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N° 20 | Setembro de 2013 U rdimento

Jogos sonoros e rítmicos 1

Geneviève Jolly2
Marie-Christine Lesage3

ntre o número de autores contem- racterísticos de certas obras contemporâ-

E porâneos que trabalham a lingua-


gem como material sonoro e privi-
legiam a ‘corporeidade’ da escrita
sobre o conteúdo aparente das réplicas,
podemos citar Gertrude Stein, Valère No-
neas. Imediatamente, observamos que, se
muitas delas preservam a forma externa
do diálogo, ocorre outra partilha de vo-
zes, completamente diferente da que se
fundamenta numa lógica de trocas cons-
varina, Daniel Lemahieu, Eugène Durif, tantes. Frequentemente, encontramos
Werner Schwab, Didier-Georges Gabily, um tipo de abstração do personagem
Rodrigo García, Jon Fosse ou Daniel Da- (em Stein, Novarina, Garcia ou Kane, por
nis. Como tais jogos sonoros e rítmicos exemplo) que, segundo as peças, tende
incidem sobre uma concepção do diálo- a tornar-se uma gura abstrata ou uma
go? A sua incidência localiza a palavra voz pura sem corpo, designada por uma
no corpo e faz da enunciação um gesto letra ou um simples travessão anônimo.
que direciona o corpo todo para o públi- Essas palavras são tecidas ou encaixadas
co. A m de que se tornem materiais, os umas nas outras, de tal modo que criam
componentes sonoros e rítmicos da lin- um espaço sonoro, rítmico e poético que
guagem necessitam da voz do ator, mas sobressai em meio à individualidade de
preexistem à proferição, no próprio tex- cada voz envolvida no jogo. De fato, uma
to. Daí surge uma dupla teatralidade: a sequência de réplicas pode ser pontuada
de um texto transformado pela voz e pelo no nal por uma vírgula, o que as faz par-
corpo do ator; a de um texto que compor- ticipar de um uxo contínuo. Podemos,
ta ecos sonoros e um ritmo, que criam então, falar de uma voz poética da obra,
sentido. Analisar a prosódia de um texto a do sujeito da escrita.
teatral, portanto, não implica em restrin- Gertrude Stein é certamente a autora
gir sua abrangência unicamente à leitura, que antecipou com a maior força e origi-
mas implica em lê-lo como texto para ser nalidade a forma que se aproxima do po-
dito, dentro de sua meta de esboçar ou ema dramático — no sentido muito con-
de preparar sua vocalização cênica [mise temporâneo, do termo. Suas ideias sobre
en voix]. o teatro, notadamente a noção da “peça-
Importa, então, investigar os efeitos paisagem”, são constitutivas e permitem
produzidos por esses jogos sonoros e rít- avaliar certos diálogos contemporâne-
micos na forma do diálogo, que são ca- os, a partir da ideia de que a frase que
compõe uma réplica é esvaziada de sua
1 Publicado sob o título “Jeux phoniques e rythmiques”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. função semântica de transportar um sen-
Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 51-55.
Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.
tido e uma carga emotiva, enquanto a or-
2 Geneviève Jolly é pesquisadora e docente da Universidade Strasbourg. Seus focos de ganização formal das réplicas entre elas
pesquisa são a teoria teatral e as dramaturgias textuais do século XX e XXI. se torna o lugar do sensível. De fato, as
3 Marie-Christine Lesage é professora e pesquisadora da Universidade Quebéc em Mon- frases e as palavras são utilizadas como
treal. Seus estudos são dirigidos para as dramaturgias textuais contemporâneas, a
história da encenação e as práticas cênicas na interface entre teatro e artes visuais. objetos, como materiais sonoros inscritos
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JOGOS SONOROS E RÍTMICOS: GENEVIÈVE JOLLY | MARIE-CHRISTINE LESAGE
U rdimento N° 20 | Setembro de 2013

em arquiteturas rítmicas. niu em sua teoria do ritmo.


De modo um pouco diferente, Jon A signicância do texto é estreita-
Fosse diz não escrever um conteúdo, mas mente ligada aos fenômenos rítmicos de
somente uma forma; fala da “voz da es- acentuação que são os do discurso, e in-
crita” para designar uma voz que fala ao venta uma enunciação especíca (no ver-
silenciar (uma voz que, apesar de tudo, so tanto quanto na prosa). A acentuação
se faz ouvir, sem passar pelas palavras). preside ao ritmo; é ela que faz a signica-
Uma voz que não é feita para ser apre- ção de um texto, por exigir que se leve em
endida semanticamente, pois sua nature- consideração aquilo que realiza, em dado
za é remeter ao inapreensível. Essa voz momento, a linguagem: as sequências
sem fundo é uma forma, um ritmo, o de acentuação diferem necessariamente
que evidencia a maior parte de suas pe- conforme cada discurso, pois a acentua-
ças, mas que se aplica também aos tex- ção do francês é determinada pela orga-
tos de Schimmelpfennig, de Kane ou de nização do discurso; não se fundamenta
Lagarce. O incompreensível do diálogo é na palavra, como no inglês, mas na síla-
aquilo que escapa da captura hermenêu- ba nal de um grupo sintático, seja qual
tica ao mesmo tempo em que participa for a natureza gramatical de determinada
da signicância, do sentido como Henri palavra. A tal acento de grupo se juntam
Meschonnic o compreende. Não se trata, o acento prosódico (repetição de fonemas
portanto, de jogos sonorose rítmicos in- consonantais), o acento de insistência ou
signicantes ou puramente formais, mas de ataque de frase, e o acento tipográ-
de criações que interrogam nossa relação co, que podem ser marcados pela alínea,
com o sentido dentro do diálogo. pelo espaço em branco ou por um cará-
Os ecos sonoros produzem, de fato, ter tipográco especíco (itálicos ou ca-
um fenômeno de atração semântica entre pitais). A multiplicação dos acentos e a
as palavras, sejam essas mais ou menos presença de contra-acentos (sequência de
próximas em uma frase, e pertençam ou dois acentos) inscrevem a oralidade den-
não à mesma frase. Ligados pela recor- tro da linguagem.
rência de fonemas, os enunciados for- Tanto no diálogo quanto nas didas-
mam uma sucessão de “blocos” sonoros, cálias, considerar os fenômenos de acen-
tornam-se complementares uns aos ou- tuação realça uma signicação que não
tros, e produzem sentido, independente- coincide necessariamente com a lógica
mente de seu conteúdo lógico ou concei- gramatical dos enunciados ou coma or-
tual. Como o fenômeno é observado entre ganização retórica do discurso (o sentido
as réplicas de diferentes personagens e aparente), simplesmente porque a lin-
entre réplicas e didascálias, devemos ad- guagem é viva e porque não se descreve
mitir que o texto teatral contém uma úni- somente segundo as regras gramaticais.
ca enunciação verbal. Além do mais, tal Isso é particularmente perceptível nas
abordagem da prosódia deve ser diferen- escritas que recorrem à utilização de alí-
ciada de uma tradição que desejaria que neas tanto para as réplicas quanto para
a linguagem fosse ‘musical’, ou que os as didascálias (Fosse ou Kane), por exem-
ecos sonoros contivessem uma ‘harmonia plo. Mas, no caso da didascália, a ques-
imitativa’. Como não é um fenômeno pu- tão que deve ser formulada é, evidente-
ramente acústico (como o som), o fonema mente, a transformação cênica do ritmo
inscreve um signicante e um signica- da didascália, a não ser que se pense em
do indissociáveis, e como tal participa do restituí-la.
processo signicante do discurso, mesmo Além dessa física do diálogo, que
que a prosódia não possa ser analisada joga com assonâncias e dissonâncias na
isoladamente dos outros componentes orquestração das trocas, é interessante
da linguagem, como Meschonnic a de- constatar que às vezes se manifesta outra

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JOGOS SONOROS E RÍTMICOS: GENEVIÈVE JOLLY | MARIE-CHRISTINE LESAGE
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modalidade da voz poética. Estão sur-


gindo, dentro de certas peças, pequenos
poemas inseridos no seio do diálogo; po-
emas que ressoam como um todo autôno-
mo, embora constituam a característica
de várias vozes. O início de Variations sur
la mort, de Fosse, é um bom exemplo dis-
so: a mistura de réplicas forma um poe-
ma que condensa na abertura todo o mo-
vimento do texto. No caso de Kane, em
suas duas últimas obras, esses poemas
aoram principalmente na superfície de
uma fala única mais ou menos anônima,
e assumem a forma de blocos sonoros
acompanhados de acentos tipográcos:
alíneas e brancos tipográcos que deses-
tabilizam a forma alternada do diálogo
ao fazer a ordem das réplicas explodir
sobre a página. Assim, o poema é menos
um jogo sonoro do que abertura para o
ritmo de outra voz, a qual é visível e au-
dível ao mesmo tempo, à maneira de um
gesto lançado como um convite a outro
espaço de diálogo.

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