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203-226 ]
I. Introdução
De tão óbvias que são, seria ocioso comentar a importância, neces-
sidade e premência do acesso e reutilização[1] a registos clínicos, in-
formação[2] de saúde[3], para fins de investigação, numa emergência
que assola a Humanidade: a pandemia por COVID-19.
Muito se tem dito, particularmente nas últimas semanas,
concretamente sobre a legitimidade dos investigadores poderem
aceder e reutilizar para investigação registos clínicos que resul-
tam da prestação de cuidados feita quer a cidadãos infetados com
COVID-19, ou com suspeitas, sintomáticos ou assintomáticos,
que morreram ou sobreviveram, quer a profissionais de saúde
relativamente aos quais, tão simplesmente, queremos saber se
estão em condições de se encontrarem na linha da frente a prestar
cuidados de saúde ou se já adquiriram imunidade.
Em debates, artigos de opinião, programas televisivos, peti-
ções e tomadas de posições políticas, têm sido emitidas as mais
diversas opiniões, levantadas questões, feitos pedidos e assumidas
[1]
A reutilização é um conceito Malheiro e a Professora Fernanda enfim, tudo o que um profissional de
legal que significa a utilização para Ribeiro, para quem «o registo material saúde observa e representa nos registos
um fim diferente do inicial de serviço ou físico faz a informação existir, mas que faz, todos os MCDT que forne-
publico para o qual os documentos não a faz ser» (Das “Ciências” Docu- cem uma imagem, que dão um valor
foram produzidos (alínea g) do n.º 1 do mentais à Ciência da Informação: ensaio analítico, um traçado, são informação, e
artigo 3.º da Lei n.º 26/2016, de 22 de epistemológico para um novo modelo porque representam o que o profissio-
agosto); assim, um registo clínico que curricular, Porto: Afrontamento, 2002, nal observou, são uma representação
tem origem no âmbito da prestação p. 38). Para esta Escola, a informação clínica, são registos clínicos.
de cuidados e posteriormente é utili- é «[…] um conjunto estruturado de
[3]
zado para, v. g., investigação, cumpre representações mentais codificadas No conceito jurídico instituído no
integralmente a figura da reutilização; socialmente contextualizadas e pas- artigo 2.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de
a este respeito, ver também o n.º 3 do siveis de serem registadas num qual- janeiro, isto é, «informação de saúde
artigo 21.º da citada lei. quer suporte material [...] e, portanto, abrange todo o tipo de informação
comunicadas de forma assíncrona e direta ou indiretamente ligada à saúde,
[2]
Não é despiciendo esclarecermos multidireccionada» (ibidem, p. 37). Ao presente ou futura, de uma pessoa,
qual o conceito de informação que sermos discípulos desta Escola, assu- quer se encontre com vida ou tenha
subscrevemos. Somos da Escola da mimos que sangue, urina, temperatura falecido, e a sua história clínica e familiar».
Ciência da Informação, nascida na corporal, tensão arterial, batimentos
Universidade do Porto, na Faculdade cardíacos, a imagem de uma TAC, ou
de Letras, com o Professor Armando de uma RMN, ou o traçado de ECG,
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no âmbito da pandemia por COVID-19
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[4]
É o caso do projeto de Resolução aspx?BID=44691 e que foi acedido em epidemiológicos, no âmbito da pande-
n.º 382/XIV/1.ª, apresentado por um setembro de 2020. mia de COVID-19, que invoca o Regu-
deputado à Assembleia da República, lamento Geral de Proteção de Dados
[5]
que pode ser consultado em https:// Exemplo acabado do que afirmá- como lei competente para suportar o
www.parlamento.pt/ActividadePar- mos é o projeto de Resolução n.º 382/ acesso aos mesmos; quanto à reutiliza-
lamentar/Paginas/DetalheIniciativa. XIV/1.ª, pela divulgação dos dados ção, nem sequer faz qualquer menção.
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O Direito existe porque nós existimos (ubi societas, ibi jus). Não
existe antes de nós. Nem depois. Não tem uma existência autó-
noma do ser humano. Só existe na realidade por nós concebida.
Só existe por nós. E para nós. O Direito não é como a Biologia, a
Botânica ou a Física Quântica. Realidades com existência própria
e autónoma relativamente a nós. O Direito é uma criação do ser
humano, com o objetivo de garantir a sua sobrevivência. Uma
ficção humana para garantir as civilizações e a espécie. Este racio-
cínio, quase ocioso pela sua simplicidade, é fundamental para
termos presente o que é e para que serve o Direito, enquanto
criação do ser humano. E esta verdade factual, de que o Direito é
uma ficção humana para garantir as civilizações e a espécie, deve
ter um lugar cimeiro na questão que queremos abordar: o acesso
e reutilização de registos clínicos para fins de investigação, no
âmbito da pandemia por COVID-19.
[6]
Sobre o que é a legitimidade, e par- relação entre um sujeito e um ato, tem a estamos a falar do acesso, do acesso à
ticularmente a legitimidade no acesso à tutela do direito, por isso é jurídica. E é informação, à informação de saúde, aos
informação de saúde, permitimo-nos jurídica, porque visa e garante a proteção registos clínicos. Então a questão da
recordar o que afirmámos em 2019: «A de valores, bens jurídicos, com base nos legitimidade no acesso à informação de
legitimidade supõe desde logo, uma quais organizamos a vida em sociedade saúde, pode e deve colocar-se no domí-
relação entre um sujeito e um ato. Um e o nosso relacionamento uns com os nio dos fundamentos que lhe assistem,
sujeito de direito, que tanto pode ser outros. E essa garantia de proteção é isto é, quando é que para o direito, exis-
uma pessoa singular, como uma pes- dada pelo direito, com a natureza coa- tem razões, relevantes, que justificam e
soa coletiva. Mas supõe ainda, que essa tiva da norma jurídica. Quanto ao ato, validam o acesso de um sujeito de direito
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à informação de saúde de uma pessoa dicam para si tal competência. Foi o 26/2016, de 22 de agosto; aos mesmos
singular?» in Rui Guimarães, Clinical que aconteceu durante décadas, entre registos clínicos, num hospital privado,
Records, Access and Administration of Jus- a CADA e a CNPD, em que ambas a legislação aplicável é a Lei n.º 58/2019,
tice: From reality to the construction of an chamavam a si a faculdade para se pro- de 8 de agosto (Proteção de Dados).
information model. Tese doutoramento. nunciarem em matéria de acesso, isto, Tudo no sentido da falta de unidade da
Publicação que pode ser consultada em apesar de o STA, reiteradamente, ter ordem jurídica e do tratamento dife-
breve no repositório dos doutoramentos afirmado que em matéria do acesso é renciado de situações iguais que, por
da Universidade do Porto, já que está competente a CADA. Hoje, a ques- isso, deveriam merecer o mesmo tra-
iminente o fim do embargo da publica- tão já não se coloca. É a própria Lei tamento, pelo que se trata de matéria
ção, pedido pelo autor. da Proteção de Dados que dispõe, no sobre a qual o legislador deveria inter-
seu artigo 26.º, que a competência em vir com a necessária rapidez.
[7]
Um conflito positivo de quali- matéria do acesso é regulada pela Lei
[8]
ficações ocorre quando, no mesmo n.º 26/2016, de 22 de agosto. Infe- Tal é a boa doutrina do n.º 1 do
ordenamento jurídico, existem duas lizmente, permanece a dualidade de artigo 3.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de
leis a estatuir normas sobre um mesmo regimes, isto é, o acesso, v. g., a registos janeiro, quando dispõe: «[...] sendo
assunto. Ambas se acham competentes clínicos num hospital público cabe no as unidades do sistema de saúde os
sobre determinada matéria, e reivin- âmbito de aplicação subjetivo da Lei n.º depositários da informação [...]».
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[9] [11]
N.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º N.º 3 do artigo 1.º da Lei n.º pessoais, rege-se pelo disposto na Lei
26/2016, de 22 de agosto. 26/2016, de 22 de agosto. n.º 26/2016, de 22 de agosto.».
[14] [15]
N.ºs 1 e 2 do artigo 2.º da Lei n.º Rui Guimarães et al.,“DAtaREu-
26/2016, de 22 de agosto. seCertificate for Research (DARE)”, in:
Acta Médica Portuguesa, 30(3), 2017,
pp. 159-162.
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[16]
A legítima defesa (artigos 31.º, n.º esténico), que, consoante as concretas requisito negativo da culpa, que assim
2, alínea a), e 32.º do Código Penal) é, hipóteses fácticas, podem conduzir à encontra no nosso ordenamento aflo-
como se sabe, tipo justificador que, por punição do agente com uma atenuação ramentos e não uma cláusula geral que
isso mesmo, exclui a ilicitude da ação facultativa da pena (artigos 72.º e 73.º a regule. O excesso extensivo ou nos
ou omissão com eventual relevo crimi- do Código Penal) ou à não punição, meios contende com hipóteses de erro,
nal, obedecendo a requisitos do prisma nas situações do n.º 2 do artigo 33.º subsumíveis aos artigos 16.º, n.º 2, ou
da agressão e da defesa que, se não do mesmo diploma, abrangendo o 17.º do Código Penal, conforme esteja-
cumpridos, podem dar lugar a excesso excesso intensivo asténico não censu- mos a aludir, respetivamente, a um erro
de legítima defesa (intensivo, asténico rável, o que é já uma concretização, em de conhecimento ou de valoração.
– censurável ou não censurável – ou termos dogmáticos, da inexigibilidade,
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Reutilização Circulação
[22]
É útil revisitar o artigo 26.º da Lei durante muitos anos, a CNPD reclamou acesso e reutilização da informação de
n.º 58/2019, de 8 de agosto, onde o legis- para si a competência no domínio do saúde, dos registos clínicos, para os hos-
lador expressamente afirma que o acesso acesso a registos clínicos. E vai poder con- pitais públicos. A Lei n.º 58/2019, de 8
a documentos administrativos que con- tinuar, mas só no domínio das entidades de agosto, é a aplicável ao acesso a registos
tenham dados pessoais, como é o caso da privadas. Na verdade, como já assinalado, clínicos na posse de entidades privadas. É
informação de saúde, dos registos clínicos, infelizmente, ainda temos uma dualidade uma dualidade perversa e iníqua, já que a
se rege pelo disposto na Lei n.º 26/2016, de regimes jurídicos no que ao acesso diz ética e a deontologia que suportam a rela-
de 22 de agosto. Apesar de vária jurispru- respeito. Repetindo, a Lei n.º 26/2016, ção médico-doente não sofre alterações do
dência do STA, afirmando o contrário, de 22 de agosto, é aquela que se aplica ao contexto público para o contexto privado.
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[23]
O combate à fraude na inves- recursos escassos, onde a competição uma contribuição, ainda que modesta,
tigação científica também encontra para progredir na carreira não raras em Rui Guimarães et al., «Reutili-
neste princípio da transparência um vezes atropela o ethos, transparência zation of Clinical Data for Research:
valor fundamental. A transparência na investigação científica é sinónimo The Footprint Scientific Model of
deve permitir a reprodutibilidade da de integridade na investigação. Este the Hospital Center of São João», in:
investigação. Confiança e integridade tema remete-nos para a questão: como Acta Médica Portuguesa, 30(3), 2017,
são valores que rimam bem com inves- promover a integridade na investigação pp. 159-162.
tigação científica. Num contexto de científica e académica? Julgamos dar
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[24] [25]
Alínea a) do n.º 5 do artigo 6.º da Alínea c) do artigo 20.º da Lei n.º
Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto. da lei 26/2016, de 22 de agosto. da
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[26] [29]
Maria João Bernardes e Rui soal e a sua reutilização», in: Acta Médica O Registo Nacional de Não
Nunes, «Consentimento dos doentes Portuguesa, 31(6), 2018, pp. 299-302.a Dadores (RENNDA) foi criado pelo
para a publicação de Casos Clínicos: mos Maria João Bernardes Decreto-Lei n.º 244/94, de 26 de
[28]
revisão da literatura», in: Arquivos de É o caso, v. g., da situação em que setembro, com o objetivo de viabilizar
Medicina, 27 (2), 2013, pp. 58-64. não afirmar a vontade de impedir a uti- um eficaz direito de oposição à dádiva,
lização total ou parcial de órgãos, isto é, assegurando e dando consistência ao
[27]
Rui Guimarães et al., «Registos o silêncio, tem o significado jurídico de primado da vontade e da consciência
clínicos, anonimização, informação pes- autorizar a utilização dos mesmos. individual nesta matéria.
[ 222 ] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020
[30] [31]
A este respeito, é imperativa a datasets using generative models», Nas inúmeras comunicações
leitura de Luc Rocher, Julien M. in: Nature Communications, 10, 2019, públicas que o Professor Luís Antu-
Hendrickx, Ives-Alexandre de disponível em https://doi.org/10.1038/ nes (Faculdade de Ciências da Uni-
Montjoye, «Estimating the success s41467-019-10933-3. versidade do Porto) faz a este respeito,
of re-identifications in incomplete esta abordagem é recorrente. o pensa-
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IV. Conclusões
[32]
Https://portal-chsj.min-saude.pt/
uploads/writer_file/document/3546/
Form_ReutlizacaoRegClin_8jul2020_
edit.pdf.o /.
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V. Recomendação
Nenhuma das leis que suporta o acesso, reutilização e proteção da
informação de saúde, dos registos clínicos, é exclusiva, e reconhece
a natureza específica da informação de saúde. Com esta prática le-
gislativa, o legislador não trata de forma única aquilo que tem uma
natureza própria, a informação de saúde, os registos clínicos. Toda
a abstração do pensamento jurídico inerente ao ato de legislar re-
presentado nesta lei trata os registos clínicos como informação ad-
ministrativa e nominativa, que de facto o são, como também o são
[ 226 ] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020