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REVISTA DE ANTROPOFAGIA. Duas fases (“dentições”) nitidamente


distintas. A primeira, revista mesmo, em Formato de 33 por 24 cm, com
modestas 8 páginas: 10 números, editados mensalmente, de maio de 1928
a fevereiro de 1929, sob a direção de Antonio de Alcântara Machado,
gerência de Raul Bopp. Depois, veio a nova fase (a da 2.ª dentição, como
esclarecia o subtítulo) da revista, agora limitada a uma página do “Diário de
São Paulo”, cedida aos “antropófagos” por Rubens do Amaral, que che ava
a redação do jornal na época. Foram 16 páginas, publicadas com certa
irregularidade, mas quase sempre semanalmente, de 17 de março a 1.º de
agosto de 1929 (a 16.ª página saiu, por engano, com o mesmo número da
anterior). Nos quatro primeiros números, além do subtítulo, a indicação:
orgão do clube de antropofagia. A partir do 5.º: orgão da antropofagia
brasileira de letras.

Na 1ª dentição, a revista está ainda marcada por uma consciência


ingênua não muito distante da que informou o modernismo klaxista, apesar
dos seis anos decorridos. Raul Bopp depõe depois (1966): “A antropofagia,
nessa fase, não pretendia ensinar nada. Dava apenas lições de desrespeito
aos canastrões das Letras. Fazia inventário da massa falida de uma poesia
bobalhona e sem signi cado.”

É verdade que lá está, no primeiro número, o genial Manifesto


Antropófago de Oswald, que junto com o Manifesto da Poesia Pau Brasil,
publicado dois anos antes, resulta na formulação mais consistente que nos
deixou o Modernismo. Mas Oswald já estava quase sozinho. Nos 10
números da revista, o único texto que se identi cava plenamente com as
idéias revolucionárias do manifesto, era A “Descida” Antropófaga, artigo
assinado por Oswaldo Costa, igualmente no n.º 1. Um “doublé” de Oswald
(até no nome) que diz: “Portugal vestiu o selvagem. Cumpre despi-lo. Para
que ele tome um banho daquela “inocência contente” que perdeu e que o
movimento antropófago agora lhe restitui. O homem (falo do homem
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europeu, cruz credo!) andava buscando o homem fora do homem. E de
lanterna na mão: loso a. ( … ) Nós queremos o homem sem a dúvida, sem
sequer a presunção da existência da dúvida: nu, natural, antropófago.” E
lança um dos “slogans” do movimento: “Quatro séculos de carne de vaca!
Que horror!”

Comparar as incisivas tomadas de posição dos dois Oswaldo com a


“nota insistente” publicada “no rabinho do primeiro número da Revista” e
assinada por Alcântara Machado e Raul Bopp:

“Ela (a “Revista de Antropofagia”) está acima de quaisquer grupos ou


tendências; Ela aceita todos os manifestos mas não bota manifesto;
Ela aceita todas as críticas mas não faz crítica;
Ela é antropófaga como o avestruz é comilão;
Ela nada tem que ver com os pontos de vista de que por acaso seja veículo.
A “Revista de Antropofagia” não tem orientação ou pensamento de espécie
alguma: só tem estômago.”

Estômago resistente. A ponto de abrigar, sem aparente indigestão, de


Plínio Salgado a Yan de Almeida Prado… Claro que Oswald e os
“antropófagos” radicais, que, logo mais, na 2.ª dentição, refugariam a Anta,
opondo-lhe a imagem do Tamanduá (“Por isso não queremos anta,
queremos tamanduá. O nosso bicho é o tamanduá bandeira. Nossa
bandeira é o tamanduá. Ele enterra a língua na terra, para chupar o tutano
da terra. As formigas grudam na língua dele, mordendo, queimando. Ele
engole as formigas.”) não iriam se conformar com essa deformação da
imagem do antropófago – o avestruz, ave de apetite onívoro e estômago
complacente e, aliás, estrangeira… Emblemática da política cultural da
revista, nessa primeira fase, a imagem do avestruz mostra como a
Antropofagia – excetuados os casos de Oswald e Oswaldo – era tomada no
seu sentido mais super cial pela maioria, não ultrapassando, no mais das
vezes, a idéia da “cordial mastigação” dos adversários ostensivos do
Modernismo. É o que explica a assimilação indiscriminada de autores que
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nada têm a ver com os pressupostos da Antropofagia, enquanto
movimento. O que faz, por exemplo, no n.º 5, um sr. Peryllo Doliveira, da
Paraíba, com seu pedaço de poema “A Voz Triste da Terra” (“Mas agora meu
Deus é impossível voltar!”)? O que faz Augusto Frederico Schmidt com o
poema penumbrista “Quando eu Morrer”, no n.º 10? Estômago de
avestruz!

Mas a despeito da inde nição teórica e poética, a REVISTA DE


ANTROPOFAGIA não deixou de contribuir, mesmo nessa primeira fase,
como veículo – o mais importante da época – para a evolução da linguagem
do nosso Modernismo. Não bastasse o Manifesto de Oswald, associado ao
bico-de-pena de Tarsila (uma réplica do “Abaporu” ou Antropófago, um
dos seus mais notáveis quadros), lá estão: o fragmento inicial de
Macunaíma (n.º 2), o radical “No Meio do Caminho” de Drummond (n.º
3), que reaparece, epigramático, com “Anedota da Bulgária”, no n.º 8;
“Sucessão de São Pedro”, do melhor Ascenso Ferreira (n.º 4); “Noturno da
Rua da Lapa” de Manuel Bandeira (n.º 5); “República”, de Murilo Mendes
(n.º 7), então bem impregnado de “pau brasil” e bastante à vontade numa
revisão desabusadamente poética e crítica da nossa história, iniciando a
série que irá integrar o volume de poemas História do Brasil (1932),
lamentavelmente excluído da edição Poesias (1922-55), em 1959. E
algumas das primeiras produções de Raul Bopp (Jacó Pim-Pim), Jorge de
Lima, Augusto Meyer e outros. Curiosidades: poemas de Josué de Castro e
Luis da Câmara Cascudo, crônica de Santiago Dantas.

O que há de mais a nado com o espírito irreverente da Antropofagia,


em sua face mais autêntica e agressiva, é a seção Brasiliana, que aparece
em todos os números, e onde se reúnem, Ã maneira do “sottisier” de
Flaubert, notícias de jornais, trechos de romances, discursos, cartões de
boas festas, anúncios, circulares – textos “ready made” que denunciam a
amena poluição da imbecilidade através da linguagem cotidiana e
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convencional. Como o anúncio compilado no n.º 3, verdadeiro poema-
“trouvé”:

“A CRUZ DA TUA SEPULTURA ENCERRA UM MISTÉRIO – Valsa com


letra; foi escrita junto a uma campa. Vende-se a rua do Teatro, 26.”

Alcântara Machado tem, na revista, aproximadamente, o papel de


Mário em KLAXON. Os editoriais e as resenhas de livros cam a seu cargo.
Disso ele se desincumbe com muita agilidade e certa graça, mas na base de
um gosto-não-gosto que, se tem mais acertos do que erros, nem por isso
ultrapassa o plano da disponibilidade subjetiva, dentro de uma genérica
defesa do “moderno”. Um Mário de Andrade folclorizante comparece, ainda,
com o poema “Lundu do Escritor Difícil” e pesquisas músico-regionais.

Sintoma da progressiva irritação de Oswald – que, no n.º 5, já polemiza


com Tristão de Ataíde em torno do Cristianismo – e a publicação do
seguinte aviso no n.º 7:

SAIBAM QUANTOS

Certi co a pedido verbal de pessoa interessada que o meu parente


Mario de Andrade e ° pior critico do mundo mas ° melhor poeta dos
Estados Desunidos do Brasil. De que dou esperança.
JOÃO MIRAMAR

A irritação viraria descompostura na 2.ª dentição da revista, que brota


com dentes muito mais a ados na pagina dominical do “Diário de São
Paulo” de 17-3-29,um mês depois de se extinguir a primeira série.
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