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GAUDIUM ET SPES

-CONSTITUIÇÃO PASTORAL “GAUDIUM ET SPES” SOBRE A IGREJA NO MUNDO


DE HOJE Paulo Bispo, Servo dos Servos de Deus, juntamente com os Padres
Conciliares, para perpétua memória do acontecimento: Constituição Pastoral
“sobre a Igreja no mundo de hoje”. PROÊMIO [Solidariedade da Igreja com a
Família Humana Universal)

1. As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,


sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se
encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração. Com
efeito, a sua comunidade se constitui de homem que, reunidos em Cristo, são
dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles
aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a
comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e
com sua história.

1 A Constituição Pastoral “sobre a Igreja no mundo de hoje” consta de duas


partes, mas é um todo. Ela é chamada “pastoral” porque, baseada em
princípios doutrinários, tem a intenção de exprimir as relações da Igreja com o
mundo e os homens de hoje. Por isso nem na primeira parte está ausente a
intenção pastoral, nem na Segunda falta a intenção doutrinária. Na primeira
parte a Igreja desenvolve sua doutrina sobre o homem, o mundo no qual o
homem é colocado e sobre suas relações com os homens. Na segunda parte
considera mais atentamente alguns aspectos da vida de hoje e da sociedade
humana e de modo especial as questões e os problemas que atualmente
parecem ser os mais urgentes. Acontece assim que a matéria tratada nesta
última parte, embora sujeita a princípios doutrinários, consta não apenas de
elementos permanentes, mas também de questões contingentes. Deve, pois,
esta Constituição ser interpretada segundo as normas gerais da interpretação
teológica, tendo-se em vista, sobretudo na segunda parte, as circunstâncias
mutáveis por sua natureza conexas com o assunto tratado.[Os Destinatários
das Palavras do Concílio]

2. Por este motivo, depois de ter investigado de modo mais profundo o mistério
da Igreja, o Concílio Vaticano II não mais hesita em dirigir a palavra somente
aos filhos da Igreja e a todos os que invocam o nome de Cristo, mas a todos os
homens. Deseja expor a todos como concebe a presença e a atividade da Igreja
no mundo de hoje.

O mundo portanto que tem diante dos olhos é o dos homens, e toda a família
humana com a totalidade das coisas entre as quais vive; este mundo, teatro de
história do gênero humano e marcado por sua atividade: derrotas e vitórias;
esse mundo criado e conservado pelo amor do Criador, segundo a fé dos
cristãos. Esse mundo na verdade foi reduzido a servidão do pecado, mas o
Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do Maligno e o libertou, para
se transformar de acordo com o plano de Deus e chegar à consumação. [À
Serviço do Homem]

3. Em nossos dias, arrebatado pela admiração das próprias descobertas e do


próprio poder, o gênero humano freqüentemente debate os problemas
angustiantes sobre a evolução moderna do mundo, sobre o lugar e função de
homem no universo inteiro, sobre o sentido de seu esforço individual e coletivo
e, em conclusão, sobre o fim último das coisas e do homem. Por isso o Concílio,
testemunhando e expondo a fé de todo o povo de Deus congregado por Cristo,
não pode demonstrar com maior eloqüência sua solidariedade, respeito e amor
para com toda a família humana, à qual esse povo pertence, senão
estabelecendo com ela um diálogo sobre aqueles vários problemas, iluminando-
os à luz tirada do Evangelho e fornecendo as gênero humano os recursos de
salvação que a própria Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe de seu
Fundador. É a pessoa humana que deve ser salva. É a sociedade humana que
deve ser renovada. É, portanto, o homem considerado em sua unidade e
totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade, que
será o eixo de toda a nossa explanação. Por isso, proclamando a vocação
altíssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina, o
Sacrossanto Concílio oferece ao gênero humano a colaboração sincera da Igreja
para o estabelecimento de uma fraternidade universal que corresponda a esta
vocação. Nenhuma ambição terrestre move a Igreja. Com efeito, guiada pelo
Espírito Santo ela pretende somente uma coisa: continuar à obra do próprio
Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade 2, para salvar e não
para condenar, para servir e não para ser servido.3 2 Cf. Jo 18,37. 3 Cf. Jo
3,17; Mt 20,28; Mc 10,45. INTRODUÇÃO: A CONDIÇÃO DO HOMEM O MUNDO
DE HOJE [Esperança e Angústia]

4. Para desempenhar tal missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de


perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal
modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às
interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas
relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhece e entender o mundo
no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole
freqüentemente dramática. Algumas das características principais do mundo
moderno podem ser delineadas da seguinte maneira:

gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual
mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo
inteiro. Elas são provocadas pela inteligência do homem e por sua atividade
criadora e atingem o próprio homem, seus juízos, seus desejos individuais e
coletivos, seu modo de pensar e agir tanto em relação às coisas quanto em
relação aos homens. Já podemos falar então de uma verdadeira transformação
social e cultural, que repercute na própria vida religiosa. Como acontece em
qualquer crise de crescimento, esta transformação acarreta sérias dificuldades.
Assim enquanto o homem estende tão amplamente o seu poder, contudo nem
sempre consegue submetê-lo a seu serviço. Esforçando-se por penetrar mais
profundamente na intimidade da própria mente, aparece com freqüência mais
incerto de si mesmo. Descobrindo pouco a pouco mais claramente as leis da
vida social, hesita sobre a direção a lhe imprimir. gênero humano nunca dispôs
de tantas riquezas, possibilidades e poder econômico. No entanto, ainda uma
parte considerável dos habitantes da terra padece fome e miséria e inúmeros
são analfabetos. Os homens nunca tiveram um sentido da liberdade tão agudo
como hoje, mas ao mesmo tempo aparecem novas formas de escravidão social
e psíquica. Enquanto o mundo percebe tão vivamente sua unidade e mútua
dependência de todos numa necessária solidariedade, e ei-lo contudo
gravemente dividido em partidos opostos por forças que lutam entre si. Com
efeito, agudas dissensões políticas, sociais, econômicas, raciais e ideológicas
ainda continuam. E nem falta o perigo de uma guerra capaz de destruir tudo
até o fim. Enquanto aumenta a comunicação de idéias, as próprias palavras,
que exprimem conceitos de grande importância, revestem-se de sentidos
bastante diversos segundo a variedade de ideologias. Enfim, procura-se com
afã uma organização temporal mais perfeita, sem que o crescimento espiritual
progrida ao mesmo tempo. Marcados por uma situação tão complexa, muitos
dos nossos contemporâneos são impedidos de discernir verdadeiramente os
valores perenes, harmonizando-os de modo adequado com as descobertas
recentes. Assim, inquietos, eles se interrogam, num misto de esperança e
angústia, sobre a evolução atual do mundo. Este curso das coisas não só
desafia os homens, mesmo força-os a uma resposta. [As Situações
Profundamente Mudadas]

5. A perturbação atual dos espíritos e a mudança das condições de vida estão


vinculadas a uma transformação mais ampla das coisas. Esta faz com que as
ciências matemáticas e naturais ou as que tratam do próprio homem adquiram
preponderância crescente na formação do pensamento, enquanto a técnica,
derivada daquelas ciências, influencia na ordem da ação. Este espírito científico
produz um sistema cultural e modos de pensamento diferentes dos anteriores.
A técnica progride a ponto de transformar a face da terra e já tenta conquistar
o espaço interplanetário.

inteligência humana dilata de certa maneira o seu domínio também sobre o


tempo. Sobre o passado, pelo conhecimento histórico. Sobre o futuro, pela
prospectiva e planificação. O progresso das ciências biológicas, psicológicas e
sociais não só contribui para que o homem se conheça melhor, mas fornece-lhe
também os meios de influenciar diretamente na vida da sociedade, usando
métodos técnicos. Ao mesmo tempo, o gênero humano se preocupa, e isto em
medida sempre crescente, de prever e regular o próprio crescimento
demográfico.
A própria história acelera-se tão rapidamente em seu curso que os homens
conseguem segui-la com dificuldade. Torna-se una a sorte da comunidade
humana e não mais diversificada como que entre várias histórias. Assim a
humanidade passa de uma noção mais estática da ordem das coisas para uma
concepção mais dinâmica e evolutiva. Nasce daí, imenso, um complexo novo de
problemas que provoca novas analises e sínteses.

[As Mudanças Sociais]


6. Por isso mesmo as tradicionais comunidades locais, (famílias patriarcais,
clãs, tribos, aldeias), experimentam cada dia transformações mais profundas
em seus variados grupos e relações de comunidade social.

Difundi-se pouco a pouco uma sociedade de tipo industrial, conduzindo algumas


nações à riqueza econômica e transformando profundamente as concepções e
condições de vida social estabelecidas deste séculos. Cresce paralelamente a
civilização urbana, não só pela multiplicação das cidades e de seus habitantes
mas também pela expansão do modo de vida urbana às zonas rurais.

Os novos instrumentos de comunicação social, incessantemente aperfeiçoados,


contribuem para difundir rápida e amplamente as notícias dos acontecimentos,
das idéias e dos sentimentos, provocando inúmeras reações em cadeia.

Não é de menosprezar o fato de que os homens, levados à emigração por


vários motivos, transformem o sistema de sua vida.

Em suma, as relações do homem com seus semelhantes multiplicam-se


continuamente. E ao mesmo tempo a própria socialização introduz novas
relações, sem contudo promover sempre o pleno desenvolvimento da pessoa e
de relações realmente pessoais, isto é, a personalização.

Esta evolução, contudo, se manifesta mais claramente nas nações econômico e


técnico. Contudo atua também junto dos povos em via de desenvolvimento que
aspiram obter para suas regiões os benefícios da industrialização e da
urbanização. Estes povos, sobretudo se ligados a tradições mais antigas,
experimentam ao mesmo tempo a necessidade de exercer sua liberdade de
modo mais adulto e pessoal.

[Mudanças Psicológicas, Morais e Religiosas]

7. A mudança de mentalidade e de estruturas coloca em questão


freqüentemente s valores recebidos, particularmente junto dos jovens: com
freqüência não suportam sua situação; bem mais, a inquietação os torna uns
revoltados. Conscientes do próprio valor na vida social, muito cedo aspiram a
nela participar. Por isso, não é raro que os pais e educadores sentem cada dia
dificuldades maiores no cumprimento de seus deveres.

Na verdade, as instituições, as leis, os modos de pensar e agir legados pelos


antepassados não parecem sempre bem adaptados ao estado atual das coisas.
Vem daí uma perturbação grave no comportamento e nas normas de conduta.

As novas condições influem na própria vida religiosa. De uma parte o espírito


crítico mais agudo a purifica de uma concepção mágica do mundo e de
superstições ainda espalhadas e exige uma adesão à fé cada vez mais pessoal e
operosa. Por isso não poucos se aproximam de um sentido mais vivo de Deus.
Por outra parte, multidões cada vez mais numerosas afastam-se praticamente
da religião. Ao contrário dos tempos passados, negar Deus ou a religião ou
abstrair de ambos não é mais algo de insólito e individual. Com efeito tais
atitudes apresentam-se hoje não raramente como se fossem exigência do
progresso científico ou de certo humanismo novo. Todas estas coisas, em
muitas regiões, não somente são expressas nas máximas dos filósofos, mas
também atingem amplamente as letras, as artes, a interpretação das ciências
humanas e da história e as próprias leis civis, de tal modo que em
conseqüência muito se perturbem.

[Os Desequilíbrios do Mundo Moderno]

8. Uma evolução tão rápida das coisas, progredindo com freqüência


desordenadamente, e mais ainda a própria consciência mais aguda das
discrepancias vigentes no mundo produzem ou aumentam as contradições e
desequilíbrios.Na própria pessoa manifesta-se mais freqüentemente o
desequilíbrio entre a inteligência prática moderna e o pensamento teórico-
especulativo, que não consegue nem dominar a suma de seus conhecimentos
nem ordená-los numa síntese adequada. Manifesta-se igualmente o
desequilíbrio entre a preocupação de eficácia concreta e as exigências da
consciência moral e muitas vezes entre as condições coletivas da existência e
as exigências de um pensamento pessoal e também de contemplação. Enfim,
surge o desequilíbrio entre a especialização da atividade humana e a visão
universal das coisas.

Nascem tensões também no seio da família, quer devidas ao peso das


condições demográficas, econômicas e sociais, quer as dificuldades oriundas
entre as gerações que se sucedem, quer às novas relações sociais que se
estabelecem entre homens e mulheres.

Discrepancias enormes surgem ainda entre as raças, entre as classes sociais de


todo o gênero, entre nações ricas e menos ricas e pobres. Enfim, entre as
instituições internacionais oriundas do desejo dos povos pela paz e a ambição
de disseminar a própria ideologia e os egoismos coletivos existentes nas nações
e em outros grupos. aí surgem desconfianças mútuas e inimizades, conflitos e
sofrimentos, dos quais o homem é ao mesmo tempo causa e vítima.

[As Aspirações mais Universais do Gênero Humano]

9. Entretanto cresce a persuasão de que o gênero humano não só pode mas


deve fortalecer cada mais o seu domínio sobre as coisas criadas; além disso,
que lhe compete estabelecer uma organização política, social e econômica que
com o tempo sirva melhor ao homem e ajude cada um a cada grupo a afirmar e
cultivar a própria dignidade.

Daí muitíssimos reivindicam acirradamente aqueles bens dos quais tomando


viva consciência se julgam privados, por injustiças ou inadequada distribuição.
As nações em via de desenvolvimento como aquelas que se tornaram
recentemente independentes aspiram participar dos bens da civilização, não só
no plano político, mas também econômico, e desempenhar livremente seu
papel no cenário do mundo. Contudo cada dia aumenta mais a sua distância e
muitas vezes ao mesmo tempo a sua dependência também econômica de
outras nações mais ricas e em progresso mais rápido. Os povos oprimidos pela
fome interpelam os povos mais ricos. As mulheres reivindicam, onde ainda não
a conseguiram, sua paridade de direito e de fato com os homens. Os operários
e lavradores não querem somente ganhar o necessário para a alimentação,
mas também pelo trabalho cultivar sua personalidade, e mesmo participar na
organização da vida econômica, social, política e cultural. Agora, pela primeira
vez na história humana, todos os povos já estão convencidos de que os
benefícios da cultura realmente podem e devem ser estendidos a todos.

Debaixo porém de todas estas reivindicações está latente uma aspiração mais
profunda e mais universal: as pessoas e os grupos desejam viver plena e
livremente de maneira digna do homem, colocando a seu próprio serviço todas
as coisas que o mundo moderno pode oferecer tão abundantemente. Além
disso as nações se esforçam cada dia mais tenazmente para que se consiga
uma comunidade universal.

Assim, o mundo moderno se apresenta ao mesmo tempo poderoso e débil,


capaz de realizar o ótimo e o péssimo, por quanto se lhe abre o caminho da
liberdade ou da escravidão, do progresso ou do regresso, da fraternidade ou do
ódio. Além disso, o homem se torna consciente de que depende dele dirigir
retamente as forças por ele despertadas e que o podem oprimir ou lhe servir.
Por isso, o homem se pergunta a si mesmo.

[As Interrogações mais Profundas do Gênero Humano]

10. Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno se


vinculam com aquele desequilíbrio mais fundamental radicado no coração do
homem. Com efeito, no próprio homem muitos elementos lutam entre si.
Enquanto, de uma parte, porque criatura, experimenta-se limitado de muitas
maneiras, por outra parte, porem, sente-se ilimitado nos seus desejos e
chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, é ao mesmo
tempo obrigado a escolher entre elas renunciando a algumas. Pior ainda:
enfermo e pecador, não raro faz o que quer, não fazendo o que desejaria.4 Em
suma sofre a divisão em si mesmo, da qual se originam tantas e tamanhas
discórdias na sociedade. Certamente muitíssimos, cuja vida se impregnou de
materialismo prático, afastam-se da percepção clara deste estado dramático,
ou, oprimidos pela miséria, são impedidos de considerá-lo. Muitos pensam
encontrar tranqüilidade nas diversas explicações do mundo que lhes são
propostas. Outros porem esperam uma verdadeira e plena libertação da
humanidade somente pelo esforço humano. Estão persuadidos de que o futuro
reino do homem sobre a terra haverá de satisfazer todos os desejos de seu
coração. Não faltam os que, desesperados do sentido da vida, louvam a
audácia daqueles que, julgando a existência humana desprovida de qualquer
significado peculiar, esforçam-se por lhe atribuir toda significação só do próprio
engenho. Contudo, diante da evolução atual do mundo, cada dia são mais
numerosos os que formulam perguntas primordialmente fundamentais ou as
percebem com nova acuidade. O que é o homem? Qual é o significado da dor,
do mal, da morte que, apesar de tanto progresso conseguido, continuam a
subsistir? Para que aquelas vitórias adquiridas a tanto custo? O que pode o
homem trazer para a sociedade e dela esperar? O que se seguirá depois desta
vida terrestre?
4 Cf. Rm 7,14ss. A Igreja porém acredita em Cristo, morto e ressuscitado para
todos5, pode oferecer ao homem, por seu Espírito, a luz e as forças que lhe
permitirão corresponder à sua vocação suprema. Ela crê não foi dado aos
homens sob o céu outro nome no qual seja preciso se salvarem.6 Acredita
igualmente que a chave, o centro e o fim de toda história humana se
encontram no seu Senhor e Mestre. Afirma além disso a Igreja que sob todas
as transformações permanecem muitas coisas imutáveis, que têm seu
fundamento último em Cristo, o mesmo ontem e hoje e por toda a eternidade.7
Portanto, sob a luz de Cristo, Imagem de Deus invisível e Primogênito de todas
as criaturas8, o Concílio pretende falar a todos, para esclarecer o mistério do
homem e cooperar na descoberta da solução dos principais problemas do nosso
tempo.

5 Cf. 2 Cor 5,15.

6 Cf. At 4,12.

7 Cf. Heb 13,8.

8 Cf. Col 1,15.

PARTE I: A IGREJA E A VOCAÇÃO DO HOMEM

[Corresponder aos Impulsos do Espírito]

11. Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do Senhor que enche o orbe da
terra, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas
exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que participa com os outros
homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos desígnios de
Deus. A fé, com efeito, esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o
plano divino sobre a vocação integral do homem. E por isso orienta a mente
para soluções plenamente humanas. O Concílio tem a intenção antes de tudo
de distinguir sob esta luz aqueles valores que hoje são de máxima estimação,
relacionando-os à sua fonte divina. Estes valores, enquanto derivam da
inteligência do homem que lhe foi conferida por Deus, são muito bons. Mas por
causa da corrupção do coração humano eles se afastam não raro da sua ordem
devida e por isso precisam de purificação. O que pensa a Igreja a respeito do
homem? O que parece dever ser recomendado para a construção da sociedade
atual? Qual é a significação última da atividade do homem no universo? Espera-
se uma resposta para estas perguntas. E assim aparecerá de modo mais claro
que o Povo de Deus e a humanidade, na qual ele se insere, prestam-se serviços
mútuos. Assim a missão da Igreja se manifesta como religiosa e, por isso
mesmo, humana no mais alto grau.

CAPÍTULO I: A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

[O Homem Imagem de Deus]

12. De acordo com a sentença quase concorde dos crentes e não-crentes, todas
as coisas existentes na terra são ordenadas ao homem como a seu centro e
ponto culminante. O que é porem o homem? Ele emitiu e ainda emite muitas
opiniões a respeito de si mesmo, variadas e contrárias entre si. Numas muitas
vezes se exalta como norma absoluta. Noutras deprime-se até ao desespero.
Donde sua hesitação e angústia. A Igreja percebe claramente estas
dificuldades. Instruída pela revelação de Deus, pode dar-lhes uma resposta, na
qual se delineia a verdadeira condição humana, explicam-se as suas fraquezas
e ao mesmo tempo se reconhecem de modo correto sua dignidade e vocação.
Pois as Sagradas Escrituras ensinam que o homem foi criado “a imagem de
Deus”, capaz de conhecer e amar seu Criador, que o constitui senhor de todas
as coisas terrenas¹ para que as dominasse e usasse, glorificando a Deus. ² “O
que é o homem para dele vos lembrardes? Ou que é o filho do homem para que
vos ocupeis com ele? Entretanto, vós o fizestes pouco inferior aos anjos,
coroando-o de honra e glória. Destes-lhe o poder sobre as obras de vossas
mãos, Vós lhe submetestes toda a criação” (Sl 8,5-7). ¹ Cf. Gn 1,26; Sab 2,23
² Cf. Ecli 17,3-10 Deus não criou o homem solitário. Desde o início, “Deus os
criou varão e mulher” (Gn 1,27). Esta união constituiu a primeira forma de
comunhão de pessoas. O homem é, com efeito, por sua natureza íntima, um
ser social. Sem relações com os outros, não pode nem viver nem desenvolver
seus dotes. Deus portanto, como lemos novamente na Escritura Sagrada, viu
“serem muito boas todas as coisas que fizera” (Gn 1,31).

[O Pecado]

13. Constituído por Deus em estado de justiça, o homem contudo, instigado


pelo Maligno, desde o início da história abusou da própria liberdade. Levantou-
se contra Deus desejando atingir seu fim fora dele. Apesar de conhecerem a
Deus, não o glorificaram como Deus. O seu coração insensato se obscureceu e
eles serviram à criatura ao invés do Criador. ³ Isto, que nos é conhecido pela
Revelação divina, concorda com a própria experiência. Pois o homem, olhando
o seu coração, descobre-se também inclinado para o mal e mergulhado em
múltiplos males que não podem provir do seu Criador que é bom. Recusando
muitas vezes a reconhecer Deus com seu principio, o homem destruiu a devida
ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia
consigo mesmo, com os outros homens e as coisas criadas. ³ Cf. Rom 1,21-25
Por isso o homem está dividido em si mesmo. Por esta razão, toda a vida
humana, individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o
bem e o mal, entre a luz e as trevas. Bem mais ainda. O homem se encontra
incapaz, por si mesmo, de debelar eficazmente os ataques do mal; e assim
cada um se sente como que carregado de cadeias. Mas o próprio Senhor veio
para libertar e confortar o homem, renovando-o interiormente. Expulsou o
“príncipe deste mundo” (Jo 12,31) que retinha o homem na escravidão do
pecado.4 O pecado porém diminuiu o próprio homem, impedindo-o de
conseguir a plenitude.

4 Cf. Jo 8,34 À luz desta Revelação, a vocação sublime e ao mesmo tempo a


profunda miséria que os homens sentem, encontram a sua razão última.

[A Constituição do Homem]
14. Corpo e alma, mas realmente uno, o homem, por sua própria condição
corporal, sintetiza em si os elementos do mundo material, que nele assim
atinge sua plenitude e apresenta livremente ao Criador uma voz de louvor. 5
Não é portanto lícito ao homem desprezar a vida corporal, mas, ao contrário,
deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à
ressurreição no último dia. Mas, vulnerado pelo pecado, o homem sente as
revoltas do corpo. Portanto a própria dignidade do homem pede que ele
glorifique a Deus, em seu corpo, não lhe permitindo servir a más inclinações do
coração 6. 5 Cf. Dan 3,57-90

6 Cf. 1 Cor 6,13-20 O homem na verdade não se engana quando se reconhece


superior aos elementos materiais, e não se considera somente uma partícula da
natureza ou um elemento anônimo da cidade humana. Com efeito, por sua vida
interior, o homem excede a universalidade das coisas. Ele penetra nesta
intimidade profunda quando se volta ao seu coração, onde o espera Deus, que
perscruta os corações 7; e onde ele pessoalmente sob os olhares de Deus
decide a sua própria sorte. Deste modo, reconhecendo em si mesmo a alma
espiritual e imortal, longe de tornar-se joguete de uma criação imaginária que
se explicaria somente pelas condições físicas e sociais, o homem, ao contrário,
atinge a própria profundeza da realidade.7 Cf. 1 Rs 16,7; Jer 17,10.

[A Dignidade da Inteligência, a Verdade e a Sabedoria]

15. Participando da luz da inteligência divina, com razão o homem se julga


superior, por sua inteligência, à universalidade das coisas. Exercitando a sua
inteligência diligentemente através dos séculos, nas ciências empíricas, artes
técnicas e liberais, o homem de fato progrediu. Em nossos tempos, sobretudo
pesquisando e dominando o mundo material, o homem conseguiu notáveis
resultados. Porém procurou sempre e encontrou uma verdade mais profunda.
Pois a inteligência não se limita aos fenômenos, mas pode atingir, com
autêntica certeza, a realidade intelegivel, ainda que, em conseqüência do
pecado, esteja em parte obscurecida e enfraquecida. Enfim, a natureza
intelectual da pessoa humana se aperfeiçoa e deve ser aperfeiçoada pela
sabedoria. Esta atrai de maneira suave a mente do homem à procura e ao
amor da verdade e do bem. Impregnado de sabedoria o homem passa das
coisas visíveis às invisíveis. A nossa época, mais do que os séculos passados
precisa desta sabedoria para que se tornem mais humanas todas as novidades
descobertas pelo homem. Realmente está em perigo a sorte futura do mundo
se não surgirem homens mais sábios. Além disso, deve-se notar que
numerosas nações, mais pobres em bens econômicos, porem mais ricas em
sabedoria, podem prestar excelente contribuição às outras. Pelo dom do
Espírito Santo, o homem, na fé, chega a contemplar e a saborear o mistério do
plano divino8. 8 Cf. Ecli 17,7-8.

[Dignidade da Consciência Moral]

16. Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si


mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e fazer o bem e
a evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei lhe soa nos ouvidos do
coração: faze isto, evita aquilo. De fato o homem tem uma lei escrita por Deus
em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será
julgado de acordo com esta lei.9 A consciência é o núcleo secretíssimo e o
sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz.10
Pela consciência se descobre, de modo admirável, aquela lei que se cumpre no
amor de Deus e do próximo.¹¹ Pela fidelidade à consciência, os cristãos e na
solução justa de inúmeros problemas morais que se apresentam, tanto na vida
individual quanto social. Quanto mais pois prevalecer a consciência reta, tanto
mais as pessoas e os grupos se afastam de um arbítrio cego e se esforçam por
se conformar às normas objetivas da moralidade. Acontece não raro contudo
que a consciência erra, por ignorância invencível, sem perder no entanto sua
dignidade. Isto porém não se pode dizer quando o homem não se preocupa
suficientemente com a investigação da verdade e do bem, e a consciência
pouco a pouco pelo hábito do pecado se torna quase obcecada. 9 Cf. Rom 2,14-
16.

10 Cf. Pio XII, Radiomensagem sobre a reta formação da consciência cristã nos
jovens, de 23-3-1952: AAS 44 (1952), p. 271 (REB 1952, p. 431; D.P. 136). ¹¹
Cf. Mt 22,37-40; Gá1 5,14.

[A Grandeza da liberdade]

17. O homem porem não pode voltar-se para o bem a não ser livremente. Os
nossos contemporâneos exaltam e defendem com ardor esta liberdade. E de
fato com razão. Contudo, eles a fomentam muitas vezes de maneira viciada,
como uma licença de fazer tudo que agrada, mesmo o mal. A verdadeira
liberdade porem é um sinal eminente da imagem de Deus no homem. Pois
Deus quis “deixar ao homem o poder de decidir”¹², para que assim procure e
chegue à perfeição plena e feliz. Portanto a dignidade do homem exige que
possa agir de acordo com uma opção consciente e livre, isto é, movido e levado
por convicção pessoal e não por força de um impulso interno cego ou debaixo
de mera coação externa. O homem consegue esta dignidade quando, liberado
de todo o cativeiro das paixões, caminha para o seu fim pela escolha livre do
bem e procura eficazmente os meios aptos com diligente aplicação. A liberdade
do homem, vulnerada pelo pecado, só com o auxílio da graça divina pode
tornar plenamente ativa esta ordenação a Deus. Cada um porem, perante o
tribunal de Deus, prestará contas da própria vida, segundo o bem e o mal que
tiver feito.¹³ ¹² Cf. 1 Cor 5,10. ¹³ Cf. Sab 1,13; 2,23-24; Rom 5,21; 6,23; Tgo
1,15.

[O Mistério da Morte]

18. Diante da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto alto. O
homem não se aflige somente com a dor e a progressiva dissolução do corpo,
mas também, e muito mais, com o temor da destruição perpétua. Mas é por
uma inspiração acertada do seu coração que afasta com horror e repele a ruína
total e a morte definitiva de sua pessoa. A semente de eternidade que leva
dentro de si, irredutível a só matéria, insurge-se contra a morte. Todas as
conquistas da técnica, ainda que utilíssimas, não conseguem acalmar a
angústia do homem. Pois a longevidade, que a biologia lhe consegue, não
satisfaz o desejo de viver sempre mais, que existe inelutavelmente em seu
coração.

Enquanto toda a imaginação fracassa diante da morte, a Igreja contudo,


instruída pela Revelação divina, afirma que o homem foi criado por Deus para
um fim feliz, além dos limites da miséria terrestre. Mais ainda. Ensina a fé
cristã que a morte corporal, da qual o homem seria subtraído se não tivesse
pecado14, será vencida um dia, quando a salvação perdida pela culpa do
homem lhe for restituída por seu onipotente e misericordioso Salvador. Pois
Deus chamou e chama o homem para que ele, com a sua natureza inteira, de
sua adesão a Deus na comunhão perpétua da incorruptível vida divina. Cristo
conseguiu esta vitória, por sua morte, libertando o homem da morte que
reflete, apresentada com argumentos sólidos, a fé dá-lhe uma resposta a sua
angústia sobre a sorte futura. Ao mesmo tempo oferece a possibilidade de
comunicar-se em Cristo com os irmãos queridos já arrebatados pela morte,
trazendo a esperança de que eles tenham alcançado a verdadeira vida junto de
Deus. 14 Cf. Sab 1,13; 2,23-24; Rom 5,21; 6,23; Tgo 1,15.

[As Formas de Ateísmo e suas Causas]

19. A razão principal da dignidade humana consiste na vocação do homem para


a comunhão com Deus. Já desde sua origem o homem é convidado para o
diálogo com Deus. Pois o homem, se existe, é somente porque Deus o criou e
isto por amor. Por amor é sempre conservado. E não vive plenamente segundo
a verdade, a não ser que reconheça livremente aquele amor e se entregue ao
seu Criador. Mas muitos de nossos contemporâneos não percebem de modo
algum esta união íntima e vital com Deus ou explicitamente a rejeitam, a ponto
de o ateísmo contar entre os gravíssimos problemas de nosso tempo e deve ser
submetido a um exame mais diligente.

Pela palavra ateísmo designam-se fenômenos bastante diversos entre si.


Enquanto Deus é expressamente negado por uns, outros pensam que o homem
não pode afirmar absolutamente nada sobre Ele. Alguns porem submetem a
exame o problema de Deus por tal método, que parece carecer de sentido.
Muitos, ultrapassando indebitamente os limites das ciências positivas, ou
sustentam que só por este processo científico se explicam todas as coisas, ou,
ao contrário, já não admitem de modo algum nenhuma verdade absoluta,
Alguns exaltam o homem a tal ponto que a fé em Deus se torna como que
enervada e dão a impressão de estar mais preocupados com a afirmação do
homem que com a negação de Deus. Outros se representam um Deus de tal
modo que aquela fantasia, que eles repudiam, de modo algum é o Deus do
Evangelho. Alguns não abordam sequer o problema de Deus: parece não
sentirem nenhuma inquietação religiosa e nem atinarem por que deveriam
preocupar-se com religião. Além disso o ateísmo não raramente ou de um
protesto violento contra o mal no mundo, ou do caráter do próprio absoluto que
se atribui indevidamente a alguns bens humanos, de tal modo que sejam
tomados por Deus. A própria civilização moderna, não por si mesma, mas
porque demasiadamente comprometida com as realidades terrestres, pede
muitas vezes dificultar o acesso a Deus.

Na verdade os que deliberadamente tentam afastar Deus de seu coração e


evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame da sua consciência, não
são isentos de culpa. No entanto os próprios fiéis arcam sobre isto muitas vezes
com alguma responsabilidade. Pois o ateísmo, considerado no seu conjunto,
não é algo inato mas antes originado de causas diversas, entre as quais se
enumera também a reação crítica contra as religiões e em algumas regiões
sobretudo contra a religião cristã. Por esta razão, nesta gênese do ateísmo,
grande parte podem ter os crentes, enquanto, negligenciando a educação da fé,
ou por uma exposição falaz da doutrina, ou por faltas na sua vida religiosa,
moral e social, se poderia dizer deles que mais escondem que manifestam a
face genuína de Deus e da religião.

20. O ateísmo moderno muitas vezes apresenta também uma forma


sistemática que, além de outras causas, leva a aspiração humana de autonomia
a ponto de levantar dificuldade contra qualquer dependência de Deus. Aqueles
que professam tal ateísmo sustentam que a liberdade consiste em o homem ser
o seu próprio fim e o único artífice e demiurgo de sua própria história. E
pretendem que esta posição não pode harmonizar-se com o reconhecimento do
Senhor, autor e fim de todas as coisas, ou pelo menos torna tal afirmação
completamente supérflua. O sentido de potência que o progresso técnico atual
confere ao homem, pode favorecer esta doutrina.

Entre as formas do ateísmo hodierno não deve ser esquecida aquela que espera
a libertação do homem, principalmente da sua libertação econômica e social.
Sustenta que a religião, por sua natureza, impede esta libertação, à medida
que, estimulando a esperança do homem numa quimérica vida futura, o
afastaria da construção da cidade terrestre. Os partidários desta doutrina, onde
chegam ao governo da coisa pública, perseguem com veemência a religião,
servindo-se na difusão do ateísmo, sobretudo na educação da juventude, dos
meios de pressão ao alcance do poder público.

[Relação da Igreja com o Ateísmo]

21. Fiel quer a Deus e quer aos homens, a Igreja não pode deixar de reprovar
dolorosamente, com toda a firmeza, como reprovou até agora16, aquelas
doutrinas e atividades perniciosas que contradizem à razão e à experiência
humana universal e privam o homem de sua grandeza inata.

16 Cf. Pio XI, Enc. Divini Redemptoris, de 19-3-1937: AAS 29 (1937), pp. 65-
106; Pio XII, Enc. Ad Apostolorum Principis, de 29-6-1958: AAS 50 (1958), pp.
601-614; João XXIII, Enc. Mater et Magistra, de 15-5-1962 (1961), pp. 451-
453; Paulo VI, Enc. Eccletestam Suam, de 6-8-1964: AAS 56 (1964), pp. 651-
653.
Contudo a Igreja tenta descobrir, no pensamento dos ateus, as causas latentes
da negação de Deus e, consciente da gravidade dos problemas que o ateísmo
levanta, guiada pela caridade para com todos os homens, julga que estes
motivos devem ser submetidos a um sério e mais aprofundado exame.

A Igreja sustenta que o reconhecimento de Deus não se opõe de modo algum a


dignidade do homem, já que esta dignidade se fundamenta e se aperfeiçoa no
próprio Deus. Pois o homem, inteligente e livre, é estabelecido por Deus criador
em sociedade. Mas, como filho, é chamado principalmente a própria comunhão
filho, é chamado principalmente à própria comunhão com Deus e a participação
de sua felicidade. A Igreja ensina, além disso, que a esperança escatógica não
diminui a importância das tarefas terrestres mas antes apóia o seu
cumprimento com motivos novos. Faltando ao contrário o fundamento divino e
a esperança da vida eterna, a dignidade do homem é prejudicada de modo
gravíssimo, como se vê hoje com freqüência; e os enigmas sem solução: assim
os homens muitas vezes são lançados ao desespero.

Todo homem, entretanto, permanece para si mesmo um problema insolúvel,


obscuramente percebido. Em algumas ocasiões, com efeito, sobretudo nos mais
importantes acontecimentos da vida, ninguém consegue fugir de todo a esta
pergunta. Só Deus dá uma resposta plena e totalmente certa a esta questão e
chama o homem a mais alto conhecimento e a pesquisa mais humilde.

O remédio porem a ser levado ao ateísmo deve-se esperar não só de uma


adequada exposição doutrinária mas também de pureza de vida da Igreja e de
seus membros. Pois compete a Igreja tornar presente e como que visível Deus
Pai e seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se incessantemente, sob
a direção do Espírito Santo. 17 Isto se obtém primeiramente pelo testemunho
de uma fé viva e adulta formada, capaz de perceber de modo lúcido as
dificuldades e superá-las. Inúmeros mártires deram e dão um testemunho
preclaro desta fé. Esta fé deve manifestar a sua fecundidade, penetrando toda
a vida dos fiéis, também a profana, impulsionando-os a justiça e ao amor,
sobretudo para com os necessitados. Para a manifestação da presença de Deus
contribui enfim sobremaneira a caridade fraterna dos fiéis, que em espírito
unânimes colaboram para a fé do Evangelho18 e se apresentam como sinal de
unidade.
17 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. I, n.
8: AAS 57 (1965), p. 12.

18 Cf. Filip 1,27.

Ainda que rejeite absolutamente o ateísmo, a Igreja contudo declara com


sinceridade que todos os homens, crentes e não-crentes, devem prestar seu
auxílio a construção adequada deste mundo, no qual vivem comunitariamente.
Isto certamente não é possível sem sincero e prudente diálogo. Deplora
portanto a discriminação, entre crentes e não-crentes, que alguns governantes,
não reconhecendo os direitos fundamentais da pessoa humana, introduzem
injustamente. Reclama a liberdade ativa para os crentes, a fim de que possam
nesse mundo construir também o templo de Deus. Aos ateus, convida-os
humanamente a refletir com toda a objetividade sobre o Evangelho de Cristo.
Pois a Igreja sabe perfeitamente que sua mensagem concorda com as
aspirações mais íntimas do coração humano, quando reivindica a dignidade da
vocação humana, restituindo a esperança aqueles que já desesperam de seu
destino mais alto. A sua mensagem, longe de diminuir o homem, derrama luz,
vida e liberdade para o seu progresso. Nada além disto pode satisfazer o
coração do homem: “Fizestes-nos para Vós”, Senhor, “e o nosso coração
permanece inquieto, enquanto em Vós não descansar”.19

19 S. Agostinho, Confissões, 1,1: PL 32,661.

[Cristo, Homem Novo]

22. Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no


mistério do Verbo encarnado. Com efeito, Adão o primeiro era figura daquele
que haveria de vir20, isto é, de Cristo Senhor. Novo Adão, na mesma revelação
do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao
próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação. Não é portanto de se
admirar que em Cristo estas verdades encontrem sua fonte e atinjam seu
ápice.

20 Cf. Rm 5,14. Cf. Tertuliano, De carnis resurr. 6: “Quod-cumque enim limus


exprimebatur, Christus cogitabatur futurus”: PL 2,802 (848); CSEL, p. 33,
1.12-13.

“Imagem de Deus invisível” (Col 1,15)21, Ele é o homem perfeito, que resistiu
aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado.
Como a natureza humana foi n’Ele assumida, não aniquilada ²², por isso
mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade sublime. Com efeito, por
Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem.
Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com
vontade humana ²³, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria,
tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no
pecado.

24 ²¹ Cf. 2 Cor 4,4. ²² Cf. Conc. Const.. II cân. 7: “Nem o Verbo se


transformou na natureza da carne, nem a carne passou a natureza do Verbo”:
Dz 219 (428). – Cf. também o Conc. Const. III: “Como sua carne animada
santíssima e imaculada, não por estar divinizada foi suprimida, mas
permaneceu em seu próprio estado e razão: Dz 291 (556). – Cf. Conc. Calced.:
Cristo “deve ser reconhecido em duas naturezas, sem confusão, sem mudança,
sem divisão, sem separação”: Dz 148 (302). ²³ Cf. Conc. Const. III: “assim
nem sua vontade humana foi suprimida por estar divinizada”. 24 Cf. Heb 4,15.
Cordeiro inocente, por meio de Seu sangue livremente derramado, mereceu-
nos a vida. N’Ele Deus nos reconciliou consigo e entre nós25, arrancando-nos
da servidão do diabo e do pecado. De modo que cada um de nós pode dizer
com o Apóstolo: O Filho de Deus “me amou e Se entregou por mim” (Gál 2,20).
Padecendo por nós não só nos deu o exemplo para que sigamos os Seus
passos26, mas ainda abriu novo caminho: se nós o seguirmos, a vida e a morte
se santificam e adquirem nova significação. 25 Cf. 2 Cor 5,18-19; Col 1,20-22.
26 Cf. 1 Ped 2,21; Mt 16,24; Lc 14,27.

Feito conforme a imagem do Filho que é o Primogênito entre muitos irmãos27,


o irmão cristão recebe “as primícias do Espírito Santo” (Rom 8,23), que o
tornam capaz de cumprir a nova lei de amor.28 Por esse Espírito, “penhor da
herança” (Ef 1,14) o homem todo se renova interiormente, até a “redenção do
corpo” (Rom 8,32). “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos
habita em vós, aquele que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, vivificará
também os vossos corpos mortais, por virtude do seu Espírito que habita em
vós” (Rom 8,11).29 É certo que a necessidade e o dever obrigam o cristão a
lutar contra o mal através de muitas tribulações e a padecer a morte. Mas,
associado ao mistério pascal, configurado à morte de Cristo e fortificado pela
esperança chegará a ressurreição.30

27 Cf. Rom 8,29; Col 3,10-14.

28 Cf. Rom 8,1-11.

29 Cf. 2 Cor 4,14.

30 Cf. Filip 3,10; Rom 8,17.

Isto vale não somente para os cristãos, mas também para todos os homens de
boa vontade em cujos corações a graça opera de modo invisível.³¹ Com efeito,
tendo Cristo morrido por todos ³² e sendo uma só a vocação última do homem,
isto é divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a
possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério
pascal.
³¹ CF. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. II, n.
16: AAS 57 (1965), p. 20. ³² Cf. Rom 8,32. Tal e tamanho é o mistério do
homem que pela Revelação cristã brilha para os fiéis. Por Cristo e em Cristo,
portanto, ilumina-se o enigma da dor e da morte, que fora de seu Evangelho
nos esmaga. Cristo ressuscitou, com Sua morte destruiu a morte e concedeu-
nos a vida ³³, para que, filhos no Filho, clamemos no Espírito: Abba, Pai!34 ³³
Cf. Liturgia pascal bizantina. 34 Cf. Rom 8,15; Gál 4,6; Jo 1,22 e 1 Jo 3,1-2.

CAPÍTULO II: A COMUNIDADE HUMANA [Intenção do Concílio]

23. Entre os principais aspectos do mundo de hoje enumera-se a multiplicação


das relações mútuas entre os homens. Para sua evolução, em alta escala
contribui o progresso técnico atual. Contudo, o diálogo fraterno entre os
homens se aperfeiçoa, não neste progresso, porém mais profundamente na
comunidade de pessoas, que exige uma reverência mútua para com sua plena
dignidade espiritual. Mas para promover esta comunhão entre as pessoas, a
Revelação cristã oferece um grande auxílio; ao mesmo tempo, nos leva a mais
profunda compreensão das leis da vida social que o Criador gravou na natureza
espiritual e moral do homem.
Mas como os mais recentes documentos do Magistério da Igreja desenvolveram
difusamente a doutrina cristã sobre a sociedade humana¹, o Concílio recorda
somente algumas verdades mais essenciais e expõe os seus fundamentos à luz
da Revelação. Em seguida insiste em algumas conseqüências que são de maior
importância para os nossos dias. ¹ Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra, de
15-5-1961: AAS 53 (1961), pp. 401-464 e a Enc. Pacem in terris, de 11-4-
1963: AAS 55 (1963), pp. 257-304; Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, de 6-8-
1964: AAS 54 (1964), pp. 609-659.

[A Índole Comunitária da Vocação Humana no Plano de Deus]

24. Deus, que tem um cuidado paternal para com todos, quis que todos os
homens formassem uma só família e se tratassem mutuamente com espírito
fraterno. Todos, com efeito, criados à imagem de Deus, que “de um fez todo o
gênero humano habitar sobre a face da terra” (At 17,26), são chamados a um
único e mesmo fim, que é o próprio Deus.

Por isso, o amor de Deus e do próximo é o primeiro e o máximo mandamento.


Mas a Sagrada Escritura nos ensina que o amor de Deus não se pode separar
do amor do próximo: “...se há algum outro mandamento, ele se resume nestas
palavras: Amarás a teu próximo como a ti mesmo... A plenitude portanto da lei
é o amor” (Rom 13,9-10; 1 Jo 4,20). E isto se comprova ser de máxima
importância para os homens que cada dia são mais dependentes uns dos outros
e para o mundo que incessantemente se unifica mais.

Mais ainda. Quando o Senhor Jesus reza ao Pai que “todos sejam um..., como
nós somos um” (Jo 17,21-22), abre perspectivas inacessíveis a razão humana,
sugere alguma semelhança entre a união das pessoas divinas e a união dos
filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança manifesta que o
homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se
encontrar plenamente se não por um dom sincero de si mesmo. ²

² Cf. Lc 17,33

[Mútua Dependência entre a Pessoa Humana e a Sociedade Humana]

25. A índole social do homem evidencia que o aperfeiçoamento da pessoa


humana e o desenvolvimento da própria sociedade dependem um do outro. A
pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim der todas as instituições
sociais, porque, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social. ³ A
vida social não é portanto algo acrescentado ao homem: assim o homem
desenvolve-se em todas as suas qualidades mediante, pelo diálogo com os
irmãos, e pode corresponder a sua vocação. ³ Cf. S. Tomás, I Ethic., lect. 1.
Dos vínculos sociais necessários a educação do homem, alguns, como a família
e a comunidade política, correspondem mais imediatamente a sua natureza
intima. Os outros decorrem mais da vontade livre. Em nossos tempos, por
diversos motivos, as relações mútuas e interdependências multiplicam-se cada
dia: donde aparecem diversas associações e instituições de direito público e
privado. Ainda que neste fato, chamado socialização, não careça de perigos, é
portador de muitas vantagens para consolidar e aumentar as qualidades da
pessoa humana e para defender os seus direitos.4 4 Cf. João XXIII, Enc. Mater
et Magistra: AAS 53 (1961), p. 418. Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno, 15-5-
1931: AAS 23 (1931), p. 222 s. Mas se as pessoas humanas, para a realização
de sua vocação, mesmo a religiosa, recebem muito desta vida social, não se
pode entretanto negar que os homens, pelas circunstâncias sociais nas quais
vivem e estão mergulhados desde a infância, são com freqüência afastados da
prática do bem e impelidos ao mal. É certo que as perturbações, verificadas tão
freqüentemente na ordem social, decorrem em parte da própria tensão
existentes na estrutura econômicas, políticas e sociais. Porém, mais
profundamente, originam-se da soberba e do egoísmo dos homens, que
transformam também o ambiente social. Mas onde a ordem das coisas é antiga
pelas conseqüências do pecado, o homem, inclinado ao mal por nascença,
encontra em seguida novos estímulos para o pecado, que não se vencem senão
com esforços diligentes e o auxílio da graça.

[Promoção do Bem Comum]

26. A interdependência cada dia se estreita mais e se difunde pouco a pouco no


mundo inteiro. Segue-se daí que o bem comum – ou o conjunto daquelas
condições da vida social que permitem aos grupos e a cada um de seus
membros atingirem de maneira mais completa e desembaraçadamente a
própria perfeição – torna-se hoje cada vez mais universal e implica por
conseqüência direitos e deveres que dizem respeito a todo o gênero humano.
Qualquer grupo deve levar em conta as necessidades e aspirações legítimas dos
outros grupos e, ainda mais, o bem comum de toda a família humana.5 5 Cf.
João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 417. Cresce, porém, ao
mesmo tempo a consciência da dignidade exímia da pessoa humana, superior a
todas as coisas. Seus direitos e deveres são universais e invioláveis. É preciso
portanto que se tornem acessíveis ao homem todas aquelas coisas que lhe são
necessárias para levar uma vida verdadeiramente humana. Tais são: alimento,
roupa, habitação, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir
família, direito a educação, ao trabalho, a boa fama, ao respeito, a conveniente
informação, direito de agir segundo a norma reta de sua consciência, direito à
proteção da vida particular e a justa liberdade, também em matéria religiosa.
Portanto, a ordem social e o seu progresso devem ordenar-se incessantemente
ao bem das pessoas, pois a organização das coisas deve subordinar-se a ordem
das pessoas e não ao contrário. O próprio Senhor o insinua ao dizer que o
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.6 Esta ordem
deve desenvolver-se sem cessar, ter por base a verdade, construir-se sobre a
justiça, ser animada pelo amor e encontrar na liberdade um equilíbrio sempre
mais humano.7 Para se cumprirem tais exigências, devem-se introduzir uma
reforma de mentalidade e amplas mudanças sociais. 6 Cf. Mc 2,27. 7 Cf. João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 266. O Espírito de Deus, que
dirige o curso da história com providência admirável e renova a face da terra
está presente a esta evolução. O fermento evangélico despertou e desperta no
coração do homem uma irrefreável exigência de dignidade.

[O Respeito para com a Pessoa Humana]


27. Descendo às conseqüências práticas e mais urgentes, o Concílio inculca o
respeito ao homem; que cada um respeite o próximo como “outro eu”, sem
excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua vida e os
meios necessários para mantê-la dignamente8, a fim de não imitar aquele rico
que não teve nenhum cuidado com o pobre Lázaro.9

8 Cf. Tgo 2,15-16.

9 Cf. Lc 16,19-31.

Sobretudo nos nossos tempos, temos a imperiosa obrigação de nos tornar-mos


próximos de qualquer homem indistintamente; se ele se nos apresenta,
devemos servi-lo ativamente, quer seja um velho abandonado por todos, ou
um operário estrangeiro injustamente desprezado, ou um exilado, ou uma
criança nascida de união ilegítima sofrendo imerecidamente por um pecado que
não cometeu, seja um faminto que interpela a nossa consciência recordando a
voz do Senhor: “Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos
mais pequeninos a mim é que fizestes” (Mt 25,40).

Além disso, tudo o que atenta contra a própria vida, como qualquer espécie de
homicídios, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário;
tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, as
torturas físicas ou morais e as tentativas de dominação psicológica; tudo o que
ofende a dignidade humana, como as condições infra-humanas de vida, os
encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
mercado de mulheres e jovens e também as condições degradantes de
trabalho, que reduzem os operários a meros instrumentos de lucro, sem
respeitar-lhes a personalidade livre e responsável: todas estas práticas e outras
semelhantes são efetivamente dignas de censura. Enquanto elas inficionam a
civilização humana, desonram mais os que se comportam desta maneira, do
que aqueles que padecem tais injúrias. E contradizem sobremaneira a honra do
Criador.

[O Respeito e Amor para com os Adversários]

28. O respeito e caridade devem se estender também aqueles que em assuntos


sociais, políticos e mesmo religiosos pensam e agem de maneira diferente da
nossa. Aliás, quanto mais intimamente com humanidade e caridade
compreendemos o seu modo de pensar, tanto maior será a facilidade para
poder iniciar um diálogo com eles.

Esta caridade e benevolência não nos deve tornar de modo algum indiferentes
perante a verdade e o bem Mais ainda. A própria caridade impele os discípulos
de Cristo a anunciar a verdade salvadora a todos os homens. Mas é preciso
distinguir entre o erro, que deve ser sempre rejeitado, e o errante, que
conserva todavia a dignidade de pessoa, mesmo quando inquinado por noções
religiosas falsas ou menos cuidadas.10 Só Deus é juiz e escrutador dos
corações. Por isso Ele nos proíbe julgar sobre a culpa interior de quem quer que
seja.¹¹ 10 Cf. João XXIII, Enc. Pacis in terris: AAS 55 (1963), pp. 299-300.
11 Cf. Lc 6,37-38: Mt 7,1-2; Rom 2,1-11; 14,10-12.

A doutrina de Cristo pede que perdoemos mesmo as injúrias¹² e estende o


preceito do amor, que é o mandamento da Nova Lei, a todos os inimigos:
“Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu
porém vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai
pelos que vos perseguem e caluniam” (Mt 5,43-44).

[A Igualdade Essencial entre todos os Homens e a Justiça Social]

29. Dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos os homens


tem a mesma natureza e a mesma origem; redimidos por Cristo, todos gozam
da mesma vocação e destinação divina: deve-se portanto reconhecer cada vez
mais a igualdade fundamental entre todos.

Na verdade nem todos os homens se equiparam na capacidade física, que é


variada, e nas forças intelectuais e morais, que são diversas. Contudo qualquer
forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja ela social ou
cultural, ou funde-se no sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião deve
ser superada e eliminada, porque contrária ao plano de Deus. É de lamentar
realmente que aqueles direitos fundamentais da pessoa não sejam ainda
garantidos por toda a parte. É o caso quando se nega à mulher a faculdade de
escolher livremente o seu esposo, de abraçar seu estado de vida ou o acesso à
mesma cultura e educação que se admitem para o homem.

Além disso, ainda que haja entre os homens justas diferenças, a igual
dignidade das pessoas postula que se chegue a uma condição de vida mais
humana e mais eqüitativa. Pois as excessivas desigualdades econômicas e
sociais entre os membros e povos da única família humana provocam escândalo
e são contrárias à justiça social, à eqüidade, à dignidade da pessoa humana e a
paz social e internacional.

As instituições humanas, particulares ou públicas, se esforcem por servir à


dignidade e ao fim do homem. Ao mesmo tempo lutem denodamente contra
qualquer espécie de servidão tanto social quanto política e respeitem os direitos
fundamentais do homem sob qualquer regime político. Além disso, é necessário
que estas instituições pouco a pouco se adaptem às exigências espirituais,
superiores a tudo, ainda que às vezes seja necessário um tempo bastante longo
para chegarem ao fim desejado.

[A Superação de uma Ética Individualista]

30. A transformação profunda e rápida das coisas pede com mais urgência que
ninguém, desatento ao curso dos acontecimentos ou entorpecido pela inércia,
se contente com uma ética meramente individualista. Cumprem-se cada vez
melhor os deveres de justiça e caridade, se cada um, contribuindo para o bem
comum segundo suas capacidades e as necessidades dos outros, promover e
ajudar também as instituições públicas e particulares que estão a serviço de um
aprimoramento das condições de vida dos homens. Alguns há que,
proclamando opiniões largas e generosas, na prática vivem sempre sem
cuidado algum com as necessidades da sociedade. Pior ainda. Muitos, em
diversas regiões, menosprezam as leis e prescrições sociais. Não poucos, por
diversas formas de fraude e de dolo, não têm escrúpulo de sonegar os impostos
justos ou outras contribuições devidas a sociedade. Tem outros em pouca conta
algumas normas da vida social, como por exemplo para a proteção da saúde,
ou as estabelecidas para regular o trânsito de veículos, não advertindo que por
falta de cuidado colocam em perigo a própria vida e a dos outros.

Que todos considerem como obrigação sagrada enumerar as relações sociais


entre os principais deveres do homem de hoje e observá-las. Com efeito,
quanto mais se une o mundo, mais abertamente as funções humanas superam
os grupos particulares e estendem-se pouco a pouco ao mundo inteiro. E isto
não se pode fazer sem que os indivíduos e seus grupos cultivem em si mesmos
as virtudes morais e sociais e as difundam na sociedade. Assim aparecerão,
com o necessário auxílio da graça divina, homens realmente novos e
construtores de uma humanidade nova.

[Responsabilidade e Participação]

31. Para que cada indivíduo cumpra com mais solicitude o seu dever de
consciência, tanto para consigo mesmo quanto para com os diversos grupos
dos quais é membro, deve ser educado com diligência para uma cultura mais
vasta do espírito, valendo-se dos recursos que hoje estão ao alcance do gênero
humano. Antes de tudo deve-se organizar de tal maneira a educação dos
jovens, seja qual for sua origem social, que surjam homens e mulheres não
somente cultos mas também de personalidade forte, como se exigem
urgentemente em nossos tempos.

Mas o homem chega dificilmente a este sentido de responsabilidade se as


condições de vida não lhe permitirem tomar consciência de sua dignidade e
corresponder a sua vocação dedicando-se a Deus e aos outros. A liberdade
humana estiola-se muitas vezes quando o homem cai em miséria extrema,
assim como se degrada quando, complacente com as excessivas facilidades da
vida, se fecha numa espécie de torre de marfim. O homem se fortalece, ao
contrário, quando compreende as inevitáveis necessidades da vida social,
assume as exigências multiformes da solidariedade humana e se responsabiliza
pelo serviço a comunidade humana.

Por isso deve ser estimulada a vontade de todos de participar das iniciativas
comunitárias. Deve-se louvar também a maneira de proceder daquelas nações
onde a maior parte dos cidadãos, com autêntica liberdade, participam da vida
pública. Deve-se levar em conta contudo a condição concreta de cada povo e
do necessário vigor da autoridade pública. Mas para que todos os cidadãos
estejam dispostos a participar da vida dos diversos grupos, dos quais consta o
corpo social, é necessário que encontrem nestes grupos os bens que os atraiam
e os disponham para o serviço dos seus semelhantes. Podemos pensar com
razão em depositar o futuro da humanidade nas mãos daqueles que são
capazes de transmitir as gerações de amanhã razões de viver e de esperar.
[O Verbo Encarnado e a Solidariedade Humana]

32. Como Deus não criou os homens para viverem isoladamente mas formarem
uma união social, assim também Lhe “aprouve... santificar e salvar os homens
são individualmente, excluindo qualquer conexão mútua, mas constituí-los em
um povo, que O reconhecesse na verdade e O servisse santamente”.¹³ Desde o
início da história da salvação Deus escolheu os homens não como indivíduos
somente, mas como membros de uma comunidade. Revelando o seu plano,
Deus chamou estes eleitos de “Seu povo” (Êx 3,7-12). Além disso, selou com
este povo uma aliança no Sinai.14

13 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n.9:
AAS 57 (1965), pp. 12-13.

14 Cf. Ex 24,1-8.

Esta índole comunitária por obra de Jesus Cristo é aperfeiçoada e consumada.


O próprio Verbo Encarnado quis participar da comunidade humana. Esteve
presente as bodas de Caná, entrou na casa de Zaqueu e assentou-se a mesa
com publicanos e pecadores. Revelou o amor do Pai e a exímia vocação dos
homens evocando as realidades mais comuns da vida social e usando locuções
e imagens inteiramente da vida cotidiana. Santificou as relações humanas,
sobretudo as familiares, das quais derivam as relações sociais.
Voluntariamente. Se submeteu às leis de Sua pátria. Quis levar a vida de
operário própria de Seu tempo e de Sua região.

Na Sua pregação claramente ordenou que os filhos de Deus se tratassem


mutuamente como irmãos. Em Sua oração pediu que todos os seus discípulos
fossem “um” Bem mais. Ele próprio, até a morte, ofereceu-Se por todos como
Redentor de todos. “Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a sua vida
por seus amigos” (Jo 15,13). Mandou Seus apóstolos pregarem a mensagem
evangélica a todos os povos, para que o gênero humano se tornasse a família
de Deus, na qual a plenitude da lei seria o amor. Primogênito entre muitos
irmãos, depois de Sua morte e de Sua ressurreição, pelo dom do seu Espírito,
Ele instituiu, entre todos aqueles que o recebem pela fé e pelo amor, nova
comunidade fraternal, em seu Corpo, que é a Igreja. Nele todos, membros uns
dos outros, segundo a diversidade de dons que lhes são concedidos, devem
ajudar-se mutuamente.
Esta solidariedade deverá crescer sempre até o dia de sua consumação. Neste
dia os homens, salvos pela graça, como família amada por Deus e por Cristo
irmão, darão perfeita glória a Deus.

CAPÍTULO III: SENTIDO DA ATIVIDADE


HUMANA NO MUNDO

[Colocação do Problema]

33. Por seu trabalho e inteligência, o homem tentou sempre desenvolver mais a
sua vida. Hoje porém, sobretudo ajudado pela ciência e técnica, o homem
alargou, e alarga continuamente o seu domínio sobre quase toda a natureza;
primeiro com o auxílio de maiores recursos do variado comércio entre as
nações, a família humana pouco a pouco se reconhece e se constitui como
comunidade do mundo inteiro. Por isso, muitos bens que o homem aguardava
antigamente sobretudo de forças superiores, hoje já os consegue pelo trabalho
próprio.
Diante deste esforço imenso, já penetra a humanidade inteira, surgem muitas
perguntas entre os homens. Qual é o sentido e o valor desta atividade? Como
todos estas coisas devem ser usadas? Para que fim caminha esse movimento,
quer individual quer coletivo? A Igreja, guardiã do depósito da palavra de Deus
do qual tira os princípios para a ordem religiosa e moral, ainda que não tenha
sempre resposta imediata para todos os problemas, deseja unir a luz da
revelação com a perícia de todos, para que se ilumine o caminho no qual a
humanidade entrou recentemente.

[Valor da Atividade Humana]

34. Para os fiéis é pacífico que a atividade humana individual e coletiva, ou


aquele empenho gigantesco no qual os homens se esforçam no decorrer dos
séculos para melhorar as suas condições de vida, considerado em si mesmo,
corresponde ao plano de Deus. Com efeito, o homem, criado a imagem de
Deus, recebeu a missão de submeter a terra com tudo o que nela existe, de
governar o mundo em justiça e santidade¹ e, reconhecendo a Deus como
Criador de tudo, orientar para Ele o seu ser e tudo o mais, de maneira que,
com a submissão de todas as coisas ao homem, o nome de Deus seja
glorificado em toda a terra. ²
¹ Cf. Gn 1,26-27; 9,2-3; Sab 9,2-3.
² Cf. Sl 8,7 e 10.
E isto diz respeito também aos trabalhos inteiramente cotidianos. Pois os
homens e as mulheres que, quando lutam para a sustentação de sua vida e da
família, exercem suas atividades de tal modo que sirvam bem a sociedade,
podem legitimamente julgar que desenvolvem com o seu trabalho a obra do
Criador, ocupam-se dos interesses de seus irmãos e contribuem com sua ação
pessoal para a execução do plano divino na história .³
³ Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS-55 (1963), p. 297.
Portanto, bem longe de julgar que as obras produzidas pelo talento e energia
dos homens se opõem ao poder de Deus e de considerar a criatura racional em
competição com o Criador, os cristãos estão antes convencidos de que as
vitórias do gênero humano são um sinal da magnitude de Deus e fruto de seu
inefável desígnio. Quanto mais porém cresce o poder dos homens tanto mais se
estende a sua responsabilidade, seja pessoal seja comunitária. Donde aparece
que a mensagem cristã não desvia os homens da construção do mundo nem os
leva a negligenciar o bem de seus semelhantes, mas antes os obriga mais
estritamente por dever a realizar tais coisas.4
4 Cf. Mensagem dos Padres Conciliares à Humanidade, de out. de 1962: AAS
54 (1962), pp. 822-823.
[Norma da Atividade Humana]

35. Assim como procede do homem, a atividade humana se ordena ao homem.


Com efeito o homem, quando trabalha, transforma não somente as coisas e a
sociedade, mas se aperfeiçoa a si mesmo. Ele aprende muitas coisas,
desenvolve suas faculdades, se supera e se realiza. Este desenvolvimento, bem
entendido, é de valor maior do que as riquezas externas que se podem ajuntar.
O homem vale mais pelo que é do que pelo que tem.5 Igualmente, tudo o que
os homens podem fazer para alcançar maior justiça, mais ampla fraternidade e
uma organização mais humana nas relações sociais ultrapassa o valor do
progresso técnico. Pois estes progressos podem oferecer como que a matéria
para a promoção humana, mas por si só não a realizam de modo algum.
5 Cf. Paulo VI, Discurso ao Corpo Diplomático, de 7-1-1965: AAS 57 (1965), p.
232.
Portanto, esta é a nora da atividade humana que, de acordo com o plano e a
vontade de Deus, convenha ao bem autêntico da humanidade e permita ao
homem, individualmente ou colocado na sociedade, a educação e realização de
sua vocação integral.

[A Justa Autonomia das Realidades Terrestres]

36. Contudo, muitos contemporâneos nossos parecem temer a união mais


íntima da atividade humana com a religião; vêem nela um perigo para a
autonomia dos homens, das sociedades e das ciências.
Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisas criadas e
as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem conhecidos,
usados e ordenados gradativamente pelo homem, é necessário absolutamente
exigi-la. Isto não é só reivindicado pelos homens de nosso tempo, mas está
também de acordo com a vontade do Criador. Pela própria condição de criação,
todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e
ordem específicas. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os
métodos próprios de cada ciência e arte. Portanto, se a pesquisa metódica, em
todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente científica e segundo as
leis morais, na realidade nunca será oposta à fé: tanto as realidades profanas
quanto as da fé originam-se do mesmo Deus.6 Mais ainda: Aquele que tenta
perscrutar com humildade e perseverança os segredos das coisas, ainda que
disto não tome consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que
sustenta todas as coisas, fazendo que elas sejam o que são. Portanto permita-
se-nos lamentar algumas atitudes que não faltaram, as vezes entre os próprios
cristãos, por não se reconhecer claramente a legítima autonomia das ciências.
Nas disputas e controvérsias suscitadas por este motivo, levaram muitos a
julgar que a fé e a ciência se opunham entre si.7.
6 Cf. Conc. Vat. I, Const. Dogm. De fide cath., cap.3: Dz 1785-1786 (3004-
3005).
7 Cf. Pio Paschini, Vita e opere di Galileo Galilei, 2 volumes, Pont. Accademia
delle Scienze, Città del Vaticano 1964).
Porém se pelas palavras “autonomia das realidades temporais” se entende que
as coisas criadas não dependem de Deus, e o homem as pode usar sem
referência ao Criador, todo aquele que admite Deus percebe o quanto sejam
falsas tais máximas. Na verdade, sem o Criador, a criatura esvai-se. Além
disso, todos os crentes, de qualquer religião, sempre ouviram a voz de Deus e
a sua manifestação na linguagem das criaturas. E pelo esquecimento de Deus,
a própria criatura torna-se obscura.

[A Atividade Humana Corrompida pelo Pecado]

37. De acordo com a experiência dos séculos, a Sagrada Escritura ensina à


família humana que o progresso, um grande bem para o homem, traz consigo
ao mesmo tempo uma tentação enorme. Com efeito, perturbada a hierarquia
de valores e misturando-se o bem com o mal, os indivíduos e os grupos olham
somente os próprios interesses e não os dos outros. Por isso, o mundo já não é
um lugar de fraternidade verdadeira, quando o aumentado poder da
humanidade ameaça destruir o próprio gênero humano.
Uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da
humanidade. Iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia,
segundo as palavras do Senhor.8 Inserindo nesta batalha, o homem deve lutar
sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão
com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus.
8 Cf. Mt 24,13; 13,24-30 e 36-43.

Por esta razão, a Igreja de Cristo, confiando nos desígnios do Criador, enquanto
reconhece que o progresso humano pode ajudar a felicidade verdadeira dos
homens, não pode contudo deixar de fazer ressoar a palavra do Apóstolo: “Não
vos conformeis a este mundo” (Rom 12,2), isto é, aquele espírito de vaidade e
malícia que transforma a atividade humana, em instrumento de pecado.
Se alguém portanto pergunta como se pode vencer aquela miséria, os cristãos
confessam que todas as atividades humanas, diariamente desviadas pela
soberba e amor desordenado de si mesmo, devem ser purificadas pela cruz e
ressurreição de Cristo e encaminhadas a perfeição. Remido por Cristo e tornado
criatura nova no Espírito Santo, o homem pode e deve amar as próprias coisas
criadas por Deus. Pois ele as recebe de Deus e as olha e respeita como que
saindo de Suas mãos. Agradece ao Benfeitor os objetos criados e usa-os e frui-
os na pobreza e liberdade de espírito. É assim introduzido na verdadeira posso
do mundo, como, se nada tivesse mas possuísse tudo.9 “Tudo é vosso, mas
vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23).
9 Cf. 2 Cor 6,10.

[A Atividade Humana Elevada à Perfeição no Mistério Pascal]

38. O mesmo Verbo de Deus, por Quem todas as coisas foram feitas e que Se
encarnou e habitou na terra dos homens10, entrou como homem perfeito na
história do mundo, assumindo-a em Si mesmo e em Si recapitulando todas as
coisas.¹¹ Ele nos revela que “Deus é amor” (1 Jo 4,8). Ao mesmo tempo nos
ensina que a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da
transformação do mundo, é o mandamento novo do amor. Aos que acreditam
na caridade divina certifica estar aberto o caminho do amor para todos os
homens e não ser inútil o esforço para a instauração universal. Admoesta, ao
mesmo tempo, que esta caridade deve ser exercida não só nas ações
retumbantes mas sobretudo nas circunstâncias ordinárias da vida. Sofrendo a
morte por todos nós pecadores¹², ensina-nos com Seu exemplo que deve ser
também carregada a cruz colocada pela carne e pelo mundo sobre os ombros
daqueles que procuram a paz e a justiça. Constituído Senhor por sua
ressurreição, Cristo, a quem foi dado todo poder no céu e na terra¹³, já opera
pela virtude de Seu Espírito nos corações dos homens; não somente desperta o
desejo da vida futura, mas por isso, mesmo anima, purifica e fortalece também
aquelas aspirações generosas com as quais a família humana se esforça por
tornar mais humana a sua própria existência e submeter a terra inteira a este
fim. Os dons do Espírito são porém diversos. Enquanto chama uns para que,
pelo desejo da habitação celeste, tornem manifesto o seu testemunho e o
conservem vivo na família humana, chama outros a se dedicarem ao serviço
terreno dos homens, preparando com este ministério a matéria do reino
celestial. Contudo liberta todos para que, renunciando ao amor-próprio e
assumindo todas as forças terrestres em benefício da vida humana, se
estendam às realidades futuras, quando a própria humanidade se transformará
em oferta agradável a Deus.14
10 Cf. Jo 1,3 e 14.
¹¹ Cf. Ef 1,10.
¹² Cf. Jo 3,14-16; Rom 5,8-10.
¹³ Cf. At 2,36; Mt 28,18.
14 Cf. Rom 15,16.

O Senhor deixou para os seus um penhor desta esperança e um viático para


esta caminhada: aquele sacramento de fé, no qual os elementos da natureza,
cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue glorioso, na ceia da
comunhão fraterna e prelibação do banquete celeste.

[Nova Terra e Novo Céu]

39. Nós ignoramos o tempo da consumação da terra e da humanidade15 e


desconhecemos a maneira de transformação do universo. Passa certamente a
figura deste mundo deformada pelo pecado16, mas aprendemos que Deus
prepara morada nova e nova terra. Nela habita a justiça17 e sua felicidade irá
satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos
homens.18 Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e
o que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorrupção.19
Permanecerão o amor e sua obra20 e será libertada da servidão da vaidade
toda aquela criação²¹ que Deus fez para o homem.
15 Cf. At Rom 15,16.
16 Cf. 1 Cor 7,31; S. Ireneu, Adv Haer. V, 36,1: PG 7,1222.
17 Cf. 2 Cor 5,2; 2 Ped 3,13.
18 Cf. 1 Cor 2,9; Apoc 21,4-5.
19 Cf. 1 Cor 15,42 e 53.
20 Cf. 1 Cor 13,8; 3,14.
²¹ Cf. Rom 8,19-21.

Somos advertidos, com efeito, de que não adianta ao homem ganhar o mundo
inteiro se vier a perder a si mesmo. ²² Contudo a esperança de uma nova terra,
longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeiçoamento
desta terra. Nela cresce o Corpo da nova família humana que já pode
apresentar algum esboço do novo século. Por isso, ainda que o progresso
terreno deva ser cuidadosamente distinguido do aumento do Reino de Cristo,
contudo é de grande interesse para o Reino de Deus ²³, na medida em que
pode contribuir para organizar a sociedade humana.
²² Cf. Lc 9,25.
²³ Cf. Pio XI, Enc. Quadrag. Anno: AAS 23 (1931), p. 207.
Depois que propagarmos na terra, no Espírito do Senhor e por Sua ordem, os
valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade, todos
estes bons frutos da natureza e do nosso trabalho, nós os encontraremos
novamente, limpos contudo de toda impureza, iluminados e transfigurados,
quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: “reino de verdade e
de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”.24
O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se
consumará.
24 Missal Romano, Prefácio da Festa de Cristo-Rei.

CAPÍTULO IV: FUNÇÃO DA IGREJA


NO MUNDO DE HOJE

[Relação Mútua entre a Igreja e o Mundo]

40. Tudo o que temos dito sobre a dignidade da pessoa humana, sobre a
comunidade dos homens e sobre o significado último da atividade humana,
constitui o fundamento das relações entre a Igreja e o mundo e também a base
de seu diálogo mútuo.¹ Por isso, neste capítulo, pressupondo tudo o que já foi
publicado por este Concílio sobre o mistério da Igreja, a mesma Igreja vai ser
considerada agora enquanto ela existe neste mundo e com ele vive e age.
¹ Cf. Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam III: AAS 56 (1964), pp. 637-659.
Nascido do amor do Pai eterno ², fundada no tempo por Cristo Redentor e
coadunada no Espírito Santo ³, a Igreja tem um fim salutar e escatológico que
não pode ser atingido plenamente senão na vida futura. Contudo, ela já está
presente aqui na terra, comporta de homens da cidade terrestre, chamados
justamente a formarem já na história do gênero humano a família dos filhos de
Deus, que deve crescer até a vinda do Senhor. Unida em vista dos bens
celestiais e deles enriquecida, esta família foi por Cristo “fundada e organizada
neste mundo como sociedade”4 e provida “de meios aptos de união visível e
social”.5 Deste modo a Igreja se manifesta ao mesmo tempo como “assembléia
visível e comunidade espiritual”5 e caminha juntamente com a humanidade
inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena; é como que o
fermento e a alma da sociedade humana a ser renovada em Cristo e
transformada na família de Deus.
² Cf. Tito 3,4: “Philanthropia”.
³ Cf. Ef 1,3; 5-6; 13-14; 23.
4 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 1, n.8:
AAS 57 (1965), p. 12.
5 Ibid., cap. 2, n.9: AAS 57 (1965), p. 14; cf. n. 8,1. C., p. 11.

Esta compenetração da cidade terrestre e celeste não pode ser percebida senão
pela fé; bem mais, permanece o mistério da história humana, que é perturbada
pelo pecado até a revelação plena da claridade dos filhos de Deus. A Igreja,
contudo, seguindo o seu fim próprio salutar, não somente comunica ao homem
a vida divina, mas também irradia a sua luz, de certo modo refletida sobre o
mundo inteiro, principalmente porque restabelece e eleva a dignidade da
pessoa humana, fortalece a coesão da sociedade humana e reveste de sentido
mais profundo e de significação a atividade cotidiana dos homens. Deste modo,
através de cada um de seus membros e de toda a sua comunidade, a Igreja
acredita poder ajudar muito a tornar mais humana a família dos homens e sua
história.
Além disso a Igreja Católica de boa vontade aprecia muito o que as outras
igrejas cristãs ou comunidades eclesiásticas realizam em trabalho conjunto para
o cumprimento da mesma missão. Ao mesmo tempo está firmemente
persuadida de que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não
só dos homens em particular, mas também da sociedade, dos seus dotes e
atividades, na preparação do Evangelho. A seguir expõem-se destas relações e
auxílios mútuos, naqueles setores que são de algum modo comuns a Igreja e
ao mundo.

[O Auxílio que a Igreja se Esforça para Prestar a cada Homem]

41. O homem de hoje está a caminho de desenvolver mais plenamente a sua


personalidade e de descobrir e afirmar, cada dia mais, os seus direitos. Mas
como foi confiado a Igreja manifestar o mistério de Deus, deste Deus que é o
fim último do homem, ao mesmo tempo revela ao homem o sentido de sua
própria existência, a saber, a verdade essencial a respeito do homem. A Igreja
sabe perfeitamente que só Deus ao qual serve, responde às aspirações
profundíssimas do coração humano, que nunca se sacia plenamente com os
alimentos terrestres. Sabe além disso que o homem, impulsionado sem cessar
pelo Espírito de Deus, jamais será de todo indiferente aos problemas da
religião, como se comprova não só pela experiência dos séculos passados, mas
também pelo abundante testemunho dos nossos tempos. O homem, com
efeito, desejará sempre conhecer, ao menos confusamente, o significado de sua
vida, de sua atividade e de sua morte. A própria presença da Igreja recorda-lhe
estes problemas. Ora, somente Deus, que criou o homem a sua imagem e o
reuniu do pecado, oferece uma resposta satisfatória a estas questões. Realiza
isto pela revelação em seu Filho, que Se fez homem. Todo aquele que segue
Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais homem.
Apoiada nesta fé, a Igreja pode subtrair a dignidade da natureza humana a
todas as mudanças de opiniões que, por exemplo, ou deprimem
demasiadamente ou exaltam sem medidas o corpo humano. A dignidade
pessoal e a liberdade do homem não podem adequadamente asseguradas por
nenhuma lei humana, como o são pelo Evangelho de Cristo confiado a Igreja.
Com efeito, este Evangelho anuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus,
rejeita toda a servidão derivada em última análise do pecado8, respeita
escrupulosamente a dignidade da consciência e a sua decisão livre, adverte
sem cansar que todos os talentos humanos devem ser reduplicados para o
serviço de Deus e o bem dos homens e, finalmente, recomenda todas a
caridade de todos.9 Isto corresponde a lei fundamental da economia cristã.
Ainda que o mesmo Deus Criador seja Salvador e igualmente Senhor, tanto da
história humana como também da história da salvação, contudo, esta própria
ordem divina, longe de suprimir a autonomia justa da criatura e principalmente
do homem, antes a restabelece e confirma em sua dignidade.
8 Cf. Rom 8,14-17.
9 Cf. Mt 22,39.

A Igreja, portanto, por forma do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os
direitos dos homens e admite e aprecia muito o dinamismo do tempo de hoje,
que promove estes direitos por toda parte. Mas este movimento deve ser
animado pelo espírito do Evangelho e protegido contra todas as aparências de
falsa autonomia. Pois somos expostos a tentação de pensar que os nossos
direitos pessoais só estão plenamente garantidos quando nos desligamos de
todas as normas da Lei divina. Por este caminho porém, longe de ser salva, a
dignidade da pessoa divina perece.

[O Auxílio que a Igreja se Esforça para Prestar a


Sociedade Humana]

42. A união da família humana é consideravelmente roborada e completada


pela unidade dos filhos de Deus, que se fundamenta em Cristo.10
10 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2, n.9:
AAS 57 (1965), pp. 12-14.

A missão própria que Cristo confiou a sua Igreja por certo não é de ordem
política, econômica ou social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de
ordem religiosa.¹¹ Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem
benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento
da comunidade humana segundo a Lei de Deus. Do mesmo modo, onde for
necessário, de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar, a Igreja pode e
deve promover atividades, como são as obras de misericórdia e outras
semelhantes.
¹¹ Cf. Pio XII, Discurso aos Historiadores e Artistas, de 9-3-1956: AAS 48
(1956), p. 212: “O seu Divino Fundador, Jesus Cristo, não lhe deu nenhum
mandato nem lhe fixou nenhum fim de ordem cultural. A finalidade que Cristo
lhe designa é estritamente religiosa (...). A Igreja deve conduzir os homens a
Deus, a fim de que eles se entreguem a Deus sem reserva (...). A Igreja jamais
pode perder de vista essa finalidade estritamente religiosa, sobrenatural. O
sentido de todas as suas atividades, até o último Cânone de seu Código, não
pode ser senão concorrer para ela direta ou indiretamente” (cf. REB 1956, p.
482).
Além disso, a Igreja admite tudo o que há de bom no dinamismo social de hoje,
principalmente a evolução para a unidade, a marcha da sã socialização e da
solidariedade no plano civil e econômica. Com efeito, a promoção da unidade se
harmoniza com a missão intima da Igreja, porquanto ela é “em Cristo como
que um sacramento ou sinal e instrumento da união profunda com Deus e da
unidade de todo o gênero humano”.¹² Deste modo ela mostra ao mundo que a
verdadeira união social externa decorre da união dos espíritos e dos corações,
isto é, daquela fé e caridade pelas quais sua unidade foi construída
indissoluvelmente no Espírito Santo. A energia que a Igreja pode insuflar à
sociedade humana atual consiste naquela fé e caridade, levadas na vida, e não
no exercício de algum domínio externo, através de meios meramente humanos.

¹² Cf. Conc. Vat. II. Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 1, n.1:
AAS 57 (1965), p. 5.
Além disso, a Igreja não se prende, por força de sua missão, a natureza, a
nenhuma forma particular de cultura humana, sistema político, econômico ou
social; por causa desta sua universalidade, pode aparecer como uma ligação
muito estreita entre as diversas comunidades humanas e nações, desde que
elas tenham confiança na Igreja e lhe reconheçam efetivamente a verdadeira
liberdade para o desempenho de sua missão. Por esta razão, a Igreja aconselha
seus filhos e também todos os homens a superar, neste espírito familiar de
filhos de Deus, todas as desavenças entre nações e raças e a consolidar do
interior todas as legítimas associações humanas.
O Concílio considera portanto, com grande respeito, todas as coisas
verdadeiras, boas e justas, nas múltiplas instituições, que a humanidade
construiu e constrói para si sem cessar. Declara, além do mais, que a Igreja
quer ajudar e promover todas estas instituições, enquanto isto depender dela e
estiver de acordo com a sua missão. Para servir ao bem de todos, ela nada
deseja mais ardentemente do que poder desenvolver-se livremente, sob
qualquer regime que reconheça os direitos fundamentais da pessoa e da família
e os imperativos do bem comum.

[O Auxílio que a Igreja se Esforça para Prestar a


Atividade Humana, através dos Cristãos]

43. O Concílio exorta os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a


procurarem desempenhar fielmente suas tarefas terrestres, guiados pelo
espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo não termos aqui
cidade permanente, mas buscarmos a futura¹³, julgam, por conseguinte,
poderem negligenciar os seus deveres terrestres, sem perceberem que estão
mais obrigados a cumpri-los, por causa da própria fé, de acordo com a vocação
a qual cada um foi chamado.14 Não erram menos aqueles que, ao contrário,
pensam que podem entregar-se de tal maneira as atividades terrestres, como
se elas fossem absolutamente alheias a vida religiosa, julgando que esta
consiste somente nos atos do culto e no cumprimento de alguns deveres
morais. Este divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana de muitos deve
ser enumerado entre os erros mais graves do nosso tempo. Os profetas do
Velho Testamento já denunciaram com veemência, este escândalo. 15 E no
Novo Testamento, o próprio Jesus Cristo o ameaçava muito com graves penas.
16 Portanto não se crie oposição artificial entre as atividades profissionais e
sociais de uma parte, e de outra, a vida religiosa. Ao negligenciar os seus
deveres temporais, o cristão negligencia os seus deveres para com o próximo e
o próprio Deus e coloca em perigo a sua salvação eterna. A exemplo de Cristo,
que exerceu a profissão de operário, alegrem-se antes os cristãos, porque
podem desempenhar todas as suas atividades terrestres, unindo os esforços
humanos, domésticos, profissionais, científicos ou técnicos, em síntese vital
com valores religiosos, sob cuja soberana direção todas as coisas são
coordenadas para a glória de Deus.

¹³ Cf. Heb 13,14.


14 Cf. 1 Tess 3,6-13; Ef 4,28.
15 Cf. Is 58,1-12.
16 Cf. Mt 23,3-33; Mc 7,10-13.

As profissões e atividades seculares competem propriamente aos leigos, ainda


que não de modo exclusivo. Portanto, quando agem como cidadãos do mundo,
particular ou associativamente, observarão não só as leis próprias de cada
disciplina, mas procurarão adquirir competência verdadeira naqueles campos.
Irão cooperar, de bom grado, com os homens que buscam os mesmos
objetivos. Reconhecendo as exigências da fé e dotados de sua virtude, onde for
necessário, sem hesitação, descubram novas iniciativas, levando-as a prática.
Pertence-lhes a consciência, já adequadamente formada, gravar a lei divina na
vida da cidade terrestre. Os leigos esperam dos sacerdotes luz e força
espiritual. Contudo, não julguem serem os seus pastores sempre tão
competentes que possam ter uma solução concreta e imediata para toda a
questão que surja, mesmo grave, ou que seja esta a missão deles. Os leigos,
ao contrário, esclarecidos pela sabedoria cristã e prestando atenção cuidadosa
a doutrina do Magistério17, assumam suas responsabilidades.
17 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra, IV: AAS (1961), pp. 456-457; e
ainda I: 1.c., pp. 407,410-411.
Muitas vezes, a própria visão cristã das coisas incliná-los-á a uma solução
determinada, em algumas circunstâncias reais. Outros fiéis, contudo, como
acontece com freqüência e legitimamente, com igual sinceridade pensarão de
modo diferente, sobre a mesma coisa. Se depois as soluções apresentadas,
mesmo sem intenção das partes, são facilmente ligadas por muitos a
mensagem evangélica, é preciso se lembrarem que não é lícito a ninguém, nos
casos citados, reivindicar exclusivamente para a sua sentença a autoridade da
Igreja. Mas procurem, em diálogo sincero, esclarecer-se reciprocamente,
conservando a caridade mútua, e preocupados em primeiro lugar com o bem
comum.
Os leigos, que devem participar ativamente em toda a vida da Igreja, estão
obrigados não somente a impregnar o mundo de espírito cristão, mas também
são chamados a serem testemunhos de Cristo em tudo, no meio da
comunidade humana.
Os Bispos, aos quais foi confiada a missão de dirigir a Igreja de Deus,
juntamente com seus Presbíteros, preguem a mensagem de Cristo de tal modo
que todas as atividades terrestres dos fiéis sejam banhadas pela luz do
Evangelho. Além disso, todos os pastores estejam lembrados de que, com seu
comportamento cotidiano e sua solicitude18, apresentam ao mundo a face da
Igreja, por onde os homens julgam a força e a verdade da mensagem cristã.
Pela vida e palavra, juntamente com os religiosos e seus fiéis, demonstrem que
a Igreja, só por sua presença, com todos os dons que possui, é uma fonte
inesgotável daquelas virtudes de que o mundo de hoje tanto precisa. Com
estudos assíduos do diálogo a ser estabelecido com o mundo e com os homens
de todas as opiniões. Mas antes de tudo guardem no coração as palavras deste
Concílio: “Já que hoje em dia o gênero humano tende cada vez mais
necessário, por isso mesmo, que os Sacerdotes, congregando os cuidados e as
forças, sob a direção dos Bispos e do Sumo Pontífice, evitem qualquer motivo
de dispersão, para que todo o gênero humano seja levado à unidade da família
de Deus”.19
18 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 3, n.
28: AAS 57 (1965), pp. 34-35.
19 Ibid., n. 28: AAS 1.c., pp. 35-36.
Ainda que a Igreja, por virtude do Espírito Santo, tenha permanecido a fiel
esposa de seu Senhor e não cessado jamais de ser um sinal de salvação para o
mundo, ela contudo não ignora de modo algum que não faltaram entre seus
membros20, clérigos e leigos, na série ininterrupta de tantos séculos, os que
foram infiéis ao Espírito de Deus. Também em nossos tempos não ignora a
Igreja quanto se distanciam entre si a mensagem que ela profere e a fraqueza
humana daqueles aos quais o Evangelho foi confiado. Seja qual for o juízo que
a história pronunciar sobre estes defeitos, devemos estar conscientes deles,
combate-los vigorosamente, para que eles não tragam prejuízo a difusão do
Evangelho. Para desenvolver suas relações com o mundo, a Igreja sabe
igualmente o quanto deve continuamente aprender da experiência dos séculos.
Guiada pelo Espírito Santo, a Mãe Igreja exorta os seus filhos incansavelmente
a purificação e renovação, para que o sinal de Cristo brilhe mais claramente
sobre a face da Igreja.²¹
20 Cf. S. Ambrósio, De Virginitate, cap. 8, n.48: PL 16,278.
²¹ Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2,
n.15: AAS 57 (1965), p. 20.

[O Auxílio que a Igreja Recebe do Mundo de Hoje]

44. Assim como é do interesse do mundo admitir a Igreja como realidade social
da história e seu fermento, também a própria Igreja não ignora o quando tenha
recebido da história e da evolução da humanidade.
A experiência dos séculos passados, o progresso das ciências, os tesouros
escondidos nas várias formas da cultura humana, pelos quais a natureza do
próprio homem se manifesta mais plenamente e se abrem novos caminhos para
a verdade, são úteis também a Igreja. Ela própria, com efeito, desde o início de
sua história, aprendeu a exprimir a mensagem de Cristo através dos conceitos
e linguagens dos diversos povos e, além disso, tentou ilustrá-la com a
sabedoria dos filósofos, com o fim de adaptar o Evangelho, enquanto possível,
a capacidade de todos e as exigências dos sábios. Esta maneira apropriada de
proclamar a palavra revelada deve permanecer como lei de toda a
evangelização. Deste modo estimula-se em todas as nações a possibilidade de
exprimirem a seu modo a mensagem de Cristo e promove-se ao mesmo tempo
um intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos povos. ²² Para
aumentar este intercâmbio, sobretudo em nossos tempos, nos quais as coisas
se mudam tão rapidamente e variam muitos os modos de pensar, a Igreja
precisa do auxílio, de modo peculiar, daqueles que, crentes ou não-crentes,
vivendo no mundo, conhecem bem os vários sistemas e disciplinas e entendem
a sua mentalidade profunda. Compete a todo Povo de Deus, principalmente aos
pastores e teólogos, com o auxílio do Espírito Santo, auscultar, discernir e
interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las a luz da palavra
divina, para que a Verdade revelada possa ser percebida sempre mais
profundamente, melhor entendida e proposta de modo mais adequado.
²² Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 2,
n.13: AAS 57 (1965), p. 17.
Tendo uma estrutura social visível, sinal de sua unidade em Cristo, a Igreja
pode enriquecer-se e de fato se enriquece também com a evolução da vida
humana social, não porque lhe falte alguma coisa em sua constituição que lhe
foi dada por Cristo, mas para conhecê-la mais profundamente, melhor exprimi-
la e adaptá-la de modo mais feliz aos nossos tempos. Ela compreende de bom
grado que recebe, na sua comunidade não menos que em cada um de seus
filhos, auxílio variado dos homens de todas as classes e condições, no plano da
família, da cultura, da vida econômica e social e da política tanto nacional
quanto internacional, de acordo com o plano de Deus, prestam um auxílio não
pequeno também à comunidade eclesial, enquanto ela depende das coisas
externas. Mais ainda. A Igreja confessa que progrediu muito e pode progredir
com a própria oposição dos seus adversários ou perseguidores. ²³
²³ Cf. Justino, Dialogus cum Tryplone, cap. 110: PG 6,729; ed Otto, 1897, pp.
391-393: “... mas quanto mais nos infligem semelhantes coisas, tanto mais os
outros se tornam fiéis e piedosos pelo nome de Jesus”. Cf. Tertuliano,
Apologeticus, cap. L, 13: PL 1,534; Corpus Christ., ser. Lat. I, p. 171: “Quanto
mais formos por vós ceifados, mais cersceremos: o sangue dos Cristãos é
semente!”. Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium,
cap. 2, n. 9: AAS 57 (1965), p. 14.

[Cristo, Alfa e Ômega]

45. A Igreja, enquanto ela mesma ajuda o mundo e dele recebe muitas coisas,
tende a um só fim: que venha o Reino de Deus e seja instaurada a salvação de
toda a humanidade. Todo o bem que o Povo de Deus, no tempo de sua
peregrinação terrestre, pode prestar a família dos homens, deriva de fato de
ser a Igreja “o sacramento universal da salvação”24, manifestando e ao mesmo
tempo operando o mistério de amor de Deus para com o homem.
24 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 7, n.
48: AAS 57 (1965), p. 53.

Pois o Verbo de Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, Ele próprio Se
encarnou, de tal modo que, como Homem perfeito, salvasse todos os homens e
recapitulasse todas as coisas. O Senhor é o fim da história humana, ponto ao
qual convergem as aspirações da história e da civilização, centro da
humanidade, alegria de todos os corações e plenitude de todos os seus
desejos.25 A Ele é que o Pai ressuscitou dos mortos, exaltou e colocou à sua
direita constituindo-O juiz dos vivos e dos mortos. Vivificados e congregados
em seu Espírito, caminhamos para a consumação da história humana, que
concorda plenamente com o seu desígnio de amor: “Reunir todas as coisas em
Cristo, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10).
25 Cf. Paulo VI, Alocução de 3-2-1965: L’Osservatore Romano, 4-2-1965.
O próprio Senhor diz: “Eis que venho em breve, e a minha recompensa está
comigo, para dar a cada um conforme as suas obras. Eu sou o alfa e o ômega,
o primeiro e o último, o começo e o fim” (Apoc 22,12-13).

PARTE II: ALGUNS PROBLEMAS MAIS URGENTES

[Preâmbulo]

46. Depois de explanar a dignidade da pessoa humana e a missão individual ou


social que esta é chamada a desempenhar no mundo inteiro, o Concílio, a luz
do Evangelho e da experiência humana, chama agora a atenção de todos para
certos problemas de maior urgência deste tempo que mais atingem o gênero
humano.
Entre muitas coisas que hoje despertam a solicitude de todos importa
principalmente notar: o matrimônio e a família, a cultura humana, a vida
econômico-social e política, a união dos povos e a paz. Sobre cada um desses
pontos hão de se projetar os princípios luminosos derivados de Cristo que
guiem os fiéis cristãos e iluminem todos os homens na busca da solução de
tantos problemas intrincados.

CAPÍTULO I: A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO


MATRIMÔNIO E DA FAMÍLIA

[O Matrimônio e a Família no Mundo de Hoje]

47. A salvação da pessoa e da sociedade humana está estreitamente ligada ao


bem-estar da comunidade conjugal e familiar. Por isso, juntamente com todos
aqueles que tem em grande estima essa comunidade, os cristãos alegram-se
sinceramente com os vários meios pelos quais so homens progridem hoje na
promoção dessa comunidade de amor e no cultivo da vida, e são auxiliados os
cônjuges e pais na sua alta função. Mais: esperam e procuram tirar desses
recursos melhores benefícios ainda.
Mas a dignidade desta instituição não refulge em toda a parte com o mesmo
brilho, posto que a obscurecem a poligamia, a peste do divórcio, o chamado
amor livre, e outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muito
freqüente profanado pelo egoísmo, pelo hedonismo e por práticas ilícitas contra
a geração. De resto as condições econômicas, sócio-psicológicas e civis de hoje
em dia acarretam não leves perturbações na família. Não sem preocupação,
finalmente, observam-se em determinadas partes do globo problemas
derivados do crescimento demográfico. Isso tudo angustia as consciências.
Contudo, a força e o vigor da instituição matrimonial e familiar se evidenciam
igualmente: as profundas mudanças sociais contemporâneas, não obstante as
dificuldades a que dão origem, manifestam muitas vezes, de várias maneiras, a
verdadeira índole dessa instituição.
Por isso, ao elucidar melhor alguns pontos da doutrina da Igreja, o Concílio
pretende esclarecer e encorajar os cristãos e todos os homens que envidam
esforços no sentido de salvaguardar e promover a dignidade original e o
singular valor sagrado do estado matrimonial.

[A Santidade do Matrimônio e da Família]

48. A íntima comunhão de vida e de amor conjugal que o Criador fundou e


dotou com Suas leis é instaurada pelo pacto conjugal, ou seja: o consentimento
pessoal irrevogável. Dessa maneira, do ato humano pelo qual os cônjuges se
doam e recebem mutuamente, se origina, também diante da sociedade, uma
instituição firmada por uma ordenação divina. No intuito do bem, seja dos
esposos como da prole e da sociedade, esse vínculo sagrado não depende do
arbítrio humano. Mas a próprio Deus é o autor do matrimônio dotado de vários
bens e fins¹, que são todos de máxima importância para a continuação do
gênero humano, para o aperfeiçoamento pessoal e a sorte eterna de cada um
dos membros da família, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade da
própria família e da sociedade humana inteira. O instituto do matrimônio e o
amor dos esposos estão pela sua índole natural ordenados a procriação e a
educação dos filhos em que culminam como numa coroa. Por isso o homem e a
mulher, que pelo pacto conjugal “já não são dois, mas uma só carne” (Mt
19,6), prestam-se mutuamente serviço e auxílio, experimentam e realizam
cada dia mais plenamente o senso de sua unidade pela união íntima das
pessoas e das atividades. Essa união íntima, doação recíproca de duas pessoas,
e o bem dos filhos exigem a perfeita fidelidade dos cônjuges e sua indissolúvel
unidade. ²
¹ Cf. S. Agostinho, De bono coniugali: PL 40,375-376 e 394; S. Tomás, Summa
Theol., Suppl., q. 49,a3 ad 1; Decreto para os armênios: Dz-Sch. 1327; Pio XI,
Enc. Casti Connubi: AAS 22 (1930), pp. 543-555; Dz-Sch. 3703-3714.
² Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubil: AAS 22 (1930), pp. 546-547; Dz-Sch. 3706.

Cristo Senhor abençoou largamente esse amor multiforme originado da fonte


da caridade divina e constituído a imagem de sua própria união com a Igreja.
Pois, como outrora Deus tomou a iniciativa do pacto de amor e fidelidade com
seu povo ³, assim agora o Salvador e o Esposo da Igreja4 vem ao encontro dos
cônjuges cristãos pelo sacramento do matrimônio. Permanece daí por diante
com eles a fim de que, dando-se mutuamente, se amem com fidelidade
perpétua, da mesma forma como Ele amou a sua Igreja e por ela se entregou.5
O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino, e é guiado e enriquecido
pelo poder redentor de Cristo e pela ação salvífica da Igreja para que os
esposos sejam conduzidos eficazmente a Deus e ajudados e confortados na
sublime missão de pai e mãe.6 Por isso os esposos cristãos são robustecidos e
como que consagrados para os deveres e dignidades de seu encargo por um
sacramento especial.7 Exercendo seu múnus conjugal e familiar em virtude
desse sacramento, imbuídos do Espírito de Cristo que lhes impregna toda a
vida com a fé, a esperança e a caridade, aproximam-se cada vez mais de sua
própria perfeição e mútua santificação e, assim unidos, contribuem para a
glorificação de Deus.
³ Cf. Os 2; Jer 3,6-13; Ez 16 e 23; Is 54.
4 Cf. Mt 9,15; Mc 2,19-20; Lc 5,34-35; Jo 3,29; 2 Cor 11,2; Et 5,27; Apoc
19,7-8; 21,2 e 9.
5 Cf. Ef 5,25.
6 Cf. Conc. Vat. II, Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium: AAS 57 (1965), pp.
15-16; 40-41; 47.
7 Pio XI, Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 583.

Em conseqüência, marchando a frente os próprios pais com o exemplo e a


oração familiar, os filhos e mesmo todos os que convivem no circulo da família
encontrarão mais facilmente o caminho de humanidade, de salvação e de
santidade. Mas os cônjuges, munidos com a dignidade e o múnus da
paternidade e maternidade, cumprirão diligentemente o ofício da educação,
sobretudo religiosa, que em primeiro lugar compete a eles.
Como membros vivos da família, os filhos colaboram a seu modo para a
santificação dos pais. Retribuirão, com efeito, de alma agradecida, os benefícios
dos pais com piedade e confiança e os assistirão, como convém a filhos, nas
adversidades e na solidão da velhice. Seja honrada por todos a viuvez,
assumida com fortaleza de ânimo em continuação da vocação conjugal.8 Assim
a família comunicará as suas riquezas espirituais generosamente ainda as
outras famílias. Assim a família cristã patenteará a todos a presença viva do
Salvador no mundo e a autêntica natureza da Igreja pelo amor dos cônjuges,
pela fecundidade generosa, pela unidade e fidelidade, e pela amável
cooperação de todos os membros, porque se origina do matrimônio, que é
imagem e participação do pacto de amor entre Cristo e a Igreja.9
8 Cf. 1 Tim 5,3.
9 Cf. Ef 5,32.

[O Amor Conjugal]

49. Os noivos e os esposos são muitas vezes convidados pela palavra de Deus
a entreter e desenvolver o noivado com um amor puro, e o casamento com
uma afeição exclusiva.10 Muitos homens, também, de nosso tempo, tem em
alta estima o amor verdadeiro entre o marido e a esposa, que se manifesta de
várias formas segundo os costumes honestos dos povos e dos tempos.
Eminentemente humano, porque parte de uma pessoa e se dirige a outra
pessoa, mediante o afeto da vontade, esse amor envolve o bem de toda a
pessoa; portanto é capaz de enobrecer as expressões do corpo e da alma como
elementos e sinais específicos da amizade conjugal e de enriquece-los com uma
especial dignidade. O Senhor, por um dom especial de graça e caridade, se
dignou restaurar, aperfeiçoar e elevar esse amor. Semelhante amor, que
associa o divino ao humano, leva os esposos a mútua doação de si mesmos,
provada com terno afeto e com obras, e lhes impregna toda a vida.¹¹ Mais.
Cresce e se aperfeiçoa com sua própria generosa operosidade. Supera, por
conseguinte, de longe, a mera inclinação erótica que, cultivada com egoísmo,
desaparece rápida e miseravelmente.
10 Cf. Gn 2,22-24; Prov 5,18-20; 31,10-31; Tob 8,4-8; Cânt. 1,2-3; 2,16;
4,16-5,1; 7,8-11; 1 Cor 7,3-6; Ef 5,25-33.
¹¹ Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p.547 e 548; Dz-Sch. 3707.

Esta afeição se exprime e se realiza de maneira singular pelo ato próprio do


matrimônio. Por isso os atos pelos quais os cônjuges se unem íntima e
castamente são honestos e dignos. Quando realizados de maneira
verdadeiramente humana, testemunham e desenvolvem a mútua doação pela
qual os esposos se enriquecem com o coração alegre e agradecido. Esse amor,
firmado pela fé mútua e, principalmente, consagrado pelo Sacramento de
Cristo, é indissociávelmente fiel quanto ao corpo e a alma nas circunstâncias
prósperas e adversas e por conseguinte alheio a toda a espécie de divórcio e
adultério. A unidade do matrimônio é também claramente confirmada pelo
Senhor mediante a igual dignidade do homem e da mulher enquanto pessoas, a
qual deve ser reconhecida no amor mútuo e perfeito. Requer-se, porém, uma
virtude insigne para desempenhar com constância os encargos desta vocação
cristã: por isso os esposos, robustecidos pela graça para uma vida santa,
cultivarão com assiduidade a firmeza do amor, a grandeza de alma e o espírito
de sacrifício e os implorarão na oração.
Mas o autêntico amor conjugal será tido em melhor estima e ganhara um sadio
conceito na opinião pública se os cônjuges cristãos se distinguirem em dar
testemunho de fidelidade e harmonia nesse amor e no cuidado pela educação
dos filhos, e se participarem ativamente na imprescíndivel renovação cultural,
psicológica e social em favor do matrimônio e da família. Os jovens devem ser
instruídos convenientemente e a tempo sobre a dignidade, a função e o
exercício do amor conjugal, a fim de que, preparados no cultivo da castidade,
possam passar, na idade própria, do noivado honesto para as núpcias.

[A Fecundidade do Matrimônio]

50. O matrimônio e o amor conjugal por sua própria índole se ordenam a


procriação dos filhos. Aliás os filhos são o dom mais excelente do matrimônio e
constituem um benefício máximo para os próprios pais. Deus mesmo que disse:
“Não convém ao homem ficar sozinho” (Gn 2,18), e “criou de início o homem
como varão e mulher” (Mt 19,4), querendo conferir ao homem uma
participação especial em sua obra criadora, abençoou o varão e a mulher
dizendo: “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,28). Donde se segue que o cultivo do
verdadeiro amor conjugal e toda a estrutura da vida familiar que daí promana
sem desprezar os outros fins do matrimônio, tendem a dispor os cônjuges a
cooperar corajosamente com o amor do Criador e do Salvador que por
intermédio dos esposos aumenta e enriquece Sua família.
Os cônjuges sabem que no ofício de transmitir a vida e de educar – o qual deve
ser considerado como missão deles própria – são cooperadores do amor de
Deus Criador e como que seus intérpretes. Por isso desempenharão seu múnus
com responsabilidade cristã e humana e, num respeito cheio de docilidade para
com Deus, formarão um juízo reto, de comum acordo e empenho, atendendo
ao bem próprio e ao bem dos filhos, seja já nascidos, seja que se prevêem
nascer, discernindo as condições seja materiais seja espirituais dos tempos e
do estado de vida e finalmente levando em conta o bem comum da comunidade
familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. Os próprios esposos, em
última análise, devem formar esse juízo, diante de Deus. Estejam porém os
cônjuges cristãos conscientes de não poder proceder conforme seu arbítrio em
sua maneira de agir, mas de que se devem guiar por uma consciência que tem
por norma a própria lei divina, dóceis ao Magistério da Igreja, o qual interpreta
autenticamente essa lei a luz do Evangelho. Esta lei divina coloca em evidência
o significado do amor conjugal, protege-o e o leva a sua perfeição
verdadeiramente humana. Assim os cônjuges cristãos, confiados na Providência
Divina, e cultivando o espirito de sacrifício¹², glorificam o Criador e marcham
para a perfeição em Cristo quando exercem a fundão de procriar com
responsabilidade generosa, humana e cristão. Devem-se mencionar
especialmente entre os esposos que cumprem dessa maneira a missão que
Deus lhes confiou aqueles que, de comum e prudente acordo, acolhem, com
alma grande, uma prole mais numerosa para ser convenientemente educada.¹³

¹² Cf. 1 Cor 7,5.


¹³ Cf. Pio XII, Discurso Tra te visite, de 20-1-1958: AAS 50 (1958), p. 91.
O Matrimônio, porém não foi instituída apenas para o fim da procriação. Mas a
própria índole do pacto indissolúvel entre as pessoas e o bem da prole exigem
que também o amor recíproco se realize com reta ordem, que cresça e que
amadureça. Por isso, embora os filhos muitas vezes tão desejados faltem,
contínua o matrimônio como íntima comunhão de toda a vida, conservando seu
valor e sua indissolubilidade.

[A Harmonização do Amor Conjugal com o Respeito


à vida Humana]

51. O Concílio sabe que os esposos encontram muitas vezes obstáculos na


organização harmoniosa da vida conjugal por certas condições modernas de
vida. Podem achar-se em circunstâncias em que, ao menos por certo tempo, o
número de filhos não deve crescer; é nelas que com dificuldade se conservam o
cultivo do amor fiel e a plena intimidade de vida. Mas onde se rompe a
intimidade da vida conjugal, não raramente a fidelidade pode entrar em crise e
o bem da prole pode ser comprometido pois então periclitam a educação dos
filhos e a coragem de ter nova prole.
Existem os que ousam trazer soluções desonestas a esses problemas e não
recuam até mesmo diante da destruição da vida. Mas a Igreja torna a lembrar
que não pode haver verdadeira contradição entre as leis divinas sobre a
transmissão da vida e o cultivo do autêntico amor conjugal.
Deus, com efeito, que é o Senhor da vida, confiou aos homens o nobre encargo
de preservar a vida para ser exercido de maneira condigna do homem. Por isso
a vida deve ser protegida com o máximo cuidado desde a concepção. O aborto
como o infanticídio são crimes nefandos. Por outro lado a sexualidade própria
do homem e a faculdade humana de gerar excedem maravilhosamente o que
se encontra nos graus inferiores de vida. Em conseqüência, os atos próprios da
vida conjugal, regulados segundo a autêntica dignidade humana, devem ser
religiosamente respeitados. Por isso a moralidade da maneira de agir, quando
se trata de harmonizar o amor conjugal com a transmissão responsável da
vida, não depende apenas da intenção sincera e da reta apreciação dos
motivos, mas deve ser determinada segundo critérios objetivos tirados da
natureza da pessoa e de seus atos, critérios esses que respeitam o sentido
integral da doação mútua e da procriação humana no contexto do verdadeiro
amor. Tudo isso é impossível se a virtude da castidade conjugal não for
cultivada com sinceridade. Aos filhos da Igreja, apoiados nesses princípios, não
é lícito adotar na regulação da prole os meios que o Magistério reprova quando
explica a lei divina.14
14 Cf. Pio XI, Enc. Casti Connubii: AAS (1930), pp. 559-561, Dz-Sch. 3716-
3718; Pio XII, Discurso ao Congresso da União Italiana das Parteiras, de 29-10-
1951: AAS 43 (1951), pp. 835-854; Paulo VI, Discurso aos Cardeais, de 23-6-
1964: AAS 56 (1964), pp. 581-589. Algumas questões, que necessitam de
investigações mais aprofundadas, foram por ordem do Sumo Pontífice confiadas
à Comissão para o estudo da população, família e natalidade, para que,
terminados os estudos, o próprio Papa decida. Estando neste pé a doutrina do
Magistério, o Concílio não tem a intenção de propor diretamente soluções
concretas.
Estejam todos certos de que a vida dos homens e a missão de a transmitir não
se confinam ao tempo presente nem se podem medir ou entender por esse
tempo apenas, mas estão sempre relacionados com a destinação eterna dos
homens.

[A Promoção do Matrimônio e da Família como um


Dever de Todos]

52. A família é em certo sentido uma escola de enriquecimento humano. Mas


para atingir a plenitude de sua vida e de sua missão requer a comunhão de
alma no bem-querer, a decisão comum dos esposos e a diligente cooperação
dos pais na educação dos filhos. É de grande proveito para a formação desses a
presença ativa do pai. Mas, sem desprezar a legítima promoção social da
mulher, deve-se por a salvo o cuidado da mãe em casa, do qual necessitam
principalmente os filhos menores. Os filhos sejam educados de tal maneira que,
ao atingir a idade adulta, possam seguir com pleno senso de responsabilidade
sua vocação, inclusive a religiosa, e escolher um estado de vida no qual, se
vierem a se casar, possam constituir família própria em boas condições morais,
sociais e econômicas. É dever dos pais ou tutores orientar com prudentes
conselhos os jovens que vão fundar uma família; ouvindo-os de boa vontade,
cuidem, porém, de não obrigá-los por coação direta ou indireta a contrair
matrimônio ou a escolher determinado conjugue .
Desta maneira a família, na qual convivem várias gerações que se ajudam
mutuamente em adquirir maior sabedoria e em harmonizar os direitos pessoais
com as outras exigências sociais, constitui o fundamento da sociedade. Por isso
todos aqueles que exercem influência. Por isso todos aqueles que exercem
influência nas comunidades e nos grupos sociais devem trabalhar eficazmente
para a promoção do matrimônio e da família. O poder civil deve considerar
como sua função sagrada reconhecer, proteger, cultivar a sua verdadeira
natureza, defender a moralidade pública e favorecer a prosperidade dos lares.
Deve-se garantir o direito dos pais de procriar filhos e educá-los no seio da
família. Os que, infelizmente, não tem o benefício da família sejam também
protegidos por uma legislação prudente e iniciativas variadas e socorridos por
uma ajuda adequada.
Os fiéis promovam ativamente os valores da família e do matrimônio pelo
próprio exemplo, pela ação concorde com os homens de boa vontade,
aproveitando o tempo presente15, discernindo as coisas eternas das formas
mutáveis. Assim, vencidas as dificuldades, atenderão às necessidades e
interesses da família que são próprios dos tempos novos. De grande ajuda
serão para esse fim o senso dos fiéis, a reta consciência moral dos homens,
bem como a sabedoria e a competência daqueles que são versados nas
sagradas disciplinas.
15 Cf. Ef 5,16; Col 4,5.

Os especialistas em ciências, mormente biológicas, médicas, sociais e


psicológicas, podem contribuir grandemente para o bem do matrimônio e da
família e a paz das consciências, se, mediante estudos comparados, se
esforçarem por esclarecer mais profundamente as condições que favorecem a
honesta regulação da procriação humana.
É dever dos sacerdotes, adequadamente formados em questões familiares,
promover a vocação dos esposos na sua vida conjugal e familiar pelos vários
meios pastorais, pela pregação da palavra de Deus, pelo culto litúrgico e por
outros recursos espirituais, bem como humana e pacientemente fortificá-los na
suas dificuldades e confortá-los com caridade, para que se formem famílias que
sejam verdadeiramente focos de luz.
Procurem pela doutrina e pela ação consolidar as várias obras, especialmente
as associações familiares, os jovens e os próprios esposos, especialmente os
recém-casados, e formá-los para a vida familiar, social e apostólica.
Finalmente os próprios esposos, criados à imagem de Deus vivo e estabelecidos
numa verdadeira relação de pessoas, estejam unidos por um igual afeto, por
um pensamento idêntico e por uma santidade mútua16, a fim de que, segundo
a Jesus Cristo, princípio da vida17, se tornem, nas alegrias e nos sacrifícios de
sua vocação, por seu amor fiel, testemunhas daquele mistério de amor que o
Senhor revelou ao mundo por sua morte e ressurreição.18
16 Cf. Sacramentarium Gregorianum: PL 78,262.
17 Cf. Rom 5,15 e 18; 6,5-11; Gál 2,20.

CAPÍTULO II: A RETA PROMOÇÃO


DA CULTURA

[Introdução]

53. É próprio da pessoa humana não atingir a humanidade verdadeira e plena


pela cultura, isto é, cultivando os bens e os valores da natureza. Em todo o
lugar portanto, quando se trata da vida humana, a natureza e a cultura se
entrelaçam de um modo muito intimo.
Pela palavra “cultura”, em sentido geral, indicam-se todas as coisas com as
quais o homem aperfeiçoa e desenvolve as variadas qualidades da alma e do
corpo; procura submeter a seu poder pelo conhecimento e pelo trabalho o
próprio orbe terrestre; torna a vida social mais humana, tanto na família
quanto na comunidade civil, pelo progresso dos costumes e das instituições;
enfim, exprime, comunica e conserva, em suas obras, no discurso dos tempos
as grandes experiências espirituais e as aspiração, para que sirvam ao proveito
de muitos e ainda de todo o gênero humano.
Conclui-se daí que a cultura humana tem necessariamente um aspecto histórico
e social, e que a palavra “cultura” se reveste com freqüência de sentido
sociológico e etnológico. Neste sentido fala-se da pluralidade de culturas. Pela
maneira diversa de utilizar as coisas, de trabalhar e de se exprimir, de praticar
a religião e formar os costumes, de estabelecer as leis e as instituições
jurídicas, de favorecer as ciências e artes e de cultivar o belo, surgem diversas
condições de vida em comum e formas diversas de dispor os bens da vida.
Assim, com estes costumes recebidos, constrói-se o patrimônio próprio de cada
humanidade humana. Constitui-se assim também um meio definido e histórico,
no qual é inserido o homem de qualquer nação ou tempo e de onde ele tira os
bens para promover a civilização humana.

1ª Secção: Condições Culturais do Mundo de Hoje

[Novas Formas de Vida]

54. Modificam-se profundamente as condições de vida do homem moderno, do


ponto de vista social e cultural, de tal modo que é lícito falar de uma idade
nova da história humana.¹ Por isso abrem-se novos caminhos para o
aperfeiçoamento e a difusão mais ampla da cultura. O crescimento considerável
das ciências naturais, humanas e também sociais, o desenvolvimento da
técnica e o progresso no aperfeiçoamento e uso adequando dos meios de
comunicação entre os homens prepararam estes caminhos. Por isso a cultura
de hoje é assinalada por características particulares. As ciências chamadas
exatas desenvolvem notavelmente o juízo critico. Os recentes estudos
psicológicos explicam mais profundamente a atividade humana. As disciplinas
históricas contribuem muito para que a realidade seja observada sob o seu
aspecto de mudança e evolução. Os hábitos e costumes de vida tornam-se cada
dia mais uniformes. A industrialização, a urbanização e outras causas que
promovem a vida comunitária, criam novas formas de cultura (cultura de
massa), das quais surgem maneiras novas de sentir, de agir e de utilizar o
tempo livre. Ao mesmo tempo, o crescente intercâmbio entre as várias nações
e grupos sociais abre mais largamente os tesouros das diversas formas de
cultura a todos e a cada um e assim prepara-se aos poucos um tipo de
civilização mais universal que tanto mais promove e exprime a unidade do
gênero humano quanto melhor respeita as particularidades das diversas
culturas.
¹ Veja-se a exposição introdutória da presente Constituição n. 4-10.

[O Homem Autor da Cultura]

55. Cada dia se torna maior o número de homens e mulheres de diversos


grupos que tomam consciência de ser os criadores e autores da cultura de sua
comunidade. No mundo inteiro cresce cada vez mais o senso de autonomia e ao
mesmo tempo de responsabilidade, que é de máxima importância para o
amadurecimento espiritual e moral do gênero humano. Isto aparece mais
claramente quando colocamos diante dos olhos a unificação do universo e a
tarefa que nos é imposta de edificar um mundo melhor na verdade e na justiça.
Portanto, desta maneira, testemunhamos o nascimento de um novo
humanismo, no qual o homem se define, em primeiro lugar, por sua
responsabilidade perante os seus irmãos e a história.

[Dificuldades e Tarefas]

56. Nestas condições não é de se admirar que o homem, sentindo a sua


responsabilidade no progresso da cultura, alimente uma esperança maior, mas
ao mesmo tempo contemple angustiada as inúmeras antinomias existentes que
ele próprio deve resolver:
O que fazer para que os intercâmbios culturais mais freqüentes, que deveriam
levar os diversos grupos e nações a um diálogo verdadeiro e frutuoso, não
perturbem a vida das comunidades, não destruam a sabedoria dos
antepassados e nem coloquem em perigo a índole própria de cada povo?
Como se deve favorecer o dinamismo e a expansão de uma nova cultura, sem
que pareça a fidelidade viva para com a herança das tradições? E isto urge
particularmente onde a cultura, que se origina de um progresso enorme das
ciências e da técnica, deve harmonizar-se com aquela civilização que se
alimenta dos estudos clássicos, segundo as diversas tradições.
Como se pode conciliar uma dispersão tão rápida e progressiva das ciências
particulares com a necessidade de elaborar a sua síntese e de conservar nos
homens as faculdades de contemplação e admiração que encaminham para a
sabedoria?
O que fazer para que a grande massa dos homens participe dos benefícios da
cultura, quando simultaneamente a das elites não cessa de se elevar e de
complicar sempre mais?
Como enfim, reconhecer legítima a autonomia que a cultura reclama para si,
sem cair em um humanismo meramente terrestre e mesmo adversário da
própria religião?
No meio destas antinomias é necessário que a cultura humana se desenvolva
de tal modo que aperfeiçoe de maneira equilibrada a pessoa humana integral e
ajude os homens a desempenhar as funções a que são chamados, sobretudo os
cristãos, unidos fraternalmente na única família humana.

2ª Secção: Alguns Princípios para a conveniente promoção da Cultura

[A Fé e a Cultura]

57. Os cristãos, peregrinando para a cidade celeste, devem procurar e saborear


as coisas do alto. ² Isto contudo, longe de diminuir, antes aumenta a
importância da missão que eles tem de desempenhar juntamente com todos os
homens na construção de um mundo mais humano. E, na verdade, o mistério
da fé cristã lhes oferece valiosos impulsos e auxílios para cumprir mais
cuidadosamente aquela missão e descobrir a significação profunda deste
trabalho, pelo qual a cultura obtém o seu lugar exímio na vocação integral do
homem.
² Cf. Com 3,1-2.
Quando cultiva a terra com o trabalho de suas mãos ou por meio da técnica,
para que ela produza frutos e se torne uma habitação digna da família humana
inteira, e quando participa conscientemente da vida dos grupos sociais, o
homem realiza o plano de Deus, manifestado no início dos tempos, que é o de
dominar a terra ³ e completar a criação, e se aperfeiçoa a si mesmo. Observa
ao mesmo tempo o grande mandamento de Cristo, que é o de despender-se no
serviço dos irmãos.
³ Cf. Gn 1,28.
Além disso, quando se aplica as múltiplas disciplinas da filosofia, da história,
das ciências matemáticas e naturais e se ocupa das artes, o homem pode
contribuir em alta medida para que a família humana se eleve as noções mais
nobres do verdadeiro, do bom e do belo e a um juízo de valor do universo e
seja mais claramente iluminado pela Sabedoria admirável, que estava junto de
Deus deste toda a eternidade, dispondo com Ele todas as coisas, brincando
sobre o globo da terra e encontrando as suas delícias junto com os filhos dos
homens. 4
4 Cf. Prov 8,30-31.
Por esta razão o espírito do homem, mais despendido da servidão das coisas,
pode elevar-se mais expeditamente ao próprio culto e a contemplação do
Criador. E é disposto, pelo impulso da graça, a reconhecer o Verbo de Deus
que, antes de encarnar-Se para salvar e recapitular em Si todas as coisas, já
estava no mundo como “luz verdadeira que ilumina todo o homem” (Jo 1,9-10).
5
5 Cf. S. Ireneu, Adv. Haer. III, 11,8: ed. Sagnard, p. 200; cf. ib., 16,6; pp.
290-292; 21,10-22: pp. 370-372; 22,3: p. 378; etc.
Na verdade o progresso atual das ciências e da técnica, que em razão de seus
métodos não conseguem atingir as profundezas das realidades, pode favorecer
um certo fenomenismo e agnosticismo, quando o método de pesquisa usado
por estas disciplinas é indebitamente admitido como norma suprema na
procura de toda a verdade. Existe ainda o perigo de o homem, confiando
demasiadamente nas descobertas atuais, julgar por que se basta a si mesmo,
descuidando os valores mais altos.
Estas inconveniências contudo não se seguem necessariamente da cultura
moderna, nem nos devem expor a tentação de não admitirmos os seus valores
positivos. Entre eles enumeram-se: o estudo das ciências e fidelidade rigorosa
a verdade: o estudo das ciências e fidelidade rigorosa a verdade nas pesquisas
científicas, a necessidade de trabalhar em equipe com outros nos grupos
técnicos, o senso da solidariedade internacional, a consciência cada dia mais
viva da responsabilidade dos cientistas na ajuda e na proteção a ser dispensada
aos homens, a vontade de tornar mais favoráveis as condições de vida para
todos, sobretudo para aqueles que são privados de responsabilidade ou sofrem
a indigência cultural. Tudo isto consegue trazer alguma preparação para que se
receba a mensagem do Evangelho, que pode ser informada pela caridade divina
por Aquele que veio salvar o mundo.

[As Relações Múltiplas entre o Evangelho de Cristo


e a Cultura Humana]

58. Encontram-se inúmeros vínculos entre a mensagem de salvação e a cultura


humana. Deus, com efeito, revelando-se ao Seu povo até a manifestação plena
de Si no Filho encarnado, falou de acordo com a cultura própria de diversas
épocas.
A Igreja igualmente, no decorrer dos tempos, vivendo em variadas condições,
usou os recursos das culturas para na sua pregação a todos os povos explicar e
difundir a mensagem de Cristo, investigá-la e entendê-la mais profundamente a
fim de melhor exprimi-la, na celebração litúrgica e na vida da variada
comunidade dos fiéis.
Ao mesmo tempo a Igreja, enviada a todos os povos de qualquer época e
região, não está ligada de maneira exclusiva e indissolúvel a nenhuma raça ou
nação, a nenhuma forma particular de costumes e a nenhum hábito antigo ou
recente. Fiel a própria tradição e simultaneamente consciente de sua missão
universal, ela pode entrar em comunhão com as diversas formas de cultura,
donde resultara um enriquecimento tanto para a Igreja como para as diferentes
culturas.
A boa-nova de Cristo restaura constantemente a vida e a cultura do homem
decaído, combate e remove os erros e os males decorrentes da sempre
ameaçadora sedução do pecado. Purifica e eleva incessantemente os costumes
dos povos. Com as riquezas do alto ele fecunda, como que por dentro, as
qualidades do espírito e os dotes de cada povo e de cada idade, fortifica-os,
aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. 6 Deste modo a Igreja, cumprindo a
própria missão7, por isso mesmo estimula a civilização humana e contribui para
ela, e, por sua ação, também litúrgica, educa o homem para a liberdade
interior.
6 Cf. Ef 1,10
7 Cf. as palavras de Pio XI ao Exmo. Sr. Roland-Gosselin; “Jamais se deve
perde de vista que o objetivo da Igreja está na evangelização e não na
civilização. Se ela civiliza, é para evangelizar” (Semanas Sociais da França,
Versailles, 1936, pp. 461-462).

[Relações Harmônicas nas Várias Formas de Cultura]

59. Com os argumentos supramencionados, a Igreja lembra a todos que a


cultura deve estar subordinada a perfeição integral da pessoa humana, ao bem
da comunidade e da humanidade inteira. Por isso é necessário cultivar o
espírito de tal modo que se desenvolva a faculdade de admirar, de penetrar o
intimo das coisas, de contemplar, de formar um juízo pessoal e de aperfeiçoar o
senso religioso, moral e social.
Porque deriva imediatamente da natureza racional e social do homem, a cultura
precisa sem cessar de justa liberdade para desenvolver-se e de legítima
autonomia de ação, segundo os princípios próprios. Exige portanto respeito e
goza de certa inviolabilidade, observados evidentemente os direitos da pessoa e
da comunidade particular ou universal, dentro dos limites do bem comum.
O Sagrado Concílio, retomando os ensinamentos do Concílio Vaticano I, declara
que há “duas ordens de conhecimento” distintas, a saber, a da fé e a da razão.
Portanto a Igreja não pode absolutamente impedir que “as artes e disciplinas
humanas usem de princípios e métodos próprios, cada uma em seu campo”.
Por isso, “reconhecendo a justa liberdade”, afirma a legítima autonomia da
cultura humana e particularmente das ciências.8
8 Conc. Vat. I, Const. Dogm. De fide cath. Dei Filius: Dz.
Todas essas coisas exigem também que o homem, observadas a ordem moral e
a utilidade comum, possa investigar livremente a verdade, manifestar e
divulgar a própria opinião e cultivar a arte que desejar. Exige-se enfim que o
homem seja informado imparcialmente acerca dos acontecimentos públicos.9
9 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS (1963), p. 260. 1795, 1799
(3015,3019). Cf. Pio XI, Enc. Quadrag. Anno: AAS 23 (1931), p. 190.
Não compete, porém, a autoridade pública determinar o caráter próprio das
formas da cultura humana, mas proporcionar condições e recursos para a
promoção da vida cultural no meio de todos, também junto as minorias numa
nação.10 Portanto, deve-se insistir, antes de tudo, que a cultura, desviada de
seu próprio fim, não seja forçada a sujeitar-se aos poderes políticos e
econômicos.
10 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS55 (1963), p. 283; Pio XII,
Radiomensagem de 24-12-1941: AAS 34 (1942), pp. 16-17.

3ª Secção: algumas obrigações mais urgentes dos Cristãos


em relação a Cultura

[Reconhecimento, levado a Prática, do Direito de


todos aos Benefícios da Cultura]

60. Como se oferece agora a possibilidade de libertar inúmeras pessoas da


miséria da ignorância, é imperioso dever, muito de acordo com a nossa época,
sobretudo para os cristãos, trabalhar denodadamente, tanto no setor
econômico, quanto no setor político, em âmbito nacional e internacional, a fim
de se tomarem decisões fundamentais pelas quais se reconheça em toda a
terra, e seja levado a prática, o direito de todos a civilização humana,
conveniente a dignidade da pessoa, sem discriminação de raça, sexo, nação,
religião ou condição social. Por isso, para todos devem ser providenciados os
suficientes bens de cultura, sobretudo aqueles que constituem a cultura de
base, para que muitos não sejam impedidos de cooperar, de maneira
verdadeiramente humana, no bem comum, pelo analfabetismo e pela falta de
iniciativa.
Deve-se, portanto, tender a que os homens, cujas forças de inteligência o
possibilitem, possam elevar-se aos estudos de nível superior, de tal modo que
os mesmos, enquanto for possível, surjam na sociedade humana,
desempenhando funções, cargos e serviços de acordo com a sua capacidade e
com a competência que adquiriram.¹¹ Assim cada homem e cada grupo social
em qualquer povo poderá conseguir o desabrochar pleno de sua vida cultural,
conforme as suas capacidades e tradições.
¹¹ Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 200.
Além disso deve-se trabalhar estrenuamente para que todos se tornem
conscientes, não só do direito a cultura, mas também do dever a que estão
obrigados de se cultivar a si mesmos e de ajudar os outros. As vezes existem
condições de vida e de trabalho que impedem os esforços culturais dos homens
e destroem neles o gosto da cultura. Estas observações valem de modo
especial para os trabalhadores do campo e os operários, aos quais é necessário
oferecer condições tais de prestarem o seu trabalho que não impeçam, mas
promovam a sua cultura humana. As mulheres já trabalham em quase todos os
setores da vida. É conveniente porem que possam assumir plenamente, de
acordo com a própria índole, o papel que lhes toca. É dever de todos
reconhecer e promover a participação específica e necessária da mulher na vida
cultural.

[Educação para a Cultura Integral do Homem]

61. Hoje é maior do que antigamente a dificuldade de reduzir a uma síntese as


várias ciências e artes. Enquanto crescem o volume e diversidade de elementos
que constituem a cultura, diminui ao mesmo tempo, para cada homem, a
possibilidade de percebe-los e compo-los organicamente, de tal modo que cada
vez mais desaparece a imagem do “homem universal”. Contudo continua a
impor-se a cada homem o dever de salvar a integridade de sua personalidade,
na qual sobressaem os valores da inteligência, vontade, consciência e
fraternidade, todos fundamentados em Deus Criador e que em Cristo foram
sanados e elevados, de maneira admirável.
Como que mãe e alimentadora desta educação, acha-se em primeiro lugar a
família. Nela os filhos, cuidados com amor, aprendem mais facilmente a
hierarquia dos valores enquanto formas aprovadas de cultura humana são por
assim dizer naturalmente comunicadas ao espírito do adolescente em
crescimento.
Para a mesma educação existem na sociedade atual oportunidades, decorrentes
sobretudo da larga difusão de livros e dos instrumentos novos de comunicação
cultural e social, que podem favorecer a cultura universal. Co a diminuição
generalizada do tempo de trabalho cresceram, com os dias, as vantagens para
muitos homens. Empreguem bem os lazeres, para o descanso do espírito e
para consolidar a saúde da alma e do corpo. Por meio de atividades livres e
ocupações, viagens a outras regiões (turismo), com as quais se cultiva a
inteligência humana, os homens se enriquecem com o conhecimento mútuo,
através de exercícios e apresentações esportivas que auxiliam a manter o
equilíbrio do espírito, também na comunidade, e a estabelecer relações
fraternais entre os homens de todas as condições, nações e raças. Os cristãos,
portanto, cooperem para que as manifestações e atividades culturais coletivas,
próprias de nossa época, sejam impregnadas de espírito humano e cristão.
Todas estas vantagens, porém, não conseguem realizar integralmente a
educação cultural do homem, se ao mesmo tempo é esquecida a interrogação
profunda sobre o sentido da cultura e da ciência para a pessoa humana.

[Composição da Civilização Humana com a Educação Cristã]

62. Ainda que a Igreja tenha contribuído muito para o progresso da cultura,
contudo consta pela experiência que, por motivos contingentes, nem sempre é
fácil de realizar a harmonia entre a cultura e o cristianismo.

Estas dificuldades não trazem necessariamente dano a vida de fé, mas, ao


contrário, podem impulsionar a mente a ter dela um conhecimento mais
profundo. Com efeito, os estudos e as descobertas mais recentes das ciências,
da história e da filosofia despertam problemas novos, que acarretam
conseqüências também para a vida e exigem dos teólogos novas investigações.
Além disso, os teólogos, observados os métodos próprios e as exigências da
ciência teológica, são convidados sem cessar a descobrir a maneira mais
adaptada de comunicar a doutrina aos homens de seu tempo, porque uma
coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades e outra é o modo de enunciá-
las, conservando-se contudo o mesmo significado e a mesma sentença.¹² Na
pastoral sejam suficientemente conhecidos e usados não somente os princípios
teológicos, mas também as descobertas das ciências profanas, sobretudo da
psicologia e da sociologia, de tal modo que também os fiéis sejam
encaminhados a uma vida de fé mais pura e amadurecida.
¹² Cf. João XXIII, Discurso de 11-10-1962, na abertura do Concílio: AAS 54
(1962), p. 792.
Também a seu modo as letras e artes são de grande importância para a vida da
Igreja. Procuram compreender a índole própria do homem, seus problemas e
suas tentativas enérgicas de conhecer e aperfeiçoar a si mesmo e o mundo.
Esforçam-se para descobrir o seu lugar na história e no universo inteiro e
elucidar as misérias e alegrias, as necessidades e as energias dos homens e
antecipar um destino humano melhor. Deste modo conseguem elevar a vida
humana, expressa de variadas formas, segundo as épocas e as regiões.
Por conseguinte deve-se trabalhar para que os cultores daquelas artes sintam-
se compreendidos pela Igreja, em sua atividade, e gozando de liberdade
ordenada, estabeleçam intercâmbios mais fáceis com a comunidade cristã.
Também as formas novas de arte, apropriadas aos nossos contemporâneos,
segundo a índole das diversas nações e regiões, sejam reconhecidas pela
igreja. Acolham-se, porém, no santuário, quando, por modos de expressão
adaptados e condizentes com as exigências da liturgia, elevem a mente a
Deus.¹³
¹³ Cf. Conc. Vat. II, Const. Sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium
n. 123: AAS 56 (1964), p. 131; Paulo VI, Discurso aos artistas romanos: AAS
56 (1964), pp. 439-442.
Assim o conhecimento de Deus se manifesta melhor e a pregação evangélica
torna-se mais transparente para a inteligência dos homens e aparece como que
conatural as suas condições de vida.
Os fiéis portanto muito unidos aos outros homens de sua época e procurem
perfeitamente suas maneiras de pensar e de sentir, expressas pela cultura.
Unam os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e das últimas
descobertas com a moral e os ensinamentos da doutrina cristã para que a
cultura religiosa e a retidão moral caminhem, junto dos mesmos homens, no
mesmo passo do conhecimento das ciências e da técnica em progresso
incessante e assim consigam eles apreciar e interpretar todas as coisas com
sensibilidade autenticamente cristã.
Aqueles que se dedicam as disciplinas teológicas nos Seminários e
Universidades procurem colaborar com os homens que sobressaem nas outras
ciências, colocando em comum suas energias e opiniões. A pesquisa teológica,
ao mesmo tempo que aprofunda o conhecimento da verdade revelada, não
negligencie o contato com o próprio tempo, para que possa fornecer um
conhecimento mais completo da fé aos homens preparados nos diversos ramos
a saber. Esse trabalho em conjunto será de máximo proveito para a formação
dos ministros sagrados: poderão apresentar de modo mais adaptado a doutrina
da Igreja sobre Deus, o homem e o mundo, aos contemporâneos, que por sua
vez acolherão mais prazerosamente a palavra de Deus.14 Bem mais. É de
desejar que muitos leigos consigam uma conveniente formação nas ciências
sagradas e não poucos entre eles, havendo oportunidade, dediquem-se ex-
professo a estes estudos e os aprofundem. Para que consigam desempenhar o
seu dever, seja reconhecida aos fiéis, clérigos ou leigos, a justa liberdade de
investigação e de pensamento, bem como a justa liberdade de exprimir as suas
idéias com humildade e firmeza, nos assuntos de sua competência.15
14 Cf. Conc. Vat. II, Decreto sobre a formação sacerdotal Optatam totius e
Declaração sobre a Educação Cristã Gravissimum Educationis.
15 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap. 4,
n.37: AAS (1965), pp. 42-43.

CAPÍTULO III: VIDA ECONÔMICO-SOCIAL

[Alguns Aspectos da Vida Econômica]

63. Também na vida econômico-social a dignidade da pessoa humana, com sua


vocação integral, bem de toda a sociedade, deve ser honrada e promovida. O
homem, com efeito, é o autor, centro e fim de toda a vida econômico-social.
A economia atual, como os outros setores da vida social, é assinalada por uma
dominação crescente do homem sobre a natureza e dependência mútua entre
os cidadãos, grupos e povos, e por uma intervenção mais freqüente do poder
político. Ao mesmo tempo os progressos nos sistemas de produção e na troca
de bens e serviços tornaram a economia um instrumento apto, com que se
pode prover melhor as necessidades ampliadas da família humana.
Contudo, não faltam motivos de inquietação. Não poucos homens, sobretudo
nas regiões economicamente desenvolvidas, parecem como que dominados
pela realidade econômica, de tal modo que toda a sua vida pessoal e social é
impregnada de um certo espírito de lucro, tanto nas nações que favorecem a
economia coletivista quando nas outras. No momento em que o progresso da
vida econômica dirigido e coordenado de maneira racional e humana poderia
mitigar as desigualdades sociais, com muita freqüência se torna o agravamento
das desigualdades sociais ou também cá e lá o regresso da condição social dos
fracos e o desprezo dos pobres. Enquanto uma enorme multidão tem falta
ainda de coisas absolutamente necessárias, alguns, mesmo em regiões menos
desenvolvidas, vivem na opulência ou desperdiçam os bens. O luxo e a miséria
existem simultaneamente. Enquanto poucos gozam do máximo poder de
deliberação, muitos carecem de quase toda a possibilidade de iniciativa pessoal
e de responsabilidade de ação, encontrando-se muitas vezes mesmo a pessoa
humana em condições indignas de vida e de trabalho.
Semelhantes defeitos de equilíbrio econômico e social são notados não só entre
a agricultura, a indústria e os serviços como também entre as diversas regiões
de uma mesma nação. Entre as nações economicamente mais desenvolvidas e
as outras nações, torna-se cada dia mais grave a oposição, que pode colocar
em perigo a própria paz do mundo.
Com consciência cada dia mais viva nossos contemporâneos percebem estas
disparidades. Estão inteiramente persuadidos de que as ampliadas capacidades
técnicas e econômicas, das quais dispõe o mundo atual, poderiam e deveriam
corrigir este funesto estado de coisas. Por conseguinte, exigem-se de todos
muitas reformas na vida econômico-social e uma conversão de mentalidade e
de modo de ser. Para isto a Igreja, no decurso dos tempos, sob a luz do
Evangelho, exarou e, sobretudo nestes últimos tempos, divulgou os princípios
de justiça e de eqüidade, postulados pela reta razão, tanto para a vida
individual e social, quanto para a vida internacional. O Sagrado Concílio
pretende corroborar estes princípios, de acordo com as circunstâncias desta
época, e proferir algumas orientações, que dizem respeito, antes de tudo, as
exigências do desenvolvimento econômico.¹
¹ Cf. Pio XII, Mensagem de 23-3-1952: AAS 44 (1952), p. 273; João XXIII,
Alocução a A.C.L.I., de 1-5-1959: AAS 51 (1959), p. 358.

1ª Secção: O Desenvolvimento Econômico

[O Desenvolvimento Econômico a Serviço do Homem]

64. Hoje, mais do que antes, atendendo-se ao aumento da população e as


crescentes aspirações da humanidade, procura-se com razão incrementar a
produção de bens agrícolas, industriais, e o volume de serviços prestados. Por
isso, deve-se encorajar o progresso técnico, o espírito de renovação, a criação
e a ampliação de empresas, a adaptação dos métodos de produção, os
diligentes esforços de todos os que participam nos setores produtivos, enfim,
todos os elementos que possam contribuir a este progresso. A finalidade
fundamental desta produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro
ou a dominação, mas o serviço do homem e do homem completo, atendida a
hierarquia das exigências de sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa;
de todo homem, dizemos, de qualquer comunidade humana, sem distinção de
raça ou região do mundo. Assim a atividade econômica, de acordo com os
métodos e as leis próprias, deve ser exercida dentro dos limites da ordem
moral ² de tal modo que se cumpra o plano de Deus a respeito do homem. ³
² Cf. Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 190 ss.; Pio XII,
Mensagem de 23-3-1952: AAS 44 (1952), p. 276 ss.; João XXIII. Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), p. 450; Conc. Vat. II, Decr. Sobre os Meios da
Comunicação Social, Inter mirifica, cap. 1, n.6: AAS 56 (1964), p. 147.
³ Cf. Mt 16,26; Lc 16,1-31; Col 3,17.

[O Desenvolvimento Econômico sob a Decisão do Homem]

65. O progresso econômico deve permanecer sob a deliberação do homem. Não


pode ser abandonado ao só arbítrio de poucas pessoas, ou de grupos
economicamente muito poderosas, nem só da comunidade política, nem de
algumas nações mais ricas. Ao contrárias, é preciso que em qualquer nível
numerosas pessoas, e quando se trata de relações internacionais, todas as
nações participem ativamente da sua direção. É igualmente necessário que as
iniciativas espontâneas dos indivíduos e dos grupos privados sejam
coordenadas com a ação dos poderes públicos e se ajustem e se harmonizem
entre si.
O desenvolvimento não pode ser abandonado nem ao curso quase mecânico da
atividade econômica dos indivíduos e nem somente ao poder da autoridade
pública. Por isso devem ser argüidos de erro, não só as teorias que, sob a
forma de falsa liberdade, dificultam as reformas necessárias, mas também as
que sacrificam os direitos fundamentais das pessoas particulares e dos grupos a
organização coletiva da produção.4
4 Cf. Leão XIII, Enc. Libertas, nas Acta Leonis XIII, t. VIII, p. 220 ss.; Pio XI,
Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 191 ss.; Id., Divini Redemptoris:
AAS 39 (1937), p. 65ss.; Pio XII, Mensagem de Natal, 1941: AAS 34 (1942), p.
10 ss.; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 401-464.

Além disso, lembrem-se os cidadãos que é seu direito e dever, o que deve ser
reconhecido também pelo poder civil, de contribuir segundo as suas
possibilidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos desenvolvidas,
onde todas as riquezas devem ser urgentemente usadas, colocam o bem
comum em perigo grave aqueles que deixam os seus recursos sem dar frutos
ou – respeitado o direito pessoal de migração – privam a sua comunidade dos
auxílios materiais ou espirituais dos quais ela necessita.

[Supressão das Acentuadas Diferenças Econômico-Sociais]

66. Para satisfazer as exigências da justiça e da eqüidade, deve-se esforçar


vigorosamente para que, respeitando-se os direitos das pessoas e o caráter
próprio de cada povo, se suprimam, o mais depressa possível, as acentuadas
diferenças econômico-sociais que hoje existem e crescem com freqüência
ligadas a discriminação individual e social. Igualmente, em muitas regiões,
levando em conta as dificuldades peculiares da agricultura, tanto na produção
quanto na venda dos bens os trabalhadores do campo devem ser ajudados, não
só para aumentar a produção, mas também para vende-la, e na introdução das
necessárias reformas e inovações assim como na obtenção de um lucro
razoável, a fim de que, como acontece muitas vezes, não permaneçam na
condição de cidadãos de classe inferior. Os próprios agricultores, de sua parte,
principalmente os jovens, apliquem-se com energia ao aperfeiçoamento de
seus conhecimentos profissionais, sem o que não pode haver progresso da
agricultura.5
5 Quanto ao problema da agricultura cf. principalmente João XXIII, Enc. Mater
et Magistra: AAS 53 (1961), p. 341 ss.
A justiça e a eqüidade exigem também que a mobilidade, necessária a uma
economia em desenvolvimento, seja organizada de tal modo que a vida dos
indivíduos e de suas famílias, não se torne instável e precária. Deve-se evitar
cuidadosamente qualquer discriminação, quanto as condições de remuneração
e de trabalho, em relação aos operários provenientes de outra nação ou região,
que cooperam com sua obra para a promoção econômica do povo ou território.
Todos, além disso, e as autoridades públicas em primeiro lugar, não os tratem
como meros instrumentos de produção, mas como pessoas: devem ajudá-los a
mandar buscar as suas famílias para junto deles e a providenciar uma
habitação decente, assim como favorecer a sua integração na sociedade do
povo ou da região de acolhida. Contudo, na medida do possível, sejam criadas
fontes de trabalho nas próprias regiões de origem.
Nas economias hoje em transição e nas formas novas da sociedade industrial
nas quais, por exemplo, se desenvolve a automação, deve-se cuidar para que
se ofereça trabalho suficiente e conveniente a cada um, assim como a
possibilidade de adequada formação técnica e profissional. Sejam asseguradas
a subsistência e a dignidade humana, principalmente daqueles que sofrem
maiores dificuldades, por motivo de doença ou de idade.
2ª Secção: Alguns princípios que regem o conjunto da vida
Econômico-Social

[O Trabalho, suas Condições e o Descanso]

67. O trabalho humano que se exerce na produção e comércio de bens ou na


prestação de serviços econômicos, é superior aos outros elementos da vida
econômica, pois estes são de ordem meramente instrumental. Este Trabalho,
com efeito, quer empreendido por conta própria quer contratado por outro,
decorre imediatamente da pessoa, assinalando com sua marca as coisas da
natureza e submetendo-as a sua vontade. Com o seu trabalho o homem
sustenta regularmente a própria vida e a dos seus, associa-se aos seus irmãos
e os ajuda, pode exercer a caridade fraterna e colaborar no aperfeiçoamento da
criação divina. Bem mais ainda. Pelo trabalho oferecido a Deus, nós cremos que
o homem se associa a própria obra redentora de Jesus Cristo, que conferiu uma
dignidade eminente ao trabalho, quando em Nazaré trabalhou com as próprias
mãos. Segue-se daí, para cada um, o dever de trabalhar fielmente e também o
direito ao trabalho. Compete porém a sociedade, de sua parte, de acordo com
as circunstâncias vigentes, ajudar os cidadãos, para que eles possam encontrar
ocasião de trabalho suficiente. Enfim, o trabalho deve ser remunerado de tal
modo que se ofereça ao homem a possibilidade de manter dignamente a sua
vida e a dos seus, sob o aspecto material, social cultural e espiritual,
considerando-se a tarefa e a produção de cada um, assim como as condições
da empresa e o bem comum.6
6 Cf. Leão XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS 23 (1890-1891), p. 649-662; Pio
XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), pp. 200-201; Id., Enc. Divini
Redemptoris: AAS 29 (1937), p. 92; Pio XII, Radiomensagem de Natal, 1942:
AAS 35 (1943), p. 20; Id., Alocução de 13-6-1943: AAS 35 (1943), p. 172; Id.,
Radiomensagem aos operários da Espanha, 11-3-1951: AAS 43 (1951), p. 215;
João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 419.

Como a atividade econômica se processa ordinariamente pelo trabalho


associado dos homens, é iníquo e desumano dispô-la e organizá-la de tal modo
que se transforme em dano para qualquer trabalhador. Acontece porém muitas
vezes, também em nossos dias, que os que trabalham são de certa maneira
escravizados pela própria obra. E isto não se justifica, de modo algum, pelas
assim chamadas leis econômicas. Portanto, todo o conjunto do processo de
produção deve se adaptar as necessidades da pessoa e as modalidades de sua
vida, primeiramente de sua vida domestica, sobretudo no que diz respeito a
mãe de família, levando-se em conta sempre o sexo e a idade. Além disso, seja
oferecida aos trabalhadores a possibilidade de desenvolver as próprias
qualidades e a sua personalidade, no exercício mesmo do trabalho. Dedicando,
com a devida responsabilidade, o tempo e suas forças a esta tarefa, tenham
todos contudo também a suficiente tranqüilidade e repouso para cuidar da vida
familiar, cultural, social e religiosa. Bem mais. Tenham a oportunidade de
exercitar livremente as forças e qualidades que talvez pouco possam
aperfeiçoar no trabalho profissional.
[Participação nas Empresas, no Conjunto da Economia
e Conflitos no Trabalho]

68. Nas empresas econômicas associam-se pessoas, isto é, homens livres e


responsáveis, criados a imagem de Deus. Por isso, consideradas as tarefas de
cada um, proprietários ou empregadores, dirigentes ou operários, e
resguardada a necessária unidade de direção do empreendimento, promova-se
de maneira a ser devidamente determinada a participação ativa de todos na
gestão das empresas. 7 Contudo, como muitas vezes se decide, não já na
própria empresa, mas em instâncias superiores, sobre as condições sociais e
econômicas, das quais depende a sorte futura dos trabalhadores e de seus
filhos, participem também nesta deliberações, por si mesmos ou por meio de
representantes livremente eleitos.
7 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 408,424,427, a
palavra “curatione” é tirada do texto latino da Enc. Quadragesimo Anno: AAS
23 (1931), p. 199. Sob o aspecto da evolução da questão cf. também: Pio XII,
Alocução de 3-6-1950: AAS 42 (1950) pp. 485-488; Paulo VI, Alucoção de 8-6-
1964: AAS 56 (1964), pp. 574-579.

Entre os direitos fundamentais da pessoa humana deve-se enumerar o direito


dos trabalhos de fundarem livremente associações que possam representá-los
de modo eficiente e contribuir para organizar a vida econômica na ordem reta,
assim como o direito de participarem com liberdade nas atividades destas
associações, sem perigo de represálias. Com esta participação organizada,
juntamente com uma progressiva formação econômico-social, aumentará em
todos, de dia para dia, a consciência de sua própria função e responsabilidade,
pela qual eles são encaminhados, segundo as suas capacidades e aptidões
pessoais, a se sentirem associados em todo o trabalho de desenvolvimento
econômico-social e na realização do bem comum universal.
Surgindo conflitos econômico-sociais empreguem-se os esforços necessários
para chegar a uma solução pacífica. Embora se deva recorrer sempre em
primeiro lugar a um diálogo sincero entre as partes, a grave contudo, mesmo
nas circunstâncias atuais, para a defesa dos próprios direitos e a realização das
reivindicações justas dos trabalhadores, pode permanecer como recurso
necessário, ainda que seja o último. Procurem-se porém, quanto antes, os
caminhos da negociação e a retomada do diálogo em vista de um acordo.

[Destinação dos Bens Terrenos a todos os Homens]

69. Deus destinou a terra, com tudo que ela contém, para o uso de todos os
homens e povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com
eqüidade sob as regras da justiça, inseparável da caridade.8 Sejam quais forem
as formas de propriedade, adaptada as legítimas instituições dos povos,
segundo circunstâncias diversas e mutáveis, deve-se atender sempre a esta
destinação universal dos bens. Por esta razão, usando aqueles bens, o homem
que possui legitimamente os bens materiais não as deve ter só como próprias
dele, mas também como comuns, no sentido em que elas possam ser úteis não
somente a ele mas também aos outros.9 Alem disso compete a todos o direito
de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias. Assim pensaram
os Doutores e Padres da Igreja, ensinando que os homens estão obrigados a
socorrer os pobres, e na verdade, não somente com o que lhes é superfluo.10
Aquele, porém, que se encontra em necessidade extrema tem o direito de
procurar o necessário para si junto as riquezas dos outros.¹¹ Como são tantos
os famintos no mundo, o Sagrado Concílio insiste com todos, particulares e
autoridades, que lembrados daquela sentença dos Padres: “Alimenta a quem
está morrendo de fome, porque, se não o nutriste, mataste-o”¹², segundo as
possibilidades cada um, comuniquem e ofereçam realmente os seus bens,
fornecendo auxílios sobretudo aos particulares ou povos, que desta maneira
poderão ajudar-se a si mesmo e progredir.
8 Cf. Pio XI., Enc. Sertum Laetitae: AAS 31 (1939), p. 642; João XXIII,
Alocução consistorial: AAS 52 (1960), pp. 5-11; id., Enc. Mater ey Magistra:
AAS 53 (1961), p. 411.
9 Cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q.32, a.5 a 2: Ibid. q. 66, a.2: cf.
explicação em Leão XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS 23 (1890-91) p. 651; cf.
também Pio XII, Alocução de 1-6-1941: AAS 33 (1941), p. 199; id.,
Radiomensagem de Natal, 1954: AAS 47 (1955), p. 27.
10 Cf. S. Basílio, Hom in ilud Lucae “Destruam horrea mea”, n.2 (PG 31,263);
Lactâncio, Divinarum Institutionum, Ibid. V, de iustitia (PL 6,565 B); S.
Agostinho, In Ioann. Ev. Tr. 50, n. 6 (PL 35,1760); id., Enarratio in Ps. CXLVII,
12 (PL 37,192); S. Gregório M., Homilae in Ev., hom. 20 (PL 76,1165); Id.,
Regulae Pastoralis liber, pars III, c.21 (PL 77,87): S. Boaventura, In III Sent.
D.33, dub 1 (ed. Quaracchi III, 728); Id., In IV Sent. D.15, p. II, a.2, q.1 (ed.
cit. IV, 371b); q. de supérfluo (ms. Assist. Bibl. comum. 186, ff. 112 a-113 a);
S. Alberto M., In III Sent. D.33,a.3, sol. 1 (ed. Borgnet XXVIII, 611); Id. In IV
Sent d.15a.16 (ed. cit. XXIX, 494-497). Sôbre a determinação radiotelevisiva
de 11-9-1962: AAS 54 (1962), p. 682: “Dever de todo homem, dever premente
do cristão é considerar o supérfluo conforme a medida das necessidades
alheias, e bem vigiar para que a administração e a distribuição dos bens criados
redunde em vantagem de todos”.
11 Vale nesse caso o antigo princípio: “Na extrema necessidade tudo é comum,
isto é: deve ser comunicado”. Doutro lado, conforme o motivo, a extensão e o
modo de aplicar o princípio proposto no texto, alem de conceituados autores
modernos cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q.66,a.7. Como é evidente, para a
reta aplicação do princípio, devem-se observar todas as condições moralmente
requeridas.
¹³ Cf. Gratiani Decretum, c.21, dist. LXXXVI: ed. Friedberg I,302. Esse dito já
se encontra em PL 54,591A e PL 56, 1132B. Cf. in Antonianum 27 (1952), 349-
466.

Nas sociedades economicamente menos desenvolvidas não raro a destinação


comum dos bens é em parte satisfeita pelos costumes e tradições próprias da
comunidade, fornecendo-se deste modo a cada membro os bens absolutamente
necessários. Deve-se evitar contudo que certos costumes sejam admitidos
como inteiramente imutáveis, quando não correspondem mais as novas
exigências de hoje. Não se deve, por outra parte, agir de modo imprudente
contra os costumes honestos, que, uma vez devidamente adaptados as
circunstâncias atuais, podem prestar valiosos serviços. Paralelamente, nas
nações muito desenvolvidas sob o aspecto econômico, uma rede de instituições
sociais de garantia e seguros pode realizar, de sua parte, a destinação comum
dos bens. Além disso, promovam-se os serviços familiares e sociais, sobretudo
os que contribuem para a cultura e a educação. Na realização de tudo isto
deve-se tomar cuidado contudo que os cidadãos não caiam em certa
passividade em relação a sociedade, irresponsabilidade e recusa de serviço.

[Inversões de Capitais e Problemas Monetários]

70. As inversões, por sua parte, devem encaminhar-se a conseguir


oportunidade de trabalho e renda suficientes para a população tanto atual
quanto futura. Todos aqueles que decidem sobre estas inversões e sobre a
organização da vida econômica – particulares, grupos ou autoridades públicas –
devem lembra-se destas finalidades e reconhecer sua obrigação grave, por uma
parte, de estarem atentos para que sejam providenciados os recursos
necessários a uma vida decente, tanto de cada um em particular, quanto da
comunidade inteira; por outra parte, de prover o futuro, estabelecendo justo
equilíbrio entre as necessidades atuais de consumo, individual e coletivo, e as
exigências de inversão de bens para as gerações futuras. Igualmente sempre
se tenham em vista as necessidades urgentes das nações ou regiões
economicamente menos desenvolvidas. Nas questões monetárias é preciso
acautelar-se para que não se prejudique o bem da própria nação e o das
outras. Além disso, tomem-se as providências para que os economicamente
fracos não sofram dano injusto com a desvalorização monetária.

[Acesso a Propriedade e ao Domínio Particular dos Bens.


Os Latifúndios]

71. Como a propriedade e outras formas de domínio particular sobre os bens


exteriores contribuem para a afirmação da pessoa, como lhe oferecem, além
disso, a oportunidade de exercer sua função na sociedade e na economia, é de
muito interesse que seja incentivado o acesso, quer dos indivíduos quer das
comunidades, a um certo domínio sobre os bens exteriores.
A propriedade particular ou algum domínio sobre os bens exteriores conferem a
cada um a extensão absolutamente necessária a autonomia pessoal e familiar e
devem ser consideradas como um prolongamento da liberdade humana. Enfim,
porque aumentam o estímulo no desempenho do trabalho e das
responsabilidades, constituem uma das condições das liberdades civis.¹³
¹³ Cf. Leão XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS (1890-91), pp. 643-646; Pio XI.
Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 191; Pio XII, Mensagem
radiofônica de 1-6-1941: AAS 33 (1941), p. 199 Id.; Radiomensagem de Natal,
1942; AAS 35 (1943), p. 17; Id., Radiomensagem de 1-9-1944: AAS 36
(1944), p. 253; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 428-
429.
As formas de tal domínio ou propriedade hoje são diversas e variam cada dia
mais. Todas, contudo, permanecem uma causa não desprezível de segurança,
ao lado de fundos sociais, de direitos e serviços garantidos pela sociedade. E
isto não deve ser afirmado somente das propriedades materiais, mas também
dos bens materiais, como são as habilitações profissionais.
Contudo, o direito de domínio particular não impede o direito das propriedades
públicas, que se reveste de várias formas. A transferência porém de bens para
propriedade pública não pode ser realizada senão pela autoridade competente,
de acordo com as exigências do bem comum e dentro de seus limites,
oferecendo-se indenização justa. Além disso, compete a autoridade pública
precaver-se para que ninguém abuse da propriedade particular contra o bem
comum.14
14 Cf. Pio XI, Enc. Quadragesimo Anno: AAS 23 (1931), p. 214; João XXIII,
Enc. Mater et Registra: AAS 53 (1961), p. 429.
A mesma propriedade particular, com efeito, por sua natureza, possui também
uma índole social, fundada na lei da destinação dos bens a comunidade
inteira.15 Negligenciando esta função social, acontece transformar-se a
propriedade, muitas vezes, em ocasião de ambições e desordens graves: assim
se oferece aos adversários o pretexto de colocarem em causa o próprio direito
de propriedade.
15 Cf. Pio XII, Radiomensagem. Pent. 1941: AAS 44 (1941), p. 199; João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 430.

Em muitas regiões economicamente menos desenvolvidas existem grandes ou


também extensíssimas propriedades rurais, pouco cultivadas, ou sem cultura
alguma, a espera de valorização enquanto a maior parte do povo não tem terra
ou dispõe somente de parcelas mínimas, e, por outra parte, o desenvolvimento
da produção nos campos se apresenta de urgência evidente. Não raro, os que
são contratados pelos donos para o trabalho, ou que cultivam uma parte a
título de locação, recebem somente um salário ou produção indignos do
homem, são privados de habitação decente e são explorados pelos
intermediários. Sem segurança alguma, vivem debaixo de tal servidão pessoal,
que lhes é tirada quase toda a possibilidade de iniciativa e responsabilidade,
sendo-lhes proibida qualquer promoção cultural humana e participação na vida
social e política. Portanto, em vários casos, as reformas são necessárias para o
crescimento das remunerações, o melhoramento das condições de trabalho, o
aumento de segurança no emprego, o incentivo a iniciativa de trabalho e,
também, a distribuição das terras insuficientemente cultivadas com aqueles que
consigam torná-las mais produtivas. Em tal caso, devem ser fornecidos os
recursos e meios necessários, sobretudo fornecidos os recursos e meios
necessários, sobretudo os subsídios de educação e as possibilidades de uma
justa organização de cooperativas. Todas as vezes que o bem comum exigir
uma expropriação, deve ser estipulada a indenização de acordo com a
eqüidade, levando-se em conta as circunstâncias.

[A Atividade Econômico-Social e o Reino de Cristo]


72. Os cristãos que participam ativamente no atual desenvolvimento
econômico-social e lutam pela justiça e caridade, estejam convencidos de que
podem contribuir muito para o bem-estar da humanidade e a paz do mundo.
Nestas atividades, individual ou coletivamente, brilhem pelo exemplo. Tendo
adquirido a competência e a experiência absolutamente indispensáveis no meio
das atividades terrestres, observem a hierarquia dos valores, fiéis a Cristo e ao
Evangelho, de tal modo que toda a sua vida, individual e social, seja
impregnada do espírito das Bem-aventuranças, destacando-se a pobreza.
Todo aquele que, obedecendo a Cristo, procura em primeiro lugar o Reino de
Deus, encontrará, em conseqüência, um amor mais forte e mais puro para
ajudar todos os seus irmãos e realizar a obra da justiça inspirada pela
caridade.16
16 Para o reto uso dos bens conforme a doutrina do Novo Testamento cf. Lc
3,11; 10,30 ss; 11,41; 1 Ped 5,3; Mc 8,36; 12,39-44; Tgo 5,1-6; 1 Tim 6,8; Ef
4,28; 2 Cor 8,13; 1 Jo 3,17-18.

CAPÍTULO IV: A VIDA DA COMUNIDADE POLÍTICA

[A Vida Pública Atual]

73. Notam-se em nossos tempos profundas transformações, mesmo na


estrutura e nas instituições dos povos; acompanham sua evolução cultural,
econômica e social. Essas transformações exercem grande influência na vida da
comunidade política, principalmente no que diz respeito aos direitos e deveres
de todos no exercício da liberdade civil, consecução do bem comum e
harmonização das relações dos cidadãos entre si e com a autoridade pública.
Nas várias regiões do mundo, de uma consciência mais viva da natureza
humana surge a vontade de instaurar uma ordem político-jurídica na qual os
direitos da pessoa sejam mais amparados, como são os direitos de se reunirem
livremente, de se associarem, de exprimirem as próprias opiniões e de
professarem a religião em particular e em público. Pois a defesa dos direitos da
pessoa é condição necessária, a fim de que os cidadãos, seja em particular ou
associados, possam participar ativamente na vida e no governo do país.
Em muitos cidadãos, juntamente com o progresso cultural, econômico e social,
fortifica-se o desejo de participar mais na organização da vida da comunidade
política. Cresce na consciência de muitos a vontade de que se respeitem os
direitos das minorias no interior de uma nação, sem negligência dos seus
deveres para com a comunidade política. Além disso aumenta continuamente o
respeito para com os homens que professam outra opinião ou religião. Ao
mesmo tempo organiza-se uma colaboração mais ampla para que todos os
cidadãos, e não só alguns privilégios, possam realmente gozar dos direitos de
pessoa.
Condenam-se, porém, quaisquer formas políticas, vigentes em algumas
regiões, que impedem a liberdade civil e religiosa, multiplicam as vítimas das
paixões e crimes políticos e desviam o exercício da autoridade, do bem comum
para o proveito de algum partido ou dos próprios governantes.
Para instaurar a vida política verdadeiramente humana nada melhor do que
desenvolver o sentido de justiça, de benevolência e de serviço do bem comum,
e reforçar as convicções fundamentais acerca da verdadeira índole e também
do fim da comunidade política, e corroborar o exercício reto e os limites da
autoridade pública.

[Natureza e Fim da Comunidade Política]

74. Indivíduos, famílias, agrupamentos diversos, todos os que constituem a


comunidade civil, tem consciência da própria insuficiência para instaurar
plenamente a vida humana e percebem a necessidade de uma comunidade
mais vasta, na qual todos empenhem diariamente as próprias forças para
alcançar sempre melhor o bem comum.¹ Por este motivo organizam a
comunidade política segundo várias formas. Pois a comunidade política existe
por causa daquele bem comum: nela obtém sua plena justificação e sentido, de
onde deriva o seu direito primordial e próprio. Ora, o bem comum compreende
o conjunto daquelas condições de vida social, que permitam aos homens, as
famílias e as sociedades possam conseguir mais fácil e desembaraçadamente a
própria perfeição. ²
¹ Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 417.
² Cf. Id., Ibid.

Mas muitos e vários são os homens que integram a comunidade política e


podem legitimamente seguir opiniões diversas. Para que não se divida a
comunidade política, seguindo cada um sua própria opinião, requer-se
autoridade que dirija as energias de todos os cidadãos para o bem comum, não
mecânica nem despoticamente, mas antes de tudo como autoridade moral que
se apóia na liberdade e na consciência do cargo e da responsabilidade
assumida.
Portanto, é evidente que a comunidade e a autoridade se fundamentam na
natureza humana e por isso pertencem a ordem predeterminada por Deus,
embora sejam entregues a livre vontade dos cidadãos a escolha do regime e a
designação dos governantes. ³
³ Cf. Rom 13,1-5.
Disto se segue também que o exercício da autoridade política, seja na
comunidade como tal, seja nos órgãos representativos do Estado, sempre deve
ser realizado dentro dos limites da ordem moral, para procurar o bem comum,
dinamicamente considerado, de acordo com a ordem jurídica legitimamente
estabelecida ou por estabelecer. Então os cidadãos são obrigados em
consciência a obedecer.4 Daí, pois, se vê a responsabilidade, a dignidade e a
importância da missão dos que governam.
4 Cf. Rom 13,1-5.
Mas onde são oprimidos pela autoridade pública, que excede a sua
competência, os cidadãos não recusem aquela colaboração objetivamente
exigida pelo bem comum; contudo, realmente lhes é lícito defender os seus
direitos e os dos seus concidadãos contra o abuso da autoridade, guardados os
limites traçados pela lei natural e evangélica.
Os modos concretos, porém, pelos quais a comunidade política organiza a
própria estrutura e o bom equilíbrio dos poderes públicos podem ser diferentes
segundo a diferente índole dos povos e o progresso da história. Mas devem
servir sempre para formar o homem culto, pacífico e generoso com todos, para
o proveito de toda a família humana.

[A Cooperação de Todos na Vida Pública]

75. É planamente consentâneo com a natureza humana que se encontrem


estruturas jurídico-políticas, que ofereçam sempre melhor e sem nenhuma
discriminação a todos os cidadãos a possibilidade efetiva de participar livre e
ativamente tanto no estabelecimento dos fundamentos jurídicos da comunidade
política como na gestão dos negócios públicos, na determinação do campo de
ação e dos fins das várias instituições, como na eleição dos governantes.5
Lembrem-se portanto todos os cidadãos ao mesmo tempo do direito e do dever
de usar livremente seu voto para promover o bem comum. A Igreja considera
digno de louvor e consideração o trabalho daqueles que se dedicam ao bem da
coisa pública a serviço dos homens e assumem os trabalhos deste cargo.
5 Cf. Pio XII, Radiomensagem de 24-12-1942: AAS 35 91943), pp. 9-24; 24-
12-1944: AAS 37 (1945), pp. 11-17; João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55
(1963), pp. 263.271,277 e 278.
A fim de que a cooperação dos cidadãos, unida a consciência do dever, atinja
seu feliz efeito na vida política diária, requer-se uma constituição jurídica
positiva, na qual se instaurem a conveniente divisão dos cargos e dos órgãos
da autoridade pública e, ao mesmo tempo, uma proteção eficaz e independente
dos direitos. Reconheçam-se, conservem-se e promovam-se os direitos de
todas as pessoas, famílias e grupos, assim como o seu exercício, juntamente
com os deveres, aos quais estão obrigados todos os cidadãos.6 Entre eles é
preciso lembrar o dever de prestar a nação os serviços materiais e pessoais,
exigidos pelo bem comum. Os governantes acautelem-se de entravar as
associações familiares, sociais ou culturais, as corporações ou organismos
intermediários, nem os privem de sua ação legítima e eficaz. Antes procurem
promovê-la, de boa vontade e regularmente. Os cidadãos, todavia, seja
individualmente seja em grupos, evitem atribuir demasiado poder a autoridade
pública e não exijam dela inoportunamente privilégios e proveitos exagerados,
de tal modo que diminuam a responsabilidade das pessoas, das famílias e dos
grupos sociais.
6 Cf. Pio XII, Radiomensagem de 1-6-1941: AAS 33 (1941), p. 200; João XXIII,
Enc. Pacem in terris: Lc., p. 273 e 274.
A autoridade pública é obrigada a intervir muitas vezes nas questões sociais e
econômicas por causa das circunstâncias mais complexas do nosso tempo, para
introduzir melhores condições, com as quais os cidadãos e os grupos são
auxiliados, de modo mais eficaz, a atingir livremente o bem integral do homem.
É certo que as relações entre a socialização e o progresso e a autonomia da
pessoa podem ser entendidas de modo diferente conforme as diversas regiões
e a evolução dos povos.7 Mas onde o exercício dos direitos foi restringido por
certo tempo, em vista do bem comum, mudadas as circunstâncias, restitua-se
quanto antes a liberdade. Em todo caso, é desumano que a autoridade política
incorra em formas totalitárias ou ditatoriais que lesem os direitos da pessoa ou
dos grupos sociais.
7 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), pp. 415-418.
Os cidadãos cultivem com grandeza de alma e fidelidade o amor a pátria, mas
sem estreiteza de espirito, isto é, de tal maneira que se interessem sempre ao
mesmo tempo pelo bem de toda a humanidade, que abarca raças, povos e
nações, unidos por toda sorte de laços.
Todos os cristãos se tornem cônscios de seu papel próprio e especial na
comunidade política. Devem distinguir-se pelo exemplo, porquanto estão
obrigados por consciência a desenvolver em si o senso de responsabilidade e do
devotamento ao bem comum de tal modo que demonstrem com a liberdade, a
iniciativa pessoal com a solidariedade e o equilíbrio de todo o corpo social, a
conveniente unidade com a diversidade proveitosa. Reconheçam as opiniões
legítimas, mas discordantes entre si, sobre a organização da realidade
temporal; respeitem os cidadãos, também associados, que se defendem
honestamente. Os partidos políticos, porém, devem promover aquilo que, na
sua opinião, é exigido pelo bem comum, ao qual nunca é lícito antepor o
interesse próprio.
Além disso com empenho se deve cuidar da educação civil e política, hoje muito
necessária tanto para o povo como sobretudo para a juventude a fim de que
todos os cidadãos possam desempenhar o seu papel na vida da comunidade
política. Os que são idôneos ou possam tornar-se para exercer a difícil e ao
mesmo tempo nobilíssima arte política8, preparem-se para ela e procurem
exercê-la, esquecidos do proveito próprio e de vantagens materiais. Pela
integridade e com prudência, lutem contra a injustiça e a opressão, ou o
absolutismo e a intolerância, seja dum homem ou dum partido político;
dediquem-se, porém, ao bem de todos com sinceridade e retidão, bem mais,
com o amor e a coragem exigidos pela vida política.
8 Pio XI, Alocução aos dirigentes da Federação Universitária Católica: Discorsi
di Pio XI: ed. Bertetto, Turim, vol I (1960), p. 743.

[A Comunidade Política e a Igreja]

76. Principalmente onde vigora a sociedade pluralística, é de grande


importância que se tenha a conveniente consideração da relação entre a
comunidade política e a Igreja: claramente se distinga entre as atividades que
os fiéis, isoladamente ou em grupos, guiados pela consciência cristã, executam
em seu nome como cidadãos e as que realizam em nome da Igreja, juntamente
com os pastores.
A Igreja que, em razão da sua finalidade e competência, de modo algum se
confunde com a comunidade política e nem está ligada a nenhum sistema
político, é ao mesmo tempo sinal e a salvaguarda do caráter transcendente da
pessoa humana.
Cada uma em seu próprio campo, a comunidade política e a Igreja são
independentes e autônomas uma da outra. Ambas, porém, embora por título
diferente, estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens.
Tanto mais eficazmente executarão para o bem de todos este serviço, quanto
melhor cultivarem entre si a sã cooperação, consideradas também as
circunstâncias dos tempos e lugares. Pois o homem não está restrito apenas a
ordem temporal, mas, vivendo na história humana, conserva, integralmente a
sua vocação eterna. A Igreja, sem dúvida, alicerçada no amor do Redentor,
contribui para que a justiça e a caridade floresçam mais amplamente no seio de
cada nação e entre as nações. Pregando a verdade evangélica, e iluminando
todos os setores da atividade humana pela sua doutrina, pelo testemunho dos
fiéis cristãos, a Igreja respeita e promove também a liberdade e a
responsabilidade dos cidadãos.
Quando os apóstolos, seus sucessores e seus cooperadores são enviados para
anunciar aos homens Cristo, Salvador do mundo, baseiam-se, ao exercer seu
apostolado, no poder de Deus, que com freqüência dá a conhecer o poder do
Evangelho na fraqueza das testemunhas. Todos aqueles que se dedicam ao
ministério da Palavra de Deus, é preciso que lancem mão de caminhos e
auxílios próprios ao Evangelho, que diferem, em muitos pontos dos da cidade
terrestre.
Na verdade, as coisas terrenas e aquelas que na condição dos homens
transcendem este mundo, unem-se estreitamente, e a mesma Igreja usa os
bens temporais a medida que sua própria missão o exige. Mas não coloca a sua
esperança nos privilégios oferecidos pela autoridade civil. Ao contrário, Ela
renunciará ao exercício de direitos legitimamente adquiridos, onde constar que
o uso deles coloca em dúvida a sinceridade do seu testemunho ou as novas
condições da vida exigirem outra disposição. Além disso é justo que possa,
sempre e em toda parte, pregar a fé com liberdade verdadeira, ensinar a sua
doutrina social, exercer livremente a sua missão entre os homens e ainda
emitir juízo moral, também sobre as realidades que dizem respeito a ordem
política, quando o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das
almas, empregando todos os recursos, e somente estes, que estão de acordo
com o Evangelho e com o bem de todos, conforme a diversidade dos tempos e
das situações.
Aderindo fielmente ao Evangelho e desempenhando sua missão no mundo, a
Igreja, a quem pertence fomentar e elevar tudo aquilo que se encontra de
verdadeiro, bom e belo na comunidade humana9, fortalece a paz entre os
homens para a glória de Deus.10
9 Cf. Conc. Vat. II, Const. Dogm. Sobre a Igreja, Lumen Gentium, n. 13: AAS
57 (1965), p. 17.
10 Cf. Lc 2,14.

CAPÍTULO V: A CONSTRUÇÃO DA PAZ


E A PROMOÇÃO DA COMUNIDADE DOS POVOS

[Introdução]

77. Nestes mesmos anos, em que ainda perduram entre os homens os


pesadíssimos sofrimentos e angústias que derivam da guerra aberta ou
iminente, a família humana inteira atinge o momento decisivo no processo de
sua evolução. Reunida aos poucos, em toda parte se torna mais consciente de
sua unidade. Todavia ser-lhe-á impossível construir para todos os homens em
toda parte um mundo realmente mais humano, de acordo com a sua missão a
não ser que todos se convertam a verdadeira paz pela renovação do espírito.
Destarte a mensagem do Evangelho, tão conforme aos mais elevados ideais e
aspirações do gênero humano, adquire nova claridade em nossos dias, quando
proclama bem-aventurados os artífices da paz, “pois serão chamados filhos de
Deus” (Mt 5,9).
Daí a intenção do Concílio: depois de colocar em plena luz o verdadeiro e
nobilíssimo conceito de paz, proscrever a desumanidade da guerra, quer
convocar com insistência os fiéis, para que, apoiados em Cristo, autor da paz,
colaborem com todos os homens a consolidar a paz entre eles, baseada na
justiça e no amor, e a preparar-lhe os instrumentos da paz.

[A Natureza da Paz]

78. A paz não é a mera ausência de guerra, nem se reduz ao simples equilíbrio
de forças entre os adversários, nem é resultado de opressão violenta: antes é,
adequada e propriamente, definida “obra da justiça” (Is 32,7). É fruto da ordem
que o seu Fundador divino inseriu na sociedade humana. Deve ser realizada,
em perfeição progressiva, pelos homens que tem sede da justiça. Pois, embora
o bem comum do gênero humano seja moderado em seus princípios
fundamentais pela lei eterna, em suas exigências concretas fica sujeito a
continuas mudanças, no decorrer dos tempos: a paz nunca é conquistada de
uma vez para sempre; deve ser continuamente construída. Além disso, por ser
a vontade humana fraca e ferida pelo pecado, a realização da paz exige de cada
um constante domínio das paixões e vigilância atenta da autoridade legítima.
Mas não é só isso. Aqui na terra não é possível obter a paz de que falamos sem
que se garanta o bem-estar das pessoas, sem que os homens comuniquem
entre si espontaneamente as riquezas do coração e da inteligência. Para a
construção da paz são de outros homens e povos e sua dignidade, bem como o
exercício diligente da fraternidade. Destarte a paz se apresenta também como
fruto do amor, que avança além dos limites daquilo que a justiça é capaz de
proporcionar.
A paz terrestre, porém, que surge do amor ao próximo, é imagem e efeito da
paz de Cristo que promana de Deus Pai. Pois o próprio Filho encarnado,
príncipe da paz, por sua cruz reconciliou todos os homens com Deus.
Restabelecendo a união de todos em um só Povo e um só Corpo, em sua
própria carne aniquilou o ódio¹ e, depois do triunfo da ressurreição, derramou o
Espírito da caridade nos corações dos homens.
¹ Cf. Ef 2,16; Col 1,20-22.
Por isto todos os cristãos são insistentemente convocados para que,
“praticando a justiça na caridade” (Ef 4,15), se associem a todos os homens
sinceramente pacíficos, para implorar e estabelecer a paz.
Impelidos por este espírito só podemos calorosamente aplaudir aqueles que,
para reivindicar os seus direitos, renunciam ao emprego da violência e
recorrem aos meios de defesa, que aliás estão ao alcance também dos mais
fracos, contanto que isso seja viável sem lesar direitos e obrigações de outros
ou da comunidade.
Pecadores que são os homens vivem em perigo de guerra e este perigo
ameaçará até a vinda de Cristo. Mas enquanto, unidos pela caridade, superam
o pecado, serão também eliminadas as violências até que se cumpra a palavra:
“De suas espadas eles forjarão relhas de arado, e de suas lanças, foices. Uma
nação não levantará a espada contra a outra, e já não se adestrarão para a
guerra” (Is 2,4).

1ª SECÇÃO: ELIMINAÇÃO DA GUERRA

[Atenuação da Desumanidade das Guerras]

79. As guerras recentes assolaram o nosso mundo com pesadíssimos prejuízos


materiais e morais. Mesmo assim, até hoje, a guerra prossegue diariamente el
alguma parte do globo com suas devastações. Mais ainda. Na medida em que
se empregam na guerra armas científicas de todo gênero, seu caráter
desumano ameaça levar os combatentes a uma barbárie que supera em muito
a de outros tempos. Além disso, a complexidade da situação atual e o
emaranhado das relações internacionais fazem com que por métodos novos,
insidiosos e subversivos, se alastrem guerras camufladas. Em bastantes casos o
recurso a métodos de terrorismo surge como nova maneira de guerra.
A vista deste baixo nível humanitário, o Concílio tem em mira, antes de tudo,
recordar o valor inalterável do direito natural dos povos e seus princípios
universais. A própria consciência do gênero humano proclama estes princípios
com segurança crescente. Ações portanto deliberadamente opostas a eles, bem
como ordens que impõem tais ações, são criminosas; nem a obediência cega é
capaz de desculpar aqueles que as acatam. Entre tais ações figuram antes de
tudo as que tem por fim o sistemático e metódico extermínio de todo um povo,
nação ou minoria étnica; estas ações devem ser condenadas como crimes
horrendos, e isto com toda a energia. E merece aprovação suprema a coragem
daqueles que não tem medo de opor resistência aberta aos indivíduos que
ordenam tais crimes.
Existem diversas convenções internacionais sobre assuntos de guerra,
assinadas por não poucas nações, com o objetivo de tornar menos desumanas
as operações militares e suas conseqüências. Tais são os pactos a respeito dos
soldados feridos ou prisioneiros, e outros acordos deste gênero. Estes tratados
devem ser observados. E não só. Todos, particularmente as autoridades
públicas e os peritos no assunto, devem empenhar-se quanto possível para que
sejam aperfeiçoados e assim levados a refrear melhor e com maior eficiência a
desumanidade das guerras. Além disso, parece ser justo que as leis
contemplem humanamente o caso daqueles que por motivos de consciência
recusam pegar em armas, desde que aceitem uma outra maneira de servir à
comunidade humana.
De qualquer maneira, a guerra não foi desarraigada da vida humana. Enquanto
porém houver perigo de guerra, sem que exista uma autoridade internacional
competente e dotada de forças suficientes, e esgotados todos os meios de
negociação pacífica, não se poderá negar aos governos o direito de legítima
defesa. Os chefes de Estado e os outros que participam da responsabilidade da
coisa pública, portanto, tem o dever de salvaguardar os povos que lhes são
confiados dirigindo com seriedade assuntos tão sérios. Todavia, uma coisa é
cuidar de assuntos militares com o fim de defender com justiça os povos, outra
o querer subjugar outras nações. E a força bélica não legítima todo e qualquer
uso seu, para fins militares ou políticos. Nem, quando por infelicidade a guerra
já se iniciou, torna-se tudo ilícito entre as partes inimigas.
Aqueles, porém, que destacados para o serviço da pátria, fazem parte do
exército, considerem-se a si mesmo como ministros da segurança e da
liberdade dos povos. Enquanto desempenham bem esta função cooperam
realmente para estabelecer a paz.

[A Guerra Total]

80. Pelo progresso das armas científicas, o horror e a perversidade da guerra


cresceram sem medida. Com o emprego destas armas as operações bélicas
podem causar destruições enormes e indiscriminadas que portanto ultrapassam
muito os limites da legítima defesa. Ora, se estes recursos, que já se
encontram nos arsenais de armas das grandes nações, fossem realmente
aplicados, resultaria disso uma chacina quase total e inteiramente recíproca
entre os adversários, sem falar das muitas devastações que se originariam no
mundo e das nefastas conseqüências do uso destas armas.
Tudo isso nos obriga a examinar a guerra com mentalidade inteiramente nova.
² Os homens do nosso tempo devem saber que prestarão contas severas de
suas operações bélicas. Pois o desenvolvimento dos tempos vindouros em
grande parte dependera de seus planos de hoje.
² Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 11-4-1963: AAS 55 (1963), p. 291: “Por
isso em nossa época, que se gloria da força atômica, é algo absurdo estar a
guerra já preparada para ressarcir direitos violados”.
A vista disso, este Sínodo Sacrossanto endossa as condenações da guerra total
já enunciadas pelos últimos Sumos Pontífices ³,e declara: Qualquer ação bélica
que visa a destruição indiscriminada de cidades inteiras ou de vastas regiões
com seus habitantes, é um crime contra Deus e o próprio homem, a ser
condenado com firmeza e sem hesitações.
³ Cf. Pio XII, Alocução de 30-9-1954: AAS 46 (1954), p. 589; Radiomensagem
de 24-12-1954: AAS (1955), pp. 15ss; João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS
55 (1963), pp. 286-291; Paulo VI, Alocução na ONU, 4-10-1965: AAS 57
(1965), pp. 887-895.
O perigo assombroso da guerra moderna consiste nisso: por assim dizer,
insinua-se a ocasião de perpetrar tais crimes aqueles que possuem novas
armas científicas; e, por uma concatenação de certa maneira inexorável, é
capaz de impelir a vontade dos homens as decisões mais atrozes. Para que isso
jamais aconteça no futuro, os Bispos de todo o mundo, reunidos, suplicam a
todos, principalmente aos chefes de Estado, bem como as autoridades
militares, que considerem incessantemente tamanha responsabilidade perante
Deus e perante toda a humanidade.
[A Corrida Armamentista]

81. É verdade que as armas científicas não se acumulam apenas para serem
aplicadas no tempo da guerra. Sendo opinião corrente que a força defensiva de
cada lado depende da capacidade fulminante em repelir o adversário, esta
acumulação de armas, cada ano mais volumosa, exerce uma influência
incomum para atemorizar possíveis adversários. Muitos consideram isto como o
mais eficaz de todos os meios para garantir hoje uma certa paz entre as
nações.
Seja qual for o peso deste raciocínio, convençam-se os homens que a corrida
armamentista, para a qual não poucas nações apelam, não é caminho infalível
para assegurar firmemente a paz; nem o assim chamado equilíbrio que resulta
desta corrida é a paz estável e verdadeira. Bem longe de eliminar as causas de
guerra que daí surgem, antes aos poucos as agravam. Enquanto se gastam
enormes somas na confecção de armas sempre novas, não se pode dar
remédio suficiente a tantas misérias que hoje grassam no mundo inteiro. Em
vez de sanar em verdade e pela base os conflitos entre as nações, outras
partes do mundo são por eles contaminadas. É preciso procurar novos
caminhos que procedam de uma reforma dos espíritos, a fim de que se remova
este escândalo, e ao mundo, libertado do pavor que o oprime, possa ser
restituída a paz verdadeira.
Por isso, mais uma vez deve ser declarado: a corrida armamentista é a praga
mais grave da humanidade, que lesa intoleravelmente os pobres. É de se temer
muitíssimo que, se perdurar, ela produza um dia todas as ruínas nefastas, cujos
instrumentos já prepara.
Avisados pelas calamidades que o gênero humano tornou possíveis,
aproveitando-nos do tempo que desfrutamos concedido do alto, para que, mais
conscientes de nossa responsabilidade, encontremos os caminhos que nos
permitam resolver nossas controvérsias de um modo mais digno do homem. A
providência divina exige de nós com insistência que nos livremos da antiga
escravidão da guerra. Se recusarmos fazer tentativas neste sentido, não
sabemos para onde nos levara este mau caminho no qual entramos.

[A Proscrição da Guerra e a Ação Internacional para Evita-la]

82. É evidente que devemos distinguir-nos com todas as forças na preparação


dos tempos nos quais com o consentimento das nações qualquer guerra possa
ser absolutamente interditada. Isto naturalmente requer a instituição de
alguma autoridade pública universal, reconhecida por todos, que goze de poder
eficiente, a fim de que sejam salvaguardadas a segurança, a observância da
justiça e a garantia dos direitos. Antes porém que se consiga instituir esta
autoridade desejável, urge que as supremas organizações internacionais de
hoje se dediquem seriamente aos estudos dos meios mais indicados para
conseguir a segurança comum. A paz deve nascer antes da confiança mútua
entre povos, do que ser imposta as nações pelo terror das armas. Por isso,
todos devem colaborar para que acabe enfim a corrida armamentista. A
redução das armas, para tornar-se uma realidade, deve ser iniciada, não de
modo unilateral, mas paralelamente, em virtude de acordos e ser apoiada por
cauções verdadeiras e eficazes.4
4 Cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris, onde se fala da diminuição dos
armamentos: AAS 55 (1963), p. 287.
Contudo, não devem ser subestimadas as tentativas já feitas e ainda em curso,
a fim de afastar o perigo da guerra. Pelo contrário: deve-se apoiar a boa
vontade de muitíssimos que, embora onerados por ingentes cuidados de seus
elevadíssimos encargos, movidos todavia pelo dever gravíssimo ao qual são
ligados, empenham-se por eliminar a guerra que detestam, ainda que não
possam prescindir da complexidade real das coisas. É preciso rogar
insistentemente a Deus que lhes de a força de enfrentar com perseverança e de
levar a termo com firmeza esta obra do mais elevado amor aos homens pela
qual é construída virilmente a paz. Isto hoje exige deles incontestavelmente
que alarguem sua inteligência e seu espírito além das fronteiras da própria
nação, abandonem o egoísmo nacional e a ambição de dominar outras nações,
nutram profundo respeito para com toda a humanidade que já corre, ainda que
laboriosamente, em direção a maior liberdade.
As sondagens em torno dos problemas da paz e do desarmamento desde há
muito empreendidas com seriedade e perseverança, bem como as conferências
internacionais que trataram deste assunto, devem ser consideradas como os
primeiros passos para resolver questões tão difíceis. No futuro elas devem ser
promovidas com maior urgência para chegar a resultados práticos. No entanto
acautelem-se os homens de abandonar-se somente as tentativas de alguns,
sem ter cuidado da própria mentalidade. Pois os chefes de Estado, fiadores que
são do bem comum da própria nação e igualmente promotores do bem comum
mundial, dependem muitíssimo da opinião e da mentalidade das multidões.
Nada lhes aproveita insistir na construção da paz, enquanto sentimentos de
hostilidade, desprezo ou desconfiança, ódios raciais e ideologias obstinadas
dividem os homens em campos opostos. Daí a urgência máxima da reeducação
da mentalidade e da nova inspiração da opinião pública. Os que se consagram a
obra da educação, em particular da juventude, ou se dedicam a formação da
opinião pública considerem como seu dever mais grave inculcar ao espírito de
todos novos sentimentos pacíficos. Nós todos devemos transformar nossos
corações, abrindo os olhos sobre o mundo inteiro e aquelas tarefas que, todos
juntos, podemos cumprir, para o feliz progresso da humanidade.
Não nos engane a falsa esperança. Pois sem abandonar as inimizades e os
ódios e sem concluir no futuro pactos firmes e honestos de paz universal, a
humanidade, que já se encontra em situação mui crítica, apesar de ser dotada
da ciência admirável, talvez fatalmente seja levada ao momento, em que outra
paz não experimente senão a horrenda paz da morte. A Igreja de Cristo,
porém, ao pronunciar estas palavras, colocada no meio da angústia deste
tempo, imperturbável não perde a esperança. Sempre de novo, oportuna e
inoportunamente, deseja anunciar ao nosso tempo a mensagem apostólica:
“Este é o tempo propício” para converter os corações, “este é o dia da
salvação”5.
5 Cf. 2 Cor 6,2.
2ª SECÇÃO: CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL

[As Causas das Dissensões e seus Remédios]

83. Para construir a paz é antes de tudo imprescindível extirpar as causas de


desentendimentos entre os homens. Estas alimentam a guerra, sobretudo as
injustiças. Não poucas provem das excessivas desigualdades econômicas, bem
como do atraso de lhes trazer os remédios necessários. Outras surgem do
espírito dominador, do desprezo das pessoas e, investigando as causas mais
profundas, da inveja, da desconfiança, da soberba e de outras paixões egoístas.
Como o homem não suporta tantas desordens, resulta que, mesmo fora dos
tempos de guerra, o mundo constantemente é perturbado por rivalidades entre
os homens e por atos de violência. Estes mesmos males infestam as relações
entre as próprias nações. Por isso é de absoluta necessidade, para vencer ou
prevenir e coibir as violências desenfreadas, que as instituições internacionais
desenvolvam melhor e reforcem sua cooperação e coordenação; e se estimule
incansavelmente a criação de organismos promotores da paz.

[A Comunidade dos Povos e as Instituições Internacionais]

84. Em nosso tempo aumentam os laços estreitos de dependência mútua entre


todos os cidadãos e entre todos os povos da terra. Para procurar
acertadamente o bem comum universal e consegui-lo mais eficazmente, já se
exige que a comunidade dos povos estabeleça um programa que corresponda
as exigências de hoje, sobretudo no que diz respeito aquelas numerosas
regiões que ainda sofrem de intolerável penúria.
Para atingir estes objetivos, as instituições da comunidade internacional, por
sua parte, devem atender as várias necessidades dos homens, tanto no campo
da vida social (alimentação, saúde, educação, trabalho), quanto em certas
condições particulares que podem surgir cá ou lá, tais como a necessidades
geral de estimular o progresso das nações em vias de desenvolvimento, de
acudir aos sofrimentos dos refugiados, dispersos pelo mundo inteiro, bem como
de ajudar os emigrantes e suas famílias.
As instituições internacionais já existentes, universais ou regionais, certamente
são beneméritas do gênero humano. Elas aparecem como as primeiras
tentativas para lançar os fundamentos internacionais de toda a comunidade
humana, a fim de resolver as questões mais graves de nossos tempos: a
promoção do progresso em todo o mundo e a proscrição da guerra sob todas as
formas. Em todos estes campos, a Igreja se alegra com o espírito de verdadeira
fraternidade que começa a florescer entre cristãos e não-cristãos e insiste na
intensificação sempre maior dos esforços para aliviar a ingente miséria.

[A Cooperação Internacional no Campo Econômico]

85. A solidariedade atual do gênero humano reclama também o


estabelecimento de maior cooperação internacional no campo econômico. Com
efeito, embora quase todos os povos se tenham tornado autônomos, ainda falta
muito para que sejam livres das desigualdades excessivas e de toda a forma de
dependência indevida e escapem a todo o perigo das graves dificuldades
internas.
O desenvolvimento de uma nação depende de ajuda humana e pecuniária. Os
cidadãos de qualquer nação devem ser preparados para os diversos encargos
da vida econômica e social pela educação e formação profissional. Para isto, no
entanto, é indispensável o auxílio de peritos estrangeiros que, ao prestar o
apoio, não devem comportar-se como dominadores, mas como assistentes e
cooperadores. Quanto ao auxílio material para as nações em vias de
desenvolvimento, não se poderá presta-lo, se os costumes do atual comércio
mundial não forem profundamente modificados. Outros recursos devem ser
fornecidos pelas nações evoluídas as nações em progresso sob a forma de
donativos, empréstimos ou investimentos; estes serviços sejam prestados
como generosidade e sem cobiça de uma parte, e, de outra, aceitos com toda a
honestidade.
Para estabelecer uma verdadeira ordem econômica universal, é necessário
eliminar a procura exagerada do lucro, as ambições nacionais, as aspirações de
domínio político, os cálculos militarísticos bem como as manobras para
propagar ou impor ideologias. Há muitos sistemas econômicos e sociais.
Deseja-se que os seus peritos descubram as bases comuns para um são
comércio mundial. Isto se conseguirá com maior facilidade se cada um
abandonar os próprios preconceitos, pronto para um diálogo sincero.

[Algumas Normas Oportunas]

86. Para esta cooperação, parecem oportunas as seguintes normas:

a) Os povos em via de desenvolvimento tenham o máximo interesse em


procurar, como fim do progresso, dos seus próprios cidadãos. Lembrem-se que
o progresso nasce e cresce antes de tudo do trabalho e do expressa e
firmemente, a perfeição humana e integral engenho das mesmas nações. Por
isso não deve apoiar-se somente nos recursos alheios, mas em primeiro lugar
na ampla exploração dos próprios, bem como na cultura da inteligência e
tradição própria. Nesta orientação devem distinguir-se sobretudo os líderes.

b) Por outro lado é obrigação gravíssima dos povos desenvolvidos ajudar os


povos em via de desenvolvimento no desempenho destas tarefas. Por isso,
promovam seu próprio ambiente as disposições espirituais e materiais
necessárias para assentar as bases desta cooperação universal.
Assim ao negociar com as nações mais fracas e pobres procurem
escrupulosamente o bem delas; pois estas crescem para o próprio sustento dos
lucros que tiram da venda de seus produtos.

c) Cabe porém a comunidade internacional organizar e estimular o


desenvolvimento, mas de tal maneira que os fundos a isso destinados sejam
aplicados de modo mais eficiente e com plena eqüidade. Pertence ainda a esta
comunidade, sem prejuízo naturalmente do princípio de subsidiariedade,
organizar as relações econômicas mundiais, a fim de que se desenvolvam
conforme as normas da justiça.
Sejam criados institutos idôneos para promover e regulamentar os negócios
internacionais, sobretudo com as nações menos desenvolvidas, e para
compensar falhas que promanam da desigualdade excessiva de poder entre as
nações. Tal organização, juntamente com assistência técnica, cultural e
financeira, deve oferecer os subsídios necessários as nações em busca do
progresso, a fim de que possam alcançar o harmonioso incremento de sua
economia.

d) Não raro se impõe uma revisão das estruturas econômicas ou sociais. Mas é
preciso acautelar-se de soluções técnicas imaturas, especialmente daquelas
que, enquanto oferecem ao homem vantagens materiais, prejudicam sua índole
e proveito espiritual. Pois “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra
que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). Ora, qualquer elemento da família humana
abriga em si mesmo e em suas melhores tradições alguma parcela do tesouro
espiritual confiado por Deus a humanidade, embora muitos ignorem sua
origem.

[A Cooperação Internacional e a Explosão Demográfica]

87. A cooperação internacional se torna absolutamente necessária para aqueles


povos que hoje, muitas vezes em meio de tantos outros problemas, se vêem de
modo especial pressionados pelo rápido crescimento da população. Há
necessidade urgente de descobrir, graças a plena e solícita colaboração de
todos, particularmente das nações mais ricas, como conseguir os meios
necessários para a alimentação e formação conveniente dos homens e como
fazer deles participar toda a comunidade humana. Bom número de povos há
que conseguiriam melhorar bastante seu nível de vida, se, devidamente
instruídos, passassem dos métodos antiquados na produção agrícola para
técnicas modernas, aplicando-as prudentemente as suas condições, a par, além
disso, da instauração de melhor ordem social e de distribuição mais justa da
propriedade das terras.
Sem dúvida pertencem aos governos o direito e o dever de tentar uma solução
do problema populacional de sua nação, dentro dos limites da própria
competência: por exemplo, no que diz respeito a legislação social e familiar, ao
êxodo da população rural para a cidade, as informações acerco da situação e
das necessidades da nação. Com este problema muito agita hoje os espíritos, é
de desejar que católicos competentes em todas estas questões, sobretudo nas
Universidades, prossigam incansavelmente os estudos e planejamentos
ampliando-os ainda.
Perante a afirmação de muitos, segundo a qual o crescimento da população do
mundo ou pelo menos de algumas nações deve ser radicalmente limitado por
todos os meios e por toda sorte de intervenção da autoridade pública, o
Concílio adverte todos os homens que se acautelem de soluções preconizadas
pública ou privadamente e as vezes impostas, que se opõem a lei moral. Pois,
em virtude do direito inalienável do homem ao matrimônio e a geração da
prole, a decisão sobre o numero de filhos a procriar depende do juízo retos dos
pais. De maneira alguma pode ser atribuída ao critério da autoridade pública.
Mas como a decisão dos pais supõe uma consciência bem formada, é de
máxima importância que a todos se de a possibilidade de chegar ao nível de
uma responsabilidade reta e verdadeiramente humana com relação a lei divina,
de acordo com as circunstâncias da realidade e do tempo. Mas isto exige que
em toda parte sejam melhoradas as condições pedagógicas e sociais e
mormente que se ofereça instrução religiosa ou pelo menos íntegra formação
moral. Sejam as populações judiciosamente informadas sobre os progressos
científicos realizados na pesquisa de métodos que possam ajudar os esposos
em matéria de regulação de nascimentos, contanto que o valor destes métodos
seja bem comprovado e a concordância com a lei moral seja certa.

[O Dever dos Cristãos na Prestação de Auxílios]

88. De bom grado e de todo o coração os cristãos cooperem na construção de


uma ordem internacional na qual sejam realmente observadas as liberdades
legítimas e a amizade fraterna de todos. Fá-lo-ão de boa mente, tanto mais que
a maior parte do mundo ainda se debate em tão grande penúria que o próprio
Cristo, nos pobres, como que el alta voz, clama pela caridade de seus
discípulos. Evite-se pois de dar este escândalo aos homens: algumas nações,
cujos cidadãos na maioria se gloriam do nome de cristãos, nadam na
abundância de bens, enquanto outras se vêem despojadas das coisas
necessárias para a vida e são torturadas pela fome, doenças e completa
miséria. Pois o espírito de pobreza e caridade são a glória e o testemunho da
Igreja de Cristo.
Merecem portanto louvor e apoio os cristãos, sobretudo os jovens, que se
oferecem espontaneamente para prestar auxílio a outros homens e povo. Mais
ainda. É obrigação de todo o Povo de Deus, arrastado pela palavra e pelo
exemplo dos Bispos, aliviar na medida de suas forças a miséria dos tempos
atuais e isto, como era costume antigo da Igreja, não só como supérfluo, mas
também com o essencial.
O sistema de arrecadar e distribuir os subsídios não deve necessariamente
observar uma linha rígida e uniforme. Mas seja bem organizado nas dioceses,
nas nações e no plano mundial, em ação conjugada, sempre que pareça
oportuno, de católicos com os outros irmãos cristãos. Pois o espírito de
caridade, longe de proibir o exercício previdente e ordenado da ação social e
caritativa, antes o impõe. Por isso mesmo é necessário que sejam devidamente
preparados, mesmo em institutos idôneos, os que pretendem dedicar-se ao
serviço das nações em vias de desenvolvimento.

[A Presença Eficiente da Igreja na Comunidade Internacional]

89. Apoiada na sua missão divina, a Igreja prega a todos os homens o


Evangelho e distribui-lhes os tesouros da graça. Assim ela contribui, em toda
parte, para assegurar a paz e para lançar o fundamento sólido da
confraternização dos homens e dos povos, isto é, o conhecimento da lei divina
e natural. É por isso que a Igreja deve estar absolutamente presente na
comunidade dos povos, para fomentar e despertar a cooperação entre os
homens; e isto tanto por suas instituições públicas como ainda pela plena e
sincera colaboração de todos os cristãos, inspirada somente pelo desejo de
prestar serviço a todos.
Isto será conseguido de modo mais eficiente, quando os próprios fiéis,
conscientes de sua responsabilidade humana e cristã, se empenharem para
despertar no seu ambiente de vida a vontade de cooperar prontamente com a
comunidade internacional. A isto se de particular atenção na formação dos
jovens, tanto na educação religiosa como na civil.

[Participação dos Cristãos nas Instituições Internacionais]

90. Para os cristãos constitui sem dúvida excelente forma de atividade


internacional e concurso que prestam, individualmente ou em grupos, nos
Institutos já existentes ou por existir, a fim de dar impulso a cooperação entre
as nações. Para a edificação da comunidade dos povos na paz e na
fraternidade, além disso, podem servir de muitas maneiras as diversas
associações católicas internacionais. Devem ser consolidadas, dotando-as de
pessoal mais numeroso e bem formado, aumentando os subsídios de que
precisam e coordenando harmoniosamente suas forças. Pois em nossos tempos
a eficácia das ações como a necessidade de diálogo reclamam iniciativas
coletivas. Tais associações, além disso, contribuem não pouco para desenvolver
o sentido do universal, que certamente convém aos católicos e é próprio para
formar a consciência de solidariedade e responsabilidade verdadeiramente
universal.
Enfim é de desejar que os católicos, para bem cumprir sua missão na
comunidade internacional, procurem cooperar ativa e positivamente não só
com os irmãos separados que juntamente com eles professam a caridade
evangélica, mas também com todos os homens que tem sede de paz
verdadeira.
Considerando a imensidade de sofrimentos que atormentam ainda hoje a maior
parte do gênero humano e para fomentar em toda parte a justiça e o amor do
Cristo para com os pobres, o Concílio, por sua vez, julga muito oportuna a
criação de um organismo da Igreja universal, com o fim de despertar a
comunidade dos católicos para que se promovam o progresso das regiões
indigentes e a justiça social entre as nações.

CONCLUSÃO

[O Dever de cada Fiel e das Igrejas Particulares]

91. As propostas feitas por este Sagrado Sínodo, tiradas do tesouro da doutrina
da Igreja, pretendem ajudar todos os homens dos nossos tempos, quer os que
crêem em deus e quer os que não O admitem explicitamente, a perceber com
mais clareza sua vocação integral, construir um mundo mais de acordo com a
dignidade eminente do homem, aspirar a uma fraternidade universal apoiada
sobre fundamentos mais profundos e corresponder, sob o impulso do amor,
com esforço generoso e comunitário as exigências urgentes de nossa época.
Contudo, diante da variedade imensa, não só das situações, mas também das
formas de cultura humana no mundo, esta exposição, em muitas de suas
partes, apresenta deliberadamente um caráter genérico. Bem mais. Ainda que
enuncie a doutrina já tradicional da Igreja, como não raro trata das realidades
sujeitas a permanente evolução, deverá ser ainda prosseguida e ampliada.
Confiamos porém que muitas coisas que enunciamos, apoiados na Palavra de
Deus e no espírito do Evangelho, poderão trazer a todos um auxílio valioso,
sobretudo depois que os cristãos, sob a orientação dos Pastores, tiverem
realizado a adaptação para cada povo e mentalidade.

[O Diálogo entre todos os Homens]

92. Em virtude de sua missão que é de iluminar o mundo inteiro com a


mensagem evangélica e reunir em um único Espírito todos os homens de todas
as nações, raças e culturas, a Igreja torna-se o sinal daquela fraternidade que
permite e consolida um diálogo sincero.
Isto, porém, requer, em primeiro lugar, que promovamos no seio da própria
Igreja a mútua estima, respeito e concórdia, admitindo toda a diversidade
legítima, para que se estabeleça um diálogo cada vez mais frutífero entre todos
os que constituem o único Povo de Deus, sejam os pastores, sejam os demais
cristãos. O que une os fiéis é com efeito muito mais forte do que aquilo que os
separa. Nas coisas necessárias reine a unidade, nas duvidosas a liberdade, em
tudo a caridade.¹
¹ Cf. João XXIII, Enc. Ad Petri Cathedram, 29-6-1959: AAS 55 (1959), p.513.
O nosso pensamento abraça ao mesmo tempo os irmãos e suas comunidades
que ainda não vivem em comunhão plena conosco, aos quais contudo nós nos
unimos pela confissão do Pai e do Filho e do Espírito Santo e pelo vínculo da
caridade, lembrados de que a unidade por muitos que não crêem em Cristo.
Quanto mais esta unidade crescer sob a ação potente do Espírito Santo, na
verdade e na caridade, tanto mais ela será prenúncio de unidade e de paz para
o mundo inteiro. Unamos portanto nossas forças e, sob formas cada vez mais
adaptadas a este fim preclaro que hoje deve ser eficazmente procurado,
esforcemo-nos a que, cada dia mais conformados ao Evangelho, cooperemos
fraternalmente no serviço a ser prestado a família humana, chamada a tornar-
se, em Cristo Jesus, a família dos filhos de Deus.
Volvemos pois ainda o nosso pensamento a todos os que admitem Deus e que
guardam em suas tradições preciosos elementos religiosos e humanos,
desejando que um diálogo aberto nos leve todos a aceitar fielmente os
impulsos do Espírito e a cumpri-los com entusiasmo.
O desejo de tal diálogo, que é guiado somente pelo amor a verdade, observada
a devida prudência, de nossa parte não exclui ninguém, nem os que, honrando
os bens admiráveis do engenho humano, contudo não admitem ainda o seu
Autor, nem aqueles que se opõem a Igreja e a perseguem de várias maneiras.
Sendo Deus Pai o princípio e o fim de todas as coisas, somos tomos chamados
a ser irmãos. E por isso, destinados a única e mesma vocação, humana e
divina, sem violência e sem dolo, podemos e devemos cooperar para a
construção do mundo na paz verdadeira.

[Construir o Mundo e Levá-lo ao seu Fim]

93. Lembrados da palavra do Senhor: “Nisto todos conhecerão que sois meu
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35), os cristãos nada podem
desejar mais ardentemente do que prestar serviço aos homens do mundo de
hoje, com generosidade sempre maior e mais eficaz. Deste modo, aderindo
fielmente ao Evangelho e alimentados com as suas forças, unidos a todos que
amam e praticam a justiça, receberam uma tarefa imensa a ser desempenhada
nesta terra e da qual devem prestar contas Aquele que julgará todos os
homens no último dia. Nem todos os que dizem: “Senhor, Senhor!” entrarão no
reino dos céus, mas aqueles que fazem a vontade do Pai ² e põem mais eficaz
a obra. Pois o Pai quer que reconheçamos Cristo como irmão em palavras como
em atos, prestando assim testemunho a Verdade e comunicando aos outros o
mistério de amor do Pai celeste. Por este caminho os homens são despertados,
em todo o orbe da terra, para uma esperança viva, dom do Espírito Santo, a
fim de que, finalmente, sejamos recebidos na paz e na felicidade suprema, na
pátria que brilha com a glória do Senhor.
“Aquele que, pela virtude que opera em nós, pode fazer infinitamente mais do
que tudo quanto pedimos ou entendemos, a Ele seja dada glória na Igreja e em
Cristo Jesus, por todas as gerações da eternidade. Amém” (Ef 3,20-21).
² Cf. Mt 7,21.

[Promulgação]

Todo o conjunto e cada um dos pontos que foram enunciados nesta


Constituição pastoral agradaram aos Padres do Sacrossanto Concílio.
E Nós, pela autoridade Apostólica por Cristo a Nós confiada, juntamente com os
Veneráveis Padres, no Espírito Santo os aprovamos, decretamos, e estatuímos.
Ainda ordenamos que o que assim foi determinado em Concílio seja
promulgado para a glória de Deus.

Roma, junto a São Pedro,


no dia 7 de dezembro de 1965.
Eu, PAULO, bispo da Igreja Católica.
Seguem-se as assinaturas dos Padres Conciliares

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