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CORPO, PRESENÇA E EXPRESSÃO EM PSICOTERAPIA

Graça Duarte Santos

O Corpo é o nosso modo comum de existência na Vida onde se crista-


lizam íntimas vivências emocionais. É também o veículo de ligação entre
subjectividades onde o encontro entre o Eu e o Outro se torna ou não
possível. Sendo o Eu uma entidade dinâmica onde várias dimensões dia-
logam entre si, a verdadeira escuta dessas dimensões é fundamental para
o posterior diálogo com um Tu.
Somos presentes neste corpo de vivência íntima que se expressa em
sons e em silêncios… neste corpo que se move e se aquieta. A possibilidade
da escuta da acção e da imobilidade é a escuta da destrinça entre ‘acção’
e ‘reacção’, entre ‘expressão’ e ‘agir’. Essa escuta emana de um refinamento
do estado de Presença que só assim permite uma verdadeira Expressão
do interior que, em liberdade, se pode expandir em várias dimensões de
expressividade. Só assim é possível a escuta do Eu que não Outro e/ou
do Outro que não Eu, para no espaço do ‘entre nós’ se poder verdadei-
ramente estabelecer a relação. O trabalho de Presença e escuta interna a
nós mesmos, ao reflexo do Outro em nós e à verdadeira Expressividade
imanente surgem assim como elementos fulcrais no resgatar, com auten-
ticidade, a intersubjectividade do diálogo Eu-Tu presente na relação

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psicoterapêutica. Esse é um trabalho mútuo, mas, primeiramente, do tera-


peuta, que nesse caminho acompanhará a pessoa.
Neste capítulo começaremos por reflectir sobre o lugar do Corpo na
Presença e na escuta a nós e ao outro, nesse caminho que vai do contacto
íntimo com o próprio à abertura ao outro no espaço da relação psicote-
rapêutica. De seguida procuraremos evidenciar o papel dessa escuta na
comunicação no espaço exterior sensível onde se manifesta a expressão,
realçando algumas das suas possibilidades no contexto psicoterapêutico.

INTRODUÇÃO

Trazer o Corpo e a Expressão para a Psicoterapia tem sido um tema


controverso na história da cultura psicoterapêutica, despoletando inúme-
ras questões. Como é que o Corpo ocupou este lugar no âmbito das psi-
coterapias? De que corpo se fala? O do cliente? O do terapeuta? O visível?
O sentido? O simbólico? O perturbado? E o que fazer, o que ler no diá-
logo dos corpos que se encontram em cada sessão?
Nestas buscas é incontornável, na cultura ocidental, o encontro com
a perspectiva dualista mente-corpo que impregnou, nos ecos da medi-
cina e da psicanálise, todas as abordagens iniciais da psicoterapia, preva-
lecendo longamente no seu discurso. Contudo, pouco a pouco, o Corpo
foi trazido para o encontro psicoterapêutico, imbuído não apenas de olha-
res sobre as suas várias funções, mas, mais do que tudo, perspectivado em
toda a sua dimensão de corporeidade.
E falar de Corporeidade é falar de uma dimensão existencial que
engloba uma multidimensionalidade associada a várias dimensões do
Ser humano, nomeadamente, e segundo Merleau Ponty (1976), a do corpo
físico, a mental/espiritual e a social, onde o corpo é perspectivado como
um espaço de existência de muitas dinâmicas internas e externas, passadas
e presentes, acompanhadas e solitárias, que se cruzam e são assim viven-
ciadas. Este é o corpo que habitamos, mas este é o Corpo de que muitas
vezes nos ausentamos, arrastados pelos pensamentos, pelas percepções

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externas, presos no passado ou antecipando momentos. Ausentando-


nos e dissociando-nos do Ser agora, evitando ou não sabendo como ser
Presente, antes de mais, a nós mesmos. Estes são os Corpos (des)habita-
dos que se Encontram no espaço psicoterapêutico, num espaço onde a
vivência da Presença é crucial.
Ao longo de vários séculos foram muitos e diversos os pensadores
que falaram sobre Presença (Bois, 2009). Martin Buber (1958) falou-
-nos da Presença como um importante aspecto do Eu-Tu, relação mútua
que envolve a existência holística de dois seres no encontro com o outro,
um encontro autêntico de pessoas, onde não há lugar para a qualificação
ou objectivação do outro, nem para a comunicação de conteúdos. Esta
relação, apesar de não poder ser provada como um evento, é real e percep-
tível num subtil estado de Presença. Posteriormente, muitos outros como
Rogers (1961), Gelly e Greenberg (2012) e Robbins (1998) realçaram a
importância da presença terapêutica como uma qualidade fundamental
para a eficácia da psicoterapia. Geller e Greenberg (2012) definiram-na
como “o estado de ter todo o seu eu no momento, numa multiplicidade de
níveis, fisicamente, emocionalmente, cognitivamente e espiritualmente”
(p. 7), sendo um elemento fundador que suporta a escuta e a compreen-
são profunda do cliente no momento. Conceito hoje integrado em várias
abordagens terapêuticas, nomeadamente através das perspectivas de min-
dfulness, a Presença é uma das maiores dádivas que um terapeuta pode
oferecer ao cliente, sendo o facto de se estar totalmente presente e ser total-
mente humano com outra pessoa, por si próprio, terapêutico (Shepherd,
Brown, & Greaves, 1972). Presença ao outro que só o poderá ser verdadei-
ramente depois (e sempre simultaneamente) do encontro connosco mes-
mos enquanto terapeutas. É esta possibilidade de escuta e de Presença a
si mesmo que define a profundidade da relação com o outro (Eberhart
& Atkins, 2014) e que assim poderá fazer nascer no outro a possibilidade
de se escutar e de se revelar na expressão.

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O CORPO EXPERIENCIADO – A ESCUTA INTERNA

Mas de que escuta falamos? Que escuta procuramos? E como fazê-la?


Se os caminhos de resposta são sempre únicos, em todos eles o corpo,
nas suas múltiplas camadas, máscaras e narrativas, é presença cons-
tante. O corpo está desde sempre intimamente ligado à vida psíquica,
sendo o lugar onde se inscreve desde a vida intra-uterina, a história do
sujeito, a sua organização psicossomática, o seu funcionamento energé-
tico (Golse,1999). Ele é também a manifestação infra verbal da personali-
dade do indivíduo, que se revela não só pela sua morfologia, mas também
na sua tonicidade, na sua postura, no seu gesto, na sua dinâmica de movi-
mento. Membrana de profundas raízes entre o dentro e o fora, é ele que
possibilita a expressão. Menos controlado que a linguagem verbal, esca-
pando a racionalizações defensivas, o corpo é susceptível de expressar ele-
mentos inconscientes e profundos, conflitos internos, estados emocionais
e dinâmicas relacionais que são traduzidos em registos que não os verbais,
evidenciando-se na atitude, no gesto, na mímica e em múltiplas reacções,
assim como nas suas inibições, bloqueios ou expansões. Por isso, quando
falamos de Presença, evocamos a sua dimensão de aprofundamento da
consciência corporal (chave para a compreensão da interacção corpo-
-mente), conceito que envolve um foco atencional e uma consciência das
sensações internas do corpo, uma vivência subjectiva e fenomenológica
da propriocepção e interocepção, modificável pelos processos mentais,
atitudes e afectos. Mehling et al. (2011) definiram-na como a habilidade
para reconhecer os sinais e as sugestões do corpo. E é esta habilidade que
está envolvida na sintonização empática entre as duas pessoas no encon-
tro terapêutico e que é observável na sua interacção corporal. Já Stern
(1998) referia que o mimetismo e a empatia quinestésica são respostas
automáticas e inconscientes à relação com o outro, fundadas em expe-
riências muito precoces
A intersubjectividade é fundada sobre a empatia, mas também sobre
um enraizamento corporal e uma experiência vivida. O ‘corpo vivido’
depende da maneira pela qual o sujeito o habita e pela atenção que lhe

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dá. E neste sentido, quanto mais o sujeito habita o seu corpo intimamente
mais a sua consciência será afinada na capacidade de se perceber unifi-
cadamente enquanto sujeito ‘encarnado’ e, partindo desta consciência,
maior será a possibilidade de se abrir genuinamente ao outro (Bois, 2009).
Estes fundamentos contribuem para a compreensão da importância da
Presença consciente à vivencia do Corpo, que, no contexto da relação tera-
pêutica, possibilita um enriquecimento na compreensão não só do cliente
mas do próprio terapeuta e da relação. Leijssen (2006) afirma que, numa
perspectiva de melhoria da eficácia da psicoterapia, a riqueza dos recur-
sos corporais pode e deve ser usada de um modo mais consciente, pres-
tando atenção aos diferentes aspectos da informação corporal. Informação
proveniente do interior, do exterior e da relação. Acrescentamos tam-
bém neste sentido que o aperfeiçoamento de um estado de Presença per-
mite desenvolver uma atenção perceptiva subtil ao corpo, alimentando
o imaginário e a poesia, e conduzindo progressivamente a um percurso
de descoberta e implementação da expressão individual, nas suas várias
nuances, num movimento verdadeiramente de dentro para fora (Bois,
2009). Entrando em contacto com esta qualidade de presença a nós mes-
mos, ao nosso corpo e ao mundo dos outros, encontramos também auten-
ticidade e, consequentemente, a possibilidade de transformação.
Neste processo de escuta, no qual o terapeuta poderá guiar o cliente,
encontramo-nos na valorização da consciência corporal e da sua dinâ-
mica relacional. Encontramo-nos ao nível da escuta interna e do corpo
experienciado intimamente por cada um dos intervenientes, que os irá
abrir ao Encontro e ao diálogo (também corporal).

O Corpo do Terapeuta
Frequentemente, quando se aborda o corpo em psicoterapia o foco é
sobre o corpo do cliente, sendo o corpo do terapeuta perspectivado ape-
nas como receptáculo do processo transferencial (Shaw, 2003). Mas tal-
vez, como já começámos a referir, o corpo do terapeuta possa também
ser olhado como actor e agente do processo de mudança em psicoterapia.

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De facto, a experiência incorporada do terapeuta é também um aspecto


significativo da natureza intersubjectiva da terapia.
O terapeuta traz o seu corpo para o encontro terapêutico por refe-
rência à sua própria história e também à sua experiência de descober-
tas e associações vividas enquanto cliente. Em qualquer destas situações
os fenómenos corporais no seu próprio corpo ajudaram ajudarão a (in)
formar o psicoterapeuta na sua prática clínica. É esta escuta interna de
si, acrescida da consciência de como o seu corpo responde e reage ao
outro, que está presente num duplo olhar ao visível no corpo e ao invisível
para além dele. São referenciados na literatura estudos que mencionam a
existência de fenómenos/reacções corporais que o terapeuta experiencia
quando está envolvido no trabalho terapêutico. Estes vão desde o espe-
lhamento corporal até sensações de suor na palma das mãos, repulsa e
fechamento, cheiros, frio ou calor, dor musculo-esquelética, entre mui-
tas outras (Shaw, 2003). Esta vivência corporal do terapeuta é, contudo,
frequentemente atribuída ao cliente e interpretada em torno do conceito
de ‘material do cliente’. No entanto, Shaw (2003) refere que quando estas
reacções são reveladas aos clientes isso abre portas a uma outra leitura
dos fenómenos da corporeidade no seio da relação terapêutica, eviden-
ciando a possibilidade do recurso ao corpo do terapeuta como um ins-
trumento narrativo, que cria uma narrativa co-construída entre cliente e
terapeuta, permitindo a incorporação do corpo-vivido do terapeuta no
próprio encontro terapêutico.
Nesta profunda ligação entre a corporeidade e o estado de presença,
Gelly e Greenberg (2012) afirmam também que os terapeutas presentes
se tornam conscientes de sua própria experiência e da de seu cliente atra-
vés de sensações e emoções corporais, e é essa consciência que os ajuda a
conectarem-se profundamente com o cliente, num processo de sintoni-
zação que capta a sua informação. Também Colosimo e Poss (2015) refe-
rem que o facto de o terapeuta ser sensível ao que acontece na sua própria
experiência corporal e ao que o cliente incorpora é um elemento básico na
presença terapêutica. Esta capacidade de recepção, embora possa depen-
der da formação do terapeuta e da sua própria história pessoal, poderá ser

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promovida através de um trabalho de consciencialização sobre o seu pró-


prio corpo e a posterior abertura ao outro (Santos, 2007), aprofundando
uma literacia corporal (Shaw, 2003). Este é um trabalho sobre o reco-
nhecimento das várias tonalidades das vivências dos processos corporais
(sensações, tensões, fluir entre o pensamento e sensação), explorando a
corporeidade através de inúmeros fenómenos somáticos experienciados
no encontro e o desenvolvimento de uma “paleta de nuances” que poten-
cializa o reconhecimento do diagnóstico e processual do cliente.
Efectivamente, descobrir o que o nosso corpo põe em jogo, com a nossa
presença física e a forma como investimos no espaço e/ou no tempo, pode
adquirir um enorme significado na compreensão do processo terapêutico.
O mesmo acontecendo com a própria voz enquanto som corporificado que
ressoa. O desenvolvimento desta escuta processa-se na consciência entre
a lentidão do movimento interno e a do movimento externo e na resso-
nância interna que evoca no sujeito que a vive e a expressa. É nesse inte-
rior do gesto que é posta em jogo uma qualidade particular de Presença,
assim como é nesse processo que o sensível se torna visível (Bois, 2009).
E é também a partir desta visibilidade que, do ponto de vista do corpo do
terapeuta, um olhar, um sorriso, um gesto, um contacto podem transmitir
tão melhor do que as palavras a compreensão, a empatia, o suporte. Mas
é no sensível invisível que a escuta do próprio corpo, pelo terapeuta, per-
mite ouvir os seus próprios ecos e destrinçá-los dos do outro.
É esta consciência de nós mesmos que nos permite abrir sem viés ao
outro. Então, do corpo experienciado e da escuta interna, podemo-nos
abrir ao corpo percepcionado do exterior e à escuta do outro.

O CORPO PERCEPCIONADO – A ESCUTA DO OUTRO

A escuta interna do terapeuta é então o meio pelo qual este se torna


presente ao outro, num fluir subtil entre o dentro e o fora, o fora e o den-
tro, numa atenção consciente ao visível e audível, mas também ao invi-
sível e inaudível. É neste processo de co-criação que a psicoterapia se
desenvolve, tornando-se compreensível o papel fundamental do corpo,

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quer na percepção do Outro quer como meio de comunicação privile-


giada, manifestando a ressonância afectiva da palavra ou o que esta pode
não dizer (Vinot-Coubetergues & Marc, 2014). O psicoterapeuta sabe que
neste processo é importante encontrar a sincronização com o corpo do
cliente de modo a desenvolver um ambiente securizante, e que esta sin-
cronização é algo subtil, difícil de definir, mas que se torna mais notória
aquando da sua falha.
Por vezes emerge a fragilidade da presença a si, no corpo, por exem-
plo quando no encontro psicoterapêutico estamos perante uma pessoa
sentada na sala, que mantém uma vivência corporal contínua ainda que
na sua quase quietude, levando ao paradoxo de que aquele corpo está
esquecido. Mas apesar disso o corpo do cliente é trazido à psicoterapia,
de uma forma mais ou menos consciente, também pelas observações ou
leituras que o terapeuta dele faz. Aí o corpo oferece uma série de possi-
bilidades de ‘rastrear’ as suas emoções e o seu processo interno. De facto,
grande parte da corrente subliminar das nossas experiências só muito par-
cialmente (e imperfeitamente) é reflectida verbalmente. O nosso mundo
interior, as nossas crenças implícitas são comunicadas de uma forma
muito mais clara por meios não verbais, como a posição do corpo (rela-
ção com a gravidade, enraizamento, leveza, constrangimento…), as postu-
ras (rígida, colapsada, pronta para agir, expressiva…), os gestos (repetitivo,
suas qualidades: abrupto, suave, agressivo, controlado, espontâneo…),
o ritmo (lento, rápido, variável…), a tensão e relaxação muscular (padrões
e mudanças, contacto com a respiração…), o olhar (vidrado, vivo, desa-
fiante, assustado…), a voz (ritmo, tom, presença de emoção….) e outras
comunicações somáticas ainda mais subtis. Sabemos, por seu turno, que
todo o conhecimento da linguagem corporal facilita não só o contacto
afectivo entre terapeuta e cliente, mas também o contacto dentro do pró-
prio cliente. Pequenos gestos e sensações podem abrir portas para memó-
rias importantes, possibilitando a exploração profunda de significados
nem sempre conscientes, alguns mesmo negados, assim como possibili-
tam a compreensão da forma como estes se relacionam com a experiên-
cia do momento presente.

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O trabalho terapêutico, que se processa e envolve o momento presente,


implica que o terapeuta conheça e tenha atenção aos sinais não verbais
(o que a pessoa faz, como o faz e como experiencia o que faz), o que nem
sempre é fácil para os terapeutas cuja formação se foca mais na história
da pessoa. Este processo de reconhecimento e entrada em contacto com
o outro é um processo de intimidade (diferente do processo de devolu-
ção empática), que permite a junção dos elementos da comunicação não
verbal ao que eles revelam do inconsciente, fazendo com que a pessoa se
sinta profundamente vista, abrindo as portas à Relação.

O CORPO EM RELAÇÃO – PRESENÇA E EXPRESSÃO

Embora as diferentes abordagens da psicoterapia possam ser situa-


das num continuum, do verbal ao não verbal, o Corpo está inevitavel-
mente presente em qualquer delas através do processo de comunicação.
Comunicar é um processo simbólico que liga o interior e o exterior, o Eu
e o Outro, num processo de troca que envolve, numa simbologia tam-
bém corporal, a expiração e a inspiração. Comunicar implica exprimir e
a expressão é em si mesma também um processo simbólico, mas um pro-
cesso que privilegia apenas a expiração, uma expiração que envolveu uma
anterior aspiração, ou seja, que envolveu o Sonho. Não podemos falar de
expressão (verbal, não verbal, quinestésica ou outra) sem falar em pro-
cesso simbólico (lúdico, criativo, artístico ou outro); não falaremos em
processo simbólico sem falar de imaginação: esse espaço onde a expres-
sividade se experimenta antes de se tornar visível.
Merleau-Ponty (1976), fundamentando a sua perspectiva de que Ser
no mundo é, antes de mais, sê-lo num corpo, evidenciou a importância
da expressão como mediador no corpo do interior e do exterior, através
da sua perspectiva de arte (inevitavelmente expressiva) quando a ela se
refere como “revelando a inerência corporal do Ser, abrindo ao visível
da percepção o invisível profundo”, revelando no acto expressivo o pul-
sar da expressividade.

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A expressividade, como construção psíquica e de intersubjectividade


que serve de pedestal à criação, é um lugar de subtil contacto entre o den-
tro e o fora possibilitando a criação de uma zona transaccional interna
onde podemos reflectir. É também o lugar que possibilita a emergência
da expressão.
Especificamente no que concerne à expressividade do corpo esta fun-
da-se em três componentes: a tónica, a postural e a gestual, albergando em
si toda uma dimensão relacional e fantasmática que serve de ancoragem
ao Corpo de cada um de nós. A componente postural é reveladora de uma
construção tónica memorizada ao longo de todo o processo desenvolvi-
mental e relacional, que condiciona a orientação, a forma, a organização
do corpo em direcção a alguém, configurando também o uso do espaço.
Podendo ser visto, por vezes, como um objecto assustador onde cer-
tos tabus entram em jogo, o Corpo pode ser trazido ao encontro psico-
terapêutico de múltiplas formas. Pode também ser o lugar ou mediador
de uma acção psicoterapêutica específica, nomeadamente num trabalho
sobre a tonicidade, a respiração, a postura, a expressividade corporal. Não
se trata de intervir sobre um corpo fisiológico, mas sim de atingir, pela via
corporal, os funcionamentos psíquicos que lhe estão ligados. Inúmeras
abordagens têm sido propostas (psicoterapias corporais ou de mediação
corporal), pelo que evidenciaremos aqui apenas as que ligam as vivên-
cias corporais e expressivas.

MEDIADORES EXPRESSIVOS EM PSICOTERAPIA

Partilhando de várias perspectivas humanistas (Rogers, 1993; Halprin,


2003), pensamos que a expressão criativo-artística é a nossa linguagem
nativa, primária, uma via de entrada para o nosso mundo profundo,
expressando sensações, intuições, memórias e sentimentos que não são
acessíveis à palavra. Ela oferece-nos um poderoso meio de expressão do
mundo interno, de aprendizagem e relação connosco e com o Outro,
de comunicação e partilha de vivências e conhecimento. Vimos também
que nenhuma abordagem terapêutica ou de promoção de saúde pode tocar

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a Pessoa se relegar o corpo e a sua expressão para segundo plano, porque


é no corpo que tudo se processa. O corpo contém todas as nossas histó-
rias de vida, e é esse reportório que podemos activar e aceder através do
movimento e das expressões. O corpo é uma força expressiva e comuni-
cativa dos vários conteúdos psíquicos (emoções, imagens, pensamentos)
onde toda a relação com o Outro se traduz visivelmente na atitude, postura
e expressão corporais. E se toda a Expressão perpassa o Corpo, também
quando recorre a mediadores artísticos ela convoca o corpo em actos de
variada natureza: gestual, vocal, dramático, plástico, dançado. Toda esta
riqueza de expressão tem uma particularidade que resulta da sua inscri-
ção em três níveis: o Real, o Imaginário e o Simbólico, surgindo como
uma alternativa transformadora ao agir através de mecanismos de catarse
e de sublimação relacionados com os processos de criação.
Quando em Psicoterapia evocamos a Presença ao corpo, falamos de
um Corpo que é a justaposição articulada de vários corpos: de um corpo
físico e sensorial – que integra em si todas as (im)possibilidades anáto-
mo-psicofisiológicas; de um corpo emotivo – que guarda memórias sen-
soriais e quinestésicas, sentimentos e emoções de outrora que agora se
actualizam; de um corpo expressivo – que anseia por gritá-las em cores,
sons, movimentos...; de um corpo simbólico – que tece as suas imagens
e metáforas em linguagens por vezes não audíveis, mas expressas no visí-
vel; de um corpo habitado – pelo Ser total que é a Pessoa.
Quando falamos de Expressão pelo Corpo como linguagem, falamos
do movimento interno – que silenciosamente persegue as emoções, pen-
samentos e memórias, construindo a teia de metáforas que se imobilizam,
agitam ou dançam num ritmo visível no exterior; do movimento exte-
riorizado – que fala das partes simbólicas do Eu, mas também das fun-
cionais e vazias que o oculta; e do movimento expressivo – que amplia o
encontro criativo dos significados e das emoções do Eu. E a partir dela
evocamos não uma, mas inúmeras linguagens que se articulam para falar
da Pessoa. A linguagem não verbal – que se exprime na dança de quem
pinta ou move, ou se expressa no silêncio do corpo que dói, se retrai ou
se deleita; a linguagem sonora – que se expressa nos risos e sons, gritos

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e cantos que vêm do interior do corpo e lá ressoam; a linguagem verbal


– que fala no espaço sonoro e no papel, que faz a ligação entre a história
das nossas origens e o mito; a linguagem simbólica – que diz em metá-
foras, para alívio do corpo, sentimentos, emoções e pensamentos que o
preenchem e se querem comunicar; a linguagem lúdica – com que nos
redescobrimos com o outro; a linguagem criativa – com que nos comu-
nicamos, realizamos e crescemos holisticamente.
Por isso, em psicoterapia, o recurso aos mediadores expressivos (dança,
desenho, pintura, modelagem, música, som, drama) são possibilidades de
vivência e de exploração de diferentes formas de comunicação tendo o
corpo como mediador (através da sua escuta e da sua expressão), usando
o imaginário e a improvisação para o auto-insigth (Rogers, Tudor, Tudor,
& Keemar, 2012).
Também nesta relação entre Presença, Expressão e Arte, Eberhart e
Atkins (2014) dizem-nos que uma Presença completa leva a um reino
intemporal e sem espaço da estética, onde antigos hábitos e padrões já não
são mais importantes e onde a pessoa é fascinada pelas coisas que aconte-
cem agora. E isso é restaurar a Vida, aceitando-a como é. Num processo
terapêutico desta natureza, onde as expressões vividas corporalmente são
privilegiadas, o cliente lidera a sua expressão, mas simultaneamente é tam-
bém guiado por ela, num espaço de improviso que permite a surpresa e o
insight. Por seu turno, ao terapeuta, no seu processo de responsabilização,
cabe a dupla função de ir com o processo expressivo mas simultaneamente
providenciar um continente para que este se desenvolva em segurança.

CONCLUSÃO

Winnicott (1971) refere que a terapia se inscreve num espaço simbó-


lico, num espaço de jogo potencial, entre duas áreas internas de jogo, a do
paciente e a do terapeuta. É dessas áreas internas que nos fala o Corpo
nas suas múltiplas expressões. São essas áreas internas que se escutam ou
silenciam e a que é possível dar voz, primeiramente através da consciên-
cia corporal.

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corpo, presença e expressão em psicoterapia

É impossível uma psicoterapia com um ‘não-corpo’, sendo por isso


óbvio a existência permanente de uma interacção corporal. Na relação
terapêutica o(s) corpo(s) é claramente percepcionado de fora, no seu
movimento, acções, expressões. No entanto, mesmo para as psicotera-
pias verbais, que, no limite, em termos teóricos possam não atender espe-
cificamente ao corpo, as sensações corporais e as interacções não verbais
têm um importante impacto. Para as psicoterapias de mediação ou orien-
tação corporal, o foco é colocado, mais ainda do que nas interacções não
verbais, na forma como o corpo é sentido a partir de dentro, sendo esta a
primeira fonte de informação posteriormente associada a outras dimen-
sões afectivas e cognitivas.
O trabalho sobre a Presença é neste texto reivindicado como um con-
tributo para o encontro psicoterapêutico, perspectivando-se como um tra-
balho sobre um estado de auto-observação, sobre um aprofundamento da
consciência corporal, de uma escuta sensorial a partir de dentro, no qual
o habitual estado de consciência é substituído pela consciência e atenção
presentes e centradas. Esta aprendizagem desenvolvida primeiramente
pelo terapeuta impactará no processo psicoterapêutico ao nível da inte-
racção e poderá, neste processo de deslocação no sentido da imersão na
experiência, possibilitar no cliente uma transformação no sentido de um
abrandamento nas respostas, a mudança de certos padrões automáticos,
redução nos efeitos de stress, maior enraizamento e o começo de uma aten-
ção mais focada internamente (nas sensações corporais e na sua explora-
ção). Um trabalho que poderá ser útil no desenvolvimento de cada uma
das pessoas envolvidas no encontro terapêutico.
Com este contacto mais íntimo a Expressão surgirá num maior ali-
nhamento entre o sentir, o pensar e o agir. O objectivo não é substituir as
interacções verbais, mas sim complementá-las, de modo a desenvolver
uma psicoterapia que não se restrinja apenas aos aspectos verbais, mas
que possa relacionar as diferentes dimensões do ser humano, incluindo
o corpo (Leijssen, 2006). Esta deslocação pode ser assim a abertura para
um trabalho no aqui-e-agora, no qual o recurso aos mediadores expres-
sivos são um contributo fundamental, na medida em que reconhecem o

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profundo laço entre a motricidade, o ritmo e a expressividade emocional


(utilizando o corpo não só como mediador, mas como elemento interac-
tivo) (Santos, 2007; André, Benavipès, & Giromini,1996).

REFERÊNCIAS
André, P., Benavipès, T., & Giromini, F. (2004). Corps et Psychiatrie. Paris:
Ed. Heures de France.
Bois, D. (2009). The Wild Region of Lived Experience: Using Somatic-Psychoe-
ducation. California: North Atlantic Books.
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