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DIREITO À SAÚDE
IMPLICAÇÕES SOCIAIS
PROGRESSO CIENTÍFICO
DISPONIBILIDADE E QUALIDADE
“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família
a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamen-
to, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários […]”
Artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948.
166 II. MÓDULOS SOBRE QUESTÕES SELECIONADAS DE DIREITOS HUMANOS
HISTÓRIA ILUSTRATIVA
A história de Maryam
Maryam tem 36 anos de idade e é mãe de gua materna de Maryam, preferiu falar na
seis crianças. Cresceu numa aldeia longe língua dominante falada na capital e entre
dos centros urbanos e deixou de estudar a classe educada. A enfermeira intimidou
quando terminou o segundo ano. Os seus Maryam.
pais eram pobres e a escola era a quatro A sua vida foi uma longa saga de violên-
quilómetros a pé da sua aldeia. O seu pai cia, pobreza e carência. Maryam lutou
acreditava que a educação de uma menina para manter o seu corpo e alma juntos, ao
era uma perda de tempo e de esforço, uma longo das suas várias gravidezes e da edu-
vez que as meninas estão destinadas ao cação dos seus filhos. Ela cultivava uma
casamento e não a ganhar o sustento. pequena área de terra para alimentar as
Quando tinha 12 anos, Maryam foi circun- suas crianças porque o marido nunca lhe
cidada de acordo com o costume local. dava dinheiro suficiente. Recorreu aos pais
Aos 16 anos casou com um homem nos e até a missionários que visitavam a al-
seus 50 anos. O pai recebeu uma quantia deia. Todos lhe disseram para obedecer ao
substancial paga pelo noivo a título de marido e lembraram-lhe que o seu dever
dote. No ano seguinte, ela deu à luz um ra- era obedecer ao marido e família.
paz, mas a criança nasceu morta. A clínica Um dia o marido acusou Maryam de “fa-
regional era a 10 quilómetros da aldeia e zer companhia” a outro homem. Ele afir-
não assistia aos partos. O marido batia- mou que a viu a rir e a conversar com um
lhe muitas vezes durante a gravidez e ela aldeão local, num dia de mercado. Quan-
acreditava que o bebé tinha nascido morto do ela respondeu, ele agrediu-a repetida-
devido a esses espancamentos. Contudo, mente, esmurrando-a até ela cair no chão,
a família e muitos da aldeia colocaram a chamando-a de prostituta e jurando que ia
culpa pelo nascimento da criança morta vingar a sua desonra. Maryam ficou grave-
sobre ela. Maryam não tinha qualquer de- mente ferida e pensou que tinha fraturado
sejo de ter relações sexuais com o marido. algumas costelas. Durante semanas não
Ela tinha medo dele e temia uma gravidez. conseguiu sair de casa. Ela não tinha di-
O marido considerava que era seu direito nheiro para ir a um centro de saúde para
manter relações sexuais com ela e obriga- receber tratamento e não existia forma de
va-a, regularmente, a fazê-lo. Maryam não lá conseguir chegar. Ninguém na vila a aju-
queria engravidar mas não teve outra al- dou, embora algumas pessoas pensassem
ternativa. Ela visitou um curandeiro local, que, desta vez, o marido tinha ido longe
tomou misturas de ervas e usou amuletos demais. Uma mulher é assunto do marido.
que não trouxeram qualquer resultado. Incapaz de ir ao mercado para comprar e
Raramente tinha tempo para ir à clínica de vender e de tratar do seu quintal, Maryam
saúde e quando foi, porque os seus filhos e os filhos quase passaram fome.
estavam doentes, não conseguiu falar de Maryam sentiu que iria existir violência
contraceção com a enfermeira. A enfer- no futuro. Temeu pela sua vida e das suas
meira, embora parecesse perceber a lín- crianças. Num sonho, ela viu a sua própria
D. DIREITO À SAÚDE 167
morte e percebeu que tinha de partir. As- 2. Como foi ela tratada pelas figuras de
sim que conseguiu andar, pegou nos dois autoridade (pai, marido, enfermeira e
filhos mais pequenos e deixou a aldeia. missionário)? Porquê?
Agora vive noutra aldeia, uma refugiada 3. Que impacto teve a pobreza na vida de
no seu próprio país, vivendo no medo de Maryam e na dos seus filhos? Acha que
ser encontrada pelo marido e ser levada de Maryam e o marido eram igualmente
volta para casa. pobres?
(Fonte: Adaptado da Organização Mundial 4. Como é que posicionaria cada grupo
de Saúde. 2001. Transforming Health Sys- (homens, mulheres e crianças) na co-
tems: Gender and Rights in Reproductive munidade da Maryam, no que respeita
Health.) ao seu estatuto e poder? Justifique.
5. Que informação necessitaria Maryam
Questões para debate para mudar as circunstâncias da sua
Repare nos pontos de debate listados infra vida e a das suas crianças?
da perspetiva da definição de saúde, tal 6. Embora exista um centro de saúde na
como declarada na constituição da Organi- região, ele foi útil para a Maryam? Justi-
zação Mundial da Saúde (OMS), de 1946, fique.
“[…] um estado de completo bem-estar fí- 7. Observe o esquema abaixo: são dados
sico, mental e social, e não consiste apenas exemplos das interligações entre saúde
na ausência de doença ou enfermidade.” e direitos humanos. Que interligações se
1. Quando começaram os problemas de relacionam diretamente com as questões
Maryam? apresentadas na história da Maryam?
Saúde &
Direitos
Humanos
168 II. MÓDULOS SOBRE QUESTÕES SELECIONADAS DE DIREITOS HUMANOS
A SABER
1. O DIREITO HUMANO À SAÚDE NUM alimentação, ao vestuário, ao alojamento,
CONTEXTO MAIS ALARGADO à assistência médica e ainda quanto aos
serviços sociais necessários […]”.
O direito humano à saúde apresenta um vas- Uma definição ampla e visionária da saú-
to e complexo conjunto de questões inter- de é estabelecida no preâmbulo da Cons-
ligadas porque a saúde e o bem-estar estão tituição da Organização Mundial de Saúde
intrinsecamente ligados a todas as etapas (OMS): “[…] um estado de completo bem-
e aspetos da vida. Nos instrumentos inter- estar físico, mental e social, e não consiste
nacionais de direitos humanos encontram- apenas na ausência de doença ou de enfer-
se direitos específicos relacionados com a midade.”. Esta visão holística da saúde en-
saúde. Essencialmente, todos os direitos fatiza o facto de que muitas das políticas
humanos são interdependentes e interrela- que determinam a saúde são feitas fora do
cionados. Assim, a realização dos direitos setor convencional da saúde e afetam as
humanos e a negligência relativamente aos determinantes sociais da saúde.
mesmos ou a sua violação é relevante para
um conjunto de direitos humanos e não A OMS atribui uma importância crescente
para, apenas, um direito isolado. Esta in- à operacionalização dos princípios de di-
terconectividade torna-se evidente quando reitos humanos no seu trabalho e foca-se
se considera que o bem-estar humano (isto em três áreas principais: apoiar governos
é, a saúde) requer a satisfação de todas as na adoção e implementação de uma abor-
necessidades humanas, tanto físicas, tais dagem baseada nos direitos humanos ao
como a necessidade de ar, água, alimento e desenvolvimento da saúde, fortalecimento
sexo, como sociais e psicológicas, tais como das capacidades da OMS para integrar a
a necessidade de amor e pertencer a grupos abordagem baseada nos direitos humanos
de amigos, família e comunidade. no trabalho da OMS e promover o direito
Os direitos humanos encontram-se ligados à saúde no direito internacional e nos pro-
às obrigações dos Estados de contribuir cessos de desenvolvimento. A organização
para o cumprimento dessas necessidades adotou um documento com a sua posição
e de permitir a grupos e indivíduos viver sobre atividades de saúde e direitos huma-
com dignidade. A seguir à Segunda Guerra nos no seio da OMS, com o intuito de inte-
Mundial, a Carta das Nações Unidas tor- grar os direitos humanos no âmbito do seu
nou claro que os Estados-membros têm trabalho e de assegurar que o estatuto dos
obrigações a respeito dos direitos huma- direitos humanos seja elevado à condição
nos. O direito humano à saúde foi torna- de um elemento essencial nos sistemas na-
do explícito, em 1948, na Declaração Uni- cionais públicos de saúde.
versal de Direitos Humanos (DUDH), no
artº 25º que afirma que “Toda a pessoa Saúde e Segurança Humana
tem direito a um nível de vida suficiente
para lhe assegurar e à sua família a saú- O número crescente de conflitos arma-
de e o bem-estar, principalmente quanto à dos e emergências e o extenso número
D. DIREITO À SAÚDE 169
Existem vários tratados regionais de di- saúde, assim como de programas, que têm
reitos humanos que foram mais longe na de estar disponíveis em quantidade sufi-
definição do direito à saúde, incluindo o ciente.
artº 11º da Carta Social Europeia de 1961, A acessibilidade das instalações, bens e
que foi revista em 1996, o artº 10º do Pro- serviços para a saúde exige a não discrimi-
tocolo Adicional à Convenção Americana nação, a acessibilidade física, a acessibili-
sobre Direitos Humanos em Matéria de Di- dade económica e a informação adequada.
reitos, Sociais e Culturais de 1988 e o artº A aceitabilidade exige que todos os servi-
16º da Carta Africana dos Direitos Huma- ços de saúde, bens e serviços devam res-
nos e dos Povos, de 1981. peitar a ética médica e ser culturalmente
apropriados, sensíveis ao género e às con-
“É meu objetivo que a saúde seja, final- dições do ciclo da vida, assim como pro-
mente, vista não como uma bênção pela jetados para respeitar a confidencialidade
qual se espera, mas, sim como um direito e melhorar a saúde e o estado da saúde
humano pelo qual se tem de lutar.” daqueles a quem se dirige.
Kofi Annan A qualidade requer que os serviços de
saúde, bens e serviços devam ser cientí-
Os governos abordam as suas obrigações fica e medicamente apropriados e de boa
sob o artº 12º do PIDESC de forma dife- qualidade.
rente e o organismo encarregado de mo-
nitorizar a aplicação do Pacto procurou “O ser humano é a cura do ser humano.”
esclarecer as obrigações dos Estados com Provérbio tradicional Wolof
o seu Comentário Geral nº14, um texto
interpretativo adotado em maio de 2000. Não Discriminação
Este Comentário Geral demonstra como A discriminação em razão do género, et-
a realização do direito humano à saúde nia, idade, origem social, religião, defi-
depende da realização de outros direitos ciência física ou mental, estado de saúde,
humanos, incluindo os direitos à vida, ali- identidade sexual, nacionalidade, estado
mentação, habitação, trabalho, educação, civil, estatuto político ou outro pode pre-
participação, usufruto dos benefícios do judicar o gozo do direito à saúde. Parti-
progresso científico e sua aplicação, liber- cularmente importante neste sentido são
dade de procurar, receber e transmitir in- a DUDH, a Convenção Internacional so-
formações de todos os tipos, não discrimi- bre a Eliminação de Todas as Formas de
nação, proibição da tortura e liberdade de Discriminação Racial (CIEDR), de 1965,
associação, reunião e circulação. e a Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação con-
Disponibilidade, tra as Mulheres (CEDM), de 1979, todas
Acessibilidade, elas se referindo ao acesso à saúde e a
Aceitabilidade e Qualidade cuidados médicos sem discriminação. Os
O Comentário Geral também estabelece artos 10º, 12º e 14º da CEDM afirmam
quatro critérios para, através deles, avaliar os direitos iguais das mulheres no aces-
o direito à saúde: so a cuidados médicos, incluindo pla-
A disponibilidade inclui o funcionamento neamento familiar, serviços apropriados
da saúde pública e dos bens e serviços de para os cuidados da saúde reprodutiva e
D. DIREITO À SAÚDE 171
apresentou novos factos sobre a prática e ser proativo na garantia do acesso aos cui-
salientou os aspetos de direitos humanos dados de saúde. Por exemplo, um número
e jurídicos. No mesmo ano, a Assembleia suficiente de clínicas de saúde deveria ser
Mundial da Saúde da OMS aprovou uma estabelecido para servir a população e es-
resolução sobre a eliminação da MGF que tas clínicas deveriam fornecer serviços de
se focou na importância da ação concer- acordo com os meios das populações que
tada entre os setores da saúde, educação, servem. O Estado deve publicitar a locali-
finanças, justiça e assuntos das mulheres. zação, serviços e requisitos da clínica. Isto
não pode ser garantido se os cuidados de
Direitos Humanos das Mulheres saúde forem relegados apenas para o setor
privado.
4. IMPLEMENTAÇÃO
E MONITORIZAÇÃO Limitações
ao Direito Humano à Saúde
Respeitar, Proteger Alguns direitos humanos são tão essen-
e Implementar ciais que não podem jamais ser limitados.
o Direito Humano à Saúde Estes incluem a proibição da tortura e da
As obrigações governamentais para garan- escravidão, e a liberdade de pensamento.
tir que os membros da sociedade usufru- Outros direitos humanos podem ser limi-
am do maior padrão de saúde possível re- tados quando o bem público tem priori-
querem um conjunto de compromissos. A dade sobre o direito individual. O artº 4º
obrigação de respeitar o direito humano do PIDESC permite limitações apenas se
à saúde significa que o Estado não pode as mesmas forem previstas por lei e ape-
interferir ou violar o direito. Um exemplo nas na medida em que as mesmas sejam
seria recusar prestar cuidados de saúde a compatíveis com a natureza desses direi-
certos grupos, tal como as minorias étni- tos e tenham como fim exclusivo a pro-
cas ou prisioneiros, e arbitrariamente re- moção do bem-estar geral numa sociedade
cusar cuidados de saúde, como no caso de democrática. Proteger o direito à saúde em
não permitir às mulheres serem cuidadas termos de saúde pública tem sido usado
por médicos e não providenciar médicas. pelo Estado como uma razão para colocar
Proteger o direito à saúde significa que restrições sobre outros direitos humanos.
o Estado deve prevenir que atores não es- É normalmente num esforço para prevenir
tatais interfiram de algum modo no gozo a propagação de doenças infecciosas que
do direito humano. Um exemplo seria têm sido limitadas outras liberdades. Ini-
evitar que uma empresa despejasse resí- bir a liberdade de movimento, estabelecer
duos tóxicos numa rede de abastecimen- quarentenas e isolar pessoas são medidas
to de água. Se a violação ocorre, o Estado que têm sido usadas para prevenir a pro-
deve fornecer à população algum tipo de pagação de doenças graves e transmissí-
compensação. Isto também significa que o veis, como o ébola, a SIDA, a febre tifoi-
Estado é obrigado a adotar a legislação ne- de e a tuberculose. Em certos momentos,
cessária e adequada, nomeadamente, leis estas medidas foram excessivas. De forma
reguladoras e de monitorização da gestão a prevenir os abusos de direitos humanos
de resíduos tóxicos. A implementação do cometidos em nome da saúde pública, as
direito à saúde significa que o Estado deve ações restritivas devem ser desenvolvidas
176 II. MÓDULOS SOBRE QUESTÕES SELECIONADAS DE DIREITOS HUMANOS
pelo governo apenas em último recurso. Estes relatórios sombra oferecem a visão
Os Princípios de Siracusa sobre as Dispo- da sociedade civil e podem não estar de
sições de Limitação e Derrogação no Pac- acordo com o relatório do governo. Toda
to Internacional sobre os Direitos Civis e a informação submetida é tida em conta
Políticos, de 1984, dão orientações a este quando o órgão do tratado prepara Co-
respeito e fornecem um quadro definido mentários e Observações Finais. Embora
estritamente sob o qual essas restrições não exista forma de impor o seu cumpri-
podem ser impostas. mento, este relatório torna-se parte do
Qualquer restrição: registo público e, a este respeito, o país
- deve estar prevista e ser imposta de acor- pode não desejar ser acusado de abusos
do com a lei; de direitos humanos que possam ter, en-
- deve aplicar-se no interesse de um objeti- tre outras consequências, um impacto di-
vo legítimo de interesse geral; reto sobre as relações com outros países.
- deve ser estritamente necessária numa Quando o Protocolo Facultativo ao Pacto
sociedade democrática para alcançar o ob- Internacional sobre os Direitos Econó-
jetivo; micos, Sociais e Culturais, adotado em
- deve aplicar-se se não existir outro meio 2008, entrar em vigor4, um mecanismo de
disponível, menos intrusivo e restritivo, queixas individuais também contemplará
para alcançar o mesmo fim; o direito à saúde e permitirá que o Comité
- não deve ser planeada ou imposta de for- dos Direitos Económicos, Sociais e Cultu-
ma arbitrária, ou seja, de forma discrimi- rais decida sobre casos individuais.
natória ou não razoável. O Relator Especial sobre o direito de to-
dos à satisfação do mais alto padrão atin-
Mecanismos de Monitorização gível de saúde mental e física, estabele-
Garantir que os governos cumpram com cido, em 2002, pela (então) Comissão de
as suas obrigações de respeitar, proteger e Direitos Humanos da ONU e mantido pelo
implementar o direito à saúde requer me- Conselho de Direitos Humanos compila
canismos, tanto ao nível nacional como informação e conduz um diálogo com os
internacional. Ao nível nacional, as co- governos e as partes interessadas, informa
missões governamentais, os provedores regularmente sobre o estado do direito à
de justiça e as ONG podem participar num saúde, incluindo leis, políticas, boas prá-
processo de revisão formal, assim que o ticas e obstáculos e faz as recomendações
país tenha ratificado o tratado que garan- necessárias. Para este fim, o Relator faz vi-
te o direito à saúde. Cada parte no tratado sitas aos diversos países e reage a alegadas
de direitos humanos deve apresentar um violações do direito à saúde.
relatório a um órgão de monitorização do
tratado, por exemplo, o Comité dos Di-
reitos Económicos, Sociais e Culturais. 4
Nota da versão em língua portuguesa: O Protocolo
No momento da revisão, as ONG também Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos
submetem relatórios que são muitas ve- Económicos, Sociais e Culturais entrou em vigor no
dia 5 de Maio de 2013 tendo, nessa data, 10 Estados
zes referidos como “relatórios sombra”.
Partes.
D. DIREITO À SAÚDE 177
CONVÉM SABER
Comissões de Cidadãos e Políticas de
1. BOAS PRÁTICAS Saúde Pública
As Comissões de Cidadãos (CC) são um
Prevenção do VIH/SIDA novo modelo para adotar decisões políti-
Histórias de sucesso no Cambodja, no cas de saúde pública. Os modelos no Rei-
Uganda, no Senegal, na Tailândia, na Zâm- no Unido, na Alemanha, na Escandinávia
bia urbana e nos países ricos mostram que e nos Estados Unidos da América envol-
uma abordagem abrangente de prevenção vem 12 a 16 cidadãos comuns, ampla-
é eficaz. Os factos sustentam que: mente representativos da população, para
x A mudança comportamental exige infor- investigar a informação que lhes é dada,
mação específica, adequada ao local e questionar peritos, debater, deliberar e
formação sobre negociação e capacida- publicar as suas conclusões. As autorida-
des de tomada de decisão, apoio social des devem responder dentro de um certo
e jurídico, acesso a meios de prevenção período de tempo. No Reino Unido, vas-
(preservativos e agulhas esterilizadas) e tos estudos-piloto sugerem que as CC são
motivação para a mudança. melhores a tratar de questões complexas
x Nenhuma abordagem única de preven- e a chegar a conclusões sólidas do que as
ção pode conduzir à mudança alargada sondagens, grupos representativos e reuni-
de comportamento na população. Os ões públicas. É claro que cidadãos comuns
programas de prevenção numa escala estão dispostos a tornarem-se diretamente
nacional necessitam de se centrar em envolvidos no processo de tomada de de-
múltiplas componentes desenvolvidas cisão, tendo uma forte e consistente visão
em estreita colaboração com a popula- sobre o tipo de saúde pública que querem
ção alvo. para si e para as suas famílias.
x Os programas de prevenção para a po-
pulação em geral devem centrar-se es- O Juramento de Malicounda
pecialmente nos jovens. Nos anos 80, uma organização popular do
x As parcerias são essenciais para o su- Senegal desenvolveu um currículo de reso-
cesso. Programas múltiplos que procu- lução de problemas que envolveu a apren-
ram múltiplas populações necessitam dizagem, por parte de toda a aldeia, sobre
de parceiros múltiplos, incluindo os in- direitos humanos e a sua aplicação na sua
fetados com VIH/SIDA. vida quotidiana. O programa ofereceu aos
x A liderança política é essencial para participantes a hipótese de abordar proble-
uma resposta eficaz. mas tais como a saúde, higiene, questões am-
bientais, competências de gestão financeira
“Para se conseguir a abolição da prática e material. A TOSTAN iniciou um programa
da MGF, será preciso uma mudança fun- em Malicounda, uma aldeia de 3.000 habi-
damental de atitudes na forma como a so- tantes, que é parte de uma série de aldeias
ciedade entende os direitos humanos das em Bambara que ainda pratica infibulação,
mulheres.” uma das mais completas e brutais formas
Efua Dorkenoo. Cutting the Rose.
de circuncisão feminina. Depois de grande
178 II. MÓDULOS SOBRE QUESTÕES SELECIONADAS DE DIREITOS HUMANOS
debate público, incluindo uma atuação de canais de comunicação, dentro das famílias,
teatro de rua que se focou sobre os proble- sobre o VIH/SIDA e, em particular, para aju-
mas de infeção, os partos perigosos e a dor dar as mães seropositivas a dizer aos seus
sexual causada pela infibulação, toda a al- filhos qual é o estado da sua infeção. Os pais
deia fez um juramento, prometendo acabar em estado terminal e os seus filhos traba-
com a prática da circuncisão feminina. Isto lham em conjunto para compilar um livro
tornou-se conhecido como o Juramento de de memórias que é normalmente um álbum
Malicounda. Depois, dois anciãos da aldeia que contém fotografias, piadas e outras re-
decidiram espalhar a palavra às outras al- cordações familiares. No Uganda, o uso de
deias de que esta prática tinha de ser parada. livros de memórias foi, pela primeira vez,
Em fevereiro de 1998, treze aldeias fizeram usado pela Organização de Apoio contra a
o Juramento. Mais 15 aldeias puseram fim à SIDA (TASO, na sigla inglesa), no início dos
prática, em junho do mesmo ano. O movi- anos 90. Desde 1998, a Associação Nacional
mento ganhou atenção internacional. A 13 de Mulheres que vivem com SIDA promo-
de janeiro de 1999, a Assembleia Nacional veu esta abordagem numa escala mais am-
do Senegal aprovou uma lei a proibir a mu- pla com ajuda da PLAN Uganda. A Associa-
tilação genital feminina. A ação jurídica, por ção descobriu que as mães infetadas com o
si só, não teria sido suficiente para abolir a VIH têm grande dificuldade em comunicar
prática. O poder reside no controlo social com os seus filhos sobre a sua saúde frágil;
executado pelas aldeias e na demonstração os livros de memórias foram boas formas de
da vontade pública ao prestar o Juramento as mães introduzirem a ideia do VIH/SIDA
de Malicounda. A formação realizada pela nas vidas dos seus filhos e debaterem o seu
TOSTAN enfatizou a ligação entre o direito à impacto. O livro funciona como uma lem-
saúde e outros direitos humanos. brança para os seus filhos das suas origens,
para eles não perderem o seu sentimento de
“Quando as plantas amistosas ouviram o pertença. O livro também promove a pre-
que os animais tinham decidido contra a venção do VIH/SIDA porque as crianças tes-
humanidade, planearam, por si mesmas, temunham e compreendem a agonia que os
uma contrajogada. Concordaram que cada pais estão a atravessar e não querem sofrer
árvore, arbusto, erva, relva e musgo encon- o mesmo destino.
traria uma cura para cada uma das doen-
ças referidas pelos animais e insetos. Depois, Atenção aos membros mais vulneráveis
quando os índios Cherokee visitavam o seu da sociedade
Xamã acerca das suas maleitas, e se o curan- Por todo o lado no mundo, os consumido-
deiro tivesse dúvidas, ele conversava com os res de droga e os prisioneiros estão entre os
espíritos das plantas. Eles sugeriam, sempre, membros mais vulneráveis da sociedade.
remédios adequados para as doenças da hu- No contexto do VIH/SIDA e em outras con-
manidade. Tal, foi o início da medicina na dições graves, o direito à saúde é raramente
tribo Cherokee há muito, muito tempo.” implementado entre esta população devido
Cherokee. The Origin of Medicine. à sua condição de criminosos ou da crimi-
nalização da toxicodependência que resulta
Livros de Memórias na falta de acesso à informação, educação
Em muitos países, os livros de memórias e serviços básicos de saúde e sociais. Nos
tornaram-se um modo importante para abrir anos 80, o Reino Unido e os Países Baixos
D. DIREITO À SAÚDE 179
3. ESTATÍSTICAS
1995 Quarta Conferência Mundial sobre 2002 Cimeira Mundial sobre o Desenvol-
as Mulheres vimento Sustentável
1997 Declaração Universal sobre o Ge- 2002 Relator Especial para o direito de to-
noma Humano e os Direitos Huma- dos à satisfação do mais alto padrão
nos (UNESCO) atingível de saúde mental e física
1998 Princípios Orientadores relativos 2003 Declaração Internacional sobre os Da-
aos Deslocados Internos dos Genéticos Humanos (UNESCO)
2000 Comentário Geral nº 14 do Comité 2006 Convenção das Nações Unidas so-
das NU dos Direitos Económicos, bre os Direitos das Pessoas com
Sociais e Culturais sobre o direito Deficiência
à saúde 2008 Protocolo Facultativo ao Pacto In-
2001 Declaração de Doha sobre o Acordo ternacional sobre os Direitos Eco-
TRIPS e a Saúde Pública nómicos, Sociais e Culturais
ATIVIDADES SELECIONADAS
ATIVIDADE I: ticipantes a consciencialização do direito
VISUALIZAÇÃO humano da saúde; criar ligações entre saú-
DE UM ESTADO DE COMPLETO de e outras necessidades fundamentais;
BEM-ESTAR FÍSICO, MENTAL E SOCIAL criar conexões entre necessidades funda-
mentais e direitos humanos.
Parte I: Introdução Grupo-alvo: Jovens adultos e adultos
Para muitas pessoas, o conceito de saúde Dimensão do grupo: 10-30
não está suficientemente desenvolvido de Duração: 120 minutos
forma a incluir as amplas necessidades da Materiais: folhas de papel grandes, marca-
sociedade, bem como o estado do indi- dores e fita adesiva para colar as folhas à
víduo. Esta atividade permite aos parti- parede; uma cópia da Declaração Univer-
cipantes reconhecer os vários elementos sal dos Direitos Humanos (DUDH).
que constituem uma condição ótima de Competências envolvidas: Comunicação
saúde e partilhar ideias com outros mem- verbal; análise participativa
bros do grupo de modo a criar um concei-
to abrangente. Parte III: Informação Específica sobre a
Atividade
Parte II: Informação Geral sobre a Ati- Instruções:
vidade O formador lê a definição de “saúde” da
Tipo de atividade: Sessão de chuva de OMS. O Preâmbulo da constituição da
ideias e reflexão de grupo. OMS define saúde como “[...] um estado de
Metas e objetivos: Tornar-se consciente do completo bem-estar físico, mental e social,
âmbito alargado de saúde como mais do e não meramente a ausência de doença.”.
que a “ausência de doença”; criar nos par- O formador faz a pergunta: que elementos
D. DIREITO À SAÚDE 185
cia e pede a cada grupo que apresente as de todas as partes. Depois de 30 minutos
suas posições e argumentos. O juiz resume de trabalho de grupo, cada grupo apresen-
todos os argumentos, pondera-os e profere ta o seu processo de debate e a sua pos-
uma decisão que tenha em consideração sível solução no plenário. As respostas e
as diferentes opiniões dos litigantes. soluções mais importantes são registadas
Outras sugestões: no quadro. Quando todos os grupos tive-
Encontrar um consenso no grupo: depois rem apresentado o debate do processo de
de todas partes terem apresentado os seus tomada da decisão, a atividade termina.
argumentos numa sessão plenária, os par- Direitos relacionados/outras áreas a ex-
ticipantes formam grupos de trabalho. Em plorar: Globalização, discriminação, po-
cada grupo de trabalho, deve haver um breza.
membro de cada litigante mais um juiz. O (Fonte: Adaptado de: Conselho da Euro-
formador pede aos grupos que tentem che- pa. 2002. Compass. A Manual for Human
gar a consenso sem negligenciar a posição Rights Education with Young People.)
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