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YVES BORGES CATALDO
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RESUMO
Este trabalho de conclusão de curso explora pontes teóricas e práticas entre a Gestalt-Terapia
enquanto filosofia e método clínico, e a filosofia Taoísta e do Budismo Zen, através do foco
nos paralelos dos conceitos chave de Wu-wei e Awareness. Essa pesquisa é caracterizada em
seu método como qualitativa e exploratória. Foram utilizadas na metodologia desta pesquisa
uma revisão bibliográfica das relações já existentes publicadas em artigos, livros e revistas de
livre acesso na rede, e relatos pessoais do processo de escrita, supervisão e participação nos
projetos que compõem a parte prática da pesquisa. O objetivo principal é a construção de
entrelaces entre os conceitos de Wu-wei e Awareness com a finalidade maior de compor
material bibliográfico para facilitar futuros profissionais a investigarem os laços entre a
Gestalt-Terapia e as filosofias Orientais. Além disso, essa pesquisa relata, através da
experiência prática, como ambos os conceitos podem ser instrumentalizados na experiência
clínica visando o desenvolver das potências humanas.
Palavras-chave: Wu-wei, Awareness; Gestalt-Terapia; Filosofia; Vazio Fértil.
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SUMÁRIO
Introdução
Conclusão
Referências Bibliográficas
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Introdução
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Gestalt-Terapia, o conceito de Awareness. Esse conceito pode ser entendido como um
fenômeno (na concepção fenomenológica) perceptivo da consciência (PONCIANO,
2006), sendo a capacidade de perceber excitações do campo que envolve um organismo.
Essa capacidade, é invariavelmente presente e pode ser entendida como uma forma de
viver a experiência de ser-estar no mundo (ALVIM, 2014). Essa possibilidade perceptiva
é concebida de maneira espontânea e sensível, através das relações que se constroem na
interação inseparável do binômio Eu-Mundo (ALVIM, op.cit.).
Sendo assim, esse trabalho surge como uma possibilidade de não apenas
aproximar laços entre a Gestalt-Terapia e o Taoísmo, mas também dar ênfase a
possibilidade de se trabalhar através das diferenças, apostando no paradigma da
complexidade (Morin, apud PEIXOTO, 2016), ao invés do modelo dicotômico
cartesiano, tanto num pensar teórico quanto no seu funcionamento prático. É o pensar de
práticas de cuidado coletivas que envolvam uma postura democrática, presente, sensível,
corporificada e que abrace a diversidade como potência criadora e política.
É, portanto, a reafirmação de uma postura política e democrática, que busca
quebrar a centralização dos modelos terapêuticos na figura de um terapeuta centralizado e
detentor do saber e criar espaços de existência onde seja possível o cuidado coletivo.
É uma aposta não apenas na diversidade de teorias acadêmicas, mas na
diversidade de culturas, de temas contemporâneos e ancestrais que permitem a formação
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de agenciamentos coletivos complexos (PEIXOTO, 2016). Tendo como linha última o
compromisso ético da busca pelo bem de todos os seres sencientes em acrescentar o que
as teorias que aqui compõem acreditam como saúde; em resumo, uma afirmativa de
transformação e criação
Para além dos conhecimentos corporificados, existia em mim também uma busca
quase que inevitável pela coletividade. A coletividade, que é dentro de muitas tradições
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orientais a base para que se possa atingir um patamar de equilíbrio dinâmico na relação
corpo-organismo-ambiente, se tornou para mim fator crucial nas minhas escolhas de vida
e nas minhas buscas de implicação profissional na área da psicologia.
Aqui surge meu encontro com Paulo de Tarso, que me apoia em minha
empreitada de costurar saberes entre a Gestalt-Terapia e o taoísmo, e vai além
compartilhando comigo que tínhamos em comum um mesmo fascínio pelas similaridades
entre ambas as filosofias. Com Paulo, tive a oportunidade de ingressar no projeto Vidas
em Rede, mediada pela orientação da Prof. Dra. Mônica Alvim. Importante ressaltar que
Paulo de Tarso teve como diretora de pesquisa a Profa. Mônica Alvim, em seu
pós-doutorado em Psicologia no Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto Vidas em Rede possui relações com o
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projeto Corpos em Rede, sendo uma das ações ligadas ao pós-doutorado de Paulo de
Tarso.
A partir disso, essa pesquisa tem como objetivo principal compor material teórico
que se direcione no sentido de desenvolver o conceito de Awareness e de Wu-wei,
articulando os saberes da Gestalt-Terapia e da filosofia Taoísta. Esse objetivo é um dos
caminhos possíveis para a construção de um saber que seja capaz de não se centrar em
apenas uma área do conhecimento, acrescentando ao mundo visões que facilitem práticas
terapêuticas transdisciplinares.
Este trabalho possui, por sua vez, o objetivo de apresentar as relações dos
conceitos de Awareness & Wu-wei advindos da Gestalt-Terapia e a filosofia Taoísta,
observar e relatar minha experiência como participante dos projetos Corpos em Rede e
Vidas em Rede, expondo como esses conceitos podem ser operados na prática. Por outro
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lado, trarei em cena como a articulação dos conceitos apresentados e como as práticas
descritas afetaram a minha compreensão clínico-teórica como um estudante em fase final
de conclusão de curso de graduação em Psicologia.
Em minhas pesquisas sobre as influências que a Gestalt-Terapia sofreu das culturas e práticas
orientais, encontrei poucas referências sobre estas influências. Porém, as poucas referências que
encontrei e que estão presentes nesse texto confirmam os paralelos entre ambas as teorias. Não
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apenas pelo sabido interesse e contato de um de seus principais membros fundadores Fritz
Perls, mas também pela ressonância entre muitos dos conceitos chaves da Gestalt-Terapia, e
das filosofias e práticas orientais do Taoísmo, budismo Zen e até mesmo o Tantrismo
(GINGER & GINGER, 1995).
Essa influência portanto será explicitada aqui bem mais nesse formato de sincronias
teórico-práticas, do que através de uma análise histórica detalhada de fatos concretos e eventos
aos quais poderíamos atribuir essa semelhança. O motivo dessa escolha é principalmente a falta
de conteúdo na literatura atual que discorra de tal análise histórica, sendo presente
majoritariamente na literatura essa comparação conceitual.
No que diz respeito à formação da própria Gestalt-Terapia, podemos dizer que essa foi
um tanto quanto diversa. A Gestalt teve trocas consideráveis com diversas teorias psicológicas
e filosóficas em sua trajetória, desde a Psicanálise de Freud, até as suas bases na
Fenomenologia Existencial (GINGER & GINGER, 1995). Isso se deve em muito pela abertura
de seus co-fundadores Fritz e Laura Perls, que tiveram seus estudos envolvendo desde o direito,
até a psiquiatria, a dança, a literatura e a arte (JULIANO, 2004).
Quando buscamos sobre a formação da Gestalt-Terapia, encontra-se tanto material que
diz respeito a fundação apenas com Fritz e Laura Perls, como também referências ao que
chamam de “Grupo dos sete”, que abarca os sete nomes principais do primeiro centro de Nova
York, dentre eles: Fritz Perls, sua esposa Laura Perls, Paul Goodman, Isadore From, Paul
Weisz, Elliot Shapiro e Sylvester Eastman. (JULIANO, 2004).
Apesar de termos duas visões sobre a possível formação da Gestalt Terapia, ambas são
condizentes em pontuar as influências ocorridas pelo budismo, e pelo taoísmo. A construção
histórica da Gestalt-Terapia é colocada de duas formas: na constituição do grupo dos sete
(composto pelos sete autores principais) ; ou sobre os ombros de Fritz Perls (JULIANO, 2004).
Aqui, não vou me ater a discussão de qual das duas visões é mais válida, ambas me
parecem diferentes em propósito apenas. Para remontar de forma mais aprofundada na
literatura já existente analisei os escritos sobre as influências orientais na vida de Perls. Desde
seu contato inicial com o Zen- Budismo na África do sul, até sua viagem ao japão para
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experienciar o Zen de forma mais encarnada, até seu aparente desencanto após sua longa
permanência nos Estados Unidos da América (EUA).
As influências do budismo Zen na Gestalt-Terapia de Perls são inegáveis. Termos como a
palavra awareness, que já foi inclusive chamada por Perls de “Satori” ( que é o equivalente a
ideia de iluminação ao budismo), são presentes e comuns até hoje na literatura budista
(D'ACRI, LIMA, ORGLER, 2007). Mesmo que Perls tenha deixado de lado o seu interesse por
ser um adepto da religião budista, após constatar que assim como “a psicanálise forma
psicanalistas, e o budismo Zen forma Monges Zen”(D'ACRI, LIMA, ORGLER, 2007, pg
185.), seu interesse pelo âmbito transcendente era grande. O transcendente para ele era o que
nos dava a experiência de sermos um ser uno com o universo ao nosso redor, para além de
sensações sentimentos, similar a experiência Zen descrita como Vazio (DUNSEN, 1977), e do
Tantra não-dual da Caxemira descrita como “retornar a base”(SATO, 2013).
É importante ressaltar que essa busca de Perls por se aprofundar em explorar os
potenciais humanos e não só as patologias falava não apenas de uma iniciativa isolada, mas de
um certo Zeitgeist. O período pós-guerra envolveu um momento de grande pessimismo
intelectual, o que foi colocado em oposição com as vertentes dos movimentos de contracultura
no início da década de 60 (MARTÍN-BARÓ, 1999)
Os movimentos, dos quais os jovens foram pioneiros, valorizavam a integração com a
natureza, a exaltação do corpo de forma livre, das liberdades individuais de escolha para além
de padrões e normas sociais já pré-estabelecidas (MARTÍN-BARÓ, 1999). A partir desse
movimento, um grande interesse pelas filosofias e práticas orientais, que eram uma alternativa
ao tão difundido cristianismo, e ao mesmo tempo uma ferramenta que trazia a ideia de ir para
além de si mesmo e estabelecer conexão com o mundo (D'ACRI, LIMA, ORGLER, 2007).
A auto-reflexão começou a ser valorizada, a capacidade de se ver pelo prisma dos
próprios valores e próprios desejos foi o ambiente fértil para surgimento do movimento
existencialista. Ao mesmo tempo, estava ocorrendo uma verdadeira inversão de valores do
pensar para o sentir. Todos esses vetores de afetação atravessaram Fritz Perls e seus escritos
sobre Gestalt-Terapia, incluindo a influência oriental que marcava o Ocidente (D'ACRI, LIMA,
ORGLER, 2007, p. 185).
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Dentro desse contexto, temos alguns paralelos que surgem entre as pontes do pensamento
de Fritz Perls para a Gestalt-Terapia e as filosofias orientais. Uma das das mais notáveis
similaridades é a pretensão holística da teoria da Gestalt-Terapia, que não se limita em tentar
fragmentar a realidade em pequenos paralelos causais para explicá-la, mas sim tenta observar,
descrever a realidade como ela é, incluindo toda a sua complexidade (GINGER & GINGER,
1995)
Esse olhar em muito se assemelha com o olhar taoísta, e com o olhar do Zen budismo,
ambos em sintonia no que diz respeito a não tentar analisar o mundo através de milhares de
termos e nomes categorizados. Ambas as filosofias, assim como a GT, prezam por um olhar
que se pretende capaz de captar a realidade como ela realmente é, assumindo que as nossas
introjeções muitas vezes nos retiram a capacidade de vivenciar os fenômenos ao redor
(GINGER & GINGER, 1995).
Tanto na Gestalt, quanto nessas filosofias, nós temos o excesso de pensar como uma
possível evitação do sentir. Nos escritos de Fritz Perls encontramos algumas aparições que
falam especificamente da libertação dos “deverias” ou “shoud-ism” (GINGER & GINGER,
1995, pg 89.), onde, assim como no budismo Zen, existe uma forma de prezar a libertação das
obrigações impostas, de conteúdo moral, ou advinda de qualquer outro contexto que não seja
condizente e faça sentido com a situação atual do indivíduo (GINGER & GINGER, 1995).
Essa liberação dos “deverias” na Gestalt-Terapia se desdobra na libertação das
mecanização do agir, da liberação das fixações que geram sofrimento e já não nos servem mais,
abrindo a nossa consciência, a nossa awareness para ser afetada pelo mundo e poder gerar
novas formas espontâneas de ajustamento criativo (ALVIM, 2014). Movimento extremamente
similar a busca budista pela liberação das fixações que geram sofrimento, como uma forma de
buscar a possível erradicação da experiência de senti-lo, reduzindo a aversão ao que não
gostamos, e o excesso de preferência pelo que nós desejamos (BORGES, 2018).
Outra similaridade que podemos observar se dá na construção da teoria de Campo. Essa
teoria quebra a lógica causal, construindo uma noção do processo da experiência humana como
ser no mundo como algo integrado, onde o ser afeta e é afetado, constrói e é construído (Alvim,
2014). Esse processo dialoga com a teoria de que corpo e mente formam uma totalidade
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organísmica (Alvim, apud Goldstein, 2000) e não podem ser pensados separadamente - nem se
sobrepor um ao outro.
O que já era presente na filosofia oriental, onde essas fragmentações são lidas como
processos de deterioração de nossa saúde integral (SATO, 2013). Além disso, a filosofia
oriental vai além, discorrendo sobre fragmentação dos âmbitos vida, matéria e mente, e os
associando a noção de cronologia, início da quantificação do tempo como fator que coincide
com o início dessa noção bipartição no Ocidente (SATO, 2013).
A busca por um equilíbrio, dentro de uma noção de opostos, também é apontada na
literatura como forte influência do budismo Zen e do Taoísmo (GINGER & GINGER, 1995).
Perls fala em seus escritos sobre a busca de um ponto zero, um ponto de equilíbrio no agir entre
emoções opostas (raiva-alegria), construindo um paralelo com a regulação dinâmica proposta
pela figura Taoísta do Yin e Yang, onde cada um dos lados mostra uma polaridade, e a figura
em si é o símbolo do equilíbrio (GINGER & GINGER, 1995).
Dadas as semelhanças entre as duas filosofias, vi a necessidade de ir além e nos
aprofundarmos em dois dos conceitos chaves para a instrumentalização de práticas e futuras
construções que dialoguem a Gestalt-Terapia e as filosofias orientais.
Um dos conceitos fundamentais desse trabalho, que tem caráter central no corpo
conceitual e no método psicoterápico da Gestalt-Terapia, é o conceito de Awareness. Para
um bom entendimento desse conceito se faz necessário um diálogo constante com todos
os outras definições que compõem o corpo teórico da Gestalt-Terapia e da filosofia
fenomenológica que é uma de suas grandes bases. Sendo assim, apresentarei o conceito
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de Awareness através de caminhos tecidos com autores da Gestalt-Terapia que o
desenvolvem.
De início, é importante destacar a Awareness como um fenômeno (na concepção
fenomenológica) perceptivo da consciência (PONCIANO, 2006). É a capacidade de
perceber as excitações do campo que envolvem e compõem um organismo. Essa
capacidade, é invariavelmente presente e pode ser entendida como uma forma de viver a
experiência de ser-estar no mundo. Essa possibilidade perceptiva é concebida de maneira
espontânea e sensível, através das relações que se constroem na interação inseparável do
binômio Eu-Mundo. Tanto as noções que situam esse saber como um saber tácito, quanto
as que dizem respeito à perspectiva humana como uma consciência intencional que
transforma o mundo enquanto é transformada, advém da fenomenologia (ALVIM, 2014).
O conceito de Awareness, é, portanto, indissociável da filosofia fenomenológica,
que apoia tanto este, quanto diversos outros conceitos da Gestalt-Terapia que permitem
com que sua compreensão seja possível (PONCIANO, 2006). Aqui, a palavra fenômeno
faz referência a sua origem da fenomenologia, que o entende como passível de ser
experienciado, imediatamente presente e que se dá de maneira súbita e espontânea na
consciência (SILVA, LOPES e DINIZ, 2008). Essa ideia de fenômeno corrobora como
base para entendermos um dos mais importantes conceitos da Gestalt-Terapia, o conceito
de Campo.
Esse, é também de origem fenomenológica, mas é largamente utilizado e
ampliado na Gestalt, principalmente para descrever situações através da descrição
fenomenológica (PONCIANO, 2006). O conceito de campo propõe que todos os fatos
que afetam diretamente o comportamento em determinado momento montam um tipo de
atmosfera única de cada instante (PONCIANO, 2006). Essa atmosfera é via de regra
composta por afetações mútuas e inter-dependentes que estão acontecendo no aqui-agora,
por isso o processo de Awareness é invariavelmente presente, e ocorre através da
percepção fenomenológica da inter-relação entre Eu-Mundo (ALVIM, 2014).
Importante acrescentar que essa relação inclui fatores psicológicos e não
psicológicos diversos, e que ambas as variáveis estão em constante transformação através
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dos encontros de afetação recíproca (ALVIM, 2014). O sujeito transforma o mundo assim
como o mundo transforma o sujeito (e assim sucessivamente).
Além disso, quando utilizamos a palavra percepção e o conceito de awareness,
não estamos falando de algo que diga respeito a um movimento de reflexão. O conceito
de awareness para a Gestalt-terapia, assim como o conceito de percepção para a
fenomenologia, falam de um saber tácito, da ordem do sentir (SILVA; LOPES e DINIZ,
2008);(ALVIM, 2014).
Sendo assim, o processo de awareness é visto não de maneira pontual, mas como
um fluxo de experiência, e o ato de parar para refletir implicaria a interrupção desse
processo para que fosse possível entender a experiência vivida alguns instantes atrás no
tempo, não se encaixando mais dentro desse processo (ALVIM, 2014). A influência desse
pensamento vem da postura fenomenológica de observação e descrição dos fenômenos de
maneira presente, sem análises antecipatórias ou póstumas. Esse saber, da ordem do
implícito, é caracterizado como saber da experiência (ALVIM, 2014).
Falamos até aqui do conceito de awareness como um saber da experiência, de
uma consciência que está implicada na relação Eu-mundo, situada em um campo, cuja
percepção está na ordem do sentir. Para além disso, podemos acrescentar o momento
onde ocorre um ponto fundamental para compreensão da awareness, a transformação. O
processo de awareness para Gestalt-terapia pressupõe movimento, mudança e
transformação, estas não relacionadas a um universo intrapsíquico de percepção, mas sim
no pressuposto de que dentro relação proposta no binômio Eu-Mundo, ambas as partes se
transformam (ALVIM, 2014)..
Falamos aqui do surgimento de uma nova figura e um novo fundo, que não são
meramente o somatório das partes anteriores, mas toda uma nova composição única,
vinda da plasticidade dessa relação no processo de awareness. E no processo de
composição dessa nova configuração, dessa nova Gestalten, ocorre um fenômeno crucial
para o entendimento deste conceito, o contato (ALVIM, 2014).
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O contato, é ponto ímpar para o entendimento do funcionamento da awareness,
sendo este onde o conceito inicia a tomar corpo, isto é ser mais possível de ser aplicado
na experiência comum e concreta, saindo das nuvens da abstração. O contato é o
momento onde a consciência em fluxo contínuo implicado no campo se depara com algo
que é diferente (ALVIM, 2014). Nas palavras de Ponciano (2019), o autor afirma: “O
contato é fruto da relação de diferença eu-mundo e eu no mundo”. Sendo assim,
inevitavelmente em nossa existência como seres dentro da relação
campo-organismo-ambiente encontraremos conflitos (PONCIANO, 2019).
Esse conflito, porém, quando relacionado ao processo do livre fluxo de awareness
não envolve uma aniquilação, mas um ajustamento criativo de ambas as partes
(PONCIANO,2019, p.4). Como diz Ponciano (2019) em seu livro que descreve conceitos
básicos da abordagem gestáltica:
Desta forma, para que a awareness ocorra de maneira livre em seu fluxo, as
interações do processo de contato não compõem uma sobreposição de partes na relação
Eu-mundo (ALVIM, 2014, PONCIANO 2019). Essa não predominância entre partes faz
com que seja possível observarmos algo importantíssimo para o entendimento do
conceito de awareness, a proposição de um modo medial onde se afeta e se é afetado
simultaneamente.
Sendo assim, não existindo preponderância do lado do organismo na relação
Eu-mundo, podemos observar uma diferença conceitual entre as psicologias clássicas que
consideravam a existência de um ego e a Gestalt-Terapia, que não constrói não constrói
instâncias intrapsíquicas incrustadas no interior da vida psíquica. O sujeito, aqui, não é
sinônimo de consciência, o que marca o diferencial de uma consciência não egóica, e sim
uma consciência que existe a partir da construção de sentidos no encontro. Desta forma, a
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Gestalt-terapia também vai contra a ideia de um inconsciente definido como instância
intrapsíquica e contra leituras que envolvam determinismos sociais (ALVIM, 2014).
Essa visão que permeia o conceito de awareness tem comparação com a voz
média, de acordo com Alvim (2014, p.16): “Trata-se de um recurso gramatical da língua
latina ausente das línguas modernas empregado para ações que não se enquadram
inteiramente na voz ativa nem na voz passiva”. Isto é, dizer que o ajustamento criativo
que ocorre no choque de vetores, no processo de contato, pode ser imbuído de certa
imparcialidade.
Essa imparcialidade criativa pode ser melhor compreendida ao pensarmos a forma
de trabalho de alguns artistas, que não são capazes de criar através de uma racionalização
detalhada da obra, e sim através de uma abertura de consciência que o permite criar de
forma espontânea, através de estímulos que parecem simplesmente surgir, emanar no
campo, surge o impulso de movimentação e materialização de sua criação de forma
objetiva (ALVIM, 2014).
Nesse momento, podemos dizer que a awareness presente no artista “está numa
espécie de modo intermediário, nem ativo, nem passivo, mas que aceita as condições e se
dedica ao trabalho e cresce no sentido da solução” (ALVIM, 2014). Dessa forma,
podemos visualizar de maneira mais clara a espontaneidade do processo criativo presente
no livre fluir do fluxo de awareness, sendo aqui ilustrada pela situação do artista.
Essa ilustração nos faz perceber a espontaneidade atuando na relação
organismo/ambiente (artesão/ artefatos), de forma que é necessária certa “aceitação
descompromissada”, um não ansiar ou querer dominar o ambiente, e sim estar aberto a
ser afetado por ele na medida em que o afeta, aceitando o que vem e o que surge no
campo como junção de ambos (ALVIM, 2014).
Esta aparente passividade presente no processo de awareness, advinda dessa
postura de aceitação descompromissada tem suas origens nas discussões sobre a
intencionalidade da consciência e seu caráter de temporalidade, de forma a descrever as
formas de organizações presentes nos campos de significação das mesmas. Através da
visão de Husserl, segundo Alvim (2014), a experiência vivida no processo de awareness
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já se dá de forma espontânea (autônoma), através de um processo de síntese passiva,
onde o próprio campo de significações forma e configura novas formas.
Dessa aparente passividade surge o paralelo para falarmos de um vazio fértil. A
experiência de receptividade, ou até mesmo de inércia é vista na sociedade atual como
um desperdício de tempo (DUNSEN, 1977). Essa experiência compõe uma qualidade
essencial do ser humano de acordo com a filosofia taoísta que se debruça em
constantemente buscar por ela (DUNSEN, 1977). A essa experiência de aparente não
reatividade podemos dar o nome de Vazio, ou até mesmo Vazio Fértil (DUNSEN, 1977).
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Esse vazio descrito até aqui é ambivalente. Por um lado, completamente
cotidiano, se pensamos nos momentos onde nossos pensamentos parecem divagar e só
nos damos conta que estamos no vazio quando alguém nos chama a atenção. Como
também, absolutamente etéreo quando nos deparamos com a filosofia taoísta e suas
visões de infinidade. Essa bifurcação marca uma divisão na forma de encarar um mesmo
fenômeno. Enquanto no Oriente a oportunidade de experimentar a experiência de acessar
o vazio era vista como um privilégio, refinada através de complexas técnicas de
meditação, no Ocidente temos a postura quase que oposta de tentar “preencher” esse
vazio, ocupando nossas mentes com racionalizações que nos tirem desse estado de
consciência ( DUNSEN, 1977).
Um passo na direção contrária dessa postura Ocidental vem com o
desenvolvimento da Gestalt-Terapia. Ao normalizar o vazio como uma experiência
cotidiana e não digna de ser temida, Perls percebe também que o mesmo para além de
inofensivo, era também desejável dentro da estrutura do setting terapêutico ( DUNSEN,
1977, p.123). Não apenas desejável, mas em pouco tempo Perls começou a atribuir ao
vazio o lugar de “coração da mudança terapêutica", pois que o mesmo é a chave para o
entendimento da psicopatologia ( DUNSEN, op.cit).
Perls nos explica que em suas experiências clínicas notava que os momentos tidos
como vazios, isto é, momentos onde prevalecia o silêncio e ausência de suas
intervenções, enquanto terapeuta, eram riquíssimos. Nesse momento conteúdos
emanavam espontaneamente, conteúdos esses que não surgiam nas intervenções, ou nas
falas preenchidas entre ele e seus pacientes. Percebeu então que as intervenções e as não
intervenções funcionavam como uma dança fluida do dia e da noite, simbolicamente
atribuída ao símbolo do Ying e Yang. Essa dança era necessária para que novos
conteúdos pudessem surgir para serem trabalhados, pois que a fixação em qualquer um
dos dois extremos, fosse da extrema atividade ou da extrema inatividade, no que dizia
respeito às suas intervenções, chegaria em um momento de estagnação.
Sendo assim, o vazio é necessário de ser experimentado por diversos motivos,
tanto para resolução de um processo terapêutico como para a integração de fenômenos da
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consciência que só se tornam claros quando o temos de fundo (DUNSEN, 1977). Esse
vazio, no Ocidente, é muitas vezes temido. É o temor que possuímos do desconhecido, do
não controlável ( CAMPBELL, 1985 ). Por isso muitas vezes o vazio se torna sinônimo
de angústia, e consequentemente de problema, nos levando a uma tentativa de
preenchê-lo através do pensamento “o que está errado ?” e “como consertar isto ?”
(DUNSEN,1977).
Esse temor é justamente a causa pela qual muitas pessoas acabam chegando até a
terapia, pela dificuldade de enfrentar o próprio vazio sozinhes (DUNSEN, 1977). Seja
pelo auxílio de um psicoterapeuta, que há de ser capaz de lidar com o vazio nas sessões
para auxiliar o paciente com esse processo, ou por outra via (como através de diversas
técnicas de meditação), esse temor é possível de ser enfrentado (DUNSEN, 1977). E à
medida que somos capazes de nos familiarizar com esse vazio, começamos a perceber
que dele emanam diversos conteúdos potentes à medida que tomamos consciência deles
(DUNSEN,1977). Nesse ponto, começamos a vivenciar a fertilidade do vazio, e a
criatividade que emana das experiências de vivenciá-lo (DUNSEN, 1977)
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o corpo no lugar do veículo que permite a nós a concepção de mundo, o que possibilita a
experiência de ser-estar nesse mundo (DAOLIO, 2012).
A experiência do Wu-wei só pode ser percebida através das sensações do nosso
próprio corpo (DUNSEN, 1977). Isto é, podemos até elaborarmos aqui o que é a sensação
do vazio, mas uma das poucas formas de descrevê-lo é falando sobre o que ele não é. O
vazio, como dito acima, não é racionalizável, mas é percebido quando tomamos
consciência de nossas sensações, gestos e sentimentos. Essa consciência a qual me refiro
é na verdade o estado de consciência Aware, que de forma quase redundante permite a
experimentação do vazio através do corpo.
A própria filosofia taoísta, de onde advém o Wu-wei, coloca no corpo um enfoque
primordial. O corpo na filosofia taoísta assume lugar fundamental por ser o veículo e
fonte simultâneamente da energia vital qi ou chi. Essa energia vital, imanente, também
anima todo universo, e seu surgimento espontâneo pode ser percebido através do silêncio,
da não-ação (DUNSEN, 1977). O silêncio, a não-ação, tem como intuito o relaxamento
das funções mentais, que facilitam a percepção das expressões sensoriais do corpo
culminando num movimento de aprender a agir no presente, ao invés de agir ligado ao
pensamento do que acontecerá com a ação (DUNSEN, 1977).
Esse movimento de agir sem esperar, se torna tanto no Wu-wei quanto na
Awareness um fluxo. Vai para além de algo pontual e permite a entrada de um estado de
devir. Esse devir fenomenológico é fenômeno comum na experiência da Awareness e no
Wu-wei na medida que a forma com a qual experienciamos e entendemos o mundo deixa
de ser tão sólida e causal, e começamos a nos reconhecer simultaneamente em um mundo
lógico e não lógico.
É a entrada, o acesso, o abrir dos olhos para o que já está e sempre esteve aqui, o
tempo Kairós. O tempo da pulsação do corpo, da circulação, que nos faz sentir como se o
momento fosse eterno. É um tempo diferente do qual costumamos nos referir ( que é o
tempo de Cronos). Diferente do tempo de Cronos, ou cronológico, o tempo Kairós traz
consigo uma sensação atemporalidade, de infinitude (PEIXOTO & REGGIO, 2009). Trás
muitas vezes uma experiência tênue e sutil que muitas pessoas atribuem significado
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espiritual, apesar de estar em potencial sempre aqui e agora. É o tempo que parece durar
horas no olhar de encantamento de duas pessoas que acabam de se conhecer e gostar uma
da outra. É o tempo da paixão, do sentir, da sensação de vida de um artista que pinta
fazendo da sua obra uma parte de si em completa imersão.
Esse potencial ganha corpo, e carne, quando somos capazes de estarmos presentes
de corpo e alma. É o próprio agir “des esperado”, sem esperar que qualifica e permite
esses estados de presença. Esses estados de consciência, que nos permitem sentir dos
mais sutis aos mais intensos momentos da vida, são justamente o que muitas vezes eu
vejo as pessoas descreverem com "se sentir vivo". É a emoção inexplicável de um pôr do
sol, ou o sussurro no ouvido da poetisa que sente que precisa escrever o que lhe atravessa
em um papel. É o ímpeto repentino após alguns instantes de meditação, e a criatividade
por impulso pós ócio que descrevem alguns "gênios".
São os momentos pré-reflexivos que a teoria da Gestalt-Terapia conceitua como
integrantes necessários ao estado Aware, e a postura de vida que idealiza o Tai Chi
quando nos transmite o Wu-wei. São antes de pensar, um sentir. E não é estranho que
esse movimento venha acompanhado de grandes surpresas. As afetações que chegam aos
corpos que estavam acostumados com um mundo de monotonia e pessimismo intelectual,
causam micro colapsos (VARELA, 2003). Esses colapsos, contatos de fronteira,
encontros com a diferença, despertam a necessidade espontânea de adaptação.
Essa adaptação, que dentro da literatura da Gestalt-Terapia encontramos como
ajustamento criativo, faz paralelo com a alcunha de Wu-wei não apenas como Vazio
fértil, mas também como Vazio criativo. Isto é, a espontaneidade desse ajustamento,
desse novo caminho, que surge na consciência, afeta e transforma o corpo da busca de
uma nova forma de ser-estar no mundo.
As tecnologias que vem da Awareness e do Wu-Wei são usadas no ramo das artes
para que seja possível a criação do inédito. A expressão de algo que sequer possuímos
consciência de que existe, algo que simplesmente toma forma na ação na forma de choro,
de riso, de olhar sincero, de arte. Nesses processos temos a criação do artista que diz que
23
não fez a arte, mas apenas a manifestou, porque ela emanou de uma origem além de suas
idéias.
Dessa forma, tanto a Awareness como o Wu-wei, entram como base de práticas de
saúde que visam romper com as redundâncias de nós mesmos. Sendo a fixação, a
repetição, e a dessensibilização grandes problemas em termos de saúde integral,
Desmecanizar, ampliar possibilidades e potências de vida é de enorme relevância em
termos de saúde. Ambos os conceitos ( de Awareness e Wu-wei) permitem essa
transformação através do embasamento das práticas que vão desde o método da
heterogênese Urbana, o tai chi, o chi Kung, a arteterapia, até a clínica em seu setting mais
tradicional.
Em minha trajetória dentro da área da saúde houve alguns pontos fundamentais onde a
prática da clínica da Gestalt-Terapia se cruzava com as práticas orientais. Entre essas, a mais
recente a me atravessar antes de meu encontro com o Professor e atual co-orientador Paulo de
Tarso, foi o projeto de extensão universitária Corpos em Rede.
O Projeto, de iniciativa da Professora e Pesquisadora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) Mônica Botelho Alvim, teve início em abril de 2020. Iniciamos em pleno
desespero frente ao desconhecido que nos era lançado no início da pandemia do covid-19.
Iniciamos em meio a situação de alarde que afetou a população brasileira. Justamente frente a
isso decidimos nos mobilizar. Nenhume de nós tinha noção que a quarentena se prolongaria por
bem mais que 40 dias, mas mesmo assim nós estudantes da graduação, pós-graduação e
24
ex-alunes ligades a área de psicologia e as práticas corporais, nos propusemos a ajudar como
podíamos.
De forma mais detalhada sobre o funcionamento, o projeto consistiu em atividades
corporais online para grupos de até 10 participantes, com o objetivo de produzir o cuidado
sensível às populações das comunidades do Rio de Janeiro, em meio à pandemia, por meio de
atividades que facilitavam a ampliação da consciência corporal, a expressão e circulação de
emoções e tensões acumuladas no corpo. E foi conduzido por psicólogues e auxiliado por
extensionistas de psicologia. Após as práticas corporais havia um tempo para conversar,
quando a equipe ficava disponível para ouvir questões trazidas pelas pessoas, caso desejassem
compartilhar.
Para a realização desse trabalho, que era o primeiro online virtual da maioria de nós
enquanto estudantes e profissionais, foram quatro módulos de trabalhos corporais, desenhados
por pessoas especialistas em uma modalidade de trabalho corporal: Paulo de Tarso Peixoto,
Alice Vignolli Reis, Carla Eirado, Giovanna Lo Bianco. Elus foram os responsáveis por
desenvolver uma sequência de atividades com duração total de 15 a 20 minutos com objetivo
de treinar trios de multiplicadores e oferecer a eles eventual supervisão ou orientação em torno
do trabalho corporal. Cada trio era composto por: um psicólogo e dois estudantes de
psicologia, extensionistas. Cada sessão tinha a duração máxima de uma hora semanal e cada
um dos quatro módulos foi realizado por duas semanas, resultando em um total de 8 semanas
de trabalho para cada grupo.
O treinamento foi feito por aulas teórico práticas de cada um dos módulos, passados para
nós semana por semana antes de que começássemos a receber us participantes, onde us
profissionais, por vídeo conduziam suas práticas para nós e nos davam algumas orientações
chaves de como reproduzir a condução com us participantes que entrariam.
No momento do treinamento, foi minha primeira oportunidade de conhecer alguém que
trabalhasse de forma comprometida e com bases de experiência e pesquisa na junção entre
práticas orientais e a Gestalt-Terapia. Na aula teórica do Professor Paulo de Tarso tivemos a
nossa primeira interação onde encontrei alguém que poderia me promover o caminho para as
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experiências e para a orientação necessária para compor o corpo deste trabalho de conclusão de
curso. Antes disso tive um processo de ao menos 5 meses no Corpos em Rede.
Nessa direção, entre as minhas intenções ao entrar no projeto, uma delas era conseguir
movimentar o meu corpo. Eu estava travada, até mesmo desesperada com o enorme elefante
branco do desconhecido que cruzava na minha frente. O projeto para mim era quase que como
uma salvação, uma forma de me ater a algum tipo de coletividade, presença, movimento e
sentido enquanto eu sentia o chão ruir sobre os meus pés.
A sensação de vulnerabilidade me flechava e entrar em uma quarentena e ter que me
isolar de tudo e todes não era exatamente algo que me facilitasse o processo. Meu corpo parecia
enrijecer como forma de proteção, e dessensibilizar minhas próprias emoções. Eu assistia o
mundo agora por telas, mas precisamente a tela da televisão onde relatos de tragédia e distração
eram a única coisa possível. Todo contato social se resumia a telinha do meu celular, a alguns
dígitos e códitos, brilhando na telinha com a imagem que simbolizava cada amigue.
Em meio a tudo isso, ouvir uma voz humana era o mais próximo que eu tinha do que
entendia como real. Em pouco tempo desse “novo normal”, eu já mal sentia o meu corpo e a
realidade ao meu redor dissociava aos poucos como se eu estivesse em algum tipo de sonho, ou
melhor, pesadelo.
Diante dessa situação nem um pouco animadora, o Corpos em Rede era minha aposta em
uma âncora que me aterrase e me mostrasse de novo um pouco do antigo real. Dito e feito.
Entrar no projeto, ver os rostos de pessoas com quem eu trabalhei/estudei junte por tantos anos
me afetava. E aquelas telas frias que antes pouco me mostravam a realidade, agora me
permitiam ter meus afetos movimentados. Eu me sentia acolhida e amada, e isso satisfazia uma
das maiores necessidades que eu tinha naquele momento. Como dito por uma participante de
um dos encontros que eu conduzi: ”Acho que no fim é isto: somos seres solitários em busca de
abraço.”
Pensei comigo: “Se nesse primeiro encontro pude me sentir tão viva, talvez sejamos
capazes de mobilizar positivamente outras pessoas também”. E era justamente essa a proposta
central Apesar de simples, era um tanto quanto revolucionária nossa descoberta. A Psicologia
que por tantos anos parecia rejeitar o virtual, agora via nele uma das únicas vias possíveis de
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cuidado. Era nossa aposta coletiva, de que era possível gerar afetações, movimentações que
gerassem potência mesmo que através das telas tão subestimadas e até mesmo criticadas dentro
do curso de psicologia.
As equipes foram divididas em grupos, onde cada grupo ficou responsável por atender
um determinado nicho de público. Os grupos eram divididos em: Adolescentes, Mulheres,
Profissionais da Área da saúde, Lideranças comunitárias, e membros da comunidade
LGBTQIA+.
Sendo assim, as atividades iniciaram, e meu coração fervia enquanto escolhia o tema de
trabalhar com o público LGBTQIA+. Enquanto uma pessoa trans, eu tinha certa dimensão de
como nossa comunidade estava sofrendo dobrado com o isolamento. Eu enxergava na
possibilidade que eu tinha ali uma chance de poder fazer algo por elus e por mim ao mesmo
tempo.
Foi a primeira vez que trabalhei com práticas corporais, e contrasto com meu momento
atual de escrita e vejo uma grande diferença. O Corpos em Rede foi pra mim um primeiro
convite para entender que para trabalhar com meu corpo eu teria que desenvolver um senso de
presença bem maior do que eu carregava comigo até aquele instante. Trabalhar com o corpo
demandava afinação dos meus sentidos, do meu sentir.
Decidimos enquanto equipe que iríamos manter cada prática por duas semanas, e como
os encontros eram semanais, isso significaria que teríamos a oportunidade de conduzir cada
uma das 4 práticas ao menos 2 vezes no intervalo proposto pelo programa que era de 8 (oito)
semanas.
Na condução do encontro em si utilizamos um roteiro básico montado de forma
padronizada para todos os grupos que consistia em um passo-a-passo:
1. Apresentação do Trabalho
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1.2- Dicas operacionais: recomendar que os participantes devem fixar a
imagem da pessoa que está conduzindo (depende do aplicativo) e apoiar o celular
sobre uma superfície para que possa ficar com as mãos livres
2.1- Propor exercícios básicos que criem um repertório mínimo para o que
será feito nos trabalhos, como um alfabeto está para as palavras. Ex. contar o
tempo da respiração. Ou a diferença entre expirar só pela boca ou pela boca e
nariz ao mm tempo.
4. Espaço de fala
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A noção de campo e contato surgiam de forma evidente, principalmente quando viamos
cada letrinha da sigla LGBTQIA + falar sobre a sua própria diversidade de experiência. Cada
um retratando a sua própria perspectiva do que sentíamos coletivamente como um filme de
terror ( que estranhamente ainda persiste hoje em meados de 2021 enquanto eu escrevo).
Apesar de compartilharmos de um mesmo campo social enquanto nação, cada
experiência era marcada por afetos únicos, dentro de uma territorialidade que se pretendia no
início as comunidades e favelas da cidade do Rio de Janeiro e acabou por se estender pelas
redes até pacientes de todo o Brasil, de Manaus até Porto Alegre. O motivo para essa extensão
foi o acesso, que descobrimos ser extremamente difícil para acessar, pois muites ainda eram
pessoas que não eram assumidas em suas casas enquanto LGBTQIA+ e não tinham um
cômodo com privacidade para expor suas questões, entre outras questões.
Nosso público se tornou desde pacientes trans ricos, que moravam sozinhes, a pessoas cis
não heterossexuais que tinham que dividir o ambiente com os pais que sequer sabiam sobre
suas dissidências quanto ao padrão cis-hétero.
Em meio a um campo de tantas incertezas, era comum o relato de tensão vindo das falas
dus participantes. Mesmo que nossa proposta não fosse apenas um relaxamento, mas sim uma
movimentação de afetos, a tensão relatada era tão grande que frequentemente us participantes
apenas relataram alívio. E em meio a todo esse caos, ainda foi possível, na experiência de quem
vivenciou os encontros, relatar descobertas sobre si. Algumas pessoas diziam pela primeira vez
notar sua relação com o próprio corpo, e o desenvolvimento da capacidade de Awareness como
potência de auto-descoberta em sua vida cotidiana no contexto do isolamento.
Além disso, eu podia notar que um dos motivos que estava por trás dessa dificuldade de
gerar novas possibilidades de existência vinha desde antes da pandemia. As dimensões
histórico-social-economico que nos atravessam em um século imerso de informações, de uma
era digital baseada em controle e super exposição de informações, nos tirava a possibilidade de
exploração do sentir. A exacerbação da razão, vista sob o contexto das dimensões político,
social, histórica e econômica gerava a fixação do habitus (Segundo a fenomenologia de
Merleau-Ponty) , incapacidade de gerar novos gestos, novas formas (ALVIM, 2014). A
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consequente dessensibilização gerava perda de potência de reinvenção do corpo, e
consequentemente o adoecimento (ALVIM, 2014).
Uma certa relação com o Vazio também era percebida por mim. À medida que nossa
rotina havia sido arrancada a força de nós, os momentos de silêncio possíveis em meio a
solitude da pandemia atravessava a realidade de alguns dos participantes. Até comigo mesma
eu podia notar isso. Sem planos, sem preencher o tempo eu acessava um estranho lugar de
lacuna, de intermitência, que na época eu sequer sonhava em chamar de Wu-wei.
Reaproximando-me do Tantra Não-Dual da Caxemira pude notar a nomeação desse
Vazio, que apesar de não ser conceitualmente idêntico ao Vazio taoísta, tinha incríveis
semelhanças. Notava em mim um certo desespero em preenchê-lo, o que via também na fala
dus participantes que relatavam tentar esgotar o Vazio através de ações incessantes. Eu não
sabia exatamente como proceder com isso no programa, e o mesmo já estava perto do fim então
pouco me cabia.
Então, eu tirei o tantra de dentro do meu baú empoeirado, e quando o programa Corpos
em Rede terminou eu já havia decidido que gostaria de escrever sobre algo que fosse capaz de
dialogar esses dois tipos de conhecimento e práticas que atravessavam minha vida de forma tão
presente: O tantra e a psicologia.
No fundo o programa me deu alguns bons aprendizados. O primeiro deles era que a
vontade de ajudar as pessoas enquanto terapeuta não seria bem empregada enquanto eu não
ajudasse de forma mais profunda a mim mesma. E que colocar a energia plenamente em um
modo de ação não era um equilíbrio interessante, eu precisava de receptividade, vazio e
equanimidade para possuir uma boa sanidade básica.
O outro grande aprendizado que eu tive foi relacionado ao preparo. Tive dimensão de que
para conseguir desenhar algo que envolvesse a interação de grupo e conseguisse ter vida, eu
precisaria de uma orientação mais extensa e duradoura do que a curta duração do projeto, que
foi feito o que era possível até aquele momento.
O saldo de toda a experiência foi positivo e no final acabou me preparando para o que
viria a ser meu próximo passo: a entrada no programa Vidas em Rede.
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Capítulo 5- Vidas em Rede , A Cura do Tempo e o Reencontro com o
Vazio Fértil.
Em um primeiro momento, eu achava que meu sonho de construir uma monografia que
falasse sobre algo que via tão distante de todos os materiais da academia era quase impossível.
Até que a Professora Mônica Alvim publicou o processo de seleção para o programa Vidas em
Rede com o Professor Paulo de Tarso. A simples possibilidade de aproximação com o
Professor Paulo de Tarso foi pra mim, em um primeiro momento, motivo de festa.
O projeto Vidas em Rede possui relações com o projeto Corpos em Rede, pois o
professor Paulo de Tarso teve como coordenadora de pesquisa de pós-doutorado a Profa.
Mônica Alvim, criando-se uma ação interinstitucional entre o Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Livre da Secretaria
Adjunta de Ensino Superior da Secretaria de Educação de Macaé, onde o Prof. Paulo de Tarso é
coordenador.
A proposta do projeto Vidas em Rede gira em torno de uma prática coletiva de cuidado
de si e do outro, cujas bases estavam firmadas na teoria e prática do método da Heterogênese
Urbana (PEIXOTO, 2016), tendo como objetivo principal a construção de Ambientalidades
Afetivas em meio a pandemia do COVID-19 (PEIXOTO, 2020).
Essa prática de cuidado é aplicada de forma online, em um grupo de pessoas que chega
até o encontro realizado todas as sexta-feiras das 7:45 da manhã até as 9:00. A maioria das
pessoas chega até nós através de diversas parcerias interinstitucionais que o programa possui, e
isso torna o público extremamente diverso. Temos desde pessoas jovens até pessoas idosas.
Pessoas negras, brancas, pobres ou de classe média, de diversos estados do Brasil.
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Desta forma, quando fui apresentada ao programa, não sabia muitas informações a mais
do que vocês estão sabendo agora, nesse instante lendo o texto. E isso não era um descuido,
pelo contrário, era parte do método ( o qual eu aplico aqui também em minha escrita).
O método da Heterogênese tem forte base na Musicoterapia, uma das muitas formações
do Professor e Pesquisador Paulo de Tarso Castro Peixoto, e o que eu aprendi com isso pode se
sintetizar na palavra “cadência”. Fui introduzida ao programa com ritmo, aos poucos, e
principalmente ( e propositalmente ) convidada a experienciar mais do que teorizar. Era uma
didática que se aprendia com o corpo, com foco no sensível, ao invés do racional.
Isso por si só já inverteu por completo a minha consciência, causando um rebuliço que
misturava empolgação e confusão. Eu, com minha mente naquele momento tão sedenta e
acelerada, queria devorar teorias, mas Paulo me deu apenas um texto, com algumas poucas
páginas para que eu e us outres alunes de nossa equipe tivéssemos em mãos no primeiro
encontro.
É relevante pontuar que o grande pilar metodológico no qual se baseia o programa Vidas
em Rede se apoia na metodologia da Heterogênese Urbana. Esta foi criada no ano de
1998 no Programa de Saúde Mental de Macaé (RJ). A Heterogênese Urbana é, por si só,
constituída por saberes transdisciplinares, advindos das artes e articulados com
conhecimentos de diversos campos, desde as filosofias da imanência, da Gestalt-Terapia,
Musicoterapia, da sociologia, do conhecimento popular e de muitas outras culturas
(PEIXOTO, 2016)
Alguns pontos fundamentais desta metodologia para o funcionamento do
programa é sua abertura para a diversidade. Não apenas uma abertura, mais um estímulo
à forma de ver o “novo”, o “outro”, o “estrangeiro”, como algo belo e necessário ao
processo de produção de subjetividades singulares. Se apoiando no ideal ateniense de que
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aqueles que vinham de fora das bordas poderiam sempre trazer algo de bom consigo, a
heterogênese estimula a diversidade das experiências humanas em conjunção, somada a
uma perspectiva composicional advinda do olhar musicoterápico biomusical em
contrapontos desenvolvida por Peixoto (2016).
O funcionamento da heterogênese na prática se manifesta em um método de
trabalho espontâneo, que se cria no presente, de forma descentralizada e horizontal. Todo
o grupo, participantes e participantes-cooperadores, realizam a sua metamorfose coletiva,
com a circulação dos vários afetos depositados por cada indivíduo neste campo,
permitindo assim que as necessárias transformações da vida ocorram (PEIXOTO, 2016).
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experienciada pelus colegues de equipe, além de aparecer nas falas dus participantes. Era a
experiência de um tempo pouco vivido na contemporaneamente, o tempo Kairós (PEIXOTO &
REGGIO, 2009). Aprendemos na prática como alargar a temporalidade mediando as práticas
reflexivas sensíveis com as práticas corporais. Aprendemos a dilatar o tempo biomusicalmente
(PEIXOTO, 2020). Aprendemos a compreender na prática como modular a musicalidade da
vida dos contatos de cada encontro.
À medida que as afetações surgiam o Professor Paulo ia nos convidando às leituras que
fundamentam a nossa experiência. Após nossos estudos conceituais, durante a semana, nós
levamos os conceitos, dúvidas, propostas ao processo de transvisão semanal.
Em umas dessas tranvisões, a questão do tempo nos foi apresentada de forma
aprofundada no artigo Espaços expressivos: Diversidade e Heterogênese Urbana (PEIXOTO e
REGGIO, 2009), onde pude entender que na metodologia do programa existia a intenção do
efeito que eu sentia. Eu pude experienciar, na prática, a experiência do tempo Kairós, sensível,
que o programa me possibilitou, tão diferente do tempo Cronos, racional, que dominava por
completo a minha experiência cotidiana.
Essas duas temporalidades, tão diferentes entre si, afetam diretamente a forma como
sentimos e experienciamos o mundo, mais precisamente, interferindo na biomusicalidade das
nossas subjetividades (Peixoto, 2020). A pandemia trouxe alterações no nosso dia-a-dia,
modificando também a forma com a qual percebemos o tempo, e o consequente isolamento
tornou escassa uma ferramenta fundamental para evitar as redundâncias de nós mesmos, o
encontro (PEIXOTO, 2020). O encontro, que era justamente o momento onde nossos corpos se
afetavam com qualidade de presença, se perdeu. O momento do encontro, muitas vezes, era o
momento em que o tempo do cotidiano, usualmente monótono, se expandia. Era a possibilidade
de vivenciar alguns instantes que pareciam infinitos, no sorriso de uma pessoa por quem
tínhamos apreço, ou no olhar surpreso de ver alguém que não víamos há muito tempo. Essa
qualidade do tempo vivido sensível e criador de possibilidades é o que podemos chamar de
tempo Kayrós (PEIXOTO & REGGIO, 2009)
A perda de Kayrós é atribuída à segmentação do tempo tão presente na nossa sociedade,
que se apoia fundamentalmente em outra forma de vivenciar o tempo, o tempo de Cronos, ou
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Cronológico (PEIXOTO & REGGIO, 2009). O tempo cronológico é o famoso tempo do
relógio, o tempo do previsto, da linearidade e da lógica. É um tempo que contrasta com o
tempo de Kayrós, o tempo do sentir, tempo da espontaneidade, tempo do imprevisível, o que
estaria fora dos planos, fora da rotina. (PEIXOTO & REGGIO, 2009).
Vemos por todos os cantos um afastamento da experiência do tempo de Kairós. A
tentativa de lidar com o desconhecido cronifica e torna ainda mais técnico e mecânico o tempo
vivido. Nos aproximamos do cruel titã Cronos, da mitologia grega, que segmentava os instantes
com sua foice e devorava seus filhos para que não viesse “o novo” (PEIXOTO & REGGIO,
2009). E não raro, lembro de compartilhar estratégias com amigues e observar as tendências
nas redes sociais incentivando uma super cronificação do tempo como forma de suprimir o
surgimento dos espaços vazios de tempo, no caso de quem agora estava parade em casa e sem
atividades
A perda do tempo Kairós é a perda de qualidades das potências de vida essenciais para a
criação. Para entender a dimensão disso, podemos recordar o conceito de Maturana e Varela
(1996), de Autopoiese, onde a criação e a vida são vistos quase como sinônimos. A morte física
está acontecendo nas filas e leitos dos hospitais, mas também, há morte na perda da
musicalidade da vida que, em movimento mecânico e repetitivo, tende ao movimento de
construção de obras de vida degradadas.
E eu me via nesse lugar. Repleta de teorias e técnicas que me foram ensinadas de forma
mecânica e na maioria das vezes sem a possibilidade de sequer cogitar “ter tempo” de senti-las.
Isso foi definitivamente um grande contraste que senti no trabalho do Vidas em Rede, onde
cada etapa do encontro em grupo convidava a esse novo lugar. E não apenas dentro dos
encontros abertos ao público, mas também nos encontros da equipe, onde éramos orientades a
buscar os conceitos à medida que éramos afetades. Assim que trazíamos uma dúvida ligada a
um sentimento, emoção, estranhamento, o Professor Paulo indicava de forma precisa um
conceito que nos fazia refletir de forma mais aprofundada e entender de forma prática como
transformar essa experiência de forma a ser incorporada na nossa postura enquanto
profissionais do grupo e para além dele.
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Dentro dessa perspectiva, a experiência de participar do Vidas em Rede, não apenas me
trouxe o olhar para a falta do tempo, mas, por sua vez, do espaço onde possamos manifestar a
expressividade. Algo que na minha experiência já faltava bem antes do isolamento começar,
mas o mesmo agravou a situação. O que restou foram palavras e imagens mediadas pelas
tecnologias e informação, que na minha antiga concepção jogavam mais contra do que ao nosso
favor quando pensava em encontro e em sentir.
Prelúdio
Sendo assim, ali, às 7:45 da manhã, na liberdade do momento de prelúdio, onde todas as
pessoas eram recebidas com um “bom dia” caloroso da equipe e cada participantes podia
simplesmente trazer o que bem desejasse, ocorria uma brecha. Brecha essa que estava em todos
os outros momentos do encontro também, onde as palavras que expressam o sentir de cada
pessoa podiam ser ditas de forma espontânea. Ali, entre o intervalo da fala de cada participante
e o proposital silêncio que nos era orientado não preencher com pressa, surgiam os de espaços
vazios. Era o contorno necessário para um momento de Wu-wei, um momento de Awareness
em meio à cronificação dos territórios de vida (Reggio & Peixoto, 2010).
O silêncio do prelúdio me trazia uma sensação de paz, ao mesmo tempo que eu entrava
em contato com a angústia de mecanicamente desejar preencher esse espaço. Era necessário
certa firmeza na qualidade de presença para que a mecanização do agir automatizado não
tomasse conta e preenchesse o Vazio.
Ali, era a preparação do corpo para aceitar mergulhar um pouco no estado de Wu-wei,
cuja porta só se abria quando eu me permitia e aceitava o livre fluir do fluxo contínuo de
Awareness pelo meu corpo. Essa postura, que eu via não apenas em mim, mas também no
Paulo, nos membros da equipe e nos participantes, criava uma atmosfera nova, um campo onde
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nossa presença Aware criava um iminência da criação espontânea do Vazio fértil. Dava pra
sentir as borbulhas que vinham antes da água ferver. O fervilhar de um ou mais temas que
viriam a nos afetar.
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(PEIXOTO, 2016, p.298) cada participante se conectava consigo, mantendo as qualidades de
Awareness e permitindo que de forma espontânea, surgisse uma fala sensível. Essas falas
repercutem umas nas outras, gerando o que nomeamos de piquenique de afetos, onde as trocas
afetam mutuamente construindo um campo de intimidade e transformação.
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adaptadas pelo professor Paulo mediante a sua sensibilidade quanto a possível
necessidade do grupo.
Além disso, o professor Paulo incluiu também após as coreografias
semi-estruturadas um momento que ele nomeou de Free-jazz Tai-Chi Chuam. Esse
momento era um convite para utilizarmos, da base dos movimentos já conhecidos,
movimentos novos. Podíamos criar a nossa própria dança, baseada nos desejos do nosso
próprio corpo , visando movimentos libertários e instituintes do corpo para a libertação de
outras possibilidades afetivas.
…
Logo em seguida, construímos juntes enquanto equipe de cooperadores um
momento integração final. Um momento voltado para trazer contorno a experiência
vivida através da Musicoterapia Gestaltáltica, através do uso de fones de ouvido e do
relaxamento do corpo em uma posição confortável podemos simplesmente nos entregar
as melodias que o Professor Paulo compunha de forma espontânea no piano. Esse
momento traz, de acordo com o relato dos participantes, grande conforto, e lembro que de
todo o encontro era o momento onde a ausência das palavras e o banho sonoro-musical
nos convida a mais profunda imersão na sensibilidade de adentrar de forma consciente,
Aware, em um Vazio pulsante e sem separação entre dentro e fora. É um momento onde
pra mim as dualidades parcialmente se extinguiam,
Por fim, nos últimos cinco minutos, há a possibilidade de uma última expressão
através de palavras. Esse momento possui uma dimensão poético-filosófica que caminha
na direção da reflexão sobre o momento vivido. Um último compartilhamento de
vivências era feito, e cada pessoa falava um pouco de como não eram mais as mesmas
que entraram e nos despedimos na promessa de um novo encontro na semana seguinte.
Reverberações
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pra mim, uma impressionante abertura prática sem a qual certamente a articulação desses
conceitos seria praticamente impossível. É até difícil pra mim acreditar que tudo isso foi
feito virtualmente, porque em minha experiência cotidiana enquanto praticante de
meditação, tudo que envolvia as interações em meio virtual eram minhas maiores
dificuldades no que diz respeito a não me perder nos automatismos da vida.
A experiência de algo que permeie o virtual e ao mesmo tempo tenha em si uma
metodologia que permite ser levado também ao concreto é por si só algo que carrega
consigo potência. Também me gerou positivo espanto a abertura e o contorno necessário
para que sem pouca ou nenhuma explicação racional do processo pessoas diversas
pudessem estar conscientes dos atravessamentos livres do fluxo de Awareness que nos é
sempre possível, com todas as potências que o compõem, desde a sensibilidade, até a
presença e a possibilidade de criação e de novas possibilidades de existência. Assim
sendo, abrindo brechas na temporalidade, na própria existência para que em momentos do
mais completo Vazio nós pudéssemos nos habitar e sentir pacificamente a vida que pulsa
em nós e as mais diversas manifestações que daí podem surgir.
Considerações finais
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dessas duas filosofias, o Wu-wei e a Awareness, e foram desdobradas conexões e entrelaces
que já existiam antes mesmo desse escrito, mas em pouca quantidade na língua portuguesa
disponível online ao qual tive acesso.
As danças entres esses dois conceitos foram aqui construídos como verdadeiros convites
a danças de muitos outros desdobramentos, o que deixa daqui em diante também em aberto a
potência da singularidade e da diversidade,; que feita sob o manto de um olhar cuidadoso,
respeitoso e dedicado abre caminho para que não apenas os paralelos aqui feitos se
permaneçam mas para que sejam transformados, agregados, e ainda mais ampliados.
As práticas que vivenciei em ambos os programas Vidas em Redes e Corpos em Rede
foram fundamentais para o entendimento teórico dos conceitos utilizados nesta monografia.. As
práticas me permitiram vivenciar os conhecimentos antes de escrever sobre eles ao invés de
estudar abstrações e procurar visualizá-las em campo. Fui instrumento direto da pesquisa, e não
só eu, como também cada pessoa que se colocava de forma aberta e presente em cada um dos
programas.
O foco dessas experiências foi colocado nas vivências que faziam parte dos programas,
Vidas em Rede e Corpos em Rede, cujos profissionais envolvidos me forneceram desde
inspirações, até material teórico e orientações de condução e postura clínica prática. Foi através
dessas possibilidades que pude vivenciar e assim afirmar a existência de uma possibilidade de
uma prática que transpõem os muros dos saberes, na direção de um saber coletivo, potente e
sobretudo voltado para a vida em seu sentido mais puro.
Deixo aqui o convite a que outres profissionais somem com essa pesquisa no futuro e/ou
a utilizem como fonte de inspiração de pesquisa, prática e orientação filosófica em suas
próprias experiências enquanto seres humanos. E a intenção de que essa pesquisa contribua
profundamente no caminho da libertação das mecanizações e das prisões estruturantes que nos
direcionam a uma repetição de nós e um consequente distanciamento do pulsar criativo e vivo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2005. CIDADE,
Hernâni. Portugal histórico-cultural. Lisboa: Presença, 1985.
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GINGER, G, A. Gestalt: uma terapia do contato. São Paulo: Summus editorial, 1995.
_____ O Homem e seus Símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
MATURANA, H. R. & VARELA, F. El árbol del conocimiento: las bases biológicas del
conocimiento humano. Madrid: Debate, 1996.
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43
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PERLS, F. S. Isto é Gestalt- Coletânea de artigos escritos por Frederick S. Perls e outros;
Novas buscas em psicoterapia, v.3. São Paulo, Summus, 1977.
44