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Notas para teses sobre o mundo do trabalho: um percurso na busca do método

adequado de pesquisa.

Paulo Rogério Marques de Carvalho


Doutor em Direito, com especialidade em ciências jurídico-políticas na Universidade de Lisboa, com
estágio doutoral na Università degli Studi di Roma "La Sapienza" . Professor de Direito e Processo do
Trabalho do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7), coordenador do Grupo de estudos
transdisciplinar em Trabalho e Relações sociais na contemporaneidade (Fortaleza-CE), mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC), especialista em Direito do Trabalho pelo Instituto de Direito
do Trabalho na Universidade de Lisboa.

Publicado em MONEBHURRUN, Nitish (org.). Como preparar uma tese de doutorado


da escrita à defesa: um relato a partir da experiência dos professores. Rio de Janeiro:
processo, 2000, p. 57-81.

1. A experiência da pesquisa

Iniciei o Curso de Doutorado em 2011 na Faculdade de Direito da Universidade de


Lisboa (FDUL), período de um efervescente debate jurídico e político sobre a crise do
subprime e da política unionista que atingia Portugal. Durante a candidatura à seleção
para o doutorado, meu primeiro desafio foi delimitar qual seria o objeto de pesquisa.
Como professor da área trabalhista há quinze anos, sabia que a tese enfrentaria algum
problema do mundo do trabalho, mas tinha muitas dúvidas sobre o recorte e enfoque desse
problema. A resposta mais óbvia a essa questão era imaginar uma tese em Direito do
Trabalho. Em um primeiro momento, essa era a minha opção. Assim, a minha
interrogação inicial era se eu aplicava minha candidatura para a especialidade de ciências
jurídico-políticas ou jurídico-empresariais (onde se concentravam as teses na área
trabalhista na FDUL).
Lendo teses defendidas nas duas áreas, verifiquei que as questões que me
pulsionavam a escrever tinham uma relação mais direta com as fronteiras entre o jurídico
e o político no campo do trabalho. Observa-se que tradicionalmente as investigações
jurídicas sobre o trabalho estão protagonizadas nos estudos de Direito do Trabalho. O
trabalho, enquanto categoria investigativa, é uma área de interseção de saberes. O que
une todos esses saberes é o reconhecimento do trabalho como categoria social, como um
dos principais fatores de identificação social no modelo capitalista. Esse conceito foi se
transformando conforme o tempo e suas adequações sociais. Como até o fim da Idade
Média, as relações sociais eram definidas principalmente pela hereditariedade e religião,
o trabalho não orientava essas relações sociais. Com o mercantilismo e o capitalismo que
se avigora na Revolução Industrial, o trabalho passa a ser referência que “dignifica” o
homem e é tratado como fonte econômica de produção de riqueza. Portanto, o trabalho,
enquanto motor civilizatório, carrega consigo essa ambivalência entre o esforço e a
criação na realização plena da natureza humana.
Embora o trabalho seja uma categoria que pode ser investigada em quase todas as
áreas das ciências jurídicas, registra-se ainda um reduzido número de teses que
aprofundem as questões do trabalho no campo específico do constitucionalismo. Na
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em pesquisa realizada junto ao Sistema
Integrado de Bibliotecas (Catálogo Aleph), não foi encontrado registro de nenhuma tese
de doutoramento na especialidade de ciências jurídico-politicas que tenha recortado seu
objeto de investigação na chamada “Constituição do Trabalho”. Observei que as questões
em torno da crise econômica que atingia Portugal levavam a provocações no campo
jurídico-político sobre o tema. No Brasil, salvo pontuais exceções, o problema também
se mostrava pouco explorado pela doutrina especializada, com reduzido número de obras
específicas na área de Direito Constitucional do Trabalho. Na formação do jurista
brasileiro, as questões do Direito Constitucional do Trabalho costumam ser delegadas
para os constitucionalistas na disciplina de Direito do Trabalho e terceirizado aos
juslaboralistas nas disciplinas de Direito Constitucional. Encontra-se, portanto, em um
limbo de aprofundamento acadêmico que merece ser superado.
Brasil e Portugal estão entre os países no mundo que mais elevaram direitos
trabalhistas ao status constitucional, dado desproporcional ao fôlego que a doutrina
jurídico-política tem se dedicado ao constitucionalismo do trabalho. Isso, por si só, já
justificaria a relevância de uma investigação mais atenta com o objetivo de resgatar as
interrogações relativas ao entrelaçamento do constitucionalismo com a regulação do
trabalho.
Dessa forma, minha candidatura ao doutorado da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa foi para a especialidade de ciências jurídico-políticas. Entrei no
doutorado com a certeza de que realizaria uma tese jurídico-política sobre o trabalho,
embora não estivesse ainda muito claro o seu objeto.
O curso de doutoramento na FDUL tem uma primeira etapa, chamada “fase escolar”,
que implica na realização de quatro monografias nas disciplinas cursadas. Assim, a
energia inicial do doutorado é muito direcionada a essas pesquisas. Cada professor,
direcionava uma área principal de pesquisa no semestre. Na ocasião, na disciplina de
Direito Constitucional, com o professor doutor Jorge Miranda, realizei pesquisas sobre
Estado de exceção. O tema era justificado em razão das mudanças na jurisprudência em
torno das políticas de austeridade, que ficaram conhecidas como “jurisprudência da
crise”. Na disciplina de Direito Administrativo, com a professora doutora Maria João
Estorninho, as pesquisas eram em torno do “Direito da Alimentação”, o que me
possibilitou um estudo acerca das teorias do risco. Na disciplina de Direitos
Fundamentais, com a professora doutora Maria Luísa Duarte, investigou-se a perspectiva
do espaço de internormatividade entre Direitos fundamentais e União Europeia. Por fim,
na disciplina de Metodologia Jurídica, com o professor doutor António Pedro Barbas
Homem, foi dada a oportunidade de escrever sobre um “tema livre”, para ser observado
os aspectos metodológicos do trabalho produzido. Após aprovação na fase escolar, o
doutorando deve candidatar um “projeto de tese” a ser analisado pelo Conselho
Científico. Como se pode observar, o modelo de doutorado na FDUL é diferenciado em
relação aos modelos brasileiros, que normalmente exigem a apresentação do projeto de
tese na sua candidatura.
Na ocasião, com o objetivo de ter um conhecimento mais embasado sobre a
regulação do trabalho em Portugal, realizei o curso de especialização em Direito do
Trabalho e Segurança Social do Instituto de Direito do Trabalho – IDT, da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa (coordenado e orientado pelo professor doutor Pedro
Romano Martinez ).
Após finalizar a fase escolar, fui aprovado em primeiro lugar na seleção realizada
pelo Gabinete Erasmus e Relações Internacionais da FDUL (GERI), o que possibilitou
seguir meus estudos, através do programa de mobilidade de estudantes, na Facoltá de
Giurisprudenza, na Universidade de Roma – Sapienza. Minha colocação permitiu que eu
escolhesse realizar essa mobilidade em qualquer universidade europeia conveniada com
a Universidade de Lisboa. A escolha dos estudos na Itália deu-se pela representatividade
do constitucionalismo italiano na construção dogmática da Constituição do Trabalho. As
investigações na Sapienza foram orientadas com o apoio do Dipartimento di Scienze
Giuridiche, com orientação do professor doutor Giuseppe Santoro-Passarelli – na área de
Direito Privado e Direito do Trabalho, e do professor doutor Massimo Luciani, com
valiosa assessoria das professoras doutoras Giovanna Montella e Ines Ciolli – na área de
Direito Público e Constitucional. Mais uma vez, a condição de estrangeiro e de uma
experiência de “solitude” em outro país possibilitaram uma imersão intelectual
extremamente valiosa no meu processo de investigação.
Durante esse período de estudos em Roma, amadureci as hipóteses do meu projeto
de tese “O constitucionalismo social e as crises da regulação do trabalho”. Na ocasião do
meu curso de especialização em Direito do Trabalho, tive contato com as aulas
provocativas do professor doutor Fernando Araújo, catedrático da Universidade de
Lisboa e atuante em especial na área de ciências jurídico-econômicas da FDUL, que
resultou no convite e aceitação para orientação da tese. Minhas escolhas, portanto,
confirmaram o caráter multidisciplinar que a tese pretendia seguir. Essa decisão
implicava em assumir os riscos quanto ao método científico, comuns aos estudos na área
de trabalho e que resvalam na histórica crítica ao hibridismo metodológico dos estudos
trabalhistas.

1.1. As dificuldades na pesquisa

A pesquisa pretendeu caminhar no trilho de como o trabalho, enquanto valor


social, foi regulado, e de que modo essa regulação se deu pelo constitucionalismo. O
século XX foi considerado não só o século do trabalho, mas também o do
constitucionalismo, já as macrotendências do Século XXI renovam as crises do trabalho
e do constitucionalismo. No campo filosófico e sociológico, a crise da centralidade do
trabalho tem provocado denso debate entre os chamados teóricos do valor e seus críticos ..
No plano organizacional, o trabalho globalizado passa a ser apresentado por um
dicionário empresarial, uma nova perspectiva de regulação, a ruptura do modelo do meio
de acumulação flexível e a superação das organizações concretas. A identidade
cosmopolita de um Estado constitucional cooperativo tem provocado o Direito
Constitucional na forma como o constitucionalismo é visto como substrato cultural de
uma ordem jurídico-política.
Uma tese jurídico-política sobre as crises do trabalho e o papel da Constituição na
regulação das questões laborais encontra-se com transversalidades entre o Direito, a
Ciência Política, a História do Trabalho, a Economia do Trabalho, a Sociologia do
Trabalho, a Filosofia do Trabalho e a Psicologia Social. Reconhece-se, desde já, a
porosidade valorativa que permeia o tema investigado, que exige o equilíbrio entre a
cientificidade e outros elementos cognitivos e não-cognitivos que atingem a percepção
de mundo do investigador e do leitor da investigação.
A dificuldade inicial do trabalho foi ter clareza da metodologia de um trabalho
que visava estabelecer uma tese que conjugue a relação entre Direito, Trabalho e Crise.
Esse desafio impõe o reconhecimento prévio da ingerência valorativa na análise do objeto
científico. Parte-se do pressuposto de uma tese em que a subjetividade é inescapável, que
não se propõe a estabelecer uma teoria pura, impessoal, neutra ou ideal. Assim, meu
principal desafio metodológico foi encontrar o equilíbrio entre a cientificidade e a
sensibilidade dada a relevância social do valor que a tese investigou.

1.2. A superação das dificuldades na pesquisa : a busca de atitudes objetivantes, o


reconhecimento dos valores não-cognitivos e o paradigma de controle.

Embora não fosse o objeto direto do estudo, foi importante revisitar a literatura
sobre o debate da ingerência e controle dos valores sociais do investigador na análise do
seu objeto de investigação e o papel dos valores em uma teoria científica. Embora esse
seja objeto de investigação da Filosofia da Ciência, a questão merece um sucinto percurso
investigativo sobre a relação abstrata entre valor e ciência.
Os chamados “filósofos da natureza” pensavam ser possível obter uma lei
científica por uma concepção teológica identificada ou com uma verdade divina ou com
uma concepção platônica de acesso ao mundo das ideias. Ultrapassada historicamente
essa percepção, verifica-se que as teorias científicas são produto de uma atividade
humana metodologicamente organizada, que demonstra não só a capacidade de abstração,
mas uma atitude objetivante. Integra essa atitude objetivante a necessidade de um
distanciamento do cientista da percepção imediata do objeto de investigação. No processo
de produção da tese, assim como nas investigações ligadas às Ciências Humanas em
geral, surge uma primeira questão: é possível atingir tal atitude objetivante na
investigação de objetos científicos que suscitam, a todo instante, um juízo de valor?
Primeiramente, a busca da cisão entre o sujeito investigador e o objeto investigado
como elemento necessário à prática científica deve também reconhecer que a objetividade
completa é inalcançável. No cerne da argumentação de uma razão científica, a dicotomia
entre fato e valor se estabelece durante a revolução científica da primeira metade do
século XVII, em especial com Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650),
Galileu Galilei (1564-1642) e Blas Pascart (1623-1662). A reivindicação de um método
racional surgia em contraponto ao princípio da autoridade que estava fincado na tradição.
Portanto, o método seria suficiente para se chegar ao conhecimento, e a suficiência do
método resultaria na autonomia da ciência em relação aos valores. A partir da vinculação
dos valores ao princípio de autoridade e da ciência ao método, começaram as distinções
que hoje representam as ciências naturais e humanas.
No Direito e na Política, enquanto campo latente dos valores, persistia o princípio
da autoridade. Nas ciências naturais, o método, baseado na razão natural, prescindia da
tutela dessa autoridade. Em razão do domínio dos valores estar fortemente vinculado à
religião, cabia à ciência o domínio dos fatos. Nesse campo, as condenações de Galilei são
a representação histórica de separação entre ciência e religião. Assim, o nascimento do
método científico no século XVII é a ancoragem do método na razão natural aplicado na
universalidade dos homens. Desvinculado do princípio da autoridade, o método garantiria
que a prática científica chegasse a juízos sobre o fato, independentemente de intervenções
externas.
Essa relação entre fato e valor tem novos contornos no século XVIII com David
Hume (1711-1776), que traz uma distinção mais operacional através do que se chamou
de “neutralidade cognitiva”, ou seja, para aplicar o método das ciências é necessário que
o pesquisador cancele seu complexo de valor, enquanto conjunto de perspectivas
políticas, econômicas, estéticas, interpretativas e outras que propulsionam perspectivas
de valor. Nessa ótica, 1 a prática científica se desenvolve, de um lado, com objetivos
internos (ou intrínsecos) e, de outro, com objetivos externos. Os primeiros buscam teorias
capazes de prever os fenômenos e explicá-los, sendo traçados por um conjunto de critérios
próprios. Os objetivos externos são as motivações externas (econômicas, religiosas ou
políticas, por exemplo) que podem impulsionar essa busca. Para tal perspectiva, o
pesquisador deve abstrair os objetivos externos enquanto análise de sua investigação.
Observa-se que, na medida em que se estabelece critérios para os objetivos
internos dessa prática científica, já se está alinhando ciência e valor numa mesma esfera.
É importante perceber que fato e valor, embora possuam domínios próprios, têm relação
de interconexão, não podendo ser tratados dicotomicamente. Contudo, é necessário
retomar a classificação entre valores cognitivos e valores não-cognitivos, como um
auxílio para se atingir a imparcialidade, a objetividade e o controle sobre a investigação.
Os valores não cognitivos (ou simplesmente valores sociais) são complexos de
perspectivas de valores baseados em crenças religiosas, políticas, interesses econômicos,
pré-conceitos, expressões morais, estéticas e até perspectivas de florescimento humano.

1
Nesse sentido, ver Guins, Michel. (2013). Uma introdução à metafísica da natureza: representação,
realismo e leis científicas. Curitiba: Editora UFPR.
Observa-se que quem distingue valores sociais e cognitivos já reconhece a existência de
valores na atividade científica e, desde já, refuta a ideia de que a ciência é livre de valores.
Mas, mesmo essa concepção, fincada ainda no materialismo científico, retira da ciência
qualquer interação com os valores não-cognitivos, de modo que apenas os valores
cognitivos integrariam a prática científica.
Durante a realização da pesquisa, observou-se uma dificuldade em se manter
atrelado a essa concepção. Pensar o mundo do trabalho na contemporaneidade abstraindo
cirurgicamente todo o complexo de percepção valorativa de mundo é de difícil aplicação
prática. Quando se vai analisar, por exemplo, o trabalho na sociedade antiga, não se pode
deixar de reconhecer que essa análise sempre tem como referência a aplicação de
categorias conceituais sobre o trabalho que são utilizadas hoje. A investigação sobre as
dinâmicas do trabalho em uma perspectiva jurídico-política suscita claros
entrelaçamentos do saber científico com a política. Os primeiros estudos sobre a história
operária, por exemplo, eram sobretudo estudos políticos, realizados dentro do movimento
operário. A versão histórica do movimento do operariado identifica-se com a ideologia
desses movimentos. Tais estudos só tomaram conotação acadêmica entre 1830 e 1840,
quando um surgimento de novo proletariado passou a despertar interesse científico, o qual
teve, durante as décadas de sessenta e setenta, uma expressiva representação de
historiadores 2 que consolidaram uma história científica do movimento operário através
dos seus usos e costumes, modos de vida e formas de luta.
Embora a minha tese tenha investigado pragmaticamente as diversas dimensões
de crise que a relação entre o Trabalho e o Direito impulsionam a partir do parâmetro do
constitucionalismo, é impossível que seu processo de investigação blinde por completo
os valores não-cognitivos do investigador. A pesquisa foi produzida no curso de
doutoramento em Lisboa, com parte da investigação na Itália, por um pesquisador
brasileiro, durante um período crítico de crise econômica na Europa e no Brasil. Ademais,
a escrita dela deu-se principalmente nos anos de 2016-2018, período de um cenário
jurídico-politico crítico no Brasil, que resultou, entre outras consequências, na aprovação
da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), que era uma expressão concreta e histórica
daquilo que investigava. Ou seja, mesmo que os critérios de objetividade e imparcialidade

2
Como Edward Thompson (1924-1993), Eric Hobsbawn (1917-2012) e Georges Haupt ( 1928-1978) e os
franceses Jean Maitron (1910-1987), Michele Perrot ( 1928 -) e Antoine Prost (1933- ) . Sobre o assunto,
ver Hobsbawn, Eric. (2005). Mundos do Trabalho (3a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 15-31.
tenham sido norteadores do processo, é possível que se manifeste nas suas linhas e
entrelinhas a experiência sensorial, cultural, moral, estética e de outros campos
valorativos de um mundo do trabalho percebido originalmente a partir de um país em vias
de desenvolvimento a que pertence o pesquisador.
Assim, precisei buscar um referencial teórico metodológico para guiar a pesquisa
com os nortes de capacidade de abstração e atitude objetivante a que ela se propõe. A
percepção da ciência que produz produtos teoréticos neutros através de uma investigação
completamente imparcial e desinteressada do pesquisador se mostrou pouco exequível na
minha investigação.
Questionando o papel de neutralidade da ciência, Hugh Lacey 3 propõe uma
concepção mais ampla de razão e ciência como formas de chegar a diagnósticos
diferenciados. Defende que as “estratégias materialistas” que vigoram na ciência tem
como pressuposto o “controle sobre a natureza” enquanto valor social máximo da
modernidade. Nesse sentido, na medida em que se percebe o “controle” como um valor
social, já se excluiria a tese de neutralidade da ciência. Para Lacey, “exercemos controle
sobre os objetos quando, deliberadamente e com sucesso, informados por nossas crenças
sobre eles, os submetemos ao nosso poder”. 4 Sair desse “paradigma do controle” implica
desenvolver uma pluralidade de estratégias na investigação científica, redefinindo a
ciência, antes restrita ao materialismo científico do controle, para, somado a ele, inserir
novas formas de investigação. A utilização, por exemplo, de uma pesquisa empírica
sistemática permite que os valores atuantes não se restrinjam ao sistema de controle, mas
também proporcione múltiplas atuações e enfoques de outros valores, incluindo os não-
cognitivos.
Essa crise do método sempre acompanhou a historiografia da ciência do direito
do trabalho. No século XX, o Direito do Trabalho desconsiderou progressivamente a
ortodoxia metodológica da ciência jurídica e adquiriu uma sensibilidade crescente em

3
Lacey, Hugh. (1998). Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial; ______________.
(1999). Is science value free? – values and scientific understanding. New York: Routledge
______________. (2000). As formas nas quais as ciências são e não são livres de valores. Crítica, 6(21),
89-111; ______________ . (2008b). Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano. Scientiae Studia,
6(3), 297-327; ______________. (2008c). ______________. (2010). Valores e atividade científica. São
Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34; ______________. (2011). A imparcialidade da
ciência e as responsabilidades dos cientistas. Scientiae Studia, 9(3), 487-500.
4
Lacey, Hugh. (1999). Is science value free?: values and scientific understanding. London/New York:
Routledge, p. 111.
relação às perspectivas da sociologia. A mudança do método 5 coincidiu com uma
transação axiológica e com uma gradual mudança dos fins reconhecidos à intervenção
normativa. O Direito do Trabalho surge com a ambivalência de um método que leva em
conta o conhecimento sociológico como pressuposto epistemológico básico. Essa ruptura
metodológica, carregada de porosidade ideológica, insere elementos de “condição social”
com o objetivo de legitimar o trabalhador na qualidade de sujeito na relação e na execução
de trabalho. A função de proteção original do Direito do Trabalho era feita de
paternalismo6 porque assumia a preferência de proteção a um grupo social
metajuridicamente delimitado e específico.
As dialéticas sobre a configuração jurídica das relações de trabalho, que se iniciam
no contexto dos debates do projeto do Código Civil Alemão de 1900, encontram em
Anton Menger von Wolfensgrün (1841-1906) e Otto Friedrich von Gierke (1841-1921)
críticas 7 a uma modulação jurídico-contratual das relações de trabalho baseadas no direito
romano e em uma aproximação de tratamento das relações de trabalho com a venda e
locação de coisa, que resultou na previsão de um dever de proteção para o ser subordinado
(fürsorgepflicht) prevista no referido código alemão e ponto de partida para os diferentes
matizes sobre a natureza das relações contratuais trabalhistas desenvolvidas por Heinz
Potthof (1875-1945), Hugo Sinzheimer (1875-1945), Wolfgang Siebert (1905-1959),
Arthur Nikish (1878-1968), Erich Molitor (1886-1963) e Phillipp Lotmar (1850-1922),
que integram as bases teóricas da regulação da fenomenologia laboral e a consolidação
de sua autonomia. É importante ressaltar que o afloramento e desenvolvimento dessas
ideias na doutrina germânica foram desencadeados pela Constituição de Weimar, que
exigia a uniformização dos regimes laborais, reconhecia o dever de proteção social do
Estado aos trabalhadores e tutela à convenção coletiva. Em razão dessa ruptura com o
método, os juslaboralistas eram estigmatizados como “juristas sociólogos” criadores de
um sincretismo metodológico.

5
Sobre o método sociológico na análise tradicional do Direito do trabalho, ver Salento, Angelo. (2003).
Postfordismo e ideologie giuridiche: fuove forme d’ impresa e crisi del diritto del lavoro. Milano: Franco
Angeli, pp. 140-149.
6
Nesse sentido, ver Scelle, Georges. (1929). Le droit ouvirier (2a ed.). Paris: Armand Colin, p. 10.
7
Von Gierke, Otto. (1889). Der Entwurf eines bürgerlichen Gesetzbuchs und das deutsche Recht.
Schmollers Jahrbuch für Gesetzgebung, Verwaltung und Volkswirtschaft 12, Leipzig: Später als
Buchveröffentlichung, p. 104.
A relação de uma tese científica sobre Constituição e Trabalho, portanto,
carregava as raízes dessa crise do método. Os debates científicos sobre a Constituição do
Trabalho, que tradicionalmente esteve baseada no paradigma do emprego, merece ser
revitalizado em tempos de esvaziamento do sentido de emprego e verificação de
desemprego estrutural, em que situações atípicas de trabalho são transformadas em regra
em um mesmo momento histórico no qual se verifica a crise do Estado-nação e o
enfraquecimento da ordem constitucional. Entende-se que esse é um lugar de
investigação próprios das ciências jurídico-políticas, com a necessária orientação
multidisciplinar que o tema envolve, não apenas em fontes jurídicas como também não-
jurídicas.
Durante a investigação, tive um interesse especial na maneira como a relação entre
Constituição e Trabalho nasce e se fortalece, refundando-se em tempos de crise. Assim,
trata-se de uma pesquisa atenta ao papel do constitucionalismo na fundação e crise do
Estado social, principalmente no que tange a questão da regulação do trabalho. A
globalização, em seus pilares neoliberais e neodesenvolvimentistas, amplia formas de
extração de sobretrabalho, pautadas pela lógica financeira que reelabora o sentido de
tempo, espaço e produção.
O processo do trabalho contemporâneo, que combina materialidade e
imaterialidade em um complexo produtivo de atividades manuais e intelectualizadas,
evidencia formas distintas de precarização com exploração e autoexploração do trabalho.
Esse processo torna-se evidente em uma crise econômica que tende a provocar erosão de
proteção trabalhista e arrisca transformar a contingência em essência, colocando à prova
o modelo protetivo historicamente arquitetado pela constitucionalização do Estado social.
O trabalho, enquanto estrutura social de um Estado, sofre os impactos de uma
crise econômica global. Uma crise existe quando um sistema confronta um problema que
ele não consegue resolver pelas vias da normalidade. A crise reforça estigmas de
culpabilização do justrabalhismo pela situação econômica pondo em risco a própria
certeza do Direito do Trabalho que surgiu e se fortaleceu a partir das crises econômicas e
da luta pela sua sustentação científica. Inspirado na máxima de Confúcio de que “se
queres prever o futuro, estuda o passado”, busquei desenvolver a análise de uma
morfologia da regulação do trabalho a partir da busca de afirmação do seu sentido
valorativo, através de uma tessitura de um diálogo do pensamento jurídico com um
conjunto de referenciais filosóficos, econômicos, históricos e sociológicos devidamente
sistematizados que revitaliza a centralidade do trabalho enquanto objeto dinâmico de
investigação científica jurídico-política. Foi na busca da história das ideias sobre o
trabalho que consegui extrair caminhos de investigação sobre o tema.

2. A experiência da escrita

2.1. As dificuldades na escrita

Desde o início, apostei na transdisciplinaridade8 como caminho para alcançar os


melhores resultados sobre o que pretendia investigar. Trata-se de um método que vai na
contramão da tradição de uma prática científica atomista e fragmentada, que tem como
paradigma a objetividade e neutralidade das ciências humanas com certa identificação à
divisão técnica de trabalho dos modelos taylorista e fordista. Os estudos sobre o trabalho
devem levar em conta as divisões e estratificações internas dos diversos tipos de
sociedade sem se afastar do caráter transfronteiriço das suas acepções econômicas,
sociológicas, filosóficas, psicológicas, históricas e linguísticas.
No âmbito jurídico, a tese também dialogou com a Ciência Política, Teoria do
Estado, Direito do Trabalho, Direito Internacional, Direito Civil, Direito Comunitário,
Direito Ambiental e Direito Econômico. A pluralidade de hipóteses sobre o futuro do
trabalho e a erosão do conteúdo social, a mudança no sistema econômico com a
aceleração no processo de produção e gestão das inovações, a reestruturação organizativa
da empresa e a juridicidade de tutelas trabalhistas em um cenário econômico de
mutabilidade, mobilidade e aleatoriedade são temas que interessam às investigações
jurídico-políticas. Os momentos históricos da crise do trabalho despertam a porosidade
entre os saberes dos diversos matizes investigativos sobre o trabalho enquanto categoria.
Assim, a escrita do texto parte dessas premissas epistemológicas interconectadas:
a primeira é a impossibilidade de análise de seu objeto por uma ótica fragmentada de
investigação científica; a segunda é a superação de uma concepção de neutralidade da
ciência, utilizando-se de critérios frutos dos valores cognitivos, mas consciente da
influência dos valores sociais na percepção da realidade a ser investigada.
A transdisciplinariedade pode ser um método potente, mas também um arriscado
abismo científico. O uso da multidisciplinaridade envolve um desafio metodológico

8
Sobre a trandisciplinaridade, ver Kuhn, Thomas (2007). A estrutura das revoluções científicas (9a ed.).
São Paulo: Perspectiva; Nicolescu, Basarab. (1999). O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo:
Triom.; Plaza, Julio. (1987). Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; Warat, Luis Alberto. (2004).
Epistemologia e ensino do Direito. Florianópolis: Fundação Boiteux; Warat, Luis Alberto. (2004).
Territórios desconhecidos. Florianópolis: Fundação Boiteux.
permanente, visto que deve se reconhecer que o domínio do Direito não deve corromper
o domínio metodológico das demais ciências, sob pena de se arriscar em truísmos
desnecessários e reconhecer, desde o início, os limites da ciência jurídica em abordagens
que fogem à sua área.9
Trata-se, portanto, de um caminho desafiador para escrita sobre os problemas do
trabalho, em que a complexidade10 do mundo contemporâneo e o sistema de redes
resistem a resultados baseados em conhecimento nuclear e superespecializado. Assim,
sem descuido do método de investigação jurídico-político, persisti no objetivo de escrever
uma tese inspirada em estudos interdisciplinares, multidisciplinares e, sobretudo,
transdisciplinares, que influenciam o saber dogmático quando ele é posto em contato
com outros modos de apreensão de conhecimento.
Tive dois momentos de produção: a primeira fase foi de leitura e investigação,
que foi realizada em Lisboa e Roma. Neste período, fiquei afastado das minhas
atividades acadêmicas de origem. Minha rotina diária dava-se em bibliotecas,
realizando leitura e fichamentos. A segunda fase de escrita deu-se no Brasil e teve que
ser conciliada com uma rotina intensa de aulas e gestão acadêmica. Esse foi meu
principal desafio. A escrita demanda tempo. Meu processo de escrita era lento,
sobretudo com o meu interesse persistente em não realizar um texto descritivo,
dogmático e hermético. As investigações continuavam durante a escrita e a realidade
social deixava o processo ainda mais pungente. Escrevi uma tese de alta porosidade
valorativa entre 2014 e 2018, período de crise política estampada no Brasil. Para além
de um papel de cidadão interessado nos rumos do país, a condição de professor exigia
um acompanhamento dos acontecimentos frenéticos de diversos assuntos complexos
que atingiam o cenário social brasileiro. Assim, a energia para a escrita acabava sendo
consumida por outras energias intelectuais. O nascimento dos meus dois filhos,
contrariedades de saúde e aumento da carga de trabalho, durante o período de escrita,
fecham o ciclo de um ambiente complicado de produção. Assim, cada semana de página
não escrita transformava-se em um combustível para meu afligimento e frustração. Mas

9
Sobre um problema de método nos trabalhos multidisciplinares, indicando as técnicas para um trabalho
disciplinar sério e contundente, ver Monebhurrun, Nitish. (2015). Manual de metodologia jurídica. São
Paulo: Saraiva, pp. 33-37.
10
Morin, Edgar. (1999). Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino
fundamental. Natal-RN: EDUFRN - Editora da UFRN.
era preciso menos autocomplacência e mais pragmatismo para superar as dificuldades
conjunturais para a escrita.

2.2. A superação das dificuldades na escrita

As dificuldades com a escrita são superadas com a própria escrita. Por vezes, a
percepção de um ambiente desfavorável traz a sensação de caos e impotência para a
escrita. A indisciplina é a base para esse caos. O doutorado traz consigo o aprendizado de
lidar com a nossa resiliência e maturidade através da disciplina. A materialidade da
experiência da escrita é que faz com ela aconteça. Ao contrário, a energia se dilui em
ansiedade e resulta em procrastinação. É preciso abandonar o mito de um texto em
abstrato e enfrentar a produção de um texto concreto. Se a ideia de um texto permanece
na fantasia, o texto concreto escapa. Enquanto a tese estiver próxima de uma abstração,
mais inacessível ela se resulta.
A dificuldade e superação da escrita não acontecem em campos separados como
momentos históricos distintos. É necessário abandonar o entresonho de que, em um
momento futuro, você estará pronto para escrever. Lidei com as dificuldades da escrita
até o momento do depósito. Em meio a uma rotina atribulada, a desorganização com a
escrita é consequência, e não causa. Quem opta por realizar um doutorado sabe dos
benefícios da disciplina. A disciplina como discurso moral e estratégico é previsível de
ser racionalizada. Contudo, a tese da “disciplina como chave do sucesso” muitas vezes
torna-se um apedrejamento moral àqueles que não conseguem escrever. Agendas,
cronogramas e metas são necessários, mas é importante também saber lidar com a
possibilidade de não cumprir esses direcionamentos. A ideia permanente de erro justifica
uma sensação permanente de punição. E essa sensação é extremamente prejudicial para
a produção da tese.
É preciso uma espécie de autognose sobre o seu processo de escrita, no campo da
inspiração e no campo da concretização do texto. No meu caso, eu observava que
precisava de uma margem ampla de tempo. Não conseguia escrever em períodos curtos
como uma ou duas horas na agenda diária. Eu notava que meu processo de escrita exigia
um período inicial de alinhamento da dispersão, seguido de um tempo de leitura e, no
final do período, a escrita aparecia com alguma fluidez. O ambiente da faculdade (em
razão do trabalho) e de casa (em razão da rotina com as crianças) não era propício.
Demorei muito para aceitar isso, porque eram ambientes que se ajustavam à comodidade
da minha rotina. Separei alguns turnos para me isolar em lugares completamente distintos
do meu ambiente profissional e pessoal, em especial bibliotecas com públicos diversos
do meio jurídico. Assim, o processo de escrita começou a funcionar.
Vivemos a sociedade da dispersão em meio ao excesso de informações
disponíveis. A artesania de uma tese parece ir na contramão de um mundo que
racionaliza problemas em hiperlinks e informações condensadas. As redes sociais, ao
mesmo tempo que pautam novos insights para a investigação, também são fontes de
dispersão no processo criativo. Durante o meu período de estudos em Lisboa e Roma,
saí de todas as minhas redes sociais. A decisão por essa ruptura teve como objetivo ter
uma outra experiência de tempo e de espaço naqueles países. Uma vida desconectada
do frenesi digital me permitiu restabelecer a prática diária e meditativa que o alto nível
de leitura exigia. Ao mesmo tempo, eu pude aproveitar as novas referências que a
condição de estrangeiro me proporcionava, com maior atenção aos dados e elementos
locais de Portugal e da Itália. Com o retorno ao Brasil e às aulas, a volta à rede tornou-
se necessária por atualização das pautas e debates online. Nessa fase, as redes sociais
confirmavam-se, de maneira ambivalente, como potencializadoras e dispersadoras da
escrita. É preciso administrar essa relação em ambivalência.
Conversar sobre a tese com pessoas interessadas, competentes e sinceras é
importante para deixa-la mais clara. Participei de vários eventos acadêmicos relacionados
ao meu tema. Isso foi fundamental para amadurecer minhas hipóteses e dividir ideias com
pesquisadores do meu mesmo objeto de estudo. Falar sobre a tese, com frequência,
esclarece pontos que precisam ser amadurecidos. Por isso, é muito importante a
participação em rodas de conversas, grupos de estudos ou mesmo um café com pessoas
pacientes que compreendam o seu processo criativo. Criar redes de apoio durante o
doutorado é muito importante. Deve fazer parte da rotina do doutorando a procura de
espaço em que suas ideias sejam expostas e contrapostas.
O volume da tese e o meu prazo exigiam uma produção mais célere, logo comecei
a passar períodos isolamento para escrita, em feriados e férias. A principal parte da minha
tese foi escrita nestes períodos, que me davam maior destreza com o tempo e a inspiração.
Boa parte desses períodos aconteceram em Lisboa, o que possibilitava contato com meu
orientador, com quem tive excelente relação e me trouxe contrapontos e provocações
fundamentais no curso do trabalho.
Registre-se os diferenciais de condições políticas de espaço para estudos na
Europa, incluindo salas abertas 24h. Na Universidade de Lisboa, o Caledoscópio,
inaugurado em 2016, foi integrado no projeto de requalificação do Jardim do Campo
Grande, próximo à Faculdade de Direito. Era um espaço de estudo confortável e
estruturado que ficava aberto durante a madrugada. Minha rotina em Portugal, durante
esses períodos finais de escrita, concentrava-se entre o período diurno na biblioteca e
as madrugadas no Caledoscópio. São nestes momentos que você compreende como
terminar um doutorado é um exercício de solidão e persistência. Hoje, escrevendo essas
linhas, já lembro desse tempo com nostalgia e orgulho, mas sem romantizá-lo. Foram
tempos difíceis.

3. A experiência de vivência : as dificuldades e superações da vida do doutorando

A realização de um doutorado na Universidade de Lisboa é um


investimento de longo prazo. O curso é muito longo e as teses costumam, por tradição,
ser volumosas (embora isso não seja uma exigência formal da faculdade). Enquanto a
média de um curso de doutorado no Brasil dura entre três e quatro anos, na Universidade
de Lisboa acontece em um período superior a cinco anos (incluindo a fase escolar e todo
o procedimento entre o depósito e a defesa da tese, sem contar o eventual período de
validação do título no Brasil). Minha tese resultou em um texto de 516 páginas
divididas em 15 capítulos, o que demostra, por si só, o desafio que foi escrevê-la. A
opção por realizar um doutorado neste formato não é conveniente para aqueles que
pretendem pragmaticamente receber um “título de doutor” com objetivos de curto
prazo. Investi neste modelo porque gostaria de fazer do meu doutorado um momento
de imersão intelectual de longo prazo. Gostaria, em especial, de estabelecer o trilho de
um percurso investigativo futuro em uma tese que demonstrasse lugares férteis de
investigação sobre o mundo do trabalho.
Realizei meu mestrado logo após a graduação e, em seguida, passei quinze anos
de trabalho docente intensivo e exclusivo. Investi em um doutorado em uma instituição
estrangeira como uma consagração pessoal desse período, em especial procurando
diálogo com outras fontes e vivências acadêmicas. Essa escolha implicou em um
planejamento financeiro prévio, visto que a carência de bolsas de fomento nacionais e
estrangeiras em razão da crise. Para esse modelo de doutorado, o tempo é uma espécie
de coorientador. Pensar o valor do trabalho é pensar também o modo de se colocar no
mundo. Um doutorado de longo prazo traz a vivência de percepção do quanto seu olhar
e linguagem perante o mundo amadurecem com o tempo.
A primeira etapa do doutorado foi de busca de repertório para a escrita,
amadurecimento de hipóteses e delimitação do objeto de investigação. Para isso, tentei
adequar, dentro do possível, que os trabalhos da fase escolar dialogassem com algum
tema do meu interesse na tese. Esse é um período de procura de acervo e inspiração,
para além de textos científicos, inclusive. Vivê-lo, com exclusividade, no estrangeiro,
foi um privilégio conquistado. A condição de estrangeiro nos coloca em uma outra
experiência de espaço e de tempo, que aguça a sensibilidade, a criticidade e a busca de
diálogo. As minhas reflexões sobre os impactos da última crise econômica foram
integradas a uma narrativa de cotidiano da crise, das calçadas, às notícias de jornais e
debates acadêmicos locais. No meu caso, pude vivenciar isso no contexto português e
italiano, verificando no local e na vivência os problemas que eu pretendia investigar.
É importante que antes da escrita, o acadêmico esteja motivado e insuflado com
o seu objeto de investigação. A academia no Brasil tem se mostrado refém de uma
métrica fordista baseada em pontuações burocráticas, sem espaços para uma maior
fecundidade ideativa. Inserir o trabalho como objeto de reflexão, implica também
pensar o valor do “tempo livre” oprimido pela pedagogia da idade industrial. A
cobrança burocrática da produção científica desconsidera a importância de outras
experiências intelectuais e estéticas que inspiram essa produção.
As investigações científicas sobre o mundo do trabalho não podem se blindar a
outros fatores e sensibilidades que vão além da própria ciência. Como investigação dos
anseios e necessidades da vida do homem, as investigações científicas devem refletir a
percepção do entrelaçamento de atividades materiais e simbólicas que a categorização do
trabalho é lida através de meios diversificados. A arte, por exemplo, é historicamente um
mecanismo de revelação do Direito e de desconstrução do senso comum teórico. Um
estudo dinâmico e oxigenado sobre questões relacionadas ao mundo do trabalho, quando
imersas nas provocações artísticas, atingem uma sensibilidade 11 teórica que, se
equilibrada com a firmeza do método científico, facilita uma narrativa mais aproximada
das demandas que a complexidade do mundo do trabalho exige. Não é o caso, neste
relato, de adentrar nessa profunda relação 12 entre arte e ciência e nos percursos

11
Sobre a relação entre ciência e sensibilidade, ver Ostrower, Faya. (1998). A Sensibilidade do Intelecto.
Rio de Janeiro: Editora Campus.
12
Sobre a relação entre arte e ciência, ver Ostrower, Faya. (1984). Criatividade e Processos de Criação".
Rio de Janeiro: Editora Vozes.
acadêmicos da busca de uma razão sensível. 13 Mas deve-se enfatizar a relevância dessa
questão nas investigações científicas sobre o trabalho.
A minha vivência no doutorado confirmou a hipótese de que o pensamento e a
percepção sobre o valor-trabalho devem ser realizadas não apenas através da produção
científica que pretendeu investigar, mas também das manifestações artísticas que
expressam as diversas sensibilidades sociais sobre esse mundo. Defendo, portanto, o
consumo da historiografia sobre o trabalho através da arte como constituição de uma
“análise dos tempos”14 sobre o trabalho. Ou, aproveitando-se de um signo15 proustiano, a
percepção do mundo do trabalho através da arte é inspiradora ao jurista na construção da
elaboração e problemas e narrativa do seu texto. O cinema16, por exemplo, é um
importante aliado da linguagem que historicamente reflete questões laborais 17. Os signos,
códigos e convenções do cinema servem para inspirar uma percepção crítica e sensível
sobre o conjunto das sugestões temáticas relacionadas aos problemas do trabalho e suas
múltiplas imagens reais e imaginárias. A arte foi, portanto, o meu refúgio para as crises
criativas durante a produção da minha tese.
A fase de escrita, contextualizada com tudo o que foi narrado no tópico anterior,
foi caracterizada por grandes colapsos de auto-sabotagem. A soma da necessidade de
controle sobre a produção, a falta de tempo e a ausência dos resultados esperados
resultou em uma crise de ansiedade. O doutorado, especialmente durante a escrita da
tese, resulta em um sentimento de “culpa pelo tempo livre”. A ausência de descanso e
a tentativa de controle resultam em um estado de ansiedade que é somatizado no seu
corpo. Assim, os recentes estudos 18 confirmam que os estudantes de pós-graduação têm

13
Maffesoli, Michel. (1996). Eloge de la raison sensible. Paris, Grasset.
14
Sobre a arte enquanto “imagem sobrevivente”, ver Didi-Huberman, George. (2013). Imagem
sobrevivente: a história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. São Paulo: Contraponto.
15
Deleuze, Gilles. (2003). Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
16
Sobre o cinema como representação social, ver Metz, Christian (2010). A significação no cinema. São
Paulo: Perspectiva; Ferro, Marc (2010). História e cinema. São Paulo: Paz e Terra; Jodelet, D. (2001). As
representações sociais. Rio de Janeiro, UERJ, p. 420; Deleuze, Gilles. (1985). A imagem-tempo. São Paulo:
Brasiliense, p 338; Eisenstein, Serguei. (1990). O Sentido do Filme, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor; Buñuel, Luis (1982). Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
17
Pensando nisso, divido algumas dicas de filmes sobre o mundo do trabalho na página
https://www.instagram.com/trabalhonocinema/

18
Evans, T. M., Bira, L., Gastelum, J. B., Weiss, L. T., & Vanderford, N. L. (2018). Evidence for a mental
health crisis in graduate education. Nature Biotechnology, 36(3), 282–284.
maiores chances de enfrentar depressão e ansiedade. Para isso, é preciso administrar o
processo de escrita com o autocuidado em uma agenda que consiga, na medida do
possível, aliar a produtividade com a qualidade de vida que o momento exige.
No último semestre de escrita, reorganizei a minha rotina para ela, cumprindo,
com rigor e disciplina, os prazos estabelecidos. Nessa fase, embora a tese estivesse pronta,
o texto ainda possuía muitos vazios. É também necessário um desapego com textos e
capítulos que precisam ser excluídos. Há também uma certa frustração por a tese não
refletir a projeção imaginada no projeto, mas ela ganha uma identidade própria. A tese
que, antes era um projeto em abstrato, consolida-se como um produto concreto, autêntico
e imperfeito. O dia do depósito da tese será lembrado pela sensação de alívio e desapego.

4. A experiência da defesa

Na Universidade de Lisboa, o prazo entre o depósito da tese e a defesa oral é muito


longo, superior a um ano de espera. Após o alívio provocado pelo depósito, a tendência
é de um afastamento da tese. Passei praticamente um ano sem voltar a ler meu trabalho.
Esse afastamento é importante, inclusive. Esse modelo administrativo da faculdade, sem
desconsiderar as críticas a esse tempo de espera, proporciona um momento peculiar de
reencontro com sua tese, ainda durante o curso de doutorado.
Com a chegada da data da defesa, uma leitura mais afastada do texto provoca uma
combinação ambígua de orgulho e desapontamento. Já é possível perceber com mais
clareza os valores e as falhas do trabalho. E organizar as suas estratégias para a defesa.
A dica básica para qualquer defesa oral é conhecer o regimento institucional com
as regras para o procedimento. Na Universidade de Lisboa, a duração total do ato público
de defesa da tese não deve exceder 150 minutos. Antes do início do debate público, deve
ser facultado ao candidato um período de até 30 minutos para apresentação do seu
trabalho, que pode ser dispensado pelo candidato. A sessão segue com fala dos dois
professores arguentes, podendo os vogais intervir na discussão pública. O candidato tem
o mesmo tempo de resposta para se pronunciar. Após a prova, o júri reunir-se-á para
proceder à sua apreciação e classificação por votação nominal fundamentada.
Minha última imersão de estudo no doutorado foi uma semana antes da sessão de
defesa. Passei um tempo de isolamento de leitura e estudos durante cinco dias. Como a
tese era muito longa, o objetivo seria marcar os pontos principais de cada parte do texto.
Neste período, é importante o controle sobre o texto, mais do que sobre o tema em estudo.
Há uma tendência de auto-sabotagem neste período porque as partes inconsistentes do
texto parecem ter destaque nesta leitura final criteriosa. Há um clichê que todo acadêmico
ouve e reproduz : quem mais conhece sua tese é você. Nessa hora, é preciso não esquecer
dessa máxima e não se deixar render pela vacilação e impaciência. O que a sessão de
defesa mais pede do candidato é segurança e tranquilidade.
No fim de semana antes da defesa, descansei. Não li nada do trabalho. Essa é a
dica que mais enfatizo para quem se submeterá a provas orais. O momento da defesa é
uma consagração de todo o processo do doutorado e não queria que a ansiedade e a
insegurança fossem os protagonistas desse momento. É também um momento que pede
muita lucidez, sobriedade e foco. O descanso prévio é fundamental para a vitalidade que
a prova exige. Fiz do dia da defesa um momento quase solene e, para minha surpresa,
encontrei neste dia uma serenidade que não esperava. Ali um ciclo de fechava. E não me
refiro apenas a um ciclo acadêmico, mas a um momento da minha vida. São as entrelinhas
de uma tese que faz o doutorado acontecer. Fui à defesa ciente do que aquilo representava
para minha vida.
O momento mais importante da sessão de defesa é o das respostas às provocações
dos arguentes. Nesse sentido, foi importante as marcações dos pontos-chave do texto
como um guia para essas respostas. É preciso também saber ler as críticas para contestá-
las. A rigidez de uma arguição é a melhor homenagem que se pode dar a um trabalho.
Uma banca sem críticas ao trabalho avaliado é um desserviço para a mundo acadêmico.
O momento do resultado era o que menos importava. E essa é uma das lições que o
doutorado me conduziu: a academia não está no termo, está no percurso.

Considerações finais aos pesquisadores do mundo do trabalho

As defesas do fim da centralidade do trabalho se contrapõem aos vazios de


respostas sobre o futuro do trabalho e a chegada da chamada quarta Revolução
Industrial,19 onde diversas categorias de trabalho serão automatizadas. O Global Gender
Gap Report de 201520 do Fórum Econômico Mundial informa que no ritmo de progresso

19
Schwab, Klaus. (2016). A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro.
20
Recuperado de http://reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2015/
que nos encontramos a sociedade mundial levará 118 anos para atingir a paridade
econômica de gênero, o que demonstra a fecundidade sobre igualdade de gênero no
ambiente de trabalho. Na bioética, já se debate sobre a possibilidade das empresas
solicitarem informações de caráter genético 21 com o objetivo de formar juízo sobre quem
devem admitir. Os problemas do trabalho disruptivo e da chamada economia
compartilhada já são objeto de calorosos debates sobre a natureza do vínculo laboral 22 e
as sinalizações dos sintomas de precarização 23 do trabalho. A sociedade em rede vem
apresentando problemas do modelo de propriedade na internet, debates sobre o
cooperativismo de plataforma, movimentos de combate à “servidão do algoritmo”. 24 A
proteção ao não trabalho e ao direito ao lazer tem se revitalizado nos recentes debates do
direito à desconexão, 25 que já possui previsão expressa na legislação 26 trabalhista
contemporânea. O modelo Always On27 confirma a dificuldade de separação entre vida
pessoal e a vida profissional do trabalhador e exige um trabalhador polivalente com
equilíbrio físico e psicológico para as demandas permanentes de uma empresa ativa em
24h. A vida pessoal do trabalhador inserido em redes sociais28 absorve a subordinação
jurídica do contrato de trabalho e pode retomar aspectos de uma eventual “servidão
voluntária”29 no modo como essa relação é introjetada pelo próprio trabalhador. Ao

21
Xavier, Bernardo da Gama. (2003). A Constituição, a tutela da dignidade e personalidade do trabalhador
e a defesa do patrimônio genético. Uma Reflexão. Memórias do V Congresso Nacional de Direito do
Trabalho. Lisboa: Almedina, pp. 261-272.
22
Prassl, Jeremias and Risak, Martin. (2016). Uber, Taskrabbit, & Co: Platforms as Employers? Rethinking
the Legal Analysis of Crowdwork Comparative Labor Law & Policy Journal, Forthcoming; Oxford Legal
Studies Research Paper, 8. Recuperado de https://ssrn.com/abstract=2733003
23
Slee, Tom. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precário. São Paulo: Elefante.
24
Scholz, Trebor. (2017). Uberworked and Underpaid: How Workers Are Disrupting the Digital
Economy. Cambridge, Polity Press.
25
Ray, Jean-Emmanuel. (2016). Grande accélération et droit à la déconnexion. Droit social, 11, pp. 912-
920.
26
É o caso da recente modificação do Code Travail francês (artigo 2242-8, 7o).
27
Moreira, Teresa Coelho. (2012) As novas tecnologias de informação e comunicação : um admirável
mundo novo do Trabalho? Estudos de homenagem ao prof. Doutor Jorge Miranda – Vol VI. Lisboa:
Almedina, pp. 953-973.
28
Ray, Jean-Emmanuel. (2011). Facebook, le salarié et l'employeur. Droit Social, 2, pp. 128-140.
29
Ray, Jean-Emmanuel. (2010). Actualité de TIC: tous connectés, partout, tout le temps? Droit social,
6 , pp. 516-52; e Bouchet, Jean Paul, & Ray, Jean-Emmanuel. (2010). Vie profissionnelle, vie personnelle
et TIC. Droit social, 1, p. 44.
mesmo tempo, os índices de escravidão contemporânea e a preocupação com o dumping
social permanece na pauta dos debates acadêmicos.
Os estudos jurídicos sobre questões laborais devem levar em conta todo esse
complexo de diálogos que o mundo do trabalho proporciona. Se realizar um doutorado é
um marco na vida de um acadêmico, o investimento numa tese que elege o trabalho como
categoria investigativa é desafiador, pungente e provoca ricos mergulhos intelectuais
sobre o modo de pensar o mundo, a existência e a ciência.

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