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A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA E A EXIGÊNCIA DA VACINAÇÃO CONTRA A COVID-19: (IM)
POSSIBILIDADES DE RESPONSABILIZAÇÃO ................................................................... 30
Gustavo Lima da Silva e Gabriel Dayan Stevão de Matos

RESUMO .......................................................................................................................... 30
ABSTRACT ........................................................................................................................ 31
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................ 31
2 OS DIREITOS HUMANOS E A LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA ........................ 33
2.1 Escusa de consciência por motivo religioso e a parentalidade ........................... 36
2.2 Escusa de consciência por motivo científico ....................................................... 41
3 CONSEQUÊNCIAS DA RECUSA À VACINAÇÃO............................................................... 44
3.1 Sanções de natureza trabalhista diante da recusa ............................................. 44
3.2 Sanções de natureza Cível aos que não desejarem se vacinar ........................... 47
4 A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA COMO FUNDAMENTO AO NÃO DEVER DE RECEBER A
VACINA ............................................................................................................................ 50
5 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................... 53

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Gustavo Lima da Silva
Gabriel Dayan Stevão de Matos

29
Gustavo Lima da Silva
Gabriel Dayan Stevão de Matos

O presente artigo busca analisar aos direitos humanos e suas


gerações, com enfoque na liberdade de expressão, consciência e
crença, onde o cidadão tem a garantia constitucional de tomar
as atitudes de acordo com seus princípios e valores. O cerne da
discussão é verificar a possibilidade de exigir que todas as
pessoas sejam vacinadas contra a COVID-19, sob pena de
serem punidas. Para atingir tal objetivo, propõe-se a verificação
das implicações na seara trabalhista para o funcionário que não
deseja ser imunizado com a vacina, de acordo com as diretrizes
emanadas do MPT, bem como refletir sobre sanções cíveis que
seriam impostas pelo Estado àqueles que optarem por não
receberem a vacina, mediante a observação crítica das ADIs
6586, 6587 e do Aresp 1.267.879 julgados pelo STF. Portanto, é
importante refletir se a escusa de consciência, por motivo
religioso ou científico, é motivo suficiente para sustentar a
recusa a vacinação, bem como, se é possível a aplicação de
punições. Sugere-se que a manutenção da adoção de outras
medidas sanitárias pode garantir a proteção ainda que não haja a
imunização através da vacina. A análise será realizada com base
na Constituição Federal de 1988. A metodologia utilizada é
bibliográfica e documental.

Palavras-Chave: Vacinação. Covid-19. Constituição.


Liberdade de Consciência e Crença. Direitos Humanos.

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This article seeks to analyze human rights and Em 11 de março de 2020, a
their generations, with a focus on freedom of Organização Mundial de Saúde (OMS)
expression, in conformity and in conformity, reconheceu o caráter pandêmico global da
where the citizen has the constitutional contaminação pelo Coronavírus (COVID-19),
guarantee to act in accordance with its que é uma doença infecciosa respiratória
principles and values. The core of the emergente causada pelo SARS-CoV-2
discussion is to verify the possibility of (também conhecido como 2019-nCoV), o
demanding that all people be vaccinated qual se manifestou pela primeira vez no início
against COVID-19, under penalty of being de dezembro de 2019 em Wuhan, China1,
punished. To achieve this goal, it is proposed segundo os primeiros estudos
to verify the best in the labor area for the epidemiológicos chineses. Vários Estados
employee who does not wish to be Nacionais, incluindo o Brasil, por força dos
immunized with the vaccine, in accordance convênios firmados com a Organização
with the guidelines issued by the MPT, as Mundial da Saúde2 somaram esforços na
well as to reflect on civil sanctions that would contenção do COVID-19 e houve o
be imposed by the State on those who accept crescimento do investimento em pesquisas
for not receiving the vaccine, upon critical científicas com o intuito de elaborar um novo
observation of ADIs 6586, 6587 and Aresp veículo farmacológico adequado para o
1,267,879 judged by the STF. Therefore, it is combate desse agente patológico.
important to reflect on whether the excuse of
Nessa busca por respostas eficazes
conscience, for religious or scientific reasons,
diante do surto, a alternativa mais viável e
is sufficient reason to support the refusal of
historicamente aceitável era investir no
vaccination, as well as whether it is possible
desenvolvimento de vacinas, a fim de
to apply punishments. It is suggested that
maintaining the adoption of other sanitary
1
Wang C, Liu L, Hao X, Guo H, Wang Q, Huang J, et
measures can guarantee protection even if al. Evolving Epidemiology and Impact of Non-
pharmaceutical Interventions on the Outbreak of
there is no immunization through the vaccine. Coronavirus Disease 2019 in Wuhan, China. medRxiv.
The analysis will be based on the Federal 2020;
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Constitution of 1988. The methodology used O convênio básico entre o Governo da República
Federativa do Brasil e a Organização Mundial de
is bibliographical and documentary. Saúde foi firmado pelo Brasil em 4 de fevereiro de
1954 e aprovado pelo Congresso Nacional, por meio
do Decreto Legislativo no 11, de 23 de fevereiro de
Keywords: Vaccination, Covid-19, 1956. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1950-
Constitutional, Human Rights, Freedom of 1959/decretolegislativo-11-23-fevereiro-1956-351098-
thought, conscience and religion. publicacaooriginal-1-pl.html

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imunizar o maior número de pessoas em a vacinação no Brasil se iniciasse em 19 de
tempo hábil. Após muitos meses de estudo e janeiro de 2021.
preparação, entre o final de 2020 e início de
Todavia, mesmo diante dessa
2021, diante dos anúncios de descobertas e
colaboração global, questionamentos no
novos estudos científicos sobre o vírus, as
âmbito científico e político despertaram
vacinas já estavam em processo de
suspeitas sobre sua confiabilidade. As
finalização, em diferentes regiões do Planeta
principais indagações visavam refletir no
e por diversos fabricantes.
desenvolvimento dos fármacos em tempo
Historicamente, as vacinas têm recorde e do uso experimental de novas
desempenhado um papel importante na tecnologias, como o RNA mensageiro que
imunização da população e processos amplos será explicado adiante, além de outros fatores
de vacinação não são novidade. Porém, antes políticos e ideológicos não relevantes para o
do imunizante ser distribuído à sociedade em recorte epistemológico deste artigo.
geral, é necessário à aprovação de rigorosos
Uma dessas indagações, de cunho
processos de fabricação que analisem o maior
jurídico, é se o empregado poderá ser
número de variantes possíveis, a fim de se
demitido por justa causa se se recusar a tomar
evitarem efeitos indesejados, desde anomalias
a vacina, como sugeriu o parecer4 do
3
congênitas na gravidez até reações alérgicas
Ministério Público do Trabalho (MPT)
graves que podem ocasionar a morte.
manifesto no Guia Técnico Interno do MPT
No que diz respeito às vacinas contra sobre a Vacinação da COVID-195, ou punido
a COVID-19, mesmo com a diversidade de pelo Estado, conforme admitiu o Supremo
laboratórios ao redor do globo terrestre em Tribunal Federal (STF) nas ADIns nº 6586 e
contextos climáticos e tecnológicos distintos, 6587, e no Aresp 1.267.879. Em que pese o
algumas vacinas consolidaram bons índices dever estatal de vacinar os cidadãos em
de resultados para casos moderados e graves observância ao dispositivo constitucional de
da doença. Não tardou para que, após à garantir o direito à saúde, a obrigatoriedade
autorização dos órgãos de fiscalização,
4
especialmente às manifestações da ANVISA, MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Parecer
sobre o Guia Técnico sobre Vacinação da COVID-19.
Disponível em:
https://mpt.mp.br/pgt/noticias/parecerjuridico_2798-
2020_gerado-em-23-10-2020-18h21min31s.pdf
3 5
DIAS, Ana Lúcia Pereira de Andrade; MITRE, Edson MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Guia
Ibrahim. A imunização contra a Rubéola no primeiro Técnico Interno sobre Vacinação da COVID-19.
trimestre de gestação pode levar a perda auditiva? Rev Disponível em:
CEFAC, São Paulo, 2007. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/estudo_tecnico_de_vaci
https://www.scielo.br/pdf/rcefac/2008nahead/157- nacao_gt_covid_19_versao_final_28_de_janeiro-sem-
07.pdf. marca-dagua-2.pdf

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da vacinação traz desconforto para cidadãos possível solução para tal antinomia é a
que não querem se vacinar pelos mais observação de medidas não farmacológicas.
variados motivos, sejam eles sensatos ou
Serão abordados dois exemplos de
excêntricos, científicos ou pessoais, pelas
motivos que permitem a recusa à vacinação:
possibilidades de responsabilização que serão
religioso, por meio da analogia ao caso da
analisados neste artigo.
transfusão de sangue e os testemunhas de
Contudo, na esteira do advento do Jeová, tratando da capacidade civil de
Estado Democrático de Direito, foram crianças e adolescentes; e científico, sobre os
evidenciados os direitos humanos e garantias tipos de vacinas, riscos, efeitos colaterais e a
fundamentais de primeira geração, que velocidade no desenvolvimento. No segundo
englobam vários mecanismos que protegem a capítulo serão analisadas criticamente os
livre expressão pública das convicções julgamentos das ADIs 6586, 6587 e do Aresp
políticas, religiosas, científicas ou de qualquer 1.267.879 pelo STF e dos estudos técnicos do
outra inclinação ideológica. Verifica-se, Ministério Público do Trabalho que sugerem
então, de um lado a urgência no âmbito da a demissão por justa causa em relação à
saúde pública que requer uma rápida recusa da vacina, e o porquê estão em
vacinação compulsória objetivando o descompasso com a CLT e a própria
encerramento de medidas não farmacológicas Constituição. Por fim, no terceiro capítulo se
de contenção da infecção, e de outro lado uma concluirá a abordagem se a objeção de
garantia constitucional que protege o cidadão consciência é motivo plausível para recusa a
contra o próprio Estado. vacinação.

Diante desse aparente conflito, o Feita a introdução, tem-se por


presente artigo demonstrará a perspectiva necessária a abordagem quanto a genealogia
constitucional dos direitos humanos sobre a dos direitos humanos, prosseguindo-se com
liberdade de expressão, consciência e crença, as explanações sobre a liberdade de
onde a escusa ou objeção de consciência consciência e crença, com específico enfoque
permite que todo cidadão seja fiel às suas na objeção de consciência.
ideologias, desde que se comprometa a
proteger o bem comum por meio de
prestações alternativas. Prosseguirá com a
exposição do conflito de normas de direitos
humanos de primeira e segunda geração no A Constituição Federal de 1988
caso da vacinação obrigatória e que uma consolidou os Direitos Humanos como
princípios constitucionais, sendo essenciais e

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imprescindíveis ao Estado Democrático de valorativo, mas em relação à postura do
Direito e a própria coesão do ordenamento Estado em não se imiscuir na liberdade do
jurídico brasileiro. Segundo André de cidadão nessa seara. Portanto, limita-se o
Carvalho Ramos, os direitos humanos poder do Estado, que não deve interferir na
formam um conjunto de direitos destinados liberdade individual de cada indivíduo8.
ao ser humano, e imprescindíveis para que a
Os direitos humanos de segunda
existência seja livre, igual e digna, conforme
geração, por sua vez, são chamados de
a previsão da própria Carta Magna e de
direitos sociais na CRFB/88 ou positivos pelo
documentos internacionais dos quais o Brasil
caráter intervencionista que o Estado
é signatário6.
desempenha e podem ser encontrados
Ainda, importante destacar a divisão principalmente do art. 6º ao 11º.
das gerações de direitos humanos, conforme Compreendem a proteção estatal diante do
apresenta a doutrina. De acordo com Karel cidadão livre que queira usar da sua liberdade
Vazak, são três as gerações que são baseadas para causar mal a outrem, especialmente na
nos ideais de liberdade, igualdade e garantia da “educação, a saúde, a
fraternidade, oriundos da Revolução alimentação, o trabalho, a moradia, o
Francesa7. A primeira geração, descrita no transporte, o lazer, a segurança, a previdência
artigo 5º, onde os direitos são classificados social, a proteção à maternidade e à infância,
como proteções e garantias individuais civis e a assistência aos desamparados”. Direitos de
políticas que asseguram a igualdade perante a segunda geração são respostas de um Estado
lei sem distinção de qualquer natureza, a democrático ao excesso das liberdades
inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, individuais e abusos econômicos que
a igualdade, a segurança e a propriedade, ocorriam desde a Revolução Industrial.
entre outros. O poder constituinte buscou
Os direitos humanos de terceira
evitar juridicamente excessos históricos
geração, dizem respeito à coletividade, isto é,
cometidos pela nobreza como também pelo
os direitos concernentes a uma pluralidade de
agigantamento do poder temporal religioso, e
pessoas ou direitos de solidariedade. Ainda,
assim consolidou uma legislação que afastou
são chamados de direitos difusos, que não
o Estado de assuntos individuais. Considera-
serão abordados no presente artigo, pois não
se a natureza negativa dos direitos humanos
guardam relação com os objetivos a serem
de primeira geração, não de caráter
abordados.

6 8
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos ALMEIDA, Guilherme Assis de. APOLINÁRIO,
humanos. São Paulo: Saraiva, 2014. Silvia Menicucci de Oliveira Selmi. Direitos
Humanos. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. Série leituras
7
RAMOS, op.cit. jurídicas: provas e concursos; vol. 34, p. 21.

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O STF, em virtude do julgamento do constitucional de fazer com que o Brasil fosse
MS 22164/SP, realizou um breve resumo da uma nação voltada a respeitar os direitos
genealogia dos direitos humanos, humanos é rapidamente percebido no texto
demonstrando sua importância, a saber: normativo, visto que o artigo 4º, inciso II da
Carta Magna coloca como princípio das
Enquanto os direitos de primeira geração
(direitos civis e políticos) - que relações internacionais brasileiras a
compreendem as liberdades clássicas,
negativas ou formais - realçam o “prevalência dos direitos humanos”.
princípio da liberdade e os direitos de
segunda geração (direitos econômicos,
sociais e culturais) - que se identifica O artigo 5º da Constituição traz um
com as liberdades positivas, reais ou rol extenso de direitos e garantias
concretas - acentuam o princípio da
igualdade, os direitos de terceira geração, fundamentais do cidadão, dentre os quais está
que materializam poderes de titularidade
coletiva atribuídos genericamente a todas inserida a liberdade de religião e de crença,
as formações sociais, consagram o
princípio da solidariedade e constituem conforme se vê no inciso VI, VII e VIII do
um momento importante no processo de
desenvolvimento, expansão e referido texto legal. O direito à liberdade
reconhecimento dos direitos humanos, religiosa se coloca como essencial ao
caracterizados, enquanto valores
fundamentais indisponíveis, pela nota de ordenamento jurídico brasileiro, haja vista
uma essencial inexauribilidade.9
que a fé exerce um papel fundante na vida das

Esses conceitos de direitos humanos pessoas que a professam. Não se pode olvidar

revelam a construção do Estado Democrático que o ser humano é dotado de um espírito,

de Direito que a cada período histórico, se alma que compõe os elementos de sua

adaptava para proporcionar à sociedade certa existência. A crença e a religião exercem um

coesão, mesmo que muitos avanços ainda papel essencial na dimensão subjetiva do

sejam necessários. sujeito que coloca sua fé em Deus, um Ser


Superior ou qualquer outro tipo de conjunto
O propósito da Constituição Federal
de crenças, que escolha. A liberdade aqui
de 1988 foi de fortalecer os direitos humanos,
mencionada é essencial na vida do ser
sobretudo, após um período de pouco mais de
humano, uma vez que cada um valora a sua
duas décadas de regime militar, com a
fé, e o conjunto de crenças que orienta sua
aplicação de severas penas aos opositores do
vida, de forma a orientar suas atitudes e
regime, bem como cerceamento de direitos, e
conduta no meio social.
empecilhos à liberdade, principalmente após
o Ato Institucional de nº 5. Esse objetivo Sobre a importância da religião na
vida do indivíduo, tem-se que,

9
STF - MS: 22164 SP, Relator: Min. CELSO DE
MELLO, Data de Julgamento: 30/10/1995,
TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 17-11-
1995 PP-39206 EMENT VOL-01809-05 PP-01155

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Devemos perceber que a religião ainda
continua importante na vida de muitas
pessoas. Na verdade, a imensa maioria
dos indivíduos, em todo o mundo, é
adepto a alguma religião, e boa parte Seguindo na esteira da proteção à
deles aponta os ideais religiosos acima
de quaisquer outros. São os “elementos liberdade de pensamento, o art. 5, IV, da
fundamentais”, sem o que os sujeitos
perdem suas referências10 (SILVA CRFB/88, aduz que “É livre a manifestação
JUNIOR, 2019, p. 162). do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Logo, tem-se que os direitos O constituinte consagrou que essa liberdade
humanos, são elementares a vida do cidadão abrange também a expressão do pensamento,
brasileiro, servindo como requisitos a saber, a liberdade de opinião.
essenciais para consecução de uma das
principais metas do Estado brasileiro, que é a O professor José Afonso da Silva
garantia da dignidade da pessoa humana, demonstra que a Constituição Federal de
fundamento do Estado Democrático de 1988 reconhece duas dimensões da Liberdade
Direito, conforme a previsão do inciso III, do de Opinião: a Liberdade de Consciência e de
artigo 1º da Carta Magna. Crença, estatuída no art. 5º, VI, “é inviolável
(...), sendo assegurado o livre exercício dos
Ainda, é evidente que o direito à
cultos religiosos e garantida, na forma da lei,
liberdade de crença e religião, compreende
a proteção aos locais de culto e a suas
uma série de atividades do cidadão: crer no
liturgias”, como também a Liberdade de
conjunto de dogmas que melhor lhe convier;
Convicção Filosófica ou Política constante no
professar a fé ou negá-la publicamente;
art. 5º, VIII:11 "Ninguém será privado de
frequentar cultos, missas e reuniões
direitos por motivo de crença religiosa ou de
religiosas; e praticar outros atos inerentes
convicção filosófica ou política, salvo se as
aquele grupo de fiéis.
invocar para eximir-se de obrigação legal a
Desse modo, com a abordagem sobre todos imposta e recusar-se a cumprir
a importância dos direitos humanos, bem prestação alternativa, fixada em lei”12.
como sobre a liberdade religiosa e de crença,
Esses incisos garantem que todos
passa-se agora a refletir quanto à escusa ou
têm o direito de aderir a qualquer crença
objeção de consciência e seus
religiosa, política ou ideológica, bem como o
desdobramentos tanto por motivos religiosos,
de recusar qualquer delas, adotando o
quanto em relação a motivações científicas.
ateísmo, e inclusive o direito de criar a sua

11
10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
SILVA JUNIOR, Antonio Carlos da Rosa. Manual Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Ltda,
Prático de Direito Religioso: um guia completo para 1995. p. 200.
juristas, pastores, líderes e membros. São Paulo. Fonte
12
Editorial. 2019. p. 62 Idem, p. 200.

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própria religião, além de seguir qualquer ofende a convicção religiosa do aluno, e a
corrente filosófica, científica ou política ou de escola deverá oferecer uma alternativa que
não seguir nenhuma, encampando o seja igualmente relevante para a avaliação do
ceticismo13. estudante. Caso assim não ocorra, a escola
ofenderá o princípio da isonomia perante os
Tal direito fundamental,
outros alunos também.
lamentavelmente, mesmo tendo a
Constituição Federal de 1988 mais de 30 anos Os chamados sabatistas (membros
de vigência, está majoritariamente regulado das Igrejas Adventista do Sétimo Dia, Igrejas
no Brasil em relação à educação e ao serviço Batistas do Sétimo Dia, Judeus, etc.) se
militar obrigatório, nos termos e limites que eximem de realizar trabalhos, provas e
veremos a seguir, faltando ainda, a concursos do anoitecer de sexta-feira até o de
regulamentação abranger outras áreas da vida sábado, quando priorizam seus cultos e
civil, como por exemplo, as questões rituais. A jurisprudência não era pacífica
profissionais, artísticas, científicas e acerca da prevalência da liberdade religiosa
sanitárias. sobre o princípio da isonomia de todos os
concorrentes de concurso público. A
Diante da ausência de normas que
problemática foi fulminada pela publicação
tornem mais específica a proteção à liberdade
da lei 13.796/2019, que acrescentou termos à
de crença, o instituto da escusa da consciência
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei
surge como método constitucional que faculta
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).
ao objetor um meio alternativo próprio para
Dada a sua importância e atualidade,
atender uma obrigação, conforme preceituam
oportuno reproduzir aqui alguns trechos desta
Tiago Vieira e Jean Regina: “É uma garantia
lei. Vejamos.
constitucional direcionada a quem objeta por
motivos religiosos, filosóficos ou ideológicos Art. 7º-A Ao aluno regularmente
matriculado em instituição de ensino
obrigações impostas pela Constituição, lei ou pública ou privada, de qualquer nível, é
assegurado, no exercício da liberdade de
contrato, devendo prestar serviços consciência e de crença, o direito de,
mediante prévio e motivado
alternativos como modo de compensação”14. requerimento, ausentar-se de prova ou de
aula marcada para dia em que, segundo
Na esfera educacional, exemplos os preceitos de sua religião, seja vedado
o exercício de tais atividades, devendo-
comuns ocorrem quando algum tema se-lhe atribuir, a critério da instituição e
sem custos para o aluno, uma das
estudado na sala de aula ou em algum evento seguintes prestações alternativas, nos
termos do inciso VIII do caput do art. 5º
13 da Constituição Federal:
Idem, p. 245.
14 I - prova ou aula de reposição, conforme
VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. o caso, a ser realizada em data
Direito Religioso: Questões práticas e teóricas - alternativa, no turno de estudo do aluno
Porto Alegre: Concórdia, 2018. p. 142.

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ou em outro horário agendado com sua possível de ser utilizado perante as
anuência expressa;
imposições do Estado ou de terceiros, desde
II - trabalho escrito ou outra modalidade
de atividade de pesquisa, com tema, que seja realizado um serviço alternativo
objetivo e data de entrega definidos pela
instituição de ensino. proporcional à tarefa escusada, sob pena de
§ 1º A prestação alternativa deverá atentar contra o princípio da isonomia.
observar os parâmetros curriculares e o
plano de aula do dia da ausência do
Um exemplo das divergências que
aluno.
§ 2º O cumprimento das formas de envolvem a escusa de consciência por motivo
prestação alternativa de que trata este religioso ocorreu em 2017 quando o Supremo
artigo substituirá a obrigação original
para todos os efeitos, inclusive Tribunal Federal reconheceu a existência de
regularização do registro de frequência.
repercussão geral no Recurso Extraordinário
nº 979.742, tratando sobre o conflito existente
Há também objeção de consciência entre a liberdade religiosa dos Testemunhas
em caso do serviço militar obrigatório por de Jeová e o dever do Estado de assegurar
aqueles que não concordam com o uso de prestações de saúde universais e igualitárias,
armas ou tenham um entendimento pacifista, mais focada no âmbito do serviço estatal a ser
no qual geralmente assumem postos em prestado. A discussão gerou o Tema 952, que,
funções majoritariamente administrativas, segundo a relatoria do Min. Roberto Barroso,
como por exemplo mecânica e logística, com contou com a seguinte fundamentação, em
os mesmos efeitos jurídicos do Certificado de parte ora reproduzida:
Reservista. Entretanto, o escusante
A questão constitucional em exame se
inadimplente estaria sujeito a suspensão de restringe a definir se a liberdade de
crença e consciência, prevista no art. 5º,
seus direitos políticos. A Carta Magna assim inciso VI, da CF, pode justificar o
custeio de tratamento médico
estipula no seu artigo. 143: indisponível na rede pública. O acórdão
recorrido afirmou que o direito social à
O serviço militar é obrigatório nos saúde não se limita à garantia de
termos da lei. § 1º Às Forças Armadas sobrevivência, sendo o dever do Estado
compete, na forma da lei, atribuir serviço mais amplo e relacionado à provisão de
alternativo aos que, em tempo de paz, condições que assegurem uma existência
após alistados, alegarem imperativo de digna. Afirmou, assim, que não basta ao
consciência, entendendo-se como tal o Poder Público dispor de rede de
decorrente de crença religiosa e de assistência médica se os serviços de
convicção filosófica ou política, para se saúde existentes não são compatíveis
eximirem de atividades de caráter com as convicções religiosas dos
essencialmente militar. § 2º As mulheres pacientes. Em outras palavras, entendeu-
e os eclesiásticos ficam isentos do se que equivaleria a uma omissão do
serviço militar obrigatório em tempo de Estado não possuir serviço de saúde
paz, sujeitos, porém, a outros encargos adequado às convicções do paciente. A
que a lei lhes atribuir. questão constitucional trazida neste
recurso extraordinário exige a
determinação da extensão de liberdades
Portanto, o texto constitucional individuais. É certo que a Constituição
assegura, em seu art. 5º, inciso VI, o
garante que a escusa é um mecanismo livre exercício de consciência e de
crença. E é igualmente certo que essa
38
liberdade acaba restringida se a os pais pertenciam à religião dos
conformação estatal das políticas
públicas de saúde desconsidera essas Testemunhas de Jeová. O Juiz deferiu o
concepções religiosas e filosóficas
compartilhadas por comunidades pedido liminar, sob o fundamento de que a
específicas. Afinal, dizer que o direito
social à saúde é apenas aquele criança não detém capacidade civil, conforme
concretizado por uma concepção o seguinte trecho da decisão:
sanitária majoritária traz em si uma
discriminação às percepções minoritárias
sobre o que é ter e viver com saúde. A Importante destacar que não se está a
capacidade de autodeterminação, i.e., o negar nega que as liberdades de
direito do indivíduo de decidir os rumos consciência e de culto religioso sejam
da própria vida e de desenvolver garantias fundamentais elencadas em
livremente sua personalidade acabam nossa Carta Magna. Entretanto, o que se
constrangidas pelo acesso meramente coloca em jogo, no caso, não é a garantia
formal aos serviços de saúde do Estado de um direito individual puro e simples,
que excluem conformações diversas de mas a garantia do direito de uma pessoa
saúde e bem-estar. No entanto, admitir ainda incapaz, com natureza
que o exercício de convicção religiosa personalíssima e, portanto, irrenunciável.
autoriza a alocação de recursos públicos [...] No caso concreto, a criança que se
escassos coloca em tensão a realização pretende proteger não detém capacidade
de outros princípios constitucionais. civil para expressar sua vontade, pois
ainda não possui consciência suficiente
das implicações e da gravidade da
situação para decidir conforme sua
vontade, que por ora é substituída pela
Em um caso concreto, a nível de seus pais, que recusam o tratamento
infraconstitucional, o artigo 14 do Estatuto da consistente em transfusões de sangue,
por motivos religiosos.
Criança e do Adolescente (ECA)15 serviu de
suporte legal na ação declaratória c/c tutela
cautelar antecedente que tramitou perante a A obrigatoriedade da vacinação para

15ª Vara Cível e Ambiental da Comarca de as crianças e adolescentes, então,

Goiânia/GO16, na qual figurou no polo ativo responsabiliza os pais pela ausência de

uma maternidade. A autora submeteu a juízo aplicação das vacinas obrigatórias nos filhos.

a questão respeitante ao nascimento Tal negligência pode culminar, em casos mais

prematuro de um bebê com necessidade de graves, com a perda da guarda da prole. De

transfusão de sangue, haja vista que não acordo com tal dispositivo legal, os pais são

houve eficácia em tratamentos alternativos e obrigados a submeter seus filhos, crianças e


adolescentes, à vacinação contra a COVID-
15
BRASIL. Lei nº 8.069/1990. Art. 14. O Sistema 19.
Único de Saúde promoverá programas de assistência
médica e odontológica para a prevenção das
Todavia, pais e mães que em nome
enfermidades que ordinariamente afetam a população
infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, da escusa de consciência não desejam tomar
educadores e alunos. § 1º É obrigatória a vacinação das
crianças nos casos recomendados pelas autoridades vacina, seja por motivos religiosos, científicos
sanitárias.
ou qualquer outra crença que possuam,
16
Poder Judiciário. Processo nº:
5112276.40.2019.8.09.0051, cuja decisão pode ser logicamente não permitirão que seus filhos
acessada em https://www.conjur.com.br/dl/vontade-
pais-testemunhas-jeova-juiz.pdf recebam o imunizante. Aqui há um aparente

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conflito entre a norma do Estatuto da Criança desenvolvimento, mas sim no interesse
e do Adolescente com Carta de Direitos superior da própria criança20.
Humanos em 1948, que prevê em seu art. 12º,
Portanto, de um lado há a previsão
inciso 417 que os pais podem educar seus
do Estatuto da Criança e do Adolescente que
filhos de acordo com as próprias convicções
tem por objetivo proteger a criança, na figura
religiosas e morais, com o art. 26º, I, da
do Estado, e de outro, a possibilidade dos
Declaração Universal dos Direitos
pais, legitimamente responsáveis e legais pela
18
Humanos , aprovada pela Assembleia Geral
prole, de decidirem as questões inerentes a
da Organização das Nações Unidas (ONU),
vida de seus filhos em faixa etária infantil ou
com o art. 13º do Pacto Internacional sobre
mesmo na adolescência.
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais19,
dos quais o Brasil é signatário. Segundo a Verifica-se então que é possível que

Convenção sobre os Direitos da Criança, a a pessoa, por motivos religiosos, políticos e

preocupação em conceder aos pais a primazia ideológicos, e por força da equiparação no

da educação moral e religiosa da criança não mesmo dispositivo normativo constitucional,

se baseia em autoritarismo ou em negar à venha objetar um tratamento médico e morrer

criança condições adequadas ao seu segundo suas próprias convicções, sem


responsabilização civil ou penal para o
médico, desde que esteja em pleno gozo da
sua capacidade civil. Conforme o maturar da
jurisprudência, tem prevalecido que no caso
17
Governo Federal. DECRETO No 678/92 Art. 12, 4. daqueles que não possuem plena capacidade
Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a
que seus filhos ou pupilos recebam a educação civil, o Estado deverá intervir, já que a
religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias
convicções. Disponível em liberdade de consciência e crença nessa
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.ht
m
situação não supera o valor da vida.
18
“Art. 26. Aos pais pertence a prioridade do direito de Se a Constituição permite a escusa
escolher o gênero de educação a dar aos filhos.”
Disponível em de consciência, e a jurisprudência tem cada
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-
dos-direitos-humanos vez mais delimitado os casos, é possível dizer
19
idem. DECRETO No 591/92. “Art. 13 Os Estados
Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a
20
liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores Os Estados Partes enviarão os seus melhores
legais de escolher para seus filhos escolas distintas esforços a fim de assegurar o reconhecimento do
daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns
que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos com relação à educação e ao desenvolvimento da
ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus criança. Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos
filhos venham a receber educação religiosa ou moral representantes legais, a responsabilidade primordial
que esteja de acordo com suas próprias convicções.” pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990- preocupação fundamental visará ao interesse maior da
1994/d0591.htm criança.

40
que a obrigação da vacinação é análoga à desenvolvidas e já sendo empregadas em
vacinas utilizadas atualmente. Em geral,
transfusão de sangue no caso de pessoas sem elas se baseiam no vírus atenuado (ou
seja, enfraquecido, porém incapaz de
capacidade civil? Sim. A possibilidade de causar doença), inativado (morto) ou em
partes do vírus.
escusa da vacinação encontra-se amparada na
liberdade de consciência e crença (seja ela de
natureza religiosa, política, científica ou
Essas tecnologias, mencionadas no
ideológica) e do direito à vida, seja a própria
trecho acima transcrito, podem ser resumidas
ou de outrem, existindo tão somente o
como:
entendimento diverso quanto às crianças e
adolescentes. (i) Vacinas de vírus inativado: o tipo
mais comum, e como o nome
sugere, contém em sua
composição amostras do vírus
morto, sendo o caso da Sinovac®
A escusa de consciência é usualmente (Corona Vac) - China;
realizada sob pretexto religioso, mas não está
(ii) Vacinas de RNA mensageiro: O
totalmente restrita a este viés. No caso da
segmento do RNA mensageiro do
vacinação em combate a COVID-19, a
vírus, capaz de codificar células
objeção de consciência pode não estar
humanas na produção da proteína
vinculada a nenhum motivo religioso, mas
antigênica (proteína Spike), que
também, por alguma justificativa de ordem
vão por sua vez estimular a
científica, considerando a falta de certeza
resposta imune específica. Alerta
quanto à plena eficácia dos imunizantes.
o MPT que é uma tecnologia
Segundo o levantamento do Ministério totalmente nova e nunca foi
Público do Trabalho21: utilizada ou licenciada em vacinas
para uso em larga escala. Revela,
Atualmente, há aproximadamente 200
vacinas contra a COVID-19 sendo porém, dificuldade operacional
pesquisadas em todo o mundo. Em sua
maioria requererão duas doses de importante: requerem
vacinação para a obtenção de ótima
resposta imunológica e eficácia. [...] temperaturas muito baixas para
Existem, ao menos, seis tecnologias
conservação.” As mais
21 conhecidas são a Moderna® e a
MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Guia
Técnico Interno sobre Vacinação da COVID-19. BioNthec da Pfizer;
2021, p. 10. Disponível em:
https://mpt.mp.br/pgt/noticias/estudo_tecnico_de_vaci (iii) Vacinas de vetor viral: diz
nacao_gt_covid_19_versao_final_28_de_janeiro-sem-
marca-dagua-2.pdf. respeito a inserção da proteína
41
ativa de um vírus em outro vírus, A OMS alerta que ainda é cedo para
assegurar que as vacinas contra a
modificado em laboratório, que COVID-19 oferecerão proteção a longo
prazo, sendo que pesquisas adicionais
não pode se propagar. Sendo serão necessárias para responder a essa
questão. Entretanto, sugere que os dados
assim, o corpo desenvolve uma disponibilizados apontam que pessoas
defesa imunológica ao ataque do recuperadas da COVID - 19
desenvolveram resposta imune, a qual
vírus, sendo o caso da assegurou, ao menos, algum período de
proteção contra reinfecção 22.
AstraZeneca® - Oxford e
Janssen/J&J®; A questão é que existem várias
(iv) Vacinas proteicas sub-viral: vacinas sendo produzidas, por diversos
proteínas isoladas geram a laboratórios, em diversas regiões do Planeta,
imunização mediante a inserção com contextos climáticos e culturais distintos,
de fragmentos do vírus de forma de modo que não se pode assegurar com
incompleta. Os fragmentos do exatidão quanto a plena eficácia da vacina,
vírus desencadeiam uma resposta bem como a ausência de efeitos colaterais
imune sem expor o corpo ao vírus indesejados. Quando se observam estudos
inteiro. Tecnologia já licenciada e quanto aos diferentes tipos de vacina, tem-se
utilizada em outras vacinas em inexatidão na apresentação dos dados, e
uso em larga escala, como a da muitas vezes até conflito em diferentes fontes.
Hepatite B. Um exemplo disso é a vacina CoronaVac que
num primeiro momento apresentou eficácia
de 78%, mas em verdade, retificou-se o dado
Com tal multiplicidade de modos de para informar que a porcentagem correta gira
elaboração da vacina, e de laboratórios que a em torno de 50,38%23.
produzem, algumas vacinas são
Quanto aos efeitos colaterais, alguns
reconhecidamente experimentais e sua
são até mesmo previstos nos primeiros dias
utilização no combate à pandemia precisa ter
que sucedem a vacinação, haja vista serem
níveis mais confiáveis para maior
relativamente simples, quais sejam:
previsibilidade no tratamento.
vermelhidão, inchaço ou dor, febre, dor de
No mesmo documento acima
22
Ibidem, p. 10.
mencionado, o Ministério Público do
23
SATIE, Anna. Saiba qual é a eficácia das
Trabalho reconheceu a partir de parâmetros principais vacinas contra a Covid-19: Oxford, Pfizer,
da Organização Mundial da Saúde (OMS) Moderna, Cor/onavac e outras candidatas à vacina têm
taxas de proteção diferentes. CNN Brasil, São Paulo,
que é cedo para afirmar resultados 08/12/2020. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/08/qual-
conclusivos acerca das vacinas: /a-eficacia-das-principais-vacinas-contra-a-covid-19.

42
cabeça, dores no corpo, etc. Tais efeitos não se submeter a algum procedimento
foram noticiados em pessoas que receberam médico que tenha o condão de expor a risco
diferentes tipos de vacina: BioNTech-Pfizer, sua vida.
Moderna, AstraZeneca (Oxford) e Sputnik V.
Reforça-se aqui também o direito
Todavia, as reações graves da doença
que cada pessoa tem a se autodeterminar, ou
ocorrem, todavia, em bem menor quantidade.
seja, de não fazer nada que vá contra a lei, ou
Algumas consequências graves têm sido
que se oponha ao seu conjunto de
suscitadas, porém, não há comprovação se
pensamentos e crenças íntimo de cada um.
tem nexo causal com a vacinação contra a
Uma das dimensões mais essenciais da vida
COVID-19, logo, podem ou não ter relação
do ser humano é a prerrogativa que tem de
com o imunizante24.
tomar as decisões que melhor lhe convier, de
Todos os dados apresentados, ainda modo que o Estado não pode intervir nisso,
que de forma superficial, fazem crer que não salvo raríssimas exceções, sob pena de se
há exatidão quanto aos efeitos e eficácia da incorrer em autoritarismo.
vacinação e que, se uma pessoa não desejar
Enquanto perdurarem os estudos da
receber a vacina pelo argumento científico de
vacina, até a verificação correta do grau de
que ainda existem lacunas quanto às
eficácia bem como de seus efeitos colaterais,
consequências dela, pela possibilidade de ser
não se pode tornar forçada a vacinação. Para
exposta a um imunizante que possa
que a consciência do indivíduo esteja em paz
eventualmente lhe gerar algum mal, ela
para receber a vacinação, ao invés de impor
poderá recusar-se. Sendo assim, uma escusa
sanções para quem não se vacinar, deve-se
de consciência é possível nesse sentido que
investir em recursos para aperfeiçoar as
está sendo abordado.
vacinas, bem como disponibilizar informação
Nesta perspectiva é importante completa para toda população.
destacar a previsão constante no artigo 15 do
O fato é que não se nega a gravidade
Código Civil Brasileiro, que assim dispõe:
da pandemia da COVID-19. Contudo, não se
“Ninguém pode ser constrangido a submeter-
pode exigir que os cidadãos recebam a vacina
se, com risco de vida, a tratamento médico ou
sem consentimento, haja vista que os
a intervenção cirúrgica”. Desse modo, a
resultados de algumas vacinas, carecem de
legislação civil faculta ao indivíduo aceitar ou
mais pesquisas para definir o grau de sua
24
WELLE, Deutsche. Quais são os riscos e efeitos eficácia. Logo, a escusa de consciência por
colaterais da vacina contra covid-19? Revista motivo científico se mostra plausível haja
ISTOÉ, 05/01/2021. Disponível em:
https://istoe.com.br/quais-sao-os-riscos-e-efeitos- vista as previsões do ordenamento jurídico
colateraisda-vacina-contra-covid-19/.
brasileiro.
43
coletiva e recusa do empregado”, em que o
MPT é assertivo:
Uma questão que pode gerar Acrescente-se que o art. 8º da CLT
determina, ipsis litteris, que: Portanto,
inquietação nas pessoas que optam por não nenhuma posição particular, convicção
tomar a vacina, diz respeito quanto às religiosa, filosófica ou política ou temor
subjetivo do empregado pode prevalecer
consequências de tal recusa. Para responder a sobre o direito da coletividade de obter a
imunização conferida pela vacina,
tal questionamento, serão empreendidos dois prevista em programa nacional de
vacinação e, portanto, aprovada pela
esforços: o primeiro, é analisar este tema Anvisa, e inserida nas ações do
PCMSO25.
através da ótica do direito do trabalho, com a
observação das normativas do Ministério do
Trabalho, bem como de toda legislação que
É uma afirmação categórica que
rege as relações trabalhistas; o segundo
entende a prevalência de princípios do Direito
esforço se dá em verificar as possíveis
Administrativo ou sociais do trabalho em
consequências da recusa da vacinação em
detrimento das liberdades e garantias
outros âmbitos da vida do cidadão, que não o
fundamentais individuais constitucionais.
trabalhista, já abordado anteriormente.
Assim, a exegese amplificada do art. 8 da
CLT, que torna o interesse público como
princípio constitucional, e, por conseguinte,
exclui automaticamente qualquer outra
posição particular, resta equivocada. Essa não
A primeira versão do Guia Técnico
é a posição da Constituição Federal, pois
do MPT sobre a Vacinação da COVID-19 foi
objetivando não recair em quaisquer
lançada em 28/01/2021 e é um compilado de
autoritarismo, uma norma fundamental nunca
instruções técnicas sobre o panorama da
é excluída de início, mas sopesada
vacinação em todo o Brasil, um trabalho
observando a proporcionalidade e geralmente
hercúleo e exaustivo em prol de orientar o
reforçando o interesse privado, caso contrário
público brasileiro diante do início da
o dispositivo constitucional protegeria a
vacinação.

O item “I - PLANO DE
25
VACINAÇÃO NACIONAL” não enseja MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Guia
Técnico Interno sobre Vacinação da COVID-19.
críticas pelo caráter informativo e científico. 2021, p. 61. Disponível em:
A controvérsia surge no item "II - https://mpt.mp.br/pgt/noticias/estudo_tecnico_de_vaci
nacao_gt_covid_19_versao_final_28_de_janeiro-sem-
REPERCUSSÕES NAS RELAÇÕES DE marca-dagua-2.pdf.

TRABALHO, [...] 3. Vacinação, proteção


44
liberdade de crença, sem qualquer não pode, sob o argumento de interesse
possibilidade de prestação alternativa. público, abolir norma constitucional, por
causa de sua hierarquia no ordenamento
Em um conflito ou antinomia de
jurídico. O critério da especialidade pende
normas constitucionais, não é possível
para a liberdade de consciência e crença, pois,
estabelecer hierarquia principiológica entre
no meio de uma pandemia com altos índices
elas, nem afastar sua aplicação, mas é
de mortes, com uma campanha nacional de
possível aplicar o entendimento doutrinal de
vacinação, resultados científicos e novos
Norberto Bobbio, a saber: discriminar a
testes mais precisos sendo produzidos, a real
cronologia, hierarquia ou especialidade e
quantidade dos objetores de consciência será
levar em conta se tais normas possuem o
sempre de uma minoria e assim o risco de
mínimo de validade no caso, pois caso
contágio diminui. Assim, a escusa de
contrário não participarão do conflito26.
consciência se torna legislação altamente
Se aplicarmos um critério especializada para dirimir o caso concreto.
cronológico, a liberdade de crença é
É inegável a existência de colisão de
encontrada desde o Edito de Milão, em que
normas de direitos humanos, e nesse caso, o
Constantino declarou a neutralidade religiosa
Estado deverá assegurar a escusa de
do Império Romano ao não perseguir mais
consciência dos cidadãos, para que o
nenhuma religião, passando pelos ideais
indivíduo aja de acordo com suas crenças e
laicos burgueses da Reforma Protestante, até
princípios. Esse raciocínio deriva do próprio
a Constituição Imperial que permitia a
princípio constitucional do cidadão a
liberdade de crença, mas não a de culto,
autodeterminação, isto é, cada um é
corrigido posteriormente com o Decreto 119-
responsável pelos autos de sua vida, mediante
A/1890 assinado por Ruy Barbosa, que
a norma insculpida no artigo 5º, inciso II da
estabelece a laicidade por cooperação do
Norma Superior.
estado Brasileiro, confirmado no artigo 19 da
Carta Magna, não afastando a religião da Todavia, as arbitrariedades do
esfera pública, mas admitindo a cooperação Ministério Público do Trabalho não cessaram,
desde que possua interesse público. pois o documento elaborado recomenda às
empresas que demitam seus funcionários por
Apesar da importância da
justa causa quando se recusarem a tomar a
Consolidação das Leis do Trabalho, ela
vacina, o que denota totalitarismo irrefletido.
encontra-se no campo infraconstitucional e
Aqui são necessárias algumas ponderações:
26
BOBBIO. Norberto. Teoria Geral do Direito;
Tradução Denise Agostinetti. 3ª ed. - São Paulo: (i) É o Estado que está determinando a
Martins Fontes, 2010.
vacinação compulsória e não o 2º ou
45
3º setor. Se os direitos sociais visam adulto e em pleno gozo das
proteger o cidadão dos abusos das capacidades civis o poder de objetar
liberdades individuais e econômicas a vacinação, inclusive, em casos
de outros indivíduos ou instituições, extremos, de morrer pela recusa de
então o Estado estaria realizando transfusão de sangue como o caso
abuso de poder econômico para dos Testemunhas de Jeová,
manter o cidadão refém da própria ressalvados os direitos da criança e
liberdade? Não. do adolescentes;

(ii) O uso de mecanismos não (v) Não há disponibilidade de doses


farmacológicos que foi imposto a suficientes para todos os cidadãos
todos, possui eficácia comprovada na brasileiros, ou seja, não há como
diminuição do risco de contágio, à punir alguém por não tomar uma
saber: usar máscara, luvas, álcool em vacina enquanto o Estado não
gel, obedecer ao distanciamento garantiu a vacinação para a maioria
social, sempre lavar as mãos, da população;
trabalhar em home-office sempre que
(vi) O artigo 482 da Consolidação das
existir a possibilidade, não adentrar
Leis do Trabalho possui rol taxativo
em ambientes com lotação superior a
e não exemplificativo das causas de
capacidade da Secretaria de Saúde
demissão por justa causa, não
local, até que a maioria da
cabendo analogias interpretativas sob
população, especialmente os mais
o risco de tornar o empregado
vulneráveis sejam vacinados. Sua
suscetível a qualquer desmando do
obrigatoriedade, mesmo que
empregador. Não se encontra a
incômoda, é a melhor forma de
recusa da vacina como motivo em
combate não farmacológico que não
qualquer das hipóteses elencadas no
prejudica outros direitos e garantias
referido diploma legal. O Ministério
fundamentais e protegem a boa-fé do
Público do Trabalho entendeu que a
objetor.
recusa à tomada da vacina sem
(iii) Não se demite por motivo religioso, motivo médico para tal, pode ensejar
político ou ideológico, pois é ato a justa causa por ser ato de
discriminatório do Estado, vedado na indisciplina ou insubordinação,
Constituição; tentando adequar a hipótese à causa
prevista na alínea „h‟ do artigo 482
(iv) A jurisprudência nas cortes
da CLT. Contudo, discorda-se de tal
superiores garantem ao cidadão
46
interpretação, haja vista que a não encontra embasamento jurídico da
referida alínea se refere à conduta do Consolidação das Leis do Trabalho,
empregado perante seu empregador, considerando que o trabalhador não pode ser
que tenha relação com a atividade penalizado por seguir sua consciência, sob
desenvolvida, e não elementos pena de a dispensa ser considerada
externos, como é o caso da discriminatória.
vacinação;

(vii) Outro ponto de extrema relevância


está no fato de que o Ministério
Público do Trabalho não pode criar
O Supremo Tribunal Federal (STF),
normas e leis que obrigatoriamente
por sua vez, decidiu no julgamento das Ações
deverão ser obedecidas. Sua função é
Diretas de Inconstitucionalidade, sob nº 6586
consultiva e regulatória naquilo que
e 6587, e no Agravo em Recurso Especial
não conflitar com a legislação
1.267.879, que:
vigente, também por uma questão de
hierarquia normativa. Logo, como a a. Nenhum cidadão será forçado a
Consolidação das Leis do Trabalho receber a vacina, isto é, está vedada a
não respalda a demissão por justa vacinação forçada;
causa do funcionário que se recusa a b. Está autorizada a vacinação
tomar a vacina, tem-se por ineficaz compulsória, que se difere da
tal recomendação do Ministério vacinação forçada, e consiste na
Público trabalhista. aplicação de sanções previstas em lei
em face daqueles que decidirem não
receber a vacina. Tais punições
É por isso que as orientações do
seriam multa, proibição de
Ministério Público do Trabalho devem ser
frequentar determinados locais,
compreendidas como recomendações para
impedimento de realização de
casos extremos, e mesmo assim, carregam em
matrícula em estabelecimentos de
si mesmas um sério descompasso
ensino, etc.;
interpretativo com a Constituição Federal e a
própria Consolidação das Leis do Trabalho. c. Assim como a união, os estados,
distrito federal e municípios têm
Dessa forma, tem-se que a orientação
autonomia e poder para deliberar a
para dispensa por justa causa dos empregados
respeito de questões relativas à
que se recusarem a receber a vacina é ilegal, e
vacinação;
47
d. A vacinação deverá se pautar em mais brandas como as medidas não
robustas evidências científicas e farmacológicas acima listadas, até as mais
análises estratégicas pertinentes; severas como proibição de matrícula de
criança em estabelecimento de ensino, etc.
e. Deverá ser oferecido ao cidadão
Tal lógica da Suprema Corte é justificada
ampla informação quanto à eficácia,
pelo interesse coletivo, isto é, a busca de
segurança e ressalvas das vacinas;
medidas sanitárias comuns que possam
f. Será necessário a garantia da suprimir a pandemia causada pelo COVID-
dignidade da pessoa humana e dos 19.
direitos fundamentais dos cidadãos;
Aqui existe uma problemática que
g. A vacinação deve atender aos precisa ser esclarecida: imposições de
critérios de razoabilidade e restrições ao exercício pleno dos direitos de
proporcionalidade; h) a vacinação um cidadão, na prática, é como se a vacinação
deve ser gratuita e de ampla fosse forçada, porque a imposição de punição
distribuição. funciona como uma força de coação para que

Depreende-se de início que o STF a pessoa vá contra sua consciência e se vacine

buscou atender aos princípios básicos da para não sofrer sanções do Estado. Por

administração pública que consta no artigo 37 exemplo, impedir o cidadão a frequentar

da Constituição Federal, e estabeleceu que a determinados tipos de localidade,

vacina não será forçada, mas compulsória, no compromete o direito constitucional à livre

sentido de incentivar todos a se vacinarem. locomoção. Essas restrições incertas e

Assim, acatou o direito de recusar a tomar a infundadas violam os direitos fundamentais,

vacina de todo cidadão capaz - que têm que são cláusulas pétreas do ordenamento

condições de decidir o que é melhor para si e jurídico brasileiro, e geram insegurança

se autodeterminar - e admitiu a possibilidade jurídica.

de sanções, porém, sem delimitá-las com Em períodos de crise nacional, a


exatidão. Constituição de 1988 já estabeleceu medidas

A decisão do Supremo Tribunal como Estado de Sítio, Defesa e Intervenção

Federal, conforme já mencionado, não força Federal para que certos direitos e garantias

as pessoas a se vacinar. Todavia, há a ressalva fundamentais possam ser temporariamente

de que a ausência de vacinação implica na cerceados com a devida legalidade e

limitação de outros direitos fundamentais, as proporcionalidade pelo período necessário da

chamadas “restrições civis” – que já existem medida.

na legislação brasileira – como restrições


48
O que não pode se cogitar em forçada, será seguida pelos Tribunais de
nenhuma hipótese é a aplicação de sanção Justiça espalhados pelo Brasil, eis que na
penal aos que não se vacinarem, pela prática, figura de guardião da Constituição, o
do delito previsto no artigo 268 do Código conteúdo da decisão produz efeito erga
Penal, que possui a seguinte redação: omnes. Nesse caso, a responsabilidade será
“infringir determinação do poder público, sempre subsidiária entre o Estado e as
destinada a impedir introdução ou propagação Indústrias Farmacêuticas, por força do
de doença contagiosa”. Primeiro, porque as Código de Defesa do Consumidor, o que
pessoas têm o direito de se autodeterminar, e garante a nulidade de qualquer termo de
tomar as decisões que melhor lhe convier, a responsabilidade por consequências da vacina
teor da previsão do artigo 5º, inciso II da que o cidadão venha assinar.
Carta Magna. Depois, porque o direito penal é
Todas essas questões apresentadas
a ultima ratio, isto é, aplicável quando todas
são complexas, e demandam muita
as outras medidas se mostram insuficientes, e,
sensibilidade dos entes federativos, bem
no caso em comento, a decisão de uma pessoa
como do Poder Judiciário, para analisar cada
se vacinar compete a ela, não podendo haver
caso. Todavia, é fato de que a propositura de
interferência estatal, muito menos sanção
qualquer demanda judicial no sentido de
penal, sob pena de corrosão da segurança do
garantir o exercício pleno dos direitos
ordenamento jurídico brasileiro, resultando no
fundamentais do cidadão que opte por não ser
desprezo aos direitos humanos.
vacinado, estará sob o prisma interpretativo
Logo, na prática, haverá a limitação emanado da Suprema Corte, no julgamento
dos direitos fundamentais daqueles que não se das ADIs 6586 e 6587. Aliado a isso, tem-se
vacinarem, o que denota uma imposição toda pressão social, sobretudo de
perigosa, que coloca em dúvida a lógica determinados grupos defensores da vacina de
interpretativa da norma constitucional. O forma irrestrita.
inverso também deve ser proporcional: se a
No entanto, a omissão sobre os
aplicação de alguma vacina gerar um efeito
limites das sanções autorizadas pelo Supremo
colateral, ou problema imprevisto no cidadão
Tribunal Federal deixam a critério dos
que a recebe, o Estado deve ser
tribunais e cortes a modulação dos efeitos, o
responsabilizado diante de tal desdobramento,
que poderá causar insegurança jurídica.
pois na prática a vacina é compulsória.
Porém, para que sanções sejam julgadas de
O julgado do Supremo Tribunal forma mais severa, exigem o contraditório e
Federal já mencionado, onde se reproduz a ampla defesa, como também se a recusa irá
lógica da vacinação obrigatória, mas não causar risco de vida para muitos, pois a recusa
49
não deve ser criminalizada por si, mas seus vacina seja a resposta para se vencer a
possíveis efeitos no contexto social em que o pandemia, e enfim as pessoas poderem se
objetor se encontra. reunir, aglomerar, festejar e cultivar relações
humanas presenciais, e não somente através
Portanto, defende-se que não se pode
de uma tela. Todavia, há a dimensão
impor restrições civis, isto é, a limitação do
individual do indivíduo que não pode ser
exercício de determinados direitos, aqueles
esquecida.
que não desejarem se vacinar. O foco deve ser
em investir fortemente na melhora científica Para muitas pessoas, submeter-se a
dos laboratórios e do sistema de saúde como vacinação pode gerar um desconforto tão
um todo, bem como na apresentação de grande na consciência, nas suas convicções
formação clara e honesta a toda população. como pessoa, como ser humano, que pode
gerar sérios dados a saúde emocional, ao
bem-estar psíquico, haja vista que não está
em paz de espírito, pois a consciência não
permite que se consiga tal estabilidade
emocional.
Como já tratado neste artigo o
Essas nuances subjetivas que dizem
ordenamento jurídico brasileiro é pautado nos
respeito ao lado imaterial do ser humano, não
direitos humanos e prevê na CRFB/88 o
pode ser perscrutada por julgadores humanos.
direito à liberdade de religião e crença, bem
Só sabe o valor que determinada crença tem
como a possibilidade de o cidadão ter suas
para uma pessoa, ela própria, pois a valoração
próprias convicções e princípios de vida, sem
do que é importante ou não, na vida de um ser
a interferência estatal. Através do que se viu
humano, só pode ser definida por ele mesmo,
em linhas anteriores, há, pelo menos, dois
ou seja, terceiros não podem invadir esse
grupos de pessoas que não desejam se
espaço, nem o Estado, desde que, diante de
submeter à vacinação, seja por motivos de
uma imposição a todos imposta, a preste de
objeção de consciência, por motivos
forma alternativa.
religiosos, ou também por motivos
científicos. As pessoas que concordam com a
vacina e desejam se vacinar, não há qualquer
O entendimento do Supremo
problema. A expectativa e torcida é para que
Tribunal Federal, e as orientações do
os imunizantes possam fazer pleno efeito e a
Ministério do Trabalho são prenúncios de que
pandemia ser superada. Todavia, para aqueles
os entes federativos e os três poderes imporão
que decidem não se vacinar, não há motivo
a vacinação. É compreensível o desejo que a

50
para que se imponha algo que vai contra os que a convicção íntima e pessoal, não as
princípios daquela pessoa. deixa tranquilas para serem imunizadas.
Logo, dispensar tratamento desigual em
Neste prisma, importante destacar
situações iguais (convicções íntimas de dois
uma complexa questão, mas que também
grupos distintos), fere a isonomia.
serve de analogia para o que aqui está sendo
proposto. As pessoas transgênero ou Portanto, a escusa de consciência por
transexuais, não se identificam com o sexo motivo afetivo é fundamento idôneo para que
biológico, e por essa razão, adotam variados a pessoa não receba a vacina. Por mais que
comportamentos éticos e morais em sua existam pessoas que discordam da postura
sexualidade. Diversas decisões judiciais dos que não desejam ser imunizados, deve
garantiram até mesmo a cirurgia gratuita pelo haver sempre o respeito entre todos os
Sistema Único de Saúde, para que pessoas cidadãos, a fim de que não se cometa
que não se identificam com o sexo de excessos de nenhum dos lados.
nascimento, possam ser submetidas a
procedimento cirúrgico a fim de se
assemelhar ao sexo que se sente pertencente,
inclusive o Ministério da Saúde publicou em Diante do exposto, resta cristalino o
2013, a “POLÍTICA NACIONAL DE entendimento de que a liberdade de
SAÚDE INTEGRAL DE LÉSBICAS, consciência e crença é direito humano de
GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E primeira geração e foi recebido pela
TRANSEXUAIS”27, que prevê uma série de Constituição Federal como uma liberdade e
direitos das pessoas que compõem esse garantia fundamental individual. Que diante
público-alvo, incluindo a cirurgia. de um conflito de normas com os direitos

O que se quer dizer aqui é que se as humanos de segunda geração, chamados pela

pessoas transexuais e transgêneros recebem a Carta Magna de Direitos Sociais, emerge a

autorização do Estado para autodeterminarem escusa da consciência como mediadora do

seu sexo, diante das convicções afetivas de conflito, ou seja, o objetor de consciência

sua consciência. De igual modo, não se pode plenamente capaz que se recuse

exigir das pessoas que se recusam a tomar a voluntariamente a tomar vacina não poderá

vacina sejam expostas a punições, haja vista ser forçado a tomá-la, muito menos sofrer
ameaças ou sanções, pelo poder público ou
27
Ministério da Saúde, Governo Federal. POLÍTICA
NACIONAL DE SAÚDE INTEGRAL DE por empresas, desde que se comprometa a
LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS 1ª edição Brasília – DF 2013
obedecer às já existentes orientações dos
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_na órgãos sanitários nacionais e internacionais
cional_saude_lesbicas_gays.pdf

51
que possuem pertinência temática sobre tais desembargadores, deverão seguir esse
assuntos. entendimento, de forma a limitar os direitos
das pessoas que não se vacinaram; a
Essas orientações tratam do combate
propositura de qualquer ação judicial visando
não farmacológico que estavam vigentes
a garantia irrestrita de direitos mesmo para os
desde o início de 2020 e permanecerão até
que não se vacinaram depende da análise do
que os índices da infecção diminuam ou
julgador, que deverá levar em consideração a
sejam erradicados. Sua obrigatoriedade,
jurisprudência da Suprema Corte, porém é
mesmo que incômoda, é a melhor forma de
possível aferir com certo grau de juridicidade,
combate não farmacológico que não prejudica
que salvo aqueles que não gozem de plena
outros direitos e garantias fundamentais e
capacidade civil, é possível escusar-se de
protegem a boa-fé do objetor.
tomar vacina e não ser punido, pois o Estado
O Ministério Público do Trabalho, arrogou para si o direito de tutelar, e obrigar a
ao evidenciar o conflito de direitos humanos vacinação para esse recorte da população
por parte da recusa da vacina, na parte final menor de 18 anos, como visto anteriormente
do seu Guia Técnico, e recomendar a nas decisões sobre os testemunhas de Jeová.
demissão por justa causa, de forma
Toda sociedade compartilha do
inconstitucional responsabilizou os objetores
desejo de superar a pandemia. As milhões de
por causa de sua consciência e não pela culpa
mortes, caos econômico, problemas políticos,
em caso de uma comprovada infecção dos
impossibilidade de viajar, superlotação dos
que estão ao seu redor, após investigação
hospitais, são efeitos totalmente indesejados
administrativa ou criminal, em um legítimo
que a humanidade sofreu em decorrência da
processo garantido o contraditório e ampla
pandemia. Contudo, não há possibilidade de
defesa.
coagir alguém a fazer algo que não deseje,
A preocupação do Ministério pois tal prática seria extremamente um
Público do Trabalho com o bem comum não retrocesso no que diz respeito aos direitos
justifica medidas tão severas, tendo sido humanos.
mitigado pelo entendimento do Supremo
Por fim é necessário ter em mente
Tribunal Federal que determinou a vacinação
que cada indivíduo precisa estar em paz com
compulsória, mas não forçada, impondo
a sua consciência, e ter a tranquilidade de que
possibilidades de restrições aos que não se
seus atos, sejam certos ou errados, estão de
vacinarem. O teor da referida decisão do
acordo com o conjunto de regras e valores
Supremo surtirá seus efeitos em todo
que adotou para si. Em verdade, o maior juiz
território nacional, logo, os magistrados e
do ser humano, é a consciência!
52
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