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A saúde do indivíduo na instituição

“Não há nada como o lar”


SLUZKI, C. E. A rede social na prática sistêmica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.

Bruno, um paciente de uns 45 anos, mora em uma comunidade terapêutica com


pessoal especializado 24 horas por dia para dez pacientes psiquiátricos crônicos
com muita necessidade de estrutura e cuidados. Ele tem uma história que inclui
muitos anos como paciente psiquiátrico, incluindo uma longa hospitalização prévia
num hospital psiquiátrico e alguns anos na casa atual. Esse homem não tem
família, nem amigos ou relações outras do que as pessoas que moram nessa casa
e o pessoal desta e de outras agências que cuidam dele.

O pessoal se queixa de que, há alguns meses, Bruno vem apresentando


progressos sociais importantes no sentido de se comportar de maneira cada vez
mais responsável na casa para depois, quase em curto-circuito, comportar-se de
maneira totalmente irresponsável. Essas condutas inesperadas incluem roubar os
doces da despensa e engoli-los todos de uma vez – coisa que não só aborrece os
outros como coloca em perigo o próprio Bruno, que é diabético e deve manter uma
dieta restrita.

Ainda mais importante para os membros da equipe é que Bruno, nos momentos
mais inesperados, diz grosserias e se comporta de maneira ofensiva para com
eles, o que os levou a retirarem dele responsabilidades na casa, assim como
postergar seus planos de alta. Sluzki indaga sobre estes planos, e eles comentam
que, embora este paciente esteja morando nessa casa há três anos, o critério que
seguem é que, quando melhoram em sua socialização, os pacientes recebem alta
e passam a viver numa outra casa menos institucionalizada, na qual têm mais
autonomia. Pergunta quem mais está evoluindo com este paciente, e o informam
que durante o dia os pacientes participam nas atividades de um hospital-dia
associado, que inclui diversas atividades grupais e de recreação. Pergunta se o
paciente tem família, e o informam que não mantém contato com ninguém da
família há mais de vinte anos.

Pergunta se tem amigos, e dizem que aqueles que podem ser definidos como tais
são fundamentalmente o pessoal da instituição e talvez alguns dos pacientes, mas
nenhum em particular. Em uma reunião com nove pessoas das duas equipes, da
casa e do hospital-dia, Sluzki explora com o pessoal deste último qual é a sua
descrição do paciente e os eventuais problemas que percebem com ele. Eles
informaram que o paciente não apresenta dificuldades, mas disseram que não
esperam muita mudança e que a expectativa deles era de manutenção das
conquistas de socialização do paciente. Para surpresa da equipe da casa, eles
disseram que há alguns meses estão convencidos de que o paciente tem
limitações demais para supor que poderá evoluir satisfatoriamente ao ponto de
receber alta da casa de cuidados intensivos.
Por intermédio de comentários coletivos e algumas perguntas bem colocadas ficou
claro que, do ponto de vista do paciente, seu bom comportamento acabava sendo
usado como argumento para o que a equipe definia como uma promoção, mas
que era vivido pelo paciente como uma expulsão do que era para ele seu lar e sua
família atual; pelo contrário, seu mau comportamento era castigado com uma
retirada de responsabilidade, o que o premiava já que o mantinha como membro
do lar. Em outras palavras, a equipe da casa e, em boa medida, a do hospital-dia
haviam se tornado os contextos mais significativos para esse paciente. A casa era,
de todo ponto de vista, seu lar.

Por um lado, o paciente estava sujeito a expectativas diferentes das duas equipes.
Uma delas esperava uma evolução, uma mudança, por parte do paciente (ele se
comportava de acordo com essa expectativa) e a outra não (ele se comportava de
acordo com essa suposição), coisa que costuma gerar um efeito paralisante
quando não enlouquecedor.
Por outro lado, o que para a equipe da casa era considerado um prêmio – a
“promoção” do paciente para outra moradia para pacientes psiquiátricos crônicos
mais autônomos, onde havia menos vigilância e estrutura – significava para o
paciente a perda de boa parte de sua parca rede social significativa.

Sluzki propôs a eles colocarem à prova essa hipótese, sugerindo que a equipe da
casa chamasse Bruno para uma reunião e o informasse de que depois de muita
deliberação, chegou-se à conclusão de que não lhe dariam alta da casa, mas que
viveria nela por tempo indefinido, e que, como membro estável da comunidade,
teria de assumir uma série de responsabilidades, como corresponde a todo
habitante estável da comunidade. As duas equipes discutiram qual poderia ser
essa responsabilidade, e chegaram à conclusão de que Bruno sempre mostrou
interesse e habilidade como responsável pela despensa, e que, portanto, poderia
ficar encarregado de manter o inventário de víveres e fazer listas do que faltava a
cada semana.

Comentaram o risco dessa ideia, que colocava ao seu alcance comidas que
haviam sido fonte de atuações inapropriadas anteriormente, mas disseram que
valia a pena a tentativa. Em reuniões de acompanhamento, dois e seis meses
depois, foi informado que Bruno continuava na casa, que seus comportamentos
desagradáveis tinham diminuído bastante, e que era um despenseiro responsável.
Foi recomendado à equipe que, de tempos em tempos, alguém fizesse comentário
ao paciente lembrando-o da permanência de sua cidadania como membro dessa
comunidade.

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