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adequado de pesquisa.
1. A experiência da pesquisa
Embora não fosse o objeto direto do estudo, foi importante revisitar a literatura
sobre o debate da ingerência e controle dos valores sociais do investigador na análise do
seu objeto de investigação e o papel dos valores em uma teoria científica. Embora esse
seja objeto de investigação da Filosofia da Ciência, a questão merece um sucinto percurso
investigativo sobre a relação abstrata entre valor e ciência.
Os chamados “filósofos da natureza” pensavam ser possível obter uma lei
científica por uma concepção teológica identificada ou com uma verdade divina ou com
uma concepção platônica de acesso ao mundo das ideias. Ultrapassada historicamente
essa percepção, verifica-se que as teorias científicas são produto de uma atividade
humana metodologicamente organizada, que demonstra não só a capacidade de abstração,
mas uma atitude objetivante. Integra essa atitude objetivante a necessidade de um
distanciamento do cientista da percepção imediata do objeto de investigação. No processo
de produção da tese, assim como nas investigações ligadas às Ciências Humanas em
geral, surge uma primeira questão: é possível atingir tal atitude objetivante na
investigação de objetos científicos que suscitam, a todo instante, um juízo de valor?
Primeiramente, a busca da cisão entre o sujeito investigador e o objeto investigado
como elemento necessário à prática científica deve também reconhecer que a objetividade
completa é inalcançável. No cerne da argumentação de uma razão científica, a dicotomia
entre fato e valor se estabelece durante a revolução científica da primeira metade do
século XVII, em especial com Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650),
Galileu Galilei (1564-1642) e Blas Pascart (1623-1662). A reivindicação de um método
racional surgia em contraponto ao princípio da autoridade que estava fincado na tradição.
Portanto, o método seria suficiente para se chegar ao conhecimento, e a suficiência do
método resultaria na autonomia da ciência em relação aos valores. A partir da vinculação
dos valores ao princípio de autoridade e da ciência ao método, começaram as distinções
que hoje representam as ciências naturais e humanas.
No Direito e na Política, enquanto campo latente dos valores, persistia o princípio
da autoridade. Nas ciências naturais, o método, baseado na razão natural, prescindia da
tutela dessa autoridade. Em razão do domínio dos valores estar fortemente vinculado à
religião, cabia à ciência o domínio dos fatos. Nesse campo, as condenações de Galilei são
a representação histórica de separação entre ciência e religião. Assim, o nascimento do
método científico no século XVII é a ancoragem do método na razão natural aplicado na
universalidade dos homens. Desvinculado do princípio da autoridade, o método garantiria
que a prática científica chegasse a juízos sobre o fato, independentemente de intervenções
externas.
Essa relação entre fato e valor tem novos contornos no século XVIII com David
Hume (1711-1776), que traz uma distinção mais operacional através do que se chamou
de “neutralidade cognitiva”, ou seja, para aplicar o método das ciências é necessário que
o pesquisador cancele seu complexo de valor, enquanto conjunto de perspectivas
políticas, econômicas, estéticas, interpretativas e outras que propulsionam perspectivas
de valor. Nessa ótica, 1 a prática científica se desenvolve, de um lado, com objetivos
internos (ou intrínsecos) e, de outro, com objetivos externos. Os primeiros buscam teorias
capazes de prever os fenômenos e explicá-los, sendo traçados por um conjunto de critérios
próprios. Os objetivos externos são as motivações externas (econômicas, religiosas ou
políticas, por exemplo) que podem impulsionar essa busca. Para tal perspectiva, o
pesquisador deve abstrair os objetivos externos enquanto análise de sua investigação.
Observa-se que, na medida em que se estabelece critérios para os objetivos
internos dessa prática científica, já se está alinhando ciência e valor numa mesma esfera.
É importante perceber que fato e valor, embora possuam domínios próprios, têm relação
de interconexão, não podendo ser tratados dicotomicamente. Contudo, é necessário
retomar a classificação entre valores cognitivos e valores não-cognitivos, como um
auxílio para se atingir a imparcialidade, a objetividade e o controle sobre a investigação.
Os valores não cognitivos (ou simplesmente valores sociais) são complexos de
perspectivas de valores baseados em crenças religiosas, políticas, interesses econômicos,
pré-conceitos, expressões morais, estéticas e até perspectivas de florescimento humano.
1
Nesse sentido, ver Guins, Michel. (2013). Uma introdução à metafísica da natureza: representação,
realismo e leis científicas. Curitiba: Editora UFPR.
Observa-se que quem distingue valores sociais e cognitivos já reconhece a existência de
valores na atividade científica e, desde já, refuta a ideia de que a ciência é livre de valores.
Mas, mesmo essa concepção, fincada ainda no materialismo científico, retira da ciência
qualquer interação com os valores não-cognitivos, de modo que apenas os valores
cognitivos integrariam a prática científica.
Durante a realização da pesquisa, observou-se uma dificuldade em se manter
atrelado a essa concepção. Pensar o mundo do trabalho na contemporaneidade abstraindo
cirurgicamente todo o complexo de percepção valorativa de mundo é de difícil aplicação
prática. Quando se vai analisar, por exemplo, o trabalho na sociedade antiga, não se pode
deixar de reconhecer que essa análise sempre tem como referência a aplicação de
categorias conceituais sobre o trabalho que são utilizadas hoje. A investigação sobre as
dinâmicas do trabalho em uma perspectiva jurídico-política suscita claros
entrelaçamentos do saber científico com a política. Os primeiros estudos sobre a história
operária, por exemplo, eram sobretudo estudos políticos, realizados dentro do movimento
operário. A versão histórica do movimento do operariado identifica-se com a ideologia
desses movimentos. Tais estudos só tomaram conotação acadêmica entre 1830 e 1840,
quando um surgimento de novo proletariado passou a despertar interesse científico, o qual
teve, durante as décadas de sessenta e setenta, uma expressiva representação de
historiadores 2 que consolidaram uma história científica do movimento operário através
dos seus usos e costumes, modos de vida e formas de luta.
Embora a minha tese tenha investigado pragmaticamente as diversas dimensões
de crise que a relação entre o Trabalho e o Direito impulsionam a partir do parâmetro do
constitucionalismo, é impossível que seu processo de investigação blinde por completo
os valores não-cognitivos do investigador. A pesquisa foi produzida no curso de
doutoramento em Lisboa, com parte da investigação na Itália, por um pesquisador
brasileiro, durante um período crítico de crise econômica na Europa e no Brasil. Ademais,
a escrita dela deu-se principalmente nos anos de 2016-2018, período de um cenário
jurídico-politico crítico no Brasil, que resultou, entre outras consequências, na aprovação
da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), que era uma expressão concreta e histórica
daquilo que investigava. Ou seja, mesmo que os critérios de objetividade e imparcialidade
2
Como Edward Thompson (1924-1993), Eric Hobsbawn (1917-2012) e Georges Haupt ( 1928-1978) e os
franceses Jean Maitron (1910-1987), Michele Perrot ( 1928 -) e Antoine Prost (1933- ) . Sobre o assunto,
ver Hobsbawn, Eric. (2005). Mundos do Trabalho (3a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 15-31.
tenham sido norteadores do processo, é possível que se manifeste nas suas linhas e
entrelinhas a experiência sensorial, cultural, moral, estética e de outros campos
valorativos de um mundo do trabalho percebido originalmente a partir de um país em vias
de desenvolvimento a que pertence o pesquisador.
Assim, precisei buscar um referencial teórico metodológico para guiar a pesquisa
com os nortes de capacidade de abstração e atitude objetivante a que ela se propõe. A
percepção da ciência que produz produtos teoréticos neutros através de uma investigação
completamente imparcial e desinteressada do pesquisador se mostrou pouco exequível na
minha investigação.
Questionando o papel de neutralidade da ciência, Hugh Lacey 3 propõe uma
concepção mais ampla de razão e ciência como formas de chegar a diagnósticos
diferenciados. Defende que as “estratégias materialistas” que vigoram na ciência tem
como pressuposto o “controle sobre a natureza” enquanto valor social máximo da
modernidade. Nesse sentido, na medida em que se percebe o “controle” como um valor
social, já se excluiria a tese de neutralidade da ciência. Para Lacey, “exercemos controle
sobre os objetos quando, deliberadamente e com sucesso, informados por nossas crenças
sobre eles, os submetemos ao nosso poder”. 4 Sair desse “paradigma do controle” implica
desenvolver uma pluralidade de estratégias na investigação científica, redefinindo a
ciência, antes restrita ao materialismo científico do controle, para, somado a ele, inserir
novas formas de investigação. A utilização, por exemplo, de uma pesquisa empírica
sistemática permite que os valores atuantes não se restrinjam ao sistema de controle, mas
também proporcione múltiplas atuações e enfoques de outros valores, incluindo os não-
cognitivos.
Essa crise do método sempre acompanhou a historiografia da ciência do direito
do trabalho. No século XX, o Direito do Trabalho desconsiderou progressivamente a
ortodoxia metodológica da ciência jurídica e adquiriu uma sensibilidade crescente em
3
Lacey, Hugh. (1998). Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial; ______________.
(1999). Is science value free? – values and scientific understanding. New York: Routledge
______________. (2000). As formas nas quais as ciências são e não são livres de valores. Crítica, 6(21),
89-111; ______________ . (2008b). Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano. Scientiae Studia,
6(3), 297-327; ______________. (2008c). ______________. (2010). Valores e atividade científica. São
Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34; ______________. (2011). A imparcialidade da
ciência e as responsabilidades dos cientistas. Scientiae Studia, 9(3), 487-500.
4
Lacey, Hugh. (1999). Is science value free?: values and scientific understanding. London/New York:
Routledge, p. 111.
relação às perspectivas da sociologia. A mudança do método 5 coincidiu com uma
transação axiológica e com uma gradual mudança dos fins reconhecidos à intervenção
normativa. O Direito do Trabalho surge com a ambivalência de um método que leva em
conta o conhecimento sociológico como pressuposto epistemológico básico. Essa ruptura
metodológica, carregada de porosidade ideológica, insere elementos de “condição social”
com o objetivo de legitimar o trabalhador na qualidade de sujeito na relação e na execução
de trabalho. A função de proteção original do Direito do Trabalho era feita de
paternalismo6 porque assumia a preferência de proteção a um grupo social
metajuridicamente delimitado e específico.
As dialéticas sobre a configuração jurídica das relações de trabalho, que se iniciam
no contexto dos debates do projeto do Código Civil Alemão de 1900, encontram em
Anton Menger von Wolfensgrün (1841-1906) e Otto Friedrich von Gierke (1841-1921)
críticas 7 a uma modulação jurídico-contratual das relações de trabalho baseadas no direito
romano e em uma aproximação de tratamento das relações de trabalho com a venda e
locação de coisa, que resultou na previsão de um dever de proteção para o ser subordinado
(fürsorgepflicht) prevista no referido código alemão e ponto de partida para os diferentes
matizes sobre a natureza das relações contratuais trabalhistas desenvolvidas por Heinz
Potthof (1875-1945), Hugo Sinzheimer (1875-1945), Wolfgang Siebert (1905-1959),
Arthur Nikish (1878-1968), Erich Molitor (1886-1963) e Phillipp Lotmar (1850-1922),
que integram as bases teóricas da regulação da fenomenologia laboral e a consolidação
de sua autonomia. É importante ressaltar que o afloramento e desenvolvimento dessas
ideias na doutrina germânica foram desencadeados pela Constituição de Weimar, que
exigia a uniformização dos regimes laborais, reconhecia o dever de proteção social do
Estado aos trabalhadores e tutela à convenção coletiva. Em razão dessa ruptura com o
método, os juslaboralistas eram estigmatizados como “juristas sociólogos” criadores de
um sincretismo metodológico.
5
Sobre o método sociológico na análise tradicional do Direito do trabalho, ver Salento, Angelo. (2003).
Postfordismo e ideologie giuridiche: fuove forme d’ impresa e crisi del diritto del lavoro. Milano: Franco
Angeli, pp. 140-149.
6
Nesse sentido, ver Scelle, Georges. (1929). Le droit ouvirier (2a ed.). Paris: Armand Colin, p. 10.
7
Von Gierke, Otto. (1889). Der Entwurf eines bürgerlichen Gesetzbuchs und das deutsche Recht.
Schmollers Jahrbuch für Gesetzgebung, Verwaltung und Volkswirtschaft 12, Leipzig: Später als
Buchveröffentlichung, p. 104.
A relação de uma tese científica sobre Constituição e Trabalho, portanto,
carregava as raízes dessa crise do método. Os debates científicos sobre a Constituição do
Trabalho, que tradicionalmente esteve baseada no paradigma do emprego, merece ser
revitalizado em tempos de esvaziamento do sentido de emprego e verificação de
desemprego estrutural, em que situações atípicas de trabalho são transformadas em regra
em um mesmo momento histórico no qual se verifica a crise do Estado-nação e o
enfraquecimento da ordem constitucional. Entende-se que esse é um lugar de
investigação próprios das ciências jurídico-políticas, com a necessária orientação
multidisciplinar que o tema envolve, não apenas em fontes jurídicas como também não-
jurídicas.
Durante a investigação, tive um interesse especial na maneira como a relação entre
Constituição e Trabalho nasce e se fortalece, refundando-se em tempos de crise. Assim,
trata-se de uma pesquisa atenta ao papel do constitucionalismo na fundação e crise do
Estado social, principalmente no que tange a questão da regulação do trabalho. A
globalização, em seus pilares neoliberais e neodesenvolvimentistas, amplia formas de
extração de sobretrabalho, pautadas pela lógica financeira que reelabora o sentido de
tempo, espaço e produção.
O processo do trabalho contemporâneo, que combina materialidade e
imaterialidade em um complexo produtivo de atividades manuais e intelectualizadas,
evidencia formas distintas de precarização com exploração e autoexploração do trabalho.
Esse processo torna-se evidente em uma crise econômica que tende a provocar erosão de
proteção trabalhista e arrisca transformar a contingência em essência, colocando à prova
o modelo protetivo historicamente arquitetado pela constitucionalização do Estado social.
O trabalho, enquanto estrutura social de um Estado, sofre os impactos de uma
crise econômica global. Uma crise existe quando um sistema confronta um problema que
ele não consegue resolver pelas vias da normalidade. A crise reforça estigmas de
culpabilização do justrabalhismo pela situação econômica pondo em risco a própria
certeza do Direito do Trabalho que surgiu e se fortaleceu a partir das crises econômicas e
da luta pela sua sustentação científica. Inspirado na máxima de Confúcio de que “se
queres prever o futuro, estuda o passado”, busquei desenvolver a análise de uma
morfologia da regulação do trabalho a partir da busca de afirmação do seu sentido
valorativo, através de uma tessitura de um diálogo do pensamento jurídico com um
conjunto de referenciais filosóficos, econômicos, históricos e sociológicos devidamente
sistematizados que revitaliza a centralidade do trabalho enquanto objeto dinâmico de
investigação científica jurídico-política. Foi na busca da história das ideias sobre o
trabalho que consegui extrair caminhos de investigação sobre o tema.
2. A experiência da escrita
8
Sobre a trandisciplinaridade, ver Kuhn, Thomas (2007). A estrutura das revoluções científicas (9a ed.).
São Paulo: Perspectiva; Nicolescu, Basarab. (1999). O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo:
Triom.; Plaza, Julio. (1987). Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; Warat, Luis Alberto. (2004).
Epistemologia e ensino do Direito. Florianópolis: Fundação Boiteux; Warat, Luis Alberto. (2004).
Territórios desconhecidos. Florianópolis: Fundação Boiteux.
permanente, visto que deve se reconhecer que o domínio do Direito não deve corromper
o domínio metodológico das demais ciências, sob pena de se arriscar em truísmos
desnecessários e reconhecer, desde o início, os limites da ciência jurídica em abordagens
que fogem à sua área.9
Trata-se, portanto, de um caminho desafiador para escrita sobre os problemas do
trabalho, em que a complexidade10 do mundo contemporâneo e o sistema de redes
resistem a resultados baseados em conhecimento nuclear e superespecializado. Assim,
sem descuido do método de investigação jurídico-político, persisti no objetivo de escrever
uma tese inspirada em estudos interdisciplinares, multidisciplinares e, sobretudo,
transdisciplinares, que influenciam o saber dogmático quando ele é posto em contato
com outros modos de apreensão de conhecimento.
Tive dois momentos de produção: a primeira fase foi de leitura e investigação,
que foi realizada em Lisboa e Roma. Neste período, fiquei afastado das minhas
atividades acadêmicas de origem. Minha rotina diária dava-se em bibliotecas,
realizando leitura e fichamentos. A segunda fase de escrita deu-se no Brasil e teve que
ser conciliada com uma rotina intensa de aulas e gestão acadêmica. Esse foi meu
principal desafio. A escrita demanda tempo. Meu processo de escrita era lento,
sobretudo com o meu interesse persistente em não realizar um texto descritivo,
dogmático e hermético. As investigações continuavam durante a escrita e a realidade
social deixava o processo ainda mais pungente. Escrevi uma tese de alta porosidade
valorativa entre 2014 e 2018, período de crise política estampada no Brasil. Para além
de um papel de cidadão interessado nos rumos do país, a condição de professor exigia
um acompanhamento dos acontecimentos frenéticos de diversos assuntos complexos
que atingiam o cenário social brasileiro. Assim, a energia para a escrita acabava sendo
consumida por outras energias intelectuais. O nascimento dos meus dois filhos,
contrariedades de saúde e aumento da carga de trabalho, durante o período de escrita,
fecham o ciclo de um ambiente complicado de produção. Assim, cada semana de página
não escrita transformava-se em um combustível para meu afligimento e frustração. Mas
9
Sobre um problema de método nos trabalhos multidisciplinares, indicando as técnicas para um trabalho
disciplinar sério e contundente, ver Monebhurrun, Nitish. (2015). Manual de metodologia jurídica. São
Paulo: Saraiva, pp. 33-37.
10
Morin, Edgar. (1999). Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino
fundamental. Natal-RN: EDUFRN - Editora da UFRN.
era preciso menos autocomplacência e mais pragmatismo para superar as dificuldades
conjunturais para a escrita.
As dificuldades com a escrita são superadas com a própria escrita. Por vezes, a
percepção de um ambiente desfavorável traz a sensação de caos e impotência para a
escrita. A indisciplina é a base para esse caos. O doutorado traz consigo o aprendizado de
lidar com a nossa resiliência e maturidade através da disciplina. A materialidade da
experiência da escrita é que faz com ela aconteça. Ao contrário, a energia se dilui em
ansiedade e resulta em procrastinação. É preciso abandonar o mito de um texto em
abstrato e enfrentar a produção de um texto concreto. Se a ideia de um texto permanece
na fantasia, o texto concreto escapa. Enquanto a tese estiver próxima de uma abstração,
mais inacessível ela se resulta.
A dificuldade e superação da escrita não acontecem em campos separados como
momentos históricos distintos. É necessário abandonar o entresonho de que, em um
momento futuro, você estará pronto para escrever. Lidei com as dificuldades da escrita
até o momento do depósito. Em meio a uma rotina atribulada, a desorganização com a
escrita é consequência, e não causa. Quem opta por realizar um doutorado sabe dos
benefícios da disciplina. A disciplina como discurso moral e estratégico é previsível de
ser racionalizada. Contudo, a tese da “disciplina como chave do sucesso” muitas vezes
torna-se um apedrejamento moral àqueles que não conseguem escrever. Agendas,
cronogramas e metas são necessários, mas é importante também saber lidar com a
possibilidade de não cumprir esses direcionamentos. A ideia permanente de erro justifica
uma sensação permanente de punição. E essa sensação é extremamente prejudicial para
a produção da tese.
É preciso uma espécie de autognose sobre o seu processo de escrita, no campo da
inspiração e no campo da concretização do texto. No meu caso, eu observava que
precisava de uma margem ampla de tempo. Não conseguia escrever em períodos curtos
como uma ou duas horas na agenda diária. Eu notava que meu processo de escrita exigia
um período inicial de alinhamento da dispersão, seguido de um tempo de leitura e, no
final do período, a escrita aparecia com alguma fluidez. O ambiente da faculdade (em
razão do trabalho) e de casa (em razão da rotina com as crianças) não era propício.
Demorei muito para aceitar isso, porque eram ambientes que se ajustavam à comodidade
da minha rotina. Separei alguns turnos para me isolar em lugares completamente distintos
do meu ambiente profissional e pessoal, em especial bibliotecas com públicos diversos
do meio jurídico. Assim, o processo de escrita começou a funcionar.
Vivemos a sociedade da dispersão em meio ao excesso de informações
disponíveis. A artesania de uma tese parece ir na contramão de um mundo que
racionaliza problemas em hiperlinks e informações condensadas. As redes sociais, ao
mesmo tempo que pautam novos insights para a investigação, também são fontes de
dispersão no processo criativo. Durante o meu período de estudos em Lisboa e Roma,
saí de todas as minhas redes sociais. A decisão por essa ruptura teve como objetivo ter
uma outra experiência de tempo e de espaço naqueles países. Uma vida desconectada
do frenesi digital me permitiu restabelecer a prática diária e meditativa que o alto nível
de leitura exigia. Ao mesmo tempo, eu pude aproveitar as novas referências que a
condição de estrangeiro me proporcionava, com maior atenção aos dados e elementos
locais de Portugal e da Itália. Com o retorno ao Brasil e às aulas, a volta à rede tornou-
se necessária por atualização das pautas e debates online. Nessa fase, as redes sociais
confirmavam-se, de maneira ambivalente, como potencializadoras e dispersadoras da
escrita. É preciso administrar essa relação em ambivalência.
Conversar sobre a tese com pessoas interessadas, competentes e sinceras é
importante para deixa-la mais clara. Participei de vários eventos acadêmicos relacionados
ao meu tema. Isso foi fundamental para amadurecer minhas hipóteses e dividir ideias com
pesquisadores do meu mesmo objeto de estudo. Falar sobre a tese, com frequência,
esclarece pontos que precisam ser amadurecidos. Por isso, é muito importante a
participação em rodas de conversas, grupos de estudos ou mesmo um café com pessoas
pacientes que compreendam o seu processo criativo. Criar redes de apoio durante o
doutorado é muito importante. Deve fazer parte da rotina do doutorando a procura de
espaço em que suas ideias sejam expostas e contrapostas.
O volume da tese e o meu prazo exigiam uma produção mais célere, logo comecei
a passar períodos isolamento para escrita, em feriados e férias. A principal parte da minha
tese foi escrita nestes períodos, que me davam maior destreza com o tempo e a inspiração.
Boa parte desses períodos aconteceram em Lisboa, o que possibilitava contato com meu
orientador, com quem tive excelente relação e me trouxe contrapontos e provocações
fundamentais no curso do trabalho.
Registre-se os diferenciais de condições políticas de espaço para estudos na
Europa, incluindo salas abertas 24h. Na Universidade de Lisboa, o Caledoscópio,
inaugurado em 2016, foi integrado no projeto de requalificação do Jardim do Campo
Grande, próximo à Faculdade de Direito. Era um espaço de estudo confortável e
estruturado que ficava aberto durante a madrugada. Minha rotina em Portugal, durante
esses períodos finais de escrita, concentrava-se entre o período diurno na biblioteca e
as madrugadas no Caledoscópio. São nestes momentos que você compreende como
terminar um doutorado é um exercício de solidão e persistência. Hoje, escrevendo essas
linhas, já lembro desse tempo com nostalgia e orgulho, mas sem romantizá-lo. Foram
tempos difíceis.
11
Sobre a relação entre ciência e sensibilidade, ver Ostrower, Faya. (1998). A Sensibilidade do Intelecto.
Rio de Janeiro: Editora Campus.
12
Sobre a relação entre arte e ciência, ver Ostrower, Faya. (1984). Criatividade e Processos de Criação".
Rio de Janeiro: Editora Vozes.
acadêmicos da busca de uma razão sensível. 13 Mas deve-se enfatizar a relevância dessa
questão nas investigações científicas sobre o trabalho.
A minha vivência no doutorado confirmou a hipótese de que o pensamento e a
percepção sobre o valor-trabalho devem ser realizadas não apenas através da produção
científica que pretendeu investigar, mas também das manifestações artísticas que
expressam as diversas sensibilidades sociais sobre esse mundo. Defendo, portanto, o
consumo da historiografia sobre o trabalho através da arte como constituição de uma
“análise dos tempos”14 sobre o trabalho. Ou, aproveitando-se de um signo15 proustiano, a
percepção do mundo do trabalho através da arte é inspiradora ao jurista na construção da
elaboração e problemas e narrativa do seu texto. O cinema16, por exemplo, é um
importante aliado da linguagem que historicamente reflete questões laborais 17. Os signos,
códigos e convenções do cinema servem para inspirar uma percepção crítica e sensível
sobre o conjunto das sugestões temáticas relacionadas aos problemas do trabalho e suas
múltiplas imagens reais e imaginárias. A arte foi, portanto, o meu refúgio para as crises
criativas durante a produção da minha tese.
A fase de escrita, contextualizada com tudo o que foi narrado no tópico anterior,
foi caracterizada por grandes colapsos de auto-sabotagem. A soma da necessidade de
controle sobre a produção, a falta de tempo e a ausência dos resultados esperados
resultou em uma crise de ansiedade. O doutorado, especialmente durante a escrita da
tese, resulta em um sentimento de “culpa pelo tempo livre”. A ausência de descanso e
a tentativa de controle resultam em um estado de ansiedade que é somatizado no seu
corpo. Assim, os recentes estudos 18 confirmam que os estudantes de pós-graduação têm
13
Maffesoli, Michel. (1996). Eloge de la raison sensible. Paris, Grasset.
14
Sobre a arte enquanto “imagem sobrevivente”, ver Didi-Huberman, George. (2013). Imagem
sobrevivente: a história da arte e o tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. São Paulo: Contraponto.
15
Deleuze, Gilles. (2003). Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
16
Sobre o cinema como representação social, ver Metz, Christian (2010). A significação no cinema. São
Paulo: Perspectiva; Ferro, Marc (2010). História e cinema. São Paulo: Paz e Terra; Jodelet, D. (2001). As
representações sociais. Rio de Janeiro, UERJ, p. 420; Deleuze, Gilles. (1985). A imagem-tempo. São Paulo:
Brasiliense, p 338; Eisenstein, Serguei. (1990). O Sentido do Filme, Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor; Buñuel, Luis (1982). Meu último suspiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
17
Pensando nisso, divido algumas dicas de filmes sobre o mundo do trabalho na página
https://www.instagram.com/trabalhonocinema/
18
Evans, T. M., Bira, L., Gastelum, J. B., Weiss, L. T., & Vanderford, N. L. (2018). Evidence for a mental
health crisis in graduate education. Nature Biotechnology, 36(3), 282–284.
maiores chances de enfrentar depressão e ansiedade. Para isso, é preciso administrar o
processo de escrita com o autocuidado em uma agenda que consiga, na medida do
possível, aliar a produtividade com a qualidade de vida que o momento exige.
No último semestre de escrita, reorganizei a minha rotina para ela, cumprindo,
com rigor e disciplina, os prazos estabelecidos. Nessa fase, embora a tese estivesse pronta,
o texto ainda possuía muitos vazios. É também necessário um desapego com textos e
capítulos que precisam ser excluídos. Há também uma certa frustração por a tese não
refletir a projeção imaginada no projeto, mas ela ganha uma identidade própria. A tese
que, antes era um projeto em abstrato, consolida-se como um produto concreto, autêntico
e imperfeito. O dia do depósito da tese será lembrado pela sensação de alívio e desapego.
4. A experiência da defesa
19
Schwab, Klaus. (2016). A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro.
20
Recuperado de http://reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2015/
que nos encontramos a sociedade mundial levará 118 anos para atingir a paridade
econômica de gênero, o que demonstra a fecundidade sobre igualdade de gênero no
ambiente de trabalho. Na bioética, já se debate sobre a possibilidade das empresas
solicitarem informações de caráter genético 21 com o objetivo de formar juízo sobre quem
devem admitir. Os problemas do trabalho disruptivo e da chamada economia
compartilhada já são objeto de calorosos debates sobre a natureza do vínculo laboral 22 e
as sinalizações dos sintomas de precarização 23 do trabalho. A sociedade em rede vem
apresentando problemas do modelo de propriedade na internet, debates sobre o
cooperativismo de plataforma, movimentos de combate à “servidão do algoritmo”. 24 A
proteção ao não trabalho e ao direito ao lazer tem se revitalizado nos recentes debates do
direito à desconexão, 25 que já possui previsão expressa na legislação 26 trabalhista
contemporânea. O modelo Always On27 confirma a dificuldade de separação entre vida
pessoal e a vida profissional do trabalhador e exige um trabalhador polivalente com
equilíbrio físico e psicológico para as demandas permanentes de uma empresa ativa em
24h. A vida pessoal do trabalhador inserido em redes sociais28 absorve a subordinação
jurídica do contrato de trabalho e pode retomar aspectos de uma eventual “servidão
voluntária”29 no modo como essa relação é introjetada pelo próprio trabalhador. Ao
21
Xavier, Bernardo da Gama. (2003). A Constituição, a tutela da dignidade e personalidade do trabalhador
e a defesa do patrimônio genético. Uma Reflexão. Memórias do V Congresso Nacional de Direito do
Trabalho. Lisboa: Almedina, pp. 261-272.
22
Prassl, Jeremias and Risak, Martin. (2016). Uber, Taskrabbit, & Co: Platforms as Employers? Rethinking
the Legal Analysis of Crowdwork Comparative Labor Law & Policy Journal, Forthcoming; Oxford Legal
Studies Research Paper, 8. Recuperado de https://ssrn.com/abstract=2733003
23
Slee, Tom. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precário. São Paulo: Elefante.
24
Scholz, Trebor. (2017). Uberworked and Underpaid: How Workers Are Disrupting the Digital
Economy. Cambridge, Polity Press.
25
Ray, Jean-Emmanuel. (2016). Grande accélération et droit à la déconnexion. Droit social, 11, pp. 912-
920.
26
É o caso da recente modificação do Code Travail francês (artigo 2242-8, 7o).
27
Moreira, Teresa Coelho. (2012) As novas tecnologias de informação e comunicação : um admirável
mundo novo do Trabalho? Estudos de homenagem ao prof. Doutor Jorge Miranda – Vol VI. Lisboa:
Almedina, pp. 953-973.
28
Ray, Jean-Emmanuel. (2011). Facebook, le salarié et l'employeur. Droit Social, 2, pp. 128-140.
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Ray, Jean-Emmanuel. (2010). Actualité de TIC: tous connectés, partout, tout le temps? Droit social,
6 , pp. 516-52; e Bouchet, Jean Paul, & Ray, Jean-Emmanuel. (2010). Vie profissionnelle, vie personnelle
et TIC. Droit social, 1, p. 44.
mesmo tempo, os índices de escravidão contemporânea e a preocupação com o dumping
social permanece na pauta dos debates acadêmicos.
Os estudos jurídicos sobre questões laborais devem levar em conta todo esse
complexo de diálogos que o mundo do trabalho proporciona. Se realizar um doutorado é
um marco na vida de um acadêmico, o investimento numa tese que elege o trabalho como
categoria investigativa é desafiador, pungente e provoca ricos mergulhos intelectuais
sobre o modo de pensar o mundo, a existência e a ciência.