PERSPECTIVA INTEGRADORA Carmen Roselaine de Oliveira Farias Denise de Freitas Introdução1 autônomas, criando-se espaços, discursos e identidades que não são Em nossos percursos educativos e necessariamente coincidentes, e que, por investigativos temos estabelecido vezes, formam zonas de tensão e de encontros com duas perspectivas exclusão. Neste ensaio teórico em que consideradas necessárias à educação buscaremos desenvolver um traçado sobre contemporânea, a Educação Ambiental os movimentos culturais e históricos em (EA) e a educação na perspectiva das que se produziram a EA e a educação CTS relações Ciência, Tecnologia e Sociedade não pretendemos afastar essas tensões; (CTS). Atualmente, ambas fazem parte do pensamos que são justamente elas que nos conjunto de propostas endereçadas à ajudam a aguçar o olhar para a inovação curricular dos diferentes níveis incompletude do conhecimento (científico de ensino, compreendendo mudanças e cultural) e alertar para outras tanto nas proposições temáticas, como possibilidades de produzir conhecimentos nos princípios metodológicos. No entanto, escolares. nem sempre essas duas perspectivas Nesse sentido, ao propormos uma parecem integrar as práticas de “perspectiva integradora” não queremos investigação e de ação educativa e, por silenciar divergências e apagar vezes, temos a impressão de que quem as contradições nem tampouco oferecer uma utiliza consideram-nas incompatíveis perspectiva “mais inteira ou completa”. entre si e que seus núcleos são diferentes Preferimos apostar na multiplicidade dos e separados, o que pode estar ligado ao conteúdos e das formas do conhecimento modo como esses movimentos se escolar que constroem percepções constituíram e se difundiram, sobretudo, diferentes da realidade social, de modo no contexto brasileiro. sempre mutável, transitório e passível de Embora possamos situar um começo ser questionado (AMORIM, 2001). Nosso remoto das histórias da educação CTS e objetivo é explorar alguns elementos das da EA nas décadas de 60 e 70, quando trajetórias da EA e da perspectiva CTS, no eclodia no cenário internacional um cenário brasileiro, a fim de olhar por sobre intenso debate sobre desenvolvimento e “os muros” e refletir sobre as limitações e ambiente, suas trajetórias foram potencialidades das opções que se faz construídas de maneira relativamente quando se adota uma e outra perspectiva. 1 Ensaio desenvolvido no âmbito do Projeto Ciência Desta forma, partimos de uma leitura das como Cultura: implicações para a comunicação científica. Apoio: CAPES/GRICES. Uma versão políticas nestas áreas no contexto anterior foi apresentada no IV Congreso brasileiro; na seqüência apresentamos Iberoamericano de Educación Científica, em Lima, alguns elementos que consideramos Peru, 2006. Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
significativos nas trajetórias da EA e da determinante no seu destino no país.
educação CTS que, de algum modo, Enquanto os países capitalistas contribuíram para afirmar seus caminhos avançavam de modo marcante em termos paralelos; ao finalizar, procuramos de C&T, uma das características mais ensaiar uma reflexão a respeito do que importantes do que hoje denominamos consideramos que pode ser uma “visão modernidade, em nosso território, integradora” entre CTS e EA, contudo, aparentemente, não houve evolução neste deixando em aberto esta questão. campo por cerca de três séculos depois da presença européia nas terras brasileiras. Segundo Carvalho e Martins (1998), as 1. Alguns elementos das relações ciência, tecnologia, cultura e marcas da disseminação de uma visão ambiente no Brasil pragmática da ciência, iniciada com exploração por missões estrangeiras da No Brasil, a primeira geração de flora, fauna e minerais nativos logo no políticas ambientais, que pode ser datada início do século XIX, prolongaram-se em no primeiro governo de Vargas, foi políticas utilitaristas que pouco se elaborada e implementada por iniciativa modificaram no decorrer do século. De do Estado, sem que houvesse uma base fato, o modelo da economia brasileira social que as demandassem de forma apoiado na agricultura e no regime explícita. Segundo Silva-Sánchez (2000), escravocrata até 1888, não favorecia o a preocupação básica dessas políticas era desenvolvimento científico e tecnológico a racionalização do uso e exploração dos do país. Somente na virada do século recursos naturais e a definição de áreas de houve iniciativas de significativo preservação, o que significava alguns investimento na área, como o programa de limites ao tradicional direito de saúde pública sob a direção de Oswaldo propriedade. No entanto, tratava-se de Cruz, que figura na história como um uma política fundamentada na exemplo sem paralelo no período. administração dos recursos naturais pelo Em meados do século XX, Estado, na concentração dos especialmente após a II Guerra Mundial, o instrumentos de controle e gestão dos governo brasileiro mostrou interesse em recursos e na ausência da sociedade civil incentivar a pesquisa nacional2, na elaboração das políticas ambientais. Ao especialmente no campo da energia longo dos anos 70 e 80, porém, vemos a nuclear. Assim é que já em 1951 foi criado emergência de novo interlocutor – o 2 Os autores Auler e Bazzo (2001) lembram que, apesar movimento ambientalista – que passa a da ideologia desenvolvimentista dos anos 50, no Brasil, interagir e contribuir para tornar visível a política científica e tecnológica não adquiriu posição de destaque porque a industrialização se baseava muito no cenário nacional os conflitos mais na importação de tecnologias e de técnicos do que ambientais, formulando reivindicações e pela sua produção nacional. Foi durante a década de 60 colocando em pauta o desenvolvimento de que aconteceram alguns eventos importantes neste campo, tais como a fundação da Universidade de uma “cidadania ambiental”. Brasília, o aparecimento da Fundação de Amparo à Em termos de ciência e da Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o primeiro curso da Coordenação de Programas de Pós-Graduação tecnologia, nosso passado colonial, em Engenharia (Coppe) e a criação do Fundo de herança portuguesa, parece ter sido Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec). Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
o Conselho Nacional de Pesquisa, um lado, a criação de novas instituições e de
órgão que, naquela época, estava voltado mecanismos de fomento à pesquisa e ao ao apoio às pesquisas em Física Nuclear. desenvolvimento científico e tecnológico Segundo Carvalho e Martins (1998), as modificava, marcadamente, o quadro pressões do governo americano não precário de décadas anteriores, por outro, tardaram para fazer com que o Brasil surgiam novos problemas e outros se adquirisse sua tecnologia, induzindo à tornavam mais evidentes, sobretudo interrupção de alguns programas de quanto às relações ciência e sociedade. pesquisa em pleno desenvolvimento no Carvalho e Martins (1998) descrevem que, país. No fim dos anos 60, sob o nefasto entre esses problemas, havia o de conciliar jugo da ditadura, várias instituições os critérios de rentabilidade social e científicas passaram a sofrer sucessivas econômica com o desejo da comunidade investidas dos militares, assim como científica de decidir sobre suas próprias renomados cientistas brasileiros foram prioridades de trabalho; envolver o setor obrigados a se exilarem em outros países. empresarial no esforço de capacitação do O episódio da energia nuclear é país; obter reconhecimento da sociedade exemplar de uma relação problemática local quando, de fato, os financiamentos e em termos de interação CTS no Brasil. as possibilidades de publicação no exterior Não só a comunidade científica sentia-se não incentivavam as pesquisas para a marginalizada em uma área da pesquisa solução de problemas locais; incrementar que considerava de seu essencial o ingresso à atividade cientifica em um interesse, como, também, historicamente, contexto sociopolítico de carência na a sociedade brasileira em seu conjunto foi educação científica escolar, etc. alijada das discussões sobre acordos e Auler e Bazzo (2001) argumentam, programas ligados a esta matéria. fundamentados no trabalho de Sant’Anna Atendendo a estratégias de setores (1978), que o empenho governamental em militares e, ao mesmo tempo, a interesses C&T, em países em desenvolvimento como das classes dominantes, esta questão foi o Brasil, tem-se mantido afastado dos decididamente subtraída do processo objetivos sociais e que uma política democrático e, portanto, da política e do científico-tecnológica só poderia ser controle da sociedade civil (ROSA, 1985). formulada nestes contextos em função de Por outro lado, na tentativa de objetivos prioritários, definidos mediante inverter o quadro de acirrada ingerência processos democráticos. Contudo, são os governamental sobre o setor, a partir da conflitos e as estruturas sociais pouco década de 70 a comunidade científica participativas e democráticas presentes “abraça a luta” por uma política científica em sociedades como a nossa que congruente com a afirmação da atividade demarcam as maiores dificuldades para o científica no país. Nas décadas seguintes estabelecimento de políticas “legítimas” surgiram vários órgãos de política neste setor. O problema do científica que criaram instrumentos de desenvolvimento da ciência e da apoio à atividade científica e à pós- tecnologia implica múltiplos fatores, como graduação. Evidentemente, se, por um os econômicos, históricos, culturais, Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
sociais, políticos, entre outros. ciências e as tecnologias contemporâneas,
Concordamos com os autores até uma vez que deriva do “abalo” da agora mencionados de que a ausência de racionalidade científica hegemônica, um projeto nacional de desenvolvimento denunciando os limites dos sistemas da C&T no país se perpetuou na maior econômico e cultural vigentes. Trata-se de parte da história brasileira e que, no uma problemática que se mostra ao presente, reflete-se em políticas e práticas mesmo tempo ecológica, social, de gestão apartadas e, muitas vezes, econômica, cultural e política, e que se contraditórias às premências e demandas torna cada vez mais global e visível no da sociedade. A análise de Vaccarezza agravamento da degradação ambiental, (1998) aponta para uma mudança nas injustiças sócio-ecológicas, na substancial nas políticas de C&T na biopirataria, no acirramento das disputas década de 90 na região latino-americana. pelos recursos naturais indispensáveis à Segundo ele, diferentemente do que o vida entre outros. Segundo Leff (2000), a ocorreu nos anos 70, o pensamento atual questão ambiental surge no contexto de se limita a promover a competitividade uma crise de civilização, em que se coloca internacional das unidades produtivas; as em xeque o conhecimento fracionado, a empresas individualmente passam a ser idéia majoritária de progresso, enfim, as os principais atores; o critério de promessas da modernidade. Sousa Santos competitividade internacional exclui o (2001) argumenta que a modernidade não social como núcleo da racionalidade cumpriu as promessas de liberdade política, diminuindo o potencial das individual e coletiva e, tampouco, os propostas de C&T para o atendimento das anseios de igualdade e fraternidade, pois, reais necessidades da sociedade e da na trajetória do capitalismo, só foi região. garantido o que gerava mais capitalismo. Nesse sentido, parece-nos pertinente Nesse processo, os efeitos do progresso deslocar a ênfase que os estudos CTS gerado pela ciência e a tecnologia ainda é normalmente fazem sobre a relação entre prerrogativa de poucos e as conquistas da ciência, tecnologia e desenvolvimento (no civilização são colocadas em xeque: os sentido produtivo e econômico), para problemas gerados pela clivagem entre colocá-la no eixo das relações ciência, norte e sul (países desenvolvidos e em tecnologia, cultura e ambiente (CTCA), desenvolvimento) contribuem para que nos dão condições de franquear um acentuar a miséria, a violência, a conjunto de problemas e de conflitos que competição feroz, a automação do além de expor mazelas sociais e trabalho e homogeneização de práticas econômicas ligadas ao nosso modelo de sociais e culturais (FREITAS et al., 2007). desenvolvimento, põe à vista dimensões Ribeiro (2007) lembra que o uso ambientais, éticas, culturais e políticas de crescente de alguns recursos naturais vai modo explícito. torná-los raros e, portanto, cada vez mais Com efeito, a chamada problemática estratégicos. Mesmo que se argumente que ambiental não se reduz a mais um novos conhecimentos científicos e “objeto” de estudo e investigação para as tecnologias poderão alterar as dinâmicas Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
dos processos produtivos, as escalas de Ademais, o desenvolvimento dos
utilização e a lógica econômica potenciais tecnocientíficos diferenciados prevalecente têm sido sempre contínuas à entre os países, surgem particularmente, vontade de dominação e de exploração, os casos em que se disputa o acesso e a gerando sempre novos conflitos sociais e apropriação dos recursos genéticos disputas na ordem econômica e política. “necessários” à próxima revolução No Brasil, as tensões ambientais marcam tecnológica e que afeta diretamente a profundamente nossa história recente. países periféricos e com imensa Basta lembrar dos conflitos decorrentes diversidade cultural como o Brasil. Os do deslocamento de populações para a casos de conflitos neste campo servem de construção de barragens na Amazônia que exemplo do reducionismo epistemológico deu origem à organização do Movimento e social impostos pelas investidas dos Atingidos por Barragens; a constante tecnocientíficas “sobre a fonte mesma da luta dos povos indígenas, quilombolas e vida e o assalto às formas tradicionais de ribeirinhos para manterem suas terras conhecimento, até então desprezadas pela diante da exploração mineral ou ciência e pela tecnologia modernas” instalações de hidrelétricas; a resistência (SANTOS, 2003, p.73). dos seringueiros do Acre, liderados por Chico Mendes, uma oposição tenaz à 2. Um olhar sobre a Educação derrubada da mata na qual se Ambiental encontravam as seringueiras usadas para a extração do látex. Ademais, nos últimos Um evento sempre lembrado na anos, vemos se desenrolar o caso de história da EA é a Conferência resistência ao projeto do rio São Intergovernamental de Tbilisi sobre Francisco, o que exemplifica outro foco de Educação Ambiental, celebrada em 1977 e tensão e conflito já conhecido organizada pela UNESCO em colaboração internacionalmente. A disputa pela água é com o Programa das Nações Unidas para o motivada por diferentes intenções e Meio Ambiente (PNUMA). A Declaração modos de pensar o desenvolvimento de resultante desta Conferência, regiões diversas como a do sertão fundamentada na Conferência de nordestino e a de capitais interessadas na Estocolmo, de 1972, expressava o industrialização e crescimento urbano. E sentimento de urgência da questão há outros exemplos nesse sentido, como a ambiental, para qual deveriam ser difícil negociação sobre o fornecimento de convergir todos os esforços e recursos água para a região metropolitana de São possíveis, destacando-se a função Paulo; ou, ainda, o caráter instrumental da ciência e da tecnologia. transfronteiriço dos casos de No centro dessa proposta estava a contaminação de águas, como aconteceu resolução de problemas ambientais, em com o lançamento de produtos químicos vista dos quais era insuficiente a formação em Cataguazes, em Minas Gerais, que e treinamento de especialistas e técnicos, degradou a água que abastece cidades à já que seria necessária uma transformação jusante, no estado do Rio de Janeiro. gradual da educação em todos os seus Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
níveis e modalidades. Ademais, segundo a em geral e se conduz a luta que coroou o
Conferência de Tbilisi, a EA não deveria processo Constituinte. Ampliam-se, assim, se restringir a tratar dos aspectos uma série de novos direitos, e entre eles os biológicos e físicos dos problemas direitos ambientais. Segundo Carvalho ambientais, mas também as causas (2001, p.47), estes movimentos por novos econômicas, sociais e culturais a ela direitos instituíram “novas esferas de relacionadas, ressaltando-se a correlação legitimação, sensibilidades, sociabilidades, existente entre estes aspectos. No que alimentam um certo ideário documento resultante da Conferência, há existencial e político de corte um alerta contra a tendência da simples emancipatório e autonomista”. inclusão de temáticas ambientais no Ainda em 1981, a Política Nacional espaço das estruturas disciplinares do Meio Ambiente (Lei 6.938) inclui, entre tradicionais e adaptações nos conteúdos seus princípios, a EA em todos os níveis de das diversas matérias, pois afirma uma ensino e a educação da comunidade, identidade interdisciplinar ao campo e a objetivando a participação ativa da necessidade de se implementar o cidadania ambiental. Em 1988, a nova currículo em uma perspectiva “holística”3, Constituição Federal, no art. 225, incumbe com vistas à construção de o poder público da promoção da EA em conhecimentos, competências, atitudes e todos os níveis de ensino e a valores ambientais (UNESCO, 1998). conscientização pública. Em 1999, após A década de 70 é também um longo período de elaboração e trâmite considerada o marco inicial dos legislativo, o Congresso Nacional aprova a movimentos ambientalistas no Brasil, Política Nacional de Educação Ambiental apesar de se saber da existência de (Lei 9.795), regulamentada três anos militantes conservacionistas e de depois pelo Decreto 4.281/02. Este entidades de proteção da natureza desde decreto institui o Órgão Gestor, uma os anos 50. É a partir da distensão política estrutura dirigida, conjuntamente, pelos que melhoram as condições para o Ministérios do Meio Ambiente e da exercício de reuniões e ações coletivas e Educação encarregado de coordenar e começam a surgir associações e apoiar a implementação e avaliação da movimentos ambientalistas em algumas PNEA no país. cidades brasileiras. Na década seguinte, o Com efeito, a história da EA advento da “abertura” intensifica o brasileira se entrelaça com a história do diálogo entre militantes, intelectuais e ambientalismo no Brasil e de suas lutas cientistas e são organizados seminários e por direitos e pela integração da questão conferências, catalisando-se apoios e ambiental nas instituições. Segundo participações. É também nessa década Carvalho (2001, p.46), “[...] poderíamos que se fortalecem os movimentos sociais dizer, pela experiência brasileira, que a EA 3 Entre as propostas de desenvolvimento do currículo parece ser um fenômeno cuja gênese e apresentadas em Tbilisi, destaca-se a técnica desenvolvimento estariam mais ligados pedagógica do projeto, considerada neste documento aos movimentos ecológicos e ao debate adequada para articular contribuições de diferentes disciplinas na compreensão e resolução de problemas ambientalista do que propriamente ao ambientais. Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
campo educacional e à teoria da exploração dessas formas de vida pelos
educação”. É nesse sentido que a autora seres humanos”. afirma ser a EA “herdeira direta do O campo da EA foi profícuo na movimento ecológico e do debate produção da crítica à sociedade moderna e internacional sobre meio ambiente”. ao modelo de desenvolvimento A década de 90 se inicia sob a hegemônico. Evidentemente, não compõe, movimentação dos processos tal como o movimento CTS, um espaço preparatórios da Conferência das Nações homogêneo. Mapeando algumas Unidas sobre Desenvolvimento e Meio abordagens ou “correntes” deste campo, Ambiente, a Rio/92. Muitas idéias e Sauvé (2005) destaca proposições que valores lançados e/ou repercutidos nesta enfatizam o processo científico com o Conferência – como desenvolvimento objetivo de abordar com rigor as sustentável, cidadania planetária, realidades e problemáticas ambientais, responsabilidade global -, passaram a identificando especialmente as relações de constituir uma referência básica para as causa e efeito. Nessa chamada “corrente discussões e ações no campo ambiental no científica”, a EA freqüentemente é período seguinte. A EA ganhou uma associada à didática das ciências ou, ainda, significativa expressão no Fórum às ciências do meio ambiente, campo de Internacional das ONGs e Movimentos investigação essencialmente interdiscipli- Sociais realizado paralelamente à Rio/92. nar. Para quem assume a EA a partir dessa Neste evento, foi produzido o Tratado de perspectiva, diz a autora, o meio ambiente Educação Ambiental para Sociedades é considerado um tema atrativo que Sustentáveis e Responsabilidade Global, estimula o interesse pelas ciências ou em que se reconheceu o papel central que então uma preocupação que outorga uma ocupa a educação na formação de valores dimensão social e ética à atividade e na transformação das sociedades atuais científica. em sociedades sustentáveis e eqüitativas. A associação entre a EA e a educação Neste Tratado, a EA é compreendida científica. no entanto, tende a situar-se como um ato político e as questões preferencialmente no contexto do ensino ambientais devem ser relacionadas às das Ciências da Natureza, onde suas causas e contextos, a partir de uma predominantemente os estudos abordagem ampla e sistêmica, que supere ambientais são submetidos ao olhar os tradicionais cientificismos atribuídos à exclusivo da ciência. A este respeito, Sauvé compreensão dos problemas ambientais. (2005) cita autores que vêem problemas Além da forte presença dos aspectos nesta associação: políticos nos princípios do Tratado, há [...] por um lado, com a uma reivindicação ética expressada no finalidade de otimizar a relação com o meio ambiente, a EA Princípio 16: “a EA deve ajudar a teria como objetivo o desenvolver uma consciência ética sobre desenvolvi-mento de atitudes e todas as formas de vida com as quais de um saber atuar em relação compartilhamos este planeta, respeitar às realidades ambientais. Por seus ciclos vitais e impor limites à outro lado, a educação científica é baseada, sobretudo, Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
na idéia do científico não poderia se contentar com um enfoque
(racionalidade, objetividade, científico, e, tampouco, poder-se-ia deixar rigor, validade, reprodutibili- os jovens pensarem que é somente pela dade, etc.). A ciência é vista amiúde como exta e ciência onipotente que se solucionarão os independente do domínio problemas da sociedade. subjetivo (BLADER, 1998- Esses testemunhos de professores de 1999). Ciências podem ser agrupados do seguinte Entre os professores de ciências, a modo: há aqueles que evitam a autora (2005) mostra que também aproximação entre EA e educação existem controvérsias. Para alguns, ao científica por acreditarem que com isso introduzir valores, a EA ameaçaria a descaracterizariam o ensino disciplinar; integridade das disciplinas científicas e, outros que apostariam nas convergências, portanto, a inteireza do seu conteúdo instrumentalizando a EA para desenvolver disciplinar; do mesmo modo, não condutas científicas; e um terceiro grupo utilizando-se do método científico que entendem a EA como portadora de (experimental, hipotético-dedutivo), a EA uma perspectiva mais ampla que a eliminaria o contato com os objetos de científica e que a aproximação poderia aprendizagem e produziria diminuir-lhe o potencial crítico. conhecimentos sem garantia científica. Para outros, a aproximação da EA ao 3. Perspectivas CTS e educação ensino das Ciências seria vantajosa, já que científica existem semelhanças entre o processo científico e o processo de resolução de Segundo Santos e Mortimer (2001), problemas, que exige observação, o movimento CTS surgiu inicialmente em problematização e acompanhamento dos países europeus e norte-americanos em resultados; ainda nesse sentido, a EA contraposição ao pressuposto cientificista seria interessante aos alunos porque que valorizava a ciência por si mesma e ligada à realidade concreta e com depositava uma crença cega em seus potencial para ligar conhecimento e ação resultados positivos: social; ainda neste sentido, o contexto do A ciência era vista como uma ensino de Ciências e Tecnologias atividade neutra, de domínio integradas, considerado um campo exclusivo de um grupo de interdisciplinar e transdisciplinar, que a especialistas, que trabalhava EA se integraria melhor. Por outro lado, desinteressadamente e com há entre os testemunhos, aqueles que autonomia na busca de um conhecimento universal, cujas entendem existir um perigo em se reduzir conseqüências ou usos a EA ao campo do ensino das Ciências, já inadequados não eram de sua que aí ela é colocada na situação responsabilidade. A crítica a paradoxal de ser reivindicada como objeto tais concepções levou a uma próprio, mas também de não se filosofia e sociologia da ciência enquadrar nos limites da disciplina; na que passou a reconhecer as limitações, responsabilidades, esteira do entendimento anterior, a EA cumplicidades dos cientistas, Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
enfocando a ciência e a introdução de certos conteúdos e métodos
tecnologia (C&T) como de ensino na educação científica, mas processos sociais (SANTOS; também novos e criativos modos de MORTIMER, 2001, p.96). articular o ensino científico ao tecnológico, No entanto, apesar de há décadas se as relações com a sociedade e o ambiente, questionar as relações CTS, ainda é as condições para que se estabeleçam bastante difundida socialmente uma debates sobre ética e cultura, dado que as suposta autonomia e neutralidade das relações CTS estão carregadas desses práticas científicas e tecnológicas, assim componentes e não são neutras. como, não raro, a mídia veicula Partindo também do contexto CTS mensagens que apresentam o para o ensino das Ciências, Amorim desenvolvimento científico-tecnológico (2001) considera que essa perspectiva como um processo inexorável e exige “a incorporação de dimensões irreversível na “marcha do progresso”, múltiplas dos conhecimentos científicos”, assim como proposições sobre mas amplia esse escopo chamando “conclusões científicas inquestionáveis” atenção para as interações que acontecem (AULER; BAZZO, 2001). na sala de aula e que, freqüentemente, não Em termos educacionais Cerezo estão presentes nas propostas de inovação (1999) observa que o objetivo da educação curricular. São conhecimentos produzidos CTS é abarcar as duas célebres culturas - por professores ao ensinar Ciências num humanística e científico-tecnológica -, contexto CTS, nas suas práticas cotidianas separadas pela tradição histórica que de ensino. Sua discussão deixa à mostra a considerou as ciências naturais o modelo dimensão cultural dos conteúdos para instrumentalidade do conhecimento. tradicionalmente presentes no ensino Outros objetivos, ainda segundo o autor, médio, rompendo com a perspectiva compreendem o estudo das ciências e das criada “pela estética científica, por vezes tecnologias com juízo crítico e sentido de positivista, que ordena e lineariza” responsabilidade, bem como o (AMORIM, 2001, p.52). desenvolvimento de atitudes e práticas Sobre a integração da dimensão democráticas em questões de importância ambiental nas relações CTS, o canadense socioambiental. Santos e Mortimer (2001) Glen Aikenhead é um dos pioneiros no também enfatizam aspectos públicos da tema, quando liderou o desenvolvimento C&T e relacionam a educação CTS com o dos parâmetros nacionais para a exercício da cidadania. Para os autores, o educação em Ciências no Canadá, controle social sobre a atividade científica, lançados em outubro 1997, abrangendo em uma perspectiva democrática, implica todos os níveis de escolaridade. Segundo o em envolver uma parcela cada vez maior autor, trata-se de um avanço das relações da população nas tomadas de decisão e CTS para as relações ciência-tecnologia- para uma ação responsável sobre C&T, sociedade-ambiente (CTSA) no âmbito da assim como em relação aos problemas alfabetização científica. Para Aikenhead éticos, ambientais e de qualidade de vida. (2000), essa abordagem enfatiza No mesmo sentido, Santos (1998) observa explicitamente a inclusão de aspectos que o enfoque CTS requer não só a Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
sociais externos e internos à ciência. No educativas, bem como na mídia e nos
entanto, em sua pesquisa observa que, contextos das decisões políticas. Para ainda que os professores possam aceitar Bettencourt (2000), e outros autores que a ênfase CTSA deva ser adotada, ligados a pesquisas no campo do ensino de expressam muitas preocupações, tais ciências, como Dillon (2002), os temas e como: o equilíbrio entre a ênfase CTSA e problemas relativos ao ambiente oferecem outras ênfases, como por exemplo, os um riquíssimo suporte conceitual e conteúdos tradicionais do ensino de experiencial que desafia o ensino de ciências; a avaliação dos estudantes com ciências e as ortodoxias existentes na área. relação aos objetivos CTSA; a No contexto da Iberoamérica, Cerezo disponibilidade de materiais apropriados (1999) identifica uma importante lacuna ao ensino; uma possível erosão do no desenvolvimento da educação CTS conteúdo tradicional de ciências; e a devido à inter-relação de vários fatores, necessidade de ensinar baseando-se a tais como: carência de investigação básica partir de questões controversas. Em e de estudos de casos que tenham outras palavras, embora as relações CTSA interesse nacional ou transnacional (em fossem consideradas pertinentes ao América Latina); carência de materiais ensino, há muitas questões não resolvidas docentes e de apoio à docência; e falta de no âmbito das práticas de sala de aula. programas e de iniciativas institucionais. Segundo Bettencourt (2000), tanto a No Brasil, em particular, as relações CTS EA quanto as relações CTS compartilham aparecem com mais ênfase na educação uma preocupação similar: a educação científica na década de 90, como se deve se empenhar para formar cidadãos percebe pelo destaque que passa a ser informados e capazes de tomar decisões dado a este campo de pesquisa nos sobre problemas atuais, particularmente congressos de educação em Ciências e nas questões envolvendo C&T. A autora revistas especializadas (CARVALHO, afirma que relações CTS e EA não 2005). Segundo esse autor, as interações compartilham apenas propostas, mas CTS têm interessado cada vez mais a também temas, como mudança climática pesquisa e a prática educacional devido às global, poluição, uso dos recursos naturais “evidências, cada vez mais contundentes, e outros tópicos ambientais. Das oito sobre como a C&T podem afetar a áreas específicas de preocupação do sociedade humana e o ambiente” Projeto Synthesis, de 1977, identificadas (CARVALHO, 2005, p.65). como CTS, cinco relacionam-se a temas Ainda no Brasil, nos anos 90, os também explorados na EA, tais como Parâmetros Curriculares Nacionais para o energia, população, qualidade ambiental, Ensino Médio (PCNEM) do Ministério da uso dos recursos naturais e efeitos do Educação (MEC) ressaltam que a nossa desenvolvimento tecnológico. Essa tradição de ensino das ciências naturais é comunicação temática também pode ser excessivamente disciplinar e propedêutica, percebida em livros didáticos e outros deixando para o ensino superior a materiais considerados adequados para o responsabilidade de explorar os contextos desenvolvimento dessas abordagens mais amplos da cultura científica. Assim, Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
essa política sinaliza para a necessidade O que se sobressai, no entanto, nos
de se considerar os contextos dos discursos CTS é o papel quase sempre desenvolvimentos científicos e considerado “fundamental e tecnológicos, por meio da construção insubstituível” da ciência e da tecnologia histórica de determinados conhecimentos, para um projeto de desenvolvimento abrindo assim a possibilidade de lidar nacional. Freqüentemente, difunde-se um com as implicações éticas, socioambien- modelo de racionalidade científica que se tais econômicas, políticas, enfim, culturais opõe às outras formas de conhecimento, num sentido amplo. No entanto, se por consideradas menos racionais e, portanto, um lado as sinalizações dos PCNEM são ligadas à estagnação, ao subdesenvolvi- congruentes com uma idéia geral de mento, ao obscurantismo, ao não- ensino de ciências mais permeável a civilizado. Um modelo de racionalidade valores sociais, éticos e à cidadania, por totalitário, na medida que marginaliza outro, resta o desafio de se explicitar as todas as outras formas de conhecimento condições concretas e cotidianas em que que não se pautam pelos seus princípios essa política será implementada e epistemológicos e pelas suas regras experimentá-la no âmbito das práticas metodológicas (SOUSA SANTOS, 2001, curriculares. MENESES, 2004). No que tange ao contexto das relações CTS no campo da educação, 4. Ensaiando uma visão integradora apesar de ser um campo variado em suas As relações CTS, especialmente no proposições, a nosso ver e nos limites das Brasil, têm sido fortemente marcadas referências utilizadas neste trabalho, tem- pelas análises que valorizam, sobretudo, se caracterizado, principalmente: pela sua as relações da ciência e da tecnologia com circunscrição ao ensino de ciências; o setor produtivo, econômico, industrial. consideração de aspectos epistemológicos Os autores mencionados neste estudo e históricos relacionados à C&T; levantam várias discussões importantes, importância conferida à contextualização e como as prioridades ou metas a serem a interdisciplinaridade como princípios ou alcançadas para um maior componentes das formas de tratar as desenvolvimento e independência da C&T relações CTS em sala de aula; articulação do país, os suportes financeiros e entre as culturas humanística e científico- institucionais, a difusão e a qualidade da tecnológica; e, em alguns casos, bem mais educação científica, a abertura e particulares, considerações de ordem intensificação da comunicação científica, atitudinal e outras relacionadas à ética e à a quebra de resistências do público à dimensão cultural dos conteúdos que ciência e ao trabalho dos cientistas, entre compõem o currículo escolar. De modo outras. Notam, também, uma reiterada geral, ao que nos parece, a educação CTS ausência da sociedade na definição das tem privilegiado discursos acadêmicos e, políticas do setor, ou seja, da participação com isso, tem evitado se confrontar com pública nos rumos e destinos da C&T outros tipos de conhecimentos que nacional. gravitam ou concorrem com as Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
epistemologias e metodologias científicas. (2001). Para Sousa Santos (2001), uma
Da mesma forma, a EA não se reduz epistemologia do “Sul” deve estar às propostas presentes em documentos assentada em três orientações: “aprender governamentais e internacionais, mas que existe o ‘Sul’, aprender a ir para o ‘Sul’ constitui um campo de ação diversificado. e aprender a partir do ‘Sul’” (p. 733). Contudo, a Conferência de Tbilisi de 1977, Partindo da idéia de que a diversidade considerada uma referência do campo, epistêmica é potencialmente infinita, traz em seus conteúdos uma expressão considera-se, portanto, que os bastante forte da educação, da ciência e conhecimentos sempre são contextuais e da tecnologia para “despertar a particulares mesmo quando arrogam não consciência e o melhor entendimento dos sê-lo, como é o caso da ciência moderna. problemas que afetam o meio ambiente” Entretanto, diante de tal diversidade, o (UNESCO, 1998, p.18). Mas se por um que se verifica é o conflito entre diferentes lado a EA compartilha com o movimento visões de mundo e de relações com os CTS da força dos discursos científicos, por conhecimentos. A idéia de construir um outro, seus percursos foram muito mais saber solidário, mediado de possibilidades difusos no campo social e puderam de participação e de sentimento de conquistar espaço juntamente com uma incompletude cultural, não se estabelece miríade de movimentos sociais e culturais senão por meio do afrontamento e, que despontaram e se multiplicaram no portanto, do conflito, perante o saber Brasil durante e após as décadas de 70 e hegemônico. Em decorrência, na educação 80. escolar, falar de abordagens no âmbito da De modo geral, parece que conciliar EA e das interações CTS pressupõe sempre a educação CTS e a EA é uma tarefa ainda pautar-se numa perspectiva crítica e incipiente e nem sempre experimentada. emancipatória do sujeito, da sociedade e Com certa freqüência nos deparamos com do ambiente. algumas abordagens que ficam na superfície, tratando de problemas Referências Bibliográficas ambientais no contexto CTS sem, contudo, aprofundar as causas dessa AIKENHEAD, G S. STS science in Canada: problemática e relações com From policy to student evaluation. In: D. Kumar; D. Chubin (eds.). Science, technology, determinados modelos de desenvolvi- & society: A source book on research and mento e de interações C&T. Por vezes, practice. New York: Kluwer essas perspectivas correm os riscos de Academic/Plenum Publishers, p.49-89, 2000. reafirmar, ainda mais, uma visão AMORIM, A. C. R. O que foge do olhar das modernizadora da C&T na “resolução” reformas curriculares: nas aulas de Biologia, o professor como escritor das relações entre dos problemas ligados ao ambiente, tão a ciência, tecnologia e sociedade. Ciência & gosto dos pressupostos econômicos e Educação, Bauru, v. 7(1), p. 47-65, 2001. neoliberais que têm orientado a ANGOTTI, J. A. P.; AUTH, M. A. Ciência e globalização hegemônica. tecnologia: implicações sociais e o papel da Compartilhamos da abordagem educação. Ciência & Educação, Bauru, v. 7(1), teórica de Meneses (2004) e Sousa Santos p. 15-27, 2001. Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007
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