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Anfonio Flávio Moleira e

Tomaz Tadeu da Silvo jorgs.)


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Currículo, cultura e sociedade/ Antonio Flavio Barbosa
Moreira. Tomaz Tadeu da Salva (orgs.); tradução de Mana /
Aparecida Baptista - 6. ed. - São Paulo, Cortez, 2002.
Bibliografia
QBBKüo,
CULTURA
ISBN 85-249-0546-8
1. Cubículos. 2. Cubículos - Aspectossociais. 3. Cultura
ESOCIEDADE
4. Sociologia educacional 1.Moreira, Antonio Flavio Barbosa.
11.Salva, Tomaz Tadeu da
!
94-3403 CDD-375
6aedição
Índices para catálogo sistemático
1. Currículos : Educação 375
Capítulo l
SOCIOLOGIA E TEORIA CRÍTICA
1)0 CURA.ÍCUI.O: U.7U.A
INTRODUÇÃO
Antonio atavio Barbosa Mloreira
e Tonal Tadeuda Silvo
currículo há muito tempo deixou de ser apenas
uma área meramente técnica, voltada para questões rela-
tivas a procedimentos, técnicas, métodos. Já se pode falar
agora em uma tradição crítica do currículo, guiada por
questões sociológicas, políticas, epistemológicas. Embora
questões relativas ao ''como" do currículo continuem
importantes, elas só adquirem sentido dentro de uma
perspectiva que as considere em sua relação com questões
que perguntem pelo "por quê" das formas de organização
do conhecimento escolar.
Nessa perspectiva, o currículo é considerado um
artefato social e cultural. Isso significa que eje é colocado
na moldura mais ampla de suas determinaçõessociais,
de sua história, de sua produção contextual. O currículo
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não é um elemento inocente e neutro de transmissão
currículosemprefoi alvo da atençãode todosos que
buscavam entender e organizar o processo educativo es
desinteressadado conhecimentosocial. O currículo está
colar.No entanto,foi somenteno final do séculoXIX
implicado em relações de poder, o currículo transmite e no início deste, nos Estados Unidos, que um significativo
visões sociais particulares e interessadas,o currículo produz
número de educadores começou a tratar mais sistemati-
identidadesindividuais e sociais particulares.O currículo
camente de problemas e questões curriculares, dando início
não é um elemento transcendente e atemporal -- ele tem
a uma série de estudos e iniciativas que, em curto espaço
uma história, vinculada a formas específicas e contingentes
de tempo, configuraram o surgimento de um novo campo
de organização da sociedade e da educação.
Diferentes versões desse surgimento podem ser en-
Este capítulo constitui uma pequenaintrodução a
contradasna literatura especializada(Cremin, 1975; Seguel,
essatradição crítica e sociológica do currículo. Na primeira
1966; Franklin, 1974; Pinar & Grumet, 1981). Comum a
parte, fazemos uma breve incursão pela história dessa
todas elas, destaca-se, por parte dos superintendentes de
tradição, mostrando sua gênese e seu desenvolvimento. sistemasescolaresamericanose dos teóricos considerados
Na segunda parte, destacamosos temas centrais dessa
como precursores do novo campo, a preocupaçãocom os
perspectiva hoje. Mais que uma descrição exaustiva desses
temas e questões, essa segunda parte pretende ser apenas t processos de racionalização, sistematização e controle da
uma visão sintéticada forma como se estruturahoje o escola e do currículo. Em outras palavras, o .propósito
campo da análise crítica e sociológica do currículo. mais amplo dessesespecialistasparece ter sido planejar
''cientificamente'' as atividades pedagógicas e controla-las
de modo a evitar que o comportamento e o pensamento
1. EMERGÊNCIA E DESENVOLVIMENTO DA do aluno se desviassem de metas e padrões pré-definidos.
SOCIOLOGIA E DA TEORIA CRITICA DO A fim de melhor entender como tais intenções in-
CURRÍCULO formaram o desenvolvimento da nova especialização, apre
tentaremos uma breve descrição do contexto sócio-histórico
Focalizamos, nestaparte do presenteartigo, a emer- no qual ela emergiu.
gência de uma abordagem sociológica e crítica do currículo,
tanto nos Estados Unidos, onde o campo se originou e
desenvolveu,como na Inglaterra, onde pela primeira vez 2. O contexto americano na virada do século
se elegeuo currículo como foco central da Sociologia
da Educação. Após. a Guerra Civil, a economia americana passou
a ser dominada pelo capital industrial, sendo o sistema
de competição livre então prevalente substituído pelos
1. As origens do campo nos Estados Unidos monopólios. Para a produção em larga escala foi necessário
aumentar as instalações e o número de empregados. O
Mesmo antes de se constituir em objeto de estudo /
processo de produção tornou-se socializada e mais com-
de uma especialização do conhecimento pedagógico, o
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plexo, enquanto os procedimentos administrativos sofisti- rísticasde ordem, racionalidadee eficiência. Daí os es-
caram se e assumiram um cunho ''científico' forçosde tantoseducadorese teóricose o surgimentode
um novo campo de estudos (Moreira, 1992a, 1992b).
Uma nova concepção de sociedade,baseadaem novas
práticas e valores derivados do mundo industrial, começou
a ser aceita e difundida. Cooperaçãoe especialização,ao
3. As primeiras tendências
invés de competição, configuraram os núcleos de uma
nova ideologia. O sucesso na vida profissional passou a
O campo do currículo tem sido associado,tanto em
requerer evidências de mérito na trajetória escolar. Ou
suasorigens como em seu posterior desenvolvimento,às
sqa, novas credenciais, além do esforço e da ambição,
tornaram-se necessáriaspara se ''chegar ao topo" categoriasde controle social e eficiência social, conside-
radas úteis para desvelar os interesses subjacentes à teoria
A industrialização e a urbanização da sociedade, e à prática emergentes.Todavia, não se deve entender o
então em processo,impossibilitaram a preservaçãodo tipo novo campo como monolítico, já que outras intençõese
de vida e da homogeneidade
da comunidaderural. Além outros interessespodem ser identificados, tanto em suas
disso, a presençados imigrantes nas grandesmetrópoles, manifestações iniciais como nos estágios subsequentes.
com seus diferentes costumes e condutas, acabou por
ameaçar a cultura e os valores da classe média americana, Segundo Kliebard (1974), duas grandes tendências
protestante, branca, habitante da cidade pequena. Como podem ser observadasnos primeiros estudos e propostas:
conseqüência, fez-se necessário e urgente consolidar e uma voltada para a elaboraçãode um currículo que
promover um prometonacional comum, assim como res- valorizasseos interessesdo aluno e outra para a construção
taurar a homogeneidade em desaparecimento e ensinar às científica de um currículo que desenvolvesse os aspectos
crianças dos imigrantes as crenças e os comportamentos da personalidade adulta então considerados ''desejáveis
dignos de serem adotados. A primeira delas é representadapelos trabalhos de Dewey
e Kilpatrick e a segundapelo pensamentode Bobbitt. A
A escola foi, então, vista como capaz de desempenhar
primeira contribuiu para o desenvolvimentodo que no
papel de relevo no cumprimento de tais funções e facilitar Brasil se chamou de escolanovismoe a segundaconstituiu
a adaptação das novas gerações às transformações eco-
a semente. do que aqui se denominou de tecnicismo.
nómicas, sociais e culturais que ocorriam. Na escola,
considerou-se o currículo como o instrumento por exce- Pode-se dizer que as duas, em seus momentos iniciais,
lência do controle social que se pretendia estabelecer. representaram diferentes respostas às transformações so-
Coul2g,..assim.-à-esccllaÚçulcar os valores, as: condutas ciais, políticase económicaspor que passavao paíse
e os hábitos ''adequados". Nesse mesmo momento, a que, ainda que de formas diversas, procuraram adaptar a
preocupação com a educação vocacional fez-se notar, escola e o currículo à ordem capitalista que se consolidava.
evidenciandoo propósito de ajustar a escola às novas As duas tendências,juntamente com vestígios e revalo-
necessidades da economia. Viu-se como indispensável, rizações de uma perspectiva mais tradicional de escola e
em síntese, organizar o currículo e conferir-lhe caracte de currículo, dominaram o pensamento curricular dos anos
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vinte ao final da década de sessenta e início da década
pensamentoindutivo, a partir do estudo dos conteúdos ,
seguinte.Alguns autores,como Harold Rugg e Ralph que correspondiam às estruturas das diferentes disciplinas €
Tyler, procuraram superar os problemas encontrados em curriculares.
ambas e incorporar suas contribuições em sínteses inte-
gradoras, nem sempre bem-sucedidas. As mudanças ocor- A ênfase na estrutura, bastante associada ao nome
ridas nesse período conduziram, ainda que não mecani- de Jerome Bruner, levantou críticas (Apple, 1972; Kliebard,
camente, a predomínios, conflitos e alianças temporárias, 1965) e parece não ter contribuído, de fato, para a
que configuraram,
então,as feiçõesdos processosde revolução pedagógica que se pretendeu desenvolver a
escolarização e de desenvolvimento curricular (Kliebard partir das propostas e reformas curriculares. Foi, ao menos
1986). em parte, neutralizada pelos problemas que desafiaram a
sociedadeamericana nos anos sessenta.Racismo, desem-
prego, violência urbana, crime, delinqüência, condições
4. O desenvolvimento posterior precáriasde moradia para os trabalhadores,bem como o
envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã
l Como principais marcosno desenvolvimentodo cam- representaram motivo de vergonha para os que desejavam
po, do início da décadade vinte ao final da de cinqüenta, ver a riqueza americanamais bem distribuída e sonhavam
podemos citar: a publicação do 26' Anuário da fVafíona/ com a concretização de uma sociedade mais democrática,
Socíe» /or f/ze Srudy of Educariam; a conferência sobre justa e humana.A revolta contra todos essesproblemas
teoria curricular na Universidade de Chicago em 1947;.a
levou a uma série de protestose ao questionamentodas
publicação,
em 1949,do livro Prl/zc@'íos
f?físicos
de instituições e dos valores tradicionais.
Carrüu/o e Ensino, escrito por Ralph Tyler; e, finalmente,
o movimento da estrutura das disciplinas, desenvolvido Um sentimento de crise acabou por instalar-se na
mais intensamente após o lançamento do Sputnik pelos sociedade:foi uma crise que chegou a envolver mesmo
russos em 1957. o significado e o sentido da vida (Silberman, 1973).
Aproximando-se o final dos anos cinqüenta, os ame- Desenvolveu-se, como consequência, uma contracultura
ricanos culparam os educadores, principalmente os pro- que enfatizava prazeres sensuais, liberdade sexual, grati-
gressivistas, pelo que julgaram ser sua derrota na corrida ficação imediata, naturalismo, uso de drogas, vida comu-
espacial. Insistiram, então, na necessidadede se restaurar nitária, paz e libertação individual. Inevitavelmente,as
a supostamenteperdida qualidade da escola. A ajuda instituições educacionais tornaram-se alvos de violentas
federal foi solicitada e recursos foram alojados para a críticas. Denunciou-se que a escola não promovia ascensão
reforma dos currículos de Ciências,Matemática,Estudos social e que, mesmo para as crianças dos grupos domi-
Sociais etc. Novos programas, materiais, estratégias e nantes, era tradicional, opressiva, castradora, violenta e
propostas de treinamento de professores foram elaborados inelevante. Seria necessáriotransforma-la e democratizá-la
e implementados. A intenção mais ampla, subjacente aos ou então aboli-la e substituí-la por outro tipo de instituição
esforços, era enfatizar a redescoberta,a investigação e o (Moreira, 1989).
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Após a vitória de Nixon, uma onda de conservado- seu caráter instrumental,apolítico e ateórico, bem como
rismo procurou neutralizar as idéias e os valores ''sub- sua pretensão de considerar o campo do currículo como
versivos'' dos anos sessenta.A linguagem da eficiência ciência. Rejeitavam, em outras palavras, as perspectivas
e da produtividade voltou a assumir papel destacadono behaviorista e empirista que caracterizavam a ciência
cenário (Shor, 1986). Nesse momento, o discurso poda social americana e a pesquisa em educação (Van Manem,
1978)
gótico resumiu-se às seguintes tendências: idéias tradi-
cionais que defendiam uma escola eficaz, idéias humanistas Tratava-se de reconceituar o campo. Enfatizando que
que pregavam a liberdade na escola e idéias utópicas que a compreensão
da naturezaé mediatizadapela cultura, o
sugeriam o fim das escolas. Representando diferentes grupo concebia reconceituação como o esforço por desvelar
versões do ideário liberal, nenhuma questionava mais a tensão entre natureza e cultura, por descobrir as partes
profundamente a sociedade capitalista que se consolidara, da cultura não guiadas pelas leis da natureza,assim como
nem o papel da escola na preservação dessa sociedade. as partes da natureza que não eram necessariamente
obstáculos à ação humana, mas sim produtos do que os
Não é difícil compreenderpor que autoresinconfor-
homens fizeram e que poderiam, portanto, desfazer. No
mados com as injustiças e as desigualdadessociais, in-
caso específicodo currículo, a intençãocentral era iden-
teressadosem denunciar o papel da escola e do currículo tificar e ajudar a eliminar os aspectos que contribuíam
na reprodução da estrutura social e, ainda, preocupados
para restringir a liberdade dos indivíduos e dos diversos
em construir uma escola e um currículo afinados com os
grupos sociais (Penar& Grumet, 198]).
interesses dos grupos oprimidos passaram a buscar apoio
em teorias sociais desenvolvidas principalmente na Europa Duas grandes correntes desenvolveram-se a partir da
conferência: (a) uma associada às Universidades de Wis-
para elaborar e justiülcar suas reflexões e propostas. Desse
consin e Columbia. mais fundamentada no neomarxismo
modo, o neomarxismo,a teoria crítica da Escola de
c na teoria crítica, cujos representantes mais conhecidos
Frankfurt, as teorias da reprodução, a nova Sociologia da
no Brasil são Michael Apple e Henry Giroux; e (b) outra
Educação inglesa, a psicanálise, a fenomenologia, o in-
associada à tradição humanista e hermenêutica mais pre-
teracionismo simbólico e a etnometodologia começaram
sente na Universidade de Ohio, cujo principal representante
a servir de referencial a diversos teóricos preocupados
pode ser considerado William Penar.
com questões curriculares.
Os reconceitualistas,como se pode observar,não
formavam um bloco único. Sérias divergências os sepa-
5. A emergência de uma nova tendência ravam. Para os neomarxistas, os humanistas secundariza-
vam a basesocial e o caráter contingencial da experiência
Em 1973, diversos especialistas em currículo parti- individual. Estes últimos, por sua vez, acusavamos pri-
ciparam de uma conferência na Universidade de Rochester, meiros de subordinar a experiência humana à estrutura
dando início a uma série de tentativas de reconceituação de classes,dela eliminandoa especificidade,a inventivi-
do campo. A despeito das diferenças entre eles, todos dade, bem como a capacidade de resistência e de.trans-
cendência.
rejeitavam a tendência curricular dominante, criticando
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Ao final dos anos setenta novas tendências ajudavam tamentode Sociologiada Educaçãodo Instituto de Edu-
a compor o campo do currículo, favorecendo a análise e cação da Universidade de Londres que conceberama
a compreensão de outras questões. Não mais se superva- Sociologia da Educação como uma sociologia do conhe-
lorizavam o planeamento, a implementação e o controle cimento escolar, ou sda, como uma sociologia do currículo.
de currículos. Não mais se enfatizavam os objetivos A matriz desses esforços recebeu o nome de Nova So-
comportamentais.
Não mais se incentivavaa ãdoçãode ciologia da Educação (NSE).
procedimentos ''científicos'' de avaliação. Não mais se
considerava a pesquisa educacional quantitativa como o
melhor caminho para se produzir conhecimento.Deslo- 6. A emergência da NSE na Ingtaterra
caram-se e renovaram-se, em síntese, os focos e as
preocupaçoes. Na virada do século, enquanto nos Estados Unidos
e na Europa Continental a Sociologia difundia-se com
Dentre os reconceitualistas,
foram os autoresasso-
relativa rapidez, na Grã-Bretanha seu desenvolvimento
ciados à orientação neomarxista os precursores, nos Estados
processava-secom bastantelentidão. Mesmo assim, um
Unidos, do que se convencionou chamar de Sociologia
grupo de acadêmicos,inspirados em sua maioria pela
do Currículo, voltada para o exame das relações entre
obra de Fréderic Le Play, fundou a Socio/oglca/ SocíeO.
currículo e estrutura social, currículo e cultura, .currículo
Criou tambémo Instituto de Sociologia e passoua publicar
e poder, currículo e ideologia, currículo e controle social
por muitos anos a revista Socio/ogfca/ Revíew. Nessa
etc. Reitere-se a preocupação maior do novo enfoque:
ocasião, o único centro acadêmico de estudos sociológicos
entender a favor de quem o currículo trabalha e como
era a Lottdon School of Economias (LSE).
fazê-lo trabalhar a favor dos grupos e classesoprimidos.
Para isso, discute-seo que contribui, tanto no currículo Durante o período de 1950-1980 novos rumos teóricos
formal como no currículo em ação e no currículo oculto, e metodológicos transformaram a feição do ensino e da
para a reprodução de desigualdadessociais. Identificam-se pesquisa de Sociologia na Grã-Bretanha. A base institu-
e valorizam-se,
por outrolado,as contradições
e as cional da disciplina ampliou-se,o que facilitou sua ex-
resistências presentes no processo, buscando-seformas de pansão na educação secundária e na universidade, apesar
desenvolver seu potencial libertador. da rejeição inicial por parte de alguns renomados centros.
Oxford e Cambridge, por exemplo, não ofereceram cursos
Intenções similares ocuparam a atenção, mais ou
de Sociologia até 1955 e 1961, respectivamente (Heath
menos na mesma ocasião, de sociólogos britânicos que,
& Edmondson, 198]).
sob a liderança de Michael Young, se esforçaram por
definir novos rumos para a Sociologia da Educação. O gradual abandono do .H!!!cionulisina-estrutural, que
Enquanto nos EstadosUnidos uma análise sociológica do após a SegundaGuerra Mundial se mostravaincapaz de
currículo caracterizou os estudos de professores mais dar conta tanto do surgimentocomo da permanênciade
ligados a Departamentos de Currículo e Instrução, na crises económicas, sociais e políticas na Grã-Bretanha,
Inglaterra foram principalmente os sociólogos do Depar- incentivou a busca dos novos rumos acima mencionados.
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Dentre as novas fontes, destacaram-se a fenomenologia, g11gndel!çy4ntanlçi!!QS, na metade do século, que eviden-
a etnometodologia, o interacionismo simbólico e um mar- ciavam o desperdício em educação.
xismoHreelaborado, cujas influências se fizeram sentir
tanto nos estudosmais gerais de Sociologia,como nas A ênfase no desperdício e nas disfunções .ligava-se,
complementarmente, à busca de eficiência em educação:
diferentes áreas de especialização (Abrams, Deem, Finch
& Rock, 1981). desejava-se garantir o aproveitamento de fato dos recursos
humanos disponíveis. As estruturas elitistas da educação
Principalmentea partir do início da décadade ses- não mais se justificavam, quer em termos económicos,
senta,- fortaleceram-se os elos entre as mudanças na So-
quer em termos políticos. A desigualdade em educação
ciologia e a difusão dos movimentos sociais em defesa era indubitavelmente injusta e ineficiente. Daí a tentativa,
dos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais
por parte dos sociólogos, de interferir, através de seus
etc. Os sociólogos voltaram-se então para o exame da estudos, na política educacional vigente. Daí, ainda, o
relação entre conhecimento e ação e para a necessidade foco insistente na relação entre classe social e oportunidade
de eliminar do trabalho sociológico prevalente seus as- educacional (Young, 1984).
pectos patriarcais e sexistas.
A partir dos anos sessenta,o intenso desenvolvimento
No início dos anos setenta assistiu-se ao desapare-
da Sociologia da Educação pode ser atribuído aos seguintes
cimento deHlnitivo do consensoteórico e metodológico
fatores: (a) mudanças na formação de professores, cujo
antes dominante. Resumidamente,pode-se dizer que de
curso passou de três para quatro anos, incluindo-se a
1950 a 1980 se verificou o crescimento tanto da pesquisa
disciplina em pauta nos conteúdosdo ano adicional; (b)
social aplicada como do ensino de uma Sociologia reno-
criação de cursos de pós-graduaçãode Sociologia da
vada. Ou seja, a Sociologia britânica popularizou-se, ex-
Educação; (c) oferecimento de cursos da disciplina na
pandiu-se e libertou-se, aos poucos, da tutela da Sociologia
americana funcionalista. Ope/z t/rziversfQ para professores formados; e (d) concessão
de recursos para pesquisas e bolsas para estudos pós-gra-
Quanto à Sociologia da Educação, mais de perto duados pelo Conselho de Pesquisa em Ciência Social
concernente com os propósitos deste artigo, pode-se dizer (Young, 1984).
que até os anos cinqüenta apresentou desenvolvimento
incipiente, apesarda influência de Marx, Weber e Durkhein A Sociologia da Educação inscreveu-se, então, no
nas análises sociológicas da educação (Karabel & Halsey, currículo da formação de professores. As novas influências
1977). Segundo Bernstein (1975), os debates dos anos teóricas, que afetaram os rumos da Sociologia Geral,
cinqüenta focalizavam tanto a estrutura organizacional da afetaram também a Sociologia da Educação ensinada aos
escola como as origens sociais da inteligência e sua futuros mestres.Uma nova Sociologia da Educaçãoflo-
relação com o desempenho escolar, tendo como pano de resceue estabeleceucomo seu principal objeto de estudo
fundo a preocupação simultânea com as necessidades da o currículo escolar, aproximando-se, assim, da Sociologia
sociedade industrial e com maior justiça social. A intenção do Conhecimento.
era demonstrar,mais que compreender,as fontes institu- A NSE constituiu-se na primeira corrente sociológica
cionais da desigualdade em educação, o que explica os de fato voltada para o estudo do currículo. O grande
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marco de sua emergênciatem sido consideradoo livro tuiçõeseducacionais.A Teoria Curricular não pode mais,
editado por Young, KnowZedge and CoPzfro/. ;Vew l)írec- depois disso, se preocupar apenas com a organização do
conhecimento escolar, nem pode encarar de modo ingênuo
flo/zsFJor f/ze SocloZogy of Edacarío/z (1971), no qual
foram reunidos artigos de diversos autores, dentre os quais e não-problemático o conhecimento recebido. O currículo
se destacamos de BasalBernstein,Nell Keddie, Pierre existente,
isto é, o conhecimento
organizado
para ser
Bourdieu.e Geoffrey Esland e o que se tornou clássico transmitido nas instituições educacionais,passaa ser visto
na Sociologia do Currículo, escrito pelo próprio Young, não apenas como implicado na produção de relações
An Approach to the Study of Curricula as Socialty assimétricasde poder no interior da escola e da sociedade,
mas também como histórica e socialmentecontingente.
Organized Knowledge".
O currículo é uma área contestada,é uma arenapolítica.
Tanto os primeiros textos da NSE como seus des- É para um breve mapeamento das questões e temas que
dobramentos permanecem até hoje insuficientemente di- continuam centrais na Teoria Crítica e na Sociologia do
vulgados no Brasil (Silva, 1990). Contudo, ainda que Currículo que nos voltamos agora. Organizamos esse
poucas análises dessa abordagem, bem como reduzido mapeamentoem torno de três eixos: ideologia, cultura,
número de artigos de Young tenham sido traduzidos e poder.
publicados entre nós, foi considerávela influência da J
NSE no desenvolvimento inicial e nos rumos posteriores
da Sociologia do Currículo, tanto na Inglaterra como nos 1. Currículo e ideol,agia
Estados Unidos. Suas formulações têm constituído refe-
rência indispensável para todos os que se vêm esforçando Desde o início da teorização crítica em educação,
por compreender as relações entre os processosde seleção, ideologia'' tem sido um dos conceitoscentraisa orientar
distribuição, organizaçãoe ensino dos conteúdoscurricula- a análise da escolarização, em geral, e a do currículo,
res e a estrutura de poder do contexto social inclusivo. em particular. O ensaio de Louis Althusser (1983), ''A
Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de Estado'' marca,
naturalmente, o início da preocupação com a questão da
11. UMA VISÃO SINTÉTICA DOS TEMAS
ideologia em educação. Aquele ensaio rompia com a
CENTRAIS DA ANÁLISE CRITICA E
noção liberal e tradicional da educação como desinteres-
SOCIOLÓGICA DO CURRÍCULO sadamente envolvida com a transmissão de conhecimento
e lançava as bases para toda a teorização que se seguiria.
O que se pode aprenderdessabreve excursãopela
Fundamentalmente, Althusser argumentava que a edu-
história da teoria crítica e da Sociologia do Currículo é
que o conhecimento corporiHtcadocomo currículo educa cação constituiria um dos principais dispositivos através
cional não pode ser mais analisado fora de sua constituição do qual a classe dominante transmitida suas idéias sobre
social e histórica. Não é mais possível alegar qualquer o mundo social, garantindo assim a reprodução da estrutura
social existente. Essas idéias seriam diferencialmente trans-
inocência a respeito do papel constitutivo do conhecimento
organizadoem forma curricular e transmitido nas insti- mitidas, na escola, às crianças das diferentes classes: uma
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visão de mundo apropriada aos que estavam destinados se baseava nessa noção (e sua segunda parte, raramente
a dominar, outra aos que se destinavam às posições sociais referida, apresentava, de fato, uma noção extremamente
subordinadas. Essa transmissão diferencial seria garantida sofisticadade ideologia, ainda não superada),mas o
pelo fato de que as criançasdas diferentes classessociais escassotratamento dado ao conceito na primeira parte do
saem da escola em diferentes pontos da carreira escolar: ensaio podia levar a essa compreensão. A compreensão
os que saem antes ''aprenderiam'' as atitudes e valores do conceito de ideologia como consciência falsa levava
próprios das classessubalternas,os que fossem até o fim facilmente à sua formulação como uma questão episte
seriam socializados no modo de ver o mundo próprio das mológica centrada na dicotomia falso/yç!!!!!!e!!g.ql4Ê...a
classes dominantes. Além disso, Althusser era explícito despia qgl11çlê&as.suasmot@es-políticas. Naturalmente,
a respeito dos mecanismos pelos quais essas diferenciadas 'ê resumir as inúmeras interpretações ligadas ao
visões de mundo eram transmitidas. De forma geral, essa conceito de ideologia numas poucas proposições, mas
transmissão da ideologia estaria centralmente a cargo certamente uma coisa relativamente clara na literatura
daquelas matérias escolares mais propícias ao ''ensino' educacional
é o vínculoque a noçãode ideologiatem
dê idéias sociais e políticas: História, EducaçãoMoral, com poder e interesse.
Estudos Sociais, mas estariam presentes,também, embora J Essa perspectiva permite que escapemos aos impasses
de forma mais sutil, em matérias aparentemente menos
colocados pelo equacionamento de ideologia como co-
sujeitas à contaminação ideológica, como Matemática e nhecimento falso e não-ideologia como conhecimento ver-
Ciências.
dadeiro,permitindo também que nos afastemosda noção
Embora tenha sido um marco importante e continue representacionalde conhecimento e linguagem implícita
sendo uma referência central na teorização crítica em naquele equacionamento. A ideologia, nessa perspectiva,
educação, o ensaio de Althusser e seus pressupostos foram está relacionada às divisões que organizam a sociedade
objeto de crítica e refinamento nos anos que se seguiram e às relaçõesde poder que sustentamessasdivisões.O
à sua publicação.
Por um lado, houveuma sériede que caracteriza a ideologia não é a falsidade ou verdade
contestaçõesconceituais à própria noção de ideologia das idéias que veicula, mas o fato de que .Bs41..Hébs
formulada por Althusser. Por outro, inúmeros estudos são interessadas.transmitem uma visão do mundo social
empíricos sobre o funcionamento da escola e da sala de vinculada aos interessesdos grupos situados em uma
aula ajudaram a aumentar consideravelmente a nossa posição de vantagem na organização social. A ideologia
compreensão do papel da ideologia no processo educa- é essencial na luta desses grupos pela manutenção das
cional, uma compreensãoque nos levou bastantealém vantagens que lhes advêm dessa posição privilegiada. E
do esboço de Althusser. rny.i.tQ..mç!!gs.
importante saber se as idé@s envolvidas na
Em primeiro lugar, o refinamento conceitual foi na ideologiasãafalsas ot!,,verdadeiras-e-.muito mais importante
direçãode afastara idéia de ver a ideologiacomo falsa saber que vantagens.. relativas e que .relaçõesde--poda
consciência ou como um conjunto de idéias falsas sobre elas justificam...ou-legitimam. A pergunta correta não é
a sociedade.
E verdade
queo ensaiode Althussernão saber se as idéias veiculadas pela ideologia correspondem
22 23
à realidade ou não, mas saber a quem beneficiam. Isto
idéias, uma construção logicamente consistente. Em vez
nos leva ao segundoponto conceitualimportante'
disso, ela é feilL de flgglDentos..dd.materiais de-diferentes
Ligar o conceitode ideologiaa relaçõesde poder r natyrezag,.Élç-di@i:entes espécies de='conhecimentos". Por
e a questões
de interesse
significacontestar
a noçãode último, a ideologia não age sem resistênciaspor parte
conhecime!!!g..çgmQ.representação.da realidade implícita daqueles aos quais é dirigid:i A ideologia é interpretada
na perspectiva
''epistemológica''
de idem.lpgb.
Em uma de formas diferentes daquelas intencionadas e dentre essas
pêBpeêtiíiãlteiiiatii,a: a linguagem -- na qual. o conhe- formas -- embora não todas algumas constituem uma
cimento se expressa não é tanto um meio transparente resistência e uma luta efetivas contra a ideologia. Nesse
e neutrode representação de uma realidadeque ''existe'' contexto, foi extremamente importante o desenvolvimento
independentementedela, mas um dispositivo ativamente do conceitode hegemonia,
a partir do pensamento
de
implicado na constituiçãoe definição realidadejCõn' Antonio Gramsci, que chama a atenção exatamente para
seqüentemente, nessa perspectiva, a ideologia é um dos o aspecto contestado do terreno ideológico.
modos pelos quais a linguagem constitui, produz, o mundo
Em terceiro lugar, nesseprocessode refinamentodo
social de uma certa forma. Essa compreensãoajuda a conceito. os mecanismos de transmissão foram sendo
superar o impasse que decorre da aproximação de ideologia vistos como muito mais sutis. No campo educacional,
a conhecimento falso da realidade e de não-ideologia a
por exemplo,tendia-sea ver a ideologiacomo ''cristali-
conhecimento ''verdadeiro". Obviamente, isso tem impli-
namente'' transmitida por meios como os livros didáticos
cações não apenaspara uma compreensãomodificada do
e pelas aulas dadas pelos professores. Nessa compreensão,
papel da ideologia no currículo, mas também para as a ideologia corporificava-se predominantementeem idéias.
próprias noçõesde conhecimentocomo representação,que
Em contraposição, passou-se cada vez mais .a ver a
constituem toda a tradição educacional.
i(]gQIQglg:...ÇQlUotenvolvida ag..
U4tl;liêis uma
Nessa primeira fase da teorização crítica, havia uma idéia que se deve ao próprio Althusser. A ideologia perde
tendência a ver o campo ideológico como muito pouco aqui sua conotaçãoidealista, para ser vista como tendo
contestado. A ideologia era vista mais como imposição, existência material. Ela está implícita em rituais, práticas,
a partir de cima, de certasidéias sobrea sociedadee o dispositivos materiais como ananjos espaciais etc., isso
mundo. Um refinamento dessa visão amplia-se em pelo para não falar da própria materialidadedos signos e da
menos três dimensões. Em primeiro lugar, a .ideologia linguagem.
diHlcilmente teria efeitos se não contasse com Ap1lB.
Estamos longe de ter esgotado o potencial analítico
forma de consentimentodos envolyidQS,isto é, a ideologia
e político do conceito de ideologia, assim como de ter
não é totalmêntêêTã15õiãdia partir de cima, com materiais
esgotadoa compreensãoque dele podemos ter. Ele continua
''originais'', mas se aproveita de materiais preexistentes
a ser central na teorização educacional crítica e, sobretudo,
na cultura e na sociedade,
em geral pertencentes
ao
na teorização crítica sobre currículo. Ainda temos muito
domínio do senso comum. Em segundo lugar, a ideologia
a compreenderê aprender sobre as formas pelas quais o
Uão é um !ççjdcLuniforme, homogêneo e coerente de
conhecimento transmutado em currículo escolar atua para
24 25
produzir identidadesindividuais e sociais no interior das apenascomo correias transmissorasde uma cultura pro-
instituições educacionais.A ideologia certamenteestá no duzida em um outro local, por outros agentes,mas são
centro desse processo. Nesse sentido, falar de currículo J
partes integrantes e ativas de um processo de produção
implica necessariamente
levantara questãoda ideologia. e criaçãode sentidos,de significações,
de sujeitos.O
currículo pode ser movimentado por intenções oficiais de
transmissãode uma cultura oficial, mas o resultado nunca
2. Currículo e cultura será o intencionado porque, precisamente, essa transmissão
se dá em um contexto cu/fura/ de significação atavados
Se ideologia e currículo não podem ser vistos sepa- materiais recebidos.A cultura e o cultural, nessesentido,
rados na teorização educacional crítica, cultura e currículo não estão tanto naquilo que se transmite quanto naquilo
constituem um par inseparável já na teoria educacional que se /az com o que se transmite.
tradicional. Nessa visão, que é a educação e, em particular,
Obviamente, a visão tradicional da relação entre
o currículo, senão uma forma institucionalizada de trans-
cultura e educação/currículo não vê o campo cultural
mitir a cultura de uma sociedade?
como um terreno contestado. Na concepção crítica, não
A teorizaçãocrítica, de certa forma, continua essa existe uma cultura da sociedade,unitária, homogêneae
tradição. A educação e o currículo são vistos como universalmente aceita e praticada e, por isso, digna .de
profundamente envolvidos com o processo cultural. En- ser transmitida às futuras geraçõesatravésdo currículo.
tretanto, há diferenças importantes a serem enfatizadas. Em vez disso, a cultura é vista menos como uma coisa
De forma geral,a educação
e o currículoestão,sim, e mais como um campo e terreno de luta. Nessa visão;
envolvidos com esse processo,mas ele é visto, ao contrário a cultura é o terreno em que se enfrentamdiferentese
do pensamento convencional, como fundamentalmente po- confjitantes concepçõesde vida social, é aquilo pelo qual
lítico. se luta e não aquilo que recebemos.
Na tradição crítica, a cultura não é vista como um Assim, nessaperspectiva,a idéia de cultura é inse-
conjunto inerte e estático de valores e conhecimentos a parável da de grupos e classes sociais. Em uma sociedade
serem transmitidos de forma não-problemática a uma nova dividida, a cultura é o terreno por excelênciaonde se dá
geração, nem ela existe de forma unitária e homogênea. a luta pela manutençãoou superaçãodas divisões sociais.
Em vez disso, o currículo e a educação estão profundamente O currículoeducacional,
por suavez,é o terrenoprivi-
envolvidos em uma política cultural, o que significa que legiado de manifestação desse conflito. O currículo, então,
são tanto camposde produçãoatavade cultura quanto não é visto, tal como na visão tradicional, como um local
campos contestados. de transmissão de uma cultura incontestada e unitária,
Em contraste com o pensamento convencional sobre mas como um campo em que se tentará impor tanto a
a relaçãoentrecurrículoe cultura,a tradiçãocríticavê definição particular de cultura da classeou grupo domi-
o currículo como terreno de produçãoe criação simbólica, nante quanto o conteúdo dessa cultura (Bourdieu, 1979).
cultural. A educaçãoe o currículo não atuam, nessavisão, Aqui[o que na visão tradicional é visto como o processo
26 27
submetidos .à-vontade--e-ao..arbítrio- de .outros. Na visão
de continuidadecultural da sociedadecomo um todo, é
crítica, o..p!)der se manifesta através das linhas divisórias
visto aqui como processode reproduçãocultural e social
das divisões dessa sociedade. que separam,.o! dífêfêntês' grupõr'5õéiais "éitj:te'amos fje
+
classe, etnia: g$nerg..gtç: Essas divisões constituem tanto
Essa perspectiva da cultura como um campo con- a origem quantoo resultadode relaçõesde poder.
testado e ativo tem implicações importantes para a teoria E nessaperspectivaque o currículo estácentralmente
curricular crítica. Se combinamosessa visão com aquela
envolvido em relações de poder. ,Como vimos acima,
que questiona a linguagem e o conhecimento como re- quando discutimos os conceitos de ideologia e cultura:..=
presentação e reflexo da "realidade'', somos obrigados a conhecimento corporiüicado no currículo é tanto o resultado
de relações qg poaêíãüãntã' êõnÊtituid(ii: Poíiim
\
rejeitar a visão convencional do currículo que o vê como
um veículo de transmissão do conhecimento como uma jàjjjÕ'j:jj;;;iii;Íi;'êiãiianto definição "oficial" daquilo que
''coisa", como um conjunto de informações e materiais conta como conhecimento válido e importante, expressa
inertes. Nesse entendimento. o currículo não é o veículo os interesses dos grupos e classes colocados em vantagem
de algo a ser transmitido e passivamenteabsorvido, mas em relações de poder. Desta forma, o currículcué expressão
o terreno em que ativamentese criará e produzirá cultura. das relações jggi.ais .ge.poder. Por outro lado, apesar de
O currículo é, assim,um terreno de produção e de política
cultural, no qual os materiaisexistentesfuncionam como
t seÜ aspecto contestado, o currículo, ao expressar essas
relações de poder, ao se apresentar, no seu aspecto
matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de con- ''oficial", como representação dos interesses do poder,
testação e transgressão. constitui identidades individuais e sociais.que.ajudam a
reforçar as relaçõesjde.pQderaexistentes,fazendo com que
og'!iiiFõi';iiGugados' continuem subjugados.O currículo
3. Currículo e poder está, assim, no centro de relações de poder. Seu aspecto
contestado não é demonstração de que o poder não existe,
Se existe uma noção central à teorização educacional mas apenas de que o poder não se realiza exatamente
e curricularcrítica é a de poder. E a visão de que a conforme suas intenções.
educação e o currículo estão profundamente implicados Reconhecer que o currículo está atravessado por
em relações de poder que dá à teorização educacional relações de poder não significa ter identificado essas
crítica seu caráterfundamentalmente
político. Isso não relações. Grande parte da tarefa da análise educacional
quer dizer que a conceituaçãodaquilo que constitui o crítica consiste precisamente em efetuar essa identinlcação
poder, no contexto da educaçãoe do currículo, seja uma E exatamente porque o poder não se manifesta de forma
questão facilmente resolvida. tão cristalina e identiHlcável que essa análise é importante.
No caso do currículo, cabe perguntar: que forças fazem
Para não entrar em longas e intermináveis discussões
conceituais sobre o poder, é suficiente afirmar aqui que com que o currículo oficial seja hegemónico e que forças
fazem com que essecurrículo aja para produzir identidades
o poder se manifestaem relaçõesde poder, isto é, em
sociais que ajudam a prolongar as relaçõesde poder
relações sociais em que certos indivíduos ou grupos estão f
29
28
existentes? Essasforças vão desde o poder dos grupos e as preocupações e problemáticas da teorização educacional
classes dominantes corporificado no Estado -- uma fonte crítica. Entretanto,há outras questõese outros temas
central de poder em uma educação estatalmente controlada importantes que ampliam e estendem o alcance desses
quanto nos inúmeros atos cotidianos nas escolas e
conceitos. Mencionamos, a seguir, apenas alguns dentre
salas de aula que são expressõessutis e complexas de muitos que mereceriam ser considerados.
importantes relações de poder. Nesse sentido, é importante
Um desses conceitos é o de currículo oculto. Esse
não identificar o poder simplesmentecom pessoasou ates
legais, o que poderia levar a negligenciar as relações de conceito, criado para se referir àqueles aspectos da ex-
poder inscritas nas rotinas e rituais institucionais cotidianos. periência educacional não explicitados no currículo oficial,
formal, tem sido central na teorização curricular crítica.
Isso transforma a tarefa da teorização curricular
crítica em um esforçocontínuo de identificaçãoe análise Apesar de certa banalizaçãodecorrente de sua utilização
das relaçõesde poder envolvidasna educaçãoe no freqüente e fácil, ele continua importante na tarefa de
compreendero papel do currículo na produção de deter-
currículo. Quais são as relações de classe, etnia, gênero,
minadostipos de personalidade.
Entretanto,ao atribuir a
que fazemcom que o currículosejao que é e que
produza os efeitos que produz? Qual o papel dos elementos força e o centro desse processo àquelas experiências e
da dinâmica educacional e curricular envolvidos nesse J àqueles ''objetivos" não-explícitos, o conceito também
processo? Qual o nossopapel, como trabalhadores culturais contribuiu para, de certa forma, ''absolver" o currículo
oficial e formal de sua responsabilidade
na formaçãode
da educação, nesse processo? Saber que o poder não é
apenasum mal, nem tem uma fonte facilmente identifi- sujeitos sociais. E necessárioreintegrar o currículo oficial
cável, torna, evidentemente, essa tarefa mais difícil, mas à análise do papel do currículo na produção e reprodução
cultural e social, ao lado, evidentemente,do currículo
talvez menos frustrante, na medida em que sabemos que
oculto.
o objetivo não é remover o poder de uma vez por todas,
mas combatê-lo, sempre. Essa luta levará não a uma E central a essa tarefa de investigação do currículo
situação de não-poder, mas a relações de poder transfor- oficial uma perspectivaque tenha um foco histórico.A
madas.,O currículo, como campo cultural, como campo contingência e a historicidade dos presentes arranjos cur-
de construção e produção de significações e sentido, riculares só serão postas em relevo por uma análise que
torna-se, assim, um terreno central dessa luta de trans- flagre os momentos históricos em que essesarranjos foram
formação das relações de poder. concebidos e tornaram-se ''naturais". Desnaturalizar e his-
toricizar o currículo existente é um passo importante na
tarefa política de estabelecerobjetivos alternativose ar-
4. Outros temas e questões: os antigos e os
ranjos curriculares que sejam transgressivosda ordem
emergentes
curricularexistente.É por isso que uma históriado
currículo deve ser parte integrante de uma Teoria Crítica
Ideologia, cultura e poder, em suas relações com o do Currículo dedicada à construçãode ordens curriculares
currículo, são assim conceitos centrais e que sintetizam alternativas.
30 31
l
A história do currículo tem sido importante na tarefa jovens. Apesar do profundo envolvimento implicado nas
de questionar a presenteordem curricular em um de seus economias do afeto e do desejo utilizadas pela ''cultura
pontos centrais: a. disciplinaridade. Apesar de todas as popular", o currículo tem ficado solenementeindiferente
transformações importantes ocorridas na natureza e na a esseprocesso.Embora pouco saibamossobre como essa
extensão da produção do conhecimento, o currículo con- situação pode ser modificada, podemos esperar que essa
tinua fundamentalmentecentrado em disciplinas tradicio- questão logo se torne uma das mais importantes no âmbito
nais. Essa disciplinaridade constitui, talvez, o núcleo que da teorização educacional crítica. Para isso é necessário
primeiro deva ser atacadoem uma estratégia de. descons- que os analistascríticos se tornem menos ''escolares''e
trução da organização curricular existente. Tem-se veicula- mais ''culturais"
do, com insistência, nesse contexto, o papel da chamada Em segundo lugar, as novas tecnologias e a infor-
;interdisciplinaridade". Apesar de sua aparência transgres- mática ilustram as profundas transformaçõesque se estão
siva, é preciso'reconhecerque o movimento da interdis- dando na esfera da produção do conhecimento técnico/ad
ciplinaridade supõe a disciplinaridade, deixando, assim, ministrativo, transformações que têm impl.içaçõeslanjo
intacto exatamente o fundamento da presente estrutura para q..!ontelidQ= da conhecimento quanto para sua forma
curücular. Seria necessário,talvez, um movimento mais de transmissão Não incorporar uma compreensãodessas
radical para minar com mais profundidade essa estrutura. transformações à nossa teorização curricular crítica signi-
Seria central a esse movimento reconhecer a disciplina- ficará entregar a direção de sua incorporação à educação
ridade da presente estrutura curricular não como a tradução e ao currículo nas mãos de forças que as utilizarão
lógica e racional de campos de conhecimento, mas como fundamentalmentepara seus objetivos mercadológicos e
q..!1lsçrjçãq..g..rscontextualização-desses-campo!-em. um de preparação de uma mão-de-obra adequada aos fins de
contexto em que processos de regulação moral e controle acumulação e legitimação. A teoria educacional crítica
tornam-se centrais.
não pode ficar indiferente a esse processo,nem tampouco
Não é apenasa estrutura disciplinar .do currículo que pode rejeita-lo em nome de um certo humanismoanti-
parece constituir um daqueles elementos tão ''naturais" a tecnicista. Em vez disso, é importante compreendê-lo e
ponto de ser inatacável. As noções de conhecimento, encontrarformasde utiliza-lo de uma forma que seja
características das experiências curriculares presentemente compatível com nossos olÚetivos de democracia, igualdade
propostas aos/às estudantes estão, também, em mais de e Justiça social.
uma dimensão, em descompasso com as modificações As profundas relações entre currículo e produção de
sociais, com as profundas transformaçõesna natureza e identidades sociais e individuais, tantas vezes destacadas
extensão do conhecimento e também nas formas de con- na teorizaçãocrítica, têm levado os educadorese educa-
cebê-lo. Em primeiro lugar, o currículo escolar tem ficado doras engajadosnessa tradição, a formular projetos edu-
indiferente às formas pelas quais a ''cultura popular" cacionais e curriculares que se contraponham às caracte
(televisão, música, videogames, revistas) têm constituído rísticasque fazem com que o currículo e a escolareforcem
uma parte central e importanteda vida das criançase as desigualdades da presente estrutura social. Nesse con-
32 33
+
texto, tem havido uma certa tendência a vincular currículo da educação ê do currículo. Nessa visão, é .a..linguagem,
e construção da cidadania e do cidadão. Embora esse o discurso e o texto que ganham..importância central.
movimento tenha raízes genuinamentedemocráticas, ele Isso tem qué-téf ónséqüências profundas e importantes
pode também ser regressivo na medida em que não esteja não apenas para a forma como analisamos o currículo,
atento para flagrar, no seu próprio desejo de formação mas também para a forma como vamos organiza-lo. São
de um tipo de identidade,sutis mecanismos
de controle essas consequências que ainda não têm sido suficiente-
e poder. Qualquer prometoque esteja disposto a contestar mente exploradas, mas que devem ganhar crescentemente
e a identificar suas próprias condições de produção e mais atenção.
suas bases de poder poderá fugir às tendênciasque Como se vê, a teorizaçãocrítica sobre currículo, da
supostamente quer criticar, arriscando, assim, apenas a qual a Sociologia do Currículo é um importante elemento,
substituir uma forma de governo -- dos indivíduos e da é um processo contínuo de análise e reformulação. A
população por outra. A história da educação institu- Teoria Crítica do Currículo é um movimento de constante
cionalizada mostra que o objetivo de produzir (novos) problematização e questionamento. Nesse processo, novas
cidadãos acabou sempre !!pÉTjêãila'êiií'covas . e talvez questões e temas vêm-se incorporar àqueles que, desde
mail"iútis-forhãi'delegulação e padrões de controle e o seu início, estiveram no centro de sua preocupação. E
governa(PopkêWiilí:'"í994:p. 9). isso que constitui sua vitalidade e seu potencial. Esta é
Finalmente, tem havido importantes modificações nas uma história que evidentementeainda não terminou. Na
formas de conceber o conhecimento e a linguagem, com verdade, talvez estala apenas começando.
profundas implicações para a teorização sobre o currículo.
Na visão que está ligada às nossasconcepçõesconven-
cionaisde currículo,o conhecimento
e a linguagem
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