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É difícil, pois, a alguém que segue linhas alheias não se perder em algum
lugar; árduo, que aquilo que foi bem dito numa língua estrangeira conserve a
mesma elegância na tradução. (1)
Se traduzo palavra por palavra, soa absurdo; se por necessidade eu mudar
algo na ordem ou no discurso, parecerei ter-me afastado da tarefa do
tradutor. (1)
[...] também atestam a dificuldade da tarefa as escrituras dos livros divinos
que foram produzidas pelos Setenta Tradutores, as quais não preservam o
mesmo sabor na língua grega. Por este motivo Áquila, Símaco e Teodócio,
incitados, criaram de uma mesma obra obras quase distintas: um cuidando de
traduzir palavra por palavra, outro de seguir antes o sentido, o terceiro de
não discrepar muito dos antigos. (2)
[...] à dificuldade comum que pretextamos em qualquer tradução,
acresce-nos [nas Crônicas de Eusébio Pânfilo] algo próprio, que a história é
complexa, contendo nomes bárbaros, realidades desconhecidas dos latinos,
números inexplicáveis, sinais gráficos interpostos entre assuntos e
igualmente entre números, de tal modo que é quase mais difícil aprender a
maneira de ler, que chegar ao entendimento da leitura. (3)
[...] eu me servi em parte tanto da tarefa do tradutor como do escritor, porque
reproduzi muito fielmente as coisas gregas, e algumas que me pareciam
truncadas, acrescentei-as de bom grado no tocante à história romana. (4)
Mauri Furlan
maurizius@gmail.com
Prof. dr., Universidade Federal de Santa Catarina
Fonte: Migne, Jacques-Paul.
Patrologia Latina Tomus XXVII – Eusebius Hieronymus, 0033A/0040A
Eusebius Hieronymus Vincentio et Gallieno Eusébio Jerônimo saúda seus amigos Vicên-
suis salutem. cio e Galieno.
1 Vetus iste disertorum mos fuit, ut exercen- 1 Um antigo costume dos dissertadores, co-
di ingenii causa Graecos libros Latino ser- mo forma de exercitar seu engenho, era ex-
mone absolverent, et quod plus in se diffi- plicarem os livros gregos em língua latina e
cultatis habet, poemata illustrium virorum, –o que mais traz em si de dificuldade, acres-
addita metri necessitate, transferrent. Unde cida pela necessidade de metro– traduzirem
et noster Tullius Platonis integros libros ad os poemas de homens ilustres. De onde tam-
verbum interpretatus est: et cum Aratum jam bém nosso Cícero verteu palavra por palavra
Romanum hexametris versibus edidisset, in livros inteiros de Platão1; e quando já tinha
Xenophontis Oeconomico lusit. In quo ope- publicado em versos hexâmetros um Arato2
re ita saepe aureum illud flumen eloquentiae romano, divertiu-se com o Econômico de
scabris quibusdam et turbulentis obicibus re- Xenofonte. Nesta obra aquele rio dourado da
tardatur, ut qui interpretata nesciunt, a Cice- eloquência é tão frequentemente detido por
rone dicta non credant. certos obstáculos escabrosos e turbulentos,
que os que não sabem ser uma tradução, não
acreditam que foi escrito por Cícero.
Difficile est enim, alienas lineas insequen- É difícil, pois, a alguém que segue linhas
tem non alicubi excidere; arduum, ut quae in alheias não se perder em algum lugar; ár-
aliena lingua bene dicta sunt, eumdem deco- duo, que aquilo que foi bem dito numa lín-
rem in translatione conservent. Significatum gua estrangeira conserve a mesma elegância
est aliquid unius verbi proprietate, non ha- na tradução. Algo foi significado com pro-
beo meum quod id efferam; et dum quaero priedade por uma única palavra, mas não te-
implere sententiam, longo ambitu vix brevia nho uma minha com que a expresse; e, en-
spatia consumo. Accedunt hyperbatorum an- quanto busco completar um pensamento,
fractus, dissimilitudines casuum, varietates necessito um longo período para uma breve
figurarum; ipsum postremo suum, et, ut ita extensão. Acontecem perífrases de hipérba-
dicam, vernaculum linguae genus. Si ad ver- tos, dissimilitudes de casos, diversidades de
bum interpretor, absurde resonat; si ob ne- figuras; por fim, seu modo próprio e, como
cessitatem aliquid in ordine, vel in sermone direi, vernáculo da língua. Se traduzo pala-
mutavero, ab interpretis videbor officio re- vra por palavra, soa absurdo; se por necessi-
cessisse. dade eu mudar algo na ordem ou no discur-
so, parecerei ter-me afastado da tarefa do
tradutor.
2 Itaque, mi Vincenti charissime, et tu Gal- 2 Assim, meu Vicêncio caríssimo, e tu, Ga-
liene, pars animae meae, obsecro, ut quic- lieno, parte de minha alma, rogo que consi-
quid hoc tumultuarii operis est, amicorum, dereis ler com espírito de amigos, não de
1
Cícero traduziu dois diálogos de Platão: Timeo e Protagora.
2
Arato de Solos (310-245 a.C.), médico, gramático, filósofo e poeta grego, autor do famoso poema
Phaenomena (“Aparências”), escrito em hexâmetros, que combina conhecimento astronômico, mitologia
antiga, filosofia estóica e história. A tradução latina de Cícero, Aratea, também em hexâmetros, é
considerada a obra de maior sucesso do Cícero poeta.
non judicum animo relegatis: prae- sertim juízes, tudo o que seja próprio de uma obra
cum et notario, ut scitis, volocis- sime dicta- apressada, sobremodo porque ditei muito ra-
verim, et difficultatem rei etiam divinorum pidamente a meu secretário, como sabeis, e
voluminum instrumenta testentur, quae a também atestam a dificuldade da tarefa as
LXX Interpretibus edita, non eumdem sapo- escrituras dos livros divinos que foram pro-
rem in Graeco sermone custodiunt. Quam- duzidas pelos Setenta Tradutores, as quais
obrem Aquila et Symmachus et Theodotion não preservam o mesmo sabor na língua gre-
incitati, diversum pene opus in eodem opere ga. Por este motivo Áquila3, Símaco4 e Teo-
prodiderunt: alio nitente verbum de verbo dócio5, incitados, criaram de uma mesma
exprimere, alio sensum potius sequi, tertio obra obras quase distintas: um cuidando de
non multum a veteribus discrepante. Quinta traduzir palavra por palavra, outro de seguir
autem et sexta et septima editio, licet quibus antes o sentido, o terceiro de não discrepar
censeantur auctoribus, ignoretur: tamen ita muito dos antigos. Quanto à Quinta, Sexta e
probabilem sui diversitatem tenent, ut aucto- Sétima Edições, ainda que se possa supor os
ritatem sine nominibus meruerint. autores, não se os conhece; contudo, apre-
sentam tão manifesta diversidade entre si, que
mereceram autoridade sem os nomes deles.
Inde adeo venit, ut sacrae litterae minus E disso advém que até agora as Sagradas Es-
comptae, et dure sonantes videantur, quod crituras, tendo sido menos adornadas, pare-
diserti homines interpretatas eas de Hebra- çam também soar duras, porque os ho-mens
eo nescientes, dum superficiem, non medul- eloquentes, ignorando-as terem sido traduzi-
lam inspiciunt, ante quasi vestem orationis das do hebraico, enquanto observam a su-
sordidam perhorrescant, quam pulchrum in- perfície e não a essência, horrorizam-se co-
trinsecus rerum corpus inveniant. mo que da veste suja do discurso, antes que
encontrem o belo corpo do conteúdo intrín-
seco.
Denique quid Psalterio canorius? quod in Por fim, o que há de mais sonoro que o Sal-
morem nostri Flacci, et Graeci Pindari, nunc tério?, que, ao modo de nosso Horácio e do
iambo currit, nunc alcaico personat, nunc grego Píndaro, ora acorre a um iambo, ora
Sapphico tumet, nunc semipede ingreditur. ressoa com um alcaico, ora eleva-se com um
Quid Deuteronomii et Isaiae Cantico pul- sáfico, ora entra com um semi-pé. O que de
chrius? quid Salomone gravius? quid perfec- mais belo que os Cânticos do Deuteronômio
tius Job? Quae omnia hexametris et penta- e de Isaías? O que de mais solene que Salo-
metris versibus, ut Josephus et Origenes mão? O que de mais perfeito que Jó? Todos
scribunt, apud suos composita decurrunt. estes, como o escrevem Josefo e Orígenes,
Haec cum Graeca legimus, aliud quiddam seguem os compostos entre os hebreus em
sonant; cum Latine, penitus non cohaerent. versos hexâmetros e pentâmetros. Quando
os lemos em grego, soam algo distinto;
3
Áquila de Sinope († ca. 135), traduz em ca. 130 as Sagradas Escrituras do original hebraico ao grego, de
modo literal. Sua tradução participará da Héxapla (ca. 240) de Orígenes.
4
Símaco, o Ebionita (final do séc. II) foi autor de uma das versões gregas do Antigo Testamento, incluída
posteriormente na Héxapla de Orígenes. Fragmentos de sua tradução que nos chegaram revelam pureza e
elegância idiomática grega.
5
Teodócio († ca. 200), erudito judeu de cultura grega, traduz em ca. 150 a Bíblia hebraica ao grego. Os
estudiosos divergem sobre ter ele trabalhado revisando a Septuaginta (LXX) ou tendo-se baseado em
manuscritos hebraicos ora perdidos. Junto com as versões de Áquila e de Símaco, a tradução de Teodócio
participava da Héxapla de Orígenes.
6
O II livro das Crônicas apresenta uma cronologia da história universal, em colunas paralelas, onde cada
coluna representa um reino, e cada linha representa um ano. Em interrupções das linhas e também à
margem das colunas de números são escritas as histórias dos reinos. No trecho que segue até o ponto 4
–para alguns provavelmente uma interpolação tardia feita por um escriba para explicar o novo formato de
seu manuscrito–, são fornecidas indicações técnicas com o uso de cores e outros recursos de que se serviu
para aclarar o texto traduzido, mas como não nos chegou o protótipo deste trabalho, as explicações
permanecem parcialmente compreensíveis. Todos os números, expostos em linhas, se relacionariam a
distintas histórias por um código de cor.
rorum ordini applicandum est, quod fuerit rado com preto, a história deve ser relacio-
ascriptum, medium puro minio numerum, et nada ao número da segunda linha. Se contu-
partem reliquam ex solo nigro expressam do deve-se referir à terceira linha de nú-
conspicabitur. Quarta numeri linea nihil ha- meros o que tiver sido acrescentado, obser-
bebit ex minio, sed indicio erit, quod sibi var-se-á o centro do número em carmesim
historia debeatur, cum minio facta littera in puro, e a parte restante expressa apenas em
principio enodationis historiae, quae etiam preto. A quarta linha de número não terá na-
superioribus signis subdenda est, nihilomi- da de carmesim, mas haverá uma indicação,
nus apparebit, nullo superius memoratorum com que a história se lhe refira, com uma le-
signorum in numeris respondere. Sin vero tra feita em carmesim no início da explica-
non minio, sed mixtim [Al. mixtum] nigro ção da história, que deve ser fornecida tam-
rubroque littera fuerit expressa, refulgens ex bém aos sinais acima, contudo se mostrará
rubro numerus in quintam numerorum line- sem corresponder em números a nenhum
am poterit adverti. Et ita sexta linea numeri dos sinais mencionados acima. Se porém a
et secunda, septima ut tertia designabitur, letra for expressa não em carmesim mas
octava quoque ut quarta apparenti littera num misto de preto e vermelho, o número
bicolori. Cum vero nec in numeris, nec in poderá ser visto reluzente na quinta linha de
explanatione historiae ullum illorum, quae números. E do mesmo modo a sexta linha de
praediximus, signorum fuerit, nona linea número será disposta como a segunda, a sé-
quod annotatum fuerit, vendicabit. Non ta- tima como a terceira, a oitava também como
men omnia hujusmodi requirenda sunt ne- a quarta, com uma letra bicolor aparente.
cessario, cum minor est numerus linearum. Quando porém não houver nem nos núme-
ros, nem na explanação da história nenhum
daqueles sinais que mencionamos, a nona li-
nha revindicará o que foi anotado. Contudo,
não todas as coisas são requeridas deste
modo como necessário, quando for menor o
número de colunas.
Unde praemonendum puto, ut prout quaeque De onde acredito que se deva premunir que,
scripta sunt, etiam colorum diversitates ser- assim como todas as coisas foram escritas,
ventur, ne quis irrationabili aestimet volupta- também sejam preservadas as diversidades
te oculis tantum rem esse quaesitam, et dum de aspectos, para que ninguém suponha que,
scribendi taedium fugit, labyrinthum erroris por um desejo irracional, há algo buscado
intexat. Id enim elucubratum est, ut regno- somente para os olhos, e, enquanto foge do
rum tramites, qui per vicinitatem nimiam pe- tédio de escrever, entretece um labirinto de
ne mixti erant, distinctione minii separaren- erros. Isso, pois, foi pensado para que os ca-
tur, et eumdem coloris locum quem prior minhos dos reinos, que por extrema proxi-
membrana signaverat, etiam posterior ser- midade tinham sido quase misturados, fos-
varet. sem separados pela diferença do carmesim,
e que a mesma posição da cor que a sessão
anterior assinalara, também a conservasse a
posterior.
4 Nec ignoro multos fore, qui solita libidine 4 E não ignoro que haverá muitos que, com
detrahendi omnibus, quod vitare non potest, seu desejo habitual de depreciar a todos –o
nisi qui omnino nil scribit, huic volumini ge- que não pode evitar se não quem não escre-
nuinum dentem infigant. Calumniabuntur ve absolutamente nada–, cravem um dente
tempora, convertent ordinem, res arguent, molar [= ataquem com sua sátira mordaz]
syllabas eventilabunt. Et quod accidere ple- neste manuscrito. Cavilarão sobre os fatos,
rumque solet, negligentiam librariorum ad invertirão a ordem, criticarão os assuntos,
auctores referent. separarão as sílabas. E, o que costuma acon-
tecer frequentemente, imputarão a negligên-
cia dos copistas aos autores.
Quos cum possem meo jure repercutere, ut Eu poderia refutá-los, com direito, que, se
si displicet, non legant: malo breviter placa- lhes desagrada, não leiam, mas prefiro des-
tos dimittere, ut et Graecorum fidem, suo pachá-los tranquilos rapidamente, para que
auctori assignent, et quae nova inserui- mus, atribuam ao seu autor o crédito das coisas
de aliis probatissimis viris libata cognoscant. gregas, e reconheçam como sendo de outros
Sciendum etenim est, me et interpretis et apreciadíssimos homens as novidades que
scriptoris ex parte officio usum, quia et inserimos. E de fato, deve-se saber que eu
Graeca fidelissime expressi, et nonnulla me servi em parte tanto da tarefa do tradutor
quae mihi intermissa videbantur, adjeci in como do escritor, porque reproduzi muito
Romana maxime historia, quam Eusebius, fielmente as coisas gregas, e algumas que
hujus conditor libri, non tam ignorasse, ut- me pareciam truncadas, acrescentei-as de
pote eruditissimus, quam ut Graece scribens, bom grado no tocante à história romana, a
parum suis necessariam perstrinxisse, mihi qual Eusébio, autor deste livro, não desco-
videtur. nhecia, uma vez que era muitíssimo erudito,
mas, parece-me que, escrevendo em grego
considerou-a pouco necessária aos seus.
Itaque a Nino et Abraham usque ad Trojae E assim, de Nino7 e Abraão até a tomada de
captivitatem pura Graeca translatio est. A Troia é pura tradução grega. De Troia até o
Troja usque ad vicesimum Constantini an- 20º ano de Constantino8 muitas coisas foram
num nunc addita, nunc mixta sunt plurima, ora acrescentadas, ora entremescladas, as
quae de Tranquillo, et caeteris illustribus quais extraímos muito cuidadosamente de
Historicis curiosissime excerpsimus. A Suetônio9 e de outros ilustres historiadores.
Constantini autem supradicto anno usque ad Porém, a partir do supracitado ano de Cons-
consulatum Augustorum Valentis VI et Va- tantino até o consulado dos imperadores Va-
lentiniani iterum, totum meum est. lente10 e Valentianiano11 sucessivamente, é
tudo meu.
Quo fine contentus, reliquum tempus Gra- Contente com este fim, reservei o período
tiani et Theodosii latioris historiae stylo re- restante de Graciano12 e de Teodósio13 ao
7
Nino foi rei da Assíria e marido da mítica Semíramis. Segundo o historiador grego Ctesias de Cnido, o
reinado de Nino começou em 2189 a.C., e teria durado 52 anos.
8
Constantino (Flavius Valerius Aurelius Constantinus) (274-337), foi imperador romano de 306 a 337.
9
Suetônio (Caius Suetonius Tranquillus) (ca. 69-141 d.C.) foi um escritor romano da época imperial.
Suas principais obras são De viris illustribus e De vita Caesarum.
10
Flávio Júlio Valente (Flavius Iulius Valens) (328-378), imperador romano de 364 a 378, recebeu de seu
irmão Valentianiano I a parte oriental do Império.
11
Flávio Valentianiano I (Flavius Valentianianus) (321-375), imperador romano de 364-375.
12
Graciano (Flavius Gratianus) (359-383), foi imperador romano do Ocidente de 375 a 383, e com a
morte do Imperador Valente em 378, governou o Império Romano do Oriente até 379, entregando-o a
Teodósio I.
13
Teodósio I (Flavius Theodosius) (347-395), foi imperador romano de 379 a 395. Em 392, Teodósio
reuniu as partes oriental e occidental do Império, sendo o último imperador a governar todo o mundo
romano, cuja cisão definitiva deu-se após sua morte.
servavi; non quo de viventibus timuerim li- formato de uma história mais ampla; não por
bera et vere scribere: timor enim Dei homi- que eu temesse escrever livremente e com
num timorem expellit; sed quoniam, debac- verdade sobre os que ainda vivem, pois o
chantibus adhuc in terra nostra Barbaris, in- temor de Deus repele o temor dos homens,
certa sunt omnia. mas porque com os bárbaros assolando até
hoje nossa terra, tudo é incerto.
***