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XXXII

A ubntudAo burocrática
E A «PBE&UIÇA» DO BRASIL

Passando El-Rei D. Sebastião do paço


de Xabregas para o mosteiro; che-
gou uma mulher a presentar-lhe um
memorial. Recebeu-o e entregou-o a um fi-
dalgo dos que o acompanhavam.
Ela, afligida, disse:
— Senhor, corre minha honra perigo na
tardança.
Pôs nela os olhos el-rei, com aquele afe-
cto de pai que foi tão próprio de seus ante-
passados para com os seus vassalos; pediu
recado (1) de escrever e ali mesmo despachou
o memorial, dizendo
— Os negócios desta qualidade em toda
a parte devem ter despacho pronto.

(l)=aparelho. Recado dtí escrever— o aparelho


necessário para escrever.
230 ANTOLOGIA

Semelhante presteza em despachar se es-


creve de Viroldo, duque de Lituânia, o qual,
até estando à mesa, ouvia os requerimentos,
assinava os papéis, recebia as embaixadas.
De João Corvino, governador do reino de
Hungria, dizem que em qualquer parte, em
pé, e sentado, e andando, e a cavalo, sempre
ia administrando as obrigações de seu ofício.
O imperador Trajano, de alcunha O Erva
Parietária (porque em todos os edifícios que
fêz mandou pôr o seu nome na parede), es-
tando de partida contra os Dacos, ao passar
de Roma lhe saiu uma viuva clamando jus-
tiça contra os homicidas de um seu filho. E
o César, desmontando do cavalo, a ouviu
benignamente e satisfez a seus desejos.
Há negócios e ocorrências que se lhes
deve acudir, como Que
se tangeram a fogo. \

ridículo seria o que, chamado para apagar


um incêndio, respondesse mui repousado :

— Em almoçando,
j eu vou logo !

Gabeliano foi réu de morte por deter três


dias o aviso de uma conjuração que lhe foi

delatada ; e fundou-se a sentença em que,


em ordem a cautelar o próprio dano, podia
cada um ser incrédulo ou animoso; mas, em
ordem a salvar o alheio, quem mais teme
melhor satisfaz a sua obrigação.
BERNARDES 231

Assim como quem dá logo dá duas ve-


zes Bis daí qui cito dat, assim parece que
:

despacha duas vezes quem despacha bem e


logo. Despacha um vez, concedendo a mer-
cê; e despacha outra, atalhando passos, cui-
dados e despesas.

A el-rei D. João II de Portugal chegou um


pretendente, pedindo certo ofício.
— Já está dado, disse o rei.

E o pretendente lhe rendeu as graças, bei-


jou a mão e despediu- se.
Suspeitou o rei que não percebera a re-
pulsa, e disse:
— Vinde cá :
4 De que me destes as gra-
ças ? .

— Pela mercê (respondeu) que V. A. me


acaba de fazer.

Tornou o rei:
— áQue mercê vos fiz eu?
— Senhor (disse ultimamente o homem),
a de desenganar-me, sem me remeter a mi-
nistros; porque nisso me poupou muitos
passos, e enfado, e dinheiro, que havia de-
sembolsar sem proveito.
2Í2 ANTOLOGIA

Nestes danos não reparam os ministros e


seus oficiais, retendo as causas e derretendo

as partes tanto tempo, que na sua mão pare-


cem estar os papéis não só presos, mas já
mortos e sepultados; porque lhes põem uma
pedra em cima, que é mais do que dizia o
adágio antigo De paxillo suspendere (pen-
:

durá-los de um torno ou cabide) para signi-


ficar a negligência e descuido nos negócios.
Há causas (se não são das que morreram
desesperadas) que podem competir com
João dos Tempos, de que dizem que viveu
trezentos sessenta e um anos. Se não param
de cansadas, pelo menos andam tão devagar
que tudo se vai em Manda, remanda; man-
da, remanda; expecta,, reexpecta; expecta,
reexpecta; e, com manda
este e remanda, se
faz eterna a demanda; e, com este espera e
reespera, o pobre, em- fim, desespera. '

Dizem que Hábis, filha del-rei Górgon,


por haver sido criada nos bosques com leite
de uma cerva, saiu ligeiríssima no correr.
Estou considerando que leite mamaria uma
destas causas ou requerimentos na mão dos
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ministros e seus oficiais, que não há remé-


dio a fazê-la correr. £,Se beberia o leite da
preguiça do Brasil (a quem os Castelhanos

chamam por ironia perrillo iigeró), que gasta


dois dias em subir a uma árvore e outros
dois em descer?
Mas não 6 adequado o símil. Porque a
preguiça do Brasil anda devagar, mas anda;
e a preguiça do Reino e seus ministros, a
cada passo pára e dorme. Dois meses para
entrar um papel, e parou ; outros dois, para
subir a consulta, e tornou a parar; outros
dois, para descer abaixo, e temo-la outra vez
parada. Mais tantos meses para se verem
os autos, mais outros tantos para se formar
a tenção, mais tantos anos para embargos,
apelações, suspensões, dilações, visitas, re-
vistas, réplicas e tréplicas ... Oh preguiça
do Brasil, já eu digo, não por ironia, senão
por boa verdade, que tu em comparação
da preguiça do Reino és perrillo ligero (1).
Diz Plínio que o lavrador que se não en-
curva sobre o arado prevarica; isto é, faz
os sulcos da terra torcidos: Arator nisi ia-
curcus prcccaricatur; e, sendo torcidos,

(1) = cãozinho veloz.


.

234 ANTOLOGIA

claro está que hão-de sair mais compridos


do que podiam ser, pois a linha recta sem-
pre é a mais breve. Parece-me que daqui
procede (peio não atribuirmos a piores cau-
sas) serem tão compridos e prolongados os
sulcos, ou caminhos, que faz uma causa na
mão de um ministro. São compridos, por-
que não são rectos; e não são rectos, por-
que êle não se encurva sobre a banca, não
se inclina sobre os livros, não se aplica ao
seu ofício e isto é o mesmo que prevaricar.
;

Arator nisi incurvus, prceoaricatiir. Se


aquele rei que nos motivou com a sua acção
este discurso não pegara logo na pena, e se
inclinara a pôr o despacho no memorial, já
prevaricava da rectidão do seu oficio, e já
o sulco daquele requerimento se torcia e
prolongava . .

ÍNoca Floresta, Caridade do próximo.)

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