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Resumo: este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica cujo objetivo foi refletir
drogas, a cientificidade acaba por encobrir o fenômeno tal como este se mostra, reduzindo
Abstract: this work is the result of a bibliographic research which sought to reflect on
the lifeworld (Lesbenwelt) of drug user from the reference of Husserl's phenomenology.
German philosopher Edmund Husserl (1859-1938). To understand the life world of the
*
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão -
UFMA
**
Doutor em Psicologia Social.
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drug users is necessary a rescue of human subjectivity in a return to original experience.
The Husserl's critique of scientism part of this distance with the issues related to the life
world, to their daily lives, resulting in the modern scientific rationality as a parameter for
analysis of all issues pertaining to life, to man. In relation to the drug phenomenon, the
Introdução
o tráfico de drogas causam graves danos ao país, gerando custos na esfera social e
econômica que afetam diversas pessoas de modo direto e indireto (ψrasil, 2009).
entre 2001 e 2005. χ partir deste último ano, sobretudo, observou-se um crescimento
identificou-se que quase a metade dos pesquisados (48.7%) afirmou ter feito uso de algum
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tipo de droga na vida. Entre estes, a maior parte afirmou abusado de álcool (86.2%),
ecstasy (7.5%).
brasileiro, não corresponde aos resultados das pesquisas mais recentes realizadas. O que
familiar, social, bem como contribuindo para as mortes no trânsito, homicídios, dentre
outras consequências graves a sociedade. Mas, por ser se tratar de uma droga
mundial, que acarreta impacto na esfera econômica dos países, profundos danos sociais,
reduzem as drogas a números, fazendo com que os sujeitos que vêem estes dados
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substâncias psicoativas, as repercursões no mundo da vida do dependente químico. Há
O tema das drogas tem sido discutido por especialistas (ψaistrocchi & Yaría, 2014;
Frankl, 2005) que relacionam esta problemática a questões relativas aos modos de
qual se caracteriza por tédio, ausência de projetos existenciais e a própria falta de sentido
na vida.
χlém destes estudos, o interesse pelo tema foi também despertado pela
proximidade profissional com dependentes químicos, que se iniciou no ano 2004, quando
se integrou uma das equipes dos ambulatórios de álcool e drogas da Secretaria de Saúde
Centro de χtenção Psicossocial Álcool e Drogas (CχPS χD), já em 2009. O objetivo das
pacientes.
o mundo, além dos anseios e dificuldades em relação ao seu projeto existencial. χlgumas
situações foram marcantes e recorrentes nas nossas observações e escuta dos pacientes: o
planificação para o futuro, com uma perspectiva voltada para o momento presente.
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Era perceptível, em nossos contatos com os usuários de drogas em tratamento, a
ambivalência vivenciada por estes em relação à sedução pelo mundo das drogas, do
tráfico, bem como as diferentes sensações adquiridas com o uso de substâncias, a fuga da
realidade e a vontade de retomar projetos existenciais, tais como trabalhar, constituir uma
favoreceu vivências que nos aproximaram ao mundo vivido dos dependentes de drogas.
Uma delas, para nós também angustiante, referiu-se às recaídas dos pacientes. Em
diversos momentos, pacientes que estavam em abstinência do uso de drogas por meses e
trabalho, tinham recaídas que os levavam novamente ao mundo das drogas. Nesses
questionamento nos era recorrente: como pensar sobre o mundo da vida do usuário de
drogas?
mundo vivido do usuário de substâncias psicoativas, o ponto de partida deste trabalho foi
fenomenológica husserliana.
Marco teórico
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No mundo atual, tem-se falado em modificações nas diversas esferas da
sociedade, seja numa perspectiva ética, moral e dos valores, o que reflete na concepção
cenário de crise no contexto europeu, na primeira metade do século XX. Nesta época,
Husserl (1839-1938) inquietou-se diante da busca por fundamentos para a ciência. Nesse
os que defendiam a articulação das leis da natureza com a razão; do outro lado, os que
distinguiam as leis da natureza das leis do espírito, e afirmavam que o fato psicológico, a
Mais do que uma escolha entre matrizes divergentes, a questão que se apresentava
no contexto europeo era bem mais complexa. Tratava-se de entender o sentido do mundo
como por exemplo, o sentido na vida, na história, na liberdade; ou como ele melhor
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definiu o impacto do racionalismo científico sobre a subjetividade humana ao afirmar que
a filosofia (1936) que ele destaca a origem da crise da ciência. Para o filósofo, o
bem como no que se refere às questões relativas ao seu cotidiano, aos seus modos de viver
dependentes químicos, o modo como estão estruturados em sua maioria, vale evidenciar
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A preocupação de Husserl com a tematização sobre o mundo da vida era de buscar
uma fundamentação para a fenomenologia, para uma ética da ciência, dando fim aos
anseios do mundo científico por um saber universal, apodítico (Silva, 2012). Ou, como
Para Husserl (2009, p.8), a ciência trata do ser, ou do valor da verdade, que tem a
pretensão de ser supratemporal. Além disso, estas verdades devem ser válidas para todos
questiona sobre o modo de funcionamento do mundo da vida, ou, como ele destaca, "todas
essas ciências são, enquanto produções do conhecimento para o mundo, uma pretensão
incompreensível”.
tem sido relacionado a uma falta de sentido na vida, de planificação do futuro, de valores
Husserl (2012) iniciou uma forte discussão sobre o tema do mundo da vida, propondo
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Em termos de mundo da vida, somos nele objetos entre objetos, como estando
sejam elas fisiológicas, psicológicas, sociológicas etc. Somos por outro lado, sujeitos para
este mundo, a saber, como os eus-sujeitos a ele referidos de modo teológicamente ativo,
que o experenciam, consideram, valorizam, para quem este mundo circundante tem
valorizações etc., em cada caso lhe conferiram… (Husserl, 2012, [1936], p.84).
temas como o sentido da vida individual e coletiva, os valores, a cultura, seriam abordados
subjetividade, e, sendo assim, tem quase nada ou pouco a dizer sobre as necessidades
reais do homem.
realidade. Um movimento pretencioso, uma vez que ela coloca em segundo plano os
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Seguindo este entendimento, o resgate do mundo da vida não se restringiria
conceito de mundo da vida se contrapõe ao de mundo da ciência, uma vez que se trata de
uma crise ética e de sentido, questão central na crise da ciência moderna. O mundo da
Para Silva (2012) a solução para a crise vivida pela ciência moderna em relação a
mundo da vida enquanto esfera de onde a ciência advém; além disso, situando a relação
entre mundo da vida e ciência, em que se estabelece o devido valor e alcance da ciência.
com nosso mundo privado, com sentimentos primitivos, originários, que surgem de nossa
experiência imediata, e são reveladas pela intuição. Toda esta dinâmica passa pela
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É nessa perspectiva que se compreende que o sujeito que vivencia o mundo da
carácter prioritário do mundo da vida se situa nas múltiplas relações em que os objetos se
Restrepo, 2012).
Ao falar sobre as experiências cotidianas, Pizzi (2010) ressalta que estas são
importantes para se desvelar o sentido das práticas concretas, e mesmo que seja num
pequeno contexto, existe uma relevância dos fenômenos para aqueles que os vivenciam.
Percebe-se que, para o dependente químico em tratamento, essa relação com o cotidiano
é bem marcada, pois a rotina de abuso de drogas acarreta uma modificação brusca na vida
diária, fazendo com que hábitos adquiridos no decorrer da vida de cada sujeito, sejam
os inúmeros sentidos que estes atribuem à vida, ao mundo vivido, às suas experiências
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Pizzi (2010) enfatiza que é preciso identificar um conhecimento pré-teórico, e que
projetos pessoais dão lugar a uma busca incessante pelo abuso de drogas. É como se
ocorresse uma modificação dos projetos anteriormente estabelecidos, tais como constituir
família, investir numa carreira profissional, adquirir a casa própria, dentre outros. Todos
estes planos são abandonados e que o resta é o abuso de drogas, passando a ser este vivido
Desta forma, o usuário de drogas, uma vez que abandona seus projetos de vida,
atribuído à vida por ele mesmo. Este afastamento das questões subjetivas é que dá lugar
a uma crise de sentido. É muito importante para o dependente de drogas resgatar o mundo
da vida como um espaço de atuação das diversas experiências humanas, do contato com
cada indivíduo tem uma capacidade de percepção para descobrir novos horizontes na
possibilidades que o mundo possui, atribuir-lhe sentido e ordená-lo de acordo com estes
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Para o psiquiatra e doutor em filosofía Viktor Frankl (1932-2002), vários de seus
estudos indicam uma relação entre o abuso de substâncias e questões relativas ao projeto
de vida. Uma pesquisa realizada por este (Frankl, 2005) identificou, entre os usuários de
maior dependência entre os estudantes com uma vida sem sentido, vazia, em comparação
realizado com estudantes de ensino médio no ano de 2007, identificou-se que as baixas
expectativas para o futuro e para desenvolver projetos pessoais têm relação com o
consumo de drogas e que o projeto de vida se consolida como um fator protetor contra o
entendidos como estímulos que, quando presentes na vida do sujeito, reduzem sua
vulnerabilidade
processo, uma construção, uma vez que o homem não nasce fabricado, mas se constitue
ao longo de sua existência, fazendo uso de sua capacidade de escolha, de sua liberdade.
relação do homem com o mundo, colocando no sujeito a responsabilidade por seu projeto
existencial. Na compreensão sartreana, “toda ação que não se apóia numa experiência
comprovada está destinada ao fracasso” (Sartre, 2009, p.3). Ou seja, o projeto existencial
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se faz na prática, no contato com o mundo da vida. Não se trata de vontade ou aspiração
humana.
Sartre (2009) ainda ressalta que o homem não é somente o que ele mostra em
determinado momento, mas o que ele concebe depois de sua existência, o que projeta ser.
Porque queremos dizer que o homem começa por existir, o que quer dizer que
começa por ser algo que se lança a um porvir, e que é consciente de projetar-se a um
porvir. O homem é ante tudo um projeto que se vive subjetivamente (Sartre, 2009, p.29-
tradução nossa).
Considerando-se que "o homem não é nada mais que seu projeto" (Sartre, 2009,
p.53), não há nada para além de suas ações, de suas realizações, de sua vida. O projeto
não define o homem de modo definitivo, podendo ser reencontrado, redefinido. Este é um
então, fica o projeto existencial de cada dependente químico? Que subjetividades são
o que se revela na experiência de cada sujeito, no que este faz e não em suas aspirações e
projeto existencial.
Nesse contexto, não se deve esquecer da liberdade de cada sujeito diante das
questões de sua existência, de suas relações no contexto do mundo da vida, liberdade esta
que se estende ao uso de substâncias psicoativas, da escolha de cada sujeito diante de cada
dose, de cada tragada. Embora, não se trata de minimizar a complexidade deste fenômeno,
planificado, e, além disso, sua vida universal, representada por sua consciência. Este
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último tem infinitas possibilidades, mas também um mundo de indeterminações (Husserl,
2009).
Todo propósito, toda ação, dirigidos a este mundo circundante é um agir até-o-
sem dúvida, uma vez mais, indeterminado, da espera e das possibilidades ‘reais’. O
alcance segundo as motivações prefiguradas na trama de vida vivida até esse momento
isso vai estabelecendo uma insegurança geral sobre a vida, sentida como expectativa e
relacionamentos são questões apontadas por usuários como motivadoras para o abuso de
drogas.
processo dinâmico que se dá no decorrer da vida de uma pessoa e que expressa o sentido
da vivência do individuo.
O sentido se constrói a partir de uma estreita relação com as demais pessoas, com
as organizações e contextos em que se vai forjando uma concepção sobre quem somos,
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como é o mundo que habitamos e qual pode ser nosso lugar e papel nele (Jáuregui, 2009,
p.39-tradução nossa).
No contexto dos usuários de drogas, pode-se identificar uma estreita relação entre
abandono dos projetos de vida, ou estes são modificados? Nesse sentido, o modo como
cada sujeito dependente de drogas se relaciona consigo mesmo e com o mundo revela o
indivíduo.
Considerações finais
com reflexos profundos sobre a relação dos sujeitos consigo mesmos, com o mundo e
as questões relativas a subjetividade humana ficam esquecidas, uma vez que o método
método experimental aplicado no contexto de saúde: “χ vida, não é, portanto, para o ser
vivo uma dedução monótona, um movimento retilíneo; ela ignora a rigidez geométrica,
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ela é debate ou explicação com um meio em que há fugas, vazios, esquivamentos e
resistências inesperadas”.
Referências
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Idéias e Letras.
Petrópolis: Vozes.
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http://www.lusosofia.net/textos/husserl_edmund_crise_da_humanidade_europeia_filoso
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Centauro.
Perez, A.I.R.; Lafuente, M.E.R. (2008). Proyectos de vida, calidad de vida y bienestar
Pérez Jáuregui, I. (2009). Proyectos de Vida. La pregunta por el sentido en nuestro mundo
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Puentes, M. (2008). Tu droga, mi droga, nuestra droga: como entender y que hacer frente
http://revistas.usbbog.edu.co/index.php/Franciscanum/article/view/93
Janeiro: Vozes.
Papiro.
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S18098672007000200009&script=sci_arttext
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