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A GENTE DORMIU

TRAVESSIA E
ACORDOU PARQUE

Conflitos Territoriais na
Travessia do Mirador,
Mirador - MA
Entidade financiadora

Apresentação
Fundação Rosa Luxemburgo

Entidades executoras
Comissão Pastoral da Terra – CPT/Maranhão
Coordenadores:
Este fascículo foi elaborado com base na pesquisa realizada pelo
Ronilson Costa
Lenora Mota da Conceição Rodrigues Núcleo de Estudos em Questões Agrárias da Universidade Federal do
Antônio Gomes de Morais Maranhão em parceria com a Comissão Pastoral da Terra e os Sindi-
catos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de São Raimundo das
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões
Agrárias – NERA/UFMA Mangabeiras e Loreto. Agradecemos à Fundação Rosa Luxemburgo
Coordenação geral: Roberta Maria Batista de pelo financiamento da produção deste material que tem o objetivo de
Figueiredo Lima dar maior visibilidade à luta dos camponeses que ocupam o território
tradicional da Travessia do Mirador. Esse território tem sido palco de
Equipe de Pesquisa
Júlia Letícia Pereira Ferreira conflitos territoriais entre os camponeses que ocupam os vãos dos rios
Carlos dos Santos Batista Itapecuru e Alpercatas e os órgãos de fiscalização ambiental, em razão
Rafael Barra Amador
de a área ter sido destinada a conservação ambiental na década de 1980,
Projeto gráfico e diagramação aliado a defesa dos interesses do agronegócio da soja e da cana-de-açú-
Alexandre Hamilton car na região. Nesse sentido, é que esse material serve de apoio para a
construção e fortalecimento de estratégias de resistência para as comu-
Transcrição de áudios
nidades camponesas.
Júlia Letícia Pereira Ferreira

Cartografia e mapas
Carlos dos Santos Batista
Rafael Barra Amador
Alexandre Hamilton
A gente quer viver a vida que a
gente vivia antes do Parque chegar
Fotografias
Júlia Letícia Pereira Ferreira Félix Carreiro, Comunidade Anjico.
Carlos dos Santos Batista

A Travessia do Mirador é uma região ao sul do município de Mi-


rador – MA tradicionalmente denominada assim por fazer referência à
passagem entre os rios Itapecuru e Alpercatas. Esse lugar está localiza-
A Gente Dormiu Travessia e Acordou Parque, Conflitos Territo- do na macrorregião centro-sul do estado do Maranhão, área, predomi-
riais na Travessia do Mirador, Mirador-Ma/CPT - Ma nantemente de bioma Cerrado e encontra-se situado na política terri-
1. ed. – São Luís, Edição Independente, 2020.
torial da Amazônia Legal . Ao longo dos séculos, comerciantes, famílias
20p. ; 29,7cm.
fugindo da seca e vaqueiros
1
migravam do Ceará e Piauí para comercia-

ISBN: 978-65993000-0-4 lizar gado, tentar a vida ou casar com indígenas no intuito de conseguir

1
Amazônia Legal é um conceito criado pelo Estado brasileiro para administrar através da Superinten-
dência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) as regiões do país que têm a incidência de floresta
amazônica e características biogeográficas que correspondem à este bioma, correspondendo a 58,9% do
território brasileiro. Além dos estados de Roraima, Acre, Mato Grosso, Tocantins, Pará, Rondônia, Amazo-
nas e Amapá, 181 municípios do estado do Maranhão estão inseridos na Amazônia Legal.

3
terras nessa região do Maranhão. Durante essa trajetória, muitas famílias foram se estabelecendo A agricultura com base na produção de mandioca, fava, feijão, arroz e milho compõem o
nos vãos dos rios e produzindo sua territorialidade a partir dos usos dos recursos disponíveis. Já modo de reprodução das famílias camponesas que ocupam tradicionalmente a Travessia do Mi-
na década de 1970, diversos empreendimentos, principalmente vinculados a Soja foram mobi- rador. As roças são feitas com técnica chamada “roça de toco”, prática muito comum nos cultivos
lizados para o cerrado sul-maranhense, produzindo conflitos e expulsando comunidades de suas
2
tradicionais consistindo na derrubada da mata e queima para limpeza da área. Conforme o Sin-
terras tradicionais. dicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de São Raimundo das Mangabeiras (STTR-SRM),
Entre as atividade desenvolvidas pelos camponeses dos vãos dos rios Itapecuru e Alperca- o abastecimento de farinha de mandioca (farinha de puba) nos municípios próximos a Travessia
tas, destaca-se a pecuária extensiva por meio da seguinte dinâmica: no período chuvoso o gado é depende da produção dos chamados “pubeiros do Itapicuru”.
colocado para pastar nas chapadas e, no período seco o gado pasta nos vãos. No entanto, o avanço
das monoculturas de soja e cana-de-açúcar da empresa Agroserra 3 nas áreas de chapadas que
circundam a Travessia do Mirador têm encurralado esses camponeses nos baixões, não mais per-
mitindo o uso das chapadas para a pastagem. Por outro lado, a imposição promovida por parte do
Estado do Maranhão à unidade de conservação, denominada Parque Estadual do Mirador sobre o
território usado da Travessia do Mirador, dificulta a manutenção da pecuária bovina em razão da
proibição da criação de gado próximo aos cursos d’água.

Na hora de uma doença, de uma pre- A junção das iniciais dos estados Ma-
ranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (MA-
cisão você vai lá pega um gadinho e TOPIBA) refere-se à política pública
de expansão das atividades agropecu- A gente planta mandioca e faz farinha e vende, planta
vende. Não é muito, mas sempre que árias para exportação nos estados do o feijão, milho, fava, mas o que a gente vende mais
bioma cerrado.
precisa está lá.
mesmo é farinha. A gente vende a farinha e compra
Sr. Luiz, Comunidade Brejo Escuro. as outras coisas que não produz lá.
dos autores, 2019 Dona Eva Rocha, Brejo Escuro
3
A Agro Serra (Agropecuária & In-
dustrial Serra Grande LTDA) é uma
A criação de animais para as comunida- empresa agroindustrial localizada
des camponesas, assim como parte dos culti- no município de São Raimundo das
Mangabeiras – MA com mais de 20
CULTURA / ANO 4
2017 2018 2019
vos na agricultura (mandioca, feijão, fava, etc.), anos de atividade atuando, principal-
é utilizada tanto para a garantia da soberania mente, na produção de cana-de-açú- Feijão 229t 228t 217t
car e soja.
alimentar quanto para a geração de renda das
Fava 3t 23t 17t
famílias que ocupam a Travessia do Mirador
e também como uma espécie de poupança. O Arroz 2 592t 2 650t 1 730t
gado não é criado somente para alimentar ou
gerar renda, mas em casos de emergência, ser-
Companheiro, será que Mandioca 2890t 2 800t 1 186t

ve como um bem que pode ser vendido para a roça de toco destrói Cana-de-Açúcar 9 291t 8 573t 8 250t
sanar a necessidade. mais que o desmata-
Soja 3 515t 39 924t 23 750t
2 O Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimen-
mento? Eu acho que o
Milho
to dos Cerrados (PRODECER) foi assinado em 1974 entre o governo
do Japão e o governo do Brasil no sentido de estabelecer uma rela- desmatamento destrói 8 745t 17 550t 13 598t

mais
ção de apoio para o desenvolvimento agrícola. Esse programa foi
realizado em três etapas, sendo que a primeira e segunda concen-
traram os investimentos nos estados de Minas Gerais, Bahia, Mato 4Dados disponíveis na pesquisa sobre Lavouras tem-
Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul. Já a terceira etapa promoveu a porárias no sítio do Instituto Brasileiro de Geografia e
expansão de monocultivos nos estados do Maranhão e Tocantins. Neto, Comunidade Sucuruju Estatística (IBGE).

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O extrativismo segue o tempo da natureza acompanhando seus fluxos e provendo o alimen-
Quais as diferenças? Tipos
to para as famílias. A caça e a pesca seguem a mesma dinâmica de uso pela necessidade, garantia
da sobrevivência e reprodução da família. No caso do extrativismo vegetal, o consumo de buriti, Não permitem o uso dos elementos natu- Estação Ecológica;
pequi, bruto, bacuri, manga e outros frutos ocorrem no período de cada uma dessas frutas e so- UNIDADES DE rais de forma direta, apenas indireta, por Reserva Biológica, Parque;
PROTEÇÃO INTEGRAL exemplo: recreação, turismo ecológico, Monumento Natural;
mente o necessário para a alimentação das famílias e dos animais. Das frutas citadas, o buriti é Refúgio de Vida Silvestre.
pesquisas científicas, educação, etc.
o mais utilizado para a produção de doces. De acordo com as famílias, são produzidos em média
Área de Relevante Interesse Ecológico;
15kg de doce de buriti por família e o produto é vendido por R$20 reais o quilo.
Floresta Nacional;
Permite atividades de coleta e uso dos
Reserva de Fauna;
UNIDADES DE USO elementos naturais, desde que respeitem
Reserva de Desenvolvimento Sustentável;
SUSTENTÁVEL o tempo da natureza e seus processos;
Reserva Extrativista; Área de Proteção
Ambiental; Reserva Particular do Patrimônio
Natural.

Muito embora o objetivo das unidades de conservação seja proteger o meio ambiente, a rigi-
dez da legislação ambiental brasileira impõe dificuldades para os grupos camponeses que tradi-
cionalmente ocupam essas áreas destinadas à conservação, pois, parte de uma compreensão de
natureza importada de países ditos desenvolvidos que ao longo de suas histórias de colonização
dos autores, 2019 e processos de dominação, foram apagando identidades e as existências de grupos que acaba-
ram sendo subalternizados. Da mesma maneira, os países tropicais, ao adotarem essa mesma
Também é muito comum a coleta de ervas e extração de cipós, raízes e cascas de árvores concepção de natureza em seu sistema ambiental, caminham para a reprodução do processo de
para fins medicinais, muito embora seja oferecido pelo município de Mirador um agente de saúde ocultamento de grupos camponeses, indígenas e quilombolas.
para atenção básica, esse não é suficiente e os serviços de assistência médica são muito distantes
dos povoados e, nesse caso, são acionados os saberes tradicionais em saúde como uso de chás, Portanto, é através dessa imposição e compre-
Art. 1º - Fica criado o Parque Esta-
banha de animais e remédios caseiros. dual de Mirador, com uma área es- ensão de natureza sem gente ou natureza in-
timada de 700.000 ha. (setecentos tocada como alguns pesquisadores denomina-
mil hectares), ficando vinculada
Entre uma localidade e outra há pelo menos uma distância de quatro quilômetros e os povo- administrativamente à Secretaria ram, é que intensifica os conflitos territoriais
ados são ocupados por uma mesma família. Algumas casas são de alvenaria, mas em sua maio- de Recursos Naturais, Tecnologia e na Travessia do Mirador ao ser criado sobre a
Meio Ambiente – SERNAT. – (MA-
ria, são feitas de taipa em razão das restrições impostas pela Secretaria Estadual de Meio Am- mesma área, o Parque Estadual do Mirador.
RANHÃO, Decreto nº 7 671/1980)
biente e Recursos Hídricos (SEMA) em razão da área da Travessia do Mirador ter sido destinada
à conservação ambiental.

As Unidades de Conservação (UC) são áreas


Quando foi criado o Parque em 1980, já existia uma luta da gente da denominada
A gente dormiu Travessia com uma grande importância de fauna, flora,
Travessia do Mirador que já era uma área de conflitos com grileiros da região de
recursos hídricos e solos, criadas pelo Poder
e acordou Parque. Público para conservação. Elas podem ser de São Raimundo das Mangabeiras, Formosa da Serra Negra e outros municípios que
Félix Carreiro, Anjico. responsabilidade do governo municipal, esta- nem sabemos de onde vinham. Aí em 1980 surgiu esse projeto do Parque pra sur-
dual ou federal, além de serem classificadas em
presa da gente e até no tempo a gente até achou uma boa ideia porque aí ao invés
dois grupos: Unidades de Proteção Integral ou Unidades de Uso Sustentável. A legislação ambien-
da gente estar nas mãos dos grileiros, a gente ia estar em contato com o governo,
tal que rege essas áreas destinadas à conservação é o Sistema Nacional de Unidades de Conser-
vação (SNUC). pensou que ia ficar bom (...).
Félix Carreiro, Comunidade Anjico.

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Hoje eu tenho umas vaquinhas. Eles
A área do parque foi tomada e cuidada por Mangabeiras quando os latifúndios
[agentes da SEMA e AGED] chega-
chegaram, principalmente, com o gado. Quando criaram o parque em 1980, o STTR
ram lá em casa com um negócio de
buscou articular com os moradores de lá. Ao longo dos anos, com a expulsão dos
brinco do gado. Como eu não tenho
moradores pelo Estado, algumas famílias foram saindo de dentro do Parque e ou-
reforço de nada, aceitei eles brinca-
tros ficaram resistindo. A COOPERMIRA foi criada para ajudar nessa resistência.
rem meu gado. (...) Também tenho um
Aldeci Leite – Sindicato de Trabalha-
dores e Trabalhadoras Rurais de São cercadinho de arame, esse eles não
Raimundo das Mangabeiras - MA
me reclamaram. Agora só que roça
eu nunca mais botei, eles proibiram.
(...) Só que aí as coisas continuaram do mesmo jeito. Não era o grileiro, mas eram as Hoje eu tenho meu cercadinho lá, hoje
pessoas que o Estado botou lá para fiscalizar, amedrontar [através da COOPERMIRA]. eu tenho um plantio de feijão muito
Eles não estavam lá para fiscalizar, fazer as coisas dificultar ali dentro importante e tenho a roça no vão, mas
Félix Carreiro, Anjico. na beira do brejo não.
Benedito, Cabeceira do Brejo Seco dos autores, 2019

Eu estava trabalhando na roça, as coi-


Esse [agente da SEMA] disse que só quem é morador do Brejo Escuro agora só é
sas que eu vinha trazendo era umas
Francisco, que até meu cadastro, que eu nasci e me criei lá, minha mãe nasceu e
mangas lá de pertinho de casa. Ai
se criou lá (...) eu não tenho mais. Foi tirado nosso cadastro. Por quê que ele faz
eles [agentes da SEMA] mandaram eu
isso comigo? Meu pai m orou lá não sei quantos anos, ele veio embora de lá só
parar e já foi atirando, passei mais de
implicação desse pessoal lá dentro.
um mês surdo. Eu corri e passei dois
Luís, Brejo Escuro
dias no mato.

Aluísio, Comunidade do Mel

Quando foi no final de junho de 2016 chegou foi os agentes ambientais com a SEMA com
policiais armados (...) Lá na minha casa mesmo, nesse dia eu estava só em casa. Eles che-
garam umas 10h, 10h30 botaram os carros tudo pra dentro (...) ai quando dei fé já tava tudo
Lá em casa eu tinha umas vaquinhas arrudiado de polícia querendo fazer eu assinar um documento pra tirar um gado que tivesse
“véia” direto, ai brincaram a orelha passando de 15 cabeças e tirar as cercas, e se eu não assinasse esse documento podia ser
de umas lá caiu logo a orelha de pior (...) que eu podia cair em uma multa que ele disse que as multas do Estado são no míni-
duas garrotas foi obrigado eu vender, mo a partir de R$20 mil ai foi o jeito eu assinar esse documento.
infeccionou.
Félix Carreiro, Anjico.
dos autores, 2019 Miúdo, comunidade Brejo Escuro

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Eu estava em casa, eles chegaram lá, parou os carros com três policiais, uma policial Eu fui nascido e criado aqui com esse velho. (...) Eu saí para trabalhar uns dias fora, que

e dois policiais, ai eu fui pedir licença à eles pra tirar uns paus com motosserra. Ai eu achei um serviço aí eu saí. (...) O [agente da SEMA] (...) foi e disse: Olha, se você quiser

[eles] disseram que não, que era pra tirar de machado. Ai eu fui, derrubei de machado. ficar morando aqui dentro você tem que morar mais seu pai. Eu digo: Como é que eu vou
ficar com três filhos que eu tenho? Como é que eu vou morar mais meu pai? (...) Fiz só um
Depois eles chegaram lá, tomaram meu machado, minha foice, minha corda (...). Ai
barraquinho, desmanchei uma casa que ‘nois’ ficava ali sempre, que nós nunca ‘abando-
me multaram, R$5 mil a multa (...).
nemo’, desmanchei a parte dela que era pra ‘mim’ levantar de novo. Aí ele foi e botou o pé
Bernaldino, Comunidade Craúna
‘em riba’ da minha cabeça aí disse: Aqui você não levanta. (...) Não é muito boa, mas eu
‘arrudiei’ ela de palha, tem dois quartos de adobe aí eu levantei o restante de palha e estou
Eu saí para trabalhar uns dias fora, que eu achei um serviço aí eu saí. (...) Ele
dentro, aí eles já mandaram dizer para mim que vem queimar a casa.
[Agente da SEMA] baixou aqui;
José Antônio, comunidade Pindaíba
Eu digo: Rapaz, eu não tenho como sair.

Aí ele foi e disse: Olha, se você quiser ficar morando aqui dentro você tem que
morar mais seu pai.
Essa mulher ai perdeu um menino só
Eu digo: Como é que eu vou ficar com três filhos que eu tenho? Como é que eu por causa dessa frescura deles. Nós
vou morar mais meu pai?
fizemos a ponte e eles queimaram e

Eu digo: Eu não posso morar, eu sei onde é que eu vou. Eu não vou sair daqui ai a mulher deu as dor e foi obrigado
não. atravessar a mulher na rede, mas já
Aí ele disse: Pois então ‘caça’ teus ‘direito’. Fiz só um barraquinho, desmanchei
tava passado, perdeu o menino.
uma casa que ‘nois’ ficava ali sempre, que nós nunca ‘abandonemo’, desman-
chei a parte dela que era pra ‘mim’ levantar de novo. Aí ele foi e botou o pé ‘em Miúdo, Brejo Escuro

riba’ da minha cabeça. Ele disse: Aqui você não levanta. (...)

Eu digo: Aí eu fui e levantei a minha casa, está ali. (...) aí eles já mandaram dizer
Fazer uma ponte no rio... fizemos
para mim que vem queimar a casa
umas pontezinhas lutei demais quando
José Antônio, comunidade Pindaíba.
estava com essa mulher pra ganhar
neném. A primeira menina minha
ganhou neném lá no interior nosso lá

No primeiro levantamento do governo Flávio Dino, o meu filho já tinha casa lá ai apa- porque não tinha como vir pra rua por-

receu no cadastro, mas o [agente da SEMA] já deixou avisado que outro filho meu ou que não tinha um carro pra ir. A partei-

filha quiser morar lá, tem que morar - pode até fazer outra casa - mas tem que ser ra foi só eu e minha mãe.
Luís, Brejo Escuro
contado como a mesma família, não é pra aumentar família.

Félix, Angico dos autores, 2019

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Fizemos uma pontezinha de buritizeiro no rio, não tem condição de pagar um trator pra puxar 66 anos que eu tenho, meu pai nasceu e me criou lá. Meu pai saiu de [São Raimundo das]

um pau lá de cima do alto pra botar no rio. Nós tinha que caçar um lugar mais estreito pra Mangabeiras e morreu, só eu ainda lá. Quando foi, está com 6 meses e esse [agente da SEMA]

passar pro outro lado. Ai nós juntamos um povo da Buritirana ali que tem uns amigos que chegou lá em casa. (...) Quando ele chegou, aqueles carros de polícia, dois carros. Quando ele

sempre ajuda a gente ali, passamos o dia todinho (...). Nós passava um mês, dois bom carro chegou entrou e disse: “Pois é, eu só vim lhe dizer que você está cancelada do seu Maranhão

passando ‘enrriba’ daquela ponte quando nós ia lá passar a ponte estava cortada, tocavam Verde e você não mora mais lá, você mora é aqui e a casa [de lá] vou derrubar e queimar. Digo:

fogo ai nós fazia em outro lugar, mais pra baixo, mais pra cima ai eles cortavam de novo. Menino, eu fiquei viúva em 1990, criei meus filhos ‘tudinho’ foi pedindo esmola não, foi tra-
balhando e outra coisa que eu te digo: a casa tu não queima não e pode tu ir queimar a casa
Luís, Brejo Escuro
agora! Tu vai se rodar, eu não sou os outros que tu queimou casa e ficou em paz não!

Raimunda, Comunidade Santana

Você vai perder o programa Maranhão Verde 5, que é um


programa que bota R$300,00 pra cada família receber A gente discutiu esse termo de O acordo (...) ele é um documento, apesar

que era um mês e outro não ai agora tá sendo um mês e compromisso, onde tem as res- de naquele momento estar mais o pes-

oito não. ponsabilidades do governo e de


soal dessa região ali [São Raimundo das
Mangabeiras], orientador pra convivência
Bento, Bacurizeiro
cada morador. Ai mudou tudo, era
dentro do Parque com todo mundo, até
[pra] discutir a proposta de assen-
com quem não estava sabendo nem fazen-
tamento estadual que seria em
do o debate. Mas assim, essa comissão ia
Loreto em uma terra que também ter essa responsabilidade de fazer essa
E dai pra cá o que vem acontecendo é só umas palestras que eles fizeram um viveiro grande
encosta no Itapecuru. Depois ficou discussão com mais moradores do parque
lá no posto [do Zé Miguel] tem um Maranhão Verde que é uma gratificação que o governo
sabendo que lá já é uma área de porque aquele documento ia ser orienta-
está pagando de 2 em 2 meses de R$300 que é pra esse trabalho, pra gente acompanhar esse
trabalho deles lá. Eles fizeram umas tabelas dos encontros pra dar palestra aqui sobre ma-
conflito. dor. A outra questão que foi discutida lá é

Félix Carreiro, Angico que ia reduzir mais ainda e com o objetivo


nuseio, aplicação de remédio em animais, ai agora encerrou esses encontros ai. Eles dividi-
de futuramente retirar, eliminar [a ativida-
ram as tarefas, as famílias que pertencem ao posto lá do Zé Miguel eles dividiram em quatro
de da pecuária], mas assim, qual a respon-
grupos pra ficar um grupo pra cuidar do viveiro a cada semana
sabilidade do governo? Dar condições pra
Não é eu que mora na Buritirana, quem
Félix Carreiro, Angico
as comunidades sobreviverem sem essa
mora na Buritirana é meus filhos, lá é
atividade da pecuária, sem o gado. Então o
onde eles estudam. Então eu fico ro-
que ficou acordado lá? Se o governo des-
dando de lá pra cá porque eu não vou
5 O Maranhão Verde é um programa de fomento e desenvolvimento de projetos voltados para apoio à conservação e cumprisse a sua parte, não era necessário
recuperação ambiental em áreas entendidas pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMA) deixar uns meninos de menor sozinho
como prioritárias, em razão dos índices de degradação. Nesse sentido, o Maranhão está desenvolvendo fortemen- que a comunidade cumprisse a sua. Era
te políticas de valorização de ativos ambientais com vistas à captação de recursos no mercado de carbono, dessa maneira, Luís, Brejo Escuro
inserindo e pressionando as áreas remanescentes de florestas e de vegetação nativa na lógica de mercado. Além de agravar
uma via de mão dupla.
conflitos vivenciados por populações tradicionais que ocupam essas áreas e as mantém de pé. É importante destacar que esse Pedro Paulo - STTR/Loreto
processo traz a tona agentes históricos como grileiros, agentes imobiliários e empresas silvicultoras.

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Agropecuária & Reflorestamento Serra
Fazenda Serra Grande - gleba 5 3.349,4560 há
Grande LTDA
Só que a gente continua sem energia, É um exemplo de que está se mantendo a
Fazenda Cacimbas 001 Deoclides Pereira de Sá 4.671,9014 há
sem um posto de saúde, continua preservação, está se mantendo os olhos Fazenda Serra Grande/Fazenda Agropecuária & Reflorestamento Serra
10.403,0326 há
Boa Esperança II Grande LTDA
sem escola lá dentro, sem estradas d’água. Então na área que se tem e quem
Agropecuária & Industrial Serra Grande
Fazenda São José - parte 4 16.079,9646 há
é que protege? São os trabalhadores, são LTDA
Félix Carreiro, Angico
os agricultores que protegem. Qualquer Fazenda Cachoeira - parte 1 Gilberto Marques Bontempo 42.915,9006 há

Agropecuária & Industrial Serra Grande


local que você vai, quem está protegendo Fazenda Canastra - parte 1
LTDA
14.171,7280 há

A Agroserra fica na cabeceira são os agricultores familiares ou indíge- Fazenda Serra Grande - gleba 4
Agropecuária & Reflorestamento Serra
1.210,5638 há
Grande LTDA
do rio, qualquer desmantelo que nas, quilombolas, ribeirinhos... ás vezes Associação dos P.P. Rurais Baixa Associação dos P. P. Rurais Baixa Verde
13.734,5685 há
Verde gleba B Gleba Cacimba 3
dá lá, vem pro rio [Alpercatas e são os que mais protegem (...) Se com-
Conforme o levantamento realizado pelo NERA/UFMA, até novembro de 2020, havia 61 pro-
Itapecuru]. parar o impacto que a Agroserra causa
priedades cadastradas no Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e
Félix, Angico em cima da serra e o impacto que vocês Reforma Agrária (SIGEF/INCRA) em sobreposição ao Parque Estadual do Mirador. As parcelas
estão causando dentro do Parque, vocês apresentadas no quadro estão distribuídas entre empresas agropecuárias, empresas de geren-
nem aparecem. Tem nem comparação! ciamento de capital e investimentos, além de empresários paranaenses e catarinenses do ramo
Esse negócio dessas leis de preservação, da soja e da cana-de-açúcar, a exemplo de Pedro Augusto Ticianel (proprietário da Agropecuária
Zé Filho, vereador em Loreto
eu não tenho nada contra não. O negócio e agente da Cáritas Agro Serra). As maiores parcelas cadastradas variam entre 1.000 e 43.000 hectares de terras públi-
é que eles deixam muita coisa errada do cas destinadas à conservação, mas utilizadas para especulação no mercado de terras e também
povo grande e quer descontar na gen- para cumprimento de legislação ambiental, conforme permitido pelo Código Florestal.
Tinha um outro que queria fazer uns
te. Agora assim, lá tem muita coisa que
açudes pro gado não encostar na Das fazendas cadastradas, duas estão com o cadastro cancelado no SIGEF, Associação dos
acontece que é o pessoal de fora que vai
Pequenos Produtores Rurais Baixa Verde gleba B e Fazenda Horizonte, a primeira por estar em
água do rio pra não beber pra não
lá. Quem vai matar quem pra não entrar área reivindicada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a segunda para passar por processo
lá?
secar o rio
de desmembramento. É importante chamar atenção aos dados que o quadro traz, pois, não se
Miúdo, Brejo Escuro Félix P., Brejo Escuro trata de 61 parcelas de 61 detentores e muito menos de áreas pequenas, mas de grandes áreas em
nome de uma mesma pessoa ou grupo. Somente em nome da Agropecuária & Industrial Agro Ser-
Os camponeses relatam que um dos agentes da SEMA em São Raimundo das Mangabeiras ra LTDA estão detidos um pouco mais de 38.997 hectares, se somarmos a área em nome de Pedro
visitou o Parque e declarou que a área (em torno de 40 mil ha) pertence à Agro Serra e Brasil Agro, Ticianel e Agropecuária & Reflorestamento Agro Serra aos da Industrial Agro Serra são quase 60
fato confirmado pelo agrimensor das empresas citadas. mil hectares de cerrado maranhense pertencente a um único grupo do agronegócio. São 60 mil
hectares de terras públicas em área destinada à conservação ambiental, mas que estão sendo

PROPRIEDADES CADASTRADAS NO SIGEF/INCRA ATÉ 2020 QUE ESTÃO SOBREPOSTAS cercadas pelo agronegócio e pelo mercado financeiro através de cercas invisíveis.
AO PARQUE ESTADUAL DO MIRADOR, MIRADOR - MA *tabela adaptada

Em diversas páginas de imobiliárias de todo o Brasil na internet é possível encontrar anún-


PROPRIEDADE PROPRIETÁRIO ÁREA
cios de vendas de terras dentro do Parque Estadual do Mirador com valores variando entre R$1
Agropecuária & Industrial Serra
Matão I 2.808,3301 há
Grande Ltda milhão a R$3 milhões de reais. Isso significa que essa unidade de conservação dentro do contexto
Agropecuária & Industrial Serra
Matão I 2.820,9015 há da economia verde e da agenda do desenvolvimento sustentável, já cumpriu sua função inicial de
Grande LTDA
Agropecuária & Industrial Serra preservar as nascentes dos rios Itapecuru e Alpercatas e o que antes era um prejuízo às empresas
Fazenda Romaria part. 1 3.116,8891 há
Grande LTDA do agronegócio, hoje toma um novo formato: o de reaproveitamento dessas áreas para ativos am-
Fazenda Irajá/Cacimbas part. 1 Pedro Augusto Ticianel 5.371,8061 há bientais e regularização ambiental. Assim, a resistência camponesa não ocorre mais apenas no
sentido de lutar contra a imposição do Estado, mas de lutar contra a financeirização do território.

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Realização:

Esta publicação foi utilizada com o


apoio da Fundação Rosa Luxemburgo
e fundos do Ministério Federal para a
Cooperação e de Desenvolvimento da
Alemanha (BMZ). O Conteúdo da publi-
cação é de responsabilidade exclusiva
da CPT e não representa necessidade a
posição da FRL.

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