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NITERÓI
2022
MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA
Niterói
2022
MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA
BANCA EXAMINADORA
Niterói
2022
AGRADECIMENTOS
Aos meus queridos pais, Celso Viana Nogueira e Maria Mercedes D’Alencourt Nogueira, por tudo
que me proporcionaram, especialmente, o respeito, a dedicação, o amor, a honestidade e a
oportunidade de estudar sempre. Vocês estarão sempre no meu coração! Muito obrigado por tudo!
À Mônica El Kik Damasceno e à Marcela El Kik D’Alencourt, esposa e filha queridas e amadas,
que me proporcionaram todo apoio, amor, paciência, compreensão e carinho na difícil caminhada
até aqui. Devo tudo a vocês. Como é bom tê-las na minha vida! Juntos sempre! Amo muito vocês!
Aos amigos e professores doutores Leonardo Petronilha, Aluísio Alves Filho, Débora Rezende
Almeida e André Saldanha, indispensáveis nas sugestões, apoio e discussões sobre o tema desde o
projeto até a defesa da tese.
Ao servidor Manoel Joaquim Pereira Filho, pelo trabalho competente e diferenciado exercido na
secretaria do PPGCP/UFF.
Aos colegas da turma de doutorado (2019) do PPGCP/UFF, Felipe Maruf, Paulo Roberto Cunha,
Daniella Silva, Gabriel Guimarães, Joyce Lucas e Bruno Leite, pelos debates, troca de ideias e
ótimo convívio acadêmico.
Aos professores que contribuíram com importantes considerações e dicas nas aulas, defesa de
projeto e qualificação da tese: Soraia Marcelino Vieira, Carlos Henrique Aguiar Serra, Cláudio de
Farias Augusto, Christy Ganzert Pato e Tiago Medeiros Araújo.
Aos entrevistados, Vivaldo Barbosa, Miro Teixeira e Rubem Medina, pela gentileza, cordialidade
e atenção.
À Denise Reznik, minha analista, pelo suporte psicológico que me proporcionou desde o primeiro
instante até aqui. Gratidão por tudo!
Brasil, mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim.
Brasil, qual é o teu negócio? O nome do teu sócio?
Confia em mim. Confia em mim, Brasil!
A tese de doutorado tem por objetivo analisar a ideia de participação na Constituição de 1988, a
partir do exame conceitual e das manifestações empíricas positivadas pelos constituintes na Carta
Magna, das ideias de democracia representativa, deliberativa e direta. Aborda-se inicialmente o
aspecto teórico relativo aos três modelos de democracia, confrontando-os com a participação. Em
seguida, analisa-se a maneira pela qual a participação foi debatida e aprovada na Assembleia
Nacional Constituinte (1987/88). Por último, após a promulgação da Carta de 1988, enfoca-se
normativamente a participação, relacionando-a aos principais elementos da democracia
deliberativa, direta e representativa.
This dissertation aims at assessing the notion of participation in the Constitution of 1988 in terms
of conceptual examination and empirical manifestations of the ideas of representative, deliberative
and direct democracy enshrined in the Magna Carta. It begins by theoretically discussing the three
models of democracy vis-à-vis the criterion of participation. Then, it is investigated how
participation was debated and approved in the National Constituent Assembly (1987-88). Finally,
after the promulgation of the Constitution, it is normatively emphasized participation in relation to
the main elements of representative, deliberative and direct democracy.
La thèse de doctorat a pour objectif d’analyser l’idée de la participation publique dans l’élaboration
de la Constitution de 1988, à partir d’une vision conceptuelle et des manifestations empiriques des
constituants dans la Charte fondamentale de l’État brésilien, ainsi que d’analyser les idées de
démocratie représentative, délibérative et directe. Pour cela, on examine, premièrement, l’aspect
théorique concernant les trois modèles de démocratie, en les confrontant avec la participation
publique. Deuxièmement, on analyse de quelle façon cette participation a été débattue et approuvée
à l’Assemblée Nationale Constituante (1987/1988). Enfin, à la suite de la promulgation de la «
Magna Carta » de 1988, l’étude se concentre sur la standardisation de la participation publique en
établissant un lien aux principaux éléments de la démocratie délibérative, directe et représentative.
INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 12
1 CRISE DA REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO...................................................................... 17
1.1 A crise da representação................................................................................................................. 17
1.2 Participação: uma abordagem teórica........................................................................................... 25
1.3 Participação e democracia representativa..................................................................................... 36
1.4 Participação e democracia deliberativa......................................................................................... 43
1.5 Participação e democracia direta................................................................................................... 50
1.6 Conclusão......................................................................................................................................... 58
2 A PARTICIPAÇÃO NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE...................................... 60
2.1 O embate com a representação democrática................................................................................. 60
2.2 A incipiente democracia deliberativa............................................................................................ 72
2.3 Democracia direta: poder e cidadão.............................................................................................. 85
2.4 Conclusão......................................................................................................................................... 99
3 A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL..................... 101
3.1 O prisma representativo................................................................................................................. 101
3.2 Enfim a democracia deliberativa................................................................................................... 112
3.3 Democracia direta: derrota da esperança.................................................................................... 125
AL Assembleia Legislativa
ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade
ANC Assembleia Nacional Constituinte
CEBs Comunidades Eclesiais de Base
CF Constituição Federal
CN Congresso Nacional
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CNMP Conselho Nacional de Ministério Público
CUT Central Única dos Trabalhadores
CV Câmara dos Vereadores
DANC Diário da Assembleia Nacional Constituinte
DL Decreto Legislativo
EC Emenda Constitucional
EUA Estados Unidos da América
IP Iniciativa popular
IPs Instituições Participativas
LC Lei complementar
MDDs Mecanismos de Democracia Direta
MPs Medidas Provisórias
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
OP Orçamento Participativo
PDDs Processos de Democracia Direta
PFL Partido da Frente Liberal
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNPS Política Nacional de Participação Social
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
RJ Rio de Janeiro
SF Senado Federal
STF Supremo Tribunal Federal
UE União Europeia
UFF Universidade Federal Fluminense
UNE União Nacional dos Estudantes
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
12
INTRODUÇÃO
A tese que ora apresentamos tem por objetivo analisar a ideia de participação na
Constituição de 1988, propondo-se a investigar como a ideia de participação foi incorporada no
texto constitucional e como os seus mecanismos tem sido utilizados, a partir do exame conceitual
dos três modelos (representativa, deliberativa e direta). Em seguida, analisa-se a forma pela qual a
participação foi debatida e aprovada na Assembleia Nacional Constituinte (ANC-1987/88),
especialmente por meio dos discursos parlamentares proferidos sobre o tema e seus
desdobramentos tanto no momento da confecção da Constituição Federal de 1988 (CF/88) quanto
naquilo que restou positivado após a promulgação do texto final acerca da participação
institucionalizada no Brasil.
A desesperança e o ceticismo popular com a política não são de hoje. Há tempos que os
partidos políticos não cumprem as suas funções programáticas, permanecendo cada vez mais
estagnados em modelos políticos, onde há, geralmente e dentre outros objetivos menores, a meta
principal da conquista e da permanência no poder 1. Maior prova disso é o abismo social e a
crescente desigualdade que assolam o mundo, condenando os mais pobres à miséria e à
marginalização. A busca por saídas milagrosas (não tão inéditas) e a esperança em “mitos”, que
prometem o fim da “velha política” e o alvorecer de uma “nova política” pautada na repetição de
antigos modelos injustos e excludentes, sinaliza para incipiente e indeterminada nova forma de
exercício do poder que pretende se habilitar como protagonista das transformações sociais no
campo político. E essa nova prática política parece não ter freios, limites ou amarras, promovendo
um autêntico “vale-tudo” para se consolidar. Não resta dúvida de que, se não estamos ainda,
tendemos a ingressar em tempos populistas. Parece que a grande questão nesse instante é “se esse
momento populista vai se tornar uma era populista — e pôr em xeque a própria sobrevivência da
democracia liberal” (MOUNK, 2019, p. 17).
A participação pode funcionar como forma de colaboração complementar à falta de desejo
democrático, reforçando-o, além de potencialmente frear aventuras extremistas, haja vista que o
processo eleitoral não é mais suficientemente envolvente e empolgante para os cidadãos.
1
O latinobarômetro, disponível em: <https://www.latinobarometro.org/lat.jsp> estuda opinião pública e tem
monitorado esse comportamento.
13
deverão ser atendidos com a seguinte proposta, servindo de base para responder à questão final ora
apresentada:
- Entender, a partir do arranjo constitucional de 1988, como se dá a relação entre a
participação e a democracia representativa, especialmente, a partir da análise das três funções de
poder (executiva, legislativa e judiciária); do sistema de “freios e contrapesos”; dos partidos
políticos e das eleições e do presidencialismo brasileiro de coalizão;
- Examinar, sob o enfoque da democracia deliberativa, de que maneira os mecanismos
indiretos são concebidos e utilizados para realizar a participação, discutindo a sua efetividade em
termos de obtenção de resultados esperados a partir da atuação dos diversos atores sociais
envolvidos, além da possível intervenção direta dos governos eleitos a fim de viabilizar e legitimar
as suas agendas políticas e
- Entender como se dá a interação da democracia direta com a participação, no que tange
basicamente à baixa intensidade de utilização de MDDs, suas consequências e resultados
decorrentes do seu reduzido uso no campo democrático.
A tese está balizada em metodologia calcada na realização efetiva das seguintes pesquisas:
I-Fontes primárias e secundárias: levantamento e revisão de literatura bibliográfica;
documentos dos Anais da Constituinte e Congresso Nacional; Medidas Provisórias, propostas de
Emenda Constitucional, Leis Complementares, Leis Ordinárias e Constituição Federal de 1988
acrescida das Emendas Constitucionais;
II- Realização de entrevistas com constituintes representantes de correntes ideológicas
distintas na ANC: Vivaldo Barbosa (PDT / RJ - esquerdas); Miro Teixeira (PMDB / RJ – centro)
e Rubem Medina (PFL / RJ – direitas), para registrar depoimentos sobre o período focalizado,
objetivando dar espaço às diversas correntes ideológicas2 existentes na ANC sobre participação
política.
Relativamente às fontes primárias e secundárias, a abordagem se dá a partir da análise de
conteúdo (especialmente sobre as espécies normativas elencadas), objetivando identificar pontos,
questões e elementos relevantes sobre participação que pudessem vir a contribuir para a presente
pesquisa. Quanto ao levantamento realizado nos anais da ANC acerca dos debates constituintes
2
Norberto Bobbio destaca a igualdade como elemento central na distinção entre direita e esquerda: “Diante dessa
realidade, a distinção entre direita e esquerda, para a qual o ideal da igualdade sempre foi a estrela polar a ser
contemplada e seguida, é claríssima” (BOBBIO, 2011, p. 140).
16
sobre o tema, optou-se pela análise de discurso, de maneira a tentar entender a forma pela qual o
assunto foi abordado e discutido pelos representantes eleitos, e suas principais
consequências/desdobramentos no futuro texto constitucional. Por último, as três entrevistas
realizadas visaram a trazer posições ideológicas distintas, visando a mostrar como ocorreram as
manifestações na ANC. A opção por somente três constituintes se deu pelas dificuldades inerentes
às idades avançadas desses representantes eleitos, sendo relevante para mostrar propostas/ideias
conflitantes, antagônicas e até convergentes que estiveram presentes naquele momento.
A tese se estrutura ainda com base nessa Introdução, três capítulos e as conclusões. Nesse
estudo, apresento o primeiro capítulo, no qual será discutida teoricamente a participação sob o
enfoque da democracia representativa, deliberativa e direta, relacionando-as a fim de se entender a
maneira pela qual se dá a interação destas, além de seus desdobramentos/consequências. A tese
contará ainda com o segundo capítulo, onde será abordada a forma pela qual a participação foi
discutida e votada na ANC, destacando-se as principais forças políticas que compunham a
Assembleia e a maneira pela qual se posicionavam diante do tema, além das suas percepções acerca
do desenho institucional final da participação. Finalmente, o terceiro e último capítulo no qual será
analisado o arranjo constitucional normativo final da participação institucionalizada, a partir do
texto promulgado em outubro de 1988, confrontando-a com os principais mecanismos
democráticos diretos e indiretos, e seus desdobramentos na atuação da cidadania nas diversas
esferas decisórias de poder.
17
3
O Consenso de Washington é um conjunto de medidas formuladas durante uma reunião, em novembro de 1989, por
economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, baseadas em um texto do economista John Williamson, do
International Institute for Economy, que estimulavam a competição entre as taxas de câmbio, davam incentivos às
exportações e previam a gestão de finanças públicas e se tornando a política oficial do Fundo Monetário Internacional
em 1990, no momento que passaram a ser "receitadas" para promover o "ajustamento macroeconômico" dos países em
desenvolvimento que passavam por dificuldades.
19
4
2003/2007
5
2007/2015
6
1999/2013
7
2003/2010
8
2011/2016
9
2006/2019
10
2006/2010 e 2014/2018
11
2010/2015
12
2007/2017
13
Manuel Zelaya (2009)
14
Fernando Lugo (2012)
15
Dilma Rousseff (2016)
16
2016/2018
17
2016/2020
20
Meloni (partido Irmãos da Itália) nas eleições legislativas, estando prestes o país a ser governado
por uma liderança pós-fascista, situação que não ocorria desde 1945. Isso repercute diretamente na
maneira pela qual os cidadãos encaram o arranjo democrático-liberal protagonizado por partidos
políticos e seus representantes. A crescente maré conservadora sinaliza para o desgaste do modelo
que atingiu o auge no século passado com o “Welfare State”.
É necessária, pois, a contínua consolidação da democracia enquanto regime político
garantidor das liberdades públicas fundamentais, sendo a participação política um dos possíveis
elementos de resistência à tentativa de redução da perspectiva democrática, além de servir como
complemento à democracia representativa. Entender a crise pela qual passa a democracia configura
elemento central. Esta enfrenta atualmente agudo desgaste e passa por mudanças substanciais, que
podem alterar ou transformar práticas relativas ao seu exercício. Sendo assim, “a revisão crítica
dos pressupostos que alicerçam a compreensão moderna da representação política e a reconstrução
de sua gênese podem ajudar a reconstituir os problemas que estiveram na base da separação entre
Estado e sociedade” (ALMEIDA, 2015, p. 43). Sinaliza-se, portanto, na América Latina, para a
baixa institucionalização do Estado na defesa de direitos fundamentais e crescente ceticismo dos
indivíduos acerca dos seus representantes:
Na França, por exemplo, Sintomer (2010, p. 27-28) destaca pesquisa feita pelo Le
Monde, em 2005, na qual 39% dos eleitores declararam ter pouca confiança e 37%
responderam ter nenhuma confiança nos políticos. Esses “preocupam-se, acima
de tudo, com suas carreiras” (85%), “são alheios à verdadeira vida dos franceses”
(62%) e “corruptos” (49%). No que diz respeito à abstenção eleitoral, Freire e
Magalhães (2002) mostram, para o caso português, que o não comparecimento às
urnas está diretamente relacionado com o declínio das taxas de sindicalização; a
perda da capacidade mobilizadora dos partidos de massa e a desconfiança nas
21
A democracia liberal enfrenta hodiernamente sua maior crise global. Os motivos para essa
crise têm origens diversas, acarretando consequências diretas às nações das diferentes partes do
mundo (BALLESTRIN, 2018). Algumas situações contribuem diretamente para o agravamento do
quadro: o déficit de credibilidade dos partidos políticos que, na sua grande maioria, funcionam
como associações políticas de aluguel e fachada, servindo a interesses previamente determinados
pelos partidos majoritários e pelas elites políticas; o incremento generalizado da corrupção; o
desinteresse dos cidadãos pelas eleições; a desconfiança dos representados acerca dos seus
representantes e o descrédito popular relativamente aos poderes legislativo, executivo e judiciário.
Estaria a coexistência da democracia com o liberalismo limitada a uma constante melhoria das
condições de vida do povo? (PRZEWORSKI, 2020).
Hobbes (2004), no Leviatã, lançou as bases do conceito de representação, formulando
uma definição não religiosa capaz de romper com a doutrina cristã. Trouxe dois fundamentos para
a ideia de representação: um originário da Grécia, no sentido de substituição de uma pessoa por
outra no teatro e, outro, vindo de Roma, enquanto identificação e autorização (AVRITZER, 2007,
p. 446). A baixa avaliação acerca do desempenho das instituições representativas sinaliza que o
ceticismo sobre a legitimidade dos representantes não se dá exclusivamente no comparecimento
eleitoral ou prestação de contas, mas ainda no que tange ao atendimento dos interesses e demandas
dos cidadãos.
Apesar dos representantes conseguirem animar os indivíduos no período eleitoral, eles
erram quando necessitam organizar as expectativas dos desprovidos em espaços de tomada de
decisões que lhes afetam diretamente, levando a desconfiança às instituições representativas. A
consequência disso é o descrédito da representação democrática, buscando-se soluções pessoais
por intermédio de pessoas ocupantes de cargos chaves no governo em detrimento da
impessoalidade, que deve pautar a atuação da administração pública estatal. O modelo de
democracia representativa que floresceu no século XX deixou de realizar a promessa nele contida,
de um “governo do povo”. Trespassado por consideráveis desigualdades estruturais, funcionou e
ainda funciona mais como instrumento de legitimação do “status quo” vigente do que de
22
transformação social. A unidade identitária provida pela comunidade nacional encobria os muitos
vieses presentes nas sociedades contemporâneas, que fazem com que ideias e valores de grupos
subalternos sejam desqualificados de forma sistemática (MIGUEL, 2014, pp. 132-133).
A maneira pela qual se avalia negativamente a performance das instituições
representativas sinaliza para uma falta de legitimidade não apenas formal, mas também substantiva,
ou seja, relativa ao atendimento de interesses da cidadania, logrando êxito em mobilizar os
indivíduos no período eleitoral, porém falhando sobretudo na articulação dos interesses dos
excluídos em fóruns de tomada de decisão e na consecução de melhores políticas sociais que os
beneficiem. A apatia dos indivíduos relativamente às instituições representativas é ainda agravada
pelo repúdio aos resultados advindos do processo político-eleitoral, que, na sua maioria, não são
hábeis a atender às demandas da população, mitigando a confiança na democracia enquanto regime
político apto a solucionar as questões que afligem os cidadãos (NOBRE, 2022).
As tensões e os conflitos sempre existiram nas sociedades democráticas contemporâneas,
todavia, o aspecto conflituoso desse processo se relaciona ao aspecto paradoxal de representação
política: tornar presente a ausência, que põe em polos distintos, estado e sociedade
(POGREBINSCHI, 2009). Tal concepção traz um paradoxo: primeiro, o ausente não pode estar
presente a partir da ideia de que outro está em seu lugar. A ideia é amplamente indefinida para
ajudar a ordenar os diversos sentidos do termo, geralmente carregados de incompatibilidades que
a expressão traz por séculos de uso (PITKIN, 2004). Explica a referida autora que a representação,
como ideia e prática política, emerge recentemente. Assim, a ideia de democracia pode ser
considerada sinônimo direto de representação, mas não de participação. Essa concepção é uma
construção que vai sendo realizada ao longo do tempo e da experiência. Pitkin cita Rousseau
(2005), ressaltando que a liberdade requer ação direta, participação pessoal de todos e assembleia
conjunta decidindo políticas públicas que a todos interessem. A representação não parece capaz de
atender todas essas demandas. Apesar de esforços diversos a fim de democratizar o sistema
representativo, as consequências observadas são para que a representação suplantou a democracia,
ao invés de servi-la.
As revoluções liberais18 do final do século XVIII ratificam o afastamento já existente do
povo das esferas decisórias de poder, ficando tal privilégio a cargo de poucos (elites) que
18
Referem-se à Revolução Francesa (1789) e à Independência norte-americana (1776) havida também como
movimento revolucionário contra o domínio britânico.
23
influenciam diretamente as opções políticas estatais em prol de seus interesses pessoais (ARENDT,
2011). No modelo neoliberal, a democracia representativa se voltou mais para a defesa das
demandas das classes dominantes em detrimento das necessidades dos excluídos especialmente
nos países emergentes, situação que prejudica o exercício pleno da cidadania:
19
O termo foi mais sistematicamente desenvolvido pelo sociólogo Colin Crouch (2011) ao longo dos anos 2000
(BALLESTRIN, 2018).
24
falta de inclusão laboral por causa do despreparo da maioria para enfrentar as constantes demandas
do mercado de trabalho, especialmente no que tange à automação, além da diminuição da
percepção da democracia enquanto regime político essencial à defesa da vida e da liberdade das
pessoas. Resumindo: parte-se para a informalidade do mercado de trabalho, tendo como
consequência o incremento exponencial de subempregados que só agravam a crise social. A
propaganda neoliberal coloca a crise política e econômica na conta da democracia, desgastando
continuamente as instituições políticas:
também e, sobretudo, frear o ataque neoliberal que ocorre por dentro do poder público, via
cooptação dos representantes eleitos pelo voto popular (SOUZA, 2017). A desconstrução do estado
de bem-estar social, o desmonte neoliberal e o incremento da desigualdade marcaram
profundamente a democracia representativa, tendo como grande desafio a religação da cidadania
com a política, via participação popular, sendo necessária, para tal, a organização, educação e
inclusão social.
Pode a participação ainda ser vista sob outros dois prismas: o primeiro, a partir das efetivas
práticas civis e, ainda, sob o enfoque de pesquisas dos estudiosos do assunto, sugerindo-se duas
questões-chave norteadoras na análise: uma primeira no sentido de como se reflete a participação
social, por diferentes autores, de vários paradigmas e correntes teóricas, ao se debruçarem sobre a
luta de segmentos da sociedade para solucionar seus problemas, materiais (lutas econômicas) ou
simbólicas/culturais (lutas contra as discriminações). Uma segunda questão seria a maneira pela
qual estas correntes têm contribuído para a compreensão do problema da participação ou para
fornecer elementos acerca dos acontecimentos participativos sociopolíticos e culturais recentes no
país (GOHN, 2019, p. 25).
No Brasil, os estudos sobre participação podem ser divididos em três instantes: o primeiro
se voltou à análise da pressão dos movimentos sociais e sociedade civil ao final do regime militar
e durante a transição democrática (1970-1980); o segundo trata de duas décadas de debates (1990-
2010), cujo objetivo principal foram as Instituições Participativas (IPs); e, o terceiro (2010-2018),
demonstra uma queda na aposta da participação nas IPs. Destaca-se ainda que os estudos sobre
participação política apresentaram caminhos diversos diretamente influenciados por três marcos da
CF/88: i) o surgimento de um padrão distinto de interação Estado e sociedade, ii) os novos marcos
dos direitos sociais e iii) a institucionalização de mecanismos participativos (ALMEIDA e
DOWBOR, 2019).
Ressaltam-se também dois diferentes prismas acerca das pesquisas sobre participação
política. O primeiro aborda os estudos comportamentalistas e tem como elemento principal de
abordagem o engajamento político individual nas diversas formas de participação. Nessa vertente,
o foco das pesquisas empíricas se dá na elaboração de diagnósticos comparados de largo alcance
do fenômeno da participação. A segunda é delimitada pela preocupação normativa com o reforço
da democracia, sendo o objeto principal das pesquisas “as modalidades mais institucionalizadas de
engajamento político, os atores e as instituições envolvidos com a democratização das instâncias
decisórias e o controle sobre as ações governamentais” (ALMEIDA, 2018, p 11).
Referem-se aos estudos sobre as IPs, das quais são paradigmas no país os Conselhos
Gestores de Políticas Públicas, os Orçamentos Participativos e as Conferências Públicas de
Políticas. A bibliografia ligada ao prisma comportamentalista traz dois elementos importantes: o
primeiro é o elo entre cultura política e instituições, a partir das opiniões dos indivíduos que
interfeririam no funcionamento do sistema político, garantindo-lhe estabilidade ou instabilidade.
27
O segundo elemento é o de que a crença nas instituições e a participação política seriam centrais
para a estabilidade democrática, sendo ideal ao regime democrático aquele cidadão leal às
instituições, que aceita e se satisfaz com seu funcionamento e acata o resultado eleitoral.
Relativamente aos estudos sobre as IPs, os objetivos principais estão nas regras que estruturam a
competição pelo voto, nas instituições representativas tradicionais e nos seus agentes específicos.
Projetam-se nas modalidades de participação da sociedade civil e dos seus impactos na
revitalização da esfera pública, na configuração de novas instituições que poderiam proporcionar
mais inclusão e na legitimidade e na justiça às decisões políticas (ALMEIDA, 2018, pp. 11-16).
Do ponto de vista histórico, as sociedades conviveram ao longo dos anos com modelos
autoritários nos quais a participação em decisões coletivas foi consideravelmente reduzida. O
surgimento da participação ocorre em Atenas (Grécia), no século IV a.C., nas ecclesias20, onde as
pessoas habilitadas a emitir opiniões e posições se manifestavam. Apesar da relevância dessas
reuniões como elemento fundador da democracia ocidental, a abrangência política de tais
manifestações era mitigada. Participavam apenas homens bem aquinhoados intelectual e
financeiramente, ficando de fora a grande maioria da população ateniense, especialmente mulheres,
pobres e escravos. A “democracia dos antigos”21 representa elemento central na origem e evolução
da perspectiva democrática no mundo ocidental, inaugurando, apesar de restrições, ampla
manifestação coletiva nas decisões estatais. As revoluções liberais (estadunidense e francesa) do
final do século XVIII reconfiguram consideravelmente tal modelo, introduzindo as instituições
liberais (a representação democrática virá depois), na qual o exercício do poder não seria mais
realizado diretamente por meio de deliberações em praças públicas, mas pela via do exercício
indireto do poder político pelos representantes eleitos pelos cidadãos, a chamada “democracia dos
modernos”22.
O conceito de participação política adquiriu diferentes perspectivas nas teorias
democráticas nos séculos seguintes. Jean-Jacques Rousseau, Stuart Mill e Alexis de Tocqueville,
apesar das diferenças existentes, ressaltam a participação política dos cidadãos nos negócios
20
Assembleias políticas de cidadãos dos Estados da Grécia antiga, especialmente dos de Atenas.
21
Aparece na experiência ateniense sendo, na origem, uma forma de democracia direta que se realizava num espaço
restrito, a cidade/Estado grega. A democracia se processava por intermédio de um sistema de assembleias, às quais era
atribuído o poder de tomar as decisões políticas.
22
Originada a partir do final do séc. XVIII, passa a predominar o sistema representativo, no qual as constituições
estatais definem quem têm o direito ao voto, assim como o direito de se candidatar a cargos públicos, elegendo-se os
representantes que exercem o poder a partir da escolha do cidadão.
28
A esfera pública burguesa pode ser compreendida como o espaço das pessoas privadas
reunidas em um público. Elas desejam a esfera pública regulamentada pela autoridade (como forma
de proteção em uma perspectiva originariamente contratualista), mas diretamente contra a própria
29
psicológicas das pessoas que nelas interagem. Defende a democracia participativa e demonstra que
o elitismo democrático se baseia em uma crítica relativamente ao aspecto irrealista dos “clássicos”
que teorizaram sobre a participação (PATEMAN, 1992, pp. 29-30). Vai mostrar que a crítica ignora
a diferença entre os autores – em relação ao papel que atribuem à participação – e que a ideia de
recusa da noção de liderança pela teoria “clássica” é equivocada. Na mesma linha de Bachrach,
Pateman sustenta a necessidade de ampliação do conceito de político, pois as instituições
representativas no nível nacional não são suficientes para a democracia, devendo a participação
estar presente nas diferentes esferas governamentais, além de outras como o trabalho. A
participação como maneira de aperfeiçoamento democrático sugere três funções essenciais: a
educativa; a de integração e a de auxílio à aceitação de decisões coletivas (PATEMAN,1992, pp.
60-61).
Pateman destaca ainda a possibilidade de democratização das estruturas de autoridade da
indústria, analisando as experiências de participação industrial na Iugoslávia socialista na segunda
metade do século passado. Apesar da importância dos seus estudos e resultados positivos sobre
participação no referido país, há certos paradoxos na análise desenvolvida, tendo em vista que sua
abordagem teórica alude à participação em uma democracia liberal, enquanto suas observações
práticas se reportam à participação e à democratização industrial em paradigma autoritário sob a
égide do socialismo, ou seja, uma contradição em termos. Todavia, o seu trabalho teórico é de
extrema importância e auxilia na compreensão sobre a contínua demanda por participação no
mundo atual como forma de consolidação e ampliação não só do político, mas também da própria
perspectiva democrática.
A proposta de participação política mais abrangente voltou a ser objeto da teoria
democrática contemporânea, redimensionando o seu conceito de maneira a propiciar novos
significados e propostas relativas às demandas da sociedade moderna, destacando-se as vantagens
e virtudes da participação em contexto de mudança gradual da coletividade para ser mais
democrática e incluída politicamente. Há um caminho contra-hegemônico da democracia, haja
vista que a representação se tornou inábil para solucionar duas questões: a prestação de contas e o
atendimento às crescentes demandas relativas às múltiplas identidades. Santos e Avritzer sustentam
que, durante o século XX, a discussão acerca da democracia se reduziu basicamente a duas
maneiras complementares de hegemonia. Um primeiro paradigma de hegemonia se baseou na
hipótese de que a solução da discussão que se travava na Europa no período entre guerras teria sido
31
Até o início da década de 60, pode-se dizer que se vivia um Brasil onde se
multiplicavam as lutas populares, destacavam-se os movimentos pela Reforma
Agrária, pela casa própria, pela redução da tarifa dos transportes públicos, dentre
outros. Com o advento da ditadura militar passa-se a viver um Brasil onde
predomina um cotidiano de violência que impede todo e qualquer tipo de
mobilização política da sociedade. Os canais formais de manifestação e diálogo
foram fechados, ficando os movimentos populares e organizados da sociedade à
deriva, isto é, sem alternativas consideradas lícitas para a canalização de suas
insatisfações e demandas ao Estado (ROCHA, 2008, p. 133).
O resultado foi o fechamento do regime com o descarte democrático e, dentre outros, dos
direitos políticos do cidadão (CARVALHO, 2013, p. 150). A ditadura militar 24 ratifica a
privatização do público, priorizando a agenda empresarial que possuía amplo trânsito nas
23
Conceito formulado por Wanderley Guilherme dos Santos (1979) no intuito de entender a política econômico-social
do Brasil de 1930 em diante, por meio da qual, a partir dos direitos sancionados em leis durante o governo de Getúlio
Vargas (1930/1945 e 1951/1954), os indivíduos definiriam o seu status de membros nesta forma de ordenamento
social.
24
1964/1985
33
atividades decisórias relativas às políticas sociais com apoio dos políticos, em detrimento do
enfrentamento de questões nacionais estruturais, em especial, a desigualdade e a miséria. O Ato
Institucional nº 5/1968 endurece ainda mais o regime e praticamente inviabiliza a participação
política, prejudicando consideravelmente o exercício da cidadania. Com a sua revogação, as
atividades políticas voltam refletidas em novas formas de reivindicação, como as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs)25 e a luta operária do ABC26 paulista, o retorno da União Nacional dos
Estudantes (UNE)27, a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT)28 e a fundação do
Movimentos dos Sem Terra (MST)29, reiniciando um tempo de consolidação das reivindicações
sociais, que visavam a busca por soluções relativas ao déficit social das classes urbanas de baixa
renda nas áreas de saneamento, urbanização, saúde e habitação. O aumento da participação social,
no sentido da presença dos indivíduos em espaços públicos de interação com o Estado, mostra a
consolidação de um tecido social que foi se tornando mais robusto e diferenciado desde os anos
setenta, década onde afloram os novos movimentos sociais.
Apesar da redução da democracia e, consequentemente, da participação no período
militar, houve considerável desenvolvimento dos direitos sociais (exemplos são a criação do
Instituto Nacional de Previdência Social/INPS30, do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço/FGTS31, do Banco Nacional de Habitação/BNH32 e do Ministério da Previdência e
Assistência Social/MPAS33), se aproximando do período varguista no que concerne ao aumento de
25
As CEBs são comunidades ligadas à Igreja Católica que, vinculadas à Teologia da Libertação, cresceram nos anos
1970/80 no Brasil e na América Latina. Consistem em comunidades compostas basicamente por membros insatisfeitos
das classes populares e despossuídos, ligados a uma igreja ou a uma comunidade com fortes vínculos, cujo objetivo é
a articulação com a realidade política e social em que vivem e com as misérias cotidianas, buscando transformá-las.
26
A designação pode ser explicada por: Santo André, representado pela letra A, São Bernardo do Campo, representado
pela letra B e São Caetano do Sul, representado pela letra C. A sigla D também pode aparecer, representando a cidade
de Diadema.
27
Fundada em 1937, a UNE é o órgão máximo de representação dos estudantes universitários brasileiros, tendo como
objetivo principal a luta por melhores condições no âmbito educacional, participando, todavia, ativamente da história
política do país.
28
A CUT é uma organização sindical brasileira de caráter classista, autônomo e democrático, cujo compromisso é a
defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora.
29
O MST é um movimento social brasileiro do Brasil que objetiva a defesa do trabalhador do campo, sobretudo no
tocante à luta pela reforma agrária brasileira.
30
O INPS foi criado em 1966.
31
O FGTS foi criado também em 1966, funcionando como uma espécie de seguro-desemprego.
32
O BNH foi criado pela Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, visando a implementação de política de habitação,
especialmente para a população de baixa renda.
33
O MPAS foi criado em 1974.
34
direitos sociais. Desta maneira, a avaliação dos governos militares, sob o enfoque da cidadania,
necessita levar em consideração a manutenção do direito de voto (houve eleições para o Senado
Federal e para a Câmara dos Deputados em 1966, 1970, 1974, 1978 e 1982) combinada com o
esvaziamento de seu sentido e o aumento dos direitos sociais em instante de limitação de direitos
civis e políticos (CARVALHO, 2013, pp. 172-173).
Os pleitos por melhorias sociais culminam, após o fim da ditadura militar e o início da
redemocratização34, na convocação da ANC35, que põe em prática, de maneira ampla, aberta e
democrática, a participação social nas mais diversas frentes, representando momento único na
história brasileira de acesso da sociedade organizada ao Estado, via parlamento. Desde a
redemocratização brasileira, a ideia de participação política entrou no vocabulário nacional tanto
por meio de experiências participativas, quanto de estudos que se voltaram a compreender seu
potencial para a democracia, inclusão dos cidadãos e reversão dos processos decisórios de políticas
públicas. O crescimento da participação da cidadania nos assuntos estatais, o pluralismo político e
o respeito à igualdade e às liberdades públicas contribuem para a formação do espaço público
democrático e para o reforço da democracia representativa, a partir do amadurecimento político,
do postura consciente e livre no processo de participação, além dos debates e deliberações sobre
questões várias acerca da sociedade organizada.
A participação foi essencial para a democratização em dois sentidos: primeiro, quando os
protagonistas sociais, diretamente ligados às bases populares, foram de encontro ao autoritarismo
estatal então vigente. Segundo, quando os atores coletivos começaram a entrar nas instituições
estatais como o objetivo de democratizá-las, por intermédio da defesa da participação relativa aos
direitos sociais (TATAGIBA, 2005). Tal circunstância possibilitou ir além da teoria que
vislumbrava hipoteticamente possível paradoxo entre mobilização social e institucionalização
(AVRITZER, 2002).
A CF/88 legitimou boa parte dos anseios populares ao positivar diversos mecanismos de
participação no âmbito do Estado, prevendo, todavia, participação do cidadão deveras limitada nas
esferas públicas federal, estadual e local. Tais mecanismos são importantes conquistas, entretanto,
estão aquém de consolidar desenho participativo efetivo no que tange ao real empoderamento do
34
A redemocratização brasileira ocorre em março de 1985 com a posse de José Sarney.
35
A ANC de 1987/88 foi instalada no Congresso Nacional (CN), em Brasília, em 1º de fevereiro de 1987, fruto da
Emenda Constitucional (EC) nº 26, de 1985, para elaborar a CF/88, após vinte e um anos de ditadura militar.
35
O caminho – tanto teórico quanto prático – a ser seguido pela participação enquanto
complemento à democracia representativa está em aberto e diretamente ligado aos destinos que
esta tomará no Brasil e no mundo. A prática participativa aprimora a democracia, constituindo
barreiras e trincheiras contra aventuras autoritárias, além do aspecto pedagógico e inclusivo que a
sua realização constante propicia. O cidadão deve ser estimulado e, sobretudo, possuir instrumentos
efetivos e confiáveis para protagonizar o jogo democrático, não se admitindo a sua limitação a
mero coadjuvante do processo político em curso. A democracia participativa não garante melhor
democracia que a representativa, não desejando suplantá-la, ou substituí-la, mas visa a contribuir
para o seu reforço no sentido da obtenção de perspectivas e resultados consistentes do ponto de
vista político, ressalvando que o paradigma democrático-representativo é o modelo principal de
regime político no Estado.
36
A participação dos cidadãos no campo político aumenta nos anos sessenta por meio dos
movimentos estudantis, que reivindicavam mais participação em assuntos diretamente ligados às
escolhas estatais. A referida década foi rica em contestações políticas, como na França, em 1968 36,
e nos EUA, relativamente à luta contra a Guerra do Vietnã e pelos direitos civis dos
afrodescendentes. Na América Latina (e no Brasil), a luta ocorre basicamente por meio da
mobilização de setores sociais (estudantes em especial) contra as ditaduras militares 37 que se
estabelecem em países estratégicos do cone sul. Já na década de setenta, reforça-se a teoria elitista
que via com maus olhos a participação na esfera política. Incrementa-se a intervenção estatal na
economia como tentativa de dar nova conformação social à geopolítica mundial diretamente
afetada pela devastação que os dois grandes conflitos mundiais acarretaram. O “diagnóstico” já
estava pronto e posto em prática, havendo pouco espaço para intervenções participativas outras que
fossem de encontro ao receituário liberal em curso. A partir daí, a ideia prevalente de democracia
baseada no processo político eleitoral é gradativamente substituída por teorias que privilegiam a
participação social38.
Em contrapartida, os principais pontos da proposta hegemônica são a contradição entre
mobilização e institucionalização, a valorização da apatia política, o reforço nos modelos eleitorais
democráticos, o trato ao pluralismo político como forma de incorporação partidária e a luta entre
as elites por melhores posições. Há dois pontos importantes que não foram objeto de
enfrentamento: quanto à participação, a gradativa e contínua abstenção nas eleições e, no que tange
à representação, a sensação de ausência ou inexistência desta por parte dos cidadãos. O
redescobrimento de ações da sociedade e a renovação participativa na teoria democrática
caracterizou passo importante na tentativa de recolocar a participação política no seu devido lugar.
Critica-se a separação entre Estado e sociedade, elemento central da representação política liberal,
estando diretamente ligados. Deve o Estado, portanto, se democratizar (especialmente nas suas
instituições) de maneira que se consolide a participação política não exclusivamente no âmbito
36
Movimento político na França que, marcado por greves gerais e ocupações estudantis, reivindica a liberação sexual,
o fim da Guerra no Vietnam e os movimentos pela ampliação dos direitos civis.
37
Brasil (1964/1985); Argentina (1976/1982); Chile (1973/1990) e Uruguai (1973/1985).
38
Também denominadas teorias participativas ou contra-hegemônicas.
37
institucional, mas também no plano mais próximo ao cidadão: o local (ou municipal), fato que
propiciaria o desenvolvimento das denominadas accountabilities39.
A participação não deveria se limitar ao campo institucional, projetando-se para o
ambiente de trabalho. A junção da atuação política do cidadão no plano local e no profissional
garantiria melhores condições às pessoas de aferir a representação no âmbito nacional e de realizar
melhores escolhas quando demandadas. A prática participativa continuada importa em educação
político-pedagógica, destacando-se ainda dois elementos relevantes da participação: aceitabilidade
das decisões e integração (PATEMAN, 1992). O aspecto pedagógico da participação política
colabora para a mudança na forma pela qual as pessoas percebem e se inserem no jogo democrático,
deixando de ser passivas relativamente à escolha e atuação de seus representantes, e se colocando
por intermédio da mudança de consciência política no lugar de protagonistas ou destinatários
diretos do exercício do governo democrático.
Tanto o sistema político quanto os partidos políticos deveriam se estruturar numa base
extensa e participativa, de maneira a garantir que um número cada vez maior de pessoas pudesse
ter mais voz nas decisões a serem tomadas (MACHPERSON, 2009). A fim de que tais iniciativas
possam ser concretizadas, é necessário que o Estado propicie inclusão e integração por meio de
ensino público universal e qualitativo. Seria uma contradição falar de participação democrática
transformadora, se não fosse acompanhada de política séria e robusta de educação pública e gratuita
de qualidade. A proposta sugerida por Pateman (1992) acerca da participação no âmbito
profissional praticamente se inviabiliza no Brasil na medida em que as reformas sindicais e
trabalhistas40 desencadeadas no Governo Temer41 e acompanhadas por Jair Bolsonaro42
consolidam a chamada “flexibilização” (ou precarização) dos direitos sociais dos trabalhadores,
prejudicando a ideia de participação mais aguda na área profissional pelo receio dos trabalhadores
para uma atuação mais efetiva. O trabalho de Pateman (1992), porém, é relevante porque desperta
possíveis caminhos alternativos a ser percorridos por uma teoria participativa que se preocupa com
uma relação mais democrática no campo profissional entre empregado e empregador.
39
Mecanismos que têm por objetivo possibilitar aos gestores de uma organização, que prestem contas e sejam
responsabilizados pelo resultado de suas ações, significando responsabilização, fiscalização e controle social.
40
A Lei nº 13.467/17 cria modalidade de trabalho sem direito a férias, 13º salário e FGTS, além de possibilidade de
prestação laboral sem carteira assinada (Requip) e sem direitos trabalhistas e previdenciários.
41
2016/2018
42
2019/2022
38
Há propostas contestatórias à democracia liberal, como Barber (1984), que entende ser
essa de baixa intensidade e muito fraca, pois se baseia exclusivamente na eleição dos representantes
a serviço de interesses particulares e privados. Para o referido autor, a “democracia forte” seria
concretizada, diferentemente da participação democrática, no autogoverno dos cidadãos, os quais
estabeleceriam laços e objetivos mútuos a fim de realizar uma administração política diretamente
voltada para o atendimento das diversas demandas populares. Barber rompe com a representação
política sob o argumento de que esta não é democrática, visto que se volta à observância da agenda
e interesses diversos das minorias reforçadas economicamente (BARBER, 1984, p. 262). Apesar
de sedutora, a proposta de Barber (1984) esbarra na própria ideia de governo do povo. Como seria?
Quais seriam os seus contornos, propostas, limites, poderes e autocontenção? Difícil dizer. A
chamada democracia forte esbarra nela mesma, pois um governo totalmente popular seria
praticamente inviável em termos de realização concreta.
Tal circunstância pode ser facilmente verificada a partir da análise dos Estados que
adotaram o socialismo, especialmente na segunda metade do Séc. XX43, sob forte influência do
43
A chamada “Cortina de Ferro” se compôs de países do leste europeu ocupados pela extinta União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) no final da Segunda Guerra Mundial até a queda do Muro de Berlim em 1989, quando
as duas Alemanhas (Federal/Ocidental, capitalista e Democrática/Oriental, socialista) se uniram definitivamente.
39
modelo precursor soviético de 1917, onde prevaleceram governos autoritários, cujo poder foi
imposto de cima para baixo, com pouca (ou nenhuma) liberdade, tendo sido praticamente extinto
no mundo com o malogro do comunismo44. A forte democracia proposta por Barber (1984) vai de
encontro ao modelo de participação política uma vez que esta visa a complementar e reforçar a
democracia representativa, trazendo novos e importantes elementos de renovação e legitimação da
atuação cidadã, enquanto aquela se aproxima de paradigma político assentado na utopia do
exercício direto do poder popular que se mostrou historicamente autoritário e de difícil
concretização.
Diferentemente da chamada democracia forte, a democracia ou pluralismo radical tem
como foco principal as mobilizações populares e os movimentos sociais (destaca-se no Brasil as
Manifestações de 201345) como forma principal de influenciar a agenda política em prol dos
interesses neles veiculados. Para a análise da representação, os pluralistas radicais sinalizam para
outros nortes, especialmente a contestação e o engajamento contínuos dos indivíduos nos diversos
setores do poder, questionando a soberania do representante como expressão da totalidade e
unidade, além de situar a legitimidade democrática no processo de representação e participação.
Destacam-se dois elementos importantes na contribuição do pluralismo para a reformulação da
representação política: os limites da regra da maioria para lidar com a intensidade das preferências,
sendo necessários diversificar os meios de se expressar a soberania popular e a autorização eleitoral
e, em segundo lugar, a maior centralidade à ideia de contingência, a qual foi objeto de tentativas
de domesticação na teoria política (ALMEIDA, 2015, pp. 148-149).
Nesse contexto, aos países considerados emergentes, especialmente asiáticos, africanos e
latino-americanos, faltariam governos legítimos, eficientes e com autoridade para pôr em prática
propostas políticas consistentes e viáveis, além do principal problema: o déficit econômico. As
consequências do atraso dessas regiões seriam a falta de estabilidade política e a desordem,
devendo existir, como forma de viabilizar mudança no quadro, um equilíbrio entre demandas e sua
pronta capacidade de atendimento às mesmas, sob pena de se inviabilizar proposta política hábil
ao enfrentamento dos graves problemas sociais existentes. Resumindo: quanto menor o nível de
44
As exceções maiores são ainda Cuba, China e Coreia do Norte, que praticam uma espécie de capitalismo de
estado.
45
Caracterizaram uma série de mobilizações de massa ocorridas simultaneamente em mais de quinhentas cidades do
Brasil, contando com amplo apoio da população cuja pauta principal era o inconformismo com a corrupção e o modelo
político vigente.
40
46
A expressão foi utilizada inicialmente na Europa Ocidental, designando o período compreendido entre 1968 e o fim
dos anos 1970, na Alemanha, ou meados dos anos 1980, na França e na Itália, marcado por violência política, guerrilha
revolucionária armada e terrorismo de extrema-esquerda e de extrema-direita, bem como pelo endurecimento do
aparato repressivo dos países democráticos da Europa Ocidental. Na América Latina, o termo se relaciona ao período
autoritário imposto pelas ditaduras militares entre as décadas de sessenta e oitenta.
47
Os direitos fundamentais estão previstos no art. 5º. da CF/88.
48
Em 28 de junho de 1985, na Mensagem no 330, de 28 de junho de 1985, o Presidente José Sarney encaminha ao
Congresso a proposta de convocação da ANC, que culminará na CF/88.
41
liberais do Estado. Fica a ideia de que o desenvolvimento econômico só se torna viável valendo-se
de parceria entre Estado, mercado e sociedade. No Brasil, implementa-se ampla reforma do Estado
no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC)49, reforçando-se a agenda neoliberal em detrimento
de mudanças estruturais necessárias e aguardadas. O fenômeno pode ser observado em boa parte
da América Latina, desgastando a ascensão de propostas conservadoras e abrindo espaço para as
futuras vitórias do denominado campo progressista no continente.
Não se pode, portanto, imaginar a participação política como protagonista principal do
jogo democrático, pois tal circunstância representaria forte incongruência com a proposta para
complementar a democracia representativa. Todavia, a transformação das instituições
representativas, via mecanismos participativos efetivos, demanda imaginar novas formulações que
se coadunem com a participação social mais efetiva:
Difícil é imaginar novos prismas sobre participação, se isso não vier acompanhado de
mudanças estruturais no sistema representativo que sejam hábeis a reverter o quadro atual de
desinteresse pela participação. Há, pois, que se imaginar e pôr em prática projeto efetivo de
governabilidade democrático-representativa com o reforço da participação, de maneira a se
incrementar os direitos da cidadania com instrumentos democráticos viáveis, via aperfeiçoamento
e consolidação das accountabilities, nas esferas estatais. Para tanto, “o êxito da participação
societária está relacionado com a capacidade dos atores sociais transferirem práticas e informações
do nível societário para o nível administrativo” (SANTOS e AVRITZER, 2003, pp. 50-54). A
participação pode ainda ocorrer no campo das esferas não governamentais, sendo forte neste caso
o discurso de complementaridade, ou se dar diretamente nos instrumentos de formulação de
políticas públicas, fato que demanda mudanças nas instituições representativas (ALMEIDA, 2015,
49
1995/2002.
42
p. 114). A tarefa é difícil e requer gradual, ampla e crescente conscientização popular a fim de
trazer o indivíduo para participar e decidir diretamente sobre questões que lhe afetam.
Apesar dos obstáculos naturais ao reforço participativo, a teoria da participação fez grandes
avanços nos últimos anos, repercutindo nos procedimentos relativos ao estabelecimento e
realização de políticas públicas e das accountabilities. As pesquisas, se possível, devem
transcender a concepção normativa sobre participação e envolvimento da cidadania no processo
político, priorizando a análise sobre elementos vinculados à relação estabelecida entre Estado e
sociedade, de maneira a neutralizar a mitigação da relevância da participação no que tange a
possíveis resultados não esperados ou insatisfatórios advindos de políticas públicas nela baseados.
Não se pode admitir receituário único participativo para fazer frente às diversas demandas
existentes sobre a atuação da cidadania no Brasil. A participação deve influenciar a democracia
representativa para deslocar a política do exclusivamente institucional para uma maior abrangência
do político. Mais recentemente o ato de votar se reduziu quase que exclusivamente ao exercício da
soberania popular, demonstrando que, apesar da sua importância, não pode ser havido como único
elemento de manifestação cidadã:
instrumento essencial de pressão aos governos como forma de observar e atender as diversas
demandas sociais, buscando chamar a atenção não só dos representantes, mas de todos quanto à
importância de se fazerem presentes no espaço público em prol de conquistas e melhorias sociais
perenes: “a educação política através da participação em processos decisórios de interesse público
é importante em si, independente do resultado do processo” (BENEVIDES, 1994, p. 16). Ou seja,
quanto mais participação, mais engajamento contínuo da sociedade em práticas políticas essenciais
à democracia.
50
A citação se encontra em (HABERMAS, 2003) nas referências bibliográficas (p. 164).
45
51
A Teoria Crítica se origina na Alemanha da década de 1920, quando um grupo de pesquisadores de orientação
marxista fundou o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, designando gerações de filósofos e teóricos sociais
alemães na tradição marxista da Europa Ocidental conhecida como Escola de Frankfurt. Tal Escola defendia que uma
teoria é crítica uma vez que busca a "emancipação humana da escravidão", atua como uma "influência libertadora".
47
2003, p. 9). Um primeiro argumento seria de que a deliberação reforçaria a ordem existente sob a
justificativa de que suas premissas básicas ratificam processos opressivos, legitimando práticas e
procedimentos que contribuem para a manutenção do status quo vigente.
O deliberacionismo, com seus formalismos, esconderia relações de dominação,
reforçando-as. Uma segunda visão seria no sentido de que a deliberação se conformou ao
liberalismo e às instituições existentes, ou seja, a democracia deliberativa teria se acomodado às
configurações políticas atuais, colaborando para que fossem legitimadas. Apesar de Habermas
reconhecer o importante papel da sociedade civil, sua concepção de poder estaria embasada em
proposta conservadora ao reduzir a participação popular à formação da opinião pública,
compactuando com propostas liberais. Por último, a guinada empírica teria aproximado a
deliberação da teoria tradicional, adotando premissas e estratégias típicas desta, abdicando da
análise crítica para se tornar um elemento de descrição pura da realidade e limitando a realização
de outros tipos de pesquisas que não visam somente descrever o mundo, mas refletir, de maneira
crítica, sobre ele (MENDONÇA, 2013).
Outra questão é a possibilidade (ou não) da deliberação garantir o amplo e extenso debate
em países extensos e populosos, recaindo em modelos concretizáveis nos quais há forte redução
dos indivíduos envolvidos na busca pelo consenso. Limita-se o espaço do diálogo a fóruns já
existentes e devidamente estruturados para atender aos anseios daqueles que prevalecem por
diversas razões, dentre outras, a ascendência econômica e intelectual, além dos próprios servidores
públicos que defendem seus interesses nesses espaços de deliberação. Há também os grupos criados
nas redes sociais que, apesar de alguns terem influência na política atual, do ponto de vista da
democracia deliberativa, ficam muito aquém em termos de concretização efetiva de suas ideias e
propostas. O resultado é o desânimo, haja vista que o sucesso da deliberação pública importa no
grau em que os participantes “reconhecem que contribuíram e influenciaram o resultado final,
mesmo quando discordam dele” (BOHMAN, 1996, p. 33).
A deliberação requer o movimento em direção ao consenso racional, tentando minimizar
ou suprimir os elementos de conflito existentes, seja na opinião ou nos interesses dos participantes
(HABERMAS, 2003), acomodando diversos modelos de processos para se chegar a decisões finais,
desde que sejam produzidas e justificadas em um fórum deliberativo. O consenso não seria o mais
desejado, mas uma relação estabelecida pelo respeito comum, a partir do momento em que os seus
integrantes aceitam o valor presente nas intenções dos outros, além de desafiar suas opiniões com
48
base nos seus méritos. A ótica dos que participam não mudaria, mas seria alterada pelo processo
deliberativo, havendo uma mudança de percepção do outro partícipe, com o qual não se concorda.
A questão é como se chegar (ou quais são os principais elementos para se atingir)
resultados efetivos na deliberação? Que elementos são essenciais para legitimar um consenso que
seja produzido efetivamente pelo debate e manifestação de vontade daqueles dispostos a participar
do processo deliberativo? A garantia do amplo acesso e o reconhecimento da importância dos
atores envolvidos pode ser uma primeira pista. Ao depois, a viabilização da presença imparcial dos
envolvidos com a disponibilização de recursos materiais é essencial, consolidando não só a vontade
produzida, mas também o hábito de participar ativamente das deliberações. Por último, a colocação
em prática daquilo que foi objeto do consenso produzido, sem o qual todo o esforço e dedicação
para realizar a democracia deliberativa se esvaziaria.
O deliberacionismo (se não observar tais premissas) pode ser objeto de manipulação direta
por indivíduos com objetivos parciais, além de ocasionar óbices às mudanças estruturais
necessárias, descartando e desestimulando as pessoas envolvidas no procedimento. Esse pode se
dispersar de tal maneira que redundaria no reforço da discricionariedade daqueles que prevalecem
na escolha de decisões que a eles beneficiam diretamente. Destaca-se que, apesar dos diversos
problemas apontados, uma das importantes contribuições da deliberação é a retirada do foco da
legitimidade do poder (realizada exclusivamente por intermédio do voto na representação) para
outras instâncias participativas que agregarão elementos novos ao exercício da democracia,
reforçando a sua prática a partir do direto protagonismo político, via cidadão. Todavia, se as ações
voltadas para a efetividade deliberativa visarem outros objetivos que não a legitimidade
democrática, a deliberação pode assumir caráter extremamente conservador, preservando o status
quo, além de frear a ação política inovadora. Pode ainda se revestir de caráter negativo:
microcosmos políticos restritos e voltados para a formação de consensos parciais e dirigidos aos
interesses das minorias que predominam politicamente. A ideia original da deliberação enquanto
elemento viabilizador da participação política se transforma perigosamente em instrumento de
ratificação do modelo liberal, prejudicando as boas propostas originais, especialmente, a sua
capacidade de produzir decisões consistentes após todo processo que consome tempo, energia e
recursos cada vez mais escassos e caros. Pode acarretar ainda o retorno do indivíduo ao seu
histórico papel contemporâneo de ator coadjuvante do processo político-democrático e, pior, o
reforço do seu crescente ceticismo acerca das instituições democráticas.
O preconceito racial, cultural, econômico e de classe pode ser havido como limite imposto
a determinadas coletividades marginalizadas e tidas como inferiores ou despreparadas cultural ou
politicamente para se manifestar, devendo reunir determinadas aptidões previamente exigidas ou
imaginadas por aqueles que prevalecem politicamente. Os excluídos teriam menos condições de se
manifestar e de ver suas reivindicações atendidas pelos governantes. A teoria deliberativa
reivindica uma forma legítima de produção de decisões coletivas. A possibilidade de acesso às
discussões e aos debates não é suficiente para impedir que as minorias prevalentes concretizem
seus próprios interesses. Para os excluídos, a deliberação pode inclusive representar mais um
obstáculo uma vez que exige o uso de instrumentos que não dominam. A deliberação, não sendo
eficaz para colaborar na solução de problemas relevantes da democracia, corre o risco de se limitar
a ideal normativo futuro:
A democracia direta caracteriza prática política que se realiza, via consulta popular, a
determinados temas previamente veiculados, sem a intermediação de representantes (ressalvada a
iniciativa popular cujo projeto de lei é encaminhado ao Legislativo onde se decide pela aprovação
ou não), por meio dos seguintes MDDs: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Os MDDs seriam
um instrumento viabilizador da realização de decisões políticas dotadas de maior legitimidade face
à direta participação da cidadania no seu processo. O principal debate acerca da democracia direta
alude às vantagens especialmente para otimizar a qualidade democrática e desvantagens, porque
51
os MDDs poderiam tornar o arranjo político mais temerário, caro e vagaroso. As situações
apresentadas são extremas, mas podem delimitar (e mostrar) o dificultoso campo de análise em que
tais elementos diretos se situam com base na teoria elitista de que a população seria despreparada
para o exercício do poder direto no Estado.
Os MDDs representam um ótimo repertório de possibilidades para a geração de decisões
legítimas, porém dependem de efetiva institucionalização (não só jurídica, mas também política)
para melhor concretização dos resultados práticos que visa a produzir, destacando-se que a
conjuntura política e socioeconômica repercute diretamente na forma pela qual tais mecanismos
são devidamente utilizados ou não. Sobre a questão da participação mais aguda da cidadania na
democracia, defende-se o legítimo direito do indivíduo de participar, todavia tais direitos não
trazem no seu bojo níveis robustos de participação (DAHL, 1989). Da mesma forma, a participação
pode ser defendida sem, todavia, esclarecer a maneira pela qual ocorrerá concretamente, ou ainda
ser prestigiada do ponto de vista político-institucional, atendo-se, entretanto, aos órgãos estatais
como juízos, tribunais e parlamentos, deixando de dotar o cidadão (principal interessado) de poder
efetivo para manifestar sua vontade em questões diversas. O debate entre minimalistas e
maximalistas é central na análise da, respectivamente, menor ou maior participação do cidadão no
processo democrático:
Mesmo assim, podemos formular duas perguntas para ver até que ponto o
minimalismo e o maximalismo democrático estão refletidos na realidade.
Primeiro, até que ponto os próprios cidadãos são minimalistas ou maximalistas?
Os autores minimalistas partem do pressuposto de que o cidadão tem pouco
interesse (e competência) pela política e por isso nem quer uma participação mais
ampla. Por sua vez, os autores maximalistas argumentam que o cidadão tem (ou
deveria ter) interesse pela participação política (RAUSCHENBACH, 2014).
que boa parte da população deseja mais voz no processo político sem, entretanto, haver esforços
institucionais para concretizar tal expectativa.
A disputa que envolve maiorias e minorias é outro tema que merece análise.
Historicamente, os processos de democracia direta contribuíram para o fortalecimento da “tirania
da maioria ou da minoria”. Todavia, no âmbito da maioria, existe o quórum, que vai definir a taxa
de aprovação ou de participação na decisão da questão, funcionando como um anteparo a escolhas
prejudiciais às minorias. Quanto a essas, uma primeira justificativa alude à escolha racional (as
minorias poderiam encaminhar as votações para a defesa de sua agenda) ou, outro argumento, no
sentido de que os recursos financeiros poderiam contribuir para a compra de resultados em seu
favor. O segundo elemento é relevante, tendo em vista que as elites políticas e econômicas buscam
incessantemente obter resultados favoráveis aos seus pleitos e aspirações por intermédio da direta
atuação em centros de poder como o Legislativo (SOUZA, 2016). Apesar disso, a comprovação de
aprovação de propostas obtida via poder econômico é difícil, tendo em vista que ocorre em espaços
e situações onde há dificuldade de acesso e de produção de provas.
No plano institucional, a complementariedade da democracia direta objetiva dotar o
arranjo político, via MDDs, de mais legitimidade não somente política como normativa. Todavia,
conflitos de diversas ordens aparecerão nesse embate de forças no campo político. Haveria
mitigação de poderes dos representantes em relação aos representados, tendo em vista que aqueles
não exerceriam mais exclusiva e prioritariamente a produção normativa exclusiva (ALTMAN,
2011, p. 42). Por questões não só normativas, mas também práticas, a democracia representativa
seria o melhor regime dentre os possíveis (ALTMAN, 2011, p. 3). Todavia, as consultas populares
ratificam as ações dos representantes uma vez que aquilo que restou aprovado pelo Legislativo
passa a ter mais legitimidade. Além disso, os processos de democracia direta servem de potencial
norte para os representantes, permitindo aos eleitos a obtenção de vetores de direcionamento
político acerca das aspirações da cidadania. Em suma, não são somente conflitos que delimitam a
participação, via MDDs, no campo político, mas também a obtenção de sinais futuros sobre o que
a população deseja em termos de atuação dos representantes.
53
A aptidão (ou não) da cidadania acerca da participação direta é tema igualmente relevante
(BENEVIDES, 1994, p. 15), uma vez que invoca como óbice a participação do indivíduo em
decisões para as quais não estaria potencialmente preparado. Geralmente os cidadãos definem suas
escolhas a partir de estratégias similares tomadas tanto nas eleições quanto nas consultas populares,
conciliando as informações restritas com interesses individuais e aspectos ideológicos e tendendo
a escolher opções contra as mudanças se não dispõem de elementos e informações suficientes para
a tomada de decisões (BOWLER e DONOVAN, 1998). Questiona-se também se o cidadão não
poderia ser manipulado por populistas ou por minorias interessadas em determinados resultados,
não sendo possível, em determinadas circunstâncias, aferir se o que determinou a opção do cidadão
foram seus próprios interesses ou se foi direcionado a isso. Restarão dúvidas acerca das escolhas
52
Consulta por via da qual o cidadão do Reino Unido decidiu pela saída da Comunidade Europeia, em 2016.
53
Referendo em que o cidadão não aceitou as regras previamente acordadas sobre o destino dos integrantes das
FARCs, após a sua dissolução, em 2016.
54
das pessoas diretamente envolvidas nas consultas populares, ressaltando-se que tanto os interesses
individuais quanto a persuasão de minorias envolvidas na aprovação de pontos favoráveis a sua
agenda estarão presentes na decisão final sobre plebiscitos e referendos propostos.
Portanto, a conclusão de que o cidadão é despreparado para participar diretamente do jogo
democrático é indevida. Da mesma forma, não se pode afirmar que as pessoas são plenamente
preparadas para se posicionar sobre todas as questões propostas. O caminho pode ser a preparação
e educação da cidadania para exercer a democracia direta de maneira responsável, constante e
consciente. É essencial a criação de arranjo político-eleitoral que delimite regras confiáveis e
idôneas a serem utilizadas tanto nas eleições quanto nas consultas populares, além de legislação
que mitigue e impeça excessos e abusos nos certames eleitorais como, por exemplo, o
financiamento privado nessas ocasiões. A questão da obrigatoriedade da participação 54 divide
muito as opiniões, entendendo alguns serem fundamental como elemento pedagógico
(PATEMAN, 1992), enquanto outros sustentam certa coerção, tendo em vista que o regime político
é democrático, não combinando com a determinação compulsória para participar. Entretanto,
quanto mais prática participativa, mais envolvido estará o cidadão na democracia direta, possuindo,
pela prática política, mais capacidade a fim de se manifestar nas consultas populares.
A legitimidade democrática das decisões realizadas via MDDs é ratificada no processo
político-eleitoral. O resultado das consultas populares, no mínimo, representa barreiras escolhidas
pela cidadania contra investidas parlamentares que podem desconsiderá-las ou até rechaçá-las. O
maior número de pessoas habilitadas eleitoralmente para exercer o jogo político redunda em mais
respeito e acatamento (mesmo que de forma contrariada) ao estabelecido nas escolhas finais
obtidas. Ressalta-se que tal circunstância seria inviável no arranjo democrático genuinamente
representativo, tendo em vista que os representantes eleitos praticamente detêm carta branca para
exercer seu mandato de maneira individual, sem se ater aos reclamos daqueles que os elegem. A
legitimidade dos processos de democracia direta tornaria o arranjo mais complexo, porém
vincularia os representantes na concretização dos resultados produzidos, sob pena de
responsabilização legal.
Os MDDs detêm ainda capacidade para retificar erros de avaliação e execução de políticas
públicas, além de possibilitar uma eficiência política mais eficaz (BLUME, MÜLLER e VOIGT,
54
Os maiores de 18 até 70 anos devem obrigatoriamente participar do processo eleitoral por força do art. 14, § 1º. da
CF/88.
55
2009, p. 45), colaborando para o aprimoramento da situação macroeconômica de um país por meio
da utilização de mecanismos que podem reduzir as dívidas contraídas pelos Estados, além do
aperfeiçoamento da eficiência da administração pública (FELD e KIRCHGÄSSNER, 2001).
Altman (2011), todavia, discorda desse diagnóstico, entendendo que não há estudos empíricos
nesse sentido. De toda maneira, a contínua participação cidadã em questões estatais diversas, se
não corrige todas as mazelas estatais (o que seria impossível), tem o poder de fortalecer
pedagogicamente o perfil dos partícipes nos processos, além de ratificar e aprimorar
“accountabilities” enquanto freios à atuação e paradigmas de conduta dos representantes. A
participação, via MDDS, não tem o propósito de estabelecer uma democracia direta nos moldes
atenienses, mas colaborar também complementarmente para a consolidação de modelo
democrático-representativo no qual os eleitos continuam como atores políticos principais, porém
acompanhados de perto e fiscalizados efetivamente pelo poder popular a partir de consultas
pontuais e constantes. Quanto mais participação dos cidadãos, mais limites ao exercício dos
mandatos pelos representantes, sem o que, a apatia e alienação certamente predominarão.
Há pontos positivos na participação, porém o “engessamento parlamentar e executivo”
proveniente das consultas populares pode ser havido supostamente como desvantajoso, remetendo
a possível paralisia decisória no funcionamento dos poderes. Entretanto, as opções advindas dos
processos de democracia direta, apesar de diminuir em parte a atuação dos representantes eleitos,
desloca o centro gravitacional do poder para o povo, reforçando a legitimidade democrática, além
de incrementar a sua responsabilidade em termos de participação nas escolhas políticas. Ao invés
de se imaginar que os representantes tenham os seus poderes reduzidos, a abrangência das ações
políticas passa a ter o aval popular, objetivo último de uma país que se autointitula democrático.
Tal prerrogativa se transfere com toda a responsabilidade advinda das consultas diretas, reforçando
a democracia representativa no que tange à atuação dos eleitos, haja vista que os acertos (e
igualmente os erros) serão frutos de opões prévias da população:
55
CF/88, art. 14, § 12: Serão realizadas concomitantemente às eleições municipais as consultas populares sobre
questões locais aprovadas pelas Câmaras Municipais e encaminhadas à Justiça Eleitoral até 90 (noventa) dias antes da
data das eleições, observados os limites operacionais relativos ao número de quesitos (Dispositivo incluído pela
Emenda Constitucional nº 111, de 2021).
57
normativa que propicie condições e elementos para que funcionem adequadamente, atendendo aos
objetivos esperados:
1.6 Conclusão
O enfoque relacional no campo da participação política sinaliza que, para além da atuação
estratégica e pragmática dos atores sociais envolvidos e das condições exógenas à ação, é
necessário prestar atenção às naturais disputas pela legitimidade dos discursos proferidos e das
práticas políticas que delimitam o campo de atuação desses protagonistas localizados em diferentes
pontos e com interesses diversos, à capacidade dos atores sociais de produzir colaboração e
coalizões, às numerosas distinções presentes nos subsistemas de políticas no que tange à
instabilidade ou maior grau de institucionalização das regras a serem observadas pelos
participantes, e ao papel atribuído aos principais protagonistas da sociedade civil relativamente às
substanciais e necessárias mudanças institucionais a fim de se buscar e de se realizar a vontade
popular nas esferas estatais.
Apesar de termos vivenciado no passado recente um panorama voltado para a pluralização
e diversificação dos sentidos da participação, os últimos anos, todavia, foram de muitos obstáculos
e numerosas dificuldades para a sua realização. Apesar de historicamente as principais decisões
políticas serem geradas a partir de dentro da máquina estatal (sendo importantes e estratégicas em
termos de otimização da participação), bem-vindas são as sugestões de efetiva atuação política da
cidadania, que levem em conta e vão além da limitada atuação exclusiva no campo estatal:
profunda para – a partir da compreensão do passado e do presente – colaborar com propostas que
possibilitem a construção de um futuro mais democrático e pluralista tanto de longitude (suas
mudanças ao longo do tempo) quanto de latitude (a alternância dos atores e suas respectivas
vivências no campo democrático-participativo), devendo-se apostar e investir na combinação das
categorias, entre as quais se destacam a “noção de repertórios, encaixes, domínios de agência,
subsistemas, regimes, articulação sistêmica e representação, ao lado das variáveis que sempre
funcionaram como condicionantes ou fatores explicativos da participação” (ALMEIDA e
DOWBOR, 2019).
A abordagem teórica da participação, plasmada na crise da representação que
vivenciamos, sugere que o objetivo a se seguir é a defesa das liberdades públicas fundamentais
salvaguardadas minimamente pelo regime democrático que, apesar dos constantes e crescentes
ataques, insiste em existir e estar presente como um jardim que deve ser cuidado continuamente
sob pena de sucumbir. As transformações sociais pedem passagem o tempo todo e se realizarão
inexoravelmente. A diferença está nas sementes que fecundarão a terra. Se boas, os resultados
aparecerão certamente e favorecerão a todos indistintamente apesar das históricas resistências.
Senão, continuará tudo como está e, pior, sem perspectivas de melhoras a serem imaginadas e
vivenciadas pela grande maioria do povo que sofre muito em geral. Aí pode estar o embrião da
barbárie que ninguém deseja. Infelizmente só nos damos conta de algo precioso quando este se
esvai. Tomara que não seja o caso da nossa democracia que até aqui teima em subsistir. Finalmente,
destaca-se a importância de uma teoria da participação voltada para as questões primordiais que
nos afligem a partir das nossas especificidades políticas, sociais e econômicas. Tal elemento parece
central no avanço da ampliação da ideia de participação em uma perspectiva que priorize buscar
alternativas, propostas e soluções que permitam ao indivíduo se sentir ouvido e, sobretudo,
respeitado naquilo que envolve seus desejos e anseios presentes e futuros.
60
A ANC de 1987 foi instalada no CN, em Brasília, no dia 1º de fevereiro de 1987, fruto da
EC nº 26/85, tendo como objetivo produzir uma Constituição democrática para o Brasil, após vinte
e um anos de ditadura militar. Sua convocação se origina de compromisso pactuado na campanha
para presidente de Tancredo Neves (1910-1985), do MDB, primeiro presidente civil eleito pelo
voto indireto no CN após a ditadura. Tancredo Neves, todavia, faleceu antes de assumir o cargo,
cabendo a José Sarney (PFL), seu vice e político ligado aos militares durante o regime de exceção,
assumir o cargo e instalar a ANC.
Os trabalhos se iniciam em clima de euforia democrática, sendo grande a esperança e a
presença popular, representada especialmente por setores da sociedade civil, como organizações
sociais, sindicatos, igrejas e entidades de classes, dentre outros. Tal fato pode ser observado nos
trabalhos constituintes, onde há direta preocupação com a participação política e liberdades
públicas enquanto elementos essenciais à inclusão da cidadania no processo político e ao combate
à desigualdade social:
É a presença do povo! Aí é que está a questão da constituinte. Por que não se faz
isso com uma Emenda Constitucional? Ali era o povo nos corredores, era o povo
nas galerias e em todos os salões da Câmara dos Deputados e do Senado, telões
instalados para que todos pudessem assistir o que se passava e havia o Diário da
Constituinte, que o Dr. Ulysses criou. Então Brasília era uma ebulição de pessoas,
56
Professora Dra. Jacqueline Pitanguy (ANC - Ata da 7ª. Reunião de Audiência Pública - Subcomissão dos Direitos
Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias – 21/5/87 – p. 24).
61
Por demais importante. A intenção inicial não foi essa, mas de se ter um projeto
elaborado por uma comissão chamada de "Comissão de Notáveis" e esse projeto
seria promulgado pelo Congresso Nacional. Se tivéssemos seguido por este
caminho, certamente, o Brasil teria recebido uma constituição elaborada por uma
elite econômica e intelectual sem qualquer conexão com o desejo popular. Para
que você tenha ideia da dificuldade de leitura da vontade popular, a tal "Comissão
de Notáveis", presidida pelo Afonso Arinos, viveu de conflito em conflito até
deixar de existir. Mas, sem dúvida, a contribuição do Afonso Arinos seria
altamente relevante, como foi. Por isso, eu conduzi o processo eleitoral de 86, no
PFL do Estado do Rio de Janeiro, para termos o Afonso no Senado. E
conseguimos. O melhor processo de construção foi com a presença assídua de
todos os segmentos da sociedade brasileira. Os corredores, gabinetes e galerias
dos plenários e até mesmo os plenários, receberam gente de todos os lugares e de
todos os segmentos do Brasil. Por isso, foi possível se fazer a festa que fez Ulysses
Guimarães na promulgação da Constituição.58
57
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/2022 (Anexo
II da tese).
58
Constituinte Rubem Medina pelo PFL/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/2022 (Anexo
III da tese).
62
59
Constituinte Miro Teixeira pelo PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/2022
(Anexo II da tese).
60
Constituinte Ulysses Guimarães (Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no Diário da
ANC/DANC, de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382).
63
61
Constituinte Samir Achôa (PMDB/SP - ANC - Ata da 3ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos
Direitos Coletivos e Garantias, realizada em 22 de abril de 1987).
64
democrática, que imputará ao direito aspecto contestatório para instrumentalizar os anseios por
mais democracia participativa a partir da representação política:
Há uma imensa deformação na opinião pública quanto à forma como cada um dos
constituintes deve executar a sua missão. Mandei buscar um exemplar da
Constituição para ver exatamente o capítulo do Poder Legislativo, que trata das
competências do Senado e da Câmara, mas não especifica a forma como o
legislador, o representante do povo, que integra o Poder Legislativo, exerce as
suas atribuições. [...] compete ao Deputado e ao Senador a representação do
eleitorado do seu Estado no campo político. E essa representação se exerce de que
forma? No encaminhamento de proposições da comunidade ou de setores que
representa, na fiscalização dos atos do Poder Executivo. [...] o parlamentar tem
um papel de representação, um papel político e também de fiscalização, além da
função de legislador. Está é sua missão final, não a inicial. O início do trabalho
ocorre com a representação e com a fiscalização e se conclui com a legislação. É
até possível que não haja necessidade de legislar, se a legislação existente estiver
sendo aceita e funcionando.62
62
Constituinte Victor Faccioni (PDS/RS - ANC - Ata da 1ª Reunião extraordinária da Subcomissão do Poder
Legislativo, realizada em 21 de abril de 1987).
65
A fim de se buscar uma melhor compreensão sobre o papel do Direito enquanto elemento
central na instrumentalização da política no Estado, a democracia mobilizadora parte do
pressuposto de que o lugar escolhido para as verdadeiras emoções é toda sociedade, esquentando
a política (tanto a macro quanto a micro) e afrouxando os nós sobre os recursos fundamentais
necessários à construção da sociedade e de seus elementos essenciais: poder político, capital
econômico, arcabouço cultural e instituições. Tal tipo democrático inadmitiria o abandono ou
limitação do espaço da política, esforçando-se para abranger o máximo possível toda a sociedade
no processo político. A democracia mobilizadora caracteriza a inversão dos dois conjuntos de
técnicas institucionais que delimitam o status quo constitucional prevalente da democracia
contemporânea: a predileção por estruturas institucionais que reduzem a velocidade da política de
transformação por intermédio de oportunidades para a obrigatoriedade do consenso; e a adoção de
propostas que colocam a cidadania em nível de baixa intensidade de mobilização (UNGER, 2004,
pp.198-199):
63
Marco Maciel (PFL/PE – ANC – Subcomissão do Poder Executivo - Audiência do dia 21/4/1987. DANC –
Suplemento, 18/6/1987, p. 88-93).
64
Ex-governador de São Paulo Franco Montoro entre 1983 e 1986 (PSDB/SP - ANC - Audiência do dia 4/5/1987.
DANC – Suplemento, 24/6/1987, p. 108-112).
66
Mas, Sr. Presidente, sou daqueles que entendem que exercida essa participação,
apesar de indispensável, está de certa forma, sendo pela representatividade dos
Srs. constituintes uma vez que durante mais de ano, em campanha eleitoral, os
candidatos puderam auscultar as necessidades regionais, as reivindicações e os
reclamos de seus Estados e Municípios para poder trazê-los a título de sugestões
e subsídios para o bojo desta Subcomissão. Para concluir, Sr. Presidente,
considero louvável a intenção, mas, no meu modesto entendimento, no meu pálido
entender, esta intenção é absolutamente inviável, porque impraticável diante até
mesmo da realidade geográfica do nosso País.65
65
Constituinte Fábio Lucena (PMDB/AM - ANC - 2ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos
Coletivos e Garantias, em 14/04/1987).
66
Operário da construção civil. Fala em nome do Comitê Pró-Participação na Constituinte dos Movimentos Populares
de Minas Gerais.
67
Mas vamos chegar a um acordo porque, na verdade, o povo tem sido o grande
ausente, o Parlamentar se desvincula do eleitor depois de eleito. E um homem
como o constituinte Afonso Arinos, com a notável experiência e cultura que tem,
disse assim: “Não, Deputado, a nossa divergência é que V. Exª não está se
preocupando com a representatividade, mas apenas com a participação popular”.
Ele distinguiu assim a minha opinião. Na verdade. A nossa função é uma das
funções do poder popular, e não é a única e talvez nem seja a mais importante
atividade parlamentar. 68
Políticos ligados ao regime militar e pertencentes às direitas (PDS, PFL, PTB e parte do
PMDB, por exemplo) se colocariam de maneira mais favorável ao crescimento da representação
eletiva e consequente fortalecimento do Legislativo, ao passo que os políticos perseguidos,
cassados na ditadura militar ou das esquerdas (PT, PDT, PC do B e do PSB, exemplificativamente)
se alinhariam na defesa de ampla participação popular (VILAS BOAS, 2018, pp 249-250). A
legitimidade do Legislativo aparece no discurso de Amauri Temporal, que defende o modelo
representativo e o referido poder suficientes para aferir a vontade coletiva da nação:
67
ANC - Ata da 15ª Reunião Ordinária da Comissão de Sistematização, realizada em 1º de setembro de 1987.
68
ANC - Ata da 12ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, realizada em
13 de maio de 1987.
68
69
DANC (Suplemento) em 14/5/1987, pp. 31-45.
70
Constituinte Henrique Córdova (PDS/SC); DANC em 14/5/1987, p. 44.
71
Constituinte João Paulo (PT/MG); Ata da 3ª. Reunião Ordinária realizada em 22/4/1987, pp. 5-6.
69
tem configuração moral e política para ser o sujeito desse processo, para nele
intervir a todo instante, ou ficaremos dentro daqueles velhos conceitos liberais? 72
Já em outros temas afetos aos direitos sociais, como as áreas da saúde e da educação,
houve amplo consenso sobre a participação, até porque se tratava de incluir a participação de
segmentos organizados da sociedade (e não o cidadão comum), o que reúne tanto movimentos
sociais, quanto também o setor privado. Além disso, eram mecanismos pensados para operar dentro
da esfera do Executivo, destacando-se como fatores explicativos para as diferentes posições sobre
os legisladores a sua origem partidária e trajetória constituinte, por exemplo, a relação com os
movimentos sociais (VILAS BOAS, 2018, p. 255):
72
Constituinte Lisâneas Maciel (PDT/RJ); Subcomissão Poder Executivo (audiência pública em 24/6/1987 -
Suplemento. 82 p. 108); DANC em 24/6/1987, p. 26.
73
Constituinte Humberto Souto (PFL/MG); Subcomissão Poder Executivo (audiência pública em 25/6/1987 -
Suplemento 83 p. 76); DANC em 25/6/1987, p. 83.
70
Achamos que a escola pública também deve ser democratizada e que a sociedade
civil tenha o direito, por ser a educação um instrumento decisivo de participação
da cidadania e de desenvolvimento da pessoa. E que esta sociedade civil tenha
participação e controle na execução da política educacional e de mecanismo
através de organismos colegiados.76
74
Sra. Maria José dos Santos (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência pública 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 118
75
Constituinte Wladimir Palmeira (PT/RJ - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência pública
de 20/7/87 - Suplemento 99, p. 18); DANC em 20/7/1987, p. 93.
76
Sr. Hermes Zaneti (PMDB/RS - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência pública de
19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 226.
77
Constituinte Ubiratan Aguiar (PMDB/CE - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência
pública de 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 228.
71
A sociedade depositou muita esperança na ANC. O problema é que o papel do direito não
é solucionar problemas sociais graves. A intensificação da política visando a solução de graves
72
questões que afligem a coletividade deve vir acompanhada da auto-organização da sociedade civil,
possibilitando a construção e consolidação de instituições políticas consistentes garantidoras de
avanços e conquistas sociais na linha da chamada democracia mobilizadora (UNGER, 2004, p.
201):
Apesar dos esforços constituintes a fim de garantir participação mais efetiva, nesse embate
de forças entre os defensores do protagonismo cidadão e da representação legislativa, esta última
prevalece, apesar de ser possível visualizar na futura Carta constitucional vários elementos
delimitadores da democracia participativa, sendo tais considerações realizadas no próximo capítulo
da tese que vai tratar especificamente da participação institucionalizada na CF/88.
78
Miguel Reale Júnior na audiência pública do dia 5/5/1987 (DANC – Suplemento, 25/6/1987, p. 77-80).
79
A proposta da política enquanto ação onde os atores visam o entendimento, via consenso, ganha força no mundo
acadêmico com Habermas (2012), ao publicar a sua teoria da ação comunicativa.
80
Sr. João Bosco da Silva; DANC em 14/5/1987, p. 36.
74
81
Sr. Ministro Joaquim Francisco Cavalcanti (Subcomissão Poder Executivo - Audiência pública em 20/6/1987 -
Suplemento 81, p. 54): DANC, em 8/7/1987, p. 39.
82
Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa de Salvador/BA - Suplemento 90, p. 3 - Subcomissão do
Poder Legislativo - DANC em 8/7/1987, p. 30.
83
Subcomissão Poder Executivo (Audiência pública em 27/6/1987 - Suplemento 85, p. 24); DANC em 27/6/1987, pp.
35-36.
75
Eu não poderia fixar numa Constituição uma eleição para administradores das
cidades-satélites; entretanto, acho que atendi, ainda que no entender de V. Exa.
não suficientemente à sua proposição, ao definir no inciso I do art. 5º. sobre a Lei
Orgânica - por ser uma lei orgânica, ela contém normas materialmente
constitucionais - que ela estabeleça a descentralização administrativa do Distrito
Federal da forma que melhor lhe convier e na instância, a meu ver, mais adequada,
que seria a Assembleia Legislativa. Inclusive, instituindo nessas administrações
regionais - não precisam ser administrações regionais, podem ter outra
denominação – Conselhos Comunitários ou outros conselhos, em que se admitiria
a participação popular. Então – veja bem V. Exa. - estamos definindo desde já, e
acho até que avancei demais para atender à proposição de V. Exa., que essa lei
orgânica pode admitir a participação popular mediante a representação, que a
preocupação de V. Exa., quanto à participação popular na administração das
cidades satélites, está atendida, apenas creio, se V. Exa. me permite, que a
Constituição não deve ser um texto didático.85
Várias são as críticas à presença popular, via deliberação, nas esferas de poder. A proposta
deliberativa produz legitimamente decisões coletivas, mas despreza alguns prismas que prejudicam
seus resultados como, exemplificativamente, a ilusão de que a presença das pessoas nos debates é
suficiente para anular o amplo poder que detém os que predominam politicamente para fazer valer
as suas agendas. A democracia deliberativa não conseguiria solucionar os problemas da
democracia, colocando-se como norte normativo ideal a ser atingido futuramente sem, no entanto,
concretizar no presente mudanças estruturais necessárias à transformação democrática social.
Além disso, a via deliberativa seria utópica porque nortearia a luta pela transformação da
sociedade, se omitindo quanto ao entendimento e resolução de questões essenciais existentes.
Critica-se o apego da forma deliberativa a modelos meramente procedimentais, deixando de lado
84
Subcomissão do Poder Legislativo (Audiência pública - Suplemento 63, p. 61); DANC em 21/5/1987, p. 73.
85
Subcomissão Poder Executivo (Audiência pública 20/6/1987 - Suplemento 81, p. 54); DANC em 20/6/1987, pp. 31-
32.
76
muito da sua força crítica e renovadora, que se perdem diante da necessidade de se enfrentar
questões vitais como justiça, direitos, igualdade, dignidade e modelo social que atenda
racionalmente os anseios da coletividade como um todo. A partir dessas considerações, a teoria
deliberativa se caracteriza mais como um óbice do que um suporte para repensar a consolidação da
democracia, sendo inescapável a predominância da representação política (MIGUEL, 2014, pp. 93-
95):
A deliberação, sob o prisma liberal, preconiza o espaço político como busca por posições
que garantam a condição de acesso ao poder administrativo, ou seja, o procedimento de criação
política de opinião e vontade na esfera pública e no Legislativo é condicionado pela concorrência
de protagonistas coletivos que atuam estrategicamente para acessar ou consolidar posições de
poder. As vantagens obtidas são mensuradas pela concordância da cidadania com programas
políticos previamente definidos e a partir de votos recebidos por intermédio dos quais os eleitores
depositam as suas predileções. As decisões do voto são aquelas que franqueiam a possibilidade de
acessar as esferas de poder, que caracterizam o objetivo maior dos partidos políticos.
Já na perspectiva republicana, diferentemente da liberal, a consolidação política da
opinião e da vontade no espaço público e no Legislativo não se submete diretamente ao mercado,
mas a uma comunicação pública direcionada ao estabelecimento de consensos a partir dos debates
86
Sr. Amauri Temporal (DANC – Suplemento de 14/5/1987, p. 31-45).
77
e a modelo político voltado à prática de autodeterminação das pessoas envolvidas, via diálogo
(HABERMAS, 2018, p. 405). A deliberação voltada à concepção republicana, mais incisiva e
aberta à participação popular, se observa na defesa da descentralização de poderes como forma de
garantia de acesso dos indivíduos ao Estado, a fim de assegurar a manifestação de vontade e
decisões coletivas em uma perspectiva livre e democrática:
Então, creio que essas coisas poderiam permitir essa contribuição, com essas
observações tão interessantes, com essas ponderações muito judiciosas que foram
feitas por várias pessoas, inclusive com a participação popular que mencionei.
Têm que haver mecanismos com a participação popular nesses órgãos, sobretudo
no órgão que vai formular políticas. 90
87
CACEX é a Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil, órgão criado pela Lei nº. 2.145, de 29 dezembro de
1953 (regulamentada pelo Decreto nº. 34.893, de 5 de janeiro de 1954), em substituição à Carteira de Exportação e
Importação (CEXIM) do Banco do Brasil. Disponível em: <https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
tematico/carteira-de-comercio-exterior-do-banco-do-brasil-cacex> (FGV/CPDOC).
88
Sr. Franco Montoro (Subcomissão Poder Executivo – Audiência pública em 24/6/1987 - Suplemento 82, p. 108);
DANC em 24/6/1987, pp. 110-111.
89
Sr. Zaire Rezende (Audiência pública 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 3.
90
Sr. Diogo Lordello de Melo (Audiência pública 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 15.
78
Em relação à participação popular, sou francamente favorável, e não sei por que
algumas pessoas temem os ajuntamentos e as pressões populares sobre o
Congresso. A pior pressão sobre o Congresso é a subterrânea, e a clandestina, que
não se vê, que é exercitada sobretudo por grandes grupos econômicos
internacionais e nacionais, poderosíssimos, que se podem dar ao luxo de ter
representantes aqui dentro. No regime capitalista, sabemos que o lobby é
institucionalizado, mas no Brasil isso ainda não ocorreu, porque o lobby tem uma
fronteira em que se confunde com a corrupção. 91
91
Sr. Tarcísio Holanda (Subcomissão do Poder Legislativo – Audiência pública em 21/5/87 – suplemento 63, p. 61);
DANC em 21/5/1987, p. 72.
92
Sr. Evandro Paranaguá (Subcomissão do Poder Legislativo – Audiência pública em 21/5/87 – suplemento 63, p.
61); DANC em 21/5/1987, p. 23.
93
Ministro Francisco Joaquim Cavalcanti (Subcomissão Poder Executivo - Audiência pública em 20/6/1987 -
suplemento 81 p. 54); DANC em 20/6/1987, p. 39.
79
Acho que é muito importante, que é preciso que nós participemos, que é preciso
que seja aberto aos trabalhadores a possibilidade da participação nos diversos
organismos públicos, sociais etc. mas de uma forma bastante progressista e que
nós atinjamos um grau de aperfeiçoamento desta participação.95
94
Constituinte Márcio Lacerda (PMDB/MT - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência
pública em 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 59.
95
Sr. Redigio Todeschini (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 89.
96
Sr. Eleutério Neto (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC EM 19/7/1987, p. 110.
97
Sr. Hésio Cordeiro (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC EM 19/7/1987, p. 145.
81
A política nacional de saúde foi uma das estratégias de descentralização que mais obteve
ganhos, gerencial e administrativamente, e ainda relativamente às consequências do ingresso da
participação popular na sua etapa de planejamento, acompanhamento e fiscalização, destacando-
se que o acesso aos serviços de saúde não era um direito universal e, até a promulgação da CF/88,
o Brasil tinha um dos piores sistemas de saúde do mundo em desenvolvimento, centralizado e
bastante excludente, atendendo em geral os indivíduos que estavam no mercado formal de trabalho
(AVRITZER, 2009). A preocupação com a participação da comunidade na educação também
esteve presente nos debates constituintes:
98
Constituinte Eduardo Jorge (PT/SP - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em
19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 124.
99
Constituinte Ubiratan Aguiar (PMDB/CE - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública
em 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 228.
100
Constituinte Vladimir Palmeira (PT/RJ - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública
20/7/87 - Suplemento 99, p. 18); DANC em 20/7/1987, p. 93.
82
101
Professor Moacir Gadot (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 21/7/87 -
Suplemento 100, p. 24); DANC em 21/7/1987, p. 225.
102
Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos (audiência pública em 23/7/87 - Suplemento 102, p. 27);
DANC em 23/7/87; p. 103.
83
A outra questão para nós, também importante, é tornar clara a proposta de que o
orçamento da União, dos estados e dos municípios deve assumir a prestação de
serviços de saúde. O financiamento da saúde deve sair do orçamento. Enquanto
isso não for possível ainda deve ser usado o dinheiro da Previdência Social. Mas
deve-se fazer o possível para que esse dinheiro seja retirado do orçamento. E,
realmente, o dinheiro da Previdência Social seja encaminhado só para a parte de
seguridade social, de benefícios sociais.105
103
Sr. Tarcísio Holanda (6ª. Audiência - DANC - Suplemento de 21/5/1987, p. 61-77).
104
Constituinte Marco Maciel (PFL/PE - Audiência do dia 21/4/1987 – DANC – Suplemento de 18/6/1987, p. 88-
93).
105
Sra. Maria Luiza Jagger (DANC – Suplemento, 17/7/1987, p. 192).
84
imposto pela ditadura militar. Apesar das abordagens constituintes sobre a importância da presença
popular na escolha da destinação dos recursos existentes, tais propostas não se concretizam (apesar
de algumas exceções como Porto Alegre) a fim de proporcionar atuação deliberativa mais efetiva
da cidadania no encaminhamento de decisões coletivas, via orçamento participativo.
106
Entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt pelo constituinte Rubem Medina (PFL/RJ), em 28/4/2022 (anexo III
da tese).
107
Entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt pelo constituinte Vivaldo Barbosa (PDT/RJ), em 21/2/2022 (anexo I
da tese).
85
A participação popular na ANC foi fator decisivo porque havia uma correspondência
natural com o que os constituintes decidiam e ainda pela presença física de muita gente que se
deslocava pra Brasília com os ônibus fretados, por intermédio de cartas, de entidades e de diversas
outras maneiras, sendo a presença popular constante nos corredores do CN e nas salas de reuniões.
Tal clima levou ao debate de vários temas que envolveram diferentes setores, além da oportunidade
108
Constituinte Paulo Bisol (MDB/RS - Ata da 15ª reunião ordinária da Comissão de Sistematização, em 1/9/1987).
109
Constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ - Ata da reunião da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
Homem e da Mulher, em 26/5/87).
110
Sr. Ulysses Riedel de Resende; Subcomissão do Poder Legislativo: DANC (Suplemento de 14/5/1987, p. 31-45; p.
190).
87
das organizações sociais se manifestarem diretamente em relação aos constituintes, sendo essa
pressão importante na Constituinte e, consequentemente, no texto final da Constituição de 1988. 111
A democracia direta não representa elemento único para solucionar problemas diversos e
recorrentes em sociedades desiguais como a brasileira, havendo debates sobre a capacidade desta
em colaborar para maior qualidade do regime político democrático. A avaliação acerca da
democracia direta dependerá de como, onde, quem e de que maneira seus instrumentos serão
utilizados em um contexto político específico, que, no nosso caso, traz uma série de dificuldades
por diversas razões de ordem social, política e econômica. Destaca-se que se o país permite que
seus cidadãos utilizem os MDDs, este será mais democrático que aquele que não possibilita tal tipo
de uso político (ALTMAN, 2011, p. 41). A democracia direta foi utilizada continuamente ao longo
das últimas décadas, possibilitando um maior domínio da cidadania no sentido da escolha e
resolução de questões várias que lhe são afetas. Essa realidade esteve nas discussões que
envolveram o tema na ANC, demonstrando muita abertura em se aprofundar o seu uso no Brasil:
111
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese).
112
Sr. Ulysses Riedel de Resende; Subcomissão do Poder Legislativo (DANC. Suplemento de 14/5/1987, p. 31-45),
p. 190.
113
Sr. João Bosco da Silva; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias (Audiência Pública,
5ª reunião em 24/4/87 – DANC em 14/5/87, p. 34).
88
Estou convencido de que a justiça social só brota na medida em que houver maior
participação política. É a participação política no centro de decisão que empurra
para mudanças. É necessária a criação de mecanismos pelos quais se viabilize essa
participação nos centros de decisão. Esse sistema de governo a viabiliza. Esse e
outros mecanismos de fortalecimento do Legislativo, de participação política em
centros de decisão na vida econômica são formas de empurrar um sistema estável
para que ele aprenda a conviver com mudança, através da fixação da política
brasileira como programa, como plano.115
Para não tomar muito tempo, e se a tolerância do Presidente permitir, quero tocar
em alguns pontos selecionados. O primeiro deles seria a questão da democracia
representativa versus a participação popular direta. Quero crer que não devemos
colocar as coisas como conflitantes ou mutuamente excludentes. Temos que
entender como um fenômeno do mundo moderno, da sociedade moderna, a
necessidade da absorção e adoção de mecanismos de participação popular direta,
formas mais diretas de participação no bojo da democracia representativa, da qual,
evidentemente, não iremos fugir. Esta participação, entendo, que vai ocorrer
contra ou a favor do Poder Legislativo, e cabe a nós, que o defendemos, fazer com
que ela ocorra a favor, com que seja incorporada via Poder Legislativo. De outra
sorte, ela vai acontecer diretamente no âmbito do Poder Executivo, como foi aqui
muito bem exposto pelo Presidente da União dos Vereadores do Brasil, à revelia
e contra o Poder Legislativo, como fator do seu enfraquecimento, mediante a
conexão e a interface direta do Poder Executivo com as entidades intermediárias
da sociedade, driblando o Poder Legislativo. 116
114
Sr. Evandro Paranaguá; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias. Publicação no
DANC em 21/5/87, p. 73.
115
Sr. Miguel Reale Júnior; Subcomissão Poder Executivo (Audiência pública em 25/6/1987, Suplemento 83, p. 76),
p. 80.
116
Constituinte Jorge Hage (PMDB/BA - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias.
Publicação no DANC em 14/5/1987, p. 39.
89
e é isso que obriga aqueles que foram eleitos a terem os olhos voltados para os
eleitores; é aquilo que os obriga a se lembrarem, uma e muitas vezes, às vezes
durante o dia todo, de que eles são simples mandatários, não são dignitários, eles
não foram impostos, são representantes do povo e que é preciso, portanto,
governar, orientar, dirigir, segundo os sentimentos e as aspirações das grandes
massas de eleitores que os elevaram aos postos de direção do Estado.117
Em termos dominantes sim, essa é uma divisão natural, agora, não era apenas no
conjunto das esquerdas. Você veja que áreas depois que assumiram feições mais
conservadoras e liberais estavam do nosso lado, você veja que a figura de Mário
Covas, por exemplo, que foi o líder do PMDB na Constituinte, senador, ele foi
uma figura que boa parte do tempo, esteve do nosso lado. Ele mesmo dizia “não
sou de esquerda, mas sou um liberal”. Um liberal mais clássico, muito progressista
e muito consciente dos seus deveres, uma grande figura o Mário Covas, mas
depois ele, assim como o Franco Montoro, eles foram engolidos pelo
neoliberalismo do Fernando Henrique Cardoso, mas isso aí, enfim, isso acontece
na política, mas o Mário Covas teve muito tempo e em muitas oportunidades ele
esteve do nosso lado e não era de esquerda. Outras figuras também porque pra
gente conseguir vitórias ali e maiorias, votos ali de esquerda, nós tínhamos na
cabeça no máximo 120, esquerda nacionalista e progressista. Muita divisão, a
nossa votação era isso aí pros temas mais candentes. Era isso aí. Eram 120 o que
a gente tinha, mas tivemos muitas vitórias por maioria que eram mais de 300
constituintes, mas era o jogo da política. Política, às vezes, caminha pra um canto,
caminha pra outro, mas é a luta política ali é que vai empurrando as coisas. É o
que eu te afirmo aí, eu acho que a Constituição foi mais nossa do que deles. 119
117
Sr. João Amazonas; Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos (Audiência pública em 19/7/87 -
suplemento 98, p. 16), p. 24.
118
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt em 21/2/22 (Anexo I da
tese).
119
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese).
90
120
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/22 (Anexo II
da tese).
91
pela ANC nas instituições e nos centros de poder redundaram na CF/88, que aumentou
consideravelmente o poder de ação do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público nos
processos de decisão governamentais (SALLUM JR., 2003, p. 39):
121
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/22 (Anexo II
da tese).
122
Referência ao discurso do Professor Dalmo Dallari (Ata da 15ª Reunião Ordinária da Comissão de Sistematização,
realizada em 1º de setembro de 1987).
92
Pergunto a V. Exa. Vamos fazer um plebiscito para quê? A plebe, o povo irá
decidir o quê?125
Apoiei e apoio até hoje. Uma questão, contudo, se levanta. Qual o modelo ideal
de democracia? Eu diria que aquela que conseguisse que o Estado só tomasse
decisões deliberadas por todos. Mas, isso é possível, numa sociedade? No nosso
caso, seria possível convocar a população toda para deliberar sobre todas as
questões de interesse comum? Haverá quem diga que a tecnologia poderá nos
levar a isso. Então, outra coisa não faria a população a não ser deliberar e após um
imenso debate que levaria uma eternidade. Por isso, há sim que existir a
prerrogativa dos plebiscitos, referendos e iniciativas populares, mas para situações
excepcionais.126
Houve ainda muita preocupação acerca do perfil, da abrangência, do conteúdo e dos temas
que seriam veiculados por plebiscitos e referendos no texto final, destacando-se, dentre outros, a
possibilidade de previsão constitucional para a pena de morte; criação de novos estados-membros
e municípios, aborto, divórcio, eutanásia, referendo para aprovação do texto constitucional,
realização de obras públicas, reforma agrária, direito de greve, sistema financeiro e até construção
de indústrias:
123
Constituinte Bocayuva Cunha (PDT/RJ - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias.
DANC, em 14/5/87, p. 35).
124
Constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ - Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa de Salvador/BA,
em 5/5/87. DANC, em 8/7/1987 - Suplemento 90, p. 3), p. 22.
125
Constituinte Joaquim Haickel (PMDB/MA - Subcomissão do Poder Executivo - Audiência Pública em 30/4/1987.
DANC em 20/6/1987, Suplemento 81, p. 54), p. 17.
126
Constituinte Rubem Medina pelo PFL/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/22 (Anexo III
da tese).
127
A proposta para a Constituição de 1988 ser submetida a referendo popular não foi acolhida pela Constituinte,
estando o referido depoimento em “Audiências Públicas na Assembleia Nacional Constituinte. A Sociedade na
Tribuna”. Coleções especiais. Obras Comemorativas, nº 3. Centro de Documentação e Informação - Edições Câmara.
Brasília, 2009, p. 86.
93
Temos também outra proposta que é a de devolver aos estados, por sua vez, o
estabelecimento de condições mínimas para a criação de municípios. Trazer isso
para a União, como reação a alguns abusos que se praticaram, não se justifica. O
estado deve voltar a fazer isso, desde que haja um plebiscito da população
interessada, e também que o novo município seja obrigado a prestar determinados
serviços, sob pena de ser extinto.128
O plebiscito é para perguntar ao povo se ele quer ou não a pena de morte. Não se
pergunta ao povo se ele quer diretas já? Não se pergunta ao povo se ele quer
reforma agrária? Então, que se pergunte ao povo se ele quer ou não a pena de
morte, como quer e para que quer.130
128
Sr. Diogo Lordello de Mello; Subcomissão dos Municípios e Regiões. DANC (Suplemento) de 20/5/1987, p. 25.
129
Relator José Jorge (PFL/PE - Subcomissão do Poder Legislativo. Audiência Pública em 29/4/1987. DANC, em
20/5/1987, Suplemento 62 p. 67), p. 85.
130
Constituinte Amaral Netto (PDS/RJ); Subcomissão do Poder Executivo (Audiência Pública em 30/4/1987 – DANC
em 20/6/1987 - Suplemento 81, p. 54), p. 13.
131
Constituinte José Teixeira (PFL/MA); Audiência Pública em 5/5/1987 (DANC em 25/6/1987 - Suplemento 83, p.
76), p. 51.
132
Constituinte José Teixeira (PFL/MA); Audiência Pública em 5/5/1987 (DANC em 25/6/1987 - Suplemento 83, p.
76), p. 51.
94
Os temas em destaque são realmente importantes e de interesse de todos, mas parece que
a grande questão se reporta à maneira pela qual se daria a convocação de plebiscitos e de referendos
na futura CF. A previsão da legitimidade da cidadania para propositura de tais MDDs seria
fundamental do ponto de vista do aumento da participação direta. Isso porque, ao atribuir ao
indivíduo habilitado eleitoralmente o poder de veicular plebiscito e referendo regularmente e de
forma conjunta com eleições periódicas, reduzindo-se o custo da convocação, tal prática reforçaria
muito o exercício da democracia, além de contribuir para o aspecto pedagógico e inclusivo da
cidadania. No entanto, não foi isso que ocorreu:
Isso foi previsto como muito importante na Constituição embora, no final das
contas, o FH me derrotou no sentido de retirar a capacidade do presidente
determinar o poder de realização de plebiscitos e referendos. A emenda
presidencialista que prevaleceu é da minha autoria. Estava previsto no meu texto
a realização pelo presidente de plebiscitos e referendos. FHC conseguiu retirar
isso porque condenava o cesarismo, ok, César foi bom: era contra os juros,
favorável a habitação, distribuiu terra. Cesar é melhor do que quem o matou. Se é
cesarismo, é bom, mas perdi essa votação lá. Presidente tirou essa capacidade de
fazer, que ficou na mão do Congresso Nacional que não age nessa matéria. Veja
que os EUA têm essa vantagem com eleições casadas com plebiscitos e referendos
com muitas questões para que povo decida. Isso é necessidade que o Brasil tem
previsto, mas não realizado. É uma pena que a democracia brasileira não realizou
a questão do plebiscito e do referendo que são muito importantes. É uma coisa
que debati, consegui aprovar o texto da emenda, mas depois foram feitos
destaques e perdi.134
133
Constituinte José Genoíno (PT/SP); Audiência Pública em 6/5/1987 (DANC em 27/6/1987 Suplemento 85, p. 24),
p. 27.
134
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese). A CF/88, no seu art. 49, XV, todavia, atribuiu exclusivamente ao CN a prerrogativa de autorizar referendo e
convocar plebiscito. Essa questão voltará no terceiro capítulo da tese.
95
foi da ditadura militar. Penso que hoje há uma grande dificuldade desse debate se
tornar factível. Mesmo os debates sobre participação popular estão ameaçados. 135
135
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/22 (Anexo II
da tese).
96
organizar grupos com forte apoio a essas iniciativas porque normalmente são
iniciativas que se chocam com interesses de políticos mal intencionados. Então
aquelas medidas contra a corrupção que eu até apresentei alguma coisa. O
Ministério Público não estava conseguindo. Eu apresentei dizendo: “Olha, vocês
conseguiram que o projeto de vocês tramite com preferência”. É um projeto de
iniciativa popular. E conseguimos essas participações, os Conselhos Tutelares.
Isso daí dá muito prazer o que conseguimos. O fortalecimento das instituições,
como o Ministério Público e a Defensoria Pública, e a necessidade de consultas
populares, de licitações, de audiências públicas necessárias para fazer algumas
obras para defender o meio ambiente, então há realmente muita coisa que dá
prazer de você ver funcionar. A garantia das pessoas está na Constituição! 136
A iniciativa popular (que prevê o cidadão como legitimado ativo para propositura do
projeto de lei popular) traz como questão central a previsão de exigências consideráveis para sua
implementação, sendo basicamente três: percentual de eleitores para subscrição do projeto popular;
número mínimo de estados-membros envolvidos no encaminhamento do projeto e porcentagem de
indivíduos habilitados por ente federativo estadual. O projeto de lei popular, ao prever elementos
dificultosos, se prejudica uma vez que praticamente inviabiliza a cidadania de se lançar na
empreitada e atingir os objetivos almejados. Além disso, nada garante que o projeto seja aprovado,
destacando-se que, diferentemente do plebiscito e do referendo onde não há intermediários no
resultado final, no caso da iniciativa popular, há clara intermediação porque o projeto de lei é
encaminhado ao CN que o aprecia, podendo transformá-lo (inclusive com alterações) ou não em
lei.
Os discursos constituintes sobre iniciativa popular, na mesma linha de plebiscitos e de
referendos, são favoráveis à sua institucionalização, variando acerca dos três elementos essenciais
apontados:
136
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/2022 (Anexo
II da tese).
137
Constituinte Uldurico Pinto (PMDB/BA; audiência do dia 30/4/1987. DANC – Suplemento, 20/6/1987, p. 58-60).
97
Gostaria de ouvir a opinião dos senhores, com sua experiência e vivência neste
Congresso maior que a maioria de todos nós, sobre esses pontos, como também
no que se refere à participação, à iniciativa popular, que é outro aspecto que me
parece importante, não só pelo que mecanicamente produzirá, mas pelo que tem
de possibilidade de aproximação entre a democracia representativa, em crise, que
estamos analisando, e as formas mais diretas e participativas de democracia direta,
que podem estar sendo inauguradas agora, com essa série de iniciativas que muitos
de nós estamos tomando, como, por exemplo, permitir a iniciativa de leis por 50
mil eleitores, por entidades sindicais, possibilitar a participação no orçamento,
com propostas concretas de opções de investimento, conforme uma das propostas
que hoje apresentamos. 138
Entendo que são duas formas que devem coexistir. Uma, da participação
realmente direta da iniciativa popular, pelo seu caráter mobilizador,
conscientizador do próprio processo de coleta de cinquenta mil assinaturas, e a
outra, que já não responde a este objetivo de mobilização e conscientização, mas
que vai mais diretamente propiciar a entidades representativas intermediárias da
sociedade a intervenção direta no processo legislativo, mediante apresentação de
propostas. Entretanto isso deve ser feito com todo o cuidado, para evitar que se
desmoralize mais esta instituição no Brasil. Nesse sentido, uma das cautelas que
proponho em um dos parágrafos deste artigo consiste em estabelecermos um prazo
máximo de 180 dias, no qual a discussão e votação desses projetos de iniciativa
popular tenham obrigatoriamente de ser concluídos, contados da apresentação à
Mesa e interrompido a contagem apenas no recesso parlamentar. Decorrido esse
prazo, o projeto constará, obrigatoriamente, da ordem do dia da primeira sessão
ordinária, para votação e discussão.139
138
Constituinte Jorge Hage (PMDB/BA); Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias
(Audiência Pública – 5ª. reunião – 24/4/87 – publicação no DANC em 21/5/87 - Suplemento 63, p. 2), p. 71.
139
Constituinte Lúcio Alcântara (PFL/CE); Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias
(Audiência Pública – 5ª. reunião – 24/4/87 – publicação no DANC em 21/5/87 - Suplemento 63, p. 2), p. 41.
140
Constituinte Rubem Medina/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/2022 (Anexo III da
tese).
98
e dos titulares de cargos eletivos e ainda o veto popular, instrumento que possibilitaria ao povo
vetar projetos de lei, mesmo contra a vontade do Legislativo. Entretanto, isso não ocorreu. Não se
deu o passo adiante para avançar mais no reforço da via democrática direta, prevendo a CF/88
somente o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular:
Esta seria, sem dúvida, uma grande inovação, porque uma lei revogada pelo
Poder, se realmente houvesse uma manifestação contrária da opinião pública, e
tivéssemos a motivar essa manifestação contrária um número expressivo de
brasileiros, poderia esse referendo significar até a revogação daquilo que o poder
tem a revogar. Também contemplamos para a discussão a questão do plebiscito,
e também do defensor do povo, que, conforme podemos ver mais adiante, prevê
especificamente quando se estabeleceria esse instrumento, esse instituto.141
141
Constituinte Fausto Fernandes (PMDB/PA. Audiência Pública em 14/5/1987. DANC em 3/8/1987, Suplemento
114, p. 59), p. 95.
142
Constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ); Ata da 13ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos
Coletivos e Garantias, de 14 de maio de 1987.
99
2.4 Conclusão
A ANC foi um sonho que envolveu a todos indistintamente. Foi o momento da esperança
depois de passado o medo da ditadura militar. Apesar de numerosas melhorias proporcionadas pelo
novo texto constitucional, no geral, outras possíveis mudanças substanciais não foram encampadas.
A luta pela participação popular inicialmente na ANC tinha como objetivo principal garantir na
nova CF um rol de propostas vinculadas a políticas públicas que garantissem um considerável e
eficaz conjunto de direitos fundamentais, além da inserção de mecanismos diretos de democracia
participativa que possibilitassem a cooperação popular na busca por soluções para problemas que
afligiam o país. Tudo isso dependia de uma representação progressista no parlamento (FERREIRA,
2018, p. 117). Elegeu-se uma ANC em 1986 tendo por base a intransigente defesa do Plano
Cruzado criticado por Leonel Brizola (1987) que, logo, se mostrou incapaz de solucionar os
problemas nacionais com medidas, dentre outras, como o congelamento de preços para controlar a
galopante inflação de então.
O embate entre representação e participação logo se mostra secundário, mesmo porque o
contexto era outro. A democracia vencera, não havendo razões pra se imaginar que o CN tivesse
suas atribuições diminuídas pela presença popular na nova conjuntura política que se iniciava.
Apesar dos obstáculos enfrentados pela participação, esta cooperou para a formação consciente e
inclusão política de cidadãos habilitados para exercer o direito de voto, especialmente, no que tange
à relevância da atuação da ANC na confecção do futuro texto constitucional. Os meios criados para
a atuação efetiva da cidadania nos trabalhos constituintes foram o grande momento da ANC,
especialmente, pelas audiências públicas e emendas populares que garantiram a possibilidade do
povo se manifestar livremente, além de colaborar com projetos diversos com base em ideias e
desejos materializados em propostas a ser apreciadas pelos constituintes. Ali, literalmente, não
houve medo, mas só esperança de um trabalho legislativo que levasse a um país melhor e mais
justo. Sonhos não envelhecem.
100
143
CF/88, art. 49, XV.
144
CF/88, art. 61, parágrafo 2º.
101
145
CF/88, art. 61, parágrafo 2º: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de
projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados,
com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
102
qual ocorre o encaminhamento do projeto de lei aos membros do CN, que decidem se este se tornará
ou não lei.
A CF/88 adotou, além dos instrumentos diretos clássicos como o plebiscito, o referendo e
a iniciativa popular146, outros elementos importantes de democracia participativa que reforçam a
participação da cidadania nas esferas de poder: a participação dos trabalhadores e empregadores
nos colegiados dos órgãos públicos147; a eleição de um representante dos trabalhadores para
promover o entendimento com os empregadores148; a fiscalização das contas do Município pelo
contribuinte149; a possibilidade de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato
denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União 150; caráter
democrático e descentralizado da administração com participação dos trabalhadores, dos
empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados151 na seguridade social; gestão
democrática do ensino público152; a colaboração da comunidade para proteger o patrimônio cultural
brasileiro153 e relevantes ações constitucionais, dentre outras, como a ação popular 154, o mandado
146
CF/88, art. 14, I a III: A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com
valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III-iniciativa popular.
147
CF, art. 10: É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em
que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.
148
CF/88, art. 11: Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes
com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.
149
CF/88, art. 31, § 3º: As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer
contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
150
CF/88, art. 74, § 2º: Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da
lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.
151
CF/88, art. 194, VII: A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes
objetivos: VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com
participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
152
CF/88, art. 206, VI: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: gestão democrática do ensino
público, na forma da lei;
153
CF/88, art. 216, § 1º: O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
154
CF/88, art. 5º., LXXIII: qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus de
sucumbência;
103
155
CF/88, art. 5º., LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado
por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública
ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
156
CF/88, art. 5º., LXX: o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com
representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída
e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
157
CF/88, art. 5º., LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne
inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania
e à cidadania;
158
CF/88, art. 5º., § 1º. - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
159
CF/88, art. 62: Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias,
com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
104
de 1947160. O constituinte de 1988, ao incluir as MPs, criou, apesar da abusividade dos decretos-
leis no regime de exceção, ato normativo excepcional e célere, para situações de relevância e
urgência, visando a eficácia da prestação legislativa, sendo posteriormente, indevida e excessiva a
sua utilização pelos chefes do Executivo. O resultado foi a posterior regulamentação pela EC nº
32/01, cuja finalidade principal foi reduzir a considerável discricionariedade no uso das MPs,
trazendo uma série de limitações, além da vedação às reedições sucessivas (MORAES, 2013, p.
687). Precipuamente, cabe ao Executivo a administração, a gerência e a coordenação do governo
por intermédio da implementação de políticas e iniciativas voltadas para o atendimento dos
interesses públicos, não se configurando a normatização elemento originário ao seu exercício,
diferentemente do Legislativo ao qual o ato de legislar, por óbvio, se caracteriza como função
primordial e inerente ao referido poder.161 O Executivo, ao receber tal atribuição constitucional,
subtrai boa parte das prerrogativas do Legislativo e indiretamente do próprio cidadão na porque o
CN é a instituição responsável por representar e dar voz aos eleitores, caracterizando tal
circunstância atuação atípica e extraordinária que impacta diretamente na atuação dos poderes. 162
A previsão e o manejo dos decretos é outra circunstância anômala no que tange à
conformação e organização dos poderes no Brasil. O decreto regulamentar caracteriza ato por via
do qual o Presidente da República se manifesta, explicando ou esclarecendo o conteúdo de
determinada lei para fins de sua melhor aplicação163, todavia, introduziu-se, via EC nº 32/01, o
decreto autônomo164, onde o Chefe do Executivo passa a ter absoluta discricionariedade para
normatizar os casos previstos na CF/88. Apesar de boa parte da doutrina se posicionar no sentido
da impossibilidade da aceitação constitucional dos decretos (ou regulamentos) autônomos, “o STF
não desconhece essa realidade e admite, até mesmo, o controle por Ação Direta de
Inconstitucionalidade genérica, na hipótese de decreto autônomo revestido de indiscutível
160
Art. 77.
161
CF/88, art. 59: O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis
complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII -
resoluções.
162
CF/88, art. 2º: São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
163
CF/ 88, art. 84, IV: Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar
as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
164
CF/88, art. 84, VI: Compete privativamente ao Presidente da República: VI - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou
extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
105
conteúdo normativo”165 (LENZA, 2016, pp. 780-781). Tal situação, além de conferir excessiva
proeminência ao Executivo (que passa a poder legislar livremente nessas matérias), subtrai mais
uma vez e de maneira aguda as prerrogativas do Legislativo, ratificando sua condição de figura
secundária especialmente no que tange aos temas veiculados por decretos autônomos.
Questão relevante sobre as relações estabelecidas entre o Legislativo e o Judiciário sobre
participação é o Decreto nº 8.243/2014166, que instituiu a Política Nacional de Participação Social
(PNPS), tendo por objetivo o mapeamento de suas inovações, limites e potencialidades, a fim de
entender os desafios da efetividade da participação social no Brasil. O referido Decreto coloca
frente a frente o Executivo que o editou, e o Legislativo, onde foram feitas numerosas críticas
institucionais, voltando-se ao receio deste no sentido da perda de atribuições e, consequentemente,
do protagonismo da representação relativamente ao Executivo. É importante ressaltar que a sua
edição ocorre em momento de grave crise institucional, logo em seguida às manifestações de junho
de 2013167, que desestabilizaram consideravelmente o Governo Dilma que, naquele momento,
tentava responder à pauta dos manifestantes por meio do crescimento da participação e do acesso
popular ao Estado.
Alguns desdobramentos aguardados da participação se ligavam à questão da
democratização dos procedimentos de consecução de políticas públicas, à inclusão de setores
marginalizados e ao redimensionamento da distribuição de recursos para tais grupos, além da
melhoria das accountabilities (DAGNINO, 2002):
165
Nesse sentido foram alguns precedentes do STF: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.439/MS, DJU de
21/3/2002; ADI 2155-MC/PR; ADI 3673-MC, DJ de 3/3/2006; ADI-MC 309, DJ de 14/2/1992.
166
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/decreto/D8243.htm>.
167
As manifestações se iniciaram contra o aumento dos preços das passagens em São Paulo, revelando posteriormente
insatisfação geral da população contra a classe política, a corrupção e graves problemas relativos à saúde e à educação,
atingindo diretamente o Governo Dilma.
106
soando como medida paliativa de Dilma Rousseff a fim de garantir maior atuação democrática das
organizações sociais e da população em geral nas instâncias de poder, sendo uma tentativa de
resposta aos anseios de aprimoramento da participação (que começam no Governo Lula em 2003)
valendo-se de proposta de maior interação entre Estado e sociedade. Tudo isso ocorre em momento
anterior às eleições que ocorreriam no final de 2014, nas quais a presidente em exercício tentaria
se reeleger para novo mandato de quatro anos.
A questão é de grande relevância porque ajuda a mostrar a percepção dos representantes
das diversas correntes ideológicas no Legislativo acerca da utilização da participação, valendo
notar que se retoma a antiga dicotomia entre participação e representação que, embora haja
tentativas de superá-la, parece ainda sobreviver na visão dos representantes acerca da PNPS. Os
legisladores chegaram a dizer na época que a PNPS afrontava o Legislativo e fazia mudança de
regime por decreto (do representativo para a participação direta). Ainda nesse contexto, quando a
presidente Dilma Rousseff propôs a adoção de um plebiscito da reforma política, houve grande
rejeição do CN, muito preocupado em perder poderes diante do enfraquecimento político do
Executivo naquele momento (ALMEIDA, 2017):
nas decisões das esferas competentes pela política pública. Nessa área, pouco se conseguiu para se
entender as dinâmicas internas como, exemplificativamente, o aspecto volitivo governamental ou
a importância da força do associativismo dos diversos atores envolvidos. Os conflitos que
envolvem a PNPS revelam uma clivagem no entendimento do papel da participação na política,
demonstrando as discussões em torno da questão a forte tensão entre representação e participação.
Expressou-se no CN, em instante de grande polarização na luta por espaços políticos entre
Legislativo e Executivo, uma visão geral de que a PNPS confrontaria o parlamento (ALMEIDA,
2017).
Tal mudança não seria admitida por afronta direta a CF/88.168 A maneira pela qual o povo
participa do poder origina três espécies democráticas: direta, indireta ou representativa e
semidireta. A escolha chancelada na CF/88 se deu em relação à última. A suposta alteração, via
PNPS, do regime representativo para a participação direta não seria possível porque não se
admitiria tal mudança via decreto. Além disso, o regime político democrático e a separação de
poderes caracterizam cláusula pétrea169, pertencendo a rol de temas ou matérias que não admitem
alteração constitucional. Sendo assim, o regime político democrático instituído traz no seu bojo a
democracia indireta, via representantes eleitos, sendo inadmissível a interpretação no sentido da
possibilidade de instituição da PNPS por decreto ou mesmo por EC 170.
Outro elemento a ser destacado é a baixa atuação do povo no parlamento, diferentemente
do Executivo, “onde foram criados mecanismos como os conselhos de políticas públicas,
orçamentos participativos, conferências temáticas, dentre outros, no nível federal, estadual e
municipal” (QUINTÃO e CUNHA, 2018). No campo da participação institucionalizada pós CF/88,
aparecem exemplificativamente as Ouvidorias públicas enquanto organizações de participação,
que permitem ao cidadão que se insira no âmbito da administração pública, sendo a sua opinião
considerada nessas esferas decisórias de poder. A Ouvidoria tem por escopo efetivar princípios
168
Art. 1º., parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
169
CF, art. 60, § 4º: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos
Poderes;
170
CF/88, art. 60, § 2º: A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
108
Parece que a inspiração que levou à institucionalização das ouvidorias legislativas teve
como elemento principal a busca por maior credibilidade perante a sociedade, não se preocupando
com holofotes acerca da materialidade de seus atos em si. Todavia, a participação do cidadão no
processo é considerada irrelevante para os fins a que se destina. A função das ouvidorias é restrita
e desconhecida enquanto instrumento de participação e controle social no âmbito do processo
legislativo, sendo fundamental a alteração em seu desenho institucional para que sejam
efetivamente autônomas e democráticas do ponto de vista do acesso da cidadania aos seus meios
de atuação (QUINTÃO e CUNHA, 2018). O referido trabalho dá pistas sobre a falta de
preocupação e do descompromisso do Legislativo com a participação institucional, seja pelo
desprezo à reciprocidade no que tange a uma ação política mais próxima e acessível ao cidadão,
seja pela ausência de vontade para trazer o indivíduo para debates e decisões diversas, sem contar
171
CF/88, art. 37: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência...
109
a possibilidade de realização efetiva e possível de direitos fundamentais nas suas relações com a
sociedade civil.
O sistema de organização e funcionamento dos partidos políticos172 no sistema de governo
presidencialista por coalizão caracteriza outro elemento central da análise sobre participação
política e representação democrática. Aqueles contrários aos partidos políticos justificam o seu
descontentamento a partir das seguintes razões: a organização das agremiações partidárias não se
conforma à concepção democrática; sua estrutura interna é fundamentalmente autocrática e
oligárquica; os chefes partidários não são efetivamente escolhidos por seus membros, apesar da
aparência que envolve todo o procedimento, sendo designados por influência daqueles que
predominam politicamente; há natural tendência à consolidação de classe dirigente enfeixada em
si mesma e nos seus interesses, além de distanciada da militância; uma vez que os “caciques” se
elegem, a oligarquia partidária recrudesce, não realizando o propósito democrático almejado e, por
último, a crescente centralização arrefece a influência exercida pelos militantes sobre os dirigentes
políticos, aumentando a influência destes sobre aqueles (DUVERGER, 1957, pp. 448-449)173.
A consequência principal é o esvaziamento da possibilidade de uma atuação partidária
mais efetiva para fazer valer a vontade do eleitor por meio do programa escolhido nas eleições
gerais, fato que contribui para o reforço da descrença no regime político democrático (NOBRE,
2022, p. 26). No entanto, a relevância dos partidos políticos para a democracia é igualmente
reconhecida:
172
CF/88, art. 17: É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os
seguintes preceitos: I - caráter nacional; II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo
estrangeiros ou de subordinação a estes; III - prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV - funcionamento parlamentar
de acordo com a lei.
173
As teorias acerca do partido catch all e dos partidos cartel (essa já dos anos 2000) vão na mesma linha, atestando
essas práticas nas instituições partidárias mais contemporâneas.
110
A questão que se põe (e que foi muito invocada nas manifestações de 2013) é: os partidos
realmente representam os anseios dos eleitores e ainda são indispensáveis para o funcionamento
pleno da democracia? Difícil responder, mas parece que a resposta é positiva. A democracia
174
Art. 17, § 2º Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus
estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.
175
Constituinte Vivaldo Barbosa, do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese).
111
genuína é aquela mais real do ponto de vista da possibilidade efetiva de se fazer presente e de
prevalecer em termos de ideias e opiniões, se definindo pela liberdade para o povo em geral, não
se admitindo que se priorize exclusivamente a liberdade dos afortunados, mas a de todos, via
inclusão por intermédio da educação pública de qualidade, do exercício de trabalho digno e do
pleno exercício da cidadania com igualdade social e equilíbrio político. A tendência é que os
partidos políticos originem novas elites, que devolvam a ideia de representação seu real sentido de
fazer prevalecer a vontade e agenda daqueles que predominam, todavia, um regime político
desprovido de partidos políticos pode manter indefinidamente elites dirigentes por critérios vários
como o econômico, o intelectual e o político, permanecendo essencialmente conservador
(DUVERGER, 1957, pp. 450-452).
A EC nº 97/17 alterou o sistema de acesso aos recursos do fundo partidário, instituindo o
financiamento público de campanha176 que representa importante instrumento de regulação
econômica da atividade partidária e de democratização de acesso dos cidadãos aos cargos eletivos,
entretanto, como bem destacou Vivaldo Barbosa anteriormente, carecem o fundo partidário e o
fundo eleitoral de maior regulação e controle públicos, podendo a ausência de acompanhamento
do Estado relativamente à destinação desses recursos esvaziar institucionalmente a iniciativa, de
maneira a reforçar o ceticismo cidadão nos partidos políticos e, indiretamente, no próprio regime
democrático. A situação se reflete no número de partidos políticos existentes atualmente (trinta e
dois segundo o Tribunal Superior Eleitoral/TSE)177, os quais, na sua grande maioria, servem de
fachada para o atendimento dos interesses particulares de seus dirigentes, além de funcionarem
como partidos de aluguel, sendo cooptados pelas organizações partidárias maiores e mais
estruturadas:
176
Art. 17, § 3º. Somente terão direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma
da lei, os partidos políticos que alternativamente: I - obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo,
3% (três por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um
mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou II - tiverem elegido pelo menos quinze
Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação.
177
Disponível em: <https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-registrados-no-tse>.
112
178
Constituinte Rubem Medina pelo PFL/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/2022
(Anexo III da tese).
179
CF/88, art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo
político.
113
O orçamento caracteriza instrumento por via do qual, após aprovado pelo Poder
Legislativo, passa a vigorar como lei tendo como objetivo principal regular a atividade financeira
do Estado no campo das receitas e das despesas públicas180. A ideia de orçamento participativo é
possibilitar que os indivíduos atuem ativamente no procedimento e confecção da proposta
orçamentária do seu município, debatendo, concordando ou rechaçando iniciativas relativas à
aplicação de verbas públicas, tendo por objetivo principal garantir a participação da cidadania
especialmente no poder local, além do reforço das accountabilities sobre atos dos representantes
eleitos nas esferas governamentais. Apesar de sua relevância no que tange à ampliação da
democracia participativa, a CF/88 foi silente relativamente ao OP, optando (apesar de várias
manifestações favoráveis sobre o tema como demonstrado no capítulo anterior) por não trazer no
seu texto a sua previsão. Tal silêncio pode ser interpretado de duas maneiras: mero esquecimento
ou clara omissão para calar sobre a presença cidadã no poder. Esta parece mais plausível no
contexto histórico constitucional brasileiro.
O OP foi posto em prática inicialmente em Porto Alegre-RS, em 1989, pelo PT, passando
a incentivar várias maneiras de participação internacional. Define-se o OP como maneira de
participação que apresenta quatro elementos fundamentais: o direito de participação dos cidadãos
em assembleias regionais e temáticas com igual poder de deliberação sobre os serviços públicos;
as formas de participação local ocorrerão por intermédio das assembleias e de delegação, conforme
os conselhos municipais; as regras relativas a maneira pela qual se dá a deliberação são acertadas
pelos próprios componentes, com base na autorregulação soberana e a distribuição de recursos
públicos acontece por meio de fórmula técnica, variando de município para município, de maneira
a atender prioritariamente setores populares menos favorecidos. Há ainda quatro elementos
essenciais para que o OP possa existir: as categorias de vontade política, densidade associativa,
elementos do desenho institucional e capacidade administrativa e financeira para implantar a
proposta (AVRITZER, 2003, pp. 13-16).
Ocorrem, no entanto, dificuldades na conjugação desses elementos. Inicialmente, a
vontade política é algo que nem sempre está presente em circunstâncias que envolvem o exercício
da participação no campo político. A atuação estatal geralmente prescinde da consulta à população
pelo caráter autoritário que envolve as relações nas esferas governamentais. Além disso, a demora
180
CF/88, arts. 165 a 169.
114
devendo ser respeitadas: as características e diferenças locais; o envolvimento dos atores sociais
envolvidos; a conscientização da relevância da prática como forma de reforço da democracia
participativa; o aspecto pedagógico da medida sem o qual se perde consideravelmente o norte da
sua relevância política e, por último, o Estado por intermédio dos seus servidores públicos
responsáveis pelo acompanhamento, discussão, análise normativa e implementação das medidas
necessárias à conformação da vontade da sociedade local à questão financeira municipal, via OP.
A receita, que funcionava como parâmetro ao OP, deixou de corresponder ao total da arrecadação,
tendo o descaso com a prestação de contas gerado ceticismo acerca da maneira pela qual o OP foi
implementado. Governos descompromissados com a participação política ajudaram na extinção da
iniciativa muito elogiada, inclusive, pelo Banco Mundial, retornando-se à “antiga tradição
velhaca.”181 O resíduo institucional do OP contribui para tirar o foco principal de atores sociais
envolvidos, “concentrando sua atenção num conjunto de problemas muito limitados, em vez de
problemas mais importantes e abrangentes como, por exemplo, taxação redistributiva” (FUNG E
WRIGHT, 1999, p. 106), sendo importante, todavia, entender a sua prática para reforçá-la sob três
prismas:
181
Liberdade e participação – A terra é redonda, por Luiz Marques. Disponível em:
<https://aterraeredonda.com.br/liberdade-e-participacao/>.
117
maior do indivíduo no campo das decisões políticas financeiras. Some-se a isso o necessário
aperfeiçoamento da autonomia popular para enfrentar e romper com antigas e históricas práticas
conservadoras e clientelistas que repudiam o OP.
Outro importante mecanismo deliberativo são os Conselhos gestores de políticas públicas
enquanto espaços participativos, podendo ser tanto consultivos como deliberativos, sendo
compostos por representantes do poder público e da sociedade civil e tendo ainda como objetivo
interferir nas políticas públicas de determinada matéria, variando suas atribuições nos diversos
contextos (TEIXEIRA, SOUZA e LIMA, 2012, pp. 14-15). Na década de oitenta, os Conselhos
aparecem no cenário brasileiro, inscrevendo-se numa nova perspectiva política que virá com a
CF/88182 e a Lei Orgânica dos Municípios de 1990, por intermédio da conjugação de instrumentos
de participação direta com os modos existentes de participação:
182
CF/88, art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: III - participação da comunidade.
CF/88, art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da
seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: II -
participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das
ações em todos os níveis.CF/88, art. 212-A. X - a lei disporá, observadas as garantias estabelecidas nos incisos I, II,
III e IV do caput e no § 1º do art. 208 e as metas pertinentes do plano nacional de educação, nos termos previstos no
art. 214 desta Constituição, sobre: d) a transparência, o monitoramento, a fiscalização e o controle interno, externo e
social dos fundos referidos no inciso I do caput deste artigo, assegurada a criação, a autonomia, a manutenção e a
consolidação de conselhos de acompanhamento e controle social, admitida sua integração aos conselhos de educação;
CF/88, art. 216-A. § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas
diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: § 2º Constitui a estrutura
do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação: II - conselhos de política cultural;
118
Os conselhos não se caracterizam como órgãos independentes do Estado, mas como uma
proposta de modernização política, diante do arrefecimento das políticas públicas e escassez de
recursos, direcionando suas energias para legitimação da ordem vigente. Destaca-se que, apesar da
descentralização que envolve a sua atuação, os conselhos se colocam numa hierarquia
administrativa, na qual o poder público praticamente determina os recursos disponíveis e a estrutura
burocrática necessária, distinguindo-se pelas atribuições de controle e fiscalização do poder
instituído (ALMEIDA, 2006, p. 88). O aumento de conselhos no Brasil ocorreu como elemento
importante para a distribuição de recursos em setores como assistência social, educação e saúde,
havendo diferenças na maneira pela qual se dá o funcionamento desses espaços que mudam de
acordo com o tipo de institucionalização, com a forma de estruturação social, com a definição das
atribuições e dos objetivos do colegiado, com a delimitação da competência e das atribuições do
conselho (GOHN, 1990).
Os conselhos trazem ainda como elemento essencial a continuidade no tempo, havendo a
vontade de ser, no ato da criação, um espaço permanente e constante em seus encontros para
construção de políticas públicas. Os conselhos não são acessíveis à participação de qualquer
indivíduo nos debates, só podendo se manifestar e deliberar os representantes eleitos ou
expressamente indicados para tal. Tal perfil traz simultaneamente aspectos positivos e negativos.
A vantagem está na maior estabilidade das deliberações produzidas como também na de suas ações.
Todavia, a manifestação exclusiva dos representantes escolhidos, apesar de importante para filtrar
a participação dos eleitos, inviabiliza a participação de outros interessados no processo
deliberativo:
120
As atribuições dos conselhos são basicamente três: os objetivos estratégicos que visam a
produzir um projeto para a política, definindo seus princípios e seu encaminhamento, sendo
subdivididos em direcionamento, assessoria técnica, coordenação e articulação de atores e de
fomento à participação; há metas programáticas, relacionadas aos programas e projetos do
ministério ao qual estão ligados, sendo distribuídas em objetivos de planejamento, monitoramento
e avaliação e de controle e, finalmente, os objetivos operacionais, que são voltados a tarefas
corriqueiras do conselho, tais como a normatização, a orientação de diferentes públicos e o
julgamento de processos relacionados à política (TEIXEIRA, SOUZA e LIMA, 2012, p. 19). A
estrutura descrita tende a generalizar a atuação dos conselhos de maneira a se imaginar que estes
detêm forma única e homogênea de atuação nas diversas áreas. Tal impressão não corresponde à
realidade, devendo a ação ser analisada caso a caso e ainda de acordo com cada tipo de estrutura,
organização e particularidades que envolvem os conselhos, em termos de melhor entendimento das
deliberações lá produzidas:
183
Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos,
admitida 1 (uma) recondução, sendo: I - o Presidente do Supremo Tribunal Federal; II - um Ministro do Superior
Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; III - um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado
pelo respectivo tribunal; IV - um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; V -
121
Público (CNMP)184, que foram concebidos para funcionar como órgãos de controle externo do
Judiciário e do Ministério Público, respectivamente. Analisando-se a composição destes, observa
que tanto no CNJ (com quinze membros) quanto no CNMP (com catorze membros), só são
previstos dois cidadãos como membros, prejudicando a ideia inicial de se falar em controle externo
apesar da presença de dois advogados indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB). Ora, em ambos os casos, a quantidade de cidadãos (mesmo com notável saber
jurídico) é consideravelmente reduzida para uma efetiva participação nessas instâncias de poder.
Mesmo assim, em 2004, foi ajuizada a ADI nº 3.367 pela Associação dos Magistrados
Brasileiros, questionando a constitucionalidade do CNJ por violação aos artigos 2º 185. e 18186,
ambos da CF/88. Em 13/4/2005, o STF considerou constitucional o CNJ (e o CNMP também) com
o consequente julgamento de improcedência da ação, entendendo que a presença de não
magistrados não viola a cláusula pétrea da separação de poderes prevista no art. 60, § 4º., III da
CF/88187, apesar da reduzida presença de cidadãos que é inferior a vinte por cento (LENZA, 2016,
pp. 941-942). O aumento do número de cidadãos nas composições dos referidos Conselhos
propiciaria maior controle, fiscalização e reforço das accountabilities, garantindo à cidadania
maiores possibilidades de acompanhamento e de aferição das funções por estes exercidas. O
crescimento do número e a abrangência dos conselhos nacionais é realidade no Brasil,
um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; VI - um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo
Superior Tribunal de Justiça; VII - um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VIII - um juiz de
Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; IX - um juiz do trabalho, indicado pelo
Tribunal Superior do Trabalho; X - um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da
República; XI - um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os
nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; XII - dois advogados, indicados pelo Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; XIII - dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada,
indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
184
Art. 130-A. O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de
dois anos, admitida uma recondução, sendo: I - o Procurador-Geral da República, que o preside; II - quatro membros
do Ministério Público da União, assegurada a representação de cada uma de suas carreiras; III - três membros do
Ministério Público dos Estados; IV - dois juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior
Tribunal de Justiça; V - dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VI -
dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo
Senado Federal.
185
CF/88, art. 2º: São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
186
CF/88, art. 18: A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
187
CF/88, art. 60, § 4º: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos
Poderes;
122
demonstrando que sua utilização está em consonância com a prática democrática participativa em
diversas regiões:
188
Na CF/88, aparece o termo conferências no art. 216-A, § 2º: Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura,
nas respectivas esferas da Federação: III - conferências de cultura;
123
Nas conferências, a proposição é o objetivo mais frequente e buscado, mas não somente
isso, pois estas têm a finalidade também de agendar questões e temas a serem debatidos pelos
participantes. O clima que envolve não somente a realização dos conselhos, mas também das
conferências é de muita euforia e pluralismo democrático, envolvendo setores diversos da
sociedade civil organizada, especialmente minorias voltadas a obter mais participação nos espaços
de poder:
como agenda temas de seu nível e ali mandar ao órgão responsável. Nada garante o sucesso da
ação, pois há dependência em relação à vontade política para a realização do procedimento,
acabando exposta às vicissitudes da agenda e do encaminhamento dado pelo Executivo:
Outra questão ainda não resolvida nas inovações vistas neste ciclo de
conferências, em particular nas conferências livres e virtuais, é a impossibilidade
de eleição de representantes para etapas seguintes. As propostas formuladas e as
perspectivas presentes nestas modalidades de conferências podem se perder e não
ser consideradas nos momentos posteriores. Pensar em formas de escolha e
inclusão de representantes das conferências livres e virtuais em conferências
estaduais e nacionais talvez seja um passo necessário para a validação destas
etapas e para a integração processual que caracteriza as conferências. Isso porque,
ao inserir somente uma ideia, desconsiderando as pessoas que passam pelas
experiências relacionadas ao tema que a ideia envolve, o conteúdo pode se perder
no meio da luta política (YOUNG, 2006).
participativos nacionais às necessidades de públicos ali ausentes. Apesar de ocorrerem ações para
levar em consideração critérios de gênero, idade, raça e condição socioeconômica na composição
dos espaços, estas são limitadas a esferas cujos participantes frequentadores são de grupo social
específico, deixando-se de congregar a inclusão de diferentes perspectivas no debate político para
se reduzir praticamente à escuta de demandas e mediação de interesses (TEIXEIRA, SOUZA e
LIMA, 2012, p. 41). Tudo isso não prejudica ou afeta, contudo, a relevância das conferências
enquanto proposta importante de inserção deliberativa do cidadão nas instâncias de poder,
necessitando de ajustes e adaptações pontuais para a realização de tal desiderato.
189
Arts. 1º., I c/c 2º., § 1º., ambos da Lei nº 9.709/1998.
190
Arts. 1º., II c/c 2º., § 2º., ambos da Lei nº 9.709/1998.
191
Art. 3º. da Lei nº 9.709/1998: Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do
Poder Executivo, e no caso do § 3o do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados
mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas
do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.
126
depois se tomar ou não a decisão objeto da consulta, permanecendo o governante vinculado ao que
restou decidido. Diferentemente, no referendo, primeiro se produz o ato legislativo ou
administrativo, para somente depois, submetê-lo à deliberação cidadã, podendo esta concordar ou
não com a questão objeto da consulta. Outra diferença essencial alude à competência exclusiva do
CN que, no caso do plebiscito, o convoca, enquanto, no referendo, o autoriza192:
Ainda na vigência da CF/46, houve grave crise política desencadeada pela renúncia de
Jânio Quadros à Presidência da República em agosto de 1961. As Forças Armadas tentaram
deflagrar um golpe de estado confrontado pela vitoriosa “Campanha da Legalidade” 193
desencadeada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, que garantiu a posse de
João Goulart, em 7 de setembro de 1961, no CN, em uma conjuntura muito difícil e adversa. A
fórmula então encontrada pelo Legislativo para resolver o impasse e viabilizar a sua posse foi a
adoção do parlamentarismo com Tancredo Neves na condição de primeiro-ministro.
Após crescente desgaste do parlamentarismo por meio da sucessão de gabinetes que não
conseguiram dar sustentação política ao governo, convoca-se um plebiscito sobre a escolha do
sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo)194, que pode ser havido como referendo
pois foi solicitado depois de já instituído o parlamentarismo no Brasil. Realiza-se a consulta em 6
de janeiro de 1963, durante a gestão de João Goulart, tendo a maioria dos eleitores preferido
retornar ao sistema presidencialista. João Goulart assume definitivamente o poder com todas as
192
CF, art. 49: É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XV - autorizar referendo e convocar plebiscito.
193
A Campanha da Legalidade foi uma mobilização civil e militar em 1961 para assegurar a posse de João Goulart
como Presidente do Brasil, para derrubar o veto dos ministros das Forças Armadas à sucessão legal do presidente Jânio
Quadros, que tinha renunciado, ao então vice-presidente Goulart. Foi desencadeada e liderada pelo então governador
do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, aliado ao comandante do III Exército, general José Machado Lopes, que adere
ao movimento que resulta na negociação do parlamentarismo como novo sistema de governo do país e na posse de
João Goulart como presidente, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro.
194
A EC n.º 4/1961 à CF/1946 previa a possibilidade de lei complementar dispor sobre a realização de plebiscito que
decidiria sobre a manutenção do sistema parlamentarista ou presidencialista, determinando-se que, em 1965, seria
realizado um plebiscito que resolveria a continuidade ou não do parlamentarismo. A LC nº 2/1962 antecipou a consulta
popular para o dia 6/1/1963.
127
195
Os Decretos Legislativos (DL) nº 136 e 137, ambos de 2011 dispuseram sobre a convocação de plebiscitos para a
criação dos Estados-membros de Carajás e Tapajós, com o intuito de desmembrar o Pará. Por mais de 66% dos votos
válidos, as propostas foram rejeitadas pelo eleitorado.
196
CF/88, art. 2º ADCT: No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, por meio de plebiscito, a forma (república
ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no
País.
197
Convocou-se, via DL nº 900/09, referendo nesse sentido, tendo a maioria dos eleitores (56,87%) optado pelo retorno
do fuso horário antigo, de duas horas de diferença relativamente a Brasília.
198
O art. 35 da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) vedou a comercialização de armas de fogo e munição
no país, exceto nos casos previstos em lei, dependendo, todavia, conforme art. 35, § 1º. de aprovação, via referendo
autorizado pelo DL nº 780/2005, realizado em 23 de outubro de 2005.
128
Vale ressaltar que o CN é composto por elites distintas que se desdobram em diversos
setores como o econômico e o político. Por exemplo, desde o Congresso constituinte eleito em
1986, o empresariado passa a focar a arena legislativa. Tal participação se dá não só via
199
Sugere-se como parâmetro para a convocação pelo menos os requisitos da lei de iniciativa popular previsto no art.
61, § 2º. da CF/88: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei
subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não
menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
129
representação direta no Legislativo, dando continuidade a uma tendência histórica, mas também
pela via dos lobbies e do exercício de outras formas de influência que repercutem na participação
institucional (BOSCHI E DINIZ, 2000, p. 49):
No que se refere aos setores empresariais, sua ação assume diversas modalidades:
através de alto nível de abrangência, como as Confederações Nacionais da
Indústria, do Comércio e da Agricultura (Febraban); através de organizações
regionais e setoriais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp), a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), a Associação
Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), a Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea); e, finalmente, através de
empresas individuais, quer utilizando pessoal próprio ou contratando consultores,
como é o caso das grandes empreiteiras e empresas do ramo de comunicação
(BOSCHI e DINIZ, 2000, pp. 65-66).
200
CF/88, art. 14, § 12 da CF/88: Serão realizadas concomitantemente às eleições municipais as consultas populares
sobre questões locais aprovadas pelas Câmaras Municipais e encaminhadas à Justiça Eleitoral até 90 (noventa) dias
antes da data das eleições, observados os limites operacionais relativos ao número de quesitos.
130
voz ao cidadão, a incumbência de colocá-lo como ator principal no jogo político, podendo inclusive
tais consultas reverterem favoravelmente aos parlamentares eleitos com base em suas respectivas
agendas:
Uma análise mais aprofundada mostra que os efeitos dos processos de democracia
direta não vão em uma só direção. Por um lado, é claro que, uma vez que os
representantes eleitos não podem mais decidir sozinhos, o poder deles torna-se
mais limitado. Por outro lado, consultas populares provocam dois efeitos positivos
para os representantes: em primeiro lugar, mesmo em um regime que permite o
veto popular das decisões parlamentares, a grande maioria das decisões não é
vetada; por isso, todas as políticas não vetadas podem ser consideradas
implicitamente aprovadas pelos cidadãos. Em segundo lugar, as consultas
populares, que ocorrem mais regularmente que as eleições, fornecem aos
parlamentares orientações mais específicas sobre as preferências dos cidadãos que
resultados eleitorais. Assim, os eleitos podem posicionar-se de uma maneira mais
calibrada diante dos cidadãos. Isso aumenta suas chances de serem reeleitos
(RAUSCHENBACH, 2014, p. 7).
201
CF/88, arts. 61, § 2º da CF/88 c/c 13 da Lei nº 9.709/1998.
131
vez que a coloca como mais um projeto dentre outros a ser apreciado, debatido e votado pelo
Legislativo sem a garantia de sucesso na sua transformação em lei. Diferentemente do plebiscito e
do referendo onde a participação do cidadão se dá de maneira direta e sem intermediários no que
tange às questões postas, no caso da iniciativa popular, observa-se que, após inúmeros esforços no
sentido de angariar assinaturas conforme a determinação constitucional, o projeto pode ser alterado
pelos representantes eleitos no CN e, pior, até arquivado, ocorrendo a intermediação legislativa
(ALTMAN, 2011). Tal circunstância prejudica o caráter direto e originário do projeto popular, no
entanto, a situação não prejudica o valor da iniciativa popular como elemento político relevante do
ponto de vista democrático para fazer valer a vontade da cidadania nas esferas de poder.
Os dificultosos requisitos previstos na legislação, tanto do ponto de vista procedimental
como numérico colocam a iniciativa popular quase como um “instituto decorativo” (FERREIRA
FILHO, 1995, p. 203). Prova disso é que somente existem quatro projetos de lei de iniciativa
popular aprovados na vigência da CF/88: o primeiro originou a Lei nº 8.930/94, conhecido como
“Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez”, em razão do assassinato de sua filha, que reuniu mais
de 1 milhão e 300 mil assinaturas, culminando com a modificação da Lei de Crimes Hediondos,
tornando-a mais gravosa e dura para os que incidem nas condutas ilícitas lá previstas. O segundo
foi a Lei nº 9.840/99 conhecido como “captação de sufrágio”, objetivando capacitar a Justiça
Eleitoral para que coibisse com mais eficiência o crime de compra de votos dos eleitores. O terceiro
ocasionou a Lei nº 11.124/2005 conhecida como “fundo nacional para moradia popular”, dispondo
sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), além de criar o Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e de instituir o Conselho Gestor do FNHIS. A
quarta e última foi a LC nº 135/2010, denominada “Ficha Limpa”. A referida Lei reuniu
aproximadamente cerca de um milhão e seiscentas mil assinaturas para reforçar a idoneidade dos
candidatos, tornando inelegível por oito anos aquele que tiver o mandato cassado, renunciar para
evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado, ainda que haja a possibilidade
de interposição de recursos sem trânsito em julgado da decisão (LENZA, 2016, pp. 677-679):
Essa realidade, que demonstra a pouca participação popular nos projetos de lei,
vem sendo, entretanto, discutida no Congresso Nacional, e há vários projetos no
sentido de facilitar e viabilizar a democracia participativa, como a PEC n.º 2/99,
que diminui o percentual das assinaturas para 0,5% do eleitorado nacional, o PL
4.764/2009, que admite a assinatura digital (eletrônica) para o envio das
132
Há, portanto, baixa utilização da iniciativa popular, primeiro porque os requisitos para sua
deflagração são consideravelmente difíceis de se concretizar, sem contar que, mesmo depois de sua
realização, nada obsta que o CN arquive ou altere o projeto substancialmente, revelando
dificultosos óbices àqueles que investiram tempo na empreitada com reduzidas chances de
transformar o projeto em lei. Devem, portanto, os elementos exigidos constitucionalmente ser
repensados, tornando-os menos gravosos para que a IP se torne mais ágil e, sobretudo, viável.
Todavia, apesar das dificuldades, a iniciativa popular pode pressionar e servir de estímulo para que
o Legislativo priorize as matérias encaminhadas, transformando-as em regras jurídicas
originalmente desejadas pela sociedade.
No processo legislativo vigente, o poder de iniciativa de leis é atribuído a vários órgãos,
cabendo a iniciativa das leis complementares e ordinárias a qualquer membro ou Comissão da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República,
ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos
cidadãos, na forma e nos casos nela previstos202. A atribuição de apresentação de propostas
legislativas é havida simultaneamente como um poder/competência constitucional e ainda como
um direito político fundamental. Se for utilizada pelos representantes eleitos, ressalta o
poder/competência. Em contrapartida, se deflagrada pela cidadania para provocar o Legislativo,
predomina o direito político. O poder de iniciativa legislativa caracteriza relevante instrumento,
tendo em vista que o ato de legislar e de normatizar pode ser havido como efetivamente de
governar, demonstrando que a pulverização da capacidade de propositura de leis a diferentes atores
políticos ratifica a via democrática. A participação popular no processo de criação de leis representa
eficiente mecanismo de consolidação democrática na medida em que o cidadão sugere e
praticamente define uma agenda ao CN (PEREIRA, 2016, pp. 1726-1727). Nesse sentido, “a
iniciativa das leis funciona como instrumento de atuação do programa político ideológico”
(SILVA, 1985, p. 124):
202
CF/88, art. 61.
133
A CF/88 não atribuiu ao cidadão, porém, a prerrogativa para propor EC203, legitimando-
se apenas alguns órgãos específicos, além da IP somente poder ser veiculada para a elaboração de
leis ordinárias e complementares. Para se admitir que o cidadão proponha projeto de EC para
alteração da Constituição, seria necessária a mudança das regras do texto constitucional de maneira
a permitir que o eleitor pudesse propor projeto de iniciativa popular para emendá-la, incluindo
novas regras ou revogando as já existentes. O impedimento do cidadão para propor EC a fimde
alterar a CF/88 ratifica a sua suposta incapacidade de participar diretamente das decisões políticas
essenciais, o que não se pode admitir, devendo, portanto, haver previsão da possibilidade de
iniciativa popular conforme seus requisitos constitucionais para as emendas constitucionais
(SILVA, 2011, p. 64). Se, por óbvio, a sociedade é dinâmica e muda todo o tempo, o poder popular
é essencial para contribuir com as necessárias adaptações do texto constitucional às novas e
numerosas demandas sociais.
O STF admitiu que as Constituições estaduais tragam a previsão de iniciativa popular para
a propositura de emendas aos seus textos, tendo, portanto, alguns Estados-membros a autorização
judicial para alterar suas respectivas Cartas nesse sentido (CROCETTA, 2020, p. 52).204 A referida
decisão é importante e deve servir de inspiração ao CN para alterar as regras também no plano
federal. Parece, todavia, que esse passo institucional para legitimar o cidadão a ser parte ativa no
processo de alteração do texto constitucional dificilmente será dado, o que ratifica a opção
institucional de deixar o indivíduo como ator secundário no processo de alteração de normas
constitucionais.
Quanto aos requisitos para a inicialização do procedimento de iniciativa popular, três
pontos devem ser considerados: número de assinaturas, maneira de apresentação do projeto e
critérios de aferição da validade das assinaturas. A CF/88, ao prever a forma pela qual a iniciativa
popular pode ser oferecida, carregou exageradamente na exigência numérica, fazendo com que seu
uso seja praticamente a exceção, e não a regra. Outro requisito dificultoso é a necessidade de
203
CF, art. 60: A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da
Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias
Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
204
ADI 825/AP foi julgada no STF, tendo como Relator Ministro Alexandre de Moraes, em 25/10/2018. Os Estados-
membros que permitem emendas em Constituições estaduais por intermédio de projeto de lei de iniciativa popular são:
Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.
134
distribuição territorial que ocasiona óbices consideráveis no que tange ao custo do recolhimento de
assinaturas, bem como da posterior checagem de todos os elementos exigidos.
A exigência geográfica de que os adeptos da iniciativa popular estejam pulverizados em
no mínimo cinco Estados-membros, com adesão de, pelo menos, 0,3% (três décimos por cento)
dos eleitores de cada um deles, além da burocracia que envolve a aferição dos subscritores da IP
praticamente inviabiliza o projeto popular. As dificuldades relativas à exigência de assinaturas em
diferentes e distantes lugares contribui para o desestímulo à iniciativa popular, sem contar o alto
valor econômico envolvido. Além disso, a influência do poder econômico e o abuso do poder
financeiro nas campanhas devem ser levados em consideração, sendo fundamental a existência de
elementos de aferição e de controle do procedimento democrático com o intuito de salvaguardá-lo
da investida natural desses grupos de interesses antagônicos aos temas veiculados na IP (PEREIRA,
2016, pp. 1735-1746).
O incremento da participação, o pluralismo político e o respeito à igualdade e às liberdades
públicas contribuem para a formação do espaço público democrático, ressaltando que o
amadurecimento político, a posição consciente e livre no processo de participação nos debates e
nas deliberações pela sociedade organizada e na reconstrução do espaço público implicam na
existência de uma cidadania consciente, engajada e condizente com um país que visa melhorias e
avanços sociais não somente no presente, mas ainda em termos futuros:
O ceticismo (tanto interno quanto externo) da população acerca das instituições políticas
repercute negativamente nos poderes da República (especialmente no Legislativo), no regime
político democrático e no próprio Estado enquanto ente responsável pela sua proteção e sua
garantia. No caminho da construção de uma sociedade, em nível global, participativa e
democrática, existirá sempre o histórico embate entre forças favoráveis a mais participação
democrática e aquelas, conservadoras, que insistem em não aceitar ou admitir que a vontade
135
popular seja efetivamente considerada como maneira de se realizar os principais objetivos previstos
na CF/88205:
A Constituição não pode ser considerada como o único instrumento de viabilização dessas
mudanças. Idem relativamente ao Legislativo dominado majoritariamente por forças
conservadoras. Nesse cenário adverso, o papel central está a cargo da sociedade civil organizada
enquanto protagonista principal das transformações sociais, destacando-se que, no caso de crise
política e institucional, os MDDs podem funcionar ainda como meios de garantia e irradiação da
energia democrática, prevenindo desnecessárias e indesejadas rupturas que só contribuem para o
retrocesso do processo democrático, além de consolidar o pluralismo político porque a ampliação
dos legitimados para sua propositura com a redução considerável dos óbices normativos existentes
contribuiria para o reforço e prestígio da CF/88.
3.4 Conclusão
205
CF, art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
206
CF/88, arts. 5º. a 17.
207
CF/88, art. 7º.
136
208
CF/88, arts. 215 e 216.
209
CF/88, art. 225.
210
CF/88, art. 5º., LXVIII.
211
CF/88, art. 5º., LXIX.
212
CF/88, art. 5º., LXX.
213
CF/88, art. 5º., LXXI.
214
CF/88, art. 5º., LXXII.
215
CF/88, art. 5º., LXXIII.
216
CF/88; art. 60, § 4º, II.
217
CF/88; art. 14, parágrafo 1º., II, “a”.
218
CF/88; art. 17.
219
CF/88; 5º., IV.
220
CF/88; 5º., XVII a XXI.
221
CF/88; 5º., XXXIII e XXXIV.
222
CF/88, art. 8º., VI.
223
CF/88, art. 37, parágrafo 3º.
224
CF/88, art. 187.
137
225
CF/88, art. 194, parágrafo Único, VII.
226
CF/88, art. 198, III.
227
Roberto Mangabeira Unger, em entrevista concedida a Carlos Sávio G. Teixeira, em 22/5/22. Disponível em:
<https://youtu.be/7G-rcNVo7z8>.
138
O CN tem sido alvo de numerosas críticas além de ser constantemente mal utilizado do
ponto de vista político e institucional, todavia o seu valor e capacidade política são
reconhecidamente relevantes e estratégicos, sendo necessários esforços contínuos para aprimorá-
lo como instituição central no Estado democrático. O maior desafio das democracias
contemporâneas está em reverter os enormes níveis de ceticismo político relativamente ao
Legislativo e aos partidos políticos com suas propostas e programas de governo escolhidos pela
população, impactando diretamente na maneira pela qual os indivíduos acreditam nas liberdades
públicas fundamentais como prerrogativas necessárias à vida em sociedade.
O quadro geral não é favorável à participação democrática que, mesmo assim, insiste em
se fazer presente e respirar, especialmente após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para
Presidente da República, em 2022. Apesar das críticas, os mecanismos diretos e indiretos são
essenciais e devem ser aperfeiçoados a partir da estrutura e perfil atuais. A sua simples inclusão
política pode ser considerada uma vitória, mas ainda existe um enorme caminho a ser trilhado para
viabilizá-los como instrumentos efetivos de realização da democracia participativa não como
simples elementos despidos de praticidade política no campo institucional, mas como mecanismos
democráticos hábeis a fazer frente aos constantes desafios sociais presentes e futuros.
139
CONCLUSÕES
A democracia está em crise. Seus reflexos se projetam não somente no Brasil, mas também
e especialmente no mundo ocidental, colocando em xeque a figura do próprio Estado democrático
enquanto ente central responsável pela proteção e atendimento dos crescentes anseios da sociedade.
Tal circunstância pode reduzir consideravelmente no imaginário popular a percepção de ser este
fundamental e insubstituível para o enfrentamento de problemas sociais diversos. Iniciativas
participativas diretas e indiretas podem dotar a cidadania de instrumentos eficazes no
enfrentamento de numerosas questões, complementando o exercício da representação democrática,
além de impactar positivamente no exercício dos mandatos conferidos aos representantes eleitos
pelo sufrágio popular.
Nesse contexto, uma teoria (aliada à prática imaginada) participativa em consonância com
a democracia praticada no exterior e voltada para as peculiaridades brasileiras, pode contribuir para
o aperfeiçoamento da via democrática, estabelecendo, com base em seu uso contínuo e qualitativo,
limites contra arbitrariedades, sem contar a relevância de seu papel fundamental na conscientização
política e inclusiva da cidadania na defesa do ideal democrático como elemento central do Estado.
A democracia participativa plasmada nas perspectivas deliberativas e diretas não assegura
melhor democracia que a representativa, não tendo como objetivo a sua substituição no campo
institucional, mas sua complementação para prestigiar as escolhas da cidadania como norte de
atuação dos representantes eleitos. A democracia representativa é o regime político principal a ser
praticado no Estado, ocorrendo o seu reforço por meio de elementos de democracia direta ou
participativa. Desta maneira, não cabe a substituição daquela por esta, mas sim o fortalecimento
gradativo das instituições representativas por elementos de democracia direta, tendo como provável
resultado a democracia mudancista ou de alta energia, que é a manifestação institucional da ideia
de imaginação (traduzida em instituições), cuja tarefa é realizar o trabalho da crise sem crise 228.
O presidencialismo plebiscitário aparece como via para a reconfiguração da democracia a
partir da instituição de dispositivos que a tornem mais dinâmica, sendo necessário deixar de lado o
receio da racionalidade da maioria e implementar técnicas constitucionais que assegurem sua
máxima expressão institucionalizada:
228
Roberto Mangabeira Unger, em entrevista concedida a Carlos Sávio G. Teixeira, em 22/5/22. Disponível em:
<https://youtu.be/7G-rcNVo7z8>.
140
movimentos nesses espaços deliberativos, circunstâncias que não só frustram como contribuem
para a pouca atuação do cidadão nesses processos:
de cada um deles, se revela tarefa difícil pelo tempo e pelo dinheiro a ser empregados com remotas
chances de retorno normativo almejado.
Baseado no arranjo constitucional de 1988 e de suas dificuldades em enfrentar problemas
estruturais diversos, a participação política institucionalizada se propôs a contribuir para maior
atuação da cidadania na esfera pública sem, contudo, dotá-la de mecanismos hábeis a fim de
garantir a sua efetiva inserção nos espaços decisórios de poder, sendo necessário pensar também a
participação à margem do sistema institucional, como em manifestações e nas redes sociais.
Mudanças geram inquietudes, tensões e desconfianças, mas é preciso ação contínua para avançar
em relação às conquistas obtidas, sob pena de, em um futuro próximo, sucumbirmos pela
incapacidade de resposta aos desafios que certamente virão, abrindo espaço para o radicalismo, o
desgoverno e o autoritarismo:
229
Roberto Mangabeira Unger, em “A segunda via: presente e futuro do Brasil” (Suplemento da Revista Carta Capital
nº 105).
143
democracias existentes atualmente, que concebem alto grau de desigualdades sociais, o ideal
democrático mantém seu potencial subversivo (MIGUEL, 2014, p. 61).
144
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ANEXOS:
Marcelo D’Alencourt (MD): Boa tarde, Dr. Vivaldo. Gostaria de, antes de iniciar, deixar claro que
o objeto da minha pesquisa é participação institucionalizada na Constituição de 1988, e não a
participação popular que ocorreu intensamente na ANC e, claro, foi importante.
Vivaldo Barbosa (VB): Quanto à participação popular, só pra sublinhar que foi um fator muito
decisivo em muitas questões a participação popular na constituinte porque se deu de diversas
maneiras. Primeiro a correspondência que os constituintes decidiam. Outro lado a presença física
de muita gente que se deslocava pra Brasília com os ônibus fretados por meio de cartas, entidades
e de diversas maneiras. É uma presença constante lá nos corredores do CN, nas salas de reuniões
porque a Constituinte, quando ela pediu 24 subcomissões, ela abriu bastante o leque. Então ela
envolveu um conjunto grande de temas e aí diversos setores da vida brasileira se sentiram (epa!)
temos a oportunidade de nos dirigir a essa gente aí. Essa presença foi muito importante na
Constituinte e no próprio desfecho da Constituição.
MD: O que acha dos debates e de forças favoráveis e contrárias à participação da cidadania na
Constituição brasileira?
VB: Enfim, a Constituição teve lá os seus segmentos né mestres no sentido de, enfim, uma luta
mais nacionalista e mais voltada para a proteção dos direitos sociais, ao mesmo tempo em que
também tinha um movimento de valorização dos direitos civis e da cidadania brasileira. Essa foi aí
uma linha que dominou aí boa parte do ambiente da Constituinte. E um outro lado conservador,
fisiológico e muito voltado para garantia do capital estrangeiro, atendendo aí os ideais liberais dos
grupos econômicos nacionais e internacionais e também o setor fisiológico que se aglutinou muito
por meio das articulações que áreas do Governo Sarney fizeram, então isso ajudou também a dar
um dos conteúdos da Constituição, enfim como toda Constituição é isso, ela é multifacetada, apesar
de que nós fizemos uma Constituição mais nossa do que deles, né, mas ela reflete aí ideais liberais
157
de muitas maneiras, de maneira que em alguns aspectos a gente lamenta, mas também foi um dos
traços da Constituição esse lado conservador/liberal.
MD: Poderia dizer que desse lado progressista estariam as esquerdas e do lado conservador, as
direitas necessariamente ou o Sr. vê alguma outra colocação em relação a essa questão?
VB: Em termos dominantes sim, essa é uma divisão natural, agora, não era apenas no conjunto das
esquerdas. Você veja que áreas depois que assumiram feições mais conservadoras e liberais
estavam do nosso lado, você veja que a figura de Mário Covas, por exemplo, que foi o líder do
PMDB na Constituinte, senador, ele foi uma figura que boa parte do tempo, esteve do nosso lado.
Ele mesmo dizia “não sou de esquerda, mas sou um liberal”. Um liberal mais clássico, muito
progressista e muito consciente dos seus deveres, uma grande figura o Mário Covas, mas depois
ele, assim como o Franco Montoro, eles foram engolidos pelo neoliberalismo do Fernando
Henrique Cardoso (FHC), mas isso aí, enfim, isso acontece na política, mas o Mário Covas teve
muito tempo e em muitas oportunidades ele esteve do nosso lado e não era de esquerda. Outras
figuras também porque pra gente conseguir vitórias ali e maiorias, votos ali de esquerda, nós
tínhamos na cabeça no máximo 120, esquerda nacionalista e progressista. Muita divisão, a nossa
votação era isso aí pros temas mais candentes. Era isso aí. Eram 120 o que a gente tinha, mas
tivemos muitas vitórias por maioria que eram mais de 300 constituintes, mas era o jogo da política.
Política, às vezes, caminha pra um canto, caminha pra outro, mas é a luta política ali é que vai
empurrando as coisas.
MD: Sem dúvida, acho que o desempenho foi o melhor possível dentro das condições...
MD: Dentro desse quadro, o resultado foi bom em termos de Carta constitucional.
VB: É o que eu te afirmo aí, eu acho que a Constituição foi mais nossa do que deles.
158
MD: Nesse embate da representação política, ou seja, o Congresso Nacional querendo manter o
seu espaço depois de 20 anos de ditadura e participação, esse embate, o Sr. acha que esteve
presente, esse receio do Congresso em admitir participação perdendo a força da chamada
representatividade democrática?
VB: Olha, é, eu creio que nesse aspecto a Constituição, ela foi bem democrática. Então não se
perdeu e o embate com o regime militar, o autoritarismo anterior, ele foi muito retórico, meio
emocional no sentido de que há setores ali de esquerda, enfim, e setores ligados ao regime
autoritário, mas era muito retórico porque as decisões no fundo e nos embates, foi na questão
econômica e nacional e nos direitos, e aí fugiu um pouco do autoritarismo e da questão da ditadura
militar. Muitos reclamam aí de que o artigo das Forças Armadas foi uma vitória deles, ok, foi uma
vitória deles na medida em que fizeram, em última instância, eles concederam, mas também não
foi um problema perturbador. Eu me lembro que, em algumas áreas se sentiam enfim derrotadas
nisso aí. O próprio Zé Genoíno, por exemplo, que cuidava muito disso que tinha enfrentado essas
questões na sua militância de guerrilheiro lá, mas no fundo eu nunca concordei muito. O próprio
Prestes, ele reclamou da Constituição, disso daí, mas eu confesso, ele achava que tinha que haver
um artigo com uma definição diferente, mas eu creio o seguinte, no regime presidencialista, está
preservado o comando superior das Forças Armadas nas mãos do presidente da República eleito.
Isso é fundamental. Não tem nenhuma vantagem que a Constituição firmou aí privilégios do setor
militar no sentido de eles dominarem certas áreas intocadas, não, eles são submissos à autoridade
do presidente eleito. Isso é a essência do presidencialismo, então isso aí, não vejo problemas que
um presidente exerça a sua autoridade e não seja obedecido. Que a Constituição não se cumpra.
Não vejo maior problema nisso não. As questões que nós tivemos embates foram nas garantias
individuais, direitos da cidadania, direitos civis, direitos sociais, que avançamos, mas, enfim, e na
questão econômica que nós avançamos bastante. Você veja que o governo Fernando Henrique pra
realizar o projeto ultraneoliberal, teve que mutilar a Constituição que ele ajudou a fazer, enfim,
ajudou no sentido de arrastado pelo nosso trabalho aí e não por certas áreas de opinião pública, ele
teve que alterar tudo, enfim, ele rompeu com a Constituição, mudou o sentido da ordem econômica
na Constituição. Então nisso aí realmente que os embates foram mais acirrados.
159
MD: É foco também da minha pesquisa a chamada democracia deliberativa dos conselhos e
conferências nacionais, orçamento participativo e ouvidorias. Como o Sr. viu essa discussão e
aquilo que restou normatizado em relação à chamada participação indireta, ou seja, aquela realizada
a partir dos acordos, dos debates e dos consensos?
VB: É evidente que isso é importante, um avanço, um aprimoramento da vida democrática e social
no geral, mas o que é fundamental é o respeito da vontade popular, porque esses conselhos, grupos
e etc., isso é importante avançar com isso aí, a participação é necessária, mas são grupos que se
organizam daqui e dali, mas e o povo no geral? Nesse ponto, digo que a questão central foi a
manutenção do presidencialismo para poder o povo ter voz. O povo aprovar um projeto nacional,
dialogar e escolher o governante, dialogar com ele, por intermédio das campanhas, escolher esse
governante que vai assumir e cumprir os compromissos fundamentais, porque é onde estão os
direitos: povo quer habitação, educação, moradia, pedaço de terra para trabalhar, um espaço para
morar. Veja a quantidade de brasileiros morando em favelas da forma mais precária possível, mais
anti-humana possível. Esse povo merece receber os proveitos de maneira geral porque, no fundo,
esse povo sustenta a economia e paga os impostos. A Constituição não andou bem nessa área
porque imposto no Brasil é pago pelo consumo, pelo preço das mercadorias. Quem paga é o povo
que sustenta a economia. E por que fica alijado da economia? Isso foi questão central: o que a
Constituição garantiu em relação ao respeito à vontade popular. Isso é coisa por cima dos grupos e
organizações que tem que existir na democracia. Tem que existir, grupos e conselhos,
organizações, devem ter seus espaços, ajuda e avança muito, mas por cima disso está o respeito à
vontade popular.
MD: Gostaria que o Sr. falasse um pouco da democracia direta dos plebiscitos, dos referendos e da
iniciativa popular.
VB: Isso foi previsto como muito importante na Constituição embora, no final das contas, o FH
me derrotou no sentido de retirar a capacidade do presidente determinar o poder de realização de
plebiscitos e referendos. A emenda presidencialista que prevaleceu é da minha autoria. Estava
previsto no meu texto a realização pelo presidente de plebiscitos e referendos. FHC conseguiu
retirar isso porque condenava o cesarismo, ok, César foi bom: era contra os juros, favorável à
160
habitação, distribuiu terra. Cesar é melhor do que quem o matou. Se é cesarismo, é bom, mas perdi
essa votação lá. Presidente tirou essa capacidade de fazer, que ficou na mão do Congresso Nacional
que não age nessa matéria. Veja que os EUA têm essa vantagem com eleições casadas com
plebiscitos e referendos com muitas questões para que povo decida. Isso é necessidade que o Brasil
tem previsto, mas não realizado. É uma pena que a democracia brasileira não realizou a questão do
plebiscito e do referendo que são muito importantes. É uma coisa que debati, consegui aprovar o
texto da emenda, mas depois foram feitos destaques e perdi.
MD: Quais foram os principais obstáculos e óbices em relação a uma participação institucional
mais efetiva do cidadão no futuro texto constitucional?
VB: Pra esse ponto, em termos de princípios, não teve maior polêmica, maior confronto. A isso
teve abertura. Faltou a nossa parte procurar o setor progressista para avançar mais nisso aí. É
evidente que a questão do plebiscito e do referendo na mão do presidente seria isso que já te
mencionei. É um ponto importante, mas faltou a nossa parte mais imaginação de como nós
garantirmos isso lá e abrirmos portas mais definidas na Constituição. Nós tivemos um foco muito
grande na questão dos direitos e na garantia dos instrumentos pra realização dos direitos, que a
questão da participação faltou mais imaginação nossa porque o ambiente estava até favorável,
estava aberto para isso aí sem maior resistência.
MD: Qual o balanço sobre participação daquilo que vocês constituintes sonharam, daquilo que
ficou positivado e do que chega a 2022 com o atual governo?
VB: Não sei se vou ter lembrança dos diversos pontos. É difícil aspecto específico.
MD: Tem pra mim um momento muito importante que é o Programa Nacional de Participação
Social no Governo Dilma, que decreta a participação social, mas o Congresso puxa o freio e resiste.
Isso seria um momento importante, mas fique à vontade pra falar sobre outros aspectos que
envolvam o tema.
161
VB: Como você puxa questões acerca de avanços no Governo Dilma, ok, mas isso não foi na
Constituinte, mas foi por decreto, por legislação que procurou avançar isso aí, mas, em termos da
Constituinte que eu estava procurando pela memória do que foi especificamente colocado aí, eu
não estou com lembrança. Como disse, faltou muita imaginação do nosso lado. O Governo Dilma
e até essas conferências que o Governo Lula fez, isso foi uma coisa, um debate muito importante
que veio depois. Durante a Constituinte, isso não foi colocado e não prevaleceu na Constituição.
Do geral, a Constituição, ao garantir a sua estrutura, os direitos fundamentais do art. 5º., aliás, no
art. 5º., eu perdi nisso aí, ele tem um defeito muito grande de colocar em algarismos romanos e se
estendeu muito, tem hora que eu não consigo dizer se é 50, 60 ou 70, ou 44, tem que conferir um
pouco o algarismo romano, o arábico foi muito mais avançado que o romano. Então os árabes
avançaram melhor nisso e ficou uma coisa mundial, universal, mas aquele artigo da Constituição,
eu tentei colocar em parágrafos arábicos na Constituição, porque eu era da Comissão de redação
final, mas ali perdi, aliás na redação tem tantos defeitos ali porque houve uma pressa de celebrar a
Constituição no dia 5 de outubro de 88. Parece que era uma aproximação ao aniversário do Ulysses
Guimarães, então houve uma pressa e eu tinha tanta coisa pra tentar examinar na Constituição
porque, na elaboração da Constituição, nós fazemos os acordos de liderança e, enfim, cuidávamos
dos conteúdos ali e sempre dizíamos depois, na redação final, se dá um arranjo na redação final,
no texto. Ok, isso ficou muitas coisas, mas quando chegou na redação final, aquela pressa de acabar,
enfim, há defeitos de formulação da Constituição que poderiam ser avaliados. Mas o art. 5º. da
Constituição ali, ao definir realmente o conjunto de direitos e de instrumentos legais para garantir
direitos, aquilo ali garantiu a cidadania de uma maneira bem ampla, o que levou, abriu portas para
a participação. Porque a participação requer essa questão preliminar fundamental e antecedente
que são as garantias, então ali quando você abre as garantias, quando você estabelece as garantias,
os instrumentos de garantias da cidadania, você abre a participação. Então é evidente que há
defeitos ali, tem o sistema político brasileiro que debatemos muito mal, de maneira precária, o
sistema político eleitoral proporcional, enfim, é uma coisa que vem do Código Eleitoral de 1932.
Tá na Constituição de 34, aquilo ali está sendo repetido sem uma reflexão maior e o sistema político
eleitoral brasileiro é muito defeituoso, centrado nessa questão do sistema proporcional que não
avançamos nisso nem tivemos maior imaginação sobre isso aí, mas, enfim, poderia, com sistema
político-eleitoral, poderíamos ampliar aí os níveis de participação, mas essa garantia do art. 5º. foi
fundamental para abrir portas e estimular a participação popular.
162
MD: Gostaria agora de deixa-lo à vontade para falar sobre o quiser sobre o tema, um recado, fique
livre para falar.
VB: Perfeito. Há um defeito ali de chamar partido político de pessoa jurídica de direito civil. Isso
nunca foi. É exacerbação do liberalismo danado que prevaleceu em áreas ali. Partido político é da
vida pública, enfim, cuida da vida pública brasileira, enfim, particulares, tem que ter, é da tradição
brasileira sempre foi tratada como instituição de direito público. Tinha de ser assim para poder
vincular a vida e organização partidária mais da República e ao interesse público. Então é um
defeito ali que traz consequências práticas, com autonomia exacerbada dos partidos políticos em
função disso. Poderia até ser corrigido por legislação ordinária, mas a classe política não deixa
corrigir, então esse defeito da Constituição existe e não teve conserto. Isso atrapalha muito a vida
e atividade política no Brasil. Os partidos políticos organizados com essa autonomia e aí ficou esse
quadro de dono de partido político que realmente é uma coisa lastimável na vida brasileira e aí
vem, enfim, a quantidade imensa de partidos políticos sem conexão com as divisões ideológicas e
políticas da sociedade né, são ajuntamento de interesses e aí não foi da Constituinte, mas foi criado
depois o fundo partidário, a legislação de colocar dinheiro público nos partidos, o que é um grande
avanço, uma grande vantagem, porque enfim tira o partido do vínculo econômico, das empresas,
enfim, tem essa vantagem, mas aí a ganância de abocanhar o fundo partidário e o fundo eleitoral
agora sem nenhum controle público, sem nada, tal a vontade dos partidos políticos, trouxe, enfim,
uma certa avacalhação da vida político-partidária do país muito ruim. Isso tem lá vínculo com a
Constituição que liberou a organização dos partidos, acho que é o artigo 16 né ou 17, que liberou
de maneira exacerbada em definir o partido político como sociedade civil.
163
Marcelo D’Alencourt (MD): Boa tarde, Dr. Miro. Gostaria de, antes de iniciar, deixar claro que o
objeto da minha pesquisa é a participação institucionalizada na Constituição de 1988, e não a
participação popular que ocorreu intensamente na ANC e que, claro, foi importante.
Miro Teixeira (MT): Boa tarde. Sugiro o meu texto “A Constituinte no divã”. Não temos mais o
texto original de 88. Muita gente escrevendo sobre isso. Foi em 2017, eu quis fazer uma Emenda
à Constituição sobre o sistema tributário, mas antes de fazer, tinham mais de quinhentas propostas.
Hoje quando você abre a Constituição, você vê em azul na tela o que já foi alterado. A Emenda
Constitucional aqui no Brasil não diz respeito a um dispositivo, ela pode tratar de uma seção inteira,
como foi a Emenda 45, que mexeu com o Judiciário todo. Eu apresentei então uma proposta de
revisão, que seria uma constituinte restrita. Isso em 2017, pra evitar qualquer espécie de
malandragem, eu citei os artigos que deveriam ser denominados. Eu hoje amplio porque falo na
“Organização dos Poderes”. Os poderes estão funcionando mal. Não sei se entro já na sua temática.
Você tem o Poder Legislativo funcionando muito mal, com todas essas notícias de orçamento
secreto e outras coisas mais. As mudanças feitas em troca de dinheiro pra campanha eleitoral. Então
o parlamento não inspira a menor confiança. Você tem o Executivo ao qual eu me oponho nas
ideias. O Presidente da República, embora tenha sido colega dele em sete mandatos, mas nunca
tivemos entreveros, pelo contrário. O Poder Executivo é absolutamente distante da realidade. Eles
vivem lá no Plano Piloto, em Brasília, na Praça dos Três Poderes. Executivo, Legislativo e
Judiciário desconhecem o Brasil real. Fui hoje ao Centro da Cidade do Rio e voltei aqui pra ter essa
conversa com você. Você não reconhece mais o Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Lojas
fechadas, população de rua e, dependendo do horário, à tarde, começando a noite, você pega aquela
população se aglomerando debaixo das marquises. É tudo muito doloroso o que está se passando.
E você não tem a discussão serena de políticas capazes de melhorar as condições de vida da
população, de gerar empregos, criar mecanismos de economia. Quando eu estava no Ministério, eu
imaginei um sistema brasileiro de TV digital aberta. Não é fácil. Fibra ótica aberta e, se conseguia
uma não regressão, mas uma continuidade. Eu quis sair do Ministério uma certa hora e eles não
puderam parar o projeto. Universidades pelo Brasil participaram com recursos próprios e os
professores trabalhando com “ laptops”. Um esforço grande, conseguimos fazer isso, então enfim
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é uma história enorme, mas tive a preocupação de colocar banda larga em áreas remotas do Brasil
e em escolas públicas. Ainda é pouco. É preciso ter em todas. E era tudo muito confiável, o projeto
existia com totens pra pessoa receber fundo de garantia, mas isso se interrompeu ainda no primeiro
Governo Dilma. A área de ciência e de tecnologia, de um modo geral, não tem uma grande atenção
do governo no Brasil e eu estou especialmente convencido de que a saída da crise mundial se dará
com o conhecimento.
MD: Como o Sr. viu na Constituinte o clima dessa futura participação que seria institucionalizada
em 1988 através de forças contrárias e favoráveis ao tema?
MT: Tem uma coisa muito interessante. Havia um projeto de notáveis, mas acontece que esse
projeto não foi usado. Foram usadas as sugestões constitucionais de constituintes e, claro, as
emendas e sugestões populares. Aliás, aí na “Constituinte no divã”, eu abro com uma sugestão
popular. Chegavam histórias interessantes. Mas você tem sugestão constitucional maravilhosa
como a de uma senhora que diz para que façamos leis porque as mulheres precisam parar de estar
obrigadas a deitar com homens que chegam em casa, põem o revólver embaixo do travesseiro e
praticamente as estupram. Você vê as discussões que isso acabou provocando e até os dias atuais.
Como isso é preocupante e se repete, essa violência contra a mulher. Faço parte do IAB e fazemos
muito debates, mais acadêmicos. Mas tivemos colaborações fantásticas da Igreja, dos empresários
e dos próprios constituintes. Eu não sei se você já ouviu, mas se organizou a separação de coisas.
Houve oito comissões temáticas. Cada comissão temática com três subcomissões e essas sugestões
eram mandadas onde examinavam, dando impulso ou não pra comissão permanente, pra comissão
centralizadora e dali iam pra comissão de sistematização para fazer um anteprojeto para depois ir
a plenário. Então a Constituição brasileira talvez seja uma das únicas que fez a ampla revisão única.
Aparece alguém dizendo que uma vez na Tanzânia já fizeram isso. Surge de sugestões populares e
surge da preocupação que havia com o que foi vivido na ditadura, estávamos recém saídos. Ainda
existia a União Soviética, o clima era outro. A Constituição de 1988 trouxe os direitos e garantias
individuais porque as violações eram enormes. Criamos o mecanismo da iniciativa popular, um
projeto de lei de origem popular. Então você tem a Lei da Ficha Limpa como uma lei popular. Por
exemplo, não são projetos de tramitação fácil. É preciso ver que lá tenhamos sempre que organizar
grupos com forte apoio a essas iniciativas porque normalmente são iniciativas que se chocam com
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interesses de políticos mal intencionados. Então aquelas medidas contra a corrupção que eu até
apresentei alguma coisa. O Ministério Público não estava conseguindo. Eu apresentei dizendo:
“Olha, vocês conseguiram que o projeto de vocês tramite com preferência”. É um projeto de
iniciativa popular. E conseguimos essas participações, os Conselhos Tutelares. Isso daí dá muito
prazer o que conseguimos. O fortalecimento das instituições, como o Ministério Público e a
Defensoria Pública, e a necessidade de consultas populares, de licitações, de audiências públicas
necessárias para fazer algumas obras para defender o meio ambiente, então há realmente muita
coisa que dá prazer de você ver funcionar. A garantia das pessoas está na Constituição!
MD: Havia receio na questão de mais participação importando menos representação pelo
enfraquecimento do Legislativo depois da ditadura?
MT: Não. Pela minha memória, não. Houve um momento em que se tentou interromper o trabalho
da constituinte. Podemos falar isso daqui a pouco na “Constituinte no divã”, mas o que hoje é o
Centrão, considerou o projeto da comissão de sistematização um projeto de esquerda, tinha nada.
Imagina, o FHC na comissão de sistematização, atuando como relator da Comissão de
Sistematização. O relator geral Bernardo Cabral, o Presidente da Constituinte Dr. Ulysses
Guimarães. De modo que não se estava trabalhando ali sistematicamente um projeto de esquerda,
é uma coisa de má fé. Não era esse o medo. Era o medo da perda do próprio poder. Não é só do
poder político, mas do poder econômico. Bom, em junho de 1988, por aí, o deputado José Lourenço
pretendeu encerrar os trabalhos da ANC. O Dr. Ulysses Guimarães deu uma entrevista duríssima,
dizendo que “se tem a maioria absoluta, que apresentem um projeto, mas devo dizer que não
presido um manicômio, mas a ANC”. Estavam todos lá. Então houve vários momentos de tensão
pesada. Houve momento de muita tensão na discussão da reforma agrária, da antiga UDR. Nós
vivemos momentos desses, mas era muito compensado pela presença das pessoas lá na sede do
Congresso Nacional, no plenário da Câmara. Nas salas das comissões temáticas da Câmara dos
Deputados, funcionavam as comissões e subcomissões da ANC. Então foi uma circulação diária
medida de dez mil pessoas! O que te dava muito prazer. Gente descalça andando por ali. Você tinha
pessoas paupérrimas, você tinha barões da indústria, levando suas ideias. Você tinha padres,
pastores evangélicos, pais de santo. Você tinha o Brasil que era a Constituinte. Quando você olha
o Rio, o abade Emmanuel Sièyes, na Revolução Francesa, ele dizia como era necessário fazer a
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chamada Constituição burguesa, como era necessário trazer a participação das pessoas. E daí surge
a expressão “baixo clero” porque o grande clero fazia parte do poder monárquico, mas o abade
Sièyes defende a participação de todos. Mas como faz isso? Faz isso com projeto em que a
assembleia constitua esse poder das pessoas na constituinte. Tivemos momentos de tensões e
tivemos o momento da promulgação, é uma coisa muito curiosa porque é uma alegria enorme em
que você virou uma página e passará a ter eleições diretas no Brasil e eu nunca votei e fui votar
pela primeira vez depois da constituinte. E olha que eu nasci em 1945! Então ia ter o voto direto
na eleição presidencial, direitos e garantias individuais, Ministério Público. Garantimos a
independência dos poderes. Era uma alegria, mas era diferente do que se passa alguns dias depois
porque é quando cai a ficha. Você fez a Constituição do seu país. Quando eu abro a Constituição,
vejo ali, tanto que eu repilo a expressão “ex-constituinte”. Constituinte de 88, não existe ex
Constituição! Devemos discutir com o povo brasileiro a votação de uma constituinte restrita, pode
chamar de revisão, poder revisor. Quando eu fiz a proposta de 2017, eu cometi um erro de manter
o quórum da constituinte de 1988 que era de maioria absoluta. Deveria ter deixado o sistema em
curso e não dar argumentos àqueles que se colocaram contra a atualização porque não tem proposta
séria que seja aprovada por dois votos. Ou a proposta é apoiada ou não é apoiada. E ainda mandava
ao povo o poder de um plebiscito determinar que aqueles eleitos teriam o poder constituinte.
MD: Como o Sr. vê os debates sobre participação direta, via plebiscitos, referendos e iniciativa
popular e também na participação indireta através dos conselhos, conferências nacionais e
orçamento participativo?
MT: Hoje existe um temor em se fazer plebiscito e referendo pela radicalização política no Brasil,
pela falta de racionalidade. Aqui não se debate quase mais, há troca de ofensas. Fico lamentando
isso. Então eu mesmo fico pensando será que temos condições hoje... Quando eu propus, o
presidente era o FHC, a quem eu fazia oposição, mas o FHC era extremamente civilizado. Fizemos
militância juntos pelo restabelecimento da democracia, tanto que quando ele ganhou a eleição, não
ficou aquela mágoa como ficou quando o Collor ganhou a eleição. Lutamos por eleição direta que
foi vencida por Fernando Collor de Mello que sempre foi da ARENA, foi da ditadura militar. Penso
que hoje há uma grande dificuldade desse debate se tornar factível. Mesmo os debates sobre
participação popular estão ameaçados. Você passou a ter uma política de armamento no Brasil.
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Você passou a ter a existência de milícias que praticamente governam as áreas críticas. Então há
grande receio de se ampliar. A confiança que eu deposito no Ministério Público, na Defensoria
Pública e, de certa maneira, no Poder Judiciário. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário, o
Ministério Público é um poder, tem muito poder, mas o MP tem maior rigor e acho que continua a
merecer a confiança mais próxima da totalidade.
MT: Isso significa muito pouco. Essas ideologias tradicionais estão ultrapassadas. A Rússia é
comunista? Claro que não é. São sistemas bilionários. Você tem os democratas que são chamados
de comunistas. Isso é muito pra se localizar eleitoralmente e induzir a população pra uma situação
que não faz bem. Acho até que isso tem que ser examinado. Cada problema existente, buscar a
solução. Não é a esquerda que tem isso não. Você não tem o monopólio então da descoberta de
quem matou a Marielle. Isso é uma preocupação de todo brasileiro, sentimentos de quem é
democrata, de quem é religioso também, luta contra a violência. Então não é uma luta da esquerda
ou da direita, mas de todos. Trump fez muito isso e, eleitoralmente, pra se valer disso, dessa
aprovação de esquerda e de direita. Não sei se nós poderíamos hoje falar de esquerda e direita na
ANC porque você tinha a participação do Roberto Campos, por exemplo, que podia ser considerado
um liberal de direita, está bem, enfim, respeitado por todos ali. Dr. Ulysses era esquerda ou direita?
Dr. Ulysses apoiou o Golpe de 1964. O Mário Covas foi cassado, era o líder do PMDB que era
também presidido pelo Dr. Ulysses. Não havia isso de modo nenhum, não havia essa divisão, não
havia esses ódios. Bom, havia grupos que se autoproclamavam movimentos populares, você olhava
ali, eram oito deputados e um senador. Era uma parede que se criava com finalidades eleitorais. E
eu acho que, enquanto houver essa dicotomia esquerda-direita, eu acho que levarão vantagens os
mal-intencionados. Os bem-intencionados se entregam ao debate. Há um livro chamado
“Liberdade para as ideias que odiamos”, vamos ouvi-las, mas isso, tenho a impressão que é distante
e lamentavelmente também entre os jovens.
168
MD: Qual é o balanço que o Sr. faz entre a participação sonhada e a que chega a 2022? Como o
Sr. vê a participação ao longo desses trinta e três anos de Constituição de 1988?
MT: Eu acho que a Constituição de 88 é uma boa Constituição. Eu acho a de 1946 muito boa e
acho que a de 1988 ultrapassou a de 46 em qualidade. E é curioso porque não sei o resultado das
eleições, mas quando fomos tomar posse, nós fizemos uma pequena reunião e havia alguns amigos
antigos ali de lutas contra a ditadura que diziam: “Eu vou fazer o quê? Eu tenho que sentar na
calçada e chorar!” Nós éramos ultraminoria. O pensamento conservador era absolutamente
majoritário. Aí que você viu o que era uma constituinte.
MT: É a presença do povo! Aí é que está a questão da constituinte. Por que não se faz isso com
uma Emenda Constitucional? Ali era o povo nos corredores, era o povo nas galerias e em todos os
salões da Câmara dos Deputados e do Senado, telões instalados para que todos pudessem assistir o
que se passava e havia o Diário da Constituinte, que o Dr. Ulysses criou. O Dr. Ulysses disse:
“Olha, vamos fazer isso porque, se não, só vai sair o que os outros quiserem, todos os partidos terão
acesso, não haverá preferência de nenhum partido. O PMDB tem maioria absoluta na ANC, mas
não é por isso que terá a maioria absoluta no horário. Todos terão e o que for mais polêmico terá
preferência pra apresentação à população. Dez minutos por dia”. Essa foi a grande ideia do Dr.
Ulysses Guimarães porque a nação brasileira estava mal informada sobre o que estava se passando.
Então Brasília era uma ebulição de pessoas, entidades e instituições. Não havia escritório vazio em
Brasília. As federações das indústrias, as associações comunitárias, a Conferência Nacional dos
Bispos hiperlotada de párocos que saíam dos estados, sabe, da sede da CNBB. Era algo, havia
acampamentos na cidade, lonas de circo abertas com beliches nas áreas um pouco mais remotas
ainda dentro do Plano Piloto, mas para abrigar quem não tinha ou não era de uma dessas
instituições. É um processo que não se reedita, aí é que está, é algo que não se repetirá. O dia que
vier outra constituinte, já virá em condições tecnológicas diferentes, formação cultural saberá qual
é, mas isso era guerra fria, ou seja, aquele momento não se repetirá.
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MD: O Sr. não receia que uma nova constituinte produza uma constituição mais conservadora pelo
momento atual?
MT: É por isso que eu lhe disse que eu hoje refluo da ideia, acho que hoje, ali naquela época, eu
não falei com o FHC, o presidente era o FHC e tem mais, ele apoiou, depois ele voltou atrás. Ele
até me chamou, ele me convidou para um café, eu era da oposição, veja você o que era o Governo
FHC. Ele me convidou pra um café no Palácio do Planalto e disse: “Miro, eu apoiei na televisão,
mas eu vou ter que recuar. Queria que você soubesse primeiro. Os senadores acham que a sua
proposta, sendo unicameral, vocês podem acabar com o Senado”. Eu disse: “Olha, Presidente, não
é isso não, mas o Sr. tem todo o direito de recuar. Se fosse isso, passaria a ser bicameral e ponto,
mas é um direito seu”. Mas, naquela época, não era essa discussão, eu era líder da oposição, eu
frequentava o Palácio do Governo. Um dia, teve um ano que eu fiz obstrução ao orçamento que era
já dia 27 de dezembro. O Presidente ligou para a liderança. Eu fui chamado no Plenário. Ele disse:
“Miro, você quer passar o fim de ano aqui?” Eu disse: “Olha, a família está até vindo...” Presidente:
“Mas qual é o problema que está havendo que você está fazendo essa obstrução?” Eu disse: “É o
salário mínimo!” Ele disse: “Aguarda dez minutos, por favor!” Aí chegou o líder do governo.
Chegou um pessoal do Ministério da Fazenda e, em cinco minutos, o líder do governo estava no
microfone dizendo que o governo apoiaria aquela emenda ao orçamento e que o salário mínimo
passava a ser de tanto. Eu não me lembro qual era a diferença, era um pouco mais, não era também
demais, não vou me vangloriar de nada, mas era, pra quem ganha um salário mínimo, era relevante.
Você considerar noventa reais, são três reais por dia, sabe, trem hoje é cinco reais, se você falar em
cinco reais por dia, você tá falando numa viagem de trem no Rio de Janeiro, é relevante, tá? Pão
vendido a quilo por cinco reais, você compra ali uns dois pães, é muito relevante pra quem precisa...
MT: Eu acho que a experiência pós-constituinte me leva a sentir falta de uma coisa: a reunião com
as direções partidárias, das bancadas com as direções partidárias. Eu tenho impressão que
poderíamos evoluir mais. Depois, a direção de cada partido poderia se entender com a direção do
outro partido. E nós ali no plenário, tínhamos que decidir em frações de segundos alguma coisa,
tudo bem, até aí, tudo bem, mas se você tiver um mote, uma bandeira sinalizando pra onde ir, você
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decide com a precisão. Então acho que até hoje os partidos são muito precários, talvez até mais
precários do que naquela época. Acho não, tenho absoluta certeza. São muito precários, mas acho
que isso acabava dependendo, nós tínhamos um grande líder, o Mário Covas. O Mário Covas, uma
vez, foi pra tribuna e disse o seguinte. Começou dizendo o seguinte: “Não tive tempo de reunir a
bancada do meu partido, o PMDB, então primeiro me dirijo à bancada para manifestar meu ponto
de vista e pedir o apoio da bancada”. E falou uma parte do tempo se dirigindo à bancada e, em
seguida: “Sras. e Srs. constituintes, agora me dirijo a ambos”. Depois desse voto de confiança à
bancada, então, isso deveria ter acontecido numa reunião com a direção do partido, conversaria
com a direção de outros partidos etc., etc... Foi um papel que o Mário Covas improvisou ali no
plenário pela experiência que trazia, pelo brilhante orador que era e pelo grande brasileiro que ele
era, ele pensava no Brasil!
MT: Se puder fazer menção como grande referência ao Darcy Ribeiro na parte de educação. Tudo
que o Darcy falou e escreveu, tudo que o Brizola também falou e escreveu da participação, isso
tudo é referência pra nós.
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Rubem Medina (RM): Por demais importante. A intenção inicial não foi essa, mas de se ter um
projeto elaborado por uma comissão chamada de "Comissão de Notáveis" e esse projeto seria
promulgado pelo Congresso Nacional. Se tivéssemos seguido por este caminho, certamente, o
Brasil teria recebido uma Constituição elaborada por uma elite econômica e intelectual sem
qualquer conexão com o desejo popular. Para que você tenha ideia da dificuldade de leitura da
vontade popular, a tal "Comissão de Notáveis", presidida pelo Afonso Arinos, viveu de conflito
em conflito até deixar de existir. Mas, sem dúvida, a contribuição do Afonso Arinos seria altamente
relevante, como foi. Por isso, eu conduzi o processo eleitoral de 86, no PFL do Estado do Rio de
Janeiro, para termos o Afonso no Senado. E conseguimos. O melhor processo de construção foi
com a presença assídua de todos os segmentos da sociedade brasileira. Os corredores, gabinetes e
galerias dos plenários e até mesmo os plenários, receberam gente de todos os lugares e de todos os
segmentos do Brasil. Por isso, foi possível se fazer a festa que fez Ulysses Guimarães na
promulgação da Constituição.
MD: Gostaria que o senhor falasse sobre as forças contrárias e favoráveis ao tema.
RM: Contrárias à participação popular não tivemos. O que se tinha era a descrença na possibilidade
de construção de uma Constituição no tempo em que ela foi elaborada e com a riqueza de detalhes.
No correr do processo, antecedido por uma campanha eleitoral, todos se convenceram que o
caminho correto seria com a participação popular. Nós, deputados federais e os senadores,
debatemos com o povo durante as campanhas e depois, novamente, com quem esteve no Congresso
Nacional.
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MD: Havia receio na questão de mais participação importando menos representação pelo
enfraquecimento do Legislativo depois de 21 anos de ditadura?
RM: Em nenhum momento. Eu não percebi isso. Percebi que todos, no país todo, estavam
conscientes da necessidade de se ter um novo país com base numa constituição construída com a
participação de todos.
MD: Como o Sr. observou os debates sobre participação direta, via plebiscitos, referendos e
iniciativa popular?
RM: Apoiei e apoio até hoje. Uma questão, contudo, se levanta. Qual o modelo ideal de
democracia? Eu diria que aquela que conseguisse que o Estado só tomasse decisões deliberadas
por todos. Mas, isso é possível numa sociedade? No nosso caso, seria possível convocar a
população toda para deliberar sobre todas as questões de interesse comum? Haverá quem diga que
a tecnologia poderá nos levar a isso. Então, outra coisa não faria a população a não ser deliberar e
após um imenso debate que levaria uma eternidade. Por isso, há sim que existir a prerrogativa dos
plebiscitos, referendos e iniciativas populares, mas para situações excepcionais.
MD: De que maneira o senhor viu os debates sobre a participação indireta através dos conselhos e
conferências nacionais e do orçamento participativo?
RM: A participação indireta não inviabiliza nem é contrária à participação direta. O importante é
que a sociedade, quando escolha os que irão representá-la, tenha absoluta consciência do que espera
de seus representantes e tenha instrumentos para cobrar deles o compromisso que assumiram.
Nesse ponto, a nossa Constituição é rica. Temos ainda uma falha, que é ressaltada quando a gente
cuida dos orçamentos. O orçamento participativo é uma boa iniciativa, mas peca porque só atua
sobre um lado, as despesas. E aí, chega-se ao ponto de se querer gastar o que não se quer pagar.
Ninguém melhor que o pagador de impostos para dizer onde ele quer que o seu dinheiro seja
investido ou gasto, e ele pode fazer isso através de seus representantes.
MD: Qual o balanço que o senhor faz entre a participação debatida na Constituinte, normatizada
na Constituição de 1988 e a que chega a 2022?
RM: É o tema que define a democracia. Muitos reduzem o conceito de democracia ao exercício do
voto e cometem um erro enorme, que permite que algumas ditaduras passem por democracia, só
porque o cidadão vota para escolher quem preside o país ou quem compõe os parlamentos. A
democracia é definida pela qualidade da participação. Quando o cidadão exerce o direito de votar
ele está diante de todas as informações essenciais? Os partidos que apresentam os candidatos para
a escolha do eleitor têm canais que permitam a participação democrática de seus filiados e liberdade
para que todos os que queiram se filiem? As minorias estarão representadas nos processos de
decisão? Portanto, para mim, o que define uma democracia é a qualidade da participação
representada no voto.