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INSTITUTO DE TREINAMENTO E PESQUISA

EM GESTALT TERAPIA DE GOIÂNIA


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PENSAMENTO DIAGNÓSTICO PROCESSUAL:


UMA VISÃO GESTÁLTICA DE DIAGNÓSTICO (1)

Lílian Meyer Frazão


Psicóloga e Gestalt-Terapeuta

A questão do diagnóstico em Gestalt-Terapia tem suscitado muitas discussões nas últimas


décadas.
A Gestalt-Terapia, assim como o movimento humanístico e a antipsiquiatria da década de 60,
rejeitou a idéia de diagnóstico, quer por achá-lo despersonalizante, quer por acreditar ser ele um rótulo
limitante que pouco contribuía para o desenvolvimento do cliente.
Meu interesse pelo assunto advém da observação e vivência de situações em que a ausência de
um diagnóstico, ou um diagnóstico mal efetuado, trouxeram consequências muito sérias para a pessoa.
Concordo apenas parcialmente com a idéia de que o diagnóstico é despersonalizante, ou um
rótulo limitante, como colocavam os Gestalt-terapeutas da década de 60. Acredito que na época pensavam
desta forma talvez porque considerassem apenas os critérios diagnósticos, cuja função é a de verificar o
que há de comum entre os homens. Para tanto, agrupa, nomeia e classifica tudo aquilo que se refere à
perda dos mecanismos normais de funcionamento (exemplo disso é o DSM III, CID 10 etc.).
Esta classificação, no entanto, nos é extremamente útil por oferecer uma linguagem comum
muito importante no campo do trabalho interdisciplinar Não vejo porque devemos reinventar a roda
quando ela já existe, é universal e tem sua utilidade. Quando dizemos que um paciente é psicótico, tanto
um psicólogo, quanto um psiquiatra, quanto um médico e outros profissionais da área de saúde, saberão a
que estamos nos referindo. Além disso, independentemente da abordagem terapêutica, um psicótico é um
psicótico, ainda que a compreensão da psicose possa variar de uma abordagem para outra.
Assim como todos os homens têm características em comum (todos têm tamanho, peso,
sentimentos etc.,) eles também têm características individuais (alguns são mais altos, outros mais baixos;
alguns mais pesados, outros menos; alguns mais sentimentais, outros menos). Da mesma forma, todos os
psicóticos têm características em comum, tanto quanto têm características individuais. Por exemplo:
embora psicóticos tenham alucinações, o conteúdo da alucinação de um pode ser completamente diferente
do conteúdo da alucinação de outro.
Toda classificação tem a função de verificar aquilo que é comum e os critérios diagnósticos têm
a função de verificar as características comuns à perda dos mecanismos normais de funcionamento e, com
tal objetivo, tem sua utilidade. A questão é que não são suficientes para o trabalho terapêutico, pois
diagnosticar, tendo em vista o trabalho terapêutico, implica ver o homem tanto em suas características co -
muns, quanto em suas características individuais.
O que traz uma pessoa à terapia é uma falta: falta-lhe algo. Falta-lhe alegria de viver ou falta
desenvolver-lhe suas potencialidades ou falta-lhe ser bem sucedido profissionalmente ou falta-lhe manter
um relacionamento amoroso com alguém ou falta-lhe escolher o que quer ou falta-lhe a compreensão do
que se passa com ele, enfim.... falta-lhe algo.
Esta falta é aquilo que em termos gestálticos chamamos de uma Gestalt incompleta, sendo
que esta falta de completude gera sofrimento e angústia.
Aquilo que o cliente nos traz no aqui e agora (suas queixas, seus sintomas, seu sofrimento) é
aquilo que ele sabe de si ou pode comunicar de si, porém é importante termos em mente que o aqui e
agora de uma pessoa não é apenas seu presente imediato, ahistórico. O aqui e agora inclui o passado.
1
(*) Apresentado no II. Encontro Goiano de Gestalt-Terapia, organizado pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt
Terapia de Goiânia I.T.G.T. de 29 a 31/03/96, em Goiânia.
-

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Trata-se de uma figura que se insere num fundo e por fundo entendo a história de vida do cliente, suas
experiências, seus relacionamentos passados (em especial as relações primárias significativas), seus
sucessos e insucessos nas mais diferentes áreas (profissional, amorosa, social, etc.). Com vistas a
compreender as queixas, os sintomas e o sofrimento do cliente é preciso compreender a relação que existe
entre a figura/queixa e o fundo, pois é a relação figura/fundo que dá sentido à figura.
Se o que os critérios diagnósticos nos oferecem é a comunalidade (o que há de comum entre
os homens), o que lhes falta é a singularidade (o que há de diferente, próprio, singular em cada homem).
Desta forma, ainda que tenha características em comum com outros, o homem tem características
singulares; e em função desta composição específica, que é particular a cada homem, podemos dizer que
cada ser humano é único.
Como já coloquei na palestra que proferi neste encontro no ano passado, o que falta aos
critérios diagnósticos é uma descrição e uma compreensão mais aprimorada do funcionamento psíquico
de cada indivíduo em sua singularidade existencial (Frazão, 1995).
Para Yontef “Diagnóstico pode ser um processo de respeitosamente prestar atenção a quem a
pessoa é, tanto como um indivíduo único quanto em relação às características partilhadas com outros
indivíduos. (1993) (grifos nossos).
Quando Yontef se refere a características partilhadas ele está se referindo àquilo que chamei
de comunalidade e quando ele se refere ao indivíduo enquanto único, ele está se referindo àquilo que
chamei de singularidade e, concordando com Yontef; sou de opinião que o diagnóstico deve levar em
conta tanto a comunalidade quanto a singularidade de cada indivíduo. Ambas nos possibilitarão a
compreensão.
A partir de sua origem etimológica a palavra diagnóstico vem da conjunção de duas palavras
gregas: Dia, que quer dizer “através de “e GNOSE, que quer dizer “conhecimento”. Diagnose portanto
seria “um conhecimento através de”. No Dicionário Etimológico da Nova Fronteira encontro que a
palavra tem sua origem na palavra grega “diagnostikos” e tem o significado de “capaz de ser o
discernível”.
Parece-me que pensar nestes dois sentidos nos ajuda a esclarecer o que vem a ser diagnóstico: é
tanto um conhecimento que se dá através de nossa relação com o cliente quanto visa tornar este
conhecimento discernível.
Quando falo de um conhecimento através de quero dizer que o conhecimento que posso ter do
cliente se dá através de nossa relação; através daquilo que ele me apresenta: seu discurso, sua história de
vida, seus sintomas, sua queixa, seu corpo, sua postura, seus sentimentos etc.; e ao mesmo tempo posso
conhecê-lo através daquilo que experiencio em minha relação com ele: meu olhar, minha escuta, meus
sentidos e meus sentimentos, minha intuição, minhas fantasias, meu conhecimento e minha observação.
Para Bleger “... cada ser humano tem organizada uma história de sua vida e um esquema de seu
presente, e desta história e deste esquema temos que deduzir o que ele não sabe” (1980).
A relação que se estabelece entre cliente e terapeuta ocorre num campo e não podemos esquecer
que somos uma variável importante deste campo, sendo que tudo aquilo que ali ocorre constitui uma
comunicação, seja ela verbal ou não.
O intuito do diagnóstico é compreender o que se passa com este indivíduo único a fim de
discriminar a melhor forma de possibilitar que a Gestalt inacabada se complete.
Diagnóstico não é algo a que temos acesso de imediato, embora eu considere fundamental uma
compreensão inicial do que se passa com o cliente e, por esta razão, sou absolutamente favorável a ter
tantas entrevistas quantas necessárias com o cliente antes de dar início ao trabalho terapêutico. Não me

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parece que possamos estabelecer um vínculo terapêutico se não a partir da compreensão. Não podemos
propor, por exemplo, um contrato terapêutico sem antes ter uma compreensão do que se passa com o
cliente. Além disso, se estes contatos iniciais tem a finalidade de nos propiciar um conhecimento do
cliente com vista à compreensão, tem também a finalidade de propiciar ao cliente a oportunidade de nos
conhecer, o que lhe dá a possibilidade de fazer uma escolha não apenas baseada em indicação ou fantasia,
mas baseada na experiência que teve conosco ao longo das entrevistas. Esta experiência de ambas as
partes possibilitará bases mais sólidas para a relação terapêutica.
Porém, o diagnóstico não é apenas algo que deve ocorrer no início da relação com o cliente, mas
deve acompanhar todo o processo terapêutico. Constantemente cabem as perguntas: o que está
acontecendo? e a serviço do que isto está acontecendo? (qual a função disso?).
Uma vez que o diagnóstico deve acompanhar o processo terapêutico gostaria de esclarecer que
não falo simplesmente em diagnóstico, e sim em
pensamento
diagnóstico
processual.
Pensamento, porque me refiro à reflexão do terapeuta, que o ajuda a compreender o que se
passa com o cliente.
Diagnóstico, porque se trata de um conhecimento que ocorre a partir da relação com o cliente e
que visa discernir/discriminar o que se passa com este cliente.
Processual, porque deve acompanhar o processo terapêutico e, tanto quanto este, estar
constantemente mudando e se reconfigurando, pois, à medida que nos relacionamos com nosso cliente
vamos ampliando cada vez mais nosso conhecimento, o que nos possibilita uma compreensão cada vez
maior. Pensar em termos de processo implica levar em consideração o crescimento do cliente, suas
mudanças ao longo do tempo e na sua relação consigo e com o outro, as de seu mundo intra e inter-
pessoal.
A partir do que eu disse até aqui penso ser possível depreender que o diagnóstico visto desta
forma não é, a meu ver, nem despersonalizante nem um rótulo limitante e sim um instrumento a serviço
da compreensão de cada cliente em sua singularidade existencial.
Tendo exposto a minha compreensão de pensamento diagnóstico em Gestalt-Terapia, gostaria de
comentar alguns aspectos que me parecem importantes atentar a fim de alcançar um diagnóstico
compreensivo, isto é, compreender a relação figura / fundo.
Inicialmente ao receber o cliente é importante não ter nenhuma idéia apriorística em mente.
Trata-se de um estado de disponibilidade interna, no qual é
possível deixar-se entrar em contato com aquilo que emergir na relação.
Presto especial atenção àquilo que me impacta, querendo com isso dizer que presto atenção ao
que me captura a atenção, me intriga, não faz sentido, me impressiona e assim por diante. O impacto
pode ocorrer a nível do discurso do cliente, de sua aparência, de sua energia, de sua postura corporal, de
sua afetividade (ou bloqueios dela), de sua voz, enfim, de qualquer coisa. Frequentemente o impacto me
sinaliza alguma coisa que, via de regra, não compreendo de imediato, mas que me parece importante
tentar compreender ao longo do tempo.
Além de atentar para o impacto, atento também para as omissões: aquilo que o cliente não conta,
quer isto se refira a períodos de vida, a relações significativas, a áreas de desempenho profissional, sexual
ou social, à saúde física etc.. Muitas vezes estas omissões são significativas e esclarecedoras.
Também presto atenção às associações, isto é, ao fluxo associativo do discurso do cliente (quer
ele se refira a fatos ou a afetos). As associações podem revelar conexões das quais o cliente não se dá

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conta.
Além dos impactos, das omissões e das associações presto também atenção às repetições que
tanto podem referir-se a pessoas específicas, à dinâmica repetitiva de relações interpessoais ou ainda à
repetição de afetos. Entendo as repetições como cristalizações, que impedem a fluidez na formação de
Gestalten. As repetições, podem ser consideradas repetições, um pedir novamente. A questão não é
atender o pedido e sim compreender sua função. O importante é ouvir o pedido que transparece nas
“repetições” e buscar, na interação presente organismo-meio, a possibilidade de resignificar a necessidade
expressa pelo pedido, com vista à descristalização que possibilitará a retomada do processo fluido de
formação e destruição de figuras.
Finalmente, gostaria de mencionar os sintomas que também sinalizam relações da figura com o
fundo. Para tanto retomarei brevemente o conceito de normalidade em Gestalt-terapia.
O conceito de normalidade está ligado ao conceito de ajustamento criativo que é a capacidade de
o organismo interagir ativamente com o meio, com vistas a possibilitar o atendimento de suas
necessidades. Porém, nem sempre o meio pode atender às necessidades e neste caso, com vistas a manter
a homeostase, i.e., manter o equilíbrio do organismo nas mais diversas (e adversas) condições, ocorre
então um ajustamento criativo no qual a pessoa modifica sua necessidade a fim de que possa ser atendida.
Desta forma a necessidade original passa por um processo de ajustamento, altamente criativo, às
possibilidades do meio de supri-la.
Trata-se de um ajuste necessário à sobrevivência psíquica da pessoa num determinado momento,
mas à medida que este ajustamento se mantém, deslocado no tempo e no espaço, acaba de se constituir
num ajustamento disfuncional, embora seja importante compreender que em algum momento foi
funcional e criativo.
É importante ressaltar que não é uma ou outra coisa que é suficiente para se pensar
diagnosticamente, pois o caminho para o pensamento diagnóstico não é um caminho linear e igual com
todos os clientes. Todos esses elementos (os impactos, as omissões, as associações, as repetições, os
sintomas) são sinalizações que indicam possíveis relações da figura com o fundo.
Finalmente gostaria de reiterar que embora os critérios diagnósticos nos sejam úteis, eles não dão
conta da complexidade do processo terapêutico. Pensar o diagnóstico em termos gestálticos implica em
pensar em processo, em relações de relações (pensamento dialético) e principalmente implica em
compreender (apreender com), alicerce central do relacionamento terapêutico.

Bibliografia
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Janeiro, 1995.

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