tensionamento das suas lógicas com uma postura de incremento de vio-
lência conservadora e melancólico retrocesso imaginário no tempo em uma posição
narcísica-ressentida. Trata-se de uma nítida posição de ressentimento, na qual vemos
a luta das formas tornadas há muito hegemônicas de se manterem homogêneas em
nosso presente desde uma aguda negação a toda e qualquer mudança, sempre mirando
um passado idílico mítico no qual a sociedade teria vivido sem conflitos e em “paz”,
passado no qual, tal política narrativa da branquitude, apaga vergonhosamente todos
os fatos que evidenciam que a referida “paz” e “harmonia” nada mais era do que
cruel dominação: para isso, negam as constantes revoltas contra tal domínio, assim
como negam ou minimizam as violências extremas impetradas neste período tido
como ideal originário da civilização.
Deste modo, acompanhamos, atônitos, uma série de ações que explicitamente
declaram tal desejo de retorno ao que jamais cessou, ou seja, trata-se de um desejo
de intensificação de tal sistema racista que faz a manutenção dos privilégios da
branquitude. Falamos aqui de movimentos sociais bem formalizados e documentados
como, por exemplo, as revisões históricas que tentam minimizar o crime contra a
humanidade da escravatura, ou ainda, a retomada de diversas organizações declara-
damente Supremacistas Brancas. Mas falamos aqui, principalmente, de movimentos
psicossociais, que atravessam os antes referidos, mas se infiltram e alastram, por
exemplo, por nossas narrativas familiares, nosso campo de afetações e percepções
cotidianas, por nossos modos de morar, interagir socialmente etc.
Um dos movimentos mais desafiadores e necessários para pensarmos a bran-
quitude desde o campo acadêmico é a análise de implicação (FERREIRA, 2018):
voltar-se criticamente sobre as próprias linhas que possibilitam a referida crítica,
para percorrê-las e evidenciar suas implicações, suas lógicas, aquilo que sustenta tal
modo de pensar e é por ele sustentado, não apenas com o objetivo de complexificar
162

a delimitação de tal trama, mas, principalmente, para promover deslocamentos nesta,


abrindo novas possibilidades para os modos de ser, sentir e pensar o mundo. Tal movi-
mento se inicia, nos parece, em um gesto clínico-político antes referido na introdução
que parece muito simples, mas incorre em uma complexidade transbordante: nomear
e marcar aqueles que sempre nomeiam e marcam, mas jamais são divisados enquanto
marca social de qualquer diferença, permanecendo, assim, visíveis-invisíveis a todos
dispositivos ao mesmo tempo que se fazem onipresentes (narcísicos) nestes. Fazer
falar, ver, pensar e sentir à branquitude enquanto um coletivo, incorre em deslocar o
privilégio próprio da branquitude de serem sempre indivíduos “transparentes” perante
o narrar de si mesmos (SCOTT, 2005) e jamais seres racializados.

3. Encruzilhadas da Clinico-Política

O gargalo colonial operacionalizado pela norma homem-branco-cis-hetero


forjou os alicerces do que podemos denominar como um corpo colonizado. Quando
nos detemos nos sentires que esse termo evoca, passamos a pensar em como esse
corpo transita e se encontra na práxis clínica, sendo ela mesma também corpo, com
olhares, dizeres, escutas que traçam rumos e linguagens, as quais se estendem entre
os campos espessos do tecido cisheteropatriarcal/capitalista/cristão/europeu, seguindo
conforme afirma Rufino (2019), o despacho do carrego colonial dos senhores colo-
nizadores, e a possibilidade de traçar saídas que se movimentam pelas encruzilhadas.
Tal movimento exusíaco pode ser compreendido como uma experimentação
pela fresta, embaraçando de forma espiralar os fios lineares que acompanham nossos
modos de existência, nossas temporalidades eurocêntricas e dicotômicas pautadas
no desencantamento e na escassez para bordar o verso, a potência do encante, a
gramática poética dos cumbas, a descolonização em giros linguísticos e ancestrais
do corpo clínico.
Logo, desatar das heranças coloniais, das suas formas hegemônicas onde o
saber-verdade culmina numa razão branca e excludente, é um dos objetivos desse
texto, procurando compreender os efeitos da universalização desse corpo colonizado,
sobre o corpo da clínica, que ao mesmo tempo que pode produzir escapes, pode
também estar efetivando violências, na medida em que seu espaço é reivindicado
pela branquitude no exercício de um discurso individualizante onde, como afirma
Mombaça (2021), não se coloca em questão a infraestrutura dos seus privilégios e
“toda série de gestos, circuitos e processos que dão textura à vida branca como norma
social que devem ser postas em xeque pela aliança branca” (p. 38).
Assim, as políticas da inimizade propostas por Mbembe (2021) surgem como
fundo valorativo, demarcando regimes de separação que instituem o outro como
dessemelhante, a subalternização da diversidade, cristalizando epistemologias, for-
mas de ser e saber que transitam pelo temor e receio ao que é denominado como
estranho a sua imagem, buscando assegurar através da desvitalização do outro, o
inteiro contorno dos seus privilégios.
Ao nos voltarmos então para o exercício da clinico-política, e a possibilidade da
branquitude de ir além da incapacidade das suas narrativas benevolentes de incorporar
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 163

a perda de espaço, visibilidade e voz (MOMBAÇA, 2021, p. 40). O seu fazer pode
ser traçado pela proposta de Glissant (2021), como a elaboração de uma narrativa
em teia que possa ingressar nesses fios emaranhados, realizar aberturas, se bifurcar
no enlace de (re)imaginarmos o mundo, “refazendo seu desenho geopolítico e afe-
tivo” (KIFFER; PEREIRA, 2021, p. 14), pois afinal, como criar para si um corpo
descolonizado (VEIGA, 2021)?
Como descolonizar a escuta? Como inscrever em nosso cotidiano as memórias
sangrentas que nossos antepassados tentaram ocultar? “A história enfrenta sempre
esse grande óbice: o silêncio sobre o que muito se calou ou escondeu. O que não
honra” (FIGUEIREDO, 2018, p. 8). Como reconhecer as heranças coloniais que
nos constituem e que em nossos corpos fazem morada? “Fala-se muito na herança
da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase
nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas
brancas” (BENTO, 2022, p. 23). Trata-se de visibilizar os privilégios materiais e
simbólicos da branquitude “gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperia-
lismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade” (SCHUCMAN,
2012, p. 23), porém, mais do que isto, é necessário nos implicarmos diariamente
com a luta antirracista.
Pensar em uma clínico-política atenta às questões a que nos propomos exige
deslocamentos e rupturas do ponto de vista concreto e subjetivo. Não é possível
andarmos pelo mundo como fazíamos antes de nos interrogarmos e de nos respon-
sabilizarmos pelos efeitos da nossa presença no tecido social. O silêncio onde apren-
demos a guardar os atos racistas que testemunhamos e protagonizamos ao longo da
vida precisa acabar. “Por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo
moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética
e politicamente responsável pela manutenção do racismo” (ALMEIDA, 2019, p. 52).
Um sujeito e uma clínica que se dizem neutros ainda estão comprometidos com
o pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2022). Até quando a violência perdurará
se atualizando nas tentativas de apagamento da história e de impugnação das políti-
cas de reparação justificadas sob um acordo implícito de proteção e perpetuação da
supremacia branca?
Se, por um lado, há o “medo de perder os privilégios obtidos pela estrutura
racista” (SCHUCMAN, 2014, p. 145), por outro, cria-se “uma aliança que expulsa,
reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e recordado pelo cole-
tivo” (BENTO, 2022, p. 25). Quando um sujeito branco se revolta com as cotas raciais
na universidade porque um membro de sua família não ingressou no curso pretendido,
alegando que as ações afirmativas “roubaram” o seu lugar, entende-se que há um
movimento contínuo para que o poder branco prevaleça sobre as outras identidades
raciais e as injustiças e desigualdades que lhe sustentam não sejam desveladas, assim
como a permanência de seus privilégios. Quando uma escola recebe inúmeras recla-
mações de pais brancos porque seus filhos aprenderam sobre as religiões de matriz
africana, mobilizando interesses e questionamentos, percebe-se mais uma vez que a
história que pode ser contada, no sentido de ser aceita e tolerada, é uma só.
164

A busca incansável por origens europeias, sobretudo pelos descendentes de


imigrantes alemães e italianos, retrata sob outra perspectiva a tentativa de negar as
origens e influências africanas na constituição do nosso país. Seria este um meca-
nismo de cisão empregado pela branquitude para sustentar um certo lugar de poder
ao se identificar com os colonizadores? Poderíamos perguntar ainda se tal manobra
não visa reiterar a segregação racial ao fabricar a imagem de um sujeito universal do
qual os brancos se sentiriam mais próximos na medida em que apresentassem “tom
de pele muito claro, cabelos lisos e louros, traços finos, olhos claros e ascendência
norte-europeia” (SCHUCMAN, 2012, p. 87).
É evidente que neste caso, assim como na valorização e exaltação dos ingleses
em detrimento dos povos indígenas em terras paulistas atravessadas pela ferrovia,
o que está em questão são os corpos colonizados por um pensamento que se quer
hegemônico e inquestionável: trata-se, portanto, da produção e obstinada reprodução
de determinadas verdades.
No encontro dos processos de racialização com a clínica e no momento em que
se toma ciência da fantasia de invisibilidade da branquitude e de todo atravessamento
colonial, nasce um compromisso ético de não mais contribuir para navegar nessas
águas excludentes, mas sim tensionar para liberar os oceanos represados. Tais águas
da branquitude, no entanto, nunca cessam de jorrar e, deste modo, jamais poderemos
falar em uma branquitude antirracista ou em sujeitos brancos livres da estruturação
racista. Falaremos apenas de pessoas brancas implicadas em exercícios antirracistas
de modo infinitivo e infinitesimal, sem que isso possa de algum modo mudar o curso
das águas por completo, mesmo que contribua para a luta pela produção de novos
fluxos e direções.
Pensar a descolonização dos corpos em uma clínica antirracista se apresenta
como um exercício constante de suspensão de privilégios, de atenção, escuta, crítica e
cuidado. E sobre o qual não se busca uma verdade, uma certeza, ou ainda, a neutrali-
dade. Ao contrário, pretende-se sustentar o incômodo, a angústia e o não saber diante
do encontro, fazer uma busca ativa por outras epistemologias e tradições. Manter-se
no paradoxo sobre tempos que se entrecruzam, no desvelamento das memórias oculta-
das, na espreita da encruzilhada de afetos, de sentidos e de uma escuta não-linear nos
servem como apontamentos e pistas ético-políticas e descoloniais para uma clínica
antirracista, pensada por uma branquitude comprometida com a descolonização de
práticas, saberes e do cuidado.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 165

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MECANISMOS DE EXCLUSÃO SOCIAL
DA JUVENTUDE BRASILEIRA:
evasão escolar e seletividade punitiva
Mariane Lopes Bechuate
Giuliana Volfzon Mordente
Fernanda Bottari Lobão dos Santos
Hebe Signorini Gonçalves

Introdução

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), homologado em 1990, é o


principal instrumento normativo de defesa e garantia dos direitos das crianças e dos
adolescentes brasileiros. O ECA é um marco fundamental e uma importante conquista
dos movimentos sociais pois, com sua aprovação, todas as crianças e adolescentes
brasileiros passaram a ser considerados sujeitos de direitos, sendo reconhecidos como
pessoas em condição peculiar de desenvolvimento a serem atendidos com prioridade
absoluta nas instituições públicas e pelos programas sociais. Segundo o ECA (1990),
a família, o Estado e a sociedade são responsáveis por garantir e promover os direitos
da população infanto-juvenil, assim como impedir qualquer tipo de discriminação,
violência e exploração.
Com a promulgação do ECA, o entendimento legal em relação aos adolescentes
apreendidos por cometimento de ato infracional também mudou. De acordo com a
Constituição Federal (1988) e com o Estatuto (1990), qualquer pessoa até os 18 anos
é inimputável, ou seja, não responde criminalmente por atos eventualmente cometi-
dos, entre aqueles previstos no Código Penal. Aos jovens de 12 a 18 anos incomple-
tos que cometeram ato infracional, a autoridade judicial pode aplicar uma medida
socioeducativa, nunca uma pena. Durante o cumprimento de qualquer das medidas
previstas no artigo 112 do ECA, todos os direitos dos adolescentes são garantidos,
com a única exceção da liberdade no caso da medida de internação. O adolescente
passou a usufruir do acesso a medidas protetivas do direito, quando necessário55,
além dos direitos individuais especificados nos artigos 106 a 109.
As finalidades das medidas socioeducativas são: a responsabilização do ado-
lescente em relação às consequências dos seus atos; a busca pela sua reparação; a
integração social e a garantia dos direitos individuais e sociais; e a desaprovação da
conduta entendida como infracional (ECA, 1990). São seis as medidas socioeduca-
tivas previstas no artigo 112 do ECA: advertência; obrigação de reparação do dano;
prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; semiliberdade e internação.

55 Ver Curi (2021).


170

A medida de internação é privativa de liberdade e, em teoria, exige brevidade,


excepcionalidade, e respeito à condição peculiar de desenvolvimento do sujeito.
Assim, deve ser aplicada somente quando nenhuma outra medida for cabível.
Não há prazo previamente determinado para a duração da medida de internação:
ela deve ser revista a cada seis meses e pode se estender a no máximo três anos.
Passado este período, o adolescente deve progredir para a semiliberdade, liberdade
assistida, ou ser liberado (ECA, 1990).
Como forma de regulamentação da execução das medidas socioeducativas, a Lei
do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) foi implementada
em 2012. Essa legislação definiu normas e objetivos práticos da socioeducação e
especificou parâmetros normativos para a construção das unidades de internação, na
intenção de distingui-las da estrutura prisional. No entanto, as mudanças na infraes-
trutura, até o momento, são tímidas.
A superlotação das unidades de internação mostra que, também no sistema
socioeducativo, a lógica do “superencarceramento” é um problema recorrente, o que
indica que as normas do SINASE não estão sendo respeitadas e que a medida de inter-
nação não guarda o caráter excepcional que o Estatuto defende. Neste cenário, vemos
ainda que os jovens que cumprem medidas socioeducativas são em sua maioria negros
e pobres, o que nos obriga a formular uma outra questão: dentre todos os adolescentes
conduzidos às unidades de internação, por que os negros e pobres são alvos preferen-
ciais? A seletividade punitiva, produtora de processos de criminalização preferencial
da juventude e das famílias negras e pobres, opera em diversos níveis, inclusive nas
decisões judiciais da Vara de Infância e Juventude (VIJ)56 (SANTOS, 2021).
Tal seletividade também se faz presente ao analisarmos a evasão escolar que
atravessa a maior parte da história de vida destes adolescentes. Quando os jovens
são capturados pela ação policial e encaminhados à VIJ, frequentemente a evasão
escolar já ocorreu. Essa constatação, citada em inúmeros estudos (IPEA, 2003),
aponta para uma constância na violação do direito à educação e parece configurar
elemento importante no processo de exclusão.
Assim, a fim de pensarmos estratégias para a aplicação efetiva do ECA, é neces-
sário compreender como os mecanismos de exclusão social da infância e juventude
– em particular a seletividade punitiva e a evasão escolar, de que tratamos aqui – ope-
ram, de forma articulada, em um mesmo processo. Trata-se de um cenário em que as
duas instituições parecem interagir na produção da exclusão, otimizando-a: a escola
produzindo evasão e o sistema socioeducativo capturando esse público específico.
Neste trabalho, buscamos investigar a interseção entre o sistema socioeducativo
e a instituição escolar, no que tange à produção de processos de exclusão. Enquanto
objetivo específico, buscaremos analisar a evasão escolar e a seletividade punitiva
como principais dispositivos de exclusão. Algumas perguntas movem o presente texto:
o que o perfil escolar dos adolescentes capturados pela polícia e encaminhados à VIJ
revela sobre o papel da escola no processo de criminalização da juventude negra e

56 Na capital do Rio de Janeiro a Vara da Infância e da Juventude é de competência infracional, enquanto a


Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (VIJI) é de competência protetiva.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 171

pobre? Como a seletividade punitiva no sistema socioeducativo opera no processo


de exclusão e criminalização social? E sobretudo, a partir de uma perspectiva frei-
riana, como podemos pensar em estratégias de intervenção coletiva para tensionar
estes os processos e construir caminhos para a emancipação dos sujeitos e para a
transformação social?

Metodologia

Para essa discussão, valemo-nos do levantamento bibliográfico acerca dos


temas socioeducação e educação, assim como da coleta e análise de dados realizada
na Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro. A entrada na VIJ se deu a
partir da pesquisa de mestrado de uma das autoras do presente texto; a coleta de
dados foi autorizada pela juíza titular e contou com o apoio da equipe de psicologia,
que nos auxiliou com o programa Distribuição e Controle dos Processos (DCP)57,
utilizado pelos tribunais.
No DCP, acessamos os relatórios técnicos e as assentadas judiciais, a partir dos
quais levantamos informações capazes de traçar o perfil dos adolescentes apreendi-
dos e levados ao Núcleo de Audiência de Apresentação (NAAP). Criado em 2016, o
NAAP é integrado por membros das equipes e por operadores do direito que atuam
na VIJ, e tem o objetivo de garantir a aplicação de medidas de internação provisória,
sempre em caráter excepcional, evitando internações desnecessárias e garantindo a
celeridade do processo. Nas audiências de apresentação, decide-se pela internação
ou liberação provisória e o adolescente suspeito de cometimento de ato infracional
tem sua audiência de continuação agendada para o prazo máximo de 45 dias depois
da data da apreensão.
Foram analisados dados do NAAP correspondentes ao período de setembro de
2018 a agosto de 2019. O levantamento ao longo do período de um ano visa cobrir
variações sazonais que impactam a prática de atos infracionais, o modo da intervenção
policial e a quantidade de apreensões de acordo com o mês. Em março, por exemplo,
analisamos 59 processos e em julho, 16. Selecionamos os processos abertos nos três
primeiros dias (segunda, terça e quarta feira) de cada mês. Ao todo, examinamos 401
processos, que dizem respeito a 377 adolescentes.
Em relação ao perfil dos jovens, foram coletados dados sobre a idade, cor da
pele, bairro de moradia, escolarização, trabalho, coabitação, número de irmãos, uso
de drogas, ato infracional, reiteração do ato infracional e presença do responsável
na audiência. Também registramos qual juiz conduziu a audiência e o registro da
realização, ou não, de estudos técnicos.
Neste trabalho analisaremos os dados referentes à idade, escolarização e relação
entre decisões judiciais, ato cometido e aspectos psicossociais, assim como o recorte
de raça, classe e território.

57 O programa DPC (Distribuição e Controle dos Processos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro)
é utilizado pelas equipes técnicas e operadores do direito em diversas varas para acesso às informações
de processos e audiências.
172

Resultados e discussão

Os dados coletados no NAAP mostram que a única informação que impactou


significativamente o deferimento da medida socioeducativa foi o ato infracional
propriamente dito, o que indica uma ênfase na via punitiva do sistema socioedu-
cativo. A escolha da medida socioeducativa pela autoridade judiciária, no curso do
processo, foi pautada sem levar em consideração aspectos psicossociais importantes
tais como: a convivência familiar e comunitária, a inserção escolar e a realização
de atividades remuneradas por esses jovens. Dessa forma, a garantia dos direitos
individuais e sociais dos adolescentes, assim como o princípio de integração social
e o respeito à condição peculiar de desenvolvimento, são lançados a segundo plano.
Trata-se de expedientes que resultam na ampliação do número de adolescentes em
cumprimento de medida de internação, arriscando a superlotação das unidades e
produzindo mais encarceramento.
Os dados pesquisados indicam que a evasão escolar, muitas vezes, antecede a
captura dos adolescentes pela polícia. Dentre os 377 adolescentes pesquisados, 219
não estavam matriculados no momento da apreensão, e apenas 145 frequentavam
a escola. Este dado sugere que a garantia do acesso e a permanência na escola são
negadas, na maioria dos casos, antes dos jovens serem apreendidos.

Tabela 1 – Frequência à escola na audiência de


apresentação (setembro – 2018 a agosto – 2019)
N %
Estuda 145 38,5
Não estuda 219 58,1
Não consta 13 3,4
TOTAL 377 100

A evasão escolar é significativa e não parece acidental, na medida em que


tanto o abandono escolar quanto a captura dos jovens por ação policial acomete, em
sua grande maioria, um grupo específico que se define a partir de critérios de raça e
classe58. Embora tratada como fenômeno individual, examinada de perto, a evasão
escolar revela determinantes sociais claros que encobrem questões sociais e políticas e
desautorizam qualquer processo de culpabilização seja do jovem, seja de sua família.
A evasão escolar induz a exclusão por muitas vias. Em primeiro lugar, e por
óbvio, ela limita o acesso à informação e ao conhecimento; mas estar fora da escola
também cerceia a possibilidade de formação de vínculos sociais e, como sabemos,
laços sociais são fundamentais para o acesso e a participação nas dinâmicas sociais.
Além disso, o jovem que não estuda é muitas vezes enquadrado como desviante, seja

58 No Brasil, em 2019, 2,8 milhões de pessoas brancas e 7,2 milhões de pretos e pardos entre 4 a 29 anos
estavam fora de instituições de ensino. Em relação àqueles que já frequentaram e depois abandonaram a
escola, a taxa é de 27,1% para brancos e 71,8% para pretos e pardos (IBGE, 2020).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 173

porque não passou pelo processo de normalização das condutas, empreendido pela
escola, seja porque não permaneceu nele. Na perspectiva higienista, estar fora da
escola significa um incremento do potencial criminoso de uma juventude historica-
mente vista como perigosa ou em perigo de se tornar perigosa. As ideias de herança
positivista colam a noção de periculosidade aos adolescentes negros e periférios,
reforçando a “identidade criminosa” e o “estigma de delinquente”. Esse imaginário
social é a base de uma política de controle que criminaliza as vidas dessa população.
Assim, práticas discursivas racistas e classistas sobre a evasão escolar contribuem para
o controle, a neutralização e o aniquilamento dessa parcela da juventude brasileira.
Retornando aos nossos 377 adolescentes pesquisados, lembramos que apenas
145 deles estudavam no momento em que foram apreendidos pela força policial.
Entre eles, 76,6% estão em distorção de série-idade. A reprovação escolar acontece,
majoritariamente, quando a criança ou o adolescente não atinge a média exigida nas
provas regulares ou quando acontece um número elevado de faltas escolares. Essa
distorção série-idade marca a trajetória escolar da maioria dos jovens apreendidos,
o que indica que mesmo entre aqueles que estudam, a qualidade do ensino parece
precária. A defasagem escolar é um problema sistêmico no Brasil e atinge 20% dos
alunos matriculados na rede pública. Fatores como raça, classe, gênero, deficiên-
cia e região de moradia influenciam sua incidência (UNICEF, 2018), o que indica
que as desigualdades sociais estruturam o fenômeno. Assim, a distorção série-idade
contribui, e por vezes decorre, da falta de sentido do universo escolar nas realidades
sociais destes jovens.
Dentre os adolescentes que estudavam no momento da apreensão, 78,6% rece-
beram medida de internação provisória e 17,9% foram liberados. Dentre os que
não estudavam, 82,6% receberam medida de internação provisória e 16% foram
liberados. Ou seja, a aplicação da medida de internação provisória independe do
adolescente frequentar ou não a escola. Em outros termos, a escolarização não
impacta as decisões judiciais.
De acordo com o Estatuto, o poder público tem o dever de zelar por e garantir
os direitos infanto-juvenis. No entanto, a pesquisa aponta para uma atuação seletiva
do Estado, que captura um público específico para ocupar as instituições socioedu-
cativas e pune, ao aplicar a medida de internação de forma sistemática, sem buscar
ações efetivas para a garantia de direitos violados antes mesmo da apreensão policial.
Com a leitura das assentadas, constatamos que a única medida protetiva do direito
empreendida pelo poder público frente à evasão escolar é o encaminhamento para a
matrícula em uma escola. Todavia, essa ação isolada não coloca em xeque as ques-
tões estruturais produtoras do abandono escolar, tratando-o enquanto um problema
individualizado e pontual.

A otimização da exclusão: evasão escolar e seletividade punitiva

A partir dos dados produzidos e analisados neste trabalho, questionamos: a que


servem a seletividade punitiva e a evasão escolar?
174

A evasão escolar é um fenômeno que afasta os adolescentes do ambiente escolar.


Já a seletividade punitiva captura os jovens para dentro das unidades de internação
do sistema socioeducativo. Esses mecanismos vão definindo quais espaços os ado-
lescentes negros e pobres ocupam na nossa sociedade. Assim, tanto a escola quanto
o sistema socioeducativo operam no controle da população infanto-juvenil, direcio-
nando os jovens brancos e de classes mais altas preferencialmente para o espaço
escolar e os jovens negros e periféricos prioritariamente para ocupar as unidades de
internação do sistema socioeducativo.
Os adolescentes submetidos às unidades de internação e expulsos da escola são
considerados inúteis para o mundo59 na sociedade neoliberal. A repressão, o controle
e o aniquilamento dessa parcela da população escancaram contradições sociais cada
vez mais profundas do sistema neoliberal, marcado pelo aumento das desigualdades
sociais e pelo desmantelamento das políticas públicas.
Os processos de criminalização são centrais para o consentimento silencioso de
grande parte da população diante das práticas truculentas do Estado. Como já men-
cionado, a concepção de periculosidade associada aos jovens negros e periféricos é
potencializada diante da captura dos adolescentes pela ação policial e subsequente
encaminhamento às unidades de internação. Ao perceber esses jovens como peri-
gosos, grande parte da população passa a validar os aparatos repressivos do Estado,
compreendendo-se como vítimas em potencial (GARLAND, 2008).
Ao atuar de maneira diversa da previsão legal, as medidas socioeducativas
parecem atender aos clamores sociais de penalização e exclusão dos indesejados.
Os adolescentes em cumprimento de medida de restrição ou privação de liberdade
sofrem frequentemente com agravos à saúde mental e física (MEPCT/RJ, 2017).
Para além da restrição de liberdade, o rompimento de vínculos, a fome, a tortura, a
falta de cuidados de saúde, a superlotação, são autorizados simbolicamente por meio
de uma lógica de “merecimento moral”. Disciplinar através da dor é reflexo de uma
sociedade prisional e manicomial que localiza e encerra o problema nos indivíduos
e aposta que, ao lançar a pessoa aos território de sombra, em alguma medida ficam
solucionados os problemas de insegurança social60.
Assim sendo, a seletividade punitiva e a evasão escolar são fenômenos corre-
latos ao funcionamento dos aparatos políticos-institucionais pautados no controle,
na coerção, na punição e no aprisionamento de uma parcela específica da população.
Apesar da ampliação do acesso à política de educação nos anos 199061, é pos-
sível identificar a ascensão do neoliberalismo, acompanhada do sucateamento das

59 Expressão utilizada por Castel (1997) para designar os indivíduos considerados descartáveis no sis-
tema neoliberal.
60 https://www.cidadaocultura.com.br/como-responsabilizar-sem-ser-punitivista/
61 A partir dos movimentos sociais de luta pela garantia dos direitos infanto-juvenis e com a promulgação
do ECA em 1990, houve uma ampliação do acesso à política de educação (SIMAS; ARRUDA, 2022). O
analfabetismo diminuiu de 14,9 milhões em 2001 para 9,8 milhões em 2019. A taxa de escolarização de
crianças entre 4 e 5 anos atingiu 99,7% da população no mesmo ano. Em contrapartida, apenas 32,4% dos
adolescentes brasileiros entre 15 a 17 anos frequentam a escola (PNAD, 2019), o que indica a permanência
de um alto índice de evasão ao longo dos anos escolares.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 175

escolas públicas e da precarização do ensino. Os jovens das classes dominantes


continuaram recebendo um ensino diferenciado que garante o acesso aos melhores
postos de trabalho, enquanto as classes populares permanecem com uma formação
voltada para o trabalho simples (BOURDIEU, 2008).
Ao longo dos anos (e até os dias de hoje), a estreita relação entre investimento
em capital humano e desenvolvimento econômico foi estabelecida a partir de uma
concepção de formação humana voltada exclusivamente aos interesses do mercado.
Na competitividade neoliberal, um dos fatores de atração de brasileiros para as indús-
trias estrangeiras é o baixo valor da mercadoria “força de trabalho” – a demanda é por
trabalho simples, negando o acesso ao conhecimento base para o trabalho complexo;
e minando o pensamento crítico e autônomo necessário para lutar por direitos. Pre-
senciamos um cenário de predomínio de atividades de baixo valor agregado e altos
índices de informalidade, que dispensam força de trabalho voltada para atividades
complexas, além de uma gritante falta de emprego – sobretudo em postos de trabalho
que assegurem acesso a benefícios sociais. Ou seja, mesmo diante de um cenário de
desemprego estrutural que atinge prioritariamente a população mais empobrecida, a
escola, de forma isolada e em uma perspectiva meritocrática, ainda é apontada como
único caminho possível para os jovens periféricos atingirem uma ascensão social
(MOTTA; FRIGOTTO, 2017). Tendemos a acreditar que o que falta não é emprego,
mas qualificação de pessoas para ocupá-los. Consequentemente, a escola é acusada
de preparar mal os jovens para a vida profissional, já que estes não conseguiriam tais
empregos (LAVAL, 2017). No entanto, sabemos que o argumento que associa difi-
culdade de expansão econômica exclusivamente à falta de profissionais qualificados
é falacioso, uma vez que culpabiliza a escola – individualizando as problemáticas
nos professores, famílias e alunos -; além de silenciar o projeto de fracasso escolar,
as estruturas racistas do mercado de trabalho e a crise econômica vigente.
Ao realizarmos o resgate histórico da instituição escolar, identificamos que
a escola ocupou um lugar de instituição responsável por manter a ordem social,
instrumento de moralização do povo, de controle social da criminalidade, de pre-
paro para o trabalho, marcando o pensamento educacional brasileiro desde o século
XVIII. Assim, as escolas, historicamente estruturadas por preceitos higienistas, são
vistas pela sociedade enquanto instituições salvadoras. Acredita-se que, ao veicular
princípios morais e bons costumes, e ao fornecer um diploma que permita aos jovens
supostamente conquistar um posto de trabalho, se atingirá o fim das transgressões
(PATTO, 2007). Esse salvacionismo isola a escola de uma rede de garantia de direitos,
alegando ser dever da mesma, sozinha, garantir o “futuro” destes jovens.
Ainda que a ampliação do acesso à política de educação tenha possibilitado
maior ingresso de jovens negros e periféricos nas escolas, a evasão escolar elucida o
modo como esses adolescentes, vistos como descartáveis pelo sistema neoliberal, são
expulsos desse espaço. O sistema socioeducativo, congruente com essa lógica, captura
justamente aqueles que são expulsos do ambiente escolar pelo fenômeno da evasão.
Após mais de 30 anos da promulgação do ECA, os mecanismos de exclusão
social parecem distorcer a finalidade das instituições voltadas para o cuidado e garan-
tia de direitos infanto-juvenis. Tanto a evasão escolar quanto a seletividade punitiva
176

são estruturadas por desigualdades raciais e de classe que expulsam e capturam estes
jovens, respectivamente. Ambos os processos produzem discursos criminalizantes,
atribuindo a evasão escolar ou o cometimento do ato infracional à esfera individual.
Essa individualização expurga da instituição escolar e do sistema de justiça os
mecanismos racistas e classistas que organizam e orientam a inclusão e a exclusão
social das juventudes. Assim, a interface entre a evasão escolar e a seletividade
punitiva vai definindo os espaços que os adolescentes negros e periféricos ocupam
na nossa sociedade.
Diante deste cenário estarrecedor, nos perguntamos como atuar a fim de sub-
verter a lógica em curso e fortalecer a luta pela garantia dos direitos infanto-juvenis.
Convocamos a teoria de Paulo Freire e a proposta de práticas antirracistas e antipuni-
tivistas enquanto ferramentas políticas para pensarmos estratégias de enfrentamento
aos mecanismos de exclusão social.

Reflexões freireanas: partilhando caminhos para emancipação

Paulo Freire define as classes populares como sujeitos da história e da educa-


ção. Convoca-nos a refletir sobre a educação como via de mobilização para o enfren-
tamento das estruturas de poder, apontando a participação dos setores populares na
produção do conhecimento a respeito de sua realidade. Trata-se de um educador que
parte da crítica à violência e à desumanização, para valorizar a sabedoria popular
e a história local.
Focou grande parte de seus esforços na alfabetização e na conscientização das
massas, em um país com metade da população analfabeta, submetida à desigualdade
e à opressão. A liberdade – a ser alcançada através da participação livre e crítica
dos educandos – “suleava” sua pedagogia. “Não é possível”, diz Paulo Freire, “dar
aulas de democracia e, ao mesmo tempo, considerarmos como ‘absurda e imoral’
a participação do povo no poder. A democracia é, como o saber, uma conquista de
todos” (WEFFORT, 2016, p. 20) A seu ver, o olhar crítico, através da educação, seria
fundamental para o processo de democratização de um país.
A consequência necessária desses postulados é entender a educação como um
ato político. Crítico da educação bancária e reflexa, na qual o conhecimento seria
depositado em alunos transformados em meros receptáculos de informação, Paulo
Freire defendia a ideia de uma educação problematizadora, que instigasse a reflexão
nos educandos e nos educadores. Caberia aos educadores possibilitar a criação e
a produção de conhecimento de forma diretiva e informativa, abrindo acesso ao
conhecimento crítico e veiculado em uma relação horizontal.
Paulo Freire acreditava que cada aluno era portador de conhecimento cultural,
inaugurando o paradigma que valorizou a bagagem prévia e a cultura local dos
educandos. Para ele, a cultura consiste na aquisição da experiência humana. Diante
de uma sociedade letrada, esta aquisição se faz não somente pela via oral, mas
também pela sinalização gráfica. Logo, a democratização da cultura passaria pela
importância da alfabetização, concebendo, de forma crítica, a necessidade da leitura
e da escrita como vias para conhecer e transformar o mundo e para que o homem
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 177

se tornasse sujeito da própria história. Este processo levaria ao despertar de uma


visão libertadora do conhecimento, culminando em engajamento, compromisso e
conscientização política (FREIRE, 2016).
Assim sendo, é possível antever de que modo a proposição de uma educação
libertadora seria capaz de incidir sobre a realidade da evasão escolar – não a fim de
responsabilizar a educação tradicional por todas as mazelas sociais, mas apostando
na estratégia de construção de sentidos de uma cultura escolar transformadora. Freire
defende que o primeiro passo para lutar contra a opressão social é adquirir consciência
crítica sobre a relação entre opressores e oprimidos, de modo que essa reflexão con-
duza à prática transformadora. Uma Pedagogia do Oprimido é uma pedagogia forjada
com o oprimido (enquanto seres humanos, povo) e não para ele, na luta incessante de
recuperação da sua humanidade. É uma pedagogia humanista e libertadora, que faz
os oprimidos refletirem sobre a opressão e suas causas; resultando no engajamento
na luta por sua libertação (FREIRE, 1987).
A maioria das escolas públicas brasileiras ainda se pauta em uma concepção
bancária de educação. O sistema escolar frequentemente opera sob a lógica da exclu-
são, determinando por meio de discursos e práticas classificatórias o adolescente que
corresponde às expectativas escolares e aquele que deve ser corrigido: é uma escola
que produz fracassados, reproduz opressões e homogeneíza condutas (ESTEBAN,
1999; SCHEINVER; SÁVIO, 2015; FIORE, 2021).
Defendemos, a partir da teoria freiriana, a necessidade de mudanças para que a
escola produza conhecimentos plurais e reflexões críticas sobre a realidade. Pensa-
mos a escola pública não como escola para as classes populares, mas uma escola de
educação popular, tecida pelas classes populares, em diálogo com segmentos sociais
diversos, operando em rede intersetorial (ESTEBAN, 2007). Uma educação onde
o coletivo ocupe espaço de criação, com relações que ampliem os conhecimentos e
produzam significados, diálogos e reflexões partilhadas.
Do mesmo modo, frente às reverberações de uma educação hegemônica e
dominante, apontamos a educação antirracista e decolonial enquanto opção política
e pedagógica, uma resistência frente ao modelo tradicional, hegemônico, elitista e
neoliberal. Diante do modelo educacional produtor de lógicas excludentes, como
podemos pensar uma educação nascida da luta emancipatória de diferentes sujeitos
sociais e capaz de resistir à subalternização dos conhecimentos e das experiências
marginalizadas? (NETO; STRECK, 2019)
Uma educação antirracista é aquela que visa enegrecer suas referências, con-
vocando livros escritos por pessoas negras, compartilhando a história de pessoas
negras e suas conquistas (não somente a violência vivida), passando filmes dirigidos
e protagonizados por pessoas negras. Uma educação que conte nos currículos a
verdadeira história da escravização, que traga o olhar de abolicionistas negros; das
diversas revoltas com protagonismos negros; que aborde a importância dos quilombos.
Escolas que falem sobre o privilégio racial, que pensem uma educação antirracista
a partir da dimensão dos afetos dos textos literários; que mergulhem em narrativas
literárias a partir das quais as crianças se identifiquem, se reconheçam, e possam ser
178

parte da produção de conhecimento no espaço escolar62. Talvez assim, diante de tantos


elementos que contribuem para a expulsão dos jovens do universo escolar, possamos
construir estratégias produtoras de sentido, de vínculo com a escola e com os saberes
ali produzidos. Que a luta por uma educação crítica não venha isolada da luta pela
garantia de direitos básicos desses jovens, violados cotidianamente.

O fazer socioeducativo: perspectivas antirracistas e antipunitivistas

Existe uma disputa histórica na socioeducação: afinal trata-se de segurança


ou de educação? A lógica punitiva e seletiva do sistema socioeducativo alinha-se a
uma política de segurança estruturada pelo racismo e produtora de desigualdades,
na contramão das previsões legais. O processo de encarceramento e a aplicação de
medidas socioeducativas são práticas políticas baseadas em imaginários de risco e
perigo, onde a decisão não é pautada na ética emancipadora, mas em moralidades e
concepções punitivistas. As práticas socioeducativas repressivas e de neutralização se
organizam a partir do racismo enquanto tecnologia de poder e do punitivismo como
mecanismo de criminalização e controle social. Apontamos para a possibilidade de
compreensão da raça como categoria social que diferencia, hierarquiza e localiza os
sujeitos em nossa sociedade. A proposta é entender o racismo que estrutura a seleti-
vidade do ponto de vista psicossocial e não psicologizante: não localizar no sujeito
discriminado a responsabilidade pela discriminação que vive cotidianamente, e sim
nas relações de poder entre diferentes grupos (SANTOS et al., 2012).
O Judiciário opera a partir de um processo contínuo de significados produzidos
pela dimensão relacional entre práticas sociais e as legislações vigentes (SCHUCH,
2003). Dessa forma, nossas ações e discursos vão incidir no fazer socioeducativo. A
socioeducação é uma prática política e ética sustentada pela sociedade civil, polícia,
escola, família, sistema socioeducativo e seus funcionários. Espaços de debate com
a defesa de perspectivas antirracistas e antipunitivistas tornam-se fundamentais para
traçar os limites, objetivos e o funcionamento desse sistema. A defesa dos direitos
plenos dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa deve passar pelo
direito à educação e outros direitos humanos básicos. Como garantir que a socioe-
ducação seja emancipatória, e não ferramenta de controle social?

Considerações finais

Propomos aqui uma reflexão sobre as nossas práticas que faça parte do fazer
socioeducativo em nome da emancipação e da autonomia, e não de resposta ao clamor
público por mais apreensões e de aniquilamento de potências e vidas.
Estabelecer uma perspectiva antirracista na análise acerca da seletividade puni-
tiva e da evasão escolar é desnaturalizar as “zonas do não-ser” (FANON, 2008): esse
sistema de poder racista que legitima a desigualdade entre seres humanos, essa zona

62 Reflexões baseadas no Instagram @escurecendofatos


BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 179

que acompanha a população negra, para quem a humanidade é negada. Um processo


que naturaliza e banaliza a violência racial, autorizando as atrocidades direcionadas
às populações racializadas.
Nesse sentido, traçamos dois horizontes de luta de modo a intervir na exclusão
social: por um lado, propomos o caminho de uma educação libertadora e antirracista a
partir da perspectiva freireana, a fim de incidir em uma face da problemática da evasão
escolar. Por outro, propomos um fazer socioeducativo alinhado a uma perspectiva
antirracista e antipunitivista com o objetivo de fortalecer a luta por uma socioeducação
mais próxima de ideais emancipatórios e libertadores. Que possamos nos engajar em
projetos de resistência, de transgressão e de insurgência, que nos desafiem a desa-
prender a pensar a partir das referências das epistemologias hegemônicas, fazendo
das fissuras lugares de potência (WALSH, 2017).
180

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AMAZÔNIA E BIOPODER: racismo
de estado e de sociedade no deixar
morrer e matar em nome da vida
Igor do Carmo Santos
Flávia Cristina Silveira Lemos
Paula Arruda
André Benassuly Arruda
Vitor Igor Fernandes Ramos
Ragner Santiago Boaventura
Michelle Ribeiro Corrêa

Introdução

Busca-se pensar neste texto o biopoder na Amazônia paraense a partir da crí-


tica ao racismo de Estado e de sociedade no deixar morrer e matar em nome da vida.
Ao verificarmos a política de direitos humanos em relação a sua proteção e garantia,
percebemos imensos paradoxos, já que por um lado vemos um intenso processo de
criação de leis e decretos que visam oferecer a efetivação desses direitos, enquanto
no âmbito da prática vemos uma política de extermínio de determinados setores,
na qual, ou efetivamente se mata, através do aparato repressivo da máquina estatal
ou, simplesmente, deixa-se morrer através do precário investimento nas políticas
públicas que garantiriam uma maior igualdade e justiça social. Esse paradoxo, que
circunscreve o discurso de direitos humanos pode ser pensado a partir da noção
de racismo de Estado.
O racismo de Estado é um conceito desenvolvido por Foucault que pode ser
mais bem entendido se seguirmos o percurso da trajetória de seu pensamento. Fou-
cault inicia a sua análise a partir da apreciação de como a soberania, no sentido
político clássico, se apossou sobre o poder de vida e de morte sobre seus súditos,
ou seja, como o soberano com o direito de matar exerceu um direito sobre a vida
de seus súditos e “é essencialmente um direito de espada. [...] É o direito de fazer
morrer ou de deixar viver” (FOUCAULT, 1999, p. 287). Em seguida, Foucault já
nos fala de uma transformação nesse direito político da soberania que vai gerar
um novo direito, um direito “que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo,
perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente
inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer” (FOUCAULT, 1999, p. 287).
Essa inversão viria desde o nascimento do contrato social quando os súditos delega-
vam ao soberano poder sobre sua própria vida, já que o contrato residia justamente
numa expectativa de proteção sobre a vida, constituindo assim, um novo direito
para o soberano, um direito sobre a vida.
184

Ao seguir sua análise sobre este novo direito político, Foucault abdica de uma
análise a partir da teoria política, mas sim, como é de praxe na sua genealogia, no nível
dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. Uma primeira tecnologia que
aparece é aquela que se centra no corpo do indivíduo, cujos procedimentos visavam
assegurar sua distribuição espacial, aumentar-lhes a força útil, tendo em vista tornar
esses corpos úteis economicamente e dóceis politicamente, esta tecnologia foi cha-
mada por Foucault de uma tecnologia disciplinar do trabalho. A segunda tecnologia
que vai surgir na segunda metade do séc. XVIII está, segundo Foucault, em outro
nível da tecnologia disciplinar e que por isso não suprime esta. Este outro nível não
se refere mais ao corpo, ou homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem-espécie,
aos próprios processos da vida, e por isso vai ser chamada de biopolítica, diferente
da tecnologia disciplinar que pode ser vista como uma anátomo-política, já que atua
no nível do corpo (FOUCAULT, 1999).
Essa anátomo-política que compõe a disciplina vai se ocupar da “multiplicidade
dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos
individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos”
(FOUCAULT, 1999, p. 289). A biopolítica atua também sobre a multiplicidade dos
homens, mas atem-se naquilo que a multiplicidade forma, ao contrário de corpos,
“uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que
são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.”. Assim, essa
biopolítica vai ter como seus primeiros alvos de controle, primeiros objetos de saber,
os processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade, os problemas econô-
micos e políticos, e para isso vai lançar mão da medição estatística, das primeiras
demografias. Esses procedimentos aplicados à população vão permitir uma maior
quantificação dos principais processos da vida e regular estes processos a partir de
três domínios principais: a questão da natalidade, da mortalidade e da longevidade,
onde a biopolítica atua para fazer a vida se estender ao máximo, utilizando-se da
medicina para exercer a higiene pública, com campanhas de higiene e medicalização
da população; a questão da velhice, dos acidentes e das doenças, que vai fazer surgir
às instituições de assistência, de poupança, de seguridade; e por último, a questão
do meio geográfico, ou seja, do espaço, onde a preocupação com a organização da
cidade vai surgir (FOUCAULT, 1999).
É no encontro entre as duas principais tecnologias de poder do estado liberal,
o disciplinar e o regulamentar, o que se aplica ao corpo e aquele que se aplica à
população, a anátomo-política e a biopolítica, é neste encontro que vai ser possível
emergir a sociedade da norma. A norma como aquela que se aplica tanto a um corpo
que se disciplina, como a uma população que se regulamenta. Assim, a sociedade de
normalização se caracteriza por ser um poder que:

[...] tomou posse da vida, [...] incumbiu-se da vida, [...] conseguiu cobrir toda a
superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante
o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de
regulamentação, de outra (FOUCAULT, 1999, p. 302).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 185

É dentro desse poder, que tem como objeto e objetivo a vida, que Foucault vai
se perguntar como um

[...] poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de
aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de
desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como, nessas
condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a
morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos,
mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem essencialmente
o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder da morte,
como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?
(FOUCAULT, 1999, p. 304).

É para dar respostas a essas indagações, que Foucault vai se referir ao racismo,
que passa a se inserir nos mecanismos do Estado a partir da emergência do biopo-
der. Mas, afinal, como esse racismo vai compor essas novas tecnologias de poder e
fazer com que os mecanismos fundamentais do poder dos Estados modernos passem
fundamentalmente pelo racismo? Isso deve ser respondido através de outra pergunta
fundamental: o que é o racismo dentro desse biopoder? E Foucault nos dirá que é:

[...] o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incum-
biu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo
biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a
hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao con-
trário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo
do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população, uns grupos em relação aos outros. [...] Essa é a primeira função do
racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se
dirige o biopoder (FOUCAULT, 1999, p. 304).

É, afinal, nesse entremeio, em que se promovem cisões, outra função do racismo


dentro do biopoder emerge, uma função que, segundo Foucault, é a de uma relação
positiva do tipo “‘quanto mais você matar, mais você fará morrer’, ou ‘quanto mais
você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá’. [...] É a relação guerreira:
‘para viver, é preciso que você massacre seus inimigos’. Mas o racismo faz justamente
funcionar, faz atuar essa relação do tipo guerreiro – ‘se você quer viver, é preciso
que o outro morra’ – de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente,
é compatível com o exercício do biopoder” (FOUCAULT, 1999, p. 305).
Essa noção de racismo de Estado e, podemos dizer, de sociedade (já que a prática
de “deixar morrer” não está restrita aos órgãos e aparelhos estatais, mas capilarizada
em todo o corpo social), permite uma nova ótica para a compreensão desse processo
no qual pessoas que se dedicam a lutar por direitos humanos se encontram em um
processo cotidiano de difamação, criminalização e vitimização. Esse racismo, como
se pode perceber ao longo do texto, atravessa toda a política de direitos humanos e
seus inúmeros discursos, pois, como disse Boaventura de Sousa Santos (2010), nem
186

toda política de direitos humanos será necessariamente emancipatória, mas muitas


trazem em seu escopo concepções hegemônicas que dificultam posturas que promo-
vam o respeito a diversidades e a busca de justiça social.
Ao refletirmos sobre essas dificuldades encontradas para a efetiva garantia e
promoção dos direitos humanos, encontramos na noção de racismo de Estado e de
sociedade elementos que nos possibilitam pensar como essas mortes (a morte pensada
como um elemento político que a Soberania toma para si no intuito de “fazer morrer”
determinadas vidas) continuam a ocorrer de forma naturalizada. E vemos que essas
mortes se tornam naturais justamente pelo elemento racista que compõe e faz parte do
Estado e atualiza neste aquele direito antigo da Soberania de “fazer morrer” aqueles
que eram contrários ou indesejáveis para o exercício do poder soberano.
Esse paradoxo que, como vimos, penetra e perpassa esse Estado por meio
de uma lógica biopolítica, se encontra presente também no discurso dos direitos
humanos. Na verdade, como aponta Both (2008), a partir do momento em que os
discursos dos direitos humanos se constroem enquanto o grande discurso verdadeiro
da sociedade ocidental, ele passa a exercer uma função bipolar, já que, por um lado,
ele legitima as sociedades biopolíticas e, portanto o racismo que atravessa este, e
de outro lado, é por meio desse discurso que se operam as principais resistências.
Quando, por exemplo, Santos (2003) se pergunta se o “direito poderá ser emanci-
patório?”, ele não responde de forma definitiva, justamente para ressaltar o quanto
o discurso dos direitos humanos pode ser tanto hegemônico (e, portanto, operar a
lógica biopolítica), como contra-hegemônico (e, a partir daí, produzir resistências na
produção de novas maneiras de se reconhecer e proteger direitos).

Amazônia: uma cartografia da morte

A cidade de Belém do Pará completou 400 anos de existência no ano de 2016,


e assim como em seu início, quando da época de sua fundação com a implantação
do Forte do Presépio, a cidade e seus habitantes parecem ainda olhar apenas para o
lado de fora, como uma fortaleza que não olha para as ruínas dentro de sua própria
estrutura. Como vimos na apresentação deste trabalho, o Estado do Pará é um dos
estados brasileiros que apresentam os mais altos índices nos dados que se referem à
violência e mortes no campo em nosso país. Porém, seja no campo ou na cidade, o
número de conflitos que levam a óbito são alarmantes e apontam as pistas necessárias
para percebermos as razões pelas quais os “direitos humanos” no Estado são tratados
usando-se como instrumento principal a “bala”.
De acordo, por exemplo, com os últimos dados do Mapa da Violência de 2015,
no que se refere às mortes causadas por armas de fogo, dentro da Região Norte, Pará
e Amazonas lideram o crescimento da mortalidade na região, que duplicou no período
de 2002/2012 com um aumento de 135,7% em relação à década anterior. No mesmo
período, o Pará sozinho teve um aumento de 204% no número de mortes causadas
por armas de fogo. Na Região Norte, Belém lidera essa estimativa no que se refere
às capitais, tendo um aumento de 122,5% nesse mesmo quesito. É importante des-
tacar que em relação aos municípios, três das vinte e cinco primeiras cidades nesse
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 187

ranking são do Pará, que são: Ananindeua, Marituba e Marabá. As duas primeiras
cidades compõem à Região Metropolitana de Belém. Ananindeua acaba por ser a
segunda cidade no Brasil com a maior taxa de homicídios por arma de fogo, com
uma taxa de 104,9%.
Esses dados apresentados expõem apenas uma face da violência que ocorre
no Estado, que nesse caso é prioritariamente uma questão urbana e que envolve
em grande parte a população jovem, negra e pobre das periferias da cidade. No
entanto, existem outras faces da violência no Estado que acometem principalmente
as populações rurais onde as novas fronteiras aparecem como um lugar vazio a ser
ocupado e utilizado por quem detém um poder econômico e político. Essa acaba
por ser uma das principais causas e razões das ameaças direcionadas a pessoas que
lutam por seus direitos no Pará. E para entendermos melhor esse quadro é importante
conhecer um pouco da história do Brasil e do Estado que acaba por desenhar essa
cartografia da morte.
O jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto, que há mais de 25 anos é o editor
do “Jornal Pessoal”, um jornal alternativo que circula em Belém do Pará e que, na
maioria das vezes, entra em confronto direto com os interesses dos principais donos
dos oligopólios midiáticos e das grandes multinacionais presentes na região, afirma
ter alguns testes que gosta de aplicar aos amazônidas e a todos aqueles que gostam
de dizer que são especialistas da região. Um dos testes que ele aplica, na verdade,
nada mais é do que um convite: “Você gostaria de comer uma costeleta assada de
aviú?”63. Se a reação à pergunta for levada com um bom humor de quem sabe que
aquela pergunta carrega certo tom irônico, é porque essa pessoa deve conhecer um
pouco mais de perto a região (PINTO; KZAM, 2012).
Esse “teste” induzido pelo jornalista, apesar de aparentemente ser uma “pega-
dinha” ou “brincadeira”, exemplifica algo muito comum na região. A presença de
inúmeros “especialistas” sobre a Amazônia que com seus aparatos tecnológicos cheios
de sofisticação capazes de fornecer inúmeras imagens de satélites dessa região, pouco
conhecem ou fazem parte daquilo que é produzido no que se refere aos saberes e
práticas daqueles que vivenciam e convivem com as riquezas que tanto aguçam a
cobiça desses especialistas. Não é à toa que, como afirma Gonçalves (2010), as ima-
gens que se apresentam da região amazônica é mais uma imagem “sobre” a região
do que “da” região.
Atentos ao risco que a afirmação de um olhar de “fora” e um olhar de “dentro”
da Amazônia pode trazer, é preciso antes esclarecer alguns pontos. É claro que em
termos analíticos, a ideia de olhares dicotomizantes sobre a Amazônia recai em um
jogo maniqueísta onde, a depender do seu “lado” no jogo, estarão possíveis respostas
para as problemáticas enfrentadas na região64. No entanto, quando trazemos esse

63 O aviú é o mais minúsculo dos camarões, com cerca de três centímetros de comprimento, que se come cozido.
Cada garfada deve carregar pelo menos uma dezena deles. Por isso a ironia na questão e a necessidade
de um conhecimento íntimo da cultura e gastronomia da região.
64 Uma analítica do poder, nos termos foucaultianos, visa escapar dessas análises dicotômicas para dar pas-
sagem às multiplicidades de forças que compõem as relações de poder. Nesse tipo de análise, também se
evita pensar os discursos em termos ideológicos, mas sim em disputas de saber-poder (FOUCAULT, 2013).
188

jogo do que está “dentro” e o que está “fora”, temos o intuito de usar uma estratégia
apontada por Foucault (1995) para pensar a economia das relações de poder:

Gostaria de sugerir uma outra forma de prosseguir em direção a uma nova econo-
mia de poder, que é mais empírica, mais diretamente relacionada à nossa situação
presente, e que implica relações mais estreitas entre teoria e prática. Ela consiste
em usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder como um
ponto de partida. Para usar uma outra metáfora, ela consiste em usar essa resis-
tência como um catalisador químico de modo a esclarecer as relações de poder,
localizar sua posição, descobrir seu ponto de aplicação e os métodos utilizados.
Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela
consiste em analisar o poder através do antagonismo das estratégias (p. 234).

Queremos dizer com isso que, ao fazer uso desse jogo, pensamos os olhares de
“dentro” da Amazônia como possibilidades de analisar esse jogo a partir das resis-
tências forjadas dentro de um campo em que as lutas perfazem aqueles três tipos
que, de acordo com Foucault (1995, p. 235), no mesmo texto citado anteriormente,
apresenta como sendo característicos da nossa sociedade:

Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as formas de
dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que separam
os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a
si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as
formas de subjetivação e submissão). Acredito que na história podemos encontrar
muitos exemplos destes três tipos de lutas sociais, isoladas umas das outras ou
misturadas entre si. Porém, mesmo quando estão misturadas, uma delas, na maior
parte do tempo, prevalece.

Essa divisão analítica que Foucault propõe é interessante para pensarmos como
operam muitas das lutas que envolvem o contexto amazônico e como essa domina-
ção, exploração e formas de submissão, geralmente ocorre pela via do “estrangeiro”,
daquele que vem de fora para colonizar, submeter e se apropriar das riquezas que
fazem parte do território. Portanto, reiterando novamente o cuidado na divisão entre
o “autóctone” e o “forasteiro”, quando falamos em Amazônia essa divisão passa a
ser mais que um clichê ou um argumento retórico, mas um elemento histórico.
A figura historicamente forjada do “colonizador” passa a ser um tipo de subje-
tividade, que nos termos de Guattari (1986), poderia ser pensada mais enquanto uma
produção que é feita por máquinas territorializadas de um tipo que poderíamos chamar
de imperialista. O “colonizador” moldado por esse tipo de máquina mais tradicional
se configura como aquele que invadi, extrai e explora um território que não é o seu,
mas que tomado à força, passa a imperar sobre este de forma a dominar, explorar e
sujeitar o “colonizado” com as máquinas que compõem seu sistema-mundo.
Esse modo de subjetivação imperialista acaba por demarcar muitas das visões,
olhares, intervenções, projetos, que vão ser operados na Amazônia ao longo de sua
história. É claro que, pelo fato da história não ocorrer de maneira linear, outros devires
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 189

aparecem nesse entremeio para produzir maneiras de resistir perante essa maneira
imperialista de enxergar esse território. O encontro dessas forças pode ocorrer de
diversas maneiras, e podemos encontrar vestígios delas em diversos locais. Nessa
parte do trabalho, buscaremos trazer alguns desses vestígios deixados nos documentos
analisados e que trazem algumas das lutas que perfazem o solo paraense e amazônico.
Como dizíamos anteriormente, o olhar e a imagem construída sobre a Ama-
zônia foi forjada, sobretudo, por um olhar “estrangeiro”, e marcada quase sempre
por uma grande invisibilidade. Uma invisibilidade seletiva, claro, já que quando
se tratava de pensar na importância da Amazônia para o Brasil, sempre saltava aos
olhos sua grande riqueza “natural” que, como nos diz Velho (2009), garantiria ser-
mos finalmente o “país do futuro”. Velho (2009) nos traz um relato do antropólogo
Charles Wagley, que na década de 1950, fez uma descrição da região amazônica
que é interessante trazer aqui:

Essas áreas tropicais menos povoadas, como o vale amazônico, são de fato fron-
teiras. Atraem o nosso interesse não só por causa da sorte dos povos que as habi-
tam, mas também devido aos seus recursos inexplorados, a sua terra nova e a sua
potencialidade para uma ocupação futura. O vale amazônico, quase tão grande
como os Estados Unidos continentais, é uma das mais extensas dessas modernas
fronteiras tropicais. É também, possivelmente, a mais esparsamente povoada de
todas. O sistema de drenagem formado pelo grande Rio Amazonas e os seus muitos
tributários alcança seis nações sul-americanas [...] a maior parte do vale é brasileira
[...] A vida econômica do vale é claramente ‘primitiva e estagnada’. As técnicas
agrícolas utilizadas na Amazônia são principalmente as que foram herdadas dos
índios nativos, a agricultura de queimada. Em 1939 menos de meio por cento da
área total do Estado do Pará era cultivado, e isso era provavelmente um tanto
alto para o vale como um todo. O transporte se dá através de lentas embarcações
fluviais, a maioria das quais é movida a lenha. Existem apenas 1.600 milhas de
rodovias e 238 milhas de ferrovia em todo o vale. A indústria é primitiva e quase
inexistente. O comércio da região baseia-se na coleta de produtos da floresta, tais
como borracha, óleo de coco, peles e madeiras de lei tropicais. Serviços públicos,
tais como esgotos, luz elétrica e abastecimento de água são mínimos. [...] Até bem
recentemente apenas Belém e Manaus possuíam sistemas de esgotos e de abaste-
cimento de água, que eram claramente antiquados [...] Em vista de tais condições,
é bastante compreensível que a região amazônica do Brasil não tenha aumentado
de população de 1920 a 1940, enquanto o Brasil como nação experimentava um
incremento populacional de 36 por cento (VELHO, 2009, p. 182).

Foucault (2013) nos ensina em suas análises que devemos estar atentos àquilo
que se encontra “visível”, embora “não-dito” dentro de uma prática discursiva. A
descrição apresentada, embora “diga” diversas coisas, esconde dentro da sua própria
visibilidade inúmeras práticas discursivas cujos efeitos serão devastadores para a
Amazônia. Quando o antropólogo nos diz “essas áreas tropicais menos povoadas,
como o vale amazônico, são de fato fronteiras. Atraem o nosso interesse não só por
causa da sorte dos povos que as habitam, mas também devido aos seus recursos
190

inexplorados, a sua terra nova e a sua potencialidade para uma ocupação futura”, nos
mostra as descontinuidades de um discurso que se atualizará nos projetos direcionados
à Amazônia pelos governos brasileiros.
Tentativas de tomada do território amazônico ocorrem desde o período do Brasil
Colônia, onde espanhóis e holandeses buscaram conquistá-lo, o que gerou certo temor
das autoridades brasileiras da possibilidade de uma invasão estrangeira que tomasse
do Brasil essas terras tão valiosas. Esse discurso evidenciado de uma terra vazia e,
ao mesmo tempo, valorosa produzia uma necessidade de ocupar essa terra, antes
que fosse tomada, no intuito de explorar seus recursos. Assim, uma série de práticas
advindas principalmente do Estado brasileiro começou a incentivar a ocupação desse
território assentada em uma lógica desenvolvimentista (GONÇALVES, 2010).
Essa ocupação vai se dar, sobretudo, através da implantação de grandes projetos
que busquem integrar a Amazônia ao restante do país, com a construção de rodovias,
extrair os recursos minerais e aproveitar a potencialidade dos recursos hídricos,
instalando no território inúmeras hidrelétricas e grandes empresas, e promovendo a
ocupação através da criação de latifúndios, o que instalou uma das principais questões
de disputas em nosso território, ou seja, o problema da terra. Silva (2008) nos aponta
algumas características comuns desses grandes projetos de infra-estrutura que vêm
se instalar na Amazônia: a verticalização, fragmentação, insuficiência ou ausência
de políticas públicas adequadas à realidade regional e a violência como uma base
constitutiva da expansão do capital na região.
A verticalização e a fragmentação, por exemplo, são sintomáticas dos processos
que levam a ameaça de alguns defensores dentro dos documentos analisados. Segundo
Silva (2008), essas duas características se expressam na maneira com a qual esses
projetos são pensados e articulados, excluindo-se a participação efetiva da sociedade
local, onde de maneira vertical se produzem articulações dos grupos econômicos e
de segmentos sociais locais (parlamentares, burocracia governamental, empresários
e outros) na discussão e implantação desses projetos. Além disso, as implicações da
instalação de grandes projetos na Amazônia não apresentam uma visão abrangente
que acople o ambiente e as populações locais. Os danos econômicos, ambientais e
socioculturais permanecem e o que sobra no máximo são políticas compensatórias.
Sobre essas características, é exemplar o caso de um defensor do sexo masculino
e que já recebia proteção policial desde o ano de 2005, de acordo com o Relatório
de Monitoramento realizado pelo programa no ano de 2009. Esse defensor, que atua
na luta pelos direitos das comunidades camponesas e indígenas e pela preservação
ambiental na região amazônica, já denunciou a exploração sexual de adolescentes por
políticos e a emasculação e assassinato de meninos no Estado; vem denunciando a
atuação de latifundiários, grileiros, madeireiros e fazendeiros com práticas de traba-
lho escravo e de destruição ambiental; tem promovido o debate sobre a construção
da usina de Belo Monte que ameaça atingir comunidades indígenas e camponesas,
mas é de interesse de madeireiros e grandes empresários. As ameaças que começou
a receber e que culminaram no pedido de proteção vêm desde a morte da Irmã
Dorothy quando, por conta do trabalho conjunto, forneceu informações para que os
responsáveis pelo assassinato fossem presos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 191

O envolvimento nessas lutas que, como apontam, vão contra essas políticas
verticais na Amazônia lhe renderam inúmeras perseguições e ameaças. Em seu rela-
tório, por exemplo, o defensor relata que passou a sofrer diversas ameaças, seja
através de mensagens de policiais que ouviram “boatos” de planejamento de algum
atentado contra à vida do defensor, seja em manifestações em que esteve presente,
ou mesmo através de notícias de jornais. A partir daí, iniciou-se também um processo
que atravessa de forma muito comum à vida desses defensores que é a tentativa
de difamação e criminalização de sua imagem através de notícias de jornais que o
acusavam de roubo de madeira e formação de quadrilha, além da propagação de sua
imagem como um “porra-louca”.
O papel da mídia na vida desses defensores acaba por assumir um papel funda-
mental, seja por dar visibilidade a luta empreendida por esse sujeito, como também
divulgando informações que visem difamar e criminalizar a imagem desse defensor
diante da “opinião pública”. Vivendo em uma época regida pela égide da informação,
as diversas mídias acabam por serem verdadeiras armas de combate dessas lutas. A
todo o momento nos deparamos e nos confrontamos com informações provenientes
de grandes e pequenas mídias. Somos literalmente sufocados diante de tantas notí-
cias, informações, propagadas por veículos como televisão, rádio, internet expressas
diariamente por reportagens, manchetes, propagandas, que transmitem mensagens
com as quais, na maioria das vezes, não conseguimos dialogar e acabamos, por assim
dizer, nos sujeitando a essas informações e nos transformando em indivíduos, como
diria Guattari e Rolnik (2005).
Em um diálogo com esses autores, podemos perceber que a mídia, como um
importante agente transmissor de “cultura” da nossa sociedade, faz parte do que eles
chamam de “modos de produção capitalísticos” que se caracterizam não apenas por
um funcionamento exclusivo no “registro dos valores de troca, valores que são da
ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles
funcionam também através de um modo de controle da subjetivação” (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 21). É o que eles vão chamar de “cultura de equivalência”, pois
vai ocorrer uma equivalência entre o capital e a cultura de forma que estes vão agir
de forma complementar, na qual, o primeiro vai agir sobre a sujeição econômica, e
o segundo, na sujeição subjetiva.
Essa sujeição subjetiva é tão intensa que, por exemplo, Guareschi (2006) destaca
que nos países ocidentais as pessoas adultas assistem em média em torno de vinte
e cinco a trinta horas as suas televisões, e isso sem falar no tempo gasto escutando
rádio ou música estereofônica, lendo jornais, livros e revistas e durante o consumo de
outros produtos das grandes indústrias de comunicação de larga escala e transnacio-
nais. Isso significa dizer que é praticamente impossível nos constituir como sujeitos
hoje sem estabelecer alguma relação com a mídia, tal qual a sua ubiquidade dentro
da nossa sociedade. É por essa razão que esse tema aparece de forma tão recorrente
durante as práticas que promovem a criminalização desses defensores de direitos
humanos, pois a mídia aparece como um dispositivo que cria, forja, elabora imagens
cotidianas das lutas e movimentos a partir de olhares que não são universais, mas se
pretendem universalizantes.
192

O mesmo defensor mencionado anteriormente, em uma nova entrevista rea-


lizada no ano de 2011, relata que as calúnias que vinha sofrendo diminuíram nos
meios de comunicação, pois a visibilidade que lhe foi dada fez com que houvesse
cautela daqueles que tentavam denegrir sua imagem. No entanto, apesar da dimi-
nuição de tentativas de difamação à sua imagem pessoal, continuavam o acusando
de ser um entrave para o processo de desenvolvimento da Amazônia e que quer
ver a região embaixo de uma redoma e entregue ao retrocesso. Para o defensor, o
progresso deve estar assentado no ser humano e na família e não unicamente no
aspecto econômico e financeiro. Os episódios de difamação em que esteve envol-
vido e que estavam relatados no relatório anterior se encontravam, nesse segundo
momento, a cargo de procedimentos judiciais.
A mídia entra como um dispositivo nesse jogo em que, como qualquer outro,
é preciso saber o momento certo de atacar e de recuar, e de saber usar os mecanis-
mos de saber-poder corretos em uma disputa pelas verdades que devem entrar em
circulação. Não é a toa, que a prática discursiva de desenvolvimento para a região
Amazônica é utilizada para fazer valer o argumento de que o defensor seria um entrave
para esse objetivo. Esse mecanismo é utilizado pela mídia (principalmente a ligada
aos principais veículos de informação no país) juntamente com aquele que a coloca
como defensora do interesse público, difusora de informações e notícias objetivas,
pautada numa cobertura dos “fatos” de forma absolutamente imparcial.
Um olhar mais crítico dessa situação permite-nos enxergar que a notícia do fato
por si só guarda uma intenção, ela busca levar a determinados efeitos de verdade, não
a partir da intenção de um grupo maquiavélico que busca “dominar o mundo”, mas a
partir de práticas datadas, localizadas e provenientes de diversos grupos e interesses
sociais, políticos e econômicos.
É isso que permite Guareschi (2006) afirmar que os meios de comunicação
constroem realidades, ou seja, ela ajuda a produzir subjetividades que enxergam,
sentem e valoram o mundo a partir de uma ótica. Mais do que isso, a realidade é
aquilo que é veiculado através dos meios de comunicação, pois aquilo que não se
encontra na mídia, não existe, é irreal. É assim que cotidianamente não enxergamos
determinadas lutas, certas existências, que para muitos são invisíveis, como os pró-
prios defensores de direitos humanos.
Muitas vezes, presenciamos determinadas falas que questionam o desapareci-
mento de determinadas pautas de luta como se aquilo não existisse mais, tivesse feito
parte da história e hoje se encontrasse apenas nos registros da memória. Isso leva
a uma segunda afirmativa em relação à mídia: ela não somente diz o que existe e,
consequentemente, o que não existe, mas atribui determinados valores a essas exis-
tências. Aquilo que aparece e que é veiculado nas mídias, é bom, pois é digno de que
seja transmitido, que seja conhecido. Já aquilo que não passa nas mídias é indigno,
apenas merece registro se for pela via da infâmia, como nos coloca Foucault (2006).
Tudo isso põe em xeque a objetividade, imparcialidade, e interesse público da
mídia. E não é à toa que isso acontece. Segundo Castro (2012), existe um controle da
mídia por verdadeiros conglomerados globais que monopolizam a informação dentro
de uma economia globalizada. O autor menciona o caso brasileiro, onde aponta que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 193

existem no Brasil 9.477 veículos de informação, sendo que apenas uma minoria pro-
duz um conteúdo independente enquanto a maioria se vincula em redes com outros
veículos. Apesar de economicamente e tecnicamente a formação de redes ser algo
vantajoso, pois com isso se reduz gastos em termos de produção e ainda ocorre um
benefício da operação de marketing dos grandes grupos nacionais, como a Globo,
Record, SBT e Band, isso faz com que esses grandes grupos dominem o mercado
e produzam o conteúdo que será veiculado pela maioria dos veículos locais, o que
evita uma regionalização das programações.
Esse controle é que permite que a comunicação no Brasil e no mundo não
ocorra da maneira mais democrática, como se espera e como prevê a nossa própria
Constituição que proibi a formação de monopólio e oligopólio dos meios de comu-
nicação no nosso território. No entanto, na prática, o que se assiste é o domínio da
programação por essas grandes empresas que ditam, por exemplo, que o brasileiro
prefere um bom entretenimento à educação e cultura na grade televisiva.
Esse controle direto exercido por determinados grupos sobre a produção midiá-
tica no Brasil tem reflexos nas lutas pelas quais os defensores de direitos humanos e
os grupos e movimentos empreendem principalmente na Amazônia e no Estado do
Pará. Fonseca (2009), por exemplo, destaca como o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra (MST) vem sendo atacado por determinados veículos midiáticos
de forma intensa no Sudeste do País, como o jornal “O Estado de São Paulo” e,
principalmente, a revista “Veja”, da Editora Abril. Esta última se destaca pelo fato
de ser a revista semanal de maior tiragem no País e por representar os interesses
de uma classe historicamente contrária à reforma agrária, estando muitos de seus
proprietários ligados ao agronegócio. A intensidade da criminalização processada
pela revista contra o MST ocorre de forma tão intensa que Fonseca (2009) destaca
que, no período de janeiro a setembro de 2009, foram publicadas 11 matérias com
referências ao movimento nesta revista, e apenas nos meses de junho e julho não
tiveram registros sobre o MST.
E essas matérias quase sempre vinculam o MST a um movimento de vândalos,
arruaceiros, baderneiros, ou ligados a atitudes delituosas. Alguns títulos das matérias
exemplificam a forma como o movimento é abordado pela revista: “O Manual da
Guerrilha”; “Os inimigos da Vale”; “Eles invadem e também matam”; “Bolsa-Ba-
derna”; “Em defesa do direito a propriedade”; “Indiciados pela polícia de Pernambuco
seis integrantes do MST”; “Por dentro do Cofre do MST”; “Uma CPI para investigar
o MST” (FONSECA, 2009).
Essa criminalização sobre os movimentos sociais também ajuda a promover a
desarticulação dos embates que envolvem os defensores, além de vulnerabilizar a sua
condição por destituir sua rede de amparo e proteção. As organizações, movimentos,
associações que estão envolvidos grande parte dos defensores de direitos humanos
registrados nos documentos são, geralmente, suas únicas referências de luta. Na
maioria das vezes, se encontram a frente da gestão e organização do movimento e,
por essa razão, se encontram mais expostos a ataques e represálias daqueles com os
quais entram em conflito.
194

É importante ressaltar o aparecimento e papel dos movimentos sociais enquanto


um elemento importante nessas relações de forças que entram em jogo na situação dos
defensores de direitos humanos. Como falamos, esse é um elemento importante que
aparece dentro dos documentos enquanto uma peça a qual esses sujeitos se associam
e tem como importantes aliados. Esse papel dos movimentos sociais sofreu diversas
mudanças, principalmente no Brasil, quando da passagem do período do Governo
Militar no Brasil para aquele que leva à “Redemocratização”. A forte presença da
sociedade civil65 através de várias formas de mobilização e associações nesse período
foi marcante na proposição e atuação de diversas políticas públicas que viessem trazer
soluções para as diversas demandas trazidas por esses coletivos.
Gohn (2012) vai destacar quatro pontos fundamentais que favoreceram essas
mudanças no período mencionado: primeiro, a qualificação do movimento social
como um tipo específico de ação coletiva, já que, na atualidade, a configuração dos
novos movimentos se diferencia muito dos papéis que estes exerceram quando da
sua aparição no cenário político mundial durante a passagem do séc. XIX ao XX
(com o movimento operário e os movimentos revolucionários desde a Revolução
Francesa) como daqueles movimentos que emergiram nos Estados Unidos nos anos
de 1960 (direitos civis, feminismo, estudantil etc.).
A principal mudança dos novos movimentos reside na mudança de um olhar
universal para um mais particular, o que significa dizer que, se antes os movimentos
lutavam pelo “direito a ter direitos”, hoje, eles lutam por interesses imediatos, os
direitos de determinada categoria ou grupo social; o segundo ponto se refere às rela-
ções entre os vários sujeitos sociopolíticos que compõem uma sociedade marcada
por uma “globalização” econômica e cultural. Essas relações são marcadas por uma
ampliação dos sujeitos no protagonismo das ações coletivas, nas formas de mobili-
zação (de cima para baixo) e nas formas de atuação (em redes); o terceiro ponto é
demarcado pelas mudanças no papel do Estado nas suas relações com a sociedade
civil e em seu próprio interior, fundadas em contradições que permitem por um lado a
promoção da inclusão através de políticas voltadas a setores tidos como “vulneráveis”
e “excluídos”, ao mesmo tempo em que captura esses sujeitos em estruturas políticas
na busca de maior coesão e controle social; o quarto e último ponto são as várias
lacunas que ainda existem dentro do âmbito acadêmico a respeito dos movimentos
sociais, pois, apesar de sua presença marcante e de sua fundamental importância
dentro do espaço sociopolítico, ainda existem muitas dúvidas acerca do papel dos
movimentos sociais na sociedade.
São nítidas nos documentos analisados essas mudanças pelas quais os movi-
mentos sociais passaram dentro dos registros discursivos, ou seja, no âmbito da
materialidade das práticas operadas pelos defensores e coletivos nos quais atuam ou
se associam. Seja lutando contra a derrubada e a extração ilegal de madeiras; seja

65 Com o termo sociedade civil não queremos unificar e universalizar a multiplicidade de práticas e de produ-
ções de verdade que aí estão em jogo, nem pretender estabelecer uma dicotomia entre esta e o Estado,
pois esse também é atravessado por uma multiplicidade de discursos. Queremos apenas apontar esse
espaço de dispersão próprio em que geralmente são colocados os coletivos e movimentos sociais no Brasil
e no mundo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 195

denunciando a exploração sexual de adolescentes, ou o trabalho escravo nas diversas


regiões do Estado; seja denunciando invasões de terras com objetivos de especulação
imobiliária; seja lutando por “um pedaço de terra para morar”; seja lutando pelos
direitos das comunidades indígenas ou quilombolas; ou mesmo lutando contra a
implantação de grandes projetos na Amazônia e no Estado, esses defensores e seus
movimentos lutam por interesses mais imediatos, mais particulares e mais diretamente
envolvidos nas práticas enfrentadas cotidianamente.
Em relação ao novo papel dos movimentos, Sorj (2004) destaca algumas con-
dições que levaram a chamada “sociedade civil” a esse papel de protagonista no
atual cenário político mundial e aponta alguns perigos acerca da noção que tem se
construído sobre as atribuições desse “terceiro setor”. Uma das principais mudanças
está relacionada a uma crise de representação política através da política partidária. Se
antes os partidos exerciam um papel ativo na criação e promoção de utopias sociais
que guiassem a sociedade através de um programa político que atingisse a maioria da
população, esse papel foi esvaziado com as mudanças empreendidas pelo capitalismo
financeiro, pela crise das ideologias socialistas e pela vitória de um projeto neoliberal
frente a um Estado socialdemocrata.

Considerações finais

O enfraquecimento da representação partidária levou a uma transferência nesse


papel de “criador de utopias” para a chamada “sociedade civil”, e, como esse mesmo
autor destaca, o conceito de “sociedade civil” não é unanime e possui significados
diversos. O mais conhecido e utilizado é aquele surgido durante o período de governo
dos regimes autoritários na América Latina e no Brasil, no qual se destaca a organi-
zação da sociedade como forma de resistência perante o poder do Estado.
Essas resistências estariam representadas pelas organizações e associações como
movimentos sociais, ONGs, fóruns, conselhos, assembleias, etc. e teriam como por-
ta-voz, muitas vezes, a imprensa e sua capacidade de ser um “quarto poder” que atua
como uma “corregedoria” dos agentes que compõem as estruturas básicas do Estado.
É essa “representatividade” reservada para apenas alguns grupos que Sorj (2004)
expõe como um dos perigos das atuais noções de sociedade civil praticadas, pois se:

A “sociedade civil” é uma dimensão da esfera pública, ela não pode ser “repre-
sentada” por nenhum grupo, o que significaria o abandono da ideia de uma esfera
aberta. A esfera pública é pública pois constitui espaço de diálogo, de encontro de
opiniões diferentes, que ninguém pode representar e do qual nenhum ator pode se
apropriar, já que estaria destruindo seus próprios fundamentos, homogeneizando
uma realidade cuja condição de existência é a diversidade (p. 71).

Como vimos anteriormente, esse perigo de uma unidade da sociedade civil


fica bem claro no papel da mídia enquanto porta-voz da “opinião pública”. As vozes
que ecoam nesses documentos do programa de proteção poucas vezes são colocadas
diante da esfera pública e aparecem unicamente como exemplos de atraso ou entrave
196

para o desenvolvimento da sociedade brasileira. Marginalizados e excluídos, as suas


histórias são de pouco interesse para a maioria. Assim como o é, a própria história
da Amazônia e do Pará, desconhecida por seu próprio “povo”.
Basta recordar que um momento histórico, situado entre o final do século XIX
e as duas primeiras décadas do século XX e chamado de período da Borracha, é
considerado ainda o auge do desenvolvimento social que a Amazônia teria alcançado.
Nesse período, Belém e Manaus foram as capitais centrais na urbanização da Belle
Epoché, momento no qual foram realizadas grandes obras que visavam principalmente
o entretenimento e diversão das elites brancas regionais e locais que usufruíram de
todo êxito provisório desse período durante a República Velha. Para o resto da popu-
lação, esse ciclo de riqueza e suposto desenvolvimento não foi expandido e sobrou
apenas os resquícios das reformas higienistas, liberais e econômicas implantadas
nesse período (GONÇALVES, 2010).
Após o declínio desse período “áureo” da exportação da borracha, um longo
tempo de miséria foi colocado no horizonte amazônico. O Golpe Militar e a Ditadura,
a crescente industrialização, e o novo projeto de Segurança Nacional e o desenvol-
vimentismo nacionalista trouxeram para a Amazônia a materialização dos inúmeros
discursos de integração e modernização mencionados no início desse tópico, e que
trouxeram como resultados uma segunda onda militarizada e de uma economia mine-
radora; do extrativismo da fauna, da flora e das águas pelas hidrelétricas. A entrega de
terras para grandes empresas ocuparem o território gerou muitas disputas sangrentas
com resquícios ainda presentes, na atualidade e nos documentos e vidas de inúmeros
defensores e defensoras de direitos humanos (MELLO, 2006).
Assim, vigora na região Amazônica muito das tecnologias de poder que Fou-
cault chamou de sociedades de soberania, onde o fazer morrer e deixar viver ainda
se faz muito presente. Isso fica claro nos documentos analisados, nos quais a vida
de cada defensor se encontra exposta à morte. É a atualização daquilo que Agamben
(2004, p. 12) chama de Estado de Exceção, onde o velho poder de “fazer morrer”
do soberano aparece sobre aqueles considerados indesejáveis e descartáveis dentro
de uma população. O Estado de exceção é aquilo que “apresenta-se como a forma
legal daquilo que não pode ter forma legal”.
O Estado de Exceção tem relação direta com a guerra civil, já que é essa que vai
deflagrar aquilo que seria a anormalidade de um estado, e este tendo que responder de
forma imediata a esses conflitos extremos. Agamben (2004) dá o exemplo do Estado
nazista como um caso de uma guerra civil “legal”. Onde um decreto suspendeu os
direitos civis e deu ao estado nazista a condição de exercer um estado de exceção.
Isso torna uma guerra civil legal, pois permite a eliminação de categorias políticas e
de toda uma população que não sejam desejáveis ao sistema político vigente. “Desde
então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, even-
tualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais
dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (AGAMBEN,
2004, p. 13).
A principal questão que Agamben (2004) nos coloca é como um estado de
exceção que opera fora de um regime jurídico se torna legítimo ao privar determinada
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 197

população de seus direitos e agir a partir de dispositivos jurídicos que passam, por-
tanto, a serem legítimos, apesar de serem parte de um regime de exceção, ou seja,
fora dos seus instrumentos de direito público. Isso só é possível com a criação de
um ser juridicamente inominável e inclassificável, como os detainees e os Lager,
personagens criados pelos nazistas.
Podemos conjurar que é essa “guerra civil” que se instala na Amazônia e que
permite a atualização de um Estado de Exceção e que vai criar como um de seus
personagens e alvos principais aqueles que lutam por direitos diversos, mas que se
encontram dentro do rol dos direitos considerados universais e pertencentes a todos
os humanos. As poucas mudanças nas políticas direcionadas à Amazônia são um
exemplo disso, pois permanece uma visão sobre essa região de um grande vazio
populacional, de uma terra de ninguém, em que as disputas por terra acabam em
morte e o sangue escorre sem qualquer tipo de intervenção do Estado. As grandes
empresas e multinacionais se instalam, expropriam as riquezas da região e deixam
apenas a miséria, os problemas ambientais e a exploração de mão de obra barata
e escrava (MELLO, 2006).
198

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BIOPOLÍTICA E HISTÓRIAS
DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE NO BRASIL
Thaís de Souza Nogueira
Flávia Cristina Silveira Lemos
Dolores Galindo
Márcia Roberta de Oliveira Cardoso
Patrícia Furtado Félix
Ragner Santiago Boaventura
Matheus Silva de Souza

Introdução

Temos visto no Brasil acaloradas discussões sobre adolescentes em conflito com


a lei, redução da maioridade penal, criminalização da juventude, sobretudo pobre
e negra, violência, entre outras questões transversais que me inquietam a respeito
da produção de risco em nossa sociedade que busca se assegurar contra os perigos
virtuais. Desse modo, a juventude vem sendo produzida enquanto um grupo de risco,
sendo também estigmatizada e alvo de práticas de prevenção e coerção, em nome
da proteção da vida.
Tais práticas foram muitas ao longo dos anos e é uma tarefa arqueogenealógica
historicizar essas práticas que nos constituem enquanto sujeitos. Dialogar com a
história da criança no Brasil não objetiva, portanto, traçar uma linha do tempo con-
tínua e causal, mas sim ser uma maneira de problematizar nosso momento histórico,
analisando as práticas constitutivas de nosso presente em seus embates de saber/
poder, entendendo que nada é natural, dado. Assim, a análise das práticas históricas
permite um questionamento das possibilidades de sua emergência e pode permitir a
análise inquietante e que interroga objetos supostamente naturais, mas que não o são.
Nessa perspectiva de Foucault, considera-se que não há uma origem primeira
a ser buscada, não há uma essência, não há uma linearidade dos acontecimentos,
não há uma neutralidade e objetividade na escrita da história, e sim que a história é
descontínua, construída ao acaso dos acontecimentos. Foucault (2014b), então, se
utiliza dessa história descontínua, “efetiva”, que, contrapondo-se à tradicional, nega
a busca de origens e ocupa-se das possibilidades de emergência dos acontecimentos:

Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo
mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas
as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces,
é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.
Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na
204

metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente
diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem
essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que
lhe eram estranhas (p. 58).

Em uma tentativa de desnaturalizar a infância e adolescência historicizando-as,


é importante destacar que esses conceitos nem sempre existiram. No Brasil colônia,
por exemplo, a concepção de infância não existia. Mary Del Priori66 esclarece que
até meados do século XVIII as crianças eram chamadas de miúdos e ingênuas e era
levada ao mundo do trabalho caso não fizesse parte de uma condição social mais
abastada, visto que a colonização foi baseada em desigualdades. Leite (2006, p.
21) acrescenta que as crianças “não eram percebidas, nem ouvidas. Nem falavam,
nem delas se falava”.

Histórias e memórias da produção das crianças e adolescentes

Ao historicizar as práticas relativas à infância (lembrando que essa é uma con-


cepção que nem sempre existiu) pode-se observar permanências e atualizações como,
por exemplo, a desqualificação dos saberes indígenas a partir da catequização dos
pequenos índios para torná-los civilizados, em paralelo com a desqualificação das
famílias pobres de práticas atuais.
Os modos de vida indígenas, a partir de 1549, eram preocupações dos portu-
gueses que se ocupavam também, e principalmente, com a conquista da terra e a
exploração das riquezas existentes na mesma. Considerados como sem “fé, lei e rei”,
os índios foram investidos por práticas que suprissem tais “ausências”. Por via do
temor e da sujeição, o terceiro governador geral do Brasil, Men de Sá, empreendeu
ações que dessem conta da ausência de lei desses modos de vida, colocando-os sob
as leis de Deus e do Estado (ARANTES, 1995).
A “ausência de fé” foi uma questão mais difícil. Segundo Cabral e Souza (2004),
as missões jesuítas tiveram papel preponderante nesse período, sendo responsáveis
pela conversão e cristianização dos índios, impondo a eles costumes cristãos, cate-
quizando-os, e considerados civilizados, como o casamento monogâmico, o uso de
vestes, desmoralização dos Pajés e da cultura indígena, de tal modo que pode ser
considerado como um massacre e extermínio cultural responsável por parcela da
devastação dos povos indígenas.
Nesse processo de catequização, não tardou de os recém-convertidos serem
utilizados na conversão dos demais tanto pelas dificuldades dos padres com a lín-
gua, quanto pelo uso dos mesmos como exemplo. Os jesuítas voltaram-se, então,
para a educação das crianças, separando-as dos costumes viciosos de suas famílias,
tornando-se por muitos anos os educadores do Brasil:

Construindo casas e colégios, atraindo para junto de si os filhos dos índios e


mestiços, amparando órfãos portugueses e brasileiros, ocupando-se das famílias

66 Vide vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=INSKaEjHYx4.


BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 205

e dos filhos dos portugueses, foram os jesuítas, por mais de duzentos anos, os
educadores do Brasil. [...] Em 1585 a Companhia de Jesus já havia fundado no
Brasil três Colégios (Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco) e cinco Casas (Ilhéus,
Porto Seguro, Espírito Santo, São Vicente, São Paulo). Nos Colégios e nas Casas
haviam, de ordinário, escola de ler, escrever e algarismo, classes de humanidade,
latim, cursos de arte, lições de casos de consciência e teologia. Diferentemente
das Casas, que se sustentavam com esmolas, tinham os Colégios renda própria
– dotações do Rei de Portugal. Tanto os Colégios quanto as Casas tinham a seu
cuidado aldeias, nas quais alguns dos padres residiam (ARANTES, 1995).

O cenário de escravidão de negros africanos também é um aspecto impor-


tante na colonização brasileira, colonização de exploração, na qual suas terras só
foram ocupadas e defendidas na medida em que representavam riquezas a serem
transferidas e acumuladas. Os filhos dos escravos eram tidos como propriedade
individual, nascidos na condição de escravos e ou comercializados ou obrigados a
trabalhar a partir de determinada idade.
Com a independência do Brasil e a constituição do Brasil Império, as desi-
gualdades ainda persistiam. A lei do ventre livre trouxe novas questões acerca dos
filhos dos escravos, agora livres: quem se torna responsável por eles? Percebe-se
que liberdade não é sinônimo de igualdade e outros modos de captura atravessam as
vidas desses denominados “órfãos de pais vivos” que agora representam um risco à
sociedade, são futuros criminosos. A transição entre império e república e o cená-
rio político e econômico da abolição da escravatura transversalizam com debates
sobre a criação de assistência pública para os abandonados moral e materialmente,
criminalizando a pobreza.
No período do fim do século XIX, as crianças e adolescentes não tinham quais-
quer direitos diferenciados e eram considerados adultos pequenos, sendo a roda dos
expostos a única instituição de assistência direcionada a eles até então (ARIÈS,
1981). Segundo Alvim e Valladares (1988), o Brasil passa por transformações polí-
ticas e começa a ser estruturado aos moldes republicanos. Com o fim da escravatura
e o advento da Repú­blica, apareceram os desafios de um processo de urbanização
acelerado, tais como: alta taxa de mortalidade infantil, pauperização de segmentos
da população que não conseguiam se inserir no mercado formal de trabalho.
Em meio a esse cenário, a infância e a adolescência começaram a ser inventadas
como objeto de preocupação pelos: médicos, educadores, membros eclesiásticos e
por filantropos que, depois, foram ligados pelo liberalismo, na figura do Estado;
principalmente a infância e a adolescência pobre. Percebeu-se, então, a criação da
necessidade de separação entre as crianças e os adultos, com vistas a gerir os riscos
de uma “reprodução social via a mendicidade e a criminalidade” (p 5). Essa invenção
da infância propiciou a construção, ao longo dos anos, de diversos conjuntos de leis
completamente dirigidos às crianças e aos adolescentes: os Códigos de Menores de
1927 e 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA de 1990.
Até antes da constituição do Código de Menores, em 1927, muitos planos e
projetos de lei de menores foram reprovados ou simplesmente não foram discutidos
pelo congresso. Entretanto, a lei orçamentária 4.242 de 5/1/1921 autorizou o Poder
206

Executivo a organizar o Serviço de Assistência e Proteção à Infância abandonada


e aos delinquentes (regulamentado pelo decreto 16.272.44 em 20/11/1923), colo-
cando a questão da criança abandonada e infratora como uma questão de assis-
tência e proteção responsabilidade do Estado. A partir de então, todos os menores
de 14 anos eram considerados penalmente irresponsáveis e passíveis a medidas
reeducativas (LONDONO, 1991).
O Código de Menores de 1927, também chamado de Código Melo Matos em
função da posição deste jurista de defesa da formulação de tal dispositivo como meio
de construir uma preocupação nacional com o que ele e outros especialistas designa-
vam problema de segurança e questão social a ser alvo de cuidado e de prevenção,
assumiu a assistência e proteção aos menores, garantindo a inimputabilidade dos
menores de 14 anos e garantindo processo especial disciplinar e normativo para os
maiores de 14 e menores de 18 anos. Ultrapassando as fronteiras do jurídico em um
movimento filantrópico e moralista, ele exercia controle a partir de dispositivos sobre
a tutela, vigilância, preservação, educação, reeducação e reforma, além de garantir
liberdade para que a autoridade pública possa intervir de maneira preventiva e fis-
calizadora quando julgasse necessário, submetendo qualquer criança pobre à ação
da Justiça e Assistência.
Ele foi implementado na primeira república como meio de construir uma preo-
cupação nacional com o que designavam problema de segurança e questão social
a ser alvo de cuidado e de prevenção e com a criação desse Código foram criadas
inúmeras instituições corretivas e repressivas de internação de jovens pobres, tanto
abandonados quanto considerados marginais e taxados de delinquentes. Todo um
estigma foi tecido em nome da defesa da sociedade ao pensar que criança e adoles-
centes nas ruas se tornariam futuros criminosos e vadios que impediriam o progresso
da nação e comprometeriam a saúde e desenvolvimento do país.
Acompanhando os debates internacionais ocorridos até então, o Código Penal
de 1940 garantiu a inimputabilidade dos menores de 18 anos, submetendo-os
a legislação especial. No decorrer da década de 40 foi criado o Departamento
Nacional da Criança e, em 1948, a ONU, envolvida nas discussões pelos Direitos
Humanos, produziu a Declaração Universal dos Direitos do Homem e onze anos
depois, em 1959, a Declaração dos Direitos da Criança, influenciando as questões
dos direitos humanos no Brasil que passou a vigorar segundo essas convenções
internacionais (SOARES, s/d).
O golpe militar, em 1964 afetou as políticas de atendimento às crianças e ado-
lescentes abandonados e delinquentes a partir da implantação da Política Nacional
para o Bem-Estar do Menor, criando a Fundação Nacional para o Bem-Estar do
Menor – FUNABEM, também com um enfoque assistencialista de atendimento e
criminalizante da pobreza:

Foi a Ditadura Militar a responsável pela articulação de seus contornos concretos


ao investir de forma acabada na constituição de mecanismos de controle precisos
sob a rubrica da disseminação das políticas sociais, e neste caso em particular
emergiu a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, fomentadora da antiga
FUNABEM e posterior FEBEM (OLIVEIRA, 2003, p. 223).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 207

Ela tinha por objetivo conter o avanço do que estava sendo pensado como
marginalidade infanto-juvenil para assegurar o futuro e o bem-estar da nação. Além
da visão repressiva, entra em cena uma racionalidade assistencialista que operava
com teorias funcionalistas e se apoiavam na lógica da Ditadura Militar instalada no
Brasil. Esta era materializada no ideário de segurança nacional e, neste momento,
a família pobre passa a ser compreendida como desorganizada e que poderia ori-
ginar jovens doentes e perigosos caso não fosse organizada e gerida por meio de
controles repressivos e assistencialistas.
A questão do dito menor, no entanto, não fora resolvida pela FUNABEM
e, somado a crise do Estado Militar, uma nova demanda de atendimento da polí-
tica de bem-estar do menor foi definida através do Código de Menores de 1979
(Lei 6.697/79), que veio coroar a PNBM, fundamentando-se nos mesmos preceitos
que nomeiam a figura do delinquente, o indivíduo perigoso, a associação pobreza-
-marginalidade e a ideia de defesa social, separando jovens abandonados de jovens
considerados perigosos e tomando a família pobre como culpada por estas situações.
Segundo Passetti (1982), essa associação entre classes sociais e criminalidade favo-
rece a reprodução e a manutenção de desigualdades e legitimava o recolhimento de
crianças e adolescentes na chamada “situação irregular”.
Desde o início da república brasileira, essas preocupações foram realizadas por
meio de medidas higienistas e moralizadoras da sociedade, na tentativa de salvar a
nação através da criança como explicitou Rizzini (1997): “[...] educar a criança era
cuidar da nação; moralizá-la, civilizá-la. Cuidar da criança e vigiar a sua formação
moral era salvar a nação” (p. 27), sendo a família constituída como sendo a primeira
responsável por essa educação, ensinando, principalmente, as normas sociais fun-
damentais e os valores essenciais a formação das crianças, seguida pela escola que
é responsável pela continuidade dessa educação (PASSETTI, 1987).
Nesse contexto, é possível identificar o crescimento da utilização do termo
menor para se referir a crianças e adolescentes que viviam no estigma que foi
produzido como lugar de marginalidade social, em geral, utilizado para jovens
oriundos de famílias classificadas em seu modo de viver como desorganizadas
e em situação irregular. O antigo Código de Menores de 1979 definia os jovens
pobres como menores vivendo em situação irregular que seriam as vítimas de
maus-tratos ou castigos imoderados, os que estão em perigo moral, os privados de
representação ou assistência legal, com desvio de conduta por inadaptação familiar
ou comunitária e os autores de infração penal. Ou seja, os oriundos de famílias
pobres (PASSETTI, 1987). A utilização desse termo evidencia preocupação com a
preservação da ordem social ameaçada por essa infância abandonada exposta aos
perigos da rua e das más companhias (LONDONO, 1991).
O ano de 1979 também foi marcado pela decisão da Assembleia das Nações
Unidas de declarar este o Ano Internacional da Criança e deu origem a elaboração da
Convenção Internacional dos Direitos da Infância, aprovada em 1989. Esse cenário
internacional e a pressão dos movimentos sociais em prol da redemocratização do
Brasil contribuíram para as discussões acerca dos direitos das crianças e dos adoles-
centes e para o movimento em defesa desses direitos.
208

O Estatuto de Criança e do Adolescente

Sendo alvo de muitas críticas, o Código Menores de 1979 foi, então, substituído
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei nº 8.069, de 13 de julho de
1990. Nesse período, entre o Código de Menores e sua substituição, o Fórum DCA
(Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente) foi criado (1988) com o objetivo de pressio-
nar a sociedade para uma mudança na legislação e aprovação da Emenda “Criança
Prioridade Nacional”. Ainda neste ano, foi promulgada a Constituição Federal que
incorporou as reivindicações em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes,
garantindo em seu art. 227 a criança como prioridade nacional (LONGO, 2010).
O ECA veio confirmar a adoção da Doutrina da Proteção Integral sinalizada pela
Constituição Federal de 1988, sendo um importante marco na luta pela garantia dos
direitos dessa parcela populacional e se contrapondo à lógica da situação irregular e
menorista bem característicos dos antigos códigos de menores de 1927 e 1979, pau-
tados em uma visão repressiva e assistencialista e que se valia de medidas higienistas
e moralizadoras da sociedade em uma tentativa de garantir o futuro do país através da
criança (RIZZINI, 1997). Fruto desses enfrentamentos, o Estatuto, portanto, é uma
ruptura com o estigma do menor e com a Doutrina da situação irregular e dispõe sobre
a proteção integral à criança e ao adolescente, baseado na concepção dos mesmos
como sujeitos de direitos universalmente reconhecidos e em condição peculiar de
pessoas em desenvolvimento, definindo que:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público


assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária
(Art. 4°, BRASIL, 2011).

O Estatuto define o que é criança (até doze anos incompletos) e adolescente (de
doze a dezoito anos), sendo atravessado por diversas lutas de movimentos nacionais
e internacionais e múltiplos saberes. Ele garante a inimputabilidade dos mesmos,
estando as crianças sujeitas às medidas protetivas versadas no art. 101 do documento
e os adolescentes, às medidas socioeducativas referidas no art. 112, considerando
para a aplicação das mesmas a capacidade deles em cumpri-las, as circunstâncias e
a gravidade da infração (quando comprovada a autoria). As medidas socioeducati-
vas possíveis são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à
comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e privação de liberdade, sendo que
as restritivas de liberdade são de caráter excepcional, ou seja, quando nenhuma outra
medida formal adequada (BRASIL, 2011).
A fim de reafirmar as diretrizes do ECA sobre o caráter pedagógico das medidas
socioeducativas e, de tal modo, constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos
que estejam de acordo com a premissa da proteção integral e da inimputabilidade
dos adolescentes, contrapondo-se à elevação do rigor das mesmas e a tendência
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 209

crescente de internação dos jovens, o Sistema Nacional de Atendimento Socioedu-


cativo – SINASE foi apresentado em 2006 e instituído pela lei n° 12.594 de 2012
para regulamentar a execução das medidas.
O SINASE, portanto, foi criado como tentativa de criar possibilidades para
que o adolescente autor de ato infracional não seja visto como um problema e sim
como prioridade, cujos direitos devem ser garantidos. Assim, as unidades de medi-
das socioeducativas têm como objetivos assegurar a execução da medida conforme
previsto em lei, assegurando, também, todos os direitos dos adolescentes garantidos
no ECA, entre eles, o direito ao esporte, à cultura e ao lazer previstos no art. 59: “os
Municípios, com apoio dos Estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação
de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas
para a infância e a juventude” (BRASIL, 2011).
Os autores Carvalho, Fernandes e Mayer (2012) discutem a respeito de uma
dupla crise pela qual passa a referida legislação: de implementação, ao se deparar com
as carências do Estado brasileiro para concretizar os direitos previstos na Constituição
vigente e no próprio Estatuto; e de interpretação, ao se deparar com a discussão sobre
impunidade e com práticas que olham o novo com os olhos do velho.

Considerações finais

O ECA foi e é alvo de resistências, como é possível perceber, por exemplo,


com a grande visibilidade dada à proposta de emenda constitucional (PEC 171)
que pretende alterar a idade de responsabilização penal para 16 anos. Tal PEC foi
proposta em 1993, apenas três anos após a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei n° 8069 de 13 de julho de 1990), demarcando os inúmeros embates
a respeito desse tema tão caro em nosso século XIX.
O retrocesso que essas propostas significam quando se pensa em um estado
democrático e de direito alerta para o paradoxo que é a garantia de direitos em um
mundo capitalista, pautado no/para o mercado. Ao falar do capitalismo e seu pro-
cesso globalizador, Bauman (1999) dá pistas a respeito das consequências dele e
seus confrontos com a garantia dos direitos que tanto se discute. Segundo o autor,
problematizar a compressão tempo/espaço dos processos globalizadores evidencia
as minúcias de mecanismos de segregação diante da ideia de unidade propagada pela
globalização, pois ela “tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas
da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo” (p. 8). Desse
modo, ao mesmo tempo em que propaga unidade global, também movimenta o que
o autor chama de processo “localizador”, pelo qual os corpos ficam restritos as suas
localidades, espaços de segregação:

Uma parte integrante dos processos de globalização é a progressiva segregação


espacial, a progressiva separação e exclusão. As tendências neotribais e funda-
mentalistas, que refletem e formulam a experiência das pessoas na ponta receptora
da globalização, são fruto tão legítimo da globalização quanto a “hibridização”
amplamente aclamada da alta cultura – a alta cultura globalizada (p. 9).
210

São muitas as consequências desse processo segregacional fruto da globalização:


criminalização de classes pobres, instigando conflitos sociais, racismos, violência,
aumento de punições e judicialização da vida, crescimento das prisões, principalmente
enquanto mecanismos de segregação através da seletividade penal que aprisiona a
população criminalizada. Como pode, então, o que se diz promover uma unidade
global operar tantas desigualdades?
Ao pensar em um mundo pautado no/para o mercado, são importantes as
contribuições de Michel Foucault (2008) a respeito do neoliberalismo como modo
de vida, para além de somente um modelo econômico. O neoliberalismo teve sua
emergência com o fim da II Guerra Mundial e o enfraquecimento do liberalismo
entre múltiplas práticas como condições de emergência, na Europa e América do
Norte. O autor alerta que ao contrário das analíticas e críticas com as quais se aborda,
geralmente, a questão, o neoliberalismo não é o liberalismo repaginado ou piorado,
mas opera diferenças, é outra coisa, marcada pela singularidade de suas condições
de possibilidade.
Como um modo de governar a população, esse modelo estabelece o mer-
cado como regulador das questões sociais e os dispositivos de segurança como
instrumentos necessários:

[...] para o neoliberalismo, o problema não era em absoluto saber, da mesma


maneira que no liberalismo do tipo Adam Smith, no liberalismo do século XVIII,
como, no interior de uma sociedade política já dada, era possível recortar, arranjar
um espaço livre que seria o do mercado. O problema do neoliberalismo é, ao con-
trário, saber como se pode regular o exercício global do poder político com base
nos princípios de uma economia de mercado. Não se trata, portanto, de liberar
um espaço vazio, mas de relacionar, de referir, de projetar numa arte geral de
governar os princípios formais de uma economia de mercado. Esse, a meu ver, o
desafio (FOUCAULT, 2008, p. 181).

No Brasil, o neoliberalismo pode ser identificado nas políticas de governo


desde a reabertura política, com o processo de redemocratização. Situado sob o
signo de uma intervenção e vigilância constantes, o cenário neoliberal possibilitou
a emergência de nova arte de governar pautada a partir de “sociedade indexada a
empresa e sociedade enquadrada por uma multiplicidade de instituições judiciárias”
(FOUCAULT, 2008, p. 204).
A organização da sociedade como empresa e o intervencionismo jurídico, propõe
um capitalismo como relação social e modo de vida, onde haja nenhuma ou a mínima
intervenção econômica e máxima intervenção jurídica, esta última não para ser um
mecanismo compensatório objetivando diminuir ou anular os efeitos destruidores
que a liberdade econômica poderia ter sobre a sociedade e as relações sociais, mas
“é, ao contrário, a título de condição histórica e social de possibilidade para urna
economia de mercado” (FOUCAULT, 2008, p. 222).
O Estado de Direito é, ainda dentro da discussão que Foucault (2008) apre-
senta em seu curso Nascimento da Biopolítica, por onde se introduz o conjunto das
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 211

correções e das novidades institucionais para instaurar uma ordem social economi-
camente regulada, com base na economia de mercado do neoliberalismo.
O Brasil sendo, segundo a Constituição Federal de 1988, “um Estado Democrá-
tico, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais” (BRASIL,
1988) em um sistema econômico neoliberal, como pensar em garantia de direitos e
diminuição de desigualdades?
O ECA teria rompido, como proposto em lei, com o estigma do menor?
São inegáveis as mudanças com a concepção de crianças e adolescentes enquanto
sujeitos de direitos, mas as resistências a ele escancaram o que ainda persiste dos
antigos códigos e da colonização baseada nas desigualdades nas práticas datadas
da vigência do Estatuto.
212

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A PRODUÇÃO DE PRECARIEDADE
DA VIDA: uma clivagem entre
humanos e não humanos
Leticia Lages Assunção
Lílian Gabriela Rodrigues Lobato
Introdução

Neste artigo, o que se procura questionar é a produção política e social de


precariedade dos corpos indisciplinados, ou seja, de corpos que não se ajustam ou
se enquadram em determinadas instâncias normativas. Busca-se possíveis transgres-
sões nos regimes de inteligibilidade com vista ao alargamento das possibilidades de
ser e estar no mundo, que perpassa pelo desassujeitamento através da crítica como
virtude, da genealogia como estratégia problematizadora de práticas cristalizadas,
do luto e da despossessão como ferramentas políticas contra a moral neoliberal de
responsabilização individual.
Tomaremos como referência o diálogo entre o pensamento de Michel Fou-
cault e de Judith Butler, com enfoque nas obras: Microfísica do Poder (1978) e
Vida precária (2004), para então alcançar um elo entre a abordagem do conceito
de precarização da vida em direção a reflexão de quem conta como humano, no
sentido de questionar como se dá a (des)humanização frente às práticas autoritárias
de medicalização da vida, em nome de uma sociedade disciplinar que demanda
controle, produção de discursos, segurança e corpos dóceis como critérios de
reconhecimento social.
O trajeto a ser percorrido é o de problematizar como a medicalização da
vida atua na tentativa de erradicação da impressionabilidade de nossas existências
em defesa de um projeto de sujeito neoliberal, para a partir de então, se pensar
possibilidades de resistências à produção de um corpo-produtivista, pautado em
princípios de eficácia e utilidade.
Nessa lógica, sujeitos desviantes se encontram entrelaçados à solidão e aos
grilhões do enclausuramento, retidos e adestrados de forma dócil, útil e produtiva,
em vista disso, as instituições disciplinares são esse lugar de destino certo, uma
fortaleza visível de saber-poder, de ordem, controle e normatização, ou melhor, se
torna um exercício de soberania e domínio, exilando o que era dado como insensato,
ilógico, irracional, improdutivo.
Vale ponderar que o exercício de poder pressupõem movimentos de resistência,
nesse sentido, sujeitos que vivem o fora nesse processo de normalização aparecem
como denúncia das punições institucionais e do caráter autoritário e excludente de
saber-poder, pois essa transgressão expõe não só problemas da moralidade e nem
é reduzida ao silêncio do confinamento, mas terá uma linguagem que lhe é própria
220

como reflexo da memória de verdade sobre si, cujo o propósito será de formular,
escrever e constituir desdobramentos, procurar as fissuras dentro desse processo de
criação de um sujeito dócil, útil e ágil.
Diante desse cenário, se faz pertinente apresentar modos alternativos de
existência que nos permitam vislumbrar linhas de fuga no cotidiano, a partir de
questionamentos e enfrentamentos do que se pode fazer um corpo em sua total
potência, para além das vias de adestramento e domesticação. Este texto é uma
tentativa de metamorfosear e provocar uma movência das vozes, que apesar dos
inúmeros esforços de silenciamento continuam ecoando enquanto performance de
resistência à docilização, ao empresariamento de si e as práticas de expansão dos
processos de medicalização da vida.

1. O devir sujeito: produção de subjetividades e técnicas de assujeitamento

Em virtude de nossa corporeidade e, dessa forma, de nossa própria vida, somos


abertos ao encontro com o outro e com o mundo. Isto significa que não somos seres
solipsistas, encerrados em nós mesmos, mas estamos entrelaçados em uma teia de
relações que nos constituem e edificam as bases a partir das quais emergimos como
sujeitos (BUTLER, 2019b, p. 46).
Em outras palavras, as condições de possibilidade para nossa ação deliberada e
nosso reconhecimento social dependem, fundamentalmente, de nossa suscetibilidade
ou impressionabilidade primária, ou seja, dependem de nossa exposição às afecções67,
de nosso atravessamento pelos outros. Essa exposição expressa nossa vulnerabilidade
primordial, a vulnerabilidade que nasce com nossa própria vida e, portanto, inerente
à nossa condição, não havendo nenhuma medida de controle ou segurança capaz de
foracluir essa dimensão de nossa existência (BUTLER, 2019c, p. 10).
A despeito disso, as ficções fundacionistas apresentam o indivíduo como um
homem adulto e autossuficiente, sem considerar as condições de sua sobrevivência,
bem como indicam o conflito – e não a dependência – como a primeira forma de nos
relacionarmos uns com os outros, ou seja, as narrativas que se propõem a descrever
a cena inaugural do sujeito já se encontram em curso, onde tudo já está definido,
inclusive o gênero (BUTLER, 2021, p. 39):

De alguma maneira e desde o princípio, ele já se encontra sempre em postura


ereta, capaz, sem nunca ter sido sustentado por ninguém, sem ter se agarrado a
outro corpo para se equilibrar, sem nunca ter sido alimentado quando não podia se
alimentar sozinho, sem nunca ter sido agasalhado por alguém para se aquecer. Ele,
o sortudo, nasceu da imaginação de teóricos liberais como um adulto completo,
sem relações, mas dotado de raiva e desejo, às vezes, capaz de alguma felicidade
ou autossuficiência que dependia de um mundo natural vazio de outras pessoas
(BUTLER, 2021, p. 44).

67 Para Espinosa (2005), as afecções referem-se ao corpo sendo afetado por outros corpos e pelo mundo, isto
é, as alterações experimentadas por esse encontro que podem aumentar ou reduzir nossa potência de agir.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 221

Nas formulações de Thomas Hobbes, um dos principais expoentes do con-


tratualismo, a transição do estado de natureza para a sociedade civil é marcada
pela renúncia da liberdade para escapar de uma morte violenta. A liberdade do
estado de natureza representa também a maximização da exposição à morte e o
aumento, portanto, da vulnerabilidade. Nesse contexto, a vulnerabilidade deve ser
rejeitada, mediante a constituição do Estado, a fim de se garantir alguma segurança
(DEMETRI, 2018, p. 79).
No entanto, se a vulnerabilidade constitui um traço inerente à nossa própria
vida, um aspecto que não podemos nos livrar sem perdermos o próprio estatuto
de humanidade, quais os desdobramentos políticos da tentativa de negação dessa
dimensão que cria nossas condições de possibilidade?
Mais do que pelo conteúdo revelado na cena descrita como momento inaugural
do sujeito, Butler se interessa, fundamentalmente, pelo que excede, pelo que extra-
pola os limites do enquadramento68. Por isso, ao se perguntar pelos ocultamentos
existentes nas tentativas de descrição da emergência do sujeito, a filósofa também
interroga quais outras pessoas são excluídas, desde antes mesmo do princípio, da
possibilidade de reconhecimento e acrescenta: “seria está uma violência inaugural?”
(BUTLER, 2021, p. 44). Seu objetivo é compreender, a partir dessas representações
fictícias, a estruturação das dinâmicas de poder e violência e suas implicações na
gestão da vida e da morte.
Apesar de não representarem a verdade, tais narrativas podem nos propiciar
críticas à realidade atual mediante o desvelamento de suas contradições internas e
limites narrativos, nos provocando para a reflexão em torno de quais ocultamentos
são necessários para que tal representação funcione, fornecendo pistas para inves-
tigarmos quais phantasias69, anseios ou desejos que as descrições postuladas como
condições originárias carregam (BUTLER, 2021, p. 44).
Butler, em diálogo com Walter Benjamin, sustenta que a elisão da vulnerabili-
dade da ordem civil, defendida pelo cânone filosófico pode oferecer ferramentas para
a compreensão da distribuição desigual da violência. Se a ordem jurídica é instituída
para garantir o direito à vida e a propriedade, pode-se concluir que há uma captura
da vulnerabilidade pela instituição de direito70 (DEMETRI, 2018, p. 79).

68 Expressão cunhada pelo antropólogo Erving Goffman (2012) em seu livro Os quadros da experiência
social para referir-se à construção da organização da experiência, isto é, aos marcos interpretativos que
nos permitem atribuir sentido a experiência. Em “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? “,
Butler sustenta a importância de pensarmos sobre o processo de enquadramento, isto é, sobre o ato de
direcionar e moldar nosso olhar para a apreensão de determinados conteúdos, neste caso, demarcando o
que entendemos por vida, ou seja, por vida passível de ser vivida.
69 Apesar de recusar a distinção estrita entre consciente e inconsciente, Butler parte do entendimento de que
formas de poder podem modelar nossa subjetividade inconscientemente, por isso, ao decorrer do texto a
filósofa adota a distinção postulada por Klein entre fantasia, compreendida como um “estado de consciência
análogo a um desejo ou devaneio”, e phantasia entendida como uma “atividade inconsciente que opera por
projeção e introjeção e confunde a fronteira entre o afeto que emerge de dentro do sujeito e aquele que
pertence a um mundo objetivo” (BUTLER, 2021, p. 60).
70 Para uma reflexão mais aprofundada sobre como o Direito é uma ordem violenta que se fortalece com a
captura de uma esfera da vulnerabilidade, cuja manutenção depende da reiteração dessa violência ver “Para
222

Nessa perspectiva, de que maneira a vulnerabilidade constitui pré-condição


para nossa humanização e subjetivação? Como se dá o movimento pelo qual nos
tornarmos sujeitos? Quais as consequências políticas da omissão das condições
coletivas que possibilitam a nossa existência?
A fim de elucidar como nos formamos na dependência e como a negação dos
laços sociais significa a negação de nossas próprias condições de possibilidade,
tomaremos como referência o diálogo entre Butler e Foucault para a compreen-
são das ambivalentes relações que atravessam os processos de subjetivação. Essa
ambivalência se expressa na instabilidade semântica que a palavra sujeito carrega:
do latim subjectus, “colocar sob, abaixo de”, a palavra designa a posição passiva
de objeto, de estar subordinado a algo ou alguém. No entanto, com o advento da
modernidade, a expressão adquiriu novos significantes e passou a ser empregada
também para designar um “eu pensante”, pressuposto para o conhecimento e fun-
damento para a ação deliberada.
Interessados nessa ambivalência insolúvel, ambos os autores se alinham na
compreensão de que não somos apenas agentes ou efeitos do exercício do poder,
somos uma simultaneidade temporal: ao mesmo tempo, ativos e passivos no interior
das dinâmicas de poder. O poder é, em certa medida versátil; isso significa que ele se
desloca, recua quando necessário e investe em outros lugares, quebrando paradigmas
de que o poder seria substancial, denso, rígido, constante. Em vista disso, o poder não
é indiferente aos indivíduos, mas os atravessa; não é apenas repressivo e nem pesa
somente como uma força que diz não, mas que também permeia, induz ao prazer e
produz coisas, discursos, desejos, verdades e formas de saber (FOUCAULT, 2018,
p. 44-45). Desse modo, se faz necessário investigar como se efetivou os regimes
disciplinares dentro das instituições para que pudesse se exercer um poder mais
tênue sobre o corpo71 (FOUCAULT, 2018, p. 237).

Primeiramente, poder é algo exercido em toda a sua espessura, em toda a super-


fície do campo social, segundo todo um sistema de intermediações, conexões,
pontos de apoio, coisas tênues como família, relações sexuais, moradia etc. Por
mais finos que sejam os capilares da rede social a que cheguemos, encontraremos
o poder (FOUCAULT, 2015, p. 207).

O poder só pode ser pensado em ação, isto é, no exercício das relações de


forças. No entanto, “O poder, na verdade, não se exerce sem que se custe alguma
coisa” (FOUCAULT, 2018, p. 330). Além de um custo político, econômico e social
apontado por Foucault, Butler (2017) identifica que há também uma demanda psí-
quica, ou melhor, a nossa subjetividade é capturada com vistas a conformação em
determinadas categorias sociais: para ajustar-se ao que é considerado normal, nossas

uma crítica da violência” de Walter Benjamin.


71 Michel Foucault em sua obra Microfísica do Poder (2018, p. 276), com mais precisão no capítulo 11, faz uma
análise do poder apresentando o quadro de repressão e guerra, de dominação e luta, na medida em que
as verdades são produzidas como se produz bens e os corpos são atravessados pelos efeitos duradouros
do poder e pelas forças produtivas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 223

identidades são moldadas para atender com eficiência as demandas que dizem respeito
a produtividade e utilidade- um dos maiores recursos da burguesia para a constituição
do capitalismo industrial e desenvolvimento dos pilares do neoliberalismo: “Afinal,
somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e des-
tinados a um certo modo de viver ou morrer em função de discursos verdadeiros que
trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2018, p. 279). Tal poder
que não é o poder soberano, mas que se sobressai através da vigilância72 ao contar
com a eficácia de quem a produz e domina73: o poder disciplinar.

2. A racionalidade neoliberal: produtividade, autossuficiência e


medicalização da vida

No contexto de recrudescimento do neoliberalismo74, que mais do que uma


ideologia ou regime político-econômico, deve ser compreendido como uma racionali-
dade que ordena todas as esferas da vida em atendimento ao imperativo do mercado,
quais as novas formas de assujeitamento e que tipo de sujeito emerge dessa lógica?
Com a formação e institucionalização da racionalidade neoliberal, não apenas
nossos corpos são adestrados e disciplinados para se tornarem mais produtivos e
dóceis, como também as nossas mentes são geridas de tal maneira que somos ins-
tados ao individualismo e competição em todas as dimensões de nossa existência, e
ainda: a nossa capacidade de agenciamento e de cultivo de outros modos de ser e de
nos relacionarmos é reduzida com a produção de um novo tipo de subjetividade, o
sujeito-empresa ou sujeito empreendedor de si mesmo.

Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão


imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de
poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações.
Muitas coisas, entretanto, são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar,
do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se
fosse uma unidade indissociável, mas de trabalha-lo detalhadamente; de exercer
sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica –
movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo
(FOUCAULT, 2014, p. 134-135).

Para abarcar tais práticas de subjetivação, Michel Foucault vai propor pri-
meiramente interrogá-las, desconstruindo modos de vida, modos de pensar e agir
que foram moldados e cristalizados. O filósofo se interessava não apenas com as

72 Dentro dessa vigilância as coações disciplinares teriam que funcionar como mecanismo de dominação e
de camuflagem para o exercício de poder a partir dos discursos.
73 Esse domínio foi adquirido, sobretudo, no investimento do corpo pelo poder: o poder penetra no corpo e é
exposto por ele
74 Foucault, em seu curso Collège de France de 1978-79, evidenciou a compreensão do neoliberalismo como
uma nova racionalidade política, cujos desdobramentos ultrapassam a política econômica e do fortalecimento
do capital.
224

preocupações do tempo presente, mas vislumbrava vias de ruptura. Por conseguinte,


as problematizações dessas produções dos corpos e mentes são imprescindíveis por
perpassarem pela ideia de criação de corpos dóceis e úteis, através da disciplina
e da docilização:

Parece que vivemos numa sociedade de poder disciplinar, ou seja, dotada de apa-
ratos cuja forma é a sequestração, cuja finalidade é a constituição de uma força
de trabalho e cujo instrumento é a aquisição de disciplinas ou hábitos. Parece-me
que desde o século XVIII se multiplicaram, refinaram e especificaram incessan-
temente mais aparatos para fabricar disciplinas, impor coerções, fazer contrair
hábitos (FOUCAULT, 2015, p. 215).

Os termos do reconhecimento social se costuram em um tecido de hábitos que


atuam como instrumentos pelos quais os sujeitos se inserem nos mecanismos de
produção. Nesse contexto, as instituições disciplinares, tais como os hospitais psi-
quiátricos, prisões, exército, etc., são, ao mesmo tempo, símbolos de concentração
do sistema de poder em sua forma visível com o exílio e também peças fundamentais
na função estratégica de identificação e normalização:

Enquanto a reclusão clássica lançava indivíduos para fora das normas, enquanto,
encerrando pobres, vagabundos e loucos, ela fabricava, escondia e às vezes, mos-
trava monstros, a sequestração moderna fabrica norma, e sua função é produzir
normais. Tem-se, portanto, uma série que caracteriza a sociedade moderna: cons-
tituição da força de trabalho – aparato de sequestração – função permanente de
normatização (FOUCAULT, 2015, p. 217).

Nesse aspecto, um maquinário de controle dos corpos e mentes foi instalado


mediante um saber- poder privilegiado e de puro controle, pois tudo será desdo-
brado em virtude de um discurso excludente, patologizante e de produtividade
que reinventa e reivindica para si o domínio particular sob a margem dos que são
considerados desviantes dentro das instituições disciplinares. Essa “autorização”
concedida aos saberes e poderes deixou rastros de medicalização75, cujo discurso
estabelecido sobre as condutas, os comportamentos e a normalidade foram cria-
dos e inseridos na dualidade de termos como “normal ou anormal”, “inofensivo e
perigoso”, “sociável e insociável”.
A definição de normal em torno do psicossocial se implica de acordo com
as concepções da sociedade que busca uma normatização generalizada, através de
uma cadeia de determinismos, isto é, independente da sociedade ser um sistema de
fabricação da normalidade, ela já possui normas coletivas que regem as relações

75 Pretendemos colocar em xeque a discussão sobre a expansão das práticas e dos processos excludentes
de medicalização da vida que sustenta de certa forma uma volta para condutas regulares por meio de
produções de controle, de enquadramento e projeção de corpos dóceis e produtivos, e não de construir um
caminho de negação a toda contribuição da ciência ou da saúde, muito menos de extinguir a medicalização
como um todo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 225

entre os sujeitos. Assim, é atribuído à sociedade um padrão de normatização aos


indesejáveis, e como resultado, temos um apagamento de existências e subjetivi-
dades, desaguando em um enquadramento contínuo de comportamentos aceitáveis.
É interessante perceber nesse percurso, como Foucault nos convida a refletir
sobre o poder disciplinar, na medida em que o sujeito é “vigiado e punido” por técni-
cas disciplinares76 que o fixam e normatizam. Em virtude disso, se pode concluir que
“as técnicas do poder disciplinar – o exame, a vigilância e a sanção normalizadora –
foram combinadas para intensificar o exercício das relações de poder e da produção
de saber” (LEMOS; CARDOSO JÚNIOR, 2019, p. 355). Vários processos refletem
o controle e a correção do comportamento do corpo, fazendo com que o sujeito seja
algo fabricável em massa. A partir daí, o corpo do indivíduo considerado inapto era
fabricado e, em certa medida, “domesticado” até seus comportamentos serem corri-
gidos de forma gradual, por meio da coação calculada (FOUCAULT, 2014, p. 134).

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do


corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no
mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversa-
mente (FOUCAULT, 2014, p. 135).

Nesse sentido, Foucault analisa como se instala o aparelho punitivo e a cons-


trução de uma sociedade anátomo-política, por intermédio de um dispositivo seletivo
que distingue em sujeitos da razão (humanos) e sujeitos da não-razão (não-humanos)
no interior de um campo de controle e de normalização. Dentro dessa tentativa de
captura dos corpos indesejáveis pela dualidade citada acima, faremos uma abertura
para discussão sobre o papel da institucionalização pelos domínios de saber-poder
que fortemente contribuem para o aniquilamento das diferenças e controle dos
comportamentos, por meio da medicalização da vida.
A medicalização77 emerge quando problemas de diferentes ordens são apresen-
tados como “patologias, transtornos, distúrbios” para encobrir questões políticas,
sociais, culturais que atravessam a vida, a subjetividade e o cotidiano dos sujeitos.
Em vista disso, o diagnóstico é atribuído a partir de critérios dentro do que se consi-
dera normal ou anormal, como uma estampa dada aos que questionam e mergulham
em seus devaneios. Esses rótulos corroboram a padronização e homogeneização
de uma conduta que não ousa questionar ou modificar, mas que coloca no sujeito
etiquetas contê-lo, inserindo-o em um catálogo extenso de patologias.

76 Se corrobora uma disciplina que visa normalizar as transgressões pelo exercício do poder e da racionalidade,
pois se molda em meio às estruturas de exclusão e se fabrica racionais treinados pela interdição dos corpos.
Portanto, a disciplina opera por meio da normalização, na fabricação de um sujeito dócil, e em um processo
alienante de individualização.
77 É profícuo problematizar que a grande mudança está no lócus, não se medicaliza mais somente dentro dos
muros dos hospitais psiquiátricos, das prisões, das escolas, etc., mas esse processo também se faz em
céu aberto.
226

Embora a medicalização seja um fenômeno cuja extensão ultrapasse em muito os


domínios da psiquiatria, a investigação de como a psiquiatria transforma compor-
tamentos sociais em doenças mentais nos dá a dimensão do poder que a medicina
adquiriu nos tempos modernos (FREITAS; AMARANTE, 2015, p. 29).

A forma como a medicalização se encontra fixada é notória, pois vivemos sob


uma tendência contemporânea de medicalizar emoções para não lidar com as angústias
da existência e retornar mais rapidamente ao estado de uma suposta normalidade,
marcada pela produtividade e funcionalidade em busca da melhor versão em todos os
aspectos de nossa vida: “para sermos sujeitos nos sujeitamos ao poder médico-farma-
cológico, consequentemente menos sujeitos somos em relação a nosso pensamento,
ao nosso modo de agir e ao que sentimos” (FREITAS; AMARANTE, 2015, p, 34).
Esse ideal, postulado pela racionalidade neoliberal se auto explora sob uma gestão de
risco em que é preciso ser eficaz, de modo a acirrar o individualismo e a competição,
fragilizar as relações sociais e ocultar as dimensões estruturais do fracasso, a partir
do momento em que as condições coletivas que dão suporte a vida falham.
Nessa condição, a autossuficiência é elevada como norma moral e o sujeito
se encontra inteiramente responsável por si, experimentando a insegurança e
contingência provocadas pelo enfraquecimento de políticas de bem-estar social,
enquanto se acentua a proteção da economia, aliada ainda a uma cruzada moral-
mente conservadora, que representa uma ameaça à democracia e, em última ins-
tância, à própria política.

3. Regimes de inteligibilidade e precarização da vida

A precarização é a forma de governo por excelência e as hierarquias históri-


cas que tornam determinadas vidas mais suscetíveis à violência do que outras são
aprofundadas. Dessa forma, apesar de a vulnerabilidade ser um aspecto unificador
da experiência humana, Butler percebe que corpos que escapam às normas de huma-
nização e desestabilizam discursos pretensamente cristalizados – corpos negros, de
mulheres, LGBTQIA+, imigrantes, refugiados, indígenas, etc. – experimentam a
vulnerabilidade primordial potencializada por políticas de precarização da vida e
têm suas mortes moralmente justificadas. São mortes que não geram comoção e que
não são passíveis de luto público:

A condição de vulnerabilidade primária, de ser entregue ao toque do outro, mesmo


que não haja um outro ali e nenhum suporte para nossas vidas, significa um desam-
paro e uma necessidade primários, sobre os quais qualquer sociedade deve tomar
providências. Vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas
radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é distribuída
ao redor do mundo. Certas vidas serão altamente protegidas, e anulação de suas
reivindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra.
Outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qua-
lificarão como “passíveis de ser enlutadas” (BUTLER, 2019c, p. 52).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 227

É neste aspecto que Butler aponta o luto como descritor da inteligibilidade da


vida. Ora, se o valor da vida humana reside na sua capacidade de enlutar, então as
perdas que não são sentidas, que não são choradas, sequer são reconhecidas como
perdas. E, mesmo quando se encontram vivas, não ganham o estatuto de vidas,
estariam reduzidas a um resto de vida, suspenso e espectral (BUTLER, 2019a,
p. 22), ou para usar a expressão de Frantz Fanon (2020, p. 22) se encontram em
uma zona de não-ser, de não existência. Por isso, para que uma morte seja passí-
vel de luto, é necessário que antes ela tenha sido considerada uma vida vivível.
Seguindo o percurso investigativo de Butler e Foucault em torno das condi-
ções em que uma vida passível de luto é mantida e de como se efetiva a prática
de exclusão, apagamento e denominação, prosseguiremos para uma análise dos
dispositivos biopolíticos78 e necropolíticos79 que apreendem, controlam e admi-
nistram a vida e a morte, atribuindo uma valoração diferenciada e uma distribui-
ção assimétrica da precarização da vida e do direito ao luto público (BUTLER,
2019c, p. 58).
A compreensão dos mecanismos de atuação do estado neoliberal como
tecnologia de controle da vida e da morte perpassa pela investigação da rela-
ção entre moralidade e biopolítica, uma vez que, para ser lido como sujeito de
direito é necessário “merecer”, identificar-se com a moral vigente. A relação
entre reconhecimento e violências éticas é inversamente proporcional: quanto
menor o reconhecimento, mais facilmente se produz uma justificativa moral
para a violência.
Faz-se necessário, portanto, identificar o que torna uma vida inteligível,
evidenciar como os esquemas raciais, de gênero, de classe, etc. operam no interior
de quadros de referências para definir quais vulnerabilidades e sofrimentos nos
identificamos e acolhemos como nossos e quais, ao contrário, nos distanciamos.
Mais do que nos concentrar na apreensão do conteúdo do quadro propriamente
dito, a filósofa nos convoca a olhar para as molduras que instituem quem são os
sujeitos de direito, a focar nos operadores que atuam na demarcação daqueles que
se encontram na condição de vidas vivíveis e mortes enlutáveis e quem, por outro
lado, excede esses limites, quais vidas escapam dos regimes de inteligibilidade de
modo a nos acostumarmos e naturalizarmos a morte social e física. Para estes sujei-
tos que escapam das normas de reconhecimento e humanização, não há condição

78 Em “Quadros de guerra”, Butler define biopolítica como uma modalidade de poder que apreende, controla
e administra a vida. Em “Pode-se levar uma vida boa numa vida ruim”, título da conferência proferida no
prêmio Adorno em 2012, Butler afirma que entende por biopolítica aqueles poderes que organizam a
vida, inclusive os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária como parte de
uma gestão mais ampla das populações através de meios governamentais e não governamentais, e que
estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si.
79 Termo cunhado por Mbembe em ensaio homônimo para descrever o uso do poder político e social com vistas
a determinação por meio de ações ou omissões quem pode permanecer vivo ou deve morrer. Para Diniz e
Carino (2019) Mbembe foi além de Foucault pois “mostrou como o biopoder é insuficiente para compreender
as relações de inimizade e perseguição contemporâneas, pois há uma necropolítica em curso para produzir
os ‘mundos de morte’”.
228

física comum ou vulnerabilidade compartilhada e relacional que sirva de base para


compreensão da nossa coletividade (BUTLER, 2019c, p. 57).
A investigação em torno do que se apreende como vida, além do caráter epis-
temológico, possui também uma dimensão ontológica, afirma Butler:

O ser do corpo ao qual essa ontologia se refere é um ser que está sempre entre-
gue a outros, a normas, a organizações sociais e políticas que se desenvolveram
historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar a
precariedade para outros. Não é possível definir primeiro a ontologia do corpo e
depois as significações que o corpo assume. Antes, ser um corpo é estar exposto
a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do corpo
uma ontologia social (BUTLER, 2019a, p. 15-16).

Dito de outra maneira, o corpo não possui um sentido apriorístico, inerente,


mas adquire inteligibilidade mediante convenções culturalmente estruturadas. Onto-
logia social, neste sentido, não assume a perspectiva metafísica, mas relaciona-se
com o imaginário social (BUTLER, 2021, p. 29), isto é, com a construção de como
organizamos nossa interpretação dos corpos, de como os discursos nos constroem
enquanto sujeitos e como estabelecem estreita e complexa relação com os regimes
de humanização e desumanização.
Analisar os discursos e seus impactos é falar de relações, ou seja, relações
discursivas ou regularidades que permitem com que um discurso apresente sua
individualidade dentro desse sistema, dessa teia de relações. Pretendendo-se fir-
mar uma relação com os acontecimentos, sejam eles de variadas formas ou ordens
(social, política ou econômica) e dentro desse âmbito, Foucault busca compreender
as múltiplas formas e relações de dominação/técnicas de sujeição que existem e
funcionam dentro do corpo social (FOUCAULT, 2018, p. 282). Todavia, “Por
dominação não entendo o fato de uma dominação global de um sobre outros, ou
de um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se
exercer na sociedade” (FOUCAULT, 2018, p. 281-282).

Esse discurso é indissociável de certa situação de poder e de certo encaixe dos


indivíduos nos aparatos de produção e de transmissão de saber. Por fim, nessa
discursividade o discurso era feito em função da normatividade. O indivíduo era
sempre descrito em função de seu desvio possível ou real em relação a algo que,
se não era definido como o bem, a perfeição e a virtude, era definido como o
normal. Essa norma que, como se sabe, na época não era forçosamente a média,
também não era, de certo modo, uma noção, mas uma condição de exercício
daquela discursividade à qual ficavam presos os indivíduos sob sequestro. Estar
sob sequestro é estar preso numa discursividade ininterrupta no tempo, proferida
a partir de fora por uma autoridade e necessariamente feita em função daquilo
que é normal e daquilo que é anormal (FOUCAULT, 2015, p. 198).

Os discursos são revestidos por verdades e não é aparente só para o sujeito


que o enuncia, ou melhor, o que se percebe é uma verdade amparada em discursos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 229

Por verdade, afirma o filósofo, deve-se “entender um conjunto de procedimentos


regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos
enunciados” (FOUCAULT, 2018, p. 54). O que entra em jogo é o poder de escolhas,
de tornar aquele que não se enquadra aos padrões, um não-recomendado, aquele
que não pertence e que pode ser descartado, apagado, rejeitado.
Nos aspectos da analítica foucaultiana do poder, Butler acrescenta que não bastaria
a compreensão de que o discurso produz efeito de verdade e resulta na pouca evidên-
cia dada a uma morte, seria primordial a investigação dos limites de inteligibilidade
que impossibilitam a perda de ser evidenciada80, limites que operam não apenas no
silenciamento e omissão da violência cometida, mas atuam, sobretudo, na foraclusão
e proibição (BUTLER, 2019c, p. 57), na desrealização da violência, uma vez que, para
que uma perda seja reconhecida e digna de nota, antes as vítimas precisariam ser quali-
ficadas e valorizadas como vidas; se não o são, a própria violência não se configuraria
como real. Por isso, a filósofa afirma que a luta pela diluição da distinção entre vidas
vivíveis e matáveis não se resume a ampliação do direito à sobrevivência com base em
critérios de identificação, que incluem na mesma proporção em que produzem exclusão:

Não se trata meramente da inclusão dos excluídos em uma ontologia já estabele-


cida, mas sim de uma insurreição que perpassa pela investigação crítica daquilo
que se concebe como real e pelo questionamento de como essa realidade pode
ser repensada, considerando que da perspectiva do violador, a violência cometida
contra aqueles que são irreais não é compreendida como violação ou negação
dessas vidas, uma vez que já foram negadas. A violência renova-se em face da
aparente inesgotabilidade do seu objeto (BUTLER, 2019c, p. 54).

A investigação dos mecanismos que possibilitam uma vida ser qualificada


como vivível e passível de luto traz à tona o problema das violências éticas que, por
definição, constituem também um problema da normatividade. A violência ética é
descrita por Butler (2019b, p. 15), a partir da interlocução com Adorno, como a ten-
tativa de conformar as subjetividades em identidades fixas e socialmente aceitáveis,
isto é, a tentativa de cristalização de preceitos morais em nome de uma pretensa
universalidade que esvazia a pluralidade e singularidade de modos de ser e produz
um excedente que escapa ao fluxo normativo: o abjeto81.

4. Gestão do excedente: internamento e vigilância

O abjeto seria tão regulado pelas instâncias de poder quanto o próprio ideal
postulado. Nesse âmbito, os dispositivos de poder governamental na sociedade

80 As investigações de Butler sobre direito ao luto remonta as reflexões em torno do valor das vidas perdidas pela
epidemia de HIV/AIDS nos EUA durante a década de 70 e se amplificam na formulação de sua teoria política
do luto após o ataque sofrido pelos EUA em 11 de setembro de 2001 (RODRIGUES, 2021). Cabe destaque
também a obra “O clamor de Antígona” (2000), na qual o luto é elevado por Butler à categoria ética e política.
81 A partir da leitura de Kristeva e Foucault, Butler (1993) sustenta que o abjeto está para além do que é reprimido,
consistindo em todo exterior que contorna e dá bordas ao sujeito e, sendo um espectro permanentemente
ameaçador da ordem e unidade estabelecida.
230

disciplinar atuam sobre os corpos, bem como na precarização das condições de


vida dos sujeitos indesejáveis, provocando sua morte social e, em última instância,
a morte física. A punição para o transgressor é a exclusão, em outras palavras, é
basilar realizar uma neutralização e inspeção dos desvios, não pela via da assimi-
lação, mas pelo isolamento. Assim, qualquer inadaptação ou anomalia colocaria o
sujeito para fora do campo das representações sociais, tornando-o alvo das relações
de poder hegemônicas, como um inimigo social, provocando uma inversão movida
pelo desejo de aniquilação do outro “projetando-o como (improvável) perseguidor
dos socialmente normais e normalizados” (BUTLER, 2017, p. 36). Alimentando,
por fim, a tônica dos discursos públicos que mobilizam as narrativas do “nós contra
os outros”, “o bem contra o mal”.
Mbembe (2016) sustenta que esse processo de classificação e hierarquização do
outro para fins de instrumentalização e gestão do excedente que escapa às instancias
normativas como momento estruturante das democracias liberais. Para o filósofo
camaronês, os estados modernos formam círculos de semelhança e dissemelhantes a
partir de critérios excludentes de identificação e humanização. O outro que pode ser
o leproso, o louco, o delinquente, o desempregado, a prostituta (Foucault), o Queer,
o aidético, o imigrante (Butler), o negro, o refugiado, o estrangeiro (Mbembe) é
identificado como objeto perturbador, que ameaça permanentemente a pretensão
de constituição de um tecido social homogêneo. Para a manutenção do status quo,
não basta apenas o confinamento e isolamento nos hospitais psiquiátricos e nas
prisões, etc. Os dispositivos de controle e exclusão se alimentam do sentimento de
insegurança, a partir de um movimento de reinvenção e atualização contínua que
intensifica o processo de securização dos estados, ao pressuporem a impossibilidade
de apaziguar a hostilidade entre nós e aqueles que ameaçam o nosso modo de vida,
encenando uma guerra permanente cujo inimigo é, constantemente, metamorfoseado.
À essas técnicas de exclusão dos corpos desestabilizadores da normalidade,
Foucault sustenta em seu curso A sociedade punitiva (2015) que:

[Trata-se de] “expulsar do corpo social esses seres temíveis, mantendo-os temporá-
ria ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimen-
tos destinados a esse uso”. Essa prática de exclusão é chamada de “antropoemia”:
controlar as forças perigosas da nossa sociedade não é assimilá-las, mas excluí-las
(FOUCAULT, 2015, p. 4).

O classicismo inventa o internamento sob a égide do progresso, ideia refutada


por Foucault que analisa essas instituições como uma constituição, isto é, uma criação
oriunda da necessidade de isolar e aprisionar. Assim como a idade média segrega
os leprosos, o vazio deixado por eles é rapidamente ocupado pelos internos, cujo
aprisionamento possui significações para além da cura, sendo elas políticas, sociais,
religiosas, econômicas, morais e históricas.
A organização dessas complexas estruturas de confinamento se sustenta em
uma sensibilidade à miséria e a obrigatoriedade de oferecer assistência em face
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 231

dos problemas econômicos, envolvendo o desemprego e a ociosidade. No entanto,


o propósito das referidas ações cumpre interesses higienistas que se encarregavam
moralmente de castigar, punir e corrigir anormalidades, de modo que lhe é atribuído
um aparato jurídico e repressivo82 para tornar úteis aqueles que foram considerados
a escória da sociedade. Nesses lugares de internação, a ociosidade é representada de
maneira maldita, condenada por uma sociedade que dita leis do trabalho como saída
para uma transcendência ética, que rejeita todo e qualquer tipo de inutilidade social.
As instituições disciplinares serão, portanto, esse lugar de apagamento das memórias
e potencialidades: uma fortaleza visível da ordem e da normalidade.

5. Aberturas para a resistência: o que pode um corpo para além


da sujeição?

Diante do ciclo de sujeição que a racionalidade neoliberal parece encerrar o


sujeito, como pensar possibilidades de desassujeitamento e outros modos de existência
com vistas a diluição da diferenciação entre as vidas qualificadas como vivíveis e
aquelas consideradas descartáveis?
Foucault e Butler identificam fissuras na ambivalente matriz de relações que
nos constituem, abrindo possibilidades de resistência através da recusa das subjeti-
vidades normatizadas que nos foram impostas como única perspectiva de existência
social, pela prática desobediente de arriscar ser diferente do que se é, experimentando
outros modos de ser que desestabilizam e expõem os limites dos regimes de verdade
definidos transcendentemente, que poderíamos construir arranjos alternativos.
A partir da leitura de “O que é esclarecimento?” de Kant, Foucault (1990)
desenvolverá a ideia de crítica enquanto virtude, que posteriormente será retomada
por Butler (2013). A partir de uma investigação dos modos de governamentalidade,
o filósofo interrogará o que pode o sujeito fazer, estando imerso na arte de governar
o corpo e o espírito.83 Trata-se de problematizar cotidianamente o que pode o corpo
enquanto potência, dentro do campo de forças e de relações de comportamento
individual e coletivo, construídas sob a forma de vigilância e de controle atento
e fixado naquele corpo: “A crítica teria essencialmente por função o desassujeita-
mento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade”
(FOUCAULT, 1990, p. 39).
As pistas fornecidas pelo filósofo vão em direção ao questionamento de como
“não ser governado assim, dessa forma, por elas, a esse preço” (FOUCAULT, 1990,
p. 58), uma vez que, como tratamos anteriormente, o poder também nos atravessa,
não sendo possível, portanto, deixarmos de ser governados por completo, mas abrindo

82 A demonstração de ordem nos espaços de reclusão se configura pelo símbolo de uma “polícia” que enclausura
se valendo de regras coercitivas, normas da razão e vigilância.
83 A arte de governar, tal como aparece em toda a literatura, deve responder essencialmente à seguinte
questão: como introduzir a economia – isto é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as
riquezas no interior da família- no nível da gestão de um Estado? A introdução da economia no exercício
político será o papel essencial do governo (FOUCAULT, 2018, p. 413).
232

possibilidade para a tomada de consciência dos motivos e métodos por meio dos quais
estamos sendo conduzidos. A crítica enquanto arte de não ser governado perpassa
pelo interrogar, subverter sem ser imediatamente colocado em uma “caixinha de
moldes”, sob o viés de controle e de medicalização.
Em síntese, a atitude crítica aparece como denúncia, como a arte do Fora,
da não-sujeição, do não-controle que pressupõe a parresia, a política do falar
franco, ou melhor, a coragem da verdade. A crítica é, portanto, o movimento pelo
qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder
e vice-versa; pois bem, a virtude será a arte da inservidão voluntária, aquela da
indocilidade refletida.
Dentre as possíveis linhas de fuga, a genealogia também se apresenta como
estratégia de problematização de práticas, naturalizações, moralismos e linearidades84.
Ajudando o sujeito a firmar a ética mediante a insurreição dos saberes sujeitados.
Nessa perspectiva, identificar quem são os sujeitos excretados da sociedade também
é uma proposta genealógica.

Trata-se ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados,


contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los,
ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos
de uma ciência detida por alguns. As genealogias não são, portanto, retornos
positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas anticiências
(FOUCAULT, 2018, p. 268).

A genealogia se fortalece sobre a singularidade dos acontecimentos, se opondo


à pesquisa da origem da mesma forma que a arqueologia. Destarte, “Não há uma
finalidade na história, assim como não há uma origem; os acontecimentos emer-
gem ao acaso das forças, e não a partir de uma intenção ou determinação prévia”
(LEMOS; CARDOSO JÚNIOR, 2009, p. 354). Nota-se que a história é devir, é
mutação e, por isso, é descontínua e contingente, ou seja, em seu curso os aconteci-
mentos podem ser modificados. Tal que a noção de descontinuidade que antes dava
margem para condução das incertezas, agora é tida como mecanismo e elemento
na análise da história.
Por descontinuidade entende-se que:

[...] a noção de descontinuidade toma um lugar maior nas disciplinas históricas.


Para a história em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o
dado e o impensável; o que se oferecia sob a capa dos acontecimentos dispersos
– decisões, acidentes, iniciativas, descobertas – e o que devia ser, pela análise,
contornado, reduzido, apagado para que aparecesse a continuidade dos aconteci-
mentos. A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador

84 Essas linearidades (retas), sucessões que até detinham um objeto de pesquisa deram lugar a um jogo
de rompimentos, verdadeiras quebras em profundidade. Destarte, “a atenção se deslocou, ao contrário,
das vastas unidades que se descreviam como <<épocas>> ou <<séculos>> para fenômenos de ruptura”
(FOUCAULT, 1972, p. 10).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 233

se encarregava de suprimir da história. Ela se tornou agora um dos elementos


fundamentais da análise histórica (FOUCAULT, 1972, p. 16).

Sucintamente, a genealogia seria uma iniciativa para libertar os saberes histó-


ricos da sujeição e dos moldes, para tornarem-se resistência e luta contra coerção e
imposição de discursos unitários, formais e cristalizados. Dessa forma, ao investigar
os efeitos das relações de poder e suas conexões, verifica-se que há produção de
realidades, fabricação de saberes e discursos, como também a criação de modos de
ser, pensar e agir.
Na perspectiva de Butler, as possibilidades de resistência enveredam por cami-
nhos considerados “apolíticos”, como o luto, a vulnerabilidade e despossessão85. O
cultivo de outros modos de existência, assentados em vínculos éticos-políticos que
não tenham a individualidade elevada como norma moral, percorre pela defesa do
potencial político do luto para a criação de responsabilidades globais que tornam a
vida possível de ser vivida por todos, indistintamente.
Mais do que uma experiência solitária, a filósofa argumenta que o sentimento
de despossessão experimentado no luto, o não saber quem se é em decorrência da
falta de clareza para discernir os limites entre o eu e o outro que partiu, carregaria
um valor ético produtivo para a proteção dos elos de interdependência que tornam
possível nossa sobrevivência física, social e psíquica. O trabalho de luto não pode
ser reduzido à mera substituição do objeto perdido, mediante o redirecionamento do
investimento libidinal, mas compreendido a partir da percepção de que a perda nos
atravessa de uma maneira irreparável, nos transformando de tal modo que não seríamos
os mesmos após essa experiência:

Muitas pessoas pensam que o luto é privado, que nos coloca em uma situação
solitária e, nesse sentido, despolitizada. Mas penso que o luto nos fornece um
sentido de comunidade política de ordem complexa, e isso acontece, antes de
mais nada, porque o luto traz à tona os laços relacionais que têm implicação
na teorização da nossa dependência fundamental e da responsabilidade ética
(BUTLER, 2019c, p. 22).

O potencial político do luto para a reconfiguração das normas de humanização


residiria então na possibilidade de nos despertar para a condição de vulnerabilidade
que expõe nossa interdependência primordial. Seria, portanto, a partir da compreensão
da relacionalidade não apenas enquanto aspecto formativo do sujeito, mas também
normativo, que poderíamos construir novos vínculos ético-políticos que não se orien-
tem por uma lógica individualista, focada no instinto de autopreservação, mas no
reconhecimento da vulnerabilidade e interdependência como traços unificadores
da condição humana.

85 Ao longo das obras de Butler, o termo “despossessão” assume uma dupla valência, podendo ser compre-
endido no sentido material de não dispor de condições de minimização da precariedade, como também no
sentido simbólico no que se refere a forma como não apenas somos constituídos pelo outro, mas também
nos desfazemos nesse encontro.
234

Para tanto, seria necessário afirmar a morte de um tipo específico de sujeito,


de uma fantasia inalcançável que contraria as próprias especificidades que nos
constituem humanos: o ideal de um sujeito autônomo, transparente e racional que
tem domínio sobre si. O abandono desse controle subjetivo, que efetivamente
nunca experimentamos, poderia ressignificar o que compreendemos por vulnera-
bilidade e transformá-la em fundamento para a ação política.

À guisa de conclusão

As reflexões propostas neste artigo foram mobilizadas pela necessidade de


pensarmos possibilidades de resistência em face da precarização da vida pela
institucionalização da racionalidade neoliberal, que ao atuar na captura de nossa
subjetividade e ordenação de todas as esferas da vida em atendimento à lógica
mercadológica, parece nos encerrar em um ciclo de sujeição que esvazia o nosso
horizonte de futuro, reduzindo a pluralidade de modos de ser no mundo à fórmula
do sujeito empreendedor de si.
Para alcance do referido objetivo, recorremos as reflexões formuladas por
Foucault e Butler acerca dos processos de subjetivação a fim de evidenciar a com-
plexidade das teias de relações que criam nossas condições de possibilidade, ao
mesmo tempo em que, nos subordinam a termos, normas e discursos que não esco-
lhemos inteiramente e que se incorporam a nossa própria identidade. Entendemos
que as possibilidades de agência e de ação política perpassam, necessariamente,
pela compreensão das ambivalências do devir sujeito e pelo reconhecimento de
uma dimensão impressionável e suscetível da qual não podemos nos livrar.
Apontamos como essa dimensão suscetível é capturada e explorada de modo
a provocar uma valoração diferencial da vida e distribuição desigual do luto,
sobretudo, dos sujeitos historicamente subalternizados, que escapam às instâncias
normativas hegemônicas e que portanto, são considerados desviantes, objetos
perturbadores, ameaças permanentes do status quo: um problema que a norma-
tividade precisa lidar, mas que, no entanto, está destinada a reproduzir com seus
critérios excludentes de identificação e humanização. Mobilizada pelo problema
da violência ética, Butler interroga-se sobre como levar uma vida vivível quando
se é portador de uma vida considerada descartável, que não se conforma as nor-
mas de reconhecimento. Para ela, a aparição mesmo enquanto vida precária, na
condição de “resto de vida” e de “espectro” pode constituir um recurso ético-po-
lítico em meio à disputa de sentidos que atravessam as normas de reconhecimento
e visibilidade.
Investigamos a relação estreita entre saber e poder na formulação de discur-
sos que produzem efeitos de verdade na busca de elucidarmos como funcionam
os dispositivos neoliberais de controle da vida e da morte por meio de técnicas
de disciplina, de docilização dos corpos e medicalização na busca de um ideal de
sujeito autossuficiente, escamoteando as condições coletivas que possibilitam a
existência física e social.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 235

Com cautela para não recairmos em a) discursos fatalistas que identificam o


sujeito apenas como resultado dos efeitos de poder sem espaço para a resistência ou
b) partem da suposição de um sujeito autônomo, racional e com pleno controle de
si, como condição para ação ética e política que desconsidera como nos formamos
na dependência; e sem a pretensão de oferecer uma resposta definitiva e acabada,
realizamos alguns apontamentos que nos ajudam a alargar o que compreendemos
como real e possível e perpassam pela 1) atitude crítica enquanto virtude para uma
estética de si enquanto prática contínua de resistência; 2) genealogia como estra-
tégia de problematização de práticas engessadas; 3) defesa do potencial político
do luto para reconfiguração das normas de reconhecimento; 4) defesa do valor
ético da incognoscibilidade para proteção dos elos de interdependência e criação
de responsabilidades globais.
O resistir acontece com base nas implicações coletivas no intuito de achar
brechas e fissuras que atuam como ferramentas potencializadoras nas feituras de
si, tensionando a tendência contemporânea de medicalização que viola a subjetivi-
dade humana em nome da necessidade de fabricar padrões socialmente desejáveis
e condizentes com a normalidade. Em vista disso, é primordial pensar políticas de
cuidado e atenção psicossocial através da articulação em rede, questionando a lógica
de mercado que reduz a existência às relações de competividade e produtividade.
236

REFERÊNCIAS
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DO IMPOSSÍVEL ESTADO-NAÇÃO
ÀS EXPERIÊNCIAS DE INIMIZADE:
Brasil e a mitologia do “brutalismo isolado”
Caio Monteiro Silva
Pedro Renan Santos de Oliveira
Igor Monteiro Silva
Vico Dênis Sousa de Melo

“Teu Deus é judeu, a tua música é negra, o teu carro é japonês, a


tua pizza é italiana, o teu gás é argelino, o teu café é brasileiro, a tua
democracia é grega, os teus números são árabes, as tuas letras são
latinas. Eu sou teu vizinho. E ainda me chamas de estrangeiro?”
Eduardo Galeano (1998).

Antes propriamente de iniciar as articulações a que nos propomos neste texto,


pretendemos anunciar, mais que tudo, nossa recusa em qualquer pretensão de uni-
versalidade naquilo que se afirmará aqui. Ao contrário, assumimos desde já, e por
isso mesmo já dizemos de certo método (HARAWAY, 1995), o caráter provincial,
particular e localizado de nossos pensamentos, os quais deram sustentação as argu-
mentações que se seguirão ao decorrer desta discussão, buscando escapar de uma
lógica de universalização do particular – tão típico de certa epistemo-política euro-
centrada – como naquilo que Ngugi wa Thiong’o (1993, p. 25) já denunciava: de
que “o que é Ocidental torna-se universal e o que é Terceiro Mundo, torna-se local”.
Desta forma, este ensaio diz respeito a compreender, a partir de quatro casos de
violência ocorridos no Brasil, que ganharam eco e notoriedade midiática, como vem
se ordenando e articulando algumas das forças sociais no cenário brasileiro. Nessa
direção, apontamos como ponto de partida, nossa aliança com a compreensão de
Achille Mbembe, na obra Políticas da Inimizade (2017), de que está em movimento,
em escala global, uma maneira de lidar com o Outro na qual as democracias liberais
passam a empreender de forma constante ações de exceção.
A tese central desenvolvida nessas páginas, então, diz respeito a uma circulação
mítica (no sentido dusseliano do termo, mais à frente desenvolvido) sobre a convi-
vência que se pretende pacífica de um projeto de Nação em um país colonizado como
o nosso, o Brasil, em contraponto a uma vivência cotidiana do brutal, programado e
efetivado genocídio da população preta, pobre, periférica, indígena, não-cisheteros-
sexual. O mito de um brutalismo isolado em contraponto a uma forma de gestão da
vida e morte baseada na brutalidade colonial genocida.
Cenas de brutalismo são aqui trazidas como catalisadores de sensíveis nesse
ensaio. Cenas que servem como imagens analíticas por trazer ao mesmo tempo que
facticidade aos argumentos, despertam afetações que podem auxiliar a mover certos
240

elementos estéticos capazes de deslocar analíticas demasiadamente racionais. Se


políticas de inimizade fazem gestão de morte e vida de certos corpos, por que não
abordar confrontativamente o mito do brutalismo isolado? Os casos de João Victor
Souza de Carvalho, criança de 13 anos, morto em uma loja do Habib’s, em São Paulo,
após pedir dinheiro aos clientes; de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, espancado
e morto por agentes de segurança de uma empresa privada que presta serviço ao super-
mercado Carrefour, durante a saída da loja em Porto Alegre; e o espancamento que
levou a morte Möise Kabamhabe, imigrante congolês, de 24 anos, após a cobrança
de 200 reais referentes a diárias de trabalho não pagas por serviços prestados em um
quiosque próximo ao posto 8, na praia da Barra, na cidade do Rio de Janeiro; não
seriam importantes acontecimentos a serem elevados a espaços de análise empírica
privilegiada para a compreensão da presença do fenômeno da brutalidade como um
aspecto constitutivo da sociabilidade brasileira.
A pista que tomamos, e que aqui admitimos como certo pressuposto, é que
a angústia e o desejo de aniquilação passam a ser elementos psicológicos comuns
emergindo como resposta de indivíduos e suas comunidades diante de um medo
compartilhado de que a manutenção de sua identidade esteja em risco. A possibilidade
da guerra torna-se forma de convívio comum abrindo espaço para uma condição
intersubjetiva pautada na inimizade (MBEMBE, 2017).
A atmosfera de inimizade se dá em uma espécie de conformidade que se apre-
senta pela, agora necessária, construção de linhas de separação e distanciamento que
operam em dois domínios, mas não de forma separada. Esses domínios são simbólico-
-imaginários e materiais onde o desinteresse e o não se importar com o Outro além do
contínuo esforço na demarcação de diferenças por aspectos identitários – atribuídos
a características psicológicas ou sociológicas – são expressões do primeiro domínio.
Enquanto o desenvolvimento cada vez mais sofisticado na criação de fronteiras que
emergem como empreendimento securitário e ações de vigilância com o objetivo
de afastar todos os que não são iguais apresentam-se como expressões do segundo.
Embora haja uma compreensão hegemonizada de que as sociedades democrá-
ticas modernas sejam pacificadas, é possível perceber através de acontecimentos
concretos o quanto esse entendimento é contraditório e paradoxal. Há na história
de formação dessas democracias uma ocultação de sua origem articulada e forjada
por meio da violência. A proposição de que o controle da violência física teria se
dado através do monopólio da violência por parte e em benefício do Estado tem por
efeito, dentre outras dimensões, o aspecto sociopsicológico de que certa forma de
desenvolvimento moral do sujeito moderno (e não outro – justo o sujeito moderno)
funcionam como forma a substituir a violência corpo-a-corpo pela auto-inibição,
pelo ato de assumir constrangimentos, e a autocontenção. Assim, ao se promover
essas formas de governamentalidade, se produziria a segurança no espaço social.
Entretanto, não sem custo. Ao preço da brutalidade, dessa forma de sociedade,
uma vez que se constata certa tolerância com a violência levada a cabo por certos
grupos privados (MBEMBE, 2017).
Como podemos então sustentar a continuidade e a presença da brutalidade
cotidiana em meio a uma suposta cultura civilizatória que se diz avessa aos processos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 241

de violência perpetrados por seus membros entre si? De que forma o Brasil enquanto
signatário da formação de uma sociedade democrática moderna ao estilo capitalista-
-liberal, pautada supostamente na prevenção da desordem e da violência a partir do
desenvolvimento de uma civilização de costumes, tolera seu brutalismo cotidiano?
Colaborar com o desenvolvimento com alguns olhares que possam auxiliar nas
reflexões sobre essas questões, embora sem compromisso com respostas objetivas
ou universais, são então o horizonte ético e político que constituem a intenciona-
lidade deste texto. Assim, diante de nossos propósitos nos colocamos a tarefa de
tornar inteligível o brutalismo cotidiano brasileiro pela reconexão com elementos
históricos os quais permitirão a constituição de nossa ordem social em seu modo
de presença atual. Além disso destacaremos alguns dos elementos que organizam
nosso horizonte social de forma a ordenar um dispositivo de temporalização capaz
de contribuir com os processos de reprodução social que conectam o Estado-Nação
liberal e o brutalismo cotidiano brasileiro.

Sociedades Bifurcadas nos “Encontros”– da colonização ao impossível


Estado-Nação

Para compreender como é possível certas experiências sociais partilhadas, em


que os membros pertencentes de uma mesma sociedade tolerem, ou sejam indife-
rentes aos processos de violência recorrentes ocorridos no interior de sua própria
“casa”, de sua morada, é preciso inquerir ao suposto óbvio. Como se desenvolve
uma consciência insensível ao “fratricídio”?
A consciência enquanto experiência de mundo ordena-se a partir de vivências
que resgatam intuitivamente, portanto de forma imediata, os elementos, valores e
juízos pertinentes ao horizonte de seu próprio mundo social. Assim, nos resta enfrentar
a questão de que a história da consciência individual se assenta sempre em outras
histórias, em nosso caso, o percurso das sociedades latino-americanas e, em espe-
cial, o do Brasil de maneira que se possa identificar o momento do aparecimento da
hostilidade como modo de convívio e a sua atávica presença contemporânea.
A configuração da relação interpessoal com base na vivência da inimizade
como apresenta Mbembe (2017) parece remeter-se a institucionalização da guerra
colonial. Se é assim, é importante que resgatemos o próprio processo de colonização
na América Latina até o ponto em que se conectam o poder colonial e a estrutura das
sociedades contemporâneas em sua forma de Estados-Nação.
Desta forma, é que anunciamos a importância da Europa Latina. Desde o final
do século XV, Portugal e Espanha, tiveram protagonismo em terras que seriam
chamadas de latino-americanas, principalmente, por já existirem nessas nações
a capacidade de conquista e de controle de terras externas ao sul e além-mar da
Península Ibérica (DUSSEL, 1993). O encontro entre Europa e América Latina pos-
sibilitou, para os europeus colonizadores, evidentemente, a apropriação de metais
que foram utilizados no processo de acumulação de capital, mas também para a
formação de um mercado internacional. Além disso, as diferenças na organização
242

social encontradas na América Latina contribuíram para a constituição do próprio


imaginário europeu (QUIJANO, 1988).
Após o que aqui chamamos de “encontro” entre Europa e América Latina houve
um tensionamento do imaginário europeu de forma tal a produzir uma sobreposição
do lugar do futuro sobre o passado. O que se coloca como o lugar significativo da
cultura europeia e de suas utopias são a perseguição do futuro e não a reposição
da tradição. Enquanto a Modernidade começa a implantar-se na Europa com certa
proximidade entre ideias e práticas, observaremos na América Latina uma distância
muito maior entre o discurso moderno e as práticas efetivadas (QUIJANO, 1988). A
colonização e o tráfico de populações escravizadas negras emergem ao mesmo tempo
que o pensamento mercantilista. A consequente expansão do capitalismo industrial
foi fator determinante para o ritmo da redistribuição das populações no mundo tendo
como efeitos desenraizamentos geográficos e culturais proporcionados tanto pela
implantação forçada de populações em outros territórios como pelo contato entre
essas populações com as comunidades nativas (MBEMBE, 2017).
O encontro entre o que viria ser a América Latina e a Europa se deu pela sig-
nificação de um novo mundo, entretanto a ideia de “novo” aqui carregava o sentido
de algo pouco maduro (DUSSEL, 1993). Nesse sentido, em circunstâncias de aten-
dimento a um projeto civilizatório europeu é que se conectam o imaginário sobre
uma América Latina a ser desenvolvida e uma mão-de-obra escravizada como força
motriz de realização dos planos europeus que passavam, como nos disse Mbembe
(2017), por modificar a forma como se apresentava a natureza transformando um
ecossistema em um agro-sistema permitindo a atribuição de valor e rendimentos ao
que antes era entendido por natureza.
Entretanto, é também importante indagar-se sobre quem eram esses sujeitos
os quais ocuparam a América Latina de maneira a fazer realizar o projeto europeu
em nosso continente. Para Mbembe (2017) a colonização serviu como um processo
de repovoamento destinando as nações colonizadas que receberiam aqueles consi-
derados excedentes ou supérfluos nas metrópoles. Assim, a colonização seria para
esse pensador uma espécie de tecnologia reguladora da migração com o objetivo de
beneficiar as nações colonizadoras pelo distanciamento de indivíduos supostamente
nocivos para a ordem social vigente – vagabundos, delinquentes e pobres.
Assim, em nosso entendimento temos como uma questão principal para a estru-
turação da ordem moderno-colonial algo semelhante ao que Hannah Arendt nomeou,
a partir de sua obra “A Condição Humana” (2017), de Alienação do Mundo. A rela-
ção entre as nações colonizadoras e colonizadas se estabelecem pela expropriação
da colônia enquanto um lugar antropológico, que tivesse uma existência ou direito
a ela por si e para os que nela vivem. A desresponsabilização pela existência do que
viria ser a América Latina ensejou o uso e a transformação de tudo em direção aos
desejos e projeto europeus.
A relação Metrópole e Colônia existirá, então, a partir da lógica em que a
segunda tem apenas lugar de existência na realização e na manutenção do projeto
existencial da primeira. Isto implicará, portanto, a autorização do uso da força e da
violência sem qualquer conflito moral. Ao contrário, aparecendo essa relação como
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 243

a própria realização de um destino moral manifesto que, como nos disse Latouche
(1996), se dá no autoconvencimento de que uma certa avaliação de uma suposta
superioridade técnica europeia seria a constatação de sua superioridade e, portanto,
do seu direito de conduzir as relações no mundo colonial à sua maneira.
A colonização e o tráfico de populações negras escravizadas passam a ser dois
dos principais motores a regularem as ações sociais no território latino-americano. Por
parte dessa interação se operaram as forças destinadas a fazer convergir o modo de
presença das terras a serem colonizadas em uma colônia anexada a um sistema que a
torna elemento partícipe da realização das necessidades e valores europeus. Tivemos,
então, um processo de migração massiva na América Latina que protagonizaram a
realização de agendas políticas, econômicas e filosóficas através de ações extrativistas.
As configurações sociais latino-americanos, portanto, emergem de dois proces-
sos convergentes. O primeiro se dá pela codificação da diferença entre conquistado-
res e conquistados estabelecendo um padrão de poder baseado na ideia de raça. O
segundo por uma forma de controle do trabalho, dos recursos e dos produtos tendo
em vista um mercado mundial. São, então, fundadas um conjunto de identidades
sociais: negros, índios, mestiços, além da redefinição das identidades europeias que
passam não mais significar uma referência espacial ao lugar de origem e sim a terem
conotações raciais (QUIJANO, 1988). Na medida em que as relações fenotípicas
que marcavam a diferença entre conquistadores e conquistados estabelecem também
uma associação hierarquizada da relação social entre colonizadores e colonizados
estrutura-se a ordem hierárquica que condiciona identidades sociais e lugares sociais,
papéis sociais, tipos de trabalho correspondentes. Para Quijano (1988) foi a ideia de
raça que outorgou e legitimou as relações de poder e dominação envoltas na conquista
do continente americano.
Desta forma, é que se observará a participação fundamental das populações
negras escravizadas, como aponta Mbembe (2017), na sustentação do dispositivo
econômico da plantação. Para ele a designação racial não se reduz a uma compreen-
são apenas biológica, ao contrário diante da diferenciação racial se podia utilizar o
corpo negro como uma fonte de energia e combustível. O aspecto racial insere-se
na própria lógica da ordem social da colonização a qual consiste em naturalizar a
própria arbitrariedade violenta da hierarquização social.
Para Quijano (1988) desenvolve-se na América-Latina uma divisão racial do
trabalho, em que se apresentam, em oposição a Europa, ao mesmo tempo vários
tipos de controle do trabalho. A servidão, a escravidão, e a forma salário coexistiam
sendo seus respectivos atores sociais definidos pelo critério racial. Apenas espanhóis
e portugueses poderiam ser comerciantes e produtores independentes e por isso
receberem salário.
Especificamente tratando-se do Brasil, e considerando, a história da coloni-
zação como um dos mais importantes cenários do eurocentrismo, da ocidentali-
zação do mundo e da integração de nosso atual Sistema-Mundo, como nos disse
Wallerstein (2012), Portugal não encontrará de início as condições para a expansão
comercial desejada tal qual foi possível e se deu desde a primeira metade do século
XV no continente africano. Portugal, portanto, transformara sua forma habitual de
244

colonização partindo para um novo sistema que passou a aproveitar as fugas pelas
disputas político-religiosas travadas na Europa, considerações a respeito do clima e
da produção para o comércio, e a necessidade de organizar práticas de agricultura
que se somassem ao extrativismo tradicional tornando a escravidão a solução para a
realização do esforço do empreendimento colonial (PRADO JÚNIOR, 1999).
A maquinaria colonial só se tornou sedutora a partir do momento também em
que o português ao vir para o Brasil pudesse dispor de pessoas que trabalhassem
para ele (PRADO JÚNIOR, 1999). Para Silva (2021) é diante desse processo de
ocupação e povoamento que irão se estabelecer os modelos de associação íntima
propriamente latino-americanos. Para ele estes modelos em sua estrutura e função
são importados desde a Europa para a América e constituem-se pelas relações entre
europeus e entre europeus e autóctones.
Sabe-se que para além do repovoamento forçado e da relação de base escravista
com a população africana, os europeus no intuito da realização de seus propósitos
interagiram com as populações locais a partir de uma lógica binária e sustentada
também em práticas de violência. Essa relação se dava em entender toda a diversidade
dos povos nativos do que viria ser a América Latina a partir daqueles que “aceitavam”
fazer parte da cultura europeia e daqueles que se negavam e eram por isso inimigos
a serem exterminados. No Brasil, especificamente, como nos disse Silva (2021), os
portugueses designaram toda uma diversidade cultural indígena a partir da divisão
Tupi e Tapuia que traduziria aqueles que se aliaram de alguma forma aos portugueses
e aqueles que resistiram e por isso deveriam ser eliminados.
Temos, então, que as relações fundamentais que ordenaram as relações sociais
na colônia se deram pela ocupação e povoamento do território a partir daqueles que
eram tomados como perigosos para a metrópole. Esses que eram dispensáveis ao
convívio social das nações colonizadoras tornam-se aqueles que conduzirão o projeto
de dominação local em que sustentados pela força de trabalho de base escrava trans-
formarão o ecossistema local em um agrossistema na medida dos interesses europeus.
A estruturação do empreendimento colonial sustenta-se, portanto, em duas pernas
intersubjetivas: a imigração europeia dos indesejáveis para a colônia; a escravização.
O que passa a se observar como a ordem política, institucional e intersubjetiva da
formação latino-americana é como disse Quijano (1988) a incorporação da diversidade
dos elementos histórico-culturais em um único mundo dominado pela Europa. Para
ele todas as experiências históricas, os recursos e produtos articularam-se a ordem
europeia a partir de ações que se efetivaram como controles da subjetividade. Essas
ações foram a expropriação dos recursos pertencentes as populações colonizadas que
pudessem servir aos interesses europeus; a repressão sobre as formas de conhecimento
e o universo simbólico de interpretação objetiva e subjetiva da realidade por parte
das populações colonizadas; a doutrinação forçada para aprendizagem de todos os
aspectos culturais da Europa que pudessem ser úteis para a reprodução da dominação
seja ela material, tecnológica ou subjetiva.
Um bom exemplo disso era a leitura feita pelos europeus sobre as populações
negras escravizadas. Como disse Mbembe (2017) os escravizados eram vistos como
um corpo sem mundo, sem terra, reduzido apenas a sua energia a uma espécie de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 245

combustível, como “pessoas-máquinas”, “pessoas-mercadorias”, “pessoas-objetos”.


A América Latina deu-se pela sua suspenção e apagamento histórico que lhe permi-
tia apenas o lugar de realização das nações colonizadoras, não sendo uma entidade
por si, ou em si. Ou, como se afirma na perspectiva crítica ontológica, através do
pensamento de Frantz Fanon (2020), a colonialidade opera, então, a zona de não
ser: “uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente
despojada” (FANON, 2020, p. 22), em que a maioria dos negros não desfrutariam
de nenhum reconhecimento humano.
Chegamos ao ponto em que se podem, portanto, desvelar alguns elementos
bastante importantes para a compreensão da hostilidade como principal forma da
ordem social intersubjetiva na América Latina. A alienação de todo o território lati-
no-americano permitiu que o processo de colonização se fizesse violento pelo não
reconhecimento de que a América Latina pudesse ter um destino próprio que não
submetido aos ditames europeus, assim violou-se e hostilizou-se a terra, os povos da
terra e povos de outras terras que foram violentados de maneira a serem instrumentos
de violação neste continente.
As próprias relações íntimas, aquilo que poderíamos chamar de famílias, foram
neste contexto processos engendrados de violência uma vez que seu sentido era a
dominação e o apagamento do Outro. Nas palavras de Silva (2021, p. 175) “Fazer
família, portanto, foi o meio pelo qual o processo colonial encontrou de habitar
as terras, expandir o domínio europeu na América e controlar o destino brasileiro,
engajando-o em um projeto existencial europeu [...]”.
Assim, destacamos um processo de construção social duplamente bifurcado. A
primeira bifurcação ocorre entre territórios físicos e populações ocorrendo sobretudo,
pelo já discutido projeto de defesa das nações colonizadoras. Este projeto consistia
no envio para as colônias dos sujeitos possivelmente nocivos a ordem da metrópole.
A segunda bifurcação ocorre no próprio território latino-americano em que se pode
claramente perceber uma hierarquização das relações sociais de base racial. Há uma
relação social entre brancos, e uma relação social entre brancos e não-brancos. Uma
coabitação de uma dupla moralidade intersubjetiva.
São as práticas envolvidas nessa dupla bifurcação que constituirão nosso Sis-
tema-Mundo atual e que culminarão em específico na América Latina nas questões
próprias envolvidas na formação dos Estados-Nação, do qual nos interessa acima
de tudo os efeitos sobre o Brasil. No que diz respeito a formação de nosso Sistema-
-Mundo atual, já foi amplamente explicitado por Wallerstein (2002), Mignolo (2017),
Dussel (1993, 2016) e Quijano (1988) o quanto a colonização foi decisiva para a
expansão da conexão entre o mundo que anteriormente ao século XV dividia-se de
forma policêntrica. Além disso, Mignolo (2017) e Dussel (2016) também destaca-
ram a vitória da expansão colonial pela implementação de uma lógica econômica
e epistemológica.
Assim, ainda que “terminado” certo processo histórico que ficou denominado
de colonialismo, a colonialidade (QUIJANO, 2000; 2005) segue como projeto em
marcha na América Latina e Brasil, cujas sociabilidades, institucionalidades e sub-
jetividades obedecem a um dado padronamento de poder. Isso quer dizer, em poucas
246

palavras, que o foco no padrão/matriz de relacionamento – o que esses autores cha-


maram de Matriz Colonial do Poder (MCP) – perpetua ainda hoje, como condição
estruturante da vida social, econômica e política a conformação das hierarquias da
divisão desigual dos corpos em produção de ser, saberes e poder (QUIJANO, 2000;
MIGNOLO, 2017). Ora, a colonialidade seria a própria forma oculta de produzir o
mundo em seu projeto que se dizia modernizante.
A vitória da Modernidade significou, portanto, a vitória de sua pauta oculta, a
colonialidade, como disse Mignolo (2017). Ou, ainda de outras palavras, a moder-
nidade é a própria colonialidade, como nos ensinam Quijano (2000; 2005), Dus-
sel (1997; 2016), Mignolo (2017). Isto implica diretamente na conclusão de que o
empreendimento colonial sustentou a agenda de realização do bem-estar, do cres-
cimento, do desenvolvimento dos Estados-Nação europeus à custa dos processos
de violência ocorridos em outros lugares. De um ponto de vista simples, é possível
perceber, como disse Quijano (1988), que enquanto a Europa gozava de uma forma
de controle de trabalho baseada no salário, a América Latina convivia coetaneamente
com múltiplas formas de controle do trabalho – Servidão, Escravismo, Salário – asso-
ciadas pela ordem racial implementada pelo processo de colonização.
Desta forma, parece-nos evidente que as leis reguladoras da ordem social nas
metrópoles e nas colônias eram, embora contemporâneas, respectivamente bastante
distintas. A paz nos Estados-Nação europeus se deu principalmente pela estratégia
de confinamento da violência em outros territórios: a paz significava quase sempre
a guerra em outro lugar. Federici (2017) apontou muito eloquentemente como a
colonização se deu principalmente por processos de violência que pelo menos ao
longo de 3 séculos sustentaram o desenvolvimento do capitalismo europeu – processo
esse tradicionalmente cunhado, pela tradição marxista, de acumulação primitiva. No
entanto, chamamos atenção que para uma perspectiva latino-americana esse pro-
cesso de violência visando a acumulação não pode aqui ser caracterizado como um
elemento passado. Isso quer dizer que ainda hoje parte presente de nossa realidade
podendo, com alguma regularidade, – para nossa tristeza – serem noticiados por
jornais, revistas, meios de imprensa, pesquisas científicas e mesmo órgãos públicos
regulatórios que reportam a existência de trabalho escravo ou análogo ao escravo.
Na segunda bifurcação, aquela ocorrida no próprio território latino-americano,
teremos o conflito, a hostilidade como a base da ordem social. Enquanto nas nações
colonizadoras desenvolvia-se, em alguma medida, uma sociedade hegemonicamente
de iguais na América Latina as relações se davam de modo mais evidente pela demar-
cação das diferenças fazendo inclusive com que se tornasse um problema para os
territórios latino-americanos a questão de uma raça nacional.
Na análise que faz dos Estados Unidos, Mbembe (2017) toca na questão central
quando aponta a coexistência de uma sociedade de semelhantes ao mesmo tempo
em que parte da própria população nacional era colocada em situação de estrangei-
ros. Do ponto de vista formal podia se observar a proclamação da igualdade, muito
embora essa igualdade jamais fosse vivida na prática. Para ele havia uma regência
social baseada na desigualdade onde a lei e o racismo eram condições da produção
de uma comunidade de separação.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 247

Essas são as circunstâncias de formação daquilo que virão a ser os Estados-


-Nação latino-americanos. No entanto, Mauss (2017) afirma que uma nação seria
um gênero de sociedade em que são partilhadas características próprias, um destino
comum e uma organização política e social integrada e estável. Para ele o processo de
transformação de uma sociedade em uma nação requer que através do tempo sejam
expandidos a nacionalização do pensamento que consiste em uma relativa unidade
mental e cultural dos habitantes os quais aderem conscientemente as leis. No caso
dos Estados-Nação latino-americanos seu “nascimento” parte em grande medida de
uma contradição que é estabelecer uma comunidade tendo como forças fundantes a
hostilidade e a separação. Há uma digressão no processo de homogeneização nacional
operando-se uma naturalização da desigualdade onde a própria violência, hostilidade
e separação são assumidas e encarnadas pela distinção racial.
O processo de homogeneização de um Brasil como “Nação” se deu de forma
eurocêntrica a partir de políticas concretas pensadas e continuadas mesmo após
a independência, como podemos verificar nas políticas indianistas, sanitaristas e
imigratórias, tendo início desde o império até o período republicano. Esse pro-
cesso teve um objetivo e direcionamento evidente: o horizonte era o de produzir
um tipo nacional brasileiro. Entretanto, sua direção era de que o tipo nacional
estivesse orientado pelas teorias da raça aceitas cientificamente, respectivamente
ao período histórico, e que estas fossem capazes de modernizar o Brasil através
do branqueamento (SILVA, 2021).
O que se viu ocorrer nesta trajetória eurocêntrica até a formação dos Estados-Na-
ção foi que a independência, quando ocorrida, apresentava como dados demográficos
uma população de maioria não branca. Contudo, institucionalmente foi vetada a esta
maioria a participação nas decisões sociais e políticas (QUIJANO, 1988). Sendo a
minoria branca de ascendência europeia aquela que controlava o imaginário, as leis
e ordem social, pode-se efetivamente atribuir o reconhecimento de Estados-Nação a
essas sociedades? Essas sociedades, embora independentes, representam as maiorias
colonizadas? Não haveria uma disputa ainda em jogo nas sociedades latino-ame-
ricanas no enfrentamento das heranças coloniais? De alguma maneira parece que
o Estado-Nação possível para as sociedades europeias não se constitui como uma
realidade histórica em nossas sociedades bifurcadas e democracias segregadas.

Brasil, a consciência sequestrada e o mito do “brutalismo isolado”

O que é preciso se colocar como questão desde o início deste tópico e levando
em consideração os aspectos desenvolvidos no item anterior é a afirmação de que o
regime colonial não é a oposição das outras formas de sociedade no mundo ocidental.
De forma distinta ao que se pode pensar de maneira mais intuitiva, essa relação social
bifurcada, essas comunidades de segregação são elas mesmas o motor de funciona-
mento dos próprios regimes ditos democráticos nos Estados-Nação independentes,
sejam eles periféricos ou centrais no nosso Sistema-Mundo.
Para Mbembe (2017) a sociedade de costumes, que em tese seria oposta à
sociedade colonial, aquela que substitui a violência pelos constrangimentos e pelo
248

monopólio da força por parte do Estado, opera sua paz a partir do usufruto de um
conjunto de paixões e satisfações agora incentivadas. O convite ao gozo de certas
paixões possíveis em alguns Estados e sua permissão ao bem-estar sustenta-se em
uma relação estreita e numa distância que é apenas aparente, já que a desigualdade
planetária e a institucionalização da violência em outros Estados são sua condição
sine qua non.
A história democrática moderna tem duas faces: um corpo solar e um corpo
noturno (MBEMBE, 2017). O império colonial e os estados colonizados relacionam-
-se de modo que a história interna destas “Sociedades-Estado” esteja vinculada aos
movimentos históricos externos e os impactos correlatos em suas disputas internas.
A aceitação da violência constitutiva dessa ordem social e a experiência de que haja
um controle dos conflitos que impeça as ações diretas entre os indivíduos fazem parte
de um mesmo jogo de certa produção de consciência.
Essa consciência organiza-se por processos como o que Dussel (1997) chamou
de consciencialização e poderíamos dizer que se mantém pelas narrativas mitológicas,
como já nos disse Mbembe (2017). Para o autor camaronês os regimes democráticos
atuais não poderiam se sustentar sem dissimular sua violência intrínseca. Explicamos
um pouco mais nas linhas seguintes.
A consciencialização é um termo utilizado por Dussel (1997) para discutir
processos de mitificação da consciência. Estes processos se dão pela manifestação
de conteúdos na consciência de forma que a relação com esses objetos emerja de
modo intuitivo, portanto, sob uma experiência vivencial imediata em seus sentidos e
significados. O que se colocará, portanto, como questão a este processo de formação
da experiência consciente estará na arbitrariedade dos limites que circunscreverão a
compreensão do que a consciência se dá a conhecer, ou pode conhecer.
A potência deste processo reside exatamente em que as experiências dos agen-
tes sociais sejam vivenciadas como naturais, como óbvias, como não tendo sido
mediadas. Esta é a condição de que estes indivíduos assumam como próprias, certa
inoculação de experiências sociais. Os limites em que se operam a possibilidade do
compreender não são contingenciais ao acontecimento, ou seja, não dependem dele,
ao contrário são eles constituintes deste acontecer.
A narrativa mitológica das sociedades modernas e a mitificação da consciência
são elementos que contribuem para o encobrimento de que a experiência colonial
reside na democracia. Para Mbembe (2017) o mundo colonial é o duplo da demo-
cracia: a mitologia cumpre a função de “distanciar” as relações de soberania que
conectam as democracias modernas com sua violência originária. Atenuar o máximo
possível a consciência de que as democracias ocidentais atuam espacializando a
violência e administrando-a em lugares específicos, são os princípios e fundamentos
que relacionam a narrativa mitológica e a mitificação da consciência.
Se a mitificação da consciência diz respeito a produção de uma experiência que
permite a vivência de um significado compreendido a partir de limites arbitrários, é
mais que possível pensar que a construção desses limites, sua consciencialização, para
usar o termo que Enrique Dussel (1997) utilizou, trata-se de uma ação política que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 249

dialeticamente opera em nível social e pessoal afirmando possibilidades e negando


outras. E ainda em Dussel (1997), se pode afirmar, as sociedades modernas ou moder-
nizadas colonialmente mitificam sem ter consciência de que mitificam. Assim o duplo
mitificação-consciencialização se põe como processo sócio-psíquico e sígnico da
vida cotidiana em que se operaram bloqueios ou negações em termos de produção
de sentido ou crítica aos próprios sentidos no que diz respeito ao que ocorreu no
passado ou do que poderá ocorrer no futuro.
Em nível social teríamos a afirmação de uma vivência histórica experimen-
tada como própria, constituída e mantida pela narrativa mitológica que consiste
em considerar ou desconsiderar o que é e foi significativo para um povo. Em nível
pessoal, ou em certo sentido psicológico, poderíamos aqui falar de uma afirmação
de sua expressão como memória, do que é possível acessar e do que nem se quer é
possível lembrar, ou recordar, daquilo que é negado como possibilidade. Trata-se de
se afirmar de onde se parte enquanto limites e horizontes que se podem resgatar para
compreender o mundo ao mesmo tempo em que a própria disposição dos limites de
compreensão nega outro entendimento de mundo possível.
O primeiro limite arbitrário que podemos abordar, em nosso caso, se dá pela
noção de independência que escamoteia a continuidade das relações coloniais dentro
dos próprios Estados-Nação, que encobre sua constituição absolutamente hierárquica,
e a relação desigual entre as nações no Sistema-Mundo atual. Constrói-se o mito
de uma ruptura entre o desenvolvimento da América Latina e Brasil e as demais
nações ocidentais, e de que as chamadas “guerras de independência” trouxeram uma
igualdade de ordem fraternal protegida juridicamente para os sujeitos de nacionali-
dade comum.
Para Dussel (1995) as guerras de independência não foram mais que um marco
da passagem de um sistema colonial para o que se pode chamar de neocolonial. Antes
de significarem o rompimento da relação colônia-metrópole o que se deu foi o efeito
das disputas de interesse entre as metrópoles europeias na busca da expansão de
mercados. Permitiu-se, deste modo, a ampliação do pacto colonial e o fortalecimento
das oligarquias locais na América-Latina. Essas oligarquias mantêm-se ao preço do
contínuo extrativismo local como base para a industrialização europeia.
Assim, a história de formação dos Estados-Nacionais na América Latina, por-
tanto no Brasil, se dá mais como um aspecto da reprodução social do que propria-
mente represente uma ruptura. Através do Estado se garante a conservação da ordem
hierárquica que se apresenta de forma classista, racista, generificada, cisheternorma-
tiva e patrimonialista. A continuidade da ordem colonial se dá pela exceção dentro
da institucionalidade nos ditos Estados Democráticos, concordamos com Mbembe
(2017), quando este aponta que a brutalidade encontra seu caminho pelos improvisos,
pelas repostas ao que se considera ações imprevistas, pelo grau de informalidade que
irão encobrir os abusos de autoridade que expandem a imunidade das ações violentas
em nome da segurança.
A exceção é forma como no direito se faz operar a soberania, como se mantém
a aceitação da violência – um tipo de violência no qual não está em jogo o estabeleci-
mento da justiça, a restituição de algo violado. O que se dá nas relações de inimizade
250

como a nova roupagem da guerra colonial é o contrário da reparação, é como nos


disse Mbembe (2017) a antecipação de possíveis faltas futuras.
O Brasil enquanto Estado-Nação independente a partir de sua própria his-
tória de formação organiza-se de maneira cindida. Nessa formação, parte de sua
população é de alguma maneira sempre considerada estrangeira, indesejável e pelo
menos parcialmente privada de direitos. Assim como Mbembe (2017) destacou que
nas sociedades coloniais os colonos insistiam a todo custo em diferenciar-se dos
demais viventes comuns ao mesmo território por um entendimento psíquico que
os tornava imagens em alguma medida caricaturais, parece-nos que na inimizade
à brasileira os processos de estigmatização são seus correlatos atuais. Representar
alguns brasileiros como perigosos, como envolvidos em possíveis crimes, como
tendo manifestado comportamento suspeito, como se vestindo de forma suspeita,
como estando em lugares perigosos, são sempre justificativas para a tolerância da
violência. Há sempre a possibilidade de que uma gama de objetos seja confundida
com armas, furadeiras, guarda-chuvas, marmitas, muletas etc. Segundo Mbembe
(2017), na inimizade como continuidade da ordem colonial, há sempre a lei fora da
lei, uma espécie de miniaturização, celularização e molecularização da violência
que atuam de forma material e simbólica.
Na própria organização espacial das cidades brasileiras é possível observar
o quanto alguns dos territórios são submetidos a uma vigilância, a um controle
fixado geopoliticamente (e espaço-temporalmente), e individualmente a partir de
características sobretudo de base racista. Diante do signo da suspeição se dá a ação.
Na sociedade da inimizade, como diz Mbembe (2017), não há espaço para dúvidas
pois a vivência da dúvida bloqueia o tempo necessário de combate ao inimigo pre-
judicando a segurança e a proteção. A suspeição já antecipa a inimizade que precisa
convictamente ser destruída e eliminada.

Guerra e sequestro no cotidiano dos corpos negros brutalizados: três


cenas de desmistificação do brutalismo isolado

1. Infâncias e Adolescências brutalizadas

Se os cinco anos de morte do caso João Victor Souza de Carvalho, com 13


anos, em São Paulo (G1, 2020), não foram suficientes para qualquer tipo de punição
aos envolvidos ou qualquer tipo de retratação por parte da empresa, a Habib’s, pelos
quais os seguranças eram empregados já dá as pistas do que temos falado ao longo
desse manuscrito. O arquivamento do processo em um caso marcado pela presença
de vídeos gravados, testemunhas ouvidas e pressão da “opinião pública” denuncia o
elemento central do que aqui vem sendo desenvolvido: o brutalismo de sua morte,
por meio de espancamento por dois adultos, diante a situação de “flagrante” dos
seguranças por estar pedindo dinheiro a clientes, não é ação ou prática isolada, ou
mesmo um evento fortuito.
Já é sabido e largamente estudado como as políticas de higiene no Brasil atua-
ram desde a lógica de sanitização excludente das periferias (tornando-as causas dos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 251

problemas de saúde e não vítimas das lógicas de urbanização) até mesmo na adoção da
institucionalização da lógica da “mestiçagem” que, no fim e ao cabo, tentava promover
o branqueamento da sociedade e legitimação do etnicídio (já secular) da população
negra e indígena no país (VIVEIROS DE CASTRO, 2020), e mesmo na medicalização/
psiquiatrização dos não ajustados à lógica modernizante em vigor até na normatização
das famílias via ordem médica (COSTA, 1989), incluindo aí a lógica da infância como
objeto de controle da política pública (CASTRO, 2013; PATTO, 2015). Nesse último,
Irene Rizzini (2002) é taxativa ao lembrar-nos como as crianças, sob o discurso do
“perigo”, eram submetidas, por um lado, ao poder interventivo-policial do Estado que
entendia as crianças pobres, negras e periféricas como ameaçadoras da elite; enquanto
as crianças da classe média e setores abastados, como aqueles que mereciam o status
de protegidas pelas organizações sociais, viabilizadas e legitimadas pelo Estado.
O espancamento daquele corpo não é isolado. A morte é o caminho produzido
por engenhoso itinerário de violência que encontra no jovem negro e periférico o
seu endereço. Como exemplar nessa direção é preciso lembrar que o homicídio é a
principal causa de mortes de adolescentes de 16 e 17 anos, no Brasil e dessas mor-
tes por violência, 93% sexo masculino, sendo a maioria com baixa escolaridade e
morador das periferias das cidades. E, do ponto de vista do olhar racial, o mais agudo
indicador: desse universo de mortes violentas, morrem quase três vezes mais negros
que brancos no país (MDH, 2018).
O que esses dados, dentre tantas outras questões, podem apontar? O não isola-
mento do brutalismo. Esta morte que representa a brutalização de certas infâncias brasi-
leiras nada mais é que o prosseguimento da pavimentação de políticas de inimizade. Para
Mbembe (2017) os processos de inimizade nas sociedades atuais são miniaturizados,
são moleculares e se dão por técnicas de elisão material e simbólica. A condição própria
da vulnerabilidade social em um suposto Estado de Direito, ela mesma não seria um
processo de elisão material e por consequência simbólica? O “delito” da mendicância
não é ele mesmo um processo de inimizade, o qual é respondido na culminância de um
brutalismo escamoteado de ações de segurança? Nas sociedades de histórico colonial
não será preciso fazer uma inflexão sobre a análise foucaultiana presente no curso
“Em Defesa da Sociedade”. O Racismo de Estado não se apresentará apenas como a
ausência de atenção política para maximização da vida. Nas sociedades colonizadas o
“deixar morrer” é uma etapa complementar e constituinte que substancializará a própria
justificativa do desejo de aniquilação como aspecto de segurança.
O caso João Victor escancara e corporifica/encarna a contínua política de higie-
nização que habitam as infâncias e adolescências que merecem a morte por pedirem
esmolas, por sujarem as cidades, mancharem as marcas comerciais das empresas,
por denunciarem a falência da sociedade que “protege” suas crianças e adolescentes.
A brutalização é, sim, ato emblemático de eliminação do que representa o imundo.

2. Democracia racial brutalizada na morte

O caso João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, ganhou o grande público no


mesmo dia do acontecimento, uma noite de novembro de 2020 (JN, 2020; G1, 2021a).
252

Espancado e asfixiado até a morte por agentes de segurança de uma empresa pri-
vada que prestava serviço ao supermercado Carrefour, durante a saída da loja em
Porto Alegre, o caso ganhou repercussão nacional e lutas sincrônicas ao que havia
precedido, 6 meses antes – caso de repercussão mundial – o assassinato também por
asfixia do afro-americano George Floyd (G1, 2021b).
Como também é sabido, diferente do modo operado pelo aparthaied ocorrido
nos Estados Unidos da América, o Brasil tem em sua marca um largo histórico de
ocultamento de sua história fundamentalmente racista, objetivada pela escravização
dos povos africanos vindos forçosamente ao nosso continente. Sem instituir aquele
regime, estabeleceu, por outro lado, a mais duradoura escravidão na era moderna
apregoando-se, especialmente em teorias sociológicas de fundamento ideológico
negacionista, uma suposta democracia racial.
Nascido como conceito na década de 1930 e operado como ideologia por todo
o século XX e mesmo atualmente a democracia racial talvez seja dos mais efetivos
constructos que representou o pensamento colonial brasileiro em nome de pretensa
sociologia nacional, explicando não só o período pré-abolicionista como o pós-escra-
vagista. Teve como expressão máxima e criação conceitual o autor branco brasileiro
Gilberto Freyre e, como indica Cida Bento (2002), aponta que:

[...] a distância social entre dominantes e dominados é modificada pelo cruzamento


interracial que apaga as contradições e harmoniza as diferenças levando a uma
diluição de conflitos. Ao postular a conciliação entre as raças e suavizar o conflito,
ele nega o preconceito e a discriminação, possibilitando a compreensão de que o
‘insucesso dos mestiços e negros’ deve -se a eles próprios (BENTO, 2002, p. 49).

Mas já estaria em Roger Bastide, ainda no fim da década de 1950, uma das
primeiras críticas mais contundentes à ideologia da democracia racial, vertendo
as análises das questões raciais também a dimensão de classe. Batista (2020), ao
comentar Bastide, cita:

A ideia de democracia racial esconderia os evidentes preconceitos raciais dis-


farçados sob a perspectiva de classe. A principal questão: a raça seria o foco das
manifestações brutais de preconceito na experiência brasileira. Bastide alertava
que se o preconceito de cor se confundia com o de classe, logo, deveria se passar
das relações verticais para as horizontais, ou seja, dentro de uma mesma classe
social tentar perceber em que momento a cor começa a ser estigma racial e não
um símbolo de status social (BATISTA, 2020, p. 19).

Tantos outros(as) autoras e autores brancas e brancos (como Florestan Fernan-


des, Octavio Ianni, Livia Sovik, Lia Shucman) e autoras e autores negras e negros
(como Lelia Gonzalez, Cida Bento, Lourenço Cardoso, Silvio Almeida) poderiam
ser trazidos em suas repercussões na atualização dos estudos raciais para compreen-
são do Brasil contemporâneo. O que nos importa dizer aqui é a inseparabilidade
de pensar as questões raciais sem o incalculável efeito da ideologia da democracia
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 253

racial que tenta apaziguar a realidade da discriminação e, principalmente, sem


pensar a branquitude como dispositivo fundamental de perpetuação de poder e
privilégio na organização social.
A branquitude por meio dos brancos corporificam a hierarquização valorativa
da diferença e atualiza a condição de subalternização na continuidade e perpetuação
das relações de colonialidade de poder. Ou seja, trata-se a branquitude de traços
da identidade racial do branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento
(BENTO, 2002) e que não se encerram na discriminação racial – pelo contrário,
operam privilégios raciais que mantém o grupo grampo no poder em termos materiais
e simbólicos, políticos e econômicos, históricos e culturais (SCHUCMAN, 2014).
A complexidade da branquitude e sua contínua associação a certa coloniali-
dade de poder racial está na perpetuação na ancoragem e atualização do mito da
democracia racial. Nesse sentido,

Esses mecanismos de produção de desigualdades raciais foram construídos de tal


forma que asseguram aos brancos a ocupação de posições mais altas na hierarquia
social, sem que isso fosse encarado como privilégio de raça. Isso porque a crença
na democracia racial isenta a sociedade brasileira do preconceito e permite que o
ideal liberal de igualdade de oportunidades seja apregoado como realidade. Desse
modo, a ideologia racial oficial produz um senso de alívio entre os brancos, que
podem se isentar de qualquer responsabilidade pelos problemas sociais dos negros,
mestiços e indígenas (SCHUCMAN, 2014, p. 27).

É nessa teia de operações sociais e psíquicas que o problema racial não é


uma questão negra. Mas, fundamentalmente, uma questão branca. Um problema
da branquitude como dispositivo, do branqueamento como política. É nessa seara
que toda uma gramática do reconhecimento do corpo negro se estabelecerá e, com
ela, normatividades, institucionalidade e subjetividades que fazem a morte de João
Alberto ser entendida como importante ou não.
Situar a morte de João Alberto como um problema racial, em um país mitificado
na democracia racial, é entender aquele assassinato como um problema fundamen-
talmente da branquitude. Fundamentalmente da branquitude porque se produz como
poder (o poder da branquitude), já que se constitui, segundo Schucman, aparado na
ideia foucaultiana do princípio da circulação ou transitoriedade, como:

[...] uma rede na qual os sujeitos brancos estão consciente ou inconscientemente


exercendo-o em seu cotidiano por meio de pequenas técnicas, procedimentos,
fenômenos e mecanismos que constituem efeitos específicos e locais de desigual-
dade racial (SCHUCMAN, 2014, p. 57).

A branquitude produz, assim, os regimes de circulação dos corpos, estabe-


lece a ordem normativa (ainda que não explícita), produz os circuitos de circulação
nos corpos nas cidades e em seus equipamentos (comerciais, culturais, de serviço,
trabalho etc.). A branquitude, em última instância, ditará os corpos que não podem
254

estar em determinados lugares, sob determinados comportamentos, determinadas


performances. A ponto de sua desobediência ser letal aos corpos pretos.
A continuidade colonial racista se dá nas atualizadas necropolíticas. Especial-
mente se compreendemos a Necropolítica como tecnologia de poder que diz respeito
a uma análise da soberania enquanto ordem de relações de governo e seus exercícios
de poder. A ideia de “Estado de Excessão” ganhará contorno central em sua refle-
xão que se inicia com o exame do campo de concentração. No espaço circunscrito
ao campo de concentração se dá um conjunto de práticas, exercícios e ações que
confirmam a negação completa do direito dessas pessoas inseridas naquele espaço
pelo seu caráter de inimizade (MBEMBE, 2017).
Nas sociedades colonizadas, em especial no Brasil, é preciso perceber o quanto
a soberania enquanto prática de governo ainda se faz presente pelas sempre repeti-
tivas justificativas que autorizam o direito de matar. Esse direito de matar obedece
a um exercício não de caráter disciplinar, como no exemplo do campo de concen-
tração onde os suspeitos ou inimigos estão de alguma forma cercados e ocupam um
território em específico. A soberania no Estado brasileiro parece dizer respeito a
mecanismos de controle agora a céu aberto, a processos de subjetivação que se fazem
reconhecer o inimigo não pelo lugar em que ocupa, mas por traços que os identi-
ficam e que se fazem reconhecer enquanto signos de risco, os quais se estruturam
por regimes de visibilidade marcados por designadores de classe e raça em lógicas
de reconhecimento pela oposição a branquitude enquanto ordem social e política.
O caso de João Alberto descortina um brutalismo como resposta necropolí-
tica ao mito da democracia racial que diz que os negros vivem harmonicamente
no brasil. Mesmo na cidadania do consumo, foi no templo do consumo que ele foi
espancado até a morte.

3. O pelourinho contemporâneo ou o brutalizado trabalho precário do


negro imigrante

Os 15 minutos de espancamento até a morte do imigrante congolês, de 24


anos, Möise Kabamhabe, em 24 de janeiro de 2022, no Rio de Janeiro (EXTRA,
2022) é a mais atual das cenas de brutalidade que trazemos neste ensaio. Lembrar,
entretanto, o que motivou a ida de Möise ao posto 8, na praia da Barra da Tijuca,
é o que mais aproxima da banalidade e, ao mesmo tempo, denúncia contextual de
seu assassinato: a cobrança de 200 reais Möise achava justo receber por trabalhos
que ele julgava ainda não pagos.
Möise Kabamhabe e sua família deixaram a África em 2014 em busca de
trabalho no Brasil relatando, como noticiaram os veículos de comunicação, para
fugir da guerra e da fome. Seus trabalhos eram usualmente informais e sua situação
financeira constantemente precária, de maneira que o caso de sua família retrata o
que estudos no campo da imigração congolesa no Brasil apontavam como típico
dentre os que também se encontravam como refugiados (FIGUEIRA; MBUYAMBA,
2020, p. 540):
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 255

Aqui a discriminação sofrida não era pela etnia, mas especialmente pela cor da
pele e pelo continente de onde vieram. Sofreram mudanças e intervenções na
sua cosmovisão e nos seus hábitos e certamente mudaram lugares onde traba-
lharam e habitaram, interferiram com sua cultura, seu olhar, seu jeito de ser. [...]
Sofreram preconceitos, foram submetidos ao trabalho degradante, exaustivo e
humilhante e tiveram que lidar com o fato de serem outsiders e, por o serem,
foram mais explorados.

Como em uma fotografia límpida, o trecho acima relatava com precisão o caso
de congoleses em relação degradante de trabalho no Rio de Janeiro e anunciara com
eloquência o cotidiano de imersão cultural, social e laboral de Möise. O racismo a
chave central de compreensão do caso. O racismo o elemento estrutural para entender
a diferença entre o imigrante branco-europeu com direitos ao trabalho, propriedade,
cidadania e o africano, submetido ao trabalho em situação degradante. Lembremos
que os estudos raciais apontam que desde as imigrações do século XIX e XX no Brasil
o racismo é a estrutura da divisão social do trabalho, como remonta historicamente
a síntese abaixo de Cida Bento (2002):

Na verdade, o que se deu foi a mais cristalina discriminação racial com o objetivo
explícito, como veremos mais adiante, de excluir o negro, uma vez que os imi-
grantes que aqui vieram tinham o mesmo nível de preparo que o negro. Assim,
omissão e inércia não são bons conceitos para caracterizar a atitude da elite branca
da época (BENTO, 2002, p. 51).

E o martírio não cessa na morte do corpo negro explorado no trabalho. É


preciso lembrar de um detalhe ainda mais denunciador do tipo de política em curso
para os corpos pretos no país no caso de Möise, como relatado pela sua família,
quando do reconhecimento do corpo no Instituto Médico Legal (IML) da Polícia
Civil do Rio de Janeiro:

– Quando a notícia chegou até nós, na terça de manhã, fomos ao IML, e a gente
já encontrou ele sem órgão nenhum, sem autorização da mãe, nem autorização
dele de ser doador de órgãos. Onde estão os órgãos? Nós não sabemos. Em menos
de 72h, ele foi dado como indigente – afirmou a prima Faida Safi, em entrevista
à TV Globo (EXTRA, 2022).

Corpo desfigurado pela violência, corpo desconfigurado pelos órgãos médi-


co-legais. Velar, sepultar ou quaisquer atos do processo de encerramento social da
vida negado pelo Estado brasileiro. Aos corpos pretos, nem o direito aos seus órgãos.
Resgate-se ao mesmo tempo em que se atualiza reminiscências e atavismos de uma
hierarquia social no plano da branquitude em que a brutalização feita ao corpo de
Möise reinstala uma gestão afetiva pelo medo e que ao mesmo tempo sustenta-se
em uma ordem tautológica e, portanto, auto-justificável em que a brutalidade é com-
preendida como aceitável e uma resposta a uma possível agressão vindoura.
256

Para irmos direto ao ponto no caso desse brutalismo que acaba de ser reme-
morado: Möise atualiza o pelourinho dos quase quatrocentos anos de escravidão
– justo ele, um imigrante negro africano, refugiado político, vindo ao Brasil com
mãe e irmãos para fugir da guerra e fome em seu país – às dinâmicas societais do
século XXI. Apanhou e foi humilhado em público por capatazes representantes do
dono do estabelecimento por reivindicar o dinheiro como pagamento de seu trabalho
efetivado. Sem direitos trabalhistas garantidos, sem seguridade social realizada, foi
jogado a morte não só por cada um dos cinco homens que proferiram socos e ponta-
pés, pauladas e o asfixiaram, mas pela nossa história do brutalismo generalizado ao
preto que veio em diáspora de África à América.

Algumas últimas considerações

As três cenas parecem dar conta de atualizar o sistema colonial através da


perpetuação da colonialidade do poder. A história colonial organizou a sociedade
brasileira de forma a reproduzir estruturalmente valores racistas e classistas, além
da conveniência e tolerância com a própria prática de violência e extermínio que
se situa diante de certa continuidade e acomodação de novas maneiras de repor o
brutalismo em sociedades fragmentadas.
Trata-se, portanto, de pensar como o próprio encobrimento da história dessa
fragmentação faz aparecer no presente enquanto ato perceptivo imediato a inimi-
zade como de relação propriamente intersubjetiva e que justifica a suspenção da
confiança e dos direitos em nome da segurança. A proteção se faz pelo ataque que
suspende a dúvida diante dos sinais do inimigo. Mitifica-se, no entanto, a trajetória
de constituição da própria hostilidade como modo de ordem social e de construção
de distintas humanidades.
O racismo de estado na sociedade bifurcada brasileira se dá na presença simul-
tânea e articulada do “deixar morrer” e do “fazer morrer”. Soberania atuando no
corpo noturno da democracia, soberania como a arma a ser usada para resolver os
“problemas” e “falhas” da própria forma sociedade do Estado-Nação. A maneira de
organização social que permite e mantém a própria fragmentação da sociedade por
processos contínuos e intermitentes de sequestro e violações de direitos alicerçam
o caminho de degradação pessoal culminando em destituições de oportunidades, de
recursos produzindo marcas, estigmas e certa carreira moral que qualifica a inimizade
e autoriza o ataque “convertido” em defesa.
Os sequestros operados pelo “deixar morrer” culminam na guerra do “fazer
morrer” como solução para segurança e proteção possíveis pela objetivação psíquica
que reconhece dentro dos limites que a própria estrutura social permite o outro como
inimigo, havendo sempre espaço para a impulsividade cínica que na execução do
extermínio simplesmente sobre a suspeita defende-se sob a ideia de acidentalidade
construindo mitos de casos isolados, os quais guardam semelhanças visíveis com
aqueles que foram encaminhados para serem inimigos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 257

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CENAS DA VIDA (MORTE) COTIDIANA:
infames, racismo de estado e necropolítica
Fabio Santos Bispo
Luizane Guedes Mateus
Luziane de Assis Ruela Siqueira

Compartilhamos com as/os leitoras/es como foi difícil escrever este texto, não
por falta de habilidade ou qualquer tipo de dificuldade com a escrita. A questão é
que as cenas que utilizamos como imagens-narrativas da violência cotidiana que
atravessa os corpos negros não cessam de inundar nossos olhares. É difícil escrever
sobre uma problemática de vida e de morte que não pára de nos aterrorizar a cada
dia, com mais e mais mortes. Estamos hoje, no caminho de finalização dessa escrita
que nos fez sangrar novamente ao insistir na tarefa de recordar com a esperança de
fazer cessar a repetição. Segundo Eduardo Galeano, recordar vem “do latim re-cor-
dis, voltar a passar pelo coração” (apud TAVARES et al., 2018, p. 253). É com o
coração sangrando diante de mais mortes aqui no Espírito Santo e massacres em série
no Estado do Rio de Janeiro, no mês de julho de 2022, que concluímos esta escrita,
buscando expor as lógicas que traduzem um governo que atua pelo racismo e pela
necropolítica, atualizando o fascismo na contemporaneidade.
Entendemos que é preciso erguer a voz e nos opormos aos ismos (fascismos,
racismos, sexismos) que fazem os corpos negros e periféricos tombarem. Assim, para
iniciar nossas conversas, evocamos duas imagens que podem se conectar e nos dizer
algo sobre o tempo: o Angelus Novus e a imagem de Sankofa. O Angelus Novus, ou
o anjo da história, é utilizado por Benjamin (1994) em uma de suas teses sobre o
conceito de história. Trata-se de uma pintura que:

[...] representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixa-
mente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo
da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde
nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acu-
mula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria
de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais
fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele
vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade
é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226).

Ao falar da perda da experiência que a modernidade provoca, o autor aborda


a direção para o futuro, visto como o progresso, que impede o homem de acionar o
passado para acordar os mortos e juntar fragmentos da memória. Ao propor a abertura
da história, Benjamin (1994) nos impele ao movimento de, como sucateiros, acionar
262

o passado, catando o que a sociedade vê como lixo, como dejeto, com os pés no
presente, para não repetir o passado, transformando o futuro.
Uma outra imagem que acionamos é a figura de Sankofa, que é parte de um
conjunto de ideogramas chamados adinkra, representado por um pássaro mítico e um
coração estilizado, que volta a cabeça à cauda, que “simboliza a volta para adquirir
conhecimento do passado, a sabedoria e a busca da herança cultural dos antepassados
para construir um futuro melhor” (7GRAUS, 2022).
Por que acionar a recordação, conectando cenas-imagens de nossas e outras
histórias, para colocar em análise a violência contemporânea? Porque apostamos que é
preciso retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Diante da
imagem do Angelus e de Sankofa, que representam olhares diferentes, fazemos uma
relação entre imagens de diferentes épocas, pois “o presente atua como interlocutor
do passado e, consecutivamente, como locutor do futuro” (SANTOS, 2015, p. 19).
As cenas-imagens que serão apresentadas buscam o diálogo entre as temporali-
dades a fim de provocar fissuras no tempo linear e cronológico, pois falamos de tempo
de intensidades, nas marcas que tais cenas-imagens provocam em nossos corpos.
Na Cena 1 falaremos do Corpo-menino infame, acionando os infames da história.
Na Cena 2, narrativas de familiares de jovens atingidos pela violência no Estado
do Espírito Santo. Na Cena-imagem 3, a violência que captura o Estado, vivida e
revivida a céu aberto, sem nenhum pudor ou disfarce, como marca dos nossos dias.
Este texto busca tecer reflexões, a partir de três cenas do horror cotidiano de
quem habita peles negras, acerca da violência contemporânea, do racismo e da necro-
política, que reproduz os processos colonizatórios, atualizando as violências e as
mortes em corpos negros.
Avisamos, decerto não será um texto agradável, que busque apaziguar afetos,
ao contrário, as cenas buscam nos deslocar do lugar confortável de espectadores
das cenas da vida real. Não se trata aqui de uma obra fictícia, uma novela que mas-
cara a vida, mas de cenas tingidas com sangue, de corpos que têm nome, idade,
cor, território. Ao trazer essas cenas e histórias, operamos no sentido oposto àquele
que se produz com a espetacularização da violência na mídia tradicional, que se
transforma em entretenimento ou virtualização da realidade (ŽIŽEK, 2001), ao
situar o horror nesse campo de um outro excluído da humanidade. Se continuamos
apáticos e tranquilos diante de tanta violência, é por que essa operação de apazigua-
mento tem prevalecido, como nos descreve Clarice Lispector: “saber que sempre
fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros
furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer” (LISPECTOR,
1999, p. 124). Quando Conceição Evaristo (2020) propõe que as escrevivências não
são histórias “para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos
injustos” (p. 30), ela nos ensina uma estratégia política que pode ser fundamental
para fazer emergir esse real da morte violenta (BISPO, 2018). É preciso contá-lo
como algo que desperta, que desorganiza a ficção que nos justifica, faz estremecer
a nossa casa e nos incentiva a exercer a nossa revolta e amor, como diz Lispector,
que permanecem guardados.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 263

Trazemos as cenas no intuito de refletir acerca de um passado que insiste em


retornar, cotidianamente, trazido por olhares instituídos e naturalizados. Buscamos nos
inquietar e equivocar a naturalização da morte violenta que atinge os corpos negros
e periféricos. Refletir sobre o passado plantado no período colonizatório do Brasil e
que se atualiza na violência contemporânea, aniquilando a vida, impele-nos a uma
reflexão ético-política acerca do que estamos fazendo do mundo e de nós mesmos,
como nos convida a filósofa Hannah Arendt (ARENDT, 2010).

Cena 1: Corpo-menino infame

Tivemos um encontro fugaz, e talvez por isto mesmo marcante: seu corpo pas-
sou pelo meu na praça próxima ao Lar Dom João Batista (instituição que cuidava
de alguns meninos de rua, administrado pelo pároco da Catedral de Vitória-ES,
Cônego Ayrola), de onde o menino saíra em disparada. Logo à frente, sua corrida
foi interrompida por um grupo de homens, que o seguraram, acusando-o de roubo.
Em meio ao “julgamento”, gritos, empurrões. Logo veio o veredicto: culpado! O
menino então foi levado dali por dois homens. Entre o burburinho dos cidadãos, entre
as palavras de ordem proferidas, o silêncio, a mudez de quem não acompanhava a
velocidade dos fatos...
Silêncio que se quebra com o barulho de um tiro. O menino cai morto a poucos
metros dali. “Justiça” concretizada, corpo punido. A morte se apresenta e se con-
fronta com o ideal de entender o mundo, ilusão/desejo de um corpo psicóloga. Como
entender um menino julgado a céu aberto e morto em plena rua? Como entender
um ser humano tratado como dispensável? Por que a Constituição Federal (1988)
e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD) não foram garantidoras do
direito à vida? (SIQUEIRA, 2017, p. 1011).
Esta cena aconteceu em 1991, mesmo ano de entrada de uma das autoras deste
texto no curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito
Santo. O encontro com o menino e com sua morte se tornou um acontecimento,
algo que “opera uma ruptura no aqui e agora e estabelece uma descontinuidade
entre o passado e o futuro. Imprevisível, o acontecimento não pode ser objeto de
explicação, mas, tão somente de narração, pode-se mostrar o acontecimento, mas
ele não pode ser dito” (VILELA; BÁRCENA-ORBE, 2007).
Iniciamos com essa cena da vida cotidiana, para narrar vidas tecidas a fios de
ferro, como nos diz Conceição Evaristo (EVARISTO, 2014). O menino-infame teve
seu corpo tombado pela ação da milícia que atuava no bairro. Tomamos infame como
anuncia Foucault (2003) e Lobo (2008), como uma vida sem registro, sem história,
sem feito de glória, uma vida cinzenta, que se ilumina por um feixe de luz: o encontro
com o poder. Um corpo invisibilizado no cotidiano, que, ao encontrar o poder na
forma da violência feita por mãos adultas e brancas, é exterminado.
Importante tecer a conexão entre o infame e o racismo de estado, pois não são
quaisquer corpos que tombam diante do poder, há um corte, uma cisão, uma demar-
cação entre o que deve viver e o que deve morrer. Segundo Foucault (2005), não se
264

trata da morte do inimigo, como na guerra, trata-se, no racismo de estado, de um


biopoder, onde “a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em
que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça
inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais
sadia; mais sadia e mais pura” (FOUCAULT, 2005, p. 305).
Corpos infames, que não deixam rastros, nem história, vidas que precisam ser
narradas a fim de não serem esquecidas. Diante da rememoração dessa cena, acon-
tecida nos anos 90, década em que os movimentos sociais demandavam políticas
públicas, quando os atores sociais como os movimentos negros, as mulheres, as
crianças, os sem terra, reivindicavam seus direitos, questionamos: o que desse pas-
sado se atualiza no presente? Há ainda, corpos infames que, cortados pelo racismo
de estado, tombam diante do poder das milícias e dos homens “de bem”, arautos da
“justiça” e da ordem? Sempre vale a pena ressaltar que era um menino, uma criança
e, no entanto, foi morta por esses guardiões da moral e dos bons costumes. Que poder
é esse que se satisfaz com a morte de uma criança?

Cena 2: Quem decidiu pela sentença de morte?

Ana Maria86 chamou uma de suas filhas, que estava de saída para a escola, e
pediu que ela trouxesse as fotos de Júnior, o filho mais velho. Eram pelo menos uns
dez pacotes de fotos envelhecidas pela vida, pelo viver intenso; falavam de Júnior
desde sua primeira festinha junina, quando o bairro ainda não sabia o que era asfalto
ou saneamento básico. Ana Maria passava devagarzinho cada foto e narrava sobre a
época vivida por eles, pela família. Era uma saudade tão real, tão intensa, que fazia
com que qualquer um se emocionasse, se transportasse diretamente para a história
narrada; era uma senhora magra, de olhar intenso, o rosto abatido pela vida hip-
notizava. Ela simplesmente não parecia aceitar que ele havia partido. Por mais que
ela fosse consciente, precisava crer que ele iria voltar, que o filho não havia morrido.
Júnior já não mais vive, fora assassinado pela polícia militar em um suposto
auto de resistência; mas, naquele instante, como em uma película antiga, sua história
é refeita, recontada, reatualizada e revivida. Ana Maria por vezes olha na direção
da porta de madeira, ainda com sinais visíveis do arrombamento do dia da morte do
filho; segundo ela, volta e meia vê o menino entrando por ali... volta e meia imagina
o que não fez, o que poderia ser diferente.
É como se a narrativa de Ana Maria fosse sempre feita e refeita, mas, de alguma
forma, nunca foi, de fato, ouvida. A insurgência dessa memória, redesenhando uma
história que não pode ser esquecida, demanda um olhar mais atento sobre o testemu-
nho de mães e familiares que perderam seus entes queridos para mortes cometidas
por grupos de extermínio, corpos que mesmo em vida, também foram atingidos pela
violência do Estado. Não como uma “contemplação” a esse “lugar de vítimas”, muito

86 Todos os nomes mencionados são fictícios. A história narrada faz parte de Tese de Doutorado “Tem dias
que a gente se sente como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente ou foi o mundo então que
cresceu: memórias e histórias de familiares de atingidos pela violência no Espírito Santo” (MATEUS, 2012).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 265

menos buscando sentimentos cercados de compaixão e pela mobilização emocional


que esse “lugar vítima” produz. Interessa-nos este discurso pois ele emerge como uma
ferida aberta que insiste em sair da esfera privada para o domínio do espaço público.
Ana Maria se lembra de quando o menino era “só um menino”, de quando
precisava deixá-lo sozinho logo cedo, pois trabalhava muito longe, tendo que sair
de casa ainda de madrugada. Por alguns minutos culpa-se por ter tido que trabalhar
tanto para criar os filhos; em outros momentos, a dor maior é a de não poder estar
novamente com o filho. Em uma noite quente de agosto, destruíram quase todos os
sinais de vida de Ana Maria. Mataram até os passarinhos de Júnior; pisaram e esma-
garam as poucas flores plantadas em frente ao barraco de madeira.
Mas, contrariando a falta de espaço, o pequeno cômodo que era usado como
quarto do jovem continuava fechado; as roupas, as fotos, os recortes de jornal sobre
bailes funk e encontros de galeras, tudo da exata forma como ele deixou. A memória
de Ana Maria por um longo tempo ficou restrita àquele pequeno quarto, restrita aos
familiares e amigos mais confiáveis; era contada oralmente por ela – a sobrevivente
– aos poucos mais próximos. O silêncio imperava porque por um longo período o
medo tornou-se uma constante em sua realidade. Uma história de feridas abertas, de
um passado que insiste em não passar.

O testemunho vai narrar o inenarrável, dizer o indizível. O testemunho, no sentido


que lhe empresta Heródoto, aquele que viu com os próprios olhos, que viveu, tor-
na-se essencial frente a ausência de indícios, da materialidade, de documentos que
possam contar a história. Os sobreviventes tornam-se aqueles que levam adiante
a história daqueles que não estão mais aqui para contar, cabe a eles a tarefa de
reconstruir os rastros apagados (MONTEIRO, 2009, p. 5).

Para Gagnebin (2006) as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos


e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados, em um trabalho de luto.
Acreditamos que os sobreviventes, assim como o historiador, vão possibilitar que
as histórias que foram silenciadas, que não “cabem” na história oficial, possam
não mais ser silenciadas, mas contadas, mantidas vivas e presentes na construção
da história.
Histórias até então classificadas como “daqueles que não mereciam viver, os
perigosos. Estabelecendo um saber sobre estes familiares reforçam-se as chamadas
“classes perigosas”. Apresentado como homogêneo, identitário, uno e, portanto,
imutável, de forma unilateral e simplista, esse “rosto” aparece referindo-se aqueles
que têm um destino já conhecido e previsível. O conceito de “classes perigosas” vai
emergir na primeira metade do século XIX, quando o chamado exército de reserva
atingia proporções extremas. Utilizado desde 1849 para referir-se a ex-presidiários,
desempregados, moradores de rua e pessoas fora do mercado de trabalho, esse
conceito vai ganhar força com projetos urbanistas que terão caráter totalmente
higienista. Espaços urbanos terão o poder de disciplinar política, higiênica e moral-
mente as “classes perigosas” e a pobreza que, por sua natureza, será vista como
um iminente perigo social.
266

Segundo Coimbra (2001), no Brasil, a expressão “classes perigosas” parece


caminhar e avançar, ao longo do século XIX, lado a lado com o processo de legiti-
mação da medicina; o saber médico, antes pautado em uma lógica de intervenção
individualizada, passa a intervir em diversos extratos do tecido social, especialmente
nas classes pobres. Personifica-se desde este período, a esta parcela da população,
o perigo do contágio, seja ele direcionado à doença, à imoralidade, ou mais especi-
ficamente à situação miserável. Na atualidade, o termo “classes perigosas” é ainda
diretamente vinculado à pobreza, aos negros e moradores dos grandes bolsões de
miséria das cidades brasileiras. A eles são direcionados os programas sociais com-
pensatórios, os projetos de segurança pública, os projetos de prevenção à situação de
“risco”. Mas risco para quem?! Quem decidiu também para eles a sentença de morte?!

Cena 3: Um memorial foi destruído…

Um memorial foi destruído. Era uma pequena parede, pintada de azul e ador-
nada singelamente no topo com umas poucas telhas. Uma placa retangular anunciava
a homenagem às 28 vítimas da chacina no Jacarezinho. Alguns jornais se referem
ao episódio como uma operação policial, sem dar muita importância à informação
de ter sido a mais letal da história. As mídias populares e matérias produzidas pelos
moradores da própria comunidade chamam de chacina. O memorial estampava esse
nome na placa retangular, que finalizava sua mensagem com as seguintes exortações:
“Nenhuma morte deve ser esquecida. Nenhuma chacina deve ser normalizada”.
Mas o memorial foi destruído.
Ele trazia, abaixo da placa principal, 28 pequenas placas com os nomes das
pessoas mortas. Para não serem esquecidas. Mas o memorial foi destruído. Cada
uma das placas de metal foi meticulosamente arrancada com um pé de cabra – ima-
gino que também com um olhar de ódio e talvez de medo ou de culpa. Uma corda
foi amarrada em um daqueles trambolhos pretos e blindados, semelhante ao famoso
caveirão, para ajudar a trazer a parede abaixo. Parede que, depois, foi destruída a
marretadas. O que havia naquelas placas e tijolos de tão ameaçador? Eram muitos
policiais, armados, e com um caveirão. Destruíram meticulosamente o memorial,
como se ele pudesse conter as almas dos mortos. Como se elas pudessem voltar para
testemunhar o que havia acontecido.
Essa cena nos convida a pensar um turbilhão de coisas, das quais gostaría-
mos de destacar algumas. Primeiro é que a vida insiste na memória. Por isso, a
memória é insurgente. Lélia Gonzalez propõe uma diferenciação entre consciência
e memória, situando esta última como “lugar de inscrições que restituem uma
história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que
se estrutura como ficção” (GONZALEZ, 2020, p. 78). Isso porque a história que
consta nos autos, que é escrita pela fé pública da polícia, busca encobrir as imagens,
as dores, as violências, mas também as histórias e as vidas que são cotidianamente
interrompidas. Se a consciência ou o discurso dominante, que prevalece na mídia e
nas instituições, exclui as lembranças e vivências, a autora propõe que “a memória
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 267

tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através das mancadas do
discurso” (GONZALES, 2020, p. 79).
Ao trazer, seja na oralidade seja na escrita, pedaços de histórias que não foram
contadas sobre os jovens que foram mortos, elas questionam a naturalização da
violência que, para se legitimar, precisa desumanizar o outro e matar também a sua
história e a sua reputação. Lacan utiliza uma noção bem sugestiva, ao comentar o
destino trágico de Antígona que, tendo sido emparedada viva numa caverna, experi-
menta uma segunda morte, como uma espécie de morte em vida, uma morte simbólica
como aniquilamento do ser no domínio do significante: “o destino de uma vida que
vai confundir-se com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte inva-
dindo o domínio da vida, vida invadindo a morte” (LACAN, 1959-60/1997, p. 301).
A destruição do memorial parece expor justamente o paradigma dessa segunda morte,
que não se contenta em ceifar a vida do corpo e busca atingir qualquer vestígio de
vida que tenha restado na memória ou na história.
Achille Mbembe (2018) demonstra que esse processo de mortificação sim-
bólica ganha sua eficácia com a face colonial da razão negra que cria o que Fanon
(1951/2020) e Neuza Souza (1983/2021) chamaram de mito negro. Essa face da
razão negra consiste em um conjunto de discursos e práticas, “um trabalho cotidiano
que consistiu em inventar, contar, repetir e promover a variação de fórmulas, textos
e rituais com o intuito de fazer surgir o negro enquanto sujeito racial e exteriori-
dade selvagem, passível de desqualificação moral e de instrumentalização prática”
(MBEMBE, 2018, p. 61). Se no cotidiano esse discurso, que Mbembe chama de
consciência ocidental do negro, se transmite em várias referências que associam o
negro ao “irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico”
(SOUZA, 1983/2021, p. 57), nas páginas policiais tudo isso ajuda a compor uma
criminalização de sua existência que serve para justificar seu extermínio. Essa crimi-
nalização é frequentemente ampliada para os círculos familiares, para que qualquer
clamor por justiça caia antecipadamente no vazio.
A função política da memória não se esgota, pois, na importância que cada
história tem para o luto dos familiares daqueles que foram mortos. O direito ao luto
é um direito de cada uma das mães que ganha força e repercussão capaz de desafiar
a naturalização da morte quando alcança uma mobilização coletiva. Trata-se de outro
texto da razão negra, que busca recompor a história mobilizando os fragmentos das
experiências que foram silenciadas. “Essa escrita”, diz Mbembe (2018, p. 63), “se
esforça, aliás, por fazer surgir uma comunidade que precisa ser forjada a partir de
restos dispersos por todos os cantos do mundo”.
Nossos mortos têm voz! Anuncia o documentário dirigido por Fernando Sousa
e Gabriel Barbosa (2018), construído a partir das narrativas de mães e familiares
vítimas da violência policial na Baixada Fluminense. Ecoa também o Movimento
Mães de Maio, que publicou um Memorial dos nossos filhos vivos, para contar as
histórias das “vítimas invisíveis da democracia” (SILVA, 2019). Esse livro é um ato
político que traduz a luta de várias mães por justiça, reparação e memória. Resgata
histórias que desmistificam “as concepções racializadas da lei e da ordem e desa-
fia as retóricas mentirosas, falaciosas e perversas que o Estado produz” (ALVES,
268

2019, p. 181) contra os jovens e também contra as suas mães e todos aqueles que
buscam preservar a memória.

Tempo de resistir, mas como?

Conversando sobre o que essas 3 cenas juntas nos transmitiram, pudemos reto-
mar algumas ideias. A primeira delas, diz respeito a esses dois diferentes olhares para
a história: o primeiro olhar, fixo e assustado, faz-nos ver desolados que as mortes se
acumulam e se multiplicam. Na primeira cena, foi uma criança, na última, foram 28
pessoas entre crianças e jovens, a maior parte jovens negros. Sabemos, entretanto,
que há uma linha de continuidade entre a crueldade de matar uma criança – crueldade
protegida pelo manto da branquitude que se arvora como dona da cidade e do bem –
e a naturalização das chacinas que se repetem ainda hoje nas periferias, executadas
pela própria polícia que deveria proteger a comunidade. Com esse mesmo olhar
assustado, retomamos as perguntas de Foucault (2005): “Como, nessas condições,
é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar
matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus
próprios cidadãos?” (p. 305). Outras chacinas se sucederam desde que começamos
a nossa escrita e permanecemos assustados, sem saber quando isso vai parar.
Também resgatamos o outro olhar, o da Sankofa, que se situa no desafio polí-
tico de afirmar a vida nesse mundo de morte. Na primeira cena temos o olhar de
uma estudante que hoje, psicóloga e professora, transmite essa memória como um
modo de excitar insurgências. Na segunda, o olhar se amplia para além do menino.
Temos uma pesquisadora que escuta e escreve a história de uma mãe que, sozinha
em um pequeno quarto, guarda as relíquias de uma vida. Vida que, ao ser escrita e
contada, deixa de ser infame, ganha alguma repercussão. Na terceira cena, vemos
no memorial o exercício de um olhar coletivo que se insurge para não deixar tantas
vidas e histórias serem apagadas e mortas. Se não pudemos evitar a primeira morte,
ainda é possível se insurgir contra a segunda, a dilapidação simbólica da memória de
uma comunidade. Se a letalidade da violência se amplia, precisamos ampliar ainda
mais as nossas vozes para que o silenciamento não persista.

Considerações finais

Finalizamos esse texto no tempo de hoje, olhando para o passado e ao mesmo


tempo, para o futuro. Somos três autoras (e autor) vinculadas/o à docência e à pes-
quisa, que são processos formativos que não podem se desvincular da vida. Entre nós
três, confessamos, habita sim, o medo – cotidianamente dialogamos entre as brechas
das aulas e movimentos acadêmicos: “tá difícil, os estudantes não estão suportando
tanto peso da vida”. Sentimos os corpos em reverberação a cada imagem/cena vista
e narrada nos cotidianos das aulas, nos corredores, nos encontros, na vida. Como
educadoras nos colocamos de pé, na crença de que podemos aliançar e esperançar
mundos novos, apostando na educação como prática de liberdade (HOOKS, 2013).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 269

Mas, para isso, precisamos que os alunos e alunas (sobre)vivam. Não desejamos
juntar corpos, contabilizar mortes, pois trabalhamos com potências e com a vida.
As portas da universidade precisam permanecer abertas para que novos horizontes
sejam gestados. Não aceitamos a barbárie atualizada na contemporaneidade pela
necropolítica como algo irremediável. Benjamin (1994), relatou a pobreza da expe-
riência instaurada pela modernidade, uma experiência que dizia da impossibilidade
de construir experiências compartilhadas. Vivendo o horror da guerra, o autor não
suporta e sucumbe diante da barbárie, mas nos aponta uma pista para que possamos
repensar a barbárie que nos atravessa no tempo do presente: “Barbárie? Sim. Res-
pondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie.
Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir
para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco”
(BENJAMIN, 1994, p. 116).
Se as guerras cotidianas matam o corpo, destruindo esperanças, famílias e
sonhos, arrastando tempos sombrios sobre nós, precisamos, sem ingenuidade ou
romantismos, acreditar que é possível (re)começar a cada dia, retomando o passado,
repensando o presente e transformando o futuro.
270

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CRIME E LOUCURA: racismo de estado e
políticas de morte em um manicômio judiciário
Jullyanne Rocha São Pedro
Maria Teresa Nobre

Introdução

Monstros. Incorrigíveis. Desviantes. Anormais. Possuídos. Alienados. Doentes


mentais. Incapazes. Perigosos. Irracionais. Psicopatas. Inimputáveis.
Enunciados que, em determinados contextos sócio-culturais e políticos, ins-
creveram a posição do sujeito em sofrimento psíquico na história. Sabe-se que os
discursos médicos e jurídicos legitimaram a segregação de categorias de sujeitos,
como a dos “loucos criminosos’, tendo o higienismo constituído a loucura enquanto
impura e monstruosa; fazendo com que as suas existências fossem consideradas
ameaças à normatividade, o que legitimou a negação e/ou tutela de suas vidas. Da
possessão demoníaca à doença mental, a loucura historicamente foi constituída
por diversas concepções negativas, e aos sujeitos em sofrimento psíquico cou-
beram os rótulos de histéricos, débeis, maníacos, depressivos e esquizofrênicos
(FOUCAULT, 2013a; VENTURINI, 2016).
Ao analisar as práticas discursivas médicas e jurídicas acerca da loucura,
nota-se que, além de uma tentativa de normatizar condutas e moldar sujeitos que
não se encaixam nos padrões por elas estabelecidos, “amolam-se facas” (BAP-
TISTA, 1999) que legitimam a eliminação do que não é – para tais discursos –
normal em uma sociedade de normalização. Logo, o que foge à normalidade, pode
ser eliminado.
Foucault (2013b), ao realizar a genealogia do conceito anormal, percorre as
tecnologias de saber e poder utilizadas pela medicina e pelo direito, que possibilitam
a passagem do corpo do monstro ao corpo do anormal, no decorrer do século XIX.
Aliança perigosa entre os discursos médicos e jurídicos, os quais forjaram a constru-
ção da monstruosidade moral a partir dos comportamentos tidos como criminosos.
Nesse contexto, a monstruosidade criminal atravessou o campo da conduta,
fazendo surgir o nascimento do monstro moral que habita o corpo do louco criminoso
(FOUCAULT, 2013a). Corpo destinado ao manicômio judiciário.
Forjado da junção de duas instituições totais (GOFFMAN, 2015), a prisão e
o asilo de alienados, o manicômio judiciário alia em um único lugar os estigmas
do criminoso e do louco, instituição que separa o sujeito do convívio social por
um longo período de tempo, promove uma vida fechada e administrada, através de
rotinas institucionalizantes, que dociliza e anestesia corpos, através da alta dosagem
de drogas psiquiátricas.
274

Loucura e Crime. Crime e Loucura. Asilo e Prisão. Prisão e Asilo. Pausa.


Respiro. Engolir a seco. É impensável o funcionamento desses estabelecimentos
de horrores em plena vigência da lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216/2001,
a qual representou uma conquista da luta antimanicomial ao regulamentar os
direitos e a proteção dos sujeitos que estão em sofrimento psíquico e redirecionar
o modelo assistencial em saúde mental (BRASIL, 2001). Vale ressaltar que tal lei
é fruto do projeto de Lei nº 3.657/89 que versava originalmente sobre a extinção
gradual dos hospitais psiquiátricos.
O processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira teve início na década de 1970,
culminando com a construção de novos paradigmas acerca da loucura, visando a
desconstrução de subjetividades estereotipadas e a criação de espaços e ações de
promoção à saúde, com foco no sujeito e não mais na doença. Com a implantação da
Política de Saúde Mental ocorreu o início de um projeto de desinstitucionalização, a
partir da emancipação do sujeito, da reabilitação psicossocial e da produção de vida,
através do cuidado em liberdade.
Desse modo, percebe-se que apesar das conquistas advindas da Reforma Psi-
quiátrica, o “cuidado” voltado para as pessoas em sofrimento psíquico que entraram
em conflito com a lei ainda é pensado pela via da internação fechada e de longa per-
manência, amparados pela lógica da exclusão. Vale salientar que a Lei nº 10.216/2001
versa que a internação não pode ser utilizada enquanto forma de punição, mas apenas
enquanto recurso terapêutico, de forma excepcional e com prazo estabelecido, não
podendo ocorrer em instituições asilares, como os manicômios judiciários.
Em 2010, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)
através do documento “As Diretrizes Nacionais de Atenção aos Pacientes Judiciários
e Execução de Medida de Segurança” recomendou a utilização de políticas antima-
nicomiais no tocante à medida de segurança e aos pacientes judiciários, entretanto,
ainda não se verifica o cumprimento dessa recomendação em todo território nacional.
Nesse sentido, com o intuito de pensar a política de morte em um manicômio
judiciário, este capítulo tem como objetivo discutir os efeitos da medida de segu-
rança nos corpos custodiados. Trata-se de um recorte de uma pesquisa-intervenção
cartográfica de doutorado realizada pela primeira autora, sob orientação da segunda,
em uma Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento (UPCT) em uma capital do
Nordeste brasileiro.

O cenário da pesquisa-intervenção cartográfica

A pesquisa intervenção acontece através dos agenciamentos entre teoria e prá-


tica, pois ao passo em que pesquisamos, intervimos. Assim, não há dicotomia entre
conhecer e intervir, nem estabelecimentos de fases subsequentes nesse processo:
Se conhece para intervir e se intervém para conhecer (COSTA; COIMBRA, 2008).
Intervir refere-se ao “vir entre” e a intervenção tem como noção central a autonomia
que visa práticas de mudanças sociais. Segundo Passos e Barros (2015, p. 19-20), na
intervenção como método é preciso observar “a análise das implicações de todos que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 275

integram um campo de intervenção permite acessar, nas instituições, os processos


de institucionalização”.
Mais do que uma modalidade de pesquisa, a pesquisa-intervenção é um modo
de conceber o fazer ciência; uma atitude diante da realidade pesquisada. Ela busca
desnaturalizar práticas cristalizadas e questionar as instituições, tomando-as na sua
dimensão abstrata, como “lógicas ou árvores de composições lógicas, que segundo o
grau de formalização e enunciação que adotem, podem ser leis, normais, hábitos ou
regularidades de comportamentos” (BAREMBLITT, 2002, p. 25). A cartografia, ao
colocar em análise as instituições, quanto aos seus modos de funcionamento, práti-
cas, valores e crenças, que produzem modos de subjetivação, acompanha processos
e produz intervenções na realidade, monta dispositivos, implicando em uma aposta
ético-política que revela mudanças de si e do mundo (PASSOS; BARROS, 2015).
A perspectiva cartográfica acompanha os percursos, as implicações e as conexões
que acontecem no campo.
O cenário da pesquisa-intervenção cartográfica é parte de um complexo penal,
que funciona nas proximidades de prisões. Sobre a sua organização estrutural, a
UPCT é dividida em quatro alas: uma administrativa, dois pavilhões de internação/
cárcere e um espaço de convivência. Na ala administrativa estão a recepção, cozinha,
banheiros, sala para a equipe técnica, sala para a farmácia, sala para enfermagem, sala
para descanso dos policiais penais, despensa, sala da direção e um espaço conhecido
como biblioteca/auditório, que possui materiais doados pela igreja Assembleia de
Deus, com cadeiras plásticas com o nome “Jesus”. Os pavilhões para internação/
cárcere são divididos em velho e novo: o pavilhão novo possui quatorze celas e o
pavilhão velho possui doze celas. As celas possuem duas camas de alvenaria e um
banheiro. O espaço de convivência é utilizado para a realização de visitas.
Sobre os corpos que habitam o manicômio judiciário, 44 homens cumprem
medida de segurança, os quais se encontram acomodados sozinhos ou em duplas, nas
celas; e 37 pessoas trabalham, organizados em escala de plantão, a saber: 16 policiais
penais, 15 técnicos em enfermagem, 2 enfermeiros, 1 farmacêutico, 1 assistente
social, 1 psicólogo e 1 médico. Desses trabalhadores, apenas os policiais penais são
concursados, os demais são contratados.
A unidade realiza apenas a internação compulsória de homens; as mulheres
que recebem a medida de segurança são encaminhadas a outros estabelecimentos do
sistema prisional, como o presídio feminino. A UPCT também custodia os detentos
que apresentaram sofrimento psíquico durante o cumprimento da pena, de maneira
superveniente à execução penal, através do incidente de insanidade mental, assim
as penas são convertidas em internação manicomial.
Com(tensão) os policiais penais, na função de carcereiros, cumprem os seus
plantões de vinte e quatro horas, enquanto os internos “morrem” um pouco mais.
Para permanecer ali, é preciso entorpecer a realidade. Substâncias são usadas para
permanecer naquele lugar: policiais penais usam álcool e tabaco, e os internos um
coquetel das mais diversas drogas psiquiátricas, uma vez que para eles o tabaco foi
negado, tendo sido bruscamente retirado sob a justificativa de que os cigarros “quei-
mavam e machucavam os dedos”.
276

Sabemos que os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico são institui-


ções totais, e o “seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com
o mundo externo e por proibições à saída”, se caracterizando por serem “locais
estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas
e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional”
(GOFFMAN, 2015, p. 16-17).
Importante ressaltar que nas instituições totais todas as esferas da vida dos
sujeitos ocorrem em um único espaço, sempre na companhia de muitas pessoas, e
todas as atividades diárias seguem horários e sequências pré-estabelecidos. Através
de vigilância e de controle dos corpos, os internados são submetidos a rotinas ins-
titucionalizantes (GOFFMAN, 2015). Na UPCT a maioria dos internos passa o dia
apenas nas celas, que abrigam um ou dois internos em cada uma, as quais são dividi-
das em dois pavilhões: a dos tranquilos e a dos “problemáticos”. Estes não possuem
direito ao banho de sol, pois são “perigosos”, “agressivos” e outras características
estigmatizantes que o louco e o criminoso colecionam, desde o início dos tempos
modernos. O banho de sol é o único momento em que o sujeito em cumprimento
da medida de segurança passa em espaço aberto, fora da cela, e em companhia dos
demais internos, geralmente para participar de uma partida de futebol.
Alguns recebem visitas nas quartas-feiras, que antes da inauguração do espaço
de convivência, aconteciam na cela, pois aos internos caminhar realmente não é
permitido. Desse modo, os gestores da unidade colocavam um interno que recebia
visita com outro interno que não recebia visita para dividirem a mesma cela. Assim,
as celas não ficariam “superlotadas” com os internos e as suas visitas.
A partir da submissão a essas rotinas institucionalizantes, os seus corpos
sofrem uma deformação pessoal, pois além de serem privados do convívio social
por um longo período de tempo, deles são retirados o arbítrio sobre o que vestir,
o que se alimentar, o tempo que vai demorar no banho e o horário que decide
dormir. A vida em um manicômio judiciário é uma “vida” totalmente fechada
e administrada pelos outros, que produz, como efeito, a “mortificação do eu”
(GOFFMAN, 2015).
As medicações são administradas três vezes ao dia e os internos carregam mar-
cas nas suas subjetividades e nos seus corpos. Aos saírem das celas para a consulta
médica ou para a entrevista com a assistente social, eles colocam as mãos nas costas
para serem algemados e fazem o percurso da cela para a sala no setor da administra-
ção com a cabeça baixa. Neste caminhar de pouquíssimos metros, eles visualizam
apenas os seus pés e o chão.
No contexto político atual é fundamental discutir sobre a custódia estatal des-
ses corpos em sofrimento, a fim de denunciar os efeitos mortificantes da privação
de liberdade e da retirada de direitos. O manicômio judiciário viola a carne dos
internados, torna os corpos vulneráveis, a partir das condições de vida inumanas,
do desrespeito aos direitos humanos fundamentais, da vida institucionalizada e da
prática de violências. A “absolvição” instituída pelas políticas de morte, através da
medida de segurança, cobra um preço muito alto: a vida.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 277

Biopolítica e racismo de Estado

Em 1921, no Rio de Janeiro, foi criado e inaugurado o primeiro manicômio


judiciário brasileiro e da América Latina, o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro,
que teve como finalidade a retirada dos loucos considerados perigosos que estavam
na Seção Lombroso do Hospício Nacional. Assim, o surgimento do manicômio judi-
ciário no Brasil está relacionado ao entendimento de que o louco infrator é perigoso,
advindo dos discursos médicos e jurídicos (CAETANO, 2019). Desse modo,

O manicômio judiciário apresenta-se então como o lugar do louco perigoso. Ins-


tituição total que leva inexoravelmente à mortificação do eu ao impor o aprisio-
namento do indivíduo e cujas práticas “terapêuticas” se naturalizam em atos de
violência, disciplina e de segurança. Desde então, a natureza perigosa desses
indivíduos passa a ser fartamente sublinhada de modo a justificar sua submis-
são à contenção física, química e a outras técnicas disciplinares, para mantê-los
confinados, apartados da convivência do conjunto da sociedade. Não é à toa
que esse tratamento/pena é nomeado medida de segurança. O termo não
expressa a ideia de atenção à saúde, não se trata de medida terapêutica,
trata-se exclusivamente de excluir o indivíduo e, com isto, pretensamente
garantir a segurança da sociedade (CAETANO, 2019, p. 100, grifos nossos).

A política criminal que permite a execução do instituto da medida de segurança


é investida de relações de poder e de dominação, as quais agenciam existências
(FOUCAULT, 2014). É o biopoder que atravessa o corpo e atravessa o sujeito,
através de políticas que determinam a vida e a morte. O corpo é político e “o que
há de essencial em todo poder é que seu ponto de aplicação é sempre, em última
instância, o corpo” (FOUCAULT, 2006, p. 18-19).
Compreendendo que a construção do corpo ocorre através de tecnologias de
poder e a constituição do sujeito se materializa através dos discursos, faremos a con-
textualização da biopolítica e do racismo de Estado: o “fazer morrer ou deixar viver,
fazer viver e deixar morrer”, que são legítimos ao corpo anormal (FOUCAULT, 2018),
como o corpo do monstro moral, do louco criminoso, corpos dos loucos custodiados
em manicômios judiciários.
Na obra “Em defesa da sociedade”, Foucault (2018) apresenta o racismo de
Estado e coloca a discussão sobre o direito de vida e de morte dentro do campo
do poder político. Neste caso, instaura-se uma dissimetria entre tais direitos, no
campo do poder soberano, um desequilíbrio que pende sempre para o lado da
morte, uma vez que se trata de um “direito de fazer morrer ou de deixar viver”
(FOUCAULT, 2018, p. 202).
Para Foucault (2018), o direito de soberania sobre a vida e morte é modificado
no século XIX e o novo direito versa sobre o poder de “fazer” viver e de “deixar”
morrer” (p. 202). Nesse sentido, Foucault (2018) demonstra os mecanismos, as téc-
nicas, as tecnologias de poder que permitiram a configuração desta transformação,
que passa do poder soberano ao poder disciplinar.
278

Nos séculos XVII e XVIII os corpos individuais são marcados pela vigilância,
alinhamento, pelo treinamento que lhes dava força, por técnicas de racionalização,
que representam a tecnologia disciplinar. A técnica disciplinar “é centrada no corpo,
produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso
tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 2018, p. 209).
A partir da segunda metade do século XVIII o poder disciplinar vem a ser
integrado e modificado por uma nova tecnologia de poder, que vai se dirigir à vida
dos homens, à multiplicidade, ao nascimento, à morte, ao homem-espécie. E no
lugar da anatomopolítica do corpo humano, surge a biopolítica da espécie humana.
A biopolítica, nova tecnologia de poder, representa “um conjunto de processos
como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundi-
dade de uma população, etc.” (FOUCAULT, 2018, p. 204). Desse modo, alguns dos
primeiros objetos de saber e alvos de controle deste biopoder foram a natalidade,
a mortalidade, a morbidade e longevidade, os quais foram observados através de
medição estatística. A observação destes fenômenos possibilitou o surgimento de
uma medicina higienista, marcada pela normalização do saber e compartimentação
da informação, com um viés medicalizante.
Para além dessa esfera, a biopolítica tem como campo de intervenção as
categorias que se situam fora do campo da atividade laboral, as incapacidades bio-
lógicas, como a velhice, as enfermidades, os acidentes e as anomalias; e introduz
instituições de assistência e mecanismos de seguridade, poupanças e seguros. O
biopoder também tem como campo de intervenção a preocupação com os efeitos
do meio, das relações do homem enquanto espécie e ser vivo, e seus efeitos no
meio de existência.
A biopolítica introduz a noção de população, “população como problema
político, como problema a um só tempo científico e político, como problema
biológico e como problema de poder” (FOUCAULT, 2018, p. 206), e se dirige
aos fenômenos aleatórios que acontecem a esta população com determinada dura-
ção, a partir de uma regulamentação da vida e de todos os processos biológicos
do homem-espécie.
Nesse sentido, a biopolítica se caracteriza pelo poder de “fazer viver” e “dei-
xar morrer” e esta tecnologia de poder desloca o lugar da morte, uma vez que o
direito de intervir para fazer viver, para prolongar a vida e controlar acidentes,
coloca a morte fora dessa relação e desse domínio de poder. Na biopolítica, “o
poder deixa a morte de lado” (FOUCAULT, 2018, p. 208) e se preocupa com a
regulamentação da vida.
Desse modo, entende-se que a biopolítica:

[...] é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos
de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos
fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura con-
trolar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em
compensar seus efeitos. É uma tecnologia que visa, portanto, não o treinamento
individual, mas, pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança
do conjunto em relação aos seus perigos internos (FOUCAULT, 2018, p. 209).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 279

Assim, a tecnologia disciplinar caracterizada pela série “corpo, organismo,


disciplina e instituições”, é articulada pela tecnologia regulamentadora, caracterizada
pela série “população, processos biológicos, mecanismos regulamentadores e Estado”.
Tendo em vista que a biopolítica objetiva o “fazer viver”, Foucault (2018)
questiona como esta tecnologia de poder permite o “deixar morrer”, oportunidade
em que o filósofo vai falar sobre o racismo de Estado, haja vista que é a emergência
do biopoder que insere o racismo enquanto mecanismo fundamental do poder estatal.
Segundo Foucault (2018, p. 214), o racismo “é, primeiro, o meio de introduzir
afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre
o que deve viver e o que deve morrer”, baseado no campo biológico que configura
a hierarquia e a qualificação das raças enquanto boas ou inferiores; e em segunda
função, o racismo “terá como papel permitir uma relação positiva, se vocês quiserem,
do tipo: “quanto mais você matar, mais você fará morrer”, ou “quanto mais você
deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá” (p. 215), que reflete uma relação
guerreira, de extermínio dos inimigos.
Nesse sentido, o racismo estabelece entre a vida e a morte do outro, uma relação
do tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto
mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação
à espécie, mais eu [...] viverei” (FOUCAULT, 2018, p. 215). Nesse sentido, Foucault
(2018) destaca que a morte do outro, a “raça ruim, inferior, degenerada e anormal”,
deixa a vida mais sadia pura, se configurando uma relação biológica.
O racismo de Estado considera que a raça “é a condição de aceitabilidade de
tirar a vida numa sociedade de normalização”, desse modo, “a função assassina do
Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo biopoder,
pelo racismo” (FOUCAULT, 2018, p. 215). O racismo assegura o direito de matar,
legitimando a função morte na economia do biopoder. Importante registrar que a
exposição à morte, aos riscos de morte, a morte política e a exclusão e segregação
também se configuram como direito de matar alguns, para garantir a vida de outros.

Necropolítica: da escravidão ao Estado Penal

Teorias evolucionistas, como a da degeneração moral, permeiam a história dos


manicômios judiciários, as quais legitimaram a morte de corpos em sofrimento psí-
quico em conflito com a lei. Racismo ligado às tecnologias do poder que possibilitam
ao Estado o exercício do poder soberano, em tempos de biopolítica.
No biopoder, a morte é assegurada desde que em defesa da vida, em garantia
da sobrevivência de uma população, a partir de critérios biológicos, da raça. É o
biopoder “o responsável pela introdução do racismo nos mecanismos do Estado,
e como mecanismo fundamental do Estado”, o qual através do racismo alega que:

[...] para viver é preciso fazer morrer, mas o que era uma injunção guerreira, torna-
-se biológica (a morte do outro, da raça ruim, inferior degenerada, é o que vai deixar
a vida em geral mais sadia, mais pura); trata-se de eliminar, não os adversários, mas
os perigos, em relação à população e para a população (PELBART, 2018a, p. 59).
280

Mbembe (2019) ao considerar insuficiente a discussão da biopolítica para dar


conta do cenário da política contemporânea, que objetiva o extermínio do inimigo
em um trabalho da morte, propõe o conceito de necropolítica. Para Mbembe (2019,
p. 71), as “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropo-
lítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror”,
e “que a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas
de subjugação da vida ao poder da morte”.
Para tratar sobre soberania, o direito de matar, o filósofo articula a noção de
biopoder aos conceitos de estado de exceção e de estado de sítio. Para ele, a relação
de inimizade e o estado de exceção constituem, aliados ao poder, a base normativa
do direito de matar. Poder que produz o estado de exceção e os inimigos ficcionais.
Na biopolítica, a condição biológica (a saber, o racismo) definia as pessoas
que deveriam viver ou poderiam morrer, sendo necessário entender que “racismo
é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder”, que
tem como função “regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções
assassinas do Estado” (MBEMBE, 2019, p. 18).
A soberania reside em “arriscar a totalidade de uma vida” (MBEMBE, 2019,
p. 13), “é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “des-
cartável” e quem não é” (MBEMBE, 2019, p. 44).
Nesse sentido, a internação em um manicômio judiciário pode ser conside-
rada uma morte em vida. Para Mbembe (2019), a escravidão e a ocupação colonial,
demonstram que a morte e a liberdade estão entrelaçadas, o que pode ser estendido
para o cumprimento das penas e medidas de segurança87 (KOERNER, 2006).
Mbembe (2019, p. 32-33) traça um percurso sobre a escravidão:

Um traço persiste evidente: no pensamento filosófico moderno e também na prática


e no imaginário político europeu, a colônia representa o lugar em que a soberania
consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei (ab legibus
solutus) e no qual tipicamente a “paz” assume a face de uma “guerra sem fim”.

A partir da Proclamação da República no Brasil, surge a criação de hospitais


colônias, espaços de segregação que adotavam o trabalho como terapêutica. As colô-
nias objetivavam “fazer a comunidade e os loucos conviverem fraternalmente, em
casa ou no trabalho. O trabalho é, pois, um valor decisivo na formação social burguesa
e, como consequência, passa a merecer uma função nuclear na terapêutica asilar”
(AMARANTE, 2014, p. 76). Nesse sentido, ao recordar o tratamento dos loucos
no Brasil, é possível observar que se deu a partir da inserção em hospitais colônias,
herdando o terror colonial e a morte:

Por todas essas razões, o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra
nas colônias. Lá, o soberano pode matar em qualquer momento ou de qualquer

87 As medidas de segurança são “institutos jurídicos construídos originalmente na Europa com fundamento
no positivismo criminológico”. A aplicação desses institutos se dá pela teoria da periculosidade, “pois trazia
a ideia de que o crime poderia ser prevenido, de forma que, submetido o delinqüente ao tratamento das
medidas de segurança, evitar-se-ia a prática de novas infrações penais” (CAETANO, 2019, p. 102-103).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 281

maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é
uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça
constantemente com fantasias geradas colonialmente, caracterizadas por terras
selvagens, morte e ficções para criar um efeito de real (MBEMBE, 2019, p. 36).

De acordo com Pelbart (2018a, p. 57), o biopoder pode ser caracterizado como
uma tecnologia de dupla face “por um lado as disciplinas, as regulações, anátomo-po-
lítica do corpo, por outro a biopolítica da população, a espécie, as performances do
corpo, os processos da vida – é o modo que tem o poder de investir a vida de ponta
a ponta”. Desse modo, o necropoder agrupa a necropolítica ao biopoder. Assim, a
necropolítica e o necropoder explicam:

[...] as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de


fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação
de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais
vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status
de ‘mortos-vivos’” (MBEMBE, 2019, p. 71).

Corpos de pessoas em sofrimento psíquico que entraram em conflito com a lei,


os ditos loucos criminosos, são custodiados e depositados em Hospitais de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico (HPCT) para o cumprimento de medida de segurança88,
que são aplicadas quando o agente não compreende a ilicitude de seu ato e não tem o
pleno entendimento que a sua conduta é um crime, assim ele é excluído de sofrer as
punições devidas, aplicando-lhe medida de segurança, por não haver a culpabilidade.
O instituto jurídico da medida de segurança, sob o argumento da periculosidade,
justifica-se enquanto discurso por buscar promover a segurança do corpo social da
ameaça que o corpo do louco representa. Como o Código de Direito Penal Brasileiro
não determina o limite temporal máximo de cumprimento da medida de segurança, os
corpos em sofrimento psíquico podem chegar a ficar em caráter perpétuo cumprindo
a medida, situação que viola os princípios constitucionais da proporcionalidade e da
dignidade da pessoa humana.
Nesse mesmo sentido, Pelbart (2018b, p. 14) coloca que o “negro importado da
África” enquanto “matéria prima da experimentação biopolítica” com “procedimen-
tos como esterilização forçada, interdição de casamentos mistos, até o extermínio
puro e simples”, eram práticas colonialistas que só ganharam a indignação quando
ocorreram com os judeus – europeus e brancos. A mesma indignação que vemos
nas mortes de brancos e negros, nas prisões de brancos e negros. Pelbart (2018b,
p. 16-17) acrescenta que:

Necropolítica é a política de morte, que remonta à colônia. Em Mbembe, ela é


racializada, mas extrapola essa dimensão, na medida em que a negritude, por
exemplo, não é apenas uma condição subalterna reservada aos negros, já que
é o lote de sofrimento que pouco a pouco se estende para além dos negros. É
o devir-negro do mundo, que abarca desempregados, descartáveis, favelados,

88
282

imigrantes, mas em contextos agudos, podemos acrescentar: mulheres, gays, trans,


drogaditos, esquizofrênicos, etc. Que a política seja declinada como necropolí-
tica, como política de extermínio, diz algo da sobrevivência da matriz colonial
no contexto contemporâneo. Como se perpetuássemos a convicção escravocrata
de que um negro perambulando solto só pode ser um foragido da senzala – um
bandido deve ser morto, sempre!

É relatado ainda que pelo menos 10% dos escravos africanos morreram na
travessia da África para as colônias ou após o desembarque dos navios negreiros, os
quais tinham os corpos depositados em valas; além de receberem surras ao chegarem
às terras dos seus colonos, inclusive a ordem régia de 1699 isentava de punição legal
os moradores que matassem quilombolas. Corpos dessocializados, despersonalizados,
afastados da sociedade e reificados (PELBART, 2018b).
Nesse sentido, recorremos à noção de homo sacer, conceito trazido por Agam-
ben (2002), que representa o homem insacrificável e matável, conforme figura no
direito romano arcaico:

[homo sacer] é aquele que, julgado por um delito, pode ser morto sem que isso
constitua um homicídio, ou uma execução, ou uma condenação, ou um sacrilégio,
nem sequer um sacrifício. Subtrai-se assim à esfera do direito humano, sem por
isso passar à esfera do direito divino. Essa dupla exclusão é, paradoxalmente,
uma dupla captura: sua vida, excluída da comunidade por ser insacrificável, é
nela incluída por ser matável (PELBART, 2018a, p. 61-62).

A senzala pode ser considerada a primeira experiência jurídico-política de


campo, “transmutando-se ao longo do tempo nas diversas formas de enclausura-
mento de populações indesejadas ou consideradas perigosas, como se pode pensar
o que acontece nos manicômios judiciários”. Assim é possível trazer a noção de
senzala, haja vista que a partir de uma organização política estatal, a possibili-
dade de vida restou-se privada dos direitos e reduzida à condição de homo sacer
(WEIGERT, 2015, p. 118).
Vidas nuas. Vidas matáveis. Vidas em exceção. Vidas negras. Vidas insanas.
Vidas que podem ser mortas sem o cometimento de homicídio. Vidas indignas de luto.
Vidas matáveis e insacrificáveis. Vidas que protagonizam o espetáculo da pornografia
da lei e ordem nos noticiários brasileiros.

A vida sacra, que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício, é o


elemento político originário, e o referente do vínculo soberano, da decisão
soberana. Ela é também, por conseguinte, a forma originária da implicação na
ordem jurídico-política, sob a forma paradoxal da exclusão-inclusão. O direito
à vida, nesse contexto, é a contraparte de um poder que a ameaça de morte
(PELBART, 2018a, p. 61-62).

Consoante ao exposto, podemos compreender que o manicômio judiciário mate-


rializa um estado de exceção e que os loucos criminosos são privados de seus direitos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 283

e prerrogativas, caso sejam mortos não será considerado homicídio. A periculosidade


do louco, a sua incapacidade e anormalidade asseguram a eliminação de sua vida,
uma vida nua e indigna de ser vivida. É a tanapotolítica, necropolítica no manicômio
judiciário em um estado de exceção, “espaço onde a ordem jurídica normal é suspensa,
e essa suspensão é tornada norma” (PELBART, 2018a, p. 65).
A expressão “estado de exceção” utilizada por Pelbart (2018a) chama atenção
para uma característica própria das instituições totais: elas tornam comuns e usuais,
normas que seriam exceção em um Estado Democrático de Direito ou que, segundo
algumas interpretações, com as quais concordamos, são antagônicas a ele. Assim,
perpetuam e eternizam medidas que restringem as liberdades individuais e coletivas,
somente admitidas se absolutamente rarefeitas e provisórias, em situação de profundo
caos social. Tais medidas são possíveis e naturalizadas em função da emergência do
Estado Penal (WACQUANT, 2001; 2003) aquele que tem a função de recrudescer a
intolerância ao crime e ao criminoso.
Loïc Wacquant (2003) identifica o Estado Penal como efeito da crise do capi-
talismo nos moldes vigentes até a década de 1970, que através do neoliberalismo
produziu o declínio do Estado de Bem Estar Social, o enxugamento do estado com
profundos cortes nas políticas públicas, contrapondo a elas o investimento em políticas
repressivas de combate à criminalidade, que atribuem exclusivamente ao indivíduo,
a responsabilização pelos seus atos e a culpabilização intolerável pelos seus crimes e
delitos. Importada dos Estados Unidos e adotada com consequências desastrosas na
América Latina, como afirma o autor, essa prioridade atribuída às instituições policial
e penitenciária tem a função de conter as desordens geradas pelo desemprego em
massa, pela imposição do trabalho assalariado precário e pela retração da proteção
salarial e da assistência social, frutos do novo estágio do capitalismo contemporâneo.
Dentro da sua nova lógica, o estado neoliberal investe no aparato policial e
jurídico, promovendo políticas indiscriminadas de encarceramento para contenção
da propalada “violência criminal”, o que representa uma nova “ditadura sobre os
pobres” (WACQUANT, 2001). O mito das classes perigosas tem lugar de destaque
nesse cenário, com a função de criminalizar a pobreza (COIMBRA, 2001) e de
tornar intolerável o desvio e os “desviantes”. Identificamos, dentre estes, loucos
que cometeram crimes, aos quais, contraditoriamente, não é imputada a culpa, mas
cuja condição de reclusão representa a exacerbação do estado penal, punitivo e letal.
Entre a prisão e o asilo psiquiátrico, “o manicômio judiciário é o pior do pior”,
como diz o lema da luta antimanicomial acerca desses estabelecimentos, que após
mais de duas décadas ainda está absolutamente na contramão da Reforma Psiquiátrica.
Pois, como afirmam Caetano e Tedesco (2021, p. 196) “essas tensões entre liberdade
e controle punitivo se apresentam visíveis nas relações entre a loucura e o direito
penal, mais do que em qualquer outra área entre aquelas que são alcançadas pelas
agências do aparato repressivo do Estado”.
Segundo Weigert (2015, p. 112), nos manicômios judiciários verificamos a ação
da tanatopolítica, a intervenção estatal não sobre a vida, “mas sobre a morte daqueles
indivíduos, daquelas vidas desqualificadas. Dito de outro modo, em relação às pessoas
284

consideradas loucas e criminosas o que parece haver é mais um desinvestimento do


que um investimento na vida”.
No cenário tanatopolítico, “a exceção se torna regra e o espaço da vida nua que
estava antes à margem do ordenamento progressivamente coincide com o espaço
político”, assim “o estado de exceção em que a vida nua é a um só tempo excluída
e capturada pelo ordenamento, sujeito e objeto, constitui na verdade o alicerce de
todo sistema político” (WEIGERT, 2015, p. 115).
Nesse estado de exceção, algumas políticas públicas de um Estado Democrático
de Direito se disfarçam na tentativa de dar legitimidade às arbitrariedades e abusos.
Desse modo, é possível verificar, segundo Weigert (2015) no manicômio judiciário
a presença semelhante a um estado exceção e a do louco criminoso ao homo sacer:

As pessoas consideradas criminosas e loucas somente são incluídas no Estado


através de sua exclusão, pois parecem habitar os manicômios e só existir para
o corpo social através de suas vidas (mais que) nuas. Assemelham-se ao homo
sacer, cuja vida não tinha valor e cuja subjetividade podia ser aniquilada sem que
alguém respondesse por isso. A vida nua continua incluída na política através de
sua exclusão (WEIGERT, 2015, p. 117).

Nesse sentido, a condição do louco criminoso pode ser considerada a mais grave
com relação às outras populações encarceradas, a saber: por serem considerados
irracionais não possuem as suas solicitações ouvidas; em algumas situações, não
conseguem avaliar a situação em que se encontram, não sabendo a motivação da per-
manência em manicômio judiciário; em virtude do uso de altas doses de medicações
psiquiátricas, as quais retiram as possibilidades de ser, de resistir e de estabelecer
laço social; e por outras vulnerabilidades que fazem parte da realidade das pessoas
em sofrimento psíquico no Brasil (WEIGERT, 2015).

Considerações finais

Vidas vulneráveis, contidas em celas solitárias com altas dosagens de fár-


macos. Solidão, ausência de higiene, fome e de mínimas condições dignas para
existir. Como não morrer em um manicômio judiciário? Como a carne medicali-
zada, surrada e contida pode tornar-se um instrumento político para denunciar a
precariedade? Como afirmar a vida?
O corpo faz ver e materializa os processos que os constituem enquanto
sujeitos. O corpo é ponto de investimento das biopolíticas e das necropolíticas.
O corpo é político.
O racismo de Estado e a política de morte em um manicômio judiciário produ-
zem nos sujeitos deformações, aprisionamentos, institucionalizações, anestesiando
e matando as suas vidas. Danos ao corpo e à saúde são verificados após essas longas
internações e o uso indiscriminado de fármacos gera sequelas imensuráveis. Não é
possível promover o cuidado em saúde mental através de internação fechada e de
longa permanência, pois o confinamento e a privação de liberdade negam as pessoas
a condição de sujeitos e as colocam em posição inumana.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 285

A custódia em manicômio judiciário cronifica o sofrimento psíquico, agrava a


saúde e retira a autonomia e as possibilidades de reintegração social. São devastado-
res, perigosos e letais os efeitos mortificantes que a privação de liberdade e a retirada
de direitos podem causar aos sujeitos.
Os discursos que forjaram políticas de morte tiveram no direito e na medicina
suas bases e engendraram as máquinas do poder de normalização, fazendo com que o
biopoder e o necropoder atingissem não somente o corpo singular, mas a coletividade;
e nos manicômios judiciários, estes poderes se apresentam com uma dupla função:
controle de corpos individuais cujas mentes estariam perturbadas e a proteção da
sociedade das desordens que esses corpos podem produzir.
A desconstrução da periculosidade do corpo do monstro moral deve acontecer
através do questionamento das práticas manicomiais e do surgimento do antimani-
cômio, máquina de guerra trazida por Deleuze e Guatarri (2007), que constitui uma
potência contra as políticas de morte, representando atitudes éticas e políticas em
relação ao outro.
O passado não pode ser um cadáver (BAPTISTA, 2018) e é preciso que haja
denúncia das violações de direitos que ocorrem em manicômios judiciários de todo
o Brasil, contribuindo para a reflexão da emergência da desinstitucionalização da
medida de segurança, baseada no cuidado em liberdade e nos processos de resistências
que se desenham a partir de novas linhas de invenção da vida.
O maior problema para a desinstitucionalização da medida de segurança, forte-
mente amparada numa cultura manicomial centenária, é a associação entre loucura e
direito penal, sendo a internação em manicômio judiciário prevista no Código Penal,
disposição que não foi revogada de maneira expressa pela Lei Antimanicomial e que,
ancorada em teorias da periculosidade racistas e sem sustentação científica, ainda
são uma cortina de fumaça que sustentam a existência de manicômios judiciários
em pleno século XXI (CAETANO; TEDESCO, 2021) e que muito bem se aplicam
à configuração do Estado Penal contemporâneo.
Assim, é preciso lutar pela desinstitucionalização da medida de segurança,
compreendendo que ela não se resume ao fechamento dos hospitais psiquiátricos
e dos manicômios judiciários, mas representa a quebra das estruturas segregadoras
que formam manicômios mentais e que aniquilam corpos.
A desinstitucionalização precisa ser atravessada pela capacidade de se afetar,
pela criação e invenção de uma nova forma de cuidar, entendendo que as microfis-
suras produzidas podem desestabilizar os discursos de periculosidade que assujeitam
e mortificam vidas.
286

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JUVENTUDE NEGRA E
“HISTÓRICOTIDIANO” DO
MUNICÍPIO DE VITÓRIA-ES: na
liminaridade entre o choro e a alegria
Adriana Elisa de Alencar Macedo
Elisa Fabris de Oliveira
Rovana Patrocinio Ribeiro
Sandra Mara Pereira

Conceição Evaristo, na escrevivência89 intitulada “Ponciá Vicêncio”, narra a


história de Ponciá: negra mulher, moradora do interior e que após a morte do pai,
acontecimento que causou uma ruptura emocional-afetiva em toda sua família, muda-
-se para a “cidade grande” para “tentar a vida”. Toda a história narrada por Conceição
se passa a partir da memória individual e coletiva de Ponciá sobre sua infância e as
pessoas que a cercaram. Ponciá Vicêncio, na verdade, representa o tempo e o espaço
de uma história de exclusão, mas também de sobrevivência da população negro-bra-
sileira e da vida sobrevivente que se faz na liminaridade entre o choro e a alegria.
Para este breve ensaio, além de Ponciá, nos interessa a história de seu avô,
o “vô Vicêncio”, que, quando em vida, vivia entre o riso e o choro: ou chorando
copiosamente, ou gargalhando incessantemente. Entre o choro e a alegria, emergia
um idoso, negro escravizado, que matou sua esposa e, após tê-lo feito, cortou sua
própria mão. Vô Vicêncio, já morto, comparecia a partir das memórias de Ponciá,
sobretudo quando pela identificação, ela retomava as lembranças do avô para lembrar
de quem ela era.
Deste modo, o presente texto parte de aspirações, dúvidas e questões teórico-
-metodológicas, e também práticas, que surgem do projeto de tese de uma das autoras
e do seu envolvimento pessoal-profissional com a juventude negra e periférica do
município de Vitória, ES.
Serão feitas, portanto, tentativas de mobilizar os conceitos a) historicotidiano
(JESUS, 2020), b) colonialidade (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2008), bem como
um diálogo com o texto “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo e acontecimen-
tos reais sob o formato de narrativas e escrevivências. Além disso, durante o texto
trabalharemos com fotografias (tiradas por uma das autoras e de reportagens dos
veículos de informação), não a fim de que elas representem um todo, mas que tragam
elementos visuais para possíveis análises da história real que será narrada.

89 Conceito cunhado por Conceição Evaristo a partir de um jogo que a autora fazia entre as palavras
“escrever” e “viver”, fundamentado na autoria de mulheres negras, a fim de provocar uma denúncia.
Para mais sobre o termo, ver entrevista da autora disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/
conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem/.
290

Sobre o uso da história de Ponciá Vicêncio, ela vai ao encontro dos concei-
tos de historicotidiano, colonialidade e colonialismo quando atualiza, por meio
da vivência e da memória, uma escrita que apresenta como os cotidianos das
pessoas da história narrada são produzidos com permanências de violências e
desigualdades estruturais como, por exemplo, o racismo. Sobre historicotidiano
e colonialidade, insta dizer que eles representam, respectivamente, o continuum
colonial que une a colonização aos dias atuais (JESUS, 2020) e “uma lógica glo-
bal de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência das colônias
formais” (MALDONADO-TORRES, 2020, p. 36).
Além dos conceitos mobilizados, trouxemos no título a palavra liminaridade
(TURNER, 1975) para pensar num conceito que evoca o sentido de “nem lá, nem
cá”, entre o riso constante e o choro e terror desenfreados, num espaço intersticial
que não contém nem um, nem o outro, onde uma vida se forja e acontece. Na limina-
ridade, a juventude negra e periférica, foco deste ensaio, moradora do bairro Bonfim,
adjacente à Escadaria do Trabalhador, é mantida num estado de não sujeito, humano,
não humano, despossuído de si e, portanto, matável. Isso é de extrema importância à
lógica da violência e terror produzidos pelo braço armado do Estado, a polícia militar,
que atualiza com cenas de terror e morte o que os vinculados às contribuições do
Afropessimismo90 chamariam de violência originária e morte social.
São sujeitos vivos e reais deste texto as(os) familiares de um jovem morto pela
Polícia Militar do Estado do Espírito Santo na última sexta-feira de junho de 2021
durante uma operação desta instituição no bairro Bonfim, especificamente no local
conhecido como Escadaria dos Trabalhadores.
Na história que apresentaremos a seguir, pretendemos trazer à cena um recorte
da morte de João, 17 anos, suas(seus) familiares, as reportagens que circularam na
mídia popular depois do ocorrido, fotos tiradas por uma das autoras e outras compa-
nheiras de trabalho e questões teórico-metodológicas como, por exemplo, a) o fato
de uma das autoras ser técnica de referência do serviço municipal que acompanha a
família de João há alguns anos e que, portanto, participa de muitas situações junto à
família, ser pesquisadora, que tenta, na prática, encontrar rastros das teorias e mate-
riais lidos no campo literário das Ciências Sociais, da Terapia Ocupacional Social,
das Teorias Raciais e da Juventude negra e periférica e jovem (de acordo com o
Estatuto da Juventude), negra e periférica; as três situações se misturam de maneira
indissociável. E aí está o desafio posto para todas nós.

Do alto tá palmiado: daqui eu não desço

Uma primeira questão metodológica que nos acomete é a dúvida entre usar ou
não o nome do adolescente e familiares. Optamos por não utilizar, mesmo que os
veículos de informação, em momento algum, garantiram a anonimidade da situação91.

90 Movimento intelectual que encara a negritude pelo prisma da escravidão perpétua, escravidão esta como
uma ontologia do terror que sujeita negros e negras ao lugar de não sujeitos, à morte social hereditária.
91 Art. 247. Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome,
ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 291

Muito pelo contrário. Apresentamos, então, João92, 17 anos, negro, morador da Esca-
daria do Trabalhadores, no bairro Bonfim, Vitória, ES.
Uma das autoras enquanto técnica do CREAS esteve na casa dos Cândida uma
semana antes do ocorrido. Lá do alto, João e Maurício (irmão) passavam os dias
soltando pipa, namorando, na casa de familiares, já que moravam todos no entorno.
O beco, que também é uma escadaria, é imensamente alto, com muitos degraus de
escada que facilitam a não descida de moradores e dificultam – é a desculpa que
muitos representantes dos serviços dão – a subida de representantes das políticas
públicas e sociais para garantir direitos como saúde, educação, lazer, entre outras.
“Do alto tá palmiado” quer dizer, entre outras coisas, que lá do alto tudo se
vê. Do alto, está dominado. Entre casas de madeira e alvenaria, muitos fios pelos
postes, mato crescendo desenfreadamente e um acúmulo grande de lixo; crianças
brincam sem roupas, pessoas ouvem, dentro de suas casas, músicas em alto e bom
tom dos mais distintos gêneros musicais (evangélicas, funk, pagode etc.). As portas
da maioria das casas dão direto para as escadas e que as não dão, localizam-se no
fundo de quintais de “chão batido”, protegidos por cercas de madeira e alvenaria.
Ali naquele beco também se vende de tudo: portinhas comerciais, tipo bares,
churrasquinho com molho de maionese caseira, bolos de bote, chup-chup e dentre
outras coisas que facilitam e possibilitam o mínimo de renda possível; a identificação
de pontos de comércio fica, geralmente, nas portas das casas, em plaquinhas escritas à
mão (vende-se chup-chup). Naquele ponto específico da escadaria, que fica acima do
meio dela, a maioria das pessoas é da mesma família (Os Cândida). No beco-escadaria
também tem uma igreja evangélica onde as pessoas frequentam às vezes. Dentre as
árvores que ainda restam saem muitas crianças descalças, rindo, correndo pelo beco
uma atrás da outra sob a forma de brincadeira, a mais divertida. A diversão é um
correr atrás do outro sem roupa e rindo desenfreadamente. Os/as adolescentes e jovens
costumam ficar por ali também, conversando, rindo, usando o celular, ouvindo música
alta, namorando e soltando pipa. O céu de outono e inverno, no alto do município de
Vitória, costuma ser coberto por pipas. Existe até um festival-competição organizada
informalmente, que ocorre aos domingos dentro do Cemitério de Maruípe. Este lugar,
que não é neutro diante da rivalidade entre os bairros, é um ponto de encontro das
pipas, para quem pode ir até ele. As brincadeiras e alegrias ocorrem mais durante o
dia, porque à noite é sempre um risco.
João chamava sua casa de mansão; de alvenaria e ainda sem o reboco, como
várias casas vizinhas, a casa é enorme e ali moram muitas pessoas. Em cima da casa
tem um terraço e um lugar onde soltar pipa parece ser mais interessante do que no
meio da própria escadaria. A última vez que uma das autoras viu João com vida, ele

que se atribua ato infracional: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em
caso de reincidência. § 1º Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança
ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos
que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente. § 2º Se o fato for
praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a
autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação.
92 Nome fictício para manter o sigilo da identidade do jovem.
292

estava lá, sorrindo e soltando pipa. Nas paredes da parte externa da casa, marcas de
bala de borracha e balas “de verdade”. A polícia, de acordo com a família e vizinhos,
sempre subia atirando e entrar na casa da família era de praxe. Sempre o faziam.
João e Maurício, seu irmão, eram acompanhados pela equipe de medidas socioe-
ducativas em meio aberto (em que uma das autoras fazia parte) há algum tempo e
desde o início do processo de acompanhamento, uma das maiores dificuldades e
entraves encontrados pela equipe era com relação à circulação de ambos. Diante da
violência externa e das constantes operações da polícia militar (PM) no local de sua
moradia, eles não desciam, pois tinham medo de descer e serem mortos numa dessas
operações, ou em batidas, ou em situações semelhantes. Os irmãos sempre andavam
juntos. Maurício, que é o mais velho, com 19 anos, sempre acompanhava João e, o
que um fazia, o outro fazia também.
Na semana anterior à morte de João, Beatriz, sua mãe, relatou que o filho estava
constantemente com medo das operações e que até para ir na padaria, que fica “no pé
da escadaria” era difícil e ele se recusava. Quem dirá para ir ao Centro de Referência
Especializada em Assistência Social (CREAS), que ficava do outro lado do morro
onde a família morava. Ia-se, portanto, até eles. Nessa ocasião, João nem desceu,
estava ocupado soltando pipa. Lá do alto acenou com um sorriso e continuou na sua
programação. Beatriz havia perdido um filho recém-nascido há pouco menos de um
mês e a equipe do Creas foi até lá junto com a equipe da Unidade Básica de Saúde
para se pensar, junto com a família, em encaminhamentos possíveis. A namorada de
João apareceu na janela naquele dia (ela morava em frente), também conversou um
pouco com as equipes e, pouco a pouco, foram chegando mais pessoas da família,
já que moravam todas ali.
Daniele, tia dos dois jovens, foi uma presença marcante. Passou aquele tempo
conversando com a equipe do Creas, levando-a até sua casa (um pouco mais acima
da casa de João). Ela compartilhou sua alegria em poder morar com as filhas em uma
casa separada do restante da família, uma vez que morar junto “dava muita confusão”
(SIC), mas também disse das dificuldades encontradas naquele terreno. Com muito
mato crescendo, ela disse que era um local propício para a PM se esconder e que
temia pela vida das crianças, que estavam sempre pelo quintal e/ou pela escadaria
durante as investidas dos policiais. Naquele dia acordou-se com a família algumas
possibilidades para contribuir com a resolução do problema do mato crescente, dentre
outras coisas que dizem respeito ao processo de acompanhamento.
A principal questão apontada por Daniele e Beatriz foi a alegria dos filhos e a
fala que apareceu constantemente foi “eles não estão envolvidos em nada aqui no
morro, meus filhos só ficam dentro de casa e quando não estão em casa, estão na
casa da tia, da namorada, ou aqui fora conversando” (SIC), todas as casas próximas
umas das outras. O medo de descer, de sair da escadaria e ir para a “baixada” também
apareceu várias vezes e a recomendação das mais velhas da família era para realmente
evitarem sair de suas casas.
Depois que a equipe do Creas saiu da casa da família, elaborou-se, a partir do
que fora dito, novas possibilidades de intervenção e encaminhamento. Começou-se
a mobilizar a rede (composta por instituições públicas, mas também por pessoas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 293

moradoras da região) para pensar em estratégias de limpeza da escadaria, dentre


outras coisas, as quais a família topou participar.
No dia 25 de junho de 2021, ao amanhecer, a notícia já circulava pela rede e
pelos grupos de Whatsapp: “mataram um adolescente no Bonfim e acham que foi
João”. Ainda não se havia nem acordado direito e, com uma notícia estonteante como
esta, começou-se a procurar por informações nos veículos de informação (Folha Vitó-
ria, Gazeta Online e afins, que costumam divulgar de imediato esse tipo de situação).
Não se achou nada. Foi quando se percebeu que, no celular de uma das pessoas
da equipe do Creas, havia mais de 3 ligações perdidas de Beatriz, mãe de João. Não
bastou outra coisa para a confirmação que se buscava. Ao atender o telefone, todas em
uma sala do Creas, ouviu-se Beatriz dizer, em dor: “mataram meu menino, mataram
meu filho”. Foi feita a acolhida e a escuta do que Beatriz tinha a dizer e, ao desligar o
telefone, começou a mobilização para se subir a escadaria. Isso demorou uma manhã.
Entre telefonemas para a família, outra informação: cadê o corpo?
No mesmo dia 25 de junho de 2021, subiu-se para encontrar com a família.
Neste momento o corpo já fora localizado no Departamento Médico Legal; o pai, o
avô e o tio de João foram reconhecê-lo para liberá-lo.
Naquela tarde, Beatriz, indignada, dizia para dezenas de pessoas que estavam
lá no pé da escadaria: “Aquela repórter falou tudo errado, disse que meu filho era
traficante, inventou um monte de mentira sobre a gente”. Estavam presentes represen-
tantes dos movimentos sociais e de outras mídias alternativas e Beatriz continuava:
“Meu filho era alegre, era um bom filho. Não era o bandido que estão falando aí. Eles
inventam um monte de mentira sobre e gente e a gente não é isso, não”.

Morte física, morte social e violência originária: o fato, a notícia e os


rastros inapagáveis da colonialidade

Os pormenores e mobilizações que ocorreram durante o dia não cabem neste


texto. Aqui, as autoras analisam a passagem de pessoa à traficante, de adolescente
alegre a quem estava em débito com a polícia, de alegria visível ao choro desenfreado
e coletivo e do momento intersticial entre ambas as coisas. O historicotidiano da famí-
lia, marcado pela margem entre a vida e o caos, dentro e fora da comunidade, junto
com o das outras pessoas moradoras da Escadaria e de lugares próximos é atualizado
constantemente com as investidas da Polícia Militar, conforme já dito anteriormente.
Ali, os representantes desta instituição disseram às pessoas que compareceram ao
local durante o dia, que “só mora bandido” e que, portanto, são corpos matáveis. Além
disso, advertiram: “Esse foi só o primeiro caixão a descer. Vai ter mais”.

[...] o discurso está na ordem das leis [...] em toda sociedade a produção do
discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedi-
mentos de exclusão (FOUCAULT, 2011, p. 7-8).
294

Existe, no próprio historicotidiano, não uma história que se faz e que se fez
ali, mas uma atualização histórica de desigualdades e permanências que evocam
a violência originária93 e se aglutinam em uma ontologia do terror provocada pela
ação da PM nesta situação – mas não só. Essa narrativa, bastante comparável à
história de Ponciá e Vô Vicêncio, carrega oposições e contraposições de vida e de
morte. As questões que logo se colocam são: Onde começa uma (vida) e termina a
outra (morte) para uma vida negra que já nasce em morte social? – em referência à
Patterson (2018). Não poder descer do morro por medo, ainda que existisse vontade,
era permanência da vida ou atualização de uma morte social? João, de 17 anos, com
sonhos e desejos, ao ter medo de descer do morro e morrer já vivia sob a insígnia
da morte social? É possível morrer socialmente e continuar vivendo? Por último, e
não tão aliada ao afropessimismo, existe, como afirmou Mbembe (2018), uma vida
que pulsa diante da morte?
Foucault (2012) nos ajuda a pensar nos aprimoramentos dos artifícios de
governo, investidos na população (biopolítica) e no corpo (disciplina) tanto pelo
Estado quanto pelas diversas instituições, em uma teia de saber-poder e subjetivação.
Todavia, tal captura em “nome da vida” cria mecanismos de poder para regular
a sociedade, fazendo os acontecimentos do dia a dia se tornarem “normais” e, assim,
racionaliza-se essas “normalidades”, sem questioná-las, pois, é em nome de uma
suposta produção da vida que elas são constituídas.
Neste sentido, cabe aqui o que Foucault (2012) conceitua de Biopolítica, ou
seja, uma política sobre a vida como forma de controle, que consiga gerir economi-
camente a população, valorizando o “deixar viver” e o “fazer morrer” como forma
de controle em “favor da vida”.
A história de João se repete historicotidianamente no Brasil afora. Em Belford
Roxo94, crianças negras desaparecem sumariamente; em São Gonçalo, João Pedro95
é baleado e fica horas desaparecido, até que o corpo é entregue à família; e em Costa
Barros, também no Rio de Janeiro, cinco jovens são mortos a tiros pela polícia, após
saírem para comer um lanche96. Ainda que todos esses casos sejam revoltantes e ina-
ceitáveis, a repercussão na esfera pública de cada um deles é mediada e pautada pela
mídia, mais especificamente, pela mídia tradicional. Ou seja, depende dela o papel que
polícia, instituições, governos, vítimas e familiares vão assumir em cada narrativa,
a partir da forma como apresentam as histórias. A mídia, e na maior parte das vezes
a imprensa, tem o poder de dizer quão revoltante e inaceitável são essas histórias e
qual a importância devemos dar a elas, seus contextos, desfechos e investigações.
Em acordo com a Teoria do Agenda Setting, os veículos de comunicação de massa

93 Para Patterson (2018) a violência originária é aquela que define o espaço constante da morte e que define o
ser social. Esse ser vive consequências ontológicas indizíveis e tem a violência como fundamental produtor
de sua subjetividade.
94 Notícia disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/29/tres-meninos-desaparecem-
-em-belford-roxo-policia-realiza-buscas.ghtml.
95 Notícia disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-05-19/jovem-de-14-anos-e-morto-durante-
-acao-policial-no-rio-e-familia-fica-horas-sem-saber-seu-paradeiro.html.
96 Notícia disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/cinco-jovens-sao-fuzilados-dentro-de-carro-
-na-zona-norte-do-rio-18174696.html.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 295

detêm a capacidade delimitar o que consideram ter valor-notícia e que, portanto, deve
ser reportado, comentado e discutido. Não é à toa e nem imparcial o fato de alguns
casos ficarem por meses em evidência, enquanto outros recebem pequenas notas ou
passam desapercebido. E também não é por acaso que tragédias envolvendo jovens
de classes alta e média, os “universitários”, ganham repercussão bem distinta daquela
que envolve pessoas negras da periferia. E se, como já mencionado, a polícia entende
esses como corpos matáveis, a mídia tradicional muitas vezes segue a mesma linha.
O senso comum, as representações sociais, os estereótipos (MOSCOVICI, 2017;
NEWMAN, 1975; BIROLI, 2011) carregados do racismo estrutural permeiam a
sociedade de modo generalizado, e no enquadramento interpretativo de diferentes
veículos é comum que se encontre a existência de quadros dominantes (HANGAI,
2012). Sobre esses quadros, deve-se observar, para além da repercussão, o conteúdo e
o discurso ancorados às narrativas noticiadas. A Teoria do Enquadramento explica que
o próprio enfoque dado à notícia depende de escolhas editoriais, de visões de mundo
e de interesses múltiplos que muitas vezes são escondidos na forma de “verdade”.
Ou seja, essa proposição teórica sugere que o jornalismo proporciona à audiência
quadros interpretativos que orientam a interpretação e compreensão da realidade,
especialmente diante de fatos novos e que ainda demandam sentido (DAFLON;
FERES, 2012).
No caso do jovem João, todas essas nuances estão evidentes em reportagens
veiculadas na ocasião de seu assassinato. Para esta análise, assume-se de modo com-
parativo as notícias publicadas em um dos principais e mais tradicionais jornais do
estado, A Gazeta, e um veículo tido como o principal jornal “alternativo” do Espírito
Santo, o Século Diário.
Em uma breve busca na plataforma on-line de A Gazeta, a partir da palavra-
-chave “João Cândido” são encontradas 4 reportagens sobre o assunto, veiculadas
nos dias 15 e 16 de junho de 2021. O mesmo procedimento de coleta de dados na
plataforma on-line do Século Diário retorna, por sua vez, 6 reportagens, com datas
que estendem de junho a outubro de 2021. Tais resultados reforçam que a morte do
garoto não gerou grandes esforços noticiosos e repercussões, como ocorreu dentro da
própria comunidade onde morava. Contudo, há que se observar, que Século Diário
parece fazer um esforço para tratar da continuidade do caso, do acompanhamento
ao longo de alguns meses subsequentes, enquanto A Gazeta se limita a noticiar o
fato, concentrando-se em únicos dois dias, próximos ao evento, trazendo eventuais
e pontuais atualizações.
Mas nessa hitoricotidiano, em que a vida de um negro pouco vale, qual o teor
das notícias? Na perspectiva da imprensa tradicional, aqui representada por A Gazeta,
observa-se que João é um jovem da periferia, cuja a trajetória se resume a alguém
“que já tinha passagens” pela justiça. A vida que já é previamente assumida como
morte, faz com que o jornal não problematize a ação da Polícia Militar, não questione
precariedade do Estado de cuidar dos seus, não evidencie a idade do garoto e, por-
tanto, a prematuridade de uma vida perdida, e nem explicite a revolta de familiares,
amigos, vizinhos diante de um assassinato no quintal de casa. Nada disso dá tom às
notícias. A manchete é evidente quanto ao enquadramento de A Gazeta: é o histórico
296

“criminoso” de João que ganha destaque nas páginas do jornal, e que implicitamente
culpa a vítima e redime polícia, o Estado e todo o resto.

A Gazeta ENT

Polícia
POLÍCIA DIZ QUE JOVEM TINHA PASSAGENS

Em coletiva de imprensa realizada na manhã desta sexta-feira (25), o tenente


Xavier, da Polícia Militar, explicou que o jovem morto já é conhecido pelos policiais
e pelo departamento de inteligência da corporação.

"Ele já é conhecido tanto pelas nossas guarnições quanto pelo nosso serviço de
inteligência. Ele tem duas passagens anteriores pela Justiça. Uma em 2018
quando com ele foram apreendidos duas armas de fogo, grande quantidade de
entorpecentes e uma granada; e uma em 2020 com uma pistola 9 mm também.
Há parentes dele que têm passagens pelo crime de tráfico de drogas, dois tios e
um irmão. Então já é um conhecido da polícia", disse.

Nesse recorte noticioso de um adolescente alegre, João passa a ser o conhecido


como alguém que figura entre as guarnições da polícia. A Gazeta, como faz de forma
habitual, contribui para a institucionalização da ideia de que jovem preto e periférico
é traficante. No restante da reportagem ainda são citadas outras pessoas da família
(homens e negros) que, segundo a polícia, também já são conhecidos por sua inteli-
gência e procurados pela corporação, sugerindo, portanto, que o sujeito traficante foi
e é uma herança familiar. Patterson (2018) discute a categoria escravidão como um
processo institucional e trans-histórico – que aqui chama-se de historicotidiano – que
representou e ainda representa, por meio do que se entende como colonialidade, a
despossessão total de si, a supressão da dignidade e a dominação social quase que
total e, neste sentido, a figura do escravo, alguém sem direitos e afastado de qualquer
possibilidade de reivindicar a humano-dignidade (PATTERSON, 2018). Além da
presente situação atualizar a violência originária da colonização e da escravidão, ela
apresenta a ideia, por meio dos discursos e da imagem criada e circulada nos veículos
de informação, de que o tráfico é uma herança. A banalização da dor e da exclusão
auxilia na construção e difusão da noção de que as pessoas tidas como “perigosas”
possuem características específicas, associando a violência a certos grupos sociais
(MELO; SILVA, 2017; HENRIQUES; GUEIROS; NODARI; OLIVEIRA, 2019).
Assim, não é incomum observarmos reportagens que retomam, propositalmente
e, por vezes, de maneira forjada, o histórico familiar para justificar determinadas
mortes. Nitidamente, o enquadramento dado a João é não só diverso, mas o oposto
do retratado pela família. Como a mãe Beatriz afirma: “disseram coisas que não são
verdadeiras sobre o meu filho, inventaram um monte de coisa da gente”.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 297

O discurso veiculado em A Gazeta é reforçado pelo imagético. A seguir, uma


imagem postada em outra reportagem deste mesmo veículo de informação, com o
rosto de João de fone de ouvido, busca representar, novamente, a figura do traficante
“com o radinho na mão”. Nos ônibus, nas praças e nas ruas é isso que falam: “ah,
mas tava no jornal que ele tinha passagem”. A imagem produzida pelos veículos de
informação passou exatamente o recado desejado.
Contudo, há que se pontuar que a morte de João não foi noticiada sob um único
enfoque. As reportagens de Século Diário certamente diferem daquelas veiculadas
em A Gazeta. Quanto ao enquadramento, a individuação e o destaque ao histórico da
família dão lugar à comunidade local e a outros casos de assassinatos semelhantes
ao de João. Esse novo foco é percebido tanto no discurso propagado no texto escrito
quanto a partir da seleção de imagens:

Adolescente é assassinado em ação policial no


Bonfim e outro é baleado na perna
Moradores destacam omissão da Polícia Militar, que teve resistência em
socorrer os jovens

ELAINE DAL GOBBO


25/06/2021 13:17 | Atualizado 26/06/2021 14:25

A noite dessa quinta-feira (24) foi de terror para os moradores do Bonfim, no Território do
Bem, em Vitória. Uma ação policial culminou na morte do adolescente Danilo Cândido de
Jesus, de 16 anos, e deixou outro jovem baleado na perna. Em um vídeo que circula nas redes
sociais, uma mulher que se identifica como tia do rapaz assassinado relata que os policiais
estavam em um beco, de onde atiraram no jovem, que se encontrava no quintal de casa. "Eles
não socorreram, não ajudaram meu sobrinho", diz a moça no vídeo sobre a Polícia Militar
(PM).

Enterro de adolescente morto no Bonfim é


marcado por protesto
Moradores pediram justiça, fim da militarização da polícia, e recordaram
outros jovens assassinados
ELAINE DAL GOBBO
26/06/2021 12:45 | Atualizado 28/06/2021 16:33
298

Manifestantes acompanham o carro da funerária rumo ao cemitério

Foto: DIvulgação.

Portanto, uma mesma história com várias versões ou vários olhares é o que
se apresenta. Não que isso signifique multiplicidade de informações, diversidade e
oportunidade para o público chegar a sua própria conclusão. O fato de dois veículos
terem noticiado de maneira distinta o assassinato, não significa que a população teve
acesso a ambos e nem que os dois veículos possuem o mesmo poder e credibilidade no
espaço social. Como é de praxe, a mídia tradicional tem muito mais espaço, audiência,
poder e voz na narrativa dos fatos na sociedade contemporânea. Século de Diário
apresenta-se como uma alternativa, como um canal de informação que alcança um
público específico, segmentado, que, em geral, atua para buscar especificamente esse
outro olhar. Portanto, tem alcance limitado e não compete pela atenção do público
de massa de forma equilibrada. Mas o veículo alternativo também é parcial, carrega
interesse e visões de mundo. E sua história também não é a mesma daquela vivenciada
e contada pela família, e nem pela que narramos aqui, da nossa própria perspectiva.
Sob o nosso olhar, consideramos oportuno fazer um paralelo ao capítulo “A
clínica do Sujeito”, que se encontra no texto Crítica da Razão Negra, de Achille
Mbembe (2018). Nele, após discorrer sobre as formas de sujeição e institucionalização
do negro no mundo, o autor nos ressalta que existe algo que pulsa ali. Na contramão
do que Patterson (2018) afirma, Mbembe (2018) convoca as formas de agência da
população negra para pensar na vida e no desejo de vida que pulsa diante de tanta
morte social e física. E nesse contexto, lembra-se que no dia 25/06, pela manhã,
coletivos juvenis auto-organizados do Território do Bem convocaram, por meio das
redes sociais Instagram e Whatsapp, um protesto no pé da Escadaria dos Trabalha-
dores, uma vez que a ostensiva PM havia passado a noite ali e até o meio-dia (em
25/06) seguia com suas balas de borrachas (misturadas com balas reais) direcionadas
à população, que pedia apenas que parassem.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
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O Território do Bem, conhecido por muitos, de maneira pejorativa, como “Com-


plexo da Penha”, abriga inúmeras organizações sociais – sobretudo juvenis – que se
propõem a pensar de diferentes formas e em diferentes partes da comunidade sobre
o genocídio da juventude negra em seu território – mas não só. Essas e esses jovens
divulgaram as filmagens do ocorrido na noite anterior, divulgaram filmagens “ao
vivo” da violência gratuita ofertada pela PM e mobilizaram em poucas horas um
protesto com representantes das Defensorias Públicas, de vereanças do município,
de Instituições públicas que garantem atendimento/acolhimento a algumas famílias
que residem ali e de representantes de veículos alternativos de informação como o
Século Diário. Os gritos que ecoavam estavam sempre na direção do “Parem de nos
matar, porque queremos viver!” Diante das falas, uma indignação e tristeza com o
número de mortes, mas uma impaciente e constante cobrança pela vida que pulsa,
pelo desejo de vida, pela vida que se faz na liminaridade entre o choro e a alegria e
que reveza, na maior parte do tempo, com subvivências, onde o mínimo necessário
para uma vida digna não é garantido.
300

Na cena, que é ampla, um recorte e um enquadramento focados no fogo. Vizi-


nhos e vizinhas trouxeram camas, pneus, pedaços de madeira, sofás velhos e dentre
outras coisas para serem queimadas no protesto. A tentativa de quem estava ali era
a de não matar João de novo, de evocar a revolta e a indignação responsáveis por
organizar a raiva (LORDE, 2019). Embora não seja possível ter o controle do que os
veículos de informação disseminam é preciso lembrar de como quem estava dentro
do protesto o enxergou e como a mídia o enxergou. Para a TV Gazeta, aquilo era um
confronto com a polícia. Para nós, que estávamos ali, tratava-se de um confronto à
polícia, à política de morte e às tentativas desenfreadas de cercear as possibilidades
de alegrias e evasão das dores historicotidianas.
Habitam essa cena pessoas sobretudo indignadas e exaustas da violência coti-
diana, da ação ultrajante da polícia militar e que compreendem que, para João não
ser morto outra vez, é preciso falar e ecoar essa indignação. O caixão chegou no local
por volta das 17:30h do mesmo dia, o corpo foi velado durante a noite na igreja da
escadaria e, na manhã seguinte, a população saiu em marcha, com balões brancos, a
caminho do cemitério para o enterro do jovem.
A família Ponciá e a família Cândida se encontram no historicotidiano, que
complexifica as relações de tempo e espaço e as transformam em não lineares, não
contáveis e imensuráveis. Também se encontram no hiato que produz suas vivências,
subvivências e sobrevivências. A narrativa de Conceição Evaristo ilustra, ainda que
por meio da ficção, a experiência de muita gente negra que vive a experiência de
ser negro/a no Brasil e relembra, como também o faz Lelia Gonzales, Patricia Hill
Collins e outras mulheres negras, que evocar experiências negras, sejam de dor ou
de insurgência é fundamental para a construção de outras epistemologias.
A colonialidade persistente e ancorada na violência originária, na ontologia do
terror e na produção historicotidiana de mortes sociais nos relembra que, como bem
disse o rapper Emicida, “existe pele alva e pele alvo”. Quantos mais Joãos terão que
morrer para que esta guerra acabe?
Por fim, ficam ainda pendentes questões relevantes para comunicarmos sobre
as formas variadas de insurgência criativa que dribla o genocídio racial, não numa
tentativa de romantizar os historicotidianos marcados pela constante dor, mas de trazer
para a cena os esforços de subversão e resistência protagonizados, preferencialmente,
pela juventude negra.

A morte de corpos negros: um problema público?

A seção anterior deste capítulo relembra o quanto a história do povo negro no


Brasil tem sido marcada por uma sobrevivência. Trata-se de um povo que insiste
em resistir, que apesar das dores e choros, consegue trazer sua alegria para disputar
espaço neste cotidiano de violências diversas.
O racismo e a desigualdade estrutural se reafirmam a todo momento, sob diver-
sas formas numa teia complexa nada dissimulada. Exemplo dessa desigualdade estru-
tural que separa corpos pretos e brancos com impactos na alegria e no viver cotidiano
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 301

pôde ser visto no carnaval deste ano no município de Vitória. A pandemia de Covid
19 iniciada em 2020 perdura ainda em 2022 e as consequentes restrições ao carnaval
incidiram apenas sobre as festas de rua gratuitas que aglutinariam o povo preto e
pobre. Ao contrário disso, as festas privadas, em espaços cujo acesso estava restrito
ao pagamento, foram deliberadamente autorizadas, apesar de implicarem aglomera-
ções tanto quanto as do espaço das ruas97. Regras seletivas como as estabelecidas no
“Carnaval do Cercadinho”98 de 2022 em Vitória, dizem quem está autorizado a rir,
se divertir e brincar e quem tem direito apenas à tristeza e à interdição. Como afirma
Winny Rocha, representante do bloco AfroKizomba, maior bloco negro da capital
do ES, em seu artigo recente sobre o tema no jornal A Gazeta:

O decreto publicado em Vitória no último dia 14 de fevereiro destaca a proibi-


ção de blocos, manifestações populares espontâneas ou qualquer aglomeração
recreativa em espaço público. A rua está proibida para a festa. Porém, ao mesmo
tempo, acompanhamos eventos privados com ingressos nada populares reunindo
milhares de pessoas [...] (ROCHA, 2022).

O exemplo da seletividade no carnaval pode parecer distante do relato da morte


do jovem João, morador da Escadaria do Trabalhador no bairro Bonfim. Entretanto,
ambos expressam como o Estado atualiza cotidianamente a exclusão social e a lógica
da violência (seja ela física ou simbólica) sobre a população preta e periférica. Uma
violência originária que se perpetua de diferentes modos provocando uma morte
social que antecipa a morte física. O jovem João antes de ter sua morte física já
tinha vislumbrado uma morte social, que limitava sua livre fruição, que restringia
sua circulação pelos espaços da cidade, tanto que ele evitava descer a escadaria de
seu bairro por medo de ser morto em uma operação ou em uma batida policial. Essa
morte social também se concretiza na narrativa da mídia que desqualifica e reduz
João a “uma pessoa com envolvimento com o tráfico”, portanto, alguém matável.
As alegrias e sonhos desse e de tantos outros adolescentes são enterradas desde a
estrutura castradora ao relato caricato reducionista das mídias.
Segundo o Atlas da Violência 2021 (CERQUEIRA, 2021), a taxa de homicí-
dio no Brasil em 2019 era de 21,65 por cem mil habitantes (pcm). A comparação
entre negros e não negros é bem expressiva das desigualdades estruturais viven-
ciadas: negros – 29,2 pcm e não negros – 11,2 pcm. Entre os jovens homens, neste
mesmo o ano, a taxa foi 84,9 pcm99. Os negros representaram 77% do total das
vítimas de homicídios.

97 Em 1 de março de 2022, o bar da Zilda, espaço tradicional de manifestação cultural do samba e encontro
da população periférica, foi fechado e multado sob a acusação de provocar aglomeração, ao mesmo tempo
que acontecia em outros pontos da cidade aglomerações privadas, como o Festival Baile Voador no Clube
alvares Cabral. Ver: https://www.instagram.com/p/CalJfLwhmyR/?utm_medium=share_sheet e https://www.
instagram.com/p/B8wLzNyBiB-/?utm_medium=copy_link
98 Carnaval no cercadinho: com rua proibida, folia é só para quem pode pagar – texto de Winny Rocha,
disponível em: https://www.agazeta.com.br/artigos/carnaval-no-cercadinho-com-rua-proibida-folia-e-so-para-
-quem-pode-pagar-0222?utm_medium=redacao&utm_source=instagram Acesso em: 2 mar. 2022.
99 Entre os jovens, em 2019, a taxa foi 45,8 pcm.
302

Em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) represen-


taram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil
habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos,
brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a
chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não
negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas
negras foi 162% maior que entre não negras. Da mesma forma, as mulheres negras
representaram 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa
de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para
mulheres não negras (CERQUEIRA, 2021, p. 49).

Os indicadores descritos sumariamente acima expressam significativamente o


cenário que está sendo problematizado aqui. Os movimentos sociais que lutam contra
o racismo têm denunciado reiteradamente a ocorrência de um genocídio do povo
negro. Entretanto, este genocídio ainda não se constitui como um problema público
capaz de mobilizar o conjunto da sociedade para a construção de políticas públicas
eficazes direcionadas ao enfrentamento desse genocídio.
Nexos entre discursos, atores e instituições são evidenciados. E o mesmo dis-
curso que produz ou legitima a morte de jovens negros também produz o silencia-
mento frente a um fenômeno brutal e cotidiano de violências/violações. Sempre há
uma disputa narrativa em jogo dentro da sociedade. A resistência à alcunha “Com-
plexo da Penha” (uma nítida tentativa de estigmatização do território) por meio da
autodesignação “Território do Bem” (uma tentativa de ressignificar a imagem externa
atribuída ao território) é parte importante dessa disputa narrativa. Pessoas, segmen-
tos sociais, territórios... tudo passa por um processo de construção e reconstrução
social, que no caso do Brasil tende reiteradamente à produção de desigualdades e
permanências que evocam a violência originária já mencionada aqui.
Nesse contexto, a pergunta central a ser feita é até quando as mortes de jovens
negros serão vistas com naturalidade ou sem espanto pelo conjunto da sociedade.
O grito “Parem de nos matar, porque queremos viver!” – entoado na manifesta-
ção contra o assassinato de João-, ainda não mobiliza o conjunto da sociedade.
E grande parte da explicação para esta dificuldade de mobilizar está no racismo
estrutural que fundamenta as relações sociais no Brasil. Negros ainda têm sua
humanidade negada ou reduzida. E o discurso da mídia, que reduz o jovem alegre
a uma pessoa matável porque possui envolvimento com o tráfico, é apenas uma
parte do processo de desumanização.
A sociedade brasileira tem uma dívida enorme com o povo negro, cujos ances-
trais foram desumanizados e escravizados. Este processo de escravização e desuma-
nização é atualizado de várias formas: no trabalho precarizado, cuja remuneração é
insuficiente inclusive para a reprodução da vida; na negação do direito de ir e vir; na
negação de diversos direitos humanos como moradia digna, saúde, cultura, segurança,
entre tantos outros.
O conceito de historicotidiano mobilizado aqui remete a uma opressão que se
prolonga nas vidas do povo preto. A opressão e morte de nossos ancestrais ecoam em
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 303

nosso cotidiano produzindo novas mortes e opressões, produzindo desigualdades e


permanências que evocam uma violência originária, constitutiva das relações sociais
e da subjetividade negra, mas não só desta, também a subjetividade dos brancos,
como polos de uma mesma moeda.
Por que a morte de corpos negros não é ainda um problema público relevante
em nossa sociedade – capaz de mobilizar –, pode ser entendido a partir da discus-
são trazida por Cefai. Os sujeitos concretos em suas situações de interação social
cotidianas estão imersos em uma teia de significados, um campo de experiências100
que tem um poder heurístico. “[...] um problema público não ocorre no vazio, ele é
pré-formatado por precedentes. Encontra suas marcas numa “cultura pública” em
que se sedimentaram respostas a problematizações anteriores [...] (CEFAI, 2017,
p. 193). Se a sociedade ainda não foi capaz de repensar a experiência da escravização
de milhares e milhares de pessoas pretas ao longo da história colonial do Brasil, se
ainda nega a existência do racismo de modo tão tranquilo, desqualificando a fala dos
que denunciam a opressão como “exageros acerca de algo menor” (ou para usar a
linguagem coloquial como “mi mi mi”), como poderá pensar o genocídio de jovens
negros como um problema social?
Os significados associados à negritude e à periferia no Brasil se relacionam com
a compreensão dos fenômenos sociais e com a produção das políticas públicas. A
dimensão simbólica, repercutida na atuação das polícias assim como no discurso que
aparece na mídia, tem impactos expressivos na constituição das políticas públicas.
Isto porque a morte de corpos negros é uma dimensão do racismo estrutural, uma
dimensão cuja materialidade (conectada ao simbólico) ainda se mostra insuficiente
para ser percebida como um problema público.
A morte de jovens negros e periféricos não é percebida como um “problema
público” porque estas pessoas tendem a ser reduzidas a uma condição de sub-huma-
nidade, de não sujeitos de direito, e esta concepção certamente se expressa na formu-
lação das políticas públicas. Por este motivo, parafraseando o artista, nas dinâmicas
sociais cotidianas, a pele que não é alva ainda pode ser facilmente transformada em
alvo e isto não ser um problema público relevante. Até quando?
O desafio de transformar as incontáveis experiências de luto em uma luta
visível para o conjunto da sociedade ainda está posto. E este desafio deve ser
assumido pelo conjunto da sociedade brasileira, como uma tarefa de reparação
histórica ao povo negro.

100 Cefai (2017, p. 192) utiliza o termo campo de experiência coletiva para referir-se a “[...] modos de ver, dizer
e fazer de sentido comum, articulados por uma rede de números, categorias, tipos, relatos e argumentos
disponíveis que permitem apreender um estado de coisas como um problema identificável e reconhecível”.
Cefai (2017, p. 195-196) afirma ainda que o termo experiência pode ser entendido de três maneiras: uma
prova estética (os sentidos afetivos e estéticos são aquilo que, aquém dos raciocínios e julgamentos, nos
dão acesso ao mundo); uma experimentação prática e uma troca interacional.
304

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PANDEMIA E DIGITALIZAÇÃO:
cartografias da brutalização da vida
Patrícia dos Passos
Lutiane de Lara
Lilian Rodrigues da Cruz

Introdução

O coronavírus provocou uma pandemia e, em decorrência, impactos sanitários,


políticos, econômicos e culturais em nível planetário. A propagação do vírus Sars
CoV 2 alterou significativamente o cotidiano da vida da maioria da população mun-
dial. O uso de máscara, isolamento social ou, mesmo as restrições de convivência,
ampliaram a utilização das tecnologias da informação e comunicação (TICS) a todos
os níveis do cotidiano das pessoas como medida restritiva do contato social e dimi-
nuição do contágio. Cada vez mais nosso cotidiano está permeado pelas tecnologias
nas atividades corriqueiras como para fazer compras, acessar a conta bancária, pedir
comida, acessar serviços públicos e privados, acessar a saúde, para a comunicação,
para relacionamentos sexo-afetivos, para acessar informações básicas, para uma
sessão de psicoterapia, uma aula de yoga, etc. Mediações tecnológicas que já esta-
vam presentes antes da pandemia, mas que foram intensificadas a partir dela. Como
é o caso das atividades laborais que, já nos primeiros meses de pandemia, em junho
de 2020, contava com 8,6 milhões de pessoas no Brasil em teletrabalho. Dado que
contrasta com informação de 2019, que mensurava um total de 3,8 milhões de pes-
soas nesta modalidade de trabalho (IBGE PNAD/COVID 19, maio 2020). E, das
instituições de ensino que passaram a substituir as aulas presenciais por aulas em
meios digitais durante o período pandêmico, estendendo a realidade digital a todos
os níveis educacionais.
Para Deslandes e Coutinho (2020), o isolamento social causado pela pandemia
coincidiu com o processo de consolidação, popularização e expansão da internet
2.0, ou web 2.0, para todas as classes sociais, ainda que de maneira desigual. Sibilia
(2008), na primeira década do século XXI, chamava atenção para que a hiperconec-
tividade e a mobilidade da internet 2.0 intensificam o processo de espetacularização
do “eu” que nos convida/convoca ao show do eu (SIBILIA, 2008). Para a autora
(2008), a internet permitiu que pessoas comuns como “eu e você” fossem convertidas
nas personalidades do momento e, portanto, para que sejam vistas, amadas, e, mais
concretamente, existam, estejam submetidas às “tiranias da visibilidade”. Deslandes
e Coutinho (2020, paginação irregular), compreendem que:

[...] a hiperexposição torna-se assim uma característica intrínseca desta sociabili-


dade digital. Tais elementos são agudizados nas mediações digitais das interações
308

entre os mais jovens, para quem a autoestima é afirmada a partir da aceitação nas
mídias sociais, pelo olhar e aprovação do outro (conhecidos e desconhecidos).

A expansão do uso das TICS durante a pandemia corroborou com o processo de


digitalização e dataficação da vida que vem avançando nas últimas décadas e, como
veremos ao longo do capítulo, com a aceleração do devir-artificial da humanidade.
Para Mbembe (2021), o devir-artificial da humanidade representa a “grande substi-
tuição” em curso promovida pela brutalização da vida. Como pensado por Mbembe
(2021, p. 28-29) “[...] a tecnologia se fez biologia e neurologia. Tornou-se uma reali-
dade figurativa, e é o conjunto das relações fundamentais dos humanos com o mundo
que tem saído abalado com isso”, nesse sentido, os processos de digitalização trazem
mudanças notáveis para o mundo e as relações, não havendo como desconectar esse
fator como um dos principais agenciadores contemporâneos do sofrimento, sendo
ele mesmo algo que atravessa corpos e subjetividades.
A partir dessas questões, este capítulo objetiva refletir e tensionar os modos
de gestão da existência que perpassam o aumento da exposição às tecnologias da
informação e comunicação em nossa sociedade intensificados durante a pandemia
do coronavírus, a partir de cartografias do sofrimento e escutas clínicas. Para pensá-
-los, tensionaremos as conexões entre os fragmentos da escuta clínica, a conjuntura
socioeconômica e o mapeamento dos novos dispositivos relacionados à produção de
subjetividade. Tal questão emerge da experiência de escuta em tempos pandêmicos
que se vê constantemente atravessada por relatos de exaustão, cansaço, esgotamento,
sentimentos depressivos, ansiedade e etc. Sintomas coletivos que expressam a cone-
xão entre o aprisionamento do desejo à produtividade contemporânea, a precarização
dos direitos sociais básicos e a exposição maciça da população à morte.
Na escuta clínica permeada pela ferramenta cartográfica, pensamos que não
há individual e social, mas conexões, agenciamentos e processos que constituem
nossa subjetividade. É a partir dessa noção de sujeito/pessoa que partimos. Quando
Guattari e Rolnik (2013) escrevem sobre um sujeito maquínico, rompendo com um
psiquismo natural ou constituído individualmente, abrem a possibilidade de pensar-
mos nas mudanças sociais que também são parte da clínica. O sofrimento precisa
ser analisado através dos dispositivos que o produzem, da conjuntura política, da
precarização social momentânea e das ferramentas que contribuem para isso. Sendo
assim, o caminho da clínica, pensada pela composição, leva em consideração a con-
textualização do sofrimento, não repetindo o olhar psicologizador e individualizante.
Dessa forma, conseguimos pensar em desvios possíveis à psicologização e individua-
lização, visando a singularidade potencial de cada pessoa sem negligenciar o mundo
que se apresenta na escuta.
Deleuze e Guattari (2011) nos convocam a pensar as linhas cruzadas entre
capitalismo e clínica. Diante disso, a esquizoanálise, como dispositivo e ferramenta
conceitual, propõe ampliar o olhar pronto e estático epistemologicamente estabele-
cido de maneira majoritária nas práticas psi que reduzem a escuta clínica a dinâmica
de uma suposta interioridade psicológica, sem conexão com o contexto histórico e
social. Através dessa ferramenta se aposta nas práticas que rompem com as lógicas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 309

dominantemente estabelecidas. Quando desviamos das respostas de corpos que se


constituem a priori, apenas biologicamente ou pela família, negamos outras faces
que constituem o sofrimento, como o sistema socioeconômico e o uso das tec-
nologias, produtores da subjetividade. As narrativas sobre exaustão, depressão e
ansiedade produzidas na crise sanitária global precisam ser problematizadas como
um continuum, ou mesmo intensificação da dinâmica de produtividade neoliberal
e a precarização da existência.
Nesse sentido, num primeiro momento será discutida a intensificação do pro-
cesso de digitalização da vida durante a pandemia a partir dos relatos de sofrimentos
cartografados na clínica. Num segundo momento, se analisará o brutalismo como
agenciador do devir-artificial da humanidade e, desse modo, da perda material das
coisas. Para encerrar, traremos reflexões acerca da noção do comum como possíveis
linhas de fuga ao processo descrito.

Digitalização da vida e a produção de subjetividades em sofrimento

Uma atmosfera sinistra envolve o planeta. Saturado de partículas tóxicas do regime


colonial-capitalístico, o ar ambiente nos sufoca (ROLNIK, 2018, p. 29).

Ao pensarmos sobre o entrelaçamento entre o aumento das TICS durante a pan-


demia e o sofrimento, é necessário falarmos do atravessamento destas na produção
das subjetividades contemporâneas e, um dos processos que se vinculam a isto, a
digitalização da vida. Não descartamos todos os benefícios trazidos pela digitaliza-
ção, mas nessa escrita nos interessa pensar suas conexões com o sofrimento. Rolnik
(2018), nos ajuda a traçar as diferenças entre os modos de subjetivação e de manu-
tenção desse sistema socioeconômico ao longo da história, apontando as diversas
alterações na manutenção das subjetividades ao longo dos anos, sendo as expressões
contemporâneas coladas aos processos digitais.
Nessa escrita, nos interessa questionar a intensidade das diversas ferramentas
tecnológicas de informação nos modos de subjetivação que se relacionam ao sofri-
mento contemporâneo, em especial, com seu incremento favorecido pela pandemia.
Como apontado por Rolnik (2018), ao longo desse trajeto, o que mais interessa ao
neoliberalismo hoje já não é o corpo-trabalho-produção, mas sim nossa possibilidade
de criação, de imaginação de mundos diferentes, sendo assim, não há outros mundos
possíveis se nossas subjetividades estiverem limitadas a desejar uma maneira de
existência neoliberal. Desse modo, a intensificação do uso dos dispositivos tecnoló-
gicos no nosso cotidiano corrobora com a racionalidade neoliberal e sua produção de
desejo, pois é através dos dados e informações que produzimos nos acessos a esses
dispositivos que nosso desejo se mostra cada vez mais cerceado e direcionado a certas
escolhas. Segundo Mbembe (2021), esse processo pode ser pensado pelo modo como
os algoritmos operam no inconsciente, produzindo os desejos e nossas subjetividades.
“A era digital, a era das novas formas midiáticas, é estruturada pela ideia que existem
folhas em branco no inconsciente, de que não existe opacidade nem segredo. Até
310

certo ponto, as novas formas midiáticas são as novas infraestruturas do insconsciente”


(MBEMBE, 2021, p. 103). Por isso, para pensarmos modos de fuga frente ao sofri-
mento, precisamos identificar o que nos subjetiva e, deste modo, “Insurgir-se nesse
terreno implica que se diagnostique o modo de subjetivação vigente e o regime de
inconsciente que lhe é próprio, e que se investigue como e por onde se viabiliza um
deslocamento qualitativo do princípio que o rege” (ROLNIK, 2018, p. 36).
Desindividualizar o sofrimento nos leva a pensar as constituições do momento
sociopolítico, os dispositivos que operam no processo de apagamento do agrava-
mento sanitário, da precarização social, e que se utilizam das redes como ferramen-
tas de captura da subjetividade. Esses dispositivos fortalecem o empenho, operam
nos recortes da comparação, na informação constante e colaboram para que cada
pessoa dê conta de seu sofrimento de forma empreendedora e individual. Para
Rolnik (2018), as redes servem como via dessa produção, e progressivamente elas
se tornam ferramentas confiáveis e caras para a manutenção da produção de subje-
tividade neoliberal como processo de governança (ROLNIK, 2018). Elas servem
como ferramentas para criação de sensações, informações e valores, sendo fatores
que não apenas influenciam mas que tem adentrado o modo em que experimentamos
o mundo. “A criação de um novo espaço de valores e representações dependentes
desses recursos respalda a disseminação de uma cultura digitalizada que determina,
consequentemente, configurações inéditas das relações do sujeito com o seu entorno”
(ALVEZ; MANCEBO, 2006, p. 45).
A subjetividade já cerceada e cafetinada ao longo dos anos pelo neoliberalismo,
conforme apontada por Rolnik (2018), tem seu processo intensificado pelo momento
pandêmico. Os sentimentos antes eram vividos ou expressados de outro modo, com a
intensificação do uso das TICS a sensações de ansiedade e frustração se intensificam
pelo modo como as redes sociais operam. Os relatos são de tédio ou frustração pela
comparação à exposição imagética de recortes simplistas, que exacerbam a produção,
a utilidade e a felicidade constante. Dessa forma paralisada, não há compartilhamento
do que está para além dessas situações, da complexidade das sensações diárias, que
envolvem tristeza e frustração, o que causa confusão ao lidarmos com sensações e
sentimentos cotidianos e, até então, esperados para a vida.
Ruiz (2021) traz um apanhado de reflexões relevantes no campo dos estudos
biopolíticos sobre os efeitos dos dispositivos tecnológicos nas nossas formas de
viver, trabalhar, consumir e etc. A biopolítica pensada por Foucault (2005) se atualiza
em mecanismos complexos dos subjetivadores neoliberais. Não há como desco-
lar o sofrimento desse manejo das condutas, manejos dos nossos modos de ser, da
utilização das instituições por esses novos dispositivos de controle. Com o avanço
dos algoritmos há uma atualização e novo caminho sobre o que nos constitui e nos
governa. A ampliação do uso das TICS e, consequentemente, da permeabilidade da
internet em nossas vidas, representa um incremento massivo na governamentalização
da existência avançando para terrenos antes inimagináveis. A governamentalização
como técnica de biopoder visa a orientação das condutas por meio da antecipação dos
comportamentos e direcionamento das condutas com o máximo de consentimento
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 311

individual. Não se trata portanto de restringir a liberdade da população, mas antes


de gerir a liberdade garantida mediante o consentimento individual dos sujeitos
(FOUCAULT, 2005).
O confinamento e, num segundo momento, a manutenção das restrições de
convívio social decorrentes da pandemia de covid-19 expandiu o uso das TICS aumen-
tando o nosso tempo de exposição ao plano virtual da internet, especialmente, às redes
sociais, refletindo na aceleração do processo de digitalização da vida. A digitalização
da vida tem início nos anos 1970 e 1980 com o surgimento da microinformática e
internet. Mais recentemente, com as redes sociais, a computação das nuvens e com
a inteligência algorítmica, permite-se a dataficação da vida (LEMOS, 2021). Com
a digitalização e a dataficação da vida, o percurso cotidiano da população tem sido
traduzido em dados digitais rastreáveis, quantificáveis, analisáveis e performativos
(LEMOS, 2021) permitindo que os algoritmos conheçam, prevejam e incitem às
ações individuais. Conforme descreve Lemos (2021), “a dataficação possibilita a
conversão de toda e qualquer ação em dados digitais rastreáveis, produzindo diag-
nósticos e inferências nos mais diversos domínios” (p. 194) e, portanto, permitem
um processo de modelagem dos comportamentos, desejos e liberdades individuais
mediante análise dinâmica de metadados comportamentais (LEMOS, 2021).

Por exemplo, um livro digitalizado não é apenas um objeto que pode ser lido
em um e-reader por determinado público. Pela dataficação, é a ação de ler (e de
escrever) que é (são) quantificada(s) e analisada(s), gerando o conhecimento e
predições sobre, por exemplo, velocidade de leitura, citações mais destacadas por
leitores, poética da escrita etc. Essa ação vai além da digitalização em direção a
uma performatividade dos dados com vistas a balizar novas ações, comportamen-
tos e conhecimentos (LEMOS, 2021, p. 194).

Sibilia e Galindo (2021) chamam a atenção para o aumento da compressão


espaço-tempo provocada pela expansão da cultura digital. Para as autoras, há a pro-
moção de mudanças quanti e qualitativas no modo como experienciamos o tempo
representadas por costumes como maratonar produtos audiovisuais, aceleração de
vídeos e áudios e uso de “conteúdos desacelerados”, o slow content. A oferta ilimitada
de conteúdos e a aceleração e desaceleração trazem no horizonte a experiência da
temporalidade ininterrupta vividas no contemporâneo. São costumes que evidenciam
certa ansiedade nos modos de lidar com o tempo geradas pela contradição entre o
estímulo para consumir ilimitadamente e, por outro lado, a permanência de limitações
que inviabilizam tal consumo.

Não surpreende que, ao se acostumar com o uso destas ferramentas aceleradoras,


o usuário não suporte mais a temporalidade original dos produtos que consome.
É provável, inclusive, que o ritmo do cotidiano fora das telas também lhe pareça
lento demais e, portanto, igualmente “sufocante”, perante a impossibilidade de
acelerar de acordo com a vontade do espectador – que é também, e sobretudo,
um consumidor (SIBILIA; GALINDO, 2021, p. 209).
312

Paira no contemporâneo a dificuldade em negociar com a oferta ilimitada de


produtos virtuais oferecidos aos consumidores e, portanto, a criação da sensação de
endividamento em relação ao conteúdo que poderia ter sido consumido (SIBILIA;
GALINDO, 2021). A experiência do confinamento durante a pandemia amplificou
a sensação de endividamento em relação ao conteúdo digital. Não precisar se des-
locar entre uma atividade e outra promoveu uma sensação de sobra de tempo que,
em muitos casos, foi substituída pelo aumento do consumo de conteúdo digital e, ao
mesmo tempo, com a sensação de que o tempo é insuficiente para dar conta da “nova
demanda”. As redes adentram a produção de ansiedade, nos engajando nas sensações
de comparação e falta pela ultra exposição das informações. Na clínica, há relatos do
esgotamento sentido ao longo das horas de exposição nas telas. As pessoas atendidas
narram ser um exercício muito difícil se desconectar, ao mesmo tempo percebem
que a exposição exacerbada às informações e imagens, normalmente as deixam mais
ansiosas ao longo do dia.
Há também relatos da dificuldade da interação física, onde muitas vezes é
mais fácil estar virtualmente olhando imagens do que acontece do que vivenciar a
interação direta. As notificações intensificam esse processo da ultraconectividade,
já sendo parte das sensações que compõem nossa subjetividade, causando a noção
de estranheza quando não estamos expostos aos seus sons ou alertas, é a forma de
overdose da informação como pensada pelas autoras, na citação que segue:

Por fim, sobre a overdose de informação, o excesso de dados, pode-se dizer que se
trata de um processo imanente à história atual. A quantidade de informação gera
um mecanismo semelhante ao processo de imunização provocado pela vacina.
A imposição permanente de informações leva à neutralização destas por parte
do receptor, dada a impossibilidade de seu processamento na instantaneidade
(ALVES; MANCEBO, 2006, p. 51).

Estar fora das redes ou offline é também sentir e experimentar estar fora da
vida, onde algo sempre acontece e sempre é perdido, uma equação que resulta em
aumento da ansiedade e estresse. Nesse sentido, a vida digital tem sido extenuante ao
demandar dos indivíduos o autocontrole em meio a cultura da livre escolha, convocan-
do-os a produção de uma gestão individual dos usos das TICS, como silenciamento
das notificações dos aplicativos, definição de modos pessoais de uso e tentativas de
abandono do estado de alerta contínuo (SIBILIA; GALINDO, 2021).
No aumento da compressão espaço-tempo se amplia nossa capacidade de prestar
atenção a vários tópicos ao mesmo tempo, como estratégia para não se perder nada
nesse campo da multiplicação exponencial dos estímulos (SIBILIA; GALINDO,
2021). Como extensão desse fenômeno vemos o aumento da cobrança para que
possamos realizar várias tarefas ao mesmo tempo, em especial, para aqueles no
teletrabalho, devem desempenhar um verdadeiro malabarismo entre as demandas
do trabalho, as notificações dos aplicativos, as demandas da casa e, muitas vezes,
das crianças que também estiveram sem aulas durante os períodos de isolamento.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 313

Brutalismo e cultura digital

Para Ruiz (2021), na era digital os dispositivos de algoritmização influenciam as


diversas áreas da nossa vida, a exploração dos dados cria uma via para que governos,
empresas etc. se utilizem delas para o controle das nossas condutas.

Provavelmente, a pandemia acelerou em mais de uma década os processos de


algoritmização da vida através da exigência que cada um de nós está tendo de
se integrar num mundo digital, não mais como um mundo virtual, mas como o
mundo real que suplanta a própria realidade física (RUIZ, 2021, p. 4).

Han (2021), nessa linha, alerta para o processo de desmaterialização do mundo


provocado pela digitalização da vida. Na era digital a ordem terrena é substituída
pela ordem digital implicando numa perda da natureza das coisas. O autor, a partir
da leitura de Hannah Arendt, compreende ordem terrena como “coisas que adquirem
uma forma duradoura e que criam um ambiente estável para habitar” (HAN, 2022,
p. 11). A ordem terrena é desreificada pela ordem digital, nela não somos determi-
nados pelas coisas. Já nada é sólido pois o que determina o mundo é a informação,
uma não-coisa. “Já não habitamos na terra e no céu, mas no Google Earth e na
Cloud. O mundo torna-se cada vez mais incompreensível e espectral. Nada é firme
e palpável” (HAN, 2022, p. 11).
Na era digital estamos obcecados não com as coisas, mas com informações e
dados, as não-coisas. Diante disso, nos tornamos infômatas, ou seja, pessoas prota-
gonistas destinadas a produzir e processar informação que, por sua vez, interagem
com outras pessoas infômatas numa constante troca de informações. É importante ter
ciência de que informações não fazem história, na medida em que elas não narram
e não criam significados. A ordem digital carece de memória e, como consequência,
fragmenta a vida. De tal modo que nossa relação com a informação esvazia nossa
realidade, “corremos atrás dos dados sem conhecer, viajamos sem adquirir experiên-
cias, comunicamos sem estar em comunidade” (HAN, 2021, paginação irregular).
Vivemos uma hiperinflação de objetos, porém são objetos descartáveis com os quais
não estabelecemos laços afetivos (HAN, 2021).
O frenesi da comunicação e da informação promovem um desaparecimento das
coisas e, como efeito, promove o fim da verdade. Na era digital vivemos também a
era da informação pós-factual, um além da verdade em que a informação não está
centrada nos fatos. Na era digital a informação é deformativa pois falso e verdadeiro
se nivelam. A fake news passa a ser mais eficaz que os fatos pois o valorizado são os
efeitos a curto prazo das informações, de forma que, a eficácia substitui a realidade.
Nessa dinâmica, a racionalidade não direciona a produção de comunicação, mas as
emoções e os afetos passam a dominar a realidade. As emoções e os afetos, pela varia-
bilidade que as caracterizam, terminam por desestabilizar a realidade (HAN, 2021).
A digitalização não serve apenas para informação ou entretenimento, ela
é a mercadoria mais visada do momento, pois dela saem as planificações polí-
ticas e governamentais atuais. Como se pode observar em relação ao manejo e
314

direcionamentos constituídos com o extremismo político e todo movimento cultural


em que o Brasil se encontra. Os binarismos produzidos pelo controle das condutas
também estão no sofrimento que surge na clínica. A própria pandemia tem sido cons-
tantemente bombardeada pela produção das realidades, pelas notícias nas redes que
influenciam a escolha pelo uso de máscara, pela adesão ou não do convívio social,
pela quarentena, pela vacina ou não, e pelas diversas teorias conspiratórias que o
momento envolve. Ruiz (2021) discute a complexidade da dinâmica que envolve
essas informações, que hoje são produtoras de realidade e, modos de subjetividade
neoliberal, elas atuam na criação de bolhas e de sujeitos massificados, nos trazendo
a sensação de conectividade e processo coletivo, quando cada vez mais estamos
lidando com grupos fechados e ideias restritas.

As bolhas comportamentais, antigamente, eram de caráter geográfico (cada um


se relacionava com seus vizinhos mais próximos); agora as bolhas são desterri-
torializadas, nos dá a impressão de que estamos num ambiente global, quando
na verdade cada vez mais, devido à intensificação da indução algorítmica, somos
conduzidos a nos relacionar com grupos fechados nos quais se têm as mesmas
preferências, gostos, ideologias, etc. (RUIZ, 2021, p. 12).

Dessa forma, são criadas bolhas que lidam com a pandemia e, outras que for-
talecem o negacionismo, porém, ambas não dão conta de combater uma pandemia
sem políticas de saúde e controle da circulação do vírus. Além disso, os próprios
dispositivos algorítmicos compõem o cenário de produção de sofrimento quando
colocam ambas realidades em jogo. As de vidas que sempre estiveram na rua por
serem autorizadas, as de pessoas que tentam dar conta de uma realidade e vida virtual
para controle de contágio, precarizadas por essa sobrecarga sem estrutura. E por fim,
as que sempre estiveram expostas, negligenciadas pelo Estado. Nesse conflito, se
expõe o jogo de saúde de forma individual e empreendedora, sendo que o necessário
é a tomada coletiva pela garantia de direitos e saúde, algo que durante todo momento
pandêmico, em seus diferentes níveis, nos é e foi negado.
A digitalização da vida, as fake news e o contexto pandêmico expõem o bru-
talismo em curso nas sociedades contemporâneas. Para Mbembe (2021), o termo
brutalismo é trazido do campo da arquitetura para se referir a amplos processos de
demolição e da produção de reservas de obscuridade. Ou seja, trata-se de um “[...]
processo de despejo e evacuação, mas também de descarga dos recipientes e de
esvaziamento das substâncias orgânicas” (MBEMBE, 2021, p. 15). Nas palavras do
autor (MBEMBE, 2021, p. 15), “por brutalismo, refiro-me ao processo pelo qual o
poder como força geomórfica agora se constitui, se expressa, se reconfigura, atua e
se reproduz por fraturamento e fissuração”.
A Terra vem passando por mudanças aceleradas de degradação em que tudo
e todos os seres vivos se tornaram “fonte potencial de capitalização” na criação de
um novo mundo como efeito do brutalismo. Na criação desse novo mundo objetiva-
-se criar uma segunda natureza como efeito da ordenação gerada pela computação
digital –, uma natureza quantificada (MBEMBE, 2021). O brutalismo é o efeito da
justaposição de várias imagens da razão: “a razão econômica e instrumental, a razão
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 315

eletrônica e digital; e a razão neurológica e biológica” (MBEMBE, 2021, p. 29).


Nele não há mais distinção entre os seres vivos e a máquina. Mais especificamente,
a matéria passa a ser a máquina, ou seja, o computador, como máquina contempo-
rânea, e nele reside a centelha da vida, compondo o que o autor conceitua como
devir-artificial da humanidade.
Nesse devir-artificial da humanidade, descrito por Mbembe (2021), a com-
putação digital assume três características: a primeira característica refere-se a
digitalização dos dados para captura e processamento das informações “que devem
ser identificados, selecionados, triados, classificados, recombinados e acionados”
(MBEMBE, 2021, p. 73). Na segunda característica, Mbembe (2021) diz que a com-
putação cria séries de sujeitos, objetos e fenômenos, também de consciências e de
memórias. Na terceira característica, a computação cria e molda um mundo comum.

Mecanismos computacionais, modelagem algorítmica e expansão do capital pela


totalidade da vida são agora um único processo. Quer se trate de corpos, nervos,
matéria, sangue, tecidos celulares ou energia, o projeto permanece o mesmo:
a conversão de qualquer substância em quantidades, o cálculo preemptivo das
potencialidades, dos riscos e das contingências, visando a financeirização, por um
lado, e a conversão de propósitos orgânicos e vitais em meios técnicos, por outro
lado. A questão, portanto, é desprender tudo de todo e qualquer substrato, de toda
e qualquer corporeidade, de todas e qualquer materialidade; “artificializar” tudo
e “automatizar” e “autonomizar” tudo. É uma questão de submeter tudo a efeitos
de quantificação e abstração (MBEMBE, 2021, p. 74-75).

Trata-se da universalização do devir-negro no mundo, a partir dessa condição


cada vez mais um número maior de pessoas, até então não expostas, passarão a
ser expostas a perdas excessivas e ao processo de esgostamento das capacidades
orgânicas. O brutalismo, de acordo com Mbembe (2021), é o nome dado à prática e
experiência de poder que opera pela demolição dos seres vivos e da vida em escala
global, a partir da transformação da humanidade em matéria e energia. As tecnologias
digitais têm como propriedade eliminar a ideia de substância e a dessubstancialização
à decompor em velocidade. Trata-se de uma época caracterizada pela geração de todos
os tipos de fluxos. “Cada indivíduo tomado separadamente tornou-se um potencial
transmissor e consumidor de fluxos. São esses fluxos que agora nos constituem e dão
substância e forma à vida social” (MBEMBE, 2021, p. 94).
Mbembe (2021) e Han (2022) parecem confluir em suas análises dos efeitos
da digitalização da vida. Se para o primeiro falamos na criação de uma segunda
natureza quantificada e artificializada subproduto do “fraturamento e fissuração”,
um devir-artificial da humanidade. Para Han (2022), a digitalização da vida implica
a perda da natureza das coisas e a correlata substituição pela ordem digital e a
desestabilização da realidade. “A digitalização desreifica e descoporiza o mundo.
Também elimina as recordações. Em vez de guardar recordações, armazenamos
enormes quantidades de dados” (p. 10). Confluem os autores também em relação a
necessidade de pensarmos meios para resistir a digitalização da vida e seus efeitos
de artificialização e descorporização.
316

Sofrimento, linhas de fuga e o comum

A partir das reflexões trazidas pelos processos cartografados e do contexto atual,


perguntamos: como podemos lidar com o sofrimento produzido pela racionalidade
neoliberal através das TICS? Conforme apontado por Rolnik (2018), o sofrimento
se dá a partir do cerceamento e da cafetinagem das nossas subjetividades pelo que
ela chama regime colonial-capitalístico, o que guia nosso inconsciente, nos fazendo
desejar cada vez mais essa forma de vida em seus diversos modos. Uma forma de
vida que nos carrega a passos largos a brutalização de nossas vidas, dos demais
seres vivos e da biosfera. As diferentes redes sociais e mídias nos bombardeiam com
informações a todo segundo. As páginas de internet nos direcionam a desejar subjeti-
vidades prêt à porter (ROLNIK, 1997), ideias de empreendedorismo e sucesso num
continuum individualizante. As fotos paralisam recortes que produzem comparação e
busca por nossas melhores versões – muitas vezes disponíveis nos anúncios colados
nas postagens. Todas são características neoliberais inalcançáveis para maior parte
da população, o que por si só é fator de produção de sofrimento, como ansiedade,
depressão, exaustão e etc. Esses fatores colados ao sofrimento contemporâneo, atra-
vessam as nossas vidas de forma cada vez mais real e mais veloz nos decompondo em
velocidades e fluxos. Pontos que fazem parte do processo emaranhado de um sistema
socioeconômico e cultural que depende do desejo coletivo, porém individualizante,
para seguir suas produções e manutenções de poder.
Além disso, os níveis de controle sobre os corpos se intensificam de diferentes
formas, sendo as tecnologias ferramentas desse caminho. Para Mbembe (2021) o
brutalismo atravessa nossos corpos de forma global, há uma perda de processos
comunitários, coletivos, e uma massificação da produção e pilhagem dos próprios
humanos. Esse processo de produção e individualização denuncia a forma que vive-
mos e a perda de algo comum entre os viventes, no sentido de possibilidade de vida
entre humanos e não humanos, nos convoca a repensar de que forma seguiremos
habitando esse mundo. Dessa forma, compreendemos que ao falarmos de sofrimento
precisamos tê-lo como algo a ser pensado de maneira ética-estética e política, pois
não há sofrimento individual, há toda uma composição entre sujeito/pesssoa e o
mundo, entendendo a noção de singularidades, ainda necessitamos desindividualizar
o sofrimento e olhar para quais modos de subjetivação nosso mundo têm produzido.
A prática de mudança, ainda que atravesse e precise passar por cada existência e
sua singularidade, fica barrada se não for pensada de forma coletiva, na direção da
composição de um mundo em comum para todos os seres. Conforme apontado por
Rolnik (2018), para deslocarmos a produção de desejo dominante precisamos entender
que não há separação entre indivíduo e sociedade e, vale ressaltar, também não há
separação entre os demais seres vivos e a biosfera. Para a autora,

[...] corrobora com essa indissociabilidade o fato de que, embora tal prática só
possa realizar-se, por princípio, no âmbito de cada existência, ela não se dá iso-
ladamente. Primeiro porque seu motor não começa nem termina no indivíduo, já
que sua origem são os efeitos das forças que habitam cada um dos corpos que o
compõem [...] (ROLNIK, 2018, p. 38).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 317

Dessa forma, identificamos que não há guia para lidar com o sofrimento e,
nem resposta que possa abranger a complexidade dos novos modos de subjetivação
através da brutalização da vida, mas a partir de perguntas e reflexões podemos pensar
em caminhos, aberturas, linhas de fuga e deslocamentos para com o cerceamento do
nosso desejo e manutenção do mesmo pelo neoliberalismo. Nesses deslocamentos
acreditamos haver possibilidades de novas formas de viver a experiência subjetiva
do desejo por novos modos de vida e outros mundos possíveis. Além disso, nesse
emaranhado micro/macro, o desejo por novos mundos se faz urgente, não havendo
possibilidade dessa criação de forma separada. Essa aposta necessita passar pelo
que nos conecta de forma coletiva, para vivências de uma democracia para todos as
pessoas que ocupam a biosfera, para o que Mbembe (2021) chama de viventes, pois
não há outra forma de habitar o mundo que não passe pela busca desse em-comum
que nos foi tirado pelo desejo produtivo neoliberal.

Sendo assim, a verdadeira democracia só pode ser a dos seres vivos como um
todo. Essa democracia dos viventes exige um aprofundamento, não no sentido
do universal, mas no sentido do em-comum, e, portanto, um pacto de cuidado, o
cuidado do planeta, o cuidado prestado a todos os habitantes do mundo, humanos
e não humanos (MBEMBE, 2021, p. 61).

Ao pensarmos em saúde, os caminhos passam por micro e macro políticas, onde


não há mais como pensarmos o sofrimento e as tentativas de lidarmos com ele sem
pensarmos o mundo que o constitui. O jogo entre desejo e saúde está diretamente
relacionado ao processo de ações para imaginarmos outros mundos possíveis, pois é
a partir dos nossos desejos que agimos e vivemos. Instigamos a pensar o fazer clínico
através dessa abertura a novos arranjos existenciais e não para criação de respostas
definitivas. Ao lidarmos com subjetividades cerceadas e, atravessadas pelas desterri-
torializações constantes da digitalização da vida, o enfrentamento aos desejos fabri-
cados torna-se ainda mais complexo. Dessa maneira, nos parece urgente cartografar
processos que nos possibilitem movimentos contrários às produções hegemônicas
de desejo, e que esses movimentos sejam construídos para além da clínica. O fazer
ético-estético-político possibilita trabalhar com as singularidades entendendo o mundo
que as atravessa, para que em composição com quem trabalhamos, entrarmos em
processo de devir e criação de subjetividades que diferem.
Como apontado por Krenak (2020), há uma urgência em rompermos com as
ficções neoliberais, sobre o tempo acelerado e um mundo em excesso de consumo.
Dessa forma, a micropolítica pode desencadear efeitos na macropolítica, entendendo
que qualquer mudança passa pelo encontro e produção de subjetividades. Por essa via,
não há como fugir de toda produção tech através do brutalismo apontado por Mbembe
(2021), ele faz com que ela seja nosso corpo e nosso mundo, não há mais separação.

Ele se baseia na profunda convicção de que não há mais distinção entre seres vivos
e máquinas. A matéria em última instância é a máquina, isto é, nos dias de hoje,
o computador em seu sentido mais amplo, tanto nervo, cérebro, quanto realidade
318

numinosa [...] De agora em diante, os mundos da matéria, da máquina e da vida


constituem uma coisa só (MBEMBE, 2021, p. 29).

Nos parece caro retomar o que está para além da produção, utilidade e pilha-
gem, precisamos retomar a imanência do viver para pensar em outras formas de
mundo. O encontro para além das telas precisa ter a importância devida, pois nele
nos deparamos com a diferença, a criação e a noção de que cada singularidade se
potencializa e produz um mundo em-comum. Reconhecemos todas as vantagens das
tecnologias, não é a intenção dessa escrita desqualificá-las, mas ao problematizá-las
entendemos a importância das práticas presenciais na noção de mundo em-mundo
compartilhado, de sensações que estão imbricadas a processos de saúde e de luta
por outras temporalidades menos aceleradas. Há urgência em ampliarmos as ideias
sobre nossas formas de habitar o planeta, flexibilizando as fronteiras e ampliando
a multiplicidade dos modos de vida, rompendo a estratificação de recursos que se
conecta com o cerceamento das subjetividades.
A pandemia e o incremento das TICS, com a intensificação do uso das telas para
boa parte das atividades cotidianas, trazem o aumento da noção de individualidade,
minimizando a importância das relações para nosso bem estar e também da noção de
pertencimento. Nos relatos clínicos, após mais de dois anos de pandemia, surge cada
vez mais a sensação de solidão, tédio e vazio, pois a exposição imagética constante
forja não apenas o tempo, mas também nossas sensações. Proposições para tais fugas
passam pela alteridade, pela aposta na troca das relações como processo de saúde e
criação de corpos coletivos.

Ativar e expandir o saber eco-etológico e expandi-lo ao longo de nossa existên-


cia: a experiência do mundo em sua condição de vivente, cujas forças produzem
efeitos em nosso corpo, o qual pertence a mesma condição e a compartilha com
todos elementos que compõem o corpo vivo da biosfera (ROLNIK, 2018, p. 195).

Apostar em realidades distantes do metaverso101 nos coloca em troca com o


mundo, em encontro com o que difere, em criação e contato com a realidade não
digital. Elas rompem com os espaços digitais que operam em bolhas e facilitam
questionamentos sobre percepções prontas. Essas apostas não servem apenas para
saúde mental, mas para pensarmos na produção digital em relação às decisões no
mundo, nas governanças e direcionamentos de nossas escolhas.

101 Metaverso é a realidade virtual que possibilita a vivência através de avatares em espaços 3D. “ Nos espaços
em 3D do metaverso, você poderá interagir, aprender, colaborar e jogar muito além do que podemos imaginar”
(META; FACEBOOK, 2022).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 319

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PESQUISA-INTERVENÇÃO COM
UM COLETIVO LGBTQIA+:
enfrentamentos e insurgências na periferia
do Grande Bom Jardim, em Fortaleza
Tadeu Lucas de Lavor Filho
Luciana Lobo Miranda
Violeta Maria Siqueira de Holanda

O presente estudo trata-se de discutir as lutas por estratégias de visibilidade


LGBTQIA+ no território do Grande Bom Jardim a partir de um Coletivo Juvenil
implicado as questões de gênero e diversidade102. Parte de um estudo metodológico
com delineamento na Pesquisa-Intervenção sob o método da cartografia. A pesquisa
de campo foi realizada anteriormente durante o período de outubro de 2020 a fevereiro
de 2021. O desenvolvimento desse estudo faz parte de um recorte da pesquisa de
doutoramento em Psicologia vinculada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia
de uma universidade pública103.
Como a pesquisa de campo anteriormente citada se destinou para a cons-
trução de uma tese de doutoramento, a escrita desse capítulo balizou diretamente
o Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Gênero, Diversidade e
Direitos Humanos104 que consistiu em trabalhar a partir um recorte sobre a temática
de gênero e populações de territórios vulneráveis, cujo foco se destinou a analisar
um grupo de discussão realizado com um coletivo juvenil LGBTQIA+. Ao traçar
essa investigação, propõe-se enfatizar como os desafios e as lutas por visibilidade
são tecidas pelo coletivo LGBTQIA+ cotidianamente, além de situar a história
militante do debate de gênero no território de periferia do Grande Bom Jardim na
cidade de Fortaleza, CE.
Focaliza-se nesse estudo as estratégias de lutas tecidas por sujeitos LGBTQIA+,
reconhecendo que os atravessamentos de gênero são estruturas sociais que funda-
mentam as relações de poder e sociais presentes no funcionamento dos diferentes

102 Adotamos a sigla LGBTQIA+ para apresentar as políticas de identidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transexuais, Queer, Intersexos, Agêneros. O caractere “+” indica outras possibilidades de genderização
dos modos de vida além dos supracitados. O nome do coletivo juvenil foi suprimido por questões éticas na
apresentação desse capítulo.
103 Apesar da pesquisa de campo (coleta de dados) esteja concluída, o autor principal segue em desenvolvimento
do produto final, a tese de doutorado intitulada “Bricolagem, alianças e produção do comum”: Cartografia
das práticas culturais periféricas de coletivos juvenis em Fortaleza”. A pesquisa de doutoramento é vinculada
a Linha de Pesquisa Sujeito e Cultura na Sociedade Contemporânea no Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará (PPGP-UFC).
104 Curso de Especialização Latu Sensu em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
322

territórios de sociabilidade (GOMES FILHO et al., 2021). O gênero é entendido


como um dispositivo que possibilita o dizível e visível do discurso social. O con-
ceito de gênero articulado nesta pesquisa se destina a problematizar os fenômenos
subjetivadores da vida cotidiana de corpos inscritos nas dissidências sexuais e das
relações genderizadas (SCOTT, 1995) pelos sistemas de poder e das conjunturas de
saber que permitiram ao longo da história delimitar condutas e controles dóceis sobre
as sexualidades não hegemônicas (FOUCAULT, 1979, 1988, 2004, 2014, 2016).
A composição de coletivos na esfera da militância é um fenômeno grupal que
aguçou as lideranças políticas e esferas da visibilidade social a partir da década
de 1980 em diversos países. Sobretudo no Brasil, tem sido importante para o
desenvolvimento de novas diretrizes antiautoritárias, implementação de políticas
sexuais a conjuntura legislativa, bem como romper com a supremacia das tradi-
ções heterossexistas e questões morais-religiosas que tendem a atualizar as ques-
tões de estigmas e preconceito relacionados a população LGBTQIA+ (SANTOS,
2016). Essa militância muitas vezes não apenas é impulsionada pela demanda de
alcançar as instituições de poder, como o Estado, mas o próprio fortalecimento do
pertencimento subjetivo com o território e suas intersecções sociais da diferença
(gênero, raça e classe), que em sua maioria são territorialidades marginalizadas e
estigmatizadas (CRENSHAW, 2002; LIMA, 2018).
O movimento LGBTQIA+ é plural e heterogêneo, reforçando sua intenção
de abordar o campo da alteridade e da identidade como uma política de vida, cuja
relação aqui empreendida é de tematizar as diferenças dentro das diversidades de
subjetivação (SANTOS; AMANCIO, 2014). Para focalizar os desafios do movimento
LGBTQIA+, tendo em vista a escuta de campo realizada com integrantes trans105
de um coletivo da periferia, tensionamos o lugar do movimento LGBTQIA+ na
pauta da visibilidade dos corpos genderizados e periferizados e, principalmente
da trivial guerra aos regimes patriarcais e machistas que operam sobre as relações
(PORCHAT; OFSIANY, 2020).
As questões de gênero já foram objeto de investigação sobre o prisma de com-
preender as questões relacionadas a genderização de corpos femininos e o recrudesci-
mento do (trans)feminicídio (JESUS, 2014; NOLETO, 2018; MELO, 2019; SOUSA;
NUNES; BARROS, 2020), que mesmo não sendo diretamente o objeto de pesquisa
deste estudo, permite tensionar e problematizar a relação do corpo feminino e sua
vulnerabilidade nas relações de poder sobre os corpos de sexualidades dissidentes.
Isto é, buscamos ampliar um olhar sobre a cotidianidade dos corpos LGBTQIA+,
majoritariamente marcados pela violência repressiva performática do feminino, e
suas interfaces na produção de alianças de visibilidade como tática de sobrevivência
para os sistemas de opressão e da dignidade dos modos de vida, tal como abordam
as autoras Sampaio e Germano (2017).
O coletivo juvenil LGBTQIA+ participante dessa pesquisa é organizado
por jovens moradores do Grande Bom Jardim que se aliançam politicamente e

105 O termo trans se aplica ao campo identitário/alteritário de pessoas que assumem um gênero que diverge
daquele atribuído em função da sua condição sexual biológica.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 323

artisticamente diante da ausência e ineficácia das políticas públicas, oportunidades


no mercado de trabalho, falta de acolhimento nos espaços como Família, Escola,
Igreja e, sobretudo na luta contra o avanço da mortalidade da população LGBTQIA+.
O coletivo se pauta também na emergência de produzir visibilidade e militância da
temática, uma vez que reconhecem a falta de representação no território.
O Grande Bom Jardim106 é uma territorialidade marcada pela recrudescida
alta taxa de violência letal contra a juventude periférica, guerras as drogas e intensa
disputa de poder entre facções criminosas, somado a precarização de assistencia-
lidade como saneamento básico, políticas públicas de lazer e cultura, além das
representações estigmatizadores da população, que em sua maioria é uma população
negra, pobre (BARROS et al., 2018; CAVALCANTE et al., 2021). Foi também
no território do Bairro Bom Jardim que aconteceu o linchamento e assassinato da
travesti Dandara dos Santos em 2017, cujo caso teve ampla repercussão nacional
e internacional, através das mídias e foi cenário para comoção social de parte da
sociedade e impeditivo de justiça contra o crime de transfeminicídio de uma mulher
que foi brutalmente e covardemente ceifada (MELO, 2019; BILITÁRIO; FREIRE,
2020). Dandara, presente!
Frente a isso, este estudo faz referência ao conteúdo produzido e transcrito do
grupo de discussão com o coletivo juvenil. Visando dialogar acerca dos desafios das
lutas dos corpos dissidentes de gênero e sexualidades, justifica-se a realização dessa
pesquisa para contribuir com as reflexões acerca das epistemologias LGBTQIA+ e
feministas, e principalmente sobre as violências de gênero enfrentadas pelos inte-
grantes do coletivo juvenil na periferia de Fortaleza.
Para o desenvolvimento do estudo, delimitou-se a seguinte pergunta de pes-
quisa: como são tecidas as lutas de visibilidade LGBTQIA+ através de integrantes
de um coletivo juvenil da periferia de Fortaleza? Visando problematizar essas lutas, a
compreensão sobre a função social e de estatuto independente do conceito de gênero
se faz importante para entender o campo da alteridade e da formulação de problemas,
uma vez que a pauta do coletivo juvenil LGBTQI+ entrevistado para este estudo
foi criado em virtude da visibilidade da pauta de gênero no território de periferia.

Gênero como dispositivo dos modos de subjetivação

O conceito de gênero é polissêmico e atravessado de significados acerca da


experiência humana. Embora se reconheça hoje sua significação atribuída as dissi-
dências das sexualidades, o que por muito tempo também foi controverso, na con-
temporaneidade é um conceito que permite representar os modos de ser, sobretudo na
alteridade. É um conceito cunhado pelas feministas e atribuído ao campo das relações
sociais para desmistificar a pretensa equidade entre homens e mulheres, ou de que,
romper com a diferença de papeis sexuais resolveria todo um legado de sujeição e
autoritarismos sobre o corpo feminino (SCOTT, 1995).

106 O território do Grande Bom Jardim é composto pela aglutinação geográfica de cinco bairros circunvizinhos:
Bom Jardim, Siqueira, Granja Portugal, Granja Lisboa e Canindézinho.
324

Em sua totalidade, a luta feminista foi o berço para a visibilidade de um debate


sobre gênero que não se pertencia somente ao campo das ciências naturais, na
qual respondia a chancela das diferenças de papeis masculinos e femininos, pois,
o que era reivindicado já não era mais os antagonismos sexuais, mas a condição
de liberdade e da valorização da história contada pelas mulheres. Esse movimento
alavanca a partir da década de 1980 e possibilita que o gênero seja um analisador
para as relações entre os sexos, as construções culturais, a maquinação genderizada
dos corpos sexuados e, sobretudo, a experiência do feminino na cadeia das relações
de poder tecidas na sociedade (SCOTT, 1995).
Esse conceito passou a ser estudado nas diferentes disciplinas das Ciências
Humanas e Sociais como a Sociologia, Antropologia, Psicologia e História, e em
cada área a categoria foi ganhando um estatuto de independência analítica. Em
comum partilha, é identificado a herança do discurso biomédico como diretrizes de
normalidade da liberdade sexual dos indivíduos, isto é, não somente o comporta-
mento passou a ser controlado pelas construções culturais do gênero como também
a direção psicológica do pensamento. Percebe-se que o reflexo desse ordenamento
na leitura dos processos de genderização contribuiu nos casos em que desafiavam as
ciências naturais que, como os corpos hermafroditas e andrógenos, fossem estereo-
tipados a favor da figura masculina, de tal modo favorecendo os regimes de sujeição
da feminilidade (AMANCIO, 2001).
Essa relação biologizante predominante às sombras do conceito de gênero
foi responsável por estigmatizar a “natureza” do feminino e impor regimes de
domínio sobre os corpos das mulheres, bem como para as dissidências sexuais em
geral, cuja relação de causalidade é uma condição de nosso sistema androcêntrico
de conhecimento – o homem no centro, que não apenas inferiu historicamente o
controle das mulheres, mas a perversa condição de inferioridade feminina seja no
âmbito psicológico, cognitivo, físico, social e da alteridade. Vê-se esse efeito na
exclusão das mulheres no quesito cidadania por muito tempo, e principalmente,
na restrita “ascensão social” deliberada para a posição da maternidade e cuidadora
do lar (NOGUEIRA, 2001).
Frente a esses regimes de domínio e subserviência ao homem, que o movi-
mento feminista se consolida e duela contra os modos de opressão. Em especial, a
terceira onda do movimento que emerge a partir da década de 1990, com ênfase no
ativismo queer e do feminismo negro, potencializou os emblemas das duas primeiras
ondas, o direito civil e a liberdade sexual nos direitos reprodutivos e sexuais das
mulheres, cujo efeito permitiu tornar intensificado as pautas de emancipação do
feminino. Um analisador importante também para a contribuição do movimento
é o conceito de interseccionalidade107 que se somou as experiências distintas das
mulheres em suas experiências singulares. Vê-se então, um fortalecimento da

107 O conceito de interseccionalidade foi cunhado na literatura cientifica como uma lente metodológica de com-
preensão dos sistemas de privilégio e exclusão que operam nos modos de vidas, tendo como analisadores
de suas estruturas os marcadores sociais da diferença. Este conceito não apenas se aplica a estudar as
condições de injustiças sociais, como também de compreender o campo da exclusão social. In: CRENSHAW,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 325

categoria de gênero como um fenômeno social, histórico, linguístico, psicológico


e ativista para a independência de corpos regidos pelo patriarcado, machismo e as
violências de gênero (NOGUEIRA, 2001).
Desse modo, o gênero é um analisador também sobre o corpo, que inscreve
regimes de poder e condições de liberdade para o exercício da sexualidade. Essa
relação entre gênero e sexo ainda é ambivalente e permite muitas contradições sobre
as identidades. A associação entre essas categorias é, na grande maioria do regime
social, o que define o modo de ser e existir, ainda que o estatuto independente de
gênero tenha sido amplamente discutido, prevalece-se a chancela determinista e
essencialista da genderização. Esse problema reforça a condição de diferença e
igualdade atribuída as dissidências sexuais, por exemplo, como uma premissa sobre
a alteridade (LOURO, 2000; BARROS, 2018).

Percurso metodológico

A pesquisa desenvolvida neste estudo se orientou na abordagem qualitativa e


na perspectiva teórico-metodológico da Pesquisa-Intervenção (ROCHA; AGUIAR,
2003; 2007, MIRANDA et al., 2017; 2018) sob o método da cartografia (KASTRUP,
2008; 2015; PASSOS; BARROS, 2015). Na pesquisa-intervenção, o olhar é pautado
nas relações micropolíticas, isto é, nas redes de forças que compõem o cotidiano dos
sujeitos (nossos interlocutores), que sob o manejo da cartografia nos permite acompa-
nhar os processos em movimento que se constroem na experiência da pesquisa. Para
a radicalização da participação tensionamos o ethos da pesquisaCOM (MORAES,
2014), não somente na efetivação de um movimento coparticipe (pesquisadores e
pesquisados), mas também na potencialização de uma prática de investigação cien-
tífica com territórios marginalizados e periferizados historicamente.
Como caminho metodológico, a pesquisa-intervenção opera na produção de
uma investigação que demanda transformação social por meio de um trabalho par-
ticipativo fomentando a superação das opressões e desigualdades que envolvem a
realidade. Compreende-se que o sujeito não é passivo, nem o pesquisador é o único
que detém saber, mas considera-se uma coparticipação na construção de práticas
que problematizam o cotidiano e desnaturalize verdades enrijecidas agenciadas
entre teoria/prática e sujeitos participantes/pesquisador (ROCHA; AGUIAR, 2003,
2007; MIRANDA et al., 2018).
Nesse interim, o ethos da cartografia se justifica como método da pesquisa-in-
tervenção uma vez que cartografar é acompanhar processos mergulhados no plano da
experiência e de analises implicacionais. Como na pesquisa-intervenção, a cartografia
opera no traçado de uma investigação que modela seu percurso metodológico durante
o caminho percorrido. “Conhecer o caminho de constituição de dado objeto equivale
a caminhar com esse objeto, constituir esse próprio caminho, constituir-se no cami-
nho. Esse é o caminho da pesquisa-intervenção” (PASSOS; BARROS, 2015, p. 31).

Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao


gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.
326

O pesquisador cartógrafo opera na atenção de invenção dos processos cons-


trutivos da realidade investigada, isto é, o próprio mergulho no campo e a produção
compartilhada na experiência entre os sujeitos inventam a produção de análises
(KASTRUP, 2008, 2015). Por isso, a pesquisa que foi desenvolvida é centrada na
ideia de dispositivo que se estreita em práticas discursivas e não-discursivas produ-
zindo subjetivações, que na pesquisa-intervenção com manejo cartográfico, implica
problematizar num dado tempo-espaço e sujeitos, dispositivos que fabricam condições
que quebrem verdades e normas enrijecidas, produzam novas análises, invente novos
deslocamentos e agenciamentos possíveis (BARROS; KASTRUP, 2015).
Por se tratar de um recorte de pesquisa, o movimento da processualidade da car-
tografia nesse estudo se limita apenas a apresentação do trabalho de desenvolvimento
do grupo de discussão, do qual apenas exprime uma das etapas de engajamento do
primeiro pesquisador na pesquisa. No entanto, salienta-se que foram desenvolvidos
ao longo dos 5 meses de pesquisa encontros de vivência presencial e remotas, pro-
dução de e-book artesanal e um episódio de podcast, diários de campo e restituição
pública dos dados. Durante esse trabalho de desenvolvimento da pesquisa até a
finalização do e-book, o coletivo esteve junto conosco na confecção do capítulo que
discorre sobre sua atuação e suas considerações acerca da visibilidade LGBTQIA+
na periferia de Fortaleza.
A pesquisa foi realizada em uma das periferias de Fortaleza, na região do
Grande Bom Jardim (GBJ). Em números populacionais, segundo o IBGE (2010),
este território mantinha em torno de 710.066 habitantes108. A escolha dessa região,
além de seu marcador geográfico à margem do centro da cidade, justifica-se por
apresentar altos índices de falta de saneamento urbano, intensificação da pobreza,
precária qualidade de vida e o recrudescimento da violência urbana, sobretudo na
violência letal contra a juventude, nas questões de LGBTQIA+fobia e mulheres em
situação de vulnerabilidades (BARROS et al, 2019; CEARÁ, 2016; 2017; 2018;
2019; 2020). Optou-se por escolher a região do Grande Bom Jardim devido este
constituir um território de atividades de vários movimentos sociais, organizações
da sociedade civil, equipamentos de políticas públicas e outras entidades através
de pesquisas e projetos de extensão da relação universidade-sociedade tratando sob
diferentes perspectivas das políticas de juventudes (BARROS; ACIOLY; RIBEIRO,
2016; LAVOR FILHO, 2020; CAVALCANTE et al., 2021).
Os recursos de desenvolvimento da pesquisa foram obtidos a partir do finan-
ciamento aprovado em seleção pública vinculada ao Centro Cultural Bom Jardim
(CCBJ)109 com recurso do Fundo de Combate à Pobreza (FECOP) da Secretária de
Cultura do Governo do Estado do Ceará em edital lançado no segundo semestre de
2020. O acompanhamento e supervisão da pesquisa intitulada “Cartografia social de
práticas culturais periféricas das juventudes do Grande Bom Jardim em Fortaleza”
esteve vinculada a Escola de Cultura e Arte do CCBJ no eixo de pesquisa Memória
e Patrimônio Cultural. A pesquisa teve a execução de três proponentes, o primeiro

108 Ver nota: http://ccbj.redelivre.org.br/grande-bom-jardim-territorio-e-contexto-social/.


109 Site de acesso ao Centro Cultural Bom Jardim: https://ccbj.org.br/.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 327

autor desse artigo e dois jovens moradores do GBJ. A execução da pesquisa aconteceu
entre outubro, novembro e dezembro de 2020 e janeiro e fevereiro de 2021, conta-
bilizando cinco (5) meses de execução de dois eixos metodológicos: 1) aplicação de
questionários quantitativos via Google Forms; 2) execução de nove (9) grupos focais
com diferentes grupos/coletivos juvenis/movimentos sociais do GBJ. Ratificamos
que para a construção desse estudo nos apoiamos apenas na análise e tratamento
de um (1) grupo de discussão especifico, cujo emblema é o direcionamento para as
questões da diversidade LGBTQIA+ no território.

Procedimentos110

Grupos de discussão

A pesquisa foi realizada no formato virtual/online em Plataforma Google Meet.


Apropriamo-nos da entrevista de manejo cartográfico para conduzir a construção de
dados com um grupo constituído por jovens integrantes do coletivo juvenil LGBT-
QIA+. O uso dessa perspectiva, a entrevista na cartografia, é um processo que acessa
o plano de experiência na produção da narrativa contada. Esse dizer que é contado e
retrata a trajetória de si e de um grupo não é uma representação estática do passado.
Ao invés disso, consideramos que são acontecimentos que criam condição para uma
experiência do dizer que encarna suas forças na subjetividade de quem partilha a
narrativa e recria a realidade (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014).
O grupo de discussão foi gravado cOm autorização dos participantes. Após
isso, o material audiovisual foi transcrito com recurso de Pacote Office Word. Para a
realização foram convidados os integrantes do coletivo juvenil LGBTQIA+, contudo,
compareceram apenas três (3) integrantes. A pesquisa foi realizada durante o momento
em que o Brasil e o mundo estavam passando por uma segunda onda de transmissão
e contágio de covid-19, o que consideramos um dificultador para a participação na
entrevista, além de outros fatores pessoais.
O momento do grupo se orientou pelas contribuições de Gaskell (2008), isto
é, para a preparação do grupo realizamos o convite de participação, elaboração do
roteiro de perguntas e organização do espaço remoto. Já no desenvolvimento do
grupo realizamos o acolhimento dos participantes, onde foram feitas apresentações
pessoais e logo em seguida foi compartilhado para uma leitura prévia o roteiro de
perguntas para que então pudesse ser solucionado alguma dúvida sobre estas. Logo
em seguida, foi apresentado e solicitado a autorização da gravação de áudio e vídeo
conforme orientação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em
seguida, deu-se início a entrevista que durou aproximadamente duas horas. Ao final
do processo, foi dado os agradecimentos e solicitado feedbacks sobre o encontro.
Visto isso, operar um grupo na pesquisa cartográfica é produzir elementos
compartilhados que não diferem ética e aspectos metodológicos na produção de

110 A pesquisa possui aprovação pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Ceará (UFC) sob parecer
nº 4.470.814.
328

intervenção coletiva. Todos os sujeitos envolvidos são autores da condução e resul-


tado da pesquisa, assumindo voz, sobretudo no grupo, para fazer da participação
encontros potentes de criação de territórios existenciais. Neste estudo, considera-se
o grupo como formador de vínculos que inventam problematizações e situam novos
deslocamentos (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014). O encontro com o grupo, como
dito anteriormente por se tratar de uma etapa da pesquisa maior, consolidou a arti-
culação para a produção coletiva de um e-book que foi apresentado em restituição
pública da pesquisa junto à comunidade111.

Análise dos dados

A análise dos dados da pesquisa consistiu no dispositivo teórico-metodológico


da Análise de Conteúdo na perspectiva de Bardin (2001). O material textual da
entrevista de grupo foi transcrito e foi analisado com recurso do software de análises
textuais Atlas Ti versão 9.0. Depois disso, por meio da análise categorial de Bardin
(2001), foram realizadas, no primeiro momento, leituras flutuantes para possibilitar
criar as categorias de homogeneidade e representatividade dos temas. Posteriormente,
foram criadas as codificações de trechos a partir de sua relevância e aderência às cate-
gorias criadas previamente. Por último, foi construída didaticamente uma discussão
entre categorias apresentada para explicar suas relações de sentido (BARDIN, 2001),
cuja finalidade será de constituir a discussão que versa o atravessamento de quatro
analisadores que nos ajudam a discutir as lutas por visibilidade do coletivo, a saber
são: criação e trajetória do coletivo juvenil – discorre sobre a história do coletivo;
lacrações e intervenções no GBJ – discorre sobre a rotina e as ações realizadas em
prol da visibilidade LGBTQIA+ no território, lutas e embates frente as injustiças –
discorre sobre os desafios e as desigualdades sociais de gênero impostas aos corpos
LGBTQIA+ periferizados e; Por fim, a articulação com as políticas públicas – discorre
sobre a atenção do coletivo juvenil acerca da assistencialidade de políticas públicas
para a população LGBTQIA+.

Atravessamentos e rotas de lutas por visibilidade LGBTQIA+ em um


coletivo juvenil

Após operacionalizarmos o grupo discussão, realizamos uma seleção de tre-


chos emblemáticos que tratam de visualizar de forma coletiva a realidade expres-
sada e vivida no território por parte dos integrantes do coletivo juvenil. Os trechos
preservam a identificação do respondente, bem como outras condições éticas da
pesquisa. Os trechos são representações dos discursos que, em suma, traduzem as
experiências de desafios e potencialidades de ser jovem LGBTQIA+ na periferia
e, sobretudo, a execução de práticas culturais de múltiplas linguagens artísticas e
militantes no GBJ.

111 Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1k4berGu8pCm4x4zZcouA5UYepNggy5qu/view?usp=sharing


BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 329

Em sua trajetória de criação, para garantir essa visibilidade, o coletivo inicia seu
trabalho no GBJ por volta de 2018 visando não apenas identificar a representatividade
de uma comunidade diversificada de gêneros, mas uma comunhão de precarizações,
que mesmo maximizadas nesses corpos, também assolam a comunidade que vivem
das mesmas condições de pobreza e vulnerabilidade social (MAGALHAES, 2020).

Entrevistado 2: Então, o [coletivo] surge dessa perspectiva de trazer e falar sobre


as nossas vidas dentro do território do Grande Bom Jardim, que é um bairro de
grande vulnerabilidade social, que é colocado na mídia como bairro violento, que
é totalmente invisibilizado, e a gente está aqui pra subverter isso e mostrar que
o [coletivo] não é somente as 9 pessoas que fazem parte, mas sim uma grande
população que todo dia é perseguida, né, invisibilizada, morta etc.

Desde sua criação, o coletivo participou de eventos artístico-culturais do pró-


prio território do GBJ como o Miss Gay Bom Jardim, apresentação de performances
de Dança e Teatro nas arenas do CCBJ, bem como na ONG Casa Transformar que
tem se dedicado a acolher população LGBTQIA+ com diversos suportes assisten-
ciais. Outros espaços também foram palcos para suas intervenções como escolas e
praças públicas do GBJ e de outras periferias de Fortaleza. Além disso, com suporte
financeiro de alguns poucos editais de fomento, o coletivo tem se apropriado de
espaços mais institucional como diversos equipamentos de políticas públicas. Essas
apropriações vão tornando o chão da periferia mais apropriado para criar espaços
de visibilidade de seus corpos periferizados ao tratar as vulnerabilidades entre pares
na comunidade LGBTQIA+.
Assim como em outros movimentos sociais já conhecidos, o sentimento de
pertença de integrantes do coletivo se intensifica em legitimar a caracterização do
“periférico” não mais como uma categoria de estigmatização e localização geográfica,
mas como um marcador de subjetivação (GOIZ, 2015; TAKEITI; VICENTIN, 2019),
isto porque, essa condição as/es/os implica a repensar as representações, as visibi-
lidades e dizibilidades de quem as/es/os são e, sobretudo, aliançar seus projetos de
vida para driblar as intemperes que insistem em ameaçá-las/es/os (AGUIÃO, 2016).

Entrevistado 1: Certo. Eu acredito assim, o Grande Bom Jardim é um territó-


rio periférico só pelo fato da questão que a gente vivencia muito aqui, tanto a
questão interna quanto interna, a gente é muito apontado como um território
perigoso, ou… sempre direcionam a palavra pra gente com algum adjetivo
negativo, “ah, é o vish, ah é o quente”, num sei o quê, então eu acho que isso
por si só já “configura”, de certa forma, como uma periferia, porque as pessoas
renegam e olham de forma “ruim”, digamos assim, pra tudo que é periférico,
pra tudo que vem do pobre, digamos assim. E eu me reconheço assim, como
um morador da periferia e me orgulho muito disso.

A participação do coletivo é uma coisa também que vai ganhando força e


visibilização na comunidade à medida que as intervenções vão alcançando novas
juventudes, e quando estas/es/os integrantes também passam a se inserir em espaços
330

de oportunidade profissional (LAVOR FILHO, 2020). Estes efeitos também são


sentidos em cada singularidade. O coletivo juvenil se tornou pioneiro como um
movimento totalmente direcionado para as questões LGBTQIA+, mas algumas/es/
uns integrantes já habitavam outros movimentos sociais e coletivos juvenis partici-
pativos no GBJ, o que produz um coletivo juvenil mais experiente e artilhado para
lidar com as disputas no GBJ.

Entrevistado 1: Como eu estava falando, antes de entrar no [coletivo] eu já parti-


cipava de movimentos sociais, fazia parte do [outro coletivo], mas depois que eu
entrei no [coletivo], que foi [trecho inaudível], eu senti que eu fui amadurecendo
um pouco mais, porque eu nunca tinha feito cinema antes, eu nunca tinha feito, e
isso exigiu de mim uma maturidade que até então eu ainda não tinha, entendeu?
Eu sempre gostei muito da parte do teatro e dança, mas eu nunca levava tão a
sério, e depois do [coletivo] eu senti que eu tinha que levar isso mais adiante e
me comprometer ainda mais.

As/es/os integrantes do coletivo são em sua maioria jovens e jovens-adultos,


que além de residirem no território do GBJ, também carregam em sua trajetória
de vida o ímpeto de sobrevivência por serem juventudes periféricas (DIOGENES,
2020), não apenas restringindo uma visão fatalista de que só existe caos nesse
processo, mas de que é possível também lidar com isso justamente porque há um
reconhecimento desse lugar de jovem morador e LGBTQIA+ na periferia (EFREM
FILHO, 2016).

Entrevistada 3: Eu acho que, no meu caso, pra galera que eu vejo também, enfim,
é não ter muita perspectiva. É não sonhar muito alto, é sempre ter o pé no chão
e é como se fosse meio que uma regra ter o pé no chão, você não pode voar. E
aí, eu acho que ser jovem na periferia é resistir duas vezes, porque você tem que
se impor perante a sociedade também, é quase claustrofóbico, mas renasce. É
isso, galera.

Os movimentos de lacração, ainda que recentes indicam intervenções neces-


sários do coletivo, e o trabalho desenvolvido pelo coletivo no território exige muita
atenção e constante necessidade de conscientização, não apenas porque evidente-
mente existem desafios postos para a pauta da tolerância e do respeito a população
LGBTQIA+, mas porque esse mesmo coletivo reconhece que a repetição de ter que
estar ensinando e “reeducando” (SIC) as mesmas questões constantemente, uma
vez que estas/es/os integrantes estão inseridas/es/os em uma sociedade, que mesmo
precarizada, ainda é chancelada pelos modos de vida heterosexista, LGBTQIA+fó-
bico, conservador e machista (SILVA, 2018), sendo estes também analisadores das
dificuldades de ampliarem suas potências interventivas no GBJ.

Entrevistado 2: Eu acho que a comunidade assim, mesmo que nós percebemos que
ainda há uma abertura, né, dentro das nossas questões dos nossos corpos, ela ainda
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 331

barra muito das questões, sabe? Eu acho que é um afronte mesmo da gente todo
santo dia, das nossas ações, de dizer que nós queremos realizar e nós precisamos
falar sobre nós e precisamos sobreviver, né? Então, a gente quebra esses paradig-
mas cotidianamente, né. Hoje por conta do coronavírus, na internet, mas antes
disso a gente estava nas ruas, em atividades que trouxessem muitas pessoas, muitos
de nós, e também muitas pessoas hétero, né, que eu acho importante também que
nesses processos de educação a gente eduque mesmo, reeduque essas pessoas que
são as pessoas que vão contra as nossas vidas, que não nos compreende, que não
nos aceita, e a gente precisa trabalhar com esse público.

Os resultados, se assim podem ser sinalizados, são concebidos em torno daquilo


que o coletivo entende como impactos da cotidianidade, sobretudo, centrando pio-
neiro do coletivo dentro do GBJ, o que tornou mais palpável e visível uma rede de
enfrentamento e apoio aos jovens que se reconhecem pertencentes a população LGB-
TQIA+. Tais intervenções não se restringem apenas ao trabalho de “conscientização”
da temática, como também o acolhimento e o aliançamento de suporte dentro das
políticas públicas e redes assistenciais do território do GBJ.

Entrevistado 2: A gente se tornou, pelo curto período de vida que o coletivo tem,
nós nos tornamos referência, né, de ações, de chegar próximo de pessoas que
não se compreendiam LGBT, se martirizavam por isso porque não conseguiam
entender esse rolê, essa questão de gênero, né, que a gente acompanhou algumas
pessoas transexuais que se reconheceram muito jovens estavam tendo problemas
familiares e na escola, na questão também de aproximar outros equipamentos e
outros coletivos do território, pra conseguir também garantias de ações que as
pessoas não conseguiam dentro do território, suporte de saúde, como a testagem
rápida, que a gente conseguiu trazer pro Bom Jardim, como essa questão também
de uma voz mais ativa pra participar de momentos de tomada de decisões.

Encontramos também ao ouvir o coletivo os efeitos engendrados nas vidas de


outros jovens acerca da rede de afetividade e suporte encontrada no coletivo (HIN-
KEL; MAHEIRIE, 2007). Os afetos que são construídos são em suma a base para o
trabalho de invenção das intervenções, isto porque as/es/os integrantes, assim como
estes jovens que vão se somando as ações compartilham da mesma territorialidade,
e com o coletivo juvenil passam a criar novos possíveis de enfrentamento e reco-
nhecimento de suas identidades e de seus desejos, cujo lugar, parafraseando as/es/
os integrantes é de singularidade e de confiança.

Entrevistado 1: Isso, exatamente, da galera lembrar do coletivo, eu acho que


isso faz com que a gente acaba tendo… sei lá, eu acho que as pessoas aca-
bam criando mais afeto, não só pelo coletivo, mas pela gente, pelas pessoas que
integram o coletivo. Eu acho que isso de certa forma acaba afetando de forma
positiva (18/12/2020).
Entrevistada 3: Eu acho também que a juventude pode ver como um ponto
seguro, quando você tá num evento que é feito pelo [coletivo], nossa, você é
332

você, entendeu? Então eu acho que isso já é um grande impacto, e fora também
as ações que o [coletivo] vem promovendo (18/12/2020).

As lutas por visibilidades são engrenagens para o coletivo juvenil no território,


e a divisão da cidade de Fortaleza, que ofusca o lugar da vivência juvenil na peri-
feria já é algo abordado não apenas por este, mas pelos demais coletivos juvenis/
movimentos sociais entrevistados na pesquisa. São vários os motivos pelos quais
cada integrante buscou apoio e vinculação ao coletivo juvenil, desde suporte afetivo
até busca por oportunidades profissionais. Apresentamos a emblemática fala de
um integrante que reverbera a necessidade de uma ocupação dos espaços do GBJ
como também de pertencimento da população LGBTQIA+, seja para lazer, cultura,
esporte e ponto de encontro.

Entrevistado 2: Pra mim foi isso, como eu citei, eu me senti chegar num espaço
que eu não sentia mais à vontade, favorável, de ir pra outros espaços pra conseguir
falar sobre mim, pra conseguir me sentir quem eu sou, de pegar na mão do meu
companheiro, de beijá-lo, sem precisar ir pra Praia dos Crush, pra Boate Level, pra
Gentilândia, por que eu não crio esse lugar de afeto também e de respeito dentro
do meu território? Então partiu disso também, de eu querer me sentir totalmente
completo e pertencente a esse território que antes era muito embaçado pra mim,
porque eu tinha muitas questões sobre como as pessoas iam reagir. Quando eu
parei de pensar mais nas pessoas e pensei mais em mim e no que eu queria fazer
a partir daquilo, foi que eu entendi que um coletivo fazia de grande necessidade.

Suas lutas por visibilidade também estão antenadas a assistencialidade do Estado


e o coletivo busca através das políticas publicar garantir esse direito. O coletivo desde
sua criação ganhou muitos espaços de articulação no GBJ, sejam em equipamentos
de políticas públicas, como também em espaços da Sociedade Civil Organizada.
Uma de suas maiores alianças é o equipamento público do Centro Cultural Bom
Jardim (CCBJ), que por meio de políticas de incentivo e de acolhimento das pautas
da diversidade, tem contribuído para o desenvolvimento de ações legitimas e funda-
mentais para a promoção da igualdade, da saúde e da garantia de vida da população
LGBTQIA+ no território.

Entrevistado 2: A nossa relação com o Centro Cultural, num primeiro momento


veio muito como um espaço de cobrança e de fortalecer essa parceria, né, que a
gente via que tinha, que tem um grupo muito grande LGBT, só que a gente não
via muitas ações específicas para nós, então a gente chegou juntinho e falou assim
“e aí, como é que vai ser?” e pensamos em ações estratégicas pensadas juntas,
inclusive no nosso primeiro ano de vida, a gente fez uma roda de mulheres lésbi-
cas com a Fulana1, que era funcionária do CCBJ na época, com a Fulana2, que é
jornalista e com a Fulana3, que é jovem militante. E aí foi muito gratificante, logo
depois a gente também fez uma roda de entender sobre o portal da transparência,
sobre as verbas que eram direcionadas para ações com as temáticas LGBT’s e
por que que elas não eram realizadas e pra onde era remanejado esse dinheiro,
que muitas vezes era para ações que não tinham nada a ver com as nossas vidas, e
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 333

logo depois a gente chegou com o CCBJ mais o Sicrano1 pra compor o Miss Gay
Bom Jardim, inclusive eu participei como jurado e muitas ações assim.

Ainda nesse cenário das inserções do coletivo nas políticas públicas, existem
muitos percalços e desafios, sobretudo porque são poucos repasses de verbas do
Estado para o acolhimento desse segmento populacional, e principalmente pela
carência de oportunidades para que a população LGBTQIA+ estejam dentro de
diversos locais, do mundo do trabalho, da profissionalização, do lazer e da passa-
bilidade no próprio território.

Entrevistada 3: Eu percebo que as políticas públicas, elas chegam? Chegam, mas


chegam com uma certa dificuldade, com muito suor, muita luta da galera, a comu-
nidade se articulando, acho que uma das minhas maiores referências nessa questão
é também o Centro de Defesa Social Herbert de Sousa (CDVHS) [Organização
Não Governamental], que sempre teve à frente dessa luta, de tá lá pra trazer mesmo
esse direito às políticas públicas, e é isso, como elas chegam no coletivo pra mim,
o CCBJ também é uma grande ponte disso, ele também faz isso acontecer.

Parte de recursos que sustentam as ações do coletivo juvenil, mas também a


sobrevivência financeira e de sustento individual de integrantes parte do auxílio de
financiamento de projetos de seleções de editais públicos de fomento, sejam internos
do estado como deliberados pelo CCBJ, como outros externos e que são também
oportunos para o coletivo. No momento da entrevista, ainda era uma realidade inci-
piente de experiências, mas que reconheciam como uma movimentação que precisa
ser incessante, pois, se mostrou como uma alternativa viável de obtenção de subsídios
financeiros para o trabalho do coletivo.

Entrevistado 2: Nós escrevemos uma vez pra o… gente, eu esqueci o nome,


enfim, a gente escreveu um projeto uma vez pro Fundo Brasil Direitos Humanos
e infelizmente a gente não passou, porque o processo era muito mais burocrático
do que as ações que… e as ações que a gente tinha naquela época não estavam
totalmente fechadas pra colocar no edital tal qual o edital pedia, mas mesmo
assim a gente tentou. A gente já se inscreveu em outros editais pequenos também
e da mesma forma, aí a gente parou um tempo, decidiu se estruturar, trazer outras
pessoas, porque era só eu e o Pedro [nome fictício], e a gente entende que não é
possível fazer um coletivo com duas pessoas, porque tal hora é muita ação pra
pouca gente, pra pouca perna, e aí apareceu esse edital do CCBJ, de manutenção de
grupos e coletivos da convocatória, e aí eu escrevi o edital, a gente passou e agora
a gente tá recebendo uma grana, como o próprio nome diz, pra essa manutenção
das nossas atividades, e tem sido assim, um respiro muito grande, tanto pra nós
coletivo, em coletivo, tanto pra nós como pessoa, pessoal...

Essas alianças feitas com algumas instituições no GBJ permitem que o coletivo
também possa utilizar desses espaços para serem palco de suas intervenções artísticas
e educativas. Isto porque, como já dito anteriormente, não apenas são produzidas
334

práticas culturais artísticas. O coletivo também se preocupa com o efeito que essas
intervenções reverberam nas pessoas que convivem na comunidade.

Entrevistado 2: Para além do Centro Cultural, a gente também utiliza as praças,


né, pra algumas das nossas ações, e vamos utilizar ainda mais depois que a gente
estrear o nosso trabalho, a ideia é inclusive fazer uma rodada nas praças, pra que
isso possa chegar também à comunidade. O CDVHS sempre, as nossas casas
também ficam muito como apoio pra reuniões extraordinárias, a Casa Transformar
também, que elas são maravilhosas, cedem o espaço sempre que a gente precisar, e
eu acho que é isso por enquanto. Mas a gente também tem vários espaços de apre-
sentações, que não são necessariamente de ensaio, mas que a gente pode utilizar
pra jogar a nossa ideia, como as escolas, como o Quintal Cultural, enfim, é isso.

Para sustentar um trabalho de alianças no território, o coletivo juvenil se


insere também em outras organizações civis e movimentos sociais, dos quais
maximizam redes de apoio, proteção e acolhimento não apenas para a população
LGBTQIA+, como também para as diversas juventudes periféricas do GBJ. Estes
espaços “abrem portas”,

Entrevistado 2: Nós estamos também dentro da rede DLIS [Rede de Desenvolvi-


mento Local, Integrado e Sustentável], do Fórum de Juventude e da rede DLIS, e
aí trocando com as instituições que fazem parte, com os coletivos e as instituições
que fazem parte da rede DLIS, aí a gente vai como oficineiro, às vezes vai com
apresentação, outras vezes a gente vai como ouvinte, porque é importante tam-
bém, e é isso, né, e falar que nós dentro do Fórum de Juventudes movimentando
a cultura e fazendo parcerias pra trabalhos conjuntos, também estamos em rede,
em rede de coletivos LGBT’s de Fortaleza, que no momento deu uma parada,
que é essa rede que constrói a Parada pela Diversidade, e é isso. Todos os outros
espaços que estiverem abertos a gente vai tá entrando, e os que não tiverem abertos
a gente vai tacar o pé na porta, porque é nosso também.

O coletivo juvenil se torna uma referencia nesse trabalho militante de acolhi-


mento com a população LGBTQIA+ do GBJ. São forças afetivas e políticas que
movem a atuação de juventudes preocupadas com a diversidade e a promoção da
igualdade em territórios desvalorizadas e estigmatizados pelas raízes da meritocracia
brasileira. São processos criados por meio das intervenções artísticas do coletivo,
que invenções transformam vidas e sustentam projetos de vida reconhecidos em suas
singularidades e condições plurais de existências, onde as políticas de genderização
não são ofuscadas.

Considerações finais

Ouvir as/es/os integrantes do coletivo juvenil como representantes de uma ter-


ritorialidade periferizadas/es/os acerca de seus desafios, e sobretudo de suas lutas
cotidianas pela conquista da visibilidade LGBTQIA+, estas/es/os encorajam que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 335

outras juventudes possam também encontrar na força de um coletivo a potência para


criar redes de apoio e suporte em quaisquer espaços. A trajetória do coletivo indica
resistência e perseverança para combater o preconceito e para produzir espaços de
visibilidade e disibilidade sobre as discussões da diversidade de gênero no GBJ.
Alguns analisadores, dos quais apresentamos didática para síntese de nossas
análises, são cruciais para a compreensão do coletivo e sua rede constitutiva de
intervenção no GBJ. Inicialmente são os aspectos subjetivadores: o sentimento de
pertença ao território, o reconhecimento de uma vida juvenil marcada pela condição
de periferização, e a integração com a comunidade, busca com esta fortalecer suas
potencialidades. Já, na perspectiva da grupalidade do coletivo, seus aliançamento
com os equipamentos, a comunidade, outros coletivos e movimentos sociais tornam
suas intervenções consolidadas na busca pela promoção da igualdade e da diversidade
no anseio de políticas públicas.
Do ponto de vista da execução de análise do estudo, salientamos suas carên-
cias de aprofundamento, e justificamos que por se tratar de um recorte de pesquisa
maior que objetivou analisar outros processos, ponderamos essa limitação como a
necessidade para que outros estudos possam aprofundar, por exemplo, temas como
da segurança pública, da passabilidade urbana dos corpos e da condição de exclusão
social dessa população na periferia de Fortaleza. Portanto, ao indagarmos sobre as
questões elencadas e discutidas nesse estudo, passeamos pela vulnerabilização e
precarização da vida da população LGBTQIA+ quando estas/es/os falaram sobre
suas motivações, seus entusiasmos, suas frustações e suas indignações.
336

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A CARNE CONVULSIONADA:
possessão, histeria e fenômenos totalitários
Samuel Iauany Martins Silva
Silvio José Benelli

1. Introdução

O presente manuscrito tem como objetivo realizar um pequeno ensaio sobre


a relação entre a chamada função-cristã (FOUCAULT, 2001) e o aparecimento de
certos sintomas sociais, partindo de uma interlocução com Foucault e a psicaná-
lise de Freud e Lacan. Circunscrevemos nossa análise aos efeitos de dispositivos
da Igreja Católica, abordada como um caso singular (BENELLI; COSTA-ROSA,
2006), ou seja, passível de dizer algo sobre o universal das instituições religiosas em
relação ao laço social no qual elas se inserem. Além disso, esta perspectiva inclui
a leitura histórica de alguns fenômenos que vão da possessão à antiga histeria112,
até a expansão atual de certos movimentos totalitários correlacionados ao funda-
mentalismo religioso.
Do ponto de vista histórico-metodológico, investigamos um campo circunscrito
por Michel Foucault, que é a inserção do saber freudiano nas ressonâncias da “carne”
(FOUCAULT, 2001, p. 256) cristã, e empregamos uma narrativa histórica precavida
pela psicanálise (GÓES, 2012), atrelando o movimento de falar da psicanálise a partir
da carne e da carne a partir da psicanálise. Quanto à coerência em trabalhar problemas
desde a afinidade entre Foucault, Freud e Lacan, nos embasamos em uma série de
trabalhos113 que ultrapassam a espécie de “impedimento” que, depois d’A Vontade
de Saber (FOUCAULT, 1988), o filósofo representava à teoria freudiana, de modo
especial no âmbito da pesquisa brasileira.
No decorrer do texto, delineamos uma continuidade histórica entre os fenômenos
produzidos pela pastoral cristã e a criação do espaço no qual surge a psicanálise, ou
seja, a ligação entre as possessões e a posterior formulação da histeria como objeto
do saber psiquiátrico (FOUCAULT, 2001). Analisamos, em seguida, o modo como
a noção psicanalítica de realidade lança luz à possibilidade de as instituições religio-
sas produzirem efeitos em termos de sintomas e de estruturação subjetiva. Depois,
expomos uma problematização que envolve um contexto religioso totalitário e que
pode ser expandida para o avanço dos movimentos políticos totalitários, pretendendo
apresentar contribuições à interpretação da tendência unificadora imaginária carac-
terística destes fenômenos atuais.

112 Cumpre dizer que a histeria, aqui, refere-se à sintomática própria ao surgimento da psiquiatria e da psica-
nálise, e não aos atuais quadros psiquiátricos e/ou a estrutura histérica, tal como formalizada por Lacan.
113 Trata-se de Allouch (2014), Ayouch (2015), Birman e Cunha (2012), Birman e Hoffmann (2017), Laufer e
Squverer (org., 2015), Silva e Verissimo (2022), Silva e Benelli (2013) e Silva (2022).
342

2. Efeitos de realidade da função-cristã

Ao discorrermos sobre a função-cristã, referimo-nos a um modo de produzir e


de correlacionar as noções de sujeito e de verdade, mais especificamente, ao modo
de relação que se inicia a partir da técnica de cristianização encontrada na direção de
consciência e no confessionário, principalmente a partir do século XVII. Pensamos
que esta função, no entanto, continua produtiva, por formar uma via privilegiada de
discursos que incidem no corpo social. A noção que congrega o sujeito à sua verdade,
no contexto cristão, é a noção de “carne” (FOUCAULT, 2001, p. 255), a qual, segundo
o Foucault (2001) d’Os Anormais, abre espaço para o surgimento da psicanálise nesta
história, dado os fenômenos de possessão decorrentes desta mesma concepção, que
levam à posterior relação entre a Igreja e a ciência psiquiátrica.
O corpo enquanto carne é caracterizado pela incidência da “concupiscência”
(FOUCAULT, 2001, p. 256), isto é, a ideia de que carregamos traços de tentação
advindos do diabo e, assim, somos cindidos entre uma contradição de tendências
responsáveis pelos equívocos pecaminosos do desejo. É para lidar com esta carne
que a Igreja criou o dispositivo confessional, responsável por um discurso sobre
o corpo e pela criação do mecanismo do exame, o qual tem como tecnologia a
formação de um plano de enunciação exaustiva e exclusiva (deve-se dizer tudo
sobre os desejos, mas somente ao padre católico no segredo do confessionário), e
pelo atrelamento da sexualidade à certa noção de verdade (justamente, a verdade
do desejo).
O efeito do dispositivo de enunciação da carne ao padre confessor, sobretudo
a partir do século XVII, é a eclosão das possessões, as quais expõem corporalmente
a confusão da concupiscência, como escreveu Foucault, a carne convulsionada
é “[...] uma forma plástica e visível do combate no corpo da possessa”114 (FOU-
CAULT, 2001, p. 255). Estes corpos estão, assim, cindidos por um embate de
forças que coloca o sujeito como aquele que, ao mesmo tempo, resiste e recebe
o demônio. Falamos de um corpo volatilizado, um corpo de multiplicidades de
poderes que não é apenas um estrito aliado do mal, como nos casos de feitiçaria,
mas está “tomado por” e “lutando contra” este mal. Sob certo ângulo, o corpo
convulsionado parece ser aquilo que o diabo representa para o padre confessor,
nas palavras de Foucault: “Haverá uma matriz em três termos: o diabo, claro;
a religiosa possuída, na outra ponta; mas, entre os dois, triangulando a relação,
vamos ter o confessor” (FOUCAULT, 2001, p. 261), formando um encadeamento
que, em termos psicanalíticos, faz a possessão emergir como sintoma – como
tentaremos explicar mais adiante.
No intervalo entre os séculos XVII e XVIII, a proliferação das possessões se
intensifica de tal maneira que a Igreja procura um modo de controlar os fiéis sem

114 Nota-se o fato de que Foucault (2001) utiliza principalmente o termo “possessa”, pois é assim que aparece
na literatura que ele estuda e, aparentemente, a possessão atingia, naquele contexto, sobretudo as mulhe-
res religiosas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 343

gerar tais estorvos, iniciando assim uma revisão das tecnologias confessionais: por
um lado, muda-se a estilística na abordagem da confissão, agora mais indireta na
sondagem do desejo, com uma enunciação que procura dizer algo sem nomeá-lo
diretamente; por outro, começa-se a transferir institucionalmente os corpos possessos
para a medicina, numa primeira aliança inusitada entre Igreja, ciência e sociedade
civil, até então rivais pelo domínio discursivo de qualquer objeto.
Foucault (2001) considerou que podemos buscar a origem científica das doen-
ças nervosas, tais como a histero-epilepsia e a posterior histeria, na relação entre
a Igreja e a medicina por meio da “noção-aranha” (FOUCAULT, 2001, p. 269)
de convulsão, muito mais que no desenvolvimento da racionalidade científica do
objeto médico. De uma perspectiva da prática clínica, a pastoral católica serve de
introdução para uma nova perspectiva, qual seja, a da escuta do enfermo, que passa
a acompanhar o olhar para o enfermo (FOUCAULT, 2004a). A convulsão é uma
noção-aranha pois, segundo Foucault, “[...] enquanto forma paroxística da ação
do sistema nervoso” (FOUCAULT, 2001, p. 282) ela torna-se a primeira neuropa-
tologia, sendo o objeto médico privilegiado no campo das “doenças dos nervos”
(FOUCAULT, 2001, p. 282), dando abertura para tudo o que se forma depois disso
em termos de classificação de doenças e de técnicas terapêuticas. Do mesmo modo,
não vem da medicina antiga ou medieval o imbricamento estreito entre sexo e doença
nervosa, mas da filosofia agostiniana e das práticas confessionais. Neste sentido, a
convulsão foi a forma da medicina realizar uma codificação anatômica e médica para
a carne cristã. Se a concupiscência era a alma pecadora da carne, o gênero nervoso
é o corpo racional e científico dela.
Se, por parte da Igreja, ameniza-se a demanda de cura das possessões, do lado
da medicina acontece uma “desalienação” (FOUCAULT, 2001, p. 282) da psiquiatria,
que já não está fadada a lidar com o erro e o delírio, mas com doenças nervosas. Se
antes ela ficava entre a indeterminação do par voluntário-involuntário na origem das
patologias, a convulsão define uma “libertação involuntária de automatismos” (FOU-
CAULT, 2001, p. 282), circunscrevendo o primeiro “modelo neurológico de doença
mental” (FOUCAULT, 2001, p. 282). De uma perspectiva fenomênica, é notável
o contorno que converge os traços da possessa e da histérica, quais sejam: efeitos
somáticos inexplicáveis organicamente; paralisias, agitações extremas, cegueira,
mudez, gritos agonizantes etc. Neste mesmo sentido, do dispositivo confessional à
clínica psiquiátrica, há continuidade na produção de efeitos que ocorrem por uma
espécie de “erogenização” discursiva do corpo enfermo, colocado diante de uma
figura de poder supostamente capaz de curá-lo, não como se isso fosse naturalmente
necessário, mas socialmente produzido – algo semelhante ao cenário com o qual
Freud se defronta, já no final do século XIX.
A psicanálise aparece, no contexto deste solo epistêmico (FOUCAULT, 2000),
atrelada à histeria, como podemos verificar pela história da técnica freudiana em
sua relação com a clínica de Charcot e de Breuer (GAY, 1989). O continuum entre
Igreja e medicina na produção das doenças nervosas é, ao mesmo tempo, condição de
possibilidade para a psicanálise e determinante da sua necessidade de diferenciar-se
344

delas. Trata-se de Freud na história das instituições religiosas e psiquiátricas e de


Freud contra essa mesma história. Sua técnica é tanto herdeira de um dispositivo de
enunciação exaustiva e exclusiva, quanto expõe justamente a possibilidade de disso-
lução dos efeitos de uma função que podemos chamar de médico-cristã. Mudando um
pouco uma frase importante de Lacan, “Com a oferta, criei a demanda” (LACAN,
1998b, p. 623), podemos dizer que Freud não lida com uma demanda criada pela
sua própria oferta, mas sim com a demanda de uma oferta criada pela ligação da
Igreja com a medicina.
Antes de avançar, convém tentarmos formular com a própria psicanálise uma
interpretação para a possibilidade de discursos institucionais incidirem nos cor-
pos inseridos no laço social, produzindo consequências significativas em termos
de processos de subjetivação – os quais envolvem a produção de sintomas e de
modos de vida, ou o próprio sintoma como modo de vida. Neste sentido, estamos
precavidos pela leitura lacaniana da obra de Freud (LACAN, 1979, 1998a, 1998b,
1998c, 2008a, 2008b, 2008c).
Trabalhamos a partir da noção de realidade, mas restringindo-nos ao recorte
utilizado por Góes (2012) para tratar da dimensão das narrativas históricas. Com isso,
expomos também uma perspectiva para a própria história que procuramos realizar
neste manuscrito, que não se ocupa exatamente em restituir o passado nos termos do
passado, o passado nos termos do presente, ou compreender o presente como uma
consequência inevitável do passado, mas sim olhar para o passado desde um problema
do presente para tentar encontrar um modo de fazer algo diferente com o que está
posto na atualidade (SILVA, 2022). Por este viés, a história não é uma história do
significado, mas dos significantes e das possíveis significações geradas por eles em
cada agrupamento historicamente demarcado.
Em se tratando da concepção psicanalítica de realidade, partimos da noção de
que ela se forma como um véu de estatuto imaginário-simbólico, o qual encobre
tanto a relação do sujeito com o mundo quanto a relação entre as tendências corpó-
reas e suas elaborações, algo que, em certa medida, culmina no que Lacan chama
de fantasia (LACAN, 2008c). Em outros termos, é um discurso que perfila entre a
percepção e a resposta a ela, no sentido do desenho freudiano esboçado n’A Inter-
pretação dos Sonhos (FREUD, 1901/1996a), no qual Freud coloca o inconsciente
entre a recepção sensorial corpórea e a resposta motora115, que também pode ser
entendida como o discurso do Outro que invade nossa relação com outrem e com o
mundo – essa “invasão”, inclusive, faz o ser falante “esquecer” suas determinações
orgânicas, no que diz respeito aos problemas de que trata a psicanálise (EIDELSZ-
TEIN, 2020). A seguir, o esquema freudiano:

115 Estamos avisados de que não há sobreposição ou “sinônimo conceitual” entre as noções de inconsciente,
realidade e fantasia. No entanto, dado os limites que hora se impõem a este manuscrito, fundamentamo-nos
na coerência de uma leitura que os coloca em um mesmo encadeamento (GOES, 2012) que dá consistência
à noção de realidade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 345

Figura 1 – Quadro do aparato psíquico relacionado com a consciência116


Ics
Pcpt Mnem Mnem’ Pcs

Desde o nascimento, um bebê humano responde às suas necessidades por meio


da mediação de alguém que lhe cuide (Outro). Se, para Freud, uma primeira satisfa-
ção, como a da fome, deixa uma marca mnêmica que serve de trilho facilitador para
as próximas satisfações, para Lacan, a mediação da linguagem deixa traços sob as
marcas, por acontecer na forma de interpretações das demandas que aparecem, isto é,
“[...] uma pura exterioridade que se manifesta como uma pura interpretação” (GOES,
2012, p. 39), gerando, então, o véu imaginário-simbólico – nessa leitura, podemos
inscrever também uma transição de Freud a Lacan, que vai da concepção das “marcas
mnêmicas” à concepção do significante, que impera sob essas marcas e seus efeitos.
O infans, por ainda não poder se reconhecer, adianta um contorno imaginário
de si mesmo composto pelos significantes dados pelo Outro às suas demandas – o
Outro, neste sentido, é qualquer um que invista o bebê com linguagem, sendo um
tesouro de significantes (LACAN, 1998a), o lugar por excelência das significações
da cultura. Assim, mesmo quando Freud discorre sobre um impulso “corporal”,
como a pulsão, ele a inscreve em uma satisfação que vai carregar traços do social,
pois, ao buscar uma descarga, percorre as marcas que lhe foram impostas. Já em
Lacan, quando o ser humano adquire a função simbólica, o véu de realidade forma
um corpo de significante (LACAN, 2008a), que tanto gera quanto determina os
caminhos da pulsão. Por fim, podemos dizer que, devido a este véu de realidade, o
sujeito, tal como os sintomas, é aquilo que novos significantes geram como efeito
em relação aos significantes primordiais, que não carregam em si um sentido único,
mas determinam as possibilidades das cadeias associativas rumo à significação-sa-
tisfação (LACAN, 1998c).
O contexto religioso pode ser tomado, a partir de Freud e de Lacan, como este
campo do discurso do Outro formador da realidade. Ora, por constituírem-se como
discursos e práticas de poder, os significantes da religião compõem o campo do Outro
na sociedade ocidental, fazendo parte da heteronomia própria à emergência de um

116 Figura apresentada por Freud n’A Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1996a).
346

sujeito. É por isso que seu efeito não é estritamente moral, por exemplo, quando,
diante do significante do Diabo em relação ao significante do padre confessor, o
sujeito-carne aparece como corpo convulsionado, sujeito-efeito do único caminho
de satisfação para determinada pulsão inserida neste contexto imaginário-simbólico.
Perdurando historicamente, a função-cristã e sua incidência na produção de
realidades (do mesmo modo como poderíamos pensar a ciência) pode ser vista no
que parece ser seu principal produto ruidoso na atualidade, os fenômenos totalitários.
Os sujeitos inseridos neste contexto tendem a um processo de mortificação do Eu
(BENELLI; COSTA-ROSA, 2006), o que não é sem consequências para a relação
entre sintomas e modos de vida. É próprio às instituições de formação religiosa,
como o caso da formação de uma liderança em movimentos mais radicais, exigir
certa supressão das singularidades do “interno”.
Neste cenário, atua outra forma-função mais antiga, que Foucault denomina de
metanóia, a conversão propriamente cristã caracterizada por tender a uma “transsub-
jetivação” (FOUCAULT, 2010, p. 193) súbita e definitiva. Toda experiência anterior
à conversão deve ser subtraída em função da identificação massiva a uma nova rea-
lidade, a religiosa. Aqueles caminhos de elaboração da realidade antes percorridos
pelo sujeito são inibidos e a única via se torna a direção a uma Unidade, isto é, um
novo campo do Outro que, por referenciar-se em um Deus onipotente, finaliza-se
em si mesmo, sendo, no entanto, muito restrito e previamente determinado por uma
regra de vida (as regula vitae cristãs).
Em um panorama de tendência à unificação da realidade religiosa, surgem líde-
res que, em termos de subjetivação, representam muito mais um eu ideal do tempo
em que o Outro tinha todas as respostas (narcisismo imaginário), do que uma figura
simbólica que se oferece a uma relação dialética (em sentido lacaniano) que tende
aos Ideais de eu. Produz-se, assim, determinado sentimento de completude fruto da
fusão entre o eu e o Outro. Nestes casos, é comum vermos apenas dois caminhos
(BENELLI; COSTA-ROSA, 2006): 1) o fanatismo, como um trabalho incessante
de confirmação dos sentidos do Outro, que suprimem qualquer manifestação de um
desejo de diferenciação; 2) a intensificação do retorno do recalcado (a singularidade
suprimida), em forma de sintomas denegatórios e passagens ao ato. Nos sintomas
denegatórios testemunhamos um indivíduo estereotipado, já que o processo de nega-
ção da sua história e de suas angústias desaparece no momento em que ele precisa
propagar a nova realidade na posição de exemplo para novos membros.
Nas passagens ao ato, a impossibilidade de elaborar certas angústias criadas
ou tamponadas pela formação religiosa sobrevém como ações sem pensamento, por
exemplo, como Benelli e Costa-Rosa (2006) relatam, um sujeito que, fora da insti-
tuição na qual passara muito tempo escamoteando sua orientação sexual, persegue
outro sujeito desconhecido até o ponto em que “desperta”, perdido, depois de várias
horas. Assim, apesar da realidade ser um véu imaginário, a pulsão sempre tentará
ultrapassá-la em direção ao objeto que já não está mais “aí”, justamente aquele que
se perdeu com o advento da linguagem. Este movimento incessante questiona o
hermetismo das possibilidades de elaboração e de significação, que só acontece a
muito custo e gera um enorme desgaste sintomático. Acontece que uma tentativa de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 347

apagamento total dos traços próprios à experiência de um ser falante, em favor de


um novo véu que se sobreponha aos outros, não ocorrerá de forma bem-sucedida,
ou, dizendo de outro modo, será bem-sucedido em causar sofrimento.
No campo político, o fanatismo religioso se encadeia para os movimentos tota-
litários, que surgem como uma resposta de tamponamento da falha na Unidade –
da impossibilidade de uma perfeição moral na realidade religiosa. Cattapan (2019,
p. 147) considera que este tipo de agrupamento lembra a divisão do eu freudiana, ou
seja, o fato de que se sabe de um trauma, mas se vive como se o negasse, inclusive
criando uma radicalidade que indica tanto que se sabe quanto que se nega: seria o
caso do fundamentalismo religioso nos movimentos totalitários modernos, construído
sob a morte filosófica de Deus.
De modo esquemático, Cattapan (2019) coloca as características dos movi-
mentos totalitários como: a) marcados pela prática de doutrinação (interna) e terror
na propaganda (externa), a qual incide não na experiência, mas no plano imaginário
unificante – como vemos na proliferação das fake news; b) há uma sobreposição
entre saber e poder, sem a complexidade desta relação em termos foucaultianos
(FOUCAULT, 2004b), e alguns discursos são eleitos verdadeiros contra tudo que
os prove falsos – pensamos facilmente no negacionismo brasileiro anti-vacina;
c) é predominantemente beligerante, ou seja, não busca um bem-estar que seria
próprio de um neoliberalismo estrito, mas faz uso da produção de crises sociais
em favor da manutenção da agenda do movimento; d) o poder é sempre um poder
de polícia, com suas características principais; e) como Cattapan (2019, p. 147)
retoma de Arendt, o movimento totalitário se organiza menos como pirâmide que
como uma cebola: formam-se camadas de contato com o social, sendo as externas
menos “radicais”, e as internas as vanguardas; f) a organização do movimento se
dá em uma “direção” tomada pelo próprio movimento, quase um “embalo”, e não
tanto em um quadro de regras criado por deliberação; g) o líder aparece mais para
garantir a tendência unificadora do movimento, e ele é importante para manter
vivo o movimento, mas não é imprescindível, como vemos na continuação das
organizações nazistas nos dias atuais (CATTAPAN, 2019).
Uma das interpretações que atrelam a história da Igreja e a possibilidade dos
movimentos totalitários se consolidarem, refere-se ao uso do significante do Inferno
na produção da realidade política atrelada à derrocada do lugar da autoridade. Esta
última, conforme Cattapan (2019) retoma de Arendt, refere-se mais ao respeito a uma
sabedoria ancestral (aprovação/desaprovação) que a um poder de coerção. Assim,
a Igreja, desde a centralização medieval do Estado no Príncipe, a partir do século
XIV, realiza o seguinte esquema: sendo ela uma autoridade religiosa, lança mão do
Inferno como forma de invadir o campo do poder político. Isso desemboca em uma
configuração do poder moderno marcado pela centralidade da “persuasão presente
no sermão” (CATTAPAN, 2019, p. 148), já que o Inferno como modelo de domi-
nação moral cria uma separação com respeito às autoridades do passado, abrindo a
possibilidade de um convencimento atual pautado no medo.
O lastro do uso político do Inferno traz à cena, ainda, a proliferação do ter-
ror típico aos movimentos totalitários, pois justificam o pânico diante dos sujeitos
348

“imorais”, perigosos por sua sedução em potencial. Do Inferno à necessidade de


execrar certos sujeitos “perigosos”, podemos notar a saliência daquela ideia de carne,
que insere o diabo no corpo. No caso dos movimentos totalitários, a carne também
pode ser vista como “convulsionada” na medida em que eles são beligerantes e
ruidosos, e não apenas obedientes. Cattapan (2019) explica, ainda, que a persuasão
“[...] protótipo das sociedades democráticas” e a violência totalitária “[...] não são
referências de como ser e como fazer (características da autoridade), mas, ao contrário,
injunções, pressões à ação ou à inação” (p. 148).
No campo dos sintomas sociais, podemos ver dois destinos delineados por Cat-
tapan (2019): ou a meritocracia de um empreendedorismo, variando assim em uma
bipolaridade de fracasso-sucesso desdobrada em depressão-mania, ou o apagamento
no totalitarismo de uma massa, como num movimento neofascista. Nesse caso, os
sujeitos gozam do conforto de uma massa narcísica, que coloca qualquer diferença
como ameaçadora, tal qual um Eu pré-simbólico pautado na divisão dentro/prazer,
fora/desprazer (FREUD, 1915/1996b).

3. Notas de conclusão

Diante dos diversos efeitos da incidência de um discurso religioso como pro-


dução de subjetivação no laço social, podemos delinear uma perspectiva que, mais
uma vez, correlaciona os pensamentos de Foucault e da psicanálise freudo-lacaniana.
Em ambos os campos temos a ideia de que certos fenômenos que aparecem enquanto
“problemas”, como foram as possessões e como são os sintomas que hoje deman-
dam uma atenção em saúde (COSTA-ROSA, 2019), representam, em seu princípio,
impasses e/ou resistências contra determinada cristalização das produções sociais.
Falamos que assim o são apenas “em seu princípio”, por considerarmos que nem
sempre geram a dita resistência, pois, dependendo da resposta dada a eles, geram
outras solidificações identificadas à ordem, como o fanatismo e os movimentos tota-
litários, ou mesmo como a medicamentação dos sintomas. É no âmbito da qualidade
desta “resposta” aos impasses que a perspectiva foucaultiana e freudo-lacaniana pode
ressoar de maneira interessante.
Foucault (2001), para entender o aparecimento de fenômenos como o das pos-
sessões, afirma ser de suma importância realizar uma história das ligações entre o
corpo e os mecanismos de poder que o investem. Neste aspecto, ele conclui que
aquela carne convulsionada, base da possessão, “[...] é o corpo atravessado pelo
direito de exame, o corpo submetido à obrigação da confissão exaustiva e o corpo
eriçado contra esse direito de exame, eriçado contra essa obrigação [...]. É o corpo
que opõe à regra do discurso completo seja o mutismo, seja o grito” (FOUCAULT,
2001, p. 270). É assim que tal corpo permite que Foucault fale em uma resistência.
De modo análogo, Costa-Rosa (2019) considerou que, do ponto de vista da psica-
nálise, certas crises da realidade psíquica em sua necessária relação com a realidade
compartilhada, indicam uma abertura. Ou seja, as crises muitas vezes expõem a
necessidade de “algo mais”, já que um sintoma se forma como que em objeção às
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 349

satisfações ofertadas pela cultura – em termos foucaultianos, seria pessoal e social


por se eriçar contra os poderes que nos investem.
Neste sentido, abordar uma crise com uma resposta que a tampone é ten-
tar escamotear mais ainda o problema que ela expõe. Freud foi contundente, por
exemplo, em denunciar os efeitos de uma civilização muito restrita em opções de
elaboração das pulsões (1996c), e Lacan (2008c) não se furtou de demonstrar a
relação entre o capitalismo como modo de produção e os processos de subjetivação
marcados por um excessivo furto de vida (mais-de-gozar). Em sua transmissão, a
psicanálise aponta para a pobreza simbólica de determinados laços sociais, formados
por um discurso que tende à serialização de modos de existência e à denegação das
diferenças, caso que, em última instância, pode levar à morte de si e/ou do outro
ao defrontar-se com o estranho-familiar (FREUD, 1996d).
Uma prática psicológica que inclui contribuições como as de Foucault, Freud e
Lacan, deve ser capaz de manejar as narrativas (que não ocorre apenas no contexto de
um consultório individual privado) para que os sujeitos produzam e/ou reconheçam os
sentidos assentados por certos sintomas, visando reconhecer, também, seus furos. Por
meio do corte em uma cadeia associativa, por meio da decifração de uma sequência
significante, abre-se a possibilidade de separação dos significantes ditos tautológicos.
Não se trata de buscar um novo sentido capaz de substituir um registro significante,
mas abrir o movimento de significação das cadeias responsáveis pela elaboração das
pulsões – iniciar um movimento que nem começou (RODULFO, 1990).
Trata-se, em suma, de sustentar um posicionamento que movimente os sujeitos
em direção à uma ética atrelada a um engajamento concreto com a cultura, com o
mundo e consigo, a despeito de uma identificação imaginária a um eu-ideal formador
de uma moral voltada para o código (FOUCAULT, 2006). Esta, referenciada em uma
Unidade sem falha, no Um perfeito que resta assimilar – um Outro que nos “engasga”,
impede o reconhecimento da alteridade que, no caso de uma moral voltada para a
ética, ao ser incluída, proporciona o desejo, a necessidade da relação constante em
favor de uma produção dinâmica de sentido e de novos modos de satisfação.
No entanto, é importante afirmar que não se trata de apostar em uma saída plena-
mente satisfatória dentro dos horizontes sociais que hora se impõem, mas reconhecer
que, neste limite, não há saída que não gere sofrimento, e a resistência e o sintoma
não devem ser romantizados como indicadores radicais de mudança, mas sim como
indicadores de que o laço social no qual nos inserimos “não funciona”, ou, como já
dissemos, funciona bem quanto ao fato de gerar sofrimento.
350

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NECROPOLÍTICA: efeitos nas
políticas sociais na criminalização de
adolescentes no contemporânea
Carmen Sílvia Righetti Nóbile
Luciana Batista da Silva

Introdução

Acerca dos conflitos de interesses que se referem a crianças e adolescentes,


pode-se dizer que o Brasil possui um parâmetro de solução, no caso a legislação,
considerado bastante avançado: os direitos previstos no art. 227 da Constituição
Federal (BRASIL, 1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)117 (BRASIL,
1990), a Lei 12.010/2009 (Lei do direito à convivência familiar de crianças e ado-
lescentes) e o Marco Legal da Primeira Infância (BRASIL, 2010, 2011). No entanto,
estas legislações são apenas um dos aspectos necessários para a garantia de direitos
fundamentais. Esses direitos dependem, para sua garantia, de uma ação concreta
do Estado e da atuação do Poder Executivo na execução das políticas públicas que
assegurem os direitos conquistados.
Desde o reconhecimento dos direitos sociais fundamentais, foi expressamente
previsto que ao Estado caberia a obrigação de garantir a seus cidadãos, condições
essenciais118 para uma existência digna. Ao mesmo tempo, em razão de esses direitos
exigirem uma prestação estatal, surgiu também a discussão acerca das obrigações
que devem ser cumpridas e de que forma o Estado deve implementá-las.
As declarações em favor dos direitos podem ficar apenas enunciadas e ser uti-
lizadas para exercer o papel de instrumento ideológico de controle das expectativas
sociais, na medida em que a concretude dos direitos sociais previstos nos contextos
constitucionais é, muitas vezes, negada pelos braços do poder público, por meio de
ações, omissões, descaso e negligência. As condições de aplicabilidade e efetividade

117 Emilio Garcia Méndez, assessor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para os Direitos
da Criança na América Latina, em seu livro “Infância e cidadania na América Latina”, dedica três dos doze
capítulos do livro à apresentação do Estatuto da Criança e do Adolescente brasileiro como a mais moderna
e perfeita legislação do mundo nessa área (GARCIA MÉNDEZ, 1998).
118 Apesar dos termos provisão social mínima e necessidades básicas parecerem equivalentes, eles guardam
diferenças marcantes do ponto de vista conceitual e político-estratégico. Mínimo tem a conotação de menor,
de menos, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social;
pressupõe também a supressão ou cortes de atendimento, tal como propõe a ideologia liberal. Já básico
expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável, requer
investimentos sociais de qualidade para preparar o terreno a partir do qual maiores atendimentos podem
ser prestados e otimizados. O básico é indispensável (isto é inegociável) e incondicional para todos, tendo
como precondição a gradativa otimização da satisfação das necessidades (PEREIRA, 2011).
354

desses direitos estão submetidas ao risco de sua própria negação em termos práticos,
quanto às garantias e às proteções concedidas legalmente.
Tal limitação tem ocorrido constantemente, no interior do próprio Estado, e
suscita um conflito entre a tentativa de garantir direitos sociais conquistados e o
crescente desmonte do Estado Social.
A partir deste contexto, necessário se faz observar as implicações decorrentes da
omissão do Estado e os reflexos sociais delas eminentes, e as consequências da falha
da promoção estatal no desenvolvimento humano e, por consequência, o processo
de criminalização da infância e da juventude que ocorre quando a promoção de tais
direitos não se concretiza. O Estado estaria produzindo as condições de negação à
vida e de exposição à morte a determinados grupos, incluindo entre eles, a criança e
adolescente, especificamente, os pobres.
Nesse sentindo, o conceito de Necropolítica (MBEMBE, 2018), ou seja, a
“política da morte”, nos ajuda a entender melhor esse mecanismo, portanto o presente
trabalho busca refletir os reflexos sociais da necropolítica nas políticas sociais e na
criminalização dos adolescentes.

Os reflexos da necropolítica nas políticas sociais

A necropolítica é um conceito do filósofo e teórico político camaronês Achille


Mbembe 119. Em um grande resumo necropolítica se refere a políticas de controle
social, controle Social pela morte. São formas como o poder político pode controlar
as pessoas, não apenas por decidir como estas devem viver, a partir de regras, leis e
políticas; mas também, por decidir quem deve morrer e como deve morrer.
Mbembe cunha o termo em 2003, e dialoga com outros grandes filósofos, espe-
cialmente com a ideia de biopoder de Michael Foucault 120. Segundo MF, o biopoder

119 Mbembe nasceu perto de Otélé nos Camarões Franceses, em 1957. Obteve seu Ph.D. em história na Uni-
versidade de Sorbonne em Paris, na França, em 1989. Foi professor assistente de História na Univer-
sidade Columbia, entre 1988 e 1991, pesquisador no Instituto Brookings entre 1991 e 1992, professor
associado de História na Universidade da Pensilvânia entre 1992 e 1996, diretor executivo do Conselho
para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África entre 1996 e 2000. Achille foi professor
visitante na Universidade da Califórnia em Berkeley em 2001 e professor visitante na Universidade Yale em
2003. Atualmente é professor-investigador de História e Política no Instituto de Pesquisa W. E. B. Dubois
da Universidade Harvard.
120 Paul-Michel Foucault nasceu em Poities na França em 15 de outubro de 1926 e veio a falecer em 25
de junho de 1984, em decorrência da AIDS, com 58 anos. Filósofo francês deixou uma obra espessa e
ampla, composta pela escrita de doze livros, inúmeros artigos e manifestos políticos, chegando a lecionar
cursos e a conceder diversas entrevistas. O legado foucaultiano consiste em uma gama heterogênea de
temas, podendo ser divididos, segundo Machado (1981), em três diferentes períodos: o Arqueológico,
o Genealógico e o Ético. No primeiro período, destacam-se as obras: “História da Loucura” (1961), “As
palavras e as coisas” (1966), “A Arqueologia do Saber” (1969); no segundo, as obras: “Vigiar e Punir”
(1975), “História da sexualidade” (1976) e a “Microfísica do poder” (2006b). No terceiro período, Fou-
cault passou a investigar o tema da subjetividade, discutindo a ética como um campo desvinculado da
moral. Neste período, destacam-se as obras: “Subjetividade e verdade” (1980) e “A Hermenêutica do
sujeito” (1981).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 355

é o controle do domínio da vida pelo poder, para a necropolítica, o poder não incide
somente sobre a vida, mas também sobre uma série de medidas que produzem a morte
e criam condições para tal. É uma forma de gestão pela destruição dos corpos. Tudo
isso, porque o autor acredita que conceitos como de Foucault, já não podem expli-
car mais as formas contemporâneas, como o poder político exerce controle social,
através da morte. Mbembe quis atualizar o conceito de biopoder de Foucault (1999).
É justamente por isso que o termo necropolítica tem sido muito utilizado, por
teóricos, por movimentos sociais, para pensar questões de segurança pública, racismo,
vulnerabilidade social e, recentemente da pandemia de covid-19.
O que significa falar em medidas que produzem a morte? Uma das formas que
a necropolítica poderia atuar, é pela segregação de territórios. Aqui podemos pensar
na criação de zonas isoladas, para certos grupos da população, territórios esses com
vigilância interna e externa, com o objetivo de impedir deslocamento dessa popula-
ção e perpetuar a exclusão. Nessas áreas a vida cotidiana é militarizada, é instalado
o estado de exceção121, que seria permitido matar, sem grande preocupação com os
danos colaterais (sem grandes consequências).
Uma outra forma de medida que produz a morte, é a relação com o poder estatal
de criar zonas de “mortos vivos” em que indivíduos vivem com tão pouco, que a
distinção entre vida e morte é extremamente sutil, isso significa então que a necro-
política não é somente por fazer morrer, mas também pela ideia de deixar morrer. E
é nesse aspecto que se insere o reconhecimento dos direitos sociais fundamentais,
que foi expressamente previsto que ao Estado caberia a obrigação de garantir a
seus cidadãos, condições essenciais para uma existência digna, no entanto, esses
direitos dependem, para sua garantia, de uma ação concreta do Estado e da atuação
do Poder Executivo na execução das políticas públicas que assegurem os direitos
conquistados, mas tem ocorrido o crescente desmonte do Estado Social, processo
acirrado a partir de 2016 (RIGHETTI, 2006; NOBILE, 2016).
Isso acarreta de certa forma, uma ação necropolítica; deixar as pessoas morre-
rem sem assistência, na medida em que os direitos legalmente instituídos, não são
verdadeiramente efetivados, no cotidiano e na vida das pessoas.
A legislação é um dos aspectos fundamentais para a garantia de direitos e, mui-
tas vezes, resulta das reivindicações das lutas populares. A emergência dos direitos,
demanda práticas instituintes. À medida que os direitos vão se instituindo, a socie-
dade se mobiliza para concretizá-los, por meio da criação de serviços, programas e
projetos estatais ou creches, escolas etc., exigindo a implantação e a implementação
de políticas públicas.
É necessário deixar claro, que o conceito de necropolítica foi cunhado em 2003,
por Mbembe, no entanto, esse processo de desmonte das políticas sociais (inclusive
a política da criança e do adolescente), vem ocorrendo desde, a década de 1970, com

121 Estado de exceção é uma situação oposta ao Estado democrático de direito, em situações de suspensão
de direitos causada por descontrole institucional. Caracteriza-se pela suspensão temporária de direitos e
garantias constitucionais. O Estado de Exceção é uma situação de restrição de direitos e concentração de
poderes que, durante sua vigência, aproxima um Estado sob regime democrático do autoritarismo.
356

a implantação das políticas neoliberais em vários países do mundo, que teve e têm
efeitos deletérios na vida de milhões de pessoas e famílias da classe trabalhadora,
pois implicam na redução do Estado enquanto agente responsável em promover a
proteção social. Essas condições geram o empobrecimento da população, agravando
as expressões da “questão social”, cada dia mais evidentes e, têm como resposta por
parte dos estados nacionais o implante de políticas penais cada vez mais rígidas e
severas, visando o controle social.
O Brasil segue a mesma lógica e introduz, a partir da década de 1990, as políticas
neoliberais, que terão seus efeitos devastadores para os direitos sociais, recém-con-
quistados com a Constituição Federal de 1988.
Devemos lembrar que a política pública social não é uma atividade neutra,
linear, de atenção à pobreza ou à desigualdade social. Tampouco é concebida ou
formulada consensualmente, no âmbito do Estado, para ser aplicada à sociedade.
Ao contrário, revela-se um processo tenso, complexo e contraditório historicamente,
convertendo-se em conflito de interesses (IAMAMOTO, 2003).
Quando tais políticas de atendimento não são concretizadas no cotidiano, pode
acarretar consequências na vida de crianças, adolescentes e famílias. E quando o
Estado reduz as políticas sociais, para garantir a implementação de políticas basica-
mente repressivas e punitivas, buscando a criminalização; acaba agindo, prioritaria-
mente, sobre um grupo escolhido: o pobre.

Mas o que é uma política pública? Como elas são constituídas? Quais
são as características da política da criança e do adolescente?

Política Pública da criança e do adolescente e o sistema de garantia de direitos

Segundo Giovanni (2009), não existe uma grande teoria sobre as políticas públi-
cas. As políticas públicas podem ser examinadas de vários ângulos e cada um deles
representa um olhar diferente, que capta um determinado aspecto da realidade e,
certamente, com algum objetivo específico. Nós é que temos que fazer um recorte e
assumir a responsabilidade a respeito dessa delimitação.
Mas por que um tema ou questão torna-se o assunto de uma política pública?
Somos tentados a responder com uma evidência: há uma política pública, porque há
um problema a ser resolvido, como se a política pública apresentasse uma boa prática
ou como se a política pública devesse resolver os problemas dos necessitados. Essa
ideia está permeada de senso comum, pois nem toda demanda social se torna política
pública, como aponta o professor Giovanni (2009, p. 1-2):

Tal conceito vai além da ideia de que uma política pública é simplesmente uma
intervenção do Estado numa situação social considerada problemática. Mais do
que isso, penso a política pública como uma forma contemporânea de exercício
do poder nas sociedades democráticas, resultante de uma complexa interação entre
Estado e sociedade, entendida aqui num sentido amplo, que inclui as relações
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 357

sociais travadas também no campo da economia. Penso, também, que é exatamente


nessa interação que se definem as situações sociais consideradas problemáticas,
bem como as formas, os conteúdos, os meios, os sentidos e as modalidades de
intervenção estatal.

Essa conceituação depende da concretização histórica de alguns requisitos que


configuram as modernas democracias; pressupõe-se uma capacidade mínima de
planificação consolidada nos aparelhos do Estado. Partindo desse pressuposto, não
foram apenas fatores macroeconômicos que originaram as Políticas Públicas, mas
também fatores políticos, sociológicos e culturais.
No Brasil, a preocupação com esse tema desenvolveu-se apenas nos anos 80 e
de forma desigual entre as distintas políticas (PEREZ,1999). Este período, coincide
como início da Democratização do país. Antes desse período, estávamos em regime
militar – ditatorial e, as relações entre as formas de intervenção do Estado e as relações
com a sociedade eram complexas, própria natureza do Estado interventor da época.
As políticas públicas, eram ditadas pelo Governo Federal, de forma uniforme para
todos os Estados, municípios, sem considerar as especificidades locais, e os interesses
da comunidade/população.
Pode-se dizer que, para o Estado possuir instrumentos para uma intervenção
planejada, é preciso haver uma relação equilibrada com a sociedade, há a necessidade
de uma sociedade democrática. São necessárias, também, condições institucionais,
e essas não nascem “da noite para o dia”: têm que ser gestadas, mas mantêm ran-
ços do passado. Exigem, enfim, alguma espécie de aparelho social e instrumentos
para uma intervenção, os quais se diferenciam de uma sociedade para outra, pro-
piciando condições para um sentimento de direito de participação e pertencimento
entre seus membros.
A cada momento da História, o referencial de uma política é construído por um
conjunto de prescrições, que dão sentido a um programa, definindo os critérios de
escolha e a maneira de definição de objetivos. Nas políticas públicas, existe sempre
um paradigma, ou seja, um conjunto de ideias que norteiam e/ou orientam as ações
dos agentes. Esses referenciais ou paradigmas são interligados aos outros conjuntos
de variáveis. Todos os atores envolvidos constroem representações dos problemas,
das soluções e das consequências da ação. Nós temos representações sociais sobre
tudo, e Pierre Muller (2002) aponta que existem representações em políticas públicas,
que envolvem uma forma e uma cultura que se tem sobre a sociedade: o mundo é
visto diferentemente de cima de um palácio ou de cima de uma cabana.
Vale destacar que na realidade brasileira, atualmente, estamos passando por
um governo que prega e propaga uma política de morte, e de acordo com esse
paradigma, tem demonstrado ações, atitudes, e um conjunto de ideias que nor-
teiam e/ou orientam as ações dos agentes; como destaca o Jornal Extra Classe, de
16/12/2021: “País fecha 2021 com 13,5 milhões de desempregados, aumento de
até 18% na cesta básica, 15,1 milhões de famílias em situação de extrema pobreza
e perspectiva baixa de reação da economia”.
358

A situação socioeconômica do Brasil neste final de 2021 é desoladora e terá refle-


xos no próximo ano, como a manutenção do crescimento econômico inexpressivo,
inflação em alta, recordes de desemprego, retrocessos das políticas sociais e dos
direitos dos trabalhadores. Devastado pela pandemia, o país está à deriva devido à
omissão do governo federal no combate à covid-19 e avança para mais retrocessos
por conta da política econômica que aprofundou a desigualdade social e aumentou
a pobreza. É o que aponta a análise de conjuntura de final de ano do Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). ”A inflação
crescente tem impacto maior para as pessoas de menor renda e, no mercado de
trabalho, o desemprego é alto e as ocupações criadas são informais, de modo que
o mercado consumidor interno não tem força para promover um crescimento
sustentado da economia”122.

É bem possível, que os grupos mais afetados pelos efeitos colaterais da pande-
mia sejam as populações mais vulneráveis (mulheres, mães solo, afrodescendentes,
indígenas, moradores das periferias e favelas, pessoas com deficiência, pessoas em
situação de rua, crianças e adolescentes pobres, etc...), com a impossibilidade de
sustento ou pela falta de assistência de um Estado que nunca se preparou para aten-
der essa população e, agora, com as consequências da pandemia da covid-19, tem
agravado a sua ineficácia.
O Estado brasileiro, ao se integrar no sistema normativo internacional de prote-
ção dos direitos humanos, adotou o referencial ético que deu a origem à Declaração
dos Direitos Humanos de 1948, optando pela proteção integral e irrestrita dos direitos
humanos. A Constituição estabelece que os procedimentos para garantia dos direitos
fundamentais sociais realizam-se, prioritariamente, por meio de atividades dos Pode-
res Legislativo e Executivo (com a implantação/implementação de políticas públicas).
Em relação aos direitos da criança e do adolescente, o Brasil se baseia no ECA,
aprovado pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e que passou a vigorar a partir
de 14 de outubro do mesmo ano. Trata-se da primeira lei aprovada de acordo com a
Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em consonância com a doutrina
das Nações Unidas para a proteção dos direitos da infância. O ECA articula-se ao
paradigma da proteção integral; considera as crianças e os adolescentes como sujeitos
de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. A legislação inspirada nas dire-
trizes da CF de 1988 é considerada um marco na proteção da infância e da juventude.
Anterior ao ECA, em 1927, tivemos o primeiro Código de Menores da América
Latina, aprovado pelo Decreto nº 5.083, do então Presidente Washington Luís, que
atribuiu ao Juiz de Menores do Rio de Janeiro, José Cândido Alburquerque de Mello
Mattos, a responsabilidade de sistematizar uma proposta. A principal característica
na política de atendimento, do Código de Menores era “a institucionalização para a
solução de problemas”.

Sabemos que várias gerações de crianças passaram suas infância e adolescência


internadas em grandes instituições fechadas. Estas eram, até o final da década de

122 Fonte disponível em: https://www.extraclasse.org.br/economia/2021/12/dieese-projeta-extensao-da-crise-


-em-2022/#-. Acesso em: 27 jun. 2022.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 359

1980, denominadas de “internatos de menores” ou “orfanatos” e funcionavam nos


moldes de asilos, embora as crianças, em sua quase totalidade, tivessem famílias.
Isto ocorreu a despeito do fato de que, desde os idos de 1900, a internação de
crianças aparece principalmente na literatura jurídica como o “último recurso”
a ser adotado. Por isso, consideramos que se instituiu no Brasil uma verdadeira
“cultura da institucionalização” (PILOTTI; RIZZINI, 1995; RIZZINI; RIZZINI,
2004, p. 14).

Essa modalidade de assistência baseada de modo predominante na estratégia


da institucionalização ou da internação institucional foi sendo construída no Brasil
durante o período colonial, imperial e consolidou-se com a instalação da república,
perdurando até a década de 1980.
Portanto, de 1927 até 1990, com a aprovação do ECA (Estatuto da Criança e
do Adolescente), aproximadamente 63 anos, tivemos uma política de atendimento a
criança e ao adolescente, como principal foco “a institucionalização, a internação”,
várias gerações de crianças e adolescentes passaram suas infâncias e adolescências
internados em grandes instituições fechadas, isso contribuiu para a “cristalização da
cultura da institucionalização” (BENELLI, 2021), no cenário Brasileiro; situação
essa que, até hoje, permeia a sociedade, os órgãos de atendimento e as posturas dos
profissionais no atendimento a criança, adolescentes e jovens. Essa forma de política,
é uma forma necropolítica de atuação “deixar morrer” as várias gerações de crianças
e adolescentes, a partir do momento, em que passam suas infâncias em instituições
fechadas, longe de suas famílias e suas origens.
Quando falamos sobre os vários períodos da história, não estamos fazendo
uma análise do tempo de forma linear, como uma gênese, no sentido restrito da
palavra. Não estamos buscando encontrar a origem das coisas, propriamente dita,
mas entender o processo. Um novo paradigma, ou um conjunto de ideias que nor-
teiam e/ou orientam as ações, de uma época, ele pode se destacar (ser hegemônico
naquele período), mas não existe sozinho, mantém os ranços do passado, são vários
paradigmas existindo ao mesmo tempo.
A mudança do paradigma legal e institucional no trato da questão da criança
e do adolescente (principalmente a passagem da situação irregular para a proteção
integral preconizada pelo ECA) implicou um reordenamento institucional na mudança
de gestão da política voltada para a Infância e a Juventude:

As linhas de ação da política de atendimento, segundo o artigo 87 do ECA, definem


as mudanças de concepção da situação irregular, destinada a uma menoridade
particular, para o paradigma da proteção integral abrangendo todas as crianças e
adolescentes. Estas compreendem: as políticas sociais básicas consideradas direitos
do cidadão e dever do Estado, tais como saúde, educação, trabalho, habitação,
lazer, segurança, dentre outras: política de assistência social, voltada para aqueles
que dela necessitem independentes de contribuição à Seguridade Social: serviços
especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negli-
gência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão, proteção especial e
defesa de direitos. Com a instituição do paradigma da proteção integral, crianças
360

e adolescentes passam a ser considerados seres humanos em condição peculiar


de desenvolvimento, sujeitos de direitos que devem ser prioridade absoluta da
família, da sociedade e do Estado. Esta concepção implica mudanças nos métodos
de intervenção, que não devem ser mais punitivos e corretivos como no Código de
Menores, mas de respeito, sobretudo, às fases de desenvolvimento biopsicossocial
das crianças e adolescente (CARVALHO, 2000, p. 189).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o ECA trouxeram a esperança


de que, enfim, as promessas marcadamente voltadas para a implementação das
condições necessárias para assegurar a dignidade humana seriam alcançadas, trans-
formando-se em algo real e extensível a todos. No entanto, mais de 32 anos depois
da promulgação da CF, tal esperança mostra-se ameaçada, em decorrência da não
concretização de vários direitos sociais.
São esses direitos que dependem, para sua concretização, de uma ação concreta
do Estado e da atuação do Poder Executivo na execução das políticas públicas que
garantam os direitos conquistados.
Na América Latina e, da mesma forma, no Brasil, não obstante a consignação
de amplas garantias em suas Constituições, especialmente no que tange aos direitos
fundamentais sociais, surge como problema comum dos Estados a não efetivação
concreta dos direitos humanos, ou seja, uma postura necropolítica na implantação e
implementação de política pública.
Dessa forma, o termo necropolítica, aparece também, em discussões sobre o
deixar de fazer do papel do Estado em prover serviços básicos, e sobre a exclusão
de alguns a uma vida digna. Um componente essencial do pensamento de Mbembe
(2018), é o racismo do Estado, por isso a política de morte não seria aceitável a todos
os corpos. Mas existiria um “corpo matável”, aquele considerado descartável.
De modo geral, o conceito de necropolítica, tem sido usado para fazer uma crí-
tica ao sistema capitalista de produção, no contexto no qual nos encontramos hoje (na
atualidade). Baseado no argumento que o capitalismo seria responsável por reproduzir
sistematicamente, a exclusão de determinados grupos, a necropolítica entraria como
a busca por eliminar tais pessoas como descartáveis ao sistema. E quem seriam essas
pessoas? Nessa análise, os moradores da periferia, os desempregados, os negros, as
pessoas sem poder de compra, as crianças e aos adolescentes pobres.
É com essa ideia, mas numa abordagem “mais prática” que o termo aparece,
discute-se, como nesses lugares subalternizados, isolados, até mesmo geografica-
mente, dos centros das cidades, existiria uma licença para matar. Ou seja, o Estado,
em nome de eliminar a criminalidade, as drogas, permitiria cada vez mais o uso
ilegítimo da força nesses territórios, independente se isso ameaçasse a vida de todos
ali. Por fim, é importante ficar claro, que Mbembe não fala que o Estado é o único
poder que personaliza a necropolítica. Existem outros autores que junto ou não com
o Estado, são responsáveis por gerir a morte de indivíduos.
Tendo em vista que crianças e adolescentes em situação de pobreza seriam uns
dos sujeitos mais afetados pelas políticas de retirada de direitos, torna-se plausível
crer na operação de um regime necropolítico atuante, enquanto forma de gestão
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 361

dessas populações; como também, o deslocamento de recursos públicos de áreas


sociais para a área de segurança pública, ou seja, para garantir a implementação
de políticas basicamente repressivas e punitivas, acarretando a criminalização da
infância e da juventude.

A criminalização da infância e da juventude

No começo dos anos de 1970, houve o incremento das funções penais e poli-
ciais do Estado que foram ocupando lugar da política social, ocorreu os graduais
cortes orçamentários na Assistência, na saúde pública, no ensino, na moradia;
garantindo o deslocamento de recursos públicos de áreas sociais para a área de
segurança pública, ou seja, para garantir a implementação de políticas basicamente
repressivas e punitivas que envolveram tanto o setor penitenciário, como o judiciário
e policial (KILDUFF, 2009).
Esse processo acarretou e acarreta consequências, principalmente, na vida da
classe trabalhadora, alvo privilegiado de tais políticas, compreendidas, por alguns
críticos, como o processo de criminalização da pobreza. A crescente desigualdade
social, a precarização das condições de trabalho e da vida da classe trabalhadora
e, como resposta a tais questões, o Estado social foi transformando-se, em “Estado
penal” que nega à população direitos e trata as expressões da “questão social”,
como caso polícia.
Essa política de repressão penal foi iniciada nos Estados Unidos, através do
Programa Tolerância Zero, e tem como objetivo trazer mais segurança às cidades que,
nos últimos anos, estariam sofrendo com o aumento considerável da criminalidade
e violência urbana e tiveram como consequência o aumento do número de pessoas
encarceradas. A introdução da guerra na política de “tolerância zero”, não foi por
acaso e deve ser relacionada às mudanças no plano internacional, a partir dos anos
1970 e sobretudo nos anos 1980, mais precisamente depois de 1983, data em que
o Governo federal americano lança a “guerra contra as drogas”, o encarceramento
se aplica com enorme frequência e de forma severa aos pequenos consumidores e
pequenos vendedores de entorpecentes 123.
Segundo Wacquant124, essa política indicou o redimensionamento do agir do
Estado americano, em relação a intensificação das políticas repressivas, dando,

123 Conforme Wacquant (1999), iniciaram nos USA a campanha de penalização da pobreza e a promoção do
que se conheceu como a “teoria das janelas quebradas”, que sustentava enfaticamente a necessidade
de punir os pequenos, pois senão as demais janelas em pouco tempo estarão quebradas também. Uma
janela sem conserto é sinal que ninguém se preocupa com ela e, portanto, quebrar mais janelas não teria
custo algum. A teoria das “janelas quebradas” sustentava a necessidade de punir os pequenos delitos para
prevenir delitos mais graves (KILDUFF, 2009).
124 Loïc Wacquant (Montpellier, França, 1960) é professor de sociologia e pesquisador associado do Institute
for Legal Research na Boalt Law School da Universidade da Califórnia; pesquisador do Centre européen de
sociologie et de science politique em Paris. Seus interesses perpassam estudos comparativos sobre mar-
ginalidade urbana, dominação étnico-racial, pugilismo, o Estado penal, teoria social e a política da razão.
Wacquant tem como uma de suas principais influências teóricas Pierre Bourdieu, produziu o vídeo intitulado
“sociologia: um esporte de combate”, em que retrata um pouco do pensamento desse importante sociólogo
362

maiores poderes e liberdade ao agir policial. Traduziu-se em uma elevação mas-


siva do orçamento policial como também do judiciário e penitenciário; houve um
aumento efetivo de equipamentos e policiais para garantir a vigilância dos bairros
pobres; como também detenções sem claras justificativas, ou seja, aumento con-
tinuo de pessoas consideradas “suspeitas” e, consequentemente cresceu o número
de pessoas encarceradas. Essa política, gerou em uma série de denúncias de abuso
e violência policial.

A principal tese de Lõic Wacquant em seu livro “As prisões da miséria”, recen-
temente traduzido para o português, é a emergência de um Estado penal con-
comitante ao desmonte das políticas sociais do Welfare State. Baseado em rica
documentação empírica, com densidade analítica, o autor sustenta sua tese ao
refletir sobre a adoção, praticamente universal, dos princípios de “tolerância zero”
criados pelos EUA para intensificar seus mecanismos de repressão à população
marginalizada. Wacquant revela que a adoção desses princípios cresce indepen-
dentemente dos índices de criminalidade e que, de fato, não repercute diretamente
neles. Analisa a estrutura repressora do Estado, dirigida prioritariamente às comu-
nidades consideradas mais “propensas” ao crime, ou seja, as populações que têm
uma inserção precarizada no mercado de trabalho e se encontram fora da cada vez
mais reduzida rede de proteção estatal. Com o olhar voltado para esses segmentos
sociais precarizados, o autor mostra como a rede de seguridade social montada
no pós-Segunda Guerra, durante a vigência do Estado fordista-keynesiano, dá
lugar não só ao fortalecimento do aparelho prisional estatal, mas também ao que
ele chama de social panoptismo, que é a vigilância sobre as eufemisticamente
denominadas “populações sensíveis” (JINKINS, 2001, p. 1).

O papel fundamental da tese de Lõic Wacquant em seu livro “As prisões da


miséria”, é denunciar a falácia das políticas de repressão à violência, como as de
“tolerância zero” norte-americanas, as quais foram expandidas e adotadas em uma
boa parte do mundo, explicitando que elas nada têm a ver com as taxas de criminali-
dade e demonstrando que o inchaço do aparelho do aparelho penal do Estado não é a
única saída viável na atualidade. Para o autor, a solução passa pela adoção das penas
alternativas, em lugar do encarceramento, e por um esforço de conectar as políticas
penais e sociais do Estado, visando uma ação preventiva em relação à violência e
não simplesmente repressiva.

do século XX com passagens cotidianas da vida e de sua ida ao Estados Unidos e nos movimentos de rua
na França. Outra influência teórica é Michel Foucault, que fornece elementos conceituais importantes para
a obra de Wacquant. A construção do discurso midiático a respeito dos guetos e a confusão conceitual que
dele decorre são classificadas pelo autor como ‘’instrumento de dominação’’ em sentido foucaltiano. Em
relação às críticas ao neoliberalismo e à análise de como ele se estrutura, surgem também as noções de
‘’disciplina e segurança’’, importantes na obra de Foucault. Esta influência está presente no livro “punir os
pobres”, editado no Brasil, em que ele apresenta o processo histórico de substituição do Estado caritativo
norteamericano pelo Estado Penal, de vigiar e punir, como também afirmou Foucault em torno do “encar-
ceramento” dos doentes mentais nos manicômios. Outra grande influência teórica de Wacquant foi William
Julius Wilson, sociólogo negro americano e professor de Harvard,. que os aproximou academicamente e
influenciou decisivamente a obra de Wacquant, especialmente no que diz respeito a suas análises acerca
da dominação racial e da marginalização da população pobre.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 363

Essa concepção política de luta contra a “insegurança”, baseado no Programa


Tolerância Zero, que resulta no encarceramento da população empobrecida é logo
copiada por outros países como Inglaterra; Itália, em 1997; México, em 1998; Argen-
tina, em 1998; Brasil, em 1999, (iniciando pela cidade de Brasília), sob a alegação
que tornaria as cidades mais seguras, eliminando pessoas indesejadas das ruas, pra-
ças, locais públicos e diminuindo a criminalidade através do aprisionamento dos
“criminosos”. A ideia de tolerância zero passou a ser o remédio universal, a tabua de
salvação para todos os males da delinquência e da desordem. Trata-se de uma política
criminal e conservadora, que tem como foco um crescente processo de criminaliza-
ção da pobreza, em que determinadas atitudes de grupos específicos são penalizados
(KUHN e SCHEFFEL, 2016).

Em meio a todo esse processo de mudanças que vinham ocorrendo no Brasil e no


mundo, desde o início da década de 1990, elevando os índices de desemprego,
pobreza e exclusão social, vê-se, por outro lado, o implante de políticas de repres-
são e punição, aplicadas à população e aos movimentos sociais, como resposta do
Estado às expressões da “questão social”. A população pobre sofre duplamente,
com a perda de direitos e com o avanço de políticas criminais, que estigmatizam
essa população, taxada como perigosa e levando ao encarceramento milhares de
pessoas, na sua maioria, jovens e negros (KUHN; SCHEFFEL, 2016, p. 263).

A criminalização do pobre e da pobreza não é novidade ou invenção do neo-


liberalismo. O controle social daqueles que são considerados uma ameaça ao modo
de produção capitalista – trabalhadores, desempregados, sindicatos, movimentos
sociais, pessoas que permanecem “vadiando” nas ruas como mendigos, prostitutas,
adolescentes pobres – e atribui a estas pessoas a figura do criminoso, do diferente,
do estranho, do vândalo, daquele que causa “desordem”, e “insegurança social”,
havendo, portanto, a necessidade da aplicação de medidas coercitivas e punitivas,
para manutenção da ordem social.
Para Foucault (1999) existe um conjunto de técnicas e táticas, que tem como
tarefa medir, controlar e corrigir “os anormais”, isso ocorre através da divisão binária
e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal- anormal) e da reparti-
ção diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-
-lo), que exercem sobre a pessoa, de maneira individual, uma vigilância constante;
impondo a tática das disciplinas individualizantes, e de outro lado a universalidade
dos controles disciplinares.
Entende-se que a sociedade está submetida a um jogo de forças pautadas na
disciplina. Ou seja, formas de vida padronizadas são prescritas para os pobres, como
devem viver, morar e conviver.
No mesmo sentido, também a delinquência assume contornos relacionados à
criminalização da pobreza ao longo da consolidação do sistema capitalista, na qual
vai se construindo a ideia de que “o crime não é uma virtualidade que o interesse
ou as paixões introduziram no coração de todos os homens, mas que é coisa quase
exclusiva de uma certa classe social” (FOUCAULT, 1999, p. 229).
364

Um fato nos chama a atenção sempre; em toda parte vedes duas classes bem
distintas de homens, dos quais uns se encontram sempre nos assentos dos acu-
sadores e dos juízes e os outros nos bancos dos réus e dos acusados. O que é
explicado pelo fato de que os últimos, por falta de recursos e de educação, não
sabem permanecer nos limites da probidade legal, tanto que a linguagem da lei
que se pretende universal é, por isso mesmo, inadequada; ela deve ser, se é para
ser eficaz, o discurso de uma classe a outra, que não tem nem as mesmas ideias
que ela, nem as mesmas palavras (FOUCAULT, 1999, p. 229).

Foucault permite destacar a questão da vigilância de famílias pobres, tarefa


na qual os profissionais se apoiam num sistema de registro permanente, onde tudo
é constatado, anotado e transmitido aos superiores, ou seja, a família aparece como
“colonizada” ou abarcada pelos acompanhamentos e intervenções efetivadas por
trabalhadores sociais diversos. E essa atuação, pode ser uma ação que contribui para
a “homologação” da criminalização da pobreza.
Tal complexo tutelar, de acordo com Donzelot (1986) tem como objetivo a
normalização do comportamento das pessoas e famílias, baseando-se nos pres-
supostos da disciplina, da higiene e da vigilância, os quais são analisados pelos
profissionais do social.

O problema do direito é desativado em proveito do comportamento, da norma, do


problema da adaptação e passa a ser questão de especialistas. Pois bem, justamente,
os especialistas, somente eles podem levantar a questão da necessidade de fazer
com que uma criança passe de uma situação a outra, de tirá-la de sua família ou
nela recolocá-la, ou de enviá-la a um abrigo, um lar substituto. Enviar o filho ao
um abrigo é menos grave do que vê-lo em uma prisão. Tem-se a impressão que
ele está sob cuidados médicos: não há desonra nem chacota dos vizinhos, pelo
menos, não muito (DONZELOT, 1986, p. 105).

Desencadeia-se, então, um processo de controle e tutela por parte de um arqui-


pélago de profissionais, os quais avaliam os riscos que as crianças e os adolescentes
estariam sujeitos junto de suas famílias. Essa situação leva a família, progressiva-
mente, a acolher a sujeição às normas e as orientações sugeridas pelos especialistas
e/ou profissionais da área, que são os conhecedores das leis.
Na maioria das vezes os acusados pobres, sequer têm condição de uma digna
defesa, facilitando, criminalizar os mais pobres, aqueles que não têm nada ou nin-
guém por si. As práticas de contenção dos necessitados, em nome da “segurança”,
são afirmadas com base em leis “protetivas” que não alterariam as condições de
vida dos ditos “perigosos”, mas seriam destinadas à punição de comportamentos
“indesejados” pelos padrões hegemônicos.
A partir deste contexto, a precarização das vidas de crianças e adolescentes
pobres, desinvestimento sistemático em políticas assistenciais, e em contrapartida,
o fortalecimento das políticas punitivo-penais, baseadas na constante produção do
“inimigo” personificado no jovem; acarreta uma estratégia de contenção da criança
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 365

e adolescência pobre, “indesejada”, através de seu “extermínio direto ou indireto”,


na medida em que perpassa por toda a sociedade a criminalização da pobreza, e o
“discurso de deixar morrer” dessa população indesejada.

Considerações finais

O ECA é fruto da CF 1988 que, em seu artigo 227, estabelece que crianças e
adolescentes formam um grupo de pessoas com direitos específicos e demandam
proteção integral do Estado, da família e da sociedade. É considerado internacional-
mente uma grande conquista no sentido da garantia dos direitos fundamentais e da
ampliação dos direitos sociais desse segmento da população.
No entanto, essa lei “não caiu do céu” e nem “surgiu no estalar do dedo”. Foram
necessárias várias articulações com os movimentos populares, entidades que atendiam
crianças, movimentos de crianças de rua, entre outros, que discutiam, principalmente,
que os direitos fossem estendidos as classes populares.
Sabemos que a lei sozinha não transforma a realidade, mas é um instrumento
poderoso e importante, que pode contribuir para mudanças significativas, tais como,
a exigência de políticas públicas para a redução da mortalidade infantil, exploração
do trabalho infantil, entre outros. As legislações são apenas um dos aspectos neces-
sários para a garantia de direitos. Esses direitos dependem, para sua garantia, de uma
ação concreta do Estado e da atuação do Poder Executivo na execução das políticas
públicas que assegurem os direitos conquistados.
A partir deste contexto, necessário se faz observar as implicações decorrentes da
omissão do Estado, os reflexos sociais delas eminentes, e as consequências da falha
da promoção estatal no desenvolvimento humano e, por consequência, o processo
de criminalização da infância e da juventude que ocorre quando a promoção de tais
direitos não se concretiza. O Estado estaria produzindo as condições de negação à
vida e de exposição à morte a determinados grupos, incluindo entre eles, a criança e
adolescente, especificamente, os pobres.
Nesse sentindo, o conceito de Necropolítica, ou seja, a “política da morte”, pro-
porciona uma compreensão dos reflexos sociais, diante do crescente desmonte das polí-
ticas sociais e a criminalização de crianças e de adolescentes na contemporaneidade.
366

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VIOLÊNCIAS ESTRUTURAIS
PATRIARCAIS RELATADAS POR
“PRESOS QUE MENSTRUAM”:
uma análise da prática da/o psicóloga/o
a partir de estudos feministas125
Cássia Silva Bastos Silva
Fernanda dos Santos Brito
Jessica O. Goulart Rodrigues
Barbara Araújo Sordi
Márcio Bruno Barra Valente

Introdução

A questão da violência urbana e do encarceramento em massa é uma proble-


mática na realidade brasileira, que conta com a terceira maior população prisional
do mundo e a quinta de mulheres, em um cenário crescente e violador de Direitos
Humanos. Embora a maior parte da concentração carcerária ocorra com público
masculino – 726.712 casos – há um aumento exponencial da população feminina,
uma vez que de 2006 a 2014, houve crescimento de 220% de homens encarcerados
e de 567,4% de mulheres (OLIVEIRA; TEXEIRA, 2017, FUNDAÇÃO GETÚLIO
VARGAS, 2018; IFOPEN, 2017; BORGES, 2018).
Tais dados, porém, parecem não impactar efetivamente em políticas públicas,
uma vez que, atualmente, apenas 7% do espaço prisional é destinado exclusivamente
para as mulheres, com deficiência de serviços e estruturas destinados a este público
(IFOPEN, 2017; MELO et al, 2016). Neste sentido, autoras como Wyara Melo et al.
(2016) e Mariana Barcinski (2014) afirmam que há uma lógica masculina, andro-
cêntrica, para pensar os espaços prisionais, verificada no improviso institucional,
marcado pela falta de investimento, de análises e proposições que envolvam o uni-
verso feminino.
Essas mulheres, de acordo com Bianca Graça et al. (2018), possuem um perfil
representado por jovens, negras, em muitos casos mães, provedoras do sustento
familiar, com nível de escolaridade inferior e com condições economicamente baixas,
isto é, em situações de vulnerabilidades sociais. Diante deste perfil, Angela Davis
(2016) expõe o legado que o sistema escravista deixou sobre as mulheres negras, o
qual exibia a mulher como propriedade às desprovendo de gênero, tal qual o homem

125 Trabalho de conclusão de curso para obtenção do grau de Bacharel em Psicologia.


370

negro. Dessa forma, o fato de serem exploradas como se fossem homens, sendo vistas
apenas de forma lucrativa em sua mão de obra, reflete em suas descendentes negras
na atualidade, visto que há um espaço considerável ocupado pelo trabalho na vida das
mulheres negras, que reproduz esse padrão estabelecido no período da escravidão.
Diante disso, segundo Hilem Oliveira e Alessandra Texeira (2017), ressaltam
que atualmente o principal delito dessas mulheres encarceiradas estão relacionados
com o tráfico de drogas – cerca de 68% –, atreladas a crimes patrimoniais sem violên-
cia, cometidos geralmente por mulheres de baixa renda. Além disto, segundo Gabriela
Ormeño (2013), quando se analisa a história pregressa dessas mulheres, constata-se a
violência intrafamiliar, vivenciada tanto na infância, com a ocorrência de maus-tratos,
como na vida adulta, em que há um alto índice de tentativa de suicídio e violência
íntima entre parceiros, sendo possível perceber o ônus diante do acesso aos direitos
fundamentais das mulheres privadas de liberdade. Assim, vindo de pregressas vul-
nerabilidades e violações de direitos, estas mulheres são expostas a mais violências
ao adentrarem no espaço prisional, conforme afirmam Daniela Carvalho e Claudia
Mayorga (2017). De modo geral, em tal ambiente há a reprodução da estrutura de
violência da sociedade, demonstrando suas relações de poder, opressões e punições.
É neste sentido e diante da importância em analisar a realidade de mulheres
encarceradas que este artigo propôs-se investigar as violências estruturais patriarcais
vivenciadas por mulheres e relatadas no livro “Presos que menstruam: a brutal vida
das mulheres, tratadas com homens, nas prisões brasileiras”, na edição de 2015,
escrito pela jornalista Nana Queiroz. O livro, resultado de uma pesquisa que durou
quatro anos, possibilitou a construção de um panorama nacional das mulheres presas
a partir de suas narrativas.
O critério de escolha desse instrumento, deu-se pelos relatos advindos das
vivências dessas mulheres, que produziram uma perspectiva sensível dos fenôme-
nos presentes no âmbito carcerário. Essa qualidade pode ser compreendida quando
consideramos que a obra foi escrita por uma mulher, o que contribui para a ótica
próxima e empática da realidade feminina no cárcere, características ideais para os
objetivos da pesquisa. Do mesmo modo, o presente artigo também objetivou refletir
sobre a prática da/o psicóloga/o diante das demandas apresentadas, travando um
debate dentro da Psicologia Jurídica a partir dos estudos feministas, uma vez que estes
trazem contribuições para pensar nas relações de poder de gênero como constituinte
da subjetividade e da socialização, além de serem fundamentais para proposições
críticas e de políticas públicas.
Para tal, foi realizado uma revisão bibliográfica sobre o tema das mulheres no
cárcere. Os procedimentos adotados incluíram consultas às plataformas de pesquisa
Pepsic, Scielo, Portal CAPES e Bvs-psi, entre os anos de 2016 à 2018. Os critérios
de inclusão foram a utilização de artigos produzidos no Brasil. As palavras chaves
usadas foram, cárcere feminino, sistema prisional, mulher, prisão, maternidade,
gênero e direitos humanos. Elas foram utilizadas sozinhas e de modo combinado
com as outras, com o objetivo em obter maiores resultados, pois ao decorrer da
pesquisa observou-se pouca publicação sobre a temática em questão e o debate
dos estudos de gênero.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 371

Por conseguinte, mediante esses critérios, inicialmente expôs-se aspectos


importantes sobre contexto histórico do cárcere feminino e dos estudos feministas.
Para análise dos relatos, organizamos os conteúdos pela frequência narrativa e, em
seguida, em categorias temáticas: Saúde, Maternidade, Relações afetivas, Violência,
Sexualidade feminina e Efeitos Psicológicos. Ressalta-se que as relações e violência
de gênero apareceram como pilar fundamental em todos as falas126 destas mulheres,
sendo, assim, o eixo desta análise. Destaca-se também que optamos em utilizar os
nomes completos das autoras, como uma ferramenta política, validando a participação
e visibilidade de mulheres no âmbito científico.

Breve histórico sobre o cárcere feminino

Em um panorama geral, de acordo com Wyara Melo et al. (2016), a história da


criminalização é demarcada em sua origem por atribuições de penalidades cruéis e
desumanas. Todavia, conforme as autoras Jessica Cury e Mariana Menegaz (2017),
existiram alguns fatores que desencadearam no modelo que se desemboca na atua-
lidade, pois a lente usada para vislumbrar as penalidades começou a se modificar
a partir do Iluminismo, quando a execução da pena dos indivíduos passou a ser
entendida com base em parâmetros racionais de respeito à condição humana. Desta
forma, afirmam Wyara Melo et al. (2016) que a Revolução Francesa, com suas rei-
vindicações e conquistas referentes ao direito penal humanizado, corroborou para
associação de privação de liberdade vinculada aos projetos de penalização, fato
institucionalizado com a ascensão do capitalismo e que perdura pela Revolução
Industrial na Modernidade.
Em contraposição a essas ideias reformistas de restrição à liberdade, Foucault
(1987) denunciou o adestramento dos corpos, por técnicas que visam mantê-los dóceis
para manutenção da regulamentação do poder, que passa a se fazer naturalizada, ao
instituir espaços, gestos, falas, normas, etc. O filósofo afirma que a partir do século
XVII é possível observar a imposição ao corpo de uma série de estratégias a fim de
obter controle e “correções”. Em conformidade, as autoras Daniela Carvalho e Clau-
dia Mayorga (2017), afirmam a existência dessas características nos mecanismos de
disciplina e de segurança nas organizações carcerárias, que fomentavam e fomentam
as práticas de subordinação, restrições e múltiplas privações, nas quais há um ensejo
da naturalização desta realidade.
Entretanto, somente no século XIX e XX, as mulheres começaram a ser inseridas
nos debates acerca do encarceramento prisional feminino. De acordo com Simkin
(2014), em 1813, na Grã-Bretanha, Ezabeth Fry fora responsável por denunciar as
condições em que viviam as mulheres na prisão. Em uma de suas visitas ao cárcere,
encontrou cerca de 300 mulheres e filhos aglomerados de forma precária. Essas
pessoas residiam em duas enfermarias e duas celas, dormindo no chão sem roupa de
dormir e sem roupa de cama, tendo que lavar, cozinhar e dormir no mesmo ambiente.

126 Identificou-se 31 mulheres, das quais sete são reconhecidas como personagens principais e 24 tem suas
histórias citadas nos relatos destas mulheres apresentadas.
372

Como resultado de sua denúncia, afirma Jahyra Santos e Ivanna Santos (2017), em
1823, surgiu um movimento de mulheres, liderado por ela, propondo um instrumento
de regulação da situação carcerária, o Gaol Act (Lei do Objetivo), o qual solicitava
que todas as detidas fossem colocadas separadas dos homens e que sua supervisão
deveria se dar por pessoas do mesmo sexo.
Em um recorte brasileiro da história do cárcere, aponta-se que até 1830, no
Código Criminal do Império, para os sujeitos que cometiam delitos se recorria a
práticas de manutenção da “ordem pública”. As legislações vigentes fundamenta-
vam-se nas Ordenações Filipinas, com penas que objetivavam empregar castigos ao
comportamento delituoso, com sanções envolvendo penas corporais, humilhações e
até mesmo a morte. Outro momento histórico brasileiro importante, foi a mudança
do antigo regime para a instalação da República, em 1889. Os preceitos desse
período estavam pautados nos ideais do positivismo para a formação de uma nova
vida social. E, para isso, houve a formulação de reformas que primavam por uma
organização das prisões do país. Nesse momento, as modificações pensadas para
o sistema prisional, estenderam-se para o cárcere feminino (ANGOTTI; SALLA,
2018). Na qual as contravenções penais cometidas por mulheres começaram a ser
administradas por religiosas.
Em 1929, as Irmãs da Congregação do Bom Pastor D’Angers, irmandade
oriunda da França, trabalhavam visando a recondução da mulher aos padrões com-
portamentais valorizados pela sociedade, ou seja, buscavam ensinar trabalhos domés-
ticos e impor um conjunto de normas, como meio de resgatar os papéis sociais do
feminino (SANTOS; SANTOS, 2017). Assim, a expectativa da função do cárcere para
mulheres estava atrelada aos estereótipos femininos de criminalidade, visto que as
causas de detenção eram, por exemplo, a prostituição, a embriaguez, os escândalos,
o vício, ou seja, tudo que as afastava da moralidade repressiva sexual e doméstica.
Portanto, o projeto funcionava por meio da ideia de “salvação moral” de mulheres
consideradas desviantes (ANGOTTI; SALLA, 2018).
Em 1940, publica-se o Decreto da Lei nº 2.848, onde constatou que as mulhe-
res deveriam cumprir pena em estabelecimento especial, e que, na ausência deste,
em seção adequada de penitenciária. Um ano depois, o Código de Processo Penal
entrou em vigor e reforçou que a prisão da mulher deveria ser feita em seu estabe-
lecimento próprio. Todos esses dispositivos legais reforçavam a necessidade de um
espaço específico para as mulheres, com proteções e preocupações destinadas ao seu
universo e dignidade (SANTOS; SANTOS, 2017). Apesar dessas regulamentações,
constatou-se que o projeto de organização dos presídios persistia na improvisação
de espaços, mesmo com o aumento da população feminina.
Bruna Angotti e Salla (2018) consideram que, com base nesse percurso histó-
rico, pouco se sabe em relação ao aprisionamento de mulheres, o seu cotidiano, as
políticas e práticas nos espaços prisionais, principalmente acerca da saída das Irmãs
da gestão prisional, fato que demonstra a reduzida visibilidade científica acerca do
controle social e punição das mulheres. Além disso, esses dados do contexto histórico
podem ser acrescentados aos dados da atualidade, de forma a facilitar o entendimento
da amplitude relacionada à problemática do cárcere feminino.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 373

A atual política de guerra a drogas, regularizada em 2016, pela lei 11.343, escla-
rece o crescimento da população carcerária feminina, bem como o seu perfil. Esse
fenômeno de seletividade penal pode ser explicado com o acirramento da penalização
para os crimes de tráfico de drogas, sem benefício de extinções penais, com duração
de 5 a 15 anos. Além disso, a definição de diferenciação entre usuário e traficante,
segundo decisão judicial, no artigo 28 da Lei 13.343/06, requer uma análise de fato-
res, tais como: “[...] da natureza, quantidade de substância, local, condições em que
a ação de apreensão foi desenvolvida, circunstâncias sociais e pessoais, bem como
a conduta e aos antecedentes da pessoa analisada” (BORGES, 2018, p. 63). Então,
essas normatizações que focam no pequeno traficante legitima a criminalização de
mulheres em vulnerabilidade, em especial, de mulheres negras e periféricas.
Ainda segundo Juliana Borges (2018), com Marco Legal de Atenção à Primeira
Infância, instituído em março de 2016, a Presidenta Dilma Rousseff expandiu as nor-
mas para a prisão domiciliar como substituição à prisão preventiva, considerando os
vínculos familiares na maternidade, contudo desde essa data não houve progressos
nessa temática. Em acréscimo, aponta-se as diretrizes internacionais dos direitos da
mulher encarcerada, as Regras de Bangkok, promulgadas em 2010, que priorizam
as medidas alternativas à prisão.
Dessa forma, pode-se perceber que as relações de gênero, classe e raça são
indicativos para as diferenciações no encarceramento. Nesse sentido, constata-se as
violações que persistem ao longo do tempo, por isso a relevância em pensar em polí-
ticas criadas para o acolhimento do público feminino e suas particularidades dentro
do cárcere, visto que, mesmo com as evoluções históricas, as mulheres ainda estão
sujeitas a relações de poder e violações de direitos humanos, sem visibilidade para
sua subjetividade e singularidade (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2017). Em outros termos,
a estrutura opressora do encarceramento de mulheres reafirma diferentes formas de
ocultamento e marginalização, já que impera o modelo masculino que assegura a
inferiorização feminina. Nesse sentido, resta indagar-se de que forma esse controle
social se desdobra nesse cenário específico?

Resultados e discussões

Uma análise das narrativas das mulheres encarceradas

O perfil de mulheres no cárcere é marcado por uma seletividade penal para


uma parcela da população brasileira. Em vista disso, intencionou-se verificar esses
traços durante a análise do livro. Todavia, considerando o tipo de fonte bibliográfica
adotada para a pesquisa, observou- se empecilhos em acessar as informações de forma
totalmente direta, uma vez que há a interpretação da autora, a qual intermediou os
fragmentos recortados. Por consequência, os resultados para a construção do perfil
são analisados conforme a descrição desta e algumas autodeclarações.
As informações sociais mais relevantes e recorrentes foram acerca da esco-
laridade baixa, a raça negra, o tráfico de drogas- como principal tipo de crime- e a
374

motivação para essa prática ser a condição socioeconômica. Nesse último quesito,
ressalta-se ainda que o momento para a inserção na criminalidade ocorreu também
motivados por relacionamentos amorosos e/ou diante da participação familiar nesse
comércio. Outrossim, verificou-se que os padrões de afetividade (como os tipos de
cuidado) eram demarcados pela violência e abandono e que os relacionamentos
amorosos eram caracterizados pela precocidade e, mais uma vez, por violências de
gênero, inclusive, físicas.
Para introduzir a discussão acerca das relações de gênero, ressalta-se o conceito
de gênero proposto por Joan Scott, em 1988, que o define como uma forma primária
das relações de poder inscritas sobre os corpos, a partir da percepção da diferença
sexual, em determinado contexto histórico e político. Pensando nessa teorização,
utilizou-se das narrativas para estudar o modo que se estabelece as relações que
emergem nesse ambiente carcerário.
Nesse sentido, quando pensamos em cárcere privado, é importante questionar
qual é o público que ocupa esse espaço? Em resposta à essa reflexão, percebemos
que o sistema carcerário não foi construído pensando no público feminino, contudo
com o aumento de mulheres encarceradas passou a ficar evidente que esse grupo
também pertence à realidade carcerária, demostrando assim o caráter de violência e
exclusão social para estas mulheres, as quais têm suas demandas silenciadas, ficando
à margem da sociedade, como verdadeiros abjetos.
De acordo com essa perspectiva de diferença sexual e seus efeitos nas relações
de gênero, fica evidente a idealização androcêntrica desse local, pautada na mascu-
linidade, a qual pressupõe que o universo carcerário é masculino, associado a com-
portamentos violentos e daqueles que ocupam os espaços públicos, fato que também
reflete sobre os homens, tanto na sua subjetivação, como nas violências estruturais
que os impelem às violências urbanas. Enfatiza-se, portanto, a necessidade de pen-
sar nas especificidades femininas, objetivando valorizar as demandas vivenciadas
por estas mulheres, posto que é uma realidade, bem como a importância de debater
socialmente sobre tais temáticas.
A estrutura de funcionamento que propaga discriminação e silencia direitos
criados exclusivamente às mulheres, também as retiram do lugar de sujeito social,
conforme pode ser evidenciado na narrativa abaixo:

No cubículo do Conjunto Penal de Jequié, no sudoeste da Bahia, cabiam seis


mulheres, mas a polícia havia insistido em meter dez. Por isso, nas duas primeiras
noites, Glicéria e Eru dormiram no chão frio, até que uma das detentas antigas se
apiedou e cedeu a jega aos dois. Ali não tinha berçário – era um presídio misto de
homens e mulheres e, onde há os dois sexos misturados, a preferência é sempre
masculina. Para elas e seus bebês, sobrava o espaço improvisado (QUEIROZ,
2015, p. 80).

Conforme observa-se na citação acima, mulheres se encontram excluídas de


direitos quando diante do público masculino, tendo suas pautas, como a própria mater-
nidade, invisíveis e violadas. Neste sentido, Djamila Ribeiro (2018) afirma que retirar
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 375

o lugar de fala das mulheres, em especial das negras, é um processo de perpetuação


da cultura escravocrata presente no Brasil e que rouba a possibilidade dos sujeitos
de existirem, de simbolizarem e de serem reconhecidos em suas vivências e história.
Assim, não dar vozes as mulheres é retirar suas condições de humanidade. No caso
do cárcere, conforme Juliana Borges (2018), perpetua- se a escravidão das pessoas
negras, as quais, em processo de higienização, são mortas pela violência urbana e
policial ou institucionalizadas, em um local de depósito humano, em que sequer
tem os direitos fundamentais (e constitucionais) garantidos. Este lugar fala? Fala de
sintomas sociais, assim como presentifica violências estruturais que se personificam
no próprio espaço físico e sua organização espacial.
Quanto a isto, a superlotação e as condições estruturais se constituem como uma
penalização a mais, em que espaços improvisados de caráter punitivo e esdrúxulos
tornam sua estadia marcada pela desumanização. Wyara Melo (2016) coloca que, além
da superlotação, as celas, predominantemente mal ventiladas, promovem as presas
más condições de vida. Tendo como prevalência, no cenário prisional a precariedade
e a insalubridade, que pode ser observada na realidade destas mulheres:

Certa vez, uma das celas tinha uma grande quantidade de fezes no vaso, ao mesmo
tempo em que as frutas eram descascadas na mesinha. O cheiro era nauseante.
A moradora do local, porém, parecia habituada, talvez aos constantes problemas
hidráulicos do presídio (QUEIROZ, 2015, p. 97).

Diante deste cenário, podemos refletir sobre a forma que as pessoas são reti-
radas do meio social, objetivando a limpeza da sociedade, e são depositadas em um
ambiente que fere a dignidade da pessoa humana, podendo comparar-se a um campo
de concentração, que serve como ocultação de culturas e singularidades. Nicolau
et al. (2017) pontuam que o cárcere, ao invés de possibilitar a reabilitação desse
público, pode contribuir no desenvolvimento de comportamentos autodestrutivos,
prejuízos psicológicos e transmissão de doenças, em razão do isolamento social,
incentivo ao trabalho mal remunerado com péssimas condições e técnicas correti-
vas. Em conformidade a esse pensamento, verificou-se uma das manifestações da
ideologia correcional na seguinte narrativa em que a detenta descreve a solitária:
“Ali, me disse a presa corajosa, elas eram deixadas, às vezes, por dez dias, comidas
por mosquitos que entravam pelas grades e perturbadas pela solidão, o tédio e o
silêncio” (QUEIROZ, 2015, p. 109).
A experiência dessa mulher retrata que o modo de organização do espaço no
cárcere funciona como mecanismo punitivo. Nesse sentido, a imperiosidade do con-
trole segundo Foucault (1987) é explicada por uma visão de que o corpo pode se
tornar objeto maleável, reduzido e desarticulado de sua individualidade, a fim de se
encaixar na maquinaria de poder da sociedade. Não investir em ações para mulheres
em condições de cárcere, deixando-as no ócio, também falaria do adestramento que
se propõe a estas, em que passividade e silenciamento são presentes. Dentro dessa
lógica, o fragmento de fala abaixo exemplifica a vivência de limitações e proibições
da mulher encarcerada:
376

É mais limpinho lá, mas é muita tranca, né? Quando você sente muita dor de
cabeça é porque a tranca é demais. Não fica aberto assim que você pode ir na
cela da outra, não dá. Se encontrar é só no pátio lá. É mais fim de semana que
fica aberto e você pode sair de manhã, mesmo que você não tiver visita, e entrar
de tarde, às quatro horas (QUEIROZ, 2015, p. 112).

Ademais, pôde ser extraído desse fragmento as técnicas para a obtenção da


disciplina, bem como a não intenção de que essas mulheres possam se fortalecer
enquanto grupo, isolando-as e não primando por elas como sujeitos que deveriam
exercitar autonomia. Foucault (1987) destrincha os princípios para a dominação dos
corpos, referindo-se à arquitetura de espaços fechados e reclusos, como é o caso da
solitária, descrito anteriormente por uma das detentas, tendo como finalidade evitar
aglomerações e reuniões coletivas. O que a localidade do sujeito pode significar? Qual
a importância em isolá-las? Será que a intenção é construir sujeitos não pensantes
para melhor dominá-las? Será que é interessante para esse sistema que mulheres se
fortaleçam como grupo social? Evita-se, assim, que as pessoas pensem e reflitam
coletivamente sobre a realidade cruel e repressora que lhes é imposta? Retira-se a
reflexão política do encarceramento primando pela culpabilização individual?
Outro método ilustrado é a coação de ritmo, o desenrolar do tempo e ativida-
des regulares, o enquadramento físico e temporal do sujeito. Em seguimento a isso,
exemplificasse uma experiência que se sobressai a essa lógica de disciplina e controle,
emergindo um movimento de união, advindo da polarização e violência estrutural
intrínseca a esse ambiente carcerário:

As guarda têm as regras delas, e nós, as nossas. Tem um monte de coisas que
não podemos fazer e chamamos isso de disciplina. E quem sair dessa disciplina é
cobrada. E cada ação tem sua reação. Por isso que existem as facções dentro dos
presídios. Elas sempre têm uma pessoa que vai estar ali falando o que devemos
fazer (QUEIROZ, 2015, p. 122).

Neste sentido, Foucault (1987) atenta para noção de poder. Considerando-a uma
rede capilar que não se restringe ao Estado, mas às instituições como um todo e as
práticas discursivas destas, o poder existiria exatamente diante da possibilidade de
resistência, onde há tensão entre forças, vendo que as próprias presas compreendem
as facções como formas de resistir.
Como extensão reflexiva, percebe-se a influência direta na saúde das mulheres
encarceradas, assim como a violência física e a negligência de necessidades básicas,
em que, por uma falta de assistência à saúde, se intensifica a precariedade dentro
do cárcere. O excesso de presidiárias por cela, por exemplo, coibi o direito ao sono,
ao repouso e à privacidade, bem como a solidão também pode produzir sofrimento
psíquicos e adoecimentos.
Diante desse descaso, Jessica Cury e Mariana Menegaz (2017) observam que são
mínimos os suportes médicos e psicológicos para as detentas, expostas à presença de
doenças que se proliferam devido a insalubridade das celas, onde se encontra animais
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 377

por toda a parte, como ratos e baratas. Essas questões corroboram para a discussão
da ausência de higienização no local em que vivem, o que resulta em violações, não
somente físicas, mas também estruturais.
Perante essas questões, Wyara Melo et al. (2016), informam que são incontá-
veis as doenças que tomam conta do espaço prisional, ameaçando não somente a
vida das prisioneiras como também corroboram com a transmissão de doenças para
a população como um todo, por meio de visitas conjugais e pelo livramento dos
encarcerados. Revelando-se um problema de saúde pública, já que o movimento
de exclusão se mostra malogrado, visto que existem escapes de comunicação entre
esse lugar isolado e o resto da sociedade. O despreparo e o desleixo ao tratamento
das presidiárias se mostram por meio de uma informação relatada sobre um caso de
epidemia que ocorreu no cárcere. Em 2009, quando explodiu o surto da gripe H1N1,
os jornais da região de Votorantim anunciaram que três presas com suspeita da doença
estavam isoladas no banheiro da delegacia local (QUEIROZ, 2015, p. 104).
É óbvia a desordem do sistema carcerário perante as obrigações que são espe-
radas do Estado para o amparo desse público. Outro ponto a ser analisado sob uma
perspectiva de saúde é a higienização e a assistência de produtos íntimos, como pasta
de dentes, absorvente e papel higiênico, pois é disponibilizado o mínimo para viver
durante o mês. Retrato esse que visualizamos na seguinte fala: “Todo mês eles dão
um kit. No Butantã, dão dois papéis higiênicos, um sabonete, uma pasta de dente da
pior qualidade e um (pacote de) absorvente. Falta, né? E ninguém da nada de graça
pra ninguém – conta Gardênia” (QUEIROZ, 2015, p. 103).
Um exemplo que podemos tomar dessa experiência relacionado ao déficit na
assistência para essas mulheres, é a questão do absorvente. Enquanto mulheres sabe-
mos que, durante o ciclo menstrual, um pacote de absorvente pode não ser suficiente
para suprir a demanda e as especificidades nos ciclos. Diante disso, baseado em que
padrões, foi assumido que um pacote de absorvente, suportaria as singularidades
menstruais de cada mulher no ambiente carcerário? Compreendemos a existência
da diversidade feminina, não só em relação ao gênero, mas também em seu funcio-
namento biológico, pois cada organismo funciona de maneira distinta.
Em acréscimo, na região de Ribeirão Preto, no ano de 2013, houve uma repor-
tagem que retratava esse cenário repugnante, em que as mulheres encarceradas se
viam obrigadas a improvisar absorventes com miolo de pão, dado que o Estado não
se atentava em fornecer materiais higiênicos específicos ao seu sexo. Sob o ponto
de vista médico, conforme a notícia, o miolo de pão por ser um material orgânico,
possui maior probabilidade de causar infeções no organismo. Esses dados, mais uma
vez, compactuam com a ideia da falta de assistência em relação a essas mulheres.
Dando prosseguimento a análise acerca da singularidade feminina, trazemos
uma discussão em relação à maternidade e às influências da estrutura física sobre as
condições orgânicas e psicológicas das mulheres privadas de liberdade. Reforçando
esse raciocínio, Michele Okun et al. (2013) evidenciam os prejuízos que o sistema
carcerário causa em uma gravidez, devido a violência cotidiana e as necessidades
não atendidas como: sono, repouso, alimentação, segurança e amparo emocional.
378

Outra proposição a ser analisada é o ideal de mãe associado à mulher moral-


mente seguidora das regras – passível, dócil e cuidadora – o qual é quebrado quando
relacionado à mulher privada de liberdade. Dessa forma, estas mulheres carregam
estigmas de serem mães transgressoras, por exercerem comportamentos e vivências
que não cumprem atos esperados pela sociedade. Maria do Carmo Fochi et al. (2017)
explicam que o não cumprimento do que é esperado como papel materno, resulta em
sentimento de culpa e incapacidade, reforçando a dupla punição que está relacionada
com o confinamento, pelo ato ilícito como também pelo fato de ser mãe encarcerada,
o que é condenado pela moral sexual reguladora, e que pode ser percebido no frag-
mento: “Fico rindo por fora, mas chorando por dentro. Deixei meus filhos lá fora.
Deixei meus filhos sem mãe...” (QUEIROZ, 2015, p. 90).
Esse recorte exibe um caráter de dupla punição experenciada pela mãe encarce-
rada, trazendo além do sentimento de culpa, a desvinculação familiar, que resultam em
efeitos psicológicos prejudiciais, compreendidos por Tatiana Lopes e Roseni Pinheiro
(2016), ao exporem que no ambiente do sistema prisional não é permitido à mulher
fazer suas próprias escolhas, por priorizar a segurança ao invés de proporcionar um
diálogo em que diz respeito aos seus cuidados, dar um suporte nas relações familiares,
em especial, no momento do parto.
Dentro dessas experiências, também pôde se observar a violência física – que
utiliza da força infligida de forma intencional sobre o outro – e a negligência referente
à maternidade, sendo uma violência de omissão, negação e/ou recusa de cuidados à
saúde das detentas (PAULO, 2012). Em acréscimo, em uma pesquisa de esfera nacio-
nal da saúde materno infantil nas prisões, Maria do Carmo Leal et al. (2016), afirmam
que existe uma parcela significativa da população feminina que sofreu violência no
período materno. Fato este, que desvaloriza a promoção de direitos humanizados
dentro do ambiente carcerário. O que enseja o seguinte questionamento, por que há
uma naturalização em violentar a mulher grávida privada de liberdade e um cuidado
excessivo sobre a mulher extramuros? Diante dessa indagação, expõem- se a vivência
de uma das detentas do livro:

Bater em grávida é algo normal para a polícia – respondeu Aline. – Eu apanhei


horrores e tava grávida de seis meses. Um polícia pegou uma ripa e ficou batendo
na minha barriga. Nem sei qual foi a intenção desse doido, se era matar o bebê ou
eu. A casa penal me mandou pro IML para fazer corpo delito, mas não deu nada
(QUEIROZ, 2015, p. 66).

E ainda, pôde-se observar a mesma negligência no fragmento abaixo:

Eu, por exemplo, estava grávida. Perdi meu filho faz dez dias, sangrei feito porco
e ninguém fez nada, não vi um médico. Agora, tô aqui cheia de febres. Vai ver o
corpinho tá apodrecendo dentro de mim (QUEIROZ, 2015, p. 107).

Em uma experiência extramuros, no ambiente público, quando uma mulher


branca, grávida, se encontra em uma situação de fragilidade física e emocional,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 379

existe uma comoção para lhe promover atenção e assistência básica. Porém, o fato
de a mulher encarcerada ter infligido as leis, aparentemente, a torna desmerecedora
dos cuidados necessários para a sua saúde e do seu filho.
Faz-se necessário atentar ainda a importância em entender os efeitos do pacto
social sob o ideal de mulher, que é socialmente universalizado, no qual a maternidade
é algo indispensável em seu ciclo vital e que irá afetar o julgamento moral (e prisio-
nal) destas mulheres. Com isso, podemos compreender o que Alcântara et al. (2018)
pontuam em relação as sentenças dadas as mesmas, as quais são influenciadas por tais
concepções sendo punido não apenas o ato infracional, mas também “a mulher”, que
destoa de como agir, vestir, pensar, portar-se, falar e viver. Portanto, estas mulheres
rompem com ideário de sexo frágil, influenciável e submisso, no qual o sistema
penal passa a assumir a função de domesticação (CARVALHO; MAYORGA, 2017).
Resgatando a história do cárcere feminino, administrado inicialmente por
freiras, com o viés de ressocialização que buscava uma “salvação moral”, tendo a
religião como condutora do processo de domesticação da mulher no cárcere, para
sua passividade e redenção, refletimos sobre a permanência desse modelo na atuali-
dade, pois mesmo considerando a mudança da administração, ainda se pode encon-
trar práticas semelhantes para manutenção de padrão delimitado de feminilidade.
Contudo, ressalta-se a importância em não diminuir a relevância da espiritualidade,
uma vez que é utilizada, por uma grande parte dessa população, como suporte de
enfrentamento às dificuldades encontradas, desde que seja uma escolha de cuidado
e não uma imposição institucional.
Outro viés de análise acerca dessa domesticação do corpo feminino nas relações
de gênero, mostra-se no âmbito da visita íntima, em que Jessica Cury et al. (2017)
enfatizam que a mulher tem sua liberdade reprimida, em uma tentativa de conter seu
desejo sexual, sendo reflexo de uma sociedade machista e patriarcal. As mulheres
deveriam possuir amplos direitos sobre seu corpo e sua sexualidade, o que não é
verificado ao analisar a burocracia e a desigualdade de tratamento em comparação
com as visitas íntimas masculinas, e no pensar em um ambiente apropriado para
atender essa demanda:

Não podia namorar, mas nós dava um jeitinho – e ri mais um pouco. – No femi-
nino, aqui em São Paulo, só tem visita íntima é na Penitenciária da Capital e
Tremembé. O restante não tem. Aí a gente tem que improvisar. [...] A solução
encontrada pelo resto dos presídios da capital paulista foi, em vez de autorizar a
visita íntima oficialmente, fazer de conta que ela não existe e permitir que aconteça
nas celas, como fazia Safira (QUEIROZ, 2015, p. 131-132).

Dessa forma, cabe refletir o porquê do prazer sexual ser enxergado apenas
como uma prioridade masculina, reforçando uma ideologia andrôcentrica aplicada
em diversos contextos, como forma de violência estrutural. Diante da análise das
narrativas, observou-se a escassez de relatos referentes ao prazer sexual comparado
com as outras temáticas. Logo, nota-se que as próprias presas não percebem que
380

o não acesso ao prazer sexual se torna uma violação de direitos. O que nos leva a
seguinte indagação, por que a mulher não é vista como sujeito de desejos e prazeres?
Além disto, constata-se novamente o controle da sexualidade feminina e da
maternidade, pois ao mesmo tempo que para os homens é possível as visitas íntimas,
para as mulheres existe a preocupação relacionado à gravidez dentro do sistema prisio-
nal, tornando-se mais fácil proibi-la ou negá-la do que falar e trabalhar sobre educação
sexual, auto- conhecimento do corpo e sexualidade feminina, como se observa no
relato da coordenadora da pastoral carcerária: “[...] o problema disso é que não há
acesso a camisinha, remédio ou informação. Se o Estado não reconhece que acon-
tece, ele não tem que se responsabilizar pela prevenção” (QUEIROZ, 2015, p. 132).
Neste sentido, há um paradoxo, pois se a mulher engravida de um homem
encarcerado, sua gravidez e condições para criação da criança não são levadas em
consideração, naturalizando também a responsabilidade das mulheres na criação de
filhas/os. Além disso, caso seja uma decisão do casal, tira-se a possibilidade e esco-
lha dos parceiros de engravidarem e constituírem família durante o encarceramento,
relegando-os ao controle do Estado.
A violência estrutural também atinge a população feminina LGBTQIA+, uma
vez que no processo de encaminhamento do sistema carcerário é considerado as
características biológicas, prevalecendo uma idealização binária que desrespeita a
subjetividade e o modo de identificação sexual. Para tanto, a ignorância, por ser um
assunto não abordado no sistema carcerário, acaba promovendo violências, como
podemos visualizar no seguinte fragmento:

Ela me contou que tava tão assustada porque na Penitenciária de Sant’Anna uma
guarda tinha se passado por enfermeira pra examinar ela. Botou uma camisa
branca e uma luva e enfiou a mão nela. Depois, ela viu a guarda no corredor e
descobriu que não era enfermeira coisa nenhuma. Quando chegou aqui, me pediu
para escrever uma queixa contra a guarda. Escreveu. Não deu em nada. Manda-
ram-na de lá pra cá porque a aparência dela dava muito problema. Tinha presa
enlouquecida, um burburinho (QUEIROZ, 2015, p. 149).

Contudo, ainda precisa ser revisto o preconceito existente no espaço carcerário,


construído em um ambiente não receptivo que potencializa situações de risco, assim
como acontece na sociedade em geral. Esse preconceito também se faz presente nos
relatos de mulheres lésbicas ao sofrerem discriminação institucional, como desta-
cado abaixo:

Os problemas do casal começaram somente quando a administração da Peni-


tenciária do Butantã, alegando preocupação com os antecedentes criminais de
Stéfani, proibiu sua entrada no presídio. Vera suspeita que a verdadeira razão
da dificuldade seja o preconceito. Já que as duas não têm laços legais que
comprovem o casamento, o sistema não é obrigado a permitir que se vejam
(QUEIROZ, 2015, p. 153).

E ainda:
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 381

[...] é permitido colocar em seu rol de visitas o nome da família e do marido. As


que não são casadas legalmente têm que escolher entre família ou ‘amigos’. E Vera
também não pode tirar a esposa do rol porque somente pessoas cujo nome está
no rol podem enviar itens de subsistência por Sedex (QUEIROZ, 2015, p. 154).

Desse modo, constata-se que essas falas reforçam a discriminação de gênero


na visita íntima para casais homossexuais. O endurecimento de regras institucionais
com o intuito de dificultar a realização de visita íntima, restringem uma escolha entre
visita familiar e visita conjugal, prejudicando a manutenção de vínculos afetivos. Ser
lésbica, afinal, significa conviver com uma solidão imposta?
Além disso, verifica-se resquícios de padrões heteronormativos quando é posto a
obrigatoriedade da comprovação legal de união estável ou casamento para que cessem
esses entraves burocráticos relativos a toda população feminina encarcerada. Nesse
sentido, segue um relato de uma das funcionárias desse ambiente: “Não existe parceiro
que se submeta à vergonha da revista íntima, que vá e mantenha a relação afetiva.
Nossa sociedade é simplesmente (ainda) assim: a mulher é fiel ao homem e ele não
é fiel à mulher. Logo, arruma outra lá fora e deixa de ir” (QUEIROZ, 2015, p. 132).
Essa separação de vínculo também está associada ao abandono do parceiro na
relação heterossexual, visto que não há reciprocidade na fidelidade masculina quando
comparada a feminina. Batista e Ana Jéssica Lima (2017) reiteram que na compa-
ração entre o encarceramento feminino e masculino, percebe-se que existem mais
prejuízos nas relações com o companheiro e/ou com relação aos vínculos familiar
para a mulher presa, configurando assim, várias formas de abandono.
Comprovou-se que utilizar relações de gênero como eixo principal se mostrou
fundamental para o desenrolar da análise. Outro dado relevante da pesquisa foi a per-
manência constante da temática referente a “estrutura”, conversando com os demais
assuntos destacados pelas presas. De forma a enfatizar essa constatação, ressalta-se
o discurso de uma das mulheres sobre a estrutura como característica equivalente
a uma ausência de condições dignas: “Mas é claro! Olha pra isso aqui! Falta muita
instrutura! Eu posso ser analfabeta, mas sei bem que isso não é lugar digno de mostrar
pra um jornalista!” (QUEIROZ, p. 105)
Assim, verifica-se a dificuldade dessas mulheres em se colocar como prioridade
diante desse espaço carcerário. Diante disso, evidencia-se a possibilidade em trabalhar
o empoderamento desse público por intermédio da intervenção psicológica, de forma
a desenvolver o senso crítico, proporcionando reflexões acerca da realidade carcerária.
Contudo, na atualidade, essa atribuição ainda é limitada à exames criminológicos
para obtenção de resultados acerca da personalidade do indivíduo, de modo a prever
comportamentos futuros que favoreçam a reinserção dessa pessoa. Esta escolha fez
com que muitas/os psicólogas/os considerem suas práticas profissionais restritas a ava-
liações psicológicas e periciais, assumindo uma função de diagnóstico classificatório.
Reafirmando essa problemática, expõe-se que na década de 1980, a Lei de
Execução Penal – LEP (Lei nº 7.210, 1984), configurou a atuação profissional como
executora de avaliações de personalidade e na orientação da pessoa privada de liber-
dade. Ainda que em 2003, a alteração do artigo 112 da LEP, que ocorreu através da
382

Lei nº 10.792, tenha eliminado a necessidade dos exames criminológicos para a pro-
gressão de regime e para o livramento condicional, o setor do judiciário estabeleceu
uma permanência para essas atividades, construindo um caráter de opcionalidade
dos exames (NASCIMENTO et al., 2018).
Alimentando essa crítica, o posicionamento do Conselho Federal de Psicolo-
gia acrescenta que a atuação do profissional de psicologia não se limita apenas na
realização de exames criminológicos, como também busca realizar um trabalho para
além da elaboração de prognósticos criminológicos ou de aferição de periculosidade,
ressaltando a importância de lidar com questões sociais, sóciohistóricas, bem como
atuar visando o protagonismo e autonomia individual e coletiva.
Por fim, as consequências sociais oriundas das violências estruturais patriarcais,
contribuem para a manifestação dos efeitos psicológicos, efeitos esses que podem
ser percebidos ao longo da discussão, como podemos visualizar abaixo:

Certo dia, quando as celas estavam abertas, ela saiu em alta velocidade pelo
corredor gritando, desvairada, implorando por ajuda. Parou de joelhos aos pés do
carcereiro de plantão e pediu para ver um médico de cabeça antes que fosse tarde
demais. O homem dirigiu a ela um olhar sem vida e mandou que voltasse pra cela,
dormisse e deixasse de escândalo. Ela saiu correndo no mesmo desespero em que
havia chegado. [...] Quando voltaram à cela para ver se podiam ajudar em algo a
companheira, quase desfaleceram. Amélia havia se enforcado, como outras antes
dela, na grade da janela (QUEIROZ, 2015, p. 125).

Diante disso, pode-se dizer então que as configurações espaciais legitimam mor-
tes? A questão dos comportamentos autodestrutivos compactua com essa indagação.
O encarceramento promove aprisionamentos que rompem com a manifestação do
eu e quebram autonomias subjetivas, na qual se sedimenta a desvalorização da dor
que, de acordo com Goffman (2003), envolve degradações e humilhações deixando
marcas irremediáveis na vida do sujeito.
Outros elementos encontrados para os efeitos psicológicos são: a passividade,
sentimento de culpa e solidão. Entende-se que a passividade é um processo sóciohis-
tórico de subordinação opressor que se perpetua na atualidade das mulheres estuda-
das. Os sentimentos de solidão e culpa estão atrelados ao modo como se estabelece
as relações afetivas, demarcadas por diversas separações de vínculo, dentre elas de
pais, filhos, amigos e parceiros conjugais. Nesse item, faz-se necessário enxergar a
atuação da/o psicóloga/o nos efeitos psicológicos, visto que é responsável em lidar
com comportamento, sentimentos e sofrimento humano.

“A gente tem sede de fala, sabe?”: tecendo considerações críticas...

A frase supracitada refere-se ao desejo de uma dessas mulheres por ter voz,
representando as demais em seu anseio de serem reconhecidas em suas vivências e
experiências. Esquecidas e negligenciadas, estas mulheres ocupam lugar de abjeção
na sociedade: são violadas desde aspectos mais intrínsecos à sobrevivência, como
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 383

na sua subjetividade. Corpos não respeitados em suas especificidades, sexualidades


ignoradas e violadas, imposições moralizantes que sobrecaem e materializam as
violências que retiram qualquer condição de humanidade: se você não tem poder de
narrativa, sua história não existe.
Assim, reitera-se, nestas considerações, que não se propõe serem finais, pois
há muito que se fazer, que se denuncie e se valide como as relações de gênero são
estruturantes e se fazem violadoras nestas realidades, onde os ideais de maternidade
e a recusa de sequer pensar a sexualidade feminina surgem como mais uma forma
de punição por ser mulher, em uma sociedade ainda tão misógina, que insiste em se
manter patriarcal e heteronormativa, excluindo tudo que fuja da lógica binária, na
tentativa de manter privilégios.
No decorrer da leitura nos detemos de forma sensível e engajada na descrição
das trajetórias e vivências destas mulheres, fazendo-nos sentirmos próximas em um
processo de identificação com suas histórias e de sofrimento com seus relatos. Por
vezes, durante nossos debates, sentíamos como se tivéssemos escutado suas falas,
recorrendo aos seus nomes, com certa intimidade. A impactante e brutal realidade
descrita no livro, também despertaram sentimentos compatíveis e incompatíveis com
o esperado, já que, diante dos horrores narrados, nos deparamos com emoções de
indignação, compadecimento, humor culposo – em que por meio de discursos sem
filtros, situações ruins tornavam-se engraçadas, pela forma como era repassada ou por
nossas próprias defesas – e empatia, que em um processo de identificação feminina,
refletimos nossa vulnerabilidade por sermos mulheres.
Nesse contexto, o caráter de ativismo social proposto pela Psicologia Feminista
Decolonial, proporciona um olhar diferenciado para a temática do cárcere, funda-
mental para criticar o papel atual dos psicólogas/os, que se restringe à classificação
diagnóstica e atendimentos voltados unicamente à elaboração de relatórios. Esta
perspectiva, propõe compreender o processo de subjetivação a partir das relações de
gênero e seus efeitos, na realidade local, visando não importar leituras eurocêntricas
e ofertando ações de clínica política, que visam o amparo psicológico e o empodera-
mento, por via da tomada de consciência coletiva de sua realidade social, inclusive
de classe e raça. Dessa forma, faz-se necessário ampliar o conhecimento científico
psicológico voltado para o cárcere, especificamente para o público feminino, no qual
a psicologia deve-se comprometer politicamente com a garantia de direitos humanos e
propiciar um espaço que possibilite transformações para este público, rompendo com
a lógica tradicional clínica e propondo um engajamento necessário para sustentação
destas mulheres em sofrimento.
A pouca produção sobre a temática revela a importância de estimular e pra-
ticar a sororidade, aqui pensada como ferramenta para empoderamento individual
e coletivo, enfatizando a relevância de desativar a rivalidade feminina e permitir a
identificação e o reconhecimento da condição de existência das mulheres, pois infe-
re-se que a possibilidade de fala compartilhadas destas pode proporcionar um maior
entendimento de si mesmas e das violências sofridas diariamente por todas. Neste
sentido, Conceição Nogueira (2017), ressalta que a pesquisa no âmbito da Psicologia
Feminista se faz pertinente por possuir uma maior probabilidade de ser traduzida em
384

políticas que venham beneficiar a sociedade como um todo ao reverem injustiças


sociais. Por fim, as/os psicólogas/os feministas almejam a realização de uma atuação
que seja sensível à mudança, que dê importância e promova igualdade social entre os
diversos grupos, além de atuar ativamente na promoção do bem viver para todas/os.
Temas como rivalidade feminina, profissionalização, performatividade de gênero
e padrões heteronormativos, podem e devem ser importante no trabalho com mulhe-
res, bem como a importância de garantir lugar de fala, considerando que a psicologia
pode ofertar um espaço para percepção de direitos, senso crítico, bem como para
ressignificação de suas vivências, na elaboração de traumas de suas histórias. Desta
maneira, este artigo se encerra propondo que a humanização dos presídios femininos
só se torna possível a partir de uma reflexão crítica e exigente de leituras sobre temá-
ticas de relações de gênero, compreendendo que as ações precisam ser transversais
não só para estas mulheres, como também para equipe profissional que ambienta
esse espaço, assim como para aqueles que elaboram as políticas e gerenciam tais
locais, tendo em vista que a violência contra elas é estrutural. Por fim, acreditamos
que divulgar e compreender a Psicologia Feminista Decolonial pode ser um ponto
importante e necessário para garantia de direitos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 385

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AGRIMENSAR E DIAGRAMAR
AS SUPERFÍCIES: a genealogia como
método de pesquisa em educação
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler
Rafael Araldi Vaz
Camila Gabriela Pollnow
Patricia Tatiana Raasch

Introdução

A educação constitui-se como um fecundo campo de aplicabilidade entre os


seus objetos de análise e os estudos foucaultianos. Contudo, não abordaremos neste
artigo um suposto efeito de retroalimentação entre sujeito e objeto. Tampouco nos
interessa discorrer sobre como os estudos foucaultianos podem contribuir para uma
leitura crítica da educação, podendo ser revisitada à luz do pensamento de Foucault.
Nossa contribuição será pensarmos de que maneira os procedimentos meto-
dológicos da genealogia podem se constituir como ideias fecundas para um pes-
quisar em educação, compreendido aqui como um processo orgânico em que
as estratégias fomentadas por pesquisadores são resultados diretos de múltiplos
agenciamentos, responsáveis por tornar seus estudos máquinas de guerra que se
colocam a favor da problematização e da atitude crítica necessárias ao deslizar
sobre as lâminas afiadas dos dispositivos de controle e aparelhos de captura. Devir
criança contra a ordem das classificações e tipologias próprias a uma moral do
ressentimento acadêmico!
Tomando distância das classificações e dos rótulos próprios ao universo aca-
dêmico é que a genealogia foucaultiana pode ser pensada como um procedimento
responsável por avaliar e empreender um diagnóstico das estratégias de saber e prá-
ticas de poder e dos processos de sujeição do sujeito. Ou seja, trata-se de um método
que coloca em evidência o problema dos jogos de identidades e das estratégias de
saberes presentes no contexto da nossa modernidade.
Tomando distância dos manuais, que a toda hora insistem em catalogar as ver-
dades e produzir discursividades responsáveis por acalentar o pesquisador no que se
refere a um domínio e uma autonomia em relação a seus temas, a genealogia destaca
a caótica composição não só de um, mas de vários percursos acidentados pelos quais
o pesquisador é afetado em um movimento pendular que vai da afetação aos seus
objetos, a partir de um duplo movimento: 1. A genealogia se efetiva no interstício,
na clareira dos jogos de objetivação e de subjetivação e 2. A genealogia é sempre um
projeto em curso. Em linhas gerais, pesquisar a partir da genealogia significa dar-se
conta de que o desenvolvimento de um estudo acadêmico é sempre carregado por
um projeto em devir para o qual não existe um fim, apenas um abandono.
390

Dessa maneira, a genealogia procura trabalhar com os seus efeitos a partir de


uma porosidade e capilaridade dos procedimentos pelos quais podemos situar os
seus tensionamentos a partir de suas ferramentas de análise. Todo genealogista é,
para Foucault, não um cientista ou um intelectual, mas alguém que exerce o ofício
profano da pirotecnia. O genealogista é um firework!

Eu sou um pirotécnico. Fabrico alguma coisa que serve, finalmente, para um


certo, uma guerra, uma destruição. Não sou a favor da destruição, mas sou a
favor de que se possa passar, de que se possa avançar, de que se possa fazer
caírem os muros (FOUCAULT, 2006, p. 69).

Seja como for, se quisermos pensar os contornos de um método genealógico em


Michel Foucault, devemos, necessariamente, atentar ao fato de que os seus trabalhos
são duramente carregados pela constatação de que o conhecimento não foi feito para
ser compreendido, mas sim para ser cortado (FOUCAULT, 1993).
De todo o modo, falar sobre métodos de pesquisa a partir da perspectiva fou-
caultiana não é uma tarefa simples. Essa dificuldade reside no fato de que, ao longo de
toda sua trajetória intelectual e militante, Foucault nunca se valeu de procedimentos
metodológicos a priori para empreender suas análises, de forma que o percurso de
seus estudos se configurou na peculiaridade de cada pesquisa e do recorte temático
sobre o qual ele construiu suas problematizações.
Por exemplo, no primeiro volume do seu projeto de uma História da Sexuali-
dade, existe uma seção do capítulo IV em que Foucault (1976) menciona que seus
estudos “[...] não são, realmente, imperativos metodológicos; no máximo, prescrições
de prudências” (FOUCAULT, 1976, p. 93). Tal passagem ilustra o percurso de uma
pesquisa inscrita em um referencial que, além de problematizar, ocupa-se em pensar
as caixas de ferramentas a partir de critérios norteadores sem, no entanto, traduzir-se
em uma estrita sujeição metodológica.
A excelência deste percurso compreende a radicalidade do método genealógico,
que reconhece na história uma experiência malcomportada e antidisciplinar (ARALDI
VAZ; SOLER, 2021). “A genealogia é cinza” (FOUCAULT, 1993) e tal afirmação
trata de deixar claro que, diferentemente das habituais análises históricas que pro-
curam investigar as origens das coisas a partir das explicações causais, ou investigar
os sistemas ideológicos de representação, a genealogia é um ofício de construção
e/ou desconstrução de uma ontologia histórica de nós mesmos. Ou seja, a genealogia
apresenta-se como uma manhã cinzenta aos olhos do pesquisador, porque ela dilacera
o problema sobre o porquê das coisas, mostrando que o retorno ao passado é sempre
carregado de mentiras. Como nos lembra Nietzsche:

Em algum remoto recanto do universo, que se desagua fulgurantemente em inu-


meráveis sistemas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso e hipócrita da “história
universal”, mas no fim das contas, foi apenas um minuto. Após alguns respiros
da natureza, o astro congelou-se e os astuciosos animais tiveram de morrer.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 391

Alguém poderia, desse modo, inventar uma fábula e ainda assim não teria ilus-
trado suficientemente bem quão lastimável, quão sombrio e efêmero, quão sem
rumo e sem motivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza; houve
eternidades em que ele não estava presente; quando ele tiver passado mais uma
vez, nada terá ocorrido (NIETZSCHE, 2007, p. 25).

Tal como essa fala sugere, o sentido da história não se compreende a partir de
sucessivos eventos lineares. Deste modo, percebe-se que os estudos genealógicos
compreendem o triplo efeito entre saber-poder-subjetivação e tal efeito recai sobre as
condições de possibilidades dos acontecimentos. A genealogia, portanto, não se ocupa
de interpretar ou desvelar aquilo que se encontra oculto, mas operar nos desvios,
nos acidentes, nas mudanças de percursos, nos elementos pelos quais as relações de
força fazem emergir formas de subjetividades a partir do embate permanente dessas
mesmas relações.

“A vida é tudo aquilo que se afirma”: ou como nos tornamos o que somos

Por certo, todo percurso metodológico é equivalente a um plano de guerra.


Cada epistemologia possui as suas ferramentas para indicar ao pesquisador quais
componentes de análises poderão servir como fundamento para a construção do
seu estudo. Com a genealogia não é diferente, pois ela também procurará dispor ao
alcance desse mesmo pesquisador os elementos necessários para a produção de seu
arcabouço conceitual, cujos efeitos percorrem a porosidade de uma cartografia do
pensamento. Entretanto, a genealogia procura pensar as suas estratégias como o não-
-lugar das armadilhas historiográficas e, nesse sentido, segundo Veiga-Neto (2009),
ela se ocupa de fazer transpirar os elementos do perspectivismo, uma vez que seus
objetos de análise são documentos pelos quais se formam os arquivos embaralhados,
sobrepostos e reescritos pelas ações dos aparelhos de captura.
O olhar genealógico, ou melhor, uma análise histórica referendada pela genea-
logia não se preocupa com pensar o sentido originário da aletheia, mas fazer emergir
os elementos ligados à precariedade das práticas de poder e seus elementos risíveis,
travestidos de valores iluministas e modernos, ou ainda a produção discursiva de
um saber supostamente científico que não é outra coisa senão efeito de doutrinação
moral sobre a extravagância e a monstruosidade. Que melhor efeito devastador da
pirotecnia genealógica, se não a constatação de que o Direito e a Psiquiatria não são
mais estratégias de saber-poder? Vigiar e Punir e História da Loucura (FOUCAULT,
2014/1995) constituem-se como experiências próprias de um confronto deflagrado
em relação aos entroncamentos das emergências e proveniências de um sujeito pro-
duzido pelas experiências dos aparelhos de captura presentes nos documentos que
nos fazem ver aquilo que vemos (ARTIÈRES, 2004).
Para que tal procedimento ocorra, a genealogia dispõe de uma bifurcação sobre
os estudos das emergências e das proveniências. No contexto das pesquisas genealógi-
cas, esses dois elementos são de fundamental importância para se situar os elementos
392

para uma desconstrução das linearidades históricas, políticas e culturais nas quais
somos constituídos como sujeitos de múltiplas vontades de saber. Inspirado em toda
a potência corrosiva do pensamento nietzscheano, Foucault (1993) nos incita a per-
ceber que além de uma imediata destruição da metafísica da própria cientificidade,
é preciso, pois, desconstruirmos a nós mesmos, uma vez que somos constituídos nos
espaços dos jogos de objetivação e de subjetivação (BOGÉA, 2019).
É esse o contexto potente da genealogia, pois ela oportuniza pensar que, no
interior e no exterior de todo acontecimento, encontram-se a gargalhada, a astúcia
e a vingança das solenidades das origens (NIETZSCHE, 1976). Só podemos pensar
a relação entre a genealogia e a educação a partir de sua transversalidade e capila-
ridade, a partir dos elementos ligados aos dispositivos de poder, às estratégias de
saber e aos processos de subjetivação.
Mais do que uma experiência política, a própria educação é, para a genealogia,
um efeito de tensionamento que reflete, por um lado, a experiência dos processos de
disciplinarização dos corpos, mas também a elaboração de redes de discursividades
sobre os indivíduos e as tecnologias de individuação das subjetividades. Em Vigiar
e Punir (FOUCAULT, 2014) não interessa ao autor explorar a experiência social dos
primeiros espaços institucionais/escolares da Modernidade, mas sim tensionar, de
modo correlativo, a experiência de emergência da disciplina como efeito de verdade
responsável por produzir uma tecnologia da individualidade, ou seja, analisar como
as redes de dispositivos disciplinares interpelam o sujeito a se reconhecer como indi-
víduo. A genealogia despreza completamente todos os protocolos de uma educação
originária – quase uma substância imagética responsável por depositar nos educadores
uma vocação messiânica de salvar o que já foi pensado para ser um fracasso, por
mais que ocorram reformas, ou sejam pensadas disciplinas como projeto de vida – e
o processo de constituição de um sujeito autônomo e racional.
A educação, como relação de força, compreende a dispersão e as emer-
gências do perspectivismo em que a genealogia é responsável por investigar
os desdobramentos dos papéis políticos por meio dos efeitos de verdades dos
temas educacionais.
Sem sombra de dúvida, uma genealogia das formas de verdade dos espaços
educacionais deve interessar-se em percorrer os contornos pelos quais determinadas
verdades são inscritas nos diferentes campos da educação como modo de constituição
de sujeitos. O problema posto pelas pesquisas genealógicas compreende, portanto, os
elementos da produção política das relações não de uma verdade da educação, mas de
uma educação da verdade. Ou seja, trata-se de pensar a educação e seus problemas
em que são estudados os meticulosos processos responsáveis por fazer emergir e
“[...] conjurar a quimera da origem” (FOUCAULT, 1993, p. 61).
Ao tecermos um olhar foucaultiano para a educação sob as lentes da genea-
logia necessitamos, em primeiro lugar, renunciar à própria linearidade histórica
por meio da qual esse saber foi constituído – como se houvesse uma espessa
linha que ligaria o projeto grego de uma Paideia ao limiar do racionalismo e ilu-
minismo moderno. Por que, pergunta-se à genealogia, ao invés de retomarmos a
fábula desse processo humanista, não podemos instigar uma análise das práticas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 393

nas quais poderíamos reconhecer as condições de possibilidades para a emergência


dos acontecimentos infames em uma educação?
O processo genealógico se constitui como uma tarefa contínua de problemati-
zação da educação a partir da desconstrução dos seus objetos. Desse modo, a questão
fundamental do método genealógico seria pensar os efeitos dos fazeres em educação,
pois, como nos lembram Lemos e Cardoso Junior:

Há uma atualização dos acontecimentos que se diferenciam, e não de uma


causalidade determinante, pois todas as relações causais são arbitrárias. Para
estudar as práticas, Foucault propõe interrogá-las, colocar em questão os postu-
lados instituídos que circulam no campo social como verdade, desconstruindo
modos de vida e hábitos que foram cristalizados (LEMOS; CARDOSO JÚNIOR,
2009, p. 355).

Emergem nesse contexto outras possibilidades de análise para pensarmos os


elementos de crítica aos jogos de saberes, poderes e subjetivações presentes na educa-
ção. A partir disso, podemos perceber que os recursos e procedimentos genealógicos
marcam uma espécie de denúncia necessária aos processos de normalização e de
racionalização das experiências educacionais. Neste sentido, a tarefa da genealogia
compreende uma dupla relação nos seus efeitos: diagnosticar e avaliar para fazer
sacudir as evidências (RAGO, 2011).
Desse modo, a questão da educação coloca-se a partir dos modos pelos quais as
relações de poder e de saber operam na fabricação das diferentes formas pelas quais
são produzidos os efeitos de verdade e seus modos de racionalidade. A genealogia
é, portanto, um operador metodológico cujo problema recai sobre uma história do
tempo presente que se ocupa em tensionar os modos pelos quais os regimes de ver-
dade são constituídos.
Em seu testamento intelectual, Foucault (1995) apresenta um posicionamento
estratégico acerca do método genealógico. Ao se referir a tal perspectiva ele deixa
claros os objetivos pelos quais são indissociáveis as práticas de poder e as estraté-
gias de saber.

A genealogia da educação entre a governamentalidade e as práticas


de liberdade

Uma das estratégias mais fecundas produzidas nos estudos foucaultianos sobre
o campo educacional está em interrogar o papel das formas de governo na organi-
zação de uma pedagogia do sujeito (GALLO, 2019; RESENDE, 2019). Governo
este que compreende as diferentes formas de gestão empregadas sobre os corpos
e populações mediante dispositivos de saber-poder. No caso específico do campo
educacional, trata-se de indagar como diferentes formas de governo, das disciplinas
à biopolítica, foram responsáveis por constituir diferentes sujeitos educacionais.
Desta indagação inicial surge uma multiplicidade de desdobramentos, abrindo novas
problematizações sobre ele.
394

Cabe, porém, salientar que as problematizações advindas de uma abordagem


genealógica sobre as formas de governo no campo educacional partem de uma expe-
riência de deslocamento fundamental: tomar a educação pelo lado de fora (FOU-
CAULT, 2001), ou seja, partir de uma estratégia de análise que tome a educação a
partir do que ela aparentemente não é. Traçar, portanto, as linhas de força invisíveis
que participam ativamente da organização dos projetos e práticas educacionais, mas
que nos fornecem a impressão de externalidade em relação ao que a educação de
fato deve ser. Por isso, uma vez mais, a governamentalidade emerge como o contra-
ponto essencial às análises que tomam a educação em seu efeito positivo. Isto é, que
tomam a educação nos termos em que ela mesma se apresenta: como o caminho da
emancipação, do progresso, da superação da barbárie, da preparação para o trabalho
ou da construção de um caminho de liberdade.
Todos estes significados atribuídos à educação tem a virtude de apontar para
dentro, para um centro a partir do qual a educação é pensada e praticada. Neste
sentido, descentrar a educação de seu próprio discurso, de sua própria semântica,
de seu próprio universo de práticas e técnicas, tem um duplo efeito: 1. Localizar
e cartografar dispositivos exteriores ao campo educacional, mas que têm com ele
uma relação tacitamente demarcada; 2. Permitir que práticas e experimentos hete-
rotópicos, exteriores ao núcleo do pensamento e prática educacional, possam sair
de sua zona de virtualidade e ganhar espaço.
Reconhecer a educação como uma tecnologia de governo é, portanto, um passo
inicial para darmos conta de perceber os vínculos que ligam a educação a um conjunto
de dispositivos que atuam ao nível das micro e macropolíticas.

A educação, na sua dimensão macropolítica, englobando seu aparato jurídico-


-normativo, sua estrutura organizativa e sua inserção no âmbito social, funciona
como biorregulação do Estado; e, na sua dimensão micropolítica, perfazendo a
organo-disciplina das instituições escolares, funciona na fabricação de indivíduos
escolarizados, obedientes, de modo que a injunção dessas duas dimensões põe o
biopoder em ação, constituindo subjetividades tanto individuais, como coletivas
(RESENDE, 2019, p. 126).

Eis aqui um traço permanente para a construção de uma contra-análise genealó-


gica, em franca oposição ao escopo do que convencionalmente se compreende como
o campo educacional: a análise dos modos de subjetivação compostos duplamente
pela bio-regulação do Estado e pela organo-disciplina das instituições escolares.
Neste duplo traçado, os modos de subjetivação aparecem como o objeto central da
prática educativa, o que coloca em permanente suspeição os elementos e instru-
mentos nucleares que compõem a norma educacional. Compreender a educação
a partir dos modos de subjetivação significa, portanto, reconhecer um amplo uni-
verso de práticas jurídicas, normativas e pedagógicas, como dispositivos de poder,
responsáveis pela orientação e pelo exercício permanente de uma modalidade de
sujeito dócil e obediente, bem como o manejamento útil e proveitoso das ener-
gias contrárias, das forças que ameaçam a estabilidade das normas, mas que são
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 395

devidamente gerenciadas em favor da consolidação de práticas normativas, entre


inclusão e exclusão. Eis o essencial do que caracteriza um governo biopolítico e
disciplinar no campo educacional.
Dito isso, cabe apontar algumas possibilidades gerais do que denominamos de
uma genealogia das formas de governo no campo educacional e de como tal genea-
logia permite colocar a questão da liberdade no interior das práticas educacionais.
Em primeiro lugar, cabe situar o que se entende por liberdade no pensamento
de Foucault. Mesmo que marginalmente colocada, a questão da liberdade aparece
em Foucault nem como substância metafísica, nem como um estado ontológico
e teleológico a ser alcançado. Trata-se mais de um exercício que só se torna pos-
sível nas dimensões do presente e na presença do poder. Neste sentido, pode-se
falar em “práticas de liberdade” apenas em condições em que o poder é capaz de
circular, mesmo que precária e desigualmente, em sociedade. De outro modo, a
análise de Foucault sobre a liberdade como um discurso da verdade também é
situada no manejamento de esperanças e expectativas na construção do indivíduo
neoliberal. Neste último caso, a liberdade aparece como projeto e como um estado
a ser alcançado pelo indivíduo a partir da gestão de sua vida e de seu sofrimento
psíquico (SAFATLE, 2021).
Em ambos os sentidos, podemos dizer que a liberdade opera e é operada no
interior do campo educacional. Como uma liberdade manejada pelo neoliberalismo,
por exemplo, a liberdade é um instrumento que se vincula a um trabalho de gestão
da vida a partir de sua precariedade e risco. Neste sentido, a vida se torna objeto
de governo em um movimento pendular entre o risco da anomia e a promessa de
liberdade. A educação é, assim, cooptada como dispositivo de governamentalidade
biopolítica e como instância primária de subjetivação, como instrumento de inculca-
ção de certa noção de liberdade e segurança, sempre envolta sob o manto irresistível
do risco, da entropia e do medo.

O medo do fracasso social, o medo do que escola ensina, o medo do aluno não
aprender a aprender, o medo da evasão escolar, o medo da invasão da escola por
alunos desobedientes, o medo da ocupação da escola, o medo de não se qualificar
suficientemente, o medo da perda do emprego por deficit na qualificação, o medo
da falta do diploma, o medo da desatualização profissional, o medo de não ingres-
sar no ensino superior, o medo de que as crianças não se alfabetizem [...]. O medo
da educação, do professor, o medo do aluno, o medo da gestão governamental, o
medo da escola, o medo da educação, o medo da falta de educação.
Todos esses medos e, certamente muitos outros, enquadram o indivíduo num
sistema de perigo fazendo com que sua vida, entre a liberdade e a segurança,
esteja constantemente enredada num esquema de perigo que atravessa as práticas
do meio educacional. Tais medos não são, de forma alguma, devaneios ou meros
comportamentos de fundo psicológico. Ao contrário, trata-se do uso instrumental
do medo como técnica política capaz de instaurar um certo pavor diário, através
do que a lógica neoliberal ganha corpo, ou melhor, toma a alma dos indivíduos,
aprisionando seus corpos a essa forma de vida calcada na racionalidade que joga
com o medo e com a liberdade [...] (RESENDE, 2019, p. 127-128).
396

Neste sentido, as práticas de subjetivação na educação se constituem não só


através da gestão da vida e de suas energias, como também através de uma gestão
dos afetos. Seja na forma do medo e da insegurança, seja na forma da promessa
de liberdade, novamente o corpo e suas instâncias mais porosas, seus nervos e
seu nervosismo, sua pele e seu suor, seu coração e sua palpitação, encontram-se
implicados no centro de uma gestão política das subjetividades. E é na governa-
mentalidade neoliberal que essa experiência extensiva e intensiva de uma gestão
dos afetos melhor se expressa, na medida em que se torna capaz de operar através
da educação o movimento pendular entre sucesso e fracasso, entre liberdade e
dependência, entre coragem, mérito e medo. Esse conjunto de sensibilidades,
quando manejadas no interior de uma racionalidade de gestão política das sub-
jetividades, permite que a liberdade se converta em um eficaz instrumento de
obediência e segurança.
Um segundo movimento na análise das práticas de liberdade aparece através dos
experimentos heterotópicos na educação. A heterotopia como espaço da diferença,
como lugar em que o inaudito prospera ante a uniformidade e a norma, apontando
para a construção de espaços de liberdade. Espaços estes geradores de práticas de
(des)subjetivação que extravasam a dimensão imposta pelo sujeito da racionalidade
ocidental, apostando na arte ou na estética de tecer existências outras no presente. É
certo que a educação se encontra longe de evidenciar um movimento nesta direção,
mas é papel do intelectual instigar a construção de uma ética e de uma estética que
desacomode os lugares comuns por onde a educação tem sido pensada e praticada.
A heterotopia tem, neste sentido, o vigor ético-estético de que necessitamos para a
construção de práticas pedagógicas insurrecionais, demarcadas por uma outra política
da verdade, mobilizada pelo espírito cínico de uma coragem da verdade e instru-
mentalizada com conceitos-armas que possam provocar a ruptura do comum e o
nascimento de modos de vida outros.

Segundo Foucault, se as utopias confortam, as heterotopias inquietam e desafiam


o presente, implicando possibilidades concretas de produção e intervenção. Se as
utopias são aberturas ao futuro, se remetem para um tempo que ainda não é, as
heterotopias presentificam, estão encarnadas no agora e dele não se depreendem.
Mas, aqui e agora, produzem diferenças, fazem proliferar diferenças. Elas são
também uma ruptura com o tempo, implicando em heterocronias, na criação de
tempos outros no seio do tempo mesmo. A heterotopia traz uma nova potência
para pensarmos a educação, com uma materialidade e presentificação além de
qualquer registro metafísico, conceito atento e fiel aos desafios lançados por Niet-
zsche. Uma educação no aqui e no agora, transgredindo o projeto moderno de uma
educação sempre remetendo a um futuro, a uma superação das condições presen-
tes como sendo inerente ao próprio ato educativo. Em poucas palavras, pensar
heterotopicamente a educação possibilita a produção de intervenções concretas
no cotidiano da escola. Em lugar de grandes planos para mudar a realidade e a
história, produzindo o futuro, ações no presente que mudam situações e mudam
vidas no presente (GALLO, 2019, p. 202).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 397

Muito embora a utopia apareça no campo educacional como uma perspectiva


de transformação política e social fundamental, a base epistemológica na qual as
utopias foram pensadas por intelectuais como Paulo Freire conduziram a uma pers-
pectiva de libertação das ideologias dominantes. A educação libertadora conduziria,
assim, para um futuro alvissareiro no qual as esperanças se concretizariam a partir
da dissolução das amarras ideológicas (FREIRE, 1967). Neste sentido, a libertação
em educação só se daria mediante uma tomada de consciência no presente, a partir
da qual as energias utópicas poderiam ser libertadas, fornecendo um novo horizonte
de expectativas para a educação e para a sociedade.
Em oposição a essa economia da espera(nça), a essa política de um devir-sonho,
a heterotopia opõe uma radical concretude e centralidade das ações no presente. Não
que a heterotopia seja uma forma diametralmente oposta à utopia; trata-se menos de
uma oposição e muito mais de um deslocamento na compreensão do tempo histórico,
compreendido na utopia como um tempo a priori e dentro do qual haja prescrita
uma fórmula para a libertação, mediante a tomada de consciência. O problema da
utopia, portanto, está muito mais em sua vinculação com um regime de historicidade
(HARTOG, 2014) e com um tipo de sujeito já muito conhecido: o sujeito da razão
universal, para o qual a utopia presta a função de posicioná-lo nos trilhos da história
e de apresentá-lo a sua própria consciência.
A heterotopia, neste sentido, seria uma experiência de descarrilhamento do
sujeito dos trilhos da história universal e da utopia como telos que pavimenta o seu
destino. A heterotopia seria uma declaração de ruptura com a utopia, naquilo que
a utopia tem de dependência do sentido histórico programado e de uma tomada de
consciência do sujeito. Por estes motivos, a heterotopia poderia ser pensada como
uma experiência radical de ruptura com o sujeito histórico da razão universal, ao
mesmo tempo em que significaria uma aposta em um tipo de “utopia” que possui
lugar no presente como espaço de transformação, experienciada como subjetivação
da diferença e não como consciência universal.
Produzir uma genealogia das formas de governo no campo educacional significa,
assim, não só compreender as estratégias e formas de subjetivação que constituem
os sujeitos de uma pedagogia. Significa, sobretudo, empreender um movimento de
análise que seja capaz de desmobilizar, desarticular, desmontar os aparelhos de cap-
tura e os regimes de verdade por eles sustentados. Tornando possível, deste modo,
desenredar os sujeitos de seus papéis e identidades, das vinculações que os prendem
à autoimagem de um sujeito da razão universal, cujo conceito de liberdade aprisiona
o sujeito a um horizonte de expectativas fechado. Horizonte no qual a educação
pode se dar, ao mesmo tempo e paradoxalmente, como um caminho teleológico de
libertação e obediência.
Construir alternativas para as práticas de subjetivação na educação passaria,
assim, pela necessidade não só de desconstrução do sujeito livre da razão univer-
sal, mas da elaboração de uma ética, de um modo de vida, no qual os exercícios de
subjetivação estejam calcados em práticas de liberdade no presente. As heterotopias
seriam, assim, um instrumento de fabricação de uma educação da diferença e do
diferente, cujo devir tem no presente o seu espaço de liberdade e seu único horizonte
de possibilidades.
398

Considerações finais

Na introdução de O Uso dos Prazeres, Foucault (1998) aponta que uma genealo-
gia dos processos de subjetivação na sociedade ocidental constitui-se como uma ferra-
menta sobre as possíveis bifurcações entre os aparelhos de captura e as linhas de fuga.
Tal percurso compreende a dimensão do projeto metodológico da genealogia,
no sentido de se pensar as emergências e proveniências dos espaços de verdades
pelas quais nos reconhecemos enquanto sujeitos.
Do ponto de vista metodológico, as pesquisas genealógicas oportunizam
uma outra maneira de percebermos os embates entre as forças nos interstícios das
dinâmicas que envolvem a constituição de um sujeito historicamente objetivado e
subjetivado pelos jogos de verdade.
No contexto da educação, tais elementos oportunizam a investigação sistemática
em linhas cíclicas dos elementos responsáveis pela constituição de uma ontologia
histórica de nós mesmos. Nesse sentido, o projeto metodológico de uma genealogia
dos espaços educacionais refere-se muito mais aos modos pelos quais emerge uma
vontade de saber do sujeito pedagógico e seus processos de escolarização, do que
propriamente a dimensão efetiva de uma linearidade do saber educacional.
Mais do que nunca, a pirotecnia genealógica produzida por Foucault situa, nas
suas capilaridades os elementos estratégicos pelos quais os dispositivos de controle,
as formas de governamentalidades e as estratégias de operacionalização da biopo-
lítica são modulações em constantes processos de transformação e de produção de
modos de subjetividade.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 399

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NECROPOLÍTICA E SOBREVIDA
DA ESCRAVIDÃO: notas sobre
violência obstétrica em corpos de
mulheres negras e não brancas
Tatiana de Souza Santos Neves
Maria da Conceição Gomes da Silva
Aluísio Ferreira de Lima

Há centenas de milhares de outras garotas que compartilham as suas


circunstâncias, e essas circunstâncias geraram poucas histórias. E as
histórias que existem não são sobre elas, mas sobre a violência, o excesso,
a falsidade e a razão que se apoderaram de suas vidas, transformaram-
nas em mercadorias e cadáveres e identificaram-nas com nomes lançados
como insultos e piadas grosseiras (HARTMAN, 2020, p. 15).

Introdução

Em janeiro de 2022, uma pessoa que passava por uma rua na cidade de Rio
Branco, no Acre, filmou uma mulher negra que, na calçada de uma maternidade,
de pé com as mãos na cintura, observava uma criança que acabara de vir ao mundo
e em meio a poças de sangue, chorava desesperadamente. A filmagem foi enviada
para o portal de um jornal local e gerou grande repercussão, principalmente após a
publicação do vídeo no Instagram. Nada se sabe sobre a mulher, além da cor de sua
pele, que vivia em situação de rua e apresentava transtornos mentais. Na gravação,
é possível ouvir uma pessoa passar e repreendê-la, como se ela fosse responsável
por aquela situação. Segundo a reportagem, a mulher havia tentado atendimento na
maternidade e não tendo conseguido, entrou em trabalho de parto, dando à luz na
calçada. Depois de filmar a cena, a pessoa responsável pelo vídeo teria procurado
a recepção da maternidade que, no primeiro momento, não tomou nenhuma provi-
dência, mas após a insistência do mesmo, teria acolhido a mulher, estando a criança
sendo cuidada e a mãe atendida por psiquiatra (G1-AC, 2022). Outro episódio veicu-
lado numa reportagem sobre racismo na saúde, apresentou o seguinte contexto: uma
mulher negra de 42 anos, mãe de quatro crianças, com problemas de pressão alta e
gravidez de risco, foi internada numa maternidade para dar à luz, e em meio às dores,
enquanto suplicava para que lhe fosse dada anestesia e a intervenção de cesariana,
teve medicamentos injetados em seu corpo que aumentaram as dores e contrações e
a colocaram em risco de morrer (CARTA CAPITAL, 2020).
Esses dois casos ilustram um fenômeno recorrente na sociedade brasileira, e
que, por sua vez, tornou-se um problema jurídico e de saúde pública: A violência
402

obstétrica, que se define como todos os atos praticados contra a mulher no exercí-
cio de sua saúde sexual e reprodutiva, no tocante aos cuidados durante a gestação,
parto, puerpério, acompanhamento da saúde da criança etc. (LEITE, 2016; LEAL
et al., 2017). Trata-se, portanto, de uma violação à prerrogativa constitucional de
respeito ao direito à saúde e à dignidade humana (BRASIL, 1988) e se tornou uma
das mais cruéis expressões da violência de gênero, na medida em que incide sobre o
corpo de uma mulher em estado de grande vulnerabilidade física e emocional. Nos
relatos trazidos acima, além da violência obstétrica sofrida, as duas mulheres têm
em comum o fato de serem negras, evidenciando como o corpo da mulher negra
foi e é assujeitado a um processo de violência que vai desde a violação dos seus
corpos até a negação do direito de ser cuidada e assistida de maneira adequada em
suas necessidades específicas.
Lima (2016) ao pesquisar sobre raça e violência obstétrica no Brasil, se deparou
com informações que a fizeram refletir que a cor da pele e o gênero são fatores deter-
minantes no modo de viver e morrer de mulheres não brancas e pobres. Waiselfisz
(2016) sobre esse aspecto, aponta, a partir do Mapa da Violência 2015: Homicídios
de Mulheres no Brasil, dados que comprovam que a grande maioria das mulheres que
sofrem violência obstétrica são negras, de menor escolaridade e atendidas no setor
público, evidenciando, assim, a desigual distribuição de direitos apesar da apregoada
igualdade de todos perante a lei (BRASIL, 1988).
A ideia propagada pelo racismo científico e disseminada pelo racismo estrutural
de que pessoas negras têm uma constituição física diferente das pessoas brancas, faz
circular mitos que no caso de mulheres negras, têm reforçado a prática de violência
obstétrica contra elas, tal como o que afirma que as mulheres negras são mais fortes
e resistentes à dor do que as mulheres brancas (CARTA CAPITAL, 2020). Tendo
em vista esse senso comum, estudos desenvolvidos por um grupo de pesquisadores
da Fundação Oswaldo Cruz, levou à conclusão de que esses mitos resultam numa
maior incidência de casos de violência obstétrica sobre os corpos de mulheres negras,
levando a procedimentos descuidados que as submetem à sofrimentos desnecessários
e as colocam em estado de risco (LEAL et al., 2017).
Dentro do contingente de pessoas racializadas e empobrecidas, as mulheres
negras foram aquelas sobre as quais a escravidão atuou, para além da exploração de
seu trabalho, seja nas plantações ou nos serviços de natureza doméstica, de forma
ainda mais específica: a violência sobre seus corpos. Tendo essa violência perma-
necido e se estendido até os dias de hoje, assumindo diversas formas, sobretudo,
em virtude do entrecruzamento de múltiplas opressões no que diz respeito à gênero,
raça e classe, o que nos remete à reflexão sobre a existência de seres humanos
cujas vidas não são listadas como importantes (BUTLER, 2015) e cujos direitos,
apesar de previstos, não são minimamente respeitados, apontando, ainda, para o
que Saidiya Hartman (2021) denominou de “sobrevida da escravidão” em que “as
vidas negras ainda são desvalorizadas por um cálculo racial” que se manifesta em
“oportunidades incertas, acesso limitado à saúde e a educação, morte prematura,
encarceramento e pobreza” (HARTMAN, 2021, p. 17).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 403

Assim, o que se evidencia no cotidiano de mulheres negras é a premente e


constante negação dos seus direitos, revelando os traços de uma necropolítica, que à
semelhança do período da escravidão, explora os corpos até a exaustão, controla-os
e ao mesmo tempo os abandona e/ou provoca sua morte, constituindo-se como uma
característica especifica da necropolítica brasileira, onde vida e morte se intercalam
constantemente (BENTO, 2018). Neste sentido, o que objetivamos nesse trabalho é
fazer uma breve reflexão de como a escravidão sobrevive por meio de uma necro-
política que atua sobre os corpos das mulheres negras e não-brancas, em que vida e
morte são faces da mesma moeda (BENTO, 2018).

Necropolítica sobre os corpos negros e não-brancos femininos

A escravização de seres humanos com o objetivo de impulsionar o capitalismo


mercantil, exigiu para além da violência explícita contra as pessoas escravizadas,
outras formas sutis de dominação e controle, que mesmo depois de extinta a escra-
vidão jurídica, em virtude da evolução desse mesmo capitalismo, segue mantendo
intacta a ideia da existência de seres humanos que, pela sua cor de pele, estariam
marcados para sempre como diferentes e inferiores, destinados à sofrer violências e
alijamento de direitos. A ideia que serviu de base para esse processo bem elaborado
e que parece quase imutável, baseou-se no conceito de raça.
Segundo Almeida (2019), o conceito de raça só foi atribuído aos seres huma-
nos a partir do momento em que estes passaram a ser escravizados e tratados como
mercadoria através do processo sistemático de colonização das terras para além
das fronteiras europeias, com o tráfico transatlântico de pessoas oriundas das mais
diversas regiões do continente africano e a escravização em massa de povos negros
africanos e ameríndios, no final do século XVI (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009).
O conceito de raça teria legitimado toda a sorte de atrocidades contra os povos
negros e não brancos: as torturas, a destituição das famílias, a deslegitimação das
paternidades e maternidades. Tratamento semelhante, ou até mais cruel do que o dado
aos animais, e que, mesmo com o fim da escravização, faz emergir e mantém uma
estrutura social com grupos de pessoas marcadas pela cor da pele, o que segundo
Bento (2018), resultou no desenvolvimento de um jogo que, ao mesmo tempo, tenta
manter o controle sobre determinadas vidas para fins de lucro; elabora um cuida-
doso processo de racismo mascarado que resultou no genocídio da população negra
(NASCIMENTO, 2016), cria a noção de inimigos públicos (COIMBRA, 2001);
elabora políticas de inimizade (MBEMBE, 2017) e que segue mantendo as vidas
negras alijadas de todo o direito e proteção social.
Giorgio Agamben (2004), a partir da reflexão de Walter Benjamin sobre viver-
mos num estado de exceção permanente (BENJAMIN, 1985) sinaliza, que apesar do
aparente avanço da democracia e do progresso ao qual temos assistido, elementos de
barbárie e violência são uma constante na vida de certos grupos, os quais Benjamin
chamou de oprimidos. Acompanhando esse pensamento, Agamben (2004) constrói
uma reflexão onde propõe uma ampliação do conceito foucaultiano de Biopoder, o
404

qual vai além da definição de um poder que, para Foucault (1979), teria ultrapassado
as técnicas de violência e opressão explícitas e teria avançado para uma sociedade
de controle da vida, através de meios mais sofisticados, como a medicina, o estado
de segurança e outras tecnologias de construção de subjetividades. Para Agamben
(2010), seria necessário, entretanto, avançar nas discussões para explicar o porquê
de em determinados lugares, a despeito da democracia, havia práticas que nada
tinham a dever às violências da época da barbárie, muito pelo contrário, teriam sido
o próprio aperfeiçoamento dessas mesmas práticas em face do avanço do progresso.
Inspirado numa figura existente na antiguidade romana denominada Homo sacer,
uma figura que era incluída no Estado pela exclusão, ou seja, como fora da lei, e que
sob o ponto de vista da lei romana, não podia ser morto, mas que se morto, sua morte
não seria levada em conta, por não ser considerada uma vida politicamente relevante,
Agamben (2010) se apropriou do conceito para materializar sua tese. O autor analisou
o extermínio dos judeus na época do fascismo reinante na Europa, identificando nos
campos de concentração, uma figura semelhante ao Homo sacer romano, por terem
suspensos todos os seus direitos de cidadão, marcado pelo banimento e o abandono,
ampliando assim os horizontes dos estudos sobre biopolítica.
Nesse sentido, Agamben (2008) sinaliza que a biopolítica moderna não se trata
apenas do controle da vida, mas da produção de corpos para serem explorados até a
exaustão e passíveis de abandono e morte, e que os elementos presentes nos antigos
campos de concentração nazista sobrevivem, e que, em momentos de crise, vêm à tona
com a suspensão do Estado de Direito (AGAMBEN, 2004). Poderíamos salientar que
enquanto a segurança de determinados corpos estaria posta em xeque apenas mediante
uma crise, para certos grupos trata-se de uma constante, a exemplo do medo de um novo
golpe militar no Brasil, embora em determinadas regiões a intervenção militar nunca tenha
sido erradicada, mesmo com a decretação do fim do regime. Como aponta Ruiz (2010):

Para os excluídos, viver em estado de exceção é a norma. Contudo, neles impera


uma exceção duplamente paradoxal. Sua vida é privada dos direitos básicos,
porém não há um ato de direito que decrete tal suspensão, pelo contrário: os
seus direitos são garantidos pela Constituição. O irônico desse paradoxo é que
a exceção opera sobre eles como um fato sem que exista um ato de direito que
a decrete. Nessa condição, os oprimidos não podem se insurgir contra uma von-
tade soberana que os submete a tal condição. Para o direito, eles têm todas as
garantias legais, não existem como excluídos de direitos. Sua exceção foge ao ato
político da vontade soberana para diluir-se na trama das estruturas do mercado
que decreta sua condição de vida excluída. A condição da vida excluída sofre
outro desdobramento da retirada dos direitos fundamentais, da exceção, em que
o soberano se oculta no anonimato dos dispositivos de poder para deliberar com
maior eficiência e menor imputabilidade (RUIZ, 2010, p. 343).

No intuito de construir um referencial adequado aos estudos decoloniais127,


transpondo conceitos europeus para a realidade dos países colonizados e reavivando a

127 Sobre estudos decoloniais ver: QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo Cortez, 2010.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 405

VII tese de Walter Benjamin sobre o conceito de história e a “tradição do oprimidos”,


Achille Mbembe (2017) identifica que, para os países colonizados há sempre um
Estado de Exceção e a aplicação de políticas de morte já identificadas por Agamben,
o que nos mostra, que as democracias modernas transferiram a barbárie que, em nome
da civilização teria sido banida da Europa, para lugares como as colônias, onde a
democracia mostra toda sua falácia. Contextos em que a violência contra certos gru-
pos é exercida cotidianamente sem que com isto seja abalado o “ideal democrático”:

[...] historicamente falando, uma das estratégias dos Estados dominantes sempre
passou por expandir e lançar terror, confinando as manifestações mais extremas a
um terceiro lugar radicalmente estigmatizado- a plantação durante a escravatura, a
colônia, o campo, o compoud durante o apartheid, o gueto, ou à semelhança dos
Estados Unidos contemporâneos, a prisão [...] (MBEMBE, 2017, p. 59).

Nestes termos, Mbembe (2017) desenvolveu o conceito de Necropolítica, afir-


mando que os estados democráticos surgem e se sustentam na violência impetrada
contra as colônias e em termos mais amplos a todos os grupos, que constituem “os
vencidos” da História. Para o autor, há uma produção de corpos matáveis, sobre os
quais é descarregada toda a violência, e que estes são “produzidos” a partir daquilo
que o autor propõe como “sociedade da inimizade”, que consiste numa “política de
Estado” que divide as pessoas em “semelhantes” e “não-semelhantes” (MBEMBE,
2017, p. 71). Este estado de coisa, desde seus primórdios, teria se constituído a partir
de um estado de guerra e dominação de um povo sobre o outro desde o tempo da
democracia grega e mais recentemente no sistema escravocrata nas colônias:

[...] é possível que as democracias sempre tenham tido escravos – um conjunto de


pessoas que, de maneira ou de outra, sempŕe foram consideradas estrangeiras, um
excedente populacional indesejável, do qual sonhamos desembaçar-nos e, como
tal <<total ou parcialmente privados de direitos>>128. É possível (MBEMBE,
2017, p. 71).

As propostas de Agamben sobre Biopolítica e a Necropolítica de Mbembe,


importantíssimas para compreendermos as precariedades induzidas sobre certos cor-
pos (BUTLER, 2015) não bastam para a discussão, que aqui tentamos empreender,
sobre necropolítica e a relação com as questões de gênero e raça. Afinal, o homo
sacer de Agamben e as “sombras personificadas” de Mbembe, que constituem um
“outro” que ao mesmo tempo é excluído e incluído pela exclusão, representam figuras
masculinas que não dizem muito respeito às questões relativas à violência de gênero
aqui materializada com exemplos de violência obstétrica.
No sentido de preencher esta lacuna, destacamos as contribuições de Bere-
nice Bento (2018), sobre as discussões que envolvem os corpos negros femininos
quando chama a atenção para a lei abolicionista promulgada em 1871, conhecida

128 Grifo do autor, que faz referência a uma citação de Carl Schmitt do livro Parlamentarisme et democratie.
Seul, Paris, 1998, p. 107.
406

como a Lei do Ventre Livre que garantia a liberdade para os filhos de mulheres
escravizadas nascidos a partir da promulgação da Lei (BORIS, 2017). Bento é
então certeira quando afirma que essa Lei apresenta o paradoxo do Estado Brasi-
leiro em produzir, concomitantemente, políticas de vida e de morte. Para a autora,
a Lei atuava no sentido de, discursivamente, atender os reclames do capitalismo
em relação à abolição da escravidão e o período da pré-industrialização, enquanto,
na prática, mantinha o regime escravocrata pela imensa dependência do país em
relação a ele.
Assim, na Lei do Ventre Livre, percebemos a estreita relação entre vida e morte
atuando sobre os corpos femininos, numa tentativa de manter intacta a estrutura
escravista, na medida que os filhos das mulheres escravizadas eram livres, mas não
suas mães. Os senhores continuavam sendo donos dos corpos negros femininos
escravizados, mas… para onde iriam seus filhos nascidos na vigência da Lei? A
Lei garantia que as crianças ficassem sob a responsabilidade dos senhores e de suas
mães até os 8 anos de idade, e depois desse período, os senhores, para compensar
os custos com as crianças, tinham duas opções: receber indenização por parte do
Estado ou utilizar os serviços do menor até os 21 anos de idade quando se tornariam
“livres” (BORIS, 2007). Não é necessário ir muito longe para perceber que a Lei
era uma falácia jurídica e que o intuito era satisfazer os novos rumos do capitalismo
com a nascente sociedade industrial, ao mesmo tempo que resolvia o problema que
a abolição do trabalho escravo desencadearia.
Nesse sentido, as observações de Bento (2018) reforçam a ideia de que a escra-
vidão atuou sobre os corpos negros femininos de forma específica, e que até hoje
esses corpos são violentados pelos agentes do próprio Estado, que diz criar leis para
protegê-las, numa verdadeira concomitância entre vida e morte, mantendo a desi-
gualdade entre raça, gênero e classe.
A partir disto, podemos inferir que o modo complexo como a escravidão atuou
sobre os corpos femininos sobrevive em situações de violência obstétrica como a
dos exemplos com os quais iniciamos esse capítulo, e nas inúmeras violações que,
a seu turno, incidem de forma mais recrudescida quando o corpo feminino é negro.
Ainda extremamente necessárias à economia capitalista, seja para exercer serviços
domésticos e de maternagem, mantendo as mulheres brancas na posição de libertas,
seja para limpar a cidade (VERGÈS, 2021), as mulheres negras e não – brancas
seguem reatulizando uma realidade que arrasta elementos não superados do período
da escravização no Brasil.

Mulheres negras e o entrecruzamento de opressões


[...] as mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de
abuso sexual e outros maus tratos bárbaros que só poderia ser infligidos a elas.
A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência;
quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como
desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e repri-
midas de modo cabível apenas às mulheres, elas eram reduzidas simplesmente
à condição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 17).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 407

Angela Davis (2016) enfatiza que a questão da mulher negra escravizada era
controversa no tocante ao gênero. Além de serem exploradas até a exaustão, a autora
ressalta que apesar de serem mão de obra tão importante quanto a dos homens e ainda
reprodutoras de novas vidas escravas, as mulheres negras não recebiam tratamento
privilegiado por estarem grávida. Seus donos, embora procurassem garantir seu
papel de reprodutora ao máximo, quando estas estavam grávidas ou no puerpério,
não eram poupadas do trabalho duro nas lavouras ou do castigo cruel. Eram recor-
rentes os relatos de mulheres que após darem à luz, tinham que deixar seus filhos
para trabalhar nos campos e, impossibilitadas de amamentar, ficavam com as mamas
inchadas e cheias de dor, não conseguiam acompanhar o ritmo do trabalho, sendo por
isto, chicoteadas “até que sangue e leite escorressem, misturados, de suas mamas”
(DAVIS, 2016, p. 27).
Nesse sentido, ao olhar sobre a história da escravidão e as questões que envol-
vem violência de gênero no Brasil e em outros países que se constituíram sob o regime
escravocrata e suas reverberações na condição da mulher negra na contemporanei-
dade, precisamos observar aspectos sem os quais nossas análises podem produzir
lacunas importantes para uma melhor compreensão dessa temática. E nesse sentido, os
apontamentos de Davis (2016) alertam para o processo de desumanização sofrido por
esse grupo, destituídos de sua condição humana e reduzidas a matrizes reprodutoras
de filhos-mercadorias e cuja maternagem deveria voltar-se exclusivamente para os
filhos dos brancos, os mesmos que mais tarde também exerceriam sobre elas e sobre
os seus, poder de vida e de morte.
Davis (2016) nos adverte ainda sobre os discursos que tentam atribuir à mulher
negra, um tratamento privilegiado na escravidão, na medida em que se ocupavam
dos afazeres domésticos e dos cuidados com as crianças, sendo, portanto, tuteladas
pelos donos da casa e privilegiadas em relação aos homens, que se ocupariam dos
trabalhos mais duros e extenuantes. Entretanto, discursos como esse tentam invisi-
bilizar e/ou distorcer as violências de gênero que se somavam a todas as outras, ou
seja, ser mulher não era (como ainda não é) um privilégio, era antes um condicionante
de aumento de sentença.
Em se tratando da realidade brasileira, destacamos o mito da democracia racial
(GONZALEZ, 2020a, 2020b; CARNEIRO, 2019a; 2019b; NASCIMENTO, 2016;
MUNANGA, 2019; NASCIMENTO, 2021), a suposta miscigenação bem sucedida
em terras brasileiras e as estruturas de poder sustentadas pelo cisheteropatriarcado
(AKOTIRENE, 2019), constroem um panorama que coloca a mulher negra em
uma encruzilhada de opressões, que reatualiza violências e impõe uma máscara de
silenciamento (KILOMBA, 2019) cuja oposição, resistência e combate, facilmente
podem ser observados como ameaças a serem duramente combatidas, inclusive com
ações articuladas e dirigidas previamente, por aqueles que historicamente continuam
a usufruir da prerrogativa do ataque, enquanto um recurso social e politicamente
legítimo de autodefesa (DORLIN, 2020).
À vista disso, consideramos as contribuições teóricas e metodológica da inter-
seccionalidade, como ferramenta importante de análise nas discussões referentes à
408

raça, gênero e classe, enquanto diferencial para os estudos da realidade brasileira e


para uma melhor compreensão das problemáticas que envolvem as mulheres de forma
mais generalizada e as mulheres negras de forma mais particular. A intersecciona-
lidade, nesse sentido, nos alerta para o entrecruzamento de opressões que acirram
vulnerabilidades e que tornam as experiências de mulheres negras e pobres, ainda
mais comprometidas em termos de ascensão econômica e social (CRENSHAW, 2012;
AKOTIRENE, 2019). Assim, discutir sobre questões que interseccionam raça, classe
e gênero, é ultrapassar as discussões sobre fenômenos sociais, enquanto elementos
disfuncionais circunscritos a determinado tempo e lugar, e sermos capazes de reco-
nhecer os aspectos estruturais sobre as quais se sustentam as instituições, bem como
as ações dos seus agentes, e ainda, as relações entre os sujeitos e desses com essas
mesmas instituições (ALMEIDA, 2019).
Sobre as questões que envolvem a violência obstétrica no Brasil, Leal et al.
(2017) chamam atenção para a escassez de dados que abordem o tema, sobretudo no
que se refere à análise ético racial dos dados levantados. Os autores consideram nesse
sentido, a relevância da pesquisa: “Nascer no Brasil: pesquisa nacional sobre parto
e nascimento”, realizada pelo Grupo de Pesquisa Saúde da Mulher, da Criança e do
Adolescente – determinantes sociais, epidemiologia e avaliações políticas, progra-
mas e serviços da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), entre os anos
2011 e 2012, como um trabalho que traz contribuições importantes nas discussões
que envolvem a temática.
A pesquisa em questão, teve como objetivo ampliar as informações acerca de
pré-natais, nascimentos, prematuridades, puerpério e incidência de implicações clí-
nicas, parto, peregrinação e pós-parto realizados no Brasil, entre fevereiro de 2011 a
outubro de 2012. A pesquisa acompanhou 23.894 mulheres e seus bebês, atendidas em
266 hospitais públicos, privados e conveniados ao SUS, tendo sido entrevistadas 90
puérperas, com permanência de internação de pelo menos 07 dias. A pesquisa assina-
lou que o setor privado contou com o percentual de 88% de cesarianas, enquanto no
setor público e conveniados esse percentual chegou a 46%, quando a recomendação
da Organização Mundial da Saúde – OMS é de 15%.
Os autores chamam a atenção ainda para as características das mulheres apon-
tadas no estudo, evidenciando os aspectos referentes à vulnerabilidade em que se
encontram as mulheres pretas e pardas, adolescentes, com baixa escolarização, con-
centradas nas regiões norte e nordeste do país. No que se refere à questão da raça/
etnia, as mulheres pretas apresentaram maior risco de realização de pré-natal inade-
quado, falta de vínculo à maternidade, ausência de acompanhantes, menor orientação
durante o pré-natal e as possíveis complicações sobre a gravidez e o parto. Também
se observou na pesquisa, que entre o grupo de mulheres pretas, havia uma maior
incidência de nascimento pós-termo, ou seja, nascimento após o período considerado
ideal das 42 semanas de gestação.
Ao cruzar os dados relativos às mulheres pardas e brancas, a pesquisa apontou,
entre as mulheres pardas, uma maior incidência de pré-natais inadequados, ausên-
cia de acompanhantes e nascimento pós-termo em relação às mulheres brancas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 409

Entretanto, ao estabelecer o comparativo entre as mulheres pardas e pretas, os piores


indicadores recaem sobre as mulheres pretas em relação à orientação à gestação,
pré-natal e parto, ou seja, embora as mulheres pardas e pretas sofram maior inci-
dência de violência obstétrica, as mulheres pretas ainda estão em situação de maior
vulnerabilidade em relação às pardas, sobretudo no que se refere ao menor vínculo
à maternidade e maior peregrinação para parir (LEAL et al., 2017).
A essa altura, entendemos ser pertinente trazer as discussões sobre o colorismo,
enquanto uma ideologia que traz em seu bojo a ideia de uma supremacia branca,
que tomando a si como padrão valorativo de cor, classifica, restringe e disciplina as
diversas expressões da negritude (DEVULSKY, 2021). Trata-se de um dispositivo
que envolve o sistema colonial no Brasil, que por sua vez remonta a uma história de
dominação, fundamentalmente ligada a cor da pele, dada as características fenotípicas
dos africanos que aqui chegaram na condição de escravizados. O colorismo, nesse
sentido transforma-se em mais uma arma de subjugação racista, na medida em que
divide as expressões da identidade negra entre aqueles de pele clara, e, portanto, mais
próximos das características fenotípicas que tem o ideal branco como medida, e os
mais retintos, que nesse caso, se encontrariam mais distanciados do ideal supremacista
branco. Esse colorismo, dentro da engrenagem colonial, reduz a diversidade fenotípica
dos negros a um sistema de hierarquização social que se materializa em barreiras ou
vantagens ideológicas que tem a cor da pele como referencial (DEVULSKY, 2021).
Ainda sobre os dados levantados na pesquisa, observou-se que as mulheres
pretas e pardas sofreram menos intervenções obstétricas, tais como: anestesia local
para realização da episiotomia (corte no períneo para auxiliar na saída do bebê); uti-
lização de ocitocina para alívio da dor, práticas consideradas como “bom cuidado”.
Por outro lado, observou-se uma menor aplicação de analgésicos nas mulheres negras,
podendo estar relacionado ao mito de que mulheres negras são mais resistentes à dor
e têm corpos mais propensos ao parto (LEAL et al., 2017).
Nesse sentido, enquanto para a mulher branca há uma maior incidência de partos
adiantados para 37 a 38 semanas e uma maior opção pela cesariana, nas mulheres
pretas a maior incidência é de partos pós-termo, uma prevalência pelo parto vaginal
com pouca aplicação de analgesia (LEAL et al., 2017). Observou-se ainda que há
uma maior incidência de negligência quanto aos direitos das mulheres pardas e pretas
a acompanhantes do que em as mulheres brancas, podendo ocasionar maior solidão
durante a internação, maior chance de maltrato durante a prestação do serviço e pior
relação com a equipe profissional (LEAL et al.,2017).
Em entrevista concedida ao Instituto da Mulher Negra – Portal Geledés, a
pesquisadora e epidemiologista Emanuelle Góes, ao tratar sobre o tema da violência
obstétrica, chama atenção para a importância da análise interseccional como um
instrumento capaz de oferecer uma maior e melhor compreensão sobre os aspectos
que envolvem essa questão tão fundamental no que se refere a oferta e a utilização
dos serviços de saúde voltados para as mulheres (GELEDÉS, 2020). De acordo com
a pesquisadora considera-se que a violência obstétrica não é só as violências que
incidem sobre as questões necessariamente ligadas à gestação, parto e puerpério, mas
dizem respeito ainda a violência psicológica, física e moral, sofrida pelas mulheres
410

na utilização de serviços e as violações referentes ao direito a acompanhante, priva-


cidade e cuidados gerais.
O artigo segue em análise da questão ao afirmar que as mulheres negras estão
mais expostas à violência obstétrica que as mulheres brancas, uma vez que, enquanto
a violência às mulheres brancas, costumam se concentrar na prática abusiva do uso
da cesariana, sem recomendação médica justificável, em se tratando de mulheres
negras, as violências são mais insidiosas e potencialmente letais.

Considerações finais

As reflexões aqui apresentadas, revelam que a violência de gênero tem múltiplas


facetas e em se tratando dos corpos de mulheres negras e não-brancas assumem pro-
porções que, só analisadas sob uma perspectiva interseccional, podem favorecer uma
dimensão mais ampla dessas múltiplas facetas. Ao optarmos pelo recorte da violência
obstétrica sofrida por mulheres negras e não-brancas, a ideia foi desenvolver uma
reflexão de como existe, na contemporaneidade assim como à época da escravidão,
uma necropolítica que encontra especificidades quando levados em conta os corpos
femininos não-brancos, apontando para o que Hartman denominou de sobrevida da
escravidão que, a seu turno é escamoteada pela suposta democracia racial e igualdade
de direitos e pela permanência do racismo estrutural nas instituições e na sociedade
de um modo geral.
Ao analisarmos as questões referentes a dolorosa peregrinação que sofrem
mulheres pardas e pretas em seu processo de final de gestação, não podemos deixar
de reafirmar o quanto essa peregrinação remonta a uma situação histórica de aban-
dono que persegue a população negra antes, e mesmo após a chamada abolição. Do
mesmo modo, refletimos sobre o que a prevalência dos partos pós-termo, ou seja,
dessa criança negra que pode literalmente morrer por esperar, nos revela sobre o
processo de necropolítica instalada na sociedade brasileira e suas reverberações.
Deste modo, a questão da violência obstétrica contra as mulheres de cor, requer
análises que tenham em conta a situação das pessoas que são invisibilizadas nas
suas demandas específicas pela existência de leis que são apenas instrumentais, e
que, portanto, não as contemplam e seguem reproduzindo políticas de vida e morte.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 411

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Aluísio Ferreira de Lima

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da violência? (Saidiya Hartman 2020, p. 15).

O ponto de partida do presente capítulo foram os debates entre Judith Butler e


Nancy Fraser sobre a “nova” esquerda e os feminismos como mobilização política
e/ou cultural. Como uma reverberação desse debate, elaboramos o presente capítulo
com o objetivo de discutir a (re)produção capitalista das normas de gênero, violências
e desigualdades sociais, que se entrelaçam nas experiências das mulheres desde as
condições de reconhecimento. A proposta central, inserida no tema, é a compreensão
da identidade de gênero como aspecto importante para a reprodução social e a elabo-
ração coletiva das demandas contemporâneas do movimento feminista, considerando
o embate das perspectivas das autoras sobre o conceito de identidade.
Além disso, discutimos sobre os desafios da pluralidade de injustiças e violências
ligadas à identidade de gênero para o entendimento das condições de reconhecimento
das mulheres transgênero, transexuais e travestis. A visão unitarista e discriminatória
de gênero, a qual reverbera na criação de coletivos feministas transfóbicos, reproduz
reducionismos das condições de reconhecimento como mulher e tem provocado
armadilhas como o uso de ideais cisheteronormativos para a autodefinição identitária,
mediados pelo reconhecimento perverso. Isso tem reiterado, também, a invisibilidade
das mulheres trans no movimento feminista, por naturalizar as condições precárias
de reconhecimento como mulher, tão importantes quanto as condições materiais de
existência. O foco do capítulo, assim, é a (re)produção das desigualdades de poder
entre pessoas do mesmo gênero e sua relação com as violências estruturais das socie-
dades capitalistas, as quais reverberam na elaboração de demandas contemporâneas
dos coletivos feministas, seja pelo entendimento amplo quanto às opressões sofridas,
seja pela urgência de um olhar amplo quanto a quem são as mulheres.
O referencial teórico que atravessa o texto é composto pela Teoria Crítica femi-
nista, por meio das autoras referenciadas nos parágrafos acima, junto às contribuições
de Antonio Ciampa e Aluísio Lima, na Psicologia Social Crítica brasileira. Judith
Butler e Nancy Fraser, nos anos 90, articulam o conceito de gênero às questões
ligadas ao reconhecimento, apresentando atualizações em suas análises desde esse
debate da época até suas produções acadêmicas atuais. Também trazemos algumas
416

reflexões dos estudos de identidade-metamorfose na Psicologia Social Brasileira,


como parte de nosso referencial teórico, a fim de que possamos apresentar algumas
considerações sobre onde entram as diversas identidades de gênero, em tal debate.
Em 1997, Judith Butler publicou o ensaio intitulado “Meramente Cultural”, no
qual analisa a disputa entre a perspectiva marxista e a dos estudos culturais, ambas de
esquerda. Ela estava preocupada que movimentos sociais da atualidade fossem vistos
como políticas culturais sectárias, identitárias e particularistas, sob a interpretação
de filósofos marxistas ortodoxos ou neoconservadores (BUTLER, 2016, p. 229).
De acordo com a autora, o conservadorismo marxista estava em disputa direta com
outros métodos de estudo social e, muitas vezes, as políticas culturais de esquerda
foram acusadas de ser uma “forma de política trivial e autocentrada” (BUTLER,
2016, p. 230), que não possibilitaria uma análise abrangente e robusta das condições
sociais e econômicas da sociedade capitalista. Ela chamou a atenção para o fato de
que, enquanto essa rivalidade ocorre, as desigualdades de classe se agravam e os
direitos sociais estão sob ameaça constante. Em meio a isso, “a direita conquista com
sucesso o terreno do ‘meio’” (Idem, p. 232), além de a imprensa produzir espetáculos
em torno de ataques entre algumas pessoas da esquerda para desacreditar o público
sobre a possibilidade de mudanças sociais.
Ao contrário do que alguém possa imaginar, o intuito da autora não é recu-
perar um senso de unidade na esquerda, supostamente perdido no tempo. Butler
(2016) argumenta que o sujeito dos movimentos sociais foi imaginado a partir do
ideal de universalidade e de unidade proposto desde o Iluminismo, nas sociedades
ocidentais. Na esquerda neoconservadora, por exemplo, a filósofa acredita que
ainda é comum encontrarmos quem defenda a exclusão e a subordinação de um
grupo de parceiras(os) de luta contra o capitalismo em prol de um “bem maior”,
uma hierarquização de agendas e demandas que, muitas vezes, está disfarçada de
consenso sobre quais demandas seriam as mais urgentes, deixando o que é “mera-
mente cultural” para depois, sob uma eterna promessa. Para a autora, trata-se de
uma contradição que necessita de uma resposta urgente, elaborada coletivamente,
um “modo de sustentar conflitos de formas politicamente produtivas, uma prática
de contestação que exige que estes movimentos articulem suas metas sob a pressão
uns dos outros” (BUTLER, 2016, p. 234-235).
Na universidade, os estudos culturais têm se mostrado cada vez mais distantes
entre si, divididos por áreas e objetos do conhecimento delimitados, o que dificulta
nossa articulação para discutir sobre temas contemporâneos. Nas palavras de Butler:

Dentro da academia, o esforço de separar os estudos de raça dos estudos da sexua-


lidade e estes dos estudos de gênero marca várias necessidades de articulação
autônoma, mas também produz invariavelmente um conjunto de confrontações
importantes, dolorosas e promissoras que expõem os limites últimos de tal auto-
nomia: a política de sexualidade dentro dos estudos afroamericanos; a política
de raça dentro dos estudos queer, dos estudos de classe, do feminismo; a questão
da misoginia dentro de qualquer um dos estudos acima; a questão da homofobia
dentro do feminismo – apenas para nomear algumas. [...] E, no entanto, para uma
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 417

política de “inclusão” significar algo que não a redomesticação e a ressubordinação


de tais diferenças, ela terá que desenvolver um sentido de aliança no curso de uma
nova forma de encontro conflituoso (BUTLER, 2016, p. 235-236).

Uma separação tão estanque entre vida cultural e vida material, pressuposta
pelo materialismo histórico ortodoxo e por seus representantes neoconservadores,
poderia levar a uma perspectiva anacrônica sobre a realidade social (BUTLER,
2016, p. 233). Isso porque, pelo fato de que pressupõem uma cisão entre cul-
tura e política, ignoram a relação entre as condições de existência e as políticas
de identidade.
Publicado alguns meses antes naquele ano por Nancy Fraser, o livro “Justice
Interruptus”, seria para Butler um exemplo de como isso ocorre. Nele Fraser afir-
mou, à época, que a injustiça sofrida por lésbicas e gays era “essencialmente uma
questão de reconhecimento” (FRASER apud BUTLER, 2016, p. 238). Sob esse
argumento, a homofobia parecia não ter qualquer relação com a sociedade capi-
talista, como se homossexuais não fizessem parte da classe social explorada, não
estivessem em desvantagem na divisão do trabalho e “como questões meramente
de reconhecimento cultural, em vez de reconhecê-las como lutas seja por equidade
ao longo de toda a esfera da economia política, seja pelo fim da opressão material”
(BUTLER, 2016, p. 238).
Há décadas, o movimento operário e o movimento feminista – dentro de fora da
academia – localizaram a família burguesa como um ideal normativo que, na moder-
nidade, corresponde aos interesses de produção e reprodução do capital, amparado
pelo Estado e pela moralidade cristã (ENGELS, 1884/2019; FRASER; JAEGGI,
2020). Essa divisão do trabalho é marcada pelos papéis atribuídos aos gêneros e
pela regulação da sexualidade, então Butler considera importante termos em mente
a marginalização e o rebaixamento de homossexuais e pessoas com sexualidades e
identidades de gênero diversas, para uma compreensão realmente ampla das dinâ-
micas atuais de reconhecimento na sociedade capitalista.
No mesmo ano, a revista Social Text lançou a réplica direta de Nancy Fraser
(2017). Após agradecer Butler por não vilanizar o feminismo socialista da década
de 70, Fraser argumenta que suas diferenças como filósofas estão, exatamente, na
natureza que cada uma atribui ao capitalismo. A preocupação de Fraser é a de que
leitores(as) da revista poderiam, a partir das críticas de Butler, presumir erroneamente
que ela apoia marxistas neoconservadores, ou seja, que considerasse as opressões
de gênero e sexualidade como secundárias, “menos materiais” que as desigualdades
econômicas (FRASER, 2017, p. 124). Ao contrário, Fraser enfatiza compreender a
importância desses debates, tanto para a elaboração de políticas públicas que visam
reduzir as violências quanto para assegurar os direitos de cada vez mais pessoas,
conforme os ideais democráticos (Idem). Por acreditar que era necessário explicitar
qual seria o projeto coletivo de melhoria das condições de existência das pessoas,
desde as disputas feministas inseridas nessas vertentes filosóficas, abre-se um debate
epistemológico sobre as perspectivas materialista e pós-estruturalista, em que o hete-
rossexismo e o (des)reconhecimento têm destaque.
418

Para Fraser, o final da Guerra Fria marca um novo período histórico, uma con-
dição “pós-socialista”, em que a fragmentação entre a esquerda cultural e a esquerda
social. A diferença é que a última centraliza as discussões nas políticas de classe e a
primeira atribui muita importância a políticas de identidade (FRASER, 2006). Ela
insiste que essa cisão ainda existe na atualidade e, em suas publicações mais recentes
(FRASER, 2020; FRASER; JAEGGI, 2020), redistribuição e reconhecimento perma-
necem em dimensões separadas por essas duas perspectivas, ainda que a autora tenha
ressaltado uma relação direta entre elas, quando se trata da elaboração de políticas
públicas democráticas.
Com isso, vemos que Butler e Fraser apresentam críticas ao sujeito racional
moderno proposto pelo projeto Iluminista, ainda que elas tenham algumas divergên-
cias. O ponto em comum entre elas, enquanto filósofas feministas, é o alerta de que
há uma hegemonia da concepção do homem como sujeito do conhecimento, na qual
o pensamento particular masculino é considerado uma forma de dominação cujos
interesses são comumente interpretados como universais (BONOTE, 2021, p. 297),
ao mesmo tempo em que se produz a alteridade da condição da mulher. Para Bonote:

A proposta de unir teoria crítica e pós-estruturalismo, como defendida por


Fraser, talvez ainda seja um desafio para a atualidade. Como a autora coloca,
é inevitável que os movimentos feministas façam reivindicações em nome das
“mulheres”, algo que Benhabib defende e a que nem Butler se atreve a se opor;
por outro lado, “mulheres” é uma categoria que sempre deve estar sujeita à
desconstrução. Somente assim conseguiremos compreender as complexidades
da subjetivação, munidas de ferramentas para o reconhecimento da alteridade,
ao mesmo tempo em que poderemos direcionar ações políticas de forma estra-
tégica (BONOTE, 2021, p. 307).

O termo alteridade significa, de forma simplificada, a produção e a percepção do


que é o “universal”, por meio da comparação constante entre este e o que é construído
historicamente como diferença e/ou especificidade. As mulheres e o feminino, por
exemplo, são tidos como o gênero diferente, o outro. Aliás, acreditamos que, aqui,
fazem-se necessárias nossas contribuições na Psicologia Social Crítica brasileira,
como forma de colaborar com as críticas à cisheteronormatividade a partir de uma
compreensão ampla e dinâmica sobre a identidade humana, propositiva a articular
as políticas de identidade e identidades políticas individuais e coletivas.
O pioneiro dos estudos críticos sobre identidade na Psicologia Social foi
Antonio da Costa Ciampa, cuja pesquisa de doutorado “A história do Severino e a
estória da Severina”, defendida em 1986 e publicada como livro em 1987, tornou-
-se marco histórico por um conjunto de motivos. Talvez, o principal deles seja a
ousadia e a originalidade de seu estilo textual, que inicia com a análise do poema
“Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, depois conta em detalhes
a história de vida de Severina e, por último, apresenta a parte teórica de sua tese,
questionando a percepção estática e determinista dos estudos tradicionais sobre a
identidade e o desenvolvimento humano.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 419

Ciampa argumenta que a identidade é tanto a articulação tanto entre diferença e


igualdade (ou semelhança), como entre objetividade e subjetividade, pois “sem essa
unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e a objetividade é finalidade
sem realização” (CIAMPA, 1987, p. 145), e nos diz que é impossível falar de iden-
tidade sem falar em metamorfose, como um processo que se dá desde o nascimento
do indivíduo até sua morte, podendo ultrapassar esses limites biológicos, buscando
a superação do individualismo nos moldes da sociedade de massa, que pode ser
obtida pela criação ou transgressão, essa última como uma possibilidade humana
nem sempre tão negativa como se apresenta.
Ele propôs, desde então, que a identidade pode ser tema da Psicologia Social
sob um olhar dialético, comprometido com as condições objetivas de existência e
com as lutas por emancipação (CIAMPA, 1987). A pesquisa e a escrita eram, para
ele, como um encontro entre pessoas que partilham entre si as possibilidades de
construção de uma nova realidade, ao mostrarem o que experienciam e enfrentam
diariamente (LIMA; CIAMPA, 2017).
No ensaio intitulado “Sem pedras o arco não existe”, Aluísio Lima e Antonio
Ciampa (2017) discutem sobre os desdobramentos da narração para os estudos
sobre identidade, sobretudo a respeito de como as narrativas elaboradas por alguém
podem evidenciar a (re)produção de mentiras da representação, a fim de elabora-
rem uma nova perspectiva sobre sua identidade, em que a subjetividade humana
é entendida individual e coletiva, simultaneamente. Analisam as formas de reco-
nhecimento que o sujeito pode expressar por meio de personagens e, também, os
efeitos discursivos da narrativa.

Em outras palavras, essa forma de análise das narrativas das metamorfoses foge
da pretensão de busca de algum universal que poderia oferecer a possibilidade de
dizer: eis aqui a identidade. Não se trata também de partir a priori de uma posi-
ção humanista para dizer: eis o que é a essência humana, eis o que é a natureza
humana, eis o que é a emancipação humana, eis o que é a liberdade humana etc.
(LIMA; CIAMPA, 2017, p. 6).

Por presumirem a impossibilidade de sabermos de antemão o que será narrado


pelas/pelos participantes de uma pesquisa, acreditam que devemos nos dispor “a
aprender com aquele [ou aquela] que narra sua história” (LIMA; CIAMPA, 2017,
p. 6). Por isso, para este capítulo, outro aspecto importante da teoria construída por
Ciampa e seus/suas colaboradores(as) desde a Psicologia Social é a crítica às polí-
ticas de identidade conciliada ao estudo sobre a produção das identidades políticas
(CIAMPA, 2002; LIMA, 2010). Ciampa enfatiza que mais do que simples trocadi-
lho, essas duas definições podem ajudar a discutir aspectos, tanto regulatórios como
emancipatórios, dadas as análises do poder presentes nas relações sociais.

A questão das políticas de identidade de grupos envolve a discussão sobre a


autonomia (ou não), que se transforma para indivíduos em indagações sobre a
autenticidade (ou não) de individualidades políticas, talvez refletindo duas visões
opostas, dependendo de se colocar a ênfase na igualdade – uma sociedade centrada
420

no Estado – ou na liberdade – uma sociedade composta de indivíduos (CIAMPA,


2002, p. 134).

A esse respeito, Ciampa (2002, p. 134) ensina que “uma identidade coletiva
é quase sempre referida a uma personagem: nos exemplos, fala-se no singular de
‘negro’, ‘trabalhador’, ‘mulher’, ‘sem-terra’, ‘gay’ etc., cada um correspondendo a
um ou mais movimentos”. As políticas de identidade servem à formação e manu-
tenção dessas identidades, e podem ser tanto emancipatórias quanto regulatórias;
emancipatórias quando ampliam a possibilidade de existência na sociedade, garan-
tindo direitos para os indivíduos, ou regulatórias, quando criam regras normativas
que muitas vezes impedem que o indivíduo consiga sua diferenciação e, “aparece
na orientação feita ao estigmatizado no sentido de que se ele adotar uma linha cor-
reta ele terá boas relações consigo e será um homem completo, um adulto com
dignidade e auto respeito” (GOFFMAN, 1988, p. 134). Aqui aparece outra questão
complicada, quando pensamos nas políticas de identidade que, ao trabalhar com a
ideia de identidade coletiva, a perceber sob a heteronomia do indivíduo, negando a
experiência individual e atribuindo um sentido a priori que, se este aceita, pode ser
uma experiência de “não eu”.

Tudo porque prevalece o interesse da desrazão, a razão interesseira – que


demonstra a irracionalidade em que vivemos, um mundo que não merece ser
vivido, pois ameaça a autoconservação da espécie, na medida em que cada
singular, em vez de devir homem – como a metamorfose é inevitável –, devém
não-homem, inverte-se em seu contrário; em vez de proprietário das coisas,
estas é que o têm como propriedade; em vez de fazer uso das coisas, estas é que
o usam; em vez de trabalhar com ferramentas, com seus instrumentos, estes é
que trabalham com o homem como ferramenta, instrumentalizando-o (CIAMPA,
1987, p. 227, grifos dos autores)

As identidades políticas surgem, então, quando as pessoas criam uma con-


cepção de identidade para si mesmos, podendo, em um primeiro momento, se valer
das políticas de identidade para fazer valer seus direitos e, num segundo momento,
encontrar novas possibilidades de reconhecimento. Elas se referem ao uso estra-
tégico e autônomo das identidades pressupostas e personagens atribuídas a nós,
compreendendo-as não como nossa totalidade, mas como possíveis representações
historicamente localizadas sobre quem somos. Não podem ser reduzidas a uma soma
dos personagens performados por nós nem às políticas públicas existentes, devido
às suas limitações institucionais e discursivas.
Nesse sentido, torna-se imprescindível trazer, mesmo que rapidamente, uma
das discussões propostas por Viviane Vergueiro (2016), de sua pesquisa autoetno-
gráfica de mestrado, para enfatizar o que compreendemos como identidade política.
Ela apresenta a autodefinição do nome social de pessoas trans* e gênero-diversas
como uma das estratégias de resistência à cisheteronormatividade e à violência
colonial, por ser a recusa ao lugar atribuído pelo outro instituído como norma, que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 421

não corresponde a como as próprias pessoas se percebem socialmente. O exemplo


que ela traz é o de Malcolm X, ativista pelos direitos civis da população negra dos
Estados Unidos que, quando perguntado em entrevista televisionada sobre qual
era seu sobrenome, responde que não importa e, dada a insistência desdenhosa do
entrevistador, explica: “Meu pai não conhecia seu sobrenome. Meu pai recebeu seu
sobrenome de seu avô, que o seu avô recebeu de seu respectivo avô, que o recebeu
do escravocrata. Os nomes reais de nossos povos foram destruídos durante a escra-
vidão” (VERGUEIRO, 2016, p. 203). Nas palavras da autora:

Os projetos coloniais podem ser vistos como projetos que buscam ‘verdades’
sobre as pessoas colonizadas, na medida em que este conhecimento sirva aos
colonizadores de alguma forma (para invadir, ocupar, ridicularizar, assassinar,
por exemplo).
Quando o entrevistador insiste em saber o sobrenome de Malcolm X, ele quer
produzir duas coisas, discursivamente:

1. Deslegitimar a autoidentificação de Malcolm X;


2. Explicitar a legitimidade última – perante o cistema – do nome do escravocrata
que brutalizou os ancestrais de Malcolm X.

Vejo processos colonialistas semelhantes acontecerem quando noto a curiosidade


que as pessoas que não são trans* – as pessoas cis – têm pelos nomes dados para
as pessoas trans* em seus nascimentos.
“Qual seu nome de verdade?”
“Por que você não quer dizer seu nome?”
“Ah, então você não é uma mulher de verdade?”
(VERGUEIRO, 2016, p. 203-204).

Essa deslegitimação acontece nas Américas com especificidades locais e eu


outras partes do globo, tanto na esfera discursiva quanto institucional, com relação
ao nome de alguém. Na dissertação de mestrado de Stephanie Lima (2020), primeira
autora desse capítulo, também é criticada a recusa em atribuir a devida complexi-
dade à construção identitária de quem performa o gênero de forma insurgente e/ou
reivindica outro nome para si por questionar as estruturas sociais, para além de uma
expressão corporal ou entendimento sobre a própria sexualidade. A partir da análise
de 12 vídeos publicados pelas youtubers transexuais Amanda Guimarães e Thiessa
Woinbackk, bem como referências complementares, podemos ver a carreira insurgente
das influenciadoras e as contradições impostas pela plataforma, ao mesmo tempo.
Temos, já há algum tempo, a preocupação de que as reivindicações de valoriza-
ção, autonomia, respeito, igualdade e liberdade estejam suscetíveis aos usos norma-
tivos de narrativas como a das youtubers, que sejam transformadas em identidades
pressupostas estanques e reduzam suas possibilidades de vida e debate sobre como
coletividade e individualidade se constituem mutuamente, tanto para elas quanto para
as pessoas que as acompanham nas redes sociais digitais. No capítulo que escrevemos
422

com Aline Rebouças e Deborah Antunes (SOARES et. al., 2022), reforçamos nosso
posicionamento quanto ao reconhecimento perverso, pautado pela passabilidade de
pessoas trans* sob a perspectiva cisheteronormativas, em que:

[...] a ideia de reconhecimento perverso aponta limitações às possibilidades de pro-


dução de subjetividade do sujeito. Assim como o diagnóstico psiquiátrico, tantas
vezes, resume a pessoa a um transtorno mental, de modo que ela, por intervenção
de profissionais da psicologia e psiquiatria, passa a se perceber e se colocar no
mundo tendo o transtorno que lhe fora atribuído como maior referencial, a pas-
sabilidade convida uma mulher trans ou um homem trans a se perceberem como
tal de acordo com o quão próximos estariam da performatividade e da estética de
um homem ou mulher cisgênero idealizados (LIMA, 2020; SOARES et al., 2022).

Tal produção de enquadramentos normativos que restringem a inteligibilidade


das experiências de pessoas trans* para os contextos hospitalares e de afirmação de
gênero, pautada pela legitimação médico-psiquiátrica de sua existência. Não podemos
deixar de mencionar, por isso, as contribuições de Butler (2018) em “Corpos em
Aliança e a Política das Ruas” sobre a participação popular na esfera pública, uma
vez que as mobilizações coletivas, a ocupação de cargos políticos e a representação
das desigualdades intragênero em cada vez mais espaços sociais nos parece uma das
formas de garantir que, além da crítica às políticas de identidade, haja transformações
sociais efetivas que beneficiem o grupo das mulheres como um todo, assim como
homens trans e demais pessoas gênero-diversas. Isso porque concordamos, também,
que as pessoas reivindicam ser passíveis da comoção social e ter a possibilidade
de se fazerem visíveis, por meio de um conjunto de movimentos sociais que estão
relacionados tanto às condições de reconhecimento quanto à materialidade de suas
condições de vida e/ou sobrevivência (BUTLER, 2015).
Em “Feminismo p/ os 99%: um manifesto”, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya
e Nancy Fraser (2020) apontam, também, a urgência de confrontar duas visões de
feminismo: aquele a favor dos interesses capitalistas neoliberais e o que se propõe
a confrontá-los e conduzir a um outro horizonte, anticapitalista. Vale admitir que há
aquelas que se beneficiam das desigualdades entre mulheres e que não reivindicam
mudanças que pretendem abarcar a todas, mas sim restringem-se às que são cisgênero,
heterossexuais e cidadãs de países que se encontram no centro global de produção do
conhecimento, pois a reprodução social baseada no gênero “depende dos papéis de
gênero e entrincheira-se na opressão de gênero [...] permeada, em todos os pontos,
pelas desigualdades de gênero, raça, sexualidade e nacionalidade” (ARRUZZA;
BHATTACHARYA; FRASER, 2020, p. 53).
Seja pelo entendimento amplo quanto às opressões sofridas, seja pela urgência
de um olhar mais amplo quanto a quem são as mulheres, o que assinalamos aqui,
portanto, é o fato de que a invisibilidade e as (im)possibilidades de reconhecimento
estão, portanto, intimamente relacionadas com as demais violências estruturais das
sociedades capitalistas. A partir disso, enfatizamos que concepções ampliadas e
dinâmicas sobre a identidade podem colaborar com as discussões sobre políticas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 423

identitárias, importantes para a elaboração de políticas públicas mais efetivas a seus


públicos, como as voltadas às mulheres. As denúncias de Butler, Fraser e outras
autoras na Teoria Crítica sobre como se fundamentam as condições de reconheci-
mento – institucional e normativamente – apontam para outras possibilidades para
a compreensão das identidades de gênero, de tal modo que leve em conta as ações
coletivas, a autodeterminação de cada pessoa. Ainda assim, temos em vista que nos-
sas produções acadêmicas e ativistas precisam continuar comprometidas com mais
participantes de lutas por inserção social pela via democrática, de maneira que não
se restrinjam aos apontamentos de tais autoras e a referenciá-las, apenas, para que
possamos seguir adiante.
424

REFERÊNCIAS
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NECROPOLÍTICA, DESFILIAÇÃO
SOCIAL E PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE RUA
Daiane Gasparetto da Silva
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ana Carolina Farias Franco
Daniele Vasco Santos
Heidyane Katrine Santos Moreno
Matheus Silva de Souza

Introdução

Na atualidade, o processo de constituição de vidas em situação de rua, nos centros


urbanos, mostra-se intensamente atravessado por políticas de segurança, saúde, assis-
tência social, entre outras. Tal movimento concerne a inúmeras iniciativas de gestão das
cidades, que buscam controlar condutas, deslocamentos, alianças e desejos. É importante
notar que a produção das pessoas em situação de rua implica em observar a necropolítica
como gestão da morte no contemporâneo sob a insígnia do racismo como articuladora
da impossibilidade de existência dos grupos que são colocados na condição de abjetos
e descartáveis. A política de morte chamada por Mbembe (2019) de necropolítica pres-
supõe que há uma colonialidade racista em relação com a classe social na construção da
condição de desfiliação social e econômica das pessoas em situação de rua.
Dentre as estratégias de exclusão social citadinas estão algumas ações explici-
tamente marcadas por lógicas de segregação, uma vez que buscam afastar os ditos
indesejados, por meio de violência, em nome da segurança social. Já outras propostas
aparecem na roupagem de programas de Estado, voltados ao atendimento de segmen-
tos populacionais tidos como marginalizados, mas que não se revelam desprovidos
de tensões e paradoxos em seu funcionamento, pois, em nome da inclusão produzem
novas formas de violência e exclusão, em determinados casos e realidades.
Embora tenhamos variações na forma de apresentação dessas ações, observamos
que alguns de seus endereçamentos às pessoas estigmatizadas socialmente dizem
respeito, comumente, ao exercício de políticas que se ancoram em preceitos de uma
justiça seletiva. O viés combativo, o qual desponta como força motriz de certas prá-
ticas, nesse âmbito, deixa ressoar um recorte feito aos merecedores dos benefícios
do Estado Democrático de Direito.

Gestão de riscos na biopolítica e regulação disciplinar em nome da


ordem e lei

O interesse latente por uma pretensa ordem – que se almeja alcançar, com base
em cálculos de probabilidade de riscos e intervenções direcionadas para tais – tende
428

a promover práticas de discriminação, as quais são formalizadas na sociedade por


diferentes instituições. De acordo com Castel (1987), o risco, que não precisa ser
localizado em plano real para ser gerido, articula em sua virtualidade uma série de
fatores como sendo possivelmente perigosos, os quais podem ser, portanto, previstos
e administrados. Assim, espaços, hábitos, culturas, situação socioeconômica, entre
outros aspectos são colocados em análise no processo de formulação de projetos que
visam a prevenir condutas tidas como inadequadas.
Nesse cenário, os sujeitos localizados a partir de uma noção de coletivo, na
forma de população, têm suas mínimas expressões de existência capturadas por
discursos que buscam conduzi-las. Desse modo, coloca-se em questão tanto a esfera
da vida pública quanto privada, ambas importantes para a intervenção de programas
sociais que operam pela biopolítica. Esse conceito, para Foucault (2008a), diz respeito
à racionalidade construída desde o século XVIII que objetiva práticas governamentais
voltadas para o conjunto, ou seja, para a noção de população. Essa espécie de poder,
que se diferencia do disciplinar (centrado na figura do indivíduo), analisa aspectos
demográficos, questões de higiene pública e urbanismo, taxas de desemprego, entre
outros temas. Nesse sentido, nota-se o interesse por fenômenos grupais, os quais
podem ser previstos, estimados estatisticamente e, portanto, geridos pelo biopoder,
no intuito de promover o equilíbrio e a regulação social.
Marc Augé (2010) ressalta que, no cenário urbano atual, são vistos nomadismos
condizentes com uma lógica da mobilidade “sobremoderna”, ou seja, relativa ao
paradoxo do descolar-se sem que haja deslocamento, o que conduz à problematização
da noção tradicional de fronteira, a qual deve ser repensada frente aos redesenhos
da urbanização e globalização intensa. Por essa via, o autor também busca desnatu-
ralizar a ideia de periferia, tida apenas em sentido geográfico, pautando sua análise
igualmente pela perspectiva política e social. Sua posição é a de que tal fragmentação
concerne a contradições e tensões históricas do processo de urbanização, a qual é
movida por rupturas e extensão de fronteiras móveis. Segundo Augé, a cidade tem
existência temporal, a qual duplica sua existência espacial, dando-lhe destaque. Por
tal razão, pode-se pensar em uma espécie de “cidade lembrança”, carregada por
componentes históricos e políticos, tanto da esfera coletiva quanto particular.
Em meio aos tensionamentos experimentados pela experiência da vida urbana,
são encontrados mecanismos de controle dos corpos, dos gestos, das condutas. De
acordo com Foucault (2014b), são diversas as estratégias voltadas para a promoção
e a manutenção da chamada ordem social, as quais visam, de todo modo, a garantir o
governo dos vivos, de seus atos e respectivos efeitos. Para esse autor, há duas dimen-
sões da gestão social: a primeira, disciplinar, a qual está mais direcionada ao controle
em nível individual, e a biopolítica, centrada nos aspectos coletivos. Observa-se que
as disciplinas, destinadas a esquadrinhar os corpos, no intuito de produzir docilidade
e submissão, focam nos pormenores das condutas dos sujeitos, ultrapassando a noção
repressiva, uma vez que incitam e produzem ressonâncias de diversas ordens.

A “invenção” dessa nova anatomia política não deve ser entendida como uma
descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 429

mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se


repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu
campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada
de um modo geral (FOUCAULT, 2009, p. 134).

Por sua vez, a biopolítica visa ao controle em nível coletivo, a partir de práticas
de regulamentação capazes de promover o equilíbrio social. Por objetivar a garantia
da vida, busca estabilidade e regularidade, dando também destaque às potencialidades
dos sujeitos (FOUCAULT, 1999). Por essa perspectiva, há grande interesse no que
tange à população, em sua existência biológica. Assim, são vistos movimentos no
sentido de minimizar a ritualização da morte, em benefício de sua biologização, com
base em uma racionalidade que faz viver uns e deixa morrer outros:

As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos


em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A
instalação – durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces –
anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desem-
penhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja
função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima
pra baixo (FOUCAULT, 1988, p. 152).

Essas duas esferas do governo da vida, as quais compõem o que se chama de


biopoder, são atravessadas pela norma, que almeja ao mesmo tempo disciplinar e
regulamentar, propiciando a adoção de padrões que possam implementar a coesão
social. Com essa racionalidade, a lei passa a ter cada vez mais aspecto de norma, o que
é possibilitado principalmente em função da integração da instituição jurídica a vários
aparelhos de forte ênfase reguladora, como do campo médico (FOUCAULT, 1988).
As práticas engendradas pelo biopoder, ao longo da história, apresentam conti-
nuidades e descontinuidades, em função de haver reatualizações de lógicas de gestão
da vida, com fins por vezes semelhantes, apesar das singularidades contextuais. No
que se refere ao controle dos corpos infames, na sociedade contemporânea, nota-se
a preponderância de artifícios de banimento, tais como ações higienistas legitimadas
pelo Estado e sociedade civil. Em virtude do modo difuso de funcionamento dessas
tecnologias políticas da vida, as quais favorecem a existência de uns, em detrimentos
de outros, torna-se importante atentar para o fato de a gestão não ficar centrada nas
instituições estatais, estando também nas práticas cotidianas da população, que faz
o governo funcionar pelas microesferas.
Para Foucault (2012), esse fenômeno pode ser entendido pelo prisma do con-
ceito de governamentalidade, o qual diz respeito à sobrevivência do Estado, por
meio de sua ação em seu interior e exterior. Por tal razão, conforme o teórico, para
a modernidade é fundamental perceber a governamentalização do Estado, ou seja,
o modo como a gerência da população se dá por diferentes vias e agentes sociais.
O autor destaca que o surgimento dessa lógica está relacionado ao modelo arcaico
da pastoral cristã, tendo contribuição da técnica diplomático-militar e apresentando
proximidades com a polícia. Segundo Castro (2009, p. 191):
430

[a] análise da governamentalidade abarca, então, em um sentido muito amplo, o


exame do que Foucault denomina as artes de governar. Essas artes incluem, em
sua máxima extensão, o estudo do governo de si (ética), o governo dos outros (as
formas políticas da governamentalidade) e as relações entre o governo de si e o
governo dos outros. Nesse campo, estariam incluídos: o cuidado de si, as dife-
rentes formas da ascese (antiga, cristã), o poder pastoral (a confissão, a direção
espiritual), as disciplinas, a biopolítica, a polícia, a razão de Estado, o liberalismo.

As políticas públicas, que se aliam a essa lógica de controle das vidas e, conse-
quentemente, da produção de segurança, mostram-se atravessadas por uma espécie
de promessa da tranquilidade. Contudo, diante das expressivas desigualdades sociais,
cabe-nos problematizar a que preço são tecidas práticas nessa esfera (considerando a
produção de subjetividade em torno de uma segurança em nome apenas de alguns)
e de que maneira os discursos de determinadas áreas do conhecimento fortalecem
alianças entre seguridade e noções de normalidade, sustentadas no esquadrinhamento
de modos de viver. Para pensar tais questões, torna-se necessário também pôr em
evidência o que se tem criado em termos de promoção de vida, para além das forma-
lidades convencionadas por programas governamentais. Trata-se de outra política que
se ancora na dimensão estética, na invenção de possíveis no cotidiano das cidades.
Pelas vias informais, são encontrados meios de expressão que concernem a
mecanismos de resistência, ou seja, ao que não se deixou capturar por forças domi-
nantes. A política, nesse jogo, desponta como o fazer que demanda uma “partilha
do sensível”, tal como elucidou Rancière (2005), por pressupor a discordância na
construção de uma noção de comunidade política. Para esse autor, o caráter demo-
crático do fazer político depende da multiplicidade, que se articula à esfera sensível,
isto é, à estética. “A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar
a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos aconteci-
mentos. Para mim, é um dado permanente” (RANCIÈRE, 2010, p. 125).
Por essa perspectiva, torna-se interessante investigar de que maneira, na atua-
lidade, a sociedade tem reinventado seus modos de participação na vida política,
através de produções estéticas que remetem a formas de pensar específicas. Com
base nessa problematização inicial, cabe-nos perguntar de que maneira determi-
nados grupos marginalizados socialmente têm levantado suas pautas, articulando
alianças para além de uma atitude passiva de participação em programas instituídos
pelo Estado e suas ramificações.

O povo em situação de rua e condições de existência

O povo em situação de rua, quando pensado como segmento ativo, embora


significativamente apartado socialmente, em função das suas condições de existência,
desponta para além de sua noção de população – dimensão demográfica e estatística
–, denotando também força de atuação frente à sua dimensão jurídica. A partir de
uma análise foucaultiana, Castor Ruiz (2014, s. p.) ressalta:
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 431

O povo é sujeito de governo, a população objeto a ser governado; o povo se


subjetiva na forma de cidadania, a população cria consumidores/produtores; o
povo é sujeito formal da soberania, a população é objeto das políticas de governo.
A tensão contraditória que perpassa estas duas práticas coetâneas de soberania
e governo explica, em grande parte, a crise das democracias contemporâneas,
muito mais formais que democráticas, e a crise dos Estados de direito, muito mais
administradores econômicos que garantidores dos direitos de cidadania.

Assim, as micropolíticas, que operam pelas fendas sociais, podem reinventar


e pôr em questão o instituído das políticas públicas tidas como parâmetros oficiais
de funcionamento da cidade, por exemplo. Os efeitos do poder pastoral impresso
nas políticas maiores produzem tensionamentos frente a outras formas de gestão
do espaço público e de seus agentes.
Quanto especialmente às pessoas em situação de rua, observa-se uma série
de estratégias destinadas a gerir os riscos que tal segmento poderia vir a oferecer
à sociedade e a elas mesmas. Algumas delas transvestem-se de políticas públicas
de segurança, assistência social e saúde, por exemplo, o que pode ser visto em
práticas, legitimadas pelo Estado, de higienismo urbano, quer por meio da retirada
de tal povo das ruas pela via policial, quer pelos discursos de “purificação” pessoal
pela via médica e o ajuste social.
O debate acerca da gestão da pobreza está intimamente relacionado às racio-
nalidades racistas, as quais, para Foucault (1999), dizem sobre o funcionamento do
biopoder e seus mecanismos, os quais assegurariam a vida de uns, enquanto outros
restariam à margem, sem acesso às garantias mínimas de sobrevivência. Com base
na noção de raça (que vai além de questões biológicas, pois abarca aspectos econô-
micos, sociais, culturais etc.), as sociedades de normalização acabam por autorizar
a segregação, por meio de políticas excludentes.

[...] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do


biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a
função do racismo é regular a distribuição da morte e tornas possíveis as funções
assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para aceitabilidade
do fazer morrer” (MBEMBE, 2019, p. 18).

As internações compulsórias, os processos de gentrificação, a reatualização


do discurso manicomial são algumas das problemáticas que permeiam o cenário
contemporâneo, afetando de maneira direta a população em situação de rua. Esta é
frequentemente alvo de ações preconceituosas, sendo por diversas vezes colocada à
parte, por fugir dos padrões aceitos de sociabilidade.
O distanciamento da esfera do trabalho formal, os hábitos, a aparência e o envol-
vimento com drogas são alguns dos elementos que favorecem discursos jurídicos e
médicos sobre como a cidade deve ser gerida, de sorte a se afastar dos sujeitos que
são tidos como prejudiciais ao seu bom funcionamento. Nesse sentido, é importante
estar atento às apropriações da lógica pastoral pelas políticas públicas e seus efeitos,
432

para além do domínio do Estado, como forma de entender os aspectos morais, por
exemplo, que atravessam o governo das vidas tidas como infames.

[...] que a ordem democrática, a ordem da plantação e a ordem colonial mantive-


ram, durante muito tempo relações geminadas. Estas relações estão longe de ter
sido acidentais. Democracia, plantação e império colonial fazem objetivamente
parte de uma mesma matriz histórica. Este fato originário e estruturante é central
a qualquer compreensão histórica da violência da ordem mundial contemporânea
(MBEMBE, 2017, p. 43).

Considerando essas premissas sobre as forças que compõem o espaço urbano,


torna-se importante dar foco às linhas referentes aos registros das disputas, que
frequentemente aparecem na roupagem da luta por direitos à/na cidade. De acordo
com Vieira (2015), os países periféricos ou considerados de Terceiro Mundo estão
imersos em uma crise urbana mundial, que se caracteriza por irregularidades fundiá-
rias, índice baixo de saneamento urbano, crescimento do número de trabalhadores
informais, sistema de transporte urbano ineficaz. Tais dificuldades acabam por oca-
sionar segregação social, diminuindo também as possibilidades do exercício pleno
de cidadania, principalmente para aqueles que estão marginalizados.

[...] viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente


de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas
em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação,
interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de
milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao ama-
nhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras;
crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente
de suas famílias [...] (MBEMBE, 2019, p. 68-69).

A desigualdade socioeconômica nas cidades se intensifica em função da lógica


capitalista, a qual garante privilégios aos mais enriquecidos, enquanto grupos mais
empobrecidos ficam apartados em níveis diversos, como, por exemplo, em termos
espaciais, por conseguirem muitas vezes estratégias de habitação nas periferias e/ou
em condições inadequadas. No Brasil, a construção da diferença aliada às condições
de miséria deflagra as (im)possibilidades de trânsito daqueles que são vistos dentro
de uma esfera de subcidadania, a qual, de acordo com Jessé Souza (2012), tem ampla
relação com o processo histórico de segregação social, sobretudo de negros, desde
o período colonial escravocrata.

Nenhuma revisão histórica do crescimento do terror moderno poderá omitir


a escravatura, entendida como um dos primeiros exemplos de experiência
biopolítica. Em muitos aspectos a própria estrutura do sistema de plantation
(plantações) e de suas consequências revela a figura emblemática e paradoxal
do Estado de Exceção (MBEMBE, 2017, p. 27).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 433

Segundo o autor, os movimentos abolicionistas, embora tenham conseguido


formalizar legislação (a exemplo da Lei de 7 de novembro de 1831, que declarou
livres todos os escravos vindos de fora do Império e impôs penas aos importadores
dos mesmos escravos) contra as práticas de escravidão no país, não foram capazes de
sustentar a adaptação do liberto às novas condições, gerando efeitos de exclusão em
todo o período posterior. Beatriz Mamigonian (2017), amparada em extensa pesquisa
documental, auxilia na discussão de tal tema, empregando outras narrativas sobre
a abolição no Brasil oitocentista, ao trazer para o foco, na obra Africanos livres, as
trajetórias e experiências daqueles que, para alcançar a almejada “liberdade”, preci-
saram passar por etapas de apreensão, emancipação aliada ao trabalho compulsório
e lutas por emancipação definitiva, para garantia de autonomia.
De acordo com os estudos da autora, “[...] nenhuma análise da construção
do Estado nacional brasileiro e de sua história jurídica pode mais desconsiderar a
extensão e a gravidade da ilegalidade associada ao tráfico de escravos” (p. 23), o que
implica conferir ao processo de abolição lugar de destaque na produção da história
social do direito no país.

O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e morte, como
se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a distinção entre
os meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos de crueldade. Aos
seus olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos,
em princípio não possui qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de
trágico e, por isso, o poder necropolítico pode multiplicá-lo infinitamente, quer em
pequenas doses (o mundo celular e molecular), quer por surtos espasmódicos – a
estratégia dos pequenos massacres do dia-a-dia, segundo uma implacável lógica
de separação, de estrangulamento de vivissecção, como se pode ver em todos
os teatros contemporâneos do terror e do contraterror (MBEMBE, 2017, p. 65).

Nas mais diversas ruas, é possível encontrar pessoas em trabalhos informais,


em situação de mendicância, arquitetando material e simbolicamente um cenário de
negação dos subcidadãos, os quais, para manter condições mínimas de dignidade,
precisam buscar amparo da comunidade e das políticas públicas, tais como as de
assistência, que, no contexto atual, tem sido fortemente atacada por ações de gestores
descompromissados com um estado de bem-estar social, em consonância com inte-
resses de parcela da população que endossa igualmente tais medidas. Um exemplo
disso são os significativos cortes no orçamento de 2018 para o SUAS, empreendidos
pelo governo de Michel Temer, acarretando no desmantelamento da área de proteção
social, a partir do baixo investimento nos serviços da rede de assistência social, o
que fomenta, por sua vez, os quadros de pobreza e os efeitos da desigualdade social.
A intensificação recente de migração de venezuelanos tem sido também uma
pauta importante para pensar a situação de rua, no país, especialmente na Região
Norte, a qual tem recebido em suas cidades inúmeras pessoas em condição de refúgio.
De acordo com Souza e Silveira (2018), o fluxo migratório venezuelano abarca tanto
imigrantes indígenas, do povo Warao, quanto imigrantes não-indígenas, havendo entre
434

eles variações de cultura, de motivação e expectativa relacionadas à migração. Sobre


o crescimento do fluxo migratório de modo geral, os autores comentam:

É possível notar o aumento da migração ao se analisar levantamento feito pela


Secretaria Nacional de Justiça das solicitações de refúgio nos últimos anos: as
solicitações que chegavam a 4.022 em 2012 alcançaram o número de 28.670 em
2015. Em decorrência deste aumento, surgiram demandas específicas no Brasil,
em todos os níveis, para acomodação dos migrantes aos serviços e políticas já
existentes. A questão é ainda mais desafiadora, devido a desigualdade social já
existente no país entre os próprios nacionais (p. 116).

Relatório realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refu-
giados (ACNUR), em fevereiro de 2018, indica o pedido de refúgio de 24.818
venezuelanos ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), tendo 10.963
destes solicitado residência temporária no país. Contudo, muitos, por não se
enquadrarem na categoria de refugiados, prevista na Lei nº 9.474/97, têm seus
pedidos de refúgio negado, embora possuam, segundo a nova Lei de Migração
(nº 13.445/2017), direito ao visto temporário humanitário, em razão de as crises
econômica e política do país de origem criarem condições de emergência para
esse significativo deslocamento (SOUZA; SILVEIRA, 2018).
Tal visto, por sua vez, por demandar taxas para sua obtenção, tem sido outra
dificuldade, considerando as precárias condições financeiras de muitos imigrantes
(SOUZA; SILVEIRA, 2018), mesmo que esteja prevista pela referida lei a isenção
do pagamento de taxas e emolumentos consulares para concessão de vistos ou para a
obtenção de documentos para regularização migratória, o que aponta descompassos
na execução das prerrogativas legais.
O estado de Roraima, sendo uma das principais portas de entrada dessas pessoas
para o contexto brasileiro, tem experimentado uma onda de conflitos diante desse
cenário, o que ficou bastante evidenciado, por exemplo, em práticas de xenofobia na
cidade de Pacaraima, com destaque para os ataques, por parte da população local, aos
acampamentos de imigrantes no dia 18 de agosto de 2018, como possível retaliação
a suposto roubo e espancamento de um cidadão local, gerando, assim, episódios de
expulsão de imigrantes da região, tão noticiados nas mídias nacionais e internacionais.
Contudo, levando em conta as desigualdades sociais tão comuns na Região
Norte do Brasil, cabe problematizar em que medida as práticas de segregação do
diferente também não indicam insatisfações da população com sua condição, no
município, o qual, a despeito de apresentar índice de desenvolvimento humano de
0,650 (valor considerado médio, pelas Nações Unidas), é fortemente atravessado por
desigualdades sociais que marcam a Amazônia, de modo geral.
No Pará, a chegada dos venezuelanos também registra, em sua capital, o campo
de tensões entre população local e esses imigrantes, sobretudo quanto aos conflitos
entre grupos em condições de vida mais precarizadas, tais como as pessoas em situa-
ção de rua, que passam a encontrar em seus tão comuns territórios outros também
em situação de extrema pobreza, implicando igualmente na absorção de tal segmento
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 435

nos serviços ofertados pelas políticas públicas, os quais, em muitos momentos, já


estão sobrecarregados com as demandas locais.
Assim, a educação para a ordem dos costumes (que vai além da tentativa de
enquadre de migrantes, como no caso dos venezuelanos) pode estar difusa nas práticas
de grupos diversos, os quais tomam, em muitos momentos, seus referenciais do que
é verdadeiro para legitimar ações de ajuste social ou incitação a outras formas de o
sujeito se relacionar consigo e com a cidade.
A aproximação dos lugares simbólicos daqueles que despontam como diferentes
na sociedade, por conseguinte, “estranhos” a certa noção de coletivo, põe em análise a
constituição daquele que, em muitos momentos, é visto como “estrangeiro”, não per-
tencente ao local em diferentes sentidos. Tal discussão no Brasil, por exemplo, ganha
relevância quando se toma como objeto de reflexão o antigo Estatuto do Estrangeiro,
para o qual o imigrante era visto como potencial risco à segurança nacional, lógica
que frequentemente se aplica a outros tipos de subcidadãos brasileiros, tidos como
estrangeiros em sua própria terra, oferecendo, em um campo das virtualidades, riscos
à nação e, consequentemente, práticas de governo para correção (ou extermínio) de
suas estranhas (ou más) condutas.
De acordo com Castel (1997), os desfiliados sociais, por terem muitos de seus
vínculos sociais rompidos ou fragilizados, são afastados das redes formais de socia-
bilidade e colocados comumente à margem dos sistemas de garantia de direitos e
reconhecimento do papel de cidadania.

A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas contemporâneas


mediante as quais o político, sob a máscara da guerra, da resistência ou da luta
contra o terror, opta pela aniquilação do inimigo como objetivo prioritário e
absoluto? A guerra, não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas
também um modo de exercer o direito de matar. Se imaginarmos a política como
uma forma, devemos interrogar-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte e
ao corpo humano (em particular o corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa
dentro da ordem do poder (MBEMBE, 2017, p. 108).

Foucault (2012), em O nascimento da medicina social, evidencia o quanto as


tensões urbanas estão relacionadas a uma razão política do uso dos saberes médicos na
gestão das cidades, na incitação da população em torno da saúde e da preservação da
vida. Contudo, em função de o olhar da medicina sobre os pobres ter-se configurado
em aliança com a perspectiva da segurança, para além da positividade dos discursos
da ciência médica (do que produz também em termos de cuidados), é importante
sublinhar seus efeitos na organização dos espaços urbanos, o que, por exemplo, fica
explícito pela composição do que se conhece por favelas/comunidades/baixadas,
assim como das praças abandonadas, sendo as últimas comumente usadas como local
de permanência por pessoas em situação de rua, mesmo diante das arquiteturas que
pretendem repulsar a miséria.
Para lutar na cidade: pautas, encontros e coragem. Para fazer ouvir a voz: um
tanto de ânimo e a sustentação de coletivos que se fortalecem no caminho. E são
436

nos embaraços dos registros que se constroem as narrativas, deixando escapar


as glórias e os infortúnios que fazem de vidas as causas. Lutar na rua tem disso,
sobretudo quando os grupos a lutar estão circunscritos pela semântica das misé-
rias, buscando afirmar que a rua é, ao mesmo tempo, uma de suas armas e um dos
principais objetivos dos embates.
De acordo com Ferreras e Secreto (2013), documentos históricos indicam que
grupos tidos como subalternos durante um bom tempo foram considerados apolíticos
e vistos como aqueles que se mobilizam por meio de atos violentos. Tal perspectiva
deixou rastros na literatura sobre as lutas populares ocorridas na América Latina,
produzindo estigmas que vão desde o olhar sobre movimentos sociais do período
colonial, dos momentos de busca por independência, chegando até aos processos
mais atuais de tensões, como os relativos aos espaços urbanos. Entretanto, para os
autores, é possível desconstruir tal dimensão, ensejando o destaque à subjetividade e
ao que chamam de agência dos sujeitos populares, os quais, mesmo quando imersos
em contextos mais fechados, onde há forte viés para submissão, possuem uma esfera
para problematização, oportunizando sua leitura crítica dos acontecimentos.

Considerações finais

Diante disso, pensar as lutas de minorias, no presente, que em muitos momentos


estão circunscritas a territórios atravessados por pobreza, convoca a reposicionar
seus atores, abarcando suas potencialidades de produção de outras políticas. Para
tal, torna-se necessário igualmente colocar em questão os processos de subjetivação
que põem em ação as mobilizações sociais, indo além da análise que qualifica os
grupos pelo que lhes falta:

Os pobres urbanos são sempre definidos por carências. Vejamos algumas das
denominações: são “lumpemproletariado” porque não estão inseridos direta-
mente na estrutura produtiva; são “marginais” porque estão fora das regras da
legalidade ou habitam os confins das manchas urbanas; são “setores populares”
porque não conseguem se constituir como uma classe ou agregar-se a alguma; ou
são “párias”, porque [...] vivem isolados e passam sem ser vistos (FERRERAS;
SECRETO, 2013, p. 98).

A participação do povo de rua, a partir de um viés estético-político, em diversas


esferas sociais, pode dizer respeito não só à sua inserção enquanto segmento que
habita o espaço público, mas também à sua percepção que aparece em termos de
proposições críticas ao modo de gestão da cidade, visando a proporcionar melhorias
de vida a esse segmento e à sociedade em geral. Assim, ao tomar conhecimento da
produção macro e micropolítica e ao buscar articular suas demandas com o que é
proposto formalmente pelo Estado, pessoas com trajetória de rua podem provocar
tensionamentos, evidenciando uma postura reflexiva sobre possíveis brechas a serem
preenchidas no debate sobre o que se entende por vida digna.
Nesse sentido, torna-se oportuno analisar em que medida a dimensão da cul-
tura atravessa a produção de outras formas de viver, para além do que se prevê em
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 437

cartilhas, apontando para as possibilidades de criação, na rua, mesmo diante dos


obstáculos relativos a difíceis condições na qual o povo de rua comumente se encon-
tra. Por esse recorte, notam-se algumas iniciativas que agregam pessoas em torno
de determinados objetivos, sendo o principal deles a autonomia para a criação de
uma cultura cotidiana, a qual diz respeito também às possibilidades heterotópicas de
construção de outros mundos, frente aos instituídos das cidades. As heterotopias, para
Foucault (2013), são espaços outros criados na sociedade como contraespaços, o que
indica a possibilidade de diferentes olhares para o modo como certos territórios são
ocupados, já que o desenvolvimento de heterotopias permite a circulação de ideias
de um povo tido, muitas vezes, como desmerecedor do seu próprio corpo e da pala-
vra, por representar a escória social que não pode ser vista, muito menos escutada.

Trata-se tão só, há que precisar, da luta e do futuro que há que sulcar custe o
que custar. Essa luta tem como finalidade produzir a vida, derrubar as hierar-
quias instituídas por aqueles que se acostumaram a vencer sem ter razão, tendo
a “violência absoluta”, nesse labor, uma função desintoxicadora e instituinte.
Essa luta tem uma dimensão tripla. Visa antes de mais destruir o que destrói,
amputa, desmembra, cega e provoca medo e cólera – o tornar-se-coisa. Depois,
tem por função acolher o lamento e o grito do homem mutilado, daqueles e
daquelas que, destituídos, foram condenados à abjecção; cuidar, e eventualmente,
curar aqueles e aquelas que o poder feriu, violou ou torturou ou, simplesmente,
enlouqueceu (MBEMBE, 2011, p. 2).

Em uma perspectiva da gestão social que se dá também pela margem, há regis-


tros de pessoas com trajetória de rua que lançam pistas sobre como o espaço público
pode ser aproveitado para produzir rupturas no processo de subjetivação da popula-
ção, com base em trabalhos que partem do interesse de classes ditas desfavorecidas,
que frequentemente são silenciadas, não tendo oportunidade de se mostrar de forma
ativa e problematizadora.
A figura do sobrevivente, tão discutida por Agamben (2008), a partir dos regis-
tros do holocausto, põe em questão o que há de singular no testemunho daquele que
sobrevive a uma experiência-limite, considerando que outros, em contexto seme-
lhante, não sobreviveram. O que fica nessa interseção, entre aquele que diz para aquele
que já não pode mais dizer, por ter sido lançado à morte, pode sinalizar, por sua vez,
os ruídos das narrativas da sobrevivência, para além de seu caráter de verdade, que
trazem a dimensão da resistência.
Luiz Fuganti (2005), em seu livro Saúde, desejo e pensamento, ao problema-
tizar a função política no uso dos prazeres, também se ancora nos estudos feitos
por Foucault sobre a cultura grega, lembrando a importância que há em perceber o
modo como as condutas pessoais podem levar ao domínio de si, de suas paixões,
conferindo maior esfera para o exercício da liberdade e do poder na polis, o que de
maneira contrária (o não domínio) poderia resultar em fracasso, ficando o sujeito
submisso a si mesmo e perante os outros. Falar, portanto, da dimensão dos prazeres,
no ato político da vida, implica pôr em evidência as nuances relativas ao domínio das
paixões, o que, no caso da situação de rua, correntemente põe em questão o uso que
438

se faz do corpo na relação com o espaço público, não estando suprimidos ainda os
atravessamentos institucionais que visam a controlar os prazeres dos que se encontram
em condição de vulnerabilidade social.
A militância do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) – forma-
lizado em 2005 e que se distribui no país, por meio de representações de núcleos em
várias cidades – confere, nesse cenário, elemento fundamental para a organização das
pautas desse povo, tendo auxiliado, em 2009, durante o II Encontro Nacional sobre
População em Situação de Rua (Brasília), a discutir princípios da Política Nacional
para a População em Situação de Rua, a qual, no mesmo ano, foi instituída pelo
Decreto 7.053/09, visando a garantir o respeito à dignidade, o direito ao usufruto e
permanência na cidade e a garantia e defesa de direitos fundamentais (SILVA, 2014)
Para Ana Mota (2006), tais políticas são fruto das lutas sociais travadas espe-
cialmente com base em princípios de proteção às condições ligadas ao universo
do trabalho em um contexto capitalista, fortemente marcado pela racionalidade
neoliberal, a qual apresenta inúmeros obstáculos para a efetivação do está previsto
nos documentos oficiais. Assim, para a autora, a seguridade social se define como
esfera de disputas e negociações em um cenário em que imperam as demandas
do capital financeiro, o qual favorece outras estratégias de relação entre Estado,
sociedade e mercado, acarretando, conforme elucidam Santana, Serrano e Pereira
(2013), muitos tensionamentos frente às tentativas no país de integração das políticas
que buscam assegurar direitos sociais, bem como no que concerne às iniciativas de
universalização de seus provimentos.
Diante desses desafios, pensar o atendimento à pop rua e seus efeitos, dentro
de programas de seguridade, demanda ao mesmo tempo a reflexão sobre como essa
categoria se configura como o “público-alvo”, tendo como pano de fundo os recortes
produzidos pela biopolítica a grupos que se encontram comumente afastados de um
plano do trabalho formal, fazendo recair sobre eles estigmas que, em muitos momen-
tos, os deslegitimam na produção de outras formas de viver e de se relacionar com
os serviços públicos, a partir de suas demandas específicas.
De acordo com Damien Roy (2016), tem se intensificado o olhar para o fenô-
meno “pessoas em situação de rua” (ou, como se costuma popularmente chamar,
“moradores de rua”), organizando-o enquanto objeto de atenção e ação, por parte dos
poderes públicos. Assim, para o autor, é notório o movimento de transformação da
vida dessas pessoas em uma problemática e, “[...] à medida que ganha visibilidade
urbana, política e midiática, elas presenciaram o surgimento de uma gama crescente
de atores e lugares institucionais, de textos jurídicos, regulamentos e normas, de
discursos e de políticas públicas relativas a elas próprias” (p. 115), passando a se
configurar, principalmente, como população a ser abarcada por planos de governo.
Contudo, faz-se necessário atentar para o que há de singular em cada trajetória,
que escapa às categorizações que constituem geralmente os roteiros de atenção a esse
público nos serviços, nos quais papéis de acolhidos, pacientes e usuários são frequen-
temente visitados, em conformidade com o atendimento que lhes é prestado, dentro
dos equipamentos. Com base nessas reflexões, põe-se em questão a figura do usuário
como aquele que sai de um lugar passivo de quem circula pelos serviços para se fazer
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 439

notar, enquanto voz ativa, orientada e reconhecida na cidade, o que implica pensá-lo
em função de seus processos formativos também dentro das instituições, as quais,
em uma perspectiva politizada, seriam igualmente responsáveis por conduzir o seu
público em busca do conhecimento, o que poderia levar à autonomia do pensamento
e da ação. Para tanto, é imperioso evidenciar as disputas relativas a essas formações,
posto que, em muitos momentos, são apresentadas formas muito enrijecidas do que
é ser politizado, não abarcando as demandas de alguns, os quais poderiam tomar a
frente dos processos de militância da população de rua, por exemplo. Nessa direção,
pensar a produção do sujeito que aprende a lutar na relação com as forças institucio-
nais também é pensar a sua relação com a própria cidade, pois as forças estatizantes
circulam, ressoando em posturas que se dão para além das esferas dos serviços dos
quais usufruem, enquanto beneficiários das políticas de proteção social.
De acordo com Benelli (2012), o trabalho realizado nas instituições vinculadas
às políticas públicas de assistência social precisa abarcar uma dimensão psicossocial,
a partir da qual as práticas fujam de uma lógica psicologizante, ao mesmo tempo que
se distanciam de olhares que possam produzir um “[...] politicismo da vida social”
(p. 64), o que seria oportunizado pelo que chama de socialização extremada. Nesse
sentido, uma possibilidade para o exercício profissional seria criar condições onde
erro seja contemplado, a fim de que se permita a inovação para o acompanhamento
dos fluxos diários, pois uma postura mais segura poderia dificultar a acolhida dos
movimentos que surgem dos encontros. Por essa via, ao problematizar práticas insti-
tucionais que se propõem desenvolver atenção psicossocial, torna-se necessário estar
atento ao que se configura, em seu interior, em torno da busca da efetivação de uma
“[...] cidadania radicalmente democrática e popular” (p. 83).

Temos aí um processo bem real de luta; a vida como objeto político foi de algum
modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-
-la. Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas
políticas, ainda que estas últimas se formulem através da afirmação de direitos
(FOUCAULT, 1988, p. 136).

No contexto local, a abertura de porta também tem sinalizado um rico campo de


produção, posto que o diálogo com os territórios se faz necessário até mesmo para que
haja o envolvimento da comunidade com as questões concernentes ao funcionamento
institucional. Afinal, não se criam políticas de saúde e assistência, por exemplo, sem
se visar aos efeitos que recairão no plano coletivo.
Cuida-se da cidade e de sua gente pela cidade e sua gente, muito embora os
rastros higienistas operem recortes diferenciadores de quem seria ou não essa gente.
Por isso, há de se ficar atento para o que Foucault (1988) chama de tecnologias polí-
ticas, as quais teriam se proliferado pelo biopoder, produzindo investimentos sobre os
corpos, saúde, alimentação, moradia e em tantas outras fendas da vida, processo este
que se faz igualmente em aliança com as instituições jurídicas (expressas principal-
mente em normas), integradas cada vez mais a aparelhos reguladores da sociedade,
tais como do campo da saúde e da assistência. Nessa direção, é preciso ter em vista os
processos de resistência que emergem, quando o que passa a ser reivindicado é a vida.
440

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TRAJETÓRIAS INTERROMPIDAS: para
pôr fim à destituição do Estado ao poder familiar
Caroline Carmona Vasques Mata
Hebe Signorini Gonçalves

Introdução

Deitei o João e a Vera e fui procurar José Carlos. Telefonei para a Central.
Nem sempre o telefone resolve as coisas. Tomei o bonde e fui. [...] fui falar
com a Policia Feminina que me deu a notícia do José Carlos que estava lá na
rua Asdrubal Nascimento onde funcionava o Juizado de Menores. Que alívio!
Só quem é mãe é que pode avaliar. [...] cheguei na rua Asdrubal Nascimento,
o guarda mandou-me esperar. Eu contemplava as crianças. Umas choravam,
outras estavam revoltadas com a interferência da lei que não lhes permite
agir a sua vontade. O José Carlos estava chorando. Quando ouviu a minha
voz, ficou alegre... percebi o seu contentamento. Olhou-me. E foi olhar mais
terno que eu já recebi hoje (Carolina Maria de Jesus, em Quarto de Despejo).

Às margens do Rio Tietê, Carolina Maria de Jesus escrevera seu relato docu-
mental e autobiográfico sobre o cotidiano da favela do Canindé. Em plenos anos 50,
marcados pela tentativa de avanço econômico e modernização de um país preso a
práticas que remontavam ao Brasil Colônia, a então catadora de lixo consegue, em
singelos escritos diários, mostrar ao leitor que os “50 anos em 5” faziam parte de
um plano político restrito a lugares específicos da cidade. A favela, definitivamente,
não era um deles. Era apenas um anexo da grande sala de visitas que se desenhava
em São Paulo (JESUS, 2014). Todos os que ali habitavam eram renegados, esque-
cidos e descartáveis aos olhos do Estado.
Carolina sentia na própria pele o que significava política e simbolicamente
ocupar esse lugar. Se de um lado, enquanto catadora de papel, a sujeira e o des-
carte atravessavam seu corpo, de outro a maternidade a lembrava cotidianamente
da sensação angustiante da panela e das barrigas vazias de seus filhos. Como
estratégia de sobrevivência, Carolina carregava para o trabalho junto a si sua
filha mais nova, Vera Eunice, enquanto seus filhos mais velhos ora ficavam sob
os cuidados da vizinhança, ora zelavam uns aos outros ou circulavam por entre
as ruelas da favela e da cidade.
Seu relato escancarava a realidade de diversas mães solas: Carolinas eram
convocadas aos então denominados Juizado de Menores a fim de prestar contas
pelas estratégias possíveis – e cabíveis – de cuidado com sua prole, todavia conside-
radas pela Justiça práticas de abandono, desamparo e maus tratos, pelas quais eram
446

suscetíveis a ter seus nomes cravados no então conhecido processo de Destituição


do Poder Familiar (DPF). Essas ainda são práticas em curso no Brasil.
A DPF, prevista nos artigos 129-X do Estatuto da Criança e do Adolescente
[ECA] (1990) e 1.638 do Código Civil (Lei n. 10.406, 2002), é um dos procedimentos
jurídicos que garantem o cumprimento de medidas protetivas. A fim de assegurar
a proteção integral da criança, os pais ou responsáveis respondem a acusações de
violação ou descumprimento de diretos por meio da ação de DPF. A suspensão do
poder familiar, que em geral antecede a DPF, caracteriza-se pela restrição da função
dos pais, é estabelecida por decisão judicial e perdura enquanto for necessária ao
interesse do filho, isto é, ocorre durante o trâmite processual e enquanto a família
está sendo assistida em prol da reintegração familiar.
Nesse sentido, este artigo busca entender como, após transcorridos tantos anos
do depoimento de Carolina de Jesus, as práticas que envolvem a proteção integral da
criança ainda obedecem a uma lógica menorista e priorizam a destituição familiar –
destituição não apenas processual como também simbólica, investida em um corpo
específico, uma classe específica, uma raça específica. É nesse trâmite processual
que as primeiras aproximações com o tema se iniciaram no período de realização de
extensão da primeira autora, na 2ª Vara de Infância, da Juventude e do Idoso no Rio
de Janeiro, e provocaram incômodos acerca da família alvo do processo, da postura
dos operadores jurídicos e da relação hierárquica que pauta as audiências, da noção
caritativa que permeia as instituições de acolhimento e, principalmente, do trato que
toda a rede de proteção destina às mães.
Para atingir o objetivo proposto e compreender melhor o processo que culmina
na DPF, utilizamos como metodologia de análise a noção de implicação descrita por
Loureau (1993), a partir da visão da equipe técnica da Vara de Justiça, formada por
assistentes sociais e psicólogos, e da própria experiência da autora naquele local.
Trazemos à discussão excertos de diários de campo, entrelaçando-os às posições
dos atores da rede. Ainda segundo Loureau (1993), os diários de campo nos per-
mitem reconstituir a história subjetiva do pesquisador, as recusas, o aprendizado e
a angústia advinda de todo o processo. Com ele, o conhecimento da vida cotidiana
de campo não se perde e mostra a contradição entre a temporalidade da produção
pessoal e a institucional, ou burocrática.
Nesse percurso de trabalho, a revisão bibliográfica, os dados coletados de pes-
quisas e fornecidos pelo Data Rio (2020), bem como as legislações de referência no
Brasil, nos chamaram a atenção para os fios soltos129 nas práticas da rede de proteção
integral, que tendem a reatualizar a lógica menorista e consequentemente crimina-
lizar um certo tipo de família. É nas falhas e lacunas dessa trama que conseguimos
entrever o modo como o trabalho dos atores convocados no processo se integra, se
posiciona e evidencia práticas discursivas de controle e vigilância.
Nesse sentido, buscamos redesenhar o caminho percorrido por mulheres mães,
alvos do processo de DPF, traçando os percalços e adversidades antes e durante a

129 SILVA, A. C. S.; ALBERTO, M. F. P. Fios Soltos da Rede de Proteção dos Direitos das Crianças e Adoles-
centes. Psicologia: Ciência e Profissão, n. 39, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-3703003185358.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 447

instituição da ação. Para tanto foi preciso, em primeiro lugar, compreender o funcio-
namento da rede sócio-assistencial e as falhas em relação à família – em destaque o
Conselho Tutelar – que levam à instauração do processo, analisando suas caracte-
rísticas organizacionais, seu funcionamento e tensões. Em seguida, conceituamos o
território e a rede de proteção integral, no intuito de compreender a articulação dos
agentes sociais frente ao processo de DPF, principalmente em relação à garantia da
convivência familiar e comunitária. Voltamos, como terceiro ponto, à proteção dos
acolhidos e ao fortalecimento dos vínculos familiares, capazes de promover ou não
a reintegração familiar, evidenciando o trabalho das unidades de acolhimento, dos
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência
Especializado em Assistência Social (CREAS). Em seguida, buscamos entender os
processos de criminalização da família e das mães pobres e o governo de conduta,
regido conforme o modelo burguês de cuidado e proteção.

Passo um: a preservação familiar falha

A política de assistência social no Brasil opera duas modalidades de atendimento


assistencial: a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. A primeira buscar
prevenir situações de risco e precariedade social, e oferta serviços “que potencia-
lizam a família como unidade de referência, fortalecendo seus vínculos internos e
externos de solidariedade” (BRASIL, 2014, p. 36). A segunda destina-se às famílias
que já se encontram em situações de risco como abandono, maus tratos, abuso de
drogas, cumprimento de medida-socioeducativa, situação de rua, entre outros; ela
exige uma modalidade de atendimento mais complexa, com mais flexibilidade nas
intervenções e compartilhada, em alguns casos, com o Poder Judiciário (SIQUEIRA;
DELL´AGLIO, 2011).
Os processos de DPF situam-se, desse modo, na modalidade da Proteção
Social Especial. Contudo, antes mesmo da instauração de DPF, podemos visua-
lizar a proteção básica atuando junto às famílias em prol da preservação fami-
liar. Segundo Siqueira e Dell’Aglio (2011), os programas sociais oferecidos no
Brasil concentram-se, essencialmente, na transferência condicional de renda
(Bolsa Família, Bolsa Escola, Família Cidadã, Auxílio- Gás, Cartão Alimenta-
ção, entre outros130).
Apesar desses programas minorarem “a privação de renda de famílias pobres
a curto prazo, interrompendo o ciclo intergeracional de transmissão da pobreza”
(SIQUEIRA; DELL’AGLIO, 2011, p. 265) e precariedade social, há poucos serviços
voltados para a família como unidade, no fornecimento de apoio e suporte na própria
residência e de um atendimento contextualizado, baseado necessidades específicas
da família. Sem a construção continuada desse passo a passo nas unidades de baixa

130 Após 18 anos, o Bolsa Família fez seu último pagamento em novembro de 2021. Contudo, a escolha por
manter o auxílio no texto é parte do entendimento que a discussão em torno da família ainda recaía sob
sua vigência. Não é possível contemplar à discussão os programas que, em tesa, entrarão em vigor no ano
de 2021 como o Auxílio Brasil.
448

complexidade (CRAS), a próxima etapa é a constatação da então já instalada preca-


riedade e risco social, que pode se agravar e requerer medidas drásticas, levando ao
rompimento de vínculos e à institucionalização da criança – como ocorre na DPF.

Passo dois: o Conselho Tutelar falha

A notificação da violação dos direitos ocorre via denúncia – anônima ou não –


feita por profissional da saúde ou educação, por familiar ou cidadão comum, ao Con-
selho Tutelar131. Desdobra-se, daqui, um elemento primordial no trato da violação dos
direitos, no que diz respeito às ações que se seguem à notificação como ressalta H. S.
Gonçalves (2014).
Apesar de a autora tratar da violência contra criança e não da violação em
si, podemos traçar um paralelo em relação ao que vai ser considerado violação ou
violência. Há uma dificuldade técnica e teórica de definição que atravessa ambos
os termos. “A intencionalidade é de difícil determinação, o ato é às vezes de difícil
detecção e a diferenciação entre o que deve ou não ser considerado violência nem
sempre é imediata” (GONÇALVES, 2014, p. 310). O mesmo ocorre com a viola-
ção, marcada por palavras como abandono e negligência, que pelo seu sentido vago
acabam por complexificar todo o processo de DPF.
Embora à primeira vista a distinção pareça simples, encontramos aqui uma
dificuldade bastante específica nas ações da rede, que envolve a DPF e que deriva do
ato de notificar. A notificação passa por uma questão ética: “a suspeita de violação,
independente da confirmação posterior, carrega a condenação moral dos pais, dos
responsáveis ou daqueles contra os quais ela pesa, e implica num julgamento moral
que nem mesmo a absolvição jurídica tem o poder de neutralizar” (GONÇALVES,
2014, p. 311); ela produz um efeito irreparável nas famílias que podem ser afastadas,
provisória ou permanentemente, de seus filhos.
Uma vez recebida a notificação, compete ao Conselho Tutelar avaliar os fatos
relatados e decidir pelo seu encaminhamento ao Ministério Público. Vale aqui res-
saltar outra dificuldade da rede, envolvendo agora o Conselho Tutelar e abarcando
alguns procedimentos por ele tomados. De antemão, é preciso ressaltar que o Con-
selho tem funcionado em condições adversas, com problemas de infraestrutura;
eles não possuem:

[...] lugar adequado para o atendimento das demandas, por vezes dividem o
mesmo espaço físico com outros órgãos; não possuem telefone, acesso à internet

131 ECA, Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescente serão
obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízos de outras pro-
vidências legais. E ainda: ECA, Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento
de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade compe-
tente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra
criança ou adolescente: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso
de reincidência.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 449

e transporte; e, também, não contam com equipamentos sociais da rede de


proteção à criança e ao adolescente – como casa de acolhida, de passagem,
abrigo, dentre outros (CANTALICE, 2011 apud PASE; CUNHA; BORGES;
PATELA, 2020, p. 6).

Assim, a aplicação das medidas enfrenta a escassez de serviços estruturais e de


retaguarda, o que reduz a capacidade dos órgãos de proteção de responderem às deman-
das. Quanto à estrutura e procedimentos operacionais, encontramos outros desatinos:
como a violação de direitos dificilmente pode ser comprovada, o julgamento acerca
da veracidade da denúncia fica a critério da avaliação discricionária dos conselheiros.
Em outras palavras, as famílias ou responsáveis suspeitos de violarem os direitos da
criança são submetidos a uma avaliação algo arbitrária, dado que a ausência de infor-
mações precisas tende a trazer para primeiro plano o julgamento moral de profissionais.
Soma-se a isso a diversidade de atribuições de cada ação ou serviço, e a inde-
finição com que essas atribuições são tratadas. Os profissionais que notificam a
violação do direito não necessitam constatar a violência, passando a competência aos
Conselhos, que por sua vez – dada a complexidade dos casos, a pouca capacitação e
a escassez de infraestrutura – fazem o processo chegar à Justiça, eventualmente com
carência de informações fundamentais.
Nas famílias alvo dos processos de DPF, a dificuldade parece residir na cons-
trução conjunta de alternativas junto ao Poder Público; mais especificamente, parece
haver um hiato entre as demandas das mães (ou dos pais) e as ofertas de serviço da
rede de proteção integral. A família ou mãe envolvida adentram uma trajetória sem
escapatória. A cada passo, o sistema a enreda e estreita cada vez mais suas alterna-
tivas, de tal modo que elas se veem sem saídas. O que buscamos tratar nesse artigo
é justamente esse estreitamento que se inicia antes mesmo do processo, provocado
pela rede, que progride até chegar aos braços da Justiça. Desse modo, é imprescin-
dível compreendermos quais são as lacunas e falhas nessa rede, conceituando-a e
entendendo o território sobre o qual nos debruçamos.

Passo três: a rede de proteção integral e o território falham

Dentre todos os processos que chegam às Varas de Infância e Juventude, a


DPF é a medida mais aplicada no Estado do Rio de Janeiro; ela totalizou 632 ações
ao longo de 2020, ou cerca de 45% do total (MINISTÉRIO PÚBLICO, 2020).
Logo, toda uma força de trabalho é constituída e concentrada nesses processos.
A complexidade deste procedimento jurídico requer a atuação de diversas insti-
tuições: Ministério Público (MP), Defensoria Pública (DP), Tribunal de Justiça
(TJ), Equipe Técnica do Juizado, equipamentos públicos de Saúde e de Assistência
Social. Cada um exerce uma função processual, com visões não necessariamente
congruentes (GONÇALVES; GUZZO, 2017).
Esses dados nos fazem pensar que algo está fora dos eixos do que preconiza o
ECA. Se a convivência familiar e comunitária, e a consequente reintegração familiar,
450

são prioridades no que tange à proteção integral, por que a medida que separa crianças
e jovens de sua família de origem é a mais aplicada no Estado?
Em um processo de DPF, o atendimento à família e as reuniões de rede visam
à proteção da criança. O objetivo é tratar, de modo conjunto e articulado, as neces-
sidades sociais, culturais e econômicas da família, a fim de alcançar a reintegração
familiar. Nessa rede costurada por diversos agentes, temos como base um tecido
móvel, dinâmico e relacional: o território. Sem a compreensão analítico-conceitual
do território e da rede, não se pode abarcar a complexidade dos atores sociais e
relações de poder que circundam o processo de DPF. É por meio da análise da rede
e do território que conseguimos entender como os agentes sociais se articulam
frente ao processo de DPF. É possível observar os nós que tensionam o processo,
contribuindo para manter a lógica menorista, fiscalizatória e caritativa ou, alternati-
vamente, para criar caminhos emancipatórios da população assistida pelas Políticas
Públicas, promovendo sua autonomia.
De acordo com Silva e Alberto (2019), a rede é o tecido de relações estabelecidas
em prol de uma finalidade comum – no caso, a proteção integral – que se interco-
nectam e desenvolvem ações em conjunto. Funciona ainda, segundo Burgos (2020),
com base em um método de trabalho elaborado em função de necessidades sempre
mutáveis, valorizando as relações pessoais, a troca de informações, as reuniões e a
tomada de decisões conjuntas de modo horizontal para fortalecer o compromisso entre
os atores. Podemos ver esse mecanismo em ação a partir das reuniões de casos de
DPF que ocorrem entre a rede: equipe técnica da IIVIJI, CRAS, CREAS, Conselho
Tutelar, Educação, CAPS, Unidade de Acolhimento etc.

Nem sempre perfeitas, essas reuniões buscam levar em consideração o conhe-


cimento e a interação de cada ator com as famílias do território, o trabalho
em equipe, a organização das informações e o papel da gestão (demandas
intersetoriais e capacitação). É importante destacar que nesse processo é pre-
ciso avaliar as ofertas disponíveis no território, conforme as condições de
participação das famílias. Assim, o trabalho em rede visa pensar a acolhida
– espaços, escuta, informações sobre direitos, oferta de serviços e locais de
permanência –, a renda – auxílios financeiros e benefícios continuados para
cidadãos em situação de precariedade –, o convívio – construção, restauração
e fortalecimento de laços de pertencimento; ruptura do isolamento social – e
da autonomia – capacidades e habilidades para o protagonismo e exercício da
cidadania (LELIS, 2019, n.p.).

Há, contudo, percalços na construção desse caminho. Um deles é a confusão de


línguas (FERENCZI, 1992) no uso do termo e em sua aplicação pelos atores sociais,
cada um ao seu modo, sem se interligarem, como discute Burgos (2020). Embora a
política de direitos da infância adote uma gramática comum, há claras diferenças e
dissonâncias quanto à aplicabilidade e a forma pela qual os profissionais percebem
esses direitos. O caso descrito a seguir, declinado da IIVIJII para a IVIJI e acompa-
nhado pelas autoras, é um exemplo desses equívocos:
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 451

Conforme leio o processo, vejo que o caso declinou para a Primeira Vara e fico um
pouco sem entender. A justificativa para o pedido de declínio é a falta de logra-
douro e consequente não localização da família de origem. Nesse sentido, argu-
menta-se que o território de referência deveria ser o da Instituição de acolhimento
e o juízo aceita o argumento. Afinal, o território de referência destinado é baseado
em que? Minha supervisora me explica que o território de referência é sempre o
endereço da família de origem ou extensa. Quando não localizados, o território
passa a ser o local de localização da criança. Nesse caso, ainda da IIVIJI. Fiquei
pensando nas questões envolvendo o território, e em como essa arbitrariedade
pode confundir e prejudicar o trabalho em Rede. Como fica a reunião agendada
para a semana que vem, se o caso declinou? A equipe técnica da Vara já estava
em contato com a rede; refazer esse circuito não iria gerar mais morosidade para
a colocação dessa criança em família substituta ou pela procura da família de
origem? Tudo me faz pensar em como esse território é frágil, com rachaduras,
árido. Como cada vez mais ele está escasso, por inúmeros motivos. Mas mesmo
assim trabalhamos sobre e com ele (DIÁRIO DE CAMPO, ago. 2021).

Nesse trecho, vemos que o processo é declinado para a IVIJI sob a justificativa
de que pautado no logradouro da acolhida, enquanto para equipe técnica e outros
atores o que se deve considerar para a demarcação do território de abrangência
é o endereço da família de origem ou o local onde a criança foi encontrada. Essa
imprecisão produz rupturas na troca de informações e, por extensão, no próprio fun-
cionamento da rede. Para Borges (2020), tais rupturas podem repercutir na atuação
dos profissionais e impactar diretamente a Política Pública, que é feita por quem a
concebe, mas principalmente pela prática de quem a executa.
Ainda nos chama atenção no excerto acima a convocação de uma noção de
território restrita ao endereço, ou seja, ao espaço geográfico, o que não alcança a
noção adotada pelos documentos das Políticas Públicas. Nascimento e Melazzo (2019)
mostram que, com frequência, a rede de proteção utiliza o termo território como
sinônimo de base geográfica, produzindo um reducionismo analítico que considera
apenas a localização e a proximidade. A perspectiva territorial, entendida desse modo,
perde sua dimensão móvel, não-estática, simbólica e imaterial. É o que vemos ocorrer
na prática de atendimento de famílias e mães no processo descrito acima, onde os
cuidados dispensados à família ficam limitados aos recursos disponíveis num dado
espaço geográfico, e o próprio diagnóstico das necessidades familiares se estreita,
dado que abandona dimensões simbólicas relevantes de suas demandas.
O território, tal como entendido e elaborado pelo SUS (Sistema Único de Saúde)
e SUAS (Sistema Único de Assistência Social), contém uma dimensão simbólica e
imaterial, derivada das relações sociais, e por isso mesmo relacional, processual,
móvel, em fluxo permanente. Nesse sentido, há uma relação indissociável entre ter-
ritório e população (NASCIMENTO; MELAZZO, 2019). A população que vive
determinado território interage com seu entorno, reconstruindo as relações sociais
e reformulando sua própria dinâmica interna, processo do qual resulta um ciclo de
todos-agem-sobre-todos. O território pode ser abstrato, idealizado, mas também é
452

vivido e sentido, englobando lugares que se singularizam por seu valor de uso e seu
alcance real, construindo trocas sociais e tornando visíveis relações desiguais.
Esse modo de se pensar o território explicita seu significado vivo, ou seja,
elucida como o sujeito o vive e experiencia. A favela do Canindé, tal como descrita
por Carolina de Jesus, evidencia essa representação das subjetividades coletivas.
A experiência de vida na favela de Carolina de Jesus nos permite pensar que o ter-
ritório a subjetiva, e vice-versa: ela salienta as relações com os vizinhos, as brigas
na favela, os habitantes lavando roupa ou tomando sol nas margens do Rio Tietê,
e os cuidados com sua prole. Um movimento constante que faz e desfaz Caroli-
na-favela, suas relações sociais e sua relação com o território, sempre dinâmicas.
Com suas denúncias diárias sobre os habitantes da favela, os políticos e falta de
comida, Carolina vai aos poucos definindo seu território-favela. Sem saber, ela
traduz o território como “território usado” (MILTON, 2007 apud NASCIMENTO;
MELAZZO, 2019) e nos ajuda a compreender a noção em seu sentido subjetivo e
imaterial, tal como utilizado pelas Políticas Públicas.

Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. as margens do rio são os lugares
do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. não mais se vê
os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. os homens desempregados
substituíram os corvos (JESUS, 2014, p. 54).

Assim, para além do território geográfico – regiões administrativas (RA) –


que define a área de abrangência da 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso,
é preciso pensar na dimensão territorial que ancora a proteção social, voltada para
a prevenção da precariedade e dos riscos sociais. A área de abrangência da IIVIJI
(TJRJ, s.d.) corresponde às áreas administrativas de Ramos X, Penha XI, Inhaúma
XII, Ilha do Governador XX, Anchieta XXII, Pavuna XXV, Jacarezinho XXVIII,
Complexo do Alemão XXIX, Maré XXX e Vigário Geral XXXI. O cruzamento dessa
base geográfica com o Índice de Progresso Social (IPS) por Regiões Administrativas
no Município do Rio de Janeiro (2020)132 mostra que o território sobre o qual nos
debruçamos conta com escassos recursos de acesso à saúde, economia, assistência
social, política e meio ambiente. São regiões em situações de privação, pobreza e
exclusão, com os índices mais baixos de progresso social da cidade, destacando-se
a Pavuna (42,97), com o menor índice em todo o município.
Mais do que um território de vulnerabilidade e riscos sociais (NASCIMENTO;
MELAZZO, 2019), estamos diante de um território marcado pela precariedade social.

132 O IPS é formado por 36 indicadores dispostos em 12 componentes, distribuídos conforme 3 dimensões.
Os indicadores foram construídos com dados administrativos municipais, estaduais e federais e do Censo
Demográfico. Possui 3 grandes dimensões de análise, cada uma delas com seus respectivos componentes:
1) Necessidades Humanas Básicas (nutrição e cuidados médicos básicos, água e saneamento, moradia
e segurança pessoal); 2) Fundamentos do bem-estar (acesso ao conhecimento básico, acesso à informa-
ção, saúde e bem –estar, qualidade do meio ambiente); 3) Oportunidades (direitos individuais, liberdades
individuais, tolerância e inclusão e acesso ao ensino superior); Disponível em: https://www.data.rio/docu-
ments/base-de-dados-do-%C3%ADndice-de-progresso-social-ips-por-regi%C3%B5es-administrativas-ra-
-munic%C3%ADpio-do-rio-de-janeiro-2016-2018-2020/about.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 453

Mais ampla, a precariedade social pode levar à vulnerabilidade ou ao risco. Nesse


passo, a deterioração das redes de apoio social e econômica, como destaca Butler
(2018), expõe essa parcela da população ao dano, à violência e à morte.

Passo quatro: as unidades de acolhimento falham

Até aqui, vimos o resultado da falha da preservação familiar pela rede. Nesse
ponto, nos salta aos olhos a ausência de significado dessas famílias para o Estado.
São vidas sem qualquer grandeza ou heroísmo, vidas que passíveis de definição
em poucas páginas banais ou em punhados de palavras. Só quando esses indiví-
duos ameaçam a ordem social é que recebem a atenção governamental. Ou melhor,
quando a vida dessas mães faceia o poder, “que espreitava que perseguira e prestara
atenção, mesmo que por um instante, em suas queixas e tumultos” (FOUCAULT,
2003, p. 206), é possível fazer aparecer o que até então não aparecia: a tentativa
de governar suas condutas e comportamentos pelo braço da justiça. É como se de
algum modo uma família fosse aleatoriamente escolhida em meio ao emaranhado
de invisibilidades, quando alguma prática, ação ou comportamento eleito ao acaso
passasse pelo crivo da intervenção, julgamento ou decisão. Como se, por um ins-
tante, o poder entrasse em contato com essa vida até então sem rastros e daí toda
uma trama se montasse ao seu redor.
É no processo judicial, destarte, que a trama se estreita. Toma-se o dito para o
escrito, “o insignificante cessa de pertencer ao silêncio [...], o detalhe sem importân-
cia, a obscuridade, os dias sem glória, a vida comum, podem e devem ser ditas, ou
melhor, escritas” (FOUCAULT, 2003, p. 213). Toda uma série de arquivos e autos
é produzida, convocando os saberes a opinar e colocar em exame as existências até
então ignoradas. Enquanto Carolina do Canindé apenas comparece ao Juizado de
Menores, nos anos 50, para levar José Carlos de volta à casa, hoje outras mais retor-
nam da Vara da Infância e Juventude sozinhas, de mãos atadas e na condição de rés
de um tipo específico de processo: a ação de Destituição do Poder Familiar (DPF).
No poder judiciário, a relação entre a família e a rede ganham outro contorno.
A diferença que se instaura quando essa família chega à justiça diz respeito, inclu-
sive, ao modo como ela passa a enxergar as práticas dos profissionais. Se antes a
família (ou a mãe) não via a rede como inimiga, as chances disso ocorrer aumentam
drasticamente. Com o filho acolhido e longe de seus cuidados, a justiça e toda a rede
se tornam inimigas. Temos aqui, portanto, uma dificuldade colocada de antemão
quando um caso é judicializado: o vínculo com a rede de proteção é ressignificado.
Após a instauração de ação pelo Ministério Público, a criança (ou o adolescente)
é encaminhada a uma instituição de acolhimento, no intuito de garantir sua proteção.
Enquanto isso, os genitores ou responsáveis são submetidos a uma série de proce-
dimentos a fim de promover, a médio ou longo prazo, a reintegração familiar (RF):
atendimentos com a equipe técnica da Vara, visitas domiciliares, encaminhamentos a
programas de transferência de renda condicionada, a atendimentos especializados no
uso abusivo de álcool e drogas, à assistência à saúde mental ou à assistência social...
454

Todas são medidas que visam assegurar o direito à convivência familiar e comuni-
tária, acautelado pelo art. 4º do ECA. Caso a reintegração não obtenha êxito, o juiz
responsável pelo caso defere o pedido de perda do poder familiar e a consequente
colocação da criança em família substituta, seja pelo plano da família acolhedora ou
da família extensa, seja pela inserção no Cadastro Nacional de Adoção.
Nesse percurso, temos duas frentes principais de intervenção: a criança e a
família. O modo como essas frentes respondam à intervenção será responsável por
promover, ou não, a união de crianças e adolescentes afastadas de suas famílias,
a reintegração familiar. Nesse processo complexo, as unidades ou instituições de
acolhimento são encarregadas de promover o restabelecimento e a preservação
de vínculos familiares, dado que são as instâncias encarregadas de mediar, de
acordo com a realidade de cada família, o plano de reconexão com a criança e
adolescente acolhidos e atentar aos programas e serviços disponíveis na rede,
reconectando-os às famílias.
Logo, há uma preparação prévia da família que funciona como elemento faci-
litador da reintegração, desde a inclusão em programas de moradia, educação e
alimentação até o acompanhamento e treinamento para o melhor exercício da paren-
talidade. Às unidades de acolhimento se atribui a comunicação com as autoridades,
informando periodicamente as condições da criança e da família, oferecendo um
estudo social e pessoal de cada família, além de manter os programas destinados
ao apoio parental, participar em reuniões de rede e do Plano Mater (2010)133, e das
audiências concentradas.
Como apontam Siqueira e Dell´Aglio (2011), a reunião entre famílias e crianças
acolhidas tem uma dimensão física, mas também psicológica. As autoras salientam a
importância da assistência em prol da conservação de laços afetivos e familiares, do
sentimento de conexão das crianças com os membros de sua família. Nesse sentido,
invocam o plano de visitação como importante estratégia. Dentre as vantagens do
plano de visitação, podemos citar o estímulo à aprendizagem dos pais em fornecer um
ambiente seguro para seus filhos, o sentimento de segurança transmitido à criança ao
ter ciência que seus familiares desejam manter contato com ela, o amadurecimento
da experiência da separação para os jovens, a valorização dos laços familiares como
oportunidades de aprendizagem e prática de novos comportamentos parentais. Em
suma, com um plano de visitação é possível promover o empoderamento familiar e
o senso de esperança de reagrupar trajetórias até aqui separadas.
Para tanto, as autoras compilam alguns balizadores134 para que esse plano seja
eficaz. No entanto, ao trazermos esses fatores para o contexto e a realidade brasileiros

133 O Plano Mater tem como objetivo buscar a celeridade na solução dos problemas que ensejam o aco-
lhimento, por meio do controle permanentemente e atualizado da situação vivenciada por cada infante
acolhido, de modo a evitar que crianças e adolescentes permaneçam nas instituições de acolhimento por
tempo indeterminado.
134 As autoras apontam a proximidade geográfica da unidade de acolhimento aos pais e familiares, o treina-
mento das equipes, um plano formal de visitação, a realização de um trabalho concomitante com a família
de origem, a intensidade gradual da visitação e o tipo de atividade desenvolvida como primordiais para a
eficácia das visitações e da consequente reintegração familiar.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 455

surgem percalços. O primeiro deles seria a proximidade geográfica entre da unidade


de acolhimento e a residência dos pais ou familiares, o que nem sempre ocorre. O
que vemos ocorrer na Vara pesquisada é a falta de visitas domiciliares, muitas vezes
motivada pela distância geográfica entre a unidade e a moradia das famílias. Os
familiares relatam que, à distância, somam-se a falta de recursos financeiros, o tempo
de locomoção, e a falta de apoio da própria unidade de acolhimento.
Na prática, o que parece ocorrer nas unidades de acolhimento é uma prevalên-
cia do cuidado à criança ou ao adolescente acolhido. Nesse ambiente institucional,
as crianças e jovens recebem todos os direitos que a eles possam ter sido negados:
passam a frequentar a escola e a dedicar-se à aprendizagem, realizam atividades
esportivas e de lazer, têm acesso aos atendimentos de saúde no nível, primário,
secundário e terciário, entre outros. O único direito que parece ficar à margem é o
direito à convivência familiar.
Um trabalho concomitante com a família de origem, outra premissa ressaltada
por Siqueira e Dell´Aglio (2011), tampouco parece ocorrer. O acompanhamento e o
apoio às dificuldades da família de origem, bem como o desenvolvimento de intera-
ções positivas, como a participação em atividades cotidianas das crianças – reuniões
escolares, consultas médicas, compras, etc. – não costumam ser incentivadas pelas
equipes das instituições. À mãe ou à família, desse modo, fica destinada a participação
quase sem intermédio nos planos de visitação.

Passo cinco: os Centros de Referência (CRAS/ CREAS) falham

Os percalços listado acima não se limitam, porém, às unidades de acolhimento.


Estes, na tentativa de potencializar recursos pessoais das mães ou familiares, recorrem
a outros equipamentos da rede, como os CRAS e CREAS. Nos documentos a que
tivemos acesso da IIVIJI, pudemos observar que não é incomum encontrarmos rela-
tórios dessas equipes evidenciando que a família não “aderiu aos encaminhamentos”
da rede, como vemos no trecho a seguir de um Diário de Campo (setembro de 2019):

[A genitora] deixa seus filhos sob cuidados de uma vizinha, que leva e busca os
mesmos diariamente na escola, tendo em vista “a negligência da mãe no cuidado
com os filhos”. [...] além disso, ela não adere aos encaminhamentos feitos pelo
Creas e pelo CT. A Instituição afirma que não é favorável à reintegração.

Ao entrevistar profissionais da rede, Almeida (2014, p. 106-107) evidencia


alguns termos que nos ajudam a refletir sobre o local que a mãe ou os familiares
ocupam na RF. Expressões como “ausência de resposta da família em relação ao
trabalho que lhe é oferecido; “falta de predisposição da família”; “predisposição em
não aceitar e não aderir a nada”; “o profissional pode fortalecer os vínculos desde
que a família queira fortalecê-los”, parecem desenhar a ideia de que “a participação
da família parece ser equiparada à oportunidade de mostrar alguma modificação”
(ibidem, p. 106) e de que os profissionais agem como se não tivessem o que fazer
diante dessa “falta de vontade ou desejo”.
456

É como se toda a dinâmica de decisão a respeito do acolhimento que envolve a


participação da família recaísse sobre ela mesma. Os percalços enfrentados por essas
mães são, assim, individualizados, sobretudo quando “não aproveitam” o que lhes
é oferecido. O fracasso das tentativas de reintegração é equiparado ao fracasso da
mãe no cumprimento de seus deveres. Não há qualquer questionamento ou reflexão
sobre como e o que lhe é oferecido e sobre a real eficácia do trabalho para alterar
as consequências de um longo período de descaso político e precariedade social,
como aponta Almeida (2014).

As folhas processuais acabam e eu fico mais uma vez me sentindo impotente


diante do caso. O que fazer com “ela não adere aos encaminhamentos”, “não há
figura de autoridade”, “um caso de vulnerabilidade social que precisa de enca-
minhamentos da rede”? A culpa cai inteiramente na mãe, e me parece que não há
um esforço da rede para restabelecer os vínculos com familiares (DIÁRIO DE
CAMPO, set. 2019).

Sem essa reflexão sobre o próprio trabalho, e na tentativa de encontrar um cul-


pado para a “não aderência da família”, cabe questionar: se há destituição do poder
familiar, quem destitui a família? Finkler, Santos e Dell´Aglio (2012) firmam que
direitos e deveres não estão ao alcance dessas famílias e mães, na medida em que
estão desassistidas pelo Estado, vulneráveis a carências diversas tais como a falta de
saneamento básico, moradia, serviços de saúde, educação, oportunidades de emprego,
lazer e cultura. Como então poderíamos avaliar o comprometimento e a participação
de uma mãe que não tem dinheiro para pagar o transporte público para comparecer
aos serviços da rede, onde será atendida por profissionais que já prejulgaram sua
autoridade materna – negligente, que abandona os filhos – ou carregam o preconceito
sobre sua disposição de aceitar as atividades ofertadas? E mais: por que o enfoque
fica centrado na figura das mães?
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
e publicada pelo Correio Braziliense (PHELIPE; BARBOSA, 2020) mostra que
o número de mulheres responsáveis por domicílios brasileiros saltou de 25% em
1995 para 45% em 2018. Nos domicílios situados na faixa de pobreza, esse número
aumenta para 54%, segmento em que 28% das famílias chefiadas por mulheres têm
renda mensal de até um salário-mínimo (VIECELI, 2020). Essas mesmas famílias
– pobres, chefiadas por mulheres, muitas vezes sem a presença dos pais – são des-
tituídas da condição de cuidadoras pelo Estado; essas mesmas mulheres são con-
sideradas incompetentes para cuidar e proteger sua prole; essas mesmas mães são
destituídas de seus lugares, vivendo no limite do ser-que-não-pode-ser, na expressão
de Conceição Evaristo (2016).
Para Butler (2018), a condição de precariedade social está intrinsecamente
ligada a questões de gênero. Nos corredores do prédio da IIVIJI, vemos usualmente
as mães comparecendo às audiências e às visitações na instituição de acolhimento,
tentando recuperar seus filhos. Os pais pouco comparecem, o que deixa evidente o
sexismo que organiza essas relações. Nessa perspectiva, o cuidado tradicionalmente
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 457

se associa ao papel feminino, colocando a mãe como responsável pelo lar e pelos
filhos. Cleto, Covolan e Signorelli (2019) trazem situações de mulheres-mães que
possuem seus filhos acolhidos que estão, concomitantemente, em situação de vio-
lência doméstica e familiar.

Durante observação de um dos atendimentos no Creas, quando indagada a mãe


considerou que as filhas tiveram uma vida muito melhor do que a sua. As referên-
cias de cuidado utilizadas como parâmetro de comparação estavam, obviamente,
ligadas aos castigos e ao modo como foi criada, citando diversas violências coti-
dianas sofridas durante a infância. [...] a mãe 1, que teve duas filhas acolhidas,
viveu em contexto familiar de interações violentas desde a infância, perpetradas
por sua genitora, padrastos e, posteriormente, pelo companheiro. A análise do
histórico familiar revelou a influência da intersecção de marcadores sociais de
diferença; a situação de vulnerabilidade e violências a qual essa mulher mãe,
negra, sempre esteve submetida; e os desafios enfrentados para reaver a guarda
das filhas (CLETO; COVOLAN; SIGNORELLI, 2019, p. 163).

Passo seis: a família pobre e o cuidado desqualificado

As concepções sociais e morais que influenciam o processo de DPF remontam


à desqualificação da família pobre e sua relação com a criminalização da pobreza,
como ressaltam Nascimento, Cunha e Vicente (2008). A DPF nos leva a pensar na
organização de um modo específico de funcionamento dos aparelhos jurídicos para
lidar com a violação dos direitos da infância, quando cometida pelos pais ou respon-
sáveis. Interessa-nos pensar a DPF como um jogo político que coloca em discussão
as práticas do Estado para gerir as classes ditas perigosas, em particular no tocante
à proteção da família e da infância burguesa. Escolhemos evidenciar essa produção
histórica para pensar o modo como a criança e a família incorporam os mecanismos
governamentais de controle.
Faz um século que Ariès (1986) evidenciou a passagem do convívio social e
dos cuidados com os infantes do espaço público para a intimidade e privacidade do
lar burguês/ como se deduz do trabalho do autor, algo se perdeu da coletivização e
da diversidade do território. Na nova dinâmica instituída, “tecnologias políticas irão
investir sobre o corpo, a saúde, as formas de se alimentar e de morar, as condições
de vida ou o espaço completo da existência” (DONZELOT, 1980, p. 14). Esse modo
de governar pensa a segurança a partir da polícia, o que valoriza os procedimentos
de manutenção da ordem, a vigilância do conjunto de condutas e da moral a con-
servação de um certo modo de viver, de formas de cuidado a serem reguladas e
seguidas (LAZZAROTTO; NASCIMENTO, 2016). Ora, o que é a destituição do
poder familiar senão uma forma de fazer valer um tipo específico de investimento
no cuidado infantil e juvenil no corpo, na saúde, nas formas de morar e de vestir e
alimentar? Vejamos uma passagem de um Diário de Campo:

A partir de estudos no início do acolhimento, as técnicas da unidade de acolhi-


mento verificaram que as crianças que estavam sob responsabilidade de sua mãe
458

tinham baixa frequência escolar, tendo alguns perdido suas vagas, inclusive. Além
disso, numa primeira Visita Domiciliar a residência, encontrou-se um ambiente
precário e de muita miséria, e presenciaram um cenário o qual nomearam de
trabalho doméstico infantil, onde a filha mais velha exercia o papel de cuidadora
do lar e dos irmãos. [...] outro ponto interessante discutido sobre o caso e em
relação à VD, foi à assistente social dizendo que sempre tenta fugir da noção de
higienização das casas que visita, mas que esse ponto é também importante para
construir uma análise. Ela disse, por exemplo, que enquanto conversava com a
mãe, via ratos passando perto dos materiais recicláveis recolhidos para venda
e avisou a genitora sobre fato, enfatizando a importância sobre a organização
daquele espaço. Nesse momento, houve uma pontuação interessante, no sentido
da equipe questionar o que é responsabilidade e omissão do Estado neste caso, e
o que é responsabilidade dos pais (DIÁRIO DE CAMPO, fev. 2019).

Nesse trecho, vemos um exemplo de estudo de caso que envolvia a DPF dos
pais de duas crianças. Nele, podemos exaltar dois aspectos que validam a primazia
do cuidado burguês: a nomeação do cuidado exercido pela irmã das crianças como
trabalho infantil e a descrição das condições de moradia da família. O cuidado pres-
tado pela irmã que não é visto como cuidado, e a condição da habitação cohabitada
por ratos são assumidos como responsabilidades da família, ignorando a omissão
do Estado. Em outras palavras, o Estado e seus aparatos institucionais coagem a
família pobre a se regular pelo crivo da família burguesa, que dispõe de condições
econômicas, aporte cultural e modos de viver muito distintos da realidade tratada.
Junto à valorização do cuidado burguês, o que vemos ocorrer desde o Brasil
Império é que as crianças que circulam nos grandes centros urbanos são em sua
maioria negras e pardas, fruto da promulgação da Lei do Ventre Livre. Enquanto as
elites brasileiras criam seus filhos no espaço privado de suas casas, o abandono de
crianças negras acontece e desafia o espaço coletivo. Desde então cresce o sentimento
de repulsa pelos infantes pobres, e o desprezo pelas famílias culpabilizadas por essa
condição (NASCIMENTO; CUNHA; VICENTE, 2008). As ideias higienistas, a
medicina social e o modelo burguês corroboram a condenação moral da família pobre
e de seus hábitos de vida. A infância em perigo passa a ser a infância perigosa e os
Códigos de Menores de 1927 e 1979, como seus próprios nomes salientam, elevam
esses ideais à condição de lei: agora as famílias e mães “desestruturadas” funcionam
na ilegalidade.
Mesmo após o ECA preconizar e incentivar a convivência comunitária,135 dis-
positivos tidos como ultrapassados, mas ainda presentes como tecnologia de poder
se associam aos modos de governar a vida na cidade, e na gestão da infância. Ainda
hoje, vemos que a circulação nos espaços urbanos privilegia a infância e a família
burguesas, mais protegidas e cuidadas. Às demais, às quais se nega a condição de
infância, são destinados os espaços de controle, coerção e punição (NASCIMENTO,

135 ECA, Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcio-
nalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta
seu desenvolvimento integral (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 459

2008). As mudanças trazidas pela nova legislação não foram suficientes para modi-
ficar o trato dado às famílias pobres. Ainda sujeitas à intervenção técnica e estatal, a
família pobre passa a ser denominada negligente.
Quando o Estatuto tornou ilegal a DPF por falta de condições materiais e finan-
ceiras, essa atualização do discurso permitiu a intervenção estatal.

Como o processo de criminalização da pobreza faz associações imediatas entre os


pobres e os maus-tratos/negligência para com seus filhos – como se essas situações
também não ocorressem em outras classes – é possível burlar o ECA, destituindo
o poder familiar dos mais pobres. Assim, na prática, a retirada das crianças se
dá, de fato, porque elas se encontram em famílias pobres, não importando que
outros artifícios vão ser buscados para apoiar tal medida. Dessa forma, em nome
da lei, tira-se o direito dos pais (destituição do poder familiar), penalizando toda
a família (NASCIMENTO; CUNHA; VICENTE, 2008, p. 12).

E agora, Carolina? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a


noite esfriou

Este trabalho constituiu uma tentativa de recuperar o percurso percorrido por


mães pobres afastadas do convívio com seus filhos. Numa tentativa incansável de
retomar a trajetória interrompida pelos braços do Estado e da Justiça, mães são
tratadas nesse processo como objetos, sujeitas ao julgamento moral do Conselho
Tutelar, ao desejo de mudança de suas posturas pelas Unidades de Acolhimento,
aos endereçamentos dos serviços ofertados pelo CREAS. Passam de um serviço a
outro, comprimidas pela massa documental, aparecendo quase sem ser nomeadas.
A cada passo, correndo contra o tempo do fechamento do processo, suas opções
vão se estreitando.
Passíveis de inferiorização, pequenez e violência, são vítimas de uma política de
criminalização da pobreza, de uma lógica menorista que separa as noções de direito
da família e direito da criança e reforça os ideais normativos burgueses de cuidado,
criação e proteção da prole, estabelecendo uma forte aliança entre os parâmetros de
proteção e o governo de condutas (NASCIMENTO, 2008). Por isso nos interessou
examinar como essa lógica antiga de atuação se reatualiza, numa tentativa de que
possamos repensá-la. A precariedade enfrentada por Carolina Maria de Jesus, as
falhas na rede de proteção integral, a recuperação histórica dos ideais burgueses e da
legislação brasileira, aqui evidenciados, dão pistas de como esses processos podem
servir ao controle ou à emancipação. Podemos pensar mediante quais práticas pode-
mos evitar que ainda mais Carolinas culpem-se individualmente pela condição de
precariedade à qual estão submetidas.
Vale ainda ressaltar que, nos processos de DPF. deve-se dar preferência a
procedimentos que fortaleçam o vínculo familiar e comunitário. Para além dos
aparatos teóricos, morais e éticos e dos esforços, continuamente retomados e relem-
brados, de se afastar do julgamento moral que devem pautar a avaliação crítica e
criteriosa de uma suspeita de violação contra os direitos da criança, é preciso ter
460

em mente que o sistema legal recomenda o privilégio da convivência familiar.


Antes mesmo de seguir o processo adiante e levá-lo ao Ministério Público, preci-
samos pensar nas consequências de se apartar pais e filhos, quando os primeiros
não dispõem de condições para suprir suas necessidades mais urgentes, “inclusive
aquelas que dizem respeito a recursos pessoais e sociais que instrumentalizem sua
tarefa de construir, na próxima geração, um ambiente menos contaminado pela
violência” (GONÇALVES, 2014, p. 313).
Outrossim, não podemos deixar de considerar a rede própria de resistência de
mães. Não comparecer aos atendimentos na IIVIJI, não ser localizada por oficiais de
justiça ou por agentes da rede de saúde, não aderir aos programas do CREAS... todos
são também uma forma ativa de não se submeter aos modelos ou padrões de como
viver sua própria vida, exigidos pelo Estado. Desconsiderar a agência entre essas
mulheres mães ao deixarem seus filhos umas com as outras, por exemplo, significa
negar a legitimidade desse tipo de cuidado. Não podemos cair no falso e perigoso
pensamento de que é o poder público que age diante da constatação da violação de
direitos. É justamente o contrário: essas mulheres agem e o Estado reage ao modelo
de cuidado criado para a manutenção de sua própria família.
Desconsiderar a própria agência que executam e antevêem antes mesmo de o
poder espreitar à sua porta, é repetir o descrédito a que já são submetidas pelo poder
público e judiciário. Fazer frente a essa lógica significa por exemplo considerar que
a persistência em se locomover até a entidade de acolhimento onde se encontra seu
filho, mesmo que isso lhe custe três horas de seu dia é aderência, é investimento, é
proteção e é cuidado. A não observância desses atos na massa documental eviden-
cia por si só a desqualificação de sua existência como agente ativo na recuperação
de sua prole. O que nos resta indagar é até quando e como iremos contribuir para
desatinar essa lógica e por fim à destituição do poder familiar.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 461

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A CAPTURA DA “BÍOS” NA “ZOÉ”
E A PRECARIZAÇÃO DA VIDA NAS
TERRITORIALIDADES NEOLIBERAIS
Gleidson Gonçalves Queiroz
Fernando Luiz Zanetti

Nesse texto abordaremos sobre a precarização da vida nas territorialidades do


capitalismo neoliberal a partir de uma investigação filosófica utilizando-se dos con-
ceitos do filósofo Giorgio Agamben no que tangem aos dispositivos de subjetivação,
a politização da vida biológica e a vida nua convergindo com a discussão foucaultiana
acerca da biopolítica e da governamentalidade neoliberal. Ao se apropriar desses
conceitos veremos como a vida biológica ao entrar nos cálculos políticos modernos
foi vital para os processos de subjetivação.
Agamben ao discutir sobre a noção de vida nua compreendeu que a bíos, vida
qualificada para a pólis no sentido grego antigo, foi despolitizada e excluída para
incluir a zoé, vida biológica nos cálculos da política moderna. Esse processo foi
possível porque o Estado moderno, utilizando das tecnologias de governo, passou
a potencializar o corpo espécie (vida biológica). No entanto, esse foi um processo
que ocorreu progressivamente indo do Estado de natureza soberana para o Estado
nação. No Estado nação,

Agamben observa que a zoé, a vida que antes era responsável apenas pela manu-
tenção das condições básicas do mero viver, emerge na era moderna como o
principal interesse de controle da política. É nesse sentido que Agamben defende
que nossa política não conhecesse outro valor, e consequentemente outro desvalor,
que a vida biológica (SOUZA, 2017, p. 65).

Com a politização da vida natural “zoé” o sujeito passaria a ser enclausurado,


disciplinado, controlado e por último, com o desenvolvimento do capitalismo neoli-
beral, tornaria um indivíduo suscetível de ser capturado pelos múltiplos dispositivos
de subjetivação. Assim, a vida biológica surge no espaço governamental onde as
estratégias políticas atuariam na potencialização e no controle do corpo espécie. Dessa
forma, veremos em Agamben (2007) que as democracias modernas se caracterizam
por ter levado a cabo processos em que a vida biológica é capturada por dispositivos
biopolíticos que intentam sua politização constante com o propósito de ser, a princípio,
disciplinada e, por conseguinte, controlada e governada.
Deste modo postamos a seguinte problematização: partindo-se da ideia que
o desenvolvimento das tecnologias de governo, ao serviço da política moderna,
contribuiu para que a bíos, a vida ética e qualificada para a pólis, fosse excluída e
incluída a zoé, a vida biológica. Partindo-se desse processo de exclusão/inclusão,
objetivamos analisar como nas territorialidades do capitalismo neoliberal o sujeito
466

seria restringido a pura zoé. Desse modo, buscaremos mostrar como a dinâmica do
neoliberalismo se desenvolve uma zona específica onde a política das privatizações
atua privatizando, não apenas as empresas estatais, mas da vida dos sujeitos desti-
tuindo dos seus direitos essenciais.
No espaço das políticas neoliberais o sujeito apresenta-se, também, como
susceptível à captura pelos múltiplos dispositivos de subjetivação. Nessa direção,
investigamos se o empreendedorismo com foco na educação, ao funcionar como um
dispositivo de captura, se apropria da educação com ambições de cunho empresa-
rial. E por último trazemos à baila os modos pelos quais tal lógica empreendedora
contribuiria para a privatização dos direitos essenciais ao produzir um sujeito
prestador e consumidor de serviços.

A distinção entre bíos e zoé na lógica da inclusão/exclusão

O filósofo italiano Giorgio Agamben (2007, p. 9) ao discutir sobre o poder


soberano e a vida nua introduz em seu texto as noções gregas de zoé referindo-se
“[...] o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou
deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo
ou de um grupo”. A partir dessa discussão o autor objetiva iniciar uma investigação
sobre a politização da vida biológica pelas práticas políticas modernas. Haja visto
que a distinção entre bíos e zoé na obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida
nua I (2007)” ganha centralidade no início do texto indicando que a problematização
do autor situa a discussão sobre a vida nua que ao ser destituída do status jurídico
e excluída da bios torna-se, no estado de exceção, vidas precarizadas e passíveis
de serem abandonadas.
Para os gregos antigos a compreensão sobre a vida engloba os conceitos de
bíos e de zoé. Porém, não é possível visualizar uma noção única sobre o conceito de
vida na tradição grega, pois se trata de diferentes formas de vida. O filósofo grego
Aristóteles, por exemplo, desenvolveu uma distinção acerca de algumas formas
de vida. Partindo desse filósofo, iniciamos nossa discussão debruçando sobre três
formas de vida que vai da vida dos prazeres, passando pela vida contemplativa à
vida política.
No Livro I da “Ética a Nicômaco (2001)”, em especial a partir do Capítulo V,
Aristóteles inicia a distinção dessas formas de vida. Conforme o filósofo grego a vida
do prazer ou a bíos apolausticós é uma vida inferior porque não carece nem das virtu-
des, nem das atividades do pensamento e por ser, também, um modo de vida comum
aos demais animais. A vida contemplativa ou bíos theoretikos engloba os elementos
convergentes às atividades do pensamento, indicando que para o homem, enquanto
espécie humana, alcançar a virtude, caraterística não inata ao ser, deve exercitar-se
filosoficamente. Essa forma de vida para o filósofo Estagirita seria a mais completa
e importante em relação às demais porque trata-se tanto das atividades inerentes ao
pensamento quanto a forma de vida que mais se aproxima da vida dos Deuses.
A vida política ou a bíos politiko trata-se das atividades dos homens livres na
polis. Agamben (2007) convergindo com Aristóteles deixa explícito que o homem
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 467

é um animal de existências “bíos” politizada nos limites da pólis grega clássica. Só


era possível falar de um indivíduo de vida política, no âmbito da cidade no sentido
grego, se o sujeito estivesse incluído nas atividades políticas. A bíos indica uma
forma de vida qualificada para as atividades públicas, ou seja, as atividades dos
homens livres, senhores e mestres. O clamor de Aristóteles (2001) conceituando o
homem enquanto um animal político e portador de linguagem o habilita para a vida na
pólis, espaço de convivência entre os cidadãos e da construção de um corpo político
(comunidade) composto de sujeitos iguais, homens, mulheres, escravos e crianças,
embora compondo diferentes hierarquias.
Segundo Aristóteles, o ser humano foi a única espécie capaz de desenvolver a
linguagem. E com a linguagem “[...] o homem deixa de ser “zoé” para adquirir uma
“bios politikos” (OLIVEIRA, 2013, p. 49). No entanto, a zoé compõe o espaço da
vida na oíkos136 onde a vida é potencializada pelas práticas do cuidado doméstico.
Na esfera da oíkos a vida zoé, uma vez inserida, teria suas necessidades atendidas.
A oíkos, então, é o espaço da manutenção da vida biológica.
Partindo da filosofia política no sentido aristotélico, as atividades desenvolvidas
no oíkos e na pólis têm sentidos diferentes. Enquanto na esfera da oíkos os sujeitos
se organizavam de modo que a vida fosse administrada levando em consideração
suas necessidades biológicas, na esfera da pólis os cidadãos procuravam desenvol-
ver uma forma de vida (bíos) que fosse compartilhada, enquanto homens livres,
a partir de valores de igualdade e de liberdade. Então, falar de uma zoé politikos
inserida na pólis não seria possível porque se tratava de espaços diferentes. Assim,
Agamben salienta que a zoé foi excluída da bíos politikos na esfera da pólis, pois,
a zoé, ou seja, vida natural não era assunto de discussão no âmbito da cidade. “A
política corresponde uma “bíos” e não uma “zoé”, “bíos” que tem como fim último
o propiciar o viver bem mediante a criação e conservação de corpos políticos”
(OLIVEIRA, 2013, p. 50).
Segundo Agamben com a ruptura entre zoé e bíos, partindo das noções dos
gregos antigos, ocorreu um processo de politização da vida (bíos) e a exclusão da zoé
na edificação da cidade. Essa exclusão se deu a partir das articulações entre a vida e
a política. No entanto, com a passagem do Estado de soberania para o Estado nação
a vida biológica entrou nos cálculos da política moderna, ou seja, o surgimento de
uma biopolítica da vida natural. Assim, o filósofo italiano ao desenvolver a noção de
vida nua compreendeu que a bíos, vida qualificada para a pólis, foi despolitizada e
excluída para incluir a zoé, vida biológica nos cálculos da política moderna. Processo
semelhante ao que o capitalismo neoliberal também o faz ao privatizar, além das
empresas estatais, a vida dos sujeitos destituindo dos seus direitos e transformando-os
em meros prestadores e consumidores de serviços.
Esse processo de captura da vida nas democracias modernas colocou a zoé,
segundo o significado grego antigo, nos cálculos biopolíticos. Dessa forma, o que
caracteriza as democracias modernas, segundo Agamben, seria o que resultou no

136 Oikos no sentido grego refere-se ao espaço da casa e da vida doméstica em que as pessoas compõem a base
da sociedade. No espaço da casa, oikos, a vida biológica por meio dos cuidados domésticos é potencializada.
468

processo pelo qual a vida natural, ao entrar na mecânica da biopolítica, passou a


ser constantemente politizada. O filósofo francês Michel Foucault foi contundente
ao discutir sobre a inclusão da vida biológica, corpo-espécie, nos cálculos do poder
político, ou seja, o desenvolvimento de uma política da vida (biopolítica). Então
“[...] deveríamos falar de ‘bio-política’ para designar o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber
um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT, 1988, p. 134).
O Estado moderno dispondo de várias tecnologias governamentais incluiu a
vida natural (zoé), corpo-espécie, na esfera pública conferindo a ela valor de coisa.
Na perspectiva foucaultiana, levando em consideração a vida portadora de um valor
de coisa, percebemos uma relação intrínseca entre o capitalismo e o desenvolvimento
da biopolítica. A transformação da subjetividade em corpo-espécie pelas técnicas do
biopoder. Assim, a vida tornou-se uma coisa a ser confinada, disciplinada e contro-
lada por múltiplas técnicas do poder governamental. Conforme o filósofo italiano:

Se algo caracteriza, portanto, a democracia moderna em relação à clássica, é que


ela se apresenta desde o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé,
que procura constantemente transformar a mesma vida nua em forma de vida e
de encontrar, por assim, dizer, o bíos da zoé (AGAMBEN, 2007, p. 17).

No espaço da soberania a bios politikos seria restringida a zoé ao introduzir


a vida biológica nas estratégias políticas. Conforme Agamben (2007), com a poli-
tização da bíos politikos ocorreu um processo de inclusão da zoé e a exclusão da
bíos colocando a vida politizada nas estratégias da administração do Estado. Sendo
assim, a vida natural (biológica) tornou-se vital na Modernidade para os processos
de subjetivação, pois, a vida natural em sua passividade é suscetível de ser capturada
pelos múltiplos processos de subjetivação via dispositivos legais do Estado moderno.

A inclusão da zoé na esfera da pólis possui um papel central na racionalidade


política moderna, pois, a “vida nua”, outrora protegida da oikos, acaba, cada vez
mais, por ficar exposta aos cálculos do poder soberano. A tentativa de reduzir
o homem a zoé, de transformar o homem em homo sacer – portador de vida
nua – consiste em animalizar todos os homens, fazendo surgir, assim, no espaço
político, o lado animal (biológico) que pode ser facilmente gerenciável pelas
tecnologias de governo (SOUZA, 2017, p. 67).

Na Modernidade o processo vital, a vida protegida na esfera da oikos, segue


alinhada aos interesses do controle político no nível do Estado. Então o que a polí-
tica moderna reconhece de valor é nada menos que a vida restrita em sua dimensão
biológica, pura zoé, corpo-espécie ou home sacer. Nessa dimensão, Hannah Arendt,
pensadora dos regimes políticos totalitários, concluiu que com a ascensão do animal
laborans na esfera política ocorreu um processo que “[...] determinou, por sua vez, a
própria ascensão da vida e dos interesses vitais da sociedade ao estatuto de assunto
político de primeira ordem, assim como culminou no horror dos governos totalitários
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 469

e na perda do sentido da política” (SILVA, 2017, p. 273). Por conseguinte, quando a


política se apropria da vida, neste caso a zóe, procurando desenvolver suas necessida-
des vitais, consequentemente, deixou de se preocupar com o bem comum sobretudo
na esfera da pólis. Em “A condição humana (2007)” Arendt analisou como a vida
biológica foi progressivamente politizada ao transformar a bíos, a vida qualificada
para a pólis, em um indivíduo animalesco e, assim, fornecendo aos regimes totalitá-
rios elementos para que a dignidade humana fosse suprimida produzindo, em última
instância, vidas descartáveis ou, conforme Agamben, vidas nuas.

Para Arendt, a redução do homem a animal laborans e a transformação da política


em gestão administrativa dos interesses de produzir e consumir trouxe a violência
para o cenário político, e aqui estão as implicações biopolíticas que André Duarte
vê nos diagnósticos Arendtianos. Ele chega à conclusão de que subordinar a polí-
tica a relações econômicas entre trabalho e consumo é o motivo pelo qual a política
se confunde, hoje em dia, com a violência “biopolítica” (GODOY, 2013, p. 55).

Com o paradigma da biopolítica o sujeito ao ser destituído do seu status político


passou a ser visto e tratado apenas como um ser biológico. Neste caso, o poder sobe-
rano, legítimo para decidir sobre o valor ou desvalor da vida no Estado de exceção,
ao capturar a bíos restringiria essa forma de vida em pura zoé. Algo que ocorreu, por
exemplo, nos campos de concentração nazista. Neste espaço de campo, conforme
Agamben, o sujeito atinge o status de mortos/vivos.

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instaura-


ção, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a
eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias
inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema
político (AGAMBEN, 2004, p. 11).

Para tanto, dissociar a biopolítica da soberania não seria possível, pois, o


soberano é aquele que decide qual é a vida portadora de valor e de direito e a vida
que ao entrar nos cálculos políticos, no Estado de exceção, poderia ser reduzida
a pura zoé, passível de ser submetida aos experimentos ou a vida que poderia ser
deixada para morrer. “A estrutura biopolítica fundamental da modernidade – a deci-
são sobre o valor (ou sobre o desvalor) da vida como tal – encontra, então, a sua
primeira articulação jurídica em um bem-intencionado pamphlet a favor da euta-
násia” (AGAMBEN, 2007, p. 144). A vida nua seria, na perspectiva de Agamben,
um perigo para os seres humanos porque estariam, eles, abandonados pela lei e
submetidos a decisão soberana.

A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na
verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado
por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito,
externo e interno, se confundem (AGAMBEN, 2007, p. 36).
470

Então, na pólis, no sentido grego, abre espaço para que os arranjos políti-
cos modernos desenvolvam o lugar do bando em que a vida biológica é capturada
constantemente pelo aparato jurídico estatal. Segundo Souza (2017, p. 69) “[...] a
exclusão inclusiva da vida nua no Estado instaura a estrutura do bando que, por
sua vez, conserva a reunião da vida nua e do poder soberano”. O soberano aqui não
opera em sua relação com os súditos, mas a sua ação se dá nas zonas de indiferença
onde a lei pode ser suspensa. “Na exceção, a vida humana é excluída através de sua
inclusão numa zona de anomia onde a suspensão do direito coloca a vida sob total
vulnerabilidade. A exceção exclui dos direitos fundamentais e inclui numa zona de
anomia em que arbítrio da vontade do soberano se torna lei” (SOUZA, 2017, p. 63).
Segundo Souza (2017, p. 69-70) “A vida nua emerge, portanto, quando a vida
natural (zoé) nua é capturada da inclusão excludente ou exclusão inclusiva que reúne
soberania e exceção, isto é, quando a vida se torna vida abandonada”. Então é pos-
sível pensar que a captura da zoé se deu a partir de uma despolitização da bíos e a
politização da vida natural, exclusão/inclusiva. A partir da análise desenvolvida até
aqui, sobre a semântica agambeniana da politização da vida natural ou biológica pela
biopolítica moderna, podemos afirmar que os processos de captura da vida continuam
progressivamente em curso de forma múltipla e tênue. Dessa forma, com os novos
arranjos do capital neoliberal a vida tornou-se palco de processos de subjetivação
em que a vida é constantemente capturada.
Para tanto, cabe aqui discutir como a vida tornou-se suscetível de ser capturada e
de que forma esse processo de subjetivação acontece no contexto histórico do capital
neoliberal. Para desenvolver essa discussão recorremos ao conceito de dispositivo na
genealogia de Giorgio Agamben (2009), pois, segundo o autor, o dispositivo é qual-
quer coisa que desenvolve a função de capturar a vida de um sujeito e subjetivá-lo.

O dispositivo na semântica agambeniana

Agamben (2009), em seu texto “O que é um dispositivo?”, desenvolveu uma


genealogia sobre o termo “dispositivo”. Para isso, ele recorreu aos textos dos padres
da Igreja Católica entre os séculos II e VI, curiosamente, desenvolvendo uma genea-
logia teológica da economia e, por conseguinte, chegando a uma noção mais ampla
sobre aquilo que poderia ser contemplada na noção de dispositivo quando se compara
a conceituação foucaultiana.
Assim, Agamben verificou que em Foucault o dispositivo é um termo técnico
e que tem um papel estratégico na produção das subjetividades. A princípio é “[...]
um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico” (AGAMBEN, 2009, p. 29).
Que engloba “[...] discursos, instituições, edifícios, leis, medidas administrativas,
proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece
entre esses elementos” (AGAMBEN, 2009, p. 29). Em segundo lugar, o disposi-
tivo exerce uma função estratégica e, por último, é o resultado que se desenvolve
das relações de poder e saber. Assim, Agamben parte dessa definição para iniciar a
genealogia desse termo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 471

Agamben desenvolvendo seu estudo sobre esse conceito chegou à conclusão


de que, em Foucault, o dispositivo tem origem na obra de seu mestre Jean Hyppo-
lite137. No ensaio sobre a “Introduction à la philosophie de l’histoire de Hegel”
Hyppolite emprega o termo positividade discutindo sobre a religião natural e a
religião positiva (razão e história). Assim, a positividade, na perspectiva hegeliana,
possui uma ligação com a religião positiva ou histórica. Dessa forma, “[...] religião
positiva ou histórica compreende o conjunto de crenças, das regras e dos ritos que
numa determinada sociedade e num determinado momento histórico são impostos
aos indivíduos pelo exterior” (AGAMBEN, 2009, p. 30-31).
A religião positiva tem a capacidade de exercer sobre o indivíduo, a partir das
práticas impostas, um conjunto de normas compondo estratégias para direcionar,
orientar e interceptar as experiências subjetivas. Por conseguinte Foucault aproveitou
a noção de positividade na obra de Hyppolite para desenvolver a noção de dispositivo.
Então, “Agamben pretende invocar a positividade como o substrato histórico do dis-
positivo: a disposição de uma série de práticas e mecanismos imanentes com vistas à
consecução de efeitos em determinada urgência conjuntural” (FARIA, 2014, p. 40).
O termo positividade na arqueologia de Foucault (2008a) contempla uma epis-
teme ou um a priori histórico dos discursos e como determinam o que, na genealogia,
o filósofo discutiria enquanto relações de poder e suas estratégias na produção de
subjetividade (dispositivo). “A positividade de um saber é o regime discursivo ao
qual pertencem as condições de exercício da função enunciativa” (CASTRO, 2009,
p. 336). Em síntese a “[...] episteme é um dispositivo especificamente discursivo,
diferentemente do dispositivo, que é discursivo e não discursivo, seus elementos sendo
muito mais heterogêneos” (FOUCAULT, 1979, p. 246). Desse modo o dispositivo é
mais geral do que uma episteme dos discursos ou uma positividade porque, na filoso-
fia foucaultiana, engloba discursos, instituições, leis, medidas administrativas, etc. e
como estes elementos, grosso modo, constituíram historicamente a noção de sujeito. A
noção de um sujeito perpassa pelas relações de poder e pelas configurações de saber.
Contudo, Agamben ao desenvolver sua genealogia dos dispositivos distanciou
da noção dada por Foucault, embora ele se interessasse bastante sobre o exercício do
poder no sentido biopolítico e administrativo. Então, Agamben se volta para a tradição
cristã e toma como referência o termo grego oikonomia, introduzido na teologia pelos
padres da Igreja ao discutir sobre a Trindade. Na gestão da oíkos, na terminologia
grega, é uma atividade prática do cuidado e da manutenção da vida biológica (zóe).
A oikonomia na terminologia da teologia cristã designa a prática da economia da
salvação na qual Cristo é o responsável, pois, para os teólogos cristão dos primeiros
séculos quem vai desenvolver esse papel da administração da economia da salvação
é uma das três das pessoas da Trindade (AGAMBEN, 2009). Na narrativa teológica
o Pai designa ao Filho a administração da salvação e a direção da história dos seres

137 Jean Hyppolite foi professor no College de France ocupando a cátedra História do pensamento filosófico
até a sua morte em 1970. Hyppolite foi professor de Foucault e também seu orientador. Em 1970 Foucault é
nomeado para ocupar a cátedra do seu mestre Hyppolite passando a ser chamada de História dos sistemas
de pensamento.
472

humanos. Então, o termo oikonomia, importado do grego, e introduzido na teologia


“[...] foi assim especializando para significar de modo particular a encarnação do
Filho e a economia da redenção e da salvação” (AGAMBEN, 2009, p. 36-37). O
Cristo passa a desenvolver conforme a teologia da salvação a responsabilidade da
gestão da economia da redenção (AGAMBEN, 2009).
Por isso, “[...] o oikonomia torna-se assim o dispositivo mediante o qual o dogma
trinitário e a ideia de um governo divino providencial do mundo foram introduzidos
na fé cristã” (AGAMBEN, 2009, p. 37, grifos do autor). Da fusão entre a oikonomia
e a ideia de um governo divino receberia na versão latina a tradução, proposta pelos
padres da Igreja, de dispositio. Sendo assim, existe na genealogia dos dispositivos
apresentada pelo teórico Agamben uma proximidade entre o termo dispositio na
tradução latina com os dispositivos foucaultianos.

Comum a todos esses termos é a referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto


de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar,
governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supõe útil, os compor-
tamentos, os gestos e os pensamentos dos homens (AGAMBEN, 2009, p. 39,
grifos do autor).

O que Foucault se interessou ao desenvolver a noção de dispositivo foi o pro-


cesso histórico da governamentalização do poder. O uso do poder não no sentido
da soberania como um dispositivo que provoca morte, mas, sobretudo, o exercício
do poder para potencializar a vida no sentido biopolítico e administrativo enquanto
disposição de governo. Um ser vivente138 e os dispositivos sobre o mantra da política
da vida. Olhando para esses dispositivos sobre a ótica de Agamben, indubitavelmente,
percebemos a existência tanto dos seres viventes que deixam ser capturados quanto
a presença dos dispositivos que os capturam.
Para tanto, Agamben (2009, p. 40) ao ampliar a noção de dispositivo afirma
como dispositivos não apenas as escolas, as fábricas, os hospitais, os presídios, os
manicômios e os quartéis tal como descreve Foucault, mas “[...] a caneta, a escritura,
a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os
telefones celulares e – porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo
dos dispositivos”. Neste sentido, os dispositivos são “[...] qualquer coisa que tenha
de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres
viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). E a noção de sujeito nessa tessitura é o resultado

138 Aristóteles compreende a substância enquanto uma “ser” (indivíduo) primário. Em segundo lugar, corres-
ponde ao gênero ou a espécie a qual o indivíduo pertence. Então a substância é cada ser que existe em sua
forma e que suporta os atributos: acidente e essência. O acidente é o atributo da substância que pode faltar
sem o “ser” perder sua essência e, no entanto, a essência é o atributo que não pode faltar na substância.
Em Aristóteles podemos compreender que a alma e a racionalidade são propriedades da criatura vivente
(ser humano), ou seja, é o que não pode faltar, pois, é a sua essência. Cada ser vivente possui sua forma
enquanto essência comum aos indivíduos da mesma espécie. A forma, então, é o que o indivíduo é, o corpo
em potência. Desse modo, segundo a concepção de Aristóteles (2001) o ser vivente (com vida) cresce, se
nutre e perece em si mesmo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 473

da relação ou do corpo a corpo entre os seres viventes e os dispositivos. O termo


“captura” nos dispositivos conforme Agamben é mais geral, no entanto passivo, do
que a noção de atravessamento do corpo no âmbito das relações de poder na semântica
dos dispositivos institucionais foucaultianos. Resumidamente pode-se afirmar que
a noção de dispositivo do filósofo Agamben contempla um campo de subjetivação
mais amplo porque inclui qualquer aparato ou elemento que seja capaz de capturar
um corpo humano vivo e subjetivá-lo. No contexto do capitalismo esses dispositivos
se proliferaram multiplicando também os processos de subjetivação. “Certamente,
desde que apareceu o homo sapiens havia dispositivos, mas dir-se-ia que hoje não
haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja moldado, contaminado
ou controlado por algum dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 42, grifos do autor).
A característica dos processos de subjetivação desses dispositivos contempla
a mecânica em que a vida, passivamente, é capturada. O que leva em conta nessa
mecânica é a capacidade de capturar a vida por meio, não apenas, dos dispositivos
concretos, mas de algo abstrato e estratégico e que tenha a capacidade de apropriar dos
gestos, das condutas e da consciência (AGAMBEN, 2009). Esses dispositivos, uma
vez pulverizados nos espaços públicos e privados, tornaram-se máquinas na produção
de subjetividade capaz de responder ao comando, sobretudo, do capital empresarial.
Essa maquinaria seria, também, um instrumento de governo porque o sujeito, mesmo
no uso da sua liberdade, ao se engajar na lógica do mercado responderia ao capital.
Dessa forma, com a proliferação dos dispositivos em nosso recorte temporal
replicam também os processos de subjetivação produzindo múltiplas configurações
de sujeitos de acordo com os dispositivos que os capturam. “Nesse sentido, por
exemplo, um mesmo indivíduo, uma mesma substância pode ser o lugar de múltiplos
processos de subjetivação: o usuário de telefones celulares, o navegador da internet,
o escritor de contos, o apaixonado por tango, o não-global etc.” (AGAMBEN, 2009,
p. 41). Nessa semântica o sujeito deve ser pensado como o resultado que se articulam,
progressivamente, entre o indivíduo vivo, suscetível de ser capturado, e a relação
corpo a corpo com os dispositivos.
Ao apropriamos da noção de dispositivo em Agamben podemos pensar a priva-
tização da vida no contexto das territorialidades do neoliberalismo como uma forma
de precarização da vida, pois, nesse espaço o sujeito aparece com um corpo inerte
passível de ser capturado constantemente pelos múltiplos dispositivos.

A precarização da vida nas territorialidades do capitalismo neoliberal

Com fulcro na discussão agambeniana concernente à captura da vida e o pro-


cesso de exclusão/inclusiva a partir da politização da vida biológica problematizare-
mos a seguir a precarização da vida nas territorialidades do capitalismo neoliberal.
O neoliberalismo ao desenvolver um modo de vida pautado na privatização não
apenas das empresas, mas inclusive da vida e dos direitos essenciais passa a ope-
rar objetivando legitimar projetos de governo que a proteção e a cobertura social
seriam descartadas. Ao passo que as políticas de governo de cunho neoliberal ganham
474

progressivamente outros espaços, além do econômico, como, por exemplo, o espaço


da educação, inicia-se um processo em que ocorre a substituição dos direitos pelos
serviços. Dessa forma, o estudante torna-se um consumidor da educação, esta enten-
dida como um produto da atividade humana destinado à satisfação de necessidades,
o que faz com que a educação deixe de ser um direito para torna-se um serviço a ser
prestado pelo mercado.
Então a privatização lança mão sobre os espaços onde o sujeito poderia ser uma
peça importante para o desenvolvimento do capital. Em nosso estudo apontamos a
educação como um exemplo específico desses espaços. Nessa direção o empreende-
dorismo com foco na educação, funcionando como um dispositivo de captura, vem
se apropriando do espaço escolar com ambições de cunho empresarial. A partir do
início do século XXI, conforme Dolabela (2003), os discursos da educação empreen-
dedora, com seus arranjos no campo econômico, vêm objetivando produzir sujeitos
que sejam capazes de empreender novos postos de trabalho.
“No documento produzido no Fórum Econômico Mundial afirma-se que a
aliança entre empreendedorismo e educação traz a possibilidade de liberar no indi-
víduo sua força criadora e produtiva” (CALIXTO, 2020, p. 11). Segundo Souza
(2012, p. 90) “desde 2008, a rede pública estadual de Minas Gerais já conta com
aulas de empreendedorismo em sua grade curricular, projeto este desenvolvido a
partir de parceria com o Sebrae”. Este projeto “[...] forma os próprios professores da
rede pública para atuarem no ensino de empreendedorismo nas escolas” (SOUZA,
2012, p. 90). Já o Conselho Nacional de Educação (CNE) manifestou-se sobre a
temática, emitindo o Parecer CNE/CEB nº 13 segundo o qual considera a neces-
sidade de tratar do “[...] empreendedorismo no currículo como tema transversal,
que atravessa, portanto, todos os conteúdos, disciplinas e áreas do conhecimento”
(BRASIL, 2010 apud SOUZA, 2012, p. 90).
Sobre essa performance ao “[...] passo em que investe no discurso da indivi-
dualidade, o discurso da pedagogia empreendedora aliança uma forma de governo
que alveja todos e cada um” (CALIXTO, 2020, p. 14). Para tanto, na cultura do
empreendedorismo a “[...] escola está cada vez menos preocupada com a fabricação
de corpos dóceis e cada vez mais ocupada com a fabricação de corpos flexíveis,
corpos que saibam jogar o jogo do livre-mercado” (OLIVEIRA; VALEIRÃO,
2013, p. 576).
Assim, a pedagogia empreendedora139, conforme a lógica do mercado, ao
capturar a vida do estudante e subjetivá-lo despertaria suas aptidões para o auto-
conhecimento e para o empresariamento da vida. Essas noções culminam com a
ideia de um sujeito autônomo, livre, persistente, concorrente, inovador, investidor
e produtor do seu próprio destino. Com isso novos processos de subjetivação estão
emergindo objetivando produzir sujeitos que sejam capazes de tomar decisões “[...]
de assumir responsabilidades, de reflexão, de resolução de problemas, para que,

139 A pedagogia empreendedora é o que Fernando Dolabela (2003) propõe enquanto mudança radical na forma
de ensinar, rompendo com a educação tradicional. Essa pedagogia da ênfase no aprender a aprender, a ser
inovador, competidor, insistente e proativo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 475

aos poucos, essa criança se autodiscipline, regulando seu próprio comportamento


e não simplesmente obedecendo exteriormente” (VINHA; TOGNETTA, 2006
apud AQUINO, 2016, p. 688). A construção desse sujeito visa atender às novas
exigências do capitalismo neoliberal. O que essa forma do capitalismo valoriza
no sujeito

[...] não é o conhecimento formalizado que pode ser aprendido nas escolas tradi-
cionais, principalmente as técnicas. Muito pelo contrário, crescem em importância
justamente aquelas formas de saber que não são formalizáveis ou substituíveis: o
saber da experiência, o discernimento, a capacidade de coordenação, de auto-or-
ganização e de comunicação (CRUZ; SARAIVA, 2012, p. 37).

Então “[...] incluir pessoas de baixa renda e marginalizadas na cadeia produtiva


do negócio – como sócios, fornecedores, distribuidores, empregados etc” (CALI-
XTO, 2020, p. 9) faz parte do credo da pedagogia empreendedora. Essa abordagem
educativa está cada vez mais presente nas escolas estimulando a competitividade
entre os alunos em nome da concorrência, da qualidade dos serviços prestados não
mais pelo “trabalhador”, mas pelo sujeito microempresarial. Dessa forma, estimular
o potencial empreendedor no público jovem significaria

[...] firmar valores como a iniciativa e a busca de oportunidades, bem como a


disposição para inovar e enfrentar desafios e riscos calculados – características
de comportamentos exigidos atualmente tanto para os que optarem pela futura
abertura de um negócio, quanto para aqueles que buscarão uma chance no com-
petitivo mercado de trabalho (CALIXTO, 2020, p. 10).

“O empreendedorismo atualmente se estabelece como um fenômeno cultural


fortemente relacionado ao processo educacional na formação de novas gerações”
(STOCKMANNS, 2014, p. 14) legitimando progressivamente a escolarização da
vida mediada pela racionalidade neoliberal140. O empreendedorismo exerce sobre
os estudantes uma forma de governamentalidade legitimando um modo de vida em
que o sujeito se tornaria o responsável tanto pela gestão da sua própria vida pessoal
quanto da gestão de sua carreira profissional. Quando falamos de governamentali-
dade estamos referindo às formas pelas quais se conduzem a conduta de um sujeito.
Conforme Foucault, a:

[...] “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em todo o


Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo
de poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros – soberania,
disciplina – e que trouxe, por um lado, [e, por outro lado], o desenvolvimento de
toda uma série de saberes (FOUCAULT, 2008c, p. 143-144).

140 A racionalidade neoliberal se impõe como uma nova norma de vida ou um ethos, sobretudo, para as cultu-
ras juvenis comandando as relações econômicas no mundo e transformando a sociedade e remodelando
as subjetividades.
476

No processo de escolarização o sujeito aparece a princípio como um indi-


víduo suscetível de ser capturado a todo momento pelos gigantescos ou mínimos
processos de subjetivação e por conseguinte governado. Então, a partir da ótica dos
dispositivos, conforme Agamben (2009), é possível compreender que o sujeito, na
lógica do neoliberalismo, poderia ser, de forma simultânea, um empreendedor, um
prestador de serviços, um microempresarial ou um usuário das plataformas digitais
dependendo dos dispositivos que o captura. O sujeito, sobre o mantra da liberdade,
é capturado e estimulado a se portar mediante uma multiplicidade que aos poucos
deixa sua originalidade para revestir-se de outros atributos.
No jogo do livre mercado, o neoliberalismo como um modo de vida, almeja,
primeiro, transformar tudo em empresas. Então, a educação, a escola, a cultura e os
sujeitos, na lógica neoliberal, são absorvidos por uma forma de organização social
que funcionaria como uma empresa. É o momento que os direitos sociais, uma vez
privatizados, poderiam ser considerados serviços passíveis de serem comercializados
no mercado. Assim, o sujeito é privado dos direitos essenciais como à educação, à cul-
tura, à saúde, à escola e aos bens de consumo, mas que, nas engrenagens do mercado,
o sujeito terá acesso apenas, contudo precária, aos serviços. Dessa forma, o neolibe-
ralismo, segundo Gadelha Costa (2009), ao se deslocar dos espaços econômicos e
introduzir-se nos espaços sociais como um todo, progressivamente, vai transformando
sujeitos de direito em sujeitos prestadores e consumidores de serviços. Sobre essas
engrenagens o dispositivo discursivo da educação empreendedora, no campo da
educação, ao capturar a vida do sujeito o transformaria em um indivíduo inovador,
concorrente, flexível, microempresarial e investidor em seu capital humano141.
Nesse sentido, trazendo novamente Agamben (2009), podemos ver que tal
processo se torna possível dado que está em curso uma despolitização da bíos, “a
vida qualificada para a pólis”, e uma politização da zoé, “vida biológica”, ou seja,
a exclusão/inclusiva. Na medida em que a vida biológica entra nos cálculos polí-
ticos modernos o sujeito deixa tanto ser capturado pelos múltiplos dispositivos de
subjetivação quanto ser destituído dos direitos básicos essenciais. Desse modo, o
neoliberalismo “[...] faz com que o espírito empresarial e a concorrência sejam a
norma universal de conduta, tocando todas as esferas da existência” (CHIGNOLA,
2015, p. 4) humana conduzindo-a pela governamentalidade neoliberal.
O sujeito ao ser capturado e subjetivado desenvolveria para si um modo de vida
inscrito na lógica empresarial, espaço no qual ele “[...] é convidado à inovação, deve
ser ágil e colaborativo; ele é convidado, em outras palavras, a valorizar as caracte-
rísticas neotécnicas que fazem do homem um animal em constante evolução porque
está constantemente “aberto” em relação ao ambiente e não preso como um animal”
(CHIGNOLA, 2015, p. 14). A ideia de liberdade nessa dinâmica é um convite para
o sujeito conduzir sua vida, “(zoé) politizada”, se responsabilizando tanto pelo seu

141 Segundo Sylvio Gadelha Costa (2009) o capital humano, na racionalidade neoliberal, engloba a noção de
um conjunto de habilidades, capacidades e agilidades que podem ser potencializadas no sujeito usando-
-se dos investimentos financeiros e sua formação. São os atributos humanos que ao serem desenvolvidos
tornam-se valor de troca. Esse conjunto de aptidões humanas quando desenvolvidas adquirem um valor
de mercado. Então, é essa a noção de capital humano.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 477

sucesso quanto pelo seu fracasso. É nessa lógica que a governamentalidade neoliberal
se estrutura em torno da ideia de liberdade implicando ao sujeito o sentimento de
que é possível ser livre no pleno exercício de sua liberdade (FOUCAULT, 2008b).
Conforme Chignola (2015, p. 14) pode-se dizer que em nosso momento
histórico, o biopoder na semântica de Foucault, “[...] se liga ao trabalho de tipo
difuso, livre, precário. O seu modelo: o empreendedorismo autônomo”. O empreen-
dedorismo, como um modo de vida, atua na captura da vida legitimando um
processo de despolitização da bíos e destituindo-a de seus direitos essenciais,
mas ao mesmo tempo potencializa a produção de um sujeito microempresarial.
O empresariamento da vida significa responsabilizar o sujeito pelo investimento
em seu capital humano, privando-o da cobertura e da segurança social por parte
do Estado. Dispondo dessa noção o neoliberalismo vende a ideia de que o Estado
para ser mais eficiente deve privatizar, por exemplo, os direitos fundamentais
como a educação, a saúde e a segurança pública.
Assim, nas territorialidades do neoliberalismo os dispositivos de subjetivação
contribuem para a aceleração da precarização da vida, pois, o empreendedor autô-
nomo, por exemplo, é o resultado da dinâmica entre capital neoliberal e os múltiplos
dispositivos de subjetivação. Daí que a “[...] governamentalidade neoliberal trabalha
em um constante ajuste entre mercado e formas de subjetividade” (CHIGNOLA,
2015, p. 16) via investimento no capital humano pelos próprios indivíduos.
Levando em consideração a lógica dos dispositivos segundo Agamben (2009,
p. 48), nos espaços sociais, com suas ambiguidades, os sujeitos “[...] se apresentam
assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação
que não corresponde a nenhuma subjetivação real”. Os dispositivos em primeiro lugar
implicam um processo de subjetivação (AGAMBEN, 2009). Nos dispositivos disci-
plinares foucaultianos como a escola, a prisão e o hospital, por exemplo, os discursos
de saber e de poder, as disciplinas, as normas e a vigilância implicam em um processo
de subjetivação constante. É um processo que Agamben chama de assujeitamento.
Esse mecanismo de subjetivação implica também em um processo de dessubje-
tivação, pois o sujeito em um dado momento precisa ser reconstruído. Subjetivação
e dessubjetivação ocorre de forma simultânea. No entanto, “[...] os dispositivos com
os quais temos que lidar na atual fase do capitalismo é que estes não agem mais tanto
pela produção de um sujeito quanto por meio dos processos que podemos chamar
de dessubjetivação” (AGAMBEN, 2009, p. 47). No momento histórico do capital
empresarial, os processos de subjetivação e dessubjetivação tornaram-se, segundo
a compreensão do autor, indiferentes porque passam a produzir a noção de um
sujeito que aparentemente é uma máscara ou um telespectador executando diferentes
funções simultaneamente. Algo que difere dos dispositivos em Foucault, pois, nos
dispositivos disciplinares se produzem sujeitos domesticados, “[...] mas livres, que
assumem sua identidade e a sua “liberdade” de sujeitos no próprio processo do seu
assujeitamento” (AGAMBEN, 2009, p. 47).
A genealogia dos dispositivos em Agamben revela que na contemporaneidade
isso não ocorre da mesma forma. Por isso que ele introduziu em sua discussão
o conceito de profanação. “Sagrado e profano representam, pois, na máquina do
478

sacrifício, um sistema de dois pólos, no qual um significante flutuante transita de um


âmbito para outro sem deixar de se referir ao mesmo objeto” (AGAMBEN, 2007,
p. 61-62). A profanação significa trazer para o uso comum aquilo que, pelo disposi-
tivo de sacrifício, foi sacralizado e separado da esfera humana. O terrorista virtual,
do qual Agamben (2009) fala, que surgiu nas democracias pós-industriais, devem
ser dessubjetivados e retornados para a esfera da dimensão das relações humanas.

É por um paradoxo apenas aparente que o inócuo cidadão das democracias


pós-industriais (o bloon, como eficazmente se sugeriu chamá-lo), que executa
pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa que seus gestos quotidianos, como sua
saúde, a sua alimentação e como seus desejos sejam comandados e controlados
por dispositivos até nos mínimos detalhes, é considerado pelo poder – talvez
exatamente por isso – como um terrorista virtual (AGAMBEN, 2007, p. 49).

Então profanar os dispositivos significa, nessa lógica, trazer para a dimensão


humana aquilo que foi capturado e separado no processo de subjetivação que não
corresponde às experiências humanas concretas. Contudo profanar os dispositivos
na lógica do neoliberalismo significaria resistir aos processos de subjetivação pelo
qual o sujeito é susceptível de ser capturado e controlado constantemente.

Considerações finais

Ao analisarmos a politização da vida biológica (zóe) pelas práticas políticas


modernas observamos que esse processo ocorreu a partir da exclusão da bíos, ou
seja, da vida ética e qualificada para pólis. Então o Estado moderno reconhece como
valor a vida biológica e desqualifica a bíos politikos, a vida política. A questão da
exclusão/inclusão foi levantada pelo filósofo Agamben (2007) em sua discussão
sobre a vida nua. A vida natural ao ser inserida nos cálculos da política moderna
foi progressivamente politizada e, consequentemente, entregue ao poder soberano
no estado de exceção.
A vida zoé surge da exclusão/inclusiva abrindo espaço para que ocorra a pre-
carização da vida. Conforme Souza (2017) a precarização da vida acontece em uma
zona de anomia onde a vontade do soberano torna-se a lei ao suspender os direitos
fundamentais dos cidadãos e, assim, criando a exceção. Na exceção a vida é desti-
tuída dos seus direitos e garantias deixando o sujeito na zona do abandono. A vida
abandonada pode ser passível de experimentos e de morte. Então, verificamos que a
captura da zoé se deu a partir de uma despolitização da bíos e a politização da vida
natural, exclusão/inclusiva.
Nas territorialidades do neoliberalismo foi possível compreender que o sujeito
se torna suscetível de ser capturado pelos múltiplos dispositivos de subjetivação.
Na genealogia dos dispositivos de Agamben (2009) podemos verificar que o sujeito
fica suscetível a qualquer objeto que tenha a capacidade de capturar, orientar ou
controlar a vida desse indivíduo. Dessa forma, no período do capitalismo esses
dispositivos se multiplicaram da mesma forma que a vida se tornou palco dos
múltiplos processos de subjetivação.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 479

A partir da discussão sobre a captura da vida e o processo de exclusão/inclusiva


pela politização da vida biológica foi possível compreender que a precarização da
vida nas territorialidades do capitalismo neoliberal ocorre na lógica da privatização
dos direitos essenciais. O neoliberalismo ao desenvolver um modo de vida pautado
na privatização da vida transforma o cidadão de direito em um sujeito prestador de
serviço. Dessa forma, a educação, a saúde, a cultura e a segurança por exemplo dei-
xam de ser, nessa lógica, um direito e passa a ser um serviço prestado pelo mercado.
Assim, os direitos essenciais são absorvidos por uma forma de organização social
na qual tudo funciona como uma empresa.
Na lógica do mercado a precarização da vida nas territorialidades do neolibera-
lismo perpassa pelas políticas das privatizações. Em síntese podemos compreender
que o empreendedorismo, com ambições de cunho econômico, ao introduzir-se no
espaço da educação tornou-se um dispositivo de captura que a princípio almeja
construir um sujeito que seja capaz de empreender, inovar, ter flexibilidade e assumir
a responsabilidade pelo investimento em seu capital humano. Portanto, o sujeito
nesta lógica progressivamente é destituído dos seus direitos fundamentais ao passo
que é capturado e subjetivado pelos múltiplos dispositivos no contexto do capita-
lismo neoliberal.
480

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VIDAS PRECÁRIAS,
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ÉTICA E RESISTÊNCIAS
Kellen Maria Sodré Machado
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Em seis de fevereiro de dois mil e vinte e dois, o jovem Yago Corrêa de Souza,
com vinte e um anos de idade, morador do bairro Jacarezinho, situado na Zona Norte
do Rio de Janeiro, foi preso próximo a sua residência, ao sair para comprar pão para
um churrasco em família. Yago foi acusado de participação em um crime de tráfico
de entorpecentes. Contudo, não houve evidência alguma que pudesse ligar o jovem
ao ocorrido. Mesmo assim, Yago não deixou de passar pela experiência do encarce-
ramento, que ao inscrever-se em seu corpo, parece afirmar o lugar e papel social que
a sociedade direciona a jovens como ele. Sua prisão gerou protestos na comunidade
até a data de sua soltura, que se deu dois dias após.
“Hoje a favela nasceu!”, pronunciou a irmã do jovem em entrevista à rede de
notícias UOL, referindo-se à pressão social gerada pelos protestos que resultaram na
soltura do jovem e posteriormente no arquivamento do processo142.

***

Vivenciamos um momento especialmente delicado em que o que conhece-


mos como Estado de Direito vem sendo deturpado diante de nossos olhos. Os
fascismos cotidianos, micro e macro, ganham força legitimados por um modelo
político que ascendeu a partir da exaltação do capital em detrimento da vida
e da promessa de resgate de uma moral social que despreza a existência das
minorias, das diferenças, e de todos aqueles que não atendem aos interesses das
classes dominantes. Presenciamos a constante violação de direitos fundamentais
que recai sobre as camadas da população historicamente subalternizadas e nossa
capacidade de afetação frente ao sofrimento e injustiças sociais parece tornar-se
cada vez mais entorpecida.

Quando o crime acontece como a chuva que cai, ninguém mais grita “alto!”.
Quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis.
Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de verão (BRECHT, 1913-1956).

142 Justiça solta jovem negro preso enquanto comprava pão; 'alívio', diz irmã... – Disponível em: https://noticias.
uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/02/08/justica-solta-jovem-negro-preso-enquanto-comprava-pao-
-alivio-diz-irma.htm: Jovem preso ao comprar pão é solto pela Justiça; 'alívio', diz irmã (uol.com.br). Acesso
em: 18 fev. 2022.
484

O poema de Brecht faz referência aos horrores da segunda guerra mundial,


contudo, cabe perfeitamente para uma leitura dos tempos atuais, tendo em vista
os diversos fascismos que perduram ou se instauram de modo legalizado ou não.
Em 1973, Ney Matogrosso também denunciava os regimes totalitários, cantando
a quem segura a primavera entre os dentes, assinalando que é preciso força para
saber que existe143. Força essa cada vez mais demandada aos segmentos popula-
cionais que são colocados à margem do sistema neoliberal, para quem o estatuto
de humanidade é negado e o direito à vida, à própria existência, é concebido não
como condição à priori, direito humano garantido, mas uma conquista diária, con-
dicionada a servidão e utilidade econômica.
Nestes tempos sombrios em que a morte parece estar entranhada no corpo
social e o projeto genocida se traveste de política de segurança para legitimar-se
como política oficial, resistir configura uma necessidade, sobretudo em locais onde
o poder se coloca na despotencialização da vida e das subjetividades. Torna-se assim,
imprescindível discutir os processos políticos, sociais e econômicos que movem essas
engrenagens e estabelecem limiares entre locais de vida e de morte e os modos de
resistência que emergem como possibilidades frente a este cenário. Tomando como
ponto de partida atravessamentos de raça e classe, o presente capítulo busca eviden-
ciar alguns desses processos, discutindo a resistência em seu âmbito ético/ político a
partir de cenas que refletem acontecimentos cada vez mais frequentes, onde a extrema
precarização das vidas faz da resistência não somente um modo de enfrentamento, mas
condição para manutenção da sobrevivência, afirmação e resgate da vida enquanto
potência. Busca-se discutir, ainda, a dimensão sensível da resistência que convoca
a movimentos no sentido da criação de possibilidades outras, a partir das noções
de precariedade, apresentada por Butler (2006) e esgotamento, de Deleuze (2012).
A discussão aqui apresentada parte da dissertação de mestrado da primeira
autora, orientada pela segunda, onde buscou-se refletir acerca das condições de possi-
bilidade para as resistências que emergem como modos de tensionamento às práticas
necropolíticas operadas nos territórios periféricos. As reflexões foram construídas
a partir de experiências de trabalho como psicóloga na área da garantia de direitos
humanos e políticas públicas voltadas às juventudes. Foram realizados alguns desloca-
mentos, na tentativa de abarcar acontecimentos mais recentes, buscando acompanhar
as constantes movimentações políticas e sociais.

Sufocamentos cotidianos

Eu vivo em tempos sombrios.


Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez,
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri

143 Música Primavera nos dentes, composta por João Ricardo e João Apolinário e interpretada pela banda Secos
e Molhados, liderada pelo cantor Ney Mato Grosso, em 1973. A música ficou conhecida por sua poesia de
afronta a ditadura, burlando a censura da época.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 485

é porque ainda não recebeu a terrível notícia.


(BRECHT, 1913-1956).

No dia quatro de abril de dois mil e vinte e dois, a política genocida escreveu
uma de suas mais tristes cenas de terror. O jovem Cauã da Silva dos Santos, com
dezessete anos de idade, foi assassinado com dois tiros desferidos por policiais ao
sair de um evento que ocorria na comunidade do Dourado, no Rio de Janeiro, onde
residia. Seu corpo foi jogado em um valão próximo ao local, de onde os moradores
o retiraram na tentativa de socorrê-lo.
Cauã era lutador de jiu-jitsu e de luta livre, trabalhava em um ferro-velho e fazia
parte de um projeto social em sua comunidade. No dia anterior, havia comemorado
a classificação em uma competição mundial de luta. Entretanto, nem mesmo suas
batalhas diárias o levaram a obter a classificação social que hierarquiza as vidas
humanas, determinando quais vidas merecem e podem ser vividas e quais as vidas
que são consideradas abjetas e tornam-se, de tal modo, passíveis ao extermínio do
Estado. A ele foi negado não somente o direito de representar o país, mas a possibi-
lidade de um futuro, a própria existência.
Em nota, a polícia militar afirmou que havia entrado em confronto com cri-
minosos armados, que se jogaram no valão para escapar144. O fato suscitou fortes
protestos na comunidade, que contestou veementemente a versão da polícia. A família
do jovem em meio à dor, busca demonstrar a inocência de Cauã, impedindo que as
falsas acusações não somente encubram o brilho de sua existência, mas, produzam
a indiferença frente ao seu extermínio. O esforço para denunciar a injustiça ocorrida
torna-se uma necessidade quase que vital.

***

Embora em ambas as situações não haja elementos que possam justificar a


conduta da polícia, não podemos tratar a prisão de Yago e a morte de Cauã como
enganos e nem mesmo fatos isolados. Jovens negros, pobres, moradores das perife-
rias, reúnem em si as características do grupo populacional sobre quem os braços do
estado recaem do modo mais perverso. Como eles, outros tantos têm sido mortos ou
encarcerados sem ter nem mesmo o direito a uma investigação e defesa adequados,
são emaranhados nas estruturas de um sistema de governo pautado pelo extermínio,
exclusão e apagamento de todos aqueles que não representam os interesses das clas-
ses hegemônicas, o que Mbembe (2016) descreveu como necropolítica, onde a vida
passa a ser subjugada ao poder da morte.
Os escritos de Mbembe nos ajudam a compreender como os processos coloniais
e o sistema capitalista operam colocando o sujeito em uma “terceira zona entre o
status de sujeito e objeto” (MBEMBE, 2017). Suas reflexões, quando extrapoladas ao
cenário atual, nos levam a pensar os modos de organização social que nos colocam

144 Reportagem disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/04/05/familia-acusa-


-pm-corpo-de-adolescente.htm. Acesso em: 10 abr. 2022.
486

diante do que podemos descrever como um verdadeiro processo de genocídio, inter-


seccionado por fatores de raça e classe muito bem delimitados. De acordo com ele, a
necropolítica atua a partir de um processo de desumanização de determinados sujeitos,
que passam a ser considerados como inimigos, ameaçadores à ordem e bem-estar
social, tornando-se dessa forma, passíveis de aniquilação. Ao retratar os modos de
terror do período colonialista, o autor ressalta a questão racial como elemento crucial
nessa relação. Em relação a isso, Mbembe (2016) aponta que a escravização foi uma
das primeiras experiências biopolíticas, onde o processo de desumanização do sujeito
escravizado o assujeita a todos os tipos de violações, resultando no que denominou
como uma forma de morte-na-vida.
Assim, esse exercício do poder de vida e morte sobre as camadas historica-
mente subalternizadas da população por meio da gestão policialesca da miséria, de
estratégias de exclusão, disciplinamento e da omissão do Estado, permanece e se
atualiza desde o período escravocrata. As estratégias de confinamento, tanto psiquiá-
trico como carcerário foram utilizadas no Brasil como modos de controle do povo
negro no período da “abolição da escravatura” em resposta ao medo de uma suposta
insurreição (WERMUTH, 2018, p. 7). Com o surgimento do código penal, em 1890,
acentuou-se ainda mais a repressão sobre a população negra, criminalizando suas
práticas, como por exemplo, a capoeira, que representa em seus princípios a união,
através da roda e em seu passo básico, a ginga, o movimentar-se, as linhas de fuga
que não reproduzem a truculência recebida. Cerceá-la, na época, foi um dos modos de
manifestação do poder, do controle sobre os corpos e as possibilidades de construção
de quaisquer narrativas que estejam em desacordo com os interesses dominantes.
Nesse cenário, o discurso higienista que associava o modo de vida da população
negra, em aglomerados urbanos, ao risco de proliferação de doenças, serviu para
viabilizar a segregação espacial, expulsando a população negra para as periferias das
cidades. Desse modo a união de saberes científicos e as relações de poder atuaram
no sentido de intensificar os abismos sociais.
E é justamente nas periferias que o processo de extermínio segue seu curso.
A passos firmes, largos e silenciosos, ele não escolhe cidade, estado ou região, está
presente do norte ao sul no país, mas se pauta por questões de cor, classe social
e território. São os jovens negros, pobres, moradores das periferias que mais têm
suas vidas aniquiladas, seja de forma concreta, praticada em muitas situações pelo
próprio Estado que deveria protegê-los, seja simbólica, por meio da exclusão que
impossibilita acessos a recursos básicos como saúde, educação e profissionalização
e, sobretudo, a construção de projetos de vida, impossibilita o desejo, o devir, o
sonho. Diante disso, resta-lhes muitas vezes o envolvimento com atos que conflitam
com a lei, na tentativa de garantia de sobrevivência, tornando-os sujeitos do sistema
punitivo, transformados em inimigos da sociedade, sobre quem se personifica toda
a questão da violência. Suas vidas, consideradas abjetas, passam a ser consideradas
ameaçadoras a suposta proteção das classes mais privilegiadas e seu extermínio,
validado como estratégia de segurança.
Esse cenário torna-se ainda mais agravado pelo sistema neoliberal, que atua
na produção de uma massa de sujeitos considerados supérfluos, aqueles que não
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 487

atingem os critérios necessários para alimentar as engrenagens do capitalismo, por


não conseguirem ocupar postos de empregos formais ou não possuírem poder de
consumo, ou seja, tornam-se dispensáveis aos interesses econômicos, sendo jogados
às margens da sociedade. Sobre eles, as engrenagens do Estado operam ações con-
cretas e ativas de negação da vida, através do desamparo estrutural e do extermínio
propriamente dito. Assim, tal como no período escravocrata, onde os corpos negros
eram mantidos vivos por sua função produtiva, observamos que os sujeitos a quem
a vida é permitida no contexto periférico também possuem papeis bem delineados
na cadeia econômica do país, seja como mão de obra barata à serviço das classes
dominantes, seja para alimentar o sistema carcerário.
Ao investigar os processos históricos que reverberam nas atuações da polícia
nas periferias, Wermuth (2018), a partir dos estudos de Flauzina (2008), aponta
que se foi “na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se
consolidar, pode-se afirmar que é na dominação étnica contemporânea que [ele]
continua a operar em seus excessos” (p. 292). Assim, as marcas da perversidade
do escravismo permanecem vivas, alimentando práticas excludentes e punitivas e
impactando diretamente na vida das juventudes nas periferias, que convivem com
o signo da morte, inscrito a partir dos movimentos que provocam seu extermínio.
É na violência da sociedade escravocrata, portanto, que se pode buscar um gérmen
das “atuais políticas informais de matar pobres e pretos indiscriminadamente efe-
tuadas por todas as polícias do Brasil, por conta do aval implícito ou explícito das
classes médias e altas”, bem como das “chacinas comemoradas por amplos setores
sociais de modo explícito, em presídios de pretos e brancos pobres e sem chance
de se defender” (SOUZA, 2017, apud WERMUTH, 2018, p. 293).
Sob o pretexto da segurança, com narrativas como a da “guerra às drogas”, os
corpos de jovens negros e pobres seguem submetidos às mais sofisticadas formas de
exclusão, garantindo a manutenção dos privilégios das classes hegemônicas. Contudo,
ainda assim, convivemos com o mito da democracia racial, que encobre o racismo
a partir de discursos que negam o preconceito e tratam a questão como estabilizada,
cunhando discursos individualizantes e meritocratas, que favorecem o silenciamento
e aceitação social da violência. Como nos atenta Duarte (2018), para que o genocídio
possa se movimentar, é preciso o consentimento, é necessário que haja um fluxo de
vontade de uma maioria hegemônica, que se expressa no silêncio e na inércia da
branquitude. Para ele, esse silenciamento é um elemento central do genocídio, pois
nega a produção da humanização dos corpos mortos: “o silêncio sobre a morte é a
morte entranhada como realidade social” (p. 19).
Para compreendermos o modo como o poder de morte atua sobre o poder da
vida, refere Mbembe (2015), é necessário analisar os dispositivos de organização
da morte, presentes, sobretudo, nas realidades coloniais, onde o Estado organiza a
vida a partir do destino da morte. Ele aponta um horizonte onde as parcelas do poder
aparecem não somente como modo de organização de formas da vida, mas como o
poder que vai definir as condições da morte, trazendo a percepção de que a morte
não é significada de forma igualitária em uma mesma sociedade. Assim, a gestão
488

sobre uma população está relacionada ao poder de determinar quais são os corpos
matáveis. O cenário de morte e destruição torna-se ainda mais agravado frente ao
adensamento das condições de vulnerabilidade social, decorrentes da elevação dos
índices de pobreza e miséria na população brasileira nos últimos anos, agravados
pela pandemia de covid-19 e pela intensificação de discursos de ódio direcionados
às camadas populacionais tidas como minorias.
A omissão social frente à política genocida ancora-se em reflexões rasas que
tendem a culpabilizar os sujeitos por suas condições de vida e categorizar vidas em
“escalas hierárquicas”, determinando quais as vidas podem e merecem ser vividas
e quais as vidas cuja perda não deve ser lamentada, pois estão precarizadas de tal
forma que nem mesmo chegam a ser consideradas como vidas. São as vidas não
passíveis de luto, descritas por Butler (2015), as quais não é permitido ou validado
um luto público, pois, o estatuto de humanidade já havia lhes sido retirado. Jargões
como “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos”
inflamam discursos políticos cooptando a opinião pública, que reafirma seu apoio e
omissão frente a política de morte, levando ao entendimento de que há uma lógica
em curso que autoriza determinados tipos de violência, dependendo de quem a
pratica e contra quem é praticada. Ou seja, temos uma violência explicitamente
praticada e implicitamente aceita.

***

Paola Corrêa, de 18 anos, estava desaparecida havia quatro dias quando um


vídeo com cenas de sua execução passou a circular na internet. No vídeo, a jovem
entra em uma cova, com as mãos amarradas nas costas, ajoelha-se e ajeita-se, tentando
acomodar-se de algum modo, quando lhe são desferidos os dois tiros pelas costas que
interromperam sua vida. De acordo com as reportagens que circularam sobre o caso,
o motivo da morte foi uma postagem em rede social criticando o ex-namorado, que
se encontra preso e é suspeito de ter sido o mandante do crime145.
Diversas pessoas que leram as reportagens ou assistiram ao vídeo passaram a
emitir seus posicionamentos através das redes sociais, muitos deles culpabilizando
a vítima por sua própria morte. Não bastasse isso, também circularam áudios, possi-
velmente falsos, que associavam a jovem ao tráfico de drogas e fotos que tentavam
evidenciar um comportamento em desconformidade com as normas sociais vigentes,
que ditam quais são os comportamentos esperados para as mulheres. As tentativas
de justificar a morte de Paola representam não somente a indiferença em relação a
sua vida, mas uma tentativa desesperada de manutenção de uma estabilidade que
nos distancia de determinadas vidas, mantendo-nos confortavelmente estáticos às
barbáries e convenientemente alheios ao curso da violência.

***
145 Reportagem disponível em: http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/dia-a-dia/noticia/2018/05/morte-de-jovem-
-registrada-em-video-e-tratada-como-feminicidio-pela-policia-civil-10346069.html.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 489

Buscando desnaturalizar a aceitação de determinadas mortes, Butler (2015)


nos convoca a pensar os diferentes modos de percepção da vida, lançando o ques-
tionamento “o que é uma vida?” Para ela, não é possível fazer referência ao “ser” da
vida fora das operações de poder, sendo um destes mecanismos, o enquadramento,
que trata das molduras sob as quais a vida é apreendida. Esse “ser” se encontra em
relação com as normas, organização social e política que se desenvolve historica-
mente podendo maximizar ou minimizar sua precariedade e os enquadramentos que
a apreendem, não somente organizam a experiência visual, como geram ontologias
sobre os sujeitos. Trata-se de condições normativas que produzem e deslocam os
termos que atribuem reconhecimento a estes sujeitos. Assim, o reconhecimento de
uma vida está relacionado ao conjunto normativo sob o qual se encontra. A autora
ressalta ainda, que a norma não é condição única e determinante para o reconhe-
cimento de uma vida, podendo ser transpassada por outros fatores, que venham a
enquadrar o enquadramento ou o enquadrador.
Nesse sentido, Butler (2015) explica que há um esquema interpretativo tácito
que distingue as vidas que serão consideradas dignas das não dignas. Esse sis-
tema funciona fundamentalmente através dos sentidos e é desenvolvido a partir
de movimentos de uma apreensão seletiva do mundo que diferencia “os gritos que
podemos ouvir dos que não podemos, as visões que conseguimos enxergar das
que não conseguimos” (p. 83). Assim, a exclusão se instaura e se mantém graças
a construção da alteridade que se faz baseada em enquadramentos difundidos de
diversos modos, influenciando nossas percepções.
Nos últimos dois anos, a pandemia de covid-19 materializou a nossa asfixia,
presentificando a questão da morte no cotidiano social. Os lutos impossibilitados
pela necessidade de cuidados sanitários e pela velocidade dos acontecimentos, endu-
receram ainda mais nossa capacidade de percepção e afetação em relação ao sofri-
mento, as mortes prematuras e a omissão do Estado. Não podemos, porém, deixar de
observar que embora o vírus tenha adentrado o país através das classes elitizadas, foi
novamente o povo das periferias quem mais sofreu seus efeitos. A questão da territo-
rialidade foi elemento de intensificação da vulnerabilidade, já que são os moradores
das favelas e periferias os mais atingidos pela precariedade de acesso às condições
mínimas saúde, meios de subsistência e, até mesmo, saneamento básico, para manter
os cuidados recomendados pela Organização Mundial de Saúde.
Um estudo realizado pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde
(NOIS), no ano de dois mil e vinte, analisou as diferenças na proporção de óbitos
e recuperados nas internações hospitalares por covid-19 no Brasil, com base em
variáveis demográficas e socioeconômicas. A pesquisa apontou que as taxas de
letalidade no Brasil são influenciadas sobretudo pelas desigualdades no acesso ao
tratamento adequado, sendo que os pacientes negros e pardos que vieram a óbito
representam um número 21% maior que os brancos. Embora a pesquisa tenha sido
centrada em questões relacionadas ao acesso à saúde, podemos estender essa refle-
xão à impossibilidade de realizar adequadamente o isolamento social, orientado
como estratégia de prevenção, pelas camadas que possuem vínculos de trabalho
mais precarizados ou mesmo informais, as quais as políticas públicas adotadas pelo
490

governo não foram suficientes para suprir as necessidades básicas. Assim, perce-
bemos nessa situação mais um modo de atuação da política de morte, selecionando
as vidas a serem preservadas e as que seriam sacrificadas em favor da manutenção
da economia e dos processos capitalistas.

***

No dia onze de junho de dois mil e vinte, um homem negro é filmado na


beira da praia, em Copacabana, em um ato silencioso de recolocar cruzes que
haviam sido cravadas ao chão em um protesto realizado pela ONG Rio na Paz. As
cruzes representavam os mortos pela pandemia de COVID 19, tinham o objetivo
de visibilizar a quantidade de vidas perdidas e foram posteriormente retiradas por
pessoas contrárias ao protesto. O homem, que havia perdido seu filho de vinte e
cinco anos, vítima da doença, pediu respeito às pessoas, quebrando o silêncio ao
bradar pelo reconhecimento de seu luto. Envergonhados, aqueles que criticavam o
protesto, retiraram-se do local146. Seu ato solitário o levou até o congresso nacional,
onde sua voz ecoou, incômoda aos ouvidos daqueles que deveriam e poderiam ter
evitado a catástrofe que se instaurou.

***

Nem bem ainda recuperamos o fôlego que a pandemia nos tirou e nos deparamos
com mais uma cena estarrecedora, que vem por confirmar o avanço dos mecanismos
da brutalidade dos tempos atuais. No dia vinte e seis de maio, deste ano, Genivaldo
de Jesus Santos, com trinta e oito anos de idade, pai de dois filhos, foi torturado e
assassinado por policiais, na frente de diversas pessoas, inclusive seus familiares,
que nada puderam fazer para lhe socorrer147.
Genivaldo era negro, portador de esquizofrenia, estava sozinho e desarmado.
Foi abordado por conduzir uma motocicleta sem capacete e, após diversas agres-
sões, trancafiado no camburão da viatura com uma bomba de gás lacrimogênio, que
provocou a sua morte por asfixia. O sufocamento de Genivaldo é o sufocamento de
toda a sociedade, que se encontra imersa em uma contemporaneidade cada vez mais
brutalizada. O crime, por sua operacionalização nos remonta diretamente aos regimes
totalitários, conforme nos lembra o jornalista João Filho (2022)148, parafraseando
a música de Marcelo Yuka149: ““todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.
Depois dessa sessão de tortura sádica em Sergipe, poderíamos acrescentar que “todo

146 Reportagem disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/11/pai-de-vitima-da-covid-19-


-que-recolocou-cruzes-em-protesto-no-rio-pede-empatia-e-compaixao.ghtml. Acesso em: 3 abr. 2022.
147 Reportagem disponível em: Homem morre em 'câmara de gás' improvisada em viatura policial no SE (uol.
com.br). Acesso em: 3 jun. 2022.
148 Reportagem disponível em: Genivaldo e a câmara de gás: projeto de morte que asfixia o Brasil (theintercept.
com). Acesso em: 3 jun. 2022.
149 Música “Todo o camburão tem um pouco de navio negreiro”, lançada em 1994, pela banda O Rappa, liderada
por Marcelo Yuka.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 491

camburão tem um pouco de Auschwitz”“. Apesar das tentativas de justificação do ato


pelas forças policiais, o caso teve repercussão internacional e as denúncias e protestos
suscitados pela morte de Genivaldo, chegaram até o ONU – Organização das Nações
Unidas, que cobrou uma investigação célere e completa às autoridades brasileiras.

Respirando em meio ao caos

E no centro da própria engrenagem, inventa a contra mola que resiste150

Nos últimos tempos as periferias têm se levantado em protestos, demonstrando


sua indignação com as barbáries vivenciadas diariamente. Sua voz tem ressoado dos
mais diversos modos: pela arte, cultura, produção científica, movimentos de lutas,
protestos, entre outros. Cartazes empunhados denunciam as injustiças e a negação da
vida: “Parem de nos matar”; “Merecemos viver sem medo de morrer”; “As mães negras
não aguentam mais chorar”; “Não era uma arma, era um guarda-chuva”. Declarações
que parecem óbvias, mas na realidade não funcionam como se fossem.
Tão potentes quanto os movimentos que ganham força coletiva para transpor
as barreiras do silenciamento e da invisibilização, fazendo-se audíveis e visíveis para
além dos limites dos territórios periféricos, são as resistências cotidianas. Pequenos
atos insurgentes, anônimos, que emergem das lutas minúsculas e diárias, subvertendo
o sistema e reafirmando a vida, como pequenos fachos de luz, que em contraste com
o cinza, quebram a dureza do que poderia ser somente um cenário gris e mórbido
e possibilitam a sobrevivência, apesar de tudo. Afirmam a potência dessas vidas
que insistem em sobreviver em lugares onde a ordem é o aniquilamento, que são
marcadas, mas que também buscam deixar suas marcas, afirmando sua existência,
forjando as possibilidades de viver e resistir. Nesse contexto, sofrimento e resistência
estabelecem uma relação muito próxima.

***

Uma vez, um jovem que frequentava as oficinas socioeducativas do CREAS –


Centro de Referência Especializado de Assistência Social – me disse: “Eu tenho mais
medo da polícia do que do traficante. O traficante ajuda, dá brinquedo para as crianças...
A polícia quando entra na vila, é sempre pra ferrar alguém ou matar”.
Pedro se impressionava com cenas de velório. No bairro onde morava, na zona
periférica de São Leopoldo/ RS, isso era frequente. É um desses lugares onde se nasce
e morre quase que por acaso ou acidente. Ele seguidamente comentava durante as
discussões nas oficinas. Aliás, naquele momento em que Pedro participava, as oficinas
eram realizadas dentro de um espaço na Secretaria de Assistência Social e Cidadania
chamado de plenarinho, pois, ali também ocorriam algumas reuniões. No entanto, o

150 Alusão à música Primavera nos Dentes, Secos e Molhados (1973).


492

local estava sendo usado também para guardar os caixões que eram fornecidos pela
assistência social. Assim, os jovens que participavam dividiam o espaço com caixões
grandes e pequenos. Os de criança sempre os mobilizavam mais.
Talvez isso nos diga algo sobre o lugar que é reservado a estes jovens...
Um dos pequenos prazeres da vida de Pedro era quando passava por abordagens
policiais e não encontravam nada que lhe pudesse incriminar. Gostava de levantar
a camiseta e mostrar que não estava portando armas nem drogas. Apesar do frio na
barriga, da tensão e medo que sentia nesses momentos, a sensação que ele descrevia
era como se tivesse frustrado a expectativa de uma sociedade inteira sobre ele151.

***

Os atos de resistência, movimentos sociais e processos de lutas, sejam eles cole-


tivos, singulares e até mesmo silenciosos, atuam tensionando, promovendo pequenas
brechas no sentido de escapar do assujeitamento operado pelos dispositivos normati-
zadores, desestabilizando a ordem social. Neste contexto, em que direito e violência
se confundem conforme os interesses das classes hegemônicas, literatura, música,
arte, movimentos culturais populares, manifestações sociais tornam-se modos de
denúncia e enfrentamento. Contudo, percebemos que no atual modelo de governo são
atacados, deturpados, expondo assim, a tentativa de silenciamento a todas as formas
de resistência, que se atualiza no constante embate entre as forças massificantes do
Estado e as fissuras que vão se fazendo possíveis.
As relações de poder, contudo, de acordo com Foucault (1989), estão distri-
buídas como multiplicidades de forças, podendo assim se transformar, reforçar,
inverter e coexistir com as possibilidades de resistência emergentes. Essa correlação
de forças presente desde o período da colonização, atualiza-se em práticas cada
vez mais truculentas de repressão e precarização da vida. Práticas que buscam o
silenciamento, invisibilização e aniquilação destes sujeitos, que ao denunciarem,
muitas vezes com seus próprios corpos as barbáries a que estão expostos, ao não se
resignarem aos projetos de dominação das elites, se tornam insuportáveis ao poder,
pois manifestam a tão temida potência de sua insurreição, como modo de resistência
ao poder individualizante das forças opressoras.

***

No dia dezessete de outubro de dois mil e vinte e um, imagens de pessoas


adentrando um caminhão de coleta de lixo em busca de alimentos inundaram as
redes sociais. O vídeo foi gravado na cidade de Fortaleza152, no Ceará. As imagens
não deixam dúvidas sobre quais corpos são esses, que quebram a paisagem do bairro
Cocó, destoando a simetria dos seus imponentes prédios, compelidos a medidas

151 Fragmento da dissertação de mestrado de Machado, K. M. (2020).


152 Reportagem disponível em: Pessoas procuram comida em caminhão de lixo em Fortaleza; veja vídeo –
18/10/2021 – Mercado – Folha (uol.com.br). Acesso em: 1 abr. 2022.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 493

desesperadas na tentativa de não sucumbir à morte pela fome, a escravatura atual,


como colocado por Maria Carolina de Jesus (1993). Trata-se de mais uma das muitas
nuances do projeto necropolítico que atinge a população pobre, negra e periférica,
uma das atualizações mais perversas da política de morte. Frente a isso, a escolha
desesperada de sobreviver apesar de tudo, de garantir a sobrevivência dos seus.

***

É necessário que possamos pensar crítica e eticamente acerca dessas lutas cons-
tantemente impostas a determinados sujeitos, buscando também reconhecermo-nos
enquanto parte dessa sociedade que produz a desigualdade e a precarização extrema
de vidas. A cena de seres humanos em condições de vida tão degradantes, recorrendo
a atitudes extremas para alimentar-se, ressoa-nos demasiado incômoda possivelmente
porque nos aproxima de nossa própria precariedade enquanto seres humanos. Coloca
em evidência nossas necessidades mais básicas de sobrevivência e simboliza uma
realidade o qual estamos todos imersos, onde os direitos mais básicos, a alimentação, a
dignidade, a vida, podem ser negados, omitidos ou retirados. Butler (2006) nos explica
sobre a potência das imagens no sentido do reconhecimento da alteridade, contudo,
nos alerta para o nosso modo de percepção e assimilação, conforme a forma como nos
são apresentadas, os enquadramentos. De acordo com ela, os enquadramentos estão
em constante disputa. Contudo, a tarefa de subverter o enquadramento não pode ser
somente daqueles sobre os quais a opressão está posta. Há sempre uma implicação
coletiva, entendendo que ninguém está apartado da pólis, portanto, mesmo o silêncio
e a apatia exercem uma função neste sistema.

Por uma ética do desassossego

Ao tecermos um olhar panorâmico aos territórios periféricos evocando seus


contornos e paisagens, o que se acentua à cena são as condições de desigualdade
e vulnerabilidade. No entanto, um breve deslocamento, tal qual um movimento
de luz e sombras que alternam os planos de foco, nos leva a percepção do que se
encontra embaçado ao fundo da imagem, o que está ao redor, do lado de fora: nossos
modos de organização urbana e social que delimitam cenários que se compõem em
centro, bairros e favelas. No cinema, esse efeito é obtido através do diafragma da
câmera, o qual regula as passagens de luz, tem entre seus objetivos, regular o que
o público pode ver, direcionando sua atenção para um detalhe específico da cena,
impedindo que veja o restante.
Do mesmo modo, as narrativas que se constroem acerca dos territórios perifé-
ricos, passam a exibi-los como locais de extrema violência e à margem da lei, des-
potencializando seus sujeitos e histórias, capturam nosso olhar distanciando-nos de
uma compreensão mais ampla da realidade que nos cerca. Por outro lado, a percepção
do todo nos coloca diretamente na cena, enquanto atores sociais e nos convoca a
ação. Deslocar os holofotes da questão da violência individualizada localizada nestes
494

territórios, nos coloca frente a uma série de violências outras ainda maiores que são
orquestradas fora deles. Trata-se da violência da exclusão, da descartabilidade das
vidas e da indiferença, violências que são coletivas, muitas vezes amparadas no
medo e na inércia, que reforçam discursos de ódio e sustentam pequenos e grandes
fascismos cotidianos.
Nesse sentido, Deleuze e Guattari (1996) nos lembram de que tudo é político
e que “toda a política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” (p. 83).
Constatamos deste modo que a ação de cada sujeito, seja ela afirmativa ou mesmo
de omissão, assume caráter político uma vez que possui a propriedade de confrontar,
desviar, subverter ou confirmar o modus operandi do sistema. Já Trindade e Fonseca
(2009) nos interpelam a pensar a possibilidade de uma política “da vida, dos acon-
tecimentos, da diferença”, elas assinalam que a vida é política em si mesma e que o
que se desenreda em seu seio é um jogo de forças e dominação, apoiada na cadeia dos
significantes forças-disputa-dominação. Sendo a dominação relacionada ao desejo,
afetando-se nos encontros e adquirindo caráter político a partir de sua finalidade para
o sujeito. Elas nos lembram ainda que os afetos, para Deleuze e Guattari (1997), são
“armas de guerra”. Assim, esses significantes devem ser corrompidos a cada novo
trabalho, sob o risco retornarmos ao estereótipo do signo do poder.
Ao recorrermos às reflexões de Foucault (2011), sobre as possibilidades de
transformação das relações de poder, alertamo-nos para a capacidade cada vez mais
elaborada e complexa de seu exercício, inclusive na própria criação e modulação
dos afetos e do desejo, que são influenciados pelos regimes de verdades construídos
e saberes produzidos. Retomando o pensamento Butleriano (2006), podemos inferir
que corromper os afetos implica atentarmo-nos a maneira politicamente regulada
como reconhecemos a vida, a humanidade, a perda e a violência. Para ela, a vida não
pode ser pensada de modo independente, e sim como algo que acontece mediante a
exposição e coabitação ética uns com os outros. De acordo com a autora, o desejo é
externo ao sujeito, se origina a partir das pessoas que o precederam e conserva certa
dimensão do externo, mesmo quando tomado pelo próprio sujeito. Assim, o outro
é condição de possibilidade para a vida afetiva. Para ela, a consciência está condi-
cionada pelo desejo, sendo ele dependente de uma base normativa que nos é prévia
como sujeitos e que também funciona como condição de possibilidade. A autora
coloca ainda que, para se tornar parte de um encontro ético, é necessário perceber e
reconhecer uma certa vulnerabilidade. Esse reconhecimento, quando efetivo, tem o
poder de mudar o sentido e a estrutura da própria vulnerabilidade. Assim, a noção da
própria vulnerabilidade é uma condição para a humanização, que se dá de diferentes
modos, a partir de normas variáveis de reconhecimento. De tal modo, para assumirmos
um posicionamento ético-político comprometido com a vida e com as diferenças, é
preciso aguçar nossos sentidos para ouvir as vozes que são há muito tempo silenciadas
e ver para além da violência espetacularizada com que são apresentados determinados
territórios, tornando-nos sensíveis ao que é invisibilizado.
Trata-se, portanto, do resgate da nossa capacidade de afetação, de reconheci-
mento da alteridade, do encontro com nossa própria vulnerabilidade no outro. Tarefa
que se faz fundamental nestes tempos de ataques à vida cada vez mais acirrados,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 495

não somente a vida humana, mas à natureza, à arte, à cultura, à ciência, aos devires
e a tudo que não representa um crescimento econômico, que é sempre direcionado
às classes mais favorecidas.
Uma análise dos tempos atuais, onde as possibilidades de afirmação da vida
parecem exaurir-se em meio a reiterados ataques de um poder que se atualiza de
modo cada vez mais intenso e perverso, conduz-nos à noção de esgotamento do
possível, de Deleuze (2012), que se dá a partir da constatação do insuportável. O
autor aponta quatro modos, não necessariamente excludentes entre si, sob os quais
se dá esse processo, que parecem apropriados para a compreensão do momento que
vivenciamos: exaurir as coisas que podem ser nomeadas, estancar os fluxos de vozes
que as falam, extenuar as potencialidades do espaço onde elas existem e o dissipar
a potência de suas imagens.
Temos, assim, o entrelaçamento das crises sanitária, política, econômica e até
mesmo humanitária, ambas com consequências sabidamente muito graves. Diante de
tal cenário, as palavras já não se fazem suficientes para descrever os fatos e evocar
os afetos que emergem. Além disso, há uma tentativa constante de silenciamento de
quem diverge do poder. As instituições democráticas de controle, discussão e regu-
lação dos exercícios de poder são constantemente atacadas, toda e qualquer forma de
expressão, denúncia, reivindicação ou revolta tende a ser estancada, descaracterizada,
criminalizada, capturada ou banalizada. E por fim, nossos afetos já se encontram
torpes frente a naturalização da brutalidade dos acontecimentos.
O esgotamento, contudo, exige a criação de possíveis outros, que se dão pela
via do acontecimento, e não o contrário, e que podem forjar brechas para novas
possibilidades de existência e de futuro. “Dar ao possível uma realidade que lhe
seja própria” (DELEUZE, p. 23).

A fissura se faz nessa nova linha, secreta, imperceptível, marcando um limiar


de diminuição de resistência, ou a elevação de um nível de exigência; já não
se suporta mais o que se suportava antes, ontem ainda; a distribuição dos
desejos mudou e nós, nossas relações de velocidade e lentidão se modificaram,
um novo tipo de angústia nos atinge, mas, igualmente, uma nova serenidade
(DELEUZE, 1998, p. 147).

O fim do esgotamento exige subversão e urgência. Exige sobretudo uma postura


ética de reconhecimento da insuportabilidade dos sofrimentos que são infligidos a
determinados corpos, da comoção, em detrimento ao conforto de uma naturalização
cômoda e segura. É improrrogável nos colocarmos nessa condição de abalo permi-
tindo-nos invadir pelo incômodo que nos leve a buscar desvios possíveis para “um
destino que não pode esperar” (FONSECA, 2017). Trata-se, assim, de:

[...] algo que é da ordem de uma urgência, mas que ao mesmo tempo, por sua
complexidade, não encontra solução única e final suficiente para resolvê-lo
de uma só vez. Falamos de algo que se constitui como uma espécie de busca,
de um por vir, de uma travessia sem garantias e inesgotável, de um direito ao
devir (FONSECA, 2017).
496

A inspiração nas palavras de Fonseca (2017), em suas reflexões sobre o impror-


rogável, nos leva também a pensar em outros dois termos fundamentais aos dias
atuais: o imponderável e o intolerável. Tomar como base o cenário atual a partir
de uma noção de intolerável e as violências direcionadas às minorias sociais como
imponderáveis, implica resgatar nossa capacidade de indignação, desassossegar-se,
o que por si só já é privilégio de quem pôde permanecer acomodado, estático e
protegido pelo silenciamento que mantém o nosso conforto e nos afasta da nossa
própria precariedade. Para que este movimento seja possível, é imprescindível colo-
carmo-nos na condição de precariedade, não a precariedade experimentada a partir
da vulnerabilidade social, mas a precariedade da desterritorialização do pensamento,
do rompimento com os regimes de verdade construídos e saberes instituídos, a pre-
cariedade do encontro com a alteridade, do reconhecimento, da identificação, da
implicação. Assim, a permeabilidade aos afetos torna-se imprescindível para o que
seria não só a desconstrução de uma realidade que parece caminhar para fins cada
vez mais devastadores, mas a luta contra a nossa própria desumanização.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 497

REFERÊNCIAS
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498

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ponível em: https://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-
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15 maio 2022.

WERMUTH, Maiquel A. D. Biopolítica e Polícia Soberana: a sociedade escravocrata


como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Rev.
direitos fundam. democ., v. 23, n. 3, p. 284-309, set./dez. 2018.
MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E
AS AUDIÊNCIAS DE APRESENTAÇÃO
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Fernanda Bottari Lobão dos Santos
Mariane Lopes Bechuate
Hebe Signorini Gonçalves

Introdução

A partir dos marcos legais da Constituição Federal (1988) e do Estatuto da


Criança e do Adolescente (1990), o jovem brasileiro alcançou a posição de sujeito de
direitos, condição que deve contar com a atenção prioritária do Estado e da sociedade.
Nessa nova conjuntura, a Doutrina da Situação Irregular instaurada pelos Códigos de
Menores (1927 e 1979) foi substituída pela Doutrina da Proteção Integral.
Apesar de superada há mais de três décadas, a lógica menorista ainda se
sustenta socialmente, obrigando-nos a concluir que o avanço legal não encontra
eco no campo das práticas sociais. Apesar da garantia legal de igualdade, a divisão
entre adolescentes cidadãos e menores está estampada na mídia, no senso comum
e nas práticas judiciárias.
O presente trabalho é um recorte de pesquisa de mestrado que contou com
levantamento de dados referentes ao perfil de adolescentes apreendidos e encaminha-
dos ao Núcleo de Audiência de Apresentação (NAAP) no período entre setembro de
2018 e agosto de 2019, com 401 processos referentes a 377 adolescentes acusados.
A coleta foi autorizada pela juíza titular da Vara da Infância e Juventude (VIJ) da
capital e permitiu o acesso aos documentos gerados por autoridades judiciárias,
membros do Ministério Público e Defensoria e integrantes da equipe técnica no
sistema informatizado do judiciário.
A VIJ da capital do estado do Rio de Janeiro tem competência infracional e seus
funcionários são responsáveis pelas audiências de apresentação, que acontecem no
NAAP, localizado no plantão judiciário do TJ-RJ, e pelas audiências de continuação,
que ocorrem na VIJ, no bairro de Santo Cristo.
O adolescente suspeito de cometimento de ato infracional pode ser apreendido
em flagrante ou com mandado de busca e apreensão expedido pelo tribunal. Após essa
apreensão, feita sempre por autoridade policial, o jovem é encaminhado à Delegacia
de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), exclusivamente dedicada a jovens
supostamente em conflito com a lei.
A seguir é feito o encaminhamento ao NAAP, onde ocorrerá a audiência de
apresentação. Antes do encontro com o juiz, o adolescente é ouvido pelo Ministério
500

Público, pela Defensoria e por um membro da equipe técnica, sendo esse um psi-
cólogo ou assistente social vinculado à Vara da Infância e Juventude (VIJ). Este
profissional produz um relatório que é anexado ao processo. Na audiência, o juiz
decidirá se o adolescente aguardará a audiência de continuação em liberdade ou em
internação provisória. Caso seja liberado, retornará para casa com seu responsável.
Do contrário, será conduzido a uma unidade de internação provisória do Departa-
mento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), órgão estadual responsável pela
execução de medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade.
Esteja o adolescente em casa ou na unidade de internação, a audiência de
continuação será agendada e a data de retorno ao juízo é previamente agendada. O
prazo máximo para o agendamento da audiência de continuação, e de limite para
a internação provisória, é de 45 dias.
O NAAP funciona dentro de previsões legais e é uma ferramenta importante
para que o sistema atue com mais rapidez, mas não significa dizer que está efeti-
vamente contribuindo para a diminuição das internações provisórias. O problema
apontado pelo presente trabalho não é o NAAP em si, mas o conjunto das operações
do judiciário, pautadas pela lógica moral-punitivista que tem imperado no direito.

A questão central é racial: “a cor do Degase é preta”

Durante a atuação enquanto psicóloga voluntária no NAAP, a primeira autora


deste texto costumava passar correndo pela entrada do prédio, preocupada em che-
gar à sala da equipe técnica sem atrasos; ela aguardava impacientemente enquanto
uma pessoa responsável pela segurança analisava sua bolsa na máquina de raio-x e
se irritava quando esquecia uma moeda ou uma chave no bolso e precisava passar
novamente pelo detector de metais. Na pressa, corria pela sala de espera e não man-
tinha um olhar atento ao espaço nem (mais importante) às pessoas que ocupavam
aquele espaço. Ela corria para abrir a porta a que tinha livre acesso e adentrava sem
quaisquer questionamentos, apesar de não ter crachá de funcionária.
Certo dia, participou do atendimento a um adolescente apreendido e sua mãe,
que chegou ainda com mais pressa, o que é compreensível: aquela mãe buscava
resgatar seu filho preso. Ela tentava entender o que havia acontecido, o que é o
processo, como é a internação provisória e, ao mesmo tempo, tentava justificar sua
“falha”. Dizia, com ares de desculpas, que precisava trabalhar e não podia ficar de
olho no filho o dia todo, que não podia contar com o pai do menino, que ensinou
tudo direitinho para ele etc.
Dali em diante, e durante a curta atuação no NAAP, a psicóloga passou a chegar
mais cedo para que pudesse estar por mais tempo na sala de espera. Passou a reparar
nas cadeiras enfileiradas do lado de dentro e de fora, no bebedouro e nos aparelhos
de televisão com programas de auditório ou jornais sensacionalistas. Sempre havia
barulho de conversa e de choro baixo. As mulheres, em sua grande maioria pretas,
se consolavam mutuamente e tentavam dividir suas preocupações e informações.
Passou a conversar com algumas delas, explicando as etapas do processo e tentando
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 501

responder a alguns questionamentos práticos. Aquele espaço, anterior às portas


gradeadas que davam acesso às salas da equipe técnica e das audiências, parecia
menos pesado. O espaço formal do atendimento parecia ter – ou tinha de fato – um
tempo demarcado, curto, sem abertura para acolhimentos ou dúvidas. Na sala de
atendimento os profissionais – mesmo sem intenção de performar esse papel – eram
operadores do direito. O adolescente sentado à frente do profissional que se colocava
do outro lado do computador sabia que ali estava sendo escrito algo possivelmente
impactante para a decisão judicial a ser tomada naquele mesmo dia. As mães e
responsáveis demonstravam sentir o mesmo. A distância entre os profissionais e as
pessoas que eram atendidas parece enorme, mesmo em salas tão pequenas.
Muitos discursos eram capturados pelas lógicas neoliberais meritocráticas e
aos profissionais era também demandada uma atuação nesse sentido. As perguntas
sobre a escolaridade e a atuação profissional dos adolescentes e de seus responsá-
veis sugerem que a decisão judicial pode se basear nessas informações – como se a
inserção social do adolescente se resumisse à escola e ao trabalho, como se o perfil
dos adolescentes apreendidos não dissesse respeito ao recorte racial.
Como co-autora deste texto, registro que demorei anos para notar a cor do sis-
tema socioeducativo: inserida em uma lógica racista de silenciamento de questões
raciais e ocupando o espaço social de mulher branca de classe média alta, não percebi
o fator mais decisivo para aquelas apreensões, o que mais aproximava aqueles jovens
em cumprimento de medida ou no aguardo pelas suas audiências.
Não colocar o racismo enquanto fator central do campo foi um erro que deve
ser atribuído ao silenciamento da questão racial, uma ferramenta por si só racista, que
inviabiliza o aspecto primeiro das vivências e relações do sistema socioeducativo.
O reconhecimento tardio do racismo enquanto aspecto mais importante do debate
socioeducativo diz sobre nossa história, que faz do racismo um eixo de organização
das relações sociais e, ao mesmo tempo, o mantém oculto. O mito da democracia
racial sustenta a ideia de que a questão racial não é uma questão, mas uma carac-
terística. Frases generalistas proferidas e escutadas no senso comum negligenciam
um dispositivo que estrutura a sociedade brasileira e as instituições de controle e
captura. Em uma realidade onde os operadores do direito são pessoas brancas, e os
apreendidos e apenados são pessoas pretas, dizer que “somos todos humanos” parece,
no mínimo, um ato negligente.

O racismo estrutural no processo de criminalização social

O racismo é um processo de reprodução de condições sociopolíticas que man-


tém em posição de subalternidade determinados grupos racialmente identificados.
A identidade racial como medida de classificação social surge com a colonização,
quando os colonizadores brancos se anunciaram superiores e os demais, os coloni-
zados, foram ditos inferiores, instituindo uma distinção que legitimou as relações
de dominação (QUIJANO, 2005). Com o fim da escravatura, as sociedades se
reorganizaram, mas seguiram se valendo do racismo como tecnologia de poder e
502

como base da “nova” organização social. Assim, a desigualdade racial é constituinte


da estrutura social e cola significados às dimensões política, econômica, jurídica
e ideológica (ALMEIDA, 2019).
No Brasil do final do século XIX, a elite branca e proprietária de terra era
minoria no país, e a população não branca e pobre era maioria. Com o fim do sistema
escravocrata, foram necessários novos aparatos de controle da população não branca,
de modo a garantir a manutenção da concentração de renda e o consequente prestígio
social dos brancos (AZEVEDO, 1987). Os donos de terra brancos temiam uma inver-
são da ordem política e social, como ocorreu no Haiti, tendo em vista as inúmeras
tentativas de insurreição da população negra desde o início da colonização153.
Tendo em vista esses propósitos, teve início o projeto de branqueamento do
país, capitaneado pela elite: imigrantes europeus, tidos como mais avançados e supe-
riores, foram estimulados a vir para o Brasil e integrar-se ao trabalho na condição
de assalariados, sustentando a criação de uma identidade nacional centrada na ima-
gem do branco europeu. Com esse projeto, a elite brasileira encontrava formas de
enfrentar o medo de um levante da maioria populacional não-branca. O projeto de
embranquecimento do país estava pautado na ideia eugenista de purificação da raça,
sustentado no Brasil por cientistas como Raimundo Nina Rodrigues154, que visavam
a miscigenação gradual como meio de branquear a população (AZEVEDO, 1987).
A eugenia sustentou um projeto político e econômico de controle populacional,
visando o branqueamento do país, que tomava por referência estudos científicos da
época. Dialogando com propostas lombrosianas, esses estudos apontavam para um
rebaixamento moral e intelectual derivado de diferenças biológicas calcadas na raça: a
população negra recém liberta foi tida como inerentemente preguiçosa, de má índole,
e incapaz de se adequar ao trabalho livre. O imigrante europeu, em contrapartida, foi
associado ao progresso da nação e ao ideal de trabalhador honesto. A elite brasileira
financiou, em muitos casos, a vinda dos imigrantes e dos seus familiares para o Bra-
sil e favoreceu sua inserção no mercado de trabalho, tanto no âmbito rural como no
urbano, empurrando a população não branca para as margens do projeto de nação
que então se desenhava (AZEVEDO, 1987).
Para dar conta da população excedente, excluída do mercado de trabalho, os
mecanismos punitivos também operaram a partir da lógica racista, utilizando a cri-
minologia positiva como base teórica e afirmando a existência de uma natureza
criminosa passível de ser identificada por meio de uma série de sinais e atributos.
Baseada nos pressupostos da eugenia, a corrente atribuía à população pobre e não
branca uma predisposição genética ao crime. Ao mesmo tempo, e coerentemente,
as definições de crime também visavam a produção da figura do criminoso, como
ocorreu na criação de leis que criminalizavam a vadiagem – situação de desemprego
vivenciada por muitos negros – e práticas culturais tipicamente africanas – como a
capoeira e os cultos que tinham por base as religiões de matriz africana (KOLKER,
2011). A definição de crime serviu, então, para estigmatizar a população negra, que
passou a ser tipificada e vista enquanto criminosa.

153 Ver Azevedo (1987) para aprofundamento no tema.


154 Para mais, ver Góes (2016).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 503

Os argumentos da criminologia positiva, aliados a um sistema jurídico sele-


tivo, produziram uma categoria de criminosos em potencial. Inaugura-se a noção
de periculosidade: não é preciso cometer um delito para ser considerado perigoso,
basta pertencer a uma população específica – em outras palavras, pobre e não
branca. Ou seja, a figura do criminoso passa a existir antes do cometimento de
crime (FOUCAULT, 2012).
A noção de periculosidade não se restringiu à população adulta> ela abarcou
a infância e a juventude brasileiras. Os infantes pobres e negros eram denominados
“menores”, termo que os desqualificava enquanto crianças e demarcava a cisão entre
a infância pobre e a infância rica. Os “menores” eram, do ponto de vista social e
jurídico, classificados como vulneráveis e potencialmente perigosos (SANTOS,
2011). No âmbito jurídico foram criados os Códigos de Menores (1927; 1979),
direcionados às crianças pobres e majoritariamente não brancas, que eram entendidas
em situação irregular.
A Doutrina da Situação Irregular permitia que essa população fosse colocada
sob tutela do Estado, pela ação do juiz de menores, e fosse afastada de sua família de
origem. Ao fundamentar essa decisão no argumento jurídico segundo o qual o juiz
tratava centralmente da proteção aos tutelados, ao menor se dispensava o direito à
ampla defesa (SANTOS, 2011). Vê-se assim que a situação irregular era caracterizada
pela conduta desviante, contraposta à infância normal, cuja conduta se alinhava aos
moldes burgueses. Quanto mais afastados da norma estabelecida, maiores eram as
chances de os menores serem alvos das práticas tutelares e coercitivas do Estado.
As condições políticas e econômicas do Brasil mudaram desde o início do
século XX, mas ainda é patente que a inclusão e a exclusão social operam sob a
mesma lógica racista e elitista. Todavia, devido às transformações políticas, sociais
e econômicas, este mesmo processo adquiriu novos mecanismos e roupagens para
continuar criminalizando a população pobre e negra.

Novos modelos de exclusão e seletividade punitiva a partir


do neoliberalismo

As transformações do capitalismo levaram ao modelo neoliberal, onde os


dispositivos de inclusão/exclusão se adaptaram para atender às demandas do novo
sistema. Uma das características do projeto neoliberal é a defesa do Estado mínimo
nas esferas social e econômica (DAGNINO, 2004), decorrência direta e efeito casado
da flexibilização do trabalho assalariado e do desmantelamento das políticas de pro-
teção social. O resultado é um aumento da concentração de renda e da desigualdade
social. Neste cenário, o contingente de indivíduos incluídos na sociedade é cada
vez menor, ao mesmo tempo que cresce o número de pessoas sob constante risco
exclusão. Isso produz aumento da instabilidade social e das contradições sociais.
Para manter esse modelo em funcionamento e suprimir possíveis insurgências, são
indispensáveis certos aparatos de controle.
O Estado Penal opera sob essa lógica de controle, buscando manter sob controle
as contradições geradas pelo neoliberalismo (WACQUANT, 1999). A partir dessa
504

leitura política, o Estado promove a redução do investimento em políticas sociais


e o aumento nos dispositivos de segurança: investe-se maciçamente em políticas
públicas de segurança baseadas na repressão dos delitos. Nessa concepção, qual-
quer delito – por menor que seja seu potencial ofensivo – deverá ser punido. Como
mostra Wacquant (1999), os assim chamados “pequenos delitos’, que inauguram
a escalada punitivista, são majoritariamente de autoria negra – o que não pode ser
qualificado como mera coincidência. Esses discursos se assemelham às práticas de
criminalização da vadiagem do final do século XIX no que diz respeito a estratégias
e delitos postos como alvos do controle, mas em particular no que fala de seus alvos:
a população: pobre e negra. Assim, a construção da figura do criminoso e a noção
de periculosidade associada ao homem pobre e negro se mantém e se atualiza a
partir dessas práticas. Em contrapartida, o homem branco e rico se mantém como
virtuoso, correto e trabalhador.
Ao mesmo tempo que a figura do negro é apresentada como potencial crimi-
nosa, o branco de classe média é tomado como vítima em potencial. Esses processos
de vitimização ocorrem a partir da cultura do complexo do crime (GARLAND,
2008). Segundo o autor, a ocorrência de delitos passou a ser vista como um fato
social normal, o que produziu uma nova experiência coletiva do crime. O contexto
de instabilidade econômica, precarização social e aumento de apreensões produziu
medo social cotidiano. A mídia, e posteriormente as redes sociais, passou a divulgar
amplamente delitos graves em que a vítima se encaixa no perfil da “população de
bem” – um homem branco, de classe média, estudante/trabalhador. Desse modo, esse
segmento da população passou a se identificar com e se perceber como vítima em
potencial, validando os aparatos repressivos do Estado e a demanda por mais punição.
Os estudos de Thompson (1983) sobre a população que responde por crimes
servem como base para compreendermos a criminalização da pobreza. O autor afirma
que, mesmo havendo uma quantidade considerável de infrações, o total de delitos
praticados é enormemente maior do que aquele que conhecemos. A distância entre os
crimes cometidos e os registrados foi denominada cifra oculta. A ausência de denúncia
ou arquivamento do processo ao longo de suas diversas fases não é motivado pela
gravidade do delito, uma vez que há crimes considerados graves que integram a cifra
oculta. Trata-se, então, de uma questão cujas raízes devem ser buscadas na autoria:

Não é por acaso e nem por coincidência que as vítimas desse abuso de poder
[...] sejam, quase sempre, cidadãos das classes marginalizadas e subalternas.
São os deserdados da lei, nascidos para cumprir um destino sem esperança e
sem expectativa, sobre os quais se abate, por isso e para isso, uma violência
cotidiana (THOMPSON, 1983, p. 25-26).

A seletividade de que Thompson (1983) trata é também analisada por Wacquant


(2007), que descreve o encarceramento de negros nos EUA ao longo da década de
1980, quando 20 mil afro-americanos foram presos a cada ano. Em 1995, a popu-
lação afro-americana representava 12% dos estadunidenses e 53% dos presos no
país. A probabilidade de encarceramento variava entre 4% para brancos e 29% para
negros (WACQUANT, 2007).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 505

Passados apenas 35 anos do movimento pelos direitos civis ter garantido aos
negros estadunidenses o acesso efeito à cabine de votação, um século inteiro
após a abolição da escravidão, este direito lhes foi retirado pelo sistema penal,
por meio de uma interpretação das disposições jurídicas, cuja constitucionalidade
é, no mínimo, duvidosa, e que viola, em muitos casos (sobretudo nos dez estados
que praticam a exclusão penal do voto por toda a vida), as convenções interna-
cionais sobre os direitos humanos, devidamente ratificadas pelos Estados Unidos
(WACQUANT, 2007, p. 335).

No Brasil, a partir da instauração da política de segurança neoliberal, herdeira


dos pressupostos do Estado Penal, o número de pessoas presas também subiu
exponencialmente, resultando no fenômeno do superencarceramento. Em 1990,
90 mil pessoas estavam encarceradas; em 2019, 748.009 adultos estavam privados
de liberdade (INFOPEN, 2016, 2019).
O sistema socioeducativo e o prisional, mesmo com princípios norteadores
distintos, infelizmente partilham muitas semelhanças. Os jovens negros e pobres
selecionados para ocupar os presídios atendem ao mesmo perfil daqueles que são
capturados pelas políticas socioeducativas de privação de liberdade. Assim, o processo
de criminalização social dessa parcela da população não se restringe aos adultos.
O genocídio da população não branca, iniciado pelos conquistadores na colo-
nização, também se renova no neoliberalismo. Para Góes (2017), o extermínio da
população negra segue ininterrupto até a atualidade – e os dados de 2019 do Mapa
da Violência corroboram este argumento ao mostrar que 77% das vítimas de homicí-
dio foram pessoas negras. No Brasil, a taxa de violência letal contra pessoas negras
foi 162% maior do que entre as não negras. Além disso, entre 2009 e 2019, a taxa
de homicídio de pessoas negras cresceu 1,6 %, enquanto que a de não negras foi
reduzida em 33% (IPEA, 2021). Quando olhamos especificamente para a população
infanto-juvenil, 76% de todos os homicídios ocorridos ao longo dos últimos onze
anos foram de crianças e adolescentes negros (MJPOP, 2020).
O assassinato sistemático dessa parcela da população pode ser compreendido
com base nos conceitos de biopolítica e necropolítica. O biopoder consiste na governa-
mentalidade por meio do fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, 1976). É também
a partir de políticas públicas como acesso ao saneamento básico, serviços de saúde,
rede de transporte, entre outros, que se promove – ou cerceia – o prolongamento e a
manutenção da vida. Os que devem ser mantidos vivos têm acesso garantido a esses
serviços, mas os que são deixados para morrer sofrem com sua ausência – esta é a
lógica da necropolítica.
Além disso, o neoliberalismo e a redução do papel social do Estado promovem
o aumento do desemprego e, como consequência, o crescimento da população consi-
derada descartável – leia-se, aqueles que não estão e não serão incluídos no mercado
de consumo. Uma das funções do Estado passa a ser lidar com esses inúteis para
o mundo (CASTEL, 1995); é por isso que não basta deixar morrer, é preciso agora
fazer morrer; o necropoder, ou a política da morte, se fortalece (MBEMBE, 2018).
O genocídio praticado desde a colonização ganha, no neoliberalismo, um caráter de
506

gestão política; dizendo de outro modo, é preciso produzir o extermínio para lidar
com as contradições geradas pelo sistema neoliberal.
Grande parte da população legitima os mecanismos que produzem a morte de
determinados indivíduos, uma vez que os “cidadãos de bem” se percebem como víti-
mas em potencial dos “degenerados”155. Sob essa lógica, o extermínio dos anormais
aumenta a potência de vida dos normais, que são definidos a partir de critérios de
seletividade baseados na desigualdade racial.
O racismo é estrutural e estruturante, ou seja, habita nossas relações, as cons-
truções sociais e a forma como a sociedade se organiza. A dimensão ideológica do
racismo, cuja função é a manutenção da coesão social e a (re)produção da desigual-
dade racial, necessita da participação direta do poder político por meio da regulação
jurídica e extrajurídica. A incumbência das instituições é a propagação de um ima-
ginário social de unificação racial (ALMEIDA, 2018), e o silenciamento do debate
racial é ferramenta central na construção desse imaginário. Almeida (2018) afirma:
“Em um mundo em que a raça define a vida e a morte, não a tomar como elemento
de análise das grandes questões contemporâneas demonstra a falta de compromisso
com a ciência e com a resolução das grandes mazelas do mundo” (p. 44). O mito da
democracia racial, na análise crítica de Ribeiro (2017), tem por propósito evitar a
apropriação social do tema, e fazer com que o racismo se esconda sob uma suposta
igualdade racial. Fanon (2008) provoca: ser indiferente à questão e assumir o silen-
ciamento é dar suporte à hegemonia branca.
Assim, o viés da branquitude é fundamental para o enfrentamento do racismo,
já que precisamos superar a naturalização que vê o branco como aquele que não
tem raça, em contraste com o negro, o ser racializado. Para Silva (2017), trazer a
branquitude a primeiro plano é o movimento que permite entender o racismo em
sua dimensão relacional, na lógica opressor-oprimido. O racismo não pode ser pen-
sado enquanto problema de pessoas não brancas. Ao entendê-lo como problema dos
oprimidos, contribuímos para dissimular a posição do opressor (CARDOSO, 2010);
evitar a discussão do papel do branco no racismo equivale a referendar os privilégios
estruturais desse grupo (BENTO, 2002).
A branquitude não é estática: ela depende das circunstâncias históricas e cultu-
rais que produzem o racismo estrutural (CARDOSO, 2010) e, por envolver processos
de subjetivação de pessoas brancas, também não é facilmente definida (DA SILVA,
2017). A identidade racial branca, assim como a de outros grupos raciais, é plural
(CARDOSO, 2010). O que se define como branquitude é uma posição de poder,
onde pessoas brancas se apresentam como padrão e as demais raças são definidas
como desviantes ou subalternas (BENTO, 2002). Não há discussão racial acerca da
branquitude pois ela não se implica na dinâmica das desigualdades raciais. Discu-
tir a estrutura racista que garante vantagens a pessoas brancas implica desnudar a
norma a partir da qual a branquitude se coloca; significa apontar a opressão branca

155 A escolha pelos termos “cidadão de bem” e “degenerados” remete à ideologia atual da extrema direita bra-
sileira, que sustenta a distinção característica da eugenia entre os puros e os desviantes, definidos através
de aspectos racistas e elitistas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 507

nas relações raciais; e requer banir o mito da meritocracia, pois “ser branco em uma
sociedade racializada sempre faz diferença” (BENTO, 2002, p. 172).
A identidade racial branca é um lugar social (BENTO, 2002) e, assim, é neces-
sário compreender o que significa fazer parte dessa identidade, o que é produzido a
partir dela e quais as experiências comuns vivenciadas pelos membros desse grupo.
O conceito de lugar de fala embasa essa discussão.
O lugar de fala (RIBEIRO, 2017) é uma tentativa de quebrar a universalidade
dos discursos, uma vez que as pessoas em posição socialmente privilegiada tendem
a tomar sua própria existência como norma, e a si mesmas como referência, inviabi-
lizando a autocrítica (BENTO, 2002). Ao compreender que esses discursos não são
neutros, o lugar de opressor se evidencia. E ao contrário, quando o branco considera
seu lugar de fala como grupo social, pode se responsabilizar e refletir sobre o próprio
papel na manutenção das desigualdades raciais.
Borges (2019) afirma que o sistema jurídico segue, ainda nos tempos atuais,
um “sistema racial de castas” (p. 87), uma vez que os brancos ocupam os cargos de
poder e os pretos são encarcerados. Segundo a autora, 67% da população prisional
é composta por pessoas negras, enquanto 69,1% dos servidores do Judiciário são
pessoas brancas. Entre ocupantes dos cargos de maior prestígio do Judiciário (juízes,
desembargadores e ministros), 84,5% são brancos. Fanon (2008) denuncia esse “mani-
queísmo delirante” que une pares antagônicos: bem-mal, bonito-feio, branco-negro.
Esses estereótipos, que sustentam o senso comum, habitam os sistemas normativos.
No caso do sistema judiciário brasileiro, podemos afirmar o “maniqueísmo delirante”
também como: presos-operadores do direito.

Os dados coletados: o silenciamento da questão racial

A pesquisa de campo aqui tratada foi feita na Vara da Infância e Juventude


da capital do Rio de Janeiro, cuja competência é infracional, e refere-se ao período
compreendido entre setembro de 2018 e agosto de 2019. A escolha metodológica
pela análise da primeira segunda, terça e quarta-feira de cada mês visou reduzir a
amostra dos dados, já que não seria possível a análise de todos os processos abertos
em um ano dado o número elevado de casos.
Ao mesmo tempo, esse recorte permite observar todos os meses no intervalo
de um ano, o que parece importante já que os atos infracionais, o formato da inter-
venção policial e o número de apreensões variam de acordo com o mês e com o dia
da semana. As operações policiais de verão, por exemplo, garantem um aumento
expressivo de apreensões de adolescentes em comparação com outros meses. O pico
no período analisado foi de 60 adolescentes que passaram por audiência de apresen-
tação em março, em comparação com 16 jovens em julho. As operações policiais de
verão podem ser citadas aqui como exemplo de dispositivo importante, inventado
para controlar o direito de ir e vir e o direito de habitar a cidade156.

156 O aumento significativo de apreensões de adolescentes e a exclusão ou encurtamento de linhas de ônibus


(como o 474, Jacaré-Jardim de Alah) realizadas no período que antecedeu os grandes eventos da cidade
do Rio de Janeiro (Olimpíadas e Copa do Mundo), em 2015, exemplificam bem a questão.
508

No total, no período analisado, foram coletados dados de 401 processos, refe-


rentes a 377 adolescentes acusados de cometimento de ato infracional157. Os dados
acerca dos juízes, relatórios técnicos e ato infracional foram analisados com base no
número total de processos (401), enquanto os outros, por se referirem aos adolescentes
em questão, com base no número total de adolescentes (377).
Sobre os dados raciais, foco do presente trabalho, podemos inferir que há um
silenciamento da questão, uma vez que 239 (63,4%) processos não trazem essa infor-
mação. A falta de dados raciais anda de mãos dadas com o silenciamento teórico da
temática, e serve como instrumento racista de afirmação da democracia racial, uma
vez que em outros dados analisados (escolaridade, idade e sexo biológico) a ausência
de informação não tem essa mesma alta incidência.
Ao pensarmos acerca das decisões judiciais de liberação ou internação pro-
visória com o critério racial, a questão não parece ter grande importância para o
juízo, uma vez que se internou provisoriamente 78,3% dos jovens brancos, 82,8%
dos jovens negros e 83,9% dos pardos. Porém, os percentuais parecem camuflar a
realidade, pois entre os 146 adolescentes em cujos processos há registro da cor de
pele, foi decidida a internação provisória para 115 (78,8%) de jovens não brancos
(negros e pardos) e para 23 (6,1%) de brancos. Assim, onde é possível calcular, o
número de pessoas pretas representa quase cinco vezes o número de pessoas brancas
internadas provisoriamente.

Apontamentos finais: uma não conclusão

A seletividade punitiva, tal como alisada por Zaccone (2007), aponta para uma
gama de fatores que podem ser sintetizados em critérios raciais e socioeconômicos,
interligados. Tudo sugere que o racismo é a base fundante dos processos de crimina-
lização, e ajuda a naturalizar a punição no imaginário social. A apreensão de jovens
negros pela esfera policial é ratificada nas decisões judiciais, que parecem agir de
acordo com o senso comum de que os menores de outras épocas seriam os “semen-
tinhas do mal” da atualidade (RODRIGUES, 2009).
A atualização constante de lógicas de apreensão, aprisionamento e extermínio da
população preta, pobre e favelada/periférica é mais do que visível hoje em qualquer
visita às unidades socioeducativas ou prisionais, onde a maior parte da população em
privação de liberdade é preta. Além da massa de negros encarcerados, por si só um
dado eloquente, as políticas de “pacificação” de espaços periféricos e de operações
policiais que resultam em chacinas mostram outra face do controle dos segmentos
negros e pobres da população brasileira, ainda em amplo vigor no século XXI.
Infelizmente, não precisamos nos apoiar na literatura acadêmica para sustentar
nossos argumentos, uma vez que vivenciamos uma conjuntura política de agravo de
construção de zonas de exclusão, que se fortalecem a partir das criações das Unidades
de Polícia Pacificadora (UPPs) e das chacinas conduzidas por forças estatais. Com

157 O número de processos excede o número de adolescente porque há jovens que respondem por mais de
um processo no período analisado.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 509

roupagem de proteção integral158, uma operação policial realizada no Jacarezinho em


maio de 2021 teve como resultado a execução de 28 pessoas, tornando-se a operação
mais letal da história da cidade. Mesmo sob a justificativa de proteção às crianças e
adolescentes, um adolescente de 17 anos foi assassinado e uma menina de nove anos
presenciou outra execução, que ocorreu dentro do seu quarto.
O presente artigo visa provocar o debate acerca das políticas de encarceramento
e extermínio da população jovem e preta, atentando às miragens do mito da democra-
cia racial e da proteção integral que tentam embaçar a realidade. A ausência de dados
raciais em diferentes esferas, inclusive as apresentadas aqui, e o esvaziamento de
debates acerca do racismo, são estratégias efetivas para uma espécie de legalização da
discriminação racial, uma vez que permitem o funcionamento racista de instituições
sem que o assunto não seja sequer mencionado. O saber-poder afirma-se neutro, mas
utiliza ideologias racistas – como a meritocracia e a manutenção de privilégios de
um grupo racial em detrimento de outros. Devemos compreender que as prisões e,
por uma possibilidade infeliz de analogia, as unidades do sistema socioeducativo,
não estão distantes de nós, brancos privilegiados. Elas são exatamente um “produto
de negligência e políticas que tratam diferenças como desigualdade” (BORGES,
2019, p. 122).

158 Para aprofundamento no tema ver a notícia “Aliciamento de menores: justificativa dada pela polícia para a
operação no jacarezinho não consta em relatório de investigação.” Disponível em: https://revistaforum.com.
br/brasil/2021/5/11/aliciamento-de-menores-justificativa-dada-policia-para-operao-no-jacarezinho-no-consta-
-em-relatorio-de-investigao-96826.html.
510

REFERÊNCIAS
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CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: Desigualdade e a questão social,


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QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: E.


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WACQUANT, Loïc _________. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: J. Zehar, 2001.


HOJE EU ACORDEI COM MEDO, MAS
NÃO CHOREI: narrativas autobiográficas
sobre infância, psicologia, gênero e sexualidade
Iasmin Sharmayne Gomes Bezerra
Benjamin Vanderlei dos Santos

Os defensores da infância e da família invocam a figura política de uma


criança que eles constroem de antemão como heterossexual e de gênero
normatizado. Uma criança privada de toda energia de resistência e da
potência de usar livre e coletivamente o seu corpo, seus órgãos e seus
fluidos sexuais. Essa infância que eles pretendem proteger está cheia de
terror, de opressão e de morte (PAUL B. PRECIADO, 2019, p. 62).

“Quem defende a criança queer159?” É com essa indagação que Paul B. Pre-
ciado inicia uma de suas crônicas para debater qual a criança que setores da direita
francesa foram às ruas para defender, em 2013, por conta de um projeto de lei que
regulamentava o casamento, a adoção e a reprodução assistida por casais homoafe-
tivos. Quem defende?
No Brasil, em 2017, a mostra Queermuseu em Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul, que possuía obras de Volpi e Portinari, foi encerrada com um mês de ante-
cedência por receber críticas de pedofilia e zoofilia por grupos direitistas como
MBL (Movimento Brasil Livre). Mesmo com investigação e recomendação do
Ministério Público do estado de que a mostra deveria ser reaberta imediatamente
pois não havia qualquer indício de pedofilia, ela não foi retomada, num flagrante
caso de censura artística160.

159 Segundo Helena Vieira (2015, s.p.) “queer é uma palavra inglesa, usada por anglófonos há quase 400 anos.
[...] O termo ganhou o sentido de “viadinho, sapatão, mariconha, mari-macho” com a prisão de Oscar Wilde,
o primeiro ilustre a ser chamado de “queer”. Desde então, o termo passou a ser usado como ofensa, tanto
para homossexuais, quanto para travestis, transexuais e todas as pessoas que desviavam da norma cis-
-heterossexual”. Guacira Lopes Louro (2001, p. 546) aponta que “queer pode ser traduzido por estranho, talvez
ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. [...] este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é
assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de
oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de
onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade;
mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do
movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou
tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora”. Neste texto, o termo queer
é retomado enquanto possibilidade transgressiva e perturbadora das normatividades de gênero e sexuais.
160 “'Não há pedofilia', diz promotor após visitar exposição de diversidade sexual cancelada em Porto Alegre”
G1. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/nao-ha-pedofilia-diz-promotor-apos-
-visitar-exposicao-de-diversidade-sexual-cancelada-em-porto-alegre.ghtml.
512

Qual criança estes grupos defendem? Qual o tipo de adulto eles esperam
(obrigam) que estas crianças se tornem? Como o controle dos corpos opera na
produção de uma infância impossibilitada de experienciar o mundo em suas infi-
nitas possibilidades?
O texto aqui produzido é de carne, osso e muita tinta que construíram as
narrativas apresentadas. Para lembrar de Glória Anzaldúa, essas escritas evocam
realidades pessoais para atingir as realidades sociais. Escritas que nascem através
de sangue, pus e suor (ANZALDÚA, 2000) ao conectar-se com as nossas histórias
de vida. Jogamos fora algumas abstrações acadêmicas que amparam e justificam
a produção de um conhecimento científico sem implicações pessoais e, portanto,
políticas. Acreditamos que a nossa experiência vivida é critério de significado para
a validação do conhecimento. Pois, pensando com Patricia Hill Collins, toda ideia
tem um dono e a identidade desse dono é importante (COLLINS, 2020). Além
disso, não poderíamos esquecer de Donna Haraway ao afirmar que a objetividade
é corporificada, atribuindo-nos a missão de localizar os olhares que fundam e sus-
tentam o conhecimento científico em comunidades diferenciadas, nas quais o poder
se relaciona de modo particular e característico (HARAWAY, 1985).
Foi a indagação e o texto de Preciado que nos levou a refletir: quem nos pro-
tegia? Quais são as lembranças de infância que ajudaram a formatar quem somos
e o que queremos?
Praticantes da ciência psicológica, sabemos que a Psicologia defende a infância
como uma fase importante do desenvolvimento humano, tanto em seu nível psíquico,
como biológico e social161. Um momento que pode ser determinante, não necessa-
riamente como destino irremediável, mas como aquilo que nos ensinou a olhar as
coisas ao nosso redor e compreender como se dá as relações com o que nos cerca.
Aqui tratamos de duas narrativas: de uma mulher bissexual do sertão seridoense
do Rio Grande do Norte e de um homem trans do litoral de Alagoas. Gente que vive e
pensa o Nordeste diante das suas alegrias, tensões, rupturas, festa, violência e cultura.
Não as fantasiamos com imagens proféticas de uma invenção de mundo pronta pro
take cinematográfico; preferimos a história em disputa, os versos crus de quem sabe
que o corpo vibra quando a colonialidade brasileira o atravessa, inserindo signos
produtores de hierarquias de raça, gênero e classe.
Para Mignolo (2003 apud BALLESTRIN, 2013), a colonialidade está atrelada
ao saber, ao poder e ao ser, fundando aquilo que chamamos de modernidade, uma
modernidade que é consequência da experiência colonial. Produzimos esse texto por
atentar que a colonialidade tem relação direta com o controle exercido sobre nossos
corpos, gênero e sexualidade, violentando nossas infâncias de modo a nos privar de
estabelecer relações afetivamente potentes de segurança e proteção. Não somente nós,
mas uma infinidade de crianças não-normativas que são agredidas física, psicológica
e socialmente todos os dias.

161 Os currículos em Psicologia, historicamente, legaram à disciplina de Psicologia do Desenvolvimento a


hegemonia de teóricos como Freud, Piaget e Vygotsky, compreendendo o desenvolvimento humano como
fases psíquicas que estão ligadas a um determinado constructo biológico de produção dos corpos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 513

Essa autonomia diante dos nossos corpos foi motivo de tensões, enquadramen-
tos, idas a profissionais da psicologia e psiquiatria, tudo como tentativa de produzir
em nós um senso de adequação à lógica de gênero e sexualidade colonial.

O projeto de normatização da vida pressupõe, para que seja bem-sucedido, estra-


tégias de desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos
corpos. É o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de
forma mais contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no
trabalho forçado, na submissão da mulher e na preparação dos homens para a
virilidade expressa na cultura do estupro e da violência: o corpo convertido, o
corpo escravizado, o corpo domesticado e o corpo poderoso. Todos eles doentes.
Nenhum deles corpos de pelintras e padilhas (SIMAS, 2021, p. 83).

Por isso apostamos nesta escrita corporificada, pois, além de tudo, seguimos
as recomendações de Audre Lorde (1977) em nos comprometer com a linguagem e
seu poder. Disputando uma produção discursiva que durante muito tempo foi usada
para deslegitimar e nos posicionar como objetos e não produtores de conhecimento.
Além disso, essa escrita se produz com o exercício da raiva também apontado por
Lorde (2019).
Essa feminista do movimento negro e lésbico nos lembra que a raiva é um
afeto carregado de energia e de poder de transformação, a qual precisamos levar
a sério, pois se utilizada com precisão, este sentimento nos auxilia a enfrentar os
medos e os silêncios que carregamos de heranças coloniais, patriarcais, classistas,
sexistas e raciais em nossas histórias de vida.
Principalmente de alguns de nós, populações oprimidas e silenciadas, quando
somos seres desviantes das normas hegemônicas de vida, situadas no contexto da
América Latina e do Nordeste. Audre é muito sábia em nos lembrar que a raiva
pode sim nos adoecer. Virar ressentimento, até sintoma, quando a voltamos para
nós mesmos/as e acabamos “esquecendo” do poder coletivo que ela pode exercer.
Expressar a energia da raiva. Colocá-la em um lugar. Acessá-la para criar canais de
passagem para ela passar. Às vezes, até para o passado poder passar.
Como a gente abraça esse sentimento que muitas das vezes nos é insupor-
tável? Buscamos responder a isso através de nossas escritas. Pois, a insistência e
maior sabedoria de Audre Lorde, provavelmente, esteja neste ponto: “sobre a raiva
é melhor que aprendamos com ela para não nos esgotarmos entre as disputas de
nossas verdades [...] expressá-la é um modo de liberação e de libertação” (LORDE,
2019, p. 160). Que possamos nos unir nas expressões de nossas raivas. A forma
como cada um/uma de nós, em nossa singularidade, podemos acessá-la e não
virar elemento de negação no mundo externo, mas, principalmente, em nossos
mundos mais íntimos.
Por isso precisamos de ação e coragem, para reenquadrar alguns signos e
pensar o mundo além da lógica de felicidade domesticadora que culpabiliza pessoas
quando há incapacidade de experienciar determinados sentimentos, o que reverbera
lógicas normatizadoras da vida. Tudo que é normativo é redutor de potência criativa.
514

Então, quando buscamos invocar a proteção do povo da rua (pelintras e padilhas


com seus corpos transgressores, inventores e desviantes) é por saber que é na fresta
da produção do conhecimento hegemônico que tensionamos o carrego colonial162
que tenta se apropriar dos nossos corpos pombogirados, gargalhando das “limitações
e arrogâncias que se pretendem únicas” (SIMAS; RUFINO, 2019, p. 19) nos modos
de dizer e fazer ciência.
Como diz um ponto antigo de Umbanda “Pombogira é mulher de domingo até
segunda, na boca de quem não presta, Pombogira é vagabunda”. Em uma ciência
que se produziu através do silenciamento de culturas diversas, violências e subalter-
nização de corpos, gêneros e sexualidades, preferimos reposicionar nosso lugar de
cientistas e nos comprometer com outros lados dessa encruzilhada.
Sendo assim, esse texto tem por objetivo debater, a partir de duas narrativas
autobiográficas, como as questões de gênero e sexualidade perpassam infâncias não-
-normativas e se relacionam com as feridas coloniais atravessadas em nossas histórias
de vida enquanto psicólogas/os/es e pesquisadoras/es/us. Tomamos essas infâncias
como ponto de partida para a reflexão sobre modos de transgressão das práticas
institucionais que dominam o campo da Psicologia.
É preciso reposicionar alguns enquadramentos que produzem a precariedade
de nossas vidas, assumindo o compromisso ético que se coloca para a Psicologia de
pensar quais corpos são vistos como dignos de cuidado e capazes de abrigar uma vida
que mereça ser vivida (LEITE JR et al., 2020). É a partir desta reflexão que criamos
espaços de acolhimento efetivo e uma rede de apoio que esteja comprometida com os
princípios enunciados nos documentos normativos que regem a prática psicológica,
levando ao estabelecimento de enquadramentos que afirmem e celebram a impor-
tância de todas as existências, produzindo uma ciência ética, plural e democrática.

A história de muitas de nós: infâncias feridas ou feridas coloniais?

As histórias importam. Muitas histórias importam. Elas podem


despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa
dignidade despedaçada (CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE).

Nossos inconscientes estão capturados pela colonização. Expressar a raiva


que sentimos é um modo de libertação\liberação (AUDRE LORDE).

Nasci na cidade interiorana de Currais Novos, Rio Grande do Norte. Não porque
residia nesta cidade, mas porque em 1994 era lá que ficava o hospital de referência

162 O que chamamos atenção com a proposição do conceito de carrego colonial é que sob a intelegibilidade dos
esquemas de terror do colonialismo, há o reconhecimento da memória da ancestralidade como planos de
reconstituição existencial. É nesse sentido que as ações de terror mantidas por uma política de mortandade/
mortificação investem na produção do esquecimento. [...] o conceito dá o tom que as obras coloniais miram
o corpo material/imaterial daqueles que são alvos de seu sistema de violência e terror (SIMAS; RUFINO,
2019, p. 16).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 515

para partos que acolhia as mulheres puérperas da minha região. Minha avó, que se
tornara órfã aos 10 anos de idade, viveu por muitos anos nessa terra aclamada e
conhecida por muitos como Seridó, e viveu até o início da sua adolescência na zona
rural, na fazenda São Miguel.
Ela me contou que migrou para o meio urbano quando conseguiu uma bolsa
de estudos numa escola de ensino fundamental católica. Aprendeu a ler e a escre-
ver, mesmo fazendo grandes travessias em caminhonetes velhas do campo para a
cidade, todos os dias da semana, além de ter que se dedicar aos trabalhos domésticos
e do campo. Nos anos de 1960, em torno dos seus vinte e poucos anos, tornou-se
mãe de 4 mulheres e 1 homem, uma delas faleceu em seus primeiros anos de vida.
Foi professora, e logo mais diretora de escolas em uma pequena cidade a poucos
quilômetros de Currais Novos, que cresceu a partir do trabalho de agricultores e de
pequenos comerciantes, chamada Campo Redondo.
Um desses comerciantes era o meu avô. A minha avó, em quase 70 anos de casa-
mento, nunca deixou de nos lembrar a história deles dois e, até os tempos atuais, nos
conta, afirmando seus sentimentos pelo meu avô, sobre as memórias que configuram
aquilo que ela retrata como amor. Atualmente, ao falar dessas lembranças, ela me
disse que se casou não apenas por amar o meu avô. Neste momento, com um tom de
fala raivoso, ao mesmo tempo em que uma das suas mãos se fechava, demonstrando
uma espécie de fúria ao dobrar os seus dedos sob essa mão fortemente, afirmou que
naqueles tempos desejava casar-se para ter uma casa em que pudesse mandar.
Foi curioso ouvi-la naquele dia, eu acabara de defender o meu projeto de con-
clusão de Residência em Atenção Básica – na qual exerci o cargo de psicóloga e de
profissional de saúde – e na mesma semana estava lendo “Um teto todo seu”163 da
Virginia Woolf (2019), e estando também nos meus vinte e poucos anos, após mais
de 60 anos terem se passado para ela, eu também estava em busca de um teto todo
meu, assim como a minha avó. Pois, há quase dez anos, eu havia saído daquela cidade
onde eu não sentia que havia um lugar para mulheres como eu. Não em busca de
um casamento, mas de um lugar no qual eu pudesse afirmar o meu modo de viver.
Assim, ao começar essa narrativa falando um pouco da história da minha avó,
percebo o quanto os problemas de gênero sempre estiveram em evidência na minha
história enquanto mulher, interiorana, nordestina, pobre e LGBTQI+ e como con-
secutivamente esta condição me levou a ser medicalizada aos 14 anos de idade.
Naquele momento, comecei a ter as minhas primeiras crises de depressão e pude me
aproximar daquilo que classificam como loucura.
Desde pequena, eu nunca performatizei a feminilidade hegemônica. Não era
passiva e muito menos dócil, achava as brincadeiras para meninas entediantes.
Apesar de afetiva e atenciosa, sempre fui furiosa e raivosa. Preferia as brincadeiras
para meninos, como andar de bicicleta e me arriscar a levar quedas feias. Adorava o

163 Neste ensaio publicado em 1929, Woolf (2019) interpela o lugar das mulheres na literatura e na ficção.
Para isso questiona as condições de classe das mulheres e os efeitos que a pobreza produz sobre suas
vidas, demarcando a invisibilidade de escritoras nas produções literárias, em referências a obras clássicas
publicadas por homens.
516

quanto eu podia me movimentar em um brinquedo, ao invés de reproduzir histórias


de “boa moça” paralisada com bonecas. No final da minha infância, os meus ataques
de ira e a minha negação por vestimentas femininas fizeram com que minha mãe me
levasse para psicólogos. Desde então comecei a ouvir comentários sobre a minha
suposta anormalidade: “você é louca!”, “ela é muito rebelde!” etc.
No início da minha adolescência, me eram danosos os círculos heteronormati-
vos da minha cidade. As meninas se restringiam a paquerar meninos no domingo à
noite na praça principal da cidade, após a missa na igreja católica. Esse era o único
“entretenimento” que tínhamos. Essa era a cidade que existia para nós. Um certo dia,
ao já começar a sentir que eu não cabia naqueles formatos, comecei a me distanciar
daquele modo de viver. Era uma época em que a internet e as redes sociais estavam
chegando ao interior, então, comecei a fazer amigos virtuais e passar grande parte
dos meus dias buscando trechos literários e cinematográficos na internet. Como eu
migrava todos os dias da semana para estudar na cidade vizinha, assim como a minha
avó – pois ela e as minhas tias, todas de classe média, me matricularam em escolas
particulares acreditando que eu poderia ter uma “educação melhor” –, havia outras
redes de amizade além das virtuais e das pessoas da minha cidade.
Ainda assim, por minha mãe e pela minha família tradicional do interior do
sertão não permitirem que eu tivesse amigos não normativos e por eu não me sentir
acolhida nos ciclos heterossexuais, machistas e misóginos, me distanciei daquela
realidade cada vez mais. Lembro claramente quando um dia minha mãe perguntou
por que eu não ia ver as minhas amigas na praça e eu simplesmente aleguei que
não iria porque aquilo não fazia sentido para mim. Então ela me respondeu com
um certo tom de desprezo: – você não sabe ser feliz. E foi a partir daí que comecei
a questionar o que era a felicidade.
Talvez por isso, a minha extrema tristeza e angústia foram aos poucos me
aniquilando e uma outra pessoa assumiu o meu lugar. Naquele tempo, minha mãe
se tornara cada vez mais violenta, e a violência verbal logo se tornou física também.
Além do seu estresse diário sobrecarregada pelos trabalhos domésticos, por certa
frustração ao ser submissa à figura masculina do meu pai e por uma de suas filhas
não seguir os padrões hegemônicos do interior do sertão, creio que minha mãe
desenvolveu uma espécie de sadismo maternal, como afirma Hooks (2019), que
leva mulheres a abusar emocionalmente de crianças.
Quando digo que outra pessoa assumiu o meu lugar, falo do meu processo de
adoecimento psíquico. Cada vez que minha mãe me agredia, eu fugia para casa de
minha avó. E morei com ela por muitos anos durante a minha adolescência. Ela e o
meu avô eram os meus refúgios. O meu lugar de cuidado naquele universo tão restrito.
Alguns dias após, meu pai me levou para um psiquiatra particular na capital, Natal.
Depois da consulta, eu tentei fugir do meu pai. Eu não queria voltar para aquele lugar.
Peguei um ônibus e fui para casa da minha madrinha que residia naquela cidade. Eu
não queria voltar para aquele lugar. Mas acabei voltando entre muitos sufocos e nego-
ciações. Logo depois, comecei a usar drogas psiquiátricas. Experimentei várias, o que,
de início, só parecia piorar o meu estado. Logo comecei a entender que o Alprazolam
possuía uma magia de neutralizar os meus sentimentos. Então, todas as noites, comecei
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 517

a tomar dosagens fortes. Até o ponto em que eu não sentisse mais a minha existência.
Atualmente, lembro desse fragmento da minha história e penso que eu nunca quis
morrer, como alguns chegaram a pensar ou como os manuais de psicopatologia pode-
riam me enquadrar. Na verdade, essa história toda é sobre o quanto eu desejava viver.
Após esses episódios, lembro que acabei desistindo de usar os medicamentos,
porque a cada dia mais estragavam a minha memória. E eu precisava dela para
estudar e sair daquele lugar. Quando se é adolescente e contra hegemônico em uma
cidade do interior, o sonho de muitos é ir morar na capital. Como se pudesse haver
mais liberdade, mais vida e ousadia para nós. Na verdade, temos como deslumbre
que as nossas crenças e desejos não serão motivo para nos tornarmos marginalizados
ou excluídos, como se houvesse um lugar em que poderíamos ser livres, sem nos
sentirmos sufocados pelos discursos moralizantes ou patologizantes.
Esses discursos também chegam na capital, mas chegam com outras roupagens.
E foi migrando do interior para a cidade grande que eu e muitos outros amigos contra
hegemônicos (gays, lésbicas, bissexuais, ateus e feministas), que possuíam alguma
renda financeira ou foram beneficiados pelos programas de distribuição de renda das
universidades públicas, conseguimos sair de quadros de crises psicológicas severas.
Aquele lugar, definitivamente, naquela época, era morte para nós. Assim, colocá-
vamos todas as nossas expectativas no vestibular, como se entrar na universidade e
sair daquela cidade fosse salvar as nossas vidas.
Ao recordar esses fragmentos de memórias de quase 15 anos atrás, hoje, me
peguei bastante emocionada lendo uma crônica do Preciado (2019), que questionava
“quem defende os direitos das crianças queer?” Não é à toa que esse texto chegou até
mim nesses tempos, pensei. Uma vez que tenho buscado dar lugar a essa questão, nas
minhas reflexões íntimas, nos meus processos terapêuticos e em conversas afetuosas
que tenho tido com alguns amigos, que também viveram uma infância e adolescência
queer, e até na minha dissertação de mestrado falo sobre.
Tornei-me adulta. E ser uma adulta queer é diferente de ser uma adulta dentro
das normas da heterossexualidade principalmente no sertão nordestino, onde os rastros
da colonização possui suas marcas e historicidades. Inevitavelmente, essas marcas
em nossos corpos desviantes atravessam as nossas infâncias e consecutivamente, as
nossas histórias de vidas, criando feridas severas em nossos inconscientes.
Acerca desta discussão, Fanon (1952/2020) demonstra como o racismo estrutural
e os efeitos da colonização criam feridas severas em nossos inconscientes, a partir de
uma norma de vida ocidentalizada do mundo europeu, que reduziu o homem negro a
um objeto. Deste modo, para o autor, o corpo negro é inferiorizado em consequência
da supervalorização europeia atravessada por uma episteme colonializadora. Nessa
perspectiva, seus debates parecem se estender aos modos de vidas queer no sertão,
pois eles apontam que o sofrimento das pessoas ou aquilo que intitulamos como sofri-
mento psíquico, não está localizado em uma estrutura intrapsíquica ou edipiana do ser.
No entanto, está em toda produção de subjetividade de uma determinada cultura
que o (re)direciona e o atravessa e que está implicada com a exploração do capital e
com as estruturas raciais. Isso acontece na medida em que a medicina fundada pelos
saberes brancos e eurocêntricos busca individualizar o sofrimento das pessoas negras
518

(aqui, incluo as pessoas queer), e desresponsabilizar as máscaras sociais que produzem


o racismo científico presente nos modos de viver dessas populações (FANON, 2020).
Além disso, é a partir da leitura do Fanon, que Grada Kilomba (2019) fala das
feridas coloniais e do trauma social presentes em nossos modos de viver, nos convo-
cando a pensar como a subjetividade existente em nossos inconscientes é racializada e
interseccionalizada com a relações de gênero, não se restringindo a processos de base
familiar e centralizadas a questões do ego, tendo em vista, que a própria condição do
negro é uma ferida social. Quando a autora fala de feridas coloniais, ela se refere a
algo que está marcado em nossas peles, em nossos afetos e em nossa subjetividade.
Por isso, entende-se aqui como ferida um processo que vai além de uma herança
física ou uma marca na pele. Como afirma Lima (2019, p. 71) “é um processo com-
plexo de subjetivação que tem na raça, enquanto ficção materializada no corpo e na
violência das práticas racistas que caracterizaram os países que se constituíram sob a
égide do sistema colonial, os lócus privilegiados de produção dos sofrimentos, entre
estes o que podemos chamar de sofrimento psíquico e/ou subjetivo”.
É possível que seja diante dessas perspectivas que Segato (2012), discute a
episteme colonial e moderna como uma matriz que organiza hierarquicamente o
mundo e as nossas relações. De tal maneira, exemplifica que a colonialidade do ser
e do poder cria não só uma história das raças dentro de sua episteme, como também
instaura de que forma as relações de gênero devem se produzir e acontecer dentro do
cristal do patriarcado. Para, diante de um grande projeto de racionalização da vida
incorporar uma grade universal, fazendo com que o que não pode ser reduzido a ela
seja, ontologicamente, descartado.
Diante desses apontamentos, Lugones (2014) evidencia como estamos de maneira
ontológica, organizados e implicados pelo sistema moderno-colonial, a partir do qual
apenas homens e mulheres “civilizados” seriam vistos como humanos, enquanto os
escravos africanos e os povos indígenas das Américas, juntamente com os animais,
seriam vistos como não-humanos. Isso seria consequência do projeto moderno/colonial,
que impôs uma estrutura de gênero, marcando profundamente a humanidade entre
essas dicotomias homem/mulher, humano/não-humano, para tratar como seres bestiais
ou demoníacos, aqueles que escapam do processo civilizatório do mundo moderno.
Acerca disso, podemos pensar que muitos de nós, pessoas queer, tiveram seus
corpos feridos por serem crianças feridas. A psicanalista Alice Miller (2011) faz uma
análise interessante sobre essa questão, quando aponta que a doutrina do quarto man-
damento que impõe que honremos nossos pais e nossas mães, para que possamos ser
“bem-sucedidos”, acaba sendo responsável pelo trauma de diferentes crianças que não
encontraram nessas figuras afeto e proteção, como moralmente é estabelecido, mas
opressão e violência, dentro de seus próprios lares. No entanto, sua análise não se
reduz, apenas, aos elementos do pai e da mãe, mas sobretudo aos contextos sociais
ou às figuras de poder (como psicólogas/os e terapeutas), que buscam legitimar
essas opressões pelos discursos cristão e moral do perdão, onde os sentimentos de
desobediência e supostos desamor não têm lugar ou poder.
Quando a autora discute, acerca da revolta que há no corpo de crianças feridas,
ela chama atenção sobre o discurso do quarto mandamento acabar prescrevendo o que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 519

estamos autorizados a sentir e sobre o que não estamos autorizados a fazer. Assim,
muitas vezes, esses traumas são silenciados do nosso próprio corpo, levando-nos
a enganá-lo por não serem acolhidos pela sociedade. O que reverbera que muitas
dessas crianças acabam sendo julgadas por não amarem quem as violentou. Tal
discussão, além de se conectar com o que Lima (2019) chama de trauma colonial,
se assemelha à percepção de trauma discutido pelo psicanalista Ferenczi. Gordar
(2012) nos ajuda a pensar sobre a teoria das vivências traumáticas trazidas por
esse autor, ao apontar que sua ideia sobre o trauma diz respeito a que uma situação
traumática só torna por si só uma experiência patogênica, quando o sofrimento da
vítima não é legitimado pelo outro ou pelo social. Assim, compreendo que muitas
dessas crianças feridas, na história de muitas de nós, são filhas de povos herdeiros
das heranças coloniais.
Assim, estabelecendo contatos com a criança queer que fui, muitas vezes
levada para muitos psicólogos pela minha família, que fazia questão de me silenciar,
talvez numa intenção “inocente” de me proteger e sem se dar conta da violência que
exerciam, penso como as normas de gênero produzem sequelas e feridas profundas
em nossos inconscientes.
Pois na minha infância, fui levada a psicólogos e psiquiatras não porque eu neces-
sitava de um corpo que acolhesse o meu sofrimento psíquico, mas para consertar a
criança ou adolescente “errada” que eu era. Não performava as feminilidades hege-
mônicas e quando contei para minha mãe, já adulta, que estava numa relação afetiva
com uma mulher, a primeira resposta que ela me deu sobre foi: “gostaria que você
fosse normal”.
Até hoje, reflito sobre essa resposta, muito analisadora, para pensar quantos
de nós, pessoas desviantes das normas de gênero, se sentem não pertencidas a
um lugar, inseguras na vida e no mundo, em certas relações que estabelecemos,
com problemas de autoimagem e autoconfiança, por que muitos desses discursos
dizem que não somos normais?
Demorei muito, até a vida adulta, para ir me despindo desses discursos e acolher
de forma amorosa a criança queer que fui. Se hoje escrevo sobre isso, é graças a ela
e a todas as outras crianças queer que fazem parte da minha existência. Se somos
“anormais”, somos também a resistência dentro de um mundo que não dá lugar às
diferentes formas de amar e existir.
Acolho com carinho a criança queer que fui e agradeço a ela por me tornar, a
mulher desviante que eu sou hoje todas as palavras que ela pode enunciar.

Entre bonecas, bola e terapia: da infância transmasculina ao psicólogo


homem trans

Minha opção pelo encantamento do mundo é a maneira que


escolhi para me comprometer com as invenções da vida e delirar
as desimportantes belezas do que ela, a vida, pode ser na minha
particular terra sem males (LUIZ ANTÔNIO SIMAS).
520

Esta é a terceira ou quarta vez que tento escrever esse texto, não sei ao certo,
em uma das tentativas tive que parar pois, no fluxo da escrita, acabei por dizer que
minha infância estava mais para uma coleção de traumas. Fiquei durante alguns
minutos lendo aquela frase e sendo acessado por uma infinidade de memórias que
por vezes esqueço que existem. Tive que parar de escrever.
Há uma ideia de certo modo comum que todas as pessoas que são LGBTQIAPN+
passam por infâncias transviadas, que desde cedo expressamos nossa subversão diante
do regime cis+hétero+patriarcal. No entanto, é necessário pontuar que há quem, diante
das inúmeras violências que exigem a adequação aos padrões normativos, vive durante
anos sem conseguir acessar ou ao menos nomear tudo o que sente, seguindo conven-
ções impostas até compreender quem se é. Não que este tenha sido necessariamente
o meu caso, mas esse texto também é para elas.
Nasci em 23 de junho de 1994, em Maceió, capital de Alagoas, nordeste brasi-
leiro, o terceiro em uma família de três filhos e uma filha. Pai funcionário público,
mãe dona de casa, que também se tornou funcionária pública; tudo parecia seguir
o fluxo na família de comercial de margarina. Nasci num momento duplamente
festeiro: São João e Copa do Mundo. Dois eventos que mobilizam nosso povo
para, através das brincadeiras, expurgar, nos encontros de rua, a dureza da vida
com a beleza das festas.
Criança tímida, observadora, calada, mas linguaruda quando teimava com uma
coisa: em dizer que era um menino. Sim, desde o momento que entendi que as coisas
tinham gênero e se nomeavam, bati o pé: é ele, não ela. Inventava mil explicações,
vivia entre livros e outras fantasias, tinha que haver alguma lógica para o motivo
que não me tratavam como o menino que eu era. Isso culminou no início do meu
processo psicoterápico aos cinco anos.
Minhas lembranças da infância são turvas, talvez pelo conflito contínuo entre
tentar ser alguém no mundo e o sentimento de não pertença ao que poderia o ser o meu
lugar. Às vezes tento me lembrar das sessões de terapia quando criança, confabulava
tanto que chego a ter dúvidas se algumas memórias são memórias ou invenções que
criava para não adoecer mais ainda, mas há algo que sempre ficou muito claro para
mim: foi durante a terapia que descobri na música um lugar de conforto. Lembro de
um tecladinho que tinha na sala e o som daquilo me encantava, ficava mexendo nas
teclas para conhecer aos poucos o som do instrumento.
A gestação também não foi fácil, tanto que nasci prematuro por conta de uma
pré-eclâmpsia. Conta minha mãe que para me acalmar ela sempre colocava música
e ficava fazendo carinho na barriga, queria que eu escutasse aquela música e me
acalmasse junto dela. Assim é até hoje, quando tudo está confuso, quando sinto
medo, quando preciso respirar, é na música que encontro a segurança necessária
para dar conta das demandas do mundo. Da barriga de minha mãe aos discos de
meu pai, passando pelo violão, cavaquinho e o tambor, é através da melodia dos
toques que harmonizo a vida.
Nisso tudo, minhas primeiras aproximações e referências musicais foram
caminhando para figuras como Cássia Eller, Renato Russo e Cazuza. Durante a
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 521

adolescência, a música “Poema” de Cazuza, gravada postumamente por Ney Mato-


grosso, soava sempre como um soco.

Eu hoje tive um pesadelo


E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo
(CAZUZA E FREJAT)

Eu me pegava pensando: quando houve esse abraço do consolo? Como voltar


para essa infância de lugar seguro, se ela nunca foi um lugar seguro? Como dizer
algo para aquele menino que estava escondido num canto escuro dentro de mim? O
menino que não queria necessariamente jogar bola, que não queria entrar na brinca-
deira de briga, que adorava costurar as roupinhas da boneca, mas que sabia que era
um menino. Porque ele não via sentido na violência, e acreditava que brincadeiras
deveriam ser somente brincadeiras, com bola, boneca ou ximbra.
Esses dias assisti um documentário sobre homens trans/transmasculinos em
que um dado momento, um deles diz a seguinte frase: “eu não quero voltar para a
infância, eu não era feliz”. Eu também não quero voltar, é sem dúvida a minha maior
resistência na escrita desse texto, pois essa infância de proteção, essa infância em
que “o medo era motivo de choro, desculpa pra um abraço ou um consolo”, não foi
a minha infância. Eu não podia chorar e dizer que chorava porque era um menino,
pois ninguém entendia isso, seria mandando de novo para terapia. E veja, não que a
terapia fosse um grande problema, hoje, sei que as passagens por alguns terapeutas
foram fortalecedores e necessários para que pudesse encarar o mundo como ele é,
mas o motivo que me levava quando criança era angustiante, e foi ali que aprendi a
me calar, afinal, “tive pai e mãe, e, no entanto, eles não foram capazes de me proteger
da repressão, da humilhação, da exclusão, da violência” (PRECIADO, 2019, p. 65).
Meus pais estavam tão perdidos nisso tudo quanto eu.
A busca pela terapia era o único modo que minha mãe visualizava para me aju-
dar, a possibilidade de uma criança ser tão teimosa quanto eu em relação ao gênero,
não fazia sentido naquele momento. Ela tentou me proteger, mas o mundo não dá
trégua. As ferramentas que meus pais dispunham lhes diziam que eles haviam tido
uma menina, que essa menina precisava de algum jeito se adequar, pois, antes mesmo
de nascer, meu corpo já estava destinado a ser mulher em um mundo de tecnologias
médico-discursivas164 generificadas.

164 O processo de criação da diferença sexual é uma operação tecnológica de redução que consiste em extrair
determinadas partes da totalidade do corpo e isola-las para fazer delas significantes sexuais. [...] O sistema
522

Além disso, compreendo que para minha mãe, como mulher, o peso de errar na
criação dos filhos possuía um significado muito mais difícil que para meu pai. Não
fantasio o amor incondicional nas relações de parentesco, imaginem os tensionamen-
tos diários com uma criança que desde os cinco anos era insistente, que escondia
vestidos, ficava emburrado, dizia que não sairia de casa com aquele lalau na cabeça.
Ninguém havia lhes ensinado a ter um filho trans.
Certa vez minha mãe me disse “meu filho, eu estudava psicologia e nem na
faculdade havia uma matéria que, pelo menos, tocasse no assunto, se tivesse sabido,
naquela época, que havia nome para a situação toda, tudo teria sido diferente”. Não
duvido. Na dissertação de Laís Silva (2020), na qual ela analisa os currículos de
Psicologia de universidades públicas de Minas Gerais, a autora aponta que os debates
sobre gênero e sexualidade não ocupam nenhuma disciplina obrigatória e, quando
aparecem, encontram-se timidamente em disciplinas optativas que contam com um
número restrito para participação de alunos.
No seu trabalho, a autora demonstra que esses debates são uma atenção recente
da Psicologia, o que dialoga com o fato que historicamente a produção teórica deste
campo esteve ligada à uma perspectiva cisheteronormativa (MATTOS; CIDADE,
2016 apud CAVALCANTI et al., 2019) e que foi a legitimação dos saberes médicos e
psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise) para definir e nomear as questões de gênero
e sexualidade que produziram o caráter de anormalidade e patologização daqueles
considerados desviantes de gênero (BENTO, 2017).
Estar, hoje, no lugar de psicólogo (e de pesquisador) me faz pensar na possi-
bilidade de falar sobre a existência de crianças trans e de como criar saberes psi que
compreendam a clínica como um espaço em que estas experienciem sua infância,
para além da preocupação obsessiva com a sua inserção no mundo a partir de uma
existência que tem como régua a cisgeneridade, pois assume, ao trazer o conceito da
cisgeneridade para o escopo de sua produção, que todos os corpos são generificados
e que o que cisgeneridade produz é a subalternização de corpos não-cis.

A cisgeneridade, nomeada e analisada, e sendo utilizada como uma ferramenta


conceitual para demonstrar a profunda, ampla e generalizada invisibilização e
marginalidade contra pessoas e comunidades trans travestis em espaços demais
mundo afora [...] constitui-se como um esforço para superar as assimetrias pre-
sentes na construção discursiva das identidades de gênero não cisgêneras (trans,
travestis, entre outras) (VERGUEIRO, 2016, p. 256).

sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da


história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam,
outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe
de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de
operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos
como naturais (PRECIADO, 2014, p. 26).
Por trás da pergunta: “é menino ou menina?” esconde-se um sistema diferenciado que fixa a ordem
empírica tomando o corpo inteligível graças à fragmentação ou a dissecação dos órgãos; um conjunto de
técnicas visuais, discursivas e cirúrgicas bem precisas que se escondem atrás do nome “atribuição de
sexo” (PRECIADO, 2014, p. 128).
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governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 523

Desse modo, não há como não tratar esta produção teórica também como um
lugar de cura, seguindo os passos ensinados por Bell Hooks: “quando nossa experiência
vivida da teorização está fundamentalmente ligada a processos de autorecuperação,
de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática” (HOOKS, 2013,
p. 85). Não se trata somente de ocupar espaços, de mastigar conceitos, de produ-
zir discursos, Hooks (2013) chama atenção para assumir como as experiências nos
moldam, nos afetam e, nessa medida, dão-nos a possibilidade de criação para pensar
um mundo além das dores e traumas que nos acessam, direcionando nossa produção
teórica com essa intenção.
É a expansão da nossa capacidade de invenção, de fazer arruaça, de teorizar, de
estabelecer trocas (acadêmicas, de afeto, de raiva, de sonhos) que afirmamos nossa
insistência na pulsão de vida.
Então, retomando a minha infância, penso que não havia modo de ser protegido,
por isso entendi, muito cedo, o peso do silenciamento. Guardei meu segredo a sete
chaves e fui driblando o mundo crescendo com a certeza de todos ao meu redor de que
era “lésbica”. Não houve um momento em que meus pais esperaram que eu chegasse
com um namorado em casa, mas com o que eles nunca contaram era que, um dia, o
namorado fosse eu.
O peso desse silenciamento resultou no medo que senti quando descobri, aos
14 anos, que havia um homem chamado Buck Angel165, um carecão que assim como
eu era homem e tinha vagina. Fiquei eufórico, mas guardei para mim, descobri um
mundo de possibilidades que só seriam possíveis no dia que fosse eu quem ditasse
todos os caminhos da minha vida.
Naquele momento, o menino que até então não tinha certeza de um nome,
começou a experienciar a ideia de ser chamado diferente, desenhava as imagens
de um rosto de cabelo curto, ralo, de óculos e barba. Desenhava com frequência,
acreditando que um dia, essa imagem se materializaria. Qual não foi minha surpresa
quando ano passado, esquentando uma comida no micro-ondas, vi meu reflexo no
espelho e lembrei das inúmeras vezes que rabisquei aquele desenho no caderno em
sala de aula. Aquele lapso de 10 segundos soou internamente como o abraço mais
bem dado que poderia dar ao menino sem nome que durantes anos se calou.
Audre Lorde (1977), em uma fala direcionada às mulheres sobre processos de
silenciamento, nos presentou com a seguinte reflexão:

A transformação do silêncio em linguagem e ação é um ato de autorrevelação, e


isso sempre pareceu perigoso. Mas quando eu contei à minha filha sobre o assunto
e a minha dificuldade diante dele, ela disse: “diga a eles como você nunca se torna
realmente uma pessoa inteira se permanece em silêncio, porque há sempre um
pedacinho dentro de você que quer sair, e se você continuar ignorando isso, ele
se torna cada vez mais enlouquecedor e, um dia, se você não falar, ele vem como
um soco por dentro da boca” (LORDE, 1977, p. 2).

165 Homem trans norte-americano, ativista pelo direito das pessoas trans, ator e produtor de filmes pornôs. É
possível saber mais sobre ele no site: https://buckangel.com/.
524

Foi pensando nessas palavras de Audre Lorde que, mesmo com toda a violência
que o silenciamento da criança que eu era me faz resistir a retomar as memórias de
minha infância, insisto na escrita, pois escrever estas palavras é parte da cura, é um
modo de abraçar o Benjamin menino que durante anos se calou, sem direito a nome, à
brincadeira, a ir à escola sem passar pelos constrangimentos de ser “diferente”, pelas
piadas em suas idas ao banheiro e pela dificuldade em criar vínculos de amizade,
pois nem menina o suficiente e nem menino como necessário.
Quando sambo hoje desajeitado, sambo pela alegria de permitir ao corpo que
brinque como sempre desejou brincar, que nos passos desengonçados encontre a
leveza corporificada da infância que lhe foi privada pois, até a dança, em vários
momentos, só lhe foi permitida dentro das normas binárias de gênero.
Retomando a canção de Cazuza: hoje eu acordei com medo, mas não cho-
rei, nem reclamei abrigo. Toco em meu rosto e sinto no volume da barba o abrigo
necessário para o menino que um dia fui materializado no homem que ele se tornou.
Sentir um abraço forte já não era medo, era uma coisa sua que ficou em mim e que
não tem fim, e que bom que o menino que há em mim sempre insistiu, sempre ficou,
sempre gritou, para que eu jamais esquecesse que ele estava ali. De repente a gente
vê que perdeu ou está perdendo alguma coisa, morna e ingênua, que vai ficando no
caminho, que é escuro e frio, mas também bonito, porque é iluminado, pela beleza
do que aconteceu há minutos atrás.
A todas as crianças que fracassaram na ordem da cisheteronormatividade para
triunfar nas rasuras que inventam a vida pela beleza ordinária de um cotidiano para
além do gênero. Brinquemos.

Considerações finais: a força que existe a partir de conexões frágeis

Iniciamos esse texto com Paul B. Preciado e concluímos com ele. Se Pre-
ciado (2019) nos inspirou quanto aos seus escritos sobre a criança queer, há uma
outra crônica sua que reverbera em nossos corpos desviantes: “A coragem de ser
você mesmo”. Falamos sobre as nossas infâncias feridas e como a colonialidade
enquanto poder de norma se exerce em corpos desviantes, como os nossos. No
entanto, percebemos em nossas narrativas de vida que essas infâncias foram com-
postas de fragilidades e sobretudo de coragem. Essa coragem que nasce da força
também se exerce pela fragilidade, pois, como nos aponta o autor, é preciso que
percamos a coragem de fabricar normas, para nos encontrarmos numa revolução
da fragilidade:

[...] como eu as amo, minhas corajosas iguais, desejo que vocês também percam a
coragem. Desejo que lhes falte força para repetir a norma, que não tenham energia
para continuar fabricando identidade, que percam a determinação de continuar
acreditando que seus papéis dizem a verdade sobre vocês. E quando tiverem
perdido toda a coragem, loucas de covardia, desejo que inventem novos e frágeis
usos para seus corpos vulneráveis. É por amá-los que os desejo frágeis e não cora-
josos. Porque a revolução atua através da fragilidade (PRECIADO, 2019, p. 142).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
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É revolução que atua através da fragilidade, uma fragilidade que, como aponta
Butler (2011) nos faz retomar o nosso humano e os limites da nossa capacidade
de fazer sentido. Quando retomamos essa fragilidade a partir de um novo enqua-
dramento, encontramos nela o sentido da coragem para subverter estas vidas pre-
cárias, traduzindo através do corpo a potência do que somos e de quem podemos
ser. Exercício que pode ser visto pela formação de políticas de coalizão. Uma vez
que, apostamos com Butler (2018) que elas são construídas por corpos em alian-
ças contingentes – entre mulheres e outras populações subalternas, permitindo
aos diferentes sujeitos e projetos políticos hegemônicos entrar em confronto nas
políticas feministas e de gênero.
Visto que, para Butler (2018, p. 76), as alianças contingentes são uma estratégia
de construir forças e poder político entre as diferentes vidas que são precarizadas
pelos poderes hegemônicos. Elas são formadas por um conjunto plural de pessoas e
de direitos coletivos e corporificados, que compreendem que a precariedade é algo
que atravessa seus corpos de formas diferentes, por mais que suas reinvindicações
defendam que as vidas sejam igualmente vivíveis. Essa construção de alianças for-
maria engendramentos coletivos que ligam diferentes grupos e pessoas, cruzando
diversos contextos linguísticos e culturais conectados às diversas raças, religiões,
sexualidades, classes e assim por diante.
Portanto, após sermos subjetivados pelas nossas infâncias queer em diferentes
lugares do Nordeste brasileiro é que refletimos bastante sobre o nosso lugar na Psi-
cologia e na pesquisa e da importância da formação de alianças contingentes dentro
desses espaços. Pois, é muito comum na nossa formação, ver algumas epistemolo-
gias fundamentadas nos saberes cientistas eurocêntricos, masculinizados e brancos,
colocando a Psicologia como salvadora de todas as complexidades da vida humana
e social. Uma discussão que é muito ampla e que cabe diversas análises dentro dela,
algo que não se esgota em um único texto.
Mas, o que continua nos chamando a atenção no campo da Psicologia, é a
barreira que por vezes encontramos quando se trata da construção dos debates neces-
sários sobre interseccionalidade entre raça, gênero, classe e território, dentro dos
seus campos práticos e teóricos. Por isso, acabam não acolhendo as subjetividades
de infâncias queer que estão/vivem em sofrimento psíquico. Muitas vezes, reduzem
os seus sintomas a classificações diagnosticas que não analisam e atravessam as
suas singularidades de vida. Os seus modos de viver, de adoecer e de se curar, não
se reduzem aos seus quadros sintomatológicos e psicopatológicos, que são cruéis e
atravessados por um jogo de complexidades sociais diversas, são determinados por
questões coletivas e políticas estruturadas pelo sistema capitalista, colonial, racial,
patriarcal e classista em que vivemos, não se restringindo a algo meramente indivi-
dual e intrapsíquico.
Isso se aplica a nós, enquanto psicólogas/os/es e pesquisadoras/es/us, que cos-
tumamos atender diversas pessoas nos territórios, nos consultórios particulares, nas
redes públicas de saúde ou em outras políticas públicas, além de ler, escrever e
construir trabalhos acadêmicos sem olharmos para a nossa própria história de vida,
pois são essas histórias que, muitas vezes, constroem a nossa maior revolução. Frágil
e corajosa.
526

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NO TERREIRO O ADIJÁ É
TOCADO... A PSICOLOGIA IRÁ
ESCUTA O CHAMADO?
Vincent Abiorana
Juliana da Silva Nóbrega

Deu meia-noite o galo já cantou Seu Tranca-Ruas que é o


dono da Gira Oh corre Gira que Ogum mandou…
(O SINO DA IGREJINHA, PONTO CANTADO).

1. Antes da viagem, é preciso conhecer o mapa

Antes de prosseguir (ou melhor, iniciar), preciso pontuar um destaque sobre


o percurso de uma pesquisa-política sobre saberes e sentidos de vivências em um
terreiro umbandista: segui por um caminho de relações e reflexões híbridas! Sendo
psicólogue, pesquisadore, trans não-binárie e umbandista, como poderia ser diferente?
O encontro desses papéis sociais repetidamente me leva a considerar o não-lugar
do gênero, da fé, da ciência e, principalmente, da psicologia. O encontro desses
questionamentos e papéis sociais repetidamente me leva a pensar “afinal, como é
ser nem-um-nem-outro?” Esse texto/viagem não ambiciona respostas que encerrem
o assunto, pois se trata apenas de ponderações e (re)considerações dos desafios e
possibilidade do saber-fazer psicológico em meio a espaços diversos.
Fazer pesquisa guiade pelo construcionismo social me permitiu conhecer histó-
rias envolvendo tramas, lugares, personagens e temporalidades múltiplas e, a partir
desses encontros, construir narrativas engajadas e partilhá-las. Pesquisas com enga-
jamentos sociais pressupõem que existem inúmeras maneiras de ser/estar no mundo,
mas que vivemos em uma sociedade estruturalmente desigual na qual valorizações
são direcionadas às ideias, vivências e pessoas de grupos dominantes sustentando
sistemas de violências. No entanto, a pluralidade de ser/estar no mundo ecoa dife-
rentes sentidos e a voz do subalterno também produz sentidos, vida e resistências.
Metodologicamente, busquei inspirações nos feminismos, na etnografia e na
postura psicológica do construcionismo social e encontrei conceitos que foram vitais
ao longo da pesquisa como campo-tema, práticas discursivas, produção de sentidos
no cotidiano, tempo longo, curto e vivido, conversas situadas, observações, narrativas
engajadas e ainda o entendimento de que neutralidade na pesquisa não existe, mas sim
a descrição e análise feitas com ética, rigor metodológico e posicionamento objetivo.
Para conhecer a produção de saberes e sentidos no cotidiano foi proveitoso estar
com as pessoas em diversas situações identificando suas linguagens, expressões e
atitudes, isto é, as práticas discursivas que circulavam neste campo-tema. Podemos
compreender esse termo como um assunto em movimento que pode ser acessado por
530

meio de documentos, conversas, observações, enfim através de interações com coisas


e pessoas vinculadas aquele tópico ao longo dos tempos longo, curto e vivido que
são, respectivamente, referentes ao tempo histórico que é reconhecido em narrativas
oficiais, ao tempo da mediata circulação de informações em um pequeno grupo às
quais podem ser ressignificadas com mais facilidade e ao tempo da própria experiência
relacionada ao determinado assunto (SPINK, 2013).
Conhecendo o construcionismo social fui entendendo que a pesquisa não con-
siste apenas na ida ao campo físico e análises de dados, mas em descortinar os proces-
sos sociais vinculados a alguma situação considerada até corriqueira por ser cotidiana.
Assim, entendi que fazer parte do povo de terreiro já era ser parte do campo-tema.
Na lógica colonialista, os conhecimentos científicos são considerados verdades
(quase) absolutas e (re)produzidos num sistema de branquitude e heteronormatividade
que tomam essas características como parâmetros de superioridade. Nesse sistema,
saberes populares e tradicionais que circulam, por exemplo, entre pessoas negras,
pobres, indígenas e mulheres recebem pouco reconhecimento (SIMÕES, 2019).
Olhando para historicidade dessas desvalorizações, é importante identificar o
encontro entre campo-tema e áreas de domínio do colonialismo como subjetividade,
natureza, trabalho, saberes, raça-etnia e gênero. Essas áreas foram olhadas a partir
dos feminismos e aproximações com construcionismo social que me possibilitaram
entender como essas discussões se materializavam no cotidiano do terreiro e passei
a vê-lo como lócus de pesquisa me tornando, ao mesmo tempo, sujeito pesquisador
e sujeito de pesquisa (SIMÕES, 2019; MINAYO; GUERRIERO, 2014).
Iniciando aproximações com o terreiro na condição de pesquisador, percebi
estranhamentos: eu não me sentia bom pesquisador por ter me inserido inicialmente
naquele espaço como adepto da religião, tampouco me sentia totalmente alguém do
Terreiro, pois não havia feito iniciações para participar das Giras.
A sensação de forasteire de dentro foi ganhando melhores contornos e conforme
eu ia escrevendo e refletindo sobre pude entender as aproximações e distanciamentos
que marcaram essa pesquisa com (des)encontros pessoais, relacionais, teóricos e ins-
titucionais. Essa disputa de sentidos descortina uma conversa, por vezes, silenciada:
como ecoar as vozes das pessoas subalternizadas?
A ética, expressa principalmente pelo anonimato, é um dos caminhos escolhidos
nas pesquisas para manter a integridade dos sujeitos. No entanto, por entender que
este estudo é um campo-tema negado e negligenciado, que não há postura neutra na
matriz do campo-tema e que, inspirado na etnografia, era importante desnudar o real e
enxergar o invisibilizado nos processos cotidianos, optei pela narrativa identificando
as pessoas do terreiro que o permitissem (ANDRADA, 2018; SATO; SOUZA, 2001).
Esse posicionamento e a proximidade que tinha com a temática me deixavam
confuse, por vezes, sobre minha postura e, aos poucos, fui vendo que aquele lugar de
nem-um-nem-outro seria meu espaço no Barracão. Aos poucos, fui me fortalecendo
aprendendo com performances de Exus e Pombogiras de nem-bons-nem-maus e
entendi que o entre-lugar é, por si, um lugar. Assumi que o entre-lugar me possi-
bilitaria ver, escutar, vivenciar e compreender com sensibilidade e rigor científico.
Esse lugar também foi de metamorfoses e, após o encontro que contarei a
seguir fui vivenciando a pesquisa e me situando melhor nos processos organizativos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 531

cotidianos do terreiro. Por um ano participei de Giras, conversas em momentos


informais, festas e nos últimos meses do estudo eu me sentia participante efetivo do
Terreiro e decidi fazer parte das Giras como rodante (pessoas que participavam das
Giras como Médiuns ou Ekédis). Essa escolha me levou a novas performances como
Umbandista e pesquisadore e me permitiram férteis observações, relatos e reflexões.
A fertilidade me levou a esse texto que teve por objetivo compartilhar nós
entre questionamentos sociais, psicologia e um Terreiro umbandista considerando
pessoas, coletividades e emaranhados de saberes e saúde herdados desde a fundação
do que chamamos de Brasil.
Essa pesquisa tem permitido um caminho para construção de narrativas não-neu-
tras já que estão situadas num determinado espaço-tempo sendo produtoras e produtos
de posicionamentos. O lugar que escolhi ocupar nessa história foi de olhar para a
encruzilhada entre conhecimentos científicos e saberes populares enfatizando como
esse encontro é atravessado por injustiças sociais. Essas desigualdades são datadas,
situadas e reproduzidas no cotidiano brasileiro, inclusive legitimadas por atuações
em psicologia e pesquisa (MINAYO; GUERRIERO, 2014. HARAWAY, 1995).

2. Em meio ao caminho, forasteire (re)inicia...

Era segunda-feira, 21 de outubro. Era segunda-feira, dia de Exu e Obaluaiê.

Era segunda-feira e fazia cerca de três meses que eu mal saía do quarto. Era
segunda-feira e eu me desesperava por não conseguir fazer pesquisa...

Recém-ingresse no mestrado, eu me senti desconectade da realização do sonho


de trilhar carreira acadêmica. A mim, era estranho estar onde eu queria estar, sem
sentir a felicidade que eu queria sentir, mas continuei. No segundo semestre, em
meio uma crise de choro, consegui verbalizar um dos motivos: havia me descoberto
transgênero e lidar com as mudanças e transfobia seria uma encruzilhada para qual
não me sentia preparade.
Fui entendendo que alguns dos incômodos, físicos e afetivos, que eu tinha ao
me colocar no mundo eram relacionados à transfobia. Essa descoberta impactou,
sobretudo, minha relação com campo-tema. Aos poucos, eu não conseguia mais
conversar com muitas pessoas, tampouco estar em lugares públicos (e nada mais
público do que um Terreiro onde há inclusive seres de outro tipo de materialidade).
Fui acolhide por pessoas próximas e queridas, mas senti dificuldades de me
mostrar vulnerável no terreiro. Eu tinha uma relação mais objetiva com as pessoas
de lá e, principalmente, com a Mãe de Santo. Eu queria – quase que magicamente –
ficar bem e só aí me reposicionar no campo-tema, mas vulnerabilidades nos ensinam
que partilhas também são expressões de cuidado.
Quando, finalmente, entendi que precisava me permitir ser cuidado pela Mãe
e outras pessoas do Barracão, consegui ir ao terreiro decidide a conversar sobre o
que estava acontecendo comigo e explicar que as crises de disforia/enfrentamento à
transfobia estavam dificultando minhas idas às Giras.
532

Apresentando rapidamente o Barracão, explico que Ele foi construído numa


encruzilhada entre uma rua movimentada, asfaltada e mais urbanizada e outra rua
encascalhada, esburacada e que remete à ruralidade. Cheguei lá por volta das 16:00
horas e vi que portão pequeno (entrada da casa pela rua asfaltada) e grande (acesso
ao terreiro pela rua de cascalho) estavam fechados. Fiquei nervose, mas decidi bater
no portão pequeno quando ouvi alguém me chamando: era uma das médiuns que
também foi visitar a Mãe e disse que estava esperando por ela.
A médium catou umas pedrinhas e começou a jogá-las no telhado na parte do
quarto. Na segunda pedrinha jogada, a Mãe gritou “já vou!” e abriu portão. Eu disse
que queria conversar com ela, a Médium perguntou se era pessoal e fez menção de
sair, respondi que era pessoal, mas ela poderia ficar. A Ekedi Miriam, outra anfitriã
da casa, foi se aproximando...
Expliquei à Mãe o que estava acontecendo comigo e não queria que ela pen-
sasse ser descaso meu. Comecei a chorar sem mais nada para dizer e Miriam me
deu água, a Médium me olhou com expressão acolhedora e Mãe também teve essa
reação enquanto sorria como quem dizia “criança tola, a vida é muito mais a viver”.
A médium começou a andar pela varanda, Miriam se sentou dizendo que estava
com dor de cabeça e Mãe começou a falar que eu não posso baixar cabeça para
nenhuma situação, que eu preciso ter orgulho de quem sou e andar de cabeça erguida
(nessa hora levantou queixo e bateu a mão expressando orgulho). Disse ainda que
não era para eu ficar triste porque se eu nasci assim, é minha missão.
Contou sobre uma pessoa trans que ia ao terreiro e, antes de se aceitar, ficava
triste pelos cantos; essa pessoa estava fazendo as transições físicas e de documentos
e era respeitada no Barracão. Continuou falando sobre exemplos de preconceitos que
ela não tolerava no terreiro, nem em sua vida pessoal.
Disse que eu precisava ter orgulho de quem sou, não deixar me abater, entrar
na Gira e me fortalecer. Mas alertou que Gira é algo ‘certinho’ e eu precisava me
comprometer. Fui ficando mais calmo e os assuntos da conversa iam girando e
girando e girando...
Saí de lá cambaleante: foi, de fato, encontro, partilha, acolhimento, cuidado.
Produzi novos sentidos de vida, de mim, de questões sociais, da comunidade, da
pesquisa. Percebi o cuidado expresso quando eu mais precisei como pesquisadore,
médium, ser humano…
O Ifé, do Iorubá também pode ser traduzido como amor, é um cuidado pro-
fundo ao mesmo tempo que generoso, pois não necessita da ideia de amor-posse tão
difundida em ideologias ocidentais, patriarcais, embranquecidas e urbanizadas. Ifé
é proteção, educação e saúde integradas em uma palavra só que, possui consonância
com a psicologia, aspira e inspira bem-estar de coletividades.

3. Apresentando o barracão

Em uma das conversas com a Mãe, ela contou que criou o Barracão na periferia
da cidade. No início, o Barracão era simples com chão de barro e quando chovia
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 533

muito as pessoas chegavam a bailar com lama na altura do joelho. Ao longo de 24


anos, o terreiro foi sendo reformado enquanto conquistava mais reconhecimento e os
momentos que conto aqui são de memórias das pessoas do barracão e de encontros
que lá vivenciei entre 2019 e 2020.
Nesse período, o espaço esteve dividido em duas partes tanto simbólica quanto
fisicamente: o espaço público onde as Giras aconteceram, também chamado de Bar-
racão (ou Casa com C maiúsculo) e espaço privado onde a Mãe morava com a Ekédi
Miriam (casa com c minúsculo) e, em alguns períodos, com outras familiares. O
Terreiro se localiza em uma encruzilhada e tem cruzamentos de rotinas domésticas
e comunitárias, momentos pessoais e coletivos que falam da família nuclear da Mãe
de Santo e de sua família espiritual. Esses encontros não seguem a rigidez de um
espaço-tempo cristalizado e comparecem nas práticas discursivas das pessoas do
Barracão de maneira mais fluída.
Seguindo a compreensão de Silveira (2014, p. 74), entendi o Terreiro como
coletivo por entender que lá “a comunidade é o centro das preocupações dos indi-
víduos” e nela cada pessoa tem sua importância individual. Os processos orga-
nizativos cotidianos no Terreiro se desenrolaram em experiências comunitárias,
desde o firmamento do Barracão como um espaço religioso e do reconhecimento
da Mãe de Santo como a responsável pelo grupo até o zelo pela Casa e a resolução
de desafios de forma coletiva.
A Mãe contou empolgada que se tornou Mãe de Santo porque se dedicava muito
às pessoas e elas “sentiram a necessidade de me chamar de Mãe, de me ocupar no
coraçãozinho delas, né?”. Ela se descobriu como necessária àquelas pessoas que
curava e desenvolvia a espiritualidade. Ela então resolveu se tornar Mãe, abriu uma
Tenda e disse que depois vieram os Tambores a rufar e outras Entidades.

Aparecem muitos com problema aqui, problemas iguais aos meus que eu procuro
ajudar, enfim, chega a ser uma grande família para nós, chega nós sentir falta,
quando dois dias, eu já sinto uma raiva horrível, não por interesse e sim por amor
que eu tenho como se fossem verdadeiros filhos, porque eu acho que uma palavra
mãe é uma palavra muito forte, é uma palavra que tanto respeita a espiritualidade
quanto a mãe carnal, então eu sou mãe duas vezes. Agradeço a Deus por me dar
essa sabedoria tão grande de respeitar meus filhos, minhas filhas. Para mim, não
tem diferença, eu gosto muito deles, gosto dos meus carnais e gosto dos meus
espirituais, né? Para mim, não tem diferença, a mãe é um coração só. Desde
quando você passa a me adotar como mãe, eu já sou sua mãe, eu já brigo, eu já
vou à luta com você, eu já vou lhe defender, tudo aquilo, se um dia eu passar e
ver alguém falando dos meus filhos materiais ou espirituais eu vou para cima, eu
vou defender como uma mãe (MÃE DE SANTO, 2020).

Célia contava da maternagem e dos sentidos de ajuda, amor, união, família,


autorrealização, entre outros, sentidos de vida cotidiana que une em uma prática só a
trajetória de vida, religião, resistência, espiritualidade, comunidade e família. A mim
pareceu que ser Mãe, nos olhares de Célia, era o Axé de integrar essa encruzilhada
de afetos, atuações e possibilidades.
534

Inspirado em Lopes (2011) podemos entender que as pessoas buscam nos Ter-
reiros assistência financeira e material, bem como tratamento para o corpo, alma e
mente. Em rituais ou nos outros processos organizativos do cotidiano, circulam as
práticas discursivas umbandistas como movimentos de resistência social, culto a
Orixás e enlaces de amizade, amor e disputas.
As vivências no Terreiro são sociais, religiosas e familiares ao mesmo tempo que
refletem nos processos organizativos do terreiro e na disposição espacial. O espaço
em uma encruzilhada tem duas formas de acesso: a) pelo portão pequeno, na rua
principal e asfaltada, há entrada para casa (âmbito pessoal); b) pelo portão grande,
na rua encascalhada e reservada, há entrada para o terreiro.
Na calçada, há uma cruz branca (simboliza Oxalá) e plantas altas remetendo à
Oxóssi e natureza; Muro, portão grande e parte interna do barracão são vermelhos e,
quem entra na varanda, vê duas árvores de porte médio do lado direito e a Trunqueira
do Exu Veludo do lado esquerdo. Mais à frente há um espaço (Congá Menor), com
dois Tambores, onde ocorrem danças para Incorporação e ao lado desse espaço, há
um quarto onde pessoas da Gira (rodantes) se preparam para rituais.
Atrás da Trunqueira fica o tanque onde lavamos as louças e um banheiro impro-
visado em algumas festas. Ao lado desse espaço, há uma cerca mantendo os cachorros
presos e marcando passagem para ambiente semiprivado (cozinha). Essa cozinha é
subdividida: uma parte com dois armários, duas geladeiras, um freezer, uma mesa
de seis a oito lugares e, outra pequena parte, com fogão e uma geladeira. A cozinha
parecia ser lugar de transição entre casa e Casa, pois dava acesso ao espaço domés-
tico via portão, enquanto ainda era espaço de partilha de conversas e alimentos em
momentos alternativos aos rituais públicos.
Em dias sem sessões ou antes delas começarem, as pessoas mais próximas ficam
sentadas na cozinha conversando e comendo; quando aconteceram as Giras, a entrada
ficava mais restrita para pegar água ou cerveja para as pessoas ou Entidades. Após as
Giras ou durante as festas, a cozinha podia ser utilizada enquanto a comida era servida,
mas a partir de 2020 as comidas passaram a ser servidas na varanda perto do poço.
Além da necessidade nutritiva, a alimentação tem cumprido um papel psicosso-
cial relacionado à disponibilidade de alimentos, hábitos culturais, memória afetiva e
organização social. Marcada pela dimensão afetiva de partilha de encontros e valores,
a alimentação ganhou o sentido de comida, portanto, a comensalidade no terreiro
expressava sentidos de socialidades e de cuidado (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).
Na identidade brasileira, foram produzidos sentidos de oferecer em eventos
sociais algum tipo de comida e bebida que, de acordo com o contexto, como urbano
ou ruralizado, elitizado ou periférico, falavam da multiplicidade das práticas dis-
cursivas. Em meios rurais e periféricos, a comida era conectada à dimensão de
alimento, socialidade e trabalho que é uma lógica diferente da que tem operado no
meio urbano e elitizado (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).
O Barracão era um espaço periférico que repetia alguns ritos do meio rural de
compreender os momentos de alimentação como fonte de sustento, de momentos
de partilhas e cuidado. Ali circulavam sentidos de comida, como enlace afetivo e
material tanto que a Mãe e Miriam montaram um restaurante na varanda da frente
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 535

que havia se tornado mais uma fonte de renda e auxiliava no sustento junto com a
loja de artefatos religiosos que agora também funcionava no Barracão, os trabalhos
cobrados pela Mãe de Santo (como os cortes para Exus ou a leitura de búzios) e
as doações recebidas.
Esses arranjos econômicos eram organizados em horários opostos à realiza-
ção das Festas e Giras rotineiras que aconteciam aos sábados por volta das 20:00
horas, exceto quando havia alguma festividade como aniversários os quais eram
comemorados na data exata. As sessões começavam quando a Mãe tocava o Adijá
para chamar as pessoas da Gira que deviam ir ao quarto para se concentrar e orar, a
entrada desse quarto era restrita e quem não era rodante só ouvia algumas partes das
orações e alguns pontos.
Antes de iniciar a sessão, a Mãe Defumava a Casa queimando raízes e ervas
conhecidas por propriedades de limpeza e Cura espiritual como Benjoim, Alecrim e
Alfazema. A fumaça tinha cheiro forte que gerava a sensação de relaxamento, isto é,
purificava a energia da Casa e das pessoas ali presentes e a Mãe cantando Pontos de
Defumação andava pelo Barracão ao que cada pessoa estendia as mãos, passando-as
entre a fumaça e era abençoado.

A defumação é uma coisa bem sagrada quando você inicia as rezas antes de come-
çar a sessão, pois aquela defumação já vem de muitos e muitos anos. Defumação
é para espantar as coisas ruins, os Espíritos ruins. Nós cantamos para defumar, aí
depois nós cantamos que “já defumou, já incensou” e depois nós cantamos que
“na Umbanda cheira à defumação”. É, tudo nesse mundo tem um começo, um
meio e um fim. Nós cantamos para abrir, cantamos que estamos agradecidos por
aquela defumação e cantamos para desejar paz, amor e tranquilidade. Abrimos
nossa mesa que é para darmos passagens para os Espíritos de luzes, para o Mestre
vir trabalhar, porque o barracão já está preparado para receber aquelas Entidades
com muita luz. O essencial de uma casa ser defumada é porque a defumação
espanta as coisas ruins que, às vezes, vem com pensamentos negativos e aquela
fumaça tira as energias negativas e dá as positivas (MÃE DE SANTO, 2020).

A Defumação no Terreiro mesmo sem a expressa intencionalidade levava ao


resgate dos saberes das ervas, dos ancestrais e da natureza produzindo efeitos nas
pessoas como sentidos de equilíbrio entre espírito, corpo e vida social. As plantas
transportavam Axé e o uso delas exercia papel importante na limpeza de objetos, cura
e preparo de banhos que harmonizavam corpo-espírito e mantinham as memórias e
as tradições das práticas religiosas e sociais (CARLESSI, 2016).
Para manter as memórias e tradições, a oralidade teve papel central nos pro-
cessos organizativos cotidianos do Barracão da Célia e foi expressa em conversas
informais ao longo dos rituais e, mais descontinuamente, em outros momentos como
nos Pontos Cantados e nas tentativas de organização de Rodas de Conversa que seriam
momentos de aprendizado de costumes, Obrigações, Liturgias, informações sobre
Entidades, Orixás, Defumações, resistências, Curas e atenção à saúde.
O conjunto dessas práticas e sapiências circulava pela Casa levando as pessoas
a se sentirem parte de uma comunidade e até de uma família o que é fator de proteção
536

e atenção à saúde mental principalmente de grupos que tem menos acesso ao exer-
cício de seus direitos sociais, como pessoas negras, idosas, pobres, das ruralidades,
mulheres, LGBTQIAPN+. Estar em grupos historicamente desvalorizados no Brasil,
mas encontrar suporte em determinados espaços é potente força motriz ao bem-estar,
como foi relatado por Gabriel:

Bem, no Barracão da Mãe Célia, eu me reencontrei, foi onde eu conheci pessoas


extraordinárias, felizes, alegres. Ali achei não só amigos, mas uma família prote-
tora que me acolheu quando eu precisei e conto com eles para tudo. Eu estou um
pouco afastado, mas eu não me esqueço deles por nenhum dia. O Pai Simbamba,
mais o mestre da casa que é o nosso digníssimo Roxo, Eles são bem cuidadosos
e rígidos nesses processos de cura e banho, Eles não mentem e não deixam os
filhos desamparados. Eles ajudam. Quando precisar desabafar, de um incentivo,
Eles dão! Ser mãe de santo requer muita sabedoria, responsabilidade, para ser
uma Mãe de Santo tem que saber rezas, o que estiver acontecendo e mesmo não
sabendo, buscar sempre sabedoria. Sessão de cura só caboclo que faz, mas se não
tiver uma mãe de Santo para nos guiar, não existiriam curas, milagres. Só mexe
quem sabe e quem entende. A mãe de santo, se ela não souber, ela não se mete,
ela vai a busca de sabedoria, é inacreditável, mas uma mãe de Santo e uma Ekédi
que eu admiro são a Célia e Miriam. São pessoas extraordinárias que quando
precisam abrir os nossos olhos fazem o possível (MÉDIUM GABRIEL, 2020).

Com esses dizeres, Gabriel deixou evidente como a saúde deve estar alinhada à
proteção, acolhimento, cuidado... São palavras que ao primeiro olhar podem conter
estritamente o mesmo significado, contudo se nos atentarmos aos exemplos de atitu-
des trazidos por ele e outras pessoas participantes da pesquisa podemos descortinar
“partes” da vida que são reconhecidas. Concerne ao zelo pelo corpóreo, mental,
emocional e espiritual toda a (re)produção de trabalho e educação no Terreiro levan-
do-nos a incorporar o entendimento de que saúde, no contexto umbandista, implica
em amorosa integração do todo.

4. IFÉ: nós umbandistas, nós da psicologia

Um terreiro é território de coexistência de saberes e sentidos, memórias e ações,


socialidades e materialidades e, nessa pluralidade, o Barracão foi erguido material
e simbolicamente. Aqui ressalto não apenas a encruzilhada urbanicidade-ruralidade
da infraestrutura das ruas, como também o hibridismo dos modos de (vi)ver a comu-
nidade, espiritualidade, educação, saúde, entre outras áreas que são do interesse do
saber-fazer psicológico.
É preciso reconhecer a predominância do discurso institucionalizado no ensinar-
pesquisar-fazer psicologia que por estar “longe de ser algo amplamente resolvido,
os campos discursivos das psicologias ainda atuam como dispositivos de controle e
violência, discriminação e patologização” (STONA, 2021, p. 14).
Repensar os campos psicológicos implica estruturalmente em repensar um pro-
jeto de inclusão, diversidade e democracia. Não reconhecer questões sociais é recuar
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 537

diante da realidade humana que são as múltiplas violências e violações estruturais


que determinados grupos enfrentam,

[...] é, justamente, tentar a todo custo manter um certo legado normativo intacto. É
também, tentar conservar pactos narcísicos de opressão, discriminação e estigma,
perpetuando o silenciamento das múltiplas corporeidades possíveis na cultura.
Diante disso, pergunto-lhe: na sua formação, seja ela qual for, quantes autores
trans, não- bináries, não-branques, indígenas, travestis, feministas, LGBTQIA+
ou com deficiência você já leu ou tem lido? Quais são os efeitos de tais ausências
na nossa formação? Quais são os efeitos desses apagamentos e dessas invisibili-
dades na nossa escuta e prática? Cada vez mais se torna importante situarmos o
nosso lugar de escuta, que é fabricado por uma teoria que não é neutra e isenta
de uma historicidade que apaga os marcadores interseccionais de diferença. Se,
como nos avisa Gayatri Spivak (1988) e Djamila Ribeiro (2017), quem tem o
privilégio social tem o privilégio epistêmico, ainda cabe uma posição defensiva
ou de silenciamento? (STONA, 2021, p. 13).

Enxergar na mesma linha privilégio social e privilégio epistêmico nos leva a


retomarmos rapidamente a própria linha de construção do que hoje chamamos de
ciência psicológica e, mais especificamente, o sentido de saúde e isto nos leva a
compreender com mais qualidade as conexões entre sua definição acadêmica e sua
apreensão no cotidiano de um povo de terreiro.
Antunes (2008) e Simões (2019) mostraram que no Brasil, a psicologia foi
regulamentada no início dos anos 1960 e suas epistemologias mais reconhecidas
legitimaram uma lógica de desenvolvimento linear e colonialista negando saberes,
processos psicossociais, subjetividades e modos de vida de outras populações como
as tradicionais e afrodescendentes. Na contramão, foram criados movimentos de luta
pela psicologia popular, plural e crítica tendo como raiz os saberes e as memórias
desses grupos, pois tradicionalmente à psicologia:

[...] ficaram de fora as leituras acerca do humano, daquilo que denominamos


pensamentos, ações, afetos e relações, feitas pelos povos, pelas culturas, pelas
civilizações que historicamente viveram em nosso continente e pelos que para
ele vieram na condição de escravizados [...]. Num dado momento desse percurso,
uma questão se colocou como fundamental: é preciso descolonizar a psicologia
brasileira e, para tanto, é estratégico o apelo à construção de uma psicologia lati-
no-americana que resgate a complexidade originária de nossos povos e da nossa
sociedade. Essa construção só é possível a partir da organização e da articulação
da produção crítica da psicologia latino-americana (p. 15-16, 18).

Para a construção da psicologia latinoamericana e popular é necessário ter


olhares atentos às estruturas em que ela se insere atravessando uma produção crítica
sobre engrenagens sociais desiguais no Brasil como o racismo estrutural e institucio-
nal que tem sustentado no imaginário social e nas subjetividades brasileiras o ideal
de “que não existiriam iguais enquanto houvesse multiplicidade de raças, enquanto
existissem negros e indígenas” (CARDOSO; COIMBRA, 2019, p. 186).
538

Esse ideal foi – e ainda é – justificativa para o imperativo de reproduzir os


valores colonialistas legitimando genocídios e epistemicídios que ainda operam
atualmente subjugando saberes ancestrais de cuidado (re)produzidos por indígenas
e negras “condenando-a a um sistema de saúde com referências burguesa-eurocên-
trica-higienizadora dos indesejáveis” destruindo objetiva e subjetivamente o outro
(CARDOSO; COIMBRA, 2019, p. 186).
A psicologia está inscrita nesse contexto de extermínio principalmente quando
não reconhece os impactos das desigualdades na vida, relações e subjetividades
das pessoas e acaba por naturalizar violências e legitimar epistemicídios. Por isso,
à psicologia latino-americana é tão urgente e valioso conhecer sua história e de seu
povo e retomar desde tempos coloniais para compreender como essas estruturas são
atualizadas no cotidiano brasileiro.
A exploração desses eixos deságua num binarismo com desvalorização do que
remete ao feminino, popular e afroindígena como trabalho imaterial, matriarcado,
vivências comunitárias, culto às expressões da natureza, saberes expressos e apren-
didos via oralidade, entre outras vivências que não seguem a o padrão do hemisfério
Norte. A herança colonial foi fortemente forjada no imaginário social brasileiro e
qualquer fuga à normatividade eurocêntrica tem sido considerada sinônimo de perigo.
Nesse cenário, as religiões de matriz africana foram (e ainda são) consideradas um
risco, ou melhor, uma resistência à ideologia colonial (GONÇALVES, 2016).
Essas religiões são manifestações culturais híbridas de supressões e acréscimos
decorrentes da resistência ao tráfico transatlântico sofrido por pessoas afrodescen-
dentes para serem escravizadas nas Américas, ao genocídio sofrido pelas populações
indígenas e às violências contra as mulheres e o que era atribuído ao feminino. Essas
tradições são múltiplas e podem ser divididas em tradicionais africanas e afro-ameri-
canas que podem ser classificadas como afro-caribenhas como o Vodu e afro-brasi-
leiras como Batuque, Candomblé, Tambor de Mina e Umbanda (SILVEIRA, 2014).
Valorizando o bem-estar de seus povos, explicaram Saraceni (2018) e Ramos
(2015), Terreiros têm se consolidado como espaços físicos e subjetivos que cen-
tralizam os cuidados à saúde mental, física e espiritual promovendo felicidade por
meio de acolhimentos e aconselhamentos, bebidas e banhos de ervas, alimentos e
vestimentas, presentes e busca da divisão mais equitativa dos trabalhos realizados
visando equilíbrio do Axé, ou seja, da energia vital.
Entender o Axé como saúde produz impactos sobre as bases coloniais das
ciências positivas que veem a saúde como ausência de doenças, o que fundamentou
o discurso de intervenções baseadas em fragmentos sem que a pessoa seja vista
como um todo em funcionamento, em relação à realidade concreta em torno desse
sujeito e em conexão com o que produz sentidos de vida (FRANÇA; QUEIROZ;
BEZERRA, 2016).
O Axé como a força propulsora de vida é vital na Umbanda e está presente tanto
em seres humanos quanto nos elementos da natureza, pois nos une e pode aumentar
ou diminuir conforme o (des)equilíbrio de cada pessoa de modo que as ervas, jun-
tamente com os ritos, têm a função de recompor e fortalecer a energia e promover
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
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saúde. Essa força simboliza a saúde e nos Terreiros é cuidada por meio dos saberes
em utilizar as Ervas e realizar os rituais de acordo com os ensinamentos das Entidades
e representações dos Orixás. Reconhecendo a natureza distinta dos saberes que fun-
damentam as práticas de cuidado em saúde nos terreiros e nos espaços biomédicos,
saberes estes muitas vezes conflitantes (FRANÇA; QUEIROZ; BEZERRA, 2016).
As medicinas populares evidenciavam os encontros entre conhecimentos das
etnias brancas, indígenas e negras deflagrando um movimento histórico e social
que por meio do trabalho e partilha de saberes se metamorfoseou “no cotidiano
da vida do campo e da cidade, no qual os ervateiros, raizeiros e parteiras colocam
seus conhecimentos à disposição da comunidade e assim organizam suas expe-
riências de vida e sua maneira de conceber o mundo” (FRANÇA; QUEIROZ;
BEZERRA, 2016, p. 106-107).

Historicamente, o conceito de saúde fundamentou-se e estruturou-se com base nas


ciências positivas, em que saúde é ausência de doença e para a qual a medicina
direcionou seu discurso acadêmico e/ou científico pautado na especialidade e na
organização institucional das práticas em saúde, cujo objeto principal de interven-
ção é a doença e não o sujeito. Nessa visão, o conceito de doença estruturou-se
no modelo biocartesiano e é percebida como dotada de realidade própria, externa
e anterior às alterações concretas do corpo dos doentes. O corpo é, assim, des-
conectado de todo o conjunto de relações que constituem os significados da vida
(FRANÇA; QUEIROZ; BEZERRA, 2016, p. 106).

Simões (2019) apontou que, no mesmo molde, tradicionalmente a psicologia


foi compreendendo a saúde mental separada do contexto no qual um indivíduo
vivia. Perspectivas diferentes circulavam no Terreiro, pois como colocou Silveira
(2014), as comunidades tradicionais de matriz africana tinham visões holística e
popular do ser humano e de seu equilíbrio que poderia ser chamado de Axé que era
a força vital não apenas para o bem-estar individual, mas também para ajustamento
da própria comunidade.
No Barracão, circulavam sentidos de saúde diferentes dos biocartesianos e,
quando perguntei a duas Médiuns e à Miriam quando elas cuidavam de si, se havia
diferença nos cuidados à mente, corpo e espírito, uma Médium respondeu que não
cuidava da mente de jeito nenhum, mas do corpo ela cuidava bastante e era muito
sistemática com esse zelo. Logo, em seguida, ela e outra médium explicaram que
não havia separação, pois cada um trabalhava do seu jeito e em sua parte sendo
que a mente e o espírito se conectavam para, segundo Igor, “tentar raciocinar o
que o espírito faz”.
Elas falaram dessa conexão em relação às Curas que, mesmo em casos de
queixas específicas, eram voltadas para a unicidade corpo-matéria já que, segundo
Miriam, o espírito não adoecia. Falar de Curas era lembrar principalmente dos
Caboclos e, em especial, do Caboclo Roxo que era uma Entidade muito antiga e
conhecedora de muitas Rezas curativas “e existe, o Seu Roxo, o Seu Roxo é um
espírito de cura, às vezes, a gente está com um, é, tem uns que fala arca caída, outros
540

falam espinhela caída, outros falam peito aberto, né? Ele vem, reza, a gente fica
bem” (EKÉDI MIRIAM, 2020).
Esses saberes cumpriam papéis importantes nos sentidos de acolhimento, per-
tença ao grupo e formas de enfrentamento político aos sofrimentos sociais. Os saberes
do trabalho de cuidado eram, portanto, partilhas afetivas e políticas. Eram delicadezas
diante de um mundo duro e difícil...
Miriam levantou uma discussão muito importante sobre a hierarquização dos
conhecimentos e lembrou do dia em que fui lá precisando de acolhimento – aquele
que contei no tópico “Em meio ao caminho, forasteire (re)inicia” – e dos saberes
dela e da Célia. A Ekédi contou com muito orgulho que pôde me ajudar conforme
seus estudos.

Mas chega um determinado tempo que não é porque ele é formado que não vai
precisar de mim, precisar de você. Porque o Vincent chegou aqui um dia com
problema, ele poderia muito bem resolver o problema dele, mas ele precisou de
alguém, mesmo sendo formado entendeu? Ele precisou de alguém que escutasse
e que entendesse, para auxiliá-lo a sair daquilo que estava vivendo, está enten-
dendo? E, às vezes, uma palavra consegue tirar, uma palavra você desce e outra
você sobe. Porque, às vezes, uma palavra minha falando para ele... “Poxa, graças
a Deus a Miriam me auxiliou, me ajudou, contribuiu comigo de alguma forma”;
às vezes, a minha palavra sai um pouco errada porque não tenho estudo, né? Mas
eu tenho é, eu sou dotada de conhecimento, já me digo assim mesmo, não tenho
faculdade, não sou formada, a minha formatura eu já trouxe de berço, entendeu?
Eu entendo as pessoas, às vezes, eu entendo cada um dos meus irmãos aqui em
casa (EKÉDI MIRIAM, 2020).

Miriam, de certa forma, falava da divisão entre saberes e conhecimentos que


no modus operandis colonialista colocava reconhecimentos apenas nos saberes que
foram sistematizados nos moldes acadêmicos e academicistas como no caso das
escutas e acolhimentos. Longe de querer deslegitimar os conhecimentos produzidos
pela psicologia sobre seu exercício realizado com objetividade, comprometimento
afetivo e social, busquei chamar atenção para a hierarquia entre saberes que tem
colocado práticas reconhecidas como científicas como as únicas legítimas o que a
narrativa de Miriam deixou evidente que era um grande equívoco.
Para a epistemologia construcionista, a produção de saberes é situada num
tempo histórico por meio da linguagem em uso e de outras práticas discursivas no
cotidiano como a oralidade que produz sentidos de coisas como saúde e saberes
(IÑIGUEZ, 2004; SPINK, 2013; HARAWAY, 1995).
Nos Terreiros, os saberes circulam predominantemente de maneira não-formal
e informal seguindo uma sistematização que não é a lógica educacional formal do
âmbito escolar e produzem aprendizagens organizadas e planejadas acerca de inú-
meras temáticas como as práticas de cuidado, viver bem e se relacionar em coletivo,
variadas visões de mundo voltadas à diversidade e resistência, ritualísticas e múltiplas
sociabilidades (OLIVEIRA; ALMIRANTE, 2014).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 541

Um dos reconhecimentos aos saberes e práticas em saúde preservados nos


Terreiros veio por meio da aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra que ocorreu em 2006. A aprovação dessa Política reafirmou o valor
das vivências das populações afro que, por meio do tráfico sofrido, trouxeram saberes
de como realizar Cura a partir das “práticas divinatórias, transes místicos e rituais
específicos, invocavam as forças superiores para propiciar conselhos e intervenções
para problemas de saúde” (FRANÇA; QUEIROZ; BEZERRA, 2016, p. 107).
A oficialização do reconhecimento dos saberes e das práticas em saúde dos
Povos de Terreiro indica a produção de novas formatações de sentidos dos saberes
populares, afrocentrados, periféricos, rurais, de mulheres, enfim de pessoas e coleti-
vidades que ainda são subjugadas política, econômica, educacional e até psicologi-
camente. Na encruzilhada desses saberes e sentidos, estão vivências e vinculações
fundamentais à psicologia que necessita de se olhar e perceber suas raízes históricas
e sociais, pois somente olhando para o passado essa ciência pode encontrar brechas
para construção de futuro potente, democrático e com novos sentidos e práticas
discursivas anti-colonialistas.

5. Considerações finais

A historiografia da psicologia no Brasil é atravessada por disputas de narrativas


abarcando desde a legitimação de preconceitos e violências “em nome da ciência”
até lutas pela construção de uma psicologia democrática, popular e inclusiva. Tendo
por Norte a tessitura de atuações anti-coloniais, as reflexões socializadas nesse texto
buscaram centralizar vivências plurais que cotidianamente são incluídas perversa-
mente como as mulheres e populações negras, pobres, periféricas, LGBTQIAPN+
que tinham em comum o fato de estarem em uma Casa Umbandista.
Centralizando essas existências, o objetivo emplacado então foi de compartilhar
nós entre questionamentos sociais, psicologia e um Terreiro umbandista considerando
pessoas, coletividades e emaranhados de saberes e saúde herdados desde a fundação
do que chamamos de Brasil no interesse de contribuir com histórias que parecem não
ser tão contadas em nossa formação acadêmica.
Povos de terreiro existem e é urgente que profissionais da psicologia rompam
com o genocida e epistemicida projeto colonial que desde a fundação do Brasil
(ou afundamento de Pindorama) massacra o legado da população afro demoni-
zando, negando, diminuindo saberes ancestrais sobre tantos temas como saúde.
O povo do Terreiro que conheci ao longo da pesquisa sabia de ervas, de banhos,
de preces, de conversas, enfim de “n” maneiras de zelo consigo e com seus pares,
sabia acolher, sabia ensinar, sabia ouvir... É curioso que muitos desses verbos são
exigidos e, por vezes, enaltecidos no fazer psicologia; contudo, esses saberes nos
Oris Umbandistas mal são vistos.
Miriam fez conexões entre o acolhimento que fizeram comigo no Barracão e o
que ela supõe que a psicologia saiba fazer e fiquei pensando como é intrigante que um
trabalho feito pela/para branquitude (e outras normatividades) reconhecido no Brasil
542

na década de 1960 continue, sessenta anos depois, majoritariamente reproduzindo


os mesmos apagamentos de memórias, subjetividades, vidas que não seguem uma
moral burguesa, cristã, colonial. Quando a psicologia pouco se interessa em produzir
estudos e ações voltadas aos povos de terreiro, ela atesta que continuamos no mesmo
lugar da década de 60, ou seja, servindo de instrumento para convencer as pessoas
que elas devem se manter no mesmo lugar: de submissas!
Um Barracão pode ser território de emancipação e historicamente assim esses
espaços foram criados em terras brasileiras. Até hoje um Barracão pode ser um
lugar do subalterno falar, aliás pode ser chão para pessoas subalternizadas canta-
rem Pontos, dançarem, tocarem Tambor e Adijá. Um Barracão pode ser a base de
movimentos organizados de cuidado às populações negligenciadas pelo Estado,
pela Ciência e cabe à psicologia escolher qual contribuição terá nessa disputa de
narrativas, sentidos, emancipação.
A pesquisa aqui contada não foi feita com neutralidade até porque essa crença é
um mito colonial, nossos olhares são para o Norte que será somente uma profissão de
fato vinculada à realidade, uma psicologia que reconheça as vivências das mulheres,
de pessoas pobres, negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e com deficiência, enfim uma
psicologia com olhares para as relações de gênero, pretitudes, capacidades, classes,
corporalidades e territórios.
Cardoso e Coimbra (2010) colocam que algumas das mudanças de postura já vêm
acontecendo, porém, ainda existe muito a ser feito no ensino, atuações e pesquisas!

Deu meia-noite o galo já cantou Seu Tranca-Ruas que é o


dono da Gira Oh corre Gira que Ogum mandou…
(O SINO DA IGREJINHA, PONTO CANTADO).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 543

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LITERATURA E
INTERSECCIONALIDADES:
resistência feminina decolonial
Adrieli Pacheco Sperandir
Amanda Cappellari
Lilian Rodrigues da Cruz

Nas palavras que costuram este texto salta o desejo de suscitar vozes de outras
mulheres, mulheres cujas trajetórias se desenham de forma singular e que são alvos
de um violento apagamento perante a memória colonial capitalista. Segundo María
Lugones (2014), a transformação civilizatória, arquitetada pelas forças imperialistas,
“justificava a colonização da memória e, consequentemente, das noções de si das
pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual, com a
terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica” (p. 938). É em uma tentativa de tecer um micro
movimento contrário a este apagamento, que iniciamos este texto.
Durante muito tempo, a literatura e a escrita têm sido fontes narrativas de
diversas mulheres, uma forma de registro, mesmo quando ficcional, de uma memória
social, de experiências de gênero que não se fixam em uma única referência, mas
que se constroem a partir de múltiplos entrecruzamentos. Escritoras, através das
palavras, buscam recriar um mundo de referências que vêm sendo esmagadas ao
longo do tempo pelo regime colonial (WALTER, 2018). Referenciar tais narrativas
é desestabilizar o status quo do sujeito universal, homem, branco, cis, heterossexual.
Assim como ressaltado por María Lugones (2014, p. 940), “descolonizar o gênero
é necessariamente uma práxis. É decretar uma crítica da opressão de gênero racia-
lizada, colonial e capitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida
do social”. É no desafio de ler e imergir nestas perspectivas contra-hegemônicas que
nos encontramos. Em uma tentativa também de desestabilizar o feminismo que nos
constituiu durante muito tempo, um feminismo encoberto pelas vantagens sociais de
uma localização social branca e de classe média. É, portanto, uma busca por ampliar
olhares e escuta e de perceber privilégios diante das estruturas sociais, para que pos-
samos melhor nos responsabilizar diante de nossos gestos no mundo.
Como apontado por Donna Haraway (2009), nos localizarmos nas produções é
fundamental, pois o lugar em que nos situamos diz das nossas construções e proble-
matizações, é importante nomear onde estamos e onde não estamos. Nesta escrita,
portanto, nos encontramos, a partir de um olhar crítico, com os privilégios da bran-
quitude e tantos outros, e assumimos um olhar esfumaçado por estes lugares. Escre-
vemos também para buscar formas de compor nas trincheiras dos direitos sociais,
com outras mulheres que vivenciam experiências de gênero distintas, para compor
na luta contra as diversas formas de opressão. Neste contexto, a intenção é produzir
546

uma escrita pautando uma “relação crítica, reflexiva em relação às nossas próprias
e às práticas de dominação de outros e nas partes desiguais de privilégio e opressão
que todas as posições contêm” (HARAWAY, 2009, p. 15).
A partir destas reflexões iniciais, objetivamos visibilizar como a literatura
produzida por algumas mulheres periféricas contemporâneas tem se constituído
enquanto ferramenta de criação e manutenção de memórias que abalam o status
do sujeito dominante. E, para além disso, como essa literatura inscreve a multi-
plicidade de existências engendradas pelos eixos de gênero, raça, classe, sexua-
lidade e outros. O pensamento que movimenta esta produção parte da percepção
de uma abertura para uma política contra colonial, a partir de contos produzidos
por mulheres consideradas periféricas, em uma perspectiva de tecer uma ética de
resistência feminista e decolonial.
Este capítulo, portanto, é tecido por textos literários produzidos por mulheres;
contos que narram distintas experiências de gênero. A partir de excertos dos contos
dialogamos com a luta contra colonial e a perspectiva interseccional. Os contos foram
escolhidos afetivamente, desde que fossem contemporâneos e que nos suscitassem
refletir sobre decolonialidade e interseccionalidade. O texto incita rachaduras diante
da história hegemônica? Trata-se de narrativa dissidente? Essas foram algumas
perguntas que nos fizemos. Procuramos narrativas que viabilizassem transver a
herança colonial capitalista. Os contos que compõe com as nossas reflexões são:
“Mais iluminada que as outras” (Jarid Arraes), “Vó a senhora é lésbica?” (Natália
Borges Polesso), “Dançamos pelo céu depois de toda chuva” (Brenda Bernsau),
“Mulheres dos espelhos” (Esmeralda Ribeiro).

A palavra como ferramenta de resistência

Não tenho imaginação você diz


Não. Não tenho língua.
A língua para clarear
minha resistência ao literato.
Palavras são uma guerra para mim.
Ameaçam minha família.
Para conquistar a palavra
para descrever a perda
arrisco perder tudo.
Posso criar um monstro
as palavras se alongam e tomam
corpo
inchando e vibrando em cores
pairando sobre minha mãe,
caracterizada.
Sua voz na distância
ininteligível iletrada.
Estas são as palavras do monstro.
(CHERRÍE MORAGA, 1983 apud ANZALDÚA, 2000, p. 230).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 547

Um texto é sempre um ente vivo, que se constitui também a partir do olhar de


quem lê, e essas interpretações possíveis se articulam com a leitura que cada uma
de nós faz do mundo. Segundo Fabio Akcelrud Durão, “discutir teoria literária em
sua acepção mais ampla terá sempre como pressuposto a capacidade que a literatura
exibe para ser algo epistemologicamente produtivo” (DURÃO, 2015, p. 379).
Mas a produção literária é possível às mulheres subalternizadas166? Gloria
Anzaldúa (2000), em sua carta às mulheres escritoras do terceiro mundo, nos diz:
“como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras, muito
mais sentir e acreditar que podemos! O que temos para contribuir, para dar? Nossas
próprias expectativas nos condicionam. Não nos dizem a nossa classe, a nossa cultura
e também o homem branco, que escrever não é para mulheres como nós?” (p. 230).
Diante dos rótulos sociais que limitam as possibilidades de produção literária e teórica
de mulheres do mundo colonizado, Anzaldúa propõe uma reação, um movimento
de priorizar as escritas das mulheres do terceiro mundo. Além disso, ela propõe que
cada vez mais as mulheres do terceiro mundo escrevam, com revolta, com tudo de
si, orientadas por um desejo de emancipação. Sobre seu próprio processo de escrita
Anzaldúa nos diz:

Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que
me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de
minha revolta e a mim mesma também. [...] Escrevo porque a vida não aplaca
meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você.
[...] Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é
um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me
importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me
importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo
porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever
(ANZALDÚA, 2000, p. 232).

Gayatri C. Spivak (2010) em seu trabalho, faz um chamado que se alinha com a
reivindicação de Anzaldúa. Spivak convoca as mulheres intelectuais, para a “tarefa de
criar espaços de autorrepresentação e de questionar os limites representacionais, bem
como o seu próprio lugar de enunciação e sua cumplicidade no trabalho intelectual”
(p. 15). E neste sentido, convoca trabalharmos contra a subalternidade, produzindo
um discurso crítico capaz de influenciar e alterar a forma como apreendemos o
mundo contemporâneo.
Niederauer (2017) afirma que a literatura pode ser um campo da produção de
sentidos outros ao que a realidade apresenta, tornando possíveis processos de eman-
cipação. E nesta perspectiva nos encontramos também com a potencialidade política

166 O conceito da subalternidade é tomado a partir da literatura de Gayatri C. Spivak (2010), onde se entende
o sujeito subalterno enquanto aquele que integra as camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelo
modo de funcionamento capitalista. Aquele que não possui representação política, que não é concebido
como membro pleno no estrato social dominante.
548

da palavra. Segundo Brito Junior e Claudia Caimi (2018), no centro da política está
a palavra, e neste sentido, podemos considerar que a política e a poética estão indis-
sociavelmente conectadas desde sempre. Para os autores, “pensar a política como
emprego da palavra é pensá-la inclusive em termos poéticos’’ (s/p). A literatura é
recurso político, a ação política em seu cerne expõe uma subjetividade atuante que
reivindica o seu pertencimento social, e a palavra é ferramenta para subjetivar-se.

A palavra que serve para subjetivar-se, para mostrar-se capaz de organizar o


pensamento, de expor as contradições da sociedade em relação aos princípios
igualitários que a regem, evidenciar as distâncias entre os sujeitos da ação e do
logos, redefinir temporalidades a fim de apontar os caminhos possíveis para a
realização da promessa da comunidade (BRITO JUNIOR; CAIMI, 2018, s/p).

Esta escrita segue as trilhas de um ensaio que se produz na interlocução com a


reflexão ativa, na escrita e na vida. “O ensaio pode ser tomado como uma linguagem
da experiência, como uma linguagem que modula de um modo particular a relação
entre experiência e pensamento, entre experiência e subjetividade, e entre experiência
e pluralidade” (LARROSA, 2004, p. 31). Por experiência, o autor entende “aquilo
que “nos passa”, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e
nos transforma” (LARROSA, 2002, p. 25-26). Diante disto, as reflexões aqui trazi-
das não são vistas como definitivas, mas como um recorte da experiência de leitura
das autoras escolhidas e sua imbricação com o pensamento ativo de quem escreve.

Entrelaçamentos teóricos entre interseccionalidade, decolonialidade


e literatura

A literatura, como dito anteriormente, vem sendo utilizada por mulheres como
um dispositivo de resistência desde muito tempo. Segundo Rita Terezinha Schmidt
(2019, p. 66), no contexto da literatura nacional, “os textos de autoria de mulheres
levantam interrogações acerca de premissas críticas e formações canônicas, bem
como tencionam as representações dominantes calcadas no discurso assimilacio-
nista de um sujeito nacional não marcado pela diferença”. Este olhar para novas
formas de representação também é parte importante do trabalho desenvolvido por
Conceição Evaristo (2005). Evaristo, a partir do encontro da “escri-vida” dela e
de outras, na literatura produzida por mulheres negras, concebe a ideia de uma
escre(vivência), uma escrita que se compõe a partir da experiência de vida. Segundo
ela, “as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens
de uma autorrepresentação. Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito,
mas antes de tudo vivido” (EVARISTO, 2005, p. 6). Ou seja, a partir de Concei-
ção, podemos entender que para as mulheres negras, a literatura é um importante
espaço de construção de uma auto representação, que mantém a memória presente.
Neste sentido, “a escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as
desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer
inferiorizada, mulher e negra” (EVARISTO, 2005, p. 6).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 549

Roland Walter (2018), ao analisar a literatura produzida por escritoras pan-a-


mericanas, nos diz que autoras de contextos interamericanos buscam reescrever uma
história que a colonização apagou a partir da criação de histórias literárias. Para estas
autoras, o presente neocolonial reproduz diversas violências através de um insistente
apagamento, e neste sentido, a articulação da escrita, “é um meio de revelar, denunciar
e talvez transformar a contínua ‘colonialiadad del poder’ através de uma re-visão da
história” (WALTER, 2018, p. 8).
Estas percepções nos apontam que a imbricação entre a literatura e a inter-
seccionalidade já vem se constituindo na prática pelo fato da produção literária ser
construída a partir do lugar social que a autora se insere, das suas experiências de
vida e memórias de gerações anteriores. Segundo Patrícia Hill Collins (2019), a
interseccionalidade é uma perspectiva teórica e metodológica que estabelece que os
sistemas de opressão de raça, classe social, gênero, sexualidade, etnia, nação e idade
operam de forma mutuamente construtiva, moldando as experiências de vida das
mulheres. O conceito de interseccionalidade surge no movimento de mulheres negras,
cunhado por Kimberlé Crenshaw (2004), autora afro-estadunidense; é ela quem insere
esse conceito para o espaço acadêmico. Para a autora, as discriminações de gênero
e raça operam juntas, “limitando as chances de sucesso das mulheres negras” (p. 8).
Além disto, outras categorias, como deficiência, idade, etc, podem ser incluídas no
pensamento interseccional, no sentido de abarcar outras formas de opressão.
Lélia Gonzáles (2020), antropóloga, pesquisadora e ativista, referência na temá-
tica de gênero e raça, é uma das intelectuais que indica a necessidade de pluralizar
vozes, principalmente no movimento feminista. Segundo a pensadora, o feminismo
desempenhou um papel importante nas lutas e conquistas ao apresentar novas ques-
tões, estimulando a formação de grupos e redes, além de desenvolver a busca por
novas maneiras de ser mulher. No entanto, “o que geralmente encontramos ao ler os
textos e a prática feminista são referências formais que denotam um tipo de esqueci-
mento da questão racial” (p. 141). Este esquecimento por parte do feminismo, Lélia
Gonzáles aponta enquanto racismo por omissão, que tem suas raízes na visão de
mundo eurocêntrica e neocolonialista.
Outra autora brasileira que aponta esse apagamento é Sueli Carneiro (2003).
Segundo ela, “em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da
sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da
visão eurocêntrica e universalizante das mulheres” (p. 118). Por conta disso, apenas
recentemente o feminismo tem reconhecido as desigualdades e diferenças dentro do
grupo de mulheres. Neste contexto, questões específicas vivenciadas pelas mulheres
que sofrem outras opressões, para além da questão de gênero, acabaram por ser silen-
ciadas. Diante destes apontamentos, Sueli Carneiro propõe enegrecer o feminismo,
buscando dar ênfase às trajetórias de mulheres negras no interior do feminismo brasi-
leiro. Com a expressão enegrecer o feminismo, se propõe “assinalar, [...] a identidade
branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar
a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do
feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais” (p. 118). O que se
busca é perceber as vivências específicas de mulheres que sofrem com o cruzamento
550

de opressões e buscar formas de pautar politicamente estas especificidades, criando


espaço de escuta para mulheres que não eram visibilizadas dentro do movimento.
O conceito de interseccionalidade, criado neste contexto de críticas ao femi-
nismo branco, é incontornável na tentativa de pluralizar o feminismo, pois nos pro-
voca a compreender as múltiplas experiências de vida e seus entrecruzamentos. É um
possível horizonte na tentativa de desacomodar as estruturas coloniais. Atualmente,
as perspectivas interseccionais têm se ampliado para pensar o feminismo, que antes
era fundamentado nas mulheres brancas cis gênero e heterossexuais, buscando com-
por com mulheres negras, indígenas, trans, lésbicas, bissexuais, entre tantas outras.
A interseccionalidade vai criar uma abertura para novas possibilidades teóricas
no campo dos estudos feministas. É a partir da interseccionalidade, e do projeto de
investigação modernidade/colonialidade, que María Lugones propõe o feminismo
decolonial (MIÑOSO, 2020), compondo uma perspectiva para pensar a resistência
de mulheres racializadas em países que sofreram com o imperialismo colonial.
O colonialismo, enquanto processo violento de assimilação de mundos, mantém
suas marcas vivas nos povos que sofreram com a imposição “civilizatória”. O gênero,
enquanto construção social, é uma categoria transversalizada por estes efeitos. O
feminismo decolonial nasce, portanto, da imbricação teórica entre interseccionalidade
e os processos coloniais, apontando “a opressão de gênero racializada capitalista
enquanto uma colonialidade de gênero” (LUGONES, 2014, p. 941). O feminismo
decolonial, é uma possibilidade de superação desta condição da colonialidade de
gênero. Para Lugones:

A tarefa da feminista descolonial inicia-se com ela vendo a diferença colonial e


enfaticamente resistindo ao seu próprio hábito epistemológico de apagá-la. Ao
vê-la, ela vê o mundo renovado e então exige de si mesma largar seu encantamento
com “mulher”, o universal, para começar a aprender sobre as outras que resistem
à diferença colonial (p. 948).

Segundo Françoise Vergès (2020, s/p), o feminismo decolonial afirma fidelidade


às mulheres do sul global. É um movimento de “reconhecer seus sacrifícios, honrar
suas vidas em toda a sua complexidade, os riscos que assumiram, as hesitações e as
desmotivações que conheceram. É receber suas heranças”. No Brasil, mulheres
indígenas sofrem fortemente com os efeitos do colonialismo.

O Brasil nasce do estupro dos corpos das mulheres e das meninas indígenas, e, para
as mulheres indígenas, essa realidade histórica persiste, seja na nossa memória cole-
tiva, seja na realidade, tendo em vista que a maioria das violências e violações que
sofremos decorre dos grandes projetos desenvolvimentistas que seguem adentrando
em nossos territórios, assim como no passado (FIDELES et al., 2020, p. 195).

Para Vergès (2020), o feminismo decolonial contribui fortemente com as lutas


históricas de parte da humanidade para afirmar seu direito de existência. E neste con-
texto, uma postura decolonial no feminismo não é só uma aliança com as mulheres
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 551

do passado, mas com a vida de mulheres contemporâneas. Um feminismo que em


nome de uma ideologia de direitos se faz totalizante e civilizatório, só contribui para
a perpetuação da dominação de classe, gênero e raça.
Para Miñoso (2020), o feminismo decolonial avança colocando em dúvida a
dita universalidade das mulheres, tão explorada pelo feminismo branco universalista.
O feminismo aliado ao decolonialismo toma para si a tarefa de produzir novas inter-
pretações da história, não apenas pela ótica crítica do patriarcado, androcentrismo e
misoginia, como tem feito o feminismo clássico durante décadas, mas atento ao seu
caráter inerentemente racista e eurocêntrico. Historicamente, diversos triunfos cele-
brados pelo movimento feminista não se revelaram de fato produção de direitos para o
grupo mais amplo de mulheres, e neste contexto “não fazem nada além de aprofundar
a colonialidade, assegurando bem-estar para algumas – as mulheres de privilégios
branco-burgueses – em detrimento da grande maioria racializada” (MIÑOSO, 2020,
p. 5). Miñoso (2020, p. 8), a partir da leitura de Lugones, afirma que o feminismo
decolonial é um posicionamento que “percorre, revisa e dialoga com o pensamento
e as produções que vêm sendo desenvolvidas por pensadoras, intelectuais, ativistas
e lutadoras, feministas ou não, de ascendência africana, indígena, mestiça popular,
campesina, imigrantes racializadas, bem como as acadêmicas brancas comprometidas
com subalternidade na América Latina e no mundo”.
Neste contexto, a literatura pode ser uma ferramenta importante na formação de
alianças, pois convoca o olhar para novas perspectivas, possibilitando uma abertura
para construções coletivas plurais. As possibilidades que se criam nos múltiplos
desdobramentos da escrita literária, a abertura que os subtextos e interditos criam,
oportunizam o compartilhamento de recortes subjetivos. E na leitura, outras mulhe-
res, a partir de novas perspectivas de compreensão, podem ressignificar experiências
próprias. A literatura inscreve a experiência enquanto registro da palavra e cria a
oportunidade de partilha, colocando mulheres leitoras e escritoras em rede.

Tecendo resistências no encontro com a literatura

“Mas meu queixo me serve, não é trêmulo, e minha língua conhece toda sorte
de habilidades” (ARRAES, 2019, s/p). A língua, que possibilita o poder da palavra,
ser habilidosa com a língua, saber reivindicar. Uma mulher que reivindica um lugar,
é o que parece a personagem narrada por Jarid Arraes no conto “mais iluminada que
as outras”. Jarrid Arraes é escritora, poeta e cordelista brasileira, nascida em Juazeiro
do Norte (CE). Em suas obras evidencia figuras de mulheres, tendo publicado livros
como: As Lendas de Dandara (2016), Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis
(2017), Um buraco com meu nome (2018) e Redemoinho em dia quente (2019),
assim como outros títulos publicados em literatura de cordel. Vive em São Paulo
atualmente, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres, “um projeto pensado
especialmente para mulheres que escrevem ou querem escrever qualquer gênero
literário, mas que sentem insegurança no processo de escrita; seja porque conside-
ram que sua produção não é boa o suficiente, ou porque precisam de mais retorno de
552

outras pessoas” (Arraes, 2016)167. O conto faz parte de uma coletânea de narrativas
criadas por ela acerca das mulheres da região do Cariri, no Ceará. Por ser o lugar
de origem de Arraes, ela constrói um cenário imagético da cultura, e conta histórias
de mulheres diversas, inclusive colocando em cada conto suas personagens como
narradoras. No conto “mais iluminada que as outras” a narrativa se desenvolve do
início ao fim percorrendo o discurso de uma personagem.
“Eu ouvi e li, porque me disseram, que essa terra foi mais iluminada do que
as outras, já que os corpos navegados foram libertos quatro anos antes dos demais”
(ARRAES, 2019, s/p). No entanto, esta história ouvida faz parte de um contexto de
histórias sussurradas, onde os ouvidos captaram apenas superficialidades. A persona-
gem não se encontra em uma posição confortável para questionar a terra mais ilumi-
nada que as outras, mas seu corpo e sua historicidade lhe indicam dúvidas sobre esta
narrativa. “Por bastante tempo contado em calendário, não consegui me lembrar do
nome de quem liderou o quê, de quem fez, deixou de fazer, onde ou quando e por que
o Ceará ou o Cariri tinham a ver com isso. Eu nunca levantei a mão durante uma aula
e perguntei: professora, existiu escravidão no Cariri? Quem foi dono de escravos no
Cariri?” (ARRAES, 2019, s/p). Mas seu corpo lhe indica outras narrativas, ela se narra,
conta sobre si, sobre seu corpo, sua postura frente ao mundo, sua forma de existência:

Meus joelhos são duros e cuidados com cremes que custam mais de cinquenta
reais. As minhas digitais. Elas são tecnologias selvagens que desbloqueiam men-
sagens, segredos, ofensas, tratados, reconciliações, números que pagam. Eu não
devo os líquidos do meu corpo a ninguém. Quando vomito, tenho minhas razões.
Mas sou bicho e, quando entro num recinto, os mínimos besouros batem suas asas
translúcidas em inconveniência (ARRAES, 2019, s/p).

Esta mulher, ao narrar-se, cria visibilidades para si mesma, reivindica uma exis-
tência, produz resistências. Uma mulher resistente, a dor lhe acompanha, ela anseia
por respostas, mas já não é mais tempo de perguntas. “Eu gostaria de perguntar agora,
mas hoje estou longe de todos, mudei minha casa para o mundo de chão rachado e
convidei uma equipe de filmagem da televisão. Os jornalistas chegarão amanhã e
logo todos verão imagens de minha vaca morta e de meu mandacaru – é nele que
coço a consciência” (ARRAES, 2019, s/p).
Este conto pinça passagens do cotidiano de mulheres; e o faz anunciando a inti-
midade que tem com essas trajetórias. Memórias registradas ficcionalmente, artesania
contra apagamentos. Ao escrever o livro “Redemoinho em dia quente” (2019), Arraes
produz uma escrita que contempla estas tantas mulheres que viu no seu cotidiano.
E no conto “Mais iluminada que as outras” sua personagem visibiliza a si mesma,
processo doloroso, de reconhecimento de caminhos sociais percorridos, mas potente
enquanto registro de uma experiência singular.

Sinto muito, mas não posso levantar a questão e pedir uma lista histórica de
famílias que enriqueceram com os corpos negros torturados. Não posso usar

167 Disponível em: http://jaridarraes.com/semana-com-clube-da-escrita-para-mulheres/.


BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 553

minha aparência intimidadora, poderosa, minha altíssima figura e minhas belas


garras tingidas para mandar que tornem as informações acessíveis. Eu vou ficar
aqui, deitada no meu chão rachado. Meu corpo está entregue aos graus do que
não enxerguei (ARRAES, 2019, s/p).

O conto encerra com a imagem desta mulher, o corpo que se constrói enquanto
uma narrativa viva de outras histórias, muitas vezes não contadas. “Aquece meu
corpo, me queima os fatos, me exibe monstruosa e com dentes pontiagudos. Esses
dois seios à mercê da gravidade de quem sou. E um cabelo que, espero, me faça
sombra” (ARRAES, 2019, s/p).
Nas leituras nos encontramos com mais um conto e outra autora… Desta vez
Natália Borges Polesso é quem nos perpassa. Polesso é escritora e pesquisadora
brasileira, nascida em Bento Gonçalves (RS), é doutora em Teoria da Literatura pela
PUCRS (2017), e vencedora do Prêmio Açorianos de literatura na categoria contos
(2013) e do Prêmio Jabuti (2016) com o livro “Amoras” (2015), onde está registrado
o conto que escolhemos para dialogar.
O conto “Vó a senhora é lésbica?” narra a perspectiva de Joana, que em uma
refeição de família, é pega de surpresa com seu primo perguntando para a avó Cla-
rissa, se ela era lésbica. Joana se assusta, pois tem medo de ser descoberta, já que
estava se relacionando amorosamente com uma colega da faculdade. A narrativa
toda se passa durante essa cena, ali Joana lembra do seu relacionamento, dos bons
momentos e relembra situações da sua infância, quando convivia com Carolina, que
na época denominava “amiga da avó”, mas que naquele momento se dá conta que
era a namorada da vó Clarissa. A avó era lésbica, assim como ela. A identificação
e o medo de ser descoberta pela família passavam diante de seus pensamentos. As
questões geracionais são percebidas por Joana:

[...] me ocorreu lembrar que a tia Carolina tinha sido casada com o seu Carlos. Me
ocorreu que talvez ela não pudesse ficar com a minha vó. Me ocorreu que nunca
tivessem dançado, nem bebido juntas, ou sim. Pensei na naturalidade com que
Taís e eu levávamos a nossa história. Pensei na minha insegurança de contar isso
à minha família, pensei em todos os colegas e professores que já sabiam, fechei
os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia Carolina se tocando, apesar de
todos os impedimentos. Eu quis saber mais, eu quis saber tudo, mas não consegui
perguntar (POLESSO, 2015, s/p).

A memória é fundamental neste conto, já que são costuradas as experiências da


avó com as experiências da neta, nos mostrando os aspectos geracionais que atraves-
sam as vivências de violência acerca da sexualidade. Joana e avó compartilham de um
apagamento de parte da sua identidade, produzido pela heterosexualidade compulsória
reproduzida na família. O conto visibiliza a repressão construída socialmente sobre
as mulheres lésbicas, expõe a manutenção do silenciamento ao longo de gerações
acerca da sexualidade. Mostrar a sexualidade feminina, lésbica e velha, vivida em
gerações anteriores pode ser um ato de resistência? Apostamos que sim. Aqui temos
554

notícias de uma experiência interseccional de ser mulher lésbica velha, já avó. Pres-
supomos que avó e neta são brancas e de classe média... Pobres não eram, pois há
muitos livros nas estantes e doces na mesa. Como se encontram e desencontram as
experiências da avó e da neta? Se a experiência da avó fosse menos silenciada na
família, será que mais facilmente se abririam passagens para os afetos da neta? O
conto nos possibilita o encontro com estas e tantas outras questões, abrindo espaço
para visibilizar outras possibilidades de existência.
Seguimos lendo, e encontramos o conto “Dançamos pelo céu depois de toda
chuva” de Brenda Bernsau. O conto faz parte da segunda edição de uma coletânea
intitulada “Vozes Trans” (2021), descrito como “Um grito de liberdade de pessoas
trans constantemente silenciadas, que reivindicam seu protagonismo e ampliam suas
vozes pela escrita” (Goodreads)168. Brenda Bernsau é escritora, nascida no Rio de
Janeiro (RJ), mas que vive no interior do estado. Começou a exercitar a escrita ainda
na adolescência, para alguns projetos de quadrinhos locais. Entre suas produções
estão: “Sophia, Alexia e o mundo além daqui” (2016), “Meninas a respeito do amor”
(2018), “No cosmo, assim como no coração” (2018).
O conto inicia com a personagem Tayane retornando à cidade da sua família.
Seus pais haviam falecido recentemente e seu irmão lhe chamou para resolver as
“consequentes papeladas”. Ao chegar em sua antiga casa, ela se encontra com um
senhor que a interpela por estar entrando no pátio. Ele desconfia de Tayane, pois
mora há muitos anos por ali e nunca tinha ouvido falar que os Santana tinham uma
filha. Para Tayane tal fato até poderia ser compreensível: “Compreensível, pensei,
afinal de contas os Santana – como ele disse – me expulsaram de casa quando eu
tinha o quê? Doze? Treze? Por aí. Não foi nenhum evento escandaloso, uma vez que
eles eram avessos a qualquer tipo de escândalo; inclusive, eu brincava – hoje em
dia isso era possível – e dizia que não havia sido expulsa de casa, mas convidada a
me retirar” (BERNSAU, 2021, s/p). Essa passagem nos remete ao livro “Transfe-
minismo” (2021) da pesquisadora e professora Letícia Nascimento, que ao explorar
as infâncias trans nos indica a violência dos dispositivos binários. Segundo ela “a
vigilância binária dos gêneros produz violências constantes, tratando de impedir
que crianças trans* femininas tenham uma infância livre, dado o sentimento de não
pertencimento ao domínio socialmente estabelecido como masculino – ou feminino,
no caso das infâncias trans* masculinas” (NASCIMENTO, 2021, p. 18).
O tema da memória da infância é um dos fios condutores do conto, uma vez que
a personagem tinha um interesse quase que arqueológico por memórias encobertas
pelo tempo. Dentre essas memórias, uma que por pouco não escapa é a mais valiosa,
havia uma terceira criança:

[...] não se tratava de nenhum parente, mas, sem dúvida, correspondia ao meu
maior interesse nesse breve – breve, assim espero – retorno a essa cidade. O
nome dela..., qual era o nome dela? Uma pequena gafe da minha parte. Lembro
do nome pelo qual a chamavam, seus pais, meus pais, os colegas da escola, mas

168 Disponível em: https://www.goodreads.com/book/show/58165700-vozes-trans.


BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 555

não consigo me lembrar do nome dela, do verdadeiro nome dela, aquele que ela
me disse em tom de confissão um dia, nós duas, alguns meses antes de tudo se
despedaçar, sentadas na varanda, as pedras vermelhas, cor de coração como ela
dizia, o clima pulsante, e então eu disse alguma besteira, qualquer coisa projetada
para machucar, um tipo de palavra-faca, vermelha não como a varanda, vermelha
cor de sangue (BERNSAU, 2021, s/p).

A personagem, tomada pelas lembranças de seu desterro, reflete que seu pai,
doutor Augusto, ao expulsá-la de casa garantiu que a maior motivação era seu poten-
cial, justificando que uma criança como ela precisaria viver as chances de um grande
centro. Tayane foi transferida para a casa do tio Armando, que já possuía outras três
crianças para criar. Augusto garantiu arcar com as despesas da criança, prometendo
ainda uma gratificação monetária, mas não tardou para as verdadeiras motivações
do desterro aparecerem diante do tio Armando, a transexualidade.
O conto segue com a chegada do irmão à casa. Ele se apresenta da mesma forma
que o pai, ambos “exibiam o mesmo porte de peito inchado, os mesmos óculos, o
mesmo cacoete de pigarrear antes de cumprimentar ou de tocar num assunto delicado”
(BERNSAU, 2021, s/p). Mas ele apresentava o uso de luvas, assim como o vizinho e
também o advogado que o acompanhava, algo que ela estranhava, pelo fato do clima
não ser propício para o uso. O irmão não quer abraçá-la, diz estar resfriado, mas não
apresenta nenhum aspecto doente. Durante o diálogo, o vizinho o alerta da invasão.
Para Tayane, o clone de doutor Augusto diz: “Não se ofenda, por favor. Precisamos
ser cuidadosos por aqui, não sei se você sabe, mas temos tido problemas com a tal
Criatura das Profundezas” (BERNSAU, 2021, s/p). Tayane lembra que a mulher que
lhe acompanhou na viagem também havia comentado sobre a tal criatura.
Foram Tayane, o irmão e o advogado da família para o interior da casa, para
a leitura da papelada do inventário. “Os bens seriam todos passados a Augusto de
Oliveira Santana e a T... de Oliveira Santana” (BERNSAU, 2021, s/p). Tayane aponta
o erro em relação ao seu nome, e refere que sem a alteração, recusaria o patrimônio.
O irmão se ofende com tal ato, considerando uma bobagem, o que a leva a outras
lembranças da infância. Aqui o conto vai delineando textualmente diversas violên-
cias que pessoas trans podem sofrer, como a não validação do seu nome social, o
distanciamento das relações familiares, a objeção social, entre outras. A escrita deixa
nítido que a experiência de pessoas trans no contexto contemporâneo é ainda muito
marcada pelo não reconhecimento das identidades, neste sentido, o texto produz um
movimento contrário, um movimento de afirmação.
A personagem recorda que o tio, quando descobriu sobre sua transexualidade,
tentou devolvê-la ao pai. Na rodoviária, enquanto os dois discutiam por telefone,
Tayane esforçava-se para não chorar. “Só quando aquela tristeza toda desabrochou
dos meus olhos, descobri se tratar não de lágrima, na verdade, mas de uma borboleta,
uma de asas amarelas e voo delicado. Segui sua trajetória, e mal me dei conta de
que me afastava do saguão, da rodoviária, da rua. Segui até que ela desaparecesse”
(BERNSAU, 2021, s/p). A borboleta levou a personagem a encontrar aqueles que
viriam a acolhê-la, como por exemplo, Amadeusa. E enquanto recordava de como
556

seguir o inseto ressignificou suas perspectivas sobre si, percebeu que na sala de leitura
da papelada, havia uma borboleta de igual cor e forma. Nesse ponto, pede licença e
sai perseguindo o voo do inseto.
O voo da borboleta leva Tayane até seu antigo quarto, que parecia congelado
no tempo, mas aquele encontro lhe avivou uma memória importante, ao encontrar o
seu diário: “Folheando-o, uma parte invisível do meu passado foi sendo resgatada.
Sobretudo a respeito dela, Francine; sim, Francine, o nome que me faltava, que não
me foi dito com a banalidade habitual, mas com um tipo vulnerável de confiança.
Estávamos sentadas naquela varanda, debaixo daquelas samambaias, ela, uma menina
recém-descoberta e eu, uma pessoa ainda perdida” (BERNSAU, 2021, s/p). A lei-
tura do diário conecta Tayane com todo o processo de Francine, uma amizade de
sua infância, descobrindo-se menina, e remete ao processo doloroso que em meio
à infância é marcado por muitas opressões, mas que tem seus pequenos prazeres na
experimentação do corpo. O que nos remete a outra passagem da Letícia Nascimento
(2021), quando conta da sua própria experiência de infância enquanto travesti.

Particularmente, como travesti, tive, desde a infância, uma experiência cruel com
o machismo e o sexismo, que cerceavam o meu poder de autodefinição, já que
não me reconhecia no papel de gênero masculino que me era imposto. Apesar
das dores, sempre tive respiros, prazeres clandestinos de uma infância transviada:
brincar de boneca, desfilar com vestidos de lençol amarrados, brincar de roda, fazer
comidinha com folhas. No encontro com as normas de regulação do meu gênero,
a infância foi um laboratório inventivo de outras corporalidades generificadas, isto
é, outros modos de produzir corporalidades e gêneros, compreendendo que não
somos naturalmente generificados, mas que há um processo de produção de nós,
de nossos gêneros, de nossos corpos (NASCIMENTO, 2021, p. 19).

Francine obteve percepção a respeito de sua identidade de gênero antes, ini-


ciando suas experimentações. O diário de Tayane abrange estas perspectivas, que
causavam irritação e confusão em sua mente à época, mas que agora ofereciam
sentidos para sua própria estada na pequena cidade onde viveu a infância.
Tayane guarda o diário na bolsa e sai da casa dos pais, indo em direção à casa de
Francine, onde encontra apenas um espaço abandonado: “Pelo quintal, via-se penas
espalhadas aos montes, como flores despetaladas pelo outono, ou como um choro
emplumado sobre a terra batida e o cimento áspero. Penas de beija-flores, deduzi”
(BERNSAU, 2021, s/p). Assim como as borboletas são uma alegoria para Tayane,
os beija-flores são representativos de Francine.
Tayane entra na casa, levada pelas penas de beija-flores, depara-se com um
local triste, onde o único espaço intocado era o quarto de Francine, assim como o
dela na casa dos pais. No quarto de Francine encontra um bilhete, que dizia algumas
frases entrecortadas, já que haviam muitos rabiscos no papel. “Perguntei pra minha
mãe se Deus podia mesmo tudo, ela disse que sim. Aí perguntei se ele não podia me
transformar numa menina. Mas ela só quis saber por que eu iria querer isso. Aí eu
contei pra ela [...], ela disse que nunca mais [...], então eu achei um jeito [...], não sei
se vai dar certo. [...] estou com medo” (BERNSAU, 2021, s/p). Tayane se emociona
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 557

com o bilhete, sentia que tinha feito uma pessoa que aprendeu sobre si mesma se
desaprender, ao reagir de forma negativa quanto às primeiras experimentações de
Francine. Mas antes que as lágrimas caíssem, percebeu que uma chuva torrencial caía
sobre a casa, mas só na casa, o restante da cidade permanecia seco. A chuva parecia
ter capacidade de quebrar as telhas, de destruir a casa, e neste contexto Tayane se
conecta com Amadeusa, aquela que a acolheu após ser rejeitada pela família.

Quem via o nosso grupo de fora, no geral, nos classificava ou como gangue ou
como seita: a seita da Amadeusa, ou seita das travestis. Ambos os nomes eram
descabidos. Nosso comportamento não fazia jus ao de uma gangue; de fato, havia
algum tipo de código implícito entre nós que reprovava atitudes criminosas, afinal,
o acolhimento que recebíamos era precisamente para evitar a necessidade. E não
éramos nenhuma seita. Ainda que frequentemente ouvíssemos o que Mamãe tinha
a dizer, ela era muito mais uma espécie de conselheira (BERNSAU, 2021, s/p).

Nesse contexto, o conto faz um importante movimento ao trazer visibilidade às


alianças entre pessoas trans, pois são elas, muitas vezes, que possibilitam a criação de
espaços afetivos, já que estes são muitas vezes negados pelas famílias de origem. A
construção de redes de proteção, de afetividade e de parceria é o que dá possibilidade
de sobrevivência às vidas trans, principalmente em um país como Brasil, primeiro
lugar na lista dos países que mais matam pessoas trans (BRASIL DE FATO, 2022)169.
A voz de Amadeusa tenta indicar o paradeiro da amiga de Tayane, mas a comu-
nicação é sempre prejudicada pelo alto som da chuva e seus efeitos na casa. O terreno
cedia, levando-a para um lamaceiro, e neste lamaceiro encontra algo sólido, era Fran-
cine, submersa em meio a lama. Francine enlameada lhe diz que é impossível sair dali,
que nem sabe dizer a quanto tempo está submersa, Tayane quer salvá-la, mas ela diz
que não é mais possível. Ela se sente culpada, acredita ser a causadora daquilo tudo,
pois na infância não havia oferecido acolhimento ao processo vivenciado pela amiga.
Mas Francine nega essa responsabilidade, diz efusivamente para Tayane ir sem ela, e
assim é feito. “Eu me arrastei pela lama, me estiquei, chorei, não olhei para trás, rangi
os dentes, mordi o lábio inferior, funguei, segurei o portão como se isso significasse
algum tipo de vitória, de chegada, não olhei para trás” (BERNSAU, 2021, s/p).
O aspecto de Tayane assustava as pessoas com quem ela cruzava na rua,
estava enlameada, uma lama irremovível, “entendi que meu estado dava motivos
para espanto, para cochichos, apontamentos, para os sinais da cruz, etc., etc., afinal
minha aparência devia remeter àquelas trágicas fotos de aves marinhas depois de
um derramamento de petróleo” (BERNSAU, 2021, s/p). Mas formou-se um tipo de
séquito, que a perseguia, cada vez mais, correu para a casa dos seus pais, e lá encon-
trou novamente com o vizinho do início da história. Ele lhe interpela novamente,
agora com uma arma em mãos:

Eu disse. Avisei. Augusto falou comigo. – Ele apresentava um tom meio trêmulo.
Não por falta de autoconfiança, imagino; talvez por ansiedade, uma vontade de ver

169 Matéria disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da-lista-brasil-


-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo.
558

o que o gatilho tinha a oferecer. – Falou que se você aparecesse aqui de novo eu
podia fazer o que fosse preciso pra te expulsar. Família, sei. Você não é da família,
nem dos Santana, nem da de ninguém. Olha só pra você (BERNSAU, 2021, s/p).

“É ela, a criatura das profundezas. É ela. É terrível, como eu disse. Tomem cui-
dado” (BERNSAU, 2021, s/p). Assim diz uma voz em meio a multidão. A partir dali,
uma série de violências se efetivam, ela, agora tida como um monstro, é perseguida,
deve ser morta pela população horrorizada, que grita por esse aniquilamento pela
família, pelas crianças, entendendo que a existência daquele monstro era um risco
à vida deles. Neste ponto, o conto traça uma importante metáfora, as violências são
perpetradas pois a personagem é monstrificada, movimento recorrente na sociedade
perante às identidades dissidentes da cisnorma.
“Posso garantir a vocês: a única vida que está em perigo aqui é a minha. Queria
que tivessem me ouvido, e, me ouvindo, ponderassem e encontrassem algum sentido,
afinal, tudo me parecia um tanto óbvio” (BERNSAU, 2021, s/p). Mas o grupo de
moradores não ouvia Tayane, que no meio do desespero percebe sangue escorrer no
corpo do vizinho que lhe apontava a arma, ele logo percebe o olhar e retira as luvas,
de onde escorre o sangue. Ele diz que a culpa é dela, que sua existência monstrificada
causava o sangramento das mãos. Uma senhora da multidão reafirma a narrativa de
maldição, “essa maldição que faz nossas mãos sangrarem toda vez que entramos
em contato com um de vocês...” (BERNSAU, 2021, s/p). O vizinho tenta atirar
em Tayane, mas a arma escorrega das mãos, alguém da multidão sugere enterrar o
monstro, e decidem encaminhá-la para um local propício para o ato.
Durante o percurso, a personagem começa a visualizar beija-flores, os beija-
-flores bicavam uma mulher em específico, aquela que sugerira o enterro. Tayane
entende naquele momento que se tratava da mãe de Francine, e tenta alertá-la sobre
o que a filha está passando, enterrada no terreno da casa da família, enlameada, mas
não obtém sucesso. A mulher afirma que não tem filha nenhuma, que os monstros
levaram seu filho. Do céu caía chuva, que não desfazia a cobertura de lama sobre
Tayane. Homens a seguravam para garantir que não fugisse.
Neste meio tempo passaram a surgir borboletas, diversas se desprendiam do céu,
agora não existia mais chuva, apenas borboletas. O vizinho retornou, apontou-lhe a
arma e atirou. “Mas da sua arma não saiu outra coisa que não mais borboletas. Que
vieram até mim, e juntas às outras, cobriram-me de tal modo que o voo delas inspirou
meus pés a se separarem do chão” (BERNSAU, 2021, s/p). As borboletas lhe fizeram
de casulo, e aos poucos a lama foi se desfazendo. Tayane é acusada de magia pela
população que foge, somente a mãe de Francine se mantém. Tayane tenta alertar
sobre a situação da filha dela, dizendo que precisam salvá-la, mas a senhora diz que
enterrou o monstro e enterraria novamente, aquilo não era o filho dela.
Mas a senhora decidiu acompanhar Tayane, foram as duas até a casa abando-
nada, procurar Francine. “Sem muita surpresa, constatei que o abalo de outrora já não
parecia ter existido. A construção retomara seu aspecto anterior, aquele cabisbaixo e
choramingado, com o telhado completo novamente, a terra seca, tudo no lugar. Até
mesmo as penas de beija-flor” (BERNSAU, 2021, s/p). A senhora lhe questionava,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 559

onde estava o que Tayane queria mostrar, onde estava a suposta filha dela a ser salva.
A senhora começou a gritar com o invisível, queria que algo fosse feito, eram anos
de mãos sangrando, queria que parasse.

E ela continuava gritando, falando com o invisível para que desse as caras, porque
tinham contas para acertar, e que ele ia ver, ah, se ia. Até que algo se materia-
lizou diante de nós; não usou de grandes pirotecnias, foi como se já estivesse
lá durante esse tempo todo à nossa espera e apenas tivesse se despido da trivial
invisibilidade, um fenômeno que me remeteu aos efeitos especiais das primeiras
décadas do cinema (BERNSAU, 2021, s/p).

A criatura passou a argumentar com elas, dizia que Francine estava muito melhor
neste lugar que a colocara, chama Francine para o diálogo, que afirma não querer
sair para o mundo dos humanos. Na conversa, Tayane consegue convencer Francine
de que pode voltar ao mundo dos humanos, mas a criatura se coloca entre as duas,
afirma que Francine tem um acordo com ela, e que acordos não se quebram assim.
Beija-flores voltaram a surgir, levando a menina para os ares, que disse à criatura que
o acordo que tinham era baseado em medo, que ela queria buscar coragem. A criatura
alertou Tayane e Francine, “Isso nunca acaba, nunca, nunquinha. Vou continuar de
olho. Nas duas, dessa vez” (BERNSAU, 2021, s/p). Mas as duas ignoraram o alerta,
a mãe de Francine orientou Tayane a voar junto da filha, e ela envolta em borboletas,
também foi voar. “Borboletas vieram até mim e voei. Então, eu e Francine dançamos
pelo céu depois de toda a chuva” (BERNSAU, 2021, s/p).
O conto cria diversas metáforas para falar das violências que mulheres trans
sofrem, o uso de um universo fantástico possibilita a criação de alegorias potentes, o
sangue nas mãos da população, o entendimento de Tayane como um monstro apto a
destruir as famílias, o medo personificado na criatura que levou Francine. Ter cora-
gem de se reafirmar em uma sociedade extremamente violenta com corpos fora da
cisnorma é um desafio, o conto aponta para esta resistência, e indica a importância
das alianças entre mulheres trans neste processo.
Após o mergulho no conto de Brenda Bernsau, experienciamos outro encontro.
Agora nos encontramos com Esmeralda Ribeiro, escritora brasileira nascida em São
Paulo, membro Quilombhoje, grupo literário afro-brasileiro “que atua nos movimentos
de combate ao racismo e na construção de uma ‘Literatura Negra’, a partir do resgate da
memória e das tradições africanas e afro-brasileiras” (LITERAFRO, 2021)170. A autora
está presente em antologias de prosa e poesia negras em âmbito nacional e internacional.
O conto que trazemos para dialogar com a nossa escrita é “Mulheres dos espe-
lhos”, que integra a coletânea “Olhos de azeviche’’ (2017). Narra a história de uma
personagem que ao perder sua mãe herdou o casarão da família. No casarão, após a
reforma encontram-se uma série de espelhos. A personagem principal, que narra a
história, nos diz que tem desavenças com sua irmã, que ambas brigaram no velório da
mãe, e que até tentaram morar juntas, sem sucesso. Assim, ficou sozinha no casarão,
junto com a velha Abigail, empregada antiga da família.

170 Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/244-esmeralda-ribeiro.


560

Na infância, a narradora do conto relata que ouviu dizer que o casarão era mal-
-assombrado, por isso decidiu promover festas na casa. Em uma destas festas a velha
Abigail, que já se encontrava senil, apareceu cadavérica, assustando a todos. Neste
contexto, a personagem principal inicia uma série de ofensas dirigidas à velha, que
nada lhe diz. “Sete anos apenas duraram as minhas alegrias. Naquele dia da última
festa, acordara agitada e vira no espelho do meu quarto uma mulher de véu na cabeça,
virada de costas para mim. Só ouvira sua voz: ‘todos os dias o ouvido ouve aquilo
que ainda não ouviu’’’ (RIBEIRO, 2017, p. 72). Ao longo do tempo, mais mulheres
se juntaram àquela do espelho, lhe diziam frases, tocavam atabaques e agogôs. A
velha Abigail permanecia senil, no quarto e em posição fetal, sempre. A narradora
passa a desconfiar da sua própria sanidade, convida um homem bêbado para sua casa,
com a intenção de verificar se ele também enxergaria as mulheres dos espelhos, mas
ele só vê a sua própria imagem triste e magra. A empregada era a única que também
testemunhava as mulheres nos espelhos.
“Aquelas imagens nos espelhos. Uma empregada cadavérica e silenciosa.
Eu estava lúcida? Abigail teria morrido e virado um espírito?” (RIBEIRO, 2017,
p. 73). A personagem se questiona, as mulheres dos espelhos eram muitas, algumas
jovens, outras idosas, elas falavam em muitas vozes, mas o tom era dela. “Numa
dessas mudanças de lua a velha Abigail também se ajuntara às mulheres idosas dos
espelhos. Não. Talvez não fosse ela. Era real. Eu muitas vezes apertara seu rosto e
seu braços e sentira a consistência de seus ossos. Havia um mês que a empregada
não ficava lúcida. No quarto encontrava-se em posição fetal, fria e pálida, sem
aquela cor retinta” (RIBEIRO, 2017, p. 74).
Em uma tentativa desesperada tenta destruir todos os espelhos da casa, mas as
mulheres eram mais fortes e repetiam “as pessoas dentro da pessoa são numerosas
no interior da pessoa” (Ribeiro, 2017, p. 75). Movida pelo mesmo desespero, decide
contar ao amigo bêbado a história das mulheres dos espelhos, ele lhe promete segredo,
mas acaba contando o relato de bar em bar. A cidade inteira fica sabendo, a história
vai parar nos jornais e a personagem acaba virando chacota. “Abandonei o emprego.
Abandonei a minha casa. Abandonei aqueles espelhos. Abandonei aquelas mulheres
jovens e idosas, com seus atabaques e seus agogôs. Abandonei também o espírito da
velha Abigail” (RIBEIRO, 2017, p. 75).
Deixando tudo para trás, a personagem vai morar na rua, a bebida passa a tomar
conta dela que já não se reconhece mais.

Há tempos não acompanho as marcas da experiência em meu rosto. Há tempos


eu não tranço os meus cabelos. Agora morando na rua, eu atendo pelo codinome
‘dama dos animais’. Será que aquelas mulheres jovens e idosas dos meus espe-
lhos encarnaram nos gatos e nos cachorros para fugir do casarão e dos meus
espelhos? Lembro-me de que a velha Abigail dizia: ‘uma pessoa alcoólatra é
um corpo sem memória’. Seria eu mesma? Agora, por onde ando, não existem
espelhos (RIBEIRO, 2017, p. 76).

A personagem passa a viver contando histórias nos bares, em troca de cachaça.


Agora era uma contadora de histórias sobrenaturais. “No balcão de um boteco, mesmo
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 561

quem acha essa história absurda, prefere ouvi-la a me perguntar: Qual é o segredo que
vocês, mulheres alcoólatras, escondem em seus espelhos?” (RIBEIRO, 2017, p. 76).
O conto parece fazer um interessante paralelo entre a memória da personagem com
as mulheres dos espelhos. Seriam as mulheres dos espelhos ancestrais da narradora?
Mulheres ao longo do tempo compartilham histórias, narrativas e contextos em comum.
No momento em que a personagem abandona as mulheres dos espelhos, de certa forma
abandona o reconhecimento de si mesma. A bebida é outro elemento importante neste
cenário, é parte do que insere a narradora de vez em um contexto de pouca lucidez. A
bebida é dita como forma de não manter memórias, mas elas parecem vivas no corpo
da narradora, que passa a viver de contar suas histórias em troca de cachaça.

Salvando memórias frente ao apagamento

Memória. Nos parece que estes escritos literários possuem rastros de memória.
As construções ficcionais são registros, recortes de experiências, as metáforas cons-
truídas buscam avivar a percepção de violências, apagamentos e dores, mas também
buscam demarcar uma experiência que não aceita manter o status quo, que resiste.
Gravar as palavras em texto produz um registro definitivo, uma inscrição perdurável
daquela experiência no mundo. Enquanto as políticas de apagamento se impõem às
mulheres periféricas, escritoras subalternizadas produzem, ao escreverem, um ato de
salvamento das memórias coletivas. De Souza (2021) nos aponta que há uma convo-
cação, principalmente nestes tempos duros que vivemos no Brasil contemporâneo,
para inscrevermos nossas memórias e inventarmos novas formas de inscrevermos
nossos traumas. “Na falta de uma política de Estado que cuide da memória, somos
convocados, um a um, a inventar novas formas de fazer inscrição dos traumas que
vivemos, recolher as cinzas destas brasas para poder ouvi-las. Só assim teremos
uma memória digna para um futuro efetivamente autêntico e não mera reprodução
do vivido” (p. 2).
Nos lembramos de Conceição Evaristo, que afirma a potencialidade da fusão
entre literatura e memória. Produzir, a partir da vivência, uma ficção, que inscreve a
vida na literatura, criando registros de uma memória social. Transformar-se em texto
literário, esta é a convocação de Evaristo, para ela o que a história hegemônica não
nos oferece, a literatura pode oferecer, podemos preencher um vazio histórico com a
ficção (EVARISTO, 2020). “Recordar é preciso. Impreciso é, muitas vezes, o desenho
amorfo no quase-vazio de nossa memória. Inventa-se, pois, uma história, preenche-se
com a fic-ção o vácuo produzido não pelo esquecimento, mas pelo desconhecimento
do evento histórico silenciado em sua profundeza. Cultivemos as nossas molhadas
lembranças, retirando o mofo do tempo” (EVARISTO, 2012, p. 160).
A literatura nos possibilita contar histórias que seriam desprezadas, reivin-
dicando visibilidades àquelas que sofrem com o apagamento colonial capitalista.
Neste sentido, além de produzir resistência, o texto literário elaborado por mulheres
periféricas produz esperança, na denúncia das violências, de serem ouvidas, de
não serem esquecidas. É uma possibilidade de virar a história, trapacear com as
estruturas dominantes.
562

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TRILHAR A CIDADE ESCUTANDO
O RAP: reflexões sobre vidas e
territorialidades urbanas171
Júlia de Carvalho dos Santos
Sandy Hellen de Lima Cavalcante Santos
Cristian Emanuel Silva de Lima
Ricardo Ferreira Marques
Simone Maria Hüning

Mesmo que a rádio não toque, mesmo que a TV não mostre, aqui
vamos nós172

Pensar a vida nas cidades impõe o desafio de não a tomar de forma mera-
mente individualizante, e este princípio se conecta à inviabilidade de se construir
um conhecimento em psicologia que não esteja atrelado a um campo político e
ético na tentativa de continuar construindo saberes científicos diferentes daqueles
que já pautaram violências e estigmatizações e que ainda tem seus resquícios no
cotidiano das populações.
Se numa cidade observarmos apenas as edificações, sem levar em conta que
há vida humana entre elas, de um lado encontramos bairros que se encaixam em um
elevado padrão urbanístico, possuem alto valor de mercado e contam com investi-
mentos públicos e privados; de outro, coexistem nas mesmas urbes territórios com
características que os tornam perigosos e impróprios para a ocupação imobiliária e
expostas a riscos (ROLNIK, 1999; TABORDA; BERNARDES, 2020). Trata-se de
lugares que são alvo de regressões no investimento (MARICATO, 2001) e, tendo
em vista essa dinâmica, nos propusemos a refletir sobre a vida cotidiana em tais
territórios marginalizados a partir de uma produção artística que fala da vida e sua
sobrevivência, o rap. Essa produção envolve sons, rimas, batidas em um movimento
que leva muito mais que uma só vida ou uma só comunidade, mas expressa saberes
e experiências políticas compartilhadas de precarização e resistência da vida.
Para Butler (2015; 2018), toda existência é precária, uma vez que perece na
ausência de amparo e infraestrutura permanentes. Por consequência, é impossível
conceber a vida sem reconhecer o óbito como um destino do qual não podemos esca-
par, ainda que seja possível adiá-lo. Isso não significa, porém, que existe igualdade na
relação entre as pessoas e a morte. Pelo contrário – algumas populações são vítimas
de negligência sistêmica do Estado e residem em territórios que se tornam máquinas
de aniquilamento, situação politicamente induzida que maximiza suas exposições ao
risco e ao sofrimento (BERNARDES; TABORDA, 2020; BUTLER, 2018).

171 Este trabalho contou com o apoio de bolsas de iniciação científica e produtividade do CNPq.
172 FAMÍLIA 33. Essa é a bikera. 2016.
566

Artistas do rap alagoano têm pautado em suas produções essas problemáticas


e aqui nosso objetivo é refletir junto com eles/as sobre os processos de subjetivação
e construção de territórios vividos principalmente na cidade de Maceió. Assumir tal
propósito impõe o desafio de pensar como se constituem lugares em que tramas teci-
das por dinâmicas de iniquidades precarizam espaços e existências frequentemente
expostas a situações de desconforto, ameaças, violência e dificuldade de acesso a
direitos (LIMA et al., 2021; BERNARDES; TABORDA, 2020; ROLNIK, 1999).
Considerando que a sobrevivência de toda pessoa depende de condições que a viabi-
lizem (BUTLER, 2015), desinvestir recursos estatais em territórios implica, portanto,
submeter os/as habitantes ao mesmo cenário de escassez e consequente desproteção.
Nesse contexto, não podemos deixar de nos perguntar: afinal, o que (não) está sendo
considerado vida passível de investimento no estado de Alagoas? Quais são as estra-
tégias forjadas pelos/as habitantes expostos a carências para não morrer tão cedo?
Poderíamos supor que a vida nesses locais estaria aniquilada se sua conservação
dependesse única e exclusivamente do nível de investimento de recursos públicos e
privados. Não é o que acontece, porém. Ao invés de perecer às tentativas de apaga-
mento, estes/as residentes transformam as ruínas que lhes imputam em canteiro de
obras (SILVA, 2018), isto é, lançam mão da astúcia para inventar soluções criativas
aos desafios diários (CERTEAU, 1998). Isso implica a criação de formas de sobre-
vivência e resistência que possibilitam a continuidade da vida, ainda que distante de
condições desejáveis.
Dentre as estratégias forjadas por populações de territórios vulnerabilizados,
a arte adquire um lugar de extrema importância em que se pode inscrever a vida e
suas experiências que integram memórias, subjetividades, beleza e a denúncia da
precarização. É nesse contexto que o hip hop emerge e se populariza como uma
aposta artística, política e inventiva de resistência às dificuldades (TAKEUTI,
2010). Compondo esse movimento, o rap se destaca por estimular o pensamento
crítico dos músicos e ouvintes ao narrar as experiências urbanas, convocando-
-os a protestar e tecer outra postura perante as fraturas sociais (CAMARGOS,
2018; TAKEUTI, 2010; LOURENÇO, 2010). Para tanto, os/as artistas não apenas
nomeiam e denunciam as violações diárias, mas se posicionam e compartilham
outras perspectivas que enriquecem a produção de histórias e memórias relacio-
nadas às suas vivências (CAMARGOS, 2018).
Consideramos que esse estilo musical é um agente de transformação das mar-
gens das cidades por expandir as perspectivas de residentes, sobretudo jovens, maioria
nesse estilo musical (TAKEUTI, 2010; CAMARGOS, 2018). Assim, ele assume a
função de difundir conhecimento e ampliar o repertório de reflexões sobre a realidade,
principalmente aquela vivenciada no cotidiano de comunidades vulnerabilizadas. Um
notável senso de coletividade se presentifica no processo de criação das letras, cujas
palavras podem ser tecidas a partir da união, afeto e companheirismo de artistas que
narram as experiências a respeito de seus próprios corpos e como atravessam ou são
atravessados pelos territórios dos quais fazem parte (LOURENÇO, 2010).
Por compartilharem tais experiências e enfrentamentos, esses/as rappers conec-
tam populações que enfrentam condições sociais igualmente injustas e recusam a
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 567

moralidade que justifica a miséria e a insatisfação como resultados de fracassos


individuais (COIMBRA, 2001; BUTLER, 2018). Além disso, conforme enfatiza o
documentário ‘AmarElo’ (2019), o rap emerge ainda como uma alternativa de eman-
cipação financeira para jovens pretos/as das periferias brasileiras que são produtores/
as de uma arte capaz de transitar a cidade.
É na música que estes/as artistas elaboram discursos contra-hegemônicos
sobre processos históricos, políticos e econômicos que quando relatados ape-
nas por uma perspectiva dominante não os/as inclui (CAMARGOS, 2018). Ao
inscrever outras versões sobre os acontecimentos urbanos, eles/as demonstram
que a memória coletiva não é um produto estanque, mas dinâmico e passível de
re-interpretações capazes de questionar fronteiras sociais até então vigentes, bem
como ampliar relações de pertencimento (POLLAK, 1989), reivindicando também
para si o direito de construir e comunicar o dia a dia de determinados territórios
a partir de suas próprias experiências.
Defendemos que a força subversiva presente nas letras do rap faz deste um
campo potente de estudo, no sentido do que Pollak (1989) identifica ao apontar que
as pesquisas devem ser constituídas a respeito de temas que despertam memórias
concorrentes e que entram em embate pelo direito de recontar a história da sua
perspectiva. Aqui buscamos uma recusa à universidade colonizadora que constitui a
outridade para torná-la objeto e, reconhecendo o valor epistemológico, social, político
e analítico dessas produções as tomamos não para analisá-las, mas para junto como
elas analisar a produção de subjetividades e territorialidades nos espaços urbanos, em
especial aqueles caracterizados pelo abandono e precarização. As letras de rap são
aqui tomadas como vozes contestadoras e, no mesmo sentido indicado por Foucault
(1979/2006, p. 80), acreditamos que “basta que elas existam e que tenham contra
elas tudo o que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e buscar
o que elas querem dizer”.
Nós escutamos. E o resultado deste processo embasa uma série de reflexões
tecidas sobre o rap, as vidas e territorialidades em Alagoas.

Selecionando nossa playlist

Percorremos a cidade como pesquisadores/as que se interrogam sobre processos


de subjetivação, precarização da vida e territórios vulnerabilizados enquanto o rap
conduz nossas interrogações. Nossa playlist é composta por canções da Família 33,
do NSC e de Arielly Oliveira, artistas alagoanos/as que abordam acontecimentos
da cidade de Maceió e por isso são fontes privilegiadas de conhecimentos sobre a
urbe, especialmente quanto aos seus territórios marginalizados. As músicas foram
selecionadas no Youtube, plataforma conhecida por reunir uma série de conteúdos
audiovisuais majoritariamente de acesso livre, gratuito e global. Nos aproximamos
sobretudo de canções publicadas entre 2015 e 2021 para refletir junto com eles/as
sobre as dinâmicas de subjetivação e relações sociais nas cidades e sobre como esses/
as artistas significam e articulam nessa ferramenta estética e política a vivência em
comunidades periféricas.
568

Nossa escrita é tecida por interlocuções entre as composições de raps e ferra-


mentas teórico-conceituais propostas por autores/as que discutem políticas de ocu-
pação da cidade, territórios, raça e memórias. Nesse processo, colocamos a produção
artística como uma fonte de conhecimento que irá se conectar com a produção aca-
dêmica em torno de problemáticas de interesse mútuo. Este movimento busca uma
conexão da pesquisa com a vida cotidiana que pretende amplificar e articular de
forma horizontalizada saberes produzidos desde lugares distintos. Prescindimos de
tentativas de interpretação das narrativas musicais e, ao invés disso, buscamos esta-
belecer uma interlocução com o que os/as rappers cantam sobre si, os territórios nos
quais residem, outros espaços das cidades de Alagoas e relações nelas constituídas.
Algumas perguntas norteadoras conduziram nosso percurso: quais experiências são
narradas? Como os/as rappers as qualificam? Como eles/as se posicionam frente às
questões que lhes são importantes?
Escutar o rap desde o lugar acadêmico da psicologia social nos conduziu a dois
eixos de debate que reúnem reflexões sobre os processos de subjetivação e narrativas
ali produzidas sobre os territórios da cidade e suas variadas ocupações – muitas vezes
dissidentes e transformadoras. No primeiro eixo discutimos sobre a precariedade da
vida e modos de subjetivação. No segundo nos voltamos para como o rap aborda
duas leituras sobre os territórios periféricos: uma expõe as desigualdades a que estão
submetidos, enquanto a segunda remete à beleza e às potencialidades que estão pre-
sentes em territórios vulnerabilizados.

Quem me conhece sabe: minha cara é o flagrante173

De acordo com a Família 33, vivemos em uma “sociedade suicida onde a


maldade impera em todas as estatísticas; já fizeram com os negros e aborígenes,
agora é nas favelas e em todas as perifa”174. O grupo relaciona tal fato à maldade
humana, que impacta a vida dos sujeitos de forma opressora e violenta, ao ameaçar
existências; ou atrativa, convocando homens e mulheres a seguir pelo caminho
do crime. Chamam a atenção para violências capazes de interpelar populações há
mais de um século, acirrando a precariedade própria da vida. Não somente isso – as
memórias desse histórico de violência marcam os indivíduos, se sobrepõem a eventos
contemporâneos e encontram no rap um espaço propício para serem expressas após
tantos anos (CAMARGOS, 2018; POLLAK, 1989).
A denúncia feita pelo grupo remete ao período colonial, momento em que
a raça, como invenção dos/as colonizadores/as, se tornou operadora de discrimi-
nações, apagamentos e coerções impostos por eles/as aos povos não brancos. Tal
cenário de violências se tornou possível porque o racismo fabricou uma cisão
capaz de normalizar desigualdades e impedir a produção de compadecimento por
sujeitos pertencentes a determinados grupos étnicos (ALMEIDA, 2019; SILVA,

173 FAMÍLIA 33. Minha cara é o flagrante. 2021. Ao citar as músicas, opta-se por manter a forma como elas
são cantadas, mesmo que não corresponda à norma padrão da língua portuguesa.
174 FAMÍLIA 33. Maldade. 2016.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 569

2019; MBEMBE, 2017), o que implicou, por um lado, visibilizar as semelhanças


compartilhadas entre pessoas de um segmento social com vistas a manter a coe-
são dele e, por outro, estabelecer diferenças que marcam grupos como oposições
supostamente irredutíveis (POLLAK, 1979). Como resultado, a sociedade ficou
dividida entre populações que pouco se conectavam com a penúria sofrida por
quem era caracterizado/a como diferente – e por isso inferior.
Ainda que algum tempo tenha decorrido desde então, observamos a permanência
desse quadro nas variadas produções de possibilidades e privações em um “mundo
que olha a cor e a transforma em dor”175, violentando quem é “negro, preto, MC”176.
Os/as rappers consideram residir em uma “AL177 genocida, limpeza racial; só morre
preto e pardo pobre aqui na capital”178. Denunciam a exploração predatória da natureza
e das vidas humanas precarizadas. Esse uso da raça como elemento capaz de gerar
aproximações ou segregações supostamente incontornáveis tem a ver com modos
de organização social da vida e, por conta disso, é uma estratégia de governamenta-
lidade – isto é, um dos procedimentos empregados para administrar as formas com
que homens e mulheres ocupam cidades a partir do ordenamento de suas condutas,
conforme explicam Revel (2005), Bernardes e Taborda (2020).
Balandier e Martins (1997) afirmam que o encontro com essa sociedade de
rejeição e recusa da alteridade torna possível que a violência surja como uma resposta
às exclusões e injustiças institucionais. Inserir-se na criminalidade viabiliza ganhos
econômicos compatíveis com o contemporâneo padrão de consumo e que outro ofício
não permitiria, pois “o salário mínimo ainda é uma piada, não vai mantendo uma
família nem uma casa”179. Práticas consideradas criminosas se configuram como uma
forma de enfrentamento às perseguições e desafios que enfrentam cotidianamente
por parte da polícia e do estado, pois estas afetam seu desenvolvimento e bem-estar,
bem como o de suas famílias (BALANDIER; MARTINS, 1997).
Ver-se constantemente em estado de privação suscita sentimentos de medo,
desvalorização e inferioridade; estes despertam, por sua vez, ressentimentos (ROL-
NIK, 1999; POLLAK, 1989) e esses/as jovens encontram no rap as condições de
possibilidade e incentivo para que se “rasgue o verbo nos versos, comece a lutar, faça
uma guerra contra esse sistema que quer nos calar”180. É fruindo desta ferramenta que
os/as artistas afirmam como “no fundo, no fundo, queria vingança, na mão mesmo,
eu e o governador pra ele pagar o que ele faz com o povo”181.
Consequências reais ou imaginadas emergem como sinalizadores de risco, dor
e incerteza que fomentam reflexões sobre o futuro – “meu filho com quem vai ficar?
Morrer ou rodar?”182 – e o custo destes delitos – “olha essa alma assassina, jogada no

175 ARIELLY OLIVEIRA. Um segundo. 2018.


176 NSC. Direitos negados. 2020.
177 Sigla referente ao estado de Alagoas.
178 FAMÍLIA 33. Saca o mundão lá fora. 2016.
179 FAMÍLIA 33. Políticos. 2016.
180 ARIELLY OLIVEIRA. Me guia. 2016.
181 NSC. Direitos negados. 2020.
182 NSC. Desabafo de um filho. 2020.
570

mundo, sem beira e sem rumo”183. Inaugura-se, assim, um importante embate entre
as consequências da entrada na criminalidade, que inicialmente se desponta como
um campo de ganhos e acesso a experiências prazerosas de poder de compra e lazer,
mas que por outro lado impõe danos recorrentes à segurança de si mesmo, da família
e prejuízos relacionados à permanência no seu território.
Ao assumir esse conflito, os/as rappers evidenciam toda a tensão e a ansiedade
que resultam de incertezas sobre o futuro que lhes aguarda, o que mais uma vez
remete à insuficiência das redes públicas de suporte e garantia de direitos. Tal escassez
produz a necessidade de respostas autônomas e imediatas. Ainda que contraventoras,
elas demonstram que “os meninos tão cansado, agora eles querem se organizar”184.
No fim, o que observamos são os efeitos de uma ética individualista que se tornou
hegemônica em períodos recentes e responsabiliza o sujeito tanto por seu sofrimento
quanto por seu fim (BUTLER, 2018). Isso provoca uma condição de desamparo que
se manifesta nos episódios em que é “pobre matando pobre, rico cada vez mais rico,
Estado nos extorquindo com impostos abusivo que nunca são revertidos”185 e se
acentua quando “quem tentar bater de frente é perseguido e toma tiro”186.
Segundo Butler (2018), em um mundo que valoriza a ilusão de autossuficiência,
vidas que demandam maior suporte de instituições econômicas e estatais são tratadas
como dispensáveis por sua incapacidade de se enquadrar no esperado. Isso deriva
em uma discrepância notável entre os/as que são passíveis de defesa e aqueles/as
que podem ser descartados/as, expostos/as a violências diversas, ainda conforme a
autora. Nesse sentido, os/as rappers destacam as variadas modalidades de opressão
que enfrentam a saber: racismo, violências – estatal e de gênero –, privação de
recursos materiais básicos, violação do direito de acesso à saúde de qualidade, falta
de acessibilidade em transportes e vias públicas da cidade e assassinato sistemático
de algumas populações.
Os/as rappers frequentemente abordam na música uma série de reações des-
pertadas pelas opressões com as quais se deparam, a saber: dor, desespero, medo,
humilhação, decepção, aflição, luto e indignação. Mas estas não são as únicas res-
postas. Considerando que suas vidas enfrentam exposições exacerbadas ao risco, o
ato de sobreviver buscando qualidade e prazer nisso é uma forma de resistência por
si mesmo (BUTLER, 2018).
Tangencialmente, tais dinâmicas relativas à vida em comunidades vulnerabiliza-
das tendem a ser entendidas exclusivamente como pertencentes a uma esfera violenta
e triste de constante amedrontamento e insegurança. No entanto, o rap desponta neste
trabalho como um elemento que pode nos trazer subsídios dos campos teórico, político
e social para pensar disputas entre dimensões de imagens que se constroem sobre os
sujeitos e os espaços em que circulam, de forma que procuramos subdividir esses
elementos em dois: as imagens produzidas pelo rap acerca da vulnerabilização de

183 NSC. Em meio às reflexões. 2017.


184 FAMÍLIA 33. Políticos. 2016.
185 FAMÍLIA 33. Código 082. 2018.
186 FAMÍLIA 33. Código 082. 2018.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 571

alguns territórios e a outra, que envolve o valor, a beleza e as boas experiências de


se viver em áreas em que há arte para se amparar e achar novos caminhos.

A dupla imagem construída pelo rap sobre o território

Assim como encontramos tratamentos desiguais entre sujeitos, as cidades são


preenchidas por fronteiras demarcadas por muros geograficamente presentes ou então
invisíveis, porém simbólicos e potentes (SCISLESKI; HÜNING, 2016). Decorrem
dessas cisões territórios que são esquecidos pelo planejamento tradicional, como
efeito de pauperizações históricas (SILVA, 2018; ROLNIK, 1999). Tendo em vista
esse quadro, atribuímos o termo políticas de exclusão a tais condutas e discursos
segregacionistas, entendidos, a partir da inspiração em apontamentos de Rolnik (1999,
p. 105), como modos de gestão da cidade e das vidas baseados em um conjunto de
“mecanismos perversos que mantém a pobreza longe das áreas mais bem urbani-
zadas”, ou então práticas, narrativas e outros artifícios que visam construir “uma
muralha por meio de regulação urbanística” (ROLNIK, 1999, p. 105).
Além da supressão de recursos e direitos básicos a determinadas localidades e
populações, tais políticas forjam barreiras de naturezas diversas que visam limitar
o contato com pontos onde se concentram os dispositivos, artifícios e soluções de
várias ordens ao transformar o transitar em um desafio longo e/ou custoso (ROLNIK,
1999; MARICATO, 2001), o que resulta num afastamento de alguns/as do “acesso a
empregos, oportunidades educacionais e culturais, que estão concentradas em enclaves
pequenos e protegidos” (ROLNIK, 1999, p. 107).
A consciência sobre essa disparidade surge com frequência no rap, uma vez
que os/as artistas descrevem esse encontro com “a favela, miséria, choros e vela,
mazela, sem terra”187. Acompanhando tal delação, manifestam o conhecimento de
que “os de cima tão sorrindo, achando tudo lindo, quem tá debaixo sofre, essa é
a cidade do oprimido”188. Mesmo a construção de equipamentos de consumo em
espaços geralmente marginalizados pode ter relação com o objetivo de seccionar a
cidade entre localidades ocupadas por quem possui condição econômica alta e áreas
frequentadas por quem não tem, pois sob sua ótica “fizeram shopping no Biu189 pra
ninguém descer pra praia”190.
Dentre a multiplicação de experiências de exclusão, destacam-se dois recortes
feitos por NSC e Arielly Oliveira: a inacessibilidade com a qual pessoas com defi-
ciência física se deparam ao circular por Maceió – o que gera a sensação de estar
condenado/a à “prisão perpétua”191 – e a insegurança imposta a mulheres na sociedade
contemporânea, que precisam sobreviver em um “mundo de dor, desespero; andar
sozinha é medo”192.

187 FAMÍLIA 33. Código 082. 2018


188 FAMÍLIA 33. Saca o mundão lá fora. 2016
189 Benedito Bentes, também conhecido como Biu, é um bairro periférico da cidade de Maceió.
190 FAMÍLIA 33. É a oeste. 2016.
191 NSC. Inacessibilidades. 2019
192 ARIELLY OLIVEIRA. Ela. 2018
572

Escutando essas narrativas em rap, ressaltamos como as composições dos/as


artistas são marcadas pela indignação e pelo desejo de melhora das condições de
precarização e vulnerabilidade em suas vidas. Assim, com eles/as, podemos sublinhar
como a ausência de políticas públicas para determinados corpos, incluindo acesso à
saúde pública, mercado de trabalho, práticas esportivas, educacionais e de assistência
reforçam o surgimento de medos e violências no território urbano, principalmente
naqueles marcados pela vulnerabilização, desproteção social e abandono pelo estado.
No entanto, há uma outra face apresentada pelas músicas pesquisadas quando se refere
às territorialidades e aos modos de vida presentes articuladas ao movimento do rap.
É comum que cotidianamente as pessoas tenham acesso a perspectivas redu-
cionistas sobre os territórios periféricos da cidade e costumem limitá-los a lugares
de pobreza e violência. Essa concepção os pauta a partir de julgamentos morais,
designando-os de maneira pejorativa, como territórios disfuncionais e de poucas
potencialidades (SILVA; JUNIOR, 2021). Essas máximas reforçam a ideia de que
os territórios precarizados pelo poder estatal são lugares restritos à desordem e à
supervalorização do crime, da violência e do tráfico de drogas, sustentando-se nas
representações estereotipadas que relacionam o/a morador/a da favela à dimensão
da ilegalidade (CRUZ, 2007) ou a outras formas de desqualificação.
É nessa perspectiva que os territórios que circundam as margens da cidade são
definidos meramente como disfuncionais, como espaços urbanos que, de modo geral,
afetam negativamente a qualidade, o bem-estar e a segurança da cidade (SILVA;
JUNIOR, 2021), devendo, portanto, ser aniquilados, juntamente com as vidas que
os habitam. Essas narrativas convergem para uma concepção de que tais espaços
são carentes de potencialidades e fortalecem as ideias de que neles não pode ser
produzido conhecimento, diversão ou lazer, pois, os discursos que rodeiam espaços
sempre os relacionam com a produção de mortes, tragédias e violências. Ali pode-se
falar, como assinala Silva (2019), da necessidade de revitalização, como se não
houvesse vida nesses lugares.
É nesse contexto que os/as rappers alagoanos/as buscam, com sua arte, superar a
visão de que o rap seria apenas um veículo de denúncia social das tragédias que ainda
se perpetuam nas periferias. Esses/as artistas expressam o rap como um movimento
que produz representatividade, informação, atração e lazer para as pessoas da cidade.
Os/as artistas alagoanos/as tecem críticas aos estigmas e discursos de pobreza e
violência produzidos sobre os territórios vulnerabilizados – “mas quem não colou na
oeste193 sempre fala bosta (…) na quebrada não tem só desgraça não, moleque, tem as
correria, também tem umas peça massa, tem as discoteca que é sempre chei de gata,
oeste não é só guerra’’194 – e reivindicam que as periferias de Alagoas sejam vistas para
além da violência, vulnerabilização e da criminalização dos corpos. Também surge
nas composições dos/as rappers constantes narrativas de valorização e exaltação dos
espaços urbanos dos quais fazem parte. As composições denunciam as necessidades
socioeconômicas desses territórios precarizados, mas há um constante desejo desses/
as artistas de serem reconhecidos/as como pertencentes a esses espaços urbanos.

193 ‘A Oeste’ corresponde a uma região administrativa da cidade de Maceió


194 FAMÍLIA 33. É a oeste. 2017. Supressão nossa.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 573

Além disso, os/as rappers mencionam os bairros que frequentam e destacam


os pontos de lazer e os locais onde ocorrem as festas – “F33 tá na casa, é só tranqui-
lidade, a vibe é massa [...] scorpions dance na jaqueira195, só a massa regueira lá no
jaça196’’197 –, afirmando que os territórios dos quais fazem parte também são passíveis
da produção de lazer e diversão, exaltando as potencialidades que se expressam
nesses espaços urbanos. Nesse sentido, são pertinentes os apontamentos de Hooks
(2006) quanto à conexão entre a recuperação pessoal, o fortalecimento político e a
perspectiva crítica sobre os sistemas de dominação. Para ela, contestar opressões exige
um trabalho de localização em seu contexto social, histórico, político e ambiental,
compreendendo de que modos elas foram forjadas ao longo das décadas. Somente
com base nessas informações seria possível constituir outras dinâmicas de existência
(HOOKS, 2006). Trata-se de defender que “focado, com a mente aberta, o conheci-
mento liberta, informação é nosso escudo pra alienação que impera”198.

Nossa luta não será em vão, irmão: o rap é informação199

Por valorizar o instrumento de transformação sócio-política que o rap é, este


capítulo teve como objetivo refletir junto com os/as rappers alagoanos/as Arielly
Oliveira, Família 33 e NSC sobre os processos de subjetivação e construção de ter-
ritório vividos principalmente na cidade de Maceió. Tal percurso permitiu identificar
que as músicas com frequência tratam de experiências próprias dos/as cantores/as,
que se colocam como protagonistas do episódio ou telespectadores/as de situações
vivenciadas na urbe. Outros/as personagens também surgem à medida que polarizam
as condições de vida nas cidades do estado – assim, se algumas pessoas sobrevivem
apesar de condições precarizadas, outras fruem de segurança e acesso desimpedido a
recursos básicos, notadamente a classe política e grupos favorecidos economicamente.
Segundo o que expressa a Família 33, observa-se uma relação de “alguns no
luxo, outros no lixo, contraste social explícito”200 em prol de um “progresso em
nome de poucos defendido pela lei”201. Perante os frequentes episódios de infração
a direitos, racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) e exposição à morte, os/as artistas
julgam residir em um lugar em que os desafios são diversos quando o público em
questão é composto por negros/as, pardos/as, pobres e mulheres – sendo que o recorte
de gênero é efetuado especificamente por Arielly Oliveira. Para Rodney William
(2019), corpos negros e periféricos serão sempre associados a violências cotidianas
em decorrência do racismo, estando eles inseridos ou não na criminalidade. Ao uti-
lizar arte para expor as opressões e necessidades de comunidades excluídas, o rap
pode ser visto pelos/as demais ocupantes da cidade como um movimento afrontoso
e perigoso para a segurança de todos/as.

195 Chã da Jaqueira é um bairro periférico da cidade de Maceió.


196 Jacintinho, também conhecido como Jaça, é um bairro periférico da cidade de Maceió.
197 FAMÍLIA 33. Noite de Melô I. 2016
198 FAMÍLIA 33. Código 082. 2018
199 ARIELLY OLIVEIRA. Siga na fé. 2018
200 FAMILIA 33. Código 082. 2018
201 FAMILIA 33. Saca o mundão lá fora. 2016
574

Nesse mesmo sentido, Camargos (2018) indica que a recorrência de temáticas


como juventude, desigualdade social e violência racial e urbana têm a ver com o
fato de serem elementos comuns nas vidas dos/as rappers, notadamente negros/as
residentes de territórios vulnerabilizados – é por isso que episódios nesse sentido
extrapolam experiências individuais e escrever a respeito permite que uma comuni-
dade compartilhe semelhanças e se reconheça. Essa perspectiva aponta a riqueza de
“usar como referência nossos próprios irmão que vive o que a gente vive, que sente
o que a gente sente, por que nos basear em culturas tão diferente?”202.
Aproveitando as ferramentas propostas por Butler (2018, p. 16), entendemos
que o investimento destes/as cantores/as no rap “constitui uma forma de ação que
reivindica as condições para agir e viver”. Desse modo, denunciar a comum pre-
carização de territórios e populações é adotar um posicionamento ético-político
de tensionamento; o ato de expor as violências está acompanhado de críticas que
tentam empurrar tais circunstâncias de vida à ruptura ao forçar que a precarização
seja reconhecida e solucionada.
Enfatizamos ainda que em resposta a circunstâncias que com regularidade os/as
oprime, cerceia movimentos e liberdade, eles/as não apenas apontam tais tentativas
de dominação como exigem reparações e inscrevem na música corpos que fruem,
se divertem e buscam brechas nas normas impostas. Para além da pura mostra das
desigualdades e opressões (TAKEUTI, 2010), os/as artistas abordam enfrentamentos
que passam pela coletividade e estratégias em que se “reage, vai à batalha, mesmo
com toda dificuldade e no rap, com toda atitude, mostra a sua arte”203.
Escutar o rap na universidade, em meio a nossas pilhas de livros, referenciais
teóricos e conceitos, nos permite escutar a cidade e as pessoas de forma viva e pul-
sante, com suas violências, contradições e potências, para além dos espaços e verda-
des que comumente nos circundam. O rap é a afirmação de existências que muitas
vezes agimos para apagar. Desde um espaço onde, por tantas vezes, arrogantemente
nos atribuímos uma superioridade analítica, dialogar com a força do conhecimento
que esses/as artistas produzem, incorporando (sem colonizar) suas análises ao nosso
repertório acadêmico, nos permite complexificar as leituras de mundo que propomos
e ressituar nosso próprio lugar e modos de produzir conhecimento.

202 FAMÍLIA 33. Código 082. 2018


203 ARIELLY OLIVEIRA. Siga na fé. 2018
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 575

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SAÚDE MENTAL, USO DE DROGAS
E GESTÃO AUTÔNOMA DA
MEDICAÇÃO (GAM): inquietações e
experiências em diferentes territórios
Ana Karenina de M. Arraes Amorim
Indianara Maria Fernandes Ferreira
Leandro Roque da Silva
Wamberto Silva Medeiros

1. Introdução: as drogas e suas especificidades contemporâneas

O tema relacionado às drogas é um campo complexo e que se constitui a partir


de um conjunto plural de práticas, discursos e leis que, alinhadas a uma pressão
moralista que ainda ecoa na contemporaneidade, investem na elaboração de leituras
superficiais acerca do tema. É neste sentido que tal problemática é um verdadeiro
analisador dos modos de existência coletivos, fazendo com que a vida, o corpo e a
saúde transformem-se em questões políticas por excelência.
Para Bucher e Oliveira (1994) os inúmeros discursos criminalizantes neste
campo possuem características que formam um conjunto recorrente de práticas diárias
observadas no contexto de cuidado às pessoas que usam drogas, silenciando ques-
tões sociais e simplificando de modo unidimensional a relação com as substâncias,
desembocando numa assistência onde impera a lei da abstinência (tudo ou nada), sem
especificar o produto a ser utilizado, a história de vida e o contexto de uso.
Portanto, os discursos em pauta não se caracterizam em simples ideias, mas
possuem um papel disciplinador na medida que produzem uma pactuação com
as normas de um projeto societário, que desencadeia o controle, a intervenção e
consequentemente a exclusão das pessoas em determinados contextos (BUCHER;
OLIVEIRA, 1994).
Para Alarcon (2008), a repressão em relação às drogas não opera da mesma
forma e em qualquer lugar. As drogas não sofreram nestes últimos séculos apenas
um investimento enquanto alvo de uma “guerra” que criminaliza muitas pessoas
que consomem drogas, mas foram colocadas numa rede de saber e poder através da
qual estimularam corpos, prazeres, desejos, reações e ações sobre ações, que incitam
o conhecimento sobre suas propriedades e os seus efeitos e também reforçam as
resistências ao seu controle.
Desta forma, as múltiplas relações que mantemos com as drogas precisam ser
consideradas como uma categoria complexa e polissêmica, que, embora possam ser
distinguidas conforme contextos e modalidades de uso, não comportam diferenças
intrínsecas absolutas ou essenciais em si, mas sempre e somente diferenças relacionais
578

(VARGAS, 2005). É nesta perspectiva, que não se traduzem apenas como substâncias
que produzem algum tipo de alteração na psique ou no corpo, as quais têm sido, nos
últimos séculos, objeto de controle por parte do Estado; inclui-se também, nessa
categoria, os alimentos-drogas, bem como aqueles que nomeamos como fármacos
e/ou medicamentos (FREI; LOMONACO, 2019).
Estas últimas junto com as drogas “ditas” ilícitas irão ocupar um estatuto impor-
tante na contemporaneidade. O discurso médico classificará como positivas as prescri-
tas e negativas aquelas proscritas. Temos aí um duplo jogo de repressão/valorização
do consumo ditado por esse processo de medicalização e glamour farmacêutico, que
culmina no incentivo do consumo de drogas lícitas por um lado e, por outro lado,
criminaliza e patologiza o consumo das demais substâncias não prescritas.
É neste sentido que Gomes-Medeiros (2019) afirmam que os discursos de cri-
minalização convergem para a legitimação da ilegalidade no campo jurídico, trans-
formando usuários de determinadas drogas em delinquentes. Tal situação aponta para
a proteção de um idealismo de bem-estar no campo da saúde, mesmo que seja com
o uso das drogas prescritas, estas sim, autorizadas mediante a autoridade médica
patrocinadora da qualidade de vida.
Sendo signatário dessa lógica apresentada acima, o Brasil teve um longo período
de ausência de políticas de saúde comprometidas eticamente com as pessoas que
usam drogas. Na prática, durante várias décadas, o atendimento a estas pessoas se
baseava na internação como proposta de cessar o uso juntamente com a manutenção
da abstinência. De maneira geral, em boa parte do século XX, as medidas adotadas
com relação aos usuários abusivos de drogas foram propostas no âmbito da justiça
penal, em decorrência de um aparato legislativo que criminalizava as várias condutas
associadas à produção, ao comércio e ao uso (SILVA, 2015).
Foi apenas no final da década de 80, junto ao crescimento epidemiológico das
doenças que eram acometidas pelos usuários de drogas injetáveis, que surgiram os
primeiros projetos de prevenção no âmbito da saúde para essa população. Em Santos
(SP), no ano de 1989, surgiram propostas que capitaneadas pela gestão municipal
de saúde, se constituíram na criação de um programa de troca de seringas (PTS’s),
diversificando as ofertas de cuidado no âmbito da saúde. No entanto, diante de uma
ação judicial, tal projeto não teve avanço, uma vez que a Lei 6.368/76 criminalizava
quem “contribuísse” de qualquer forma para o uso de drogas. Além deste fato jurí-
dico, junta-se ao aspecto de uma sociedade marcada por preconceitos e acostumada
a abordagens repressivas, gerando dificuldade de aceitar medidas no âmbito da saúde
pública que se configurassem como tolerantes e ampliadas, neste caso, a partir da
perspectiva da redução de danos (RD)204.
Só na década de 1990, que tais ações puderam ser realizadas, agora sob a
égide de um ambiente acadêmico. Em 1994, foi fundado o Centro de Estudos e

204 Para a Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA) se refere à RD como um conjunto de políticas,
programas e práticas que visam primeiramente reduzir as consequências adversas para a saúde, sociais
e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente reduzir o seu consumo. Tem como
princípios: um forte compromisso com a saúde pública e os direitos humanos, a partir de uma ação que
foca em riscos e consequências adversas compondo a elaboração de políticas públicas, pela comunidade,
pelos pesquisadores, pelos redutores de danos e juntamente com as pessoas que usam drogas.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 579

Terapia de Abuso de Drogas (CETAD) – serviço de extensão vinculado à Uni-


versidade Federal da Bahia. Recebendo recursos da então Coordenação Nacional
de DST/AIDS (PETUCO, 2016). A partir daí, as experiências da RD no território
nacional se espalharam. Projetos de Redução de Danos foram criados, multipli-
cando-se os encontros nacionais, articulações políticas e movimentos sociais. Isso
proporcionou um maior intercâmbio de coletivos, produzindo uma visibilidade da
RD e consequentemente, mudanças na compreensão do cuidado junto a pessoas
usuárias de drogas (SOUZA, 2007).
Ainda compondo as transformações significativas no campo do cuidado à saúde,
destacamos também que foi nestas décadas que a Reforma Psiquiátrica Brasileira
(RPB), fruto do trabalho de movimentos sociais, buscou a melhoria da assistência
no Brasil, denunciando a situação precária dos hospitais psiquiátricos, construindo
um outro lugar social para as pessoas em sofrimento psíquico e consequentemente
junto aquelas que apresentam algum sofrimento em decorrência do uso de drogas. Se
caracterizando como um movimento político, sua construção não pode ser desvincu-
lada da luta pela transformação da sociedade (AMARANTE, 1995; YASUI, 2006).
Destacamos este movimento porque foi na ebulição destas discussões e nos
posicionamentos voltados para a construção de projetos de mudança no campo dos
cuidados à saúde, que no início do ano 2000, com a III Conferência Nacional de Saúde
Mental, houveram os primeiros encontros entre a RD e estratégias emancipatórias
da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). Isso produziu uma abertura maior sobre
a questão fazendo com que o cuidado junto às pessoas que usam drogas deixasse de
ser exclusivamente do campo específico das DST/HIV para também ser operado no
campo da Saúde Mental (PASSOS; SOUZA, 2011).
Neste aspecto, se amplia as estratégias de cuidado no Brasil para o uso de
álcool e outras drogas, sendo construídas ofertas concretas de acolhimento e assis-
tência, apontando para uma gestão do comum. Isso possibilitou um exercício de
práticas de assistência exercidas pelas multiplicidades, expressando as diferenças, e
tendo a Redução de Danos como paradigma ético diante da construção de vínculos
(PASSOS; SOUZA, 2011).
Desta forma, a lógica que permeia a assistência no Brasil está pautada no pla-
nejamento das ações e na integralidade dos serviços que ofertam o cuidado. E para
fortalecer essa rede de cuidados, em dezembro de 2011, o governo federal instituiu,
por meio da Portaria nº 3.088, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) visando
ampliar e articular os diversos pontos de atenção à saúde para pessoas em sofrimento
psíquico ou decorrentes do uso de álcool e outras drogas (SILVA, 2015).
Portanto, a política do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2004) para
abordar o tema das drogas e os seus paradigmas de cuidado, reintroduz a abordagem
da redução de danos, apontando a necessidade da construção de uma clínica sem
julgamentos. O objetivo é que o tema das drogas possa ser tomado na sua complexi-
dade de interesse e seja discutido de forma transversal (TEDESCO; SOUZA, 2009)
No entanto, apesar de todos estes avanços, na atualidade presenciamos discur-
sos reacionários proferidos contra usuários de drogas nos mais diversos espaços da
sociedade. Por meio de um conjunto de resoluções e portarias, com destaque para
580

a Portaria n 3.588/2017 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017), que institui a chamada


nova política de saúde mental, são introduzidas diversas alterações, em um claro
movimento de contrarreforma. Dentre essas alterações encontram-se o aumento do
financiamento para a internação psiquiátrica; o desfinanciamento do modelo de aten-
ção psicossocial de base comunitária e a ampliação do aporte financeiro direcionado
às comunidades terapêuticas (PRUDÊNCIO; SENA, 2022).
Além disso, tivemos a aprovação da Lei n. 13.840/2019 que altera trechos
importantes da lei 11.343/2006 com a aprovação do PCL 37/2019 que implementa
um modelo de “cuidado” focado unicamente na abstinência priorizando instituições
de internamento públicas e privadas. Tais mudanças são apenas alguns exemplos do
cenário atual do país. Para Costa (2021), as alterações que estão sendo realizadas no
atual governo brasileiro representam não apenas uma ordenação no aparato legal,
normativo e orientador das ações referentes à temática, mas o retorno e fortalecimento
das lógicas conservadoras, que patrocinam o encarceramento e a criminalização em
massa, principalmente de uma juventude negra, periférica e pobre.
Assim, o problema do consumo de drogas se torna terreno privilegiado para
estudar a produção social, material e simbólica dos corpos humanos e das concepções
de vida e morte implicados nela. É urgente percorrer os cotidianos das pessoas que
tem envolvimento com as substâncias, desmanchando as fronteiras que circunscrevem
os discursos normativos e higienistas que por sua vez ocasionam regimes de morte
e que sustentam um estado necropolítico (MELLO, 2018).
Desta forma, a presente escrita se efetiva aqui ao tomarmos como direção a nossa
aposta em espaços em que seja possível o compartilhamento de experiências, desejos e
inquietações que nos habitam em diferentes áreas do cotidiano, da vida e da pesquisa.
Espaços – geográficos, existenciais, afetivos, literários, acadêmicos, dentre outros – nos
quais seja possível reconhecermos aquilo ao qual não conseguimos ser indiferentes.
Nessa perspectiva, compartilhamos aqui algumas inquietações e experiências
relativos ao uso de drogas prescritas e proscritas no campo da saúde mental e a relação
dela com a conquista de cidadania e autonomia pelos usuários ou pessoas com trans-
tornos mentais ou com problemas associados ao uso dessas drogas. Incluem-se aqui,
obviamente, uma série de problemas que vão desde aqueles relativos às consequências
da dependência às drogas medicamentosas ou não, passando pelos problemas relativos
à interação de substâncias psicoativas no cotidiano das pessoas até questões relativas
à autonomia e participação no próprio cuidado e na vida social em sentido amplo.

2. Escutar vozes: uma aposta na produção do cuidado no campo da


saúde mental, álcool e outras drogas

O interesse do nosso grupo de pesquisas nessa temática nasce a partir das


nossas experiências em “escutar vozes”. Vozes das pessoas com as quais traba-
lhamos em coletivos de luta antimanicomial e do movimento da população de rua
no contexto potiguar, assim como vozes de pessoas que se cuidam em serviços da
rede de saúde mental.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 581

Em várias ocasiões, escutamos coisas como:

1. “Karenina, vou propor que nossa reunião da associação seja a tarde por-
que não estou conseguindo acordar. O remédio me deixa muito dopado
de manhã”.
2. “Não tenho como participar da audiência pública porque o remédio que o
psiquiatra passou agora me deixa confuso e aí eu me perco, esqueço das
coisas que quero falar... não vou conseguir falar assim. Melhor ir outra
pessoa que esteja melhor que eu”.
3. “Ontem na nossa oficina de teatro não consegui participar. Fiquei lá só
observando por que estava muito sonolento. Terminei dormindo deitado
lá no chão da sala. Não sei se vou conseguir me apresentar com vocês por
que não estou conseguindo participar da oficina”.
4. “A vida está muito dura. Antes era o crack que não me deixava bem para
vir para a reunião. Ou eu ficava muito chapado ou muito doido. Agora,
para deixar o crack, o psiquiatra me passou um remédio que é uma bomba!
Eu fico bem lento, confuso... falei para ele que não tá boa a coisa por que
não consigo trabalhar, não consigo fazer nada!”
5. “Eu por conta própria parei de tomar o remédio que o psiquiatra passou
por que eu queria tomar uma bebida no final de semana e ele me disse que
não podia misturar... Bebi e fui bebendo para me divertir um pouco, né?
Mas aí deu aquela crise, tive de me internar... Ai agora tenho de viver de
recordação de como é bom beber!”
6. “Não sei por que eu tomo tanto remédio. Tomo 15 comprimidos por dia,
acordo e vou dormir dopado, às vezes meio confuso. Antes eu estava
viciado na droga, agora é nesses remédio todos. Queria saber quando vou
me livrar disso tudo e me limpar de vez!”

Cada uma dessas vozes que temos escutado – de pessoas em sua maioria
muito pobres, que enfrentam problemas de saúde mental e que frequentemente não
conseguem se vincular a serviços de saúde mental no território – nos aponta um pro-
blema, nos inquieta e nos coloca desafios na produção do cuidado em saúde mental
e também na construção de formas de participação social e política dessas pessoas.
Elas nos fazem pensar nos amplos e já profundos processos de medicalização e
patologização de problemas sociais que estão relacionados às desigualdades sociais
e de gênero que vivem; na centralidade do uso de medicamentos psiquiátricos no
cuidado ofertado nas redes de saúde, na centralidade do uso de drogas como o álcool
e crack na vida cotidiana no enfrentamento das precariedades da vida e como fonte
de prazer que não encontram em outras instâncias da vida; no pouco investimento
das equipes de saúde no uso de tecnologias alternativas e na aposta do seu próprio
potencial para além do “saber médico”.
Observamos inquietos ainda as polaridades no vínculo com as redes de atenção
psicossocial: num pólo há uma alta dependência aos centros de atenção psicossocial
(CAPS), principalmente de usuários considerados “dóceis”, pela ausência de efetivos
582

processos de reinserção social. No outro pólo, observamos vínculos precários e fra-


gilizados (dos usuários “não dóceis”), pela distância das propostas de cuidado dos
territórios existenciais singulares.
Um outro aspecto que nos chama atenção é a “anestesia do viver” produzido
pelos medicamentos e ou pela drogas não prescritas como barreira importante à
participação social e política nos coletivos e nas atividades na vida pública, acom-
panhada de desinformação sobre prescrições (tanto pelos usuários e seus familiares,
como pelos profissionais não médicos) e quase nenhuma gestão do cuidado pelo
usuário, atribuída na melhor das hipóteses a suas famílias e equipes de saúde e, na
pior, exclusivamente nas mãos do médico psiquiatra.
Uma série de estudos (SANTOS, 2009; OTANARI et al., 2011; ONOCKO-
-CAMPOS et al., 2013; CALIMAN et al., 2016) aponta para a super medicação
de usuários, a falta de informações sobre os medicamentos prescritos e nenhuma
discussão de seus efeitos indesejáveis, para a pouca comunicação entre profissionais
de saúde e usuários sobre o tratamento e ainda para a falta de compreensão da equipe
interdisciplinar sobre os medicamentos em geral, o que reforça o poder psiquiátrico
no interior da RAPS. Como consequência da falta de comunicação com a equipe,
muitos usuários procuram gerir de algum modo seu tratamento por conta própria, se
automedicam e, em muitos casos, a redução ou retirada total ou abrupta da medicação
leva a consequente piora e aumento das doses anteriormente utilizadas (ONOCKO-
-CAMPOS et al., 2013; CASTRO et al., 2013).
Apesar das inúmeras conquistas e avanços no campo da saúde mental dados
os processos de reforma psiquiátrica, há ainda pouca autonomia, protagonismo
e participação social de usuários e familiares, uma vez que, como nos mostra
Eduardo Vasconcelos (2008), as estratégias de suporte social, controle social no
SUS e metodologias participativas (tenda do conto, grupos colaborativos etc.) tem
pouco investimento e são pontuais.
Diante desse quadro complexo de problemas, deixamo-nos levar pela seguinte
pergunta-guia: como produzir estratégias de enfrentamento a medicalização e fomento
a produção de autonomia e participação na gestão do cuidado pelos usuários?
Sigamos esta pergunta, não para encontrar respostas fechadas, mas para acom-
panhar as questões e efeitos que ela tem produzido nos espaços coletivos onde as
experiências se desdobram e no modo como elas produzem reverberações que nos
inquietam no cenário de álcool e outras drogas a partir das experiências com a
Gestão Autônoma da Medicação (GAM). É uma questão que tem nos feito pensar
como a GAM pode contribuir com a produção de experiências, estratégias e práticas
numa perspectiva de gestão de cuidado em diálogo com experiências de redução
de danos já existentes.
Desta forma, cruzando dois estados do nordeste brasileiro, partimos de duas
experiências GAM vividas em dois contextos distintos: na cidade de Garanhuns
(Pernambuco) através de uma experiência a partir da Residência Multiprofissional e
outra na cidade de Natal (Rio Grande do Norte). Partindo de uma pesquisa-interven-
ção, ambas ocorreram em serviços do tipo Centro de Atenção Psicossocial Álcool
e Outras Drogas (CAPS AD) da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema
Único de Saúde (SUS).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 583

3. Gestão Autônoma de Medicação (GAM) como estratégia de cuidado

A Gestão Autônoma de Medicação (GAM) é uma aposta e se constitui como


estratégia de cuidado que tem se revelado emancipatória e foi desenvolvida origi-
nalmente no Canadá por usuários da Rede Alternativa de Saúde Mental do Québec,
que construíram um “guia” com orientações e reflexões e orientado para ajudar os
usuários e seus familiares a lidar com a questão do uso de medicamentos psiquiátri-
cos, seus efeitos na vida dos usuários e a relação deles com os diferentes serviços de
saúde mental. O objetivo da estratégia GAM é criar espaços para conversar sobre
medicação e refletir sobre seu uso, a fim de alcançar uma qualidade de vida mais
satisfatória (RODRIGUEZ; PERRON, 2008).
No Brasil, a GAM foi adaptada através de uma pesquisa-intervenção multicên-
trica realizada em diferentes contextos no período de 2009 a 2012. O Guia GAM BR
foi desenvolvido com algumas especificidades, quais sejam:

1. As experiências foram feitas nos serviços de atenção psicossocial e


com grupalidades e não individualmente por usuários foram da rede de
serviços, como no Canadá;
2. As experiências iniciais foram realizadas com grupos de usuários, profis-
sionais e pesquisadores em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II e
III) e, depois, apenas recentemente em CAPS infantil, em CAPS AD e em
serviços da Atenção Primária à Saúde. As nossas experiências se deram
no contexto do CAPS AD e na atenção primária;
3. E o Guia brasileiro não possui ainda a última parte do Guia original que
diz respeito a retirada da medicação, constituindo um desafio atual de
pesquisa para projetos em andamento.

Por ser uma metodologia grupal e participativa no Brasil, a GAM tem sido
desenvolvida a partir de alguns princípios. O primeiro princípio é o da autonomia,
entendida como ampliação de vida no plano comum, que se dá em relação com outras
pessoas e não solitariamente e que permite a construção de relações com as pessoas
e com as drogas, considerando que a produção de saúde no grupo se dá pela sua
normatividade vital, tal como proposta por Canguilhem (1990), como a capacidade
de criar novas normas de vida a partir dos conhecimentos que são ali desenvolvidos
na imanência da vida mesma.
O segundo princípio é o da cogestão, uma gestão distribuída e compartilhada, no
grupo, do grupo, “isto é, constrói-se na experiência GAM a partir da descentralização
da função do moderador” (PASSOS; PALOMBINI; CAMPOS et al., 2013, p. 32). O
intuito da cogestão é produzir espaços onde os papéis são intercambiáveis e o trabalho
dos participantes na condução do processo tem por objetivo experimentar práticas
inovadoras, dialogando com o paradigma da desinstitucionalização (ROTELLI, 2001).
Um outro princípio ainda é o da transversalidade, que consiste na produção de
deslocamentos e transposições que permitem o diálogo entre diferentes pessoas e seus
saberes com a afirmação desejável das diferenças, de modo a superar as hierarquias
584

verticais nos grupos e interações e as horizontalidades que homogeneízam as dife-


renças. Inspiramo-nos em Guattari (2004) para o qual a transversalidade aponta para
a potência de criar e viabilizar meios de desmontar formas e modos tradicionais de
organização grupal balizados pelas concepções de horizontalidade, verticalidade e
hierarquização das relações, apostando na ampliação das relações, fazendo-as passar
por diferentes caminhos, níveis, direções e sentidos que possibilitem a emergência
de novos modos de compor, habitar e ser habitado por grupalidades.
Eis o desafio da contração de grupalidades e coletivos capazes de sustentar
as diferenças, nas suas tensões, problemas e questões necessariamente colocadas,
com a finalidade de desconstruir estigmas e preconceitos. A desinstitucionalização
dos saberes e práticas em relação à loucura e às drogas, borrando as fronteiras que
separam e valoram de modos diferentes as drogas prescritas e proscritas, assim como
as pessoas por seus diagnósticos psiquiátricos.
Outras duas características a observar nas experiências aqui compartilhadas são,
respectivamente, as construções coletivas e singulares e a formação dos participantes.
Primeiro, nas construções coletivas e singulares sustentamos a não existência de metas
pré-determinadas a cumprir, havendo um respeito ao ritmo e as demandas que emer-
gem na grupalidade, de modo que o GUIA ou caderno GAM constitui apenas uma
ferramenta na produção do coletivo e não um fim em si mesmo. Segundo, também
entendemos como norteador a formação permanente dos participantes, sejam eles
usuários, familiares, profissionais de saúde ou pesquisadores – ou seja, a experiência
se constitui como espaço de formação para todas as pessoas que participam do grupo.
Assim, entendemos que a GAM: não é um grupo terapêutico; não se propõe
curar; não tem um terapeuta, mas todos ali são cuidadores, em suas diferentes exper-
tises; não é mais uma ferramenta diagnóstica; não é uma ferramenta de controle
do uso de medicamentos e que favoreceria a “adesão” ao uso de medicamentos
psiquiátricos; não é um grupo para que a rede se desresponsabilize pelo usuário sob
o argumento de que ele vai “caminhar sozinho” (falsa autonomia); não substitui a
rede de cuidado – interfere na rede.

4. Do chão potiguar ao chão pernambucano: aproximações e


enlaçamentos das experiências GAM em dois territórios

4.1 A GAM no território potiguar

No contexto de Natal (RN), a experiência com a GAM ocorreu através de uma


pesquisa-intervenção desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e
outras Drogas (CAPSAD), no ano de 2017. O processo de pesquisa-intervenção foi
possível a partir do Fórum Estadual de Direitos Humanos e Saúde Mental, espaço
composto por diferentes representantes da RAPS, que ocorreu no município e onde
a GAM foi apresentada como proposta de intervenção. Os primeiros diálogos com o
CAPSAD foram iniciados em decorrência deste fórum, onde fomos convidadas por
uma trabalhadora para apresentar a GAM no serviço que reconhecia, no cotidiano
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 585

de trabalho, problemáticas relativas ao uso de substâncias prescritas e proscritas,


principalmente em torno do consumo de medicamentos.
Este encontro de apresentação culminou nas primeiras contratualizações entre o
coletivo de pesquisa (composto por pesquisadoras de pós-graduação e estudantes de
extensão universitária) em 2018. Iniciamos o planejamento da pesquisa-intervenção,
processualmente, com a construção coletiva do cronograma de encontros e discussão
de questões éticas relacionadas à pesquisa e a participação de usuários e trabalhadores.
Realizamos espaços de sensibilização e formação nos quais trabalhávamos conjunta-
mente as potências, problemáticas e desafios vivenciados no cotidiano do serviço em
interface com os princípios de cogestão e autonomia que norteiam a estratégia GAM.
Concordamos que não deveríamos interferir no modo como se daria a compo-
sição grupal (trabalhadores e usuários), mas enfatizamos a importância de considerar
o desejo de participação das pessoas assim como o tempo de acompanhamento no
serviço. Assim, a equipe também poderia construir seus próprios critérios para pensar
a constituição grupal a partir das experiências de acompanhamento. No tocante à
participação dos trabalhadores foi decidido que participariam aqueles com vínculo
efetivo no quadro de trabalhadores.
Empreendemos uma jornada ao longo de dez meses realizando encontros sema-
nais através dos quais produzimos diários de campo e narrativas como um meio de
registro, produção de memória e transmissão do vivido ao longo dos encontros, numa
perspectiva benjaminiana. A leitura das narrativas era feita coletivamente sendo pos-
sível, também coletivamente, modifica-las, repensá-las, problematiza-las e validá-las.
Com as narrativas acessamos analisadores, entendendo-os como elementos
heterogêneos (verbais, discursivos, materiais, dentre outros), tal como aponta Barem-
blit (1992/2002), que evidenciam tensões e conflitos existentes no grupo, assim
como modos de analisá-los e de lidar com aquilo que surgia no grupo. As narrativas,
juntamente com nossos diários de bordo, possibilitaram praticar o exercício de aná-
lise das nossas implicações visto que esta análise põe em questão e “denuncia que
aquilo que a instituição deflagra em nós é sempre efeito de uma produção coletiva,
de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que estão imbricados nessa
relação” (ROMAGNOLI, 2014, p. 47).
Assim, no campo de coerência dos pressupostos teóricos e metodológicos da
pesquisa-intervenção institucionalista e dos princípios e norteadores GAM, apostamos
nos passos e nos ritmos dos encontros, fortalecendo processos de cogestão e auto-
nomia articuladas às singularidades e problemáticas que emergiam ao longo destes
meses. Cabe ressaltar a impossibilidade de demarcar o tempo de uma pesquisa-inter-
venção, visto que, apesar da pesquisa em cada cenário ter ocorrido institucionalmente
ao longo de dez meses, seguimos acompanhando efeitos e relações que seguem, tais
como a articulação de usuários participantes em um coletivo de luta antimanicomial,
participação em eventos acadêmicos e não acadêmicos, entre outros.

4.2 GAM-Garanhuns

A experiência com a GAM em Garanhuns-PE se deu no âmbito da Residência


Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade de Pernambuco (RMSM-UPE),
586

em um CAPSAD. Foi disparada pela inquietação da equipe de residentes diante de


uma problemática ainda recorrente nos serviços substitutivos da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, a saber, a da centralidade das drogas psiquiátricas na composição do tra-
tamento de pessoas em sofrimento psicossocial (ONOCKO-CAMPOS et al., 2013),
especificamente daquelas em processo de uso problemático de drogas.
Desejando mobilizar pensamento através de nossas inquietações, a equipe de
residentes apresentou a estratégia e Guia GAM à equipe técnica do CAPS-AD, através
de um clube de revista. O espaço de diálogos denominado clube de revista se con-
figura como dispositivo de Educação Permanente em Saúde, e compõe o quadro de
atividades promovidos pela RMSM-UPE em todos os campos de atuação. Os temas
levantados no clube devem abordar os desafios vividos no cotidiano de profissionais
residentes, em diálogo com demandas das equipes técnicas, num movimento de
partilha de saberes e construção comum de estratégias para lidar com os impasses
do trabalho no SUS.
Esse potente espaço aconteceu no mês de fevereiro de 2018, no próprio CAP-
SAD. Lá, pudemos perceber que nossas inquietações reverberaram fortemente na
equipe técnica, que pôde dividir suas impressões acerca de um tema bastante deli-
cado, mas ainda pouco explorado em seus engendramentos e efeitos no cotidiano do
cuidado. No mês seguinte, retornamos com a proposta de experimentar a estratégia
através da criação de um grupo GAM no serviço, o que causou certo receio na
equipe técnica. A proposta, apesar de interessante, parecia ousada. Como dialogar
com os usuários sobre o tema da autonomia em relação aos medicamentos? Não
seria isso uma abertura para que fizessem o que bem entendessem, tensionando as
prescrições da equipe?
Esses receios fizeram-nos retomar nas reuniões organizativas do serviço, durante
algumas semanas, o diálogo sobre a estratégia GAM, para melhor conhecer seus
princípios, conceitos e metodologia. Amainadas as preocupações, conseguimos pac-
tuar a implementação do grupo com a coordenação do CAPSAD. Acordamos que
os encontros seriam acompanhados por pelo menos um profissional do serviço, o
que facilitaria o compartilhamento da experiência com o restante da equipe, além
de garantir a continuidade do grupo. O passo seguinte foi a divulgação e discussão
sobre a proposta com os usuários, em espaços grupais formais e demais ambientes
do serviço, como sala de espera, fumódromo e áreas de lazer.
O único critério de participação foi ter o desejo para tanto. Em coletivo, deci-
dimos que o grupo estaria sempre aberto a acolher novos participantes, que teria
em média 1h30min de duração, e que aconteceria sempre às segundas-feiras. Outro
aspecto importante de nosso acordo foi o do nomadismo do grupo, que deveria
acontecer, sempre que o clima permitisse (a região é bastante chuvosa), nas praças
e parques da cidade.
Durante os 6 meses em que esteve ativo (maio a novembro de 2018), nosso
grupo instigou ao menos 20 encontros. Seu movimento extrapolou as fronteiras
formais do serviço e do próprio grupo, ressoando nos corredores, jardins, emanando
em conversas dentro e fora do serviço. Tivemos a composição de diários de campo
como ferramenta de registro para o processo de análise das experiências e questões
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 587

que emergiram durante os encontros, assim como para planejamento, organização e


produção dos relatórios necessários ao programa de residência.
Os desafios e invenções possíveis se deram em três instâncias: na construção
do GAM como dispositivo grupal no sentido clínico e político; como estratégia de
cuidado propriamente dito e como ferramenta que pode incluir a redução de danos
como horizonte ético.

5. Entre fios, novelos e nós: a emergência de dispositivos grupais

A ideia de dispositivo grupal assume um lugar importante para nós. Não toma-
mos a noção de indivíduo, numa perspectiva individualista e privada das práticas
sociais, como pivô da definição de uma estrutura grupal que marca dicotomias como
indivíduo-sociedade, grupo-sociedade (BARROS, 1994) mas tomamos como cami-
nho o reconhecimento e visibilização dos processos de subjetivação em constante
movimento dentro de uma composição de grupalidade (BARROS, 1994) e que se
constitui como um dispositivo.
Partimos da concepção de dispositivo como algo que se assemelha a um novelo
composto por conjuntos multilineares, linhas heterogêneas, processos em constante
desequilíbrio e variações nos quais os enunciados, as práticas, as pessoas (dentre
outros elementos de diferentes naturezas) são como vetores que engendram dife-
rentes direções, sentidos, movimentos e forças (DELEUZE, 1996). Na perspectiva
institucionalista que assumimos, nos preocupamos com a análise das linhas que o
compõe, dos planos de forças que ali se apresentam como condição não apenas de
produção de conhecimento, mas, sobretudo, de transformações sociais que se desdo-
bram no campo e no processo da pesquisa-intervenção, com ênfase nos movimentos
micropolíticos que se produzem a partir do funcionamento grupal.
Em ambas as experiências de pesquisa e trabalho com a GAM, vimos que o
dispositivo é fortemente atravessado: seja pela verticalidade da hierarquia institucio-
nal, que tende a uniformizar condutas a partir de modelos estabelecidos como, por
exemplo, o Guia GAM ser tomado como instrumento padronizado de facilitação e
ou pedagogia dos grupos; seja pela horizontalidade, que tende a homogeneizar os
pontos de vista pelos traços de identidade, por exemplo, a homogeneidade de um
grupo de usuários de álcool e outras drogas.
Ao mesmo tempo, tais uniformizações e verticalizações, na medida em que se
evidenciam através dos encontros, produziam também desestabilizações nas quais o
plano de transversalidade está sempre sob tensão: não há respostas finais, nem como
se acomodar em estereótipos. Entre os estereótipos mais frequentes estão: o lugar
de “dependente”, seja da droga, seja do medicamento ou do tratamento; a “recaída”
como fraqueza pessoal e falha moral; o uso de substância como “fuga da realidade”;
a condição de adição como “doença” que define as pessoas como “adictas”; cul-
pabilização dos usuários como responsáveis pela relação sempre entendida como
“danosa” com as drogas e não como saída subjetiva que eles encontram para viver.
A afirmação das experiências singulares de cada participante permitia ope-
rar questionamentos acerca dos lugares estereótipos acima citados, colocando em
588

evidência a multiplicidade de olhares, de vivências, de modos de vida, de consumo


de drogas (prescritas e proscritas) e de cuidados relacionados aos usos que não se
encaixam em quadros pré-moldados por práticas e discursos homogeneizantes, tota-
lizantes e hegemônicos no campo das drogas.
Um exemplo disso é a problematização da concepção de que o consumo de
uma substância prescrita é segura e essencialmente terapêutico enquanto o consumo
de substâncias proscritas produz apenas danos e malefícios – visto que, modos de
consumo e efeitos prejudiciais ou terapêuticos eram evidenciados com substâncias
prescritas ou proscritas produzindo constantemente borragens nestas categorizações
(FERREIRA et al., 2021).
No entanto, é importante ressaltar que a emergência da multiplicidade não
ocorre sem que também existam crises e rupturas no próprio percurso da experiência
com o dispositivo grupal, uma vez que podemos afirmar que são as próprias ruptu-
ras que marcam a produção coletiva capaz de produzir movimentos de afirmação
das diferenças.
Isso requer também uma disposição a acolher os incômodos que o próprio
dispositivo pode vir a instaurar e que atravessam a experiência grupal elucidando as
instituições que ali se presentifica. De acordo com Baremblit (1992), as instituições
são sistemas lógicas que definem, classificam, instauram, prescrevem ou proscre-
vem modos de ser e se comportar, valores, costumes e diversos outros elementos
que funcionam na sustentação de uma lógica de regulação e normatização da vida.
Tais instituições que nos atravessam se evidenciam na medida em que a expe-
riência grupal se dispõe a identificar analisadores que possibilitam a análise também
de sua própria composição e funcionamento, tal como ocorreu quando começamos a
nos perguntar sobre a ausência de algumas pessoas em nossos encontros:

Nas universidades a metodologia de horário de uma aula é de quarenta e cinco


minutos, duas aulas são 90 minutos, a do GAM está sendo quase duas horas. Por-
que ninguém muda de metodologia, assim do dia pra noite, como o GAM entrou
e mudou a metodologia de horário do CAPS (Fala de um usuário do serviço,
participante do grupo GAM em Natal-RN).

Tal colocação fez com que emergisse diversos tensionamentos que corrobora-
ram para uma análise dos lugares de saber e poder, destacando diferentes posições
institucionais entre trabalhadores, usuários e pesquisadores na medida em que reco-
nhecemos desvios dos modelos e regularidades de funcionamento das instituições,
marcando uma diferença relativa ao habitual modus operandi destas instituições em
nossos cotidianos (FERREIRA; FEITOSA; AMORIM, 2020). Por vezes, marcavam
que “nos grupos terapêuticos tem pessoas que eu nunca ouvi a voz!” (usuário partici-
pante se referindo a um dos grupos terapêuticos de que participa no CAPS) enquanto
se afirmava a circularidade das falas e o compartilhamento de experiências dentro do
grupo GAM num movimento de autoanálise do próprio espaço grupal.
Seguimos nosso percurso constantemente nos direcionando ao campo de análise
de nossas implicações, uma vez que “ao colocarmos em xeque os lugares instituídos
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 589

de saber/poder que ocupamos em muitos momentos de forma natural e a histórica


estamos afirmando nossa implicação política” (COIMBRA, 2008, p. 147). Neste
sentido, consideramos que as supervisões realizadas foram também um dispositivo
para análise de implicações (COIMBRA, 1989; SEVERO; L’ABBATE; CAMPOS,
2015), como um espaço também coletivo permitia colocar em questão e analisar, em
múltiplas perspectivas, o caminhar da pesquisa e os efeitos produzidos ao longo do
processo – em diferentes níveis como institucionais, organizativos, afetivos, inten-
sivos, entre outros.

6. A GAM como estratégia de cuidado no cenário de álcool e


outras drogas

No cenário de álcool e outras drogas – e, em específico, nos contextos de


CAPSAD – o dispositivo GAM permite evidenciar a problemática das pres-
crições excessivas e do consumo acrítico de medicamentos psicotrópicos com
ainda mais complexidade diante do uso simultâneo de múltiplas substâncias
(prescritas, ilícitas e lícitas).
Sabe-se que tais composições agravam possíveis riscos à saúde e denotam
desafios e fragilidades ainda existentes na atenção e na produção de cuidado às pes-
soas que consomem diferentes drogas e/ou fazem consumo simultâneo de múltiplas
drogas – contexto este no qual a GAM possibilita novos modos de reconhecer e
acessar desafios e dificuldades vivenciados por trabalhadores e usuários – desafios
e dificuldades que muitas vezes habitam apenas os corredores, o plano no que não
é dito, do que não é falado e posto em diálogo e análise seja pela naturalização
de uma separação do que seriam problemas pertinentes apenas aos usuários ou
apenas aos trabalhadores.
No entanto, se uma disposição ao reconhecimento e análise coletiva dos obs-
táculos era produzida, também se produzia uma disposição grupal para encontrar
as saídas ou os “manejos” possíveis para tais problemas na imanência de um fun-
cionamento cogestivo e na aposta da autonomia que se produzia em cada um e na
grupalidade, processualmente. É preciso ressaltar que processos cogestivos e autô-
nomos são produzidos processualmente e não estão dados de antemão, portanto, é
preciso tempo e espaço para que cogestão e autonomia floresçam, principalmente
em contextos muito institucionalizados.
Além disso, a prática cogestiva possibilitava um protagonismo dos usuários no
compartilhamento do cuidado e das experiências com drogas que se aproxima dos
grupos de ajuda e suporte mútuo, que se constituem como espaços de acolhimento,
construção de redes e vínculos, troca de informações e/ou estratégias de cuidado e
busca por transformações sociais e políticas (VASCONCELOS et al., 2013).
A dinâmica distributiva de protagonismo na condução do grupo (circulação das
funções), por exemplo, aumenta a potência do grupo e amplia fronteiras da prática de
apoio entre usuários e profissionais, sobretudo quando profissionais de saúde também
se reconhecem como pessoas que consomem drogas. Isso porque o “alargamento”
da concepção de drogas, que a experiência com a GAM produz, dilui as fronteiras
590

entre drogas prescritas e proscritas (lícitas ou ilícitas) possibilitando a emergência


de um plano comum. Neste plano comum se agenciam diferentes experiências (de
trabalhadores, usuários, pesquisadores etc.) tornando possível a tessitura de redes de
apoio e cuidado, partindo do entendimento que todos nós somos pessoas que conso-
mem drogas – de diferentes modos, com diferentes sentidos e por diferentes razões.

Drogas né? No caso porque o que a gente entende por droga seria o quê? A droga
ilícita. Na verdade, né? Porque existem drogas lícitas também, né? Medicamento
é droga também. É tanto que, assim, quando fala “drogaria”, não sei se vocês já
perceberam, “Drogaria”, “Drogaria Globo”, “Drogaria Pague Menos” ... De onde
será que vem esse nome? Drogaria! (Fala de um usuário do serviço participante
do grupo GAM em Natal-RN).

O reconhecimento do consumo de drogas por todos e a reciprocidade circular


favorecia a lateralidade, a contração da grupalidade como movimento de reconheci-
mento e pertença (SERRANO-MIGUEL; SILVEIRA; PALOMBINI, 2016), a inten-
sificação da comunicação entre diferenças e, com isso, favorecia que experiências
vividas como contraditórias e polarizadas emergissem no grupo.
Porém, em diversos momentos podemos nos deparar com uma certa resistência
das equipes para abrir esse diálogo com os usuários – “o usuário precisa do remédio
por motivo de saúde e não podia ficar sem”- que pôde ser progressivamente descons-
truída. A própria experiência nesta rede de implicação afetava também as condutas e
os atos de cuidado no dia a dia do trabalho e as práticas clínicas dos médicos e outros
profissionais participantes da GAM, deslocando os pontos de vista (e de escuta)
daqueles trabalhadores. Podemos dizer que um campo de forças de subjetivação
em que estava implicada, não somente a autonomia dos usuários, mas também, e
conjuntamente, a autonomia dos trabalhadores e acadêmicos.
As forças conservadoras dos constrangimentos, ou de produção de assujei-
tamento, estavam sempre ativas, envolvendo a conservação de identidades, ou de
posições estabilizadas em nós mesmos; uma relação de força consigo, com os nossos
próprios modos de ver e dizer, pensar e re-agir. Desse modo, a sustentação do campo
comunicacional e de criação de estratégias de cuidado nesse cenário requeria lidar
com essas forças que conservavam os constrangimentos e restringiam movimentos
de dessubjetivação.
Assim, uma dimensão afetiva, ou uma afetabilidade, envolvia os participantes
naqueles encontros, promovendo conectividade afetiva sensível às experiências de
cada um e às diferenças. Esta dimensão afetiva também favorece a produção de
movimentos de autonomia numa perspectiva que difere de um estado que se alcança
individualmente, como algo estático. A autonomia na GAM é vivida como um exer-
cício coletivo que também se produz a partir dos afetos produzidos em redes atentas
aos infinitos horizontes de possibilidades de ações em favor da vida. Como sublinham
Deleuze e Guattari (1995/2011), ampliar a própria experiência da vida no plano da
multiplicidade, das forças, das conexões e agenciamentos num plano de criação de
práticas de resistência aos processos de individualização e culpabilização.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 591

Faz-se importante salientar que o convite à GAM requer um diálogo, uma


abertura não habitual à experiência do usuário versus a forma habitual das equipes
chamarem usuários para participarem das ofertas tradicionais dos serviços.

7. A redução de danos como horizonte ético

No tocante à GAM em contextos de serviços de saúde mental voltados à aten-


ção e cuidado de pessoas com problemas atrelados ao consumo de álcool e outras
drogas, uma das principais problemáticas encontradas é a centralidade de prescrições
de medicamentos psiquiátricos como estratégia privilegiada de tratamento. A oferta
excessiva de prescrições nesse contexto se torna uma questão delicada, visto que
não raro há o consumo simultâneo de múltiplas drogas, prescritas e proscritas, o que
pode gerar experiências desagradáveis.
Sustentando-se a partir de outros modos de relação entre profissionais e usuários,
a GAM privilegia “a horizontalidade entre os participantes, a acolhida dos modos
de vida [...], a perspectiva de afirmação de direitos e cidadania” (FERREIRA et al.,
2021, p. 43). Com isso, é possível enfraquecer o crivo dos especialismos terapêuti-
co-medicalizantes, que muitas vezes congestionam as possibilidades de diálogos nas
durezas que se produzem entre hierarquias e subalternidades.
Em contextos onde o limiar de comunicação entre equipes e usuários é baixo, a
GAM se torna espaço regenerante, pela ampliação da oferta e troca de informações
preciosas sobre as principais drogas prescritas nos serviços (Onocko-Campos et al.,
2012). O acesso a tais informações, atreladas às trocas sobre as experiências pessoais,
pode auxiliar usuários na gestão de seus modos de uso e cuidado. Ao mesmo passo,
amplia-se a possibilidade da própria equipe estar a par dos saberes gerados nessas
partilhas. Desse modo, a GAM aproxima não só usuários, mas também profissionais
na/da construção do cuidado, como pontua Andreza dos Santos (2019).
Colocar em estado de troca diferentes movimentos e experiências é bom para
ultrapassar a perspectiva que enquadra os usos de múltiplas drogas e suas correlações
unicamente à noção de problema. As relações com elas ali apontaram aspectos sem
dúvida problemáticos, mas não apenas, portando igualmente curiosidades, vontades
de investigar limites, de amenizar tormentos, ou mesmo de sentir prazer e gozo. O
“esfumaçamento” do olhar sobre as drogas na GAM certamente auxilia na missão
de pôr em questão a homogeneização das experiências e a abstinência enquanto
meta privilegiada de tratamento, sem deixar de afirmar a necessidade de se fazer
cuidadoso consigo e com os outros.
Amparada na aposta ética da Redução de Danos, a GAM enseja a potenciali-
zação da vida pela produção de modos singulares de cuidado (LANCETTI, 2014;
FERREIRA et al., 2021). A apreciação coletiva a partir de perspectiva não binarista e
essencialista, mas de disposição acolhedora às densidades e controvérsias de trajetó-
rias singulares, possibilitou colocar para jogo tanto os medos, receios e preocupações,
quanto às potencialidades encontradas nos processos de investigação das interações
e experimentações, reverberando a diversidade de efeitos, intencionalidades e parti-
cularidades de cada um na gestão dos usos de drogas.
592

Em Garanhuns, o fato de o grupo ser volante, nômade, permitiu-nos estar à


vontade para falar, e inclusive usar drogas durante as caminhadas conversantes.
Houveram encontros onde usamos tabaco, tíner, maconha para além, obviamente, dos
medicamentos. Sentir segurança e confiança nesse espaço ampliou a possibilidade
de participação e permanência de alguns usuários que àquele momento estavam com
vontade mais intensa de suas drogas proscritas, lícitas e ilícitas.
Esses usos, acontecendo em movimento e dentro de um coletivo acolhedor,
naturalmente se fizeram mais cuidadosos e alegres. Além de permitir-nos trocar e
experimentar estratégias de cuidado e até de economia, como por exemplo: colocar
bucha de algodão limpa no fundo da garrafa do tíner faz as doses renderem mais;
misturar ervas como alecrim, camomila, erva-doce ao tabaco pode ter efeitos de
diminuição da vontade incessante de fumar, entre outras estratégias.
A questão econômica apareceu de maneira interessante, enredada à não rara
falta de medicamentos na farmácia do serviço. Numa dessas ocasiões de escassez
medicamentosa, alguns de nós passamos a associar o termo “abstinência” aos medi-
camentos. Tratava-se da interrupção não desejada de substâncias importantes, que
vinham acompanhadas de efeitos colaterais indesejados e tensões. Então, diante
da seguinte pergunta, “como lidar com a abstinência de medicamentos?”, um dos
nossos respondeu indignado: “eu vou ser obrigado a comprar maconha!”, e segue
afirmando que fumar nessas condições tem seus efeitos indesejados, como sonolência
e humor melancólico no dia seguinte, mas que “segura a barra” (Falas de usuário
CAPS-AD Garanhuns-PE).
Já para outro participante dessa conversa, a principal questão em fumar maconha
quando os medicamentos acabam não é o dia seguinte, nem tampouco o sentimento
de culpa atrelado à “recaída”, mas a questão financeira. Segundo ele, uma “dóla”
de maconha custa R$ 10,00, e rende apenas 3 noites. Enquanto os medicamentos
para dormir são gratuitos, acessados no próprio serviço e geralmente entregues para
uma semana de uso. Além do mais, andar com medicamentos por aí não provocava
“embaço” em caso de baculejo policial.
Nesse sentido, também foram surgindo estratégias para lidar com os aspectos
negativos ou não desejados dos usos de drogas, das prescritas inclusive:

G. afirmou que se sente muito sonolento quando faz uso do Diazepam, o que
atrapalha sua vida laboral. Desenvolveu uma estratégia para lidar com isso. Relata
que quando aparece um trabalho, o que não tem acontecido com muita frequên-
cia, evita tomar o medicamento, pois não consegue dar conta de sua função de
cozinheiro quando está sonolento. Retoma o uso quando não está trabalhando
(Diário de Campo GAM Garanhuns-PE)
Para lidar com a insônia de quando acaba o medicamento, surgiram propostas
fitoterápicas com diversos chás, como capim santo, camomila, mulungu e suco
de maracujá (Diário de Campo GAM Garanhuns-PE).

Assim como as drogas lícitas e ilícitas podem ou não “bater bem com a
gente”, haviam também os “medicamentos que batem com a gente e outros
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 593

medicamentos que não batem!” (Fala de um usuário no CAPSAD, Natal-RN).


Cada pessoa tinha algo a compartilhar, algo a aprender, mas, principalmente, a
ensinar sobre o consumo de drogas.
A GAM permitiu legitimar coletivamente as experiências trazidas para o espaço
grupal, ou seja, não apenas no âmbito individualizado e na relação de trabalhadores
com as pessoas atendidas no serviço de modo individual e pontual, mas sobretudo,
favorecendo a produção de cuidado a partir do encontro entre diferentes saberes no
âmbito coletivo – entre vários trabalhadores e várias pessoas atendidas no serviço.
Um âmbito coletivo que considera, sobretudo, a autonomia, os desejos e os sabe-
res das pessoas sobre o próprio corpo e sobre os efeitos das substâncias prescritas,
proscritas, lícitas ou ilícitas na construção de um cuidado compartilhado e coerente
com as demandas que surgem, reconhecendo as potencialidades e fragilidades das
estratégias a partir dos desejos e projetos de vidas em apreciação, permitindo perceber
que as narrativas de interrupção/abstinência dos usos não precisam ser as únicas.
A experiência com esses coletivos nos mostra a riqueza de trabalhar a GAM
a partir da flecha ética da Redução de Danos, numa perspectiva ampliada ao uso
de drogas prescritas, em relações de interação ou não com outros tipos de drogas.
Entendida como ética do cuidado, a Redução de Danos na GAM se afirma como
incitadora de autonomia em coletivos, valorizando e pondo em diálogo diferentes
saberes, desejos e expectativas. Desse modo, reverbera ao infinito a defesa do direito
ao cuidado integral, respeitoso à autodeterminação das pessoas que usam drogas em
suas singularidades, e a afirmação da vida e da amizade, contra toda solidão.
A sensação de “trocar uma droga por outra” (Fala de um trabalhador do CAP-
SAD – Natal/RN em relação ao medicamento substituindo outras drogas) sentida
pelos trabalhadores passa a ser colocada como elemento de análise dentro do próprio
dispositivo grupal, como elemento que põe em cena as diversas composições de dro-
gas, os modos de consumo e seus efeitos na vida e no cotidiano de cada participante.
Os efeitos prejudiciais ou terapêuticos de uma determinada droga/substância,
cada vez mais, eram analisados no grupo através de narrativas que não correspondiam
aos típicos crivos essencialistas que atrelam drogas lícitas/prescritas às ideias de
segurança e saúde, ou drogas proscritas/ilícitas às ideias de doença e danos. Haviam
relatos de experimentações e aprendizados singulares que apontavam inclusive, em
alguns casos, maior eficácia de usos proscritos/ilícitos, a depender do efeito procurado
e da relação que se estabelece com a droga.
A partir desse questionamento, fomos percebendo que vários dos objetivos
buscados no uso de drogas como álcool, maconha ou tíner foram, no tratamento, des-
locados para as drogas psiquiátricas. Efeitos como relaxamento, sono ou tranquilidade
são buscados no uso de maconha ou ansiolíticos, por exemplo. Efeitos estimulantes
também encontram paralelos entre usos prescritos e proscritos, por exemplo, que
“tomar Haldol deixa a pessoa babando feito gado comendo palma”, ou que o Clo-
nazepam “dá uma lombra muito doido, parece que a pessoa tá flutuando na barca
de noé” (Falas de usuários CAPSAD, Garanhuns-PE). Em muitos casos o consumo
de maconha, por exemplo, era utilizado de modo terapêutico (seja para insônia, falta
de apetite, ansiedade, etc.) e o consumo de alguns medicamentos psiquiátricos eram
utilizados de modo recreativo ou “viajoso”.
594

Os compartilhamentos de experiências com drogas dentro do grupo GAM, pro-


cessualmente, produziam borragens entre drogas prescritas, lícitas e ou ilícitas. Ficava
evidente como cada pessoa já tinha também construído uma gestão do consumo de
múltiplas substâncias visto que longos eram também os anos e as experiências com
o consumo de drogas.
A partir do compartilhamento das experiências por cada um e entre todos, foi
possível reconhecer a multiplicidade e a singularização inerente à própria prática de
consumo de drogas (sejam prescritas ou proscritas). Cabe ressaltar que as borragens
entre drogas prescritas e proscritas que foram inerentes ao percurso do grupo GAM
a partir da afirmação da multiplicidade existente nos diferentes modos, efeitos e
gestão de consumo. Essas borragens tem nos permitindo ampliar também modos de
produzir redução de danos considerando o uso não apenas de drogas lícitas e ilícitas
mas também de drogas psiquiátricas, a partir do paradigma ético-estético-político na
direção que Lancetti (2006) nos ensina: a redução de danos como ampliação da vida.

8. Para concluir

Por fim, muitos são os desafios pela frente, sobretudo quando consideramos a
perspectiva da integralidade da atenção em saúde mental e a necessidade de sustentar
horizontes clínico-políticos em tudo que fazemos. Nesse sentido, parece-nos impor-
tante considerar a necessidade de pensar essa estratégia com diferentes públicos, de
diferentes idades e condições clínicas e sociais. Como seria valioso a experiência com
adolescentes e jovens? Como seria uma GAM que pautasse de modo mais explícito
as questões de gênero relativas ao uso de drogas e medicamentos (não parece ser a
toa que na APS o GAM foi exclusivamente de mulheres e no CAPS AD foi majori-
tariamente de homens).
Além disso, temos aí uma perspectiva de pensar a gestão autônoma das várias
drogas e não apenas das drogas psiquiátricas nos diferentes contextos de cuidado,
incluindo aqueles que não estão circunscritos aos serviços de saúde. Como pensar
essa estratégia nos contextos dos movimentos e coletivos de pessoas que usam dro-
gas? É necessário, então, ampliar o foco de discussão do medicamento para o uso de
substâncias e para a ampliação do prazer e dos projetos de vida.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 595

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psicólogas em serviços especializados
Melissa Dias dos Santos
Alice Oliveira Silva dos Santos
Verena Souza Souto
Marilda Castelar

Introdução

A violência contra a mulher é um fenômeno social, complexo e multifatorial


presente no mundo todo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a
violência contra a mulher como um problema de saúde pública, pois expressa assas-
sinatos, suicídios, danos psicológicos, entre outras questões que põem em risco a
vida da mulher em diversos espaços na sua vida social, que inclui a saúde e diversos
outros recortes (OMS, 1990).
Conforme o Atlas da Violência 2021, o índice de feminicídio no Brasil, entre
1989 e 2019 foi de 113.445 mulheres mortas. Efetivamente, esse número aumentou
de 2.344 mulheres em 1989, para 3.737 em 2019, 59,5% a mais (CERQUEIRA et al.,
2021), tendo em vista que esses números são muito maiores do que as estatísticas
mostram, diante da quantidade de casos que são invisibilizados.
Entretanto, ainda é evidente a carência bibliográfica de estudos da psicologia
nesse âmbito. E é diante dessa conjuntura que a psicologia precisa se implicar e
problematizar a sua atuação profissional, identificando aspectos fundamentais, sendo
de extrema relevância para o compromisso social que a profissão assume na garantia
dos direitos humanos (CRP, 2013).
O presente texto buscou conhecer a existência de práticas e dispositivos uti-
lizados pelas/os profissionais de psicologia no enfrentamento da violência con-
tra as mulheres, com a expectativa de que este se torne um possível material
de referência para atuação desta categoria. As entrevistas foram realizadas com
psicólogas/os e analisadas para identificar aspectos relevantes de suas práticas,
como técnicas, instrumentos, processos de trabalhos desenvolvidos no âmbito da
psicologia para solução de questões relacionadas ao enfrentamento às violências
vividas pelas mulheres.

A violência contra a mulher

A violência contra a mulher pode ser definida como qualquer ato de violência de
gênero que resulte em algum sofrimento para a mulher ou possa gerar consequências
físicas, sexuais, psicológicas e morais, inclusive ameaças de tais atos, coerção ou
600

privação arbitrária da liberdade e violência patrimonial, quer ocorra em público ou


na vida privada (ONU, 1993).
Nesse contexto, podemos observar que muitas particularidades permeiam a
vida dessas mulheres dando a violência sofrida diferentes formas e magnitudes
que perpassam pela etnia, classe, cor, instrução, geração, que não as livra de sofrer
violência em qualquer momento de suas vidas (PORTO; MALUSCHKE, 2014;
SANTIAGO; COELHO, 2011).
Portanto, para compreender esse fenômeno social é fundamental abordar um
conceito que está subjacente a essa temática, esse é o conceito de patriarcado, que
é bastante utilizado para auxiliar na compreensão da violência contra a mulher
como consequência de uma estrutura social machista que subjuga as mulheres à
dominação dos homens e que ocorre, inclusive em espaços públicos, sobretudo
quando as mulheres se colocam contra um padrão submisso bem estabelecido para
elas (CFP, 2013; SAFFIOTI, 2004).
Por conseguinte, o patriarcado contamina toda sociedade, perpassando não
apenas a sociedade civil, mas alcançando também o Estado. Caso o problema da
subjugação do homem sobre a mulher não seja nomeado, o patriarcado poderá ser
jogado na obscuridade (SAFFIOTI, 2004). Efetivamente, a referida autora sinalizou
a importância da referência a esse conceito, pois abandoná-lo significaria a perda de
uma importante construção histórica e política.
Assim, essa pesquisa terá como referência o conceito de patriarcado, que em
sua ideologia busca naturalizar a dominação – exploração masculina – que invade
todos os espaços da sociedade e que por sua vez reflete no Estado, na dificuldade
de efetivação da política pública e na atuação de profissionais de psicologia nesse
contexto (SAFFIOTI, 2004).

Movimento de mulheres e políticas públicas

Para contrapor o patriarcado, o movimento social de mulheres vem atuando


na construção e efetivação de políticas públicas. Nesse sentido, cabe inicialmente
pontuar que os movimentos sociais têm como características, ações coletivas, estru-
turadas, não-institucionais, marcadas pelo conflito, com estratégias comuns, que são
os elementos de ordem política, além dos valores compartilhados, sentimento de
injustiça e conjunto de crenças coletivas que correspondem aos aspectos de ordem
psicológica, que em conjunto, articulam-se para intervir em conflitos e modificar o
cenário social (CORRÊA; ALMEIDA, 2012).
Em paralelo aos movimentos sociais, as políticas públicas são projetos e ações
criadas pelo estado para atender a determinadas demandas do meio social (OLI-
VEIRA; CAVALCANTI, 2007). Geralmente são criadas mediante pressão dos movi-
mentos sociais, para atender uma necessidade específica de um grupo ou população
excluídos ou incluídos de maneira perversa, ou seja, incluindo pela metade, sem
proporcionar um ambiente favorável ou estrutura adequada para se vivenciar o
direito materializado (SAWAIA, 2014).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 601

No Brasil, o movimento feminista fomentou avanços históricos contra a violên-


cia vivenciada pelas mulheres, dentre esses avanços é possível destacar em 1985 o
surgimento da primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher – DEAM
em São Paulo e em seguida o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).
Nas décadas seguintes, novos progressos na área de assistência social surgem para
agregar esforços às primeiras iniciativas, dentre elas, a elaboração da Convenção
de Belém do Pará (1994), para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as
Mulheres (BANDEIRA, 2009; CAMPOS, 2015).
O movimento feminista articulado e mobilizado cobrava mais do retorno do
Estado em relação à necessidade evidente de efetivos elementos no combate à vio-
lência contra a mulher. Frente a essa movimentação, o estado brasileiro atendeu à
reivindicação da luta feminista e dos movimentos das mulheres, criando a Secretaria
Especial de Políticas para Mulheres, em 2003, dando um importante passo na conso-
lidação da democracia. Além disso, esteve presente na elaboração da nova legislação
destinada a promover a criação de novos serviços, como o Centro de Referência de
Atendimento às Mulheres, as Defensorias da Mulher, os Serviços de Responsabiliza-
ção e Educação do Agressor e as Promotorias Especializadas (BANDEIRA, 2009).
Todas essas conquistas foram consideradas relevantes para o movimento de mulheres.
Mas, era necessário algo mais orientador no sentido do marco legal. Uma legislação
específica, que servisse como delineador das ações no âmbito do enfrentamento à
violência, e que proporcionasse novos avanços.
Nessa linha, a densa mobilização nacional das mulheres conseguiu pressio-
nar o Estado brasileiro, levando-o a aprovar, em 2006, a Lei nº 11.340, conhecida
como Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher e dispõe eliminar todas as formas de discriminação
contra as mulheres a fim de prevenir, punir e erradicar as formas de manifestação
dessas violências. No contexto da lei, são classificados os tipos de violência, a
saber: violência física, como sendo qualquer ação que utilize a força física ou
algum tipo de arma para provocar lesões externas e/ou internas; violência sexual,
tentativas ou relações sexuais sob coação ou fisicamente forçadas, e/ou qualquer
ação que vise coibir os direitos sexuais e reprodutivos da mulher; violência psicoló-
gica, qualquer ação que cause danos emocionais e diminuição da autoestima como
ameaças, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição,
chantagem, exploração, dentre outros; violência moral, qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria; e violência patrimonial, que se caracte-
riza por qualquer conduta que cause destruição de objetos pessoais, bens, valores,
direitos ou recursos econômicos e que prejudiquem a sobrevivência da família
(BRASIL, 2006) A Lei Maria da Penha pode, portanto, ser considerada um marco
histórico, visto que reconheceu a violência contra as mulheres como uma violação
dos direitos humanos e instituiu medidas para sua proteção, punição, assistência e
a possibilidade de reeducação dos agressores (MORENO, 2012).
Pode-se identificar alguns avanços alcançados, com a criação da Secretaria de
Políticas para as Mulheres (2003), houve o fortalecimento das políticas públicas de
enfrentamento à violência contra as mulheres por meio da elaboração de conceitos,
diretrizes, normas; e da definição de ações e estratégias de gestão e monitoramento
602

relativos à temática. Isso contribuiu para a elaboração e formatação da Política Nacio-


nal de Enfrentamento à violência contra as mulheres, que possui quatro eixos prin-
cipais: a prevenção, constituída de ações educativas e culturais que desconstruam
padrões sexistas; o combate, com ações punitivas e o cumprimento da Lei; a garantia
de direitos, com iniciativas para o empoderamento das mulheres e efetivação da legis-
lação nacional e internacional e a assistência, através da capacitação dos profissionais
e fortalecimento da rede. É importante salientar que é fundamental o monitoramento
dessas ações para que tais eixos sejam efetivados (BRASIL, 2011). Entende-se que
pesquisas como esta podem contribuir para reflexão sobre a prática da psicologia.
Para que esta política seja efetiva é necessária uma rede de suporte tendo em
vista reduzir o isolamento e a falta de diálogo entre os serviços existentes. A rede de
enfrentamento é composta por diversos equipamentos públicos no campo jurídico,
na assistência social e de saúde que podem auxiliar/atender mulheres em situação de
violência a exemplo do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e o Centro
de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Além disso, existe uma
rede que visa uma melhor qualidade no atendimento, encaminhamento adequado para
essas mulheres e o desenvolvimento de estratégias de prevenção (BRASIL, 2011)
Essa rede é constituída por equipamentos específicos para essa finalidade
como: Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos de Atendimento à
Mulher, Casas-Abrigo, Casas de Acolhimento Provisório, Delegacias Especializadas
de Atendimento à Mulher (DEAMs), Núcleos ou Postos de Atendimento à Mulher
nas Delegacias Comuns, Polícia Civil e Militar, Instituto Médico Legal, Defensorias
da Mulher, Juizados de Violência Doméstica e Familiar, Central de Atendimento à
Mulher – Ligue 180, Ouvidorias, Ouvidoria da Mulher da Secretaria de Políticas para
as Mulheres, Serviços de Saúde voltados para o atendimento dos casos de violência
sexual e doméstica, Posto de Atendimento Humanizado nos Aeroportos e Núcleo da
Mulher da Casa do Migrante (BRASIL, 2011; CAMPOS, 2015).
Tais equipamentos surgiram a partir das diretrizes pautadas pelo movimento
de mulheres ao longo de décadas de luta. Portanto, não se pode desconsiderar esses
avanços, bem como importantes ações, projetos, leis e instrumentos que existem no
sentido de materializá-los. Entretanto, diante dos dados e da realidade apontada no
Atlas da Violência, é válido frisar que somente a implementação de políticas públicas
direcionadas à segurança e proteção dessas mulheres é insuficiente. Sendo de extrema
urgência também, a efetivação de ações educativas e conscientizadoras tanto para as
usuárias quanto para as/os profissionais (OLIVEIRA; CAVALCANTI, 2007).
No que se refere às ações educativas, especialmente aos estereótipos dos papéis
masculino e feminino, é preciso atentar que deve ser uma temática que alcance as
diversas camadas da sociedade, assim homens e mulheres devem ser incluídas/os
nos debates e espaços de diálogo (MORENO, 2012).

Psicologia e sua prática

Para operacionalização de ações da rede é fundamental a atuação de agen-


tes públicas, servidoras/es, voluntárias/os ou diversas/os atrizes/atores sociais que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 603

trabalham e contribuem no sentido de combater a violência. A psicologia já está


inserida nesse campo, tendo em vista o impacto da violência na vida dessas mulheres,
mas existe uma prática sendo desenvolvida que não está sendo estudada, uma atuação
que vai de encontro à uma formação tradicional. Nessa linha, destaca-se o papel da/
do psicóloga/o, que compõe as equipes multidisciplinares da rede, na compreensão de
que o atendimento é em atenção a vários aspectos, principalmente no fortalecimento
da autonomia das mulheres (CFP, 2013).
É necessário levar em conta o contexto de vulnerabilidade social em que estão
inseridas, sendo atravessadas por gravidez, casamento precoce e/ou indesejado,
falta de renda e submissão tanto emocional quanto financeira aos agressores.
Nesse sentido, um dos principais processos de trabalho encontrado em pratica-
mente todos os serviços especializados é o acolhimento, uma escuta qualificada
que possibilita uma intervenção ou encaminhamentos diversos para outros equi-
pamentos e profissionais. O modo como esse acolhimento é feito, vai indicar a
permanência dessa mulher no serviço, por isso é essencial que a/o psicóloga/o
tenha a sensibilidade de compreender que é difícil para a mulher falar da violência
sofrida, ela pode ter dificuldade em confiar nas pessoas e precisa ser escutada sem
julgamentos (CFP, 2013).
Nesse sentido, existem algumas práticas sendo desenvolvidas, na medida em
que, profissionais criam novas oportunidades de compreensão e intervenção no seu
trabalho, além de transformar sua prática teórica e política, por vezes questionando
suas funções e reconstruindo-as (BARROS et al. 2007). Portanto, essa pesquisa
irá analisar o que está sendo feito na atuação das/os psicólogas/os, no sentido de
pensar a violência contra as mulheres numa perspectiva ampla, considerando os
direitos humanos, fugindo de uma lógica individualizante e patologizante, o que
embasa o compromisso ético-político da profissão.

Método

O presente estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório


descritiva que aponta questões singulares e abrange uma realidade que não pode
ser quantificada (MINAYO, 2009).
Este trabalho fez parte do Grupo de Pesquisa: Psicologia, Diversidade
e Saúde da Linha de Pesquisa: Memória, Cultura e Subjetividade e do projeto
mais amplo sobre “Atuação de profissionais de saúde nas políticas públicas para
as mulheres” aprovado pelo Comitê de Ética em 26 de janeiro de 2017, CAAE
60401816.6.0000.5544, parecer 1.899.009. Foram realizadas seis entrevistas com
psicólogas/os que atuam na rede de enfrentamento à violência contra a mulher. Estas
foram gravadas em áudio mediante assinatura do TCLE – Termo de Livre Consenti-
mento Esclarecido, pelas participantes. As entrevistas foram transcritas e conferidas.
Foram incluídas psicólogas/os que atuavam no acolhimento e acompanha-
mento às mulheres em situação de violência, em serviços especializados públicos,
no campo jurídico e da assistência até 2016, aceitaram gravar entrevista, além de
responderem ao questionário online e assinarem o TCLE.
604

As/os seis psicólogas/os entrevistadas/os foram selecionadas/os a partir de um


questionário online disponível na Plataforma Survey Monkey, intitulado “Atuação de
profissionais de saúde nas políticas públicas para as mulheres – Psicólogas/os”. Este
instrumento foi construído com o objetivo de coletar informações para a pesquisa
mais ampla. A faixa etária das/os psicólogas/os esteve entre 27 e 39 anos de idade;
se autodefinem em sua maioria pretas/os, sendo que 3 delas/es atuam em serviços
especializados de assistência e 3 em serviços especializados jurídicos. Suas identi-
dades foram preservadas, por isso os nomes aqui utilizados para identificá-las/os são
fictícios associados a pedras preciosas.
O conteúdo das entrevistas foi analisado segundo a Análise de Conteúdo
proposta por Bauer e Gaskell (2008) e com o suporte teórico da perspectiva sócio-
-histórica. A identificação das unidades de análise foi realizada a partir da leitura
flutuante das entrevistas nos objetivos do presente estudo, se deixando impres-
sionar pelo conteúdo das falas. As unidades foram agrupadas por semelhança de
conteúdo, advinda das falas manifestas e analisadas tendo em vista a criação de
categorias de análise.
Com base nas leituras flutuantes das entrevistas e do objetivo da presente pes-
quisa, foram identificadas algumas práticas psicológicas nos serviços especializados,
sendo consideradas inclusive as práticas não tradicionais da psicologia, de processos
de trabalho, técnicas e instrumentos reinventados, adaptados ao contexto especí-
fico, uso e produção de cartilhas, folders educativos e outros instrumentos criados
exclusivamente para o atendimento. A partir desse contexto foram criadas 3 cate-
gorias: “acolhimento”, sendo incluída, uma escuta ativa que denota possibilidades
de intervenção dentro da rede de enfrentamento e por isso foi entendido como um
processo de trabalho comum a todas as pessoas entrevistadas; “atuação em rede”
foi escolhida por ser estratégica para o avanço da política de enfrentamento à vio-
lência e é entendida como o conhecimento dos serviços especializados bem como
a capacitação da equipe; “limites e possibilidades do campo”: foram incluídas as
principais dificuldades e entraves para perspectivas futuras do trabalho da/o profis-
sional de psicologia no contexto atual.

Resultados e Discussões

Acolhimento

Os serviços visitados, cujos profissionais aceitaram participar da pesquisa atra-


vés de entrevista, além de responderem a um questionário, possuem em comum esse
mesmo processo de trabalho. Nesse sentido buscou-se exemplificar com algumas
falas que ofereceram pistas sobre a postura profissional em sintonia com a política
de enfrentamento, sensibilidade teórica e prática condizentes com o contexto.
No âmbito dessa reflexão, é fundamental que a psicologia possa agregar no
desenvolvimento de novas práticas, teorias que incorporem a perspectiva social e dão
suporte a intervenções psicossociais articuladas com as práticas de outros profissionais
e serviços (CFP, 2013). Conforme o relato da entrevistada abaixo, podemos observar:
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 605

“Eu me afino com a psicologia histórico cultural [...] e a partir desse olhar [...]
eu já vou na fala dela [mulher em atendimento] captando aspectos, como é uma
teoria que foca muito na subjetividade [...], então eu vou ver o que é que ela está
trazendo ali que é da subjetividade individual que já é um termo da teoria, o que é
da subjetividade social [...]” (Rubi, 27 anos).
O uso de uma teoria que leve em conta aspectos históricos e sociais da nossa
sociedade é fundamental, na medida em que permite uma intervenção diferenciada
fornecendo suporte a esse acolhimento relatado acima. Observa-se que a entrevistada
levou em conta o meio em que a usuária está inserida. Apesar de parecer óbvio a
princípio, isto pode resultar em uma intervenção mais apropriada. De acordo com
os relatos analisados, parece que isso não tem sido usual nas práticas cotidianas da
psicologia que ainda está atrelada à transmissão (ensino) de teorias e práticas que
resultam em um fazer tradicional.
A referência a uma intervenção mais apropriada denota um cuidado com essa
mulher enquanto sujeito de direitos, que precisa de atenção e cuidados de acordo
com sua demanda particular e subjetiva, negada social e historicamente por todo
um contexto patriarcal.
Nessa linha, é relevante voltar ao conceito de patriarcado, que diz respeito à
exploração e dominação que os homens exercem sobre as mulheres, fruto da ideo-
logia machista que foi construída historicamente. O que faz com que os homens
sejam condicionados a dominar e as mulheres a se submeterem a tal dominação
(SAFFIOTI, 2004; CFP, 2013).
Essa dominação exercida tem várias consequências. Dentre elas, destaca-se a
forma como a autonomia da mulher é minada ou destruída nesse processo de vio-
lência. Cria-se um estado de dependência por parte dessa mulher, em relações com
total ausência de cuidado e abusos constantes. Nesse contexto, é imprescindível ações
e abordagens que dialoguem com a retomada dessa autonomia e reconstrução da
mesma. O relato da entrevistada/o seguinte, nos dá uma pista de como é importante
dar atenção à necessidade de se trabalhar a autonomia das mulheres:
“Eu trabalho muito aqui a questão da autonomia da mulher, no sentido de
ouvi-la e buscar que ela tenha seu empoderamento, que ela decida sua questão [...]
de esperar o tempo dela, que eu acho que nesse processo, que é um processo longo,
ela já vai construir os mecanismos dela, no momento que ela pode parar e escolher,
e pensar no que ela quer fazer, ela já está se preparando para estar se modificando”
(Topázio, 39 anos).
É possível apreciar nessa fala aspectos de considerável relevância no acom-
panhamento de mulheres em situação de violência. Verifica-se a preocupação com
a escuta, ou seja, essa mulher tem algo a dizer que lhe foi negado ser dito, seja
pela ausência da escuta, seja pelo impedimento do seu livre exercício de falar, de
se colocar, a partir do seu lugar de vivência de suas dores. Depois, a/o psicóloga/o
mostra que não se trata apenas do fazer a escuta, mas é preciso fomentar o caminho
do enfrentamento, que tem como base o empoderamento dessa mulher, e a coloca
no lugar de poder tomar suas próprias decisões, reconhecendo o direito desse lugar.
606

Outro aspecto importante é o reconhecimento do tempo do processo, tempo em


que a mulher construirá seus próprios mecanismos, que façam sentido e que sejam
estruturantes em seu processo de empoderamento. E mais importante, é a crença nessa
possibilidade por parte da/o psicóloga/o, entendendo a modificação como algo real.
Assim, é possível perceber, que o trabalho da/o psicóloga/o passa por com-
preender os efeitos do patriarcado no modo de vida, no cotidiano das mulheres,
para romper com os impedimentos na conquista da autonomia das mulheres, visto
que à medida em que essa mulher vai se empoderando ela vai tendo mais coragem,
ficando mais segura, para tomar decisões e não permanecer submissa. Esse processo
de intervenção relatado parece fazer parte da rotina de trabalho de profissionais de
psicologia nesse campo. O que requer estudo e posicionamento frente a valores, e o
ciclo de violência a que as mulheres são submetidas.
Os estudos mostram facetas da violência contra a mulher, não menos relevantes.
Por exemplo, a violência contra mulher perpassa aspectos ligados a cor/raça, gênero,
sexualidade, classe, geração, ocorrendo de diversas magnitudes, o que não as impede
de vivenciar diferentes formas de violação de direitos (PORTO; MALUSCHKE,
2014; SANTIAGO; COELHO, 2011). A seguir uma fala para ilustrar o fazer de um/a
profissional diante desse contexto: “Esse olhar para as distintas características que
estruturam nossa sociedade, como racismo é um deles, o machismo, o classismo,
então isso tudo eu estou atenta na minha escuta” (Rubi, 27 anos).
Esse relato mostra um fazer em que há o aprimoramento da escuta para o que não
está dito explicitamente, mas está imerso na cultura e explícito no sofrimento psíquico
da mulher atendida e que pode ter relação com a violência sofrida. Ao perceber que
a forma de enfrentamento da violência, bem como recursos e acesso aos serviços
públicos de atenção são diferenciados e vão variar de acordo com cada recorte dessa
mulher, a/o profissional vai estar atenta/o às particularidades dessa violência. Entre-
tanto, esse foi o único relato que buscou fazer esse tipo de conexão entre racismo,
sexismo e classe, isto demonstra a busca de compreensão mais profunda das origens
do ciclo da violência. Essa captura das entrelinhas e dos motivos pelos quais essa
mulher permanece nessa situação, pode resultar em intervenções transformadoras.
Diante desses aspectos, verifica-se que a atuação da/o psicóloga/o é ampla e
diversa. As normativas sugerem um trabalho de acolhimento e escuta qualificada,
promoção da autonomia, promoção da autoestima, tendo em vista o fortalecimento
dessas mulheres, levando em consideração mudanças socioculturais (CFP, 2013). Mas
como isto se dá na prática cotidiana de uma/uma profissional? O depoimento abaixo
parece fornecer pistas: “Então o trabalho psicológico que eu faria nesse sentido,
seria mesmo de um suporte emocional, uma escuta ativa, um trabalho de urgência
psicológica, nesse sentido” (Topázio, 39 anos).
Pode ser gratificante poder ouvir uma fala como a exemplificada acima, mas
de fato esse relato não detalha esse fazer. Na prática, ao analisar os relatos acima
mencionados, observa-se indícios de que estão realizando uma atuação que foge do
modelo patologizante, utilizando processos de trabalho que visem uma clínica social,
que merece reconhecimento. Porém, há uma série de lacunas, consideráveis a serem
tratadas, a saber: Como é feita essa escuta? Utiliza algum instrumento específico?
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 607

Os outros relatos das entrevistas que não constam nesses exemplos, citam esse
processo de trabalho, mas não detalham como fazem e nem porque fazem. Nesse
sentido, optou-se por trazer os relatos que buscaram elucidar aspectos necessários
para a efetivação da Política de enfrentamento à violência contra mulheres.
A seguir, os registros serão no sentido da importância da atuação em rede, bem
como os limites e possibilidades da psicologia nesse campo.

Atuação em rede

Essa subcategoria foi escolhida por ser considerada um fazer indispensável


no avanço da política e por ser outra prática comum às/aos entrevistadas/os. Nesse
aspecto, atuar em rede é um fazer preconizado pela perspectiva da saúde pública,
mas a psicologia teve que criar estratégias para dar conta de uma realidade e assim
poder avançar, tendo em vista que essa é uma política recente.
Outrossim, o trabalho de atendimento à usuária pressupõe como essencial, uma
rede de serviços fortalecida tendo o território como base, para que assim seja possível
uma articulação das práticas, saberes e políticas (CFP, 2013). Logo a seguir, a fala
abaixo pode exemplificar atuação em rede:
“Enquanto psicóloga, a minha função era acolher a mulher em sua necessidade,
ouvir sua história de vida, [...] ao mesmo tempo, mapear o que naquele município,
poderia atender as necessidades dela, então se aquela mulher tem interesse em dar
queixa, a gente precisa saber se o município tem delegacia, se não tem como é que
faz?” (Esmeralda, 30 anos).
Atuar de maneira inovadora nesse contexto parece significar ‘romper com aspec-
tos preconizados da psicologia tradicional’, que não realiza a busca ativa e realiza
poucas conexões com recursos locais, tendo em vista que essas mulheres, muitas
vezes sem instrução, fragilizadas para tomar essa iniciativa, vão tornar o trabalho
da/o psicóloga/o ainda mais desafiador, requisitando uma intervenção dentro do que
é possível naquele momento.
Atualmente há os seguintes serviços de atendimento às mulheres em situação de
violência: Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM); Juizados
Especiais para Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência; Secretaria Estadual
de Políticas para as Mulheres; Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres,
Infância e Juventude; Conselhos de Políticas para as Mulheres; CREAS – Centro
de Referência Especializada de Assistência Social; CRAS – Centro de Referência
de Assistência Social; Casas Abrigo; Ministério Público do Estado; Delegacia de
Polícia; Instituto Médico Legal.
Esses instrumentos compõem a rede de atenção à mulher, e são importantes
desde o acolhimento até o acompanhamento da mulher em situação de violência.
Entretanto, ainda é um desafio a articulação dessa rede, bem como a construção de
um fluxo de atendimento que possa ser utilizado e que dê praticidade aos encaminha-
mentos necessários. As/os psicólogas/os são agentes importantes que compõem essa
rede, e precisam estar implicadas/os com ela, para orientar de maneira precisa, de
forma a fortalecer a essa mulher que buscará os serviços dessa rede de atendimento.
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A rede busca dar conta da violência contra a mulher, tendo em vista sua
complexidade e caráter multifatorial, com base nos eixos de prevenção, combate,
assistência e acesso aos direitos (BRASIL, 2011). O serviço relatado na fala abaixo
explana isso:
“Então a gente é como se fosse um CRAM itinerante. Só que como a gente
não está fixa em um lugar, a gente não pode passar muito tempo acompanhando essa
mulher, mas a estrutura é de um CRAM né, inclusive nossas normas técnicas são as
mesmas” (Rubi, 27 anos).
O serviço em questão vai até os municípios, atende mulheres em situação de
violência, capacita profissionais para esse atendimento, e se articula com a rede,
resultando em um grande avanço para a política de enfrentamento à violência contra
as mulheres, além de torna a atuação profissional desafiadora.
Para operacionalização e eficácia do funcionamento em rede, é imprescindível
a realização de avaliações frequentes dos serviços a fim de ampliá-los para atender
essas mulheres e aprimorar quaisquer entraves existentes (CFP, 2013). O que pode
ser exemplificado nas falas de Topázio e Esmeralda:
“A gente faz fiscalizações nas delegacias, a promotora vai olhar o aspecto jurí-
dico e eu vou olhar o aspecto psicológico e subjetivo, de como é feito o atendimento,
se há algum constrangimento da assistida, como é que está o espaço, se garante o
sigilo das informações, se ela está bem tratada, se está tendo algum assédio, como é
o espaço físico, se há o respeito às religiões dentro de lá” (Topázio, 39 anos).
Embora essa fiscalização seja algo necessário e relevante, vistorias pontuais
não garantem uma boa assistência no campo psicológico para as mulheres nesse
equipamento considerando a ausência de profissionais de psicologia em delegacias
da Mulher como a de Salvador. Sabe-se que no passado esse equipamento já contou
com essa profissional, portanto seria pertinente investigar esse fato. Em outra expe-
riência a profissional menciona:
“A gente senta e discute, com a coordenadora, os casos, e faz os encaminha-
mentos necessários para que essa coordenadora, depois entre em contato, com o
município com os serviços, os casos muito graves a gente encaminha pontualmente
[...] uma relação dos casos, de como foi, quais são os serviços, para que ela entre
contato, e procure saber como é que está, como é que elas estão encaminhando, se elas
estão dando conta [...] e depois a secretaria envia um relatório, para que o município
preencha” (Esmeralda, 30 anos)
Ao fiscalizar e avaliar os serviços onde as mulheres em situação de violência
são atendidas, a/o profissional de psicologia garante a eficácia da política do ponto
de vista oficial e possibilita que as/os demais profissionais que compõem a equipe
sejam devidamente instruídas/os, além de viabilizar que as usuárias não sejam revi-
timizadas. Entretanto, a qualidade do serviço prestado e outros suportes necessários
para enfrentar o avanço crescente do feminicídio parecem não ser viabilizados com
resultados positivos e nem avaliados.
Tendo em vista o reconhecimento da necessidade de melhor articulação dos
serviços, não se pode negar a importância da rede e do papel da/do Psicóloga/o,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 609

dentro desse espaço de atuação. Nesse campo de reflexão, cabe analisar os limites e
possibilidades da práxis nesse contexto.

Limites e possibilidades do campo

Para finalizar, temos a última subcategoria que ilustra alguns limites e possibi-
lidades dentro da atuação profissional da psicologia.
A Política de Enfrentamento à violência contra a mulher por si só demonstra
já ser um avanço. Um dos aspectos foi a promoção e a criação de serviços espe-
cializados, entre eles os Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor.
Garantindo o eixo de prevenção e combate descrito na política (BRASIL, 2011).
A fala a seguir mostra um dos instrumentos utilizados na direção da prevenção:
“A gente também faz cartilhas. Por exemplo, a gente construiu esse material aqui,
uma cartilha voltada para os homens, para tentar de alguma forma, trabalhar com
esses homens” (Topázio, 39 anos).
Planejar e elaborar materiais que sejam informativos e educativos, pensando
em um trabalho com os agressores, algo que está preconizado na política, mas que é
raramente visto dentro dos serviços, é uma grande perspectiva futura para o enfren-
tamento à violência contra mulher, visto que trabalhar somente com as mulheres é
insuficiente, já que ela pode sair da relação abusiva, e esse homem ser o agressor
de uma outra mulher.
Além desse instrumento de tratamento no aspecto da prevenção, é preciso um
cuidado especial ao se fazer um encaminhamento. Deve-se ter internalizado que o
encaminhamento é para orientar e conduzir pessoas para outro serviço. Assim, é
importante que seja feito contato com as/os profissionais da instituição a qual a usuá-
ria vai ser encaminhada, para que o atendimento seja garantido. Além de conhecer
os serviços parceiros e suas atribuições (CFP, 2013). O relato a seguir mostra um
desafio de atuar na rede:
“Eu acho que, modos mesmo de compreensão do seu trabalho porque se eu
encaminho uma mulher seria interessante eu ter um retorno, de como ela está [...]
muitas vezes a gente tem que solicitar [...] muitas vezes a gente não recebe esse
retorno” (Cristal, 38 anos).
Eis um outro desafio: ao encaminhar a usuária a outro serviço, não deve signi-
ficar o desligamento total desse caso. É um desafio para a/o profissional, que muitas
vezes pensa que ao encaminhar a usuária, acredita que seu trabalho seguirá de maneira
eficaz. Para ter mais consistência com os encaminhamentos é preciso conhecer a rede,
fazer contato frequente com as/os profissionais dos demais serviços, buscar capacita-
ção, notícias sobre o prosseguimento de determinado caso, fazer relatórios dos casos
que se atende, conhecer a Lei e conhecer a política para as mulheres. Nem sempre
as/os profissionais estão engajadas/os na atuação dessa maneira e nessa amplitude.
Então, faz-se necessário sinalizar e refletir sobre essa questão.
A construção de novas práticas com criatividade, flexibilidade e fundamenta-
ção, além do desenvolvimento de metodologias de atendimento que colaborem para
610

o avanço da política e o fortalecimento de ações devem fazer parte do cotidiano de


atuação profissional (CFP, 2013).
“A gente segue um questionário [...] semiestruturado com umas quinze per-
guntas[...] foi um questionário bem pensado, bem elaborado [...] foram psicólogos
mesmo que fizeram” (Jade, 37 anos).
Pensar instrumentos que visem qualificar mais o atendimento, como construir
um questionário para ser utilizado em um serviço, é sinal de busca de melhorias e
possibilidades de avanços. Criar um instrumento de trabalho para atender a uma
demanda específica é inovador, e ações como essa precisam ser fortalecidas, e podem
servir de referência para outros espaços e ampliar essa prática.
A Lei Maria da Penha e as normas existentes não são os únicos responsá-
veis pela materialização da política. É necessário também mudanças nos modos
de pensar e agir dos profissionais. Para isso, a promoção regular de capacitação
dessas/es profissionais, é imprescindível, principalmente sob o enfoque de gênero
(CFP, 2013).

“A dificuldade acaba desafiando você a pensar estratégias [...] profissionais não


conhecerem as políticas, não se atentarem para o que existe no cenário nacional
de políticas públicas [...] o profissional que você vê que precisa estudar [...] que
precisa ler, precisa saber o que está fazendo e não sabe [...] você vai ouvir esses
profissionais, eles vão responsabilizar essas mulheres, eles vão fazer tudo que a
gente diz que não pode fazer” (Rubi, 27 anos).

Mesmo com a capacitação da rede preconizada na política, ainda existem pro-


fissionais que não se atentam para fazeres críticos de sua atuação. Levando-nos a
pensar que talvez somente essa capacitação não seja suficiente, pois é preciso investir
na formação da/o profissional, não só de psicologia, mas numa formação multipro-
fissional, em que se debata temas como esses de saúde pública.

Considerações finais

O presente trabalho buscou identificar a existência de práticas e dispositivos


utilizadas pelas/os profissionais de psicologia e/ou dispositivos tecnológicos uti-
lizados no enfrentamento da violência contra as mulheres. O fazer da/o psicólo-
ga/o nessa área ainda está sendo (re) construído a cada dia, visto que essa atuação
ainda está associada às práticas mais tradicionais e ao contexto em que a psicologia
foi desenvolvida.
Outro dado importante, é que a maioria das/os profissionais entrevistadas não
reconhecem suas práticas como um avanço no fazer tradicional da Psicologia. A
atuação em rede, ao mesmo tempo em que apresenta aspectos inovadores, não deixa
de ser um desafio diário diante das dificuldades encontradas na prática das/os pro-
fissionais de psicologia.
As entrevistas viabilizaram àquelas/es que foram entrevistadas/os a oportuni-
dade de pensar criticamente acerca da política de enfrentamento, bem como sobre
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 611

alguns instrumentos da política pública de atenção às mulheres, a exemplo da Lei


Maria Penha, dando margem para que as/os mesmas/os repensem sua formação e
sua prática diária.
Ademais, pesquisas como essa podem servir como forma de sensibilizar a ins-
tituições de ensino em psicologia para que repensem seus currículos e invistam na
formação, possibilitando a discussão da violência contra a mulher, bem como a temas
que estão relacionados com ela, como gênero, relações raciais e classe. É importante
salientar a necessidade que mais pesquisas como essas sejam desenvolvidas, a fim
de explorar outros aspectos inovadores da atuação das/os profissionais de psicologia
nesse contexto.
612

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General Assembly Resolution nº. A/RES/48/104, 1993.
INCIDÊNCIAS ÉTICAS E POLÍTICAS NA
CIÊNCIA PSICOLÓGICA: problematização
sobre a colonialidade nos modos de
atender e cuidar de mulheres negras
Fernanda Cristine dos Santos Bengio
Rafaele Habib Souza Aquime
Thiago de Sousa Soares
Mônica Ewans Muniz Da Costa

Introdução

O presente texto foi produzido a partir de uma profunda reflexão acerca dos aten-
dimentos em serviços de psicologia que ocorrem em diferentes contextos. Partimos
da crítica à clínica psicológica tradicional que parece operar uma espécie de “escuta
surda” (BAPTISTA, 1999) aos efeitos da sobrecodificação de fluxos e intensidades
do capitalismo e do racismo no Brasil, em especial os efeitos que se desdobram sobre
o corpo da mulher negra. As táticas e estratégias do poder que se lançam sobre o
corpo feminino preto é um debate amplamente qualificado dentro e fora do Brasil.
Destarte, caminhamos por elucubrações sobre racismo e capitalismo frente à diálogos
bem delineados a fim de vislumbrar as implicações éticas e políticas para a psicologia
em espaços de concretização dos modos de atender e cuidar do corpo feminino preto.

Constituição da Psicologia e a centralidade do sujeito: a quem se


endereça essa ciência?

A história da subjetividade no Ocidente se constitui paralelamente à noção de


indivíduo e a história da Psicologia nos conta como a “individualidade” se desenhou
nas forjas do capitalismo industrial. A tradição da ciência positiva ainda permeia a
prática psicológica em seu ideário de neutralidade e tecnicismo, reforçando o suposto
equivoco em considerar que formas sociais não são históricas e bélicas em sua orga-
nicidade, bem como o desejo, aquilo que produz o sujeito em realidade. Ou seja,
conceitos como neutralidade, objetividade e cientificidade estiveram fortemente pre-
sentes na formação dessa disciplina. Com efeito, se produz o esvaziamento político
e a psicologização do cotidiano e da vida social (COIMBRA, 1995), em um cenário
de pouca reflexão sobre a produção do sujeito na materialidade das tensões, lutas e
pactos sociais que se dão no âmbito das complexas relações sociais.
Jacques et al. (2012) analisam o desenvolvimento de uma Psicologia indivi-
dual, a qual procurou demarcar as influências do meio social, buscando promover
o ajustamento do indivíduo à sociedade. Trata-se de uma vertente adaptacionista
616

presente nas diversas áreas onde a Psicologia se inseriu, orientada pelos modelos
de atuação europeus e estadunidenses. Essas são questões também problematiza-
das por Rose (2008), quanto ao mito do nascimento da ciência psicológica. Ele
posiciona-a como uma ciência social, uma vez que a construção das tecnologias
de análise dos corpos/comportamento, deu-se sob a égide de uma necessidade
social volta à consolidação do capitalismo industrial. Assim, foi sendo tecido um
conjunto de dispositivos que afirmam a individualidade como uma de suas mais
eficazes ficções na sociedade contemporânea.
Conforme Morais e Lacerda Jr (2019), o capitalismo condicionou o apareci-
mento da categoria indivíduo como unidade social na vida moderna, ou seja, não
estava presente somente no modo de reprodução da vida material, mas na experiência
subjetiva de cada pessoa no mundo. E a Psicologia como saber científico cumpriu
a função de legitimar essa nova experiência subjetiva. Nesse aspecto, o desenvol-
vimento dessa nova ciência foi marcado pela legitimação das relações capitalistas,
com a interiorização da intimidade, e por um intenso processo de individualização.
A emergência da Psicologia como ciência só foi possível por ser compatível com
essa formação social capitalista.
Para Antunes (2017) a presença de correntes de pensamento europeu, tais
como o liberalismo e positivismo no século XIX foram elementos propulsores
para o delineamento do estatuto de ciência autônoma que foi conferido à Psicolo-
gia durante a passagem do século XIX ao século XX, originalmente na Europa e
nos Estados Unidos (ANTUNES, 2017). No Brasil Republicano, a Psicologia – e
outras disciplinas sobre o indivíduo – foi convocada a contribuir com a produção
de soluções para problemas em diversas áreas como educação, saúde, organização
do trabalho.
Em um contexto no qual o país intensificava seus processos de urbanização e
industrialização, Psicologia consolidou-se como ciência do indivíduo. De acordo com
Figueiredo (2008), ela alicerçou-se em princípios liberais que delinearam a expe-
riência de uma subjetividade privatizada, ao reconhecer os indivíduos como livres,
diferentes e capazes de ter pensamentos e desejos independentemente dos outros
membros da sociedade. O pensamento liberal, ao partir da definição de ser humano
como “indivíduo”, centraliza tudo no “eu”, no sujeito da proposição. O liberalismo
se define por duas dimensões centrais, em primeiro lugar, aquele que é um, singular,
único e a segunda, é que ele é um, mas não tem nada a ver com o outro, isto é, ele é
isolado, fechado sobre si mesmo (GUARESCHI, 2008, p. 29).
Certamente tais acontecimentos são correlatos ao quadro geral das ciências
sobre os homens, impulsionando novas práticas de governo das populações profun-
damente marcadas por uma concepção eurocentrada das instituições, das pessoas
e das coisas. No cenário atual, no qual vigora a governamentalidade neoliberal, é
fomentada a produção de subjetividades organizadas e mantidas pela individualização
das responsabilidades do ser no mundo, do homo œconomicus (HAMAN, 2012). À
vista disso se estruturam mecanismos que se esforçam para assegurar que os sujeitos
assumam valores baseados no mercado em todas as suas práticas, reunindo quanti-
dade significativa de “capital humano” para tornarem-se “empreendedores de si”.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 617

Ainda que o neoliberalismo se enuncie na forma de política, econômica, também


é um produtor do processo de constituição de subjetividade e, consequentemente, de
novos sentidos na produção do adoecimento psíquico (ALMEIDA, 2021).
Lasta, Guareschi e Cruz (2014) sintetizam que a ciência psicológica tradicio-
nal, que ainda reverbera na atualidade, se ocupa da adequação de pessoas à norma,
para classificar normais/anormais, aptos/inaptos, corrigindo determinados sujeitos e
determinados modos de vida.
Como exemplo, a questão social no Brasil é tomada, historicamente, como
responsabilidade individual das pessoas em situação de pobreza, visto que a perma-
nência dos sujeitos nesse ciclo de miséria é justificada pelo pouco esforço que fazem
para sair dele. A culpabilização do sujeito é articulada a uma visão individualista e
moralizante de sociedade, evidenciada por meio de uma psicologização que detecta
patologias individuais. A normalização e psicologização dos corpos marca esse pro-
cesso nas várias formas de atender e cuidar materializados pela Psicologia, uma vez
que a ótica tradicional que ela carrega é adaptacionista e individualizante.
Uma estratégia que mantém essa orientação pode ser observada nos debates
atuais que se centralizam em torno do pathos, um estado cuja as características são
reconhecidas pela medicina, pelos pacientes e pela cultura como alvo de uma inter-
venção médica, terapêutica, profilática e restauradora: “o rótulo de doença é uma
das formas, mas não a única, pela qual a medicalização tem lugar. O diagnóstico
é um facilitador, mas não a condição exclusiva de seu exercício” (ZORZANELLI;
ORTEGA; BEZERRA JR, 2014, p. 10).
Nesse cenário a própria psiquiatria também é permeada pela lógica do neoli-
beralismo, na qual os indivíduos tornam-se, eles mesmos, empresas a serem geri-
das. De tal modo é inaugurado uma nova etapa na relação secular da psiquiatria
com o adoecimento psíquico. Não serve apenas descrever, compreender e tratar os
sofrimentos psíquicos, como também os produzir para então tratá-los em um ciclo
contínuo (SAFATLE, SILVA JR e DUNKER, 2021).
No bojo destas problematizações é fundamental ponderar que a “colonialidade
do poder” (QUIJANO, 2005) atravessa as múltiplas práticas de cuidar e atender
existentes nas políticas públicas brasileiras, considerando os cenários de atuação da
Psicologia, recorte que exploramos melhor na sequência.

Psicologias e colonialidades nos modos de atender e cuidar as mulheres

Compreender a relação da Psicologia com o percurso histórico dos modos de


atender e cuidar no Brasil, demanda a análise do racismo como elemento estrutu-
rador das relações sociais e institucionais e da própria construção do pensamento
científico psicológico.
Ferreira e Hamlin (2010, p. 812) investigam como o discurso científico, correlato
à emergência da sociedade moderna, “resultou em imagens monstruosas de alteridade,
na produção discursiva de corpos considerados exóticos e, no limite, abjetos”. Para
estes autores a ruptura que a modernidade – e a própria ciência moderna – trouxeram,
não conseguiu superar a “matriz valorativa” dos modos de objetivar o Outro através
618

de hierarquias baseadas nas diferenças de raça e sexuais. Lander (2000, p. 7) afirma


que essa estrutura social e científica foi um “proyecto de modernidad formulado
por los filósofos del iluminismo en el siglo XVIII se basaba en el desarrollo de una
ciencia objetiva, una moral universal, y una ley y un arte autónomos y regulados
por lógicas proprias”.
O “penso, logo existo” desdobrou-se no “penso, logo posso subjugar” a partir
da centralidade do pensamento branco europeu. A incidência da lógica moderna
colonial na produção do conhecimento científico impõe um conjunto de normas, leis
e organização social que vão ao encontro das tramas que irão compor a psicologia
científica durante os séculos seguintes. Ferreira e Hamlin (2010) analisam como esses
sistema de pensamento colonialista situou as mulheres como objetos monstruosos,
em especial as mulheres negras205, condicionadas à olhares ora de curiosidade e
intriga, ora de repulsa e “ansiedade”, frente à possíveis riscos civilizatórios. Con-
forme Grosfoguel (2016), pesa sob a colonialidade a imposição de um modo único
de produzir conhecimento, de conhecer, de sentir, de habitar o mundo.
Em resumo, é possível inferir que as américas são inventadas na moderni-
dade como parte de um projeto colonialista europeu, o qual encontrou aporte no
discurso científico do referido período. Todo esse arcabouço científico operou
determinados epistemicídios ao longo de séculos como o contra mulheres e afri-
canos (GROSFOGUEL, 2016), produzindo distinções operadas pela violação de
seus corpos e cosmologias.
A escravidão moderna é uma nuance da colonialidade. Ao longo de sua exis-
tência, a mercantilização de pessoas negras se mune de complexadas técnicas de
controle e dominação e seus efeitos capilarizaram-se de tal forma, que muitas vio-
lências seguem invizibilizadas e/ou naturalizadas. “La colonialidad, en consecuen-
cia, es aún el modo más general de dominación en el mundo actual, una vez que el
colonialismo como orden politico explicito fue destruído” (QUIJANO, 1992, p. 14)
Assim, a colonialidade, se mostra como sistema que ainda arregimenta formas de
conhecer e situar o outro em não-lugares, que tem sido permanentemente atualizado.
Certamente, a colonialidade, seus efeitos e sua relação com a produção do
conhecimento científico guardam relação com outros aspectos das estruturas sociais.
Haider (2019) explica como é praticamente impossível falar sobre escravidão de
pessoas negras – ou escravidão moderna – sem compreender as mudanças estrutu-
rais do sistema capitalista e o surgimento da ideologia da raça branca. “O registro
histórico mostra muito claramente que a supremacia branca e, portanto, a raça branca
são formadas na transição americana ao capitalismo. Especialmente por causa da cen-
tralidade da escravidão racial” (HAIDER, 2019, p. 83). Ele continua argumentando:

A invenção da raça branca se acelerou quando a classe dominante euro-americana


se deparou com um novo problema no século XVIII. À medida que a classe domi-
nante colonial começou a exigir sua independência das autoridades divinamente
estabelecidas e da riqueza territorial da nobreza inglesa, ela passou a reivindicar

205 Neste texto consideramos a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, onde se considera
que pessoas negras são a soma de pretos e pardos, segundo critérios de autoidentificação.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 619

a igualdade intrínseca de todas as pessoas e a defender a ideia de direitos naturais.


[...] Em outras palavras, a classe dominante euro-americana teve que desenvolver
uma ideologia da inferioridade dos africanos de modo a racionalizar o trabalho
forçado e teve que incorporar os povos europeus na categoria de raça branca,
apesar do fato de que muitos desses povos tinham sido considerados inferiores
anteriormente (HAIDER, 2019, p. 86-87).

Segundo Maldonado-Torres (2008), as diferentes formas de racismo também


são efeitos das colonialidades, como a colonialidade do ser; “a relação entre poder e
conhecimento conduziu ao conceito de ser” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 89).
O ser-colonizado é resultado da modernidade e colonialidade, sendo racializado, em
suas dinâmicas espaciais.
Para Fanon (2008) o racismo e o colonialismo são elementos presentes na
compreensão da área da psicopatologia, ou seja, caso um negro ou negra não se
comportem de acordo com o que é esperado como comportamento “autenticamente”
negro, são patologizados, pois “se a Psicologia para o negro resulta em uma Psicolo-
gia do anormal, o negro não seria mais um ser de ação porque não teria para onde ir.
Haveria uma relação niilista com o mundo social” (GORDON, 1963, p. 16).
Para Psicologia humana, há normais que se comportam sadiamente, mas há outros,
de acordo com uma Psicologia inumana, que se comportam patologicamente, sendo
enquadrado e primitivizado (FANON, 2008).
Estas são questões que se articulam, inegavelmente, com a construção da Psi-
cologia científica uma vez que o espírito científico da época se encontrava imbuído
pelas descobertas antropométricas do século XVIII, XIX. Junto a isso, é necessário
pontuar outras transformações em curso, como a consolidação do modelo de família
nuclear como medida profilática frente ao édipo melindroso da psicanálise.
Analisar esses efeitos no que diz respeito ao Brasil, requer ponderar que se trata
de um país com pouco mais de 500 anos, dentre os quais 388 foram sob o regime
escravocrata. Os ideais iluministas e liberais do lado de cá do Atlântico foram mol-
dados conforme os limites da escravidão (CARVALHO, 2002; PATTO, 1992).
A formação social de nosso país, em especial no período republicano, se dese-
nha mediante a ideia – quase delirante – de uma suposta “democracia racial” na
qual a imagem do brasileiro “cordial” é afirmada praticamente como um traço
de personalidade de uma sociedade que resolveu ignorar os sistemas de opressão
baseados em diferenças sexuais e de racialização dos corpos. Fenômeno ainda mais
intrigante ao considerar que o higienismo e eugenismo ganham impulso por aqui
durante o século XIX e XX e a “raça” que proporcionará o progresso da nação é
fabulada neste contexto. De certo que as vozes dissonantes existiram, elas sempre
(re) existem. Mas isso não apaga o fato que as estratégias de silenciamento se deram
sob a condição de um conjunto de sistemas que se sustentaram e legitimaram (sus-
tentam/legitimam) estruturas de opressão.
Considerando que a história é vista como processo de constituição do sujeito
do conhecimento (FOUCAULT, 2002), partimos do pressuposto de que o sujeito
é produzido através de paradigmas engendrados e recortados pelos apelos de
620

seu tempo. Diante disso é importante compreender a teoria do branqueamento,


o mito da democracia racial e a supervalorização da mestiçagem, enquanto des-
dobramentos do racismo brasileiro. São elementos inseridos em um contexto
histórico peculiar e interligados por estratégias que objetivam a manutenção de
uma sociedade dominada pela branquitude.
Desde a criação dos projetos imigrantistas de 1818, a ideia da existência
de uma raça superior já era justificada para a materialização de um modelo de
colonização com pequena propriedade familiar baseado na vinda de imigrantes
europeus. Em seu amplo estudo sobre a história do negro no Brasil, Moura (1992)
recorda que foram diversas as formas de se estabelecer uma política imigrató-
ria racista, mesmo que muitas vezes de maneira velada. Utilizou como um dos
principais exemplos em seus estudos a Guerra do Paraguai, onde se absorveu em
larga escala a mão de obra escrava, funcionando como tática para aproveitar os
trabalhadores imigrantes que chegavam ao Brasil, ao mesmo tempo em que se
“branqueava” a população, por meio do envio de negros à guerra e sua consequente
morte em combate.
Um olhar atento sobre a dinâmica social brasileira na atualidade é capaz de
notar como esses quase 400 anos de escravidão e os primeiros anos após a aboli-
ção da escravidão deixaram em nós, sociedade, marcas profundas. Como, então, a
Psicologia tem escutado isso?
Na interface do debate sobre colonialidade e o corpo feminino é importante
interrogar alguns elementos que atravessam as políticas brasileiras de atendimento e
cuidado. Sobretudo aqueles que são facilmente modulados por forças capitalísticas,
imprimindo na dinâmica social atual o individualismo disciplinar que configura
todo um campo de significados e inteligibilidade partilhados contemporaneamente.
Entre novas e velhas roupagens que esta modulação ganha no presente, ela
continua a imprimir suas marcas nos corpos e subjetividades dos sujeitos em confi-
gurações históricas e sociais específicas. Um dos tipos que necessita ser observado
com prudência neste quadro geral é aquele iniciado com a colonização, modulando
as formas de enquadrar determinados sujeitos.
Judith Butler (2015) debate as condições dos enquadramentos e a produção de
molduras que construímos sobre os outros, pois acredita que o ser da vida é construído
por meio de mecanismos de poder. Para essa autora, o corpo está exposto a uma
forma social, ou seja, é por meio desta exposição que se configura uma ontologia do
corpo, uma ontologia social. Nesse sentido, uma produção normativa atua através
de “enquadramentos” para diferenciar vidas que podem ou ser apreendidas, gerando
ontologias específicas do sujeito: “sujeitos que não são exatamente reconhecíveis
como sujeitos e há ‘vidas’ que dificilmente – ou, melhor dizendo, nunca – são reco-
nhecidas como vidas” (BUTLER, 2015, p. 16).
As crianças e adolescentes pretos e pardos são os que mais sofrem violações de
direitos, quanto as denúncias as pessoas em situação de rua, 48% são pretos e pardos,
assim como a denúncias as pessoas com deficiências, com a porcentagem de 42% e
população LGBTQIA+206, 40% (BRASIL, 2018).

206 Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans, queers, pansexuais, agêneros, pessoas não binárias e intersexo.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 621

O Atlas da Violência (BRASIL, 2020) expõe que em 2018, os negros (soma de


pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de
homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes. Comparativamente,
entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) a taxa foi de 13,9. Sobre
a situação de pobreza, em 2014, segundo o IPEA (BRASIL, 2020) a chance de pretos
estarem era 2,1 vezes maior do que dos brancos.
As mulheres negras também são as que encontram maiores dificuldades com
relação ao acesso ao mercado formal do trabalho (BRASIL, 2018). Gonzalez (1984,
p. 230) chama atenção para as vivências dessas mulheres: “E é nesse cotidiano
que podemos constatar que somos vistas como domésticas [...] melhor exemplo
disso são os casos de discriminação de mulheres negras da classe média, cada
vez mais crescentes”.
Assim, a noção de interseccionalidade ganha importância nesta discussão, pois
reporta-se às diferentes resistências interligadas e não fragmentadas, pois abarcam
diferentes categorias sociais. Não se trata de somar essas diferentes categorias, mas
sim historicizá-las pelas diferentes relações de poder e desnaturalizar as desigualdades
que produzem (MAYORGA, 2014). Segundo Gonzalez (1984), não se pode apenas
analisar o quesito socioeconômico para a situação das mulheres negras, uma vez que
o racismo e sexismo articulados também efetuam violências.
Essa condição retrata o que Lugones (2020) chama de “sistema moderno-colo-
nial de gênero”, um dispositivo que impõe à mulher negra uma série de estereótipos
que irão justificar violências físicas, sexuais e psicológicas, pois, historicamente
“foram caracterizadas ao longo de uma vasta gama de perversão e agressão sexuais
e, também, consideradas suficientemente fortes para aguentar qualquer tipo de
trabalho” (LUGONES, 2020, p. 74).
Desse ponto de vista, o feminismo pós-colonial questiona a perspectiva de
gênero universalizante e liberal quanto à mulher, pois não inclui as experiências de
mulheres negras, e as discriminações raciais e étnicas que as atingem há séculos. A
participação de mulheres brancas e das classes média no espaço público não modi-
ficou necessariamente os espaços privados, porque as mulheres negras, de classes
populares as substituíram nesses espaços domésticos, sendo alvo de exploração e
baixa remuneração pelo trabalho desempenhado. Esse contexto é potencialmente
aprisionador das potencias do existir, e esse conjunto de violências produzem intenso
adoecimento físico e psicológico.

A descolonização da Psicologia como uma ética do cuidado

A categoria sociológica raça precisa ser discutida para desnaturalizar porque


alguns são reconhecidos como sujeitos e outros não. Santos e Schucman (2015)
afirmam que raça é uma categoria sociológica, analisada a partir de um marcador
histórico e no seio de uma teoria. É uma construção social que remete a discursos
sobre as origens de um grupo, com base em traços fisionômicos e relacionados a
qualidades morais e intelectuais.
622

A categoria cor é orientada pela concepção de raça, envolvendo por sua vez
discursos classificatórios sobre qualidades e característica. De modo interseccional,
incluindo os marcadores de gênero e classe social, os autores destacam que a raça é
uma categoria que então serve para classificar, hierarquizar e localizar determinadas
pessoas na sociedade. Nessa análise, o racismo é compreendido como um dos prin-
cipais impulsionadores da desigualdade no Brasil, produzindo sofrimento psíquico
às pessoas negras e contribuindo para naturalizações dessas injustiças sociais.
Em nosso país, assim como em outros da América Latina, a pobreza assume
uma das principais manifestações da questão social, possuindo relações diretas com
as raízes coloniais, escravocratas e com o sistema de monoculturas latifundiárias,
que imbrica o antagonismo entre classes, as dimensões étnico-raciais e de gênero
(MENDES; COSTA, 2018).
A pobreza tem cara no Brasil, exigindo que formulação de políticas públicas
considere essa condição como elemento de grande impacto nas condições concretas
de vida dos sujeitos, para que a população negra acesse os serviços públicos e haja o
enfrentamento coletivo dessas contradições, pois “o Estado brasileiro [...] quando não
mata, mantém a maioria da nossa população (negra) em condições de indigência mate-
rial e cultural, refém do paternalismo assistencialismo” (CARNEIRO, 2011, p. 93).
Entretanto, o marcador de classe social não é suficiente para analisar por si
só as transversalidades das situações de desigualdades sociais, como os modelos
de Psicologia social-comunitária privilegiavam nas décadas de 1960 e 1970. Uma
vez que é uma condição que afeta “mulheres, negros e negras, gays e lésbicas,
imigrantes, minorias étnicas através de sistemas distintos e inter-relacionados de
poder, é exigido de nós – profissionais e pesquisadores que advogam em favor da
equidade – uma ampliação de nossas leituras acerca dos elementos psicossociais”
(MAYORGA, 2014, p. 225). Incorporar como epistemologia o feminismo desco-
lonial na academia e na ciência – e no dia a dia dos serviços de atenção e cuidado
psicossocial – é romper com as fragmentações e assumir a contribuição com os
estudos interseccionais que também desmedicalizam quando desnaturalizam as
diferentes subalternizações que as mulheres vivenciam.
Para Mendes e Costa (2018) esse é um debate que vêm avançando nos estudos
da Psicologia, porém ainda se presencia a falta de legitimidade da categoria raça no
ensino e pesquisa na formação da psicóloga e do psicólogo, o que dificulta também a
abordagem das relações raciais no cenário técnico da materialização das práticas. Con-
tudo, Meurer e Strey (2012) salientam a importância das mudanças paradigmáticas
que emergiram de modo mais intenso nas décadas de 1970 e 1980, como a construção
de outras bases epistemológicas da Psicologia Social, sendo nesse período fundada a
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), que mesmo acompanhando
a tendência europeia, sinaliza para diferenças consistentes e próprias aos países da
América Latina, esboça-se a criação de uma nova Psicologia Social.
Contudo, a Psicologia no Brasil, com seus sessenta anos de regulamentação,
ainda é uma disciplina com formação e exercício majoritariamente branca, tendo
sua produção de conhecimento como reflexo dessa condição. Os currículos de psi-
cologia nas faculdades/universidades brasileiras são saturados do olhar colonialista,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 623

um efeito do que Grosfoguel (2016) situa como ocidentalização do pensamento


científico. Na história da Psicologia como ciência foram construídos conceitos para
manejar subjetividades brancas com foco no sofrimento psíquico (VEIGA, 2019).
O eu cartesiano (homem e branco) se constituiu ao longo dos séculos como modelo
universal de ser no mundo.
Dessa forma os conceitos e o manejo técnico na prática psicológica são modu-
lados pelo filtro branco-europeu que não contempla e não atende adequadamente
53,6% da população brasileira composta por negras e negros, segundo Instituto
Brasileiro e Estatístico – IBGE (2015).
A desconsideração da subjetividade negra, presente desde a formação dos profis-
sionais, impacta diretamente pacientes negros que não são escutados ou memorizados
em suas questões de reconhecimento/pertencimento. Passam assim, a serem vítimas
de um racismo velado pelos profissionais que os deveriam acolher.
A lógica colonialista destitui o corpo negro de vontade, de desejo e deslegitima
seu sofrimento, fruto das relações sociais atravessadas pelo racismo. A coloniali-
dade imprime sobre esses corpos lugares bastante delimitados, no qual a mulher
colonizada tornou-se objeto de uma economia de prazer e do desejo, mediante
a razão colonial, o corpo do sujeito colonizado foi fixado em certas identidades
(HOOKS, 1995).
Recorrentemente as queixas das mulheres negras nos serviços de psicologia
passam pela suposta não legitimidade de seus sofrimentos. Questionam-se com
frequência sobre o lugar das suas dores, como se forem dores menores, tolice ou
fruto de inadequação às exigências dos seus contextos sociais. O longo processo de
silenciamento e invisibilização das violências históricas que a mulher negra sofreu/
sofre, produzem um enquadramento atual de seus corpos ainda como monstruosos.
Na busca pela adaptação, muitas se forçam a silenciar seus afetos, sejam os alegres
ou os tristes. O ideal da mulher negra “guerreira”, “batalhadora”, também máscara
as desigualdades sociais às quais estão expostas.
A invisibilidade desse debate atravessa de muitas maneiras os modos de aten-
der e cuidar direcionados a essas mulheres. Segundo Damasceno e Zanello (2018)
os estudos sobre os impactos do racismo na vida dos indivíduos têm ganhado cada
vez mais força no que concerne à relação intrínseca entre racismo e sofrimento
mental, os poucos escritos nacionais que tratam a temática pontuam que a popu-
lação negra vive em constante sofrimento mental, o que se relaciona geralmente
com sua situação social precária e a impossibilidade de pensar possibilidades de
superação dessa realidade.
É importante se atentar às particularidades do sofrimento psíquico perante
o cenário de discriminação racial. A exposição cotidiana a situações humilhan-
tes e constrangedoras pode acarretar uma série de desorganizações psíquicas e
emocionais. Nesse sentido, o racismo se posiciona, consequentemente, como um
problema de saúde pública.
É importante ressaltar aqui, a necessidade existente da difusão e produção
de uma subjetividade negra não homogeneizada, em contraposição aos reflexos do
racismo no neoliberalismo, que busca normalizar e controlar as diferenças.
624

Guattari (1992), incita três problemáticas na construção da não homogeneização


das subjetividades: a) a ampliação da definição de subjetividade, de modo a ultrapas-
sar o dualismo clássico entre sujeito individual e sociedade e, diante disso, rever os
modelos inconsciente que existem na atualidade; b) a difusão de fatores subjetivos
no plano da atualidade histórica, o desenvolvimento maciço de produções, mecânicas
da subjetividade; c) e em um último, o recente destaque de aspectos etológicos e
ecológicos relativos à subjetividade humana.
Para Bernardino-Costa e Grosfoguel, (2016) o sucesso da colonização na con-
temporaneidade neoliberal está para além da capacidade de colonização dos territórios
físicos. Apresenta-se no inconsciente, na LGBTfobia, machismo e racismo, é uma
produção da máquina colonial de produção de subjetividade, produtos que operam
um corte na realidade e que dividem o mundo num arranjo que compõem quem
exerce violência e quem sofre.
Afirmar esses marcadores sociais da produção do neoliberalismo significa ir na
contramão dos paradigmas eurocêntricos hegemônicos que, mesmo falando de uma
localização particular, assumiram-se como universais desinteressados e não situados.
O locus dessa produção não é marcado unicamente por nossa localização geopolítica
dentro do sistema mundial moderno/colonial, mas é também marcado essencialmente
pelas hierarquias raciais, de classe, gênero, sexuais, que incidem sobre o corpo negro,
sobretudo o feminino (BERNADINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016).
Em contramão a essa lógica de produção de adoecimento dessa população,
intelectuais negros e negras ao longo da história tem ampliando, referenciando e
conceituando em seus estudos clínicos e acadêmicos a condição da subjetividade
negra e sua saúde mental. Apenas para citar alguns temos o psiquiatra Frantz Fanon
em Pele negra, mascaras brancas de 1940 e no Brasil a psicóloga e psicanalista
Neusa Santos Souza com Tornar-se Negro de 1980, que abordam sobre subjetividade
e ancestralidade da população negra (VEIGA, 2019).
Entretanto, somente a inserção desses referenciais epistemológicos não garante
o exercício de práticas contra coloniais na Psicologia. É necessário que haja antes,
uma análise profunda dos nossos modos de atuação. Veiga (2019) aponta a urgência
de repensar a postura de acolhimento a essa população pela/o psicóloga/o no setting,
frente aos efeitos do racismo na subjetividade negra.
O manejo do profissional em questões como o auto-ódio e a redistribuição da
violência racial nesse contexto, são fundamentais para que esse sujeito em sofrimento
possa refletir profundamente sobre sua história de vida, a partir de seu lugar de fala.
Na compreensão que se trata de uma relação que corre em direções que se entre-
cruzam (psicóloga/o-paciente/paciente-psicóloga/o), esse movimento de construção
do exercício do cuidado também situa o profissional em relações de significações
partilhadas socialmente. Atentar a essas condições possibilita o exercício de uma
escuta real e acolhedora.
A Psicologia historicamente manteve um olhar invisibilizador sobre questões
envolvendo racismo e violência racial, temas tratados sempre com menos valia.
Foram desacreditados e silenciados na escuta terapêutica, nesse aspecto, a Psicologia
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 625

contribuiu e contribui para a manutenção do racismo, pois quando silencia as vozes


de mais da metade da população brasileira marcadas pela violência racial, apaga
formas de enfrentamento a essas questões (ROSA; ALVEZ, 2020).
Assim, atender e cuidar são ações que precisam estar conectados às implicações
de seus efeitos no contemporâneo e trazer sempre consigo questões e intervenções,
para possibilitar abertura de um campo de possibilidade direcionado às multiplicida-
des das subjetividades. Do contrário pode acabar por mantê-las submissas aos signos
sociais dominantes e produzir adoecimento.
A descolonização da psicologia é indissociável da crítica aos modos de sub-
jetivação do presente. Um exame das conjunturas sócio-políticas do presente e da
ação da psicologia no contemporâneo, precisa considerar o racismo estruturado. Um
dispositivo de cuidado que tem a escuta como principal tecnologia, precisa ouvir o
processo de desintegração que a população negra passa a partir das perdas de refe-
rências da sua própria identidade e até mesmo de consciência corporal que se mostra
tão acentuados, para além de ouvir os sintomas e codifica-lo nosologicamente, mas
ouvir os sintomas para ouvir o mundo que o produz (GUIMARÃES, 2017).
Em O perigo de uma história única, da escritora nigeriana Chimamanda
Ngozi Adiche, assim como outras vozes negras intelectuais na contemporaneidade,
que tem construído conhecimentos a partir de uma perspectiva dissidente, aponta
para a construção de outras formas decoloniais de saber/fazer/ser num sentido de
resistência no mundo:

É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra
em igbo na qual sempre considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um
substantivo que em tradução livre, quer dizer “ser maior do que o outro”. Assim
como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo prin-
cípio de nkali: como elas são contadas e quantas são contadas, depende muito de
poder [...] O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa,
mas de fazer que ela seja sua história definitiva (ADICHIE, 2019, p. 22-23).

Curiel (2009) considera que os feminismos são lutas de muitas mulheres em


diversos lugares e tempos, uma genealogia das relações de forças contra o patriarcado
e outras desigualdades. Descolonizar o feminismo seria ampliar as discussões sobre
distintas histórias e narrativas pouca ou quase nunca contadas. Propõe o diálogo a
respeito do feminismo da América Latina e do Caribe, frente à invisibilidade decor-
rente do processo de colonização e colonialidade:

A crítica da universalidade, do geral, do monolítico, ao etnocêntrico como legado


fundamental da modernidade e da colonização para evocar a necessidade de com-
preender os sujeitos sociais a partir de uma diversidade de experiências particu-
lares e diversas formas de vida específicas e concretas, provisórias e mutáveis
(CURIEL, 2009, s/p).

Portanto, descolonizar é uma proposta epistemológica e política com diferentes


posições críticas nesses territórios, sendo raça/etnia, classe e sexualidade dispositivos
presentes nesse debate.
626

Considerações finais

No ano em que a Psicologia brasileira completa sessenta anos de regulamentação


– em 2022 –, é importante problematizar a quem se endereça a prática psicológica,
pois como afirma Manzoni (2021, p. 102), “Não podemos, como sugerem alguns,
ceder à justiça como máxime ou crer na ficção de um humanismo genérico para
desconstituir o estatuto colonial”.
A psicologização da vida em sociedade corroborou ainda para a culpabilização
dos indivíduos diante dos problemas sociais, fazendo com que busquem soluções pes-
soais e individuais para problemas complexos que são de ordem social, econômicos e
estruturais. “Sem a intensa individualização da vasta e genérica experiência humana
provocada pela nova formação social capitalista não seria possível a existência de
uma disciplina científica como a Psicologia” (MORAIS; LACERDA Jr, 2019, p. 178).
Essa crítica permite lançar aos modos de atender e cuidar no Brasil, um olhar
que encara o fazer da Psicologia, a partir de seu próprio lugar na história. São
questões que não podem ficar esquecidas em uma disciplina sobre sua história, pois
trazem consigo temas que são urgentes e atuais. A razão do mundo moderno colo-
nial atravessa e constitui a Psicologia científica e dá forma aos ideários de atender
e cuidar desta disciplina.
Maldonado-Torres (2008) informa sobre a importância da reflexão de que as
diferenças coloniais operem como um ponto de partida para o pensamento crítico e
descolonial, com foco nas memórias de povos que resistem as colonialidades e aos
racismos como, por exemplo, a população negra e as diásporas africanas forçadas
por regimes escravocratas.
O desenrolar de parte desta trama, mobiliza questões que interessam ao cotidiano
dos serviços de atendimento psicossocial, pois recorrentemente o ideário essencia-
lista do indivíduo universal ressurge no campo discursivo psicológico, reafirmando
a individuação moderna ao mesmo tempo em se considera apenas o aspecto mais
comercial da diversidade/diferença, questões fortemente atravessadas pela fórmula
mágica do empresariamento de si.
Uma importante oposição às colonialidades seria a descolonização dos saberes
localizados em um enfrentamento crítico daqueles colocados como hegemônicos,
como um diagrama de forças em luta.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 627

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O ANALISADOR TERRITÓRIO COMO
EIXO ORGANIZATIVO DO TRABALHO
NO CREAS EM UM MUNICÍPIO
DA AMAZÔNIA PARAENSE
Rafaele Habib Souza Aquime
Valber Luiz Farias Sampaio
Cyntia Santos Rolim
Péricles de Souza Macedo

Introdução

Este texto se debruça a respeito do analisador território como balizador do


trabalho desenvolvido no Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS), e utiliza-se os documentos oficiais do SUAS: a Política Nacional de Assis-
tência Social (PNAS), 2004) e “Orientações Técnicas: Centro de Referência Espe-
cializado de Assistência Social-CREAS, além de relatórios produzidos pela equipe
de um CREAS localizado no município de Tomé-Açu, na Amazônia paraense, o qual
possui relações de territorialidade marcadas por conflitos de terra em solo amazônico.
E compreende-se analisadores a partir de Lourau (2004) considerados como
dispositivos que propiciam explicitar os elementos de uma dinâmica organizacio-
nal, mesmo aqueles que não estão tão explícitos, e desse modo suas contradições,
regularidades e conflitos.
Para a Análise Institucional, segundo Baremblitt (1992) o analisador não é
necessariamente um discurso, pode ser a estrutura arquitetônica de uma organiza-
ção, pode ser um costume, um arquivo ou a memória de uma organização, além de
diferentes formas escritas e faladas de uma organização, como estatutos, regula-
mentos, organograma, fluxograma e outros. Não é um fenômeno que possui como
objetivo a denúncia e evidência, mas também “um produto que pode se autoanali-
sar” (BAREMBLITT, 1992, p. 64), alinhados então aos processos de autoanálise e
autogestão (BAREMBLITT, 1992).
Inclusive a autogestão e a autoanálise são dois dos objetivos mais relevantes
para a Análise Institucional, pois a própria comunidade enfrentaria a antiprodutividade
e forças contrárias à criação, revolução e criticidade, desestabilizando hierarquias
determinadas. Ao enfrentar um processo de heterogestão excessivo, produziria os
recursos próprios para uma vida coletiva potente (LOURAU, 1993).
Situados nesses marcadores teóricos discute-se como as dinâmicas territoriais
são mapeadas pelo SUAS nas ações socioassistenciais no CREAS das violações de
direitos inseridas nas situações características de vulnerabilidade e risco sociais.
632

Problematiza-se o esquadrinhamento do sujeito, das famílias e da comunidade loca-


lizadas em territorialidades “desagregadas” e “desiguais” pelos parâmetros desta
política pública, justificando desde a instalação de um CREAS nesses espaços até a
avaliação das vidas infames a serem normalizadas para uma melhor qualidade das
relações micro e macrossociais.
Investiga-se também as estratégias de governamentalidade que medicalizam a
família em nome da garantia de direitos pela soberania jurídica, a qual universaliza o
sujeito-cidadão, bem como a ampla gama de táticas que disciplinam individualidades
pelos registros minuciosos que corrigem infrapenalidades nas atuações profissionais
vigilantes da psicologia e de outros saberes conjugados.

Território e vigilância socioassistencial na produção do sujeito


vulnerável no CREAS

A PNAS, de 2004, consolidou-se em 2005, com o Sistema Único de Assistência


Social (SUAS), que por sua vez se constituiu como um sistema nacional organi-
zado de forma descentralizada, participativa e articulada às outras políticas públicas
setoriais. Segundo Cruz, Rodrigues e Santos (2014), a PNAS indicou eixos para a
operacionalização dos serviços socioassistenciais, entre os quais são: territorialidade,
financiamento, controle social, monitoramento, avaliação e recursos humanos:

Pois se trata de uma política pública, cujas intervenções se dão essencialmente nas
capilaridades dos territórios. Essa característica peculiar da política tem exigido
cada vez mais um reconhecimento da dinâmica que se processa no cotidiano das
populações (BRASIL, 2004, p. 16).

De acordo com “Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de


Assistência Social- CREAS (BRASIL, 2011, p. 14):

As categorias território, vulnerabilidade social e risco social são fundamentais para


compreender os elementos diretamente relacionados às competências da assistên-
cia social e a organização do SUAS. Tais categorias devem ser compreendidas
a partir de uma abordagem multidimensional que propicia a análise das relações
entre as necessidades e demandas de proteção social em um determinado território
e as possibilidades de respostas da política de assistência social, em termos de
oferta de serviços, programas e benefícios à população.

E quanto à vulnerabilidade social e risco social:

A vulnerabilidade social materializa-se nas situações que desencadeiam ou


podem desencadear processos de exclusão social de famílias e indivíduos que
vivenciem contexto de pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo
acesso a serviços públicos) e/ ou fragilização de vínculos afetivos, relacionais
e de pertencimento social, discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por
deficiência, dentre outras (PNAS/2004). O conceito de risco social, por sua vez,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 633

relaciona-se com a probabilidade de um evento acontecer no percurso de vida


de um indivíduo e/ou grupo, podendo, portanto, atingir qualquer cidadão (ã).
Contudo, as situações de vulnerabilidades sociais podem culminar em riscos
pessoais e sociais, devido às dificuldades de reunir condições para preveni-los
ou enfrentá-los (BRASIL, 2011, p. 14).

A combinação território, vulnerabilidade e risco social são discursos que carre-


gam regimes de regularidade imbricados ao processo de normalização dos dispositivos
de segurança, já que envolve os agentes: risco, perigo e crise. Os riscos diferenciais,
segundo Foucault (2008) são calculados na população, em zonas de mais e menos ris-
cos, e assim pode identificar o que é perigoso. A crise ocorre pela circulação dos riscos
tateados, e dessa maneira precisam ser controlados (FOUCAULT, 2008).
Foucault (2008), na obra “Segurança, Território e População”, delineia como o
dispositivo de segurança operará com mais liberdade no sentido moderno a partir do
século XVIII, e como está articulado as estratégias disciplinares, por meio de técnicas
de vigilância e diagnóstico dos indivíduos, e estratégias jurídico-legais.
Investe-se no corpo social toda uma necessidade não só de aplicar a lei penal, e
não somente estabelecer uma série de tecnologias de vigilâncias, controles, correção
e moralização, bem como as técnicas policiais, médicas e psicológicas atuando sobre
corpos individuais, mas adiciona-se o cálculo dos prejuízos do ato cometido pelo indi-
víduo à sociedade, ou seja, os custos sociais da criminalidade e é interrogado se de fato
ele pode ser considerado reeducável, pois calcula-se o risco de reincidência a partir do
nível da periculosidade do indivíduo.
O dispositivo de segurança diferencia-se das vias soberania jurídica e disciplina,
mas complementa-se a elas: “o permitido e o proibido, vai se fixar de um lado uma
média considerada ótima, e depois, estabelecer os limites do aceitável, além dos quais
a coisa não deve ir” (FOUCAULT, 2008, p. 9). Por meio dos dispositivos de segurança
concentrados na população que o governo foi pensado fora da soberania jurídica, e a
família no interior da população a ser governada. Quando se objetivar algo da popu-
lação a respeito do comportamento sexual, número de filhos e regras de consumo,
a família será o elemento principal, o instrumento para o governo das populações
(FOUCAULT, 2008).
O território é mapeado no SUAS para localizar onde os serviços do CREAS serão
estabelecidos para que seja uma referência territorial (BRASIL, 2011), levando-se em
consideração as zonas de risco e periculosidade quanto as situações de violências que
são estatisticamente identificadas.
É no território onde se visualizam vulnerabilidades e riscos aos quais a comu-
nidade está exposta, mas ali também há potencialidade, cultura, história, valores,
oportunidades, redes de solidariedades e movimentos sociais. O acesso aos direitos
socioassistenciais relaciona-se a garantia de um atendimento digno, atencioso e respei-
toso, acesso a informação por parte do (a) usuário, ao protagonismo e à manifestação
de seus interesses, a convivência familiar e comunitária e oferta qualificada de serviços.
Atenção a dignidade e diversidade, sem discriminações quanto orientação sexual, crença
ou religião, raça e/ou etnia, idade, gênero, deficiências, entre outros (BRASIL, 2011).
634

Ao lado do conceito de território, há a vigilância socioassistencial, dispositivo


da política que constrói diretrizes para o mapeamento dos territórios, a constituição
do público prioritário dos serviços, bem como a avaliação e monitoramento das ações
socioassistenciais (CARMONA; SOUZA; SANTOS, 2019).
A vigilância social, de acordo com a PNAS, definida como:

Vigilância Social: refere-se à produção, sistematização de informações, indica-


dores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e
social que incidem sobre famílias/pessoas nos diferentes ciclos da vida (crianças,
adolescentes, jovens, adultos e idosos); pessoas com redução da capacidade pes-
soal, com deficiência ou em abandono; crianças e adultos vítimas de formas de
exploração, de violência e de ameaças; vítimas de preconceito por etnia, gênero
e opção pessoal; vítimas de apartação social que lhes impossibilite sua autonomia
e integridade, fragilizando sua existência; vigilância sobre os padrões de serviços
de assistência social em especial aqueles que operam na forma de albergues,
abrigos, residências, semi-residências, moradias provisórias para os diversos seg-
mentos etários. Os indicadores a serem construídos devem mensurar no território
as situações de riscos sociais e violação de direitos (BRASIL, 2004, p. 39 e 40).

É um sistema de monitoramento, avaliação das ações socioassistenciais, bem


como constituir o público prioritário dos serviços no CREAS e nos estabelecimentos
e programas que compõem a política de assistência (BRASIL, 2014). É assumida pelo
órgão público gestor da assistência social para conhecer as formas de vulnerabilidade
social da população e do território onde está localizada. Apesar do órgão gestor estar à
frente da execução desse sistema, todos os agentes que compõem os serviços também
são corresponsáveis na alimentação das informações que subsidiarão os diagnósticos
territoriais e consequentemente os planos de assistência social (BRASIL, 2011).
A vigilância socioassistencial deve buscar conhecer o cotidiano da vida das
famílias, a partir das condições concretas do lugar onde elas vivem e não só as
médias estatísticas ou números gerais, responsabilizando-se pela identificação dos
“territórios de incidência” de riscos no âmbito da cidade, do Estado, do país, para que
a Assistência Social desenvolva política de prevenção e monitoramento de riscos. O
sistema de vigilância social de Assistência Social é responsável por detectar e informar
as características e dimensões das situações de precarização, que vulnerabilizam e
trazem riscos e danos aos cidadãos, a sua autonomia, à socialização e ao convívio
familiar – PNAS (BRASIL, 2014, p. 93).
Diante do exposto, combinam-se técnicas sobre os corpos na individualidade e
na dimensão coletiva para identificar territórios de risco e assim justificar as interven-
ções de um modelo de proteção social que se alinha à normalização dos dispositivos
de segurança que garantem o freio da crise, ou seja, reduzir a circulação dos riscos
tateados a fim de que sejam controlados (FOUCAULT, 2008).
O autodisciplinamento pela vigilância socioassistencial é também provocado
no SUAS quando:

Ressalta-se a importância de se realizar o monitoramento e a avaliação de modo


integrado à área de vigilância socioassistencial, com vistas a zelar pelo padrão de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 635

qualidade na oferta dos serviços socioassistenciais e analisar a adequação entre


a oferta de serviços e as necessidades de proteção social especial da população –
Orientações Técnicas: CREAS (BRASIL, 2011, p. 108).

Ou seja, uma ferramenta de vigilância de si e do outro como agentes da polí-


tica para a qualidade dos serviços ofertados. Enquanto relações de poder na linha
foucaultiana, há positividades, e a perspectiva de avaliação contínua e reflexão
sobre quais práticas estão sendo viabilizadas é um exercício relevante pontuado
nos documentos oficiais.
O documento sobre as orientações técnicas no CREAS aborda a importância
dos registros de informação por parte da equipe de referência (BRASIL, 2011). Para
Venâncio (2018) os relatórios se caracterizam como instrumental técnico por meio
da comunicação escrita, apresentam intencionalidades no que concerne a descrição e
objetivos das medidas de intervenção. E embora possuam como finalidade questões
objetivas relativas ao acompanhamento familiar no processo de enfrentamento as
situações de violações de direitos, manifestam racionalidades dos seus emissores.
Os registros dessas informações entre os profissionais são alimentados por meio
da realização de visitas domiciliares, atendimentos individuais, familiares e em grupos
(BRASIL, 2011). Nos relatórios da equipe analisados destaca-se o esforço de seguir
as cartilhas de orientação e recomendações oficiais, principalmente na tipificação
das violações sofridas por sujeitos para justificar o acompanhamento no CREAS.
Além disto as avaliações de adesão das famílias ao acompanhamento psicossocial
mostraram-se unidirecional, pois se as famílias não comparecessem aos atendimentos
planejados em equipe eram consideradas resistentes. Não se observou, por exemplo,
se as ações planejadas e executadas para as famílias eram realmente construídas
conjuntamente para a busca da superação da violação sofrida, conforme exposto na
cartilha do CREAS (BRASIL, 2011).
A produção documental no SUAS é fundamental para execução e avaliação
dessa política, e no campo da psicologia, Lasta, Guareschi e Cruz (2014) sintetizam
que a ciência psicológica tradicional, que ainda reverbera na atualidade, se ocupa
da adequação de pessoas à norma, para classificar normais/anormais, aptos/inaptos,
corrigindo determinados sujeitos e determinados modos de vida. Todavia, a prática
profissional no SUAS não deve visar objetificar e patologizar o sujeito, mas parale-
lamente se exige do profissional da Psicologia avaliações que poderiam fundamentar
decisões quanto a quais seriam as condutas mais adequadas. Para as autoras, portanto,
a marca higienista se aplica em discursos que produzem saberes e contribuem para
que ordens sociais sejam criadas e mantidas.
Silva, Huning e Guareschi (2020) tensionam as adjetivações de determinados
lugares como territórios vulneráveis, pois muitas vezes são costumes, economia,
culturas opostas à lógica de mercado que as cidades se submetem, logo, a intenção
é apagar as resistências geradas localmente, “é a constituição histórica e geográfica
das cidades que nos remetemos, mas também aos modos como essas pessoas tornam
possível sua existência frente às adversidades que as submetem” (SILVA; HUNING;
GUARESCHI, 2020, p. 12).
636

O tornar possível à existência, explicitado pelas autoras pode ser uma forma
de manobrar as disputas entre a memória oficial do espaço urbano e as memórias
colocadas como subterrâneas, marginalizadas (POLLAK, 1989), para ampliar as
análises locais sobre sua própria formação e gestão urbana, ao invés de reiterar os
discursos oficiais. O processo de subjetivação, de se tornar algo, complexificam-se aos
processos de dessubjetivação, de deixar de ser e viver, para ser e viver outro, tateando
assim as governamentalidades no território (SILVA; HUNING; GUARESCHI, 2020).
De acordo com Guareschi et al. (2007), é um complicador quando o conceito de
vulnerabilidade social é associado ao indivíduo apenas e não aos fatores que suscitam
a falta de acesso a bens e serviços, caracterizando a vulnerabilidade. Outro ponto é
que o conceito de vulnerabilidade não pode ser reduzido à situação de pobreza, mas
também pelas relações sociais racializadas, de orientação sexual, gênero e etnia.
Advertem sobre a naturalização dessa condição por meio de discursos que elevam a
responsabilidade individual, e a relevância de investigar a construção dessa narrativa
que leva essas pessoas a serem caracterizadas como vulneráveis.
Apesar da política de assistência social apontar que nos territórios há potencia-
lidades e não somente vulnerabilidades e riscos (BRASIL, 2011) um dos principais
objetivos dos acompanhamentos psicossociais é propiciar “a construção de novas
referências a serem vivenciadas nos espaços familiares e comunitários (BRASIL,
2011, p. 51)”, portanto, o cuidado está em não propagar uma naturalização desses
territórios como perigosos, pois segundo Lemos; Cruz; Souza (2015) os saberes psis
alinhados aos parâmetros médico-psicologizantes também agem em nome da redu-
ção dos riscos, perigos e crises sociais em uma sociedade de segurança, reduzindo a
multiplicidade dos modos de vida em práticas universalizadoras e padronizadoras.
E ainda Deltmann, Aragão e Margotto (2016) chamam atenção para que a Psi-
cologia no SUAS não se reduza a atendimento individuais, e a padronizações que
privatizam as práticas coletivas, bem como a necessidade em ultrapassar o imaginário
e encomenda de funções diagnósticas e terapêuticas, fundadas em um especialismo
psi como um expert.

Táticas de governamentalidade no CREAS

A governamentalidade é um conjunto de instituições, análises, procedimentos e


cálculos, tendo como alvo a população, sendo um instrumental fundamental para os
dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008). A respeito da governamentalidade
neoliberal, Foucault (2010) destaca o limite às ações estatais em nome das leis do
mercado, e no modelo americano a forma econômica abrange as relações sociais,
normalizadas pela figura do homo oeconomicus, um empresário de si, o qual investe
em seu capital humano para estabelecer avaliações sobre as escolhas em sua vida,
baseado no consumo e nos valores monetizados.
A governamentalidade neoliberal encontra engrenagem no SUAS diante da
renda como um dos elementos preponderantes para avaliar a qualidade de vida e
gerência privada do consumo. A inclusão social no SUAS perpassa uma inclusão
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 637

nas leis do mercado. O cuidado em família é avaliado como investimento de si e


a reconstrução de vidas e vínculos afetivos baseiam-se, dentre outros aspectos, na
forma econômica. Nesse sentido, ilustra-se não somente o Programa Bolsa Família
ou Benefício de Prestação Continuada como diretamente condicionados à situação
da renda familiar, mas os próprios registros da vida familiar e comunitária pelos(as)
trabalhadores(as) sociais.
A política de assistência social está alicerçada em parâmetros capitalísticos,
com instrumentos de controle da vida, expressos nas ferramentas de trabalho, na
distribuição de atendimentos de profissionais baseados no contingente populacio-
nal de famílias e indivíduos e a territorialização, assim como a vigilância quanto
à qualidade de vida no registro detalhado como disciplinamento (DETTMANN;
ARAGÃO; MARGOTTO, 2016).
O enfrentamento à ausência de renda como vulnerabilidade social pela PNAS
(BRASIL, 2004) é multidimensionado enquanto uma atribuição que não inicia e nem
termina no SUAS, mas paralelamente há uma rarefação do discurso pelo viés terapêu-
tico e político que fomenta a normalização da figura do homo oeconomicus quando
fortemente investe em registros minuciosos, prontuários e relatórios que colaborarão
para uma responsabilização individualizada das escolhas de vida traçadas até então,
usadas como justificativa a situação adversa vivenciada no momento, manifestada
pelas poucas ou inexistentes oportunidades de inclusão na rede de consumo.
A estratégia de governamentalidade do SUAS conjuga assim saberes higie-
nistas, e pelo escopo da interdisciplinaridade, articula diferentes disciplinas para
definir essencialmente e estavelmente a verdade sobre a forma de cuidado em torno
de crianças e adolescentes.
Essas táticas de governamentalidade permitem a sobrevivência do Estado e
seus limites, mas os modos de governo não são exercidos sobre o Estado, cidade
e território, mas sim sobre as pessoas (FOUCAULT, 2008). Essa é uma notória
constatação quando se investiga nos dias atuais, segundo Lemos et al (2015), de
como a segurança interage com a soberania jurídica, a disciplina, medicalização e
psicologização da vida, inclusive na atualidade muitas penas são denominadas como
pedagógicas. A biopolítica junto à disciplina e segurança implicam-se em técnicas
que criam análises pela gestão de risco e perigo, como os cálculos sobre violências,
o governo das condutas com vias à seguridade da vida em população.
Nota-se assim que a medicalização do espaço urbano fomentou a construção
moderna da família (MITJAVILA, 2005) e a higienização da vida em sociedade foi
um dos objetivos das práticas medicalizantes. Enquanto arte de governar, a medica-
lização age como ferramenta do biopoder para ditar formas gerais de existência, e
desse modo, a vigilância social no SUAS assume um papel medicalizante, articulado
aos institutos de disciplina, mas também enquanto dispositivo de segurança imersos
na figura do sujeito de direitos que necessita da proteção social estatal.
A soberania se exerce sobre os territórios, a disciplina sobre os corpos dos indi-
víduos, e a segurança a população, contudo, a problemática do espaço é transversal
as três, de diferentes modos. Ilustra-se com o exemplo da cidade, do que poderia ou
638

não circular entre ela, por meio de controles que deveriam possibilitar a vida e saúde
das populações (FOUCAULT, 2008).
Teodoro (2019) reitera que o local escolhido para a instalação dos equipamentos
socioassistenciais como o CREAS é onde estão as famílias visualizadas como vulne-
ráveis e que vivenciam as desigualdades socioterritoriais. Dentre as desigualdades,
enumera-se: a redução da taxa de natalidade, a mulher como provedora da família,
o aumento da população idosa e pessoas em situação de rua, dos níveis de pobreza,
desemprego, baixa escolaridade e fluxo migratório.
Pereira (2007) e Teodoro (2019) expõem que descentralização se embasa na
noção de territorialização, como a localização dos centros e entidades socioassis-
tenciais em territórios e a realização de ação integradas. Sendo assim, quanto maior
densidade demográfica em um município, maior será a necessidade de mapear grupos
homogêneos, em municípios com menor índice populacional sua cobertura poderá ser
intermunicipal. Os dados censitários do Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística
(IBGE) quanto ao quadro demográfico e indicadores socioterritoriais são utilizados,
mas é desafiador definir classificações diante das diversidades históricas, geográficas,
econômicas e culturais brasileiras. Os CREAS são localizados em espaços que são
verificados pelo poder público municipal com grande incidência de casos de violência.
Desse modo, o mapeamento de grupos homogêneos como forma de enfrenta-
mento da intensa densidade demográfica ocorre para que a política pública consiga
planejar metodologicamente suas atuações. Para Deleuze; Parnet (1998, p. 44). o
agenciamento produz enunciados, agenciar é “estar no meio, sobre a linha de encontro
de um mundo interior e de um mundo exterior”. No agenciamento, há linhas que se
atravessam: a linha de fuga ou ruptura conjuga os movimentos de desterritorialização
e desestratificação; a segunda linha, molecular, quando as reterritorializações impõem
voltas e estabilizações quanto a desterritorialização operada; e a linha molar, quando
as reterriorializações se acumulam e se organizam (DELEUZE; PARNET, 1998).
Nesse aspecto os territórios existenciais não são estáveis e sim móveis, desterrito-
rializam e desestabilizam. Essa contribuição de Deleuze e Parnet (1998) contribuem
para se pensar a produção da diferença no SUAS para que o enfrentamento as reter-
ritorializações sejam pujantes nos processos de subjetivação.

“Lugar praticado”: as dinâmicas espaciais em Tomé-Açu/Pará

O território é associado à noção de vigilância e conforme o exposto, é entendido


como contraditório, porque não são espaços que manifestam somente expressões de
violências e zonas de riscos, mas oportunidades a serem potencializadas. O mapea-
mento territorial é um analisador considerável porque ele indica a necessidade de
instalação de um CREAS de acordo com características específicas da dinâmica
territorial mapeadas pela política, além de ser um operador a ser considerado quando
se pensa a imensidão territorial amazônica e os discursos acionados à governamen-
talidade da população para que o CREAS se torne referência àquela comunidade.
O município de Tomé-Açu localiza-se na mesorregião do nordeste paraense, no
Vale do Acará, que engloba os municípios de Tomé-Açu, Acará, Bujaru e Concórdia
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 639

do Pará. O município possui notável pólo madeireiro, que consequentemente leva


as substituições de grandes áreas florestais por pastagens extensivas. Há forte
economia camponesa, extrativista e de produção temporária, como a mandioca e
considerável produção de farinha pelas comunidades de descendentes nipônicos, e
investimentos em fruticultura e produção de pimenta do reino. Tudo isso, coexiste
com o plantio de dendê, advindo da chegada de empresas de grande porte, no início
dos anos 2000 em Tomé-Açu (MONTEIRO, 2017).
A dinâmica da ocupação do Vale do Acará iniciada pela ocupação de extração
de recursos naturais, passando pelo cultivo de cana de açúcar, com a participação
de portugueses, caboclos ribeirinhos, indígenas, e quilombolas que adentraram para
estas áreas pelas margens dos rios. No final da década de 1920, com a instalação
da colônia japonesa, e posteriormente, na década de 1980 e 1990, a ocupação
do Vale do Acará foi intensificada, através da ocupação espontânea, em especial
demandada pela expansão madeireira, culminado com o desmatamento e uso do
solo para formação de pastagem. Mesmo com o declínio das serrarias ocorridas
em meados da primeira década 2000, permaneceram ainda ativas as trajetórias de
pecuária extensiva e madeireira (MONTEIRO, 2017, p. 194).
O Vale do Acará, em especial o município de Tomé-Açu, possui uma compo-
sição demográfica representada por indígenas, como os da Tribo da etnia Tembé,
quilombolas, japoneses e descendentes de japoneses, nordestinos, gaúchos, e tan-
tos outros se relacionam com o território, ocupando e imprimindo característica
culturais. Os conflitos de terra são frequentes e Thury e Ribeiro (2016) apresen-
tam as disputas territoriais entre os indígenas Tembés Turé-Mariquita e a empresa
Biopalma Amazônia S/A.
A empresa dendeicultora lança sua lógica de reprodução do capital sob os
discursos da terra como força produtiva e a rentabilidade, e no caso dos indígenas
os usos dos espaços não se limitam à valoração do capital, e enfrentam a ameaça
de perda das suas terras diante da expansão do cultivo de dendê. Atualmente, na
área de abrangência da empresa há somente a demarcação de duas terras indígenas,
ocupando 0,1% da área, localizada em Tomé-Açu. O cultivo do dendê é um exem-
plo dos conflitos territoriais denunciados pelos indígenas, mas também há impactos
na agricultura familiar, além da degradação do solo em Tomé-Açu pelas atividades
agropecuárias (THURY; RIBEIRO, 2016).
Acerca dos usos dos espaços, Certeau (1998) difere espaço de lugar. Lugar, para
ele, é a ordem, uma configuração de posições que indica estabilidade, já o espaço é
“um cruzamento de móveis [...] um lugar praticado” (CERTEAU, 1998, p. 202) dos
movimentos que se dinamizam pelos que ali habitam e pelas temporalidades coexis-
tentes, e não tem a estabilidade do lugar. Uma rua ou uma praça são transformadas
em espaço pelas relações entre as pessoas que ali transitam, e assim deve-se analisar a
itinerância cotidianas baseadas em vivências que permitem essa mutabilidade espacial.
Os espaços em Tomé-Açu e suas instabilidades estão marcados pelas disputas
e por relações desiguais com a terra, o que expressa a exploração com esse território
amazônico, sendo pertinente a maior visibilidade desses temas por parte do SUAS,
pois tipifica-se a violação contra etnias (BRASIL, 2014), mas se faz crucial interrogar
640

os limites e possibilidades dessas ações. Chama atenção que na Amazônia onde essas
disputas pela terra são intensas e que interferem nas coletividades e nas desigualdades
sociais e econômicas, não estarem impressas de forma ampliada nos documentos
oficiais do SUAS que orientam as atuações profissionais.
Para Santos (2011), o território é onde desemboca todas as ações, todas as
paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história
do sujeito plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência. Afirma
que nas relações com o dinheiro globalizado, percebe-se conflitos e disputas, porque
o dinheiro global é fluido, abstrato, mas também despótico, impondo normas, adapta-
ções, racionalidades próprias do empresariado e dos governos mundiais. A presença
das empresas globais torna-se um fator de desorganização, desagregação, por meio
de interesses individualistas e particularistas.
Becker (2011) nos apresenta os cenários de ocupação (invasão) da Amazônia
nas décadas de 1970 e 1980 como processo repleto de sangue e lágrimas, marcando
mudanças em termos geopolíticos. Segundo a autora, até 1950 e 1960 a Amazônia
era vista como uma grande ilha, praticamente mais voltada para o exterior do que ao
território nacional. A conectividade prometida se daria, por exemplo, com a construção
das estradas. Uma outra mudança também seria de ordem econômica, ampliando de
uma área de extrativismo para exploração mineral e agropecuária. Isso também impli-
cou em mudanças de povoamento no que concerne ao processo de urbanização. Em
suma, foram produzidas percepções diversas a nível global, nacional, local e regional.
Tais analíticas desembocam na assistência social como problematizações da
complexidade multidimensional que envolve o território, sobretudo na Amazônia e
dos interesses do capital globalizado. Os conflitos de terra, a presença dos grandes
empreendimentos socioeconômicos viola os direitos dos povos originários como
exposto com os indígenas Tembé e pensar as implicações da atuação do SUAS e
especificamente do CREAS é salutar nesse cenário, seja pelos limites da política nesse
campo, seja pela ampliação dos debates necessários para apropriação e composição
de luta pela terra na garantia desse direito social.

Considerações finais

Aliançados por dispositivos que produzem lógicas penais e tecnologias diversas


de controles galgadas na moralização às práticas na Assistência Social, esquece-se
de singularidades e potências que emergem dos territórios.
Diante da política pública de Assistência Social, cabe pensarmos fatores hetero-
gêneos e de desigualdade socioterritorial como uma vertente analítica. O território é
detentor e produtor de uma infinidade de elementos subjetivos. Santos (2000) afirma:

O território em si, para mim não é um conceito. Ele só se torna conceito utilizável
para análise social quando consideramos a partir do seu uso, a partir do momento
em que o pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam (p. 22).

Destarte, o território se apoia no espaço, mas não é o espaço. Logo, ele é uma
produção deste (ibid, 2000). Assim, faz-se necessário validar expressões subjetivas
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 641

deste espaço através do viver local e não minimizar tais elementos, no sentido da
concretização desse conceito na sua construção da vida diante das relações de poder,
onde, justamente, de produz tais desigualdades em suas várias faces.
Compreender tais complexidades que envolvem o conceito é problematizar
estudos que tangem as especificidades encontradas nos diferentes espaços territoriais
de uma determinada região. Quando falamos na Amazônia, essas relações de poder
muito emergem diante da exploração, tais como os conflitos de terra, os grandes
empreendimentos, a violação dos direitos dos povos originários, tais como dos/as
defensores/as da garantia dos direitos, dentre outros. E no que tange a Psicologia
diante de tais as implicações frente a atuação do SUAS?
Para a Psicologia, estar ao lado do enfrentamento às diversas formas de pro-
duções de sofrimento é seu dever ético-político (CFP, 2005). É agir diante da demo-
cratização do Estado e das subjetividades, em prol de produção de saúde psíquica e
bem-viver aos povos diversos.

O envolvimento de profissionais do campo psicológico com as questões sociais


se sustenta pela exigência ética de que onde houver seres humanos sendo explo-
rados, humilhados, desqualificados, discriminados, aí está a real demanda para
esses profissionais. Da mesma maneira, onde existirem pessoas tentando construir
caminhos que viabilizem novas formas de viver e que superem as condições de
produção de sofrimento, humilhação e cerceamento da capacidade crítica e criativa
que lhes estão sendo impostas, aí está o chamamento para que esses profissionais
se coloquem a serviço dessa construção (CREPOP, 2013, p. 32).

Para tal, carecemos desses instrumentos técnico-críticos para superar Brasil


produzido de forma forte e violenta luta pela terra, desde o início do processo de
colonização (ibid, 2013), implica no desvelamento da história e sua subjetividade, no
empoderamento de seus povos e na identificação e investimento nas potencialidades
das coletividades, sobretudo em prol da garantia de direitos.
642

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O INTOLERÁVEL DAS COMUNIDADES
TERAPÊUTICAS BRASILEIRAS:
chamado a um grupo de informações
sobre as comunidades terapêuticas
Túlio Kércio Arruda Prestes
Pablo Severiano Benevides
Paulo Henrique Albuquerque do Nascimento

Introdução

Nenhum de nós pode ter certeza de escapar à prisão. Hoje, menos do que
nunca. Sobre nossa vida do dia-a-dia, o enquadramento policial estreita
o cerco: nas ruas e nas estradas; em torno dos estrangeiros e dos jovens.
O delito de opinião reapareceu: as medidas antidrogas multiplicam a
arbitrariedade. Estamos sob o signo do “vigiar de perto”. Dizem-nos que a
justiça está sobrecarregada. Nós bem o vemos. Mas e se foi a polícia que a
sobrecarregou? Dizem-nos que as prisões estão superpovoadas. Mas, e se foi a
população que foi superaprisionada? (FOUCAULT, 2006a, p. 2, grifo nosso).

A citação que trazemos como epígrafe deste trabalho está contida na publicação
“Manifesto do GIP” (FOUCAULT, 2006a) publicada em 1971 e assinada por J. M.
Domenach, M. Foucault e P. Vidal-Naquet, correspondendo ao manifesto de criação
do Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP). Esta publicação corresponde a um
manifesto mimeografado que foi distribuído à imprensa e todos os presentes na capela
Saint-Bernard de Montparnasse, no momento em que os militantes da “esquerda
proletária” que estavam presos faziam greves de fome para reivindicar a condição
de presos políticos (FOUCAULT, 2006a; ERIBON, 1990).
Nesse ínterim, a criação do GIP ocorre quase 2 anos após o “Maio de 1968”, e
é um exemplo da efervescência política que ainda ecoava de 1968, em um contexto
em que a “Esquerda Proletária” (Gauche Prolétarienne) é banida pelo governo fran-
cês e muitos membros do partido, incluindo o editor do jornal “A causa do povo”
(La cause du peuple), são presos (ERIBON, 1990; KARLSEN; VILLADSEN,
2014). Segundo Karlsen e Villadsen (2014) a prisão dos membros da “esquerda
proletária” fez com que as atividades políticas do grupo passassem a ocorrer dentro
da prisão. Inicialmente o grupo realizou greve de fome como forma de reivindicar
serem reconhecidos como presos políticos, o que lhe concederiam maiores direitos.
No início a ação não surtiu a repercussão esperada, entretanto ao longo do tempo
as greves de fome passaram a ser maiores e mais sistemáticas, incluindo os pre-
sos comuns no movimento, reivindicando o direito de que todos os presos, sem
646

exceção, fossem considerados presos políticos, “uma vez que qualquer violação das
leis instituídas pela burguesia era agora considerada um ato político” (KARLSEN;
VILLADSEN, 2014, p. 10).
Diante desta situação, Daniel Defert teria convidado Foucault a constituir uma
Comissão de Inquérito, entretanto, por problematizar o caráter judiciário desta expres-
são, Foucault decidiu utilizar a expressão “Grupo de Informação” para definir o grupo
(FOUCAULT, 2006a). O GIP foi singular não simplesmente pela mudança na nomen-
clatura, mas, sobretudo, por sua forma de funcionamento, ao buscar ser um grupo de
relações horizontais, não possuindo um líder específico, e agindo de modo a potencia-
lizar as vozes dos presidiários sem, contudo, assumir o lugar de falar destes.

Publicam-se poucas informações sobre as prisões; é uma das regiões escondidas


de nosso sistema social, uma das caixas-pretas de nossa vida. Temos o direito de
saber, nós queremos saber. [...] Propomo-nos a fazer saber o que é a prisão: quem
entra nela, como e por que se vai parar nela, o que se passa ali, o que é a vida dos
prisioneiros e, igualmente, a do pessoal de vigilância, o que são os prédios, a ali-
mentação, a higiene, como funcionam o regulamento interno, o controle médico, os
ateliês; como se sai dela e o que é, em nossa sociedade, ser um daqueles que dela
saiu (FOUCAULT, 2006a, p. 2).

Com efeito, a ideia do GIP era tornar visível, sobretudo, o que existia de intolerável
na vida no interior das prisões: as violências, os castigos, as violações de direitos, a
precarização da vida humana. Ora, mas o que o GIP, criado no início da década de 1970
poderia ter de comum com o que vivemos na contemporaneidade no Brasil? Além disso,
qual a vinculação fazemos deste com as Comunidades Terapêuticas (CTs) brasileiras?
Ora, na própria epígrafe que trazemos no início, os membros do GIP já alerta-
vam que as ações de repressão às drogas potencializam às arbitrariedades e levam
ao aprisionamento em massa (FOUCAULT, 2006a). Isso é uma realidade facilmente
constatada também por nós brasileiros quando – segundo dados do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (DEPEN, 2021) – no ano de 2021 um total
de 219.398 pessoas, o que representa 29,41% da população carcerária brasileira, tem
como tipo penal crimes enquadrados pela lei de drogas. Afora toda essa população
carcerária, gostaríamos nesse trabalho de chamar atenção para uma outra população
que se encontra confinada em CTs devido a problemas relativos ao uso abusivo e/ou
nocivo de drogas. Sobre o tamanho dessa população não temos dados precisos, e
muito menos um conhecimento preciso de que tipo de violências podem estar sendo
submetidas. O que nos dá pistas para pensar que se há uma vontade de nada saber sobre
o que acontece as prisões, esse desinteresse sobre o que acontece no interior das CTs
parece ser ainda maior.
Os membros do GIP convocavam-nos a produzir uma “intolerância ativa”,
para que nos tornássemos intolerantes com o que não pode, em hipótese alguma, ser
tolerado: “que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse de ser aceito”
(FOUCAULT, 2006b, p. 4). Em outra perspectiva, Butler (2018, p. 31) convoca-nos a
perceber que a vida possui uma condição de precariedade que nos torna responsáveis
e implicados pelas vidas uns dos outros: “A precariedade implica viver socialmente,
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 647

isto é, o fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do
outro. Isso implica estarmos expostos são somente àqueles que conhecemos, mas
também àqueles que não conhecemos”. Nesse ínterim, Butler (2018) descreve como
diferentes enquadramentos de poder determinam que vidas podem ser reconhecíveis
como vidas, e que vidas continuam existindo sem serem reconhecidas como vida, sem
serem passíveis de luto. Tentando pensar junto desses autores poderíamos acrescentar
os questionamentos: que vidas são passíveis de nossa intolerância ativa? Que vidas são
ou não passíveis de nossa indignação mesmo quando submetidas as piores sujeições?
Assim, da mesma forma que o Grupo de Informações sobre as Prisões buscava
discutir o problema da penalidade, ou do sistema penal, a partir do que acontecia nas
prisões como “subsolo do sistema penal, seu depósito de entulhos” (FOUCAULT,
2012, p. 137), seria necessário hoje realizar também um Grupo de Informações das
Comunidades Terapêuticas (GICT) e problematizar o problema da penalidade a partir
da internação (voluntária, involuntária ou compulsória) dos usuários de substâncias
psicoativas nesses espaços. Assim, se Foucault utilizou-se do GIP para a partir das
prisões levantar questões políticas de uma perspectiva diferente daquela encampada
por meio da análise da luta de classes, ou seja, da luta entre proletariado e burguesia,
algo semelhante poderá ser feito a partir de um GICT. De maneira que nosso intuito
com esse trabalho seria fazer um chamado público à construção de um Grupo de
Informações sobre as Comunidades Terapêuticas, ou, pelo menos, ressaltar a neces-
sidade de sabermos o que se passa no interior desses lugares destinados a receber
indivíduos que fazem uso nocivo de drogas, algo que de tão intragável a sociedade
em que vivemos prefere não ver, não saber, não se indignar.
Para a realização desta pesquisa nos serviremos de dois relatórios de inspeção
de CTs: o primeiro corresponde ao “Relatório de Inspeção Nacional das Comu-
nidades Terapêuticas” (CFP et al, 2017) e o segundo corresponde ao “Relatório
Diligência de Instrução na Comunidade Terapêutica ‘Desafio Jovem Maanaim’”
(MNPCT et al., 2020).
Antes de apresentarmos os relatórios de inspeção das CTs no Brasil e analisarmos
o porquê esses espaços terem -se constituído como locais de produção do intolerável,
é necessário inicialmente remontar brevemente ao contexto de emergência das CTs e
apresentar formas de entendê-las e/ou caracterizá-las.

1. Definindo e contextualizando a emergência das


comunidades terapêuticas

Segundo dados do IPEA (2017) do ano de 2017, estimava-se que existissem


naquele ano cerca de 2000 CTs no Brasil. É provável que atualmente esse número
seja bem maior, considerando-se o fato de termos assistido um estímulo à internações
em CTs, entretanto é difícil afirmar com certeza o número de CTs existentes pelo
fato de muitas delas, nem em 2017 nem atualmente constarem nos registros oficiais
(IPEA, 2017).
Inicialmente faz-se necessário apresentar a dificuldade de definirmos o que é
uma CT, dado as diferentes formas de descrevê-la e pensá-la. A partir dos trabalhos
648

de George de Leon, considerado um dos maiores expoentes do tratamento em CTs


dos transtornos aditivos por substância, estas assim poderiam ser definidas:

A Comunidade Terapêutica é fundamentalmente uma estratégia de autoajuda,


inicialmente desenvolvida num marco independente psiquiatria, psicologia e
medicina convencionais. A estratégia básica da Comunidade Terapêutica é tratar
a pessoa como um todo através de comunidades de pessoas com os mesmos
problemas, essas comunidades foram inicialmente desenvolvidas para solucionar
o abuso de substâncias e foram expandidas em torno de uma ampla variedade
de serviços adicionais relacionados à família, educação, formação profissional
e saúde médica e mental (DE LEON, 2004, p. 25 tradução nossa).

De modo semelhante, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodepen-


dência (que utiliza a sigla em inglês EMCDDA207) esclarece que em torno do termo
“Comunidade Terapêutica” abrigam-se uma diversidade de tradições e modelos de
tratamento, tendo estes o comum o fato de que:

[...] todos compartilham a ideia de usar as relações e atividades de um ambiente


social propositadamente projetado ou ambiente de tratamento residencial para
promover mudanças sociais e psicológicas. As CTs oferecem um ambiente livre
de drogas em que pessoas com problemas de dependência (e outros) convivem de
forma organizada e estruturada para promover mudanças e possibilitar que elas
levem uma vida livre de drogas na sociedade externa. A principal característica
distintiva da CT é o uso da própria comunidade como agente de mudança funda-
mental (“comunidade como método”). Existem várias definições características
da abordagem “comunidade como método”, incluindo o uso de uma série de
atividades nas quais se espera que tanto os funcionários quanto os residentes
participem e o uso de pares como modelos que dão um exemplo positivo e
demonstram como viver de acordo com a filosofia e o sistema de valores da CT
(EMCDDA, 2014, p. 9 tradução nossa).

Em uma história oficial da psiquiatria, costuma-se apontar que em meados da


década de 1940 o psiquiatra britânico Tom Main teria sido o primeiro a utilizar o
termo “Comunidade Terapêutica” para designar o trabalho que realizava no Nor-
thfield Hospital com soldados diagnosticados com “neurose de guerra” após terem
combatido na Segunda Guerra Mundial (AMARANTE, 2010; EMCDDA, 2014).
Apesar do pioneirismo de Tom Main, teria sido apenas com os trabalhos de Maxwell
Jones realizados na Inglaterra, também tendo como contexto o pós-Segunda Guerra
Mundial, que o termo “Comunidade Terapêutica” e sua proposta de atuação teria se
consolidado (AMARANTE, 2010; GOULART, 2014).
Segundo Birman e Costa (1994) o movimento das Comunidades Terapêuticas
na Inglaterra e nos Estados Unidos é reflexo do surgimento de uma psiquiatria

207 Este observatório corresponde a uma organização da União Européia, sendo sediada em Lisboa, onde
recebe o nome “Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência”. Entretanto, a grande maioria
das publicações do observatório é em inglês, sendo também mais frequente a utilização da sigla EMCDDA
– European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction – para se referir ao observatório.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 649

social, que surge em um contexto de crítica das instituições asilares e de denún-


cia da pouca efetividade das práticas terapêuticas encampadas pela psiquiatria,
constatada à época devido aos altos índices de cronicidade das doenças mentais.
Amarante (2010) explica que essa crítica às instituições asilares ganha força no
período pós 2ª Guerra Mundial justamente porque o cenário de degradação da vida
humana vista nos campos de concentração nazistas não poderia ser mimetizado em
instituições psiquiátricas. Entretanto, o autor destaca que a necessidade de refor-
mulação não era apenas de ordem “humanista”, a necessidade de transformar as
instituições asilares era também de ordem econômica, dado o imperativo de tornar
toda aquela massa de corpos produtivos, já que a ideia que agora se tinha era que
o hospital psiquiátrico além de não curar eram, ao contrário, potencializadores de
mais adoecimento e letargia (AMARANTE, 2010).
Ao detalhar sobre a forma que Maxwell Jones entendia a CT, Goulart (2014)
destaca que Jones estabelecia uma estrutura social bem diferente da de um hospital
psiquiátrico. Na CT as relações seriam mais horizontais e democráticas, pois além de
não serem médico-centradas, não apenas o corpo técnico, mas também os pacientes
e os familiares dos pacientes poderiam exercer funções administrativas e terapêuti-
cas dentro dessa instituição (GOULART, 2014). Ainda segundo a mesma autora, as
diretrizes e princípios organizativos do modelo de funcionamento das CTs dos anos
1960 eram baseados na:

Democratização das relações insti­tucionais, Anti-autoritarismo, Anti-tecnicismo,


Alto grau de tolerância com os pa­cientes, Incentivo à participação, Confronto, dos
portadores de dis­túrbios mentais, com a realidade; Desenvolvimento de projetos
de in­tegração social; Prática multiprofissional; Trabalho com metodologia de
grupos (GOULART, 2014, p. 56).

Quanto ao modo de funcionamento das CTs existentes atualmente no Brasil,


veremos nos tópicos a seguir que estas parecem diferir radicalmente da proposta
elaborada por Maxwell Jones. No ano de 2017 o IPEA realizou um perfil das Comu-
nidades Terapêuticas Brasileiras por meio de uma pesquisa quantitativa de survey,
com 500 CTs, e de uma pesquisa qualitativa etnográfica em 10 CTs (IPEA, 2017).
A partir destas pesquisas o IPEA (2017) destaca que as principais características
que unem as CTs brasileiras é o fato de seu modelo de atenção basear-se em 3 pila-
res: o trabalho, a disciplina e a espiritualidade. O pilar do trabalho é denominado
comumente de “laborterapia”, partindo-se do pressuposto de que o exercício do
trabalho teria um poder terapêutico adjuvante ao tratamento (IPEA, 2017). Daí a
ideia de que os usuários precisam realizar serviços durante a estadia na CT. O pilar
da disciplina corresponde ao controle rígido do tempo, dos gestos, dos espaços e das
atividades realizadas, como maneira de infundir a autodisciplina e o autocontrole
nos usuários da CT, já que se acredita que estas são “disposições entendidas como
ausentes entre as pessoas que fazem uso problemático de SPAs, mas necessárias
para o seu sucesso na vida social” (IPEA, 2017, p. 8). O pilar da espiritualidade
corresponde à realização de práticas religiosas que incluem desde regime de orações
à participação em cultos religiosos e conselhos espirituais, que teriam por função
650

“promover a fé dos internos em um ser ou instância superior, vista como recurso


indispensável, seja para o apaziguamento das dores e sofrimentos dos indivíduos,
seja para o seu enquadramento moral” (IPEA, 2017, p. 8).
Com efeito, diante da diversidade das CTs a partir dessas referências sobressai-se
como pressuposto central a ideia de que a comunidade deve ser utilizada como instru-
mento terapêutico e de transformação, ainda que se observe também uma pluralidade
de metodologias que tomem a comunidade como instrumento de intervenção. Além
disso, na definição da EMCDDA (2004) que trata especificamente de CTs voltadas
para pessoas que fazem uso abusivo e/ou nocivo de substâncias psicoativas, dois
pontos merecem nossa atenção para os fins deste trabalho.
O primeiro ponto é que nessa definição de CT vemos a ideia de que é a convivên-
cia organizada e estruturada no ambiente da própria CT que possibilita as mudanças
terapêuticas almejadas. Daí, portanto, a necessidade recorrente de um cronograma de
horários e atividades nas CTs, com horários estipulados para acordar, para se alimentar,
para realizar cada uma das atividades programadas, etc. A exemplo desse controle
estrito podemos citar um exemplo relatado no “Relatório Diligência de Instrução na
Comunidade Terapêutica ‘Desafio Jovem – Maanaim’” (MNPCT et al, 2020), que
iremos analisar mais detalhadamente adiante, em que na CT visitada existia até a
especificação de tempo cronometrado para realização do banho: “Os banhos têm prazo
máximo de 5 minutos, salvo caso excepcional, onde poderão ser liberados banhos de
maior tempo, para que os acolhidos possam manter sua higiene pessoal em qualidade
satisfatória” (MNPCT et al., 2020, p. 22). Como apontado por Foucault (2006c) essa
ideia de que deve existir ordem para promoção de cura é algo que costuma aparecer
também na definição dos primeiros psiquiatras acerca de como deveriam ser as ins-
tituições psiquiátricas. Portanto, a ideia de que a ordem como característica do poder
disciplinar, com seu controle minucioso dos gestos, do corpo, do tempo e do espaço
dos indivíduos, seria condição sine qua non para a promoção de cura permanente e
para organização do próprio saber médico (FOUCAULT, 2006c).
O segundo ponto diz respeito a essa definição de que as CTs “oferecem um
ambiente livre de drogas” (EMCDDA, 2014, p. 9) para que quando o indivíduo
retorne a sociedade este não seja mais um usuário de drogas. Portanto, nessa primeira
definição de CT, apresenta-se a ideia de que a CT seria uma espécie de espaço utópico
em que as drogas não existem, para que quando o indivíduo saia dali este continue
livre das drogas. Ademais, os próprios teóricos das CTs admitem que foi a partir do
projeto de criação de micro-sociedades utópicas, que além de ser ambientes livre de
drogas existiria um ambiente de autogestão e harmonia perfeita entre os membros, que
a “segunda geração” de CTs foram construídas durante as décadas de 1950 e 1960:

A segunda geração envolve a tradição estadunidense, que começou com a Synanon


em 1958. A Synanon foi fundada por um alcoólatra recuperado chamado Charles
‘Chuck’ Dederich. Foi criada como uma microsociedade idealista utópica onde
adictos em recuperação viviam e trabalhavam juntos, aderindo a valores como
verdade, honestidade, criatividade, abertura e autoconfiança (Broekaert et al.,
2000; Janzen, 2001). Dederich foi inspirado pelos escritos idealistas de R.W.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 651

Emerson, valores cristãos primitivos, filosofia oriental, rearmamento moral (os


‘grupos de Oxford’, liderados por Frank Buchman) e Alcoólicos Anônimos (AA)
e seu método de 12 passos (BROEKAERT et al., 2006, p. 2) (EMCDDA, p. 20,
grifo nosso, tradução nossa).

A partir de nossa perspectiva, foucaultiana, e analisando os objetivos econô-


micos, políticos e sociais em torno dos quais as CTs se organizam, talvez fosse mais
acurado descrever a Comunidade Terapêutica não como um espaço utópico, mas como
mais uma das “heterotopias de desvio” (FOUCAULT, 2013, p. 22) ou heterotopias
de regeneração que encontramos nas sociedades ocidentais contemporâneas. Sobre
o que denomina de heterotopias de desvio, Foucault (2013) esclarece:

Mas essas heterotopias biológicas, essas heterotopias de crise, desaparecem cada


vez mais e são substituídas por heterotopias de desvio: isto significa que os lugares
que a sociedade dispõe em suas margens, nas paragens vazias que a rodeiam, são
antes reservados aos indivíduos cujo comportamento é desviante relativamente à
média ou à norma exigida. Daí as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas, daí
também, com certeza, as prisões (p. 22).

Com efeito, as CTs podem ser entendidas como heterotopias de desvio, ou seja,
esses lugares outros em que os sujeitos que nossa sociedade acredita que fazem um
uso problemático de drogas, que não conseguem se autodisciplinar, são enviados para
aprenderem a se autogovernar. Lugares propositalmente à margem, lugares distantes,
de difícil acesso, em que o sujeito fica afastado da sua família, de seus amigos, de sua
comunidade. Lugares que, em geral, as pessoas preferem não saber o que acontece
exatamente, preferindo acreditar que dever algo de comunitário, de terapêutico, de
protetivo sendo realizado, sem, contudo, conhecer esta realidade.
De modo distinto, este trabalho pretende ser um convite justamente a saber o
que realmente se passa nesses lugares, o que acontece com estas pessoas. A saber,
afinal, quantas violências podem estar sendo engendradas com a justificativa de uma
terapêutica, de um cuidado e da proteção. Nesse sentido, este trabalho apresenta-se
como um chamado a criação a um Grupo de Informações sobre às CTs que possa
criar espaços de escuta e de ampliação das vozes daqueles que estão ou já passaram
por uma internação em CT. Um primeiro passo, ainda que pequeno, nessa direção é
explicitar, tornar visível o que outros já constataram sobre o funcionamento destas
CTs, por esse motivo, nos propomos a analisar o que os relatórios de inspeção nacio-
nal trazem sobre o modus operandi destas. Entretanto, antes de analisarmos esses
relatórios, convém apresentar como as CTs vem ganhando destaque nas políticas
públicas sobre drogas brasileiras.

2. As políticas sobre drogas no Brasil e o estímulo às internações em


comunidades terapêuticas

Como é sabido, a Lei nº 10.216/2001 (BRASIL, 2016) é considerada o grande


marco da reforma psiquiátrica brasileira por reconhecer os direitos das pessoas
652

portadoras de transtorno mental e por preconizar um modelo assistencial de saúde


antimanicomial e que visa à desinstitucionalização. Como destaca Lima (2010), a
Lei da Reforma Psiquiátrica possibilitou um aumento do financiamento para serviços
substitutivos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ao passo em que se
reduzia o financiamento para os hospitais psiquiátricos, que antes da promulgação da
lei correspondiam a aproximadamente 93% dos recursos destinados pelo Ministério
da Saúde para Saúde Mental.
Com um significativo direcionamento para uma postura de desinstituciona-
lização do cuidado a Lei nº 10.216/2001 até especifica a possibilidade de inter-
nação, mas ressalta que está só deverá ser utilizada em último caso, quando já se
tiver esgotado todas as possibilidades da utilização de recursos extra-hospitalares
(BRASIL, 2001). Faz-se necessário ressaltar que nessa lei estabelece-se que a
internação, seja voluntária ou involuntária, necessita ser autorizada por um médico
devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina do Estado em que se
realiza a internação (BRASIL, 2001).
Cinco anos após a promulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica é aprovada
a Lei nº 11346/2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas
– SISNAD – e estabeleceu medidas de prevenção do uso indevido, medidas de
atenção e reinserção social de usuários e dependentes de substâncias psicoativas
e medidas de repressão ao tráfico de drogas e produção não autorizada (BRASIL,
2006). Embora percebamos que a partir da Nova Política Nacional sobre Drogas de
2019 tenha ocorrido um estímulo considerável às internações em CTs, não é esta
legislação que inaugura o modelo de atenção baseado na abstinência, nem tampouco
é o primeiro ordenamento jurídico que estabelece as CTs como fazendo parte da
Rede de Atenção Psicossocial.
Como analisamos em trabalho anterior (BENEVIDES; PRESTES, 2014), na
Política Nacional sobre Drogas de 2006 (BRASIL, 2006) havia tanto o endosso
para ações de caráter repressivo em relação ao uso de drogas como um primeiro
aceno ao paradigma da redução de danos. Como destaca Boiteux (2015), se por
um lado a PNAD de 2006 passou a reconhecer os direitos dos usuários de drogas –
inclusive despenalizando o uso – e a redução de danos como estratégia, por outro
essa mesma lei aumentava a pena mínima por tráfico de drogas e equiparava este
a um crime hediondo, o que veio a se tornar a principal causa para aumento da
superpopulação carcerária no Brasil. Sobre esse ponto Azevedo e Hypolito (2016,
p. 249-250) afirmam:

Se em um primeiro momento, ainda no período de sua construção no legislativo,


a proposta trazida pela lei era a de reduzir danos e diminuir os problemas decor-
rentes do antigo texto legal, assim diferenciando condutas – usuários de pequenos
e grandes traficantes – por meio da aplicação de penas distintas para cada um,
no campo prático, como foi anteriormente apontado, isso não ocorreu. [...] O
aumento da pena mínima do delito de tráfico para cinco anos, que em regra impede
a aplicação de penas alternativas à prisão, assim como o crescimento constante
do indiciamento de pessoas por comercialização de drogas e a diminuição das
condutas enquadradas como consumo, foram fatores que agravaram as taxas de
encarceramento, desde que a lei 11.343 entrou em vigência em 2006.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 653

Em relação a inclusão das CTs como dispositivos de cuidado, Santos (2018)


destaca que também a PNAD de 2006 já havia aberto um pequeno espaço às CTs
quando mencionava que a atenção e reinserção social do usuário e dependente de
drogas pudesse ser feita tanto por meio das instituições e serviços que compunham
o SUS, como de instituições da rede privada e organizações sociais civis sem fins
lucrativos. Entretanto, é somente com a Portaria nº 3.088, 23 de dezembro de 2011 –
que estabelece a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento
ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) – que de fato passou-se a incluir
as CTs como sendo integrante da RAPS. Assim, embora o decreto de 2011 estipulasse
uma centralidade do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) como equipamento e
serviço de referência para os usuários de substâncias psicoativas, as CTs passavam
a figurar como serviços de atenção residencial de caráter transitório.
Nesse ínterim, 4 anos depois das CTs já figurarem como instituições integrantes
da RAPS é aprovada a Resolução CONAD nº 01/2015 (CONAD, 2015) com o obje-
tivo de regulamentar e normatizar parâmetros básicos para as CTs que realizavam
internamento voluntário de pessoas com problemas associados ao uso nocivo de
substâncias psicoativas. Segundo esta resolução as CTs deveriam realizar somente
acolhimento em caráter voluntário e após o indivíduo já ter sido avaliado em algum
serviço de saúde (CONAD, 2015). Além disso, as CTs deveriam necessariamente
fazer uma vinculação com a rede de atenção social do Município. Entretanto, as
CTs parecem descumprir todos esses direcionamentos. Como destacam Carvalho e
Dimenstein (2017) em geral as CTs parecem não conseguir se integrar com a forma de
cuidado estabelecida nos demais serviços que compõem a RAPS e criam estratégias
para que os usuários permaneçam ligadas a esta.
Em 11 de abril de 2019 é assinado – por Jair Messias Bolsonaro, Sérgio
Moro, Luiz Henrique Mandetta, Osmar Terra e Damares Regina Alves – o Decreto
nº 9761/2019 (BRASIL, 2019) que institui a nova Política Nacional sobre Drogas
(PNAD). Essa nova política sobre drogas altera em muitos pontos a Lei nº 11343/2006
(BRASIL, 2006), tendo como principais mudanças um direcionamento maior a ações
que visam diretamente a abstinência de drogas, aproximando-se ainda mais de um
modelo proibicionista e repressivo, bem como a garantia do acolhimento dos usuários
de substâncias psicoativas em CTs (RAMOS, 2020). A seguir abordaremos como
essas duas mudanças propiciaram um maior financiamento das CTs, que passam
a ser dispositivos centrais da política sobre drogas a partir da justificativa de uma
consideração holística do ser humano.
Nesse ínterim, o primeiro pressuposto da nova PNAD é apresentado como
“buscar incessantemente atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida
do uso de drogas lícitas e ilícitas e da dependência de tais drogas” (BRASIL, 2019,
p. 3). Sobre esse pressuposto há ainda dois pontos que merecem nossa atenção. O
primeiro ponto é que este pressuposto por si já expressa uma visão contrária daquela
preconizada pela redução de danos, que estabelece que as ações das políticas sobre
drogas não devem ser arregimentadas a partir de uma sociedade ideal, livre do uso
de drogas. Ademais, percebe-se que a lei deixou de colocar entre seus princípios a
654

“redução de danos”, elencando somente ações de redução da demanda (com foco na


prevenção ao uso), redução da oferta (com foco no combate ao narcotráfico, venda
e comercialização de tais substâncias) e ações de gestão política. Portanto, foco na
repressão e na abstinência, como é apresentado na PNAD:

Dirigir ações de educação preventiva, inclusive em parcerias públicas ou com


entidades privadas sem fins lucrativos, de forma continuada, com foco no indi-
víduo e em seu contexto sociocultural, a partir da visão holística do ser humano
e buscar de forma responsável e em conformidade com as especificidades de
cada público-alvo: a) desestimular seu uso inicial; b) promover a abstinência;
e c) conscientizar e incentivar a diminuição dos riscos associados ao uso, ao
uso indevido e à dependência de drogas lícitas e ilícitas (BRASIL, 2019, p. 9,
grifo nosso).

O segundo ponto é que parece também ser em nome desse pressuposto mencio-
nado de “[...] construção de uma sociedade protegida do uso de drogas” (BRASIL,
2019, p. 3) que se justifica o estabelecimento de medidas de internamento, em espe-
cial, em CTs. É também a partir da noção ampla e imprecisa de proteção, que a PNAD
estabelece como primeiro objetivo “Conscientizar e proteger a sociedade brasileira
dos prejuízos sociais, econômicos e de saúde pública representados pelo uso, pelo
uso indevido e pela dependência de drogas lícitas e ilícitas” (BRASIL, 2019, p. 5).
Com efeito, o pressuposto assumido pela nova PNAD está em total sintonia
com o pressuposto idealista das CTs, de que a CT poderia proporcionar ao indivíduo
a convivência em um ambiente livre de drogas para que o usuário ao sair da CT possa
também estar, ele mesmo, livre das drogas. Não á toa, como mencionado anterior-
mente, essa nova PNAD cita diretamente as CTs como dispositivos pertencentes
a rede de atenção psicossocial, a tal ponto que um dos objetivos expressos seria
“Regulamentar, avaliar e acompanhar o tratamento, o acolhimento em comunidade
terapêutica [...]” (BRASIL, 2019, p. 7).
Portanto, diferentemente da PNAD de 2006 que em seu artigo 9º estabelecia
que “É vedada a realização de qualquer modalidade de internação nas comunidades
terapêuticas acolhedoras” (BRASIL, 2006, s.p.), a nova PNAD não só regulamenta
o acolhimento em CTs como estabelece que tratamento do usuário de substâncias
psicoativas em CT passa a ser um direito resguardado por tal política. Ademais, é
curioso que seja sempre em nome da consideração de uma suposta “visão holística
do ser humano” que tais dispositivos passam a ser reconhecidos como fazendo parte
de rede de atenção psicossocial:

Garantir o direito à assistência intersetorial, interdisciplinar e transversal, a


partir da visão holística do ser humano, pela implementação e pela manu-
tenção da rede de assistência integrada, pública e privada, com tratamento,
acolhimento em comunidade terapêutica, acompanhamento, apoio, mútua
ajuda e reinserção social, à pessoa com problemas decorrentes do uso, do uso
indevido ou da dependência do álcool e de outras drogas e a prevenção das
mesmas a toda a população, principalmente àquelas em maior vulnerabilidade
(BRASIL, 2019, p. 5, grifo nosso).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 655

Desta forma, ainda que o aceno às internações nas CTs já existisse desde a
PNAD de 2006, a partir de 2011, com a entrada das CTs na RAPS, e, sobretudo,
com a promulgação da nova PNAD de 2019, passa a ocorrer um maior endosso e
financiamento desse modelo de tratamento manicomial, que se baseia na privação
da liberdade do indivíduo como modo de tratamento.

3. O que não se pode tolerar: vidas precárias nas comunidades


terapêuticas brasileiras

[...] que o intolerável, imposto pela força e pelo silêncio, cesse de ser aceito.
Nossa inquirição não foi feita para cumular conhecimentos, mas para aumentar
nossa intolerância e fazer dela uma intolerância ativa. Tornemo-nos intolerantes
a propósito das prisões, da justiça, do sistema hospitalar, da prática psiquiátrica,
do serviço militar, etc. (FOUCAULT, 2006b, p. 4).

O “Relatório de Inspeção Nacional das Comunidades Terapêuticas” (CFP et


al, 2017) trata-se de um relatório público realizado no ano de 2017, em que foram
visitadas 28 Comunidades Terapêuticas sediadas nas cinco regiões do país e em 12
unidades da federação (Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará,
paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Cata-
rina, São Paulo). A inspeção foi organizada pelo Conselho Federal de Psicologia
(CFP), Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal
(PFDC/MPF) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
Além da presença de servidores desses órgãos na organização, a realização das ins-
peções contou com o apoio de seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
Conselhos Profissionais Regionais e/ou Estaduais de Psicologia, Serviço Social,
Medicina, Enfermagem e Farmácia, defensorias públicas, coletivos e associações
da luta antimanicomial.
Embora tenha sido realizado visitas em diferentes estados, os próprios relatores
(CFP et al., 2017) fazem uma ressalva de que o relatório não possibilita uma amostra
estatística suficiente para generalizar conclusões acerca do que temos no Brasil, já
que no mesmo ano que o relatório foi produzido o IPEA (2017) fazia uma estimativa
de haver cerca de 2 mil CTs no país. Entretanto, esse relatório ao apresentar exem-
plos reais e efetivos do que estes sujeitos vivenciam nas CTs representa um alerta
significativo sobre o intolerável que acontece em nome de se estar realizando uma
terapêutica, já que o documento destaca que “em todas, foram constatadas algum
nível de violação de direitos humanos” (CFP et al., 2017, p. 21).
O relatório foi realizado a partir de visitas realizadas in loco nos dias 16 e 17
de outubro de 2017208, em que os profissionais que conduziram a inspeção: regis-
traram suas observações por meio de fotos e descrições; coletaram documentos da

208 No relatório destaca-se que as informações sobre a data e os nomes das Comunidades Terapêuticas a
serem investigadas foi mantido em sigilo, de modo que as instituição não foram avisadas previamente, no
intuito de que os profissionais de fato conseguissem observar o cenário mais verossímil do que acontecia
no dia a dia dessas instituições.
656

instituição (alvará de funcionamento, regimento interno, projetos terapêuticos, etc);


realizaram entrevistas com os dirigentes da instituição, profissionais e usuários (CFP
et al, 2017). Nesse contexto, os principais objetivos das inspeções foram: “verificar e
analisar as condições de privação de liberdade de pessoas internadas em comunidades
terapêuticas, sobretudo a existência de violação de direitos; e analisar o modus ope-
randi das instituições inspecionadas” (idem, ibidem, p. 50). Deste modo, o relatório é
descrito como o resultado de uma triangulação entre as observações das instalações,
as informações coletadas por meio das entrevistas, a avaliação dos documentos e as
impressões dos profissionais responsáveis (idem, ibidem).
O “Relatório Diligência de Instrução na Comunidade Terapêutica ‘Desaio Jovem
Maanaim’”, por sua vez, correspondeu a uma nova inspeção durante diligência de
instrução realizada em 02 de outubro de 2020. Durante a inspeção em 2017 havia-se
constatado muitas irregularidades e situação de violação de direitos (trabalho forçado
de internos adolescentes e crianças, castigos, etc) na Comunidade Terapêutica “Centro
de Recuperação de Álcool e Drogas ‘Desafio Jovem Maanaim’”, por esse motivo fora
realizado essa nova inspeção em 2020, sendo produzido um novo relatório específico.
O relatório de inspeção nacional constatou um padrão comum, que denomi-
naremos de “intolerável” pelas razões que apresentaremos a seguir, entre todas
as 28 Comunidades Terapêuticas inspecionadas: 1) todas baseavam sua proposta
“terapêutica” na privação de liberdade e na abstinência; 2) possuíam caráter asilar;
3) utilizam-se de uma prática denominada de laborterapia; 4) possuíam abordagem
religiosa; 5) além disso, como convém novamente mencionar, em todas percebeu-se
algum grau de violação dos direitos humanos. Utilizaremos desses pontos em comum
para analisar detalhadamente o regime de precarização da vida nas CT’s brasileiras.
O primeiro intolerável diz respeito ao tratamento baseado em privação de
liberdade utilizado pelas CTs, o que vai totalmente na contramão do que é pre-
conizado na Lei da Reforma Psiquiátrica (BRASIL, 2001). Isso porque a Lei
n. 10.216/2001 preconiza que a política de atenção em saúde mental deve tomar a
participação da sociedade e da família como eixo central da assistência em saúde,
e que a internação deve ser uma medida adotada somente quando todos recursos
extra-hospitalares já tiverem sido esgotados.
Mais do que privar de liberdade, o relatório de inspeção nacional aponta ainda
que muitas das CT’s fundamentam sua terapêutica no isolamento e restrição do
contato social. Isso é feito tanto por meio da proibição expressa da livre circulação e
contato com o mundo exterior, como por meio de estratégias de contenção tais como:
retenção de documentos de identificação e cartões bancários, restrição de acesso a
meio de comunicações, proibição de visitas espontâneas de familiares. Para aumentar
a situação de afastamento em relação ao mundo exterior, em geral, as CTs utilizam-se
de muros altos e trancas, além de serem construídas em locais afastados, de difícil
acesso, onde não há possibilidade de recorrer a transporte públicos.
Nesse ínterim é comum que as CTs estabeleçam um prazo inicial em que o usuá-
rio fica totalmente incomunicável com a família, e que só após ter sido transcorrido
esse tempo é que são permitidas visitas de familiares de modo quinzenal ou mensal.
E mesmo esse parco contato parece ser desestimulado e até certo ponto dissuadido,
como se nota em um dos trechos do relatório de inspeção.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 657

As pessoas internadas não podem realizar chamadas, apenas receber, o que pre-
judica sobremaneira as possibilidades de comunicação. Foram obtidos relatos de
que os funcionários mentiriam para familiares que tentaram ligar para os internos,
dizendo que estes não queriam falar com aqueles, induzindo a pessoa a não mais
telefonar e isolando o interno ainda mais de seus entes queridos (SP 02 – Recanto
Vida Nova – Mairinque) (CFP et al., 2017, p. 58).

Assim, ao basear sua terapêutica na privação de liberdade e restringir o contato


familiar (seja por meio da privação a meio de comunicações ou pela impossibilidade
de visitas), o modus operandi das CTs contraria também alguns dos direitos socioas-
sistenciais resguardados pela Política Nacional de Assistência Social, como o direito
a convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2004).
Embora estejamos falando de instituições que muitas vezes não detém profis-
sionais de saúde, faz-se necessário ressaltar que essa forma de tratamento baseado na
privação da liberdade, no afastamento do mundo exterior e na separação da família
não é algo inaugurado pelas CTs, já estando presente nas origens do saber-poder
psiquiátrico desde o final do século XVIII e início do século XIX (FOUCAULT,
2006c). Sobre isto vemos Foucault (2006c) apontar as descrições do médico François
Emmanuel Fodéré idealizando que os hospícios psiquiátricos fossem construídos em
locais distantes e solitários. Além disso, Foucault (2006c) também descreve como os
psiquiatras do século XIX e XX estabeleciam o princípio de afastamento do mundo
exterior e da separação da família como condição do tratamento, de modo que o corpo
do louco se distancia da família e passa a ser disciplinado de perto pelos peritos psi:

Primeiro princípio, que é fundamentalmente estabelecido e que vocês vão encon-


trar durante praticamente toda a vida, eu dizendo serena, da disciplina psiquiá-
trica, isto é, até o século XX: o princípio, ou antes, um preceito, uma regra de
savoir-faire, que é o de que nunca se pode curar um alienado na família. O meio
familiar é absolutamente incompatível com a gestão de qualquer ação terapêutica.
[...] por outro lado, em todo o tempo da terapia, isto é, da operação médica que
deve levar à cura, todo contato com a família é perturbador; é perigoso; é preciso,
em toda a medida do possível evitá-lo. É o princípio, se assim podemos dizer, do
isolamento ou – porque essa palavra, isolamento, é em si mesma perigosa, parece
indicar que o doente deve ficar sozinho, quando não é assim que ele é tratado no
asilo –, melhor dizendo, o princípio do mundo estrangeiro. Em relação ao espaço
familiar, o que é desenhado pelo poder disciplinar do asilo deve ser absolutamente
estrangeiro (FOUCAULT, 2006c, p. 122-123).

Sobre o caráter asilar, 2º intolerável observado na maioria das CTs, podemos


perceber que este também está em estreita relação com essa incomunicabilidade com
o mundo exterior e afastamento da família. O caráter asilar de uma instituição pode
ser definido tanto pela ausência de recursos para promover uma assistência integral
ao usuário incluindo “serviços médicos, assistenciais, psicológicos, ocupacionais,
de lazer, e outros” (BRASIL, 2001, s.p.), como pela ausência de garantias jurídicas
ao melhor tratamento, preferencialmente em serviços de caráter comunitário (CFP
et al., 2017).
658

Quanto à integralidade, em seu sentido estrito, o que se analisa a partir dos


relatórios de inspeção é uma carência de profissionais com formação superior (espe-
cialmente da saúde), estando ou em um número muito reduzido ou até mesmo não
constando nenhum profissional com formação para compor a equipe técnica. Se
isso não inviabiliza, pelo menos dificulta que de fato se consiga promover saúde,
o que muitas vezes também resulta na inexistência de projetos terapêuticos singu-
lares (idem, ibidem). Sobre este último ponto, foi observado que mesmo as CTs
que relatavam possuir um Projeto Terapêutico Global, aplicado a todos de modo
indistinto, não se observava nos profissionais e usuários o conhecimento sobre tal
projeto terapêutico (idem, ibidem).
Outro problema comum entre as CTs é a recorrência de uma prática denomi-
nada de laborterapia. Como explicado no relatório da CT Desafio Jovem Maanaim,
a laborterapia é tida como um coadjuvante terapêutico, consistindo essa prática em
simplesmente encarregar os usuários com algum serviço doméstico, trabalho de
reforma e vigilância da CT: “Em todos os corredores onde age um interno varrendo,
passando pano, limpando sanitário, carregando pedras, cozinhando, lavando roupas,
cuidando da reforma, afirma-se em uníssono: ‘estou fazendo minha laborterapia’”
(MNPCT, 2020, s.p.). Destaca-se que essas atividades não são acompanhadas por
terapeutas ocupacionais ou congêneres, e funcionam como trabalho não remunerado
realizado por “voluntários” que são ex-usuários da CT e usuários do serviço. Des-
taca-se ainda que entre as penalidades e castigos a que os usuários são submetidos,
inclui-se um aumento na carga de laborterapia. Todas essas práticas agrupadas sob
o rol da “laborterapia” configuram “possibilidade de existência de elementos indi-
cativos de trabalhos forçados, jornada exaustiva, sujeição a condições degradantes,
aspectos que constam da definição de trabalho análogo à escravidão no Código
Penal, em seu artigo 149” (CFP et al., 2017, p. 87).
Além do aumento na laborterapia, um outro castigo comum é a determinação
de realização de cópias de determinados salmos e/ou trechos da bíblia. Nesse ínterim,
analisaremos agora a “abordagem religiosa”, que consiste no 4º intolerável comum
às CTs analisadas. Esta “abordagem religiosa” toma corpo através da realização de
práticas de aconselhamento religioso, em que os usuários escutam recomendações
sobre como devem conduzir suas vidas a partir do que é exposto na bíblia, na obri-
gatoriedade de participação nas atividades religiosas, o que em alguns casos inclui
rotinas rígidas de oração (CFP et al., 2017). Nesse sentido, o uso de drogas é visto
como uma atividade pecaminosa, por esse motivo, somente a abstinência total é vista
como a forma de lidar com o uso nocivo e/ou abusivo de substâncias psicoativas.
Ainda sobre a abordagem religiosa que as CTs têm em comum, é curioso
observar que o fato de se utilizarem da religião como parte do tratamento definiria
sua forma de assistência como “integral”, em uma perspectiva diferente do que
abordamos em parágrafos anteriores. Quando a integralidade é mencionada pelos
dirigentes da CTs, diz respeito tão somente a considerar o indivíduo em seu “aspecto
espiritual”: “Eixo Teológico: que contemple o indivíduo na sua integralidade: espí-
rito, alma e corpo” (MNPCT, 2020, s.p.) Como destacamos anteriormente, tal artifí-
cio discursivo é também observado na nova política nacional sobre drogas, em que
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 659

as CTs são tidas como parte de rede de atenção à saúde, pois estas são entendidas
como dispositivos que possibilitariam um tratamento holístico e integral do ser
humano. Na prática, o que os relatórios destacam é que esse “eixo teológico” resulta
na obrigatoriedade de realização de atividades religiosas como parte do tratamento,
a violação da liberdade de religiosa (com a proibição de que os usuários professem
outro tipo de fé diferente da seguida pela CT) e a violação da diversidade sexual e
de identidade gênero (CFP et al., 2017; MNPCT, 2020, s.p).
Finalmente, o 5º intolerável diz respeito a violação de direitos humanos ser algo
comum em todas as CTs inspecionadas. Os intoleráveis apresentados anteriormente
já possibilitam antever uma série de violação aos direitos humanos (violação do
direito de ir e vir, violação da liberdade religiosa, violação da diversidade de orien-
tação sexual e identidade de gênero, utilização de trabalhos forçados, tratamento
degradante, etc.), mas, é necessário insistir que a lista parece ser ainda mais extensa,
incluindo-se também a prática de tortura.

Em 16 dos locais inspecionados foram identificadas práticas de castigo e punição


a internos. Essas sanções variam entre a obrigatoriedade de execução de tarefas
repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições e a violência física.
Também foram identificadas práticas como isolamento por longos períodos, pri-
vação de sono, supressão de alimentação e uso irregular de contenção mecânica
(amarras) ou química (medicamentos) – todas elas podem ser caracterizadas como
práticas de tortura e tratamento cruel ou degradante, de acordo com a legislação
brasileira (CFP et al., 2017, p. 14).

Com efeito, sob a insígnia legítima do “cuidado” uma das formas mais cruéis e
degradantes de tratamento são utilizados, a tortura. Em “Quadros de Guerra: quando
a vida é passível de luto?”, Butler (2018) utiliza-se dos conceitos de precariedade,
responsabilidade e de ser passível ou não de luto para analisar como uma vida deixa
de ser reconhecida como vida humana. Diante de tamanho “intolerável” que é a
tortura, para relacionarmos a expressão utilizada no GIP, Butler (2018, p. 64) afirma
a necessidade de “[...] refletir sobre por que a oposição à tortura é obrigatória e
como podemos extrair um importante sentido da responsabilidade global de uma
política que se oponha ao uso da tortura em todas as suas formas” (BUTLER, 2018,
p. 64). Com efeito, a autora destaca como as relações de poder estabelecem operações
diferenciais entre uma vida humana e uma vida inumana, posicionando a prática da
tortura como uma das formas mais violentas de degradação da vida humana, que
desqualifica alguém como humano e submete-o ao horror da tortura (idem, ibidem).

4. Considerações finais

Não cabe a nós sugerir uma reforma. Queremos apenas fazer conhecer
a realidade. E fazer conhecê-la imediatamente, quase a cada dia, pois o
tempo urge. Trata-se de alertar a opinião e mantê-la em alerta. Buscaremos
usar todos os meios de informação: cotidianos, hebdomadários, mensais.
Apelamos, portanto, a todas as tribunas possíveis (FOUCAULT 2006a, p. 2).
660

Diante de tudo o que foi apresentado nos relatórios de inspeção que mais pode-
mos concluir sobre o que acontece no interior das Comunidades Terapêuticas, se
não que estas não parecem ser nem “comunidades” nem tampouco “terapêuticas”?
A partir do que foi apresentado sobre o modus operandi das Comunidades
Terapêuticas brasileiras estas parecem em muito se distanciar da formulação de
Comunidade feita por Maxwell Jones, tido como fundador dessa modalidade de
tratamento, ou por Georges de Leon. Maxwell Jones supunha 1) relações horizon-
tais entre os membros da comunidade; 2) ambiente democrático; 3) participação da
família do usuário como membros ativos das decisões e procedimentos terapêuticos
realizados no interior da CT; 4) e inserção na comunidade como eixos centrais do
tratamento. Nas CTs brasileiras o que observamos a partir dos relatórios de inspeção
são 1) estabelecimento de hierarquias e relações verticais; 2) seguimento rígido de
regras, cujo desrespeito podem ocasionar castigos, tortura e/ou tratamento cruel
e degradante; 3) exclusão e incomunicabilidade com a família; 4) afastamento da
comunidade exterior seja pela proibição do direito de ir e vir como por meio de
estratégias de contenção física e medicamentosa, retenção de documentos de iden-
tificação e cartões bancários. Ademais, como vimos a proposta de CT de Maxwell
Jones parece emergir como contestação da falibilidade do modelo asilar, enquanto
no Brasil a CTs caracterizam-se justamente por seu caráter de assistência asilar.
Finalmente, se não são nem comunidades nem terapêuticas o que parece lhes
mais adequado a não ser denominadas de manicômios, de máquinas de produção
do horror e do intolerável que, entretanto, passam despercebidas com a escusa de
estarem produzindo um cuidado holístico? Como conclamam os membros do GIP,
urge que tornemos essa intolerância em uma intolerância ativa, daí, portanto, o
chamamento a um Grupo de Informações sobre as Comunidades Terapêuticas para
saber o que de fato acontecem nesses lugares, e rejeitarmos quaisquer situações em
que a vida esteja sendo aviltada.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 661

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HISTÓRIA ORAL, MICRO-HISTÓRIA
E A PESQUISA DOCUMENTAL COM
GRUPOS SUBALTERNIZADOS
Daiane Gasparetto da Silva
Flávia Cristina Silveira Lemos
Ana Carolina Farias Franco
Lívia Valeska Santana Souza
Cristiane de Souza Santos
Ciro César da Silva Lopes
Anne Caroline Dias Pragana

Introdução

O processo de subalternização de grupos sociais tem implicado em apagamento


na História e na ciência da presença destes grupos como protagonistas da transfor-
mação social por meio da produção da memória deles como infâmia e negatividade.
O silenciamento e a desautorização de determinadas parcelas do povo é forjado
também pelo uso de metodologias que funcionam para a manutenção de privilégios
de algumas classes sociais, faixas etárias, gênero, territórios e sexualidades.
Aborda-se uma breve retomada do surgimento da Nova História Cultural, no
movimento da Escola dos Annales e as inflexões da micro-história como dispositivo
de resistência na abordagem dos objetos, na relação com a produção dos arquivos,
na escolha dos documentos e seleção da literatura de análise. Opera-se com o des-
locamento de saber, poder e subjetivação na pesquisa que opta por se posicionar
politicamente na sociedade contra os intoleráveis do tempo vivido no próprio campo
metodológico em que se situa e é fabricada.
Outros modos de se fazer a História foram produzidos sobre demandas de grupos
que estavam impedidos de escreverem suas narrativas a respeito de próprios feitos
e que eram desautorizados nos livros e nas narrativas da História Tradicional pelos
usos das metodologias e fontes que os colocavam à margem e, até mesmo, excluídos.
Trazer os protagonismos e explicitar na circulação discursiva implica em fazer valer
resistências metodológicas, conceituais e empíricas que afirme direitos.

Nova história cultural e micro-história

A Escola dos Annales, durante o século XX teve três grandes viradas: econô-
mica, sociológica e antropológica. Cada um destes momentos implicou em transfor-
mações específicas nos conceitos e metodologias face a questões postas à História
e a quem realizava os estudos históricos, no bojo de interrogações a respeito de
666

preconceitos e discriminações negativas presentes nos modos de narrar, escrever


e fazer a historiografia. Os encontros da História com diversos saberes operaram
transformações importantes na historiografia de tal sorte que causou revoluções
moleculares em práticas que reproduziam narrativas com lentes racistas, sexistas,
classistas, capacitistas e etaristas, ou seja, com inúmeros preconceitos e vieses de
discriminação negativa.
Para Burke (1998), houve uma crescente abertura à pluralidade cultural no
campo da História, em parte, resultante das conversas com outros saberes, com
demandas de movimentos sociais, a partir das reflexões de políticas públicas, em
função da emergência de outros operadores conceituais, de novas abordagens criadas
para pensar a escrita como trama e a metodologia ligada à quebra com a História
Tradicional em termos da reverência ao passado e do evolucionismo focado na teleo-
logia dos modos de vida e da própria ciência que trazia heranças racistas e xenófobas.
Para Ronaldo Vainfas (2002), as investigações históricas que estão ligadas a
recortes sutis, a temas marginalizados dentro de uma perspectiva histórica mais
abrangente, demandam uma prática microanalítica, o que caracteriza o fazer da micro-
-história, a qual desponta por meio do trabalho de historiadores italianos, em meados
das décadas de 1970 e 1980, ganhando vigor no Brasil na segunda metade dos anos
1980, articulada às propostas da Nova História.
Em função desse aspecto da pesquisa, que possibilita abarcar a vida de gente
comum, chamada por Vainfas (2002) de “protagonistas anônimos da história”, os
documentos estudados trazem a dimensão do que fora construído por inúmeras for-
ças sociais, ensejando a constituição de sua dimensão monumental. Conforme Le
Goff (2013), os documentos-monumentos precisam ser questionados com base na
análise de suas condições de produção, a fim de problematizar o que caracteriza a
sua montagem, em face de diversos determinantes contextuais.
A História Oral emerge em função de lutas ligadas aos silenciamentos de grupos
foram mantidos no anonimato e suas vozes foram apagadas metodologicamente e
na escrita historiográfica. Não se tratava, apenas a um campo de investigação novo,
mas era de fato outra epistemologia. Trabalhava-se com temáticas, escalas e grupos
excluídos da História Tradicional até aquele período (NEVES, 2012).
Assim, o documento, que possui estatuto de testemunho e ensinamento – recor-
dando que o termo latino documentum provém de docere, relativo a “ensinar” –, ao ser
articulado à noção de monumento – que evoca o passado, perpetuando recordações,
precisa ser visto enquanto instrumento de poder (LE GOFF, 2013). As práticas de
saber presentes em arquivos são um conjunto de documentos-acontecimentos em
movimento e não paralisados como monumentos estanques a serem reverenciados.
Tal perspectiva também está em conformidade com a posição de Foucault
(2008b), o qual diz que o documento, para além de funções de reconstrução do pas-
sado, refere-se a um emaranhado de vozes que também se manifestam no presente,
sendo necessário, portanto, que haja estudos dos saberes que o constituem:

O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da
qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 667

e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental,
unidades, conjuntos, séries, relações (FOUCAULT, 2008b, p. 7).

Articular a História Cultural com Psicologias e com outros saberes pode


favorecer à ampliação das lentes analíticas e metodológicas com o objetivo de
democratizar a literatura que promova visibilidade para grupos e fazeres que esta-
vam impedidos de reconhecimentos e destituídos de potência transformadora. De
acordo com Ecléa Bosi (2003), os trabalhos em Psicologia Social que operam
com memória (nesta pesquisa, tida como veio condutor da produção documental)
precisam estar atentos para a dimensão do tempo vivido, o qual ganha conotações
a partir da cultura e do indivíduo, sendo, por conseguinte, construção social dos
coletivos nos quais os sujeitos transitam.

Ditos por pessoas ordinárias pegas a um só tempo pelo poder e por seu déficit
de saber, enunciam a mágoa, a pena, a raiva ou as lágrimas: são palavras de
sofrimento. Encontrá-los, retranscrevê-los, é uma primeira coisa, extremamente
importante: é tão raro em história escutar as falas. Apreender essa fala e traba-
lhá-la é responder à preocupação de reintroduzir existências e singularidades
no discurso histórico e desenhar, a golpes de palavras, cenas que são de fato
acontecimentos (FARGE, 2011, p. 16).

Por essa perspectiva, a autora não se volta à noção de captura da realidade,


porém, alude à abertura ao que chama “moradas vivas da história”, ou seja, às brechas
da esfera coletiva ou particular que dizem sobre os embates produzidos na sociedade.
Logo, é oportuno ressaltar os movimentos de aproximação e afastamento de temas
que atravessam as cidades, a fim de pôr em relevo os jogos presentes nos atos de
emudecimento (ou não) de determinados acontecimentos.
Na busca por tais moradas, o trabalho historiográfico é tido como ferramenta
importante à análise dos fatores que contribuem para a emergência das pequenas
narrativas sociais, as quais podem ser produzidas em forma de arquivos, que, por
sua vez, precisam ser analisados, segundo Lemos e Reis Júnior (2016), a partir da
exterioridade de seus discursos, de sorte a recursar uma racionalidade associada a
pretensas intencionalidades, considerando que “[...] um objetivo fundamental na
pesquisa com arquivos é demarcar quais seriam as correlações entre os temas e as
transformações ocorridas e é importante bem como levantar o espaço comum entre
os conceitos e os temas que foram relacionados” (p. 54).

Genealogia e a insurreição os saberes sujeitados na micro-história

Tal via mostra-se de acordo com o olhar genealógico, o qual, segundo Foucault
(2012, p. 267-268), consiste no “[...] acoplamento do conhecimento com as memórias
locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse
saber nas táticas atuais”. Pela genealogia foucaultiana, é essencial estar atento aos
pormenores que constituem os acontecimentos, a fim de não perder de vista os efeitos
de poder gerados por saberes tidos como oficiais, científicos, legítimos.
668

Os historiadores narram tramas, que são tantas quanto forem os itinerários tra-
çados livremente por eles, através do campo factual bem objetivo (o qual é
divisível até o infinito e não é composto de partículas factuais); nenhum histo-
riador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido
e não pode passar toda a parte; nenhum desses caminhos é o verdadeiro ou é a
História. Enfim o campo factual não compreenderia lugares que se iria visitar e
que chamariam de acontecimentos: um fato não é um ser, mas um cruzamento
de itinerários possíveis (VEYNE, 2008, p. 45).

Por isso, trazer à tona os saberes locais, em vista, por exemplo, das pequenas
narrativas dos que compõem as cidades nas margens, também é uma forma de pro-
duzir a história local, que diz respeito às lutas do presente. Desse modo, a genealogia
pode ser tomada como “[...] um empreendimento para libertar da sujeição os saberes
históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um
discurso teórico, unitário, formal e científico” (FOUCAULT, 2012, p. 270).
Conforme sugerido por Ecléa Bosi (2003, p. 20), que “[...] a memória parte
do presente, de um presente ávido pelo passado”, abrigando caminhos em curvas
e desvios que chegam a nós pela fonte oral, a qual, de acordo com a autora, “[...]
mais sugere que afirma”. A noção do passado como relíquia sagrada a ser rememo-
rada, como origem de uma cultura supostamente pura a ser preservada e para qual
se deve retornar apresenta práticas racistas etnocêntricas como modelos a serem
seguidos e reproduzidos.
No intuito de buscar entender os meandros que compõem a produção discursiva,
torna-se oportuno revisitar Foucault (1971), o qual discorre a respeito da ritualização
que é conferida à pronunciação do discurso, ressaltando que, embora o desejo de
quem discurse seja o de não atrelar-se necessariamente ao que existe de categórico
e decisivo em sua fala, é preciso reconhecer que o discurso inserido em um contexto
institucional se encontra imerso na ordem das leis, tendo, assim, lugares específicos
para seu aparecimento e fortalecimento oriundo do poder dispensado pela instituição.
Tendo em vista essas inquietações, o autor questiona acerca dos perigos que podem
estar presentes no ato da fala e no processo de proliferação decorrente do discurso:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo con-


trolada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1971, p. 8-9).

Dentre os procedimentos de exclusão discursiva existentes na sociedade, o autor


situa a interdição, ou seja, a ausência do direito de qualquer pessoa falar a respeito
de tudo, bem como em qualquer ocasião. Desse modo, observam-se três tipos de
interdição: o tabu do objeto, o ritual da circunstância e o privilégio ou exclusividade
do sujeito que tem o direito de fala.
Conforme Foucault, esses três tipos de restrições, ao se entrelaçarem, ressaltam
a relação do discurso com o desejo e o poder, o que, no campo da politização do
usuário, igualmente se manifesta, pois há um jogo de disputas sobre quem teria o
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 669

domínio do conteúdo a ser proferido em momentos específicos, nos quais são aber-
tos espaços de escuta, em função do lugar de representação. Estes espaços podem
singularizar os modos de existências quando pensados como diferenciação de vidas
na potencialidade de processos múltiplos pela transvaloração e do perspectivismo
históricos, na medida em que a História é deslocada das colonialidades e dos modelos.
Outro princípio de exclusão apresentado por Foucault (1971) é o de separação,
o qual pode segregar os discursos vistos como desarrazoados. Um dos exemplos
dados para ilustrar isso é o modo como se restringiu a circulação da fala do louco,
ao longo da história, a qual foi vista em um determinado período como palavra de
verdade e, em outro momento, como algo que não deveria ser escutado. Sobre os
dois casos, o autor enfatiza o quanto a fala da loucura não existia e funcionava como
lugar de exercício da separação. Para ele, embora se afirme que, na atualidade, tal
apartamento não exista mais ou está em processo de desaparecimento, percebe-se
que ele pode ser reafirmado por meio de aparatos de saber e de novas instituições
que contribuem para o surgimento de diferentes efeitos.
A distinção entre o que é verdadeiro e falso também se mostra como uma
questão que separa os discursos, fazendo com que surjam novas formas na vontade
da verdade, sendo importante considerar que esta, da mesma maneira que outros
sistemas de exclusão, está ancorada em uma racionalidade institucional, tendendo,
assim, a pressionar e coibir outros discursos. Diante disso, o discurso de verdade
aparece amparado por saberes de inúmeras áreas do conhecimento, as quais autorizam
até mesmo a palavra da lei:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e


nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe
e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns
e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro (FOUCAULT, 2012, p. 12).

Na atualidade, os efeitos relativos à produção discursiva de grupos minoritários,


por exemplo, trazem à tona os debates sobre quem estaria autorizado a falar, tendo
em vista critérios de pertencimento a um determinado grupo social, condicionante
que, em muitos momentos, circunscreve a legitimidade dos dizeres. Tal tema tem
sido amplamente discutido, por exemplo, em contextos que envolvem movimentos
sociais em torno de questões étnico-raciais, tendo Djamila Ribeiro (2017) destaque
no cenário brasileiro, a partir de seu trabalho O que é lugar de fala?, no qual busca
problematizar a multiplicidade de vozes nos debates sobre temas de importância na
atualidade, tais com branquitute, sexualidade e relações de gênero.
No que diz respeito ao comentário, Foucault (1971) ressalta haver a possibi-
lidade de construção de novos discursos, a partir do resgate de sentidos diversos e
ocultos, além da repetição explícita de algo que estava sutilmente expresso em um
tipo de discurso que passa a ser comentado. Dessa maneira, o comentário reafirma o
670

acaso do discurso, ao trazer algo que está para além do que é comentado, bem como
ressalta o caráter de novidade não pelo que é dito, mas sim pelo acontecimento de seu
retorno. Partindo dessa lógica, é tratada ainda a questão do autor que, ao enfatizar a
noção de identidade, individualidade e eu, limita o acaso do discurso na prática do
comentário. No texto “A morte do autor”, Roland Barthes (2004) reflete sobre como,
em diferentes esferas, a figura do autor pode ser deslocada de uma noção individua-
lizante. A linguística, nesse sentido, contribui, ao sinalizar que:

[a] enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem


precisar de ser preenchido pela pessoa dos “interlocutores”; linguisticamente, o
autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, “tal” como eu não é senão
aquele que diz eu: a linguagem conhece um “sujeito”, não uma pessoa, e esse
sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer “suportar”
a linguagem, quer dizer, para a esgotar (p. 3).

Tomando como referencial esses modos de entender a prática do comentário


e a figura do autor, ao pensar o processo de politização do usuário, é imperioso ver
nas figuras que despontam como lideranças um agenciamento coletivo de enuncia-
ção, conforme ressaltado por Deleuze e Guattari (1995), à medida que as suas falas
operam dentro de um circuito de valores construídos na sociedade, tendo fortes
atravessamentos institucionais, os quais ressoam na forma de o sujeito se perceber
no mundo e de apresentar “suas” ideias.
Os estudos sobre arquivos pessoas, biografias e autobiografias passaram a criar
rupturas com olhares e metodologias que pensavam as fontes documentais apenas
pelas lentes para arquivos de acontecimentos que eram macropolíticos. Havia um
preconceito quanto ao uso de documentos classificados como de pequena escala,
individuais e micropolíticos. Não eram valorizados arquivos de protagonistas da
História que não eram colocados como heróis e heroínas da nação (LIMA, 2006).
No bojo destas discussões, Foucault propôs a análise dos diários de Herculine
Barbin e problematiza a sexualidade como jogos de prazer, ao analisar estes docu-
mentos. Apesar de trabalhar com lentes da microhistória, Foucault ainda se limitou no
campo analítico destes arquivos, na visão de Butler (2003), pois não extraiu aspectos
de resistência na historicização que realizou neste caso estudado. No período em que
Foucault trabalhava ainda não existia um debate bastante presente no século XXI, o
da descolonização e, neste sentido, precisa ser lido com o lugar que ele ocupava, no
contexto em que vivia, em uma determinada sociedade.
Já, no caso de Rivière, Foucault (1977) atuou com a microhistória para analisar
as memórias deste homem que foi alvo de práticas patologizantes e criminalizadoras
no campo da justiça e da medicina forense pela história pregressa de Pierre Rivière,
escrita por situações de desvio social que foram interpretadas como indícios de que
havia um indivíduo criminoso sendo constituído. Foucault (1977) desconstrói este
modo de análise causal de olhar para o passado e produz um deslocamento que produz
foco para as resistências no memorial de Rivière.
Houve uma inversão de uma memória interpretada como infame por médicos e
juízes, a qual teve um modo de avaliar negativo pela técnica punitiva e desqualificante
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 671

da criminologia baseada em racismos e preconceitos. Neste aspecto, Foucault (2005)


realizou uma microhistória que forjou outra lente e escala para analisar o memorial
de Rivière. Com efeito, um documento pode ser problematizado na historiografia de
diversos modos e cada um deles aciona e agencia lugares subjetivos, sociais, políticos,
econômicos, culturais e econômicos diferentes.

Considerações finais

Este artigo trouxe um panorama das práticas presentes nas tensões existen-
tes entre os modos de fazer a História no tempo atual. A abertura na pesquisa
documental, assim como em outras metodologias e também nas diversas áreas do
conhecimento tem sido um processo doloroso e difícil, na medida em que expõe os
racismos, privilégios, feridas, silenciamentos, disputas, apagamentos, impedimen-
tos, violências e toda sorte de mecanismos de opressão, dominação, colonialidade,
genocídios e massacres que derramaram sangue e lágrimas nas páginas da História
e de tantos outros saberes, na modernidade. Se o poder não é apenas dominação,
tampouco se reduz a ser sinônimo de violência, como explicita Foucault (1995,
p. 243), em “O Sujeito e o Poder”:

De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age
direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma
relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete,
ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto
de si, outro pólo senão aquele de passividade, e, se encontra uma resistência, a
única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula
sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação
de poder: que o “outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente
reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que abra, diante da rela-
ção de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.

Sair da menoridade subjetiva e social, política e econômica, cultural e histórica


implica em romper com metodologias marcadas por empirias e modos de análise que
produziam olhares e lugares de fala extremamente limitados e repletos de lacunas
acontecimentais. A singularização dos saberes e das metodologias, das ferramentas
analíticas depende da transformação subjetiva de processos de assujeitamentos e
coisificações que se perpetuam por gerações e inúmeras maneiras de fabricar a
história política da verdade.
O que Deleuze e Guattari (2013) nomearam como literatura menor pode ser uma
via potente para uma intervenção na pesquisa que atue por lentes microhistóricas para
salientar as existências e narrativas de grupos, seus fazeres e poderes que estavam
apagados da História Tradicional pelo tipo de fonte, metodologia e conceitos adotados,
o que implicava em reproduzir colonialidades e perpetuar discriminações negativas.
Portanto, as escalas e lentes em que são usadas por quem falar e olha, analisa e pensa
trazem efeitos e marcas de insurreição dos saberes sujeitados e ativação dos regimes
de verdades que trazem novos enfoques e abordagens libertárias.
672

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PSICOLOGIA NA AMÉRICA LATINA
E A QUESTÃO DO RACISMO COMO
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André Benassuly Arruda
Flávia Cristina Silveira Lemos
Bruno Jaý Mercês de Lima
Leticia Lages Assunção
Lucíola Santana Pastana Silva
Alan Christian de Souza Santos

Introdução

Busca-se com este texto pensar alguns elementos metodológicos de uma pes-
quisa com ferramentas analíticas de uma história documental, em conversações
com a governamentalidade e racismo, na interface com a Psicologia na América
Latina. Parte-se de contribuições de Michel Foucault e da História Cultural como
eixos analíticos e metodológicos bem como dos trabalhos de Martin-Baró, Cecília
Coimbra, Maria Aparecida Bento.
O psicólogo Martin-Baró, em um texto de 1989, intitulado “Psicologia Política
Latino-Americana”, sintetizou as questões centrais para a construção de uma Psico-
logia na América-Latina implicada com as problemáticas políticas dos povos desta
região. Atento para os contextos que se apresentavam ao “querer fazer” de psicólo-
gos(as), lançou no seu texto um questionamento sobre os desafios a serem enfrentados
e afirmou que suas práticas profissionais eram indissociáveis da reflexão política da
Psicologia, seus axiomas e técnicas. No bojo desta preocupação, perguntou: “o que
pode a psicologia contribuir para a resolução dos problemas do povo colombiano?” e
para “qual os impactos tem o nosso ‘quer fazer’ na configuração de nossa sociedade?”.
E, ao realizar estes questionamentos, enfatizou quais as relações entre Psicologia e
poder, definindo os caminhos de pesquisa não apenas para a Psicologia produzida na
Colômbia, mas para pesquisadores(as) latino-americanos(as) que se debruçam sobre
estas inquietações (MARTIN-BARÓ, 2013).
A escrita deste texto é atravessada em toda a sua extensão por esta perspectiva
de análise e busca contribuir para a problematização das relações de poder e saber
que perpassam a Psicologia brasileira na relação com a Psicologia Latino-americana,
tendo como recorte de análise as relações entre o Sistema Conselhos de Psicologia
e a problemática do racismo. Este tema é cada vez mais politicamente necessário
de ser trabalhado e enfrentado, diante das forças conservadoras que se demonstram
intensificadas e atualizadas no Brasil contemporâneo, ampliando as desigualdades
sociais ao mesmo tempo que provocam subjetivações intolerantes às diferenças e
678

impermeáveis à alteridade e ao exercício das liberdades singularizadoras. Inúmeras


pesquisas argumentam que o cerne das práticas de resistência às desigualdades e
intolerâncias no Brasil deve ser o combate ao racismo (MUNANGA, 1996; SANTOS,
2015); pela importância estratégica que possui nos dispositivos de assujeitamento
que caracterizam a modernidade (GROSFOGUEL, 2008).
Nesta perspectiva, as análises da construção da Psicologia na América-Latina,
seus percursos e desafios apontaram para noções de um duplo movimento das suas
políticas: em seus principais domínios, os cientistas da psicologia contribuíram na “[...]
a articulação justificadora dos interesses das classes dominantes [...]” e; nas suas áreas
consideradas mais periféricas se constituíram forças voltadas para “[...] o desmonte
questionador da ordem sociopolítica estabelecida” (MARTIN-BARÓ, 2013, p. 598).

Psicologia e racismos: na luta contra os pactos de branquitude

No panorama da “política da psicologia”, apresentam-se práticas alinhadas aos


interesses políticos majoritários, produzindo efeitos como: (1) o escamoteamento das
funções seletivas e hierárquicas das instituições onde a psicologia estava inserida dado
seu enraizamento em estruturas socioeconômicas discriminantes; o (2) reducionismo
dos conflitos resultantes das questões estruturais em questões pessoais ou interpessoais
promovendo modelos culpabilizantes e assujeitadores; e (3) a psicologização dos
sofrimentos psíquicos por não os relacionar com a realidade social, produzindo uma
concepção de normalidade que “avaliza a ordem social estabelecida” quando “aceitou
como critério de normalidade a adaptação ao meio” (MARTIN-BARÓ, 2013, p. 559).
Esta forma de política da Psicologia presente nos países latino-americanos con-
tribuiu para o aprofundamento dos conflitos raciais no Brasil. Portanto, é necessário
denunciar que estas práticas da Psicologia se acoplam às formas peculiares de racismo
no Brasil, acopladas às colonialidades e aos dispositivos de controle (FOUCAULT,
2000). A negação da relação entre subjetividade e os aspectos histórico-políticos que
lhe atravessam em sua constituição e a valorização de componentes intrapsicológicos,
tão presentes no período de psicologização das sociedades latino-americanas nas
décadas de 70 e 80 do século XX (COIMBRA, 2003), contribuíram para a susten-
tação e justificação daquilo que ficou conhecido como o “mito da democracia racial
brasileira”, na medida que esta é uma forma de “[...] escamotear o real, produzir o
ilusório, negar a história e transformá-la em ‘natureza’[...]. Enquanto produto eco-
nômico-político, o mito é um conjunto de representações que expressa e oculta uma
ordem de produção de bens de dominação e doutrinação” (SOUZA, 1983, p. 25). Tal
como nas práticas psicologizantes da Psicologia, os saberes em torno do “mito da
democracia racial” permitem que determinados grupos invisibilizem as desigualdades
estruturalmente organizadas no intuito de bloquear as possibilidades de resistências
aos sutis mecanismos de exclusão social e viabilizar a culpabilização das condições
precárias de existência aos sujeitos que as vivenciam.
Neste apanhado sobre alguns processos de subjetivação ligados ao Brasil e
racismo na interface com a América Latina, mais um elemento é digno de nota: a
questão do racismo de Estado e de sociedade (FOUCAULT, 2010). As práticas de
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 679

psicologização dos conflitos sociais de grandes parcelas da população por meio


das racionalizações do “mito da democracia racial” atrelam-se eficazmente aos
regimes de distribuição da morte, moduladas pelo “fazer viver e deixar morrer”, em
uma grade de inteligibilidade do racismo como gestão da população em aspectos
de mortificação e hierarquização dos corpos, grupos, segmentos e camadas sociais
(RIBEIRO, 2019). Nesses termos, o racismo opera como mecanismo de perpetuação
das relações colonialidade na sociedade contemporânea de poder, no Brasil, man-
tendo os seguintes aspectos: naturalização da violência, objetificação, discriminação
e extermínio dos corpos negros e as mais variadas práticas de submissão aos corpos
considerados brancos (STREVA, 2017).
Retornando as considerações sobre as relações de poder e saber que atravessa-
vam as políticas da Psicologia da América-Latina escritos por Martín-Baró é neces-
sário situar que ocorreram no mesmo período em que, após o fim da Ditadura Militar,
em 1985 e o processo da redemocratização do país, acontecimentos significativos
estavam se estabelecendo na Psicologia brasileira, portanto, nos fornecem parâme-
tros gerais da época no continente sul-americano para se pensar os seus efeitos na
constituição das atualizações e descontinuidades relacionadas à Psicologia e as suas
relações com a temática do racismo.
É neste período no Brasil que emerge, dadas as mudanças no ambiente político,
uma profusão de críticas sobre o caráter elitista e assujeitador da Psicologia, além
da relevância de pensar a construção de teorias e técnicas que possibilitassem uma
Psicologia socialmente comprometida com as agendas dos movimentos sociais e as
pautas de democratização da cultura política, no plano macropolítico e na dimensão
micro também (BOCK, 1999).
Com a implementação de determinados direitos humanos, das liberdades demo-
cráticas e retorno das instituições mediadoras, como: os partidos políticos, da socie-
dade civil nos canais de participação social restabelecidos no país, foi aprovado o
Novo Código de Ética Profissional, de 1987, definindo as responsabilidades, direitos
e deveres de psicólogos(as) de acordo com os princípios da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. No ano seguinte, o Conselho Consultivo decidiu pela realização
do Primeiro Congresso Nacional Unificado dos Psicólogos. A partir de 1989, é desen-
cadeada uma sucessão de eventos importantes para os rumos da Psicologia brasileira,
tais como: o Encontro Geral de Plenárias, 1991, I Congresso Nacional Repensando a
Psicologia, 1994, entre outros (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).
Associados a este movimento de transformação do Sistema Conselhos da Psico-
logia (SCP), surgem forças políticas, tanto internas como externas aos conselhos de
psicologia, que esquadrinharam criticamente os saberes psicológicos, por meio da sua
historicização crítica (SCARPARO; GUARESCHI, 2007). A tradicional política da
Psicologia brasileira estava sendo questionada em todas as suas áreas por novas forças
políticas. Este período é fundamental na história da política da Psicologia brasileira
e passa a estabelecer alguns novos regimes discursivos, produzindo novas temáticas
para as publicações e ações do Conselho Federal de Psicologia e para os Conselhos
Regionais de Psicologia. As décadas posteriores demarcaram historicamente os movi-
mentos de tentativa do deslocamento de uma Psicologia elitista que patologizava,
680

criminalizava e discriminava diferentes grupos sociais, sobretudo, os que estavam


em condição de vulnerabilidade por diversos processos históricos e econômicos de
injustiças para uma Psicologia considerada como comprometida socialmente.
Foi neste contexto histórico que emergiram estudos na Psicologia sobre relações
raciais, marcados pela concepção de raça como componente estrutural de exploração
do povo negro, gerando desigualdades materiais e simbólicas. Colocava-se em xeque,
deste modo, os pactos sociais de favorecimento dos privilégios de branquitude. Estu-
dos demonstraram como negros em condições sociais iguais de brancos possuíam
menos chances de ascensão social e como a questão da branquitude operava uma
diminuição da hostilidade ostensiva aos grupos desvalorizados por componentes
raciais. O período histórico em que a Psicologia moderna emergiu foi marcado por
fortes atravessamentos racistas na sociedade, em que a raça era justificada e até
naturalizada cientificamente. A partir das lutas por direitos humanos, especialmente,
os civis e sociais, houve a criação de frentes amplas de busca incessante pela demo-
cratização da ciência, inclusive, de uma Psicologia como ciência e profissão. Neste
caso da Psicologia brasileira, houve um desprendimento que ainda está em curso das
conotações biológicas e psicologizantes do racismo, sendo que a prática cotidiana de
estudos psicossociais e exercícios profissionais foi atrelada às perspectivas psicos-
sociológicas e críticas de intenso enfrentamento às violências e violações de direitos
vinculadas ao racismo (SCHUMAN; MARTINS, 2017).
A produção de estudos da Psicologia contemporânea sobre o racismo é bem
mais escassa do que nas demais áreas das ciências humanas, tais como: na socio-
logia e antropologia (GUIMARÃES, 2003; MUGANGA, 2004). Esta constatação
aponta para a permanência de pactos de branquitude ainda presentes na Psicologia
brasileira e assinala para a necessidade de produção de pontos de resistência, de
problematização, visibilização e produção de estudos sobre o racismo.
Esta contribui para a ampliação das possíveis articulações entre os saberes
psi e as relações raciais, que promovam um aprofundamento das pesquisas, que
nãos as fazem sem provocar questionamentos e rupturas nos conhecimentos cris-
talizados e intensificar os processos caracterizados como de descolonização da
psicologia imbuída de uma revisão crítica de seus fundamentos, contribuindo para
o desenvolvimento de ferramentas conceituais e técnicas para o enfrentamento
do racismo. As discussões aqui realizadas se alinham em torno do fortalecimento
de pesquisas voltadas para as “viradas analíticas” em psicologia (SCHUMAN;
MARTINS, 2017, p. 174).
Interrogar as práticas do Sistema Conselhos de Psicologia, desenvolvidas na
contemporaneidade sob a perspectiva de “viradas analíticas” afiançadoras dos des-
níveis nas tradicionais formas da Psicologia como ciência e profissão nos leva a
buscar conversações com as teorias que criticam as colonialidades, que buscam
teorizar e efetivar a descolonização dos poderes, do saberes e das subjetividades na
arqueogenealogia foucaultiana, em sua perspectiva de insurgência dos saberes assu-
jeitados (FOUCAULT, 2010), tendo em consideração as possibilidades de diálogo e
das incompatibilidades com outras diferentes perspectivas de análises dos racismos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 681

O conceito de colonialidade está relacionado à relação entre passado escravista


e o presente do capitalismo liberal, no qual emerge um modelo de poder racializado,
resultante da vivência moderna de cunho colonial. Destarte, o período moderno da
colonialidade difere-se do período da colonização, tendo em vista que implica na
continuidade das formas coloniais de dominação após o fim do período tido como de
colonização. Em outras palavras, a crítica colonial não se limita ao período histórico
da colônia, mas faz remissão ao incessante eixo entre passado e presente, tendo em
vista a continuidade das relações coloniais de poder em sociedades que se consideram,
pelo menos oficialmente, como não escravistas (MBEMBE, 2018; QUIJANO, 2000).
Descolonizar os saberes, significa descolonizar princípios naturalizados nos
quais o conhecimento é construído. Em outras palavras, a descolonização é um
projeto enraizado em histórias, experiências vividas e imperativos ético-políticos
de povos colonizados. Trata-se de um projeto de crítica sistemática e de supera-
ção dos limites da modernidade (QUIJANO, 2000). De acordo Achille Mbembe
(2018), as modernas relações de poder são ao mesmo tempo propulsoras de efeitos
da racialização do colonialismo. O autor defende que qualquer análise histórica
da emergência das modernas formas de subjetivação e do exercício da violência
necessita trabalhar com as lentes para o olhar da escravização, tendo em vista que
o período escravocrata pode ser considerado como uma das primeiras instâncias de
experimentação da governamentalidade moderna, chamada de biopoder e que suas
atualizações se encontram espraiadas nos dias atuais.
Descolonizar a ciência e, especificamente, a Psicologia, implica em dialogar
com saberes vindos do Hemisfério Sul, onde uma outra historicização é narrada,
outras representações de ser humano, de mundo e de subjetivações se fazem pre-
sentes. A descolonização do saber implica em valorizar a história e a epistemologia
dos povos colonizados, afinal:

Que avanço o cuidado tem se não valoriza a sua terra? Como um povo poderá
construir sua identidade se suas referências vêm todas de fora? Tais reflexões nos
fazem repensar toda história que nos foi ensinada como a “história do mundo”,
assim como repensar que modelo de subjetividade a Psicologia brasileira e lati-
no-americana tem para compreender sua gente (MARTINS; MOREIRA, 2019).

Apesar da incorporação e produção de aportes relevantes sobre a produção de


subjetividade e suas relações com os processos sócio-políticos na psicologia, encon-
tramos uma maior rarefação de estudos que aprofundem a temática do racismo ou
de outras nuances concernentes ao negro e ao branco como sujeitos políticos e suas
relações nos jogos de saber-poder pela perspectiva da descolonização da Psicologia.
Para alojar e singularizar a pesquisa neste campo temático busca-se seguir as
trilhas da Psicologia política de Mártin-Baró, dos estudos sobre colonialidade, da
história cultural e da arqueogenealogia de Foucault para a elaboração de algumas
pistas sobre os documentos produzidos pelo Conselho Federal de Psicologia em rela-
ção ao tema dos racismos no Brasil. Este trabalho é importante, pois há um esforço
de pesquisar e historicizar atuações deste conselho profissional, principalmente em
682

relação à questão do racismo e a partir dos diálogos com os referenciais mencionados.


É necessário também se levar em consideração que esta autarquia é fundamental e
estratégica para a organização da Psicologia em suas facetas tanto de produção e
disseminação de conhecimento como na orientação das práticas desenvolvidas pelas
psicólogas e psicólogos no campo profissional.

Algumas pistas no diálogo com a arqueogenealogia, a história cultural


e análise institucional na Psicologia no debate sobre o racismo

Com a promulgação da Lei nº 5.766, no ano de 1971, emerge no escopo da


sociedade brasileira o Sistema Conselhos de Psicologia (SCP), composto pelo Con-
selho Federal de Psicologia (CFP) e os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs)
e que entre as suas atribuições estão: 1) orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício
da profissão; 2) definir as competências do exercício profissional, e 3) colaborar com
o desenvolvimento da psicologia brasileira (CFP, 2013); o CSP se apresenta como
estratégico para a problematização de práticas psicológicas relacionadas às questões
sociais que foram categorizadas, a partir do século XX como, as de Direitos humanos
e, entre elas, o racismo.
Na busca pela historicização dos parâmetros sobre as relações entre o Sis-
tema Conselhos de Psicologia e a problemática do racismo identificou-se a série
de Cadernos das Deliberações dos Congressos Nacionais de Psicologia (CNP):
são 10 cadernos publicados de 1994 a 2019, que permitem localizar quais foram
as principais diretrizes e ações políticas priorizadas a cada triênio pela categoria.
O SCP afirma que este processo é amplo e democrático, podendo todos(as) os(as)
psicólogos(as) participarem na definição das políticas a serem implementadas pelos
Conselhos de Psicologia (CFP, 2013).
Na imersão de análise destes cadernos, constatou-se que, nas deliberações
políticas da Psicologia como categoria profissional e científica de 1994 a 2006, os
principais assuntos foram: regulamentação do exercício profissional; o funciona-
mento e atribuições dos conselhos; a formação dos cursos superiores; exigências de
qualificação e espaço de atuação; a relação entre globalização e Psicologia; políticas
públicas e direitos humanos. Nesta última área, as principais temáticas abordadas
foram: Criança, Adolescentes e Família; Educação; Controle Social; Mulher; Segu-
rança Pública; Reforma Psiquiátrica; Formação e Papel Social do Psicólogo.
Em 2007, o Caderno Deliberativo VI, denominado “Do discurso do compro-
misso social à produção de referências para a prática: construindo o projeto coletivo
da profissão” surge pela primeira vez a temática racial como um tópico do eixo
“Intervenção dos Psicólogos nos Sistemas Institucionais”, denominado “Psicologia e
Questão Racial”. Resumindo os achados na série, a temática racial aparece novamente
nos Cadernos VII, IX e X, sendo que este último número é de 2019.
Frente ao que foi descrito sobre os Cadernos de Deliberações, a temática racial
no período de 1994 a 2006 foi praticamente inexistente, apesar de temáticas sociais
e políticas em torno das desigualdades no Brasil estarem presentes em quase todo
o período mencionado. Portanto, é a partir de 2007 que as questões raciais e seus
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 683

impactos na sociedade ganham maior sistematicidade e passam a estar presentes nas


deliberações da classe para os planejamentos das ações do SCP.
Tendo como referência a cronologia das temáticas descritas, acima, contatou-se
a existência de dois documentos sobre o racismo antes do ano de 2007, a saber: a
cartilha intitulada: “Os Direitos Humanos na prática profissional dos psicólogos”
de 2003, que possui um capítulo denominado “Direitos Humanos, Atuação Profis-
sional e Relações Raciais”; e a Resolução Ética nº 18/2002 que estabelece normas
de atuação para os psicólogos em relação a preconceito e discriminação racial. Este
último documento é considerado por muitos pesquisadores sobre a temática como um
importante documento da categoria em relação ao seu posicionamento em relação ao
enfretamento do racismo, na medida em que poucos conselhos profissionais possuem
uma resolução deste tipo (SANTOS, 2015).
Entre as publicações importantes selecionadas, depois de 2007, podemos desta-
car que no livro: “Violência e preconceitos na escola: Contribuições da Psicologia”,
de 2015, a temática do preconceito se encontra no título do documento e se relaciona
com a palavra racismo, que aparece 65 vezes no documento, demonstrando que a
questão está presente em seu conteúdo. Em relação aos documentos relacionados com
as Referências Técnicas da categoria, foi identificado um documento onde o racismo
é a temática principal intitulado: “Relações raciais: referências técnicas para a prática
da(o) psicóloga(o)” de 2017, considerado pela categoria como um dos importantes
documentos do CFP em relação à prática de combate ao racismo (SANTOS, 2015).
Salienta-se também que nos últimos 03 anos houve uma intensificação de
publicações tanto pelo CFP, quanto pelos CRPs a respeito do racismo. Os últimos
números da revista promovida pelo CFP, avaliada como A2 nacional no Qualis-CA-
PES: “Psicologia: Ciência e Profissão”, estão recheados de artigos sobre racismo,
destacando-se o número especial “Psicologia, Povos e Comunidades Tradicionais
e Diversidade Etnocultural, publicado em 2019. Já, os CRPs de São Paulo, Rio
Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraná, para ficar em alguns exemplos, produziram
várias publicações entre as relações da Psicologia com o enfretamento ao racismo
pela categoria profissional.
Partindo dessas caracterizações iniciais de alguns documentos do Sistema Con-
selhos, considera-se necessário demarcar determinados movimentos históricos que
ajudam na estruturação da problemática investigada.
Segundo Santos et al. (2012), desde a década de 30, no século XX, em um
período que se estende até os anos 50, a temática do racismo como construção
sociocultural das diferenças possuía algumas publicações na Psicologia. A partir
da década de 1980, o enfoque dos trabalhos é concentrado nos efeitos psicossociais
do racismo (SCHUCMAN; MARTINS, 2017). Os anos 90 foram marcados pelos
estudos acadêmicos sobre as relações raciais com foco nos temas do branqueamento
e branquitude (SANTOS et al., 2012). Já, no período de 2000 a 2009, Martins et al.
(2013) demonstram que foram publicados 229 artigos científicos relacionados a temas,
tais como: a violência psicológica do preconceito e do racismo; o legado social do
branqueamento e seus efeitos psicossociais sobre a identidade étnico-racial de negros
e brancos; e o monitoramento dos efeitos das políticas e dos programas de promoção
da igualdade étnico-racial.
684

Constata-se, portanto, um descompasso entre a produção acadêmica no século


XX e o início das produções pelo Conselho Federal de Psicologia em 2007, sinali-
zando que os espaços legitimados de produção de saberes e práticas psicológicas e,
portanto, das posições de sujeitos aí implicados operam diferenças nas produções
e divulgações de discursos, apesar de se localizarem em torno de uma mesma
disciplina, a Psicologia.
Estas pistas instigam a análise de como estas relações entre o Sistema Conse-
lhos e a necessidade de construir e divulgar parâmetros teóricos e profissionais para
se lidar com os problemas sociais que se apresentavam, em um momento em que a
categoria definia para si a necessidade de desenvolver uma Psicologia compromis-
sada social e politicamente e, que neste processo, entre a miríade de temáticas que
foram enquadradas na generalista categoria de “Direitos Humanos”, o racismo foi
um dos últimos temas abordados. Logo, interessa questionar como, a partir de 2007,
o Sistema Conselhos de Psicologia construiu suas práticas discursivas conexas ao
racismo, na especificidade das suas publicações sobre o tema e os como os diferentes
saberes relacionados foram utilizados neste processo.
Neste sentido, a disciplina, apesar de serem definidas por um domínio de objetos
construídos e de um conjunto de métodos elaborados, grupos, de definições conside-
radas verdadeiras e compartilhadas por seus membros, também “[...] constitui uma
espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem
que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor”
(FOUCAULT, 2009, p. 30). A disciplina possibilita, a quem dela se utiliza, formula
proposições singulares no acontecimento onde estão dispostas e ela mesma não é um
todo harmônico totalizante e fechado, possuindo séries heterogêneas, conflituosas
em sua constituição, situação especialmente característica do campo dos saberes
psicológicos, por exemplo.
Os lugares institucionais e as posições de sujeitos daí derivadas também impli-
cam nos objetivos aos quais estes discursos se destinam, demarcando os gêneros
literários e as modalidades de publicação possíveis. Existem diferenças nas regras
discursivas presentes nas universidades e nos Conselhos profissionais, mesmo que
no primeiro caso seja constantemente convocado para contribuir com as publicações
do segundo e se ocupe de lugares institucionais neste segundo. Diferentemente das
escritas produzidas nos ambientes universitários, a posição institucional do Sistema
Conselhos de Psicologia impõe léxicos mais prescritivos e normativos destinados à
prática profissional, diferenciando seus enunciados em relação às outras utilizações da
disciplina psicológica, em torno de diretrizes, manuais, referências técnicas e éticas.
Uma questão pode ser saber como essas prescrições e essas técnicas se inserem na
problemática do racismo e quais seus efeitos.
Historicamente, as Psicologias modernas sempre buscaram produzir modos
de pensar e agir, forjando tanto individualidades como coletividades, sendo esses os
sustentáculos e efeitos imanentes das governamentalidades liberais e neoliberais, os
quais são passíveis de serem pesquisados por meio dos documentos produzidos e
arquivados. Portanto, os documentos vêm ganhando cada vez mais importância nas
pesquisas sobre os saberes das ciências humanas em sua faceta interventiva, haja
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 685

vista que nos apresentam séries de prescrições, normativas legais e normalizações


orientadoras de processos de subjetivação e suas correlatas práticas sociais, políticas,
econômicas etc. (LEMOS et al., 2015).
A partir das contribuições de Roger Chartier para o campo da História Cultural,
pode-se considerar os documentos produzidos pelo SCP, como objetos culturais que
emergiram da relação interativa e intrínseca entre as práticas e representações que
atravessam e são produzidas pelos membros destas organizações, isto é, com os cor-
respondentes “modos de fazer” e “modos de ver” do psicólogos organizados em torno
das entidades representativas de classe em torno das questões que são consideradas
pertinentes para a psicologia brasileira.
Estes produtos culturais que se apresentam em formas de livros, cartilhas, refe-
rências, cadernos diretrizes, etc. são objetos culturais e para suas produções são
mobilizadas, organizadas e sintetizadas determinadas representações envolvidas em
campos comumente denominados como “relações raciais”, “formação antirracista” e
“racismo” em suas interfaces com os campos teóricos e de atuação dos psicólogos.
Estes objetos culturais finalizados, por sua vez, irão difundir estas representações
em outros círculos sociais que lhes são vizinhos e contribuirão para a formação de
novas práticas (BARROS, 2003).
Mas também é necessário levar em consideração que as publicações do Sistema
Conselhos de Psicologia não devem ser concebidas como práticas isoladas, no sentido
de que eles se bastam e se encerram em si mesmos neste circuito institucional, pois
tal como Foucault (2009) afirma “[...] as margens de um livro jamais são nítidas nem
rigorosamente determinadas” (p. 25-26). Todo livro, manual, diretrizes escritos para
um determinado fim específico não deixa de ser um sistema de remissão a outros
escritos que constituem redes de políticas de subjetivação, com determinados fins.
Ainda, pela perspectiva da história cultural, a pesquisa documental precisa
levar em consideração, que os discursos possuem regras de produção, de circulação,
de recepção vinculados às formas de poder, espaços de legitimação e autorização
específicos. Neste sentido, nenhum documento deve ser analisado isoladamente,
uma vez que as práticas discursivas são vizinhas e estão correlacionadas, não ope-
rando isoladamente, devendo ser interrogados nesses funcionamentos, afinal “[...]
todo discurso tem uma relação de coexistência com outros discursos com os quais
partilha enunciados, conceitos, objetivos, estratégias, formando séries que devem ser
analisadas” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 235).
Para Farge (2011), os documentos são diagramas, isto é, um conjunto de linhas
de forças que são entrecruzadas, móveis e distintas, resultando em configurações
singulares, múltiplas e heterogêneas; os arquivos são efeitos das disputas de forças
das relações entre saber, poder e subjetivação e os enunciados estão relacionados com
as lutas de criação da existência e estes podem ser lidos por meio de táticas descri-
tivas e analíticas presentes em diversos campos conceituais, mas que se avizinham.
Neste sentido, é preciso também ter em conta que após o processo de instituição
dos Conselhos Federal e Regional da profissão, em 1973, surgiram novas forças polí-
ticas, entre as décadas de 1980 e 1990 que esquadrinharam criticamente os saberes
psicológicos, problematizando suas constituições e as políticas de subjetivações. O
686

acontecimento em tela esteve marcado pelo questionamento de uma parcela signifi-


cativa da categoria sobre o papel e a responsabilidade social da Psicologia diante dos
desafios sociais e políticos que a realidade brasileira apresentava, a partir daquele
momento (SCARPARO et al., 2007). Nos interessa problematizar quais foram os
efeitos dessas críticas nos campos científicos e profissionais da Psicologia e quais são
seus efeitos no SCP e na sua forma de organizar sua produção em torno da temática
dos Direitos Humanos a partir da problemática do racismo.
A partir da posição institucional de classe e das posições dos sujeitos aí inseridos
que sofrem pressões de ordens dos discursos que buscam enquadrar o que se pode
pronunciar e o que não se pode, buscando determinar o que pode ser considerado
como falso e verdadeiro e que possuem legitimidade frente à comunidade científica
e/ou ao corpo social, em geral, a investigação sobre como estas práticas atravessam
as tentativas de modificação do instituído pelas forças instituintes, permitem fazer
mapeamentos e panoramas das configurações dos diagramas de forças em nossa
sociedade. Mesmo que, em momentâneos parciais, estas cartografias nos ajudam
a pensar os processos de resistências e de desterritorializações. Coaduna-se com
a perspectiva foucaultiana ao se considerar que os discursos como uma série de
acontecimentos heterogêneos que se atrelam, capturam, transgridem, dissimulam e
legitimam os sistemas econômicos, políticos e institucionais (FOUCAULT, 2009).
Os livros, cartilhas, referências, cadernos, diretrizes, etc. são objetos culturais e
para suas produções são mobilizadas, organizadas e sintetizadas determinadas repre-
sentações envolvidas em campos comumente denominados como “relações raciais”,
“formação antirracista” e “racismo” em suas interfaces com os campos teóricos e de
atuação dos psicólogos. Estes objetos culturais finalizados, por sua vez, irão difundir
estas representações, em outros círculos sociais que se avizinham, e contribuirão ou
não para a consolidação e/ou formação de novas práticas (BARROS, 2003).
A história cultural argumenta que no processo de se debruçar analiticamente
sobre estas fontes, é preciso levar em consideração que, quando os autores, as
comissões de elaboração, os colaboradores e especialistas desenvolvem os textos,
eles também são atravessados pelas representações do que devem ser um livro,
uma cartilha, uma referência técnica etc., bem como as representações referentes
aos gêneros literários no qual se conformaram as suas obras e as representações
sobre o que deve ser dito ou não dito sobre o tema em questão; sem deixar de levar
em consideração que novas representações também podem ser divulgadas, ou até
mesmo criadas (BARROS, 2003).
Estas pistas iniciais apontam para a necessidade de busca dos reais desníveis,
rupturas, descontinuidades que as práticas discursivas do SCP efetivamente realiza-
ram em relação às práticas despolitizadas e psicologizantes dos conflitos sociais da
tradicional Psicologia brasileira, alinhada aos interesses políticos e econômicos do
período ditatorial. Instiga-nos problematizar, mais especificamente, em até que nível
os novos discursos sobre as relações entre a Psicologia e o racismo e que se apresen-
tam como desestabilizadores das práticas tradicionais da área estão questionando os
seus fundamentos centrais e, por outro lado, como as teorias sobre o racismo, estão
produzindo deslocamentos no campo dos saberes psicológicos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 687

Ainda é preciso levar em consideração que a confrontação do instituído pelas


forças instituintes podem criar novos perigos. As rupturas não são integrais, são
processualidades que, ao invés de romperem integralmente com o instituído, também
são as condições para a atualização das forças. Os novos campos de forças não estão
totalmente desvinculados do diagrama anterior (DELEUZE, 1992). Neste sentido,
a colonialidade se atualiza nos processos de descolonização. Ao se buscar novas
possibilidades para a Psicologia surgem novos riscos e perigos.
As questões suscitadas nesta parte do texto deixam explícitas as relações intrín-
secas entre as relações de poder e a produção de saberes e suas implicações para
a análise documental. Ao interrogar criticamente as publicações dos Conselhos de
Psicologia, não basta a simples identificação das regularidades discursivas e a análise
da utilização dos conceitos em uma espécie de comparação lógica com as matrizes
possíveis de onde foram retiradas, o objetivo não é uma análise encerrada no campo
das ideias. É necessário interrogar como, nas relações políticas em que estes conselhos
estão inseridos há a possibilidade da utilização das regras de verdade sancionadas
pelo dispositivo de segurança aos quais os Conselhos são atravessados e se há a
presença de forças heterogêneas que tensionam estes atravessamentos e quais são
seus efeitos deste processo instituído-instituinte. O próximo tópico busca localizar
alguns aspectos deste diagrama de força que possibilitem a análise documental crítica
a partir da configuração da analítica proposta.

A psicologia, o Sistema Conselho de Psicologia e a governamentalidade


liberal e neoliberal: efeitos sob a gestão do racismo

Seguindo as pesquisas realizadas por Rose (1998), considera-se que a Psicologia,


como disciplina científica, ao invés de ser uma ciência neutra e, portanto, autônoma
em relação aos objetivos do Estado e de formas outras de relações de poder, é enca-
rada como um conjunto de tecnologias atreladas aos dispositivos contemporâneos
de gestão da vida privada e pública e que caracterizam as formas peculiares de
governamentalidade na modernidade.
Foucault problematiza as práticas de governo como “a maneira meditada de
fazer o melhor governo e [...] sobre a melhor forma possível de governar” (2004),
p. 17). Neste sentido discursa sobre a governamentalidade como “maneira de con-
dução da conduta dos homens (p. 208). Tendo em vista cartografias do poder deli-
neadas em torno das sociedades disciplinares e biopolíticas, a governamentalidade
estaria relacionada, portanto, como formas de gestão da vida do indivíduo, mas
também da população.
É no marco dos governos liberais do século XVIII e XIX que surge a psicologia
moderna. Foucault problematizou estas formas de governo como práticas não mais
imbricadas unicamente a uma lógica estatal que se faz presente em todas as áreas de
sua população, em prol da regulamentação através do mercado e da sociedade civil.
Neste processo, já no século XX, o mercado deixa de ser o campo que funcionava
como instrumento crítico da lógica estatizante, para se estabelecer como a própria
racionalidade deste, atravessando todos os outros domínios, tais como, e são exemplos
688

dados por Foucault em “Nascimento da Biopolítica” (2008), o indivíduo, a família, a


natalidade, a delinquência e a política penal. O mercado como princípio do governo
liberal implica na contraposição da intervenção estatal nestas múltiplas dimensões da
vida social través da noção de que os processos sociais possuem uma natureza que
se regularia por si mesma. Neste sentido, “[...] a liberdade não é tomada mais como
simples direito dos indivíduos, mas como condição para governar. a liberdade aqui
não é tanto ideológica, mas técnica de governo (FERREIRA, 2009, p. 65).
Segundo Foucault (2004), as formas liberais de governo no século XVIII esta-
vam envoltas no debate entre os inconvenientes de se governar demais e os de não se
governar suficientemente. Para Rose (1998), é nestas peculiaridades programáticas
de um governo liberal que as ciências psicológicas viriam a desempenhar um papel
importante, principalmente a partir do século XIX. Estas ciências modernas estavam
relacionadas a uma vontade de saber das estratégias de governo dos sujeitos como
“cidadão responsáveis, porém livres” (ROSE, 1998, p. 69).
Nesta grade de inteligibilidade é possível articular as práticas da psicologia com
as artes do governo no século XX. Rose (1998) aponta que esta articulação se deu
de duas maneiras. A primeira diz respeitos às técnicas de inscrição, possibilitando
o acesso às subjetividades. A segunda, relaciona-se com as práticas de condução
das condutas para além do controle coercitivo disciplinar normalizante, modulando
subjetivações através dos espectros das liberdades, inspirando os corpos a serem
empreendedores de si mesmo, fazendo-os escolherem, no espectro da liberdade
própria, as melhores técnicas, entre muitas de um grande portfólio oferecido no
mercado, para maximização de competências, habilidades e adaptações necessárias
ao perfil do trabalhador liberal.
No século XX, a Psicologia se autodenominou como uma “ciência da demo-
cracia” devido ao desenvolvimento de instrumentos capazes de inscrever e traduzir
a subjetividade em uma tecnologia que uniu a vontade dos cidadão com às decisões
das autoridades pela elaboração e aplicação do conceito de atitude que interligou os
processos internos cognitivos dos sujeitos e com suas condutas externas, objetivando
uma inteligibilidade e previsibilidade destas e traduzidas nas pesquisas de opinião,
emergindo uma cultura em torno da opinião pública. A formulação das tecnologias
de objetivação da opinião pública permitiu o mapeamento do mundo subjetivo dos
cidadãos e sua tradução quantitativa possibilitando a formulação de práticas em torno
dos indivíduos governados através de seu consentimento.
O argumento de Rose (1998) sobre cidadãos “governados através de seu con-
sentimento”, possibilita uma análise, por exemplo, do caso atual das políticas de
privacidade do Google, onde os indivíduos possuem a liberdade ou não de ter suas
vidas esquadrinhadas pelos ínfimos registros de suas atividades de leitura, escrita e
oralidade, bem como seus padrões de locomoção no intuito de identificar e predizer
desejos traduzidos em peças de propaganda personalizadas capazes de influenciar
potencialmente seus comportamentos como consumidores.
Por mais que as Psicologias estejam historicamente presentes nos governos
antidemocráticos é nas sociedades liberais que elas realmente se multiplicam e se
fortalecem como pontos fundamentais dos dispositivos de governo, na medida em
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 689

que estas articulam o previsto direito de liberdade com o controle justificado como
necessário para que as supostas naturezas possam fluir sem obstáculos. O governo
neoliberal dos outros incita os cidadãos livres a governar a si mesmos como livres,
mas também com responsabilidade, ou seja, dentro da liberdade individual de cada
um, seu limite é a sua prudência, inserida, por sua vez, em sua própria natureza psi-
cológica (ROSE, 1998). Temos aqui, uma espécie de liberdade autoregulatória pela
própria natureza da liberdade. A Psicologia encontra lugar em tais regimes, pois os
indivíduos devem ser governados não de forma autoritária, mas com base em julga-
mentos que visam objetividade, neutralidade e efetividade, estando de acordo com
os ideais de liberdade, igualdade e poder legitimado. A orientação dos indivíduos é
objeto dos “especialistas da subjetividade” que transpõem as questões da vida em
questões técnicas com o objetivo de aumentar a “qualidade de vida”.

As formas de liberdade que nós vivemos hoje estão intimamente ligadas a um regime
de individualização no qual os sujeitos não são meramente ‘livres para escolher’,
mas são obrigados a serem livres, ainda que sejam controlados pela norma, pelas
responsabilidades e pelas suas próprias naturezas (FERREIRA, 2009. p. 68-69).

Os sujeitos são obrigados a serem “livres”, a interpretar sua existência como


o resultado das escolhas que eles fazem dentre uma pluralidade de alternativas. A
vida familiar, o ato de ter filhos e mesmo o trabalho não devem mais ser constran-
gimentos à liberdade e à autonomia: são elementos essenciais no caminho para a
autorrealização. Os estilos de vida devem ser construídos através de escolhas feitas
dentre uma pluralidade de alternativas, cada qual devendo ser legitimada em termos
de escolha pessoal (ROSE, 1998).
A Psicologia contribui na arte de “condução da conduta alheia” contemporânea,
na medida que na gestão das liberdades individuais e coletivas permite a utilização
de tecnologias de esmiuçamento das variáveis da vida dos indivíduos e das popula-
ções através da objetivação dos construtos subjetivos de avaliação, tanto de forma
atomizada (memória, atenção, percepção, emoções, vontade etc.) como agrupadas
em tornos de questões mais complexas no construto denominado de personalidade
e seus transtornos (atualmente denominados como histriônicos, antissocial, esquiva,
borderline etc.) através da produção de testes psicológicos psicométricos e projetivos.
Produtoras de uma série de tecnologias discursivas e não-discursivas, as Psicologias,
além de esquadrinhar e intervir na vida subjetiva dos indivíduos e populações, ela
busca incitar mecanismos de autogoverno.
Nesta última dimensão da governamentalidade, um lócus privilegiado da ges-
tão neoliberal pela modulação da liberdade se faz presente, na medida em que esses
saberes são internalizados pelos sujeitos e passam a fazer parte do seus “eus” conside-
rados, por sua vez, como substâncias próprias dos sujeitos e, portanto como escolhas
pessoais dissociadas dos determinantes históricos.
O “eu” valorizado desde o liberalismo como essência própria do indivíduo
não lhe permite problematizar sua própria identidade como uma síntese ilusória
dos jogos de poder que lhe atravessaram em todo seu desenvolvimento. O subjetivo
690

não é percebido como constituído nos assujeitamentos e negociações realizadas no


interior dos jogos de poder dos quais participa. As escolhas são vistas como próprias
do eu e como reflexos direto da sua própria essência que as colocariam no campo
das liberdades individuais.

Seus valores e procedimentos [da psicologia] libertam as técnicas de auto-re-


gulação de seus resíduos disciplinares e moralistas, enfatizando que o trabalho
sobre o self e sobre as suas relações com os outros é de interesse para o desen-
volvimento pessoal, devendo ser um compromisso individual. Elas fornecem
linguagens de auto-interpretação, critérios de auto-avaliação e tecnologias para
auto-retificação, transformando existência numa questão de pensamento, numa
questão profundamente psicológica, tornando o nosso auto-governo uma questão
de escolha e de liberdade (ROSE, 1998, p. 78-79).

As considerações sobre as relações dos saberes e práticas psicológicas com as


artes liberais e neoliberais de governo possibilitam pistas importantes sobre a o tipo
de análise documental crítica que se propõe neste texto. Indica que, ao problema-
tizar dos documentos produzidos pelo SCP de combate ao racismo na psicologia,
é necessário estar atento aos atravessamentos possíveis destas formas de governa-
mentalidade. Quais são as possibilidades de problematização destas publicações pela
grade de inteligibilidade da governamentalidade? Estas publicações visam produzir a
autorregulação nos profissionais da psicologia pela modulação da liberdade, ou seja,
estimulam o psicólogo a “escolher” uma conduta profissional não racista, associando
esta escolha uma escolha natural de autodesenvolvimento do que pelo simples viés da
proibição legal e quais são os possíveis objetivos e efeitos dessas estratégias? Como
os saberes psicológicos atrelados aos modos liberais de governo estabelecem discur-
sos antirrascistas? Como saberes pós-coloniais, decoloniais, críticos do capitalismo
como forma de poder colonial são acoplados aos saberes psicológicos formulados
nos modos liberais de governo? Como a classe (população) de psicólogos é gerida
por meio de suas liberdades (cíveis e profissionais) em relação a questão éticas e
legais relacionados ao racismo no Brasil? Os documentos produzidos pelo sistema
conselhos são documentos de governamentalidade neoliberais ou são práticas de
resistência a esse sistema? Os documentos são atravessados simultaneamente por
esses dois campos? As publicações do SCP são forças instituintes? Nestas forças
instituintes que novos perigos elas carregam?
Como os saberes psicológicos atrelados aos modos liberais de governo estabe-
lecem discursos antirrascistas? Como saberes pós-coloniais, decoloniais, críticos do
capitalismo como forma de poder colonial são acoplados aos saberes psicológicos
formulados nos modos liberais de governo? De que maneira é possível problematizar
o combate ao racismo do CFP pela chave do empreendedorismo de si na perspectiva
da arte de governar neoliberal? É possível afirmar que que a adoção de uma conduta
não racista pode estar implicada mais com o vetor da eficácia do que sob o prisma
ético? Quais são os efeitos de subjetivação das tecnologias produzidas pelo CFP na
formação de uma conduta profissional não racista? Quais a relações possíveis entre
produção de capital humano e combate ao racismo?
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 691

Os saberes psicológicos conjugam o autogoverno com a diretrizes políticas e


econômicas através do direcionamento da autorrealização através dos “estilos de vida”.
Se no século XIX o mote central da psicologia foi a questão do indivíduo
normal e disciplinado. Nos dias atuais o mundo psi está voltado para a elaboração
de complexas técnicas de avaliação psicológica e terapêuticas pelas quais os mais
diversos setores da psicologia do cotidiano podem ser atravessados pela ética da
individualidade autônoma e natural dos cidadãos. Estas técnicas buscam viabilizar
o autocontrole frente as demandas laborais, cada vez mais precarizadas em termos
de direitos trabalhistas entre outros motes neoliberalistas, bem como das técnicas
necessárias pra administração dos efeitos nos corpos da população inerentes as forças
em jogo, e que são patologizados como TDAH, Bipolaridade. Depressão, Anorexia,
entre outros.

A biopolítica e os acoplamentos entre Psicologia e o dispositivo de


segurança: conclusões provisórias

Sobre estes pontos de tensionamento entre o instituído e o instituinte, continui-


dades e descontinuidades, potências transformadoras e limitações históricas, pesquisas
que se avizinham a esta apontam para algumas direções que devem ser levadas em
consideração para os desdobramentos das análises.
Carvalho (2018) na busca pelo modo como os profissionais da psicologia se
relacionam com o outro nas políticas públicas que envolvem a juventude, a pesquisa
se debruçou sobre a formação em psicologia e analisou a dificuldade, ou mesmo
inabilidade, em tratar em todos os âmbitos das políticas públicas, e não públicas,
as temáticas referentes às relações étnico-raciais. A autora afirma que este impasse
que a Psicologia enfrenta hoje é resultante do fato de ter hegemonicamente adotado
apenas o paradigma moderno e sua epistemologia, que remetem a um sujeito uni-
versal. Para ela, mesmo autores que questionam a modernidade ainda falam de um
certo lugar eurocêntrico. Na busca de respostas a essas questões, a pesquisa apontou
a necessidade de outras epistemologias e também da descolonização do pensamento
para encontrar modos de pensar, cuidar e educar que digam dos diferentes lugares
ocupados no nosso país.
O objetivo da pesquisa de Espinha (2017) foi analisar Projetos Político-Pedagó-
gicos (PPPs) de cursos de Psicologia, tendo como foco as questões raciais. Ao estudar
35 PPPs, A autora constatou que o modelo de formação ofertado a partir das ênfases
curriculares mantém ainda um viés da clínica tradicional. Esta perspectiva atualiza
uma visão de homem individualista, que desconsidera as problemáticas advindas
da estrutura social e que produzem sofrimento psíquico. As temáticas raciais são
citadas de maneira superficial e aparecem esporadicamente. Existe um silenciamento
de temas que revelam contradições sociais, como, por exemplo: o racismo, a exclu-
são e a desigualdade. Já, as menções ligadas à etnia, à diversidade e à inclusão são
citadas com mais frequência. Isso, em certa medida, revela a opção dos cursos de
Psicologia por não lidar com as tensões próprias de tais problemáticas. Ao se pensar
na questão racial, esse fato implica em não rever privilégios próprios da população
692

branca (majoritária nos cursos, tanto no que diz respeito ao corpo docente quanto
discente), bem como em não refletir sobre as teorias eurocêntricas.
Em outra pesquisa realizada por Damasceno (2017) a conclusão resvalou sobre a
necessidade de se incluírem conteúdos sobre relações raciais na formação psicológica,
de forma a habilitar o (a) profissional a identificar o racismo como determinante da
saúde mental da população negra, necessitando de maior formação para o atendimento
adequado a clientes negros(as). A autora concluiu que o racismo na psicologia clínica
se torna presente por omissão: a invisibilização do racismo como gerador de sofri-
mento psicológico reverbera, por sua vez, tanto na teoria quanto no ensino-pesquisa,
e retorna na prática clínica universalizante e sugere que a clínica psicológica deve
rever a aplicação de forma universal das teorias, métodos e práticas criadas por e para
um único grupo, autodefinido como modelo para todos os povos; é necessário que
se considerem as especificidades da existência étnico-racial-cultural de cada povo.
O levantamento bibliográfico sobre o campo temático geral da Psicologia lati-
no-americana e a historização inicial do CFP, a composição de um estado da arte das
pesquisas que se avizinham a esta e a imersão exploratória inicial dos documentos
do CFP fez emergir um panorama geral que apontou a possibilidade destes aconteci-
mentos serem problematizados de forma fértil por meio dos conceitos relacionados
com a questão da governamentalidade, em Foucault no que diz respeito às artes
liberais de governo e as suas implicações para a gestão das liberdades, bem como
os conceitos de disciplina e biopolítica, o que suscitou questionamentos como: que
leitura podemos fazer do CFP em uma perspectiva do biopoder? Como os saberes
psicológicos brasileiros atrelados às artes liberais de governo estabelecem discursos
antirracistas e se fazem presentes nas produções do CFP? Como saberes antirracistas,
descoloniais e decoloniais, críticos do capitalismo como forma de poder colonial
são acoplados aos saberes psicológicos formulados nos modos liberais de governo
e como estas se fazem presentes?
A Psicologia brasileira e latino-americana tem proposto uma grande e expres-
siva demanda de releitura e de autocrítica no que tange ao fechamento em que se
encerravam na modernidade e na dificuldade em enfrentar os privilégios da bran-
quitude e os pactos com ideais liberais capitalistas, sobretudo, os de colonialidade e
os vinculados aos racismos. O Sistema Conselhos de Psicologia passou somente, a
partir efetivamente de 2007 a combater o racismo com um amplo conjunto de forças
e articulações políticas, acadêmicas, éticas e legais.
Vale salientar que é possível concluir que, apesar de muitos(as) conselhei-
ros(as) e integrantes das comissões relacionadas às ações do SCP ser relacionada
às universidades, ainda há um conjunto expressivo de desníveis discursivos entre
Conselhos profissionais de Psicologia e universidades face ao currículo de formação
da Psicologia brasileira.
Por fim, é relevante destacar o quanto o individualismo e culpabilização da
sociedade capitalista neoliberal, especialmente, vem se materializando nas práticas
psicológicas recorrentemente com fins de manutenção de pactos reprodutores de
privilégios e desigualdades. Portanto, resistências são necessárias e relevantes para
a fabricação de alianças que possibilitem rupturas com o racismo e outras práticas
de colonialidades.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 693

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O QUE ERA PRA SER E NÃO FOI:
o conflito na produção dos atingidos por
grandes projetos em Barcarena, Pará
Robert Damasceno Monteiro Rodrigues

Introdução

O conflito está presente em todos os níveis da socialidade humana; em alguns


ele se apresenta na forma de contradições que se processam em torno das formas de
se relacionar das pessoas, no cotidiano e nos modos de vida; em outros, o conflito é
transposto na forma de antagonismos, inconciliáveis e insolúveis, existentes por força
da natureza intransigente da luta de classes, da oposição diametral entre os interesses
dos trabalhadores, de um lado, e da burguesia, de outro.
Ao mesmo tempo, na medida em que o conflito está presente na esfera eco-
nômica da vida social – essencialmente na produção da vida material, na produção,
na circulação e no intercâmbio de mercadorias – assim também ele se apresenta na
esfera da ideologia, isto é, das representações, das criações da consciência que se
manifestam através da política, da religião, da filosofia, dos regimes jurídicos, etc. Em
outros termos: o conflito é inerente, tanto à objetividade quanto à subjetividade, ou,
para dialogar com a formulação marxiana, ele se funde à base material da sociedade
e está imerso na superestrutura ideológica.
Mas não quero dizer, com isto, que não haja interação entre estas esferas, muito
pelo contrário, acredito que o conflito seja uma das categorias de mediação entre os
níveis objetivo e subjetivo de existência do ser social, entre as dimensões micropolíti-
cas das relações individuais e macroeconômicas da sociedade capitalista. Do mesmo
modo, tanto os modos de vida quanto a luta de classes estão, ao mesmo tempo, sendo
permanentemente determinados e sobredeterminados seja pela economia seja pela
ideologia. Portanto, não existe preponderância determinística entre o econômico
e o ideológico, ou entre o cotidiano e as classes; o que existe são determinações
recíprocas que se processam na totalidade que compreende a produção do ser social.
Disso tudo, arrisco-me a formular uma síntese possível – ainda que decidida-
mente parcial, posto que passível de um imprescindível aprofundamento teórico-prá-
tico para a aferição de sua validade: o conflito é imanente ao ser social. Isto porque,
em todos os níveis que se concebem relações sociais, a todo momento, o ser social
está sendo produzido – aquele que ser que se relaciona com outros tendo em vista a
sobrevivência, a subsistência, a procriação e a constituição familiar209 – o ser social.

209 Segundo Marx e Engels (2007), n’A Ideologia Alemã, os três pressupostos fundamentais da concepção
materialista de toda a existência humana são a produção de meios materiais para a satisfação de necessi-
dades, o ato da procriação e a constituição da família.
698

Este ser, que antes de tudo é o resultado do seu próprio trabalho de transforma-
ção da realidade, é produzido por forças que são econômicas, materiais, objetivas
e por forças que são ideológicas, subjetivas. Um ser que, da forma como existe no
mundo e, especialmente, na sociedade capitalista, resulta de suas interações sociais
na sua comunidade, em sua família, no seu trabalho etc; mas resulta também dos
movimentos mais gerais correspondentes à divisão social em classes, onde uma
resguarda-se ao papel de garantir a sua reprodução às custas da exploração da outra.
Ora, visto que o conflito é intrínseco à todas estas esferas da vida social e ine-
rente às determinações econômico-ideológicas – sendo daí produzido o ser social
– ele está presente lá onde é produzido este ser, e mais do que isso, ele pode ser
observado e, observando-o, analisar a sua interação para a composição da estrutura e
da dinâmica do ser social. Este ser, portanto, que se diferencia substancialmente, por
exemplo, do ser inorgânico (LUKÁCS, 2018), possui particularidades que só podem
ser apreendidas quando observadas diretamente em seu processo de socialização.
É este o exercício que pretendo fazer, de modo ensaístico, tendo por base os
materiais que tenho acumulados, decorrentes das pesquisas de campo realizadas entre
2019 e 2021 e também das minhas experiências não sistematizadas, junto às comu-
nidades de Barcarena, atingidas pelos grandes projetos na região. Estes materiais,
antes de tudo, desembocaram em minha dissertação de mestrado em psicologia210,
agora, porém, apresento alguns elementos que não foram considerados na monogra-
fia, apresentando-os desde uma perspectiva etnográfica e buscando, essencialmente,
extrair algumas considerações sobre o viés analítico engendrado pela categoria de
conflito para a produção do atingido enquanto ser social, partindo, para tanto, de
contribuições dos próprios interlocutores.

Um ato e o Ato dos Atingidos

O trevo do Peteca está localizado na PA-483, no município de Barcarena,


divisando o acesso entre a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, a Alça Viária e a
cidade de Abaetetuba. Considerado um local estratégico, pois fica a menos de dez
minutos de carro até o complexo industrial-portuário de Vila do Conde, ele foi
escolhido como o ponto de concentração dos ônibus que, no dia 18 de fevereiro de
2019, iriam até a frente da empresa Hydro, levando centenas de pessoas de comu-
nidades tradicionais de Barcarena e Abaetetuba para denunciar um ano do crime
sócio-ambiental cometido por esta gigante da mineração, quando uma de suas bacias
de rejeitos transbordou e foi constatado o despejo clandestino de resíduos minerais,
contaminando os rios da região.

210 Defendi minha dissertação de mestrado, intitulada QUANDO FALAM OS RIOS DA AMAZÔNIA: um estudo na
psicologia social crítica sobre o modo como são produzidos os atingidos por grandes projetos em Barcarena,
no Pará, em 31 de março de 2022; trabalho orientado pelo Prof. Dr. Leandro Passarinho Reis Júnior (PPGP/
UFPA), co-orientado pela Profa. Dra. Flávia Cristina Silveira Lemos (PPGP/UFPA) e avaliado pela Profa.
Dra. Edna Maria Ramos de Castro (NAEA/UFPA), pelo Prof. Dr. Aluízio Ferreira de Lima (PPGP/UFC) e
pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Freire Piani (PPGP/UFPA).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 699

Entre janeiro de 2019 e setembro de 2021 eu passei inúmeras vezes pelo Peteca,
sempre me impressionando, de um lado, com a enorme quantidade de caminhões se
movimentando ou parados em seus postos de combustível e, de outro, pela péssima
qualidade das estradas que lhe davam acesso. Quando a época era de muitas chuvas,
a lama atolava facilmente veículos de pouca tração e tornava alguns trechos intrafe-
gáveis para pedestres ou ciclistas. Em outros períodos, quando o tempo estava mais
seco, a poeira levantada pelos caminhões criava cortinas que prejudicavam a visão,
adentrava nas casas ao redor e dificultava a respiração.
No dia do ato o período era de chuva, ou melhor, de lama. Chovera a noite toda
e, às seis da manhã, um leve chuvisco ainda se mantinha. Eu estava com o Rafael,
companheiro no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), aguardando a che-
gada dos ônibus. Escondíamo-nos da chuva embaixo de um pequeno toldo de palha,
improvisado no local onde param as vans e micro-ônibus que percorrem Barcarena
entre a Sede, a Vila dos Cabanos, a Vila do Conde, o Núcleo Industrial e o Porto
São Francisco. Aquele cruzamento também era, portanto, a passagem de inúmeros
trabalhadores, estudantes e moradores das várias comunidades espalhadas pela região.
Ainda assim, contudo, o que predominava eram os caminhões: todos grandes, com
lonas pretas sobre a caçamba, placas de diversos estados do Brasil, seu cheiro de
diesel queimado e o som abafado do peso de mercadorias sequestradas, esburacando
a estrada e jogando lama e poeira sobre os nativos.
Confesso que, quando participei, em 10 de janeiro de 2019, da minha primeira
reunião com lideranças de Barcarena eu ainda tinha uma visão que, para não chamar
de ingênua, era, em muitos aspectos, um tanto quanto romântica. Essa visão, porém,
durou pouco tempo. Enquanto esperava o aparecimento repentino de cinco ônibus
lotados de manifestantes, revezando o lançamento agudo da visão entre os quatro
acessos do trevo, lembrava das muitas reuniões, assembleias e encontros informais
que participei com os líderes e presidentes de comunidades, diretores de associa-
ções e centros comunitários, dirigentes de sindicato rural, membros de colônia de
pescadores e conselhos municipais. Eu estive presente em quase todos os momentos
oficiais voltados à organização, preparação e planejamento do ato de 18 de fevereiro,
como representante do MAB; eu não estive, porém, nos grupos de WhatsApp das
comunidades, na casa de todas as lideranças, na sede das associações, nas reuniões e
negociações paralelas, extraoficiais à organização do ato que, como fui percebendo,
ocorriam a todo momento.
Já passava das sete horas quando avistamos um ônibus que, suspeitamos, receo-
sos, iria para o ato. Receosos porque nele só estava o motorista. Ele parou em um
posto e, quando lá chegamos, confirmamos a suspeita: ele fazia a rota das comuni-
dades de Tupanema e Arienga-Rio, mas quando passou ninguém aguardava, então
seguiu em frente. Subimos no ônibus e pedimos para o motorista nos levar ao local
do ato. Esperamos até às dez horas pelos outros quatro ônibus que também estavam
confirmados e levariam os moradores das comunidades Bom Futuro, Laranjal, São
Lourenço, Fonte Boa, Sítio Conceição, Burajuba, Sítio São João, Curuperé, Cupuaçú,
Tauporanga e Arrozal, mas nenhum apareceu.
700

O ato ocorreu, contudo, pois apareceram algumas pessoas de bicicleta, que


moravam na Vila do Conde, chegaram dois carros com pessoas de Belém e, inespe-
radamente, um ônibus com moradores das comunidades Pirocaba, de Abaetetuba,
e Dendê, de Barcarena, que não constava na lista de transportes da organização do
ato. No momento, avaliamos rapidamente que a desmobilização tenha se dado pela
chuva, que se prolongava desde o início da noite, e pela péssima qualidade das estra-
das, que impedira os ônibus de chegar aos seus destinos; eu sabia, porém, que havia
outros fatores que, apesar de pouco visíveis como a tormenta, eram mais concretos
e correspondentes à realidade.
Mas naquela ocasião eu ainda não podia formular, com exatidão, o conteúdo
e as articulações entre estes fatores; isto só foi possível na medida em que passei a
intencionalizar minha relação com as lideranças de Barcarena tendo em vista a produ-
ção dos dados para a minha pesquisa de mestrado, quase dois anos depois, apenas no
final de 2020. Foram, principalmente, a observação, o diário de campo e as entrevistas
em profundidade que me possibilitaram, ao olhar retrospectivamente para minhas
experiências não sistematizadas no contexto do ato, formular um pequeno esboço,
ainda que parcial e passível de aprofundamento, de uma análise dos fatores – não
todos, mas aqueles que julgo estarem entre os centrais – que se acumularam para que
um ato político, organizado para acontecer com cerca de mil pessoas, tenha ocorrido
com pouco mais de cinquenta. Apresento, a seguir, dois breves pontos deste esboço.

O Estado, o Capital e os Atingidos

A Hydro-Alunorte, que foi instalada em Barcarena em 1984, ainda com o nome


de Alunorte – quando era uma associação entre a então Companhia Vale do Rio
Doce (CVRD) em parceria com empresas japonesas – e posteriormente vendida à
multinacional norueguesa Norsk-Hydro, é uma empresa do setor mineral voltada ao
beneficiamento da bauxita, matéria prima para a produção da alumina que, posterior-
mente, é transformada em alumínio. Considerando as particularidades da formação
social e econômica imposta sobre a Amazônia, a partir principalmente dos governos
que se sucederam desde o início da ditadura civil-militar no Brasil, a Hydro faz parte
do conjunto dos grandes projetos pensados, planejados e executados na região.
Algumas características são comuns e, ao mesmo tempo, determinantes para
a compreensão dos grandes projetos, como o grande volume de capitais e mão de
obra investidos, a sua implantação como enclaves, dissociados das forças locais, sua
conexão com sistemas econômicos de escala planetária, seu processo expansionista,
associado a crimes contra a terra e os direitos humanos, o risco e imprevisibilidade
produtores de danos sociais e ambientais (BECKER, 1997; CASTRO, 2019). Durante
minha pesquisa de campo, entrevistei quatro pessoas, atingidos e atingidas, moradores
de comunidades de Barcarena, os quais chamarei aqui pelos de Amazonas, Tapajós,
Tocantins e Xingu211. Estas pessoas, também, têm as suas próprias definições sobre

211 Atribuí estes nomes fictícios aos atingidos e às atingidas que entrevistei em minhas pesquisas de campo, a
decisão pelo anonimato foi por questões de segurança, visto que todos e todas são lideranças que fazem
a luta contra os grandes projetos na região de Barcarena.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 701

os grandes projetos e suas consequências e, especialmente, sobre a Hydro, que ao


mesmo tempo em que corroboram com as características acima, também possuem
suas especificidades.
Segundo Amazonas (2021), “esses grandes projetos, são grandes projetos sim,
mas que levam os lucros tudo pra fora”; do mesmo modo, Tocantins não reconhece,
em sua vida, nenhum benefício advindo dos grandes projetos que foram instalados
em Barcarena: “Porque pra mim os grandes projetos que se instalaram aqui no muni-
cípio de Barcarena, eu nunca fui benéfico de nada deles. Eu não me empreguei, eu
não fui trabalhar em fábrica, eu não fui me especializar em cursos que eles têm, que
oferecem”. Tapajós, por sua vez, ao falar das consequências nefastas provocadas
pelos grandes projetos no meio ambiente e na vida das comunidades em Barcarena,
diz que eles são provedores de crimes: “eu não chamo de desastres, eu chamo de
crimes. Eu chamo de crimes mesmo, ambientais, que ocorre dentro do município de
Barcarena”. Enquanto isso, Xingu (2020) se sente preocupada e insegura:

Meu Deus, se um dia esses... essas bacias aí romperem, será que nós vamos ser
de novo outros igual o povo lá de Mariana, lá em Minas Gerais? Eu sinto muita
preocupação, mano. Eu moro aqui, eu amo morar aqui, mas ao mesmo tempo eu
fico muito preocupada, porque esse lado aqui tá... é o acesso pra Hydro. Essas
terras aqui vêm daí, e o que vier daí mano, vai atingir todo mundo pra cá; aí o
nosso rio não vai prestar mais.

Este medo e esta preocupação de Xingu, contudo, não são infundados, mas cor-
respondem, ao mesmo tempo, a uma análise acurada da realidade, que envolve tanto
fatores externos quanto internos a Barcarena, ou fatores que são gerais – do modo
de operação dos grandes projetos como meios de acumulação capitalista às custas
da exploração de bases naturais de elevada capacidade de produção de capital – e
também de fatores específicos, relacionados ao passivo histórico de outros crimes
cometidos pela Hydro e outras empresas em Barcarena. Xingu, primeiramente, com-
para o que pode advir da Hydro com o ocorrido na cidade mineira de Mariana, em
05 de novembro de 2015, quando houve o rompimento de uma barragem de rejeitos
minerais da Vale/BHP-Billiton que matou 19 pessoas e contaminou toda a bacia do
Rio Doce; por outro lado, ela sabe do que já ocorreu em Barcarena.
Entre os anos de 2000 e 2018 ocorreram 26 crimes de diferentes escalas e
proporções em Barcarena, cometidos por diferentes empreendimentos e empresas,
impactando rios e igarapés como Arienga, Arrozal, Dendê, Mucuruça, Murucupi, Pará
e Cururuperé. Em torno destes cursos d’água vivem milhares de pessoas, produzidas
como atingidas em decorrência da ganância, irresponsabilidade e ânsia desenfreada
por lucro dos grandes projetos. Apenas a Hydro, antes Alunorte, foi responsável por
pelo menos dez destes crimes, segundo levantamentos de MP-PA/MPF (2015), Bar-
carena Livre (2016) e Steinbrenner et al. (2020), sendo o maior deles o que ocorreu
entre os dias 17 e 18 de fevereiro de 2018 que, segundo o Relatório Final da CPI
instalada na Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA), atingiu 77 comunidades e,
portanto, dezenas de milhares de pessoas em torno da bacia hidrográfica do rio Pará
(PARÁ, 2018).
702

Vários dos principais rios da região de Barcarena estavam contaminados com


metais tóxicos, como arsênio, chumbo, manganês, cobalto e urânio, dentre outros,
significando risco às populações de entorno dos rios e inviabilizando a utilização e
consumo da água e peixes (IEC, 2018). Inicialmente, o Ministério Público Estadual
obrigou a Hydro a reduzir parcialmente suas operações e pôr em prática medidas
emergenciais de atendimentos aos atingidos, como a distribuição de água nas comuni-
dades (MPF, 2020). Na sequência, a Alunorte e a Norsk-Hydro assinaram um Termo
de Ajustamento de Conduta (TAC), comprometendo-se, perante ao MPF, ao MP-PA
e ao Governo do Pará, dentre outras coisas, a contratarem auditorias independentes
para avaliar os impactos causados nos rios da região, destinar R$ 65 milhões para o
fornecimento de cupons de alimentação para as famílias atingidas – a serem levanta-
das e cadastradas também por auditorias independentes – e mais R$ 5 milhões para a
criação e implantação de sistemas alternativos de tratamento e distribuição de água
potável (MP-PA/MPF, 2018).
Na tentativa de encontrar soluções fáceis e rápidas para crimes ambientais de
grande magnitude cometidos pelas multinacionais que operam os grandes projetos,
são recorrentes a assinatura de TACs, mas estes, porém, mostram-se muito mais como
um paliativo que, ao invés de garantir os direitos dos atingidos, visam assegurar às
empresas a continuidade e crescimento de suas atividades produtivas, pois como
solução extrajudicial, priorizam medidas imediatas de mitigação dos danos causados
às pessoas e ao meio ambiente, mas sem culpabilizar os responsáveis pelo crime
(VIÉGAS; PINTO; GARZON, 2014; SANTOS; MILANEZ, 2018).
O TAC assinado pela Hydro-Alunorte, portanto, na medida em que não buscou
solucionar os problemas crônicos que afetam a população de Barcarena, forçou a
implementação de medidas que significaram ganhos econômicos imediatos – porém
efêmeros – para muitas famílias, através da distribuição de vales-alimentação no
valor de R$ 670,00 por alguns meses. Isso fez com que, ao mesmo tempo, muitas
comunidades que não foram contempladas no TAC passassem a reivindicar a sua
inclusão, pois também se consideravam atingidas, enquanto outras, ao passo em que
não viam com bons olhos a inclusão de novas comunidades, por medo de ver seus
benefícios diminuídos, seguiam na busca pela ampliação de suas conquistas. Todas,
porém, passavam ver o MP-PA e o MPF, tanto como aliados quanto como alvos
prioritários de suas manifestações, pois teriam sido eles que forçaram as empresas a
cumprir suas obrigações para com os atingidos.
Este modo, cínico e perverso, de operar uma irreal solução para os conflitos
deflagrados – ou evidenciados – a partir de um crime ambiental, que envolve o
Estado e o Capital, ou seja, órgãos públicos como os Ministérios Públicos e empresas
transnacionais que se associam em monopólios como braço do Imperialismo, como a
Hydro-Alunorte, é um dos fatores que, considero, contribuíram para a desmobilização
do ato de 18 fevereiro de 2019; e isso já poderia ser previsível, contudo, a poucos
dias antes da data marcada para acontecer a manifestação.
No dia 15 de fevereiro ocorreu uma grande audiência pública na Vila dos Caba-
nos, onde o MP-PA e o MPF prestariam contas do cumprimento das obrigações da
Hydro firmadas no TAC. Neste dia compareceram mais de duas mil pessoas na sede
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 703

da Assembleia de Deus da vila, onde ocorreu a audiência; foram vários ônibus de


comunidades de Barcarena e Abaetetuba, a sessão ficou lotada e centenas de pessoas
não conseguiram entrar. Boa parte destas pessoas vieram de comunidades que não
foram contempladas no TAC e reivindicavam a sua inclusão para o recebimento
dos galões de água mineral e do cartão com R$670,00 mensais para compras em
supermercados. Ao final, o MPF informou que seriam feitos novos estudos sobre o
impacto causado pelo crime e que novas famílias seriam inclusas no benefício, o
que fez com que muitos saíssem de lá com a sensação de conquista e que sua pauta
imediata fora atendida, no entanto, ainda pairava a incerteza sobre quais comunidades
seriam contempladas e se todos os atingidos seriam beneficiados, principalmente os
moradores de Abaetetuba, que não apareciam nos estudos técnicos, provocando, de
outro lado, a sensação geral de que, quem deveria ser pressionado era o ministério
público e não as empresas.
No dia seguinte à audiência, recebi uma ligação de um número desconhecido;
eu estava na Vila do Conde, prestes a reunir com a Colônia de Pescadores de Bar-
carena, às margens do rio Dendê e resolvi atender. Quem ligava era Ismael Moraes,
advogado da Cainquiama (Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da
Amazônia) que aglutinava representantes de algumas comunidades de Barcarena.
Ele queria conversar sobre a organização do ato, pois estava preocupado que a sua
realização dificultasse as negociações entre a associação e o Ministério Público,
visto que a Hydro poderia se sentir ameaçada com um ato na sua porta e passar a se
indispor ao diálogo. Respondi a ele que eu não tomava decisões sobre a organização
do ato, apenas o comando, que era formado por representantes de vários movimen-
tos, coletivos e comunidades, dentre as quais a Cainquiama fazia parte e que, se a
associação tivesse algum questionamento a apresentar, que o fizesse na reunião que
ocorreria no dia seguinte. No outro dia a Cainquiama não compareceu à última reu-
nião antes do ato, e eu só fiquei sabendo, dois dias depois, que os dois ônibus que
ela se comprometera em levar com manifestantes para a frente da Hydro havia ido
para Belém realizar um protesto em frente à sede do MPF, pautando a ampliação do
tempo de benefício do vale alimentação para as comunidades associadas.
Tapajós, no entanto, é um atingido que não se deixa enganar, a partir de sua
realidade, das suas experiências vividas, ele tem uma compreensão sobre o que é o
TAC e o que ele provoca, tanto para a empresa, quanto para os atingidos:

Tem situações hoje, em relação aos território, irreversível. Não tem como voltar
mais, não tem. Eu nem acredito que tem esse rio, hoje, possa ser revertido essa
situação. É uma situação irreversível, porque é anos e anos aí impactado, entendeu?
Então quando a empresa tem alguma punição, de algum crime ambiental, aí eles
chamam... eles chamam... é o TAC, né? Termo de Ajustamento de Conduta. A
justiça vai, dá pressão tudo “Ah, não, ela vai ter que assinar o TAC”. Esse TAC, eu
vejo uma maneira... ela é, na verdade, ela é uma forma dela justificar o crime pra
justiça. Esse eu vejo que é uma forma de justificar. “Olha, não, ela assinou o TAC,
ela justificou que ela assumiu o compromisso”. Isso não é verdade. Isso nunca
sai do papel... isso nunca sai do papel. É uma forma dela se defender na justiça.
704

Se a assinatura do TAC é uma forma da empresa se defender na justiça ele é,


portanto, uma forma de dificultar com que a justiça efetivamente seja feita. Ao mesmo
tempo, neste silenciar da justiça, reverberam um conjunto de conflitos que envolvem
a empresa, o estado e os atingidos; porém, no jogo das combinações que são feitas,
a tensão instaurada entre estes conflitos tende sempre a pesar mais sobre os atingi-
dos. É evidente que existem conflitos entre a empresa e o Estado, pois é este último
que impõe sansões, adverte e onera a primeira, no entanto, em outros momentos os
seus interesses podem convergir quando o Estado fornece subsídios, incentivos e
isenções fiscais para a empresa; os atingidos, porém, conflituam ora com o Estado,
ora com a empresa, no mais das vezes, aparentemente, têm o primeiro ao seu lado,
mas a segunda é, na maioria dos casos, a sua antagonista central. Entretanto, o TAC
produz um conjunto de conflitos entre os próprios atingidos que, na medida em que
enfraquecem a sua unidade e suas lutas, arrefecem ainda mais e efetivação da justiça;
quando as comunidades ou seus representantes passam a se ver como adversários,
acusam-se, ameaçam-se e brigam entre si, só que sai ganhando é, sem dúvida, a
empresa. Este será o ponto que, como algo que se diferencia, mas ao mesmo tempo
faz parte do primeiro, tentarei abordar a seguir.

Lideranças, presidentes e parentes

Posso dizer que minha pesquisa de campo só foi possível graças a tarefa que
me coube, de contribuir, como militante do MAB, na organização do ato que virou
o pano de fundo das análises que venho fazendo. Foram estas primeiras semanas,
entre idas e vindas de Barcarena, que me possibilitaram conhecer melhor a cidade
e aprender a andar por ela, transitando entre várias comunidades, regiões urbanas e
rurais, por entre estradas e rios; foram também, estes contatos iniciais, que me levaram
a conhecer as quatro pessoas que entrevistei e pude observar os seus modos de vida.
Tocantins eu conheci no dia 10 de janeiro de 2019, em uma reunião na sala
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Belém; Amazonas, Tapajós e Xingu eu
conheci em momentos posteriores, em Barcarena, nas várias reuniões, assembleias
e conversas informais de preparação do ato. Todas estas quatro pessoas, portanto,
são atingidos e atingidas, moradores de comunidades de Barcarena e que fazem
parte de organizações, coletivos e entidades que defendem os direitos dos atingidos.
Tocantins e Xingu são da comunidade do Furo do Arrozal, moradores do Sítio Boa
Esperança; o primeiro, homem negro com o cenho franzido, é filiado ao Partido dos
Trabalhadores, dirigente no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
(STTR) de Barcarena e é, segundo ele “presidente do Conselho de Desenvolvimento
Rural. Faço parte do Conselho de Meio Ambiente e também sou presidente de uma
Associação de agricultores familiares, ribeirinhos extrativistas, assalariados rurais”.
Amazonas, por sua vez, é uma mulher que faz tudo que se possa imaginar,
Agente Comunitária de Saúde (ACS), integrante do MAB e da Associação dos
Moradores Ribeirinhos do Arrozal (AMORA). Tapajós e Xingu são de comunida-
des quilombolas, ele foi “nomeado líder” do Quilombo Sítio Conceição e faz parte
do Movimento Barcarena Livre, já ela é do Movimento pela Soberania Popular na
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 705

Mineração (MAM) e presidente do Quilombo Sítio São João. Todos são lideranças
na luta contra os grandes projetos em Barcarena, têm histórias, relatos e experiências
que envolvem diferentes momentos de denúncias e reivindicações em defesa dos
seus direitos.
Através da luta a produção dos atingidos ocorre como síntese do imperativo
marxiano de que os homens fazem a sua própria história (MARX, 2015), portanto,
fazem a si mesmos, são os sujeitos da sua produção. Mas a luta é resultado dos con-
flitos, das contradições e antagonismos que opõe os atingidos e os grandes projetos;
logo, os primeiros são produzidos, e produzem-se a si mesmos, como resultado da
existência material destes últimos.
Considerando o caráter antagônico em que se estabelece o processo de resistên-
cia dos atingidos, tendo em vista que estes, como trabalhadores, têm interesses que
divergem de modo oposto e inconciliável com os interesses dos grandes projetos, uma
das formas principais de luta empreendida tem se configurado, historicamente, como
a pressão popular através de manifestações, atos, caminhadas e denúncias públicas
dos crimes cometidos pelas empresas presentes em Barcarena. Neste processo, for-
jaram-se lideranças na região que obtiveram algumas conquistas. Tocantins (2020)
conta a história de uma dessas lutas:

No princípio nós fizemos uma denúncia quando teve a fuligem da Albras; ela
descia lá no Conde, que as casas ficavam todas cheias daquela fuligem, né? Que
houve a destruição de toda a pupunha... pupunhais do pessoal do cupuaçu. Nós
fizemos um movimento; fomos pra Belém – inclusive com parceria com a Uni-
versidade Federal – fazer a denúncia nos meios de comunicação, nas rádio, tele-
visão, jornal. Infelizmente a imprensa ela num dá muito ênfase pra essa questão
dos movimentos sociais; ela dá ênfase mais pra empresa. Saiu uma matéria bem
desse tamanhozinho assim, bem recortadozinho assim num cantinho; no jornal
não passou nada; na televisão aquela parte de televisão não mostraram nada disso
que nós fez. Mas saiu na Província do Pará e no Diário do Pará assim, uma maté-
ria com aquelas letra bem miudinha assim que... mas saiu! E as fotos da gente,
né? Que nós tivemos lá. Isso em 1993, 1993 que isso tava no auge desse.... Aí as
empresas, elas botaram uma espécie de uma... de um... elas trocaram os... como
é que diz? Os crivos lá do... das chaminés, né? Que era por lá que passava, aí deu
uma melhorada nesse processo.

A luta é o principal meio de assegurar conquistas e garantir direitos para os atin-


gidos. Porém, ao mesmo tempo em que os atingidos constituíram suas organizações e
foram, aos poucos, aprimorando os seus métodos de luta, os grandes projetos também
cresceram, se multiplicaram e exacerbaram as contradições e transformações sobre
os modos de vida da população barcarenense. Como diz Amazonas (2021): “eles vão
acabando com tudo e hoje os grandes projetos, a gente vê que eles já se colocaram,
né? Já tão dentro, muitos anos dentro da área e tá vindo muito, a gente sabe”. Deste
modo, visando fortalecer a resistência para dar continuidade aos enfrentamentos,
os atingidos estabelecem alianças e fazem articulações entre as suas organizações e
outras que não necessariamente são de Barcarena ou aglutinam atingidos, pois “são
706

lutas que a gente vai se juntar com outros companheiro, com outros parceiro, com
outras comunidades e com quem quiser vir pra luta com a gente, entendeu?” (ibidem).

Temos hoje o Ministério Público Federal; a Defensoria Pública; nós temos a


Universidade, alguns parceiros lá dentro da UFPA. Nós temos… qual é o outro
parceiro que a gente tem? A gente tem a Malungo, que é a Associação da Coor-
denação das Comunidades Remanescentes Quilombolas do Pará. A Malungo é
muito parceira com a gente. A FASE. Então são parceiros que a gente tem hoje
(TAPAJÓS, 2021).

As alianças, os parceiros, são também uma forma encontrada pelos atingidos


para dar maior legitimidade às suas lutas e, ao mesmo tempo, para darem visibilidade
às suas ações tendo em vista a construção de uma narrativa diferente da que recor-
rentemente é feita pela mídia, pelas empresas e até mesmo pelo Estado. Como diz
Tocantins, “a imprensa dá menos ênfase para os movimentos sociais e mais para as
empresas”. Os grandes projetos, por terem os seus interesses – de expansão produ-
tiva, aquisição de novas áreas, leviandade com o meio ambiente – a todo o momento
confrontados com os interesses da maioria dos atingidos – defesa dos seus territórios,
preservação de seus meios de vida, de sua saúde, cultura e práticas tradicionais –
eles tentam, a todo o momento, criminalizar as lutas dos atingidos e deslegitimá-las
com alegações diversas. Em muitos casos, o Estado segue esta mesma linha – por
estar alinhado aos interesses das multinacionais – e, consequentemente, os meios de
comunicação hegemônicos vendem histórias que contradizem a realidade dos fatos.
Este movimento ideológico, comandado pelos representantes dos interesses da
classe dominante, tem profundas e graves consequências na realidade material dos
atingidos. Uma delas é o conflito, a cisão e a disputa entre os próprios atingidos, o
que tende a enfraquecer a luta pelos seus direitos. Segundo Tocantins (2020):

As pessoas não confiam mais. Hoje tá criminalizada a política; tá criminalizado


os movimentos sociais; sindicatos, associações, cooperativas. “Todo mundo é
safado. É.... que tá aqui é comunista, é gente que num quer o bem, que pensa... que
quer o mal, que não quer o desenvolvimento... esse pessoal não presta, né? Nós
temos que acabar!”. Então o pessoal: “Ah é do sindicato, é da associação. Esses
são um bando de saf…”. E isso vai pegando; porque a gente tem visto assim que
é tipo uma contaminação que vai passando, né? De um pro outro e vai minando.

A análise feita por Tocantins demonstra que a criminalização da luta dos atin-
gidos está imersa no processo mais amplo de criminalização da política e dos movi-
mentos sociais. No meio do povo, difundem-se histórias sobre as lideranças populares
que as retratam como safadas, corruptas e não confiáveis. Nas palavras de Amazonas
(2021): “o que eu acho é que a gente é muito tachado de... chamado de vagabundo,
de que não tem o que fazer, de ficar ganhando dinheiro alheio, entendeu?”. Esse
processo coloca os atingidos em luta uns contra os outros, forçando-os a desviarem
do foco central da luta contra os grandes projetos para resolverem os seus conflitos
internos – “Eles sempre distorce a nossa palavra, sabe? Eles distorce. Então é uma
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 707

coisa que eu vivo em luta com o povo. Assim, não com o povo… não com o meu
povo que me apoia, mas com o povo que é o contrário nosso, né?” (ibidem).
Historicamente, as promessas de emprego e crescimento econômico associados
às grandes empresas provocam divisões entre os atingidos, pois são muitos os que
acreditam nestas oportunidades. Porém, a história e o relato dos atingidos já vem
demonstrando que, para os moradores das comunidades – que perdem o seu território,
seus meios e modos de vida tradicionais – as poucas vagas que lhes são destinadas
são para o ocupar os postos mais precarizados de trabalho. Ainda assim, uma parcela
considerável dos atingidos continua acreditando nos empregos, posicionando-se em
oposição àqueles que lutam contra os grandes projetos:

Aí a gente, por exemplo, aqui, o pessoal da... desse lado aqui diz assim: “Não,
o sindicato não faz nada; não faz nada!’’. Não, na verdade, se a gente vai fazer
uma pesquisa, entre eles, eles preferem as empresas; eles defendem as empresas;
eles defendem os projetos, a instalação desses de.... Tá igual aquele caso lá de
Mariana, né? Que as pessoas foram atingido e depois foi feita uma pesquisa e
70% dizia que a empresa devia continuar por causa do emprego. Então é muito
complicado. Isso dá uma angústia na gente porque as pessoas preferem às vezes
a morte, né? Preferem achar que o projeto é a solução (TOCANTINS, 2020).

Quem disse que a gente conseguiria tirar uma Hydro daqui? Aí é pedi pra morrer.
Porque o povo…. Porque a Hydro ela dá emprego pra várias pessoas, né? Ela
mesmo, mas tem a terceirizada que emprega peão; e esse peão, sabendo que a
empresa vai acabar e sabendo de onde vem… é isso. Isso porque naquele, lá em
2018, foi quebrado vários contrato por causa daquele crime ambiental, né? A
gente já sofreu ameaça, imagine se uma empresa dessa saí (AMAZONAS, 2021).

Os conflitos, disputas, cisões e desconfianças entre os próprios atingidos são


fatores que enfraquecem as suas lutas, mas também são elementos constituintes do
modo como eles são produzidos. Da intercessão entre as lutas que se articulam, dos
atingidos uns contra os outros e destes contra os grandes projetos, envoltos com suas
alianças e na disputa pela forma como são representados, produzem-se: atingidos
que se reconhecem como tais e outros que não reivindicam esta identidade; atingi-
dos que se organizam e lutam contra os grandes projetos e outros que defendem as
empresas e denunciam a ação dos primeiros; atingidos que lutam contra atingidos e
outros que, apesar de lutarem para sobreviver, não lutam nos termos aqui colocados.
Contudo, todos e todas são atingidos, pois independente da luta que façam – ou
não façam – se contra as empresas ou entre si, o que fazem ou deixam de fazer e
da forma como é feito, é um produto das transformações provocadas pelos grandes
projetos em seus modos de vida.
Eu pude perceber, no processo de organização do ato de 18 de fevereiro de 2019,
como os conflitos entre os atingidos podem ser um fator determinante para dificultar
a sua unidade para a luta. Estes conflitos, contudo, envolvem relações políticas, de
parentesco e de liderança nas comunidades. Eles se associam ao nível dos modos de
vida dos atingidos, de seu cotidiano, de suas relações locais, mas não se dissociam,
708

por isso, dos movimentos mais gerais da luta de classes contra os grandes projetos
ou do modo de produção capitalista como produtor de contradições e antagonismos;
eles são, também, da ordem tanto da objetividade quanto da subjetividade, pois são
concretos e, ao mesmo tempo, dizem respeito às singularidades dos sujeitos atingidos.
Em 20 de janeiro de 2019, participei de uma reunião na comunidade Burajuba
onde, cumprindo com uma das táticas definidas para a realização do ato, de ampliar o
envolvimento das comunidades de Barcarena, compareceram representantes e presi-
dentes de diversas outras comunidades, como Arienga, São Lourenço, Sítio Conceição,
da Ilha Trambioca, Tupanema, de Vila do Conde, Vila dos Cabanos, dentre outras.
Desta reunião foi formado o comando do ato, composto por cerca de 10 pessoas, do
qual eu fazia parte mais os representantes das principais comunidades presentes; este
grupo teria tarefa de fazer a mobilização para o ato, garantir a estrutura, comunicação
e segurança para o dia, também seria a comissão responsável por elaborar a pauta de
reivindicações dos manifestantes e realizar qualquer tipo de negociação que se mos-
trasse necessária, seja com a empresa, com representantes do estado ou com a polícia.
Foi neste dia, também, que comecei a perceber alguns detalhes que só a aproxi-
mação das comunidades e seus presidentes começara a tornar possível: 1. as comu-
nidades São João e Burajuba ficavam uma de frente para a outra, cortadas por uma
estrada, antes elas eram uma só e, após sucessivos conflitos que envolviam a rea-
lização dos estudos do componente quilombola para a certificação pela Fundação
Cultural Palmares, elas se dividiram; 2. Amazonas, atual presidente da Associação
dos Moradores do Quilombo Sítio São João e Jurema212, autointitulada presidente da
Cainquiama e moradora da Comunidade Quilombola Burajuba, eram parentes – não
consegui saber o grau de parentesco – e nutriam entre si desavenças que remontavam
à cisão comunitária; 3. Socorro reivindicava para si a presidência da Cainquiama,
porém, outras pessoas diziam que ela não era mais presidente e que a diretoria da
associação estava sendo recomposta, segundo eles, ela usava a associação em bene-
fício próprio, apropriando-se privadamente do dinheiro coletivo, mas a Jurema, no
entanto, afirmava que foi ela quem criou a associação, junto a sua família e que, como
os demais familiares não eram mais associados, a ela cabia à presidência – ressalte-se
que Amazonas fez parte da fundação da Cainquiama e, nesta época, já presidia a
associação de outra comunidade.
Nesta reunião, também, conheci a Marilda e o Polinário; ambos se diziam
“lideranças do Conde” e reivindicavam certa autoridade e direito de participar das
decisões por comporem o Fórum Intersetorial de Barcarena, que conglomerava
representantes da sociedade civil, da prefeitura e das empresas no município. Pos-
teriormente, em momento diferentes, quando estava junto ao Polinário e a Marilda,
ambos me diziam que eu não devia confiar na Amazonas ou na Jurema e, em outras
situações, quando estava conversando separadamente com a Amazonas ou a Jurema,
ambas me diziam para não confiar, nem em uma e nem em outra, nem no Polinário
ou na Marilda. Comecei a pensar, que diante dos avisos, não deveria confiar em
ninguém, no entanto mantinho o diálogo com todos, comparecia às casas que era

212 As pessoas que não entrevistei, nomeei-as com nomes próprios, mas que não são os seus nomes verda-
deiros, pelos mesmos motivos pelos quais ocultei os nomes dos entrevistados.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 709

convidado e, em todas as reuniões, quando essas pessoas estavam juntas, eu buscava


não demonstrar surpresa por ver, aqueles que não se confiavam, apresentar tão larga
familiaridade, intimidade e “confiança”.
No dia 25 de janeiro de 2019 ocorreu um gigantesco crime na mineração, pro-
vocado pela Vale, que chocou o Brasil e o mundo: o rompimento da bacia de rejeitos
em Brumadinho, provocando a morte de mais de 300 pessoas. Com o crime cometido
pela Vale na Barragem de Córrego do Feijão, imediatamente, as atenções nacionais e
internacionais se voltaram para o conjunto de outros grandes projetos que, no Brasil,
representassem riscos iminentes para a população em seu entorno, incluindo aí aqueles
instalados em Barcarena, especialmente a indústria mineral da Hydro-Alunorte. Deste
modo, o ato que estávamos organizando ganhava ainda mais importância e passava
a se inserir dentro de um contexto nacional de luta para denunciar os diversos crimes
cometidos pelo capital na mineração.
Foi assim que, no dia 1 de fevereiro de 2019 realizamos uma assembleia com os
atingidos de Barcarena e Abaetetuba, na vila dos Cabanos, que contou com a participa-
ção de mais de 100 pessoas e acabou por se converter em um ato em solidariedade aos
atingidos de Brumadinho. Neste dia, foi encaminhada a proposta de ampliar a mobili-
zação do ato para as comunidades atingidas do município de Abaetetuba, que se faziam
representar, na ocasião, pelo Sérgio Almeida, intitulado presidente do Movimento Social
dos Ribeirinhos das Ilhas de Abaetetuba. Lembro dele insistir em querer saber quem
financiava o MAB e, diante de nossas afirmações do caráter popular e autônomo do
movimento, pareceu perder o interesse ao mesmo tempo em que se mantinha descon-
fiado, mas ficou responsável por levar um ônibus com as pessoas de Abaetetuba para
o dia do ato. Logo em seguida, fui alertado pela Marida para não confiar no Almeida,
pois ele era “queimado” nas comunidades por pedir dinheiro para as famílias em troca
de cadastro para sestas básicas e outros auxílios que nunca chegavam.
Após o ato, fiquei sabendo que o Sérgio Almeida andou por várias comunidades
de Abaetetuba e de Barcarena, convencendo vários presidentes de comunidades a não
irem para o ato, alegando que a comissão organizadora estava sendo comandada por
ONGS (se ferindo ao MAB) que queriam se aproveitar das famílias para conseguir
recursos com as empresas, por outro lado, ele incitava as comunidades a se juntarem
a ele para participar da audiência pública que ocorreu no dia 15 de fevereiro. Eu
soube também, através de Tapajós, que no mesmo horário do ato, várias lideranças
que faziam parte do comando, dentre elas a Jurema, o Marilda e o Polinário, estavam
reunindo com outros presidentes de associações e centros comunitários, preparan-
do-se para uma outra reunião que ocorreria, no mesmo dia, com representantes da
Hydro e da Albrás para tratar sobre cursos e programas de capacitação oferecidos
pelas empresas às comunidades.

Conclusão

No dia 18 de fevereiro de 2020 houve mais um ato das comunidades de Barca-


rena em frente ao MPF, em Belém e, depois, enquanto eu participava de um semi-
nário na UFPA sobre os dois anos do crime da Hydro-Alunorte, lembrava dos dias
710

que passei percorrendo diversas comunidades tradicionais, reunindo com lideran-


ças e entregando panfletos, mobilizando para um ato que, pretendíamos, chamar a
atenção da mídia internacional. O ato ocorreu, e foi citado na matéria de um site de
médio alcance213. Não foi noticiada, contudo, a trama das relações que envolveram
a sua organização, nem que, as poucas pessoas que seguravam as faixas em frente
a Hydro, naquele dia, eram 5% do que se esperava e que vinham de comunidades
que não constavam nas listas de mobilização. Eu mesmo ainda não entendia muito
bem como tudo tinha acontecido e, as informações que possuía, estavam dispersas
e pouco organizadas.
Em 18 de fevereiro de 2021 a pandemia do Coronavírus ainda era o foco cen-
tral das atenções e preocupações, e não ouvi falar nada sobre os 3 anos do crime em
Barcarena. Neste período, também, eu tentava organizar os primeiros materiais do
campo que conseguira realizar, com muitas dificuldades devido à pandemia, no final
do ano anterior. Um ano depois, em 18 de fevereiro de 2022, eu me preparava para a
defesa de minha dissertação de mestrado, já com muitas análises e conclusões amadu-
recidas e consolidadas; no dia da defesa, em 31 de março, que foi no formato virtual,
alguns de meus entrevistados estavam presentes e então lembrei, inevitavelmente, da
organização do ato de 4 anos atrás, no entanto, apesar de já ter aprendido um pouco
mais sobre como são produzidos os atingidos pelos grandes projetos em Barcarena,
como se relacionam e os conflitos que lhes são imanentes, eu ainda não havia me
debruçado sobre uma análise específica a respeito do conflito nesta produção.
Isto só foi possível, sem dúvida, e da forma como tentei fazer, graças a minha
aproximação com a antropologia e graças à gestação de minha esposa, Ádima, quando
decidimos, na espera do nascimento de Maya, que eu a acompanharia na disciplina
Leituras Etnográficas. Agradeço às duas e também à Profa. Dra. Michele Escoura
Bueno, pela oportunidade de, como um estrangeiro amador, navegar ainda que super-
ficialmente pelas águas caudalosas da escrita etnográfica.

213 LEÃO, Bianca. Barcarena: 1 ano de vidas em suspenso e violação de direitos. Amazônia Real, 19 mar. 2019.
Disponível em: https://amazoniareal.com.br/barcarena-1-ano-de-vidas-em-suspenso-e-violacoes-de-direitos/.
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BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 711

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UBERIZAÇÃO: precariedade da
vida mediada pelo trabalho
Lucivaldo da Silva Araújo
Raphael Brito Neves
Ingrid Bergma da Silva Oliveira

...o ser humano não foi libertado da religião, ele recebeu liberdade religiosa.
Ele não foi libertado da propriedade, ele recebeu
liberdade para possuir propriedade.
Ele não foi libertado do egoísmo dos negócios, ele
recebeu liberdade para fazer negócios
(MARX, 1970, p. 362).

Introdução

Com o advento do capitalismo no século XV, a maneira de se conceber e rea-


lizar o trabalho se modificou. O que antes se organizava em torno do necessário à
subsistência, transmutou-se para um modelo de produção voltado para o aumento
sistemático do lucro e para ampliação da quantidade de bens produzidos. Os meios
utilizados pelo Capitalismo, enquanto sistema econômico e social baseado nos bens
privados em que o capital está em mãos de empresas ou indivíduos que contratam
mão de obra em troca de salário para que esses objetivos sejam alcançados são
inúmeros, dentre eles, as variadas formas de exploração da classe trabalhadora
(TRIVELLATO; PAIXÃO, 2020).
A conivência do Estado para com a exploração dos trabalhadores manifes-
ta-se por meio da chancela de práticas baseadas em uma política neoliberal que
tem como cerne a flexibilização das relações de trabalho e a diminuição de direitos
trabalhistas, sob a justificativa de que, tais medidas, refletirão na diminuição do
desemprego (idem).
Dentre as relações trabalhistas precárias, a uberização tem se tornado um tema
evidente devido ao seu crescimento e por constituir-se, atualmente, como uma impor-
tante forma de exploração e controle da classe trabalhadora. Dias (2020, p. 9) define
tal relação como “todo regime de trabalho que se dá através de instrumentos virtuais
e digitais, que criam uma sensação de autonomia dos trabalhadores e senso de inde-
pendência”. Essa relação, destaca o autor, se baseia na precarização, com ausência
de vínculo empregatício e por consequência, supressão de direitos trabalhistas.
A uberização das relações de trabalho está intimamente relacionada à eco-
nomia do compartilhamento, fenômeno que favoreceu o surgimento de empresas-
-aplicativos como Uber®, Ifood®, Rappi® e 99Food® (MORAES; OLIVEIRA;
ACCORSI, 2019; DIAS, 2020).
714

Segundo Slee (2019), a economia do compartilhamento, ou gig economy, que


tem como maiores representantes as empresas Uber® e Airbnb®, apresenta como
proposta conectar consumidores aos provedores de serviços. Outra característica deste
modelo é o discurso que rotula os trabalhadores vinculados a essas plataformas, como
microempresários. Essas iniciativas têm apresentado elevado crescimento de mercado
nos últimos anos como um modelo de negócios que ocorre em ambientes virtuais.
Nos contextos de trabalho vinculados a plataformas virtuais baseadas na econo-
mia do compartilhamento, há ausência do reconhecimento dos trabalhadores enquanto
classe social, principalmente pela dificuldade da distinção entre trabalhadores e ges-
tores, resultado de um discurso massificante que instaura, em torno dessas pessoas,
uma “aura” de empreendedorismo.
Bianchi, Macedo e Pacheco (2020) afirmam que a classificação do trabalho em
plataforma digital como empreendedorismo é errônea, pois este apresenta os elemen-
tos básicos que representam o vínculo empregatício na legislação brasileira, a saber:
“[...] prestado por pessoa física de forma personalista, a prática da remuneração, a
não eventualidade e a existência de subordinação” (p. 129).
A ausência de relação empregatícia é justificada, pelas empresas, sob o argu-
mento de que tais plataformas atuam somente como mediadoras da relação entre
clientes e entregador/motorista, uma alegação que não se sustenta diante da cons-
tatação do controle, distribuição do trabalho e atribuição dos valores dos serviços
realizados por essas empresas (ABILIO, 2019).
Esse modo de exploração da mão de obra dos colaboradores de empresas-aplica-
tivo, atua na manutenção do processo de Uberização, pois se funda na submissão de
indivíduos trabalhadores a relações de trabalho precárias, disfarçadas de empreende-
dorismo devido à necessidade de suprir suas necessidades básicas, fenômeno que atua
na intensificação da desigualdade social (BIANCHI; MACEDO; PACHECO, 2020).
O fenômeno da Uberização é pautado no controle dos indivíduos, ocorre por
meio de plataformas digitais e de maneira sutil. Este controle se dá através do uso
de algoritmos que têm a função de influenciar o comportamento dos entregadores/
motoristas através de inúmeras estratégias baseadas em bonificações e punições
(DUARTE; GUERRA, 2020).
Vidigal (2020) chama a relação entre plataformas digitais e trabalhadores
baseada na díade recompensa-punição, de gestão gameficada do trabalho. De acordo
com a autora, a gestão gameficada tenta integrar dimensões afetivas, utilizando-se
do fator desafiador, o que daria um caráter de jogo às atividades laborativas; e
materiais, através de bonificações ao trabalho, como uma maneira de suavizar o
sofrimento gerado pelo trabalho.
O modelo de remuneração da gestão gameficada se dá através de salário por
peça, ou seja, os ganhos são dados através do quanto o indivíduo produz. Nesse
modelo de remuneração, a gestão do tempo, o gerenciamento da produtividade e
o custo da ociosidade são transferidos ao trabalhador, o que acaba por intensificar
o trabalho, naturalizar jornadas extensivas, causar a sensação de liberdade para os
entregadores/motoristas e maiores lucros à plataforma, ou seja, maior exploração da
classe trabalhadora (VIDIGAL, 2020).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 715

Os algoritmos utilizados pelas plataformas, utilizando-se de técnicas de controle


sutil, beneficiam-se da falta de melhores oportunidades de trabalho a trabalhadores
com vários níveis de formação. Deste modo, acabam por modelar uma forma distinta
de relação dos trabalhadores com o trabalho remunerado, gerando intensificação das
atividades laborativas e sobreposição desta ocupação sobre as demais tarefas da vida
cotidiana, o que gera cada vez mais lucros às plataformas digitais, maior controle da
classe trabalhadora e precarização da vida dos trabalhadores envolvidos.
Falar em vidas precárias, neste contexto, é tratar de uma precariedade da exis-
tência mediada pelo trabalho que, pelo modus operandi que assume na vida dessas
pessoas, lança-as em uma trajetória existencial demarcada pela instabilidade, fragi-
lidade, escassez de relações intersubjetivas que põem em xeque o próprio sentido
da vida, ou seja, des-humaniza-as. Esse panorama tem consequências financeiras,
emocionais e sociais que podem repercutir na identidade social, autoestima, senti-
mento de realização pessoal, saúde mental e, em sentido mais amplo, ameaça a sua
própria humanidade (SILVA; SIME, 2019; BUTLER, 2011).
Neste capítulo apresentamos alguns resultados de uma pesquisa na qual desta-
camos as relações empresa-trabalhador, questões sócio-político-econômicas envol-
vidas, dentre outros fatores relacionados à gênese e manutenção do fenômeno da
uberização na realidade local de Belém / Pará e, sobretudo, enfocamos o indivíduo,
a pessoa agente da ação e suas vivências, a fim de identificar a percepção de traba-
lhadores sobre os processos nos quais estão imersos. O estudo partiu da indagação:
“Quais os sentidos e significados atribuídos à ocupação trabalho por entregadores
por aplicativos?”.
A partir de uma perspectiva da Ciência da Ocupação, Terapia Ocupacional e
Fenomenologia Existencial buscamos compreender os sentidos e significados da
ocupação trabalho para entregadores por aplicativos em um contexto regional e adi-
tar ao campo de conhecimento que se dedica à dimensão subjetiva de trabalhadores
imersos em um processo de precarização da vida em função do envolvimento em
um modo de trabalho peculiar.

Método

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, transversal, descritiva e de


orientação fenomenológica. O foco é compreender fenômenos subjetivos que estão
intimamente ligados aos significados que os indivíduos atribuem às suas vivências,
pois tal estruturação de pesquisa compreende que o sujeito e a realidade são fatores
que não podem ser separados. Para isso, lança mão de dados não quantificáveis
e que não podem ser analisados através de métodos estatísticos (PRODANOV;
FREITAS, 2013).
Pesquisas transversais são delimitadas por um determinado intervalo de tempo e
cujo recorte temporal é bem definido. Esse tipo de pesquisa visa investigar fenômenos
no momento em que acontecem (HOCHMAN et al., 2005). Já pesquisas descritivas
visam registrar e descrever os fenômenos, muitas vezes, acessado por meio de entre-
vistas, questionários, formulários e observação (PRODANOV; FREITAS, 2013).
716

A pesquisa fenomenológica busca estudar os fenômenos através da experiência


das pessoas que os vivenciam. Através da experiência vivida busca-se descrever o
fenômeno sem a pretensão de estabelecer vínculos causais, explicações ou predições
(COLTRO, 2000; CARVALHO; FREITAS, 2013).
Estudos fenomenológicos de base hermenêutica, como o aqui proposto, ori-
ginam–se na Filosofia Fenomenológica e se dedicam a objetos de investigação que
ultrapassam a noção de ciência pautada na mensuração, generalização e reprodutibi-
lidade dos resultados em ambientes controlados. Importante frisar, nesse sentido, que
não há uma única forma de fazer ciência, tampouco há uma única noção de ciência
e do que é considerado científico nesses tempos pós-modernos. Do mesmo modo,
não há uma única forma de pesquisa fenomenológica, já que a fenomenologia como
filosofia e método é um projeto inacabado (ARAÚJO, 2016).
Nelson e Rawlings (2007) recomendam a construção de um caminho feno-
menológico para cada pesquisa, devendo o pesquisador explicitar o aporte teórico
utilizado e os passos seguidos em consonância com as qualidades do fenômeno
sob investigação, isto é, deve indicar e contextualizar suas escolhas. Talvez, por
isso, como diz Mansini (1989), seja mais coerente falar em postura(s) ou atitu-
de(s) fenomenológica(s).
Pesquisas qualitativas de orientação fenomenológica tem como um de seus
princípios basilares o aprofundamento nas minúcias da experiência vivida (GOL-
DENBERG, 2007; FROTA, 2010). Desse modo, o tamanho da amostra não é definido
por um método de amostragem baseado em procedimentos estatísticos, mas pelo
critério de saturação que considera a repetição de informações como marco analítico
de que os dados daquele contexto e/ou fenômeno não aditam mais ao objetivo do
estudo (MUCHIELLI, 1991).
Para a seleção dos participantes da pesquisa foi utilizado o método de amos-
tragem do tipo bola de neve. Esse tipo de amostragem não probabilística utiliza de
cadeias de referência, ou seja, quando se estabelece contato com um indivíduo e este
apresenta os próximos potenciais participantes ao pesquisador, criando, assim, uma
rede de contatos (VINUTO, 2014).
Os critérios de inclusão utilizados foram: pessoas que trabalham com entregas
através de aplicativo há pelo menos 6 meses e que concordaram em assinar o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram excluídos indivíduos que não
tinham o trabalho de entregas por plataformas como fonte de renda primária. Os
dados foram obtidos durante o mês de novembro de 2021.
A obtenção das informações ocorreu por meio de entrevista semidirigida que
teve por base questões abertas que exploraram a vivência, os sentidos e os significados
atribuídos pelos sujeitos à ocupação trabalho. As entrevistas foram realizadas em um
ponto de encontro em que os trabalhadores se aglomeram à espera dos chamados
de entrega por aplicativo em um logradouro público localizada no centro da cidade
de Belém – PA.
Turato (2008) considera a entrevista um método de coleta que possibilita
um encontro intimista entre o pesquisador e o indivíduo entrevistado. Segundo o
autor, entrevistas semidirigidas são instrumentos que visam a partilha de direção
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 717

da entrevista entre o entrevistador e o entrevistado. Nesta forma de obtenção de


dados, o entrevistador deve estar atento à fala do entrevistado, portando-se de
maneira a instigar e facilitar o desvelamento de sentidos que permitam compreender
o fenômeno em foco.
As entrevistas tiveram duração aproximada de 40 minutos, foram gravadas
em áudio e posteriormente transcritas. Os discursos foram transformados em texto
e em seguida submetidas à análise hermenêutica do discurso, proposta por Paul
Ricoeur (RICOEUR, 1988).
Ricoeur compreende que a linguagem, enquanto discurso, como ato e signifi-
cação. Além disso, o autor compreende que há possibilidades de múltiplas interpre-
tações através de um único discurso, entretanto, pondera que nem toda interpretação
pode ser considerada verdadeira, sendo necessária consistência analítica por parte do
pesquisador-hermeneuta. Nesse contexto, interessam-nos os sentidos, e não os atos,
manifestados pelos discursos (MELO, 2016).
A análise do material empírico envolveu a organização dos discursos trans-
formados em texto em categorias analíticas ou unidades de sentido, forma de tra-
balhar os dados, já empregada por diversos autores que se utilizam do método
qualitativo hermenêutico (ARAÚJO, 2016; PINTO JÚNIOR, 2005; OLIVEIRA,
2007; RIGOTTO; GOMES, 2002). Cada categoria foi estruturada a partir da arti-
culação entre os dados empíricos obtidos com a vasta produção teórica do campo
de conhecimento da ciência da ocupação, da terapia ocupacional e de outras áreas
que discutem a dimensão trabalho como fazer humano importante à estruturação
da vida em sociedade.
Esse processo procura agrupar, por convergência, aproximação temática ou
divergência, temas oriundos dos discursos que se relacionam entre si e permitem
compreender os sentidos e significados da ocupação trabalho para os participantes da
pesquisa. Nos estudos fenomenológicos que se utilizam desta forma de apresentação
e discussão dos dados, as categorias são empregadas para estabelecer classificações,
agrupando elementos, ideias ou expressões que se desenvolvem em torno dos sentidos
que os sujeitos atribuem ao fenômeno estudado.
O desenvolvimento da pesquisa obedeceu a todos os critérios éticos previstos
para pesquisas envolvendo seres humanos do Conselho nacional de Saúde. Foi
submetido e aprovado em comitê de ética sob parecer no. 7.796.748. Os participan-
tes serão identificados no texto com pseudônimos em referência aos nomes mais
comuns no Brasil no ano de 2021 (ARPEN, 2022), a fim de preservar a identidade
dos participantes da pesquisa. Desse modo serão identificados como Miguel, Arthur,
Helena, Alice e Heitor.
Foram mantidas as construções verbais na íntegra de suas narrativas.

Resultados e Discussão

Foram entrevistados 5 entregadores por aplicativo que trabalham na região


metropolitana de Belém – PA.
718

As principais informações sobre o perfil dos colaboradores em relação à ocu-


pação trabalho como as plataformas em que atuam, carga horária diária trabalhada,
dias na semana trabalhados e meio de transporte utilizado para execução do trabalho,
foram resumidos no quadro (Quadro 1) a seguir.

Quadro 1 – Perfil dos participantes


Miguel Arthur Helena Alice Heitor
IDADE 23 23 41 27 43
GÊNERO Homem Homem Mulher Mulher Homem
Ensino médio Ensino superior Ensino médio Ensino médio Ensino médio
ESCOLARIDADE
incompleto incompleto completo completo completo

RENDA MÉDIA MENSAL NO > de 1 salário 1 a 2 salários 1 a 2 salários 2 a 3 salários 1 a 2 salários


TRABALHO NO APLICATIVO mínimo mínimos mínimos mínimos mínimos

Uber eats® Ifood®


PLATAFORMAS EM QUE 99 Food®
Ifood® (nuvem) Ifood® (OL) Ifood® (OL) (nuvem)
TRABALHA Rappi®
Rappi® 99Food®

CARGA HORÁRIA DIÁRIA DE


9 a 10 h/dia 7 a 8 h/dia 7 a 8 h/dia 11 a 12 h/dia 7 a 8 h/dia
TRABALHO

DIAS TRABALHADOS
6 7 6 6 7
(por semana)

MEIO DE TRANSPORTE
Bicicleta Bicicleta Motocicleta Motocicleta Motocicleta
UTILIZADO PARA TRABALHAR

Fonte: Banco de dados da pesquisa.

A análise dos discursos dos colaboradores permitiu elencar três unidades de sen-
tido: a) “sobre trajetórias laborais”, que aborda o histórico ocupacional dos partícipes
e os motivos para realização do trabalho uberizado; b) “sobre a forma do trabalho
uberizado e suas repercussões”, que aborda sobre a maneira em que o trabalho é
realizado e como afeta a vida dos participantes da pesquisa; e c) “sobre a relação do
trabalhador com as plataformas”, que explora a perspectiva dos trabalhadores sobre
as plataformas em que trabalham.

a) Sobre trajetórias laborais

A análise das trajetórias que conduziram os participantes da pesquisa ao traba-


lho desenvolvido por meio de aplicativos aponta que todos os entrevistados tiveram
experiências de empregos anteriores ao trabalhado de entregador. As experiências
prévias laborativas envolveram empregos formais em regime celetista ligados ao
segundo e ao terceiro setor.

Antes de trabalhar com aplicativo, eu ‘tava’ trabalhando em construção civil


como ajudante geral (Miguel).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 719

Eu tive dois empregos em dois supermercados de Belém. Um na Yamada, passei


dois anos; e no Líder, supermercado Líder, eu passei três anos e meio. Era car-
teira assinada (Helena).

Eu trabalhei muitos anos no comercio, né? Porque a Havan é comercio, né?


Era mais com isso que eu trabalhava, em shopping... essas coisas assim (Alice).

Trabalhei no Líder, como embalador, balconista de padaria. Trabalhei lá por


dois anos, depois de um certo tempo saí. Passei um ano e pouco desempregado.
Aí fui trabalhei no comercio, né? Loja de tecido, fiquei lá por seis anos (Heitor).

Entender a história de vida dos participantes a partir das ocupações em que


se envolveram é de fundamental importância para traçar o perfil ocupacional dos
entrevistados, já que esse perfil pode ser definido como a síntese de ocupações já
desempenhadas e que pode demarcar suas crenças, valores, interesses, potencialidades
e dificuldades. Através desse entendimento é possível obter melhor compreensão
sobre suas motivações, expectativas e visão de mundo (AOTA, 2020).
As causas que levaram os colaboradores da pesquisa a trabalhar com entregas
por aplicativos são múltiplas e não podem ser atribuídas a somente uma situação.
Dentre os motivos citados nos discursos destaca-se a ruptura com o vínculo empre-
gatício anterior motivada por razões distintas. Os participantes Helena e Heitor, por
exemplo, referem o rompimento por iniciativa própria, em razão do sentimento de
desvalorização gerado em seus empregos anteriores. Os colaboradores Miguel e Alice,
por sua vez, atribuem o motivo principal da desvinculação à redução do número de
trabalhadores em função da pandemia de Covid-19. O primeiro vincula o fato ao
enfraquecimento do setor de construção civil e o segundo, a sua própria dificuldade
em conciliar o papel ocupacional de mãe e o de trabalhadora.

Aí, só que no período que entrou praticamente pandemia aí dispensaram metade


dos funcionários. Aí eu saí no meio deles, no caso, fui um deles a ser dispen-
sado (Miguel).

Aí durante a pandemia, eu voltei pra Belém [...] voltei porque eu tenho uma
filha pequena de dois anos e durante a pandemia eu fiquei com dificuldade pra
trabalhar e ter com quem deixar ela (Alice).

A pandemia de covid-19 afetou diretamente o mercado de trabalho de diversas


formas e nos mais variados setores da economia. Acabou por intensificar e explici-
tar a deterioração do mercado de trabalho, tal qual advém de reformas pautadas em
políticas neoliberais anteriores à pandemia e iniciadas principalmente no governo de
Michel Temer e continuadas no governo de Jair Messias Bolsonaro (BRIDI, 2020).
As particularidades apontadas por Alice destacam uma realidade comum nas
sociedades patriarcais: que ocupações ligadas ao cuidado são atribuídas às mulheres.
Tais ocupações são fazeres ocultos, invisíveis e pouco valorizadas. Durante o período
pandêmico, especialmente, houve ainda a intensificação de atividades relacionadas
720

à manutenção do lar e de cuidados aos filhos o que, por sua vez, acentuou a carga
de tarefas atribuídas às mulheres, somada à diminuição da rede de apoio devido ao
fechamento de escolas e creches em função do isolamento social (DORNA, 2021).
O participante Arthur, diferente dos demais, não teve ruptura com o trabalho
formal, já que o trabalho em aplicativos, na sua condição, ocorria concomitante ao
vínculo celetista.

Eu não ganho muito. Ganho um pouco mais que um salário mínimo, mas eu
faço faculdade particular e fora muitas dívidas que eu acabei adquirindo nos
últimos tempos, eu realmente ‘tava’ precisando de uma renda a mais no meu
orçamento (Arthur).

Tem-se, nessa experiência, razões motivadas pelo endividamento pessoal como


fator responsável pelo ingresso do trabalhador formal em uma jornada dupla de tra-
balho, em que a condição de entregador por aplicativo se coloca como fonte primária
da sua renda, que se mostra insuficiente.
Outra causa identificada a partir do conjunto dos discursos para o ingresso
no mercado de entregas por aplicativos foi a ausência de outras oportunidades de
emprego e renda devido à dificuldade de realocação no mercado de trabalho.

Eu espalhei currículo em tudo e até agora ninguém me chamou. Aí o único


meio que eu tenho foi só esse, que eu tenho de trabalhar como autônomo de
aplicativo (Miguel).

Busquei trabalho [de carteira assinada], mas foi muito difícil achar. Deixei vários
currículos e sabe como tá difícil, né? Um emprego hoje em dia. E... no caso pra
mim, que só tenho segundo grau completo, ficou muito difícil achar emprego.
Então parei de trabalhar um bom tempo, até surgir o aplicativo (Helena).

Nascimento e Reis (2020) consideram que, em decorrência da retração de postos


de trabalho formais agravado no período pandêmico, a fim de garantir suas necessida-
des básicas, os trabalhadores foram impelidos a buscar posto de trabalhos informais,
subempregos marcados pela ausência de seguridade social e vínculo empregatício.
O caminho percorrido pelos entrevistados converge com essa realidade e
evidencia trajetórias marcadas pela vulnerabilidade social e ausência de oportu-
nidades empregatícias, fato que os conduziu a desempenhar a ocupação trabalho
por meio de aplicativos de entrega, por conta de esta ser a única forma de garantir
renda imediata e tinha, no ingresso facilitado, um atrativo, dadas as circunstâncias
e necessidades particulares.
A ausência de menções sobre satisfação com o fazer ou qualquer outro sentido
subjacente à tarefa na qual se envolvem parece reduzir a ocupação trabalho a algo que
deve ser suportado, transposto, independente de suas condições, desde que advenha,
deste envolvimento, o retorno financeiro imediato que lhes permita sobreviver diante
das parcas oportunidades de emprego e renda em tempos de recessão econômica
agravada pelo cenário pandêmico ou, talvez colocado de forma mais apropria, a
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 721

ocupação trabalho, em suas experiências, parece ser reduzida ao sentido de ação


mecânica voltada à subsistência.

b) Sobre a forma do trabalho uberizado e suas repercussões

Um dos aspectos centrais em evidência nos discursos dos informantes é o quão


a ocupação trabalho preenche grande parte do tempo dessas pessoas.

Eu saio de casa mais ou menos umas 8 horas. Aí eu fico das 8 até as 15h ou então
até descarregar o celular. Aí eu vou pra casa almoçar. Aí retomo 17:30 ou 18h,
e vou até o celular descarregar, por volta das 23h, meia noite, 1h, até quando a
bateria der, no caso (Miguel).

Geralmente eu trabalho oito horas, mas ultimamente eu tô trabalhando


onze (Alice).

Trivellato e Paixão (2020) consideram que o tempo de trabalho é moldado


pelas ânsias do capitalismo e que através do processo de flexibilização das relações
trabalhistas ocorre a diminuição de direitos e transferência de riscos aos trabalhadores.
Assim, esses trabalhadores são impelidos a terem jornadas exaustivas de trabalho
para garantir maiores ganhos, o que garante às empresas maximização dos lucros a
partir da maior exploração da mão de obra.

Ontem eu tava na área de ciclista, indo lá pra Júlio César fazer uma entrega. Alí
perto do elevado Daniel Berg, tinha um motorista lá esperando o sinal abrir. Aí
veio um carro de Uber® e não teve a mesma paciência que o da frente e veio por
trás e bateu em mim e em um colega meu. Meu tornozelo ficou muito machu-
cado, no caso ainda tá (Miguel).

O relato de Miguel, que Miguel havia sofrido um acidente no dia anterior à


entrevista e foi encontrado trabalhando por conta da falta de seguridade social e da
necessidade de manter a renda, destaca o caráter insalubre da atividade de entrega-
dor por aplicativos em Belém, seja por conta da violência urbana ou do trânsito de
veículos. Além de Miguel, todos os demais entregadores entrevistados relataram ter
sofrido algum tipo de acidente durante o exercício da atividade laboral.
Essas narrativas corroboram com os dados do relatório de pesquisa da Asso-
ciação Brasileira de Estudos do Trabalho (2020), que apontam que 1 em cada 3
entregadores sofre algum tipo de acidente exercendo seu trabalho e que 65% deles
conhecem algum entregador que sofreu acidentes trabalhando.
Outro aspecto ressaltado pelos informantes diz respeito ao modo como a ocu-
pação trabalho afeta o desempenho de suas Atividades de Vida Diária – AVD’s214,
principalmente no que tange à alimentação e banho.

214 De acordo com a American Occupational Therapy Association – AOTA (2020), Atividades de Vida Diária
– AVD’s, são aquelas orientadas para cuidar do próprio corpo e realizadas por rotina como tomar banho,
cuidar da higiene pessoal, alimentar-se, vestir-se, atividade sexual etc.
722

Pra mim, assim... minha vontade era ir em casa tomar um banho pra depois
continuar, mas não dá, que eu moro longe (Alice).

Alimentar, praticamente, a gente ainda não tem muito tempo. A gente, pratica-
mente, tem comprar algum lanche na rua. Água também a gente tem comprar já
e tomar no meio da correria. O banho só quando dá tempo de ir em casa, é um
banho rápido e volta pro trabalho (Miguel).

Eu, como eu evito o máximo gastar na rua eu trago de casa. Só que tipo, eu não
posso demorar pra comer, porque senão estraga na bolsa. Tem que ver o que eu
vou trazer. Mas geralmente eu trago meu almoço. Eu almoço no mínimo duas
horas da tarde. Ontem, por exemplo, eu esqueci de almoçar, já era quatro horas
da tarde e eu ainda não tinha almoçado e foi quando apertou a fome e eu lembrei
e eu tenho gastrite, nem devia ficar nessa alimentação (Alice).

Os trabalhadores citam dificuldade em desempenhar a atividade alimentação


de maneira adequada devido a diversos fatores, como falta de espaço físico, tempo
necessário e recursos financeiros adequados. Além da alimentação, relatam dificul-
dade para tomar banho, principalmente quando moram longe do local onde aguardam
serem acionados para a realização das entregas.
As AVD’s como alimentação, banho e higiene sanitária são ocupações com
função de suporte e manutenção do corpo e da vida e não dependem somente do
indivíduo, mas também do ambiente físico, contexto cultural e recursos utilizados
(AOTA 2020), ou seja, a falta de condições adequadas para sua realização pode
acarretar um desempenho ocupacional insatisfatório para os indivíduos.
Soma-se a isto o relato dos participantes que utilizam bicicleta como meio
de locomoção. Esses trabalhadores destacam as problemáticas relacionadas à má
alimentação aliada a uma rotina de intensa necessidade energética.

Praticamente, no meu corpo o impacto é grande, né? Que antes de trabalhar com
aplicativo, no caso voltar, eu ‘tava’ pesando 70 kilos e agora eu ‘tô’ com 56 kilos.
Aí tudo isso por má alimentação, no caso. Comendo muito besteira (Miguel).

[...] eu mesmo já notei perda de peso em mim, mas acho que também seja pelo
fato de tá constantemente pedalando, né? Me alimentando mal querendo ou
não [...] (Arthur).

As ocupações lazer e participação social também são afetadas pela uberização


do trabalho, seja por questões financeiras ou pela falta de tempo disponível para o
envolvimento nessas ocupações de maneira plena e satisfatória.

Às vezes, da vontade de sair, viajar, fazer alguma coisa, mas eu sei que pra mim
viajar eu teria que ter toda uma programação, porque eu vou gastar com a viagem
e vou ta deixando de receber também. Tem essa questão, tem que... tipo, planejar
em dobro, né? Porque além de tá gastando com a viagem eu vou ta deixando
de receber (Alice).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 723

Acaba que tenho que muitas vezes sacrificar entretenimentos, coisas como sair
pra uma festa ou mesmo comer em um lugar diferente. Isso faz tempo que eu não
faço por conta de justamente ter prioridades no momento (Arthur).

Na sociedade capitalista o lazer não é percebido como um direito. Nesse modelo


de sociedade, o lazer assume somente o papel de vazão ao estresse, um fazer com
objetivo de amenizar os impactos de uma rotina extenuante, visando maior produti-
vidade. Considera-se que tal fazer deve ser reavaliado para além do lugar que ocupa
na atual conjunta econômica do mundo contemporâneo, como uma ocupação com
potencial para o crescimento e desenvolvimento humano (SOARES, 2019).
Em oposição a essa indicação, a degradação física e mental provocada pela
uberização do trabalho, escancara a precarização de vidas que seguem um curso
des-humanizante, homens e mulheres-máquinas.

Aí a gente fica sem vida, fica praticamente um robô, não tem como não ficar
satisfeito. Pra eles a gente é um robô (Miguel).

Essa vivência pode estar relacionada ao fato de os entregadores atribuírem signi-


ficados negativos ao trabalho, como algo penoso, degradante, limitante e mecanizado.
Ademais, o trabalho por plataformas digitais é apontando como um fator que impacta
a subjetividade dos entrevistados, configurando-se como agente de despersonalização
e coisificação dos trabalhadores.
Kielhofner et al., (2011) afirmam que ser um trabalhador é um papel ocupa-
cional. Os autores ponderam que papéis ocupacionais são concessores de identidade
pessoal e coletiva dos indivíduos. Eles estão intimamente ligados às expectativas da
sociedade em relação ao engajamento e realização de comportamentos e ocupações
pelos seres humanos, ou seja, toda ocupação realizada por um indivíduo é realizada
de acordo com as expectativas sociais em relação aos papéis ocupacionais que tal
indivíduo desempenha.

c) Sobre a relação do trabalhador com as plataformas

Entender como os trabalhadores enxergam seu vínculo com as plataformas


digitais em que trabalham é importante para compreender as relações de poder envol-
vidas neste processo. Em relação ao vínculo, os trabalhadores frisam a ausência de
vínculo empregatício e classificam a sua modalidade de ligação com a plataforma
como prestadores de serviço.

Somos meros prestadores de serviço mesmo, mas acho que eles não têm nenhum
tipo de responsabilidade com a gente, pelo menos é o que eles acham. Pra eles
não têm nenhuma responsabilidade com a gente, então o que venha acontecer
com a gente no horário de trabalho, no horário que a gente tá logado na conta,
não é responsabilidade deles, eles só querem que a gente faça a entrega (Arthur).

Eu acho que sou tipo assim... um prestador de serviço pra plataforma (Heitor).
724

A ausência de vínculo é pautada pelos trabalhadores como transferência de


riscos e ausência de direitos trabalhistas. Vale salientar que entregadores que tra-
balham como Operadores Logísticos – OL, no Ifood®, apresentam vínculos que
se diferenciam daqueles que trabalham como nuvem ou em outras plataformas. Os
participantes Helena e Alice, por exemplo, atuam nesta categoria e elucidam que
para além do vínculo com o Ifood®, eles apresentam vínculo com uma empresa
terceirizada que presta serviços ao Ifood®.
Essa relação é dada somente por assinatura de um termo de compromisso dos
entregadores com a empresa, ou seja, mantêm-se ausentes vínculos empregatícios e
direitos trabalhistas. Nesse modelo, as empresas terceirizadas de entregas funcionam
como mediadoras da relação entre entregador e plataforma digital, determinando
horários e a localização em que o entregador deve atuar. Essa dinâmica impossibilita
ao entregador desligar o aplicativo e também pode resultar em punições que vão desde
a alocação em regiões onde os ganhos tendem a ser menores, até o desligamento do
trabalho como OL.
Alguns entregadores afirmam que os OL’s têm vantagens sobre os entregadores
que atuam como nuvem em decorrência de que os OL’s receberem mais pedidos e,
por consequência, têm ganhos mais altos. Entretanto, outros entregadores contestam
e afirmam que não há diferença nesse aspecto.
Antunes (2018) se utiliza do termo “escravo digital” para definir a grande
parcela de proletários de serviços que trabalham em plataformas digitais e não
apresentam vínculos empregatícios ou seguridade social. Tal parcela da população é
impelida a trabalhar para essas plataformas devido à corrosão de direitos trabalhistas
e à retração de postos de trabalho formais, tendo que buscar nessas plataformas um
meio de sobrevivência.
Outro ponto destacado pelos entregadores é a ausência de assistência das
empresas-aplicativo para realização e desempenho da ocupação trabalho. É des-
tacada a falta de suporte em caso de acidentes (como o ressarcimento de despesas
médicas e pagamento de insalubridade), manutenção do veículo e treinamentos.

Ela [a empresa] só ouve o lado do cliente basicamente, o nosso ela não ouve.
No caso, quando eu tava fazendo entrega pelo aplicativo, tentei, porque tem uma
parte do aplicativo em que eles falam que eles reembolsam nosso dinheiro com
remédio que a gente gasta. No caso to tentando entrar em contato pra reembolsar
esse dinheiro e eles não respondem nada, so vai caindo, caindo lá as mensagem
e eles não respondem nada (Miguel).

É apertado, mas a gente tem que se organizar, porque o aplicativo não vai te dar
nenhum dinheiro pra manutenção do teu veículo, então vai ser tirado do que a
gente ganha mesmo e ponto. É questão da gente se organizar... mas vai depender
exclusivamente da gente. Com certeza não [é justo], né? Mas sinceramente se a
gente fosse parar pra olhar, acho que dificilmente a gente iria encontrar justiça
em qualquer tipo de empresa privada hoje em dia (Arthur).

No modelo de uberização os trabalhadores são auto gerentes-subordinados, ou


seja, os entregadores necessitam arcar com riscos e custeio da operacionalização da
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 725

atividade laboral, sob a lógica imposta pelas empresas de que esses trabalhadores
são autônomos e os aplicativos, mediadores do processo de trabalho, mesmo que
essas empresas-aplicativos exerçam controle da distribuição do trabalho através dos
algoritmos de inteligência artificial (ABÍLIO, 2019).
Bianchi, Macedo e Pacheco (2020) afirmam que a classificação do trabalho
em plataforma digital como empreendedorismo é errôneo, pois a vinculação dos
entregadores com essas plataformas apresenta os elementos básicos que tipificam
o vínculo empregatício, segundo a legislação brasileira, a saber: “[..] prestado por
pessoa física de forma personalista, a prática da remuneração, a não eventualidade
e a existência de subordinação” (p. 129).
Em relação à renda obtida no trabalho pelos aplicativos, ela se apresenta variável
em decorrência das horas trabalhadas, tipo de transporte utilizado para trabalhar e
score que os trabalhadores possuem na conta do aplicativo. A despeito dessa varia-
ção, os discursos dos entregadores sobre esse tema traduzem sentidos de frustração
e insatisfação com os honorários atuais.

[...] não tá tendo o retorno que eu desejava. Mas como eu te disse, por enquanto é
o que tem... eu só procuro agradecer a Deus cada dia e continuar, se surgir alguma
coisa melhor, a gente vai, mas por enquanto, vou ficar aqui mesmo (Arthur).

A gente trabalha como autônomo e não tem quase nada em ganho, só o da


entrega que a gente faz mesmo que é bem pouquinho (Miguel).

Outro elemento presente nos discursos diz respeito às formas de controle exer-
cidas pelas plataformas sobre os entregadores por meio da modelação da tarefa de
acordo com os objetivos dos aplicativos. As formas de controle nem sempre são explí-
citas nesse modelo produtivo, já que muitas delas se dão através de um controle sutil.

Positivo, é só quando eles dão um extra pra gente, que eles botam uma meta
pra gente bater, essa meta é como se fosse um bônus pra gente. Isso é raramente
que eles botam. Geralmente eles dão, só um extra de 1 real ou 2 por rota, num
tempo de duas horas no máximo. Aí, tem muito que não conseguem pegar cor-
rida, que quando tem esse bônus todo mundo quer fazer entrega nesse tempo. E
praticamente é pra ter mais entregadores na rua (Miguel).

Tem as promoções que eles fazem também, a promoção de 2 reais, 3 reais, às


vezes, até 5, entendeu? Que é um ganho extra, da pra ti fazer duas, três corridas
e já dá pra aparecer um valor melhorzinho, entendeu? (Heitor).

Uma das formas de controle utilizadas pelas plataformas são as bonificações.


Trata-se de uma estratégia em que os trabalhadores recebem uma meta de entregas a
ser alcançada em um tempo delimitado previamente pelo aplicativo. Sendo assim, os
algoritmos das plataformas, utilizando-se de técnicas de controle sutil, valendo-se da
necessidade de sobrevivência e da falta de melhores oportunidades às pessoas envol-
vidas, acabam por modelar a forma da ocupação trabalho, gerando intensificação das
726

atividades laborativas e sobreposição desta ocupação sobre as demais, com objetivo


de gerar maiores lucros e maior controle da classe trabalhadora.
Ainda sobre essa forma de controle gameficado, pode ser citado o que os tra-
balhadores nomeiam de “conta boa”, ao se referirem ao score obtido na plataforma.
Esse score é atribuído de acordo com os critérios do aplicativo e tem por base os
comportamentos dos trabalhadores, tais quais: não rejeitar pedidos, realizar entregas
em tempo preestabelecido, utilizar a plataforma de maneira recorrente e a qualidade
da relação com o cliente. Entregadores com scores altos recebem mais corridas e
com melhores pagamentos.

[...] é que nem cartão de crédito. Tu vai usando, pagando direitinho, aí vai
aumentando o limite, entendeu? Então assim é o aplicativo, tu tem que vim todo
dia, tem que fazer a entrega direitinho, no tempo certo, tu em que ser gentil com
o cliente, essas coisa assim, entendeu? Aí, os pedido vêm, como isso, com teu
desempenho, vem mais corrida e teu tempo vai aumentando (Heitor).

Olha a pessoa que é “nuvem” no IFOOD® e tem uma conta boa e toca. assim...
aonde ele tiver logado, eles chamam o aplicativo dele. É a melhor coisa que tem,
cara. Só que aí tem aquela questão, né? Se o “nuvem” tirar férias, assim férias,
férias... parar de rodar um tempo o score cai... eu acho errado, claro. Acho
errado, particularmente. Mas é uma forma de obrigar a pessoa a se manter
ativa (Alice).

Vale ressaltar que as variáveis envolvidas na composição do score não são


claras aos entregadores. Duarte e Guerra (2020) em seu estudo sobre a plataforma
Uber Driver®, considera que o algoritmo apresenta mutabilidade no controle dos
trabalhadores, ou seja, a plataforma se altera de acordo com os interesses e objetivos
a serem alcançados pelas empresas.
Além das formas de controle sutil, também existem formas de controle explíci-
tas, geralmente punições que podem variar de desligamentos temporários a definitivos.
Muitos desses bloqueios acontecem de maneira arbitrária e unilateral, tendo como
único ponto de referência os relatos dos clientes.

Aí, fica mais ruim [fazer entrega machucado], porque os clientes ficam reclamando
que demora. Aí eu tento forçar pra ir mais rápido e meu tornozelo não deixa. Aí
chega lá e eu tenho explicar para o cliente. Tem cliente que entende, né? Nosso
lado, mas tem cliente que não entende, aí começa a reclamar, entra em contato
com o suporte, muitas vezes a gente é bloqueado ou até banido, a nossa conta.
Aí se for banido nossa conta, não tem como trabalhar (Miguel).

Importante destacar, contudo, que os entregadores não se mostram um grupa-


mento passivo diante da relação com os aplicativos. Existem entre eles, articulação
política que visa denunciar as condições de trabalho e buscar melhorias para o exer-
cício laboral dos entregadores.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 727

Olha, ainda não participei de nenhuma [manifestação], mas eu acho importante


[...] é primeiramente por todo tipo de direito, principalmente direito de trabalha-
dores que a gente já conseguiu na história foi por manifestações, foi por paraliza-
ções, então é importante, os entregadores [de aplicativos] se unirem como uma
nova classe de trabalhadores que tá surgindo. Quem sabe isso daqui pra frente
seja regulamentado. Isso seria muito bom, até como um reconhecimento a mais.
Então, sim, eu apoio, porque só quem tá aqui trabalhando sabe quais são todos
os riscos e os males que a gente tá passando na rua, né? (Arthur).

Eu acho, às vezes, até desnecessárias, porque não vai mudar. A gente trabalha
por um aplicativo, então não é uma empresa... assim... uma empresa de carteira
assinada. Então eu acho, às vezes, desnecessárias essas paralizações, mas eu
não fico contra, nem a favor (Helena).

Os pontos de vista dos entregadores sobre as lutas sociais podem ser divididos
entre aqueles veem a necessidade de luta pela categoria e aqueles que, apesar de
enxergarem a precariedade do trabalho, acreditam se tratar de uma luta em vão devido
à ausência de vínculo empregatício com as empresas-aplicativo. Isso demonstra que
há ausência do reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe social, principal-
mente pela dificuldade de distinção entre trabalhadores e gestores, resultado de um
discurso massificante que não reconhece os entregadores/motoristas como trabalha-
dores empregados de empresa (DIAS, 2020).
A relação de poder exercida pelas empresas-aplicativo sobre os entregadores
influencia a forma, sentido e significado atribuídos à ocupação trabalho pelos entre-
vistados. A ausência de reconhecimento de vínculo empregatício e de seguridade
social traz significados de desamparo e insegurança. Outrossim, os ganhos baixos
geram frustração e o sentimento de desvalorização nos entregadores. Por fim, a
gestão gameficada modela o comportamento dos entregadores para que a forma da
ocupação trabalho atenda aos objetivos traçados pelas plataformas, gera maiores
lucros às empresas e precariza a vida de milhares de trabalhadores em Belém do
Pará e no mundo.

Considerações finais

A uberização do trabalho é um tema de importância ímpar, dado o crescimento


da parcela da classe trabalhadora sujeita a essa relação de trabalho na sociedade capi-
talista. Esta relação trabalhista avança sobre novos setores econômicos e categorias
profissionais em decorrência de altas taxas de desemprego e reformas trabalhistas
que usurpam direitos da classe trabalhadora.
Com a análise dos discursos aqui expostos foi possível constatar que ao traba-
lho, nesse tipo de relação trabalhista, estão relacionados sentidos que reduzem esta
ocupação à função de subsistência. Os entregadores de delivery sujeitados a esse tipo
de relação, são impelidos a esse fazer pela ausência de oportunidades, de postos de
trabalhos formais e pela carência de suprimento de necessidades básicas.
728

Além disso, o trabalho como entregador de plataforma é marcado principal-


mente por rotinas exaustivas, insegurança e baixos ganhos. Ademais, devido à forma
falaciosa como as plataformas se posicionam sob a alegação de serem “somente
mediadoras” do processo, se camufla a ausência de vínculo empregatício, os riscos
e os custos relacionados à execução da atividade laborativa que são transferidos
aos trabalhadores, o que promove intensificação da jornada de trabalho e exclusão
de seguridade social.
Em decorrência disso, os significados atribuídos à ocupação trabalho são nega-
tivos e relacionam-se, principalmente, a um fazer inseguro, custoso, cansativo, limi-
tante e árduo. O sentimento de desvalorização que acompanha os sentidos manifestos
pode expressar muito bem a natureza deste fazer que, mais que uma nova forma de
exploração das pessoas pelo trabalho, pode demarcar, também, a despersonalização
de seus corpos, constituindo, assim, um instrumento de degradação física e mental
que reifica os trabalhadores.
Não se pretende com esta pesquisa dar por encerrada a discussão do tema. Pelo
contrário, busca-se, iniciar novos debates que se proponham a discutir a uberização
e o trabalho de entrega por aplicativos através da perspectiva dos próprios trabalha-
dores imersos nesse processo.
Faz-se necessário pontuar que a uberização do trabalho nos lança em direção à
contrariedade das condições necessárias à materialização do direito a uma vida digna
ou, como nos diz a filósofa Judith Butler ao citar Levinas, “o celebrado direito de exis-
tir” (BUTLER, 2011, p. 16). Este movimento irrompe em um processo de precarização
da vida e naturaliza o fenômeno da uberização como um modelo de relação entre os
entes que ultrapassa os limites do trabalho e que requer maiores problematizações.
Entretanto, ainda que a sociedade pareça anestesiada diante de tais modos pre-
cários de existir, os que sofrem massivamente os efeitos dessa precarização, embora
de maneira lentificada, buscam vias se fazerem notar e resistir. É a vida que pulsa em
por meio das vozes que se fazem ouvir tal qual aquelas que ecoaram em manifesta-
ção dos trabalhadores da Uber®, ocorrida no Brasil, em maio de 2019, que seguiu a
paralisação mundial dos trabalhadores do mesmo aplicativo.
As questões da precariedade da vida e da precarização das relações de trabalho
sempre estiveram imbricadas e antecedem a pandemia de covid-19, embora sejam
pioradas por esta, ao passo que constituem-se como elementos destacados no modo
de produção capitalista, ainda que assumam formatações diferenciadas em diversos
da nossa era.
A questão a ser lançada a partir desta constatação é: forjando-se um novo tipo de
trabalhador “adequado” aos atuais processos produtivos e aos novos modos de relação
com as empresas-aplicativo, além da instauração de um processo de trabalho que,
mais do que nunca, precariza a vida, estaríamos caminhando a passos largos rumo a
um paradigma pós-humano? Precisamos nos perguntar sobre isso de forma enfática.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 729

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ÍNDICE REMISSIVO

A
Análise institucional 286, 462, 595, 596, 631, 642, 643, 682
Antirracismo 153, 154, 156, 163, 164, 177, 178, 179, 685, 686
Antropologia 84, 120, 181, 324, 339, 440, 443, 674, 675, 680, 710
Atuação do psicólogo 124
Atuação policial 68, 78

B
Biopolítica 34, 84, 112, 113, 130, 131, 133, 134, 138, 140, 143, 145, 147,
148, 150, 184, 186, 200, 203, 210, 214, 227, 277, 278, 279, 280, 281, 287,
294, 310, 393, 395, 398, 404, 405, 413, 427, 428, 429, 430, 432, 438, 441,
465, 467, 468, 469, 470, 480, 481, 498, 505, 576, 637, 643, 661, 688, 691,
692, 693, 694, 695
Branquitude 60, 68, 69, 70, 144, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 161, 162,
163, 164, 165, 166, 253, 254, 255, 257, 259, 268, 487, 506, 510, 530, 541,
545, 620, 678, 680, 683, 692
Brutalismo isolado 239, 240, 247, 250
Brutalização 141, 150, 239, 240, 241, 247, 250, 251, 254, 255, 256, 307,
308, 309, 313, 314, 315, 316, 317, 319

C
Capitalismo gore 105, 109, 110, 111, 112, 116
Capital racial 57, 58, 59, 60, 61, 65, 66, 69, 70, 71, 77, 82, 83, 84
Cárcere feminino 370, 371, 372, 379
Centros de Referência 117, 118, 119, 447, 455, 602, 629, 643
Classes raciais 72
Colonialidade 59, 71, 85, 145, 147, 153, 154, 156, 157, 158, 160, 166, 245,
246, 253, 256, 258, 259, 289, 290, 293, 296, 300, 305, 404, 427, 510, 512,
518, 524, 527, 550, 551, 615, 617, 618, 619, 620, 623, 625, 626, 629, 669,
671, 678, 679, 680, 681, 687, 692, 694, 695
Comunidade terapêutica 580, 645, 646, 647, 648, 649, 650, 651, 654, 655,
656, 660, 661, 662, 663
Conselho de Psicologia 687
734

Conselho tutelar 447, 448, 450, 459, 463


Corpos negros 122, 123, 226, 250, 261, 262, 263, 300, 303, 403, 405, 406,
487, 552, 573, 679
CRAS 447, 448, 450, 455, 602, 607, 644
CREAS 117, 118, 119, 122, 124, 126, 291, 292, 293, 447, 450, 455, 457, 459,
460, 491, 602, 607, 631, 632, 633, 634, 635, 636, 638, 640, 642
Crianças e adolescentes 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 97, 98, 99, 100,
102, 103, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 122, 123,
124, 125, 126, 127, 165, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178,
180, 181, 190, 195, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 211, 212, 213, 214,
215, 216, 217, 240, 251, 258, 263, 264, 268, 290, 291, 292, 293, 294, 296,
301, 304, 312, 319, 353, 354, 355, 356, 358, 359, 360, 363, 364, 365, 366,
367, 368, 380, 387, 389, 395, 401, 402, 406, 407, 408, 410, 432, 445, 446,
448, 449, 450, 451, 453, 454, 455, 457, 458, 459, 461, 462, 463, 467, 475,
485, 491, 492, 499, 500, 501, 505, 507, 508, 509, 511, 512, 516, 517, 518,
519, 520, 521, 522, 524, 532, 544, 554, 555, 558, 594, 620, 634, 637, 643,
656, 682, 731
Criminalização social 95, 111, 114, 115, 117, 118, 127, 170, 171, 174, 178,
185, 191, 193, 203, 210, 267, 336, 353, 354, 356, 361, 363, 364, 365, 367,
371, 373, 447, 457, 459, 463, 501, 504, 505, 508, 572, 578, 580, 706

D
Democracia racial 72, 76, 145, 251, 252, 253, 254, 407, 410, 413, 487, 499,
501, 506, 508, 509, 619, 620, 678, 679
Descolonização 162, 164, 563, 621, 625, 626, 670, 680, 681, 687, 691
Descolonização da Psicologia 621, 625, 680, 681
Direitos humanos 96, 97, 101, 118, 119, 120, 122, 123, 124, 127, 178, 181,
183, 185, 186, 191, 192, 193, 194, 196, 198, 200, 201, 202, 206, 213, 258,
276, 302, 321, 333, 336, 358, 360, 369, 370, 373, 383, 484, 488, 505, 578, 584,
596, 599, 601, 603, 655, 656, 659, 663, 679, 680, 682, 683, 684, 686, 700, 743
Drogas 64, 65, 66, 67, 68, 75, 93, 97, 99, 109, 111, 112, 120, 122, 123, 127,
145, 146, 147, 150, 171, 273, 275, 323, 360, 361, 370, 373, 431, 442, 447,
453, 487, 488, 492, 516, 572, 577, 578, 579, 580, 581, 582, 583, 584, 586,
587, 588, 589, 590, 591, 592, 593, 594, 595, 596, 597, 598, 646, 647, 648,
650, 651, 652, 653, 654, 656, 658, 661, 662, 663, 674

E
Emancipação 165, 171, 176, 274, 324, 367, 394, 419, 433, 442, 459, 542,
547, 567, 674
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 735

Escravidão 66, 72, 79, 133, 140, 163, 205, 243, 244, 252, 256, 279, 280,
290, 296, 370, 375, 401, 402, 403, 406, 407, 410, 412, 413, 421, 433, 505,
552, 618, 619, 620, 658
Evasão escolar 169, 170, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 395
Exclusão social 105, 169, 170, 175, 176, 179, 180, 301, 324, 335, 363, 374,
427, 632, 678

F
Feminismo 62, 83, 109, 110, 149, 166, 167, 194, 258, 323, 324, 325, 337,
339, 340, 369, 370, 371, 383, 384, 385, 386, 412, 413, 415, 416, 417, 418,
422, 424, 513, 517, 525, 526, 527, 537, 543, 545, 546, 549, 550, 551, 562,
563, 601, 612, 621, 622, 625, 627, 628, 629, 672, 674
Flagrante 250, 499, 511, 568
Foucault 3, 4, 34, 35, 72, 82, 84, 96, 97, 102, 112, 129, 130, 131, 132, 133,
134, 135, 136, 137, 138, 139, 142, 143, 147, 148, 150, 183, 184, 185, 187,
188, 189, 192, 196, 198, 199, 200, 201, 203, 210, 213, 214, 215, 216, 219,
222, 223, 224, 225, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 236, 237, 263,
264, 268, 270, 273, 277, 278, 279, 286, 287, 293, 294, 304, 310, 311, 319,
322, 338, 341, 342, 343, 346, 347, 348, 349, 350, 351, 352, 354, 355, 362,
363, 364, 367, 371, 375, 376, 386, 389, 390, 391, 392, 393, 394, 395, 396,
398, 399, 400, 404, 412, 428, 429, 430, 431, 435, 437, 439, 440, 441, 442,
453, 462, 468, 470, 471, 472, 475, 477, 480, 481, 492, 494, 497, 503, 505,
510, 567, 575, 576, 619, 628, 633, 634, 636, 637, 638, 643, 645, 646, 647,
650, 651, 655, 657, 659, 662, 663, 666, 667, 668, 669, 670, 671, 672, 673,
674, 677, 678, 680, 681, 684, 685, 686, 687, 688, 692, 693, 694
Foucaultiana 113, 215, 229, 251, 253, 348, 354, 389, 390, 392, 403, 430,
465, 468, 470, 471, 635, 651, 667, 680, 686

G
Genealogia 136, 142, 180, 184, 199, 201, 214, 215, 219, 232, 233, 235, 237,
273, 389, 390, 391, 392, 393, 395, 397, 398, 399, 400, 470, 471, 472, 477,
478, 480, 625, 667, 668, 674, 694
Gestão Autônoma de Medicação – GAM 577, 582, 583, 584, 585, 586, 587,
588, 589, 590, 591, 592, 593, 594, 596, 597
Governamentalidade 34, 136, 137, 138, 139, 144, 214, 215, 231, 240, 304,
393, 394, 395, 396, 429, 430, 465, 475, 476, 477, 480, 481, 505, 569, 616,
628, 632, 636, 637, 638, 661, 677, 681, 687, 689, 690, 692
736

H
História cultural 665, 667, 677, 681, 682, 685, 686, 694
Horizonte ético 241, 587, 591

I
Infância 97, 118, 120, 170, 171, 181, 204, 205, 206, 207, 209, 212, 215, 216,
251, 257, 259, 289, 338, 353, 354, 358, 359, 361, 365, 366, 367, 368, 370,
373, 446, 449, 450, 452, 453, 457, 458, 462, 499, 500, 503, 507, 511, 512,
516, 517, 519, 520, 521, 522, 523, 524, 553, 554, 555, 556, 557, 560, 607

L
LGBTQIA+ 226, 321, 322, 323, 326, 327, 328, 329, 330, 331, 332, 333, 334,
335, 336, 338, 340, 380, 515, 537, 620
Liderança 62, 322, 346, 670, 675, 699, 700, 704, 705, 706, 707, 708, 709, 710

M
Medidas socioeducativas 117, 118, 119, 120, 121, 122, 124, 125, 127, 169,
170, 174, 178, 208, 209, 213, 214, 292, 500
Mulheres encarceradas 370, 373, 374, 376, 377
Mulheres negras 61, 62, 289, 300, 302, 339, 369, 370, 373, 401, 402, 403,
406, 407, 408, 409, 410, 412, 527, 548, 549, 550, 615, 618, 621, 623

N
Necropolítica 3, 4, 77, 85, 87, 89, 91, 94, 105, 109, 110, 112, 113, 114, 115,
116, 122, 129, 132, 134, 138, 139, 140, 143, 145, 147, 148, 150, 160, 227, 236,
254, 261, 262, 269, 279, 280, 281, 282, 283, 287, 340, 353, 354, 355, 359,
360, 365, 367, 401, 403, 405, 410, 427, 442, 485, 486, 497, 498, 505, 627, 694
Neoliberalismo 19, 110, 111, 112, 123, 129, 134, 136, 137, 138, 139, 141,
142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 174, 175, 177, 195, 210,
211, 219, 223, 226, 227, 231, 234, 283, 309, 310, 314, 316, 317, 347, 356,
362, 363, 395, 396, 400, 422, 438, 465, 466, 467, 470, 473, 475, 476, 477,
478, 479, 480, 484, 486, 501, 503, 505, 506, 616, 617, 623, 624, 627, 628,
630, 636, 643, 684, 687, 689, 690, 692, 713, 719

P
Política pública 251, 356, 360, 451, 600, 611, 632, 638, 640
Políticas sociais 110, 206, 212, 216, 353, 354, 355, 356, 358, 359, 362, 365,
366, 367, 504
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 737

Prática do psicólogo 386


Problema público 57, 300, 302, 303
Psicologia das multidões 55
Psicologia social 109, 166, 167, 257, 305, 339, 415, 416, 418, 419, 424, 425,
510, 568, 576, 622, 628, 629, 644, 663, 667, 672, 694, 695, 698, 729

Q
Questão racial 57, 486, 501, 507, 549, 682, 691

R
Racismo 59, 62, 71, 72, 76, 77, 78, 85, 86, 97, 112, 113, 114, 116, 122, 125,
132, 133, 145, 146, 149, 150, 155, 156, 158, 160, 163, 165, 166, 178, 183,
185, 186, 210, 246, 251, 255, 256, 257, 261, 262, 263, 264, 273, 277, 279,
280, 284, 290, 295, 300, 302, 303, 304, 355, 360, 401, 402, 403, 410, 411,
412, 413, 425, 427, 431, 487, 501, 506, 508, 509, 510, 517, 518, 526, 527,
537, 549, 559, 568, 570, 573, 575, 606, 615, 617, 619, 620, 621, 622, 623,
624, 625, 626, 627, 628, 671, 677, 678, 679, 680, 681, 682, 683, 684, 685,
686, 687, 690, 691, 692, 693, 694, 695
Racismo de estado 97, 112, 113, 183, 185, 186, 251, 256, 261, 263, 264,
273, 277, 279, 284, 678
Racismo estrutural 146, 149, 165, 257, 295, 302, 303, 402, 410, 411, 501,
506, 510, 517, 537, 573, 575
Rap 61, 62, 300, 338, 565, 566, 567, 568, 569, 570, 571, 572, 573, 574

S
Saúde mental 105, 174, 274, 284, 286, 318, 453, 536, 538, 539, 577, 579,
580, 581, 582, 583, 584, 585, 591, 594, 596, 597, 598, 624, 627, 652, 656,
661, 663, 692, 693, 715, 729
Segregação 68, 70, 72, 146, 164, 209, 210, 247, 273, 279, 280, 355, 427,
431, 432, 434, 486
Seletividade punitiva 169, 170, 171, 173, 174, 175, 176, 178, 181, 498,
503, 508
Sexualidade 62, 63, 130, 131, 157, 200, 214, 325, 338, 342, 350, 354, 371,
379, 380, 383, 390, 416, 417, 421, 422, 425, 441, 481, 511, 512, 513, 514,
522, 526, 527, 546, 549, 553, 575, 606, 625, 669, 670
Silenciamento 220, 229, 268, 302, 312, 375, 407, 487, 491, 492, 495, 496,
501, 506, 507, 508, 514, 523, 524, 537, 553, 619, 623, 630, 665, 691
738

Situação de rua 119, 217, 358, 401, 427, 430, 431, 433, 434, 435, 437, 438,
443, 447, 462, 620, 638
Socioeducação 118, 122, 124, 127, 170, 171, 172, 174, 175, 178, 179, 180,
181, 209, 213, 214, 501, 505, 509
Subjetividade 34, 59, 102, 105, 108, 110, 153, 154, 155, 156, 157, 188, 191,
221, 222, 223, 225, 234, 235, 244, 254, 275, 284, 287, 294, 303, 308, 309,
310, 312, 314, 316, 317, 319, 320, 322, 323, 327, 329, 336, 338, 339, 344,
346, 348, 349, 350, 352, 354, 370, 373, 374, 380, 383, 389, 391, 392, 394,
395, 396, 397, 398, 418, 419, 422, 430, 436, 437, 440, 465, 466, 468, 470,
471, 473, 474, 476, 477, 478, 498, 506, 517, 518, 530, 548, 566, 567, 568,
573, 587, 590, 598, 603, 605, 615, 616, 617, 623, 624, 625, 636, 638, 641,
661, 665, 672, 678, 681, 685, 688, 689, 690, 697, 708, 723

T
Terapêutico 274, 277, 280, 343, 517, 544, 580, 584, 588, 591, 593, 617, 624,
636, 637, 645, 646, 647, 648, 649, 650, 651, 654, 655, 656, 657, 658, 660,
661, 662, 663, 691
Territorialidade 323, 331, 334, 489, 631, 632
Territorialidades 105, 108, 157, 322, 336, 465, 473, 477, 478, 479, 483, 565,
567, 572, 632

U
Umbanda 514, 529, 531, 535, 536, 538, 541, 543, 544
Unidades de acolhimento 447, 453, 454, 455, 459
Uso de drogas 171, 577, 578, 579, 580, 581, 593, 594, 652, 653, 654, 658

V
Violência contra a mulher 599, 600, 601, 603, 606, 608, 609, 611, 613
Visibilidade 108, 116, 117, 129, 163, 189, 191, 192, 209, 234, 254, 307, 321,
322, 323, 324, 326, 328, 329, 332, 334, 335, 371, 372, 373, 425, 430, 438,
527, 557, 579, 639, 667, 706
SOBRE OS AUTORES
Adriana Elisa de Alencar Macedo
Possui graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Espe-
cialização em Saúde Mental pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Mestre
em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutora em Psicologia
pela UFPA. Doutorado sanduíche na Universidade de Évora – Bolsista CAPES/2017.
PDSE 88881.134010/2016-01. Já atuou como Psicóloga no projeto Sentinela no
município de Bragança-Pará com crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Psicóloga na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Pará (FASEPA) – 2006
a 2018. Conselheira secretária do VIII plenário, gestão 2013 – 2016 e conselheira
vice-presidente do IX plenário, gestão 09/2016-09/2019 pelo Conselho Regional de
Psicologia- Pará e Amapá (CRP10). Coordenadora do Grupo de Trabalho de infân-
cias e juventudes do CRP10. Presidenta da Comissão de Orientação e Fiscalização
(COF) do CRP10. Conselheira Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
do Pará (CEDCA) – 2013 a 2017. Membro do Comitê Estadual de Enfrentamento à
Violência Sexual Contra a Criança e o Adolescente – Pará – 2013 a 2018. Conselheira
do conselho municipal de assistência social de Belém (CMAS) – 2017 a 2018. Inte-
grante do Fórum do direito da criança e adolescente do Pará – FDCA – 2013 a 2018.
Integrante da coordenação do núcleo ABRAPSO – BELÈM de 2015 a 2017. Entre
2015 e 2017 atuou como docente no Plano Nacional de Formação de Professores da
Educação Básica (PARFOR). Atualmente compõe a comissão de gênero e diversidade
sexual do CRP 16. Representante titular do CRP 16 no Conselho Estadual de Defesa
dos Direitos da Mulher do Estado do Espírito Santo ? CEDIMES e representante
suplente do CRP 16 no Conselho Estadual LGBT do Espírito Santo. Pesquisa sobre
subjetividades, sistema socioeducativo, infâncias e juventudes. Tem experiência na
área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente nos
seguintes temas: saúde mental, direitos humanos, violências, medidas socioeducativas,
políticas públicas, SINASE, história oral e pesquisa documental.

Adrieli Pacheco Sperandir


Estudante de psicologia pelo Instituto Metodista IPA (5º. semestre) e Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (3 semestre). Bolsista de iniciação
científica no Grupo de Estudos em Psicologia Social, Políticas Públicas e Produção
de Subjetividades (GEPS). Estagiária no Centro de Apoio ao Paciente Oncológico.

Alan Christian de Souza Santos


Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará, onde
também cursou o mestrado (2011) e se tornou Licenciado Pleno e Bacharel em
História (2008). Atualmente é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Pará, Campus Paragominas. Tem experiência na área de História do
Brasil e História da Amazônia, priorizando temas como elites e intelectuais no final
do século XIX e início do XX, jogos políticos, sociabilidades, imprensa, biografia
740

histórica e educação. É membro dos Grupos de Pesquisa Militares, Política e Fron-


teiras na Amazônia e Educação, Ciência e Meio Ambiente.

Aldemar Ferreira da Costa


Doutorando em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Alice Oliveira Silva dos Santos


Psicóloga formada pela EBMSP, Mestranda em Psicologia e Intervenções em Saúde
pela EBMSP, pós-graduanda em Psicologia Jurídica e Avaliações Psicológicas pela
FAVENI, pós-graduanda em Psicologia do Esporte pela FAVENI. Psicóloga clínica
e Psicóloga Perita do Tribunal de Justiça da Bahia – TJBA.

Aluísio Ferreira de Lima


Psicólogo Social. Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUCSP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista de Produtividade CNPq PQ 1D.
E-mail: aluisiolima@hotmail.com.

Amanda Cappellari
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2017)
e mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (2019). Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
Integrante do grupo de pesquisa GEPS.

Ana Carolina Farias Franco


Graduada em Psicologia-UFPA, Mestre e Doutora em Psicologia-UFPA. Psicó-
loga no IFPA.

Ana Karenina de M. Arraes Amorim


Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da UFRN e do Programa de Mestrado Profissional em Saúde da Família da
UFRN/RENASF/MS. Coordenadora do Grupo de Estudos em Política, Produção de
Subjetividade e Práticas de Resistência (GPPR/UFRN). Psicóloga, graduada pela
Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Psicologia Clínica pela Universi-
dade de Brasília (UnB). Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Observatório de Saúde Mental do Núcleo
de Estudos em Saúde Coletiva (OBSAM/NESC/UFRN), do Núcleo Intercambiantes
RN e do Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio (CRDHMD/
UFRN). Tem experiência profissional nas áreas de Psicologia Clínica e Saúde Mental
Coletiva. Desenvolve atividades de pesquisa, ensino e extensão nas áreas de saúde
mental coletiva e direitos humanos, com trabalhos sobre reforma psiquiátrica, atenção
psicossocial, cuidado em saúde mental, drogas e artes junto a populações vulnerabi-
lizadas, grupalidades e coletivos.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 741

André Benassuly Arruda


Graduado em Psicologia-UNAMA, Mestre em Psicologia-UFPA, Doutorando em
Psicologia-UFPA. Prof substituto de Psicologia na UNIFESPA. Foi psicólogo no
CEDECA-Emaús-PA. Foi psicólogo no SUAS. Foi Professor de Psicologia na
UNAMA por cinco anos.

Anne Caroline Dias Pragana


Graduada em Serviço Social-UFPA. Mestranda em Psicologia-UFPA. Assistente
Social-Concursada estadual Pará. Especialista em Gestão pública da saúde – FIO-
CRUZ. Especialista em Saúde Mental-FIOCRUZ.

Barbara Araújo Sordi


Possui título de Psicólogo pela Universidade da Amazônia (2009), e graduação em
psicologia pela Universidade da Amazônia (2006). Concluiu pós-graduação em Psico-
logia da Saúde e Hospitalar, realizada no Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicologia
e Saúde – IEPS (2012). Concluiu mestrado no Programa de Pós-Graduação da UFPA
na linha de Psicanálise: Teoria e Clinica, em 2015. Participante do Laboratório de
Psicanálise e Psicopatologia Fundamental, grupo de pesquisa presente do Diretório
de Grupos do CNPQ, desde junho de 2012. Participante do grupo de estudos da
Obra de Freud: Seminário de iniciação à psicanálise. Tem experiência na área de
Psicologia hospitalar, Psicologia Jurídica e Psicanálise, pesquisando atualmente
sobre pensamento freudiano, dispositivos clínicos, relações de gênero e aids. Membro
pesquisador do projeto de pesquisa "Relações de gênero, feminismos, sexualidade,
vulnerabilidade e, a feminização da epidemia do HIV-AIDS (pesquisa financiada pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq). Psicana-
lista pelo Circulo Psicanalítico do Pará. É doutoranda do programa de Pós-Graduação
em Psicologia na Universidade Federal do Pará. Participou de quatro exposições de
fotografias coletivas em Belém e venceu prêmio de melhor fotografia em concurso,
com fotografia em exposição internacional. Atualmente, atua como Psicóloga Clínica
e é professora adjunta da Universidade da Amazônia, ministrando disciplina de "Psi-
cologia da Sexualidade", "Direitos Humanos", "Psicologia Hospitalar", "Psicologia
jurídica", "Saúde Coletiva" e "Psicologia da Saúde I".

Benjamin Vanderlei dos Santos


Psicólogo, CRP 15/4647. Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e Mestre em Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas pelo
Centro Universitário Tiradentes (Unit/AL). E-mail: benjaminvanderlei@outlook.com.

Brida Emanoele Spohn Cezar


Psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS, inte-
grante do Coletivo Políticas do Narrar.

Bruno Jáy Mercês de Lima


Mestre e Doutor em Psicologia (linha de pesquisa: Psicologia, saúde e sociedade) pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP/UFPA). Enfermeiro graduado pela
742

Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Psicólogo graduado pela Universidade


Federal do Pará (UFPA). Especialista em Educação para Relações Étnico-raciais pelo
Instituto Federal do Pará (IFPA) e especialista em Estratégia Saúde da Família pela
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Experiên-
cias em Estratégia Saúde da Família, gestão na APS, Saúde mental, CAPS e RAPS.
Docência na graduação e pós-graduação nas áreas de Políticas Públicas de Saúde,
Gestão da APS, Saúde Mental, História da Psicologia, Psicologia Social e Etnopsi-
cologia. Desenvolve pesquisas nas temáticas: saúde pública e processos de privati-
zação, gestão da APS, medicalização na saúde, saúde e subjetividade, saúde mental e
racismo. Membro do Grupo de Pesquisa Transversalizando (UFPA/CNPQ), do Grupo
de Pesquisa Psicologia e Escolarização: políticas públicas e atividade profissional
na perspectiva histórico-crítica (USP/CNPq), da Associação Brasileira de Psicologia
Social (ABRAPSO), da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP) e da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).

Caio Monteiro Silva


Doutor e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Ges-
talt-Terapeuta pelo Instituto Gestalt do Ceará – IGC; Graduado em Psicologia pela
Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Foi colaborador do Laboratório de Psicolo-
gia em Subjetividade e Sociedade – LAPSUS. Atualmente é Professor na Pontifí-
cia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), é membro colaborador do Grupo
Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica
(PARALAXE). Desenvolve trabalhos no campo dos estudos Pós-Coloniais traba-
lhando com os temas: Epistemologia, Ética, Família e Políticas Públicas, Sociedade e
Subjetividades Contemporâneas. Atua clinicamente sob a perspectiva das abordagens
Fenomenológico-Existenciais.

Camila Bohn
Graduanda em Psicologia (UFRGS). Bolsista de iniciação científica (PIBIC/UFRGS)
e integrante do Coletivo Políticas do Narrar.

Camila Gabriela Pollnow


Graduada em Letras – Língua Portuguesa pela UFSC. Mestranda em Educação pela
FURB. Bolsista CAPES. E-mail: cpollnow@furb.br.

Carla Jéssica de Araújo Gomes


Graduada em Psicologia e Mestranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Carmen Sílvia Righetti Nóbile


Pós-doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-doutorado da UNESP (Assis,
SP – em andamento). Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista
‘Júlio de Mesquita Filho” – UNESP-FRANCA/SP (2016). Mestre em Serviço Social
e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina, PR (2006). Graduada em
Serviço Social (UEL-PR).
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 743

Caroline Carmona Vasques Mata


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ/ Brasil. ORCID:
0000-0002-7896-3435. E-mail: caroline.carmonav@gmail.com.

Ciro César da Silva Lopes


Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Pará (2017). Mestre em Psicologia
pela Universidade Federal do Pará (2020), na linha de pesquisa Psicanálise – teoria
e clínica. Também possui graduação em Licenciatura em Música pela Universidade
Federal do Pará (2009). Tem interesse em Psicologia Clínica, Psicanálise, Psicologia
Social e Educação. Participa do grupo de pesquisas Subjetivação, Conflito e Cultura
(UFPA) registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

Cristiane de Souza Santos


Graduado em Serviço Social-UFPA, Mestre em Psicologia-UFPA. Concursada esta-
dual como assistente social-Pará.

Cyntia Santos Rolim


Graduada em Psicologia-UNAMA, Mestranda em Psicologia-UFPA.

Daiane Gasparetto da Silva


Graduada em Psicologia-UFPA, Mestre e Doutora em Psicologia-UFPA. Concursada
estadual no Pará como psicóloga. Professora substituta em Psicologia da Educa-
ção na UEPA.

Daniele Vasco Santos


Graduada em Psicologia-UFPA, Mestre e Doutora em Educação-UFPA. Foi psicóloga
concursada na SESPA-PA por mais de 10 anos. Professora adjunta III em Psicologia
da Educação-UFT.

Dolores Galindo
Graduada em Psicologia-UFPE. Mestre e Doutora em Psicologia Social na PUC-SP.
Professora associada IV de Psicologia Social na UFMT.

Elisa Fabris de Oliveira


Bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade
Federal do Espírito Santo (2011) e mestra (2015) e doutora (2021) em Psicologia
pela mesma instituição. Tem experiência nas áreas de publicidade e gestão de
comunicação e marketing, com atuação em agências de publicidade e como analista
de relações com o mercado. Atualmente, é Professora Adjunta na Faculdade de
Ensino Superior de Linhares e pesquisadora bolsista no Instituto Jones dos Santos
Neves (ES), integrando a equipe de monitoramento da implantação dos Centros
de Referência das Juventudes no estado do Espírito Santo. Além disso, compõe o
grupo de pesquisa LACCOPS (UFF), voltado para a Publicidade Social e Comu-
nitária, e realiza investigações nas áreas de Comunicação Social, Publicidade e
744

Psicologia Social, especialmente abarcando temáticas de estudo que envolvem


as juventudes.

Fabio Santos Bispo


Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Profes-
sor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Felipe Figueiredo De Campos Ribeiro


Professor Adjunto da Fapsi (UFPA), doutor em filosofia (UFRJ). E-mail para contato:
felipefdcr@gmail.com.

Fernanda Bottari Lobão dos Santos


Mestre (2021) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduada (2019) no curso de especialização em Psi-
cologia Jurídica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduada
(2018) em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência
no campo de políticas públicas para a infância e a juventude, com ênfase em medidas
socioeducativas e protetivas. Os eixos temáticos de maior interesse em pesquisa são:
adolescentes acusados do cometimento de ato infracional, sistema socioeducativo,
processos de criminalização, seletividade punitiva e análise institucional.

Fernanda Cristine dos Santos Bengio


Psicóloga. Docente da UFPA, Campus Altamira. Colaboradora no Projeto de atendi-
mento estudantil PASES. Atuou na Assistência Social entre 2011 a 2019.

Fernando Luiz Zanetti


Professor Doutor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Frutal, MG,
Brasil. E-mail: fernandozanetti@hotmail.com.

Flávia Cristina Silveira Lemos


Graduada em Psicologia-UNESP, Mestre em Psicologia Social-UNESP, Doutora em
História Cultural-UNESP. Pós-doutora em Psicologia-UFF. Professora associada IV
de Psicologia Social-UFPA. Coordenadora de relações interinstitucionais na PROE-
X-UFPA. Bolsista de produtividade em pesquisa CNPQ-PQ2.

Gleidson Gonçalves Queiroz


Mestrando do Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado de Minas
Gerais (FAE/UEMG) e bolsista do Programa de Bolsas Institucionais de Pós-gradua-
ção da Universidade do Estado de Minas Gerais (PROBPG/UEMG), Belo Horizonte,
MG, Brasil. E-mail: qgleidson4@gmail.com.

Giuliana Volfzon Mordente


Psicóloga (UFRJ), pedagoga. Professora substituta da graduação em Psicologia UFRJ,
Departamento de Psicologia Social. Mestre e doutoranda em Psicologia (bolsista
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 745

CnPq) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em Educação Transformadora pelo programa
de Pós-Graduação da PUCRS. Vice coordenadora e professora do Curso Educação
Democrática e Processos de Subjetivação. Coordenadora do projeto de extensão
PAPEL – Projeto de Apoio ao Ensino Libertário. Pesquisadora de Educação Demo-
crática e Processos de Subjetivação, com estudos baseados em 30 escolas democrá-
ticas no Brasil e no exterior. Professora da Escola-Israelita Brasileira Eliezer-Max.
Atuação pelo IP/UFRJ com atendimentos clínicos de orientação psicanalítica e aten-
dimentos em psicopedagogia. Integrou o Projeto Parcerias (UFRJ), no campo da
Psicologia Jurídica, vinculado ao atendimento ao Adolescente em Conflito com a
Lei e sua inserção no sistema de garantia de direitos. No campo da educação, atuou
como educadora de diversos projetos focados em liderança comunitária de crianças
e jovens (ONG Habonim Dror) e como coordenadora do Projeto de Formação de
Educadores (Agência Judaica). Tem experiência na área de Psicologia Social (subá-
rea: Jurídica e educacional), atuando principalmente nos seguintes temas: educação;
direitos humanos, esquizoanálise; análise institucional, juventudes, psicanálise e
educação democrática.

Hebe Signorini Gonçalves


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ/ Brasil. ORCID:
E-mail: hebesignorini@gmail.com.

Heidiany Katrine Santos Moreno


Socióloga pela Universidade Federal do Pará-UFPA, pós-graduada em cultura afro-
-brasileira pela Faculdade integrada de Jacarepaguá-FIJ, professora efetiva de socio-
logia da SEDUC/PA desde 2011, mestre em ciência da educação pela Universidade
Americana-UA(Paraguai), revalidado pela Universidade Federal de Pernambuco-
-UFPE, especialização em política de promoção da igualdade racial da escola- Uni-
versidade Federal do Pará-UFPA/Uniafro, mestre em Estado, governo e políticas
públicas pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais-FLACSO e Fundação
Perseu Abramo.

Iasmin Sharmayne Gomes Bezerra


Psicóloga, CRP 17/3650. Especialista em Atenção Básica pela Escola Multicampi
de Ciências Médicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EMCM/
UFRN) e Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGPSI/UFRN).

Igor do Carmo Santos


Graduado em Psicologia-UFPA, Mestre e Doutor em Psicologia-UFPA. Coordenador
do curso de Psicologia do Centr Universitário Carajás, em Marabá-PA.

Igor Monteiro Silva


Possui Doutorado em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Pós-doutorado, na mesma instituição,
746

na área de Sociologia Urbana. É professor adjunto da Universidade da Integração


Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), no curso de Licenciatura em
Sociologia, compondo a área de Ensino de Sociologia e Estágio. Atualmente, é coor-
denador do Núcleo de Estudos das Performances Culturais e do Patrimônio Cultural
Imaterial (PERFORMARTE/UNILAB) e pesquisador do Laboratório de Estudos da
Oralidade (LEO-UFC). Entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, foi coordenador
de área do PIBID Multidisciplinar "Sociologia e História" na UNILAB. É autor
dos livros "Honra e sangue: a (po)ética da vigança no sertão de Abril Despedaçado
(Expressão Gráfica, 2009) e de "O mundo não é tão grande: uma etnografia entre
viajantes independentes de longa duração" (Imprensa Universitária UFC, 2018).
Tem experiência e interesses de pesquisa nas seguintes áreas: ensino de sociologia,
cidades, mobilidades, fronteiras, turismos, literatura de viagem e capoeira.

Indianara Maria Fernandes Ferreira


Doutoranda em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Mestre em Psicologia (UFRN). Graduada em Psicologia na Universidade Federal
de Campina Grande (UFCG). Especialista em Saúde Mental e Rede de Atenção
Psicossocial pela IESM. Tem interesse em Psicologia Clínica, Análise Institucional
e Esquizoanálise, com foco em dispositivos e práticas participativas de cuidado em
saúde, direitos humanos, álcool e outras drogas e redução de danos. Integrante do
grupo GENTILEZA – Grupo de pesquisa em Política, Produção de Subjetividade e
Práticas de Resistência (UFRN-PPGPSI). Atua como psicóloga clínica. Experiências
com Psicologia Clínica, Psicanálise, Esquizoanálise e Saúde Mental.

Ingrid Bergma da Silva Oliveira


Terapeuta Ocupacional (UEPA). Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP). Mestre
em Psicologia Clínica e Social (UFPA). Docente do departamento de Terapia Ocupa-
cional da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Terapeuta Ocupacional da RAPS
vinculada à Secretaria de Saúde do Estado do Pará – SESPA.

Jair da Costa Júnior


Doutorando em Sociologia pela UFMG (2021 – 2024), Mestre em Ciências Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas (2018), Espe-
cialista em Estudos de Criminalidade e Segurança Pública pelo Centro de Estudos de
Criminalidade e Segurança Pública – CRISP / UFMG (2008) e Graduado em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas (2006).
Atualmente é servidor público na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH)
ocupando o cargo de Analista de Políticas Públicas. Membro docente do Projeto
Ciclo Permanente de Estudos e Debates sobre a Educação Básica (SIEX-UFMG),
desde 2018, atuando também no curso de atualização em Educação para as Relações
Étnico-Raciais – Africanidades Brasileiras. Membro pesquisador no Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas em Educação e Relações Étnico-Raciais (NEPER). Tem experiência
na área de Serviço Social e Ciências Sociais atuando principalmente nos seguintes
temas: Juventude e Sociabilidade; Criminalidade e Violência; Sistema Socioeducativo
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 747

e Garantia de Direitos; Diferença, Identidade e Reconhecimento; Raça, Gênero e Etnia


e ainda, com ênfase em raça e racismo, afrodiáspora e decolonialidade.

Jéssica Silva Rodrigues


Doutoranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

João Paulo Pereira Barros


Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenador do VIESES: Grupo
de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação. Bolsista
de Produtividade 2A do CNPq.

Jullyanne Rocha São Pedro


Psicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (PPGPsi/UFRN).

Júlia de Carvalho dos Santos


Bacharela em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2008-2013).
Durante a graduação participou da Rede de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social
(REDEPSO) realizando pesquisas nas temáticas de gênero, carreira acadêmica e
representações sociais. Também participou de grupos e estágios na área da Saúde
Pública e Saúde Mental, com envolvimento em projetos de atendimento clínico-psi-
coterapêutico, acompanhamento terapêutico, apoio institucional as políticas públicas
de saúde. Realizou estágio extracurricular na Unidade de Curta Permanência do
Hospital Estadual de Atenção Clínica (antigo Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho).
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade
Federal do Espírito Santo, no qual desenvolveu pesquisa acerca dos processos de
autonomia na saúde mental e o movimento da Luta Antimanicomial. Possui interesse
nas temáticas da Reforma Psiquiátrica, Saúde Mental, Processos de Subjetivação
contemporâneos, Ficção como estilo literário e produção de modos de vida, Afetos
e Expressão (Spinoza).

Juliana da Silva Nóbrega


Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(2002), mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2006) e doutorado em Psicologia Social pela Universidade
de São Paulo (2013). Atualmente é docente da Universidade Federal de Rondônia, no
Departamento de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Tem
experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando princi-
palmente nos seguintes temas: autogestão, economia solidária, ruralidades, educação
e trabalho. É membro do Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e
Educação (GAEPPE). Vice-coordenadora da Incubadora de Cooperativas Populares
da Universidade Federal de Rondônia (INCOOP-UNIR).
748

Kellen Maria Sodré Machado


Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS. Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (2011), Especialização em Psicoterapia de Técnicas Integradas, pelo
Instituto Fernando Pessoa (atualmente trancada) e Pós-Graduação Lato Sensu em
Filosofia e Educação, pela Associação de Promoção Humana e Cidadania Juvenil
Trilha Cidadã. Tem experiência de atuação nas áreas da Psicologia Social, na garantia
e defesa de direitos humanos e execução de políticas públicas e da Psicologia Clínica,
no atendimento psicoterapêutico à crianças, adolescentes, adultos e famílias.

Laisa Forte Cavalcante


Doutoranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Laíza da Silva Sardinha


Psicóloga, discente do curso de mestrado em Psicologia da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (bolsista Capes). Atua junto ao eixo de Direito à Segu-
rança Pública e Acesso à Justiça da ONG Redes de Desenvolvimento da Maré
E-mail: laiza.sardinha@gmail.com

Larissa Nunes Ferreira


Doutoranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Leandro Roque da Silva


Mestre em Política Social, pelo Departamento de Serviço Social na Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). É especialista em Saúde Mental pelo Centro Integrado
de Tecnologia e Pesquisa (CINTEP/PB) e em Gestão em Saúde pela EAD – UEPB,
possuindo graduação em Psicologia pela UFPB. Atuou como preceptor no PET Saúde
Mental UFPB. Ministra cursos de formação em Saúde Mental, Redução de Danos e
Políticas Públicas de Saúde. É colaborador do Grupo de Estudos em Política, Pro-
dução de Subjetividades e Práticas de Resistência – UFRN. Gerenciou dois serviços
especializados no cuidado as pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas (CAPS
Ad III) . Trabalhou em uma equipe de urgência em um Caps III no município de João
Pessoa. Têm experiencia nas áreas de Saúde Mental, Gestão em Saúde Pública e estra-
tegias de construção de Políticas Intersetoriais voltadas para usuários de substancias
psicoativas. Desenvolve pesquisas nas áreas de Politicas Publicas da Saúde, Saúde
Mental e Redução de Danos nas instituições públicas. É Doutorando no programa de
Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é docente
do Centro Universitário de Educação Superior da Paraíba UNIESP PB.

Leticia Lages Assunção


Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Pará. E-mail: leticialages97@
gmail.com.

Lílian Gabriela Rodrigues Lobato


Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Pará. E-mail: lilian.g.r.lobato@
gmail.com.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 749

Lílian Rodrigues da Cruz


Possuo graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (1988), mestrado em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (1994), doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (2005) e Pós-doutorado no Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia Psicologia Social e Institucional – UFRGS (2011). Como docente
iniciei em 1996 na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), onde permaneci
até 2013. Ingressei na Universidade de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em
2014, no departamento de Psicologia Social e Institucional. Integro o corpo docente
do Programa de Psicologia Social e Institucional – Mestrado e Doutorado – e venho
desenvolvendo atividade de pesquisa e extensão no campo das políticas públicas de
assistência social, educação e saúde. Líder do grupo de pesquisa "Grupo de Estudos
em Psicologia Social, Políticas Públicas e Produção de Subjetividades" (GEPS).
ORCID: 0000-0002-1850-3023

Lívia Lima Gurgel


Doutoranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Lívia Valeska Santana Souza


Possui graduação em Ciências Sociais (LIC./BACH.) pela Universidade Federal do
Pará (2009), Graduação em Pedagogia (Licenciatura) pela Universidade Cesumar-
UNICESUMAR (2021), especialização em Cultura Afro-Brasileira pela FIJ (2010),
experiência como Docente no Ensino Médio pelo Sistema Modular de Ensino-SOME
(2011), e na Agricultura Familiar com Assistência Técnica e Extensão Rural pela
EMATER-PA (2012-2014). Curso de Aperfeiçoamento em Gestão de Políticas Públi-
cas em Gênero e Raça GPP-GeR/ UFPA (2014-2015). Professora de Sociologia no
Ensino Médio pela Secretaria de Estado de Educação – SEDUC (Set. 2016 – 2022).

Lúcia Maria Bertini


Doutoranda em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Luciana Batista da Silva


Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
– UNESP-ASSIS/SP. Mestra em Psicologia e Sociedade pela UNESP-ASSIS/SP.
Graduada em Psicologia pela UNESP-ASSIS/SP.

Luciana Lobo Miranda


Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
-RIO). Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
do Ceará (UFC), Fortaleza – CE, Brasil. E-mail: luciana.miranda@ufc.br; ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7838-8098.

Lucíola Santana Pastana Silva


Graduada em Psicologia-UNAMA, Mestre em Psicologia-UFPA.
750

Lucivaldo da Silva Araújo


Terapeuta Ocupacional (UEPA). Doutor em Psicologia Clínica (PUC-SP). Mestre em
Psicologia Clínica e Social (UFPA). Docente do departamento de Terapia Ocupacional
da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

Luis Artur Costa


Professor adjunto do departamento e programa de pós-graduação em psicologia social
e institucional UFRGS, integrante do Coletivo Políticas do Narrar.

Luis Fernando de Souza Benício


Doutorando em Psicologia pela UFC. Integrante do VIESES.

Luizane Guedes Mateus


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Pós-doutorado
pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Fede-
ral do Espírito Santo (UFES), Professora do Departamento de Psicologia da UFES.

Lutiane de Lara
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC/2006), Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS/2009 – Bolsa CNPq) e Dou-
torado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS/2015 – Bolsa CAPES). Atualmente realiza Pós-doutorado com bolsa
CNPq vinculado ao GEPS (Grupos de estudos em Psicologia Social, Políticas Públicas
e Produção de Subjetividade) do PPGPSI/UFRGS, coordenado pela professora Dra.
Lílian Rodrigues da Cruz. Trabalha com psicoterapia com ferramentas esquizoana-
líticas. Tem experiência na área da Psicologia, Saúde Coletiva e Políticas Públicas
com ênfase em Psicologia Social e Clínica Política. Pesquisa, principalmente, dentro
das áreas que envolvem os seguintes temas: Direitos Humanos, Neoliberalismo,
Biopolítica, Políticas Públicas de Saúde e Processos de Subjetivação.

Luziane de Assis Ruela Siqueira


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Profes-
sora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Institucional da UFES.

Márcia Roberta de Oliveira Cardoso


Possui formação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (2004). É espe-
cialista em Gestão em Saúde Pública pela Universidade do Estado do Pará (2008)
e especialista em Educação em Saúde para Preceptores do SUS pelo Hospital Sírio
Libanês em parceria com Ministério da Saúde. É mestre em Psicologia pelo Pro-
grama de Pós-graduação em Psicologia da UFPA (2013). Doutora em Psicologia pelo
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPA (2022). Possui experiência na
área de Gestão, Planejamento, Formação em Saúde Pública e Psicologia Hospitalar.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 751

Atualmente trabalha como psicóloga hospitalar no Hospital Universitário João de


Barros Barreto (HUJBB-CHU-UFPA).

Márcio Bruno Barra Valente


Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Graduado
em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA), Graduado em Ciências
da Religião pela Universidade Estadual do Pará (UEPA) e Facilitador de Processos
Circulares na área da violência doméstica contra a mulher pela formação do Tribunal
de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA). Doutorando do Programa de Pós-Graduação
de Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), linha de pesquisa: fenome-
nologia, teoria e clínica. Coordenou o Projeto Vivências de Extensão Universitária
Psicologia, Saúde Mental e Protagonismo Social, voltado diferentes populações
vulneráveis e estudantes do ensino superior, e o Grupo de Estudos e Pesquisa Psico-
logia, Narrativa e Crise (GEPPNAC), assim como coordenou o curso de Psicologia
da UNAMA de 2016 a 2018. Psicólogo Clínico (CRP-10ª 05004), atendendo jovens
adultos, adultos e idosos a partir da Abordagem Centrada na Pessoa. Possui expe-
riência na área de Psicologia Social e Comunitária, Psicologia Clínica, Psicologia
Jurídica e Educação, além de realizar pesquisas sobre narrativa, testemunho, relações
de poder e resistência.

Maria da Conceição Gomes da Silva


Licenciada em História. Doutoranda e Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: ceica-
gomesead@gmail.com.

Maria Teresa Nobre


Psicóloga. Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGPsi/UFRN).

Marilda Castelar
Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, Mestra em Multimeios pela UNICAMP,
Conselheira da Política Nacional de Saúde Mental da Bahia e Atuação de Profissio-
nais de Saúde nas Políticas Públicas para as Mulheres, editora científica da Revista
Psicologia Diversidade e Saúde, professora adjunta do Mestrado Profissional em
Psicologia e Intervenções em Saúde na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

Matheus da Cunha Salles


Graduando em Psicologia UNISINOS, integrante do Coletivo Políticas do Narrar.

Melissa Dias dos Santos


Psicóloga, formada pela EBMSP, pós-graduada em fundamentos teóricos da psica-
nálise e suas especificidades clínicas pela FVC, pós-graduada em psicologia clínica
pela UNIFACS. Psicóloga clínica.
752

Michelle Ribeiro Corrêa


Graduada em Psicologia-UFPA, Graduada em Direito-UNAMA, Mestre e Doutora
em Psicologia-UFPA.

Mônica Ewans Muniz Da Costa


Psicóloga, musicoterapeuta. Especialista em Cuidados Paliativos e Terapia de Dor
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e na modalidade
Residência em Saúde com ênfase em Oncologia pelo Programa de Residência Mul-
tiprofissional da UFPA. Realiza atendimentos psicoterápicos desde 2018.

Monique Navarro Souza


Psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional UFRGS, inte-
grante do Coletivo Políticas do Narrar.

Patrícia Furtado Félix


Graduada em Psicologia-UFPA. Mestranda em Psicologia-UFPA.

Patricia Tatiana Raasch


Graduada em História pela UDESC. Mestra em Educação pela FURB. Doutoranda
em Educação pela FURB. Bolsista CAPES. E-mail: profpratriciaraasch@gmail.com.

Pedro Carvalho Souza


Graduando em Psicologia e bolsista PIVIC (UFPA). E-mail para contato: pedroc-
souza97@gmail.com.

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho


Psicólogo, com especialização em Psicologia Jurídica, mestrado e doutorado em
Psicologia. Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e ao Programa de
Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de produtividade
em pesquisa (CNPq). E-mail: ppbicalho@ufrj.br

Pedro Renan Santos de Oliveira


Professor Adjunto no Departamento de Psicologia de Campos na Universidade
Federal Fluminense (UFF). Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do
Ceará (UFC) – com estância doutoral (sanduíche) na Universidad Complutense
de Madrid (UCM) – Espanha. Mestre em Saúde da Família (UFC). Especialista
com Residência em Saúde da Família e Comunidade (Univ. Estadual do Ceará
– UECE). Formação e Bacharelado em Psicologia (UFPE). Quanto às Linhas de
Estudos e Pesquisas, a partir da Psicologia Social e Política, tem realizado inter-
face entre Teorias Críticas da Sociedade, Estudos sobre Colonialidade do Poder
e as Racionalidades e Intersubjetividade nas relações (e políticas) de Cuidado
em Saúde. No campo profissional e técnico, atuou em serviços de Saúde Mental
e Atenção Primária, especialmente com supervisão clínica-institucional. Atuou
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 753

na implantação das Residências Integradas em Saúde no estado do Ceará e onde


coordenou a Residência em Saúde Família e Comunidade na Escola de Saúde
Pública do Ceará entre 2011 e 2015. Também foi Conselheiro da VIII Plenária
do CRP-11 (2013-2016). Atualmente, além de Docente em Psicologia Social na
UFF/Campos, é Pesquisador Colaborador do "Paralaxe" – Grupo Interdisciplinar
de Estudos, Pesquisas e intervenções em Psicologia Social Crítica (grupo CNPq)
-, vinculado ao Dpto. de Psicologia da UFC. É membro-Associado da ABRAPSO
e ABPP e membro do GT de Psicologia Política da ANPEPP.

Rafael Araldi Vaz


Graduado em História pela UDESC. Mestre em História pela UFSC. Doutor em His-
tória pela UFSC. Professor no departamento de História na UNIFACVEST. E-mail:
prof.rafael.vaz@unifacvest.edu.br.

Rafaele Habib Souza Aquime


Psicóloga, docente da UFRA. Compõe o Núcleo Amazônico de Acessibilidade,
Inclusão e Tecnologia (ACESSAR) e atuou na Assistência Social entre 2015 a 2018.

Ragner Santiago Boaventura


Ensino superior em Psicologia CRP 04/60435; Cursando Pós-Graduação em Psicolo-
gia Social; Cursando Pós-Graduação em Psicologia Infantil; Cursando Pós-Graduação
em Saúde Mental; Lattes http://lattes.cnpq.br/9397295654662315

Raimundo Cirilo de Sousa Neto


Psicólogo pela UFC. Integrante do VIESES.

Raphael Brito Neves


Terapeuta Ocupacional pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Membro do grupo
de pesquisas PRACTO – Práticas Clínicas em Terapia Ocupacional (CNPQ/UEPA).

Robert Damasceno Monteiro Rodrigues


Graduado em Psicologia-UFPA. Mestre em Psicologia-UFPA.

Rodrigo Diaz De Vivar Y Soler


Graduado em Psicologia pela UNESC. Mestre em Psicologia pela UFSC. Doutor
em Filosofia pela UNISINOS. Professor Permanente do Mestrado em Educação –
Linha de pesquisa cultura, educação e dinâmicas sociais – do Curso de Psicologia
da FURB. E-mail: rsoler@furb.br.

Samuel Iauany Martins Silva


Doutor em Psicologia e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis,
SP. Teve sua pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP).
754

Silvio José Benelli


Professor Associado do Departamento de Psicologia Clínica do curso de graduação
em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Esta-
dual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, SP, linha de pesquisa
Atenção Psicossocial e Políticas Públicas. Livre Docente em Psicologia Clínica pela
Universidade Estadual Paulista (Unesp) (2022); Doutor em Psicologia Social pelo
IP/USP, São Paulo, SP (2005-2007).

Simone Maria Hüning


Professora Associada do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas.
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2000),
mestrado e doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, com período de doutorado sanduíche na London School of Economics
(LSE). Pós-doutorado no Brazil Institute, King's College London. Coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL (2015-2017). Vice-coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL (2017-2019). Co-editora
da Revista Psicologia & Sociedade (2016-2019). Editora da Revista Psicologia &
Sociedade (2020-2024). Membro do Conselho Editorial das Revistas Polis e Psique
e Arquivos Brasileiros de Psicologia. Representante da ABRAPSO no Grupo de
Trabalho para a elaboração da Resolução Complementar à Res. 466/12- Pesquisa
em Ciências Humanas e Sociais da CONEP/CNS (2015-2016). Membro o Fórum de
Ética da ANPEPP (2015-2018). Tem seu trabalho voltado para o campo da Psicologia
Social, desenvolvendo atividades de docência, pesquisa e extensão na graduação e
pós-graduação. Seus principais temas de interesse são interlocuções da psicologia
social com os processos de subjetivação, territorialidades, branquitude, governa-
mentalidade, biopolíticas e necropolíticas, produção de conhecimento, perspectivas
contra-coloniais, ética e pesquisa em psicologia. É líder do grupo de pesquisa "Pro-
cessos Culturais, Políticas e Modos de Subjetivação". Email para contato: simone.
huning@ip.ufal.br

Stephanie Caroline Ferreira de Lima


Cientista Social. Doutoranda e Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: tecarolima@
gmail.com.

Tadeu Lucas de Lavor Filho


Doutorando em Psicologia na Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza – CE,
Brasil. Especialista em Gênero, Diversidade e Direitos Humanos pela Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Redenção – CE,
Brasil. Professor do Centro Universitário Vale do Salgado (UNIVS), Icó – CE, Brasil.
E-mail: tadeulucaslf@gmail.com; ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2687-1894.

Thaís de Souza Nogueira


Graduada em Psicologia-UFPA. Mestre em Psicologia-UFPA.
BRUTALISMOS, NECROPOLÍTICA E BIOPOLÍTICAS:
governamentalidades em quadros de guerra que tornam vidas precárias 755

Tatiana de Souza Santos Neves


Psicanalista. Graduada em Serviço Social e Psicologia. Doutoranda e Mestra em
Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Ceará (UFC). E-mail: tatianasouzapsi2019@gmail.com.

Thayna Miranda da Silva


Psicóloga e residente no Programa de Residência Integrada em Saúde Mental Cole-
tiva da UFRGS.

Thiago de Sousa Soares


Psicólogo, Residente no programa de Residência Multiprofissional em Atenção à Saúde
da Mulher e da Criança, UFPA, Altamira. Coordenador do Núcleo ABRAPSO-Altamira.

Valber Luiz Farias Sampaio


Graduado em Psicologia-UNAMA; Mestre e Doutor em Psicologia-UFPA; Prof de
Psicologia na Faculdade UNINASSAU e na Faculdade Estácio de Belém-PA.

Verena Souza Souto


Psicóloga, Doutoranda em Medicina e Saúde Humana pela EBMSP, Mestra em
Tecnologias em Saúde pela EBMSP, pós-graduada em Saúde Mental com ênfase em
Dependência Química, Família e Comunidade pela FTC-FSA e em Terapia Análiti-
co-Comportamental pela CUU, professora auxiliar da UFRB, professora assistente
da EBMSP e coordenadora técnica de pós-graduação da Unileya.

Vico Dênis Sousa de Melo


Professor do Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), doutor em Pós-Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), mestre em Ciência Política pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bacharel em Relações Internacio-
nais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Foi professor, de 2017 a 2020,
do Instituto de Humanidades (IH) da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Atuo e pesquisa principalmente nas seguintes
temáticas: estudos críticos, pós-descoloniais; Capitalismo/Colonialismo Global;
Necropoder/Necrolítica; Estudos Africanos; História do Sul Global; Cooperação e
Relações Sul-Sul; Cooperação Brasil-Moçambique. Por fim, e não menos impor-
tante, sou professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública
e Cooperação Internacional da Universidade Federal da Paraíba (PGPCI/UFPB) e
Pesquisador Associado 1 dos Instituto de Estudos da África e do Instituto de Estudos
da Ásia, ambos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Violeta Maria Siqueira de Holanda


Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Professora do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Inter-
nacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Redenção – CE, Brasil. E-mail:
violeta@unilab.edu.br; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5608-1442.
756

Vitor Igor Fernandes Ramos


Trabalhou como Auxiliar em farmácia no Hospital Pediátrico da Unimed (HPU)
entre 2016-2019, depois de ser efetivado através do programa Jovem Aprendiz. Foi
estagiário do Hospital Veterinário de Belém (HVB) em 2018, através do programa
Centro de Integração Empresa Escola (CIEE), sendo contratado para Auxiliar de
Farmácia em 2019-2020, para cargo intermitente. Pelo mesmo programa CIEE, foi
estagiário da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMPA), na Gerência
de Assistência Farmacêutica (GASF) entre o período de 2019-2020. Em andamento
curso em inglês, atualmente no 6 período (intermediário). Graduado em Farmácia
pela Universidade da Amazônia (UNAMA) em fevereiro de 2021. Pós-Graduando em
Farmácia Hospitalar pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI). Redutor
de Danos pela Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA).

Wamberto Silva Medeiros


Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Campina Grande. Participou
como colaborador voluntário do projeto de extensão denominado "Cinema e Socie-
dade: da episteme à crítica Social", vinculado ao Programa de Bolsa de Extensão
– PROBEX/UFCG, no período de maio a dezembro de 2012; Monitor bolsista entre
os períodos 2014.1 e 2014.2, da cadeira de Psicanálise I; participou como voluntário
do projeto de pesquisa "Por uma clínica possível da psicose: o sentido de cura pela
psicanálise", desenvolvido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Epistemologia
(NEPE), entre os anos de 2013 e 2015. Integrou o Programa de Residência Mul-
tiprofissional em Saúde Mental, UPE – Garanhuns, entre os anos de 2018 e 2020.
Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, desde o ano de
2020, com pesquisa em andamento no campo do cuidado pensado com usuários de
drogas lícitas, prescritas e proscritas.
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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