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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA

MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA

A IDEIA DE PARTICIPAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

NITERÓI
2022
MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA

A IDEIA DE PARTICIPAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ciência Política da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Ciência Política.

Área de concentração: Teoria Política e Pensamento


Político Brasileiro.

ORIENTADOR: PROF. DR. CARLOS SÁVIO GOMES TEIXEIRA

Niterói
2022
MARCELO D’ALENCOURT NOGUEIRA

A IDEIA DE PARTICIPAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ciência Política da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Ciência Política.

Área de concentração: Teoria Política e Pensamento


Político Brasileiro.

Aprovada em 30 de novembro de 2022.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Carlos Sávio Gomes Teixeira – Orientador


Universidade Federal Fluminense

Profa. Dra. Soraia Marcelino Vieira – Membro (a) Titular Interno


Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Claudio de Farias Augusto – Membro Titular Interno


Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Tiago Medeiros Araújo – Membro Titular Externo


Instituto Federal da Bahia

Prof. Dr. Geraldo Tadeu Moreira Monteiro – Membro Titular Externo


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Niterói
2022
AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos pais, Celso Viana Nogueira e Maria Mercedes D’Alencourt Nogueira, por tudo
que me proporcionaram, especialmente, o respeito, a dedicação, o amor, a honestidade e a
oportunidade de estudar sempre. Vocês estarão sempre no meu coração! Muito obrigado por tudo!

À Mônica El Kik Damasceno e à Marcela El Kik D’Alencourt, esposa e filha queridas e amadas,
que me proporcionaram todo apoio, amor, paciência, compreensão e carinho na difícil caminhada
até aqui. Devo tudo a vocês. Como é bom tê-las na minha vida! Juntos sempre! Amo muito vocês!

A todos os professores doutores do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da


Universidade Federal Fluminense (PPGCP/UFF), em especial, o meu orientador, Carlos Sávio
Gomes Teixeira, pelos conhecimentos transmitidos, profissionalismo, prontidão, respeito e
amizade.

Aos amigos e professores doutores Leonardo Petronilha, Aluísio Alves Filho, Débora Rezende
Almeida e André Saldanha, indispensáveis nas sugestões, apoio e discussões sobre o tema desde o
projeto até a defesa da tese.

Ao servidor Manoel Joaquim Pereira Filho, pelo trabalho competente e diferenciado exercido na
secretaria do PPGCP/UFF.

Aos colegas da turma de doutorado (2019) do PPGCP/UFF, Felipe Maruf, Paulo Roberto Cunha,
Daniella Silva, Gabriel Guimarães, Joyce Lucas e Bruno Leite, pelos debates, troca de ideias e
ótimo convívio acadêmico.

Aos professores que contribuíram com importantes considerações e dicas nas aulas, defesa de
projeto e qualificação da tese: Soraia Marcelino Vieira, Carlos Henrique Aguiar Serra, Cláudio de
Farias Augusto, Christy Ganzert Pato e Tiago Medeiros Araújo.

Aos entrevistados, Vivaldo Barbosa, Miro Teixeira e Rubem Medina, pela gentileza, cordialidade
e atenção.

À Denise Reznik, minha analista, pelo suporte psicológico que me proporcionou desde o primeiro
instante até aqui. Gratidão por tudo!
Brasil, mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim.
Brasil, qual é o teu negócio? O nome do teu sócio?
Confia em mim. Confia em mim, Brasil!

(Brasil, canção de Cazuza)


RESUMO

A tese de doutorado tem por objetivo analisar a ideia de participação na Constituição de 1988, a
partir do exame conceitual e das manifestações empíricas positivadas pelos constituintes na Carta
Magna, das ideias de democracia representativa, deliberativa e direta. Aborda-se inicialmente o
aspecto teórico relativo aos três modelos de democracia, confrontando-os com a participação. Em
seguida, analisa-se a maneira pela qual a participação foi debatida e aprovada na Assembleia
Nacional Constituinte (1987/88). Por último, após a promulgação da Carta de 1988, enfoca-se
normativamente a participação, relacionando-a aos principais elementos da democracia
deliberativa, direta e representativa.

Palavras-chave: Constituição federal; democracia; representação política e participação.


ABSTRACT

This dissertation aims at assessing the notion of participation in the Constitution of 1988 in terms
of conceptual examination and empirical manifestations of the ideas of representative, deliberative
and direct democracy enshrined in the Magna Carta. It begins by theoretically discussing the three
models of democracy vis-à-vis the criterion of participation. Then, it is investigated how
participation was debated and approved in the National Constituent Assembly (1987-88). Finally,
after the promulgation of the Constitution, it is normatively emphasized participation in relation to
the main elements of representative, deliberative and direct democracy.

Keywords: federal Constitution; democracy; political representation and participation.


RÉSUMÉ

La thèse de doctorat a pour objectif d’analyser l’idée de la participation publique dans l’élaboration
de la Constitution de 1988, à partir d’une vision conceptuelle et des manifestations empiriques des
constituants dans la Charte fondamentale de l’État brésilien, ainsi que d’analyser les idées de
démocratie représentative, délibérative et directe. Pour cela, on examine, premièrement, l’aspect
théorique concernant les trois modèles de démocratie, en les confrontant avec la participation
publique. Deuxièmement, on analyse de quelle façon cette participation a été débattue et approuvée
à l’Assemblée Nationale Constituante (1987/1988). Enfin, à la suite de la promulgation de la «
Magna Carta » de 1988, l’étude se concentre sur la standardisation de la participation publique en
établissant un lien aux principaux éléments de la démocratie délibérative, directe et représentative.

Mots clés: Constitution fédérale; démocratie; représentation politique et participation.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 12
1 CRISE DA REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO...................................................................... 17
1.1 A crise da representação................................................................................................................. 17
1.2 Participação: uma abordagem teórica........................................................................................... 25
1.3 Participação e democracia representativa..................................................................................... 36
1.4 Participação e democracia deliberativa......................................................................................... 43
1.5 Participação e democracia direta................................................................................................... 50
1.6 Conclusão......................................................................................................................................... 58
2 A PARTICIPAÇÃO NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE...................................... 60
2.1 O embate com a representação democrática................................................................................. 60
2.2 A incipiente democracia deliberativa............................................................................................ 72
2.3 Democracia direta: poder e cidadão.............................................................................................. 85
2.4 Conclusão......................................................................................................................................... 99
3 A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL..................... 101
3.1 O prisma representativo................................................................................................................. 101
3.2 Enfim a democracia deliberativa................................................................................................... 112
3.3 Democracia direta: derrota da esperança.................................................................................... 125

3.4 Conclusão ....................................................................................................................................... 135


CONCLUSÕES...................................................................................................................................... 139
REFERÊNCIAS.................................................................................................................................... 144
ANEXOS................................................................................................................................................. 156
ANEXO I: Entrevista concedida pelo Dr. Vivaldo Barbosa.............................................................. 156
ANEXO II: Entrevista concedida pelo Dr. Miro Teixeira................................................................. 163
ANEXO III: Entrevista concedida pelo Dr. Rubem Medina............................................................. 171
SIGLAS E ABREVIATURAS

AL Assembleia Legislativa
ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade
ANC Assembleia Nacional Constituinte
CEBs Comunidades Eclesiais de Base
CF Constituição Federal
CN Congresso Nacional
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CNMP Conselho Nacional de Ministério Público
CUT Central Única dos Trabalhadores
CV Câmara dos Vereadores
DANC Diário da Assembleia Nacional Constituinte
DL Decreto Legislativo
EC Emenda Constitucional
EUA Estados Unidos da América
IP Iniciativa popular
IPs Instituições Participativas
LC Lei complementar
MDDs Mecanismos de Democracia Direta
MPs Medidas Provisórias
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
OP Orçamento Participativo
PDDs Processos de Democracia Direta
PFL Partido da Frente Liberal
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNPS Política Nacional de Participação Social
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
RJ Rio de Janeiro
SF Senado Federal
STF Supremo Tribunal Federal
UE União Europeia
UFF Universidade Federal Fluminense
UNE União Nacional dos Estudantes
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
12

INTRODUÇÃO

A tese que ora apresentamos tem por objetivo analisar a ideia de participação na
Constituição de 1988, propondo-se a investigar como a ideia de participação foi incorporada no
texto constitucional e como os seus mecanismos tem sido utilizados, a partir do exame conceitual
dos três modelos (representativa, deliberativa e direta). Em seguida, analisa-se a forma pela qual a
participação foi debatida e aprovada na Assembleia Nacional Constituinte (ANC-1987/88),
especialmente por meio dos discursos parlamentares proferidos sobre o tema e seus
desdobramentos tanto no momento da confecção da Constituição Federal de 1988 (CF/88) quanto
naquilo que restou positivado após a promulgação do texto final acerca da participação
institucionalizada no Brasil.
A desesperança e o ceticismo popular com a política não são de hoje. Há tempos que os
partidos políticos não cumprem as suas funções programáticas, permanecendo cada vez mais
estagnados em modelos políticos, onde há, geralmente e dentre outros objetivos menores, a meta
principal da conquista e da permanência no poder 1. Maior prova disso é o abismo social e a
crescente desigualdade que assolam o mundo, condenando os mais pobres à miséria e à
marginalização. A busca por saídas milagrosas (não tão inéditas) e a esperança em “mitos”, que
prometem o fim da “velha política” e o alvorecer de uma “nova política” pautada na repetição de
antigos modelos injustos e excludentes, sinaliza para incipiente e indeterminada nova forma de
exercício do poder que pretende se habilitar como protagonista das transformações sociais no
campo político. E essa nova prática política parece não ter freios, limites ou amarras, promovendo
um autêntico “vale-tudo” para se consolidar. Não resta dúvida de que, se não estamos ainda,
tendemos a ingressar em tempos populistas. Parece que a grande questão nesse instante é “se esse
momento populista vai se tornar uma era populista — e pôr em xeque a própria sobrevivência da
democracia liberal” (MOUNK, 2019, p. 17).
A participação pode funcionar como forma de colaboração complementar à falta de desejo
democrático, reforçando-o, além de potencialmente frear aventuras extremistas, haja vista que o
processo eleitoral não é mais suficientemente envolvente e empolgante para os cidadãos.

1
O latinobarômetro, disponível em: <https://www.latinobarometro.org/lat.jsp> estuda opinião pública e tem
monitorado esse comportamento.
13

Interessante seria a atribuição de instrumentos à população, que pudessem influenciar e reverter


decisões políticas tomadas geralmente por poucos em detrimento da grande maioria. A questão que
se põe (e que foi muito invocada nas manifestações de 2013 no Brasil) é: por que a cidadania não
se sente mais representada pelos políticos? Na atualidade, a cidadania manifesta-se eventualmente
em eleições nas quais o desinteresse da maioria é grande. Não bastasse isso, a escolha do eleitor se
dá de maneira reduzida, valendo-se de opções previamente sugeridas por grupos políticos muito
estruturados e interessados que se aproveitam da apatia, falta de educação e pouca inserção do
cidadão na política, tendo este papel reativo (BOURDIEU, 1990, p. 188).
A participação é ainda tema sensível à democratização da sociedade, haja vista a crise da
representação que afeta indistintamente os países. Uma das razões desta distância é a baixa
identificação entre representantes e representados, que alguns autores relacionam com a não
representatividade dos diferentes segmentos da sociedade no Congresso Nacional (CN). A
possibilidade do exercício direto do poder pelo povo foi uma das maiores inovações da CF/88
(BENEVIDES, 1991). O incremento da participação da cidadania nas arenas decisórias de poder
reforça o nível de responsiviness de um governo, pois faz com que os representantes eleitos
antecipem resultados e tomem decisões políticas mais alinhadas com a vontade popular.
A abordagem teórica sobre participação inserida na democracia representativa,
deliberativa e direta é fundamental para o entendimento e compreensão dos temas envolvidos na
pesquisa e da maneira pela qual interagem nas diversas situações e circunstâncias relativas à
democracia no país. Não obstante a relevância que esses novos espaços de participação política
vêm adquirindo no cenário brasileiro, ainda não existe uma teoria política que dê conta de explicar
o modo como estes novos desenhos institucionais funcionam e tampouco como têm afetado a
produção de políticas públicas. Por outro lado, também são importantes pesquisas que permitam
uma avaliação aprofundada de sua dinâmica, nível de inclusão de participação social e importância
para a gestão democrática.
Quanto à participação na ANC (1987/88), Vilas Boas (2018) mostra que, apesar da ideia
de participação ser muito presente na Constituinte, naquele momento não existia um consenso
mínimo sobre como esta deveria se operacionalizar. A dicotomia entre participação e representação
estava presente em diferentes discursos de deputados contrários, os quais defendiam a primazia da
representação eleitoral, e deputados favoráveis em aliança com movimentos sociais e partidos, que
favoreciam a expressão mais direta da população na nova ordem institucional a ser construída.
14

Estes foram os atores responsáveis pela defesa de mecanismos de democracia direta


(MDDs) tais como o referendo, a iniciativa popular e o plebiscito, e também formas indiretas de
participação da comunidade na produção de políticas públicas. Almeida (2017) mostra que um dos
problemas da efetividade da participação social nestes mecanismos do executivo é a dificuldade de
articulação com outras esferas e atores, como a burocracia e o Legislativo. Muitas das decisões
sobre políticas públicas que são feitas nas chamadas instituições participativas passam também
pela interação com o Legislativo. Além disso, a aversão ou abertura à participação dos
parlamentares constitui elemento importante para se colocar a participação como central para a
consolidação de uma sociedade democrática.
A participação institucionalizada na CF/88 demonstra uma atuação da cidadania aquém
do que se poderia esperar. Tal circunstância deve ser analisada a partir da conjuntura política e
institucional que envolve presidencialismo de coalizão, sistema eleitoral, partidos políticos e
relação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A especialização funcional garante o
exercício de determinadas atribuições previstas constitucionalmente aos órgãos. Ao Poder
Legislativo (CN, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores), atribuem-se as funções
normativas e fiscalizatórias (realizada pelos Tribunais de Contas). Ao Executivo (presidente,
governadores e prefeitos), imputam-se as funções administrativas e de gestão da máquina pública
nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal). Ao Judiciário (juízes e tribunais), atribui-
se a atuação no sentido da resolução de conflitos de interesses existentes na sociedade. O equilíbrio
da divisão de poderes na representação democrática e o bom funcionamento da democracia
ocorrerão adequadamente se houver harmonia no exercício das funções, por intermédio da ausência
de preponderância de uma sobre a outra com a necessária cooperação e controle mútuos (que
caracteriza o sistema de “freios e contrapesos” ou “checks and balances”) previsto
constitucionalmente (SILVA, 2011, pp. 109-111).
A tese visa a responder ao seguinte problema: baseado no arranjo constitucional de 1988
e de suas dificuldades em enfrentar problemas estruturais diversos, a que se propõe a participação
política nela institucionalizada? Como pergunta complementar, indaga-se: quais são os principais
entraves / óbices para a concretização de participação de alta intensidade no país? O objetivo geral
da tese é analisar como a participação institucionalizada pela CF/88 se insere no campo da
democracia representativa, deliberativa e direta, especialmente no que diz respeito aos mecanismos
diretos, podendo contemplar outros desenhos de influência indireta. Outros objetivos específicos
15

deverão ser atendidos com a seguinte proposta, servindo de base para responder à questão final ora
apresentada:
- Entender, a partir do arranjo constitucional de 1988, como se dá a relação entre a
participação e a democracia representativa, especialmente, a partir da análise das três funções de
poder (executiva, legislativa e judiciária); do sistema de “freios e contrapesos”; dos partidos
políticos e das eleições e do presidencialismo brasileiro de coalizão;
- Examinar, sob o enfoque da democracia deliberativa, de que maneira os mecanismos
indiretos são concebidos e utilizados para realizar a participação, discutindo a sua efetividade em
termos de obtenção de resultados esperados a partir da atuação dos diversos atores sociais
envolvidos, além da possível intervenção direta dos governos eleitos a fim de viabilizar e legitimar
as suas agendas políticas e
- Entender como se dá a interação da democracia direta com a participação, no que tange
basicamente à baixa intensidade de utilização de MDDs, suas consequências e resultados
decorrentes do seu reduzido uso no campo democrático.
A tese está balizada em metodologia calcada na realização efetiva das seguintes pesquisas:
I-Fontes primárias e secundárias: levantamento e revisão de literatura bibliográfica;
documentos dos Anais da Constituinte e Congresso Nacional; Medidas Provisórias, propostas de
Emenda Constitucional, Leis Complementares, Leis Ordinárias e Constituição Federal de 1988
acrescida das Emendas Constitucionais;
II- Realização de entrevistas com constituintes representantes de correntes ideológicas
distintas na ANC: Vivaldo Barbosa (PDT / RJ - esquerdas); Miro Teixeira (PMDB / RJ – centro)
e Rubem Medina (PFL / RJ – direitas), para registrar depoimentos sobre o período focalizado,
objetivando dar espaço às diversas correntes ideológicas2 existentes na ANC sobre participação
política.
Relativamente às fontes primárias e secundárias, a abordagem se dá a partir da análise de
conteúdo (especialmente sobre as espécies normativas elencadas), objetivando identificar pontos,
questões e elementos relevantes sobre participação que pudessem vir a contribuir para a presente
pesquisa. Quanto ao levantamento realizado nos anais da ANC acerca dos debates constituintes

2
Norberto Bobbio destaca a igualdade como elemento central na distinção entre direita e esquerda: “Diante dessa
realidade, a distinção entre direita e esquerda, para a qual o ideal da igualdade sempre foi a estrela polar a ser
contemplada e seguida, é claríssima” (BOBBIO, 2011, p. 140).
16

sobre o tema, optou-se pela análise de discurso, de maneira a tentar entender a forma pela qual o
assunto foi abordado e discutido pelos representantes eleitos, e suas principais
consequências/desdobramentos no futuro texto constitucional. Por último, as três entrevistas
realizadas visaram a trazer posições ideológicas distintas, visando a mostrar como ocorreram as
manifestações na ANC. A opção por somente três constituintes se deu pelas dificuldades inerentes
às idades avançadas desses representantes eleitos, sendo relevante para mostrar propostas/ideias
conflitantes, antagônicas e até convergentes que estiveram presentes naquele momento.
A tese se estrutura ainda com base nessa Introdução, três capítulos e as conclusões. Nesse
estudo, apresento o primeiro capítulo, no qual será discutida teoricamente a participação sob o
enfoque da democracia representativa, deliberativa e direta, relacionando-as a fim de se entender a
maneira pela qual se dá a interação destas, além de seus desdobramentos/consequências. A tese
contará ainda com o segundo capítulo, onde será abordada a forma pela qual a participação foi
discutida e votada na ANC, destacando-se as principais forças políticas que compunham a
Assembleia e a maneira pela qual se posicionavam diante do tema, além das suas percepções acerca
do desenho institucional final da participação. Finalmente, o terceiro e último capítulo no qual será
analisado o arranjo constitucional normativo final da participação institucionalizada, a partir do
texto promulgado em outubro de 1988, confrontando-a com os principais mecanismos
democráticos diretos e indiretos, e seus desdobramentos na atuação da cidadania nas diversas
esferas decisórias de poder.
17

1 CRISE DA REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO

1.1 A crise da representação

A democracia caracteriza “uma forma de organização política baseada na igualdade


potencial de influência de todos os cidadãos, que concede às pessoas comuns a capacidade de
decidirem coletivamente seu destino” (MIGUEL, 2014, pp. 28-29), sendo regime político que visa
a garantir o exercício das liberdades públicas fundamentais. Realiza-se tomando por base o
procedimento que produz um governo exercido por muitos, por meio de eleições regulares, que
dão o exercício do poder ao povo e determina a responsiviness dos escolhidos. Há outros conceitos
de democracia, mas a opção pela definição de Miguel alude a possibilidade que o arranjo político
democrático atribui aos indivíduos, de forma indistinta, de participar diretamente das escolhas que
repercutem na sociedade.
Não há outro termo que possua tantos significados como democracia (CRICK, 2002). A
democracia procedimental ou democracia institucional corresponde a uma corrente da teoria
política, desenvolvida sobretudo na segunda metade do século XX, segundo a qual, nas
democracias contemporâneas, à diferença da democracia clássica, é praticamente impossível que
todos os cidadãos possam participar ativamente do jogo político. Após o término da Segunda
Guerra Mundial, criou-se no Ocidente, sob a hegemonia estadunidense, uma quase unanimidade
acerca da democracia enquanto valor universal, estimulando a reflexão sobre o conceito e os
sentidos do termo “democracia” e suas variações (democracia direta, democracia representativa,
democracia liberal ou democracia burguesa, democracia proletária, socialdemocracia). A
dificuldade principal se encontra na definição de “democracia” em termos de fontes de autoridade
ou de propósitos de governo, levou esses autores a enfatizar uma definição institucional de
democracia. Seus principais expoentes são Giovanni Sartori, Robert Alan Dahl, Samuel P.
Huntington e Joseph Schumpeter. Essa corrente opõe-se parcialmente à democracia participativa e
alinha-se à teoria elitista, que tem por principais autores: Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e Robert
Michels, que afirmavam a impossibilidade da democracia, enquanto “governo do povo". Para Dahl,
“democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos,
considerados como politicamente iguais” (2015, p. 25).
18

A democracia direta é aquela na qual o indivíduo exerce, diretamente e sem intermediação,


os poderes no Estado. A indireta ou representativa é aquela em que o poder se exerce por intermédio
dos representantes eleitos pela cidadania. A semidireta ou participativa é a representativa com
alguns institutos de participação direta do povo nas ações governamentais (SILVA, 2011, p. 136).
O protagonismo conquistado pelo liberalismo democrático no final do século passado se dá em
grande parte pelo malogro do comunismo, concluindo-se apressadamente pelo “fim da história”
(FUKUYAMA, 1992). A crítica interna da democracia foi operação delicada durante a Guerra Fria,
sendo a teoria democrática hermética nesse período. Foi defensiva e ofensiva relativamente ao
comunismo: ofensiva, porque denunciava o totalitarismo político e, defensiva, pois impedia a
abertura de “vias igualitárias” que colocavam a luta ideológica em prol do comunismo (LAVALLE,
2011, p. 36). O futuro no contexto do processo de resultados nefastos da globalização, no qual
poder e política estão separados (BAUMAN, 2000), passaria a ser, por exclusão e
irreversivelmente, do modelo liberal. Após uma primeira onda neoliberal conservadora amparada
no chamado “Consenso de Washington”3, modelo sugerido aos chamados “países emergentes”
pelos estados hegemônicos na década de noventa do século passado, em especial, os Estados
Unidos da América, fundado basicamente na desregulamentação da economia, no controle cambial,
na desnacionalização de empresas e na precarização das relações trabalhistas (que tem ampla
aplicação em diversos países, especialmente na América Latina), esse paradigma econômico se
deteriora e, com este, a ascensão conservadora na maioria dos países do continente, mostrando-se
incapaz de atender aos anseios de mudanças e de enfrentar o grande problema latino-americano: a
desigualdade social. São eleitos partidos de centro-esquerda e esquerda a partir do início do séc.
XXI, que trazem novas propostas na sua maioria contrárias ao neoliberalismo aplicado
anteriormente na América Latina.

3
O Consenso de Washington é um conjunto de medidas formuladas durante uma reunião, em novembro de 1989, por
economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o
Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, baseadas em um texto do economista John Williamson, do
International Institute for Economy, que estimulavam a competição entre as taxas de câmbio, davam incentivos às
exportações e previam a gestão de finanças públicas e se tornando a política oficial do Fundo Monetário Internacional
em 1990, no momento que passaram a ser "receitadas" para promover o "ajustamento macroeconômico" dos países em
desenvolvimento que passavam por dificuldades.
19

Os governos de Nestor Kirchner4 (Argentina) seguido de sua esposa, Cristina Kirschner5,


Hugo Chavez6 (Venezuela), Luiz Inácio Lula da Silva7 e Dilma Rousseff 8 (Brasil), Evo Morales9
(Bolívia), Michele Bachelet10 (Chile), Pepe Mujica11 (Uruguai) e Rafael Correa12 (Equador) são
exemplos da chamada “nova onda rosa” (SILVA, 2019, p. 85). O continente experimenta mudanças
e diversas medidas são tomadas para enfrentar a desigualdade e exclusão social, incluindo os
pobres nos orçamentos estatais sem, contudo, enfrentar diretamente as mudanças estruturais
necessárias e esperadas para mudar esse cenário. Ao depois, ocorre a alternância no ciclo eleitoral
(quando a economia vai bem o incumbente se reelege, quando a economia vai mal há alternância
política), substituindo-se, em alguns casos, presidentes legitimamente eleitos (Honduras 13,
Paraguai14 e Brasil15), por meio do “impeachment”. Em 2016, Dilma Rousseff (PT) é submetida
ao referido procedimento e substituída pelo seu vice, Michel Temer16 (PMDB), que governa até o
final do mandato sob forte desconfiança. Em 2018, Jair Bolsonaro, representante da extrema-direita
radical, com discurso baseado em apelo para uma “nova política”, mas que repete práticas
contumazes anteriores, trazendo elementos novos e preocupantes, especialmente no que tange ao
descarte do regime político democrático. A situação política muda em 2022, quando o candidato
de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, é eleito novamente após acirrada disputa com o
presidente em exercício, retratando a considerável divisão existente no país.
O crescimento do populismo autocrático reverbera em boa parte do nosso mundo: Estados
Unidos da América (EUA, com Donald Trump17), Brasil, Hungria e Polônia podem ser citados
como exemplos recentes (MOUNK, 2019). A extrema direita italiana conquistou, em setembro de
2022, o poder na Itália, a terceira maior economia da União Europeia, com a vitória de Giorgia

4
2003/2007
5
2007/2015
6
1999/2013
7
2003/2010
8
2011/2016
9
2006/2019
10
2006/2010 e 2014/2018
11
2010/2015
12
2007/2017
13
Manuel Zelaya (2009)
14
Fernando Lugo (2012)
15
Dilma Rousseff (2016)
16
2016/2018
17
2016/2020
20

Meloni (partido Irmãos da Itália) nas eleições legislativas, estando prestes o país a ser governado
por uma liderança pós-fascista, situação que não ocorria desde 1945. Isso repercute diretamente na
maneira pela qual os cidadãos encaram o arranjo democrático-liberal protagonizado por partidos
políticos e seus representantes. A crescente maré conservadora sinaliza para o desgaste do modelo
que atingiu o auge no século passado com o “Welfare State”.
É necessária, pois, a contínua consolidação da democracia enquanto regime político
garantidor das liberdades públicas fundamentais, sendo a participação política um dos possíveis
elementos de resistência à tentativa de redução da perspectiva democrática, além de servir como
complemento à democracia representativa. Entender a crise pela qual passa a democracia configura
elemento central. Esta enfrenta atualmente agudo desgaste e passa por mudanças substanciais, que
podem alterar ou transformar práticas relativas ao seu exercício. Sendo assim, “a revisão crítica
dos pressupostos que alicerçam a compreensão moderna da representação política e a reconstrução
de sua gênese podem ajudar a reconstituir os problemas que estiveram na base da separação entre
Estado e sociedade” (ALMEIDA, 2015, p. 43). Sinaliza-se, portanto, na América Latina, para a
baixa institucionalização do Estado na defesa de direitos fundamentais e crescente ceticismo dos
indivíduos acerca dos seus representantes:

Embora países da América Latina, Brasil, Peru, Argentina, Equador e Bolívia e,


provavelmente, alguns países da Europa Central e Oriental respeitem regras
eleitorais, o seu interior contém ‘zonas marrons’, nas quais não impera o Estado
de Direito, caracterizando uma baixa presença do Estado tanto funcionalmente
como territorialmente. Assim, O’Donnell alerta para a desconexão entre as
promessas de campanha dos candidatos a cargos representativos (presidente em
particular) mediante eleições livres e competitivas e as decisões discricionárias
que tomam e implantam uma vez eleitos (ALMEIDA, 2015, p. 35).

Sinais da crise da democracia representativa como o ceticismo e ausência de apoio do


povo relativamente aos seus representantes podem ser sentidos também em outros países:

Na França, por exemplo, Sintomer (2010, p. 27-28) destaca pesquisa feita pelo Le
Monde, em 2005, na qual 39% dos eleitores declararam ter pouca confiança e 37%
responderam ter nenhuma confiança nos políticos. Esses “preocupam-se, acima
de tudo, com suas carreiras” (85%), “são alheios à verdadeira vida dos franceses”
(62%) e “corruptos” (49%). No que diz respeito à abstenção eleitoral, Freire e
Magalhães (2002) mostram, para o caso português, que o não comparecimento às
urnas está diretamente relacionado com o declínio das taxas de sindicalização; a
perda da capacidade mobilizadora dos partidos de massa e a desconfiança nas
21

instituições democráticas – quanto menor a confiança, menor a participação


(Freire; Magalhães, 2002, p. 148 apud Espírito Santo, 2005, p. 149). Nos Estados
Unidos, a participação eleitoral apresentou baixos índices nos últimos anos
(ALMEIDA, 2015, p. 33).

A democracia liberal enfrenta hodiernamente sua maior crise global. Os motivos para essa
crise têm origens diversas, acarretando consequências diretas às nações das diferentes partes do
mundo (BALLESTRIN, 2018). Algumas situações contribuem diretamente para o agravamento do
quadro: o déficit de credibilidade dos partidos políticos que, na sua grande maioria, funcionam
como associações políticas de aluguel e fachada, servindo a interesses previamente determinados
pelos partidos majoritários e pelas elites políticas; o incremento generalizado da corrupção; o
desinteresse dos cidadãos pelas eleições; a desconfiança dos representados acerca dos seus
representantes e o descrédito popular relativamente aos poderes legislativo, executivo e judiciário.
Estaria a coexistência da democracia com o liberalismo limitada a uma constante melhoria das
condições de vida do povo? (PRZEWORSKI, 2020).
Hobbes (2004), no Leviatã, lançou as bases do conceito de representação, formulando
uma definição não religiosa capaz de romper com a doutrina cristã. Trouxe dois fundamentos para
a ideia de representação: um originário da Grécia, no sentido de substituição de uma pessoa por
outra no teatro e, outro, vindo de Roma, enquanto identificação e autorização (AVRITZER, 2007,
p. 446). A baixa avaliação acerca do desempenho das instituições representativas sinaliza que o
ceticismo sobre a legitimidade dos representantes não se dá exclusivamente no comparecimento
eleitoral ou prestação de contas, mas ainda no que tange ao atendimento dos interesses e demandas
dos cidadãos.
Apesar dos representantes conseguirem animar os indivíduos no período eleitoral, eles
erram quando necessitam organizar as expectativas dos desprovidos em espaços de tomada de
decisões que lhes afetam diretamente, levando a desconfiança às instituições representativas. A
consequência disso é o descrédito da representação democrática, buscando-se soluções pessoais
por intermédio de pessoas ocupantes de cargos chaves no governo em detrimento da
impessoalidade, que deve pautar a atuação da administração pública estatal. O modelo de
democracia representativa que floresceu no século XX deixou de realizar a promessa nele contida,
de um “governo do povo”. Trespassado por consideráveis desigualdades estruturais, funcionou e
ainda funciona mais como instrumento de legitimação do “status quo” vigente do que de
22

transformação social. A unidade identitária provida pela comunidade nacional encobria os muitos
vieses presentes nas sociedades contemporâneas, que fazem com que ideias e valores de grupos
subalternos sejam desqualificados de forma sistemática (MIGUEL, 2014, pp. 132-133).
A maneira pela qual se avalia negativamente a performance das instituições
representativas sinaliza para uma falta de legitimidade não apenas formal, mas também substantiva,
ou seja, relativa ao atendimento de interesses da cidadania, logrando êxito em mobilizar os
indivíduos no período eleitoral, porém falhando sobretudo na articulação dos interesses dos
excluídos em fóruns de tomada de decisão e na consecução de melhores políticas sociais que os
beneficiem. A apatia dos indivíduos relativamente às instituições representativas é ainda agravada
pelo repúdio aos resultados advindos do processo político-eleitoral, que, na sua maioria, não são
hábeis a atender às demandas da população, mitigando a confiança na democracia enquanto regime
político apto a solucionar as questões que afligem os cidadãos (NOBRE, 2022).
As tensões e os conflitos sempre existiram nas sociedades democráticas contemporâneas,
todavia, o aspecto conflituoso desse processo se relaciona ao aspecto paradoxal de representação
política: tornar presente a ausência, que põe em polos distintos, estado e sociedade
(POGREBINSCHI, 2009). Tal concepção traz um paradoxo: primeiro, o ausente não pode estar
presente a partir da ideia de que outro está em seu lugar. A ideia é amplamente indefinida para
ajudar a ordenar os diversos sentidos do termo, geralmente carregados de incompatibilidades que
a expressão traz por séculos de uso (PITKIN, 2004). Explica a referida autora que a representação,
como ideia e prática política, emerge recentemente. Assim, a ideia de democracia pode ser
considerada sinônimo direto de representação, mas não de participação. Essa concepção é uma
construção que vai sendo realizada ao longo do tempo e da experiência. Pitkin cita Rousseau
(2005), ressaltando que a liberdade requer ação direta, participação pessoal de todos e assembleia
conjunta decidindo políticas públicas que a todos interessem. A representação não parece capaz de
atender todas essas demandas. Apesar de esforços diversos a fim de democratizar o sistema
representativo, as consequências observadas são para que a representação suplantou a democracia,
ao invés de servi-la.
As revoluções liberais18 do final do século XVIII ratificam o afastamento já existente do
povo das esferas decisórias de poder, ficando tal privilégio a cargo de poucos (elites) que

18
Referem-se à Revolução Francesa (1789) e à Independência norte-americana (1776) havida também como
movimento revolucionário contra o domínio britânico.
23

influenciam diretamente as opções políticas estatais em prol de seus interesses pessoais (ARENDT,
2011). No modelo neoliberal, a democracia representativa se voltou mais para a defesa das
demandas das classes dominantes em detrimento das necessidades dos excluídos especialmente
nos países emergentes, situação que prejudica o exercício pleno da cidadania:

Ao longo do século XX, a construção da hegemonia democrática como forma de


governo globalmente aceitável esteve condicionada pela limitação e pelo
afastamento de alguns de seus princípios e significados possíveis. No século
passado teriam ocorrido pelo menos três grandes debates em torno da democracia:
em suas primeiras décadas, o primeiro debate tratou da desejabilidade da
democracia como forma de governo; em um segundo momento, a partir da
Segunda Guerra Mundial, as questões econômicas e estruturais foram
introduzidas na discussão para analisar sua (in)compatibilidade com o
capitalismo; por fim, deram-se as disputas acerca do formato e das variações
democráticas. Diante da vitória neoliberal que tornou a democracia e a economia
de mercado dois projetos indissociáveis, o questionamento da baixa intensidade
democrática incentivada pelo modelo hegemônico ocidental – minimalista,
procedimental, agregativo, elitista, liberal, pluralista –, ocorreu a partir da
recuperação e introdução de outros modelos, mais complementares do que
substitutivos daquele hegemônico. Baseando-se no diagnóstico não consensual
sobre a crise e a falência da democracia representativa, os princípios da
participação política, deliberação pública, soberania popular e autogoverno foram
sendo recuperados pelas propostas institucionais de democracia participativa,
deliberativa e direta, os quais procuraram romper com o monopólio da
representação e agregação de interesses pelos partidos políticos, apostando no
potencial da sociedade civil, ação coletiva e movimentos sociais para o
aprofundamento e radicalização da democracia (BALLESTRIN, 2018, p. 152).

A ideia de pós-democracia ou desdemocratização19 liga diretamente política e economia,


constatando-se a fragilização daquela em detrimento do reforço e da consolidação desta em
diversos sentidos como modelo a ser seguido pelos governos, em especial os mais fragilizados
social e economicamente. A luta entre democracia e neoliberalismo envolve também o embate
entre soberania popular e elites (fortemente representadas nos governos representativos), além da
constante e temerária privatização do espaço/poder público pelo econômico em nível mundial,
tendo como resultado constante e imediato a mitigação democrática com base em suas instituições,
ações e práticas políticas.
As consequências são a desilusão com a democracia, à espera de “mitos salvadores” e o
aumento da desigualdade. O resultado é mais pobreza, miséria e exclusão social, reforçados pela

19
O termo foi mais sistematicamente desenvolvido pelo sociólogo Colin Crouch (2011) ao longo dos anos 2000
(BALLESTRIN, 2018).
24

falta de inclusão laboral por causa do despreparo da maioria para enfrentar as constantes demandas
do mercado de trabalho, especialmente no que tange à automação, além da diminuição da
percepção da democracia enquanto regime político essencial à defesa da vida e da liberdade das
pessoas. Resumindo: parte-se para a informalidade do mercado de trabalho, tendo como
consequência o incremento exponencial de subempregados que só agravam a crise social. A
propaganda neoliberal coloca a crise política e econômica na conta da democracia, desgastando
continuamente as instituições políticas:

Estas novas forças conjugam elementos já familiares do neoliberalismo


(favorecimento do capital, repressão do trabalho, demonização do Estado social e
do político, ataque às igualdades e exaltação da liberdade) com seus aparentes
opostos (nacionalismo, imposição da moralidade tradicional, antielitismo
populista e demandas por soluções estatais para problemas econômicos e sociais).
Assim, as agendas políticas liberais, as agendas econômicas neoliberais e as
agendas culturais cosmopolitas geraram uma crescente experiência de abandono,
traição e finalmente raiva por parte dos novos despossuídos, das populações da
classe trabalhadora e da classe média brancas do Primeiro Mundo e do Segundo
(BROWN, 2019, p. 11).

O neoliberalismo transforma os aspectos político, social e democrático em econômico.


Corre-se o risco da democracia e das instituições não conseguirem assimilar e responder os ataques
contínuos. Tal circunstância inviabilizaria a continuidade do regime democrático em um futuro
próximo. A pós-democracia pode acarretar o deslocamento da política para um espaço de
neutralidade estrategicamente pensado e calculado, objetivando determinar o fim do antagonismo
político e a aceitação resignada do reformismo político e a economia de mercado (BALLESTRIN,
2018).
Desta maneira, a representação deve ser hábil a “explicar os eventos de continuidade bem
como as crises e, além disso, envolver a ideia de que o povo soberano conserva um poder negativo
que lhe permite investigar, julgar, influenciar e reprovar seus legisladores” (URBINATI, 2006, p.
208). A grande questão é: como fazer isso? Mais participação, educação e inclusão social.
Enquanto os países “emergentes” insistirem em replicar medidas que se distanciam da realização
do bem-estar de suas populações, condenando-as à continuidade da pós-colonização cultural em
pleno século XXI, dificilmente o quadro mudará. O reforço da participação como complemento
democrático-institucional pode ser positivo a fim de, não só dotar a cidadania da consciência e
importância de estar presente diretamente nas decisões acerca de questões que lhe tocam, como
25

também e, sobretudo, frear o ataque neoliberal que ocorre por dentro do poder público, via
cooptação dos representantes eleitos pelo voto popular (SOUZA, 2017). A desconstrução do estado
de bem-estar social, o desmonte neoliberal e o incremento da desigualdade marcaram
profundamente a democracia representativa, tendo como grande desafio a religação da cidadania
com a política, via participação popular, sendo necessária, para tal, a organização, educação e
inclusão social.

1.2 Participação: uma abordagem teórica

Participação é o ato pelo qual o indivíduo se insere em processos de elaboração de planos,


decisão e implementação de políticas, contribuindo ou influenciando diretamente nas escolhas de
determinada coletividade. O termo participação, dependendo do momento histórico, pode aparecer
relacionado a outras expressões, tais como democracia, representação, direitos, organização,
conscientização, cidadania, solidariedade, exclusão e outros (GOHN, 2019, p. 27), ou seja,
“participação é, a um só tempo, categoria nativa da prática política de atores sociais, categoria
teórica da teoria democrática com pesos variáveis segundo as vertentes teóricas e os autores, e
procedimento institucionalizado com funções delimitadas por leis” (LAVALLE, 2011, p. 33).
Participação é um dos vocábulos mais usados no campo político, relacionando-se diretamente com
expressões que objetivam conceituá-la ou distingui-la, como, participação comunitária, popular,
institucional, cidadã, cívica, democrática.
A participação pode ser analisada também valendo-se de três paradigmas essenciais: o
conceitual, o político e o da prática social. O primeiro traz um alto grau de ambiguidade e varia de
acordo com o modelo teórico segundo o qual se fundamenta. Já o paradigma político é comumente
relacionado a processos de democratização, podendo ainda ser usado como discurso de
mistificação para integração social das pessoas componentes da sociedade, isoladas em processos
que visam ratificar os instrumentos reguladores e de normatização da coletividade, tendo como
consequência políticas sociais de controle social. A prática social tem relação direta com o processo
social propriamente dito, ou seja, se reporta às iniciativas diretas relativas às lutas, mobilizações,
movimentos e organizações diversas, que têm por objetivo realizar algum intento, ou se estabelecer
em áreas institucionalizadas na esfera pública, em políticas públicas, sendo a participação
instrumento de viabilização essencial no campo político (GOHN, 2016b, pp. 16-17).
26

Pode a participação ainda ser vista sob outros dois prismas: o primeiro, a partir das efetivas
práticas civis e, ainda, sob o enfoque de pesquisas dos estudiosos do assunto, sugerindo-se duas
questões-chave norteadoras na análise: uma primeira no sentido de como se reflete a participação
social, por diferentes autores, de vários paradigmas e correntes teóricas, ao se debruçarem sobre a
luta de segmentos da sociedade para solucionar seus problemas, materiais (lutas econômicas) ou
simbólicas/culturais (lutas contra as discriminações). Uma segunda questão seria a maneira pela
qual estas correntes têm contribuído para a compreensão do problema da participação ou para
fornecer elementos acerca dos acontecimentos participativos sociopolíticos e culturais recentes no
país (GOHN, 2019, p. 25).
No Brasil, os estudos sobre participação podem ser divididos em três instantes: o primeiro
se voltou à análise da pressão dos movimentos sociais e sociedade civil ao final do regime militar
e durante a transição democrática (1970-1980); o segundo trata de duas décadas de debates (1990-
2010), cujo objetivo principal foram as Instituições Participativas (IPs); e, o terceiro (2010-2018),
demonstra uma queda na aposta da participação nas IPs. Destaca-se ainda que os estudos sobre
participação política apresentaram caminhos diversos diretamente influenciados por três marcos da
CF/88: i) o surgimento de um padrão distinto de interação Estado e sociedade, ii) os novos marcos
dos direitos sociais e iii) a institucionalização de mecanismos participativos (ALMEIDA e
DOWBOR, 2019).
Ressaltam-se também dois diferentes prismas acerca das pesquisas sobre participação
política. O primeiro aborda os estudos comportamentalistas e tem como elemento principal de
abordagem o engajamento político individual nas diversas formas de participação. Nessa vertente,
o foco das pesquisas empíricas se dá na elaboração de diagnósticos comparados de largo alcance
do fenômeno da participação. A segunda é delimitada pela preocupação normativa com o reforço
da democracia, sendo o objeto principal das pesquisas “as modalidades mais institucionalizadas de
engajamento político, os atores e as instituições envolvidos com a democratização das instâncias
decisórias e o controle sobre as ações governamentais” (ALMEIDA, 2018, p 11).
Referem-se aos estudos sobre as IPs, das quais são paradigmas no país os Conselhos
Gestores de Políticas Públicas, os Orçamentos Participativos e as Conferências Públicas de
Políticas. A bibliografia ligada ao prisma comportamentalista traz dois elementos importantes: o
primeiro é o elo entre cultura política e instituições, a partir das opiniões dos indivíduos que
interfeririam no funcionamento do sistema político, garantindo-lhe estabilidade ou instabilidade.
27

O segundo elemento é o de que a crença nas instituições e a participação política seriam centrais
para a estabilidade democrática, sendo ideal ao regime democrático aquele cidadão leal às
instituições, que aceita e se satisfaz com seu funcionamento e acata o resultado eleitoral.
Relativamente aos estudos sobre as IPs, os objetivos principais estão nas regras que estruturam a
competição pelo voto, nas instituições representativas tradicionais e nos seus agentes específicos.
Projetam-se nas modalidades de participação da sociedade civil e dos seus impactos na
revitalização da esfera pública, na configuração de novas instituições que poderiam proporcionar
mais inclusão e na legitimidade e na justiça às decisões políticas (ALMEIDA, 2018, pp. 11-16).
Do ponto de vista histórico, as sociedades conviveram ao longo dos anos com modelos
autoritários nos quais a participação em decisões coletivas foi consideravelmente reduzida. O
surgimento da participação ocorre em Atenas (Grécia), no século IV a.C., nas ecclesias20, onde as
pessoas habilitadas a emitir opiniões e posições se manifestavam. Apesar da relevância dessas
reuniões como elemento fundador da democracia ocidental, a abrangência política de tais
manifestações era mitigada. Participavam apenas homens bem aquinhoados intelectual e
financeiramente, ficando de fora a grande maioria da população ateniense, especialmente mulheres,
pobres e escravos. A “democracia dos antigos”21 representa elemento central na origem e evolução
da perspectiva democrática no mundo ocidental, inaugurando, apesar de restrições, ampla
manifestação coletiva nas decisões estatais. As revoluções liberais (estadunidense e francesa) do
final do século XVIII reconfiguram consideravelmente tal modelo, introduzindo as instituições
liberais (a representação democrática virá depois), na qual o exercício do poder não seria mais
realizado diretamente por meio de deliberações em praças públicas, mas pela via do exercício
indireto do poder político pelos representantes eleitos pelos cidadãos, a chamada “democracia dos
modernos”22.
O conceito de participação política adquiriu diferentes perspectivas nas teorias
democráticas nos séculos seguintes. Jean-Jacques Rousseau, Stuart Mill e Alexis de Tocqueville,
apesar das diferenças existentes, ressaltam a participação política dos cidadãos nos negócios

20
Assembleias políticas de cidadãos dos Estados da Grécia antiga, especialmente dos de Atenas.
21
Aparece na experiência ateniense sendo, na origem, uma forma de democracia direta que se realizava num espaço
restrito, a cidade/Estado grega. A democracia se processava por intermédio de um sistema de assembleias, às quais era
atribuído o poder de tomar as decisões políticas.
22
Originada a partir do final do séc. XVIII, passa a predominar o sistema representativo, no qual as constituições
estatais definem quem têm o direito ao voto, assim como o direito de se candidatar a cargos públicos, elegendo-se os
representantes que exercem o poder a partir da escolha do cidadão.
28

públicos como maneira de se desenvolver a educação política e a responsabilidade social, fatores


considerados essenciais sem os quais dificilmente a via democrática se consolidaria. A participação
seria elemento essencial de fomento à prática democrática em diversos níveis e contextos sociais,
especialmente, nas questões diretamente relacionadas à atuação estatal.
Na primeira metade do século XX, todavia, a participação foi questionada pelos teóricos
elitistas, sobretudo, Mosca (1939), Pareto (1935), Michels (2001) e Schumpeter (1984). Esses
defendiam que as elites eram mais preparadas e capacitadas para governar em detrimento da grande
maioria, considerada inábil para decidir acerca de relevantes e diversas questões. Robert Michels
(2001), e sua “lei de ferro da oligarquia”, é um dos precursores da chamada crítica à democracia,
ressaltando a impossibilidade do ideal democrático, tendo em vista a incompatibilidade entre
organização e igualdade democrática. O chamado elitismo democrático, geralmente associado a
Schumpeter (1984), em parte segue este diagnóstico ao pôr em prática uma ótica realista da
democracia, a partir do argumento de que a participação dos indivíduos na política não é realizável
nem muito menos desejável. Democracia, para Schumpeter, é um método político, isto é, um
arranjo institucional para se chegar a decisões políticas e administrativas (PATEMAN, 1992, p.
12). Essa posição se explicaria pela ausência de qualificação e preparo do indivíduo comum diante
da complexidade crescente das demandas da sociedade moderna, além da instabilidade que uma
participação errônea poderia refletir, dificultando o consenso acerca das escolhas que seriam
consideradas como corretas e devidas.
As decisões políticas geralmente são tomadas por uma minoria com mais poder
econômico e intelectual do que os cidadãos comuns (MIGUEL, 2002, p. 2). Bobbio, ao se referir à
teoria das elites ou elitistas, esclarece que, em toda sociedade, existirá sempre uma minoria que é
detentora do poder, em contraposição a uma maioria que dele está privada:

O poder supremo está nas mãos de um restrito grupo de pessoas propensamente


fechado, ligadas entre si por vínculos de sangue, de interesse ou outros, e que
gozam de privilégios particulares, servindo-se de todos os meios que o poder pôs
ao seu alcance para o conservar (BOBBIO, 2016, p. 835).

A esfera pública burguesa pode ser compreendida como o espaço das pessoas privadas
reunidas em um público. Elas desejam a esfera pública regulamentada pela autoridade (como forma
de proteção em uma perspectiva originariamente contratualista), mas diretamente contra a própria
29

autoridade, a partir do momento que não desejam sofrer especialmente as consequências


decorrentes das limitações de direitos advindas do poder público. O Estado de Direito burguês
pretende, à base da esfera pública em funcionamento, uma organização do poder público tal que
garanta a sua subordinação às exigências de uma esfera privada que se pretende neutralizada quanto
ao poder. “A ideia burguesa de Estado de Direito, ou seja, a vinculação de toda a atividade do
Estado a um sistema normativo, à medida do possível sem lacunas e legitimado pela opinião
pública, já almeja a eliminação do Estado” (HABERMAS, 2003, p. 102), ou seja, “a esfera pública
burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das pessoas privadas reunidas num público
em seus duplos papéis de proprietários e de meros seres humanos” (HABERMAS, 2003, p. 74).
O caminho percorrido pelos teóricos da democracia participativa contemporânea tentou
demostrar as incongruências do elitismo democrático relativamente à imaginada incapacidade do
povo em geral, existindo claros limites à racionalidade das elites, e ainda, que elas detêm interesses
próprios que não se coadunam com os de todos. Ao admitir que as elites são esclarecidas, imagina-
se que colocarão em prática uma política voltada para o interesse público. Todavia, há limites à
racionalidade das elites, possuindo estas agendas e interesses próprios que, na maioria das vezes,
não se compatibilizam com os anseios da população, além de não admitirem colocar em risco seu
próprio prestígio e poder pessoal (BACHRACH, 1983, p. 164). A capacidade técnica e política das
elites supostamente mais bem preparadas não importam necessariamente em avanços significativos
para a sociedade.
A ideia de “político” é muito limitada às esferas governamentais, prejudicando a
ampliação da democracia para englobar outros setores. Tal circunstância reforça e legitima o poder
de influência e de decisão das minorias prevalentes. Ampliar a ideia de político para espaços de
participação não-governamentais é fundamental para contrapor a visão elitista de que o governo
das elites e a passividade das massas satisfazem os elementos essenciais de uma teoria democrática.
A descentralização, via igualdade de possibilidade de influenciar, seria uma possível solução diante
de um sistema político em que o poder se encontra dividido, sendo necessário encontrar um
caminho do meio, no qual se concilia a participação com objetivo de autodesenvolvimento e
representação, não podendo a teoria política abandonar sua função normativa e fundamental de
orientar as ações humanas (BACHRACH, 1983, p. 152-156).
Carole Pateman é a principal defensora da teoria participativa, indo de encontro aos
elitistas ao ressaltar a inter-relação entre o funcionamento das instituições e as qualidades e ações
30

psicológicas das pessoas que nelas interagem. Defende a democracia participativa e demonstra que
o elitismo democrático se baseia em uma crítica relativamente ao aspecto irrealista dos “clássicos”
que teorizaram sobre a participação (PATEMAN, 1992, pp. 29-30). Vai mostrar que a crítica ignora
a diferença entre os autores – em relação ao papel que atribuem à participação – e que a ideia de
recusa da noção de liderança pela teoria “clássica” é equivocada. Na mesma linha de Bachrach,
Pateman sustenta a necessidade de ampliação do conceito de político, pois as instituições
representativas no nível nacional não são suficientes para a democracia, devendo a participação
estar presente nas diferentes esferas governamentais, além de outras como o trabalho. A
participação como maneira de aperfeiçoamento democrático sugere três funções essenciais: a
educativa; a de integração e a de auxílio à aceitação de decisões coletivas (PATEMAN,1992, pp.
60-61).
Pateman destaca ainda a possibilidade de democratização das estruturas de autoridade da
indústria, analisando as experiências de participação industrial na Iugoslávia socialista na segunda
metade do século passado. Apesar da importância dos seus estudos e resultados positivos sobre
participação no referido país, há certos paradoxos na análise desenvolvida, tendo em vista que sua
abordagem teórica alude à participação em uma democracia liberal, enquanto suas observações
práticas se reportam à participação e à democratização industrial em paradigma autoritário sob a
égide do socialismo, ou seja, uma contradição em termos. Todavia, o seu trabalho teórico é de
extrema importância e auxilia na compreensão sobre a contínua demanda por participação no
mundo atual como forma de consolidação e ampliação não só do político, mas também da própria
perspectiva democrática.
A proposta de participação política mais abrangente voltou a ser objeto da teoria
democrática contemporânea, redimensionando o seu conceito de maneira a propiciar novos
significados e propostas relativas às demandas da sociedade moderna, destacando-se as vantagens
e virtudes da participação em contexto de mudança gradual da coletividade para ser mais
democrática e incluída politicamente. Há um caminho contra-hegemônico da democracia, haja
vista que a representação se tornou inábil para solucionar duas questões: a prestação de contas e o
atendimento às crescentes demandas relativas às múltiplas identidades. Santos e Avritzer sustentam
que, durante o século XX, a discussão acerca da democracia se reduziu basicamente a duas
maneiras complementares de hegemonia. Um primeiro paradigma de hegemonia se baseou na
hipótese de que a solução da discussão que se travava na Europa no período entre guerras teria sido
31

o abandono da mobilização social e da atuação coletiva na construção e consolidação democrática;


uma segunda maneira seria aquela na qual se imaginava que a receita elitista para a discussão sobre
a democracia, supervalorizando os mecanismos de representação, poderia ser hegemônica sem que
estes necessariamente combinassem com instrumentos de participação (SANTOS e AVRITZER,
2003, p. 43).
A democratização inicializada no sul da Europa e na América Latina, respectivamente nos
anos setenta e oitenta, foi fundamental para viabilizar novas abordagens acerca da participação.
Uma primeira foi a necessidade de se viabilizar uma nova forma de interação entre Estado e
sociedade relativa ao acesso privado favorecido em relação aos recursos públicos. Outro ponto é a
maneira pela qual o conhecimento pertencente aos diversos protagonistas sociais pode ser atribuído
à burocracia para a resolução de questões gerenciais que importem em ganhos e melhorias para
todos, transferindo práticas e informações do nível social para o administrativo. Finalmente a
comunhão equilibrada entre democracia representativa e democracia participativa para assegurar a
defesa de identidades e interesses dos excluídos, cabendo a democracia participativa um lugar
social e político de reinvenção da emancipação social (SANTOS e AVRITZER, 2003, pp. 54-55).
O alargamento da participação popular enseja, todavia, grandes disputas políticas,
podendo os setores sociais hipossuficientes ser cooptados por grupos economicamente mais
prestigiados de maneira a inviabilizar ou reduzir o potencial democrático existente nas relações de
poder. A participação política deve ser analisada particularmente, de acordo com as suas
especificidades, verificando os limites e potencialidades, de maneira que propicie avanços
significativos e consistentes no campo político e democrático, e não retrocessos que a todos
prejudicariam. É necessário que se mensure se os espaços franqueados à participação colaboram
para a mudança nas relações de poder existentes e se contribuem para a efetiva democratização do
acesso dos atores sociais às políticas públicas patrocinadas pelo Estado (AVRITZER, 2002, p. 38).
No Brasil, a participação democrática foi historicamente de baixa intensidade. A estrutura
social do país (basicamente rural até o século XX e construída com base em mão de obra escrava
formada sobretudo por negros e índios) propicia um vasto controle dos chamados “senhores de
engenhos” sobre aqueles que viviam sob os seus domínios. Boa parte dos anseios da população que
vivia nessas condições era desconsiderada ou, na maior parte das vezes, sequer veiculada por temor
às consequências que podiam acarretar. O quadro começa a mudar com a chegada de Getúlio
Vargas ao poder após a Revolução de 1930, que investe maciçamente em uma política
32

desenvolvimentista nacional com diversas iniciativas: criação de empresas nacionais em setores


estratégicos, edição do Decreto-lei nº 5.452/43 (Consolidação das Leis do Trabalho-CLT), voto
feminino, investimento no desenvolvimento nacional e considerável aumento do parque industrial
brasileiro e melhoria do ensino público, situações que levam a novas demandas sociais.
Relativamente à participação nas políticas sociais, o legado varguista proporcionou a chamada
“cidadania regulada”23, que, com a carteira de trabalho, determinava o status da cidadania. A
antecipação dos direitos sociais gerou a sensação de que os direitos não fossem percebidos como
tais, ou seja, como independentes da ação de governo, mas como uma benesse em troca da qual era
devida gratidão e lealdade, resultando daí uma cidadania passiva e receptora ao invés de ativa e
reivindicadora (CARVALHO, 2013, p. 126).
O período que vai de 1945, com a derrubada de Getúlio Vargas pelos militares até 1964,
pode ser considerado como a primeira experiência democrática brasileira, na qual “a CF/1946
manteve as conquistas sociais do período anterior e garantiu os tradicionais direitos civis e
políticos” (CARVALHO, 2013, p. 127), havendo liberdade de imprensa e de organização política.
Com o golpe civil-militar de 1964 (SANTOS, 1962), a realidade brasileira foi consideravelmente
alterada:

Até o início da década de 60, pode-se dizer que se vivia um Brasil onde se
multiplicavam as lutas populares, destacavam-se os movimentos pela Reforma
Agrária, pela casa própria, pela redução da tarifa dos transportes públicos, dentre
outros. Com o advento da ditadura militar passa-se a viver um Brasil onde
predomina um cotidiano de violência que impede todo e qualquer tipo de
mobilização política da sociedade. Os canais formais de manifestação e diálogo
foram fechados, ficando os movimentos populares e organizados da sociedade à
deriva, isto é, sem alternativas consideradas lícitas para a canalização de suas
insatisfações e demandas ao Estado (ROCHA, 2008, p. 133).

O resultado foi o fechamento do regime com o descarte democrático e, dentre outros, dos
direitos políticos do cidadão (CARVALHO, 2013, p. 150). A ditadura militar 24 ratifica a
privatização do público, priorizando a agenda empresarial que possuía amplo trânsito nas

23
Conceito formulado por Wanderley Guilherme dos Santos (1979) no intuito de entender a política econômico-social
do Brasil de 1930 em diante, por meio da qual, a partir dos direitos sancionados em leis durante o governo de Getúlio
Vargas (1930/1945 e 1951/1954), os indivíduos definiriam o seu status de membros nesta forma de ordenamento
social.
24
1964/1985
33

atividades decisórias relativas às políticas sociais com apoio dos políticos, em detrimento do
enfrentamento de questões nacionais estruturais, em especial, a desigualdade e a miséria. O Ato
Institucional nº 5/1968 endurece ainda mais o regime e praticamente inviabiliza a participação
política, prejudicando consideravelmente o exercício da cidadania. Com a sua revogação, as
atividades políticas voltam refletidas em novas formas de reivindicação, como as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs)25 e a luta operária do ABC26 paulista, o retorno da União Nacional dos
Estudantes (UNE)27, a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT)28 e a fundação do
Movimentos dos Sem Terra (MST)29, reiniciando um tempo de consolidação das reivindicações
sociais, que visavam a busca por soluções relativas ao déficit social das classes urbanas de baixa
renda nas áreas de saneamento, urbanização, saúde e habitação. O aumento da participação social,
no sentido da presença dos indivíduos em espaços públicos de interação com o Estado, mostra a
consolidação de um tecido social que foi se tornando mais robusto e diferenciado desde os anos
setenta, década onde afloram os novos movimentos sociais.
Apesar da redução da democracia e, consequentemente, da participação no período
militar, houve considerável desenvolvimento dos direitos sociais (exemplos são a criação do
Instituto Nacional de Previdência Social/INPS30, do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço/FGTS31, do Banco Nacional de Habitação/BNH32 e do Ministério da Previdência e
Assistência Social/MPAS33), se aproximando do período varguista no que concerne ao aumento de

25
As CEBs são comunidades ligadas à Igreja Católica que, vinculadas à Teologia da Libertação, cresceram nos anos
1970/80 no Brasil e na América Latina. Consistem em comunidades compostas basicamente por membros insatisfeitos
das classes populares e despossuídos, ligados a uma igreja ou a uma comunidade com fortes vínculos, cujo objetivo é
a articulação com a realidade política e social em que vivem e com as misérias cotidianas, buscando transformá-las.
26
A designação pode ser explicada por: Santo André, representado pela letra A, São Bernardo do Campo, representado
pela letra B e São Caetano do Sul, representado pela letra C. A sigla D também pode aparecer, representando a cidade
de Diadema.
27
Fundada em 1937, a UNE é o órgão máximo de representação dos estudantes universitários brasileiros, tendo como
objetivo principal a luta por melhores condições no âmbito educacional, participando, todavia, ativamente da história
política do país.
28
A CUT é uma organização sindical brasileira de caráter classista, autônomo e democrático, cujo compromisso é a
defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora.
29
O MST é um movimento social brasileiro do Brasil que objetiva a defesa do trabalhador do campo, sobretudo no
tocante à luta pela reforma agrária brasileira.
30
O INPS foi criado em 1966.
31
O FGTS foi criado também em 1966, funcionando como uma espécie de seguro-desemprego.
32
O BNH foi criado pela Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, visando a implementação de política de habitação,
especialmente para a população de baixa renda.
33
O MPAS foi criado em 1974.
34

direitos sociais. Desta maneira, a avaliação dos governos militares, sob o enfoque da cidadania,
necessita levar em consideração a manutenção do direito de voto (houve eleições para o Senado
Federal e para a Câmara dos Deputados em 1966, 1970, 1974, 1978 e 1982) combinada com o
esvaziamento de seu sentido e o aumento dos direitos sociais em instante de limitação de direitos
civis e políticos (CARVALHO, 2013, pp. 172-173).
Os pleitos por melhorias sociais culminam, após o fim da ditadura militar e o início da
redemocratização34, na convocação da ANC35, que põe em prática, de maneira ampla, aberta e
democrática, a participação social nas mais diversas frentes, representando momento único na
história brasileira de acesso da sociedade organizada ao Estado, via parlamento. Desde a
redemocratização brasileira, a ideia de participação política entrou no vocabulário nacional tanto
por meio de experiências participativas, quanto de estudos que se voltaram a compreender seu
potencial para a democracia, inclusão dos cidadãos e reversão dos processos decisórios de políticas
públicas. O crescimento da participação da cidadania nos assuntos estatais, o pluralismo político e
o respeito à igualdade e às liberdades públicas contribuem para a formação do espaço público
democrático e para o reforço da democracia representativa, a partir do amadurecimento político,
do postura consciente e livre no processo de participação, além dos debates e deliberações sobre
questões várias acerca da sociedade organizada.
A participação foi essencial para a democratização em dois sentidos: primeiro, quando os
protagonistas sociais, diretamente ligados às bases populares, foram de encontro ao autoritarismo
estatal então vigente. Segundo, quando os atores coletivos começaram a entrar nas instituições
estatais como o objetivo de democratizá-las, por intermédio da defesa da participação relativa aos
direitos sociais (TATAGIBA, 2005). Tal circunstância possibilitou ir além da teoria que
vislumbrava hipoteticamente possível paradoxo entre mobilização social e institucionalização
(AVRITZER, 2002).
A CF/88 legitimou boa parte dos anseios populares ao positivar diversos mecanismos de
participação no âmbito do Estado, prevendo, todavia, participação do cidadão deveras limitada nas
esferas públicas federal, estadual e local. Tais mecanismos são importantes conquistas, entretanto,
estão aquém de consolidar desenho participativo efetivo no que tange ao real empoderamento do

34
A redemocratização brasileira ocorre em março de 1985 com a posse de José Sarney.
35
A ANC de 1987/88 foi instalada no Congresso Nacional (CN), em Brasília, em 1º de fevereiro de 1987, fruto da
Emenda Constitucional (EC) nº 26, de 1985, para elaborar a CF/88, após vinte e um anos de ditadura militar.
35

cidadão relativamente às escolhas políticas essenciais. Há certa dificuldade em se estabelecer a


prática participativa, haja vista a influência direta do processo histórico na formação da sociedade
brasileira. A efetivação da participação social necessita, pois, que os mecanismos constitucionais
de exercício da democracia participativa estejam a cargo eficazmente do cidadão enquanto ator
principal do processo democrático. A criação e a consolidação de perspectiva democrática de alta
intensidade podem reverter a baixa participação observada no Brasil:

A construção de democracia de alta energia, pautada pelo esquentamento da


política – a elevação do grau de participação organizada dos cidadãos na vida
pública, pela aceleração da política, pela superação rápida de impasses entre os
poderes do Estado e pelo favorecimento do experimentalismo na política, e a
oportunidade dada a estados e municípios para divergir do caminho tomado pelo
poder central. Em seu território, devem poder exemplificar caminhos alternativos
para o país todo. O aprofundamento da democracia tem por contrapartida a
construção do Estado por meio de três agendas – de profissionalismo, eficiência e
experimentalismo – associadas a três séculos diferentes. E tem por ponto de
partida reconstruir a relação entre política e dinheiro no Brasil. O produtivismo
includente, a educação capacitadora e a democracia de alta energia são projetos
complementares. A organização do empoderamento, para dar braços, asas e olhos
à vitalidade brasileira, anima todos três. A ruína do nacional-consumismo e o
descrédito da política e dos partidos lhe servem de provocação e oportunidade. Os
elementos dessa alternativa nacional não formam sistema; definem rumos. Para
empoderar os brasileiros, precisamos avançar em cada uma dessas três frentes, na
sequência que as circunstâncias permitirem e no ritmo que elas ditarem (UNGER,
2018, p. 53).

O caminho – tanto teórico quanto prático – a ser seguido pela participação enquanto
complemento à democracia representativa está em aberto e diretamente ligado aos destinos que
esta tomará no Brasil e no mundo. A prática participativa aprimora a democracia, constituindo
barreiras e trincheiras contra aventuras autoritárias, além do aspecto pedagógico e inclusivo que a
sua realização constante propicia. O cidadão deve ser estimulado e, sobretudo, possuir instrumentos
efetivos e confiáveis para protagonizar o jogo democrático, não se admitindo a sua limitação a
mero coadjuvante do processo político em curso. A democracia participativa não garante melhor
democracia que a representativa, não desejando suplantá-la, ou substituí-la, mas visa a contribuir
para o seu reforço no sentido da obtenção de perspectivas e resultados consistentes do ponto de
vista político, ressalvando que o paradigma democrático-representativo é o modelo principal de
regime político no Estado.
36

1.3 Participação e democracia representativa

A participação dos cidadãos no campo político aumenta nos anos sessenta por meio dos
movimentos estudantis, que reivindicavam mais participação em assuntos diretamente ligados às
escolhas estatais. A referida década foi rica em contestações políticas, como na França, em 1968 36,
e nos EUA, relativamente à luta contra a Guerra do Vietnã e pelos direitos civis dos
afrodescendentes. Na América Latina (e no Brasil), a luta ocorre basicamente por meio da
mobilização de setores sociais (estudantes em especial) contra as ditaduras militares 37 que se
estabelecem em países estratégicos do cone sul. Já na década de setenta, reforça-se a teoria elitista
que via com maus olhos a participação na esfera política. Incrementa-se a intervenção estatal na
economia como tentativa de dar nova conformação social à geopolítica mundial diretamente
afetada pela devastação que os dois grandes conflitos mundiais acarretaram. O “diagnóstico” já
estava pronto e posto em prática, havendo pouco espaço para intervenções participativas outras que
fossem de encontro ao receituário liberal em curso. A partir daí, a ideia prevalente de democracia
baseada no processo político eleitoral é gradativamente substituída por teorias que privilegiam a
participação social38.
Em contrapartida, os principais pontos da proposta hegemônica são a contradição entre
mobilização e institucionalização, a valorização da apatia política, o reforço nos modelos eleitorais
democráticos, o trato ao pluralismo político como forma de incorporação partidária e a luta entre
as elites por melhores posições. Há dois pontos importantes que não foram objeto de
enfrentamento: quanto à participação, a gradativa e contínua abstenção nas eleições e, no que tange
à representação, a sensação de ausência ou inexistência desta por parte dos cidadãos. O
redescobrimento de ações da sociedade e a renovação participativa na teoria democrática
caracterizou passo importante na tentativa de recolocar a participação política no seu devido lugar.
Critica-se a separação entre Estado e sociedade, elemento central da representação política liberal,
estando diretamente ligados. Deve o Estado, portanto, se democratizar (especialmente nas suas
instituições) de maneira que se consolide a participação política não exclusivamente no âmbito

36
Movimento político na França que, marcado por greves gerais e ocupações estudantis, reivindica a liberação sexual,
o fim da Guerra no Vietnam e os movimentos pela ampliação dos direitos civis.
37
Brasil (1964/1985); Argentina (1976/1982); Chile (1973/1990) e Uruguai (1973/1985).
38
Também denominadas teorias participativas ou contra-hegemônicas.
37

institucional, mas também no plano mais próximo ao cidadão: o local (ou municipal), fato que
propiciaria o desenvolvimento das denominadas accountabilities39.
A participação não deveria se limitar ao campo institucional, projetando-se para o
ambiente de trabalho. A junção da atuação política do cidadão no plano local e no profissional
garantiria melhores condições às pessoas de aferir a representação no âmbito nacional e de realizar
melhores escolhas quando demandadas. A prática participativa continuada importa em educação
político-pedagógica, destacando-se ainda dois elementos relevantes da participação: aceitabilidade
das decisões e integração (PATEMAN, 1992). O aspecto pedagógico da participação política
colabora para a mudança na forma pela qual as pessoas percebem e se inserem no jogo democrático,
deixando de ser passivas relativamente à escolha e atuação de seus representantes, e se colocando
por intermédio da mudança de consciência política no lugar de protagonistas ou destinatários
diretos do exercício do governo democrático.
Tanto o sistema político quanto os partidos políticos deveriam se estruturar numa base
extensa e participativa, de maneira a garantir que um número cada vez maior de pessoas pudesse
ter mais voz nas decisões a serem tomadas (MACHPERSON, 2009). A fim de que tais iniciativas
possam ser concretizadas, é necessário que o Estado propicie inclusão e integração por meio de
ensino público universal e qualitativo. Seria uma contradição falar de participação democrática
transformadora, se não fosse acompanhada de política séria e robusta de educação pública e gratuita
de qualidade. A proposta sugerida por Pateman (1992) acerca da participação no âmbito
profissional praticamente se inviabiliza no Brasil na medida em que as reformas sindicais e
trabalhistas40 desencadeadas no Governo Temer41 e acompanhadas por Jair Bolsonaro42
consolidam a chamada “flexibilização” (ou precarização) dos direitos sociais dos trabalhadores,
prejudicando a ideia de participação mais aguda na área profissional pelo receio dos trabalhadores
para uma atuação mais efetiva. O trabalho de Pateman (1992), porém, é relevante porque desperta
possíveis caminhos alternativos a ser percorridos por uma teoria participativa que se preocupa com
uma relação mais democrática no campo profissional entre empregado e empregador.

39
Mecanismos que têm por objetivo possibilitar aos gestores de uma organização, que prestem contas e sejam
responsabilizados pelo resultado de suas ações, significando responsabilização, fiscalização e controle social.
40
A Lei nº 13.467/17 cria modalidade de trabalho sem direito a férias, 13º salário e FGTS, além de possibilidade de
prestação laboral sem carteira assinada (Requip) e sem direitos trabalhistas e previdenciários.
41
2016/2018
42
2019/2022
38

O conflito entre os paradigmas participativos e a democracia liberal não se apresenta


exclusivamente no entendimento acerca da democracia, mas também na própria ideia de
participação:

A abertura à experimentação de formas de participação propagada pela


democracia participativa dista da sua valorização como condição poliárquica,
presente também nas visões liberais minimalistas de democracia, pelo sentido e
efeitos atribuídos a ela. Como notou Fung (2003, p. 529), participação é uma
categoria tanto do liberalismo minimalista quanto das teorias da democracia
representativa. A diferença está na ênfase dada por essas correntes ao papel de
participação. A visão liberal clássica apoia a liberdade de associação, pois esta
compõe o amplo leque de direitos individuais. Mas existem oposições à liberdade
associativa, na medida em que ela gere, por exemplo, demandas por participação
direta no governo ou pressões para expansão de proteções sociais pelo Estado. Já
a democracia representativa valoriza a participação pelo seu potencial de
revitalização do governo representativo, uma vez que contribui para a socialização
e aprendizado dos indivíduos de habilidades políticas. Todavia, também suspeita
do papel das associações na erosão da qualidade da representação, uma vez que
estas reforcem ou exacerbem desigualdades materiais e sociais, ou ofereçam
resistência a medidas governamentais (ALMEIDA, 2015, p. 111).

Há propostas contestatórias à democracia liberal, como Barber (1984), que entende ser
essa de baixa intensidade e muito fraca, pois se baseia exclusivamente na eleição dos representantes
a serviço de interesses particulares e privados. Para o referido autor, a “democracia forte” seria
concretizada, diferentemente da participação democrática, no autogoverno dos cidadãos, os quais
estabeleceriam laços e objetivos mútuos a fim de realizar uma administração política diretamente
voltada para o atendimento das diversas demandas populares. Barber rompe com a representação
política sob o argumento de que esta não é democrática, visto que se volta à observância da agenda
e interesses diversos das minorias reforçadas economicamente (BARBER, 1984, p. 262). Apesar
de sedutora, a proposta de Barber (1984) esbarra na própria ideia de governo do povo. Como seria?
Quais seriam os seus contornos, propostas, limites, poderes e autocontenção? Difícil dizer. A
chamada democracia forte esbarra nela mesma, pois um governo totalmente popular seria
praticamente inviável em termos de realização concreta.
Tal circunstância pode ser facilmente verificada a partir da análise dos Estados que
adotaram o socialismo, especialmente na segunda metade do Séc. XX43, sob forte influência do

43
A chamada “Cortina de Ferro” se compôs de países do leste europeu ocupados pela extinta União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) no final da Segunda Guerra Mundial até a queda do Muro de Berlim em 1989, quando
as duas Alemanhas (Federal/Ocidental, capitalista e Democrática/Oriental, socialista) se uniram definitivamente.
39

modelo precursor soviético de 1917, onde prevaleceram governos autoritários, cujo poder foi
imposto de cima para baixo, com pouca (ou nenhuma) liberdade, tendo sido praticamente extinto
no mundo com o malogro do comunismo44. A forte democracia proposta por Barber (1984) vai de
encontro ao modelo de participação política uma vez que esta visa a complementar e reforçar a
democracia representativa, trazendo novos e importantes elementos de renovação e legitimação da
atuação cidadã, enquanto aquela se aproxima de paradigma político assentado na utopia do
exercício direto do poder popular que se mostrou historicamente autoritário e de difícil
concretização.
Diferentemente da chamada democracia forte, a democracia ou pluralismo radical tem
como foco principal as mobilizações populares e os movimentos sociais (destaca-se no Brasil as
Manifestações de 201345) como forma principal de influenciar a agenda política em prol dos
interesses neles veiculados. Para a análise da representação, os pluralistas radicais sinalizam para
outros nortes, especialmente a contestação e o engajamento contínuos dos indivíduos nos diversos
setores do poder, questionando a soberania do representante como expressão da totalidade e
unidade, além de situar a legitimidade democrática no processo de representação e participação.
Destacam-se dois elementos importantes na contribuição do pluralismo para a reformulação da
representação política: os limites da regra da maioria para lidar com a intensidade das preferências,
sendo necessários diversificar os meios de se expressar a soberania popular e a autorização eleitoral
e, em segundo lugar, a maior centralidade à ideia de contingência, a qual foi objeto de tentativas
de domesticação na teoria política (ALMEIDA, 2015, pp. 148-149).
Nesse contexto, aos países considerados emergentes, especialmente asiáticos, africanos e
latino-americanos, faltariam governos legítimos, eficientes e com autoridade para pôr em prática
propostas políticas consistentes e viáveis, além do principal problema: o déficit econômico. As
consequências do atraso dessas regiões seriam a falta de estabilidade política e a desordem,
devendo existir, como forma de viabilizar mudança no quadro, um equilíbrio entre demandas e sua
pronta capacidade de atendimento às mesmas, sob pena de se inviabilizar proposta política hábil
ao enfrentamento dos graves problemas sociais existentes. Resumindo: quanto menor o nível de

44
As exceções maiores são ainda Cuba, China e Coreia do Norte, que praticam uma espécie de capitalismo de
estado.
45
Caracterizaram uma série de mobilizações de massa ocorridas simultaneamente em mais de quinhentas cidades do
Brasil, contando com amplo apoio da população cuja pauta principal era o inconformismo com a corrupção e o modelo
político vigente.
40

participação democrática, maior em tese seria o grau de eficiência governamental


(HUNTINGTON, 1975). Tal visão, todavia, não se coaduna com uma melhor teoria participativa.
Primeiro, porque retoma o elitismo democrático que dominou o mundo ocidental no início do
século passado. Recorde-se que boa parte do atraso político-institucional da Ásia, África e América
Latina foi fruto de agressiva atuação colonialista das nações europeias e estadunidense para
explorar suas riquezas em detrimento do social, fomentando o caos e a desordem. Não teria sentido,
portanto, creditar o atraso dessas áreas à ausência de participação democrática, haja vista que o
considerável déficit democrático não acarretou maior eficácia no exercício do poder pelas elites
governantes desses países.
Os anos oitenta trazem novos ares democráticos, especialmente na América Latina, onde
a distensão política contrária ao autoritarismo se impõe. Recupera-se, depois dos denominados
“anos de chumbo”46, a necessidade de se distender o regime político, reintroduzindo-se a
democracia. “A ênfase nesse momento é na autonomia da sociedade civil, que incorporou a noção
de direito ao processo de democratização” (ALMEIDA, 2015, p. 113). A agenda política passa a
ser ditada por mobilizações que têm por escopo principal o restabelecimento de políticas públicas,
gerais e inclusivas, que atingissem a todos indistintamente por intermédio da luta pela conquista,
consolidação e universalização dos direitos fundamentais47. No Brasil, o referido período é
marcado por intensas lutas pela redemocratização que culminarão no fim da ditadura militar em
1985, na convocação da ANC48 e, finalmente, na promulgação da CF em outubro de 1988, cujo
texto enumera um considerável rol de direitos fundamentais importantes, dentre outros aspectos, à
prática democrática.
A participação se reconfigura na década de 1990 com base em uma ligação direta à
governabilidade, tendo como elemento influenciador o chamado Consenso de Washington. A
essência da participação, carregada de valores fundamentais como soberania popular e educação
cívica na luta pela redemocratização, deixa de ser central quando se põe em marcha as reformas

46
A expressão foi utilizada inicialmente na Europa Ocidental, designando o período compreendido entre 1968 e o fim
dos anos 1970, na Alemanha, ou meados dos anos 1980, na França e na Itália, marcado por violência política, guerrilha
revolucionária armada e terrorismo de extrema-esquerda e de extrema-direita, bem como pelo endurecimento do
aparato repressivo dos países democráticos da Europa Ocidental. Na América Latina, o termo se relaciona ao período
autoritário imposto pelas ditaduras militares entre as décadas de sessenta e oitenta.
47
Os direitos fundamentais estão previstos no art. 5º. da CF/88.
48
Em 28 de junho de 1985, na Mensagem no 330, de 28 de junho de 1985, o Presidente José Sarney encaminha ao
Congresso a proposta de convocação da ANC, que culminará na CF/88.
41

liberais do Estado. Fica a ideia de que o desenvolvimento econômico só se torna viável valendo-se
de parceria entre Estado, mercado e sociedade. No Brasil, implementa-se ampla reforma do Estado
no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC)49, reforçando-se a agenda neoliberal em detrimento
de mudanças estruturais necessárias e aguardadas. O fenômeno pode ser observado em boa parte
da América Latina, desgastando a ascensão de propostas conservadoras e abrindo espaço para as
futuras vitórias do denominado campo progressista no continente.
Não se pode, portanto, imaginar a participação política como protagonista principal do
jogo democrático, pois tal circunstância representaria forte incongruência com a proposta para
complementar a democracia representativa. Todavia, a transformação das instituições
representativas, via mecanismos participativos efetivos, demanda imaginar novas formulações que
se coadunem com a participação social mais efetiva:

Se formos sustentar energia política continuada, tanto os objetivos norteadores


quanto as formas práticas da socialdemocracia ampliada podem ter que mudar.
Em especial, podemos precisar de estruturas – tais como o voto obrigatório, o
financiamento público de campanhas, livre acesso aos meios de comunicação de
massa e sistemas eleitorais de lista fechada – que operem, em conjunto, para elevar
o grau de mobilização política na sociedade. Uma vez estabelecidas e eficazes,
tais estruturas logo incitarão mudanças paralelas na organização constitucional do
Estado e no arcabouço de direito público da sociedade civil (UNGER, 2004, p.
177).

Difícil é imaginar novos prismas sobre participação, se isso não vier acompanhado de
mudanças estruturais no sistema representativo que sejam hábeis a reverter o quadro atual de
desinteresse pela participação. Há, pois, que se imaginar e pôr em prática projeto efetivo de
governabilidade democrático-representativa com o reforço da participação, de maneira a se
incrementar os direitos da cidadania com instrumentos democráticos viáveis, via aperfeiçoamento
e consolidação das accountabilities, nas esferas estatais. Para tanto, “o êxito da participação
societária está relacionado com a capacidade dos atores sociais transferirem práticas e informações
do nível societário para o nível administrativo” (SANTOS e AVRITZER, 2003, pp. 50-54). A
participação pode ainda ocorrer no campo das esferas não governamentais, sendo forte neste caso
o discurso de complementaridade, ou se dar diretamente nos instrumentos de formulação de
políticas públicas, fato que demanda mudanças nas instituições representativas (ALMEIDA, 2015,

49
1995/2002.
42

p. 114). A tarefa é difícil e requer gradual, ampla e crescente conscientização popular a fim de
trazer o indivíduo para participar e decidir diretamente sobre questões que lhe afetam.
Apesar dos obstáculos naturais ao reforço participativo, a teoria da participação fez grandes
avanços nos últimos anos, repercutindo nos procedimentos relativos ao estabelecimento e
realização de políticas públicas e das accountabilities. As pesquisas, se possível, devem
transcender a concepção normativa sobre participação e envolvimento da cidadania no processo
político, priorizando a análise sobre elementos vinculados à relação estabelecida entre Estado e
sociedade, de maneira a neutralizar a mitigação da relevância da participação no que tange a
possíveis resultados não esperados ou insatisfatórios advindos de políticas públicas nela baseados.
Não se pode admitir receituário único participativo para fazer frente às diversas demandas
existentes sobre a atuação da cidadania no Brasil. A participação deve influenciar a democracia
representativa para deslocar a política do exclusivamente institucional para uma maior abrangência
do político. Mais recentemente o ato de votar se reduziu quase que exclusivamente ao exercício da
soberania popular, demonstrando que, apesar da sua importância, não pode ser havido como único
elemento de manifestação cidadã:

Importa destacar, aqui, que as visões correntes de representação política, no senso


comum, no ordenamento jurídico e também na ciência política, estão centradas no
voto e na primeira dimensão, positiva, do exercício do poder: é o processo de
escolha de delegados que tomem as decisões em nosso nome. A eleição ocupa
uma posição de destaque absoluto já que, bifronte, é o episódio fundador e, ao
mesmo tempo, a meta orientadora da relação entre representantes e representados.
Ela é vista como o momento da autorização para que outros decidam em nome do
povo, que permanece como titular único da soberania, quanto como o momento
de efetivação da accountability, quando os representados apresentam seu veredito
sobre a prestação de contas dos representantes (MIGUEL, 2014, p. 118).

A participação vai de encontro à ideia de que somente os representantes são dotados de


poder único de racionalidade e competência para o exercício do governo, em clara e nítida oposição
aos elitistas democráticos. São muitos os óbices, preconceitos e desafios que cercam a questão da
participação política no Brasil. A teoria participativa pode colaborar para superar limites relativos
à proteção de direitos fundamentais, ao pluralismo político e ao acatamento de interesses diversos,
especialmente àqueles voltados à livre manifestação do pensamento e à responsabilidade com a
coisa pública, em uma autêntica perspectiva democrático-republicana, levando-se em consideração
as complexidades e desigualdades existentes no país. Pode ainda a participação servir como
43

instrumento essencial de pressão aos governos como forma de observar e atender as diversas
demandas sociais, buscando chamar a atenção não só dos representantes, mas de todos quanto à
importância de se fazerem presentes no espaço público em prol de conquistas e melhorias sociais
perenes: “a educação política através da participação em processos decisórios de interesse público
é importante em si, independente do resultado do processo” (BENEVIDES, 1994, p. 16). Ou seja,
quanto mais participação, mais engajamento contínuo da sociedade em práticas políticas essenciais
à democracia.

1.4 Participação e democracia deliberativa

A deliberação é o procedimento no qual os indivíduos possuem igualdade em participar e


expor suas razões, se submetendo à soberania das decisões com base em debate argumentativo, em
que os resultados ocorrem via consensos, acordos ou votos, pressupondo a existência de opiniões
contrapostas e a delimitação de processos hábeis a se produzir decisões coletivas. A participação
na teoria deliberativa é havida como procedimento de apuração de preferências e acréscimo do
discurso e da razão pública. O elemento principal da deliberação é o estabelecimento do processo
argumentativo que, a partir do consenso, produzirá uma decisão legítima:

O interesse legítimo não surge de uma técnica agregativa de contar todos


igualmente, mas do processo de discussão. Ao propor ir além dos limites do
liberalismo e recapturar o forte ideal democrático, segundo o qual o governo deve
encarnar a vontade do povo, formada por meio da razão pública dos cidadãos
(Bohman, 1998), a democracia deliberativa se constrói como uma alternativa
teórica à análise da participação, em contraponto à democracia centrada no voto.
Desse modo, a democracia não é mais percebida como a arena na qual as
preferências e interesses competem por meio de mecanismos justos de agregação,
principalmente as eleições (ALMEIDA, 2015, p. 122).

Os deliberacionistas propõem a valorização do processo comunicativo de opinião e


formação da vontade que antecede o voto, entendendo que esse em si não soluciona os problemas
diversos de escolhas e não propicia a todos indistintamente igualdade no que tange à expressão das
ideias em sociedades. O debate nos mais variados espaços públicos contribui para a formação e
alteração de preferências dos indivíduos, levando-os a agir de maneira mais colaborativa e de
acatamento relativamente a outras posições políticas, filosóficas e sociais, que porventura venham
44

a confrontá-las. A deliberação deslocaria a teoria democrática especialmente ancorada no voto para


outra cujo elemento central é a expressão verbal fruto do debate e do consenso.
Diversamente da teoria participativa, a proposta deliberativa apresentaria respostas para
situações que envolvessem participação e complexidade da administração pública, além da relação
entre racionalidade individual e bem-comum, sendo elemento fundamental para o tratamento da
burocratização e do pluralismo das coletividades atuais, além de recolocar na teoria democrática a
ideia de poder político havido como a aptidão das pessoas para atuar em comum. A deliberação se
aproxima ainda da representação democrática e dos participacionistas, porque ratifica a política
como campo voltado a especialistas, com a diferença de que esses últimos não reforçam o processo
discursivo como forma de contornar o problema. A legitimidade poderia ser resumida à autorização
e accountability das eleições, com base na reunião de preferências, posicionando-se a teoria
deliberativa, todavia, tal qual a participacionista, no sentido de ser complementar à democracia
representativa (ALMEIDA, 2015, pp. 122-123). O caráter complementar da deliberação não visa
igualmente a substituir a democracia representativa como regime político predominante porque
apresenta limitações naturais em termos de concretização, haja vista as dificuldades naturais
relativas ao contínuo e sistemático debate sobre as diversas questões e problemas, dificultando o
consenso e a definição de propostas, além da muito improvável operacionalização e posterior
concretização de todas as decisões adotadas nas reuniões.
O contexto histórico nos mostra que, passada a euforia e a esperança dos anos setenta por
mais participação, a década de oitenta reduz o participacionismo, dando espaço para a democracia
deliberativa, que tem em Jürgen Habermas e Jonh Rawls, os seus dois maiores expoentes:

Os democratas deliberativos incorporam parte significativa do ideal


participacionista; no entanto, apresentam uma nova ênfase dos mecanismos
discursivos da prática política. Segundo a síntese de Joshua Cohen, julgam que as
decisões políticas devem ser tomadas por todos que estarão submetidos a elas,
através do “raciocínio público livre entre iguais” (J. Cohen, 1998, p. 186). Trata-
se de um esforço importante para avançar na compreensão do sentido da
democracia, que transcende o pretenso empirismo da vertente hegemônica
schumpteriana, por levar em conta, como diz o próprio Habermas, “o sentido
normativo genuíno da compreensão intuitiva da democracia” (Habermas,
1997[1992], vol. II, p. 18)50. Em primeiro lugar, a corrente rompe com a percepção
da democracia como simples método de agregação de preferências individuais já
dadas. Longe de constituírem elementos prévios, as preferências são construídas

50
A citação se encontra em (HABERMAS, 2003) nas referências bibliográficas (p. 164).
45

e reconstruídas por meio das interações na esfera pública, em especial do debate


entre envolvidos. Em segundo lugar, há a ênfase na igualdade de participação, um
aspecto constitutivo no sentido clássico da democracia, mas relegado a plano
secundário pelas vertentes hegemônicas da teoria democrática contemporânea.
Por fim, a autonomia – isto é, a produção das normas sociais pelos próprios
integrantes da sociedade – é resgatada como o valor fundamental que guia o
projeto democrático (MIGUEL, 2014, p. 66).

A corrente deliberacionista é marcante, trazendo alguns elementos importantes: em


primeiro lugar, a ideia de que as preferências são produzidas por meio das interações e debates dos
participantes traz claras limitações como a quantidade, a distribuição e as possibilidades de
participação dos envolvidos no processo deliberativo. Proporcionalmente muitos poucos levam a
cabo todo o processo que vai do estabelecimento do tema ao indicativo final de possíveis soluções
para a questão posta. Além disso, as interveniências externas (especialmente dos representantes
governamentais) incidentes no processo deliberativo contribuem para o esvaziamento da
concretização do que resulta dos debates, soando a suposta igualdade na participação deliberativa
como algo irreal, tendo em vista que a grande maioria dos indivíduos envolvidos no procedimento,
apesar de estar ali representando coletividades diversas, age em parte na defesa de interesses
pessoais ou de grupos específicos, capturando os representantes para a defesa de seus objetivos em
detrimento da maioria que os escolhe como legítimos defensores de suas causas. Por último, a
autonomia para produção de normas pelos próprios cidadãos, pode ser considerada até ingênua,
pois as decisões tomadas na esfera deliberativa não vinculam os representantes eleitos na escolha
de decisões políticas.
A democracia deliberativa, apesar de apresentar elementos importantes e diferenciados
acerca do conteúdo democrático, intenta se tornar paradigma que critica a política em curso por
meio de uma proposta de modelo que resvala, muitas vezes, nela própria. A consequência é que
tanto a participação quanto a deliberação acabam ratificando a democracia representativa como
modelo de regime político prevalente. Habermas (2003) propõe a “ação comunicativa” (2012), e
aposta no entendimento mútuo, por meio do diálogo, em oposição à ação estratégica, que busca
apenas o sucesso e usa operadores sistêmicos como o poder e o dinheiro, aderindo ao
constitucionalismo liberal (DRYZEK, 2000). Habermas deseja a efetiva concretização da
participação dos excluídos no espaço público, investindo na via deliberativa do debate, consenso e
diálogo como forma de realização do ideal participativo. O problema é que geralmente os governos
neutralizam a voz do cidadão, não se preocupando em garantir ou propiciar mais participação,
46

independentemente da maneira pela qual seja concebida. O deliberacionismo (alinhado ao modelo


liberal) absorve tal prática, esvaziando a oportunidade da cidadania se fazer presente e de ser ouvida
e considerada em questões relevantes e pontuais: “os homens proprietários em sua idealizada esfera
pública burguesa estão bem situados para conversar entre si e agir em comum, pois as vozes que
poderiam discordar estão ausentes” (MIGUEL, 2014, p. 70).
O aumento da participação acarretaria o tensionamento do sistema político, trazendo
conflitos de interesses em campos nos quais anteriormente os menos favorecidos economicamente
não estavam presentes (HUNTINGTON, 1975b). A questão central está na aptidão (ou não) que as
diversas classes sociais possuem para avançar na luta pelos próprios interesses e agendas, situação
que dificilmente encontra respaldo no arranjo institucional vigente, dependendo de elementos de
acesso ao debate público, da abertura de locais voltados ao diálogo e de confirmação de suas
propostas, além de ambiente que garanta o seu efetivo e direto envolvimento na ação política:

O projeto habermasiano tem dificuldade em lidar com a ideia de interesse, o que


será discutido em seguida. Além disso, seu modelo comunicativo não se preocupa
com a questão da inclusão. Não que Habermas não perceba a exclusão política
vigente nas sociedades contemporâneas: ele percebe, a indica e a condena de
forma explícita, segundo um critério ético. Mas desenvolve sua teoria sobre o
modelo utópico da “situação da fala ideal”, em que a exclusão, por definição, não
pode ocorrer. Tal situação é caracterizada por três regras: (1) qualquer
contribuição pertinente ao debate pode ser apresentada; (2) apenas a
argumentação racional é levada em conta; e (3) os participantes procuram atingir
o consenso (MIGUEL, 2014, p. 72).

Os riscos estruturais relativos à possiblidade de colonização do discurso público por


interesses pontuais outros servem como fundamento para a recusa aos fóruns de deliberação
pública, tanto no interior quanto fora do Estado. São várias as razões para a oposição a tais fóruns,
destacando-se a preocupação com os limites de suas posições e preferências, o receio de cooptação
e de persuasão ideológica. Acerca do modelo deliberacionista, a Teoria Crítica 51, “não se limita a
descrever o funcionamento da sociedade, mas pretende compreendê-la à luz de uma emancipação
ao mesmo tempo possível e bloqueada pela lógica própria da organização social vigente” (NOBRE,

51
A Teoria Crítica se origina na Alemanha da década de 1920, quando um grupo de pesquisadores de orientação
marxista fundou o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, designando gerações de filósofos e teóricos sociais
alemães na tradição marxista da Europa Ocidental conhecida como Escola de Frankfurt. Tal Escola defendia que uma
teoria é crítica uma vez que busca a "emancipação humana da escravidão", atua como uma "influência libertadora".
47

2003, p. 9). Um primeiro argumento seria de que a deliberação reforçaria a ordem existente sob a
justificativa de que suas premissas básicas ratificam processos opressivos, legitimando práticas e
procedimentos que contribuem para a manutenção do status quo vigente.
O deliberacionismo, com seus formalismos, esconderia relações de dominação,
reforçando-as. Uma segunda visão seria no sentido de que a deliberação se conformou ao
liberalismo e às instituições existentes, ou seja, a democracia deliberativa teria se acomodado às
configurações políticas atuais, colaborando para que fossem legitimadas. Apesar de Habermas
reconhecer o importante papel da sociedade civil, sua concepção de poder estaria embasada em
proposta conservadora ao reduzir a participação popular à formação da opinião pública,
compactuando com propostas liberais. Por último, a guinada empírica teria aproximado a
deliberação da teoria tradicional, adotando premissas e estratégias típicas desta, abdicando da
análise crítica para se tornar um elemento de descrição pura da realidade e limitando a realização
de outros tipos de pesquisas que não visam somente descrever o mundo, mas refletir, de maneira
crítica, sobre ele (MENDONÇA, 2013).
Outra questão é a possibilidade (ou não) da deliberação garantir o amplo e extenso debate
em países extensos e populosos, recaindo em modelos concretizáveis nos quais há forte redução
dos indivíduos envolvidos na busca pelo consenso. Limita-se o espaço do diálogo a fóruns já
existentes e devidamente estruturados para atender aos anseios daqueles que prevalecem por
diversas razões, dentre outras, a ascendência econômica e intelectual, além dos próprios servidores
públicos que defendem seus interesses nesses espaços de deliberação. Há também os grupos criados
nas redes sociais que, apesar de alguns terem influência na política atual, do ponto de vista da
democracia deliberativa, ficam muito aquém em termos de concretização efetiva de suas ideias e
propostas. O resultado é o desânimo, haja vista que o sucesso da deliberação pública importa no
grau em que os participantes “reconhecem que contribuíram e influenciaram o resultado final,
mesmo quando discordam dele” (BOHMAN, 1996, p. 33).
A deliberação requer o movimento em direção ao consenso racional, tentando minimizar
ou suprimir os elementos de conflito existentes, seja na opinião ou nos interesses dos participantes
(HABERMAS, 2003), acomodando diversos modelos de processos para se chegar a decisões finais,
desde que sejam produzidas e justificadas em um fórum deliberativo. O consenso não seria o mais
desejado, mas uma relação estabelecida pelo respeito comum, a partir do momento em que os seus
integrantes aceitam o valor presente nas intenções dos outros, além de desafiar suas opiniões com
48

base nos seus méritos. A ótica dos que participam não mudaria, mas seria alterada pelo processo
deliberativo, havendo uma mudança de percepção do outro partícipe, com o qual não se concorda.
A questão é como se chegar (ou quais são os principais elementos para se atingir)
resultados efetivos na deliberação? Que elementos são essenciais para legitimar um consenso que
seja produzido efetivamente pelo debate e manifestação de vontade daqueles dispostos a participar
do processo deliberativo? A garantia do amplo acesso e o reconhecimento da importância dos
atores envolvidos pode ser uma primeira pista. Ao depois, a viabilização da presença imparcial dos
envolvidos com a disponibilização de recursos materiais é essencial, consolidando não só a vontade
produzida, mas também o hábito de participar ativamente das deliberações. Por último, a colocação
em prática daquilo que foi objeto do consenso produzido, sem o qual todo o esforço e dedicação
para realizar a democracia deliberativa se esvaziaria.
O deliberacionismo (se não observar tais premissas) pode ser objeto de manipulação direta
por indivíduos com objetivos parciais, além de ocasionar óbices às mudanças estruturais
necessárias, descartando e desestimulando as pessoas envolvidas no procedimento. Esse pode se
dispersar de tal maneira que redundaria no reforço da discricionariedade daqueles que prevalecem
na escolha de decisões que a eles beneficiam diretamente. Destaca-se que, apesar dos diversos
problemas apontados, uma das importantes contribuições da deliberação é a retirada do foco da
legitimidade do poder (realizada exclusivamente por intermédio do voto na representação) para
outras instâncias participativas que agregarão elementos novos ao exercício da democracia,
reforçando a sua prática a partir do direto protagonismo político, via cidadão. Todavia, se as ações
voltadas para a efetividade deliberativa visarem outros objetivos que não a legitimidade
democrática, a deliberação pode assumir caráter extremamente conservador, preservando o status
quo, além de frear a ação política inovadora. Pode ainda se revestir de caráter negativo:

Convites para que representantes de movimentos sociais participem de fóruns


deliberativos podem implicar a legitimação de instituições injustas, levar à
desmobilização e ao abandono de formas de intervenção mais eficazes e ser,
muitas vezes, uma via de cooptação (MIGUEL, 2014, p. 81).

Nesse contexto, a democracia deliberativa se aproxima da participação enquanto modelo


hábil a dotar o indivíduo de poderes efetivos para fazer a diferença em termos de escolhas políticas
variadas, podendo redundar (se não observada) em proposta deliberativa composta por diversos
49

microcosmos políticos restritos e voltados para a formação de consensos parciais e dirigidos aos
interesses das minorias que predominam politicamente. A ideia original da deliberação enquanto
elemento viabilizador da participação política se transforma perigosamente em instrumento de
ratificação do modelo liberal, prejudicando as boas propostas originais, especialmente, a sua
capacidade de produzir decisões consistentes após todo processo que consome tempo, energia e
recursos cada vez mais escassos e caros. Pode acarretar ainda o retorno do indivíduo ao seu
histórico papel contemporâneo de ator coadjuvante do processo político-democrático e, pior, o
reforço do seu crescente ceticismo acerca das instituições democráticas.
O preconceito racial, cultural, econômico e de classe pode ser havido como limite imposto
a determinadas coletividades marginalizadas e tidas como inferiores ou despreparadas cultural ou
politicamente para se manifestar, devendo reunir determinadas aptidões previamente exigidas ou
imaginadas por aqueles que prevalecem politicamente. Os excluídos teriam menos condições de se
manifestar e de ver suas reivindicações atendidas pelos governantes. A teoria deliberativa
reivindica uma forma legítima de produção de decisões coletivas. A possibilidade de acesso às
discussões e aos debates não é suficiente para impedir que as minorias prevalentes concretizem
seus próprios interesses. Para os excluídos, a deliberação pode inclusive representar mais um
obstáculo uma vez que exige o uso de instrumentos que não dominam. A deliberação, não sendo
eficaz para colaborar na solução de problemas relevantes da democracia, corre o risco de se limitar
a ideal normativo futuro:

Uma teoria crítica da democracia – que fale às sociedades contemporâneas e que


ainda deve ser construída – precisa enfrentar a questão da organização do mundo
material e seu impacto na política. Precisa fazer face à constatação de que os
conflitos de interesses são fatos permanentes e que a transformação social não
avançará se houver a exigência do consenso; na verdade, ela exige, muitas vezes,
um uso (legítimo) de coerção, impondo aos grupos privilegiados a subtração de
suas benesses. Precisa aceitar que o debate político não ocorre de maneira
independente de seus mecanismos de mediação, colocando na pauta a pluralização
do controle dos meios de comunicação de massa. Precisa entender que a
representação política é inescapável e que, portanto, a questão de mecanismos de
vinculação de representantes aos representados possui uma centralidade absoluta
na discussão sobre qualquer ordem democrática. A teoria deliberativa falha em
todos os quesitos e acaba por se constituir mais num obstáculo do que numa base
para pensar o aprofundamento da prática democrática (MIGUEL, 2014, p. 95).

A democracia delegativa é outro importante paradigma a ser considerado na análise:


50

As democracias delegativas se fundamentam em uma premissa básica: o (ou,


eventualmente, a, isto é, Corazón Aquino, Indira Ghandi e, em certa medida,
Isabel Perón) que ganha uma eleição presidencial é autorizado a governar o país
como lhe parecer conveniente e, na medida em que as relações de poder existentes
permitam, até o final de seu mandato. O presidente é a encarnação da nação, o
principal fiador do interesse nacional, o qual cabe a ele definir. O que ele faz no
governo não precisa guardar nenhuma semelhança com o que ele disse ou
prometeu durante a campanha eleitoral — ele foi autorizado a governar como
achar conveniente. Como essa figura paternal tem de cuidar do conjunto da nação,
é quase óbvio que sua sustentação não pode advir de um partido; sua base política
tem de ser um movimento, a superação supostamente vibrante do facciosismo e
dos conflitos que caracterizam os partidos (O´DONNELL, 1991, p. 30).

A grave desigualdade (especialmente a brasileira) nos impele a agir rapidamente para


construir modelo democrático, no qual o cidadão não somente participe, mas conquiste dignidade
educacional, laboral e social a partir da ação política de representantes envolvidos com avanços
políticos e estruturais consistentes. Sem isso, modelos diversos e ineficazes serão tão ou mais
inócuos como tantos já aplicados anteriormente. O caminho para estruturarmos consistente modelo
participativo passa pela criação de democracia de mais energia (transformadora e experimentalista)
do que as que existem no mundo ocidental desenvolvido e prevalente economicamente, devendo
estar voltada diretamente para as características peculiares da nossa gente carente, sedutora e ávida
por realizações. Não pode ser um modelo distante e frio (como o dos debates parciais - infinitos e
inócuos - que a nada levam), mas de luta constante para reorientar os destinos do país. Para avançar
nesse projeto democrático nacional, “só precisamos acender as luzes, revelar as dimensões da
podridão e preencher o vazio que avança sobre o Brasil não com moralismo estéril, mas com
alternativa factível, inteligência clara e vontade forte” (UNGER, 2018, p. 170).

1.5 Participação e democracia direta

A democracia direta caracteriza prática política que se realiza, via consulta popular, a
determinados temas previamente veiculados, sem a intermediação de representantes (ressalvada a
iniciativa popular cujo projeto de lei é encaminhado ao Legislativo onde se decide pela aprovação
ou não), por meio dos seguintes MDDs: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Os MDDs seriam
um instrumento viabilizador da realização de decisões políticas dotadas de maior legitimidade face
à direta participação da cidadania no seu processo. O principal debate acerca da democracia direta
alude às vantagens especialmente para otimizar a qualidade democrática e desvantagens, porque
51

os MDDs poderiam tornar o arranjo político mais temerário, caro e vagaroso. As situações
apresentadas são extremas, mas podem delimitar (e mostrar) o dificultoso campo de análise em que
tais elementos diretos se situam com base na teoria elitista de que a população seria despreparada
para o exercício do poder direto no Estado.
Os MDDs representam um ótimo repertório de possibilidades para a geração de decisões
legítimas, porém dependem de efetiva institucionalização (não só jurídica, mas também política)
para melhor concretização dos resultados práticos que visa a produzir, destacando-se que a
conjuntura política e socioeconômica repercute diretamente na forma pela qual tais mecanismos
são devidamente utilizados ou não. Sobre a questão da participação mais aguda da cidadania na
democracia, defende-se o legítimo direito do indivíduo de participar, todavia tais direitos não
trazem no seu bojo níveis robustos de participação (DAHL, 1989). Da mesma forma, a participação
pode ser defendida sem, todavia, esclarecer a maneira pela qual ocorrerá concretamente, ou ainda
ser prestigiada do ponto de vista político-institucional, atendo-se, entretanto, aos órgãos estatais
como juízos, tribunais e parlamentos, deixando de dotar o cidadão (principal interessado) de poder
efetivo para manifestar sua vontade em questões diversas. O debate entre minimalistas e
maximalistas é central na análise da, respectivamente, menor ou maior participação do cidadão no
processo democrático:

Mesmo assim, podemos formular duas perguntas para ver até que ponto o
minimalismo e o maximalismo democrático estão refletidos na realidade.
Primeiro, até que ponto os próprios cidadãos são minimalistas ou maximalistas?
Os autores minimalistas partem do pressuposto de que o cidadão tem pouco
interesse (e competência) pela política e por isso nem quer uma participação mais
ampla. Por sua vez, os autores maximalistas argumentam que o cidadão tem (ou
deveria ter) interesse pela participação política (RAUSCHENBACH, 2014).

Diante da questão (minimalismo e maximalismo), tanto um quanto o outro trazem


controvérsias e ambivalências consideráveis, que se reportam à contradição comportamental dos
indivíduos no que se refere a desejarem mais participação sem, todavia, usufruir plenamente desses
instrumentos de manifestação da vontade no campo político. O caso brasileiro é bem diferente.
Além de termos uma democracia direta de baixa intensidade (somente um referendo e um plebiscito
em trinta e quatro anos vigência da CF/88, ressalvados os casos de criação de estados e municípios),
o nível de inclusão da cidadania fica muito aquém do desejado, podendo ser considerado
minimalista do ponto de vista do interesse das pessoas na participação direta. Todavia, é evidente
52

que boa parte da população deseja mais voz no processo político sem, entretanto, haver esforços
institucionais para concretizar tal expectativa.
A disputa que envolve maiorias e minorias é outro tema que merece análise.
Historicamente, os processos de democracia direta contribuíram para o fortalecimento da “tirania
da maioria ou da minoria”. Todavia, no âmbito da maioria, existe o quórum, que vai definir a taxa
de aprovação ou de participação na decisão da questão, funcionando como um anteparo a escolhas
prejudiciais às minorias. Quanto a essas, uma primeira justificativa alude à escolha racional (as
minorias poderiam encaminhar as votações para a defesa de sua agenda) ou, outro argumento, no
sentido de que os recursos financeiros poderiam contribuir para a compra de resultados em seu
favor. O segundo elemento é relevante, tendo em vista que as elites políticas e econômicas buscam
incessantemente obter resultados favoráveis aos seus pleitos e aspirações por intermédio da direta
atuação em centros de poder como o Legislativo (SOUZA, 2016). Apesar disso, a comprovação de
aprovação de propostas obtida via poder econômico é difícil, tendo em vista que ocorre em espaços
e situações onde há dificuldade de acesso e de produção de provas.
No plano institucional, a complementariedade da democracia direta objetiva dotar o
arranjo político, via MDDs, de mais legitimidade não somente política como normativa. Todavia,
conflitos de diversas ordens aparecerão nesse embate de forças no campo político. Haveria
mitigação de poderes dos representantes em relação aos representados, tendo em vista que aqueles
não exerceriam mais exclusiva e prioritariamente a produção normativa exclusiva (ALTMAN,
2011, p. 42). Por questões não só normativas, mas também práticas, a democracia representativa
seria o melhor regime dentre os possíveis (ALTMAN, 2011, p. 3). Todavia, as consultas populares
ratificam as ações dos representantes uma vez que aquilo que restou aprovado pelo Legislativo
passa a ter mais legitimidade. Além disso, os processos de democracia direta servem de potencial
norte para os representantes, permitindo aos eleitos a obtenção de vetores de direcionamento
político acerca das aspirações da cidadania. Em suma, não são somente conflitos que delimitam a
participação, via MDDs, no campo político, mas também a obtenção de sinais futuros sobre o que
a população deseja em termos de atuação dos representantes.
53

Temem-se as consultas populares por possíveis resultados indesejados (o referendo sobre


o Brexit52, na Inglaterra; sobre as Forças Armadas Revolucionárias Colombianas/FARCs 53, na
Colômbia, e da não ratificação das Constituições europeia pelos franceses, em 2005, e da chilena,
em 2022, exemplificativamente), onde o eleitor rechaçou resultados havidos como praticamente
certos. As consultas populares propiciariam, além de trazer resultados políticos não desejados, o
atraso na conclusão final da questão, repercutindo inclusive no pior dos setores, o econômico.
Acarretaria “mal-estar político” porque os conflitos não se limitariam somente ao Legislativo, mas
também se alargariam com a participação dos cidadãos no processo decisório estatal. A questão
gira em torno da luta por mais participação (e consequentemente mais legitimidade política) ou
pela acomodação em uma suposta proposta de democracia de fachada ou domesticada (MIGUEL,
2002), na qual o povo é juridicamente destinatário do poder, mas, de maneira concreta, mero
espectador de tomada de decisões em seu nome pelo Estado:

Podemos constatar que a introdução de processos de democracia direta pode


tornar um sistema democrático representativo mais legítimo. Porém, a
legitimidade adicional tem um preço: o processo político torna-se mais complexo.
Somente quando os representantes enfrentam essa complexidade abertamente,
pode-se esperar resultados positivos; caso contrário, o jogo político torna-se mais
confuso e, com isso, menos democrático (RAUSCHENBACH, 2014).

A aptidão (ou não) da cidadania acerca da participação direta é tema igualmente relevante
(BENEVIDES, 1994, p. 15), uma vez que invoca como óbice a participação do indivíduo em
decisões para as quais não estaria potencialmente preparado. Geralmente os cidadãos definem suas
escolhas a partir de estratégias similares tomadas tanto nas eleições quanto nas consultas populares,
conciliando as informações restritas com interesses individuais e aspectos ideológicos e tendendo
a escolher opções contra as mudanças se não dispõem de elementos e informações suficientes para
a tomada de decisões (BOWLER e DONOVAN, 1998). Questiona-se também se o cidadão não
poderia ser manipulado por populistas ou por minorias interessadas em determinados resultados,
não sendo possível, em determinadas circunstâncias, aferir se o que determinou a opção do cidadão
foram seus próprios interesses ou se foi direcionado a isso. Restarão dúvidas acerca das escolhas

52
Consulta por via da qual o cidadão do Reino Unido decidiu pela saída da Comunidade Europeia, em 2016.
53
Referendo em que o cidadão não aceitou as regras previamente acordadas sobre o destino dos integrantes das
FARCs, após a sua dissolução, em 2016.
54

das pessoas diretamente envolvidas nas consultas populares, ressaltando-se que tanto os interesses
individuais quanto a persuasão de minorias envolvidas na aprovação de pontos favoráveis a sua
agenda estarão presentes na decisão final sobre plebiscitos e referendos propostos.
Portanto, a conclusão de que o cidadão é despreparado para participar diretamente do jogo
democrático é indevida. Da mesma forma, não se pode afirmar que as pessoas são plenamente
preparadas para se posicionar sobre todas as questões propostas. O caminho pode ser a preparação
e educação da cidadania para exercer a democracia direta de maneira responsável, constante e
consciente. É essencial a criação de arranjo político-eleitoral que delimite regras confiáveis e
idôneas a serem utilizadas tanto nas eleições quanto nas consultas populares, além de legislação
que mitigue e impeça excessos e abusos nos certames eleitorais como, por exemplo, o
financiamento privado nessas ocasiões. A questão da obrigatoriedade da participação 54 divide
muito as opiniões, entendendo alguns serem fundamental como elemento pedagógico
(PATEMAN, 1992), enquanto outros sustentam certa coerção, tendo em vista que o regime político
é democrático, não combinando com a determinação compulsória para participar. Entretanto,
quanto mais prática participativa, mais envolvido estará o cidadão na democracia direta, possuindo,
pela prática política, mais capacidade a fim de se manifestar nas consultas populares.
A legitimidade democrática das decisões realizadas via MDDs é ratificada no processo
político-eleitoral. O resultado das consultas populares, no mínimo, representa barreiras escolhidas
pela cidadania contra investidas parlamentares que podem desconsiderá-las ou até rechaçá-las. O
maior número de pessoas habilitadas eleitoralmente para exercer o jogo político redunda em mais
respeito e acatamento (mesmo que de forma contrariada) ao estabelecido nas escolhas finais
obtidas. Ressalta-se que tal circunstância seria inviável no arranjo democrático genuinamente
representativo, tendo em vista que os representantes eleitos praticamente detêm carta branca para
exercer seu mandato de maneira individual, sem se ater aos reclamos daqueles que os elegem. A
legitimidade dos processos de democracia direta tornaria o arranjo mais complexo, porém
vincularia os representantes na concretização dos resultados produzidos, sob pena de
responsabilização legal.
Os MDDs detêm ainda capacidade para retificar erros de avaliação e execução de políticas
públicas, além de possibilitar uma eficiência política mais eficaz (BLUME, MÜLLER e VOIGT,

54
Os maiores de 18 até 70 anos devem obrigatoriamente participar do processo eleitoral por força do art. 14, § 1º. da
CF/88.
55

2009, p. 45), colaborando para o aprimoramento da situação macroeconômica de um país por meio
da utilização de mecanismos que podem reduzir as dívidas contraídas pelos Estados, além do
aperfeiçoamento da eficiência da administração pública (FELD e KIRCHGÄSSNER, 2001).
Altman (2011), todavia, discorda desse diagnóstico, entendendo que não há estudos empíricos
nesse sentido. De toda maneira, a contínua participação cidadã em questões estatais diversas, se
não corrige todas as mazelas estatais (o que seria impossível), tem o poder de fortalecer
pedagogicamente o perfil dos partícipes nos processos, além de ratificar e aprimorar
“accountabilities” enquanto freios à atuação e paradigmas de conduta dos representantes. A
participação, via MDDS, não tem o propósito de estabelecer uma democracia direta nos moldes
atenienses, mas colaborar também complementarmente para a consolidação de modelo
democrático-representativo no qual os eleitos continuam como atores políticos principais, porém
acompanhados de perto e fiscalizados efetivamente pelo poder popular a partir de consultas
pontuais e constantes. Quanto mais participação dos cidadãos, mais limites ao exercício dos
mandatos pelos representantes, sem o que, a apatia e alienação certamente predominarão.
Há pontos positivos na participação, porém o “engessamento parlamentar e executivo”
proveniente das consultas populares pode ser havido supostamente como desvantajoso, remetendo
a possível paralisia decisória no funcionamento dos poderes. Entretanto, as opções advindas dos
processos de democracia direta, apesar de diminuir em parte a atuação dos representantes eleitos,
desloca o centro gravitacional do poder para o povo, reforçando a legitimidade democrática, além
de incrementar a sua responsabilidade em termos de participação nas escolhas políticas. Ao invés
de se imaginar que os representantes tenham os seus poderes reduzidos, a abrangência das ações
políticas passa a ter o aval popular, objetivo último de uma país que se autointitula democrático.
Tal prerrogativa se transfere com toda a responsabilidade advinda das consultas diretas, reforçando
a democracia representativa no que tange à atuação dos eleitos, haja vista que os acertos (e
igualmente os erros) serão frutos de opões prévias da população:

O tipo transitório mais importante é a dominação plebiscitária. A maioria de seus


tipos é encontrada nas "lideranças de partido", no Estado Moderno. Mas sempre
existe quando o senhor se sente legitimado como homem de confiança das massas
e é reconhecido como tal. O meio mais adequado para isso é o plebiscito (...). É
indiferente (a esta altura) como se estima seu valor de realidade: em todo caso, é
formalmente o meio específico de obter a legitimidade do poder a partir da
confiança (formal e ficticiamente) livre dos dominados (WEBER, 1994, p. 176).
56

O número de participantes em consultas populares é outro fator havido como potencial


empecilho para a deflagração dos processos de democracia direta, além de causar possíveis
prejuízos, pondo em xeque não só a sua confiabilidade, mas a sua viabilidade do ponto de vista
institucional. O Brasil, a título de exemplo, possui mais de cento e cinquenta milhões de cidadãos
habilitados a participar do jogo político e realiza satisfatória e periodicamente eleições (federais,
estaduais e municipais) desde a redemocratização em 1985, afastando a conclusão de que muita
gente habilitada eleitoralmente poderia atrapalhar as consultas populares. Pelo contrário, as
eleições podem ser inclusive um excelente momento para se incluir perguntas pontuais, relevantes
e polêmicas como legalização do aborto e da maconha, desnacionalização de empresas públicas,
redução da imputabilidade criminal, obrigatoriedade do voto, dentre outros temas relevantes 55.
Deve a mídia estar bem estruturada e capacitada para informar da melhor forma possível o eleitor
sobre as opções a serem escolhidas, cabendo ao Estado esclarecer os cidadãos acerca de elementos
diversos relativos às consultas. A qualidade dos resultados das consultas depende muito mais dos
elementos caracterizadores (sobretudo educacional) de seu povo, da regulamentação dos pleitos
eleitorais, dos esclarecimentos seguros e claros da imprensa e da legalidade da atuação das
autoridades envolvidas, do que do tamanho do seu eleitorado.
A extensão territorial é igualmente relevante. Quanto maior o país, em tese, mais
problemas de logística aparecerão, todavia, voltando ao caso brasileiro e com todas as nossas
dificuldades e diferenças regionais, apesar de alguns problemas pontuais, os certames eleitorais
sempre foram conduzidos a contento por intermédio de urnas eletrônicas seguras e de alta
tecnologia, a qual não pode ser havida como possível obstáculo para a realização desses eventos,
mas sim, aliada fundamental a partir do necessário e proporcional investimento estatal. A
destinação de recursos econômicos para o aprimoramento das consultas não se caracteriza como
custos ou despesas, mas investimento direto do Estado na consolidação democrática, via
participação direta, com muito mais ganhos políticos do que perdas advindas do seu
enfraquecimento institucional. A ideia central é, a partir da utilização contínua dos MDDs, permitir
que o regime político democrático e sua legitimidade se consolidem com a entrada em cena do
cidadão como protagonista ou ator principal (BENEVIDES, 1994, p. 9), a partir de regulamentação

55
CF/88, art. 14, § 12: Serão realizadas concomitantemente às eleições municipais as consultas populares sobre
questões locais aprovadas pelas Câmaras Municipais e encaminhadas à Justiça Eleitoral até 90 (noventa) dias antes da
data das eleições, observados os limites operacionais relativos ao número de quesitos (Dispositivo incluído pela
Emenda Constitucional nº 111, de 2021).
57

normativa que propicie condições e elementos para que funcionem adequadamente, atendendo aos
objetivos esperados:

Os processos de democracia podem complementar as instituições representativas


de uma maneira benéfica. Porém, na introdução e aplicação, devem ser
consideradas questões da regulamentação em si (quem pode iniciar o processo?
Quais temas podem ser abordados? Quem toma a decisão final? Quais são os
prazos? etc.), do relacionamento com outras instituições (parlamentos, tribunais,
administração, outras entidades federativas, direito internacional etc.) e do
contexto socioeconômico (escolaridade da população, acesso às mídias etc.).
Sem uma ponderação cautelosa de todos esses elementos, a introdução e aplicação
de processos de democracia direta muito provavelmente não contribuiria para a
melhoria da democracia de uma entidade política (RAUSCHENBACH, 2014).

As contradições da cidadania no sentido de desejar mais participação e não exercê-la


devem igualmente ser postas de lado, tendo em vista que o cidadão é muito ocupado e muito
envolvido com questões pessoais e familiares e, diante da grave crise econômica e da crescente
automação, não se pode imaginar que todos exerçam plena e integralmente o poder político no
Estado por meio de processos de democracia direta, fato que caracterizaria contradição em termos:
primeiro, por inviabilizar a vida do indivíduo que nada mais faria além de participar de consultas
para a efetivação de atos governamentais. Ao depois, porque aniquilaria a própria ideia de contrato
social originária que dota o Estado de legitimidade e poderes para exercer o governo em nome do
seu povo em uma perspectiva democrático-representativa:

Explica-se nesse quadro tendência crescente nas democracias contemporâneas: o


esforço de enriquecer a democracia representativa com traços de democracia
direta – isto é, de participação direta do eleitorado em decisões que afetem o futuro
nacional e a vida quotidiana. No Brasil a retórica oficial indicaria que estamos
prontos para esse debate (UNGER, 2018, p. 237).

Diante de dificuldades tanto empíricas quanto teóricas, busca-se o equilíbrio político-


institucional prevalente da democracia representativa complementada por MDDs, a fim de se dotar
o cidadão do real e concreto poder de participar em determinadas questões, sem intermediários, do
processo político-democrático (BENEVIDES, 1994, p. 16), construindo continuamente relação de
harmonia, de confiança, de fiscalização e de respeito mútuo com os representantes eleitos no
exercício do governo e no atendimento dos anseios da sociedade.
58

1.6 Conclusão

O enfoque relacional no campo da participação política sinaliza que, para além da atuação
estratégica e pragmática dos atores sociais envolvidos e das condições exógenas à ação, é
necessário prestar atenção às naturais disputas pela legitimidade dos discursos proferidos e das
práticas políticas que delimitam o campo de atuação desses protagonistas localizados em diferentes
pontos e com interesses diversos, à capacidade dos atores sociais de produzir colaboração e
coalizões, às numerosas distinções presentes nos subsistemas de políticas no que tange à
instabilidade ou maior grau de institucionalização das regras a serem observadas pelos
participantes, e ao papel atribuído aos principais protagonistas da sociedade civil relativamente às
substanciais e necessárias mudanças institucionais a fim de se buscar e de se realizar a vontade
popular nas esferas estatais.
Apesar de termos vivenciado no passado recente um panorama voltado para a pluralização
e diversificação dos sentidos da participação, os últimos anos, todavia, foram de muitos obstáculos
e numerosas dificuldades para a sua realização. Apesar de historicamente as principais decisões
políticas serem geradas a partir de dentro da máquina estatal (sendo importantes e estratégicas em
termos de otimização da participação), bem-vindas são as sugestões de efetiva atuação política da
cidadania, que levem em conta e vão além da limitada atuação exclusiva no campo estatal:

O desafio da teoria democrática nos tempos atuais consiste em buscar uma


definição que consiga contemplar as diferentes visões normativas da democracia
em contraste com a realidade empírica dos regimes democráticos. Por outro lado,
os estudos sobre a democratização, que analisam os processos de transição para
regimes democráticos, têm sido dominados por visões desenvolvimentistas que
relacionam o estado de consolidação democrática em aspectos estruturais
(desenvolvimento do capitalismo, importância da classe média etc.). Esses
autores condicionam a consolidação democrática ao desenvolvimento de fatores
extrapolíticos, relativizando sua importância. Por outro lado, outros autores
contemporâneos têm procurado acentuar o lado contingencial das democracias,
destacando o papel dos contextos e das estratégias desenvolvidas pelos atores
políticos que podem (ou não) resultar na consolidação de regimes democráticos.
Desse ponto de vista, mostra-se a “fragilidade” do processo (MONTEIRO, 2018,
pp. 387-388).

Partindo-se do pressuposto de que processos de institucionalização são sempre inacabados


(BOSCHI, 1987), é relevante que se tenha relativamente à participação uma visão dilargada e
59

profunda para – a partir da compreensão do passado e do presente – colaborar com propostas que
possibilitem a construção de um futuro mais democrático e pluralista tanto de longitude (suas
mudanças ao longo do tempo) quanto de latitude (a alternância dos atores e suas respectivas
vivências no campo democrático-participativo), devendo-se apostar e investir na combinação das
categorias, entre as quais se destacam a “noção de repertórios, encaixes, domínios de agência,
subsistemas, regimes, articulação sistêmica e representação, ao lado das variáveis que sempre
funcionaram como condicionantes ou fatores explicativos da participação” (ALMEIDA e
DOWBOR, 2019).
A abordagem teórica da participação, plasmada na crise da representação que
vivenciamos, sugere que o objetivo a se seguir é a defesa das liberdades públicas fundamentais
salvaguardadas minimamente pelo regime democrático que, apesar dos constantes e crescentes
ataques, insiste em existir e estar presente como um jardim que deve ser cuidado continuamente
sob pena de sucumbir. As transformações sociais pedem passagem o tempo todo e se realizarão
inexoravelmente. A diferença está nas sementes que fecundarão a terra. Se boas, os resultados
aparecerão certamente e favorecerão a todos indistintamente apesar das históricas resistências.
Senão, continuará tudo como está e, pior, sem perspectivas de melhoras a serem imaginadas e
vivenciadas pela grande maioria do povo que sofre muito em geral. Aí pode estar o embrião da
barbárie que ninguém deseja. Infelizmente só nos damos conta de algo precioso quando este se
esvai. Tomara que não seja o caso da nossa democracia que até aqui teima em subsistir. Finalmente,
destaca-se a importância de uma teoria da participação voltada para as questões primordiais que
nos afligem a partir das nossas especificidades políticas, sociais e econômicas. Tal elemento parece
central no avanço da ampliação da ideia de participação em uma perspectiva que priorize buscar
alternativas, propostas e soluções que permitam ao indivíduo se sentir ouvido e, sobretudo,
respeitado naquilo que envolve seus desejos e anseios presentes e futuros.
60

2 A PARTICIPAÇÃO NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

2.1 O embate com a representação democrática

A ANC de 1987 foi instalada no CN, em Brasília, no dia 1º de fevereiro de 1987, fruto da
EC nº 26/85, tendo como objetivo produzir uma Constituição democrática para o Brasil, após vinte
e um anos de ditadura militar. Sua convocação se origina de compromisso pactuado na campanha
para presidente de Tancredo Neves (1910-1985), do MDB, primeiro presidente civil eleito pelo
voto indireto no CN após a ditadura. Tancredo Neves, todavia, faleceu antes de assumir o cargo,
cabendo a José Sarney (PFL), seu vice e político ligado aos militares durante o regime de exceção,
assumir o cargo e instalar a ANC.
Os trabalhos se iniciam em clima de euforia democrática, sendo grande a esperança e a
presença popular, representada especialmente por setores da sociedade civil, como organizações
sociais, sindicatos, igrejas e entidades de classes, dentre outros. Tal fato pode ser observado nos
trabalhos constituintes, onde há direta preocupação com a participação política e liberdades
públicas enquanto elementos essenciais à inclusão da cidadania no processo político e ao combate
à desigualdade social:

Todos sabemos que o estabelecimento de novas relações entre Estado e sociedade,


que é o que no Brasil nos propomos a realizar agora - e os Srs. Constituintes têm
essa tarefa histórica à qual toda a sociedade civil está atenta – para
necessariamente pela redefinição dos conceitos de cidadania e dos conceitos de
liberdade, que ao longo dos anos vêm alongando seu alcance. Sabemos que
liberdade já não se resume a garantias frente ao poder do Estado, mas incorpora a
ideia da participação nas decisões públicas, bem como das garantias para o
exercício de direitos civis e direitos sociais. De fato, atribuir também à liberdade
o sentido político de participação, estamos distinguindo as condições necessárias
para a realização da prática política, como o direito de reunião, o direito de
petição, os direitos civis, enfim, da liberdade propriamente dita, que, agora sim,
voltando àquele sentido mais clássico (grego), poderíamos entender como
participação política. 56

É a presença do povo! Aí é que está a questão da constituinte. Por que não se faz
isso com uma Emenda Constitucional? Ali era o povo nos corredores, era o povo
nas galerias e em todos os salões da Câmara dos Deputados e do Senado, telões
instalados para que todos pudessem assistir o que se passava e havia o Diário da
Constituinte, que o Dr. Ulysses criou. Então Brasília era uma ebulição de pessoas,

56
Professora Dra. Jacqueline Pitanguy (ANC - Ata da 7ª. Reunião de Audiência Pública - Subcomissão dos Direitos
Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias – 21/5/87 – p. 24).
61

entidades e instituições. Não havia escritório vazio em Brasília. As federações das


indústrias, as associações comunitárias, a Conferência Nacional dos Bispos
hiperlotada de párocos que saíam dos estados, sabe, da sede da CNBB. Era algo,
havia acampamentos na cidade, lonas de circo abertas com beliches nas áreas um
pouco mais remotas ainda dentro do Plano Piloto, mas para abrigar quem não tinha
ou não era de uma dessas instituições. É um processo que não se reedita, aí é que
está, é algo que não se repetirá. O dia que vier outra constituinte, já virá em
condições tecnológicas diferentes, formação cultural saberá qual é, mas isso era
guerra fria, ou seja, aquele momento não se repetirá. 57

Por demais importante. A intenção inicial não foi essa, mas de se ter um projeto
elaborado por uma comissão chamada de "Comissão de Notáveis" e esse projeto
seria promulgado pelo Congresso Nacional. Se tivéssemos seguido por este
caminho, certamente, o Brasil teria recebido uma constituição elaborada por uma
elite econômica e intelectual sem qualquer conexão com o desejo popular. Para
que você tenha ideia da dificuldade de leitura da vontade popular, a tal "Comissão
de Notáveis", presidida pelo Afonso Arinos, viveu de conflito em conflito até
deixar de existir. Mas, sem dúvida, a contribuição do Afonso Arinos seria
altamente relevante, como foi. Por isso, eu conduzi o processo eleitoral de 86, no
PFL do Estado do Rio de Janeiro, para termos o Afonso no Senado. E
conseguimos. O melhor processo de construção foi com a presença assídua de
todos os segmentos da sociedade brasileira. Os corredores, gabinetes e galerias
dos plenários e até mesmo os plenários, receberam gente de todos os lugares e de
todos os segmentos do Brasil. Por isso, foi possível se fazer a festa que fez Ulysses
Guimarães na promulgação da Constituição.58

Houve, entretanto, momentos de tensão na condução e encaminhamento dos trabalhos da


ANC:

Houve um momento em que se tentou interromper o trabalho da constituinte.


Podemos falar isso daqui a pouco na “Constituinte no divã”, mas o que hoje é o
Centrão considerou o projeto da comissão de sistematização um projeto de
esquerda, tinha nada. Imagina, o FHC na Comissão de Sistematização, atuando
como relator da Comissão de Sistematização. O relator geral Bernardo Cabral, o
Presidente da Constituinte Dr. Ulysses Guimarães. De modo que não se estava
trabalhando ali sistematicamente um projeto de esquerda, é uma coisa de má fé.
Não era esse o medo. Era o medo da perda do próprio poder. Não é só do poder
político, mas do poder econômico. Bom, em junho de 1988, por aí, o deputado
José Lourenço pretendeu encerrar os trabalhos da ANC. O Dr. Ulysses Guimarães
deu uma entrevista duríssima, dizendo que “se tem a maioria absoluta, que
apresentem um projeto, mas devo dizer que não presido um manicômio, eu
presido a ANC”, estavam todos lá. Então houve vários momentos de tensão

57
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/2022 (Anexo
II da tese).
58
Constituinte Rubem Medina pelo PFL/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/2022 (Anexo
III da tese).
62

pesada. Houve momento de muita tensão na discussão da reforma agrária, da


antiga UDR (União Democrática Ruralista). 59

A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após


tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade
e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura.
Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações,
principalmente na América Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituição
que passará a comandar esta grande Nação. A primeira é a coragem. A coragem é
a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a
coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria
a cruz, nem os evangelhos. A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o
establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão
saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e
perigosa campanha mercenária dos que se atreveram na tentativa de aviltar
legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios
e especulações.60

A oposição entre representação e participação política na ANC sugere o embate entre


novos protagonistas, especialmente movimentos sociais e partidos de esquerda de um lado, e elites
políticas de outro. O conflito é recorrente na história do Brasil, todavia parece que a solução
perpassa pela identificação das razões que levam o país a não priorizar o combate à pobreza, às
desigualdades e à participação popular. A correlação entre as propostas defendidas e o caminho
percorrido por seus protagonistas reflete as razões para sustentar a representação ou a participação
política, remetendo os debates sobre mecanismos de participação à questão da desigualdade entre
representantes e representados e, ainda, ao novo papel a ser desempenhado pelo Legislativo no país
redemocratizado.
A relação entre essas duas questões mostra que o conflito sobre participação advém de
paradigmas políticos opostos e, também, acerca de experiência diferenciada sobre instituições
políticas. Aqueles que preferem a representação democrática se embasam, primeiramente, no
elitismo democrático, sustentando a necessidade de conhecer a vida política e as técnicas para
melhor exercer supostamente o governo, além de defenderem que o enfraquecimento do
Legislativo no período militar e no país prestes a se redemocratizar não possibilitaria a
consolidação da soberania popular:

59
Constituinte Miro Teixeira pelo PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/2022
(Anexo II da tese).
60
Constituinte Ulysses Guimarães (Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no Diário da
ANC/DANC, de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382).
63

Sr. Presidente, Srs. Membros da Subcomissão, no que diz respeito ao "direito à


iniciativa", sou contrário a qualquer tipo de arranhão à representação popular
legitimamente constituída. Se o Parlamento brasileiro não funciona como deveria,
é muito mais por culpa nossa do que da própria legislação. É pela existência
durante 20 anos, de arbítrio que impediu que pudéssemos, realmente, legislar.
Hoje, não somos um Poder Legislativo; somos apenas um Parlamento e como tal,
apenas discutimos temas. Se verificarmos, estatisticamente, quantos projetos de
iniciativa parlamentar foram aprovados nos últimos 25 anos, chegaremos a um
número tão absurdo que nós mesmos nos envergonharíamos disso. Quanto à
iniciativa dada à população, acho que constitui um desrespeito ao próprio
Parlamento, porque ninguém há de negar que, se qualquer cidadão aqui chegar e
me apresentar um projeto, posso não concordar com ele, mas o encaminho.
Portanto não há necessidade de criarmos instrumentos que dificultem essa
apresentação. Não acho que seja razoável diminuirmos a representação popular.61

Situação diferente se dá em relação aos constituintes estreantes, progressistas ou que, de


alguma maneira, foram retaliados durante o regime de exceção, advogando a participação direta no
novo texto constitucional. A distensão democrática seria vista como uma alteração de postura dos
protagonistas que possuem o poder político, objetivando uma melhor conformação entre a classe
política e a população. Os MDDs possibilitariam assim melhor representação de interesses havidos
como sub-representados no governo ditatorial (O’DONNELL, 1979). A participação direta dos
setores sociais prejudicados política e economicamente é havida como forma de garantir a
democratização, aguardada não somente como a reestruturação dos poderes, mas ainda como
associação entre expressão política e proteção de interesses diversos. Os representantes devem estar
mais perto do povo, devendo ser franqueada a este a oportunidade de vetar um ator político que
não atenda aos seus anseios postos inicialmente na outorga do mandato eleitoral. A participação
seria um meio de fortalecer o Legislativo, atribuindo-lhe nova legitimidade popular, além de
garantir o reforço do elo com a representação, via novos MDDs (VILAS BOAS, 2018, p. 252).
Os entusiastas dos MDDs pediam uma Constituição mais ampla e menos jurídica, porém
colocando o povo na esfera das decisões políticas e trazendo concepções diferenciadas do direito
enquanto técnica de poder: encarado o direito como elemento de dominação, este é questionado
pelos adeptos da participação, porém, simultaneamente, invocado pelos mesmos para garantir a
presença do cidadão no campo decisório. Trata-se de contradição em termos presente na transição

61
Constituinte Samir Achôa (PMDB/SP - ANC - Ata da 3ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos
Direitos Coletivos e Garantias, realizada em 22 de abril de 1987).
64

democrática, que imputará ao direito aspecto contestatório para instrumentalizar os anseios por
mais democracia participativa a partir da representação política:

Há uma imensa deformação na opinião pública quanto à forma como cada um dos
constituintes deve executar a sua missão. Mandei buscar um exemplar da
Constituição para ver exatamente o capítulo do Poder Legislativo, que trata das
competências do Senado e da Câmara, mas não especifica a forma como o
legislador, o representante do povo, que integra o Poder Legislativo, exerce as
suas atribuições. [...] compete ao Deputado e ao Senador a representação do
eleitorado do seu Estado no campo político. E essa representação se exerce de que
forma? No encaminhamento de proposições da comunidade ou de setores que
representa, na fiscalização dos atos do Poder Executivo. [...] o parlamentar tem
um papel de representação, um papel político e também de fiscalização, além da
função de legislador. Está é sua missão final, não a inicial. O início do trabalho
ocorre com a representação e com a fiscalização e se conclui com a legislação. É
até possível que não haja necessidade de legislar, se a legislação existente estiver
sendo aceita e funcionando.62

O tecnicismo jurídico com suporte em conhecimentos especializados foi contraposto pelos


adeptos da participação direta, os quais entendiam a ciência jurídica a partir do conflito entre a
própria sociedade e as elites dominantes, identificando-a como um elemento de dominação destas
relativamente àquela. Todavia, o direito enquanto mecanismo à disposição das minorias
prevalentes a fim de fazer valer suas pautas e agendas políticas, apesar de confrontado pelos
participacionistas quando se mostra como conhecimento especializado, no que tange à renovação
do quadro institucional, será manejado por estes para atingir seus objetivos. Uma possível
justificativa para a questão seria a natureza das instituições brasileiras, as quais se consolidaram a
partir de um direito considerado moderno, no entanto, aplicado a uma população em sua maioria
com baixo grau de escolaridade e de inclusão cidadã. Os discursos na sequência espelham bem o
paradoxo:

As instituições têm de ajustar-se ao meio, e os homens às instituições. No Brasil,


ao longo do nosso processo de evolução histórica, jamais conseguimos a
realização simultânea da democracia substancial com as garantias da democracia
formal. A distonia, na verdade, não está no meio, nem nos homens, nem nas
instituições, isoladas ou concomitantemente. Está, a meu ver, na circunstância de

62
Constituinte Victor Faccioni (PDS/RS - ANC - Ata da 1ª Reunião extraordinária da Subcomissão do Poder
Legislativo, realizada em 21 de abril de 1987).
65

nunca termos sido capazes de ajustar as instituições ao meio e os homens às


instituições.63

Quanto à participação popular, quero deixar registrado que a marginalização


política é um fato histórico na vida do País. Não temos instrumentos que facilitem
a participação da sociedade civil, dos grupos nela organizados. Acho que todo o
espaço que houver para mobilização, para motivação dessa participação política,
deve ser estimulado. Fundamentalmente pelo Legislativo, a quem interessa essa
mobilização, porque significa seu fortalecimento.64

A fim de se buscar uma melhor compreensão sobre o papel do Direito enquanto elemento
central na instrumentalização da política no Estado, a democracia mobilizadora parte do
pressuposto de que o lugar escolhido para as verdadeiras emoções é toda sociedade, esquentando
a política (tanto a macro quanto a micro) e afrouxando os nós sobre os recursos fundamentais
necessários à construção da sociedade e de seus elementos essenciais: poder político, capital
econômico, arcabouço cultural e instituições. Tal tipo democrático inadmitiria o abandono ou
limitação do espaço da política, esforçando-se para abranger o máximo possível toda a sociedade
no processo político. A democracia mobilizadora caracteriza a inversão dos dois conjuntos de
técnicas institucionais que delimitam o status quo constitucional prevalente da democracia
contemporânea: a predileção por estruturas institucionais que reduzem a velocidade da política de
transformação por intermédio de oportunidades para a obrigatoriedade do consenso; e a adoção de
propostas que colocam a cidadania em nível de baixa intensidade de mobilização (UNGER, 2004,
pp.198-199):

No lugar de estruturas que favorecem impasse ou exigem consenso, a democracia


mobilizadora coloca técnicas constitucionais que facilitam o uso transformador
do poder político e a execução resoluta de experimentos programáticos. Entre tais
técnicas pode estar a mistura engenhosa das características de sistemas
parlamentares e presidencialistas de maneira que abram caminhos múltiplos para
a conquista do poder estatal central; a prioridade conferida a propostas
programáticas sobre a legislação episódica; a resolução de impasse sobre a adoção
de tais propostas por meio de plebiscitos e referendos nacionais; e a atribuição aos
diferentes poderes do Estado do poder para convocar eleições simultaneamente
para todos os poderes (UNGER, 2004, p. 200).

63
Marco Maciel (PFL/PE – ANC – Subcomissão do Poder Executivo - Audiência do dia 21/4/1987. DANC –
Suplemento, 18/6/1987, p. 88-93).
64
Ex-governador de São Paulo Franco Montoro entre 1983 e 1986 (PSDB/SP - ANC - Audiência do dia 4/5/1987.
DANC – Suplemento, 24/6/1987, p. 108-112).
66

Os obstáculos na ANC composta por forças políticas majoritariamente conservadoras são


inúmeros. Os discursos apresentados demonstram que há uma clara dicotomia entre realmente se
empoderar o cidadão do ponto de vista participativo direto ou manter o protagonismo histórico da
representação democrática. Destaca-se que a nova institucionalidade em debate na ANC a partir
dos conflitos entre a legislação e os MDDs demostra bem a temperatura das relações sociais e
políticas então vigentes. Se as instituições representativas têm suporte em proposta igualitarista
individualista, representada pelo sufrágio universal alusivo a “um homem, um voto”, os MDDs em
debate na ANC se estruturam numa concepção coletiva tanto do social quanto da política, não
sendo o povo considerado como a reunião de pessoas ou da cidadania, mas a partir da chamada
“sociedade organizada”.
É a partir dos coletivos sociais que os MDDs são imaginados, fato que se corrobora pela
utilização do termo “participação popular” em detrimento de “participação cidadã”, que só viria
posteriormente no meio político. Todavia se os entusiastas dos MDDs convergem sobre a dimensão
coletiva da inclusão popular, eles não chegam a um acordo acerca dos objetivos desses mecanismos
que permanecem obscuros em termos da real concretização constitucional (VILAS BOAS, 2018,
p. 254). A questão nos remete à relação entre representação e participação institucional na ANC:

Mas, Sr. Presidente, sou daqueles que entendem que exercida essa participação,
apesar de indispensável, está de certa forma, sendo pela representatividade dos
Srs. constituintes uma vez que durante mais de ano, em campanha eleitoral, os
candidatos puderam auscultar as necessidades regionais, as reivindicações e os
reclamos de seus Estados e Municípios para poder trazê-los a título de sugestões
e subsídios para o bojo desta Subcomissão. Para concluir, Sr. Presidente,
considero louvável a intenção, mas, no meu modesto entendimento, no meu pálido
entender, esta intenção é absolutamente inviável, porque impraticável diante até
mesmo da realidade geográfica do nosso País.65

José Gomes Pimenta66 aborda a relação entre a representação política e a participação


popular direta à época:

65
Constituinte Fábio Lucena (PMDB/AM - ANC - 2ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos
Coletivos e Garantias, em 14/04/1987).
66
Operário da construção civil. Fala em nome do Comitê Pró-Participação na Constituinte dos Movimentos Populares
de Minas Gerais.
67

O sentido que estamos impondo à iniciativa de participação popular é o de


fortalecer as instituições brasileiras, ajudar o Congresso Nacional, bem como os
Legislativos estaduais a readquirirem suas prerrogativas. O povo, na sua
participação, não quer intrometer-se nos assuntos maiores, que pertencem aos
legisladores; queremos ser fonte de alimentação destes, para que possamos
realmente ter força nas nossas comunidades, fortalecendo, inclusive, as decisões
dos legisladores, dos representantes políticos. Não queremos assumir lideranças
políticas, queremos contribuir com nossa força de trabalho, com nossa
inteligência, com nossas organizações para o fortalecimento das instituições
democráticas.67

A questão é ratificada pelo constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ):

Mas vamos chegar a um acordo porque, na verdade, o povo tem sido o grande
ausente, o Parlamentar se desvincula do eleitor depois de eleito. E um homem
como o constituinte Afonso Arinos, com a notável experiência e cultura que tem,
disse assim: “Não, Deputado, a nossa divergência é que V. Exª não está se
preocupando com a representatividade, mas apenas com a participação popular”.
Ele distinguiu assim a minha opinião. Na verdade. A nossa função é uma das
funções do poder popular, e não é a única e talvez nem seja a mais importante
atividade parlamentar. 68

Políticos ligados ao regime militar e pertencentes às direitas (PDS, PFL, PTB e parte do
PMDB, por exemplo) se colocariam de maneira mais favorável ao crescimento da representação
eletiva e consequente fortalecimento do Legislativo, ao passo que os políticos perseguidos,
cassados na ditadura militar ou das esquerdas (PT, PDT, PC do B e do PSB, exemplificativamente)
se alinhariam na defesa de ampla participação popular (VILAS BOAS, 2018, pp 249-250). A
legitimidade do Legislativo aparece no discurso de Amauri Temporal, que defende o modelo
representativo e o referido poder suficientes para aferir a vontade coletiva da nação:

O modelo representativo é legítimo e suficiente para aferir a vontade coletiva da


nação. Não entendo, realmente, como se pode pôr sob suspeita a legitimidade do
Legislativo e das formas sedimentadas de representação de uma democracia. Esse
sistema já foi aprovado em todas as democracias estabelecidas, e naquelas
consideradas modelo, que usam esse sistema de representação. Não vejo como
falar na valorização do Congresso, com a qual concordamos inteiramente, pois
entendemos que o processo de democratização do Brasil passa por uma veemente
defesa do espaço da ação do Legislativo, da forma como S.Sa. se pronunciou. Mas
considero, e esta é a opinião da entidade que represento, que o atual sistema é

67
ANC - Ata da 15ª Reunião Ordinária da Comissão de Sistematização, realizada em 1º de setembro de 1987.
68
ANC - Ata da 12ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, realizada em
13 de maio de 1987.
68

absolutamente legítimo, já que representação indireta não impede que a vontade


coletiva da nação seja manifestada via seus legítimos representantes(...) Mas o
que nos parece absolutamente essencial é que a gestão da coisa pública de forma
democrática, a gestão do dissenso na sociedade, a gestão dos conflitos de
sociedade e que formam, a nosso juízo, a democracia real, necessitam realmente
de uma ponte, de uma ligação umbilical constante entre governantes e
governados.69

Todavia, a desconfiança acerca da atuação do Legislativo enquanto garantidor da


realização da participação política repercute em pronunciamentos onde se pede o aprofundamento
desta como forma de fortalecimento do referido poder, remetendo à predominância da vontade
cidadã no parlamento:

Enfim, Sr. Presidente, creio que o segredo do fortalecimento do Poder Legislativo,


a reconquista de suas prerrogativas, o exercício de suas funções está na maneira
diretamente proporcional à forma mais ou menos feliz que encontramos para
descentralizar seus trabalhos e criar mecanismos de participação do povo na tarefa
que nos incumbe.70

Quanto à participação popular, quero deixar registrado que a marginalização


política é um fato histórico na vida do País. Não temos instrumentos que facilitem
a participação da sociedade civil, dos grupos nela organizados. Acho que todo o
espaço que houver para mobilização, para motivação dessa participação política,
deve ser estimulado. Fundamentalmente pelo Legislativo, a quem interessa essa
mobilização, porque significa seu fortalecimento.71

A dicotomia em termos de posição sobre participação na Constituinte ratifica as


dificuldades acerca de sua implementação, estando diante da chamada “confluência perversa”,
onde aparecem duas propostas conflitantes: uma primeira denominada “democrático-
participativa”, que objetiva a ampliação da democracia pelo fomento de espaços públicos,
inaugurando-se a partir da CF/88 com a participação da sociedade civil. E outra chamada de
“liberal”, que defende um Estado mínimo, retirando deste a responsabilidade de garantir direitos
sociais, emergindo a partir dos anos noventa (DAGNINO, 2004):

Nesse vislumbre de soberania e democracia, qual o papel que V. S. vê na


participação popular, que é a grande luta desta atual Constituinte? Será que o povo

69
DANC (Suplemento) em 14/5/1987, pp. 31-45.
70
Constituinte Henrique Córdova (PDS/SC); DANC em 14/5/1987, p. 44.
71
Constituinte João Paulo (PT/MG); Ata da 3ª. Reunião Ordinária realizada em 22/4/1987, pp. 5-6.
69

tem configuração moral e política para ser o sujeito desse processo, para nele
intervir a todo instante, ou ficaremos dentro daqueles velhos conceitos liberais? 72

Os conflitos em torno da adoção ou não da participação eram distintos a depender da


maneira pela qual seria adotada. A conflitualidade dos debates sobre os mecanismos de
participação direta era muito intensa, pois se tratava de instituir participação direta em um momento
em que o Legislativo tentava, ao mesmo tempo, construir sua legitimidade ante ao Executivo
sempre forte, havendo preocupação com a mitigação da representação política no CN:

Outro ponto: em que pese a defesa feita por V. S. do fortalecimento do Poder


Legislativo, entendendo, conhecendo até com muita propriedade - o que nos
causou satisfação - a realidade deste Poder, o poder desta Casa, a sua
desmoralização perante o povo, queremos dizer que as razões desse desprestigio
são exatamente estas: o fortalecimento excessivo do Legislativo e o interesse de
setores da sociedade, com predomínio do poder de decisão, de desmoralizar esta
Casa exatamente para não dividir o poder. Eu me preocupo muito com isso, e acho
que devemos buscar uma forma de participação maior, para o Poder Legislativo e
para o Parlamento para que o Brasil possa ter um Congresso Nacional
representativo. Em que pese às dificuldades que teremos ao implementar um
regime parlamentar no País, este é o primeiro passo importantíssimo para que
possamos resgatar o prestígio da representação popular. 73

Já em outros temas afetos aos direitos sociais, como as áreas da saúde e da educação,
houve amplo consenso sobre a participação, até porque se tratava de incluir a participação de
segmentos organizados da sociedade (e não o cidadão comum), o que reúne tanto movimentos
sociais, quanto também o setor privado. Além disso, eram mecanismos pensados para operar dentro
da esfera do Executivo, destacando-se como fatores explicativos para as diferentes posições sobre
os legisladores a sua origem partidária e trajetória constituinte, por exemplo, a relação com os
movimentos sociais (VILAS BOAS, 2018, p. 255):

Necessitamos dar uma assistência de qualidade à saúde da população. A formação


do trabalhador de saúde deve estar ligada diretamente, integrada mesmo ao setor
de ensino e ao setor de saúde. Queremos, também, ressaltar a necessidade de
participação, tanto da sociedade organizada dos trabalhadores da saúde, como dos

72
Constituinte Lisâneas Maciel (PDT/RJ); Subcomissão Poder Executivo (audiência pública em 24/6/1987 -
Suplemento. 82 p. 108); DANC em 24/6/1987, p. 26.
73
Constituinte Humberto Souto (PFL/MG); Subcomissão Poder Executivo (audiência pública em 25/6/1987 -
Suplemento 83 p. 76); DANC em 25/6/1987, p. 83.
70

usuários em geral em todos os níveis de decisão das políticas de saúde e dos


programas de saúde.74

Nós defendemos que a comunidade na escola escolha a sua própria direção; da


mesma forma, na saúde, dependa de eleições diretas para diretores de hospitais de
postos de saúde, com a participação da comunidade, mas ao mesmo tempo para
que não prefigure isso um espírito meramente corporativo, com a participação das
associações dos usuários na direção desse tipo de entidade.75

Achamos que a escola pública também deve ser democratizada e que a sociedade
civil tenha o direito, por ser a educação um instrumento decisivo de participação
da cidadania e de desenvolvimento da pessoa. E que esta sociedade civil tenha
participação e controle na execução da política educacional e de mecanismo
através de organismos colegiados.76

Nós gostaríamos de registrar que o depoimento trazido aqui pelas diversas


entidades casa perfeitamente com o pensamento já por nós esposados em
oportunidades outras e mostra uma reafirmação daqueles que estão próximos da
linha de frente da educação brasileira, da necessidade de que se tenha a
exclusividade dos recursos públicos para a escola pública, a necessidade de que
se tenha uma escola democrática, uma escola em que haja a participação da
comunidade, na gestão, na direção e na coordenação de suas atividades e de uma
escola que realmente represente o pensamento, o desejo, a aspiração maior da
sociedade brasileira. 77

A confecção da CF/88 ocorreu em um momento político de grande indefinição e


insegurança política acerca de um projeto futuro de país, entendendo-se o motivo pelo qual os
constituintes visaram a elevar ao máximo seus interesses e objetivos pontuais em detrimento
daquilo que se esperava de uma Constituição havida genuinamente como democrática e cidadã. O
resultado foi um texto prolixo, extenso, contraditório e frágil no que tange ao enfrentamento dos
inúmeros gargalos nacionais, dentre estes, a questão da participação institucional, que sinaliza para
certa tensão diante da representação política. Se por um lado, a ANC incentivou setores da
população a se constituírem como “povo” (ou grupo de interesses) para fazer-se presente, fazendo
valer sua voz relativamente ao que se desejava em termos de efetiva participação político-

74
Sra. Maria José dos Santos (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência pública 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 118
75
Constituinte Wladimir Palmeira (PT/RJ - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência pública
de 20/7/87 - Suplemento 99, p. 18); DANC em 20/7/1987, p. 93.
76
Sr. Hermes Zaneti (PMDB/RS - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência pública de
19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 226.
77
Constituinte Ubiratan Aguiar (PMDB/CE - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - Audiência
pública de 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 228.
71

institucional, de outro, a representação política neutralizou em diversos instantes a participação,


em uma proposta clientelista, especialmente em relação ao próprio exercício político do cidadão.
Tal circunstância prejudica ou oculta a verdadeira essência dos debates estabelecidos na ANC sobre
os sentidos atribuídos à representação política, o alcance da participação institucional pretendida e
a neutralização realizada pelos constituintes quanto aos reais objetivos que envolvem a questão no
parlamento (MIZUTANI, 2020, p. 16):

O processo constituinte brasileiro de 1987-1988 expôs as fragilidades do


paradigma adotado. Os dados da ANC reforçam a ideia de que não há “uma
vontade do povo” no texto constitucional e, por conseguinte, o argumento que se
apoie nessa premissa reduz a complexidade de uma Constituição democrática.
Descarta-se também a ideia de que a expressão “Cidadã” se refira a uma
Constituição popular. A participação popular não foi ampla e uniforme a todos os
temas debatidos, como se atestou da análise das fontes da ANC.
Procedimentalmente, a “Carta Cidadã” pode ser assim chamada porque, de
maneira inédita, criou canais de participação popular. Não significa dizer que o
produto dessa participação resultou necessariamente no texto constitucional
promulgado – mas o informou, inclusive em suas omissões ou postergações
(MIZUTANI, 2020, p. 175).

A ANC inaugurou uma nova perspectiva democrático-participativa, complementar à


representativa, além de fomentar o debate sobre a questão da legitimidade representativa traduzida
no incômodo político dos representados relativamente aos seus representantes quanto às mudanças
substanciais relativas ao efetivo acesso da cidadania às esferas decisórias de poder. Discursos pró
e contra mais participação foram proferidos por políticos de diversos matizes e com inúmeros
interesses a depender do momento, do lugar e do atendimento às expectativas pontuais de seus
eleitores, reforçando a representação democrática:

Como vimos, os formuladores da teoria da democracia contemporânea também


encaram a participação exclusivamente como um dispositivo de proteção.
Segundo eles, a natureza "democrática" do sistema reside em grande parte na
forma dos "arranjos institucionais" nacionais, especificamente na competição dos
líderes (representantes potenciais) pelos votos, de modo que os teóricos que
sustentam tal visão do papel da participação são, antes de mais nada, teóricos do
governo representativo (PATEMAN, 1992, p. 32).

A sociedade depositou muita esperança na ANC. O problema é que o papel do direito não
é solucionar problemas sociais graves. A intensificação da política visando a solução de graves
72

questões que afligem a coletividade deve vir acompanhada da auto-organização da sociedade civil,
possibilitando a construção e consolidação de instituições políticas consistentes garantidoras de
avanços e conquistas sociais na linha da chamada democracia mobilizadora (UNGER, 2004, p.
201):

No lugar de estruturas que favorecem impasse ou exigem consenso, a democracia


mobilizadora coloca técnicas constitucionais que facilitam o uso transformador
do poder político e a execução resoluta de experimentos programáticos. Entre tais
técnicas pode estar a mistura engenhosa das características de sistemas
parlamentares e presidencialistas de maneira que abram caminhos múltiplos para
a conquista do poder estatal central; a prioridade conferida a propostas
programáticas sobre a legislação episódica; a resolução de impasse sobre a adoção
de tais propostas por meio de plebiscitos e referendos nacionais; e a atribuição aos
diferentes poderes do Estado do poder para convocar eleições simultaneamente
para todos os poderes. Em lugar de práticas hostis à mobilização política dos
cidadãos, a democracia mobilizadora dá preferência a uma intensificação contínua
do nível de mobilização política na sociedade. Para esse fim, ela emprega, nos
contextos das organizações políticas contemporâneas, recursos tais como regras
de voto obrigatório, sistemas eleitorais favoráveis a partidos fortes, financiamento
público de campanhas e livre acesso ampliado aos meios de comunicação de
massa (UNGER, 2004, p. 200).

Apesar dos esforços constituintes a fim de garantir participação mais efetiva, nesse embate
de forças entre os defensores do protagonismo cidadão e da representação legislativa, esta última
prevalece, apesar de ser possível visualizar na futura Carta constitucional vários elementos
delimitadores da democracia participativa, sendo tais considerações realizadas no próximo capítulo
da tese que vai tratar especificamente da participação institucionalizada na CF/88.

2.2 A incipiente democracia deliberativa

A deliberação caracteriza importante processo de análise, debate e decisão da cidadania


sobre questões relevantes e de seu interesse, que tem como objetivo principal levar o indivíduo
para o centro das decisões políticas que repercutem diretamente na sociedade, diferenciando-se de
outras espécies democráticas por franquear aos seus participantes a possibilidade de apresentar e
mudar suas posições e preferências durante os debates, que primam pela persuasão e
convencimento das propostas defendidas, em detrimento da coerção ou imposição de ideias
(DRYZEK, 2000, p. 1).
73

Diferentemente da participação na representação, a deliberação se coloca de forma distinta,


pressupondo a escolha de participantes, temas a serem enfrentados, debates, acordos e formulação
de consensos que determinarão os caminhos pelos quais passarão as decisões políticas a serem
tomadas. A democracia deliberativa esteve presente nas discussões dos constituintes sobre a
presença do povo nos temas essenciais. A preocupação foi a de se invocar a necessidade de uma
participação mais abrangente da cidadania nos assuntos estatais:

Então seria fundamental a criação da participação política num centro importante


de decisão como o Conselho Monetário Nacional, ou um conselho de economia e
planejamento do qual participassem o Legislativo e a sociedade civil, com
representação também dos trabalhadores na agricultura, na indústria, no comércio,
num centro de decisão tão importante. Isto é viabilizar a corresponsabilidade em
nível do sistema de governo e a nível da participação política. Estou convencido
de que a justiça social só brota na medida em que houver maior participação
política. É a participação política no centro de decisão que empurra para
mudanças. É necessária a criação de mecanismos pelos quais se viabilize essa
participação nos centros de decisão. 78

Diferentemente da relação entre participação e representação, a democracia deliberativa


aparece em um contexto muito específico. Os debates sobre deliberação eram muito incipientes no
contexto da ANC79, apesar de, naquele momento, já haver a defesa de instâncias de poder decisório
do cidadão dentro do Estado, exemplificativamente, via conselhos e comissões de participação
popular na administração pública:

Que os conselhos, comissões e outros órgãos de instância de participação popular,


junto às administrações, tenham poder decisório. Representação minoritária do
Poder Executivo. Sabemos que existem muitos conselhos a nível da administração
pública federal, estadual, municipal, com a participação de setores representativos
da sociedade. No entanto, esses conselhos têm caráter de consulta e
aconselhamento e não de deliberação. Entendemos que isso deve mudar: a esses
conselhos tem de se dar o caráter de deliberação. 80

Acredito que na democracia representativa os canais formais se manifestam, em


cada momento, através de suas organizações próprias. Mas existem também os
canais informais, que devem ter vez. O Presidente José Sarney está consciente
dessa necessidade de participação, para que todos integrem os conselhos dos

78
Miguel Reale Júnior na audiência pública do dia 5/5/1987 (DANC – Suplemento, 25/6/1987, p. 77-80).
79
A proposta da política enquanto ação onde os atores visam o entendimento, via consenso, ganha força no mundo
acadêmico com Habermas (2012), ao publicar a sua teoria da ação comunicativa.
80
Sr. João Bosco da Silva; DANC em 14/5/1987, p. 36.
74

organismos regionais enfim, que participem do processo decisório. Temos,


quando conversamos rapidamente, questões agudas que exigem soluções
imediatas.81

A questão central era a seguinte: como se institucionalizaria tal tipo de participação? A


resposta não era de fácil solução, tendo em vista o já abordado receio legislativo quanto à perda de
poderes. Ao abordar o tema deliberação e suas implicações, adentrava-se no campo da efetiva
tomada de decisões das pessoas no exercício do poder. Apesar da preponderância do Executivo e
do Legislativo, muitos representantes resistiam à proposta de mais protagonismo cidadão por meio
de novos mecanismos democráticos. Destaca-se que tal preocupação vem inclusive por intermédio
das manifestações dos constituintes Lysâneas Maciel (PDT/RJ), e de Genebaldo Correa
(PMDB/BA), respectivamente, fato que sinaliza para a ausência de consenso sobre o tema:

Entendemos que a população deve participar da elaboração e controle de políticas,


programas e projetos públicos afeitos ao meio ambiente e à qualidade de vida,
através de seus representantes. Submeter, porém, os orçamentos à consulta
popular pode comprometer definitivamente a agilidade administrativa. 82

Faço ao Prof. Josaphat Marinho uma pergunta no campo do controle da


Administração Pública: O Prof. admite, em caso especial, a participação do
cidadão nesta fiscalização? Normalmente este controle, essa fiscalização caberia
ao Poder Legislativo, ao Congresso, às Assembleias ou às Câmaras Municipais,
sobretudo nos municípios, onde às vezes identificamos a posição das câmaras
municipais ou das Assembleias nos estados, que fecham os olhos aos erros
cometidos na Administração Pública. Admitir-se-ia um tipo de fiscalização
provocada pelo próprio cidadão, tipo ação popular? 83

A decisão advinda do processo deliberativo é garantida pelo consenso, ou seja, sua


implementação é assegurada pelos participantes que se submetem, primeiramente, às discussões e,
em seguida, após a finalização destas, aos resultados advindos do procedimento, não sendo simples
a obtenção de consensos em sociedades desiguais, multiculturais e pluralistas como a brasileira de
1987/88. Na sequência, a proposta de participação da comunidade se faz presente nos discursos de

81
Sr. Ministro Joaquim Francisco Cavalcanti (Subcomissão Poder Executivo - Audiência pública em 20/6/1987 -
Suplemento 81, p. 54): DANC, em 8/7/1987, p. 39.
82
Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa de Salvador/BA - Suplemento 90, p. 3 - Subcomissão do
Poder Legislativo - DANC em 8/7/1987, p. 30.
83
Subcomissão Poder Executivo (Audiência pública em 27/6/1987 - Suplemento 85, p. 24); DANC em 27/6/1987, pp.
35-36.
75

Evandro Paranaguá e do constituinte Sigmaringa Seixas (PMDB/DF), demonstrando a relevância


de se imputar às pessoas mais presença no Estado para maior legitimação do futuro texto em debate:

O último tópico, a questão da participação popular, parece fundamental, não vejo


como possa existir uma democracia de fato que não passe pela organização de
base, pela organização do quarteirão. Não pode haver qualquer medida restritiva
à participação popular, em todas as instâncias, em todos os momentos, em todos
os níveis e situações, seja ao longo da elaboração de uma nova Constituição, ao
longo da permanência da Assembleia Nacional Constituinte, seja no
funcionamento do Congresso Nacional nas suas atividades normais, em que não
há uma Constituição em elaboração. 84

Eu não poderia fixar numa Constituição uma eleição para administradores das
cidades-satélites; entretanto, acho que atendi, ainda que no entender de V. Exa.
não suficientemente à sua proposição, ao definir no inciso I do art. 5º. sobre a Lei
Orgânica - por ser uma lei orgânica, ela contém normas materialmente
constitucionais - que ela estabeleça a descentralização administrativa do Distrito
Federal da forma que melhor lhe convier e na instância, a meu ver, mais adequada,
que seria a Assembleia Legislativa. Inclusive, instituindo nessas administrações
regionais - não precisam ser administrações regionais, podem ter outra
denominação – Conselhos Comunitários ou outros conselhos, em que se admitiria
a participação popular. Então – veja bem V. Exa. - estamos definindo desde já, e
acho até que avancei demais para atender à proposição de V. Exa., que essa lei
orgânica pode admitir a participação popular mediante a representação, que a
preocupação de V. Exa., quanto à participação popular na administração das
cidades satélites, está atendida, apenas creio, se V. Exa. me permite, que a
Constituição não deve ser um texto didático.85

Várias são as críticas à presença popular, via deliberação, nas esferas de poder. A proposta
deliberativa produz legitimamente decisões coletivas, mas despreza alguns prismas que prejudicam
seus resultados como, exemplificativamente, a ilusão de que a presença das pessoas nos debates é
suficiente para anular o amplo poder que detém os que predominam politicamente para fazer valer
as suas agendas. A democracia deliberativa não conseguiria solucionar os problemas da
democracia, colocando-se como norte normativo ideal a ser atingido futuramente sem, no entanto,
concretizar no presente mudanças estruturais necessárias à transformação democrática social.
Além disso, a via deliberativa seria utópica porque nortearia a luta pela transformação da
sociedade, se omitindo quanto ao entendimento e resolução de questões essenciais existentes.
Critica-se o apego da forma deliberativa a modelos meramente procedimentais, deixando de lado

84
Subcomissão do Poder Legislativo (Audiência pública - Suplemento 63, p. 61); DANC em 21/5/1987, p. 73.
85
Subcomissão Poder Executivo (Audiência pública 20/6/1987 - Suplemento 81, p. 54); DANC em 20/6/1987, pp. 31-
32.
76

muito da sua força crítica e renovadora, que se perdem diante da necessidade de se enfrentar
questões vitais como justiça, direitos, igualdade, dignidade e modelo social que atenda
racionalmente os anseios da coletividade como um todo. A partir dessas considerações, a teoria
deliberativa se caracteriza mais como um óbice do que um suporte para repensar a consolidação da
democracia, sendo inescapável a predominância da representação política (MIGUEL, 2014, pp. 93-
95):

O modelo representativo é legítimo e suficiente para aferir a vontade coletiva da


nação. Não entendo, realmente, como se pode pôr sob suspeita a legitimidade do
Legislativo e das formas sedimentadas de representação de uma democracia. Esse
sistema já foi aprovado em todas as democracias estabelecidas, e naquelas
consideradas modelo, que usam esse sistema de representação. Não vejo como
falar na valorização do Congresso, com a qual concordamos inteiramente, pois
entendemos que o processo de democratização do Brasil passa por uma veemente
defesa do espaço da ação do Legislativo, da forma como S.Sa. se pronunciou. Mas
considero, e esta é a opinião da entidade que represento, que o atual sistema é
absolutamente legítimo, já que representação indireta não impede que a vontade
coletiva da nação seja manifestada via seus legítimos representantes.(...) Mas o
que nos parece absolutamente essencial é que a gestão da coisa pública de forma
democrática, a gestão do dissenso na sociedade, a gestão dos conflitos de
sociedade e que formam, a nosso juízo, a democracia real, necessitam realmente
de uma ponte, de uma ligação umbilical constante entre governantes e
governados.86

A deliberação, sob o prisma liberal, preconiza o espaço político como busca por posições
que garantam a condição de acesso ao poder administrativo, ou seja, o procedimento de criação
política de opinião e vontade na esfera pública e no Legislativo é condicionado pela concorrência
de protagonistas coletivos que atuam estrategicamente para acessar ou consolidar posições de
poder. As vantagens obtidas são mensuradas pela concordância da cidadania com programas
políticos previamente definidos e a partir de votos recebidos por intermédio dos quais os eleitores
depositam as suas predileções. As decisões do voto são aquelas que franqueiam a possibilidade de
acessar as esferas de poder, que caracterizam o objetivo maior dos partidos políticos.
Já na perspectiva republicana, diferentemente da liberal, a consolidação política da
opinião e da vontade no espaço público e no Legislativo não se submete diretamente ao mercado,
mas a uma comunicação pública direcionada ao estabelecimento de consensos a partir dos debates

86
Sr. Amauri Temporal (DANC – Suplemento de 14/5/1987, p. 31-45).
77

e a modelo político voltado à prática de autodeterminação das pessoas envolvidas, via diálogo
(HABERMAS, 2018, p. 405). A deliberação voltada à concepção republicana, mais incisiva e
aberta à participação popular, se observa na defesa da descentralização de poderes como forma de
garantia de acesso dos indivíduos ao Estado, a fim de assegurar a manifestação de vontade e
decisões coletivas em uma perspectiva livre e democrática:

Em relação à participação, propomos que a Constituição assegure a participação


obrigatória de representantes da sociedade civil - empresários, empregados,
usuários, consumidores ou setores semelhantes - nos órgãos colegiados da
administração direta. A participação da comunidade está muito ligada à ideia da
descentralização. Sempre que descentralizo, estou criando oportunidade para que
setores, cada vez maiores, mais amplos, participem das decisões ou das atividades
da sociedade. A Constituição deveria estabelecer como norma um princípio
programático: "todo órgão colegiado da administração pública deve ter
obrigatoriamente a participação de representantes da coletividade". Por exemplo,
Conselhos da CACEX87, ou Conselho Monetário, ou de qualquer entidade - uma
representação dos setores ligados a ela. Quando as decisões são centralizadas e
tomadas a portas fechadas, é muito fácil a corrupção. Costumo dizer que ela é o
subproduto da centralização do autoritarismo. Na medida em que se democratiza,
que se assegura a participação dos diversos setores, eliminamos a possibilidade
da corrupção, porque existem a divulgação, a transparência, os sofismas são
desmentidos e a verdade e o interesse público aparecem. 88

Exercer o poder não em nome do povo, como é da nossa democracia


representativa, mas, sim, com o povo. Abrir canais de participação permanente
para que o povo possa participar, discutir, sugerir e escolher as suas prioridades.
Que o povo não somente delegue poderes para os elementos
que vão gerir, mas que, além disso, possa participar do exercício do poder. Isto é
o que chamamos de democracia participativa, e que realizamos em Uberlândia. 89

Então, creio que essas coisas poderiam permitir essa contribuição, com essas
observações tão interessantes, com essas ponderações muito judiciosas que foram
feitas por várias pessoas, inclusive com a participação popular que mencionei.
Têm que haver mecanismos com a participação popular nesses órgãos, sobretudo
no órgão que vai formular políticas. 90

87
CACEX é a Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil, órgão criado pela Lei nº. 2.145, de 29 dezembro de
1953 (regulamentada pelo Decreto nº. 34.893, de 5 de janeiro de 1954), em substituição à Carteira de Exportação e
Importação (CEXIM) do Banco do Brasil. Disponível em: <https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
tematico/carteira-de-comercio-exterior-do-banco-do-brasil-cacex> (FGV/CPDOC).
88
Sr. Franco Montoro (Subcomissão Poder Executivo – Audiência pública em 24/6/1987 - Suplemento 82, p. 108);
DANC em 24/6/1987, pp. 110-111.
89
Sr. Zaire Rezende (Audiência pública 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 3.
90
Sr. Diogo Lordello de Melo (Audiência pública 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 15.
78

Não se pode desconsiderar a influência do poder econômico nas discussões enquanto


elemento fundamental de estabilização da perspectiva conservadora e contrária à participação,
sendo destacada por constituintes especialmente em relação à atuação dos lobbies presentes na
ANC, além dos grupos conservadores:

Em relação à participação popular, sou francamente favorável, e não sei por que
algumas pessoas temem os ajuntamentos e as pressões populares sobre o
Congresso. A pior pressão sobre o Congresso é a subterrânea, e a clandestina, que
não se vê, que é exercitada sobretudo por grandes grupos econômicos
internacionais e nacionais, poderosíssimos, que se podem dar ao luxo de ter
representantes aqui dentro. No regime capitalista, sabemos que o lobby é
institucionalizado, mas no Brasil isso ainda não ocorreu, porque o lobby tem uma
fronteira em que se confunde com a corrupção. 91

O último tópico, a questão da participação popular, parece fundamental, não vejo


como possa existir uma democracia de fato que não passe pela organização de
base, pela organização do quarteirão. Não pode haver qualquer medida restritiva
à participação popular, em todas as instâncias, em todos os momentos, em todos
os níveis e situações, seja ao longo da elaboração de uma nova Constituição, ao
longo da permanência da Assembleia Nacional Constituinte, seja no
funcionamento do Congresso Nacional nas suas atividades normais, em que não
há uma Constituição em elaboração. O que existe, efetivamente, é um lobby
subliminar, às vezes, e ostensivo outras.92

E, sobretudo, para, com a humildade de que precisamos neste momento,


aproveitar a contribuição de todos na construção de uma nação mais justa e mais
humana, onde a distribuição de renda não seja retórica de discursos, onde a
participação das camadas humildes da população não seja também retórica de
discursos e de palanque, e onde a Constituição que haveremos de fazer
progressista e renovadora, ao da grande maioria do povo brasileiro, e haverá de
ser uma Constituição distanciada do conservadorismo.93

Houve, portanto, consideráveis controvérsias sobre a maneira pela qual se desenharia a


democracia deliberativa no texto constitucional. A proposta deliberativa, atendidos os
procedimentos de escuta da opinião e da vontade do cidadão, interage diretamente com o mundo
racionalizado no qual se vive, sendo as comunicações políticas filtradas em termos deliberativos
dependentes de uma proposta política libertária e de uma socialização política consciente,

91
Sr. Tarcísio Holanda (Subcomissão do Poder Legislativo – Audiência pública em 21/5/87 – suplemento 63, p. 61);
DANC em 21/5/1987, p. 72.
92
Sr. Evandro Paranaguá (Subcomissão do Poder Legislativo – Audiência pública em 21/5/87 – suplemento 63, p.
61); DANC em 21/5/1987, p. 23.
93
Ministro Francisco Joaquim Cavalcanti (Subcomissão Poder Executivo - Audiência pública em 20/6/1987 -
suplemento 81 p. 54); DANC em 20/6/1987, p. 39.
79

especialmente no que se refere às iniciativas de associações formadoras de opinião, que se


estruturam e se transformam espontaneamente, mesmo que, em algumas circunstâncias, sejam
dificilmente acessíveis ao exercício do controle político (HABERMAS, 2018, pp. 417-418).
A grande quantidade de experiências vivenciadas no país sobre participação sugere que
sejamos um bom laboratório para se refletir acerca da relação entre participação e democracia
deliberativa. Entre as propostas mais conhecidas ressaltam, dentre outros, os Conselhos de políticas
e direitos, as Conferências em diversas áreas de políticas públicas e níveis de governo e o
orçamento participativo. Depositou-se muita expectativa nessas IPs especialmente quanto à
transformação de modelo prevalente que desconsidera a inclusão da cidadania no espaço público,
via participação e deliberação (ALMEIDA, 2011, p. 270). Tais mecanismos deliberativos indiretos
aparecem como possíveis elementos de inserção da deliberação nos espaços de poder em áreas
sensíveis à população em geral. A questão é: como e de que maneira se daria a deliberação e
participação em decisões coletivas desses setores organizados da sociedade?
Os Conselhos nacionais caracterizam lugares permanentes de interação que possibilitam
o contínuo envolvimento da cidadania com a administração pública, na criação, planejamento e
fiscalização da política pública, sendo estruturados por normas que regulam a ação de atores
sociais. Funcionam ainda a partir da representação de entidades, não trazendo essencialmente na
sua estrutura formal a direta participação dos indivíduos na formulação de decisões coletivas
(ALMEIDA, 2011, p. 271). Discussões sobre essas IPs ocorreram de maneira incipiente na ANC,
não havendo naquele momento um encaminhamento direto sobre o modelo que se buscava
institucionalizar. A questão era saber até onde poderia ir a delegação de poderes à cidadania e em
que medida a população atuaria nas esferas decisórias da administração pública, destacando-se a
especial preocupação com a saúde:

Acho que a questão nesse caso é de a Constituição garantir o direito à organização


do povo. Agora, o crescimento das forças políticas é que vai dar o espaço que as
forças organizadas da sociedade vão ocupar ou não, em cada um de seus
segmentos. Isso em nível de municípios, no nível de política sindical, enfim, em
nível de partido político, de qualquer espécie de participação da sociedade. Pelos
seus mecanismos a sociedade vai encontrar a forma de participação e organização.
Não sei se seria por aí que passaríamos. Não vejo, dentro da questão específica de
nossa Subcomissão, descermos a esse tipo de ordenamento. Seria mais na questão
80

de a Constituição garantir os espaços de participação e organização da sociedade


pelos seus mais diversos mecanismos e entidades e instituições. 94

Acho que é muito importante, que é preciso que nós participemos, que é preciso
que seja aberto aos trabalhadores a possibilidade da participação nos diversos
organismos públicos, sociais etc. mas de uma forma bastante progressista e que
nós atinjamos um grau de aperfeiçoamento desta participação.95

Entendemos que a participação da população organizada em entidades, em


instituições democraticamente constituídas e organizadas, essas entidades devem
ter o direito e devem ter a garantia do canal de acesso para participar do processo
de planejamento e controle da execução das políticas a nível local, a nível
estadual, a nível regional, e a nível nacional. Como consequência, como
implicação destas diretrizes organizativas, entendemos que se deve constituir no
País uma rede única de serviços de saúde.96

A unificação coloca-se em marcha a partir desses projetos a partir da aglutinação


das forças nos Estados e Municípios, através da aglutinação das forças e da
participação popular, dos Conselhos Comunitários de Saúde, nas CEME, nas CIS,
na mobilização popular a partir dos Estados e dos Municípios, de tal forma que
adversidades, as contrariedades, as dificuldades na implantação do sistema
unificado se resolvam através de uma ampla estratégia de mobilização, a partir da
base do sistema de Saúde e a partir de instrumentos concretos que, tanto pelo lado
da Previdência Social quanto pelo lado do Ministério da Saúde, já se dispõe, no
âmbito de Governo Federal, para impulsionar esses projetos de unificação, em
conjunto com os novos governos, com os governos eleitos a 15 de novembro e
que têm um enorme compromisso com o social, e que têm, na maioria de suas
plataformas, a saúde como primeira prioridade.97

Além dos Conselhos, as Conferências nacionais caracterizam um importante elemento de


aferição e de estabelecimento e formulação de diretrizes e estratégias para as políticas públicas a
serem desempenhadas em determinada área, franqueando à cidadania a possibilidade de defesa de
direitos básicos direcionados ao atendimento das necessidades essenciais da população, mais uma
vez com destaque à saúde:

E como um dos princípios aprovados na VIII Conferência Nacional de Saúde,


tratada aqui por dezenas de entidades há necessidade da participação ampla,

94
Constituinte Márcio Lacerda (PMDB/MT - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência
pública em 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 59.
95
Sr. Redigio Todeschini (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 89.
96
Sr. Eleutério Neto (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC EM 19/7/1987, p. 110.
97
Sr. Hésio Cordeiro (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 19/7/87 -
Suplemento 98, p. 16); DANC EM 19/7/1987, p. 145.
81

popular, de como aquelas entidades filantrópicas veriam a necessidade de


reformular-se e abrir-se, por acaso, num conceito de formação do sistema nacional
de saúde, que a rede pública se consorciasse, preferencialmente, com as entidades
não lucrativas.98

A política nacional de saúde foi uma das estratégias de descentralização que mais obteve
ganhos, gerencial e administrativamente, e ainda relativamente às consequências do ingresso da
participação popular na sua etapa de planejamento, acompanhamento e fiscalização, destacando-
se que o acesso aos serviços de saúde não era um direito universal e, até a promulgação da CF/88,
o Brasil tinha um dos piores sistemas de saúde do mundo em desenvolvimento, centralizado e
bastante excludente, atendendo em geral os indivíduos que estavam no mercado formal de trabalho
(AVRITZER, 2009). A preocupação com a participação da comunidade na educação também
esteve presente nos debates constituintes:

Nós gostaríamos de registrar que o depoimento trazido aqui pelas diversas


entidades casam perfeitamente com o pensamento já por nós esposados em
oportunidades outras e mostra uma reafirmação daqueles que estão próximos da
linha de frente da educação brasileira, da necessidade de que se tenha a
exclusividade dos recursos públicos para a escola pública, a necessidade de que
se tenha uma escola democrática, uma escola em que haja a participação da
comunidade, na gestão, na direção e na coordenação de suas atividades e de uma
escola que realmente represente o pensamento, o desejo, a aspiração maior da
sociedade brasileira. 99

Nós defendemos que a comunidade na escola escolha a sua própria direção; da


mesma forma, na saúde, dependa de eleições diretas para diretores de hospitais de
postos de saúde, com a participação da comunidade, mas ao mesmo tempo para
que não prefigure isso um espírito meramente corporativo, com a participação das
associações dos usuários na direção desse tipo de entidade.100

Um outro ponto em que tenho alguma convicção – que submeto realmente à


discussão, são verdades, talvez fruto da experiência – é que nenhum projeto
pedagógico, por melhor que seja, tem condições de ser implantado, se aqueles aos
quais ele se dirige não tiveram uma ali participação na decisão política. A questão
da participação nas decisões, através de Conselhos Populares de Educação, por
exemplo - não sei se poderíamos dizer que Anísio também sonhava com a ideia
de um Conselho Municipal de Educação, que não fosse um Conselho nomeado a

98
Constituinte Eduardo Jorge (PT/SP - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em
19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 124.
99
Constituinte Ubiratan Aguiar (PMDB/CE - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública
em 19/7/87 - Suplemento 98, p. 16); DANC em 19/7/1987, p. 228.
100
Constituinte Vladimir Palmeira (PT/RJ - Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública
20/7/87 - Suplemento 99, p. 18); DANC em 20/7/1987, p. 93.
82

partir do poder político local ou localista, mas a partir da representatividade que


esse Conselho teria na comunidade - seria uma ideia necessária, digamos, para
que as comunidades se sentissem responsáveis por seu plano educativo a partir do
local.101

A discussão sobre a importância dos Conselhos e seu efetivo poder de decisão e


deliberação em outras áreas sociais aparece em outros momentos, demonstrando que a saúde e a
educação, apesar de destaque nos debates, não eram as únicas preocupações conforme se depreende
do pronunciamento do Sr. Epaminondas Silva acerca de um correspondente fórum de participação
com poder deliberativo e decisório:

Aqui vale ressaltar o seguinte: normalmente existem determinadas prefeituras,


governos de Estado, conselhos municipais de transporte, conselhos tarifários
etc. Só que são órgãos de consultas e aconselhamento e não têm poder de
deliberação. Então, nós achamos que esses conselhos devam existir, é um fórum
democrático de participação popular, mas têm que ser conselhos com poder
deliberativo decisório.102

Além dos Conselhos e Conferências nacionais, destaca-se no campo da democracia


deliberativa o orçamento participativo enquanto elemento essencial do contrato político que subjaz
as relações políticas e administrativas entre Estado e cidadãos, e ainda dos diversos organismos
estatais envolvidos na consecução do referido contrato, tendo como grande paradigma a
experiência futura em Porto Alegre/RS com os governos do PT nas décadas de noventa em diante.
No entanto, em uma sociedade muito desigual e patrimonialista como a brasileira, “o orçamento
público tem sido menos a expressão do contrato político do que a expressão da sua ausência”
(SANTOS, 2003, p. 465), prevalecendo geralmente critérios técnicos e burocráticos na definição
do orçamento, os quais são consideravelmente vagos e lacunosos para possibilitar a privatização
clientelista das decisões políticas essenciais relativas à distribuição de recursos para a sociedade.
O embate acerca do controle orçamentário ocorreu na ANC a partir de posições mais arrojadas que
defendiam maior participação popular no orçamento público, em detrimento de outras mais
contidas, que priorizavam o Legislativo como grande idealizador e fiscal dos recursos públicos a
serem empregados nas diversas áreas do Estado:

101
Professor Moacir Gadot (Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos - audiência pública em 21/7/87 -
Suplemento 100, p. 24); DANC em 21/7/1987, p. 225.
102
Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos (audiência pública em 23/7/87 - Suplemento 102, p. 27);
DANC em 23/7/87; p. 103.
83

O Congresso Nacional e a opinião pública são partes indissociáveis do processo


democrático. Sempre que há crises institucionais, tanto o Poder Legislativo quanto
a opinião pública, que é a imprensa, são brutalmente reprimidos pelo argumento
da força. Quero também lembrar a importância que tem para o Congresso
Nacional não apenas reconquistar o poder de elaborar o orçamento, mas de
discutir prioridades políticas de desenvolvimento em todos os setores da vida
nacional, como antes de 1964. É um erro confundir o Parlamento com a proibição
do deputado ou do senador de criar despesa pública. O Parlamento foi criado para
fiscalizar a aplicação dos recursos públicos e não se compreende que ele não tenha
a função mais importante para a qual foi destinado, a de estabelecer e discutir com
o Poder Executivo as prioridades das despesas públicas, que devem ser aplicadas
em todos os setores, desde a construção de estradas à implantação de indústrias e
à opção por processos de indústrias siderúrgicas ou petroquímicas. 103

Acho que quando o legislador estabeleceu no artigo 45 a fiscalização financeira e


orçamentária, ele não pretendeu apenas aquela fiscalização a posteriori. Nós
deveríamos cogitar também daquilo que se poderia chamar controle e
acompanhamento da própria discussão e votação do orçamento. Trocando em
miúdos, seria o caso, uma vez submetido o orçamento à apreciação do Congresso,
de se verificar quais as prioridades para a alocação dos recursos. E discutir
politicamente se essas prioridades efetivamente corresponderiam ao interesse e ao
desejo da nação. Se isso é correto, a alocação de recursos deveria vir em função
desse acompanhamento e controle que seriam feitos a priori. De igual forma, uma
vez em execução o orçamento, e ocorrendo um fato superveniente, seria o caso de
o Congresso discutir e analisar se conviria deslocar as prioridades que tinham sido
antes conferidas no orçamento, na lei de meios já aprovada. 104

A outra questão para nós, também importante, é tornar clara a proposta de que o
orçamento da União, dos estados e dos municípios deve assumir a prestação de
serviços de saúde. O financiamento da saúde deve sair do orçamento. Enquanto
isso não for possível ainda deve ser usado o dinheiro da Previdência Social. Mas
deve-se fazer o possível para que esse dinheiro seja retirado do orçamento. E,
realmente, o dinheiro da Previdência Social seja encaminhado só para a parte de
seguridade social, de benefícios sociais.105

Os pronunciamentos constituintes demonstram a preocupação com a questão do manejo


orçamentário, além da alocação de recursos nas diversas áreas. Aliado a isso, a pressão por fora
das entidades sociais presentes na ANC e do próprio poder internamente foi determinante uma vez
que estava novamente em jogo o futuro papel de um CN ressentido com o protagonismo secundário

103
Sr. Tarcísio Holanda (6ª. Audiência - DANC - Suplemento de 21/5/1987, p. 61-77).
104
Constituinte Marco Maciel (PFL/PE - Audiência do dia 21/4/1987 – DANC – Suplemento de 18/6/1987, p. 88-
93).
105
Sra. Maria Luiza Jagger (DANC – Suplemento, 17/7/1987, p. 192).
84

imposto pela ditadura militar. Apesar das abordagens constituintes sobre a importância da presença
popular na escolha da destinação dos recursos existentes, tais propostas não se concretizam (apesar
de algumas exceções como Porto Alegre) a fim de proporcionar atuação deliberativa mais efetiva
da cidadania no encaminhamento de decisões coletivas, via orçamento participativo.

A participação indireta não inviabiliza nem é contrária à participação direta. O


importante é que a sociedade, quando escolha os que irão representá-la, tenha
absoluta consciência do que espera de seus representantes e tenha instrumentos
para cobrar deles o compromisso que assumiram. Nesse ponto, a nossa
Constituição é rica. Temos ainda uma falha, que é ressaltada quando a gente cuida
dos orçamentos. O orçamento participativo é uma boa iniciativa, mas peca porque
só atua sobre um lado da peça - as despesas. E aí, chega-se ao ponto de se querer
gastar o que não se quer pagar. Ninguém melhor que o pagador de impostos para
dizer onde ele quer se o seu dinheiro seja investido ou gasto, e ele pode fazer isso
através de seus representantes. 106

Vivaldo Barbosa destaca a importância da participação a partir da democracia


deliberativa, mas observa que, acima destes, está a vontade popular garantida pela manutenção do
presidencialismo na ANC:

É evidente que isso é importante, um avanço, um aprimoramento da vida


democrática e social no geral, mas o que é fundamental é o respeito da vontade
popular, porque esses conselhos, grupos e etc., isso é importante avançar com isso
aí, a participação é necessária, mas são grupos que se organizam daqui e dali, mas
e o povo no geral? Nesse ponto, digo que a questão central foi a manutenção do
presidencialismo para poder o povo ter voz. O povo poder aprovar um projeto
nacional, dialogar e escolher o governante, dialogar com ele, através das
campanhas, o governante assumir e cumprir os compromissos fundamentais,
porque é onde estão os direitos: povo quer habitação, educação, moradia, pedaço
de terra para trabalhar; espaço para morar. Veja a quantidade de brasileiros
morando da forma mais precária possível, mais anti-humana possível. Esse povo
merece receber os proveitos de maneira geral porque, no fundo, o povo sustenta a
economia e paga os impostos. CF não andou bem nessa área porque imposto no
Brasil é pago pelo consumo, pelo preço das mercadorias. Quem paga é o povo e
sustenta a economia. E por que fica alijado da economia? Isso foi questão central:
CF garantiu o respeito à vontade popular. Isso é coisa por cima dos grupos e
organizações que têm que existir na democracia. Tem que existir grupos,
conselhos e organizações, que devem ter seus espaços, ajuda e avança muito, mas
por cima disso está o respeito à vontade popular. 107

106
Entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt pelo constituinte Rubem Medina (PFL/RJ), em 28/4/2022 (anexo III
da tese).
107
Entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt pelo constituinte Vivaldo Barbosa (PDT/RJ), em 21/2/2022 (anexo I
da tese).
85

Os Conselhos e Conferências nacionais, além do orçamento participativo caracterizam


instrumentos essenciais à prática democrática deliberativa. Em contrapartida, o seu mau uso pode
colaborar para a manutenção do “status quo” liberal, reforçando indiretamente a manutenção da
política dominante, perdendo consideravelmente poder para criar consensos relevantes e
consideráveis depois de longo e árduo procedimento constituinte, que demandou tempo e dinheiro,
acarretando certa frustração à cidadania porque não a coloca definitivamente no seu verdadeiro
papel de protagonista social.
Os embates em torno da utilização ou não da participação eram diferentes em relação ao
lugar em que ela deveria ser adotada. Exemplificativamente, na subcomissão dos direitos políticos,
direitos coletivos e garantia a conflitualidade dos debates em volta dos mecanismos de participação
era forte, pois se tratava de adotar participação em um instante no qual o CN buscava
simultaneamente construir sua legitimidade perante ao Executivo historicamente reforçado no país.
Todavia, nas subcomissões que tratavam das políticas públicas, como a área da saúde e educação,
houve grande acordo sobre a participação, tendo em vista que incluía a atuação de setores
organizados da sociedade, movimentos sociais e o próprio setor privado, sem contar que eram
mecanismos pensados para operar dentro da esfera do executivo, mitigando a disputa institucional
travada entre este e o Legislativo (VILAS BOAS, 2018). A questão é complexa e será retomada
mais adiante quando se examinar em que termos, medidas e características, as discussões e os
debates na defesa da participação indireta deliberativa se efetivaram ou não na CF/88.

2.3 Democracia direta: poder e cidadão

A democracia direta é espécie democrática na qual os cidadãos autorizados por lei


decidem ou emitem suas posições sobre temas previamente selecionados em eleições livres e gerais
mediante o voto universal e secreto, sendo exercida basicamente no Brasil por meio dos plebiscitos,
do referendo e da iniciativa popular. Diferencia-se dos dois outros tipos democráticos
(representativo e deliberativo), uma vez que a cidadania se manifesta diretamente e sem
intermediários (excetua-se a iniciativa popular pela submissão do projeto ao Legislativo) sobre
questões políticas diversas, vinculando o Estado e as instituições ao que foi decidido. As
86

controvérsias sobre a possibilidade (e capacidade) dos indivíduos se manifestarem diretamente


sobre pontos fundamentais na vida política são históricas, estando presentes também na ANC:

É assim que se constrói uma nacionalidade, é assim que se organiza um povo:


deixando que ele decida, faça, vigie e construa. Porque é 'em fazendo que o povo
faz a si mesmo’ - a si mesmo e a dignidade de cada um de nós.108

A nova Constituição poderá ser maior ou menor, diferente ou igualitária, como as


demais Constituições brasileiras, que se construíram em verdadeiras falácias,
porque diziam que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido e isso
nunca aconteceu neste país. Ou que todos são iguais perante a lei, não obstante a
cor, a raça e a religião – o que também nunca foi uma realidade entre nós. Isto se
transformará em realidade ao mesmo tempo que nós, sabendo que o povo também
não é detentor da sabedoria absoluta, construirmos, através de um trabalho
conjunto, Parlamentares e povo, um instrumento de justiça, de progresso e de
dignidade para o povo brasileiro.109

A democracia direta pode e deve conviver com a democracia representativa. Na


nossa avaliação, embora o Poder Legislativo deva ser valorizado, embora
tenhamos que dar força a esse Poder que está mais diretamente ligado ao povo, é
fundamental, para que haja uma verdadeira democracia, que seja valorizada a
democracia direta e não a representativa. É fundamental que as grandes questões
nacionais sejam decididas de forma plebiscitária, mesmo porque, quando o
cidadão, quando um trabalhador escolhe um representante, ele o faz
genericamente dentro de uma linha partidária, dentro de um posicionamento mais
ou menos global daquele parlamentar, mas raramente o posicionamento daquele
parlamentar corresponde ao do seu eleitor. Entendemos que os tribunais eleitorais
devem ser capacitados, devem ser instrumentalizados para que o povo possa ser
consultado diretamente sobre as grandes questões nacionais, com simplicidade,
de forma prática e eficiente, pois somente ele tem legitimidade efetiva, verdadeira,
para tomar as grandes decisões nacionais.110

A participação popular na ANC foi fator decisivo porque havia uma correspondência
natural com o que os constituintes decidiam e ainda pela presença física de muita gente que se
deslocava pra Brasília com os ônibus fretados, por intermédio de cartas, de entidades e de diversas
outras maneiras, sendo a presença popular constante nos corredores do CN e nas salas de reuniões.
Tal clima levou ao debate de vários temas que envolveram diferentes setores, além da oportunidade

108
Constituinte Paulo Bisol (MDB/RS - Ata da 15ª reunião ordinária da Comissão de Sistematização, em 1/9/1987).
109
Constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ - Ata da reunião da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
Homem e da Mulher, em 26/5/87).
110
Sr. Ulysses Riedel de Resende; Subcomissão do Poder Legislativo: DANC (Suplemento de 14/5/1987, p. 31-45; p.
190).
87

das organizações sociais se manifestarem diretamente em relação aos constituintes, sendo essa
pressão importante na Constituinte e, consequentemente, no texto final da Constituição de 1988. 111
A democracia direta não representa elemento único para solucionar problemas diversos e
recorrentes em sociedades desiguais como a brasileira, havendo debates sobre a capacidade desta
em colaborar para maior qualidade do regime político democrático. A avaliação acerca da
democracia direta dependerá de como, onde, quem e de que maneira seus instrumentos serão
utilizados em um contexto político específico, que, no nosso caso, traz uma série de dificuldades
por diversas razões de ordem social, política e econômica. Destaca-se que se o país permite que
seus cidadãos utilizem os MDDs, este será mais democrático que aquele que não possibilita tal tipo
de uso político (ALTMAN, 2011, p. 41). A democracia direta foi utilizada continuamente ao longo
das últimas décadas, possibilitando um maior domínio da cidadania no sentido da escolha e
resolução de questões várias que lhe são afetas. Essa realidade esteve nas discussões que
envolveram o tema na ANC, demonstrando muita abertura em se aprofundar o seu uso no Brasil:

A democracia direta pode e deve conviver com a democracia representativa. Na


nossa avaliação, embora o Poder Legislativo deva ser valorizado, embora
tenhamos que dar força a esse Poder que está mais diretamente ligado ao povo, é
fundamental, para que haja uma verdadeira democracia, que seja valorizada a
democracia direta e não a representativa. É fundamental que as grandes questões
nacionais sejam decididas de forma plebiscitária, mesmo porque, quando o
cidadão, quando um trabalhador escolhe um representante, ele o faz
genericamente dentro de uma linha partidária, dentro de um posicionamento mais
ou menos global daquele parlamentar, mas raramente o posicionamento daquele
parlamentar corresponde ao do seu eleitor. 112

Entendemos, então, que devem ser criados mecanismos que favoreçam,


necessariamente, a participação na vida pública desses setores comunitários, que
são marginalizados, que dispõem de poucos recursos, mas que são majoritários no
seio da sociedade. 113

111
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese).
112
Sr. Ulysses Riedel de Resende; Subcomissão do Poder Legislativo (DANC. Suplemento de 14/5/1987, p. 31-45),
p. 190.
113
Sr. João Bosco da Silva; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias (Audiência Pública,
5ª reunião em 24/4/87 – DANC em 14/5/87, p. 34).
88

De maneira que sou francamente, absolutamente, ostensivamente a favor de que


sejam criados todos os mecanismos que facilitem a participação popular em todos
os momentos da atividade do Poder Legislativo.114

Estou convencido de que a justiça social só brota na medida em que houver maior
participação política. É a participação política no centro de decisão que empurra
para mudanças. É necessária a criação de mecanismos pelos quais se viabilize essa
participação nos centros de decisão. Esse sistema de governo a viabiliza. Esse e
outros mecanismos de fortalecimento do Legislativo, de participação política em
centros de decisão na vida econômica são formas de empurrar um sistema estável
para que ele aprenda a conviver com mudança, através da fixação da política
brasileira como programa, como plano.115

Se os discursos foram muito favoráveis à democracia direta, todavia, existem argumentos


contrários aos MDDs: a redução do poder dos representantes eleitos; a incapacidade da cidadania
de se manifestar em casos complexos e difíceis; as maiorias geralmente vencem quase tudo,
enquanto as minorias perdem consideravelmente e, finalmente, a existência de enormes custos de
tempo e dinheiro envolvidos, que prejudicam a manifestação direta da cidadania (ALTMAN, 2011,
p. 43):

Para não tomar muito tempo, e se a tolerância do Presidente permitir, quero tocar
em alguns pontos selecionados. O primeiro deles seria a questão da democracia
representativa versus a participação popular direta. Quero crer que não devemos
colocar as coisas como conflitantes ou mutuamente excludentes. Temos que
entender como um fenômeno do mundo moderno, da sociedade moderna, a
necessidade da absorção e adoção de mecanismos de participação popular direta,
formas mais diretas de participação no bojo da democracia representativa, da qual,
evidentemente, não iremos fugir. Esta participação, entendo, que vai ocorrer
contra ou a favor do Poder Legislativo, e cabe a nós, que o defendemos, fazer com
que ela ocorra a favor, com que seja incorporada via Poder Legislativo. De outra
sorte, ela vai acontecer diretamente no âmbito do Poder Executivo, como foi aqui
muito bem exposto pelo Presidente da União dos Vereadores do Brasil, à revelia
e contra o Poder Legislativo, como fator do seu enfraquecimento, mediante a
conexão e a interface direta do Poder Executivo com as entidades intermediárias
da sociedade, driblando o Poder Legislativo. 116

Eleição não é nenhum problema complicado, não. Devíamos realizar muitas


eleições no Brasil. O referendum é um desses problemas eleitorais. Quantos
referendos seriam necessários realizar? É isso que se chama participação do povo

114
Sr. Evandro Paranaguá; Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias. Publicação no
DANC em 21/5/87, p. 73.
115
Sr. Miguel Reale Júnior; Subcomissão Poder Executivo (Audiência pública em 25/6/1987, Suplemento 83, p. 76),
p. 80.
116
Constituinte Jorge Hage (PMDB/BA - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias.
Publicação no DANC em 14/5/1987, p. 39.
89

e é isso que obriga aqueles que foram eleitos a terem os olhos voltados para os
eleitores; é aquilo que os obriga a se lembrarem, uma e muitas vezes, às vezes
durante o dia todo, de que eles são simples mandatários, não são dignitários, eles
não foram impostos, são representantes do povo e que é preciso, portanto,
governar, orientar, dirigir, segundo os sentimentos e as aspirações das grandes
massas de eleitores que os elevaram aos postos de direção do Estado.117

Acerca dos debates e de forças favoráveis e contrárias à participação direta da cidadania


na ANC, visualizam-se basicamente duas grandes frentes: uma voltada para a proteção dos direitos
sociais, ao mesmo tempo em que também tinha um movimento de valorização dos direitos civis e
da cidadania brasileira. E outra conservadora direcionada para a garantia do capital estrangeiro,
atendendo aí os ideais liberais dos grupos econômicos nacionais e internacionais e também o setor
fisiológico que se aglutinou muito através das articulações feitas pelo Governo Sarney. 118 A
dicotomia acerca da posição política sobre participação da cidadania na ANC refletia geralmente a
opinião favorável das esquerdas/progressistas de um lado, e outra contrária das
direitas/conservadores:

Em termos dominantes sim, essa é uma divisão natural, agora, não era apenas no
conjunto das esquerdas. Você veja que áreas depois que assumiram feições mais
conservadoras e liberais estavam do nosso lado, você veja que a figura de Mário
Covas, por exemplo, que foi o líder do PMDB na Constituinte, senador, ele foi
uma figura que boa parte do tempo, esteve do nosso lado. Ele mesmo dizia “não
sou de esquerda, mas sou um liberal”. Um liberal mais clássico, muito progressista
e muito consciente dos seus deveres, uma grande figura o Mário Covas, mas
depois ele, assim como o Franco Montoro, eles foram engolidos pelo
neoliberalismo do Fernando Henrique Cardoso, mas isso aí, enfim, isso acontece
na política, mas o Mário Covas teve muito tempo e em muitas oportunidades ele
esteve do nosso lado e não era de esquerda. Outras figuras também porque pra
gente conseguir vitórias ali e maiorias, votos ali de esquerda, nós tínhamos na
cabeça no máximo 120, esquerda nacionalista e progressista. Muita divisão, a
nossa votação era isso aí pros temas mais candentes. Era isso aí. Eram 120 o que
a gente tinha, mas tivemos muitas vitórias por maioria que eram mais de 300
constituintes, mas era o jogo da política. Política, às vezes, caminha pra um canto,
caminha pra outro, mas é a luta política ali é que vai empurrando as coisas. É o
que eu te afirmo aí, eu acho que a Constituição foi mais nossa do que deles. 119

117
Sr. João Amazonas; Subcomissão de Sistema Eleitoral e Partidos Políticos (Audiência pública em 19/7/87 -
suplemento 98, p. 16), p. 24.
118
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt em 21/2/22 (Anexo I da
tese).
119
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese).
90

O constituinte Miro Teixeira discorda, destacando como elemento principal para


entendimento da questão, a maciça predominância da corrente conservadora na ANC:

Isso significa muito pouco. Essas ideologias tradicionais estão ultrapassadas. A


Rússia é comunista? Claro que não é. São sistemas bilionários. Você tem os
democratas que são chamados de comunistas. Isso é muito pra se localizar
eleitoralmente e induzir a população pra uma situação que não faz bem. Acho até
que isso tem que ser examinado. Cada problema existente, buscar a solução. Não
é a esquerda que tem isso não. Você não tem o monopólio então da descoberta de
quem matou a Marielle. Isso é uma preocupação de todo brasileiro, sentimentos
de quem é democrata, de quem é religioso também, luta contra a violência. Então
não é uma luta da esquerda ou da direita, mas de todos. Trump fez muito isso e,
eleitoralmente, pra se valer disso, dessa provação de esquerda e de direita. Não
sei se nós poderíamos hoje falar de esquerda e direita na ANC porque você tinha
a participação do Roberto Campos, por exemplo, que podia ser considerado um
liberal de direita, está bem, enfim, respeitado por todos ali. Dr. Ulysses era
esquerda ou direita? Dr. Ulysses apoiou o Golpe de 1964. O Mário Covas foi
cassado, era o líder do PMDB que era também presidido pelo Dr. Ulysses. Não
havia isso de modo nenhum, não havia essa divisão, não havia esses ódios. Bom,
havia grupos que se autoproclamavam, movimentos populares, você olhava ali,
eram oito deputados e um senador. Era uma parede que se criava com finalidades
eleitorais. E eu acho que, enquanto houver essa dicotomia esquerda / direita, eu
acho que levarão vantagens os mal-intencionados. Os bem-intencionados se
entregam ao debate. Há um livro chamado “Liberdade para as ideias que
odiamos”, vamos ouvi-las, mas isso, tenho a impressão que é distante e
lamentavelmente também entre os jovens. Eu acho que a Constituição de 88 é uma
boa Constituição. Eu acho a de 1946 muito boa e acho que a de 1988 ultrapassou
a de 46 em qualidade. E é curioso porque não sei o resultado das eleições, mas
quando fomos tomar posse, nós fizemos uma pequena reunião e havia alguns
amigos antigos ali de lutas contra a ditadura que diziam: “Eu vou fazer o quê? Eu
tenho que sentar na calçada e chorar!” Nós éramos ultraminoria. O pensamento
conservador era absolutamente majoritário. Aí que você viu o que era uma
constituinte.120

O crescimento da participação política impactou diretamente a hierarquia entre os centros


de poder, a gestão governamental e a amplitude dos direitos do cidadão. A crise de hegemonia
fragilizou a hierarquia que caracterizava a ditadura militar. Na incipiente Nova República onde se
desenvolviam os trabalhos constituintes, as pressões da base para o ápice da sociedade contribuíram
para o fortalecimento da autonomia dos centros de poder que antes eram subalternos e reféns da
autocracia militar, ganhando o CN, o Judiciário, os governos dos estados e os partidos políticos
mais força e poder de atuação relativamente à Presidência da República. As alterações promovidas

120
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/22 (Anexo II
da tese).
91

pela ANC nas instituições e nos centros de poder redundaram na CF/88, que aumentou
consideravelmente o poder de ação do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público nos
processos de decisão governamentais (SALLUM JR., 2003, p. 39):

A confiança que eu deposito no Ministério Público, na Defensoria Pública e, de


certa maneira, no Poder Judiciário. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário, o
Ministério Público é um poder, tem muito poder, mas o MP tem maior rigor e
acho que continua a merecer a confiança mais próxima da totalidade. 121

Houve consideráveis avanços proporcionados pela ANC no campo da participação


política direta por meio da implementação do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular,
contribuindo para o acréscimo da participação direta do indivíduo nas esferas decisórias de poder
e na construção do espaço público democrático. O plebiscito é a consulta ao cidadão realizada
anteriormente ao ato legislativo ou administrativo que se vai praticar. Indaga-se primeiramente ao
indivíduo habilitado eleitoralmente se ele quer ou não aquele ato estatal que se pretende praticar.
Diante da resposta, positiva ou negativa, realiza-se ou não a referida medida. Já o referendo é
consulta posterior ao ato veiculado, ou seja, pratica-se o ato e, posteriormente, se pergunta ao
cidadão se ele deseja ou não. Se sim, ratifica-se, se não, o ato cai. Por último, há a iniciativa popular
que constitui prerrogativa conferida ao cidadão para apresentar, mediante proposta, projeto de lei
à Câmara dos Deputados, que vai analisá-la podendo confirmá-la (tornando-se lei) ou não. No caso
dos plebiscitos e referendos, as manifestações foram geralmente favoráveis à instituição destes,
havendo, todavia, opiniões em sentido contrário:

Pela proposta de participação popular, falou primeiramente o professor Dalmo de


Abreu Dallari. Em suma, sustentou que a participação popular, via referendo, não
diminuía, mas aumentava “a autoridade do Parlamento em decorrência da
presença maior do povo e da certeza de maior autenticidade nas decisões”. 122

Nesse sentido, entendemos que o Congresso Nacional, o Poder Legislativo deve


ser valorizado e assim também todos os processos e todas as modalidades de
participação popular e mais especificamente todos aqueles processos de plebiscito
direto, de consulta direta à população, nas matérias que sejam de importância
fundamental para a coletividade, pois, repetindo e encerrando com aquelas

121
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/22 (Anexo II
da tese).
122
Referência ao discurso do Professor Dalmo Dallari (Ata da 15ª Reunião Ordinária da Comissão de Sistematização,
realizada em 1º de setembro de 1987).
92

palavras que mencionei no início, o único titular absoluto do Poder Constituinte é


o povo.123

O defensor do povo, o ombudsman, mas não nomeada pelo Presidente da


República ou pelo Poder Executivo, a quem ele cabe fiscalizar também. A
consulta popular. O povo tem sido o grande ausente do processo Legislativo. Com
essa consulta popular, com referendum e plebiscito, vamos ter um avanço
substancial.124

Pergunto a V. Exa. Vamos fazer um plebiscito para quê? A plebe, o povo irá
decidir o quê?125

Apoiei e apoio até hoje. Uma questão, contudo, se levanta. Qual o modelo ideal
de democracia? Eu diria que aquela que conseguisse que o Estado só tomasse
decisões deliberadas por todos. Mas, isso é possível, numa sociedade? No nosso
caso, seria possível convocar a população toda para deliberar sobre todas as
questões de interesse comum? Haverá quem diga que a tecnologia poderá nos
levar a isso. Então, outra coisa não faria a população a não ser deliberar e após um
imenso debate que levaria uma eternidade. Por isso, há sim que existir a
prerrogativa dos plebiscitos, referendos e iniciativas populares, mas para situações
excepcionais.126

Houve ainda muita preocupação acerca do perfil, da abrangência, do conteúdo e dos temas
que seriam veiculados por plebiscitos e referendos no texto final, destacando-se, dentre outros, a
possibilidade de previsão constitucional para a pena de morte; criação de novos estados-membros
e municípios, aborto, divórcio, eutanásia, referendo para aprovação do texto constitucional,
realização de obras públicas, reforma agrária, direito de greve, sistema financeiro e até construção
de indústrias:

O deputado estadual Alcides Modesto solicitou fosse explicitada a forma de punir


aqueles que violam o direito de greve e os que desrespeitam os direitos coletivos
e sugeriu a adoção do referendo popular para a nova Constituição. 127

123
Constituinte Bocayuva Cunha (PDT/RJ - Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias.
DANC, em 14/5/87, p. 35).
124
Constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ - Audiência Pública realizada na Assembleia Legislativa de Salvador/BA,
em 5/5/87. DANC, em 8/7/1987 - Suplemento 90, p. 3), p. 22.
125
Constituinte Joaquim Haickel (PMDB/MA - Subcomissão do Poder Executivo - Audiência Pública em 30/4/1987.
DANC em 20/6/1987, Suplemento 81, p. 54), p. 17.
126
Constituinte Rubem Medina pelo PFL/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/22 (Anexo III
da tese).
127
A proposta para a Constituição de 1988 ser submetida a referendo popular não foi acolhida pela Constituinte,
estando o referido depoimento em “Audiências Públicas na Assembleia Nacional Constituinte. A Sociedade na
Tribuna”. Coleções especiais. Obras Comemorativas, nº 3. Centro de Documentação e Informação - Edições Câmara.
Brasília, 2009, p. 86.
93

Temos também outra proposta que é a de devolver aos estados, por sua vez, o
estabelecimento de condições mínimas para a criação de municípios. Trazer isso
para a União, como reação a alguns abusos que se praticaram, não se justifica. O
estado deve voltar a fazer isso, desde que haja um plebiscito da população
interessada, e também que o novo município seja obrigado a prestar determinados
serviços, sob pena de ser extinto.128

Merece destaque entre as novas prerrogativas a de determinar a realização, sempre


que necessário, de referendo popular, para a aprovação de emendas ou reforma da
Constituição e de leis. Tal recurso não é previsto na atual Constituição, limitando
a capacidade do Congresso de aferir no cidadão e na sociedade o atendimento dos
mais legítimos anseios, sobretudo em relação ao ordenamento jurídico e
institucional do País. Exemplificando, se estiver tramitando um projeto de lei
sobre o aborto e o Congresso quiser, por sua própria iniciativa, provocar um
referendo, um plebiscito, poderá solicitá-lo à Justiça Eleitoral, independente da
concordância do Executivo.129

O plebiscito é para perguntar ao povo se ele quer ou não a pena de morte. Não se
pergunta ao povo se ele quer diretas já? Não se pergunta ao povo se ele quer
reforma agrária? Então, que se pergunte ao povo se ele quer ou não a pena de
morte, como quer e para que quer.130

Que competência é essa? A de estabelecer diretrizes de ordenação sobre o


território do Estado-membro - se estende ao cumprimento do resultado de consulta
plebiscitária para a construção de quaisquer obras. Quem é que provoca o
plebiscito? A redação é tendenciosa, porque já diz claramente "construção de
quaisquer obras que prejudiquem a qualidade de vida". Ora, vejam, já admite que
a obra é prejudicial à qualidade de vida.131

Ora, Sr. Presidente, se a ideia de construção daquela indústria, que é benéfica ao


Maranhão e ao Brasil, fosse submetida a um plebiscito, não teria sido aprovada
em São Luís. O Maranhão teria ficado sem aquela indústria, e o Brasil sem a
possibilidade de produzir mais alumínio, até para exportar e haveria menos
emprego para a sociedade.132

Permita-me um aparte, nobre Constituinte Samir Achôa. Concorda V. Exa. com o


plebiscito para outras questões da Constituição, tais como reforma agrária, direito

128
Sr. Diogo Lordello de Mello; Subcomissão dos Municípios e Regiões. DANC (Suplemento) de 20/5/1987, p. 25.
129
Relator José Jorge (PFL/PE - Subcomissão do Poder Legislativo. Audiência Pública em 29/4/1987. DANC, em
20/5/1987, Suplemento 62 p. 67), p. 85.
130
Constituinte Amaral Netto (PDS/RJ); Subcomissão do Poder Executivo (Audiência Pública em 30/4/1987 – DANC
em 20/6/1987 - Suplemento 81, p. 54), p. 13.
131
Constituinte José Teixeira (PFL/MA); Audiência Pública em 5/5/1987 (DANC em 25/6/1987 - Suplemento 83, p.
76), p. 51.
132
Constituinte José Teixeira (PFL/MA); Audiência Pública em 5/5/1987 (DANC em 25/6/1987 - Suplemento 83, p.
76), p. 51.
94

de greve, sistema financeiro? V. Exa. aprovaria que se fizesse um plebiscito para


todos os itens da Constituição?133

Os temas em destaque são realmente importantes e de interesse de todos, mas parece que
a grande questão se reporta à maneira pela qual se daria a convocação de plebiscitos e de referendos
na futura CF. A previsão da legitimidade da cidadania para propositura de tais MDDs seria
fundamental do ponto de vista do aumento da participação direta. Isso porque, ao atribuir ao
indivíduo habilitado eleitoralmente o poder de veicular plebiscito e referendo regularmente e de
forma conjunta com eleições periódicas, reduzindo-se o custo da convocação, tal prática reforçaria
muito o exercício da democracia, além de contribuir para o aspecto pedagógico e inclusivo da
cidadania. No entanto, não foi isso que ocorreu:

Isso foi previsto como muito importante na Constituição embora, no final das
contas, o FH me derrotou no sentido de retirar a capacidade do presidente
determinar o poder de realização de plebiscitos e referendos. A emenda
presidencialista que prevaleceu é da minha autoria. Estava previsto no meu texto
a realização pelo presidente de plebiscitos e referendos. FHC conseguiu retirar
isso porque condenava o cesarismo, ok, César foi bom: era contra os juros,
favorável a habitação, distribuiu terra. Cesar é melhor do que quem o matou. Se é
cesarismo, é bom, mas perdi essa votação lá. Presidente tirou essa capacidade de
fazer, que ficou na mão do Congresso Nacional que não age nessa matéria. Veja
que os EUA têm essa vantagem com eleições casadas com plebiscitos e referendos
com muitas questões para que povo decida. Isso é necessidade que o Brasil tem
previsto, mas não realizado. É uma pena que a democracia brasileira não realizou
a questão do plebiscito e do referendo que são muito importantes. É uma coisa
que debati, consegui aprovar o texto da emenda, mas depois foram feitos
destaques e perdi.134

Hoje existe um temor em se fazer plebiscito e referendo pela radicalização política


no Brasil, pela falta de racionalidade. Aqui não se debate quase mais, há troca de
ofensas. Fico lamentando isso. Então eu mesmo fico pensando será que temos
condições hoje. Quando eu propus, o presidente era o FHC, a quem eu fazia
oposição, mas o FHC era extremamente civilizado. Fizemos militância juntos pelo
restabelecimento da democracia, tanto que quando ele ganhou a eleição, não ficou
aquela mágoa como ficou quando o Collor ganhou a eleição. Lutamos por eleição
direta que foi vencida por Fernando Collor de Mello que sempre foi da ARENA,

133
Constituinte José Genoíno (PT/SP); Audiência Pública em 6/5/1987 (DANC em 27/6/1987 Suplemento 85, p. 24),
p. 27.
134
Constituinte Vivaldo Barbosa do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese). A CF/88, no seu art. 49, XV, todavia, atribuiu exclusivamente ao CN a prerrogativa de autorizar referendo e
convocar plebiscito. Essa questão voltará no terceiro capítulo da tese.
95

foi da ditadura militar. Penso que hoje há uma grande dificuldade desse debate se
tornar factível. Mesmo os debates sobre participação popular estão ameaçados. 135

Tanto o plebiscito quanto o referendo caracterizam mecanismos relevantes de


consolidação da democracia, configurando a “convocação e autorização” do CN para a realização
destes uma contradição em termos porque esvazia o exercício democrático direto. Os instrumentos
existem, mas ficam a cargo do Legislativo que os utiliza se e quando quiser. Muito melhor seria se
coubesse à cidadania a conveniência e oportunidade para as convocações. Se o cidadão é
“autorizado” a participar do processo democrático, este se torna ator meramente coadjuvante,
situação que não combina com uma proposta constitucional que atribui o poder político ao povo.
Questões relevantes diversas, portanto, poderiam ser levadas, via plebiscito e referendo, ao crivo
da cidadania para legitimar decisões que repercutiriam diretamente na sociedade, destacando-se
que o ideal seria que não houvesse limitação temática para encaminhamento das consultas,
observados requisitos constitucionais menos ou pouco gravosos (inferiores aos previstos para a
Iniciativa Popular - IP) para sua convocação.
A iniciativa popular foi outro MDD que apareceu nas deliberações constituintes com
muita intensidade, tendo potencial político na ANC para ser um dos mais importantes elementos
de participação direta com dois aspectos essenciais: de um lado, seu perfil que vai de “baixo para
cima”, tendo em vista que realiza uma proposta efetiva, fato que a coloca como um meio de
encaminhamento de pleitos da sociedade civil ao Legislativo. De outro, a sua capacidade de
consolidar um canal seguro e constante de diálogo e integração entre a sociedade civil e as
instituições políticas, estimulando a atuação do Legislativo para converter demandas e aspirações
sociais em decisões estatais permanentes. Além disso, as iniciativas populares, diferentemente dos
plebiscitos e referendos, não necessitam ser deflagradas para análise geral e custosa de temas
extraordinários e com alto grau de desacordo político, podendo ser praticadas rotineiramente, a fim
de provocar o Legislativo para que se pronuncie e normatize questões essenciais à sociedade que
geralmente são desprezadas pelo CN (PEREIRA, 2016):

Criamos o mecanismo da iniciativa popular, um projeto de lei de origem popular.


Então você tem a Lei da Ficha Limpa como uma lei popular. Por exemplo, não
são projetos de tramitação fácil. É preciso ver que lá tenhamos sempre que

135
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/22 (Anexo II
da tese).
96

organizar grupos com forte apoio a essas iniciativas porque normalmente são
iniciativas que se chocam com interesses de políticos mal intencionados. Então
aquelas medidas contra a corrupção que eu até apresentei alguma coisa. O
Ministério Público não estava conseguindo. Eu apresentei dizendo: “Olha, vocês
conseguiram que o projeto de vocês tramite com preferência”. É um projeto de
iniciativa popular. E conseguimos essas participações, os Conselhos Tutelares.
Isso daí dá muito prazer o que conseguimos. O fortalecimento das instituições,
como o Ministério Público e a Defensoria Pública, e a necessidade de consultas
populares, de licitações, de audiências públicas necessárias para fazer algumas
obras para defender o meio ambiente, então há realmente muita coisa que dá
prazer de você ver funcionar. A garantia das pessoas está na Constituição! 136

A iniciativa popular (que prevê o cidadão como legitimado ativo para propositura do
projeto de lei popular) traz como questão central a previsão de exigências consideráveis para sua
implementação, sendo basicamente três: percentual de eleitores para subscrição do projeto popular;
número mínimo de estados-membros envolvidos no encaminhamento do projeto e porcentagem de
indivíduos habilitados por ente federativo estadual. O projeto de lei popular, ao prever elementos
dificultosos, se prejudica uma vez que praticamente inviabiliza a cidadania de se lançar na
empreitada e atingir os objetivos almejados. Além disso, nada garante que o projeto seja aprovado,
destacando-se que, diferentemente do plebiscito e do referendo onde não há intermediários no
resultado final, no caso da iniciativa popular, há clara intermediação porque o projeto de lei é
encaminhado ao CN que o aprecia, podendo transformá-lo (inclusive com alterações) ou não em
lei.
Os discursos constituintes sobre iniciativa popular, na mesma linha de plebiscitos e de
referendos, são favoráveis à sua institucionalização, variando acerca dos três elementos essenciais
apontados:

Continuo discordando de V. Exa. Acho que seria o caso de fortalecermos a


Constituinte, de nos posicionarmos sobre isso. A Constituinte poderia interferir
nesse aspecto. Outro assunto que desejo mencionar é o da iniciativa popular. A
nova Constituição brasileira deve permitir uma participação mais democrática de
toda a sociedade. Penso, realmente, que a Constituinte não foi instalada para dar
continuidade à velha Constituição. Esse aspecto também fortalecerá o Poder
Legislativo. Não o prejudicará. Ao se permitir que o cidadão apresente emenda,
não se estará depreciando o Legislativo, principalmente a nível do que está agora,
mas, pelo contrário, valorizando-o.137

136
Constituinte Miro Teixeira do PMDB/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 16/3/2022 (Anexo
II da tese).
137
Constituinte Uldurico Pinto (PMDB/BA; audiência do dia 30/4/1987. DANC – Suplemento, 20/6/1987, p. 58-60).
97

Gostaria de ouvir a opinião dos senhores, com sua experiência e vivência neste
Congresso maior que a maioria de todos nós, sobre esses pontos, como também
no que se refere à participação, à iniciativa popular, que é outro aspecto que me
parece importante, não só pelo que mecanicamente produzirá, mas pelo que tem
de possibilidade de aproximação entre a democracia representativa, em crise, que
estamos analisando, e as formas mais diretas e participativas de democracia direta,
que podem estar sendo inauguradas agora, com essa série de iniciativas que muitos
de nós estamos tomando, como, por exemplo, permitir a iniciativa de leis por 50
mil eleitores, por entidades sindicais, possibilitar a participação no orçamento,
com propostas concretas de opções de investimento, conforme uma das propostas
que hoje apresentamos. 138

Entendo que são duas formas que devem coexistir. Uma, da participação
realmente direta da iniciativa popular, pelo seu caráter mobilizador,
conscientizador do próprio processo de coleta de cinquenta mil assinaturas, e a
outra, que já não responde a este objetivo de mobilização e conscientização, mas
que vai mais diretamente propiciar a entidades representativas intermediárias da
sociedade a intervenção direta no processo legislativo, mediante apresentação de
propostas. Entretanto isso deve ser feito com todo o cuidado, para evitar que se
desmoralize mais esta instituição no Brasil. Nesse sentido, uma das cautelas que
proponho em um dos parágrafos deste artigo consiste em estabelecermos um prazo
máximo de 180 dias, no qual a discussão e votação desses projetos de iniciativa
popular tenham obrigatoriamente de ser concluídos, contados da apresentação à
Mesa e interrompido a contagem apenas no recesso parlamentar. Decorrido esse
prazo, o projeto constará, obrigatoriamente, da ordem do dia da primeira sessão
ordinária, para votação e discussão.139

Os instrumentos de participação estão à disposição de todos. Já tivemos plebiscito


para o sistema de governo, para a questão do uso de armas. Projetos de iniciativa
popular foram transformados em lei. Quando houve o assassinato brutal da
Daniela Perez, a mãe dela coletou assinaturas e propôs inserir na lei de crimes
hediondos o homicídio qualificado. A proposta, em 1994, tornou-se lei. A lei de
combate a compra de votos. A Lei da Ficha Limpa. Enfim, a coisa tem funcionado
bem. Poderia estar melhor, se a sociedade conhecesse, em plenitude, todos os
instrumentos que a Constituição lhe dá de participação direta. 140

Além dos instrumentos constitucionais de democracia direta previstos, imaginavam-se


outros alternativos e não adotados, que contribuíssem para maior inserção do povo no palco político
como, por exemplo, o “recall”, enquanto elemento de fiscalização dos mandatos de parlamentares

138
Constituinte Jorge Hage (PMDB/BA); Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias
(Audiência Pública – 5ª. reunião – 24/4/87 – publicação no DANC em 21/5/87 - Suplemento 63, p. 2), p. 71.
139
Constituinte Lúcio Alcântara (PFL/CE); Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias
(Audiência Pública – 5ª. reunião – 24/4/87 – publicação no DANC em 21/5/87 - Suplemento 63, p. 2), p. 41.
140
Constituinte Rubem Medina/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/2022 (Anexo III da
tese).
98

e dos titulares de cargos eletivos e ainda o veto popular, instrumento que possibilitaria ao povo
vetar projetos de lei, mesmo contra a vontade do Legislativo. Entretanto, isso não ocorreu. Não se
deu o passo adiante para avançar mais no reforço da via democrática direta, prevendo a CF/88
somente o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular:

Esta seria, sem dúvida, uma grande inovação, porque uma lei revogada pelo
Poder, se realmente houvesse uma manifestação contrária da opinião pública, e
tivéssemos a motivar essa manifestação contrária um número expressivo de
brasileiros, poderia esse referendo significar até a revogação daquilo que o poder
tem a revogar. Também contemplamos para a discussão a questão do plebiscito,
e também do defensor do povo, que, conforme podemos ver mais adiante, prevê
especificamente quando se estabeleceria esse instrumento, esse instituto.141

O voto destituinte é outra matéria também bastante nova e que provavelmente


exigirá muita atenção dos Srs. Constituintes. O voto destituinte ("recall", para os
americanos; "rappel", para os juristas franceses) pode ser deferido, em sentido
amplo, como a medida que confere ao eleitorado o poder de, em determinadas
condições, substituir um ocupante de cargo público antes do término normal de
seu período. Trata-se de uma revogação de mandato, uma verdadeira suspensão
de confiança ou uma consequente anularão desta confiança na nomeação ou
escolha anterior. O voto destituinte, que sugerimos estabelecer no texto
constitucional, refere-se exclusivamente aos detentores de mandatos eletivos, por
iniciativa exclusiva dos próprios eleitores. Devo esclarecer que o voto destituinte
ou voto revogatório também se refere, nos países mais adiantados, aos membros
do Poder Executivo e do Poder Legislativo, que podem ser questionados nos seus
mandatos pela manifestação dos eleitores. 142

A ANC exerceu importante papel no processo de redemocratização, todavia, no que se


refere à democracia direta, seu trabalho ficou aquém do esperado. Apesar do amplo apoio à
participação direta no parlamento, este foi muito mais contextual do que programático. A previsão
de importantes mecanismos diretos como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular não só
garantiram como também consolidaram o exercício democrático direto da cidadania. Entretanto, a
ANC foi econômica no seu aprofundamento, na abrangência, na efetividade e na facilitação do
manejo dos MDDs, especialmente quanto à legitimação ativa da cidadania para convocação de
plebiscitos e referendos, além da conveniência do momento e da pertinência temática a ser
veiculada nas consultas, observados os requisitos constitucionais mínimos, acessíveis e viáveis ao

141
Constituinte Fausto Fernandes (PMDB/PA. Audiência Pública em 14/5/1987. DANC em 3/8/1987, Suplemento
114, p. 59), p. 95.
142
Constituinte Lysâneas Maciel (PDT/RJ); Ata da 13ª Reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos
Coletivos e Garantias, de 14 de maio de 1987.
99

indivíduo. Destaca-se, por último, a importância de se refletir sobre a possibilidade de introdução


de novos e modernos mecanismos de participação direta, que não somente a reforcem como sirvam
de inclusão e prática pedagógica constante do cidadão no processo político e democrático.

2.4 Conclusão

A ANC foi um sonho que envolveu a todos indistintamente. Foi o momento da esperança
depois de passado o medo da ditadura militar. Apesar de numerosas melhorias proporcionadas pelo
novo texto constitucional, no geral, outras possíveis mudanças substanciais não foram encampadas.
A luta pela participação popular inicialmente na ANC tinha como objetivo principal garantir na
nova CF um rol de propostas vinculadas a políticas públicas que garantissem um considerável e
eficaz conjunto de direitos fundamentais, além da inserção de mecanismos diretos de democracia
participativa que possibilitassem a cooperação popular na busca por soluções para problemas que
afligiam o país. Tudo isso dependia de uma representação progressista no parlamento (FERREIRA,
2018, p. 117). Elegeu-se uma ANC em 1986 tendo por base a intransigente defesa do Plano
Cruzado criticado por Leonel Brizola (1987) que, logo, se mostrou incapaz de solucionar os
problemas nacionais com medidas, dentre outras, como o congelamento de preços para controlar a
galopante inflação de então.
O embate entre representação e participação logo se mostra secundário, mesmo porque o
contexto era outro. A democracia vencera, não havendo razões pra se imaginar que o CN tivesse
suas atribuições diminuídas pela presença popular na nova conjuntura política que se iniciava.
Apesar dos obstáculos enfrentados pela participação, esta cooperou para a formação consciente e
inclusão política de cidadãos habilitados para exercer o direito de voto, especialmente, no que tange
à relevância da atuação da ANC na confecção do futuro texto constitucional. Os meios criados para
a atuação efetiva da cidadania nos trabalhos constituintes foram o grande momento da ANC,
especialmente, pelas audiências públicas e emendas populares que garantiram a possibilidade do
povo se manifestar livremente, além de colaborar com projetos diversos com base em ideias e
desejos materializados em propostas a ser apreciadas pelos constituintes. Ali, literalmente, não
houve medo, mas só esperança de um trabalho legislativo que levasse a um país melhor e mais
justo. Sonhos não envelhecem.
100

No entanto, o plebiscito e o referendo foram instituídos a partir respectivamente da


convocação e da autorização prévia do CN143, situação que os prejudica em termos de deflagração
política, tendo em vista que se condiciona à vontade legislativa. A ausência de previsão
constitucional possibilitando a convocação facilitada desses MDDs pelos cidadãos e ainda pelo
presidente da República legitimamente escolhido, praticamente os inviabiliza quanto a sua
utilização, colocando como verdadeiro destinatário do exercício do poder político no Brasil, não o
povo, mas o CN, que decide se as consultas devem ou não ser realizadas. Prova disso é que, em
trinta e quatro anos da CF/88, ressalvados os momentos em que se deliberou sobre a criação e
formação de novos Estados-membros, tivemos apenas duas consultas (uma via plebiscito e outra
por referendo), o que demonstra uma participação mitigada do ponto de vista institucional.
Finalmente, a iniciativa popular pode ser havida como outro instrumento pífio em termos
de resultados efetivos voltados a mais participação. Os pronunciamentos constituintes ocasionaram
a inserção da lei de iniciativa popular144 que, apesar de relevante, se mostra inócua a partir dos
gravosos requisitos exigidos constitucionalmente para sua deflagração. A baixa utilização do
projeto de lei popular na vigência da CF/88 comprova: somente quatro iniciativas se transformaram
em lei, o que dá a média de um projeto a cada oito anos. O problema está nos gravosos entraves
constitucionais que condicionam a iniciativa popular à observância de uma série de requisitos que
praticamente a inviabilizam em termos práticos. Muito pouco e até desprezível para um Estado que
se declara democrático, pluralista e participativo, imputando ao povo o exercício do poder.

143
CF/88, art. 49, XV.
144
CF/88, art. 61, parágrafo 2º.
101

3 A PARTICIPAÇÃO INSTITUCIONALIZADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

3.1 O prisma representativo

O arranjo democrático pós-Constituição de 1988 criou consideráveis inovações da


participação da sociedade na construção e acompanhamento de políticas públicas em diferentes
áreas do campo social, que deram relevância nas pesquisas no âmbito não só internacional, mas
também interno, todavia, com o passar dos anos, a euforia inicial sobre participação cede lugar a
abordagens críticas e, às vezes, até céticas sobre as instituições participativas, percebendo-se certo
desgaste porque estas não são mais novidades do ponto de vista da resolução de questões essenciais
à população, nem muito menos forma de gestão de iniciativas públicas consolidadas e praticadas
pelos entes federativos no Brasil (PIRES, 2014, p. 182).
Nas relações estabelecidas entre participação e democracia representativa, esta é exercida
basicamente por meio do sistema de partidos políticos em eleições gerais, com o sufrágio universal
e a representação proporcional, além do exercício dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo
no sistema de “freios e contrapesos”, tudo isso tomando por base uma perspectiva constitucional
que atribui ao presidencialismo de coalizão protagonismo no exercício do poder político. Tais
elementos darão à democracia representativa um sentido mais concreto, onde aparece de forma
mais nítida a ideia de participação, não somente aquela específica do eleitor no momento de votar,
mas também a geral que envolve os principais elementos políticos e institucionais que têm por base
o princípio eleitoral.
A participação que depende de certames eleitorais não concretiza a democracia
participativa na sua acepção atual, haja vista que as eleições gerais caracterizam e realizam
genuinamente a ideia de representação segundo a qual o representante, a partir do instante em que
é escolhido pela cidadania, realiza atos em nome do povo. Tal concepção difere da participação,
pois nesta a atuação do cidadão ocorre de maneira direta e pessoal na realização dos atos de
governo, não havendo a intermediação dos representantes com exceção da iniciativa popular145, na

145
CF/88, art. 61, parágrafo 2º: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de
projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados,
com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
102

qual ocorre o encaminhamento do projeto de lei aos membros do CN, que decidem se este se tornará
ou não lei.
A CF/88 adotou, além dos instrumentos diretos clássicos como o plebiscito, o referendo e
a iniciativa popular146, outros elementos importantes de democracia participativa que reforçam a
participação da cidadania nas esferas de poder: a participação dos trabalhadores e empregadores
nos colegiados dos órgãos públicos147; a eleição de um representante dos trabalhadores para
promover o entendimento com os empregadores148; a fiscalização das contas do Município pelo
contribuinte149; a possibilidade de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato
denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União 150; caráter
democrático e descentralizado da administração com participação dos trabalhadores, dos
empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados151 na seguridade social; gestão
democrática do ensino público152; a colaboração da comunidade para proteger o patrimônio cultural
brasileiro153 e relevantes ações constitucionais, dentre outras, como a ação popular 154, o mandado

146
CF/88, art. 14, I a III: A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com
valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III-iniciativa popular.
147
CF, art. 10: É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em
que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.
148
CF/88, art. 11: Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de um representante destes
com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores.
149
CF/88, art. 31, § 3º: As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer
contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
150
CF/88, art. 74, § 2º: Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da
lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.
151
CF/88, art. 194, VII: A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes
objetivos: VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com
participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
152
CF/88, art. 206, VI: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: gestão democrática do ensino
público, na forma da lei;
153
CF/88, art. 216, § 1º: O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
154
CF/88, art. 5º., LXXIII: qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus de
sucumbência;
103

de segurança individual155/coletivo156 e o mandado de injunção157 (SILVA, 2011, pp. 141-142).


Este caracteriza inédita e relevante garantia instituída pela CF/88:

Constitui um remédio ou ação constitucional posto à disposição de quem se


considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas
inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela
Constituição. Sua principal finalidade consiste assim em conferir imediata
aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas,
inerte em virtude de ausência de regulamentação. Revela-se, neste quadrante,
como um instrumento de realização prática da disposição do art. 5º., § 1º158
(SILVA, 2011, p. 449).

As prerrogativas atribuídas à cidadania pela CF/88 consolidam a participação democrática


a partir das relações estabelecidas entre participação e representação, especialmente, o
funcionamento dos poderes (no caso, o Executivo e o Legislativo eleitos) e dos partidos políticos
a partir do presidencialismo de coalizão. A CF/88, confirmando uma tradição das Constituições
anteriores, reforçou a figura do Executivo. Os militares se utilizaram deste como elemento central
de exercício do poder político e governamental durante a ditadura. Um bom exemplo desta nova
conformação de 1988 foi a previsão das MPs159, que amplia consideravelmente o poder do
Presidente da República, especialmente nas relações estabelecidas com o Legislativo,
protagonizando por intermédio dessa espécie normativa amplas possibilidades de normatização
extraordinária com a chancela do CN.
O precursor das medidas provisórias (MPs) foi o antigo decreto-lei (DL), previsto na Carta
anterior (1967/69), que foi amplamente utilizado como instrumento legislativo abusivo pelos
generais-presidentes durante o período autoritário, tendo como paradigma a Constituição da Itália

155
CF/88, art. 5º., LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado
por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública
ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
156
CF/88, art. 5º., LXX: o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com
representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída
e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;
157
CF/88, art. 5º., LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne
inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania
e à cidadania;
158
CF/88, art. 5º., § 1º. - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
159
CF/88, art. 62: Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias,
com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
104

de 1947160. O constituinte de 1988, ao incluir as MPs, criou, apesar da abusividade dos decretos-
leis no regime de exceção, ato normativo excepcional e célere, para situações de relevância e
urgência, visando a eficácia da prestação legislativa, sendo posteriormente, indevida e excessiva a
sua utilização pelos chefes do Executivo. O resultado foi a posterior regulamentação pela EC nº
32/01, cuja finalidade principal foi reduzir a considerável discricionariedade no uso das MPs,
trazendo uma série de limitações, além da vedação às reedições sucessivas (MORAES, 2013, p.
687). Precipuamente, cabe ao Executivo a administração, a gerência e a coordenação do governo
por intermédio da implementação de políticas e iniciativas voltadas para o atendimento dos
interesses públicos, não se configurando a normatização elemento originário ao seu exercício,
diferentemente do Legislativo ao qual o ato de legislar, por óbvio, se caracteriza como função
primordial e inerente ao referido poder.161 O Executivo, ao receber tal atribuição constitucional,
subtrai boa parte das prerrogativas do Legislativo e indiretamente do próprio cidadão na porque o
CN é a instituição responsável por representar e dar voz aos eleitores, caracterizando tal
circunstância atuação atípica e extraordinária que impacta diretamente na atuação dos poderes. 162
A previsão e o manejo dos decretos é outra circunstância anômala no que tange à
conformação e organização dos poderes no Brasil. O decreto regulamentar caracteriza ato por via
do qual o Presidente da República se manifesta, explicando ou esclarecendo o conteúdo de
determinada lei para fins de sua melhor aplicação163, todavia, introduziu-se, via EC nº 32/01, o
decreto autônomo164, onde o Chefe do Executivo passa a ter absoluta discricionariedade para
normatizar os casos previstos na CF/88. Apesar de boa parte da doutrina se posicionar no sentido
da impossibilidade da aceitação constitucional dos decretos (ou regulamentos) autônomos, “o STF
não desconhece essa realidade e admite, até mesmo, o controle por Ação Direta de
Inconstitucionalidade genérica, na hipótese de decreto autônomo revestido de indiscutível

160
Art. 77.
161
CF/88, art. 59: O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis
complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII -
resoluções.
162
CF/88, art. 2º: São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
163
CF/ 88, art. 84, IV: Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar
as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
164
CF/88, art. 84, VI: Compete privativamente ao Presidente da República: VI - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou
extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
105

conteúdo normativo”165 (LENZA, 2016, pp. 780-781). Tal situação, além de conferir excessiva
proeminência ao Executivo (que passa a poder legislar livremente nessas matérias), subtrai mais
uma vez e de maneira aguda as prerrogativas do Legislativo, ratificando sua condição de figura
secundária especialmente no que tange aos temas veiculados por decretos autônomos.
Questão relevante sobre as relações estabelecidas entre o Legislativo e o Judiciário sobre
participação é o Decreto nº 8.243/2014166, que instituiu a Política Nacional de Participação Social
(PNPS), tendo por objetivo o mapeamento de suas inovações, limites e potencialidades, a fim de
entender os desafios da efetividade da participação social no Brasil. O referido Decreto coloca
frente a frente o Executivo que o editou, e o Legislativo, onde foram feitas numerosas críticas
institucionais, voltando-se ao receio deste no sentido da perda de atribuições e, consequentemente,
do protagonismo da representação relativamente ao Executivo. É importante ressaltar que a sua
edição ocorre em momento de grave crise institucional, logo em seguida às manifestações de junho
de 2013167, que desestabilizaram consideravelmente o Governo Dilma que, naquele momento,
tentava responder à pauta dos manifestantes por meio do crescimento da participação e do acesso
popular ao Estado.
Alguns desdobramentos aguardados da participação se ligavam à questão da
democratização dos procedimentos de consecução de políticas públicas, à inclusão de setores
marginalizados e ao redimensionamento da distribuição de recursos para tais grupos, além da
melhoria das accountabilities (DAGNINO, 2002):

Além do repertório clássico de controle vertical, especialmente por meio do voto,


a sociedade é vista como ator de controle dos representantes, através da partilha
de poder nos espaços decisórios, da fiscalização e incentivo à prestação de contas
e da pressão sobre as agências de controle correspondentes para que ativem os
mecanismos de investigação e sanção (PERUZZOTTI e SMULOVITZ, 2002).

A PNPS revela o comprometimento do Executivo com uma resposta à altura das


manifestações no campo da participação social. A proposta era legitimar por dentro o acesso dos
participantes às fontes oficiais de manifestação de vontade existentes no governo, todavia, acaba

165
Nesse sentido foram alguns precedentes do STF: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.439/MS, DJU de
21/3/2002; ADI 2155-MC/PR; ADI 3673-MC, DJ de 3/3/2006; ADI-MC 309, DJ de 14/2/1992.
166
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/decreto/D8243.htm>.
167
As manifestações se iniciaram contra o aumento dos preços das passagens em São Paulo, revelando posteriormente
insatisfação geral da população contra a classe política, a corrupção e graves problemas relativos à saúde e à educação,
atingindo diretamente o Governo Dilma.
106

soando como medida paliativa de Dilma Rousseff a fim de garantir maior atuação democrática das
organizações sociais e da população em geral nas instâncias de poder, sendo uma tentativa de
resposta aos anseios de aprimoramento da participação (que começam no Governo Lula em 2003)
valendo-se de proposta de maior interação entre Estado e sociedade. Tudo isso ocorre em momento
anterior às eleições que ocorreriam no final de 2014, nas quais a presidente em exercício tentaria
se reeleger para novo mandato de quatro anos.
A questão é de grande relevância porque ajuda a mostrar a percepção dos representantes
das diversas correntes ideológicas no Legislativo acerca da utilização da participação, valendo
notar que se retoma a antiga dicotomia entre participação e representação que, embora haja
tentativas de superá-la, parece ainda sobreviver na visão dos representantes acerca da PNPS. Os
legisladores chegaram a dizer na época que a PNPS afrontava o Legislativo e fazia mudança de
regime por decreto (do representativo para a participação direta). Ainda nesse contexto, quando a
presidente Dilma Rousseff propôs a adoção de um plebiscito da reforma política, houve grande
rejeição do CN, muito preocupado em perder poderes diante do enfraquecimento político do
Executivo naquele momento (ALMEIDA, 2017):

As grandes decisões políticas e econômicas que determinam hoje os destinos das


pessoas não são mais (se é que foram algum dia) o resultado de um balanceamento
de opiniões, num discurso e contradiscurso público, e não são o resultado de
debates parlamentares. A participação da representação popular no governo, o
governo parlamentar, provou ser justamente o fator mais importante de
reerguimento da separação de poderes, e com ela da antiga ideia de sistema
parlamentar. Naturalmente, do jeito que as coisas estão hoje, concretamente, é
praticamente impossível trabalhar de outro modo senão por meio de comissões,
que são cada vez mais restritas. Assim elimina-se o plenum do Parlamento, isto é,
sua condição de algo público, seu objetivo original, transformando-se
necessariamente numa simples fachada (SCHMITT, 1996, p. 47).

Apesar dos óbices naturais relativos à sua implementação, a agenda da participação


apresenta dificuldades para definir um processo discursivo e decisório dentro das instituições
participativas, que englobe os atores envolvidos, independentemente dos seus respectivos campos
de atuação, esperando-se que os espaços reflitam e definam a diversidade das questões essenciais
para a política pública. Além disso, ressalta-se a efetividade representativa dos espaços, centrando-
se a investigação na maneira pela qual os protagonistas envolvidos têm acesso a estes canais, bem
como na diversidade da sociedade civil e na relação entre representantes e representados. Por
último, a questão da implementação e o impacto da participação na agenda governamental e ainda
107

nas decisões das esferas competentes pela política pública. Nessa área, pouco se conseguiu para se
entender as dinâmicas internas como, exemplificativamente, o aspecto volitivo governamental ou
a importância da força do associativismo dos diversos atores envolvidos. Os conflitos que
envolvem a PNPS revelam uma clivagem no entendimento do papel da participação na política,
demonstrando as discussões em torno da questão a forte tensão entre representação e participação.
Expressou-se no CN, em instante de grande polarização na luta por espaços políticos entre
Legislativo e Executivo, uma visão geral de que a PNPS confrontaria o parlamento (ALMEIDA,
2017).
Tal mudança não seria admitida por afronta direta a CF/88.168 A maneira pela qual o povo
participa do poder origina três espécies democráticas: direta, indireta ou representativa e
semidireta. A escolha chancelada na CF/88 se deu em relação à última. A suposta alteração, via
PNPS, do regime representativo para a participação direta não seria possível porque não se
admitiria tal mudança via decreto. Além disso, o regime político democrático e a separação de
poderes caracterizam cláusula pétrea169, pertencendo a rol de temas ou matérias que não admitem
alteração constitucional. Sendo assim, o regime político democrático instituído traz no seu bojo a
democracia indireta, via representantes eleitos, sendo inadmissível a interpretação no sentido da
possibilidade de instituição da PNPS por decreto ou mesmo por EC 170.
Outro elemento a ser destacado é a baixa atuação do povo no parlamento, diferentemente
do Executivo, “onde foram criados mecanismos como os conselhos de políticas públicas,
orçamentos participativos, conferências temáticas, dentre outros, no nível federal, estadual e
municipal” (QUINTÃO e CUNHA, 2018). No campo da participação institucionalizada pós CF/88,
aparecem exemplificativamente as Ouvidorias públicas enquanto organizações de participação,
que permitem ao cidadão que se insira no âmbito da administração pública, sendo a sua opinião
considerada nessas esferas decisórias de poder. A Ouvidoria tem por escopo efetivar princípios

168
Art. 1º., parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.
169
CF, art. 60, § 4º: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos
Poderes;
170
CF/88, art. 60, § 2º: A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
108

constitucionais basilares aplicados especialmente à administração pública 171, tendo como


competências principais a indução de mudança, a reparação do dano e dos prejuízos, o acesso à
administração pública e o reforço da democracia (LYRA, 2004).
As Ouvidorias parlamentares podem ser meio hábil de alteração das relações essenciais
existentes entre a sociedade e os exercentes do poder, criando elos importantes para democratizar
o acesso ao Legislativo e de incentivar a inclusão política e social do cidadão, que deseja aproximar
e reforçar vínculos e não descartá-los:

A Ouvidoria legislativa pode ser entendida de três maneiras distintas, podendo o


seu desempenho ter uma crescente complexificação: (1) acesso: caracterizado
pela recepção de demandas, reclamações e críticas; (2) canal de comunicação: por
meio dela ocorre a reciprocidade, a divulgação de ações, as relações bilaterais e
mais próximas dos cidadãos; onde ocorre a divulgação de atos e (3) instrumento
de participação cidadã: possibilita a incorporação de cidadãos num sistema
participativo mais amplo de discussão de temas e concretização de direitos
humanos. Atualmente, o “ombudsman parlamentar” caracteriza-se,
preponderantemente, como acesso, limitando-se a Ouvidoria a ser um espaço para
o recebimento de reivindicações e sugestões comuns, ampliando os espaços que
eles dispõem para apresentar suas demandas e reivindicações. Porém, a relação é
configurada de forma unidimensional, em uma direção: do cidadão para o aparato
estatal (QUINTÃO e CUNHA, 2018).

Parece que a inspiração que levou à institucionalização das ouvidorias legislativas teve
como elemento principal a busca por maior credibilidade perante a sociedade, não se preocupando
com holofotes acerca da materialidade de seus atos em si. Todavia, a participação do cidadão no
processo é considerada irrelevante para os fins a que se destina. A função das ouvidorias é restrita
e desconhecida enquanto instrumento de participação e controle social no âmbito do processo
legislativo, sendo fundamental a alteração em seu desenho institucional para que sejam
efetivamente autônomas e democráticas do ponto de vista do acesso da cidadania aos seus meios
de atuação (QUINTÃO e CUNHA, 2018). O referido trabalho dá pistas sobre a falta de
preocupação e do descompromisso do Legislativo com a participação institucional, seja pelo
desprezo à reciprocidade no que tange a uma ação política mais próxima e acessível ao cidadão,
seja pela ausência de vontade para trazer o indivíduo para debates e decisões diversas, sem contar

171
CF/88, art. 37: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência...
109

a possibilidade de realização efetiva e possível de direitos fundamentais nas suas relações com a
sociedade civil.
O sistema de organização e funcionamento dos partidos políticos172 no sistema de governo
presidencialista por coalizão caracteriza outro elemento central da análise sobre participação
política e representação democrática. Aqueles contrários aos partidos políticos justificam o seu
descontentamento a partir das seguintes razões: a organização das agremiações partidárias não se
conforma à concepção democrática; sua estrutura interna é fundamentalmente autocrática e
oligárquica; os chefes partidários não são efetivamente escolhidos por seus membros, apesar da
aparência que envolve todo o procedimento, sendo designados por influência daqueles que
predominam politicamente; há natural tendência à consolidação de classe dirigente enfeixada em
si mesma e nos seus interesses, além de distanciada da militância; uma vez que os “caciques” se
elegem, a oligarquia partidária recrudesce, não realizando o propósito democrático almejado e, por
último, a crescente centralização arrefece a influência exercida pelos militantes sobre os dirigentes
políticos, aumentando a influência destes sobre aqueles (DUVERGER, 1957, pp. 448-449)173.
A consequência principal é o esvaziamento da possibilidade de uma atuação partidária
mais efetiva para fazer valer a vontade do eleitor por meio do programa escolhido nas eleições
gerais, fato que contribui para o reforço da descrença no regime político democrático (NOBRE,
2022, p. 26). No entanto, a relevância dos partidos políticos para a democracia é igualmente
reconhecida:

Os partidos políticos são importantes instituições na formação da vontade política.


A ação política realiza-se de maneira formal e organizada pela atuação dos
partidos políticos. Eles exercem uma função de mediação entre o povo e o Estado
no processo de formação da vontade política, especialmente no que concerne ao
período eleitoral. Mas não somente durante essa fase ou período. O processo de
formação de vontade política transcende o momento eleitoral e se projeta para
além desse período. Enquanto instituições permanentes de participação política,
os partidos desempenham função singular na complexa relação entre o Estado e a
sociedade (MENDES, 2011, p. 782).

172
CF/88, art. 17: É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os
seguintes preceitos: I - caráter nacional; II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo
estrangeiros ou de subordinação a estes; III - prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV - funcionamento parlamentar
de acordo com a lei.
173
As teorias acerca do partido catch all e dos partidos cartel (essa já dos anos 2000) vão na mesma linha, atestando
essas práticas nas instituições partidárias mais contemporâneas.
110

A CF/88 optou pela institucionalização dos partidos políticos, atribuindo-lhes


personalidade jurídica de direito privado174. Tal conformação impacta na maneira pela qual estes
funcionam, detendo mais autonomia porque se estruturam obedecendo essencialmente regras do
direito civil, todavia, são agremiações que têm compromisso direto com a sociedade civil e,
sobretudo, com os interesses públicos. Destaca-se que, se o seu programa político submetido ao
cidadão for escolhido, passa a valer como plano efetivo de governo e de consecução de políticas
públicas, devendo haver mais instrumentos de regulação das atividades desenvolvidas por essas
agremiações partidárias pelo direito público:

Há um defeito ali de chamar partido político de pessoa jurídica de direito civil.


Isso nunca foi. É exacerbação do liberalismo danado que prevaleceu em áreas ali.
Partido político é da vida pública, enfim, cuida da vida pública brasileira, enfim,
particulares, tem que ter, é da tradição brasileira sempre foi tratada como
instituição de direito público. Tinha de ser assim para poder vincular a vida e
organização partidária mais da república e ao interesse público. Então é um defeito
ali que traz consequências práticas, com autonomia exacerbada dos partidos
políticos em função disso. Poderia até ser corrigido por legislação ordinária, mas
a classe política não deixa corrigir, então esse defeito da Constituição existe e não
teve conserto. Isso atrapalha muito a vida e atividade política no Brasil. Os
partidos políticos organizados com essa autonomia e aí ficou esse quadro de dono
de partido político que realmente é uma coisa lastimável na vida brasileira e aí
vem, enfim, a quantidade imensa de partidos políticos sem conexão com as
divisões ideológicas e políticas da sociedade, né. São ajuntamento de interesses e
aí não foi da Constituinte, mas foi criado depois o fundo partidário, a legislação
de colocar dinheiro público nos partidos, o que é um grande avanço, uma grande
vantagem, porque enfim tira o partido do vínculo econômico, das empresas,
enfim, tem essa vantagem, mas aí a ganância de abocanhar o fundo partidário e o
fundo eleitoral agora sem nenhum controle público, sem nada, tal a vontade dos
partidos políticos, trouxe, enfim, uma certa avacalhação da vida político-partidária
do país, muito ruim. Isso tem lá vínculo com a Constituição que liberou a
organização dos partidos, acho que é o artigo 16 né, ou 17, que liberou de maneira
exacerbada em definir o partido político como sociedade civil. 175

A questão que se põe (e que foi muito invocada nas manifestações de 2013) é: os partidos
realmente representam os anseios dos eleitores e ainda são indispensáveis para o funcionamento
pleno da democracia? Difícil responder, mas parece que a resposta é positiva. A democracia

174
Art. 17, § 2º Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus
estatutos no Tribunal Superior Eleitoral.
175
Constituinte Vivaldo Barbosa, do PDT/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 21/2/22 (Anexo I
da tese).
111

genuína é aquela mais real do ponto de vista da possibilidade efetiva de se fazer presente e de
prevalecer em termos de ideias e opiniões, se definindo pela liberdade para o povo em geral, não
se admitindo que se priorize exclusivamente a liberdade dos afortunados, mas a de todos, via
inclusão por intermédio da educação pública de qualidade, do exercício de trabalho digno e do
pleno exercício da cidadania com igualdade social e equilíbrio político. A tendência é que os
partidos políticos originem novas elites, que devolvam a ideia de representação seu real sentido de
fazer prevalecer a vontade e agenda daqueles que predominam, todavia, um regime político
desprovido de partidos políticos pode manter indefinidamente elites dirigentes por critérios vários
como o econômico, o intelectual e o político, permanecendo essencialmente conservador
(DUVERGER, 1957, pp. 450-452).
A EC nº 97/17 alterou o sistema de acesso aos recursos do fundo partidário, instituindo o
financiamento público de campanha176 que representa importante instrumento de regulação
econômica da atividade partidária e de democratização de acesso dos cidadãos aos cargos eletivos,
entretanto, como bem destacou Vivaldo Barbosa anteriormente, carecem o fundo partidário e o
fundo eleitoral de maior regulação e controle públicos, podendo a ausência de acompanhamento
do Estado relativamente à destinação desses recursos esvaziar institucionalmente a iniciativa, de
maneira a reforçar o ceticismo cidadão nos partidos políticos e, indiretamente, no próprio regime
democrático. A situação se reflete no número de partidos políticos existentes atualmente (trinta e
dois segundo o Tribunal Superior Eleitoral/TSE)177, os quais, na sua grande maioria, servem de
fachada para o atendimento dos interesses particulares de seus dirigentes, além de funcionarem
como partidos de aluguel, sendo cooptados pelas organizações partidárias maiores e mais
estruturadas:

Muitos reduzem o conceito de democracia ao exercício do voto e cometem um


erro enorme, que permite que algumas ditaduras passem por democracia, só
porque o cidadão vota para escolher quem preside o país ou quem compõe os
parlamentos. A democracia é definida pela qualidade da participação. Quando o
cidadão exerce o direito de votar ele está diante de todas as informações
essenciais? Os partidos que apresentam os candidatos para a escolha do eleitor

176
Art. 17, § 3º. Somente terão direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma
da lei, os partidos políticos que alternativamente: I - obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo,
3% (três por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um
mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou II - tiverem elegido pelo menos quinze
Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação.
177
Disponível em: <https://www.tse.jus.br/partidos/partidos-registrados-no-tse>.
112

têm canais que permitam a participação democrática de seus filiados e liberdade


para que todos os que queiram se filiem? As minorias estarão representadas nos
processos de decisão? Portanto, para mim, o que define uma democracia é a
qualidade da participação representada no voto.178

As consequências da crise dos poderes, do presidencialismo de coalizão e dos partidos


políticos (apesar de recentes iniciativas que estão reorganizando o sistema partidário, como a
redução de partidos, a clausula de barreira, o financiamento público de campanha e outros) no
Brasil são conhecidas. A falta de credibilidade popular reforçada pela corrupção revela o vazio
estrutural existente, a inércia relativa às efetivas medidas que as tornem mais ágeis e eficazes para
atender as crescentes demandas sociais e a omissão acerca de sua necessária conformação aos
novos desafios que a história impõe, tendo como resultado o crescente descrédito do povo em
relação ao funcionamento eficaz das instituições enquanto elementos políticos essenciais para
consolidação e manutenção do Estado Democrático de Direito e de seus fundamentos principais. 179

3.2 Enfim a democracia deliberativa

A partir da década noventa, ocorreu no país o crescimento de fóruns participativos, que


contribuíram para reforçar o caráter decisório da cidadania em vários campos da administração
pública, podendo ser destacados como paradigmas o Orçamento Participativo (OP), as
Conferências nacionais e os Conselhos gestores de políticas públicas em setores diversos de
políticas sociais como saúde, trabalho e emprego, assistência social, desenvolvimento rural,
educação, meio ambiente, planejamento e gestão urbana, entorpecentes, e os conselhos de direitos
da criança e do adolescente, do negro, da mulher, dos portadores de deficiências e do idoso. A
inserção de meios de participação democrática no plano municipal ou da ideia de democratização
local cresceu por intermédio do procedimento de alteração institucional, basicamente de iniciativa
federal, que apareceu com o debate acerca da reforma do Estado e da redemocratização do Brasil
(ALMEIDA, 2006, pp. 77-78).

178
Constituinte Rubem Medina pelo PFL/RJ, em entrevista concedida a Marcelo D’Alencourt, em 28/4/2022
(Anexo III da tese).
179
CF/88, art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo
político.
113

O orçamento caracteriza instrumento por via do qual, após aprovado pelo Poder
Legislativo, passa a vigorar como lei tendo como objetivo principal regular a atividade financeira
do Estado no campo das receitas e das despesas públicas180. A ideia de orçamento participativo é
possibilitar que os indivíduos atuem ativamente no procedimento e confecção da proposta
orçamentária do seu município, debatendo, concordando ou rechaçando iniciativas relativas à
aplicação de verbas públicas, tendo por objetivo principal garantir a participação da cidadania
especialmente no poder local, além do reforço das accountabilities sobre atos dos representantes
eleitos nas esferas governamentais. Apesar de sua relevância no que tange à ampliação da
democracia participativa, a CF/88 foi silente relativamente ao OP, optando (apesar de várias
manifestações favoráveis sobre o tema como demonstrado no capítulo anterior) por não trazer no
seu texto a sua previsão. Tal silêncio pode ser interpretado de duas maneiras: mero esquecimento
ou clara omissão para calar sobre a presença cidadã no poder. Esta parece mais plausível no
contexto histórico constitucional brasileiro.
O OP foi posto em prática inicialmente em Porto Alegre-RS, em 1989, pelo PT, passando
a incentivar várias maneiras de participação internacional. Define-se o OP como maneira de
participação que apresenta quatro elementos fundamentais: o direito de participação dos cidadãos
em assembleias regionais e temáticas com igual poder de deliberação sobre os serviços públicos;
as formas de participação local ocorrerão por intermédio das assembleias e de delegação, conforme
os conselhos municipais; as regras relativas a maneira pela qual se dá a deliberação são acertadas
pelos próprios componentes, com base na autorregulação soberana e a distribuição de recursos
públicos acontece por meio de fórmula técnica, variando de município para município, de maneira
a atender prioritariamente setores populares menos favorecidos. Há ainda quatro elementos
essenciais para que o OP possa existir: as categorias de vontade política, densidade associativa,
elementos do desenho institucional e capacidade administrativa e financeira para implantar a
proposta (AVRITZER, 2003, pp. 13-16).
Ocorrem, no entanto, dificuldades na conjugação desses elementos. Inicialmente, a
vontade política é algo que nem sempre está presente em circunstâncias que envolvem o exercício
da participação no campo político. A atuação estatal geralmente prescinde da consulta à população
pelo caráter autoritário que envolve as relações nas esferas governamentais. Além disso, a demora

180
CF/88, arts. 165 a 169.
114

no retorno das manifestações da cidadania e o consequente atraso na implementação das políticas


públicas estabelecidas contribuem para reduzir a participação. A densidade associativa representa
mais uma das dificuldades para o manejo orçamentário, tendo em vista que pressupõe prévia
organização das comunidades envolvidas, requerendo tempo e disponibilidade nem sempre
existentes devido sobretudo às questões particulares, econômicas e laborais. Os componentes do
desenho institucional se mostram igualmente difíceis de concretização uma vez que carecem de
maior aprofundamento e consolidação normativa e institucional. Por último, a capacidade
administrativa e financeira, onde aparecem os dois elementos estatais mais relevantes para o
sucesso do OP: disponibilidade de dinheiro e de atuação da administração pública.
Tais elementos se mostram historicamente escassos, convivendo o país com a ausência de
recursos para investimento em políticas públicas diversas, além de serviço público
consideravelmente limitado e com numerosas dificuldades de atender demandas outras como
aquelas que circundam toda a estrutura e viabilização do OP. As atividades diretamente
relacionadas ao OP produzem “uma duplicação de instâncias representativas, sem a transferência
de poder decisório final para os cidadãos comuns” (MIGUEL, 2017, p. 96), tratando-se de uma
representação muito complexa, em diferentes segmentos, não somente pela forma pela qual são
escolhidos os delegados, mas ainda para compreender aqueles que participam das assembleias de
base como representantes do povo que majoritariamente permanece ausente no procedimento do
OP:

Já a participação que chamei de patemaniana, pregada pelos teóricos da


democracia participativa, está vinculada a um sentido mais forte da palavra. Ela
significa o acesso a locais de tomada final de decisão, isto é, implica a
transferência de alguma capacidade decisória efetiva do topo para a base. Parte
importante das decisões ainda seria tomada por representantes eleitos, é claro; mas
a teoria supõe que a experiência na gestão direta de poder na base ampliará a
capacidade de compreensão sobre a política mais geral e de escolha esclarecida
dos representantes. Fica evidente que a participação do OP está muito mais ligada
ao sentido fraco do que ao sentido forte da palavra. Embora ocorram variações de
local para local e ao longo do tempo, ele é tipicamente uma estrutura delegativa
piramidal. Todos os moradores têm a possibilidade de participar das discussões
em assembleias de base (embora apenas uma minoria o faça), que culminam com
a eleição de uma lista de prioridades e de um número de delegados. Muitas vezes,
as prioridades ainda são transformadas pela aplicação de pesos predeterminados
por especialistas da prefeitura. E os delegados eleitos se encontram e escolhem
outros, num processo que termina por produzir um “conselho”, com poderes para
negociar, amalgamar e substituir as prioridades votadas. É o conselho que, no final
das contas, produz a proposta orçamentária – na verdade, um adendo a uma
115

proposta orçamentária, já que o grosso dos recursos públicos pertence a rubricas


fixas e não passa pelo conselho de representantes da base. Em todo o processo, a
participação popular consiste em grande medida na escolha de delegados; nesse
sentido, não é qualitativamente diferente da participação eleitoral (MIGUEL,
2017, pp. 95-96).

A experiência do OP em Porto Alegre/RS pode ser considerada a que mais se aproximou


de parâmetro de sucesso da iniciativa no país, proporcionando o aprofundamento da cultura
participativa na cidade, além da criação de instituições participativas exteriores e complementares
ao OP, bem como complexificando intensamente a sua prática institucional. Entretanto, para se
manter e aprofundar, a participação deve ser acompanhada de políticas pedagógicas consistentes,
que envolvam o sistema de ensino, o serviço público e o terceiro setor, recusando a instituição de
instrumentos internos de participação geralmente desconformes com a sua efetiva realização. As
particularidades locais devem também ser pontualmente consideradas, entendendo as cidades como
grandes polos detentores de numerosas diferenças sexuais, étnicas, etárias, políticas e de
funcionalidades, que impactam diretamente no maior ou menor grau de participação no OP. A
democratização do Estado administrativo-jurídico é outro elemento importante. A experiência de
Porto Alegre revela que o OP democratizou o Estado político, mas não a administração pública,
sendo a atuação desta inversamente proporcional aos desdobramentos e novas inserções relativas
ao OP porque ineficiência, morosidade e falta de sensibilidade não combinam com o
desenvolvimento da participação política (SANTOS, 2003, pp. 545-556).
Há uma grande quantidade de estudos recentes tendentes à idealização e ao otimismo
sobre o OP em Porto Alegre/RS, não permitindo mostrar as contradições e impasses naturais
relativos ao processo. No entanto, a contínua utilização desse instrumento de participação indireta
e o maior acesso a suas características essenciais possibilitaram apontar falhas e entender os limites
de seu funcionamento. Os diversos estudos colaboram com importantes elementos de correção de
rota, bem como, de confirmação de vários componentes do processo, cuja implementação foi
exitosa, todavia, “há um requisito crucial e decisivo para começar a romper com os limites mais
gerais que prendem o OP a uma dimensão bem menor do que sua imagem pública" (NAVARRO,
2003, p. 123).
É, portanto, difícil a colocação em prática do OP se não vier acompanhada de uma série
de medidas que a dotem de capacidade de implementação, deflagração e consolidação dos fins
almejados, dentre estes, especialmente, o recrudescimento da prática participativa, via deliberação,
116

devendo ser respeitadas: as características e diferenças locais; o envolvimento dos atores sociais
envolvidos; a conscientização da relevância da prática como forma de reforço da democracia
participativa; o aspecto pedagógico da medida sem o qual se perde consideravelmente o norte da
sua relevância política e, por último, o Estado por intermédio dos seus servidores públicos
responsáveis pelo acompanhamento, discussão, análise normativa e implementação das medidas
necessárias à conformação da vontade da sociedade local à questão financeira municipal, via OP.
A receita, que funcionava como parâmetro ao OP, deixou de corresponder ao total da arrecadação,
tendo o descaso com a prestação de contas gerado ceticismo acerca da maneira pela qual o OP foi
implementado. Governos descompromissados com a participação política ajudaram na extinção da
iniciativa muito elogiada, inclusive, pelo Banco Mundial, retornando-se à “antiga tradição
velhaca.”181 O resíduo institucional do OP contribui para tirar o foco principal de atores sociais
envolvidos, “concentrando sua atenção num conjunto de problemas muito limitados, em vez de
problemas mais importantes e abrangentes como, por exemplo, taxação redistributiva” (FUNG E
WRIGHT, 1999, p. 106), sendo importante, todavia, entender a sua prática para reforçá-la sob três
prismas:

(1) A necessidade de politizar as experiências de gestão comunitária direta que


contam com repasses de recursos (financeiros ou materiais) municipais; (2) a
necessidade de articular orçamento público e planejamento da cidade, abrindo
espaço tanto para uma discussão mais aprofundada das finanças municipais como
das políticas públicas; e; (3) a necessidade de abrir espaço para a discussão sobre
as perspectivas políticas da experiência do OP, tanto através da crítica ao
“ufanismo localista” (radicalização democrática numa só cidade), quanto da
crítica ao modo de recrutamento de quadros entre lideranças comunitárias
(BAIERLE, 2001).

O OP é um procedimento político e social muito dinâmico, sendo dificultosa a elaboração


de conclusões ou delimitação de caminhos que possa vir a tomar. Se implementado a contento,
pode colaborar muito com a justiça redistributiva, e eficácia decisória e, especialmente, a
responsabilidade do Executivo municipal e dos delegados eleitos pela comunidade para sua
consecução. No entanto, o OP depende da maneira pela qual a sua aplicação prática ocorrerá, sendo
essencial que novos elementos de participação democrática o reforcem para possibilitar a inserção

181
Liberdade e participação – A terra é redonda, por Luiz Marques. Disponível em:
<https://aterraeredonda.com.br/liberdade-e-participacao/>.
117

maior do indivíduo no campo das decisões políticas financeiras. Some-se a isso o necessário
aperfeiçoamento da autonomia popular para enfrentar e romper com antigas e históricas práticas
conservadoras e clientelistas que repudiam o OP.
Outro importante mecanismo deliberativo são os Conselhos gestores de políticas públicas
enquanto espaços participativos, podendo ser tanto consultivos como deliberativos, sendo
compostos por representantes do poder público e da sociedade civil e tendo ainda como objetivo
interferir nas políticas públicas de determinada matéria, variando suas atribuições nos diversos
contextos (TEIXEIRA, SOUZA e LIMA, 2012, pp. 14-15). Na década de oitenta, os Conselhos
aparecem no cenário brasileiro, inscrevendo-se numa nova perspectiva política que virá com a
CF/88182 e a Lei Orgânica dos Municípios de 1990, por intermédio da conjugação de instrumentos
de participação direta com os modos existentes de participação:

Ao menos 30 artigos do texto constitucional expressaram preceitos que


incentivaram experiências de gestão pública participativa. No que se refere à
arquitetura da participação, a CF traçou princípios e diretrizes, tais como a
cidadania como fundamento do Estado democrático (Artigos 1º., 5º., 8o, 15 e 17),
os deveres sociais em questões coletivas (artigos 205, 216, 225, 227 e 230) e o
exercício da soberania popular (artigos 14 27, 29, 58 e 61), mas também tratou da
participação social como forma de gestão pública - artigos 10, 18, 37, 74, 173,
187 e 231. Entre 2003 e 2010, no decorrer do governo Lula, apareceram novos
elementos da arquitetura da participação, em especial a distribuição de funções
entre órgãos de assessoramento da Presidência da República que conformou a
estrutura de gestão no que diz respeito à articulação com sujeitos políticos e aos
assuntos relevantes à participação (Leis n.º 10.683/2003; n.º 10.869/2004 e n.º
11.204/2005) (TEIXEIRA, SOUZA E LIMA, 2012, pp. 10-12).

182
CF/88, art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: III - participação da comunidade.
CF/88, art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da
seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: II -
participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das
ações em todos os níveis.CF/88, art. 212-A. X - a lei disporá, observadas as garantias estabelecidas nos incisos I, II,
III e IV do caput e no § 1º do art. 208 e as metas pertinentes do plano nacional de educação, nos termos previstos no
art. 214 desta Constituição, sobre: d) a transparência, o monitoramento, a fiscalização e o controle interno, externo e
social dos fundos referidos no inciso I do caput deste artigo, assegurada a criação, a autonomia, a manutenção e a
consolidação de conselhos de acompanhamento e controle social, admitida sua integração aos conselhos de educação;
CF/88, art. 216-A. § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas
diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: § 2º Constitui a estrutura
do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação: II - conselhos de política cultural;
118

Os Conselhos aparecem como elementos de articulação política para atender direitos


sociais coletivos no nível municipal (local), estadual e federal. A criação dos conselhos municipais
está diretamente ligada à busca dos movimentos sociais por mais participação, dando a esta sentido
político prioritário e estratégico de construção do poder popular, tomando por base espaços
políticos detentores de autonomia, além de exercerem pressão para forçar o poder constituído para
legitimação, defesa e consolidação de seus direitos. O aparecimento dos conselhos municipais
ocorreu depois das iniciativas originadas pelos movimentos sociais urbanos na sua relação com o
Poder Executivo municipal e estadual no final dos anos setenta e durante a década de oitenta, sendo
as formas mais observadas os Conselhos Populares (provenientes da sociedade civil que
pressionavam o governo para que observasse suas demandas); os Conselhos Comunitários
(originados em proposta do Executivo); os Conselhos Administrativos (voltados para a gestão de
órgãos e serviços como escolas, creches e hospitais) e os Conselhos de Políticas Setoriais existentes
em alguns municípios, como os Conselhos de Saúde ou os Conselhos Comunitários de Saúde
(ALMEIDA, 2006, pp. 85-86).
Os conselhos funcionariam como meios intermediários de interlocução entre a sociedade
e o poder no campo do planejamento público no Brasil. A fim de entender melhor o papel
desempenhado pelos conselhos, a agenda de pesquisa se triparte em três elementos essenciais sobre
o tema: a questão da efetividade deliberativa, o desenho institucional e a temática da
representatividade dos indivíduos que atuam nestes espaços. A efetividade deliberativa pressupõe
perquirir quem institui, quem participa da deliberação e a existência de desigualdades dentro das
instituições, detendo os participantes do processo recursos diferenciados a partir do seu grau de
inserção. O desenho institucional, via processo decisório, determinaria as regras para o acordo entre
os que participam, regulamentando inteiramente o processo de tomada de decisão final. Por último,
a representatividade das pessoas envolvidas envolve a legitimidade destes para agir e,
consequentemente, não somente tomar, mas, igualmente, influenciar as deliberações e os
procedimentos de tomada de decisão que acontecem dentro destas instâncias participativas:

No caso da efetividade deliberativa, variáveis analíticas importantes estão


centradas no caráter discursivo das IPs, em especial, os conselhos gestores. Esse
caráter tem implicações claras para aferição de resultados, dado que preferências
e interesses são constantemente negociados nestes espaços e as decisões finais
têm caráter vinculatório. No caso do desenho institucional, importância é
conferida às regras de funcionamento e modelagem do conselho, as quais podem
119

definir seus resultados finais, independentemente do tipo de participação


pretendida pelos indivíduos. Por fim, no caso da representatividade política,
observa-se que ainda não há consenso na literatura sobre variáveis e dimensões
avaliativas, muito embora já exista consenso sobre a importância da temática para
o funcionamento das IPs de uma forma geral. Existem diversas discussões e
propostas acerca do caráter da representação exercida pelos indivíduos que atuam
em nome da sociedade civil, especialmente em relação à legitimidade dessa
atuação. O que se descobriu, até então, é que a avaliação dessa representação via
mecanismos tradicionais de atribuição de legitimidade implica esgotar a análise
sem qualquer pretensão de avanço na compreensão do fenômeno. A agenda de
pesquisa, portanto, aponta para a necessidade de alternativas metodológicas e
analíticas que permitam perpassar esses limites de investigação (VAZ, 2011, pp.
103-104).

Os conselhos não se caracterizam como órgãos independentes do Estado, mas como uma
proposta de modernização política, diante do arrefecimento das políticas públicas e escassez de
recursos, direcionando suas energias para legitimação da ordem vigente. Destaca-se que, apesar da
descentralização que envolve a sua atuação, os conselhos se colocam numa hierarquia
administrativa, na qual o poder público praticamente determina os recursos disponíveis e a estrutura
burocrática necessária, distinguindo-se pelas atribuições de controle e fiscalização do poder
instituído (ALMEIDA, 2006, p. 88). O aumento de conselhos no Brasil ocorreu como elemento
importante para a distribuição de recursos em setores como assistência social, educação e saúde,
havendo diferenças na maneira pela qual se dá o funcionamento desses espaços que mudam de
acordo com o tipo de institucionalização, com a forma de estruturação social, com a definição das
atribuições e dos objetivos do colegiado, com a delimitação da competência e das atribuições do
conselho (GOHN, 1990).
Os conselhos trazem ainda como elemento essencial a continuidade no tempo, havendo a
vontade de ser, no ato da criação, um espaço permanente e constante em seus encontros para
construção de políticas públicas. Os conselhos não são acessíveis à participação de qualquer
indivíduo nos debates, só podendo se manifestar e deliberar os representantes eleitos ou
expressamente indicados para tal. Tal perfil traz simultaneamente aspectos positivos e negativos.
A vantagem está na maior estabilidade das deliberações produzidas como também na de suas ações.
Todavia, a manifestação exclusiva dos representantes escolhidos, apesar de importante para filtrar
a participação dos eleitos, inviabiliza a participação de outros interessados no processo
deliberativo:
120

Afinal, numa perspectiva de ampliação da participação não caberia restrição e sim


abertura a diferentes tipos e níveis de conhecimentos sobre um tema. Mesmo a
suposta abertura existente nas conferências se reduz quando apenas os sujeitos
diretamente relacionados aos temas se envolvem nas discussões. Nos conselhos,
isto é mais forte ainda, pois a especialização é quase um imperativo à participação.
Isso nos faz pensar que a perspectiva neocorporativa pode trazer bastante luz ao
entendimento das formas de representação nestes espaços, pois há monopólios
associativos, somente organizações com certas características seriam capazes de
agregar opiniões com informações precisas, expertises profissionais, capacidade
contratual e legitimidade de participação (SCHMITTER, 1974).

As atribuições dos conselhos são basicamente três: os objetivos estratégicos que visam a
produzir um projeto para a política, definindo seus princípios e seu encaminhamento, sendo
subdivididos em direcionamento, assessoria técnica, coordenação e articulação de atores e de
fomento à participação; há metas programáticas, relacionadas aos programas e projetos do
ministério ao qual estão ligados, sendo distribuídas em objetivos de planejamento, monitoramento
e avaliação e de controle e, finalmente, os objetivos operacionais, que são voltados a tarefas
corriqueiras do conselho, tais como a normatização, a orientação de diferentes públicos e o
julgamento de processos relacionados à política (TEIXEIRA, SOUZA e LIMA, 2012, p. 19). A
estrutura descrita tende a generalizar a atuação dos conselhos de maneira a se imaginar que estes
detêm forma única e homogênea de atuação nas diversas áreas. Tal impressão não corresponde à
realidade, devendo a ação ser analisada caso a caso e ainda de acordo com cada tipo de estrutura,
organização e particularidades que envolvem os conselhos, em termos de melhor entendimento das
deliberações lá produzidas:

São precisamente as comunicações políticas filtradas em termos deliberativos que


dependem dos recursos do mundo da vida – de uma cultura política libertária e de
uma socialização política esclarecida, sobretudo das iniciativas de associações
formadoras de opinião – que se formam e se regeneram em grande medida de
maneira espontânea, ainda que, em todo caso, sejam dificilmente acessíveis ao
controle político (HABERMAS, 2018, p. 418).

Quanto à expressa previsão constitucional, destacam-se dois Conselhos introduzidos pela


EC nº 45/2004: Conselho Nacional da Magistratura (CNJ) 183 e Conselho Nacional do Ministério

183
Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos,
admitida 1 (uma) recondução, sendo: I - o Presidente do Supremo Tribunal Federal; II - um Ministro do Superior
Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal; III - um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado
pelo respectivo tribunal; IV - um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; V -
121

Público (CNMP)184, que foram concebidos para funcionar como órgãos de controle externo do
Judiciário e do Ministério Público, respectivamente. Analisando-se a composição destes, observa
que tanto no CNJ (com quinze membros) quanto no CNMP (com catorze membros), só são
previstos dois cidadãos como membros, prejudicando a ideia inicial de se falar em controle externo
apesar da presença de dois advogados indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB). Ora, em ambos os casos, a quantidade de cidadãos (mesmo com notável saber
jurídico) é consideravelmente reduzida para uma efetiva participação nessas instâncias de poder.
Mesmo assim, em 2004, foi ajuizada a ADI nº 3.367 pela Associação dos Magistrados
Brasileiros, questionando a constitucionalidade do CNJ por violação aos artigos 2º 185. e 18186,
ambos da CF/88. Em 13/4/2005, o STF considerou constitucional o CNJ (e o CNMP também) com
o consequente julgamento de improcedência da ação, entendendo que a presença de não
magistrados não viola a cláusula pétrea da separação de poderes prevista no art. 60, § 4º., III da
CF/88187, apesar da reduzida presença de cidadãos que é inferior a vinte por cento (LENZA, 2016,
pp. 941-942). O aumento do número de cidadãos nas composições dos referidos Conselhos
propiciaria maior controle, fiscalização e reforço das accountabilities, garantindo à cidadania
maiores possibilidades de acompanhamento e de aferição das funções por estes exercidas. O
crescimento do número e a abrangência dos conselhos nacionais é realidade no Brasil,

um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal; VI - um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo
Superior Tribunal de Justiça; VII - um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça; VIII - um juiz de
Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho; IX - um juiz do trabalho, indicado pelo
Tribunal Superior do Trabalho; X - um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da
República; XI - um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os
nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual; XII - dois advogados, indicados pelo Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; XIII - dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada,
indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
184
Art. 130-A. O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de
dois anos, admitida uma recondução, sendo: I - o Procurador-Geral da República, que o preside; II - quatro membros
do Ministério Público da União, assegurada a representação de cada uma de suas carreiras; III - três membros do
Ministério Público dos Estados; IV - dois juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior
Tribunal de Justiça; V - dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VI -
dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo
Senado Federal.
185
CF/88, art. 2º: São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
186
CF/88, art. 18: A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
187
CF/88, art. 60, § 4º: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos
Poderes;
122

demonstrando que sua utilização está em consonância com a prática democrática participativa em
diversas regiões:

Em 1988, existiam quinze conselhos ou comissões nacionais ou federais


instalados. Entre 1990 e 1993, período dos governos Collor e Itamar, doze novos
órgãos foram criados. Nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002), foram instalados e/ou reformulados 24 conselhos ou comissões. Nos
governos Lula (2003-2010), 33 conselhos foram criados ou reformulados. Nos
governos Dilma Rousseff (2011-2016), outros cinco conselhos foram criados até
2014. A maior capilaridade da democracia participativa no Brasil encontra-se, no
entanto, na institucionalização da criação de conselhos municipais. Em sua
maioria, constituídos paritariamente, ensejam a participação da sociedade civil na
formulação de políticas públicas, na sua execução e fiscalização. Mais uma vez,
vislumbra-se um processo de construção gradual da democracia participativa. Em
1999, ano de referência no estudo realizado no IBGE para o âmbito municipal, já
havia no Brasil 27 mil conselhos municipais, uma média de quase cinco por
município; 10 anos depois, já eram 25 mil conselhos. Atualmente, existem
conselhos de saúde em todos os 5.569 municípios brasileiros (MONTEIRO, 2018,
pp. 399-400).

As Conferências188 nacionais são outro paradigma deliberativo relevante no campo da


análise da participação democrática. Estas não são eventos, apesar de serem realizadas como
atividades eventuais, diferenciando-se de audiências ou consultas públicas que são acontecimentos
incertos e protagonizados de maneira a observar determinadas questões, mesmo quando plasmadas
numa arquitetura institucional de participação social, exemplificativamente na formulação de
planos diretores para as cidades, ou quando determinadas num procedimento administrativo, como
nos dos estudos de impacto ambiental. Ressalta-se o caráter transitório das conferências, sendo
convocadas com objetivos determinados e por um período certo, distinguindo-se dos conselhos que
são órgãos colegiados permanentes com atribuições, estrutura e destinações diferentes. Entre 2003
e 2010, aconteceram no Brasil setenta e quatro processos nomeados como conferências, em
quarenta temas distintos, setenta por cento idealizados e concretizados originariamente, tendo
aproximadamente mais de cinco milhões de indivíduos participado dos diferentes momentos
(TEIXEIRA, SOUZA e LIMA, 2012, pp. 14-16):

No caso das conferências foram identificados quatro tipos de objetivos: i)


agendamento: quando se referiam a difusão de ideias, afirmação de

188
Na CF/88, aparece o termo conferências no art. 216-A, § 2º: Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura,
nas respectivas esferas da Federação: III - conferências de cultura;
123

compromissos, articulação entre atores, fortalecimento de redes, promoção de


reflexões e debates ou troca de experiências; ii) análise: quando estavam em foco
ações de diagnóstico de uma situação ou avaliação de políticas, inclusive
avaliação do encaminhamento de deliberações de conferências; iii) participação:
quando falavam em ampliação ou fortalecimento de espaços participativos na
gestão de políticas públicas; e iv) proposição: quando traziam aspectos de
formulação de estratégias ou políticas para garantia de direitos, articulação entre
entes federados e financiamento de ações, identificação de prioridades de ação
para órgãos governamentais, além de intenções específicas de criação ou
reformulação de planos, programas, políticas e sistemas (TEIXEIRA, SOUZA E
LIMA, 2012, p. 19).

Nas conferências, a proposição é o objetivo mais frequente e buscado, mas não somente
isso, pois estas têm a finalidade também de agendar questões e temas a serem debatidos pelos
participantes. O clima que envolve não somente a realização dos conselhos, mas também das
conferências é de muita euforia e pluralismo democrático, envolvendo setores diversos da
sociedade civil organizada, especialmente minorias voltadas a obter mais participação nos espaços
de poder:

Juntamente com a ênfase na questão da participação, o modelo das conferências


nacionais mostrou-se bastante eficaz na produção de efeitos sobre políticas
públicas. Segundo dados do próprio governo federal, entre 2003 e 2008, as
diretrizes colocadas pelas conferências resultaram em 2.233 projetos de lei (216
leis aprovadas) e 163 propostas de Emendas Constitucionais (seis emendas
aprovadas) (MONTEIRO, 2018, p. 402).

Entretanto, o encaminhamento das realizações não corresponde ao das expectativas


depositadas nesses meios de participação deliberativa, acarretando frustrações bem como, ao longo
dos anos, o esvaziamento de suas propostas e decisões. O elo entre representante e representado
vai depender da boa vontade e abertura do primeiro, que pode carecer de confiabilidade necessária
para o exercício da tarefa, até porque a vinculação entre representante e representado é constituída
por relações de poder e assimetria (MIGUEL, 2011). As conferências são formadas pelo
encadeamento de momentos que trazem em si finalidades particulares, havendo, nessa hipótese, o
envolvimento da sociedade na eleição dos representantes. Mesmo no caso de convocação por órgão
federal, as conferências ocorridas em fases anteriores à nacional trazem nortes específicos
particulares, servindo de campo de debate e realização de sugestões para o instante em que são
efetivamente produzidas, exemplificativamente, uma conferência municipal ou estadual discute e
realiza propostas de políticas públicas a serem veiculadas para o momento posterior, mas pode ter
124

como agenda temas de seu nível e ali mandar ao órgão responsável. Nada garante o sucesso da
ação, pois há dependência em relação à vontade política para a realização do procedimento,
acabando exposta às vicissitudes da agenda e do encaminhamento dado pelo Executivo:

Outra questão ainda não resolvida nas inovações vistas neste ciclo de
conferências, em particular nas conferências livres e virtuais, é a impossibilidade
de eleição de representantes para etapas seguintes. As propostas formuladas e as
perspectivas presentes nestas modalidades de conferências podem se perder e não
ser consideradas nos momentos posteriores. Pensar em formas de escolha e
inclusão de representantes das conferências livres e virtuais em conferências
estaduais e nacionais talvez seja um passo necessário para a validação destas
etapas e para a integração processual que caracteriza as conferências. Isso porque,
ao inserir somente uma ideia, desconsiderando as pessoas que passam pelas
experiências relacionadas ao tema que a ideia envolve, o conteúdo pode se perder
no meio da luta política (YOUNG, 2006).

A presença de representantes do governo torna o Estado participante ativo nos debates e


encaminhamento de decisões sobre políticas públicas, fazendo com que se discuta o verdadeiro
papel do Estado nesses espaços de participação, uma vez que a administração pública é diretamente
interessada no processo deliberativo. Isso implica no acirramento da disputa entre governo e
sociedade, além de limitar a expectativa do diálogo, debate e encaminhamento de demandas. Os
entes estatais são figuras importantes na organização e consecução das conferências, não podendo,
todavia, se propor a intermediar propostas e objetivos, quando, em verdade, têm outros interesses
em geral voltados para fazer valer a agenda dos detentores do poder. Essa circunstância inviabiliza
a essência das conferências por colocá-las em posição de desconfiança perante a sociedade civil.
A maneira pela qual são escolhidos os representantes e a forma como se dá o exercício da
representação, especialmente pelo fraco elo existente entre representantes e representados, impacta
diretamente nas conferências, destacando-se que a autorização para a representação não vem dos
representados, mas do órgão que cria o espaço deliberativo ou do reconhecimento por entidades já
legitimadas para atuação naquela esfera. Há ainda tendência a se vislumbrar o caráter fechado
desses espaços deliberativos, pois baixas são as possibilidades de inserção de novos paradigmas
sociais nesses locais, seja pela dificuldade existente nos atos normativos que exigem elementos
dificultosos para a participação em nível nacional, seja pela impossibilidade de novas entidades
ingressarem nas esferas de poder já consolidadas. Os mitigados instrumentos de controle dos
representantes por parte dos representados reduzem a possibilidade de permeabilidade dos espaços
125

participativos nacionais às necessidades de públicos ali ausentes. Apesar de ocorrerem ações para
levar em consideração critérios de gênero, idade, raça e condição socioeconômica na composição
dos espaços, estas são limitadas a esferas cujos participantes frequentadores são de grupo social
específico, deixando-se de congregar a inclusão de diferentes perspectivas no debate político para
se reduzir praticamente à escuta de demandas e mediação de interesses (TEIXEIRA, SOUZA e
LIMA, 2012, p. 41). Tudo isso não prejudica ou afeta, contudo, a relevância das conferências
enquanto proposta importante de inserção deliberativa do cidadão nas instâncias de poder,
necessitando de ajustes e adaptações pontuais para a realização de tal desiderato.

3.3 Democracia direta: derrota da esperança

A democracia direta é exercida diretamente pela cidadania sem a intermediação dos


representantes por meio de três instrumentos básicos: plebiscito, referendo e iniciativa popular (na
IP, o CN atua para ratificar ou não o projeto de lei subscrito pela cidadania). Na CF/88, a junção
desta espécie democrática com a representativa ou indireta, institui a chamada democracia
participativa ou semidireta, onde há simultaneamente o exercício do poder pelos representantes
eleitos pela cidadania com elementos de participação direta nas funções de governo. O plebiscito
é a consulta formulada ao cidadão para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de
natureza constitucional, legislativa ou administrativa, sendo convocado com anterioridade a ato
legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido
submetido.189 Já o referendo caracteriza convocação posterior ao ato legislativo ou administrativo,
cumprindo à cidadania a ratificação ou rejeição190.
A diferença básica entre plebiscito e referendo está no momento exato da realização da
consulta. No plebiscito, a consulta antecede ao ato legislativo ou administrativo a ser praticado,
imputando-se ao eleitor, por meio do voto, a concordância ou não sobre matéria de acentuada
relevância nacional191 e de natureza constitucional. Inicialmente, se consulta o eleitorado para

189
Arts. 1º., I c/c 2º., § 1º., ambos da Lei nº 9.709/1998.
190
Arts. 1º., II c/c 2º., § 2º., ambos da Lei nº 9.709/1998.
191
Art. 3º. da Lei nº 9.709/1998: Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do
Poder Executivo, e no caso do § 3o do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados
mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas
do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.
126

depois se tomar ou não a decisão objeto da consulta, permanecendo o governante vinculado ao que
restou decidido. Diferentemente, no referendo, primeiro se produz o ato legislativo ou
administrativo, para somente depois, submetê-lo à deliberação cidadã, podendo esta concordar ou
não com a questão objeto da consulta. Outra diferença essencial alude à competência exclusiva do
CN que, no caso do plebiscito, o convoca, enquanto, no referendo, o autoriza192:

Plebiscito é, na sua expressão mais neutra, a pronúncia popular incidente sobre


escolhas ou decisões políticas, como, por exemplo, a confiança num chefe
político, a opção por uma ou outra forma de governo. Quando a pronúncia popular
incide sobre um texto normativo (uma lei, uma constituição) o plebiscito
aproxima-se do referendo. Nele está, porém, presente um momento “decisionista”
que não se verifica no referendo (CANOTILHO, 2003, p. 296).

Ainda na vigência da CF/46, houve grave crise política desencadeada pela renúncia de
Jânio Quadros à Presidência da República em agosto de 1961. As Forças Armadas tentaram
deflagrar um golpe de estado confrontado pela vitoriosa “Campanha da Legalidade” 193
desencadeada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, que garantiu a posse de
João Goulart, em 7 de setembro de 1961, no CN, em uma conjuntura muito difícil e adversa. A
fórmula então encontrada pelo Legislativo para resolver o impasse e viabilizar a sua posse foi a
adoção do parlamentarismo com Tancredo Neves na condição de primeiro-ministro.
Após crescente desgaste do parlamentarismo por meio da sucessão de gabinetes que não
conseguiram dar sustentação política ao governo, convoca-se um plebiscito sobre a escolha do
sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo)194, que pode ser havido como referendo
pois foi solicitado depois de já instituído o parlamentarismo no Brasil. Realiza-se a consulta em 6
de janeiro de 1963, durante a gestão de João Goulart, tendo a maioria dos eleitores preferido
retornar ao sistema presidencialista. João Goulart assume definitivamente o poder com todas as

192
CF, art. 49: É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XV - autorizar referendo e convocar plebiscito.
193
A Campanha da Legalidade foi uma mobilização civil e militar em 1961 para assegurar a posse de João Goulart
como Presidente do Brasil, para derrubar o veto dos ministros das Forças Armadas à sucessão legal do presidente Jânio
Quadros, que tinha renunciado, ao então vice-presidente Goulart. Foi desencadeada e liderada pelo então governador
do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, aliado ao comandante do III Exército, general José Machado Lopes, que adere
ao movimento que resulta na negociação do parlamentarismo como novo sistema de governo do país e na posse de
João Goulart como presidente, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro.
194
A EC n.º 4/1961 à CF/1946 previa a possibilidade de lei complementar dispor sobre a realização de plebiscito que
decidiria sobre a manutenção do sistema parlamentarista ou presidencialista, determinando-se que, em 1965, seria
realizado um plebiscito que resolveria a continuidade ou não do parlamentarismo. A LC nº 2/1962 antecipou a consulta
popular para o dia 6/1/1963.
127

atribuições constitucionais conferidas ao presidente da República, enquanto chefe de Estado e de


governo, sendo derrubado pelo golpe civil-militar de 1964.
Na vigência da Carta de 88, com exceção de algumas consultas plebiscitárias sobre a
formação de novos Estados-membros195, houve um único plebiscito em 1993196, no qual se
deliberou sobre a escolha da forma (monárquica ou republicana) e do sistema de governo
(presidencialista e parlamentarista), restando vitoriosa a república e o presidencialismo, que já
haviam sido instituídos na CF/88, ou seja, tudo continuou como estava após o desfecho da referida
consulta popular. O plebiscito único realizado na vigência da CF/88 ratificou por larga margem de
votos a forma e o sistema de governo presidencialista previstos desde a CF/1891, passando
despercebido pela ampla maioria da população.
Sorte distinta não teve o referendo na vigência da CF/88. Ressalvada a consulta no Acre
para decidir sobre fuso horário197, o único referendo que tivemos foi sobre a manutenção ou a
rejeição da proibição da comercialização de armas de fogo e munição (referendo do
desarmamento).198 Depois de um início de campanha alvissareiro para o “SIM” (acabou com pouco
mais de 36% dos votos), que importaria na ratificação da proibição existente no Estatuto do
Desarmamento ao referido comércio, o “NÃO” foi vitorioso com mais de 63%, continuando
permitida a referida comercialização (LENZA, 2016, pp. 1361-1364). Não se quis dar esse passo
adiante no sentido da proibição do comércio de armas e munições. O resultado é o crescimento
gradual da referida prática sob o argumento da autoproteção do indivíduo que acarreta considerável
aumento da violência e criminalidade. Provavelmente o “SIM” ajudaria as forças militares e de
segurança para melhor controlar, fiscalizar e retirar de circulação armas e munições, que devem
ser por estas exclusivamente utilizadas (mesmo porque são preparadas e treinadas para o seu uso)
na defesa da população, ressalvadas as situações previstas na legislação.

195
Os Decretos Legislativos (DL) nº 136 e 137, ambos de 2011 dispuseram sobre a convocação de plebiscitos para a
criação dos Estados-membros de Carajás e Tapajós, com o intuito de desmembrar o Pará. Por mais de 66% dos votos
válidos, as propostas foram rejeitadas pelo eleitorado.
196
CF/88, art. 2º ADCT: No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, por meio de plebiscito, a forma (república
ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no
País.
197
Convocou-se, via DL nº 900/09, referendo nesse sentido, tendo a maioria dos eleitores (56,87%) optado pelo retorno
do fuso horário antigo, de duas horas de diferença relativamente a Brasília.
198
O art. 35 da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) vedou a comercialização de armas de fogo e munição
no país, exceto nos casos previstos em lei, dependendo, todavia, conforme art. 35, § 1º. de aprovação, via referendo
autorizado pelo DL nº 780/2005, realizado em 23 de outubro de 2005.
128

As consequências políticas das consultas via plebiscito e referendo podem se justificar


pelo argumento de que tais instrumentos levariam somente em consideração a posição das maiorias,
criando obstáculos aos acordos e decisões potencialmente passíveis de acontecer no Legislativo,
além da incompatibilidade de tais mecanismos para a obtenção de posições políticas de alta
complexidade sendo, pois, inflexíveis e reticentes a novas propostas no campo político. Nesse
contexto, os desdobramentos relativos aos MDDs não se restringem a mera existência na
Constituição e legislação infraconstitucional, dependendo diretamente do arranjo institucional e da
maneira pela qual são estruturados jurídica e politicamente.
A legislação determinou que a convocação de plebiscitos e referendos ocorressem por
DLs, descartando dois atores políticos essenciais no processo de tomada de decisões: o Presidente
da República e o cidadão. Para que ocorra a convocação de um plebiscito ou de um referendo, faz-
se necessário anteriormente a concordância legislativa, não sendo disponibilizada tal possibilidade
ao cidadão nem ao chefe do Executivo. A forma pela qual se institucionalizou a convocação de
MDDs, via CN no Brasil, geralmente, independe de reivindicação, mobilização ou participação
popular da cidadania, fato que acarreta certa indiferença na utilização desses instrumentos. Ideal
seria que o cidadão pudesse requerer a convocação de tais consultas de maneira facilitada 199 e
também o presidente da República diretamente sem a intermediação do Legislativo:

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a


soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles
combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder
econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia,
organização e competência. Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo
governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da
democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e
covarde da permanente conciliação com os donos do poder? (COMPARATO,
2010, pp. 58-59).

Vale ressaltar que o CN é composto por elites distintas que se desdobram em diversos
setores como o econômico e o político. Por exemplo, desde o Congresso constituinte eleito em
1986, o empresariado passa a focar a arena legislativa. Tal participação se dá não só via

199
Sugere-se como parâmetro para a convocação pelo menos os requisitos da lei de iniciativa popular previsto no art.
61, § 2º. da CF/88: A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei
subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não
menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
129

representação direta no Legislativo, dando continuidade a uma tendência histórica, mas também
pela via dos lobbies e do exercício de outras formas de influência que repercutem na participação
institucional (BOSCHI E DINIZ, 2000, p. 49):

No que se refere aos setores empresariais, sua ação assume diversas modalidades:
através de alto nível de abrangência, como as Confederações Nacionais da
Indústria, do Comércio e da Agricultura (Febraban); através de organizações
regionais e setoriais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp), a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), a Associação
Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), a Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea); e, finalmente, através de
empresas individuais, quer utilizando pessoal próprio ou contratando consultores,
como é o caso das grandes empreiteiras e empresas do ramo de comunicação
(BOSCHI e DINIZ, 2000, pp. 65-66).

Além do poder do empresariado, há ainda outros como o das famílias de políticos


renomados e já conhecidos na eleição de outros familiares e apoiadores, além da baixa
representação de algumas minorias sociológicas, em termos de representatividade nas esferas de
poder, como, exemplificativamente, mulheres, índios e pretos no parlamento brasileiro (CAMPOS
e MACHADO, 2015), que contribuem para redução da participação desses grupos no Legislativo.
Há, portanto, consideráveis dificuldades para se estabelecer um espaço público democrático,
sobretudo do ponto de vista da influência do processo histórico desigual de formação da sociedade
brasileira, que repercute hodiernamente, sem contar a ausência de vontade política especialmente
do CN quanto à convocação de plebiscitos e referendos. Dificilmente quem está vencendo o jogo
político se propõe a mudar as regras vigentes.
Registra-se que recentemente foi introduzida na CF/88 (pela EC nº 111/21) a possibilidade
da realização de consultas populares concomitantes às eleições municipais 200 acerca de temas locais
desde que aprovados pelas Câmaras de Vereadores, reforçando a perspectiva democrática direta no
plano local. Nesse contexto, a maior efetividade desses mecanismos constitucionais de democracia
estará a cargo da sociedade organizada por intermédio de maior pressão popular por participação.
Todavia, tal mobilização deve vir acompanhada de uma interlocução direta, em especial com o
Legislativo, que tem como principal atribuição, além da representação e da concessão efetiva de

200
CF/88, art. 14, § 12 da CF/88: Serão realizadas concomitantemente às eleições municipais as consultas populares
sobre questões locais aprovadas pelas Câmaras Municipais e encaminhadas à Justiça Eleitoral até 90 (noventa) dias
antes da data das eleições, observados os limites operacionais relativos ao número de quesitos.
130

voz ao cidadão, a incumbência de colocá-lo como ator principal no jogo político, podendo inclusive
tais consultas reverterem favoravelmente aos parlamentares eleitos com base em suas respectivas
agendas:

Uma análise mais aprofundada mostra que os efeitos dos processos de democracia
direta não vão em uma só direção. Por um lado, é claro que, uma vez que os
representantes eleitos não podem mais decidir sozinhos, o poder deles torna-se
mais limitado. Por outro lado, consultas populares provocam dois efeitos positivos
para os representantes: em primeiro lugar, mesmo em um regime que permite o
veto popular das decisões parlamentares, a grande maioria das decisões não é
vetada; por isso, todas as políticas não vetadas podem ser consideradas
implicitamente aprovadas pelos cidadãos. Em segundo lugar, as consultas
populares, que ocorrem mais regularmente que as eleições, fornecem aos
parlamentares orientações mais específicas sobre as preferências dos cidadãos que
resultados eleitorais. Assim, os eleitos podem posicionar-se de uma maneira mais
calibrada diante dos cidadãos. Isso aumenta suas chances de serem reeleitos
(RAUSCHENBACH, 2014, p. 7).

A iniciativa popular é mais um instrumento de democracia direta posto pela CF/88 à


disposição do cidadão, que consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados,
subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco
Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles 201, tratando-se
de novidade trazido pela Carta de 1988. O projeto de lei encaminhado pelo cidadão se presta
somente a inicializar o processo legislativo, desde que observados os requisitos legais e
constitucionais:

A iniciativa popular é um procedimento democrático que consiste em facultar ao


povo (a uma percentagem de eleitores ou a um certo número de eleitores) a
iniciativa de uma proposta tendente à adopção de uma norma constitucional ou
legislativa. Através da iniciativa popular, os cidadãos podem: (1) ou pedir à
assembleia legislativa a edição de uma lei sobre determinada matéria; (2) ou
apresentar um projecto de lei completamente redigido (iniciativa formulada).
Trata-se, pois, de promoção “da atividade legislativa (law promoting)
(CANOTILHO, 2003, p. 295).

No entanto, o CN pode se opor ao projeto, rejeitando, emendando ou modificando, se


assim desejar. Tal circunstância descaracteriza consideravelmente a essência da iniciativa popular,

201
CF/88, arts. 61, § 2º da CF/88 c/c 13 da Lei nº 9.709/1998.
131

vez que a coloca como mais um projeto dentre outros a ser apreciado, debatido e votado pelo
Legislativo sem a garantia de sucesso na sua transformação em lei. Diferentemente do plebiscito e
do referendo onde a participação do cidadão se dá de maneira direta e sem intermediários no que
tange às questões postas, no caso da iniciativa popular, observa-se que, após inúmeros esforços no
sentido de angariar assinaturas conforme a determinação constitucional, o projeto pode ser alterado
pelos representantes eleitos no CN e, pior, até arquivado, ocorrendo a intermediação legislativa
(ALTMAN, 2011). Tal circunstância prejudica o caráter direto e originário do projeto popular, no
entanto, a situação não prejudica o valor da iniciativa popular como elemento político relevante do
ponto de vista democrático para fazer valer a vontade da cidadania nas esferas de poder.
Os dificultosos requisitos previstos na legislação, tanto do ponto de vista procedimental
como numérico colocam a iniciativa popular quase como um “instituto decorativo” (FERREIRA
FILHO, 1995, p. 203). Prova disso é que somente existem quatro projetos de lei de iniciativa
popular aprovados na vigência da CF/88: o primeiro originou a Lei nº 8.930/94, conhecido como
“Projeto de Iniciativa Popular Glória Perez”, em razão do assassinato de sua filha, que reuniu mais
de 1 milhão e 300 mil assinaturas, culminando com a modificação da Lei de Crimes Hediondos,
tornando-a mais gravosa e dura para os que incidem nas condutas ilícitas lá previstas. O segundo
foi a Lei nº 9.840/99 conhecido como “captação de sufrágio”, objetivando capacitar a Justiça
Eleitoral para que coibisse com mais eficiência o crime de compra de votos dos eleitores. O terceiro
ocasionou a Lei nº 11.124/2005 conhecida como “fundo nacional para moradia popular”, dispondo
sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), além de criar o Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e de instituir o Conselho Gestor do FNHIS. A
quarta e última foi a LC nº 135/2010, denominada “Ficha Limpa”. A referida Lei reuniu
aproximadamente cerca de um milhão e seiscentas mil assinaturas para reforçar a idoneidade dos
candidatos, tornando inelegível por oito anos aquele que tiver o mandato cassado, renunciar para
evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado, ainda que haja a possibilidade
de interposição de recursos sem trânsito em julgado da decisão (LENZA, 2016, pp. 677-679):

Essa realidade, que demonstra a pouca participação popular nos projetos de lei,
vem sendo, entretanto, discutida no Congresso Nacional, e há vários projetos no
sentido de facilitar e viabilizar a democracia participativa, como a PEC n.º 2/99,
que diminui o percentual das assinaturas para 0,5% do eleitorado nacional, o PL
4.764/2009, que admite a assinatura digital (eletrônica) para o envio das
132

propostas, o PL 7.003/2010, que possibilita o uso de urnas eletrônica para a coleta


das assinaturas, entre outros tantos (LENZA, 2016, p. 680).

Há, portanto, baixa utilização da iniciativa popular, primeiro porque os requisitos para sua
deflagração são consideravelmente difíceis de se concretizar, sem contar que, mesmo depois de sua
realização, nada obsta que o CN arquive ou altere o projeto substancialmente, revelando
dificultosos óbices àqueles que investiram tempo na empreitada com reduzidas chances de
transformar o projeto em lei. Devem, portanto, os elementos exigidos constitucionalmente ser
repensados, tornando-os menos gravosos para que a IP se torne mais ágil e, sobretudo, viável.
Todavia, apesar das dificuldades, a iniciativa popular pode pressionar e servir de estímulo para que
o Legislativo priorize as matérias encaminhadas, transformando-as em regras jurídicas
originalmente desejadas pela sociedade.
No processo legislativo vigente, o poder de iniciativa de leis é atribuído a vários órgãos,
cabendo a iniciativa das leis complementares e ordinárias a qualquer membro ou Comissão da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República,
ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos
cidadãos, na forma e nos casos nela previstos202. A atribuição de apresentação de propostas
legislativas é havida simultaneamente como um poder/competência constitucional e ainda como
um direito político fundamental. Se for utilizada pelos representantes eleitos, ressalta o
poder/competência. Em contrapartida, se deflagrada pela cidadania para provocar o Legislativo,
predomina o direito político. O poder de iniciativa legislativa caracteriza relevante instrumento,
tendo em vista que o ato de legislar e de normatizar pode ser havido como efetivamente de
governar, demonstrando que a pulverização da capacidade de propositura de leis a diferentes atores
políticos ratifica a via democrática. A participação popular no processo de criação de leis representa
eficiente mecanismo de consolidação democrática na medida em que o cidadão sugere e
praticamente define uma agenda ao CN (PEREIRA, 2016, pp. 1726-1727). Nesse sentido, “a
iniciativa das leis funciona como instrumento de atuação do programa político ideológico”
(SILVA, 1985, p. 124):

202
CF/88, art. 61.
133

A CF/88 não atribuiu ao cidadão, porém, a prerrogativa para propor EC203, legitimando-
se apenas alguns órgãos específicos, além da IP somente poder ser veiculada para a elaboração de
leis ordinárias e complementares. Para se admitir que o cidadão proponha projeto de EC para
alteração da Constituição, seria necessária a mudança das regras do texto constitucional de maneira
a permitir que o eleitor pudesse propor projeto de iniciativa popular para emendá-la, incluindo
novas regras ou revogando as já existentes. O impedimento do cidadão para propor EC a fimde
alterar a CF/88 ratifica a sua suposta incapacidade de participar diretamente das decisões políticas
essenciais, o que não se pode admitir, devendo, portanto, haver previsão da possibilidade de
iniciativa popular conforme seus requisitos constitucionais para as emendas constitucionais
(SILVA, 2011, p. 64). Se, por óbvio, a sociedade é dinâmica e muda todo o tempo, o poder popular
é essencial para contribuir com as necessárias adaptações do texto constitucional às novas e
numerosas demandas sociais.
O STF admitiu que as Constituições estaduais tragam a previsão de iniciativa popular para
a propositura de emendas aos seus textos, tendo, portanto, alguns Estados-membros a autorização
judicial para alterar suas respectivas Cartas nesse sentido (CROCETTA, 2020, p. 52).204 A referida
decisão é importante e deve servir de inspiração ao CN para alterar as regras também no plano
federal. Parece, todavia, que esse passo institucional para legitimar o cidadão a ser parte ativa no
processo de alteração do texto constitucional dificilmente será dado, o que ratifica a opção
institucional de deixar o indivíduo como ator secundário no processo de alteração de normas
constitucionais.
Quanto aos requisitos para a inicialização do procedimento de iniciativa popular, três
pontos devem ser considerados: número de assinaturas, maneira de apresentação do projeto e
critérios de aferição da validade das assinaturas. A CF/88, ao prever a forma pela qual a iniciativa
popular pode ser oferecida, carregou exageradamente na exigência numérica, fazendo com que seu
uso seja praticamente a exceção, e não a regra. Outro requisito dificultoso é a necessidade de

203
CF, art. 60: A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da
Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias
Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
204
ADI 825/AP foi julgada no STF, tendo como Relator Ministro Alexandre de Moraes, em 25/10/2018. Os Estados-
membros que permitem emendas em Constituições estaduais por intermédio de projeto de lei de iniciativa popular são:
Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia,
Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul.
134

distribuição territorial que ocasiona óbices consideráveis no que tange ao custo do recolhimento de
assinaturas, bem como da posterior checagem de todos os elementos exigidos.
A exigência geográfica de que os adeptos da iniciativa popular estejam pulverizados em
no mínimo cinco Estados-membros, com adesão de, pelo menos, 0,3% (três décimos por cento)
dos eleitores de cada um deles, além da burocracia que envolve a aferição dos subscritores da IP
praticamente inviabiliza o projeto popular. As dificuldades relativas à exigência de assinaturas em
diferentes e distantes lugares contribui para o desestímulo à iniciativa popular, sem contar o alto
valor econômico envolvido. Além disso, a influência do poder econômico e o abuso do poder
financeiro nas campanhas devem ser levados em consideração, sendo fundamental a existência de
elementos de aferição e de controle do procedimento democrático com o intuito de salvaguardá-lo
da investida natural desses grupos de interesses antagônicos aos temas veiculados na IP (PEREIRA,
2016, pp. 1735-1746).
O incremento da participação, o pluralismo político e o respeito à igualdade e às liberdades
públicas contribuem para a formação do espaço público democrático, ressaltando que o
amadurecimento político, a posição consciente e livre no processo de participação nos debates e
nas deliberações pela sociedade organizada e na reconstrução do espaço público implicam na
existência de uma cidadania consciente, engajada e condizente com um país que visa melhorias e
avanços sociais não somente no presente, mas ainda em termos futuros:

Participação cidadã é um termo categórico para poder cidadão. É a redistribuição


de poder que permite aos cidadãos-que-não-têm (have-not citizen), excluídos no
presente dos processos políticos e econômicos, serem deliberadamente incluídos
no futuro. Em síntese, é o meio pelo qual eles podem induzir uma reforma social
significativa que lhes permita usufruir os benefícios da sociedade próspera
(ARNSTEIN, 1969, pp. 216-217).

O ceticismo (tanto interno quanto externo) da população acerca das instituições políticas
repercute negativamente nos poderes da República (especialmente no Legislativo), no regime
político democrático e no próprio Estado enquanto ente responsável pela sua proteção e sua
garantia. No caminho da construção de uma sociedade, em nível global, participativa e
democrática, existirá sempre o histórico embate entre forças favoráveis a mais participação
democrática e aquelas, conservadoras, que insistem em não aceitar ou admitir que a vontade
135

popular seja efetivamente considerada como maneira de se realizar os principais objetivos previstos
na CF/88205:

Se ainda houver espaço, no entanto, para a participação popular nas decisões


tomadas no país, pois é disto que este texto trata, será no Congresso que ela poderá
se concretizar, a partir dos instrumentos criados na Constituinte, porém com o
atual descrédito do Congresso é a própria atividade política que se desvaloriza.
Muitos dos que viveram positivamente a experiência dos tempos da Constituinte
já não estão entre nós, outros se adaptaram às práticas distorcidas que a luta
política foi impondo, muitos outros perderam a esperança. Somando-se às novas
gerações desinformadas e não alcançadas por movimentos políticos, a tendência
que pode predominar na população em geral é o ceticismo e a omissão, que
politicamente é o pior dos pecados. Situação essa agravada por uma dificuldade
de diálogo e por um aumento da intolerância que divide o País em campos que
parecem irreconciliáveis (FERREIRA, 2018, pp. 125-126).

A Constituição não pode ser considerada como o único instrumento de viabilização dessas
mudanças. Idem relativamente ao Legislativo dominado majoritariamente por forças
conservadoras. Nesse cenário adverso, o papel central está a cargo da sociedade civil organizada
enquanto protagonista principal das transformações sociais, destacando-se que, no caso de crise
política e institucional, os MDDs podem funcionar ainda como meios de garantia e irradiação da
energia democrática, prevenindo desnecessárias e indesejadas rupturas que só contribuem para o
retrocesso do processo democrático, além de consolidar o pluralismo político porque a ampliação
dos legitimados para sua propositura com a redução considerável dos óbices normativos existentes
contribuiria para o reforço e prestígio da CF/88.

3.4 Conclusão

O sistema de direitos fundamentais206 institucionalizado pela CF/88 proporcionou um


generoso e avançado leque de direitos civis, políticos e sociais (nestes inseridos os trabalhistas 207),

205
CF, art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
206
CF/88, arts. 5º. a 17.
207
CF/88, art. 7º.
136

além da defesa ao patrimônio cultural208 e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado209,


resguardados por importantes ações constitucionais como o habeas corpus210, o mandado de
segurança individual211 e coletivo212, o mandado de injunção213, o habeas data214 e a ação
popular215, que contribuíram para a preservação e consolidação democrática no país. Dentre outras
importantes iniciativas voltadas à garantia das liberdades públicas fundamentais, a CF/88
consolidou o sufrágio direto, secreto, universal e periódico para todos os cargos eletivos216;
concedeu o direito de voto ao analfabeto217; garantiu o pluralismo partidário218; manteve a Justiça
Eleitoral (existente desde 1932) para assegurar a licitude possível dos pleitos eleitorais; ratificou
as liberdades públicas fundamentais como as liberdades de expressão 219, de associação220 e o direito
à informação221. A CF/88 institui uma democracia política com todos os elementos essenciais que
a conformam: eleições livres e periódicas; amplo direito de sufrágio e de possibilidade de concorrer
a certames eleitorais; viabilidade real e concreta dos partidos políticos de oposição assumir o poder
se vencedores das eleições; liberdade de expressão e de associação política e existência de fontes
diversas e independentes de acesso à informação pelo eleitor (SOUZA NETO e SARMENTO,
2012, pp. 172-173).
A Constituição de 1988 instituiu ainda a obrigatoriedade da participação dos sindicatos
nas negociações coletivas de trabalho222; criação de instrumentos para a participação da cidadania
na Administração Pública223; possibilidade de participação dos trabalhadores rurais e produtores
na política agrícola224; estruturação da seguridade social com base no caráter descentralizado por

208
CF/88, arts. 215 e 216.
209
CF/88, art. 225.
210
CF/88, art. 5º., LXVIII.
211
CF/88, art. 5º., LXIX.
212
CF/88, art. 5º., LXX.
213
CF/88, art. 5º., LXXI.
214
CF/88, art. 5º., LXXII.
215
CF/88, art. 5º., LXXIII.
216
CF/88; art. 60, § 4º, II.
217
CF/88; art. 14, parágrafo 1º., II, “a”.
218
CF/88; art. 17.
219
CF/88; 5º., IV.
220
CF/88; 5º., XVII a XXI.
221
CF/88; 5º., XXXIII e XXXIV.
222
CF/88, art. 8º., VI.
223
CF/88, art. 37, parágrafo 3º.
224
CF/88, art. 187.
137

intermédio da participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo


nos órgãos colegiados225; integração das ações e serviços públicos de saúde em um sistema único
organizado com base na participação da comunidade226; prestação do ensino com base na gestão
democrática da educação e organização do Sistema Nacional de Cultura baseado na
democratização dos processos decisórios com participação e controle social (MONTEIRO, 2018,
pp. 391-392).
Sobre a democracia participativa, o texto constitucional trouxe instrumentos diretos
importantes como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, possibilitando ainda a utilização
de mecanismos democráticos indiretos como os conselhos e as conferências nacionais, além do
orçamento participativo. Quanto ao plebiscito e refendo, a imputação da autorização exclusiva ao
CN para seu manejo prejudicou consideravelmente a sua utilização, colocando-os praticamente
como figuras constitucionais decorativas nas mãos do CN que resiste em dar voz à cidadania em
questões diversas e relevantes que poderiam ser conjuntamente solucionadas por meio da direta
interveniência entre Legislativo e cidadão. Acerca da iniciativa popular, a previsão de numerosas
e gravosas exigências feitas à cidadania para sua consecução praticamente a esvaziou,
desestimulando a população de utilizá-la, podendo inclusive o projeto ser arquivado ou
consideravelmente retificado pelo CN.
Os mecanismos democráticos indiretos como os conselhos, conferências e orçamento
participativo, apesar de relevantes do ponto de vista democrático, também não se mostraram
capazes de trazer a população às esferas decisórias de poder227. Primeiro, porque a CF/88 não se
preocupou com a sua regulamentação, deixando de lado elementos normativos relevantes que,
desconsiderados, os colocam no campo da adaptação e do improviso institucionais. Ao depois,
porque a conformação política atribuída a estes mecanismos deliberativos não respalda as
dificuldades inerentes ao procedimento e, sobretudo, à implementação efetiva das decisões
tomadas, servindo, em algumas ocasiões, a legitimar iniciativas diversas advindas em geral do
poder público ou dos particulares interessados por intermédio da parcial atuação de representantes
indicados na defesa das respectivas agendas políticas.

225
CF/88, art. 194, parágrafo Único, VII.
226
CF/88, art. 198, III.
227
Roberto Mangabeira Unger, em entrevista concedida a Carlos Sávio G. Teixeira, em 22/5/22. Disponível em:
<https://youtu.be/7G-rcNVo7z8>.
138

O CN tem sido alvo de numerosas críticas além de ser constantemente mal utilizado do
ponto de vista político e institucional, todavia o seu valor e capacidade política são
reconhecidamente relevantes e estratégicos, sendo necessários esforços contínuos para aprimorá-
lo como instituição central no Estado democrático. O maior desafio das democracias
contemporâneas está em reverter os enormes níveis de ceticismo político relativamente ao
Legislativo e aos partidos políticos com suas propostas e programas de governo escolhidos pela
população, impactando diretamente na maneira pela qual os indivíduos acreditam nas liberdades
públicas fundamentais como prerrogativas necessárias à vida em sociedade.
O quadro geral não é favorável à participação democrática que, mesmo assim, insiste em
se fazer presente e respirar, especialmente após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para
Presidente da República, em 2022. Apesar das críticas, os mecanismos diretos e indiretos são
essenciais e devem ser aperfeiçoados a partir da estrutura e perfil atuais. A sua simples inclusão
política pode ser considerada uma vitória, mas ainda existe um enorme caminho a ser trilhado para
viabilizá-los como instrumentos efetivos de realização da democracia participativa não como
simples elementos despidos de praticidade política no campo institucional, mas como mecanismos
democráticos hábeis a fazer frente aos constantes desafios sociais presentes e futuros.
139

CONCLUSÕES

A democracia está em crise. Seus reflexos se projetam não somente no Brasil, mas também
e especialmente no mundo ocidental, colocando em xeque a figura do próprio Estado democrático
enquanto ente central responsável pela proteção e atendimento dos crescentes anseios da sociedade.
Tal circunstância pode reduzir consideravelmente no imaginário popular a percepção de ser este
fundamental e insubstituível para o enfrentamento de problemas sociais diversos. Iniciativas
participativas diretas e indiretas podem dotar a cidadania de instrumentos eficazes no
enfrentamento de numerosas questões, complementando o exercício da representação democrática,
além de impactar positivamente no exercício dos mandatos conferidos aos representantes eleitos
pelo sufrágio popular.
Nesse contexto, uma teoria (aliada à prática imaginada) participativa em consonância com
a democracia praticada no exterior e voltada para as peculiaridades brasileiras, pode contribuir para
o aperfeiçoamento da via democrática, estabelecendo, com base em seu uso contínuo e qualitativo,
limites contra arbitrariedades, sem contar a relevância de seu papel fundamental na conscientização
política e inclusiva da cidadania na defesa do ideal democrático como elemento central do Estado.
A democracia participativa plasmada nas perspectivas deliberativas e diretas não assegura
melhor democracia que a representativa, não tendo como objetivo a sua substituição no campo
institucional, mas sua complementação para prestigiar as escolhas da cidadania como norte de
atuação dos representantes eleitos. A democracia representativa é o regime político principal a ser
praticado no Estado, ocorrendo o seu reforço por meio de elementos de democracia direta ou
participativa. Desta maneira, não cabe a substituição daquela por esta, mas sim o fortalecimento
gradativo das instituições representativas por elementos de democracia direta, tendo como provável
resultado a democracia mudancista ou de alta energia, que é a manifestação institucional da ideia
de imaginação (traduzida em instituições), cuja tarefa é realizar o trabalho da crise sem crise 228.
O presidencialismo plebiscitário aparece como via para a reconfiguração da democracia a
partir da instituição de dispositivos que a tornem mais dinâmica, sendo necessário deixar de lado o
receio da racionalidade da maioria e implementar técnicas constitucionais que assegurem sua
máxima expressão institucionalizada:

228
Roberto Mangabeira Unger, em entrevista concedida a Carlos Sávio G. Teixeira, em 22/5/22. Disponível em:
<https://youtu.be/7G-rcNVo7z8>.
140

A alternativa proposta parte de premissa oposta, combinando democracia


representativa com elementos de democracia direta. O objetivo é alcançar solução
rápida dos conflitos entre os Poderes, sem custos no atendimento às demandas
manifestas da sociedade. O sentido é o da combinação de dois princípios: divisão
e concorrência de Poderes. O objetivo é a aceleração da política como deseja a
maioria da sociedade, mas institucionalizando-a. Supera a escolha entre uma
institucionalidade que desinteressa à maioria e o “conflitivismo” infecundo da
razão anti ou extrainstitucional típica das esquerdas convencionais e de muitos
movimentos sociais. O arranjo institucional do presidencialismo plebiscitário
democrático inverte a lógica do constitucionalismo liberal — e conservador.
Como? Justapondo dispositivos característicos dos regimes presidencialista e
parlamentarista. A introdução de regra constitucional que permita tanto ao
presidente como ao parlamento convocar, unilateralmente, eleições antecipadas,
simultaneamente para ambos os Poderes, diante de impasses duradouros acerca
de questões programáticas relevantes. Presidente e Congresso poderiam também
acordar a convocação de plebiscitos acerca de temas controversos que gerem
impasse. São soluções que garantem mobilização política institucionalizada da
sociedade — e não apenas de parte dela, sob o filtro da representação, seja em
modelo liberal ou no supostamente alternativo chamado de deliberacionista
(TEIXEIRA, 2020).

A instalação da ANC trouxe grande esperança por avanços políticos, aí incluída a


participação, incentivando o debate acerca da representação democrática em contexto de muito
receio dos representantes para introduzir alterações efetivas que dotassem a cidadania de
instrumentos participativos qualitativos e efetivos. Posições favoráveis e contra a participação são
visualizadas nos discursos proferidos por congressistas, destacando-se que majoritariamente as
manifestações foram a favor da participação democrática. Faltou esse apoio se transformar em
normas dotadas de poder real de atuação do indivíduo nas esferas de poder. Nessa queda de braço
entre participação mais efetiva e representação legislativa, esta predomina apesar de se
institucionalizar importantes instrumentos democráticos diretos e indiretos como elementos de
reforço à democracia representativa, porém inaptos a conferir maior efetividade ao exercício
participativo.
A CF/88 ratifica as inconsistências constituintes sobre democracia deliberativa e seus
mecanismos indiretos (conselhos, conferências e orçamento participativo), apesar de sua
relevância, permitindo o manejo indevido por atores sociais de dentro do Estado (e também por
particulares diretamente interessados) na obtenção de resultados previamente estabelecidos, além
da incapacidade e da dificuldade especialmente da Administração Pública em acompanhar os
141

movimentos nesses espaços deliberativos, circunstâncias que não só frustram como contribuem
para a pouca atuação do cidadão nesses processos:

Num breve balanço da implantação dos mecanismos de participação social, vemos


que há dois movimentos claramente distintos em curso. Por um lado, um
movimento de grandes proporções, ligado ao desenvolvimento da sociedade civil
organizada, que ampliou decisivamente os espaços de diálogo e interação com o
Estado a partir da luta pela institucionalização da participação por meio dos
conselhos, comitês e comissões, além dos processos de construção de políticas
públicas por meio das conferências nacionais. Por outro, constatamos a
dificuldade de as instituições públicas e a Administração Pública seguirem no
mesmo passo que a sociedade civil. Contrastando com o volume e a profundidade
das mudanças colocadas pelo movimento da sociedade civil, os poderes e os
órgãos públicos, embora em ritmos e intensidades diferenciados, ainda respondem
de maneira tímida ou atrasada. Essa defasagem é certamente devida a outros
fatores, como os corporativismos e as disputas de poder. É, no entanto, um desafio
atual à democracia participativa no Brasil (MONTEIRO, 2018, p. 406).

Igual sorte teve a democracia direta (paradigma principal de manifestação política da


cidadania) pelo esvaziamento dos seus principais mecanismos (plebiscito, referendo e iniciativa
popular) que poderiam contribuir para a realização da democracia de alta energia, prestigiando o
seu ator principal: o cidadão (que parece não estar preparado para participar, sendo necessária a
sua inclusão política e social). Tais mecanismos podem ser havidos como os principais elementos
para a realização de substancial mudança no panorama representativo, dotando a cidadania de plena
capacidade para contribuir especialmente com o Legislativo. O plebiscito, o referendo e a iniciativa
popular se mostraram, ao longo da vigência da Constituição de 1988, mecanismos inócuos quanto
aos resultados obtidos. A atribuição exclusiva do CN para dar desencadear plebiscitos e referendos
prejudicou tais instrumentos, deixando de lado a cidadania que poderia sinalizar diretamente para
a apreciação de temas importantes que repercutem na esfera coletiva.
Quanto à iniciativa popular, as exigências constitucionais previstas praticamente a
inviabilizaram com poucos projetos aprovados no Parlamento, demonstrando certo
descompromisso institucional especialmente do Legislativo com medidas concretas para garantir à
cidadania brasileira o protagonismo político no campo democrático. A possibilidade do CN
arquivar o projeto ou simplesmente engavetá-lo já seria motivo suficiente para frustrar a cidadania
quanto a sua utilização. Não bastasse isso, a obtenção de mais de um milhão e meio de assinaturas,
em pelo menos cinco Estados-membros da Federação, com não menos de três décimos por cento
142

de cada um deles, se revela tarefa difícil pelo tempo e pelo dinheiro a ser empregados com remotas
chances de retorno normativo almejado.
Baseado no arranjo constitucional de 1988 e de suas dificuldades em enfrentar problemas
estruturais diversos, a participação política institucionalizada se propôs a contribuir para maior
atuação da cidadania na esfera pública sem, contudo, dotá-la de mecanismos hábeis a fim de
garantir a sua efetiva inserção nos espaços decisórios de poder, sendo necessário pensar também a
participação à margem do sistema institucional, como em manifestações e nas redes sociais.
Mudanças geram inquietudes, tensões e desconfianças, mas é preciso ação contínua para avançar
em relação às conquistas obtidas, sob pena de, em um futuro próximo, sucumbirmos pela
incapacidade de resposta aos desafios que certamente virão, abrindo espaço para o radicalismo, o
desgoverno e o autoritarismo:

Como exemplo no mundo e para o mundo, é a radicalização do experimentalismo


democrático, pela renovação de suas formas institucionais, sob a inspiração da
demofilia, o carinho pelo homem comum. É a elevação da vida deste homem a
um nível mais alto de energia e ação, aproveitando o potencial de
engrandecimento institucional das democracias ricas do pós-guerra, que pararam
de avançar na zona em que cruzam as condições de progresso econômico e da
libertação individual. É a redenção daquilo que continua a ser progressista no
liberalismo contemporâneo – seu compromisso com o fortalecimento do
indivíduo, sua confiança na fecundidade da anarquia organizada – daquilo que é
nele mumificante – sua complacência para com as instituições que não merecem
representar a forma definitiva de liberdade política e econômica 229.

Devem, portanto, ser consolidadas iniciativas participativas diretas e indiretas


complementares, que propiciem atuação mais qualitativa da cidadania no enfrentamento das
crescentes demandas sociais, impactando diretamente no exercício dos mandatos conferidos aos
representantes eleitos pelo sufrágio popular. Há ainda crescente ceticismo acerca do papel do
Estado democrático como protagonista na melhoria das condições de vida da população,
reduzindo-se a percepção de ser essencial para resolução de problemas sociais diversos (NOBRE,
2022, p. 26). No entanto, a ideia de “governo do povo” insiste em estar presente no centro do debate
político, ao menos como parâmetro normativo que demonstra o pouco que os regimes ocidentais
concretizaram em termos de promessas do rótulo que trazem, deixando claro que, por detrás das

229
Roberto Mangabeira Unger, em “A segunda via: presente e futuro do Brasil” (Suplemento da Revista Carta Capital
nº 105).
143

democracias existentes atualmente, que concebem alto grau de desigualdades sociais, o ideal
democrático mantém seu potencial subversivo (MIGUEL, 2014, p. 61).
144

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ANEXOS:

ANEXO I: Entrevista concedida pela Dr. Vivaldo Barbosa, em 21/2/2022:

Marcelo D’Alencourt (MD): Boa tarde, Dr. Vivaldo. Gostaria de, antes de iniciar, deixar claro que
o objeto da minha pesquisa é participação institucionalizada na Constituição de 1988, e não a
participação popular que ocorreu intensamente na ANC e, claro, foi importante.

Vivaldo Barbosa (VB): Quanto à participação popular, só pra sublinhar que foi um fator muito
decisivo em muitas questões a participação popular na constituinte porque se deu de diversas
maneiras. Primeiro a correspondência que os constituintes decidiam. Outro lado a presença física
de muita gente que se deslocava pra Brasília com os ônibus fretados por meio de cartas, entidades
e de diversas maneiras. É uma presença constante lá nos corredores do CN, nas salas de reuniões
porque a Constituinte, quando ela pediu 24 subcomissões, ela abriu bastante o leque. Então ela
envolveu um conjunto grande de temas e aí diversos setores da vida brasileira se sentiram (epa!)
temos a oportunidade de nos dirigir a essa gente aí. Essa presença foi muito importante na
Constituinte e no próprio desfecho da Constituição.

MD: O que acha dos debates e de forças favoráveis e contrárias à participação da cidadania na
Constituição brasileira?

VB: Enfim, a Constituição teve lá os seus segmentos né mestres no sentido de, enfim, uma luta
mais nacionalista e mais voltada para a proteção dos direitos sociais, ao mesmo tempo em que
também tinha um movimento de valorização dos direitos civis e da cidadania brasileira. Essa foi aí
uma linha que dominou aí boa parte do ambiente da Constituinte. E um outro lado conservador,
fisiológico e muito voltado para garantia do capital estrangeiro, atendendo aí os ideais liberais dos
grupos econômicos nacionais e internacionais e também o setor fisiológico que se aglutinou muito
por meio das articulações que áreas do Governo Sarney fizeram, então isso ajudou também a dar
um dos conteúdos da Constituição, enfim como toda Constituição é isso, ela é multifacetada, apesar
de que nós fizemos uma Constituição mais nossa do que deles, né, mas ela reflete aí ideais liberais
157

de muitas maneiras, de maneira que em alguns aspectos a gente lamenta, mas também foi um dos
traços da Constituição esse lado conservador/liberal.

MD: Poderia dizer que desse lado progressista estariam as esquerdas e do lado conservador, as
direitas necessariamente ou o Sr. vê alguma outra colocação em relação a essa questão?

VB: Em termos dominantes sim, essa é uma divisão natural, agora, não era apenas no conjunto das
esquerdas. Você veja que áreas depois que assumiram feições mais conservadoras e liberais
estavam do nosso lado, você veja que a figura de Mário Covas, por exemplo, que foi o líder do
PMDB na Constituinte, senador, ele foi uma figura que boa parte do tempo, esteve do nosso lado.
Ele mesmo dizia “não sou de esquerda, mas sou um liberal”. Um liberal mais clássico, muito
progressista e muito consciente dos seus deveres, uma grande figura o Mário Covas, mas depois
ele, assim como o Franco Montoro, eles foram engolidos pelo neoliberalismo do Fernando
Henrique Cardoso (FHC), mas isso aí, enfim, isso acontece na política, mas o Mário Covas teve
muito tempo e em muitas oportunidades ele esteve do nosso lado e não era de esquerda. Outras
figuras também porque pra gente conseguir vitórias ali e maiorias, votos ali de esquerda, nós
tínhamos na cabeça no máximo 120, esquerda nacionalista e progressista. Muita divisão, a nossa
votação era isso aí pros temas mais candentes. Era isso aí. Eram 120 o que a gente tinha, mas
tivemos muitas vitórias por maioria que eram mais de 300 constituintes, mas era o jogo da política.
Política, às vezes, caminha pra um canto, caminha pra outro, mas é a luta política ali é que vai
empurrando as coisas.

MD: Sem dúvida, acho que o desempenho foi o melhor possível dentro das condições...

VB: Desculpa, mas não entendi.

MD: Dentro desse quadro, o resultado foi bom em termos de Carta constitucional.

VB: É o que eu te afirmo aí, eu acho que a Constituição foi mais nossa do que deles.
158

MD: Nesse embate da representação política, ou seja, o Congresso Nacional querendo manter o
seu espaço depois de 20 anos de ditadura e participação, esse embate, o Sr. acha que esteve
presente, esse receio do Congresso em admitir participação perdendo a força da chamada
representatividade democrática?

VB: Olha, é, eu creio que nesse aspecto a Constituição, ela foi bem democrática. Então não se
perdeu e o embate com o regime militar, o autoritarismo anterior, ele foi muito retórico, meio
emocional no sentido de que há setores ali de esquerda, enfim, e setores ligados ao regime
autoritário, mas era muito retórico porque as decisões no fundo e nos embates, foi na questão
econômica e nacional e nos direitos, e aí fugiu um pouco do autoritarismo e da questão da ditadura
militar. Muitos reclamam aí de que o artigo das Forças Armadas foi uma vitória deles, ok, foi uma
vitória deles na medida em que fizeram, em última instância, eles concederam, mas também não
foi um problema perturbador. Eu me lembro que, em algumas áreas se sentiam enfim derrotadas
nisso aí. O próprio Zé Genoíno, por exemplo, que cuidava muito disso que tinha enfrentado essas
questões na sua militância de guerrilheiro lá, mas no fundo eu nunca concordei muito. O próprio
Prestes, ele reclamou da Constituição, disso daí, mas eu confesso, ele achava que tinha que haver
um artigo com uma definição diferente, mas eu creio o seguinte, no regime presidencialista, está
preservado o comando superior das Forças Armadas nas mãos do presidente da República eleito.
Isso é fundamental. Não tem nenhuma vantagem que a Constituição firmou aí privilégios do setor
militar no sentido de eles dominarem certas áreas intocadas, não, eles são submissos à autoridade
do presidente eleito. Isso é a essência do presidencialismo, então isso aí, não vejo problemas que
um presidente exerça a sua autoridade e não seja obedecido. Que a Constituição não se cumpra.
Não vejo maior problema nisso não. As questões que nós tivemos embates foram nas garantias
individuais, direitos da cidadania, direitos civis, direitos sociais, que avançamos, mas, enfim, e na
questão econômica que nós avançamos bastante. Você veja que o governo Fernando Henrique pra
realizar o projeto ultraneoliberal, teve que mutilar a Constituição que ele ajudou a fazer, enfim,
ajudou no sentido de arrastado pelo nosso trabalho aí e não por certas áreas de opinião pública, ele
teve que alterar tudo, enfim, ele rompeu com a Constituição, mudou o sentido da ordem econômica
na Constituição. Então nisso aí realmente que os embates foram mais acirrados.
159

MD: É foco também da minha pesquisa a chamada democracia deliberativa dos conselhos e
conferências nacionais, orçamento participativo e ouvidorias. Como o Sr. viu essa discussão e
aquilo que restou normatizado em relação à chamada participação indireta, ou seja, aquela realizada
a partir dos acordos, dos debates e dos consensos?

VB: É evidente que isso é importante, um avanço, um aprimoramento da vida democrática e social
no geral, mas o que é fundamental é o respeito da vontade popular, porque esses conselhos, grupos
e etc., isso é importante avançar com isso aí, a participação é necessária, mas são grupos que se
organizam daqui e dali, mas e o povo no geral? Nesse ponto, digo que a questão central foi a
manutenção do presidencialismo para poder o povo ter voz. O povo aprovar um projeto nacional,
dialogar e escolher o governante, dialogar com ele, por intermédio das campanhas, escolher esse
governante que vai assumir e cumprir os compromissos fundamentais, porque é onde estão os
direitos: povo quer habitação, educação, moradia, pedaço de terra para trabalhar, um espaço para
morar. Veja a quantidade de brasileiros morando em favelas da forma mais precária possível, mais
anti-humana possível. Esse povo merece receber os proveitos de maneira geral porque, no fundo,
esse povo sustenta a economia e paga os impostos. A Constituição não andou bem nessa área
porque imposto no Brasil é pago pelo consumo, pelo preço das mercadorias. Quem paga é o povo
que sustenta a economia. E por que fica alijado da economia? Isso foi questão central: o que a
Constituição garantiu em relação ao respeito à vontade popular. Isso é coisa por cima dos grupos e
organizações que tem que existir na democracia. Tem que existir, grupos e conselhos,
organizações, devem ter seus espaços, ajuda e avança muito, mas por cima disso está o respeito à
vontade popular.

MD: Gostaria que o Sr. falasse um pouco da democracia direta dos plebiscitos, dos referendos e da
iniciativa popular.

VB: Isso foi previsto como muito importante na Constituição embora, no final das contas, o FH
me derrotou no sentido de retirar a capacidade do presidente determinar o poder de realização de
plebiscitos e referendos. A emenda presidencialista que prevaleceu é da minha autoria. Estava
previsto no meu texto a realização pelo presidente de plebiscitos e referendos. FHC conseguiu
retirar isso porque condenava o cesarismo, ok, César foi bom: era contra os juros, favorável à
160

habitação, distribuiu terra. Cesar é melhor do que quem o matou. Se é cesarismo, é bom, mas perdi
essa votação lá. Presidente tirou essa capacidade de fazer, que ficou na mão do Congresso Nacional
que não age nessa matéria. Veja que os EUA têm essa vantagem com eleições casadas com
plebiscitos e referendos com muitas questões para que povo decida. Isso é necessidade que o Brasil
tem previsto, mas não realizado. É uma pena que a democracia brasileira não realizou a questão do
plebiscito e do referendo que são muito importantes. É uma coisa que debati, consegui aprovar o
texto da emenda, mas depois foram feitos destaques e perdi.

MD: Quais foram os principais obstáculos e óbices em relação a uma participação institucional
mais efetiva do cidadão no futuro texto constitucional?

VB: Pra esse ponto, em termos de princípios, não teve maior polêmica, maior confronto. A isso
teve abertura. Faltou a nossa parte procurar o setor progressista para avançar mais nisso aí. É
evidente que a questão do plebiscito e do referendo na mão do presidente seria isso que já te
mencionei. É um ponto importante, mas faltou a nossa parte mais imaginação de como nós
garantirmos isso lá e abrirmos portas mais definidas na Constituição. Nós tivemos um foco muito
grande na questão dos direitos e na garantia dos instrumentos pra realização dos direitos, que a
questão da participação faltou mais imaginação nossa porque o ambiente estava até favorável,
estava aberto para isso aí sem maior resistência.

MD: Qual o balanço sobre participação daquilo que vocês constituintes sonharam, daquilo que
ficou positivado e do que chega a 2022 com o atual governo?

VB: Não sei se vou ter lembrança dos diversos pontos. É difícil aspecto específico.

MD: Tem pra mim um momento muito importante que é o Programa Nacional de Participação
Social no Governo Dilma, que decreta a participação social, mas o Congresso puxa o freio e resiste.
Isso seria um momento importante, mas fique à vontade pra falar sobre outros aspectos que
envolvam o tema.
161

VB: Como você puxa questões acerca de avanços no Governo Dilma, ok, mas isso não foi na
Constituinte, mas foi por decreto, por legislação que procurou avançar isso aí, mas, em termos da
Constituinte que eu estava procurando pela memória do que foi especificamente colocado aí, eu
não estou com lembrança. Como disse, faltou muita imaginação do nosso lado. O Governo Dilma
e até essas conferências que o Governo Lula fez, isso foi uma coisa, um debate muito importante
que veio depois. Durante a Constituinte, isso não foi colocado e não prevaleceu na Constituição.
Do geral, a Constituição, ao garantir a sua estrutura, os direitos fundamentais do art. 5º., aliás, no
art. 5º., eu perdi nisso aí, ele tem um defeito muito grande de colocar em algarismos romanos e se
estendeu muito, tem hora que eu não consigo dizer se é 50, 60 ou 70, ou 44, tem que conferir um
pouco o algarismo romano, o arábico foi muito mais avançado que o romano. Então os árabes
avançaram melhor nisso e ficou uma coisa mundial, universal, mas aquele artigo da Constituição,
eu tentei colocar em parágrafos arábicos na Constituição, porque eu era da Comissão de redação
final, mas ali perdi, aliás na redação tem tantos defeitos ali porque houve uma pressa de celebrar a
Constituição no dia 5 de outubro de 88. Parece que era uma aproximação ao aniversário do Ulysses
Guimarães, então houve uma pressa e eu tinha tanta coisa pra tentar examinar na Constituição
porque, na elaboração da Constituição, nós fazemos os acordos de liderança e, enfim, cuidávamos
dos conteúdos ali e sempre dizíamos depois, na redação final, se dá um arranjo na redação final,
no texto. Ok, isso ficou muitas coisas, mas quando chegou na redação final, aquela pressa de acabar,
enfim, há defeitos de formulação da Constituição que poderiam ser avaliados. Mas o art. 5º. da
Constituição ali, ao definir realmente o conjunto de direitos e de instrumentos legais para garantir
direitos, aquilo ali garantiu a cidadania de uma maneira bem ampla, o que levou, abriu portas para
a participação. Porque a participação requer essa questão preliminar fundamental e antecedente
que são as garantias, então ali quando você abre as garantias, quando você estabelece as garantias,
os instrumentos de garantias da cidadania, você abre a participação. Então é evidente que há
defeitos ali, tem o sistema político brasileiro que debatemos muito mal, de maneira precária, o
sistema político eleitoral proporcional, enfim, é uma coisa que vem do Código Eleitoral de 1932.
Tá na Constituição de 34, aquilo ali está sendo repetido sem uma reflexão maior e o sistema político
eleitoral brasileiro é muito defeituoso, centrado nessa questão do sistema proporcional que não
avançamos nisso nem tivemos maior imaginação sobre isso aí, mas, enfim, poderia, com sistema
político-eleitoral, poderíamos ampliar aí os níveis de participação, mas essa garantia do art. 5º. foi
fundamental para abrir portas e estimular a participação popular.
162

MD: Gostaria agora de deixa-lo à vontade para falar sobre o quiser sobre o tema, um recado, fique
livre para falar.

VB: Perfeito. Há um defeito ali de chamar partido político de pessoa jurídica de direito civil. Isso
nunca foi. É exacerbação do liberalismo danado que prevaleceu em áreas ali. Partido político é da
vida pública, enfim, cuida da vida pública brasileira, enfim, particulares, tem que ter, é da tradição
brasileira sempre foi tratada como instituição de direito público. Tinha de ser assim para poder
vincular a vida e organização partidária mais da República e ao interesse público. Então é um
defeito ali que traz consequências práticas, com autonomia exacerbada dos partidos políticos em
função disso. Poderia até ser corrigido por legislação ordinária, mas a classe política não deixa
corrigir, então esse defeito da Constituição existe e não teve conserto. Isso atrapalha muito a vida
e atividade política no Brasil. Os partidos políticos organizados com essa autonomia e aí ficou esse
quadro de dono de partido político que realmente é uma coisa lastimável na vida brasileira e aí
vem, enfim, a quantidade imensa de partidos políticos sem conexão com as divisões ideológicas e
políticas da sociedade né, são ajuntamento de interesses e aí não foi da Constituinte, mas foi criado
depois o fundo partidário, a legislação de colocar dinheiro público nos partidos, o que é um grande
avanço, uma grande vantagem, porque enfim tira o partido do vínculo econômico, das empresas,
enfim, tem essa vantagem, mas aí a ganância de abocanhar o fundo partidário e o fundo eleitoral
agora sem nenhum controle público, sem nada, tal a vontade dos partidos políticos, trouxe, enfim,
uma certa avacalhação da vida político-partidária do país muito ruim. Isso tem lá vínculo com a
Constituição que liberou a organização dos partidos, acho que é o artigo 16 né ou 17, que liberou
de maneira exacerbada em definir o partido político como sociedade civil.
163

ANEXO II: Entrevista concedida pelo Dr. Miro Teixeira, em 16/3/2022:

Marcelo D’Alencourt (MD): Boa tarde, Dr. Miro. Gostaria de, antes de iniciar, deixar claro que o
objeto da minha pesquisa é a participação institucionalizada na Constituição de 1988, e não a
participação popular que ocorreu intensamente na ANC e que, claro, foi importante.

Miro Teixeira (MT): Boa tarde. Sugiro o meu texto “A Constituinte no divã”. Não temos mais o
texto original de 88. Muita gente escrevendo sobre isso. Foi em 2017, eu quis fazer uma Emenda
à Constituição sobre o sistema tributário, mas antes de fazer, tinham mais de quinhentas propostas.
Hoje quando você abre a Constituição, você vê em azul na tela o que já foi alterado. A Emenda
Constitucional aqui no Brasil não diz respeito a um dispositivo, ela pode tratar de uma seção inteira,
como foi a Emenda 45, que mexeu com o Judiciário todo. Eu apresentei então uma proposta de
revisão, que seria uma constituinte restrita. Isso em 2017, pra evitar qualquer espécie de
malandragem, eu citei os artigos que deveriam ser denominados. Eu hoje amplio porque falo na
“Organização dos Poderes”. Os poderes estão funcionando mal. Não sei se entro já na sua temática.
Você tem o Poder Legislativo funcionando muito mal, com todas essas notícias de orçamento
secreto e outras coisas mais. As mudanças feitas em troca de dinheiro pra campanha eleitoral. Então
o parlamento não inspira a menor confiança. Você tem o Executivo ao qual eu me oponho nas
ideias. O Presidente da República, embora tenha sido colega dele em sete mandatos, mas nunca
tivemos entreveros, pelo contrário. O Poder Executivo é absolutamente distante da realidade. Eles
vivem lá no Plano Piloto, em Brasília, na Praça dos Três Poderes. Executivo, Legislativo e
Judiciário desconhecem o Brasil real. Fui hoje ao Centro da Cidade do Rio e voltei aqui pra ter essa
conversa com você. Você não reconhece mais o Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Lojas
fechadas, população de rua e, dependendo do horário, à tarde, começando a noite, você pega aquela
população se aglomerando debaixo das marquises. É tudo muito doloroso o que está se passando.
E você não tem a discussão serena de políticas capazes de melhorar as condições de vida da
população, de gerar empregos, criar mecanismos de economia. Quando eu estava no Ministério, eu
imaginei um sistema brasileiro de TV digital aberta. Não é fácil. Fibra ótica aberta e, se conseguia
uma não regressão, mas uma continuidade. Eu quis sair do Ministério uma certa hora e eles não
puderam parar o projeto. Universidades pelo Brasil participaram com recursos próprios e os
professores trabalhando com “ laptops”. Um esforço grande, conseguimos fazer isso, então enfim
164

é uma história enorme, mas tive a preocupação de colocar banda larga em áreas remotas do Brasil
e em escolas públicas. Ainda é pouco. É preciso ter em todas. E era tudo muito confiável, o projeto
existia com totens pra pessoa receber fundo de garantia, mas isso se interrompeu ainda no primeiro
Governo Dilma. A área de ciência e de tecnologia, de um modo geral, não tem uma grande atenção
do governo no Brasil e eu estou especialmente convencido de que a saída da crise mundial se dará
com o conhecimento.

MD: Como o Sr. viu na Constituinte o clima dessa futura participação que seria institucionalizada
em 1988 através de forças contrárias e favoráveis ao tema?

MT: Tem uma coisa muito interessante. Havia um projeto de notáveis, mas acontece que esse
projeto não foi usado. Foram usadas as sugestões constitucionais de constituintes e, claro, as
emendas e sugestões populares. Aliás, aí na “Constituinte no divã”, eu abro com uma sugestão
popular. Chegavam histórias interessantes. Mas você tem sugestão constitucional maravilhosa
como a de uma senhora que diz para que façamos leis porque as mulheres precisam parar de estar
obrigadas a deitar com homens que chegam em casa, põem o revólver embaixo do travesseiro e
praticamente as estupram. Você vê as discussões que isso acabou provocando e até os dias atuais.
Como isso é preocupante e se repete, essa violência contra a mulher. Faço parte do IAB e fazemos
muito debates, mais acadêmicos. Mas tivemos colaborações fantásticas da Igreja, dos empresários
e dos próprios constituintes. Eu não sei se você já ouviu, mas se organizou a separação de coisas.
Houve oito comissões temáticas. Cada comissão temática com três subcomissões e essas sugestões
eram mandadas onde examinavam, dando impulso ou não pra comissão permanente, pra comissão
centralizadora e dali iam pra comissão de sistematização para fazer um anteprojeto para depois ir
a plenário. Então a Constituição brasileira talvez seja uma das únicas que fez a ampla revisão única.
Aparece alguém dizendo que uma vez na Tanzânia já fizeram isso. Surge de sugestões populares e
surge da preocupação que havia com o que foi vivido na ditadura, estávamos recém saídos. Ainda
existia a União Soviética, o clima era outro. A Constituição de 1988 trouxe os direitos e garantias
individuais porque as violações eram enormes. Criamos o mecanismo da iniciativa popular, um
projeto de lei de origem popular. Então você tem a Lei da Ficha Limpa como uma lei popular. Por
exemplo, não são projetos de tramitação fácil. É preciso ver que lá tenhamos sempre que organizar
grupos com forte apoio a essas iniciativas porque normalmente são iniciativas que se chocam com
165

interesses de políticos mal intencionados. Então aquelas medidas contra a corrupção que eu até
apresentei alguma coisa. O Ministério Público não estava conseguindo. Eu apresentei dizendo:
“Olha, vocês conseguiram que o projeto de vocês tramite com preferência”. É um projeto de
iniciativa popular. E conseguimos essas participações, os Conselhos Tutelares. Isso daí dá muito
prazer o que conseguimos. O fortalecimento das instituições, como o Ministério Público e a
Defensoria Pública, e a necessidade de consultas populares, de licitações, de audiências públicas
necessárias para fazer algumas obras para defender o meio ambiente, então há realmente muita
coisa que dá prazer de você ver funcionar. A garantia das pessoas está na Constituição!

MD: Havia receio na questão de mais participação importando menos representação pelo
enfraquecimento do Legislativo depois da ditadura?

MT: Não. Pela minha memória, não. Houve um momento em que se tentou interromper o trabalho
da constituinte. Podemos falar isso daqui a pouco na “Constituinte no divã”, mas o que hoje é o
Centrão, considerou o projeto da comissão de sistematização um projeto de esquerda, tinha nada.
Imagina, o FHC na comissão de sistematização, atuando como relator da Comissão de
Sistematização. O relator geral Bernardo Cabral, o Presidente da Constituinte Dr. Ulysses
Guimarães. De modo que não se estava trabalhando ali sistematicamente um projeto de esquerda,
é uma coisa de má fé. Não era esse o medo. Era o medo da perda do próprio poder. Não é só do
poder político, mas do poder econômico. Bom, em junho de 1988, por aí, o deputado José Lourenço
pretendeu encerrar os trabalhos da ANC. O Dr. Ulysses Guimarães deu uma entrevista duríssima,
dizendo que “se tem a maioria absoluta, que apresentem um projeto, mas devo dizer que não
presido um manicômio, mas a ANC”. Estavam todos lá. Então houve vários momentos de tensão
pesada. Houve momento de muita tensão na discussão da reforma agrária, da antiga UDR. Nós
vivemos momentos desses, mas era muito compensado pela presença das pessoas lá na sede do
Congresso Nacional, no plenário da Câmara. Nas salas das comissões temáticas da Câmara dos
Deputados, funcionavam as comissões e subcomissões da ANC. Então foi uma circulação diária
medida de dez mil pessoas! O que te dava muito prazer. Gente descalça andando por ali. Você tinha
pessoas paupérrimas, você tinha barões da indústria, levando suas ideias. Você tinha padres,
pastores evangélicos, pais de santo. Você tinha o Brasil que era a Constituinte. Quando você olha
o Rio, o abade Emmanuel Sièyes, na Revolução Francesa, ele dizia como era necessário fazer a
166

chamada Constituição burguesa, como era necessário trazer a participação das pessoas. E daí surge
a expressão “baixo clero” porque o grande clero fazia parte do poder monárquico, mas o abade
Sièyes defende a participação de todos. Mas como faz isso? Faz isso com projeto em que a
assembleia constitua esse poder das pessoas na constituinte. Tivemos momentos de tensões e
tivemos o momento da promulgação, é uma coisa muito curiosa porque é uma alegria enorme em
que você virou uma página e passará a ter eleições diretas no Brasil e eu nunca votei e fui votar
pela primeira vez depois da constituinte. E olha que eu nasci em 1945! Então ia ter o voto direto
na eleição presidencial, direitos e garantias individuais, Ministério Público. Garantimos a
independência dos poderes. Era uma alegria, mas era diferente do que se passa alguns dias depois
porque é quando cai a ficha. Você fez a Constituição do seu país. Quando eu abro a Constituição,
vejo ali, tanto que eu repilo a expressão “ex-constituinte”. Constituinte de 88, não existe ex
Constituição! Devemos discutir com o povo brasileiro a votação de uma constituinte restrita, pode
chamar de revisão, poder revisor. Quando eu fiz a proposta de 2017, eu cometi um erro de manter
o quórum da constituinte de 1988 que era de maioria absoluta. Deveria ter deixado o sistema em
curso e não dar argumentos àqueles que se colocaram contra a atualização porque não tem proposta
séria que seja aprovada por dois votos. Ou a proposta é apoiada ou não é apoiada. E ainda mandava
ao povo o poder de um plebiscito determinar que aqueles eleitos teriam o poder constituinte.

MD: Como o Sr. vê os debates sobre participação direta, via plebiscitos, referendos e iniciativa
popular e também na participação indireta através dos conselhos, conferências nacionais e
orçamento participativo?

MT: Hoje existe um temor em se fazer plebiscito e referendo pela radicalização política no Brasil,
pela falta de racionalidade. Aqui não se debate quase mais, há troca de ofensas. Fico lamentando
isso. Então eu mesmo fico pensando será que temos condições hoje... Quando eu propus, o
presidente era o FHC, a quem eu fazia oposição, mas o FHC era extremamente civilizado. Fizemos
militância juntos pelo restabelecimento da democracia, tanto que quando ele ganhou a eleição, não
ficou aquela mágoa como ficou quando o Collor ganhou a eleição. Lutamos por eleição direta que
foi vencida por Fernando Collor de Mello que sempre foi da ARENA, foi da ditadura militar. Penso
que hoje há uma grande dificuldade desse debate se tornar factível. Mesmo os debates sobre
participação popular estão ameaçados. Você passou a ter uma política de armamento no Brasil.
167

Você passou a ter a existência de milícias que praticamente governam as áreas críticas. Então há
grande receio de se ampliar. A confiança que eu deposito no Ministério Público, na Defensoria
Pública e, de certa maneira, no Poder Judiciário. O Legislativo, o Executivo e o Judiciário, o
Ministério Público é um poder, tem muito poder, mas o MP tem maior rigor e acho que continua a
merecer a confiança mais próxima da totalidade.

MD: Podemos dizer que as esquerdas (progressistas) seriam pró-participação e as direitas


(conservadoras) contra, e quais foram os principais óbices para uma participação mais efetiva na
Constituição de 1988?

MT: Isso significa muito pouco. Essas ideologias tradicionais estão ultrapassadas. A Rússia é
comunista? Claro que não é. São sistemas bilionários. Você tem os democratas que são chamados
de comunistas. Isso é muito pra se localizar eleitoralmente e induzir a população pra uma situação
que não faz bem. Acho até que isso tem que ser examinado. Cada problema existente, buscar a
solução. Não é a esquerda que tem isso não. Você não tem o monopólio então da descoberta de
quem matou a Marielle. Isso é uma preocupação de todo brasileiro, sentimentos de quem é
democrata, de quem é religioso também, luta contra a violência. Então não é uma luta da esquerda
ou da direita, mas de todos. Trump fez muito isso e, eleitoralmente, pra se valer disso, dessa
aprovação de esquerda e de direita. Não sei se nós poderíamos hoje falar de esquerda e direita na
ANC porque você tinha a participação do Roberto Campos, por exemplo, que podia ser considerado
um liberal de direita, está bem, enfim, respeitado por todos ali. Dr. Ulysses era esquerda ou direita?
Dr. Ulysses apoiou o Golpe de 1964. O Mário Covas foi cassado, era o líder do PMDB que era
também presidido pelo Dr. Ulysses. Não havia isso de modo nenhum, não havia essa divisão, não
havia esses ódios. Bom, havia grupos que se autoproclamavam movimentos populares, você olhava
ali, eram oito deputados e um senador. Era uma parede que se criava com finalidades eleitorais. E
eu acho que, enquanto houver essa dicotomia esquerda-direita, eu acho que levarão vantagens os
mal-intencionados. Os bem-intencionados se entregam ao debate. Há um livro chamado
“Liberdade para as ideias que odiamos”, vamos ouvi-las, mas isso, tenho a impressão que é distante
e lamentavelmente também entre os jovens.
168

MD: Qual é o balanço que o Sr. faz entre a participação sonhada e a que chega a 2022? Como o
Sr. vê a participação ao longo desses trinta e três anos de Constituição de 1988?

MT: Eu acho que a Constituição de 88 é uma boa Constituição. Eu acho a de 1946 muito boa e
acho que a de 1988 ultrapassou a de 46 em qualidade. E é curioso porque não sei o resultado das
eleições, mas quando fomos tomar posse, nós fizemos uma pequena reunião e havia alguns amigos
antigos ali de lutas contra a ditadura que diziam: “Eu vou fazer o quê? Eu tenho que sentar na
calçada e chorar!” Nós éramos ultraminoria. O pensamento conservador era absolutamente
majoritário. Aí que você viu o que era uma constituinte.

MD: Mas mesmo assim vocês fizeram um bom trabalho.

MT: É a presença do povo! Aí é que está a questão da constituinte. Por que não se faz isso com
uma Emenda Constitucional? Ali era o povo nos corredores, era o povo nas galerias e em todos os
salões da Câmara dos Deputados e do Senado, telões instalados para que todos pudessem assistir o
que se passava e havia o Diário da Constituinte, que o Dr. Ulysses criou. O Dr. Ulysses disse:
“Olha, vamos fazer isso porque, se não, só vai sair o que os outros quiserem, todos os partidos terão
acesso, não haverá preferência de nenhum partido. O PMDB tem maioria absoluta na ANC, mas
não é por isso que terá a maioria absoluta no horário. Todos terão e o que for mais polêmico terá
preferência pra apresentação à população. Dez minutos por dia”. Essa foi a grande ideia do Dr.
Ulysses Guimarães porque a nação brasileira estava mal informada sobre o que estava se passando.
Então Brasília era uma ebulição de pessoas, entidades e instituições. Não havia escritório vazio em
Brasília. As federações das indústrias, as associações comunitárias, a Conferência Nacional dos
Bispos hiperlotada de párocos que saíam dos estados, sabe, da sede da CNBB. Era algo, havia
acampamentos na cidade, lonas de circo abertas com beliches nas áreas um pouco mais remotas
ainda dentro do Plano Piloto, mas para abrigar quem não tinha ou não era de uma dessas
instituições. É um processo que não se reedita, aí é que está, é algo que não se repetirá. O dia que
vier outra constituinte, já virá em condições tecnológicas diferentes, formação cultural saberá qual
é, mas isso era guerra fria, ou seja, aquele momento não se repetirá.
169

MD: O Sr. não receia que uma nova constituinte produza uma constituição mais conservadora pelo
momento atual?

MT: É por isso que eu lhe disse que eu hoje refluo da ideia, acho que hoje, ali naquela época, eu
não falei com o FHC, o presidente era o FHC e tem mais, ele apoiou, depois ele voltou atrás. Ele
até me chamou, ele me convidou para um café, eu era da oposição, veja você o que era o Governo
FHC. Ele me convidou pra um café no Palácio do Planalto e disse: “Miro, eu apoiei na televisão,
mas eu vou ter que recuar. Queria que você soubesse primeiro. Os senadores acham que a sua
proposta, sendo unicameral, vocês podem acabar com o Senado”. Eu disse: “Olha, Presidente, não
é isso não, mas o Sr. tem todo o direito de recuar. Se fosse isso, passaria a ser bicameral e ponto,
mas é um direito seu”. Mas, naquela época, não era essa discussão, eu era líder da oposição, eu
frequentava o Palácio do Governo. Um dia, teve um ano que eu fiz obstrução ao orçamento que era
já dia 27 de dezembro. O Presidente ligou para a liderança. Eu fui chamado no Plenário. Ele disse:
“Miro, você quer passar o fim de ano aqui?” Eu disse: “Olha, a família está até vindo...” Presidente:
“Mas qual é o problema que está havendo que você está fazendo essa obstrução?” Eu disse: “É o
salário mínimo!” Ele disse: “Aguarda dez minutos, por favor!” Aí chegou o líder do governo.
Chegou um pessoal do Ministério da Fazenda e, em cinco minutos, o líder do governo estava no
microfone dizendo que o governo apoiaria aquela emenda ao orçamento e que o salário mínimo
passava a ser de tanto. Eu não me lembro qual era a diferença, era um pouco mais, não era também
demais, não vou me vangloriar de nada, mas era, pra quem ganha um salário mínimo, era relevante.
Você considerar noventa reais, são três reais por dia, sabe, trem hoje é cinco reais, se você falar em
cinco reais por dia, você tá falando numa viagem de trem no Rio de Janeiro, é relevante, tá? Pão
vendido a quilo por cinco reais, você compra ali uns dois pães, é muito relevante pra quem precisa...

MD: Fique à vontade para falar livremente sobre o tema participação.

MT: Eu acho que a experiência pós-constituinte me leva a sentir falta de uma coisa: a reunião com
as direções partidárias, das bancadas com as direções partidárias. Eu tenho impressão que
poderíamos evoluir mais. Depois, a direção de cada partido poderia se entender com a direção do
outro partido. E nós ali no plenário, tínhamos que decidir em frações de segundos alguma coisa,
tudo bem, até aí, tudo bem, mas se você tiver um mote, uma bandeira sinalizando pra onde ir, você
170

decide com a precisão. Então acho que até hoje os partidos são muito precários, talvez até mais
precários do que naquela época. Acho não, tenho absoluta certeza. São muito precários, mas acho
que isso acabava dependendo, nós tínhamos um grande líder, o Mário Covas. O Mário Covas, uma
vez, foi pra tribuna e disse o seguinte. Começou dizendo o seguinte: “Não tive tempo de reunir a
bancada do meu partido, o PMDB, então primeiro me dirijo à bancada para manifestar meu ponto
de vista e pedir o apoio da bancada”. E falou uma parte do tempo se dirigindo à bancada e, em
seguida: “Sras. e Srs. constituintes, agora me dirijo a ambos”. Depois desse voto de confiança à
bancada, então, isso deveria ter acontecido numa reunião com a direção do partido, conversaria
com a direção de outros partidos etc., etc... Foi um papel que o Mário Covas improvisou ali no
plenário pela experiência que trazia, pelo brilhante orador que era e pelo grande brasileiro que ele
era, ele pensava no Brasil!

MD: Muito obrigado, Dr. Miro!

MT: Se puder fazer menção como grande referência ao Darcy Ribeiro na parte de educação. Tudo
que o Darcy falou e escreveu, tudo que o Brizola também falou e escreveu da participação, isso
tudo é referência pra nós.
171

ANEXO III - Entrevista concedida pelo Dr. Rubem Medina, em 28/4/22:

Marcelo D’Alencourt (MD): O objeto da minha pesquisa é a participação institucionalizada pela


Constituição de 1988. De qualquer maneira, gostaria que o Sr. falasse um pouco sobre o clima de
participação do povo nas Casas do Congresso Nacional durante a Assembleia Nacional
Constituinte. Foi importante?

Rubem Medina (RM): Por demais importante. A intenção inicial não foi essa, mas de se ter um
projeto elaborado por uma comissão chamada de "Comissão de Notáveis" e esse projeto seria
promulgado pelo Congresso Nacional. Se tivéssemos seguido por este caminho, certamente, o
Brasil teria recebido uma Constituição elaborada por uma elite econômica e intelectual sem
qualquer conexão com o desejo popular. Para que você tenha ideia da dificuldade de leitura da
vontade popular, a tal "Comissão de Notáveis", presidida pelo Afonso Arinos, viveu de conflito
em conflito até deixar de existir. Mas, sem dúvida, a contribuição do Afonso Arinos seria altamente
relevante, como foi. Por isso, eu conduzi o processo eleitoral de 86, no PFL do Estado do Rio de
Janeiro, para termos o Afonso no Senado. E conseguimos. O melhor processo de construção foi
com a presença assídua de todos os segmentos da sociedade brasileira. Os corredores, gabinetes e
galerias dos plenários e até mesmo os plenários, receberam gente de todos os lugares e de todos os
segmentos do Brasil. Por isso, foi possível se fazer a festa que fez Ulysses Guimarães na
promulgação da Constituição.

MD: Gostaria que o senhor falasse sobre as forças contrárias e favoráveis ao tema.

RM: Contrárias à participação popular não tivemos. O que se tinha era a descrença na possibilidade
de construção de uma Constituição no tempo em que ela foi elaborada e com a riqueza de detalhes.
No correr do processo, antecedido por uma campanha eleitoral, todos se convenceram que o
caminho correto seria com a participação popular. Nós, deputados federais e os senadores,
debatemos com o povo durante as campanhas e depois, novamente, com quem esteve no Congresso
Nacional.
172

MD: Havia receio na questão de mais participação importando menos representação pelo
enfraquecimento do Legislativo depois de 21 anos de ditadura?

RM: Em nenhum momento. Eu não percebi isso. Percebi que todos, no país todo, estavam
conscientes da necessidade de se ter um novo país com base numa constituição construída com a
participação de todos.

MD: Como o Sr. observou os debates sobre participação direta, via plebiscitos, referendos e
iniciativa popular?

RM: Apoiei e apoio até hoje. Uma questão, contudo, se levanta. Qual o modelo ideal de
democracia? Eu diria que aquela que conseguisse que o Estado só tomasse decisões deliberadas
por todos. Mas, isso é possível numa sociedade? No nosso caso, seria possível convocar a
população toda para deliberar sobre todas as questões de interesse comum? Haverá quem diga que
a tecnologia poderá nos levar a isso. Então, outra coisa não faria a população a não ser deliberar e
após um imenso debate que levaria uma eternidade. Por isso, há sim que existir a prerrogativa dos
plebiscitos, referendos e iniciativas populares, mas para situações excepcionais.

MD: De que maneira o senhor viu os debates sobre a participação indireta através dos conselhos e
conferências nacionais e do orçamento participativo?

RM: A participação indireta não inviabiliza nem é contrária à participação direta. O importante é
que a sociedade, quando escolha os que irão representá-la, tenha absoluta consciência do que espera
de seus representantes e tenha instrumentos para cobrar deles o compromisso que assumiram.
Nesse ponto, a nossa Constituição é rica. Temos ainda uma falha, que é ressaltada quando a gente
cuida dos orçamentos. O orçamento participativo é uma boa iniciativa, mas peca porque só atua
sobre um lado, as despesas. E aí, chega-se ao ponto de se querer gastar o que não se quer pagar.
Ninguém melhor que o pagador de impostos para dizer onde ele quer que o seu dinheiro seja
investido ou gasto, e ele pode fazer isso através de seus representantes.

MD: Quais os principais óbices/entraves relativos à participação na Constituinte?


173

RM: Não houve.

MD: Qual o balanço que o senhor faz entre a participação debatida na Constituinte, normatizada
na Constituição de 1988 e a que chega a 2022?

RM: Balanço positivo. Os instrumentos de participação estão à disposição de todos. Já tivemos


plebiscito para o sistema de governo, para a questão do uso de armas. Projetos de iniciativa popular
foram transformados em lei. Quando houve o assassinato brutal da Daniela Perez, a mãe dela
coletou assinaturas e propôs inserir na lei de crimes hediondos o homicídio qualificado. A proposta,
em 1994, tornou-se lei. A lei de combate a compra de votos. A Lei da Ficha Limpa. Enfim, a coisa
tem funcionado bem. Poderia estar melhor, se a sociedade conhecesse, em plenitude, todos os
instrumentos que a Constituição lhe dá de participação direta.

MD: Fique à vontade para falar livremente sobre o tema participação.

RM: É o tema que define a democracia. Muitos reduzem o conceito de democracia ao exercício do
voto e cometem um erro enorme, que permite que algumas ditaduras passem por democracia, só
porque o cidadão vota para escolher quem preside o país ou quem compõe os parlamentos. A
democracia é definida pela qualidade da participação. Quando o cidadão exerce o direito de votar
ele está diante de todas as informações essenciais? Os partidos que apresentam os candidatos para
a escolha do eleitor têm canais que permitam a participação democrática de seus filiados e liberdade
para que todos os que queiram se filiem? As minorias estarão representadas nos processos de
decisão? Portanto, para mim, o que define uma democracia é a qualidade da participação
representada no voto.

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