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Antonio Fatorelli
SUMÁRIO
Apresentação 5
Introdução 8
Apresentação 11
1 – Intercessões 16
Paradoxos 27
Atravessamentos e negociações 34
Lista de figuras
Figura 1 - Sam Taylor Wood. The Last Century, 2006. 39
Figura 2 - José Oiticica Filho. Lepidoptera, 1954. Error! Bookmark not defined.
Figura 3 - José Oiticica Filho. O Kiosque, 1946. Error! Bookmark not defined.
Figura 4 - José Oiticica Filho. Um que passa, 1953. Error! Bookmark not defined.
Figura 5 - José Oiticica Filho. Forma 24 C, 1956. Error! Bookmark not defined.
Figura 6 - José Oiticica Filho. Derivação 5, 1962. Error! Bookmark not defined.
Figura 7 - José Oiticica Filho. Recriação 29/64, sd. Error! Bookmark not defined.
Figura 8 - Geraldo de Barros. Fotoformas, Masp, 1951.Error! Bookmark not defined.
Figura 9 - Geraldo de Barros. Abstrait (Fotoforma), Paris, 1951.Error! Bookmark not
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Figura 10 - Geraldo de Barros. O barco e o balão, 1948.Error! Bookmark not defined.
Figura 11 - Geraldo de Barros. A menina do sapato, 1949.Error! Bookmark not
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Figura 12 - Negativo sujo, Parque Laje, 1978. Error! Bookmark not defined.
Figura 13 - Miguel Rio Branco. Nada levarei qundo morrer aqueles que mim deve
cobrarei no inferno, Funarte, 1980 Error! Bookmark not defined.
Figura 14 - Miguel Rio Branco. Gritos surdos. Centro Português de Fotografia, Porto,
2001. Error! Bookmark not defined.
Figura 15 - Miguel Rio Branco. Entre os olhos o deserto, Instituto de Arte
Contemporânea Inhotim/ 2010. Error! Bookmark not defined.
Figura 16 - Labirinto. Museu de Arte Moderna – RJ, 2015Error! Bookmark not
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Figura 17 - Antonio Saggese, Faria Lima. Video, 2012.Error! Bookmark not defined.
Figura 18 - Antonio Saggese Pinheiros. Video, 2012.. Error! Bookmark not defined.
Figura 19 - Cássio Vasconcellos. Uma vista. (registro da instalação), 2002. Error!
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Figura 20 - Sem título, 2001. Detalhe da instalação. Reprodução da artista Error!
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Figura 21 - Espaço Eu Lírico, 2016. Reprodução da artistaError! Bookmark not
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Figura 22 - A: bandera/B: argentina, 2018. Díptico em cajas de luz. Gentileza de Andrés
Denegri & Rolf Art Error! Bookmark not defined.
Figura 23 - Bandera quemada, 2018. Detalhe da exposição. Reprodução de Antonio
Fatorelli Error! Bookmark not defined.
Figura 24 - 200 metros de olvido, 2019. Detalhe da exposição. Reprodução de Antonio
Fatorelli Error! Bookmark not defined.
Figura 25 - Éramos esperados. (hierro y tierra), 2013. Instalación/dispositivo cinético.
Reproduções de Antonio Fatorelli Error! Bookmark not defined.
Figura 26 - Éramos esperados (plomo y palo), 2013. Instalación/dispositivo cinético.
Proyector de cien 16 mm., película 16mm., trípodes, travesaños com sistema de paso de
película, sistema mecanizado de liberación de película. Detalhe da instalação.
Reprodução de Antonio Fatorelli Error! Bookmark not defined.
Figura 27 - Mecanismos del Olvido, 2017. Instalación, proyector de cine de 16 mm
intervenido, película de 16 mm. Detalhe da instalação. Reprodução de Antonio
Fatorelli.
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Figura 28 - Mecanismos del Olvido, 2017. Detalhe da instalação. Gentileza de Andrés
Denegri & Rolf Art Error! Bookmark not defined.
Figura 29 - Esteban Pastorino. Aeroclube Verónica, 2001/2004.Error! Bookmark not
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Figura 30 - Esteban Pastorino. NYC Marathon, 2011. Error! Bookmark not defined.
Figura 31 - Esteban Pastorino. NYC marathon, 2011.. Error! Bookmark not defined.
Figura 32 - Esteban Pastorino. Panorâmicas – trânsito, 2001/2010.Error! Bookmark
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Figura 33 - Esteban Pastorino. Châtelet, Paris, 2014. Da série y=t.Error! Bookmark
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Apresentação
O tempo tem uma forma própria, seria possível considerá-lo como uma matéria
de contornos perceptíveis? E a sua presença seria da ordem da velocidade, da pausa, ou
da desaceleração, de tal modo a podermos dizer que ele ocorre de modo vertiginoso, ou
lento? Fugaz, evanescente, imponderável, muito frequentemente o associamos a figuras
geométricas – tempo espiralado, tempo circular, tempo linear ou bifurcado – na
tentativa de torná-lo permeável às nossas intenções. São inúmeros os recursos de
linguagem mobilizados no dia a dia com o propósito de nomear, definir e atribuir
contornos precisos ao tempo. A tentativa de figurá-lo como uma sucessão entre passado,
presente e futuro – um tempo do agora, precedido pelo já decorrido, sucedido pelo vir a
ser –, apresenta-se como a estratégia mais recorrente no cotidiano. Tal noção de tempo
linear, pressupõe uma sucessão de pontos intermediários, posicionados entre o instante
da partida e o alvo final, susceptíveis de serem analisados matematicamente.
Nesse livro estamos interessados em investigar uma outra concepção do tempo,
intimamente associada ao modo como ele se encontra efetivamente vivenciado, um
tempo carregado de subjetividades, de intenções e de inclinações pessoais, perpassado
pelos registros da memória, pelas angústias, pelas ansiedades e pelos desejos
despertados pela experiência do dia a dia. Em confronto com a regularidade do tempo
cronológico, universalmente compartilhado, nossa ênfase recai no tempo singular,
lagunar e dissimétrico, que associa os dados objetivos dos acontecimentos aos modos
peculiares de vivenciá-los. Tal concepção de tempo maleável, plástico, infinitamente
moldável, encontra-se em flagrante oposição à noção do tempo métrico, aferido pelos
relógios e instrumentos de medição, comumente apropriado pelo pensamento científico.
Importa advertir que não trabalhamos as questões pertinentes as imagens em
geral, mas tomamos algumas obras em particular, aquelas que apresentam a
problemática do tempo de modo evidente, pressupondo que, por fim, elas possam
despertar modos de compreensão das imagens em geral. O leitor encontrará nos
capítulos seguintes fragmentos de um esboço de concepção de uma história da
fotografia ao revés, que prioriza as negociações, os empréstimos e as experimentações
fora do cânone, em uma aposta de que essas configurações imagéticas sinalizam uma
compreensão mais inclusiva, plural e multiforme do que pode ser concebido como
fotografia.
Privilegiamos nesse percurso, em vista da longa tradição ontológica voltada a
identificação das características singulares das formas imagéticas, as configurações
híbridas e impuras, permeáveis às misturas, às sobreposições e às influências recíprocas,
difíceis de serem classificadas em concordância ao critério de pertencimento a um
domínio específico, muitas vezes colocadas à margem da historiografia oficial da
fotografia e do cinema. A percepção das múltiplas relações manifestas entre as imagens
estáticas e as imagens em movimento, guarda o propósito imediato de ressaltar os
inúmeros pontos de contato entre esses dois relevantes paradigmas, pressupondo que o
instantâneo comporta uma duração e o tempo é complexo, ao passo que a imagem-fluxo
comporta os recursos da parada, da suspensão e do retardo.
Os atravessamentos e as sobreposições entre as imagens fixas e as imagens em
movimento são abordadas a partir das contribuições teóricas de Raymond Bellour (1997)
e Philippe Dubois (2003). A noção de anacronismo e a concepção das retomadas
históricas, centrais nesse projeto, são empregadas na acepção de Hal Foster (2014), de
modo combinado ao conceito de híbrido, como trabalhado por Bruno Latour (1994). A
perspectiva transdisciplinar e a análise envolvendo as interseções entre as linguagens
artísticas encontram-se referidas aos aportes teóricos de David Bolter e Richard Grusin
(2000), além de Arlindo Machado (2007), Gilles Deleuze (2016) e Philip Rosen (2001).
Por sua vez, empregamos a noção de “fotografia expandida” (Fernandes, 2002), na
convicção de que continuamos lidando com fotografias – expandidas, escarçadas,
reconfiguradas – reportadas a um meio, igualmente amplificado, e que a extensão das
transformações em curso na atualidade revela-se estrategicamente em perspectiva, uma
vez consideradas as tensões historicamente endereçadas pelas imagens fotoquímicas.
Partimos das singularidades aportadas pela produção fotográfica contemporânea.
Entretanto, não estamos interessados em prognosticar uma ruptura radical com os
modernos, nem muito menos com os pré-modernos. Buscamos, de outro modo, valorizar as
interseções entre esses diferentes momentos históricos, considerando o que há de moderno e
de pré- moderno na atualidade, pressupondo que as experimentações com os processos e
com suportes atualmente em curso, encontram inúmeros precedentes nas iniciativas dos
pictorialistas e nos movimentos modernos que prosperaram ao largo das premissas puristas
hegemônicas, como as vanguardas históricas. Uma aposta metodológica que possibilitou
contestar os diversos e eloquentes discursos voltados à celebração da revolução digital,
fortemente ancorados na suposição de que as recentes configurações imagéticas,
notadamente híbridas, encontrariam a sua justificativa na infraestrutura técnica do código
digital.
Diante dos novos estados da imagem facultados pelas tecnologias eletrônicas e
digitais, priorizaremos o estabelecimento dos nexos com as formas analógicas precedentes,
destacando as linhas de continuidade e as dinâmicas de negociação mais do que as supostas
relações de ruptura. Nosso entendimento é o de que os trabalhos produzidos sobre o signo
da experimentação, notadamente as obras apreciadas nesta pesquisa, expressam uma nova
etapa na dinâmica contemporânea de expansão e de flexibilização dos regimes temporais
das imagens sem, entretanto, promoverem a dissolução da fotografia e do cinema.
Prólogo
1
Conferir, nesse particular, os relevantes ensaios do livro La cámera como método: la fotografía moderna
de Grete Stern y Horacio Coppola, organizado por Natalia Brizuela e Alejandra Uslenghi.
semiótica, psicológica, sociológica ou estética. Trata-se de incorporar à investigação dos
dispositivos imagéticos contemporâneos a complexidade das imagens, observando as
suas singularidades, uma vez contornados os clichês, os estereótipos e as proposições
ontológicas, todas estas figuras de pensamento recorrentes nas formulações de validade
universal.
Estamos especialmente interessados em obras produzidas no Brasil e
singularizadas pela convergência entre a fotografia, o vídeo, o cinema, as artes plásticas
e as tecnologias digitais. Acompanhamos, desde meados dos anos 1980, mas de modo
ainda mais marcante, a partir da década de 1990, o surgimento no âmbito da produção
imagética nacional, de um significativo corpus de trabalhos híbridos, singularizados
pelo modo de inscrição temporal, entre eles; Piel Island (2005) de Edouard Fraipont; O
céu mais azul é também o mais trêmulo (2007) de Frederico Dalton; Narrativas (2006)
de Ding Musa; Tectônicas (2007) de Kenji Ota; Somewhere – Alexanderplatz (2009) de
Dirceu Maués; Quase-cinema (2010) de Lucas Simões; Finisterra (2008) de Mariano
Klautau Filho; 88 de 14.000 (2004) de Alice Micelli; Figuras na paisagem (2010) de
André Parente; Tempestade dentro da paisagem (2010) de Odires Mlászho;
Myxomatosis (2008) de Solón Ribeiro; Bloco de notas (2009) de Breno Rotatori;
Panorâmica carioca (2019) de Thiago Barros; Sedimentos (2009) de Sofia Borges;
Neutrino (2009) de Feco Hamburguer; Máscara de punição (2004) de Estáquio Neves;
Meu mundo teu (2007) de Alexandre Sequeira; Experiência de cinema (2004) de
Rosângela Rennó, De vez em sempre, de vez em nunca, de vez em quando (2005-2007)
de Giselle Beiguelman; 4.000 disparos (2010), de Jonathas de Andrade; Vento solar
(2012) de Letícia Ramos, Bang (2012) de Ana Vitória Mussi; Abismo (2012) de Lucia
Mindlin Loeb; Lapx (1999-2000) de Carlos Fadon Vicente e Andarilho (2007) de Cao
Guimarães. No âmbito deste ensaio analisaremos pontualmente obras de Antonio
Saggese, Cássio Vasconcellos, Miguel Rio Branco e Denise Cahilina, como também
trabalhos de dois artistas argentinos, Andrés Denegri e Esteban Pastorino, criadas nesse
lugar híbrido, em atenção às problemáticas conceituais que endereçam. Além da
instalação The Last Century, da artista inglesa Sam Taylor Wood, que motivou muitos
dos argumentos sustentados nessa pesquisa.
Esse conjunto de obras, distinguidas pela experimentação com o tempo,
expressam uma nova etapa na dinâmica contemporânea de expansão e de flexibilização
dos regimes temporais das imagens. São obras que inscrevem as peculiaridades do
tempo multivetorial, assinalado por dobras, sobreposições e intermitências. Imagens e
instalações que exibem a diversidade e a multiplicidade dos modos de ser da fotografia,
de modo a provocar uma significativa expansão das fronteiras da fotografia e o
redesenho dos pontos de interseção com as outras artes, como o cinema, o vídeo, a
pintura e a poesia. Ao identificar duas modalidades práticas diferentes no período
moderno, Bruno
Latour emprega a noção de “híbrido”.
2
Desenvolvemos extensamente essa abordagem no livro Fotografia contemporânea: entre o cinema, o
vídeo e as novas mídias (Fatorelli, 2013).
montagem cinematográfica e aos diferentes sistemas de ordenamento temporal. Como
anota Peter Pál Pelbart na sua instigante leitura das figuras do tempo em Deleuze:
Por mais breve que se suponha uma percepção, ela ocupa sempre uma certa
duração, e exige um esforço da memória, que prolonga, uns nos outros, uma
3
As traduções do espanhol para o português foram feitas por Brena O'Dwyer.
.
4
Na sua pesquisa de referência em que destacou a relevância da produção visual e audiovisual realizada
recentemente no Ceará/Brasil, Annádia Brito cunhou o termo “estéticas dos interstícios” para analisar
uma série de obras singularizadas pela relação entre o estático e movimento (BRITO, 2021).
pluralidade de momentos... Em suma, a memória sob estas duas formas,
enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção
imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos,
constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o lado
subjetivo de nosso conhecimento das coisas (BERGSON, 1990:23).
Advertindo logo após que, na história da filosofia, “os termos que designam o
tempo são tomados de empréstimo à língua do espaço” (BERGSON, 2006: 7),
substituindo-se a noção de justaposição pela de sucessão, de modo a comprometer
definitivamente a apreensão do movimento e da mudança. Tal propósito de reconstituir o
movimento a partir de paradas sucessivas no espaço, encontra-se igualmente expresso no
âmbito do senso comum, sinalizando, tanto no domínio das elaborações abstratas, quanto
no das percepções singulares, uma peculiar inclinação do pensamento para lidar com
pontos fixos e com imobilidades. Uma tendência da inteligência para priorizar as
qualidades de extensão e de sucessão, em total desconsideração à visão da simultaneidade
e da indivisibilidade, próprias ao movimento, à mudança e à duração. Bergson nomeia de
tempo espacializado essa concepção matemática do tempo decorrente da observação do
deslocamento de um objeto no espaço, formulada em total desconsideração ao fluxo do
movimento e à duração.
Os conceitos da filosofia e da ciência positiva, destinados a classificar ocorrências
de validade universal, não se apresentam oportunos para aferir a natureza contingente e
mutável do movimento, do mesmo modo que a linguagem ordinária, voltada à consecução
de um resultado imediato, apreende do objeto apenas algumas das suas propriedades,
aquelas susceptíveis de serem aferidas a partir de pontos fixos e da imobilidade. Mas
Bergson reconhece na prática artística – na música, na poesia, nas artes plásticas – a
expressão de
uma atividade perceptiva criativa, produtora do novo, investida de uma especial condição
para apreender as múltiplas faces do objeto percebido no curso do seu movimento real.
Uma atividade vigorosa, envolvendo a intuição, exercida no interior de um circuito de
relações reversíveis entre o interior e o exterior, como a vivenciada por Heráclito na cena
descrita acima, compreendendo a sua percepção intensiva, as ondulações formadas pelo
movimento do rio, o hipotético aluno/leitor posicionado ao seu lado, mas igualmente o
barco em que se encontram instalados e o conjunto do universo material circundante, além
do próprio Deleuze que elabora esse acontecimento desde um outro ponto de vista.
Essa especial posição conferida ao artista advêm, sobretudo, do trabalho de
moldagem que ele realiza sobre a linguagem, por meio da modulação dos materiais e dos
processos estéticos que mobiliza. Pressupondo que as linguagens são lacunares, imprecisas
e polissêmicas – por demais abstratas, em se tratando dos conceitos filosóficos;
excessivamente circunscrita, uma vez submetida aos automatismos do hábito –, o trabalho
realizado pelo artista desenvolve-se no curso de uma duração, por meio de ajustes
sucessivos, empenhado-se em manter a tensão entre as relações de reversibilidade no
interior do circuito envolvendo as diferentes instâncias materiais, interiores e exteriores.
Uma linguagem, portanto, considerada uma das instâncias materiais presente nesse
circuito, delineada em processo, a partir de aproximações e de calibragens, em
consideração as transformações despertadas pela ação do tempo em cada acontecimento.
Longe de endereçar uma verdade prévia de validade universal, ou de recobrir integralmente
o fenômeno, ou o acontecimento, essa concepção acerca do papel da linguagem
salvaguarda a singularidade da experiência, o entendimento da novidade e da
imprevisibilidade envolvida em toda realização e, no caso da imagem fotografia, a
percepção da sua natureza inaugural e singular. Também as imagens fotográficas
compartilham a condição bifacial da percepção, anotada acima por Bergson, convergindo o
próximo e o distante, o atual e o virtual, o universo material e o mundo interior subjetivo,
pressupondo do mesmo modo uma multiplicidade de momentos e uma duração. E é
indispensável observar que as expressões empregadas indistintamente pelo senso comum e
pelos defensores da estética pura e direta para designar a operação fotográfica – um corte
no tempo, um instantâneo, um tempo congelado – pressupõem a suspensão do tempo, o
mesmo procedimento de denegação pressuposto na noção de tempo espacializado,
empregada por Bergson para designar o tempo
uma vez destituído das suas propriedades singulares.
A prioridade conferida neste livro às obras experimentais guarda a intenção de
privilegiar o trabalho com a linguagem considerada como matéria plástica original, portadora
de um tempo complexo, desde a perspectiva de uma relação negociada entre os dados da
consciência e o mundo exterior. E, uma vez desmontada a lógica opositiva entre sujeito e
objeto, predominante no domínio discursivo da ontologia moderna, formular a precedência
de uma “pluriontologia das imagens” (BAIO, 2021: 11), de um “pluralismo dos modos de
existência” (LATOUR, 2012: 13) da fotografia, apropriado ao acolhimento das suas
inúmeras manifestações, em especial das múltiplas figuras do tempo, dos híbridos e das
formas impuras.
A noção de híbrido ocupa um lugar central entre os conceitos mobilizados nessa
pesquisa, desempenhando a função de um operador que atravessa as indagações – das
mais pontuais as mais gerais – aqui formuladas, de tal modo a merecer uma atenção
diferenciada. Em uma primeira versão, híbrido indica as misturas entre natureza e
cultura, como indicado anteriormente por Latour, apontando para as inúmeras distinções
efetuadas pelo pensamento moderno, voltadas ao trabalho de identificação das
qualidades particulares dos seres vivos e inanimados, deste modo categorizados em
grupos e em classes. Uma vontade classificatória visível também nas segmentações dos
departamentos em nossas universidades e institutos de pesquisa, divididos inicialmente
nas duas grandes áreas das ciências humanas e das ciências naturais e, a seguir, em
inúmeras subdivisões distinguidas pelas competências específicas.
Entretanto, o híbrido refere-se igualmente à classificação dos seres segundo suas
características singulares, de ordem genética ou assimilada. Uma classificação
estabelecida pela atribuição de princípios ideais, com o propósito de identificar e de
nomear a multiplicidade de seres. Trata-se, nesse contexto, da prescrição de um
pensamento científico operatório, regulado pelo intuito de estabelecer relações de
pertencimento entre as categorias ideais e as singularidades dos modos de existência,
supostamente ancorada em evidências factuais. As formas deste modo identificadas
como híbridas integram os seres que de algum modo – por se encontram em um limiar,
ou por inadequação à premissa geral – não puderam ser classificados em concordância
aos critérios de pertinência fixados pelo princípio ordenador das espécies. A
identificação das configurações híbridas, dos monstros e das aberrações procedem dessa
operação de clivagem que nomeia os seres pertencentes e, a seguir, pelo preceito da
excepcionalidade, os seres excluídos, com evidentes consequências políticas, éticas e
ideológicas.
O próprio Darwin, não menos comprometido com o trabalho de classificação das
espécies, reconhece o caráter problemático dessa metodologia, anotando que por
“aberração” (monstrosity) costuma-se entender um desvio considerável em uma parte da
estrutura, prejudicial ou não benéfico à espécie, e que não costuma ser transmitido”
(DARWIN, 2018: 95-96, apud VALENTIN, 2018:253), e, a seguir, que “não há como
separar aberrações (monstrosities) de meras variações por linhas nítidas de distinção”
(VALENTIN, 253), pressupondo, portanto, a existência real dessas outras espécies, a
ponto de Valentin pontuar que “formas ambíguas são a regra, não a exceção; aliá, elas
são, para Darwin, “as que mais nos interessam” (DARWIN, 2018: 95-96, apud
VALENTIN, 2018:254).
Tal princípio classificatório encontrou ressonância em diversos outros contextos
científicos, nas ciências naturais e nas ciências humanas. No campo das imagens, essa
premissa foi também replicada na fotografia, manifesta nos discursos que buscaram
legitimar determinados procedimentos estéticos considerados pertencentes ao meio – um
conjunto de princípios inscritos no formato da fotografia pura e direta –, também
assinalando o termo excluído, genericamente nomeado de práticas impuras,
frequentemente qualificado como não-fotográfico. Nesse caso, uma clivagem instituída
em confrontação ao outro do cinema, das artes plásticas, do teatro e da literatura. Desde
o ponto de vista de um pensamento da multiplicidade, interessa indagar criticamente
sobre a pertinência desse princípio de seleção com o intuito de reconhecer as implicações
mútuas, os cruzamentos e as reciprocidades, o que há de fotografia no cinema, no teatro
e nas artes plásticas, também de modo reverso.
Ainda em referência ao campo da fotografia, a noção de híbrido relaciona-se ao
modo de constituição das imagens, à heterogeneidade dos recursos materiais e dos
saberes envolvidos nessa tecnologia, indistintamente presentes tanto no domínio das
chamadas imagens puras, quanto das imagens impuras. Uma condição infraestrutural
compartilhada pela tecnologia fotográfica, independentemente dos juízos de valor,
certificadora de que a clivagem instituída entre imagens pertencentes ao meio e imagens
excluídas, reporta-se a um expediente retórico, a um efeito discursivo destinado a criar
uma fronteira artificial com o intento de salvaguardar um ideal de pureza, em
desconsideração à diversidade efetivamente manifesta na prática artística. A abordagem
do híbrido abrange, nesse contexto, a produção fotográfica de modo geral, apontando
para as suas condições de produção, desde o ponto de vista empírico, de “empirismo que
saiba ultrapassar as dimensões do visível” (DELEUZE, 1974: 21). Corresponde, nesse
sentido, ao propósito da pesquisa de observar de modo cruzado a produção fotográfica
pura e impura desde o ponto de vista do hibridismo e das misturas.
Utilizamos a noção de híbrido também em referência aos diferentes estratos de
tempo sobrepostos na imagem, ao modo de uma pluralidade de tempos próximos e
longínquos. À suposição corrente de que a imagem fotográfica decorre do aqui e agora, a
perspectiva da sobreposição de tempos pertencentes a diferentes períodos históricos
oferece a oportunidade de conceber as relações entre o próximo e o distante, o presente e
o ausente, o atual e o virtual. Para apontar, nesse particular, não apenas para os rastros do
passado no presente, mas também para dimensionar como visamos o passado a partir de
agora, desde a perspectiva anacrônica dos rebatimentos e das reciprocidades. Mobilizada
nesse sentido amplo, a ideia de híbrido apresenta-se como estratégica para a abordagem
das figuras do tempo – das dobras, das circunvoluções, dos espiralados, das
ressonâncias, dos retornos, das falhas e das variações de velocidade e de direção –, em
contraponto a noção de tempo linear, pressuposta na perspectiva historicista.
O híbrido desempenha, em todas essas acepções, o papel de um operador
decisivo, amplo e pervasivo, caracterizado por uma considerável força de expansão. Ele
encarna o termo transversal, a força desestabilizadora do entre (BELLOUR, 1990) da
condição bifacial da percepção, (BERGSON, 1990), da “indiscernibilidade” (Deleuze,
1990; 2018) e dos paradoxos (DIDI-HUBERMAN, 2015b), essas formulações
concebidas com o intuito de dissolver os dualismos, de atravessar as fronteiras e de
ultrapassar os termos identitários para, enfim, colocar sob suspeita o conjunto das
ontologias pressupostas nos relatos dos modernos. Afigura-se, desse modo, como o
termo chave que, no âmbito da nossa pesquisa, afiança reescrever a história da fotografia
desde o ponto de vista dos cruzamentos e das intercessões, em consideração aos seres
invisíveis, aos fantasmas, aos monstros e às aberrações.5
É notório que as abordagens aqui empreendidas guardam inúmeros e
substanciais pontos de contato com os conceitos de “acinema”, de Jean-François
Lyotard (LYOTARD, 2004) e de “regime estético”, de Jacques Rancière (RANCIÈRE,
2009) mas também, ainda com as noções de “inespecificidade”, de Florencia
Garramuño (GARRAMUÑO, 2014) e de “literatura fora si”, Natalia Brizuela
(BRIZUELA, 2014), marcadas pelos cruzamentos processados nas zonas fronteiriças
das formas artísticas.
5
Está análise voltada ao reconhecimento do papel primordial ocupado pelas formações impuras, pelas
categorias inclassificáveis e pelas relações não-hierárquicas entre humanos e não-humanos, compartilha a
premissa presente em distintas formulações, como os saberes ameríndios (DANOWSKI e CASTRO,
2014); decolonial (MIGNOLO, 2016), feminista (HARAWAY, 2003), epistemologias do sul (DE SOUSA
SANTOS, 2019), igualmente voltadas à ultrapassagem dos reducionismos implicados nos paradigmas
ontológicos clássicos, fundamentados no pensamento antropocêntrico moderno.
Optamos, no entanto, por sustentar a noção de híbrido nas suas diferentes gradações,
pressupondo que ela se demonstra suficientemente apropriada ao propósito da pesquisa
de tensionar as fronteiras delimitadoras dos campos artísticos, ao mesmo tempo que
problematizar o cânone purista no âmbito da produção fotográfica.
Paradoxos
Às relações de correspondências entre a imagem e os objetos materiais –
concernentes a lógica do contato, do vestígio, da marca e, portanto, de atributos
indiciais certificadores de um mundo previamente dado –, sobrepõem-se às potências
originais da imagem, sua condição inaugural e criativa.
Diferentes iniciativas e agendas inscreveram esse duplo desígnio das imagens,
paradoxalmente referido à evidência da presença e ao surgimento de uma entidade
original, desde a primeira fotografia declaradamente encenada – em que Hippolyte
Bayard simulou a sua própria morte por afogamento – passando por uma genealogia que
inclui a iconografia pictorialista nas suas inúmeras variações de forma e de estilo; as
fotografias compostas realizadas por Oscar Rejlander; e as fotografias “espirituais”, que
ofereciam prova irrefutável da existência de vida após a morte.
Um amplo conjunto de modos de produção imagética híbrida viria a ganhar
novos contornos no período posterior à Primeira Guerra Mundial, em especial no campo
das experimentações das vanguardas históricas. Uma iconografia diversa que comporta:
a montagem performática, como Os trinta Valérios, de Valério Vieira; as
experimentações com a temporalidade estendida empreendidas pelo futurista Anton
Giulio Bragaglia; as colagens dadaístas; além da utilização de diferentes processos
como a solarização e a cópia negativa, amplamente mobilizados por Man Ray, dentre
outros fotógrafos surrealistas.
Movimentos relevantes na história da fotografia, como o pictorialismo, a
fotografia surrealista, a Nova objetividade e o Grupo f.64, não abdicaram dos objetos
nem dos fenômenos do mundo, tampouco renunciaram às instâncias imateriais da
experiência. Pelo contrário, extraíram das interações entre esses dois domínios os seus
enigmas e as suas potências. No interior dessas práticas, explicitamente híbridas ou
pretensamente puras, o efeito de analogia visual proporcionado pela imagem fotográfica
teve o sentido de apontar para uma condição do mundo e, ao mesmo tempo, marcar uma
defasagem relativa ao mundo material, em uma dinâmica particular, instituída pelas
imagens mecânicas de captura automática.
As tentativas no campo teórico de dar conta do fascínio despertado pela imagem
fotográfica parecem, em decorrência da própria irredutibilidade da imagem a um ou a
outro domínio, destinadas ao fracasso relativo. Afinal, a imagem é sempre um outro,
resultado de um deslocamento constitutivo, inerente ao seu processo de criação,
irredutível à condição de duplo de uma realidade preexistente ou de réplica da
experiência visual. O desafio frente a essa irredutibilidade é a compreensão do modo
peculiar pelo qual a imagem fotográfica difere tanto dos objetos e dos fenômenos
fotografados, quanto da imagem percebida pelos sentidos.
Ao investigar as fotografias realizadas pelo médico e cientista francês Jean-
Martin Charcot e pelo fotógrafo Albert Londe, no século XIX, no âmbito dos
diagnósticos de histeria na Salpêtrière, portanto da prática fotográfica submetida a
protocolos científicos estritos, Georges Didi-Huberman questiona os princípios de
neutralidade e o ideal de semelhança pressupostos nessas imagens marcadas pela dor e
pelo sofrimento das mulheres internadas. A partir desse gigantesco acervo de imagens
da Iconografia fotográfica da Salpêtrière, Didi-Huberman entrevê uma motivação não
declarada por parte de Charcot e de Londe de legitimar os protocolos de uma patologia,
fortemente respaldados pelo efeito de evidência e pela impressão de semelhança da
fotografia. Uma estratégia de afirmação de um saber médico sustentada no poder da
imagem fotográfica, que nos importa em especial, mobilizada desde esse lugar de
suposta objetividade da prática científica, nessa circunstância extrema em que se
encontram em causa a doença e a própria vida. Didi-Huberman aborda a dinâmica tensa
das relações de proximidade e de distanciamento provocadas pela analogia fotográfica,
a partir da ideia de paradoxo da evidência espetacular,
6
Geoffrey Batchen (2004: 178) destaca a presença dessas posições negociadas, que contornam as
polarizações, já entre os protofotógrafos, autores e experimentadores que compartilharam o desejo da
fotografia desde os primeiros anos do século XIX.
Uma outra história
Se os híbridos se apresentaram como configurações inacessíveis para renomados
teóricos e curadores modernos, como Clement Greenberg (1960) e John Szarkowski
(1964), de tal modo a serem negligenciadas pela crítica de arte até a década de 1980,
faz- se importante considerar o purismo como um filtro seletivo, mobilizado com o
intuito de sancionar um projeto estético que se demonstrou, por fim, reducionista.
Afinal, seu critério de seleção notabilizou-se pela exclusão dos elementos impuros,
nomeadamente, as formações híbridas e as temporalidades compostas, demonstrando-se
um recurso discursivo voltado à subtração do termo problemático, a efetiva renúncia ao
pensamento crítico e à complexidade. Não obstante, as imagens ditas impuras,
posicionadas à margem do campo exatamente por se apresentarem irredutíveis às
operações de purificação, não se apresentam menos fotográficas. De outro modo, a
perspectiva do paradoxo fotografia acolhe a multiplicidade e variedade de modos de ser
da fotografia. Como observa Despret (2022: 14) “há explicações que multiplicam os
mundos e honram a emergência de uma infinidade de m'aneiras de ser, outras que as
disciplinam e se referem a alguns princípios fundamentais”.
No contexto dos argumentos presididos pela identificação de imagens
pertencentes e de imagens excluídas ao campo da fotografia, a revisão crítica do
paradigma modernista deve incidir sobre o critério de segregação das imagens tomadas
individualmente, tanto quanto sobre os princípios reguladores das partilhas entre as
linguagens artísticas observadas em conjunto – a fotografia, o cinema, as artes plásticas
e a performance, entre elas –, com a intenção de conceber uma história da fotografia
desde a perspectiva dos híbridos e das formas impuras.
Duas formulações relativamente sistematizadas são emblemáticas do projeto
fotográfico purista. Em um momento inaugural, quando importava demarcar a sua
singularidade frente às práticas intervencionistas precedentes, o programa elaborado
pelo grupo de fotógrafos norte-americanos denominado Grupo f.647, notabilizou-se pela
defesa intransigente da autonomia do meio. A seguir, na década de 1960, John
Szarkowski, curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, alinhou de modo
sistemático os princípios norteadores dessa tendência no texto seminal O Olho do
Fotógrafo, de Szarkowski (1966), a saber: “a coisa em si”, “o detalhe”, “o quadro”, “o
7
Criado em 1932, o Grupo f.64 reuniu renomados fotógrafos como Edward Weston,
Imogen Cunningham e Ansel Adams, com o intuito de promover a estética purista.
tempo”, e o “ponto de tomada”. Um conjunto de regulagens envolvendo os critérios de
verossimilhança; a neutralidade da representação associada à analogia; a imagem única
e instantânea e a presença do fotógrafo na cena a ser retratada, instituído com o intuito
de salvaguardar a especificidade da fotografia.
Entretanto, a crescente complexidade dos processos fotográficos apresentava-se
como um momento especialmente apropriado à percepção da sua natureza heterogênea e
múltipla, em total divergência com o dogma purista. Afinal, o advento da fotografia
encontra-se associado ao aperfeiçoamento de inúmeras tecnologias precedentes – a
câmera escura, a tavoletta, a câmara clara e o diorama –, e os seus desdobramentos
posteriores delinearam-se em estreita sintonia com as trajetórias da pintura, da literatura
e do teatro.
A imagem tecnocientífica configura-se no aparelho, conferindo exponencial
importância aos mediadores tecnológicos que a produz. Mais do que simplesmente
registrar, essas interfaces convergem teorias progressivamente complexas. Vilém
Flusser reconheceu essa importância decisiva exercida pelos aparatos maquínicos no
campo das tecno-imagens, observando que “máquinas são instrumentos que passaram
pelo crivo da teoria científica...” e que “é preciso considerar que aparelhos são máquinas
funcionalmente tão complexas (baseadas sobre teorias tão “avançadas”), que
praticamente ninguém compreende o seu funcionamento” (FLUSSER, 2002: 13).
As considerações de Flusser acerca da complexidade do aparelho fotográfico,
compreendido como o mais simples dos aparelhos modernos, estende-se aos aparelhos
administrativos, educacionais, políticos, jurídicos e corporativos, além dos ulteriores
dispositivos do cinema, da TV, do vídeo e das mídias digitais. Nessa acepção, o
aparelho fotográfico afigura-se como o protótipo dos aparelhos industriais e pós-
industriais, progressivamente onipresentes nas esferas políticas, sociais, cognitivas e
artísticas. Importa ressaltar a complexidade e a combinação de elementos heterogêneos
características dos aparelhos modernos e contemporâneos, definitivamente
inconciliáveis com o ideal de identificação das propriedades irredutíveis da fotografia,
apreendidas isoladamente, em consideração às suas especificidades.
Contudo, é a concepção da fotografia na sua versão pura e direta que se
apresenta, nesta perspectiva, como o resultado de um efeito discursivo, uma utopia
disseminada por fotógrafos e teóricos. Com efeito, é a própria imagem fotoquímica,
desde o seu advento e em todos os seus formatos, que deve ser subsumida às mediações
e às interfaces
pressupostas pelos híbridos, compreendidas a partir da heterogeneidade, como agregado
de natureza e de cultura, como presença e invenção, registro e artifício.
Uma vez que o aparelho fotográfico resulta da convergência de teorias
complexas, como aferido por Flusser (2002), a prática do fotógrafo não pode se
sustentar em suposições ingênuas e atitudes descompromissadas. Toda a complexidade
do aparelho está resumida em algumas poucas, e cada vez mais simples, regras
operacionais, mas a intervenção verdadeiramente criativa deve rivalizar com o conjunto
dos saberes inscritos na programação do aparelho.
Atento às transformações em curso nas sociedades pós-industriais, Flusser teve o
mérito de identificar o estabelecimento de uma nova modalidade de compromisso entre
o sujeito criador e o aparelho pós-industrial – aparelho câmera, aparelho informação,
aparelho distribuição –, ao qual ele se encontra, agora, indissoluvelmente associado.
Impõe-se, entretanto, dimensionar criticamente a centralidade conferida por
Flusser aos aparatos. Afinal, sua suposição sobre a natureza dos dispositivos
tecnológicos recai sobre o modo normativo de funcionamento dos aparelhos,
compreendidos como artefatos que convergem saberes e hierarquias socialmente
estabelecidos, desse modo comprometidos com os princípios hegemônicos instituídos
pelas sociedades tecnocientíficas, de natureza notadamente opressora e inibidora. O
trabalho criativo deveria, em tal cenário, voltar-se à subversão do dispositivo, como
estratégia de afirmação de uma prática emancipadora. Mas, ao invés de tomar o
dispositivo em bloco, não seria o caso de considerar a sua complexidade, as suas fissuras
e as suas contradições implícitas? De indagar se o próprio aparelho não comportaria
desvios, como sugerido por Foucault (FOUCAULT, 2009) e por Deleuze (DELEUZE,
1996), a propósito dos diferentes dispositivos de sujeição?
Importa, nesse particular, questionar o papel conferido por Flusser ao aparato
técnico, uma vez considerado como modelo irredutível, no seu formato hegemônico.
Como indicado por Victa de Carvalho, ao assinalar a condição variável do dispositivo
cinematográfico,
Atravessamentos e negociações
Decorrido o período inicial de emergência da cultura digital, marcado pelas
iniciativas no âmbito da computação gráfica voltadas à criação de mundos artificiais
declaradamente dissociados do aqui e agora da experiência, observamos a expressiva
presença de trabalhos produzidos sob o signo da negociação entre os modos de inscrição
analógico e digital. O teórico das mídias Philip Rosen (2001: 332) pontua que esse
momento de negociação coincide com a absorção, pelo digital, das convenções
inicialmente associadas à codificação perspectiva, caracterizadas pela produção dos
efeitos de semelhança. Uma operação, portanto, subtrativa do ponto de vista da utopia
digital, uma vez que ao assimilar os protocolos pressupostos pelo modelo da
perspectiva, as demandas de irrestrita liberdade endereçadas pela retórica da ruptura
digital afiguram- se severamente comprometidas.
Ao emular o dispositivo analógico, a câmera digital passa a incorporar as
singularidades da codificação perspectiva e os paradigmas tradicionalmente associados
à tradição visual analógica. Uma decorrência decisiva desse processo de assimilação
refere- se à particularidade de que, ao manter a dependência aos fenômenos do mundo, a
fotografia digital passa a incorporar as lógicas narrativas relacionadas ao modo de
inscrição indicial, o princípio de verdade e o ideal purista, entre elas. Com efeito, tanto a
fotografia analógica como a fotografia digital dependem do registro da imagem, nos
dois casos em concordância aos princípios da perspectiva, tornando secundária a
circunstância
da imagem se inscrever em um sensor eletrônico ou em um suporte fotoquímico. As
disputas no campo das formulações teóricas deveriam observar essa disposição comum,
invariavelmente desconsiderada pelos defensores da revolução digital.
São significativas as inúmeras transformações decorrentes das recentes e cada
vez mais acessíveis possibilidades de manipulação das imagens proporcionadas pela
codificação digital, uma constatação que deve ser acompanhada do reconhecimento de
que também as fotografias digitais encontram-se contaminadas, para usar uma figura
cara ao modo de impressão indicial, pela lógica do traço. As imagens digitais
inscrevem-se igualmente, portanto, no contexto dos argumentos autenticadores do
paradoxo fotografia, da dupla articulação da imagem – nomeadamente, das relações
simultâneas de proximidade e de afastamento relativamente ao mundo material – como
observado em consideração à fotografia analógica. Trata-se de reconhecer que a
fotografia digital não prescinde do aqui e agora, da fisicalidade do mundo e dos objetos,
ao tempo que se configura em concordância aos seus determinantes processuais e
instaura a sua própria realidade. Sua potência, do mesmo modo que a sua natureza
híbrida e impura, decorrem precisamente dessa condição negociada entre o real, o
imaginário e os determinantes materiais envolvidos na sua produção.
Compartilhamos a premissa de Tom Gunning (2016: 99) ao salientar que a
intervenção digital não se volta prioritariamente à criação de uma nova imagem – como
experimentado nos primórdios da infografia –, mas à manipulação de uma imagem
preexistente, configurada segundo o princípio da projeção, em concordância às
prerrogativas indiciais. Também as acuradas análises desenvolvidas por Philip Rosen
destacam essa condição do digital encontrar-se referido à complexidade do real,
dependente do contato físico entre signo e objeto, em conformidade aos princípios da
inscrição indicial (ROSEN, 2001: 301). Observadas em consideração à tensão entre a
forma fotografia e o paradoxo fotografia, as observações de Gunning e de Rosen
proporcionam um contexto epistemológico apropriado ao entendimento crítico da cena
contemporânea. Trata-se, também no contexto da codificação digital, de estabelecer um
distanciamento quanto aos discursos ontológicos balizados no princípio de verdade e à
crença da neutralidade da representação.
A atual intenção de associar o digital à liberdade criativa do artista plástico –
inscrita, por exemplo, na proposição de Edmond Couchot de que, confrontado
unicamente às linguagens e programas informáticos, “o artista trabalha com símbolos e
não mais com a matéria e a energia” (COUCHOT, 2003: 157), ou ainda que,
diferentemente da foto, do
cinema e da televisão “a imagem de síntese não possui mais nenhuma aderência ao real:
ela se libera” (COUCHOT, 2003: 164) –, inscreve-se na tradição destas utopias sobre os
papéis desempenhados pela mediação tecnológica no processo de criação da imagem,
reencenando uma vez mais os discursos, de inclinação nostálgica ou ressentida,
balizados pelos critérios de legitimidade estritamente associados às práticas artísticas
artesanais. Com o agravante de, neste momento de notável expansão tecnológica,
acrescentar aos discursos tradicionais, as utopias de liberdade, de emancipação e de
criação ilimitada, agora potencializadas pelas promessas, sempre irrestritas, atribuídas à
infraestrutura técnica do código digital.
O discurso da ruptura digital sustenta-se no argumento da novidade,
pressupondo um estágio analógico anterior, caracterizado pelo efetivo contato com o
mundo material. Influenciado pelas teses emancipatórias de Gene Youngblood (1970), o
teórico das novas mídias William J. Mitchell (1994), no livro The reconfigured eye:
visual truth in the post- photographic era, a primeira análise teórica substancial sobre a
natureza da imagem digital, baseia-se no argumento da singular manuseabilidade
proporcionada pela condição descontínua do código, facultando a inserção e a exclusão
de partes da imagem, deste modo liberta da função referencial. Uma proposição
concebida em oposição à configuração analógica, está, sim, dependente do contato
físico com os objetos e irremediavelmente associada ao princípio de verdade.
Esta mesma lógica opositiva, fundamentada na filiação da imagem relativamente
ao real ou ao imaginário, é reafirmada por Florian Rotzer (1993) ao associar o código
digital à linguagem do cérebro, processador de impulsos nervosos não-específicos, em
confrontação ao sinal analógico, dependente das teorias óticas da perspectiva. Também
André Rouillé evoca essa clivagem ao observar uma diferença radical entre o regime
químico industrial ao regime digital informacional, defendendo que “o regime de
visibilidade do dispositivo digital é totalmente estrangeiro ao do dispositivo analógico.
São duas máquinas óticas radicalmente diferentes” (ROUILLÉ, 2013: 19).
A criação do novo, que persiste no horizonte da prática criativa contemporânea
como desafio, não se encontra circunscrita aos dispositivos tecnológicos de última
geração. Por sua vez, um projeto estético que se pretenda inovador não tem por que
sustentar-se na superação dos modos analógicos de produzir. As potências da música, da
fotografia e da literatura não dependem, em nenhuma instância, da oposição entre o
analógico e o digital, muito menos da sua superação, definitiva e irreversível, como
prognosticado pelos apologistas da revolução digital. Com efeito, a criação do novo – a
superação dos clichês, a instauração de uma nova entidade, a ruptura com o princípio de
identidade, a irrupção da imagem-tempo ou a presença da simultaneidade virtual –, do
mesmo modo que a possível ultrapassagem dos modelos estéticos centrados na
recognição, não se encontram condicionadas pelo modo de formação das imagens no
âmbito da sua infraestrutura técnica.
O reconhecimento das formações híbridas nos formatos fotoquímico e digital
não tem por fim instituir os fundamentos de uma ontologia da fotografia e do cinema,
mas apontar para um território presidido pelo “entre”, intensamente negociado, que
marca de modo incontornável o que ainda podemos chamar, após as experiências
desafiadoras da fotografia expandida e do cinema de museu, de fotografia e de cinema.
Uma abordagem que aponta para a diversidade de modos de existência da fotografia
desde a perspectiva do “SER-ENQUANTO-OUTRO (uma amostra de descontinuidade
e de continuidade, de diferença e de repetição, do outro e do mesmo)” (LATOUR,
2012:156), ainda mais relevante nesse momento de flexibilização dos regimes
temporais, quando a progressiva substituição dos antigos suportes físicos das imagens
analógicas favorece a suposição de que atualmente, uma vez abolidos os indicadores
materiais tomados como critérios de distinção entre os meios de expressão, prevalece
um estado de indiscernibilidade das imagens.
A opção pela expressão “fotografia expandida” para nomear as transformações
observadas no âmbito dos processos criativos a partir dos anos 1980, guarda a intenção
de apontar para os pontos de contato com as práticas modernas, em especial o
experimentalismo de José Oiticica Filho e de Geraldo de Barros. Expressa, nessa
perspectiva, o propósito de confrontar criticamente as formulações da pós-fotografia,
sustentadas na noção de tempo linear e em uma concepção teleológica da história.
Afinal, a hipótese de uma era pós-fotográfica delineia-se a partir da conjectura de que as
tecnologias digitais estabelecem um novo paradigma, imune às limitações pressupostas
no modo analógico de processamento das imagens. Essa retórica da superação constitui
o núcleo central das premissas endereçadas pela pós-fotografia, já manifestas de modo
inequívoco no livro iniciático de William J. Mitchell, publicado em 1992, persistindo
até as recentes apostas do artista e curador Joan Fontcuberta, como apontou Ronaldo
Entler no seu notável artigo Pós-fotografia: ser, não ser, deixar de ser para tornar-se
fotografia (ENTLER, 2021).
Encontramo-nos, cada vez mais, na condição de criadores envolvidos na
produção de imagens em diferentes formatos, fixas e em movimento. Em acréscimo,
novos e ainda
mais flexíveis regimes de temporalização da imagem emergem a partir das
sobreposições de mídias e de linguagens facultadas pela codificação digital. Contudo, as
múltiplas habilidades demandadas aos realizadores, como também as novas
possibilidades de criação observadas neste momento, não apagam os contornos
delimitadores das formas imagéticas singulares. Passado o período inicial de intensa
negociação entre os regimes das imagens fixas e das imagens em movimento,
duplamente motivado pela plasticidade proporcionada pelo processamento digital e pela
aspiração de superar as antigas dicotomias reducionistas herdadas do período
modernista, cumpre aferir as influências mútuas, os empréstimos e as sobreposições
manifestas entre as imagens fixas e as imagens em movimento. Ademais, sempre
presentes nos contextos históricos precedentes sem, contudo, prognosticar uma
condição universal da imagem, indiferente ao seu modo constitutivo.
Considerada historicamente, a análise crítica deve refutar os pressupostos
fundamentados na transparência do meio e as suposições emancipatórias da imagem, de
modo a desviar-se tanto da demanda de verdade, tradicionalmente reivindicada por
influentes pensadores e artistas modernos, quanto da suposição, atualmente
compartilhada por renomados teóricos da cultura digital, de que os procedimentos
informacionais ocasionariam o cancelamento dos vínculos da imagem com a
experiência sensorial. Importa, nesse momento marcado pela disseminação do
processamento digital, desviar-se da tendência em substituir as antigas demandas
puristas por outra promessa, igualmente indiferente ao trabalho dos híbridos.
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Disponível em: https://www.ubu.com/film/tw_century.html
Sabemos que o filme é constituído de uma sequência de fotogramas e que a
imagem fotográfica possui diversas aproximações com a imagem cinematográfica, mas
é surpreendente o modo como essa instalação de Sam Taylor apresenta essas relações,
retroativamente, desde a perspectiva da atualidade. Pela abrangência, podemos supor
tratar-se de referências visuais que se estendem para além do último século, como
inicialmente entrevisto pelo título, abrangendo formas expressivas anteriores às
tecnologias da automação. Como efeito, The Last Century (Figura 1) exibe em inúmeras
camadas sobrepostas uma verdadeira genealogia das mídias, com a particularidade de
apresentá-las entrelaçadas e interdependentes. Esta é uma obra através da qual pode-se
divisar a história das formas expressivas desde um ponto de vista transversal,
privilegiando os pontos de contato mais do que as identidades, a região de intersecção
entre a pintura, a fotografia, o vídeo e o cinema, mais do que as suas especificidades.
Inúmeros elementos compositivos aproximam essa instalação ao quadro O
chamado de São Mateus, de Caravaggio, pintado em 1600. A atmosfera sombria,
dominada por uma luz interior de incidência oblíqua, estabelece uma afinidade entre
esses dois ambientes interiores, ocupados por pessoas anônimas, frequentadoras de um
mesmo local, mas aparentemente isoladas, absorvidas pelos seus próprios temores.
Nada, ou quase nada, parece transcorrer nesse momento trivial, quase todos os
personagens encontram-se sentados, em posição passiva, e os movimentos ao redor são
quase imperceptíveis. Apenas uma expectativa em vista de algo em vias de transcorrer a
seguir, já pressentida ou não, parece poder alterar essa condição de estagnação.
Nighthawks, uma pintura hiper-realista de Edward Hopper, de 1942, também retrata
esse estado de introspecção muitas vezes experimentado em espaços públicos,
supostamente mais propensos ao compartilhamento solidário.
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