Você está na página 1de 170

Capa:

Y. M. Dias
Imagem Cavalo com ferradura:
Flaticon.com
Diagramação:
E. M. Hott
Revisão e Reescrita:
E. M. Hott e Mariana Vox

Copyright © E. M. Hott, 2023


2ª Edição
Todos os direitos reservados.
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas
reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte da autora.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de recuperação,
ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia,
gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito da autora.
História escrita conforme o novo acordo ortográfico.

Dedicatória
A todos que acreditam no amor, em sua magia e em sua força.
Epígrafe
“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã
filosofia”.
William Shakespeare
Prólogo
UM GRANDE AMOR NUNCA ACABA
Uma família, composta apenas por três integrantes, vivia feliz em uma fazenda cafeeira
em Astromélia, uma cidadezinha do interior do estado do Espírito Santo. O casal se dividia entre
os trabalhos da fazenda e as aulas na escola pública da região, destinada às crianças que
moravam por perto.
Augusto Bergamoto, loiro, de olhos azuis e nariz caucasiano, era um homem alto e forte,
mas muito gentil, principalmente com sua esposa, Dolores. Vendia café para as redondezas e
investia em suas terras para, como ele dizia, fazer o pé de meia de sua filha, Valquíria, sobretudo
quando o assunto era os estudos da jovem Bergamoto.
Dolores, ou Dona Lola, tinha olhos castanhos bem escuros e gentis. Seus cabelos pretos e
levemente ondulados iam até os ombros; possuía também um nariz arrebitado. Era uma
professora muito amorosa e fazia muito mais que lecionar Matemática. Ajudava na cozinha ou
dava aula de outra disciplina quando alguém faltava, além de ser adorada pelos alunos. Sempre
ensinou à filha sobre respeito e amor ao próximo, mas isso não significava que não tinha pulso
forte quando necessário e Augusto sabia bem disso.
Valquíria era uma jovem feliz, doce e muito empática com os outros. Era muito cortejada
pelos rapazes da região por sua beleza e, apesar disso, em seus pensamentos pairava o nome de
apenas um rapaz. Seus cabelos eram pretos como uma noite de Lua nova, ondulados e compridos
como um rio manso que beirava a fazenda dos pais. Era branca e possuidora de profundos e
apaixonantes olhos castanhos, que contrastavam com sua boca delicada. Sempre foi cheia de
vida e apaixonada por Ernesto, seu namorado.
O rapaz era um bom homem, moreno por sua exposição ao Sol e cabelos castanhos bem
curtos, olhos claros e nariz afilado. Vinha de uma família humilde de um sítio vizinho e o dono,
seu genitor, era amigo de Augusto. Ele trabalhava como adestrador em um haras das redondezas
— no qual sua namorada sempre o acompanhava para ver os animais —, ansiando um futuro
melhor ao lado de Valquíria.
A jovem tinha dezoito anos e estava prestes a cursar Medicina Veterinária, com intuito de
se especializar nos cuidados aos equinos e, assim, poder trabalhar junto de Ernesto. Por conta
desse amor por cavalos, Augusto e Dolores presentearam a filha com uma égua branca,
posteriormente nomeada Campolina, assim que iniciou a graduação. Seus pais desejavam ter a
filha diplomada e bem instruída, logo, apoiaram o sonho da jovem mulher.
Durante seu período do ensino superior, seus pais lhe deram as escrituras das terras e
edificaram uma casa para ela próxima a um lago deslumbrante e não muito distante do casarão
da fazenda. Queriam deixar tudo ajeitado e no nome da filha o quanto antes, visto que no interior
a maior despesa vinha da família da noiva e não tardaria para que a união de Ernesto e Valquíria
acontecesse. O jovem casal se preparava para o casamento conforme os anos passavam,
mobiliando a casa dentre outras necessidades, para se unirem logo após a formatura da futura
médica veterinária.
Valquíria e Ernesto se casaram logo após a jovem completar vinte e quatro anos, faltando
pouco para concluir sua pós-graduação. Deram uma grande festa, movida a churrasco, música
agitada e dançante, típica do interior, e muitos “causos” contados. Estavam felizes como nunca e
no auge do amor, prontos para viverem o sentimento intensamente e constituírem família.
Após três meses de casada e vivendo um sonho com seu marido, Valquíria recebeu uma
visita, costumeira em sua casa, mas inesperada naquele horário. Estava ocupada banhando sua
égua de pelagem alva nos fundos da residência e não ouviu quando a chamaram.
— Valquíria?! — gritou mais uma vez e bateu palmas. Parecia apressado ou, até mesmo,
desesperado.
— Estou aqui nos fundos dando banho em Campolina. Venha aqui, por favor — soou
gentilmente, como de costume.
Sorriu ainda mais ao ver que se tratava de Joaquim, amigo de Ernesto e parceiro de
trabalho, além de padrinho de casamento do rapaz, e fechou o registro da mangueira para o mirar
adequadamente. Uma sensação ruim dominou seu estômago quando analisou a expressão
transtornada do homem, mudando o seu semblante no segundo seguinte. Como se pressentisse
que, da boca do estimado amigo, viria uma notícia desastrosa e ele seria o seu arauto da
desgraça.
— O que aconteceu, Joaquim? Que cara é essa? — Deixou a égua solta, ainda com os
freios presos à boca, secando-se ao Sol e foi até o homem.
— É o Nestim... — Baixou a cabeça, demonstrando que algo estava errado.
— O que tem meu marido? — O homem emudeceu e ela começou a sentir desespero, seu
coração passou bater descompassado. — Responda, Joaquim... O que aconteceu com o Ernesto?
— O peão começou a chorar silenciosamente e Valquíria sentiu seu chão se abrir sob seus pés,
levando as mãos aos fios escuros que estavam presos por uma trança. — Não, não, não! Não é o
que eu estou pensando... Não pode ser... Fala alguma coisa, Joaquim! — gritou, aflita, segurando
o peão pelo colarinho da camisa e o balançando.
— Ele... Ele foi domar um cavalo recém-chegado, muito bravo e... — A veterinária
começou a chorar, soltou a gola do homem e cobriu a boca com uma das mãos. — ... O bicho
começou a pular desembestado. Ernesto tentou pular quando viu que não dava mais, mas o pé...
— Parou para limpar os olhos e respirar. — ... O pé dele ficou preso no estribo e ele
desequilibrou. Ficou dependurado e o cavalo acertou um coice no pescoço dele, depois na
cabeça. Quando a gente conseguiu parar o bicho, Nestim já não tava mais vivo. Eu sinto muito,
Valquíria.
Olhou para a mulher com os olhos úmidos, com um nó tão grande na garganta que doía e
a viu correr com o rosto banhado em lágrimas até sua égua e pular no pelo do animal. Valquíria
segurou no arreio de Campolina e a incitou com os pés, partindo em um galope desenfreado, mal
se recordando de que a égua estava recém banhada. Não quis ouvir o que o homem tinha para
falar até o final. Apenas foi até o haras Pegasus atrás de Ernesto. Não se importava se suas
pernas ficariam doloridas ou com assaduras por ter montado sem a sela e na pelagem molhada do
animal, somente queria chegar ao trabalho do marido.
— Isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto... Ernesto... — Chorava enquanto sua
fala saiu desesperada. — Heya, Campolina! — gritou e bateu o arreio contra o pescoço da égua,
que entendeu o comando e aumentou a velocidade. — Precisa ser mentira... — murmurou e
apertou os olhos para limpá-los e conseguir ver minimamente o percurso.
Passou aos galopes pela porteira do haras pouco tempo depois, fazendo o animal saltar
sobre a cancela e disparar pelo chão gramado em direção aos estábulos. Chegou, pulando da
égua, e correndo em direção a alguns homens aglomerados próximos à arena de adestramento.
— Cadê meu marido? Cadê o Ernesto? — gritou aos prantos. Procurou o esposo com um
olhar ansioso, acreditando que ele estaria ali e tudo não passava de uma grande brincadeira de
mau gosto.
Os empregados se compadeceram da mulher e um deles se aproximou.
— Dona Valquíria, Joaquim foi te avisar... — Respirou e continuou: — Levaram o corpo
do Nestim pro DML[1], como foi acidente, precisava fazer uns exame nele. — Tirou o chapéu e
baixou a cabeça em respeito à mulher.
Valquíria levou as mãos até os cabelos e começou a andar sem rumo, sentindo sua face
inundar. Sentou-se em um banco feito de tronco de árvore e chorou sofregamente, esgoelando-se
para tentar amenizar toda aquela dor. Percebeu quando um cavalo preto, que possuía uma
mancha branca em forma de seta na testa, aproximou-se e roçou a cabeça em seu ombro. Era
Flecha Preta, o escudeiro fiel de seu marido. Acariciou o focinho do equino e abraçou o animal,
que parecia entender e vivenciar a mesma dor. Estava com o adestrador há três anos, desde que
nascera.
— Ah, Flecha, queria que fosse mentira. Queria ter uma segunda chance com ele. —
Pranteou e o animal relinchou compartilhando do mesmo sentimento. Cavalos são animais fiéis
aos seus tutores e sentiam da perda tal como os humanos.
Levou-o até Campolina e montou no cavalo preto, que estava selado, conduzindo a fêmea
pelo arreio. Em silêncio, foi para casa dos seus pais, pedir socorro, pedir amparo. Não tinha
cabeça para tomar as providências necessárias e precisava do seu pai para isso. Não se sentia
bem fisicamente, enjoada e destruída por ter perdido seu melhor amigo de infância, seu parceiro
e seu amor.
O senhor Augusto deixou Valquíria com a mãe e providenciou tudo, ajeitando o velório
para a mesma noite do incidente. Muitos amigos e parentes foram prestar condolências à viúva.
Ernesto era uma pessoa muito querida e isso ficou evidente durante o rito fúnebre, posto que a
casa estava abarrotada de gente.
Nesse dia conheceu Omar e Selina, um casal, cujo homem era primo distante de seu
marido e morava na capital com a esposa. Ele, loiro de olhos claros e nariz afilado, de feições
duras, como se estivesse constantemente com raiva. Ela, cabelo liso, corte Chanel e castanhos,
tinha o olhar doce e um sorriso afetuoso. A esposa do tal primo se solidarizou com Valquíria e
ficou o tempo todo ao seu lado, ajudando Dona Lola a cuidar da médica veterinária, que ainda
não se sentia bem. Desse fatídico dia, uma grande amizade surgiu entre elas.
Mesmo com a morte de Ernesto, Valquíria não perdeu seu brilho e seu jeito doce de ser,
outrossim não quis voltar para a casa dos pais. Passou a investir em criação de cavalos e, agora,
vinte e dois anos depois, havia uma área de adestramento e cuidados médicos destinados aos
equinos em seu sítio. Vivia disso. Enfiou-se de cabeça no trabalho para diminuir a saudade que
sentia do seu amado, em quem não deixou de pensar um dia sequer.
Aos quarenta e seis anos e alguns fios de cabelo brancos, podia-se dizer realizada como
profissional e feliz, exceto quando Ernesto lhe vinha à memória. A saudade que sentia de seu
falecido marido era tão intensa que, mesmo anos após o seu falecimento, não se casou
novamente. Teve seus namoros, mas nada que durasse por muito tempo.
Manteve contato com Selina por todo aquele tempo, antes por cartas e atualmente por
mensagens no celular. Tornaram-se verdadeiras amigas, apesar das poucas vezes que se viram.
Nesses anos de amizade conheceu mais do casal, Omar era advogado criminalista e Selina era
uma cirurgiã dentista. Acompanhou a gestação da amiga à distância, oferecendo a ela o apoio
emocional que necessitava naquele momento. O casal de amigos teve uma filha, para alegria da
dentista e nem tanta do advogado, que queria um filho para seguir seus passos.
Selina com frequência relatava que a garota, agora com quase vinte e um anos, era
problemática, teimosa e não acatava as ordens do pai. A jovem queria apenas ler seus livros,
viver seu romance com seu namorado, que era filho do sócio de escritório de Omar, e fazer
Letras. Queria ser escritora, contrariando totalmente o pai que insistia que a filha cursasse Direito
como ele.
No entanto, desde que a garota nasceu, elas não se viram mais, apenas se falavam por
cartas e depois telefone. Valquíria “conheceu” Elis apenas por fotos.

A veterinária acabava de sair do parto complicado de uma égua. Estava cansada depois
de horas de trabalho árduo para salvar o potro e a mãe, mas pelo menos conseguiu vencer a
batalha. Sentou-se à mesa de madeira rústica que possuía em sua casa e se serviu de uma boa e
velha dose de cachaça ouro para aliviar o estresse, sorvendo o líquido ardente em um único gole.
Pensava bastante na amiga e, no instante em que cogitou enviar uma mensagem para
Selina, a dentista ligou para ela:
— Lina, ia te mandar uma mensagem agora, acredita? — falou, simpática, um sorriso
estampado no rosto.
— Sério, Val? Conexão de pensamentos — comentou sem muito humor e suspirou.
— O que aconteceu, Selina? — Valquíria arqueou a sobrancelha. — Tá toda estranha. —
Franziu o cenho e aguardou a resposta da amiga.
— Ai, minha amiga... Preciso da sua ajuda! Minha vida virou de cabeça para baixo e
não sei o que fazer... — Respirou profundamente para prosseguir: — Elis está grávida e parece
que o namorado não é o pai. Pelo menos foi o que o rapaz disse, mas ela bate o pé que é dele.
Omar está furioso com ela e a expulsou de casa. Acontece que ela ia ficar com meus pais, mas
ela fugiu. Não sei para onde minha menina foi. — Pareceu preocupada em sua fala.
— Meu Deus, Selina. — A veterinária se boquiabriu. — Não sei o que dizer, mas
deveriam dar apoio para a filha de vocês. — Tentou não demonstrar tanto espanto, já que não
queria chatear ainda mais a amiga, entretanto, não conseguiu alfinetar, mesmo que minimamente.
— Eu sei, Val, mas a minha filha também não é fácil. Adora peitar o pai... Não quero me
opor ao Omar, mas não quero soltar a mão da minha filha.
“E já não fez isso?”, pensou contrariada assim que ouviu a frase da outra.
— E o que eu posso fazer, Lina? — Suspirou, imaginando o que viria a seguir.
— Amiga, me ajuda... Elis deve ter ido para a região que você mora, pois antes de sumir,
ela me questionou muito sobre sua casa, sobre as redondezas de onde você mora. Me ajude a
encontrar minha filha por aí que contatarei a polícia por aqui. — Valquíria ponderou em
silêncio, o que fez Selina implorar: — Por favor, Val.
— Ok, ok! Já entendi. — Deu-se por vencida, fazendo sinal negativo com a cabeça. —
Vou ajudar. Mas, e se eu a encontrar, aonde ela vai ficar? — Levantou-se e colocou a mão na
cintura, irritada com a situação.
— Na casa dos meus pais, mas sob fortes reclamações e críticas deles — choramingou a
dentista. — Não é bom para o bebê.
“Nem para ela”, pensou, revoltada com o que a amiga fazia com a filha.
— Tudo bem, Lina. — Relaxou os ombros, ainda meneando negativamente. — Amanhã
vou sondar a região e, pela hora que ela sumiu, deve aparecer lá por volta das dez horas da
manhã, se ele tiver mesmo vindo para cá. E, se eu a encontrar, ficarei com ela em minha casa.
Acho que será mais saudável para todo mundo. — Usou um tom amigável, no intento de acalmar
a amiga de tantos anos.
— Você é um anjo! — Selina agradeceu com um gritinho.
— Sei, sei. Até depois, Lina. — Suspirou e coçou a cabeça, enquanto pensava sobre sua
decisão. — Seja o que Deus quiser — disse a si mesma e se levantou para terminar seus afazeres.
.1.
O RECOMEÇO
Após uma breve e corrida manhã de trabalho, Valquíria fez um lanche e se arrumou para
procurar a filha de Selina na rodoviária da cidade. Se estivesse com sorte, talvez a encontrasse lá.
Pegou as chaves da pick-up e saiu, ligando o rádio para deixar a viagem menos silenciosa.
Trinta minutos depois, encostou o carro no estacionamento do terminal rodoviário e
conferiu o horário, percebendo que beiravam as dez horas.
Imaginava como seria a personalidade daquela jovem; certamente não seria fácil de lidar,
tirando essas conclusões pelo que Selina disse e por ter sumido das vistas dos pais. Em
contrapartida entendia o sentimento da jovem e suas razões de ter fugido. Só de pensar nessa
confusão, sentia-se estressada ao imaginar as situações pelas quais teria de passar. Pegou seu
celular e viu que sua amiga tinha enviado uma mensagem de voz, provavelmente para falar algo
da filha.
“Algum sinal dela, Val?”, Valquíria sentiu a apreensão na voz de Selina, mas parecia ter
algo mais, talvez remorso.
“Ainda não. Perguntei pra algumas pessoas dando as descrições dela, mas nada ainda.
Acabou de encostar um ônibus. Vamos ver se ela sai dele”, informou e começou a andar na
direção do posto de parada referente ao suposto ônibus que Elis estaria.
“Tomara, Val. Não aguento mais de preocupação.”, Valquíria pausou o áudio e se
questionou se, de fato, era verdade. Apertou o play e continuou ouvindo. “Se ela não estiver aí,
não sei pra onde foi. Não atende o maldito telefone e a polícia diz que tenho que esperar passar
quarenta e oito horas para começarem as buscas. Tenho um paciente agora, mas me dê notícias,
por favor. Amo você, amiga.”
“Eu sei, Lina. Também te amo. Dou notícias sim.”
Selina enviou o número da filha para que a veterinária tentasse contato. Valquíria salvou
e ponderou se deveria mandar uma mensagem para ela ou não, no entanto, ao olhar para frente,
viu uma jovem loira como Omar, de fios longos e ondulados, usando um vestido branco delicado
até a altura dos joelhos e um par de tênis amarelos nos pés, com o rosto maquiado sutilmente. A
menina estava mesmo no ônibus, por sorte ou por meio de uma obra do destino.
“Graças a Deus!”, pensou ao avistá-la.
A jovem tentava segurar seu travesseiro, mochila e uma bolsa grande de uma vez,
carregava tudo com muita dificuldade. Era visível que a menina saiu fugida de casa pela
quantidade de bagagem, do contrário, estaria abarrotada de bolsas com seus pertences.
A veterinária se aproximou da garota e a chamou por seu nome de forma expansiva:
— Elis? — Tinha as mãos nos bolsos traseiros da calça e inclinou o tronco um pouco
para a frente, oferecendo seu melhor e mais gentil sorriso para a filha de sua amiga.
A jovem elevou o rosto, assustada, e Valquíria admirou aqueles olhos imensamente azuis,
tendo a certeza que jamais viu outros mais bonitos que os de Elis. Sentiu-se familiarizada com
aquelas miradas cintilantes, como se já tivesse visto aquela jovem mulher alguma vez na vida
além das fotos.
— Sou Valquíria, amiga da sua mãe. Muito prazer. — Ofereceu sua mão para um
cumprimento singelo. A jovem a olhou confusa, pois estava com os dedos ocupados pelas alças
das bolsas, imaginou como responderia à saudação. — Oh, deixe-me te ajudar — dito isso,
pegou a bolsa e a mochila da loira, deixando-a apenas com seu travesseiro nas mãos.
A filha de Selina ficou admirada com a força da amiga de sua mãe e também com sua
aparência. Imaginava que Valquíria fosse uma mulher totalmente diferente, descuidada e até um
tanto xucra, sendo esses pensamentos um tanto quanto preconceituosos de sua parte. Não tinha
ideia de que ela fosse estudada, falasse tão bem, aparentasse ser tão jovem e tão bonita. Para Elis
naquele momento, Valquíria se assemelhava a uma modelo, associou-a à Branca de Neve por ter
características similares.
A jovem tinha a convicta certeza de que a veterinária estava ali a pedido de sua mãe que,
certamente, juntou os pontos e descobriu para onde ela ia. Ela sabia que não tinha usado muito
da inteligência, não disfarçando tanto em suas perguntas. Queria sumir em uma cidade do
interior e ficar bem longe de quem desejava mal ao seu bebê e não lhe dera apoio quando
precisou.
— Obrigada! — Encolheu os ombros e escondeu parte do rosto atrás do travesseiro. — O
prazer é meu. — Estava acanhada perante a veterinária, sentindo suas bochechas corarem. —
Mas não precisa se preocupar comigo. Vou me virar por aí — anunciou, evidenciando que não
confiava na mais velha.
— Nem pensar! Sei por alto o que aconteceu. Você ficará em minha casa e será muito
bem-vinda. — Sorriu para a jovem tão espontaneamente que a fez se sentir acolhida, por mais
que ainda estivesse desconfiada. — Sei que aqui é muito diferente e é como se estivesse em
terras estranhas, mas não me perdoaria se algo acontecesse a você. Ficará comigo — sentenciou,
categórica, e jogou a mochila da garota nas costas, desenhando uma expressão jubilosa em sua
face.
A médica veterinária percebeu naquele instante que talvez estivesse errada sobre a
menina, que aparentava ser uma garota doce, gentil e assustada. Entretanto, não podia afirmar
nada, uma vez que não a conhecia além dos relatos feitos por Selina. Olhou-a mais um pouco e
pensou em como a vida pregava surpresas e, mesmo sendo o primeiro contato com ela, sentiu
certa benquerença por Elis; poderia até dizer que se tratava de carinho. A sensação de conhecer a
garota persistia dentro de si, latente, ao ponto de provocar desconforto, mesmo que pequeno, em
Bergamoto. A veterinária sorriu de lado e se pronunciou:
— Vamos?! Meu carro não está muito longe — chamou a menina, que a seguiu sem dizer
palavra alguma. — Fez boa viagem? Se sentiu bem? — questionou-a, preocupada, mantendo
seus olhos no percurso até o veículo.
— Uhum — murmurou com a boca abafada pelo travesseiro. — Estou bem, não se
preocupe. — Seu tom de voz era ameno e seus os olhos jaziam fixos no solo.
Valquíria teve certa dificuldade para entender, mas preferiu não insistir ao perceber o
desalento da garota com toda aquela situação.
— Sua mãe está preocupada com você. Avise-a que está comigo, por favor. — Volveu a
cabeça na direção de Elis e ergueu as sobrancelhas, como se desse uma ordem gentil que não
podia ser negada.
A garota revirou os olhos, no entanto, acabou acatando o pedido da veterinária. Pouco
tempo depois já estavam na estrada, rumo ao sítio de Valquíria, o Recanto Galopar Imperial, que
tinha certa fama devido aos tratos e adestramentos voltados para os cavalos. Bergamoto ligou o
rádio e deixou suas modas de viola tocarem para que seus ouvidos fossem acalentados,
diminuindo, de certa forma, o clima estranho entre elas.
Elis olhou para o aparelho de som e torceu a face em uma careta, mas não disse nada. O
gesto não passou despercebido aos olhos da mulher mais velha que, devido a sua experiência de
vida, captava as coisas no ar.
— Você deve estar odiando essa situação, não é mesmo? — Valquíria mantinha o olhar
na estrada, porém perdurando o sorriso gentil nos lábios.
— Tanto faz. Não tive muita escolha. — Elis olhava a paisagem pela janela, tentando não
dar muita atenção ao assunto. — E você não deve estar muito diferente. Acolhendo uma estranha
em sua casa, grávida... Que maravilha! — Fitou a morena, séria, tentando adivinhar o que a
mulher pensava após seu pequeno momento de sarcasmo.
A veterinária tirou suas músicas e colocou na rádio da cidade. Não queria que a jovem se
sentisse desconfortável, mas a tentativa de agradar a filha da amiga acabou gerando o efeito
contrário.
— Não precisa deixar de fazer suas coisas por minha causa. Pode ouvir suas músicas. Eu
realmente não ligo. — Sua voz, carregada de amargura e tristeza, beirava a rudeza, por mais que
persistisse baixa. Virou a face para o lado o oposto e permaneceu fitando o verde da pastagem da
região.
A amiga de Selina, por um momento, colocou-se no lugar da garota e experimentou de
uma dose de angústia. Não devia estar sendo fácil para ela ter fugido de casa e estar indo para a
de uma pessoa desconhecida, mesmo essa sendo amiga de sua mãe, nas circunstancias que ela se
encontrava e sem apoio do pai. Questionou-se internamente se a convivência delas daria certo e
se Elis se abriria um dia para ela, que era sempre uma pessoa alegre e comunicativa.
— Sendo muito sincera, Elis? — Obteve a atenção dos olhos azuis da menina. — Sua
mãe me pegou de surpresa com a notícia. Fiquei verdadeiramente preocupada e não me
incomoda em nada ajudar uma amiga e sua filha. — Olhou rapidamente para a jovem loira e
sorriu. Levou sua mão até a coxa da garota e apertou de leve, carinhosamente. — Espero que
possamos nos entender e que veja uma amiga em mim. — Voltou seus dedos para o volante,
cantarolando a música que tocava na rádio.
Elis fitava a região em sua perna onde Valquíria tocou e se perguntou se a veterinária era
mesmo invasiva ou se seu gesto havia sido uma tentativa de aproximação. Pensou o quanto
aquela situação era esquisita, principalmente por ter se sentido verdadeiramente reconfortada por
uma pessoa que mal conhecia. Provavelmente a falta de apoio de seus pais deixou tudo mais
propício para isso.
Suspirou e recostou seu corpo no banco do carro, fechando seus olhos em seguida.
Volveu a cabeça na direção da amiga de sua mãe e a fitou por um tempo. Talvez desse certo,
apenas precisaria fazer sua parte.
— Obrigada — falou baixo, mas Valquíria a ouviu e sorriu em resposta. — Lá tem
internet? — Mirou o teto do veículo para não encarar o rosto da outra mulher.
A veterinária gargalhou com a preocupação da jovem e a face de Elis se avermelhou de
vergonha.
— Tem sim. Não sei se sua mãe comentou, mas eu trabalho com cavalos. Tanto
clinicamente, como com adestramentos. Preciso da internet para divulgar meu trabalho. Terá seu
entretenimento, não se preocupe. — Foi sincera, oferecendo a ela mais um de seus sorrisos
gentis.
— Mamãe me contou que você mexia com cavalos, mas não tinha ideia que era dona de
um negócio. Estou surpresa, mais uma vez... — pensou alto as últimas palavras, atraindo a
atenção de Bergamoto.
— Como assim: mais uma vez? — Ficou curiosa, um dos seus maiores defeitos.
— Ah, você por si só me surpreendeu. Imaginava você bem diferente... Mais xucra,
talvez... E mais velha — confessou, envergonhada por seu preconceito.
Novamente a mulher fez sua voz reverberar pelo automóvel numa risada acalorada.
Imaginou que sua amiga tivesse mostrado fotos suas para a filha, entretanto, pelo visto, isso não
aconteceu.
— Pensei que sua mãe tivesse mostrado alguma foto minha. E eu sou velha —
completou. — Pode não parecer, mas tenho quarenta e seis anos. — A cara de espanto da menina
ficou evidente para Valquíria após tal informação. — Pelo visto, continuo te surpreendendo.
Espero continuar o fazendo — riu ao fim de sua fala, mostrando para a mais nova que era uma
mulher encantadora.
Elis sentiu suas maçãs corarem sem um motivo aparente; talvez vergonha por ter sigo
pega de surpresa com a constatação da morena.
Estava sendo mais fácil que imaginava para a garota conversar com aquela estranha, visto
que não era dada a intimidades com pessoas desconhecidas. As poucas palavras que ela proferia
causavam timidez na jovem, posto que estava acostumada com pessoas mais frias e não tão
expansivas quanto Valquíria. Teria de se acostumar se quisesse ficar longe de sua família.
— Ela quis me mostrar ao longo dos anos, mas eu não tive interesse em ver, confesso. Na
verdade, não queria saber dos amigos dos meus pais, então sempre fugia do assunto. — Olhou
para a mulher mais velha e continuou: — Não acredito que você é mais velha que minha mãe —
comentou completamente surpresa, ainda digerindo a informação, seus olhos fixos em Valquíria.
— Sou sim, cinco anos mais velha que a Lina. Por que o espanto? — riu da forma que a
jovem a analisava, provavelmente a comparando com sua mãe.
— Vocês parecem ter a mesma idade — replicou e tornou a olhar pela janela. — Aliás,
você parece ser mais jovem que ela. — Cerrou os olhos, reflexiva.
— Mas é pouca a diferença. — Deu de ombros, para ela esse detalhe era indiferente.
— Mesmo assim, minha mãe parece ser mais velha, não sei. Quem mora ali? — Apontou
para o lado direito da estrada ao avistar uma casa aconchegante e muito bonita longe da estrada,
mudando completamente de assunto.
— Meus pais. Já estamos em minhas terras há um tempinho — riu da cara de assombro
da mais jovem. — Estamos quase chegando a minha casa. Está vendo aquele lago? — Mostrou
com um menear da cabeça e a menina afirmou. — Moro bem ali. Minha casa fica atrás daquelas
árvores.
Não demorou muito para a veterinária se aproximar da porteira eletrônica e adentrar nas
proximidades de sua residência. Elis acompanhava tudo pela janela e ficava cada vez mais
fascinada com a beleza do lugar. Avistou um píer no lago, tendo um pedalinho e um barco
pequeno, ambos ancorados. Na parte mais próxima à casa de Valquíria tinha uma bica feita de
bambu, que despejava em uma roda d’água, desaguando no reservatório natural.
A estrada que levava para a entrada da casa da veterinária era demarcada por Ipês
amarelos, grama muito verde nas laterais, destacando o caminho de terra por onde o carro
passava. A residência da anfitriã não era pequena, mas também não era imensa. Era amarela,
com pedras na parede da fachada e possuía dois andares. Portas e janelas de madeira marrom que
eram protegidas por uma enorme varanda que circundava toda a moradia. Flores, muitas flores
ao redor, como toda casa de interior.
A morena finalmente estacionou na garagem, um anexo na parte mais baixa, visto que a
construção era em uma colina, e desligou a pick-up. Olhou para Elis e sorriu, para dizer:
— Bem-vinda ao meu paraíso — confabulou alegremente, orgulhosa do seu recanto.
— Novamente, surpresa — proferiu, admirando o lugar.
— Pelo visto, continuarei a te surpreender. — Deu uma risadinha. — Gosto disso. —
Ergueu o sobrolho e sorriu sem mostrar os dentes. — Vamos?! — A jovem apenas concordou e a
seguiu.
Retiraram as bolsas do carro e subiram a pequena escada de pedras até a porta principal.
Elis percebeu que não tinha mais ninguém na casa e estranhou, imaginou que outra pessoa, além
de Valquíria, estivesse ali.
— Sei que está acostumada com outro estilo de vida, com outras coisas, mas espero que
não repare em minha casinha — confessou com humildade, encabulada pela diferença no modo
de viver das duas.
— Você está sendo muito modesta. Sua casa é maior que o apartamento dos meus pais —
pontuou, admirada com a simplicidade de Bergamoto. — Sua clínica é aqui? — indagou,
admirando o interior.
— Não, só meu escritório administrativo. A clínica fica na baixada, perto da área de
adestramento e reabilitação. Outra hora te apresento, mas não acredito que esse seja o melhor
programa para você — comentou, enquanto se encaminhava para as escadas.
— Não é como se eu tivesse muita coisa para fazer aqui também. E não quero me sentir
inútil. — Elis encolheu os ombros, a mente reverberando que não queria ser um incômodo.
— Hm, acredito que tenha trazido algum computador, certo? — Olhou para trás
rapidamente e viu a garota responder positivamente com um menear de cabeça. Riu ao ponderar
que esse era um item importante para a garota, visto que o levou mesmo tendo fugido. — Tem
TV a cabo e em meu escritório tem vários livros, caso goste. Sinta-se livre para fazer o que
quiser. — Mirou a mais jovem e sorriu novamente.
Elis, pela primeira vez, sentiu-se livre para escolher o que queria sem sentir o peso dos
desejos que seu pai depositava em si. Sorriu expansivamente, fazendo o coração de Valquíria se
aquecer com o simples gesto. Notou que a forma de sorrir da garota também lhe era familiar, mas
parou de tentar descobrir de onde essa sensação esquisita vinha e o que poderia ser. Certamente o
subconsciente pulsava as memórias de todas as fotos que Selina lhe mostrara da moça, desde que
era apenas um bebê. Por um momento, arrependeu-se de não ter convivido com a menina desde
criança, pois o carinho crescente em seu peito era a confirmação de que a conexão entre as duas
seria acalentadora para sua alma.
— Esse será seu quarto, ao lado do meu, assim posso te socorrer sempre que precisar —
indicou com um braço, despistando a sensação de nostalgia que pairava na mente.
O quarto não era muito grande, mas tinha uma cama espaçosa, maior que uma de solteiro,
branca e de ferro com uma cabeceira elegante. Era muito bem decorado com tons pasteis, azuis e
amarelos. O mobiliário também era branco e existiam jarros de flores espalhados pelo quarto. De
fato, Elis não imaginava a casa de Valquíria assim. Em cima da mesa de cabeceira havia um
pequeno e bonito rádio e a moça se admirou ao vê-lo, pois há muito não se deparava com um
eletrônico daqueles, apenas na casa de seus avós.
— Não precisa se preocupar... — Encolheu os ombros, não queria ser um peso para a
dona da casa, muito menos a fazer de sua empregada.
— Até parece que não vou me preocupar. Sua mãe me mataria se eu quebrasse o bibelô
dela. — Colocou as mãos na cintura e riu, como se a constatação fosse óbvia.
— Não se preocupe com isso. Ela mesma quebrou o bibelô quando não fez nada a
respeito do meu pai e me virou as costas. Não deixe que o jeito amigável dela te engane. —
Fechou a feição, visivelmente magoada.
Bergamoto queria dizer algo para a confortar, mas preferiu se manter calada por não
saber o que exatamente argumentar. Temia deixar a situação ainda mais desconfortável.
— Espero que goste do seu aposento. Pode colocar suas roupas nesse guarda-roupas, suas
coisas de beleza na penteadeira. Tem prateleiras na parede caso precise de mais espaço e amanhã
pedirei que subam com uma escrivaninha para você usar seu computador. — Valquíria apontava
para cada móvel e local do quarto enquanto falava. — Vou aproveitar e ligar o radinho para que
você tenha alguma distração enquanto ajeita as suas coisas. — A anfitriã caminhou até a cama e
ligou o aparelho, deixou-o na estação que julgou ser mais compatível com Elis e a voz grave do
narrador de um programa soou pelo recinto.
— Não precisa se incomodar. Já está ótimo assim. — Elis baixou a cabeça e encarou os
próprios pés por um instante, não querendo contrariá-la, apesar de nunca ouvir rádio.
— Não é um incômodo, acredite. Gosto de receber bem meus convidados. No seu caso,
companheira de moradia — sorriu. Elis se perguntava como ela conseguia sorrir tanto e de forma
espontânea. — Minha querida, não hesite em me pedir qualquer coisa, viu? Sei que você não
trouxe muitas coisas, então, não precisa se acanhar. — A jovem acenou com a cabeça e sorriu
contida, sem nem mesmo exibir os dentes. — Vou descer e preparar algo para comermos, a
senhorita não pode ficar sem comer. Se precisar de ajuda, pode me gritar. Venho correndo. —
Levou a mão até o ombro esquerdo da jovem e acariciou a região, retirando-se depois.
— Realmente é invasiva — disse baixinho, rindo logo depois pelo fato não a incomodar.
Até gostava.
Começou a arrumar suas coisas no quarto para findar logo com aquele martírio de
desfazer as malas e depois tentaria falar com o pai de seu bebê, que não respondia suas
mensagens desde o dia que descobriu que a jovem estava grávida. Dia, esse, que o rapaz negou a
paternidade da criança, fazendo a garota se sentir ainda mais humilhada. As músicas soavam e,
para surpresa de Elis, causavam o efeito que Valquíria planejara, fazendo seus pensamentos
voarem através de suas notas.
Valquíria preparava alguns pedaços de broa de melaço, pães caseiros, requeijão feito ali
mesmo no sítio e suco de acerola enquanto cantarolava. Passou seu café e ajeitou a mesa.
Diferente de tudo que imaginou sobre como sentiria com a presença da filha da amiga, estava
feliz. A existência de Elis em sua casa a causava aconchego e cumplicidade. Sensação que não
tinha desde a época que era casada com Ernesto; acabou constatando-se nostálgica, como se o
esposo ainda estivesse vivo e fosse descer as escadas cantando.
Nesse instante viu a menina descendo para o primeiro piso e sentiu suas pernas falharem
ao ouvir Elis cantando, assim como Ernesto fazia.
— Nesses versos tão singelos, minha bela, meu amor. Pra você quero contar o meu
sofrer e a minha dor. Sou igual ao sabiá, que quando canta é só tristeza, desde o galho onde ele
está. Nessa viola, canto e gemo de verdade... — cantarolava distraída, parando apenas quando
percebeu os olhos atentos de Valquíria a esquadrinhando. — Acho que a energia do interior me
inspirou. Sei que pode parecer estranho, mas eu adoro essa música desde uma novela que vi na
TV. E ela tocou agora a pouco no rádio! Fiquei feliz, porque ela me enche o coração com uma
sensação gostosa. — Tentou se justificar. — Desci quando senti o cheiro do café — completou e
sorriu tímida.
A veterinária não disse nada em resposta. Seu coração estava acelerado, os olhos úmidos.
Que sensação estranha lhe apertava o peito. Por mais inacreditável que fosse, sentiu a presença
de Ernesto naquele momento. Olhava para a jovem e via a sombra de seu falecido marido. Foi
coincidência demais se recordar do esposo, o que ele fazia e Elis fazer exatamente a mesma
coisa, cantando a música que ele cantava para ela.
A menina acabou percebendo o estado da mulher e ficou incomodada. Talvez tivesse
aborrecido a veterinária.
— Desculpe-me, Valquíria. Não queria te chatear e...
— Não é isso, menina — reconfortou-a e secou os olhos. — Você apenas me fez lembrar
de uma pessoa importante para mim que já partiu há muitos anos — respondeu com nostalgia. —
Vamos comer? — Optou por mudar de assunto a pensar em sandices.
Ela concordou e seguiu a anfitriã.
Valquíria preferiu ocupar sua mente com outras coisas e deixar as memórias do marido
bem guardadas. Pensar em Ernesto a deixava saudosa e esperançosa de que ele entraria pela
porta a qualquer momento. Demandava-se do porquê aquela jovem da cidade trazer as
lembranças de seu marido à tona. De a deixar tão melancólica. Afastou essa reflexão e emendou
uma conversa com filha de Selina durante a tarde.
Talvez a presença de Elis em sua vida não fosse de todo ruim como pensou de início.

.2.
FLECHA PRETA
Elis acordou na manhã seguinte um tanto desorientada, tentando se localizar, aguardando
sua memória voltar aos poucos e se recordar de onde estava. Aprontou-se e depois desceu,
encontrando Valquíria sentada à mesa conversando com alguém. Viu que eram uma senhora que
lembrava a Bergamoto de rosto, baixa, corpulenta, cabelo cinza escuro abarrotado de fios
brancos presos num coque e deduziu que fossem a mãe da veterinária.
— Bom dia! — saudou com a voz ainda rouca.
— Bom dia, Elis. Dormiu bem? — questionou a jovem e, mesmo cedo, já tinha aquele
sorriso estampado no rosto.
— Dormi, sim. Bom dia para senhora também. — Direcionou-se a outra mulher e se
sentou em seguida entre um bocejo e outro.
— Bom dia, minha querida. Ela é mesmo uma graça, Valquíria. — A mãe de Bergamoto
disse naturalmente, bebericando do seu café fumegante.
— Mãe! — repreendeu-a, sua face estava corada pelo constrangimento. — Elis, essa é
minha mãe, Dolores — Indicou a anciã com uma das mãos. — Mãe, essa é a Elis, de quem lhe
falei — Repetiu o processo, agora erguendo os dedos em direção à moça.
Elis sorriu, tímida, e se direcionou para a mãe de Valquíria.
— Muito prazer, Dona Dolores — disse, aproximou-se e estendeu a mão.
A anciã puxou a menina para um abraço e, ao sentir o corpo da jovem contra o seu, um
acalento imediatamente encheu o seu peito, nutrindo um carinho imenso pela moça. Quando deu
por si, os olhos lacrimejavam. Afastou-se de Elis e a admirou um pouco, buscando entendimento
para seus sentimentos. Acreditou que o motivo para isso era a situação em Elis se encontrava, já
que Valquíria a colocou a par de toda a situação. Apiedou-se da jovenzinha, ansiando envolvê-la
em mais um abraço, mas reteve a sua vontade.
— O prazer é todo meu, minha querida. Me desculpa por isso — referiu-se ao seu estado.
— Eu preciso ir...
— Mas já, mãe? — A veterinária estranhou a inquietação de sua mãe. Sabia que ela
“intuía” certas coisas, mas não ao ponto de mexer daquela forma com ela.
— Sei que seu dia tá cheio, filha. Até mais, meninas — despediu-se, acenou da porta e se
foi.
— Ela está bem? — Elis inquiriu, um pouco assustada.
— Não se preocupe. Isso acontece às vezes e ela some, depois aparece como se nada
tivesse acontecido. Venha tomar café comigo. — Ofereceu a mão para a jovem que, mesmo
hesitante, segurou-a e se sentou.
— Vocês são agitadas pela manhã — Elis pensou em voz alta, envergonhando-se em
seguida de suas palavras. Não queria parecer rude.
— Você não deve estar acostumada com essa bagunça, não é? — A moça concordou,
recordando-se que sempre comia só em sua casa. — Hoje terei o dia cheio na clínica. Pensei em
te levar para conhecer meu trabalho, já que não tem nada para fazer. Isso, caso queira — disse
despreocupada, levando a caneca esmaltada até a boca.
Pôs seus olhos na jovem, aguardando sua resposta, enquanto ela ponderava um pouco
sobre o pedido. De fato, não havia nada para fazer, logo não viu problema em acompanhá-la.
— Não vejo problema, mas acho que terei de trocar minha roupa. — Olhou para sua
própria vestimenta, julgando que uma saia godê longa não ser a mais apropriada para o passeio.
— Ah, por quê? Está muito bonita. — Elis sentiu suas maçãs esquentarem levemente
com o elogio sincero por parte da veterinária. — Gosto do seu estilo fofo, menina, parece
aquelas mocinhas das novelas. — Mirou-a por cima da caneca branca espontaneamente,
aumentando o embaraço da jovem Teixeira.
— Obrigada! — Encolheu os ombros e agitou os pés levemente. — Você me chama de
menina como se já não fosse adulta — resmungou baixo, no entanto Valquíria conseguiu ouvir
muito bem e gargalhou.
— Não leve a mal. É carinho. — Deslizou os dedos na coxa de Elis, afagando sua pele
com esmero. — E você continuará sendo uma menina para mim. Vi tantas fotos suas desde
pequeninha. — Piscou para a garota que, de tão tímida, avermelhou até a pontinha do seu nariz
arrebitado. — Não precisa ter vergonha. Dizem que assusto com esse meu jeito “entrão” —
desenhou um sorriso genuíno em seu rosto, os olhos quase se fechando com o gesto.
Valquíria se levantou e colocou seus utensílios dentro da pia, ficando de costas para a
mais jovem. Elevou seu olhar e admirou a manhã orvalhada que tanto amava, respirando
profundamente em seguida. Era seu ritual matinal para recarregar as energias. Volveu o corpo e
apoiou o quadril no balcão da cozinha, ficando de frente para Elis.
— Vai levar algo? — Colocou as mãos nos bolsos traseiros da calça jeans escura, de
forma descontraída, mantendo seus olhos em sua companhia.
Elis tinha algo que atraía o olhar de Valquíria para ela. A veterinária ansiava observá-la
incessantemente, com curiosidade, no intento de desvendar o mistério daquelas miradas tão
singulares e, ao mesmo tempo, tão familiares. Em menos de dois dias de convivência com a filha
de sua amiga, já se sentia apegada a ela. Com a jovem não era diferente, visto que, quando dava
por si, estava admirando Bergamoto de longe e não compreendia o motivo desse fascínio, visto
que nunca admirou mulher alguma de tal forma.
— Acho que um livro e meu celular. Vou os pegar. — Afastou-se da mesa e se levantou.
— Mas comeu tão pouquinho. — Olhou para o desjejum da menina e se incomodou com
a quantidade que a jovem havia ingerido.
— Não estou com fome — rebateu educadamente e seguiu em direção à escada.
— Não pode ficar sem comer, menina, você está comendo por dois! — Valquíria gritou
da cozinha e Elis sorriu com sua atitude. — Vou esperar no carro! — elevou a voz mais uma vez.
— Como grita! — resmungou baixinho, aos risos, e subiu os degraus.
Não demorou muito, apenas pegou seu aparelho eletrônico e passou no escritório da
veterinária para escolher um livro. Como, em sua maioria, eram clássicos brasileiros, pegou um
de nome Cinco Minutos, de José de Alencar, e saiu para encontrar sua anfitriã no automóvel.
— Coloque o cinto — ordenou e a mais jovem revirou os olhos, fazendo Valquíria sorrir.
— Gosta de José de Alencar? — questionou assim que viu o livro sobre o colo da jovem e deu
partida.
— Nunca li, para falar a verdade. Conheço mais Machado de Assis. — Olhou
brevemente para o livro e depois ergueu suas miradas para Bergamoto.
— Escolheu um bom livro. Ao menos não ficará entediada lá. — Sorriu docemente para
Elis.
Para a surpresa da veterinária, a jovem ligou o aparelho de som e colocou na mesma
estação de rádio que a anfitriã pusera no dia anterior, no aparelho de seu quarto. Acomodou-se
no banco e iniciou sua leitura. Valquíria a observou de soslaio, desenhando um riso em seu rosto
pelo comportamento da mais jovem, mas preferiu não dizer nada. A presença de Elis já era o
suficiente para um maravilhoso diálogo silencioso de suas respirações e pensamentos.
Já dava para ver a clínica veterinária, depois de poucos minutos. Realmente não era longe
da casa de Valquíria, no entanto não seria uma caminhada rápida. Estacionou em uma varanda ao
lado e desligou o veículo.
— Chegamos. Vamos? — inquiriu, sorridente. Elis apenas confirmou com um menear de
cabeça. Saiu e seguiu a mais velha.
— Bom dia, pessoal! — Valquíria gritou para a equipe da área de adestramento e
reabilitação.
— ‘Dia, Dona Val! — responderam com entusiasmo.
Seguiu cumprimentando a todos que passava por ela, até adentrar em seu consultório,
onde encontrou sua equipe médica e a saudou:
— Oi, gente! Bom dia!
— Bom dia, Val! Que felicidade é essa? Tá diferente. Com um brilho nos olhos. — Uma
das funcionárias confabulou, o olhar pousado sobre Valquíria.
A veterinária abriu um enorme sorriso, fomentando a curiosidade de todos.
— Cássia, tudo coisa da sua cabeça! — Bergamoto elucidou a outra, apesar de realmente
estar muito mais animada. — Ei, Henrique, tudo bem? Vou bem também. Obrigada por
perguntar. — Usou de sua ironia por seu amigo não ter a cumprimentado.
— Ih, Rick! Ela tá que tá hoje — A veterinária de pele morena e cabelos cacheados
replicou, dando uma risadinha marota.
Henrique riu e foi até a veterinária para a saudar.
— Val, meu amor, bom dia! — O homem alto e loiro a abraçou carinhosamente. —
Estava concentrado inspecionando os óvulos que foram fecundados e não te ouvi.
— Eu sei, Rick. Te conheço bem e quando foca no trabalho, vai pra outra dimensão. —
Deu palmadinhas amigáveis nas costas do homem.
— Cássia tá certa. Você tá diferente. Parece até que finalmente arrumou um namorado
nov... — Interrompeu sua fala ao perceber que entraria em solo perigoso. — E essa mocinha,
quem é?
— Vem cá, Elis. — Segurou a mão da jovem e a apresentou: — Essa é Elis, filha da
minha amiga Selina. Ficará uns meses conosco.
— Espero que goste daqui e não queira mais partir. Aqui é o paraíso — Cássia brincou,
contagiada pelo entusiasmo de sua chefe.
— Seja bem-vinda, meu amor. — Henrique disse amoroso e abraçou a menina.
“Mais um invasivo” — pensou dentro daquela aproximação desconcertante.
— Vou mostrar o lugar para a Elis. Não demoro. Vamos?! — chamou-a e novamente
pegou a garota pela mão, saindo em direção ao lado externo.
“Mas é uma abusada mesmo” — matutou, Elis, rapidamente.
Valquíria mostrou cada repartição do local. Elis, por um momento, pensou que a estrutura
da clínica fosse pequena, mas se viu enganada. Havia o centro de fecundação, a área obstétrica e
a parte de reabilitação e adestramento. O último local que a mais velha levou a filha da amiga foi
o estábulo.
Ao passar pela entrada, Campolina veio na direção de Valquíria e esfregou seu focinho
no rosto da mulher. Ela sorriu para o animal e lhe fez um carinho na crina, entre as orelhas.
Abatido, em um canto, estava um cavalo preto com uma mancha branca na cabeça. Era diferente
dos outros, que estavam todos agitados e brincalhões, parecia não ser feliz.
Elis ficou inquieta ao ver o animal tão abatido e se aproximou lentamente, deixando
Valquíria com sua égua, observando-a de longe; caso acontecesse algo, estava atenta para a
socorrer. Ergueu sua mão devagar na direção do cavalo, quando já estava bem próxima dele, e se
assustou quando o equino ergueu a cabeça, mantendo seus olhos fixos aos de Elis. Ela o tocou
nos pelos, sobre a marca branca na testa, e acariciou. O cavalo, em um instante, agitou-se e
relinchou, aproximando-se cada vez mais da menina.
Assustada, ela gritou:
— Para! — Encolheu no próprio eixo, suas mãos erguidas a protegendo.
O equino parou abruptamente e manteve seus olhos na jovem. Valquíria a mirava
assustada, não conseguia se mover. Ninguém, em anos, conseguiu causar qualquer reação em
Flecha Preta depois que seu marido faleceu.
Sentindo-se mais calma, a jovem se aproximou e abraçou o pescoço do animal, que
apoiou a cabeça em seu ombro e bateu a pata dianteira no chão, em sinal de felicidade. A
veterinária, mexida com a cena, chorou silenciosamente. Tinha algo de especial naquele
momento, algo que a tocou profundamente. Flecha Preta ficava assim apenas com Ernesto e, de
certa forma, sentiu seu marido perto depois de muito tempo.

.3.
MILAGRES SÃO REAIS
Elis estava sentada em uma pedra, debaixo de uma mangueira robusta, bem perto do
estábulo. Flecha Preta estava próximo a ela, pastando ou apenas perambulando. A jovem quis
ficar ali para ler seu livro, visto que seu celular não tinha sinal para ligar para seu ex-namorado.
Optou por ocupar sua mente com uma história, ao enchê-la de suposições infundadas.
Valquíria estava em seu consultório, tão pensativa que mal ouviu quando Cássia entrou
no cômodo e parou diante de sua mesa. Era notório que apenas o corpo da veterinária estava ali,
seus pensamentos, em contrapartida, voavam longe. Estava intrigada demais com o que
presenciou e, principalmente, com o que sentiu ao ver tal cena. Deveria ser apenas uma
coincidência. Decerto era.
— Cinquenta reais por seus pensamentos! — A outra veterinária brincou.
— Oi? Falou comigo, amiga? Nem te vi entrar! — respondeu, um tanto perdida, a psique
abarrotada de lembranças.
— Percebi, Val. Tá com a cabeça na Lua, hein? Aconteceu alguma coisa? — Sentou-se
na cadeira que estava posicionada à frente da mesa de Valquíria.
— Ah, Cássia, deve ser bem coisa da minha cabeça. A idade já está afetando meu
psicológico e me fazendo pensar caraminhola. — Apoiou as costas em sua poltrona e levou a
mão até a testa.
— Eu duvido muito quanto a isso, mas você está falando de quê? Disserte! — Ergueu o
queixo seguidas vezes, usando do tom brincalhão para relaxar a amiga.
— Não vai me achar maluca? — inquiriu, desconfiada.
— Isso vai depender, não é? Fala de uma vez, Valquíria. — Cruzou as pernas e os braços,
esperando Valquíria iniciar seu parlatório.
— O Flecha Preta... — começou. — Ele... Ele... Ah, é maluquice minha. — Desistiu e
recebeu um olhar de repreensão de Cássia. — Ok! — Exibiu as mãos espalmadas. — Flecha agiu
como se estivesse com Ernesto.
— Impossível! — Foi categórica, os olhos arregalados. — Esse cavalo já não é o mesmo
há anos! — Gesticulou as mãos, enfatizando sua fala.
— É isso que estou te dizendo. Não tem como ser real — falou notoriamente derrotada,
os ombros encolhidos.
Sua amiga decidiu não julgar a situação, sondando para entender melhor o que se passava
com Valquíria.
— Ele fez isso com quem? — Cássia arqueou uma das sobrancelhas.
— Elis! — Suspirou confusamente. — Assim que a viu, agiu da mesma forma quando
via Ernesto indo o selar ou fazer seus cuidados. Agiu com afeto, Cássia! — exclamou, os olhos
cintilando por conta das lágrimas que ameaçavam surgir novamente.
— Ah, Val, impossível! — Boquiabriu-se a Cássia, lançando um olhar pensativo para a
janela.
— Elis o abraçou e ele não fez nem menção de dar uma mordida ou de afugentá-la —
disparou a falar, o choque esculpido na feição. — Ele retribuiu o abraço e relinchou de
felicidade! — Inspirou profundamente, pousando a testa sobre uma das mãos.
— Hm — Cássia murmurou.
— “Hm”, Cássia? — Questionou, frustrada.
— Só estou pensando com os meus botões. Fica de olho nessa menina. Ela tem algo que
me incomoda. Não ruim, mas como se eu a conhecesse de algum lugar. — Coçou o queixo,
reflexiva.
— Eu também tenho essa sensação. Me sinto bem perto dela. Mamãe que ficou toda
estranha. Diria que até emocionada — comentou, pensativa, recordando-se do que acontecera
logo cedo.
— Ih, tem caroço nesse angu — falou e olhou para o relógio de pulso. — Mas isso é
assunto para outra hora. Está na hora de chegar aqueles cavalos da equipe de equitação. —
Levantou-se rapidamente, ajeitando sua roupa.
— Que cavalos? — Valquíria perguntou, com o pensamento ainda distante.
— Oxi, mas hoje você tá com a cabeça longe, hein? Os da reabilitação, amiga. —
Colocou a mão na cintura, evidenciando o óbvio.
— Nossa! É hoje já? — Esbugalhou os olhos.
Cássia gargalhou da amiga. Em anos, nunca havia presenciado Valquíria tão distraída
como naquele momento. Respirou fundo e tornou a falar:
— É sim, Val. Depois sentamos e conversamos mais. Vou lá recepcionar o pessoal com
os cavalos.
— Uhum. — Apenas murmurou.
Sua amiga agitou a cabeça e se retirou, deixando a Valquíria pensativa sentada em sua
cadeira.

Elis já não lia mais. Deixou o livro onde estava e foi caminhar enquanto ouvia música em
seus fones de ouvidos. Não tinha muito o que fazer naquele lugar, logo decidiu conhecer mais da
região e se adaptar. Conforme a menina se distanciava da clínica veterinária, Flecha Preta a
seguia a certa distância. Ela olhou de relance para trás e achou graça estar sendo escoltada pelo
animal de pelos escuros. Voltou ao seu caminho sem destino e deixou que o equino a
acompanhasse.
Próxima a uma represa, Elis sentiu seu celular vibrar mostrando que o sinal havia
voltando, interrompendo suas músicas com uma chamada de sua mãe. A menina suspirou. Estava
chateada com a genitora por não ter a defendido do pai e não a ter apoiado quando precisou.
Mesmo contra sua vontade, a jovem atendeu:
— Oi, mãe. — Chutou uma pedrinha e fixou seus olhos na represa.
— Oi, meu amor. Como você está? Está gostando da Valquíria? — Elis respirou fundo
diante da empolgação exagerada da mãe, procurando paciência para manter aquela ligação.
— Eu estou bem. Estou sim. Ela é muito gentil — respondeu com poucas palavras, a cara
amarrada deixando claro sua má vontade.
— Elis, ainda está chateada comigo?
— Imagina, mãe. Por que estaria chateada? Por você ter me descartado como lixo
reciclável junto com o papai? Coisa da sua cabeça — ironizou, forçando doçura na voz
propositalmente para irritar sua mãe.
— Elis, não seja debochada. Estou preocupada com você, minha filha.
— Dispenso. Já tenho quem se preocupe comigo aqui. Se estivesse realmente
preocupada, teria feito algo antes — disse para magoar sua mãe, mesmo que não fosse verdade,
no entanto pensou na veterinária. — Mais alguma coisa, mãe? O sinal está ruim aqui — mentiu,
encarando o celular para conferir.
— Não, meu amor. — Selina ficou um tempo em silêncio e prosseguiu: — Você não vai
me perdoar, não é?
Elis sentiu a tristeza na voz de sua mãe, porém ainda estava machucada demais para se
compadecer.
— Um dia, mas não hoje e nem agora. Não se preocupe com isso.
— Eu te amo, minha filha. — Selina tentou pela última vez.
— Uhum — a jovem respondeu. — Preciso desligar. Até mais.
Antes mesmo que a dentista pudesse falar algo, Elis encerrou a chamada. Sentiu-se triste
e abandonada por seus pais, algo que já não pensava desde o momento que conheceu Valquíria,
todavia, bastou ouvir a voz de sua progenitora para sentir tudo tão vivo quanto antes.
— Coração idiota! — a menina disse, sentindo poucas lágrimas deslizarem por sua face.
Aos poucos, o cavalo se aproximou de Elis, até tocar seu focinho em suas costas. Ela se
assustou com o contato, porém, acalmou-se ao constatar que era Flecha Preta. O animal apoiou
sua cabeça no ombro da garota e roçou levemente na região. Ela, retribuindo a carícia, abraçou o
pescoço do equino, sentindo-se verdadeiramente reconfortada, como se fosse um hábito dos dois
para descarregar suas tristezas.
Elis se afastou do cavalo e o chamou com um menear da cabeça, para que ele fosse ao
seu lado e não mais atrás. Chegaram em um pomar cheio de frutas, o animal logo se animou com
o cheiro doce das mangas caídas ao chão, correndo para degustar algumas. A menina admirou a
felicidade do novo amigo e fez a mesma coisa que ele: seguiu para um pé mais acessível de fruta
e saboreou as jabuticabas mais doces já provados por ela. Por sorte, era uma época do ano na
qual ambas as frutas estavam em sua melhor produção.
Depois de um bom tempo, lembrou-se de verificar seu telefone que, até então, estava no
modo avião, propositalmente para evitar chamadas desnecessárias e mais aborrecimento. Ao
conectar o aparelho no sinal telefônico e em sua internet móvel, várias notificações de
mensagens de Valquíria subiram. Todas conotando preocupação e questionando onde a jovem
estava, só então ela percebeu que já estava na hora do almoço. Ligou para a veterinária e a
tranquilizou, dizendo que já estava voltando para a clínica a fim de se encontrar com ela.
Desligou e olhou para os lados, pensando em como voltaria, e rápido, para se encontrar
com Valquíria. Olhou para Flecha em cumplicidade e se aproximou lentamente. Levou sua mão
até a crina preta de Flecha e o acariciou com ternura, fazendo o animal soltar uma lufada de ar
em satisfação. Elis, antes de começar a namorar, era uma frequentadora assídua de aulas de
equitação. Sempre foi apaixonada pelo esporte e, por isso, a presença do cavalo fez sua mente se
iluminar com uma ideia — um pouco insana, porém, que poderia funcionar.
— Seria pedir muito para você me levar, amigão? — Pediu ao tocar sua testa na mancha
branca em forma de seta do animal.
O cavalo relinchou e agitou a cabeça em euforia, estava virando um costume com a
garota. Elis, recordando-se de suas aulas, bateu levemente abaixo do peito do animal, em sua
pata dianteira, para que equino se abaixasse, mas contrariando tudo o que ela acreditava, ele não
se moveu. Frustrada, a moça bufou, sendo observada pelos olhos atentos de Flecha.
Pegou uma varinha e estalou sua língua, batendo levemente no joelho dianteiro do
equino, que não a obedeceu mais uma vez. Irritou-se e saiu caminhando, com o animal em seu
encalço, ficando ainda mais brava.
— Por que ainda me segue? Não quis me ajudar! — O cavalo inclinou a cabeça para o
lado, não compreendendo o que se passava. — Era só para você se abaixar — disse e apontou o
dedo para o chão e imediatamente seu companheiro se abaixou. — Oh! Era apenas isso? — Riu
de si mesma e subiu no pelo dele, segurando em sua crina. Elis jamais montara em um cavalo
sem sela, porém acreditou que não tinha escolha e que se sairia bem. Bateu seus pés nas costelas
de Flecha, que saiu trotando lentamente enquanto a jovem tentava se equilibrar.
Pouco tempo depois, Elis chegou nos arredores da clínica e assustou Henrique e Cássia
ao a avistarem montada em Flecha Preta. Ambos se olharam com as feições de espanto, não
acreditando no que seus olhos viam. A veterinária correu para chamar a amiga, enquanto Rick se
manteve estático.
— Val, corre aqui! Rápido! — gritou da entrada do escritório.
— O que foi, Cássia? Estou tentando falar com a Elis! — respondeu, um tanto ríspida.
— Cala a maldita boca e vem cá! — berrou mais uma vez.
Bergamoto, irritada, retirou-se da sala:
— Eu espero que seja um milagre acontecendo ou... — Sua voz morreu na garganta ao
ver a menina montada no cavalo que um dia foi de Ernesto, aproximando-se de Henrique.
— Está aí o seu milagre! — Sua amiga respondeu com sarcasmo.
Valquíria não conseguiu dizer nada. Uma avalanche de sensações tomou seu corpo e,
quando deu por si, sentiu sua face umedecendo com suas lágrimas. Até a forma da jovem descer
do cavalo era singular e lembrava em níveis alarmantes ao seu falecido marido. Ver Elis afagar o
animal em agradecimento e espalmar o traseiro do cavalo aumentou ainda mais o bolo em seu
peito, ao ponto de sentir falta de ar.
Secou suas lágrimas rapidamente e antes que Cássia se aproximasse dela, foi até Elis com
sua mente fervilhando de perguntas.
— Como fez isso? — perguntou um tanto grosseira, com suas vistas vermelhas por tentar
conter o choro. — Responda! Como montou nesse cavalo?
— Eu só pedi que ele se abaixasse e subi nele. — Elis a elucidou, a expressão contorcida
em confusão. — Não é muito usual, eu sei, eu fiz muitos anos de equitação. Mas parece que ele
entendeu o que eu queria.
— Mentira! Nem mesmo eu consigo montar no Flecha! — elevou seu tom de voz,
assustando a jovem.
— Você está pensando o quê? — A moça franziu o cenho. — Que eu coloquei uma arma
na cabeça do cavalo? — inquiriu, devolvendo o mesmo tom rude à Valquíria. — Não sei o
porquê de tanta comoção e muito menos o motivo de estar me tratando dessa forma! —
Endureceu a face, não erguendo o dedo por um fio. — Vejo que é igual aos meus pais e me
enganei ao seu respeito. — A menina respondeu por entre os dentes, magoada pela forma que a
mulher mais velha a tratou, e saiu em direção aos estábulos.
— Valquíria, fica calma! — Henrique pediu, içando as mãos. — Não tinha necessidade
de tratar a garota assim. Está achando que ela fez o quê, criatura? — Meneou negativamente com
a cabeça.
— Eu não sei por que agi assim. — Valquíria baixou a cabeça, encarando os próprios
pés. — Não consegui assimilar tudo o que vi. Meu senhor, por que ela me lembra tanto a ele? —
questionou, chorosa, o coração diminuto.
— Val, acho que você deveria considerar algumas coisas. — Cássia se aproximou, o tom
de voz saindo calmo apesar do nervosismo, mas sem dizer muito. — E também deveria
conversar com sua mãe. Acredito que ela saiba de alguma coisa. Lembra da nossa conversa de
mais cedo? — Aludiu aos momentos anteriores, pausando seu caminhar quando chegou ao lado
de Henrique.
— Lembro sim, mas não entendo o que você quer dizer com isso, Cássia. — Bergamoto
mordeu o lábio ansiosamente, as mãos trêmulas por conta da cena que ainda digeria.
— Amiga, não sou eu que tenho que te dizer qualquer coisa. Só estou aferindo as
coincidências e pensando em minhas crenças. — A amiga de Valquíria pousou a mão sobre seu
ombro, acariciando-o ternamente.
— Cássia, chega desse assunto. Não coloque caraminholas na cabeça de Valquíria. — O
veterinário repreendeu a amiga, encarando-a severamente.
Henrique sabia que Cássia era voltada para o espiritismo e que a mãe de Valquíria era
conhecida por suas intuições, mas aquele não era o momento para a amiga encher a cabeça da
viúva de Ernesto com suposições infundadas. Temia que Bergamoto começasse a fantasiar
sandices por influência da outra.
— Vá atrás da menina, Val. — Foi a vez de Henrique afagar o ombro da amiga. — Ela
está magoada e com razão — ele concluiu. — Vamos almoçar, Cássia — chamou-a com a
cabeça, indicando a direção oposta.
— Vocês dois deveriam assumir um compromisso logo. — Valquíria implicou, dando
uma risadinha fraca.
— Pois tá repreendido — Cássia se manifestou, a feição indignada.
— Ela não resiste a mim, Val — Rick mostrou a língua e enlaçou a morena pela cintura.
— Até mais, casal que não é casal. — Falou, já de saída e deixou os dois discutindo
enquanto caminhavam até o carro de Henrique.
Encontrou Elis sentada na pedra que estava mais cedo, abraçada ao seu livro e mexendo
em no celular. Ao seu lado estava o cavalo, na sombra da árvore tirando um cochilo tranquilo.
Mais recordações abarrotaram a mente da mulher, lembrando-se de quando ia levar o almoço
para o marido e Flecha estava ao seu lado da mesma forma. Engoliu o bolo no peito e agitou a
cabeça levemente, aproximando-se da menina.
— Elis, perdoe o meu comportamento hostil. — Valquíria iniciou a conversa com os
ombros encolhidos.
— Eu não consigo te entender. — A jovem suspirou, secando discretamente os rastros de
lágrimas que corriam por seu rosto. — Uma hora é doce, em outra está me olhando com tristeza
e tem aqueles momentos que grita comigo. O que pensa que eu sou? Um estorvo? — Guardou o
celular no bolso da saia e encarou a mais velha.
A veterinária achou cômico o fato de uma moça tão jovem saber se expressar tão bem
quanto Elis. Petulante que só.
— Nunca cogitei isso, menina. — Tratou de dizer, caminhando lentamente até a moça. —
Eu que não ando muito bem. Estou cercada por emoções e não estou sabendo lidar com isso. —
Deu de ombros, os lábios comprimidos.
— Eu sou o motivo disso, não é? — Baixou a guarda e inquiriu tristemente, os olhos
cintilando.
— De forma alguma. — Abaixou-se e segurou as mãos da menina. — Você não tem nada
a ver com isso — mentiu, tentando abrir um sorriso. — Apenas me lembra a uma pessoa muito
querida.
— Pois, pare! — Levantou-se irritada. — Não sou quem pensa que eu seja. Eu sou eu e
ponto. — Deu as costas para Valquíria para se retirar, mas a veterinária a segurou pelo braço,
trazendo-a para si.
Bergamoto abraçou Elis e pediu desculpas por todo o mal-entendido, apertando a garota
contra seu corpo. Ela ficou imóvel perante o gesto da mulher, no entanto sentia que seu coração
saltaria da boca com tamanha ousadia da veterinária. Valquíria a afastou um pouco e mirou em
seus olhos, afagando seu rosto sutilmente.
— Eu sei que você é você, Elis — sorriu a ponto dos olhos se fecharem. — Tão acre e
doce como nunca vi. Jamais existirá outra Elis, principalmente para mim, menina. — Beijou a
testa da jovem e se afastou, mantendo sua mão atada a dela. — Vamos?
A jovem se emudeceu por um tempo e sorriu sem que a veterinária visse. Gostou da
forma carinhosa que foi tratada e sentiu nostalgia daquele abraço apertado que nunca fora lhe
dado antes. Seguiu os passos da mulher e proferiu baixinho:
— Você é mesmo muito invasiva! — ralhou, com as sobrancelhas cerradas.
— Eu sei. Acostume-se! — Sorriu para a menina largamente, deixando o coração de Elis
reconfortado com o gesto ao ponto de retribuir com um mínimo sorriso tímido.
— Talvez eu possa me acostumar — sussurrou para si, no entanto, Valquíria ouviu seu
segredo e se alegrou.
Elis realmente era uma menina especial e Valquíria mal sabia do quanto.

.4.
COINCIDÊNCIA OU NÃO, EIS ISABEL
Conforme os dias se passavam, Elis se acostumava mais com o jeito espontâneo e
invasivo de Valquíria. Isso já não a incomodava, muito pelo contrário, deixava-a feliz.
Outrossim, a veterinária se sentia cada vez mais conectada àquela garota. Sempre se pegava
admirando a menina de longe, principalmente quando envolvia o cavalo que foi de seu falecido
marido. Isso despertava sua curiosidade e vontade de conversar com sua mãe sobre esses
sentimentos, porém o medo do que ouviria era maior e, por isso, acabava postergando.
Com isso, um mês se passou. Valquíria esperava a jovem se aprontar para a levar para
fazer o pré-natal, sentada na varanda de sua casa. Avistou sua mãe chegando de bicicleta e a
encostando na parede de sua garagem. Quando Dona Lola, como gostava de ser chamada,
terminou de subir a colina, a filha já a aguardava para a receber com um abraço apertado.
— Que saudade, mamãe! — Afagou os cabelos da senhora com carinho. — Nem parece
que mora logo ali do lado. — Estalou a língua contra os dentes, estreitando os olhos em tom de
brincadeira.
— E você nem parece que tem telefone. Não me liga! — respondeu ao se afastar da
veterinária, dramatizando com uma das mãos sobre o peito.
— Como se adiantasse! Você nunca atende. Nunca está com o celular por perto —
retrucou e ambas riram.
— É a verdade, não posso discordar — concluiu aos risos e olhou aos arredores,
buscando a jovem de cabelos loiros.
— Ela está se trocando, porque vamos ao médico. — Valquíria esclareceu, as vistas
voltadas para o mesmo local que sua mãe encarava.
— Hm, ela já deve estar beirando os quatro meses. — A senhora supôs, olhando para o
céu, pensativa.
— Acredito que sim, julgando que quando os pais descobriram sua gravidez, ela já
passava dos dois meses. Vamos nos sentar enquanto ela não vem. — Andejou pela varanda,
indicando com a cabeça que sua mãe viesse consigo.
— E os pais dela, minha filha? Entram em contato? — perguntou, enquanto caminhavam,
esticando preguiçosamente as costas.
— O pai nunca deu as caras e confesso que estou decepcionada com Selina. Ela mal liga
para a menina e quando o faz, Elis sai chorando. — Sentaram-se no balanço da varanda e Lola
segurou as mãos da filha.
— Esse casal irá se arrepender muito do que estão fazendo com a filha. Ao menos a mãe
vai se arrepender um dia. — Comprimiu os lábios, baixando os olhos por um instante. —
Localizaram o pai da criança?
— Ah, mãe, acho que sim, mas deixaram por isso mesmo. — A veterinária deu de
ombros. — Nem mesmo a Elis quer saber mais dele e não quer que ele tenha contato com o
bebê.
Dolores segurou com firmeza as mãos da filha e a mirou nos olhos fixamente. Manteve-
se um tempo imóvel, como se não respirasse, de forma que Valquíria se sentiu invadida pelas
írises negras da mãe. Inesperadamente, a senhora puxou o ar com força e voltou a si, acariciando
as mãos da filha.
— Ah, meu amor — Lola ditou em tom de lamento. — Você terá de ser forte para o que
está por vir. Não confie que esse rapaz não atormentará essa jovem, principalmente a filha que
ela tem no ventre.
Valquíria sentiu um calafrio percorrer por seu corpo e não gostou. Sabia que quando sua
mãe tinha esses momentos de imersão algo, de fato, aconteceria. Raras eram as vezes que Dona
Lola errara.
— Mamãe, não quero surpresas desagradáveis. — Valquíria bufou levemente. — E como
sabe que é uma menina? — Ergueu uma das sobrancelhas.
— Ah, eu sei de muitas coisas. — Gargalhou baixinho. — Prepare seu coração, porque
terá uma grande surpresa hoje. — Encarou-a misteriosamente, ainda mantendo o ar de riso no
rosto.
— Odeio quando a senhora diz as coisas pelas metades! — Revirou os olhos. — Trabalho
com a clareza dos fatos e não com mistérios — retrucou, emburrada. Perto de sua mãe, parecia
uma adolescente irritada.
— Tem coisas que não são pertinentes a você. Outras ainda não estão no momento de
saber. E tem aquelas que você terá de descobrir por si só — falou serena e com doçura, o ar
etéreo pairando em sua feição.
— Ah! Muito bom saber disso! — comentou com ironia, inspirando profundamente em
sequência.
— Não se preocupe, meu amor. — Dona Lola deu palmadinhas carinhosas no ombro de
sua filha, fechando os olhos por um instante. — Está tudo acontecendo conforme tem de ser. No
momento em que você estiver mais perdida, será quando você irá se encontrar e descobrir o que
tanto lhe aflige. — Bufou levemente, entrelaçando os pés.
Flecha Preta, que pastava mais ao lado, próximo às árvores que cobriam à frente da casa,
relinchou e volveu a cabeça na direção que as duas se estavam. Dolores sorriu para o animal,
sendo observada pela filha o tempo todo.
— Parece que alguém concorda comigo. — Assentiu com a cabeça, dando uma risadinha.
— Pudera, nós, termos a percepção dos animais — declarou simplesmente, tendo seus olhos no
cavalo e deixando sua prole ainda mais confusa.
Valquíria parou de tentar entender sua mãe e se alegrou ao ouvir Elis abrir a porta da
casa. A moça em tudo destoava da veterinária, que se vestia com uma camisa ¾ azul escura,
calça jeans pretas e botas da mesma cor, enquanto a jovem trajava um vestido florido,
evidenciando a pequena barriga saliente, e, nos pés, um par de tênis brancos.
— Ei, dona Lola! — A menina disse meigamente, feliz em ver a senhora.
— Ei, minha pequena — respondeu e abraçou a garota com afeto, deslizando a mão sobre
a barriga da jovem. — Ei para você também! — referiu-se ao bebê, afagando o ventre de Elis por
mais um momento. — Bom, agora que já matei minha saudade das minhas meninas, vou colocar
o pé na estrada. Me dê notícias, mocinha. — Piscou um dos olhos com cumplicidade.
— Pode deixar, dona Lola. — A loirinha enfitou a senhora com afeto. — Venha me ver
mais vezes.
A senhora acariciou o rosto de Elis com amor e respondeu:
— Claro, minha menina. Já vou indo. — Abraçou as duas, retirando-se e, apanhando a
bicicleta, rumou para sua casa.
— Então, quer dizer que mamãe fica vindo aqui te ver quando não estou? — Falou a
veterinária, fingindo raiva e pousando as mãos na cintura.
Elis apenas sorriu e começou a caminhar na direção da colina. A situação ficou um pouco
mais clara para Valquíria após tal revelação; isso explicava por que as duas estavam tão íntimas,
porém não esclarecia uma porção de coisas ditas por sua progenitora, principalmente o fato de
Dolores ter conhecimento sobre o sexo da criança, sendo que nem a própria Elis o tinha.
Bergamoto sorriu com o cenário, coçando a cabeça. Trancou a casa e seguiu para a caminhonete.
Surpreendeu-se ao ver menina cantarolando uma música “caipira” que tocava na rádio da cidade.
Sentou-se, ligou o automóvel e olhou para Elis.
— Coloque o cinto — ordenou altiva, os olhos fixos em Elis.
— Como sempre, mandona — resmungou, mas obedeceu às palavras da mais velha.
— Ansiosa para descobrir mais do bebê? — Deu início a uma conversa para evitar o
silêncio entre elas. Não que este a incomodasse, mas a veterinária apreciava o som doce da voz
de Elis.
— Um pouco. — Assentiu com a cabeça. — Mas acho que estou mais ansiosa para
comprar as coisinhas do bebê.
— Acredito que seja normal. — Tamborilou os dedos contra o volante. — Já tem nomes
para a criança?
— Tenho alguns. — Revelou Elis, os olhos fixos na paisagem que passava pela janela do
carro.
— E não irá me dizer? — Fez-se de ofendida, a mão sobre o peito.
— Na hora certa. — Elis riu sem mostrar os dentes.
— Ah, pronto, mais uma com isso. — Revirou os olhos, dando uma leve bufada. — Tem
andado muito com minha mãe, mocinha — disse, enquanto acariciou a perna da jovem.
Elis sorriu timidamente, sentindo suas bochechas esquentarem. Mesmo que estivesse se
acostumando com o jeito de Valquíria, existiam momentos que não sabia lidar e se sentia
constrangida. Bergamoto passou a prestar atenção no caminho e Elis mexia em seu celular,
respondendo algumas mensagens de amigas e buscando formas de se entreter. Distraída,
Valquíria começou a cantar juntamente com a música da rádio, deixando a menina encantada
com sua voz. A jovem deixou o celular de lado e passou a prestar toda sua atenção na veterinária.
Parecia tão serena cantando que passava essa tranquilidade para a garota.
— Você canta tão bem. — A jovem ditou sonhadoramente. — Parece um passarinho
cantando. — Elis estava tão encantada que não percebeu a força de suas palavras para Valquíria.
“Canta pra mim, meu passarinho.” — Lembrou-se das palavras de Ernesto e seus olhos
umedeceram. Piscou com força para evitar as lágrimas e sorriu para Elis. Um sorriso que sempre
mascarava uma tristeza que era escondida no mais profundo de si.
— Obrigada — respondeu, mantendo seus olhos na estrada.
Elis não se manifestou mais e Valquíria optou por não cantar. Seguiram a viagem
tranquilas até chegarem à maternidade da cidade vizinha, onde a jovem passou a fazer seu
acompanhamento pré-natal. Durante o atendimento, o obstetra conversou bastante com as duas e
fez várias recomendações para a gestante. Passou alguns exames, bem como receitou algumas
vitaminas.
— As mamães estão prontas para descobrir o sexo do bebê? — questionou com
tranquilidade, supondo que elas fossem um casal.
Ambas ficaram constrangidas. Elis por achar um disparate, Valquíria por ter sentido
borboletas no estômago. Trataram de desfazer o engano, fazendo o médico rir.
— Desculpem-me a confusão! — O médico as enfitou constrangido. — Cogitei isso, pois
vocês têm a energia de um casal. — Deu uma risadinha nervosa, tentando manter o sorriso. —
Quem as visse, pensaria a mesma coisa que eu — justificou-se, tratando de caminhar na frente
das duas. — Vamos?
Ignoraram as palavras do homem e o seguiram até onde o aparelho de ultrassom estava
localizado. Depois de todos os preparos realizados, o médico começou o processo do exame,
mostrando as imagens no monitor.
— Está tudo normal com a criança, mas parece que ela não quer se mostrar para nós —
ele disse, enquanto deslizava aparelho pela pele de Elis. — Opa, espere aí. O que temos aqui? —
Sorriu ao fixar o olhar no monitor novamente. — Prontas?
— Não mate a gente de curiosidade, Márcio! — Valquíria reclamou e o homem
gargalhou.
— Parece que tem alguém mais ansiosa que a própria mamãe aqui. — Bergamoto o olhou
irritada, fazendo o médico dar continuidade ao assunto: — Ao que tudo indica, você será mamãe
de uma princesa, Elis.
— Sério? — A jovem questionou, descrente.
Valquíria se mantinha atônita, uma vez que sua mãe estava certa. Tentava absorver a
situação para não ter uma síncope, posto que apesar da intuição certeira de dona Lola, a
veterinária sempre ficava em choque quando constatava que acertara mais uma vez.
— Já tem algum nome? — Márcio questionou ao limpar a barriga de Elis.
— Tenho sim! Para menino eu não tinha certeza, mas para menina eu tinha. Sempre
gostei muito de um nome em específico, desde criança. — A jovem refletiu, com o olhar perdido
por alguns segundos.
— E que nome seria? — Valquíria inquiriu, incluindo-se na conversa.
— Isabel. — Deu um sorrisinho. — Minha filha se chamará Isabel. — Acariciou a
própria barriga, exultante com as notícias.
Nesse momento, o mundo de Valquíria rodou e ela se recordou das palavras de sua mãe
quanto à surpresa que ela teria. Sentiu-se enjoada e precisou se apoiar na parede ao seu lado, o
chão lhe faltando. Isabel era o nome de sua falecida sogra e o nome que Ernesto sempre sonhou
dar a uma filha que tivesse com ela.
— Valquíria, você está bem? — Elis perguntou, ao ver o estado catatônico da mais velha,
conjecturando se ia ou não até ela.
— Val, venha. — Márcio a conduziu até uma cadeira e lhe ofereceu um copo de água. —
Está se sentindo melhor?
Minutos depois, Elis se aproximou.
— Sim, foi só um pouco surpreendente demais pra mim — respondeu fracamente, seu
arredor ainda tremulando por conta da surpresa.
— Imaginei que sim. — O médico respondeu, compadecido, ciente do que se tratava,
deixando a jovem ainda mais confusa.
— O que foi surpreendente? — Elis perguntou, incomodada por não estar a par do
assunto.
— Uma enorme coincidência, menina! — Valquíria respondeu, ainda pálida. — Esse
nome é especial para mim, Elis, e me aquece o coração saber que sua filha se chamará assim —
continuou, com os olhos marejados. — Obrigada.
Elis, sem entender nada, abaixou-se e segurou nas mãos da mais velha, buscando a
reconfortar. Desde que se mudou para o sítio de Valquíria, esse foi o momento de maior afeto
que ela sentiu para com a outra e, pela primeira vez, a jovem se sentiu verdadeiramente
conectada a ela.
— Obrigada por compartilhar algo tão importante comigo. — A jovem deu um sorriso, os
olhos reluzindo. — Me sinto lisonjeada com suas palavras.
Valquíria acariciou o rosto da garota e sorriu para ela.
— Não são mesmo um casal? Não precisam ter vergonha! — Márcio comentou,
trazendo-as para a realidade.
— Vai se ferrar, Márcio! — Valquíria resmungou, levando todos aos risos.
As duas se retiraram do hospital com muitos questionamentos na cabeça. Elis se
perguntava o porquê de Bergamoto ficar tão emotiva com determinadas coisas e Valquíria se
questionava sobre a sua sanidade mental. Mesmo com suas mentes turbulentas, decidiram parar
em uma loja infantil e comprar algumas coisas para o enxoval da pequena Isabel.
Quando chegaram ao sítio, o Sol já ameaçava se pôr, colorindo o horizonte em tons de
rosa, laranja e azul. Colocaram as coisas em um quarto que seria destinado ao bebê e cada uma
seguiu para um lado. Elis foi para o banho e Valquíria foi galopar para esclarecer sua mente e
evitar pensar nas ditas coincidências. Pobre Bergamoto, mal sabia que suas tantas coincidências
eram mensagens do Universo sobre seu destino e que muito mais surpresas estavam por vir.

.5.
O ANIVERSÁRIO DE VALQUÍRIA
As coisas estavam bastante agitadas na moradia de Valquíria naquela manhã. Era o
aniversário da veterinária que, diferente de muitas pessoas, adorava comemorar o dia. Acordou
animada e preparou o café para Elis, ela mesma. Quando a menina se levantou, dona Lola já
estava na casa da filha a ajudando. Ainda sonolenta, Elis se aproximou das duas.
— Bom dia. — Bocejou, atraindo a atenção das mulheres.
— Bom dia, minha querida. — Valquíria sorriu dulcissimamente para a mais jovem,
como fazia todas as manhãs.
— Bom dia, minha filha. — Dolores respondeu carinhosa. Aproximou-se e acariciou a
barriga pequena da jovem, evidenciando seu carinho por aquele bebê e sua mãe. — Quer comer
algo?
— Ah, dona Lola, agora só o café me basta. Mas, cá entre nós, tenho pensando bastante
naquele doce de abóbora com coco que a senhora disse que faz. — Levou a caneca esmaltada à
boca, escondendo seu sorriso sapeca.
— Eu faço pra você, minha menina. — Dona Lola rapidamente se dispôs a fazê-lo, seu
tom era extremamente terno, como um afago.
— Pois, se fizer pra ela, vai ter de fazer pra mim também. — Valquíria se interpôs, a
feição enciumada. Cruzou os braços e não escondeu o bico que se formou em seus lábios.
— Eu faço para as duas. Resolvido? — Olhou para a filha, segurando a vontade de rir,
devido a birra de sua cria. — Por falar em doce, Valquíria, você vai querer algum pra hoje? —
perguntou, caminhando até a veterinária.
— Já que está se oferecendo... — Sorriu manhosamente, agindo feito uma criança perto
de sua mãe. — Aquele doce de mamão ralado e o doce de leite cremoso. Desses eu não abro
mão. — A mulher salivou só de pensar nos quitutes.
— Então, você vai me ajudar a colher os mamões. — Dolores pôs a mão na cintura. —
Quer saber? Pede os meninos para pegarem e levarem pra minha casa, porque lá eu tenho lugar
pra fazer isso.
— Não querendo atrapalhar o assunto de vocês, mas o que vai acontecer hoje? — Elis
perguntou, realmente confusa, ainda zonza por ter acabado de acordar.
— Ah, minha pequena, esqueci de te falar! — exclamou a anciã, batendo palminhas. —
Hoje é aniversário da Valquíria! — Indicou a filha com a cabeça. — Nem parece que fez
quarenta e sete anos. — Deu uma risadinha, aludindo à infantilidade da veterinária. — Se
prepare, pois hoje, a noite será pequena. — Simulou dançar forró de forma engraçada, tirando
um riso de Elis.
— O que a senhora quer dizer com isso, mamãe? — Exasperou-se a aniversariante,
cerrando o cenho.
Dolores nada disse, apenas prosseguiu rindo, exibindo a ponta da língua ao fazê-lo.
— Podia ter me contado! — A moça exclamou, olhando para a veterinária e se levantou,
abraçando-a em seguida. — Feliz aniversário!
Valquíria ficou surpresa com o gesto da jovem, já que Elis não gostava de muito contato
físico e ver tamanha espontaneidade da parte dela fez Bergamoto se sentir feliz, mesmo sendo
uma coisa tão pequena.
— Obrigada, minha querida — respondeu e deslizou os dedos pelos fios dourados de
Elis, sob os olhos vigilantes de Dolores.
A menina Teixeira terminou de comer e se dispôs a ajudar, mas foi educadamente
rejeitada para tal tarefa. Por conta disso, decidiu caminhar pelos arredores da casa, vendo Flecha
próximo às árvores. Fez um carinho no animal e ele se abaixou. A menina, mesmo percebendo
que o animal não estava selado, não pensou duas vezes e subiu no lombo do cavalo. Passeou por
toda a extensão das redondezas da residência e sumiu das vistas de quem estivesse por ali.
Enfiou-se dentro da mata, explorando aquele lugar inusitado para ela. Encontrou uma enorme
cachoeira no centro daquele lugar inóspito, descendo de Flecha Preta para tocar a água fresca que
corria ali.
Viu que na margem do outro lado brotavam alguns lírios brancos com o interior rosa e
quis os pegar para Valquíria. Retirou seu vestido e seus sapatos, colocando seus pés dentro do
rio. A água estava tão convidativa que Elis decidiu se refrescar sem se preocupar com qualquer
risco que poderia correr ali. Andou até a queda d’água e mergulhou, enquanto Flecha tomava o
líquido na beirada do rio. Mais de uma hora depois, pegou as flores e saiu. Sentou-se em uma
pedra, esperando seu corpo secar e ficou admirando a paisagem ao lado do cavalo. Após estar
quase seca por completo, colocou seu vestido, montou em Flecha e voltou para a casa de
Valquíria.
Quando a garota chegou, encontrou os funcionários agitados com seu sumiço. Um dos
empregados avisou a Valquíria assim que avistou a menina chegando. A mulher saiu apressada
de casa e correu até a garota, desesperada. Estava tomada pelo medo de ter acontecido algo com
ela, o mesmo pavor que sentiu anos atrás. Ficou mais assustada ao ver que Elis estava montada
em Flecha Preta sem o cavalo estar selado.
A garota saltou do animal e caminhou ao encontro da veterinária com um sorriso enorme
no rosto. Estava feliz por conseguir presenteá-la com aquelas flores bonitas e delicadas como a
alma de Valquíria, mas seu sorriso se desfez assim que a mulher abriu a boca:
— Você perdeu o juízo? — inquiriu duramente. — Some sem avisar e ainda monta no
cavalo sem sela? É perigoso! Você poderia ter se machucado! — Segurou Elis pelos braços,
agitando a jovem conforme falava, visivelmente abalada, deixando-a espantada. — Nunca mais
faça isso! — gritou, cega pelo pavor, os olhos jorrando lágrimas.
— Desculpe — disse resignada, baixando a cabeça.
— O que eu faria se te acontecesse algo? — A mulher choramingou, apertando as vistas
com força para evitar que o choro perdurasse.
— Já chega, Valquíria! — Elis elevou a voz, ditando em um quase rosnado. — Não
aconteceu nada comigo e não me trate como um bebê! Não se preocupe com as satisfações que
tem de dar à mamãe. — Olhou-a consternada, jogou as flores no chão e saiu andado para a casa.
Valquíria levou as mãos até a cabeça e suspirou, o olhar recaído na direção de Elis.
Enfitou as flores no chão e as pegou, cheirando-as logo depois. Sentiu-se péssima por ter gritado
com a jovem. Sabia que tinha exagerado com ela e precisava se desculpar, porém, ao mesmo
tempo, era cônscia da necessidade da sua hóspede esfriar a cabeça, já que Elis não entendera que
sua preocupação era verdadeira; não por necessitar explicar ao à Selina. Entrou na residência,
colocou as flores em um jarro bonito e deixou enfeitando a mesa de sua cozinha.
Terminou os preparativos para sua festa e a decoração, encerrando o dia ao acender a
enorme fogueira. Subiu para se aprontar para a festa e, antes de colocar suas melhores roupas,
bateu na porta do quarto de Elis. A moça não respondeu, no entanto não seria isso que impediria
Valquíria de entrar. Era intrometida o suficiente para o fazer sem autorização da jovem.
Encontrou a loirinha sentada em uma poltrona que ficava próxima à janela, com seus
olhos fixos às chamas que crepitavam do lado externo.
— O que você quer? — Elis questionou, sem se virar para ela.
— Me desculpar por mais cedo. — Achegou-se aos poucos, um tanto retraída. — Mesmo
preocupada daquela forma, eu não deveria ter gritado com você. — Suspirou, o coração
trovejando no peito. — Fiquei desesperada só de imaginar que algo poderia ter acontecido a você
— justificou-se, ansiando se aproximar mais, mas se mantendo estática uns metros atrás de Elis.
— Desculpas aceitas — murmurou, sem nem mesmo volver os olhos para Valquíria. —
Pode ir. — Deu de ombros, irritadiça.
— Não vai descer para o meu aniversário? — perguntou, receosa, temendo tornar a
relação entre as duas ainda mais complicada.
— E por que eu deveria? — Balançou a cabeça em negação. — Não quero que deixe de
se divertir para me vigiar. — Finalizou rispidamente, o tom de voz embargado de rancor.
— Elis... — Quase sussurrou. — Por favor... — piou, quase não movendo os lábios, a
alma tomada de remorso. — Mamãe ficará sentida se você não descer. Ela quer que você vá. —
Encarou os próprios pés, o arrependimento caindo sobre os ombros.
— Dona Lola irá entender — retrucou friamente, ainda encarando a fogueira.
— Eu quero que você vá — confessou com sinceridade, atraindo a atenção do olhar de
Elis para si.
Chegou bem perto da jovem e acariciou sua cabeça, depositando um beijo no lugar em
seguida. Deixou sua mão amparada no ombro de Elis, ousando acaricia-lo delicadamente.
— Quero que faça parte desse dia tão importante para mim, por favor. — Deu uma leve
cutucada no local onde acariciava, a expressão pedinte moldada no rosto.
A jovem respirou fundo e olhou para cima, procurando os olhos meigos da veterinária,
sentindo sua mente a trair com o contato visual. Repuxou os lábios para um lado com um meio
sorriso e colocou sua mão sobre a de Valquíria.
— Certo, eu vou. — Deu-se por vencida, meneando negativamente com a cabeça. — Vou
me arrumar!
— Obrigada! — sussurrou ao ouvido da garota, após lhe deixar um beijo doce em sua
bochecha rosada. — A propósito, obrigada pelas flores. Eu adorei.
Saiu feliz do quarto com Elis a acompanhando com as vistas. Sorriu e agitou a cabeça em
negação, levantando-se para se arrumar.
— É mesmo uma intrometida — proferiu baixinho, rindo em seguida.
Elis desceu antes de Valquíria e ficou ao lado de Dolores na varanda da casa, onde outros
convidados da veterinária estavam. Seus amigos, Henrique e Cássia, também estavam presentes,
bem como todos os funcionários da mulher, dentre outras pessoas que a jovem não conhecia.
Alguns estavam perto da churrasqueira, outros bebiam e dançavam perto da fogueira.
Cássia e Henrique conversavam com Dolores e Elis animadamente, apenas se afastaram
quando um homem convidou dona Lola para dançar. Seu marido, senhor Augusto, estava mais
adiante conversando com outros homens animadamente, demonstrando que não havia problemas
com isso.
— Valquíria ainda está enfiada naquele quarto? — Cássia perguntou, mais para si própria
que para a jovem.
— Acho que sim. — Deu de ombros.
Antes de Cássia se levantar para chamar a amiga, deparou-se com a aniversariante.
— E não é que a filha da mãe ficou linda! — implicou com Valquíria, abrindo os braços
para a parabenizar.
Valquíria estava com uma blusa ¾ vermelha de botões pretos, uma saia godê preta e um
cinto de fivela dourada marcando sua cintura. Botas, também pretas, complementavam sua
vestimenta perfeitamente. Seus cabelos pretos, com alguns fios brancos, brilhando ao luar,
estavam presos em uma trança lateral frouxa, amarrada por uma fita vermelha na ponta e sua
boca estava pintada com um batom escuro.
— E cheirosa! — completou Cássia, dando mais uma risadinha.
— Deixe de bobagens! — Valquíria se acabrunhou, revirando um pouco os olhos. —
Você está muito bonita — elogiou. Cássia estava de vestido florido abaixo dos joelhos, de manga
comprida e sapatos com fitas que estavam presas em seu tornozelo.
Elis não pôde deixar de admirar Valquíria enquanto ela conversava com Cássia. Sentiu
seu rosto esquentar com o olhar que a mulher lhe lançou, acompanhado de um sorriso
devastador. Desviou seus olhos para o quintal, fingindo ver Dolores dançar. Incomodada com o
frio que assolava seu estômago.
— Mamãe não perde tempo — comentou ao se sentar ao lado de Elis, estalando a língua
contra os dentes, analisando o balançar da saia de sua mãe de um lado para o outro.
— Seu pai não se importa mesmo? — A garota questionou, observando-os dançar.
— Não — exprimiu descontração no rosto. — Eles confiam muito um no outro e estão
apenas se divertindo. Espero que se divirta também. — Segurou a mão de Elis e fez um carinho
sutil.
— Bora dançar, Dona Val? — Um dos empregados a convidou.
— Opa, é pra agora! — Deu a mão ao homem e seguiu para o lugar onde todos
dançavam.
A jovem jamais pensou que escutaria tal tipo de música e muito menos que apreciaria ver
alguém a dançar. Valquíria sorria enquanto o homem a conduzia e a rodopiava no ritmo da
canção, fazendo sua saia esvoaçar. Mesmo sem saber dar um passo, desejou dançar forró com a
veterinária, mas tinha vergonha demais para a convidar.
— Ela é linda, não é? — Cássia surgiu por trás da jovem, assustando-a.
— É sim — constatou, muito mais para si mesma do que para a mulher que estava em
sua companhia. — E dança muito bem! Está sempre sorrindo. — Piscou longamente, após notar
que os olhos estavam secos de tanto admirar Valquíria.
— Valquíria, por mais que tenha sofrido muito, é a pessoa mais feliz que eu conheço. —
Cássia entrelaçou os dedos das mãos. — A vi chorar pouquíssimas vezes. Não deixa a peteca cair
— complementou em tom de elogio.
Elis sorriu para a amiga de sua anfitriã e voltou sua atenção para as pessoas dançando.
Acabou a música agitada, iniciando uma mais tranquila. Valquíria se despediu do rapaz e se
aproximou das meninas.
— Elis está doidinha pra dançar com você — Cássia brincou, dando uma cutucadinha em
Elis e deixando a menina corada.
— Ah! Não seja por isso, venha! — Segurou a mão da jovem e a conduziu até o local.
— Eu não sei dançar... — balbuciou, os dedos trêmulos.
— É só dar um passo e uma quebradinha pra cada lado e caminhar enquanto isso —
ditou, enquanto demonstrava com o corpo, o olhar radiante.
— Muita informação para minha cabeça — resmungou, fazendo Valquíria sorrir.
— Apenas me deixe te conduzir. — Ergueu a mão uma segunda vez, capturando os dedos
de Elis e indicando o que faria a seguir.
Concordou e se deixou ser levada pela veterinária. Pisou nos pés de Valquíria algumas
vezes, contudo, pegou o jeito da dança e se divertiu enquanto a música estava tocando. A mais
velha ousou girar Elis e a puxar para si, levando dois pisões ao voltar para o ritmo da dança.
Ambas riram com a situação e continuaram.
Da varada, dona Lola conversava com Cássia sobre as duas, enquanto as observavam
dançar. Ambas tinham opiniões concordantes com relação a Elis e Valquíria. Havia algo imerso
em um mistério que as elas ainda não tinham percebido. Mudaram o assunto ao perceberem que
a jovem e a aniversariante se aproximavam.
— Viram que pé de valsa? — Valquíria brincou, o sorriso encrustado em seu rosto.
— Já pode dançar com qualquer um! — Dolores completou, dando algumas palminhas.
— Deixem disso. — As bochechas de Elis enrubesceram. — Pisei em seus pés o tempo
todo! — Apontou para as botas sujas de Valquíria, ainda mais envergonhada.
— Detalhe! — A mulher respondeu, divertida.
— Inclusive, o filho do Inácio está doidinho querendo te conhecer, Elis — Cássia
comentou aos risinhos, aproveitando para enfitar a amiga.
— E por quê? — questionou Elis inocentemente, distraída pela alegria que tomava conta
dela.
— Por que ele é um conquistador sem vergonha! — A veterinária praticamente rosnou,
estreitando os olhos para Cássia. — Cuidado com ele, Elis! — Valquíria a alertou.
— Hum — Dolores e Cássia murmuraram.
— Hum, o quê? — Valquíria cruzou os braços, o cenho franzido.
— Nada! — Dona Lola desconversou, rindo.
— Vocês não testem minha paciência! — ralhou a aniversariante, bufando em seguida.
— Calma, Val. — Elis começou, o olhar cintilando cruzando com o dela. — Não quero
conhecer ninguém agora. Vocês me bastam! — Segurou a mão da veterinária e a acariciou, da
mesma forma que a mais velha havia feito com ela mais cedo.
O simples gesto da moça acalentou o coração de Valquíria e toda a raiva sem explicação
que ela sentiu se dissipou. Desejou estar cada vez mais próxima de Elis.
A festa se estendeu por toda a noite, até a fogueira chegar ao seu fim. Valquíria
acompanhou Elis até seu quarto e a colocou para dormir. Beijou-a no rosto e, naquele momento,
teve a certeza que faria de tudo para ver aquela mocinha feliz.
Retirou-se do quarto e foi se deitar com o peito aquecido por conta daquela pequena
mulher. Decidiu que estava na hora de procurar por respostas e não correr delas, não suportando
mais a confusão que se instalara em sua mente.

.6.
PERDIDA DENTRO DE SI
Desde o dia que Valquíria decidiu buscar respostas, uma semana se passou. Estava em
um período agitado em sua clínica veterinária e optou por fazer o que queria quando tudo se
abrandasse. Também queria dedicar um pouco de seu tempo à garota, que já estava com dezoito
semanas, segundo seus exames. Cada vez mais graciosa aos olhos da veterinária.
Bergamoto sempre tentava agradar a jovem de alguma forma, fosse com um desejo
estranho ou se ela expressasse vontade por alguma coisa. Por conta disso, não foi surpresa para
dona Lola ver a filha comprar cordas e madeira para que seus empregados fizessem um balanço
para a moça após a escutar comentar sobre o assunto. Estava chegando para almoçar, quando
avistou a jovem sentada no balanço com um livro na mão, enquanto acariciava a barriga com a
outra. Subiu a colina para adentrar em sua casa, mas mudou sua direção para onde Elis relaxava.
Aproximou-se devagar e a tocou nos ombros, atraindo sua atenção para cima.
— Já almoçou? — Valquíria perguntou, enquanto massageava levemente os ombros da
menina.
— Ainda não. Não tinha percebido que já era tão tarde — disse, olhando para a
veterinária, e sorriu.
Valquíria sentiu a hóspede dar um solavanco com o corpo e achou graça. Já havia virado
um hábito isso acontecer de duas semanas para cá. Ela deu a volta e se agachou de frente para
Elis, acariciando sua perna.
— Dói? — Val questionou e levou as mãos para a barriga da garota.
— Não, só ainda não me acostumei com os chutes. — Deixou o livro no chão e observou
a veterinária deslizando as mãos em sua barriga carinhosamente.
Valquíria se sentia tão feliz perto daquela jovem que não sabia explicar o motivo para tal.
Era reconfortante e familiar, até mesmo nostálgico. Beijou a barriga de Elis e acariciou, apoiando
o ouvido no local para escutar Isabel se mexer. A veterinária, por vezes, tinha pensamentos e
sensações estranhas, como se aquele bebê a pertencesse desde sempre. A garota deslizou os
dedos sobre os fios escuros de Bergamoto, enquanto ela mantinha os olhos fechados. Quem as
visse de longe, poderia jurar que ambas se amavam mútua e serenamente, pois, tamanha era a
conexão que elas tinham.
— Aconteceu alguma coisa hoje pela manhã? — Valquíria questionou, afastando-se para
olhar Elis.
A filha de Selina já estava acostumada com as perguntas recorrentes e preocupadas da
veterinária. Sempre que retornava, questionava à jovem apenas para ter certeza que estava tudo
bem.
— Nada fora do comum, exceto por... — A menina ponderou se deveria contar ou não,
afinal, não era algo importante.
— Exceto?
Elis inspirou profundamente e disse:
— Mamãe, ela me ligou hoje — respondeu, cabisbaixa.
— O que aconteceu? — Sentou-se sobre a grama e cruzou as pernas, ainda olhando para
a moça.
— Disse que está com saudade, perguntou como estou, mas, quando perguntei pelo
papai, ela disse que eu havia o decepcionado demais e que ele não queria falar comigo. —
Valquíria viu os olhos da jovem acumularem lágrimas, que Elis não deixou deslizar por sua face.
— Ô, meu bem, você sabe que seu pai é turrão demais, ao ponto de ser idiota. Não se
estresse com isso agora, não é bom para você e para o bebê. Deixe que a vida se encarregue do
seu pai. Você não é uma decepção, querida — Valquíria sorriu para a jovem e viu seu gesto ser
retribuído.
— Tem mais uma coisa. Felipe procurou minha mãe. — Apertou os dedos uns nos outros
e olhou para baixo.
— Agora?! — Expressou, irritada. — Quando você precisou desse desgraçado, ele disse
que não era o pai da Isabel. — Valquíria estava com raiva de verdade, mesmo sabendo que não
havia necessidade. — O que ele quer? — Perguntou ao se levantar do chão.
— Ele quer me ver. — Mordeu a boca, nervosa, e olhou para Valquíria.
— E você disse que não, obviamente! — Colocou as mãos na cintura e esperou a resposta
da menina, enquanto o pé direito batia contra o chão insistentemente.
— Eu... Eu disse que tudo bem...
— Você o quê? — Levou a mão até seu rosto e apertou o dorso do nariz enquanto
suspirava de descontentamento. — Elis, já se esqueceu o que ele te fez? Você disse que não
queria mais saber desse sujeitinho — relembrou a jovem, de forma ríspida e gesticulava as mãos
energicamente, seu cenho estava franzido em indignação.
— Eu sei! Eu sei! — Agitou-se. — Eu sei o que eu disse, mas mamãe disse que era uma
forma de me reconciliar com meu pai. Não custa nada tentar conversar com o Felipe.
— Custa sim! — gritou, apontando o indicador para Elis.
Elis franziu o cenho sem entender o que acontecia com Valquíria. Pensou que a mulher
fosse lhe apoiar, porém, ao contrário do que imaginava, viu a mulher virar uma fera.
— Custa o quê, Valquíria? — Elis pegou seu livro e se levantou, ficando de frente para a
veterinária.
— A minha paciência! — respondeu a primeira coisa que lhe veio à mente. — O
moleque fez o que fez e você ainda acha que isso vai dar certo? — Elis se manteve quieta,
observando a mulher à sua frente. — E saiba de uma coisa, eu não vou receber esse sujeito aqui
na minha casa. Aqui ele não dorme. Minha casa não é hospedaria pra moleque filho da puta.
— Mas, o que foi que te deu? — Elis estava visivelmente confusa com essa Valquíria tão
transtornada.
— Nada! Não me deu nada — baixou o tom de voz. — Esqueça isso. Você está aqui para
que eu possa te hospedar e dar os cuidados necessários. Eu não tenho de interferir em suas
decisões — disse, mais para si mesma que para a jovem, em um choque de realidade. — Vamos
almoçar.
— Valqu...
— Vamos almoçar, Elis — interrompeu-a, resignada. — Por favor, esqueça isso e perdoe
o meu comportamento hostil, mas mantenho a minha palavra em não o deixar dormir aqui. —
Saiu em direção à casa, para se trancar no banheiro até se recompor.
Elis, sem entender o que tinha se passado, caminhou em passos lentos até a residência,
pensando em tudo o que havia acontecido. Devia estar brava com Valquíria, no entanto, no lugar
da raiva, sentia uma angústia sutil. Algo que não tinha sentindo antes.
Bergamoto trancou a porta e se manteve encostada à madeira, deixando seu corpo
deslizar até o chão por estar pesado demais.
— O que eu tô pensando, meu Deus?! — Puxou as pernas com as mãos e apoiou a cabeça
sobre os joelhos.
Lembrou-se das palavras de sua mãe, que dizia que quando ela mais se sentisse perdida,
seria quando ela iria se encontrar.
— Não pode ser possível! — Levantou a cabeça e a encostou na porta, lamuriando-se.
De fato, a veterinária sentia-se perdida e sem saber como agir, em contrapartida, tinha
certeza que tinha se encontrado. Era contraditório, mas verdadeiro. Perdeu-se de si e se
encontrou nos olhos azuis de Elis. Valquíria sabia que tinha uma conexão com a moça, que havia
muito afeto por ela, muito carinho, mas sempre ligou isso à sua personalidade e por querer cuidar
da garota. No entanto, agora ela começava a enxergar com mais clareza.
Estava apaixonada.
— Ela é só uma menina — sussurrou. — Eu não posso fazer isso! Não posso! —
lamuriou aos cochichos.
— Valquíria? — Ouviu batidas na porta após a garota a chamar. — Você está bem? — A
jovem perguntou baixinho.
— Eu... Eu já vou. — Levantou-se e se apoiou na pia. Abriu a torneira e lavou as mãos,
molhando o pescoço e o rosto em seguida. Respirou fundo e se retirou do lavabo. — Vamos? —
Sorriu fracamente, tentando demonstrar estar melhor.
Imediatamente Elis se recordou de Cássia dizendo que Valquíria raramente se deixava
abater. A garota se sentiu culpada pelo estado da mulher, mesmo não tendo culpa alguma quanto
a isso. Almoçaram em silêncio, ora e outra com a menina olhando para sua anfitriã pelo canto
dos olhos. Era estranho para a Elis estar almoçando com essa Valquíria tão silenciosa e
pensativa. Normalmente, Bergamoto narrava sua manhã na clínica veterinária, vangloriando-se
dos animais cada vez melhores. Ou perguntando sobre seu estado. Ela chegou tão animada e
agora, depois de escutar sobre Felipe, estava estranha.
— Eu te magoei? — Elis perguntou de supetão, pegando Valquíria desprevenida.
— O quê? — Ergueu a cabeça, a face contorcida em dúvida. — Não. De forma alguma.
Eu que sou uma pessoa rancorosa e acabei comprando partido quando você apareceu
desamparada por esse arromb... — Parou e pensou a forma que ia chamar o rapaz, retratando-se:
— moleque. Esqueça isso — pediu pela terceira vez.
Quanto mais ela pedia para esquecer, mais Elis ficava com isso na mente.
— Eu já terminei. Tenho que ir. Prometa que não cometerá nenhuma loucura, Elis —
pediu, carinhosa, fazendo a jovem sorrir. — Mamãe disse que virá mais tarde lhe fazer
companhia. — Levantou-se e deu um beijo no rosto da menina, um beijo demorado, e se retirou.
A verdade é que Valquíria não tinha a necessidade de retornar tão cedo. Poderia ficar
mais tempo com Elis, mas, ela ansiava, mais do que qualquer coisa, conversar com uma pessoa
que ela não via há muitos anos.
Ela precisava de respostas.
.7.
CONHECENDO A VERDADE
Valquíria ouvia músicas enquanto dirigia para seu destino. Demorou mais de trinta
minutos para chegar à entrada do quintal onde se localizava a pequena casa branca, que se
escondia entre árvores frutíferas e as mais diversas flores. Respirou fundo após estacionar,
acumulando a coragem que precisava e desceu do automóvel, seguindo para a pequena
residência.
Imediatamente deteve seu olhar na figura que estava sentada em uma cadeira confortável
na varanda e sentiu seus músculos paralisarem. Por sorte, uma senhora rechonchuda, cabelos
grisalhos e muito alegre apareceu na porta, reconhecendo a veterinária. Chamou por ela,
eufórica, evidenciando sua felicidade em ver Bergamoto.
— Minha menina! Que saudade de você! — a senhora gritou e direcionou passos
apressados até onde ela estava, ao tempo que segurava a saia do vestido, desajeitada.
— Oi, dinda! Também senti saudade — abraçou-a apertado. — Como ele está? —
Apontou com a cabeça para o homem de pele escura e cheia de marcas da vida, que permanecia
imóvel.
— Está bem, mas só fala quando quer. Ele ficou muito triste quando aconteceu aquilo
tudo. — Valquíria sentiu o pesar na voz de sua madrinha, ao se recordar do passado, e um pouco
de culpa por ter feito o que fizera.
Rosa e José eram seus padrinhos. Sempre que podiam, estavam na casa da família
Bergamoto compartilhando almoços familiares, rodas de cantoria ou apenas para se servirem de
café e boa prosa. Valquíria os amava como se fossem seus pais. Seu padrinho era uma espécie de
conselheiro do lugar, por acreditar em tudo e respeitar a todos de igual modo. Ajudava as pessoas
com conselhos, leituras de oráculos, benzia-as e, às vezes, dava alguns “recados”. Era um
médium.
Sua relação com ele era maravilhosa, até pouco antes de se casar com Ernesto, quando
ele disse que esse casamento a traria um sofrimento tão grande que não se acabaria até o novo
ciclo chegar. Na época, Bergamoto entendeu aquilo como uma praga que ele a rogava e, por essa
razão, afastou-se dele, sem ao menos o deixar explicar. A imaturidade da época não a permitia
ter discernimento. Quando seu marido faleceu, acreditou com sua alma que aquilo era culpa de
José; que era alguma feitiçaria dele. Sendo assim, cortou relações com ele e sua madrinha — por
pensar que ela era conivente com seu marido — em definitivo.
Ela ficou sabendo por sua mãe — que afirmava que o homem não tinha nada a ver com o
ocorrido — que José havia ficado doente e não se recuperara completamente. Teve um derrame
e, por essa razão, não movimentava bem seu braço esquerdo, bem como sua mão.
— Vamos entrar — chamou-a, envolveu seu braço nas costas da veterinária em um
abraço tanto carinhoso quanto saudoso.
— Preciso falar com ele — comentou, seguindo dona Rosa. Seus olhos fixos no senhor
sentado na varanda.
— Val, você pode tentar, meu bem, mas não te garanto nada. Vem, vamos comer um
bolinho de aipim com coco e tomar um cafezinho. Deixa eu matar essa saudade primeiro —
falou, eufórica por rever a afilhada.
— Certo. Tenho um tempinho ainda. — Sorriu, vencida. De fato, necessitava dar atenção
à sua madrinha.
Conversaram por bastante tempo enquanto lanchavam. Mesmo cheia do almoço,
Valquíria não conseguiu negar o pedido de Rosa. A veterinária contou a ela tudo o que
conquistou e que ainda não tinha se envolvido com ninguém, mesmo após tanto tempo.
— Mas, o que me parece é que isso tá mudando, Valzinha. Seus olhos tão brilhando
como antigamente. — Com o rosto apoiado no dorso da mão, analisava a afilhada, sorrindo.
— Que nada, madrinha! — Tentou desconversar, mas a mulher endireitou a postura e
estreitou os olhos para ela de forma desconfiada, fazendo Valquíria sorrir. — Talvez esteja,
mas...
— Mas? — Incentivou ao notar o receio de Bergamoto.
— Ah, madrinha — começou o assunto e pausou, tentando se munir de coragem para
prosseguir. — Eu estou uma bagunça só desde que acolhi a filha da Selina em minha casa e...
— Está se interessando por mulher, Valquíria? — A mulher perguntou séria, com tom de
preconceito, supondo o que a outra tentava falar.
— Não! — respondeu de automático, em um elevado tom de voz. — Mas essa menina...
— Fechou os olhos, relembrou-se de Elis e suspirou. —Ah, dinda, ela me lembra tanto o
Ernesto. Tenho medo de estar misturando as coisas e estar o vendo nela. — Abaixou a cabeça,
escondendo o rosto entre as mãos, frustrada com as dúvidas que a assombravam.
— E está, mas não é de tudo verdade! — O homem disse da porta da cozinha, encarando
as duas, que agora o olhavam.
Valquíria sentiu sua espinha gelar. Ela tinha medo de estar misturando as coisas e, pelo
que seu padrinho havia dito, de fato estava fazendo tal confusão.
— Olá, Valquíria! Pronta pra encarar a sua verdade? — Pronunciou-se e caminhou
lentamente até a mesa para se sentar.
Bergamoto estava tão paralisada com a pergunta de José, que não teve reação diante de
toda aquela movimentação.
— Rosa, pode deixar a gente sozinho? — solicitou, sem tirar os olhos da afilhada.
— Claro, Zé! Se precisar de qualquer coisa é só chamar. — Levantou-se, já ajeitando a
roupa no corpo.
— Só traz as minhas coisas — pediu, enquanto Valquíria os olhava com curiosidade. —
Acredito que tenha muitas coisas pra me perguntar. Pode começar — disse, encarando a mulher
à sua frente.
Valquíria poderia usar da boa educação que sua mãe lhe deu e questionar como o homem
estava de saúde, entretanto, sua curiosidade e ansiedade eram maiores que qualquer resquício de
bons modos, tratando de ir direto ao assunto:
— O que você quis dizer com esse negócio de eu estar vendo Ernesto na Elis? — Cruzou
os braços e o fitou, séria.
— O que eu disse — respondeu secamente. — Você vê seu falecido marido na menina
porque isso é uma verdade, ele faz parte dela. — Sentou-se com dificuldade enquanto a
respondia.
Bergamoto ficou ainda mais confusa com as palavras de seu padrinho. Ia perguntar algo,
mas sua madrinha entrou com uma caixa de madeira nas mãos para entregar ao esposo, saindo
logo depois da cozinha. O homem, muito calmo, abriu a caixa com um pouco de dificuldade sob
os olhos atentos da afilhada. Retirou um chumaço de ervas secas e colocou dentro de um
recipiente de pedra. Acrescentou um óleo, que ela jurou ser azeite de oliva, e macerou, criando
uma mistura cheirosa. Ele passou um pouco nas mãos e cheirou, puxando um dos braços de
Valquíria em seguida para sujar a mão da mulher até os seus pulsos.
— Esfregue as mãos — pediu, na intenção que ela transferisse a mistura para a outra
mão.
— Não sei como isso vai me responder — retrucou, mantendo-se na mesma posição.
— Só faça.
Ela achou menos trabalhoso não rebater o senhor diante de si e o obedecer. Enquanto ela
friccionava as mãos, José levou dois dedos sujos com a mistura até a testa da mulher e espalhou
um pouco na região.
— Pra que isso? — Valquíria endureceu a expressão, completamente impaciente.
— Se você quer suas respostas, me deixa fazer a minha parte. Não vou te machucar. —
Olhou-a sério, por mais que seus olhos fossem gentis.
— Você já disse isso antes e me machucou da mesma forma — falou, ressentida,
pelejando contra as lágrimas que ameaçavam a brotar de seus olhos.
— Hoje você vai entender que eu nunca lhe fiz nada, apenas falei algo que eu deveria ter
guardado pra mim, assim você não sofreria antes da hora e nem se afastaria de mim ou da sua
madrinha — respondeu, sereno. Tão calmo que irritou ainda mais Valquíria.
— Só faz logo — proferiu baixo, desejando acabar com tudo aquilo o mais rápido
possível.
O homem assentiu com a cabeça e segurou nas mãos da veterinária, que precisou o ajudar
com a mão esquerda. José baixou a cabeça e começou a murmurar algumas palavras, tão baixo
que a mulher não podia entender.
— Você tá confusa, com medo do que sente, de estar errada — introduziu sua fala,
fixando seus olhos aos dela. — Mas esse sentimento é verdadeiro, como também é verdade que
você vê seu marido nessa menina.
— O que você quer dizer com isso? — Questionou, receosa.
— Oh, menina, quero dizer que seu amor por seu marido e o dele por você era tão grande
que ele, o amor, voltou pra você. — Mesmo sem entender direito do que se tratava, Valquíria
sentiu seus olhos umedecerem com mais intensidade. — Quando eu disse que você sofreria no
seu casamento até o próximo ciclo se iniciar, não te roguei praga. Te dei um aviso.
— Então, o fato de eu gostar da Elis é por que ela já foi o Ernesto? — indagou com um
tom aéreo, mantendo-se concentrada no aroma que exalava das ervas.
— Em partes. — Moveu a cabeça com um meneio positivo. — Você ama as
similaridades, a marca que ela traz dele, mas, apesar disso, Ernesto se foi e, nessa vida, Elis é
Elis. Seu ciclo com Ernesto se encerrou há muito tempo. Você se afeiçoou à menina por ela ser
como ela é. Você a ama pela doçura, cuidado e toda a reciprocidade que essa jovem te entrega. O
amor da alma, que superou a morte, ajudou vocês a se encontrarem nessa vida. Vocês
precisavam se reencontrar e, a partir daí, descobrir se ficariam juntas outras vez ou se esse ciclo
se encerraria. Nada na vida é certo e o futuro é construído pedra por pedra. — Sua voz era
serena, tentava passar tranquilidade à afilhada.
— Eu ainda não consigo entender... — Valquíria permitiu que sua cabeça decaísse, um
peso de exaustão pairando sobre seus ombros.
— Minha filha, as almas têm distinção, elas têm designações. — José acariciou a mão de
sua afilhada. — Em cada ciclo elas retornam de uma forma, seja homem, mulher ou nenhum. —
Encolheu levemente os ombros e prosseguiu: — Essa alma um dia fora Ernesto. — Ergueu o
rosto da Bergamoto com suavidade. — No agora, ela retornou como Elis e o que une vocês, é
puramente o amor.
— Por isso eu a acho tão peculiar e familiar em algumas coisas. — Valquíria coçou a
cabeça. — Flecha Preta! Ele... Ele percebeu? — Arregalou os olhos em surpresa, dando-se conta
do carinho do cavalo por sua hóspede.
— Ele reconheceu a alma que um dia fora Ernesto nela assim que a viu — Assentiu com
um sorriso suave. — Pudera, nós, termos a sensibilidade dos animais. — Acentuou o riso, a
ponto de seus olhos fecharem.
— Ah, Flecha — disse, chorosa. — Como eu queria que ele pudesse falar. — Permitiu
que suas lágrimas vertessem, o coração imerso de uma horda de emoções.
— A vida é um mistério. — Deu palmadinhas amigáveis sobre a mão da veterinária. —
Uma força que nos move dia após dia e, às vezes, temos a sorte de encontrar a parte da nossa
alma que dividimos antes de vir ao mundo e, quando isso acontece, é eterno. — Suspirou
levemente. — Essa força sempre dará um jeito de unir essas almas novamente. Você as conhece
como almas gêmeas — ele completou, ainda de mãos atadas às dela.
— E o que eu faço? E Elis? — Era visível a angústia no olhar de Bergamoto, lembrando
uma criança assustada.
— Não tem segredo, minha filha. — Afagou um pouco mais as mãos de sua afilhada. —
Apenas viva. Não se aproxime da menina por descobrir isso, fique com ela por sentir amor, por
não conseguir se imaginar sem ela e não pela sombra do seu marido. — Fechou os olhos por um
instante, esboçando cansaço. — Ernesto descansou e agora você conhece Elis, uma nova história
de um mesmo amor. Guarde seu passado no coração e crie um novo futuro.
Valquíria se sentia carregada de sentimentos. Não conseguiu mais se conter por conta de
um orgulho vão e se levantou para abraçar o homem, pedindo perdão por tê-lo afastado por tanto
tempo e, principalmente, por ter jogado nele uma culpa que não lhe cabia.
— Não precisa disso, filha. Eu sabia que esse dia chegaria. — Deslizava a mão direita
pelas costas da afilhada, acarinhando-a para lhe dar conforto.
— Eu fui tão ridícula com o senhor. — Pranteava baixinho, suas vistas embaçadas pelas
lágrimas. — Eu nunca vou me perdoar por ter feito o que fiz. Obrigada por ter me esperado e por
ter me ajudado; por ter erguido seus braços para mim mais uma vez. Eu não te mereço na minha
vida. — Soluçava no abraço do padrinho, sentindo a culpa lhe pesar os ombros.
— Não diga bobagens, Valquíria, eu já fiquei muito tempo longe de você. — Cerrou os
olhos momentaneamente. — Águas passadas não movem moinhos — assegurou, sentindo-a se
afastar lentamente.
— Você não se incomoda por ela ser uma mulher? — Perguntou, com medo da resposta
que viria.
— Minha filha, me conhecendo como me conhece, deveria saber da minha resposta. —
José deu uma risadinha. — Quem sou eu pra separar duas almas que lutaram para se reencontrar?
— Tratou de dar mais um carinho para sua afilhada, desta vez em sua face. — Nós vivemos e
voltamos de diversas formas para que possamos aprender e evoluir como ser humano.
— Minha madrinha pareceu se incomodar. — Valquíria recolheu os cílios, apreciando o
aroma que exalava da mão de seu padrinho.
— Questão de costume. — Deu de ombros. — Depois passa, afinal, aqui nesse lugar as
pessoas não têm muita coragem de assumir seus desejos e seus amores. — Revirou levemente os
olhos. — Seja corajosa e não se importe com ninguém, ou com o que possam falar.
Valquíria beijou o homem no rosto e lhe fez um carinho dos fios de cabelo brancos.
— Obrigada! Obrigada por tudo! — Sentia as lágrimas molharem seu rosto
incessantemente, no entanto, de felicidade.
José não disse nada, apenas a abraçou apertado, aproveitando para dissipar toda a
saudade que sentiu de sua menina. Ela se despediu dos dois e foi trabalhar, deixando um convite
para um almoço em sua casa. Saiu do sítio do casal mais leve e decidida a não revelar nada do
que descobriu para Elis. Se fosse para ficar com a garota, seria por compartilharem o mesmo
sentimento, não pensando em como a menina se sentiria, caso descobrisse. Colocou uma música
e seguiu cantando para a clínica.

Em casa, Elis repensava em tudo o que havia acontecido mais cedo, constatando que
Valquíria ficava estranha quando surgiam alguns assuntos. Também chegou à conclusão de
encontrar Felipe em outro lugar para evitar maiores dores de cabeça. Gostava da relação que
tinha com a veterinária e não queria estragar isso.
Como Bergamoto havia mencionado mais cedo, dona Lola chegou para fazer companhia
para a menina. Elis estava escolhendo um novo livro quando ouviu a mulher chamar na porta da
cozinha. Deixou o livro separado e seguiu para onde a senhora estava.
— Dona Lola, que bom ver a senhora! — Abraçou-a carinhosamente.
— Ei, minha flor. Como vão você e o meu docinho? — Acariciou a barriga da garota e
recebeu um leve chute da bebê.
— Estamos muito bem. — Preferiu não comentar da discussão de mais cedo.
Dolores percebeu que algo incomodava a menina, mas deixou que ela contasse se
quisesse. Separou-se dela e pegou um pote que tinha colocado pouco antes sobre a pia.
— Olha o que eu trouxe! — Alegrou-se, esboçando um sorriso exultante.
— A senhora fez?! — Seus olhos brilharam ao ver o doce de abóbora com coco nas mãos
da mulher.
— Claro que sim e trouxe pão quentinho pra gente comer com o doce junto com aquele
queijinho da Val — sussurrou a última parte e sorriu, como se fosse um crime cogitar tal coisa.
— A senhora vai me deixar uma bola assim. — Sorriu, não discordando da ideia da mais
velha.
— Ah, Elis. — Suspirou fracamente. — Já tem mais de uma hora que almoçou, já tá na
hora de um lanchinho. — Lançou à jovem um olhar maroto. — Senta aí que eu vou ferver o leite
com mel pra você e passar um café pra mim.
— Eu nem vou contestar, pois sei que a senhora me venceria na lábia — comentou,
rindo, movendo a cabeça em negação.
— Ainda bem que sabe! — Dona Lola exibiu a língua.
Elis teve uma tarde tranquila com Dolores. A mulher contou sobre a infância da filha para
a garota, deixando-a surpresa por descobrir que Valquíria foi uma criança que aprontou muito. A
jovem, em contrapartida, apresentou um aplicativo de vídeos para dona Lola, ensinando-a como
buscar receitas e ouvir suas músicas pelo seu celular.
— Tá chegando gente aí. — Dolores ergueu a cabeça ao deixar o comentário solto no ar.
— Acho que a senhora se enganou, Dona Lola. Não ouvi nada — Elis disse, prestando
atenção no silêncio do lugar.
— Mas vai e tome muito cuidado — alertou, mostrando estar bastante séria. — Preciso ir.
Daqui a pouco o Augusto chega aí me procurando, aí já viu — riu dos seus dizeres, levantando-
se em seguida.
— Não acredito que veio sem o avisar de novo! — Elis a encarou com os olhos
semicerrados. — Da última vez ele quase passou mal de preocupação.
— Eu esqueço. E ele deveria relevar, olha a minha idade. — Agitou os ombros enquanto
ria de forma sapeca.
— Ai, dona Lola. Traga ele da próxima vez, ou o avise pelo celular. — Levantou-se e a
abraçou.
— Tá certo. Se cuida, Lis — chamou-a carinhosamente e saiu. Pegou sua bicicleta e foi
para casa.
Pouco tempo depois, Elis viu um carro se aproximar. Sabia que não era Valquíria, pois
não se tratava da Pick-up da mulher. Levantou-se do banco que estava sentada na varanda e ficou
observando o automóvel parar no pé da colina. Simplesmente paralisou ao ver Felipe saindo do
veículo. Não esperava que o rapaz já estivesse a caminho quando sua mãe ligou, tampouco que
ele apareceria sem avisar. Assim que o rapaz apareceu no alto da colina, de frente para a varanda
onde ela estava, a jovem deu alguns passos e perguntou:
— Como você chegou aqui? — Cruzou os braços sobre os pomos, irritadiça.
— Sua mãe me deu o endereço — respondeu secamente. — Fim de mundo onde você
veio se enfiar, hein?! Estou viajando desde ontem — falou um tanto ríspido.
— Não pedi para você vir aqui. Veio por que quis. — Revirou os olhos, mostrando não
estar feliz com sua presença.
O rapaz iria dizer algo, no entanto, respirou fundo e controlou o seu humor. Era notório
que ele estava ali obrigado, mas Elis não podia desconfiar disso.
— Eu sei — disse brandamente. — Vim por que estava com saudade. — Aproximou-se
lentamente e tocou na barriga de Elis. — Você está linda assim — murmurou em tom dúbio.
— Obrigada! — Elis não pôde deixar de corar. — Agora acredita que a filha é sua? —
Disse, ressentida.
— Eu nunca duvidei — mentiu, exibindo seu melhor sorriso.
— Ah, faça-me o favor — falou e saiu apressada da varanda, seguindo no sentindo das
árvores.
— Elis! — Felipe gritou, seguindo-a a passos lagos.
— Vai se ferrar, Felipe! — Praticamente rosnou, aumentando a velocidade de sua
caminhada.
— Elis, me escuta! — Correu e segurou a menina pelo braço. — Deixa eu me explicar,
por favor.
Ela pensou um pouco e voltou a caminhar no sentido do lago.
— Ok, venha, vamos conversar ali, mas que seja rápido. — Suspirou, dando-se por
vencida.
O rapaz andou, ao lado da garota, até a margem do lago, ficando um pouco afastados da
casa de Valquíria.
— Pode começar. — A jovem Teixeira arqueou a sobrancelha, desconfiada.
— Eu sei que eu fui um idiota com você quando disse aquelas coisas horrorosas... —
Felipe simulou tristeza, baixando os olhos propositalmente.
— Ainda bem que sabe, porque você me magoou muito. Você me abandonou! — Falou
um pouco mais alto, denotando sua raiva.
— Eu sei. — Permaneceu cabisbaixo. — Por isso te procurei. Eu senti saudade durante
todo esse tempo, Elis. Quero cuidar de você e da nossa filha. — Passou a mão na barriga da
garota. — Fiquei feliz em saber que é uma garotinha, porque eu te amo, Lis.
A menina ficou mexida com as palavras do rapaz. Ele era um jovem alto, bonito, de olhos
claros e cabelos pretos bem penteados, tinha boa aparência e a jovem ainda estava apegada ao
vínculo com Felipe. Não tinha ideia de onde estava se enfiando. O garoto se aproximou e
envolveu o pescoço de Elis com suas mãos, fazendo carinho na pele alva da moça.
Da porteira, Valquíria avistou um carro estacionado bem em frente à sua garagem. A
mulher jogou o carro para o lado oposto e saiu apressada para procurar por Elis. Logo pensou
que poderiam ser Selina e Omar com intuito de levar a menina embora. Entrou desesperada em
casa, mas estava tudo igual. Subiu no quarto de Elis e suas coisas ainda estavam lá.
— Onde essa menina se meteu? Será que alguém a tirou daqui pra fazer algo de ruim? —
Pensou alto e se desesperou ainda mais. — Ai, meu Deus!
Saiu de casa e correu no sentido oposto ao lago até o estábulo, mas a jovem não estava lá.
Colocou o arreio em Campolina e montou na égua em pelo para sair atrás de Elis. Não tinha
tempo a perder selando o animal. Olhou nos arredores do estábulo e, como não a encontrou,
seguiu no sentido da mata que ficava perto de sua casa. Ao passar próxima ao lago, avistou Elis
com um rapaz, que a puxou para um beijo naquele exato momento, roçando seu corpo no da
moça de forma voluptuosa.
Valquíria imediatamente soube de quem se tratava: era Felipe.
Seu peito doeu tanto que queimava, sentiu-se idiota por achar que uma menina como Elis
se interessaria por uma mulher em sua idade. Sua face inundou com as lágrimas que escorriam
de seus olhos, acompanhando o silêncio desesperador de sua dor. Bateu seus pés nas ancas da
égua e o animal relinchou, partindo em disparada para bem longe dali.
Com o barulho, Elis empurrou Felipe, olhando na direção de onde o relinchar veio e viu
Valquíria saindo com Campolina. Sentiu-se horrível pela situação e invadida por seu ex-
namorado ter lhe roubado um beijo e sentir quais eram suas verdadeiras intenções ali, pela forma
que o rapaz pressionou seu baixo-ventre em suas coxas.
— Vá embora! — Elis foi categórica, dando dois passos para trás para se afastar ainda
mais dele.
— Mas, pensei que a gente tinha se entendido. — O jovem pendeu a cabeça para o lado,
confuso.
— Não, nós não nos entendemos. — A garota ralhou. — Você é muito bom com as
palavras, mas continua sendo aquele que me cala com um beijo quando quer me comprar e que
me usa para satisfazer os seus desejos. — Ergueu o queixo de forma altiva, a feição endurecida
pelo ódio. — Vá embora, Felipe, e deixe a mim e minha filha em paz.
— Elis... — O jovem tentou se aproximar.
— Some da minha vida! — Gritou com ele, de uma maneira. que nunca havia feito antes.
— Eu não vou me esquecer dessa desfeita. — Bufou, fuzilando-a com o olhar. — Que
essa criança bastarda morra! — respondeu no mesmo tom, irado, e saiu pisando duro.
Elis sentou sobre as próprias pernas no gramado e chorou a plenos pulmões. Estava
convicta que Valquíria a mandaria embora e só de imaginar isso, sentia-se perdida.
Sentia-se abandonada.
A jovem mal podia imaginar que a veterinária se sentia igualmente arrasada, mas por
outro motivo.

.8.
NEM TUDO É O QUE PARECE SER
Horas se passaram desde os últimos acontecimentos, Elis foi para casa com a ajuda de um
dos empregados do sítio com a noite já chegando. Suas bochechas estavam vermelhas demais,
provavelmente teria insolação devido a tanta exposição às radiações solares. Banhou-se
demoradamente, pensando que a água quente a deixaria melhor, porém, seu corpo ainda estava
estranho. Sentia-o quente demais, por isso tomou um copo de leite e foi para seu quarto se deitar.
Valquíria ficou fora durante todo esse tempo. Foi para o mais longe que conseguiu e se
sentou em uma pedra que ficava debaixo de uma árvore. Refletia sobre tudo o que seu padrinho
havia lhe falado, sobre a cena que presenciou, sobre seu sentimento, a alma corroída por um
misto de decepção e ciúmes. Refletia sobre Elis.
Sentia-se uma completa idiota por acreditar que seria tão simples. Por pensar que,
magicamente, a menina interessar-se-ia por ela. Levantou-se enfurecida, sacando um canivete de
sua cintura, e parou diante da árvore. Enfiou o objeto no tronco a sua frente e puxou para baixo
repetidas vezes, descarregando sua frustração ali. Quando parou, sentindo-se mais calma, deu-se
conta dos grandes talhos que havia feito ali e, que deles, escorria seiva pelo tronco.
Acabou por se sentir parecida com aquela árvore: ferida e sangrando.
Passou toda a tarde estirada no chão, com sua cabeça maquinando sem parar. Campolina
acompanhava sua dona de perto. Ora bufava, ora relinchava com a agitação da veterinária. No
fim, acabou se deitando próxima à Valquíria e dormiu, tão profundamente que roncava,
demonstrando o quanto confiava em sua tutora. Bergamoto rolou os olhos consternada com a
calma do animal.
— Não acredito que você dormiu, enquanto eu tô o caos por dentro — disse e levou uma
lufada do hálito da égua no rosto devido ao ronco de Campolina. — Ah! Sua cretina! — Jogou
um pouco de terra no animal, que respondeu com outra bufada e, para completar com a cereja do
bolo, a égua começou a flatular. — Campolina! — Gritou e se levantou as pressas, sentindo sua
garganta queimar e seus olhos arderem. — Sua porca! Como peida fedido! Argh!
Valquíria se sentou novamente na pedra e ficou admirando a paz de sua companheira.
Queria ter aquela serenidade para lidar com a vida, mas, a verdade é que estava com a cabeça a
mil por hora. Queria voltar para casa, no entanto, não queria encarar Elis. Tinha a sensação que
seu coração se partiria em pedaços tão pequenos que não poderiam ser colados novamente.
Já estava escuro quando ela montou no animal e voltou. Estranhou quando chegou em sua
casa e a encontrou totalmente escura. Olhou na direção da garagem e não encontrou o carro de
Felipe ali. Logo imaginou que a jovem tinha saído com o rapaz, afinal, para a mulher eles tinham
se entendido. Ela apenas mudou de ideia quando chegou em sua varanda e encontrou a porta
escancarada. Caso Elis tivesse saído, jamais deixaria a casa aberta.
— Elis? — chamou, já dentro da residência, porém, não obteve resposta. — Elis? —
Mais uma vez, gritou pela moça.
Subiu as escadas e entrou no quarto da jovem, encontrando-a deitada. A janela estava
aberta, ventava forte e, mesmo assim, Elis suava. Valquíria colocou uma das mãos sobre a testa
da jovem e a sentiu quente. Observou também que a menina tinha as bochechas rubra e
imediatamente associou à febre. Correu até o andar debaixo e pegou uma bacia com água fria e
um pano branco limpo. Ficou com receio de dar qualquer medicamento para febre, por não saber
a causa, então, optou por compressas. Voltou para o quarto e se posicionou ao lado da moça na
cama. Torceu o pano e colocou sobre a testa, afastando alguns fios loiros do pescoço da garota.
Elis não estava em uma posição que favorecia muito, uma vez que estava deitada de lado
e a veterinária tinha de se virar como dava. Bastou ver a jovem naquela condição que esquecera
tudo de ruim que estava sentindo.
Pouco mais de trinta minutos depois, Elis abriu os olhos lentamente e vislumbrou a
veterinária com as mãos em uma bacia que parecia conter água. A garota sentiu seu peito se
aquecer por ter a mulher perto dela novamente. Pensou ter perdido uma grande amiga, uma da
qual não se imaginava viver sem.
— Oi — Elis disse baixo, mas foi o suficiente para assustar a veterinária.
— Ei, como se sente? — Colocou os objetos no chão e se virou para dar a devida atenção
à outra.
— Bem. Pra que a vasilha? — Apontou para a direção que Valquíria deixou as coisas.
— Você estava com febre. Não sente mais nada? — Colocou a mão sobre a testa da
jovem e continuou: — Já não está mais tão quente.
— Acho que tive insolação — falou tranquilamente. Bergamoto a olhou com o cenho
franzido, curiosa e encucada com o que a jovem disse, como se a encorajasse a prosseguir. —
Fiquei durante muito tempo exposta ao Sol.
— Ah! — Respondeu ao se recordar onde a garota estava à tarde. — Esqueci que estava
com seu namoradinho. Deveria ser um pouco mais sensata e não ficar exposta ao Sol dessa
forma. Eu pedi pra que ele não viesse aqui, Elis — terminou, ressentida, o rosto moldado em
uma carranca raivosa.
— Ele não é meu namoradinho — rebateu de imediato, semicerrando os olhos. — E ele
não veio porque eu quis, me pegou de surpresa aqui.
— E por que ficou tanto tempo no Sol? — questionou, verdadeiramente curiosa.
— Porque... — Os olhos da jovem rapidamente ficaram abarrotado de lágrimas ao se
lembrar das palavras cruéis de Felipe e do assédio que sofrera.
— O que foi? — Bergamoto inquiriu.
— Ele não voltará mais, não se preocupe. — Elis se encolheu, fechando
momentaneamente os olhos.
— Elis, não fique triste por ele. — Valquíria se aproximou lentamente, com o desejo de
abraçá-la. — Não vale a pena e...
— Ele me assediou... — murmurou, tapando o rosto com as mãos por um átimo. — Ele
desejou que minha filha morresse... — concluiu e deixou as lágrimas teimosas escaparem de seus
olhos. — Eu o odeio. O odeio Valquíria!
A veterinária, de fato, sentiu seu peito se partir em pedaços minúsculos que, talvez, fosse
difícil colar. Deitou-se ao lado da garota, mesmo suja, e a puxou para si, como uma concha que
protege sua pérola preciosa.
— Shh, não chora! — Afagou os fios dourados de Elis. — Não acontecerá nada à Isabel.
Eu protegerei vocês duas e não deixarei que mal algum a atinja.
— Promete? — Inquiriu, chorosa.
— Claro, menina boba. Com a minha vida. — Apertou-a contra seu peito e beijou o topo
da sua cabeça. — Você comeu? — arguiu, mudando o assunto.
— Não estava com fome. — Deu um longo suspiro.
— Ah, mas vai comer, sim, senhorita! — ralhou a mais velha.
— Mas, Val, eu não tô com fome — retrucou a jovem Teixeira.
— Lembra do que eu acabei de falar sobre te proteger e a Isabel de todo mal? — Sentou-
se na cama, encarando Elis com seriedade. — Então, sua má alimentação também faz parte.
Anda, vamos logo!
Levantou-se e pegou as coisas do chão, esperando Elis se levantar. A jovem repetiu o
gesto da mais velha e a seguiu até a cozinha no andar debaixo. Sentou-se à mesa e ficou
admirando a veterinária preparar algo para elas comerem.
— Ainda não me disse o motivo de ter ficado no Sol — inquiriu, ainda de costas,
enquanto preparava a refeição.
— Está parecendo a minha mãe — desconversou. Sentia-se envergonhada pelo real
motivo.
— Elis... — Encarou-a com profundidade. — Eu pergunto por que fico realmente
preocupada.
— Eu sei — respondeu meiga, ou tímida. Valquíria não soube identificar.
— Então, me diga, por favor — pediu dulcissimamente, da forma que Elis mais gostava e
mais conhecia de Bergamoto.
A jovem pensou sobre e, mesmo constrangida, decidiu falar a verdade para a mulher.
— Fiquei chorando... — admitiu e apoiou a cabeça no tampo da mesa, vexada.
— Elis, não devia perder seu tempo, no Sol, chorando por aquele verme. — Valquíria
ajeitou os cabelos atrás da orelha, demonstrando enfado em sua expressão.
— Não era só por ele, era por você também — revelou, olhando para o lado na intenção
de não fitar os olhos de Bergamoto.
— Oh! — Parou o que fazia para assimilar as palavras da jovem. — Por... mim? —
Apoiou-se na pia e fitou Elis, tentando entender o que a jovem queria dizer.
— Sim, eu te vi quando o Felipe me agarrou. — Encarou os próprios pés, como se, de
repente, tornassem-se muito interessantes. — Fiquei com tanto medo de você me expulsar, de
não querer mais olhar na minha cara, de ter entendido tudo errado. — Mirou nos olhos da
morena e falou: — Eu gosto tanto de você.
Valquíria não sabia se deixava o alívio tomar seu corpo ou a breve tristeza. Por um lado,
estava aliviada por saber que o beijo não foi consensual, por outro, estava triste por Elis a ver
apenas como uma anfitriã, talvez uma amiga.
— Eu também gosto de você, minha querida. Mais do que imagina — suspirou após ver o
sorriso sincero de Elis e virou para a pia. Mais do que você realmente imagina e mais do que eu
devia, pensou, consternada. — Está pronto!
— E qual será o nosso menu? — Debruçou sobre a mesa e sorriu para a mais velha.
— Sanduíche com o resto do frango assado, queijo fresco e salada — revelou, orgulhosa
de seu feito.
— Ah, queria suco — ditou em tom manhoso, com os olhos que Valquíria não
conseguiria negar.
— Pra quem não estava com fome, hein?! — implicou com uma risadinha. — Tem suco
sim, de manga.
— Se for o que tomamos no almoço, eu e sua mãe acabamos com ele — disse com um
sorriso sapeca nos lábios.
— Ora, mas que danadas! — Ambas soltaram uma risada. — Vou fazer outro.
— De goiaba! — Apressou-se em pedir o sabor que desejava em segredo.
— Não exija muito, mocinha! — Fingiu estar brava, fazendo Elis cair na gargalhada.
— Eu posso! — Elis debruçou sobre a mesa, exibindo um olhar radiante.
— E eu posso saber o porquê? — Fitou a jovem, esperando para ver o que ela diria.
— Sua mãe disse que você tem de me tratar feito uma rainha. — Enfitou-a com um quê
de sarcasmo, rindo mais ainda.
Valquíria revirou os olhos, sorrindo e rebateu:
— Minha mãe tá falando demais. Pelos cotovelos, posso dizer. Mas você terá seu bendito
suco de goiaba, majestade — brincou e foi preparar o refresco.
A moça riu e bateu palmas em excitação. Amava essa tranquilidade que sentia ao lado de
Valquíria, principalmente essa sensação de proteção que ela passava. Bergamoto também
adorava a presença da Elis e de tudo que ela lhe causava, mesmo que sentisse tudo sozinha.
Sentia-se bem e plenamente feliz por ter sua menina sorrindo daquela forma que a desarmava tão
facilmente.
Estava feliz por tudo ser simples entre elas.
Assim estava bom.
Ao menos, por enquanto.

.9.
O OLHAR QUE VALE MAIS QUE PALAVRAS
Valquíria acabara de ajudar uma égua a parir potros gêmeos, o que sempre é um pouco
mais trabalhoso que os partos de um único filhote, e estava completamente suja de terra, suor e
placenta. Mas pouco se importava, conseguira salvar a mamãe e ambos os filhotes e isso bastava.
Tomou uma ducha ali mesmo no vestiário e trajou uma muda de roupa que sempre ficava em seu
armário. Saiu cantarolando e, de carro, rumou para a cidade comprar algumas coisas para Elis.
Mesmo Selina mandando dinheiro para sua filha, a veterinária sempre a presenteava com roupas
e nunca pedia seu dinheiro. Deixava-o para que ela o gastasse como e com o que quisesse.
A verdade é que a mulher sempre arrumava uma desculpa para presentear a jovem e sem
um motivo grandioso, ao menos era o que acreditava. Gostava de ver a reação da moça ao
desembrulhar um presente, que ela sempre fazia questão de mandar empacotar nas embalagens
mais bonitas. Não se importava em perder minutos de sua vida admirando a face rubra e os olhos
brilhantes de Elis, ao ficar lisonjeada por ganhar algo.
Dessa vez, além de roupas, comprou alguns calçados, roupas de cama, produtos de
higiene e vários presentes para a bebê, até mesmo brinquedos que ela demoraria para usar. Aos
poucos, a decoração do quarto de sua hóspede mudava, ficando com um ar mais maternal.
Passou em uma loja de perfumes e comprou um para Elis, cujo aroma lembrava à jovem. Encheu
a traseira da pick-up e, apenas nesse momento, deu-se conta da quantidade de coisas que havia
comprado, achando a coisa mais natural do mundo. Entrou, ligou o aparelho de som e saiu.
Tamborilava os dedos na lataria da janela do carro, seguindo o ritmo da música caipira
que saía do aparelho. Pensava em como as coisas estavam tranquilas nessas duas semanas que se
passaram. Apenas na semana que Felipe esteve na casa de Bergamoto que ambas voltaram a se
chatear. Selina ligou para a menina e, de forma velada, humilhou a filha, fazendo a garota se
sentir culpada pelo rapaz ter ido embora irritado. Valquíria, ao presenciar tal cena, tomou o
celular da mão da jovem e discutiu com a amiga pela primeira vez em anos de amizade. Talvez,
apenas agora, estivesse realmente a conhecendo.
Próxima ao seu sítio, viu sua mãe no quintal de sua própria casa e buzinou. A senhora,
que varria os arredores, olhou na direção da estrada e acenou para a filha, que retribuiu o aceno
para sua genitora. Seguiu cantando até estacionar em sua garagem e sair serelepe colina acima.
— Joca, depois descarrega meu carro, por favor. Pode colocar as coisas na sala mesmo —
pediu, assim que avistou o funcionário puxando Flecha Preta para um banho. — Deixa, eu dou o
banho desse rapaz. — Pegou no arreio do animal e o conduziu para a área de higiene de sua casa.
— Claro, dona Val — respondeu, já se encaminhando para o veículo.
Valquíria prendeu os fios negros e ondulados em um nós feito com o próprio cabelo para
pegar a mangueira e abriu o registro, molhando todo o pelo do animal, que chacoalhou o corpo,
espirrando água na mulher.
— Calma, rapaz! — Gritou, aos risos.
Direcionou a mangueira sobre o dorso dele novamente e jogou mais água no cavalo,
como se o desafiasse, mas, Flecha Preta apenas a olhou e se manteve em seu lugar. Bergamoto
pegou o xampu do equino e começou a esfregar o pelo vistoso e escuro do bicho com capricho.
Assustou-se ao ouvir o animal relinchar e se agitar, já imaginando qual seria o motivo, que logo
se confirmou ao ver Elis ao seu lado. Flecha entregara a menina Teixeira, que estava apoiada na
coluna da varanda, admirando Valquíria em um silêncio reconfortante.
— Estão animados, hein? — Ela falou sorrindo, enquanto acariciava sua barriga de cinco
meses. — Posso ajudar?
— Elis, não acho que seja uma boa ideia — comentou, receosa, seus olhos fixos na
barriga da jovem.
— Por quê? Estou grávida, não doente — respondeu, categórica.
— Ele pode te machucar, dar um coice. Qualquer coisa, não sei — rebateu, nervosa, a
atenção se dividindo entre Elis e o cavalo.
A moça se aproximou da mulher e pegou a esponja que estava em sua mão, acariciando o
rosto da veterinária em seguida, com tamanho carinho que Bergamoto fechou os olhos para
aproveitar seu toque.
— Ele não vai me machucar — dito isso, deu a volta no animal pela frente e fez um
carinho em seu pescoço.
O cavalo esfregou o focinho na menina e agitou o rabo, molhando ainda mais Valquíria,
além de a deixar suja de sabão.
— Muito bonito pra vocês dois — falou, fingindo braveza e jogou água neles.
Bergamoto, incomodada com o tecido da camisa colada em seu corpo, decidiu a retirar,
com o intento de sentir os movimentos menos travados, para dar segmento em sua tarefa. No
instante que seus dedos tocaram o primeiro botão, os olhos curiosos de Elis acompanharam seus
movimentos, analisando cuidadosamente a pele da veterinária conforme era revelada.
Valquíria tinha algumas pintas salpicadas nos seios, onde as pupilas da menina
conseguiam ver, sardas no colo. Na barriga, havia uma pequena cicatriz três dedos abaixo do seio
esquerdo e uma marca de nascença perto de seu umbigo. A filha de Selina guardou cada detalhe
que conseguiu auferir com admiração. Bergamoto era linda e não tinha como negar.
Alheia à esmerada análise de sua hóspede, a morena retirou por completo a camisa e a
arremessou sobre a grama verde, olhando para Elis em seguida. A jovem, nervosa, desviou o
olhar depressa, voltando-o em seguida para a mulher a sua frente. Valquíria estranhou sua
reação, entretanto, afastou qualquer pensamento questionável e sorriu, sendo prontamente
retribuída.
Com muita bagunça, elas terminaram de banhar o bicho. Elis estava toda molhada, com
seu vestido de tecido fino colado ao corpo. Valquíria admirou o corpo da mais nova, vendo o
quanto ela estava bela. Sorriu para a garota, que baixou a cabeça encabulada e devolveu o gesto
timidamente. Soltaram o cavalo no pasto e entraram para, agora, elas se banharem e vestirem
roupas secas.
Valquíria desceu antes da jovem e colocou todas as sacolas em cima dos sofás para que
Elis as visse assim que descesse. Olhou para o seu exagero, com certo orgulho, e foi preparar a
comida enquanto a sua hóspede não saía do banho.
Elis, do alto da escada, já ficou espantada com tantas sacolas e logo imaginou que era
obra da veterinária.
— Valquíria?! Isso é coisa sua, não é? — gritou enquanto descia.
— Eu não tenho nada com isso! — respondeu na mesma altura, um sorriso enorme em
seus lábios.
— Ah! Não? As sacolas vieram voando? — questionou, rindo e meneando a cabeça
negativamente.
— Foi a mam... — Valquíria tentou mentir.
— Nem adianta falar que foi sua mãe — cortou-a, ralhando. Valquíria apareceu na sala
rindo e esboçando falsa inocência em seu rosto. — Sua mãe não é exagerada.
— Ah, Elis. Foram só algumas coisinhas. — Encolheu os ombros, fingindo tristeza.
— Algumas muitas coisinhas — repetiu, com ironia, mordendo levemente o lábio
inferior.
Valquíria revirou os olhos e correu até os pacotes para mostrar os presentes para a jovem.
— Essas aqui são para você: roupas, sapatos, produtos de higiene. — Mostrou quatro
sacolas. — Essas são para a Belinha. — Apontou para seis pacotes.
— Meu Senhor... — Elis pousou a mão sobre a testa.
— Calma, ainda tem as roupas de cama, lanchinhos e isso aqui. — Pegou o pequeno
embrulho quadrado e entregou nas mãos dela. — Esse não é uma coisa para suas necessidades. É
um presente meu — disse, sincera, esperou a reação da jovem.
Elis abriu o presente com cuidado, para não estragar o papel, e sorriu largamente ao ver
que era um perfume. Pegou o frasco e espirrou no pulso para aproveitar da fragrância.
— Nossa! Que cheiro bom! — falou de olhos fechados, deixando Valquíria sorrindo feito
boba.
— Me lembra a você. — A veterinária revelou em um tom quase apaixonado, tendo de
lutar para controlar a sua voz.
— Hm? — Os belíssimos olhos azuis de Elis pousaram nos dela, encabulando-a.
— O cheiro, ele me lembra a você — repetiu, ainda sem pensar. — Você tem um cheiro
bom... — declamou com um sorriso. — Quer dizer, combina com você. — Atrapalhou-se com
seus pensamentos e fala, envergonhando-se no final das contas.
Elis não soube o que responder. Olhou fixamente para a mulher, deixando Valquíria um
pouco incomodada por se sentir desnuda perante à moça. Elis sorriu e cheirou o pulso
novamente, e borrifou o produto em seu pescoço, próximo à sua orelha. Abriu os olhos e fitou
mais uma vez Bergamoto.
— Sinta o cheiro em mim e me diga se combina — pediu, ainda séria, tornando-se um
enigma para a mais velha.
A veterinária não sabia ao certo o que fazer e falar. Estava tentada a sentir o cheiro
misturado ao da pele da garota, porém, temia fazer qualquer coisa impensada, vontades que
vinham assombrando sua psique há algum tempo. No entanto, o que mais a perturbava era não
saber o que Elis queria com aquilo. Certamente, estava pensando besteira e era apenas um pedido
simples, até mesmo bobo, que uma amiga faria à outra e ela estava distorcendo as coisas.
Tentou separar seus pensamentos dos seus surtos e agir com naturalidade e,
principalmente, maturidade. Caminhou, como se sacos de areia estivessem presos em suas
pernas. e se curvou, mais travada que uma máquina sem graxa para lubrificar as juntas. Ainda
um pouco longe, inspirou da forma que dava e sentiu o aroma sutilmente, afastando o tronco de
Elis.
— Combina sim — respondeu, soltando o ar com força, como se não conseguisse
respirar.
— Val, cheira direito — disse e a abraçou, fazendo Valquíria enterrar o nariz em seu
pescoço e puxar o ar com propriedade.
Bergamoto envolveu seus braços nas costas do seu alvo de anelo e a apertou, tornando o
momento ainda mais complicado para si. Inalou o aroma mais uma vez e roçou seu nariz na pele
da mais jovem. Elis sentiu seu corpo se arrepiar com o toque sutil da veterinária e desejou que a
mulher fizesse algo mais, pela primeira vez desde que foi morar ali. Um pequeno incêndio se
instalou na alma da Teixeira, a mente passando a tecer pensamentos impuros que ela teve o
acesso de reprimir.
Quando Valquíria estava prestes a beijar o pescoço irresistível, para ela, de Elis, Isabel
chutou a barriga mãe, despertando a veterinária do seu impulso. Bergamoto desfez o abraço e se
manteve admirando a face corada da mais nova com doçura.
— Combina perfeitamente com você — proferiu, séria, porém, doce. Seu olhar
aparentava estar nublado, até mesmo perdido. Abaixou-se e fez um carinho na barriga de Elis. —
Não combina, meu amor? — Segurou a jovem pela cintura e a puxou sutilmente para beijar na
região e sentir outro chute em resposta. — Ela concorda. — Olhou para Elis, que a admirava
quieta.
Valquíria a achou diferente, mas não quis entrar nesta questão naquele momento. Preferiu
absorver o que estava sentindo e pensando, fazendo a mesma coisa com Elis. Levantou-se e
segurou a jovem pela mão, fazendo um singelo carinho ali.
— Vamos comer. Preciso cuidar de vocês — sorriu e foi retribuída pela garota.
Elis, enquanto observava Valquíria caminhar em sua frente de pijama e cabelos soltos,
percebeu que, muito provavelmente, pudesse se apaixonar por aquela mulher e não achava que
isso fosse errado. Relembrou-se do acesso de luxúria que teve com a proximidade de sua anfitriã
e sentiu as maçãs-do-rosto esquentarem. Riu com o pensamento e agitou a cabeça sutilmente ao
imaginar sua mãe e pai se descabelarem se isso acontecesse.
Era uma pena, pensava Elis, pois, em sua cabeça, Valquíria jamais a veria de tal forma.
Era apenas a amiga de sua mãe e, agora, sua amiga.
A menina mal sabia o quanto seu pensamento estava errado.

.10.
ALMOÇO DE DOMINGO
Dona Lola estava mais do que animada naquele domingo. Fazia tempo que não enchia
sua casa com pessoas amadas e, para comemorar a reconciliação de Valquíria com José,
convidou todos para um almoço. Augusto havia ido até a cidade com o compadre para comprar
algumas coisas que Dolores pediu, enquanto ela preparava a comida com auxílio de sua comadre,
Rosa.
Conversavam sobre diversos assuntos, até entrar em Valquíria.
— Então, você já tinha ciência que isso ia acontecer? — Rosa perguntou, recebendo um
aceno positivo da comadre como resposta. — E não te incomoda ser uma mulher? — Arqueou a
sobrancelha. — E bem mais nova?
— Rosa, por que eu me incomodaria com a felicidade da minha filha? Ela já terá de
enfrentar muitos preconceitos fora da família, aqui, nessa casa ela só receberá apoio e amor. —
Dolores inspirou profundamente, tentando manter a calma. — É o destino dela, o ciclo dela de
vida. Eu, como mãe, quero apenas a felicidade da minha filha e, cá entre nós, Elis é um amor de
menina. — Deu um meio sorriso, concentrada na tarefa de não deixar o alho queimar. — Não
tem como não se encantar por ela. Não deixe as suas ideias do que é certo ou errado te
atrapalharem a ver o que há de bonito na vida, Rosa.
— Você tá certa, comadre. Mas vai ser um pouco complicado pra mim. — A madrinha
de Valquíria cerrou levemente o punho, e, por pouco, não se cortou com a faca que lavava.
— Comece sendo educada e conheça Elis. O resto a vida se encarrega. — Dolores lançou
um olhar meigo para a comadre e tornou se manter completamente focada em sua tarefa.
A mulher concordou com as palavras da anfitriã e continuaram proseado até ouvirem o
barulho de carro chegando. Dona Lola seguiu até a entrada da casa, acompanhada de Rosa, para
receber quem havia chegado. Grande foi a alegria de Dolores ao avistar a filha dando sua mão
para Elis descer do veículo, que era alto, em segurança. Sorriu em satisfação, pois via o amor de
Valquíria em um mínimo detalhe como aquele.
— Olá, minhas meninas! Que bom que já chegaram! — Lola caminhou até elas de braços
abertos.
— Oi, mãe! — Abraçou a senhora e a beijou no rosto. — Oi, dinda! — Caminhou até a
madrinha, que estava mais afastada, e também a envolveu em seus braços.
— Como vai, Elis? E essa mocinha? — Dolores beijou a menina na bochecha e acariciou
sua barriga.
— Vamos muito bem, dona Lola — respondeu, sorrindo. — Ela só chuta muito.
— Normal, querida. Tem bebês que são agitados mesmo — comentou e se aproximou do
ouvido da jovem para cochichar: — Valquíria tem cuidado de você direitinho? — Afastou-se e
aguardou as palavras da menina.
Elis, antes de falar qualquer coisa, olhou para a veterinária e sorriu grandemente, não
somente com os lábios, mas principalmente com os olhos. Dolores percebeu.
— Maravilhosamente bem — respondeu com doçura.
— Muito bom, minha filha. — Afagou o rosto de Elis. — Muito bom! — Deu uma
risadinha. — Vamos, quero te apresentar a madrinha da Val.
A menina concordou e seguiu a senhora até onde se encontravam a veterinária e sua
madrinha, que conversavam amenidades durante todo o tempo. Dolores fez as devidas
apresentações e, de imediato, percebeu que Rosa gostou de Elis.
A prosa estava animada na cozinha, enquanto preparavam a comida. Cantavam junto ao
rádio, gargalhavam e tornavam a conversar. Tempos depois, Augusto chegou com José,
entregando as encomendas para a esposa. Ofereceu ajuda, no entanto, foi devidamente expulso
do cômodo.
Elis estava extasiada no lar dos pais de Valquíria. Em sua casa, onde morava com seus
pais, mal via os dois, pois sempre estavam muito ocupados e quando estava com eles, era sempre
cobrada a cursar Direito pelo pai. Sentia-se sufocada pelo pai e abandonada dos cuidados da
mãe, que sabia do seu sonho de cursar Letras e se tornar escritora, mas se omitia
propositalmente.
Os olhos da jovem cintilaram ao vislumbrar a mesa cheia do que, para ela, parecia ser um
banquete. Feijão tropeiro, salpicão, farofa, porco caipira, arroz à grega e uma salada de encher os
olhos. Sentiu Isabel se remexer em seu ventre, compartilhando de sua alegria e da fome que fazia
seu estômago roncar. Almoçaram animadamente e em abundância, para depois se sentarem na
varanda da casa colonial e conversar. Falaram sobre diversos assuntos e, quando o tema se
voltou para o futuro, o foco se virou para Elis.
— Pensa em fazer algo, Elis? — perguntou Augusto, pousando as mãos sobre os joelhos.
— O senhor diz academicamente? — O homem confirmou que sim. — Penso sim. Quero
cursar Letras, voltada para Literatura. Antes meu sonho era ser uma grande autora, mas agora eu
vejo que almejo outras coisas.
— Que tipo de coisas? — Valquíria perguntou, verdadeiramente curiosa.
— Quero ser professora. — Recostou as costas na cadeira de balanço que se assentava.
— Ainda poderei escrever minhas histórias, mas eu quero ser aquela que vai mostrar o mundo de
uma forma diferente para as crianças.
— Posso perguntar o motivo de querer seguir uma carreira que está tão desvalorizada e
tão pouco reconhecida? — Questionou, novamente, o pai de Valquíria.
— Porque, para que qualquer pessoa tenha sua profissão na vida, Seu Augusto, precisam
passar por seus professores. — Pousou os azulíssimos olhos no homem. — Sem eles, pessoa
alguma teria uma profissão ou seria alguém na vida. Enquanto houver alguém com o sonho de
aprender, estarei disposta a ensinar — concluiu, enquanto se agitava na cadeira de balanço.
Valquíria se sentiu orgulhosa da moça e por sua resposta. Elis realmente era uma garota
maravilhosa. Nesse momento, ela pôde ver que, apesar de similaridades com Ernesto, Elis tinha
sua singularidade e seus anseios próprios. Ficou convicta que se apaixonou por ela e não pela
sombra do marido. Olhou para seu padrinho e sorriu cumplicemente para ele, que retribuiu
carinhosamente, entendendo o gesto da afilhada.
— É tão bom ver que alguém ainda deseja seguir uma profissão tão bonita — respondeu
Rosa, com um meio sorriso. — Sabia que Dolores era professora?
— Não! — Elis levou a mão até a boca, surpresa. — Mentira?! Dona Lola, por que não
me contou? — inquiriu, levando o olhar atônito para a mãe de Valquíria.
— Ah, menina, isso faz tanto tempo. — A mulher pendeu a cabeça para trás, fechando os
olhos, com um ar de nostalgia. — Já faz anos que sou aposentada.
— E dava aulas de quê? — Elis perguntou, interessada, apoiando o queixo em uma das
mãos.
— Matemática. — Entrelaçou os dedos das mãos. — Me comove muito ver uma pessoa
tão jovem quanto você com um sonho tão bonito. Não deixe que nada tire esse brilho de você e
muito menos que desmereçam sua profissão — disse, serena, e um tanto emocionada por escutar
de uma mulher tão nova algo tão bonito sobre sua profissão.
Elis se levantou e a abraçou. Sentou-se ao lado da mulher e recostou sua cabeça no
ombro direito de Lola, recebendo carinhos da mulher em seus fios dourados.
— A senhora é admirável, dona Lola — declarou, com os olhos fechados, apenas
apreciando as carícias da mais velha. — Um exemplo.
A mulher ficou ainda mais mexida e beijou a bochecha da menina. Olhou para Rosa, que
a mirava com ternura. Parecia que a mulher começava a entender as razões de Dolores gostar
tanto de Elis e os motivos pela qual Valquíria se apaixonou por ela.
— Val, por que não canta pra nós? Faz anos que eu não te escuto cantar e sinto muita
falta disso. — Pediu José, em um tom saudoso, coçando levemente a cabeça.
— Ah, padrinho, já estou tão enferrujada. — Valquíria encolheu os ombros, vexada.
— Que nada! — A voz de Elis surgiu na conversa. — Vamos, por favor. Também quero
te ouvir cantar igual a um passarinho — A jovem reforçou o pedido do homem, recebendo, de
Valquíria, um olhar que transbordava candura.
— Certo, mas não me culpe pela desafinação. — Deu de ombros, mas ria. — Pai, ainda
tem aquela viola? — Inquiriu enquanto se levantava.
— Tenho sim. — O anfitrião assentiu com a cabeça. — Tá lá no quarto que era seu.
Dito isso, a veterinária se retirou e voltou minutos depois com o instrumento nas mãos.
Sentou-se e perdeu mais algum tempo afinando a viola, para que não fizesse tão feio.
— Querem alguma música em específico? — inquiriu, com os olhos voltados para o
instrumento.
— Canta a do Chico Mineiro[2]? — Pediu Rosa carinhosamente.
Valquíria concordou e começou a dedilhar as notas da música nas cordas de aço.
Conforme a mulher cantava, as pessoas passaram a acompanhá-la, menos Elis, que não conhecia
a música. O que a menina pôde tirar da letra foi que ela era muito triste, mas gostou, apesar de
não ser seu gênero favorito.
Seguiram cantando várias músicas, conforme pediam para Valquíria tocar, até o
momento que sua mãe pediu para que ela tocasse algo que queria. Alguma canção que ela
gostasse ou algo que estivesse dentro do coração. Valquíria sorriu, pois sabia o lugar onde sua
mãe queria chegar e, apesar disso, fez o que ela pedira. Dedilhou os acordes e se pôs a cantar:
— Hoje eu sonhei que ela voltava e vinha muito mais que linda. À meia luz me acordava
cheirando à flor de tangerina. Eu lhe amava e mergulhava no seu olhar de onça menina. E
docemente me afogava em suas águas cristalinas. Eu lhe amava e mergulhava no seu olhar de
onça menina. E docemente me afogava em suas águas cristalinas. Em suas águas...
Elis conhecia a música de Alceu Valença, cantando a segunda parte junto da veterinária:
— Depois sonhei que ela voltava e dessa vez bem mais que linda. À meia luz me afagava
e sua pele era tão fina. Quando acordei meu bem chegava. Seria onça ou menina? Chegar assim
de madrugada cheirando à flor de tangerina. Quando acordei meu bem chegava. Seria onça ou
menina? Chegar assim de madrugada cheirando a flor de tangerina. Cheirando a flor...
Repetiram mais uma vez a segunda parte e Valquíria encerrou a música diminuindo o
tom das notas, ao passo que assobiava no ritmo da música. As pessoas presentes acompanharam
o dueto das duas admirados. Elis, que demonstrava ser tímida, surpreendeu a todos com sua
desenvoltura. Tinha a voz contralto, combinado com a doçura da voz de Bergamoto.
Valquíria agradeceu a participação da moça e aos elogios de todos. Olhou para o relógio,
após verificar que o Sol estava “baixo”, constatando que já estava tarde e que Elis precisava
descansar, por conta da gravidez.
— Pessoal, foi ótimo passar o dia com vocês, mas preciso levar essa mocinha para
descansar e tomar suas vitaminas — manifestou-se, ouvindo muitos “ainda é cedo” por parte dos
seus pais. — Outro dia voltamos, mamãe. Elis precisa mesmo descansar — respondeu, enquanto
abraçava a senhora.
— Continue cuidado dela assim. É lindo de se ver — Dolores sussurrou no ouvido da
filha, dando palmadinhas carinhosas em seu ombro.
Valquíria se sentiu encabulada com as palavras da mãe, pois ainda não se acostumara
com essa paixão e o fato de sua mãe apoiá-la. Despediram-se de todos e partiram para casa,
deixando uma ótima impressão nos padrinhos de Valquíria. Principalmente em Rosa, que mudou
seu ponto de vista e agora a entendia, pois, encantou-se com Elis.
Todos concordavam mutuamente com Dolores, sem nem mesmo ouvir o que a mulher
disse para a filha: era lindo de se ver a forma que Valquíria cuidava de Elis.
Era lindo de se ver o carinho crescente entre elas.

.11.
ATOS QUE FRUSTRAM UMA MENTE ANSIOSA
Valquíria estava mudada e isso era perceptível para qualquer um em seu trabalho.
Henrique e Cássia já tinham percebido que a mulher estava diferente, mais feliz que o normal e
com um brilho que a mulher havia perdido há bastante tempo. Desconfiavam do que se tratava,
porém, não tinham coragem de perguntar diretamente para ela. A veterinária era uma mulher
muito tranquila, todavia, era muito discreta sobre sua vida pessoal.
Os veterinários estavam ocupados com suas tarefas em seus consultórios, completamente
concentrados. Cássia fazia relatórios sobre a evolução dos animais que necessitavam de
fisioterapia, Henrique analisava os exames de uma égua recém fecundada e Valquíria analisava
alguns exames referente à saúde dos animais.
— Dona Val, tá tudo pronto do jeitim que a senhora pediu — disse um dos empregados
da porta, atraindo a atenção de todos.
Henrique e Cássia olharam para a mulher desconfiados, pois, até onde sabiam, a mulher
não tinha compromisso algum fora do consultório.
— Obrigada, Valtinho — respondeu, sem olhar para o homem, mantendo seus olhos aos
papéis em suas mãos. — Diga que já vou. — Fitou-o ajeitando o par de óculos de armação
quadrada no rosto.
O homem respondeu com um gesticular da cabeça e se retirou. Bergamoto ainda se
mantinha atenta à sua atividade, com intuito de terminá-la rápido. Seus companheiros de trabalho
a olhavam curiosos, esperando uma explicação por parte da mulher. Percebendo que isso não
aconteceria, Cássia tomou à frente e se manifestou:
— Não vai contar o segredinho? — Questionou, irônica.
— Hm? — Valquíria a olhou enigmaticamente. — Que segredinho? — Largou os
exames e apoiou o braço no encosto da cadeira para dar atenção a amiga.
— Valtinho entra, fala que tá tudo pronto e não tem segredo? O que a senhora vai
aprontar, dona Valquíria? — A mulher insistiu, movendo a cabeça seguidas vezes.
— Ah, isso! Vou voltar a adestrar — falou calmamente e se voltou para a sua mesa.
Cássia e Henrique se entreolharam assustados. Desde que seu marido havia morrido,
Valquíria não montava em um animal para adestrá-lo. Deixou o que Ernesto a ensinou para trás e
disse nunca mais subir em um animal para tais fins novamente. Bergamoto não tinha feito tal
tarefa profissionalmente, apenas acompanhada do marido, que a ensinava. Três anos após a
morte de Ernesto, a mulher ainda tentara, mas seu corpo travou e não conseguiu fazer nada, pois
apenas se recordava que fora assim que seu marido havia morrido.
— Tem certeza disso? — Henrique perguntou, com uma das sobrancelhas arqueadas.
— E por que não teria? — Olhou para o homem e sorriu, mostrando que estava convicta
de suas palavras. — Terminei aqui. Vou colocar minha roupa de montaria e vou para o pátio. —
Saiu em passos ligeiros, sem nem mesmo dar tempo para os dois retrucarem.
Ambos se olharam e sorriram depois.

Elis estava entediada na casa de Valquíria. Terminara seu livro e estava com preguiça de
ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, seu novo escolhido. Colocou uma roupa leve e protegeu
sua cabeça com um bonito chapéu de palha. Calçou um sapato confortável e saiu da casa para
procurar algum funcionário ali perto. Pediu que selassem Flecha Preta para dar uma volta,
ignorando a barriga protuberante de seis meses.
Subiu em uma escadinha e teve auxílio do rapaz para subir no cavalo.
— Cuidado, patroinha — o moço recomendou em um tom cauteloso.
Elis achou engraçada a forma que ele a chamara, pois não era sua patroa, apenas uma
hóspede na moradia de Valquíria. Sorriu e agradeceu, saindo em seguida. Não tinha destino
certo. Pensou em ir até a casa de dona Lola, mas acabou seguindo no rumo da clínica de
Valquíria. Por onde passava, escutava recomendações das pessoas para tomar cuidado por estar
grávida.
— Que chatice, Flecha. Me tratam como uma pessoa inválida — murmurou e o cavalo
relinchou. — Ainda bem que alguém aqui concorda comigo — comentou, sorrindo, e acariciou o
pescoço do animal.
Vinte minutos após ter ingressado na estrada, Elis chegou ao centro veterinário.
Henrique, que a viu chegando, ajudou-a a apear do equino e entregou o arreio na mão de um
jovem que trabalhava ali.
— É muito bom te ver, mas Val vai te matar ao descobrir que você veio a cavalo. — O
homem meneou negativamente com a cabeça.
— Já fiz mesmo, de nada adianta brigar depois. — Elis deu de ombros, revirando
levemente os olhos.
Henrique gargalhou, atraindo a atenção de Cássia.
— Que farra é essa? — Perguntou da porta, pousando a mão na cintura. — Elis! —
Abraçou a jovem e fez um carinho em sua barriga. — Quem te trouxe?
— Nem queira saber como ela veio — Henrique se adiantou e a mulher agitou sua cabeça
em negação.
Elis riu dos dois, mas seus olhos buscavam incessantemente por Valquíria que, até aquele
momento, ainda não tinha aparecido ali.
— Ela não está aqui — proferiu Cássia, fazendo a moça a olhar duvidosamente. — Está
no pátio adestrando cavalos. Eu te levo até lá. — Ergueu uma das mãos na direção do loiro. —
Vem, Rick?
— Não vai dar, tenho coisas para resolver aqui ainda. — Henrique soltou o ar em uma
leve bufada. — Vão sem mim.
— Tudo bem. Vamos? — Elis concordou e seguiu a veterinária.
Conversavam sobre a gestação da menina. Cássia, muito curiosa, quis saber de tudo,
entretanto, Elis parou de escutar ao presenciar Valquíria em cima de um cavalo que empinava,
segurando o arreio com uma das mãos e na outra uma vara-guia. A menina ficou pálida com a
situação e temeu que Bergamoto caísse e se machucasse, seu medo era tão grande que passou a
suar frio ao ponto de ficar gelada.
Cássia percebeu a aflição da menina e tratou de a tranquilizar:
— Ela é muito boa nisso. — Levou uma das mãos até o rosto de Elis, afagando
levemente. — Pode ficar calma.
— Até mesmo quem é muito bom, pode sofrer um acidente — choramingou, sem nem
mesmo olhar para a mulher.
A resposta da menina fez a mulher refletir e instantaneamente se lembrar de Ernesto, que
era muito bom em seu ofício e morreu justamente fazendo o que era muito bom. Colocou sua
mão no ombro de Elis e fez um breve carinho. A jovem aproveitou do ato meigo de Cássia e
suspirou, buscando se acalmar.
— Ela está bem. Aproveite e a admire — disse, com certo tom de provocação, fazendo as
bochechas de Elis corarem.
Valquíria conseguiu domar o animal e galopou com ele pela área, parando abruptamente
para testar os comandos do cavalo. Desceu e o chamou até ela, mas o equino se recusava
veemente. Bastou mostrar uma cenoura para o bicho dar alguns passos. Pegou sua vara-guia e
deu três toques na pata dianteira do cavalo, que dobrou seu joelho e esticou a outra, fazendo uma
reverência para a veterinária. Satisfeita, Bergamoto deu a cenoura para o animal e fez um carinho
em seu focinho.
— Bravo! — gritou Cássia, fazendo a veterinária rolar os olhos e sorrir.
Nesse instante, viu Elis ao lado da amiga. Ficou feliz por vê-la ali, mas logo se
questionou como a sua hóspede tinha chegado na clínica. Prevendo a resposta da jovem,
caminhou até onde elas estavam e se virou para a sua, em segredo, adorada.
— Me diz que papai te trouxe aqui — pediu, ignorando a presença de Cássia. Como a
moça se manteve calada, Valquíria se irritou. — Não acredito que veio a cavalo. Ficou maluca?
— exasperou-se, a feição rígida.
— Calma, Val. — Cássia interveio, pondo-se entre as duas. — Não grita com ela, não é
pra tanto.
— Como não? — frustrou-se Valquíria, agarrando os cabelos. — E se ele tropeça? Dá
um solavanco e ela bate a barriga ou se depara com uma cobra e se assusta e... — Prendeu a
respiração, terrivelmente ansiosa.
— Valquíria! Chega! — Cássia disse mais firme, enrugando a testa.
A veterinária percebeu que estava exagerando e assustando Elis com seu comportamento.
Respirou fundo, buscando se tranquilizar para não falar mais nada que piorasse a situação.
Elevou seus olhos para a jovem e torceu os lábios para o lado, agitando a cabeça negativamente.
— Você está bem? — Inquiriu com muito custo.
— Sim. Ótima! — Elis falou, com o nariz empinado.
— Elis, me prometa que não fará esse tipo de loucura novamente. — Valquíria baixou os
olhos, que cintilavam, encarando os próprios pés.
— Desculpe. — Elis encolheu os ombros. —Eu estava entediada em casa e com saudades
de você. É ruim quando você não está lá — respondeu, sincera, desarmando completamente a
veterinária.
— Ô, menina, era só me ligar que eu te buscava. — Abraçou-a e a beijou no rosto.
— Não queria incomodar. — A jovem recolheu os cílios, apreciando as doses de calor
que o contato com Valquíria espalhava em seu corpo.
— Você não me incomoda, mas me mata de preocupação. — Bergamoto se atinou para o
que acreditou ser uma demonstração de afeto excessiva, afastando-se quase de supetão.
Sua atitude chamou a atenção tanto de Elis, quanto de Cássia, que a miraram com
desconfiança.
As duas seguiram conversando no sentido dos consultórios, sendo seguidas por Cássia. A
mulher prestava muita atenção nelas e ficou se perguntando se Valquíria e Elis estavam de
namoro às escondidas, pois era essa impressão que passavam. Apesar de assistir Elis revirar os
olhos enquanto a sua chefe lhe dava um sermão, viu muito amor envolvido. Um cuidado que não
presenciava há muito tempo, principalmente por parte de Valquíria.
— Sabiam que vocês ficam lindas juntas? — questionou sem muita preocupação,
chamando a atenção das duas.
— Como assim? — Valquíria perguntou soltando um riso nervoso e Elis olhava de uma
para outra sem entender muito bem o que acontecia.
— Nada, só ficam bem juntas — passou por elas, certa de suas palavras e confiante que
não precisava explicar para a amiga do que se tratava.
A moça deu um sorriso de lado e se aproximou ainda mais da veterinária para lhe fazer
um carinho no rosto. Bergamoto repousou suas mãos na cintura da loirinha, acima da barriga e
fechou os olhos para apreciar o contato.
— Obrigada por cuidar de mim — Elis disse, sincera, novamente inebriada com a
proximidade da mais velha.
Levou seus lábios até Valquíria e beijou-a na maçã-do-rosto enquanto sua mão fazia
carinho nos fios negros da veterinária. Valquíria respirou profundamente, buscando forças para
não ceder aos seus desejos. Encostou sua testa à de Elis e levou suas mãos até os fios loiros da
nuca da jovem.
— Não me agradeça, — segredou, num fio de voz. — Faço por que gosto de cuidar de
você — abriu os olhos e fitou os azuis de Elis. — Você é muito importante para mim — deslizou
o polegar na tez alva da moça até seu pescoço — minha menina — concluiu e se aproximou,
lentamente, de Elis com as pálpebras unidas, o coração troando dentro do peito.
A jovem repetiu o gesto e também fechou os seus. Seu corpo vibrava com a tensão que as
envolvia, deixando-a ansiosa pelo desfecho daquela situação. Sentiu os lábios de Valquíria em
sua testa, em um beijo demorado e carregado de sentimentos que jaziam guardados no peito da
veterinária e que Elis sequer desconfiava. Bergamoto se afastou e sorriu, timidamente, para a
jovem, recebendo o mesmo gesto em resposta. Deram-se as mãos e seguiram para os
consultórios, ambas com sua confusão particular, imersas em seu próprio silêncio paradoxal, pois
este dizia muitas palavras.
Valquíria se praguejava por ser covarde demais e Elis se sentia frustrada por esperar mais
do que recebeu da veterinária.
.12.
QUANDO OS ATOS FALAM MAIS QUE PALAVRAS
O aniversário de Elis se aproximava e apenas isso foi o suficiente para fazer Valquíria
perder noites de sono arquitetando o que faria, posto que queria dar a ela um dia mais que
especial. Para Bergamoto, a pulcritude de Elis aumentava a cada dia, feito uma Afrodite coroada,
que, com a bela barriga de quase sete meses, gerava o seu próprio Eros; era cada vez mais
dispendiosa a tarefa de manter os seus anseios enclausurados dentro de si. Por outro lado, a
jovem via no espelho o exato oposto que Valquíria, sentindo-se horrenda e a anfitriã queria a
mostrar o quanto estava errada, preparando uma festa surpresa, mesmo com Elis não desejando
comemoração.
A veterinária acordou cedo no tão esperado dia e, com a ajuda de sua mãe e Cássia,
preparam uma pequena festa para aquela sexta-feira que seria de Lua cheia. Quando Elis
acordou, Valquíria a fez se arrumar para sair para tomar café fora com o intuito de tirá-la de
dentro de casa. Passearam pelo centro da cidade, comeram em uma quitanda, que ficava na
esquina principal, e compraram alguns presentes para a aniversariante.
— Estou ficando cansada — Elis comentou por volta das quinze horas.
— Quer ir para casa? Podemos ir a outro lugar que você queira. — Valquíria pôs as mãos
no bolso e tentou protelar um pouco mais fora de casa.
Elis pareceu pensar por alguns instantes, olhou para Valquíria sorrindo e disse:
— Quero voltar naquela cachoeira. — Seus olhos cerúleos cintilaram e ela mostrou um
sorriso tímido.
— Tem certeza? — A mais velha arqueou a sobrancelha, enfitando Elis com atenção.
— Tenho sim. — Meneou a cabeça positivamente. — Vamos comprar algum lanchinho e
fazemos um piquenique lá. Tudo bem para você?
— Claro! — Valquíria exclamou com um sorriso. — Aproveitamos e compramos um
pedaço de tecido pra colocarmos no chão e algumas almofadas pra você, mocinha. — Apertou o
nariz de Elis, que não gostou muito do gesto. Valquíria apenas sorriu da careta que ela fez.
Uma hora depois Valquíria estacionou o carro o mais próximo que conseguiu chegar e
seguiu andando com Elis por uns cinco minutos, arrumou tudo e se sentou no chão.
— Não vai se sentar? — Perguntou, ao ver a moça ainda de pé.
— Vou sim, aqui na pedra por enquanto. — As belíssimas írises azuis recaíam sobre a
veterinária. — Quero ouvir o som da água caindo, porque esse barulho me tranquiliza.
Valquíria sorriu e se levantou, caminhou até uma árvore que ficava perto e sacou seu
canivete para cortar algo que estava preso no tronco acinzentado. Elis a olhava com curiosidade,
realmente interessada em descobrir o que ela aprontava. A veterinária retornou com um sorriso
travesso e as mãos para trás, deixando a jovem ainda mais encucada, tamanha era sua
curiosidade.
Elis, não se aguentando, perguntou:
— O que tanto apronta? — Cerrou o cenho, com os braços cruzados sobre o peito.
— Eu? — Simulou inocência, exibindo um olhar dúbio.
— Não, a rainha de Sabá! — Revirou os olhos. — Óbvio que é você. — Sorriu para
diminuir a intensidade da resposta atravessada.
— Feliz aniversário! — Falou ao estender a mão com um ramo de orquídea na mão.
— São lindas! — Pegou o ramalhete, ornado de delicadas e pequenas flores amarelas. —
Obrigada, pensei que não tivesse se lembrado — Encolheu os ombros, suspirando com
profundidade.
— Como não? — Valquíria pousou as mãos na cintura. — Desde que você acordou que
estou te mimando. — Exibiu as mãos espalmadas em tom de obviedade.
— Você faz isso normalmente já. — Elis, levemente entretida pelas flores, murmurou. —
Pensei que era mais um surto compulsivo seu por comprar coisas para mim, ou fazer minhas
vontades. — Finalizou com um risinho.
— Eu não faço suas vontades. — Valquíria moveu a cabeça em negação, estufando
levemente o peito. — Compro o necessário.
— Ah, mudou o nome? Exagero mesmo — A jovem retrucou, enquanto mirava
profundamente a mais velha.
— Que seja! — Deu de ombros, contrariada. — Quer ir embora? — Valquíria
definitivamente perguntou por educação, pois seu verdadeiro desejo era que a garota ficasse ali
um pouco mais.
— Na verdade, quero entrar na cachoeira. — Ajeitou-se na pedra, ditando de forma
sonhadora.
— Elis, eu não sei se... — A veterinária ergueu as mãos, gesticulando levemente.
— Entra comigo que seus temores serão resolvidos — disse, antes que a mulher colocasse
algum empecilho. — Me ajuda aqui, por favor? — solicitou, enquanto tentava tirar seu traje.
— Ok. — Deu-se por vencida, sem fazer muito esforço, pois, para ela, dizer não para a
jovem era um suplício. — Vem cá, eu te ajudo a tirar seu vestido.
Fez a moça erguer os braços e puxou o vestido para cima por completo, deixando Elis
vestida com um conjunto de lingerie azul-bebê. Foi inevitável para Bergamoto admirar o corpo
da menina e pensar no quanto ela estava encantadora, no entanto, sentiu-se suja por nutrir tais
pensamentos com ela grávida. Desviou a atenção de sua psique e retirou a própria roupa, ficando
com suas roupas de baixo, que eram pretas e rendadas, para entrar na água e ajudar Elis a entrar.
Segurou a mão da garota e agarrou sua cintura, sustentando-a para não escorregar e cair.
A menina aproveitou a calmaria do lugar e relaxou, usufruindo a força benéfica da água
para limpar suas energias, enquanto nadava tranquilamente, sendo velada por Bergamoto o
tempo todo. Certo momento, Elis decidiu ficar debaixo da queda d’água, mas acabou
escorregando em uma pedra. Por sorte, Valquíria estava perto e a segurou firme, evitando que ela
caísse e se ferisse.
— Obrigada — Fechou os olhos, pousando a cabeça em seu peito, ainda nos braços da
mais velha. — Mais uma vez você me salvando.
— E sempre o farei, só tome mais cuidado. — Valquíria depositou um beijo em sua testa.
— Me ajude a cuidar de você — repreendeu-a serenamente, o coração inflado pela paixão que
tentava reprimir.
— Tudo bem, vou tentar — respondeu, elevando sua mão até o rosto da mais velha e lhe
fez um carinho, trazendo o rosto de Valquíria para perto. Deixou um beijo na bochecha da
veterinária e sussurrou, enquanto acariciava a nuca da mulher: — Obrigada por ser maravilhosa!
— Envolveu seus braços no pescoço da mais velha e a abraçou, apertando-a contra si.
Valquíria mantinha seus olhos fechados e sua respiração densa, todos os músculos do
corpo jaziam feito pedra. Estava a todo custo tentando colocar um pingo de juízo em sua cabeça,
mas seu corpo agia por conta própria e não respondia aos seus pensamentos, apenas aos seus
desejos. Apertou a moça contra seu corpo e roçou seus lábios próximo à orelha de Elis, deixando
um beijo ali. A garota suspirou, mas se manteve imóvel, apreciando os cuidados de Bergamoto
para com ela. Uma nova dose de luxúria percorreu as veias de Elis, instalando-se no cérebro que
já não funcionava direito, pois apenas o calor do corpo da veterinária era o suficiente para
incendiá-la por inteiro.
A veterinária, agora, deixou um beijo na maçã-do-rosto corada da menina e, por mais que
julgasse ser errado, seu anelo berrava dentro de si, conduzindo-a para aquela insanidade. Colou
sua testa a de Elis e a segurou pelo rosto com as duas mãos. Não podia ser loucura de sua cabeça
a moça estar tão entregue. Era impossível estar tão errada quanto a isso. Fechou os olhos e roçou
os narizes um no outro e, dando-se conta que havia embarcado em um caminho sem volta,
aproximou sua boca dos lábios rosados de Elis. Encostou-os levemente, sentindo o hálito quente
da jovem se chocar contra o seu, beijando-a e demonstrando toda sua paixão.
Elis se sentia nas nuvens por se dar conta que estava completamente errada sobre
Valquíria, pois muitas vezes acreditou que seu desejo era impuro e a mulher mais velha apenas a
via como uma menina. Manteve seus braços no pescoço da veterinária e a deixou conduzir o
beijo, gemendo sutilmente durante o ato. Longe desse tipo de contato por meses, e com o corpo
abarrotado de hormônios, fez o corpo de Elis reagir imediatamente, demonstrando sinais da
tórrida luxúria que a presença de Valquíria causava em seu âmago.
Os sons emitidos pela garganta de Elis estavam mexendo com a libido de Valquíria, que
há anos se mantinha casta. Desceu as mãos do rosto da garota e as deslizou pela lateral dos seios
crescidos e sensíveis de Elis, apertando abaixo deles para descarregar a tensão. Pressionou as
coxas uma na outra, no intento de aliviar o constante latejar de sua intimidade. Elis, por sua vez,
enleou-se ainda mais nos braços da mais velha, roçando sua vulva pedinte em um de seus
joelhos.
— Não faz isso comigo — Valquíria pediu, rogando mais para si que para a menina.
— Isso o quê, Valquíria? — Perguntou, ofegante, oscilando dissimuladamente seus
quadris contra a perna dela.
— Me provocar. — Deu um suspiro. Todo o seu redor desaparecera e apenas Elis existia,
a quentura de sua vulva implorando toque a arrastando para o abismo da loucura. — Não me
provoque.
Elis nada disse, apenas puxou a mulher para mais um beijo, enquanto suas mãos
exploravam cada pedaço de pele exposta da mais velha. Valquíria teve de fazer muito esforço
para se separar da jovem ao perceber o dia acabando. Seria perigoso ficar ali e ainda tinha a festa
de aniversário de Elis.
— Precisamos ir — declarou num fio de voz. — É perigoso ficar aqui depois de
escurecer. — Afastou seu corpo a uma distância segura de Elis, inspirando profundamente para
recobrar o juízo. — Vamos?
A moça, relutante, aceitou com um gesticular de cabeça e saiu seguindo Valquíria. Não
tocaram no assunto, mas ambas estavam confortáveis com o que havia acontecido, exceto por
uma situação: a jovem Elis queria mais, a pele ainda fervilhava e a vulva se banhava no próprio
mel do deleite, suplicando por sua anfitriã. Seu corpo pedia por mais de Valquíria da mesma
forma que o da veterinária clamava pelo dela, mas teria de ficar para depois. Recolheram as
coisas e caminharam até o carro e fizeram a viagem em silêncio, praticamente petrificadas.
No meio do caminho, Valquíria inventou uma desculpa sobre precisar ver seu pai e foi
para lá, pois, para ela, a presença de outras pessoas era a melhor solução naquele momento, já
que não poderiam mais perder tempo. E, por isso, pediu para Elis se banhar ali na casa de seus
pais, para não ficar muito tempo com as roupas molhadas. Bergamoto aproveitou o banho da
menina para tomar o seu, no banheiro que ficava mais ao fundo, e se trocar, ficando pronta. Dona
Lola a enfitou com um ar de desconfiança, porém nada disse.
— Oh, também se banhou — Elis constatou, ao ver Valquíria conversando com seu pai
na varanda.
— Claro, achou mesmo que eu ficaria molhada? — Brincou e a jovem apenas riu.
— Já terminou os assuntos com seu pai? — inquiriu, enquanto terminava de secar os
cabelos, tentando não demonstrar frustração, pois acreditou que finalizariam o que haviam
começado na cachoeira em um banho quente na casa de Valquíria.
— Já sim! — Assentiu com um sorriso. — Podemos ir se você quiser — sugeriu e Elis
concordou.
— Antes de irem, tenho algo pra você, Elis — pronunciou-se o Seu Augusto e pegou uma
pequena caixa que estava em um banco ao seu lado. — Tome, foi da avó de Val e agora é seu. —
Ergueu o artefato de madeira para a jovem. — Feliz aniversário!
Elis pegou a caixa e a abriu, curiosa, mesmo se questionando se deveria aceitar ou não.
Quando abriu, deparou-se com um lindo relicário, ornado de prata envelhecida com um casal de
pássaros entalhados em relevo.
— Não posso aceitar. — Elis pousou os olhos azuis em Augusto. — É de família e...
— Você é da família, menina — respondeu o pai de Valquíria, sorrindo com os olhos. —
É seu!
— Obrigada — Comovida com as palavras do homem, seus olhos abrigaram novas
lágrimas e ela o abraçou.
— Estou começando a ficar com inveja desse abraço — Bergamoto ditou em um tom
divertido, cerrando os olhos a fim de simular chateação. — Precisamos ir, querida.
— Tudo bem, ciumenta. — Permitiu-se rir de Valquíria, esquecendo que ansiava chorar.
— Tchau, seu Augusto. Eu amei o presente. — Despediu-se do homem e foi para o automóvel
com Valquíria.
Como a Pick-up era um carro alto, a veterinária ajudava a jovem a subir e se sentar, por
essa razão, acompanhou Elis até o lado do carona. Antes que ela abrisse a porta, a garota de
cabelos dourados a virou e a puxou para mais um beijo, que foi prontamente correspondido. Elis
distribuiu mais alguns gemidos para Valquíria, que acreditava ser incapaz de respirar naquele
instante. Um milhão de supernovas explodiu em sua alma e a paixão ferveu seu sangue.
— Só pra você não titubear depois — Elis exibiu um sorriso voluptuoso. — Agora, me
ajude a subir, por favor. — Para a surpresa da veterinária, a expressão da jovem foi de luxuriosa
a inocente em menos de um segundo.
Completamente transtornada, ela fez o que a moça solicitou. Entrou no carro e deu
partida, maquinando em sua mente sem parar. Lembrou-se das palavras de seu padrinho, que lhe
disse para ter coragem de ser feliz, entendendo o que ele queria dizer naquele dia. Seguiu
dirigindo até sua casa em silêncio, a mente trabalhando em mil iniquidades que desejava praticar
com a sua hóspede, enquanto Elis mantinha seus olhos fixos à janela, como da primeira vez que
andaram de carro juntas, no dia que Valquíria pegou a menina na rodoviária.
— Se arrepende do que fez? — Elis perguntou, ainda olhando a paisagem, um pouco
descontente por acreditar que Valquíria fugira dela ao ir para a casa de seus pais.
— Elis, é complicado. — A mulher coçou a cabeça, premendo firme o volante para
disfarçar o tremor de suas mãos.
— Não foi isso que te perguntei. — Ergueu a cabeça de forma altiva. — Se arrepende?
— Não. — Valquíria manteve os olhos fixos na estrada. — Eu não me arrependo de nada
— respondeu, após respirar fundo para tomar a coragem necessária.
— Eu também não — confessou, aproveitando para pousar sua mão sobre a coxa da
veterinária. — Para falar a verdade, eu gostei muito — disse num risinho, atormentada pela
chama que a consumia. O desejo de Elis, naquele instante, era ordenar que a mais velha parasse o
carro no acostamento e implorar que a tomasse com sua.
— Eu também — Valquíria concordou, sussurrando, enquanto estacionava, como se
revelasse um segredo. Desceu o olhar até a mão da jovem em sua perna e nada fez, sempre
focando na festa de aniversário que aguardava para não ceder às suas ânsias. — Chegamos. —
Suspirou, verdadeiramente aliviada. — Elis, depois precisaremos conversar. — Mirou a menina
nos olhos e aguardou sua resposta.
— Valquíria, sendo muito sincera, quero fazer muitas coisas com você e a última delas é
conversar sobre esses beijos — Ainda com os dedos sobre a coxa da mais velha, apertou-a
levemente, exibindo novamente aquele sorriso de ninfa.
— O que você quis dizer com isso? — Franziu as sobrancelhas, mantendo seus olhos na
jovem, a mente completamente anuviada.
— Entenda como quiser — murmurou com um sorriso sapeca no rosto. — Agora, por
favor, me ajude a descer.
Bergamoto agitou a cabeça em negação enquanto sorria e fez o que a jovem pediu,
acompanhando-a até a varanda de casa. As luzes estavam apagadas, abrigando algumas pessoas
no breu daquele ambiente — por passar das dezenove horas e a noite já reinar na fazenda — que
se revelaram quando a veterinária acendeu a lâmpada.
— Surpresa! — gritaram em uníssono, deixando Elis com um sorriso de orelha a orelha.
— Surpresa — Valquíria sussurrou no ouvido da menina, atraindo sua atenção e ganhou
seu maior sorriso ofertado naquele dia.
— Obrigada, gente! — Agradeceu abraçando todos que estavam presentes.
— E o que vocês estão esperando pra essa festa começar? — gritou dona Lola, que se
aligeirou em sua bicicleta para chegar ali antes das duas, minutos depois a música tocava alto e
as pessoas dançavam animadas.
Elis se mantinha sentada em sua cadeira de balanço, enquanto conversava com os
convidados. Estava animada e verdadeiramente feliz, como se nada pudesse estragar sua noite.
Pouco tempo depois, Seu Augusto chegou acompanhado, surpreendendo tanto Valquíria quanto
Elis ao perceberem quem era.
— Mãe? — Elis perguntou retoricamente.
— Surpresa, meu amor. A mamãe chegou!

.13.
CRISTALINO
Elis não sabia como reagir diante da presença de sua mãe. Sentiu-se minimamente feliz
por ela ter aparecido em seu aniversário, pois dentro de si ainda existia a necessidade de
aceitação de Selina, mesmo que ínfimo. Por outro lado, tinha receio do que a mulher
verdadeiramente fora fazer ali. Ainda estava muito magoada, não conseguia deixar tudo o que
sofrera de lado e fingir que estava tudo bem. A dentista caminhou até a filha e a ajudou a se
levantar, para a abraçar saudosamente. Aparentemente, a mulher não queria causar tumultuo no
aniversário de Elis.
Aparentemente.
— Que saudade de você, meu amor. — Apertou a garota sutilmente em seus braços e se
afastou.
— Se sentiu tanta saudade, por que não me procurou antes? Por que só me ligou para me
aborrecer? — Elis até tentou se conter, mas não conseguiu, diante a hipocrisia da mãe, o
sentimento de abandono falou mais alto.
— Que isso, Lis? Eu estava ocupada com o consultório. — Pressionou de leve os ombros
da filha e sorriu com falsa gentileza.
— Não se desse ao trabalho de vir aqui, já que estava tão ocupada. — Elis estava tão
ressentida que sua linguagem corporal deixava isso claro, a feição endurecida e os braços
cruzados sobre o peito.
— Meu amor, tirei uns dias para vir com seu namorado te parabenizar e... — A mulher
disparou a falar pelos cotovelos e a jovem parou de ouvir após certo momento.
Sentiu seu estômago revirar e o chão sair de seus pés, ela só podia ter entendido errado.
— Meu o quê? — Arqueou a sobrancelha, atônita. Não me diga que o traste do Felipe
veio? — Indignou-se, a face retorcida em ojeriza.
— Que triste ouvir tais coisas de você, meu amor — Felipe falou, aparecendo por detrás
de Selina.
Elis buscou os olhos de Valquíria, visivelmente desesperada, e se deparou com a mulher
praticamente espumando de ódio. Dona Lola segurava a filha pelo braço, enquanto Seu Augusto
falava algo com Bergamoto ao pé do ouvido. A menina se sentiu traída pela mãe mais uma vez, o
coração estilhaçado em mil pedaços. Pensou que ela estivesse realmente com saudade, o que não
aparentava ser o caso, insistindo naquele relacionamento que nem existia mais. Todos na festa
nem mesmo disfarçaram e pausaram tudo o que faziam para observar a discussão.
— Eu não acredito que você fez isso comigo! — Elis disse entredentes, fazendo sua mãe
arquear a sobrancelha.
— Fiz o que, Elis? Eu trouxe seu namorado comigo por que ele queria te ver. — Deu de
ombros, a sobrancelha arqueada em falsa dúvida.
— Sabia que ele desejou que minha filha morresse? — A moça deu alguns passos para
trás. — Que essa porcaria relacionamento não existe há muito tempo? Que ele me assediou e
queria me usar feito uma boneca sexual? — Pousou a mão na cintura, irritadiça. — Lembra que
ele me abandonou? Para de fingir que sua família perfeita existe. — Elis começou a alterar seu
tom de voz, graças à sua mãe e aos hormônios da gestação, a cada palavra subia um tom.
— Ele é um bom partido, aceitou ficar com você depois de tudo o que você fez com ele.
— Revirou os olhos. — Pare de chiliques. — Cruzou os braços, enervada, desacreditada na
petulância da filha e pouco se importando com o mal que estava a fazendo.
Elis jazia tão imersa em sua perplexidade, que palavras lhe faltaram momentaneamente.
Era inacreditável aos seus olhos e ouvidos que sua mãe estava transferindo a culpa para ela mais
uma vez. Pousou a mão esquerda sobre a barriga e com a outra passou a gesticular ferozmente,
enquanto falava. Pouco se importava com a presença dos demais, a garganta despejando o ódio
que reprimia há anos.
— Eu que sou abandonada e ele que é o coitado? — Deu um berro, praticamente
rosnando. — O sofrido? Me poupa, porra! — Naquele momento, a feição de Elis se transformara
em uma carranca, totalmente distinta da doçura atual. — Se Felipe é tão bom partido, fica com
ele! Olha que lindos! — A mão se movia ainda mais rápido, evidenciando seu desdém pela
situação. — Até combinam, não seria novidade mais um chifre na cabeça do papai e...
Elis se calou ao sentir os dedos de sua mãe estalarem em sua pele. A menina deu dois
passos para trás, tamanha a força do impacto. Por sorte, Rosa estava por perto e conseguiu
amparar a jovem, evitando a queda iminente. O ódio enublou as vistas de Valquíria e ela se
soltou das mãos de sua mãe com um tranco, caminhando na direção de Selina como uma fera
atrás de sua presa. Felipe se colocou diante dela, tentando a impedir. Como se um alguém
pudesse parar um touro desembestado.
— Não se meta! — Felipe sibilou, ao segurar a veterinária pelo braço com toda a sua
força.
Valquíria olhou para a região que a mão do garoto estava e elevou a cabeça lentamente,
fitando-o nos olhos. Dona Lola gesticulou a cabeça negativamente, pois ela sabia que o menino
tinha acabado de dar um tiro no próprio pé. Seu Augusto ria disfarçadamente, enquanto os outros
convidados mantinham seus olhos em Valquíria, inclusive Selina.
— Não se meta, você! Filho da puta! — Valquíria disse, intimidando-o com um olhar
colérico e o sentiu apertar ainda mais sua pele.
Não pensou duas vezes, girou o próprio braço e deu uma rasteira em Felipe de forma
exímia. O rapaz caiu de qualquer jeito, soltando um grunhido de dor, deixando a veterinária livre
do seu aperto.
— Arrombado do caralho! — Sua voz trovejou, enquanto andava na direção da dentista.
— Você ficou maluca, Selina?
— Ela é minha filha, Val... — Encolheu os ombros, assustada. Jamais havia visto
Valquíria tão irritada, tão brava, tão transtornada.
— Foda-se! — Empinou o queixo de forma imperiosa. — Ela é sua filha, não é seu
objeto! — Ergueu o indicador esquerdo, direcionando-o para a dentista. — A menina está com
uma barriga enorme, se sentindo abandonada e você ainda faz isso? Você tem o que na cabeça?
Merda?! — Parou com a face a centímetros do rosto da dentista, mostrando à Selina sua
dominância de território, tal qual um animal raivoso, os dentes exibidos por conta da raiva.
Selina, percebendo os olhares de todos ali para ela, sentiu-se constrangida e iniciou um
falso choro, fazendo-se de coitada perante as pessoas. Caminhou até Elis, que a afastou, para
falar:
— Meu amor, perdoe a mamãe. — Os olhos cintilaram com as lágrimas de crocodilo. —
Estou com a cabeça cheia de coisas e não devia ter forçado nada, muito menos te agredido.
Tentou abraçar a filha, porém a garota puxou o braço para fora do alcance de sua mãe.
— Não me toque! — Elis pediu com a voz trêmula. — Eu não confio em você.
— Elis, por favor — Suplicou, fazendo menção em se ajoelhar. — Vamos esquecer isso e
aproveitar sua festa?
— Quer ficar, fique, mas eu não fico mais um minuto aqui. — Volveu o corpo, dando as
costas para a mãe. — Me ajuda, dona Rosa? — Olhou para a senhora de cabelos brancos e exibiu
um sorriso fraco, buscando amparo.
— Claro, menina. — A madrinha de Valquíria enlaçou o braço no de Elis. — Vamos lá
pra dentro.
Selina, consternada, ainda tentava segurar a filha pelo pulso, mas Valquíria a deteve.
— Deixe-a — rumorejou em tom de ameaça, o olhar ameaçador ainda pousado na
dentista.
— Ô, Val, me ajuda com ela. Eu não fiz por mal. — Virou-se para a veterinária,
implorando com os olhos umedecidos.
— Por mal ou por bem, você fez. — Entrelaçou os dedos das mãos, a voz cada vez mais
endurecida.
— Ela me ofendeu, Valquíria! — Selina se vitimizou, abraçando a si mesma.
— Você começou essa briga ao trazer essa desgraça desse moleque com você. —
Valquíria meneou a cabeça negativamente. — O menino só fez mal a ela, Selina, caralho! —
Massageou as têmporas. — Por que você fez isso?
— O Omar achou que seria uma boa oportunidade de Elis não ficar mais tão mal falada
no círculo pessoas que conhecemos. — Baixou a cabeça, encarando os próprios pés, desta vez,
verdadeiramente envergonhada ao ouvir suas próprias palavras.
— Estou fingindo que não estou ouvindo isso. — Contorceu a face em ojeriza. — Você
me decepcionou ainda mais, Selina. — Estalou a língua sobre o céu da boca. — Quer ficar e
aproveitar a festa, ótimo, mas se for importunar a Elis de novo, pegue sua mascote e vai embora,
por favor.
— Val... — Tocou no ombro da veterinária, que se esquivou.
— Vou ver como a Elis está. — Girou nos calcanhares e rumou para o interior de sua
casa, deixando a mãe da moça com a mão estendida para o alto, ignorando seu chamado.
Elis estava no escritório de Valquíria com Rosa. A senhora lhe dava um copo de água
com açúcar com intuito de acalmá-la. A jovem chorava silenciosamente, o rastro das grossas
lágrimas marcando sua pele alva. Vislumbrar a sua adorada daquela forma incitava mais ainda a
fogueira de ódio que crepitava no cerne da anfitriã, que teve de deter o instinto de retornar até
Selina e lhe dar uma surra. A veterinária se aproximou das duas e tocou no ombro de sua
madrinha.
— Dinda, me deixa conversar com ela — solicitou encarecidamente, tentando esboçar
um sorriso.
— Tudo bem, menina. — Virou para Elis e lhe disse: — Fique bem, mocinha.
Bergamoto se sentou ao lado da garota e alçou sua mão ao local onde Selina bateu,
afagando-o lentamente. Deixou um beijo na região e manteve suas testas unidas, o ódio dando
lugar à paixão em um piscar de olhos.
— Me perdoe por não ter evitado isso, minha menina — Valquíria se pronunciou,
denotando seu remorso na face e na voz.
— Você não tinha como evitar isso. — Ergueu um dos dedos, resvalando pelo rosto da
mais velha. — Eu a provoquei. — Encolheu os ombros, incapaz de impedir as lágrimas que
insistiam em verter de suas vistas.
— Ela não tinha o direito de fazer isso com você. — Endureceu a feição por um
momento, mas logo relaxou. — Vou te proteger, Elis, isso não vai mais acontecer. Vamos dar
um jeito de nos resguardar — sussurrou, a voz embargada pela paixão, distribuindo carinhos na
nuca da garota, enquanto sua outra mão secava sua face.
A loira sorriu e afastou a pálpebras, encontrando e se perdendo nos olhos de azeviche de
Valquíria. Desviou para a boca da mulher e se aproximou, beijando-a de supetão. Bergamoto
correspondeu ao beijo na mesma urgência que Elis, com a mesma pressa e intensidade. As areias
do tempo cessaram seu caminho e tudo o que existia naquele instante eram as duas. A luxúria
transformava o sangue de ambas em fogo liquefeito e a mais nova, com uma habilidade
assustadora, sentou-se sobre o regaço da veterinária, já oscilando seus quadris sobre ela. A
mulher a encarou de baixo e foi abarcada pela certeza de que a deusa do amor estava ali, em seu
colo, incitando-a com suas dádivas afrodíseas. Os cabelos dourados de Elis emolduravam sua
face belíssima e Valquíria acreditou que sua morte viria a qualquer momento, tamanha
palpitação que aquele momento causava em seu peito. Não resistiu e resvalou as mãos pelo corpo
pedinte e febril da aniversariante, na ânsia de devotar-se para sua deusa. Porém, o curso do
tempo tornou a serpentear quando soaram batidas na porta do escritório.
— Puta que pariu... — murmurou Elis, bufando e Valquíria sorriu.
Contrariada, a jovem tornou a se assentar ao lado da anfitriã, inspirando fundo e
ignorando o constante pulsar do pequeno botão entre suas coxas.
— Pode entrar — Valquíria disse, após ter certeza de que estavam apresentáveis.
— Meu amor, não queria atrapalhar vocês — justificou-se Dolores, deixando Elis com a
face vermelha e Bergamoto fingiu que nada havia acontecido —, mas a Selina foi embora com o
rapaz.
— Eu não queria que as coisas chegassem a esse ponto — Elis se manifestou com a voz
chorosa, fechando os olhos.
— Você não tem culpa de nada, menina, não seja boba. — A mãe de Valquíria meneou a
cabeça em sinal negativo. — Sua mãe errou com você e não é por que ela te gerou que você deve
aguentar certas coisas — Dona Lola deu de ombros, visivelmente irritada com as ações de
Selina. — Vamos aproveitar sua festa?
A jovem concordou e seguiu para a varanda com as duas. Chegando lá, sentou-se com
Cássia e Henrique, enquanto contemplava Dolores ir dançar com o marido. Valquíria foi
convidada por um rapaz jovem e muito bonito para uma dança. Como a mulher gostava muito de
música e de bailar, aceitou o convite, não percebendo a jovem torcer a boca em total desgosto.
Cássia, muito atenta, percebeu a irritação da garota.
— Está com ciúmes? — questionou, com um sorrisinho de deboche nos lábios.
— O quê? — inquiriu, ainda olhando para Valquíria sorrir para o rapaz enquanto este
pousava suas mãos em sua cintura.
— Você está com ciúmes da Valquíria, minha querida? — Repetiu com todas as letras,
não contendo a risadinha.
— Não sei qual a necessidade de ficar dançando com esse garoto e bebendo, enquanto eu
fico aqui sozinha no meu aniversário. — Deu de ombros, com o cenho enrugado, não negando a
pergunta.
— Você não está sozinha, Elis. — Cássia pousou uma das mãos sobre a de Elis,
desfazendo o punho cerrado da jovem. — Tô com você. — A menina a olhou de soslaio, ainda
irritada. — Valquíria ama dançar, menina. Não a proíba disso.
— Não vou. — Deu uma leve bufada, inspirando profundamente e apreciando o ar
límpido que pairava por ali. — Eu gosto de vê-la dançar, mas não quero ficar...
— Sem ela? — completou a veterinária. — Mas você a tem completamente, boba. —
Não pôde evitar de dar mais uma risada.
A jovem sentiu um gelo percorrer em seu estômago, ao perceber que não eram tão
discretas quanto pensavam e encarou Cássia, assustada.
— Acho que as coisas estão mais claras que água aqui — Elis comentou, levemente
vexada, e Cássia apenas riu.
— Boa noite, Elis. — Uma voz desconhecida retirou as duas daquela bolha particular,
quando perceberam que havia companhia. — Dança comigo? — Um rapaz, negro, de belíssimos
olhos amendoados e corpo levemente musculoso a convidou.
— Boa noite pra você também, Pedro. — Cássia provocou e o rapaz não pôde evitar rir.
— Boa noite, dona Cássia. Posso roubar a aniversariante por um momento? — Pedro
retirou o chapéu e pousou sobre o peito.
Cássia respondeu com uma careta. Elis, movida pelo ciúme e querendo provocar
Valquíria, aceitou o convite. O jovem era muito gentil e dançava devagar com ela, no ritmo da
moça, para não a cansar, por conta da gravidez avançada. Ele desceu a boca e sussurrou algo ao
ouvido da garota que a fez gargalhar, atraindo a atenção de Bergamoto para si. Provocativa, Elis
levou as mãos sobre os ombros largos do rapaz, completamente dócil com ele. Indignada, a dona
da casa pegou uma dose de cachaça ouro e virou de uma só vez, ainda olhando a patifaria que
Elis fazia. Em negação, pegou mais uma dose e se sentou ao lado da amiga. Lançava um olhar
facínora para os dois jovens, ansiando esganar Pedro pela audácia de agir daquela forma com a
sua Elis. Apenas sua.
— Val, não acha que está bebendo muito? — Cássia surgiu no campo de visão de
Valquíria, com as mãos sobre a cintura. — Essa cachaça é forte demais.
— Ah, pronto! — A Bergamoto revirou os olhos. — Tá querendo me regular agora,
Cássia?
— Já tá altinha, hein?! — Moveu a cabeça em negação. — Bora dançar, Henrique. —
Andejou, pisando duro, já puxando o braço do loiro. — Vamos deixar essa aí enfiar o pé na jaca
por tá mordida de ciúmes.
— Vocês discutem e sobra pra mim — resmungou ao se levantar para dançar com Cássia.
A noite seguiu animada, Valquíria continuou bebendo, não muito, mas o suficiente para a
deixar sem as rédeas do superego. Após algum tempo, Elis voltou a se sentar, agora perto de
Rosa e José, assistindo os demais aproveitarem sua festa. Apartaram a dança apenas para cantar
os parabéns e degustarem o bolo de abacaxi com coco feito por Dolores.
Era tarde da noite quando as pessoas começaram a dispersar. Valquíria, apesar de um
pouco alterada, estava consciente de tudo o que fazia. Despediu-se de todos, trancou a casa e
subiu para o segundo andar, na esperança de desfrutar mais dos beijos de sua hóspede. Porém,
foi até o quarto de Elis e viu a menina deitada de costas para a porta, já vestida com trajes de
dormir. Recebeu isso como uma negativa e foi tomada levemente pela raiva, ao relembrar das
interações da jovem com Pedro, o ácido do ciúme corroendo suas veias.
Tomou seu banho e saiu enrolada em uma toalha, relembrando-se de tudo o que ocorrera
naquele longo dia, a memória presa no calor que Elis emanava na cachoeira, pedinte por mais de
seus toques. Estava irritada o suficiente para não encontrar suas roupas com facilidade, o que
gotejou mais álcool na fogueira que queimava em seu âmago. Após colocar a camisola que
encontrou e não se preocupar em encontrar uma calcinha, seguiu em direção ao banheiro para
guardar sua toalha. Quando voltou, assustou-se com o barulho da porta do seu quarto sendo
aberta.
— Que susto, menina! — Valquíria respirava fundo com o pequeno abalo, intensificado
por seus pensamentos estarem perdidos na doçura luxuriosa de Elis.
— Susto, por quê? — Escorada no portal, a jovem loira encarava sua anfitriã. — Só
estamos nós duas aqui, ou você trouxe o seu acompanhante para dormir com você? — respondeu
de forma possessiva, ainda irritadiça com a dança de Valquíria.
Elis andejou com lentidão até a mais velha, hipnotizando-a com o oscilar dos seus belos
quadris. Valquíria teve de conter o anelo de tomá-la ali mesmo, no chão, com toda a selvageria
que habitava a sua alma enamorada.
— Você estava dormindo... — murmurou, tendo sua fala interrompida ao sentir o polegar
da jovem pressionar seus lábios, resvalando por eles com uma devoção carnal. — Não trouxe
ninguém, não seja boba.
— Muito bem, porque senão eu seria obrigada a expulsá-lo daqui aos ponta pés — Elis
declarou em tom sequioso, o olhar faiscando. — Estava deitada te esperando, quero te agradecer
por tudo o que fez por mim... — A jovem pendeu a cabeça, os seus cabelos cascateavam sobre o
peito como chuva em um dia bem ensolarado.
— Não quer ficar de conversinha com o Pedro, não? — A mulher rebateu, aproveitando
para lamber levemente a ponta dos dedos de Elis. — Do jeito que estava, eu achei que tinha me
esquecido já.
— Não diga besteiras... — A moça prensou seu corpo no da mais velha, arrancando um
suspiro de sua garganta. Pôs-se na ponta dos pés e passou a deslizar a boca pelo pescoço
perfumado da veterinária. — Quero ficar com você, Valquíria. Quero que você apague esse fogo
que acendeu, eu não aguento mais esperar. — Capturou um de seus pulsos e fê-la deslizar as
mãos por seu corpo incandescente.
O sangue de Valquíria se direcionou inteiro para sua vulva, incendiando-a. Permitiu que
seus instintos comandassem seu corpo e levou as duas mãos para o rosto de Elis, trazendo-a para
um beijo ardente, enquanto já resvalava os ávidos dedos pelo corpo febril de sua ninfa. Apertava
a costela, abaixo dos seios de sua adorada com as mãos, agraciando-se dos sons emitidos pela
jovem. Elis arranhou os braços de Valquíria, tentando descarregar seu desejo de alguma forma,
completamente impaciente. A veterinária sugou o ar por entre os dentes, arfando, mesmerizada
com sortilégio da moça, certa de que daria sua vida apenas para fazê-la entrar em êxtase. A mais
velha deslizou seus dedos sobre o tecido fino do traje da menina, sentindo os mamilos
intumescidos dela. Não suportou e abrigou seus pomos nas mãos, premendo-os, ainda unida a
Elis em seu beijo deífico.
Elis gemeu com sofreguidão, pondo-se a roçar sua vulva pedinte na coxa da mais velha,
não suportando mais a pressão em seu botão do prazer. Valquíria, naquele instante, vivia apenas
para sorver mais das rapsódias salazes que brotavam da garganta de sua menina, certa de que
morreria se não consumasse os anseios ferventes. Atendeu ao pedido silencioso de sua dádiva,
resvalando a mão até seu alvo de cobiça, entre as pernas da jovem, apalpando-o com devoção. A
loira recolheu os olhos, apreciando a carga de prazer sublime que o simples ato de Valquíria
gerou e libertou mais um gemido.
— Finalmente você colocou a mão aí, eu já não aguentava mais esperar — murmurou
com a voz gotejando volúpia, oferecendo sua vulva para a mais velha.
— Eu não sei bem o que estou fazendo. Elis, eu sinto muito ter te deixado esperando. —
Valquíria pausou o beijo para dizer, hipnotizada com a feição inebriada de Elis. — Mas quero
continuar, quero ouvir mais desses seus grunhidinhos gostosos.
— Faça carinho em mim, Valquíria, bem aí onde você está pegando — Elis declamou
deliciosamente, afastando mais as pernas para o deleite da veterinária. — Você não quer me
fazer melar os seus dedos com meu gozo? Não quer me mostrar que eu sou sua? — Oscilou
ainda mais os quadris, gemendo ao ouvido de Valquíria.
Bergamoto foi assolada por uma pontada gelada no estômago, que espalhou,
paradoxalmente, fogo por suas veias. Mordeu o lábio inferior com tanta força que o sangue
verteu e, rapidamente, embrenhou sua mão no short de dormir de Elis, constatando que ela não
usava roupa íntima. Sibilou, alucinada, descendo os dedos até o seu botão de prazer, enrijecido e
pedinte. Elis gemeu mais uma vez, quase desabando ao chão pela carga de deleite que percorreu
o seu corpo. A mais velha, ágil como era, agarrou em sua cintura, possessiva, mantendo a carícia
ousada em seu clitóris intumescido.
— Tudo o que eu quero é te encher de prazer, minha menina — segredou, um pouco
tímida, deixando mordidas pelo maxilar, pescoço e ombros da jovem. — Quero que você não
queira mais ninguém, só a mim.
— Então, continua assim... — ronronou, roçando sua vulva na mão de Valquíria.
Valquíria, completamente cega pela volúpia, retirou a roupa de Elis com desespero,
beijou o seu dorso e matou o desejo que tinha de deslizar a língua sobre os seus mamilos,
sugando um deles, enquanto afagava o outro. Mais uma vez, Elis imergiu completamente nas
sublimes sensações que a mais velha a proporcionava, sentiu suas pernas fraquejarem com mais
intensidade e precisou se apoiar em Bergamoto. Para evitar qualquer desastre, a veterinária a
deitou na cama e se acomodou ao seu lado, aproveitando do calor que o corpo de sua ninfa
exalava, enterrando as narinas em seu pescoço para apreciar do seu aroma. Absorta nos seus
salazes anseios, rapidamente desceu a mão pelo corpo da jovem e chegou ao seu monte de
Vênus, deslizando as pontas dos dedos sutilmente na pele leitosa de sua pequena amada. Sentia-
se órfã longe da vulva inundada de Elis, as suas palavras ecoando em sua mente e a direcionando
a voltar com seu ato de safismo. Seus sentimentos conflitavam, pois, ao mesmo tempo que tinha
pressa, queria aproveitar cada descoberta lentamente. Porém, a sua mente, estilhaçada naquele
momento pelas doses de desejo, somente se focava na carência dos gemidos de Elis e da
quentura de seu botão de prazer rijo.
Dedicou-se em demonstrar todo a sua paixão e atração por Elis naquele momento,
arrepiando-se com cada sensação que a jovem lhe causava, que perdurava oscilando os quadris,
incitando-a a prosseguir com as carícias venusianas. Jamais, em toda sua vida, imaginou estar
naquela situação com outra mulher, tampouco que estaria extasiada como jazia naquele instante.
— Você é tão gostosa, Valquíria... — declamou Elis, feito o mais obsceno dos poemas.
— E eu me sinto muito mais excitada em saber que sou a sua primeira. — Deu uma risadinha,
roçando suas nádegas na vulva da mais velha.
— Não sou a sua? — Por um instante, Valquíria cessou o que fazia, apenas enfitando a
moça.
— É sim, nunca tive coragem de me entregar aos meus desejos pelas meninas da escola
— respondeu, a voz manhosa. — Não para, meu amor, eu estava quase gozando para você. —
Elis esboçou um biquinho.
— Muito bom saber disso, porque você é só minha — declarou possessivamente,
desferindo uma mordida no ombro alvo da jovem.
— Se eu soubesse que era só gemer para que você percebesse o quanto eu queria dar para
você, eu tinha feito antes. — Roçou-se com mais intensidade, incentivando Valquíria a
prosseguir com suas carícias.
— Você é uma putinha, sabia disso? — rosnou a mais velha, serpenteando os dedos por
toda a extensão da vulva de sua dádiva, aproveitando de sua umidade, e tornando a acariciar o
botão do deleite. — Vai me matar assim, falando essas coisas.
— Eu sou sua putinha, então. — Deu um gemidinho, virando-se para beijá-la mais uma
vez.
— Eu que bebi e você fica foguenta assim, menina?! — A veterinária ditou por entre o
beijo, aumentando a intensidade da carícia. — Assim, eu não dou conta.
— Não gosta? — Elis simulou tristeza, porém ainda rebolava na mão de Valquíria.
— Gosto, gosto muito — respondeu, devotada, tomada pela volúpia.
Valquíria deixou a curiosidade e o desejo a guiarem, explorando o corpo macio de Elis,
permanecendo com o deslizar de seus dedos em seu clitóris, completamente enamorada. Sentiu o
corpo da mais jovem se retorcer e arquear, e naquele instante a veterinária fechou seus olhos e
aspirou o aroma que sua amada exalava, experenciando estrelas surgirem em seu céu particular,
formando galáxias para abrigar a constelação que elas se tornaram. Elis pintou sua glória,
encantando os ouvidos apaixonados da Bergamoto, que a beijou com todo o seu amor e,
transbordando de tanto anelo, enlaçou seu corpo ao dela para se tornarem um, suas vulvas unidas
em um beijo mélico. Queria que a jovem sentisse o quanto ela estava desesperada por ela, em
cada ínfimo toque e que fosse além. Que cada sentimento fosse entranhado em sua derme para
que, assim, pintassem seu infinito na tela que elas coloriam juntas.
E ela o fez. Gravou sua alma no corpo de Elis com sua essência, fundindo seu espírito ao
dela. O sentimento de nostalgia a preenchia em uma dulcíssima agonia de reencontro tão ansiada
e tão pouco conhecida por ela. Era familiar, no entanto, era novo.
Único.
As duas sucumbiram ao êxtase — sendo este o segundo de Elis — juntas e desabaram
sobre a cama. Envolveu o corpo da garota com seus braços por trás e beijou sua nuca, com seu
coração acelerado e, ao mesmo tempo, manso. Estava feliz, pois tinha certeza do que sentia por
Elis. Era por Elis, o tempo todo.
— Precisamos de um banho — a mais velha declamou, sem nenhum efeito do álcool
sobre seu corpo, serena e sorridente.
— Você vai se arrepender amanhã? — Elis perguntou, temerosa. Não queria sofrer com
outra rejeição no dia seguinte.
— De forma alguma. — Beijou o topo da cabeça da menina e lhe deu um selinho. — Fiz
tudo muito consciente. Aliás, queria isso há muito tempo, só não sabia como proceder.
— Jura? — O sorriso da jovem Teixeira dobrou de tamanho ao ouvir tal confissão. —
Pensei que era só eu.
— Juro — sussurrou de volta, roçando o nariz carinhosamente no pescoço da amada. —
Só não tenho a coragem que você tem.
Elis sorriu, novamente, para a mulher e se aconchegou em seus braços.
— Nada de dormir, mocinha. — Valquíria deu uns tapinhas no ombro da jovem. —
Vamos tomar banho.
Resignada, Elis se levantou e a seguiu para o banheiro. Não iria reclamar, estava feliz
demais para isso.

.14.
A TEMPESTADE
O domingo amanheceu nublado e ficou assim a maior parte do tempo, exceto no
entardecer, quando a chuva se pôs a precipitar em gotas grossas. Parecia um dia calmo,
entretanto, a melancolia pairava no ar.
Elis aproveitou para ler mais um livro, que garimpou do escritório de Valquíria. As
histórias acalmavam Isabel e ajudavam o tempo a passar. Sua gestação chegara às trinta e nove
semanas e, segundo o médico, faltava pouco para a bebê nascer. Sentou-se em uma cadeira de
balanço, que ficava na varanda, e ao som cadenciado da chuva, iniciou sua leitura, dessa vez era
Tereza Batista Cansada de Guerra, de Jorge Amado.
Mirou no sopé da colina e avistou Valquíria subindo o morrinho montada em Campolina,
completamente ensopada, mas ostentava um enorme sorriso no rosto. Acenou para Elis e deu a
volta na casa para desselar o animal e o soltar. Não tardou para a jovem ouvir a veterinária entrar
pela porta da cozinha.
— Elis, só vou me banhar e já desço! — gritou de dentro da casa e o som de seus passos
ecoava pelo local.
— Tudo bem, faça sem pressa e tome um banho morno. Não quero você doente — a
jovem se pronunciou com preocupação, fazendo o coração de Valquíria se aquecer.
Desde que ela havia descoberto quem Elis foi em outra vida, não tão distante, entendeu
tudo o que acontecia em seu interior, principalmente o que ela sentia e o motivo de crescer de
forma tão exponencial. Sabia que fora esse amor, que viveu um dia com Ernesto, que impeliu seu
reencontro e, assim, Elis e Valquíria escreverem uma nova história juntas. Sentia que o carinho
era retribuído por parte da jovem, no entanto, nunca mencionou a ela sobre esse fato, mesmo
após tudo o que aconteceu entre elas.
Estava mais que apaixonada pela menina, amava-a verdadeiramente e seu desejo era que
fosse inteiramente retribuída. Perguntava-se se o envolvimento de Elis com ela era por ter
sentimentos, pela carência ou pelos hormônios aflorados. O problema era que Valquíria
mergulhou de cabeça e já não conseguia mais voltar para a superfície, completamente submersa e
inundada por esse amor vertiginoso.
Tomou seu banho e desceu, mas, antes de ir para a varanda fazer companhia para Elis,
passou na cozinha para pegar café em sua canequinha esmaltada. Já era praticamente noite e a
chuva caía insistente, acompanhada de rajadas fortes de vento, raios e trovões.
“Vai virar temporal”, pensou ao olhar pela janela.
No percurso de volta, sentiu seu telefone vibrar e estranhou. Ninguém tinha o hábito de
ligar naquele horário se não fosse uma emergência, nem mesmo seus pais. Ao pegar o aparelho e
conferir, viu que se tratava de Selina e já não esperou coisa boa desse contato inesperado.
— Val, a Elis está perto de você? — A pergunta deixou Bergamoto muito mais cismada,
pondo-se alerta.
Selina, desde o aniversário da menina, não tinha entrado em contato e agora agia como se
nada tivesse acontecido. Valquíria pensou por um tempo e respondeu:
— Não. Não está. Por quê? — Questionou e se sentou no sofá ali perto.
— É sobre o bebê. Omar disse que Elis pode voltar para casa, desde que deixe a criança
pra adoção, já que ela não quer ficar com o Felipe. O rapaz desistiu dela depois do disparate no
aniversário.
Valquíria sentiu sua face esquentar diante das palavras da mãe da Elis e futura ex-amiga.
— E você concorda com isso? — Apertou o telefone com força, os dentes cerrados. —
Seu marido some, vira as costas pra ela e você vem com esse papinho?
— É a melhor opção, Valquíria. — A voz aguda de Selina era uma geleira.
— Já parou pra pensar que ela não precisa passar por isso, porque ela tem alguém que
olhe por ela? — rebateu a veterinária, apertando o telefone com força.
— Claro que ela tem. A mim e o pai dela. Nos preocupamos com ela e essa é a melhor
opção para ela Valquíria. Elis é nossa filha e nós decidimos por ela.
— Você fala como se a moça fosse uma incapaz, como se ela não fosse maior de idade e
pudesse decidir por si só. — O tom de Valquíria elevou uma oitava e ela mal conseguia conter o
desejo de lançar o telefone longe.
— Elis não tem como se manter, depende de nós, então ela vai fazer o que nós queremos
— Selina respondeu, a soberba imperava em sua voz.
O comentário deixou Valquíria tão enervada que seu sangue ferveu. Controlava-se para
não gritar, mas já estava ficando cega e ódio e mal se lembrava que Elis estava na varanda ao
lado.
— Ela não precisa da porcaria do dinheiro de vocês! — praticamente rosnou, andando de
um lado para o outro. — Eu vivo muito bem aqui e posso cuidar das duas!
— Você não tem motivo pra fazer isso! Ela não é nada sua! — murmurou a mãe de Elis,
ainda fria.
— Acredite, eu estou mais em posição de fazer algo aqui! — Valquíria bufou, o rosto
contorcido pela fúria. — Vocês a abandonaram!
— Não! Eu pedi para que cuidasse dela. — Selina se exaltou do outro lado da linha,
fazendo Bergamoto revirar os olhos.
— E é o que eu estou fazendo. Cuidando dela e da criança. — Seu tom de voz saiu mais
alterado, porém, estava tão irritada que não percebia que sua voz ecoava pela casa inteira.
Mal tinha ideia que sua discussão com Selina havia atraído a atenção de Elis há um
tempo e que ela tentava decifrar a briga, apoiada no umbral da porta da sala, os olhos
transformados em uma taça de lágrimas.
— Ela não está em condições de pensar e... — Selina se esgoelou, o que incitou ainda
mais a cólera de Valquíria.
— “E” nada! — Interrompeu-a com um grito. — Você vai decepcionar essa menina
novamente Selina, o que já não me surpreende mais depois do episódio do aniversário —
vociferou, a ira queimando as suas entranhas. — Você não está acompanhando a gestação, eu
estou, e vejo o amor que ela tem pela filha exalando nos poros. Acha certo separar as duas por
um capricho seu e do seu marido?
— Valquíria! — Disse em tom de repreensão.
— É a verdade. Eu não vou deixar! Vocês não podem fazer isso com ela e com a... —
Antes de concluir a frase, a porta da sala fechou em um estrondo.
Correu para a varanda, constatando que era o que ela pensava. Elis ouviu a conversa e
saiu debaixo daquele temporal, mesmo sabendo que Isabel poderia nascer a qualquer momento.
— Porcaria! — Jogou o celular em cima do sofá sem se preocupar em desligar ou dar
alguma satisfação para a dentista. — Droga, Elis! — Rumou para o quintal, às pressas, para
chamar Campolina e ir atrás da jovem.
Não seria tarefa fácil montar no animal, visto o mau tempo armado, ameaçando a tornar a
chuva em algo ainda pior. Os cavalos ficavam ansiosos e costumavam se esconder para se
sentirem seguros. Assobiou, chamando a égua, mas, ela não apareceu.
— Argh! Inferno! — Saiu no meio da tormenta para ir ao estábulo para selar sua égua.
As lágrimas de Elis e a chuva eram unas em sua face. Desesperada com a possibilidade
de arrancarem sua filha de seus braços, andou sem rumo na escuridão da noite, passou entre as
árvores que cobriam a vista da casa de Valquíria, dificultando, propositalmente, que a veterinária
a encontrasse e se embrenhou pasto a dentro, distanciando-se da casa cada vez mais. Tropeçou
em um galho seco e, por pouco, não caiu. Apenas desejava sumir e proteger seu bebê, a mente
completamente anuviada por seu medo, roubando-lhe completamente qualquer resquício de
juízo.
Estacou no meio do nada, em pleno campo aberto, correndo o risco de ser atingida por
um raio a qualquer momento, completamente perdida no meio da escuridão. O desespero se
apoderou do resto de sua alma, muito mais quando se deu conta de sua situação em que se
encontrava. Não sabia aonde estava e o pânico esmagava o seu âmago. Seu vestido estava
grudado ao seu corpo e seus cabelos encharcados de água, devido ao temporal que aterrorizava o
firmamento. Uma pontada leve atingiu seu baixo-ventre, porém, tamanha a exasperação de Elis,
que ela não se importou.
Mais distante, avistou um vulto se aproximando e, com o clarão de um raio, viu Flecha
Preta, o cavalo por quem tinha pegado tanto apreço. Chamou-o, com um silvo emitido pelos
lábios, tal como Valquíria a ensinou, e viu o equino se aproximar. Acariciou o focinho do animal
e chorou ainda mais ao sentir o calor dele ao tocar seu ombro com a cabeça.
— Obrigada por vir, Flecha, meu amigo. — Acariciou entre suas orelhas e o abraçou.
Levou-o para perto de um tronco, onde ela pudesse o usar como apoio para subir no
animal. Estalou a língua duas vezes e o cavalo entendeu o comando para se curvar, tornando
mais fácil o acesso para ela o montar. Com muita labuta, quase caindo, pois além dele não estar
selado, o pelo jazia escorregadio pela água, ela conseguiu subir. Segurou na crina escura de
Flecha e bateu os pés de leve em sua barriga, para que ele iniciasse o trote.
O cavalo seguiu para onde ela o guiava, sem um destino, apenas indo em frente. Flecha já
era um animal idoso e não tinha os sentidos tão apurados como quando era mais jovem, por isso,
acabou tropeçando em um buraco no meio de seu galope, fazendo a jovem pressionar sua barriga
contra o seu pescoço. Elis foi acometida por mais uma fisgada, similar à dor de outrora,
entretanto, bem mais intensa.
Urrou em cima do animal, tamanho o seu sofrimento e, para complicar sua situação, um
raio caiu ao seu lado. Com o susto, o cavalo se empinou e disparou a correr, piorando o estado de
Elis. Com muito esforço, ela conseguiu retomar o controle e o fazer parar, mas havia se
desgastado demais. Além de exausta a garota, sentiu um líquido quente escorrer por suas pernas
e o medo engoliu o seu coração. Mesmo sendo mãe de primeira viagem, não era tão ingênua para
não saber o que estava acontecendo, entretanto, já não conseguia manter o equilíbrio de seu
corpo em cima do cavalo e a dor lancinante não a permitia ter forças suficiente para conduzir
Flecha para um lugar seguro. Juntou o que restava de sua energia para se agarrar ao pelo do
animal e pedir, praticamente deitada sobre o seu lombo, pressionando a barriga com seu peso,
num sussurro fraco:
— Me leva até a Valquíria, Flecha Preta, por favor.
O cavalo, que era tão conectado a ela, entendeu o pedido de ajuda de sua amiga e mudou
a rota, seguindo para a casa de Valquíria. Elis lutava para se manter em cima do animal e,
principalmente, manter seus olhos abertos à chuva que descia feito agulhas afiadas. As
contrações, cada vez mais intensas, a impediam de manter a mente sã e só o que vinha à tona era
o desejo de Felipe que Isabel morresse; ela temia que sua praga se concretizasse.
A veterinária os encontrou no caminho para sua casa, entre os pés de Ipê. Já havia
procurado em todas as redondezas, desde a clínica ao estábulo, onde Elis gostava de se enfiar. O
temor congelou suas entranhas e Valquíria jazia completamente desnorteada, aos prantos.
Suspeitou que a jovem tivesse ido para campo aberto, apavorou-se ao supor que um daqueles
raios atingira Elis e deu graças a Deus por encontrá-la no lombo de Flecha, que a trazia em
segurança. Saltou de Campolina e foi de encontro aos dois.
Ao se aproximar, o cavalo começou a relinchar, visivelmente agitado com algo. A jovem,
por um triz, não desfalecia, tamanha a dor que as contrações lhe causavam. Olhou para a mais
velha e exibiu um sorriso bem fraco. Valquíria imediatamente percebeu que tinha algo errado,
constatando que Elis estava com olheiras e expressões de agonia.
— Me ajuda, por favor. Salva minha filha — pediu baixo, com lágrimas nos olhos, que
podiam ser confundidas com as gotas de chuva. — O Felipe não pode conseguir matar a minha
filha.
— Meu Deus! Vem, Flecha. — Conduziu o animal, com a mão apoiada em seu pescoço,
até a porta de sua casa. Não conseguiria levá-la em seus braços pela colina com aquela chuva
torrencial e Campolina os seguiu ao ouvir o assovio da tutora.
Retirou-a do pelo do animal e espantou os dois para os estábulos, levando-a para dentro
de casa apoiada em seu ombro.
— Elis, consegue subir as escadas? — inquiriu, a voz embargada pela preocupação.
— Acho que não — respondeu num fio de voz e, em seguida, gemeu de dor.
— Tudo bem, vamos ficar aqui no sofá. — Valquíria mordeu o lábio inferior, tentando
não demonstrar o seu pavor.
Com dificuldade, chegaram até o sofá. Valquíria retirou toda a roupa da jovem e a deitou
no móvel. Correu pelas escadas e voltou com travesseiros e uma manta, que jogou por cima de
seu tronco, fazendo-a, também, repousar a cabeça. Pegou o telefone e ligou para sua mãe, para
que ela a ajudasse. Foi para a cozinha em busca de água quente e aproveitou para falar com
Dolores.
— Eu não vou conseguir fazer isso, mãe — murmurou, temerosa, chorando por medo de
perder as duas, como ocorrera com Ernesto.
— Claro que vai! — A voz de dona Lola era um acalento no coração da veterinária. —
Você já trouxe tantos bebês ao mundo, minha filha.
— De animais, mamãe. — Uniu as pálpebras e se entregou, por um momento, ao pranto.
— Valquíria, se acalme, vai dar tudo certo. Eu já estou chegando aí e seu pai tá tentando
localizar o médico. Aguenta um pouquinho que a chuva tá me atrasando, mas tô indo.
Rumou até a sala com a bacia de água quente e pegou toalhas limpas, além do seu
material cirúrgico de emergência. Os gritos da jovem reverberaram pela casa e ela sentiu seu
interior se contrair. E se ela falhasse? E se não conseguisse salvar nenhuma delas? Não tinha
experiência com partos humanos. Espantou aquele pensamento e respirou fundo, para se
acalmar, buscando toda coragem que existia dentro de si e entrou no cômodo. Ajeitou os
apetrechos para, de fato, iniciar o parto e esperava não ter que usar nada além do normal.
— Elis, você vai precisar me ajudar. — Valquíria tomou uma das mãos de Elis nas suas,
acariciando-a ternamente. — Tem muito tempo que sentiu uma contração?
— Não — respondeu, arfante.
— Quanto tempo, mais ou menos? — inquiriu, ajoelhada ao lado da jovem.
— Uns 5 minutos ou menos. Eu... — A sentença de Elis foi interrompida por mais um
grito de tormento.
— Elas estão perto uma da outra — Constatou em voz alta e se ergueu. — Não vai
demorar.
Aproximou-se da barriga da jovem e a acariciou, como fazia com as éguas que iam parir,
e conversou com a bebê:
— Meu amor, eu nunca fiz isso com humanos e vou precisar que você ajude a mim e a
mamãe. Ouviu, Isabel? Tô contando com você. — Acarinhou mais uma vez.
Mais uma contração lancinante se apoderou de Elis, que chorava copiosamente, o corpo
inteiro trêmulo.
— Elis, é agora — Valquíria tentava manter a expressão terna, ignorando o medo que
habitava seu peito. — Quando vier outra, você empurra com toda a sua força, me entendeu? —
Retirou os cabelos que caíam sobre o rosto da loira. — Elis, entendeu? — inquiriu e a jovem
apenas acenou com a cabeça.
Valquíria se posicionou entre as pernas da sua amada, arrumando-as e se ajeitou entre
elas. Contou até três e gritou:
— Empurra, Elis!
A menina esbravejou e fez força, o máximo que conseguiu. Chorava de medo, de dor, de
desespero. Tudo o que conseguia pensar era nas palavras de Felipe.
— Respira. Respira... Empurra! — As palavras de Valquíria saíam trêmulas.
Depois de meia hora, Valquíria ouviu Dolores chamar na porta dos fundos. Logo gritou
pela mãe, que rapidamente chegou à sala.
— Mãe, ela não tá nascendo — sussurrou Valquíria, complemente imersa em agonia. —
A Elis tá fraca, tá perdendo muito sangue — choramingou, encarando as próprias mãos
sanguinolentas. — O que eu faço?
— Primeiro, você tem que ficar calma. — Ergueu o rosto de sua filha com as mãos. — E,
por sorte, minha filha, sua mãe já ajudou algumas parteiras, você sabe bem disso. — O tom de
sua voz era um bálsamo para a alma atormentada de Valquíria. — Mas essa demanda não é
minha, Valquíria, e você sabe disso.
Dolores lavou as mãos e as desinfetou com álcool. Depois, aproximou-se da jovem e fez
“o toque”, como havia aprendido, constatando que faltava pouco para a bebê coroar. Somente
vendo sua mãe fazer o exame de toque que era o básico de um parto que percebeu o quão
transtornada estava, pois não se lembrara de fazê-lo em Elis. Baixou a cabeça, a sensação de
fracasso tomando conta de si, mas sua mãe, como se adivinhasse, a arrancou daquele estado com
seu tom enérgico.
— Falta pouco! — Enxugou o suor da testa com o antebraço. — Cuide da Isabel que, da
Elis, cuido eu. — Sentou-se ao lado da moça e colocou as mãos sobre a barriga da jovem. —
Vamos juntas, Elis. 1, 2, 3... Empurra!
— Não desiste, Elis! Eu já vejo a Isabel. — Valquíria se animou e encorajou a sua
amada, espantando o medo com um sorriso. — Vai, empurra. Empurra, Elis!
Dolores apoiou as mãos na barriga, auxiliando a loira com o esforço a se fazer. Elis usou
das forças que não tinha e empurrou a barriga assim que a contração veio, avassaladora, e urrou
de dor, sentindo o alívio seguido do choro incessante da pequena Isabel.
Valquíria tratou de limpar a bebê, desobstruir as narinas, cortou o cordão umbilical e
suturou. Enrolou-a em um lençol branco e levou a menina até Elis, que ansiava por tê-la nos
braços para, só assim, terminar os procedimentos com a jovem.
— Ela é tão linda — disse, com a voz fraca. Sua face completamente tingida de
vermelho.
— Tem cara de joelho — Valquíria implicou, dando uma risadinha.
— Se acontecer qualquer coisa comigo, fica com ela — suplicou, com os olhos chorosos.
— Não diga besteiras! — A veterinária acariciou ternamente o rosto de sua amada. —
Você está ótima.
— E por que me sinto tão fraca e com tanto sono? — Perguntou, ainda mais baixo,
percebendo todo o seu redor bruxulear.
— Fez muito esforço. Descanse — O amor transbordava na voz de Valquíria.
Dolores, estranhando o estado de Elis, pegou Isabel e a entregou para sua filha. Checou o
pulso de Elis e viu que estava baixo, fraco.
— Ela pode estar mesmo cansada, mas é bom o médico a avaliar. — Pousou os olhos
sobre a filha, preocupada. — Vou ligar para o seu pai e ver se estão chegando. Agora que a
chuva apartou, não devem estar longe.
— Certo. — Aninhou a menina em seus braços e se sentou ao lado de Elis. — Não vou
deixar ninguém separar vocês, nem que tenha que morar comigo o resto da sua vida.
Elis se permitiu chorar e agradeceu a Valquíria. Seu coração se encheu de um sentimento
bom de pertencimento e se aqueceu. Sentiu-se em paz pela primeira vez em muito tempo.
— Você é mesmo maravilhosa. — Sorriu com os olhos fechados, sentindo os lábios da
veterinária sobre os seus.
— Você foi muito corajosa — Valquíria, findando o beijo casto, confabulou
completamente enamorada.
Não tardou para o pai de Valquíria chegar com o médico, para que ele pudesse examinar
a mais nova mãe, eliminando qualquer risco. Apenas orientou que ela fosse ao hospital, assim
que possível, para examinar a criança e emitir a Declaração de Nascido Vivo, para dar
prosseguimento ao registro. Além de fazer o teste do pezinho, entre outros procedimentos.
Também recomendou que Elis fosse examinada de forma mais aprofundada. Mediante notícias
desastrosas e circunstâncias que induziam uma catástrofe iminente, tudo deu certo e se acalmou.
Até mesmo o temporal.
.15.
EU SEMPRE VOU TE AMAR
Valquíria estava sentada embaixo de uma mangueira, lendo um dos seus livros de
Medicina Veterinária completamente focada. A disciplina era anatomia animal, fazendo várias
marcações à caneta e destacando outras com marca-texto amarelo. Já havia perdido a noção do
tempo ali, não fazendo ideia de que horas eram.
— Vai ficar o dia todo aí? — gritou Dolores da janela. — Precisa comer, Valquíria!
— Ai, mãe, mais cinco minutos e vou! — Bufou a mulher, revirando os olhos. — Preciso
terminar meu raciocínio ou vou ter de começar tudo de novo.
Dolores colocou as mãos na cintura e torceu um bico, ainda olhando para a filha. Sempre
fazia isso, teimosa feito o pai e, também, a mãe.
— Não demore! — ralhou a mais velha, tamborilando o dedo sobre o peitoril da janela.
— Tem gente esperando por você em casa, viu?
A mulher olhou para sua mãe e lhe deu seu maior e mais bonito sorriso.
— Eu sei, já vou! — Valquíria tornou a pousar os olhos sobre o livro. — Diga que não
demoro.
— Certo, eu falo — respondeu, consternada, agitando a cabeça negativamente enquanto
ria.
Os cinco minutos acabaram se tornando mais de vinte minutos. Quando olhou seu relógio
de pulso, assustou-se; o tempo havia passado mais rápido que imaginava. Pegou suas coisas e
seguiu em direção à sua casa. No meio do caminho, deparou-se com sua mãe novamente, que já
voltava para chamá-la, dessa vez acompanhada.
— Ah, pensei que não vinha mais. — Estalou a língua sobre o céu da boca. — Tive que
chamar reforços — sorriu ao falar.
— Jogou pesado, dona Lola — a mulher respondeu e correu para os braços de Ernesto,
abraçando-o com força. — Oi, meu amor.
— Ei, meu passarinho. — Afastou-se um pouco e a beijou na testa e depois nos lábios.
— Vocês dois, bora comer. Anda! Eu já estou azul aqui, sabia? Fome, o nome disso. —
A voz de dona Lola soava ao fundo, distante.
— Meu Deus, como faz drama. — Segurou na mão do namorado e o chamou: — Vamos,
ou daqui a pouco essa daí vai rezar uma ladainha no nosso ouvido. — Os dois riram perante a
careta de Dolores, indignada com eles.
De um instante para o outro, Ernesto e Valquíria estavam na Igreja de Santa Bárbara
declamando seus votos de casamento, carregados de emoção e amor. Dona Lola chorava
abertamente, enquanto Augusto era mais contido, mesmo que uma lágrima e outra escapulisse. O
homem segurou a mulher pelo rosto e beijou em sua testa, puxando-a delicadamente para um
beijo casto nos lábios.
— Eu te amo! — Valquíria sussurrou, os belíssimos olhos de azeviche cintilando feito o
céu noturno salpicado de estrelas.
— Eu também te amo, minha vida. Eu sempre vou te amar — ele respondeu, com o
coração rimbombando dentro do meu peito.
— Por toda minha vida, vou te amar — ela completou, cantarolando.
A sensação de meses se fez presente, e de fato o tempo escorrera. O homem estava feliz
indo trabalhar, cumprimentando todos de cima de Flecha. Soltou o animal e o deixou pastar nas
terras dos patrões, seguindo para a área de adestramento. Local onde encontraria seu novo
desafio.
Estava tão feliz em sua vida, que sentia que nada e nem ninguém poderia estragar seu dia
ou, até mesmo, sua vida. Tinha uma esposa maravilhosa, trabalhava com o que amava e tinha
seus amigos fiéis. Adorava seus sogros como seus pais, uma vez que os seus já não se faziam
presentes em vida.
— ‘Dia, pessoal — cumprimentou seus parceiros de labuta, tirando o chapéu.
— E aí, Nestim, tudo joinha? — Um de seus amigos perguntou com um sorriso.
— Melhor que nunca! — respondeu, sorridente.
— E a Val, como tá? — Outro comparsa questionou, com os olhos castanhos pousados
nele.
— A Valquíria — começou, pensativo e já sucumbiu a um suspiro profundo. — Ah, ela
tá ótima! Cada dia mais linda!
— Ê, paixão pra mais de metro — um dos peões brincou, dando gargalhadas animadas.
— E amor. Amor pra mais de uma vida — ele completou, completamente enleado em sua
paixão. — E o que temos pra hoje?
— Rapaz, chegou um cavalo aí, que o bicho é tinhoso. — Seu amigo coçou a cabeça, a
boca contorcida em preocupação.
— Aposto que tá exagerando — Ernesto comentou, ainda rindo.
— Que nada. Ele é brabo mesmo — Joaquim se manifestou, assentindo com a cabeça.
— Hm. Então vou cuidar dos outros cavalos primeiro e depois pego esse pra domar. —
Deu de ombros.
Assim, Ernesto o fez. Após concluir seus afazeres, seguiu para a arena de adestramento.
Colocou suas luvas e bateu suas mãos, retirando um pouco de poeira que estava acumulada
nelas. Cada passo que o homem dava parecia acontecer em câmera lenta, como se existisse
apenas ele e aquele cavalo crioulo de pelagem marrom, uma mistura da raça andaluz e berbere.
O bicho, logo, foi batizado de “queixudo” pela equipe do haras, devido ao seu gênio difícil.
O domador se aproximou lentamente e, aos poucos, foi conquistando a confiança do
equino, até conseguir o cabrestear. Conversava com o animal e assim conseguiu o selar. As
coisas começaram a complicar quando Ernesto, equivocadamente, pensou estar tudo certo para
montar no cavalo, que imediatamente recusou o homem em cima de si.
Passou a saltar e empinar, repetidas vezes, tentando se livrar do adestrador, que tentava
manter a calma e contornar a situação. Seus parceiros gritavam para ele pular, pois estava
laborioso segurar o animal. Vendo que era a melhor opção, optou por seguir o conselho de sua
equipe e saltar do cavalo.
É curioso como a vida se encarrega de fazer as coisas conforme a sua vontade, mesmo
que façamos planos e tracemos objetivos, o inevitável está à espreita de qualquer um.
Ao saltar, o pé esquerdo de Ernesto ficou preso no estribo e, nesse momento, todo o seu
redor bruxuleou, como se o tempo parasse de existir. Não conseguiu se soltar e a única coisa que
pôde fazer foi se proteger do impacto com o braço do coice que levaria, pensou em Valquíria
naquele momento, olhou para baixo e o breu se apoderou suas vistas.

— Valquíria! — Elis gritou, após acordar totalmente suada e respirando profundamente.


— Valquíria! — Gritou mais uma vez, agora, aos prantos.
Não demorou muito para a mulher entrar correndo pela porta do quarto da jovem. Suas
vistas recaíram sobre o berço e viu a pequena Isabel dormindo tranquilamente, no entanto, ao
olhar para Elis, seu coração se partiu em mil pedaços. A sua adorada chorava desesperadamente,
segurando a mulher com força, deslizando as mãos pelos braços e rosto da veterinária. Parecia
querer ter certeza de que Valquíria estava realmente com ela.
— O que foi Elis? O que aconteceu? — Abraçou a sua amada com força, tentando
acalmá-la.
— Eu tive um pesadelo — começou, entre soluços. — Você estava no sonho, tinha um
homem e eu via o sonho por ele. Eu era ele, entende? — Levou as mãos até a face da mulher,
nervosa. — Valquíria, eu morria e ficava sem você.
— Ô, meu amor, foi só um pesadelo. — A veterinária tentou não demonstrar a ansiedade
que se apoderara de seu cerne.
— Não! Não foi! — exasperou-se, os olhos vermelhos pelo pranto. — Foi muito real. —
Afastou-se da mulher, desfazendo o abraço, e a encarou profundamente. — Quem é Ernesto? Era
seu marido, não é?
Bergamoto sentiu seu estômago revirar diante de tal pergunta. Durante todo o tempo que
Elis estava hospedada em sua casa, jamais havia mencionado para ela o nome de seu marido.
Mal tocava nesse assunto por ser capaz de engoli-la em um oceano de tristeza. Realmente, não
tinha sido um simples sonho. Relembrou das palavras de seu padrinho e não pôde evitar o
arrepio que percorreu a sua pele.
— Era ele, não é? — Elis insistiu, pendendo a cabeça para o lado. — Seu rosto não nega.
— Sim, Elis. — Valquíria fechou os olhos, incapaz de encará-la naquele instante. —
Ernesto era o nome do meu marido.
— Por que sonhei com isso? — perguntou, mas não obteve resposta alguma. — Eu... eu
senti o que ele sentia. Eu te amava no sonho — Prosseguia, atropelando as palavras, sem
entender direito o que acontecia. — Dói, Valquíria. Dói muito — proferiu, chorosa, com a voz
falhando, como se um nó a impedisse falar.
— Dói em que lugar, menina? — Arguiu com doçura, tentando acalmar a garota.
— Aqui. — Colocou a mão da mulher sobre seu peito, para que ela sentisse seu coração
descompassado. — Dói demais, como se eu tivesse a perdido pra sempre. — Olhou para a mais
velha, com os olhos carregados de lágrimas, angústia e dor para lhe falar: — Não me deixa! Não
me deixa nunca, Valquíria. Eu te amo muito, não me deixa! — Sua voz era carregada de verdade
e desespero, denotando seu pavor em se ver sem a veterinária. Tamanho era o seu sofrimento,
que não hesitou em declarar o seu amor por ela, pouco se importando se fosse rejeitada.
Valquíria puxou Elis para seu colo e a aninhou em seus braços, beijando o topo de sua
cabeça em seguida. Sentia a angústia da moça e, também, a sua verdade. Sabia o porquê ela
havia sonhado, mas não tinha coragem de contar, por medo de Elis não acreditar em nada e não
acreditar em seu sentimento por ela, de achar que estava com ela por conta da sombra de seu
falecido marido.
A vida, de fato, arquiteta tudo ao seu bel deleite. Mesmo perante a uma situação
conturbada, estava feliz, sentindo seu peito inflar. Elis a amava e a queria como mulher. Não
precisava de mais nada, entretanto, o destino se encarregou de lhe trazer a pequena Isabel para
sua vida, para amplificar sua felicidade.
Beijou a sua amásia na testa, sentindo seus olhos umedecerem, e afastou os fios loiros do
rosto de Elis, admirando-a como uma boba apaixonada. Abaixou-se um pouco e tocou os lábios
da jovem com os seus, fazendo-lhe carinhos na bochecha.
— Eu não vou a lugar algum, Elis. — Roçou seu nariz no da moça, o coração feito uma
supernova. — Já disse uma vez e vou repetir: eu vou te proteger de todo mal. Sabe por quê? — A
jovem negou com a cabeça. — Porque eu também te amo, menina, e quero cuidar de vocês —
olhou para o bercinho e depois para Elis, permitindo-se derramar as lágrimas que continha.
A garota se soltou dos braços de Valquíria e ficou de joelhos sobre o colchão macio,
abraçando a veterinária com a sofreguidão do seu amor.
— Não deixa nada e nem ninguém separar a gente — Elis suplicou, apertando seus dedos
aos dela.
— Eu não vou deixar. — Valquíria ergueu as mãos da jovem, salpicando beijos na tez
acetinada dela. — Não vou te perder, Elis.
A jovem a segurou pelo rosto, com as duas mãos, e lhe deu um beijo apaixonado e calmo,
o suficiente para transmitir todo seu amor. Terminou com um selinho e voltou a se encantar nas
írises escuras da mulher que tanto amava.
— Eu sempre vou te amar — Sentindo uma necessidade extrema, Elis repetiu a frase do
sonho.
O belíssimo rosto de Valquíria se transformou em um caudaloso rio de lágrimas, sentindo
um misto de sentimentos. Felicidade e nostalgia concomitavam em seu âmago. Abraçou Elis pela
cintura e escondeu seu rosto na curva do pescoço da garota, beijando o local. Apoiou o queixo no
ombro de Elis e, então, respondeu:
— Por toda minha vida, eu vou te amar. — Sua voz oscilava por conta do pranto.
Elis fechou os olhos e sorriu.
Não precisou pedir para Bergamoto dormir com ela. Apenas se deitaram uma ao lado da
outra, abraçadas, e dormiram tranquilamente, sem nenhum medo naquele momento.
Havia apenas amor.

.16.
A CALMARIA QUE ANTECEDE A TRAGÉDIA
Faltava pouco para cinco horas da manhã, quando Valquíria perdeu o sono e decidiu se
levantar. Antes de sair da cama, olhou para o lado e fez carinho em Elis, que dormia serenamente
após acordar algumas vezes para amamentar a bebê. Cobriu-a com a manta e a beijou no rosto
para se retirar.
Higienizou-se no banheiro de seu quarto para descer e preparar o café, porém, quando
passava no corredor, ouviu a pequena Isabel choramingar. Entrou e foi até à criança, logo
sentindo um cheiro nada agradável.
— Ei, meu amor. Bom dia! — sussurrou para a bebê, que sorriu para ela. — Parece que
alguém precisa de um banho, não é mesmo? — Pegou a menina no colo e torceu o nariz para o
lado. — Minha Nossa Senhora, Belinha. Você só toma leite, como é possível? — Saiu
resmungando com a menina no colo e deixou Elis dormindo.
Preparou a banheira para a bebê. Pegou um macacão amarelo e um lacinho verde escuro,
enquanto Isabel resmungava no fraldário do banheiro.
— Hora da verdade, mocinha — falou, ao começar a abrir os botões da roupa que ela
usava.
Glorificou aos céus por não ter nada em nível estratosférico e a limpou, seguindo para a
banheira. A menina parecia um peixinho em seu habitat natural, batia os pezinhos, jogando toda
água em Valquíria. Não demorou muito, uma vez que estava um pouco frio naquela manhã,
enrolou Isabel em uma toalha e a aprontou, sendo supervisionada pelos grandes olhos azuis da
bebê.
— Prontinho. Toda cheirosinha e protegida contra assaduras. Agora, vem cá no meu
colinho. — Cheirou-a e brincou um pouco com ela, para só depois descer.
Colocou a criança no colchãozinho que tinha na sala, cheio de brinquedos pendurados
para a entreter, e foi aquecer o leite que Elis havia tirado e guardado na geladeira. Enquanto isso,
passou o café e preparou a mesa do jeito que ela sabia que Elis gostava.
— Belinha — cantarolou. — Ei, meu cheiro, vamos encher esse buchinho de leite? Hm?
— falou com a voz afinada, causando algumas reações na bebê.
Pegou-a no colo e se sentou no sofá, cantando baixinho, enquanto a criança tomava o
leite da mamadeira. Estava tão distraída que não percebeu Elis no andar de cima observando as
duas.
— Ela te adora — Elis disse, já terminando de descer a escada.
— Eu que a adoro — respondeu, levantando-se para colocar a bebê apoiada em seu
ombro. Agitava o corpo lentamente, cantarolando para Isabel.
— Ela dormiu — Elis comentou, admirada — Ela dorme muito fácil com você.
Valquíria sorriu para ela e colocou a menina no colchão, ajeitou os fios escuros da
menina com o lacinho e se levantou.
— Durma bem, meu abacaxizinho. — Elis a olhou confusa, causando risos na veterinária.
— Abacaxi? — Arqueou uma das sobrancelhas. Por isso colocou um macacão amarelo e
um laço verde?
— Claro! Eu sou uma pessoa criativa. — Valquíria ergueu as sobrancelhas várias vezes
seguidas.
— Você não tem jeito. — Segurou na mão de Bergamoto e a abraçou. — Já tomou café?
— Ainda não, mas deixei a mesa preparada. Vamos? — Beijou a testa de Elis e sorriu
para ela.
Durante o desjejum, mesmo que sorrisse e conversasse tranquilamente com Valquíria, a
jovem Teixeira estava dispersa. Ainda pensava no sonho que teve, achando aquilo tudo muito
estranho, tão real.
— Elis, tudo bem? — Valquíria pousou uma das mãos no rosto de Elis, despertando-a de
seu transe.
— Hã? Sim, tudo sim. — Elis baixou os olhos, fingindo interesse na comida.
— Não parece! — A veterinária cerrou o cenho. — Você tá distraída.
— Ah! Não é nada de importante, só tô pensando no sonho dessa noite. — Levou um pão
de queijo até a boca, mastigando lentamente.
Valquíria ponderou se comentava algo do que sabia sobre reencarnação, contudo, não se
sentiu preparada e nem a pessoa adequada para isso. Segurou a mão de Elis e fez uma carícia
sutil, sorrindo para a tranquilizar.
— Não pense muito sobre isso, agora você precisa devotar sua preocupação para sua
filha. — Assoprou a caneca esmaltada e levou aos lábios róseos. — No momento certo, você terá
suas respostas.
— Tá certo. — Bebeu de sua xícara de leite queimado e voltou a falar. — Como o tempo
passa rápido! Isabel já vai fazer um mês.
— E você vai querer comemorar isso? — Recostou-se na cadeira e cruzou os braços,
prestando atenção em Elis.
— Não, pra que isso? — Elis deu de ombros — Talvez um café da tarde com seus pais,
Cássia e Henrique.
— Tudo bem, mas se quiser fazer algo, podemos fazer. — Devorou um pedaço de broa
de milho e fechou os olhos para apreciar seu sabor.
Elis apenas concordou com um aceno positivo da cabeça e sorriu, comendo suas frutas
com mel. Elas conversavam sobre amenidades, gargalhando de brincadeiras de Valquíria em um
momento de completa felicidade, que foi abruptamente interrompido por uma mensagem no
telefone da veterinária. Bergamoto sentiu seu sangue congelar ao verificar quem era e do que se
tratava o assunto.
— Algum problema no trabalho? — Elis questionou inocentemente.
— Não. — Valquíria respondeu com a voz vaga.
— Então, o que é? — Pendeu a cabeça para o lado, o rosto contorcido em dúvida. —
Quem te mandou mensagem?
— Sua mãe. — Suspirou, levando uma das mãos até a testa.
— Ela não se cansa? — Elis revirou os olhos, irritadiça. — Eu já a bloqueei justamente
pra isso. O que ela quer?
— Ela disse que chega em três dias. — Valquíria mordeu o lábio inferior, ansiosa.
— O quê? Pra quê? — Começou a alterar o tom de voz, esquecendo-se que a filha dormia
na sala.
— Seu pai vem também. — Tamborilou os dedos na mesa, correndo o olhar pela cozinha.
Elis arregalou os olhos, tremendo, e depois falou:
— M-meu pai? O que eles querem? — Passou a hiperventilar, por pouco não sucumbindo
ao pânico.
Valquíria saiu da cadeira e ficou de joelhos diante da moça, segurando as suas mãos com
força.
— Elis, olha pra mim. Eles vêm te buscar — ditou em tom firme, com os olhos
marejados.
— Valquíria, eu não vou! — choramingou. — Eles vão me separar da minha filha. Eles
não podem me obrigar — falou alto, atropelando as palavras que proferia quase sem fôlego.
— Minha menina, olha pra mim. — Valquíria declamou calmamente. — Você confia em
mim?
— Confio. — Assentiu seguidas vezes com a cabeça.
— Eu vou fazer o impossível pra te proteger e, talvez, eu tenha que tomar atitudes que
façam seus pais me odiarem ou até mesmo te rejeitarem — advertiu em um tom preocupado,
ainda prostrada diante de sua amada.
— Mais? — Riu desgostosamente. — Fizeram isso desde que descobri a minha gravidez.
— Então, tudo bem se eu tomar alguma atitude que gere essas consequências? — A
veterinária entrelaçou os dedos da mão, encarando-a atentamente.
— Eu não ligo pra eles, Valquíria. — Deu de ombros. — Eles não me querem, eles não
querem a minha filha. O que eles sentem falta é do status de família perfeita. — Sentiu um
amargor tomar conta da boca.
— Mesmo que diga isso, minha querida, eles ainda são seus pais e o que eles dizem é
importante para você. — A mais velha correu um dedo pelo rosto de Elis, acariciando-o. — Vão
te ferir, mesmo que você finja que não.
— Eu sei, mas se eles me amassem, jamais teriam feito o que fizeram comigo. — Baixou
os olhos, tristonha. — Não se abandona um filho.
— O mundo dá voltas, Elis, não se preocupe com isso. — Beijou as mãos da moça. —
Vamos aproveitar esses dias até eles chegarem. Pense pelo lado bom, ela me avisou e por isso,
vamos poder nos preparar. — Olhou para o relógio e viu que já beiravam as sete horas. — Eu
tenho que ir daqui a pouco, mas vou esperar a minha mãe chegar pra ficar com você e só depois
ir.
— Não precisa se atrasar por minha causa — declarou, acabrunhada, as mãos pousadas
sobre os joelhos.
— Preciso, sim. Preciso e quero. — Deu um sorriso acalorado. — Vou cuidar de você e
da nossa menina — Elis sorriu com a pontada de felicidade que sentiu ao ouvir as palavras de
Bergamoto.
— Nossa menina — confirmou, sorrindo, e se aproximou de Valquíria para a beijar.
— Ahram! — Dolores pigarreou, chamando a atenção das duas.
Elis e Valquíria ficaram estáticas, voltando a mexer o corpo aos poucos para se
afastarem. Bergamoto voltou a se sentar em seu lugar e virou seu rosto na direção da porta, onde
sua mãe estava.
— Mamãe, você precisa deixar de ser inconveniente — a veterinária disse, levemente
emburrada. Não tinha mais o que fazer
— Eu não preciso mudar nada! Eu hein! — Fez-se de brava, tirando um riso de Elis. —
Bom dia, meu amor — cumprimentou Elis e beijou-a no topo da cabeça. — Quando as bonitas
iam me contar? — Ficou entre as duas e cruzou os braços, fingindo aborrecimento.
— Com ela é “bom dia, meu amor”, né? — Levantou-se para abraçar a mãe.
— Deixa de ser ciumenta. — Abraçou a filha e a beijou no rosto. — Como vocês estão?
— sussurrou no ouvido de Valquíria.
— Não muito bem, mas depois te conto. — Afastou-se levemente da mãe, ajeitando os
cabelos atrás da orelha. — Faz a Elis sorrir por mim — ditou, também aos sussurros.
— Não precisa dizer duas vezes — respondeu, ainda baixinho. — Não vão responder
minha pergunta? — Elevou o tom de voz para que Elis ouvisse agora.
— Contar o quê, mamãe? — Valquíria perguntou aos risos, sendo acompanhada por Elis.
— Ah! O beijo que eu vi foi uma miragem provinda de um desejo muito forte meu,
obviamente. — Revirou os olhos, pousando a mão na cintura.
Todas riram dos dizeres de dona Lola e as duas abraçaram a mulher. Tudo o que elas
precisavam naquele momento era de apoio incondicional, pois enfrentariam um momento
turbulento dentro de três dias. Mas Valquíria bem conhecia sua mãe e seu pai; sabia que eles
davam um boi para não entrar em uma briga, no entanto, davam uma boiada para não sair de uma
e poderia confiar cegamente nos dois.

.17.
TSUNAMI DE ENERGIA RUIM
Elis e Valquíria se prepararam para a chegada de Omar e Selina, no entanto, a jovem
sabia como o pai se portava ao encucar com algo e o temia por esse motivo. Tinha receio que
tirassem a menina dela, ou pior. Mal dormiu na noite anterior pensando em mil situações que
poderiam acontecer nesse dia em questão. Bergamoto decidiu que ficaria em casa para não ter
surpresas desagradáveis e ter de sair às pressas da clínica veterinária.
Tentou acalmar Elis de todas as formas, porém, isso parecia impossível para o momento.
Dona Lola chegou pouco depois das dez horas da manhã para ficar com elas, posto que não
deixaria suas três meninas sozinhas e desemparadas para enfrentar o tsunami de energia ruim que
estava por vir. Acendeu alguns incensos de purificação pela casa e fez um chá de cidreira com
limão para acalmar tanto Valquíria quanto Elis. A pequena Isabel, que estava no carrinho com
elas, dormia tranquila, sem nem imaginar o que vinha pela frente.
Perto de meio-dia Valquíria avistou, da varanda de sua casa, o carro dos pais de Elis se
aproximando da porteira do seu sítio. Entrou em casa para avisar sua mãe e a moça que eles
haviam chegado.
— Elis, seus pais chegaram. — Vislumbrou a jovem ficar tensa e segurar o ar por um
tempo. Aproximou-se e segurou suas mãos com carinho e a chamou: — Elis, vai dar tudo certo.
Ainda está certa do que quer?
— Sim, Val. — Baixou os olhos, respondendo baixo.
— Tudo bem, então, eu fazer o que tiver de fazer? — Valquíria elevou o rosto de Elis,
com as pontas de seus dedos e a fitou.
— Já disse a você que sim, Val. — A jovem não sustentou a mirada, tornando a pender a
cabeça. — Estou de acordo com tudo o que você disse a mim ontem e tudo o que fizemos para
proteger nossa filha. — Olhou para as mãos das duas e exibiu um sorriso amarelo.
— Eles estão acabando de subir o morrinho. — Dona Lola se manifestou ao se aproximar
delas com Isabel no colo.
— Vamos, Elis? — Valquíria a chamou, recebendo a concordância da mais jovem em
resposta. Segurou na mão da veterinária e seguiram para a varanda da casa. De lá já puderam ver
o casal de braços dados rumando à casa.
Selina, ao avistar a filha, soltou-se do marido e deu uma breve corridinha para encontrar
Elis, como se nunca tivesse feito algo ruim com a garota. Valquíria soltou o braço da garota e
assistiu à dentista abraçando a filha sem ser retribuída. Omar, que era mais calado, chegou logo
após.
— Que saudade, minha filha — Selina apertava Elis, que mantinha os braços imóveis,
distribuindo beijos no rosto da filha.
A dentista avistou Dolores, logo atrás de Elis, com a menina no colo e, mesmo negando,
achou a bebê a coisa mais linda do mundo. Soltou-se da filha e deu espaço para o marido. Omar
não disse e não fez nada, apenas olhou para a própria filha com certo desdém, fazendo a jovem
se sentir insignificante diante dele.
— Fizeram boa viagem? — Valquíria perguntou para atrair a atenção dos dois.
Selina mantinha seus olhos em Isabel, enquanto seu marido encarou a Bergamoto.
— Quanto tempo, Valquíria! — Acenou com a cabeça, a expressão abrandando por um
segundo. — Faz anos que não nos vemos. A última vez foi...
— Há muito tempo. — A veterinária o cortou, quando se deu conta que ele falaria do
velório de Ernesto.
— Espero que Elis não tenha dado trabalho — ele murmurou, sério, desviando os olhos
hostis brevemente para a filha.
— Acredite, Elis não é o problema aqui. — Cravou um olhar bélico sobre o homem,
desafiando-o e Omar entendeu o recado, vestindo a carapuça perfeitamente.
— Elis, precisamos conversar — Selina disse ao se aproximar do marido.
— Vocês não vão querer conhecer a neta de vocês? — Elis perguntou, em um último fio
de esperança que Isabel amoleceria o coração de pedra dos dois.
Selina olhou para o marido esperando uma resposta dele que, pela primeira vez, olhou na
direção do bebê no colo de Dolores e voltou sua atenção para a filha dizendo:
— Eu não tenho neta! — Asseverou a feição de seu rosto, o cenho cerrado.
Valquíria percebeu a decepção de Selina ao ouvir as palavras de Omar, mas decepção
maior foi a que viu nos cintilantes olhos de Elis.
— Não se diz isso de uma boneca tão linda quanto a Belinha, senhor — Dona Lola falou,
apertando a bebê levemente em seus braços. — Garanto ao senhor que não é ela quem está
perdendo aqui.
— Vamos direto ao ponto — Elis se manifestou, chamando a atenção de todos. — Vocês
vieram me buscar, eu sei, mas adianto que não vou com vocês.
— Como se você tivesse escolha — Omar resmungou, enquanto esquadrinhava a filha
com os olhos, o lábio superior dando uma leve tremida. — Você vai conosco, vai se livrar dessa
coisa e vai se formar em Direito!
— Amor — Selina o chamou, recostando a mão sobre o ombro dele —, por que não
criamos a bebê como nossa filha? Ela é tão linda, eu...
— Isso parece razoável, mas não quero. — Afastou-se de sua esposa com leve
truculência. — Não temos mais idade para isso e não quero ter que olhar constantemente para
uma lembrança de um erro de Elis. — Ergueu o queixo de forma soberba, os olhos faiscando. —
Quero essa coisa longe da nossa vida.
— Omar... — Selina tentou, mas o homem a silenciou com um olhar furioso.
— Vocês já pararam pra ouvir as baboseiras que estão falando? — Valquíria borbulhava
de indignação, o ódio crepitava dentro de seu âmago, principalmente por ver Elis chorando. — A
Elis não vai e a Isabel também não. Elas ficam aqui. Comigo. — Estendeu o braço direito na
altura do busto de Elis, em um sinal claro de proteção.
— Valquíria, não interfira! — A voz do pai de Elis elevou uma oitava e uma veia saltava
em sua têmpora. — Isso não tem nada a ver com você.
— Como não, Omar? — A veterinária deu alguns passos, pondo-se entre Elis e seus pais.
— Você virou as costas pra sua filha, abandonou ela e você também, Selina. — Indicou a
dentista com a cabeça e ela se encolheu por um momento. — Quem a acolheu fui eu! —
Intensificou a sua fala, digladiando com o tom de voz de Omar. — Quem cuidou que cada ferida
e a ajudou fui eu! Quem fez o parto fui eu! Eu dei tudo o que ela precisava e muito mais! Já
vocês?! — Deu de ombros, irritadiça. — Vocês deram decepção aos montes. Elis não vai e
ponto!
— Quem você pensa que é, sua caipira xucra? — Omar questionou em um grito, os
punhos cerrados.
— Eu sou xucra? — Gargalhou de deboche, pendendo a cabeça para trás. Aquilo só
podia ser uma piada. — Não sou eu que sou um brutamontes que se esconde atrás de um
diploma!
— Valquíria, não finde com o resto de respeito que tenho por você! — O advogado
exibiu o dedo em riste, sua face rubra por conta da ira.
— Eu tô pouco me fodendo pro seu respeito, seu desgraçado! — Valquíria continuou
rindo, porém seu olhar revelava a verdadeira emoção que inundava a sua alma.
— Pai, eu sou maior de idade! — Elis interferiu antes que a situação piorasse, se é que
podia evitar isso. — Você sabe que não tem como me obrigar, ou vai me levar em cárcere
privado?
— Você não vai, Elis. Já disse! Confia em mim. — Segurou na mão da jovem e sorriu
sem mostrar os dentes para ela.
Selina, testemunhando tal cena, ficou cismada. Logo se irritou e partiu cheia de perguntas
para cima de Valquíria.
— Qual é a sua, Valquíria? — Pôs a mão na cintura, esganiçando-se. — Só por que ficou
com a minha filha hospedada na sua casa por um tempinho, acha que tem poder sobre ela?
— Tempinho? — A veterinária acentuou sua expressão de sarcasmo, unindo as
sobrancelhas. — Ha, ha, ha! — Meneou negativamente com a cabeça. — Veja lá como fala
comigo, Selina.
— Não me faça pensar coisas de você, Valquíria Bergamoto! — Selina bateu o pé com
força no chão. Ameaçou avançar sobre Valquíria, mas Omar segurou com firmeza em seu braço.
— Pensar que coisas? Despeja logo. — A veterinária encarava com a intensidade de todo
o seu ódio, a face, agora, contraída em uma carranca horrenda.
— Do que vocês estão falando? — Omar questionou, um pouco perdido, ou fingindo não
entender.
— Você só pode estar de brincadeira comigo! — Selina finalmente entendera o que
estava acontecendo, mas se negava acreditar que uma mulher na idade de Bergamoto estaria se
envolvendo com sua filha, ou que Elis estaria com uma mulher.
Valquíria não disse nenhuma palavra, apenas levantou sua mão esquerda e a de Elis para
que eles vissem as alianças. Selina não conseguiu emitir nenhuma palavra ou ter alguma reação,
já Omar, ao ter certeza que a filha estava tendo um relacionamento com a mulher, partiu para
cima da filha, possesso de ódio.
— Eu não tenho filha sapatão! — Gritou, segurando a jovem pelos braços.
— E não tem mesmo, conhece bissexual? — A garota berrou com seu pai, movendo-se
para tentar se soltar.
— Você vai embora e vai acabar com essa palhaçada, ouviu, Elis? — Quase espumava
pela boca, pois tamanha era sua raiva. — Você vai virar gente, caralho! — Sacudia a filha em
uma forma desesperada e bruta para a fazer voltar ao normal que ele acreditava.
— Larga ela, porra! — Valquíria tentou soltar a jovem, mas não tinha força suficiente
para competir com Omar.
— Virar gente como você e a mamãe?! — Elis praticamente cuspiu as palavras. — Você
com suas amantes na rua e a mamãe te traindo todas as vezes que você viajava? — Içou o queixo
da mesma maneira altiva de seu pai, enfrentando-o também com os olhos cerúleos. — Eu prefiro
ser piranha na boca do povo que ser como vocês! — Elis também respondeu aos gritos,
mostrando-se mais corajosa que pensava ser.
A agitação era tanta que Isabel começou a chorar, mas Dolores não queria deixar as duas
sozinhas enquanto estava ali. Correu para dentro de casa e ligou para o marido, que a
tranquilizou dizendo que estava chegando. Voltou para a varanda e ficou em desespero,
totalmente pálida, ao ver o homem sufocando a própria filha, enquanto a esposa tentava soltar as
mãos do marido. Procurou por Valquíria e não a viu, ficando ainda mais exasperada.
— Senhor, larga ela! — implorou a idosa, com seus olhos marejados. — Tô chamando a
polícia! — Lola mostrou o celular em chamada, tentando fazer qualquer coisa para separar o
homem da menina. — Cadê minha filha, Selina? — Ela perguntou, temerosa.
— Não sei daquela sapatão desgraçada! Saiu correndo quando tudo virou uma confusão
e... — Assustou-se ao ouvir um barulho de tiro. Ao olhar para trás, viu Valquíria com uma
espingarda nas mãos.
A veterinária foi andando na direção do homem com a arma em riste, direcionada a ele.
Omar a encarava sério, afrouxando o aperto no pescoço de Elis, porém, ainda a mantendo presa
em suas mãos.
— Solta ela! Agora! — Valquíria rosnou, com o rosto rente ao cano da arma, mantendo o
homem em sua mira o tempo todo.
— Você não teria coragem! — retrucou Omar e trouxe o corpo de sua filha para ainda
mais perto dele. — Acertaria a Elis — argumentou acidamente, com um sorriso facínora na boca.
— Saiba que tenho a mira excelente. — O homem debochou dela, assustando-se com o
tiro próximo ao seu pé. — Eu errei de propósito e o próximo eu não vou. — Acariciou o gatilho
com seu dedo indicador. — Solte a minha esposa! Agora! — gritou, armando a espingarda
novamente.
— Omar, por favor, querido. — Selina choramingava e fungava, porém não tinha
coragem de ir até o marido. — Elis é nossa filha.
O homem, resignado, soltou a filha, empurrando-a contra o chão. Dolores correu em
socorro da jovem, ajudando-a a se levantar e ir para longe do pai. Valquíria, em um momento de
distração ao observar Elis, aliviada, baixou a guarda e acabou sendo derrubada por Omar.
Conseguiu jogar a arma para longe, para que o homem não a pegasse e tentou se defender como
podia, no entanto, foi inevitável receber golpes em seu rosto.
Dolores e Elis estavam desesperadas, mas a mulher não conseguiu ver sua filha
apanhando injustamente. Entregou Isabel para Elis e pegou o chicote que decorava a varanda de
Valquíria, não pensando duas vezes em açoitar o homem com toda sua força. Omar arriou as
costas, mas não cedeu à ardência. Estava tomado pelo ódio, não se importando com as
consequências.
A jovem e Dona Lola gritavam para o homem parar, temerosas com o que poderia
acontecer com a veterinária. Selina também tentou tirar o marido, mas acabou sendo empurrada
para o chão. Valquíria já não conseguia mais se defender, Omar era muito mais forte que ela, por
conta disso, estava com a face cortada e cheia de hematomas, também cuspia sangue.
Em meio àquela confusão, Augusto chegou acompanhando dos funcionários de Valquíria
e vendo a situação que a filha se encontrava, não pensou duas vezes em puxar o homem de cima
dela e lhe socar a cara, deixando-o zonzo no chão. Foi segurado pelos outros presentes, pois
também se descontrolou e ansiava por desfigurar o homem que ousou bater em sua filha. Elis
rumou até a veterinária, com Isabel em seus braços, e verificou se estava tudo bem, buscando
alívio nas palavras da Bergamoto mais jovem.
— Val, meu amor, como está? — Ajoelhou-se, suas lágrimas banhando a face
ensanguentada de Valquíria.
— Viva — brincou, dando um sorriso fraco. — Vai ficar tudo bem, minha menina.
Senhor Augusto conseguiu se desvencilhar das mãos que o continham, andejou
furiosamente até Omar e o chutou na barriga seguidas vezes. Estava irado com o estado de sua
filha.
— Pegue sua esposa e vá embora! — Vociferou, apontando para a porta. — Não volte
mais aqui! E não toque mais em minha filha, ou não verá o sol nascer de novo! — Olhou para a
dentista, que jazia sentada no chão completamente atordoada, e prosseguiu: — Vamos, ajude o
imundo do seu marido e saiam daqui antes que a polícia chegue! — Manteve-se diante de Omar,
pronto para atacá-lo novamente se tentasse revidar. — Não quero vocês aqui nunca mais, ou
perturbando minha família. Vocês não são mais bem-vindos aqui.
Selina, com dificuldade, saiu amparando o marido até o carro e partiu com ele, deixando
um buraco no coração da filha e um estrago no rosto de Bergamoto. Independente da confusão e
das dores causadas, estavam bem, pois finalmente sentiam que teriam um pouco de paz, ao
menos por um tempo.

.18.
NOSSA FAMÍLIA
Augusto conversava com os policiais no quintal, enquanto Dolores fazia curativos no
rosto da filha. Elis havia acabado de fazer Isabel dormir e a colocou em sua caminha, que ficava
na sala, para ir até Valquíria. Sentia-se horrível por vê-la naquelas condições horrorosas, afinal,
foi seu pai que a machucou tão brutalmente.
— Você está bem mesmo? — Elis perguntou baixinho, segurando a mão da veterinária
para fazer carinho.
— Tô sim, Lis. — Assentiu com a cabeça. — Não se preocupe com isso.
— Como não? — A jovem a enfitou com os olhos cintilantes de lágrimas. — Olha como
o monstro do meu pai te deixou... — murmurou, a voz embargada pelo choro que ameaçava vir.
— Eu me sinto tão mal por isso.
— Não deveria, Elis — Valquíria respondeu com toda a calmaria do mundo.
— Claro que devo. — Pendeu a cabeça, beijando as mãos da veterinária.
— Elis, meu anjo, você não tem nada a ver com a brutalidade que seu pai fez com
Valquíria. A culpa é inteiramente dele. — Dona Lola se intrometeu, apoiando uma das mãos no
ombro da menina em um acalento gentil.
— Mamãe está certa, Lis. — Valquíria levou um dos dedos ao rosto de Elis, secando a
lágrima solitária que desceu em seu rosto.
A garota aceitou, ainda que resignada, e acenou positivamente com a cabeça. A jovem
enfitava Valquíria com tanto amor que Dolores não conseguiu se manter calada. Tinha escutado
muitas informações no meio daquela confusão que mal podia se conter para perguntar. Nada
passava batido aos ouvidos poderosos de dona Lola.
— Acho que agora as duas podem me esclarecer algumas coisas — introduziu o assunto,
coçando levemente a cabeça.
— Que coisas? — Valquíria perguntou para a mãe, mesmo que sua mirada estivesse em
Elis.
— Coisas como “minha esposa”, alianças nos dedos. — Cruzou os braços sobre o peito,
com a sobrancelha franzida. — Quando fizeram isso e quando iam me contar?
As duas riram com a pergunta de Dolores. De fato, foi uma ótima decisão não contar
nada do que planejaram a ninguém.
— Não nos casamos, se é isso que a senhora quer saber — Bergamoto se antecipou, ainda
rindo.
— Ah, não? — A mulher estava visivelmente confusa, correndo o olhar de Elis para sua
filha diversas vezes.
— Não! — Moveu a cabeça em um manejo negativo. — Bem que tentamos, mas a juíza
de paz não podia fazer isso na pressa e também não tinha agenda! — Deu de ombros. — Como
não tínhamos muito o que fazer, compramos um par de alianças e fingimos que havíamos casado
apenas pra deixar claro que eles não levariam as duas. — Valquíria explicou, causando risadas
na mãe.
— Vocês duas não tem jeito! — Estalou a língua contra o céu da boca seguidas vezes.
— Mas não é de tudo mentira, dona Lola. — Elis se pronunciou tranquilamente, sorrindo.
— Demos entrada nos documentos para a união estável pra nos resguardarmos.
— Não acham que é muito cedo? E se der errado? — Ela questionou com cuidado, o
olhar transbordando preocupação. Ainda possuía receio por conta do tanto que a filha sofreu com
a perda do marido e não suportaria vê-la em frangalhos novamente.
— Cedo é tão relativo, mamãe. — A morena deu de ombros. — Estamos na mesma casa
há quase um ano, conhecendo-nos dia após dia. — Direcionou as pupilas para Elis, enfitando-a
apaixonadamente. — Amo a Isabel como minha filha e você sabe, dona Lola, a senhora sabe que
eu amo a Elis e não é de hoje.
A mulher deu uma gargalhada e observou para as duas, inundada de felicidade.
— Pois saibam que as duas têm minha benção. — Sorriu até mesmo com os olhos. — E
você, Elis, é mais que minha nora. É minha filha também e digo que Augusto se sente da mesma
forma. — Aproximou-se das duas e as uniu em um abraço triplo.
— Eu também amo vocês como meus pais, dona Lola. — Elis choramingou novamente,
dessa vez por conta do júbilo que pulsava em seu coração.
— Papai já sabe? — Valquíria deu dois passos para trás, com os olhos arregalados.
— Rá! Valquíria, acha mesmo que seu pai é besta? — Debochou da filha com uma
risadinha. — Ele te ama independente de qualquer coisa. — Deu um suspiro, esboçando uma
feição lenitiva. — Quando ele veio conversar comigo e me perguntar, ele tava confuso, mas você
o conhece. Ele não ficaria longe de você em hipótese alguma. Você é o orgulho dele e o meu
também. — Sorriu mais uma vez.
A veterinária, comovida com as palavras de sua mãe, deixou as lágrimas deslizarem por
sua face, causando certo incômodo em suas feridas. Tentou secá-las, entretanto, sentiu ainda
mais dor. Acabou rindo junto de Elis e Dolores.
— Não se esforce, Val — A jovem pediu também com o olhar, aproximando-se da mais
velha e beijando seu ombro.
— Vou tentar. — Apertou a mão da amásia e sorriu para ela.
Elas riam das caretas de Valquíria ao colocar compressas de camomila sobre os inchaços
quando Augusto entrou acompanhado de um dos policiais. Valquíria o conhecia bem, era o
delegado da cidade e já imaginava o que o homem queria.
— Meu bem, como você está? — Augusto perguntou ao se sentar perto da filha.
— Dolorida, pai, mas bem. — Deu um longo suspiro. — Olá, delegado Brandão.
— Pode me chamar de Jorge, Valquíria. — O homem respondeu, sem jeito. —
Praticamente crescemos juntos.
— Agora você está de serviço, te devo respeito. — A veterinária assentiu com a cabeça.
— O que o senhor deseja?
Ele concordou e tratou de falar de trabalho:
— Já colhi os relatos dos seus funcionários, que presenciaram a agressão e do seu pai. —
Jorge Brandão, um homem alto, de cabelos curtos pretos, sobrancelhas grossas e marcantes olhos
castanhos escuros, entrelaçou os dedos das mãos, encarando atentamente a veterinária. — Agora
preciso do seu depoimento e saber se você quer prestar queixa contra Omar Teixeira.
Valquíria olhou para Elis, como se a consultasse, e voltou sua atenção para o policial.
— Não, delegado Brandão. — Fechou os olhos por um átimo. — Não vou prestar quei...
— Vai sim! — Elis interferiu, exasperada. — Você vai dar parte sim! Meu pai cometeu
um crime e tem que pagar por isso! — Asseverou a expressão, os olhos semicerrados. — E
vamos pedir medida protetiva contra eles também.
— Elis, você não precisa fazer isso... — Tentou argumentar Valquíria, com a voz branda.
— Ele tentou matar nós duas, Valquíria! — Elis exibiu as mãos espalmadas em tom de
obviedade. — É óbvio que preciso e quero! Eles não são mais nada para mim.
— Tem certeza? — A veterinária inquiriu mais uma vez, buscando um olhar que Elis não
correspondeu.
— O que precisamos fazer, senhor Brandão? — Elis perguntou, mais segura que nunca,
— Bom, vou gravar o que vocês têm a falar individualmente e colocar no processo —
declarou com o tom de voz neutro, correndo as vistas pelo recinto e os presentes. — Precisarei
do seu depoimento também, dona Lola. — Direcionou-se para a senhora. — A senhora viu tudo,
certo?
— Não precisa pedir duas vezes. Faço com gosto! — Deu um tapinha no tampo da mesa
próxima a ela, decidida. — Ninguém encosta nas minhas meninas.
O delegado saiu já passando das dezesseis horas. Valquíria não queria mais se envolver
naquela confusão, apenas desejava sua medida protetiva e de Elis e se esquecer que esse episódio
existiu. Enquanto Dolores e Elis cuidavam de Isabel e preparavam algo para comer, Augusto
levou a filha ao médico, para ser devidamente examinada, na cidade vizinha.
— E então? — O homem perguntou à Silvia, a médica que atendia sua filha.
— Por sorte ela não teve nenhuma lesão séria no rosto. — A mulher ajeitou os óculos no
rosto. — Porém, Valquíria, seu nariz teve uma leve fratura. — Comprimiu os lábios
pesarosamente. — Vou ter de imobilizá-lo e a senhora trate de ficar de repouso em casa. Nada de
trabalhar.
— Nem montar? — A veterinária bufou, cruzando os braços.
— Muito menos! — A mulher arregalou os olhos. — Quanto menos estrepolias você
fizer, mais rápido você volta à sua rotina!
— Isso por que você disse que não precisava vir ao médico. Teimosa feito uma mula.
Igualzinha à sua mãe! — Agitou a cabeça negativamente, inconformado com a imprudência da
filha.
— Deixa a mamãe saber que o senhor a chamou de mula — comentou com um risinho,
ansiosa para ver a reação do pai.
— Eu não disse isso, Valquíria! — O homem se apressou a dizer, claramente assustado.
— Pelo amor de Deus, pode parar de gracinha.
— Hm, ficou com medo da mamãe! — Riu abertamente da expressão de seu pai.
— Claro, você viu o que ela fez nas costas do Omar? — Augusto respondeu ainda
alarmado. — A blusa do homem tava toda rasgada com as chicotadas que ela deu.
— Ai, papai, o senhor não tem jeito! — Meneou a cabeça negativamente. — Será nosso
segredinho. — Continuou rindo, fazendo a médica rir também.
— Ok, Valquíria, risadas assim também não pode. — A mulher se deu conta do que
fazia, tornando a ficar séria. — Força seu nariz.
— Ah, mas que sacrifício, será isso! — lamuriou-se, afundando seu corpo no travesseiro
macio.
A médica receitou alguns remédios para a veterinária e a liberou. Antes de ir para casa,
Augusto comprou tudo o que a filha precisava para, só depois, tomarem o caminho para a cidade
deles e, assim, para o sítio de Valquíria.
— Não tem nada pra me contar? — Lançou um olhar inquisitório à sua filha.
— Contar o quê, pai? — Valquíria deu de ombros. — Eu sei que você sabe de tudo já —
Riu um pouco, muito mais pelo nervosismo do que qualquer outra coisa. — Estamos bem?
— Ainda tem dúvidas? Não é por que nasci no meio do mato e tomo conta de gado que
não sei o que é amar, minha filha. — O homem deu palmadinhas carinhosas sobre a perna da
filha. — Eu jamais te abandonaria ou te julgaria. Eu te amo, independente de quem você goste.
Se te faz bem, que mal tem? — Manteve os olhos na estrada.
— Como eu queria que todos os pais do mundo fossem como os meus. — Suspirou,
apoiando o braço na janela do carro. — Eu sei que não devo satisfação da minha vida a vocês,
que sou uma mulher adulta, mas não existe sensação melhor que saber que estão do meu lado
independente do que for. — Deu um sorriso aliviado. — Eu amo tanto o senhor e a mamãe.
— Eu sei e ela também sabe. — Estufou levemente o peito, orgulhoso. — Somos os
melhores pais do mundo — ditou em tom convencido.
— Pois, são mesmo. Os melhores! — Olhou um pouco para a paisagem, sorriu ao pensar
em algo e olhou para o pai.
— Que sorrisinho é esse? — inquiriu, ao olhar para a filha de soslaio.
— Como se sente sendo vovô? — Tornou a enfitar o pai, com um sorriso maroto nos
lábios.
O senhor segurou o volante com força e se manteve olhando para frente. Até então, não
tinha pensado nisso. Tinha grande carinho por Elis, mas não tinha se dado conta que havia
ganhado uma neta.
— Mais feliz impossível. — Tamborilou os dedos no volante e assentiu com a cabeça. —
Acho que devo começar a desempenhar meu papel de vovô babão que estraga os netos.
— Claro que sim, vovô Guto — confabulou em tom de brincadeira e viu os olhos de seu
pai umedecerem ao ponto de uma singela lágrima escapar por sua face.
— Olha o que você fez comigo, Valquíria! — reclamou ao se dar conta que estava
chorando, fechando a cara.
— Tudo bem, pai. — Valquíria não mais brincava, também com os olhos marejados. —
Eu finalmente te dei a neta que você tanto queria. Demorou, não foi como havia planejado anos
atrás, mas foi com o mesmo amor.
— Obrigado! — Ele segurou a mão da filha, que retribuiu o carinho, e sorriu.
Chegaram na casa de Valquíria à noite. Dolores havia preparado o jantar com a ajuda de
Elis, que momento e outro parava para cuidar de Isabel. Augusto foi para o banheiro lavar o
rosto e a veterinária foi conversar com sua mãe e Elis, subindo em seguida para se banhar. Ao
retornar, encontrou a jovem Teixeira amamentando Isabel na sala, enquanto seus pais estavam na
cozinha. Cochichou algo no ouvido de Elis, que sorriu para ela, e a beijou nos lábios.
Mesmo machucada, pegou a bebê no colo e foi para a cozinha acompanhada de Elis. Viu
seus pais sentados à mesa, conversando sobre alguma coisa, e chamou a atenção dos dois com
um pigarrear.
— Eu já iniciei esse assunto com o pai, mãe, mas quero reforçar. — Pousou o olhar sobre
os dois. — Vocês sempre me pediram tanto por isso, que acho que já haviam desistido. — Deu
um longo suspiro. — Demorou, mas posso dizer com segurança que lhes dei uma neta. Não é,
Belinha? Vovô Guto e Vovó Lola.
Augusto e Dolores se levantaram e abraçaram Valquíria e Elis. Não foi como eles
imaginaram, mas não podiam negar que estavam muito felizes.
— Nossa neta! — Dolores disse ainda no abraço.
— Não, meu amor. Nossa família — corrigiu Augusto em tom de ternura.
O homem pegou a menina no colo e ficou brincando com ela, enquanto as mulheres se
sentaram para comer. Dessa forma, o dia que começou desastroso na casa de Valquíria, terminou
tranquilo e cheio de amor.

.19.
PREPARATIVOS
O dia marcado para o casamento de Elis e Valquíria estava chegando, seria no próximo
sábado, mas isso parecia não afetar tanto as duas envolvidas quanto estava mexendo com
Dolores. A senhora bateu o pé que daria uma festa e não teve santo que tirasse isso da cabeça da
mulher. Por conta disso, estava indo com mais frequência à casa da filha, ou talvez fosse uma
desculpa descabida para brincar com sua neta.
Da varanda de casa, Elis avistou dona Lola vindo em sua bicicleta azul-piscina. Sentiu
vontade de rir ao imaginar o que a senhora faria ao descobrir o que Valquíria estava aprontando.
Deixou seu livro de lado e caminhou até a colina para receber a sogra com um abraço apertado.
— Ei, minha querida. — A mãe de Valquíria abriu um sorriso amistoso. — Como vai?
Cadê o meu neném? — Olhou na direção da varanda e não viu nada em que Isabel pudesse estar.
— Bem, dona Lola. E a senhora? — Abraçou a sogra e seguiram assim até as
dependências da casa de Valquíria. — Val saiu com ela.
— Como assim: “saiu com ela”? — A mulher deu dois passos para trás, as sobrancelhas
franzidas. — Valquíria já veio almoçar?
— Sim, ela veio mais cedo. — Elis pegou a bicicleta das mãos da mais velha, pondo-a
recostada sobre à parede. — Disse que queria ficar com a Belinha por um tempo. — Voltou-se
para Dolores, o rosto angélico esculpido em uma faceta serena.
— Mas ela saiu de quê? — Coçou a cabeça, revirando os arredores com seus olhos. — O
carro dela tá aqui... — deixou no ar, pensando nas possibilidades.
— Na Campolina, ora — respondeu com um tom flauteador, meneando a cabeça
negativamente.
Elis teve de conter uma gargalhada ao ver a expressão de pânico da sogra. A mulher
praticamente se tornou uma estátua de mármore, como se a alma tivesse saído do corpo. A jovem
amparou as mãos de Dolores e a levou para a cozinha da casa, oferecendo-a um copo d’água.
— Calma, dona Lola — deu palmadinhas na mão da senhora. — Elas estão bem.
Valquíria a colocou no sling. — Tentou a acalmar, porém deixou a sogra ainda mais preocupada.
— Aquele pedaço de pano enrolado não vai abrir? — Dolores pousou as mãos sobre o
rosto, nervosíssima.
— É seguro e ela vai devagar. — Sorriu graciosa e feliz para a mulher que estava a sua
frente. — Valquíria é ótima, tanto pra mim, quanto pra Isabel. Jamais faria algo que colocasse a
bebê em risco, ela conferiu bastante antes de sair. — Assentiu com a cabeça, a expressão radiante
ainda em seu rosto.
Toda a ansiedade de Dolores cedeu ao perceber tanto amor nas palavras da jovem. A
senhora deu um longo suspiro, enfitando sua nora em silêncio por alguns minutos. Elis
permaneceu exalando uma aura acalentadora, extremamente amorosa e feliz. Sorriu grandemente
para a jovem e puxou a cadeira que ela estava sentada para perto dela, trazendo-a para um abraço
banhado em ternura.
— Desde que eu bati meus olhos em você, eu soube que você veio pra mudar a vida da
Valquíria. — Afagou uma das mãos da nora. — Eu sentia que algo aconteceria e que seria lindo,
mas... — A frase morreu ao pensar nas sensações ruins que tinha com relação à Elis e a
Valquíria.
— Mas? — A menina se afastou para encarar os olhos de Dolores, encorajando-a.
A mulher libertou uma lufada de ar com a boca. Não queria ter de falar disso, no entanto,
ela tinha um defeito muito grande, que era falar antes de pensar. Naquele momento, viu-se pega
em uma sinuca de bico, os olhos de Elis atentos e angustiados com a insinuação da mulher.
— Pode falar, dona Lola, por favor. — Toda a alegria de Elis morrera com a insinuação
de sua sogra.
— Mas não vai ser fácil. — Dolores pendeu levemente a cabeça para o lado. — Essa
calmaria... Não sei, não, Elis — tentou ser o mais delicada possível, porém falhou. — Algo me
diz vem chuva grossa por aí.
Elis entendeu perfeitamente o que Dolores quis dizer e concordava com ela. Conhecia
bem sua família, seus pais, principalmente seu pai, não eram de levar desaforo para casa e
estranhava muito o fato da mãe de Felipe ainda não ter dado as caras, ou o pai. O sonho da
mulher era ter uma filha, porém, teve apenas um menino, logo depois se divorciou do marido e
nunca mais ficou firme com alguém, desistindo de ter mais filhos. Isso era o que a jovem
Teixeira sabia. A menina temia que a ex-sogra, bastante influente no meio jurídico, fizesse algo
para tirar sua filha.
— Eu sei, dona Lola, mas eu prefiro acreditar que eles vão nos deixar em paz. —
Levantou-se e serviu água para si mesma, tornando a se sentar em sequência.
— Se isso te acalma... — Dolores comprimiu os lábios. — Mas mantenha seus olhos
abertos. Augusto e eu cuidaremos de vocês também. — Fez um carinho nas mãos da jovem,
reforçando suas palavras com gestos.
— Por que meus pais não são como vocês? — A garota questionou chorosa.
— Ô, meu amor. — Aproximou-se da nora e afagou sua face. — Não fique assim. Nós te
amamos tanto quanto amamos a Valquíria.
— Bom saber disso, porque o ciúme já tava batendo na porta com toda essa melação pra
Elis. — A voz de Valquíria irrompeu o recinto e ela surgiu no umbral da porta com Isabel nos
braços.
Elis apenas riu, mas Dolores, ao ouvir a voz da filha, virou-se com a expressão irritadiça
e se levantou para caminhar até ela. Pegou Isabel nos braços e deu dois tapas fortes no braço da
filha, pois ansiava que ela aprendesse a não a assustar ao levar sua neta em uma aventura
perigosa.
— Que isso? — Valquíria arregalou os olhos. — Ela recebe amor e eu sou agredida? —
dramatizou, enquanto esfregava a mão no local. De fato, os tapas foram fortes.
— Ela não foi a irresponsável que saiu com uma criança de um mês de vida em cima de
um cavalo! — As maçãs-do-rosto de Dolores se tornaram cor de carmim, tamanha a sua
irritação.
— Égua — corrigiu, ligeira, para irritar sua genitora e viu a mãe bufar.
— Não me provoque, Valquíria! — rumorejou, os olhos estreitos. — Eu ainda sou sua
mãe e posso te dar uns belos de uns tapas.
— Mais? — Olhou-a, fingindo pânico. — Daqui a pouco vem com a chibata.
— Meu senhor, Valquíria, quantos anos você tem mesmo? — Elis perguntou aos risos,
movendo a cabeça em sinal negativo.
— Vocês duas estão cheias de gracinhas hoje, hein?! — Foi até a mãe e tentou pegar
Isabel, que rapidamente desviou da filha. — Mãe, eu vou dar banho nela.
— Vai você tomar seu banho que eu dou o da Belinha. Você tá fedendo a.... — Encarou a
filha de cima a baixo com desdenho e respondeu: — .... a égua — murmurou ironicamente,
lembrando da forma que a filha a corrigiu anteriormente.
Isso foi o suficiente para Elis cair na gargalhada. Valquíria revirou os olhos, mas não
podia discordar da mãe. O cheiro de Campolina estava impregnado nela e, como ainda tinha de
voltar ao trabalho, foi se banhar. Não demorou muito para ela descer usando uma calça preta por
dentro das botas longas e rasteiras com uma camisa azul bebê. Foi até a cozinha e viu Elis
preparando a mamadeira da filha, sozinha. Provavelmente, Dolores estava com Isabel no andar
de cima ainda.
Andou sorrateira e envolveu seus braços na cintura da sua amada, que deu um gritinho ao
se assustar. Valquíria sorriu e a beijou no pescoço, depois nos ombros, fazendo Elis pender a
cabeça no sentido oposto e suspirar. A veterinária apertava com força o quadril de Elis e a
puxava com o seu corpo, fazendo a menina roçar seu corpo ao dela.
— Você tá ainda mais maravilhosa agora — sussurrou ao roçar os lábios na orelha da
garota. — Sinto sua falta, Lis. — Relou a boca na mandíbula da garota e deixou um beijo
molhado e saudoso.
Elis fechou os olhos, suspirou e pendeu a cabeça para trás dessa vez, buscando os lábios
de Bergamoto. A veterinária a virou, sentando-a sobre a pia e a beijou com desejo. Encaixou-se
entre as pernas de Elis e deslizou sua mão pela coxa da moça, subindo a saia com sua mão dando
leves apertos na carne tenra da mais nova.
— Val... Sua mãe... Ela pode aparecer... — Elis falou entre beijos e suspiros, tentando
pensar nas consequências quando sentiu os dedos de Valquíria afastando sua calcinha para o
lado.
— É rapidinho, Lis — sussurrou enquanto tocava a vulva embebida da jovem.
Estava há algum tempo em abstinência e os beijos de Bergamoto foram como gasolina
em brasa, reacendendo a chama rapidamente, tornando-a um incêndio em todo o seu corpo
pedinte.
Elis não conseguiu negar e tampouco quis isso, apenas se deixou levar e foi arrastada aos
portões do paraíso. Valquíria sabia brincar bem com ela, deixando-a alucinada em pouco tempo.
Beijou-a para conter seus gemidos, quando a penetrou para a provocar enquanto seu polegar
acariciava seu botão do prazer, fazendo a loira atingir a máxima do prazer. Abraçou-a apertado e
a beijou com carinho, enquanto a menina tentava controlar a respiração ofegante.
Valquíria, não muito satisfeita, olhou para trás e, como não viu nem sinal de sua mãe,
abaixou-se e puxou Elis mais para a beirada da bancada e deslizou sua língua pela extensão da
vulva da parceira, sugando-a depois. Levantou-se e beijou a jovem mais uma vez, tirando-a de
cima do móvel.
— Você me provoca e depois para — Elis reclamou após ter sido novamente estimulada,
açoitada pelo latejar de sua parte mais sensível.
— Minha mãe já deve estar descendo e eu preciso voltar pra clínica — respondeu em um
tom quase lamentoso. — Vou escovar meus dentes e você, mocinha, volte ao que estava fazendo,
ou dona Lola vai pescar algo. — Deu um sorrisinho sacana.
— Tá certo. — Beijou-a brevemente e sorriu. — Eu te amo, Valquíria.
— Ah, minha menina, eu também te amo e muito. — Apertou-a no abraço e a tocou nos
lábios com os seus. — Já volto.
Elis apenas acenou positivamente e voltou aos seus afazeres depois de lavar as mãos.
Estava limpando a pia com um pano úmido e desengordurante, para deixar o aroma do produto
no ambiente como camuflagem para a traquinagem que ela e Valquíria tinham feito, quando
Dolores desceu com Isabel.
— Por que você está limpando tanto essa pia, que já está praticamente brilhando? — A
mulher perguntou ao pegar a mamadeira da neta.
— Que isso, dona Lola? Ela está imunda! — Fez-se de desentendida. — A senhora acha
que está limpa é porque não viu antes de eu limpar. Estava um horror.
— É mesmo? — Lola arqueou a sobrancelha, aparentemente acreditando na nora, e
preferiu ficar apenas nisso ao levantar mais questionamentos, pois temia pisar em terras
inóspitas. Dolores estivera na cozinha minutos antes e tinha certeza de que a pia estava
limpíssima. — Val já foi?
— Não, foi escovar os dentes pra voltar ao trabalho — respondeu, sincera, fazendo a
sogra lhe olhar ressabiada, com os olhos apertados.
— Ah, sim! — respondeu, sucinta. Temia enfiar a mão em um vespeiro e se traumatizar,
por isso, sufocou seus pensamentos maldosos.
Pouco tempo depois Valquíria apareceu e se despediu delas, toda sorridente. Deixou as
duas planejando os detalhes para a festa que seria no sábado e foi trabalhar. Isabel dormiu e
ambas ficaram mais tranquilas para organizar os preparativos. Elis era poço de alegria e sorrisos,
era perceptível para Dolores, como outras situações que ela preferiu fingir não ter reparado.
Recostou seu olhar no de Elis e sorriu, agitando a cabeça negativamente, recordando-se da sua
juventude.
— Jovens... — disse baixo, mas não passou despercebido por Elis.
— O que disse, dona Lola? — inquiriu com o rosto contorcido em dúvida.
— Nada, meu amor. Só é lindo de ver esse amor jovem de vocês — respondeu com
sinceridade, mas ocultou o real motivo de ter se manifestado anteriormente.
Elis sorriu para a mulher e voltou a prestar atenção ao que fazia, sendo acompanhada por
Dolores dessa vez. A jovem se sentia e protegida por ter Dolores ao seu lado e a senhora
compartilhava dessa felicidade por ter ganhado mais uma filha e, de quebra, uma neta.

.20.
VALQUÍRIA
Os convidados conversavam e bebiam alegremente após a cerimônia de casamento.
Senhor Augusto brincava com Isabel em seu colo, enquanto Dolores dançava com um rapaz.
Valquíria estava praticamente enrodilhada em Elis, conversando alegremente com, agora, sua
esposa. Cássia se aproximou das duas sorrindo e comentou:
— Quem diria. Tantos anos solteira, quase uma virgem que praticava a castidade, pra se
casar com uma mulher bonita dessas. — Deu uma risadinha, dando palmadinhas amigáveis no
ombro da amiga.
— Você assumir que é apaixonada pelo Henrique não quer, não é? — respondeu,
emburrada, fazendo Elis rir.
— Ih, até sobrou pra mim. — Ignorou a amiga e se virou para Elis. — Eu percebi que
você era a pessoa perfeita para Valquíria quando, apenas a sua presença, recobrou o brilho que
ela não tinha há tantos anos. — Abraçou a jovem e enfitou a sua chefe. — Vocês nasceram uma
pra outra.
— Obrigada, Cássia! — Valquíria sorriu em resposta. — Agora, vai lá ficar com o
Henrique, já que vocês também nasceram um pro outro. — Cássia revirou os olhos e saiu
bufando.
— Você implica muito com ela — Elis comentou, meneando a cabeça negativamente.
— Eu sei, mas eles realmente se gostam. — A mais velha deu de ombros, bebericando
um pouco da sua taça de espumante.
Valquíria abraçou Elis e balançou o corpo no ritmo da música que tocava, porém, sentiu
que a esposa estava um pouco distante.
— Querida, está tudo bem? — questionou com as sobrancelhas franzidas. — Parece tão
distraída.
— Só pensando em umas coisas. — Elis se encolheu levemente.
— Quer se sentar pra conversar? — A garota concordou e seguiu a veterinária até a mesa
onde elas estavam acomodadas anteriormente. — Pode falar, Lis.
— Acho que pode ser coisa da minha cabeça, mas... — Fitou Valquíria e continuou: —
Mas, parece que algumas pessoas me olham estranho. Não sei explicar, como se esperassem
mais de mim. — Encarou os próprios pés, imersa em estranheza.
— Alguém te faltou com o respeito? — Segurou uma das mãos da esposa com uma das
suas, preocupada, e ergueu seu rosto pelo queixo com a outra.
— Não... — Permaneceu com os olhos baixos. — Está mais para uma expectativa
estranha.
Aquela conversa estava deixando a veterinária um pouco inquieta.
— Quem são essas pessoas, Elis? — Pendeu a cabeça para o lado, pousou as mãos sobre
o rosto da esposa, fazendo-a encará-la.
A menina suspirou e olhou ao redor, voltando suas írises cerúleas para Bergamoto.
— Seu padrinho, Cássia, até a sua mãe. — Suspirou levemente. — É como se eles
soubessem de algo que eu não sei.
— Pode não ser nada, Elis — respondeu, mais nervosa do que gostaria, deixando Elis
com uma pulga atrás da orelha.
— Mas também pode ser. — Comprimiu os lábios e cerrou o cenho. — E talvez você saiba
e não tenha me contado.
— Meu amor, essa conversa tá bem esquisita, porque eu realmente não tenho ideia do
que possa ser — Valquíria quis desconversar, uma vez que não saberia como conduzir essa
conversa.
— Está bem, você está certa. — Deu-se por vencida, entrelaçando os dedos das mãos. —
Se for algo, cedo ou tarde, vou descobrir. — Sorriu para Valquíria e apertou sua mão. Desviou
seu olhar da esposa e o fixou em seu Augusto, que dançava com Isabel e falou: — Tive aquele
sonho outra vez, Val.
— Que sonho, Lis? — A morena mordeu nervosamente o lábio inferior.
— Aquele que eu era casada com você e morria — respondeu com simplicidade.
Valquíria engoliu a saliva e perguntou:
— Quando foi isso? — Era visível o pânico em sua voz.
— Ontem. — Ajeitou o cabelo atrás da orelha. — Acho que o sonho foi tão agitado que
acordei com uma dor de cabeça terrível.
— Devia ter me contanto, Elis. — Valquíria endureceu o tom de voz, o estômago tomado
de tanta ansiedade.
— Não quis te preocupar. — Tornou a enfitar a esposa. — Você precisava trabalhar e
ainda tínhamos o casamento... — Inspirou profundamente, imersa em reflexões. — Não se
preocupe, sua mãe me ajudou.
— Ela não me contou nada. — Encarou a mãe de onde estava e agitou a cabeça
negativamente.
— Eu pedi a ela que não te preocupasse. — Assentiu com a cabeça, acariciando as mãos
da esposa. — Foi só uma dor boba, provavelmente estresse.
— Tudo bem, mas na próxima vez, me avise — ditou com mais leveza, tentando relaxar.
Deu um longo gole em sua taça, secando-a. — Eu fico preocupada, Elis.
A jovem resvalou os dedos pela face da veterinária e sorriu.
— Eu sei, meu amor. — Sorriu ternamente, os olhos cintilando. — Você se preocupa
demais.
— Cuidado nunca é demais. — Beijou a palma da mão de Elis e deslizou seu rosto na
região em um carinho calmo.
— Val, às vezes você exagera. Foi só um sonho bobo — disse, acalmando a outra com
um tom de voz lenitivo.
“Não, Elis, não é um simples sonho”, pensou, enquanto olhava para a garota, “Preciso
conversar com meu padrinho e ver uma forma de contar isso à Elis”, concluiu o pensamento.
— Val? — Estalou os dedos diante do rosto da mais velha, despertando-a de seu transe
momentâneo. — Estava falando com você.
— Ah! Me desculpe, Lis. — Pendeu a cabeça par ao lado, tentando assimilar as palavras
que não ouviu. — Acabei me distraindo, acho que bebi demais O que você disse?
— Que vou pegar um pouco de doce. — Indicou a mesa de doces com a cabeça. —Você
quer?
— Não, obrigada, meu bem. — Esforçou-se para dar um belo sorriso. — Vou te esperar
aqui.
Valquíria ficou observando Elis se afastar, enquanto sentia um aperto incomum no peito.
Queria não ter a necessidade de falar sobre esse assunto, por temer que a esposa se afastasse.
Temia que Elis julgasse que seu envolvimento e o amor provinham dela ser, de alguma forma,
uma lembrança de seu falecido marido, no entanto, não queria esconder nada dela.
Viu o padrinho se aproximar com seu andar dificultoso, sentando-se ao seu lado. O
homem segurou a mão da afilhada e não disse nada, apenas a confortou silenciosamente dando
leves batidinhas em sua mão.
— Você devia estar sorrindo hoje, Valquíria. — Sua voz era como um bálsamo para os
ouvidos da veterinária. — Deixe o amanhã pra se preocupar amanhã.
— Você tem razão padrinho — respondeu, ainda reflexiva. — Obrigada!
— Vai lá ficar com sua moça. — Dito isso, levantou-se e rumou até sua esposa.
Enquanto caminhava até Elis, a veterinária pensava em como tinha sorte de ter pessoas
maravilhosas ao seu lado, mas sabia que fora do seu círculo não seria bem assim. Tinha ciência
de que teriam de enfrentar muitas coisas, principalmente os olhares preconceituosos de uma
cidade do interior. Sorriu ao ver a jovem amamentando Isabel com tanta ternura, esquecendo-se
momentaneamente dos seus receios.
— Não ia comer doce? — Arqueou uma das sobrancelhas, fingindo estar brava.
— E essa menina deixou? — Meneou a cabeça em tom negativo e sorriu, deslizando os
dedos sobre as madeixas escuras da bebê.
— Vocês são lindas assim. — Aproximou-se e aproveitou para acariciar a bebê. — Nem
acredito que são minhas — Seus olhos fulgiam de alegria, enquanto o tom de voz saía
embargado. — Minha família.
Elis sentiu as bochechas esquentarem e olhou encabulada para Bergamoto.
— Boba. Vou colocar essa boneca na cama.
— Deixa que eu faço isso, querida — Dona Lola se aproximou, falando. — Acabei
escutando final da conversa quando cheguei perto.
— Não se preocupe com isso, dona Lola. — Elis deu um sorriso para a sogra. — Seria
abuso a senhora fazer isso.
— Que nada, menina. — Pegou Isabel nos braços e sorriu para ela. — Faço por que amo
minha netinha.
Elas agradeceram e observaram a senhora se afastar. Valquíria, aproveitando a deixa,
convidou Elis para dançar que, um pouco relutante, aceitou. Dessa vez, já não pisou tanto nos
pés da veterinária, divertindo-se como se não houvesse amanhã.
Horas mais tarde, com o Sol começando a se esconder, Bergamoto viu uma agitação
perto da churrasqueira, mas, conhecendo seus funcionários, sabia já estavam alcoolizados o
suficiente para uma algazarra organizada. Distraiu-se com eles juntamente com Elis, que ria das
estrepolias da mais velha.
José e Rosa já haviam se despedido e os pais de Valquíria estavam dentro da casa
cuidando de Isabel. Não que fosse necessário, mas eles, de fato, queriam ficar paparicando a
menina, longe daquela bagunça. Tudo estava tranquilo e os únicos sons emitidos eram a música
no rádio e as risadas altas das pessoas naquela roda de conversa.
Elis arregalou os olhos e cutucou a veterinária ao avistar Henrique e Cássia trocarem um
beijo calmo, como um casal que se amasse há muito tempo. Isso foi o suficiente para Valquíria
caçoar os dois:
— Finalmente vocês criaram vergonha na cara e assumiram o que sentem — deu um
berro divertido.
Eles riram um tanto encabulados e Henrique respondeu:
— A bebida dá muita coragem, Val. Espero que essa daqui não desista amanhã.
— Tá me chamando de covarde, Rick? — Cássia franziu o cenho, cruzando os braços.
— Se ele não quis dizer isso, eu afirmo: covarde! — Valquíria implicou, deixando Cássia
vermelha de raiva.
— Olha aqui, Valquíria, não pense que sua barra tá limpa comigo! — Cássia ergueu a
mão, o dedo indicador em riste. — Você escondeu seu envolvimento com a Elis e só me contou
quando a bomba estourou! — Estalou a língua no céu da boca. — Com vocês praticamente na
porta da igreja. Então, shhh!
Valquíria gargalhou com a fala desenfreada da amiga. Ela estava certa, não podia cobrar
nada, nem de brincadeira, visto que ela mesma havia escondido o que sentia por tanto tempo.
— Vocês combinam. Formam um belo casal — Elis comentou, fazendo os ânimos se
acalmarem.
— Obrigada, Lis — Henrique agradeceu e fez um carinho na mão de Cássia, sorrindo
para ela. — Espero que agora ela aceite a namorar comigo.
A mulher o olhou, surpresa, e exibiu um belo sorriso para ele.
— Aceito sim! Claro que aceito! — Derreteu-se e toda a raiva que nutria por Valquíria se
esvaiu.
— Eita, meus amigos! Vamos comemorar que logo vem casamento por aí! Bora brindar
o amor! — Valquíria gritou para atrair a atenção de todos, sendo respondida por gritos e palmas
em comemoração.
Estavam realmente em paz e tranquilos naquela noite, entretidos demais nas brincadeiras
que faziam. Bergamoto se sentia abençoada por ter tantas pessoas boas ao seu redor. Levantou-se
para ficar atrás de Elis, abraçada a ela, e ouviu um barulho vindo da direção das árvores. Não deu
muito crédito, pois era comum que animais corressem por ali. Abaixou-se sobre a esposa e
abraçou para lhe fazer carinho, sendo surpreendida por um disparo vindo da direção das árvores.
Todos se levantaram assustados, procurando por quem havia feito, constatando que deveria ser
alguém caçando.
E tudo estava bem até Elis sentir a veterinária quieta sobre ela. Levou a mão até seu
ombro e sentiu o local úmido e quente. Trêmula, retirou a mão e gritou ao ver que se tratava do
sangue de sua esposa.
— Valquíria! — Deu um grito apavorante e todos os presentes correram até a anfitriã.
.21.
NA ESTRADA
Valquíria acordou na manhã seguinte com o corpo dolorido, especificamente abaixo do
seu ombro, onde foi atingida com um tiro. Gemeu de dor e tentou se sentar sobre a cama, logo
chamando a atenção de sua mãe, que correu em seu auxílio. Elevou a cama com o controle e
ajeitou o travesseiro recostado em suas costas.
— Como se sente, meu amor? — Dolores arrastou a cadeira e se sentou mais perto da
filha.
— Bem, na medida do possível. Cadê a Elis? — Rodou seus olhos pelo quarto e não viu
sinal algum de que a jovem estivesse por ali.
— Elis ficou com a Isabel. — A senhora fez um sinal positivo com a cabeça. — Eu pedi
pra ela ficar com a bebê, que eu viria ficar com você. Ela estava tão nervosa que não conseguia
falar. Só chorava, por isso achei melhor ela ficar em casa.
— Fez bem, mamãe. — Valquíria libertou um longo suspiro. — Eu não me lembro
direito do que aconteceu.
— Você levou um tiro, Valquíria! — Dona Lola franziu os lábios.
— Isso eu sei — Apontou para o curativo. — Tá doendo bastante, por sinal — murmurou
pesadamente. — Mas não me lembro como foi.
— Eu só sei o que os meninos me contaram. — Dolores ajeitou o corpo na cadeira. —
Quando ouvi o barulho, seu pai e eu corremos pra ver o que era. Foi aí que escutamos o grito da
Elis e vimos alguns dos meninos te socorrendo, enquanto outros iam na direção das árvores.
— Conseguiram ver quem era? — A veterinária respirou pesadamente e esboçou uma
careta por conta da dor.
— Só viram um motoqueiro, mas bem longe do alcance da visão. — Comprimiu
pesarosamente os lábios. — Eles não conseguiram nem ver se tinham placa, o que eu duvido
muito. — Exibiu as mãos espalmadas em tom de obviedade. — Valquíria, eu fico preocupada
com você e a Elis. Ninguém me tira da cabeça que isso tem dedo daquele povinho.
— Mãe, não podemos acusar as pessoas sem provas. — A morena baixou os olhos. —
Não seria a primeira vez que tentam alguma coisa contra mim. Se esqueceu que já tentaram
assaltar minha clínica? Então, pode ser qualquer um.
— Mas apenas te roubaram. Dessa vez, te deram um tiro! — Dolores se ergueu e passou
a caminhar de o lado para o outro, visivelmente ansiosa.
— Tenho cavalos que são caríssimos — Valquíria disse, mais para convencer a si própria
que a sua mãe.
— Se é nisso que você quer acreditar. — Revirou levemente os olhos. — Daqui a pouco
a polícia vem aqui pra tomar seu depoimento. Eles já foram lá em casa ontem.
— Imaginei que viriam. É o procedimento deles. — Olhou para a janela e respirou fundo.
Sem olhar para Dolores, falou: — Mãe, quero ver a Elis. Ela deve estar muito preocupada.
— Seu pai já está vindo com elas. — Achegou-se à filha, retirando uma pequena mecha
de cabelo que caía sobre seus olhos e a pôs atrás de sua orelha. — Daqui a pouco, eles chegam
aqui com a Belinha.
— Acabei estragando a festa ontem. — Valquíria se encolheu levemente.
— Vira essa boca pra lá, menina! — Dona Lola encarou a filha com os olhos
semicerrados. — Quem estragou foi o filho de uma quenga que te machucou! Se eu pego o
sujeito, acabo com a raça dele.
— Agora entendo porque o papai disse que tem medo da senhora! — Valquíria falou aos
risos. — Ai! — reclamou de dor, fazendo a mãe rir.
— Vai, fala demais! — A mais velha ergueu levemente o queixo, em tom de deboche. —
Bem feito!
— Credo, mãe! — Arregalou os olhos, dramatizando.
Valquíria ainda conversou por bastante tempo com sua mãe, sobre assuntos menos
pesados que o ataque. Sua mãe tinha o dom de alentar seu coração mesmo nas horas mais
difíceis.
Duas horas depois, Elis chegou com sogro e sua filha. Com a família reunida, a conversa
se estendeu por mais alguns minutos até que, para deixar o casal a sós, Dolores e Augusto se
retiraram com a bebê.
— Me perdoa, Val — Elis praticamente suplicou, com os azulíssimos olhos cintilando
pelas lágrimas, enquanto tentava conter o choro.
— Desculpar de quê, Elis? — A morena pendeu a cabeça para o lado. — Você não fez
nada, minha pequena. — Buscou uma das mãos de sua esposa e a acariciou.
— Valquíria, você já apanhou do meu pai e agora isso! — Fechou os olhos com força. —
Você poderia ter morrido! — A jovem se esganiçou, evidenciando seu estado de nervos.
— Mas não morri! Tô bem aqui e vou me recuperar. Pelo o que os médicos disseram, não
acertou nenhum ponto vital. — Acariciou o rosto da jovem e sorriu para ela, reconfortando-a.
— O médico disse quanto tempo você vai precisar ficar de repouso? — Elis recolheu os
cílios, apreciando o toque da pele de Valquíria na sua.
— Segundo ele, em quinze dias já estou bem e sem o curativo. — Perdurou com a
carícia. — Mas que o ideal é que eu volte a trabalhar, apenas, depois de trinta dias em
recuperação.
— Nada de fazer estrepolias, então, porque eu sei bem que você andou a cavalo quando
não podia. — Elis cruzou os braços sobre o peito.
— Prometo que vou me cuidar! — Valquíria deu um sorriso. — Pensando nisso, pensei
em ficar em casa os primeiros quinze dias e depois viajar com você e a Isabel — falou
empolgadamente. — Acho que precisamos espairecer.
— Sério?! E para onde nós vamos? — perguntou, contagiada pela empolgação de sua
esposa.
— Ainda não sei. — Coçou levemente o queixo. — Podemos pensar juntas — sugeriu,
deixando Elis ainda mais animada.
— Que tal irmos para região de montanhas? — inquiriu a jovem, afagando uma das mãos
de Valquíria. — Essa época já faz friozinho lá, não é?
— É sim! — O rosto da mais velha se iluminou com a ideia. — E é bem tranquilo
também.
As duas se perderam naquela conversa, deixando de lado o problema que a polícia estava
averiguando. Por mais que concordassem, em alguns pontos, sobre ter alguém envolvido ou que
fosse por furto, resolveram não depositar suas energias nisso no momento. Ambicionavam um
período de tranquilidade e, principalmente, paz em suas vidas.
Os dias se passaram tranquilamente e Valquíria já estava praticamente recuperada.
O casal preparava as malas para viajarem, vez ou outra tendo que cessar para averiguar Isabel.
Dona Lola e Augusto apareceram para ajudá-las e insistiram muito para deixarem a bebê com
eles, mas Elis não via cabimento em deixar essa responsabilidade com os dois idosos. E seria
bom para elas esse momento em família. Alugaram um chalé para quinze dias de estadia, longe
de qualquer problema.
— Tem certeza que você pode dirigir por tantas horas? Eu posso revezar com você —
Elis se manifestou, depois de algum tempo na estrada.
— São apenas quatro horas de viagem e podemos fazer pausas — respondeu calmamente.
— E eu também não confio muito em você dirigindo esse bebê aqui! — Bateu na lateral do
volante, fazendo a jovem revirar os olhos.
— Pois saiba que eu dirijo muito bem, mas admito que nunca peguei uma pick-up. — A
loira assentiu com a cabeça. — O carro do meu pai é esportivo, nem se compara em tamanho.
— Por isso mesmo. — Olhou de soslaio para o banco do passageiro. — Não digo isso por
achar que você não sabe dirigir, mas por você não conhecer as estradas.
— Mas isso pode mudar, é só você me ensinar. — Elis buscou a mão de Valquíria que
jazia sobre a marcha, dando uma leve carícia.
— Tá certo. — Valquíria sorriu com o gesto. — Ensino quando voltarmos.
— Será que o Flecha vai ficar bem? Ele parecia tão tristinho quando fui me despedir. —
Seus olhos atentos se deslumbravam com a paisagem através da janela no veículo.
— Vai sim — assentiu. — Ele só vai sentir saudade, mas a Campolina tá lá com ele.
Além disso, a Cássia e o Rick vão cuidar muito bem dos dois.
— Eu sei... — Perdeu-se momentaneamente em seus pensamentos, os olhos vidrados
encarando o nada. —Também vou sentir saudade dele.
Nesse momento Isabel resmungou no bebê-conforto, atraindo a atenção das duas. Elis
soltou o cinto e passou entre os bancos para ir para o lado da filha. Valquíria acompanhou pelo
espelho os cuidados da moça para com a bebê, sorrindo apaixonada com a cena. Enquanto a
jovem dava de mamar para Isabel, percebeu que a veterinária a observava pelo retrovisor. Sorriu
acanhada para ela, sentindo as bochechas esquentarem.
— Não me olha assim... — Baixou os olhos, encabulada.
— Assim como? — Implicou com uma risadinha.
— Tão intensa e apaixonada. — Mordeu o lábio inferior, levemente nervosa. — Me
deixa com vergonha.
— Mas é assim que me sinto em relação a você. — Estufou o peito orgulhosamente. —
Intensa e extremamente apaixonada. É lindo de ver a forma como você cuida dela. Ela se parece
tanto com você — completou, com seus olhos dividindo a atenção entre a estrada e o retrovisor.
— Nem tanto. — Elis pareceu murchar por uns instantes. — Ela tem os meus olhos, mas
pode ter puxado ao Felipe também. Ele também tem o olho claro, já os cabelos dela é certeza que
puxaram a ele, liso e preto.
— Podemos fingir que isso ela puxou a mim. — Piscou para Elis, fazendo a jovem sorrir.
— Tenho medo de eles voltarem — confessou a jovem, enquanto colocava a filha no
bebê-conforto.
— Se voltarem, estaremos preparadas — ditou com a voz transbordando confiança, mais
para acalmar sua amada do que qualquer coisa. — Elis, coloca o cinto!
A jovem revirou os olhos e fez o que Bergamoto pediu, ficando perto da filha.
— Satisfeita? — Arqueou uma das sobrancelhas.
— Muito. — Sorriu, tornando a prestar total atenção na estrada. — Posso te perguntar
uma coisa?
— Claro, sempre! — Moveu a cabeça em um meneio positivo. — Não precisa ficar
constrangida quando quiser me perguntar algo.
Valquíria riu pela maneira que sua esposa falou, pois parecia ela mesma dando conselhos
para Elis.
— Voltou a ter aquele sonho? — Tentou não demonstrar a preocupação que nutria sobre
aquele assunto, camuflando suas emoções com mais um sorriso.
— Não... — Coçou a cabeça. — Quer dizer, mais ou menos.
— Como assim? — Valquíria contorceu a face em tom duvidoso.
— Tenho sonhado mais com a parte que caio do cavalo — respondeu calmamente. —
Confesso que fiquei curiosa, por isso busquei na internet o significado do sonho e os sites
falavam umas coisas muito nada a ver.
— Nada a ver como? — A veterinária controlou a respiração, bastante ansiosa. Temia
que Elis descobrisse o que ela escondia.
— Ah, se você caiu do cavalo quer dizer que mesmo muito bom no que faz, não precisa
levar o mundo nas costas e se leva coice é pra ser mais enérgico nas decisões. — Tornou a
encarar a paisagem, recostando a cabeça no estofado do carro. — Só teve uma que me deixou
pensativa.
— Qual? — Valquíria perguntou, um tanto receosa.
— Sonhar com cavalo preto é representa algo que ainda está oculto. — Deu de ombros.
Valquíria sentiu seu estômago revirar quando ouviu as palavras de Elis.
— Realmente, eles só dizem besteiras. — A mais velha deu uma risadinha.
— Não é? — A moça revirou os olhos. — Pensei em conversar com o seu padrinho sobre
isso.
Bergamoto subitamente se lembrou das palavras do padrinho dizendo que tudo acontece
no tempo certo e, pelo visto, mesmo que ela evitasse isso, não teria jeito. Tamanho era o seu
temor de perder a esposa, que era incapaz de ver que a melhor saída era conversar sobre o temido
assunto, antes que a situação se enrolasse mais.
— É, talvez ele possa te ajudar — Sua voz tremulou por um momento, enquanto apertava
os dedos no volante. — Tá com fome? — Acreditou que a melhor saída era desviar do assunto.
— Agora que você falou, estou sim. — Elis deu alguns tapinhas na barriga, rindo. —
Podíamos parar para almoçar.
— Já estamos perto de uma parada. — Valquíria também riu, apesar de ainda estar sendo
assolada por sua ansiedade. — Não deve demorar muito, tudo bem?
Elis apenas concordou com a cabeça e se recostou, novamente, sobre o banco para
descansar um pouco. Valquíria, para desanuviar a mente, ligou o som e deixou suas modas de
viola preencherem o carro com sua melodia. A moça sorriu e passou a cantarolar junto, fazendo a
veterinária sorrir, passando a cantar com ela.

.22.
FINALMENTE A LUA DE MEL CHEGOU
Isabel havia acabado de dormir nos braços de Valquíria. Elis estava no banho, enquanto
Valquíria cuidava da menina. Entrou no chalé e colocou a bebê no cesto, que estava pendurado
em um gancho no teto da sala, feito por José. Era similar a um berço, mas feito de taquara[3].
Isabel resmungou um pouco ao ser colocada para dormir e para ela não acordar, Bergamoto
balançou lentamente o “bercinho” e o soltou, deixando o movimento e a gravidade ninarem a
criança. Logo depois, Elis saiu do banho, deparando-se com aquela cena adorável.
— Dormiu rápido! — Elis comentou ao se aproximar e dar um beijo no rosto da
veterinária.
— Foi porque dormiu no colo. — Retribuiu o beijo, com os olhos ainda repousados na
bebê. — Coloquei ela aqui agora.
— Você a mima e ela adora — Envolveu Valquíria com seus braços, em um abraço
carinhoso e a fitou apaixonadamente.
— Fazer o que se eu não resisto àqueles olhinhos. — Elis sorriu e beijou sua esposa. —
Vou tomar meu banho e já venho ficar com você.
— Tudo bem. — A veterinária beijou o topo da cabeça da esposa e se retirou.
A jovem entrou no quarto, sentou-se na cama e penteou os cabelos, pegando um livro
para ler em seguida. Estava confortavelmente acomodada com seu pijama azul claro de cetim,
com as pernas cruzadas e as costas apoiadas à cabeceira da cama. Valquíria apreciou aquela
cena, silenciosamente, por um tempo após sair do banho, sorrindo feito uma adolescente.
Aproximou-se lentamente e se sentou próxima às pernas de Elis. Puxou-as para seu colo
e começou a massagear as panturrilhas da jovem, descendo até chegar aos pés. A loira deixou o
livro na mesinha ao lado e se ajeitou na cama, fechando os olhos para aproveitar da sensação
proporcionada pela outra.
— Isso é tão bom! — Elis resmungou baixinho, agradando Valquíria que sorriu. — Você
é tão carinhosa comigo que nem parece real.
— Mas eu sou, de carne e osso. — Deu de ombros. — Tanto que posso cometer erros.
— Eu sei, Val, mas seus erros não mudam quem é e eu também não sou santa. —
Suspirou, apreciando o vibrar de seu corpo por conta das carícias da amada.
— Ainda bem por isso — Valquíria disse, rindo, deixando Elis confusa com suas
palavras. A confusão da jovem só passou quando sentiu os lábios de Bergamoto sobre sua coxa
esquerda.
— Você não vale nada — declamou com uma risadinha, enquanto sentia a outra beijar
mais acima.
— Ah, não? — Enfiou as mãos dentro do short da jovem e afundou os dedos em sua pele,
acarretando no fechar de olhos de Elis e no seu suspirar. — Posso parar, se quiser.
A mais jovem retesou o corpo, mas não disse nada por estar envergonhada. Valquíria
retirou suas mãos de dentro do short dela e subiu as mãos para a sua cintura, apertando-lhe a
carne, que remexeu no colchão.
— Quer que eu pare Elis? — Encarou-a com desejo ígneo. — Fala pra mim, meu amor.
Quer que eu pare? — Perguntou ao enfiar a mão dentro da blusa da jovem, deslizando a ponta de
seus dedos sutilmente entorno do seio de Elis.
— Não, não quero — respondeu com um sibilar. Suas bochechas jaziam coradas,
enquanto arfava ao sentir Valquíria retirar sua mão e a puxar pelas pernas até que ficasse em seu
colo.
Abraçou-a e a beijou com paixão, com uma lentidão abrasadora, apreciando o toque
aveludados dos lábios avermelhados da sua deusa do amor. Desceu suas mãos à barra da blusa de
Elis e, lentamente, retirou-a, tornando a beijar sua boca com posse. Segurou-a pelos fios
compridos e puxou sua cabeça para trás, fazendo-a dar acesso ao seu pescoço alvo. Valquíria
resvalou os lábios sobre o local e deslizou sua língua até a orelha da menina, mordendo-a
lentamente, injetando uma dose imensa de prazer no corpo de Elis.
Elis flutuava em meio às estrelas, enquanto se entregava à Valquíria. Era um sentimento
tão puro e verdadeiro que a fazia se sentir inteira, como se fossem um encaixe perfeito de um
quebra-cabeças. Ao passo que apreciava Bergamoto deixar beijos em seu colo, seu estômago
revirava como se mil explosões estelares acontecessem ali dentro.
A veterinária beijou entre os seios da esposa e a devorou com um olhar, sorrindo
apaixonada. Tocou um dos pomos com a ponta da língua, fazendo Elis gemer timidamente, e o
mordeu com carinho, logo depois. Beijou o mamilo enrijecido de Elis e o chupou à medida que
dava atenção ao outro com seus dedos. Sugou o outro e desceu sua mão pelo corpo da jovem,
retirando seu short aos poucos até chegar em um ponto que ela conseguisse retirar sozinha.
Sem esperar muito, enquanto saboreava os lábios da sua amada, afastou a calcinha para o
lado e deixou que a umidade da jovem abraçasse seus dedos. Com Elis em seu colo, com seus
lábios unidos, Valquíria passou a mimosear a vulva de sua esposa, massageando lentamente seu
clitóris quente, molhado e intumescido de lascívia.
— Que gostoso, meu amor... — Elis gemeu brevemente, arfando por entre o beijo.
A caldeira que habitava o cerne de Valquíria se incendiou ainda mais ao desfrutar da voz
enamorada de sua amada, ao ponto de sua tez sucumbir a um arrepio inebriante.
— Eu te amo — murmurou, com a voz embargada de todas as constelações que eram o
seu amor.
A jovem envolveu seus braços no pescoço da veterinária e uniu suas frontes, mantendo
seus olhos fechando e tremelicando diante do prazer que ela a proporcionava.
— Eu também te amo — respondeu, com um pouco de dificuldade, mexendo levemente
o quadril no colo da mais velha.
Elis baixou a alça fina da camisola de Valquíria e mordeu no ombro salpicado de sardas
da veterinária. Buscava descarregar a onda de prazer, ocasionada pelo orgasmo, que consumia
seu corpo, minimizando os ruídos para não acordar Isabel. Em resposta, Valquíria gemeu,
contida, tentando manter o controle de seu corpo.
Bergamoto deitou Elis sobre o colchão, acomodando-a gentilmente, deixando-a extasiada
com a imagem de sua esposa arfando com profundidade, tornando-a a cena totalmente
afrodisíaca, por conta da forma que a alça de sua camisola pendia para baixo com parte do seio à
mostra. Puxou Valquíria pelo tecido fino, fazendo-a se deitar sobre seu corpo febril, e a beijou.
Bergamoto a cobriu de beijos até chegar na virilha de Lis. Retirou a calcinha da amada,
delicadamente, e retornou distribuindo beijos e mordidas pelas pernas dela. Deixou mais um
beijo perto do umbigo de Elis, depois um em seu ventre, até, finalmente, tocar os lábios em sua
vulva pedinte. Forçou sua língua e a deslizou por toda a extensão, parando no nervo inchado da
menina.
Pressionou sua língua sobre o botão do prazer da esposa e a deslizou, suavemente, em
círculos. Apesar de não ser experiente no que fazia, guiava-se proporcionando à amada o que
gostaria que fizesse consigo. Adentrou-a com seus dedos, com lentidão, apreciando ao máximo
cada sensação e os retirou na mesma velocidade, sem parar de a saborear com a boca.
Elis mal continha seus gemidos, por isso passou a morder o dorso da mão para não emitir
ruídos e descarregar toda a excitação que tomava seu corpo e o levava para outra dimensão.
Sentiu Valquíria a penetrar mais fundo e forte, aumentando a velocidade exercida no ato. Elis
atingiu o apogeu clamando pelo nome da veterinária. Apertou suas coxas contra a cabeça da
mulher, ao passo que seu corpo arqueou da cama, desabando, trêmula, em seguida.
Mesmo com o corpo exausto, a mente da jovem clamava por mais daquele estupendo
prazer que Valquíria a dava. Beijou a boca da veterinária, provando do seu próprio gosto e
instantaneamente sentiu sua vulva dar mais sinais de vida. A mais velha roçava sua coxa contra a
intimidade da amada, enquanto apertava a sua contra a coxa de Elis.
— Eu quero mais, por favor — suplicou, olhando nos olhos escuros de Valquíria, que
prontamente atendeu.
— Vira, quero fazer uma coisa — sussurrou e mordiscou a ponta da orelha de Elis.
A jovem, prontamente, acatou ao pedido, ficando de bruços para a sua amada. Valquíria a
segurou pelo quadril e a ergueu, deixando a jovem completamente exposta para ela. Segurou Elis
pelas coxas e lambeu o néctar que a menina produzia de excitação. Mordeu sua bunda sutilmente
e se pôs de joelhos atrás dela. Puxou Elis pelo quadril e a pressionou contra seu ventre, para, só
depois, encaixar seus dedos na vulva pulsante da menina, penetrando-a incansavelmente, até
apreciar Elis enterrar o rosto no travesseiro, enquanto apertava seus dedos na cabeceira da cama,
gemendo abafadamente.
Enevoada pelo prazer, Valquíria girou o corpo de Elis e se encaixou entre suas pernas.
Queria experimentar a sensação de ter as duas vulvas se tocando tão intimamente, fundindo-se
prazerosamente ao passo que beijava a perna de Elis. A loira se sentou e segurou a mais velha
pela cintura para a ajudar com os movimentos, beijando-a com urgência. Não tardou para que
Elis chegasse ao seu clímax mais uma vez, no entanto, dessa vez Valquíria a acompanhou e
atingiu o orgasmo junto da parceira.
Deitaram-se uma do lado da outra e Valquíria as cobriu. Ficaram trocando carinhos
silenciosamente, apenas aproveitando a paz que habitava no ambiente e o amor que as preenchia.
Elis riu, atraindo a curiosidade de Bergamoto, que beijou seu ombro e se aconchegou a ela.
— O que foi, minha pequena? — inquiriu curiosamente.
— Estava pensando como foi diferente da nossa primeira vez. — Deu mais uma
risadinha.
— Sua condição era diferente, eu não sabia o que fazia, estava nervosa — revelou,
encarando o teto do chalé. — E você tinha mais experiência que eu, acabou me conduzindo.
— Mas hoje você me surpreendeu de tal forma que não consegui fazer nada além de
gemer. — Elis repousou a cabeça sobre o peito da esposa. — Você é terrível, aprendeu
rapidinho! — Riu mais uma vez. — Por essa razão que te amo cada vez mais.
— Eu fico tão feliz quando você diz isso. — Valquíria suspirou levemente.
— Por quê? — Ergueu a cabeça para fitá-la nos olhos. — É a verdade.
— Porque eu pensei que isso jamais aconteceria — revelou com um quê de tristeza. —
Você é jovem, Elis e eu sou só uma viúva com quase cinquenta anos. — Fechou os olhos. —
Você tem tanto pela frente que me sinto egoísta por ter te prendido a mim, mas eu te amo tanto.
— Ainda tenho uma vida pela frente, Val. — Elis distribuiu beijos sobre o peito da
amada. — A diferença é que, agora, você faz parte dela. — Envolveu uma mecha de cabelo da
mais velha, enrolando lentamente em seu dedo indicador. — Vou estudar, me formar e você vai
estar lá comemorando comigo e com nossa filha. Eu não ligo para sua idade, eu ligo para o que
você sente por mim. — Apertou Valquíria contra si. — Você é maravilhosa e o amor da minha
vida.
Ao ouvir a última frase, Valquíria sentiu seu coração acelerar e os olhos lacrimejarem. De
fato, ela era o amor de sua vida, um amor que vem superando vidas, mesmo que Elis não
soubesse disso. Beijou-a com carinho e tocou seus lábios na testa da menina. Nunca pensou que
algum dia fosse amar mais alguém do que amou Ernesto, mas seus sentimentos por Elis
superaram qualquer um do passado. E a amava simplesmente por ser Elis.

.23.
DÓRIS
Elis e Dolores acompanharam Valquíria no seu retorno ao médico. As duas ficaram
pouco mais de quinze dias em viagem e agendaram a visita médica de Bergamoto logo que
retornaram. Dona Lola estava no banco de trás, sentada ao lado do bebê conforto de Isabel,
enquanto Elis estava ao lado de Valquíria no banco da frente.
As duas estavam esquisitas aos olhos de Dolores. Estavam mais quietas, introspectivas, o
que causava estranheza na senhora. Elis e Valquíria, mesmo quando em silêncio, trocavam
sorrisos e olhares cúmplices, mas, naquele momento, alguma coisa não se encaixava. Pareciam
ter discutido, porém, ao mesmo tempo pareciam apenas ter acordado assim.
A mulher estava se coçando para perguntar, contudo, não queria ultrapassar algum limite
ou deixar a situação entre elas pior. Visto isso, começou a cantarolar “Terezinha de Jesus” para
Isabel, atraindo a atenção da menina.
— Terezinha de Jesus, deu uma queda, foi ao chão. Acudiram três cavalheiros, todos três
de chapéu na mão. O primeiro foi seu pai, o segundo, seu irmão. O terceiro foi aquele que a
Tereza deu a mão. Da laranja quero um gomo, do limão quero um pedaço. Do moreno mais
bonito, quero um beijo e um abraço. — Afagava levemente o rosto da bebê.
— Que nostalgia, mãe! — Valquíria comentou, saudosa. — Lembro que sempre cantava
pra mim.
— Que voz linda, dona Lola — elogiou, Elis, com um meio sorriso.
— Obrigada, querida — respondeu a Elis, ainda acariciando as maçãs-do-rosto de sua
neta. — Sempre que Valquíria tinha pesadelos, eu cantava pra ela.
— Faz muito tempo que você não canta pra mim — Valquíria retrucou, enquanto franzia
levemente as sobrancelhas.
— Faz mesmo. A última vez foi com o pesadelo horrível que você teve após ficar viúva
— comentou, nostálgica, deixando a veterinária, de certa forma, triste com a recordação. —
Desculpa, Val, eu não pensei muito antes de falar.
— Tudo bem, mãe. — Tamborilou os dedos sobre o volante. — Já passou e agora não
estou mais sozinha. — Mirou Elis com ternura e sorriu para a jovem.
— E não está mesmo. — Elis tocou na perna de Valquíria e, sorrindo, sentiu um filete de
lágrimas deslizar por sua face.
Ao olhar para a esposa, Bergamoto estranhou o seu pranto. Sentiu-se agoniada, com o
peito pequeno e, mesmo temerosa, perguntou o motivo:
— Elis, meu amor, o que foi? Por que tá chorando?
Com um sorriso triste, Elis respondeu:
— Eu não sei. É um aperto no peito, uma saudade sem fim. Mas também é felicidade. Eu
não consigo entender direito, mas dói, Valquíria. Dói como se eu tivesse tido a experiência de te
perder. — Baixou a cabeça, enfitando os próprios pés.
Dolores, ouvindo aquilo, sentiu seus olhos acumularem lágrimas e seu coração ficar
diminuto, tal qual o da filha. Valquíria encostou o carro na lateral da estrada e se virou para Elis,
abraçou-a o mais apertado que pode, sentindo seu coração bater tão rápido e forte que estava
difícil respirar.
— Eu tô aqui, meu amor, e não vou a lugar nenhum. — Beijou-lhe o rosto com
sofreguidão.
— Eu sei, Val, mas... — soluçou, sucumbindo ao choro antes de finalizar.
— Mas? — inquiriu delicadamente, secando as lágrimas da sua amada.
— Hoje eu acordei estranha. — Suspirou pesadamente. — Tive um sonho estranho de
novo. Algo me afastava de você, dos seus pais. — Engoliu o choro para conseguir continuar. —
Quanto mais eu corria em direção a vocês, mais distante ficava. Algo me puxava pra trás e, de
repente, tudo ficava preto e eu estava só naquele vazio. — Fechou os olhos, o que acarretou no
derramar de mais lágrimas. — Aos poucos tudo foi ficando branco e acordei como se uma luz
forte tivesse sido jogada em meus olhos.
— Ai, minha pequena, não me esconda essas coisas. — Afrouxou o abraço para
conseguir olhar em seus olhos. — Converse comigo sempre que precisar, ou com mamãe. —
Indicou a mãe com a cabeça. — Ela não se incomodará.
— Não mesmo, Lis. — O tom de dona Lola era extremamente suave. — Sabe que te
tenho como filha, então, me deixa cuidar de você como sua mãe, criança.
Elis segurou na mão das duas e sorriu, sentindo-se um pouco mais acalentada com a
situação. Dolores olhou para a filha fixamente, como se dissesse o que ela deveria fazer.
Valquíria, assustada, agitou levemente a cabeça em negação após entender o que ela queria dizer.
— Valquíria, talvez seu pa... — Iniciou o seu discurso, sendo interrompida.
— O que acham de colocarmos uma música mais animada? — Cortou sua mãe, ao
perceber que ela falaria de seu padrinho.
— Que falta de educação, Val. Deixa sua mãe falar — Elis a repreendeu, fazendo
Dolores sorrir.
— Não é nada. — Coçou a cabeça. — Acabei esquecendo o que ia falar, depois que essa
daí se intrometeu — brincou, deixando a situação mais leve. — Coloque uma música boa e
alegre, Valquíria.
— Pode deixar! — Valquíria se entusiasmou e deu um sorriso, ligando rapidamente o
rádio.
Dona Lola não tinha se esquecido, mas, como poderia falar qualquer coisa diante
daqueles olhos pedintes de sua filha? Preferiu deixar esse assunto para as duas resolverem e
passou a cantar com Roberta Miranda a música que saía do som, A rural II. Elis olhou para
Valquíria com uma expressão confusa enquanto a veterinária ria, depois correu os olhos para
Dolores, tentando entender o que ela cantava.
Deixando a jovem mais perdida, Valquíria começou a cantar com a mãe:
— Ramu na areia não, ramu na areia não, ramu na areia não a rural rai atolá. Ramu na
areia não, ramu na areia não, ramu na areia não a rural rai atolá.
— Vocês estão de sacanagem com minha cara, né? — Elis disse, brava, fazendo as duas
caírem no riso. — Eu não entendi nada além do “arruma a mala aê”.
— Com o tempo você acostuma — Valquíria respondeu, aos risos, fazendo sua esposa
fuzilá-la com os olhos. — Depois eu leio a letra de um jeito que você entenda.
Elis não disse nada, apenas passou a observar o lado de fora, emburrada, fazendo dona
Lola rir. Era bem melhor ver as duas dessa forma, que amuadas como estavam antes. Ao menos
descobriu que elas não haviam brigado, em contrapartida, viu que Elis vinha sofrendo por coisas
que extrapolavam a razão, coisas que ela desconhecia, mas Valquíria e Dolores não.
Demoraram horas até chegarem ao hospital da cidade vizinha. Valquíria foi devidamente
examinada e liberada com um resultado satisfatório. Tanto do rosto, quanto do ombro. Como já
passava da hora do almoço, decidiram comer ali mesmo na cidade, aproveitando para comprar
algumas coisas para Isabel.
Passava das três horas da tarde quando as mulheres tomaram a estrada para casa e,
quando chegaram, o crepúsculo já tomara conta do céu. Deixaram Dolores em sua casa e foram
para o sítio. Elis já não estava mais angustiada como mais cedo, mas algo ainda a incomodava.
Sentia que precisava conversar com José, mas deixaria para outro dia. Estava cansada, pedindo
por um banho, além do mais, queria banhar a filha e a fazer dormir.
O casal estranhou ao avistar uma Range Rover preta parada em frente à porteira do sítio.
Sempre que saía, Valquíria travava o mecanismo da porteira, para evitar que desconhecidos
entrassem em sua casa. Reduziu a velocidade do carro, à medida que se aproximava do outro
automóvel.
— Seus pais não perdem a oportunidade de encherem o saco! — Valquíria comentou,
irritada, prevendo que Omar e Selina estavam no carro.
— Não acho que sejam meus pais — respondeu, analisando o veículo preto.
— Por que acha isso? — Valquíria a encarou, a sobrancelha erguida.
— Meus pais não têm esse dinheiro todo para comprarem uma Range Rover. — Elis deu
de ombros.
— Só essa que me faltava agora. Quem será, então? — perguntou, destravando o cinto e
saiu do carro.
Elis fez a mesma coisa, correndo para a porta de trás para pegar a filha. Aproximou-se de
Valquíria, assustada com a bebê em seu colo, e segurou na barra da camisa jeans da veterinária.
— Talvez eu conheça uma pessoa de posses desse porte — Elis começou a falar,
enquanto caminhavam na direção do carro.
— Quem? — Valquíria recaiu o olhar em sua esposa, confusa, pois, em sua mente, não
vinha ninguém que pudesse ser.
Antes que a jovem pudesse responder, a porta do motorista do carro se abriu e, dele, saiu
uma mulher muito elegante, de longos cabelos grisalhos e olhos incisivos de cor cinza, trajando
um blazer também cinza, com uma blusa branca por baixo e uma calça flare preta. Devia ter seus
quase cinquenta anos. Elis fitou a mulher e engoliu em seco, ao constatar que estava certa
anteriormente. A mulher retribuiu a mirada e sorriu, arqueando a sobrancelha.
— Dóris?! — Elis inquiriu, espantada, o nome de sua ex-sogra.
Valquíria intercalava seu olhar entre as duas, evidentemente perdida naquela situação.
— Olá, Elis! — A mulher permanecia sorrindo. — Finalmente conhecerei minha neta!

.24.
UMA NOVA ALIADA?
Dóris caminhou lentamente, diminuindo a distância entre ela e o casal, indo de encontro à
neta. Elis, por sua vez, escondeu-se atrás de Valquíria, que estufou o peito feito um pardal
quando estava prestes a brigar. Antes mesmo que a mulher encostasse um dedo na bebê, a
veterinária segurou o seu braço.
— Você não vai encostar nelas — falou, com postura altiva.
— Eu só quero ver minha neta. — Dóris comprimiu os lábios. — Elis, por favor — pediu
gentilmente, inclinando a cabeça para o lado em direção à Elis e Isabel.
— Não confio em você — Bergamoto se manifestou, forçando a mulher a encará-la. —
Vai que sai um bando de homens encapuzados desse carro!
Dóris gargalhou genuinamente, soltando seu braço das mãos de Bergamoto. Queria se
manter séria, contudo, fora impossível diante da situação.
— Minha querida... — Pendeu a cabeça para o lado mais uma vez, evidentemente
tranquila.
— Eu não sou sua querida! — a veterinária a cortou, ríspida. — Me chame de Valquíria!
— Cruzou os braços, ainda se pondo entre as duas.
— Tudo bem, Valquíria — respondeu com escárnio e certo prazer, como se saboreasse a
palavra em sua boca. Elis não gostou muito daquilo. — Eu não sou uma mafiosa, como você
imagina. Sou advogada e luto contra a violência à mulher. — Exibiu as mãos espalmadas em
sinal de obviedade. — Não vim aqui roubar minha neta, quero a conhecer e saber se Elis precisa
de algo.
— Dóris, você tá falando sério? — A jovem saiu de trás da veterinária, mantendo Isabel
bem agarrada em seus braços.
— Elis, não sai acreditando assim nesse povo — exasperou-se Valquíria, girando no
próprio eixo para encarar Elis por alguns segundos. — Olha quanto tempo ela demorou para te
procurar!
— Calma, Valquíria. — Dóris revirou levemente os olhos. — Eu digo a verdade. —
Trocou o peso de um pé para o outro, ajeitando a bolsa em seu ombro. — Não apareci antes, pois
me esconderam que Elis estava grávida. Tudo isso para manter as aparências, mas eu sou bem
diferente dos pais da Elis.
— E do seu filho? — Bergamoto questionou com acidez na voz.
— Meu filho não mora comigo e não foi criado por mim. — Tornou a encarar Valquíria,
com um meio sorriso no rosto. — Elis sabe muito bem disso. O pai tomou a guarda de Felipe
quando era um garotinho de três anos, alegando que, uma sapatão sem um pingo de decência,
feito eu, não poderia criar um filho. — Bufou levemente, dando alguns passos para trás e
recostando-se em seu carro. — Há vinte e três anos isso era muito normal, infelizmente. O
caráter dele foi constituído em cima dos ensinamentos do pai e Felipe não fez questão alguma de
aprender por si só e mudar. Logo, não compactuo com eles, nem com as atitudes descabidas do
meu filho. — Entrelaçou os dedos das mãos, ainda com o olhar voltado para Valquíria.
— E como podemos acreditar? — Bergamoto insistiu, mantendo-se ao lado de Elis como
um cão de guarda.
— Meu filho me abomina, Valquíria. — Baixou o olhar, como se de alguma forma o
chão de terra batida fosse mais interessante. — Elis já presenciou algumas vezes a forma que
Felipe me trata. Ele diz que Vanessa, a madrasta perfeita e hétero dele, é sua mãe — concluiu,
cabisbaixa, com a voz carregada de tristeza.
— Isso é verdade, Val. — A jovem pousou sua mão no ombro da esposa. — Eu só
descobri que a mãe do Felipe era a Dóris porque ele precisou da assinatura dela pra alguma coisa
e eu o acompanhei. — Seus belíssimos olhos azuis dividiam atenção entre as duas mulheres. —
Sempre achei que a tia Vanessa fosse a mãe dele.
— Mas ela é a madrasta, mas não posso reclamar dela. — Apesar do que dizia, a voz
ainda mantinha o tom taciturno. — Sempre foi boa mãe, mas lhe falta voz ativa e coragem para
se impor contra o Gilberto. Aquele homem é um monstro. — Ergueu o rosto, a expressão de
ojeriza dando à Valquíria uma noção de quem era o ex sogro de Elis.
— Você realmente não nos fará mal? — Bergamoto perguntou, ainda desconfiada.
— Eu só quero conhecer a minha neta. — Deu mais um sorriso, os olhos cintilando ao
vislumbrar a bebê de relance.
Nesse momento Valquíria baixou a guarda e deu um passo para o lado, deixando Elis
mais visível com Isabel nos braços. Dóris se aproximou de Elis e levou seus dedos aos fios lisos
e escuros da criança que dormia serena nos braços da mãe. Sentiu seu peito se encher de amor
pela bebê, recordando-se de Felipe ainda bebê. Queria fazer parte da vida daquela menina, queria
estar presente e não afastada como fora com seu próprio filho.
Isabel resmungou no colo de Elis e abriu os grandes olhos azuis, deixando Dóris ainda
mais comovida. Sua neta era muito parecida com seu filho naquela idade. Brincou com a menina,
fazendo-a soltar um risinho gostoso.
— Posso pegá-la? — Pediu, enquanto mantinha seus olhos e carinhos na bebê.
Elis enfitou Valquíria, meio temerosa, que a encorajou, e entregou a menina para a avó.
Dóris ninou a neta e a encheu de beijos, sentindo seu peito se aquecer.
— Ei, meu amor. — Seus olhos eram feitos taças de lágrimas, pois Dóris quase chorava.
— Eu sou sua vovó. Uma vovó bem doidinha e legal, mas que já te ama de um jeito que não
cabe no peito. — Elevou o olhar para Elis e perguntou: — Qual o nome da minha princesa?
A jovem sorriu e respondeu:
— Isabel. Parece que ela gostou de você. — Elis se sentiu contagiada pela energia,
abrindo um sorriso.
— Você gostou da vovó, meu docinho? — Inclinou-se para aspirar o aroma de sua
netinha, sorrindo ainda mais.
Valquíria abraçou Elis se sentindo emocionada com a cena que viam. Depois de tanto
tempo, ter uma aliada sem ser de sua família era revigorante. Se fosse para somar, Dóris seria
muito bem-vinda à família Bergamoto.
— Vamos colocar os carros na garagem e vamos entrar. — Valquíria aprumou o corpo, já
caminhando para a porteira.
— Ah, não! — A mulher prendeu a respiração por um instante. — Eu vou para a cidade e
consigo algum lugar para ficar — a advogada respondeu um pouco ansiosa, devolvendo Isabel
para a mãe.
— Deixa de bobeira, mulher. — A veterinária revirou divertidamente os olhos. —
Aqueles que querem o bem da minha família são muito bem-vindos na minha casa. Você dorme
aqui. Pode ficar o quanto quiser — Valquíria reforçou, aproximando-se de Dóris.
— Não sabe como fico feliz em ouvir isso — disse e estendeu a mão para Valquíria.
A veterinária apertou a mão da advogada com força e a puxou para um abraço caloroso,
pegando a mulher de surpresa. Após o susto, ela retribuiu o gesto com afeto, mesmo que um
pouco sem jeito.
— Vamos, temos muito o que conversar e essa boneca precisa dormir. — Valquíria se
desvencilhou do abraço, com uma expressão satisfeita estampada no rosto.
Ambas olharam na direção da criança e sorriram em cumplicidade. Elis sorriu em
resposta. Pela primeira vez, em muito tempo, não se sentia desamparada. Porém, a proximidade
de Valquíria e Dóris causava uma pontada de ciúme.
— Você tem razão. — Dóris assentiu com a cabeça.
Seguiram em seus carros até a garagem da casa de Valquíria e subiram a colina para a
casa. Foram recepcionadas por Flecha Preta e Campolina, que perambulavam ali por perto. O
cavalo preto se aproximou de Elis, que o acarinhou na crina por entre as orelhas, virando-se para
Dóris em seguida. A mulher se assustou com o animal, dando um gritinho ao sentir a lufada de ar
que ele soltou.
— Não se preocupe! — Valquíria ergueu as mãos. — Ele gostou de você, do contrário, já
teria te mordido — comentou aos risos.
— Tranquilizante ouvir isso. — Dóris pousou a mão sobre o peito, ainda um pouco
espantada.
Valquíria deixou Dóris e Elis entrarem na casa e foi cuidar dos animais no estábulo, pois
já passava da hora da refeição dos equinos. Enquanto isso, a advogada acompanhou a ex nora até
o quarto de Isabel e a ajudou no banho da neta, curtindo cada momento ao lado da criança.
Terminaram de cuidar de Isabel para que Elis tomasse seu banho e pudesse amamentar a filha e a
advogada desceu, esperando-a na sala com a neta nos braços.
Quando a veterinária entrou pela porta da cozinha, admirou a cena daquela mulher com
sua filha nos braços. Sentiu-se triste por Dóris ter sido privada da criação do filho e em que tudo
isso acarretou.
— Ela é linda — Valquíria falou e atraiu a atenção da mulher, que a olhou sorrindo.
— É sim, muito. — Suspirou, sem tirar os olhos cintilantes de sua neta. — Obrigada por
me permitirem fazer parte da vida dela.
— Você se permitiu ao ser uma pessoa sensata. — Moveu a mão com um gesto
tranquilizador. — Isabel será muito feliz por ter a avó com ela. Mas aposto que minha mãe vai
morrer de ciúmes — disse mais para si que para a convidada, que riu da feição da veterinária.
— Não quero disputar com sua mãe. — Ergueu as mãos em sinal de rendição, a
expressão serena. — Longe de mim.
— Eu sei — respondeu e caminhou na direção da escada. Parou, pensativa, volvendo o
corpo na direção de Dóris mais uma vez. — Você disse que é advogada e luta contra a violência
contra a mulher certo? — A mulher concordou com um aceno positivo da cabeça. — Pois bem,
quero contratar os seus serviços.
— E contra quem será a ação? — Dóris franziu o cenho, curiosa.
Valquíria respirou fundo e respondeu, categórica:
— Os pais da Elis, especificamente o Omar, e o seu filho. — Ergueu o queixo de forma
altiva, os olhos faiscando de raiva somente de citar aqueles nomes.
— Contra meu filho não seria ético, pois sou parte envolvida. Já o Omar e Selina, poderia
tentar alegar que não faço parte da vida deles de forma alguma. — Franziu as sobrancelhas,
pensativas. Cruzou as pernas e aprumou o corpo no sofá.
— Ético ou não, eu quero que o Omar pague pelo que me fez. — Travou o maxilar e
cerrou os punhos. — Ele quase me matou e quase matou a própria filha — praticamente rosnou
as palavras. — Quero que você pegue meu caso, mesmo que seja para assessorar outra advogada
que me representará, mas quero você cuidando disso.
— Mas, por que eu? — perguntou verdadeiramente confusa e curiosa.
— Por que você o conhece melhor que qualquer um e sabe o quanto ele é ardiloso. —
Trocou o peso de um pé para o outro, esfregando as mãos ansiosamente. — Vai tentar de tudo
contra mim e minha família. Eu quero os proteger, tanto meus pais quanto minha esposa e minha
filha.
Dóris olhou para a neta no colo e recebeu um lindo sorriso da menina. Inspirou
lentamente e, agitando a cabeça positivamente, respondeu:
— Tudo bem. — Amainou a expressão, tornando-se novamente serena. — Eu cuido
disso, mesmo que por de trás dos panos.
— Obrigada! — Valquíria assentiu com a cabeça e correu escadas acima para se banhar.
Encontrou-se com a esposa no meio do caminho e a beijou repleta de alegria, deixando a
jovem com a face corada. Elis desceu um tanto avoada, pensando no beijo, com um sorriso de
orelha a orelha, que não passou despercebido pela ex-sogra.
— É nítido como vocês se amam — comentou, ao entregar a menina para Elis dar de
mamar.
— Que bom que isso é perceptível. Posso te perguntar uma coisa? — questionou,
enquanto acariciava a filha.
— Claro! — Cruzou as pernas e apoiou o cotovelo no braço do sofá, fazendo um suporte
para o queixo com o dorso da mão.
— Como nunca soube que você gosta de mulher? — Elis alternava o olhar entre sua filha
e sua ex-sogra.
— Ah! Acredito que seja por considerarem isso uma vergonha, mas não me arrependo de
nada. — Correu o dedo pelo tecido de sua roupa. — Fui plenamente feliz e faria tudo novamente.
— Foi? — Elis contorceu a face em dúvida.
— Meu tempo com Fernanda foi maravilhoso, mas, no fim, sobrou apenas a amizade. —
Comprimiu os lábios de maneira quase pesarosa. — Atualmente ela mora no Canadá, casou-se
novamente e tem dois filhos. Às vezes nos falamos.
— Não pretende se casar novamente? — A loira sibilou ao Isabel puxar com muita força
o seu mamilo, quase tendo a linha de raciocínio quebrada. — Ou namorar, quem sabe?
— No momento, não. — Encolheu os ombros. — Estou bem sozinha, me curtindo, me
conhecendo e me permitindo fazer o que tenho vontade. — Recostou as costas no sofá,
permitindo-se relaxar. — Quem sabe um dia apareça uma mulher maravilhosa pra ficar ao meu
lado? Agora, não com pressa.
— Admirável essa segurança! — Elis a fitou e sorriu. — Eu com a minha idade, tinha
medo de ficar sozinha o resto da vida.
— Eu também tinha. Perdi esse medo quando passei a me amar e perceber que eu me era
suficiente. — Gesticulou com as mãos livres, como se discursasse. — Não me fecho para o que
vier, caso apareça, mas não estou procurando. Aprendi a deixar a vida me levar.
— Agora entendo por que o tio Gil te odeia tanto. — A jovem Teixeira deu uma
risadinha.
— Ah, é? — Dóris arqueou uma de suas sobrancelhas. — Por quê?
— Porque os homens têm medo de mulheres que aprenderam a voar — declamou
orgulhosamente e tornou a observar Isabel, que já dormia.
Dóris sorriu, concordando com a garota. Logo depois, Valquíria desceu já vestida e
emendaram em outros assuntos. Encerraram a noite com uma sensação gostosa de cumplicidade
no coração. Ali, iniciava-se uma grande parceria e uma possível grande amizade.

.25.
A INSEGURANÇA PAIRA NAS ENTRELINHAS
Valquíria se levantou e foi preparar o café, assim como fazia todos os dias. Deixou tudo
preparado para passar a bebida e, enquanto a água esquentava, foi ao estábulo alimentar os
cavalos. Estava tão distraída pegando feno com o garfo e colocando nos devidos cochos,
cantarolando alegremente, que acabou demorando um pouco mais com os animais. Recordou-se
do café e correu para casa, deparando-se com Dóris terminando sua tarefa.
— Ah! Me desculpe ter sido intrometida, mas acho que era esse o propósito, não é? —
Justificou-se com um sorriso de lado, ainda coando o café.
— Não há necessidade disso, Dóris. Eu que cometi um vacilo e você me salvou. —
Assentiu com a cabeça, retribuindo o sorriso e prosseguiu: — Obrigada. Vou preparar as coisas
que Elis gosta de comer. Tem preferência de alguma coisa?
— Não se preocupe comigo. Sou do tipo avestruz, até pedra eu como — brincou, fazendo
Valquíria gargalhar ao se identificar com a advogada.
— Jogamos no mesmo time, então. Sinta-se à vontade. Pode ficar aqui ou se sentar na
sala, assistir TV. Faça o que tiver vontade. — Valquíria indicou a sala com uma das mãos.
Dóris olhou bem para Valquíria, avaliando toda a sua gentileza e educação, além da
beleza que a mulher tinha e pensou que, em outras circunstâncias, a veterinária seria um ótimo
partido.
— Vou te fazer companhia. Bom que conversamos um pouco. — Puxou a cadeira e se
sentou, colocando a garrafa no centro da mesa.
Valquíria sorriu para ela e pegou algumas frutas, preparando-se para as fatiar com total
zelo, que não passou despercebido por Dóris.
— Elis tem muita sorte — falou e bebeu de seu café fumegante.
— Por que diz isso? — Valquíria parou de cortar as frutas e pousou os olhos na avó de
sua filha.
— Você é uma pessoa incrível. — Dóris sorriu levemente, com a caneca ainda nos lábios.
— Fala isso por que me conheceu há algumas horas! — Riu das próprias palavras, quase
cortando o dedo pela falta de atenção na faca.
— É a verdade! — Encolheu levemente os ombros. — Dá pra ver o cuidado que você
tem com ela. Espero que eu encontre uma mulher tão maravilhosa quanto você. — Seus olhos
cintilaram.
Bergamoto tornou a preparar a salada de frutas, absorvendo as palavras de Dóris.
— Bem, Elis é diferente. — Trocou o peso de um pé para o outro. — Eu nunca me
interessei por mulheres, muito menos me apaixonei por alguém desde a morte do meu marido.
Mas essa menina... — Deu um leve suspiro — Ela me virou a cabeça de uma forma.
— Fico feliz por vocês, mas admito que senti uma invejazinha. — Deu uma risadinha,
terminando de beber o seu café em seguida. — Posso te ajudar?
— Não precisa... — Valquíria a encarou de esguelha.
— Faço questão! — Dóris se ergueu, pousando a mão na cintura.
Vencida, ela respondeu:
— Certo. — Segurou-se para não bufar. — Pode colocar esses pães de queijo no forno
elétrico? É mais rápido.
Elis desceu a escada com Isabel choramingando nos braços, certamente por fome. Ao
chegar à porta da cozinha, não gostou muito da cena que viu. Dóris ria muito próxima de
Valquíria, com a mão apoiada no ombro da mulher. O ciúme que dera as caras na noite anterior
estava ali marcando presença, e com força total. Por um momento, pensou que elas combinavam
mais, tratando de afastar esse pensamento em seguida.
— Bom dia — disse, um pouco séria. Mesmo que tentasse disfarçar, a veterinária
percebeu certo rancor na voz da esposa.
— Bom dia, amor. Dormiu bem? — Aproximou-se de Elis e a beijou. — Ei, meu
amorzinho. — Pegou Isabel no colo e brincou com ela.
— Dormi, sim. — Forçou um sorriso. — Ei, Dóris, bom dia.
— Bom dia, minha querida — respondeu gentilmente, caminhando até a neta. — Ei,
princesa da vovó. — Brincou com a criança, que riu para a avó.
Mesmo um pouco incomodada, Elis conversou normalmente com Dóris. Poderia não ser
nada demais, talvez fosse sua insegurança por ser tão jovem, por essa razão, decidiu deixar essa
questão de lado. No meio da refeição matinal, Dolores chegou gritando do quintal. Em resposta,
Isabel mexeu os bracinhos e as perninhas para cima, posto que já reconhecia a voz de dona Lola.
— Parece que alguém ficou animada com a vovó Lola chegando — Elis comentou, ao
observar a filha que havia largado o peito para remexer o corpinho.
— Não é? — Valquíria deu uma risadinha satisfeita. — Só a dona Lola pra ter esse poder
de fazer a Isabel abandonar o leitinho.
— Sua mãe deve ser uma avó maravilhosa. — Dóris coçou a cabeça, os olhos atentos
ainda sobre a neta.
— É sim, mas mima demais essa menina. — A veterinária revirou levemente os olhos,
cruzando os braços.
— Mimo mesmo e ai de você se me impedir, dona Valquíria — ralhou da porta externa
da cozinha. — Bom dia, meninas!
— Bom dia, dona Lola — Elis respondeu, abraçando-a apertado.
— Bom dia, mãe! — A anfitriã cumprimentou, também, com um aceno de cabeça. —
Madrugou hoje, hein — flauteou, rindo em seguida.
— Cala a boca, Valquíria! — Dolores fechou a cara. — Daqui a pouco você vai trabalhar
e não quero deixar a Lis sozinha aqui com a Isabel.
— Coitado do meu pai, completamente abandonado pela senhora — dramatizou
Valquíria em um tom teatral.
— Seu pai é um marmanjo velho que sabe se virar. — Dolores bufou. — Até parece que
vou deixar minha princesa sozinha por conta dele. — Puxou a cadeira e se sentou, logo pegando
uma caneca esmaltada branca e se servido do café fresco.
— Sabia que era por causa da Isabel — Valquíria disse e recebeu um olhar de reprovação
de sua mãe, que se deu conta da presença de Dóris apenas naquele momento.
— Ah, quanta falta de educação a minha! — Arregalou os olhos, sugando o ar com
rapidez por conta do susto. — Sou Dolores, a mãe da Valquíria. — Ofereceu a mão gentilmente,
mostrando um sorriso sincero. — Muito prazer.
— Deixe disso! — A advogada sorriu. — Sou Dóris, a avó da Isabel.
Nesse instante, o sorriso de Lola se desfez do rosto e direcionou seu olhar para a filha e a
nora, procurando alguma explicação para aquela mulher estar ali naquela mesa e naquela casa.
Como não teve resposta, ela mesma perguntou:
— Você não tá aqui pra fazer um inferno da nossa vida não, né? — Com as sobrancelhas
e os lábios franzidos, dona Lola a encarava.
— Mãe! — Valquíria a repreendeu e Elis não pôde deixar de rir.
— Calma, Valquíria. — Dóris ergueu as mãos em sinal tranquilizador. — Sua mãe tá
certa em estar desconfiada dessa forma, visto que as outras pessoas, envolvidas nesta situação,
que chegaram aqui não ajudaram muito.
— Não mesmo! Povinho com espírito de porco — murmurou com amargor, a expressão
facial ainda sisuda.
— Mãe! — ralhou a veterinária, em um sibilo.
— Que foi? Não menti. — Deu de ombros. — Agora quero saber de você, Dóris. —
Arrastou a cadeira para ficar bem próxima da visitante. — Vai tentar roubar minha neta?
— Não! — A advogada respondeu com serenidade.
— Vai tentar prejudicar a Elis? — inquiriu imperiosamente, com a sobrancelha erguida.
— Também não! — Meneou negativamente com a cabeça.
— Tá aqui infiltrada a mando dos pais da Elis? — Dona Lola não se aproximou mais
porque não dava, os olhos atentos fixos nos de Dóris.
— Definitivamente, não! — Dóris se encolheu, tentando sorrir, mas visivelmente ansiosa.
— Então, pelo seu filho? — Cerrou mais o cenho, cruzando os braços sobre o peito.
— Tampouco ele. — A advogada tentava manter contato visual com Dolores, mas não
conseguia, por estar encabulada.
— Então, tá fazendo o que aqui? — Ergueu o queixo várias vezes.
— Pelo amor de Deus, mãe, para com isso! — Valquíria se debruçou na mesa, tapando o
rosto.
Elis tentava prender o riso, enquanto dona Lola se mantinha séria diante da visível
vexação de sua filha e do sorriso jocoso de Dóris.
— Eu vim conhecer minha neta. — Exibiu as mãos espalmadas em tom de obviedade.
— Anota aí, Elis, o coelho da páscoa existe. — A idosa revirou os olhos.
— Mãe do céu! — A veterinária se ergueu novamente, cruzando as pernas. — Quer me
matar de vergonha?
— Você é muito boba, Valquíria. — Ajeitou a postura na cadeira, ainda enraivecida. —
Sai acreditando no primeiro sorriso frouxo que a pessoa dá. — Revirou os olhos. — Não confio
assim, não. Nasci desconfiada mesmo.
Diante da colocação de Dolores, Dóris não viu outra solução, a não ser esclarecer as
coisas, da mesma forma que fez com Valquíria e Elis na noite anterior. Lola não se deu por
satisfeita, mas engoliu aquilo, por ora.
— Tá certo, mas eu tô de olho em você. — Levou um dos dedos até o olho, indicando-o.
— Eu sei muito bem me livrar de gente inconveniente.
— O chicote que o diga — Elis comentou com um risinho, fazendo a carranca de dona
Lola se desfazer, rindo em seguida.
— Chicote? — Dóris perguntou, sem entender a brincadeira.
— Depois Elis, ou mamãe mesmo, te conta essa história. — A veterinária deu um grande
gole em sua caneca de café, que já estava quase frio. Por isso, esboçou uma careta. — Agora, eu
preciso ir. Uma leva de cavalos chegará para o adestramento e não posso me atrasar.
Elis deu a filha para dona Lola, que olhou vitoriosa para Dóris, e foi até Valquíria. Sentou
em seu colo e a abraçou apertado. Estava com uma sensação ruim, um certo incômodo e, ouvir
sobre adestramento de cavalos, deixou-a mais inquieta.
— Promete que não vai fazer nada estúpido? — Acariciou os cabelos de sua esposa com
uma das mãos. — Que vai se cuidar? — Enfitou-a, com seus olhos cerúleos a cintilar.
— Claro que sim, amor. — Valquíria beijou o ombro de sua amada carinhosamente. —
Não vou adestrar hoje, isso ficou por conta do Juca. — Deu um sorriso sereno. — Vou só
supervisionar e avaliar os cavalos da reabilitação. Não se preocupe.
— De verdade? — Elis praticamente choramingou.
— De verdade! — Buscou as mãos da esposa e distribuiu beijos.
Elis apertou-se no abraço e escondeu seu rosto na curva do pescoço de Valquíria. A
veterinária a beijou no topo da cabeça e lhe fez carinhos nos braços, acalmando-a. Segurou a
esposa pelo rosto em seguida e a beijou com carinho, unindo suas testas em seguida.
— Vou ficar bem — cochichou por entre o beijo. — No almoço eu volto.
Elis concordou e se levantou, deixando Valquíria sair. A mulher se despediu da filha,
pediu a benção à sua mãe e se retirou acenando para elas. A jovem ficou um pouco amuada, com
os olhos marejados e as mulheres ali presentes perceberam.
— Ei, Elis, me conta essa história do chicote — Dóris pediu, atraindo a atenção da jovem
Teixeira.
— Isso, conta pra ela, Lis. — Dona Lola resolveu dar uma trégua para a advogada,
apenas para que sua nora se sentisse melhor.
A mãe de Isabel respirou fundo e sorriu sem mostrar os dentes. Sabia que elas queriam a
distrair e, vendo o esforço de dona Lola por concordar com Dóris, decidiu relatar os fatos. Talvez
realmente distraísse sua mente. No fim das contas, não foi tão ruim assim.

.26.
ELIS E ERNESTO
Dóris foi embora na segunda-feira seguinte, após aproveitar bastante a neta e recolher os
depoimentos e fatos necessários para auxiliar o advogado que, de fato, assumiria o caso. A
primeira providência seria pedir uma medida protetiva contra os pais de Elis e a pensão
alimentícia de seu filho. Por mais que Elis não quisesse nada de Felipe, a advogada não achou
certo e a convenceu do contrário.
Ainda que Elis sentisse ciúme em alguns momentos, Dóris não tinha interesse afetivo em
Valquíria, apenas a admirava como pessoa e como mulher. O máximo que fazia era desejar
alguém parecido para sua vida, mas, no momento, estava bem só. Jamais se intrometeria no
relacionamento de outra pessoa, tampouco seria a parte que destruiria uma união. Ao menos era
como a advogada se sentia no momento e, se isso mudasse, continuaria mantendo seu
posicionamento de não interferir.
Com o decorrer dos dias, Dóris mandava notícias sobre o andamento do caso, informando
que provavelmente demoraria um pouco para as coisas se encaminharem. Enquanto isso, a vida
de Elis e Valquíria seguia normalmente. Ou quase. Elis passou a ter sonhos estranhos com mais
frequência e sempre que os contava para a esposa, percebia que ela ficava um tanto estranha. A
veterinária tentava disfarçar, mas não era o suficiente para convencer a outra parte.
Nesse dia, em questão, Valquíria teria de sair mais cedo que o normal, pois teria um
atendimento a domicílio e, preocupada com Elis, deixou-a na casa de seus pais com Isabel.
Dolores percebeu que a sua nora estava mais quieta que o normal e, aproveitando que o marido
estava brincando com a neta, foi conversar com ela.
— Elis, tá tudo bem com você? — Colocou a mão sobre o ombro da jovem, ao se
aproximar, e se sentou ao lado de Elis.
— Sim, dona Lola. Por quê? — Volveu o rosto na direção na senhora para lhe dar
atenção.
— Tô te achando tão quietinha. Tá se sentindo mal? — Pendeu a cabeça para o lado, o
olhar preocupado recaído sobre Elis.
— Não, só pensativa mesmo. — Elis suspirou e encolheu levemente os ombros.
— E o que tanto te preocupa pra te deixar assim? — inquiriu Dolores, tentando ignorar o
pressentimento que tinha.
— Nem chega a ser preocupação — ditou em tom baixo. — É um incômodo mesmo.
Tenho tido tantos sonhos estranhos. Em alguns a Valquíria está, outros sou apenas eu, mas nunca
sou eu fisicamente. — Baixou os olhos, enfitando as próprias mãos. — Parece uma lembrança,
mas eu não vivi aquilo. — Tornou a erguer a cabeça, fitando a sogra com os olhos carregados de
frustração e agonia. — Argh, deixa, Dona Lola! — Encolheu-se na cadeira, rendida ao que
sentia. — É muito confuso. — Agitou a cabeça leve e negativamente, como se ansiasse encerrar
aquele assunto de qualquer forma.
Dolores respirou fundo e olhou para Elis, compadecida. Segurou as mãos da nora e
acariciou, apertando-as entre as suas em seguida.
— Pode parecer loucura, mas eu te entendo. — Tentou acalmá-la com um sorriso terno.
— Já contou esses sonhos pra Valquíria?
— Alguns deles, sim. Principalmente os que sempre acontecem algo comigo. Ela me
conforta, diz que vai ficar tudo bem e fica por isso mesmo, mas sempre parece saber de algo que
eu não sei. — Puxou as mãos e as colocou sobre o colo, apertando os dedos uns contra os outros.
— Entendo. Vou ser sincera com você, Elis. — Dolores inspirou profundamente, sabia
que adentrava um terreno perigoso. — Valquíria tem muitos medos e o maior deles é te perder.
Talvez ela faça ou omita algumas coisas por conta disso, ou por não saber como falar. Ela já
sofreu muito e se fechou para o amor, até você aparecer.
— A senhora também fala como se soubesse de algo. — Imediatamente ergueu a cabeça,
colocando seus olhos em cada detalhe da expressão da mulher, analisando-a.
— Talvez eu saiba, mas não cabe a mim falar. — Comprimiu os lábios.
Elis ficou surpresa com a resposta de sua sogra. Não esperava aquele nível de franqueza
de Dolores.
— Por quê? — inquiriu, com uma das sobrancelhas içadas.
— Tem assuntos que nós não devemos nos intrometer. — Deu de ombros levemente. —
Isso é uma coisa entre vocês duas e Valquíria que precisa te contar, ou uma pessoa mais
competente que eu, Lis.
— Ai, Dona Lola, a senhora podendo acabar com a minha agonia, prefere me deixar
ferver a cabeça. — A jovem pousou as mãos no rosto, ansiosa.
Dolores riu dos dizeres de sua nora e a abraçou apertado, tentando amenizar a agonia de
seu peito.
— Quem garante que ficará tudo bem se eu falar alguma coisa? — Deu um longo
suspiro, afagando as costas da moça. — Talvez só piore tudo, mas na hora certa, você descobrirá.
— Já vem a senhora com isso de “na hora certa”. — Revirou os olhos. — Nem vou
insistir, porque sei que dessa boca aí não vai sair nada — reclamou, ainda no abraço da senhora.
— Ainda bem que já me conhece — riu de si mesma. — Não fique assim. Vamos
aproveitar que o Augusto está com a Belinha e vamos fazer alguma coisa. — Deu palmadinhas
amigáveis no ombro de Elis.
— Tudo bem! — concordou, sem muito entusiasmo.
O dia se mostrava exuberante e não faltou tarefa para dona Lola ocupar a mente de Elis.
Ensinou tudo o que podia em sua estufa, desde o plantio até característica de cada flor e erva que
ela tinha naquele espaço; isso ocupou toda a manhã das duas. Depois do almoço, sentaram-se na
varanda, enquanto Isabel dormia em seu bercinho suspenso.
Elis estava alheia à conversa do casal, literalmente jogada em uma cadeira grande e
acolchoada de vime, com os olhos fixos à direção de sua casa. Logo, avistou um ponto preto se
movimentando em direção ao sítio dos pais de Valquíria. Seu Augusto observou para onde Elis
olhava e avistou o cavalo. Tocou no braço da esposa e movimentou a cabeça no sentido em que a
nora olhava.
— Esse cavalo gosta mesmo de você, hein?! — Dolores falou, mantendo seus olhos em
Flecha, mas atraiu a atenção de Elis para si.
— A senhora acha que ele veio por minha causa? — Elis, sem retirar o olhar do equino,
inquiriu.
Olhou para a jovem com um sorriso sincero no rosto e respondeu:
— Eu não tenho dúvidas disso. Vai lá, pega ele e leva o bichinho pra tomar água. —
Indicou o cavalo com um dos dedos. — Aqui atrás tem um cocho, é só abrir a torneira.
— Vou sim. — Ergueu-se de uma só vez, quase de supetão. — Tadinho, ele já é idoso,
não pode ficar saindo assim — Elis falou, contrariada, fazendo os sogros rirem. — Se ele estiver
bem, vocês olham a Isabel pra eu dar uma voltinha com ele? Faz tempo que não dou atenção ao
Flecha.
— Pode ir, menina. Eu cuido da Belinha — Dona Lola incentivou a nora, que saiu
apressada na direção da porteira.
O casal acompanhou a menina com os olhos, até perdê-la de vista. Enquanto os sogros
cuidavam de sua filha, Elis fazia carinhos em Flecha Preta, observando o animal beber água
tranquilamente. Para ela, ao mesmo tempo que era estranha a afinidade com o equino, também
era boa. Sentia que podia confiar sua vida ao animal. Sentiu-se triste por recordar que Flecha já
era um cavalo idoso e, por conta disso, poderia perdê-lo daqui uns dias, meses ou anos ainda. Era
incerto, mas sabia que não faltava muito.
Montou no cavalo em pelo, assim que ele acabou de se refrescar, e partiu em um trote
calmo. Acenou para o casal na varanda e saiu pelos arredores. Cantarolava, enquanto sentia o
vento em seu rosto, feliz da vida por ser agraciada com essa oportunidade. Antes de fugir de casa
e parar na cidade de Valquíria, Elis jamais cogitaria nutrir um sentimento tão intenso por um
cavalo, mas foi amor à primeira vista ao se encontrar com Flecha.
Não demorou muito em seu passeio; não queria abusar do animal. Quando chegou ao
sítio dos sogros, percebeu que eles tinham visitas, pois havia um fusca azul bebê estacionado em
frente à casa. Desceu do cavalo, soltou-o para descansar e seguiu para a varanda, dando de cara
com Rosa e José conversando com seus sogros. Cumprimentou-os brevemente e foi se banhar
para dar a devida atenção a eles. Ou a José, especificamente.
— Agora sim, posso me sentar com vocês — Elis surgiu no umbral da porta, ainda
secando seus cabelos. — Como vocês vão?
— Vou bem, Elis — Rosa respondeu gentilmente. Já não implicava mais com Elis, por
ser casada com Valquíria.
— Bem também, mocinha. — Seu José assentiu com a cabeça. — Mas você parece que
tá meio preocupada.
— Ah, seu Zé, não chega a ser preocupação. — Apesar de suas palavras, era visível a
consternação da jovem em seu rosto. — Tô só incomodada com umas coisas. Queria até
conversar com o senhor sobre isso.
Dolores sentiu sua espinha gelar, pois imaginava como isso terminaria.
— Não quer deixar pra ter essa conversa depois, Elis? O café já está quase pronto! — Ela
ainda tentou mudar a ideia da nora, ansiosa.
— Deixa ela, comadre. Enrolar essa prosa vai ser pior. — José se intrometeu, deixando
claro para Dolores que não evitaria tratar daquele assunto com Elis. — Vocês podem deixar nós
dois sozinhos aqui?
Resignada, dona Lola convidou a comadre para a ajudar com o café da tarde e Augusto as
acompanhou, levando Isabel com ele.
— Pronto, minha filha. — O idoso ajeitou o chapéu de palha na cabeça. — Pode falar.
— Venho tendo sonhos estranhos... — introduziu o assunto, temerosa.
Elis contou todos os sonhos que vinha tendo, desde o primeiro, para José, que a ouviu
atentamente. O homem já sabia do que se tratava, mas deixou a moça terminar para se sentir
mais aliviada. Após um considerável tempo, ela terminou seus relatos.
— O que o senhor acha? — perguntou, verdadeiramente curiosa. Apertava tanto os dedos
de nervoso que estavam com as pontas vermelhas.
— Vamos por partes, Elis. — José coçou o queixo. — Esses sonhos não são apenas
sonhos. São experiências de vidas passadas que você teve. Você tem feito uma espécie de
regressão inconsciente.
— E por que a Valquíria está neles? — A jovem contorceu sua face em dúvida.
— Porque isso faz parte das memórias da sua vida mais recente antes de voltar como
Elis. — José aprumou seu corpo na cadeira.
Elis ficou um pouco confusa, mesmo que algo dentro de si começasse a perceber aonde
aquilo daria.
— Pode explicar de forma clara? — pediu, receosa com o que escutaria.
— Claro. — Ele sorriu até mesmo com seus olhos. — Você já foi casada com a Valquíria
e a amou tanto que voltou por ela como Elis.
— O senhor quer dizer que... — Começou, com a voz embargada.
— Que você já viveu uma vida como Ernesto, o falecido marido de Valquíria. — O idoso
completou sua sentença, movendo a cabeça com um aceno positivo.
Elis tentou ouvir atentamente as explicações de José, mas, a verdade é que ela mal o
escutava. Apenas pensava que Valquíria se atraiu por ela por ser uma sombra do falecido, que ela
ama o que ela foi e não agora, pois essa era a única explicação que passava por sua mente para a
esposa não ter lhe contado antes. A angústia serpeava por suas veias, assim como a decepção.
— E por que ela não me contou antes? — Os olhos azuis estavam mais escuros,
avermelhados e arrebatados de lágrimas.
— Ah, Elis, acredito que por medo da sua reação, mas isso é melhor você conversar
diretamente com ela. — Ele franziu levemente os lábios, alisando o braço da poltrona. — Mas
acredite quando lhe digo: Valquíria amou demais o Ernesto, mas hoje ela ama muito você,
menina.
— Que sou a sombra dele! — retrucou com amargor, a alma dilacerada pelas emoções
que redemoinhavam em seu âmago.
— Não duvide dos sentimentos dela por você, porque eles são verdadeiros. — Gesticulou
com a mão. — Como ela poderia amar uma sombra, sendo que essa habitou o coração de
Valquíria anos? Você trouxe a minha afilhada de volta à vida, menina!
— Não sei se acredito muito nisso, Seu José. — Baixou a cabeça, tentando a todo custo
engolir o seu choro. — Obrigada por me ouvir e me contar. Preciso ficar um pouco sozinha pra
absorver isso tudo. — Ergueu-se e rumou casa adentro.
— Claro, fica à vontade. — José moveu a cabeça negativamente após a saída de Elis.
Elis entrou no quarto, que um dia foi de Valquíria, e ficou lá por horas. Ora chorando, ora
tentando entender o lado da esposa, mas foi informação demais para sua cabeça e ela tinha
ciência que não era tão madura quanto a veterinária para lidar com uma situação dessas.

Beiravam às sete horas da noite quando Bergamoto chegou ao sítio dos pais e seus
padrinhos já tinham ido embora, logo, não tinha ideia do que a esperava. Pegou a filha dos
braços da mãe e a beijou com muita ternura, procurando por Elis com os olhos pela sala.
— Cadê a Elis? — inquiriu. Viu os pais se entreolharem, estranhando aquele gesto.
— Tá no quarto. Não saiu nem pra tomar café à tarde. — Dona Lola respondeu em tom
neutro, enquanto Seu Augusto apenas assentia com a cabeça.
— Hum, será que ela tá doente? — Devolveu a filha para sua mãe e começou a caminhar
em direção ao quarto.
— Ela entrou no quarto depois de conversar com seu padrinho e não saiu mais de lá. —
Dolores soltou as palavras todas de uma vez.
Valquíria travou os passos ao ouvir as palavras da mãe, juntou os pontos e sentiu o chão
se abrindo gradativamente abaixo de seus pés. Com certeza, eles haviam conversado sobre
Ernesto, bem como tinha certeza que Elis estava extremamente chateada, quiçá, duvidando dos
seus sentimentos por ela e a culpa era sua por não ter tido coragem suficiente para ter contado
pessoalmente à esposa.
Foi até onde a jovem estava e se deparou com Elis encolhida na cama, ao abrir a porta.
Sentiu seu coração se apertar lentamente, como um castigo por não ter falado antes. Entrou e
fechou a porta devagar, atraindo a atenção da esposa para si.
— Lis... — Sua voz saiu baixa, como se temesse a magoar ainda mais ao abrir a boca,
mesmo não tendo culpa alguma. Ou alguma parcela pequena.
— Por que não me contou? — A voz de Elis era cortante e fria, visivelmente magoada.
— Eu tinha medo de você entender tudo errado. — Ajoelhou-se diante da cama para
encará-la.
— Errado como, Valquíria? — Elis se assentou, exasperada. — Que você tá comigo por
que eu já fui seu marido um dia? — Cruzou os braços sobre o peito.
— Não, Elis. — Valquíria gesticulou quase desesperadamente. — Eu tô com você por
que eu amo você.
— E seu falecido marido? — Arqueou uma das sobrancelhas, a feição completamente
irritadiça.
— É diferente, Lis... — Suspirou longamente. — Ele foi meu primeiro amor, vou levar
comigo pra sempre, mas você... — Pousou os olhos perdidamente apaixonados na jovem. —
Você é a minha luz, a minha vida. Eu amo você por ser você. Em várias coisas, você é diferente
dele e isso me faz te amar ainda mais — declamou com a voz embargada pelo choro que
ameaçava vir.
— Você devia ter me contado quando descobriu! — Elis mal conseguia conter o tom de
voz.
Valquíria tentou a abraçar, mas Elis se esquivou.
— Eu quero ficar sozinha. — Seus olhos estavam vermelhos e as lágrimas já se
formavam novamente.
— Lis, por favor, vamos pra casa... — Os olhos da veterinária se tornaram taças cheias,
ameaçando a transbordar o pranto que prendia.
— Eu preciso desse tempo, Valquíria — respondeu secamente. — Preciso digerir isso. Se
seus pais não se incomodarem, eu vou ficar aqui com a Isabel. — Ergueu o queixo altivamente.
— Amanhã eu vou com sua mãe até a sua casa e pego algumas coisas pra mim e pra ela.
— Elis, por favor... — A mais velha pediu num fio de voz, com dificuldade devido ao
choro.
— Por favor, Valquíria, respeita o meu espaço e o meu momento — murmurou com a
voz controlada. — Não tenho condições e nem maturidade pra falar disso hoje.
— Eu te amo, Elis. Não fica assim comigo. — Tentou tocar no braço da esposa mais uma
vez, que retirou do alcance da veterinária assim que percebeu sua intenção.
— Me deixa sozinha, pelo amor de Deus! — rogou aos prantos, em um grito sofrido que
partiu o coração de Valquíria em míseras partículas de agonia.
Doía na alma de Elis fazer isso, mas não conseguia não sentir raiva ou mágoa. Infelizmente,
naquele momento, ela não conseguia se colocar no lugar de Valquíria e apenas queria ficar só.
Bergamoto saiu do quarto arrasada. Conversou brevemente com os pais, que a consolaram e
foi para casa imersa nos piores sentimentos e, ao chegar em seu sítio, bateu as mãos contra o
volante para extravasar toda a sua frustração, enquanto gritava e saiu apenas quando se sentiu
menos deplorável.
Nunca se sentiu tão só naquela casa como estava naquele momento. Nem mesmo após a
morte de Ernesto.
.27.
O QUE O AMOR UNIU, NADA SEPARA
Passou-se uma semana desde que Elis descobriu ser a reencarnação de Ernesto. Uma
semana que estava longe de Valquíria. Pensou bastante em tudo que José a disse e, por vezes,
achou aquilo tudo uma loucura, mas, em contrapartida, recordava-se de como tudo aconteceu
naturalmente entre elas; em como Valquíria lhe parecia tão familiar, além de sua conexão com
Flecha Preta.
Conversou muito com a sogra durante todo aquele tempo, que sempre foi muito
compreensiva e lhe deu vários conselhos, dentre eles, não adiar esse assunto com Valquíria. Elis
entendia tudo o que Dolores falava, porém, sua falta de maturidade a impedia de pensar
coerentemente. Isso ainda fazia parte dela, ainda viveria o suficiente para pensar sensatamente,
no entanto, naquele momento ela apenas sentia. Sentia saudade de Valquíria, mas não tinha
coragem suficiente para a olhar nos olhos sem relembrar o que omitira.
Bergamoto, assim como Elis, passou esses dias com a angústia e a saudade lhe tomando a
mente, o peito e a alma. No primeiro dia, chorou e se culpou a cada minuto por ter sido covarde
ao demorar tanto para contar à esposa. Mesmo que Elis não entendesse, mesmo que ela fizesse a
mesma coisa que agora, teria sido menos pior ter escutado de sua boca e não da boca de seu
padrinho. Porém, o que estava feito, estava feito. Tinha de respeitar esse tempo da esposa e tentar
incansavelmente conversar com a jovem depois.
Por vezes, Cássia pegou Valquíria chorando pelos cantos da clínica veterinária. Parecia
estar vivenciando o passado novamente, onde consolava a amiga pela perda do marido. Depois
de todos os dias que se passaram, Cássia a chamou para conversar, pois já não aguentava mais
aquela situação. Diferente da época de Ernesto, agora era possível resolver.
— Não acha que já passou tempo o suficiente? — Cássia a encarou com seriedade. —
Vai continuar tendo de ir até à porteira da casa dos seus pais pra ver a sua filha?
— Eu não quero pressionar a Elis, Cássia. — Valquíria se encolheu e a simples menção
do nome de Elis já incutiu no marejar de seus olhos.
— Você não quer é ficar cara a cara com ela e escutar o que ela tem a dizer! — A mulher
estalou a língua no céu da boca, seguidas vezes, em som de negação. — Valquíria, você não
levou em conta a opinião de ninguém, muito menos a da cidade, sobre o relacionamento de vocês
e vai deixar as coisas ficarem assim agora? Cadê aquela mulher de brios que eu conheço? —
Cássia tinha as mãos na cintura e mantinha a cara fechada, tentando intimidar a amiga.
— Ah, Cássia! Como eu queria ter feito tudo diferente — falou, cabisbaixa, mal
conseguindo encará-la.
— Queria, mas não fez! — Deu de ombros. — Agora é lidar com os danos e resolver.
Você precisa ser corajosa e enfrentar isso de peito aberto! Val, você ama essa garota e ela a você.
— Gesticulou com firmeza. — Não espere muito tempo por isso. Quanto mais você demorar,
mais frio vai ficando o lado da Elis em sua cama. Não demore. — Sentou-se ao lado de Valquíria
e segurou suas mãos entre as suas, alertando-a.
— E como eu farei isso? — Mirou Cássia com os olhos umedecidos pela tristeza.
— Primeiro, vai lavar essa cara e tomar jeito! — murmurou e conseguiu arrancar uma
risadinha de Valquíria. — Você não disse que Elis é romântica? Faça ela te ouvir da melhor
forma possível.
— E que forma seria essa? — Bergamoto franziu o cenho, em dúvida.
— Oras, Valquíria, eu tenho que te falar tudo? Você já foi mais esperta — implicou com
a outra, fazendo-a encará-la com os olhos semicerrados — Faça uma serenata pra ela! — Exibiu
as mãos como se fosse óbvio. —Você canta pra lá de bem. Tenho certeza que vai funcionar.
— Não sei se surtirá o efeito que preciso, mas não custa nada tentar! — Entrelaçou os
dedos das mãos, nervosa. — Obrigada por ser minha luz em meio à escuridão pela segunda vez,
Cássia. — Abraçou a amiga apertado, tendo o gesto retribuído.
— Não me agradeça por isso. Eu sempre estarei aqui por você e te dar uns tapas quando
necessário. Tipo agora — Deu uma risadinha quase debochada.
— Eu sei. Você e Rick sempre me ajudam em tudo. — Mudou o foco de suas vistas para
o lado e não viu o rapaz em lugar algum da clínica, ficando intrigada com isso. — Falando no
Henrique, cadê ele? — Perguntou, enquanto se soltava do abraço.
— Ah, nós discutimos e ele saiu pra esfriar a cabeça. — Deu de ombros, lutando para não
revirar os olhos.
Valquíria sentiu como se um nó tivesse sido dado em sua cabeça. Olhou para a amiga
cabreira, com os olhos semicerrados, e arguiu:
— Por que vocês brigaram? — Cruzou os braços, a cabeça pendida levemente para o
lado. — E que briga foi essa que ele precisou esfriar a cabeça?
Cássia sentiu suas bochechas esquentarem e fixou seus olhos no chão, até a coragem
voltar para que pudesse responder a amiga.
— Bem, como eu vou falar isso? — Mordeu o lábio inferior por conta do nervosismo.
— Com a boca, uai! — chiou, impaciente.
— Nossa, grossa! — Cássia bufou, mas se manteve no mesmo lugar.
— Cássia, você e o Henrique estão namorando? — inquiriu Valquíria, com um tom de
voz assertivo.
— Não! — respondeu, categórica. — Quer dizer, estamos saindo, mas namorar mesmo
não, apesar de ter dito sim no casamento de vocês, não oficializamos nada.
— Hum, e aí? — Arqueou a sobrancelha, observando a amiga atentamente.
— Aí que saímos algumas vezes, algumas muitas vezes, e você sabe, essas coisas acabam
rolando... — Era visível que Cássia estava enrolando.
— Você tá grávida? — Saiu de supetão, os olhos da veterinária arregalados em espanto.
Cássia pensou em negar, mas desistiu quando mirou Valquíria que, agora, estava com um
sorrisinho no rosto.
— Tô. — Comprimiu os lábios. — Negar pra quê? — Deu de ombros. — Descobri tem
uma semana e contei ao Henrique. Desde então, ele insiste de morarmos juntos, de casar, dessa
coisa toda e eu não quero. — Tensionou o maxilar. — Não agora! Nem filho queria agora, mas
me descuidei, ele também.
— Uai, mas por que, não? — Suas narinas dilataram, assim como seus olhos. — Vocês se
gostam, sempre vi isso.
— E eu gosto da minha liberdade, da minha solitude. — Deu de ombros mais uma vez, o
que irritou Valquíria.
— Ai, Cássia. — Bufou. — Dá pra ter tudo isso em um relacionamento. Esse papo e
solitude é coisa de gente que não consegue relacionamento, pois dá, sim, pra ter seus momentos.
— Ajeitou o cabelo atrás da orelha, sem deixar de olhar a amiga. — Eu tenho os meus, Elis os
dela.
— Tipo agora, né? Cada uma em um canto! — O veneno praticamente escorreu pelos
cantos dos lábios de Cássia, tirando a outra do sério.
— Vai se foder, Cássia! — Mesmo brava, riu da parceira de consultório. — Não se prive
por esse tipo de coisa. Apenas não faça se você realmente não quer. — Andou até sua cadeira,
esparramando-se nela. — E outra coisa, se não gosta do Henrique na mesma proporção que ele,
acabe com o que vocês têm, pois você o fará sofrer.
— Mas eu gosto dele. — Fez um beicinho que não era nada típico de sua personalidade.
— Então, deixa de ser fresca! — ralhou Valquíria, com os olhos estreitos. — Não precisa
morar com ele agora. — Foi a sua vez de exibir as mãos em tom óbvio. — Namorem primeiro,
mas namorem de verdade e quando se sentir confortável, vocês dão mais um passo.
— Tá aí cheia de conselhos pra mim e não toma vergonha na cara de resolver a própria
situação. — Cássia mostrou a língua.
— Eu não vou nem me dar o trabalho de responder. — Valquíria revirou profundamente
os olhos. — Vamos voltar ao trabalho, gravidinha.
— Vamos sim, sua frouxa. — Deu uma risada debochada e Valquíria ameaçou a se
levantar, por isso, saiu correndo e selou a porta do escritório dela atrás de si.
Por mais focada que estivesse no trabalho, Valquíria ainda pensava em tudo o que Cássia
conversou com ela. A amiga estava certa quando lhe disse que precisava resolver a situação
rápido. Ao fim do dia, tomou sua decisão e partiu para casa com a ideia de Cássia fixa em sua
mente. Daquela noite não passaria, por mais vergonhoso que isso parecesse aos seus olhos.
Arrumou-se da melhor forma que pôde para a ocasião. Trançou os fios negros e os amarrou com
uma fita vermelha na ponta, combinando com a camisa três quartos vermelha e a calça jeans azul
escuro que vestia. E para harmonizar com suas botas, colocou seu chapéu preto. Fazia muito
tempo desde a última vez que colocou o acessório na cabeça, ficando nostálgica. Enfitou-se no
espelho, não podendo deixar de sorrir e saiu de casa.
Ajeitou mais umas coisas no quintal e selou Campolina, enfeitando o arreio da égua com
flores. Pegou sua viola e montou no animal, conduzindo-a até a casa dos seus pais.
Elis estava terminando de colocar Isabel para dormir naquele momento. Era estranho
fazer aquilo sem Valquíria ao seu lado, fazendo piadas de todas as situações. Sentia saudade da
esposa, mas não tinha coragem de procurá-la com medo de Valquíria julgá-la infantil demais.
Estava saindo do quanto quando escutou a voz de Bergamoto cantando distante. Correu para a
varanda da casa, deparando-se com Augusto e Dolores abraçados olhando para a direção da
porteira do sítio.
Elis mirou na direção que os sogros se mantinham fixos, sentiu-se encher da energia que,
há uma semana, não era reabastecida. A felicidade tomou o corpo da jovem ao ver Valquíria em
cima da égua se aproximando da porteira, enquanto tocava sua viola e cantava. A moça sentiu o
ar lhe faltar, assim que a mulher passou pela entrada do sítio e apeou do animal, caminhando até
ela e cantando:
— (...) Essa é uma velha história de uma flor e um beija-flor que conheceram o amor
numa noite fria de outono, e as folhas caídas no chão, da estação que não tem cor. E a flor
conhece o beija-flor e ele lhe apresenta o amor. E diz que o frio é uma fase ruim, que ela era a
flor mais linda do jardim e a única que suportou, merece conhecer o amor e todo seu calor. Ai,
que saudade de um beija-flor, que me beijou depois voou pra longe demais. Pra longe de nós.
Saudade de um beija-flor. Lembranças de um antigo amor. O dia amanheceu tão lindo. Eu
durmo e acordo sorrindo (...).
Elis, ao ouvir a música, sentiu seus olhos acumularem lágrimas, não se preocupando em
contê-las. A música reverberava em sua alma. Soube naquele momento que, para Valquíria, ela
era o beija-flor que a deixou e retornou depois de anos. E, assim como o rio de hoje não é o
mesmo de ontem, não era pelo que Elis uma vez foi, mas pelo que ela era: o seu amor.
Valquíria retirou um pequeno ramo de flores da sela de Campolina e antes mesmo que
pudesse pisar na varanda, Elis correu até ela e pulou em seus braços, fazendo-a se desequilibrar.
A veterinária a apertou em seu abraço e cheirou seu pescoço, apaixonada. Beijou-a na testa e se
afastou um pouco para mirá-la por inteiro.
— Me perdoa por não ter falado antes. — Valquíria baixou a cabeça por um segundo e
logo tornou a encará-la.
— Você não tem de me pedir perdão por nada. — Elis correu um dedo pelo rosto de sua
esposa, acariciando-o. — Você não teve culpa! — Assentiu várias vezes com a cabeça. — Eu
que tenho de me desculpar por minha atitude infantil. — Baixou os olhos, envergonhada. — Eu
senti tanta saudade de você.
— Sua reação foi natural, Elis. — Abriu um belo sorriso para a moça. — Eu também
senti tanta saudade de você, meu beija-flor. — Beijou-a com todo o amor e carinho que podia
naquele momento, expressando sua saudade fisicamente.
Dona Lola, vendo aquela cena, comemorou dando pulinhos de felicidade. Augusto sorriu
satisfeito e abraçou a esposa novamente, chamando-a para entrar na casa e dar privacidade para
as duas.
— Ah, mas eu queria ver — Dona Lola reclamou baixinho.
— Vamos, Lola. — Augusto a puxou pela mão. — Não seja curiosa, meu bem. — Deu
uma risadinha. — Elas precisam desse espaço.
Dolores não retrucou, sabia que ele estava certo. Retirou-se com o marido, dando
privacidade às duas.
Elis e Valquíria nem perceberam a movimentação do casal, apenas aproveitavam a
presença uma da outra. Sabiam que precisavam ter uma conversa, mas, naquele momento,
apenas aquilo bastava.

.28.
O CORAÇÃO É TERRA DE NINGUÉM
Alguns meses se passaram desde que Elis descobriu ser a reencarnação de Ernesto. Nesse
ínterim, Dóris entrou em contato algumas vezes, informando que não tardaria para que uma
audiência fosse marcada, e, também, visitou a neta durante esse tempo. Valquíria estava mais
leve, mais feliz, por não ter de esconder nada de Elis e esta, por sua vez, estava se acostumando
com a ideia. Agora, depois daquele tempo, estava melhor consigo mesma. Não se via como uma
outra vida de Ernesto, mas como uma nova chance de amar Valquíria mais uma vez.
Isabel quase alcançava os oito meses, e estava mais linda que nunca. Já se arrastava por
todo o chão e balbuciava alguns murmúrios, mas ainda não tinha falado palavra alguma. Isso
fazia dos dias da família mais animados, principalmente quando Dolores estava na casa das duas.
Dona Lola disputava com a filha e a nora sobre a primeira palavra da menina. Elas teimavam que
seria mamãe, Dolores, que seria vovó.
Dona Lola estava aprendendo a administrar seu ciúme de Isabel com Dóris, a insegurança
por se sentir menos avó da menina diminuía com o tempo e isso ficou claro nessa tarde em
questão.
Valquíria e Elis cavalgavam nas proximidades da casa, observadas por Dolores e Dóris
da varanda da residência. A menina brincava com os fios cinzas e compridos da avó paterna,
enquanto dona Lola se divertia com os pés gordinhos da neta. Isabel resmungava alegremente,
até que soltou algo que travou Dolores:
— Bo-bó. — Abria e fechava a boquinha, iniciando uma sequência de “bobós”
ininterruptos.
— Eu sabia! — Dona Lola gritou, pegando a menina no colo e a jogando para cima ao
mesmo tempo que ria. — Viu, Dorinha?! Eu sabia! Ela falou vovó! Aquelas duas vão morrer de
inveja da gente.
A outra mulher se levantou e deu alguns passos, ficando perto de Dolores. Beijou o topo
da cabeça de Isabel e olhou sorrindo para a outra avó. Ambas estavam transbordando felicidade
pela neta tê-las presenteado com tal gracejo.
Valquíria, vendo a euforia na varanda, estranhou o comportamento de sua mãe, que
dançava com a menina no colo, enquanto Dóris batia as mãos cadenciadamente, como se
cantasse algo. Olhou para Elis e ela tinha a mesma expressão confusa, no entanto, tinha um
palpite:
— Acho que perdemos a aposta. — Coçou levemente a cabeça, alisando o arreio de
Flecha Preta.
— Que aposta? — Arqueou a sobrancelha e mirou em direção a varanda em seguida.
— Acho que a Isabel falou vovó. — Elis pousou as vistas na casa grande, observando a
euforia das mulheres.
— Impossível! — Valquíria se boquiabriu. — Ela não seria tão traidora assim! — A
mulher rilhou levemente os dentes, mais por pirraça que qualquer outra coisa.
— Valquíria! — A jovem cerrou os olhos, contendo um acesso de risos que ameaçava vir
com o comprimir de seus lábios — Quando o assunto é nossa filha, você parece uma criança.
— Não pareço nada! — respondeu, emburrada, indicando para Campolina, com os
arreios, a direção que deveria seguir. — Vamos lá ver o que tá acontecendo.
Elis apenas a seguiu, cobrindo a boca com a mão para esconder o riso da esposa. A
veterinária parecia estar mesmo chateada com isso e, por isso, não queria a irritar ainda mais,
mesmo que estivesse achando graça de tudo aquilo. Apearam dos animais e se aproximaram de
mãos dadas.
— E essa bagunça aqui, hum? — Valquíria perguntou assim que pisou no chão de
madeira.
— Ah, minha filha, você nem imagina — Dona Lola se manifestou, feliz. Entregou a neta
para Dóris e se aproximou da filha. — Belinha falou vovó! — Mal terminou de falar e gritou
comemorando.
— Não acredito! — Valquíria murmurou descrente, meneando a cabeça negativamente.
— Inacreditável, não é? — Dolores comentou alegre, não percebendo a expressão da
filha.
Dóris e Elis riam da situação, deixando Valquíria ainda mais irritada. Dona Lola ainda
não tinha entendido o que acontecia, e comemorava falando sem parar ao lado da filha.
Bergamoto se aproximou de Dóris e tomou a filha em seus braços, olhando para a menina com
uma carranca que arrancou risos de Elis.
— Traidora! — Valquíria falou baixinho. — O combinado era mamãe — reclamou com
a voz arrastada, fazendo todas rirem, inclusive dona Lola, que finalmente percebeu que a filha
estava com o orgulho ferido.
— Rá! Eu disse que seria vovó — falou, sentindo-se vitoriosa.
— Na verdade, ela balbuciou bobó — Dóris moveu a mão com um gesto displicente,
enquanto sorria.
— Isso não é vovó, então não conta! — Bergamoto retrucou quase ferozmente. — Fala
mamãe, meu amor — pediu, enquanto brincava com a mãozinha da menina.
— Olha, Dóris, te agrego à família e você me vem com essa presepada? — Dolores
colocou as mãos na cintura e encarou a outra mulher.
— Desculpa, Lola — Ergueu as mãos em sinal de rendição, rindo. — Mas eu também
acredito que isso foi “vovó”.
— Acho bom! — Virou-se para a filha e ralhou: — Para de atormentar a menina e aceita!
Fica feliz que ela começou a reconhecer e expressar isso com palavras.
— Eu sei, mãe. — Valquíria suspirou longamente, dando-se por vencida. — Claro que
fico feliz por isso e a Lis também, mas...
— “Mas” nada, amor! — interveio Elis, quase séria. Ainda era difícil para ela controlar o
riso. — Deixa sua mãe comemorar. Agora me dê essa princesa pra dar um banho gostoso nela.
— Pegou a filha e se virou para a sogra: — A senhora me ajuda, dona Lola? Sei que essas duas
têm que conversar.
— Claro! — Dolores aprumou o corpo com animação, caminhando para o interior da
casa com Elis ao seu lado.
Valquíria se acomodou em uma cadeira de balanço e Dóris se sentou de frente para ela,
em um banco de vime acolchoado. A mulher cruzou as pernas e apoiou o cotovelo no braço do
banco para apoiar sua cabeça na mão, enquanto mantinha seus olhos na veterinária.
— Tem alguma novidade? — Bergamoto questionou, mantendo seus olhos em Flecha e
Campolina que pastavam próximos ao lago.
— Tenho. — Assentiu com a cabeça. — Omar ficou enfurecido quando descobriu que
meu escritório está te assessorando. Acredita que Felipe veio tirar satisfações comigo? — Riu
sem humor e continuou: — Meu filho já me procurou para favores, mas pedir o que ele me pediu
foi demais.
— E o que ele te pediu? — Valquíria volveu rapidamente o rosto, fixando os olhos em
Dóris com máxima atenção.
— Que eu as enganasse e tirasse a guarda de Isabel de vocês — revelou em tom quase
envergonhado, apertando os dedos uns contra os outros.
Valquíria, desacreditada, ajeitou-se na cadeira, ficando em estado de alerta com aquela
conversa.
— E qual foi sua resposta? — inquiriu, fazendo um gesto com o queixo que evidenciava
sua impaciência e ansiedade.
— Valquíria, me ofende dessa forma! — Dóris cruzou os braços contra o peito, fechando
a cara momentaneamente. — Óbvio que neguei, do contrário, nem estaria te contando.
— Desculpa! — A anfitriã baixou a cabeça, encarando os próprios pés por alguns
segundos. — Quando o assunto é esse povo, meu sangue ferve. — Tornou a observar os cavalos,
aflita. — E desculpe novamente por incluir seu filho nesse balaio.
— Eu que me desculpo por toda dor de cabeça que ele causou a vocês. — A advogada se
permitiu relaxar, afundando no estofado do banco. — E também agradeço por me incluir na
família de vocês.
— É claro que você é família, Dóris. — A morena teve de se conter para não revirar os
olhos. — Já devia ter se acostumando depois desse tempo ao nosso lado.
— Sabe, Valquíria, eu fico vendo tudo o que vocês passaram e acho admirável estarem
juntas. Ainda mais sabendo sobre como tudo aconteceu tão rápido. — Pendeu a cabeça por um
instante, estalando o pescoço. — Muitas pessoas não suportam isso.
— Ah, no começo eu praticamente enlouqueci, confesso. — Deu um sorriso amarelo. —
Eu, que nunca me atraí por mulher alguma, me vi encantada por essa menina. — Coçou
levemente a maçã-do-rosto, tentando contar a história sem incluir a parte da espiritualidade e da
reencarnação do Ernesto. — E conforme a conhecia, fui ficando mais apaixonada, como se ela
tivesse nascido e sido feita para estar ao meu lado. — Mordeu nervosamente o lábio inferior,
enquanto agitava o seu pé sem parar. — Eu jurava que estava ficando louca. A garota tinha idade
para ser minha filha! — Sentiu a boca completamente seca e desejou ter um copo d’água ao seu
lado. — Era muita coisa ao mesmo tempo. Desde que meu marido morreu, eu nunca pensei que
poderia amar outra pessoa. E Elis veio com os dois pés no meu peito. — Deu uma risadinha.
— Imagino! — O olhar de Dóris foi tragado por uma borboleta que passou, mas logo
tornou a manter o contato visual com Valquíria. — A gente se culpa muito pelos nossos
sentimentos.
— E eu me culpei demais. — Ajeitou-se na cadeira, permitindo-se tentar relaxar com o
seu movimento cadenciado. — Cada vez que eu a desejei, ou fantasiei algo amoroso, eu me
culpei. Tanto que não consegui ver que ela me queria também, mesmo com suas demonstrações
fervorosas por conta dos hormônios da gravidez. — Suas bochechas esquentaram e ela tinha
certeza de que corara.
— Ah, é? Ela te agarrou ou algo assim? — Arregalou os olhos e cruzou os braços sobre
o colo, curiosíssima.
— Bom, quase isso... — E caiu na gargalhada, certa de que Elis não gostaria nada de ser
taxada como lasciva.
— Difícil imaginar a Elis fazendo isso, sempre foi tão quietinha. — A advogada recolheu
os cílios para aproveitar um sopro de brisa fresca que a atingiu.
— Pois é, imagine como foi para mim. Desajeitada, nunca tinha nem beijado uma mulher
na vida. — Valquíria sentiu seu ventre ser açoitado pelo gelo das lembranças tórridas de sua
primeira noite de amor com a esposa e, por isso, decidiu encerrar o assunto: — Mas agora ela
não tem mais esse furor dos hormônios para me assustar, está tudo bem. — Deu uma piscadela
com um dos olhos. — Você quer um corpo de suco de acerola? Eu estou sedenta!
— Fico verdadeiramente feliz por você! Formam uma linda família. — Dóris deu um
sorriso largo. — Ah, eu quero sim! Eu amo suco de acerola.
Valquíria rumou até a cozinha e retornou com uma jarra de vidro e dois copos em mãos.
Serviu a advogada e a si mesma e tornou a se sentar.
— Mas você ainda é jovem e é muito bonita, Dóris, não deveria se fechar para conhecer
novas mulheres — ditou, após dar um gole generoso em seu copo de suco, deixando a mulher
poucos anos mais velha que ela encabulada.
— Ah, eu não estou fechada, mas admito que tenho o dom de me apaixonar pela pessoa
errada — revelou com um riso triste em seus lábios, com seus olhos em Valquíria. — Quem sabe
a pessoa certa não apareça ainda, não é?
— Isso mesmo! — Incentivou Valquíria, com um sorriso reconfortante. — Saia mais!
Certeza que vai encontrar uma mulher maravilhosa.
— Posso te confessar uma coisa? — Dóris questionou, receosa, enquanto corria os dedos
pelo tecido da própria roupa.
— Claro! — A veterinária assentiu e tornou a bebericar de seu copo. — Fique à vontade.
— Eu tive uma paixão na juventude que não foi cicatrizada devidamente. — Deu um
sorriso enviesado. — Isso acabou me fazendo gerar certo ranço da pessoa hoje em dia. Sabe de
quem se trata?
— Hm, pelo visto eu conheço. — Dóris acenou positivamente, fazendo a mulher perceber
o óbvio. — Mentira?! — A mulher riu com o espanto da veterinária. — A Selina?!
— A própria. — Arfou pesadamente. — Nós éramos vizinhas na juventude. Ela era mais
jovem que eu e, mesmo assim, éramos muito amigas. — Entrelaçou os dedos das mãos. — Eu
acabei me apaixonando por ela por ser tão doce. — Encolheu os ombros, quase infeliz. — Selina,
diferente de mim, apenas me via como amiga, mas a paixão nos faz enxergar o que queremos às
vezes e, num dia que achei estar sendo correspondida, a beijei.
— Eita! — Valquíria tapou a boca com a surpresa. — Conhecendo aquela lá, deve ter
feito um escândalo.
— Pior que não. Ela se afastou em silêncio e foi embora. — Percebeu que o suco
repousado na mesinha ao seu lado esquentava e o trouxe até seus lábios. — Depois disso, nunca
mais falou comigo. Não até ficarmos na idade da faculdade. Foi quando ela me procurou para
apresentar o Omar como se nada tivesse acontecido ou como uma resposta ao meu gesto de anos
atrás. — Pausou, um tanto reflexiva. — Ela estava noiva e eu, evitando ter um compromisso com
Gilberto, mas meu pai me cercou por todos os lados e o resto você já sabe. Hoje olho para Selina
e não a reconheço mais. — Concluiu com a voz carregada de pesar.
— E como seu filho conheceu a Elis? — Valquíria inquiriu, pressurosa.
— Omar era da turma de direito do Gilberto, no sétimo período. — Dóris limpou gotas de
suco que escorriam de sua boca. — Foram meus veteranos na faculdade.
— Entendi. — Concordou, também, com um aceno de cabeça. — Eram amigos e
montaram um escritório juntos.
— Exato. Eu fazia parte, mas consegui acabar com tudo no melhor jeito que eu podia,
sendo flagrada em minha sala aos beijos com a secretária. — Deu de ombros, claramente não se
arrependia disso. — Se ele podia fazer com a dele, por que eu não podia fazer com a minha?
— Vida agitada a sua, hein?! — Valquíria tentou controlar o assombro, assoviando.
— Que nada! — Dóris se divertia com as reações da mulher. — Só no começo mesmo.
Me casei aos vinte e cinco, depois de concluir minha pós-graduação. — Sorveu mais do suco. —
Tive meu filho depois de quatro anos de casada e me divorciei dois anos depois. — Deu um
longo suspiro, permitindo seu olhar explorar a paisagem ao fundo. — Após isso, minha vida foi
muito pacata. Montei meu escritório, depois de anos de casinhos, conheci a Fernanda. — Por um
momento, seu rosto se iluminou. — Foi bom enquanto durou, mas agora estou livre novamente.
Nada de extraordinário.
— Ainda, sim, mais agitada que a minha. — A veterinária riu de si mesma. — Também
me casei nova e fiquei viúva muito nova. — Tentou não focar os pensamentos nessa parte,
apressando sua fala. — Daí não tive relacionamentos. Apenas vivia para o trabalho e, vez e
outra, dava alguns beijinhos.
— Com homens, acredito eu — comentou, recebendo um aceno positivo em resposta. —
Que desperdício — falou, rindo, deixando Valquíria com as bochechas enrubescidas mais uma
vez.
— Elis foi a única mulher por quem me atraí, viu? — A veterinária se pavoneou, com um
sorriso pomposo nos lábios.
— Que bom que ela apareceu pra te salvar dessa vida triste de machos meia boca, então
— zombou de Valquíria, deixando-a irritada.
A veterinária ficou tão enfurecida que se levantou para esbofetear, mesmo que de
brincadeira, os braços de Dóris. A advogada se levantou rindo, protegendo-se dos tapas de
Valquíria e, para não sofrer mais nenhum golpe, segurou-a pelos braços. Acabaram rindo por se
verem como duas adolescentes brincando. Dóris soltou os braços de Valquíria e ambas se
afastaram ainda aos risos.
— Você não vale nada — Valquíria disse, contendo o ímpeto de prosseguir rindo. —
Vou subir pra ver se Elis precisa de ajuda. — Levou a mirada até o interior da casa. — Já está
dando a hora que minha mãe vai pra casa. Sinta-se à vontade.
— Tudo bem. — Deu um sorriso caloroso. — Obrigada.
— Dóris? — Chamou-a antes de rumar casa adentro.
— Obrigada por ter se tornado uma amiga tão especial — disse e se retirou antes que a
mulher respondesse.
Dóris se sentou, sentindo o peso daquelas palavras. Parecia que a vida realmente gostava
de espezinhar seu pobre e calejado coração. Seus olhos cintilaram pelas lágrimas que ameaçavam
surgir e ela, por um átimo, entalou a respiração nos pulmões.
— É, Valquíria, talvez eu não valha nada mesmo — sussurrou para si e cobriu o rosto
com o antebraço, sentindo-se idiota e uma pessoa péssima.
Levantou-se e entrou na casa com uma certeza em sua mente: faria as malas e voltaria
para a cidade. A distância era a melhor decisão a ser tomada quando ela não queria estragar a
vida de ninguém. Principalmente de pessoas que ela amava.
.29.
A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS
Elis e Valquíria saíram do fórum acompanhadas de Dóris e mais uma advogada do seu
escritório; Isabel havia ficado no hotel com Dolores. Não seria surpresa para ninguém
Bergamoto ter ganhado a causa. Descobriram que o tiro que ferira a veterinária foi a mando do
advogado e pai de Elis. Arrancou de Omar uma indenização e alguns anos de serviço
comunitário em uma casa de apoio a jovens LGBTQIA+ que não tinham a quem recorrer. Selina
também prestaria serviços comunitários com o marido e a Felipe coube uma indenização por
danos morais.
— O que você fará com o dinheiro? — Elis perguntou, curiosa, enquanto desciam a
escadaria.
— Vou doar uma parte pra um abrigo de animais e outra pra um orfanato. — Valquíria,
que tinha um lampejo vitorioso no olhar, respondeu. — Não quero o dinheiro daquele homem,
mas ele servirá pra salvar a vida de muitos animais e crianças.
— Acho um belo propósito para o dinheiro — Dóris complementou, finalizando com um
sorriso comedido.
— Eu também acho. Para alguma coisa o dinheiro do meu pai tem que servir, além de
inflar a arrogância dele. Eu espero que eles aprendam a ser gente fazendo esse serviço social. —
Elis comentou, denotando um pouco de tristeza em sua voz.
— Elis, meu amor, não crie muitas expectativas. — A veterinária pausou seus passos por
um momento e pousou as mãos na face de Elis para encará-la. — As pessoas não costumam
mudar facilmente, mas se acontecer com eles, que ótimo.
— Eu concordo com a Valquíria, Elis. Talvez sua mãe mude, porque ela é um pouco
mais maleável e, talvez, a saudade de você a faça refletir. — Deu palmadinhas amigáveis no
ombro da jovem. — Já o seu pai, esse eu não tenho esperanças. Ele é muito parecido com o
Gilberto. — Dóris falou e olhou para trás, como se buscasse os protagonistas de sua oratória. —
Por falar em sua mãe, ela vem logo atrás bem apressada e... chegou! — Concluiu, quando a
mulher findou a distância.
— Elis, eu preciso conversar com você — Selina segurou no braço da filha, virando-a
para trás.
— Me solta! — Elis puxou o braço com força, mas sua mãe não o soltou.
— Por favor — suplicou, chorosa, mas isso não abalou a moça.
— Quer falar, fale aqui — rumorejou, com um leve trejeito de desdém que encrespava
seus lábios. — Não tenho nada pra esconder da Valquíria ou da Dóris.
Selina se deu conta da presença de Dóris apenas nesse momento. Viu-a na audiência
sentada no corredor, porém muito rapidamente. A advogada mexia no celular e não a viu. Agora,
depois de anos sem a encarar nos olhos, viu-se medida pelas írises cinzas da mulher.
— Oi, Dóris — falou baixo e um tanto sem jeito.
— Quanto tempo, Selina. Continua muito bem — respondeu com frieza e se virou para
Elis. — Lis, mesmo que você não se importe em conversar perto de mim, vou esperar vocês duas
no carro. — Dito isso, caminhou para se afastar delas e adentrou o veículo.
— Fala. — Travou o maxilar por conta da tensão, mas o rosto esboçava falsa
neutralidade.
Por mais que Elis fingisse estar calma, seu corpo tremia um pouco, demonstrando seu
nervosismo. Valquíria, percebendo o estado da esposa, abraçou-a por trás e se tornou alvo dos
olhos escuros de Selina sobre si.
— Anda, mãe! Fala logo! — Chamou a atenção da dentista, despertando-a de sua extensa
análise para com o casal.
— Eu quero me desculpar por tudo o que te causei, minha filha. — Sem rodeios, a
mulher disparou. — Por não ter lhe apoiado e não ter ficado do seu lado. — Encarou a jovem
quase sucumbindo a um acesso de choro. — Sei que nada irá reparar isso, mas não me afasta de
você, Elis. — Tentou capturar a mão da filha, mas ela se afastou do contato. — Você é minha
única filha e a Isabel minha única neta.
— Você mesma me afastou — declarou secamente, o olhar severo recaído sobre o de sua
mãe. — Desculpe, mas não consigo sentir nada além de indiferença.
— Elis, por favor. — A dentista suplicou, as faces rubras pelo choro contido.
— Mãe, isso não é uma coisa que vai mudar da noite para o dia. — Elis endureceu ainda
mais sua postura. — Levará tempo, se é que está sendo sincera comigo. Se me quer em sua vida,
lute por mim. Me reconquiste. — Deu de ombros, quase desdenhosa. — Não serão algumas
palavras, uns “me desculpe” e outros “por favor” que apagarão tudo o que aconteceu. Era só
isso? — perguntou, querendo encerrar logo aquele assunto.
A dentista, ao ouvir as palavras frias da filha, sentiu seu peito se rasgar ao meio, deixando
as lágrimas deslizarem por sua face.
— Posso ver a minha neta? — pediu com a voz embargada pela tristeza, enquanto
apertava os dedos uns contra os outros.
— A Isabel não está aqui, mas se isso te satisfizer, veja esse vídeo dela. — Elis pegou o
smartphone e abriu um vídeo da filha, mostrando-o à sua mãe.
— Ela se parece tanto com você — Seu rosto se iluminou levemente, o sorriso
contaminando a boca por ver a netinha. Mas, ainda assim, permanecia vertendo lágrimas.
— Viu?! Eu disse! — Valquíria comentou pela primeira vez, cutucando os ombros da
esposa.
— Mãe, nós temos que ir. — Após o vídeo terminar, a jovem guardou o celular no bolso.
— Tia Dóris está esperando por nós.
— Tudo bem. Fico feliz de já não estar me odiando. — Deu um sorriso fraco. — Espero
que eu possa te mostrar que realmente quero mudar.
— E eu espero verdadeiramente que você mude. Para o seu próprio bem. — Encerrou
suas palavras e acenou para Selina um adeus silencioso com a mão.
Deixou a mãe contendo o choro no final da escadaria e entrou com Valquíria no carro de
Dóris.
— Tudo certo? Podemos ir? — A advogada perguntou com um sorriso singelo,
recebendo o aceno positivo da veterinária.
Durante o caminho até o hotel, Dóris colocou algumas músicas tranquilas para tocar
enquanto elas conversavam sobre assuntos corriqueiros. Demoraram um pouco para chegar ao
seu destino, devido ao trânsito da cidade, mas, antes que as duas saíssem do carro, a advogada se
pronunciou:
— Meninas, posso tomar alguns minutos de vocês? — O tom de voz não era dos mais
amistosos.
Elis e Valquíria se olharam sem entender muito e concordaram. Saíram do carro e se
sentaram na área externa do hotel, em uns bancos de cimento, e deram atenção à outra mulher.
— Preciso conversar com vocês também. — Estava visivelmente séria e desconfortável,
movia o pé freneticamente para aliviar a tensão que sentia.
— Ih! O que foi, tia Dóris? — A jovem a olhou, preocupada, fazendo Dóris sorrir com
seu jeito doce.
— Bem, na verdade, é um desabafo. — Dóris evitava o contato visual com Valquíria e
Elis. — Eu me sentiria um lixo se não conversasse com vocês. Não é do meu feitio fazer isso.
— Dóris, tô começando a ficar preocupada — Valquíria se manifestou, perscrutando a
advogada que encarava s próprios pés.
— Não há com o que se preocupar — respirou fundo e voltou a falar: — Eu vou embora.
Vou morar no Canadá por um tempo.
— O quê? Mas, por quê? E a Isabel? — Elis agitou o corpo brevemente, nervosa.
Gostava de Dóris e via o quanto ela amava sua filha.
— Terei de me comunicar com minha neta por videochamadas por um tempo. Não é
definitivo. Depois de algum tempo retornarei. — Tomou coragem e ergueu os olhos, deparando-
se com duas mulheres visivelmente preocupadas.
— E o que te fez tomar essa decisão? — Valquíria inquiriu, verdadeiramente curiosa.
Essa pergunta fez a mulher fechar os olhos e respirar fundo, ignorando os tremores de
suas mãos.
— Essa é a parte chata. — Deu um sorriso amarelo. — Ver vocês duas fez com que eu
repensasse muito sobre a minha vida e, quando percebi, desejava uma pessoa em meus dias, uma
pessoa como a Valquíria.
— Aonde você quer chegar? — Elis questionou, sem entender os rodeios da mulher.
— Vou ser direta. — De repente, o banco parecia ser extremamente desconfortável para
Dóris. — Não creio que eu tenha me apaixonado pela Valquíria, mas esse fascínio crescente pela
pessoa dela me incomoda e para que isso não vire algo que eu não queira, acho melhor me
afastar. — Encolheu os ombros, os olhos correndo de um lado para o outro. — Eu jamais trairia
vocês e principalmente a sua confiança, Elis.
Tanto Elis quanto Valquíria ficaram espantadas com a revelação da mulher. Em hipótese
alguma, imaginaram que esses eram os motivos de Dóris. Valquíria se sentiu estranha com a
situação, triste por isso ter acontecido, por não ser a pessoa certa para Dóris. Queira que a amiga
fosse feliz, mas, não seria ela que poderia realizar tal desejo. Elis não sabia o que dizer.
Experimentou torrentes de raiva, ciúmes, tristeza, tudo isso ao mesmo tempo. Sua mente se
nublou e ela não conseguia mais pensar direito. Sentiu a mão de Valquíria acariciar a sua e
voltou, aos poucos, ao normal.
— Você sabia disso? — Enfitou Valquíria com os olhos marejados.
— Não, meu amor. — A veterinária comprimiu os lábios. — Fiquei sabendo agora com
você.
Dóris, vendo aquela cena, sentiu-se ainda mais desconfortável e por vários motivos.
— Peço que vocês duas me perdoem por isso. — Apertou as próprias mãos. — Vou dar
um beijo na Isabel e ir embora. Viajo dentro de uma semana — falou, sob os olhos vigilantes de
Elis. — Lis, pode me dar um abraço? — pediu, sincera, contendo sua tristeza nos olhos e em seu
sorriso soturno.
A jovem respirou fundo e, mesmo magoada e se sentindo traída, levantou-se e abraçou a
mulher, que chorou muito no ombro de Elis. Pedia perdão incontáveis vezes, apertando jovem
em seus braços.
— Me perdoa, minha querida. Eu não queria que isso despertasse em mim e lutei contra
isso, mas não pude evitar essa admiração crescente, Elis. Me perdoa por ser tão fraca, me perdoa
por ter te magoado, meu anjo. — Afastou-se da garota, segurando-a pelo rosto e a admirou bem,
beijando suas bochechas depois. — Só me perdoa, Elis — pediu mais uma vez em súplica repleta
de agonia e se agarrou à moça mais uma vez.
Elis viu e sentiu tanta sinceridade no gesto de Dóris que retribuiu o carinho, também
chorando. Sabia que coração era terra de ninguém, que algumas coisas não têm como lutar
contra, mas, apesar de magoada, achou muito honroso da advogada em ser tão sincera e não ter
tentado nada. Isso mostrou para a jovem a mulher íntegra que Dóris era.
— Ah, tia Dóris — lamentou-se, enquanto a abraçava. — Vai demorar um pouquinho,
mas vai passar o que eu tô sentindo. — Deu palmadinhas em um dos ombros da mais velha.
— Obrigada, meu anjo. Agora preciso ir. — Afastou-se e beijou a testa de Elis. — Até
mais.
— Até breve, tia Dóris. — Elis não foi capaz de sorrir, então se limitou a um aceno de
cabeça.
— Até qualquer dia, Valquíria. — Limitou-se a apertar a mão da veterinária que,
contrariando todas as coisas, abraçou-a com carinho.
— Cuide-se, Dóris, e nos mande notícias. — Soltou a mulher e envolveu a cintura de Elis
com um de seus braços.
— Mando sim. — Limpou as lágrimas insistentes dos olhos e sorriu. — Vou me despedir
da Belinha. Adeus, meninas.
Mesmo tentando conter a tristeza, Dóris se retirou arrasada e chorando, principalmente
por ter visto a mágoa nos olhos de Elis. Respirou fundo e subiu para o quarto de Dolores para ver
a neta, onde não demorou muito.
Valquíria e Elis a viram cruzar a porta de entrada do edifício quando já retornavam do
jardim dos fundos e se entreolharam. A jovem se aconchegou nos braços da esposa e subiram
para o quarto, contando tudo o que aconteceu para Dolores. Pela primeira vez, a mulher não
disse nada. Entendia a situação e se sentia triste, pois, colocou-se no lugar do casal e também no
lugar de Dóris. Admirou-a por tamanha coragem, deixando de lado qualquer implicância que
ainda tinha por ela.
Na manhã seguinte, retornaram para o interior com uma vitória nas mãos, mas com a
sensação de uma perda enorme sobre os ombros.

.30.
ELIS E FLECHA PRETA
Isabel passou correndo por debaixo das pernas de Dolores, fazendo a pobre senhora
desequilibrar e quase cair. A garotinha fugia de sua mãe Valquíria, enquanto sua mamãe Elis
estava na faculdade. A menina, agora, estava com três anos de idade, falava sem parar, mesmo
que não desse para entender muita coisa às vezes. Ela era a alegria da casa e isso era
inquestionável.
Elis começou a estudar assim que a filha completou dois anos, contando com o apoio de
sua esposa e sogros, que cuidavam da criança sem reclamar. Sua relação com sua mãe estava um
pouco melhor, principalmente após ter cumprido sua pena e se divorciado de Omar. A dentista
até visitava a filha e a neta, mas sempre sob os olhos vigilantes de dona Lola.
Dóris ficou um bom tempo sem entrar em contato, fê-lo apenas depois de um ano
morando no Canadá. Agora, sempre que possível, ligava para ver a neta, isso quando não era o
contrário e a menina pedia para ver a vovó Dodó.
E foi o que justamente aconteceu enquanto Valquíria e sua mãe conversavam
tranquilamente na cozinha. Isabel apareceu com o celular da mãe e pediu:
— Mamãe, liga pá vovó Dodó! — A garotinha arrastava levemente o pezinho no chão, os
olhos pedintes cravados no de sua mãe.
Valquíria riu com o jeitinho da filha pedir, fazendo charminho e pegou o aparelho.
— Cadê seu vovô, meu bem? — Dona Lola pegou a neta no colo e se sentou ao lado da
filha, para que ela ligasse para Dóris.
— Lá fora. — A verdade era que ela estava mais interessada no celular que responder à
pergunta de Dolores.
A menina batia palminhas e ria de alegria, fazendo as outras duas sorrirem também.
Assim que a imagem de Dóris apareceu no aparelho, a pequena Isabel se manifestou:
— Vovó Dodó! — gritou, mandando vários beijinhos para ela.
— Ei, meu amor! — Dóris, agora com os cabelos repicados no ombro, sorria
alegremente. — Tá com saudade da Dodó?
— Muita! Vem vê a Belinha, Dodó. Queio te dar um abaço desse tamanho. — Abriu os
bracinhos, expressando o tamanho da sua vontade.
— Ah, meu docinho, a vovó ainda tem muita coisa pra fazer aqui. — A expressão da
advogada entristeceu por um momento. — Mas prometo que, quando for te ver, levo um
presentão.
— Não queio pesente. Queio a vovó — falou, chateada, e pulou do colo da avó para se
esconder em seu quarto.
Dolores olhou para o telefone e repreendeu a mulher com um aceno da cabeça. Valquíria
fechou os olhos e depois encarou Dóris, que mordia a boca para segurar o choro. De uns meses
para cá, Isabel vinha sempre pedido à avó para ir vê-la. A menina queria conhecer a mulher e a
abraçar, visto que quando Dóris estava no Brasil, a menina ainda era um bebê.
— Não acha que tá na hora de voltar, não, Dorinha? — Dolores perguntou antes de sair
para ir atrás da neta.
— Minha mãe tem razão, Dóris. — A veterinária passou o celular para a outra mão, para
que ela e Dolores ficassem focadas na câmera. — A Isabel quer te ver e sei que você sente
saudade dela. Já tem quase três anos que você tá aí! — Meneou a cabeça negativamente.
— Eu sei, Valquíria, e já estou bem quanto aquele assunto. — Quase tropeçou nas
palavras, mas conseguiu se expressar. — Preciso apenas de mais um tempo para finalizar uns
trabalhos e depois retorno ao Brasil.
— Sabia que a Selina está solteira? — Valquíria soltou de forma travessa, exibindo a
língua em sequência.
— Eu sei muito bem aonde você quer chegar, viu?! — Revirou os olhos, falsamente
irritada. — Selina, por mais que eu tenha a amado um dia, isso já passou. E ela é hétero! Mais
fácil ela ficar com o Felipe. — Riu das próprias palavras. — Que triste, seria, eu ser sogra do
meu primeiro amor.
Bergamoto riu brevemente com a piada autodepreciativa da amiga e tratou de elevar sua
moral em seguida:
— Ah, Dóris, mas você irá encontrar alguém pra você. Você ainda é jovem e muito
bonita. E, cá entre nós... — Fez um sinal com a mão como se a chamasse para se aproximar e
ouvir um segredo, prosseguindo: — Parece que tá na moda gostar de mulheres maduras. — Riu,
principalmente da expressão de surpresa que a advogada fez.
— Vou, acredito nisso, mas não agora! — Moveu as mãos com um gesto negativo e
levemente desesperado. — E pare de falar bobagens.
— Não são bobagens! — Valquíria pousou a mão no peito de forma melodramática. —
Falei muito sério. — Dóris apenas acenou a cabeça positivamente, enquanto ria. — Quando
voltar, pretende advogar aqui ainda?
— Talvez, mas quero descansar dessa vida. — Suspiro cansadamente. — Talvez eu
advogue, ou volte a dar aulas. — Sorriu sem mostrar os dentes. — Sinto falta do contato com os
jovens.
— Seria uma boa pra você. — Valquíria não resistiu, a voz embargada com um tom
travesso. — Te permitiria conhecer muita gente nova.
— Valquíria, eu tô entendo o que você quer dizer, viu?! — ralhou com a veterinária, mas
riu em seguida. — Preciso desligar. Manda um beijo para Belinha, para Elis e para os seus pais.
— Pode deixar. Se cuida. — Acenou com a cabeça e desligou a chamada.
Valquíria colocou o telefone sobre a mesa e se assustou ao ouvir a filha gritando da
varanda da casa. Isso era sinal que Elis tinha chegado. Caminhou até onde Isabel estava com seus
pais e a pegou no colo, enquanto avistavam Elis terminar de subir a colina. As duas a receberam
com um beijo e um abraço e, logo, Isabel pulou para o colo da outra mãe.
— Tava com saudade de mim, meu amor? — A loira distribuiu beijos na testa da filha.
— Sim, mamãe — respondeu, escondendo o rosto na curva do pescoço de Elis.
— Parece que alguém segurou o sono até que eu chegasse. — Elis sorriu com cansaço.
— E segurou mesmo. — Valquíria se aproximou, afagando os cabelos da garotinha. —
Conversamos com a Dóris hoje e a Isabel chorou de novo pelo mesmo motivo.
— Eu a entendo também, ela quer conhecer a avó. Ela não se lembra da tia Dóris quando
estava aqui. — Elis comprimiu pesarosamente os lábios. — Como ela está?
— Bem. Disse que daqui um tempo voltará e que está bem quanto aquilo. — Fez uma
pequena careta ao quase mencionar a paixonite passada. — Até tentei empurrar sua mãe pra ela,
mas ela recusou — falou com uma naturalidade tão grande que incomodou Elis.
— Valquíria! — A jovem a repreendeu e lhe deu um tapa no braço.
— Ai, Elis! — A veterinária alisou o próprio braço, meio atordoada. — Não precisa ser
bruta. E qual o problema de a Dóris ficar com a sua mãe?
— Nenhum, se minha mãe gostasse de mulher. — Deu de ombros e revirou os olhos.
— Aham, vou fingir que não é ciúmes. — Valquíria repetiu o gesto de sua esposa.
Enquanto caminhavam para a casa, Elis avistou Flecha Preta se aproximando devagar, até
tocar seu focinho no rosto dela. Ela brincou com ele e deixou Isabel passar suas mãozinhas sobre
o pelo lustroso do animal. Logo depois, o cavalo saiu em direção ao estábulo. Valquíria o
observou por um tempo e entrou logo atrás de Elis.
— Flecha gosta mesmo de você. — Deu um sorriso amável. — Ele sempre vem te
receber quando chega da faculdade.
— Ele é meu grande amigo. — Elis respondeu com um brilho afetuoso nos olhos. —
Vem, vamos dar banho da Isabel e preparar a comida. — Indicou as escadas com a cabeça. —
Sua mãe precisa ir pra casa com seu pai. Eles têm que descansar.
— Nos expulsando, Lis? — Dona Lola perguntou, brincalhona.
— De forma alguma! — Aparvalhou-se a mais jovem, por um segundo, mas logo voltou
ao normal. — Quero vocês muito bem. Se quiserem nos acompanhar no jantar, serão muito bem-
vindos.
— Tô brincando, menina. — Dolores deu um tapinha no ombro de Elis. — Augusto e eu
já vamos. Tá na hora do meu véio tomar seus remédios. Beijo, meus amores. — Beijou as duas e
a neta, dando o braço ao marido em seguida.
— Tchau, meninas — Augusto disse após beijar a neta.
Despediram-se e ficaram observando os dois irem caminhando para a casa. Em seguida,
entraram, indo direto dar banho em Isabel.
— Sabe quem vi na cidade quando cheguei? — Elis perguntou, enquanto tirava a roupa
da filha. — A Cássia e o Henrique junto com os gêmeos. Aqueles meninos não parecem ter
quase dois anos. Parecem ter muito mais. Estão enormes! — Assombrou-se por um momento.
— Henrique fica babando nesses dois. — Valquíria riu enquanto movia a cabeça em sinal
negativo. — Ele tem me ajudado bastante na clínica, agora que a Cássia está mais afastada. Só
não entendo por que esses dois ainda não moram juntos. — Bufou, contrariada. — É visível que
se amam e ficam nesse chove e não molha.
— Ah, coisa da sua amiga, provavelmente — Elis respondeu, aos risos. — Dá o tempo
dela.
Estenderam a conversa até o jantar e se deitaram após a filha dormir. Valquíria puxou
Elis pela cintura, encaixando-se ao corpo dela. Beijou-a na nuca e a sentiu suspirar com o
carinho. A moça se virou e a beijou com carinho, enquanto Valquíria apertava sua cintura, Elis
se sentou bruscamente sobre ela, mordendo a boca e acariciando os próprios seios.
— Você escolheu o momento errado para me fazer esse carinho, agora vai ter que me dar
muito mais — murmurou voluptuosamente, quase num gemido.
— É o que estou querendo desde cedo quando você me mandou aquela foto enquanto
tomava banho de mangueira por causa do calor. — A mais velha substituiu as mãos da esposa
pelas suas, apalpando seus pomos com delícia. — Você não faz ideia do tesão que me dá quando
usa aquele biquini.
— Ahh, eu faço ideia sim. — Oscilou os quadris no colo da sua esposa, prensando-se
nela. — Por que você acha que eu mandei, hein? — Deslizou a língua pelo lóbulo da orelha de
Valquíria, que suspirou pesadamente.
A moça retirou a própria calcinha, apressadamente, ao passo que Valquíria retirava a sua
e, sem retirar a camisola leve que ambas usavam, Elis se encaixou entre as pernas de Bergamoto
e se movimentou devagar, na mesma intensidade em que era beijada. Sentiu os dentes de
Valquíria sobre seu ombro a mordendo, deixando uma lambida logo em seguida.
— Eu tô com tanto tesão que vou gozar rapidinho assim — murmurou Elis, aos ofegos,
enquanto ondulava seus quadris para aproveitar mais do contato tórrido de suas vulvas.
— Você é uma safada, Elis. — Valquíria arfou, envolvendo os cabelos loiríssimos de sua
esposa e fazendo-a pender a cabeça para trás e devorando seu pescoço alvo. — Vai me matar do
coração.
— Não morre não — sussurrou manhosamente, roçando-se anda mais. — Quem vai me
comer tão gostoso assim se você morrer, hein?
Valquíria engoliu em seco, não sendo capaz de responder por conta do calor que
acometia todo o seu corpo. A veterinária conduzia a esposa com as mãos em sua cintura que, a
cada instante, deixava o contato mais prazeroso até sentirem seus corpos serem tomado pelo
torpor de forma intensa e explosiva. Apesar disso, ouviam-se os gemidos baixos de ambas e os
beijos contínuos e ininterruptos. O orgasmo que se seguiu se equiparou a muitos e o cansaço as
tomou, acompanhado do sono.
Os dias se passaram como uma brisa sutil: continuamente e quase imperceptíveis.
Quando deram por si, Elis estava terminando mais um período da faculdade. Ela havia encerrado
suas provas e retornava para casa feliz com seu primeiro ano da faculdade finalizado.
Ao chegar no sítio, estranhou uma situação que se sucedeu, que vinha acontecendo todos
os dias, mas não ocorreu nesse. Olhou para os lados e não avistou Flecha Preta. Valquíria,
vendo-a procurar por algo, aproximou-se e perguntou:
— O que foi, Lis? — A veterinária cruzou os braços. — Aconteceu algo?
— O Flecha, ele não veio hoje. — Encolheu os ombros, tentando afastar o aperto que
acometeu o seu peito.
— Eu o vi mais cedo, tava perto do estábulo. — Caminhou até a esposa, dando um
abraço apertado. — Dá um desconto pra ele, amor. Ele é um idoso.
— Verdade, depois que comer e ver a Isabel, vou procurar por ele lá no estábulo. — Elis
deu um sorriso amarelo.
Mesmo se fingindo de calma para Valquíria, algo a incomodava. Comeu silente durante
todo o tempo, respondia apenas uma coisa e outra, saindo assim que conseguiu. Ligou a
iluminação externa e caminhou até onde Flecha deveria estar. Elis sentia um incômodo muito
grande no peito e isso aumentava cada vez mais, conforme chegava mais perto.
Viu o cavalo deitado sobre o feno espalhado, sentiu um pouco aliviada e se aproximou
devagar. Ajoelhou-se ao lado do animal e estranhou ele não ter se levantando ao vê-la. Acariciou
o pelo do equino, despertando-o, e o viu levantar levemente a cabeça. O bicho não parecia ter
forças suficientes para se erguer e, entendendo o que acontecia, Elis se sentou perto da cabeça do
cavalo e a deitou em seu colo. As lágrimas imediatamente fizeram seu curso em seu rosto.
— Ei, meu amigo — falou baixinho, enquanto deslizava os dedos pelo pescoço do
cavalo. — Parece que foi ontem que nos conhecemos, que você se lembrou de quem eu fui e
amou quem eu sou — murmurou, tranquila, mesmo que lágrimas deslizassem por seus olhos,
demonstrando seu amor por seu grande amigo. — Vivemos tantas coisas depois, não é, meu
velhinho? — Distribuiu beijos pela cabeça do cavalo, aproveitando para sentir o calor de seu
corpo. — Você sempre esteve ao meu lado, até quando eu estive longe. Esperou por mim durante
tantos anos e me esperou mais essa vez — acrescentou, chorosa, as mãos ainda incumbidas na
carícia em Flecha. — Obrigada por ter me amado incondicionalmente, Flecha Preta — declarou,
após perceber o silêncio do animal e não sentir mais sua respiração fraca. Abraçou-o pelo
pescoço e se permitiu prantear a plenos pulmões.
Valquíria foi atrás de Elis, preocupada com sua demora. Ao chegar ao estábulo, deparou-
se com uma cena que partiu seu coração. Vislumbrou Elis agarrada ao animal, enquanto chorava
quase descompensada. Aproximou-se dos dois e se sentou ao lado de Elis para a abraçar e a
reconfortar.
— Elis, ele descansou, meu amor — declamou com ternura, a voz quase trêmula por
também chorar.
— Eu sei, Val, mas parece que um pedaço de mim morreu junto. — Elis, ainda unida ao
seu amigo, respondeu fracamente.
— Eu te entendo, me senti assim quando a Campolina se foi também ano passado. —
Achegou-se em Elis, o coração diminuto a um grão de poeira. — Agora, os dois estão juntos de
novo.
— Você acredita nisso? — Acariciava a crina preta, com fios brancos, do cavalo
enquanto chorava.
— Acredito, sim! — Valquíria se forçou a sorrir. — Não somos a prova disso? —
Afagou os cabelos loiros da amada. — Vocês fizeram memórias lindas nesses quase quatro anos.
As fotos que temos espalhadas pela casa mostram isso. — Sua voz tremulou um pouco mais. —
Nada apaga isso.
— Você está certa, mas quero ficar um pouco mais aqui. — Elis baixou a cabeça, incapaz
de largar o corpo inerte de Flecha Preta, ainda com esperança de que ele apenas dormia.
— Tudo bem, meu amor. — A veterinária depositou um beijo no ombro de sua esposa.
—Eu fico com você.
Valquíria acompanhou Elis no tempo que ela julgou necessário para apartar a dor que
sentia. Após a certeza da partida de seu amigo se fixar em sua mente anuviada, a jovem decidiu
sair dali. A veterinária levou a esposa para dentro e chamou um dos rapazes que trabalhavam
com ela para retirar o animal do estábulo. Levaram-no para perto do lago e o enterraram ali,
perto de Campolina. Logo depois, Valquíria buscou os arreios do cavalo e desceu acompanhada
de Elis. Entregou o equipamento para a mais jovem e deixou que ela se despedisse do animal.
Elis colocou o arreio sobre as pedras e o enfeitou com algumas flores que tinham ali por
perto, afastando-se um pouco em seguida.
— Eu sei que você odiava quando eu te enfeitava com flores, mas, ainda assim, você
deixou que eu as colocasse. — Relembrou de todas as vezes que fizera isso e o cavalo a encarou
sisudamente. Conseguiu dar um breve sorriso, mas logo tornou a chorar, o coração estilhaçado
pelo luto. — Agora, eu as coloco para que não se esqueça de mim, pois não vou me esquecer de
você jamais. — Baixou a cabeça, as lágrimas recaindo sobre a terra recém remexida. —
Descanse, meu amigo, em breve estaremos juntos novamente.
Valquíria abraçou Elis e, juntas, retornaram para a casa.
Flecha Preta viveu plenamente, podendo estar com seu maior amigo por duas vezes em
sua vida. Foi um animal feliz e está presente em cada foto da casa da família Bergamoto,
principalmente em cima da estante da sala onde, de um lado havia uma foto dele com Ernesto,
Valquíria e Campolina e do outro lado uma foto com Elis, Isabel, Valquíria e Campolina.
Em ambas imagens eram perceptíveis a felicidade e o amor dele por seu amigo e, depois,
por sua amiga. Os únicos que o cavalo era tão dócil e companheiro. Elis trouxera para Flecha
Preta a sua vontade de viver, mesmo que poucos anos de sua vida restassem. Ela o relembrou o
quanto amava a alma que habitava o corpo daquela jovem e o fez querer aproveitar a vida outra
vida.
Ah, se os cavalos falassem.

Epílogo
NEM TODO FIM É UM FIM
Valquíria e Elis não podiam estar mais felizes. Isabel já estava completando seus oito
anos de idade, Elis já lecionava na escola pública da cidade e Valquíria continuava exercendo
sua profissão com a paixão de sempre. Para comemorar o aniversário da filha, fizeram uma festa
enorme, com tudo que a menina mais apreciava, convidando todos de quem gostavam.
Nesse ínterim, Selina se reaproximou da filha, voltando a amizade com Valquíria. Casou-
se novamente com um rapaz dez anos mais jovem e adotaram um menino chamado Nicolas, que
era o xodó do casal e de Elis também.
Cássia, finalmente, aceitou o pedido de casamento de Henrique. Deixou o rapaz tão feliz
que deram uma festa de arromba. Na época, Isabel tinha seis anos e os gêmeos cinco, cabendo a
eles os papéis de noivinhos e pajem. Isso rendeu um álbum de fotos para Elis e Valquíria se
recordarem da filha, tão fofa como havia ficado.
Dóris voltou para o Brasil e, além de advogar, voltou a dar aulas. Ela dizia que não, mas,
tanto Elis quanto Valquíria perceberam um brilho familiar nos olhos cinzas da mulher. Ela podia
negar para si própria e para os outros, mas seus olhos não. Certamente, havia aparecido alguém
que estava mexendo com a advogada. E elas desconfiavam que era alguém da faculdade que
lecionava.
Agora, todos estavam reunidos na casa da família Bergamoto, prestes a cantar parabéns
para a pequena Isabel. Bastou a menina se posicionar atrás da mesa para o festejo começar. A
criança sorria, jubilosa, ao lado do tio e dos amigos gêmeos, mas, principalmente, por estar entre
as pessoas que ela amava.
Ao fim, as mães de Isabel se aproximaram e a abraçaram, cochichando algo para a filha
logo em seguida. A garotinha sorriu e chamou a atenção de todos para falar:
— O aniversário é meu, mas nós três temos uma surpresa pra vocês. — Começou sua fala
e pausou, deixando todos curiosos. — Estamos grávidas! — Gritou e logo olhou para Elis: —
Falei certo, mamãe?
— Falou sim, meu amor — respondeu, fazendo um carinho nos fios escuros da menina.
Os convidados ficaram tão perplexos que mal esboçaram alguma reação, exceto dona
Lola, que não conseguiu conter a língua:
— Mas que história é essa? — sua voz se ergueu no meio das outras. — E por que eu tô
sabendo só agora? — Colocou as mãos na cintura, enquanto esperava por uma explicação.
Valquíria riu de sua mãe e começou a explicar:
— Faz algum tempo que congelei meus óvulos, antes mesmo de conhecer a Elis, porque
pensei que jamais me casaria novamente e, se eu quisesse ter filhos um dia, teria essa opção. —
Valquíria abraçou a cintura da esposa, os olhos se dividindo em todos os presentes. — Quando
contei à Elis, ela começou a pensar nisso e há um ano começamos os preparativos. Não quis
contar nada a vocês porque queríamos fazer uma surpresa. — Exibiu um sorriso largo. — Agora,
Elis está com dois meses e meio — falou, carinhosa, e deslizou a mão sobre a barriga da mais
jovem.
— Ah! Eu não acredito que vou ser avó de novo! — Dona Lola finalmente comemorou
com palminhas e um gritinho.
Não somente ela. Os convidados começaram a parabenizá-las, fazendo a festa virar um
falatório regado a muito choro. Até Augusto, que se fazia de forte, tinha os olhos lacrimejando
ao ver a felicidade no semblante. Apenas ele e Dolores sabiam o quanto Valquíria sofreu e se
fechou para a vida e como isso mudou depois de Elis aparecer. Seu amor por sua filha foi tão
grande que não deixou que o preconceito pudesse aparecer e vê-la infeliz novamente. Se Elis a
fazia feliz, ele estava feliz e isso bastava. Esse foi um dos motivos de nunca ter se oposto à união
das duas.
— Belinha, sei que tá feliz aí comemorando com as suas mães, mas não quer ver o
presente que o vovô tem pra você? — Perguntou para chamar a atenção da menina, o peito quase
estufado de tanto orgulho.
— Claro que quero! — Esganiçou-se Isabel. — Cadê ele? — Correu até o avô,
perguntando.
— Vem, vamos ali rapidinho. — Indicou com a cabeça o local que deveriam ir. — Vocês
também podem vir, se quiserem — Augusto falou para o casal e para o restante do pessoal.
Movidos pela curiosidade, acompanharam o senhor.
— Você sabe o que é? — Elis perguntou para Valquíria, não se contendo de curiosidade.
— Não. — A mulher comprimiu os lábios. — Ele e minha mãe não me falaram.
— Vocês vão gostar — Dóris comentou com uma risadinha.
— Então, você também sabe? — Elis e Valquíria inquiriram em coro.
— Digamos que nos juntamos para dar o presente para a Belinha! — Selina também se
juntou a elas, não contendo a risadinha.
— Então, todo mundo sabe, menos nós? — Valquíria falou, causando risos nas pessoas,
que não se deram o trabalho de responder. — Estamos piores que cornos!
— Cadê, vovô? — Isabel dava pulinhos de excitação, totalmente pressurosa.
— Espera aqui que já vou trazer — pediu a ela, faltando poucos metros para chegar ao
estábulo.
A menina uniu as mãozinhas e sentiu suas mães apoiarem as mãos em seus ombros.
Valquíria suspeitava do que seria e Elis também, pois desde que os cavalos das duas faleceram,
elas não tiveram outros, mas isso não diminuiu o fascínio da criança nas fotos da família e o seu
desejo de ter um para si. As memórias de Isabel com Flecha e Campolina eram muito escassas,
por ser muito pequena na época.
Augusto surgiu, puxando pelo arreio um lindo cavalo branco com manchas pretas,
levando-o até a neta. A menina gritou de felicidade e correu até o avô para o abraçar apertado.
Ela fez carinho no animal sob a supervisão de Augusto e correu até suas mães para expressar a
felicidade.
Valquíria sorria ao ver a alegria de Isabel, que queria logo montar no animal e Elis
admirava o animal completamente em silêncio. Seu coração se encheu de nostalgia, acelerado.
Reparava cada detalhe do cavalo, tentando entender o motivo de sentir sua alma tão quente e
uma felicidade tão grande se apossar do seu corpo.
Percebeu que uma das manchas pretas do animal tinha o formato de uma seta, familiar à
que seu grande amigo Flecha tinha na testa, mas branca. Balançou a cabeça, afastando as
loucuras da sua mente e se aproximou da esposa e da filha. Ao chegar perto do cavalo, assustou-
se com o seu relinche e acabou levantando as mãos para se proteger. O animal aproximou o
focinho das mãos de Elis e o esfregou, chamando a atenção da mulher mais jovem. Elis admirou
os olhos negros do animal e sorriu, abraçando o seu pescoço em seguida, deixando a felicidade
tomar seu corpo. Por um momento, acreditou estar imersa em um sonho maravilhoso.
— “Olá, meu grande amigo” — pensou, ao sentir o cavalo encostar a cabeça em seu
ombro.
— Parece que ele gostou de você — Valquíria falou, sorrindo até mesmo com os olhos.
— Parece que sim, mas ele veio pra viver suas histórias com a Isabel, não é, meu amor?
— Falou, fazendo carinho na filha e também no cavalo.
— Sim! — Ela gritou. — Ele será meu melhor amigo! — Ela falou, agarrando ao animal
com toda a ternura que tinha.
Elis sentiu uma fina lágrima deslizar por seu rosto e, sorrindo, respondeu:
— Eu não tenho dúvidas disso. — Seus olhos ainda se fixavam no cavalo, que cavava o
chão, animado, por conta de Isabel.
E, assim, iniciava-se um novo ciclo na vida daquela família.
O fim, por vezes, não é literal, mas poético.
Nem todo fim é um fim, mas um recomeço.
E o amor sempre ultrapassará todas as barreiras, até mesmo a da morte.
DEDICATÓRIA

EPÍGRAFE

PRÓLOGO

UM GRANDE AMOR NUNCA ACABA

.1.

O RECOMEÇO

.2.

FLECHA PRETA

.3.

MILAGRES SÃO REAIS

.4.

COINCIDÊNCIA OU NÃO, EIS ISABEL

.5.

O ANIVERSÁRIO DE VALQUÍRIA

.6.

PERDIDA DENTRO DE SI

.7.

CONHECENDO A VERDADE

.8.

NEM TUDO É O QUE PARECE SER

.9.

O OLHAR QUE VALE MAIS QUE PALAVRAS

.10.

ALMOÇO DE DOMINGO

.11.

ATOS QUE FRUSTRAM UMA MENTE ANSIOSA

.12.

QUANDO OS ATOS FALAM MAIS QUE PALAVRAS

.13.

CRISTALINO

.14.

A TEMPESTADE

.15.
EU SEMPRE VOU TE AMAR

.16.

A CALMARIA QUE ANTECEDE A TRAGÉDIA

.17.

TSUNAMI DE ENERGIA RUIM

.18.

NOSSA FAMÍLIA

.19.

PREPARATIVOS

.20.

VALQUÍRIA

.21.

NA ESTRADA

.22.

FINALMENTE A LUA DE MEL CHEGOU

.23.

DÓRIS

.24.

UMA NOVA ALIADA?

.25.

A INSEGURANÇA PAIRA NAS ENTRELINHAS

.26.

ELIS E ERNESTO

.27.

O QUE O AMOR UNIU, NADA SEPARA

.28.

O CORAÇÃO É TERRA DE NINGUÉM

.29.

A VIDA É FEITA DE ESCOLHAS

.30.

ELIS E FLECHA PRETA

EPÍLOGO

NEM TODO FIM É UM FIM


[1]
Departamento Médico Legal
[2]
Chico Mineiro: Música sertaneja raiz da dupla Tonico e Tinoco.
[3]
Tipo de bambu usado para fazer artesanatos

Você também pode gostar