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Considerações iniciais
Este texto parte do pressuposto crítico de que o escravismo deve ser entendido
como um trauma constitutivo da formação social brasileira. Para tanto, apresentamos
reflexões sobre como a poesia brasileira contemporânea expressa a barbárie e a violência
contra os corpos negros dizimados ao longo da história. Neste ponto, é imprescindível
dialogar com a tradição crítica da literatura brasileira segundo a qual é possível fazer
uma interpretação da história nacional pautada pela violência, o que nos permitiria
pensar a constituição formal das obras artísticas centrada na percepção dos conflitos
sociais que as envolve. Tal posicionamento crítico aponta para a impossibilidade de
uma síntese totalizante desses processos históricos, o que nos lança para a hipótese
maior de nosso estudo: a de que os contextos de violência são propícios para se pensar
a ambiguidade entre o que se mostra e o que se esconde na história.
É importante, em um primeiro momento da pesquisa, traçar um percurso de
estudo que permita retomar alguns dos caminhos já percorridos pela crítica brasileira
em torno do tema. Em “A dor e a injustiça”, texto escrito para apresentação do
livro Razões púbicas, emoções privadas, o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro
aponta para o fato de haver dois traumas coletivos da sociedade brasileira, o que
em outras palavras podemos entender como traumas fundacionais de nossa histó-
ria. Segundo o filósofo, o processo de colonização e a escravidão formam a feição
política e social do Brasil que se mantém como uma herança ao longo dos anos.
Em sua conclusão aponta para o efeito de repetição desses traumas: “Ora, nosso
problema não é apenas que cenas primitivas como estas se tenham produzido,
e reiterado, ao longo de nossa história; é que elas nunca tenham sido realmente
elaboradas e extirpadas de nosso caráter. Daí que se repitam, compulsivamente,
ainda hoje” (Ribeiro, 1999, p. 11).
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uma leitura de “Rondó da ronda noturna”, de Ricardo Aleixo
A obra do poeta mineiro Ricardo Aleixo tem como uma de suas linhas de força
a presença do corpo negro na diáspora. A crítica Prisca Agustoni, em artigo recente
sobre a poesia de Aleixo, toca neste ponto ao afirmar que “Aleixo não se limita a
questionar apenas o espaço físico atribuído ao negro (ou seja, aquele espaço que,
historicamente, o negro tem que ocupar, na periferia da sociedade brasileira), mas
principalmente o espaço que ele ocupa no imaginário coletivo, ou ainda, aquele que
ele deixa de ocupar, por ser considerado, desde a época da escravidão, um sujeito
“invisível” (Agustoni, 2009, p. 43). Nesse sentido, podemos aproximar a poesia de
Aleixo e a leitura de Agustoni ao que afirma Frank B. Wilderson (2021, p. 23), em
sua obra Afropessimismo, em relação aos negros: “os negros corporificam (o que é
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uma leitura de “Rondó da ronda noturna”, de Ricardo Aleixo
diferente de dizer que eles sempre estão dispostos a expressar ou que têm permissão
de expressar) uma meta-aporia do pensamento e da ação política.”
O argumento apresentado por Wilderson se inicia com a recuperação do
pensamento de Jacques Derrida e a noção de aporia. Para o filósofo franco-argelino
a aporia indica um estado de indecidibilidade, elemento irredutível a qualquer ló-
gica binária ou dialética. A marca do indecidível, segundo Derrida, se funda como
“unidades de simulacro, ‘falsas’ propriedades verbais; nominais ou semânticas, que
não se deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e que, entretanto,
habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na, mas sem nunca constituir um
terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa
(Derrida, 2001, p. 49). Wilderson, quando retoma esta ideia a partir de Derrida,
propõe mais uma volta do parafuso ao acrescentar o prefixo meta-aporia.
Nesse sentido, ao afirmar que os negros corporificam uma meta-aporia,
Wilderson (2021, p. 24) pensa um “projeto crítico que, ao utilizar a negritude
como lente de interpretação, interroga a lógica tácita e presumida do marxismo,
do pós-colonialismo, da psicanálise e do feminismo por meio da rigorosa conside-
ração teórica de suas propriedades e lógicas presumíveis, como seus fundamentos,
métodos, forma e utilidade”; sua leitura leva em consideração um ponto de vista
pessimista que assinala para o fato de que o negro é parte necessária para a ma-
nutenção do curso civilizacional do mundo moderno. Sob esse enfoque podemos
ler o poema de Aleixo:
lido na conjunção que promove entre o apelo visual e o apelo semântico, estruturas
incontornáveis para a leitura deste poema. Do ponto de vista visual, há o impacto
da antítese construída entre letras brancas sobre um fundo preto, acentuando um
estado de tensão constante no poema.
Tal estado de tensão pode ser ainda ampliado quando observamos a frag-
mentação na composição dos versos. O hiato entre uma coluna e outra abre um
abismo no poema. Todas as palavras sofrem um corte abrupto – “q uanto”, “n
egro”, “m orto” –, algo violento nos termos de uma catástrofe, no sentido mesmo
da cisão. Percebe-se, ainda, que a fragmentação não cessa. Ao contrário, ela segue
um fluxo permanente e tende a retornar quando chegamos ao final do poema.
Esse efeito cíclico de eterno retorno pode ser compreendido pela repetição da
expressão “quanto +” em associação com o título “Rondó”.
O rondó é uma forma clássica de poema e, segundo Massaud Moisés (2013,
p. 446), provém do “francês rondeau; latim rotundu(m), redondo, em forma de
roda. Poema lírico de forma fixa, originário da França, onde apareceu por volta
de 1250: no princípio, consistia numa canção que acompanhava uma dança, a
ronde, de onde lhe veio o apelativo. Em vernáculo, o rondó vingou no arcadismo
(nomeadamente na pena de Silva Alvarenga) e em alguns poetas do começo deste
século XX, afeiçoados às experiências formais do parnasianismo (Homero Prates,
Goulart de Andrade, Manuel Bandeira).
Além desta tradição poética já clássica, o rondó também faz parte da tradição
de formas musicais. Na música, “as formas-rondó são caracterizadas pela repetição
de um ou mais temas separados por seções contrastantes”. (Schoenberg, 1993, p.
229). No poema de Aleixo, notamos que a estrutura fixa que se repete é o verso
“q uanto +”, o qual, em associação com a ideia de adição “mais um”, garante o
efeito de eterno retorno do poema. Vale ainda assinalar que o próprio título do
poema é uma estrutura circular. A escolha por aproximar “Rondó” e “Ronda”
promove um eco pela repetição da estrutura em “r”, inscrevendo desde o título um
formato arredondado do poema. A partir dessas associações, o poema de Aleixo
reescreve um gênero clássico ao passo que o renova. Aleixo retira o rondó de seu
lugar canônico ao romper com sua forma harmônica. A fragmentação observada
no poema não condiz com a forma clássica e esperada do rondó, mas coloca o
poema no centro da violência contra corpos negros no Brasil.
Se de um lado temos uma estrutura fixa, de outro os elementos de alternância
seguem o curso da morte dos corpos negros. O poema instaura uma ambiguidade
nesse ponto, diríamos mesmo uma aporia, pois a expressão “quanto +”, ao mesmo
tempo em que garante o efeito cíclico e de retorno, não necessariamente se fixa
como uma adição. Antes, há uma subtração. A cada volta do poema, portanto,
temos menos um corpo negro. Ao mesmo tempo em que o poema aumenta in-
cansavelmente seu fluxo, a morte opera como agente de subtração de corpos. É
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uma leitura de “Rondó da ronda noturna”, de Ricardo Aleixo
Considerações finais
citadas são prejudicadas por uma meta-aporia: uma contradição que se manifesta
sempre que se observa a sério a estrutura de sofrimento dos negros e comparação
com a estrutura supostamente universal de todos os seres autoconscientes”. Do
mesmo modo, os efeitos de eterno retorno do poema, seus índices sintomáticos,
o tempo cíclico e fragmentário que constrói e os espaços socialmente controlados
que sugere, nos mostram que nossa ideia de civilização foi e é construída com
base na necessidade do extermínio dos corpos negros.
Enfrentamentos de violências:
64 algumas estratégias de conhecimento, de corpos, territórios e hospitalidades
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