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Tradução
Ana Paula Doherty
Prefácio
Ricardo Alexandre Ferreira
Copyright © Editora Manole Ltda., por meio de contrato com a tradutora.
Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico de 1990, que entrou em vigor no Brasil.
ISBN 978-85-204-3942-5
[…]
Aí chegamos a outra questão relevante. O escravo criado por Stowe não era
uma exceção. Não se tratava de um louco, de um fanático ou de um indivíduo
alienado dos problemas da sociedade que o rodeava, nem mesmo de um ser
infantilizado, como já o tipificaram. Pelo contrário. Tomás encontrava-se em
perfeita sintonia com o mundo que deu sentido ao cativeiro de milhões de
homens e mulheres. Seu drama podia ser claramente lido e compreendido pelos
leitores, igualmente cristãos, que não tinham nenhum interesse em ser
identificados com senhores rudes, cruéis e imprevidentes. Naquele momento,
contar a história de um escravo rebelde, de um Spartacus brandindo a espada em
busca da liberdade, talvez não fosse a estratégia mais inteligente para alguém
que pretendia mudar, junto à opinião pública, uma verdade, até então,
incontestável: o bom senhor como garantia de um cativeiro decente, cristão.
Ensaiemos, em rápidas palavras, o raciocínio possível de uma boa parte do
público leitor imediato do folhetim de Stowe que, entre de junho de 1851 e
de abril de 1852, acompanhou o desenrolar da história dos escravos do
Kentucky – um dos últimos estados escravistas do Sul a integrar a Confederação
separatista, durante a Guerra Civil dos Estados Unidos da América – nas páginas
do jornal antiescravista1 moderado The National Era: ao ter a mim mesmo na
conta de um bom cristão, além de vigiar para que eu leve uma vida condizente
com a minha fé, devo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que outros
também conheçam a palavra de Deus revelada por Cristo. Isso implica em ter
escravos tão cristãos quanto quaisquer outras pessoas. E assim era feito. Tanto
em localidades escravistas povoadas por católicos quanto naquelas onde
predominavam os protestantes, havia um grande estímulo, e até mesmo a
obrigatoriedade, do ensino dos valores e crenças cristãos aos cativos. Isso, num
primeiro momento seria a garantia da conversão de infiéis, além de ser
igualmente muito útil para o controle da massa de escravos nas plantações de
algodão da América do Norte, nas de açúcar do Caribe ou nos cafezais do Brasil.
Mas, ainda assim, se a escravidão gera indivíduos cristãos sujeitos ao poder de
senhores descrentes e desumanos, continuar a permitir o cativeiro é, de alguma
maneira, condescender com o pecado praticado cotidianamente por esses
senhores infiéis.
Católicos e protestantes
Não há dúvida de que a Inglaterra e, por consequência, os Estados Unidos da
América assumiram a vanguarda do processo de construção do que ficou
conhecido como pensamento e também do ativismo antiescravista e, mais tarde,
abolicionista. Embora as razões para essa afirmação tenham sido analisadas a
partir de diversos prismas (econômico, social, político e cultural), é possível
afirmar que tal raciocínio contra a instituição do cativeiro de africanos chegou
mais cedo aos senhores de escravos adeptos das várias vertentes protestantes do
cristianismo, público mais imediato de A cabana do Pai Tomás, do que aos
batizados na Igreja Católica. Definitivamente, dentre os religiosos, não foram os
seguidores do Papa, de Roma, os primeiros a propor a abolição da escravidão de
africanos e descendentes nos domínios do Cristo.
No Brasil, por exemplo, maior domínio católico onde se praticou a
escravidão de africanos nas Américas, para onde foram conduzidos
aproximadamente quarenta por cento dos cerca de dez milhões de africanos
escravizados ao longo dos séculos xvi, xvii, xviii e xix (FLORENTINO, 1997), as
pregações de jesuítas como Antonio Vieira, Jorge Benci, André João Antonil
(pseudônimo de João Antonio Andreoni), do padre secular Manoel Ribeiro
Rocha, além das prescrições das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, nunca condenaram o cativeiro; pelo contrário, sempre se encarregaram de
cuidar para que o senhor não deixasse a sua condição o levar ao inferno.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, principal
texto canônico encarregado de regrar as atitudes dos cristãos na colônia,
ameaçavam com a danação eterna o senhor de escravos que, por qualquer
motivo, separasse os escravos legitimamente casados na Igreja.
Pois, de acordo com esse irrepreensível profeta […] Assim como Deus
deu seu único procriado Filho, que todos que nele acreditassem
poderiam ter Vida eterna, o Diabo dá sua procriada Criança, o comércio
de escravos e de almas dos homens, que todos os que nele acreditam e o
comercializam podem ter a Danação eterna. A escravidão, do ponto de
vista de Lay, não era apenas uma prática infernal, mas um pecado
imundo, o pecado capital, de fato, o maior pecado do mundo, da própria
natureza do inferno mesmo e é o ventre do inferno. Ela era Baal,
Sodoma e o Dragão negro todos enrolados em uma massa pútrida do
mal: A pior parte das velhas prostitutas comercializadas, a prostituta
das prostitutas imundas obscenas, os bastardos da Babilônia (DAVIS,
2001, p. 329).
Tido como radical mesmo entre os seus, Lay acabou por canalizar um
sentimento que, a partir de fins do século xviii, ecoou dos dois lados do
Atlântico, na forma de sociedades que militavam em nome do “antiescravismo
organizado”. Essas sociedades, em geral, de caráter abolicionista, associadas a
uma série de outros fatores que incluíam a própria ação dos escravos e de
diferentes atores da sociedade civil da época, inclusive de iluministas como
Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau que em seu O contrato social de 1762
chama a escravidão de uma convecção insensata, contribuíram com o desmonte,
no Ocidente, de uma instituição antiquíssima. “No curso de pouco menos de um
século, entre as décadas de 1770 e de 1880, foi desmantelada essa vasta extensão
transoceânica da escravidão criada depois de 1450.” Precisamente nos anos
finais da década de oitenta do século xix, a escravidão legal de africanos deixou
de existir em todo o Novo Mundo (DRESCHER, 2011, p. xiv).
A literatura, sobretudo o folhetim disseminado em primeira mão pelos
jornais que abraçavam a causa abolicionista, teve papel fundamental no
convencimento da opinião pública sobre os horrores que a escravidão tornava
possíveis, fazendo perderem-se tanto senhores quanto escravos. Não por acaso,
no caminho da fuga desesperada para salvar seu filho, o pequeno Harry, de um
futuro trágico, a escrava Elisa foi auxiliada exatamente por religiosos muito
austeros, membros de um grupo quacre. As causas que levaram ao fim da
escravidão, como já dissemos, foram múltiplas e desenrolaram-se em um
relativo curto espaço tempo. Sem dúvida, no entanto, A cabana do Pai Tomás
teve, nesse conjunto de fatores, um papel crucial ao falar de uma verdade
incômoda, por meio da língua que, talvez, não fosse tão bem compreendida pelo
mundo dos senhores, certamente mais propensos a proteger seus bens e sua
fortuna, mas perfeitamente interpretada por aqueles que, de maneira geral, se
sentiam cristãos e que, dentro e fora dos Estados Unidos da América, passaram a
se identificar com a indignada Senhora Shelby, com a corajosa, decidida mãe e
escrava Elisa, com as muito sagazes escravas Emmeline e Cassy, que por
desespero, ingenuidade e atrevimento, zombaram das crendices de senhores e
feitores sádicos e ignorantes e, por fim, com o martirizado escravo Tomás que,
sem nunca se rebelar contra o cativeiro, cumpriu toda a sua jornada debaixo de
uma rígida moralidade, munido de uma poderosa e inspiradora fé na liberdade,
que o colocava em posição infinitamente superior à do seu algoz.
De Tio a Pai: a parábola do bom senhor no Brasil
Um ano após a sua publicação em livro, nos Estados Unidos, Uncle Tom’s
Cabin foi traduzido para o português. Edições foram aos prelos em Lisboa e em
Paris, em 1853 e 1856, já com o título de A cabana do Pai Tomás. O livro “foi
também parcialmente publicado em capítulos por A Redempção, jornal
abolicionista de São Paulo. Os capítulos aparecem de 13 de outubro de 1887 até
o último número do jornal em maio de 1888” (AZEVEDO, 2003, p. 144).
Não era, contudo, prioritariamente, pela via do estabelecimento de uma
identidade moral com senhores cristãos que o drama dos escravos do Kentucky
conseguiria comover o público brasileiro do oitocentos. A escravidão, uma
instituição naturalizada mundo afora durante séculos, nunca foi abalada no
território luso do além-mar até o século xix. O cativeiro de africanos existia em
perfeita sintonia com a sociedade católica que aqui se montou. Em cidades como
o Rio de Janeiro, Salvador e Recife, os escravos africanos eram onipresentes.
Para além da típica plantation, à medida que a colonização atingiu o interior do
território, estabelecendo uma infinidade de pequenos núcleos urbanos e extensas
áreas rurais, levou consigo o cativeiro dos negros, suas lógicas e verdades. Uma
sociedade por princípio desigual, que deitava raízes na Europa Medieval,
constituiu a base do que viemos a ser e nela a escravidão e a desigualdade
atingiram um grau de normalidade imenso.
Alguns de nossos literatos abolicionistas, em lugar de investirem no
argumento da igualdade cristã (somos todos filhos de Deus), optaram por alertar
para o vício de portas adentro que representava o escravo. Esse foi o caso tanto
da criança escrava, representada na peça teatral O demônio familiar (1857) de
José de Alencar, quanto dos viciosos escravos Simeão, Pai Raiol e Lucinda,
protagonistas das três novelas reunidas em As vítimas algozes (1869), por
Joaquim Manoel de Macedo.
1 Ao longo deste texto, o leitor se deparará com duas expressões (antiescravismo e abolicionismo) para a
quais cabem algum esclarecimento e diferenciação, que, por afinidade e concordância, tomo por
empréstimo da historiadora Célia Maria Marinho Azevedo: “Por ‘abolicionismo’ entendo o modo de
pensamento cujo foco central é a crítica à escravidão, defendendo a necessidade de acabar com ela, fosse de
forma gradual ou imediata. Por ‘antiescravismo’, entendo uma postura mais generalizada de oposição à
escravidão que não necessariamente defende a abolição ou engaja-se na luta abolicionista”. (AZEVEDO,
2003, p. 34)
Bibliografia
Elisa fora criada por sua senhora, desde pequena, como uma favorita cheia
de vontades e com direito a mimos.
O viajante no Sul há de ter notado o ar peculiar de refinamento, a suavidade
da voz e dos modos, que, em muitos casos, parece sempre um dom particular das
mulheres quadraronas e mulatas. Esses dotes naturais nas quadraronas são
unidos à beleza estonteante e quase sempre a uma aparência pessoal atraente e
afável. Elisa, como a descrevemos, não é um tipo imaginário, mas tirado de
nossa memória como a vimos anos atrás em Kentucky. Segura sob o cuidado
protetor de sua senhora, Elisa alcançara a maturidade sem aquelas tentações que
tornam a beleza uma herança tão fatal para um escravo. Ela se casara com um
jovem mulato inteligente e talentoso, que era escravo na propriedade vizinha,
chamado George Harris.
Esse jovem fora alugado por seu amo para trabalhar em uma fábrica de
sacos, onde suas habilidades e inteligência o fizeram se destacar no local. Ele
tinha inventado uma máquina para limpar o cânhamo, a qual, levando-se em
consideração o nível de instrução e a situação do inventor, demonstrava tanta
genialidade mecânica quanto o descaroçador de algodão de Whitney.1
George era bem apessoado, tinhas boas maneiras e era o preferido na fábrica.
Todavia, posto que aos olhos da lei esse não era um homem, mas uma coisa,
todas essas qualidades superiores estavam sujeitas ao controle de um senhor
vulgar, ignorante e tirânico. Esse mesmo homem, tendo ouvido falar da fama da
invenção de George, foi até a fábrica para ver do que se tratava a tal engenhoca.
Fora recebido com grande entusiasmo pelo dono da fábrica, que o parabenizou
por possuir um escravo tão valioso.
O senhor visitou a fábrica e a máquina lhe foi mostrada por George que,
animado, falou de forma tão eloquente, posicionou-se tão orgulhoso e parecia tão
belo e másculo, que seu senhor começou a sentir uma desconfortável sensação
de inferioridade. Quem seu escravo pensava que era, andando para lá e para cá,
inventando máquinas e sobressaindo-se entre os cavalheiros? Ele logo poria fim
àquilo. Ele o levaria de volta, o colocaria para capinar e cavar, e “então veremos
se ele vai se achar tão esperto”. Assim, o dono da fábrica e todos os outros
trabalhadores ficaram chocados quando ele repentinamente exigiu os
pagamentos de George e anunciou sua intenção de levá-lo de volta para casa.
— Mas, Sr. Harris — protestou o dono da fábrica — isso não é repentino
demais?
— E se for? O homem não é meu?
— Senhor, estamos dispostos a aumentar o valor dos pagamentos.
— Sem acordo, senhor. Não preciso alugar nenhum dos meus escravos, a
não ser que eu queira.
— Mas, senhor, ele parece muito apto para esse trabalho.
— Pode até ser. Mas, ele nunca se mostrou muito apto para qualquer
trabalho que lhe confiei, posso lhe garantir.
— Mas então pense apenas na máquina que ele inventou! — advertiu um
dos trabalhadores, para mal dos pecados.
— Ah, claro! Uma máquina para poupar trabalho, não é? Ele inventaria isso,
com certeza; deixe um preto sozinho fazendo isso, a qualquer hora. Eles próprios
são todos máquinas de poupar trabalho, cada um deles. Não, ele vem comigo!
George permaneceu ali, transfigurado ao ouvir o pronunciamento de sua
sentença ser feito por uma força que sabia ser intransponível. Cruzou os braços,
cerrou os lábios com força, mas um vulcão de sentimentos amargos lhe
queimava dentro do peito e labaredas de fogo circulavam por suas veias. Ele
respirava ofegante, e seus grandes olhos escuros faiscavam como carvão aceso;
poderia ter dado início a uma perigosa ebulição se não fosse pelo toque do
bondoso dono da fábrica em seu braço, que disse baixinho:
— Não resista, George; vá com ele por enquanto. Tentaremos ajudá-lo
depois.
O tirano percebeu a conversa e tirou conclusões de seu conteúdo, apesar de
não conseguir ouvir o que foi dito; e, internamente, fortaleceu sua determinação
em manter o poder que possuía sobre a vítima.
George foi levado para casa e colocado no trabalho mais penoso da fazenda.
Fora capaz de reprimir cada palavra desrespeitosa, mas os olhos coléricos, as
feições sombrias e preocupadas, faziam parte de uma linguagem natural que não
podia ser reprimida — sinais indubitáveis que mostravam muito claramente que
o homem não poderia se tornar uma coisa.
Foi durante o feliz período de trabalho na fábrica que George conhecera
Elisa e se casara com ela. Durante aquele tempo, sendo o favorito e tendo a
confiança do patrão, ele tinha a liberdade de ir e vir quando quisesse. O
casamento foi aprovado pela Sra. Shelby que, com um pouco de complacência
feminina no jogo do amor, agradou-se por unir sua linda favorita com um de sua
própria classe que lhe parecia, de todas as maneiras, o par perfeito para ela.
Assim, casaram-se na grande sala de estar, e a própria senhora enfeitou o lindo
cabelo da noiva com flores de laranjeira e os cobriu com o véu que certamente
era digno de cabelos mais claros. E não houve falta de luvas brancas, bolo e
vinho, e de convidados admirados celebrando a beleza da noiva, a indulgência e
liberalidade de sua senhora. Durante um ou dois anos Elisa viu o marido
frequentemente e não houve nada que interrompesse a felicidade além da perda
de dois filhos pequenos, aos quais ela era muito apegada, e por quem se enlutou
de tal forma que foi necessária uma reprimenda gentil de sua senhora, que
buscava, com ansiedade maternal, direcionar seus sentimentos naturalmente
passionais para dentro das fronteiras da razão e da religião.
Após o nascimento do pequeno Harry, no entanto, Elisa aos poucos foi
ficando tranquila e acomodada, e com cada fibra de seu ser cada vez mais
interligada àquela pequena vida, parecia trazer–lhe felicidade e saúde. Elisa fora
uma mulher feliz até o dia em que seu marido foi violentamente tirado das mãos
de seu bondoso empregador e posto de volta sob o domínio das mãos de ferro de
seu proprietário legal.
O dono da fábrica, fiel às suas palavras, visitou o Sr. Harris uma ou duas
semanas depois de George ter sido levado embora, quando, assim esperava, o
calor da situação já tivesse passado, e tentou todo tipo de argumento possível no
sentido de persuadi-lo a recolocar George em sua antiga função.
— Não se dê mais ao trabalho de falar nesse assunto — disse o Sr. Harris
esquivando-se. — Sei o que estou fazendo, senhor.
— Não tenho a intenção de me intrometer em seus negócios, senhor. Apenas
acho que deveria pensar que é de seu interesse ceder seu homem a nós dentro
dos termos propostos.
— Ah, mas eu entendo muito bem. Vi o senhor piscando e cochichando no
dia em que o tirei da fábrica; mas não venha me dizer o que fazer. Este é um país
livre, senhor; o homem é meu e eu faço com ele o que bem entender. E tenho
dito!
E assim caiu por terra a última esperança de George: nada diante dele além
de uma vida de sofrimento e trabalho pesado, uma vida mais amarga a cada
pequena aflição lancinante e indignidade que a mente tirânica pudesse inventar.
Um jurista muito humano uma vez disse: “O pior uso que se pode fazer de
um homem é enforcá-lo”. Mas, não; há, sim, maneiras PIORES de se fazer uso de
um homem!
3
ESPOSO E PAI
A Sra. Shelby saíra para uma visita e Elisa estava em pé na varanda, bem
desanimada, olhando para a carruagem que saía, quando sentiu uma mão pousar
em seu ombro. Ela se virou, e um sorriso luminoso iluminou seus belos olhos.
— George, é você? Como me assustou! Veja só, que bom que veio! A
senhora saiu para passar a tarde fora, então venha para o meu quartinho e
teremos todo o tempo do mundo para nós.
Ao dizer isso, ela o puxou para dentro de um gracioso cómodo que dava para
a varanda, onde ela geralmente se sentava para costurar, ao alcance dos
chamados da senhora.
— Estou tão feliz! Por que não sorri? E olhe só para o Harry, como ele
cresceu. — O garoto, em pé, olhava timidamente para o pai através dos cachos
de cabelo, segurando firme nas saias do vestido de sua mãe. — Ele não é lindo?
— perguntou Elisa, levantando os longos cachos e o beijando.
— Oxalá ele nunca tivesse nascido! — disse George com amargura. —
Oxalá eu mesmo nunca tivesse nascido!
Surpresa e assustada, Elisa sentou-se, recostou a cabeça no ombro do esposo
e sucumbiu às lágrimas.
— Não faça assim, Elisa, sinto-me muito mal por deixá-la tão triste! — ele
disse carinhosamente. — É muito ruim. Ah, como eu gostaria que você nunca
tivesse me conhecido; talvez assim pudesse ser feliz!
— George! George! Como pode falar assim? O que de tão terrível aconteceu
ou acontecerá? Tenho certeza de que temos sido muito felizes até agora.
— É verdade, querida — respondeu George. Então, levantando seu filho até
o colo, olhou intensamente dentro daqueles gloriosos olhos escuros e passou a
mão pelos longos cachos.
— Como ele se parece com você, Elisa. E você é a mulher mais linda que eu
já vi, e tudo que sempre desejei conhecer; mas, ah, como eu gostaria que nunca
tivesse lhe conhecido; nem você a mim!
— Ah, George, como ousa!
— Sim, Elisa, é tudo sofrimento, sofrimento, sofrimento. Minha vida é tão
amarga quanto a losna; a própria vida está se esvaindo de mim. Sou um escravo
miserável e desprezado. Tudo o que conseguirei fazer é levá-la ao fundo do poço
comigo. Para que serve tentarmos fazer qualquer coisa, tentarmos conhecer
qualquer coisa, tentarmos ser qualquer coisa? Para que serve a vida? Eu queria
estar morto!
— Ah, meu querido George, isso é realmente assustador! Sei como se sente
por ter perdido seu posto na fábrica, e ter um senhor terrível, mas reze para ser
paciente e talvez algo…
— Paciente! — disse ele interrompendo-a. — E não tenho sido paciente? E
eu lá disse alguma palavra quando ele veio e me tirou, sem nenhum motivo, do
lugar onde todos eram bondosos comigo? Eu com certeza já lhe paguei cada
centavo de meus ganhos, e todos diziam que eu trabalhava bem.
— Bem, isso é mesmo terrível — disse Elisa. — Mas, no final das contas,
ele é o seu senhor, você sabe disso.
— Meu senhor! E quem fez dele o meu senhor? Sou tão homem quanto ele.
Sou um homem melhor do que ele. Sei mais sobre negócios do que ele; sou
melhor administrador do que ele; sei ler melhor do que ele; sei escrever melhor
do que ele, e aprendi tudo sozinho e não graças a ele. Aprendi tudo, apesar dele.
E agora, que direito ele tem de me tratar como um burro de carga? De me tirar
das coisas que eu posso fazer, e fazer melhor do que ele, e me colocar para fazer
um trabalho que qualquer cavalo consegue realizar? Ele tenta fazer isso; diz que
acabará comigo e me humilhará, e me coloca nos trabalhos mais pesados,
terríveis e sujos, de propósito!
— Ah, George! George! Você está me assustando! Nunca o ouvi falar assim;
estou com medo de que faça algo terrível. Não posso questionar seus
sentimentos, longe disso, mas, ah, por favor, tenha cuidado, muito, muito
cuidado, pelo meu bem e pelo de Harry!
— Tenho sido prudente e paciente, mas cada dia fica pior; a carne e o sangue
não aguentarão muito mais. Toda chance que tem de me insultar ou de me
atormentar, ele aproveita. Achei que pudesse fazer bem o meu trabalho, e ficar
quieto, e ter algum tempo para ler e estudar fora do horário de trabalho; mas
quanto mais ele vê que eu consigo fazer, mais carga de trabalho me dá. Ele diz
que, apesar de eu não dizer nada, consegue ver que estou possuído pelo demônio
e que o expurgará de mim. Mas deixe estar que qualquer dia desses o demônio
sairá de uma maneira que não lhe agradará nem um pouco. Ah, se não!
— Ah, querido! O que faremos? — perguntou Elisa pesarosamente.
— Ontem mesmo — disse George —, enquanto estava ocupado enchendo a
carroça de pedras, o sinhozinho Tom estava lá em pé, batendo o chicote tão perto
do cavalo que a criatura ficou assustada. Pedi a ele para parar, o mais
gentilmente que pude, mas ele continuou. Implorei novamente, e então ele se
virou para mim e começou a me chicotear. Segurei a mão dele, e então ele gritou
e chutou e correu até o pai e lhe disse que eu estava brigando com ele. O homem
veio furioso e disse que me ensinaria quem era meu senhor; e então me amarrou
em uma árvore, cortou as chibatas para o garoto e disse a ele que poderia me
açoitar até cansar. E ele realmente o fez! Ah, mas tenha certeza de que um dia o
farei se arrepender de ter feito isso! — e o semblante do rapaz ficou carregado e
aquilo fez a esposa tremer. — Quem fez desse homem o meu senhor? É isso que
quero saber! — ele perguntou.
— Bem, disse Elisa pesarosamente. — Sempre pensei que devesse obedecer
ao meu senhor e minha senhora, ou não seria cristã.
— Isso faz algum sentido no seu caso. Eles a criaram como uma filha, a
alimentaram, vestiram, mimaram e ensinaram, para que pudesse ter uma boa
educação, e essa é uma boa razão para serem seus senhores. Mas eu fui chutado,
algemado, xingado e, na melhor das hipóteses, abandonado. E o que eu lhes
devo? Já paguei pelos meus pecados mais de cem vezes. Não suportarei isso.
Não, não o farei! — ele afirmou, fechando os punhos com uma expressão feroz.
Elisa tremou e ficou em silêncio. Ela nunca vira o marido nesse estado antes;
e seu gentil sistema de ética parecia se curvar feito junco diante desses
rompantes.
— Sabe o pobre do Carlo, que você me deu — acrescentou George —, a
criatura tem sido meu único consolo. Ele dorme comigo à noite e me segue
durante o dia, e meio que cuidava de mim como se compreendesse como eu
estava me sentindo. Bem, outro dia eu o estava alimentado com algumas sobras
que tinha pegado à porta da cozinha, e o senhor veio atrás e me disse que eu o
estava alimentando às custas dele e que ele não iria pagar para que todo preto
mantivesse um cachorro; então me ordenou que amarrasse uma pedra no
pescoço do bicho e o jogasse no riacho.
— Ah, George, você não fez isso!
— Se fiz? Eu não, mas ele sim! O senhor Harris e Tom alvejaram a pobre
criatura com pedras enquanto ele se afogava. Pobrezinho! Ele olhava para mim
com tanta tristeza, como se perguntasse por que eu não o salvava. E ainda fui
açoitado por ser desobediente. Mas não me importo. Um dia o senhor entenderá
que não sou do tipo amansado na chibata. E se não tomarem cuidado, um dia
ainda me vingarei deles.
— O que irá fazer? Ah, George, por favor, não faça nada ruim! Se apenas
confiar em Deus e tentar fazer o bem, ele o salvará.
— Não sou um cristão como você, Elisa. Meu coração está cheio de ódio.
Não posso confiar em Deus. Por que ele deixa que as coisas sejam assim?
— Ah, George, devemos ter fé. A senhora diz que quando todas as coisas
dão errado para nós, devemos acreditar que Deus está fazendo o melhor.
— Isso é muito fácil de dizer para pessoas que estão sentadas em seus sofás
ou viajando em suas carruagens, mas, se estivessem na minha situação, acho que
ficaria um pouco mais difícil. Gostaria de poder ser bom, mas meu coração
queima e não pode ser acalmado de forma alguma. Você não conseguiria, se
estivesse em meu lugar… e não vai conseguir, se eu lhe disser tudo o que tenho a
dizer. Você não sabe da missa a metade.
— E o que pode vir agora?
— Bem, ultimamente o sinhô Harris tem dito que foi um tolo ao me deixar
casar fora da propriedade; que ele odeia o Sr. Shelby e toda sua corja por serem
orgulhosos e soberbos, e que meu orgulho vem de você, e diz que não me
deixará mais vir aqui e que deverei desposar e me acomodar na propriedade dele.
No início, ele só ameaçava e resmungava sobre essas coisas, mas ontem ele me
disse que eu deveria tomar Mina por minha esposa, e ir morar em uma cabana
com ela, do contrário me venderia a algum mercador, mais para baixo do rio.
— Mas você é casado comigo, por um pastor, como se fosse um homem
branco! — disse Elisa objetivamente.
— Você não sabe que um escravo não pode se casar? Não há lei neste país
para isso. Não posso tê-la como minha esposa se ele escolher nos separar. E é
por isso que gostaria de nunca tê-la conhecido, é só por isso que gostaria de
nunca ter nascido. Seria melhor para nós dois. Seria melhor para essa pobre
criança se ela nunca tivesse nascido. Tudo isso pode acontecer com ele também!
— Ah, mas meu senhor é tão bom!
— Sim, mas quem sabe? Ele pode morrer e então Harry poderá ser vendido
para sei lá quem. De que vale ele ser belo, inteligente e esperto? Escute o que lhe
digo, Elisa, essa é uma espada que lhe atravessará o peito por tudo de bom e
gentil que seu filho é ou tem; essas coisas o farão valioso demais para que
consiga mantê-lo!
As palavras caíram pesadas no coração de Elisa. A visão do mercador de
escravos apareceu diante dela e, como se alguém tivesse lhe atingido com um
golpe mortal, ela ficou pálida e perdeu o fôlego. Olhou nervosamente para fora
da varanda, para onde o garoto, cansado da conversa maçante, tinha se retirado,
e onde cavalgava, triunfante, a bengala do Sr. Shelby. Ela quis contar seus medos
ao marido, mas se conteve. “Não, não, ele já está sofrendo demais, o pobre
coitado!”, pensou ela. “Não, não lhe direi nada. Além do mais, isso não é
verdade; a sinhá nunca nos traiu.”
— Então agora, Elisa, minha querida — disse o esposo com tristeza —,
aguente firme. Adeus, pois estou de partida.
— De partida, George! Para onde?
— Para o Canadá — ele anunciou, ficando em pé. — E quando estiver lá, eu
a comprarei; é a única esperança que nos resta. Você tem um senhor bondoso,
que não se recusará a vendê-la. Comprarei você e o garoto, com a ajuda de Deus,
eu vou!
— Ai, que desespero! E se for pego?
— Não serei pego, Elisa. Morrerei antes! Ou fico livre ou morro!
— Não irá se matar!
— Não será necessário. Eles me matarão; nunca me deixarão chegar vivo até
o rio!
— Ah, George, pelo amor que tem por mim, tenha cuidado! Não faça nada
de ruim; não se machuque, nem a ninguém mais! Está muito tentado, tentado
demais, mas não faça nada. Deve ir, mas vá com cuidado, com prudência. Reze
para que Deus o ajude.
— Bem, Elisa, então ouça meu plano. O Sr. Harris achou por bem que eu
passasse por aqui, com um recado para o Sr. Symmes, que mora uns dois
quilômetros mais adiante. Acredito que ele esperava que eu viesse aqui lhe
contar minhas mazelas. Isso lhe agradaria, já que pensa que isso aborreceria os
“senhores Shelbys”, como ele os chama. Voltarei para casa resignado, como se
tudo tivesse acabado. Já tenho tudo preparado e algumas pessoas me ajudarão; e
daqui a uma ou duas semanas entrarei na contagem dos desaparecidos. Reze por
mim, Elisa, talvez o bom Deus te escutará.
— Ah, reze você mesmo, George, e confie n’Ele, assim não fará nada de
mal.
— Bem, adeus — disse George, segurando as mãos de Elisa e fitando-a
profundamente nos olhos, sem se mexer. Ficaram em silêncio, e em seguida
vieram as últimas palavras, os soluços e o choro sentido, uma despedida como a
daqueles cuja esperança de reencontro é tão intrincada como uma teia de aranha.
E marido e mulher se separaram.
4
UMA NOITE NA CABANA DO PAI
TOMÁS
Apesar de a Sra. Shelby ter prometido que o jantar logo seria servido, o
mesmo ainda não fora posto à mesa, e, como já vimos anteriormente, vários
imprevistos tiveram que ser superados até que a promessa fosse cumprida. Dessa
forma, apesar de a ordem ter sido dada na frente de Haley e repassada à Mãe
Cloé por pelo menos meia dúzia de jovens mensageiros, a dignitária apenas deu
algumas bufadas grosseiras, mexeu a cabeça e continuou com suas atividades
com uma lerdeza e descaso fora do comum.
Por alguma razão particular, entre os escravos, parecia reinar a impressão de
que a senhora não estava particularmente zangada pelo atraso, e foi
impressionante toda a sorte de incidentes ocorridos ao mesmo tempo, e que
retardaram o andar das coisas. Um ajudante azarado fingiu derrubar o molho, o
qual então teve que ser feito novamente; com todo cuidado e formalidade, Mãe
Cloé olhava e mexia de um lado para o outro com precisão, dizendo sem
pestanejar a todos os que reclamavam do atraso, que ela não serviria molho mal
feito à mesa só para ajudar alguém a prender os outros. Um tropeçou com a água
e teve que voltar até a fonte para pegar mais; e, nesse meio tempo, alguém
derrubou a manteiga. E, de tempos em tempos chegavam notícias à cozinha,
entre gargalhadas, de que “O Sr. Haley estava muito agitado e que não conseguia
ficar parado na cadeira de jeito maneira, então fica andando e olhando pela
janela e pela varanda”.
— Bem feito pra ele! — disse a Mãe Cloé com indignação. — Qualquer dia
desses ele vai ficar ainda pior, se não se emendar. O senhor dele vai mandar
chamar ele um dia, aí quero ver como ele vai ficar!
— Ele vai pra o inferno, não tenho dúvida — disse o pequeno Jake.
— Ele merece! — retrucou a Mãe Cloé sombriamente. — Ele já partiu
tantos, tantos corações, vou contar pra vocês! — disse levando um garfo nas
mãos. — É como aquelas coisa que o sinhozinho George lê nos Livro das
Revelações — as alma chamando debaixo do altar e um a um o Senhor vai ouvir
eles e a vingança do Senhor vai cair sobre eles! Com certeza!
Mãe Cloé, sempre muito discreta na cozinha, foi ouvida por todos,
boquiabertos, e, com o jantar agora já servido, toda a cozinha estava livre para
conversar e ouvir os comentários dela.
— Vai arder no fogo do inferno pra sempre, com certeza, não vai? —
perguntou Andy.
— Ficaria feliz em ver isso, de verdade — disse o pequeno Jake.
— Meus filho! — disse uma voz que os fez sobressaltarem. Era o Pai
Tomás, que tinha entrado e ficara ouvindo a conversa da porta.
— Meus filho! — ele repetiu. — Receio que não saibam o que estão
dizendo. Pra sempre é algo terrível de dizer, meus filho. É horrível pensar assim.
Não devem desejar isso para nenhuma criatura humana!
— Não desejamos para ninguém além dos mercador de escravos — disse
Andy. — Ninguém pode não desejar isso pra eles; são muito malvado!
— Mas a própria natureza não clama por eles? — questiona a Mãe Cloé. —
Eles não tiram o bebê do peito da mãe e vende, e as criancinha quando estão
chorando e agarrada às roupa da mãe, eles não vêm e vende elas? Eles não
separam as mulher dos marido? — disse Mãe Cloé começando a chorar. — Por
que simplesmente tira a vida deles? E enquanto isso eles goza a vida. Eles bebe e
fuma e se diverte! Bom Deus, se o diabo não carregar eles, qual sua serventia?
— E a Mãe Cloé cobriu o rosto com seu avental xadrez e começou a soluçar
convulsivamente.
— Reze pra aqueles que o perseguem, diz o Santo Livro — Pai Tomás falou.
— Rezar por eles? — bradou a Mãe Cloé. — Meu Deus, é difícil demais!
Não posso rezar por eles.
— É natural, Cloé, e a natureza é forte — concordou Tomás. — Mas a graça
do Senhor é mais forte; além disso, pense no estado de alma medonho que é o da
pobre criatura fazendo todas as coisa que faz; deve agradecer a Deus por não ser
que nem ele, Cloé. Tenho certeza de que prefiro ser vendido dez mil vezes a ter
que prestar contas por tudo o que aquela criatura prestará.
— Eu também, muito — disse Jake. — Deus me livre, não é, Andy?
Andy balançou os ombros e deu um assovio aquiescente.
— Fico feliz pelo senhor não ter saído esta manhã, como planejava —
afirmou Tomás. — Isso teria me magoado mais do que ter me vendido, de
verdade. Talvez fosse natural para ele, mas teria sido muito difícil para mim, já
que conheço ele desde que era um bebê. Mas conheço o meu senhor muito bem,
e já estou começando a me resignar à vontade de Deus. O senhor não teve
alternativa; ele agiu certo, mas tenho medo de que as coisas não corram tão bem
durante a minha ausência. Não se pode esperar que o senhor fique de um lado
para o outro cuidando de tudo como eu faço. Os garoto tem boa intenção, mas
são muito desregrado. É isso o que me preocupa.
A sineta tocou e Tomás foi chamado até a sala.
— Tomás — disse o amo com gentileza —, quero que saiba que dei a este
cavalheiro títulos no valor de mil dólares para serem sacados se você não estiver
no lugar marcado; hoje ele irá cuidar de outros negócios e você terá o dia livre.
Vá aonde bem entender, homem.
— Obrigado, senhor — agradeceu Tom.
— E tome cuidado! — avisou o mercador de escravos. — Não me venha
com algum desses truques típicos de pretos; ou eu vou tirar cada centavo dele, se
você não estiver lá. Se ele escutasse o que eu digo, não dava confiança pra
nenhum de vocês, suas cobras escorregadias.
— Senhor — falou Tomás ficando bem ereto —, eu tinha apenas oito anos
de idade quando a velha senhora colocou ele em meus braços, e o senhor não
tinha nem um ano. “Aqui está”, ela disse, “Tomás, este aqui será o seu
sinhozinho; tome conta dele”, ela falou. E agora eu só quero perguntar pro
senhor: senhor, algum dia eu não cumpri minha palavra com o senhor, ou o
contrariei, especialmente desde que me tornei um cristão?
O Sr. Shelby estava levemente emocionado, e as lágrimas lhe encheram os
olhos.
— Meu bom homem — ele falou —, Deus sabe que está dizendo a verdade
e, se eu pudesse, não o venderia a ninguém neste mundo.
— E juro pela minha alma cristã — enfatizou a Sra. Shelby — que será
resgatado assim que, de alguma forma, eu arrumar o dinheiro. Senhor — ela se
dirigiu a Haley —, faça a gentileza de manter o registro de a quem o vender e me
avise.
— Sim, mas é claro — concordou o mercador de escravos. — Posso trazer
ele de volta daqui um ano se quiser, não há razão para se preocupar.
— Eu o comprarei, então, e pagarei a diferença — afirmou a Sra. Shelby.
— É claro — concordou o mercador de escravos. — Pra mim dá no mesmo.
Tanto faz comprar ou vender, desde que eu faça um bom negócio. Tudo o que
quero é viver, sabe como é, madame; penso eu que isso é o que todo mundo
quer.
O Sr. e a Sra. Shelby se sentiram incomodados e humilhados pela intimidade
atrevida do mercador de escravos, contudo ambos viam a absoluta necessidade
de não demonstrarem seus sentimentos. Quanto mais absurdamente sórdido e
insensível ele parecia, maior se tornava o pavor da Sra. Shelby ao pensar que ele
poderia conseguir capturar Elisa e o filho, e, obviamente, maior era a razão para
que o detivesse com todos os artifícios femininos possíveis. Assim, ela sorriu
graciosamente, assentiu, conversou de maneira amigável, e fez tudo o que podia
para fazer o tempo passar de modo imperceptível.
Às duas horas Sam e Andy trouxeram os cavalos até os postes,
aparentemente bem descansados e revigorados da corrida daquela manhã.
Sam estava lá, refeito e satisfeito depois de ter jantado, com uma abundância
de zelo e presteza oficiosa. Quando Haley se aproximou, ele estava se
vangloriando, todo garboso, a Andy sobre o sucesso evidente e eminente da
operação, agora que ele estava a ponto de “tomar conta de tudo”.
— Creio eu que seu senhor não tenha cachorros — disse Haley
pensativamente enquanto se preparava para montar.
— Tem um monte! — afirmou Sam triunfante. — Esse é o Bruno; ele é uma
fera! E, além disso, não existe um preto que não tenha um cachorro em casa.
— Mas será possível? — retrucou Haley, que disse algo mais também, com
relação aos cachorros, ao que Sam resmungou:
— Não tem precisão de xingar eles, de jeito maneira.
— Mas seu senhor não tem cachorros para caçar pretos! Sei muito bem que
ele não tem.
Sam sabia exatamente o que ele queria dizer, mas manteve uma cara de
humildade e simplicidade desesperada.
— Nossos cachorros farejam muito bem. Acho que eles seriam cachorro
desse tipo, mas nunca foram treinado. Mas eles corre muito atrás de qualquer
coisa, é só começar. Aqui, Bruno — ele chamou, assoviando para o pesado Terra
Nova, que veio correndo atrás deles desajeitadamente.
— Vá pro inferno! — disse Haley se levantando. — Vamos, monte no
cavalo!
Sam obedeceu e montou no cavalo e, enquanto montava, conseguiu
habilidosamente fazer cócegas em Andy, que caiu na gargalhada, para grande
indignação de Haley, que o cortou com golpe de seu chicote.
— Estou surpreso com você, Andy — Sam falou com uma terrível voz
grave. — Isso é negócio sério, Andy. Não pode ficar de brincadeira. Isso não é
jeito de ajudar o senhor.
— Vamos pegar o caminho que vai dar direto no rio — disse Haley
confiante, depois que chegaram às divisas da propriedade. — Conheço como
eles faz; aposto que pegaram o caminho pra ferrovia subterrânea.1
— Com certeza — concordou Sam. — A ideia é essa. O senhor Haley
acertou bem na mosca. Mas, tem dois caminho pro rio, a estrada velha e a
estrada nova. Qual das duas o senhor quer pegar?
Andy olhou inocentemente para Sam, surpreso por ouvir sobre esse novo
fato geográfico, mas instantaneamente confirmou o que ele dissera com uma
veemente reiteração.
— Porque — disse Sam — estou quase achando que Lizzy ia seguir pela
estrada velha, que é bem menos movimentada.
Haley, apesar de ser uma velha raposa e naturalmente propenso a desconfiar
de chacotas, achou muito legítimo o ponto de vista do escravo.
— Se vocês não fosse uns mentirosos dos infernos! — ele disse
contemplativamente enquanto ponderava os fatos por um momento.
O tom pensativo e reflexivo com que falavam sobre o assunto pareceu
encantar Andy profundamente, e ele ficou um pouco atrás, e ria tanto que quase
caiu do cavalo, enquanto o rosto de Sam assumia uma expressão imóvel da mais
profunda seriedade.
— Mas é claro — continuou Sam —, que o senhor pode fazer como bem
entender; vai pelo caminho direto, se o senhor acha melhor, pra nós tanto faz.
Pensando bem, acho que o caminho direto é mesmo o melhor, sem dúvida.
— Ela naturalmente ia preferir viajar sozinha — disse Haley pensando alto,
sem se importar com a observação de Sam.
— Não dá pra saber — disse Sam. — As mulher é caprichosa, nunca faz o
que nós acha que elas vai fazer; geralmente, elas faz o contrário. As mulher
sempre faz o contrário; e quando nós pensa que elas vai por um caminho, é
melhor ir pelo outro, e então com certeza nós encontra elas. Minha opinião é que
Lizzy pegou a estrada velha, então acho que nós deve ir pela estrada nova, a que
vai reto.
Essa visão genérica profunda do sexo feminino não pareceu fazer Haley se
dispor a tomar a estrada nova; e ele anunciou confiantemente que iria pela outra
estrada, e perguntou a Sam quanto tempo demorariam para chegar.
— Só um pouco mais pra frente — explicou Sam, dando uma piscadela para
Andy, e então acrescentou seriamente —, mas, pensando no assunto, acho
melhor nós ir pro outro lado. Nunca passei por esse caminho antes. É muito
ermo e nós pode se perder, ou sabe Deus o que nós pode encontrar.
— Não importa — disse Haley. — Vamos por esse caminho!
— Agora que estou pensando, acho que ouvi dizer que esse caminho estava
todo coberto pelo riacho, não é mesmo, Andy?
Andy não tinha certeza; ele apenas tinha “ouvido falar” a respeito, mas
nunca tinha passado por lá. Em resumo, ele não sabia de nada.
Haley, acostumado a equilibrar as probabilidades entre as mentiras de maior
ou menor magnitude, achou que o impasse era a favor da estrada velha antes
mencionada. A menção do que ele, a princípio, pensou ter sido involuntário da
parte de Sam, e suas tentativas confusas de dissuadi-lo a mudar de ideia,
mentindo desesperadamente ao pensar duas vezes, tinham o objetivo de ajudar
Elisa.
Assim, quando Sam indicou o caminho, Haley tomou-o prontamente,
seguido por Sam e Andy.
O caminho, de fato, era velho, uma antiga passagem para o rio, mas
abandonado há muitos anos depois da construção do novo pedágio. Era aberto
durante aproximadamente uma hora de viagem, e depois disso, cortado por
várias fazendas e cercas. Sam sabia disso perfeitamente, é claro, e a estrada
estivera fechada há tanto tempo que Andy nunca ouvira falar dela. Assim, ele
cavalgou junto com eles com um ar de humilde submissão, apenas resmungando
e vociferando ocasionalmente, que aquilo era “muito duro e ruim para os cascos
de Jerry”.
— Vou avisando — disse Haley. — Conheço vocês e não vão me fazer dar
meia volta e pegar a outra estrada com toda essa reclamação; então bico calado!
— O senhor faz como bem entender! — disse Sam, com submissão
deplorável, ao mesmo tempo piscando às escondidas para Andy, cujo prazer
agora estava a ponto de explodir.
Sam estava de bom humor, fingindo estar vigilante, às vezes dizendo ter
visto “o chapéu de uma mulher” no topo de algum lugar distante, ou chamando
Andy para perguntar “se aquela não era Lizzy, lá embaixo”, sempre fazendo
esses comentários em alguma parte pedregosa e inóspita da estrada, onde o
aumento súbito do passo era uma inconveniência especial para todas as partes
envolvidas, e, assim, mantendo Haley em um estado de agitação permanente.
Depois de cavalgar quase uma hora por esse caminho, o grupo fez uma
descida impetuosa e tumultuada até um curral pertencente a uma grande
propriedade. Não se via viva alma no lugar, todas as pessoas trabalhavam no
campo; no entanto, como o curral ficava nítido e claramente no meio da estrada,
era evidente que a jornada naquela direção tinha alcançado o seu destino final.
— O que eu disse pro senhor? — perguntou Sam, com um magoado ar de
inocência. — Como acha que um forasteiro pode saber mais sobre um lugar do
que os nativo que nasceu e cresceu aqui?
— Seus patifes! — gritou Haley. — Vocês sabiam disso tudo!
— E eu não disse que sabia e o senhor não acreditou em mim? Eu disse pro
senhor que estava tudo coberto e cercado, e achei que não conseguiríamos
passar. Andy me ouviu.
Era tudo inquestionavelmente verdadeiro para ser discutido, e o pobre
homem teve de engolir a raiva, disfarçando o máximo que podia, e os três deram
meia volta e continuaram a marcha até a estrada principal.
Como consequência desses vários atrasos, três quartos de hora tinham se
passado desde que Elisa colocara o filho para dormir na estalagem do vilarejo
quando o grupo entrou a cavalo no mesmo local. Elisa estava em pé na janela,
olhando para outra direção, quando o olho rápido de Sam a viu de relance. Haley
e Andy estavam alguns metros atrás. Diante da crise, Sam fingiu deixar seu
chapéu voar da cabeça, e soltou um grito alto e característico, que chamou a
atenção da fugitiva. Ela recuou de pronto; o grupo passou pela janela e deu a
volta até a porta da frente.
Para Elisa, mil vidas pareceram se concentrar naquele momento. O quarto
dela tinha uma porta lateral que dava para o rio. Ela pegou o filho, e desceu
correndo os degraus em direção à porta. O mercador de escravos avistou-a assim
que ela estava prestes a desaparecer na ribanceira do rio e, atirando-se do cavalo,
e gritando por Sam e Andy, foi atrás dela como um cão de caça atrás de um
cervo. Naquele momento de aflição, os pés dela mal pareciam tocar o chão, e
alcançou a beira da água em um minuto. Eles vinham bem no encalço dela, e,
tomada pela força que Deus concede apenas aos desesperados, com um grito
selvagem, deu um enorme salto, impossível exceto em uma situação insana e
desesperadora; e Haley, Sam e Andy gritaram instintivamente, e ergueram as
mãos enquanto ela saltava.
O enorme fragmento de gelo verde sobre o qual ela caíra virou e se quebrou
sob o peso dela, mas Elisa não ficou ali nem por um momento. Aos gritos e com
desesperada energia ela pulou até outro bloco de gelo, e então outro, tropeçando,
saltando, escorregando e ficando em pé novamente! Os sapatos se foram, as
meias se perderam dos pés, e o sangue marcava cada passo. Porém, ela nada via,
nada sentia, até que, vagamente, como um sonho, vislumbrou a margem de Ohio,
e um homem ajudando-a a subir a ribanceira.
— É uma garota corajosa, seja lá quem for! — exclamou o homem com um
cumprimento.
Elisa reconheceu a voz e o rosto do homem que era dono de uma fazenda
não muito distante da antiga casa dela.
— Ah, Sr. Symmes! Salve-me, por favor, salve-me, esconda-me —
implorava Elisa.
— Mas o que é isso? — perguntou o homem. — E você não é a criada dos
Shelby?
— Meu filho! Este garoto! Ele o vendeu. Lá está o dono dele agora — ela
disse apontando para a margem do Kentucky. — Ah, Sr. Symmes, o senhor
também tem um filho!
— É. Eu tenho mesmo — concordou o homem enquanto a puxava com força
e gentileza ribanceira acima. — Além disso, você tem coragem, e eu gosto disso.
Ao alcançarem o topo da ribanceira, o homem fez uma pausa.
— Ficarei feliz em fazer alguma coisa por você — ele disse. — Mas, não há
para onde possa levá-la. O melhor que posso fazer é dizer pra você ir pra lá —
ele falou apontando para uma enorme casa branca solitária, no final da rua
principal do vilarejo. — Vá até lá. Eles são pessoas bondosas. Se estiver em
perigo, eles vão ajudar. Eles fazem todo tipo de coisa.
— Deus o abençoe! — Elisa disse com fervor.
— Não tem precisão de agradecer, não mesmo — disse o homem. O que eu
fiz não é nada.
— Ah, e tenho certeza de que o senhor não contará a ninguém!
— Vá depressa, garota! Quem acha que sou? Claro que não contarei —
afirmou o homem. — Agora vá, vá como a garota ajuizada e boa que é. Você
merece sua liberdade e haverá de tê-la, no que depender de mim.
A mulher pegou a criança no colo e se afastou com passos suaves e firmes. O
homem ficou para trás, observando-a.
— Shelby talvez não ache que eu seja o melhor vizinho do mundo, mas o
que posso fazer? Se ele pegar uma das minhas escravas na mesma situação,
poderá me pagar na mesma moeda. Por alguma razão, nunca poderia desamparar
uma criatura sendo perseguida, sem fôlego e lutando para sobreviver, com
cachorros atrás dela. De mais a mais, não vejo motivo para ser um caçador e
ficar atrás dos escravos dos outros.
E assim falou esse pobre homem pagão do Kentucky, que nunca fora
instruído sobre as relações constitucionais e, consequentemente, fora obrigado a
agir de maneira cristianizada, que, tivesse ele estado mais bem situado e mais
bem informado, não o teria feito.
Haley permaceu como um espectador atordoado diante da cena, até que Elisa
desapareceu na ribanceira, quando ele virou-se com um olhar indiferente e
inquisidor para Sam e Andy.
— Aquele salto foi muito bom — disse Sam.
— Aquela garota tem o diabo no corpo! — exclamou Haley. — Saltava
como um gato selvagem!
— Bem — disse Sam coçando a cabeça —, espero que o senhor nos perdoe
por nós não ter ido atrás dela. Não estou preparado pra saltar assim, ah, não
mesmo! — E Sam deu uma risada rouca.
— Você ri! — disse o mercador de escravos com um grunhido.
— Deus o abençoe, senhor, mas não me aguentei — disse Sam, dando
espaço para o prazer até então guardado em sua alma. — Ela estava engraçada
pulando e caindo, o gelo quebrando. E ouvir o “pum”, “poft”, “splash”. E
levantando de novo! Meu Deus, e não é que conseguiu? — E Sam e Andy riram
até as lágrimas rolarem por seus rostos.
— Vou tirar esse sorrisinho das boca de vocês! — ameaçou o mercador de
escravos mirando o chicote por cima de suas cabeças.
Ambos se abaixaram, correram gritando até a ribanceira, e montaram nos
cavalos antes que Haley pudesse cumprir a promessa.
— Boa noite, senhor! — disse Sam com toda seriedade. — Acho que a sinhá
deve estar preocupada com o Jerry. O Sr. Haley não vai mais precisar de nós. A
sinhá não ia gostar que as criatura passasse a noite procurando Lizzy. — E com
uma cutucada brincalhona nas costelas de Andy, ele foi na frente, seguido pelo
último, a toda velocidade, o som das risadas de ambos levados vagamente pelo
vento.
8
A FUGA DE ELISA
Elisa fez sua fuga desesperada pelo rio ao cair do crepúsculo. A bruma cinza
da noite pairando lentamente sobre o rio a envolveu quando ela desapareceu na
ribanceira; a forte correnteza e as placas de gelo flutuantes se apresentaram
como uma barreira intransponível entre a fugitiva e o seu perseguidor. Haley,
dessa forma, voltou vagarosa e descontentemente para a pequena estalagem a
fim de pensar quais seriam os próximos passos. A mulher abriu a porta de uma
salinha coberta com um tapete puído, onde havia uma mesa com um oleado
preto e brilhante, variadas cadeiras de madeiras de espaldar alto, e algumas
imagens de gesso em cores resplandecentes sobre a prateleira acima de uma
lareira onde ardia um fogo fraco; um banco de madeira comprido estendia-se
desajeitadamente ao lado da chaminé, e ali Haley sentou-se para meditar sobre a
instabilidade das esperanças humanas e a felicidade em geral.
— Por que fui ter a ideia de comprar aquele garoto? — ele disse para si
mesmo. — Por isso estou aqui, nessa situação lamentável, como um preto — e
Haley aliviava-se repetindo para si mesmo uma litania de maledicências não
muito seletas, as quais, apesar de termos os melhores motivos para considerá-las
verdadeiras, iremos, por um questão de bom gosto, omitir.
Ele foi tirado de seu estado meditativo pela voz alta e dissonante de um
homem que aparentemente estava apeando do cavalo, à porta. Correu até a
janela.
— Pelos céus! Se isso não for o que as pessoas chamam de providência
divina, não sei o que é! — disse Haley. — Acho que é Tom Loker.
Haley saiu correndo. Ao lado do bar, no canto da sala, encontrava-se um
homem troncudo e musculoso, um metro e oitenta de altura, e de proporção
larga. Vestia um casaco de pele de búfalo costurado com o pelo para fora, o que
lhe dava uma aparência desgrenhada e assustadora, combinando perfeitamente
com sua fisionomia. Na cabeça e no rosto cada traço e cada linha de expressão
de brutalidade e violência resoluta davam sinais de estar prestes a se manifestar.
De fato, se nossos leitores pudessem vislumbrar um buldogue em estado
humano, de casaco e chapéu, teriam uma ideia exata do estilo e do efeito geral
de sua psique. Vinha acompanhado de um viajante que, em muitos aspectos, era
o oposto dele. O homem era baixo e esguio, flexível e astuto como um gatuno, e
tinha um ar observador e curioso em seus olhos negros e penetrantes, que, em
conjunto com todos os outros traços de seu rosto, pareciam evidenciar certa
simpatia; seu nariz comprido e fino alongava-se como se quisesse se meter na
natureza das coisas em geral; seu cabelo negro, liso e ralo estava grudado na
testa, e todos seus movimentos e gestos indicavam uma acuidade seca e
cautelosa. O homenzarrão serviu-se de um grande copo de aguardente pura, e
tomou-o sem dizer palavra. O homenzinho, em alerta, colocando a cabeça
primeiro de um lado, depois do outro, e fungando consideravelmente na direção
das várias garrafas de bebidas, finalmente, com uma voz fina e trêmula e com ar
de grande circunspecção, pediu um julepo de menta. Depois de servido, ele
pegou o copo e olhou-o com ar astuto e complacente, como um homem que
pensa ter feito a coisa certa e, resoluto, sorveu a bebida com goles curtos e bem
pensados.
— Ora, ora, quem diria que a boa sorte o traria até mim? Como vai, Loker?
— disse Haley adiantando-se e estendendo a mão para cumprimentar o
homenzarrão.
— Que diabos! — foi a resposta civilizada. — O que traz você aqui, Haley?
O homem rato, que tinha o nome de Marks, parou de beber no mesmo
instante e, colocando a cabeça um pouco para a frente, olhou astutamente para a
nova companhia, como um gato às vezes espreita uma folha seca se mexendo, ou
algum outro objeto que esteja perseguindo.
— Vou te contar, Tom, encontrar você foi a maior sorte do mundo. Estou
numa encrenca e preciso de sua ajuda.
— Hein? Ah, é claro — o complacente conhecido grunhiu. — Quando você
diz estar feliz em ver outra pessoa, pode ter certeza de que alguma coisa vem por
aí. Qual a encrenca?
— Você fez um amigo aqui? — perguntou Haley olhando desconfiado para
Marks. — Um parceiro, talvez?
— Fiz, sim. Aqui está, Marks! Este é o camarada que estava comigo em
Natchez.
— É um prazer te conhecer — disse Marks levantando uma mão magra e
longa, como a garra de um corvo. — Sr. Haley, não é?
— O próprio, senhor — respondeu Haley. — Bom, cavalheiros, já que
ficamos tão feliz em encontrar um com o outro, vou direto ao assunto que me
trouxe até aqui. E, agora, estalajadeiro — ele disse ao homem do bar — traga
água quente, açúcar e charutos, e muita aguardente da boa e vamos ter uma
conversa!
Então as velas foram acesas, o fogo atiçado a queimar na lareira e nossas três
personalidades sentadas ao redor de uma mesa redonda, bem à vontade com
todos os acessórios dignos de uma boa amizade, mencionados anteriormente.
Haley começou com um recital patético de seus infortúnios pessoais. Loker
calou-se e, grosseiro e irritado, ouviu-o com atenção. Marks, que preparava uma
bebida de acordo com seu gosto particular, agitado e ansioso, às vezes levantava
os olhos de seu trabalho e, colocando para a frente o nariz pontiagudo e o queixo
quase dentro do rosto de Haley, prestava muita atenção em toda a narrativa. A
conclusão do acontecimento parecia diverti-lo ao extremo, pois ele chacoalhava
os ombros e a barriga em silêncio, e contraía os lábios finos em sinal de grande
alegria interior.
— Então quer dizer que você está praticamente de mãos atadas? — ele
perguntou. — He! He! He! Isso foi muito engraçado.
— Esse comércio de crianças dá muita dor de cabeça — Haley lamentou-se.
— Se a gente pudesse conseguir um tipo de garota que não ligasse para as
cria — disse Marks —, vou te dizer, acho que seria a melhor coisa do mundo —
e Marks ilustrou a própria piada com o início de uma risadinha irônica.
— Pois é — continuou Haley. — Nunca consegui entender isso: as cria só dá
trabalho pra elas; era pra pensar que elas ia ficar feliz em se livrar deles, mas
não. Quanto mais trabalho os peste dá, mais elas se agarra neles.
— Bem, Sr. Haley — disse Marks —, passe a água quente, por favor. Sim,
senhor, o senhor acabou de dizer o que eu sempre digo. Uma vez comprei uma
garota, quando estava nesse negócio, uma rapariga bem feita e sem vergonha, e
bem esperta, que tinha um filho muito doente; tinha as costas tortas, ou alguma
coisa do tipo; e eu dei o moleque pra um homem que quis correr o risco de criar
ele, já que não lhe custou nada, mas, Deus do céu, deveria ter visto como a preta
ficou. E ela parecia querer ainda mais a criança por ela ser inválida, e aquilo
metia muito medo nela. Ela chorava, de verdade, e se arrastava, como se tivesse
perdido todo os amigo que tinha. Era ridículo de se ver. Meu Deus, é impossível
entender as mulher!
— A mesma coisa aconteceu comigo — contou Haley. — No verão passado,
no Rio Vermelho, negociei uma garota com uma criança aparentemente normal,
e os olho do filho era tão brilhante quanto os dela; mas, quando fui olhar de
perto, descobri que ele era cego. De fato, completamente cego. Então, vejam
bem, achei que não tinha nenhum problema em simplesmente passar o pretinho
pra frente sem dizer nada, e troquei ele por um barril de uísque; e quando fui
tirar ele da mãe, a preta virou um bicho. Foi bem no começo e eu ainda não tinha
acorrentado os preto. Então ela subiu em um fardo de algodão como uma gata,
arrancou uma faca da mão de um dos homens e, vou te contar, fez tudo voar
durante um minuto, até que viu que não ia adiantar nada; então ela simplesmente
se virou, mergulhou de cabeça dentro do rio, com o filho e tudo, um barulhão. E
nunca mais apareceu.
— Que balela! — retrucou Tom Locker, que ouvia aquelas histórias com
desdém reprimido. — Não passam de inúteis, os dois! Minhas preta não faz
esses tipo de coisa.
— É mesmo? E qual o segredo? — perguntou Marks, secamente.
— Segredo? — Ora bolas, compro uma preta, e se ela tem um filho pra ser
vendido, eu simplesmente vou até ela, coloco o punho na frente dela e digo
“Olha aqui, se dizer só uma palavra, arrebento a sua cara. Não quero ouvir uma
palavra, nem o começo de uma palavra”. Eu aviso elas: “Esse seu filho é meu,
não seu e você não tem nada a ver com ele. Vou vender ele na primeira
oportunidade, e não quero saber de escândalo, ou vou te fazer querer nunca ter
nascido”. Vou te contar, elas sabe que não estou pra brincadeira. Elas fica de
bico calado; e se alguma delas começa a gritar, aí… — e o Sr. Loker esmurra a
mesa com um barulho que explicou claramente o hiato.
— Isso é o que chamamos de ênfase — falou Marks, dando uma cotovelada
em Haley e caindo na risada novamente. — O Tom não é peculiar? He! He! He!
Apesar dos preto terem cabeça dura, o Tom sempre se faz entender. Eles nunca
têm dúvida do que ele quer dizer. Tom, se você não é o próprio demônio, é irmão
gêmeo dele, com certeza.
Tom recebeu o elogio com a devida modéstia, e sua expressão aos poucos
começou a parecer tão afável e consistente quanto sua natureza canina, como
diria John Bunyan.1
Haley, que estivera absorvendo à vontade o principal artigo da noite,
começou a sentir uma sensível elevação e alargamento de suas faculdades
morais, um fenômeno não muito incomum em cavalheiros de aspecto sério e
meditativo nas mesmas circunstâncias.
— Pois bem, Tom. — ele continuou. — Você realmente é muito ruim, e já
conversamos sobre isso em Natchez, e já provei a você que isso é tolice, e que
nesse mundo é melhor tratar bem os preto pra gente ter uma chance maior de ir
pro reino dos céus quando o pior chegar e quando não tiver mais nada pra fazer,
sabe como é.
— Conversa fiada! — retrucou Tom. — E e eu não sei!.? Não me faça ficar
enjoado com essa baboseira; meu estômago já está revirando — E Tom bebeu
metade de um copo de conhaque puro.
— Como sempre digo — falou Haley recostando-se na cadeira e
gesticulando enfaticamente —, sempre quis fazer negócio pra ganhar dinheiro,
acima de tudo, e dinheiro não é tudo porque todos têm uma alma. Não me
importo, agora, que me escutem dizer isso, e eu finalmente me dei conta disso,
então é melhor colocar pra fora. Eu acredito na religião, e qualquer dia desses,
quando as coisa estiver no lugar, tenho planos de cuidar da minha alma e de
todas essas questões eterna. Assim, qual a razão pra se fazer mais crueldade do
que o necessário? Não acho que seja prudente.
— Cuidar da alma? — Tom repetiu com desdém. — Olhe bem e veja se acha
alguma alma em você; poupe seu tempo desse tipo de trabalho. Se o diabo passar
o pente fino em você, não vai achar coisa alguma.
— Ah, Tom, não fique chateado — disse Haley. — Por que não aceita com
prazer quando estou falando pro seu próprio bem?
— Para com essa conversa — Tom respondeu com irritação. — Não suporto
esse falatório carola, isso me mata. Afinal de contas, qual é a diferença entre
você e eu? Que você tem um pouco mais de consideração, ou tem um pouco
mais de sentimento? Acha que não vejo a coisa toda? Que está tentando dar um
golpe no diabo e depois salvar a própria pele? E essa história de virar religioso,
depois de tudo, me irrita muito. A vida inteira fez pacto com o diabo e agora
quer se safar na hora de acertar as contas com Deus! Arre!
— Tenham calma, cavalheiros; não estamos aqui para falar disso —
interrompeu Marks. — Há muitas forma de se olhar para as coisa. O Sr. Haley é
um homem muito bom, sem dúvida, e tem sua própria consciência; e Tom, você
tem seu jeito, que também é bom. Mas discutir não vai levar a lugar nenhum.
Vamos ao que interessa. Agora, Sr. Haley, como será? O senhor quer que a gente
pegue essa preta?
— A garota pouco me importa; ela pertence ao Shelby. Quero o filho dela.
Fui um tolo de ter comprado o macaquinho!
— Você é sempre dado a fazer besteira — comentou Tom, irritado.
— Vamos lá, Loker, sem ofensa — conciliou Marks, lambendo os lábios. —
Será que não enxerga que o Sr. Haley está nos colocando diante de um bom
trabalho? Fica quieto; esse assunto é o meu forte. Essa garota, Sr. Haley, como
ela é? O que ela é?
— Clara e bonita, bem educada. Seria capaz de oferecer oitocentos ou até
mil dólares por ela e ainda sairia ganhando.
— Clara, bonita e bem educada! — exclamou Marks, seus olhos aguçados,
nariz e boca completamente envolvidos no assunto. — Olhe só, Loker, um
excelente começo. Vamos fazer o negócio aqui por nossa própria conta; pegamos
o moleque, claro, e entregamos ele para o Sr. Haley, depois levamos a garota pra
Orleans pra ser negociada. Não é uma beleza?
Tom, cuja bocarra pesada ficara aberta durante essa comunicação, agora a
fechara repentinamente, como um cão ao abocanhar um naco de carne, e parecia
digerir a ideia com prazer.
— Olha — Marks disse a Haley, mexendo na bebida como antes —, temos
muitos juízes ao longo de toda a costa, que atrapalham um pouco nossa linha de
negócio. O Tom faz a parte de bater e tudo isso, enquanto eu me apresento todo
bem vestido, bota brilhante, tudo em grande estilo quando o negócio é fazer o
juramento. Precisa ver — conta Marks, com um brilho de orgulho profissional
— como eu consigo me sair bem. Um dia sou o Sr. Twickem, de Nova Orleans;
noutro dia, acabo de chegar da minha fazenda no rio Pérola, onde tenho
setecentos pretos; ou então surjo como algum parente distante de Henry Clay ou
de algum outro figurão do Kentucky. Os talento varia, sabe como é. Agora, Tom
é excelente quando a gente precisa de bofetes e brigas; mas é terrível pra mentir,
Tom não consegue; não é da natureza dele. Mas, Deus, se existe alguém no país
que pode jurar sobre qualquer coisa e sobre tudo, e se encaixar em qualquer
situação e se sair bem com uma cara triste melhor do que eu, então gostaria de
conhecer esse sujeito, ah, como gostaria. Acredito, de coração, que podia me dar
bem e passar despercebido, mesmo se os juízes fosse mais severo do que o de
costume. Às vezes eu gostaria que eles fosse mesmo mais severo; seria muito
mais divertido se eles fosse, mais engraçado, sabe como é?
Tom Loker, que, como fizemos aparentar, era um homem de pensamentos e
movimentos lentos, aqui interrompeu Marks batendo com a mão sobre a mesa,
fazendo tudo ressoar novamente.
— Negócio fechado! — falou o grande homem.
— Deus o abençoe, Tom. Mas não precisava quebrar os copo por causa
disso! — disse Marks. — Guarde seus punho pra quando precisar deles.
— Senhores, eu também vou levar uma parte dos lucros? — perguntou
Haley.
— Pegar o garoto não é suficiente pra você? — perguntou Loker. — O que
você quer?
— Bem — disse Haley —, se eu der o negócio pra vocês, mereço uma
recompensa, digamos, dez por cento sobre o lucro, com toda as despesa paga.
— Não me venha com essa — disse Loker em voz alta, batendo na mesa
com seu punho pesado. — E eu não te conheço, Dan Haley? Nem pense em vir
pra cima de mim! Vamos supor que Marks e eu faça o negócio, apenas para
acomodar cavalheiros do seu tipo, e saímos sem nada? Nem pensar. Vamos ficar
com a mulher e você não abre o bico, senão ficamos com os dois, qual o
problema? Não mostrou o jogo pra nós? O negócio é tão livre pra nós quanto pra
você, assim espero. Se você ou o Shelby quiserem vir atrás da gente, olhe onde
os perdiz estava no ano passado; se encontrar eles ou a gente, serão muito bem-
vindos.
— Ah, bem, por favor, vamos deixar disso — disse Haley alarmado. — O
serviço é pegar o garoto; sempre fez negócio justo comigo, Tom, e sempre
manteve sua palavra.
— Sabe bem disso — retrucou Tom. — Eu não pretendo usar nenhum dos
seus pretexto, mas não vou mentir no meu acerto de contas com o próprio diabo.
O que eu digo que faço, eu faço, e sabe muito bem disso, Dan Haley.
— Deus do céu! Acabei de dizer isso, Tom — refutou Haley. — Só me
prometa trazer o garoto em uma semana, em qualquer lugar que escolher, isso é
tudo o que quero.
— Mas eu não quero só isso, nem de longe — esbravejou Tom. — Acha que
não aprendi nada fazendo negócio com você em Natchez, acha Haley? Aprendi a
segurar uma enguia quando a tenho na mão. Vai ter que adiantar cinquenta
dólares, pra começar, ou essa criança não será capturada. Conheço você.
— Tem um trabalho na mão que vai lhe trazer um lucro limpo em torno de
mil ou mil e seiscentos dólares. Não está sendo razoável! — contestou Haley.
— Sim, e quanto aos serviços que temos nas próximas cinco semanas, o que
a gente faz? E supondo que a gente deixe tudo pra abrir caminho na floresta e ir
atrás do garoto, e no final não pegamos a mulher, as mulher são sempre um
inferno pra ser pega, a gente faz o quê? Vai nos pagar alguma coisa? Não
consigo ver você fazendo isso, arre! Não, não; pode passar os cinquenta. Se a
gente fizer o trabalho, devolvo o dinheiro; se não, fica pelo trabalho que
tivemos; é justo, não é, Marks?
— Certamente, certamente — concordou Marks com um tom conciliatório.
— Isso é só um adiantamento, veja bem. He! He! He! Nós advogado, sabe como
é. Bem, a gente deve manter tudo tranquilo, fácil, entende? Tom vai trazer o
garoto pra você, em qualquer lugar que quiser, não vai, Tom?
— Se eu encontrar o fedelho, levo ele até Cincinnati e deixo ele no Granny
Belcher’s, no ancoradouro — afirmou Loker.
Marks sacou do bolso uma carteira ensebada, tirou uma folha comprida de
dentro, sentou-se e, com seus olhos astutos, começou resmungar sobre seu
conteúdo:
— Barnes, Condado de Shelby, jovem Jim, trezentos dólares por ele, vivo ou
morto. Edwards, Dick e Lucy, esposo e esposa, seiscentos dólares; a nega Polly e
duas crianças, seiscentos dólares por ela ou por sua cabeça.
— Só estou repassando os negócios, para ver se podemos assumir mais esse
compromisso. Loker — ele disse depois de uma pausa —, precisamos colocar
Adams e Spinger pra seguir todos esses aqui. Já faz tempo que estão na lista.
— Eles cobram muito caro — disse Tom.
— Eu cuido disso; são novatos no negócio e precisam trabalhar barato —
comentou Marks enquanto continuava a ler. — Três desses casos são fáceis, pois
tudo o que se precisa fazer é matar eles ou jurar que foram mortos; por isso eles
não deveriam cobrar muito caro. Os outros casos pode esperar um pouco — ele
disse dobrando o papel. — Vamos aos detalhes. E então, Sr. Haley, viu a garota
quando ela chegou do outro lado?
— Com certeza, tão claro quanto estou te vendo.
— E um homem ajudando ela a subir a ribanceira? — perguntou Loker.
— Vi com certeza.
— Provavelmente — disse Marks —, ela está escondida em algum lugar,
mas a questão é onde. Tom, o que me diz?
— Precisamos atravessar o rio esta noite, sem dúvida — disse Tom.
— Mas não há nenhum barco navegando — disse Marks. — O gelo está
terrível, Tom. Não é perigoso?
— Não sei de nada disso, só sei que precisa ser feito — Tom afirmou
decidido.
— Minha nossa — refutou Marks, inquieto —, será, como direi… — disse
ele, andando até a janela — está escuro como o breu, e Tom…
— A verdade é que você está com medo, Marks; mas não posso fazer nada
quanto a isso; você tem que ir. Se ficar aqui por um ou dois dias, a garota vai ser
levada pela ferrovia subterrânea até Sandusky ou arredores, antes de você ver.
— Ah, não; não estou com medo coisa nenhuma — refutou Marks. — É
que…
— O quê? — perguntou Tom.
— Bem, com relação ao barco. Não há nenhum barco.
— Ouvi a mulher dizer que tinha um vindo esta noite e que um homem iria
cruzar nele. É tudo ou nada; precisamos ir com ele — afirmou Tom.
— Imagino que têm bons cachorro — disse Haley.
— De primeira categoria — confirmou Marks. Mas, pra quê? Você não tem
nada com o cheiro dela.
— Sim, tenho — comentou Haley, triunfante. — Aqui está o xale que ela
deixou em cima da cama na hora da pressa; também largou seu chapéu.
— Isso é muita sorte — disse Loker. — Passa pra cá.
— Mas os cachorros podem machucar a garota, se encontrarem ela? —
perguntou Haley.
— Existe essa possibilidade — respondeu Marks. — Uma vez nossos
cachorros partiram um sujeito em pedacinhos, em Mobile, antes que a gente
fizesse eles parar.
— Vejam bem, neste caso a venda será feita com base na aparência, então
não convém usar eles — disse Haley.
— Entendo — disse Marks. — Além disso, se ela estiver escondida em
alguma casa, não vai adiantar nada. Os cachorros não serve pra nada quando as
criaturas são levadas pra essas propriedades. Eles só serve pras plantações,
quando os preto corre sozinho e não têm ajuda de ninguém.
— Bem — disse Loker que acabara de sair do bar pra fazer algumas
perguntas. — Eles estão dizendo que o homem está vindo com o barco; então,
Marks…
Aquele sujeito deu um olhar doloroso para os aposentos confortáveis do qual
estava saindo, mas levantou-se lentamente e obedeceu. Depois de trocar algumas
palavras de acordo, Haley, com relutância visível, passou os cinquenta dólares
para Tom, e o trio distinto se separou.
Se qualquer um de nossos leitores refinados e cristãos tem alguma objeção à
sociedade na qual esta cena se insere, imploremos para que comecem a rever
seus preconceitos a tempo. O negócio de caça a escravos, pedimos que se
lembrem, está elevado à categoria de profissão patriótica e legítima. Se toda a
extensão de terra entre o Mississipi e o Pacífico passa a ser um grande mercado
de corpos e almas, e a propriedade humana é uma tendência crescente neste
século xix, o mercador e o caçador de escravos podem vir a se tornar membros
de nossa aristocracia.
O Sr. Haley e Tomás seguiam adiante balançando na carroça, cada qual, por
um tempo, absorvido em suas próprias reflexões. As reflexões dos dois homens
sentados um ao lado do outro são uma coisa curiosa: sentados no mesmo
assento, tendo, os dois, olhos, ouvidos, mãos e órgãos de todos os tipos, e os
mesmos objetos lhes passando à frente, é impressionante o quanto os
pensamentos são diferentes!
Como o Sr. Haley, por exemplo: ele primeiro pensou na largura e na altura
de Tomás e a quanto ele venderia o escravo se o mantivesse gordo e em boas
condições até chegar ao mercado. Pensou em como comporia o lote dele; pensou
no respectivo valor de mercado de certos homens, mulheres e crianças que
fariam parte do grupo e outros detalhes do negócio; em seguida pensou em si
mesmo, e no quão humano era, pois enquanto outros homens acorrentavam as
mãos e os pés de seus crioulos, ele colocara algemas apenas nos pés, e deixou
que Tomás usasse as mãos, desde que se comportasse bem; e pensou no quanto a
natureza humana era ingrata, o que talvez deixasse espaço para Tomás duvidar
das bondades dele. Já tinha sido enganado tantas vezes por crioulos a quem tinha
favorecido; mas, mesmo assim, se surpreendia ao pensar no quanto ainda fora
capaz de manter sua generosidade.
Quanto a Tomás, este estava remoendo algumas palavras de um velho livro
fora de moda, que não lhe saíam da cabeça, que diziam assim: “Porque não
temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que está por vir; onde não
tenhamos vergonha de chamar Deus de nosso Deus, pois ele nos dará uma nova
cidade”. Essas palavras do antigo livro impressionavam principalmente “homens
ignorantes e sem instrução” que, através do tempo, de algum modo, mantinham
um estranho poder sobre as mentes de pessoas pobres e simples como Tomás.
Elas tocavam o fundo da alma, e traziam à tona, como o chamado da trombeta,
coragem, energia e entusiasmo, onde antes só havia a escuridão do desespero.
O Sr. Haley tirou do bolso vários jornais e começou a olhar os anúncios,
muito interessado. Ele não era um leitor muito fluente e tinha o hábito de ler em
voz alta, meio recitativo, como se pedisse aos ouvidos para verificar as deduções
de seus olhos. Nesse tom, ele recitou vagarosamente o seguinte parágrafo:
— Tenho que dar uma olhada nisso aqui — ele disse para Tomás, pela
necessidade de ter alguém com quem conversar. — Vou juntar um grupo de
primeira linha pra levar com você, Tomás. Vai dar uma impressão agradável e
sociável, vão lhe fazer boa companhia, sabe como é. Precisamos ir direto para
Washington, e vou lhe deixar trancado enquanto termino meus negócios.
Tomás recebeu essa informação com obediência, simplesmente pensando,
em seu coração, quantos desses homens desgraçados teriam esposas e filhos, e se
eles se sentiam como ele ao abandoná–los. É mister confessar também que a
informação ingênua e imediata de que seria colocado na jaula de maneira
nenhuma produziu uma reação favorável em um pobre sujeito que sempre se
orgulhou de uma vida absolutamente honesta e idônea. Sim, Tomás, devemos
dizer, tinha muito orgulho de sua honestidade, coitado, sem ter muito mais do
que se orgulhar. Se tivesse pertencido a patamares mais altos da sociedade,
talvez nunca teria sido reduzido a tais tipos de infâmias. No entanto, o dia passou
e, à noite, Haley e Tomás encontravam-se acomodados em Washington: um em
uma taverna, o outro, em uma jaula.
Por volta das onze horas do dia seguinte, juntou-se uma multidão confusa
nos degraus do Tribunal — fumando, mascando, cuspindo, praguejando e
conversando, de acordo com seus respectivos gostos e vezes — esperando pelo
leilão começar. Os homens e as mulheres a serem vendidos sentavam-se em um
grupo separado, conversando em voz baixa entre si. A mulher, que fora
anunciada com o nome de Hagar, era um exemplar tipicamente africano. Ela
poderia até ter sessenta anos, mas parecia mais velha do que isso, pelo trabalho e
pela doença; era parcialmente cega e debilitada pelo reumatismo. Ao lado dela,
estava o único filho que lhe restara, Albert, um belo rapazola de quatorze anos.
O garoto era o único que restara de vários irmãos, que foram tirados dela
sucessivamente e vendidos no mercado do Sul. A mãe segurava o garoto com as
duas mãos trêmulas, e olhava com medo cada um que chegava perto para
analisá-lo.
— Não tenha medo, Mãe Hagar — disse o mais velho dos homens. — Falei
com o senhor Thomas e ele acha que consegue vender vocês dois juntos.
— Eles não precisam considerar eu uma inválida ainda — ela disse,
erguendo as mãos trêmulas. — Ainda posso cozinhar, esfregar e lavar. — Vale a
pena me comprar, se for um preço barato. Diz isso pra eles. Diz — ela
acrescentou com veemência.
Haley forçou o caminho até o grupo, caminhou até o velho, abriu-lhe a boca
e olhou dentro, tocou-lhe os dentes, fez o homem ficar em pé e se endireitar,
dobrar as costas e fazer vários movimentos para mostrar os músculos, então
passou para o próximo, fazendo-o passar pelo mesmo julgamento. Caminhando
por último até o rapazola, o mercador de escravos sentiu-lhe os braços, esticou
as mãos, olhou os dedos e fez o garoto saltar para mostrar sua agilidade.
— Ele não vai ser vendido sem eu! — disse a velha senhora, com ansiedade
passional. — Ele e eu vamos num lote junto. Eu ainda sou forte, sinhô, e posso
fazer muito trabalho, muito, sinhô.
— Na fazenda? — perguntou Haley com um desdenhoso olhar de relance.
— Que balela! — e, como se tivesse ficado satisfeito com seu exame, ele se
afastou e olhou de longe, ficando em pé com as mãos no bolso, o charuto na
boca, e o chapéu caído de um lado, pronto para a ação.
— O que acha? — perguntou o homem que acompanhara o exame de Haley,
como se ele mesmo quisesse chegar a uma decisão.
— Bem — disse Haley, cuspindo —, acho que compraria os mais jovens e o
rapazinho.
— Eles querem vender o rapaz e a velha juntos — informou o homem.
— Acho difícil. Ela é um velho saco de ossos, não vale um tostão furado.
— Então não ficaria com ela? — perguntou o homem.
— Qualquer um seria um tolo se ficasse. Ela é quase cega, deformada com
reumatismo e idiota.
— Alguns compram essas criaturas velhas e acabam descobrindo que são
mais úteis do que se pensa — rebateu o homem.
— De jeito nenhum — disse Haley. — Eu não quero ela nem de graça. Na
verdade, já está resolvido.
— Seria uma pena não comprá-la com o filho. Ela parece gostar muito dele,
e acho que a venderiam bem barato.
— Se tem dinheiro pra jogar fora, tudo bem. Vou vender o rapaz pra
trabalhar na lavoura, mas não quero nem saber dela, de jeito nenhum, nem
ganhando de presente — retrucou Haley.
— Ela vai ficar desesperada — contou o homem.
— Com certeza — concordou o mercador de escravos friamente. A conversa
foi interrompida por um murmurinho na plateia.
E o leiloeiro, um sujeito baixinho, alvoroçado e arrogante, abriu a
cotoveladas o caminho pela multidão. A velha segurou o fôlego e puxou
instintivamente o filho.
— Fique perto da mamãe, Albert, bem perto, eles vão colocar nós junto —
ela afirmou.
— Ah, mamãe, estou com medo de eles não colocar a gente junto — disse o
garoto.
— Eles têm que colocar, filho. Não vou conseguir viver de jeito nenhum se
eles não fizer isso! — falou com veemência a velha criatura.
A voz retumbante do leiloeiro, gritando para abrirem caminho, agora
anunciava que as vendas estavam prestes a começar. O lugar foi aberto e as
ofertas começaram. Os muitos homens da lista foram rapidamente comprados
por preços que mostravam uma boa subida no mercado; dois deles ficaram com
Haley.
— Venha, garoto — ordenou o leiloeiro, tocando o garoto com seu martelo.
— Levante-se e nos mostre seus movimentos, agora.
— Põe nós dois junto, junto, por favor, sinhô — implorou a velha, segurando
seu filho com força.
— Saia daqui —retrucou o homem grosseiramente, empurrando as mãos
dela. — Você vai ser por último. Agora, neguinho, pule! — e com a palavra, ele
empurrou o garoto em direção ao grupo, e um grunhido pesado e profundo se
instalou atrás dele. O garoto parou e olhou para trás, mas não havia tempo para
ficar e, limpando as lágrimas de seus grandes e brilhantes olhos negros, ele se
levantou depressa.
Sua bela figura, membros ágeis e rosto vivo foram motivo de uma
competição instantânea, e meia dúzia de ofertas foi parar simultaneamente no
ouvido do leiloeiro. Ansioso, meio assustado, o garoto olhava de um lado para
outro ao ouvir o tumulto das ofertas se cruzando — agora aqui, agora lá — até
que o martelo bateu. Haley ficara com ele. Ele foi tirado do grupo em direção a
seu proprietário, mas parou por um momento, e olhou para trás, vendo sua pobre
mãe, tremendo dos pés a cabeça, esticando as mãos em direção a ele.
— Compre eu também, sinhô, pelo amor de Deus! — Compre eu, vou
morrer se não me comprar!
— Vai morrer também se eu te comprar. Assunto encerrado — disse Haley.
— Não! — e virou-se nos calcanhares.
As pobres vítimas da venda, que viveram juntos no mesmo lugar durante
anos, juntaram-se em volta da velha mãe, cuja agonia dava dó de se ver.
— Será que eles não podia me deixar pelo menos um? O sinhô sempre dizia
que eu deveria ter pelo menos um, ele sempre dizia — ela repetia vez após outra,
com uma voz de cortar o coração.
— Confie em Deus, Mãe Hagar — disse o mais velho dos homens,
piedosamente.
— E que bem isso vai me fazer? — ela perguntou, soluçando
desesperadamente.
— Mãe, mãe, não, não! — gritou o rapaz. — Disseram que você terá um
bom senhor.
— Não me importo, não me importo. Ah, Albert! Ah, meu garotinho, você é
meu último bebê. Senhor, como posso viver?
— Andem logo, será que algum de vocês pode tirar ela daqui? — ordenou
Haley secamente. — Não faz bem pra ela continuar desse jeito.
Os homens mais velhos do grupo, ora por persuasão e ora pela força, fizeram
a mulher se soltar do último abraço desesperado no filho, e a acompanharam até
a carroça de seu novo dono, tentando confortá-la.
— Vamos lá! — disse Haley empurrando suas três aquisições, e tirando
várias algemas que colocou nos pulsos deles; e, prendendo cada algema em uma
longa corrente, ele os puxou até a jaula.
Alguns dias depois, Haley embarcou com suas posses depositadas a salvo
em um dos barcos do Ohio. Era o começo de seu grupo, ainda a ser formado por
várias outras mercadorias do mesmo tipo que ele ou seu agente haviam
reservado em vários pontos ao longo da margem.
La Belle Rivière, o barco mais lindo e notável que já se viu navegar sobre as
águas do Ohio, flutuava tranquilamente correnteza abaixo, sob um céu brilhante,
as Listras e Estrelas da América livre baloiçando e flutuando acima. Os guardas
se misturavam às senhoras bem vestidas e aos cavalheiros caminhando e
apreciando o dia agradável. Tudo estava cheio de vida, alegre e animado; tudo
exceto o bando de Haley que fora guardado com outras mercadorias, no convés
inferior e que, por alguma razão, parecia não apreciar seus vários privilégios
enquanto sentavam-se em grupo, falando entre si em voz baixa.
— Rapazes — gritou Haley rispidamente, — espero que se mantenham
felizes e animados. E não me venham com mau humor; mantenham os lábios
para cima, rapazes; sejam bons comigo e eu serei bom com vocês.
Os rapazes a quem aquela fala se dirigia responderam com o invariável
“Sim, sinhô”, durante anos a senha dos pobres africanos; no entanto, não era por
pertencerem a alguém que não se sentiam particularmente felizes; ainda
pensavam nas esposas, mães, irmãs e nos filhos, vistos pela última vez; e,
embora “aqueles que nos mantinham cativos nos pediam uma canção”, aquela
mensagem não fora instantaneamente bem-vinda.
— Tenho uma esposa — disse a mercadoria marcada como “John, trinta
anos”, e ele colocou sua mão algemada sobre o joelho de Tomás —, e ela não faz
a menor ideia de que fui vendido, a pobre coitada!
— Onde ela mora? — perguntou Tomás.
— Em uma estalagem perto daqui — disse John. — Gostaria de poder ver
ela mais uma vez nesse mundo — ele continou.
Pobre John! Aquilo era mesmo muito natural; e as lágrimas que escorriam
enquanto ele falava, caíam tão naturalmente como se fossem as de um homem
branco. Tomás exalou um longo suspiro de seu coração ferido e tentou, com seu
jeito simples, confortar o rapaz.
E, no andar de cima, no convés superior, sentavam-se pais e mães, esposos e
esposas; e crianças brincavam e dançavam ao redor deles, assim como
borboletinhas, e tudo corria tranquila e confortavelmente.
— Mamãe! — chamou um garotinho que acabara de voltar do andar de
baixo. — Tem um mercador de escravos a bordo, e ele trouxe quatro ou cinco
escravos lá pra baixo.
— Pobres criaturas! — disse a mãe em um tom entre indignação e
sofrimento.
— Como é? — perguntou outra mulher.
— Alguns pobres escravos lá embaixo — informou a mãe.
— E eles estão acorrentados — o garotinho falou.
— Que vergonha para o nosso país permitir que cenas desse tipo sejam
vistas! — disse outra mulher.
— Ah, mas há muito a ser discutido, tanto a favor como contra — disse uma
mulher da alta sociedade, cosindo sentada à porta de sua cabina, enquanto seu
filhinho e filhinha brincavam em volta dela. — Já estive no Sul e devo dizer que
os negros estão melhor lá do que estariam se fossem livres.
— Em alguns aspectos alguns deles estão muito bem, posso imaginar —
disse a mulher a cujo comentário ela respondera. — A parte mais horrível da
escravidão, para mim, é que ela ultraja os sentimentos e as afeições; a separação
das famílias, por exemplo.
— Isso é mesmo uma coisa ruim, com certeza — disse a outra mulher,
segurando o vestidinho de um bebê que acabara de coser, e verificando
cuidadosamente os acabamentos. — Mas, imagino que isso não aconteça
sempre.
— Ah, acontece sim — disse a primeira mulher, com veemência. — Já vivi
muitos anos tanto na Virginia quanto no Kentucky e já vi o suficiente para deixar
o coração de qualquer um em frangalhos. Vamos supor, madame, que seus dois
filhos, ali, fossem tirados da senhora e vendidos?
— Não podemos comparar os nossos sentimentos com os desse tipo de gente
— disse a outra mulher, tirando alguns fiapos de lã do colo.
— Se diz isso, madame, é por que não os conhece — respondeu a primeira
dama, acaloradamente. — Nasci e fui criada entre eles. Sei que têm sentimentos,
tão ou até mais fortes do que os nossos; talvez, como nós.
— Certamente — disse a madame, que bocejou, olhou pela janela da cabina
e finalmente terminou fazendo a mesma declaração com a qual iniciara a
conversa. — Continuo achando que os negros são mais felizes assim do que se
fossem livres.
— É, indubitavelmente, intenção da Providência que a raça africana seja
escrava, mantida em condições mais baixas — comentou um cavalheiro de
feições graves e traje escuro, um clérigo, sentado ao lado da porta da cabina. —
“Maldito seja Canaã! Escravo dos escravos será para os seus irmãos”, as
Escrituras dizem.
— E eu lhe pergunto, forasteiro, será que é esse mesmo o significado do
texto? — disse um homem alto que estava ao lado.
— Indubitavelmente. Quis a Providência, por alguma razão inescrutável,
condenar a raça à escravidão, muitos anos atrás; e não devemos nos opor a isso.
— Bem, se é assim, vamos todos comprar crioulo, se esse é o desejo da
Providência, não é mesmo Escudeiro? — ele disse, virando-se para Haley, que
estivera em pé com as mãos nos bolsos, ao lado da fornalha, ouvindo
atentamente à conversa.
— Isso mesmo — continuou o homem alto. — Vamos todos ficar resignados
aos preceitos da Providência. Os crioulo deve ser vendido e carregado de um
lado para o outro; é para isso que eles serve. Está aí um ponto de vista bem novo,
não é mesmo, forasteiro? — ele se dirigiu a Haley.
— Nunca pensei muito nisso — respondeu Haley. — Não posso falar muita
coisa. Nunca tive instrução na vida. Entrei no negócio pra ganhar a vida; se não
for certo, pretendo me penitenciar a tempo, sabe como é.
— Enquanto isso, não vai se dar a esse trabalho, não é mesmo? — disse o
homem alto. — Veja como é bom conhecer as Escrituras. Se tivesse estudado a
Bíblia, assim como esse bom homem, saberia disso antes, e isso lhe pouparia
muito trabalho. Poderia simplesmente ter dito “Maldito seja — como se chama,
mesmo?” e tudo estaria resolvido.
E o estranho, que era nada mais nada menos que o vaqueiro mais bondoso
que apresentamos aos nossos leitores na estalagem em Kentucky, sentou-se e
começou a fumar, com um sorriso curioso em seu rosto alongado e inexpressivo.
Um jovem alto e esguio, com o rosto demonstrando grande sensibilidade e
inteligência, entrou, e disse as seguintes palavras:
— Em tudo, façam aos outros o que querem que façam a si mesmos.
Acredito — acrescentou ele — que isso faça parte da Escritura, tanto como
“Maldito seja Canaã!”.
— Bem, isso é o que os pobre coitado como a gente pensa — disse John, o
vaqueiro, fumando como um vulcão.
O jovem fez uma pausa e ia falar algo mais, quando o barco parou de
repente, e os passageiros fizeram o costumeiro alvoroço para ver onde haviam
aportado.
— Os dois são camaradas? — perguntou John para um dos homens quando
eles iam saindo.
O homem assentiu.
Quando o barco parou, uma mulher negra veio correndo desesperadamente
pela prancha, passou por entre a multidão e desceu correndo até onde o grupo de
escravos estava. Jogou os braços ao redor daquela infeliz mercadoria antes
marcada “John, trinta anos” e, entre soluços e lágrimas, lamentou a situação do
marido.
Mas que diferença faz contar a história, a qual se repete todos os dias, de
laços afetivos dilacerados e quebrados, dos fracos sendo destruídos e oprimidos
pelo lucro e conveniência dos mais fortes! É mister que seja dito todos os dias,
que se conte dia após dia nos ouvidos do Único, que não é surdo, apesar de estar
em silêncio há muito tempo.
O jovem que defendera a causa da humanidade e a de Deus postou-se com
os braços cruzados olhando para a cena. Ele virou-se, e Haley estava ao seu lado.
— Meu amigo — ele disse com a expressão pesarosa —, como pode, como
ousa fazer esse tipo de comércio? Olhe para essas pobres criaturas! Aqui estou
eu, com alegria em meu coração por estar indo para casa, para minha esposa e
filho, e o mesmo sino que anuncia meu caminho em direção a eles separará este
pobre homem de sua esposa para sempre. Marque minhas palavras: Deus o
julgará por isso.
O mercador de escravos se afastou em silêncio.
— Quer dizer que as pessoa são diferente, não é? — disse o vaqueiro,
tocando seu ombro. — “Maldito seja Canaã” parece não descer pela goela desse
aí, hein?
Haley deu um grunhido incômodo.
— E isso talvez não seja o pior de tudo — disse John. — Talvez Deus
também não compartilhe dessa ideia, quando um dia for prestar contas a Ele,
assim como todos nós, eu acho.
Haley caminhou pensativamente até a outra ponta do barco.
“Se me der bem com mais uma ou duas gangues”, ele pensou consigo
mesmo, “acho que vou parar este ano; a situação está realmente ficando
perigosa.” E então tirou sua carteira e começou a contar o dinheiro, um processo
que muitos cavalheiros, além do Sr. Haley, achavam ser eficaz contra a
consciência pesada.
O barco deslizou majestosamente para longe da costa, e tudo voltou ao
mesmo estado de alegria de antes. Os homens conversavam, e vadiavam, e liam
e fumavam. As mulheres cosiam, as crianças brincavam e o barco seguia seu
caminho.
Um dia, quando o barco parou por pouco tempo em uma cidadezinha do
Kentucky, Haley desembarcou para tratar de negócios.
Tomás, cujos grilhões não o impediam de fazer uma pequena caminhada, foi
até perto da lateral do barco, e ficou olhando com indiferença pela janela. Depois
de um tempo, viu o mercador de escravos voltando, com um passo rápido, em
companhia de uma mulher de cor que trazia nos braços um filho pequeno. Ela
estava decentemente vestida, e um homem de cor a seguia atrás trazendo um
pequeno baú. A mulher vinha alegremente conversando com o homem que
carregava seu baú; passou pela prancha e subiu no barco. O sino tocou e o barco
deslizou rio abaixo.
A mulher caminhou até a frente entre as caixas e os barris no convés de
baixo, e sentando-se, ocupou-se de brincar com o bebê.
Haley deu uma ou duas voltas pelo barco, e então, indo até lá, sentou-se ao
lado dela, e começou a lhe dizer algo com um tom indiferente.
Tomás logo notou uma nuvem pesada passando pela sobrancelha da mulher,
e que ela respondeu rapidamente e com grande veemência.
— Não acredito! Não posso acreditar! — ele a ouviu dizer. — Está só
brincando comigo.
— Se não acredita, olhe aqui! — disse o homem, pegando um papel. — Este
é o contrato de venda, e tem o nome do seu senhor aqui; e eu paguei um bom
dinheiro a ele, posso te garantir.
— Não acredito! Meu senhor nunca me enganaria assim; não pode ser
verdade — refutou a mulher cada vez mais agitada.
— Pode perguntar pra qualquer um desses homens aqui que sabe ler. Aqui!
— ele disse para um homem que estava passando. — Faz um favor, lê isso aqui?
Essa garota não acredita em mim quando digo o que é este papel.
— Bem, isso é um contrato de venda, assinado por John Fosdick —
informou o homem —, vendendo para você a garota Lucy e o filho. Está tudo
explicado, até onde posso ver.
As exclamações passionais da mulher atraíram uma multidão ao seu redor e
o mercador de escravos lhes explicou a causa da agitação.
— Ele me disse que eu estaria indo para Louisville, contratada como
cozinheira na mesma estalagem onde meu esposo trabalha; foi isso que o meu
senhor me disse, ele próprio. Não acredito que tenha mentido pra mim! —
exclamou a mulher.
— Mas ele lhe vendeu, minha pobre mulher, não há dúvida — informou um
homem bondoso que estivera analisando os papéis. — Ele realmente o fez, pode
acreditar.
— Então não adianta nada ficar falando — falou a mulher, ficando
repentinamente mais tranquila; e, apertando mais forte o filho nos braços, ela
sentou-se em cima do baú, virou-se de costas e olhou indiferente para o rio.
— Finalmente se acalmou! — disse o mercador de escravos. — Dá pra ver
que a garota tem coragem.
A mulher parecia tranquila à medida que o barco continuava a viagem, e
uma brisa agradável e suave passou como um espírito misericordioso sobre a
cabeça dela. A brisa suave, que, ao soprar, nunca questiona se a tez é escura ou
clara. E ela viu o brilho do sol refletir sobre a água, em ondas douradas, e ouviu
vozes alegres, cheias de felicidade e prazer, conversando ao redor dela; mas seu
coração estava tão pesado como se tivesse caído uma pedra sobre ele. O bebê
ficou em pé encostado nela e lhe afagava o rosto com as mãozinhas pequenas; e
subindo e descendo, balbuciando e emitindo sons de prazer, parecia determinado
a chamar a atenção dela. Subitamente, ela o abraçou e o apertou nos braços e,
lentamente, uma lágrima após a outra escorreu em seu rostinho espantado e
inocente; e ela aos poucos pareceu ficar mais calma, e se ocupou de lhe dar
atenção e amamentá-lo.
A criança, um menino de dez meses, era incomumente grande e forte para a
idade, e muito vivaz. Nunca ficava quieto, nem por um minuto, de forma que
mantinha a mãe constantemente ocupada segurando-o e observando suas
atividades cheias de energia.
— Este é um garotão! — disse um homem, parando de repente do outro lado
da criança, com as mãos enfiadas nos bolsos. — Qual a idade dele?
— Dez meses e meio — informou a mãe.
O homem assoviou para o garoto e lhe ofereceu parte de um pedaço de doce,
que ele agarrou com vontade e, logo o tinha dentro do depósito geral dos bebês,
também conhecido como boca.
— Que espertinho! — comentou o homem. Já sabe o que quer! — então
assoviou e continuou andando. Ao chegar ao outro lado do barco, ele se
encontrou com Haley, que estava fumando em cima de uma pilha de caixas.
O estranho pegou um fósforo e acendeu um charuto, dizendo:
— É um tipo bem decente essa aí que tem para vender, forasteiro.
— Bem, tenho que reconhecer que ela é mesmo uma boa aquisição —
concordou Haley soprando a fumaça para fora da boca.
— Vai levá-la para o Sul? — perguntou o homem.
Haley assentiu e continuou fumando.
— Para a lavoura? — disse o homem.
— Bem, estou fechando um pedido para uma fazenda e acho que vou
colocar ela no meio. Me disseram que ela era uma boa cozinheira, e vão poder
usar ela pra isso, ou colocar ela pra colher algodão. Ela tem os dedo certo pra
isso; olhei bem. Vou fazer uma boa venda, de um jeito ou de outro — e Haley
voltou para seu charuto.
— Não vão querer o pequeno na fazenda — disse o homem.
— Vou vender ele na primeira oportunidade que tiver — explicou Haley,
acendendo outro charuto.
— Suponho que irá vendê-lo bem barato — inferiu o estranho, colocando
uma caixa em cima da outra e sentando-se confortavelmente.
— Não sei — disse Haley. — Ele é bem espertinho; ereto, robusto, forte; a
carne tão rija quanto tijolo!
— Isso lá é verdade, mas tem toda a questão da preocupação e despesa pra
criar.
— Bobagem! — retrucou Haley — Eles cresce como qualquer outra criatura
que existe; não dão mais trabalho do que bichos de estimação. Esse sujeitinho
vai estar correndo pra lá e pra cá daqui um mês.
— Tenho um bom lugar pra criá-lo e pensei em inclui-lo ao meu gado —
disse o homem. — Nossa cozinheira perdeu um filho na semana passada; ele se
afogou na banheira enquanto ela estava pendurando as roupas, e acho que seria
bom se ela criasse esse aí.
Haley e o estranho fumaram em silêncio durante um tempo, nenhum dos
dois parecendo disposto a trazer o assunto à baila. Finalmente, o homem voltou a
falar:
— Não estaria pensando em mais de dez dólares pra esse garoto, já que vai
se dispor dele de qualquer maneira, não é?
— Isso não é suficiente, de jeito nenhum — ele disse, e começou a fumar
novamente.
— Pois então, forasteiro, quanto quer por ele?
— Veja bem — respondeu Haley. — Eu podia criar ele eu mesmo, ou
mandar alguém criar. O neguinho é incomumente belo e saudável, e poderia
valer cem dólares daqui a seis meses; e, em um ou dois anos, ele valeria uns
duzentos, se eu tivesse ele no lugar certo. Então agora não vou aceitar nem um
centavo menos do que cinquenta dólares por ele.
— Ora, forasteiro! Isso é ridículo! — disse o homem.
— Nem um centavo a menos — retrucou Haley com um balanço de cabeça
decisivo.
— Eu darei trinta por ele — propôs o estranho. — Nem um centavo a mais.
— Eu te direi o que vou fazer — disse Haley, cuspindo de novo, com a
decisão renovada. — Vou dividir a diferença e fecho em quarenta e cinco; e esse
é o máximo que posso fazer.
— Bem, estou de acordo! — disse o homem depois de um intervalo.
— Feito! — disse Haley. — Onde você desembarca?
— Em Louisville — respondeu o homem.
— Louisville — repetiu Haley. — Muito bem, vamos chegar lá quase de
madrugada. O garoto vai estar dormindo, tudo bem; eu pego ele em silêncio, sem
choro. Tudo vai correr bem, gosto de fazer tudo com cuidado, odeio todo tipo de
agitação e escândalos.
E assim, depois que houve a transferência de algumas notas da carteira do
homem para a do mercador de escravos, ele voltou a fumar.
Fazia uma noite clara e tranquila quando o barco parou no cais de Louisville.
A mulher estivera sentada com o bebê nos braços, e agora dormia bem pesado.
Quando ouviu o nome do lugar ser dito, ela rapidamente colocou o bebê em um
pequeno berço formado pelo buraco entre dois caixotes, antes cobrindo o fundo
cuidadosamente com sua capa. Então correu até a beirada do barco, na esperança
de que, entre os vários atendentes dos hotéis que lotavam o cais, ela conseguisse
ver o marido. Com essa esperança, ela pressionou-se para a frente nas grades e,
esticando-se sobre elas, semicerrou os olhos intensamente sobre as cabeças que
se mexiam na encosta até que a multidão se colocou entre ela e o filho.
— Agora é a hora — disse Haley, pegando a criança dormente e entregando-
a ao estranho. — Não acorde ele e tente não fazer ele chorar. Seria um Deus nos
acuda com a garota. — O homem pegou o pacotinho com cuidado, e logo
desapareceu em meio à multidão que desembarcava no porto.
Quando o barco, estalando, grunhindo e soltando fumaça, se afastou do cais
e começava lentamente a seguir seu curso, a mulher voltou ao seu assento. O
mercador de escravos estava sentado lá e a criança havia desaparecido!
— Onde está meu filho? — ela começou, com uma surpresa desnorteada.
— Lucy — disse o mercador de escravos —, seu filho se foi. É melhor saber
agora do que depois. Veja bem, eu sabia que você não ia poder levar ele pro Sul,
e tive a chance de vender ele pra uma família de primeira linha que vai criar ele
melhor do que você pode.
O mercador de escravos tinha chegado àquele nível da perfeição cristã e
política, tão recomendada ultimamente por alguns pastores e políticos do Norte,
que passa completamente por cima de todas as fraquezas e preconceitos
humanos. O coração dele estava exatamente no lugar para o qual o seu, senhor, e
o meu também podem ser levados com o esforço e cultivo adequados. O olhar de
angústia e profundo desespero que a mulher deu para ele poderia ter perturbado
alguém menos experiente; mas Haley estava acostumado àquilo. Ele já vira
aquele mesmo olhar centenas de vezes. Você também pode acostumar-se com
coisas assim, meu amigo; e esse é o objetivo dos recentes esforços para tornarem
toda nossa comunidade do Norte acostumada a elas, para a glória da União.
Assim, o mercador de escravos apenas observou a angústia mortal que via
presente naquelas feições escuras, nas mãos crispadas e na respiração ofegante, e
simplesmente tentou adivinhar se ela gritaria e causaria uma comoção no barco,
pois, assim como outros que apoiavam aquele tipo de situação, ele
definitivamente não gostava de escândalos.
Mas a mulher não gritou. O golpe acertara em cheio e fundo demais em seu
coração para que pudesse chorar ou gritar.
Sentindo vertigem, ela sentou-se. As mãos soltas caíam sem vida ao lado do
corpo. Seus olhos estavam fixos à frente, mas ela não enxergava nada. Todo o
barulho e o burburinho do barco, o rugir do motor, se confundia em seus
ouvidos; e o coração partido e petrificado não tinha gritos nem lágrimas para
demonstrar seu sofrimento abissal. Ela estava absolutamente calma.
O mercador de escravos, que, considerando suas vantagens, era quase tão
humano quanto alguns de nossos políticos, parecia se sentir na obrigação de
consolar a mulher.
— Sei que, a princípio, essa situação é muito difícil, Lucy — disse ele —,
mas uma garota esperta e sensível como você não deve se deixar vencer por isso.
Veja bem, é necessário e não há o que fazer!
— Ah, não, senhor, não! — refutou a mulher com uma voz sufocada de
ódio.
— Você é uma negra esperta, Lucy! — ele insistiu. — Vou cuidar bem de
você e encontrar um bom lugar pra você lá no Sul; e logo, logo vai achar outro
marido. Uma garota tão bonita como você.
— Ah, senhor, por favor, não fale comigo agora — disse a mulher com uma
voz angustiada tão viva e tão forte que o mercador de escravos percebeu que
havia algo mais naquele caso que ia além de seu estilo de operação. Ele se
levantou e a mulher se virou, enfiando a cabeça dentro de sua capa.
O mercador de escravos andou de um lado para o outro durante um tempo,
então parou e olhou para ela.
“Pode sofrer o quanto quiser”, ele disse para si mesmo, “mas que fique
quieta. Deixe que ela chore um pouco e depois, aos poucos, se conformará.”
Tomás assistira a toda a transação, do começo ao fim, e tinha um perfeito
entendimento de seus resultados. Para ele, lhe pareceu algo absolutamente
terrível e cruel, pois sua pobre alma ignorante nunca aprendera a generalizar e a
ampliar as ideias. Se ele tivesse sido instruído por certos ministros do
cristianismo, poderia ter uma opinião melhor sobre o assunto e ter visto aquilo
como um incidente diário de um comércio legal; um comércio que é o apoio
vital de uma instituição que alguns clérigos americanos não creem ter mal
algum, mas que são inseparáveis de quaisquer outras relações da vida social e
doméstica. Tomás, no entanto, sendo um sujeito pobre e ignorante, cujas leituras
se confinavam inteiramente ao Novo Testamento, não podia se confortar e se
consolar com situações desse tipo. Sua própria alma sangrava por dentro, pela
injustiça com a pobre criatura sofredora, encurvada como junco em cima dos
caixotes. O sentimento, a vida, o sofrimento, a coisa imortal cujas leis
americanas tratavam friamente como se fossem os pacotes, fardos e caixas entre
os quais ela se recostava.
Tomás chegou mais perto e tentou dizer algo, mas ela apenas gemeu.
Sinceramente, e com lágrimas escorrendo pelo próprio rosto, ele falou de um
coração de amor nos céus, de um Jesus piedoso e da morada eterna; mas o
ouvido dela fora ensurdecido pela angústia, e o coração paralisado nada mais
sentia.
A noite chegou — calma, imóvel e gloriosa — brilhando com seus inúmeros
e solenes olhos de anjo, reluzentes e lindos, porém silenciosos. Não havia
conversa nem língua, nenhuma voz piedosa nem mão estendida vindo daquele
céu. Uma após a outra, as vozes dos negócios ou de prazeres se calavam, tudo no
barco dormia e as ondas na proa mal podiam ser ouvidas. Tomás se esticou em
cima de uma caixa e lá, deitado, ouvia, de quando em quando, um soluço ou um
grito abafado da criatura prostrada.
— Ah, Deus, o que farei? Ó, Senhor! Meu bom Deus, me ajude! — e assim
continuou, vez atrás da outra, até que o murmúrio se silenciou.
À meia-noite, Tomás acordou sobressaltado. Algo negro passara
rapidamente por ele até a lateral do barco, e então ele ouviu um barulho na água
e ergueu a cabeça; o lugar da mulher estava vazio! Ele se levantou, e procurou-a
ao seu redor, em vão. O pobre coração dilacerado finalmente parara de sangrar, e
o rio ondulava e corria tão crespo e reluzente como se não tivesse acabado de
engoli-la.
Paciência! Paciência! Vocês cujos corações se incham de indignação diante
de infâmias como essa. Nem um sopro de angústia, nem uma lágrima de
opressão é esquecida pelo Divino Consolador, o Deus da Glória. Em Seu seio
paciente e generoso, Ele aguenta a angústia do mundo; pois tão certo quanto ele
é Deus, “o dia da redenção chegará”.
O mercador de escravos acordou logo ao amanhecer e veio checar sua carga
viva. Agora era a vez dele de ficar perplexo.
— Onde se meteu aquela garota? — ele perguntou a Tomás.
Tomás, que aprendera a sabedoria do silêncio, não se sentiu disposto a contar
suas observações e suspeitas, e então disse que não sabia de nada.
— Ela com certeza não pode ter fugido à noite, por terra, pois eu estava
acordado e alerta, toda vez que o barco parava. Nunca confio essas coisa a outras
pessoa!
O discurso era cegamente endereçado a Tomás, como se isso fosse algo
especialmente interessante a ele. Tomás não disse palavra.
O mercador de escravos vasculhou o barco de uma ponta a outra, entre os
caixotes, fardos, barris, em volta do motor, nas chaminés, tudo em vão.
— Vamos lá, Tomás, seja honesto comigo — ele disse depois de uma busca
infrutífera quando veio até onde Tomás estava em pé. — Você sabe de alguma
coisa. Não precisa me dizer, sei que sabe. Vi a garota deitada aqui por volta das
dez horas, e de novo, à meia–noite, e de novo, entre uma e duas horas; e então,
às quatro horas ela tinha desaparecido, e você estava dormindo ali o tempo todo.
Você sabe de alguma coisa, não tem como.
— Bem, senhor — explicou Tomás —, perto de amanhecer, alguma coisa se
encostou em mim, e eu fiquei meio acordado; então ouvi um barulho na água,
daí acordei de vez, e a garota tinha sumido. Isso é tudo o que eu sei.
O mercador não estava chocado nem surpreso, pois, como dissemos antes,
ele estava acostumado a muitas coisas às quais você não está. Nem mesmo a
presença da Morte causa um arrepio solene nele. Ele já vira a Morte várias vezes
— ele a encontrou quando entrou no ramo, e se tornaram conhecidos —, e
apenas a considerava uma cliente difícil, que atrapalhava suas operações muito
injustamente; assim, ele apenas declarou que a garota era uma mercadoria e que
ele era um sujeito muito azarado e que, se as coisas continuassem como estavam,
ele não ganharia um centavo nessa viagem. Em resumo, Haley pareceu se
considerar definitivamente um homem infeliz. No entanto, não havia nada a ser
feito, já que a mulher tinha escapado para um lugar que nunca devolve um
fugitivo, nem mesmo diante da demanda de toda a gloriosa União. Haley, então,
sentou-se descontente com seu livro de contabilidade e colocou o corpo e a alma
que se foi sob a coluna das perdas!
— Ele é uma criatura terrível, este mercador, não é? Tão insensível! Chega a
dar medo, de verdade!
— Ah, mas ninguém dá nada por esses mercadores de escravos! Eles são
universalmente desprezados, nunca serão aceitos em nenhuma sociedade
decente.
Mas quem, senhor, faz o mercador? Quem deve ser o culpado? O homem
sábio, culto e inteligente que apoia o sistema do qual o mercador de escravos é
um resultado inevitável, ou o pobre do mercador em si? Você gera sentimento
público que pede pelo comércio dele, que o corrompe e o deprava até o ponto de
ele não se envergonhar mais disso; e em que é melhor do que ele?
Você não é educado e ele o ignorante? Não é da alta sociedade e ele da
baixa? Você não é refinado e ele grosseiro? Você não é engenhoso e ele inepto?
Ao concluir esses pequenos incidentes de um comércio legal, devemos
implorar para que o mundo não pense que os legisladores americanos sejam
completamente destituídos de humanidade, como, talvez, seja injustamente
inferido diante dos grandes esforços feitos pela nossa nação para proteger e
perpetuar essa espécie de tráfico.
Quem não reconhece que nossos grandes homens estão se superando, ao se
declararem contra o comércio escravo estrangeiro? Existem exemplares
perfeitos de Clarksons e Wilberforces, entre nós, a favor desse assunto, muito
edificante para ser ouvido e pensado. Comercializar negros da África, caro leitor,
é horrendo. É impensável! Mas comercializar os do Kentucky — ah, isso é algo
completamente diferente!
13
O ASSENTAMENTO QUACRE
Uma cena tranquila se coloca diante de nós. Uma cozinha grande, espaçosa e
impecavelmente pintada, o chão amarelo brilhante e liso, sem um grão de poeira;
um belo fogão a lenha lustrado; fileiras de panelas de estanho sugerindo coisas
inimagináveis ao apetite; cadeiras de madeira verdes e brilhantes, antigas e
maciças; uma cadeira de balanço com o assento de palha e uma almofada de
retalhos em cima, cuidadosamente feita de pequenos pedaços diferentes de
tecido de lã colorido; e outra um pouco maior, maternal e antiga, cujos braços
largos emanavam um convite à hospitalidade, bem como a sedução de seus
assentos de pena — uma cadeira antiga muito confortável, tentadora e, de acordo
com a apreciação doméstica e sincera, digna de uma muitas salas de visitas da
alta classe cobertas de veludo ou brocado; e nesta cadeira, balançando
suavemente para a frente e para trás, os olhos repousados sobre uma costura fina,
está nossa velha amiga Elisa. Sim, lá está ela, mais pálida e mais magra do que
em sua casa no Kentucky, com um mundo de sofrimento silencioso escondendo-
se sob a sombra de seus longos cílios, e marcando o contorno de seus lábios
macios. Era nítido como aquele coração um dia jovem agora tinha se tornado
duro e velho, sob a disciplina do pesado infortúnio. E ao levantar os grandes
olhos escuros para acompanhar as peraltices do pequeno Harry, que brincava de
um lado para o outro no chão como uma borboleta tropical, Elisa demonstrava
uma firmeza profunda e uma robusta determinação que não se percebia em seus
dias anteriores e mais felizes.
Ao lado dela sentava-se uma mulher com uma grande panela de estanho no
colo, na qual separava com cuidado alguns pêssegos secos. Devia ter cinquenta e
cinco ou sessenta anos, mas o rosto dela era daqueles que pareciam ser tocados
apenas pelo brilho e pela beleza. A touca branca lisa de tecido fino, feita
exatamente de acordo com o rígido padrão quacre, o lenço de musselina branco e
simples caído em pregas imaculadas sobre o seio, o xale e o vestido simplório,
demonstravam imediatamente a qual comunidade ela pertencia. Seu rosto era
redondo e rosado, coberto com uma penugem suave que lembrava a um pêssego
maduro. O cabelo, parcialmente grisalho pela idade, estava repartido
impecavelmente para trás, a partir da testa alta e relaxada, na qual o tempo ainda
não marcava nenhuma inscrição, exceto paz na terra e boa vontade aos homens;
e mais para baixo, brilhava um grande par de olhos castanhos claros, honestos e
carinhosos; era só olhar diretamente para eles para sentir que via o fundo do
coração mais bondoso e verdadeiro que jamais bateu no peito de uma mulher.
Tanto já foi dito e cantado sobre belas jovens; por que não despertam para a
beleza de uma mulher madura? Se alguém quiser se inspirar neste exemplo,
indicamos Rachel Halliday, sentada ali em sua pequena cadeira de balanço. O
objeto estalava e rangia, ou por ter passado muito frio no início da vida, ou por
algum tipo de efeito asmático, ou, talvez, por algum tipo de transtorno dos
nervos; todavia, à medida que a mulher se balançava gentilmente para a frente e
para trás, a cadeira mantinha um estalido suave, que teria sido intolerável em
qualquer outra cadeira. Mas o velho Simeon Halliday sempre dizia que, para ele,
aquilo era tão bom quanto qualquer música, e os filhos juravam que nunca
trocariam o barulho da cadeira de balanço da mãe por nada neste mundo. Por
quê? Porque, por mais de vinte anos, nada senão palavras de carinho,
admoestações gentis e bondade amorosa de mãe saíram daquela cadeira.
Inumeráveis dores da cabeça e do coração foram curadas ali, dificuldades
espirituais e terrenas foram resolvidas ali, todas por uma única mulher bondosa e
amável, que Deus a abençoe!
— E então, Elisa, ainda pensa em ir para o Canadá? — ela disse enquanto
olhava tranquilamente para os pêssegos.
— Sim, senhora — disse Elisa com firmeza. — Preciso seguir em frente.
Não ouso ficar por aqui.
— E o que fará quando chegar lá? Precisa pensar sobre isso, minha filha.
“Minha filha” saía naturalmente dos lábios de Rachel Halliday, pois seu
rosto e seu corpo faziam de “mãe” a palavra mais natural do mundo.
As mãos de Elisa tremeram, e algumas lágrimas caíram sobre o trabalho
elegante, mas ela respondeu decidida:
— Farei… qualquer coisa que conseguir encontrar. Espero encontrar algum
trabalho.
— Sabe que pode ficar aqui até quando quiser — disse Rachel.
— Ah, muito obrigada — agradeceu Elisa. — Mas — ela apontou para
Harry — eu não consigo dormir à noite; não consigo descansar. Na noite passada
sonhei que tinha visto o homem entrar pelo quintal — ela disse estremecida.
— Minha pobre criança! — comentou Rachel, secando os olhos. — Mas não
deve se sentir assim. O Senhor quis assim, e nenhum fugitivo jamais foi tirado
de nosso vilarejo. Confio que você não será a primeira.
Neste momento a porta se abriu e uma mulherzinha rosada, baixa e gorda
parou à porta, com um rosto alegre e feliz, como uma maçã madura. Assim
como Rachel, ela vestia-se de cinza sóbrio, com a musselina pregueada
impecavelmente sobre seu peito arredondado e robusto.
— Ruth Stedman — disse Rachel vindo alegremente para a frente. — Como
vai você, Ruth? — ela disse carinhosamente tomando–lhe ambas as mãos.
— Muito bem — respondeu Ruth, tirando sua touca de tecido e limpando o
pó com o lenço, deixando à mostra uma cabeça arredondada sobre a qual a touca
quacre assentava-se com um ar garboso, apesar das batidas e toques de suas
mãozinhas gorduchas, muito ocupadas em tentar arrumá-la. Alguns cachos de
cabelos encaracolados escaparam aqui e ali, e precisaram ser amansados e
ajeitados de volta ao seu lugar novamente; e então a visita que devia ter uns
vinte e cinco anos, afastou-se do espelho diante do qual estivera fazendo essas
arrumações e pareceu satisfeita — assim como todas as pessoas que olhassem
para ela estariam —, pois ela era, definitivamente, uma mulher saudável, de
coração bom e radiante, que alegrava o coração dos homens.
— Ruth, essa é minha amiga Elisa Harris; e esse é o garoto de quem lhe
falhei.
— Prazer em conhecê-la, Elisa — disse Ruth, apertando-lhe a mão, como se
Elisa fosse uma velha amiga por quem estivera esperando há tempos. — E este é
o seu garotinho; eu trouxe um doce para ele — ela disse, segurando um pequeno
coração para o garoto, que veio até ela olhando por entre os cachos, e,
timidamente, aceitou a guloseima.
— Onde está seu bebê, Ruth? — perguntou Rachel.
— Ah, já está vindo; mas Mary o pegou no colo assim que chegou e sumiu
com ele para o celeiro, para mostrá-lo às crianças.
Neste momento a porta se abriu e Mary, uma bela garota de rosto rosado e
grandes olhos castanhos como os da mãe, entrou com o bebê.
— Ah! Ha! — exclamou Rachel, vindo tomar a criança grande, branca e
gorda nos braços. — Ele está tão lindo, e como cresceu!
— Para ser sincera, cresceu mesmo! — disse a radiante Ruth ao pegar a
criança, arrancar-lhe o gorrinho de seda azul e várias outras camadas de roupas
extras; e, dando um puxãozinho aqui e uma ajeitadinha ali, arrumando-o,
aconchegando-o e beijando-o com carinho, ela colocou o bebê no chão para
recompor-se. A criança parecia bem acostumada a esse procedimento, pois
colocou o dedão na boca (como se aquilo fosse uma coisa muito especial) e logo
pareceu absorta em suas reflexões, enquanto a mãe se sentou e, pegando um par
de meias compridas de lã branca e azul, começou a tricotá-las com entusiasmo.
— Mary, é melhor encher a chaleira, não é? — a mãe sugeriu gentilmente.
Mary levou a chaleira até o poço e, voltando rápido, colocou-a sobre o
fogão, onde logo ela estava fervendo e soltando fumaça, um tipo de sinal de
hospitalidade e boa companhia. Os pêssegos também em obediência a alguns
sussurros gentis de Rachel, logo foram colocados, pelas mesmas mãos, em um
caldeirão sobre o fogo.
Rachel pegou uma tábua de cozinha limpíssima e, amarrando um avental,
prosseguiu tranquilamente a fazer biscoitos, antes dizendo a Mary:
— Mary, não acha melhor dizer ao John para pegar um frango? — e Mary
desapareceu conforme esperado.
— E como está Abigail Peters? — perguntou Rachel, enquanto amassava os
biscoitos.
— Ah, está melhor — respondeu Ruth. — Fui lá hoje de manhã, fiz a cama e
arrumei a casa. Leah Hills foi esta tarde, e assou pão e tortas suficientes para
durar alguns dias. E eu combinei de voltar para tirá-la da cama à noitinha.
— Eu irei amanhã e farei a limpeza que precisar, e darei uma olhada nas
costuras — disse Rachel.
— Ah! Isso será ótimo! — exclamou Ruth. — Ouvi dizer que Hannah
Stanwood está doente. John foi até lá na noite passada. Preciso ir até lá amanhã.
— John pode vir aqui para as refeições, se você precisar ficar o dia todo —
Rachel sugeriu.
— Obrigada, Rachel. Amanhã veremos. Aí vem o Simeon.
Simeon Halliday, um homem alto, ereto e musculoso, de calças e casaco
simplórios e um chapéu de abas largas, entrou na casa.
— Como vai, Ruth? — ele disse carinhosamente ao espalhar a palma da mão
larga para apertar a mãozinha gorda dela. — E como vai o John?
— Ah, John está bem, e todo o restante de nós também — informou Ruth
alegremente.
— Alguma notícia, pai? — perguntou Rachel, enquanto colocava os
biscoitos no forno.
— Peter Stebbins me disse que deveriam passar por aqui esta noite, com
amigos — disse Simeon, enfaticamente, enquanto lavava as mãos na pia de um
pequeno cômodo.
— Sim! — exclamou Rachel, parecendo pensativa e olhando de relance para
Elisa.
— Você disse que o nome dele era Harris? — Simeon perguntou a Elisa
quando voltou.
Rachel olhou rapidamente para o marido, quando Elisa respondeu
tremulamente:
— Sim — os medos mais terríveis dela eram que possivelmente tivessem
colocado anúncios sobre sua fuga.
— Mãe! — chamou Simeon, em pé na varanda, pedindo para Rachel ir até
lá.
— O que foi, pai? — disse Rachel, esfregando as mãos sujas de farinha
enquanto ia até a varanda.
— O marido dessa menina está no vilarejo e virá aqui esta noite — informou
Simeon.
— Não me diga isso, pai — exclamou Rachel com o rosto radiante de
alegria.
— É verdade. Peter desceu com a carroça ontem, até o último assentamento,
e encontrou uma velha e dois homens; um deles disse que seu nome era George
Harris e, pela história que contou, tenho certeza de que é ele. Ele é um sujeito
agradável e inteligente.
— Devemos contar a ela agora? — perguntou Simeon.
— Contemos a Ruth — disse Rachel. — Ruth, venha cá. — Simeon está me
dizendo que o esposo de Elisa está junto com o último grupo e virá aqui esta
noite.
A explosão de alegria da pequena quacre interrompeu a conversa. Ela deu
um pulo tão grande do chão, enquanto batia palmas com suas mãozinhas, que
uma mecha de cabelos encaracolados escapou de sua touca e pousou, brilhante,
sobre seu colarinho branco.
— Fique quieta, querida! — disse Rachel carinhosamente. Fique quieta
Ruth! Diga, acha que devemos contar a ela agora?
— Agora! Com certeza, neste exato momento. Se fosse o meu John, como
acha que me sentiria? Contem logo a ela.
— Você sempre dando demonstrações de amor ao próximo, Ruth! — disse
Simeon olhando para Ruth com o rosto iluminado.
— Com certeza. E não é para isso que fomos feitos? Se eu não amasse John
e o bebê, não poderia me colocar no lugar dela. Vamos, conte a ela, conte! — e
ela pousou as mãos persuasivamente no braço de Rachel. — Leve-a até o seu
quarto e me deixe fritar o frango enquanto lhe dá a notícia.
Rachel entrou na cozinha, onde Elisa estava cosendo, e abrindo a porta para
um quartinho pediu com gentileza:
— Venha aqui comigo, minha filha, tenho novidades para lhe contar.
O sangue inundou o rosto pálido de Elisa; ela levantou, tremendo de
ansiedade nervosa, e olhou na direção do filho.
— Não, não — disse Ruth, levantando-se suavemente e pegando as mãos
dela. — Não tenha medo; são boas notícias, Elisa. Vá, vá — e ela empurrou a
escrava gentilmente até a porta, fechando-a atrás dela, e, em seguida, virando-se,
pegou o pequeno Harry no colo e começou a beijá-lo.
— Você verá seu pai, meu pequeno. Sabia? Seu pai está vindo — ela disse,
vez após outra, enquanto o garotinho a olhava com curiosidade.
Enquanto isso, entre quatro paredes, outra cena acontecia. Rachel Halliday
puxou Elisa na direção dela e disse:
— O Senhor teve piedade de você, minha filha. Seu marido escapou da
morada da escravidão.
O sangue encheu de brilho o rosto de Elisa e lhe inundou o coração com um
jato súbito. Ela sentou-se, pálida e zonza.
— Tenha coragem, criança — disse Rachel, colocando a mão sobre a cabeça
de Elisa. — Ele está entre amigos que o trarão aqui esta noite.
— Esta noite! — Elisa repetiu. — Esta noite! — As palavras perderam o
sentido para ela, sua cabeça estava aérea e confusa. Por um momento, tudo ficou
embaçado.
A manhã seguinte foi de muita alegria na casa dos quacre. A “Mãe”, Rachel,
acordou bem cedo e cercada por garotas e garotos, os quais mal tivemos tempo
de apresentar aos nossos leitores ontem, e que obedeciam, todos, aos comandos
gentis de Rachel no trabalho de fazer o café da manhã — como “É melhor
você…”, ou ainda mais gentis, como “ Não acha melhor…” —; pois o café da
manhã nos exuberantes vales de Indiana é uma coisa complicada e multiforme,
como colher folhas de rosas e podar os arbustos no Paraíso, demandando outras
mãos além das da mãe original. Assim, enquanto John corria até a fonte para
buscar água fresca, e Simeon II peneirava a farinha para os pães de milho, e
Mary moía o café, Rachel ia de um lado para outro, com gentileza e
tranquilidade, fazendo biscoitos, cortando frango e espalhando um tipo de brilho
radiante por toda a casa. Se houvesse qualquer perigo de fricção ou colisão
proveniente do entusiasmo de tantos jovens ajudantes, o comentário carinhoso
dela, “Vamos! Vamos!” ou “Eu não faria isso”, era o suficiente para amainar as
dificuldades. Os bardos escreveram sobre o cinto de Vênus, que fez cabeças
enlouquecerem por todo o mundo, geração após geração. De nossa parte,
preferimos ter o cinto de Rachel Halliday, que impedia que as cabeças saíssem
do lugar e fazia tudo fluir com harmonia. Achamos que é, definitivamente, mais
adequado aos nossos tempos mais modernos.
Enquanto aconteciam todos os preparativos, Simeon, o pai, estava em
mangas de camisa diante de um espelhinho no canto, envolvido na atividade
antipatriarcal de se barbear. Tudo acontecia tão social, tranquila e
harmoniosamente na grande cozinha — parecia que todos sentiam prazer no que
estavam fazendo, havia uma atmosfera de confiança mútua e camaradagem por
todo lado —, até mesmo as facas e garfos tinham um estalido sociável quando
colocados à mesa; e o frango e o presunto chiavam com alegria e animação na
panela, como se estivessem gostando de ser cozidos; e quando George e Elisa e o
pequeno Harry saíram do quarto, depararam-se com boas-vindas tão calorosas e
felizes que não era à toa que para eles tudo lhes parecia um sonho.
Finalmente, estavam todos sentados para o café da manhã, enquanto Mary
estava diante do fogão assando panquecas, as quais, à medida que adquiriam o
verdadeiro tom marrom-dourado perfeito, eram transferidas com muita destreza
à mesa.
Rachel nunca parecera tão verdadeira e completamente feliz à cabeceira da
mesa. Havia tanto carinho maternal até mesmo na maneira como ela passava o
prato de bolos ou servia o café, que ela parecia dar vida à comida e à bebida que
oferecia.
Era a primeira vez que George sentava-se à mesa de um branco de igual para
igual; e ele sentou-se, a princípio, com um pouco de vergonha e estranheza, mas
tudo se dissipou e desapareceu como uma nuvem, sob o agradável raio de sol da
manhã dessa bondade abundante e simples.
Este era, de fato, um lar — lar — uma palavra cujo significado George
nunca conhecera; e a crença em Deus, a confiança na providência divina
começou a circundar seu o coração, à medida que, com uma nuvem dourada de
proteção e confiança, as dúvidas ateístas, sombrias, misantropas e pungentes, e o
desespero profundo se esvaíam diante da luz do Evangelho vivo, estampado em
rostos alegres, pregado através de milhares de atos inconscientes de amor e boa
vontade, que, assim como o copo de água fria dado em nome de um discípulo,
nunca deixará de ser recompensado.
— Pai, e se for descoberto de novo? — perguntou Simeon II enquanto
passava manteiga no pão.
— Pagarei minha pena — respondeu Simeon em voz baixa.
— Mas e se o colocarem na prisão?
— Você e a mãe não conseguem cuidar da fazenda? — perguntou Simeon,
sorrindo.
— A mamãe consegue fazer quase tudo — respondeu o garoto. — Mas não é
uma vergonha fazer leis como essas?
— Não deve falar mal das leis, Simeon — disse o pai com ar de gravidade.
— O Senhor apenas nos dá nossos bens terrenos para que possamos praticar a
justiça e a misericórdia; se nossos governantes querem que paguemos por isso,
assim seja.
— Bem, eu odeio todos esses donos de escravos! — declarou o garoto, que
se sentia tão anticristão quanto qualquer outro reformista moderno.
— Estou surpreso com você, meu filho — replicou Simeon. — Sua mãe
nunca lhe ensinou essas coisas. Eu faria o mesmo tanto pelo dono de escravo
quanto pelo escravo, se o Senhor os mandasse à minha porta em aflição.
Simeon II enrubesceu, no entanto a mãe apenas sorriu e disse:
— Simeon é o meu bom menino; ele ficará mais velho e, com o tempo, será
igualzinho ao pai.
— Espero, meu bom senhor, que não seja exposto a nenhuma dificuldade
por nossa causa — George disse ansiosamente.
— Não se preocupe, George. É para isso que viemos ao mundo. Se não nos
depararmos com problemas por uma boa causa, não somos dignos de nosso
nome.
— Mas, por mim — exclamou George. — Não poderia admitir.
— Então não tenha medo, amigo George, não é por você. Fazemos por Deus
e pelos homens — explicou Simeon. — E hoje podem passar o dia
tranquilamente, e esta noite, às dez horas, Phineas Fletcher os levará até o
próximo assentamento, vocês e os seus. Os perseguidores estão bem atrás de
vocês; não podemos esperar.
— Se este é o caso, por que esperar até de noite? — perguntou George.
— Estão a salvo aqui durante o dia, pois todos na colônia são amigos e estão
vigiando. Achamos mais seguro viajar à noite.
14
EVANGELINE
Uma vez que a trama da vida de nosso humilde herói se entrelaçou agora à
dos de classe mais alta, é mister uma breve introdução a eles.
Augustine St. Clare era filho de um abastado fazendeiro da Louisiana. A
família tinha origem no Canadá. Dos dois irmãos, muito parecidos em
temperamento e caráter, um tinha se fixado em uma próspera propriedade em
Vermont, e o outro se tornou um rico agricultor na Louisiana. A mãe de
Augustine era uma francesa de origem huguenote, cuja família emigrara para a
Louisiana na época dos primeiros colonizadores. Augustine e o outro irmão eram
os únicos filhos de seus pais. Tendo herdado da mãe um porte extremamente
delicado, durante muitos anos da infância ele foi, mediante recomendação
médica, enviado para os cuidados do tio em Vermont, a fim de que sua
constituição pudesse ser fortalecida pelo frio de um clima mais revigorante.
Na infância, era notado por um caráter extremamente sensível, mais afeito à
suavidade das mulheres do que à rudeza comum do seu próprio sexo. O tempo
tratou de revestir essa suavidade com o rosnado bruto da virilidade; no entanto,
apenas alguns poucos sabiam o quanto ela continuava viva e fresca em sua
essência. Seus talentos eram sempre superiores, ainda que sua mente sempre
mostrasse uma preferência pelo ideal e pela estética, e havia nele a repugnância
pela vida material do dia a dia, consequência natural do equilíbrio de suas ideias.
Logo após completar seu ensino superior, todo seu corpo foi tomado pela
efervescência intensa e passional da paixão romântica. A hora dele chegara — a
hora que chega só uma vez na vida; a estrela dele surgiu no horizonte, aquela
estrela que geralmente surge do nada, para ser lembrada como uma coisa dos
sonhos; e surgiu, para ele, em vão. Para mudarmos de assunto, ele viu e
conquistou o amor de uma mulher linda e inteligente, em um dos estados do
Norte, e os dois ficaram noivos. Ele voltou para o Sul a fim de tomar as
providências para o casamento quando, inesperadamente, o correio devolveu-lhe
suas cartas pelo correio com um pequeno bilhete do tutor da noiva,
comunicando–lhe que a moça se casaria com outro. Ensandecido, ele esperou,
em vão, assim como muitos outros fizeram, arrancar tudo aquilo de seu coração
com um esforço desesperado. Orgulhoso demais para suplicar ou buscar
explicação, ele atirou-se de uma vez no turbilhão da sociedade da moda, e, num
período de quinze dias, desde o recebimento da carta fatídica, foi aceito como
noivo da rainha da estação. Então, assim que as providências foram tomadas, ele
se tornou o esposo de uma figura elegante, com belos olhos brilhantes e escuros
e cem mil dólares; e, obviamente, todos o consideravam um sujeito feliz.
O casal apreciava a lua de mel e recebia convidados num refulgente círculo
de amigos em sua maravilhosa propriedade à beira do Lago Pontchartrain
quando, certo dia, trouxeram uma carta a ele, naquela letra inesquecível. A carta
lhe foi entregue durante uma onda de conversa alegre e festiva em uma sala
repleta de convidados. Ele ficou mortalmente pálido ao ver a letra, mas ainda
assim manteve a compostura e terminou o jogo de pândega que, naquele
momento, fazia com uma parceira a sua frente. Pouco depois, retirou-se do
círculo. Em seu quarto, sozinho, ele abriu e leu a carta, agora totalmente inútil e
desnecessária. Era dela, contando uma longa história da perseguição à qual fora
exposta pelo tutor da família para que se casasse com o filho dele; e relatou
como as cartas deles, durante muito tempo, pararam de chegar; como ela
escrevera sem parar, até ficar cansada e insegura; como a saúde dela se debilitara
diante de tanta ansiedade, e como, finalmente, ela descobrira toda a fraude que
se praticara sobre ambos. A carta terminava com palavras de esperança e
agradecimento, e promessas de afeição eterna, para o jovem cavalheiro infeliz,
mais amargas do que a própria morte. Ele lhe escreveu de volta imediatamente:
“Recebi sua carta, mas é tarde demais. Acreditei em tudo o que ouvi. Fiquei
desesperado. Estou casado e tudo acabou. Apenas esqueça; é tudo o que nos
resta.”
E assim terminou toda a vida romântica e ideal de Augustine St. Clare. Mas,
a realidade continou – a realidade, assim como a onda lamacenta, insossa e
vazia, quando parte a onda azul e brilhante, na companhia dos barcos deslizantes
e navios de bandeiras brancas, da música dos remos e das águas farfalhantes,
deixando apenas ela, tediosa, lodosa, incipiente – excessivamente real.
É óbvio que nos romances as pessoas têm os corações partidos e morrem de
amor, e isso é o fim de tudo; e, em uma história, isso é muito conveniente. Mas,
na vida real, não morremos quando se acaba tudo o que nos traz alegria na vida.
Sempre há por vir o comer, o beber, o vestir, o caminhar, o visitar, o comprar, o
vender, o conversar, o ler e tudo o que forma aquilo que normalmente chamamos
de vida; e foi isso o que restou a Augustine. Se sua esposa fosse uma mulher
plena, ela teria tomado uma atitude – como as mulheres fazem – para remendar
as fibras rotas de sua existência, entrelaçando-as novamente num tecido alegre e
viçoso. No entanto, Marie St. Clare nem ao menos percebia que as tramas foram
desfeitas. Como dissemos antes, ela era uma figura elegante, um par de olhos
esplêndidos e cem mil dólares; e nenhum desses atributos serviriam, em
absoluto, para curar uma alma enferma.
Quando Augustine, pálido como a morte, foi encontrado deitado no sofá e
usou uma súbita dor de cabeça como pretexto de seu desânimo, a esposa lhe
recomendou que cheirasse raspas de chifres de veado; e quando a palidez e a dor
de cabeça retornaram semana após semana, ela disse apenas que nunca imaginou
que o Sr. St. Clare fosse doente; mas parecia que o esposo era muito suscetível a
enxaquecas e isso era uma coisa muito desagradável para ela, pois ele não
gostava de sair em sua companhia, e era muito estranho sair tanto sozinha,
quando tinham acabado de se casar. Em seu coração, Augustine estava feliz por
ter se casado com uma mulher tão insensível; mas, à medida que os brilhos e as
civilidades da lua-de-mel se foram, ele descobriu que uma jovem linda, que
viveu a vida toda paparicada e servida, revelava-se uma senhora intragável na
vida doméstica. Marie nunca tivera muita capacidade de afeição ou muita
sensibilidade, e o pouco que tinha se perdia em seu egoísmo intenso e
inconsciente, um egoísmo ainda mais desolador pela obtusidade e profunda
ignorância às necessidades alheias. Desde pequena, ela fora cercada de serviçais
que viviam apenas para atender aos seus caprichos; a ideia de que eles tinham
sentimentos e direitos nunca lhe passou pela cabeça, nem mesmo de longe. Filha
única, o pai nunca lhe negara nada que estivesse ao alcance da possibilidade
humana; e quando fora apresentada à sociedade, linda, instruída e herdeira de
uma fortuna, obviamente tinha todos os homens, elegíveis ou não, suspirando a
seus pés, e ela não tinha dúvidas de que Augustine era um homem de muita sorte
por ter conseguido se casar com ela. É um grande erro supor que uma mulher
sem coração será credora na troca de afeição. Não há sobre a terra criatura mais
extorsiva e cruel do que uma mulher absolutamente egoísta; e quanto menos ela
ama, mais exige amor, ciumenta e meticulosamente, até a última gota. Assim,
quando St. Clare deixou de lado as galanterias e pequenas atenções que fluíram
no início da corte, descobriu que a sultana não estava pronta para abrir mão de
seu escravo. Houve abundância de lágrimas, zangas e pequenas tormentas;
houve desagrados, sofrimento e acusações. St. Clare era bondoso e amável, e
tentou amenizar tudo com presentes e galanteios; e quando Marie deu à luz uma
linda filha, ele sentiu-se, por algum tempo, genuinamente despertado para algo
parecido com ternura.
A mãe de St. Clare fora uma mulher de notável elevação espiritual e
honestidade de caráter, e ele deu à filha o nome de sua mãe, esperando, de
coração, que ela se tornasse uma réplica da avó. O evento foi marcado com o
ciúme petulante da esposa, e ela via a profunda devoção do marido à criança
com suspeita e desgosto; tudo o que era dado à filha parecia estar sendo tirado
dela. Após o nascimento da criança, a saúde de Marie piorou gradualmente. Uma
vida de inatividade constante, tanto do corpo quanto da mente, a fricção entre o
tédio e o descontentamento eternos, unidos à fraqueza comum que se impõe à
maternidade, ao longo de alguns anos transformou a bela florescente em uma
mulher amarelada, pálida e doente, cujo tempo era dividido entre a variedade de
doenças imaginárias de quem se considerava, em todos os sentidos, a criatura
mais adoentada e sofredora deste mundo.
Não havia fim para as inúmeras reclamações dela; mas sua preferida parecia
ser a enxaqueca, a qual, às vezes, a confinava no quarto durante três dos seis
dias. E, obviamente, como toda a organização da casa ficava a cargo dos
serviçais, St. Clare achava seu lar qualquer coisa exceto confortável. Sua única
filha era excessivamente delicada, e ele temia que, sem ninguém para cuidá-la e
protegê-la, a vida e a saúde da garota poderiam se sacrificar à ineficiência da
mãe. Ele a levara para uma viagem a Vermont, e convencera sua prima, a Srta.
Ofélia St. Clare, a voltar com ele para sua residência no Sul; e agora estão
voltando no barco, onde os apresentamos aos nossos leitores.
E enquanto os domos e as torres distantes de Nova Orleans se erguem à
distância, ainda temos tempo de apresentar a Srta. Ofélia.
Qualquer um que já tenha viajado pelos estados da Nova Inglaterra irá
lembrar, em algum vilarejo fresco, do grande casarão da fazenda, com seus
jardins verdejantes e limpos, sombreados pela folhagem densa e maciça dos
plátanos; e também se lembrará da sensação de ordem e tranquilidade, da
perpetuação e do repouso imutável que parece pairar sobre todo o lugar. Nada
perdido ou fora do lugar; nem uma madeira solta na grade, nem um pedacinho
de lixo no jardim relvado, com seus maços de lilases crescendo debaixo das
janelas. Do lado de dentro, os cômodos são amplos e limpos, onde nada parece
feito ou à espera de ser feito, onde tudo está, hoje e sempre, rigidamente no
lugar, e onde todos os afazeres domésticos acontecem com a pontualidade exata
de um relógio antigo no canto da parede. No “Canto da Família”, como é
chamado, o viajante se lembrará da solene e respeitável estante de livros, com
suas portas de vidro, onde a História Antiga de Rollin, O paraíso perdido de
Milton, O peregrino, de Bunyan e a Bíblia da Família, de Scott ficavam lado a
lado em uma ordem decorosa, juntamente com uma variedade de outros livros,
igualmente solenes e respeitáveis. Não há serviçais na casa, mas a senhora de
óculos, com a touca alvíssima, que se senta para coser todas as tardes entre as
filhas, como se nada tivesse feito ou não tivesse nada a fazer – ela e as garotas,
em alguma hora do dia há tempos esquecida, já haviam “terminado o trabalho”,
e durante o restante do tempo, provavelmente em todas as horas em que você as
visse, o trabalho estaria “pronto”. O velho chão da cozinha nunca parece sujo ou
manchado; as mesas, as cadeiras e os diversos utensílios de cozinha nunca
parecem desarrumados ou desorganizados, apesar de três ou, às vezes, quatro
refeições serem servidas ali, apesar de as roupas serem lavadas e passadas ali, e
apesar de quilos de manteiga e queijo, de algum modo misterioso e silencioso,
serem feitos ali.
Foi nesse tipo de fazenda, nesse tipo de casa e de família que a Srta. Ofélia
viveu tranquilamente durante quarenta e cinco anos, até que o primo a convidou
para visitar sua mansão sulista. A mais velha de uma grande família, ela ainda
era considerada por seu pai e sua mãe como uma das “crianças”, e o convite para
ir a Orleans foi dos eventos mais importantes no círculo familiar. O velho pai de
cabeça grisalha tirou o Atlas de Morse da estante e calculou a latitude e
longitude exatas; em seguida, leu Viagens ao Sul e ao Oeste, de Flint, para ter
uma ideia das características da região.
A mãe bondosa perguntava, ansiosamente, “se Orleans não era um lugar
amaldiçoado”, dizendo que “era como se ela estivesse indo para as Ilhas
Sanduíche”, ou “para algum lugar selvagem”.
Era sabido pelo pastor, pelo médico e pela chapelaria da Srta. Peabody que
Ofélia St. Clare estava “falando sobre” ir para Orleans com o primo e,
obviamente, o vilarejo inteiro não podia fazer outra coisa senão ajudar nesse
processo de falar sobre o assunto. O pastor, com fortes inclinações
abolicionistas, estava em dúvida se um passo como esse não encorajaria, de
alguma forma, os sulistas a manterem seus escravos; já o médico, um
colonialista ferrenho, era da opinião que a Srta. Ofélia tinha de ir, para mostrar
às pessoas de Orleans que não temos desavenças com eles, apesar de tudo. De
fato, ele era da opinião que os sulistas precisavam de apoio. Quando, no entanto,
o fato de que ela decidira chegou ao conhecimento público, Ofélia fora
solenemente convidada para o chá por todos os amigos e vizinhos num espaço
de duas semanas, e suas perspectivas e seus planos devidamente questionados e
debatidos. A Srta. Moseley, que vinha até a casa para ajudar a preparar o guarda-
roupa, tinha acesso a informações diárias de suma importância relacionadas ao
progresso do guarda-roupa da Srta. Ofélia, que ficara a cargo dela fazer.
Acreditava-se que o Escudeiro St. Clare, como era normalmente chamado na
vizinhança, contara cinquenta dólares e os dera a Srta. Ofélia, e lhe disse para
comprar qualquer roupa que quisesse; e que os dois novos vestidos de seda e o
chapéu tinham vindo de Boston. Com relação à propriedade desse gasto
extraordinário, a opinião pública se dividia; alguns afirmavam que era
apropriado, considerando-se toda a situação, pois era uma vez na vida, enquanto
outros afirmavam resolutamente que o dinheiro seria mais bem gasto se tivesse
sido enviado aos missionários; mas todos concordavam que nunca tinham visto
uma sombrinha tão linda como aquela que chegara de Nova York, e que ela tinha
um vestido de seda que poderia andar sozinho, a despeito do que dissessem de
sua dona. Também se falava de um lenço de bolso bordado; e os falatórios
chegavam ao ponto de dizer que a Srta. Ofélia tinha um lenço de bolso com
rendas em toda a volta; dizia-se até que era trabalhado nas pontas, contudo esse
último ponto nunca foi comprovado satisfatoriamente, e permanece, até hoje, um
mistério.
A Srta. Ofélia, como foi descrita, está ali adiante em um vestido de viagem
de linho marrom bem brilhante, alta, de porte quadrado e angular. Seu rosto é
fino e de traços bem angulosos; os lábios comprimidos, como os de alguém
habituado a tomar decisões por si só no que diz respeito a todos os assuntos, ao
mesmo tempo em que os olhos escuros e perspicazes têm um movimento
particularmente curioso e alerta e vagam por tudo, como se procurassem algo
para tomar conta.
Todos os movimentos dela eram precisos, firmes e enérgicos; e, apesar de
ela não ser muito falante, quando falava suas palavras eram notavelmente
objetivas e diretas ao ponto.
Quanto aos hábitos, Ofélia era a personificação da ordem, do método e da
exatidão. Na pontualidade, ela era tão inevitável quanto um relógio, e tão
inexorável quanto um motor de locomotiva, e tinha o mais completo desprezo e
abominação por qualquer coisa contrária ao seu caráter.
O grande pecado dos pecados, aos olhos dela – a soma de todos os males –
era expressado por uma palavra muito comum e importante em seu vocabulário:
“ociosidade”. Seu desprezo final e último consistia em uma pronúncia muito
enfática da palavra “ociosidade”; e isso era caracterizado por todas as maneiras
de procedimentos que não tinham uma relação direta e inevitável com a
realização de algum propósito previamente estabelecido. Pessoas que não faziam
nada ou que não sabiam exatamente o que iriam fazer, ou aqueles que não
usavam o caminho mais curto para realizar a tarefa colocada em suas mãos, eram
objetos de seu completo desprezo, um sentimento demonstrado menos
frequentemente por qualquer palavra dita do que por um tipo de amargura fria,
como se ela desprezasse comentar qualquer coisa com relação ao assunto.
Quanto aos dotes intelectuais, ela tinha uma mente clara, forte e ativa,
conhecia profundamente história e os antigos clássicos ingleses, e raciocinava
com veemência, dentro de algumas limitações. Seus dogmas religiosos estavam
formados, inventariados de forma mais positiva e distinta possível, e tão
organizados quanto os pacotes de sua bagagem; já havia o suficiente e nunca
haveria outros. Assim também eram as ideias dela com relação à maioria dos
aspectos práticos da vida, tais como os cuidados domésticos em todas as suas
ramificações e as várias relações religiosas de seu vilarejo de origem. E, como
raiz de tudo, mais profunda, mais alta e mais ampla do que qualquer coisa,
estava o princípio mais forte de todo seu ser: a consciência. Em nenhum outro
lugar a consciência é tão dominante e tão intrínseca quanto nas mulheres da
Nova Inglaterra. É a pedra da fundação, que repousa mais fundo e se levanta até
o topo das montanhas mais altas.
A Srta. Ofélia era a escrava absoluta do “dever”. Uma vez em seu “caminho
do dever”, como ela sempre o descrevia, qualquer que fosse a direção, nem o
fogo nem a água a impediriam de realizá-lo. Ela pularia dentro de um poço ou se
colocaria diante da boca de um canhão carregado se tivesse certeza de estar
cumprindo seu dever. Seu padrão de retidão era tão alto, tão abrangente, tão
preciso, e oferecia tão poucas concessões à fragilidade humana que, ainda que
tentasse alcançá-lo com determinação heroica, ela, na verdade, nunca o atingia,
e, obviamente, era sempre atormentada pela sensação de deficiência constante e,
muitas vezes, perturbadora; isso imprimia um ar um tanto quanto sombrio e
severo a sua personalidade religiosa.
E como neste mundo a Srta. Ofélia haveria de se dar bem com Augustine St.
Clare – alegre, brincalhão, impontual, inútil e cético, em suma, alguém que
caminha com liberdade insolente e despreocupada sobre cada um de seus hábitos
e opiniões mais caros?
Para dizer a verdade, a srta Ofélia o adorava. Quando garotinho, fora ela que
lhe ensinara o catecismo, remendara suas roupas, penteara seus cabelos e o criara
à maneira que ele deveria crescer; e tendo o coração dela um lado carinhoso,
Augustine, assim como geralmente fazia com a maioria das pessoas,
monopolizara grande parte só para ele, e foi assim que ele conseguiu convencê-
la muito facilmente de que o “caminho do dever” ficava na direção de Nova
Orleans, e que ela precisava vir com ele para tomar conta de Eva e evitar que
tudo se desmantelasse e fosse às ruínas diante das doenças frequentes de sua
esposa. A ideia de um lar sem ninguém para cuidar dele tocou o coração da
prima; além disso, ela amava a adorável pequenina como poucos ousavam não
fazê-lo. E, apesar de ver Augustine como um pecador, mesmo assim ela o
amava, ria das piadas dele e era tão indulgente com suas faltas que aqueles que a
conheciam achavam absolutamente incrível. No entanto, nosso leitor deverá
descobrir outras características da Srta. Ofélia por meio de suas próprias
impressões.
Lá está ela, agora sentada em seu aposento, cercada por uma variedade de
pequenas e grandes sacolas de tecido, caixas, cestas, cada uma contendo alguma
responsabilidade única, que ela está arrumando, organizando, empacotando ou
amarrando com uma expressão de grande seriedade.
— Eva, você cuidou das suas coisas.? Claro que não; as crianças nunca
cuidam: lá está a sacola de tecido de bolinhas e a caixinha de papelão azul com
seu melhor chapéu; com essa são duas; e a sacolinha de borracha indiana, três; e
minha caixa de linha e agulha, são quatro; e minha chapeleira, cinco; e minha
caixa de colarinhos, seis; e aquele baú de pele, sete. O que fez com a sua
sombrinha? Vá pegá-la e deixe-me colocar um papel em volta dela, e amarrá-la
ao meu guarda-chuva, com a minha sombrinha; isso mesmo.
— Mas, titia, nós só estamos indo para casa. Por que tudo isso?
— Para deixar tudo arrumado, minha pequena. As pessoas devem cuidar de
seus pertences, se quiserem ter as coisas; e agora, Eva, já guardou seu dedal?
— Sinceramente, não sei, titia.
— Bem, não se preocupe. Olharei dentro de sua caixa – dedal, cera, dois
carretéis, tesouras, faca, estilete; tudo bem, coloque-o aqui. Minha pequena,
como fez quando veio apenas com seu Papa? Imagino que tenha perdido todas as
suas coisas.
— Bem, titia, eu perdi muitas coisas; e então, quando parávamos em algum
lugar, o papai comprava outra, seja lá o que fosse.
— Que Deus tenha piedade de nós, criança! Que modo de resolver as coisas!
— Era uma maneira muito fácil, titia — explicou Eva.
— É de uma ociosidade terrível — disse a titia.
— Titia, o que faremos agora? — perguntou Eva. — Aquele baú está cheio
demais para fechar.
— Pois deve fechar — disse a titia com um ar de general, enquanto apertava
as coisas dentro e subia em cima da tampa; mesmo assim, ainda sobrava um
pequeno espaço na boca do baú.
— Suba aqui, Eva! — disse a Srta. Ofélia cheia de coragem. — O que foi
feito pode ser refeito. Este baú tem de ser fechado e trancado; não temos
alternativa.
E o baú, intimidado e duvidoso após essa colocação resoluta, desistiu. O
fecho encaixou precisamente no buraco e a Srta. Ofélia virou a chave e guardou-
a triunfante.
— Agora estamos prontas. Onde está seu Papa.? Acho que está na hora
dessa bagagem ser despachada. Dê uma olhada lá fora, Eva, e veja se encontra
seu Papa.
— Ah, sim, ele está lá do outro lado da cabina dos cavalheiros comendo uma
laranja.
— Não é possível que saiba o quanto estamos perto — comentou a titia. —
Não é melhor você correr e contar a ele?
— Papa nunca está com pressa para nada — Eva falou. — E ainda não
chegamos ao desembarcadouro. Venha até as grades, titia! Olhe! Lá está nossa
casa, lá no final da rua!
O barco prepara-se agora, com rugidos pesados, como um enorme monstro
cansado, para se colocar entre os vários barcos a vapor no porto. Eva apontava
alegremente para as várias torres, os domos e marcos através dos quais
reconhecia sua cidade natal.
— Sim, sim, querida; muito linda! — disse a Srta. Ofélia. — Mas,
misericórdia! O barco já parou! Onde está seu pai?
E agora começa o costumeiro turbilhão do desembarque – serviçais correndo
para vinte lugares de uma vez só, homens puxando baús, sacolas, caixas,
mulheres chamando ansiosamente por seus filhos, e todos se juntando em uma
massa densa até a prancha em direção ao desembarcadouro.
A Srta. Ofélia sentou-se resoluta sobre o último baú conquistado e,
organizando todos seus pertences e posses em boa ordem militar, parecia
decidida a defendê-los até o final.
Choviam sobre ela pedidos de “Posso carregar o seu baú, madame?”, “Posso
levar sua bagagem?”, “Deixe-me cuidar de sua bagagem, sinhá”, “Devo carregar
essas aqui, sinhá?”, que continuava, inabalada. Sentou-se com determinação
absoluta, ereta como uma agulha enfiada em uma parede, agarrada a seu pacote
de guarda–chuvas e sombrinhas, e respondendo com determinação suficiente
para causar consternação até mesmo a um perseguidor, perguntando a Eva a cada
intervalo, “onde seu Papa estaria com a cabeça; ele não poderia ter caído, mas
alguma coisa com certeza acontecera” – e quando ela começou a ficar realmente
preocupada, ele apareceu com seu passo indiferente, como de costume, dando a
Eva um quarto da laranja que estava comendo e disse:
— Bem, prima Vermont, imagino que esteja pronta.
— Estou pronta, esperando, há quase uma hora — retrucou a Srta. Ofélia. —
Estava ficando seriamente preocupada com você.
— Aqui está um sujeito esperto — ele disse. — Bem, a carruagem está
esperando e a multidão agora já saiu, assim poderemos sair de uma maneira
decente e cristã, sem sermos empurrados ou apertados. Aqui — ele acrescentou
para um cocheiro atrás dele. — Leve essas coisas.
— Irei junto para verificar como ele as coloca na carruagem — informou a
srta Ofélia.
— Ah, prima, para quê? — perguntou St.Clare.
— Bem, de qualquer modo, eu mesma carrego isto, e isto e isto aqui — disse
Ofélia escolhendo três caixas e uma sacola.
— Minha querida Srta. Vermont, francamente, não deve atravessar as
Montanhas Verdes e chegar até nós dessa maneira. Deve se adaptar pelo menos
um pouco ao princípio sulista, e não sair por aí carregando tudo isso. Vão pensar
que é uma criada; dê tudo ao cocheiro; ele as carregará como se fossem ovos.
A Srta. Ofélia olhou desesperadamente quando o primo lhe tirou todos os
tesouros, e regozijou de alegria ao se encontrar mais uma vez entre eles na
carruagem, sãos e salvos.
— Onde está Tomás? — perguntou Eva.
— Ah, ele está lá fora, minha querida. Vou levar Tomás para sua mãe como
oferta de paz, para compensar por aquele sujeito bêbado que virou a carruagem.
— Ah, Tomás será um cocheiro esplêndido, tenho certeza — disse Eva. —
Ele nunca ficará bêbado.
A carruagem parou em frente a uma mansão antiga, construída naquela
estranha mistura de estilo francês e espanhol, cujos exemplares encontramos em
algumas partes de Nova Orleans. Ela fora construída ao estilo mouro — uma
construção quadrada com um átrio no meio, dentro do qual a carruagem passava
por um portal arqueado. O átrio, do lado de dentro, fora evidentemente decorado
para agradar um ideal pitoresco e voluptuoso. Galerias largas percorriam todos
os quatro lados, cujos arcos mouriscos, pilares estreitos e ornamentos em
arabescos levavam o pensamento para longe, como num sonho, para o reino de
romance oriental na Espanha. No meio do átrio, uma fonte alta espirrava água
prateada, o jato interminável caindo em uma bacia de mármore emoldurada por
uma densa borda de violetas perfumadas. A água na fonte, clara como cristal,
estava repleta de vida com uma miríade de peixes dourados e prateados,
reluzindo de um lado para o outro como se fossem joias vivas. Ao redor da fonte
havia uma passarela pavimentada com pedaços de mosaico assentados em vários
padrões fantásticos; e isso, também, era cercado por grama, tão macia quanto um
veludo verde, enquanto uma alameda para a carruagem circundava tudo. Duas
grandes laranjeiras, agora perfumadas pelas flores, faziam uma sombra deliciosa
e, colocados em círculo sobre a grama, havia vasos de mármore de escultura
arabesca contendo as mais variadas plantas floridas dos trópicos. Romãzeiras
enormes, com suas folhas brilhantes e flores cor de fogo, jasmins-da-Arábia de
folhas escuras e formato de estrelas, gerânios, rosas luxuriantes penduradas sob a
abundância de flores, jasmins dourados, verbenas com aroma de limão, todas
entrelaçavam seus buquês e fragrâncias, enquanto aqui e ali a mística aloé, com
suas folhas estranhas e grossas, como um velho feiticeiro, sentava-se com
inexplicável grandeza entre as flores mais perecíveis e o perfume à sua volta.
As galerias que circundavam o átrio estavam cobertas por uma cortina de
algum tipo de tecido mourisco, e podia ser puxada para tampar os raios de sol.
No geral, a aparência do lugar era luxuosa e romântica.
À medida que a carruagem entrava, Eva parecia um passarinho pronto para
sair da gaiola, com um entusiasmo quase selvagem.
— Ah, não é linda, maravilhosa? Minha queria e amada casa! — ela disse à
Srta. Ofélia. — Ela não é linda?
— É um lugar muito bonito — disse a Srta. Ofélia ao descer da carruagem.
— Apesar de me parecer um pouco velha e pagã.
Tomás desceu da carruagem e olhou ao redor com um ar de admiração
calmo e tranquilo. O negro, devemos lembrar, é um exemplar exótico de um dos
lugares mais lindos e magnificentes do mundo, e guarda, no fundo de seu
coração, uma paixão por tudo o que é esplêndido, rico e belo; paixão esta que,
grosseiramente estimulada pelo gosto inculto, faz com que os brancos, mais frios
e mais corretos, o ridicularize.
St. Clare, que, em seu coração, era um amante da poesia, sorriu diante do
comentário que a Srta. Ofélia fizera sobre sua propriedade, e virando-se para
Tomás, que estava em pé olhando tudo ao redor, o rosto preto brilhante reluzindo
com perfeita admiração, ele disse:
— Tomás, meu rapaz, isso parece lhe agradar!
— Sim, senhor, tudo parece perfeito! — comentou Tomás.
Tudo isso aconteceu em um minuto, enquanto baús eram arrastados, os
carregadores pagos e uma multidão de todas as idades e tamanhos – homens,
mulheres e crianças – vinha correndo pelas galerias, tanto de baixo quanto de
cima, para ver o amo entrar. Diante deles destacava-se um jovem mulato bem
vestido, evidentemente um personagem muito distingué, trajando uma roupa de
última moda e acenando graciosamente um lenço de cambraia perfumado na
mão.
Esse personagem empenhava-se, com grande jovialidade, em dispersar o
bando de domésticos para o outro lado da varanda.
— Para trás! Todos vocês. Que vergonha! — ele bradou com tom autoritário.
— Como ousam se meter nos assuntos domésticos do amo na primeira hora de
seu retorno?
Todos pareceram intimidados pelo discurso elegante, falado com tanta
pompa, e permaneceram agrupados a uma distância respeitável, exceto por dois
carregadores robustos que vieram e começaram a carregar a bagagem.
Graças à arrumação sistemática do Sr. Adolfo, quando St. Clare virou-se
após ter pagado o carregador, não havia ninguém à vista, exceto o próprio
Adolfo, atraente em seu colete de cetim, corrente de ouro e calças brancas, e
fazendo uma mesura com graça e suavidade inexpressáveis.
— Ah, Adolfo, é você? — perguntou o mestre, oferecendo-lhe a mão. —
Como vai, meu rapaz? — e Adolfo se inclinou para a frente, fazendo um
discurso improvisado e fluente que elaborara com o máximo de cuidado nos
últimos quinze dias.
— Muito bem, muito bem — disse St. Clare, continuando com seu
costumeiro ar de zombaria negligente. — Isso foi muito bom, Adolfo. Cuide
bem da bagagem. Irei ver minha gente daqui a pouco — e, dizendo isso, ele
acompanhou a Srta. Ofélia até uma sala grande que dava para a varanda.
Enquanto tudo isso acontecia, Eva tinha voado como um pássaro,
atravessando o pórtico e a sala, entrando em um pequeno gabinete que também
dava para a varanda.
Uma mulher alta, pálida e de olhos escuros levantou-se parcialmente do sofá
onde estava repousando.
— Mamãe! — exclamou Eva, em um tipo de explosão, jogando–se no
pescoço da mulher, abraçando-a sem parar.
— Está bem, já chega. Tome cuidado, minha fiha, não faça minha cabeça
começar a doer de novo — disse a mãe depois de lhe dar um beijo lânguido.
St. Clare entrou, abraçou a esposa ao verdadeiro estilo conjugal ortodoxo, e
em seguida lhe apresentou a prima. Marie pousou os olhos grandes sobre a prima
com um ar de curiosidade, e a recebeu com polidez apática. Uma multidão de
criados se empurrava à porta de entrada, e, entre eles, uma mulher mulata de
meia idade, de aparência muito respeitável, estava à frente, tremendo de
expectativa e alegria.
— Ah, lá está Mammy! — disse Eva e atravessou o gabinete correndo,
atirando-se nos braços dela e beijando-a repetidamente.
Esta mulher não dizia que ela lhe fazia a cabeça doer, mas, ao contrário, ela
a abraçava, e ria e chorava, até o ponto de sua sanidade ser colocada em cheque.
E, ao se desvencilhar dela, Eva ia de um para o outro, cumprimentando e
beijando, de uma maneira que a Srta. Ofélia, mais tarde, declarou quase lhe
embrulhar o estômago.
— Veja só! — declarou a Srta. Ofélia. — Vocês, crianças do Sul, podem
fazer algo que eu não podia.
— O quê, rezar? — perguntou St. Clare.
— Bem, eu sempre quis ser gentil com as pessoas, e não faria nada para
magoá-las, mas, beijar…
— Pretos — continou St. Clare. — Não os beijaria, não é?
— Sim, isso mesmo. Como ela consegue?
St. Clare riu ao entrar no corredor.
— Olá, o que está acontecendo aqui? Ei, vocês todos, Mammy, Jimmy,
Polly, Sukey, estão felizes em ver o amo novamente? — ele perguntou enquanto
cumprimentava a todos com apertos de mão. — Cuidado com os bebês! — ele
acrescentou ao tropeçar em um bebezinho todo sujo que engatinhava. — Se pisar
em alguém, me avisem.
Houve uma abundância de risadas e muitas bênçãos ao amo enquanto St.
Clare distribuía alguns trocados entre eles.
— Agora sejam bons garotos e garotas e saiam daqui! — ele ordenou; e todo
o grupo, claros e escuros, atravessou a porta e desapareceu pela grande varanda,
seguido por Eva, que carregava uma grande bolsa no ombro, que ela estivera
enchendo com maçãs, nozes, doces, laços, rendas e brinquedos de todos os tipos
durante toda sua viagem de volta para casa.
Quando St. Clare virou-se para sair, seus olhos pousaram em Tomás, que
estava em pé incomodado, de um pé ao outro, enquanto Adolfo se recostava
indiferentemente sobre o corrimão, estudando Tomás com uma luneta de ópera,
com uma pose digna de qualquer dândi.
— Ei, seu patife! — exclamou o amo, derrubando a luneta de ópera. — É
assim que se trata um acompanhante? Parece-me, Dolf — ele continuou,
colocando o dedo sobre o elegante colete de cetim que Adolfo estava vestindo
—, parece-me que isso aqui é meu colete.
— Ah, amo, este colete está todo manchado de vinho; e claro que um
cavalheiro de seu gabarito nunca veste um colete assim. Entendi que podia pegá-
lo. Ele serve para um sujeito preto miserável como eu.
E Adolfo jogou a cabeça para trás e, graciosamente, passou os dedos pelos
cabelos perfumados.
— Então é assim, não é? — perguntou St. Clare, indiferente. — Bem, vou
apresentar o Tomás à senhora, e depois você o leva até a cozinha; e nem venha
colocar seus trejeitos nele. Ele vale mais do que dois patifes como você.
— O senhor é sempre muito brincalhão — disse Adolfo, rindo. — Fico feliz
em vê-lo de tão bom humor.
— Venha, Tomás — disse St. Clare.
Tomás entrou no quarto. Olhou encantado para os tapetes de veludo, e
depois para os antes inimagináveis esplendores dos espelhos, pinturas, estátuas e
cortinas e, assim como a Rainha de Sabá diante de Salomão, não tinha mais
forças. Parecia ter medo até mesmo de colocar os pés no chão.
— Veja só, Marie — disse St. Clare à esposa. — Comprei-lhe um cocheiro,
finalmente, conforme me pediu. Ele é preto como um ataúde, e muito sóbrio, e
lhe conduzirá como em um funeral, se quiser. Abra os olhos e dê uma espiada
nele. E não diga que nunca penso em você quando estou viajando.
Marie abriu os olhos e fixou-os em Tomás, sem se levantar.
— Tenho certeza de que ele ficará bêbado — ela declarou.
— Não. Tenho por escrito que ele é bondoso e sóbrio.
— Espero que tudo corra bem — disse a mulher. — É mais do que eu
esperava.
— Dolfo — chamou St. Clare —, leve Tomás até o andar de baixo; e se
comporte — ele acrescentou. — Lembre-se do que eu lhe disse.
Adolfo seguiu graciosamente na frente, e Tomás, com passos pesados,
seguiu logo atrás.
— Ele é um perfeito hipopótamo — Marie comentou.
— Ah, por favor, Marie — retrucou St. Clare, sentando-se em um banquinho
ao lado do sofá. — Seja elegante e diga algo agradável ao seu esposo.
— Você ficou quinze dias a mais do que o previsto — reclamou a mulher,
fazendo beicinho.
— Bem, eu lhe escrevi dizendo o porquê.
— Uma carta tão curta e fria! — disse a esposa.
— Meu Deus! A correspondência estava saindo e tinha que ser aquilo ou
nada.
— É sempre assim — lamentou a mulher. — Sempre alguma coisa para
tornar suas viagens longas e as cartas, curtas.
— Olhe isso — ele continuou, tirando uma elegante caixa de veludo do
bolso e abrindo-a. — Aqui está um presente que lhe comprei em Nova York.
Era um daguerreótipo, nítido e macio como uma gravura, representando Eva
e o pai sentados de mãos dadas.
Marie olhou para ele com ar insatisfeito.
— O que os fez sentar em uma posição tão estranha? — ela perguntou.
— Ora, a posição não tem importância; mas o que você acha da semelhança?
— Se não quer saber minha opinião em um caso, suponho que não a daria no
outro — disse a mulher, fechando o daguerreótipo.
Em sua cabeça, St. Clare pensou “vá para o inferno”, no entanto, em voz
alta, ele acrescentou:
— Vamos lá, Marie, o que achou da semelhança? Não seja ridícula.
— É muita falta de consideração de sua parte, St. Clare — falou a esposa —,
insistir que eu fale e olhe para as coisas. Sabe que estive deitada o dia todo com
enxaqueca; e, desde que chegaram, tem havido tanto tumulto que estou quase
morta.
— É vítima de enxaqueca, madame? — perguntou a Srta. Ofélia,
repentinamente surgindo das profundezas de uma grande poltrona, onde ela
sentava-se em silêncio, fazendo um inventário da mobília e calculando o preço.
— Sim, sou uma mártir dela — declarou a senhora.
— Chá de zimbro é bom para enxaqueca — informou a Srta. Ofélia. — Pelo
menos é o que Augusta, a esposa do diácono Abraham Perry, costumava dizer; e
ela era uma excelente enfermeira.
— Mandarei trazer os primeiros zimbros maduros de nosso jardim perto do
lago especialmente para este propósito — declarou St. Clare, tocando a sineta
seriamente enquanto o fazia.
— Enquanto isso, prima, deve estar querendo se retirar ao seu aposento e se
refrescar um pouco, depois de nossa jornada. Dolf — ele chamou —, diga a
Mammy para vir aqui.
A mulher veneranda a quem Eva tinha abraçado tão fervorosamente logo
entrou; estava impecavelmente vestida, com um turbante vermelho e amarelo na
cabeça, um novo presente de Eva, o qual a criança estivera arrumando na cabeça
dela.
— Mammy, deixo esta senhora sob seus cuidados; ela está exausta e precisa
descansar; acompanhe-a até seu quarto e cuide para que ela esteja confortável.
E a Srta. Ofélia desapareceu no rastro de Mammy.
16
A AMA DE TOMÁS E SUAS
OPINIÕES
— E agora, Marie — disse St. Clare — seus dias de ouro estão de volta. Está
aqui nossa prima pragmática e objetiva da Nova Inglaterra, que tirará todo o
peso de responsabilidade dos seus ombros, assim você terá tempo para se
refazer, para rejuvenescer e ficar mais bonita. É melhor que a cerimônia de
entrega das chaves aconteça nas próximas duas semanas.
Essa constatação fora feita à mesa do café da manhã, alguns dias depois da
Srta. Ofélia ter chegado.
— Tenho certeza de que ela é bem-vinda — comentou Marie, encostando a
cabeça languidamente sobre uma das mãos. — Acredito que ela descobrirá, se é
que vai descobrir, que nós, as senhoras, é que somos as escravas por aqui.
— Ah, com certeza ela chegará a essa conclusão, e um mundo de outras
verdades absolutas além dessa, sem dúvida — afirmou St. Clare.
— E não venha falar sobre o fato de mantermos escravos, como se o
fizéssemos por conveniência — disse Marie. — Tenho certeza de que, se
pensássemos sobre isso, poderíamos dispensá-los de vez.
Evangeline fixou seus olhos grandes e sérios no rosto da mãe, com uma
expressão preocupada e perplexa e apenas perguntou:
— Para que os mantém aqui, mamãe?
— Além de eles serem uma praga, não sei muito bem; eles são a praga da
minha vida. Acredito que grande parte da minha saúde frágil é mais causada por
eles do que por qualquer outa coisa; e os nossos, tenho certeza, são as piores
pragas que qualquer um já recebeu.
— Ah, por favor, Marie, você está muito desanimada nesta manhã — refutou
St. Clare. — Sabe que não é bem assim. Lá está Mammy, a criatura mais
bondosa que já se viu na terra; o que faria sem ela?
— Mammy é a melhor que já conheci na vida — concordou Marie. — No
entanto, agora Mammy é egoísta, muito egoísta; é uma característica de toda sua
raça.
— Egoísmo é realmente uma falta terrível — concordou St. Clare com
gravidade.
— Lá está Mammy — continuou Marie. — Acho muito egoísta da parte dela
dormir tão pesado à noite; ela sabe que eu preciso de pequenos cuidados quase a
cada hora, quando tenho os piores momentos, e, mesmo assim, é tão difícil
acordá-la. Estou muito pior agora de manhã de tanto esforço que tive que fazer
para acordá-la a noite passada.
— Ela não se sentou com a senhora muitas noites ultimamente, mamãe? —
perguntou Eva.
— E como você sabe disso? — retrucou Marie secamente. — Ela tem
reclamado, hei de supor.
— Ela não reclamou; ela apenas me contou o quanto suas noites têm sido
ruins, sucessivamente.
— Por que não deixa Jane ou Rosa substituí-la por uma ou duas noites —
sugeriu St. Clare —, e a deixa descansar?
— Como pode propor uma coisa dessas? — indignou-se Marie. — St. Clare,
você realmente não tem nenhuma consideração. Estou tão nervosa que a melhor
respiração me perturba; e a ajuda de uma estranha me deixaria absolutamente
ensandecida. Se Mammy se interessasse por mim do jeito que deveria, ela
conseguiria acordar com mais facilidade, é claro que sim. Já ouvi falar de
pessoas com servos muito dedicados, mas eu nunca tive essa sorte — e Marie
suspirou fundo.
A Srta. Ofélia ouvira à conversa com gravidade astuta e observadora; ainda
assim mantivera os lábios cerrados, como se estivesse completamente
determinada a delimitar sua posição e seu território de atuação antes de se
comprometer.
— Veja bem, Mammy tem uma espécie de bondade — explicou Marie. —
Ela é delicada e respeitosa, mas tem o coração egoísta. E nunca vai parar de se
preocupar e de se inquietar por aquele marido dela. Quando me casei e,
obviamente vim viver aqui, tive que trazê-la comigo, e meu pai não podia se
desfazer do marido dela. Ele era um ferreiro e, claro, muito necessário; e eu
pensei e disse, na época, que Mammy e ele deviam se separar, já que seria muito
improvável que eles vivessem juntos de novo. Gostaria de ter insistido mais e ter
casado Mammy com outra pessoa; mas fui tola e indulgente, e não quis insistir.
Eu disse a Mammy, na época, que ela não deveria ter esperanças de vê-lo de
novo mais do que uma ou duas vezes na vida, pois os ares da propriedade do
papai não combinam com a minha saúde, e a aconselhei a se casar com outro;
mas não, ela não quis. Mammy às vezes é muito teimosa e ninguém vê isso tanto
quanto eu!
— Ela tem filhos? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Sim, ela tem dois.
— Imagino que ela sinta falta deles.
— Claro que sim, mas eu não podia trazê-los. Eles eram duas coisinhas
imundas; não podia tê-los por aí; além do mais, tomavam muito o tempo dela;
mas acredito que Mammy sempre guardou rancor por isso. Ela não se casará
com mais ninguém; e acredito que, apesar de saber o quanto preciso dela e o
quanto minha saúde é frágil, ela voltaria para o marido amanhã, se pudesse.
Acredito nisso sinceramente — continuou Marie. — São tão egoístas, até mesmo
os melhores.
— É muito triste pensar nisso! — admitiu St. Clare secamente.
A Srta. Ofélia olhou atentamente para o primo e notou o rubor de
mortificação e vergonha reprimida e a curva sarcástica de sua boca enquanto
falava.
— Mammy sempre foi minha favorita — declarou Marie. — Gostaria que
alguns de seus serviçais lá do Norte pudessem ver os vestidos de seda,
musselina, de cambraia de linho, que ela tem pendurados no guarda-roupa. Eu já
cheguei a trabalhar tardes inteiras ajeitando os chapéus e deixando-a toda
arrumada para ir à festa. E ela não faz ideia do que sejam abusos. Ela nunca foi
açoitada mais do que uma ou duas vezes na vida. Toma seu café forte ou seu chá
todos os dias, com açúcar branco. É abominável, para falar a verdade; mas St.
Clare permite a vida boa nos andares de baixo, e todos eles vivem como bem
entendem. O fato é que nossos escravos são muito bem tratados. Suponho que
tenhamos um pouco de culpa por eles serem tão egoístas e agirem como crianças
paparicadas; mas já cansei de falar com St. Clare sobre isso.
— E eu também — disse St. Clare pegando o jornal.
Eva, a linda Eva, ficou escutando a mãe com aquela expressão de
preocupação profunda e mística que lhe era tão peculiar. Ela deu a volta
suavemente na cadeira da mãe e enlaçou as mãos em seu pescoço.
— O que foi agora, Eva? — perguntou Marie.
— Mamãe, será que eu poderia tomar conta da senhora por uma noite, só
uma? Sei que não devo lhe deixar nervosa e que não posso dormir. Mas, eu
sempre passo as noites acordada, pensando…
— Ah, mas que bobagem, menina! — Que tolice! — refutou Marie. — Você
é uma criança muito esquisita.
— Mas posso, mamãe? Acho — ela disse timidamente — que Mammy não
está muito bem. Ela me disse que a cabeça dela tem doído o tempo todo
ultimamente.
— Ah, só mais um dos truques de Mammy! Ela é igual a todos eles, faz um
escândalo só por causa de uma dor de cabeça de nada ou um corte no dedo; é
melhor não dar ouvidos, nunca! — ela disse virando–se para a Srta. Ofélia. —
Entenderá a necessidade disso! Se encorajar os criados a dar vazão a qualquer
opinião desfavorável ou a reclamar de qualquer pequeno incômodo, não fará
outra coisa na vida. Ninguém nunca sabe dos meus dissabores, pois eu nunca
reclamo. Acho que é meu dever suportar tudo em silêncio, e é isso o que faço.
Os olhos arredondados da Srta. Ofélia expressaram uma surpresa tão
desvelada diante dessa retórica, à qual St. Clare considerou tão absurda, que ele
caiu na gargalhada.
— St. Clare sempre ri quando eu faço a menor alusão à fragilidade da minha
saúde — disse Marie, com a voz de um mártir sofrido. — Espero que um dia ele
se lembre disso! — e Marie levou o lenço até os olhos.
E, obviamente, houve um momento de silêncio incômodo. Finalmente St.
Clare se levantou, olhou para o relógio e disse que tinha um compromisso na
rua. Eva saiu correndo atrás dele e a Srta. Ofélia e Marie ficaram sozinhas à
mesa.
— Bem típico de St. Clare! — disse a última retirando o lenço dos olhos
com um ar mais alegre, quando o criminoso a ser afetado já não podia mais ser
visto. — Ele nunca percebe, nunca percebeu nem nunca perceberá o que eu
sofro, o que tenho sofrido durante anos. Se eu fosse do tipo que reclamasse de
tudo, ou fizesse qualquer alarde sobre minhas doenças, haveria razão para tal. Os
homens se cansam, naturalmente, de uma esposa que só reclama. Mas eu tenho
guardado tudo para mim mesma, e aguentado, e aguentado, até chegar ao ponto
de St. Clare achar que eu posso aguentar qualquer coisa.
A Srta. Ofélia não sabia exatamente o que se esperava que ela respondesse.
Enquanto pensava no que dizer, Marie limpou as lágrimas aos poucos, e
ajeitou a plumagem em geral, como uma andorinha que espera fazer sua toillete
depois do banho, e começou uma conversa doméstica com a Srta. Ofélia, falando
de guarda-louças, guarda–roupas, tábuas de passar, despensas e outras questões,
as quais a última deveria, por comum acordo, assumir o controle, dando a ela
tantos direcionamentos cautelosos e tantas responsabilidades que uma cabeça
menos sistemática e focada do que a da Srta. Ofélia poderia ter ficado
profundamente tonta e confusa.
— Acho que lhe disse tudo — constatou Marie. — Assim, na minha
próxima crise de saúde, você deverá ser capaz de seguir em frente sozinha, sem
me consultar; apenas no que se refere a Eva; ela requer cuidados.
— Ela parece ser uma boa garota! — comentou a Srta. Ofélia. — Nunca vi
uma criança melhor.
— Eva é muito peculiar — disse a mãe. — Muito. Há coisas muito
singulares sobre ela; ela não é como eu, nem um pouco — e Marie suspirou
profundamente, como se essa fosse uma constatação profundamente
melancólica.
A Srta. Ofélia disse para si mesma, em seu próprio coração: “Espero que ela
não seja”, mas teve a prudência de se manter calada.
— Eva sempre foi afeita a ficar com os criados; e acredito que não seja um
problema para algumas crianças. Eu sempre brinquei com os pretinhos do meu
pai, nunca me fez mal nenhum. Mas Eva, de algum modo, sempre se coloca no
mesmo nível de igualdade de qualquer criatura da qual se aproxima. É uma
característica estranha da garota. E eu nunca fui capaz de mudá-la. E St. Clare,
eu acredito, a estimula. O fato é que St. Clare faz as vontades de todas as
criaturas sob seu teto, exceto as de sua própria esposa.
Mais uma vez, a Srta. Ofélia permaneceu em silêncio profundo.
— Não há outra maneira com os criados — explicou Marie — que não seja
colocá-los em seu devido lugar e mantê-los lá. Sempre foi natural para mim,
desde pequena. Eva sozinha consegue estragar todos os criados da casa! O que
ela fará quando tiver que cuidar da própria casa, eu não sei muito bem. Eu
sempre digo para ser bondosa com os criados; eu sempre sou; mas deve-se fazê-
los reconhecer o próprio lugar. Eva nunca o faz; não há meio de colocar na
cabeça da criança nem o princípio da ideia de qual seja o lugar de um criado!
Você a ouviu se oferecendo para tomar conta de mim à noite, para que Mammy
possa dormir! Esse é o típico exemplo de como Eva agiria o tempo todo, se fosse
deixada sozinha.
— Bem — retrucou a Srta. Ofélia com ar indiferente —, imagino que
considere seus criados como criaturas humanas e que lhes permita descansar
quando estão exaustos.
— É claro que sim. Faço questão de lhes dar tudo o que lhes convêm, desde
que não deixem de fazer suas obrigações, entende? Mammy poderá recuperar o
sono, uma hora ou outra; não vejo dificuldade com relação a isso. Ela é a
criatura mais sonolenta que eu já vi: à costura, em pé ou sentada, a criatura
dorme, em qualquer lugar, a toda hora. Não tem problema, mas Mammy dorme o
suficiente. Esse negócio de tratar os criados como se fossem flores exóticas ou
vasos de porcelana é absolutamente ridículo — relatou Marie enquanto
mergulhava languidamente para dentro das profundezas de um sofá macio e
volumoso, e puxou um vidrinho de cheiros elegantemente lapidado em sua
direção.
— Veja bem — ela continuou com uma voz fraca e feminina, como o último
suspiro de morte de um jasmim da Arábia ou algo igualmente etéreo. — Veja
bem, prima Ofélia, não costumo falar de mim. Não tenho esse hábito; não é do
meu feitio. Na verdade, não tenho forças para fazê-lo. Mas há pontos sobre os
quais eu e St. Clare discordamos. St. Clare nunca me compreendeu, nunca me
deu valor. Acho que esse é o cerne de minha saúde tão frágil. St. Clare tem boas
intenções, quero acreditar, mas os homens são geralmente egoístas e não têm
consideração pelas mulheres. Pelo menos é essa a minha impressão.
A Srta. Ofélia, provida de muita precaução, típica daqueles da Nova
Inglaterra, e com verdadeiro horror de se meter em imbróglios de família,
começava agora a prever coisas desse tipo acontecendo; assim, revestiu o rosto
de profunda imperturbabilidade e, tirando do bolso um novelo e parte de uma
meia já tricotada, que mantinha especificamente de acordo com as asserções do
Dr. Watts, quem dizia que as pessoas de mãos vazias eram o trabalho pessoal de
Satã, ela começou a tricotar energeticamente, cerrando os lábios de uma maneira
que diziam, tão claro quanto as palavras “Nem tente me fazer falar. Não quero
me envolver nos seus problemas”. De fato a Srta. Ofélia parecia tão simpática
quanto um leão de pedra. No entanto, Marie não se importava com aquilo. Ela
tinha alguém com quem conversar e sentia que era seu dever conversar, e aquilo
era suficiente; e, recobrando as forças ao cheirar de novo seu vidrinho de sais,
continuou.
— Eu trouxe minha propriedade e meus criados quando me casei com St.
Clare, e tenho o direito legal de administrá-la do jeito que bem entender. St.
Clare tinha a fortuna e os criados dele, e fico satisfeita que ele possa administrá-
la do jeito dele; mas, St. Clare interfere. Ele tem noções tresloucadas e
extravagantes sobre as coisas, particularmente com relação ao tratamento dos
escravos. Ele realmente age como se colocasse os escravos em primeiro lugar,
antes de mim e até dele próprio; ele os deixa causarem todo tipo de problema e
não levanta um dedo sequer. Com relação a outras coisas, St. Clare é realmente
assustador; ele me espanta, apesar de sua aparência bondosa em geral. Ele bate o
pé e insiste que, seja lá o que aconteça, não haverá uma só chibatada nesta casa,
exceto se eu ou ele o fizermos com as próprias mãos; e ele fala isso de tal
maneira que não ouso enfrentá-lo. E pode-se ver onde isso vai dar, pois St. Clare
não seria capaz de levantar um dedo, nem que todos passassem por cima dele; e
quanto a mim, seria muito cruel me pedir para que aplicasse um castigo. Esses
escravos não passam de crianças crescidas.
— Não sei nada sobre isso e agradeço a Deus por não saber! — refutou a
Srta. Ofélia rapidamente.
— Bem, mas deve saber de uma coisa, para o seu bem, se é que vai ficar
aqui. Não faz ideia do quanto essas criaturas são provocadoras, estúpidas,
indiferentes, irracionais, infantis e ingratas.
Toda vez que falava sobre esse tópico, Marie parecia recuperar
maravilhosamente as forças; e agora abria os olhos e parecia se esquecer de seu
torpor.
— Não imagina, e não tem como imaginar, as provações diárias, a cada hora,
os incômodos vindos deles, em todo lugar e de todas as formas, que recaem
sobre uma dona de casa. Mas não adianta nada reclamar com St. Clare. Ele fala
as coisas mais estranhas. Ele diz que fomos nós que fizemos deles o que eles
são, e que temos que aguentá-los. Diz que as faltas deles são culpa nossa, e que
seria cruel punir um erro do qual somos nós os verdadeiros culpados. Diz que
nós, no lugar deles, não seríamos melhores; como se pudesse haver termo de
comparação entre eles e nós, sabe.
— Então não acredita que Deus os fez com o mesmo sangue que nós? —
perguntou a Srta. Ofélia enfaticamente.
— Não, claro que não! Uma linda história, de fato! Eles pertencem a uma
raça degradada.
— Não acha que eles tenham alma imortal? — indagou a Srta. Ofélia com
uma indignação crescente.
— Ah, bem — respondeu Marie bocejando —, isso, claro que sim, não há
dúvidas. Mas colocá-los em quaisquer termos de igualdade conosco, como se
pudéssemos ser comparados, isso é impossível! St. Clare conversou comigo
sobre Mammy, dizendo que mantê-la afastada do marido era como me afastar do
meu próprio marido. Não existe tal comparação. Mammy não poderia ter os
mesmos sentimentos que eu. É uma coisa totalmente diferente, claro que é, mas,
ainda assim, St. Clare finge não enxergar. Como se Mammy pudesse amar seus
bebês sujinhos da mesma maneira que eu amo Eva! Ainda assim, St. Clare uma
vez, sincera e seriamente tentou me persuadir dizendo que era meu dever, com
minha saúde tão frágil e tudo o que eu sofro, deixar Mammy voltar e substituí–la
por outra pessoa. Isso foi demais, até mesmo para mim. Não costumo
demonstrar meus sentimentos. Tenho como princípio aguentar tudo em silêncio;
é o duro fardo de uma esposa, mas eu o carrego. Contudo, naquela ocasião, tive
um ataque de nervos; e, desde então, ele nunca mais tocou neste assunto. Mas sei
pelo jeito dele olhar, ou pelo jeito de falar, que continua pensando da mesma
forma; e é tão irritante, tão provocador!
A Srta. Ofélia parecia estar com medo de que fosse fazer algum comentário.
No entanto, batia uma agulha na outra de uma forma que dizia muita coisa, mas
Marie não podia compreender.
— Assim, veja bem o que precisa administrar — Marie continuou. — Uma
casa sem nenhuma regra, onde os criados fazem tudo do jeito que querem, como
lhes agrada, e têm o que querem, exceto por mim, com minha saúde tão precária,
que tento manter o controle. Mantenho meu chicote de couro por perto, e à vezes
desço a mão; mas a tarefa é muito árdua para mim. Se St. Clare fizesse as coisas,
a exemplo dos outros…
— E como é isso?
— Bem, eles os mandam para o calabouço, ou para algum outro lugar para
serem açoitados. É o único jeito. Se eu não fosse uma criatura tão doente e
miserável, acredito que poderia administrar tudo com duas vezes mais energia do
que St. Clare o faz.
— E como St. Clare consegue admistrá-los? — pergunta a Srta. Ofélia. —
Você disse que ele nunca bate neles.
— Bem, os homens têm um jeito mais incisivo, sabe como é; é mais fácil
para eles; além disso, se algum dia olhar bem fundo nos olhos de St. Clares, ele
tem um olhar muito peculiar, e quando ele fala em tom enérgico, os olhos
chegam a pegar fogo. Eu mesma tenho medo; e os criados certamente sabem que
devem obedecer. Eu não poderia, com um ataque de nervos ou com reprimendas,
fazer o mesmo que St. Clare faz apenas com o virar dos olhos, quando está
determinado. Ah, não há dúvidas com relação a St. Clare; essa é a razão por ele
não sentir mais nada por mim. Mas você verá, quando tiver que comandá-los,
que não se pode domá-los sem severidade. Eles são maus, traiçoeiros e
preguiçosos!
— A velha ladainha — disse St. Clare, entrando de repente. — Que conta
terrível essas criaturas malditas terão que prestar no juízo final, especialmente
por serem tão preguiçosas! Veja bem, prima — ele disse enquanto se esticava
confortavelmente em um sofá oposto ao de Marie —, é absolutamente
inadmissível que, à luz do exemplo que Marie e eu lhes damos, eles sejam
preguiçosos.
— Não seja tão mau assim, St. Clare! — refutou Marie.
— Eu, mau? Achei que estivesse falando bem, o que, vindo de mim, é
admirável. Tento reforçar suas considerações, Marie, sempre.
— Sabe muito bem que não quis dizer isso, St. Clare — retrucou Marie.
— Ah, então devo ter cometido um erro. Obrigado, minha cara, por me
corrigir.
— Você está mesmo tentando me provocar — disse Marie.
— Ora, ora, Marie, o dia está ficando quente e acabei de ter uma longa
conversa com Dolfo, que me deixou extremamente cansado; assim, por favor,
tenha piedade e permita que um sujeito repouse à luz do seu sorriso.
— Qual o problema com Dolfo? — perguntou Marie. — A insolência
daquele mulato tem aumentado tanto que já se tornou absolutamente intolerável
para mim. Só gostaria de tê-lo sob as minhas ordens indiscutíveis durante um
tempo. Eu o colocaria no lugar certo!
— O que está dizendo, querida, está marcado com sua acuidade e bom senso
de sempre — declarou St. Clare. — Com relação ao Dolfo, o caso é o seguinte:
ele passou tanto tempo tentando imitar meus trejeitos e perfeições, que, ao final,
acabou se confundindo com o próprio amo; e fui obrigado a esclarecer o erro que
cometeu.
— Como?
— Bem, fui obrigado a fazê-lo compreender explicitamente que eu preferia
manter algumas das minhas roupas para meu próprio uso; também coloquei um
limite para o uso de minha água de colônia, e, na verdade, fui cruel a ponto de
restringi-lo a usar apenas uma dúzia de meus lenços de cambraia. Dolfo ficou
particularmente chateado com isso, e tive que conversar com ele como um pai,
para fazê-lo entender.
— Ah, St. Clare, quando irá aprender a tratar seus criados? É abominável a
maneira como você os agrada — protestou Marie.
— Mas, afinal, qual o problema do pobre cão querer se parecer com seu
amo? Se eu não lhe ensinei nada melhor do que querer boa colônia e lenços de
cambraia, por que não deveria dá-los a ele?
— E por que não lhe ensinou nada melhor? — disse a Srta. Ofélia com
franca determinação.
— Muito complicado. Preguiça, minha prima, preguiça; ela que corrói mais
almas do que se pode contar. Se não fosse pela preguiça, eu mesmo teria sido um
anjo perfeito. Fico inclinado a pensar que a preguiça é o que o velho dr.
Botherem, lá em Vermont, costumava chamar de “essência do mal moral”. É
uma consideração terrível, em absoluto.
— Penso que vocês, senhores de escravos, tenham uma responsabilidade
enorme em seus ombros — disse Ofélia. — Eu não a aceitaria por nada neste
mundo. Precisam educar seus escravos, e tratá-los como criaturas inteligentes,
como criaturas imortais, junto com as quais vocês prestarão conta a Deus. Isso é
o que eu penso — explicou a bondosa senhora, falando de repente com uma
onda de ânimo que fora ganhando força em sua mente durante toda a manhã.
— Ah, por favor — disse St. Clare, levantando-se rapidamente. — E o que
sabe sobre nós? Então ele sentou-se ao piano e tocou uma peça de música
animada. St. Clare tinha o dom para a música. Seu toque era genial e firme, e
seus dedos corriam sobre as teclas com a agilidade e rapidez de um pássaro,
leve, porém, decisivo. Tocou uma peça depois da outra, como um homem que
tenta ficar de bom humor. Depois de deixar a música de lado, ele se levantou e
disse alegremente: — Bem, prima, você nos deu bons conselhos e cumpriu sua
função; e eu a estimo ainda mais por isso. Sem sombra de dúvida atirou um
verdadeiro diamante em mim, mas que, a princípio, me atingiu tão diretamente
na face que não foi valorizado como deveria.
— De minha parte, não vejo serventia nenhuma nesse tipo de conversa —
afirmou Marie. — Tenho certeza de que, se alguém faz mais pelos criados do
que nós, gostaria de conhecê-los; e isso não é vantagem nenhuma, nem um
pouco, pois eles ficam cada vez piores. Quanto a conversar com eles, ou fazer
qualquer coisa do gênero, tenho certeza de que já conversei com eles até ficar
cansada e rouca, explicando-lhes as obrigações e tudo o mais; e tenho certeza de
que podem ir à igreja quando desejarem, apesar de não entenderem uma palavra
do sermão mais do que um porco entenderia, assim não faz diferença nenhuma
para eles ir ou não, sob o meu ponto de vista. Mas, de qualquer forma, eles vão,
e assim têm todas as oportunidades; mas, como eu disse antes, são uma raça
degradada e sempre serão, e não há como ajudá-los nem há nada que se possa
fazer por eles, mesmo que se quisesse. Pois, veja bem, prima Ofélia, eu já tentei
e você, nunca. Eu nasci e fui criada entre eles, e sei do que estou falando.
A Srta. Ofélia achou que já dissera o suficiente e, assim, sentou–se em
silêncio. St. Clare assobiava uma música.
— St. Clare, gostaria que você não assobiasse — disse Marie. — Faz minha
cabeça piorar.
— Não assobiarei — concordou St. Clare. — Há mais alguma coisa que
você gostaria que eu não fizesse?
— Gostaria que você pudesse ter um pouco mais de simpatia pelos meus
aborrecimentos; nunca tem nenhum sentimento por mim.
— Meu querido anjo acusador! — exclamou St. Clare.
— Irrita-me muito que fale comigo dessa forma.
— Então de que maneira falarei com você? Falarei do jeito que você desejar,
de qualquer jeito, apenas para lhe satisfazer.
Uma risada alegre vinda do pátio atravessou as cortinas de seda da varanda.
St. Clare saiu e, levantando a cortina, riu também.
— O que é? — perguntou a Srta. Ofélia, vindo até a grade.
Lá estava Tomás, sobre um pequeno banco mofado do pátio, todos os botões
da camisa cheios de gardênias e Eva, rindo alegremente, estava pendurando uma
guirlanda de rosas ao redor do pescoço dele; em seguida, ela sentou-se nos
joelhos do negro, como um pardal, ainda gargalhando.
— Ah, Tomás! Está tão engraçado!
Tomás trazia um sorriso benevolente e sóbrio, e parecia, a seu jeito tímido,
estar gostando da diversão tanto quanto sua sinhazinha. Ao ver seu amo, ergueu
os olhos com um ar apologético e depreciativo.
— Como pode deixá-la fazer isso? — perguntou a Srta. Ofélia.
— E por que não? — disse St. Clare.
— Bem, sei lá, é que parece tão horrível!
— Você não veria mal algum se a criança estivesse acariciando um cão,
mesmo que ele fosse preto; mas para uma criatura capaz de pensar e raciocinar e
sentir, e que é imortal, dá de ombros; confesse, prima. Conheço muito bem o
sentimento entre alguns dos nortistas. Não que haja alguma virtude em não tê-lo;
mas costumamos fazer o que o cristianismo deve fazer: obliterar o sentimento de
preconceito pessoal. Já notei em várias de minhas viagens ao Norte, o quanto
isso é mais forte em vocês do que em nós. Vocês os desprezam como fariam com
uma cobra ou um sapo, no entanto ficam indignados diante dos erros deles.
Vocês não os maltratariam, no entanto não querem se envolver com eles. Vocês
os mandariam de volta à África, fora de suas vistas e dos seus narizes, e então
enviariam um ou dois missionários encarregados de fazer todo sacrifício de
educá-los rapidamente. Não é isso?
— Bem, primo — prosseguiu a Srta. Ofélia pensativamente. — Pode haver
alguma verdade nisso.
— E o que seria dos pobres e de baixa classe sem as crianças? — perguntou
St. Clare, escorando-se na grade e observando Eva, que corria levando Tomás
consigo. — Os pequenos são os únicos verdadeiros democratas. Tomás, agora, é
um herói para Eva; as histórias deles são sonhos aos olhos dela; as músicas e
hinos Metodistas dele são melhores do que uma ópera, e os brinquedos e
pedacinhos de lixo que traz no bolso são uma mina de pedras preciosas, e ele,
Tomás, é a pessoa mais maravilhosa do mundo que já teve uma pele negra. Esta
é uma das rosas do Éden que Deus deixou cair expressamente para os pobres e
oprimidos, que têm muito pouco de qualquer outra espécie.
— É estranho, primo — disse a Srta. Ofélia. — Poderia se pensar que você é
um professor, se o ouvirem falando.
— Um professor? — exclamou St. Clare.
— Sim; um professor de religião.
— De jeito nenhum; não um professor como vocês da cidade têm, e, o que é
pior, infelizmente tampouco um praticante.
— Então o que o faz falar assim?
— Nada é mais fácil do que falar — explicou St. Clare. — Acho que
Shakespeare fez alguém dizer um dia “Prefiro ensinar a vinte outras pessoas
como fazer o bem a ser um dos vinte a seguir meus próprios ensinamentos”.1
Nada como a divisão do trabalho. Meu forte está no falar e o seu, prima, no
fazer.
Na atual situação de Tomás não havia, como se diz por aí, nada do que
reclamar. O carinho de Eva por ele – a gratidão instintiva e o carinho de natureza
nobre – levaram-na a pedir ao pai que o negro pudesse ser seu escravo especial,
toda vez que ela precisasse da companhia de um criado, em suas caminhadas ou
cavalgadas. E Tomás tinha ordens gerais para deixar tudo de lado e servir a Srta.
Eva toda vez que ela pedisse, ordens essas que nossos leitores podem imaginar
muito distantes do desagrado de Tomás. Ele estava sempre bem vestido, pois St.
Clare era particularmente exigente quanto a isso. Seus serviços na cavalariça
eram meramente de sinecura, consistindo apenas em fazer serviços e inspeções
diárias, e comandar um criado sob seus cuidados. Marie St. Clare declarara que
ela não poderia sentir qualquer odor dos cavalos nele quando esse chegasse perto
dela, e que ele não fosse, definitivamente, colocado para fazer qualquer serviço
que o deixasse desagradável a ela, uma vez que o sistema nervoso dela estava
completamente inadequado a qualquer armadilha daquela natureza; uma
cheirada de qualquer coisa desagradável, de acordo com ela, seria o suficiente
para fechar a cortina e colocar um fim a todos seus tormentos terrenos de uma
vez por todas. Tomás, dessa forma, em seu traje de lã limpíssimo, botas de castor
lisas e brilhantes, colarinhos e punhos impecáveis, com seu rosto negro sério e
bondoso, parecia respeitável o bastante para ser o Bispo de Cartago, assim como
foram os homens de cor em outras épocas.
Além disso, estava em um lugar lindo, uma consideração à qual sua raça
sensível nunca foi indiferente: e ele apreciava, sinceramente, a alegria quieta, os
pássaros, as flores, as fontes, o perfume, a luminosidade e a beleza do pátio, as
cortinas de seda penduradas, os quadros, e lustres e estatuetas e os adornos
dourados que faziam as salas lá dentro lhe parecerem com o palácio de Aladim.
Se a África algum dia vier a exibir uma raça elevada e instruída – e um dia
certamente terá a sua vez de decifrar o grande dilema do aprimoramento do ser
humano – a vida acordará lá com esplendor e exuberância tamanhos que nossas
frias tribos do ocidente mal podem conceber. Naquela terra distante de ouro, e
pedras preciosas e especiarias e palmeiras tremulantes, e flores divinas e
fertilidade miraculosa, hão de se revelar novas formas de arte, novos estilos de
beleza; e a raça negra não será mais desprezada e humilhada e irá, talvez, exibir
algumas das revelações mais recentes e magníficas da vida humana. Certamente
a demonstrarão em sua gentileza, na docilidade do coração, na aptidão da
inteligência e da força superior, na simplicidade do afeto e na facilidade do
perdão. Em tudo isso eles hão de exibir a superioridade da tradicional vida
cristã, e, talvez, como Deus faz sofrer aqueles a quem ama, Ele escolheu a
miserável África para ser a terra da aflição, de forma a transformá–la no reino
mais nobre e superior que ainda há de surgir, quando todos os outros reinos já
tiverem sido julgados e condenados, pois os primeiros serão os últimos e os
últimos, os primeiros.
Será que era isso que Marie St. Clare estava pensando enquanto estava em
pé na varanda, maravilhosamente vestida em uma manhã de domingo, abotoando
um bracelete de diamantes em seu pulso fino? Com certeza era. Ou, caso não
fosse, pensava em algo diferente, pois Marie era a entusiasta de coisas belas e,
naquele momento, deleitava-se com a formação completa – diamantes, sedas,
rendas, joias e tudo mais – para ir a uma igreja bem frequentada cumprir com
seus deveres religiosos. Marie sempre fez questão de se mostrar muito devota
aos domingos. Lá estava ela, tão magra, tão elegante, tão leve e fluida em seus
movimentos, o xale de renda envelopando-a como uma bruma. Ela estava
graciosíssima, e realmente se sentia muito bem e muito elegante. A Srta. Ofélia,
ao lado dela, era o contraste perfeito. Não que ela não tivesse um vestido de seda
e um xale tão belo, nem um lenço de bolso tão fino; mas a rigidez, a retidão e a
integridade a envolviam com uma presença indefinida, porém, tão apreciável
quanto a graça o fazia com sua elegante companheira; todavia, não a graça de
Deus, visto que isso é uma coisa completamente diferente!
— Onde está Eva? — perguntou Marie.
— A garota parou na escadaria para dizer algo à Mammy.
E o que Eva estava dizendo à Mammy na escadaria? Preste atenção, leitor, e
ouvirá, ainda que Marie não consiga fazê-lo.
— Mammy, querida, sei que sua cabeça está doendo muito.
— Deus lhe abençoe, Srta. Eva! Minha cabeça está sempre doendo
ultimamente. Não precisa se preocupar.
— Bem, estou feliz que você vá passear; aqui — e a garotinha atirou os
braços em volta dela —, Mammy, por favor, leve meus sais.
— O quê? Essa coisa linda, com diamantes? Deus seja louvado, sinhazinha.
Isso não seria apropriado, de jeito nenhum.
— Por que não? Você precisa dele e eu não. A mamãe sempre o usa para as
dores de cabeça, e fará você se sentir melhor. Não, tem que levá-lo, para me
agradar.
— Ouça a conversa dessa criatura querida! — disse Mammy quando Eva
enfiou o frasco no decote da mulher e, beijando-a, desceu os degraus correndo
em direção à mãe.
— Por que parou?
— Só parei para dar meu frasco de sais para Mammy, para ela poder levá-lo
à igreja.
— Eva! — exclamou Marie, andando de um lado para o outro com
impaciência. — O seu frasco de sais, de ouro, para Mammy! Quando aprenderá o
que é apropriado? Vá lá e pegue-o de volta, agora!
Eva ficou triste e ofendida, e virou-se lentamente.
— Marie, por favor, deixe a garota em paz; ela fará o que quer — disse St.
Clare.
— St. Clare, o que será dessa criatura neste mundo? — perguntou Marie.
— Deus é quem sabe — disse St. Clare. — Mas ela com certeza há de se dar
bem no Paraíso, melhor do que você e eu.
— Ah, papai, não — pediu Eva baixinho, tocando o cotovelo do pai. — A
mamãe fica irritada.
— Bem, primo, está pronto para ir à missa? — perguntou a Srta. Ofélia,
fixando os olhos em St. Clare.
— Eu não vou, obrigado.
— Eu gostaria muito que St. Clare fosse à igreja — confessou Marie. —
Mas ele não tem o mínimo de religião em si. Isso é realmente um desrespeito.
— Eu sei — admitiu St. Clare. — Vocês, mulheres, vão à igreja para
aprender a viver neste mundo, eu suponho, e a devoção de vocês se espalha
respeitavelmente sobre nós. Se eu fosse, iria aonde Mammy vai; ao menos lá
fazem alguma coisa para manter o sujeito acordado!
— O quê? Aqueles metodistas barulhentos? Horrível! — exclamou Marie.
— Qualquer coisa que não seja o mar morto de suas respeitáveis igrejas,
Marie. Definitivamente, é pedir demais a um homem. Eva, você gostaria de ir?
Por favor, fique em casa e brinque comigo.
— Obrigada, papai, mas prefiro ir à igreja.
— Mas lá não é muito maçante? — perguntou St. Claire.
— Acho que é um pouco maçante — disse Eva —, e fico com sono também,
mas tento ficar acordada.
— Então por que vai?
— Bem, papai — ela respondeu em um sussurro —, a prima me disse que
Deus nos quer e Ele nos dá tudo o que queremos; e não é muito a fazer, se Ele
nos pede. Não é tão exaustivo assim, afinal.
— Que alma boa e meiga! — disse St. Clare, beijando-a. — Vá, minha filha
adorada, e reze por mim.
— Com certeza, eu sempre rezo — disse a garota ao correr atrás da mãe para
dentro da carruagem.
St. Clare ficou nos degraus e mandou um beijo para a filha quando a
carruagem saiu; lágrimas enormes lhe encobriam os olhos.
— Ah, Evangeline! Tem o nome certo! — ele disse. — E não foi Deus que
fez de você um anjo para mim?
Deixou-se envolver pelo momento; em seguida, fumou um charuto, leu o
Picayune e se esqueceu de seu anjinho. Será que ele era tão diferente de outras
pessoas?
— Veja bem, Evangeline — explicou a mãe —, é sempre certo e apropriado
ser gentil com os criados, mas não é apropriado tratá-los como se fosse uma
pessoa de nosso círculo de relações, ou pessoas de nossa própria classe social. Se
Mammy estava doente, não deve achar que poderia colocá-la em sua própria
cama.
— É exatamente o que acho, mamãe — respondeu Eva —, porque assim
seria mais fácil cuidar dela, e por que, a senhora sabe, a minha cama é melhor do
que a dela.
Marie ficou absolutamente desesperada ao perceber a falta de noção de
moralidade contida naquela resposta.
— O que preciso fazer para que essa criança me compreenda? — ela
perguntou.
— Nada — disse Ofélia com sinceridade.
Eva pareceu sentida e desconcertada por um momento; mas por sorte, as
crianças não mantêm uma impressão por muito tempo e, em poucos minutos a
garotinha ria alegremente das coisas que via pela janela enquanto a carruagem
prosseguia.
Havia uma pequena agitação na casa dos quacres à medida que a noite
chegava. Rachel Halliday andava silenciosamente de lá para cá, coletando alguns
itens dos armários da casa que pudessem ser arrumados rapidamente para os
viajantes que sairiam mais tarde naquela noite. As sombras da tarde se esticavam
do lado leste, e o sol redondo e vermelho pairava pensativamente sobre o
horizonte, enquanto seus raios amarelos e calmos iluminavam o interior do
quartinho onde George e sua esposa estavam sentados. Ele tinha o filho em cima
dos joelhos, e a mão da esposa sobre as dele. Ambos pareciam preocupados e
sérios, e havia vestigios de lágrimas em seus rostos.
— Sim, Elisa — disse George. — Sei que tudo o que diz é verdade. Você é
uma boa garota, muito melhor do que eu. E tentarei fazer conforme está me
pedindo. Tentarei agir como um homem digno de sua liberdade. Tentarei me
sentir como um cristão. Deus Todo-Poderoso sabe que eu tive boas intenções,
tentei muito fazer o bem, apesar de tudo que se colocou contra mim. E agora eu
esquecerei todo o passado e deixarei de lado qualquer rancor ou amargura, e
lerei a Bíblia e aprenderei a ser um bom homem.
— E quando chegarmos ao Canadá — declarou Elisa —, posso ajudá-lo. Sei
costurar muito bem; e tenho excelente conhecimento da arte de lavar e passar
roupas finas; e juntos podemos encontrar algo que nos sustente.
— Claro, Elisa, desde que tenhamos um ao outro e ao nosso filho. Ah, Elisa,
se essas pessoas soubessem que benção é para um homem sentir que sua esposa
e seu filho lhe pertencem! Cansei de ver homens que podiam chamar suas
mulheres e filhos de seus reclamando e se preocupando com outras coisas. Eu
me sinto tão rico e tão forte, apesar de não termos nada exceto mãos vazias. É
isso mesmo. Apesar de ter trabalhado muito cada dia da minha vida, até os meus
vinte e cinco anos, e não ter um centavo de dinheiro nem um teto sobre minha
cabeça, nem um pedaço de terra para chamar de meu, ainda assim, se me
deixarem em paz agora, estarei satisfeito, agradecido. Eu trabalharei e mandarei
de volta o dinheiro para você e meu filho. Quanto ao meu antigo senhor, ele já
recebeu cinco vezes mais do que tudo que pagou por mim. Não devo nada a ele.
— Mas ainda não estamos totalmente fora de perigo — refutou Elisa. —
Ainda não estamos no Canadá.
— Verdade — concordou George. — Mas me parece como se tivéssemos
sentido o cheiro da liberdade, e isso me deixa forte.
Neste momento, vozes soaram do lado de fora do quarto, numa conversa
séria, e logo se ouviu uma batida na porta. Elisa levantou–se e a abriu.
Simeon Halliday estava lá, e, com ele um irmão quacre, a quem ele
apresentou como Phineas Fletcher. Phineas era alto e magricelo, ruivo, com uma
expressão de grande astúcia e sagacidade no rosto. Ele não tinha o ar plácido,
tranquilo e simplório de Simeon Halliday; ao contrário, tinha uma aparência de
particular esperteza e confiança, como um homem que reconhece e gosta de se
vangloriar de seus conhecimentos; peculiaridades as quais não combinavam
muito bem com o seu chapéu de abas largas e o discurso formal.
— Nosso amigo Phineas descobriu algo de grande importância a você e aos
seus, George — informou Simeon. — É melhor ouvi-lo.
— Isso mesmo — confirmou Phineas —, e como sempre digo, isso mostra a
grande utilidade de um homem que sempre dorme com um olho aberto em certos
lugares. Na noite passada, parei em uma pequena taverna isolada na estrada.
Deve se lembrar do lugar, Simeon, onde vendemos algumas maçãs no ano
passado, para aquela mulher gorda de brincos enormes. Bem, eu estava cansado
da viagem e, depois do jantar, me estiquei sobre uns sacos empilhados em um
canto, e puxei uma pele de búfalo para me cobrir, para esperar até minha cama
ficar pronta; e o que faço, senão pegar rápido no sono?
— Com um olho aberto, Phineas? — disse Simeon baixinho.
— Não; dormi mesmo, olhos e ouvidos fechados e tudo mais, por uma ou
duas horas, pois estava muito cansado; mas quando despertei um pouquinho,
descobri que havia alguns homens no recinto, sentados em volta de uma mesa,
conversando e bebendo; e eu pensei, antes de fazer algum barulho, que era
melhor ver o que estavam planejando, especialmente porque estavam falando
alguma coisa sobre os quacres. “Pois é”, um deles disse, “não tenho dúvidas de
que eles estão no assentamento quacre.” Então fiquei com as duas orelhas em pé,
e descobri que estavam falando exatamente sobre esse grupo aqui. Daí fiquei
deitado, ouvindo-os revelarem seus planos. Este jovem aqui, eles disseram, é
para ser mandado de volta para o Kentucky, para seu senhor, que fará dele um
exemplo para evitar que outros pretos fujam; e esposa, dois deles descerão até
Nova Orleans para vendê-la, por conta própria, e calculavam pegar mil e
seiscentos ou mil e oitocentos dólares por ela; e a criança, disseram que irá para
um mercador de escravos que o comprara; e também tem esse garoto, Jim, e a
mãe dele, serão devolvidos para seus donos no Kentucky. Eles disseram haver
dois juízes de paz em uma cidadezinha um pouco mais para a frente, que irá com
eles para pegá-los, e a jovem mulher será levada diante de um juiz, e um dos
sujeitos, que é pequeno e de fala mansa, fará o juramento declarando-a
propriedade dele e a entregará ao homem para que a leve para o Sul. Eles têm
uma boa noção da estrada que vamos percorrer hoje à noite; e estarão atrás de
nós, seis ou oito, com certeza. E agora, o que faremos?
O grupo, que depois da comunicação de Phineas, tomou várias atitudes
diferentes, era digno de ser retratado em uma pintura. Rachel Halliday, que tirara
as mãos de uma fornada de biscoito para ouvir as notícias, ficou em pé ao lado
deles, ereta e coberta de farinha, com uma fisionomia muito preocupada. Simeon
parecia profundamente pensativo; Elisa se atirou nos braços do marido e
esperava seus comentários; George estava em pé com os punhos cerrados e os
olhos faiscantes, com a expressão semelhante a qualquer outro homem cuja
esposa seria vendida em leilão e o filho enviado a um mercador de escravos,
tudo sob a tutela das leis de uma nação cristã!
— O que devemos fazer, George? — Elisa perguntou sussurrando.
— Eu sei o que eu vou fazer — respondeu George ao entrar no quarto e
começar a examinar suas pistolas.
— Ei, ei — disse Phineas, balançando a cabeça para Simeon —, podemos
ver como isso acabará, Simeon!
— Posso ver — disse Simeon, suspirando fundo. — Rezo para que não
chegue a tal ponto.
— Não quero envolver ninguém comigo ou por mim — declarou George. —
Se me emprestar sua carroça e me mostrar a direção, irei sozinho até o próximo
assentamento. Jim tem a força de um gigante e é corajoso como a morte e o
desespero; e eu também.
— Ah, muito bem, meu amigo — disse Phineas. — Mas precisará de um
guia para tudo isso. É muito bom que se disponha a lutar e tudo mais; mas sei de
uma ou outra coisinha sobre a estrada que você não sabe.
— Mas não quero comprometê-lo — retrucou George.
— Comprometer-me? — perguntou Phineas com uma expressão curiosa e
astuta no rosto — Quando você me comprometer, por favor, me avise.
— Phineas é um homem sábio e habilidoso — explicou Simeon. — Fará
bem em confiar no julgamento dele, George, e — acrescentou colocando
gentilmente a mão sobre o ombro de George, e apontando para as pistolas —,
tome cuidado com essas coisas; os jovens costumam ter sangue quente.
— Não atacarei ninguém — prometeu George. — Tudo o que quero deste
país é que me deixem em paz, e eu irei embora em paz, mas — ele fez uma
pausa, e a sua expressão tensa escureceu e seu rosto franziu — tenho uma irmã
que foi vendida naquele mercado de Nova Orleans e sei para que elas são
vendidas; e acham que vou ficar olhando levarem e venderem minha esposa,
quando Deus me deu um par de braços fortes para defendê-la? Não! Deus me
ajude! Lutarei até o último suspiro antes de deixá-los levar minha esposa e meu
filho. E alguém pode me condenar por isso?
— Nenhum mortal pode condená-lo, George. Assim são a carne e o sangue
— disse Simeon. “Ai do mundo pelas ofensas, mas ai daquele homem por quem
as ofensas vêm.”
— O senhor não faria o mesmo em meu lugar?
— Rezo para nunca cair na tentação — respondeu Simeon. — A carne é
fraca.
— Acho que nesse caso, minha carne seria bem forte — disse Phineas,
esticando os braços tão longos quanto as pás de um moinho de vento. — Não
tenho certeza, amigo George, se não seguraria um sujeito para você, se não
tivesse condições de acertar as contas sozinho.
— Caso o homem venha algum dia resistir ao mal — explicou Simeon —,
esse é o momento de George se sentir livre para fazê-lo: mas os líderes de nosso
povo nos ensinaram uma forma melhor; pois o ódio do homem não trabalha a
favor da justiça divina, mas sim contra a vontade corrupta do homem, e ninguém
pode ser digno dela exceto aqueles que a recebem. Rezemos ao Senhor para não
cairmos em tentação.
— Sendo assim, eu sou digno — disse Phineas. — Mas, se formos tentados
demais; bem, espero que eles tomem cuidado, isso é tudo.
— Dá para perceber que você não é um Irmão de nascença — Simeon
comentou sorrindo. — Sua antiga natureza ainda exerce grande força sobre você.
Para dizer a verdade, Phineas era um homem das florestas, briguento e
truculento, vigoroso caçador e exímio atirador; mas, tendo se casado com uma
linda quacre, fora convencido pelo poder de seus encantos a se juntar à
sociedade ao seu redor e, apesar de ser um membro honesto, sóbrio e eficiente, e
não ter nada em particular que o desabonasse, os mais espiritualizados entre eles
não conseguiam fazer outra coisa a não ser notar uma grande falta de fervor em
seu desenvolvimento religioso.
— O amigo Phineas sempre terá seu próprio jeito de resolver as coisas —
disse Rachel Halliday, sorrindo. — Mas todos achamos que seu coração,
finalmente, está no lugar certo.
— Bem — perguntou George —, não é melhor apressarmos nossa saída?
— Acordei às quatro da manhã, e vim a toda velocidade, umas boas duas ou
três horas à frente deles, se começarem no horário que planejaram. De qualquer
forma, não é seguro sairmos antes do anoitecer, pois há algumas pessoas muito
más nos vilarejos à frente, que podem estar dispostas a se meterem conosco, se
virem nossa carroça, e isso nos atrasaria mais do que esperar para sair daqui;
mas acho que podemos nos aventurar daqui a duas horas. Irei até a casa de
Michael Cross e pedirei a ele para vir atrás, em seu garrano, para manter os
olhos bem abertos na estrada e nos avisar caso tenhamos a companhia dos
homens. Michael tem um cavalo capaz de ultrapassar a maioria dos cavalos, e
poderia correr na frente para nos avisar caso surja algum perigo. Vou sair agora
para dizer a Jim e à velha mulher para ficarem prontos, e dar uma olhada nos
cavalos. Temos uma vantagem razoável, e uma boa chance de chegarmos até o
próximo assentamento antes que eles nos alcancem. Tenha coragem, George!
Essa não é a primeira vez que tenho complicações com o seu povo — Phineas
disse enquanto fechava a porta.
— Phineas é muito astuto — disse Simeon. — Ele fará de tudo por vocês,
George.
— E sinto muito pelo risco que estão correndo! — desculpou-se George.
— Por favor, não fale mais sobre isso, meu amigo George. Fazemos o que
manda nossa consciência; não poderia ser de outra forma. E agora, mãe — ele
disse virando-se para Rachel —, apresse os preparativos para nossos amigos,
pois não podemos deixá-los ir embora com fome.
E enquanto Rachel e os filhos se ocupavam em fazer os bolinhos de milho,
cozinhar o presunto e o frango, e se apressavam com os et ceteras da refeição
noturna, George e a esposa sentaram–se no quartinho, abraçados, num tipo de
conversar que só esposo e esposa têm quando sabem que algumas poucas horas
podem separá-los para sempre.
— Elisa — disse George —, as pessoas que têm amigos, e casas, e terras e
dinheiro, e todas essas coisas, não conseguem amar como nós, que não temos
nada senão um ao outro. Até lhe conhecer, Elisa, nenhuma criatura jamais me
amou, exceto minha mãe e minha irmã, pobres criaturas miseráveis. Eu vi a
pobre Emily na manhã em que o mercador de escravos a levou. Ela veio até o
canto onde eu estava dormindo e disse: “Pobre George, sua última amiga está
partindo. O que será de você, coitadinho?”. E eu me levantei e joguei os braços
em volta dela e chorei e solucei, e ela também chorou; e essas foram as últimas
palavras de carinho que recebi durante dez longos anos; e meu coração estava
murcho, seco como cinzas, até eu encontrar você. E o seu amor! Foi quase como
ressuscitar um morto! Desde então, tornei-me um novo homem! E agora, Elisa,
sou capaz de dar até minha última gota de sangue, mas eles não a tirarão de
mim. Seja lá quem for que lhe pegue, terá que passar por cima do meu cadáver.
— Ah, Senhor, tenha piedade! — disse Elisa soluçando. — Permita que
saiamos deste país todos juntos, isso é tudo o que lhe peço.
— Deus está do lado deles? — perguntou George, falando mais com seus
próprios pensamentos amargos do que com sua esposa. — Será que Ele vê tudo
o que fazem? Por que deixa coisas assim acontecerem? E eles nos dizem que a
Bíblia está do lado deles; o poder, isso sim está com certeza. Eles são ricos,
saudáveis e felizes; são membros das igrejas, com expectativa de ir para o céu; e
se dão tão bem na vida, e fazem tudo do jeito que querem; e os cristãos, pobres,
honestos e crentes – cristãos tão bons ou até melhores do que eles – são
humilhados sob a poeira de seus pés. Eles os compram e os vendem, ganham
dinheiro com o sangue de seus corações, seus gemidos e suas lágrimas; e a eles
Deus permite tudo.
— Amigo George — disse Simeon da cozinha. — Ouça a este Salmo; acho
que lhe fará bem.
George puxou a cadeira para perto da porta e Elisa, enxugando as lágrimas,
também se aproximou para ouvir, enquanto Simeon lia o seguinte:
— “Quanto a mim, por pouco não escorreguei; mas meus passos não
sucumbiram. Tive inveja dos tolos quando vi a prosperidade dos ímpios. Eles
não passam por sofrimentos nem são amaldiçoados como outros homens. Assim,
o orgulho lhes serve de colar; a violência os encobre como um manto. Seus olhos
são cheios de fartura; possuem mais do que o coração pode desejar. São
corruptos e falam com malícia sobre a opressão; falam com soberba. E o povo de
Deus se volta para eles, e as águas da abundância lhes são confiscadas, e então
perguntam Como Deus pode saber disso? Será que o Altíssimo sabe de todas as
coisas?” Não é assim que se sente, George?
— É exatamente assim — respondeu George. — Eu mesmo poderia ter
escrito essas palavras.
— Então, ouça — pediu Simeon. — “Quando imaginei entender tudo isso,
foi muito doloroso, até que entrei no santuário de Deus. E então compreendi o
destino dos ímpios. Certamente os porá em lugares escorregadios, os fará
mergulhar na destruição. Como um sonho do qual se acorda, Ó Deus, quando
levantares, irá desprezá–los. Todavia, hei de permanecer ao seu lado; pois
segurará minha mão direita e me guiará com seus conselhos, e depois, me
receberá com glórias. Faz-me bem ficar perto de Deus, e deposito minha
confiança no Senhor, Deus Todo-Poderoso.”
As palavras de confiança divina, ditas pelo amigável senhor, tocaram como
uma música sagrada sobre o espírito perturbado e cansado de George; e depois
que as ouviu, ele sentou-se com uma expressão suave e tranquila em seu rosto de
traços delicados.
— Se o mundo fosse só isso, George — disse Simeon —, poderia se
perguntar onde está Deus? Mas geralmente são aqueles que têm menos na vida
os escolhidos para o reino Dele. Deposite sua confiança Nele,
independentemente do que acontecer, pois, no final, a justiça será feita.
Se essas palavras tivessem vindo de um pregador hedonista, de cujos lábios
tivessem saído apenas como floreados retóricos e devotos, feitas para se dirigir a
pessoas desesperadas, talvez não tivessem surtido tanto efeito; mas vindas de
alguém que tranquila e diariamente arriscava-se a ser multado e aprisionado pela
causa de Deus e dos homens, tiveram um peso inestimável, e os dois fugitivos,
desolados e aflitos, encontraram calma e força emanando delas.
E então Rachel pegou carinhosamente a mão de Elisa e levou a jovem até a
mesa do jantar. No momento em que estavam se sentando, ouviram uma batida
suave à porta, e Ruth entrou.
— Vim correndo — ela disse — com essas meinhas para o garoto, três pares
de meias de lã quentinhas e gostosas. Sabem que faz muito frio no Canadá.
Continue com coragem, Elisa! — ela acrescentou, dando a volta até o lado da
mesa onde Elisa estava, apertando-lhe a mão com força e colocando um bolo de
cominho na mão do garoto. — Trouxe uns pedaços de bolo para ele — ela
explicou, enfiando a mão no bolso para tirar o pacote. — As crianças estão
sempre comendo, não é?
— Ah, muito obrigada. Você é muito bondosa — agradeceu Elisa.
— Venha, Ruth, sente-se para jantar conosco — convidou Rachel.
— Não posso, infelizmente. Deixei John com o bebê e alguns biscoitos no
forno; não posso ficar nenhum minuto, caso contrário John queimará os biscoitos
e dará o açúcar do pote ao bebê. É assim que ele faz — disse a pequena quacre,
rindo. — Bem, adeus Elisa, adeus George. Que Deus lhes abençoe a jornada — e
com alguns passinhos curtos, Ruth saiu da casa.
Um pouco depois do jantar, uma grande carroça coberta parou em frente à
porta; a noite estava clara e estrelada, e Phineas saltou abruptamente de seu
assento para ajudar seus passageiros. George saiu à porta, carregando o filho e de
braços dados com a esposa. O passo dele estava firme, seu rosto calmo e
resoluto. Rachel e Simeon os seguiram.
— Saiam daí por um momento — disse Phineas para os que já estavam lá
dentro da carroça. —, e me deixem arrumar ao fundo da carroça, para as
mulheres e o garoto.
— Aqui estão duas peles de búfalo — disse Rachel. — Deixe os assentos o
mais confortável que puder; a viagem será dura a noite toda.
Jim saiu primeiro e ajudou com cuidado a velha mãe, que se agarrava ao
braço dele e olhava ansiosamente por todo lado, como se estivesse esperando um
perseguidor a qualquer momento.
— Jim, suas pistolas estão em ordem? — perguntou George com uma voz
baixa e firme.
— Sim, estão — Jim respondeu.
— E não tem dúvidas sobre o que fazer, caso eles apareçam?
— Melhor pensar que não — disse Jim, abrindo o peito largo e respirando
fundo. — Acha que vou deixá-los pegarem minha mãe de novo?
Durante essa breve conversa, Elisa esteve se despedindo de sua bondosa
amiga Rachel, e Simeon a ajudou a subir na carroça; e, espremendo-se no fundo
com o garoto, sentou-se entre as peles de búfalo. A velha senhora foi ajudada
pela mão e sentou-se, e George e Jim colocaram um banco duro em frente a elas,
e Phineas sentou–se na frente.
— Adeus, meus amigos! — Simeon despediu-se do lado de fora.
— Deus lhes abençoe! — responderam todos do lado de dentro.
E a carroça saiu, estalando e sacudindo pela estrada congelada.
Não havia como conversar, por conta da estrada precária e do barulho das
rodas. O veículo, assim, seguia ruidosamente por extensos pedaços de florestas
escuras, por planícies amplas e ressequidas, por montanhas e vales, sem parar,
hora após hora. O garoto logo pegou no sono e deitou-se pesadamente sobre o
colo da mãe. A velha senhora, assustada e aflita, finalmente se esqueceu de seus
medos; e à medida que a noite se aprofundava, a ansiedade de Elisa foi
insuficiente para evitar que ela fechasse os olhos. Phineas parecia, no geral, o
mais alerta do grupo e se entretinha assobiando certas canções não muito
religiosas para um quacre, à medida que prosseguiam pelo caminho.
Contudo, por volta das três da manhã, o ouvido de George capitou o galope
apressado e firme de cascos de cavalo vindo atrás deles à distância e puxou
Phineas pelo cotovelo. Phineas parou os cavalos e ouviu.
— Deve ser Michael — ele disse. — Acho que conheço o som do galope
dele — e então se levantou e esticou a cabeça ansiosamente para olhar a parte de
trás da estrada.
Na penumbra, no topo de uma montanha distante, podia-se ver um homem
vindo a galope.
— Lá está ele, eu acho! — disse Phineas. George e Jim saíram da carroça
antes de pensar no que estavam fazendo. Todos ficaram em silêncio profundo,
com seus rostos virados na direção do esperado mensageiro. E ele vinha. Agora
descia por um vale, onde não podiam vê-lo, mas ouviam o trote apressado e
agudo, chegando cada vez mais perto; finalmente o viram emergir no cume de
uma protuberância, ao alcance de um grito.
— Sim, é o Michael! — disse Phineas e, erguendo a voz: — Ei, olá,
Michael!
— Phineas! É você?
— Sim. Quais são as novidades? Eles estão vindo?
— Logo atrás, oito ou dez, a cara cheia de conhaque, praguejando e
espumando como uma matilha de lobos.
E, assim que ele falou, uma brisa trouxe o som longínquo de cavaleiros
galopando em direção a eles.
— Entrem! Rápido! Entrem, rapazes! — ordenou Phineas. — Se forem lutar,
esperem até chegarmos um pouco mais à frente — E ouvindo isso, os dois
entraram e Phineas chicoteou os cavalos para correrem, o cavaleiro bem ao lado
deles. A carroça rangia, pulava, quase voava sobre a estrada congelada; no
entanto, cada vez mais claro ficava o barulho dos cavaleiros que os perseguiam.
As mulheres ouviram e, olhando ansiosamente para fora, bem para trás, viram,
na ponta da montanha distante, a figura de homens delineados contra o céu
avermelhado da madrugada. Outra montanha e os perseguidores obviamente
localizaram a carroça, cuja cobertura de tecido branco a tornava visível à
distância, e um grito brutal de triunfo chegou com o vento. Elisa ficou tonta e
apertou o filho ainda mais perto do peito; a velha senhora rezava e gemia,
enquanto George e Jim empunhavam suas pistolas com a mão do desespero. Os
perseguidores chegavam perto deles rapidamente; a carroça virou subitamente e
os levou para perto dos pés de uma rocha íngreme e inclinada, que se erguia em
meio a um rochedo isolado e cheio de árvores em uma área aberta. Essa
montanha isolada, ou cadeia de rochas, erguia-se escura e pesada contra o céu
brilhante, e parecia promessa de abrigo e esconderijo. Era um ponto bem
conhecido de Phineas, familiarizado com o lugar da sua época de caça, e fora
para chegar até aqui que apressara tanto os cavalos.
— Vamos! — ele disse, parando repentinamente os cavalos e saltando
rapidamente de seu assento até o chão. — Saiam todos, rápido, e subam essas
rochas comigo. Michael, amarre os cavalos na carroça e leve-os até a casa de
Amariah e peça a ele e aos garotos que venham até aqui conversar com esses
sujeitos.
Num piscar de olhos, todos estavam fora da carroça.
— Pronto! — disse Phineas pegando Harry no colo. — Vocês, os dois,
protejam as mulheres; e corram, agora, como se nunca tivessem corrido na vida!
Não foi necessária nenhuma reprimenda. Mais rápido do que se pode
imaginar, o grupo inteiro bateu em retirada, correndo a toda velocidade em
direção ao rochedo, enquanto Michael, apeando do cavalo e amarrando a rédea à
carroça, começou a levá-la apressadamente para longe.
— Sigam em frente! — gritou Phineas quando eles chegaram ao rochedo e
viram, em meio à luz das estrelas e a madrugada, os traços mal feitos, mas bem
marcados de uma trilha que ia até o cume. — Este é um de nossos antigos
esconderijos de caça. Subam!
Phineas foi primeiro, subindo rapidamente pelo rochedo como uma cabra,
com o garoto em seus braços. Jim veio depois, carregando sua velha e trêmula
mãe sobre os ombros, e George e Elisa vieram por último. O grupo de cavaleiros
chegou até o pé do rochedo e, entre gritos e juramentos, iam desmontando dos
cavalos, preparando-se para seguir os fugitivos. Alguns minutos de esforço
trouxeram os homens ao topo da montanha; o caminho em seguida passava por
entre um desfiladeiro estreito, onde se podia passar apenas um de cada vez, até
que, de repente, chegaram a uma fissura ou abismo com mais de um metro de
largura, acima do qual ficava uma cadeia de rochas, separada do restante da
montanha, com nove metros de altura, com as laterais tão íngremes e
perpendiculares quanto as de um castelo. Phineas saltou facilmente pelo abismo,
colocando o garoto sobre uma plataforma lisa e reta de um musgo crespo e
esbranquiçado que cobria o cume da rocha.
— Vocês aí, andem logo! — ele gritou. — Saltem agora, de uma vez, por
suas vidas! — ele dizia enquanto os fugitivos saltavam um após o outro. Vários
fragmentos de pedras soltas formavam um tipo de barricada, a qual escondia a
posição deles da observação de quem estava embaixo.
— Bem, aqui estamos — disse Phineas, olhando por cima da barricada de
pedra para observar os agressores, que subiam tumultuosamente pelas rochas. —
Que nos peguem, se puderem. Seja lá quem venha aqui, terá que caminhar em
fila por entre aquelas duas rochas, na mira exata de nossas pistolas, percebem,
garotos?
— Sim, percebo — disse George —, e agora, como este problema é nosso,
que tomemos todo o risco e travemos toda a luta.
— Fiquem à vontade para lutar o quanto quiserem, George — disse Phineas,
mascando algumas folhas de gualtérias enquanto falava. — Mas acho que prefiro
me divertir e ficar só olhando. Vejam, esses sujeitos estão discutindo lá embaixo
e olhando pra cima, como galinhas se preparando para voar até o poleiro. Não é
melhor lhes dar uma palavra de conselho, antes que eles subam, só para lhes
dizer, gentilmente, que, se vierem, levarão chumbo?
O grupo lá embaixo, agora mais visível à luz matinal, era composto de
nossos velhos conhecidos, Tom Loker e Marks, com dois juízes de paz, e um
bando de vagabundos da taverna que, seduzidos por um pouco de conhaque,
resolveram ajudar na diversão de caçar um bando de pretos.
— Tom, veja como seus guaxinins se escondem rápido — disse um.
— É mesmo. Vi que foram por aqui — refutou Tom. — E aqui está uma
trilha. Vou atrás deles. Não podem pular lá para baixo com pressa, e não vai
demorar muito para eu descobrir onde estão.
— Mas, Tom, eles podem atirar em nós por trás das rochas — disse Marks.
— Isso seria terrível, sabe?
— Argh! — retrucou Tom com um sorriso de desdém. — Sempre tentando
salvar a pele, Marks! Não tem perigo! Os pretos são covardes demais!
— Não sei por que não deveria salvar minha própria pele — disse Marks. —
É tudo o que tenho; e às vezes os pretos lutam, sim, como o demônio.
Neste momento, George apareceu na ponta da rocha acima deles e, falando
com uma voz calma e clara, disse:
— Cavalheiros, quem são vocês aí embaixo, e o que procuram?
— Estamos atrás de um bando de pretos fujões — respondeu Tom Loker. —
Um tal de George Harris e Elisa Harris, e o filho deles, e Jim Selden e uma
velha. Temos os oficiais aqui e um mandado para levá-los; e vamos pegá-los,
pode ter certeza. Está ouvindo? Você não é George Harris, que pertence ao Sr.
Harris, do Condado de Shelby, Kentucky?
— Sou George Harris. Um Sr. Harris, de Kentucky, me considerava sua
propriedade. Mas agora sou um homem livre, pisando sobre a terra livre de
Deus; e minha esposa e meu filho pertencem a mim. Jim e sua mãe estão aqui.
Temos braços para nos defender e pretendemos usá-los. Podem subir, se
quiserem; mas o primeiro que ficar na mira de nossa bala é um homem morto, e
o próximo e o seguinte; e assim será até o último.
— Ah, vamos, vamos! Disse um homem baixo e gordo, dando um passo à
frente e assoando o nariz enquanto o fazia. — Meu jovem, esse não é o tipo de
conversa para você. Veja bem, somos oficiais de justiça. Temos a lei ao nosso
lado, e o poder, e tudo mais; então é melhor se entregarem em paz, pois
certamente terão que se entregar, mais cedo ou mais tarde.
— Sei muito bem que têm a lei e o poder do seu lado — disse George com
amargura. — Quer vender minha esposa em Nova Orleans, e colocar meu filho,
como um bezerro, nas mãos de um mercador de escravos e mandar a mim e à
mãe de Jim de volta para sermos açoitados e torturados, e esmagados sob os
saldos daqueles que chamam de amos; e suas leis os apoiam nisso, uma
vergonha para vocês e para as leis! Mas ainda não nos pegaram. Não somos
donos das suas leis; não somos donos do seu país. Estamos aqui como homens
livres sob o céu de Deus, assim como vocês; e, pelo poderoso Deus que nos
criou, lutaremos pela nossa liberdade até a morte.
George estava completamente visível no topo da rocha enquanto fazia sua
declaração de independência; o brilho do amanhecer dava um rubor a seu rosto
escuro, e o desespero e a profunda indignação lhe afogueavam os olhos negros; e
como se apelasse pela justiça de Deus aos homens, erguia as mãos para o céu
enquanto falava.
Se fosse um jovem húngaro bravamente defendendo, em alguma fortaleza
montanhosa, o esconderijo de fugitivos escapando da Áustria para a América,
isso teria sido um ato de sublime heroísmo; no entanto, como era um jovem de
descendência africana, defendendo o esconderijo de fugitivos da América para o
Canadá, obviamente que somos muito bem instruídos e patrióticos para não ver
qualquer heroísmo nisso; e se algum de nossos leitores considerar isso irônico,
devem fazê-lo por sua própria conta e risco. Quando fugitivos húngaros
desesperados vêm, contra todos os mandados de busca e autoridades do seu
legítimo governo, para a América, o gabinete político e da imprensa vibram de
aplausos e boas vindas. Quando fugitivos africanos desesperados fazem a mesma
coisa, isso é… O que é isso mesmo?
Seja lá como for, é certo que a atitude, o olhar, a voz e a maneira do
interlocutor por um momento fizeram o grupo embaixo ficar em silêncio. Há
algo na coragem e na determinação que, durante um tempo, toma conta até
mesmo da natureza mais primitiva. Marks foi o único que permaneceu
totalmente insensível. Segurando sua pistola deliberadamente, e, no silêncio
momentâneo que se seguiu ao discurso de George, Marks atirou nele.
— O dinheiro é o mesmo, trazendo ele para o Kentucky morto ou vivo —
disse friamente enquanto limpava a pistola na manga do casaco.
George deu um pulo para trás, Elisa deu um grito; a bala passou perto do
cabelo dele, quase raspou no rosto da esposa, e atingiu uma árvore acima.
— Não foi nada, Elisa — George disse rapidamente.
— É melhor ficar fora do campo de visão deles enquanto estiver falando —
aconselhou Phineas. — Esses sujeitos são inescrupulosos.
— Jim — chamou George —, veja se suas pistolas estão funcionando e fique
de olho naquela passagem comigo. O primeiro homem que aparecer, eu atiro;
você atira no segundo, e assim vai. Não serve para nada desperdiçar dois tiros
em um só.
— Mas e se você não acertar?
— Vou acertar — afirmou George com frieza.
— Muito bem! Aquele sujeito é atrevido — murmurou Phineas entredentes.
O grupo lá embaixo, depois que Marks atirou, ficou muito indeciso por um
momento.
— Acho que acertou alguém — disse um dos homens. — Ouvi um grito!
— Vou atrás de alguém lá em cima! — disse Tom. — Nunca tive medo de
preto, e não será agora. Quem vai depois? — ele perguntou subindo pelas
rochas.
George ouviu claramente as palavras. Pegou a pistola, olhou-a, apontou-a
em direção àquele ponto do desfiladeiro onde o primeiro homem apareceria.
Um dos mais corajosos do grupo seguiu Tom e, tendo feito o caminho, o
grupo todo começou a subir pelo rochedo; os de trás empurrando os da frente
mais rápido do que eles teriam subido sozinhos. Seguiram e em um minuto a
forma troncuda de Tom apareceu à vista, quase à beira do abismo.
George atirou, o tiro pegou de lado, mas apesar de ferido, o homem não
desistiu e, gritando como um touro enlouquecido, começou a pular pelo abismo
em direção ao grupo.
— Amigo — disse Phineas repentinamente se colocando à frente e lhe
empurrando com seus braços longos — Você não é bem–vindo aqui.
Tom rolou pelo abismo, enroscando-se nas árvores, arbustos, troncos, pedras
soltas até parar, machucado e gemendo, nove metros abaixo. A queda poderia tê-
lo matado se não tivesse sido amenizada e suavizada por suas roupas que se
enroscaram nos galhos de uma grande árvore; ainda assim ele caiu com força,
muito mais do que era aceitável ou conveniente.
— Deus nos ajude; eles são uns demônios! — disse Marks, descendo pelo
refúgio das rochas com muito mais vontade do que tinha subido, enquanto todo o
grupo seguia cambaleante atrás dele, o juiz de paz gordo, particularmente,
arfando e resfolegando de uma maneira enérgica.
— Companheiros — disse Marks — deem a volta e peguem o Tom, lá,
enquanto eu pego meu cavalo e volto correndo para pedir ajuda — e sem se
importar com as vaias e as zombarias do bando, Marks manteve a palavra e logo
se afastou a galope.
— Já viram um patife mais ordinário? — perguntou um dos homens. —
Viemos fazer o negócio para ele e ele vai embora desse jeito!
— Bem, precisamos pegar aquele sujeito! — disse outro. A mim não faz
diferença encontrá-lo vivo ou morto.
Os homens, guiados pelos gemidos de Tom, embrenharam-se e abriram
caminho pelas sobras de árvores cortadas, troncos e arbustos, até onde aquele
herói gemia e praguejava com veemência alternada.
— Sabe gritar bem, Tom — notou um dos homens. — Está muito
machucado?
— Não sei. Podem me levantar? Maldito seja aquele quacre dos infernos! Se
não fosse por ele, já teria derrubado um deles bem aqui, para ver o quanto é
bom.
Com muito trabalho e gemidos, o herói abatido foi ajudado a se levantar; e
tendo cada um segurando-o embaixo do braço, levaram-no até os cavalos.
— Se pelo menos conseguissem me levar de volta meio quilômetro até
aquela taverna. Me dá um lenço ou alguma coisa para enfiar neste lugar e
estancar esse sangramento infernal.
George olhou por sobre as rochas, e os viu tentando colocar a forma
troncuda de Tom na sela do cavalo. Depois de duas ou três tentativas frustradas,
ele cambaleou e caiu pesadamente no chão.
— Ah, espero que ele não tenha morrido! — disse Elisa, quem, juntamente
com todo o grupo, ficou assistindo ao procedimento.
— Por que não? — perguntou Phineas. — É isso o que merecia.
— Porque, depois da morte vem o julgamento — explicou Elisa.
— Isso mesmo — concordou a mulher idosa, que esteve gemendo e rezando,
à moda metodista, durante todo o ocorrido. — É terrível para a alma da pobre
criatura.
— Escutem o que estou dizendo: eles o deixarão aí, aposto — disse Phineas.
E foi verdade; depois de um pouco de dúvida e breve consulta, o grupo
montou nos cavalos e seguiu a galope. Quando estavam fora de vista, Phineas
começou a se apressar.
— Temos que ir e caminhar um pouco — ele explicou. — Eu disse a
Michael para ir na frente e trazer ajuda, e estar de volta aqui com a carroça; mas
teremos que caminhar um pouco pela estrada, creio eu, para encontrá-los. Deus
permita que logo ele esteja aqui! Ainda é cedo; não haverá muitos viajantes à pé
por um tempo; não estamos a muito mais do que a dois quilômetros de nossa
parada. Se a estrada não estivesse tão ruim a noite passada, nós teríamos
escapado deles sem problemas.
Quando o grupo chegou ao pé do rochedo percebeu, à distância, vindo pela
estrada, a própria carroça deles voltando, acompanhada por alguns homens a
cavalo.
— Lá estão Michael, Stephen e Amariah! — exclamou Phineas cheio de
alegria. — Agora estamos feitos, tão seguros como se tivéssemos chegado ao
nosso destino.
— Bem, então pare — disse Elisa —, e faça alguma coisa por aquele pobre
homem; ele está gemendo de dar dó.
— Não passaria de um dever cristão — disse George. — Vamos pegá-lo e
carregá-lo.
— E cuidar dele entre os quacres? — disse Phineas. — Muito bem! Não me
importo se o fizermos. Vamos dar uma olhada nele — e Phineas, que, ao longo
de sua vida de caça e floresta, adquirira alguma experiência cirúrgica, ajoelhou-
se perto do homem ferido e deu início a um exame cuidadoso na condição dele.
— Marks? — perguntou Tom bem baixinho. — É você, Marks?
— Não. Sinto dizer que não, meu amigo — disse Phineas. — Marks não está
nem aí para você, só se importa em salvar o próprio pescoço. Ele já fugiu faz
tempo.
— Acho que vou morrer — disse Tom. — Aquele maldito cão ordinário me
deixou para morrer sozinho! Minha velha mãe sempre me disse que isso
aconteceria.
— Pelo amor de Deus! Ouçam o pobre. Agora ele lembrou que tem mãe —
disse a velha negra. — Não consigo deixar de ter pena dele.
— Devagar, devagar. Pare de se debater e ranger os dentes — disse Phineas
enquanto Tom fechava os olhos e empurrava a mão dele. — Você não tem
chance a não ser que estanquemos o sangramento — e Phineas começou a
trabalhar em alguns procedimentos cirúrgicos provisórios com seu próprio lenço
de bolso, do jeito que podia ser feito.
— Você me empurrou — Tom disse fracamente.
— Bem, se não o tivesse feito, você teria nos empurrado para baixo —
explicou Phineas enquanto se inclinava para aplicar a bandagem. — Vamos lá,
deixe-me arrumar essa bandagem. Vamos levar você a uma casa onde lhe
cuidarão como se fossem sua própria mãe.
Tom gemeu e fechou os olhos. Em homens de sua classe, vigor e
determinação são uma questão inteiramente física e se esvaem com o fluxo de
sangue; e o sujeito gigantesco realmente era digno de pena.
Os outros então chegaram. Os assentos foram retirados da carroça. As peles
de búfalo, dobradas em quatro, foram espalhadas de um lado e quatro homens,
com grande dificuldade, ergueram o corpo pesado de Tom e o colocaram entre
elas. A velha negra, na abundância de sua compaixão, sentou-se na ponta e
colocou a cabeça dele sobre o colo. Elisa, George e Jim se ajeitaram o melhor
que puderam no espaço que sobrou e o grupo seguiu caminho.
— O que acha do estado dele? — perguntou George, sentado ao lado de
Phineas na frente.
— Bem, é só um ferimento bem fundo na carne; mas os machucados feitos
na queda não o ajudaram. Sangrou muito, tirou todas as forças dele, coragem e
tudo mais, mas ele vai se recuperar e talvez tire uma ou duas lições disso.
— Folgo em ouvi-lo dizer isso — disse George. — Seria sempre um fardo
pesado para mim se eu tivesse lhe causado a morte, mesmo que por uma justa
causa.
— Sim — concordou Phineas. — Matar é um ato horrendo, de qualquer jeito
que se coloque, homem ou fera. Fui um grande caçador em meus dias, e lhe digo
que já vi um gamo ser abatido e dava aquele olhar moribundo que realmente
fazia o sujeito se sentir culpado por tê-lo matado; e para criaturas humanas a
consideração é ainda mais séria, já que, como sua esposa diz, o julgamento vem
depois da morte. Então, não sei, já que as ideias do meu povo sobre essa questão
são bem rígidas; e, considerando a forma como fui criado, acho que concordo
perfeitamente com eles.
— O que vai fazer com esse pobre sujeito? — perguntou George.
— Vou levá-lo até a casa do Amariah. Lá mora a velha Vovó Stephens; eles
a chamam de Dorcas, e ela é uma enfermeira maravilhosa. Ela nasceu para fazer
isso e está sempre bem servida quando tem um enfermo para cuidar. Nós o
deixaremos sob os cuidados dela durante uns quinze dias.
Uma viagem de mais ou menos uma hora levou o grupo até uma impecável
casa de fazenda, na qual os viajantes cansados foram recebidos para um farto
café da manhã. Tom Loker logo foi cuidadosamente colocado em uma cama
muito mais macia e limpa do que ele jamais teve o hábito de ocupar. Seu
ferimento foi gentilmente limpo e coberto e ele, como uma criança cansada,
deitou-se languidamente, abrindo e fechando os olhos, olhando as cortinas
brancas e as figuras silenciosas entrando e saindo do seu leito. E aqui, por hora,
o deixamos.
18
AS EXPERIÊNCIAS E OPINIÕES DA
SRTA. OFÉLIA
— Tomás, não precisa pegar os cavalos. Não quero mais ir — ela declarou.
— Por que não, Srta. Eva?
— Essas coisas me tocam fundo no coração, Tomás — explicou Eva —, me
tocam fundo no coração — ela repetiu seriamente. — Não quero ir — e em
seguida ela se afastou de Tomás e entrou na casa.
Dias depois, outra mulher veio no lugar da velha Prue para trazer os
sequilhos; a Srta. Ofélia estava na casa.
— Meu Deus! — exclamou Dinah. — O que aconteceu com a Prue?
— A tia Prue não virá mais — explicou misteriosamente a mulher.
— Por que não? — indagou Dinah. — Ela não está morta, está?
— Não sabemos ao certo. Ela ficou no porão — disse a mulher, olhando de
soslaio para a Srta. Ofélia.
Depois que a Srta. Ofélia tinha pegado os sequilhos, Dinah seguiu a mulher
até a porta.
— O que realmente aconteceu com Prue? — ela perguntou.
A mulher, embora relutante, parecia querer falar, e respondeu em tom baixo
e misterioso:
— Bem, você não deve contar pra ninguém. A Prue, ela ficou bêbada de
novo, e colocaram ela no porão e deixaram ela lá o dia inteiro, e ouvi eles
dizendo que as mosca está em cima dela, e ela está morta!
Dinah ergueu as mãos para o ar e, virando-se, viu bem perto dela a forma
quase espiritual de Evangeline, seus olhos grandes e místicos dilatados de horror,
cada gota de sangue ausente de seus lábios e rosto.
— Deus nos acuda! A Srta. Eva vai desmaiar! O que deu na nossa cabeça pra
deixar ela ouvir uma conversa dessa? O pai dela vai ficar uma fera!
— Não vou desmaiar, Dinah — a criança disse com firmeza. — E por que
não deveria ouvir essas coisas? É mais fácil para mim ouvi–las do que é para
Prue sofrê-las.
— Pelo amor de Deus! Essas história não é pra sinhazinhas meiga e delicada
como você. Como se matar ela não fosse o suficiente!
Eva suspirou novamente e subiu as escadas com um passo lento e
melancólico.
A Srta. Ofélia perguntou ansiosamente pela história da mulher. Dinah deu
uma versão loquaz, à qual Tomás acrescentou os detalhes que tinha ouvido da
mulher naquela manhã.
— Uma coisa abominável, absolutamente horrível! — ela exclamou
enquanto entrava na sala onde St. Clare se encontrava deitado lendo seu
periódico.
— Diga-me, qual a nova iniquidade? — perguntou ele.
— Nova? Bem, aquelas pessoas mataram Prue a chicotadas — disse a Srta.
Ofélia, continuando a contar a história com grande eloquência, aumentando os
detalhes mais sórdidos.
— Sempre achei que um dia chegaria a isso — declarou St. Clare,
continuando a ler as notícias.
— Achou? Quer dizer que não fará nada a respeito? — perguntou a Srta.
Ofélia. — Não conhece nenhum político ou qualquer outra pessoa que possa
interferir e tomar conta desse tipo de problema?
— É geralmente aceito que o interesse do proprietário seja suficiente nesses
casos. Se as pessoas optam por arruinar suas próprias posses, não sei o que há a
ser feito. Parece-me que a pobre criatura era ladra e bêbada, e desse modo não
haverá muita esperança de simpatia por ela.
— É absolutamente ultrajante, horrível, Augustine! A vingança certamente
recairá sobre você!
— Minha cara prima, eu não fiz nada e não posso fazer nada. Teria feito, se
pudesse. Se pessoas brutais e de mente baixa agem por conta própria, o que
posso fazer? Eles têm controle absoluto; são déspotas irresponsáveis. Seria inútil
interferir. Para casos como esse praticamente não há lei. O melhor que podemos
fazer é fechar nossos olhos e ouvidos e relevar os fatos. É o único recurso que
nos resta.
— Como pode fechar seus olhos e ouvidos? Como pode relevar coisas desse
tipo?
— Minha querida prima, o que espera? Aqui se encontra uma classe inteira
humilhada, sem instrução, indolente, provocadora, colocada inteiramente nas
mãos de pessoas como é a maioria das pessoas em nosso mundo, sem nenhum
tipo de acordos ou condições; pessoas que não têm nem consideração nem
autocontrole, nem reconhecem seus próprios interesses; e este é o caso de mais
da metade da humanidade. Obviamente que, em uma comunidade tão
organizada, o que pode um homem de sentimentos nobres e humanos fazer,
senão fechar bem os olhos e endurecer seu coração? Não tenho condições de
comprar cada pobre coitado que vejo. Não posso me transformar em cavaleiro
errante e querer reverter cada caso errado em uma cidade como esta. O máximo
que posso fazer é tentar me manter fora do caminho.
O rosto elegante de St. Clare ficou transtornado por um momento; ele
parecia incomodado, mas, repentinamente colocou um sorriso alegre no rosto e
disse:
— Por favor, prima, não fique aí olhando como uma das Fúrias; essa é só a
ponta do iceberg, apenas um vislumbre do que está acontecendo no mundo, de
uma forma ou de outra. Se vamos ficar discutindo e analisando todas as mazelas
da vida, não nos sobrará mais coragem para fazer nada. Isso é como olhar muito
de perto os detalhes da cozinha de Dinah — e então St. Clare deitou-se de volta
no sofá, ocupando-se novamente de seu jornal.
A Srta. Ofélia pegou seu trabalho de tricô e sentou-se tomada de indignação.
Ela tricotava sem parar e, enquanto refletia, o fogo queimava; até que ela falou:
— Vou lhe dizer uma coisa, Augustine, não sou capaz de passar pelas coisas
da maneira como você passa. É absolutamente abominável que defenda um
sistema como esse, pelo menos é o que eu penso!
— O que mais agora? — perguntou St. Clare levantando os olhos. — Este
assunto de novo?
— Digo que é absolutamente abominável que defenda um sistema como
esse! — repetiu a Srta. Ofélia, abrandando mais a voz.
— Que eu o defenda, minha cara Srta.? E quem foi que disse que eu o
defendo? — perguntou St. Clare.
— É claro que defende, vocês todos o fazem, todos os sulistas. Se não
defendessem o sistema, para que teriam escravos?
— Será que é tão inocente a ponto de supor que ninguém no mundo jamais
faça o que não acha certo? Será que você, um dia, já fez qualquer coisa que não
julgasse ser absolutamente correto?
— Se faço, me arrependo, assim espero — explicou a Srta. Ofélia, batendo
as agulhas energeticamente.
— Eu também me arrependo — disse St. Clare descascando sua laranja. —
Estou me arrependendo o tempo todo.
— E por que continua fazendo?
— Nunca continuou a fazer algo errado, mesmo depois de ter se arrendido,
minha bondosa prima?
— Bem, só quando fico muito tentada — admitiu a Srta. Ofélia.
— Bem, sou sempre muito tentado — disse St. Clare. — Essa é minha
dificuldade.
— Mas sempre decido que não farei as mesmas faltas novamente e tento
manter a promessa.
— Bom, há dez anos vivo dizendo a mim mesmo que não cometerei mais
faltas — disse St. Clare. — Mas, de algum modo, não consegui me livrar delas.
Você conseguiu se livrar de todos os seus pecados, prima?
— Primo Augustine! — exclamou a Srta. Ofélia seriamente e deixando de
lado seu trabalho de tricô. — Penso merecer a reprovação de meus defeitos. Sei
que tudo o que diz é verdadeiro o bastante e ninguém o sente mais do que eu;
mas, depois de tudo, me parece que há algumas diferenças entre você e eu. A
mim me parece que eu preferiria ter a mão cortada a continuar fazendo, dia após
dia, algo que julgasse ser errado. No entanto, minha conduta é tão inconsistente
com minha profissão que não é surpresa nenhuma que me reprove.
— Por favor, prima — disse Augustine, sentando-se no chão e colocando a
cabeça de volta no colo dela —, não leve tudo tão a sério! Sabe muito bem o tipo
de garoto inútil e insolente que sempre fui. Adoro lhe provocar, isso é tudo, só
para vê-la ficar nervosa. Considero-a desesperadamente, absolutamente boa;
cansa-me até a morte só de pensar nisso.
— Mas esse é um assunto sério, meu pequeno Augustine — disse a Srta.
Ofélia colocando a mão na testa dele.
— Infelizmente sim — ele disse. — E eu, bem, eu nunca gostei de falar de
assuntos sérios no tempo quente. Com os mosquitos e tudo mais, um sujeito é
incapaz de chegar a conclusões morais muito sublimes, e eu acredito —
continuou St. Clare levantando-se repentinamente — que há uma teoria agora!
Entendo agora por que as nações do Norte são sempre mais virtuosas do que as
do Sul; consigo entender a razão disso.
— Ah, Auguste, você é tão leviano!
— Sou mesmo? Bem, então sou, suponho; mas serei sério ao menos uma vez
na vida, porém, precisa me passar aquela cesta de laranjas; veja bem, terá que
“me fortalecer com vinho e me confortar com maçãs”, já que farei todo esse
esforço. Começarei da seguinte maneira —Augustine disse levantando a cesta.
— Quando, no decorrer dos eventos da raça humana, faz-se necessário um
sujeito manter duas ou três dúzias de seus parasitas em cativeiro, um olhar
decente às opiniões da sociedade requer…
— Não vejo como pode estar falando sério… — comentou a Srta. Ofélia.
— Espere, vou chegar lá, escute. Prima — ele explicou, seu belo rosto
repentinamente assumindo uma expressão preocupada e séria —, o cerne do
problema neste assunto abstrato da escravidão é, a meu ver, uma questão de
opinião. Os agricultores, que ganham dinheiro com ela, os clérigos, que
precisam agradar aos agricultores, os políticos, que fazem uso dela para
governar, podem distorcer e deformar as palavras e a ética a ponto de
surpreender o mundo em toda sua ingenuidade; podem pressionar a natureza e a
Bíblia e sabe-se lá mais o quê, a serviço deles; mas, ao final, nem eles nem
ninguém acredita em uma só palavra do que dizem. A escravidão é coisa do
demônio, essa é a questão. E, na minha opinião, é um exemplo respeitável do
que ele é capaz de fazer.
A Srta. Ofélia parou de tricotar e pareceu surpresa; e St. Clare,
aparentemente se divertindo com a surpresa dela, continuou.
— Parece ter dúvidas, mas se acompanhar minha linha de raciocínio,
deixarei minha opinião bem clara. O que é esse negócio maldito entre Deus e o
homem? Arranque-lhe todos os ornamentos, vá até a raiz e o cerne de tudo, e o
que se tem? Por quê? Porque meu irmão Quashy é ignorante e fraco, e eu sou
inteligente e forte? Porque sei como fazer as coisas e posso fazê-las? Essas
razões me dão o direito de roubá-lo e tomar posse de tudo o que ele tem e dar–
lhe apenas o que e quando me agrada? O que quer que seja muito difícil, muito
sujo, ou muito desagradável para mim, coloco um Quashy para fazê-lo. Porque
eu não gosto de trabalhar, o Quashy deverá trabalhar. Porque o sol me queima, o
Quashy ficará no sol. O Quashy ganhará o dinheiro e eu o gastarei. O Quashy
deverá deitar-se sobre todas as poças para que eu possa pisar em chão seco. O
Quashy deverá realizar o meu desejo, não o dele, todos os dias de sua vida, e ter
a chance de finalmente ir para o céu, de acordo com a minha conveniência. É
isso o que eu penso ser a escravidão. Desafio qualquer um neste mundo a ler
nosso código de escravidão como está escrito em nossas escrituras jurídicas e
chegar a outra conclusão. E vêm me falar de abusos da escravidão! Que grande
trapaça! A coisa toda em si mesma é a essência de todo abuso! E a única razão
para que tudo não desmorone como em Sodoma e Gomorra é porque a
escravidão é usada de um modo infinitamente melhor do que era lá. Por piedade,
por vergonha, por sermos homens nascidos de mulheres e não bestas selvagens,
grande parte de nós não abusa nem ousaria abusar do uso de todo o poder que
essas leis selvagens colocam em nossas mãos. E aquele que vai mais longe e faz
o pior, só o faz dentro dos limites do poder que a lei lhe dá.
St. Clare levantou-se e, como fazia quando ficava agitado, começou a
caminhar com passos apressados para cima e para baixo. Seu rosto fino e
clássico, como o de uma estátua grega, parecia realmente estar queimando com o
fervor de seus sentimentos. Os grandes olhos azuis chispavam e ele gesticulava
com uma agitação inconsciente. A Srta. Ofélia nunca o vira antes nesse estado de
humor e permaneceu sentada em absoluto silêncio.
— Confesso-lhe — ele disse parando subitamente em frente à prima — que
é completamente inútil falar ou sentir qualquer coisa com relação a esse assunto,
mas admito que já houve vezes quando pensei que se o país inteiro afundasse e
escondesse toda a injustiça e a miséria da luz, eu me afundaria com ele de bom
grado. Quando estive viajando de um lado para o outro em nossos barcos, ou
durante minhas viagens para coletar impostos, e observei que a todo sujeito
bruto, horrendo, mau e baixo era permitido, pelas nossas leis, se tornar uma
déspota absoluto de quantos homens, mulheres e crianças ele pudesse trapacear,
roubar ou comprar, quando vi homens desse tipo donos de crianças
desamparadas, raparigas e mulheres, estive a ponto de maldizer meu país e
amaldiçoar toda a raça humana!
— Ah, Augustine! Augustine! — disse a Srta. Ofélia. — Estou certa de que
já disse o suficiente. Nunca, em minha vida, ouvi nada parecido, nem no Norte!
— No Norte! — exclamou St. Clare, com uma súbita mudança de expressão,
voltando ao seu tom desdenhado de sempre. — Ora, ora! Vocês do Norte têm
sangue frio; são frios com tudo! Não saberiam blasfemar a torto e a direito como
nós, quando resolvemos fazê-lo!
— Bem, mas a questão é… — disse a Srta. Ofélia.
— Ah, sim, já sei o que vai dizer, a questão, e que questão dos infernos é
essa, é a seguinte! Como você chegou a este estado de pecado e miséria? Bem,
devo responder usando as velhas palavras que costumava me ensinar aos
domingos. Cheguei aqui por herança comum. Meus criados pertenciam ao meu
pai e também à minha mãe; e agora são meus, eles e tudo o que vem deles, o que
pode ser visto como um patrimônio considerável. Meu pai, como sabe, foi
primeiro para a Nova Inglaterra e era um homem como seu pai, um bom e velho
romano, animado, enérgico, de mente nobre e vontade de ferro. Seu pai se
estabeleceu na Nova Inglaterra, para reinar sobre pedras e rochas e viver da
terra; e o meu se estabeleceu na Louisiana, para reinar sobre homens e mulheres
e viver do trabalho deles. Minha mãe — disse St. Clare, levantando-se e
caminhando até um quadro no final da sala, os olhos para cima e o rosto
fervendo de veneração —, ela era divina! Não me olhe assim! Sabe o que quero
dizer! Ela provavelmente era mortal de nascimento, mas, até onde consegui
observar, não havia nenhum traço de qualquer fraqueza ou desvio humano nela;
e aqueles que são vivos e se lembram dela, sejam escravos ou homens livres,
criados, conhecidos, parentes, todos dizem a mesma coisa. Minha mãe, prima,
foi durante anos tudo o que se entrepôs entre mim e minha profunda descrença.
Ela era a perfeita encarnação e personificação do Novo Testamento – uma
história viva, para ser contada e valorizada pela sua verdade, e de nenhuma outra
forma. Ah, mãe, mãe! — disse St. Claire, juntando as mãos em um tipo de
transporte; e então, retomando o controle repentinamente, voltou e sentando-se
em uma poltrona, continuou:
“Meu irmão e eu éramos gêmeos, e dizem que gêmeos devem se parecer um
com o outro. No entanto, somos o oposto em todos os sentidos. Ele tinha olhos
escuros e ardentes, cabelos negros como o carvão, uma silhueta romana forte e
esguia e a pele morena. Eu tinha olhos azuis, cabelos louros, perfil grego e pele
clara. Ele era ativo e observador. Eu, sonhador e preguiçoso. Ele era generoso
com os amigos e iguais, mas orgulhoso, dominante e abusivo com seus
inferiores, e profundamente impiedoso com seja lá o que fosse que se colocasse
contra ele. Éramos os dois autênticos, ele pelo orgulho e coragem, eu por algum
tipo de idealização abstrata. Nós nos amávamos como garotos geralmente o
fazem — de vez em quando e como um todo. Ele era o favorito do meu pai e eu,
de minha mãe. Havia uma sensibilidade mórbida e aguda de sentimentos em
mim com relação a todos os assuntos, os quais ele e meu pai não compreendiam
e pelos quais não poderiam ter a menor simpatia. Mas minha mãe tinha; assim,
quando brigava com Alfred, e o papai me olhava zangado, eu costumava ir até o
quarto de minha mãe e me sentar ao lado dela. Lembro-me exatamente de como
ela era, com o rosto pálido, os olhos profundos, carinhosos e sérios, seu vestido
branco; ela sempre usava branco; e eu costumava pensar nela toda vez que lia,
no Livro das Revelações, sobre os santos que apareciam vestidos em linho
delicado, límpido e branco. Ela tinha muitos talentos diferentes, de um tipo ou de
outro, particularmente para a música; e costumava sentar-se ao órgão, tocando
músicas lindas e majestosas da Igreja Católica, e cantando com uma voz mais
angelical do que humana; e eu colocava a cabeça no colo dela e chorava, e
sonhava e sentia — ah, sentia imensuravelmente! — coisas que nem tenho
palavras para descrever!
“Naquele tempo essa questão da escravatura nunca era discutida como
agora; ninguém via nada de mal nisso.
“Meu pai nasceu um aristocrata. Imagino que, em outra vida, ele deva ter
pertencido aos círculos mais elevados dos espíritos, e trouxera toda a velha e
nobre arrogância consigo; pois ela lhe era intrínseca, cravada nos ossos, embora
sua origem fosse pobre e, de maneira alguma, ele viesse de família nobre. Meu
irmão era a imagem e semelhança dele.
“Mas sabe-se muito bem que os aristocratas só têm simpatias humanas
acima de certo nível da sociedade. Na Inglaterra o nível é em um lugar, em
Burma em outro, e na América, em outro; mas os aristocratas de todos esses
países nunca transpõem esse nível. O que representasse dificuldade, incòmodo e
injustiça em sua própria classe, seria um problema menor em outra. A linha
divisória de meu pai era a cor. Entre seus iguais, nunca houve um homem mais
justo e generoso, mas ele considerava o negro, incluindo todas as possíveis
gradações de cor, como um elo intermediário entre o homem e os animais, e
balizava todas as suas ideias de justiça ou generosidade nesta hipótese. Imagino
que se um dia alguém lhe perguntasse, ríspida e objetivamente, se os negros
tinham almas imortais, ele poderia ter tentado se esquivar da resposta, mas
respondido que sim. No entanto, meu pai não era um homem muito preocupado
com o espiritualismo; não possuía nenhum sentimento religioso além de ver a
Deus como o chefe das classes superiores.
“Bem, meu pai tinha aproximadamente quinhentos negros; ele era um
homem de negócios inflexível, objetivo e meticuloso; tudo tinha que funcionar
com método, ser feito com eficácia e precisão infalível. Agora, se levar em
consideração que tudo isso deveria ser feito por um bando de trabalhadores
preguiçosos, tagarelas e indolentes, que cresceram a vida toda sem nenhuma
razão possível para aprender como fazer qualquer coisa exceto “esquivar-se da
responsabilidade”, como diriam vocês de Vermont, pode-se imaginar que
aconteceram muitas coisas na fazenda dele que pareciam terríveis e assustadoras
para uma criança sensível como eu.
“Além disso, ele tinha um feitor, um filho renegado de Vermont, com todo o
respeito, grande, alto, largo, violento, que passou por um aprendizado em dureza
e brutalidade, e colocava todos seus conhecimentos em prática. Minha mãe
nunca o suportou, nem eu, mas ele ganhou ascendência sobre meu pai; e esse
homem era um déspota absoluto da fazenda.
“Eu era pequeno na época, mas tinha o mesmo amor que tenho agora por
todo tipo de coisas humanas, um tipo de paixão pelo estudo da humanidade, não
importava a forma que viesse. Sempre me encontravam nas cabanas e entre os
trabalhadores do campo, e, obviamente, eu era amado pelos escravos, e todos os
tipos de reclamações e sofrimentos eram soprados em meus ouvidos; e eu os
contava à minha mãe e, nós dois, entre nós, formávamos um comitê para
remediar os sofrimentos. Nós coibimos e reprimimos muita crueldade, e nos
parabenizamos por fazer muita bondade até que, como sempre acontece, meu
entusiasmo exagerou. Stubbs reclamou a meu pai que não conseguia controlar os
escravos, e que deveria pedir demissão de seu cargo. Meu pai era um marido
amável e indulgente, mas um homem que nunca se esquivava do que julgava
necessário; então bateu o pé, como uma rocha, entre nós e os escravos do campo.
Ele disse à minha mãe, em uma linguagem absolutamente respeitosa e
obsequiosa, mas muito explícita, que ela seria a senhora soberana dos criados da
casa, mas que não permitiria interferência com os escravos do campo. Ele a
reverenciava e a respeitava acima de todas as coisas vivas, mas teria dito a
mesma coisa à própria Virgem Maria caso ela estivesse atrapalhando o seu
sistema.
“Às vezes ouvia minha mãe discutindo alguns problemas com ele, tentando
ganhar sua simpatia. Ele ouvia aos apelos mais patéticos com a polidez e
equanimidade mais desencorajadora possível. ‘Tudo acaba na seguinte
pergunta’, ele dizia, ‘devo demitir ou ficar com Stubbs? Stubbs é a
personificação da pontualidade, honestidade e eficiência, tem tino para negócio e
é tão humano quanto a maioria das pessoas. Não podemos alcançar a perfeição;
se o mantiver, devo apoiar a administração dele como um todo, mesmo que haja
exceções aqui e ali. Todo governo inclui algumas severidades. As regras gerais
se sobrepõem às regras particulares.’ Meu pai parecia considerar essa última
declaração como uma justificativa para a maioria dos casos de crueldade. Depois
de dizer isso, ele geralmente colocava os pés no sofá, como um homem que já
encerrou o dia, ocupava-se de tirar um cochilo ou ler um períodico, conforme o
caso.
“A verdade é que meu pai demonstrava o tipo exato de talento para um
homem de Estado. Ele poderia ter dividido a Polônia tão facilmente quanto
dividia uma laranja, ou invadido a Irlanda de modo tão sistemático e silencioso
quanto qualquer outro homem. Ao final, minha mãe desistiu, desolada. Nunca
saberemos, até o julgamento final, o que uma criatura tão nobre e sensível como
ela sentiu, sobrepujada e completamente impotente, no que parecia ser um
abismo de injustiça e crueldade, do qual ninguém fazia ideia. Foi uma época de
muito sofrimento em um mundo infernal como o nosso. O que lhe restava além
de educar os filhos de acordo com seus próprios pontos de vista e sentimentos?
Bem, depois de tudo o que disse sobre educação, as crianças crescerão
essencialmente o que são por natureza, e apenas isso. Desde o berço, Alfred era
um aristocrata e, à medida que crescia, instintivamente todas suas simpatias e
seus raciocínios eram nessa linha, e todos os ensinamentos da mamãe iam pelos
ares. Quanto a mim, eles me tocavam profundamente. Mamãe nunca contradizia,
de fato, qualquer palavra de meu pai, nem parecia discordar dele; mas ela
imprimiu, queimada em minha própria alma, com toda a força de sua natureza
profunda e séria, a ideia de dignidade e valor da alma humana, por mais
miserável que fosse. Eu olhava no rosto dela em absoluto encantamento quando,
à noite, ela apontava para as estrelas e me dizia: 'Está vendo, ali, Auguste? A
alma mais pobre e miserável desse lugar viverá, quando todas essas estrelas
tiverem desaparecido para sempre, viverá tanto quanto o próprio Deus!’.
“Ela possuía alguns belos quadros antigos; um, em particular, de Jesus
curando um homem cego. Eram lindos e me impressionavam muito. ‘Veja lá,
Auguste’, ela dizia; ‘o homem cego era um mendigo, miserável e repulsivo; mas
Ele não quis curá-lo à distância! Ele o chamou para perto de si e colocou suas
mãos no mendigo! Lembre-se disso, meu garoto!’. Se tivesse vivido sob os
cuidados dela, ela teria me encorajado a não sei que nível de entusiasmo. Eu
poderia ter sido um santo, reformista, mártir, mas que pena! Pena! Saí de perto
dela quando tinha treze anos, e nunca mais a vi de novo!”
St. Clare pousou a cabeça sobre as mãos e não falou por um momento.
Alguns minutos depois ele ergueu os olhos e continuou:
— Que miserável e cruel é esse negócio da virtude humana! Uma mera
questão de acaso, na maioria das vezes, de latitude e longitude e posição
geográfica agindo em combinação com as disposições naturais! Na maior parte
não passa de um acidente! Seu pai, por exemplo, se estabelece em Vermont, em
uma cidade onde todos, de fato, são livres e iguais; torna-se um membro regular
da igreja e diácono e, com o passar do tempo junta-se à Sociedade Abolicionista
e passa a considerar a todos um pouco melhores do que pagãos. No entanto ele é,
em tudo, em constituição e hábito, uma réplica de meu pai. Sou capaz de
enxergá-lo de cinquenta maneiras diferentes, aquele mesmo espírito forte,
arrogante e dominador. Você sabe muito bem o quanto é impossível persuadir
algumas pessoas em seu vilarejo de que o cavalheiro Sinclair não se sente
superior a eles. A verdade é que, embora ele tenha vivido em tempos
democráticos e abraçado uma teoria democrática, ele é, no cerne, um aristocrata,
tanto quanto meu pai, que tinha aproximadamente quinhentos ou seiscentos
escravos sob seu comando.
A Srta. Ofélia sentiu-se compelida a contestar, e estava colocando de lado as
agulhas de tricô, quando St. Clare a interrompeu:
— Sei cada palavra que dirá. Não disse que os dois eram parecidos, de fato.
Um encontrava-se na condição na qual tudo agia contra a tendência natural, e o
outro onde tudo agia a favor disso; assim, um se tornou um velho democrata
teimoso, vigoroso e arrogante, e o outro, um déspota teimoso, vigoroso e
arrogante. Se ambos tivessem fazendas na Louisiana teriam sido tão parecidos
como duas velhas balas forjadas no mesmo molde.
— Que garoto desrespeitoso você é! — retrucou a Srta. Ofélia.
— Não foi minha intenção ser desrespeitoso com eles — falou St. Clare. —
Sabe muito bem que reverência não é o meu forte. Mas, voltemos à minha
história… Quando meu pai morreu, deixou para nós, os gêmeos, toda a
propriedade, para ser dividida conforme concordássemos. Não há no mundo de
Deus uma alma mais nobre, mais generosa do que a de Alfred, no que tange aos
seus iguais; e resolvemos admiravelmente a questão da propriedade, sem uma só
palavra ou sentimento de discórdia. Concordamos em administrar a fazenda
juntos; e Alfred, cuja vida ao ar livre e capacidades eram o dobro das minhas,
tornou-se um agricultor entusiástico e maravilhosamente bem-sucedido.
“Porém, dois anos de experiência me mostraram que eu não poderia ser um
parceiro naquela questão. Ter um bando de setecentos escravos a quem não
conhecia pessoalmente, ou por quem não sentia qualquer interesse, comprá-los,
dar-lhes tarefas, abrigálos, alimentá-los e fazê-los trabalhar como gado chifrudo,
ordená–los com precisão militar, o problema constante do quão pouco os
pequenos prazeres da vida os manteria trabalhando em ordem, a necessidade de
capatazes e feitores, o açoite sempre necessário, primeiro, último e único
recurso, a coisa toda era insuportavelmente terrível e repugnante para mim; e
quando me lembrava da estima de minha mãe pela miserável alma humana, tudo
se tornava ainda mais assustador!
“Para mim não faz o menor sentido falarem de escravos apreciando tudo
isso! Até hoje não tenho paciência com o lixo intolerável que alguns de vocês,
nortistas condescendentes, criaram para nos eximir de nossos pecados. Sabemos
muito bem que não é isso. Diga-me se existe algum homem no mundo que quer
trabalhar todos os dias, de sol a sol, sob o olhar constante de seu amo, sem poder
exprimir sua própria vontade, no mesmo trabalho cansativo, monótono e
imutável, tudo por um par de calças e sapatos uma vez por ano, com comida e
abrigo suficientes apenas para mantê-lo em forma para o trabalho! Qualquer
homem que pense que os seres humanos podem, de modo geral, se sentir
confortáveis com tal situação, deveria experimentar viver assim. Eu compraria o
cão e o faria trabalhar com a consciência tranquila!”
— Sempre imaginei — disse a Srta. Ofélia — que vocês, todos vocês,
aprovassem tais coisas e as tivessem como sendo corretas, de acordo com as
Sagradas Escrituras.
— Que balela! Ainda não fomos reduzidos a isso. Alfred, que é o déspota
mais determinado que já se viu sobre a Terra, não finge aceitar essa defesa; não,
ele se fia, altivo e presunçoso, no antigo território respeitável do direito dos mais
fortes e diz, com toda razão, que os agricultores americanos estão fazendo “de
outra forma, aquilo que a aristocracia inglesa e os capitalistas estão fazendo com
as classes inferiores”, isso é, se apropriando deles, corpo, alma e espírito, para
usá–los de acordo com sua conveniência. Ele defende as duas causas de forma
consistente, ao menos é assim que eu vejo. Acredita não poder haver uma
civilização superior sem a escravização das massas tanto simbólica como real.
Deve sempre haver, ele diz, uma classe inferior, condenada ao trabalho físico e
confinada à natureza animal; e uma classe superior que desenvolve o prazer e a
riqueza de uma inteligência melhor e maior, e se torna a alma que comanda os
inferiores. É assim que ele pensa porque, como disse, ele nasceu um aristocrata;
mas eu não acredito nisso, pois nasci um democrata.
— Como pode comparar duas coisas desse tipo? — perguntou a Srta. Ofélia.
— O trabalhador inglês não é vendido, trocado, separado de sua família ou
açoitado.
— Mas está tão à revelia do desejo de seu empregador como se fosse
vendido a ele. O dono de escravo pode açoitar seu escravo rebelde até a morte; o
capitalista pode matá-lo de fome. Quanto à segurança familiar, é difícil dizer
qual dos dois é pior: ter um filho vendido ou vê-los morrer de fome em casa.
— Mas isso não é justificativa para a escravidão; provar que ela não é pior
do que alguma outra coisa ruim.
— Não usei como justificativa, não. Além disso, digo que o nosso regime é a
infração mais escancarada e palpável dos direitos humanos; comprar um homem
como se compra um cavalo, olhando seus dentes, estalando suas juntas, testando
seus passos, e então pagar por ele; temos especuladores, feitores, mercadores e
corretores de corpos e almas humanas, tudo diante dos olhos do mundo
civilizado de uma forma mais aceitável, apesar de a coisa ser, no fundo, por
natureza, a mesma coisa, ou seja, apropriar-se de um grupo de seres humanos
para o uso e o benefício de outro, sem o menor pudor.
— Nunca pensei nessa questão sob essa luz — disse a Srta. Ofélia.
— Já viajei bastante pela Inglaterra, e analisei muitos documentos
relacionados às classes mais baixas daquele país, e realmente acho que não se
pode negar que Alfred tem razão quando diz que seus escravos estão em
melhores condições do que grande parte da população inglesa. Veja bem, não
deve inferir, pelo que acabei de dizer, que Alfred seja o que chamam de amo
duro, pois ele não é. Ele é despótico e impiedoso com insubordinação; mataria
um sujeito a tiro com tão pouco remorso como atiraria em um cervo, se o sujeito
lhe contrariasse. Mas, em geral, sente muito orgulho em ter seus escravos bem
alimentados e acomodados.
“Quando trabalhávamos juntos, insisti para que fizesse algo com relação à
instrução dos escravos e, para me agradar, ele providenciou um capelão que
costumava catequizá-los aos domingos, ainda que eu acreditasse que, no coração
de Alfred, ele achava que daria no mesmo ter o capelão pregando a seus cães e a
seus cavalos. E de fato, uma mente embrutecida e animalizada por todo tipo de
má influência desde o nascimento, trabalhando todos os dias sem pensar, não
consegue se desenvolver muito em algumas poucas horas aos domingos. Os
professores das escolas dominicais da população operária na Inglaterra, e dos
escravos em nosso país, talvez pudessem testemunhar o mesmo resultado aqui e
lá. Mesmo assim, há algumas exceções surpreendentes entre nós, oriundas do
fato de que os negros são mais impressionáveis pelo sentimento religioso do que
os brancos.”
— E como foi que você desistiu de sua vida na fazenda?
— Bem, trabalhamos juntos durante um tempo, até Alfred perceber que eu
definitivamente não era um homem do campo. Achou absurdo que depois de ter
reformado, alterado e melhorado tudo de acordo com os meus gostos, eu ainda
não me desse por satisfeito. Mas o fato é que, ao final, o que eu odiava mesmo
era a tal COISA, o uso desses homens e mulheres, a perpetuação dessa ignorância,
dessa brutalidade, dessa imoralidade apenas para fazer dinheiro para mim!
— Além do mais, estava sempre interferindo nos detalhes. Sendo eu um dos
mortais mais preguiçosos do mundo, era muito afeito à preguiça; e quando os
pobres coitados punham pedras no fundo de seus sacos de algodão para deixá-los
mais pesados, ou enchiam os sacos com terra e algodão em cima, me parecia
exatamente o que eu faria se fosse eles e eu não podia e não mandaria açoitá-los
por isso. Obviamente que houve um fim para a disciplina da fazenda; e Alf e eu
chegamos ao mesmo ponto a que chegamos meu pai e eu anos antes. Assim, ele
me disse que eu era tão sentimental como uma mulher e nunca me sairia bem
nos negócios; e me aconselhou a aceitar algumas ações do banco e a mansão da
família em Nova Orleans, e ir escrever poesia e deixá-lo cuidar da fazenda.
Então nos despedimos e vim para cá.
— Por que não libertou seus escravos?
— Bem, não tive coragem de fazê-lo. Não podia mantê-los como ferramenta
para fazer dinheiro; mas, gastar meu dinheiro com eles não me pareceu tão
horrendo. Alguns deles eram antigos criados da casa, aos quais eu era muito
apegado; e os mais jovens eram filhos dos mais velhos. Todos estavam muito
satisfeitos de estar onde estavam — ele fez uma pausa e caminhou
reflexivamente de um lado para o outro da sala.
“Houve um tempo em minha vida”, declarou St. Clare, “quando tive planos
e esperanças de fazer algo neste mundo, mais do que só ficar à deriva. Tinha
uma vaga e indistinta vontade de ser um tipo de emancipador, de libertar minha
terra dessa nódoa desgraçada. Todos os jovens têm esses lampejos alguma vez na
vida, suponho, mas então…”
— E por que não o fez? — perguntou a Srta. Ofélia. — Não se deve colocar
a mão no arado e depois olhar para trás.
— Bem, as coisas não aconteceram conforme o esperado e passei pelo
desespero de viver o que Salomão viveu. Imagino que tenha sido um incidente
necessário para a sabedoria de ambos, mas, de qualquer maneira, em vez de ser
um ator e regenerador da sociedade, eu me tornei um pedaço de madeira levado
pela correnteza, e desde então, fico flutuando de um lado para o outro. Alfred me
repreende toda vez que nos encontramos e tem vantagem sobre mim, posso lhe
garantir, pois ele realmente faz alguma coisa; a vida dele é um resultado lógico
de suas opiniões, e a minha é um non sequitur contemplativo.
— Meu querido primo, está satisfeito com a maneira pela qual está
enfrentando sua provação?
— Satisfeito? Mas não estava exatamente lhe dizendo o quanto a desprezo?
Mas, para voltarmos ao assunto, falávamos sobre a questão da alforria. Não acho
que meus sentimentos com relação à escravidão sejam peculiares. Conheço
muitos homens que, em seus corações, pensam do mesmo modo que eu. A terra
ruge sob ela e, por pior que seja para os escravos, é ainda muito pior para os
amos. Não é necessário usar óculos para ver que há uma grande classe de
pessoas deploráveis, imprudentes e degradadas entre nós, que são ruins para nós
assim como para elas mesmas. O capitalista e o aristocrata inglês não conseguem
se sentir como nós nos sentimos, pois não se misturam com a classe que
exploram como nós o fazemos. Os negros estão em nossas casas, são
companheiros de nossos filhos e formam a opinião deles mais rápido do que nós,
pois são de uma raça à qual as crianças sempre se juntam e se afeiçoam. Se Eva
não fosse um anjo como é, estaria arruinada. E seríamos capazes de deixar que a
varíola se espalhasse entre eles e achar que nossos filhos não se contaminariam,
apenas para que continuassem desinformados e deploráveis e pensassem que
nossos filhos não seriam afetados por aquilo. Ainda assim nossas leis proíbem
terminantemente qualquer sistema educacional eficiente para os negros, e fazem
bem, pois bastaria educar seriamente uma geração e a coisa toda explodiria pelos
ares. Se não lhe déssemos a liberdade, eles a tomariam com as próprias mãos.
— E como acha que isso terminará? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Não sei. Uma coisa é certa: há um burburinho entre as multidões pelo
mundo. A mesma coisa está acontecendo na Europa, na Inglaterra e aqui neste
país; há um dies irae. Minha mãe costumava dizer de um milênio que estava se
aproximando, quando Cristo reinaria e todos os homens seriam livres e felizes. E
ela me ensinou a rezar, quando ainda era garoto: “Venha a nós o vosso reino”. Às
vezes acho que todos esses suspiros, gemidos e movimentação entre os coitados
prediz o que ela costumava dizer que viria. Mas quem sabe o dia em que ele
chegará?
— Augustine, às vezes acho que você não está muito distante do Reino de
Deus — comentou a Srta. Ofélia, colocando as agulhas de tricô de lado e
olhando ansiosamente para o primo.
— Obrigada pela sua alta conta, mas comigo é cheio de altos e baixos. Na
teoria, subo até os portões do paraíso; na prática, desço até o pó da Terra. Aí está
a sineta do chá; por favor, vamos. E agora não venha me dizer que nunca
conversei seriamente em toda minha vida.
À mesa, Marie mencionou o incidente com Prue.
— Imagino, prima, que pense que somos todos bárbaros.
— Acho uma barbaridade o que aconteceu — disse a Srta. Ofélia —, mas
não acho que sejam todos bárbaros.
— Sei que é impossível conviver com algumas dessas criaturas — falou
Marie. Elas são tão cruéis que não deveriam viver. Não sinto nem um pouco de
simpatia por casos desse tipo. Se eles se comportassem, isso não aconteceria.
— Mas, mamãe — replicou Eva —, a pobre criatura estava infeliz; era por
isso que bebia.
— Ah, que bobagem! Como se isso fosse uma desculpa! Eu muitas vezes
estou infeliz. Imagino — ela disse pensativamente — que eu tenha passado por
mais provações do que ela na vida. É tudo porque são muito ruins. Alguns deles
são impossíveis de se subjugar, seja lá qual for a punição. Lembro que meu pai
tinha um homem tão preguiçoso que fugia só pra escapar do trabalho, e se
escondia nos pântanos, roubando e fazendo todo tipo de coisas horríveis. Aquele
homem foi pego e açoitado, várias vezes, e nunca adiantou nada. Da última vez,
ele se arrastou, apesar de quase não conseguir se mover, e morreu no pântano.
Não havia razão nenhuma para aquilo, pois os escravos de meu pai sempre
foram bem tratados.
— Já subjuguei um homem uma vez — contou St. Clare —, ao qual todos os
feitores e senhores tinham tentando com as próprias mãos em vão.
— Você? — exclamou Marie. — Ora, ficaria muito feliz em saber quando
você fez qualquer coisa desse tipo na vida.
— Bem, ele era um sujeito enorme e forte, um africano nativo; ele parecia
ter o péssimo instinto de liberdade muito desenvolvido. Era um típico leão
africano. Chamavam-no de Spicio. Ninguém conseguia fazer nada com ele,
assim, o negro foi vendido de feitor para feitor, até que, finalmente Alfred o
comprou, por achar que pudesse controlá-lo. Então, um dia ele nocauteou o
feitor e fugiu rapidamente para os pântanos. Eu estava visitando a fazenda, pois
isso aconteceu logo depois de termos desfeito nossa sociedade. Alfred ficou
profundamente exasperado e eu lhe disse que a culpa era sua, e sugeri apostar
que conseguiria submeter o escravo. E finalmente ele concordou que, se eu o
pegasse, deveria fazer a experiência. Assim, juntaram um grupo de seis ou sete
homens, com armas e cães, para a perseguição. Quando se é um hábito, as
pessoas podem ficar tão entusiasmadas ao caçar um homem como ficam ao caçar
um cervo; de fato, eu mesmo fiquei animado, apesar de ter me colocado como
um tipo de mediador, caso ele fosse capturado.
“Bem, os cães farejavam e latiam e nós cavalgamos e corremos até que
finalmente o encontramos. Ele correu e se esquivou como um cervo, e nos
deixou para trás por muito tempo; mas finalmente os pegamos em um arbusto de
cana impenetrável e ele se virou para nos encarar, e vou lhes dizer, o negro lutou
bravamente com os cães. Ele os jogou para a direita e para esquerda, e matou
com precisão os três animais com os próprios punhos, quando um tiro de pistola
o derrubou e ele caiu, ferido e sangrando, quase nos meus pés. O pobre homem
olhou para mim com hombridade e desespero nos olhos. Mantive os cachorros e
o grupo de homens para trás à medida que se aproximavam, e o declarei meu
prisioneiro. Era tudo o que podia fazer para evitar que eles o matassem a tiros,
no afã da situação; mas persisti em minha barganha e Alfred o vendeu a mim.
Encarreguei-me dele e, em quinze dias o negro estava apaziguado, tão submisso
e dócil quanto se pode desejar um coração.”
— E o que neste mundo você fez com ele? — perguntou Marie.
— Bem, foi um processo muito simples. Levei-o para o meu próprio quarto,
mandei que lhe preparassem uma boa cama, limpei seus ferimentos e cuidei dele
eu mesmo até que conseguiu se levantar sobre os próprios pés. E, ao longo do
tempo, mandei lavrar uma carta de alforria e disse a ele que poderia ir para onde
bem quisesse.
— E ele foi? — disse a Srta. Ofélia.
— Não. O tolo rasgou a carta ao meio e recusou-se terminantemente a me
deixar. Nunca conheci um sujeito melhor e mais corajoso, leal e verdadeiro feito
aço. Tempos depois ele se converteu ao cristianismo e se tornou tão gentil
quanto uma criança. Ele costumava cuidar de minha casa no lago, e também o
fazia de forma primorosa. Eu o perdi para o primeiro surto de cólera. Na
verdade, ele arriscou a vida por mim. Eu me adoentei quase a ponto de morrer; e
quando, tomados pelo pânico, todos debandaram, Scipio cuidou de mim feito um
gigante e, de fato, me trouxe de volta à vida. Mas, pobre coitado! Ele mesmo
pegou a doença e não houve como salvá-lo. Nunca senti tanto a perda de alguém.
Eva, aos poucos, chegava mais perto do pai à medida que ele contava a
história, os lábios semiabertos, os olhos arregalados e preocupados com um
interesse profundo.
Quando ele terminou, Evangeline repentinamente jogou os braços em volta
do pescoço do pai, caiu no choro e começou a soluçar convulsivamente.
— Eva, minha filha! Qual é o problema? — perguntou St. Clare enquanto a
figura pequena da criança tremia e vibrava com a violência de seus sentimentos.
— Esta criança — ele disse — não pode ouvir histórias desse tipo. Fica nervosa.
— Não, papai. Não estou nervosa — disse Eva se controlando, subitamente,
com uma força de determinação singular para uma criança daquela. — Não
fiquei nervosa, mas essas coisas me tocam profundamente o coração.
— O que quer dizer, Eva?
— Não posso dizer, papai. São muitos pensamentos. Talvez um dia eu lhe
conte.
— Bem, quando quiser, querida. Agora, por favor, pare de chorar e deixar
seu pai preocupado — pediu St. Clare. — Olhe aqui, veja só que lindo pêssego
eu tenho para você!
Eva pegou-o e sorriu, embora ainda houvesse um resquício de nervosismo
nos cantos de sua boca.
— Venha olhar os peixinhos dourados — disse St. Clare, pegando na mão
dela e caminhando até a varanda. Momentos depois, risadas de alegria podiam
ser ouvidas através das cortinas de seda, enquanto Eva e St. Clare jogavam
pétalas de rosas um no outro e brincavam de pega-pega entre os corredores do
pátio.
Nossos leitores podem querer olhar para trás, por um breve intervalo, para a
cabana do Pai Tomás, na fazenda do Kentucky, e ver o que está se passando
entre aqueles que ele teve de deixar para trás.
Era uma tarde de verão, e as portas e janelas da grande sala estavam todas
abertas, convidativas à brisa passageira que estivesse bem-humorada para entrar.
O Sr. Shelby sentava-se em um grande corredor que se abria em uma sala e
percorria toda a extensão da casa até uma sacada em cada extremidade. A Sra.
Shelby estava sentada à porta, ocupada com alguma costura delicada; parecia ter
algo em mente e procurava uma oportunidade para falar.
— Sabia que a Cloé recebeu uma carta de Tomás? — ela perguntou.
— Ah, é mesmo? Parece que o Tomás tem algum amigo por lá. Como está o
velho amigo?
— Foi comprado por uma família muito boa, imagino — comentou a Sra.
Shelby. — Está sendo bem tratado e não tem muito a fazer.
— Ah! Fico feliz por isso, muito feliz — falou o Sr. Shelby sinceramente. —
Imagino que Tomás irá se acostumar à sua casa sulista e nem pensará em voltar
para cá.
— Muito pelo contrário; ele está ansioso para saber se teremos o dinheiro
para resgatá-lo — explicou a Sra. Shelby.
— Isso eu realmente não sei — disse Sr. Shelby. — Uma vez que o negócio
começa a dar errado, parece nunca haver mais fim. É como saltar de uma turfa a
outra em um pântano; empresta-se de um para se pagar o outro, e empresta-se do
outro para pagar o um; e essas malditas dívidas a serem pagas antes de se ter
tempo para fumar um charuto e se virar de lado; cartas de cobrança, bilhetes de
cobrança; todos apressados e para ontem.
— Não me parece, querido, que algo possa ser feito para resolver o
problema. Suponha que vendamos todos nossos cavalos e uma de nossas
fazendas, e paguemos tudo de uma vez?
—Ah, isso é ridículo, Emily! Você é a mulher mais elegante do Kentucky,
ainda assim não tem a menor noção sobre negócios; as mulheres nunca têm e
nunca terão.
— Mas, pelo menos — disse a Sra. Shelby —, poderia me dar uma ideia de
nossa situação; uma lista de todas as suas dívidas e de tudo que lhe é devido, e
me deixe tentar ver se consigo ajudá-lo a economizar.
— Ah, que bobagem! Não me rogue praga, Emily! Não posso lhe dizer
exatamente. Sei a situação das coisas, mas não posso destrinchar e equacionar
meus negócios, como a Cloé corta a borda das tortas. Você não entende nada de
negócios, acredite em mim.
E o Sr. Shelby, não conhecendo outra maneira de impor suas ideias, ergueu a
voz, um modo de argumentação muito conveniente e convincente quando um
cavalheiro está discutindo negócios com sua esposa.
A Sra. Shelby parou de conversar, dando um suspiro. A questão era que,
embora seu marido tivesse colocado empecilho por sua condição de mulher, ela
tinha uma mente clara, dinâmica e prática, além de força de caráter muito
superior à do marido; assim não teria sido uma suposição absurda tê-la
considerado capaz de administrar os negócios, como o Sr. Shelby supunha. Seu
coração estava firme em cumprir a promessa que fizera a Tomás e à Mãe Cloé, e
ela suspirou profundamente à medida que os desencorajamentos aumentavam ao
redor de si.
— Não acha que deveríamos pensar em algum modo de conseguir o
dinheiro? Pobre Mãe Cloé! O coração dela está tomado por essa ideia!
— Sinto muito se ela está assim. Acho que fui prematuro em fazer a
promessa. Não tenho certeza, mas acho melhor dizer a verdade a Cloé e deixá-la
se acostumar com a ideia. Tomás terá outra esposa, em um ou dois anos; e é
melhor que ela se case com outro também.
— Sr. Shelby, eu sempre ensinei aos meus escravos que o casamento deles é
tão sagrado quando o nosso. Nunca daria esse tipo de conselho à Cloé.
— É uma pena, minha cara esposa, que lhes tenha dado um fardo de moral
acima de suas condições e perspectivas. Sempre achei isso.
— É apenas a moral da Bíblia, Sr. Shelby!
— Ora, ora, Emily, não tenho intenção de me intrometer em suas noções
religiosas, mas só que elas me parecem extremamente inadequadas para pessoas
nessas condições.
— E realmente são — retorquiu a Sra. Shelby. — E é por isso que odeio essa
coisa toda, do fundo da minha alma. Vou lhe dizer uma coisa, meu caro, não
posso me redimir das promessas que faço a essas pobres criaturas. Se não posso
conseguir o dinheiro de outro modo, hei de aceitar alunos de música; sei muito
bem que posso conseguir muitos, e amealharei o dinheiro eu mesma.
— Não há de se degradar dessa forma, Emily! Eu nunca consentiria isso!
— Degradar? E quebrar a promessa que fiz a esses coitados não me
degradaria da mesma forma? Não, claro que não!
— Bem, você é sempre heroica e transcendental — refutou o Sr. Shelby. —
Mas acho melhor pensar duas vezes antes de assumir seu lado quixotesco.
Aqui a conversa foi interrompida pela aparição da Mãe Cloé na ponta da
varanda.
— Por favor, sinhá — ela pediu.
— Bem, Cloé, o que está acontecendo? — perguntou a senhora se
levantando e indo ter com ela na ponta da varanda.
— Poderia vir até aqui e conferir essa remessa de previsões?
Cloé gostava de trocar provisões por previsões, uma aplicação da língua na
qual ela sempre insistira, apesar das correções frequentes e dos conselhos dos
mais jovens da família.
— Deus do céu! — ela dizia. — Não vejo diferença; uma palavra é tão boa
quanto a outra; e previsão tá bom, de qualquer jeito — e assim a Mãe Cloé
continua a dizer a palavra errada.
A senhora Shelby sorri ao ver um lote de galinhas e patos prostrados, sobre
os quais Cloé estava sentada com grave expressão de análise.
— Estou pensando se faço uma torta para a sinhá dessa aqui.
— Ora, Mãe Cloé, não faz diferença. Sirva-os à maneira que achar melhor.
Cloé ficou ali manuseando-os distraidamente; era óbvio que não era nas
galinhas em que ela estava pensando. Finalmente, com uma risada curta com a
qual sua tribo geralmente anunciava uma proposta duvidosa, ela disse:
— Ah, sinhá! Por que o sinhô e a sinhá fica se preocupando em arrumar
dinheiro e não usa o que tem nas mão? — e Cloé riu de novo.
— Não compreendo o que quer dizer, Cloé — retrucou a senhora Shelby,
não duvidando, por conhecer o comportamento da escrava, que Cloé tinha
ouvido cada palavra da conversa que se sucedeu entre ela e o marido.
— Ah, por Deus, sinhá! — disse Cloé, rindo de novo. — Outras pessoa
aluga os preto e faz dinheiro com eles. Não fica com os escravo comendo e
bebendo.
— Bem, Cloé, quem você sugere que aluguemos?
— Meu Deus! Não estou sugerindo nada; é que Sam disse que tem um
desses doceiro, como chama eles em Louisville, que estava precisando de ajuda
para fazer os bolo e doce; e disse que paga quatro dólares por semana por
alguém; foi ele que disse.
— Continue, Cloé.
— Bom, eu estava pensando, sinhá, já é hora da Sally ser colocada pra fazer
alguma coisa. Sally está sob os meus cuidado faz tempo e sabe fazer tudo tão
bem que nem eu. E estava pensando se a sinhá me deixa ir, eu ajudava a
conseguir o dinheiro. Não tenho medo de colocar meus bolo ou minhas torta
junto com as do doceiro.
— Confeiteiro, Cloé.
— Ah, meu Deus, sinhá! Não é estranho!? As palavra é muito estranha,
nunca consigo falar elas direito!
— Mas, Cloé, quer deixar seus filhos?
— Ah, sinhá! Os menino já é grande pra trabalhar de dia, já sabe trabalhar
bem o bastante; e Sally cuidará do bebê. Ela é uma negrinha muito esperta, não
vai precisar de ninguém atrás dela.
— Louisville é bem longe daqui.
— Por Deus, eu sei! Mas quem tem medo? É mais pra baixo perto do rio,
talvez num lugar um pouco mais perto do meu velho — disse Cloé, falando a
última frase em tom de pergunta e olhando para a senhora Shelby.
— Não, Cloé, é longe demais — refutou a senhora Shelby.
A animação de Cloé desapareceu.
— Não faz mal. Sua ida certamente a deixará mais próxima, Cloé. Sim, pode
ir; e cada centavo de seu salário deve ser guardado para o resgate de seu esposo.
Assim como um raio de sol transforma uma nuvem negra em prateada, o
rosto escuro de Cloé se iluminou imediatamente, reluziu de verdade.
— Ah, meu Deus! A sinhá é tão boa! Estava pensando nisso mesmo; porque
não vou precisar de roupa, nem de sapato, nem de nada; vou guardar cada
centavo. Quantas semana tem em um ano, sinhá?
— Cinquenta e duas — respondeu a senhora Shelby.
— Tudo isso? E quatro dólares em cada semana. Quanto dá isso?
— Duzentos e oito dólares — disse a senhora Shelby.
— Nossa! — exclamou Cloé com um toque de surpresa e prazer; e quanto
tempo eu tenho que trabalhar pra pagar, sinhá?
— Quatro ou cinco anos, Cloé; mas você não precisa juntar todo o dinheiro;
eu colocarei uma parte.
— Não queria ouvir que a sinhá anda dando lição por aí. O senhor está certo
nisso; não seria bom, de jeito maneira. Enquanto eu tiver minhas mão, num
quero que ninguém de nossa família tenha que passar por isso.
— Não se preocupe, Cloé. Eu cuidarei da honra da família — a Sra. Shelby
falou sorrindo. — E quando você espera ir?
— Bem, eu não estava esperando nada; Sam vai até o rio com uns potro e
disse que eu podia ir com ele, então só vou juntar minhas coisa. Se a sinhá
permitir, vou com Sam amanhã de manhã, se sinhá puder me dar uma
autorização e umas carta de recomendação.
— Muito bem, Cloé, eu providenciarei tudo, se o Sr. Shelby não fizer
objeção. Preciso falar com ele.
A Sra. Shelby subiu para os aposentos de cima, e Mãe Cloé, encantada, foi
até sua cabana fazer suas preparações.
— Meu Deus, sinhozinho George! Então não sabia que eu ia para Louisville
amanhã! — ela disse para George quando ele, ao entrar na cabana, encontrou-a
separando as roupinhas do bebê. — Achei melhor dar uma olhada nas coisa e
deixar tudo arrumado. Mas eu vou, sinhozinho George, vou ganhar quatro
dólares por semana; e a sinhá vai guardar tudo para comprar meu velho de volta!
— Uau! — disse George. — Agora estamos falando de negócios, com
certeza! Quando vai?
— Amanhã, com o Sam. E agora, sinhozinho George, sei que vai sentar aí e
escrever para o meu bom Tomás e contar tudo, não vai?
— Com certeza — assentiu George. — Pai Tomás ficará muito feliz em ter
notícias nossas. Vou correndo em casa buscar papel e tinta e então, Mãe Cloé,
contaremos sobre os novos potros e tudo mais.
— Isso mesmo, isso mesmo, sinhozinho. Agora vá e eu vou preparar um
pouco de galinha ou alguma coisa; não vai ter muitos outro jantar com sua velha
mãe aqui.
22
“A GRAMA SECA E A FLOR
MURCHA”
Para todos nós a vida passa dia após dia; e assim aconteceu com nosso
amigo Tomás, até que dois anos se foram. Embora separado de todos aqueles que
lhe eram queridos, e preocupado com o que estava por vir, ainda assim ele nunca
se sentiu absoluta ou conscientemente infeliz, pois a harpa dos sentimentos
humanos é tão afinada que nada, exceto uma grande queda que destrua todas as
cordas ao mesmo tempo, pode danificar sua harmonia; e fazendo um retrospecto
das épocas em que parecemos estar sob privações ou julgamento, lembramos que
cada hora passada nos trouxe distrações e alívios que, mesmo não nos deixando
completamente felizes, também não nos deixaram completamente infelizes.
Tomás lia, em seu próprio quartinho de leitura, como aquele que “aprendeu a
adaptar-se a toda e qualquer circunstância e, assim, contenta-se com o que tem”.
A ele lhe parecia uma doutrina boa e razoável e ia bem ao encontro do hábito
reflexivo que ele adquirira ao ler aquele mesmo livro.
A carta que ele enviara à sua casa, como relatamos no capítulo anterior, foi
em seguida respondida pelo sinhozinho George, em uma caligrafia escolar de
garoto, bem feita e arredondada, que Tomás disse poder ser lida dos quatro
cantos do quarto. A carta continha várias passagens de notícias domésticas com
as quais nosso leitor está absolutamente familiarizado: contava como a Mãe Cloé
fora alugada por um confeiteiro em Louisville, onde sua habilidade com os
doces lhe rendia grande quantia de dinheiro toda para ela, Tomás foi informado,
a qual seria guardada para completar o valor total do dinheiro de seu resgate;
Mose e Pete estavam crescendo e já trabalhando, e o bebê estava andando pela
casa toda, sob os cuidados de Sally e dos escravos em geral.
A cabana do Pai Tomás estava temporariamente fechada, mas George
discorria de maneira brilhante sobre os ornamentos e as adições a serem feitas
quando Tomás voltasse para lá.
O restante de sua carta dava uma lista das matérias escolares de George,
cada uma iniciada com uma letra maiúscula desenhada, e também trazia o nome
de quatro novos potros que nasceram na propriedade desde que Tomás se fora;
além disso, no mesmo contexto, dizia que o pai e a mãe estavam bem. O estilo
da carta era definitivamente conciso e breve, no entanto, Tomás a achou a
espécie de composição mais maravilhosa que já surgira nos tempos modernos.
Ele nunca se cansava de olhar para ela, e chegou até mesmo a conversar com
Eva sobre a possibilidade de emoldurá-la para que pudesse pendurá-la no quarto.
Nada, exceto a dificuldade de mostrar os dois lados da página de uma só vez, foi
empecilho para essa tarefa.
A amizade entre Tomás e Eva aumentava conforme a garota crescia. Seria
difícil dizer em qual lugar de seu coração carinhoso e sensível a garotinha
guardava seu leal criado. Ele a amava como se ama algo frágil e terreno, mas, ao
mesmo tempo, adorava-a como algo divino e celestial. Olhava para ela como um
marinheiro italiano olha para a imagem do menino Jesus, com uma mistura de
reverência e ternura, e agradar às suas graciosas fantasias e lhe satisfazer os
milhares de desejos que dão à infância um caráter tão colorido quanto um arco-
íris, era a maior alegria de Tomás. De manhã, no mercado, os olhos dele estavam
sempre nas bancas de flores procurando buquês raros para ela, e o melhor
pêssego ou a melhor laranja era sempre colocado no bolso para dar a ela quando
voltasse; e a visão que mais o agradava era ver a cabecinha dourada olhando
pelo portão, vendo-o chegar ao longe, e ouvir sua pergunta infantil: “Bem, Pai
Tomás, o que trouxe hoje para mim?”.
E Eva, por sua vez, não era menos atenciosa em seus agrados a ele. Embora
fosse uma criança, ela era ótima leitora: o ouvido musical apurado, o gosto pela
poesia, e uma simpatia natural pelo que é grande e nobre, faziam dela uma
leitora da Bíblia como ele nunca vira antes. A princípio, ela a lia para agradar ao
humilde amigo, mas logo sua própria natureza mais séria lançou seus tentáculos
e se enroscou ao redor do majestoso livro; e Eva adorou, pois o livro despertou
nela estranhos desejos, e emoções fortes e vagas, tal qual crianças apaixonadas e
imaginativas amam sentir.
As partes que mais a agradavam eram o Livro das Revelações e as Profecias,
cujo imaginário profundo e fantástico e a linguagem fervorosa a impressionavam
a tal ponto que ela questionava, em vão, seus significados; e ela e seu amigo
simplório, a criança velha e a nova, sentiam-se exatamente da mesma maneira.
Tudo o que sabiam é que o texto falava de uma glória a ser revelada, de algo
maravilhoso ainda por vir, um lugar onde suas almas regozijariam, mas ainda
não sabiam por quê; e embora não pudesse ser compreendido no plano físico, na
ciência da moral nem tudo o que não é compreendido é infrutífero. A alma, uma
estranha trêmula, desperta entre duas eternidades incertas: a eternidade passada e
a eternidade futura. Um facho de luz ilumina um pequeno espaço ao seu redor e,
assim, é mistér ir em busca do desconhecido; as vozes e os movimentos obscuros
que saíam dos pilares enuviados da inspiração causavam, cada qual, perguntas e
respostas em sua natureza ansiosa. O imaginário místico contém tantos talismãs
e segredos preciosos inscritos em hieróglifos desconhecidos; ela os guarda no
peito e anseia lê-los quando transpuser o véu para o outro lado.
A essa altura de nossa história, a família St. Clare se mudou,
temporariamente, para a casa de campo no Lago Pontchartrain. Os calores do
verão levavam todos aqueles que podiam se dar ao luxo de sair da cidade
sufocante e insalubre a buscar as brisas frescas às margens do lago.
A casa de campo de St. Clare era pequena e elegante, ao estilo indonésio,
rodeada por pórticos de bambu que se abriam em todos os lados para os jardins e
caminhos gramados. A sala de estar principal dava para um grande jardim com o
aroma de todas as plantas e flores pitorescas dos trópicos, onde caminhos
serpenteados corriam até a beirada do lago, cujas águas prateadas subiam e
desciam sob os raios de sol; um cenário nunca igual e, a cada hora, mais belo.
Temos agora um daqueles crepúsculos intensamente dourados, que
incendeiam todo o horizonte em uma chama de glória e transformam a água em
um reflexo do céu. O lago exibe manchas róseas e douradas, exceto por onde os
barcos de velas brancas deslizam, para cima e para baixo, feito espíritos, e as
estrelinhas douradas refletem o brilho e olham para si mesmas enquanto
tremeluzem sobre a água prateada.
Tomás e Eva estavam sentados em um banco relvado, em uma árvore ao
fundo do jardim. Era uma noite de verão, e a Bíblia de Eva estava em cima de
seus joelhos. Ela lia: — E vi um mar de vidro misturado com fogo!
— Tomás — disse Eva parando repentinamente e apontando para o lago. —
Lá está.
— O que, Srta. Eva?
— Não vê, ali? — perguntou a criança apontando para a água vítrea que, à
medida que subia e descia, refletia o brilho dourado do céu. — Há um mar de
vidro misturado com o fogo.
— É verdade, Srta. Eva — Tomás assentiu; e depois cantou:
Ah, se tivesse as asas da aurora,
Voaria para a fronteira de Canaã
Anjos brilhantes me levariam para casa,
Para Nova Jerusalem.
— Onde acha que fica Nova Jerusalém, Pai Tomás? — perguntou Eva.
— Ah, lá nas nuvens, Srta. Eva.
— Então acho que eu a vejo — disse Eva. — Olhe dentro daquelas nuvens!
Parecem grandes portões de pérolas e pode-se ver além deles, longe, bem longe,
é tudo de ouro. Tomás, cante agora sobre os “espíritos bem-aventurados”.
E Tomás cantou o hino metodista muito conhecido:
Naquela época, Alfred, o irmão de St. Clare, com seu filho mais velho, um
garoto de doze anos, passaram um ou dois dias com a família no lago.
Nenhuma visão poderia ser mais singular e bela do que a dos dois irmãos. A
natureza, em vez de estabelecer semelhanças entre os dois, os tinha feito opostos
em todos os sentidos; ainda assim, um elo misterioso os unia em uma amizade
mais próxima do que a de costume.
Costumavam passear, de braços dados, subindo e descendo as alamedas e os
caminhos do jardim; Augustine, com seus olhos azuis e cabelos dourados, seu
porte etereamente flexível e feições alegres; e Albert, de olhos escuros, com seu
porte romano arrogante, braços e pernas firmes e bem feitos, e modos
determinados. Estavam sempre criticando as opiniões e práticas um do outro,
mas nada disso os influenciava; de fato, a própria contrariedade parecia os unir,
assim como a atração entre polos magnéticos opostos.
Henrique, o filho mais velho de Alfred, era um garoto nobre de porte
principesco, olhos escuros, cheio de vivacidade e energia e, desde o primeiro
momento em que foram apresentados, pareceu absolutamente fascinado pela
divina beleza da prima Evangeline.
Eva tinha um pônei de estimação, branco como a neve. Era manso como
uma ovelha e tão gentil quanto sua pequena dona; e este pônei foi trazido até o
pórtico dos fundos por Tomás, enquanto um mulatinho de mais ou menos treze
anos trazia um pequeno cavalo árabe preto que acabara de ser importado, por um
preço exorbitante, para Henrique.
Henrique tinha muito orgulho de sua nova posse, e à medida que se
aproximou e tomou as rédeas das mãos de seu cavalariço, olhou cuidadosamente
por cima do cavalo e seu semblante se escureceu.
— O que é isso, Dodo, seu cão preguiçoso! Não esfregou meu cavalo esta
manhã?
— Sim, sinhô — respondeu Dodo de maneira submissa. — Ele se sujou
sozinho.
— Seu mentiroso, cale essa boca! — refutou Henrique levantando o chicote
de montaria com violência. Como ousa responder?
O garoto era bonito, mulato de olhos brilhantes, do tamanho de Henrique, e
seu cabelo encaracolado caía ao redor da testa alta e larga. Tinha sangue branco
nas veias, como se podia perceber pelo rápido rubor no rosto e o fulgor nos olhos
quando tentou responder.
— Sinhozinho Henrique! — ele começou.
Henrique acertou-lhe o rosto com seu chicote de montaria e, torcendo um de
seus braços, forçou-o a ajoelhar-se e bateu nele até perder o fôlego.
— Seu cão insolente! Isso é para aprender a não responder quando eu falo
com você! Leve o cavalo de volta e o limpe de acordo. Vou lhe ensinar qual é o
seu lugar!
— Sinhozinho — retorquiu Tomás —, acho que o que ele ia dizer era que o
cavalo começou a se esfregar quando ele trazia o bicho da cavalariça; ele é muito
fogoso; foi assim que se sujou; eu vi ele limpando o animal.
— Fique de boca fechada até que lhe peçam para falar! — Henrique
retrucou, girando sobre os calcanhares e subindo os degraus para falar com Eva,
que estava ali vestida em trajes de montaria.
— Minha querida prima, peço desculpas por esse sujeito idiota tê-la deixado
esperando. Qual o problema, prima? Parece tão séria.
— Como pôde ser tão cruel e malvado com o pobre Dodo? — perguntou
Eva.
— Cruel e malvado!? — respondeu o garoto com autêntica surpresa. — O
que quer dizer, querida Eva?
— Não quero que me chame de querida Eva quando se comporta desse
modo.
— Querida prima, não conhece Dodo; esse é o único jeito de controlá-lo; ele
mente e dá desculpas o tempo todo. A única maneira é dominá-lo de uma vez por
todas, não deixá-lo abrir a boca; é assim que papai faz.
— Mas o Pai Tomás explicou que foi um acidente, e ele nunca diz o que não
é verdade.
— Ele é um preto incomum, então! — disse Henrique. — Dodo só abre a
boca para falar mentiras.
— Você é que o obriga a mentir, assustando-o e o tratando assim.
— Ora, Eva, você gostou tanto de Dodo que acabarei ficando com ciúme.
— Mas você bateu nele, e ele não merecia.
— Ah, bem, fica por conta das vezes que ele mereceu e não apanhou.
Alguns cortezinhos nunca são de todo mal com Dodo, ele é um demoniozinho,
vou lhe contar. Mas, não baterei mais nele na sua frente, se a incomoda tanto.
Eva não estava satisfeita, mas julgou inútil tentar fazer seu lindo primo
entender seus sentimentos.
Dodo logo voltou com os cavalos.
— Bem, Dodo, fez um bom trabalho dessa vez — disse o jovem amo com
ares mais simpáticos. — Venha aqui e segure o cavalo da Srta. Eva enquanto eu
a coloco na sela.
Dodo se aproximou do pônei de Eva. O rosto dele estava contorcido e os
olhos indicavam que ele havia chorado.
Henrique, que se gabava por sua destreza cavalheiresca em todos os quesitos
da galantaria, rapidamente colocou a prima delicada na sela e, tomando as
rédeas, colocou-as nas mãos dela.
Mas Eva inclinou-se para o outro lado do cavalo, onde Dodo estava, e disse
enquanto ele soltava as rédeas:
— É um bom garoto, Dodo! Obrigada!
Dodo olhou extasiado para aquele rosto meigo; o sangue lhe subiu pelo rosto
e as lágrimas lhe encheram os olhos.
— Aqui, Dodo — disse o amo imperiosamente.
Dodo saiu apressado e segurou o cavalo enquanto seu amo montava.
— Aqui está um trocado para comprar doce, Dodo — Henrique falou. — Vá
comprar.
E Henrique seguiu pelo caminho atrás de Eva. Dodo ficou olhando para as
duas crianças. Uma lhe deu dinheiro e a outra lhe deu o que ele mais queria: uma
palavra bondosa, falada com atenção. Fazia apenas alguns meses que Dodo se
separara da mãe. Seu amo o comprara em um mercado de escravos, pois seu belo
rosto combinava com o belo cavalo; e agora estava passando pelo processo de
adestramento nas mãos de seu jovem amo.
A cena da surra fora testemunhada pelos irmãos St. Clare do outro lado
jardim.
O rosto de Augustine ficou vermelho, mas ele apenas observou com seu
sarcasmo indiferente, como de costume.
— Suponho que isso seja o que chamamos de educação republicana, Alfred?
— Henrique é um sujeitinho endiabrado quando o sangue esquenta —
respondeu Alfred com displicência.
— E suponho que considere isso uma prática instrutiva para ele — retrucou
Augustine secamente.
— Não teria o que fazer, mesmo que achasse. Henrique é um tipo
tempestuoso; eu e a mãe já desistimos dele há muito tempo. Por outro lado,
aquele Dodo é um demoniozinho perfeito, não há surra que possa machucá-lo o
bastante.
— E é assim que ensina Henrique o primeiro verso do catecismo dos
republicanos: “Todos os homens nascem livres e iguais!”.1
— Balela! — refutou Alfred. — Um das bobagens sentimentalistas francesas
de Tomas Jefferson. É absolutamente ridículo termos isso em voga entre nós até
hoje.
— Imagino que sim. — disse St. Clare seriamente.
— É evidente que os homens não nascem livres nem iguais; nascem outra
coisa. De minha parte, considero bobagem metade dessa conversa republicana.
Só as pessoas educadas, inteligentes, abastadas e refinadas podem ter direitos
iguais; não a canaille.2
— Se puder manter essa ideia na cabeça da canaille. Eles já tiveram a vez
deles na França.3
— Obviamente que devem ser mantidos sob controle, consistente e
sistematicamente, como eu o faria — disse Alfred, batendo o pé com firmeza,
como se estivesse pisando em cima de alguém.
— Coisas horríveis acontecem quando eles se rebelam — disse Augustine.
Em Santo Domingo,4 por exemplo.
— Que nada! — retrucou Alfred — neste país não deixaremos que isso
aconteça. Devemos nos colocar contra toda essa conversa de instrução e
melhoria de que se fala no momento; a classe baixa não deve ser instruída.
— Isso é coisa do passado — contestou Augustine. — Uma hora eles serão
instruídos e nós nem nos daremos conta. Nosso sistema os educa na barbárie e
brutalidade. Estamos quebrando todos os elos de humanização e fazendo deles
bestas-feras; se um dia derem a volta por cima, aí quero só ver.
— Eles nunca darão a volta por cima! — retorquiu Alfred.
— Não teria tanta certeza assim — continuou St. Clare. — Aqueça a
caldeira, feche a válvula de escape, depois se sente em cima dela e veja onde irá
parar.
— Bem — disse Alfred. — Veremos. Não tenho medo de me sentar em cima
da válvula de escape desde que as caldeiras sejam fortes e as máquinas
funcionem bem.
— Os nobres da época de Luís xvi também pensavam assim; e a Áustria e
Pio ix pensam assim agora. Quem sabe alguma manhã vocês se encontrem pelos
ares, quando as caldeiras explodirem.5
— Dies declarabit6 — comentou Alfred, rindo.
— E lhe digo mais — continuou Augustine —, em nossos tempos, se há
uma coisa que se pode revelar com a força divina é que as massas hão de se
rebelar e as classes mais baixas se transformarão nas classes mais altas.
— Esta é mais uma de suas bobagens republicanas, Augustine! Por que
nunca falou no púlpito? Seria um excelente orador! Espero estar morto antes
deste milênio no qual sua multidão nojenta se rebelará.
— Nojenta ou não, eles o governarão quando chegar a hora — disse
Augustine. — E serão governadores à maneira que os fizermos. A nobreza
francesa escolheu ter pessoas “sans culotte”7 e tiveram governadores “sans
culotte” a contento. O povo do Haiti…
— Ah, por favor, Augustine! Como se não tivéssemos tido o suficiente
daquele Haiti abominável e desprezível. Os haitianos não eram anglo-saxões; se
fossem, teria sido outra história. O anglo-saxão é a raça dominante do mundo, e
éassim que deve ser.
— Bem, há uma boa dose de infusão de sangue anglo-saxão entre nossos
escravos agora — disse Augustine. — Há muitos entre eles que só tem o
suficiente de africano para acrescentar um pouco do calor e do fervor tropical à
nossa rigidez e previsão calculista. Se algum dia chegar a hora de Santo
Domingo, o sangue anglo-saxão predominará. Filhos de pais brancos, com nosso
sentimento de desprezo lhe queimando nas veias, não serão sempre comprados,
vendidos e comercializados. Eles se levantarão e, com eles, a raça materna.
— Bobagem! Loucura!
— Bem — disse Augustine —, existe um velho ditado para esse efeito:
“Assim como foi nos dias de Noé, assim será; eles comeram, beberam,
semearam, edificaram e não sabiam de nada até que veio o dilúvio e os levou”.
— De modo geral, Augustine, acho que seus talentos serviriam para um
fazer piquete — Alfred disse rindo. — Não tema por nós; temos nove décimos
da posse. E temos o poder. Essa raça subjugada — ele disse pisando firme — é
escrava e continuará sendo escrava! E temos força suficiente para controlar
nossa própria munição.
— Filhos educados como o seu Henrique serão os guardiões-netos de seus
depósitos de pólvora — disse Augustine. — Tanta calma e sangue-frio! O
provérbio diz “Aqueles que não sabem governar a si mesmos não podem
governar os outros”.
— Há só um problema aí — refutou Alfred reflexivamente. — Não há
dúvidas que nosso sistema dificulta um pouco a criação dos filhos. No geral, as
crianças têm muita liberdade para demonstrar as paixões, as quais, em nosso
clima, são quentes o bastante. Tenho problemas com Henrique. O garoto é
generoso e tem bom coração, no entanto, quando está agitado, é um perfeito fogo
de artifício. Acho que vou enviá-lo para ser educado no Norte, pois lá a
obediência é mais respeitada e ele se relacionará mais com pessoas de sua classe,
não com pessoas inferiores.
— Já que educar crianças é a tarefa mais nobre da raça humana — refutou
Augustine —, deveria considerar que nosso sistema não funciona muito bem
neste ponto.
— Não funciona para algumas coisas — retrucou Alfred —, para outras,
sim. Faz os garotos serem mais viris e corajosos; e a própria marginalidade de
uma raça abjeta tende a reforçar neles as virtudes opostas. Acho que Henrique,
agora, tem um senso mais apurado do valor da verdade, de tanto ver traição e
mentira, característicos da escravidão.
— Uma visão cristã do assunto, com certeza! — disse Augustine.
— Mas é verdade, cristã ou não; e é tão cristã quanto a maioria das coisas no
mundo — retrucou Alfred.
— Pode ser — assentiu St. Clare.
— É inútil conversar, Augustine. Acredito que já falamos sobre esse assunto
quinhentas vezes, mais ou menos. Que tal uma partida de gamão?
Os dois irmãos subiram os degraus do pórtico e logo se sentaram no delicado
banco de bambu com o tabuleiro de gamão entre eles. Enquanto arranjavam suas
peças, Alfred disse:
— Vou lhe dizer, Augustine, se pensasse como você pensa, tomaria alguma
atitude.
— Ouso dizer que tomaria mesmo; você é um homem de ação, mas faria o
quê?
— Bem, instruiria seus próprios escravos, por exemplo — Alfred respondeu
com um meio sorriso de escárnio.
— Seria mais fácil aplainar o Monte Etna, e lhes pedir para ficar em pé em
cima dele, do que me pedir para educar meus escravos diante de toda a pressão
que a sociedade em massa exerce sobre eles. Um homem sozinho não pode fazer
nada contra a ação de toda a sociedade. A educação, para ter algum efeito,
precisa ser uma educação do Estado; ou a sociedade deve consentir o suficiente
para que ela exista.
— Você joga os dados primeiro — disse Alfred; e logo os dois irmãos já
estavam concentrados no jogo, e não ouviram mais nada até que escutaram o
trote dos cavalos embaixo do pórtico.
— Aí vêm as crianças! — disse Augustine se levantando. — Olhe só, Alf! Já
viu algo tão lindo na vida?
E, verdade seja dita, era, de fato, uma linda visão. Henrique, com sua testa
larga, cachos escuros e sedosos e o rosto reluzente, ria alegremente enquanto se
inclinava em direção à prima loura, à medida que se aproximavam. Ela estava
vestida em um traje de montaria azul, com um chapéu da mesma cor. O exercício
dera nuances brilhantes às bochechas da garota e intensificara o efeito singular
da pele transparente e dos cabelos dourados.
— Pelos céus! Que beleza deslumbrante! — exclamou Alfred. Augustine,
vou lhe dizer, não acha que logo ela estará destruindo corações?
— Irá mesmo, é verdade. Deus sabe o quanto isso me assusta! — respondeu
St. Clare com um tom subitamente amargo, ao apressar o passo para tirá-la do
cavalo.
— Eva, minha querida! Está muito cansada? — ele perguntou ao tomá-la
nos braços.
— Não, papai — respondeu a criança, mas a respiração curta e pesada da
garotinha alarmou o pai.
— Por que cavalgou tão rápido? Sabe que não é bom para você.
— Eu me senti tão bem e gostei tanto, papai, que acabei me esquecendo.
St. Clare carregou-a nos braços até dentro da sala, e deitou-a no sofá.
— Henrique, deve ter cuidado com Eva — ele disse. — Não deve cavalgar
muito rápido com ela.
— Eu cuidarei dela — comentou Henrique sentando-se ao lado do sofá e
pegando na mão de Eva.
Eva estava se sentindo muito melhor. O pai e o tio voltaram para o jogo e as
crianças foram deixadas juntas.
— Sabe, Eva, sinto muito que o papai só vá passar dois dias aqui, e que
depois eu não a verei de novo por muito tempo! Se ficasse com você, tentaria ser
bom e não ficar zangado com Dodo e tudo mais. Não tenho a intenção de tratar
mal o Dodo, mas, você sabe, meu pavio é muito curto. Não sou muito mau com
ele. Dou-lhe uns trocados de vez em quando; e pode ver que ele se veste bem.
No fim das contas, acho que Dodo está muito bem.
— Acha que estaria bem se não houvesse uma só criatura no mundo que o
amasse?
— Eu? Claro que não.
— E você afastou Dodo de todos os amigos que ele tinha e agora ele não tem
ninguém que o ame; ninguém pode ser bom assim.
— Bem, até onde sei, não há nada que possa fazer. Não posso buscar a mãe
dele e não posso amá-lo, ninguém pode, até onde eu sei.
— E por que você não pode amá-lo? — Eva perguntou.
— Amar Dodo? Eva, não me peça isso! Eu posso até gostar bastante dele,
mas não se pode amar aos criados.
— Eu amo, com certeza.
— Que estranho!
— A Bíblia não diz que devemos amar a todos?
— Ah, a Bíblia! Com certeza ela diz muitas coisas boas, mas ninguém pensa
em fazê-las, sabe muito bem, Eva, ninguém faz nada.
Eva não falou; seus olhos ficaram fixos e reflexivos por alguns minutos.
—De qualquer forma, caro primo — ela disse —, ame Dodo e seja bom para
ele, por mim!
— Eu poderia amar qualquer coisa por você, minha prima querida, pois
realmente acho que é a criatura mais amável que já vi em toda minha vida! — e
Henrique falou com uma seriedade tão grande que suas bochechas
enrubesceram. Eva recebeu aquelas palavras com absoluta humildade, sem nem
mesmo alterar a expressão, apenas dizendo:
— Fico feliz que se sinta assim, Henrique querido! Espero que se lembre
disso!
A sineta do jantar colocou fim à conversa dos dois.
24
PRESSÁGIOS
Dois dias depois, Alfred e Augustine St. Clare se despediram; Eva, que
durante a companhia do jovem primo fora estimulada a esforços além de sua
força, começou a piorar rapidamente. St. Clare finalmente concordou em chamar
um médico, coisa que sempre evitara, pois fazê-lo era admitir uma verdade
inconveniente.
Contudo, durante um ou dois dias, Eva esteve tão debilitada que precisou se
confinar em casa, e o médico fora chamado.
Marie St. Clare mal tinha notado a piora gradual da saúde e da força da filha,
pois estava completamente absorvida na análise das duas ou três novas formas
de doença das quais acreditava ser vítima. O princípio básico da crença de Marie
era que ninguém nunca fora ou poderia ser maior sofredor do que ela mesma; e,
assim, sempre repelia com indignação qualquer sugestão de que alguém ao seu
redor pudesse estar doente. Ela sempre achava que, em casos como esse, não se
passava de preguiça ou falta de ânimo; e que se sofressem como ela sofria, logo
notariam a diferença.
A Srta. Ofélia várias vezes tentara despertar nela os receios maternais com
relação à Eva, sem sucesso.
— Não vejo nada de errado com a criança! — ela dizia. — Ela está correndo
e brincando o tempo todo.
— Mas está tossindo muito!
— Tossindo! Não me venha dizer nada sobre tosse. Sempre tossi, a vida
inteira. Quando tinha a idade de Eva achavam que eu morreria. Mammy passou
noites a fio ao meu lado. Ah, a tosse de Eva não é nada.
— Mas ela está mais fraca a cada dia e com a respiração ofegante.
— Bobagem! Já tive isso durante anos; é só uma afecção nervosa.
— E à noite ela tem suado muito!
— Bem, eu também, há dez anos. Não raro minhas roupas ficam ensopadas,
uma noite após a outra. Nenhum fio de minhas roupas de dormir ficam secos, e
os lençóis ficam tão molhados que Mammy precisa pendurá-los para secar! Eva
não sua desse jeito!
A Srta. Ofélia decidiu não falar mais nada. No entanto, como Eva agora
estava visivelmente prostrada e o médico fora chamado, Marie, repentinamente,
assumiu uma postura diferente.
Ela sabia, assim dizia; sempre sentira que estava destinada a ser a mais
miserável das mães. Aqui estava ela, com sua saúde debilitada, e sua única e
querida filha morrendo diante de seus próprios olhos! E então expulsava
Mammy durante as noites, e fazia escândalos e blasfemava com mais energia do
que nunca, o dia todo, na força desse novo sofrimento.
— Minha querida Marie, não fale assim! — disse St. Clare. — Não pode
perder a esperança!
— Você não tem os sentimentos de mãe, St. Clare. Nunca me compreendeu!
E não me compreende agora!
— Mas não fale assim, como se fosse um caso perdido!
— Não consigo ser tão indiferente quanto você, St. Clare. Se não se aflige
com o estado alarmante de sua única filha, eu me aflijo. É um golpe muito forte
para mim, além de tudo que já estava aguentando antes.
— É verdade que Eva é muito delicada, disso eu sempre soube — St. Clare
disse —, e que ela cresceu tão rápido a ponto de perder as forças, e que a
situação dela é crítica. Mas neste momento está prostrada pelo calor e pela
animação da visita do primo e pelos esforços que fez. O médico diz que ela pode
melhorar.
— Obviamente, se consegue olhar pelo lado positivo, fique à vontade. É
uma benção existirem pessoas insensíveis neste mundo. Gostaria muito de não
me sentir como me sinto; só me deixa absolutamente arrasada! Gostaria muito de
poder ser como o restante de vocês!
E o “restante deles” tinha bom motivo para desejar o mesmo, pois Marie
apregoava seu sofrimento como a razão e a desculpa para todos os tipos de
aflições que infligia às pessoas que a cercavam. Cada palavra dita por qualquer
pessoa, tudo que era feito ou não em qualquer lugar, era apenas uma nova prova
de que ela estava cercada por pessoas sem coração, seres insensíveis que não se
importavam com seus pesares. A pobre Eva, ouvindo algumas dessas
reclamações, debulhava-se em lágrimas com pena da mãe e sofria por ser ela a
causadora de tanta aflição.
Em uma ou duas semanas houve uma grande melhora dos sintomas, uma
dessas tréguas traiçoeiras através da qual a doença inexorável tantas vezes
engana o coração ansioso, mesmo estando à beira do túmulo. Os passos de Eva
estavam novamente no jardim, nas varandas; ela brincava e ria de novo, e o pai,
de pronto, declarou que logo ela estaria tão saudável quanto antes. Apenas a
Srta. Ofélia e o médico não se entusiasmaram com esse armistício ilusório.
Outro coração também sentiu a mesma certeza, e esse foi o coração de Eva. O
que às vezes fala à alma, tão tranquila e calmamente, que seu tempo terreno é
curto? É o instinto secreto da natureza decadente ou a vibração impulsiva da
alma, à medida que a imortalidade se aproxima? Seja lá o que for, morava no
coração de Eva uma certeza calma, doce e profética de que o paraíso estava
próximo; calma como a luz do crepúsculo, doce como a quietude luminosa do
outono, lá repousava seu coração, apenas magoado pela aflição que causaria
àqueles a quem tanto amava. E, apesar de ser tratada com tanto cuidado e de a
vida revelar diante de si todo o esplendor que só o amor e a riqueza podem
oferecer, Eva não se lastimava por estar morrendo.
Naquele livro que ela e seu humilde amigo tanto leram juntos, ela vira e
sentira a imagem do Deus que amava as criancinhas; e à medida que olhava e
refletia, Ele deixava de ser uma imagem e uma figura do passado distante e se
tornava uma realidade viva e próxima. O amor d’Ele lhe envolvia o coração
infantil com mais do que afeição mortal; e é com Ele que ela se encontraria,
assim dizia; ela iria para a casa do Senhor.
Mas o coração dela sofria com uma doce tristeza por todos aqueles a quem
deixaria para trás. Principalmente o pai, pois Eva, apesar de nunca ter pensado
muito sobre isso, tinha a distinta impressão de que ocupava um lugar especial em
seu coração. Por ser uma criatura adorável, Eva amava muito à Marie, e todo o
egoísmo que via nela apenas a entristecia e a deixava perplexa, pois nutria em
seu íntimo a crença infantil de que a mãe não poderia fazer nada de errado.
Havia algo sobre a mãe que Eva nunca conseguiu compreender, mas sempre
relevou baseando-se na ideia de que, apesar de tudo, Marie era sua mãe e ela a
amava profundamente.
Também sentia pelos criados bons e leais para quem ela era considerada a
luz do dia e o brilho do sol. Crianças geralmente não generalizam, mas Eva era
uma criança incomumente madura, e as coisas que presenciara dos males do
sistema sob o qual eles viviam tinham tocado profundamente seu coração
reflexivo e sensato. Ela tinha vagos desejos de fazer algo por eles, de abençoar e
salvar não apenas a eles, mas todos nas mesmas condições, desejos que
infelizmente se contrastavam com a debilidade de seu corpo miúdo.
— Pai Tomás — ela disse um dia enquanto lia para o amigo —, consigo
compreender por que Jesus quis morrer por nós.
— Por que, Srta. Eva?
— Pelo mesmo motivo que eu.
— E qual é o motivo, Srta. Eva? Eu não entendo.
— Não consigo explicar, mas quando vi aquelas pobres criaturas no barco,
sabe, quando eu e você subimos, algumas tinham perdido as mães, e outras os
esposos e algumas mães choravam por seus filhos pequenos, e quando ouvi
sobre a pobrezinha da Prue… Ah, aquilo não foi horrível? E muitas outras vezes
senti que ficaria feliz em morrer, se minha morte pudesse acabar com aquela
miséria. Se pudesse, Tomás, eu morreria por eles — disse a garota, seriamente,
colocando sua mãozinha magra sobre a dele.
Tomás olhou para a criança com reverência; e quando ela, ouvindo a voz do
pai, se afastou, ele enxugou as lágrimas muitas vezes enquanto a seguia com os
olhos.
— É inútil tentar manter a Srta. Eva aqui — ele disse para Mammy quando a
encontrou um minuto depois. — Ela tem a marca do Senhor na testa.
— Ah, sim, sim — assentiu Mammy erguendo as mãos. — Sempre falei
isso. Ela nunca pareceu uma criança desse mundo, sempre achei que ela tem
uma coisa profunda nos olho dela. Falei pra sinhá, muitas vez. E está chegando a
hora, todo mundo vê, ah, minha amada e abençoada ovelhinha de Deus!
Eva veio tropeçando pelos degraus do pórtico até o pai. Era final de tarde e
os raios de sol formavam um tipo de aura atrás da garota à medida que ela se
aproximava com seu vestido branco, seus cabelos dourados e maçãs do rosto
luminosas, os olhos incomumente brilhantes com a febre baixa que lhe queimava
nas veias.
St. Clare a chamara para lhe mostrar uma estátua que comprara para ela; mas
a aparência da garota, quando ela chegou mais perto, lhe impressionou imediata
e sofregamente. Há um tipo de beleza tão intensa, ainda assim tão frágil, que mal
aguentamos olhá-la. O pai tomou-a subitamente nos braços e quase se esqueceu
do que ia lhe dizer.
— Eva, querida, está se sentindo melhor esses dias, não está?
— Papai — Eva interrompeu com uma repentina firmeza. — Há coisas que
sempre quis lhe dizer por muito tempo. Quero dizê-las agora, antes que eu fique
mais fraca.
St. Clare estremeceu quando Eva sentou-se no colo dele, colocou a cabeça
em seu peito e disse:
— É inútil manter tudo dentro de mim por mais tempo. A hora de deixá-lo
está chegando. Vou-me para nunca mais voltar! — e Eva caiu em prantos.
— Ah, minha querida Evinha! — disse St. Clare, tremendo enquanto falava,
mas falando alegremente. — Só está nervosa e um pouco desanimada; não deve
alimentar esses pensamentos ruins. Veja isso, eu lhe comprei uma pequena
escultura!
— Não, papai — refutou Eva empurrando suavemente a estatueta para o
lado — não se engane! Não estou melhor, sei disso perfeitamente e logo irei
embora. Não estou nervosa, não estou desanimada. Se não fosse por você, papai,
e por meus amigos, estaria absolutamente feliz. Quero ir, quero muito ir!
— Minha querida filha, o que deixou seu pobre coraçãozinho tão triste?
Você teve tudo o que poderia ser dado para lhe fazer feliz.
— Preferiria estar no céu, mas, pelo bem de meus amigos me disporia a
viver. Há muitas coisas aqui que me entristecem, coisas que me parecem
terríveis. Preferiria estar lá, mas não quero deixá-lo; meu coração quase se parte
ao pensar nisso.
— E o que a entristece e parece tão terrível, Eva?
— Ah, coisas que são feitas, e refeitas o tempo todo. Fico triste por nossos
escravos; eles me amam profundamente e são tão bons e tão gentis comigo.
Gostaria que fossem todos livres, papai.
— Eva, minha filha, não acha que estão numa boa situação?
— Ah, papai, mas se qualquer coisa lhe acontecer, o que será deles? Há
muito poucos homens como você, papai. O tio Alfred não é como você, e a
mamãe também não; e se pensar nos donos da pobre da Prue! Que coisas
horríveis as pessoas fazem e são capazes de fazer! — E Eva deu de ombros.
— Minha querida, você é muito sensível. Peço perdão por ter lhe deixado
ouvir essas histórias.
— É isso o que me incomoda, papai. Quer que eu viva feliz e nunca sofra,
nunca sofra com nada, nem mesmo ouça uma história triste, quando outras
pobres criaturas não têm nada exceto dor e sofrimento, a vida toda me parece
muito egoísta. Preciso saber dessas coisas, preciso senti-las! Coisas desse tipo
sempre me pesam no coração, doem muito. Pensei e pensei sobre elas. Papai,
não há uma maneira de dar a liberdade a todos os escravos?
— Essa é uma questão difícil, minha querida. Não há dúvida de que a
maneira atual é muito ruim, muitas pessoas concordam com isso. Eu mesmo sou
um deles. Gostaria de todo coração que não houvesse um só escravo sobre a
terra, mas não sei o que posso fazer sobre essa questão.
— Papai, é um homem tão bom, tão nobre e tão gentil e sempre tem um
modo de dizer as coisas que é tão agradável; não poderia sair por aí tentando
persuadir as pessoas a fazer o que é certo com relação à escravidão? Quando eu
estiver morta, papai, então pensará em mim e o fará por mim. Eu faria, se
pudesse.
— Quando estiver morta, Eva! — exclamou St. Clare passionalmente. —
Oh, minha filha, não fale assim comigo! Você é tudo o que tenho neste mundo!
— O filhinho da pobre Prue era tudo o que ela tinha neste mundo e mesmo
assim teve que ouvi-lo chorar até não poder fazer mais nada! Papai, essas pobres
criaturas amam a seus filhos tanto quanto você me ama. Por favor, faça algo por
elas! A coitada da Mammy ama os filhos dela; já a vi chorar quando fala deles. E
Tomás ama a seus filhos também e é terrível, papai, que essas coisas aconteçam
o tempo todo!
— Está bem, está bem, querida — St. Clare disse em tom apaziguador. —
Não se preocupe e pare com essa conversa sobre morrer, e farei qualquer coisa
que quiser.
— E prometa-me, papai, que Tomás será alforriado assim que — ela parou e
disse hesitante —, assim que eu morrer.
— Sim, querida, farei qualquer coisa nesse mundo, qualquer coisa que me
pedir.
— Papai querido — disse a garota encostando seu rosto fervendo no dele —,
como gostaria que fôssemos juntos!
— Para onde, querida? — perguntou St. Clare.
— Para a casa de nosso Salvador; lá é tão tranquilo e tão cheio de amor — a
garota falou despretensiosamente, como se fosse um lugar onde já tivesse ido
várias vezes. — Gostaria de ir, papai? — ela perguntou.
St. Clare puxou-a para mais perto, mas ficou em silêncio.
— Você virá até mim — ela disse falando com uma voz de assertividade
tranquila, que sempre usava sem perceber.
— Hei de segui-la. E nunca a esquecerei.
As sombras solenes da noite os envolviam cada vez mais profundamente, e
St. Clare sentou-se em silêncio apertando o corpinho frágil em seu peito. Ele não
via mais os olhos profundos, mas a voz postada sobre ele foi a voz de um
espírito, e, como se em um tipo de visão do julgamento final, toda sua vida
passada desvendou-se à frente de seus olhos: as orações e os hinos da mãe; seus
próprios desejos e aspirações para o bem, quando moço; e entre eles e este
momento, anos de materialismo e ceticismo e daquilo que os homens chamam
de vida respeitável. Podemos pensar muito, tantas coisas em um só momento. St.
Clare viu e sentiu muitas coisas, mas não disse nada; e, à medida que escurecia,
levou a filha até seu quarto. Quando ela estava preparada para descansar,
mandou sair os criados e embalou-a nos braços, e cantou para ela até que
pegasse no sono.
25
A PEQUENA EVANGELISTA
Era uma tarde de domingo. St. Clare estava deitado em uma chaise de
bambu no pórtico, apreciando um charuto. Marie reclinava-se em um sofá do
outro lado da janela que dava para o pórtico, bem isolada, debaixo de um toldo
de gaze transparente, protegida do ataque dos mosquitos, e segurando
languidamente na mão um livro de orações de capa elegante. Ela o segurava por
ser domingo e imaginava tê-lo lido, embora, de fato, ela só tivesse tirado sonecas
sucessivas com o livro aberto nas mãos.
A Srta. Ofélia, quem, depois de uma busca diligente, encontrara uma
pequena igreja metodista não muito longe dali, saíra para ir ao culto tendo
Tomás como cocheiro e Eva como companhia.
— Augustine — disse Marie depois de ter tirado um cochilo. — Preciso
mandar alguém até a cidade para chamar o velho Dr. Posey. Tenho certeza de
que estou com problemas no coração.
— Bem, e por que precisa mandar chamá-lo? O médico que está cuidando de
Eva é muito capacitado.
— Eu não confiaria nele para um caso crítico — refutou Marie —, e lhe digo
que o meu caso está piorando cada vez mais! Tenho pensado nisso há duas ou
três noites.Tenho tido tantas dores e tantas sensações estranhas.
— Ah, Marie, você está triste. Não acredito que seja nenhum problema de
coração.
— Como ousa dizer isso! — retrucou Marie. — Devia estar preparada para
isso. Fica muito preocupado quando Eva tosse ou tem o menor problema, mas
nunca pensa em mim.
— Se acha conveniente sofrer de alguma doença do coração, então tentarei
concordar com isso — disse St. Clare. — Eu não sabia que queria.
— Espero que não lamente por isso quando for tarde demais! — disse Marie.
— Mas, acredite se puder, minha preocupação com Eva e os esforços que tenho
feito com aquela adorada criança me fizeram desenvolver o que eu suspeitava há
tempos.
Os esforços aos quais Marie se referia seriam difíceis de ser enumerados. St.
Clare fez esse comentário para si mesmo, e continuou fumando como um
homem desprezível e sem coração que era, até que a carruagem parou em frente
ao pórtico e Eva e a Srta. Ofélia saltaram.
A Srta. Ofélia marchou direto para seu próprio quarto, para guardar o chapéu
e o xale, como sempre fazia, antes de emitir palavra sobre qualquer assunto; e
Eva veio, ao chamado do pai, e sentou-se nos joelhos dele, contando-lhe do culto
ao qual tinham ido.
Logo escutaram sonoras exclamações e violentas reprovações vindas do
quarto da Srta. Ofélia, o qual, assim como o que eles se sentavam agora, abria-se
para o pórtico.
— O que será que Topsy está aprontando? — perguntou St. Clare. — Essa
comoção toda só pode ter a ver com ela!
E, um momento depois, a Srta. Ofélia, absolutamente indignada, veio
arrastando a culpada.
— Venha aqui, agora! — ela ordenou. — Contarei tudo ao seu amo!
— Qual é o problema dessa vez? — perguntou Augustine.
— O problema é que não posso ser amaldiçoada com esta criança nem mais
um minuto! Já passou dos limites; não posso mais suportar! Eu a tranquei no
quarto e dei a ela um hino para estudar, e o que ela faz? Espia onde coloquei
minha chave e vai até o gabinete, pega o acabamento de um chapéu e o corta em
pedacinhos para fazer roupas de boneca! Nunca vi algo assim em toda minha
vida!
— Eu lhe falei, prima — disse Marie —, que acabaria por descobrir que
essas criaturas não podem ser criadas sem severidade. Se as coisas fossem do
meu jeito — ela prosseguiu, olhando com ar reprovador para St. Clare —, eu
mandaria essa criança para fora e a açoitaria; açoitaria até ela não poder ficar
mais em pé!
— Não duvido! — refutou St. Clare. — E depois vêm me falar da
sensibilidade das mulheres! Estou para conhecer uma mulher que, se fizesse as
coisas à sua maneira, não fosse capaz de matar um cavalo, ou um criado! Que
dirá um homem!
— Não há necessidade dessa sua hesitação, St. Clare — retorquiu Marie. —
A prima tem bom senso e agora consegue enxergar tão claramente quanto eu.
A Srta. Ofélia tinha a capacidade de indignação própria das donas de casa
disciplinadas, e essa fora ativamente despertada pelas peraltices e desperdícios
da criança; na verdade, muitas das minhas leitoras provavelmente teriam se
sentido da mesma forma na situação dela; mas as palavras de Marie, fortes
demais, a fizeram se acalmar.
— Nada nesse mundo me faria tratar a criança dessa maneira — ela admitiu
—, no entanto, Augustine, não sei o que fazer. Já ensinei e ensinei; já falei até
cansar; já bati; já a puni de todas as formas nas quais posso pensar e ela continua
a ser exatamente o que sempre foi.
— Venha aqui, Topsy, sua macaquinha serelepe! — disse St. Clare
chamando a menina para perto dele.
Topsy foi; seus olhos redondos e duros reluzindo e piscando com uma
mistura de apreensão e o costumeiro desdém.
— Por que se comporta assim? — perguntou St. Clare, o qual não podia
evitar se encantar com a expressão da criança.
— Acho que é por causa do meu coração malvado! — respondeu Topsy
timidamente. — A Srta. Félia diz que é por isso!
— Será que não vê o quanto a Srta. Ofélia tem feito por você? Ela diz que já
fez tudo o que podia.
— Meu Deus, claro que sim, sinhô! Minha antiga sinhá também dizia isso.
Ela me açoitava mais, e puxava meu cabelo e batia minha cabeça na porta; mas
não adiantava nada! Mas acho que se eles arrancasse todos os fio de cabelo da
minha cabeça, mesmo assim não serviria pra nada. Sou muito má! Deus do céu!
Não sou nada além de uma neguinha, não tem jeito!
— Bem, não quero mais ser responsável por ela! — declarou a Srta. Ofélia.
— Não posso mais ter esse tipo de trabalho!
— Gostaria de lhe fazer uma pergunta — disse St. Clare.
— O que é?
— Se o seu Evangelho não é forte o bastante para salvar uma criança pagã
que tem em casa, só para você, qual a utilidade de se enviar um ou dois pobres
missionários para o meio de uma multidão deles? Imagino que essa criança seja
um típico exemplo dos seus milhares de pagãos.
A Srta. Ofélia não deu uma resposta imediata e Eva, que até ali tinha
assistido à cena como espectadora silenciosa, fez um sinal para que Topsy a
seguisse. Havia uma pequena saleta envidraçada no canto da varanda que St.
Clare usava com sala de leitura, e Eva e Topsy desapareceram para dentro desse
lugar.
— O que será que Eva está fazendo? — questionou St. Clare. — Quero só
ver.
E, se aproximando na ponta dos pés, ele ergueu uma cortina que cobria a
porta de vidro e olhou lá dentro. Em um momento, colocando o dedo sobre os
lábios, fez um gesto silencioso para a Srta. Ofélia vir olhar. Lá estavam as duas
crianças sentadas no chão, uma de frente para a outra. Topsy, com seu
costumeiro e indiferente ar de desdém e despreocupação; e, à sua frente, estava
Eva, todo o rosto fervendo de sentimentos e os olhos cheios de lágrimas.
— Por que se comporta tão mal, Topsy? Por que não tenta ser boa? Não ama
ninguém, Topsy?
— Não sei nada de amor; amo doces e você, e é só — respondeu Topsy.
— Mas você não ama nem seu pai e nem sua mãe?
— Nunca tive nenhum dos dois. Já te contei isso, Srta. Eva.
— Ah, eu sei — continuou Eva com tristeza. — Mas não tem nenhum
irmão, irmã, ou tia, ou…
— Não, ninguém. Nunca tive nada nem ninguém.
— Mas, Topsy, se apenas tentasse ser boa, poderia…
— Não podia ser nada que uma neguinha, mesmo que fosse boa — disse
Topsy. Se arrancasse a pele e ficasse branca, então eu ia tentar.
— Mas as pessoas podem amá-la, mesmo sendo negra, Topsy. A Srta. Ofélia
a amaria muito, se você fosse boazinha.
Topsy soltou uma risada curta e seca, seu jeito típico de expressar
incredulidade.
— Você não acha? — perguntou Eva.
— Não. Ela não me suporta porque sou preta! Ela prefere que um sapo
encoste nela! Ninguém pode amar os preto e os preto não pode fazer nada! Não
me importo! — refutou Topsy começando a assoviar.
— Ah, Topsy, coitadinha, eu amo você! — Eva disse com um surto de
sentimentos e colocando a mãozinha fina e branca sobre o ombro de Topsy. —
Eu amo você por nunca ter tido pai, mãe ou amigos; por ter sido uma criança
miserável e maltratada! Eu amo você e quero que seja boa. Estou muito doente,
Topsy, e acho que não vou viver muito tempo; e realmente me deixa muito triste
vê–la sendo tão desobediente. Gostaria muito que você tentasse ser boa, por
mim. Só estarei com você um pouco mais.
Os olhos redondos e astutos de Topsy encheram-se de lágrimas; gotas
grandes e brilhantes rolavam pesadamente pelo seu rosto, uma a uma e caíam
sobre a mãozinha branca. Sim, naquele momento, um raio de credulidade, um
raio de amor celeste penetrou a escuridão daquela alma pagã! Topsy abaixou a
cabeça entre os joelhos e chorou, soluçou, enquanto a linda criança, inclinada
sobre ela, parecia o retrato de algum anjo que veio ao resgate de um pecador.
— Pobre Topsy! — disse Eva. — Não sabe que Jesus ama a todos da mesma
maneira? Ele a ama tanto quanto ama a mim. Ele lhe ajudará a ser boa e então
finalmente irá ao paraíso e será um anjo para sempre, como se fosse branca.
Pense nisso, Topsy! Você pode ser um daqueles espíritos bem-aventurados sobre
os quais o Pai Tomás canta.
— Ah, minha querida, minha querida Srta. Eva! — contestou a criança. —
Vou tentar, vou tentar. Nunca liguei pra isso antes.
St. Clare, neste momento, deixou cair a cortina.
— Isso faz me lembrar de minha mãe — ele comentou com a Srta. Ofélia.
— É verdade o que ela me disse; se queremos dar visão a um cego, devemos
fazer como Cristo fez: chamá-lo até nós e colocar nossas mãos sobre ele.
— Sempre tive preconceito contra os negros — admitiu a Srta. Ofélia. — E
é verdade; nunca suportei que aquela criança pudesse me tocar; mas não achei
que ela soubesse.
— As crianças percebem tudo — disse St. Clare. — Não há como esconder
nada delas. Mas acredito que nem todas as tentativas do mundo de se fazer o
bem a uma criança, nem todos os favores substanciais que pode lhes fazer são
capazes de gerar um sentimento de gratidão se houver repugnância no coração. É
estranho, mas é a pura verdade.
— Mas não sei o que fazer para mudar — disse a Srta. Ofélia. — Eles
realmente me desagradam, principalmente essa criança. Como posso não sentir
isso?
— Eva aparentemente consegue.
— Ela é tão amável! Tão parecida com Cristo — disse a Srta. Ofélia. —
Gostaria de ser assim. Ela poderia me ensinar uma lição.
— Não seria a primeira vez que uma criancinha seria usada para dar
exemplo a um velho discípulo; caso isso acontecesse — disse St. Clare.
26
A MORTE
St. Clare dizia as palavras com uma expressão profunda e triste, pois o véu
sombrio dos anos foi erguido e ele parecia ouvir a voz da mãe guiando a sua.
Voz e instrumento pareciam ambos vivos e reproduziam com vívida simpatia os
arranjos que o etéreo Mozart concebera, a princípio, como seu próprio réquiem
de morte.
Quando St. Clare acabou de cantar, sentou-se recostando a cabeça na mão
por alguns momentos, e então começou a andar de um lado para o outro.
— Que concepção sublime é esta do juízo final! — ele disse. — A correção
dos erros de toda a vida! A solução de todos os problemas morais insolúveis pela
sabedoria! É, realmente, uma imagem maravilhosa.
— E muito temerosa para nós também — comentou a Srta. Ofélia.
— Pelo menos para mim, suponho — declarou St. Clare parando para
refletir. — Estava lendo para Tomás esta tarde o capítulo de Mateus que fala
sobre isso e fiquei muito impressionado. Devia-se esperar algum tipo de castigo
enorme imposto àqueles excluídos do paraíso; mas não, eles são condenados
apenas por não fazerem o bem, como se isso incluísse todo tipo de mal.
— Talvez — explicou a Srta. Ofélia — seja impossível para uma pessoa que
não faz o bem não fazer o mal.
— E o que — perguntou St. Clare falando distraidamente, mas com
profundo sentimento —, o que seria dito daqueles cujo coração, educação e
desejos da sociedade o chamaram em vão por algum motivo nobre; alguém que
pairou como um espectador sonhador e neutro sobre os conflitos, agonias e
malfeitos dos homens, quando deveria ter sido um trabalhador?
— Eu diria que ele deve se arrepender, começando agora — respondeu a
Srta. Ofélia.
— Sempre prática e objetiva! — comentou St. Clare, o rosto se abrindo em
um sorriso. — Você nunca me deixa tempo para reflexões generalizadas, prima;
sempre me traz de volta para o presente; tem na cabeça um tipo de agora eterno.
— O agora é o único tempo que me pertence — refutou a Srta. Ofélia.
— Minha querida Eva, pobrezinha! — disse St. Clare. — Tinha na alma a
determinação de me redimir.
Era a primeira vez, desde a morte de Eva, que ele dizia tantas palavras sobre
ela, e falava, evidentemente, reprimindo os sentimentos ainda muito fortes.
— Minha visão sobre o cristianismo é a seguinte — ele acrescentou — Acho
que nenhum homem pode professá-lo consistentemente sem jogar todo o peso de
seu ser contra o monstruoso sistema de injustiça que forma a base de nossa
sociedade; e, se necessário, sacrificar-se na batalha. Isso significa dizer que eu
não poderia, de outra forma, ser um cristão, ainda que já tenha visto muitos
cristãos inteligentes que não passaram por isso. O desejo deles de percepção dos
erros que me encheu de horror me trouxe mais ceticismo do que outra coisa.
— Se sabia de tudo isso, por que não o fez? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Ah, porque possuo apenas aquele tipo de benevolência que consiste em
deitar-me em um sofá, e blasfemar a igreja e o clero por não serem mártires e
confessores. É muito fácil enxergar como os outros podem ser mártires.
— Bem, e agirá diferente agora? — perguntou a Srta. Ofélia.
— O futuro a Deus pertence — respondeu St. Clare. — Sou mais corajoso
do que era antes, pois perdi tudo; e aquele que não tem nada a perder pode se dar
ao luxo de se arriscar.
— E o que fará?
— Espero cumprir meu dever para com os pobres e desafortunados assim
que puder — respondeu St. Clare. — A começar pelos meus próprios criados,
por quem ainda não fiz nada, e talvez um dia, no futuro, possa parecer que fiz
algo para toda uma classe; algo para salvar meu país da desgraça dessa terrível
posição na qual se encontra perante todas as nações civilizadas.
— Acha possível que uma nação se emancipe voluntariamente? —
perguntou a Srta. Ofélia.
— Não sei — respondeu St. Clare. — Estamos em uma época de grandes
feitos. O heroísmo e o desinteresse estão crescendo aqui e ali pelo mundo. Os
nobres húngaros libertaram milhões de criados, apesar da enorme perda
pecuniária; e, talvez, entre nós, haja espíritos generosos que não avaliem a honra
e a justiça em dólares e centavos.
— Não acredito nisso — comentou a Srta. Ofélia.
— Mas, suponhamos que amanhã acordemos e nos emancipemos; quem
instruiria esses milhões e os ensinaria a usar sua liberdade? Eles nunca se
desenvolveriam para fazer algo entre nós. A verdade é que nós mesmos somos
muito indolentes e inúteis para lhes darmos uma ideia da indústria e da energia
necessária para transformá-los em homens de verdade. Eles teriam que ir para o
Norte, onde trabalhar é a norma e o costume universal. E agora me diga, será que
há filantropia cristã suficiente entre os seus estados do Norte para sustentarem o
processo de educação e desenvolvimento deles? Vocês mandam milhares de
dólares para missões estrangeiras, mas será que conseguem aguentar ter os
pagãos enviados às suas cidades e vilas, dedicar-lhes seu tempo, pensamento e
dinheiro para elevá-los ao padrão cristão? É isso que eu gostaria de saber. Se
emanciparmos, queremos educá-los? Quantas famílias, em sua cidade,
abrigariam um homem ou uma mulher negra, os ensinaria, apoiaria e os
converteria em cristãos? Quantos comerciantes aceitariam Adolfo, se eu quisesse
fazer dele um atendente, ou lhe ensinaria mecânica, se quisesse lhe ensinar a
fazer negócios? Se eu quisesse mandar Jane e Rosa para a escola, quantas
escolas nos estados do Norte as aceitariam? Quantas famílias as abrigariam? E
elas são tão brancas como muitas mulheres do Norte ou Sul. Está vendo, prima?
É preciso nos fazer justiça; estamos em péssima posição. Somos os opressores
mais óbvios dos negros; mas o preconceito não cristão do Norte é um opressor
quase igualmente severo.
— Bem, primo, sei que é assim — disse a Srta. Ofélia. — Sei que foi assim
comigo, até ver que era meu dever superá-lo; e acredito que o superei, e sei que
há muitas pessoas boas no Norte que, com relação a esse assunto, apenas
precisam aprender qual é o dever delas para passar a fazê-lo. Certamente acho
que seria uma abnegação muito maior receber os pagãos entre nós do que enviar
missionários até eles, mas acredito que faríamos isso.
— Você faria, sei disso — disse St. Clare. — Gostaria de ver alguma coisa
que não faria se achasse que fosse o seu dever!
— Bem, não sou tão bondosa assim — refutou a Srta. Ofélia. — Outros
também o fariam, se vissem as coisas do mesmo modo que eu. Pretendo levar
Topsy para casa comigo, quando for embora. Imagino que as pessoas
estranharão, a princípio; mas acho que acabarão vendo tudo como eu vejo. De
mais a mais, sei que há muitas pessoas no Norte que fazem exatamente o que
acabou de dizer.
— Sim, mas é a minoria; e se é que vamos começar a emancipar, logo
teremos notícias suas.
A Srta. Ofélia não fez nenhum comentário. Houve uma pausa de alguns
minutos; e o semblante de St. Clare foi encoberto por uma expressão triste e
sonhadora.
— Não sei por que tenho pensado tanto em minha mãe essa noite — ele
comentou. — Estou com uma estranha sensação de que ela está perto de mim.
Fico me lembrando de coisas que ela costumava dizer. Estranho como essas
coisas do passado às vezes voltam tão vividamente!
St. Clare andou de um lado para o outro na sala durante mais alguns minutos
e disse:
— Acho que vou sair à rua um pouco para ouvir as notícias.
Ele pegou o chapéu e saiu.
Tomás o seguiu pelo corredor até o pátio e perguntou se deveria acompanhá-
lo.
— Não, meu amigo — respondeu St. Clare. — Estarei de volta em uma
hora.
Tomás sentou-se na varanda. Fazia uma linda noite enluarada e ele sentou-se
observando o subir e descer do jato de água da fonte, ouvindo o seu burburinho.
Tomás pensou em sua casa e que logo seria um homem livre, capaz de voltar
para casa quando desejasse. Pensou no quanto trabalharia para comprar a esposa
e os garotos. Sentiu os músculos de seus braços fortes com um tipo de alegria,
enquanto pensava que logo eles lhe pertenceriam e o quanto poderiam trabalhar
para conquistar a liberdade de sua família. Em seguida, pensou em seu nobre e
jovem amo, e, um segundo depois, veio a prece habitual que ele sempre lhe
oferecia; depois seus pensamentos passaram à linda Eva, que agora ele
acreditava estar entre os anjos; e pensou tanto a ponto de quase achar que aquele
rosto lindo de cabelos dourados estava olhando para ele, pelo jato de água que
vinha da fonte. E, inebriado, pegou no sono e sonhou que a via vindo pulando
em direção a ele, como ela costumava fazer, com uma guirlanda de jasmim no
cabelo, o rosto resplandecente e os olhos radiantes de alegria; no entanto, ao
olhar, ela parecia estar saindo da terra; seu rosto tinha um tom mais pálido, os
olhos tinham um brilho mais profundo e divino, um halo dourado parecia lhe
rodear a cabeça, e então ela desapareceu de vista; e Tomás foi acordado por uma
batida alta e som de muitas vozes ao portão.
Ele apressou-se para desfazer o tumulto e, com vozes abafadas e passos
pesados, vieram vários homens trazendo um corpo embrulhado em um capote,
deitado sobre uma padiola. A luz da lamparina iluminava todo o rosto, e Tomás
deu um grito selvagem de surpresa e desespero que ressoou pelas galerias à
medida que os homens chegavam mais perto com a carga, até a porta aberta da
sala onde a Srta. Ofélia continuava sentada tricotando.
St. Clare fora até um café à procura de um periódico daquela tarde.
Enquanto lia, uma rusga surgiu entre dois cavalheiros na sala, ambos
parcialmente embriagados. St. Clare e mais um ou dois outros tentaram separá-
los, quando de repente ele recebeu um golpe na lateral, com uma faca de caça
que tentava tirar de um deles.
A casa se encheu de choros e lamentos, berros e gritos; criados puxando os
cabelos freneticamente, se jogando no chão ou correndo de um lado para o outro
sem rumo, lamentando. Apenas Tomás e a Srta. Ofélia pareciam ter presença de
espírito, pois Marie estava em uma forte convulsão histérica. Sob as ordens da
Srta. Ofélia, um dos sofás da sala foi rapidamente preparado, e o corpo
ensanguentado foi colocado ali; St. Clare desmaiara devido à dor e à perda de
sangue, mas, à medida que a Srta. Ofélia lhe aplicava os tônicos, ele voltou a si,
abriu os olhos, olhou fixamente para eles, olhou ao redor da sala, os olhos
passando ardentemente sobre cada um dos objetos até finalmente repousarem no
retrato da mãe.
O médico chegou e examinou o ferido. Era evidente, pela expressão de seu
rosto, que não havia esperanças; mesmo assim se pôs a cuidar do ferimento e ele,
a Srta. Ofélia e Tomás continuaram o trabalho com calma, por entre as
lamentações, soluços e choros dos criados assustados que se apinharam nas
portas e janelas da varanda.
— Agora precisamos dispersar todas essas criaturas; tudo depende do
repouso dele — instruiu o doutor.
St. Clare abriu os olhos e olhou fixamente para os criados nervosos, a quem
a Srta. Ofélia e o doutor tentavam tirar do recinto.
— Pobres criaturas! — ele disse, e uma amarga expressão de autoflagelo lhe
passou pelo rosto.
Adolfo se recusava terminantemente a sair. O terror tinha lhe privado de toda
presença de espírito; ele se jogou no chão e nada podia persuadi-lo a se levantar.
O restante cedeu aos apelos urgentes da Srta. Ofélia, de que a salvação do seu
amo dependia do silêncio e da obediência deles.
St. Clare mal podia dizer palavra; deitava-se com os olhos fechados, mas era
visível que tinha pensamentos conflitantes. Algum tempo depois, colocou a mão
sobre a de Tomás, que estava ajoelhado a seu lado e disse:
— Tomás, meu pobre amigo!
— Diga-me, senhor! — pediu Tomás seriamente.
— Estou morrendo! — disse St. Clare pressionando-lhe a mão. — Reze por
mim!
— Se quiser, posso chamar um clérigo — disse o doutor.
St. Clare balançou a cabeça enfaticamente e repetiu para Tomás, agora ainda
mais sério:
— Reze!
E Tomás rezou com todo seu coração e força, para aquela alma que estava
partindo, a alma que parecia olhar tão firme e tristemente através daqueles olhos
azuis melancólicos. Foi realmente uma prece oferecida em voz alta e lágrimas.
Quando Tomás parou de falar, St. Clare alcançou e tomou a mão do escravo,
olhando-o fervorosamente, mas sem dizer nada. O amo fechou os olhos, mas
ainda manteve o aperto de mão, pois, nos portões da eternidade, a mão negra e a
branca se entrelaçam no mesmo gesto. Sussurou para si mesmo em intervalos
interrompidos:
Recordare Jesu pie —
Ne me perdas — illa die
Querens me — sedisti lassus
Era evidente que as palavras que estivera cantando aquela noite estavam
passando por sua cabeça, palavras de súplica dedicadas à Piedade Infinita. Seus
lábios se entreabriam em intervalos, e parte dos hinos eram repetidos por ele.
— A mente dele está delirando! — disse o doutor.
— Não! Estou finalmente indo para casa! — St. Clare declarou
energeticamente. — Finalmente, finalmente!
O esforço para falar o exauriu. A palidez profunda da morte caiu sobre ele, e,
com ela, como se tivesse vindo das asas de um espírito misericordioso, uma
linda expressão de paz, como a de uma criança cansada que adormece.
Assim ele permaneceu por alguns minutos. Percebia-se que a mão celestial
repousava sobre ele. Pouco antes de o espírito partir, St. Clare abriu os olhos
com um brilho súbito de alegria e reconhecimento, e disse “Mãe!”. Então se foi!
29
OS DESPROTEGIDOS
Muitas vezes ouvimos falar da angústia dos criados negros pela perda de um
amo bondoso, pois nenhuma criatura nesse mundo de Deus é deixada mais
profundamente desprotegida e desolada do que um escravo sob essas
circunstâncias.
A criança que perdeu um pai ainda tem a proteção de um amigo e da lei; ela
é alguma coisa e tem o direito de fazer alguma coisa; tem seus direitos e sua
posição reconhecidos; o escravo não tem nada. A lei o considera, sob todos os
aspectos, tão despojado de direitos quanto um fardo de mercadoria. O único
reconhecimento possível de qualquer de seus desejos e necessidades enquanto
criatura humana e imortal que lhes é dado, chega a eles através do desejo
soberano e irresponsável de seu amo; e quando esse amo morre, nada mais resta.
O número de homens que sabe como usar essa descomunal força
irresponsável de forma humana e generosa é pequeno. Todos sabem disso, e os
escravos mais ainda, pois eles reconhecem que há dez vezes mais chance de
encontrarem um senhor abusivo e tirânico do que um bondoso e generoso.
Quando St. Clare deu seu último suspiro, terror e consternação tomaram
conta de toda a casa. Ele fora levado subitamente, em plena flor e força da
juventude! Todos os cômodos e corredores da casa ressoavam com soluços e
gritos de desespero.
Marie, cujo sistema se acostumara ao fluxo constante de satisfação dos
próprios desejos, não tinha como aguentar o terror do choque, e, no momento em
que seu esposo partiu, passava de um desmaio a outro; e ele, a quem ela se
juntara no misterioso laço do casamento, se fora para sempre, sem nem mesmo a
possibilidade de uma palavra de despedida.
A Srta. Ofélia, com sua força e autocontrole característicos, permanecera ao
lado de seu parente até o último momento — olhos, ouvidos e toda a atenção —,
fazendo todo o pouco que podia ser feito e, junto com ela, toda sua alma em
orações suaves e fervorosas as quais o pobre escravo entoava pela alma de seu
amo que morria.
Quando estavam arrumando o corpo para seu último descanso, encontraram
sobre seu peito uma medalha simples e pequena, que se abria com uma mola.
Dentro havia a miniatura de um rosto de mulher, nobre e belo, e no verso,
embaixo de um cristal, uma mecha de cabelo preto. Colocaram-nos de volta
sobre o peito inerte, pó ao pó, tristes relíquias dos primeiros sonhos que um dia
fizeram palpitar aquele coração tão frio!
A alma de Tomás estava tomada por pensamentos de eternidade; e enquanto
trabalhava em torno da massa inerte, nem por um momento lhe passou pela
cabeça que a morte súbita de seu amo o colocava em estado de escravidão
permanente. Sentiu-se em paz com relação ao amo, pois, naquele momento,
quando entoara a prece no coração do Pai, encontrara uma resposta de silêncio e
confiança nascendo dentro de si. Nas profundezas de sua natureza afetuosa,
conseguira perceber algo na plenitude do amor divino, como um antigo oráculo
uma vez dissera: “Aquele que habita no amor, habita em Deus, e Deus nele!”.
Tomás acredita e confia, e, assim, estava em paz.
E o funeral passou, com todo seu desfile de trajes de luto, orações e rostos
tristes; e então voltaram as ondas frias e lamacentas da vida diária; e então a
pergunta difícil que não queria calar: “O que faremos agora?”.
A pergunta veio à mente de Marie quando, vestida em um robe de luto solto
e rodeada de criados ansiosos, sentou-se em uma grande poltrona reclinável
inspecionando amostras de crepe e bombazina. Passou pela cabeça da Srta.
Ofélia, que começou a direcionar seus pensamentos para sua casa no Norte.
Passou, num silêncio tenebroso, pela cabeça dos escravos, que conheciam muito
bem a natureza fria e tirânica da senhora em cujas mãos foram abandonados.
Todos sabiam muito bem que as indulgências que lhes eram dadas não vinham
da senhora, mas do senhor; e que, agora que ele se fora, não haveria nenhum tipo
de filtro entre eles e qualquer castigo tirânico imposto pelo ânimo amargado com
o sofrimento.
Aproximadamente duas semanas após o funeral, quando a Srta. Ofélia estava
ocupada em seu aposento, ouviu uma suave batida na porta. Ela a abriu e lá
estava Rosa, a linda e jovem quadrarona, de quem já falamos várias vezes
anteriormente, com o cabelo todo desarrumado e os olhos inchados de chorar.
— Ah, Srta. Félia! — ela disse, caindo sobre os joelhos e pegando a saia do
vestido da senhora. — Por favor, por favor, vá falar com a senhora Marie!
Interceda por eu! Ela vai me mandar pra ser açoitada! Olha aqui! — e entregou
um papel para a Srta. Ofélia.
Era uma ordem, escrita com a caligrafia italiana delicada de Marie, ao
senhor de uma casa de açoitamento, para que desse quinze chibatadas na
escrava.
— O que você estava fazendo? — perguntou a Srta. Ofélia.
— Ah, Srta. Félia, a senhora sabe, tenho um gênio ruim; é muito ruim pra
eu. Estava provando um vestido da Srta. Marie, e ela me deu um tapa na cara; e
eu falei sem pensar, e fui impertinente e ela disse que ia acabar comigo e me
ensinar, de uma vez por todas, que eu não podia ser tão orgulhosa como eu
sempre fui; então ela escreveu isso e diz que eu devo cumprir a ordem. Eu
prefiro que ela me mate de uma vez.
A Srta. Ofélia ficou em pé pensando com o papel na mão.
— Sabe, Srta. Félia — disse Rosa. — Não ligo muito pras chibatadas, se
fosse a senhora Marie ou a Srta. que me dessem; mas ser mandada pra um
homem! E um homem tão horrível, que vergonha, Srta. Félia!
A Srta. Ofélia sabia bem que era de costume mandar mulheres e garotos para
casas de açoitamento — para as mãos dos piores homens possíveis, homens vis o
suficiente para fazerem disso uma profissão —, para serem subjugadas à
exposição brutal e correção vergonhosa. Ela já tinha ouvido falar naquilo, mas
até aqui nunca tinha se dado conta disso, até ver o corpo esguio de Rosa quase
convulsionar de nervoso. Todo o sangue honesto do brio feminino, o sangue
forte e libertário da Nova Inglaterra, subiu-lhe às bochechas e palpitava forte em
seu coração indignado; no entanto, com a habitual prudência e autocontrole, ela
se conteve, amassou o papel com força nas mãos e disse simplesmente à Rosa:
— Sente-se, menina, enquanto falo com sua ama.
— Vergonhoso! Monstruoso! Inadmissível! — ela dizia a si mesma enquanto
atravessava a sala.
Encontrou Marie sentada na poltrona reclinável, com Mammy em pé ao lado
dela, penteando-lhe o cabelo; Jane estava sentada no chão ao lado dela, ocupada
lhe massageando os pés.
— Como está se sentindo hoje? — perguntou a Srta. Ofélia.
Um suspiro profundo e os olhos fechados foram a única resposta por um
momento; e então Marie respondeu:
— Ah, não sei, prima. Acho que estou tão bem como sempre — E Marie
limpou os olhos com um lenço de cambraia com uma larga borda preta.
— Vim — disse a Srta. Ofélia com uma tosse curta e seca que geralmente
introduz um assunto difícil —, vim lhe falar sobre a pobre Rosa.
Os olhos de Marie ficaram bem abertos agora, e um rubor tomou conta de
seu rosto lívido, quando ela respondeu rispidamente:
— Bem, o que tem ela?
— Ela sente muito pelo que fez.
— Ela sente, não é? Ela sentirá muito mais antes que eu acabe com ela! Já
tolerei as desobediências dessa criatura por tempo demais; e agora vou acabar
com ela, vou fazê-la comer poeira!
— Mas não poderia puni-la de outra maneira? De um jeito menos
vergonhoso?
— Quero fazê-la passar vergonha; é exatamente isso o que eu quero. Toda a
vida ela foi presumida por sua delicadeza e sua beleza e seus ares de senhora, até
se esquecer de quem realmente é; eu lhe darei uma lição da qual nunca mais se
esquecerá, tenho certeza!
— Mas, prima, pense bem, se destruir a delicadeza e o pudor de uma jovem
irá depravá-la rapidamente.
— Delicadeza! — refutou Marie com uma risada desdenhosa. — Uma
palavra boa demais para alguém como ela! Eu a ensinarei, com todos os seus
ares, que ela não é melhor do que as vagabundas negras que ficam pelas ruas!
Nunca mais há de ser impertinente comigo!
— Há de responder a Deus pela sua crueldade! — retorquiu a Srta. Ofélia
energeticamente.
— Crueldade! Gostaria de saber o que é crueldade! Dei ordens para apenas
quinze chibatadas, e lhe disse para não aplicá-las com muita força. Tenho certeza
que não há crueldade nisso, há?
— Não há crueldade!? — exclamou a Srta. Ofélia. — Imagino que qualquer
garota preferiria ser morta a passar por isso!
— Talvez possa parecer assim para qualquer um que tenha seus sentimentos;
mas essas criaturas se acostumam; é a única maneira de serem dominados.
Deixe-os pensar que podem tomar ares de delicadeza e coisas do tipo, e passam
por cima de você, assim como meus criados sempre fizeram. Agora vou colocá-
los no lugar certo; e quero que saibam que eu os mandarei para serem açoitados,
um depois do outro, se não se comportarem! — disse Marie, olhando ao redor
enfaticamente.
Jane abaixou a cabeça e se acovardou diante disso, pois sentia que aquelas
palavras eram particularmente dirigidas a ela. A Srta. Ofélia sentou-se por um
momento, parecendo ter engolido alguma mistura explosiva e estar prestes a
explodir. Em seguida, lembrando-se da inutilidade de contenção dessa natureza,
cerrou os lábios resolutamente, se recompôs e saiu da sala.
Foi difícil voltar e dizer a Rosa que não podia fazer nada por ela; e logo
depois, um dos criados veio anunciar que a ama tinha lhe ordenado que levasse
Rosa consigo para a casa de correção, para onde a quadrarona foi conduzida às
pressas, apesar das lágrimas e das súplicas.
Alguns dias depois, perto das varandas, Tomás estava em pé, pensativo,
quando foi acompanhado por Adolfo, quem, desde a morte do amo, estivera
absolutamente deprimido e desconsolado. Adolfo sabia que ele sempre fora um
objeto das antipatias de Marie, no entanto, enquanto o amo estava vivo, ele
nunca dera muita atenção a isso. Marie tivera várias reuniões com o advogado
dela; depois de conversar com o irmão de St. Clare, ela estava determinada a
vender o lugar e todos os criados, exceto aqueles de sua própria propriedade, e
esses ela pretendia levar com ela de volta à fazenda do pai.
— Sabe, Tomás, que todos nós seremos vendidos? — disse Adolfo.
— Como sabe disso? — perguntou Tomás.
— Eu me escondi atrás das cortinas quando a sinhá estava conversando com
o advogado. Em poucos dias todo mundo vai pro leilão, Tomás.
— Que seja feita a vontade de Deus! — Tomás disse, cruzando os braços e
respirando fundo.
— Nunca teremos um amo como esse! — lamentou Adolfo
apreensivamente. — Mas prefiro ser vendido a ficar à sorte da senhora.
Tomás afastou-se; seu coração estava pesado. A esperança de liberdade, a
lembrança de sua esposa e de seus filhos distantes, crescera em sua alma
paciente, assim como o náufrago quase chegando ao porto tem a visão da igreja
e dos lindos tetos de sua vila nativa, por sobre uma onda negra, apenas para lhes
dar um último adeus. Apertou os braços sobre o peito, engoliu as lágrimas
amargas e tentou rezar. Aquela pobre e velha alma tinha uma opinião tão
singular e indizível a favor da liberdade, que era um sacrifício para ele
abandoná-la, e quanto mais dizia “Que seja feita a Sua vontade”, pior ele se
sentia.
Ele procurou a Srta. Ofélia, quem, desde a morte de Eva, tinha o tratado com
notável e respeitosa bondade.
— Senhorita Félia — ele começou —, o senhor St. Clare tinha prometido
minha liberdade. Ele me disse que já tinha começado a providenciar ela e agora,
talvez, se a Srta. Félia tiver a bondade de conversar sobre isso com a sinhá,
talvez ela pode continuar os trâmite, como era desejo do amo St. Clare.
— Falarei em seu nome, Tomás, e farei o melhor que puder — disse a Srta.
Ofélia. — Mas, se depender da senhora St. Clare, não lhe daria muitas
esperanças. Mesmo assim, tentarei.
Este incidente ocorreu poucos dias depois do de Rosa, enquanto a Srta.
Ofélia se ocupava com seus preparativos para voltar para o Norte.
Refletindo seriamente, considerou talvez ter usado uma linguagem muito
exacerbada em sua última conversa com Marie e resolveu que desta vez se
esforçaria para moderar o tom e ser o mais conciliatória possível. Assim, a boa
alma se recompôs, e pegando seu tricô, resolveu ir até o quarto de Marie, ser o
mais cordial possível, e negociar o caso de Tomás com toda a habilidade
diplomática que possuía.
Encontrou Marie deitada em um sofá, apoiando os cotovelos em almofadas,
enquanto Jane, que estivera fora fazendo compras, encontrava-se diante dela
exibindo algumas amostras de delicados tecidos pretos.
— Isso ficará bom — disse Marie, escolhendo um. — Só não tenho certeza
se será totalmente apropriado para o luto.
— Meu Deus, senhora! — disse Jane voluvelmente. — A senhora
Derbennon usou exatamente esse mesmo tecido, depois que o general morreu no
verão passado; cai muito bem!
— O que acha? — Marie perguntou à Ofélia.
— É uma questão de hábito, suponho — respondeu a Srta. Ofélia. — Pode
julgar esse quesito melhor do que eu.
— A questão é que não tenho um só vestido nesse mundo que me sirva —
explicou Marie —, e, como venderei a casa e irei embora na semana que vem,
preciso decidir sobre o que usar.
— Mas vai assim tão rápido?
— Sim. O irmão de St. Clare escreveu, e ele e o advogado acham que é
melhor colocar os criados e a mobília a leilão, e deixar o lugar para ser vendido
pelo advogado.
— Há uma coisa sobre a qual gostaria de lhe falar — declarou a Srta. Ofélia.
— Augustine prometeu a liberdade a Tomás, e começara os trâmites legais
necessários para isso. Espero que consiga usar sua influência para conseguir
terminar tudo.
— Mas é claro que não farei uma coisa dessas! — exclamou Marie
rispidamente. — Tomás é um dos que criados mais valiosos do lugar. Não teria
condições de gastar esse dinheiro, de qualquer maneira. Além disso, para que ele
quer a liberdade? Está muito melhor como está.
— Mas ele a deseja muito, e seu amo lhe prometera — insistiu a Srta. Ofélia.
— Até acredito que ele a queira — refutou Marie. — Eles todos a querem,
simplesmente porque são um bando de descontentes, sempre querendo o que não
têm. Mantenha um escravo sob os cuidados de um amo e ele se sairá bem e será
respeitável; mas, liberte–os e eles ficam preguiçosos e não trabalham e começam
a beber e acabam se tornando sujeitos terríveis e vagabundos. Já vi acontecer
centenas de vezes. A liberdade não lhes traz benefício algum.
— Mas Tomás é tão leal, trabalhador e religioso!
— Ah, isso é desnecessário me dizer! Já vi cem iguais a ele. Ele se sairá
muito bem, contanto que alguém cuide dele, isso é tudo.
— Mas, pense bem — insistiu a Srta. Ofélia. — Quando o colocar à venda,
são muitas as chances de ele acabar com um amo ruim.
— Ah, isso é bobagem! — retrucou Marie. — Uma chance em cem que um
bom sujeito acabe com um amo ruim; a maioria do senhorio é boa, apesar de
tudo o que dizem. Eu nasci e cresci aqui no Sul, e nunca conheci nenhum senhor
que não tratasse bem aos seus criados, tão bem quanto mereçam. Não tenho o
menor receio quanto a isso.
— Bem — disse a Srta. Ofélia energicamente —, sei que dar a liberdade a
Tomás foi um dos últimos desejos do seu esposo; também foi uma das promessas
que ele fez à nossa querida Eva em seu leito de morte, e não gostaria de pensar
que você teria a liberdade de ignorá-lo.
Diante desse apelo, Marie cobriu o rosto com um lenço e começou a chorar e
a usar seu frasco de sais com grande veemência.
— Todos são contra mim! — ela disse. — Ninguém tem a mínima
consideração para comigo! Não esperava que você trouxesse à tona as
lembranças dos meus problemas; é tão cruel! Mas ninguém se importa, minhas
provações são tão peculiares! É tão difícil; tive uma filha e ela me foi levada! E
quando encontrei um marido que me conveio perfeitamente — e sou tão difícil
de ser agradada — ele também foi levado! E parecem ter tão pouca pena de
mim, trazendo-me esses assuntos tão indiferentemente quando sabe que tomam
conta de mim! Suponho que tivesse boas intenções, mas mesmo assim é muito
cruel, muito! — E Marie soluçava e engasgava buscando ar, e mandava que
Mammy abrisse a janela e que lhe trouxesse seu frasco de cânfora, e que lhe
lavasse o cabelo e desabotoasse o vestido. E, em meio à confusão generalizada
que se instalou, a Srta. Ofélia escapou para seu quarto.
Ela reconheceu, prontamente, que seria inútil dizer qualquer outra coisa, pois
Marie tinha uma capacidade indefinida para ataques histéricos; e, depois disso,
toda vez que os desejos de seu esposo ou de Eva com relação aos criados eram
mencionados, ela sempre achava conveniente simular uma operação. A Srta.
Ofélia, dessa forma, fez a única coisa boa que lhe restara fazer por Tomás:
escreveu uma carta à Sra. Shelby por ele, lhe contando das mazelas e lhe
implorando que enviasse socorro.
No dia seguinte, Tomás e Adolfo e mais meia dúzia de outros escravos
foram levados para o depósito de escravos, para esperarem a conveniência do
mercador, que montaria um lote para ser leiloado.
30
O DEPÓSITO DE ESCRAVOS
“Teus olhos são puros demais para olhar para o mal; tu eres incapaz de
tolerar os malfeitos. Então por que toleras os traidores? Por que
silencias enquanto os perversos engolem aqueles mais virtuosos do que
eles mesmos?”
— Hab. 1: 13.
— Cale a boca, seu preto maldito! — rugiu Legree. — Acha que eu ia querer
ouvir alguma coisa do seu velho inferno metodista? Cantem alguma coisa mais
alegre, agora, rápido!
Outro dos homens começou a cantar uma canção sem sentido, mas muito
comum aos escravos:
A canção foi entoada a todo pulmão, com uma falsa alegria; mas nenhum
suspiro de desespero, nenhuma prece fervorosa poderia lhes ter gerado uma
tristeza tão profunda como as notas selvagens do coro. Como se o pobre,
ingênuo coração, ameaçado — aprisionado — se refugiasse naquela canção de
santuário inarticulada, e encontrasse nela uma linguagem na qual soprasse suas
preces ao Senhor! Havia um orador entre eles, o qual Simon não podia ouvir. Ele
apenas ouvia o grupo cantando estridentemente, e se sentiu bem satisfeito; ele
estava fazendo com que eles “mantivessem o ânimo”.
— Bem, minha pequena — ele disse virando-se para Emmeline e colocando
a mão sobre o ombro dela. — Estamos quase chegando em casa.
Quando Legree blasfemava e tinha ataques de fúria, Emmeline ficava
aterrorizada; mas quando ele colovava a mão em cima dela e falava do jeito que
estava fazendo agora, ela preferiria que ele lhe batesse. A expressão nos olhos
dele lhe deixava com a alma enojada, e lhe causava arrepios na pele.
Involuntariamente, ela se aproximou da mulata ao lado dela, como se ela fosse
sua mãe.
— Você nem tem brincos! — ele disse pegando a orelhinha dela com seus
dedos ásperos.
— Não, senhor — respondeu Emmeline, tremendo e olhando para baixo.
— Bem, eu vou te dar um par de brincos de presente, se for uma boa garota.
Não precisa ter tanto medo; não tenho a intenção de fazer você trabalhar
muito.Você terá bons momentos comigo, e vai viver como madame; só precisa
ser boazinha.
Legree tinha bebido ao ponto de quase se tornar gentil; e foi mais ou menos
a esta altura que avistou os limites da fazenda. A propriedade anteriormente
pertencera a um cavalheiro de muito dinheiro e bom gosto, que dedicara
considerável atenção ao embelezamento do terreno. Ao morrer, insolvente,
Legree comprara a propriedade por uma barganha e a usava, assim como fazia
com tudo, meramente para ganhar mais dinheiro. O lugar tinha uma aparência de
destruição e abandono, que é sempre produzido pela evidência de que os
cuidados do proprietário anterior foram deixados à decadência.
O que um dia fora um gramado macio e bem aparado em frente à casa,
pontilhado aqui e ali por arbustos ornamentais, agora estava coberto de grama
emaranhada e desgrenhada, com postes para cavalos aqui e ali, onde a relva
desaparecera de tanto ser pisoteada, e o chão sujo com baldes quebrados,
sabugos de milho e outros restos de imundícies. Por todo lado jasmins
orvalhados e madressilvas penduravam-se toscamente de algum suporte
ornamental que fora puxado de lado para ser usado como poste para os cavalos.
O que um dia fora um grande jardim, agora estava coberto de ervas daninhas por
entre as quais brotavam florzinhas solitárias aqui e acolá. O que um dia fora uma
estufa, agora não tinha mais os batentes das janelas, e sobre as prateleiras
apodrecidas estavam alguns potes de flores secas e esquecidas, com galhos
dentro deles, cujas folhas ressequidas evidenciavam que um dia tinham sido
plantas.
A carroça continuou por um passeio de pedregulho coberto de mato, sob
uma notável avenida de árvores da China, cujas formas graciosas e folhagem
sempre verde pareciam ser as únicas coisas ali que não foram ameaçadas ou
alteradas, como espíritos nobres, profundamente enraizadas na bondade, para
florescer e crescer mais forte entre o desânimo e a decadência.
A casa um dia fora grande e bela. Construída à maneira sulista, tinha uma
varanda larga de dois andares ladeando toda a casa, para onde se abriam todas as
portas externas da casa, e a parte de baixo era apoiada por pilares de tijolos.
Contudo, o lugar parecia desolado e desaconchegante; algumas janelas
foram abertas com pedaços de madeira, outras com tecidos rasgados e cortinas
penduradas por apenas uma dobradiça, tudo demonstrando negligência e
desconforto profundos.
Pedaços de madeira, palha, velhos barris e caixas aprodrecidas espalhavam-
se pelo chão em todas as direções; e três ou quatro cães de aparência feroz,
alertados pelo som das rodas da carroça, vieram correndo, e não fosse pelo
esforço de criados esfarrapados que vieram atrás deles, teriam devorado Tomás e
seus companheiros.
— Bem podem ver o que espera vocês! — disse Legree, acariciando os
cachorros com um sorriso de satisfação, virando-se para Tomás e o grupo. —
Veja bem o que espera vocês se tentar fugir! Esses cachorro foram criado pra
caçar pretos, e vão adorar comer um de vocês no jantar. Então, se comportem!
Ei, Sambo! — ele disse para um sujeito em trajes esfarrapados com um chapéu
sem aba, que foi oficioso em suas atenções. — Como estão as coisas por aqui?
— Muito bem, senhor.
— Quimbo! — Legree falou para outro que estava fazendo cuidadosas
demonstrações para chamar a atenção do amo. — Fez o que mandei fazer?
— Acho que sim, não fiz.?
Esse dois negros eram as principais mãos da fazenda. Legree os treinara com
selvageria e brutalidade tão sistematicamente quanto treinara seus buldogues; e
após uma longa prática em maus tratos e crueldade, trouxe a natureza deles ao
mesmo nível de capacidade. É uma observação comum, e muito utilizada para a
forte militância contra o caráter da raça, que o feitor negro é sempre mais
tirânico e cruel do que o branco. Isso apenas prova que a mente do negro tem
sido mais agredida e aviltada do que a mente do branco. Não é mais verdade
para essa raça do que é para qualquer raça oprimida no mundo. O escravo é
sempre tirano se tiver a oportunidade de sê-lo.
Legree, assim como outros poderosos sobre quem estudamos na história,
governava sua fazenda baseado em um tipo de antagonismo de forças. Sambo e
Quimbo cordialmente se odiavam; os escravos da fazenda odiavam uns aos
outros e os dois, e, colocando uns contra os outros, ele tinha certeza de que
através de uma das três partes sempre seria informado sobre qualquer coisa que
acontecesse.
Ninguém pode viver absolutamente sem relacionamentos sociais; e Legree
encorajava seus dois satélites negros a certa familiaridade com ele; uma
familiaridade, no entanto, suscetível a que um ou outro se metesse em
enrascadas a qualquer momento, pois, sob a menor provacação, um deles sempre
estava pronto, num piscar de olhos, a ser o ministro da vingança sobre o outro.
Enquanto estavam ali ao lado de Legree, pareciam compor uma boa
ilustração do fato de que homens brutos são ainda mais baixos do que animais.
Seus traços rudes, escuros e pesados, seus olhos grandes revirando de inveja um
do outro, sua entonação semibruta, bárbara e gutural, as roupas esfarrapadas
voando ao vento; tudo estava admiravelmente de acordo com o caráter vil e
desagradável do lugar.
— Sambo! — ordenou Legree. — Leve esses rapaz para seus aposento; e
aqui está uma negrinha que trouxe pra vocês. — ele disse enquanto separava a
mulata de Emmeline e a puxava em direção a eles. — Prometi trazer uma pra
vocês, não foi?
A mulher deu um pulo para trás e disse repentinamente:
— Ah, meu amo! Deixei meu velho marido em Nova Orleans.
— E eu com isso? Não quer um aqui? Chega de falatório, saia daqui! —
disse Legree levantando o chicote.
— Vem, mocinha! — ele disse para Emmeline. — Você vem para dentro
comigo.
Um rosto escuro e selvagem foi visto, por um momento, olhando pela janela
da casa e, quando Legree abriu a porta, uma voz feminina disse algo em um tom
rápido e imperativo. Tomás, que estava olhando com interesse ansioso para
Emmeline quando ela entrou, notou a voz, e ouviu Legree responder com raiva:
— Dobre sua língua! Faço o que quiser com todos vocês!
Tomás não ouviu mais nada, pois logo estava seguindo Sambo até os
aposentos. Os aposentos ficavam em um tipo de rua com várias cabanas rústicas
e enfileiradas em uma parte da fazenda longe da casa. Tinham um ar de
abandono e brutalidade. O coração de Tomás quase parou ao vê-las. Para se
confortar, estivera pensando em uma cabana rústica com certeza, mas onde
pudesse ficar sozinho e tranquilo, onde tivesse uma prateleira para colocar sua
Bíblia e um lugar para ficar sozinho depois de suas longas horas de trabalho.
Olhou dentro de várias; não passavam de meras coberturas, destituídas de
qualquer tipo de mobília, exceto um monte de palha, coberta de pó, espalhada a
esmo pelo chão nu, endurecido pelos passos de inúmeros pés.
— Qual dessas é minha? — ele perguntou submissivamente a Sambo.
— Sei não; acho que cabe aqui — disse Sambo. — Ainda tem espaço; já tem
um monte de preto em cada uma; não sei onde enfiar mais ninguém.
É maravilhoso saber
Que sobre nossas cabeças
Pairam os espíritos dos mortos
Com asas de anjos.
33
CASSY
Levou muito pouco tempo para Tomás se familiarizar com tudo o que
poderia ser esperado e temido em seu novo modo de vida. Era um trabalhador
exímio e eficiente em qualquer tarefa que fizesse e, tanto por hábito quanto por
princípio, fiel e disponível. De disposição tranquila e pacífica, ele esperava, por
diligência persistente, desviar de si mesmo pelo menos uma porção dos pecados
de sua condição. Ele viu abuso e sofrimento suficientes para deixá–lo enojado e
cansado; mas estava determinado a continuar trabalhando, com paciência
religiosa, confiando no correto julgamento de Deus, com a esperança de que
ainda houvesse alguma salvação.
Legree notou as habilidades de Tomás sem falar nada. Considerou-o escravo
de primeira linha, embora sentisse uma antipatia secreta por ele, a antipatia
natural do mal pelo bem. Via claramente que Tomás percebia toda vez que a
violência e brutalidade recaíam sobre os menos afortunados; pois a atmosfera da
opinião é tão sutil que se faz notada até mesmo sem palavras, e a opinião de um
escravo pode incomodar até mesmo a seu amo. Tomás, de várias maneiras,
manifestava um sentimento de bondade, uma comiseração por seus
companheiros desafortunados, estranhos e novos a ele, observado por Legree
com olhos de despeito. Ele comprara Tomás com a intenção de, um dia,
transformá-lo num tipo de administrador geral, a quem, às vezes, pudesse confiar
seus negócios durante suas curtas ausências; e, de acordo com sua opinião, o
primeiro, segundo e terceiro requisitos para essas funções era ter o coração duro.
Legree acreditava que, como Tomás não lhe fazia objeção, conseguiria endurecê-
lo ao longo do tempo e assim, após algumas semanas na fazenda, Legree estava
determinado a dar início ao processo.
Uma manhã, quando os escravos estavam reunidos para o campo, Tomás
notou, surpreso, uma novata entre eles, cuja aparência lhe chamou a atenção. Era
uma mulher alta e esguia, com mãos e pés extremamente delicados, vestida em
roupas bonitas e respeitáveis. Pela fisionomia talvez tivesse trinta e cinco ou
quarenta anos, e tinha um rosto que, depois de visto, nunca era esquecido,
daqueles que, à primeira vista, parecem nos passar uma ideia de história
selvagem, dolorosa e romântica. Sua testa era alta e suas sobrancelhas marcadas
com admirável beleza. O nariz reto e bem delineado, os lábios delgados, e o
contorno gracioso da nuca e do pescoço denunciavam que ela um dia fora de
grande beleza; no entanto, seu rosto era profundamente marcado por linhas de
dor, orgulho e arrogância. Sua tez era amarelada e doentia, o rosto magro, os
traços marcados e todo seu corpo desnutrido. Mas seus olhos eram sua
característica mais marcante — grandes, profundamente negros, sofregamente
desperados e selvagens. Havia um orgulho feroz e desafiador em cada linha de
seu rosto, em cada curva de seus lábios flexíveis, em cada movimento de seu
corpo; mas em seus olhos havia uma angústia marcante e indelével, uma
expressão tão desesperançosa e imutável que contrastava assustadoramente com
o desdém e o orgulho de seus modos.
De onde ela vinha e quem ela era, Tomás não sabia. Era a primeira vez que a
via, caminhando ao lado dele, ereta e orgulhosa, à luz cinzenta da madrugada. Os
escravos, no entanto, já a conheciam, pois havia muitos olhares e viradas de
cabeça e uma exaltação velada, porém aparente, entre as criaturas miseráveis,
esfarrapadas e quase mortas de fome pelas quais ela fora rodeada.
— Finalmente vai fazer alguma coisa! Bem feito! — disse alguém.
— Ha, ha, ha! — riu outro. Agora vai ver como é bom, madame!
— Vamos ver ela trabalhar!
— Quero só ver se ela vai ficar até a noite, como nós.
— Ia ficar feliz de ver ela levar uma surra!
A mulher ignorou esses comentáros e continuou andando com a mesma
expressão de arrogância raivosa, como se não estivesse ouvindo nada. Tomás
sempre vivera entre pessoas refinadas e bem educadas e sentiu, intuitivamente,
pelo seu ar e postura, que ela pertencia a essa classe; mas como e porquê ela
tinha chegado a essa situação degradante, não podia dizer. Embora a mulher não
tenha olhado nem falado com ele durante todo o caminho até o campo, ficou o
tempo todo ao lado dele.
Tomás logo se ocupou com seu trabalho, mas, como a mulher não estava
muito longe dele, sempre dava uma olhada para ela enquanto trabalhava. Ele
reparou, numa olhadela, que uma destreza e eficiência naturais tornavam o
trabalho uma tarefa mais fácil para ela do que para muitos dos outros. Ela colhia
de forma rápida e muito limpa, com ar de escárnio, como se desprezasse o
trabalho, a desgraça e a humilhação das circunstâncias nas quais fora colocada.
Ao longo do dia, Tomás estava trabalhando perto da mulata que fora
comprada no mesmo lote que ele. Ela encontrava-se, evidentemente, em
condições de grande sofrimento, e Tomás ouvia–a rezando enquanto cambaleava
e tremia e parecia prestes a desmaiar. Tomás, em silêncio, chegou perto dela e
transferiu várias porções de algodão de seu próprio cesto para o dela.
— Ah, não, não! — disse a mulher, parecendo supresa. — Vai arrumar
confusão pra você.
Nesse exato momento Sambo apareceu. Parecia ter um desprezo especial
pela mulher e, estalando seu chicote, disse em tom violento e gutural:
— O que é que está aprontando, Luce? — e, ao dizer isso, chutou a mulher
com seus sapatos de couro e atingiu o rosto de Tomás com seu chicote.
Tomás retomou seu trabalho em silêncio, mas a mulher, antes disso já quase
no limite da exaustão, desmaiou.
— Vou fazer ela voltar a si! — disse o feitor com um sorriso feroz. — Vou
dar para ela uma coisa melhor do que cânfora! — e tirando um alfinete da manga
do casaco, enfiou-o na carne da escrava. A mulher grunhiu e levantou-se um
pouco. — Levanta, sua besta, e trabalha, senão vou te mostrar outro truque!
Durante alguns momentos a mulher pareceu estimulada por uma força
incomum, e trabalhou com desesperada vontade.
— Continue assim — gritou o homem —, ou hoje à noite vai desejar ter
morrido, estou dizendo!
— Sei bem disso! — Tomás ouviu-a responder; e, de novo, ouviu-a dizer: —
Ah, meu Senhor, quanto tempo? Ah, Senhor, por que não ajuda a gente?
Mesmo diante de todo o risco que corria, Tomás caminhou mais para a frente
e colocou todo o algodão de seu cesto dentro do da mulher.
— Ah, não deve fazer isso! Não faz ideia do que vão fazer com você! —
avisou a mulher.
— Posso aguentar! — respondeu Tomás. — Mais do que você — e foi para
o lugar dele novamente. Um momento se passou.
De repente, a mulher estranha a quem descrevemos e quem, durante o curso
de seu trabalho, chegou perto de Tomás o suficiente para lhe ouvir as últimas
palavras, ergueu seus pesados olhos negros e fixou-os, por um segundo, no
negro; em seguida, tirando um punhado de algodão de seu próprio cesto,
colocou-o no dele.
— Você não conhece nada deste lugar — ela declarou. — Do contrário não
teria feito isso. Depois de estar aqui durante um mês, não ficará por aí ajudando
ninguém; vai achar difícil o bastante tomar conta da própria pele!
— Deus nos livrará disso, senhorita! — disse Tomás, usando instintivamente
com sua companheira de colheita a forma respeitosa e apropriada para os bem-
criados com quem ele vivera.
— Deus nunca visita essas paragens! — retrucou a mulher com amargura
enquanto continuava a fazer seu trabalho com agilidade; e, de novo, um sorriso
desdenhoso curvou os lábios dela.
Mas o movimento da mulher foi visto pelo feitor, do outro lado do campo; e
estalando seu chicote, ele chegou perto dela.
— Ei, ei! — ele gritou com a mulher com um ar triunfante. — Está querendo
me enganar? Tome tento! Está sob meus cuidado agora! Se comporta ou te
arrebento!
Um olhar de fuzilamento brilhou daqueles olhos negros e, levantando a
cabeça com os lábios tremendo e as narinas dilatadas, ela se levantou e fixou o
olhar de ódio e desdém no feitor.
— Cão! — ela respondeu. — Não ouse tocar em mim! Ainda tenho poder
suficiente para jogá-lo aos cães, queimá-lo vivo, ou fazer picadinho de você.
Basta que eu diga uma palavra!
— Então por que diabos está aqui? — perguntou o homem, evidentemente
amedrontado, dando um passo para trás. — Não tive a intenção de machucar,
madame Cassy!
— Fique longe de mim! — bradou a mulher. E, de fato o homem pareceu
muito inclinado a verificar alguma coisa do outro lado do campo, e se afastou
rapidamente.
A mulher voltou prontamente à sua atividade, e trabalhou com uma agilidade
que espantou Tomás. Ela parecia trabalhar por magia. Antes de o dia terminar,
tinha enchido o cesto, esvaziado e empilhado tudo, sem contar os punhados que
colocara no cesto de Tomás. Muito depois do pôr-do-sol, todo o grupo exausto,
com os cestos na cabeça, seguiu em fila até a instalação apropriada para o
depósito e a pesagem do algodão. Legree estava lá, conversando animadamente
com os dois feitores.
— Aquele Tomás vai dar muito trabalho; ficou colocando algodão dentro do
cesto da Lucy. Se o amo não prestar atenção, qualquer dia desse ele vai fazer os
preto tudo ficar alerta! — disse Sambo.
— Vai ver só, aquele preto maldito! — disse Legree. Vai ter que aprender,
né, rapazes?
Os dois negros deram um sorrisinho horrendo diante daquela intimação.
— Ah, com certeza! O amo Legree vai dar uma lição nele! Nem o diabo
faria melhor do que o senhor — declarou Quimbo.
— Bem, rapazes, a melhor maneira de mudar as ideia dele é encarregar ele
do chicote. Vão lá ensinar a lição!
— Meu Deus, o senhor vai ter muito trabalho para mudar as ideia desse
nego!
— Vai ter que mudar, de qualquer jeito! — disse Legree enquanto enrolava o
fumo na boca.
— E lá vai a Lucy, a vadia mais feia e irritante desse lugar! — comentou
Sambo.
— Cuidado, Sam. Vou começar a adivinhar o motivo de seu desprezo por
Lucy.
— O mestre sabe muito bem que ela não fez o que o mestre mandou e não
quis me aceitar quando eu dei as ordem pra ela.
— Se fosse você dava uma surra nela — disse Legree, cuspindo. — Só que
temos muito trabalho e não vale a pena fazer isso agora. Ela é franzina, mas
essas preta magricela é capaz de quase morrer pra fazer as coisa do jeito delas!
— Mas Lucy é mesmo muito irritante e preguiçosa, andando de um lado
para o outro sem fazer nada. E o Tomás, foi ele que encheu o cesto pra ela.
— Foi mesmo? Então Tomás terá o prazer de açoitar ela. Vai ser uma boa
prática pra ele, além do que vai acabar com a preta como vocês dois faria.
“Ha, ha, ha!”, riram os dois negros malditos; e os sons diabólicos pareciam,
de fato, uma expressão da personalidade demoníaca que Legree lhes conferira.
— Mas, senhor, Tomás e a Srta. Cassy, os dois encheram o cesto de Lucy.
Pode apostar que está com o peso certo, senhor!
— Eu vou fazer a pesagem! — informou Legree enfaticamente.
Os dois feitores, mais uma vez, soltaram sua gargalhada diabólica.
— A Srta. Cassy fez o dia de trabalho da Lucy.
— Ela colhe feito o diabo e todos seus anjo!
— Acho que ela tem o diabo no corpo! — disse Legree; e grunhindo um
juramento blasfemo, caminhou até a sala de pesagem.
Lentamente, as criaturas exaustas caminhavam para dentro da sala e,
relutantes e cabisbaixas apresentavam seus cestos para serem pesados.
Em uma lousa, Legree anotava o peso ao lado de cada nome escrito na lista.
O cesto de Tomás foi pesado e aprovado, e ele esperou ansioso pelo
resultado da mulher de quem tinha ficado amigo.
Cambaleando com fraqueza, ela se aproximou e entregou o cesto. Estava
bem pesada, como Legree pôde perceber, mas tomado pela fúria, ele disse:
— Sua besta preguiçosa! De novo fora do peso! Fique de lado e logo se verá
comigo!
A mulher deu um gemido de desespero profundo, e sentou-se em um banco.
A pessoa que fora chamada de madame Cassy agora se aproximou e, como
um ar negligente e arrogante, entregou seu cesto. Ao entregá-lo, Legree encarou-
a com um olhar desdenhoso, porém inquisitivo.
Ela fixou firmemente os olhos nele, mexeu os lábios levemente e disse algo
em francês. O que foi dito, ninguém sabe, mas o rosto de Legree transformou-se
em uma expressão diabólica quando ela falou; ele levantou a mão como se fosse
bater nela, um gesto para o qual ela olhou com desprezo selvagem enquanto se
virava e afastava-se.
— E agora venha até aqui, Tomás — chamou Legree. Eu já falei pra você
que não te comprei pro trabalho comum. Tenho a intenção de promover você e
tornar você um administrador, e esta noite já vai poder começar a tomar o gosto
pela coisa. Agora vá lá pegar aquela escrava pra dar umas chibatada; acho que já
viu o suficiente pra saber como se faz.
— Peço que me perdoe, senhor — disse Tomás. — Mas não me coloque
para fazer tal coisa, senhor. Não tô acostumado com isso, nunca fiz e não posso
fazer, de jeito nenhum.
— Vai aprender uma porção de coisas que ainda não sabe, antes que acabe
com você! — disse Legree pegando um chicote e dando um golpe pesado no
rosto de Tomás, seguindo a punição com uma saraivada de golpes.
— Aí está! — ele disse quando parou para descansar. — Ainda vai me dizer
que não vai fazer o que eu mandei?
— Sim, senhor — respondeu Tomás erguendo a mão para limpar o sangue
que escorria de seu rosto. — Posso trabalhar dia e noite e trabalhar enquanto
houver um sopro de vida em mim, mas não acho justo e nunca farei isso, senhor!
Nunca!
Tomás tinha a voz notalvemente suave e tranquila e modos geralmente
respeitosos, o que deu a Legree a ideia de que ele seria covarde e facilmente
persuadido. Ao dizer essas últimas palavras, a pobre mulher juntou as mãos e
disse “Ah, meu Deus!”, e todos olharam involuntariamente uns para os outros,
suspirando profundamente, como se estivessem se preparando para uma
tormenta prestes a explodir.
Legree parecia estupefato e confuso, mas finalmente explodiu:
— O quê? Preto miserável! Não venha me dizer que não acha justo fazer o
que eu mando! O que faz qualquer um de vocês, malditos animais, achar que
podem pensar o que é justo ou não? Talvez pense que é um cavalheiro, senhor
Tomás, pra dizer ao seu mestre o que é certo e o que não é! Então acha que é
injusto castigar a mulher!
— Acho sim, senhor — respondeu Tomás. — A pobre criatura tá fraca e
doente; ia ser muito cruel e eu nunca vou fazer isso, nem começar. Mestre, se
tem a intenção de me matar, me mate, mas nunca vou levantar a mão para
ninguém aqui, nunca. Antes disso prefiro morrer!
Tomás falou com uma voz suave, mas que não deixava dúvidas com relação
à sua decisão. Legree tremia de raiva; seus olhos esverdeados fuzilavam, e os
próprios bigodes pareciam se eriçar de ódio; no entanto, assim como um animal
feroz que brinca com sua vítima antes de devorá-la, controlou seu impulso de
violência imediata e falou com escárnio:
— Ora, ora! Finalmente um verdadeiro cão devoto entre nós, pecadores! —
um santo, um cavalheiro, não menos que isso, pra dizer a nós, pecadores, os
nossos pecados! Que criatura poderosa e santa deve ser! E você, seu pilantra,
que se diz tão religioso, nunca ouviu a Bíblia dizer “Criados, obedeçam a seus
mestres”? E eu não sou seu mestre? Não fui eu quem pagou mil e duzentos
dólares, em dinheiro vivo, por tudo o que está dentro dessa carcaça preta e
velha? Você não é meu, de corpo e alma? — ele perguntou, chutando Tomás
violentamente com sua bota. — Me diz!
Nas profundezas do sofrimento físico, curvado pela opressão brutal, essa
pergunta gerou um brilho de alegria e triunfo na alma de Tomás. Ele
repentinamente se esticou e olhando seriamente para o céu, enquanto as lágrimas
e o sangue lhe escorriam pelo rosto dilacerado, exclamou:
— Não, não, não! Minha alma não lhe pertence, meu senhor! Não comprou,
pois não pode comprar ela! Ela foi comprada e paga por aquele que é capaz de
protegê-la; independentemente do que faça, não pode me machucar!
— Não posso? — perguntou Legree com uma fungada. — É o que veremos!
Sambo, Quimbo, deem uma sova tão boa nesse cão a ponto de ele não conseguir
levantar o mês inteiro!
Os dois negros gigantes que agora seguravam Tomás, com exultação
demoníaca em seus rostos, poderiam ser a própria personificação das forças
maléficas. A pobre mulher gritou de apreensão e todos se levantaram, num
impulso generalizado, quando os dois escravos arrastaram Tomás, sem
resistência, para fora do lugar.
34
A HISTÓRIA DA QUADRARONA
A sala de estar da casa de Legree era grande e comprida, com uma lareira
ampla e larga. Em outros tempos fora adornada com um papel caro e chamativo,
que agora despencava mofado, rasgado e desbotado pelas paredes úmidas. O
ambiente tinha um odor particularmente fétido e desagradável, composto da
mistura de umidade, sujeira e lixo, comuns às casas velhas e fechadas. O papel
de parede tinha nódoas de cerveja e vinho em alguns lugares, e estava todo
rabiscado com anotações de giz e longas contas de somar, como se ali tivessem
praticado aritmética. Sobre a lareira havia um braseiro cheio de carvão aceso,
pois, apesar de o tempo não estar frio, as noites sempre eram úmidas e geladas
naquela sala imensa, e Legree, além disso, precisava do fogo para acender seus
charutos e aquecer a água para o ponche. O brilho avermelhado do carvão
iluminava o aspecto confuso e desolador do ambiente — celas, selins, vários
tipos de cabrestos, chicotes de montaria, casacos e peças de roupas espalhadas
por toda a sala; e os cachorros, dos quais já falamos anteriormente, acampavam
entre as roupas a seu bel prazer.
Legree estava misturando uma taça de ponche, servindo a água quente de
uma jarra trincada e de ponta quebrada, grunhindo como sempre fazia.
— Maldito seja aquele Sambo! Ficar criando problema entre os novatos e
eu! O sujeito agora não vai poder trabalhar por uma semana! Bem no meio da
época de colheita!
— Sim, e a culpa é sua — disse uma voz atrás da cadeira dele. Era Cassy,
que interrompera o monólogo de Legree.
— Arre! Sua diaba! Quer dizer que voltou, é?
— Sim, voltei — ela disse calmamente. — Voltei para fazer as coisas a meu
modo.
— Sua víbora mentirosa! Hei de cumprir minha palavra! Ou você se
comporta ou vai ficar nas cabana, trabalhando e comendo com os outros.
— Prefiro mil vezes viver no buraco mais sujo das cabana a ficar sob o seu
teto! — retrucou a mulher.
— Mas, até onde sei, você está sob o meu teto — ele respondeu, virando-se
para cima dela com um sorriso de escárnio. — E isso é um conforto. Então, vem
sentar no meu colo, minha querida, e seja boazinha — ele disse segurando a
cintura dela.
— Simon Legree, tome cuidado! — disse a mulher com um fogo ardendo
nos olhos, um olhar tão selvagem e insano que chegava a ser quase
amedrontador. — Tem medo de mim, Simon! — ela disse deliberadamente. — E
tem motivo para isso! Vou lhe avisar, tenha cuidado, pois tenho o diabo no
corpo!
As últimas palavras ela sussurrou em um tom sibilante bem perto do ouvido
dele.
— Sai daqui! Acredito pela minha alma que você tem mesmo o diabo no
corpo! — disse Legree afastando-a com um empurrão, e olhando desconfiado
para Cassy.
— Mas, afinal de contas, Cassy, por que não podemos ser amigos como
antes?
— Como antes? — ela refutou rispidamente. Ela parou, e um mundo de
sentimentos engasgados vindo à tona em seu coração a manteve em silêncio.
Cassy sempre exercera sobre Legree o tipo de influência que uma mulher
forte e apaixonada sempre exerce sobre um homem, por mais brutal que ele seja;
mas, ultimamente, estava ficando cada vez mais irritada e cansada, sob o odioso
jugo da servidão, e sua irritabilidade às vezes se transformava em surtos de
insanidade; e essas reações faziam dela um objeto de terror para Legree que,
como era comum a pessoas rudes e sem instrução, tinha um horror supersticioso
por pessoas insanas. Quando Legree trouxe Emmeline para a casa, todas as
brasas flamejantes do sentimento feminino se acenderam no coração cansado de
Cassy, e ela tomou partido da garota, dando início a um feroz impasse com o
senhor. Legree, furioso, jurou colocar Cassy para fazer serviços braçais no
campo se ela não se comportasse. Cassy, com orgulho sarcástico, declarou que
iria mesmo para o campo. E lá trabalhou um dia inteiro, como já descrevemos,
para mostrar ao senhor o quanto desprezava sua ameaça.
Legree ficara incomodado o dia todo, em segredo. Cassy tinha sobre ele uma
influência da qual não conseguia se libertar. Quando apresentou o cesto nas
balanças de pesagem, ele esperou algum tipo de concessão e falou com ela em
tom meio conciliatório e meio sarcástico, e ela lhe respondera com profundo
desprezo.
O tratamento execrável ao pobre Tomás a enfurecera ainda mais; e ela
seguira Legree até a casa, sem nenhuma intenção em particular, exceto
repreendê-lo por sua brutalidade.
— Eu queria que você se comportasse decentemente, Cassy — disse Legree.
— Veja só quem está falando em se comportar decentemente! E o que você
tem feito? Você, que nem mesmo tem juízo suficiente para poupar um de seus
melhores escravos, bem no meio da alta estação de colheita, simplesmente pelo
seu temperamento demoníaco?
— Fui um idiota, é verdade, por deixar esse imbróglio acontecer — admitiu
Legree —, mas quando ele quis impor sua vontade, tive que dar a uma lição.
— Tenho certeza de que jamais conseguirá.
— Não? — Legree refutou levantando-se impestivamente. — Quero só ver
se não vou! Ele será o primeiro preto que nunca se dobrou! Quebrarei todos os
ossos do corpo dele, mas garanto que ele vai ceder!
Naquele momento, a porta se abriu e Sambo entrou. Ele se aproximou de
cabeça baixa, segurando alguma coisa embrulhada num papel.
— O que é isso, seu cão? — perguntou Legree.
— Uma bruxaria, amo!
— O quê?
— Uma coisa que os preto pega das bruxa. Evita de sentir dor quando eles é
castigado. Ele tinha isso pendurado no pescoço, com uma fita preta.
Legree, assim como todos os homens ateus e cruéis, era supersticioso. Pegou
o papel e, receoso, o abriu.
De lá saíram uma moeda de prata de um dólar e uma mecha longa e
brilhante de cabelo louro, a qual, como se estivesse viva, enroscava-se por entre
os dedos de Legree.
— Maldição! — ele gritou, com fúria repentina, batendo o pé no chão e
puxando a mecha de cabelo com força, como se aquilo o queimasse. — De onde
veio isso? Jogue fora! Queime! Queime! — ele gritou, repartindo tudo ao meio e
atirando dentro do carvão. — Por que trouxe isso pra mim?
Sambo ficou ali parado, com sua bocarra pesada bem aberta, estupefato, sem
saber o que dizer; e Cassy, que se preparava para sair da sala, parou e olhou para
ele profundamente surpresa.
— Não me traga mais dessas coisas do demônio! — ele bradou, mostrando o
punho cerrado para Sambo, que rapidamente se esquivou em direção à porta; e,
pegando o dólar de prata, atirou-o pela janela, para dentro da escuridão.
Sambo ficou feliz por ter escapado. Depois que o escravo se foi, Legree
sentiu-se um pouco envergonhado por seu ataque de nervos. Jogou-se na
poltrona e começou a beber lentamente seu copo de ponche.
Cassy aproveitou para sair, uma vez que não estava sendo observada por ele,
e esgueirou-se para ajudar Tomás, conforme já relatamos.
E qual era o problema com Legree? E o que havia em uma simples mecha de
cabelo para fazer temer a um homem brutal, tão familiar a todo tipo de
crueldade? Para responder a essa pergunta, devemos transportar o leitor para a
história pregressa de Legree. Embrutecido e condenável como é agora esse
homem herege, houve um tempo quando fora embalado no seio de sua mãe,
criado com preces e hinos religiosos, sua testa agora ardente, refrescada pelas
águas do santo batismo. Na infância, fora criado por uma mulher loura, ao som
do sino do Sabbath, para louvar e rezar. Longe, na Nova Inglaterra, aquela mãe
criara o único filho com incansável e profundo amor, e preces pacientes. Filho de
um homem de temperamento difícil, a quem aquela doce mulher desperdiçara
todo seu amor, Legree seguira os passos do pai. Impetuoso, desobediente e
tirânico, ele desprezava todos os conselhos da mãe e não aceitava repreensões.
E, ainda moço, separou-se dela para buscar fortuna no mar. Ele nunca voltou
para casa senão uma vez e, na ocasião, a mãe, com o coração de quem precisava
amar, embora não tivesse mais nada na vida, continou a amá-lo, e buscou entre
preces e súplicas fervorosas tirá-lo de uma vida de pecados, para o bem de sua
alma eterna.
Aquele fora o dia de graça de Legree; os anjos o chamaram; e ele quase fora
persuadido, e a misericória lhe segurou pelas mãos. Seu coração demonstrou
piedade, e houve um conflito interno; mas, ao final, o pecado venceu e ele
colocou toda a força de sua natureza bruta contra a convicção de sua
consciência. Legree bebia e blasfemava, estava mais embrutecido e cruel do que
nunca. E uma noite, quando a mãe na última agonia de seu desespero ajoelhou-
se a seus pés, repeliu-a violentamente atirando-a ao chão, sem sentidos, e, em
meio a blasfêmias horríveis, voltou para o navio. Depois disso, voltou a ter
notícias da mãe uma noite, quando, festejando na companhia de bêbados,
depositaram-lhe uma carta na mão. Ele a abriu e uma mecha de cabelo, longa e
encaracolada, caiu de dentro da carta e se enroscou em seus dedos. A carta lhe
dizia que a mãe estava morta e que, enquanto morria, ela o abençoou e o
perdoou.
Há uma necromancia aterrorizante e pecaminosa no mal que transforma as
coisas mais doces e sagradas em fantasmas de horror e medo. Aquela mulher
pálida e carinhosa, suas preces de morte, seu amor misericordioso, traziam
àquele coração pecador e cruel apenas uma sentença maldita e, com ela, uma
indigação ardente e uma perspectiva temerosa pelo juízo final. Legree queimou o
cabelo e a carta, e quando os viu sibilando e crepitando no fogo, tremeu
internamente ao pensar nas chamas do inferno. Tentou beber, se divertir e deixar
de lado as lembranças, mas quase sempre nas profundezas da noite, quando o
silêncio solene obriga a alma perversa a comungar consigo mesma, ele via a mãe
pálida em pé a seu lado, sentia os cabelos macios se enroscando em seus dedos,
até que o suor gelado lhe escorria pelo rosto e ele se levantava correndo da cama.
Você que já ouviu, no mesmo evangelho, que Deus é amor, e que Deus é um
fogo ardente, consegue entender como, para a alma mergulhada no mal, o amor
perfeito é a tortura mais perigosa, a sentença e o fim de todo o desespero?
“Maldito seja!”, Legree disse a si mesmo enquanto engolia a bebida; “De
onde ele tirou aquele cabelo?” E se parece tanto com… — arre! Achei que
tivesse esquecido aquilo. Que porcaria! Achei que tinha um jeito de esquecer as
coisa! Arre, que se exploda! Estou sozinho. Vou chamar Em. Ela me odeia,
aquela macaca! Não me importo, vou deixar ela no ponto!”.
Legree saiu até um grande saguão que dava para os degraus do que um dia
fora uma maravilhosa escadaria espiralada; mas a passagem estava suja e escura,
entulhada de caixas e restos indesejados. Os degraus, sem tapetes, pareciam se
espiralar para dentro da escuridão, em direção a um lugar desconhecido. O luar
pálido penetrava pela claraboia em cima da porta; o ar estava insalubre e frio,
como o de um túmulo.
Legree parou ao pé da escada e ouviu uma voz cantando. Parecia estranho e
fantasmagórico naquela velha casa sombria, talvez pelo estado já amedrontado
de seus nervos. “Que diabos! O que é isso?”.
Uma voz triste e selvagem canta um hino conhecido entre os escravos:
— Maldita seja essa garota! — disse Legree. — Vou esganá-la! Em! Em! —
ele gritou rispidamente, mas apenas um eco desdenhoso saindo das paredes lhe
respondeu. A doce voz continuou a cantar:
Legree parou. Teria vergonha de confessar, mas grandes gotas de suor lhe
molhavam a testa e seu coração angustiado e descompassado; estava cheio de
medo; pensou ter visto alguma coisa branca se levantando e reluzindo na
escuridão diante dele, e estremeceu ao pensar o que faria se a forma de sua mãe
morta aparecesse de repente à sua frente.
“Só sei de uma coisa”, ele disse a si mesmo ao voltar tropeçando para a sala
de estar e se sentar. “Depois disso, vou deixar aquele negro em paz! Por que fui
mexer naquele maldito papel? Acho que sou amaldiçoado, só pode ser! Desde
que mexi naquilo não paro de suar e tremer! Onde ele achou aquele cabelo? Não
pode ser o dela! Eu queimei ele, tenho certeza, queimei sim! Seria uma piada o
cabelo ressuscitar dos mortos!
Ah, Legree! Aquela mecha dourada era mesmo encantada! Cada cabelo
tinha em si um feitiço de terror e remorso por você, e foi usado por uma força
maior para impedir que suas mãos cruéis infligissem mais maldades sobre os
aflitos!
— Acordem, acordem e me façam companhia! — Legree disse pisando duro
e assoviando para os cachorros. Mas os animais, sonolentos, apenas abriram os
olhos para ele e os fecharam de novo. — Vou mandar Sambo e Quimbo virem
aqui pra cantar e dançar alguma daquelas danças do inferno, e me distrair desses
pensamento horroroso! — e, colocando o chapéu, foi até a varanda e tocou um
berrante, com o qual ele geralmente chamava os dois feitores de zibelina.
Legree, quando estava de bom humor, costumava receber essas duas
personalidades na sala de estar, e, depois de animá-los com uísque, se entretinha
fazendo-os cantar, dançar ou brigar, conforme lhe agradava.
Entre uma e duas da manhã, quando Cassy voltava de seus cuidados com o
pobre Tomás, ouviu o som selvagem de gritos, berros e cantorias vindos da sala
de estar, misturados ao latido dos cachorros e outros sintomas de um tumulto
generalizado.
Ela subiu os degraus da varanda e olhou para dentro. Legree e os dois
escravos, em estado de terrível embriaguez, cantavam, gritavam, jogavam
cadeiras e faziam todo tipo de caretas horrorosas e ridículas uns para os outros.
Ela colocou a mão pequena e delicada sobre a cortina e fixou o olhar para
eles; havia um mundo de desdém e amargura arrebatadora em seus olhos negros
ao fazê-lo. “Será que seria pecado livrar o mundo desses desgraçados?”,
perguntou a si mesma.
Cassy virou-se depressa e, dando a volta pela porta de trás, subiu os degraus
apressadamente e bateu à porta de Emmeline.
36
EMMELINE E CASSY
O grupo logo foi levado pela Sra. Smyth para a residência hospitaleira de um
bondoso missionário, cuja caridade cristã o colocara aqui como um pastor dos
rejeitados e ambulantes que sempre buscavam asilo naquelas paragens.
E quem poderia explicar as maravilhas daquele primeiro dia de liberdade? O
sentido de liberdade não é muito superior e mais refinado do que qualquer outro
dos nossos sentidos? Andar, falar e respirar, ir e vir sem ser seguido, e estar livre
do perigo! Quem poderia explicar as bênçãos de um homem livre ao repousar a
cabeça sobre o travesseiro, sob leis que lhe garantem os direitos dados por Deus
a todos os homens? Quanto é justo e valioso àquela mãe poder olhar o lindo
rosto de seu filho dormente, ainda mais querido pelas lembranças dos milhares
de perigos! Impossível dormir diante de tamanhas bênçãos! Esses dois não
tinham um palmo de terra, nem um teto para chamar de seu; tinham gastado tudo
até o último centavo. Não tinham nada além dos pássaros no céu, ou das flores
no campo, todavia, não conseguiam dormir de tanta felicidade. “Ah, vós que
tirais a liberdade de um homem, com quais palavras respondereis a Deus?”
38
A VITÓRIA
“Ora, ora. Então ele acha isso, é?”, disse Legree a si mesmo.
— Como odeio esses maldito hino metodista! Vai ver só, seu preto! — ele
bradou indo repentinamente para cima de Tomás e levantando o chichote. —
Como ousa estar em pé quando já deveria estar dormindo? Cala essa bocarra
preta e entre já!
— Sim, senhor — concordou Tomás, animado, ao levantar-se e entrar na
barraca.
Legree sentiu-se provocado além da conta pela evidente felicidade de Tomás
e, indo atrás dele, esmurrou-lhe a cabeça e os ombros.
— Aí está, seu cão! Vamos ver se vai se sentir tão bem depois disso!
Mas as pancadas foram sentidas apenas pelo homem exterior e não como
antes, no coração. Tomás permaneceu absolutamente submisso e, ainda assim,
Legree não podia esconder de si mesmo que seu poder sobre o escravo já não
mais existia. Assim, quando Tomás desapareceu para dentro da cabana, e ele, de
repente, deu meia volta no cavalo, passaram pela sua cabeça aqueles flashes que
geralmente iluminam a consciência da alma cruel e sombria. Legree
compreendia muito bem que era DEUS que estava entre ele e sua vítima, e o
blasfemou. Aquele homem subsmisso e silencioso, a quem nem surras, nem
ameaças, nem chibatadas, nem qualquer tipo de crueldade poderia perturbar,
acordou uma voz dentro dele, como a de um velho mestre que acorda dentro de
uma alma demoníaca, dizendo: “Que queres conosco, Jesus de Nazaré? Vieste
aqui para nos atormentar antes do tempo?”.
A alma de Tomás se derramava em compaixão e simpatia pelos pobres
infelizes que o rodeavam. Parecia-lhe que sua vida de sofrimento terminara e,
diante daquele estranho tesouro de paz e felicidade que recebera do céu, desejou
poder fazer algo para aliviar a desgraça dos companheiros. Sim, verdade seja
dita, as oportunidades eram escassas; mas, nas idas e vindas dos campos e
durante as horas de trabalho, surgiam oportunidades de estender a mão aos
exaustos, aflitos e desanimados. A princípio, as criaturas aniquiladas e
brutalizadas mal podiam compreender aquilo, mas ao continuar semana após
semana, mês após mês, aquelas ações começaram a tocar cordas há muito tempo
silenciosas naqueles corações petrificados. Gradual e imperceptivelmente aquele
homem paciente, estranho e quieto, que estava sempre pronto a suportar o peso
de todos e não pedia ajuda a ninguém, que apoiava a todos e sempre vinha por
último, tirava do pouco que tinha para dividir com os necessitados; o homem
que, nas noites frias, oferecia seu cobertor puído para dar mais conforto a
algumas mulheres trêmulas pela doença, e que enchia os cestos dos mais fracos
no campo, correndo o risco de não alcançar sua própria cota, e o qual, embora
perseguido pela incansável crueldade de seu tirano comum, nunca se juntou ao
coro para rebelar-se ou praguejar; esse homem finalmente passou a ter um
estranho poder sobre eles, e quando a alta estação de colheita passou, e de novo
puderam usar seus domingos a seu bel prazer, muitos se reuniam ao redor dele
para ouvi-lo falar de Jesus. Eles se reuniam, alegremente, para ouvir, rezar e
cantar juntos em algum lugar, mas Legree não permitia e mais de uma vez
impediu tais tentativas com ameças e punições brutais, de forma que as palavras
abençoadas circulavam de boca em boca. E quem poderia explicar a felicidade
simples com que alguns desses pobres execrados, para quem a vida era uma
triste jornada ao sombrio desconhecido, ouviam falar de um Redentor
misericordioso e de uma casa sagrada? Dizem os missionários que, de todas as
raças do mundo, nenhuma jamais recebeu o Evangelho com mais amabilidade do
que os africanos. O princípio de confiança e de fé inquestionável, sua fundação,
é um elemento mais natural nessa raça do que em qualquer outra, e várias vezes
notou-se entre eles que a semente da verdade, quando plantada no coração dos
mais ignorantes, gera frutos cuja abundância pode envergonhar até mesmo
aqueles da mais alta classe e cultura.
A pobre mulata, cuja boa fé fora absolutamente destruída e sufocada pela
avalanche de crueldade e maldade que se colocou sobre ela, sentia a alma se
alegrar pelos hinos e passagens da Escritura Sagrada que esse pobre missionário
sussurrava em seus ouvidos de vez em quando, nas idas e vindas do trabalho; e
até mesmo a mente quase insana e transtornada de Cassy se tranquilizava e se
acalmava com as influências simples e discretas de Tomás.
Tomada pela loucura e desespero das agonias excruciantes da vida, Cassy
geralmente pensava, em sua alma, em um momento de retribuição, quando suas
próprias mãos infligiriam a seu opressor toda a injustiça e crueldade da qual fora
testemunha ou as quais ela própria tinha sofrido.
Uma noite, depois de todos estarem dormindo na cabana de Tomás, ele
acordou sobressaltado ao ver o rosto dela no buraco entre os troncos que serviam
como janela. Ela fez um gesto silencioso para que ele fosse para fora.
Tomás saiu pela porta. Era entre uma e duas horas da manhã, luar aberto,
calmo e silencioso. Tomás notou, quando a luz da lua iluminou os grandes olhos
negros de Cassy, que havia um brilho selvagem e particular neles, diferente do
habitual desespero de sempre.
— Venha aqui, Pai Tomás — ela disse, colocando a mão delicada no pulso
dele e puxando-o para a frente com a força de uma mão de aço. — Venha aqui,
tenho novidades.
— O que é, Srta. Cassy? — perguntou Tomás, ansioso.
— Tomás, gostaria de ser livre?
— Eu serei, senhorita, quando Deus quiser — respondeu Tomás.
— Ah, mas poderia ser livre esta noite — refutou Cassy com súbita
animação. — Venha!
Tomás hesitou.
— Venha! — ela disse, em um sussurro, fixando os olhos negros nele. —
Venha comigo! Ele está dormindo como uma pedra! Fiz uma mistura na bebida
para deixá-lo nesse estado. Gostaria de ter mais, assim não precisaria da sua
ajuda. Mas venha, a porta de trás está destrancada; tem um machado lá, eu
mesma o coloquei ali; a porta dele está aberta; eu lhe mostrarei o caminho. Faria
isso sozinha, mas meus braços estão tão fracos. Venha comigo!
— Por nada nesse mundo, senhorita! — Tomás retorquiu com firmeza,
parando e segurando-a enquanto ela o puxava para a frente.
— Mas pense em todas essas pobres criaturas — disse Cassy. — Poderemos
libertar a todos e ir para algum lugar nos pântanos, e encontrar uma ilha e viver
sozinhos; já ouvi coisas desse tipo. Qualquer vida é melhor do que essa!
— Não! — Tomás disse rispidamente. — Nenhum bem vem do mal. Preferia
cortar minha mão direita!
— Então eu mesma o farei! — Cassy falou, virando-se.
— Por favor, Srta. Cassy! — Tomás pediu se colocando na frente dela. —
Pelo bom Deus que morreu por você, não venda sua boa alma ao diabo dessa
maneira! Nada de bom virá disso! O Senhor não nos pede vingança! Devemos
padecer e esperar!
— Esperar? — indagou Cassy. — E eu já não esperei? Esperei até minha
cabeça ficar tonta e meu coração doente? E por que ele me fez sofrer? Por que
fez sofrer a centenas de criaturas miseráveis? E ele não está lhe arrancando a
carne e lhe tirando o sangue? Recebi o chamado; eles me chamam! A hora de
Legree chegou e eu hei de ter o sangue dele!
— Não, não, não! — insistiu Tomás, segurando as mãos delicadas da
mulher, fechadas com violência espasmódica. — Não, pobre criatura de alma
perdida, não deve fazer isso! Nosso amado e abençoado Deus nunca derramou
sangue senão o d’Ele, e fez isso por nós, quando fomos seus algoz. Senhor, nos
ajuda a seguir seus passos e amar a nossos inimigos.
— Amar? — bradou Cassy com um olhar furioso. — Amar tais algozes?
Isso não é coisa desse mundo!
— Não, senhorita, não é! — Tomás concordou levantando os olhos. — Mas
Ele nos dá esse amor, e essa é a vitória. Quando a gente puder amar e rezar por
todos e apesar de tudo, a batalha chegará ao fim, e a vitória vem, glória a Deus!
— e com olhos marejados e voz embargada, o negro olhou para o céu.
E isso, ó, África! Última das nações, chamada à coroa de espinhos, à tortura,
ao suor sangrento, à cruz da agonia, esta vai ser sua vitória! Através disso
reinará com Cristo quando o reino d’Ele se instalar na Terra.
O fervor profundo dos sentimentos de Tomás, a doçura de sua voz, suas
lágrimas caíram como orvalho sobre o espírito transtornado e selvagem da pobre
mulher. Uma candura lhe encobriu o fogo insano dos olhos; ela abaixou a
cabeça, e Tomás pôde sentir os músculos das mãos dela relaxando quando ela
disse:
— Não lhe disse que espíritos malignos me perseguem? Ah, Pai Tomás, não
consigo rezar; gostaria de conseguir. Nunca mais rezei desde que meus filhos
foram vendidos! Deve ter razão no que está falando, sei que tem; mas quando
tento rezar, só consigo odiar e praguejar. Não consigo rezar!
— Pobre mulher! — disse Tomás, misericordioso. — Satanás quer tomar
posse de você e quebrar você no meio feito um galho de trigo. Rezo a Deus por
você. Ah, Srta. Cassy, recorra ao bom Jesus. Ele veio para curar os coração aflito
e confortar quem sofre.
Cassy assentiu em silêncio enquanto grandes lágrimas pesadas escorriam de
seus olhos tristes.
— Senhorita Cassy — Tomás falou hesitante, depois de observá-la em
silêncio por um momento —, se pudesse sair daqui, se isso fosse possível, eu
falaria pra você e Emmeline irem embora; quer dizer, se pudesse fazer isso sem
derramamento de sangue, não de outra forma.
— E você viria conosco, Pai Tomás?
— Não — respondeu Tomás. — Houve um tempo em que eu iria, mas o
Senhor me deu uma missão entre essas pobre criatura, e ficarei com eles e vou
carregar minha cruz até o fim. É diferente para você; é uma prisão, é mais do que
pode suportar; assim, se puder, é melhor partir.
— Não conheço outro caminho senão o do túmulo — declarou Cassy. —
Não há animal ou pássaro que não seja capaz de encontrar um lar em algum
lugar; até mesmo as cobras e os crocodilos têm um lugar para se deitar e ficar em
paz; mas não há lugar para nós. Lá nos pântanos escuros os cães nos caçarão e
nos encontrarão. Tudo e todos estão contra nós; até mesmo as próprias bestas
estão contra nós. Para onde iremos?
Tomás ficou em silêncio e finalmente disse:
— Ele, que salvou Davi na cova dos leões, que salvou as crianças da
fornalha ardente; Ele que andou sobre a água e ordenou aos ventos que parassem
de soprar; Ele está vivo. E tenho fé que vai te guiar. Tente fugir e eu vou rezar
por você, com toda a força de meu coração!
Que estranha lei da mente é essa que, de repente, traz nova luz a uma ideia
há muito descartada, como uma pedra inútil atirada ao poço que depois surge
como um diamante?
Cassy sempre elocubrara, durante horas, todos os possíveis e prováveis
esquemas de fuga, mas descartara a todos, achando-os inúteis e impraticáveis.
Mas neste momento um plano passou por sua cabeça, tão simples e factível em
todos os seus detalhes, que retomou as esperanças.
— Pai Tomás, eu tentarei fugir! — a mulher declarou repentinamente.
— Amém! Deus vai te guiar! — Tomás disse.
39
O ESTRATAGEMA
“Mas o caminho dos ímpios é como densas trevas; nem sequer sabem
em quem tropeçam.”1
O sótão da casa ocupada por Legree, assim como a maioria dos sótãos, era
um espaço enorme, desolado, empoeirado, repleto de teias de aranhas e entulhos.
A rica família que habitara a casa em seus dias de esplendor importara uma
mobília maravilhosa, parte da qual levaram consigo, enquanto outra fora deixada
em cômodos mofados e desocupados, ou guardados neste lugar. Uma ou duas
caixas imensas, nas quais a mobília fora trazida, estavam encostadas nas paredes
do sótão. Havia uma pequena janela que permitia a entrada de um pouco de luz,
atráves de seus painés desbotados, sobre as cadeiras de espaldar alto e mesas
sujas, que já viram dias melhores. No todo, era um espaço estranho e
fantasmagórico, no entanto, por mais assustador que fosse, entre os negros
supersticiosos havia lendas que aumentavam ainda mais seus horrores. Poucos
anos antes, uma negra que desagradara Legree fora confinada ali durante
semanas. O que aconteceu no local não ousamos dizer; os negros costumavam
cochichar sombriamente entre si; sabe-se que um dia o corpo da infeliz criatura
foi tirado de lá e enterrado e, depois disso, dizia-se que ameaças e blasfêmias, e
o som violento de socos, costumavam soar pelo velho sótão, misturados a gritos
e gemidos de desespero. Certa vez, quando Legree escutou esse tipo de
conversa, teve um ataque de nervos, e jurou que a próxima pessoa que contasse
histórias sobre o sótão teria oportunidade de conhecer o que havia lá, pois ele a
acorrentaria lá por uma semana. Essa ameaça foi o suficiente para cessar a
conversa, embora, de forma alguma, não tenha tirado o crédito da história.
Aos poucos, a escadaria que levava ao sótão, e até mesmo o corredor que
dava para a escadaria, passou a ser evitado por todos na casa, pois todos tinham
medo de falar do assunto, e, assim, a lenda foi gradualmente caindo no
esquecimento. Ocorreu subitamente a Cassy fazer uso dessa supersticiosidade
exacerbada, tão forte em Legree, para o propósito de sua libertação e de sua
companheira sofredora.
O quarto de dormir de Cassy ficava bem embaixo do sótão. Um dia, sem
consultar Legree, resolveu por conta própria e com alguma ostentação, mudar
toda a mobília e todos os aparatos do quarto para outro mais distante. Os criados,
chamados para realizarem a movimentação, corriam de um lado para o outro,
animados e confusos, quando Legree voltou de uma cavalgada.
— Olá, Cassy! — disse Legree. — O que está acontecendo agora?
— Nada. Achei melhor me mudar para outro quarto — Cassy disse com
indiferença.
— E posso saber por quê? — perguntou Legree
— Resolvi mudar — respondeu Cassy.
— Pelo inferno que é só isso! Por quê?
— Porque gostaria de poder dormir, de vez em quando.
— Dormir? Bem, e o que impede você de dormir?
— Até contaria, se quisesse ouvir — Cassy respondeu secamente.
— Põe pra fora, sua ordinária! — ordenou Legree.
— Ah, nada. Imagino que não lhe incomodaria! Só gemidos, e pessoas se
arrastando, e rolando pelo chão do sótão, metade da noite, da meia-noite até de
manhã!
— Gente no sótão! — refutou Legree, incomodado, porém forçando um
sorriso. — E quem é, Cassy?
Cassy ergueu seus olhos negros ríspidos e olhou para o rosto de Legree com
uma expressão que lhe gelou os ossos, ao dizer:
— Sou eu quem pergunta quem são elas, Simon. Gostaria que você me
dissesse. Mas você não saberia, imagino!
Praguejando, Legree desferiu um golpe de chicote, mas Cassy desviou para
um lado, passou pela porta e disse olhando para trás:
— Se dormisse naquele quarto entenderia do que estou falando. Talvez
devesse experimentar! — e fechou imediatamente a porta.
Legree vociferou, praguejou e ameaçou arrombar a porta, mas
aparentemente pensou melhor e caminhou incomodado até a sala. Cassy
percebeu que tinha tocado no ponto certo e, a partir daquele momento, com
particular diligência, nunca parou de operar as influências que começara.
Até a viagem mais longa um dia chega a termo; a noite mais sombria
terminará ao amanhecer. Um lapso de momento inexorável e eterno sempre leva
o mal para a noite eterna, e a noite dos justos para um dia eterno. Caminhamos
até aqui com nosso humilde amigo, no vale da escravidão; primeiramente por
campos de flores de doçura e indulgências, depois por separações sofridas de
todas as coisas caras a um homem. Mais uma vez, esperamos com ele por uma
ilha ensolarada, onde mãos generosas lhe cobrissem os grilhões com flores; e,
por último, o acompanhamos quando o último raio de esperança terrena escapou
pela noite; e neste momento de negrume da escuridão terrena, o firmamento do
desconhecido se iluminou com estrelas de novo lustro e significância.
A estrela da manhã agora paira sobre os cumes das montanhas, e ventanias e
brisas, extraterrenas, anunciam que os portões do dia estão se abrindo.
A fuga de Cassy e Emmeline irritou ao máximo o já mal humorado Legree, e
sua fúria, como já era esperado, recaiu sobre a cabeça indefesa de Tomás.
Quando ele anunciou apressadamente o problema que tinha nas mãos, houve um
brilho súbito nos olhos de Tomás, uma rápida levantada de mãos que não
escapou aos olhos do amo. Ele viu que Tomás não se juntara ao grupo de
perseguidores. Pensou em obrigá-lo a fazê-lo, todavia, tendo experiência da
inflexibilidade do escravo quando ordenado a tomar parte de qualquer ação
inumana, Legree não pararia, nessas circunstâncias de pressa, para entrar em
conflito com ele.
Tomás, dessa forma, ficou para trás, com alguns outros que aprenderam a
rezar com ele, e ofereceu preces às fugitivas.
Quando Legree retornou, confuso e decepcionado, todo o ódio que há muito
nutria na alma pelo escravo começou a se transformar em algo mortal e
desesperador. E aquele homem não o tinha enfrentado, com firmeza, força e
resistência, desde o dia em que o comprara? Não havia nele um espírito o qual,
por mais silencioso que fosse, queimava dentro dele como o fogo da perdição?
“Eu odeio ele! — Legree gritou naquela noite enquanto se sentava à cama.
— Eu odeio ele! E ele não é MEU? Não posso fazer o que bem quiser com ele? E
quero saber quem é que vai me impedir — e Legree fechou os punhos e
balançou-os, como se tivesse algo nas mãos que pudesse esmagar em pedaços.
No entanto, Tomás era um escravo fiel e valioso e, embora Legree o odiasse
ainda mais por isso, a consideração era, de algum modo, um empecilho para ele.
Na manhã seguinte, resolveu não dizer nada ainda; decidiu juntar um grupo
com homens das fazendas vizinhas, com cães e armas, para cercar o pântano e
fazer uma caçada sistemática. Se tivesse sucesso, melhor; se não, traria Tomás
diante de si —— e os dentes de Legree semicerraram e o sangue ferveu — e
então o subjugaria, ou — fez uma horrenda promessa para si mesmo, à qual sua
alma assentiu.
Dizem que o interesse de um mestre é segurança suficiente para o escravo.
Na fúria do desejo insano de um homem, ele é capaz, de boa vontade e olhos
abertos, de vender sua alma ao diabo para alcançar seus objetivos; assim, por
que haveria de ser cuidadoso com o corpo de seu vizinho?
— Bem — disse Cassy no dia seguinte, do sótão, ao fazer um
reconhecimento de área pelo buraco da parede —, a caçada começou novamente
hoje!
Três ou quatro homens a cavalo saltavam no espaço em frente à casa, e um
ou dois cachorros desconhecidos estavam brigando com os negros que os
mantinham nas coleiras, rosnando e latindo uns para os outros.
Dois dos homens eram feitores de fazendas nas redondezas, ao passo que
outros eram alguns dos conhecidos de Legree da taverna de uma cidade vizinha,
que vieram pelo simples interesse na atividade. Nunca poderia se pensar em um
grupo pior. Em rodadas, Legree servia conhaque para todos, inclusive para os
escravos, que vieram de várias plantações para aquele serviço; era necessário, o
máximo possível, transformar todos os serviços desse tipo entre os negros em
uma grande festa.
Cassy pressionou o ouvido no buraco da parede e, à medida que a brisa da
manhã soprava diretamente em direção à casa, ela conseguia ouvir boa parte da
conversa. Uma expressão de grave astúcia e profunda gravidade lhe cobriu o
rosto ao ouvi-los dividindo as áreas de busca, discutindo os méritos dos
cachorros, dando ordens para atirar e falando sobre o tratamento a ser dado a
cada uma, caso fossem capturadas.
Cassy recuou e, juntando as mãos, levantou os olhos e disse:
— Ah, Deus Todo-Poderoso! Somos todos pecadores, mas o que fizemos,
mais do que o restante do mundo, para sermos tratadas assim?
Havia uma terrível tristeza em sua voz e em seu rosto ao dizer essas
palavras.
— Se não fosse por você, minha filha — ela disse olhando para Emmeline.
— Eu iria até lá e agradeceria a qualquer um deles que quisesse atirar em mim. E
para que há de me servir a liberdade? Há de me devolver meus filhos ou fazer de
mim o que eu era antes?
Emmeline, em sua simplicidade infantil, tinha um pouco de medo dos
humores negros de Cassy. Ela parecia perplexa, mas não fez nenhum
comentário. Apenas lhe tomou a mão, com um movimento gentil e carinhoso.
— Não faça isso! — Cassy pediu, tentando se desvencilhar dela. — Acabará
me fazendo amá-la e prometi nunca mais amar de novo!
— Pobre Cassy! — disse Emmeline. — Não fique assim! Se Deus nos
conceder a liberdade, talvez Ele traga sua filha de volta; de qualquer forma, eu
serei como uma filha para você. Sei que nunca mais verei minha pobre mãe
novamente. Eu a amarei, Cassy, quer você me ame ou não!
O espírito amoroso e infantil venceu. Cassy sentou-se ao lado dela, colocou
o braço ao redor do pescoço da garota, acariciou-lhe o cabelo castanho e macio,
e Emmeline então se maravilhou com a beleza dos olhos magnificentes da
mulher, agora suavizados pelas lágrimas.
— Ah, Em! — Cassy falou. — Já passei fome e sede pelos meus filhos, e
meus olhos anseiam por vê-los novamente! Aqui! Aqui! — ela disse batendo no
peito. — Está tudo desolado, é tudo um grande vazio! Se Deus me devolvesse
meus filhos, daí sim seria capaz de rezar.
— Deve confiar Nele, Cassy — disse Emmeline. — Ele é nosso Pai!
— A fúria dele caiu sobre nós — Cassy disse. — Ele nos abandonou.
— Não, Cassy! Deus há de ser bom para nós! Confiemos Nele — falou
Emmeline. — Eu nunca perdi a esperança.
George Harris”
George, junto com sua esposa, filhos, irmã e mãe, embarcou para a África
algumas semanas depois. Se não estivermos enganados, o mundo um dia ainda
falará dele.
De nossos outros personagens não temos nada em particular para narrar,
exceto algumas palavras relacionadas à Srta. Ofélia e Topsy, e um capítulo de
despedida, que dedicaremos a George Shelby.
A Srta. Ofélia voltou para Vermont e levou Topsy consigo, para grande
supresa daquele rígido corpo deliberativo, cujos cidadãos da Nova Inglaterra
reconhecem sob o termo de “Nosso povo”. O “Nosso povo”, a princípio, achou a
garota uma adição estranha e desnecessária àquele ambiente doméstico bem
organizado; no entanto, tais foram os eficientes esforços da Srta. Ofélia, em seu
desafio consciente quando às suas obrigações para com sua élève,1 que a criança
rapidamente alcançou as graças e a amizade de todos os familiares e vizinhos.
Ao chegar à idade adulta, ela foi, a seu próprio pedido, batizada, e se tornou um
membro da igreja cristã local; e demonstrou tanta inteligência, ânimo, vontade e
desejo em fazer o bem ao mundo que foi finalmente recomendada e aprovada
como missionária em um dos postos na África; e tivemos notícias de que, a
mesma animação e engenhosidade que, quando criança, a faziam tão versátil e
incansável em seu crescimento, são agora utilizados para lecionar às crianças de
seu próprio país.
CAPÍTULO 2
1 descaroçador de algodão de Whitney: uma máquina com essa descrição foi
realmente inventada por um jovem negro em Kentucky. (Nota da autora)
CAPÍTULO 7
1 ferrovia subterrânea: trata-se da Underground Railroad, um sistema de
esconderijos e passagens subterrâneas criado por negros e brancos
abolicionistas a fim de auxiliar a fuga de escravos fugitivos para o Canadá.
CAPÍTULO 8
1 sua natureza canina: referência à obra The Pilgrim’s Progress [O progresso do
peregrino] (1678), de John Bunyan, uma alegoria para a busca espiritual
protestante.
CAPÍTULO 12
1 recusa ser consolada: Jeremias 31:15-16.
CAPÍTULO 14
1 uma rosa com suas pétalas ainda por abrir: trecho de Don Juan 14:43 (1818-
1824), do poeta inglês Lord Byron.
CAPÍTULO 16
1 Prefiro ensinar a vinte outras pessoas como fazer o bem: trecho da peça O
mercador de Veneza (1:2:17-18).
CAPÍTULO 23
1 Todos os homens nascem livres e iguais: trecho da Declaração da
Independência do Estados Unidos.
2 canaille: palavra francesa que significa, literalmente, “matilha de cães”. Usado
em língua inglesa no séc. xix como sinônimo de turba, populacho.
3 França: referência à Revolução Francesa (1789), cujo início foi desencadeado
por uma revolta popular.
4 Santo Domingo: referência às sucessivas rebeliões de escravos ocorridas no
Haiti, a ex-colônia francesa Saint-Domingue, a partir de 1791 (como
consequências da Revolução Francesa). Em 1804, o ex-escravo Jean-Jacques
Dessalines proclamou-se imperador, massacrando todos os brancos da ilha. O
episódio passou a ser usado como argumento contra o “aspecto bárbaro” das
populações negras.
5 Os nobres da época de Luís xvi: neste parágrafo são mencionados três chefes
de Estado derrubados por seus respectivos povos. Luís xvi, rei da França, foi
para a guilhotina durante a Revolução Francesa. Em 1848, o imperador
austríaco enfrentava uma série de rebeliões. No Vaticano, o papa Pio ix foi
afastado por nacionalistas italianos.
6 Dies declarabit: expressão latina que significa “o tempo dirá”.
7 sans culotte: membros do partido republicano radical durante a Revolução
Francesa.
CAPÍTULO 26
1 Não chores por aqueles cujo véu da morte: “Weep Not for Those,” um poema
de Thomas Moore (1779-1852).
2 atenção, o noivo se aproxima: Mateus 25:1-12. Alusão a parábola sobre a
vinda de Cristo.
CAPÍTULO 28
1 Dies Irae: hino em latim sobre o dia do juízo final, parte da Missa de Réquiem.
2 Recordare Jesu pie: “Lembra-te, Jesus piedoso, que por mim enfrentastes o
mal e a traição; Não me percas nessa estrada tenebrosa; Procurando-me, teus
pés ficaram exaustos; Por mim morreste na cruz; Que teu sacrifício não seja
em vão.” (Nota da autora)
CAPÍTULO 30
1 Tártaro “informis, ingens, cui lumen ademptum”: na mitologia grega, o
Tártaro é o mais profundo dos nove mundos inferiores, prisão dos titãs
derrotados e local de tortura para a alma dos mortos. Stowe cita verso da
Eneida de Virgílio: “informe, ingente, e sem olhos” (Livro iii, 682).
CAPÍTULO 32
1 cheios de habitações de crueldade: Salmos 74:20.
CAPÍTULO 34
1 paillasse: espécie de esteira ou colchão fino, em francês.
CAPÍTULO 35
1 A peregrinação de Childe Harold: poema do escritor inglês Lord Byron.
CAPÍTULO 37
1 Curran: John Philpot Curran (1750-1817), orador e juiz irlandês que trabalhou
pela emancipação católica. A citação é um trecho da defesa de James
Somerset, um escravo jamaicano que, chegado à Inglaterra, reivindicou sua
liberdade. A corte decidiu a favor de Somerset (1772).
CAPÍTULO 38
1 Graças a Deus que nos deu a vitória: 1 Coríntios 15:55-57.
CAPÍTULO 39
1 nem sequer sabem em quem tropeçam: Provérbios 4:19.
CAPÍTULO 42
1 Os mortos, de lençol branco: trecho da peça Hamlet (1:1:115).
2 pneumatologia: Teoria acerca dos espíritos.
CAPÍTULO 43
1 élève: estudante em francês.
CAPÍTULO 45
1 uma resposta generalizada: aqui Stowe responde às cartas de leitores
recebidas durante o ano em que A cabana do Pai Tomás foi publicada em
folhetim, entre 1851 e 1852, antes da publicação em formato de romance.
2 como lhe foram descritas: após críticas e questionamentos com relação à
veracidade das histórias narradas, provenientes especialmente de leitores
sulistas, Stowe escreveu e publicou A Key to Uncle Tom’s Cabin [Uma chave
para A cabana do Pai Tomás], em que relatou os incidentes verídicos em que se
baseou para a escrita do romance.
3 Professor C.E. Stowe: marido de Harriet Beecher Stowe, Calvin Ellis Stowe.
4 Pois este dia queimará feito uma fornalha: adaptado de Malaquias 4:1,
Jeremias 22:3 e Salmos 72:4.
Este livro foi composto em
Crimson Roman no corpo 10.5/15
e impresso em papel Chambril Avena 70g/m2 pela
RR Donnelley.