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COMENTÁRIO

NO CATECISMO
DE HEIDELBERG
TOMO 1

ZACARIAS URSINO
Comentário no Catecismo de Heidelberg: Tomo 1

©2023 Diego Henrique Trentini Gehm

Contato: diegohenriquetg@proton.me
1ª Edição – Agosto de 2023

Traduzido do inglês

Commentary on the Heidelberg Catechism: Translated from the


original Latin, by the Rev. G. W. Williard, D.D.. Fourth American
Edition. Cincinnati: Elm Street Printing Company, 1888. Entered
according to the Act of Congress, 1851, by G. W. Williard, in the
Clerk’s Office of the District Court of the District of Ohio.
A suma da religião Cristã, entregue primeiro por Zacarias Ursino, pela
forma de catecismo, e então posteriormente aumentada por uma sã e
judiciosa exposição, e aplicação da mesma: em que também é debatida
e resolvida as perguntas de quaisquer pontos de momento que foram,
ou são controversos em Divindade. Primeiro traduzido pelo dr. Henry
Parry, e agora conferida novamente com a melhor e última tradução
latina do dr. David Parreus, algumas vezes professor de Divindade em
Heidelberg; na qual é adicionada uma extensa e completa tabela
alfabética com todas as Escrituras que são ocasionalmente manejadas,
seja da forma de exposição da controvérsia, ou reconciliação, nenhuma
das quais foi feita antes, mas agora é feita para o deleite e benefício
dos leitores; a esta obra de Ursino são agora, por último, anexadas as
miscelâneas teológicas do dr. David Pareus nas quais os princípios
teológicos são brevemente e solidamente confirmados, e os erros
contrários dos papistas, ubiquitarianos, anti-trinitarianos,
eutiquianos, socinianos e arminianos totalmente refutados; e agora
traduzido em Inglês da cópia em latim de A.R
O PREFÁCIO DO TRADUTOR DA EDIÇÃO INGLESA

Ao apresentar ao leitor inglês uma tradução dos sermões teológicos


do dr. Ursino, sobre o Catecismo de Heidelberg, presume-se que
nenhuma desculpa é necessária, pelo menos no que diz respeito à
Igreja Reformada alemã. Considerando o caráter de Ursino, sua
reconhecida habilidade e relações com todo o interesse reformado, é
um ponto de grande surpresa que não há muito se tenha descoberto
que alguém empreendeu a árdua e difícil tarefa que realizamos de
forma muito imperfeita. Muitas outras obras muito inferiores a esta,
foram favorecidas com traduções, embora nenhuma dor tenha sido
poupada para dar-lhes uma ampla circulação, e ainda nenhuma
tentativa foi feita nos últimos anos para colocar esses sermões nas
mãos do leitor inglês. E o que é ainda mais estranho é o fato de que o
nome do próprio Ursino, do qual ninguém é mais digno de uma
lembrança grata e honrada, é em grande parte desconhecido. Fomos,
portanto, conduzidos a empreender a difícil tarefa de traduzir esses
sermões, estando plenamente convencidos de que, ao fazê-lo, não
contribuiremos pouco para a disseminação de opiniões teológicas
sólidas e, ao mesmo tempo, trazermos a bom conhecimento alguém
cuja memória merece ser mantida em uma lembrança grata. Os
escritos de Ursino merecem um lugar na biblioteca de cada ministro,
ao lado das obras de Lutero, Melâncton, Zuínglio, Calvino e outros de
bendita memória, e não sofrerão em comparação com eles.
A antiga tradução inglesa de Parry, feita há mais de duzentos anos,
não é apenas antiquada e inadequada ao gosto do leitor inglês
moderno, mas também está esgotada e não pode ser obtida, exceto por
uma possibilidade das mais raras. Poucas cópias podem ser
encontradas nos dias atuais. A cópia agora em nossa posse, que
constantemente consultamos para fazer a presente tradução, foi
impressa no ano de 1645 e parece ter sido obtida com muito cuidado

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e custo. Tínhamos visto anúncios da obra e, durante vários anos,
realizamos esforços constantes para consegui-la, mas sem sucesso, até
cerca de dois anos atrás um estimado amigo colocou em nossas mãos
uma série de catálogos estrangeiros nos quais vimos três exemplares
das obras de Ursino, um latino e dois ingleses, anunciados.
Imediatamente demos ordens para tê-los importados, e assim viemos
a posse dos exemplares que agora temos. A cópia latina da qual
fizemos a presente tradução foi publicada em Genebra no ano de 1616
e é sem dúvida uma cópia da melhor e mais completa edição feita pelo
dr. David Pareus, amigo íntimo e discípulo de Ursino. É em todos os
aspectos muito superior a outra cópia latina, cujo uso obtivemos do
Rev. dr. Hendron da Igreja presbiteriana, depois de ter feito um
progresso considerável na obra de tradução. Esta última cópia foi
publicada no ano de 1585, e é provavelmente uma cópia de uma das
primeiras edições das obras de Ursino, da qual se nota a excelente
“Introdução” da pena do dr. Nevin, que será lida com muito interesse, e
lançar muita luz sobre a vida e caráter do autor desses sermões.
Grandes esforços foram feitos com a tradução para torná-la o mais
completa possível. Em todos os casos, tivemos o cuidado de dar o
sentido exato do autor, de forma que a tradução seja tão literal quanto
poderia ser, sem ser servilmente ligada ao texto, cujo estilo
descobrimos em várias instâncias ser de um caráter tão peculiar que
exige alguma liberdade por parte do tradutor. Ainda assim, com todo
o cuidado que foi tomado, uma série de erros sem dúvida aparecerão,
em referência aos quais pedimos a indulgência do leitor. A obra foi
executada com muitas desvantagens, a tradução tendo sido feita,
enquanto atendíamos aos nossos deveres pastorais regulares na
congregação para a qual fomos chamados a servir nesta cidade.

v
A antiga tradução inglesa contém considerável conteúdo que não pode
ser encontrada em nenhuma das cópias latinas que agora temos. Em
vários casos, tomamos a liberdade de inserir pequenos trechos, mudar
o estilo e construir muitas das frases de forma a adaptá-las ao gosto
do leitor moderno. Sempre que isso é feito, é marcado pela palavra
adendo.
Não é considerado necessário dizer nada em referência aos méritos
desses sermões. Todos os que têm conhecimento do caráter de Ursino
e da importante posição que ocupou na Igreja no século dezesseis - o
tempo da gloriosa Reforma - podem ter apenas uma opinião a respeito
de seus méritos. Podemos acrescentar, entretanto, que vários
testemunhos importantes podem ser fornecidos prontamente; mas
preferimos deixar o livro falar por si, tendo a certeza de que ninguém
pode ler suas páginas com o devido cuidado, sem ser instruído e
aproveitado.
Esses sermões apresentam uma exposição completa de todas as
doutrinas principais da religião cristã de uma forma mais concisa e
simples, adaptada não só para aqueles que estão acostumados a ler e
pensar, mas também em grande medida para o leitor comum. Nem
isso é feito de uma forma externa e mecânica, mas nos introduz
imediatamente no mais íntimo santuário da religião, que todos
sentem que não é uma mera forma ou noção ou doutrina, mas vida e
poder, vindo de Cristo, “o caminho, a verdade e a vida”.
Para a Igreja Reformada alemã, esses sermões possuem muito
proveito. Nenhuma obra poderia ser publicada neste momento, que
pudesse estar em maior demanda. De fato, pode-se dizer que satisfaz
uma carência que tem sido amplamente sentida em nossa Igreja, não
apenas pelo ministério, mas também pelos leigos. Muitas pessoas
frequentemente requisitam alguma obra que apresente uma exposição
completa e fiel das doutrinas contidas em nosso excelente resumo da
fé - o Catecismo de Heidelberg. Essa obra foi muito necessária nos

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últimos anos e não pode deixar de cumprir uma série de fins
importantes e desejáveis. E como Ursino foi o principal compilador
deste símbolo, ele deve ser sempre considerado o expositor mais
autorizado das doutrinas que ele contém. Portanto, devem ser feitos
grandes esforços para que seu comentário seja colocado em todas as
famílias pertencentes à nossa Sião reformada.
Mas, embora esses sermões possuam um interesse peculiar para uma
Igreja Reformada alemã, não se deve por um momento supor que elas
têm meramente um interesse denominacional, o que pode ser dito ser
verdadeiro para muitas obras. São como o excelente símbolo de que
professam dar uma exposição completa e fiel, específica católica e
geral. Nem poderia o livro ser diferente se fosse verdadeiro para si
mesmo. Uma exposição fiel do Credo dos Apóstolos, o Decálogo e a
Oração do Senhor, tratada tão amplamente no Catecismo de
Heidelberg, não pode deixar de ser de interesse geral para todos
aqueles que amam e oram pela prosperidade e vinda do reino de
Cristo. Não podemos, portanto, antecipar afetuosamente uma rápida
e extensa circulação do livro nas diferentes ramificações da Igreja
cristã.
Nós não pretendemos ser interpretados como dando uma aprovação
irrestrita de cada opinião e sentimento contido nesses sermões. É
suficiente dizer que elas são, como um todo, verdadeiramente
ortodoxas e bem adaptadas para promover a causa da verdade e da
piedade. Eles são caracterizados por toda a seriedade e independência
de pensamento. O escritor fala em todos as passagens como alguém
que sente a força e a importância dos pontos de vista que ele
apresenta. Deve-se também ter em mente que o valor de um livro não
consiste em sua concordância e harmonia com as visões e opiniões
geralmente recebidas e mantidas, o que pode ser dito ser verdade para
muitas obras que, afinal, não possuem grande valor, contendo nada
mais do que uma repetição do que muitas vezes foi dito de uma forma

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mais impressionante. Essa, no entanto, não é a principal
recomendação do livro que apresentamos aqui ao público cristão:
embora possa ser dito que está em harmonia com as doutrinas que
foram defendidas pela Igreja desde o início, está no ao mesmo tempo,
sério, profundo e independente, e bem calculado em todos os pontos
para despertar o pensamento e a investigação.
Conscientes de ter trabalhado duro e diligentemente para dar uma
boa e fiel tradução desses sermões, agora os entregamos ao público,
não sem muito acanhamento, e com todas as imperfeições que
acompanham a presente tradução, com a esperança e oração que
possam cumprir os objetivos que tivemos em vista, e que a reputação
dos próprios sermões não possa ser prejudicada pela forma em que
agora aparecem.
GEO. W. WILLIARD.
COLUMBO, OHIO, SETEMBRO, 1851.

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INTRODUÇÃO

Entre os reformadores da segunda geração, a geração de homens


ilustres, que, embora fossem eles próprios filhos da Reforma, estavam
ainda em certo sentido unidos aos próprios apóstolos originais
daquela grande obra, em levá-la ao seu estabelecimento final e em
conclusão, ninguém pode ser nomeado que seja mais digno de uma
lembrança honrosa, do que o erudito e amável autor do famoso
Catecismo de Heidelberg. Em alguns aspectos, na verdade, a autoria
deste símbolo deve ser referida, sabemos, a mãos diferentes. Mas em
seu plano principal e espírito reinante é o produto genial, claramente,
de uma única mente, e até o fim dos tempos, consequentemente, será
reconhecido e reverenciado como um monumento, sagrado à memória
de Ursino.
A partir de um ponto de vista, podemos dizer do catecismo, que forma
a melhor história e a imagem mais clara do próprio homem; pois os
materiais de sua biografia, considerados externamente, são
comparativamente escassos e de nenhum interesse muito notável. Ele
não tinha gosto nem talento para o campo da aventura externa e da
exploração. Toda a sua natureza se afastou bastante da arena da vida
pública. Em seu barulho e tumulto, ele assumiu, comparativamente
falando, apenas uma pequena parte. O mundo em que ele se movia e
agia principalmente era o do espírito; e aqui, seu lar adequado, era a
esfera da religião. Para compreender sua história e caráter, não
precisamos estar tão familiarizados com os eventos de sua vida
assumidos externamente, mas sim conhecer os princípios e fatos que
constituem sua constituição em uma visão interna; e disso, não
podemos ter representação mais verdadeira ou honrosa, talvez, do que
a semelhança que ainda é preservada dele em seu próprio catecismo.
Aqui, enfaticamente pode ser dito, que “estando morto, ainda fala”.

ix
Ursino era natural da Breslávia, capital da Silésia. Ele nasceu em 18
de julho do ano 1534, de pais respeitáveis, e cujas circunstâncias,
porém, em uma visão secular, parecem ter sido da ordem mais comum
e moderada. O nome próprio de família era Beer (Urso) que, segundo
o hábito do mundo erudito da época, foi trocado posteriormente, no
caso dele, pelo título latino correspondente mais sonoro, Ursino. Ele
descobriu, muito cedo, um talento e disposição mais do que o comum
para adquirir conhecimento, e foi enviado em seu 16º ano em
conformidade, para Wittenberg, para o prosseguimento de seus
estudos na famosa universidade daquele lugar, então sob a proteção
principalmente, do amável e excelente Melâncton. Ali, ele foi
sustentado, em parte ao que aparenta, pelo menos por algum tempo,
por ajuda estrangeira e, particularmente, por uma pensão do senado
de sua cidade natal; enquanto ele logo foi habilitado a se ajudar
também, em parte, por uma certa quantidade de serviço no ensino.
Ele permaneceu em conexão com esta universidade, ao todo, sete anos,
embora não sem alguma interrupção. O surto da peste em Wittenberg
foi a ocasião para ele passar um inverno, na companhia de Melâncton,
em Torgau; e por alguma outra razão, pelo aspecto ameaçador, talvez,
de paraíso político, ele deixou a instituição novamente em 1552, e
voltou com depoimentos honrosos ao local de seu nascimento. No ano
seguinte, porém, o encontramos de volta em sua amada Wittenberg,
onde seus estudos foram continuados agora com grande diligência e
sucesso, até o ano de 1557.
Durante este período, sua proficiência nas artes e ciências, foi tal que
ganhou para si aprovação geral e favor. Ele é representado como
excelente particularmente na literatura clássica, filosofia e teologia.
Ele era considerado, além disso, um verdadeiro mestre da poesia; e
compôs várias produções em versos latinos e gregos, que foram muito
admiradas. Junto com toda essa cultura intelectual também andava de
mãos dadas uma cultura correspondente do homem espiritual

x
interior, que constituía a graça culminante de sua educação e agregava
um novo valor a cada dom. Naturalmente gentis, modestos, amáveis e
sinceros, essas qualidades foram refinadas e aprimoradas ainda mais,
pelo poder da religião, que era para ele um ponto de sentido vivo e de
experiência interior sentida no coração, o hábito mais profundo e
abrangente da alma. Fala com especial significado ao seu louvor, que
Melâncton, o ornamento da universidade, concebeu uma consideração
muito elevada por suas habilidades e qualidades morais, e continuou
em termos de amizade pessoal íntima com ele até o fim de sua própria
vida. A elevada opinião que tinha sobre o aluno é demonstrada de
forma notável pela carta encíclica de recomendação que colocou em
suas mãos, quando propôs, no encerramento do curso em Wittenberg,
uma viagem ao exterior por um período, em uma excursão para
observação e conhecimento em outras regiões do mundo erudito, tal
como se encontrava então.
Esse tipo de viagem, que servia para colocar o jovem aprendiz de letras
em contato pessoal com eruditos estrangeiros, era considerada,
naquela época, necessária em certo sentido para um treinamento
teológico concluído; e mostra a importância que lhe é atribuída, bem
como a relação honrosa em que se mantinha com a sua terra natal,
que o senado da Breslávia considerou adequado no caso de Ursino,
cobrir as despesas de sua viagem a partir de fundos públicos. Foi
sobretudo com base nesta generosidade municipal, que se sentiu
posteriormente obrigado a dedicar os seus primeiros trabalhos
profissionais ao serviço desta cidade.
Melâncton o descreve, em seu manifesto, como um jovem de origem
respeitável, dotado de Deus com o dom da poesia, de modos retos e
gentis, merecendo o amor e o louvor de todos os homens de bem. “Ele
viveu em nossa Academia”, prossegue, “cerca de sete anos, e conquistou a
estima de todos os que têm sentimentos corretos entre nós, por sua sólida
erudição e sua sincera devoção a Deus”. Em seguida, segue um aviso de

xi
sua peregrinação, comprometido a se familiarizar com os sábios e
bons em outras terras; que são carinhosamente solicitados, em
conformidade, a recebê-lo com um espírito responsável por sua
instrução e modéstia.
Concedido com esta alta recomendação, ele acompanhou Melâncton
primeiro à memorável conferência, feita em 1557, em Worms, de onde
seguiu depois para Heidelberg, Estrasburgo, Basileia, Lausanne e
Genebra. Isso o trouxe a conhecer os líderes em geral da Igreja
Reformada; que parecem ter sido conquistados, em pouco tempo, para
um julgamento de seu caráter tão favorável quanto aquele que acabou
de citar do próprio Melâncton. Da Suíça passou, por Lyon e Orleans,
para a cidade de Paris, onde passou algum tempo se aperfeiçoando em
francês e hebraico. Depois disso, o reencontramos na Suíça, fazendo-
se sentir em casa, especialmente em Zurique, onde gozou da íntima
confiança e da amizade de Bullinger, Vermigli, Gessner e outros
homens ilustres, então pertencentes àquela localidade.
Em seu retorno a Wittenberg, ele recebeu uma chamada, em setembro
de 1558, das autoridades de Breslávia, para assumir o comando de sua
principal escola, o Ginásio Elizabetano.
Ali seus serviços proporcionaram grande satisfação. Mas não demorou
muito para que surgisse uma dificuldade, que trouxe o primeiro
acordo a um encerramento abrupto. Isso era nada menos do que uma
acusação contra ele de fé doentia em relação aos sacramentos. Era
uma época em que a Alemanha luterana passava por um furacão geral
de agitação, com o avanço da segunda grande guerra sacramental, que
resultou em sua ruptura, finalmente, em duas confissões. Ursino foi
considerado como tendo a visão calvinista da presença de Cristo na
Ceia do Senhor, distinta da alta doutrina luterana de homens como
Westphal e Hesshus. Um alarme foi levantado em conformidade, pelo
clero do lugar, sobre o assunto de sua ortodoxia. Como no caso do
célebre ministro Hardenberg, de Bremen, também aqui um grande

xii
motivo de suspeita era a amizade e o favor de Melâncton. Parecia ser
dado como certo, pelos fanáticos do alto luteranismo, que ninguém
poderia ter uma intimidade íntima com Melâncton, que no fundo não
fosse um cripto-calvinista. Ursino publicou um pequeno tratado para
sua autojustificação, apresentando em um resumo claro e compacto,
seus pontos de vista sobre a presença sacramental. Esta foi sua
primeira produção teológica. Exibia o que poderia ser considerado a
doutrina melanctoniana da Eucaristia, e foi de fato aprovado e
elogiado pelo próprio Melâncton em termos dos mais elevados elogios.
Não serviu, entretanto, para silenciar o espírito de perseguição em
Breslávia. O autor ainda foi acusado de ser um sacramentário. Sob
essas circunstâncias, ele decidiu em pouco tempo se retirar. A
magistratura o teria retido de bom grado, apesar do diligente clamor
de seus inimigos. Mas ele tinha uma forte aversão constitucional a
toda contenda e comoção; e ele se retirou de acordo, com uma
desistência honrosa, um mártir voluntário da sagrada causa da paz,
para buscar uma esfera de ação mais tranquila em algum lugar
diferente.
Quando questionado por um amigo nessa época, para onde ele iria
agora, sua resposta foi de acordo com a união de gentileza e firmeza,
que entrou tão amplamente em seu caráter. “Estou muito contente em
deixar meu país”, disse ele, “enquanto ele não tolerar a confissão da verdade
da qual não posso renunciar com uma boa consciência. Se meu excelente
preceptor, Filipe [Melâncton], ainda estivesse vivo, eu não me entregaria a
ninguém mais do que ele. Como ele está morto, no entanto, minha mente está
decidida a me voltar para os habitantes de Zurique, que não têm grande crédito
aqui, na verdade, mas cujo renome é tão alto em outras Igrejas, que não pode
ser obscurecida por nossos pregadores. Eles são piedosos, eruditos, grandes
homens, em cuja sociedade estou disposto, daqui em diante, a passar minha
vida. Quanto ao restante, Deus proverá”.

xiii
Ele chegou a Zurique em 3 de outubro de 1560, e dedicou o inverno
seguinte ali, ao avanço ativo de seus estudos; sob a orientação, mais
particularmente, ao que parece, do distinto teólogo Vermigli. Suas
relações com este homem culto e excelente eram, em alguns aspectos,
do mesmo tipo, com aquelas em que ele havia estado anteriormente
com Melâncton. Entre todos os reformadores suíços, não houve
ninguém a quem ele se apegasse tão intimamente, ou que exercesse
sobre ele a mesma influência, como isso pode ser ainda traçado em
seus escritos subsequentes. Na medida em que a tez reformada
prevalece diretamente em Ursino, o aluno de Melâncton, a
modificação deve ser referida principalmente a Vermigli.
Nesse ínterim, Deus preparava um teatro adequado para a sua
atividade na Igreja do Palatinado, para o qual, também, toda a sua
história e formação anteriores parecem ter sido concebidas e
ordenadas, em direção à providência especial.
Este interessante país mal se assentou bem ao lado da Reforma, antes
de ser lançado em violenta comoção, em comum com outras partes da
Alemanha, com a eclosão da segunda guerra sacramental, à qual já nos
referimos, como levando à ruptura das duas confissões. A partir dessa
ruptura, e em meio a essas tempestades de ferozes debates teológicos,
cresceu a Igreja Reformada alemã, contra a causa do alto luteranismo,
que veio a sua conclusão natural finalmente na Fórmula de Concórdia.
O grande ponto em discussão na controvérsia, como era encontrado,
era simplesmente a forma da presença mística de Cristo na sagrada
Eucaristia. O fato de uma comunicação real com sua verdadeira vida
mediadora, a substância de Seu corpo e sangue, foi reconhecido em
termos gerais por ambas as partes. O rígido partido luterano, porém,
não ficou satisfeito com isso. Eles insistiram em uma definição mais
próxima da forma pelo qual o mistério deve ser considerado como
tendo lugar; e defendeu em particular a fórmula, “no, com e sob”, como
indispensável para uma expressão completa da presença sacramental

xiv
do salvador. Ele deve ser compreendido nos elementos, a ponto de ser
recebido junto com eles pela boca, por parte de todos os comungantes,
sejam eles crentes ou não. Foi por se recusar a admitir apenas essas
requisições extremas que a outra parte foi marcada com o epíteto de
sacramentário e exposta à maldição em todas as direções como a peste
da sociedade. A heresia da qual foi julgado como culpado permaneceu
simplesmente nisto: que a presença de Cristo foi considerada, segundo
a teoria de Calvino, não “no, com e sob” o pão, mas apenas com Ele; não
pela boca, mas apenas pela fé; não na carne, mas apenas pelo Espírito,
como o meio de uma forma superior de existência; não para os
incrédulos, portanto, mas apenas para os crentes. Essa era a natureza
do ponto, que agora incendiava toda a Alemanha. Respeitou
totalmente o modo ou forma da presença substancial de Cristo na
Ceia do Senhor, não o fato terrível do próprio mistério como sempre
possuído pela Igreja cristã.
A controvérsia logo chegou ao Palatinado. A cidade de Heidelberg
especialmente, e sua Universidade, foram lançadas em completa
confusão. Foi em meio a essa agitação tempestuosa que o sábio e
excelente príncipe Frederico III, apelidado de Piedoso, sucedeu ao
eleitorado. Sob sua proteção, como é geralmente conhecido, a
tendência reformada ou calvinista se estabeleceu no Palatinado. Em
primeiro lugar, o silêncio público foi restaurado pela desistência dos
dois espíritos facciosos, Hesshus e Klebiz, que, como líderes em
partidos distintos, fizeram o púlpito ressoar com lutas intemperantes
e não deveriam ser silenciados de modo mais gentil. Sentiu-se então
necessário, em seguida, que o assunto dessa controvérsia fosse levado
a algum acordo, se possível, que preservasse a paz do país no futuro.
O Eleitor concebeu o desígnio, nesse sentido, de estabelecer uma regra
de fé para seus domínios, que pudesse servir de medida comum para
compor e regular a distração existente. A Confissão de Augsburgo,
claramente, não foi suficiente para esse objetivo; pois o ponto a ser

xv
resolvido era principalmente, em que sentido a confissão deveria ser
tomada sobre o ponto aqui em debate. Melâncton foi consultado no
caso, e um dos últimos atos que praticou encontra-se na célebre
resposta, pela qual deu sua sanção ao curso geral proposto pelo Eleitor
Frederico; embora, é claro, ele não pudesse ter em vista o fim para o
qual o movimento finalmente chegou, como uma transição formal
para a Igreja reformada. Esse, porém, foi em pouco tempo o resultado.
Não houve uma revolução violenta nesta mudança. O espírito reinante
da Universidade e da terra já era mais reformado do que luterano.
Algumas alterações foram feitas nas formas de culto. Em todas as
novas nomeações, foi dada preferência aos teólogos calvinistas, e
vários foram chamados do exterior para ocupar lugares de confiança
e poder. Finalmente, pode-se dizer que toda a obra se tornou completa
com a formação do Catecismo de Heidelberg.
Entre as novas nomeações das quais acabamos de falar, nenhum nome
merece ser considerado mais importante ou notável do que o de
Ursino. A ocasião direta de seu chamado, parece ter sido um convite
do mesmo tipo dirigido em primeiro lugar a seu amigo, Vermigli, que
este último achou apropriado recusar por conta de sua idade
avançada, enquanto ele usava sua influência depois, para garantir a
posição de Ursino. Desta forma, ele foi levado para Heidelberg, no ano
de 1561, onde se tornou honrosamente estabelecido como diretor da
instituição conhecida como Collegium Sapientiæ, no 28º ano de sua vida.
No ano seguinte, foi promovido ao grau de doutor em divindade, o
que lhe impôs o dever de ministrar aulas teológicas na Universidade.
Logo ficou claro que ele foi formado para ser o espírito governante do
novo movimento, que havia começado na Igreja do Palatinado. Ele
ganhou completamente a confiança do eleitor; sua erudição e piedade
e excelente julgamento garantiram para ele o respeito geral de seus
colegas; e de todos os lados, os olhos dos homens se voltaram para ele
mais e mais, como o melhor representante e expositor da causa a cujo

xvi
serviço ele estava, e a cuja defesa ele havia alegremente consagrado
sua vida. Desta forma, com toda a tranquilidade natural do seu caráter,
gradualmente o encontramos colocado no próprio coração e no centro
da grande luta eclesiástica, à qual foi chamado a participar. Sua
moradia em Heidelberg continuou até a morte de seu patrono,
Frederico, em 1576, após um período de quinze anos. Durante esse
período, suas obras foram mantidas com a mais incansável constância
e diligência; a ocasião e a demanda por eles, estando ainda em
proporção com sua fidelidade e valor geralmente reconhecidos. Seus
serviços oficiais regulares eram extensos e pesados; ainda mais, porque
ele nunca poderia consentir em ser frouxo ou superficial em seus
preparativos, mas se sentia obrigado a dispensar sempre aos seus
sermões o mais completo e cauteloso cuidado. Mas, além de tudo isso,
ele era continuamente chamado para conduzir uma grande
quantidade de outros pontos, surgindo da história pública da época, e
frequentemente do tipo mais árduo e responsável. Em todas as
emergências em que se tornou necessário reivindicar ou apoiar a fé
reformada, tal como era no Palatinado, fosse em nome da faculdade
teológica de Heidelberg, ou pela autoridade do eleitor, Ursino foi
ainda considerado o principal conselheiro e porta-voz do ponto. Além
disso, com a alta posição que a Igreja do Palatinado logo conquistou,
entre as igrejas da mesma confissão em geral, associada desde o início
ao seu nome como gênio e espírito distintivos, o caráter representativo
agora percebido levou de ano a ano, uma faixa ainda mais ampla,
estendendo-se no tempo, poderíamos quase dizer, como o do próprio
Calvino, para toda a comunhão reformada.

xvii
Como os primeiros líderes desta fé foram removidos pela morte, não
havia ninguém que, por suas conexões pessoais, seu amplo
conhecimento, sua visão clara da natureza interior dos pontos em
debate e as qualidades admiráveis de seu espírito, pudesse ser dito ser
mais adequado para representar a comunhão de qualquer forma geral;
e provavelmente não havia ninguém a quem, na verdade, a confiança
de todos estivesse tão disposta a se voltar, como o principal suporte e
coluna, teologicamente, de toda a causa reformada.
Entre os serviços eclesiásticos públicos a que acabamos de nos referir,
o primeiro lugar pertence, é claro, à formação do Catecismo de
Heidelberg, que deve ser considerado, em certo sentido, o fundamento
de seus trabalhos subsequentes.
Para essa tarefa foi nomeado em 1562, pelo Eleitor Frederico, em
associação com o distinto professor de teologia e pregador da corte,
Oleviano. Cada um deles redigiu separadamente, em primeiro lugar,
seu próprio esquema ou esboço do que deveria ser exigido, Oleviano
em um tratado popular sobre o pacto da graça e Ursino em um
catecismo duplo, o maior para pessoas mais velhas e um menor para
crianças. Destas obras preliminares foi formado, em primeiro lugar, o
catecismo como agora permanece. Em geral, presumiu-se desde o
início que a agência principal em sua produção deve ser atribuída a
Ursino; e para estar totalmente convencido da correção dessa visão, é
apenas necessário comparar a própria obra com seus catecismos
maiores e menores, previamente compostos, bem como com seus
escritos sobre ela na forma de comentário e defesa posteriores.
Qualquer que seja o uso que possa ter sido feito da sugestão ou ajuda
estrangeira, é suficientemente claro pela estrutura interna do próprio
formulário, que não é uma compilação mecânica, mas o produto vivo
de uma única mente; há uma unidade interior, harmonia, frescura e
vitalidade que a permeiam em toda a sua extensão, o que a mostra ser,
a este respeito, uma genuína obra de arte, inspiração, em certo sentido,

xviii
de alguém que representa a vida de muitos. E não é menos claro,
podemos dizer, que a única mente na qual foi moldada e moldada
dessa forma é enfaticamente a de Ursino e de ninguém mais. O
catecismo respira seu espírito, reflete sua imagem e nos fala no
próprio tom de sua voz, da primeira à última página.
É bem sabido que o favorecimento amplamente estendido desta
pequena obra logo encontrou em todas as partes da Igreja Reformada.
Em todas as direções, foi saudado como o melhor resumo popular da
doutrina religiosa, que já havia aparecido ao lado desta confissão.
Distintos sacerdotes em outras terras, unidos em dar testemunho de
seus méritos. Foi considerada a glória do Palatinado por tê-la
apresentado ao mundo. Alguns foram tão longe, a ponto de torná-lo
fruto de uma influência especial e extraordinária do Espírito de Deus,
aproximando-se até da inspiração. Ele rapidamente assumiu o caráter
de um símbolo geral, responsável, em tal vista, pelo qual o catecismo
de Lutero já havia se tornado um padrão popular para a outra
confissão. Em toda parte, tornou-se a base sobre a qual os sistemas de
instrução religiosa foram formados pelos mais excelentes e eruditos
ministros. Com o passar do tempo, comentários, paráfrases e
conjuntos de sermões foram escritos sobre ele quase incontáveis.
Poucas obras se transformaram em tantas versões diferentes. Foi
traduzido para o hebraico, grego antigo e moderno, latim, holandês
baixo, espanhol, francês, inglês, italiano, boêmio, polonês, húngaro,
árabe e malaio. Em tudo isso, temos ao mesmo tempo um argumento
de grande valor. Deve ter sido admiravelmente adaptado, para atender
às necessidades da Igreja em geral, bem como admiravelmente fiel ao
sentido mais íntimo de sua vida geral, para vir assim tão facilmente e
tão cedo para tão ampla reputação e crédito. Originalmente um
interesse provincial, mas cresceu rapidamente no caráter de um
símbolo geral ou universal; enquanto outros catecismos e confissões
de fé mais antigos tinham força, na melhor das hipóteses, apenas para

xix
os países específicos que os geraram. Foi recebido com aplausos, na
Suíça, França, Inglaterra, Escócia e Holanda, bem como por todos os
que eram favoravelmente dispostos à fé reformada, na própria
Alemanha. Esse elogio não era passageiro; uma efémera explosão de
aplausos, seguida de novo pela indiferença e abandono geral. Pelo
contrário, a autoridade do símbolo cresceu com a idade. Tornou-se
para o corpo reformado, como acabamos de ver, a contraparte
completa do livro de texto semelhante segurado pelo corpo luterano
pelas mãos do próprio Lutero. Nesse personagem, o encontramos
citado e apelado por todos os lados, tanto por amigos quanto por
inimigos. Essa vasta popularidade, dizemos, por si só, implica um vasto
mérito. Podemos admitir, de fato, que os termos em que alguns dos
antigos teólogos falaram de sua excelência sejam levados além da
devida medida. Mas este testemunho geral de toda a Igreja Reformada
em seu favor, deve sempre ter força, para mostrar que eles tinham boas
razões para falar aqui com uma certa quantia de entusiasmo.
O fato de sua ampla disseminação e longa popularidade contínua é
importante, também, em outro ponto de vista; isso mostra que o
formulário era fruto, verdadeira e plenamente, da vida religiosa da
Igreja Reformada, em pleno florescimento de seu desenvolvimento
histórico, tal como foi alcançado na época em que a obra apareceu.
Nenhum credo ou confissão pode ter força genuína se não tiver essa
conexão orgânica interior com a vida que representa. Este deve ir
antes do símbolo, criando-o para seu próprio uso. O credo assim
produzido pode chegar à sua expressão, de fato, em primeiro lugar,
por meio de uma única mente; mas a mente única, em tal caso, deve
sempre ser o órgão e portador da vida geral em cujo nome ela fala;
caso contrário, não será ouvido nem sentido. Aqui está o critério
apropriado para qualquer confissão verdadeira da Igreja, seja no
caráter de uma liturgia, catecismo ou hinário. Deve ser a própria vida
da Igreja, corporificada por algum órgão próprio, em tal forma de fala,

xx
que seja imediatamente reconhecida e respondida pela Igreja em geral,
como sua própria palavra. Essa relação entre palavra e vida é
felizmente exibida no caso agora em consideração. Embora em certo
sentido uma obra privada, o formulário diante de nós não era de forma
alguma o produto da simples reflexão individual, por parte de um ou
de vários. Ursino, na sua preparação, foi o órgão de uma vida religiosa,
muito mais geral e abrangente do que a sua. É a manifestação da fé
reformada, como ela se encontrava na época, e encontrou expressão
para si mesma por meio de sua pessoa. A evidência disso, temos na
resposta livre e plena com que foi recebida, por parte da igreja, não só
no Palatinado, mas também noutras terras. Foi, como se toda a Igreja
reformada tivesse ouvido e reconhecido com alegria, sua própria voz
no Catecismo de Heidelberg. Nenhum produto de mero julgamento
privado ou vontade privada poderia ter obtido tal favor universal.
O grande mérito que pode ser razoavelmente inferido desta grande
reputação, é amplamente verificado, quando passamos a considerar o
caráter real da própria obra. Quanto mais é cuidadosamente estudado
e examinado, mais provável é que seja admirado. Entre todos os
símbolos protestantes, sejam de data anterior ou posterior,
consideramos que é decididamente o melhor. Está totalmente
permeado por um espírito inteiramente científico, muito além do que
é comum em formulários desse tipo. Mas sua ciência é sempre séria e
solenemente prática. É uma doutrina apreendida e representada
continuamente na forma de vida. A construção do todo, é
incomumente simples, bela e clara, ao mesmo tempo que o frescor de
um sentimento religioso sagrado. respira durante toda a sua execução.
É para o coração, tanto quanto para a cabeça. O pathos de uma piedade
profunda e tonificada flui como uma correnteza, em todos os seus
ensinamentos, do princípio ao fim. Isso serve para conferir um caráter
peculiar de dignidade e força, ao seu próprio estilo, que às vezes, com
toda a sua simplicidade, se torna verdadeiramente eloquente e se move

xxi
com uma espécie de solenidade sacerdotal, que todos são obrigados à
reverência e respeito. Entre as suas perfeições características, merece
destaque particular, o seu espírito católico, e o rico elemento místico,
que se encontra a entrar tão largamente na sua composição. Nenhum
outro livro simbólico reformado pode se comparar a ele nesses
aspectos.
Sua catolicidade manifesta-se em sua simpatia pela vida religiosa da
antiga Igreja católica, em seu cuidado para evitar as sutilezas
dialéticas espinhosas do calvinismo, na preferência que mostra pelo
positivo na religião em oposição ao meramente negativo e
controverso, e no caráter amplo e livre em geral, que marca o tom de
suas instruções. Considerando o temperamento da época e as relações
com as quais cresceu, é notavelmente livre de polêmicas e
preconceitos partidários. Uma bela ilustração do sentimento católico
e histórico agora notado, é encontrada no fato de que uma parte tão
grande da obra é baseada diretamente no Credo Apostólico. Não só
faz uso disso como um texto, mas também entra com evidente
interesse e afeição, em seu espírito geral, com o som, e certamente o
sentimento correto, de que nenhuma doutrina protestante pode ser
mantida de forma segura, o que não é considerado, na verdade, um
ramo vivo do tronco deste símbolo primitivo na consciência da fé.
Devemos lamentar, de fato, sempre, a vez dada (questão 44) à cláusula
no quarto artigo: “Ele desceu ao inferno”; onde a autoridade de Calvino
é seguida, dando às palavras um significado que é bom em sua própria
natureza, mas ao mesmo tempo notoriamente em guerra com o
sentido histórico da própria cláusula. Muita ofensa também, como é
geralmente conhecido, foi tomada com a infeliz declaração, pela qual
a missa romana é denunciada, no final da 80ª questão, como sendo
“nada mais do que uma negação do único sacrifício e sofrimentos de Jesus
Cristo, e uma idolatria maldita”. Mas nunca se deve esquecer que este
anátema severo, tão estranho ao espírito de Melâncton e Ursino, e do

xxii
tom reinante também do Catecismo de Heidelberg, não faz parte da
obra original publicada pelas mãos do próprio Ursino. Está faltando
nas duas primeiras edições; e foi depois declarado, apenas pela
autoridade do Eleitor Frederico, na forma de réplica furiosa e contra-
ataque, a respeito disso foi dito, para certas declarações severas ao
contrário, que haviam sido aprovadas pouco tempo antes pelo
Concílio de Trento.
O elemento místico do catecismo está intimamente ligado ao espírito
católico, de que acabamos de falar. É aquela qualidade na religião pela
qual ela vai além de qualquer apreensão simplesmente lógica ou
intelectual, e se dirige diretamente à alma, como algo a ser sentido e
crido mesmo quando é muito profundo para ser explicado. A Bíblia
está repleta de tal misticismo. Prevalece, especialmente, em todas as
páginas do apóstolo João. Encontramos principalmente em Lutero.
Tem-se dito frequentemente que a fé reformada, distinta da católica e
da luterana, é hostil a este elemento, que se move supremamente na
esfera do entendimento e, portanto, está sempre propensa a cair no
racionalismo; e deve ser confessado que há alguma demonstração de
razão para a grave acusação. O grande defeito de Zuínglio, bem como
sua principal força, residia na clara intelectualidade de sua natureza.
Calvino tinha um senso mais profundo do místico, mas ao mesmo
tempo um poder de lógica ainda mais vasto, o que tornava muito
difícil para esse senso voltar firmemente aos seus devidos direitos. Sua
teoria dos decretos, por exemplo, violenta continuamente sua teoria
dos sacramentos. É apenas em sua última e melhor forma, conforme
descobrimos que isso foi revelado no Palatinado alemão, que se pode
dizer que o sistema reformado superou a força da objeção agora
notada. O Catecismo de Heidelberg considera, em toda parte, as
reivindicações legais do entendimento; seu autor era totalmente
versado em todas as sutilezas dialéticas da época, e uma lógica
incomumente fina, na verdade, distingue toda a sua composição. Mas

xxiii
junto com isso flui, ao mesmo tempo, um apelo contínuo ao sentido
interior da alma, uma espécie de tom solene, que ressoa das
profundezas do mundo invisível, que só uma unção do Santo pode
habilitar a qualquer pessoa ouvir e entender. As palavras são
frequentemente sentidas dessa forma, significando muito mais do que
expressam logicamente. O catecismo não é uma obra fria meramente
do intelecto racionalizador. Está cheio de sentimento e fé. A alegria
de uma confiança nova, simples, infantil, parece bela e comovente
entrelaçada com toda a sua divindade. Uma rica veia de misticismo
flui por toda parte em suas declarações doutrinárias. Uma música
celestial parece fluir ao nosso redor o tempo todo, enquanto ouvimos
sua voz. É moderada, gentil, suave, em uma palavra, melanctoniana,
em toda a sua cadência; o eco adequado e a imagem assim, podemos
razoavelmente supor, da alma quieta, embora profundamente
fervorosa, do próprio Ursino.
Ele carrega a palma da mão, muito decididamente, em nossa opinião,
como já dissemos, sobre todos os outros símbolos protestantes, sejam
formados antes ou depois.
Mas, apesar de tudo o que agora foi dito, o catecismo foi recebido em
toda a Alemanha, na época de seu surgimento, como uma forte
declaração de guerra; e tornou-se ao mesmo tempo o sinal para um
ataque irado e violento, na forma de contradição e censura, de todas
as partes da Igreja Luterana. Não se podia esperar que o partido de
alto nível que agora enchia todo o império com seu alarme de heresia,
tolerasse pacientemente qualquer formulário religioso que pudesse
ser considerado insuficiente em todas as suas próprias medidas
vigorosas de ortodoxia. A partir deste bairro, consequentemente, o
catecismo foi atacado, mais ferozmente do que até mesmo o próprio
catecismo da Igreja de Roma. Sua própria moderação, de fato, parecia
engrandecer a frente de sua ofensa. Se houvesse mais do leão ou do
tigre em sua aparência, e menos do cordeiro, sua presença poderia ter

xxiv
se mostrado menos irritante para o humor polêmico da época. Do
jeito que estava, parecia haver provocação em sua própria mansidão.
Sua carruagem externa foi considerada enganosa e traiçoeira; e sua
heresia foi considerada ainda pior, por ser difícil de encontrar e tímida
de vir à luz. Os ventos da contenda foram lançados sobre ele de
acordo, de todos os pontos do horizonte.
Não apenas a unidade e a quietude da Igreja alemã, mas também a
paz do império alemão aparentava, aos olhos do alto partido luterano,
ameaçada pela nova confissão. Considerou-se não apenas uma heresia
na religião, mas também traição na política. Tanto o eleitor quanto
seus teólogos viram sua fé severamente provada pelo clamor geral que
se levantou às suas custas. Mas eles eram homens de fé e resistiram
bem à prova.
O ataque foi aberto por Hesshus e o célebre Flaccius Illyricus, cada
um dos quais saiu com uma publicação irada contra o catecismo
calvinista, como o chamavam, cheio das invectivas e abusos mais
intolerantes e deturpando grosseiramente em diferentes pontos, as
mudanças religiosas acontecidas no Palatinado. Entre outras calúnias,
a nova fé foi encarregada de transformar a Ceia do Senhor em refeição
profana, de subestimar a necessidade do batismo infantil, com
iconomaquia e de tentar alterar o decálogo para afastar-se da antiga
ordem de seus preceitos. Outras explosões de aviso e alarme logo
foram ouvidas, quase no mesmo tom, de diferentes lugares.
Wittenberg, em particular, emitiu uma censura solene, redigida por
seus dois melhores sacerdotes, na qual dezoito questões do catecismo
foram taxadas de heresia séria e nenhum esforço foi poupado para
trazer ao descrédito especialmente sua doutrina da sagrada Eucaristia.
Era necessário responder a esse clamor numeroso com uma resposta
pronta e vigorosa; e tal resposta consequentemente logo apareceu,
com a devida solenidade, em nome da faculdade teológica de
Heidelberg toda reunida. A tarefa de prepará-lo, porém, coube a

xxv
Ursino, que se mostrou ao mesmo tempo bem capaz de cumprir o
serviço de forma verdadeiramente eficiente e adequada. A honra do
catecismo foi totalmente justificada, e o efeito de toda a controvérsia
foi apenas tornar sua autoridade no Palatinado mais firme do que
antes.
Enquanto isso, o Eleitor foi levado a prestar contas solenemente, de
forma mais privada, por vários de seus irmãos príncipes, que pareciam
pensar que todo o império estava escandalizado por sua conduta
pouco ortodoxa. Isso levou à célebre conferência ou debate de
Maulbronn; em que os principais teólogos de Wittenberg e do
Palatinado se reuniram, com o propósito de trazer toda a dificuldade,
se possível, a uma resolução e solução adequadas. Os teólogos de
Heidelberg não eram a favor da medida; apreender mais mal do que
bem. Mas eles permitiram que suas objeções fossem anuladas, sem se
importar em mostrar o que poderia ser interpretado em qualquer
parte, em uma falta de confiança em sua própria causa. A conferência
aconteceu no mês de abril de 1564, e durou, segundo consta, uma
semana inteira, do 10º dia ao 16º dia. Entre os disputantes de
Heidelberg, estavam os professores: Bocquin, Oleviano e Ursino. Do
outro lado apareceram Brenz, dois dos professores de Tübingen e
outros teólogos distintos. O peso do debate, porém, foi colocado
principalmente sobre Ursino em um caso, e totalmente sobre James
Andreae, o grande e bom chanceler da Universidade de Tübingen, no
outro.

xxvi
Os atos desse colóquio de Maulbronn são do mais alto valor para a
história da Igreja reformada alemã e servem ao mesmo tempo para
lançar uma luz mais honrosa sobre todo o caráter de Ursino. Eles
fornecem ao longo de uma imagem viva de sua penetração aguda, sua
ciência abrangente e sua precisão doutrinária clara, bem como uma
exemplificação brilhante da firmeza com que ele aderiu às suas
próprias convicções de verdade e direito. Suas distinções e
determinações, especialmente no ponto da ubiquidade, podem ser
consideradas como portadoras de uma espécie de autoridade
verdadeiramente clássica para a teologia reformada em todos os
tempos subsequentes.
O próprio colóquio, no entanto, só gerou depois uma nova polêmica.
Terminou com um pacto, de fato, para se abster de disputas públicas,
mas, infelizmente, isso foi logo esquecido e violado. Ambos os
partidos, naturalmente, reivindicaram a vitória; e não demorou muito
até que um esforço foi feito, por parte dos teólogos de Wittenberg,
para estabelecer essa reivindicação em seu próprio favor, publicando
o que eles chamaram de um epítome do debate em uma forma que
lhes convinha; colocando toda a discussão, sem pequena
engenhosidade e endereçamento, em uma luz nada justa ou
satisfatória para o outro lado. Para fazer face a esta deturpação, os
teólogos do Palatinado publicaram, em primeiro lugar, uma cópia na
íntegra das atas do colóquio a partir do registo oficial feito na altura;
e então acrescentou uma resposta clara e distinta ao epítome de
Wittenberg, expondo o que eles concebiam como suas graves ofensas
contra a verdade. Isso suscitou, no ano de 1565, a grande “Declaração e
confissão dos teólogos de Tübingen sobre a Majestade do homem Cristo e a
presença de Seu corpo e sangue na Santa Ceia”1. Então veio em resposta
novamente do lado do Palatinado, em 1566, uma “Refutação sólida dos

1Tradução de: “Declaration and Confession of the Theologians of Tübingen on the


Majesty of the Man Christ, and the Presence of his Body and Blood in the Holy Supper”.

xxvii
sofismas e críticas dos ministros de Wittenberg”2, projetada para limpar o
terreno mais uma vez de todo o campo. A controvérsia foi renovada e
continuou assim em toda a sua força; e o autor do catecismo ainda
era obrigado a segurar uma arma para sua defesa em uma das mãos,
enquanto trabalhava em sua exposição adequada com a outra. Ambos
os serviços foram bem cumpridos.
Entre os seus vários tratados apologéticos, o lugar principal deve-se à
Exegesis verae doctrinae de Sacramentis et Eucharistia, publicada em nome
da faculdade de Heidelberg e por ordem do consistório, cuja sanção
lhe deu ao mesmo tempo a força de uma confissão pública. Foi
traduzido também para a língua vernácula, e em pouco tempo teve
várias edições. É ainda uma obra de grande interesse e valor, pois
fornece a interpretação mais autêntica, que pode ser encontrada em
qualquer lugar, da verdadeira doutrina sacramental do catecismo, no
sentido que tinha no início para o próprio Ursino, também, quanto a
toda a faculdade teológica de Heidelberg.
Como acabamos de sugerir, entretanto, o trabalho de tal pedido
público de desculpas e defesa de forma alguma exauriu os trabalhos
de Ursino em relação a este símbolo verdadeiramente admirável. O
catecismo foi totalmente entronizado no Palatinado, desde o início,
como regra e medida da fé pública. Foi feito a base do ensino teológico
na universidade. Foi introduzido em todas as igrejas e escolas, sob um
regulamento que exigia que tudo fosse revisado no curso, na forma de
repetição e explicação familiar, uma vez por ano. Um sistema regular
de catequização foi estabelecido nas igrejas, ao qual todas as tardes de
cada Dia do Senhor eram dedicadas, e que era conduzido, de forma a
incluir adultos e crianças. Ursino, na qualidade de professor,
acomodou-se também à regra geral e fez questão de revisar o texto do
catecismo uma vez por ano com suas conferências teológicas. Diz-se

2 Tradução de: “Solid Refutation of the Sophisms and Cavils of the Wirtemberg Divines”.

xxviii
que manteve esse hábito regularmente, até o ano de 1577. Anotações
de seus sermões foram feitas pelos alunos, os quais tiveram permissão
logo após sua morte, em três lugares diferentes, para fazerem sua
aparição impressa. Tanta injustiça foi feita a ele, no entanto, pelo
caráter defeituoso dessas publicações, seu amigo particular e discípulo
favorito, David Pareus, que possuía além de todas as qualificações
necessárias para a tarefa, foi chamado a revisar o todo e colocar o
trabalhe de uma forma que seja mais fiel ao nome e ao espírito de seu
ilustre autor. Este serviço de dever e amor não poderia ter caído em
melhores mãos, e nenhuma dor foi poupada agora para completar a
publicação. Sob essa forma propriamente autêntica, apareceu pela
primeira vez no ano de 1591, em Heidelberg, em quatro partes, cada
uma fornecida com um prefácio separado de Parcus; desde então, já
passou por inúmeras edições, em diversos países. O Catecismo de
Heidelberg foi homenageado com um número quase incontável de
comentários posteriores; mas este primeiro, derivado do próprio
Ursino através de David Pareus, foi geralmente considerado o melhor
que foi escrito. Nenhum outro, em todos os eventos, pode ter o mesmo
peso que uma exposição de seu verdadeiro significado.
Em meio a outras agitações no ano de 1564, a peste irrompeu com
grande violência em Heidelberg, fazendo com que o tribunal e a
universidade consultassem sua própria segurança retirando-se por um
tempo do local. Durante esse recesso solene, Ursino escreveu e
publicou uma pequena obra sobre “Preparação para a morte”. Apareceu
primeiro na Alemanha, mas foi traduzida posteriormente para o latim,
forma em que se encontra na coleção geral de suas obras, sob o título
de Pia Meditatio Mortis.

xxix
No ano de 1571, ele recebeu uma chamada urgente para Lausanne, que
parece ter estado um tanto inclinado a aceitar, em vista
principalmente da carga indevida de seu trabalho em Heidelberg, que
foi considerado maior do que sua constituição física, naturalmente
fraco, poderia muito bem apoiar. Para mantê-lo em seu lugar, o eleitor
permitiu que ele transferisse parte de seu serviço universitário para
um assistente.
Seu casamento com Margaret Trautwein, acontecido no ano seguinte,
é representado como um acréscimo material ao seu conforto e
descanso. Ele estava na época com quase quarenta anos de idade.
Esse assentamento domiciliar, entretanto, não durou muito. Com a
morte de seu patrono Frederico, em outubro de 1576, todo o estado
religioso do Palatinado caiu mais uma vez em desordem. Foi sucedido
no eleitorado por seu filho mais velho, Luís, cujas ligações anteriores
o haviam inspirado com um forte zelo pelo luteranismo, em total
oposição a toda a trajetória de seu pai. Antes de sua morte, o velho
príncipe havia buscado uma entrevista com seu filho, desejando
comprometê-lo, se possível, a respeitar seus pontos de vista a respeito
da Igreja, conforme expressos em palavras e em seu testamento. Luís,
porém, achou adequado recusar a entrevista e, subsequentemente, não
deu atenção às instruções do pai. Pelo contrário, ele assumiu como
tarefa, desde o início, transformar todas as coisas em uma forma
totalmente diferente. O clero, junto com o prefeito e os cidadãos de
Heidelberg, dirigiu-lhe uma petição, orando pela liberdade de
consciência e oferecendo uma das Igrejas para o uso particular
daqueles que pertenciam à sua confissão. Seu irmão, o duque
Casimiro, também interveio para atender ao pedido. Mas não atendeu
a nenhum propósito; Luís declarou que sua consciência não permitiria
que ele recebesse a petição. No ano seguinte, portanto, ele veio com
sua corte a Heidelberg, demitiu os pregadores, ocupou todos os
lugares com ocupantes luteranos, fez com que um novo serviço

xxx
religioso fosse introduzido e, em uma palavra, mudou a religião
pública para outro esquema e forma. Os teólogos mais proeminentes
logo foram compelidos a deixar seus lugares; entre os quais, é claro,
estavam os autores do Catecismo de Heidelberg, Oleviano e Ursino.
Ursino encontrou um refúgio honroso com o príncipe Casimiro,
segundo filho do falecido eleitor, que exercia uma pequena soberania
própria em Neustadt, e se ocupou de socorrer e encorajar lá, tanto
quanto podia, a causa agora perseguida por seu irmão luterano. O
distinto divino foi constituído professor de teologia no Neustadt
Gymnasium, que o príncipe agora se propunha elevar ao caráter de algo
como um substituto do que a Universidade de Heidelberg havia sido
anteriormente para a Igreja reformada. A nova instituição, sob o título
de Casimirianum, logo se tornou bastante importante. Não poderia ser
de outra forma, com nomes como Ursino, Zanchi, Francis Junius,
Daniel Tossanus, John Piscator, em sua faculdade de teologia, e outros
da mesma ordem em outros departamentos. Aqui Ursino continuou a
trabalhar, fiel à fé de seu próprio catecismo desonrado, até o dia de
sua morte.
Sua última publicação de alguma importância foi uma obra de algum
tamanho, empreendida por ordem do príncipe Casimiro, e publicada
em nome do clero de Neustadt, em 1581, em revisão e censura da
célebre Forma de Concórdia. Isso foi executado com sua habilidade
usual e prestou um bom serviço na época à causa da Igreja reformada.
O triunfo do luteranismo no Palatinado provou ao fim ser curto. Antes
que o plano pudesse ser executado integralmente, pelo qual se
propunha estender a revolução da capital por toda a província, o
príncipe Louis morreu, no meio de seus dias; e agora, de uma vez, toda
a face das coisas foi trazida a assumir novamente um novo aspecto. A
administração do governo caiu nas mãos do duque Casimiro, que logo
depois tomou medidas para restaurar a fé reformada ao seu antigo
poder e crédito. Na medida do possível, os antigos professores foram

xxxi
mais uma vez trazidos de volta à universidade. O Casimirianum de
Neustadt viu-se privado aos poucos de sua glória transitória. A
Fórmula de Concórdia caiu em desgraça, enquanto seu padrão rival, o
Catecismo de Heidelberg, surgiu gloriosamente à vista novamente
como a bandeira eclesiástica do Palatinado. No devido tempo, toda a
ordem da Igreja foi restaurada como estava com a morte de Frederico,
o Piedoso.
Mas houve um entre os teólogos banidos de Neustadt, que não voltou,
nessa época, com seus colegas, ao cenário de suas antigas obras. O
próprio autor do catecismo, o erudito e piedoso Ursino, não teve
permissão de tomar parte no triunfo a que agora avançava. Sua débil
constituição, que por algum tempo decaiu cada vez mais, sob os
incansáveis labores de sua profissão, cedeu finalmente por completo;
e em 6 de março de 1583, o mesmo ano em que o príncipe Casimiro
assumiu o poder, ele foi silenciosamente transladado para um mundo
mais elevado e melhor. O evento aconteceu aos 49 anos de idade.
Ele foi enterrado no coro da Igreja de Neustadt, onde seus colegas
ergueram também um monumento adequado à sua memória. A
inscrição o descreve como um teólogo sincero, distinguido por resistir
às heresias sobre a pessoa e a Ceia de Cristo, um filósofo perspicaz,
um homem prudente e um excelente instrutor da juventude. Uma
oração fúnebre foi pronunciada na ocasião em latim, por Francis
Junius, que ainda é importante pela imagem que preserva de sua
mente e caráter. Suas representações, é claro, são um tanto retóricas,
e deve-se levar em consideração os matizes da amizade e tristeza; mas
depois de todo o abatimento adequado neste ponto, é um elogio tão
brilhante, como vindo de alguém tão intimamente familiarizado com
o homem, deve ser permitido dizer muito em seu louvor.
Suas obras foram publicadas coletivamente, algum tempo depois de
sua morte, em três volumes encadernados, por seu amigo e discípulo
David Pareus.

xxxii
Os traços principais de seu personagem já foram evidenciados em
certa medida, no esboço agora dado de sua vida. Um testemunho
duradouro de seu aprendizado teológico e de suas habilidades
intelectuais em geral é encontrado em suas obras. O melhor
monumento de suas virtudes e méritos morais é a influência que ele
exerceu enquanto vivia, e o bom nome que ele deixou para trás por
toda a Igreja reformada em sua morte, cujo cheiro chegou até nossos
dias. Ele era ao mesmo tempo um grande e bom homem.
Ele parece ter se destacado especialmente como professor acadêmico.
Seu amigo, Francis Junius, fala com grande elogio também de seu
talento para a pregação; mas sua própria avaliação de si mesmo aqui
foi provavelmente mais correta, o que o levou a se retirar do púlpito
em grande parte, por não ser sua esfera apropriada. Seu estilo e modos
eram muito didáticos para seu uso. Para os fins da sala de aula, no
entanto, eles eram tudo o que se poderia desejar. Ao mesmo tempo
plena, calma, metódica e clara, sua mente fluía aqui sem barulho ou
pompa, em uma corrente continuamente rica, suave e profunda, que
parecia difundir a instrução mais saudável por todos os lados. Ele não
poupou esforços para se preparar totalmente para sua obra, e se dispôs
a servir tanto quanto possível às necessidades de seus alunos;
colocando sua alma com vivo proveito na tarefa em mãos, e
encorajando-os a fazê-lo também, apresentando dificuldades ou
fazendo perguntas ao final de cada exercício; o que era seu hábito,
entretanto, não responder na hora, mas reservá-lo para um julgamento
bem estudado no dia seguinte. Sua diligência parecia não ter limites.
Disto temos a melhor evidência na vasta quantidade de obras e
serviços que realizou, no curso de sua vida pública.

xxxiii
A sua parcimônia de tempo, sempre como ouro para o verdadeiro
estudante, é ilustrada pela inscrição que ele teria visto, para o
benefício de todos os visitantes impertinentes, sobre a porta de seu
escritório: “Amice, quisquis huc venis , aut agito paucis, aut abi, aut me
laborantem adjuva”. Ou seja, “Amigo, entrando aqui, fale baixinho ou saia, ou
então me ajude na minha obra”.
Essa consideração pelo tempo era para ele um senso de dever e fluía
do sentimento geral que ele tinha, de que seus poderes e talentos não
eram seus, mas pertenciam a seu fiel salvador, Jesus Cristo, e que ele
não tinha o direito de desviá-los de seu serviço. No geral, sua
consciência era da mais alta ordem. Seu orador fúnebre diz dele, que
ele nunca tinha ouvido uma palavra ociosa sair de seus lábios; tão
cuidadoso era com o governo de seus pensamentos e a regulação de
sua língua. Pode-se dizer que ele de fato morreu como um mártir, em
certo sentido, por sua própria fidelidade; pois foi o árduo serviço a
que se dedicou no cumprimento de seus compromissos profissionais
que esgotou suas forças e o levou finalmente à sepultura.
A modéstia e a humildade do homem estavam em total harmonia com
sua integridade geral e muito contribuíram para o efeito agradável de
suas outras virtudes. Seus modos eram totalmente despretensiosos,
pois seu espírito também estava livre de tudo que tivesse o sabor de
orgulho ou pretensão. Ele parecia cortejar a obscuridade, em vez da
notoriedade. Essas obras que apareceram em sua vida foram
publicadas anonimamente ou em nome do corpo docente de
Heidelberg; enquanto a maior parte deles nunca viu a luz em qualquer
forma, até depois de sua morte.
No geral, como vimos antes, ele era de natureza reservada e retraída;
formado para meditação e auto comunhão; avesso a todo barulho e
contenda; tanto místico quanto lógico, e não menos contemplativo do
que inteligente e perspicaz; um verdadeiro herdeiro a este respeito do
espírito de Melâncton, bem como um verdadeiro seguidor de sua fé.

xxxiv
Para a controvérsia teológica, embora condenado a viver nela todos os
seus dias, ele tinha tão pouco gosto quanto seu ilustre preceptor; e
quando forçado a participar dela, pode-se dizer dele que mal o cheiro
de seu fogo usual foi permitido passar em suas vestes; ele ainda era
igual, calmo e brando na conduta de sua própria causa, evitando, tanto
quanto possível, todas as personalidades ofensivas, e concentrando
toda a sua força apenas nos méritos reais do ponto em debate. Por
outro lado, porém, ninguém poderia estar mais decidido e firme dessa
forma serena, quando era necessário resistir ao erro ou manter a
verdade. Nesse aspecto, ele era superior a Melâncton, menos submisso
e mais fiel ao mapa e ao compasso de seu próprio credo.
Ele foi acusado por alguns de ser azedo e rabugento. Mas isso nada
mais era, provavelmente, do que a construção, que seu caráter
reservado e sério naturalmente carregava consigo para aqueles que
não eram capazes de simpatizar com tal espírito, ou que o viam apenas
como que à distância e não muito próximo. É característico de uma
natureza tão suave e quieta ser ao mesmo tempo ardente e excitável
às vezes até pela paixão; e não é improvável que, no caso de Ursino,
essa tendência natural possa ter sido reforçada às vezes pelo hábito
mórbido de seu corpo, perturbando e obscurecendo a serenidade
adequada de sua mente. Francis Junius o descreve como exatamente
o oposto das acusações agora percebidas, e como feito de
condescendência e bondade esquecidas para com todos que cruzaram
seu caminho.
A mesma testemunha, da qual não poderíamos ter melhor, dá o mais
honroso testemunho também de seus hábitos de devoção e piedade
pessoal. A religião para ele não era apenas uma teoria, mas uma
questão de vida. Ele caminhou com Deus e mostrou-se assim um
seguidor digno daqueles que pela fé e paciência entraram nas
recompensas de Seu reino.

xxxv
De forma geral, podemos dizer, é uma grande honra para a Igreja
reformada alemã ser representada no início por um homem tão
excelente; e talvez não vá muito longe acrescentar que o tipo de seu
caráter entrou poderosamente no verdadeiro espírito histórico desta
comunhão, como distinto de todos os outros ramos da mesma fé. Essa
é a prerrogativa do gênio, e tal sua alta e elevada missão no mundo.
Ela imprime sua própria imagem, por muito tempo, naquilo que tem
o poder de criar.
J. W. N.

NOTA. — Na preparação deste artigo, foram utilizadas as seguintes


obras: ALTING'S, Historia de Ecclesiis Palatinis; H. S. VAN ALPEN'S,
Geschichte und Literatur des Heidelberg'schen Katechismus;
Geschichte der protestantischen Theologie de PLANCK; BAYLE'S,
Dictionary art. Ursinus; SEISEN'S, Geschichte der reformation zu
Heidelberg; K. F. VIERORDT'S, Geschichte der reformation im
Grossherzogthum Baden; EBRARD'S, Das Dogma vom Heil.
Abendmahl und seine Geschichte. Também pode ser feita referência à
própria obra do escritor sobre a História e o Gênio do Catecismo de
Heidelberg..

xxxvi
ÍNDÍCE
O PREFÁCIO DO TRADUTOR DA EDIÇÃO INGLESA .......................................................... IV

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ IX

COMENTÁRIO DE ZACARIAS URSINO ............................................................................ 46

PROLEGÔMENOS ....................................................................................................... 47
COM REFERÊNCIA AO CATECISMO DA RELIGIÃO CRISTÃ QUE FOI PREPARADO PARA, E
ENSINADO NAS ESCOLAS DAS IGREJAS DO PALATINADO .................................................... 47
I. O QUE É A DOUTRINA DA IGREJA? ........................................................................... 47
II. QUAIS SÃO AS SUAS PARTES E EM QUE ESSAS PARTES DIFEREM UMAS DAS
OUTRAS?..................................................................................................................... 49
III. EM QUE A DOUTRINA DA IGREJA DIFERE DAQUELA DAS VÁRIAS SEITAS E DA
FILOSOFIA, E POR QUE ESSAS DISTINÇÕES DEVEM SER MANTIDAS? ......................... 51
IV. QUAIS SÃO AS EVIDÊNCIAS PELAS QUAIS A VERDADE DA RELIGIÃO CRISTÃ, OU DA
DOUTRINA DA IGREJA É CONFIRMADA? ..................................................................... 56
V. QUAIS SÃO OS VÁRIOS MÉTODOS DE ENSINO E APRENDIZADO DESSA DOUTRINA?
.................................................................................................................................... 62
PROLEGÔMENO ESPECIAL ......................................................................................... 64
COM REFERÊNCIA AO CATEQUISMO ................................................................................... 64
I. O QUE É A CATEQUIZAÇÃO? .................................................................................... 64
II. QUAL É A ORIGEM DA CATEQUIZAÇÃO, E ELA FOI SEMPRE PRATICADA NA IGREJA?
.................................................................................................................................... 66
III. QUAIS SÃO AS PARTES DA PRINCIPAL PERGUNTA DA DOUTRINA DO CATECISMO?69
IV. POR QUE É NECESSÁRIO INTRODUZIR E ENSINAR O CATECISMO NA IGREJA? ....... 71
V. QUAL É O DESIGN DO CATECISMO, E DA DOUTRINA DA IGREJA? ........................... 75

CATECISMO DE HEIDELBERG ........................................................................................ 76

1º DIA DO SENHOR .................................................................................................... 77


O VERDADEIRO CONFORTO CRISTÃO................................................................................... 77
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 1 ............................................................................................. 77
I. O QUE É ESSE CONFORTO? ...................................................................................... 78
II. DE QUANTAS PARTES O NOSSO CONFORTO CONSISTE? ......................................... 80
III. POR QUE ESSE É O ÚNICO CONFORTO SÓLIDO? .................................................... 81
IV. PORQUE ESSE CONFORTO É NECESSÁRIO? ............................................................ 83
V. QUANTAS COISAS SÃO NECESSÁRIAS PARA O ESTABELECIMENTO DESSE
CONFORTO? ................................................................................................................ 83
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 2 ............................................................................................. 84
A PRIMEIRA DIVISÃO GERAL DO CATECISMO ................................................................. 89
2º DIA DO SENHOR .................................................................................................... 90
SOBRE A MISÉRIA DO HOMEM............................................................................................ 90
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 3 ............................................................................................. 90
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 4 ............................................................................................. 92
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 5 ............................................................................................. 97
3º DIA DO SENHOR .................................................................................................... 99
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 6 ............................................................................................. 99
DA CRIAÇÃO DO HOMEM .................................................................................................. 100
I. QUAL FOI O ESTADO EM QUE DEUS CRIOU ORIGINALMENTE O HOMEM? ........... 100
II. PARA QUAL FIM DEUS CRIOU O HOMEM? ........................................................... 101
DA IMAGEM DE DEUS NO HOMEM ................................................................................... 104
I. O QUE É E QUAIS SÃO AS SUAS PARTES? ............................................................... 104
II. EM QUE EXTENSÃO FOI PERDIDA, E O QUE PERMANECE NO HOMEM? .............. 107
III. COMO A IMAGEM DE DEUS PODE SER RESTAURADA EM NÓS ............................ 109
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 7 ........................................................................................... 110
DA QUEDA E PRIMEIRO PECADO DO HOMEM .................................................................. 110
I. QUAL FOI O PECADO DE NOSSOS PRIMEIROS PAIS? .............................................. 110
II. QUAIS FORAM AS CAUSAS DO PRIMEIRO PECADO? ............................................. 112
III. QUAIS SÃO OS EFEITOS DO PRIMEIRO PECADO? ................................................. 114
IV. POR QUE DEUS PERMITIU O PECADO? ................................................................ 114
DO PECADO EM GERAL...................................................................................................... 115
I. O QUE MANIFESTA QUE O PECADO ESTÁ NO MUNDO, E QUE TAMBÉM ESTÁ EM
NÓS? ......................................................................................................................... 115
II. O QUE É PECADO? ................................................................................................ 117
III. QUANTOS TIPOS DE PECADO EXISTEM? .............................................................. 120
IV. QUAIS SÃO AS CAUSAS DO PECADO?................................................................... 138
V. QUAIS SÃO OS EFEITOS DO PECADO? ................................................................... 148
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 8 ........................................................................................... 151
DO LIVRE ARBÍTRIO ........................................................................................................... 151
I. O QUE É LIBERDADE DA VONTADE OU PODER DE ESCOLHA? ................................ 153
II. QUAL É A DISTINÇÃO QUE EXISTE ENTRE A LIBERDADE QUE ESTÁ EM DEUS E SUAS
CRIATURAS, ANJOS E HOMENS? ............................................................................... 155
III. EXISTE ALGUMA LIBERDADE DA VONTADE HUMANA? ........................................ 160
IV. QUE TIPO DE LIBERDADE DE VONTADE TEM O HOMEM, OU QUANTOS GRAUS DE
LIVRE-ARBÍTRO EXISTEM, DE ACORDO COM O ESTADO QUADRÚPLO DO HOMEM? 162
4º DIA DO SENHOR .................................................................................................. 170
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 9 ........................................................................................... 170
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 10 ......................................................................................... 173
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 11 ......................................................................................... 176
COM RESPEITO ÀS AFLIÇÕES ............................................................................................. 178
I. QUANTOS TIPOS DE AFLIÇÕES EXISTEM? .............................................................. 178
II. QUAIS SÃO AS CAUSAS DAS AFLIÇÕES? ................................................................ 182
III. QUAIS SÃO OS CONFORTOS QUE PODEMOS RESPONDER À NOSSA AFLIÇÃO? ... 185
A SEGUNDA DIVISÃO GERAL DO CATECISMO ............................................................... 190
5º DIA DO SENHOR .................................................................................................. 191
DA LIBERTAÇÃO DO HOMEM ............................................................................................. 191
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 12 ......................................................................................... 191
I. O QUE É A LIBERTAÇÃO DO HOMEM ..................................................................... 192
II. SE TAL LIBERTAÇÃO É POSSÍVEL ............................................................................ 193
III. SE A LIBERTAÇÃO É NECESSÁRIA E CERTA ............................................................ 197
IV. COMO ESTA LIBERTAÇÃO É REALIZADA ................................................................ 199
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 13 ......................................................................................... 201
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 14 ......................................................................................... 204
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 15 ......................................................................................... 206
6º DIA DO SENHOR .................................................................................................. 207
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 16 ......................................................................................... 207
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 17 ......................................................................................... 211
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 18 ......................................................................................... 215
A RESPEITO DO MEDIADOR ............................................................................................... 218
I. O QUE É UM MEDIADOR ....................................................................................... 219
II. SE PRECISAMOS DE UM MEDIADOR COM DEUS .................................................. 220
III. O QUE É O OFÍCIO DO MEDIADOR ....................................................................... 222
IV. QUE TIPO DE MEDIADOR ELE DEVERIA SER ......................................................... 224
V. QUEM É ESTE MEDIADOR, QUEM EM UMA PESSOA É DEUS E HOMEM .............. 225
VI. SE PODE HAVER MAIS DE UM MEDIADOR ........................................................... 226
DA ALIANÇA DE DEUS ........................................................................................................ 227
I. O QUE É ESTA ALIANÇA? ........................................................................................ 227
II. COMO PODE SER FEITA ESTA ALIANÇA ENTRE DEUS E O HOMEM? ...................... 229
III. ESTA ALIANÇA É UMA ALIANÇA OU MAIS DE UMA? ............................................ 230
IV. EM QUE A VELHA E A NOVA ALIANÇA CONCORDAM, E EM QUE DIFEREM? ....... 231
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 19 ......................................................................................... 234
I. O QUE É O EVANGELHO? ....................................................................................... 235
II. O EVANGELHO SEMPRE FOI CONHECIDO NA IGREJA OU É UMA NOVA DOUTRINA?
.................................................................................................................................. 236
III. EM QUÊ O EVANGELHO É DIFERENTE DA LEI? ..................................................... 239
IV. QUAIS SÃO OS EFEITOS APROPRIADOS AO EVANGELHO? ................................... 242
V. DE QUE SE MANIFESTA A VERDADE DO EVANGELHO? ......................................... 242
7º DIA DO SENHOR .................................................................................................. 243
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 20 ......................................................................................... 243
DA FÉ ................................................................................................................................. 246
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 21 ......................................................................................... 246
I. O QUE É FÉ? ........................................................................................................... 246
II. DE QUANTOS TIPOS DE FÉ FALAM AS ESCRITURAS? ............................................. 247
III. EM QUE A FÉ É DIFERENTE DA ESPERANÇA? ....................................................... 254
IV. QUAIS SÃO AS CAUSAS DA FÉ? ............................................................................. 255
V. QUAIS SÃO OS EFEITOS DA FÉ? ............................................................................. 256
VI. A QUEM É DADA A FÉ? ........................................................................................ 257
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 22 ......................................................................................... 262
O CREDO DOS APÓSTOLOS ................................................................................................ 263
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 23 ......................................................................................... 263
8º DIA DO SENHOR .................................................................................................. 268
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 24 ......................................................................................... 268
A TRINDADE ....................................................................................................................... 271
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 25 ......................................................................................... 271
I. DO QUE SE MANIFESTA QUE EXISTE UM DEUS? .................................................... 272
II. QUEM E O QUE É DEUS? ....................................................................................... 276
Uma breve explicação da descrição de Deus, conforme dada pela Igreja ................ 279
III. DE QUE SE MANIFESTA A UNIDADE DE DEUS? .................................................... 285
IV. O QUE SIGNIFICAM OS TERMOS ESSÊNCIA, PESSOA E TRINDADE, E EM QUE SE
DIFEREM UM DOS OUTROS? .................................................................................... 288
V. É ADEQUADO QUE A IGREJA DEVA RETER OS TERMOS, ESSÊNCIA, PESSOA E
TRINDADE? ............................................................................................................... 293
VI. QUANTAS PESSOAS EXISTEM NA DIVINDADE? .................................................... 295
VII. COMO SÃO DISTINGUÍDAS AS TRÊS PESSOAS DA TRINDADE? ............................ 297
VIII. POR QUE É NECESSÁRIO QUE A IGREJA RETENHA FIRME A DOUTRINA DA
TRINDADE ................................................................................................................. 302
OBJEÇÕES DOS HERÉTICOS, CONTRA A DOUTRINA DA TRINDADE ........................... 303
9º DIA DO SENHOR .................................................................................................. 305
DE DEUS, O PAI .................................................................................................................. 305
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 26 ......................................................................................... 305
DA CRIAÇÃO DO MUNDO .................................................................................................. 308
I. DEUS CRIOU O MUNDO? ....................................................................................... 309
II. COMO DEUS CRIOU O MUNDO?........................................................................... 312
III. PARA QUAL FIM DEUS CRIOU O MUNDO? ........................................................... 316
10º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 318
A PROVIDÊNCIA DE DEUS .................................................................................................. 318
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 27 ......................................................................................... 318
I. EXISTE ALGUMA PROVIDÊNCIA DE DEUS? ............................................................. 319
II. O QUE É A PROVIDÊNCIA DE DEUS? ..................................................................... 325
UMA REFUTAÇÃO DE CERTAS OBJEÇÕES CONTRA A PROVIDÊNCIA DE DEUS ........... 337
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 28 ......................................................................................... 347
11º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 349
DE DEUS, O FILHO.............................................................................................................. 349
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 29 ......................................................................................... 349
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 30 ......................................................................................... 357
12º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 359
SOBRE O NOME, CRISTO.................................................................................................... 359
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 31 ......................................................................................... 359
I. O QUE É A UNÇÃO OU UNÇÃO DE CRISTO? ........................................................... 360
II. O QUE É O OFÍCIO PROFÉTICO DE CRISTO? .......................................................... 364
III. O QUE É O OFÍCIO ECLESIÁSTICO OU SACERDOTAL DE CRISTO? .......................... 367
IV. O QUE É O REINO OU OFÍCIO REAL DE CRISTO?................................................... 370
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 32 ......................................................................................... 371
13º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 379
O ÚNICO FILHO DE DEUS GERADO .................................................................................... 379
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 33 ......................................................................................... 379
DA DIVINDADE DE CRISTO ................................................................................................. 387
I. O FILHO DE DEUS, A PALAVRA, É E TEM SIDO UM SER SUBSISTENTE, OU UMA
PESSOA ANTES E ALÉM DA CARNE QUE ELE ASSUMIU ............................................. 388
II. QUE O FILHO É UMA PESSOA REALMENTE DISTINTA DO PAI E DO ESPÍRITO SANTO
.................................................................................................................................. 400
III. QUE O FILHO É IGUAL AO PAI E AO ESPÍRITO SANTO ........................................... 401
IV. QUE O FILHO É CONSUBSTANCIAL, OU DA MESMA ESSÊNCIA DO PAI E DO ESPÍRITO
SANTO ....................................................................................................................... 406
SOBRE O NOME, SENHOR.................................................................................................. 418
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 34 ......................................................................................... 418
I. EM QUE SENTIDO CRISTO É CHAMADO SENHOR .................................................. 418
II. POR QUAIS CAUSAS, E DE QUANTAS MANEIRAS ELE É NOSSO SENHOR .............. 419
14º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 423
DA CONCEPÇÃO E NASCIMENTO DE CRISTO ..................................................................... 423
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 35 ......................................................................................... 423
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 36 ......................................................................................... 427
DAS DUAS NATUREZAS EM CRISTO .................................................................................... 428
I. EXISTEM DUAS NATUREZAS NO MEDIADOR? ........................................................ 428
II. AS DUAS NATUREZAS DE CRISTO CONSTITUEM UMA OU MAIS PESSOAS? .......... 432
III. O QUE É A UNIÃO QUE EXISTE ENTRE AS DUAS NATUREZAS DE CRISTO, E COMO
FOI FEITA? ................................................................................................................. 434
IV. POR QUE É NECESSÁRIO QUE ESTA UNIÃO HIPOSTÁTICA SEJA FEITA? ................. 434
15º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 435
OS SOFRIMENTOS DE CRISTO ............................................................................................ 435
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 37 ......................................................................................... 435
I. O QUE DEVEMOS ENTENDER PELA PAIXÃO DE CRISTO, OU O QUE CRISTO SOFREU?
.................................................................................................................................. 436
II. CRISTO SOFREU DE ACORDO COM AMBAS AS NATUREZAS? ................................ 442
III. QUAL FOI A CAUSA MOTIVADORA DA PAIXÃO DE CRISTO? ................................. 443
IV. QUAIS SÃO AS CAUSAS FINAIS, OU O FRUTO DE SUA PAIXÃO?............................ 443
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 38 ......................................................................................... 444
A MORTE E O SEPULTAMENTO DE CRISTO ................................................................ 446
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 39 ......................................................................................... 446
16º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 448
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 40 ......................................................................................... 448
I. COMO SE DIZ QUE CRISTO ESTAVA MORTO ........................................................... 448
II. SE ERA NECESSÁRIO QUE CRISTO MORRESSE POR NÓS ....................................... 450
III. CRISTO MORREU POR TODOS? ............................................................................ 452
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 41 ......................................................................................... 459
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 42 ......................................................................................... 461
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 43 ......................................................................................... 463
A DESCIDA DE CRISTO AO INFERNO................................................................................... 466
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 44 ......................................................................................... 466
I. QUAL É O VERDADEIRO SENTIDO DESTE ARTIGO DO CREDO OU, O QUE SIGNIFICA A
DESCIDA DE CRISTO AO INFERNO? ........................................................................... 466
II. QUAIS SÃO OS FRUTOS DA DESCIDA DE CRISTO AO INFERNO? ............................ 473
17º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 474
A RESSURREIÇÃO DE CRISTO ............................................................................................. 474
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 45 ......................................................................................... 474
I. CRISTO RESSUSCITOU DOS MORTOS?.................................................................... 475
II. COMO CRISTO RESSUSCITOU? .............................................................................. 475
III. PARA QUE PROPÓSITO CRISTO RESSUSCITOU? .................................................... 477
IV. QUAIS SÃO OS FRUTOS OU BENEFÍCIOS DA RESSURREIÇÃO DE CRISTO? ............ 482
18º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 489
A ASCENSÃO DE CRISTO .................................................................................................... 489
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 46 ......................................................................................... 489
I. PARA ONDE CRISTO ASCENDEU? ........................................................................... 490
II. DE QUE MANEIRA CRISTO ASCENDEU AO CÉU? ................................................... 492
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 47 ......................................................................................... 499
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 48 ......................................................................................... 501
III. PARA QUAL PROPÓSITO CRISTO ASCENDEU AO CÉU? ......................................... 503
IV. EM QUE A ASCENSÃO DE CRISTO É DIFERENTE DA NOSSA? ................................ 506
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 49 ......................................................................................... 507
V. QUAIS SÃO OS FRUTOS DA ASCENSÃO DE CRISTO? .............................................. 507
19º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 511
CRISTO ESTÁ ASSENTADO À DESTRA DO PAI ...................................................................... 511
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 50 ......................................................................................... 511
I. O QUE A DESTRA DE DEUS SIGNIFICA NAS ESCRITURAS ........................................ 512
II. O QUE É SE ASSENTAR À DESTRA DE DEUS ........................................................... 512
III. CRISTO SEMPRE ASSENTOU À DESTRA DE DEUS? ................................................ 517
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 51 ......................................................................................... 520
IV. QUAIS SÃO OS FRUTOS DE CRISTO ASSENTADO À DIREITA DO PAI? .................... 520
O RETORNO DE CRISTO AO JULGAMENTO......................................................................... 522
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 52 ......................................................................................... 522
I. HAVERÁ UM FUTURO JULGAMENTO? ................................................................... 523
II. O QUE É O JULGAMENTO FINAL ........................................................................... 527
III. QUEM SERÁ O JUIZ? ............................................................................................ 530
IV. PARA ONDE ASCENDEU E DE ONDE ELE VIRÁ? .................................................... 531
V. DE QUE FORMA ELE VIRÁ? .................................................................................... 532
VI. QUEM ELE JULGARÁ?........................................................................................... 532
VII. QUAL SERÁ O PROCESSO, A SENTENÇA E A EXECUÇÃO DO JULGAMENTO FINAL
.................................................................................................................................. 533
VIII. POR QUE HAVERÁ UM JULGAMENTO? .............................................................. 534
IX. QUANDO ESTE JULGAMENTO SERÁ FEITO? ......................................................... 535
X. OS MOTIVOS PELOS QUE DEVEMOS PROCURAR COM CERTEZA O JULGAMENTO 535
XI. AS RAZÕES PELAS QUAIS DEUS NOS DEIXARÁ IGNORANTES DO TEMPO PRECISO
DO JULGAMENTO ..................................................................................................... 536
XII. POR QUE ESTE JULGAMENTO É RETARDADO ...................................................... 537
XIII. SE O JULGAMENTO FINAL PODE SER DESEJADO ................................................ 538
20º DIA DO SENHOR ................................................................................................ 539
DE DEUS, O ESPÍRITO SANTO ............................................................................................. 539
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 53 ......................................................................................... 539
I. O QUE SIGNIFICA O TERMO ESPÍRITO? .................................................................. 540
II. QUEM E O QUE É O ESPÍRITO SANTO? .................................................................. 541
III. QUAL É O OFÍCIO DO ESPÍRITO SANTO? .............................................................. 551
IV. O QUE SÃO, E QUANTO SÃO OS DONS DO ESPÍRITO SANTO ................................ 554
V. POR QUEM, E POR QUE O ESPÍRITO SANTO FOI DADO ......................................... 556
VI. A QUEM E EM QUE EXTENSÃO O ESPÍRITO SANTO É DADO ................................ 557
VII. QUANDO E COMO O ESPÍRITO SANTO É DADO E RECEBIDO? ............................ 558
VIII. COMO O ESPÍRITO SANTO PODE SER RETIDO? .................................................. 561
IX. SE E COMO O ESPÍRITO SANTO PODE SER PERDIDO ............................................ 562
X. POR QUE O ESPÍRITO SANTO É NECESSÁRIO? ....................................................... 563
XI. COMO PODEMOS SABER QUE O ESPÍRITO SANTO HABITA EM NÓS? .................. 564
COMENTÁRIO DE ZACARIAS URSINO
PROLEGÔMENOS

COM REFERÊNCIA AO CATECISMO DA


RELIGIÃO CRISTÃ QUE FOI PREPARADO PARA,
E ENSINADO NAS ESCOLAS DAS IGREJAS DO
PALATINADO
Estes prolegômenos são parcialmente gerais, por tratarem da doutrina
da Igreja inteira; e particularmente especiais, pois dizem a respeito
meramente do catecismo.
Os prolegômenos gerais, concernentes à doutrina da Igreja, podem ser
incluídos nos seguintes pontos:
I. O que é a doutrina da Igreja?
II. Quais são as suas partes e em que essas partes diferem umas das
outras?
III. Em que a doutrina da Igreja difere daquela das várias seitas e da
filosofia, e por que essas distinções devem ser mantidas?
IV. Quais são as evidências da verdade e certeza desta doutrina?
V. Quais são os vários métodos de ensino e aprendizado dessa
doutrina?

I. O QUE É A DOUTRINA DA IGREJA?


A doutrina da Igreja é a doutrina inteira e não corrompida da lei e do
evangelho concernente ao Deus verdadeiro, junto com Sua vontade,
obras e adoração; divinamente revelada e compreendida nos escritos
dos profetas e apóstolos, e confirmado por muitos milagres e
testemunhos divinos; por meio da qual o Espírito Santo opera
eficazmente nos corações dos eleitos, e congrega de toda a raça
humana uma Igreja eterna, na qual Deus é glorificado, tanto nesta
como na vida que virá.

47 | P á g i n a
Essa doutrina é a marca principal e mais expressiva da verdadeira
Igreja, que Deus deseja que seja visível no mundo e separada do resto
da humanidade, de acordo com as declarações das Escrituras:
“Guardai-vos dos ídolos” (1 João 5:21); “Saí do meio deles e apartai-vos” (2
Coríntios 6:17); “Se alguém vier a vós e não trouxer esta doutrina, não o
recebais em vossas casas, nem lhe deis a saudação de Deus” (2 João 10); “Sede
santos, não toqueis em coisa impura, vós que levais os vasos do Senhor” (Isaías
52:11); “Saí dela, povo Meu, para que não sejais participantes de seus pecados
e para que não incorras em suas pragas” (Apocalipse 18:4).
Deus deseja que sua Igreja seja separada e distinta do mundo, pelas
seguintes considerações. Primeiro, por causa de Sua própria glória;
pois, como Ele mesmo não se unirá a ídolos e demônios, não terá Sua
verdade confundida com falsidade, e Sua Igreja com os inimigos dela,
os filhos do Diabo; mas os terá cuidadosamente distinguidos e
separados. Seria uma vergonha a Deus supor que Ele teria e
reconheceria como Seus filhos, aqueles que o perseguem; sim, seria
blasfêmia tornar Deus o autor de falsa doutrina e o defensor dos
ímpios; pois “que concórdia tem Cristo com Belial” (2 Coríntios 6:153). Em
segundo lugar, pela consolação e salvação do Seu povo; pois é
necessário que a Igreja seja visível no mundo, para que os eleitos,
espalhados por toda a raça humana, saibam com que sociedade devem
se unir e que, estando congregados na Igreja, possam desfrutar deste
consolo seguro de que são membros daquela família em que Deus se
agrada e que tem as promessas de vida eterna. Pois é a vontade de
Deus que todos os que estão para ser salvos sejam congregados na
Igreja nesta vida. Fora da Igreja não há salvação.

3 Correção de referência bíblica: 2 Coríntios 6:14.

48 | P á g i n a
Como a Igreja pode ser conhecida, e quais são as marcas pelas quais
ela pode ser distinguida das várias seitas, será mostrado quando
viermos a falar regularmente sobre o assunto da Igreja. Podemos,
entretanto, aqui dizer que existem três marcas pelas quais a Igreja é
conhecida: pureza de doutrina - o uso adequado dos sacramentos e
obediência a Deus de acordo com todas as partes desta doutrina, seja
de fé ou prática. E se for contestado aqui, que grandes vícios
frequentemente têm aparecido na Igreja, responderíamos que eles não
são defendidos e seguidos pela Igreja, mas sim pelas várias seitas. Sim,
a Igreja é a primeira a censurá-las e condená-las. Consequentemente,
se houver falhas na Igreja, elas serão reprovadas e removidas.
Enquanto esse estado das coisas permanecer, a Igreja permanecerá.

II. QUAIS SÃO AS SUAS PARTES E EM QUE ESSAS PARTES


DIFEREM UMAS DAS OUTRAS?
A doutrina da Igreja consiste em duas partes: a lei e o evangelho; em
que compreendemos a totalidade e a substância das Sagradas
Escrituras. A lei é chamada de decálogo, e o evangelho é a doutrina a
respeito de Cristo, o mediador, e a remissão gratuita de pecados por
meio da fé. Essa divisão da doutrina da Igreja é estabelecida por esses
argumentos claros e convincentes.
1. Toda a doutrina contida nos escritos sagrados, ou é concernente à
natureza de Deus, Sua vontade, Suas obras, ou pecado, que é a obra
própria de homens e demônios. Mas todos esses assuntos são
totalmente apresentados e ensinados, seja na lei, seja no evangelho, ou
em ambos. Portanto, a lei e o evangelho são as principais divisões
gerais das Sagradas Escrituras e abrangem toda a doutrina nelas
compreendida.
2. O próprio Cristo faz esta divisão da doutrina que Ele terá pregado
em Seu nome, quando diz: “Assim está escrito, e assim convém que
Cristo padecesse e ressuscitasse dos mortos ao terceiro dia; e o

49 | P á g i n a
arrependimento e a remissão de pecados deve ser pregada em Seu
nome” (Lucas 24:46, 47). Mas isso abrange toda a substância da lei e
do evangelho.
3. Os escritos dos profetas e apóstolos compreendem o Antigo e o
Novo Testamento, ou a aliança entre Deus e o homem. É, portanto,
necessário que as partes principais do pacto sejam contidas e
explicadas nesses escritos, e que eles declarem o que Deus nos
promete e dá, a saber: Sua Graça, remissão de pecados, justiça e vida
eterna; e também o que Ele, em troca, exige de nós, que é a fé e a
obediência. Essas, agora, são as coisas que são ensinadas na lei e no
evangelho.
4. Cristo é a substância e o fundamento de todas as Escrituras. Mas a
doutrina contida na lei e no evangelho é necessária para nos conduzir
ao conhecimento de Cristo e Seus benefícios; porque a lei é nosso
mestre, para nos levar a Cristo, a correr até Ele nos obrigando e nos
mostrando o que é essa justiça, que Ele lavrou e agora nos oferece.
Mas o evangelho, abertamente, trata da pessoa, ofício e benefícios de
Cristo. Portanto, temos, na lei e no evangelho, todas as Escrituras,
compreendendo a doutrina revelada dos céus para nossa salvação.
As principais diferenças entre essas duas partes da doutrina da Igreja,
consiste nestas três coisas:1. No assunto, ou caráter geral da doutrina,
peculiar a cada uma. A lei prescreve e ordena o que deve ser feito e
proíbe o que deve ser evitado; enquanto o evangelho anuncia a
remissão gratuita de pecados, por meio e por causa de Cristo. 2. No
forma da revelação peculiar a cada um. A lei é conhecida pela
natureza; o evangelho é divinamente revelado. 3. Nas promessas que
fazem ao homem. A lei promete vida sob a condição de obediência
perfeita; o evangelho, com a condição de fé em Cristo e o início de
uma nova obediência. Doravante, entretanto, mais será dito sobre este
assunto no lugar apropriado.

50 | P á g i n a
III. EM QUE A DOUTRINA DA IGREJA DIFERE DAQUELA DAS
VÁRIAS SEITAS E DA FILOSOFIA, E POR QUE ESSAS
DISTINÇÕES DEVEM SER MANTIDAS?
A doutrina da Igreja difere de todas as outras religiões em quatro
aspectos. Primeiro: a doutrina da Igreja tem a Deus como autor, por
quem foi entregue, por meio dos profetas e apóstolos, enquanto os
vários sistemas religiosos dos sectaristas foram inventados por
homens, por sugestão do Diabo. Em segundo lugar: somente a
doutrina da Igreja, tem tal testemunho divino na confirmação de sua
verdade, que é certa e infalível e que é calculada para acalmar a
consciência e convencer todas as várias seitas do erro. Terceiro: na
Igreja a lei de Deus é mantida inteira e incorrupta, enquanto em
outros sistemas de religião ela é reduzida e basicamente corrompida;
pois os defensores dessas falsas religiões rejeitam inteiramente a
doutrina da primeira tábua, concernente ao conhecimento e adoração
do Deus verdadeiro, seja apresentando algum outro Deus além
daquele que se revelou à Igreja por Sua palavra e obras, e buscando
um conhecimento de Deus, não em Seu Filho, mas fora dEle, ou adorá-
lO de outra forma do que Ele ordenou em Sua palavra. E não somente
isso, mas eles também são igualmente ignorantes da obediência
interior e espiritual da segunda tábua; e qualquer que seja a verdade
e excelência que haja nesses sistemas de religião, não é nada mais do
que uma parte dos preceitos da segunda tábua, em relação ao
comportamento externo da vida e aos deveres civis que os homens
devem uns aos outros. Em quarto lugar: é somente na Igreja que o
evangelho de Cristo é totalmente ensinado e corretamente
compreendido; pois as várias seitas, como os étnicos, os filósofos, os
judeus e os turcos, ou a ignoram inteiramente e portanto a rejeitam,
ou então acrescentam a ela seus erros o pouco que retiraram da
doutrina dos apóstolos; cujo uso, entretanto, eles não apreendem nem
entendem apropriadamente; como é verdade para os arianos, papistas,

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anabatistas e todas os outros hereges; alguns dos quais possuem erros
a respeito da pessoa, e outros a respeito do ofício de Cristo, o
mediador. Essas grandes distinções provam que somente a doutrina
da Igreja deve ser ensinada e mantida firmemente, ao passo que as
doutrinas e sistemas religiosos das seitas que se opõem à verdade
devem ser rejeitados e evitados, como perversões e artifícios perversos
do Diabo; de acordo com o que foi dito: “Cuidado com os falsos profetas”
(Mateus 7:15); e, “Guardai-vos dos ídolos” (1 João 5:21).
No entanto, é diferente com a filosofia. A verdadeira filosofia, embora
também difira muito da doutrina da Igreja, ainda assim, não se
posiciona contra ela, nem é uma fabricação perversa e um estratagema
de Satanás, como acontece com as falsas doutrinas das seitas; mas
contém a verdade e é, por assim dizer, um certo raio da sabedoria de
Deus, impresso na mente do homem em sua criação. É uma doutrina
que tem respeito a Deus e Suas criaturas, e muitas outras coisas que
são boas e proveitosas para a humanidade, e foi obtida da luz da
natureza e de princípios em si mesmos claros e evidentes, e reduzidos
a um sistema por homens sábios e sinceros. Segue-se, portanto, que
não é apenas lícito, mas também lucrativo, que os cristãos se
dediquem ao estudo da filosofia; enquanto, por outro lado, não é
apropriado para eles se dedicarem ao estudo das várias doutrinas das
seitas; porque tudo isso deve ser detestado e evitado, como os
dispositivos perversos do Diabo.

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A filosofia e a doutrina da Igreja diferem, especialmente nos seguintes
aspectos. Primeiro: em seus princípios. A filosofia é totalmente natural
e é construída e baseada em princípios deduzidos da natureza. E,
embora haja muitas coisas na doutrina da Igreja, que podem ser
conhecidas da natureza, ainda a parte principal e principal dela, que
é o evangelho, está muito além e acima da natureza, que, a menos que
o Filho de Deus se o tivesse revelado do seio do Pai, nenhuma
sabedoria dos homens ou dos anjos poderia tê-lo descoberto. Em
segundo lugar: eles diferem em seus assuntos; pois, embora a doutrina
da Igreja compreenda o verdadeiro sentido e significado da lei e do
evangelho, a filosofia é inteiramente ignorante do evangelho, omite as
partes mais importantes da lei e explica de forma muito obscura e
imperfeita aquelas partes que abrange em relação aos deveres civis e
ao comportamento externo da vida, recolhidos de alguns poucos
preceitos do decálogo. E não apenas isso, mas a filosofia também
ensina algumas das artes e ciências, que são úteis e lucrativas; tais
como lógica, filosofia natural e matemática, que não encontramos na
doutrina da Igreja, mas que, no entanto, têm uma influência
importante sobre os interesses da sociedade, quando ensinadas e
compreendidas. Terceiro: eles diferem em seus efeitos. A doutrina da
Igreja por si só rastreia todos os males e misérias que são incidentes
ao homem até sua verdadeira fonte, que é encontrada na queda e
desobediência de nossos primeiros pais no paraíso. Além disso,
ministra verdadeiro e sólido conforto à consciência, apontando o
caminho pelo qual podemos escapar das misérias do pecado e da
morte e, ao mesmo tempo, nos assegura a vida eterna, por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo. Mas a filosofia ignora a verdadeira causa
de todos os nossos males e não pode nos conceder nem direcionar o
conforto que pode satisfazer os desejos do coração humano.
Existem, no entanto, certos confortos que são comuns, tanto à filosofia
quanto à teologia; entre os quais podemos citar a doutrina da

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providência de Deus, a necessidade de obedecer à lei, uma boa
consciência, a excelência da virtude, os desígnios finais que a virtude
propõe, os exemplos de outros, a esperança de galardão e uma
comparação dos diferentes eventos e circunstâncias da vida. Mas
aqueles confortos maiores e mais preciosos, pelos quais a alma é
sustentada e amparada, quando exposta aos terríveis males do pecado
e da morte, são peculiares à Igreja e consistem na remissão gratuita
de pecados, por e por causa de Cristo, a graça e a presença de Deus
sob esses males, junto com a libertação final e a vida eterna.
Mas, embora a verdadeira filosofia seja insuficiente para atender todas
as demandas de nossa natureza moral, e embora possa ser imperfeita
em comparação com a teologia, ela ainda não se opõe e nem se
posiciona contra a doutrina da Igreja, como se fosse hostil a ela. Por
isso, quaisquer que sejam os sentimentos errôneos, como os que estão
em plena oposição à verdade da palavra de Deus, são encontrados nos
escritos dos diferentes filósofos, e que são apresentados, por hereges,
com o propósito de contestar e destruir o verdadeiro sentido da
Escrituras, ou estas não são filosóficas, sendo nada mais do que os
artifícios sutis da engenhosidade humana, e as próprias úlceras da
verdadeira filosofia; como a opinião de Aristóteles sobre a criação do
mundo, e a de Epicuro sobre a imortalidade da alma, e outras coisas
semelhantes; ou eles são de fato, filosóficos mas inadequadamente
aplicados à teologia.
Essas distinções entre a doutrina da Igreja e as de outras religiões, e
também da filosofia, devem ser observadas e mantidas, por essas
razões. Primeiro: que toda a glória que propriamente pertence a Deus
possa ser atribuída a Ele, o que não pode ser feito a menos que
reconheçamos e confessemos tudo o que Ele deseja que creiamos
sobre Ele e sua vontade, e a menos que não acrescentemos nada a
essas revelações que Ele tem teve o prazer de fazer de Si mesmo; pois
Deus não pode ser unido a ídolos, nem pode sua verdade ser misturada

54 | P á g i n a
com as mentiras e falsidades de Satanás sem lançar o maior vitupério
sobre Seu nome. Em segundo lugar: para que não coloquemos em risco
nossa salvação, o que poderia acontecer se fôssemos enganados e
abraçássemos a filosofia ou o ensino de alguma das seitas, pela
verdadeira religião. Em terceiro lugar: para que nossa fé e conforto
sejam aumentados, vendo a excelência superior da doutrina da Igreja
aos ensinos de todos os outros sistemas de religião; e quantas coisas
são encontradas na religião da Bíblia, que são totalmente ausentes em
todas as outras; e porque é que apenas aqueles que confessam e
mantêm os ensinos da Palavra de Deus são salvos, enquanto todas as
várias seitas com seus adeptos, são condenadas e rejeitadas por Deus.
Em último lugar: para que possamos nos separar dos epicureus e
acadêmicos, que ou desprezam tudo como a piedade, ou a pervertem
a ponto de supor que todo homem que professa alguma forma de
religião será salvo, interpretando assim a declaração do apóstolo onde
ele diz: “O justo viverá pela sua fé” (Romanos 1:17).
Agora, no que diz respeito a esses epicureus, eles não são dignos de
serem refutados; e quanto aos acadêmicos, eles evidentemente
arrancam a declaração do apóstolo de seu significado apropriado, e
podem, portanto, ser facilmente refutados; pois o pronome “sua” nunca
significa aquela fé que qualquer homem pode imaginar, ou moldar
para si mesmo, mas significa a verdadeira fé católica, peculiar a todos
que abraçaram o evangelho de Cristo; e assim se opõe à fé de todos os
outros homens, mesmo que seja verdade; e também a doutrina da
justificação pelas obras. Por isso, o verdadeiro sentido desta passagem
da Escritura é: o homem justo é justificado, não pelas obras da lei, mas
apenas pela fé em Cristo, e isso por sua própria fé peculiar, e não pela
fé de outro homem.

55 | P á g i n a
IV. QUAIS SÃO AS EVIDÊNCIAS PELAS QUAIS A VERDADE DA
RELIGIÃO CRISTÃ, OU DA DOUTRINA DA IGREJA É
CONFIRMADA?
Há um grande número de argumentos que estabelecem a verdade e
certeza dos ensinos da igreja, alguns dos quais convencem a
consciência; como é o caso com o primeiro (que é o 13º), que aqui
acrescentamos, enquanto os que se seguem inclinam e convertem o
coração. Esses argumentos apresentaremos na seguinte ordem:
1. A pureza e perfeição da lei. Não é possível que uma religião seja
verdadeira e divina, a que ou inventa e tolera ídolos, ou aprova aquelas
formas de maldade que estão em plena oposição à lei de Deus e ao
julgamento da razão sã. Agora, todas as diferentes formas de religião,
exceto aquela que foi revelada nas Sagradas Escrituras, e que é
recebida e reconhecida pela Igreja, evidentemente fazem isso. Pois
todos elas (como já foi dito) ou revogam inteiramente a primeira tábua
do decálogo, que diz respeito ao único Deus verdadeiro e Sua
adoração, ou a corrompem vergonhosamente; enquanto eles, ao
mesmo tempo, retêm apenas uma pequena parte da segunda tábua,
relativa à propriedade externa e deveres civis. É apenas a Igreja que
retém ambas as tabelas do decálogo inteiras e não corrompidas, de
acordo com as Escrituras. Por isso, somente a doutrina da Igreja é
verdadeira e divina.

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2. O mesmo pode ser argumentado a partir do evangelho, que aponta
a única forma de escape e libertação do pecado e da morte; pois, mais
certamente, aquela doutrina e religião é verdadeira e divina que revela
um método de libertação desses grandes males, sem fazer qualquer
violência à justiça de Deus, e que administra sólido conforto à
consciência, em relação à vida eterna. Agora, como a doutrina da Igreja
é o único sistema de verdade religiosa que já descobriu e proclamou
um meio de libertação dos males do pecado e da morte, o único que
proporciona conforto real e substancial para a consciência, deve ser
verdadeiro e divino.
3. A grande antiguidade desta doutrina fornece evidências de sua
verdade; pois nenhum outro sistema de verdade religiosa, além
daquele que apresentamos nas Sagradas Escrituras, pode traçar sua
origem até Deus e provar sua linhagem certa e contínua desde o início
do mundo. Todas as várias histórias do mundo unem seu testemunho
ao da história sagrada, ao dizer que todas as outras religiões tiveram
sua origem posterior a esta e são novas em comparação com ela. Na
medida em que, portanto, como a religião mais antiga desafia a mais
alta consideração, e tem a mais forte evidência da verdade, (pois os
homens normalmente recebem e consideram a primeira religião como
vinda imediatamente de Deus), segue-se que somente a doutrina da
Igreja é verdadeira e divina.
4. Os milagres pelos quais Deus confirmou a verdade desta doutrina,
desde o início do mundo, dão testemunho de Seu caráter divino;
milagres que o Diabo não pode imitar, mesmo no que diz respeito à
sua aparência externa; tais como ressuscitar os mortos, fazer o sol
parar e retroceder, dividir o mar e os rios, tornar os estéreis frutíferos
e assim por diante, todos os quais dão o mais forte testemunho da
verdade e do caráter divino desta doutrina, visto que foram feitas por
Deus (que não pôde dar tal testemunho do que é falso), para a
confirmação das coisas que foram faladas pelos profetas e apóstolos.

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5. As profecias e predições, das quais há muitíssimas, tanto no antigo
como no Novo Testamento, que receberam um cumprimento mais
completo e exato, estabelecem de forma mais satisfatória e conclusivo
o caráter divino dos ensinamentos da Igreja, visto que ninguém além
de Deus pode proferir tais declarações.
6. A harmonia das diferentes partes da doutrina da Igreja é uma
evidência de Sua verdade. Aquela doutrina que se contradiz não pode
ser verdadeira, nem de Deus, visto que a verdade está em perfeita
harmonia consigo mesma, e Deus não pode se contradizer. E como
todas as outras religiões, exceto aquela que é ensinada nos escritos
dos profetas e apóstolos, diferem muito umas das outras, mesmo em
pontos que são considerados principais e fundamentais, somente esta,
que se harmoniza tão plena e perfeitamente em todos suas várias
partes, deve ser verdadeira e de Deus.
7. O reconhecimento da superior excelência da religião cristã por Seus
inimigos pode ser invocado como argumento em favor de Sua verdade.
O próprio Diabo foi forçado a confessar: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus”
(Lucas 4:41). Outros inimigos também foram repetidamente induzidos
a dar testemunho da superior excelência dos ensinos da Igreja. Sim,
pode-se dizer que qualquer bondade e verdade podem ser encontradas
em outras religiões, o mesmo também está contido na religião da
Bíblia, só que muito mais clara e completamente; e pode ser
facilmente mostrado que eles pegaram emprestado essas coisas dos
ensinamentos da Igreja, e que os misturaram com suas próprias
invenções, como o próprio Diabo está acostumado, como um imitador
de Deus, a unir certas verdades com suas falsidades, para que assim
ele possa enganar mais facilmente os homens. Portanto, aquelas coisas
que as várias seitas têm em comum com os ensinos da Igreja não
devem ser combatidas, porque elas as emprestaram de nós; mas as
coisas que se opõem à doutrina da Igreja podem ser facilmente
refutadas, visto que nada mais são do que invenções de homens.

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8. A malignidade de Satanás, e seus vários emissários, contra a
doutrina da Igreja é uma evidência de Sua verdade; pois muito
seguramente essa religião é verdadeira e de Deus, que o Diabo e os
homens ímpios, com uma mente e propósito, desprezam e se esforce
para destruir. A verdade geralmente provoca oposição dos ímpios, e o
Diabo, somos informados, foi um homicida desde o início, e não
residia na verdade. Ora, é manifestamente verdade que o mundo e
Satanás não odeiam e impugnam qualquer outra doutrina tão
violentamente como a da Igreja, o que resulta disso, que os reprova
mais fortemente, questiona seus erros, expõe suas falácias e fraudes, e
mais severamente condena todos os seus ídolos e vícios, do que as
várias seitas que coniventes com essas coisas, e mesmo, em muitos
casos, os defendem. “O mundo Me odeia porque Eu testifico disso que as
suas obras são más” (João 7:7), “Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria o
que era seu; mas porque vós não sois do mundo, portanto, ele vos odeia” (João
15:19).
9. A maravilhosa proteção e preservação desta doutrina, não obstante
a malícia e fúria de Satanás e outros inimigos, é uma prova de sua
verdade; pois, uma vez que nenhuma outra religião foi tão feroz e
constantemente atacada por tiranos e hereges como a da Igreja, que
Deus, não obstante, maravilhosamente protegeu contra a fúria de Seus
inimigos e as portas do inferno, de forma que só ela permanece para
o tempo presente, para espanto do mundo, enquanto outras religiões,
entretanto, se degeneraram e desapareceram da terra, com pouca ou
nenhuma oposição; podemos, portanto, concluir com segurança que a
doutrina da Igreja é aprovada e cuidada pela parte de Deus, senão Ele
nunca teria estendido a ela a proteção que tem.
10. As punições e vários julgamentos que Deus, em diferentes
momentos, infligiu aos inimigos da Igreja, declaram o caráter divino
de Seus ensinos; pois essa religião é, sem dúvida, de Deus, contra a
qual ninguém pode se armar com impunidade, o que pode ser dito ser

59 | P á g i n a
verdadeiro, como toda a história testemunha, daquele sistema de
religião apresentado nos escritos dos profetas e apóstolos. E, embora
os ímpios possam muitas vezes prosperar no mundo, e a Igreja pareça
estar sendo pisoteada, isso não acontece, como o resultado final desses
eventos abundantemente testifica, e como as Escrituras em todas as
passagens ensinam, por mero acaso, ou porque Deus tem mais prazer
nos ímpios do que na Igreja; pois a Igreja é sempre preservada, mesmo
em meio às maiores perseguições, e por fim obtém a libertação de seus
opositores mais violentos, enquanto, por outro lado, a curta
temporada de prosperidade e triunfo de tiranos cruéis e homens
ímpios é seguida por uma destruição terrível. Nem é a força deste
argumento enfraquecida porque todos os perseguidores da Igreja não
são, nesta vida, punidos da mesma forma trágica, como Antíoco,
Herodes e outros; pois enquanto Deus, na maior parte, de Seus
inimigos nesta vida se vinga, Ele declara claramente, por esses
julgamentos, o que Ele quer que pensemos de outros de caráter
semelhante que não são tão severamente punidos, a saber: que Ele os
considera Seus inimigos e os lançará no castigo eterno, a menos que
se arrependam e busquem Sua graça.
11. O testemunho e constância de mártires que testemunharam em
meio às dores mais excruciantes que realmente creram enquanto
ensinavam, que estavam mais firmemente persuadidos em seus
corações da verdade da doutrina que professavam, e de que traçaram
daí aquele conforto que eles pregaram a outros, de que eles eram de
fato filhos de Deus por causa de Cristo, e que Deus cuidava deles,
mesmo em meio à morte, pode ser considerado uma evidência da
verdade da religião cristã; porque Deus, sustentando-os e apoiando-os
com as preciosas consolações do evangelho, declarou que aprovava as
doutrinas pelas quais eles foram chamados a sofrer.

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12. A piedade e santidade daqueles que escreveram as Sagradas
Escrituras, e professaram a doutrina nelas contida, é uma forte
confirmação de sua verdade; pois aquela religião que torna os homens
santos e aceitáveis a Deus deve ser ela mesma necessariamente santa
e divina. Agora, como os patriarcas, profetas, apóstolos e outros que
têm, bem como aqueles que agora sinceramente abraçam e creem
nesta doutrina, superam muito os adeptos de outras religiões em
virtude e piedade prática, pois cada um pode ver mais claramente
quem a realizará, mas, fazendo uma comparação apropriada, podemos
concluir razoavelmente que os ensinos da Igreja têm evidências mais
fortes e satisfatórias de verdade e certeza do que os de qualquer outro
sistema de religião que já foi inventado.
13. A franqueza e a honestidade que aqueles a quem o Espírito Santo
empregou ao transmitir esta doutrina por escrito, ao falar e condenar
suas próprias faltas, bem como as dos outros, podem ser apresentadas
como um argumento a favor da verdade do que eles escreveram.
Em último lugar, podemos mencionar como confirmação da verdade
desta doutrina, o testemunho do Espírito Santo, por cuja inspiração
as Escrituras foram dadas. Por este testemunho queremos dizer uma
fé forte e viva, e uma persuasão firme, operada nos corações dos fiéis
pelo Espírito Santo, de que as Escrituras são a Palavra de Deus, e que
Deus terá misericórdia de nós de acordo com o que é dito nas
Escrituras, fé essa que é seguida pelo amor a Deus e pelo invocar Seu
nome com a esperança segura de obter tudo o que é necessário para
nosso conforto aqui e no mundo vindouro, a vida eterna. Essa certeza
e consolação permanente dos piedosos não se baseia no testemunho
do homem, nem de qualquer outra criatura, mas no de Deus, e é o
efeito apropriado do Espírito Santo. Como tal, é experimentado por
todos aqueles que realmente creem, nos quais também é fortalecido e
confirmado pelo mesmo Espírito, por meio da leitura, audição e
estudo da doutrina proferida pelos profetas e apóstolos. Por isso, é

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principalmente pelo testemunho do Espírito Santo que todos os que
são convertidos a Cristo são confirmados na verdade desta doutrina
celestial e a têm selada em seus corações. Este argumento sendo
também aplicável aos não regenerados, não apenas convence suas
consciências da verdade e autoridade das Sagradas Escrituras, mas
também move e inclina seus corações a concordar com esta doutrina
e recebê-la como a verdade de Deus. Este argumento, portanto, é o
mais importante de todos aqueles que avançamos; pois, a menos que
aqueles que o precedem sejam acompanhados com o testemunho
interior do Espírito Santo, eles apenas convencem a consciência e
fecham a boca dos opositores, mas não movem ou inclinam o coração.

V. QUAIS SÃO OS VÁRIOS MÉTODOS DE ENSINO E


APRENDIZADO DESSA DOUTRINA?
O método de ensino e estudo de teologia é triplo. O primeiro é o
sistema de instrução catequética, ou seja, aquele método que
comporta um breve resumo e uma exposição simples das principais
doutrinas da religião cristã, que se denomina catequização. Este
método é da maior importância para todos, porque é igualmente
necessário para todos, tanto os letrados quanto os não iletrados, saber
o que constitui o fundamento da verdadeira religião.
O segundo método é a consideração e discussão de assuntos de caráter
geral e mais difícil, ou os lugares comuns, como são chamados, que
contêm uma explicação mais longa de cada ponto e de pontos difíceis
com suas definições, divisões e argumentos. Este método pertence
mais apropriadamente às escolas teológicas, e é necessário; primeiro,
que aqueles que são educados nessas escolas, e que podem depois ser
chamados para ensinar na Igreja, possam compreender mais fácil e
completamente todo o sistema de teologia; pois, como é em outras
coisas, assim é também no estudo da Divindade, nosso conhecimento
dela é obtido lentamente e com grande dificuldade; sim, nosso
conhecimento dela deve permanecer necessariamente confuso e

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imperfeito, a menos que cada parte separada desta doutrina seja
ensinada de alguma forma sistemática, de forma a ser percebida e
compreendida pela mente. Em segundo lugar, que aqueles que são
estudantes de teologia possam, quando chamados a atuar como
professores na Igreja, ser capazes de apresentar clara e
sistematicamente a substância de toda a doutrina da Palavra de Deus.
Para fazer isso, é necessário que eles próprios tenham primeiro um
sistema completo, ou estrutura, por assim dizer, dessa doutrina em
suas próprias mentes. Em terceiro lugar, é necessário, com o propósito
de descobrir e determinar a interpretação verdadeira e natural das
Escrituras, o que requer um conhecimento claro e pleno de cada parte
da doutrina da Igreja, a fim de que esta interpretação possa ser em de
acordo com a analogia da fé, para que as Escrituras possam ser
harmonizadas por completo. Por último, é necessário com o propósito
de nos capacitar a tomar uma decisão adequada em relação às
controvérsias da Igreja, que são várias, difíceis e perigosas, para que
não sejamos arrastados da verdade para o erro e a falsidade.
O terceiro método de estudo da teologia é a leitura cuidadosa e
diligente das Escrituras ou do texto sagrado. Este é o método mais
elevado no estudo da doutrina da Igreja. Para conseguir isso, os dois
métodos anteriores devem ser estudados, a fim de que estejamos bem
preparados para a leitura, compreensão e exposição das Sagradas
Escrituras. Pois assim como a doutrina do catecismo e das passagens
comuns são retiradas das Escrituras e são dirigidas por eles como
regra, elas novamente nos conduzem, por assim dizer, pelas mãos às
Escrituras. O catecismo de que falaremos nestas conferências
pertence ao primeiro método de estudo da teologia.

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PROLEGÔMENO ESPECIAL

COM REFERÊNCIA AO CATEQUISMO

Os prolegômenos especiais com referência à catequização, são cinco:


I. O que é a catequização ou o sistema de catequização?
II. Ela sempre foi praticada na Igreja ou qual é a sua origem?
III. Quais são as partes principais dela?
IV. Por que ela é necessária?
V. Qual é o seu design?

I. O QUE É A CATEQUIZAÇÃO?
A palavra grega κατηχησις (katichisis) é derivada de κατηχεω (katicheo),
como κατηχισμος (katichismos) é derivada de κατηχιζω (katichizo).
Ambas as palavras, de acordo com seu significado comum significam
soar, ressoar, instruir oralmente e repetir os ditos de outrem. Κατηχεω
(katicheo) mais apropriadamente, entretanto, significa ensinar os
primeiros princípios e rudimentos de alguma doutrina particular. O
qual aplicado à doutrina da Igreja, e compreendido quando assim
utilizado, significa ensinar os primeiros princípios da religião cristã,
cujo sentido acontece em Lucas 1:4; Atos 18:25; Gálatas 6:6, e outras
passagens semelhantes. Por essa razão, a catequização, em seu sentido
mais geral e abrangente significa a primeira instrução breve e
elementar que é transmitida oralmente em relação aos rudimentos de
qualquer doutrina particular; mas, conforme usado pela Igreja,
significa um sistema de instrução relacionado aos primeiros
princípios da religião cristã, destinado aos ignorantes e iletrados.

64 | P á g i n a
O sistema de catequização, portanto, inclui uma exposição curta,
simples e clara e um ensaio da doutrina cristã, deduzida dos escritos
dos profetas e apóstolos e organizada na forma de questões e
respostas, adaptadas à capacidade e compreensão do ignorante e
iletrado; ou é um breve resumo da doutrina dos profetas e apóstolos,
comunicada oralmente aos iletrados, a qual eles novamente precisam
repetir.
Na Igreja primitiva, aqueles que aprendiam o catecismo eram
chamados de catecúmenos; o que denotava que eles já estavam na
Igreja e eram instruídos nos primeiros princípios da religião cristã.
Havia duas classes desses catecúmenos. Os primeiros eram aqueles de
idade adulta, que se converteram ao cristianismo dos judeus e gentios,
mas ainda não foram batizados. Pessoas com essa descrição eram
primeiro instruídas no catecismo, depois da qual eram batizadas e
admitidas à Ceia do Senhor. Tal catecúmeno foi Agostinho após sua
conversão do maniqueísmo ao cristianismo, e escreveu muitos livros
enquanto era catecúmeno e antes de ser batizado por Ambrósio.
Ambrósio também era um catecúmeno desse tipo quando foi
escolhido bispo, cuja necessidade urgente surgiu do estado e condição
peculiar da Igreja de Milão, na qual os arianos estavam fazendo
incursões. Em outras e ordinárias circunstâncias, o apóstolo Paulo
proíbe um neófito ou catecúmeno de ser escolhido para o cargo de
bispo (1 Timóteo 3:6). Os νεοφυτθι (neofytoi), mencionados por Paulo,
eram aqueles catecúmenos que ainda não haviam sido batizados, ou
muito recentemente haviam sido, pois a palavra grega, que em nossa
tradução é traduzida como neófito, de acordo com seu significado
literal, significa uma nova planta; isto é, um novo ouvinte e discípulo
da Igreja. A outra classe de catecúmenos incluía os filhos pequenos da
Igreja ou os filhos de pais cristãos. Estas crianças, logo após o
nascimento, eram batizadas, sendo consideradas membros da Igreja, e
depois de terem crescido um pouco mais foram instruídas no

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catecismo, o qual, aprendido, foram confirmadas pela imposição de
mãos e eram dispensados da classe de catecúmenos, e então
autorizados com os de anos mais maduros a celebrar a Ceia do Senhor.
Aqueles que desejam ver mais a respeito desses catecúmenos, são
encaminhados à História Eclesiástica de Eusébio, ao 10º livro, e à última
parte do 4º capítulo. Aqueles que ensinavam o catecismo, ou instruíam
esses catecúmenos, eram chamados de catequistas.

II. QUAL É A ORIGEM DA CATEQUIZAÇÃO, E ELA FOI SEMPRE


PRATICADA NA IGREJA?
O mesmo pode ser dito da origem da catequização, que é dita de toda
a economia ou serviço da Igreja, que foi instituída pelo próprio Deus
e sempre foi praticada na Igreja. Pois, desde o início do mundo, Deus
tem sido o Deus, não só dos adultos, mas também dos moços e tenros,
de acordo com a aliança que Ele fez com Abraão, dizendo: “Eu serei um
Deus a ti e à tua descendência depois de ti;” (Gênesis 17:7). Ele também
ordenou que ambas as classes fossem instruídas na doutrina da
salvação de acordo com sua capacidade; os adultos pela voz pública
do ministério, e as crianças por serem catequizadas na família e na
escola. Por respeitar a instituição destinada à formação de adultos, o
caso é claro e não deixa dúvidas.
No tocante à catequização de crianças na Igreja judaica, o antigo
testamento abunda em muitos mandamentos explícitos. Nos capítulos
12 e 13 de Êxodo, Deus ordena aos judeus que deem instrução
particular a seus filhos e famílias em relação à instituição e aos
benefícios da Páscoa. No 4º capítulo do livro de Deuteronômio, Deus
ordena aos pais que repitam aos filhos toda a história da lei que Ele
lhes deu. No 6º capítulo do mesmo livro, Ele requer que a doutrina da
unidade de Deus e do amor perfeito por Ele seja inculcada e impressa
na mente de seus filhos; e no 11º ordena que expliquem o decálogo a
seus filhos. Portanto, sob a dispensação do antigo testamento, as
crianças eram ensinadas na família por seus pais e nas escolas pelos

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mestres de religião, as principais coisas contidas nos profetas, a saber;
aquelas em respeito a Deus, a lei, a promessa do evangelho, o uso dos
sacramentos e sacrifícios, que eram tipos do Messias que havia de vir,
e dos benefícios que Ele deveria adquirir; pois não pode haver dúvida
de que as escolas dos profetas Elias, Eliseu e as demais, foram
estabelecidas para este mesmo propósito. Foi também com este
intento que Deus entregou sua lei na forma curta e condensada em
que se encontra. “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração (...) e ao
teu próximo como a ti mesmo”. Assim também com respeito ao evangelho;
foi brevemente compreendido nas promessas: “A semente da mulher
ferirá a cabeça da serpente” (Gênesis 3;15)4; “E em tua descendência todas as
nações serão benditas” (Gênesis 22:18)5. Eles tinham, da mesma forma,
sacrifícios, orações e outras coisas que Deus exigia que Abraão e sua
posteridade ensinassem a seus filhos e famílias. É por isso que essa
doutrina é apresentada de uma forma tão clara e simples que vai ao
encontro da capacidade das crianças e dos que são iletrados.
No Novo Testamento, somos informados de que Cristo impôs as mãos
sobre as crianças e as abençoou e ordenou que fossem trazidas a Ele.
Por isso Ele diz, em Marcos 10:14: “Deixai vir a Mim as criancinhas, e não
as impeçais, porque das tais é o reino de Deus”. Que a catequização das
crianças era diligentemente cuidada nos tempos dos apóstolos, fica
evidente no exemplo de Timóteo, de quem se diz que conhecia as
Sagradas Escrituras desde criança; e pelo que é dito na epístola aos
Hebreus, onde é feita menção de algumas das principais pontos
incluídos no Credo dos Apóstolos; como o arrependimento das obras
mortas e da fé para com Deus, da doutrina do batismo, e da imposição
de mãos e da ressurreição dos mortos e do julgamento eterno, que o
apóstolo chama de leite para infantes. Estes e outros pontos similares

4 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.


5 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

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de doutrina eram exigidos dos catecúmenos em idade adulta no
momento de seu batismo, e das crianças no momento de sua
confirmação pela imposição das mãos. Consequentemente, o apóstolo
as chama de doutrina do batismo e da imposição de mãos. Da mesma
forma, os Pais escreveram breves resumos de doutrina, alguns
fragmentos dos quais ainda podem ser vistos na Igreja papal. Eusébio
escreve sobre Orígenes, que ele restaurou o costume de catequizar em
Alexandria, que havia sofrido o seu esgotamento durante os tempos
de perseguição. Sócrates escreve assim em relação ao sistema de
catequização na Igreja primitiva: “Nossa forma de catequização”, diz ele,
“está de acordo com a forma que recebemos dos bispos que nos precederam, e
conforme nos foi ensinado quando lançamos o fundamento de fé e fomos
batizados, e de acordo com o que aprendemos a partir das Escrituras (...)”. O
Papa Gregório fez com que imagens e ídolos fossem colocados nas
igrejas, para que servissem de livros para leigos e crianças. Após este
período, a doutrina da Igreja, por negligência dos bispos e sutileza dos
sacerdotes romanos, tornou-se gradualmente mais e mais corrupta, e
o costume de catequizar cresceu cada vez mais em desuso, até que
finalmente foi transformado em cerimônia ridícula que até hoje
chamam de confirmação. É isso que será apresentado a respeito da
origem e da prática de catequização na Igreja.

68 | P á g i n a
III. QUAIS SÃO AS PARTES DA PRINCIPAL PERGUNTA DA
DOUTRINA DO CATECISMO?
As principais e mais importantes partes dos primeiros princípios da
doutrina da Igreja, conforme aparece na passagem recém citada da
epístola aos Hebreus, são: arrependimento e fé em Cristo; que
podemos considerar como sinônimos da lei e do evangelho.
Consequentemente, o catecismo em seu sentido primário e mais geral
pode ser dividido como a doutrina da Igreja em lei e evangelho. Não
difere da doutrina da Igreja no que diz respeito ao assunto e assunto
de que trata, mas apenas na forma e modo em que essas coisas são
apresentadas, assim como alimento sólido destinado a adultos, com o
qual a doutrina do a Igreja pode ser comparada, não difere em essência
do leite e da carne preparados para as crianças, aos quais o catecismo
é comparado por Paulo na passagem já referida. Essas duas partes são
denominadas, pela grande massa de homens, o Decálogo e o Credo
dos Apóstolos; porque o Decálogo compreende a substância da lei, e
o Credo dos Apóstolos a do evangelho. Outra distinção feita por esta
mesma classe de pessoas é a da doutrina da fé e das obras, ou a
doutrina das coisas que devem ser cridas e daquelas que devem ser
cumpridas.
Há outros que dividem o catecismo nessas três partes; considerando,
em primeiro lugar, a doutrina a respeito de Deus, depois a doutrina a
respeito de Sua vontade e, por último, aquela a respeito de Suas obras,
que distinguem como as obras de criação, preservação e redenção. Mas
todas essas diferentes partes são tratadas na lei ou no evangelho, ou
em ambos, de forma que essa divisão pode ser facilmente reduzida à
primeira.

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Existem outros, também, que fazem o catecismo consistir em cinco
partes diferentes; o Decálogo, o Credo dos Apóstolos, o Batismo, a
Ceia do Senhor e a Oração; dos quais, o Decálogo foi entregue
imediatamente pelo próprio Deus, enquanto as outras partes foram
entregues mediatamente, seja por meio da manifestação do Filho de
Deus na carne, como é verdade para o Pai Nosso, Batismo e Eucaristia,
ou pelo ministério dos apóstolos, como é verdade no Credo dos
Apóstolos. Mas todas essas partes diferentes também podem ser
reduzidas aos dois pontos gerais notados na primeira divisão. O
Decálogo contém a substância da lei, o Credo dos Apóstolos a do
evangelho; os sacramentos são partes do evangelho e podem, portanto,
ser incluídos nele na medida em que sejam selos da graça que Ele
promete; mas na medida em que são testemunhos de nossa obediência
a Deus, eles têm a natureza de sacrifícios e pertencem à lei, enquanto
a oração, da mesma forma, pode ser referida à lei, sendo uma parte da
adoração a Deus.
O catecismo do qual falaremos nestas conferências consiste em três
partes. A 1ª trata da miséria do homem, a 2ª de sua libertação desta
miséria, e a 3ª da gratidão, cuja divisão não difere, na realidade, da
anterior, porque todas as partes que estão especificadas estão
incluídas nesses três pontos gerais. O Decálogo pertence à 1ª parte, na
medida em que é o espelho através do qual somos levados a nos ver, e
assim conduzido ao conhecimento de nossos pecados e misérias, e à
3ª parte, na medida em que é a regra de verdadeira gratidão e de vida
cristã. O Credo dos Apóstolos é abraçado na 2ª parte, na medida em
que revela o caminho da libertação dos pecados. Os Sacramentos,
pertencentes à doutrina da fé e sendo os selos que estão unidos a ela,
pertencem da mesma forma a esta segunda parte do catecismo, que
trata da libertação da miséria do homem. E a oração, sendo a parte
principal do culto espiritual e da gratidão, pode, com grande
propriedade, ser referida à terceira parte geral.

70 | P á g i n a
IV. POR QUE É NECESSÁRIO INTRODUZIR E ENSINAR O
CATECISMO NA IGREJA?
Essa necessidade pode ser incentivada,
1. Porque é a ordem de Deus: “Vós os ensinareis a vossos filhos (...)”
(Deuteronômio 11:19).
2. Por causa da glória divina, que exige que Deus não seja apenas
corretamente conhecido e adorado pelos adultos, mas também pelas
crianças, conforme se diz: “Da boca de infantes e crianças de peito Tu
ordenaste força” (Salmos 8:2).
3. Por causa do nosso conforto e salvação; pois sem um verdadeiro
conhecimento de Deus e de seu Filho Jesus Cristo, ninguém que
atingiu anos de discrição e compreensão pode ser salvo, ou ter
qualquer conforto seguro de que é aceito aos olhos de Deus. Por isso
se diz: “Esta é a vida eterna para que Te conheçam, o único Deus verdadeiro,
e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17:3). E novamente: “Sem fé é
impossível agradar a Deus” (Hebreus 11:6). E não somente isso, mas
ninguém crê naquele de quem nada sabe, ou não ouviu; pois: “Como
crerão naquele de quem não ouviram?; Portanto, a fé vem pelo ouvir, e o ouvir
pela palavra de Deus” (Romanos 10:14, 17). É necessário, portanto, que
todos os que serão salvos, apropriem-se e aceitem a doutrina de Cristo,
que é a principal e fundamental doutrina do evangelho. Mas, para que
isso seja feito, deve haver instruções dadas para esse efeito e,
necessariamente, alguma forma breve e simples de doutrina, adequada
e adaptada aos jovens, e aos que são iletrados.
4. Para a preservação da sociedade e da Igreja. Toda a história passada
prova que a religião e o culto a Deus, o exercício e prática da piedade,
honestidade, justiça e verdade, são da maior importância para o bem-
estar e perpetuação da Igreja e da comunidade. Mas é em vão que
procuramos essas coisas entre as nações bárbaras, visto que nunca se
soube que produzissem frutos de piedade e virtude.

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Consequentemente, é necessário que sejamos treinados para a prática
dessas coisas desde os primeiros anos; porque o coração do homem é
depravado e mau desde sua mocidade; sim, tal é a corrupção de nossa
natureza que, a menos que comecemos cedo a obra de reforma e
treinamento moral, muito tarde aplicaremos um remédio quando, por
meio de longa demora, os maus princípios e inclinações do coração se
tornaram tão fortalecidos e confirmados, para desafiar as restrições
que podemos então desejar impor a eles. Se não formos corretamente
instruídos em nossa infância pelas Sagradas Escrituras a respeito de
Deus e Sua vontade, e não iniciarmos a prática da piedade, é com
grande dificuldade, se alguma vez, seremos desviados desses erros que
são, por assim dizer, gerados em nós, ou que absorvemos desde a nossa
juventude, e que somos conduzidos a abandonar os vícios em que
fomos ensinados e aos quais estamos acostumados. Se, portanto, a
Igreja e o Estado devem ser preservados da degenerescência e
destruição final, é da maior importância que essa depravação de nossa
natureza seja, no devido tempo, enfrentada com as restrições
adequadas e subjugada.
5. Há uma necessidade que todas as pessoas se familiarizem com a
regra e padrão segundo os quais devemos julgar e decidir, em relação
às várias opiniões e dogmas dos homens, para que não possamos ser
levados ao erro e ser seduzidos por eles, de acordo com o mandamento
que é dado em relação a este assunto: “Cuidado com os falsos profetas”
(Mateus 7:15); “Proveis todas as coisas” (1Tessalonicenses 5:21); “Proveis aos
espíritos se são de Deus” (1 João 4:1). Mas a lei e o Credo dos Apóstolos,
que são as partes principais do catecismo, constituem a regra e o
padrão segundo o qual devemos julgar das opiniões dos homens, das
quais podemos ver a grande importância de um entendimento
familiar deles.

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6. Aqueles que estudaram e aprenderam adequadamente o catecismo,
geralmente são mais bem preparados para entender e apreciar os
sermões que ouvem de tempo em tempo, visto que podem facilmente
referir e reduzir o que ouvem da palavra de Deus, às diferentes
questões do catecismo aos quais eles pertencem apropriadamente,
enquanto, por outro lado, aqueles que não tiveram este treinamento
preparatório, ouvem sermões, na maior parte, mas com pouco proveito
para si mesmos.
7. A importância da catequização pode ser enfatizada em vista de sua
adaptação peculiar àqueles alunos que são de mentes fracas e incultas,
que exigem instrução de uma forma curta, claro e inteligível, como
nós temos no catecismo, e não, por causa de sua juventude e fraqueza
de capacidade, ser capaz de compreendê-lo, se apresentado de forma
extensa e mais difícil.
8. Também é necessário, com o propósito de distinguir e separar os
jovens e os iletrados, dos pagãos cismáticos e profanos, o que pode ser
feito de forma mais eficaz por um curso criterioso de instrução
catequética.
Em último lugar. O conhecimento do catecismo é especialmente
importante para aqueles que irão atuar como mestres, porque eles
devem ter um conhecimento mais íntimo da doutrina da Igreja do que
os demais, também por causa de sua vocação, para que um dia possam
ser capazes instruir outros, por causa das muitas facilidades que
possuem para obter o conhecimento desta doutrina, que lhes convém
aperfeiçoar diligentemente, para que possam, como Timóteo,
familiarizar-se bem com as Sagradas Escrituras e “ser bons ministros de
Jesus Cristo, alimentados nas palavras da fé e da boa doutrina que
alcançaram” (1 Timóteo 4:6).

73 | P á g i n a
A estas considerações, que mostram claramente a importância da
catequização, podemos acrescentar muitas outras de grande peso,
especialmente com a grande massa da humanidade, como os
argumentos que podem ser obtidos do fim de nossa criação, e do
prolongamento e preservação de nossas vidas da infância à mocidade,
e da mocidade à idade adulta, e de outras coisas semelhantes. Também
podemos falar da excelência do objeto da doutrina do catecismo, que
é o bem supremo, mesmo o próprio Deus, e podemos mostrar o efeito
de tal curso de instrução, que é um conhecimento deste bem supremo,
e um participação nele, que é algo muito mais importante e desejável
do que todos os tesouros deste mundo. Esta é aquela pérola de grande
valor escondida no campo da Igreja, a respeito da qual Cristo fala em
Mateus 13:44, e por causa do qual cristãos em tempos passados
sofreram o martírio, com seus filhos pequenos. Podemos aqui nos
referir ao exemplo de Orígenes, do qual temos um relato no 6º livro e
3º capítulo da “História Eclesiástica” de Eusébio. Portanto, o 4º livro e
o 16º capítulo da história de Teodoreto podem ser lidos com o mesmo
propósito. Mas se formos ignorantes da doutrina e da glória de Cristo,
quem dentre nós estaria disposto a sofrer por sua causa? E como pode
ser diferente, se não sermos ignorantes dessas coisas, a menos que
sejamos ensinados e instruídos nelas desde a nossa infância? A
negligência da catequização é, portanto, uma das principais causas
porque há tantos nos dias de hoje agitados por todo vento de doutrina,
e porque tantos caem de Cristo ao Anticristo.

74 | P á g i n a
V. QUAL É O DESIGN DO CATECISMO, E DA DOUTRINA DA
IGREJA?
O design da doutrina do catecismo é nosso conforto e salvação. Nossa
salvação consiste no deleite do bem supremo. Nosso conforto
compreende a certeza e a expectativa confiante do gozo pleno e
perfeito desse bem supremo, na vida por vir, com um começo e um
antegozo disso já, nesta vida. Este bem supremo é aquele que torna
verdadeiramente abençoados aqueles que desfrutam dele, enquanto
aqueles que não o possuem são miseráveis e miseráveis. O que é este
único conforto, ao qual o design do catecismo nos leva, será explicado
na primeira questão, à qual passaremos agora, sem fazer quaisquer
observações introdutórias adicionais.

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CATECISMO DE HEIDELBERG
1º DIA DO SENHOR

O VERDADEIRO CONFORTO CRISTÃO

Questão 1. Qual é o seu único consolo na vida e na morte?


Resposta: Que eu, de corpo e alma, seja na vida, seja na morte, não
pertenço a mim mesmo, mas pertenço ao meu fiel salvador Jesus
Cristo; que com o Seu sangue precioso pagou completamente todos
os meus pecados e me libertou de todo o poder do Diabo; e Ele me
preserva de tal forma que, sem a vontade do meu Pai celestial nem
um fio de cabelo pode cair da minha cabeça; e na verdade, todas as
coisas certamente cooperarão para a minha salvação; portanto,
através do Seu Espírito Santo, Ele também me garante a vida
eterna e sincera e prontamente me faz desejar, daqui em diante,
viver para Ele.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 1

A questão do conforto é posicionada, e tratada primeiro, porque ela


encabeça o design e a substância do catecismo. O design é: que nós
devemos ser conduzidos a obter um conforto sólido e seguro, tanto na
vida quanto na morte. Dessa forma, toda a verdade divina foi revelada
por Deus, e deve ser estudada peculiarmente por nós. A substância
desse conforto consiste no fato de que nós fomos enxertados em
Cristo pela fé, que através Dele nós somos reconciliados e amados de
Deus, para que então Ele tenha cuidado de nós e nos salve
eternamente.

77 | P á g i n a
A respeito desse conforto devemos inquirir:
I. O que é esse conforto?
II. De quantas partes ele consiste?
III. Por que somente esse conforto é sólido e seguro?
IV. Por que esse conforto é necessário?
V. Quantas coisas são necessárias para alcançar esse conforto?

I. O QUE É ESSE CONFORTO?


Conforto é aquilo que resulta de um certo processo de raciocínio, no
qual nós confrontamos algo bom com algo mal, e que por uma
consideração adequada desse bem, nós temos nossa tristeza mitigada,
e pacientemente suportamos o mal. Portanto o bem, com o qual nós
confrontamos o mal, deve ser necessariamente grande, e com certeza,
na mesma proporção da magnitude do mal com o qual é contrastado.
E como a consolação é aqui solicitada contra o maior mal, que é o
pecado e a morte eterna, não é possível que qualquer tipo de ação do
mais elevado bem, pode ser suficientemente um remédio para ele. Sem
a Palavra de Deus, no entanto, para direcionar e revelar a verdade, há
pouco menos que muitas opiniões acolhidas a respeito do que o maior
bem é visto que existem homens. Os epicureus o colocam no prazer
sensitivo; os estoicos, em um controle meticuloso e moderado das
afeições, ou no hábito da virtude; os platonistas, em ideias; os
peripatéticos, no exercício da virtude; enquanto as classes ordinárias
de homens colocam em honras, riquezas e prazer. Mas todas essas
coisas são transitórias e perdidas já em vida, ou elas são, na melhor
das hipóteses, interrompidas e deixadas para trás na hora da morte.
Mas o maior bem que nós procuramos não desvanecerá – não, não na
morte. É verdade, entretanto, que a honra da virtude é imortal e como
o poeta disse, sobrevive aos funerais dos homens; porém é melhor com
outros do que com nós mesmos. E como foi muito bem colocado por

78 | P á g i n a
um certo homem, que as virtudes não podem ser consideradas o nosso
maior bem, desde que tenhamos elas como testemunhas das nossas
calamidades. Os hipócritas, tanto dentro como fora da Igreja, assim
como judeus, fariseus e muçulmanos buscam o remédio contra a
morte nos seus próprios méritos, em rituais externos e cerimônias. Os
papistas fazem o mesmo. Mas meros rituais externos não podem nem
purificam e nem acalmam a consciência dos homens; nem Deus será
comovido com tais sacrifícios.
Portanto, apesar da filosofia, e suas várias escolas perguntarem por e
prometerem um bem que garanta conforto sólido ao homem, tanto na
vida como na morte elas tampouco terão, nem jamais guardarão,
aquilo que é necessário para se conhecer as exigências da nossa
natureza moral. Apenas a doutrina da Igreja apresenta o bem, e que
fornece um conforto que aquieta e satisfaz a consciência, pois ela
somente descobre a fonte de todas as misérias as quais a raça humana
está sujeita, e nos revela a única forma de escape que é através de
Cristo. Isto, portanto, é o único conforto cristão, apresentado nessa
questão do catecismo, sobre o qual nós temos o único e sólido
conforto na vida e na morte, que consiste na segurança da gratuita
remissão dos pecados, e na reconciliação com Deus, através de Cristo
e os méritos Dele, e a certeza da expectativa de vida eterna, impressa
em cada coração pelo Espírito Santo através do evangelho pelo qual,
nós não temos dúvidas que somos propriedade de Cristo, e que somos
amados de Deus por causa de Sua bondade, e salvos para sempre
conforme a declaração do apóstolo Paulo: “o que nos separará do amor
de Cristo? Será tribulação ou angústia (...)?” (Romanos 8:35).

79 | P á g i n a
II. DE QUANTAS PARTES O NOSSO CONFORTO CONSISTE?
Este conforto consiste de seis partes:
1. Nossa reconciliação com Deus através de Cristo, pois nós não
seremos mais inimigos, mas seremos filhos de Deus; nem somos de
nós mesmos, mas pertencemos a Cristo.
2. A forma da nossa reconciliação com Deus através do sangue de
Cristo, que é através da Sua paixão, morte, e satisfação dos nossos
pecados (1 Pedro 1:18; 1 João 1:7).
3. Livramento das misérias do pecado e da morte. Cristo não somente
nos reconcilia com Deus, mas também nos livra do poder do Diabo;
portanto o pecado, a morte e Satanás não tem poder sobre nós
(Hebreus 2:14; 1 João 3:8).
4. A constante preservação da nossa reconciliação, livramento, e
quaisquer outros benefícios que Cristo tenha adquirido para nós. Nós
temos esses bens; portanto, Ele nos guarda como Sua propriedade, a
tal ponto de nenhum fio de cabelo da nossa cabeça cair sem a vontade
do nosso Pai celestial. Nossa segurança não reside em nossas mãos, ou
forças; por se fosse assim, nós a perderíamos milhares de vezes a cada
momento.
5. A conversão de nossos males em bem. Os justos serão, na verdade,
afligidos nessa vida, sim, serão entregues à morte, e serão como
ovelhas ao matadouro; mesmo assim todas essas coisas não nos
causarão injúria, pelo contrário, contribuirão para a nossa salvação,
porque Deus converterá todas essas coisas para nosso benefício, como
está escrito: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a
Deus” (Romanos 8:27).
6. Nossa plena persuasão e segurança de todos esses grandes
benefícios e da vida eterna. Essa segurança é obtida, em primeiro
lugar, pelo testemunho do Espírito Santo operando em nós a
verdadeira fé e conversão, testemunhando com nossos espíritos que

80 | P á g i n a
nós somos filhos de Deus; e que todas essas bênçãos verdadeiramente
pertencem a nós; porque “Ele é o penhor da nossa herança” e em segundo
lugar, dos efeitos da verdadeira fé, a qual nós percebemos estar em
nós; tais como verdadeira penitência, e um firme propósito de crer em
Deus e obedecer a todos os Seus mandamentos; e pela fé sermos
persuadidos do amor de Deus e da salvação eterna. Este é o
fundamento de todas as partes da consolação que temos, e sem a qual
todo outro conforto é transitório e insatisfatório em meios às
tentações da vida. A substância do nosso conforto, portanto, é
brevemente essa: que pertencemos a Cristo, e através Dele
reconciliados com o Pai, que nós podemos ser amados Dele e salvos, e
a nós ser concedido o Espírito Santo e a vida eterna.

III. POR QUE ESSE É O ÚNICO CONFORTO SÓLIDO?


Esse é o único conforto sólido, é evidente em primeiro lugar, porque
somente Ele é infalível - não, nem mesmo na morte; porque “quer
vivamos ou morramos, pertencemos ao Senhor” (Romanos 14:8) e “quem nos
separará do amor de Cristo” (Romanos 8:35)? E em segundo lugar, porque
é o único que permanece inabalável, e nos sustenta contra todas as
tentações de Satanás, que geralmente sobrevém sobre os cristãos:
1. Tu és um pecador. Para isso, o conforto replica: Cristo já fez
satisfação por meus pecados, e me redimiu com Seu precioso sangue,
de forma que não pertenço mais a mim mesmo, mas pertenço somente
a Ele.
2. Tu és filho da ira e inimigo de Deus. Resposta: Eu sou, de fato,
inimigo de Deus por natureza antes da minha reconciliação, porém
agora sou reconciliado com Deus e recebido em Sua graça através de
Cristo.
3. Tu com certeza morrerás. Resposta: Cristo me redimiu do poder da
morte, e eu sei que por através dEle ressurgirei da morte para a vida
eterna.

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4. Porém, muitos males, no presente tempo, acontecem aos justos.
Resposta: Mas o Senhor nos defende e nos preserva deles e faz com
que tudo coopere para o nosso bem.
5. E se eles caírem da graça de Cristo? Porque tu podes pecar e cair.
Há uma difícil e estreita estada para o céu. Resposta: Cristo não
apenas nos cobriu de méritos e nos conferiu Seus benefícios, Ele
continuamente nos preserva neles, e me garante a perseverança, de
forma que eu nunca cairei de Sua graça.
6. E se a graça dEle não se estender a ti, e tu não estiverdes entre
aqueles que pertencem ao Senhor? Resposta: Mas eu sei que a graça
se estende a mim, e que eu pertenço a Cristo; porque o Espírito Santo
testifica com o meu espírito que eu sou filho de Deus; e porque eu
tenho verdadeira fé, e a promessa é geral, estende-se a todo aquele que
crê.
7. E se tu não tiveres a verdadeira fé? Resposta: Eu sei que eu tenho a
verdadeira fé por causa de seus efeitos; porque eu tenho minha
consciência em paz com Deus e adquiri um desejo e vontade de crer
e obedecer ao Senhor.
8. Mas sua fé é fraca e sua conversão imperfeita. Resposta: Ainda que
isso, sem dúvidas, seja verdadeiro e genuíno, eu tenho a benção
assegurada pois ao que “crê lhe se será dado” (Lucas 19:26) e “Senhor, eu
creio, auxilie-me em minha incredulidade” (Marcos 9:24).
No mais grave e perigoso conflito, que todo filho de Deus experimenta,
a consolação cristã permanece imóvel; e certamente conclui: assim
sendo Cristo, e todos os Seus benefícios, pertencem a mim.

82 | P á g i n a
IV. PORQUE ESSE CONFORTO É NECESSÁRIO?
Por causa do que já foi dito, é claramente manifesto a nós que esse
conforto é necessário a nós. Em primeiro lugar, no tocante a nossa
salvação: que nós não iremos cair ou nos desesperar quando
enfrentarmos tentações, e travarmos as batalhas que somos chamados
a nos engajar, como cristãos. E em segundo lugar, é necessário por
conta da nossa oração e louvor a Deus, para que possamos glorificar
a Deus agora e na vida futura (para a qual nós fomos criados),
precisamos ser livrados do pecado e da morte e não cair em desespero,
mas sermos sustentados até o fim, com firme consolação.

V. QUANTAS COISAS SÃO NECESSÁRIAS PARA O


ESTABELECIMENTO DESSE CONFORTO?
Essa proposição é tratada na questão seguinte do catecismo, a qual
nós referenciamos ao leitor.

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Questão 2. Quantas coisas são necessárias que nós conheçamos,
para que desfrutemos desse conforto, e possamos viver e morrer
alegres?
Resposta: Três. A Primeira é: quão grandes são meus pecados e
miséria. A segunda: como eu sou livrado de todos os meus pecados
e misérias. A terceira, como eu expressarei minha gratidão a Deus
por tal livramento.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 2

Essa questão contém a afirmação e divisão de todo o catecismo e que


ao mesmo tempo se harmoniza com a divisão das Escrituras em lei e
evangelho, e com as diferenças entre essas partes, como já foi
explicado.
I. Um conhecimento da nossa miséria é necessário para nosso
conforto, não que ele por si mesmo gere qualquer consolação, ou
qualquer parte dele, pois ele por si mesmo mais alerta do que conforta,
mas é necessário: Em primeiro lugar, porque ele nos incita ao desejo
de livramento, assim como o conhecimento da enfermidade desperta
um desejo de remediar por parte do doente. Aonde não há
conhecimento de nossa miséria, não há livramento concedido, assim
como um homem que é ignorante de sua doença nunca requisita ao
médico. Agora, se nós não desejamos tal livramento, nós não iremos
procurá-lo; e se nós não o procurarmos nós nunca iremos obtê-lo,
porque Deus dá somente aos que o procuram, e batem, como está
escrito: “Ao que bater, abrir-se-vos-á; ao que pedir, dar-se-vos-a” (Mateus
7:6), “Bem-aventurados são os que tem sede e fome de justiça” (Mateus 5:6),
“Vinde a Mim todos os que estão fracos e sobrecarregados” (Mateus 11:28),
“Eu habito com o que tem espírito humilde e contrito” (Isaías 57:15). Que
agora aquilo que é necessário para o propósito de incitar em nós um
desejo de livramento, é também necessário para nosso conforto, mas
um conhecimento de nossa miséria é necessário para o propósito de

84 | P á g i n a
criar em nós um desejo de livramento. Portanto, é necessário para
nossa consolação; não na verdade, sendo a causa em sua própria
natureza, mas como um motivo, sem o qual nós não poderíamos
procurá-lo; pois em si mesmo ele aterroriza, contudo, esse temor é
vantajoso quando ele conduz ao exercício da fé.
Em segundo lugar, que devemos ser gratos a Deus por nosso
livramento. Nós poderíamos ser ingratos se não conhecêssemos a
grandeza do nosso mal, do qual nós fomos libertos; porque, nesse caso,
nós não poderíamos estimar corretamente de nossa benção, e não
iríamos obter nenhum livramento, já que ele é concedido somente
àqueles que são gratos.
Em terceiro lugar, porque sem o conhecimento de nossa
pecaminosidade e misérias, nós não poderíamos ouvir o evangelho
com proveito; pois a menos que, pela pregação da lei no tocante ao
pecado e ira de Deus, uma preparação seja feita para a proclamação
da graça, uma segurança carnal nos acompanharia, e nosso conforto
seria instável. Por isso, é manifesto que nós devemos iniciar com a
pregação da lei, seguindo o exemplo dos profetas e apóstolos, que o
homem deve ser humilhado do conceito de sua própria justiça, deve
obter um conhecimento de si mesmo e ser conduzido ao verdadeiro
arrependimento. Ao menos que isso seja feito, os homens se tornarão,
através da pregação da graça, mais desleixados e obstinados e pérolas
serão lançadas aos porcos que irão pisá-las.

85 | P á g i n a
II. Um conhecimento de nosso livramento é necessário para nosso
conforto:
Em primeiro lugar, para que não fiquemos desesperados. Um
conhecimento de nossa miséria deveria nos conduzir ao desespero, se
um caminho de livramento não se apresentasse a nós.
Em segundo lugar, para que possamos desejar esse livramento. Um
bem desconhecido não é desejado; porque aquilo que nós não
conhecemos, não podemos desejar. Se formos ignorantes, portanto, do
benefício do nosso livramento, não iremos anelar por ele, e com
certeza não iremos obtê-lo. De fato, se ele foi oferecido a nós, a menos
que nos inclinemos perante ele, não poderemos alcançá-lo.
Em terceiro lugar, para que ele possa nos confortar. Um bem que não
é conhecido, não pode transmitir qualquer conforto.
Em quarto lugar, que não podemos inventar outro método de
livramento, ou alcançar um inventado por outros, e por isso censurar
o nome de Deus, e pôr em perigo nossa salvação.
Em quinto lugar, que devemos recebe-lo pela fé. Mas a fé não pode
existir sem conhecimento. O livramento é obtido pela fé somente.
Em último lugar, que devemos recebê-lo pela fé; assim como não
podemos desejar um bem não conhecido, nem podemos apreciar nem
ser gratos por ele. Mas o benefício do livramento não é dado ao
ingrato. Deus é agradado ao conferi-lo somente sobre aqueles em
quem produz o efeito devido, que é gratidão. Por essas razões, um
conhecimento de nosso livramento, que é, daquela forma e por quem
é feito e concedido, necessariamente requerido, que devemos desfrutar
de verdadeiro e sólido conforto. Esse conhecimento é obtido pelo
evangelho, como ouvido, lido e apreendido pela fé; porque somente ele
promete livramento para aqueles que creem em Cristo.

86 | P á g i n a
III. Um conhecimento de gratidão é necessário para nosso
conforto:
Em primeiro lugar, Deus se agrada em dar livramento somente aos
que são gratos. Somente assim que Seu propósito é feito, que é Sua
glória e gratidão de nossa parte. Gratidão é, portanto, o fim principal,
e design de nosso livramento. “Por este propósito o Filho de Deus foi
manifesto, para que destrua as obras do Diabo” (1 João 3:8), “Ele nos adotou
para o louvor da glória da Sua graça” (Efésios 1:4).
Em segundo lugar, devemos retribuir nossa gratidão de forma
aceitável a Deus, que não irá nos ter como gratos de qualquer outra
forma senão aquele que Ele prescreveu em sua Palavra. A verdadeira
gratidão é, portanto, não para ser retribuída de acordo com nosso
próprio parecer, mas é para ser aprendida da Palavra de Deus.
Em terceiro lugar, que demoves saber que qualquer dever que
realizamos diante de Deus e nosso próximo, não são meritórios, mas
são uma declaração de nossa gratidão; pela qual nós realizamos por
causa da gratidão, reconhecemos que não a merecemos.
Em último lugar, que nossa fé e conforto devem ser aumentados; ou,
por causa dessa gratidão, devemos assegurar a nós mesmos de nosso
livramento, assim como nós somos feitos familiares com a causa das
coisas a partir de seus efeitos. Aqueles que são gratos, reconhecem e
professam que eles estão certos do bem que eles receberam. Devemos
aprender que nossa verdadeira gratidão é, em geral, do evangelho,
porque ele requer fé e arrependimento a fim de que sejamos salvos,
como está escrito: “Arrependa-se e creia no evangelho, pois o reino dos céus
é chegado” (Marcos 1:15). Na lei, no entanto, é ensinado peculiarmente,
porque ela distintamente declara qual obras, e qual forma de
obediência é agradável a Deus. Nós devemos, portanto,
necessariamente tratar de gratidão no catecismo.

87 | P á g i n a
Objeção. Não é necessário ensinar o que acompanha o conhecimento
de nossa miséria e livramento por consentimento próprio. A gratidão
naturalmente acompanha um conhecimento de nossa miséria e
livramento. Portanto, não há necessidade que ela deva ser ensinada.
Resposta: Há aqui uma linha de raciocínio incorreta, ao supor ser
verdade geralmente, o que é então somente em parte; pois não é uma
inferência justa que porque a gratidão acompanha um conhecimento
de nosso livramento de nossa miséria, que a forma deva
necessariamente acompanhá-la. Nós precisamos, portanto, aprender
das Sagradas Escrituras, a natureza de nossa gratidão, e a forma pelo
qual ela deva ser expressada, para então ser agradável e aceitável a
Deus. Novamente: a maior proposição não é universalmente verdade;
e por isso o que acontece por consentimento próprio, deve ser
ensinado com o propósito de aumentar o nosso conhecimento e nos
confirmar nele. E é dessa forma, que é, através da revelação e
conhecimento de sua Palavra, que Deus nos desperta, aumenta e nos
confirma, verdadeira gratidão.

88 | P á g i n a
A PRIMEIRA DIVISÃO GERAL DO CATECISMO
2º DIA DO SENHOR

SOBRE A MISÉRIA DO HOMEM

Questão 3. Donde conheces tua miséria?


Resposta: Pela lei de Deus.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 3

Nesta divisão do catecismo que trata da miséria do homem, devemos


considerar principalmente o assunto do pecado, juntamente com os
efeitos ou punição dele. Outros assuntos de natureza subordinada
estão relacionados a isso, como a criação do homem, a imagem de
Deus no homem, a queda e o primeiro pecado do homem, o pecado
original, a liberdade de vontade e as aflições em relação à nossa
miséria, devemos considerar em geral o que é, de onde e como pode
ser conhecido!
O termo miséria é mais abrangente em seu significado do que o do
pecado, pois abrange o mal da culpa e da punição. O mal da culpa é
todo o pecado; o mal da punição é toda a aflição, tormento e
destruição de nossa natureza racional, bem como todos os pecados
subsequentes também, pelos quais aqueles que vêm antes são punidos;
como a numeração dos filhos de Israel, por exemplo, por Davi, era um
pecado, e ao mesmo tempo a punição de um pecado anterior, a saber:
o de adultério e assassinato, do qual ele era acusado, de forma que
incluía o mal tanto de culpa quanto de punição. A miséria do homem,
portanto, é sua condição miserável desde a queda, consistindo nestes
dois grandes males: primeiro, que a natureza humana é depravada,
pecaminosa e alienada de Deus, e em segundo lugar, que, por conta
dessa depravação, a humanidade é exposta à condenação eterna e
merece ser rejeitada por Deus.

90 | P á g i n a
O conhecimento desta nossa miséria é procedente da lei de Deus; pois
“pela lei vem o conhecimento do pecado” (Romanos 3:20). A linguagem da
lei é: “Maldito aquele que não cumprir todas as palavras da lei para as
cumprir” (Deuteronômio 27:26). As duas questões do catecismo a seguir
nos ensinam como a lei nos torna familiares com a nossa miséria.

91 | P á g i n a
Questão 4. O que é que a lei de Deus exige de nós?
Resposta: Cristo nos ensina brevemente, “Amarás o Senhor teu
Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua
mente, e com toda a força. Este é o primeiro e o grande
mandamento; e o segundo é semelhante a este: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Sobre estes dois mandamentos
dependem toda a lei e os profetas” (Mateus 22:37, 40).

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 4

Cristo recita a substância da lei em Mateus 22:37 e em Lucas 10:27, de


Deuteronômio 6:5, e Levítico 19:18. Ele explica o que se entende por
essa declaração: “Maldito seja aquele que não confirma todas as palavras
desta lei para as cumprir;” ou seja, aquele que não ama a Deus com todo
o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua mente, e com toda
a sua força, e o seu próximo como a si mesmo. Estas várias partes
devem ser explicadas de forma mais completa.
Amarás o Senhor teu Deus. Amar a Deus com todo o coração, é,
mediante o devido reconhecimento da sua infinita bondade,
reverentemente considerá-lO e estimá-lO como o nosso bem mais
elevado, amá-lO supremamente, regozijar-se e confiar apenas nEle, e
preferir a Sua glória a todas as outras coisas, para que não haja em
nós o mínimo pensamento, inclinação, ou desejo por qualquer coisa
que O possa desagradar; sim, estar disposto a sofrer a perda de todas
as coisas que nos possam ser queridas, ou a suportar a mais pesada
calamidade, do que estarmos separados da comunhão com Ele, ou
ofendê-lO no mais pequeno assunto, e por fim, dirigir tudo isto para
o fim de que só Ele possa ser glorificado por nós.

92 | P á g i n a
O Senhor teu Deus. Como se Ele dissesse, amarás aquele Deus que é
teu Senhor e teu Deus, que Se revelou a ti, que te confere os Seus
benefícios, e a cujo serviço estás vinculado. Há aqui uma oposição do
verdadeiro Deus aos falsos deuses.
Com todo o teu coração. Pelo coração, devemos compreender as
afeições, os desejos e as inclinações. Quando Deus, portanto, requer
todo o nosso coração, deseja que só Ele seja amado acima de tudo; que
todo o nosso coração permaneça nEle, e não que apenas uma parte
lhe seja dada, e outra parte aos demais. Em suma, deseja que não
façamos nada equiparado a Ele, muito menos que prefiramos qualquer
coisa a Ele; ou que estejamos dispostos a partilhar apenas uma parte
do Seu amor. Amar a Deus assim, é o que a Escritura chama “andar
diante de Deus com um coração perfeito”6; o oposto disto é não andar
diante de Deus com um coração perfeito, que é falhar, e não entregar
todo o ser a Ele.
Objeção. Só Deus deve ser amado. Portanto, o nosso próximo, pais e
parentes não devem ser amados. Resposta: Este argumento é falso,
porque procede de uma negação da forma do próprio ato. Só Deus
deve ser amado supremamente e acima de tudo; isto é, de tal forma
que pode não haver nada que nós apreciamos ou colocamos em
igualdade com Ele, e com o qual não estamos sinceramente dispostos
a nos separar por causa dEle. Mas devemos amar o nosso próximo,
pais e os demais, não supremamente, nem acima de tudo, nem de tal
forma que preferimos ofender Deus do que os nossos pais, mas em
subordinação a e por causa de Deus, e não acima dEle.
Com toda a tua alma. A alma significa a parte do nosso ser que deseja,
juntamente com o exercício da vontade, como se Ele dissesse, amarás
com toda a tua vontade e propósito.

6 Expressão retirada de 1 Reis 8:61.

93 | P á g i n a
Com toda a tua mente. A mente significa o entendimento, ou aquilo
que se percebe; como se Ele dissesse, tanto quanto conheces de Deus,
tanto O amarás, que dirigirás todos os teus pensamentos para que
possas conhecer Deus verdadeira e perfeitamente, e assim também O
amarás. Só podemos amar a Deus tanto quanto O conhecemos. Agora
O amamos imperfeitamente, porque só O conhecemos em parte. Mas
na vida futura O conheceremos perfeitamente, e, portanto, O
amaremos perfeitamente; pois “o que é em parte será eliminado” (1
Coríntios 13:10).
Com todas as tuas forças. Isto abrange todas as ações, e exercita ao
mesmo tempo, tanto as externas como as internas; para que elas sejam,
de acordo com a lei de Deus.
Este é o primeiro e maior mandamento. O amor de Deus é chamado
o primeiro mandamento, porque todos os outros procedem a partir
dele, como sua fonte. É o impulsionador, a causa eficiente e final da
obediência a todos os outros mandamentos de Deus. Amamos o nosso
próximo porque amamos a Deus, e para que possamos manifestar o
nosso amor a Deus no amor que nutrimos para com o nosso próximo.
É chamado o maior mandamento 1. Porque o objeto sobre o qual é
imediatamente dirigido é o maior, até mesmo o próprio Deus. 2.
Porque é o fim para o qual todos os outros mandamentos apontam;
pois toda a nossa obediência é concebida para mostrar o nosso amor
a Deus, e para honrar o seu nome. 3. Porque é o principal culto a Deus,
que a lei cerimonial subserviu, e ao qual deu lugar. Os fariseus
exaltaram a lei cerimonial e a adoração acima da moral; enquanto
Cristo, por outro lado, chama ama o maior mandamento, e dá
precedência à lei moral e ao culto, porque tudo o que foi instituído
sob o sistema cerimonial foi por causa do amor, e foi concebido para
dar lugar a ele.

94 | P á g i n a
Objeção. O amor a Deus é o maior mandamento. Por conseguinte, é
maior do que a fé, e por isso justifica mais do que a fé. Resposta: O
amor é aqui para ser entendido como incluindo toda a obediência que
devemos a Deus, na qual a fé está incluída, o que justifica, não por si
só como uma virtude, mas correlativamente, pois apreende e apropria-
se dos méritos de Cristo. Mas o amor que se opõe à fé, e que em
particular é assim chamado, não justifica, porque a aplicação da
justiça de Cristo não é feita pelo amor, mas apenas pela fé; sim, o amor
brota da fé; pois a fé é a causa de todas as outras virtudes.
A segunda é semelhante a esta: amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Amar o teu próximo como a ti mesmo, é em vista do teu amor
a Deus; ou porque amas a Deus, faze bem ao teu próximo segundo
todos os mandamentos do Senhor; ou queres e fazes ao teu próximo
as coisas que queres que ele te faça a ti. Agora cada homem é nosso
próximo.
Chama-se a isto o segundo mandamento: 1. Porque encarna a
substância da segunda tábua, ou aqueles deveres que são
desempenhados diretamente para com o nosso próximo. Se amas o
teu próximo como a ti mesmo, não o matarás, nem o ferirás. 2. Porque
o amor que nutrimos para com o nosso próximo deve surgir do amor
de Deus; é, portanto, naturalmente posterior a ele.
Diz-se que é semelhante ao primeiro em três aspectos: 1. No tipo de
culto que requer, que é moral ou espiritual. Isto não é menos exigido
e sancionado na segunda tábua do que na primeira, pois em todo o
lado se opõe a um mero culto formal. 2. No tipo de castigo que ameaça
contra o transgressor, que é um castigo eterno; pois Deus inflige isto,
bem como pela violação de uma tábua, como pela violação da outra.
3. Na ligação que existe entre as duas tábuas, pois nenhuma delas pode
ser guardada sem a outra.

95 | P á g i n a
É também diferente da primeira: 1. No objeto que respeita
imediatamente, que na primeira é Deus, na segunda é o nosso
próximo. 2. Na ordem de causa e efeito. O amor que nutrimos para
com o nosso próximo tem origem no amor que temos a Deus; mas não
o contrário. 3. No grau de amor. Devemos amar a Deus de forma
suprema. Mas o amor que temos pelo nosso próximo não deve estar
acima de tudo, nem mais forte do que o que temos por Deus: mas
apenas como amamos a nós próprios.
Pelo que agora foi dito, é fácil devolver uma resposta à objecção por
vezes feita: O segundo mandamento é semelhante ao primeiro.
Portanto, o primeiro não é o maior; ou, portanto, o nosso próximo deve
ser considerado como igual a Deus, e deve ser adorado da mesma
forma. A isto respondemos que o segundo é semelhante ao primeiro,
não absolutamente, e em todos os pontos de vista, mas apenas em
certos aspectos; e, ao contrário do que acontece nos pormenores já
especificados.
Sobre estes dois mandamentos pendem toda a lei, e os profetas; ou
seja, toda a doutrina da lei e dos profetas, é reduzida a estas duas
cabeças; e toda a obediência à lei, inculcada por Moisés e pelos
profetas, surge do amor a Deus e do amor ao nosso próximo. Mas há
também muitas promessas do evangelho nos profetas. Por
conseguinte, parece que a doutrina dos profetas não se restringe
devidamente a estes dois mandamentos. Resposta: Cristo fala da
doutrina da lei, e não das promessas do evangelho, o que é evidente
pela pergunta do fariseu, que lhe perguntou qual era o maior
mandamento, e não, qual era a promessa principal na lei.

96 | P á g i n a
Questão 5. Conseguirás guardar todas estas coisas perfeitamente?
Resposta: De forma alguma; pois sou propenso, por natureza, a
odiar Deus e ao meu próximo.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 5

Esta questão nos ensina, relacionada com a anterior, que a nossa


miséria, (da qual existem duas partes,) pode ser conhecida sem a lei
de duas formas. Primeiro, através de uma comparação de nós mesmos
com a lei; e segundo, através da aplicação da maldição da lei a nós
mesmos.
A comparação de nós mesmos com a lei, ou da lei com nós mesmos, é
uma consideração da pureza que a lei exige, e se ela está em nós. Esta
comparação prova claramente que não somos o que a lei exige; pois
ela exige amor perfeito a Deus, enquanto não há nada em nós a não
ser aversão e ódio a Ele. A lei, mais uma vez, exige amor perfeito para
com o nosso próximo, mas em nós há inimizade para com o nosso
próximo. É desta forma, portanto, que obtemos um conhecimento da
primeira parte da nossa miséria, que inclui a nossa depravação, da
qual as Escrituras em muitas passagens nos condenam (Romanos 8:7;
Efésios 2:3; Tito 3:3, e outras passagens semelhantes).
A aplicação da maldição da lei a nós próprios é feita por um silogismo
prático, do qual a proposta principal é a voz da lei: “Maldito é todo
aquele que não permanece em todas as coisas que estão escritas no livro da lei
para as cumprir” (Gálatas 3:12). A consciência concebe e afirma em nós
a proposta menor: Não permaneci em todas as coisas escritas, e outras
coisas semelhantes. A conclusão é a aprovação da sentença da lei:
estou condenado. A consciência dita a cada homem um silogismo
como este; sim, nada mais é do que um silogismo tão prático formado
na mente, cuja proposta maior é a lei de Deus; a proposição menor, é o
conhecimento do que fizemos, contrário à lei; e a conclusão, é a

97 | P á g i n a
aprovação da sentença da lei, por causa do pecado nos condenando -
cuja aprovação será seguida de tristeza e desespero, a menos que o
consolo do evangelho se aproxime de nós, e obtenhamos a remissão
dos pecados por causa do Filho de Deus, o nosso mediador. É desta
forma que obtemos o conhecimento do nosso estado pecaminoso e a
exposição à condenação eterna, que é a segunda parte da nossa
miséria; pois por este argumento, todos estamos convencidos do
pecado. A lei exige de todos a obediência, e se isto não for cumprido,
a punição e condenação eternas. Mas ninguém torna à esta
obediência. Por isso, a lei obriga todos os homens à condenação
eterna.

98 | P á g i n a
3º DIA DO SENHOR

Questão 6. Deus então criou o homem tão mau e perverso?


Resposta: De forma nenhuma; mas Deus criou o homem bom, e à
Sua própria imagem, em justiça e verdadeira santidade, para que
ele pudesse conhecer a Deus com justiça, ame de coração o seu
criador e viva com Ele em felicidade eterna, para glorificá-lO e
louvá-lO.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 6

Tendo estabelecido a proposição de que a natureza humana é


depravada ou pecaminosa, devemos agora perguntar: Deus criou o
homem assim? E se não, com que natureza o criou? E de onde procede
essa depravação da natureza humana? O assunto da criação do
homem, portanto, e da imagem de Deus no homem, pertence
propriamente a este lugar.
Também é apropriado que contrastemos aqui a miséria do homem
com sua excelência original: primeiro, para que a causa e a origem de
nossa miséria sendo conhecidas, não possamos imputá-la a Deus; e em
segundo lugar, para que a grandeza de nossa miséria seja vista com
mais clareza. À medida que isso for feito, a excelência original do
homem se tornará aparente; assim como o benefício da libertação se
torna mais precioso na mesma proporção em que somos levados a
apreender a magnitude do mal do qual fomos resgatados.

99 | P á g i n a
DA CRIAÇÃO DO HOMEM

Os assuntos a serem discutidos, em conexão com a criação do homem,


são os seguintes:
I. Qual era o estado ou condição em que originalmente Deus criou o
homem?
II. Para qual fim Ele o criou?

I. QUAL FOI O ESTADO EM QUE DEUS CRIOU


ORIGINALMENTE O HOMEM?
Este assunto é proposto quase pelas mesmas razões pelas quais todo
o assunto em si é considerado, a saber: que pode ser manifesto, em
primeiro lugar, que Deus criou o homem sem pecado e, portanto, não
é o autor do pecado, ou de nossa corrupção e miséria. 2. Para que
possamos ver a que altura de dignidade, a que profundidade de
miséria caímos pelo pecado, para que possamos assim reconhecer a
misericórdia de Deus, que Se dignou a nos resgatar e nos livrar desta
miséria. 3. Para que possamos reconhecer a grandeza dos benefícios
que recebemos, e nossa indignidade de sermos feitos os receptores de
tais graças. 4. Para que possamos desejar mais fervorosamente, e
buscar em Cristo, a recuperação daquela dignidade e felicidade que
perdemos. 5. Para que possamos ser gratos a Deus por esta
restauração.
No que diz respeito ao estado e condição em que Deus criou
originalmente o homem, somos ensinados aqui, na resposta a esta
sexta questão que Deus criou o homem bom e à Sua própria imagem,
e outras coisas semelhantes, o que é necessário que as exponhamos
um pouco mais amplamente.

100 | P á g i n a
O homem foi criado por Deus no sexto dia da criação do mundo. Seu
corpo foi criado do pó da terra, imortal se ele continuasse em retidão,
mas mortal se ele caísse; pois a mortalidade acompanhava o pecado
como punição. Sua alma foi feita do nada. Foi imediatamente soprada
nele pelo Todo-Poderoso. Era, portanto, racional, espiritual e imortal.
“E Deus soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem se tornou alma
vivente” (Gênesis 2:7). Ele criou e uniu a alma e o corpo, de forma a
constituir, por esta união, uma pessoa, desempenhando funções e
ações internas e externas peculiares à natureza humana, e que são
justas, santas e agradáveis a Deus. O homem também foi criado à
imagem de Deus; com o que queremos dizer que ele foi criado
perfeitamente bom, sábio, justo, santo, feliz e senhor de todas as outras
criaturas. A respeito dessa imagem de Deus, na qual o homem foi
inicialmente criado, mais será dito um pouco mais adiante.

II. PARA QUAL FIM DEUS CRIOU O HOMEM?


A isso o catecismo responde: “Para que conheça bem a Deus seu Criador,
ame-O de coração e viva com Ele em felicidade eterna, para glorificá-lO e
louvá-lO”. A glória de Deus é, portanto, o fim principal e último para o
qual o homem foi criado. Foi com esse propósito que Deus criou seres
racionais e inteligentes, como anjos e homens, para que, conhecendo-
O, pudessem louvá-lO para sempre. Consequentemente, o homem foi
criado principalmente para a glória de Deus; isto é, por professar e
invocar Seu santo nome, para louvor e ação de graças, por amor e
obediência, que consiste no desempenho adequado dos deveres que
devemos para com Deus e nosso próximo, pois a glória de Deus
compreende todas essas coisas.
Objeção. Mas o céu, a terra e outras criaturas também glorificam a
Deus. Portanto, este não foi o fim para o qual o homem foi criado.
Resposta: 1. Quando se diz que criaturas destituídas de razão louvam
e glorificam a Deus, não é porque elas reconhecem ou celebram Seu
louvor, mas porque suprem a substância e a ocasião para glorificar a

101 | P á g i n a
Deus, que pertence propriamente a criaturas inteligentes. Anjos e
homens, pela contemplação dessas obras de Deus, discernem Sua
sabedoria, bondade e poder, e são assim estimulados a engrandecer e
louvar Seu nome. Glorificar a Deus, portanto, é a obra de criaturas
detentoras de razão e entendimento, e se não houvesse seres desta
descrição para discernir a ordem e o arranjo que se manifestam na
natureza, a criação não inteligente não poderia ser mais considerada
um louvor a Deus do que se não tivesse existência. Portanto, devemos
considerar aquelas declarações no livro dos Salmos, nas quais o céu,
mar, terra, louvam a Deus, como expressões figurativas, nas quais o
escritor inspirado atribui às coisas, sem razão, aquilo que pertence
propriamente a criaturas inteligentes.
2. Existem outras razões pelas quais o homem foi criado, subordinadas
à glória de Deus. Seu conhecimento, por exemplo, contribui para Sua
glória, na medida em que Ele não pode ser glorificado se não for
conhecido. Além disso, é a obra própria do homem conhecer e
glorificar a Deus; pois a vida eterna consiste nisso, como se diz: “Esta
é a vida eterna, que Te conheçam, o único Deus verdadeiro” (João 17:3).
3. A felicidade e bem-aventurança do homem, que consiste no gozo de
Deus e nas bênçãos celestiais, é subordinada ou a seguinte em ordem
ao conhecimento de Deus; pois Sua bondade, misericórdia e poder são
manifestados por eles.
Objeção. Mas a felicidade e felicidade do homem, o conhecimento e
a glorificação de Deus são propriedades ou condições com as quais
ele foi criado; isto é, elas são parte da imagem de Deus e do modelo
adequado ao homem. Portanto, não são os fins para os quais o homem
foi criado, e pertencem mais propriamente à primeira pergunta, que
já consideramos, do que a esta segunda, que trata do fim de nossa
criação. Resposta: Eles são uma parte do modelo e do fim adequado
ao homem, mas em um aspecto diferente; pois Deus criou o homem
um ser tal, para que, sendo abençoado e feliz, ele pudesse

102 | P á g i n a
corretamente conhecê-lO e glorificá-lO; e Ele o criou para este fim, a
fim de que, daqui em diante e para sempre, seja conhecido e louvado
por ele, e para que possa se comunicar continuamente com o homem.
O homem foi, portanto, criado feliz, conhecendo bem a Deus e O
glorificando, que foi o modelo que recebeu em sua criação; e, ao
mesmo tempo, ele foi criado para esse fim para que pudesse
permanecer assim para sempre. É, portanto, correto incluir essas duas
coisas ao falar sobre este assunto; porque o homem foi criado um ser
tal, e para tal fim. O primeiro se refere ao ponto o quê, em relação ao
início; o outro, ao ponto de quê, em relação à sua permanência e
perseverança nisso. Então, em Efésios 4:24, a justiça e a verdadeira
santidade, que constituem o modelo e o próprio ser do novo homem,
são considerados o fim do mesmo. Nem é absurdo que a mesma coisa
deva ser declarada no modelo e no fim em um aspecto diferente; pois
aquilo que é o modelo com respeito à criatura, é declarado o fim com
respeito ao propósito do criador.
O quarto fim, para o qual o homem foi criado, é a manifestação, ou
declaração, da misericórdia de Deus na salvação dos eleitos e de Sua
justiça na punição dos réprobos. Isso está subordinado ao
conhecimento e deleite de Deus; pois para que Ele possa ser conhecido
e se comunicar a nós, é necessário que Ele faça uma revelação de Si
mesmo.
O quinto é a preservação da sociedade na raça humana, que,
novamente, está subordinada à manifestação de Deus; pois se os
homens não existissem, Deus não poderia ter aqueles a quem Ele
pudesse se revelar. “Eu declararei Teu nome a Meus irmãos” (Salmos 22:23).
O sexto é uma participação mútua nos deveres, gentileza e benefícios
que devemos uns para com os outros; que, novamente, contribui para
a preservação da sociedade; pois é necessário para a preservação da
raça humana que a paz e as relações mútuas existam entre os homens.

103 | P á g i n a
Esta primeira criação do homem deve ser cuidadosamente comparada
com a miséria da humanidade e com o nosso afastamento do fim para
o qual fomos criados; para que por este meio, também, possamos saber
a grandeza de nossa miséria. Pois nosso conhecimento da grandeza do
mal em que caímos, estará no mesmo grau em que somos levados a
apreender a excelência superior do bem que perdemos. Isso nos leva
a considerar o que era a imagem de Deus, na qual o homem foi criado.

DA IMAGEM DE DEUS NO HOMEM

A respeito disso, devemos inquirir principalmente:


I. O que é e quais são as suas partes?
II. Até que ponto foi perdida e o que resta no homem?
III. Como pode ser restaurada?

I. O QUE É E QUAIS SÃO AS SUAS PARTES?


A imagem de Deus no homem é uma mente que conhece corretamente
a natureza, vontade e obras de Deus; uma vontade obedecendo
livremente a Deus; e uma correspondência de todas as inclinações,
desejos e ações, com a vontade divina; em uma palavra, é a natureza
espiritual e imortal da alma, e a pureza e integridade de todo o
homem; uma perfeita bem-aventurança e alegria, junto com a
dignidade e majestade do homem, na qual ele se sobressai e governa
sobre todas as outras criaturas.
A imagem de Deus, portanto, compreende: 1. A substância espiritual e
imortal da alma, junto com o poder de saber e querer. 2. Todas as
nossas noções e concepções naturais de Deus e de sua vontade e obras.
3. Ações, inclinações e volições justas e santas, que são o mesmo que
justiça e santidade perfeitas na vontade, coração e ações externas. 4.
Felicidade, alegria e glória, com o maior deleite em Deus, conectado,

104 | P á g i n a
ao mesmo tempo, com abundância de todas as coisas boas, sem
qualquer miséria ou corrupção. 5. O domínio do homem sobre todas
as criaturas, peixes, aves e os outros seres viventes. Em todos esses
aspectos, nossa natureza racional se assemelha, em certo grau, ao
criador; assim como a imagem se assemelha ao arquétipo; no entanto,
nunca podemos ser iguais a Deus. Paulo chama a imagem de Deus de
“justiça e verdadeira santidade” (Efésios 4:24), porque essas constituem
as partes principais dela; ainda assim, ela não exclui sabedoria e
conhecimento, mas antes as pressupõe; pois ninguém pode adorar a
Deus se não O conhece. Nem o apóstolo, nesta passagem, exclui a
felicidade e a glória, pois isso, de acordo com a ordem da justiça divina,
acompanha a retidão e a verdadeira santidade. E onde quer que a
retidão e a verdadeira santidade sejam encontradas, há uma ausência
de todo o mal, seja de culpa ou de punição. Esta justiça e verdadeira
santidade, em que, segundo o apóstolo, consiste a imagem de Deus,
também podem ser tomadas como a mesma coisa, ou elas podem ser
tão distintas, que a justiça pode ser considerada como se referindo a
tais ações e movimentos externos e internos que estão em harmonia
com a lei de Deus, e uma mente que julga corretamente, enquanto a
santidade pode ser entendida como se referindo às qualidades dessas
ações, e outras coisas semelhantes.
Objeção. A sabedoria e a justiça perfeitas são peculiares somente a
Deus, nem há qualquer criatura em que sejam encontradas, pois a
sabedoria de todas as criaturas, mesmo dos santos anjos, pode ser e é
aumentada. Como, então, a imagem de Deus no homem poderia
abraçar a justiça e a sabedoria perfeita? Resposta: Aquilo que aqui é
chamado de sabedoria perfeita, não significa uma sabedoria que nada
ignora, mas que é perfeita de acordo com o ser em que se encontra,
ou que é tal como o criador planejou que deveria ser na criatura, e que
é suficiente para a felicidade da criatura; como, por exemplo, a
sabedoria e felicidade dos anjos é perfeita, porque é tal como Deus

105 | P á g i n a
planejou e desejou; e ainda assim algo pode ser continuamente
adicionada a ela, ou então seria infinita. Portanto, o homem era
perfeitamente justo, porque era conforme a Deus em todas as coisas
que dele eram exigidas, e ainda assim ele não era igual a Deus, nem
era sua justiça perfeita no grau em que Deus é justo; mas porque não
havia nada que faltasse àquela perfeição em que Deus o criou; o que
Ele desejava deveria estar nele, e que foi suficiente para a felicidade
da criatura. Existe, portanto, uma ambiguidade na palavra perfeição.
E é no sentido que acabamos de explicar, que o homem é dito, nas
Escrituras, ser a imagem de Deus, ou que ele foi feito conforme Sua
semelhança.
Quando Cristo, porém, é chamado a imagem de Deus, o é em um
sentido bem diferente, o que é evidente: 1. No que diz respeito à sua
natureza divina, na qual Ele é a imagem do Pai eterno, sendo coeterno,
consubstancial, e igual ao Pai em propriedades e obras essenciais, e
como sendo aquela pessoa por meio de quem o Pai Se revela, na
criação e preservação de todas as coisas, mas especialmente na
salvação daqueles a quem Ele escolheu para a vida eterna. E ele é
chamado a imagem, não de Si mesmo, nem do Espírito Santo, mas do
Pai, porque Ele é gerado eternamente, não por Si mesmo, nem do
Espírito Santo, mas do Pai. 2. Com respeito à Sua natureza humana,
na qual Ele é a imagem de Deus, criado de fato, mas transcendendo
infinitamente os anjos e os homens, tanto no grau quanto no número
de dons, como sabedoria, justiça, poder e glória; e, ao mesmo tempo,
assemelhando-se, de forma peculiar, ao Pai, em doutrina, virtudes e
ações, como Ele mesmo disse a um de Seus discípulos: “Aquele que Me
viu, viu o Pai” (João 14:9).
Mas os anjos e os homens são considerados a imagem de Deus, tanto
com respeito ao Filho e Espírito Santo, como com respeito ao Pai,
onde se diz: “Façamos o homem à Nossa imagem, conforme a Nossa
semelhança” (Gênesis 1:26). Isso não deve ser entendido, entretanto, de

106 | P á g i n a
qualquer semelhança ou igualdade de essência, mas meramente de
certas propriedades que têm uma semelhança com a Divindade, não
em grau ou essência, mas em espécie e imitação; pois há algumas
coisas nos anjos e nos homens que têm certa analogia e
correspondência com o que encontramos em Deus, que compreende,
em Si mesmo, tudo o que é verdadeiramente bom. Essas coisas, por
outro lado, relativas à imagem de Deus no homem, que foram
anteriormente discutidas e negadas pelos antropomorfitas, e
recentemente por Osiander, podem ser encontradas em Ursini vol. I.
páginas 154, 155.

II. EM QUE EXTENSÃO FOI PERDIDA, E O QUE PERMANECE


NO HOMEM?
Essa, agora, era a imagem de Deus na qual o homem foi originalmente
criado, e que era aparente nele antes da queda. Mas depois da queda,
o homem perdeu esta gloriosa imagem de Deus, por causa do pecado,
e se transformou na odiosa imagem de Satanás. Há, no entanto, alguns
vestígios e centelhas da imagem de Deus ainda restantes no homem,
após sua queda, e que ainda permanecem naqueles que não são
regenerados, dos quais podemos citar o seguinte: 1. A substância
incorpórea, racional e imortal da alma, junto com seus poderes, da
qual faríamos apenas menção da liberdade da vontade, de forma que
tudo o que o homem quiser, ele o fará livremente. 2. Existem, no
entendimento, muitas noções e concepções de Deus, da natureza e da
distinção que existe entre as coisas próprias e impróprias, que
constituem os princípios das artes e das ciências. 3. Existem alguns
vestígios e resquícios de virtudes morais e alguma capacidade de
regular o comportamento externo da vida. 4. O desfrute de muitas
bênçãos temporais. 5. Um certo domínio sobre outras criaturas. O
homem não perdeu totalmente seu domínio sobre as várias criaturas
que foram colocadas em sujeição a ele; pois muitos deles ainda
permanecem sujeitos a ele, de forma que ele tem o poder de governá-

107 | P á g i n a
las e usá-las em seu proveito. Esses vestígios e resquícios da imagem
de Deus no homem, embora muito obscurecidos e maculados pelo
pecado, ainda estão preservados em nós até certo ponto; e para estes
fins: 1. Para que sejam um testemunho da misericórdia e bondade de
Deus para conosco, por mais indignos que sejamos. 2. Para que Deus
possa fazer uso deles para restaurar Sua imagem em nós. 3. Para que
os ímpios sejam inescusáveis.
Mas as coisas que perdemos da imagem de Deus são de longe os
maiores e mais importantes benefícios; dos quais podemos mencionar
o seguinte: 1. O conhecimento verdadeiro, perfeito e salvador de Deus
e da vontade divina. 2. Opiniões corretas das obras de Deus,
juntamente com a luz e o conhecimento no entendimento; no lugar
do qual agora temos ignorância, cegueira e escuridão. 3. A regulação e
governo de todas as inclinações, desejos e ações; e uma conformidade
com a lei de Deus na vontade, coração e partes externas; em vez disso,
há agora uma terrível desordem e depravação das inclinações e
movimentos do coração e da vontade, da qual procede todo pecado
real. 4. Domínio verdadeiro e perfeito sobre as várias criaturas de
Deus; para aqueles animais que a princípio temiam o homem, agora
se opõem, ferem e ficam à espreita por ele; enquanto a terra, que foi
amaldiçoada por causa dele, produz espinhos e abrolhos. 5. O direito
de usar as coisas que Deus deu, não aos seus inimigos, mas aos Seus
filhos. 6. A felicidade desta e de uma vida futura; no lugar da qual
agora temos morte temporal e eterna, com todas as calamidades
concebíveis.
Objeção. Os pagãos eram distinguidos por muitas virtudes e
realizavam obras de grande renome. Portanto, parece que a imagem
de Deus não foi destruída neles. Resposta: As excelentes virtudes e
feitos de renome, que são encontrados entre as nações pagãs,
pertencem, de fato, aos vestígios ou restos da imagem de Deus, ainda
preservados na natureza do homem, mas há tanto desejo de constituir

108 | P á g i n a
aquela verdadeira e perfeita imagem de Deus, que era inicialmente
aparente no homem, que essas virtudes são apenas certas sombras de
propriedade externa, sem a obediência do coração a Deus, a quem eles
não conhecem e nem adoram. Portanto, essas obras não agradam a
Deus, visto que não procedem de um conhecimento adequado dEle, e
não são feitas com a intenção de glorificá-lO.

III. COMO A IMAGEM DE DEUS PODE SER RESTAURADA EM


NÓS
A restauração desta imagem de Deus no homem é efetuada somente
por Ele, que primeiro a conferiu ao homem; pois quem dá a vida e a
restaura quando ela se perde é o mesmo ser. Deus Pai, restaura esta
imagem por meio do Filho; porque Ele “O tornou para nós sabedoria,
justiça, santificação e redenção” (1 Coríntios 1:30). O Filho, por meio do
Espírito Santo, “nos transforma na mesma imagem, de glória em glória, como
pelo Espírito do Senhor” (2 Coríntios 3:18). E o Espírito Santo leva avante
e completa o que foi iniciado pela Palavra e o uso dos sacramentos. "O
evangelho é o poder de Deus para a salvação” (Romanos 1:16). Esta
restauração, no entanto, da imagem de Deus no homem, é efetuada de
tal forma, que só inicia, nesta vida, nos que creem, e é confirmada e
levada avante neles, até o fim da vida, no que diz respeito à alma - mas
no que diz respeito ao homem completo, será consumada na
ressurreição do corpo. Devemos, portanto, considerar quem é o autor,
e qual é a ordem e a forma em que essa restauração é feita?

109 | P á g i n a
Questão 7. Donde, então, procede essa depravação da natureza
humana?
Resposta: Da queda e desobediência de nossos primeiros pais,
Adão e Eva, no paraíso; consequentemente nossa natureza se
tornou tão corrupta, que todos nós fomos concebidos e nascemos em
pecado.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 7

Aqui devemos levar em consideração, em primeiro lugar, a queda e o


primeiro pecado do homem, do qual procede a depravação da
natureza humana; e em segundo lugar, devemos considerar o assunto
do pecado em geral, e especialmente do pecado original.

DA QUEDA E PRIMEIRO PECADO DO HOMEM

Em relação a isso, devemos indagar:


I. Qual foi o pecado de nossos primeiros pais?
II. Quais foram as causas disso?
III. Quais foram os efeitos disso?
IV. Por que Deus permitiu isso?

I. QUAL FOI O PECADO DE NOSSOS PRIMEIROS PAIS?


A queda, ou primeiro pecado do homem, foi a desobediência de nossos
primeiros pais, Adão e Eva, no paraíso, ou comer o fruto proibido: “De
todas as árvores do jardim podes comer livremente; mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás dela; porque no dia em que dela
comeres, tu certamente morrerás” (Gênesis 2:16, 17). O homem, por
instigação do Diabo, violou essa ordem de Deus; e disso procedeu
nossa depravação e miséria.

110 | P á g i n a
Mas arrancar uma maçã é uma ofensa tão grande e hedionda? Na
verdade, é uma ofensa muito grave; porque há muitos pecados
horríveis relacionados a ela, como: 1. Orgulho, ambição e admiração
de si mesmo. O homem, insatisfeito com a própria dignidade e com a
condição em que foi posto, desejou ser igual a Deus. Disso, Deus o
acusou, quando disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, que
conhece o bem e o mal” (Gênesis 3:22). 2. Incredulidade; pois acusou Deus
de mentir, que disse “Certamente morrerás”. O Diabo negou isso,
dizendo: “Certamente não morrereis” e acusou Deus de inveja, dizendo:
“Mas Deus sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e
sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gênesis 3:5). Adão creu no
Diabo, e não em Deus, e comeu do fruto proibido; nem ele cria que
qualquer punição iria alcançá-lo. Mas não crer em Deus, e crer no
Diabo, é considerar Deus como se Ele não fosse Deus - sim, é
substituir o Diabo no lugar de Deus. Este foi um pecado horrível além
da conta. 3. Desprezo e desobediência a Deus; que se manifesta no fato
de que ele comeu do fruto contrário à ordem de Deus. 4. Ingratidão
pelos benefícios recebidos. Ele foi criado à imagem de Deus e para o
deleite da vida eterna; para o qual ele fez esta retribuição, que ele deu
ouvidos mais ao Diabo do que a Deus. 5. Antinaturalidade e falta de
amor com a posteridade. Homem miserável que ele era! Ele não
pensava que, como havia recebido essas dádivas para si mesmo e sua
posteridade, também, ao pecar, para si mesmo e sua posteridade as
perderia. 6. Apostasia, ou uma queda manifesta de Deus para o Diabo,
em quem ele creu e obedeceu, ao invés de Deus; e quem ele colocou
no lugar de Deus, separando-se de Deus. Ele não pediu a Deus as
coisas que devia receber, mas, pelo conselho do Diabo, desejava obter
igualdade com Deus. A queda do homem, portanto, não foi
insignificante, nem uma única ofensa; mas foi um pecado múltiplo e
horrendo em sua natureza, por causa do qual Deus o rejeitou com
justiça, e à toda a sua posteridade.

111 | P á g i n a
Portanto, podemos facilmente retornar uma resposta à objeção:
Nenhum juiz justo inflige uma grande punição por causa de uma
pequena ofensa. Deus é um juiz justo. Portanto, Ele não deveria ter
punido tão severamente, os nossos primeiros pais, por comer uma
maçã. Resposta: Não foi, entretanto, uma pequena ofensa, como já
demonstramos; mas um pecado muito grave - que compreende o
orgulho, a ingratidão, a apostasia, e outras coisas semelhantes.
Portanto, Deus infligiu com justiça uma punição severa, por causa
desse ato de desobediência. E se for ainda mais objetado, que Deus
deveria ter poupado a posteridade de Adão, visto que Ele mesmo
declarou: “O filho não levará a iniquidade do pai” (Ezequiel 18:20),
responderíamos que isso só é verdade quando o filho não é
participante da maldade do pai; mas todos nós somos participantes
do pecado de Adão.

II. QUAIS FORAM AS CAUSAS DO PRIMEIRO PECADO?


O primeiro pecado do homem teve sua origem, não em Deus, mas foi
provocado pela instigação do Diabo e pelo livre arbítrio do homem. O
Diabo tentou o homem a se afastar de Deus; e o homem, cedendo a
esta tentação, separou-se voluntariamente de Deus. E embora Deus
tenha deixado o homem entregue a si mesmo nessa tentação, Ele não
é a causa da queda, do pecado ou da destruição do homem; porque,
nesta deserção, Ele não planejou, nem realizou nenhuma dessas coisas.
Ele meramente colocou o homem em julgamento, para mostrar que
ele é inteiramente incapaz de fazer ou reter qualquer coisa que seja
boa, se não for preservado e controlado pelo Espírito Santo; e com
isso, Deus, em Seu justo julgamento, permitiu que o pecado do homem
acontecesse.

112 | P á g i n a
A sabedoria do homem raciocina e conclui de forma diferente, como
fica evidente pela objeção que muitas vezes ouvimos: aquele que
remove, no tempo da tentação, aquela graça, sem a qual não é possível
evitar a queda, é a causa da queda. Mas Deus removeu do homem, a
Sua graça, na prova à qual foi chamado a passar, para que o homem
não pudesse deixar de cair. Portanto, Deus foi a causa da queda do
homem. Resposta: A proposição principal é verdadeira apenas para
aquele que retém a graça, quando é obrigado a não removê-la, e que a
remove daquele que a deseja, e não a rejeita deliberadamente; e que a
que retém por causa da malícia. Mas não é verdade para aquele que
não é obrigado a preservar a graça que Ele deu a princípio; e que não
a retira daquele que a deseja, mas apenas daquele que deseja por si
mesmo, e por sua própria prorrogativa, rejeitar a graça que lhe é
oferecida; e quem não a retém porque tem inveja da justiça do pecador
e da vida eterna; mas para que possa fazer uma prova daquele a quem
comunicou Sua graça. Aquele que assim abandona qualquer um, não
é a causa do pecado, embora isso necessariamente acompanhe esta
deserção e a retirada da graça. E na medida em que Deus reteve sua
graça do homem no tempo de sua tentação, não na primeira, mas na
última forma que acabamos de descrever, Ele não é a causa de seu
pecado e destruição; mas somente o homem é culpado por rejeitar
deliberadamente a graça de Deus.
É novamente objetado por homens de mentes carnais: aquele que
deseja tentar alguém, quando ele certamente sabe que cairá, se for
tentado, deseja o pecado daquele que cair. Deus desejou que o homem
fosse tentado pelo Diabo, quando Ele sabia que certamente cairia; pois
se Ele não o tivesse desejado, o homem não poderia ter sido tentado.
Portanto, Deus é a causa da queda. Resposta: Negamos a proposição
principal, se for entendida em sua forma nua e simples; pois não é a
causa do pecado quem deseja que aquele que caia seja tentado com o
propósito de ser posto à prova e para a manifestação da fraqueza da

113 | P á g i n a
criatura, e foi neste sentido que Deus tentou o homem. Mas o Diabo
tentando o homem, com o desígnio de que ele pecasse e se separasse
de Deus; e o homem, por sua própria vontade, cedendo a esta tentação,
em oposição à ordem de Deus; ambos são a causa do pecado, do qual
falaremos mais adiante.

III. QUAIS SÃO OS EFEITOS DO PRIMEIRO PECADO?


Os efeitos do primeiro pecado são: 1. Exposição à morte, privação e
destruição da imagem de Deus em nossos primeiros pais. 2. Pecado
original em sua posteridade, que inclui exposições à morte eterna e
uma depravação e aversão de toda a nossa natureza a Deus. 3. Todos
os pecados atuais, que procedem do pecado original; pois aquilo que
é o motivo de uma causa é também a causa do efeito. O primeiro
pecado é a causa do pecado original e este dos pecados atuais. 4. Todos
os vários males que são infligidos aos homens como punição pelo
pecado. O primeiro pecado, portanto, é a causa de todos os outros
pecados e das punições que são infligidas aos filhos dos homens. Mas
se está de acordo com a justiça de Deus punir a posteridade pelos
pecados de seus pais, será explicado a seguir, quando tratarmos do
assunto do pecado original.

IV. POR QUE DEUS PERMITIU O PECADO?


Deus tinha o poder de evitar que o homem caísse, se Ele quisesse; mas
Ele permitiu que Ele caísse, isto é, Ele não lhe deu a graça de resistir
à tentação do Diabo, por estas duas razões: em primeiro lugar, para
que Ele pudesse prover uma exibição da fraqueza da criatura, quando
entregue a si mesma, e não preservada na justiça original por seu
criador; e em segundo lugar, que nesta ocasião, Deus pôde mostrar
Sua bondade, misericórdia e graça, ao salvar, por meio de Cristo, todos
os que creem; e manifestar Sua justiça e poder em punir os ímpios e
réprobos por seus pecados, como se diz: “Deus encerrou a todos na
incredulidade, para que tenha misericórdia de todos e para que toda boca se

114 | P á g i n a
cale” (Romanos 11:32). “O que aconteceria se Deus, desejando mostrar Sua
ira e tornar Seu poder conhecido, suportasse com muita longanimidade os
vasos de ira preparados para a destruição; e para que Ele pudesse tornar
conhecidas as riquezas de Sua glória nos vasos de misericórdia, que Ele
previamente preparou para a glória” (Romanos 9:22).

DO PECADO EM GERAL

Os pontos que geralmente são discutidos, em relação ao pecado em


geral, são principalmente os seguintes:
I. O que manifesta que o pecado está no mundo e também em nós?
II. O que é pecado?
III. Quantos tipos de pecado existem?
IV. Qual é a origem do pecado ou as causas dele?
V. Quais são os efeitos do pecado?

I. O QUE MANIFESTA QUE O PECADO ESTÁ NO MUNDO, E QUE


TAMBÉM ESTÁ EM NÓS?
Que o pecado está no mundo, e também em nós, pode ser provado por
uma variedade de argumentos. Em primeiro lugar, Deus declara que
todos nós somos culpados de pecado, declaração essa que deve ser
especialmente crida, visto que Deus é o esquadrinhador do coração e
uma testemunha ocular de todas as nossas ações (Gênesis 6:5; 18:21;
Jeremias 17:9; Romanos 1:21; 3:10; 7:18; Salmos 14; 53, Isaías 59). Em
segundo lugar, a lei de Deus reconhece o pecado, como já
demonstramos, em nossa exposição da 3ª e 5ª questões do catecismo,
onde essas declarações da lei foram mencionadas: “Pela lei vem o
conhecimento do pecado” (Romanos 3:20); “A lei opera a ira; porque onde não
há lei, não há transgressão” (Romanos 4:15), “A lei entrou para que a ofensa
abundasse” (Romanos 5:20); “Eu não conheceria o pecado, senão pela lei”

115 | P á g i n a
(Romanos 7:7). Em terceiro lugar, a consciência nos persuade e nos
convence do pecado, pois Deus, mesmo à parte de Sua lei escrita,
preservou em nós certos princípios gerais da lei natural, suficientes
para nos acusar e condenar. “Porque aquilo que pode ser conhecido de Deus
se manifesta neles” (Romanos 1:19); “Pois quando os gentios, que não têm a
lei, fazem por natureza as coisas contidas na lei, os que não têm a lei, são uma
lei para si mesmos; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações,
as suas consciências testemunhando, e seus pensamentos, enquanto acusando-
os, ou justificando-os, uns aos outros” (Romanos 2:13–14). Em quarto lugar,
punições e morte a que todos os homens estão sujeitos; sim, nossos
cemitérios, túmulos e locais de execução são todos tantos sermões
sobre o mal do pecado; porque Deus sendo justo nunca inflige punição
a nenhuma de Suas criaturas, a menos que seja pelo pecado, de acordo
com o que as Escrituras dizem: “A morte passou a todos os homens, por
isso todos pecaram” (Romanos 5:12); “O salário do pecado é a morte”;
(Romanos 6:23); “Maldito todo aquele que não confirmar todas as palavras
desta lei, para as cumprir” (Deuteronômio 27:26).
O benefício desta pergunta é: 1. Para que possamos ter matéria para
constante humilhação e penitência. 2. Para que nos afastemos e não
sejamos enredados pelos erros e corrupções dos anabatistas e
libertinos, que negam ter qualquer pecado, em contradição com a
declaração expressa da palavra de Deus, que afirma que, “Se dizemos
que não temos pecado, enganamos a nós mesmos” (João 1:8). E também em
contradição com toda experiência; pois eles mesmos frequentemente
fazem muitas coisas que Deus em Sua lei declara serem pecado, mas
que eles afirmam, embora muito falsamente, serem as obras do
Espírito Santo. Eles também vivem na miséria, estando sujeitos à
doença e à morte, não menos que os outros, que, se não fossem
pecadores, certamente estariam em oposição à regra e à lei: “Onde não
há pecado, a morte não existe”.

116 | P á g i n a
Se qualquer um perguntar, se nós não podemos também obter um
conhecimento do pecado do evangelho, já que o evangelho, a procurar
a justiça nos exortando, não em nós mesmos, mas a partir de nós
mesmos em Cristo, pecadores nos declara? Nós respondemos que o
evangelho de fato nos declara pecadores, mas não em particular como
a lei o faz; nem ensina abertamente o que, e quão multiforme é o
pecado, o que ele merece, e outras coisas semelhantes, que são obra
adequada à lei; mas o faz em geral ao pressupor o que a lei afirma,
assim como uma ciência inferior assume certos princípios que são
tirados de outra que é mais elevada e superior a ela. Depois que a lei
nos convence de que somos pecadores, o evangelho toma este
princípio como estabelecido e conclui que, por sermos pecadores em
nós mesmos, devemos, portanto, buscar a justiça de nós mesmos, em
Cristo, se desejarmos sermos salvos.
Podemos, portanto, concluir a partir dessas cinco considerações, que
todos somos pecadores aos olhos de Deus: a partir do testemunho do
próprio Deus; da lei de Deus em particular; do evangelho em geral; do
senso de consciência, e dos vários castigos que Deus, sendo justo, não
nos infligiria, se não tivéssemos pecado.

II. O QUE É PECADO?


Pecado é a transgressão da lei, ou tudo aquilo que estiver em oposição
a ela, seja a falta de justiça (defectus), ou uma inclinação ou ação
contrária à lei divina, e, portanto, ofensa a Deus, e sujeita a criatura à
sua ira eterna, a menos que o perdão seja obtido por meio do Filho de
Deus, nosso mediador. Sua natureza geral é uma falta de justiça, ou
uma inclinação ou ação que não está de acordo com a lei de Deus.
Para falar mais apropriadamente, entretanto, pode-se dizer que a falta
de justiça é esta natureza geral do pecado, enquanto as inclinações e
ações são antes a substância do pecado. A diferença, ou caráter formal
do pecado, é a oposição à lei, que o apóstolo João chama de
transgressão da lei. A propriedade, que necessariamente se liga ao

117 | P á g i n a
pecado, é a culpa do pecador, que é um deserto de castigo, temporal e
eterno, segundo a ordem da justiça divina. O pecado tem, portanto, o
que é usualmente denominado de dupla forma, ou dupla natureza, que
se pode dizer que consiste em oposição à lei e à culpa; ou pode ser
considerado como incluindo dois lados, o primeiro dos quais é a
oposição à lei, e o último está livre de punição. A condição acidental
do pecado é assim expressa, a menos que o perdão seja obtido, e outras
coisas semelhantes, pois não é de acordo com a natureza do pecado,
mas por um acidente, que aqueles que creem em Cristo não são
punidos com a morte eterna; porque o pecado não é imputado a eles,
mas graciosamente remido por amor de Cristo.
Esta falta de justiça, que é compreendida no pecado, inclui, no que diz
respeito à mente, ignorância e dúvida com respeito a Deus e Sua
vontade; e como respeita o coração, inclui uma falta de amor a Deus
e ao próximo, uma falta de deleite em Deus e um desejo ardente e
propósito de obedecer a todos os Seus mandamentos; junto com a
omissão de tais ações como a lei de Deus exige de nós. As inclinações
desordenadas consistem em uma teimosia do coração e uma falta de
vontade de obedecer à lei de Deus, e o julgamento da mente, no que
se refere a ações que são adequadas e impróprias; junto com uma
depravação e propensão da natureza para fazer as coisas que Deus
proíbe, cujo mal é chamado de concupiscência.
Que essa falta de justiça e essas inclinações desordenadas são pecados,
e condenados por Deus, pode ser provado: em primeiro lugar, pela lei
de Deus, que expressamente condena todas essas coisas, quando
declara: “Maldito aquele que não confirma todas as palavras desta lei, para
cumpri-las” (Deuteronômio 27:26); e “Não cobiçarás” (Êxodo 20:17). A lei
também exige dos homens os dons e exercícios opostos, como perfeito
conhecimento e amor a Deus e ao próximo, dizendo: “Amarás o Senhor
teu Deus de todo teu coração, (...)” (Deuteronômio 6:5), “Esta é a vida eterna,
que eles possam conhecer a Ti, o único Deus verdadeiro (...)” (João 17:3), “Não

118 | P á g i n a
terás outros deuses diante de Mim” (Êxodo 20:3). Em segundo lugar, a
mesma coisa é provada pelos muitos testemunhos das Escrituras que
condenam e falam desses males como pecados, como quando é dito:
“Toda a imaginação dos pensamentos do coração do homem era só má
continuamente” (Gênesis 6:8); “O coração é enganoso acima de todas as
coisas e desesperadamente perverso” (Jeremias 17:9); “Eu não conheceria a
luxúria (isto é, eu não saberia que era pecado), a não ser que a lei dissesse: Não
cobiçarás” (Romanos 7:7). Veja também João 3:5; 1 Coríntios 2:14; 15:28.
Em terceiro lugar, pela punição e morte de crianças, que, embora não
façam o bem, nem o mal, e não pequem à semelhança da transgressão
de Adão, ainda assim têm pecado, por causa do qual a morte reina
nelas. Esta é aquela ignorância e aversão a Deus de que já falamos.
Objeção 1. Aquilo que não desejamos, assim como aquilo que não
podemos evitar, não é pecado. Mas não desejamos essa falta de justiça,
nem podemos evitar que inclinações desordenadas surjam dentro de
nós. Portanto, eles não são pecados. Resposta: A proposição principal
é verdadeira em um tribunal civil, mas não no julgamento de Deus,
diante de quem tudo o que está em oposição à Sua lei, quer possa ser
evitado ou não, é pecado e, como tal, merece punição. As Escrituras
ensinam claramente essas duas coisas, que a sabedoria da carne não
pode estar sujeita à lei de Deus, e que todos aqueles que não estão
sujeitos a ela estão expostos à maldição da lei.
Objeção 2. A natureza é boa. Nossas inclinações e desejos são
naturais. Portanto, eles são bons. Resposta: A natureza é, de fato, boa,
se olharmos para ela como vinda das mãos de Deus, e antes de ser
corrompida pelo pecado; pois todas as coisas que Deus criou, Ele
declarou ser muito bom (Gênesis 1:31). E mesmo agora, a natureza é
boa quanto à sua substância, e como foi criada por Deus; mas não
quanto às suas qualidades, e como foi corrompida.

119 | P á g i n a
Objeção 3. As punições não são pecado. Inclinações desordenadas e
falta de justiça são punições do primeiro pecado do homem. Portanto,
eles não são pecados. Resposta: A proposição principal é verdadeira
em um tribunal civil, mas não no julgamento de Deus, que
frequentemente pune o pecado com o pecado, como o apóstolo Paulo
mostra mais claramente em Romanos 1:27; 1 Tessalonicenses 4:11. Deus
também tem poder para privar suas criaturas de Seu Espírito, poder
que nenhuma de Suas criaturas possui.

III. QUANTOS TIPOS DE PECADO EXISTEM?


Existem cinco divisões principais do pecado. O primeiro é o pecado
original e real. Esta distinção é ensinada em Romanos 5:14; 7:20; 9:11.
PECADO ORIGINAL
O pecado original é a culpa de toda a raça humana, por causa da queda
de nossos primeiros pais. Consiste na falta de conhecimento de Deus
e de Sua vontade mental e na inclinação para obedecer a Deus de
coração e vontade; no lugar do qual há uma inclinação para as coisas
que a lei de Deus proíbe, e uma aversão para as coisas que ela ordena,
resultante da queda de nossos primeiros pais, Adão e Eva, e deles feitos
passar para toda a sua posteridade, corrompendo assim toda a nossa
natureza, de forma que todos, por conta dessa depravação, estão
sujeitos à ira eterna de Deus; nem podemos fazer nada que agrade a
Ele, a menos que o perdão seja obtido por causa do Filho de Deus,
nosso mediador, e o Espírito Santo renove nossa natureza. Desse tipo
de pecado é dito: "A morte reinou mesmo sobre aqueles que não pecaram, à
semelhança da transgressão de Adão” (Romanos 5:14). “Em pecado me
concebeu minha mãe” (Salmos 51:7). O pecado original compreende,
portanto, essas duas coisas: exposição à condenação eterna por causa
da queda de nossos primeiros pais, e uma depravação de toda a nossa
natureza desde a queda. Paulo inclui ambos, quando diz: “Por um homem
entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou sobre

120 | P á g i n a
todos, por isso todos pecaram” (Romanos 5:12). A mesma coisa é expressa,
embora um pouco mais obscuramente, na definição comum de pecado
original que é geralmente atribuída a Anselmo: “O pecado original é a
falta da justiça original que deveria haver em nós”. A justiça original
não era apenas uma conformidade de nossa natureza com a lei de
Deus, mas também incluía a aceitação e aprovação divinas. No lugar
dessa conformidade com a lei divina, temos agora a depravação; e no
lugar desta aprovação, temos o desagrado de Deus, que se seguiu em
consequência da queda. A mesma coisa vale para a definição de Hugo:
“Pecado original é aquele que herdamos de nosso nascimento, por
ignorância no entendimento e concupiscência na carne”.
Em oposição a esta doutrina do pecado original, os pelagianos
anteriormente criam e ensinavam, como os anabatistas fazem hoje,
que não há pecado original - que a posteridade não é culpada por
causa da queda de nossos primeiros pais e desse pecado não é
derivado deles por propagação: mas que cada um peca e contrai a
culpa apenas por imitar os maus exemplos dos outros. Agostinho
refutou esses pelagianos em muitos livros. Há outros que admitem
que somos todos culpados pela queda de nossos primeiros pais, mas
negam que nascemos com tal depravação que merece condenação;
pois a falta de justiça e a propensão para o mal que todos nós temos
por natureza, afirmam eles, não podem ser consideradas pecados.
Devemos defender e guardar, em oposição a todos esses hereges, essas
quatro proposições: 1. Que toda a raça humana está sujeita à ira eterna
de Deus por causa da desobediência de nossos primeiros pais, Adão e
Eva. 2. Que também somos, desde o momento de nosso nascimento,
destituídos de justiça e temos inclinações contrárias à lei de Deus. 3.
Que essa falta de justiça e essas inclinações com as quais nascemos
são pecados e merecem a ira eterna de Deus. 4. Que esses males são
derivados e contraídos, não apenas por imitação, mas pela propagação
da natureza corrupta que todos nós, exceto Cristo, herdamos de
nossos primeiros pais.

121 | P á g i n a
A primeira, a segunda e a terceira proposições já foram
suficientemente demonstradas; a quarto é comprovada:
Primeiro, pelo testemunho das Escrituras: “Somos todos, por natureza,
filhos da ira, assim como os demais” (Efésios 2:3); “Pela ofensa de um, o
julgamento veio sobre todos os homens para condenação; Pela desobediência
de um só homem, muitos foram feitos pecadores” (Romanos 5:6, 19); “Quem
pode retirar uma coisa limpa de uma coisa impura?” (Jó 14:4); “Eu nasci em
iniquidade” (Salmos 51:7); “Se o homem não nascer da água e do Espírito, não
pode entrar no reino de Deus” (João 3:5).
Em segundo lugar, as crianças morrem e devem ser batizadas.
Portanto, elas devem ter pecado. Mas elas não podem pecar por
imitação. Resta, portanto, que deve nascer neles, conforme se diz:
“Foste chamado transgressor desde o ventre” (Isaías 48:8). “O coração do
homem é perverso desde a sua juventude” (Gênesis 8:21). Ambrósio diz:
“Quem é justo diante de Deus, quando uma criança de apenas um dia não pode
estar livre do pecado?”.
Em terceiro lugar, tudo o que nasce tem a natureza daquilo de que
procedeu, no que diz respeito à substância e aos acidentes da espécie
a que pertence. Mas todos nós nascemos de pais corruptos e
pecadores; portanto, todos nós, por nosso nascimento, herdamos ou
nos tornamos participantes de sua corrupção e culpa.
Em quarto lugar, pela morte de Cristo, que é o segundo Adão, obtemos
uma dupla graça: queremos dizer justificação e regeneração. Segue-se,
portanto, que todos devemos ter derivado do primeiro Adão o duplo
mal da culpa e da corrupção da natureza, caso contrário, não teria
havido necessidade de uma dupla graça e remédio.

122 | P á g i n a
Objeção 1. Se o pecado original for transmitido dos pais para sua
posteridade, deve ser por meio do corpo ou da alma. Mas não pode
ser por meio do corpo, porque é destituído de razão. Nem pode ser
pela alma, porque esta não é produzida por transmissão, nem derivada
da alma do pai, pois é uma substância espiritual e indivisível; nem é
criada corrupta, visto que Deus não é o autor do pecado. Portanto, o
pecado original certamente não é transmitido pela natureza. Resposta:
Negamos a proposição menor; porque a alma, embora criada pura e
santa por Deus, pode, no entanto, contrair a corrupção do corpo no
qual é infundida, embora seja destituído de razão. Nem é absurdo
dizer que a constituição corrupta do corpo, com sua propensão para
o mal, é um instrumento impróprio para as boas ações da alma, e que
a alma, não estabelecida na justiça, pode se tornar poluída e, assim,
cair de sua própria integridade, assim que se une ao corpo. Também
negamos a consequência do silogismo acima, pela razão de que as
partes que são enumeradas na primeira proposição não estão
devidamente expressas. O pecado original não é transmitido pelo
corpo, nem pela alma, mas pela transgressão de nossos primeiros pais;
por causa disso, Deus, mesmo enquanto cria a alma, ao mesmo tempo
a priva da justiça original e de outros dons que Ele conferiu aos nossos
primeiros pais com a condição de que eles os transmitissem ou os
perdessem para sua posteridade, conforme eles próprios deveriam
retê-los ou perdê-los. Nem é Deus, por este ato, injusto ou a causa do
pecado, pois esta falta de justiça com respeito a Deus, que a inflige
por causa da desobediência de nossos primeiros pais, não é pecado,
mas um castigo mais justo; embora, em relação aos nossos primeiros
pais, que a atraíram sobre si mesmos e sua posteridade, seja um
pecado. A falácia do argumento acima ficará aparente agora se
declararmos mais completamente a proposição principal: o pecado
original é transmitido à posteridade por meio do corpo, ou pela alma,
ou pela transgressão de nossos primeiros pais, e o desamparo dessa
carência de justiça. Pois assim como o pecado original passou a existir

123 | P á g i n a
em nossos primeiros pais por causa de sua transgressão, também é
transmitido à posteridade por causa da mesma. Esta não é aquela
pequena fenda, ou assunto sem importância, sobre o qual os
escolásticos disputavam tão calorosamente, se a alma era transmitida
de nossos pais por geração, e se ela se tornava poluída por sua ligação
com o corpo; mas é aquela porta larga através da qual o pecado
original flui violentamente e infecta nossa natureza, como Paulo
testifica quando diz: “Pela desobediência de um só homem, muitos foram
feitos pecadores” (Romanos 5:19).
A isso é objetado: A falta da justiça original é pecado. Deus infligiu
isso ao criar em nós uma alma destituída daqueles dons que Ele teria
concedido a Adão se ele não tivesse pecado. Portanto, Ele é o autor do
pecado. Resposta: Há na proposição menor uma falácia de acidente.
Essa falta de justiça é pecado em relação a Adão e a nós, visto que por
sua culpa e nossa culpa nós a atraímos para nós mesmos, e agora a
recebemos ansiosamente. Que a criatura seja destituída de justiça e
de conformidade com Deus é repugnante à lei e é pecado, mas com
respeito a Deus, é um castigo muito justo de desobediência; cuja
punição está em harmonia com a natureza e a lei de Deus.
É ainda objetado: Deus não deveria punir a transgressão de Adão com
uma punição que Ele conhecia que resultaria na destruição de toda a
natureza do homem. Resposta: A justiça de Deus deve ser satisfeita,
mesmo que o mundo inteiro pereça. Além disso, cabia a Ele vingar
assim a obstinação do homem, por Sua extrema justiça e verdade. Uma
ofensa cometida contra o bem supremo, merece o castigo mais
extremo, que consiste na destruição eterna da criatura; pois Deus
disse: “Certamente morrerás”. É, portanto, de Sua misericórdia que Ele
deva resgatar quaisquer homens desta ruína geral, e salvá-los por meio
de Cristo.

124 | P á g i n a
Objeção 2. É natural que desejemos objetos; portanto, esses desejos
não são pecados. Resposta: Os desejos dirigidos a objetos apropriados,
e que Deus estimulou e ordenou, não são pecado, mas aqueles que são
desordenados e contrários à lei são pecado. Pois desejar não é por si
mesmo pecaminoso, na medida em que por si mesmo é bom, porque
é natural; mas desejar o contrário da lei é pecado.
Objeção 3. O pecado original é removido, na medida em que respeita
aos santos; portanto, eles não podem transmiti-lo para sua
posteridade. Resposta: Os piedosos são de fato libertos do pecado
original no que diz respeito à culpa disso, que é remetida a eles por
meio de Cristo; mas na medida em que respeita seu caráter formal e
essência, isto é, como um mal que se opõe à lei de Deus, permanece.
E embora aqueles a quem o pecado é remido sejam ao mesmo tempo
regenerados pelo Espírito Santo, esta renovação de sua natureza não
é perfeita nesta vida, portanto, transmitem à posteridade a natureza
corrupta que eles próprios têm.
A isto é objetado: aquilo que os pais não possuem, não podem
transmitir à sua posteridade. A culpa do pecado original é retirada de
todos os pais que foram regenerados. Portanto, pelo menos, a culpa
não pode ser transmitida. Resposta: A proposição principal deve ser
distinguida. Os pais não transmitem aos filhos aquilo que não têm por
natureza; pois são libertos da culpa do pecado, não por natureza, mas
pela graça de Cristo. É por esta razão que não transmitem à sua
posteridade, por natureza, a justiça que é imputada a eles pela graça,
mas transmitem a corrupção e a condenação a que estão sujeitos por
natureza. E a razão pela qual eles transmitem sua culpa, e não sua
justiça, é esta: seus filhos nascem, não segundo a graça, mas segundo
a natureza. Nem devemos conceber a graça e a justificação como
restritas e transmitidas por propagação carnal, mas pela mais livre
eleição de Deus. Jacó e Esaú são exemplos disso. Agostinho ilustra isso
com duas comparações convincentes. A primeira é a dos grãos de trigo

125 | P á g i n a
que, embora sejam semeados depois de separados de seu talo, palha,
barba e espiga, pela debulha, ainda brotam da terra novamente, com
todos eles. Isso acontece porque a debulha e a limpeza não são
naturais ao grão, mas são obra da indústria humana. O outro é o de
um pai circuncidado que, embora ele mesmo não tenha prepúcio,
ainda assim gera um filho com um; e isso também acontece porque a
circuncisão não era sobre o pai por natureza, mas pela aliança.
Objeção 4. Se a raiz ou árvore for sagrada, os ramos também são
sagrados; portanto, os filhos daqueles que são santos também são
santos e estão livres do pecado original (Romanos 11:16). Resposta: Há
aqui uma incorreção no uso de termos que são ambíguos em sua
significação; pois santidade, como é usada aqui, não significa liberdade
do pecado, ou pureza de coração, mas aquela dignidade e privilégio
peculiar à posteridade de Abraão, porque Deus, por causa do pacto
que fez com Abraão, prometeu que em todos os momentos disporia
alguns de seus descendentes para fazer Sua vontade e lhes daria
verdadeira santidade interior; e também porque eles obtiveram o
direito e o título de Sua Igreja.
Objeção 5. Mas os filhos dos crentes são santos, segundo a declaração
de São Paulo em 1 Coríntios 7:14. Portanto, eles não têm pecado
original. Resposta: Esta é uma conclusão incorreta, retirada de uma
perversão da figura de linguagem que é empregada aqui: pois quando
se diz que eles são santos, não significa que todos os filhos dos fiéis
sejam regenerados, ou que obtenham santidade por via carnal.
propagação; pois é dito, em Romanos 9:11, 13, de Jacó e Esaú, que um
era amado e o outro odiado antes de nascerem ou de fazerem o bem
ou o mal; mas significa que os filhos dos piedosos são santos, pois
respeita a comunhão externa da Igreja - que são considerados
cidadãos e membros dela, e incluídos no número daqueles que são
chamados e santificados, a menos que venham até a maturidade, eles
dão testemunho contra si mesmos por sua impiedade e incredulidade,

126 | P á g i n a
e assim declaram que perderam todos os seus direitos e privilégios.
Objeção 6. Se o pecado for transmitido à posteridade pela geração
natural, então aqueles que viverão no último período da história da
raça humana terão que carregar os pecados de todas as gerações
anteriores, enquanto aqueles que viveram antes deles terão suportado
os pecados de apenas uma parte de sua ancestralidade;
consequentemente, aqueles que permanecerem na terra serão os mais
miseráveis, o que é absurdo e inconsistente com a justiça de Deus.
Resposta: Não seria absurdo, mesmo que Deus abandonasse e punisse
mais pesadamente o último de nossa raça: quanto maior o número de
pecados que são cometidos e entesourados pela raça humana, mais
ferozmente arde sua ira, e mais agravados são os castigos que Ele
inflige aos homens, de acordo com o que está escrito: “A iniquidade dos
amorreus ainda não é completa” (Gênesis 15:16). “Para que caia sobre ti todo
o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até o
sangue de Zacarias” (Mateus 22:35). Também podemos responder que,
embora Deus em sua justiça permita que o pecado original, ou a
corrupção e a culpa de nossa natureza, passe sobre toda a posteridade
de Adão, ainda assim ele, ao mesmo tempo, por Sua misericórdia, põe
limites a este pecado, para que nem sempre a posteridade sofra
punição pela transgressão real de seus ancestrais, nem os imite; e que
os filhos de pais iníquos não podem ser maus, ou piores e mais
miseráveis do que seus pais.
Objeção 7. Mas é dito, em Ezequiel 18:20, “para que o filho não leve a
iniquidade do pai”; portanto, é injusto que a posteridade sofra a punição
pelo pecado de Adão. Resposta: O filho não deve, de fato, suportar a
iniquidade do pai, nem dar satisfação por sua transgressão, se ele não
a aprova, nem a imita, mas a condena e a evita, mas sofremos com
justiça por causa do pecado de Adão: 1. Porque todos nós aprovamos
e seguimos sua transgressão. 2. Porque a ofensa de Adão também é
nossa; pois estávamos todos em Adão quando ele pecou, como o
apóstolo testifica: “Todos nós pecamos nele” (Romanos 5:12). 3. Porque

127 | P á g i n a
toda a natureza de Adão tornou-se culpada; e como procedemos de
sua própria substância - sendo, por assim dizer, uma parte dele -
também devemos necessariamente ser culpados. 4. Porque Adão
recebeu os dons de Deus com a condição de que também os
transmitiria a nós, se os retivesse, ou os perdesse para nós também, se
ele os perdesse. Consequentemente, quando Adão perdeu esses dons,
ele não os perdeu apenas para si mesmo, mas também para toda a sua
posteridade.
Objeção 8. Todo pecado implica um exercício da vontade, mas os
infantes não são capazes de exercer a vontade como é necessário, a
fim de cometer o pecado, portanto, não se pode dizer que eles
cometem pecado. Resposta: Todo o argumento é aceito, no que diz
respeito ao pecado real, mas não no que diz respeito ao pecado
original, que consiste na depravação de nossa natureza. Novamente,
negamos o que é afirmado na proposição menor, porque os infantes
não são destituídos do poder de querer, pois embora eles possam não
ser capazes de querer pecar como algo que é realmente feito, eles o
fazem com inclinação.
Objeção 9. A corrupção e os males de nossa natureza merecem mais
piedade do que censura e punição. O próprio Aristóteles declara: “Que
ninguém censura os defeitos que se prendem à nossa natureza”. O pecado
original é um defeito e corrupção de nossa natureza, portanto, não
merece punição. Resposta: A proposição principal é verdadeira para
os males que são trazidos sobre nós, não por nossa negligência ou
maldade, como se alguém nascesse cego, ou se tornasse cego por
doença, ou por um golpe de outro. Tal pessoa realmente merece ser
lamentada, em vez de repreendida, mas os males que todos nós
causamos perversamente, como é o caso do pecado original, são
justamente merecedores de censura, como Aristóteles também
testemunha, quando acrescenta: “Mas todo mundo critica aquele que fica
cego pelo excesso de vinho, ou qualquer outra ação perversa”. Isso é tudo que
será tratado sobre o pecado original.

128 | P á g i n a
DO PECADO REAL, E AS DISTINÇÕES RESTANTES DO
PECADO, COM SUAS CAUSAS E EFEITOS
O pecado real inclui todas as ações que se opõem à lei de Deus, sejam
elas que respeitem a compreensão, a vontade e o coração, ou a conduta
externa de nossas vidas, como pensar, desejar, seguir, e fazer o que é
mau; e uma omissão das coisas que a lei de Deus ordena, como ser
ignorante, não querer, evitar e omitir o que é bom. A divisão do pecado
em pecados de comissão e omissão está devidamente em seu lugar
aqui.
A segunda divisão do pecado. Essa distinção diz respeito ao pecado
como reinante, e como não-reinante. Por pecado reinante, entendemos
aquela forma de pecado à qual o pecador não oferece resistência por
meio da graça do Espírito Santo. Ele está, portanto, exposto à morte
eterna, a menos que se arrependa e obtenha perdão por meio de
Cristo, ou inclui todo pecado que não é deplorado e ao qual a graça
do Espírito Santo não oferece resistência, e por causa do qual aquele
em quem ela reina está exposto ao castigo eterno, não apenas de
acordo com a ordem da justiça divina, mas também de acordo com a
natureza do próprio ser As seguintes passagens das Escrituras se
referem a esta distinção de pecado: “Não deixem o pecado reinar em seus
corpos mortais” (Romanos 6:12). “Aquele que comete pecado”, isto é, aquele
que peca habitualmente, voluntariamente e com prazer, “é do Diabo” (1
João 3:8). É chamado de pecado reinante, porque gratifica e escraviza
aqueles que são súditos dele, e também porque exerce domínio sobre
o homem em quem reina e o expõe à condenação eterna. Todos os
pecados dos homens em seu estado não regenerado são desse tipo.
Existem também alguns pecados dessa descrição naqueles que foram
regenerados, como erros na base da fé e ofensas que são contra a
consciência, as quais, a menos que se arrependam, são inconsistentes
com a garantia do perdão de pecados e verdadeiro conforto cristão.
Que aqueles que são regenerados podem ser culpados de pecado sob

129 | P á g i n a
essa forma, a lamentável queda de homens santos como Arão e Davi
abundantemente testificam. Essas objeções comumente levantadas
contra o que é aqui apresentado podem ser encontradas em Ursini vol.
1, página 207.
O pecado que não reina assim é aquele ao qual o pecador resiste pela
graça do Espírito Santo. Não o expõe, portanto, à morte eterna, porque
ele se arrependeu e encontrou graça por meio de Cristo. Tais pecados
são inclinações desordenadas e desejos profanos, falta de justiça e
muitos pecados de ignorância, omissão e enfermidade, que
permanecem nos piedosos enquanto permanecem nesta vida, mas os
que eles, não obstante, reconhecem, deploram, odeiam, resistem e
oram fervorosamente, podem ser perdoados por amor de Cristo, o
mediador, dizendo: “perdoa-nos nossas dívidas”. Consequentemente, os
piedosos retêm sua fé e consolo, apesar de não estarem livres desses
pecados. “Se dissermos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a
verdade não está em nós” (1 João 1:8). “Já não sou eu que o faço, mas o pecado
que habita em mim” (Romanos 7:18). “Não há condenação para os que estão
em Cristo Jesus, que andam segundo o Espírito” (Romanos 8:1). “Quem pode
entender seus erros? Purifica-me dos erros ocultos” (Salmos 19:13).
A distinção comum do pecado em mortal e venial pode ser referida a
esta divisão. Pois embora todo pecado em sua própria natureza seja
mortal, com o que queremos dizer que ele merece a morte eterna,
ainda assim o pecado reinante pode ser apropriadamente assim
chamado, visto que aquele que perseverar nele será finalmente vencido
pela destruição, mas se torna pecado venial, isto é, não clama pela
morte eterna, quando não reina nos regenerados que resistem pela
graça de Deus, e isso acontece, não porque mereça perdão em si
mesmo, ou não mereça punição, mas porque é gratuitamente
perdoado àqueles que creem por causa da satisfação de Cristo, e não
é imputado a eles para condenação, como se diz: “Não há condenação
para os que estão em Cristo Jesus” (Romanos 8:1). Quando assim

130 | P á g i n a
entendida, a distinção entre pecado mortal e pecado venial pode ser
mantida; mas não quando é entendido no sentido em que os padres
romanos o usam, como se fosse um pecado mortal que merece a morte
eterna por causa de sua grandeza, e aquele venial que não merece a
morte eterna por causa de sua pequenez, mas apenas alguma punição
temporal, portanto, preferiríamos, no lugar do pecado mortal e venial,
a distinção que fizemos do pecado em reinante e não-reinante, e isso
pelas seguintes razões: 1. Porque os termos mortal e venial são
ambíguos e obscuros. Todos os pecados são mortais em sua própria
natureza. O apóstolo João também chama o pecado contra o Espírito
Santo de mortal, ou até de morte. 2. Porque as Escrituras não usam
esses termos, especialmente pecado venial. 3. Por causa dos erros dos
papistas, que chamam de veniais aqueles pecados que são pequenos e
não merecem a morte eterna, enquanto as Escrituras declaram:
“Maldito aquele que não confirmar todas as palavras desta lei para as
cumprir” (Deuteronômio 27:26); “Todo aquele que ofender em um ponto é
culpado de todos” (Tiago 2:10); “O salário do pecado é a morte” (Romanos
6:23); "Quem quebrar um destes mandamentos e assim ensinar aos homens
será chamado o menor no reino de Deus” (Mateus 5:19). Em uma palavra,
todo pecado em sua própria natureza é mortal e merece a morte
eterna, mas se torna venial, isto é, não opera a morte eterna nos
regenerados, porque seus pecados foram gratuitamente perdoados por
amor de Cristo.
A terceira divisão do pecado. Há pecado que é contra a consciência
e pecado que não é contra a consciência. Pecado contra a consciência
é, quando alguém que conhece a vontade de Deus faz, com desígnio e
propósito, o que é contrário a isso; ou é aquele pecado que é cometido
por aqueles que pecam consciente e voluntariamente, como Davi,
quando cometeu o pecado de adultério e assassinato. O pecado não é
contra a consciência, quando alguém faz algo contrário à lei de Deus,
por ignorância ou não; ou é aquilo que de fato é conhecido como

131 | P á g i n a
pecado e deplorado pelo pecador, mas que ele não pode evitar
perfeitamente nesta vida, como pecado original e muitos pecados de
ignorância, omissão e enfermidade. Pois omitimos muitas coisas boas
e fazemos muitas coisas más, sendo subitamente vencidos pela
enfermidade, como Pedro foi, quando pela força da tentação negou a
Cristo, com conhecimento de causa, de fato, mas não voluntariamente.
Por isso ele chorou tão amargamente e não perdeu totalmente a fé, de
acordo com a promessa de Cristo: “Orei por ti, para que a tua fé não
desfaleça” (Lucas 22:32). Este não era o pecado reinante, muito menos
o pecado contra o Espírito Santo, porque Pedro amou a Cristo não
menos quando O negou do que quando chorou por seu pecado,
embora seu amor não se mostrasse na ocasião um relato de seu medo,
excitado pelas circunstâncias perigosas em que foi colocado. Tal foi
também o pecado que Paulo reconheceu e lamentou, quando disse: “O
bem que quero, não faço; mas o mal, que não quero, esse faço” (Romanos 7:19).
Sua blasfêmia e perseguição à Igreja foram igualmente pecados de
ignorância, pois ele diz: “Fiz isso por ignorância, na incredulidade, e
portanto, obtive misericórdia” (1 Timóteo 1:13).
A quarta divisão do pecado. Há pecado que é imperdoável - pecado
contra o Espírito Santo e para a morte; e há também pecado perdoável
- pecado que não é contra o Espírito Santo nem para morte. As
Escrituras falam desta distinção de pecado em Mateus 12:31; Marcos
3:29; 1 João 5:16. Por pecado imperdoável, ou o pecado contra o Espírito
Santo e para a morte, significa uma negação e uma oposição
deliberada à verdade reconhecida de Deus, em ligação com Sua
vontade e obras, sobre as quais a mente foi totalmente iluminada e
convencido pelo testemunho do Espírito Santo; tudo o que procede,
não do medo ou enfermidade, mas de um ódio determinado à verdade,
e de um coração cheio de malícia amarga. Deus castiga esse pecado
com cegueira perpétua, para que os culpados nunca se arrependam e,
consequentemente, não obtenham perdão. É chamado imperdoável,

132 | P á g i n a
não porque sua grandeza exceda o valor do mérito de Cristo, mas
porque aquele que o comete é punido com cegueira total e não recebe
o dom do arrependimento. É um pecado de natureza peculiarmente
agravada e é, portanto, seguido por uma punição de acordo com seu
caráter, punição essa que é cegueira e impenitência finais. E onde não
há arrependimento, não há perdão obtido. “Todo aquele que blasfemar
contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no
mundo vindouro” (Mateus 12:32); “Mas aquele que blasfemar contra o
Espírito Santo nunca terá perdão, mas está em perigo de condenação eterna”
(Marcos 3:29).
É chamado de pecado contra o Espírito Santo, não para que alguém
cometa uma ofensa contra o Espírito Santo que não seja ao mesmo
tempo uma ofensa ao Pai e ao Filho, mas por uma forma significativa
de discurso, visto que é de forma especial cometida contra o Espírito
Santo, isto é, contra Seu ofício e obra peculiar e imediata, que consiste
na iluminação da mente.
É chamado pelo apóstolo João de pecado para a morte, não porque só
é um pecado mortal e merece a morte, mas, como acabamos de
observar, porque especialmente merece a morte, e porque aqueles que
são culpados dele com toda a certeza irão morrer, vendo que nunca se
arrependerão ou obterão o perdão. O apóstolo João, portanto, não
deseja que oremos por ele; porque é em vão que pedimos a Deus o
perdão dele. As Escrituras também falam desse pecado em outras
passagens, como em Hebreus 6:4-8; 10:26–29; Tito 3:10, 11.

133 | P á g i n a
CERTAS REGRAS A SEREM OBSERVADAS EM RELAÇÃO AO
PECADO CONTRA O ESPÍRITO SANTO
1. O pecado contra o Espírito Santo não é encontrado em todas as
pessoas iníquas, mas apenas naquelas que foram iluminadas pelo
Espírito Santo e que foram totalmente convencidas da verdade, como
Saulo, Judas e outras pessoas semelhantes.
2. Todo pecado que é contra o Espírito Santo é pecado reinante, e um
pecado contra a consciência, mas não o contrário. Pois pode acontecer
que alguém pode, por ignorância, ou mesmo sabendo e
voluntariamente, manter certos erros, ou violar alguns dos
mandamentos de Deus, por fraqueza ou tortura, ou por medo do
perigo, e ainda não proposital e maliciosamente impugnar a verdade,
ou cair totalmente da santidade, e continuar na sensualidade e no
desprezo de tudo o que é sagrado; mas ele pode se voltar para Deus e
se arrepender de seu pecado. Essas formas de pecado diferem,
portanto, em gênero e espécie.
3. O pecado contra o Espírito Santo não é cometido pelos eleitos ou
por aqueles que são verdadeiramente convertidos. Eles nunca podem
perecer; pois Cristo os preserva e salva com segurança. “Eles nunca hão
de perecer, nem ninguém os arrebatará de Minhas mãos” (João 10:28).
Também 2 Timóteo 2:19; 1 Pedro 1:5; 1 João 5:15. Daí aqueles que pecam
contra o Espírito Santo nunca foram verdadeiramente convertidos e
chamados. Eles saíram de nós, porque eles não eram de nós.
4. Ninguém deve decidir precipitadamente ou precipitadamente a
respeito do pecado contra o Espírito Santo, sim, em nenhum caso se
deve julgar ninguém, a menos que seja a posteriori, pelo motivo de não
sabermos o que está no coração do homem. Muitas coisas que são
controvertidas em relação a este assunto, podem ser encontradas em
Ursini vol. 1, página 213.
Pecado perdoável, ou não contra o Espírito Santo, é qualquer pecado
do qual os homens podem se arrepender e obter perdão.

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A quinta divisão do pecado. Existe o que é pecado em si e o que se
torna pecado por acidente. As coisas que são pecados por si mesmas
e em sua própria natureza, são aquelas inclinações, desejos e ações que
são contrárias e proibidas pela lei de Deus. No entanto, eles não são
pecados, na medida em que são meras atividades, ou em relação a
Deus, que move todas as coisas (pois os movimentos, na medida em
que são tais, são bons em si mesmos, e de Deus, em quem vivemos,
temos nosso ser e nos movemos; mas em relação a nós são pecados,
na medida em que são cometidos por nós contra a lei de Deus; em que
sentido eles estão todos em, e pecado de acordo com sua própria
natureza.
As coisas que são pecados por acidente são ações de hipócritas e não
regeneradas, as quais, embora tenham sido prescritas e ordenadas por
Deus, são desagradáveis a Ele, na medida em que não procedem da fé,
e um desejo de glorificar a Deus. O mesmo pode ser dito de ações
indiferentes, que são feitas e acompanhadas com vergonha. “Tudo o que
não é da fé é pecado” (Romanos 14:23); “Para os impuros e incrédulos nada
há de puro” (Tito 1:15); “Sem fé é impossível agradar a Deus” (Hebreus 11:6).
Todas as virtudes, portanto, dos não regenerados, como a castidade de
Cipião, a bravura de Júlio César, a fidelidade de Rômulo, a justiça de
Aristides, e outras coisas semelhantes, embora sejam bons em si
mesmos e comandados por Deus, ainda assim eles não obstante, são
pecados por acidente e odiosos a Deus, tanto porque as pessoas pelas
quais são cometidas não o agradam, não estando em estado de
reconciliação, como também porque não são operadas da forma, nem
com o desígnio que Deus requer; isto é, elas não procedem da fé e não
são feitas para a glória de Deus. Essas condições são tão necessárias
em toda boa obra, que sem elas nossas melhores ações são
pecaminosas; como as orações, as esmolas, os sacrifícios e outras obras
semelhantes, dos hipócritas e dos ímpios são pecado: porque não
procedem da fé e não são feitos por causa da glória de Deus. “Os
hipócritas dão suas esmolas nas sinagogas e nas ruas, para que tenham a

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glória dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam sua recompensa”
(Mateus 6:2); “Quem mata um boi é como se matasse um homem" (Isaías
66:3), e outras passagens semelhantes.
Há, portanto, uma grande diferença entre as virtudes do regenerado e
do não regenerado. Pois, 1. As boas obras do regenerado procedem da
fé e são agradáveis a Deus; mas é diferente com as obras dos não
regenerados. 2. O regenerado faz todas as coisas para a glória de Deus;
os não regenerados e hipócritas agem com referência à sua própria
glória. 3. As ações do regenerado estão conectadas com um desejo
sincero de obedecer a Deus; os não regenerados e hipócritas exibem
apenas uma profissão externa, sem obediência interna. Suas virtudes,
portanto, não o são na realidade: nada mais são do que sombras e
tênues semelhanças com o que é verdadeiramente bom. 4. A
imperfeição das obras do regenerado é coberta pela satisfação de
Cristo, e a corrupção que ainda é inerente a eles não é imputada a
eles, nem é objetado a eles que contaminem os dons de Deus por seus
pecados; mas as virtudes dos não regenerados que são boas em si
mesmas são e permanecem pecados por acidente, e são contaminadas
por muitos outros crimes. 5. As boas obras dos não regenerados são
honradas meramente com recompensas temporais, e não porque
sejam agradáveis a Deus, mas para que Ele possa convidá-los e
encorajá-los, e outros a tal honestidade e conduta externa, conforme
necessário para o bem- ser da raça humana, mas Deus aceita as obras
dos justos por causa de Cristo, e graciosamente os coroa com
galardões temporais e eternas, como está dito: “A piedade é proveitosa
para todas as coisas, tendo a promessa da vida que agora é, e daquela que está
por vir” (1 Timóteo 4:8). Finalmente, os não regenerados, por realizarem
as obras ordenadas por Deus, obtêm uma atenuação da punição, para
que não possam com outras pessoas iníquas sofrer mais gravemente
nesta vida, mas os justos fazem essas coisas, não apenas para que seus
sofrimentos sejam aliviados, mas também para que sejam
inteiramente libertos deles.

136 | P á g i n a
Objeção. Essas coisas que são pecado não devem ser feitas. As obras
dos não regenerados, embora sejam boas na avaliação dos homens e
da lei civil, são, não obstante, pecado. Portanto, elas não devem ser
feitas. Resposta: Existe aqui uma falácia de acidente. A proposição
principal é verdadeira para aquelas coisas que são pecados em si
mesmas, a proposição menor daquelas que são pecados por acidente.
Aquelas coisas agora que são pecados em si mesmas devem ser
estritamente evitadas, mas aqueles que são pecados por acidente não
devem ser omitidas, mas corrigidas e executadas da forma e para o
fim para os quais Deus as ordenou, mas essa disciplina externa e
conformidade com a lei são necessárias mesmo por parte daqueles que
não foram regenerados. 1. Por conta da ordem de Deus. 2. Para que
eles possam escapar da punição que segue a violação da propriedade
exterior. 3. Para que a paz e o bem-estar da sociedade em geral sejam
preservados. Por último, que o caminho para o arrependimento não
pode ser fechado pela perseverança em um curso de transgressão
aberta.
Da mesma forma, há uma grande diferença entre os pecados do
regenerado e do não regenerado. Pois, como já mostramos,
especialmente sob a segunda divisão deste assunto, há muitos
vestígios do pecado ainda encontrados naqueles que foram renovados
pelo Espírito Santo, tais como o pecado original e muitos pecados
reais de ignorância, omissão e enfermidade, os quais eles reconhecem,
lamentam e lutam contra, para que não percam a boa consciência,
nem o senso do perdão divino. Há também alguns que incorrem em
erros que se opõem ao próprio fundamento de sua fé, ou que pecam
contra a consciência, por causa dos quais perdem a consciência de sua
aceitação por Deus e dos dons do Espírito Santo, quem, foram eles
para continuar assim até o fim de suas vidas, seriam condenados e
rejeitados por Deus; mas não perecem porque são levados a ver o erro
de seus caminhos e, assim, levados ao arrependimento.

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Há, no entanto, uma distinção tripla entre os justos e os ímpios
quando pecam. 1. Deus tem um propósito eterno de salvar todos
aqueles a quem Ele chama para o Seu serviço. 2. Quando os justos
pecam, eles são levados ao arrependimento em algum momento ou
outro antes do fim da vida. 3. Quando aqueles que foram regenerados
caem no pecado, a semente de sua regeneração sempre permanece,
que às vezes é tão forte e vigorosa a ponto de resistir ao pecado a tal
ponto que eles não caem em erros que subvertem o fundamento de
sua esperança, nem em pecado reinante; em outras ocasiões, é menos
vigoroso e ativo, de forma que pode por um tempo ser suprimido pelas
tentações, ainda que por fim autentique seu caráter divino, de forma
que nenhum dos que foram verdadeiramente convertidos a Deus cairá
finalmente e perecerá; como podemos ver no caso de Davi, de Pedro,
e outras coisas semelhantes. Mas, quando o pecado não regenerado, o
caso é totalmente diferente, pois nenhuma dessas coisas diz respeito
a eles.

IV. QUAIS SÃO AS CAUSAS DO PECADO?


Que Deus não é a causa do pecado, é provado, 1. Pelo testemunho da
Escritura: “Deus viu tudo o que Ele tinha feito, e eis que era muito bom”
(Gênesis 1:31); “Tu não és um Deus que se agrada da maldade” (Salmos 5:4).
2. O próprio Deus é suprema e perfeitamente bom e santo e, portanto,
não pode ser o autor do mal. 3. Deus proíbe todo tipo de pecado em
Sua lei. 4. Deus puniu mais severamente todos os pecados, o que Ele
não poderia fazer consistentemente se tivesse sua origem nEle. 5. Deus
não destruiria Sua própria imagem no homem. A partir dessas
considerações, é evidente que a origem do pecado não deve ser
atribuída a Deus.
Mas a causa apropriada e eficiente em si mesma do pecado é a vontade
dos demônios e dos homens, pela qual eles livremente se afastaram de
Deus e se privaram de Sua imagem. “Por meio da inveja, o Diabo trouxe a

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morte ao mundo” (Sabedoria de Salomão 2:247). Mas a morte é o castigo
do pecado. “Vós tendes por pai ao Diabo, e quereis satisfazer os desejos de
vosso pai; ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade,
porque não há verdade nele; quando ele fala mentira, ele fala do que lhe é
próprio, porque ele é um mentiroso, e o pai dela” (João 8:44); “Aquele que
comete pecado é do Diabo, porque o Diabo peca desde o princípio. Para este
propósito o Filho de Deus Se manifestou, para que pudesse destruir as obras
do Diabo” (1 João 3:8); “Por um só homem entrou o pecado no mundo”
(Romanos 5:12).
A causa, portanto, do primeiro pecado, ou da queda de nossos
primeiros pais no paraíso, foi o Diabo tentar e incitar o homem a
pecar, e a vontade do homem se separando livremente de Deus e
caindo nas sugestões do tentador. Esta queda de Adão é a causa
eficiente do pecado original tanto em si mesmo quanto em sua
posteridade. “Pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos
pecadores” (Romanos 5:19). A causa precedente de todos os pecados
atuais na posteridade é o pecado original. “Já não sou eu que o faço, mas
o pecado que habita em mim” (Romanos 7:17); “Quando a concupiscência
concebe, dá à luz o pecado” (Tiago 1:14). Os objetos que induzem os
homens a pecar podem ser considerados motivos acidentais ou
casuais. “O pecado, aproveitando-se dos mandamentos, operou em mim todo
tipo de concupiscência” (Romanos 7:8). O Diabo e os homens iníquos são
a causa do pecado por si mesmos. Os pecados atuais precedentes são
as causas daqueles que se seguem, pois as Escrituras ensinam que
Deus pune o pecado com o pecado, e que os pecados que se seguem
são as punições daqueles que precedem: “Deus os entregou à impureza,
pela concupiscência de seus próprios corações: operando o que é indecente, e
recebendo em si a recompensa do seu erro que foi justa” (Romanos 1:24, 27);
“Portanto, Deus lhes enviará uma forte ilusão, para que creiam na mentira" (2
Tessalonicenses 2:11). Mas como o homem em sua sabedoria - tão

7 Livro deuterocânico, também conhecido como “Livro de Sabedoria”.

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grande é sua insolência - está acostumado a formular vários
argumentos, com o propósito de lançar a causa do pecado de si mesmo
sobre Deus, e assim se libertar da culpa, devemos falar mais
amplamente das causas do pecado e refutar as vãs pretensões pelas
quais os homens costumam se justificar.
Existem alguns que fingem encontrar a origem do pecado em seu
destino, conforme revelado pelas estrelas, dizendo: “Pecamos porque
nascemos sob um mundo infeliz”. Outros, quando repreendidos por seus
pecados, respondem: “Não nós, mas o Diabo é a causa das más ações
que cometemos”. Outros, pondo de lado todas as desculpas, lançam a
culpa diretamente sobre Deus, dizendo: “Deus assim o quis; porque se Ele
não o tivesse desejado, eu não tinha pecado”. Outros, novamente, dizem,
para atenuar seus pecados, Deus foi capaz de me impedir de fazer o
que era errado, e como Ele não me restringiu, portanto, Ele mesmo é
o autor do meu pecado.
Com estes, e semelhantes pretextos, os homens têm, muitas vezes -
pois não é coisa nova - afiado suas línguas blasfemas contra Deus.
Nossos primeiros pais, quando pecaram, e Deus acusa seu crime sobre
eles, esforçaram-se em lançar a culpa de suas más ações sobre o
próximo, nem confessaram honestamente a verdade. Adão a lançou,
não tanto sobre sua esposa, mas mais sobre o próprio Deus. “A mulher
disse, aquela que tu deste para estar comigo, ela me deu da árvore, e eu comi”
(Gênesis 3:12); como se ele dissesse: “Eu não teria pecado, exceto se Tu não
tivesse unido ela a mim”. A mulher atribuiu a maldade inteiramente ao
Diabo, dizendo: “A serpente me enganou, e eu comi” (Gênesis 3:13).
Essas são as conclusões falsas, ímpias e detestáveis dos homens ímpios
com respeito à origem do pecado, pelas quais grande reprovação é
lançada sobre a majestade, verdade e justiça de Deus. Nem é a
natureza do homem a causa do pecado, porque Deus a criou boa,
conforme se diz: “Deus viu todas as coisas que fez, e eis que era muito
bom" (Gênesis 1:31). O pecado é uma qualidade acidental ou acidente,

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que se liga ao homem em consequência da queda, e não uma
propriedade substancial; embora tenha se tornado natural após a
queda, e seja assim chamado corretamente por Agostinho, porque
agora todos nós nascemos em pecado e somos filhos da ira, assim
como os outros. Mas essas coisas devem ser consideradas mais
amplamente.
1. Aqueles que poderiam tornar o destino uma desculpa para seus
pecados, definir destino para denotar uma ordem, ou uma cadeia
ligada entre si por toda a eternidade, e uma certa necessidade
perpétua de propósitos e obras, de acordo com o conselho de Deus, e
o mal às próprias estrelas. Agora, se tu perguntardes a eles: “Quem fez
essas estrelas?”, eles respondem: “Deus”. Portanto, esses homens
atribuem seus pecados a Deus. Mas um destino como este, todos os
filósofos mais sábios - para não falar do cristão - se unem em rejeitar.
Agostinho, opondo duas epístolas dos pelagianos a Bonifácio, diz:
“Aqueles que afirmam que o destino é a causa do pecado, afirmam que
não apenas ações e eventos, mas também nossas próprias vontades,
dependem da posição das estrelas no momento da concepção ou
nascimento de cada um, que eles chamam de constelações. Mas a
graça de Deus não se eleva apenas acima de todas as estrelas e todos
o céu, mas também acima de todos os anjos”.
Podemos concluir nossas observações com referência a essa vã
pretensão, alegando à Palavra do Senhor, proferida pelo profeta
Jeremias, capítulo 10, verso 2: “Assim diz o Senhor: Não aprendeis o
caminho dos gentios, e não se surpreendeis com os sinais do céu,
porque os gentios estão espantados com eles”. Que os astrólogos
pagãos deveriam, portanto, chamar o planeta Saturno de impiedoso,
rígido e cruel; e Vênus benigno, favorável e brando, é a vaidade das
vaidades; pois as estrelas não têm poder de fazer o bem ou o mal; e,
portanto, os crimes dos homens ímpios nunca devem ser atribuídos a
eles.

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2. Que o Diabo não é o único autor do pecado, quem, quando somos
culpados de transgressão, deve suportar sozinho a culpa e estarmos
livres de censura, é evidente a partir desta consideração, que ele só
pode sugerir e seduzir os homens fazer o que é mau; mas não pode
obrigá-los a cometê-lo. Deus restringe o Diabo de tal forma, por Seu
poder, que ele não pode fazer o que deseja; mas apenas o que, e tanto
quanto, Deus permitir. Sim, ele não tem tanto controle sobre porcos
imundos, muito menos sobre as almas mais nobres dos homens. Ele
tem, de fato, sutileza e grande poder de persuasão; mas Deus é mais
poderoso do que Satanás e nunca cessa de sugerir bons pensamentos
ao homem, nem permite que o Diabo vá além do que é para o nosso
bem. Isso podemos ver no caso de Jó, aquele homem santíssimo, e
também em Paulo, e em suas palavras: “Fiel é Deus, que não permitirá que
sejais tentados acima do que são capazes” (1 Coríntios 10:13). Eles
raciocinam falsamente, portanto, aqueles que tentam lançar a culpa
de seus pecados sobre os ombros de Satanás.
3. Resta ser demonstrado que Deus não é o autor do pecado. Há quem
argumente: “Deus quis assim, e se Ele não quisesse, não teríamos
pecado. Quem pode resistir ao seu poder?”. Novamente: “Quando Deus
tinha o poder de nos impedir de pecar, e não o fez, Ele é o autor de
nossos pecados”. Essas são as objeções, as calúnias sujas e os sofismas
dos ímpios. Deus pode, de fato, por Seu poder absoluto, prevenir o
mal; mas Ele não errará e despojará Sua própria criatura, o homem, a
quem Ele criou justo e santo. Ele age com o homem de uma forma
que corresponde à natureza com a qual Ele o dotou.
Consequentemente, Ele propõe leis às quais atribui galardões e
punições - Ele nos ordena que aceitemos o bem e evitemos o mal; e
para que possamos fazer isso, Ele dá Sua graça, sem a qual nada
podemos fazer, e também encoraja nossa diligência e trabalho. Mas se
um homem deixa de fazer o que deve, seu pecado e negligência são
imputáveis a si mesmo, e não a Deus, embora Deus tivesse o poder de

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impedi-lo, mas não o fez. Nem é apropriado que Deus proíba, de
qualquer forma direta, as más ações do ímpio, para que, ao fazê-lo, Ele
não perturbe a ordem que estabeleceu e assim destrua Sua própria
obra. Portanto, Deus não é o autor do pecado ou do mal.
Devemos agora dar o testemunho das Escrituras com referência a este
assunto - refutar certas objeções e investigar a origem do pecado.
As Escrituras, em muitas passagens, ensinam que Deus não é o autor
do pecado. Podemos apenas nos referir a algumas passagens que
tratam desse ponto. “Deus não criou a morte, nem tem prazer na destruição
dos vivos” (Sabedoria de Salomão 1:138). “Não desejo a morte do ímpio, mas
que o ímpio se converta do seu caminho e viva” (Ezequiel 18:23). “Tu não és
um Deus que se agrada da perversidade, nem contigo habitará o mal. Os
insensatos não pararão à Tua vista” (Salmos 5:4, 5). “Deus criou o homem
reto, mas eles têm buscado muitas invenções” (Eclesiastes 7:29). “Nossa
injustiça elogia a justiça de Deus” (Romanos 3:5). “Por um só homem entrou
o pecado no mundo, e pelo pecado a morte” (Romanos 5:12). “Eu sei que em
mim nenhuma coisa boa habita” (Romanos 7:18).
A partir dessas declarações expressas das Escrituras, podemos
concluir com segurança que Deus não é o autor do pecado; mas que
sua origem deve ser traçada ao homem, o Diabo sendo o instigador;
contudo, de tal forma, que podemos dizer, o Diabo que se tornou
corrupto desde o início, privou o homem de sua santidade original, o
que, entretanto, ele não poderia ter feito, se o homem não tivesse
consentido com o mal por sua própria vontade. Aqui é necessário que
voltemos à queda de nosso pai Adão, a quem Deus criou à Sua própria
imagem, com o que queremos dizer que Ele criou o homem bom,
perfeito, santo, justo e imortal, e os dons mais excelentes lhe deu, de
forma que nada faltava para seu gozo pleno e perfeito. Seu
entendimento foi totalmente iluminado; sua vontade era mais livre e

8 Citação de um dos livros apócrifos presente em algumas versões da Bíblia.

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sagrada; ele tinha o poder de fazer o bem ou o mal; e tinha a lei que o
orientava sobre o que fazer e o que evitar; pois o Senhor disse: “Não
comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gênesis 2:17). Deus
exigia obediência e fé simples, para que Adão pudesse depender
inteiramente dEle, e isso não constrangidamente, como se fosse
compelido a isso por alguma necessidade; mas livre e alegremente.
“Deus criou o homem desde o princípio, e o deixou nas mãos de seu conselho,
dizendo: Se quiseres, guardarás o mandamento e terás uma fidelidade
aceitável” (Eclesiástico 15:14-169). Quando a serpente, portanto, tentou
o homem e o persuadiu a provar da árvore proibida, ela não ignorava
que o conselho e o ardil da serpente eram contrários à ordem de Deus;
pois o Senhor havia dito: “Dela não comereis nem tocareis, para que não
morrais” (Gênesis 3:3). Estava, portanto, nas mãos de seu conselho
comer ou não comer. Deus declarou Sua lei, ordenando-lhe
expressamente que não comesse, e Se esforçou para impedi-lo de
comer, predizendo a penalidade: “Para que não morrais”. Tampouco
Satanás usou qualquer medida compulsiva - o que não era possível
para ele - mas provavelmente aconselhou e incitou o homem até que
finalmente o venceu com suas súplicas; pois quando a vontade da
mulher se inclinou para a palavra do Diabo, sua mente se afastou da
palavra de Deus e, ao rejeitar Sua lei, ela cometeu uma má ação.
Posteriormente, ela inclinou o marido e o conduziu consigo, que, por
consentir, participante do seu pecado se tornou. As Escrituras
ensinam isto, onde está dito: “E quando a mulher viu que a árvore era boa
para se comer, e que era agradável aos olhos, e uma árvore desejável para dar
sabedoria, ela tirou do fruto dela, comeu e também deu a seu marido com ela,
e ele comeu” (Gênesis 3:6).

9 Correção da referência do livro deuterocanônico: Eclesiástico 15:14 para


Eclesiástico 15:14-16.

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Aqui temos o início do mal, o Diabo; e aquilo que moveu a vontade do
homem, a saber: o falso elogio e recomendação do Diabo e, portanto,
uma mentira manifesta; e a aparência agradável e atraente da árvore.
Consequentemente, Adão e Eva fizeram, por sua própria escolha e livre
arbítrio, o que fizeram, sendo enganados pela esperança de obter
sabedoria maior e mais excelente, que o sedutor havia falsa e
enganosamente prometido.
Concluímos, portanto, que o pecado teve sua origem, não em Deus,
que proíbe o que é mau, mas no Diabo e na livre escolha do homem,
que foi corrompido pela falsidade de Satanás. Consequentemente, o
Diabo e a vontade pervertida do homem que o segue devem ser
considerados como a verdadeira causa do pecado. Este mal agora flui
de nossos primeiros pais, para toda a sua posteridade, para que o
pecado não surja de nenhuma outra fonte, a não ser de nós mesmos,
de nosso julgamento pervertido e vontade depravada, junto com a
sugestão do Diabo. Pois uma raiz ou princípio maligno, como a queda
de nossos primeiros pais, produz por si mesmo, um ramo corrupto e
podre, correspondendo à sua própria natureza, que Satanás agora
também por sua fraude e mentiras, cultiva exatamente como as
plantas; mas é em vão que ele opere assim, se não nos oferecermos a
ele para sermos moldados segundo a sua vontade. Isso é chamado de
pecado original que flui da fonte original, a saber: de nossos primeiros
pais, em toda a sua posteridade, por propagação ou geração. Trazemos
esse pecado conosco em nossa natureza, desde o ventre de nossa mãe,
quando nascemos neste mundo. “Eu nasci em iniquidade, e em pecado
minha mãe me concebeu” (Salmos 51:7). E Cristo fala assim do Diabo: “Ele
foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque nele não há
verdade. Quando ele fala uma mentira, fala do que lhe é próprio; pois ele é um
mentiroso, e o pai dela” (João 8:44).

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Objeção 1. Satanás foi criado por Deus; portanto, sua malícia também
deve vir dEle. Resposta: Negamos o antecedente. O Diabo foi feito
satanás ou adversário, não por Deus, pois o criou um anjo bom; mas
por apostasia voluntária. Consequentemente, é dito que ele não
permaneceu na verdade, a partir do qual podemos inferir que ele deve
ter permanecido na verdade, antes de sua queda.
Objeção 2. Deus criou Adão; e, portanto, o pecado de Adão. Resposta:
Há aqui uma falácia de acidente, em atribuir a Deus a criação de um
mal acidental e acessório, no lugar do que é bom. O pecado não é
natural; mas é uma corrupção da natureza do homem, que Deus criou
boa; pois Deus fez o homem bom; mas o homem, por instigação do
Diabo, privou-se dos dons que recebera de Deus e se corrompeu.
Objeção 3. Mas a vontade e o poder que Adão possuía vinham de
Deus. Portanto, o pecado, que é cometido por esta vontade, também
deve vir de Deus. Resposta: Há aqui, novamente, uma falácia de
acidente, pois a vontade de Adão não foi a causa do pecado, na medida
em que foi de Deus; mas na medida em que por sua própria vontade
se inclinou para a palavra do Diabo. Deus não deu ao homem a
vontade e o poder de fazer o mal, pois Ele o proibia estritamente e o
denunciava em Sua lei. Mas Adão abusou e perverteu a vontade e o
poder que havia recebido de Deus, na medida em que não os dedicou
aos propósitos para os quais foram dados. O filho pródigo recebeu
dinheiro de seu pai, não para desperdiçá-lo em uma vida turbulenta,
mas para que pudesse receber o quanto fosse suficiente para suas
necessidades. Portanto, quando ele perversamente esbanjou o que
havia recebido de seu pai e foi reduzido à fome extrema, não foi por
culpa do pai de quem ele o recebeu, mas resultou do abuso do que ele
recebeu.

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Objeção 4. Deus tornou o homem falível; nem o estabeleceu na
bondade com que o criou. Portanto, foi de acordo com sua vontade
que o homem pecou. Resposta: As Escrituras repreendem e silenciam
essa perversidade dos homens perversamente curiosos, dizendo:
“Quem és tu que replicas contra Deus?” (Romanos 9:20); “Ai daquele que
contende com seu criador” (Isaías 45:9). A menos que o homem tivesse
sido criado falível, não haveria elogio ligado à sua obra ou virtude; pois
ele teria sido bom por necessidade. E se fosse apropriado que o
homem tivesse sido criado assim? A própria natureza de Deus exigia
que fosse assim. Deus não dá glória a nenhuma criatura. Adão era um
homem, e não Deus. E como Deus é bom, também é justo. Ele faz o
bem aos homens, mas deseja que sejam obedientes e gratos a Ele. Ele
deu inúmeros benefícios ao homem; portanto, convinha que ele fosse
grato, obediente e sujeito a Deus, que declarou, em Sua lei, o que seria
agradável a ele e o que não, dizendo: “Da árvore do conhecimento do bem
e do mal, tu não comerás, para que não morras” (Gênesis 2:17). Como se
dissesse: “Tu deves ter respeito por Mim, devotar-se a Mim, servir-Me
e obedecer-me; tu não deverás pedir e buscar regras do bem e do mal
de qualquer outra pessoa além de Mim; tu deverás, portanto, mostrar-
se obediente a Mim”.
A isso, é objetado: Deus conheceu de antemão a queda do homem, que
poderia ter evitado, se não a tivesse desejado; mas Ele não a impediu;
portanto, Adão pecou pela vontade e falha de Deus. Resposta: Uma
resposta já foi retornada a esta objeção; no entanto, podemos observar,
além do que dissemos, que não decorre necessariamente da
presciência de Deus que o homem foi compelido a cair. Um certo pai
sábio, por alguns sinais particulares, previu que seu filho degenerado,
em algum momento subsequente, seria atravessado por uma espada;
nem seu conhecimento prévio o engana; pois ele foi morto por
fornicação. Mas ninguém creu que ele está morto porque o pai previu
que ele teria um fim miserável; mas porque ele é um fornicador.

147 | P á g i n a
Ambrósio fala assim do assassinato de Caim: “Deus certamente soube de
antemão ao que Sua ira o levaria quando excitado e exasperado; ainda assim,
Ele não foi por causa disso impelido ao ato que cometeu pelo exercício de Sua
própria vontade, como por alguma necessidade, pecar; porque, em sua
presciência, Deus não pode ser enganado”. E Agostinho diz: “Deus é um justo
vingador daquelas coisas das quais Ele não é o perverso perpetrador”.

V. QUAIS SÃO OS EFEITOS DO PECADO?


Tendo definido e considerado o que é o pecado, e de onde ele procede,
estamos agora preparados para investigar os efeitos que
necessariamente acompanham a transgressão da lei divina; um
conhecimento disso é de grande importância para uma compreensão
adequada da magnitude do mal do pecado. Esses efeitos são punições
temporais e eternas; e porque Deus frequentemente pune os pecados
com pecados, pode-se dizer que as transgressões subsequentes são os
efeitos dos pecados anteriores (Romanos 1:24; 2 Tessalonicenses 2:11;
Mateus 13:12). Para que isso seja melhor compreendido, as seguintes
explicações são especialmente necessárias.
1. O pecado original, ou a depravação de toda a natureza do homem,
ou a destruição da imagem de Deus no homem, no sentido em que o
explicamos, é o efeito da queda de nossos primeiros pais no paraíso
(Romanos 5:19).
2. Todos os pecados atuais são efeitos do pecado original. “Já não sou
eu que o faço, mas o pecado que habita em mim” (Romanos 7:17).
3. Todos os pecados reais subsequentes são os efeitos dos anteriores,
e um aumento deles; visto que, de acordo com o justo julgamento de
Deus, os homens frequentemente fluem de um pecado para outro,
como Paulo ensina a respeito dos gentios, no 1º capítulo de sua
epístola aos romanos.

148 | P á g i n a
4. Os pecados de outros homens também são frequentemente efeito
de pecados reais, visto que muitas pessoas são agravadas pela
reprovação e maus exemplos de outras, e são, portanto, induzidas e
impelidas a pecar, como se diz: “Más conversações corrompem bons
costumes” (1 Coríntios 15:33).
5. Uma má consciência e um medo do julgamento de Deus,
invariavelmente e constantemente seguem a comissão do pecado
(Romanos 2:15; Isaías 57:21).
6. Todas as várias calamidades desta vida, junto com a própria morte
temporal, são os efeitos do pecado: porque é por causa do pecado que
Deus infligiu todas essas coisas à raça humana, de acordo com a
declaração: “No dia que comerdes, certamente morrerás” (Gênesis 2:17).
7. A morte eterna é a última e mais extrema consequência do pecado,
em todos aqueles que não foram libertados dele pela morte e mérito
de Cristo: “Maldito aquele que não confirmar todas as palavras desta lei
para as cumprir” (Deuteronômio 27:26); “E muitos dos que dormem no pó
da terra, ressuscitarão para vergonha e desprezo eterno” (Daniel 12:2);
“Apartem-se de mim, malditos, para o fogo eterno” (Mateus 25:41).
Todos os pecados, portanto, qualquer que seja seu caráter, merecem,
em sua própria natureza, a morte eterna, que é mais claramente
afirmada nessas e em passagens semelhantes da Palavra de Deus.
“Maldito aquele que não confirmar (...)” (Deuteronômio 27:26); “Qualquer
que ofender em um ponto, é culpado de todos” (Tiago 2:10); “De forma alguma
sairás dali, antes de pagar o último ceitil” (Mateus 5:26).

149 | P á g i n a
No entanto, todos os pecados não são iguais. Eles diferem de acordo
em certos graus, mesmo no julgamento de Deus; como está dito: “Todos
os pecados e blasfêmias serão perdoadas aos filhos dos homens; mas aquele
que blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão” (Marcos 3:28, 29);
“Aquele que Me entregou a ti, maior pecado tem” (João 19:11).
Assim, também haverá graus nos castigos do inferno: pois os castigos
dos perdidos serão proporcionais aos pecados que cometeram;
embora, como respeita a duração dessas punições, tudo será eterno.
“O servo que conheceu a vontade do seu Senhor, e não fez segundo a Sua
vontade, será castigado com muitos açoites” (Lucas 12:47); “No dia do
julgamento serei mais tolerável a Tiro e Sidom do que a vós” (Mateus 11:22).

150 | P á g i n a
Questão 8. Somos então tão corruptos que somos totalmente
incapazes de fazer qualquer bem e inclinados a toda a
perversidade?
Resposta: Na verdade, nós somos, exceto se formos regenerados pelo
Espírito de Deus.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 8

O ponto da liberdade da vontade, ou o poder da vontade humana de


obedecer a Deus e de fazer o que é bom, está intimamente ligada ao
assunto da miséria do homem e exige nossa atenção em seguida na
ordem. Também é necessário saber que habilidade o homem possuía
antes da queda, e o que ele tem desde então, para que, tendo um
conhecimento correto dos efeitos do primeiro pecado, possamos ficar
mais entusiasmados com a humildade e com um desejo sincero pelo
divino graça e orientação; e também à verdadeira gratidão a Deus. Pois
esta doutrina da liberdade da vontade nos leva a uma consideração,
não da habilidade e excelência do homem, mas de sua fraqueza e
miséria.

DO LIVRE ARBÍTRIO

O principal ponto e objeto, nesta discussão, é: pode o homem agora,


da mesma forma em que se separou de Deus, também retornar a Ele
por sua própria força - aceitar a graça que é oferecida a ele por Deus,
e recuperar para si a posição que foi perdida pelo pecado? E também:
a vontade do homem é a causa principal pela qual alguns são
convertidos, enquanto outros continuam em pecado; e por que, tanto
entre os convertidos quanto entre os não convertidos, alguns são
melhores do que os demais? Em uma palavra: a vontade do homem é
a causa pela qual os homens fazem o bem ou o mal, sendo desta, ou
daquela forma?

151 | P á g i n a
Os pelagianos, e outros de caráter semelhante, respondem a esta
pergunta: que tanta graça é dada por Deus, e deixada pela natureza, a
todos os homens, que eles podem por si mesmos retornar a Deus e
obedecê-lO: nem nós devemos procuram por qualquer outra causa que
não a vontade do homem, como a razão pela qual alguns recebem e
retêm, enquanto outros rejeitam e desconsideram, a ajuda divina para
abandonar o pecado, e fazem, desta ou daquela forma, resolver e
executar seus próprios conselhos e ações .
As Sagradas Escrituras, no entanto, ensinam uma doutrina totalmente
diferente, que, como a entendemos, é que nenhuma obra aceitável e
agradável a Deus pode ser empreendida e executada por qualquer
pessoa, sem regeneração e a graça especial do Espírito Santo; nem
pode haver mais ou menos bem nos conselhos e ações de qualquer
homem, do que Deus, por Sua própria graça, escolhe produzir neles;
nem pode a vontade de qualquer criatura se inclinar em qualquer
outra direção senão aquela que parece boa para o conselho eterno e
gracioso de Deus. E, no entanto, todas as ações da vontade criada, boas
e más, são feitas livremente. Para que isso seja melhor compreendido,
inquirimos:
I. O que é a liberdade de vontade ou o poder de escolha?
II. Qual é a distinção que existe entre a liberdade que está em Deus e
aquela que está em Suas criaturas racionais, anjos e homens?
III. Existe alguma liberdade da vontade humana?
IV. Que tipo de liberdade de vontade existe no homem; ou quantos
graus de livre-arbítrio existem no homem, de acordo com seu estado
quádruplo?

152 | P á g i n a
I. O QUE É LIBERDADE DA VONTADE OU PODER DE
ESCOLHA?
O termo liberdade, ou permissão, às vezes significa uma relação, poder
ou direito, seja a ordem ou disposição de uma pessoa ou coisa, feita
pela vontade de uma determinada pessoa, ou pela natureza, com o
propósito de agir por escolha própria, ou do temor conforme leis
justas, ou a ordem que está em harmonia com a natureza do homem;
com o propósito de usufruir dos benefícios que são próprios e
adequados para nós, sem qualquer proibição e restrição; e com o
propósito de sermos aliviados de suportar as necessidades e fardos
que não são peculiares à nossa natureza. Isso pode ser chamado de
liberdade da escravidão e da miséria e se opõe à escravidão. Portanto,
Deus é mais livre, porque não está vinculado a ninguém: assim, os
judeus e romanos eram livres, não sendo limitados por governos e
fardos estrangeiros: portanto, um estado ou cidade está livre de tirania
e servidão, enquanto no gozo do serviço civil liberdade: assim, nós,
sendo justificados pela fé, somos por meio de Cristo libertos da ira de
Deus, da maldição da lei e das cerimônias instituídas por Moisés, mas
essa significação de liberdade não pertence propriamente a essa
discussão sobre a liberdade da vontade; porque é evidente, e por todos
admitido, que somos servos de Deus e que a lei nos obriga à
obediência ou ao castigo. Existem também muitas coisas que nossa
vontade escolhe livremente, mas que, no entanto, não tem o poder ou
a capacidade de realizar.
Em segundo lugar, a liberdade se opõe à restrição e é uma qualidade
da vontade, ou um poder natural de uma criatura inteligente,
concordando com a vontade; ou seja, é o poder de escolher ou recusar,
por conta própria, e sem qualquer restrição, um objeto apresentado
pelo entendimento, a natureza da vontade permanecendo a mesma, e
sendo livre para escolher isto ou aquilo, ou adiar qualquer ação que
considere adequada, assim como um homem pode estar disposto a
andar ou não. Isso é agir por deliberação madura, que é o método de
ação peculiar à vontade.

153 | P á g i n a
Essa liberdade de vontade pertence a Deus, aos anjos e aos homens: e,
quando considerada em relação a eles, é chamada de livre escolha. Pois
é dito que é livre aquele que é dotado desse poder, ou liberdade de
querer ou não querer, enquanto o poder de escolha é a própria
vontade, visto que ela segue ou rejeita o julgamento da mente na
escolha que faz; pois compreende ambas as faculdades da mente, a
saber: o julgamento e a vontade.
O livre poder de escolha é, portanto, a faculdade ou poder de querer
ou não querer, de escolher ou rejeitar um objeto apresentado pelo
entendimento, por si mesmo e sem qualquer restrição. Essa faculdade
é chamada de poder de escolha em relação à mente, que apresenta
objetos à vontade, para serem escolhidos ou rejeitados; e é chamado
de livre no que diz respeito à vontade que segue voluntariamente e
por conta própria, sem qualquer restrição, o julgamento da mente. Isso
é chamado de livre o que é voluntário e que se opõe ao que é
involuntário e restrito, mas não ao que é necessário; pois o que é
voluntário pode concordar e harmonizar-se com o que é necessário,
mas não com o que é involuntário, pois Deus e os santos anjos são
necessariamente bons, mas não involuntariamente ou constrangidos;
mas mais livremente, porque eles têm o princípio e a causa de sua
bondade, que é o livre arbítrio, em si mesmos. Diz-se que o
constrangimento tem apenas um começo externo e uma causa de sua
própria atividade, e não, ao mesmo tempo, um que também é interno,
pelo qual pode se mover para a arte desta ou daquela forma.
Há, portanto, tal diferença entre o que é necessário uma vez
restringido, como o que existe entre o que é geral e o particular. Tudo
o que é restringido é necessário, mas nem tudo o que é necessário é
restringido. Consequentemente, existe o que é chamado de dupla
necessidade - uma necessidade de imutabilidade e de restrição. O
primeiro pode existir com o que é voluntário, mas o último não.

154 | P á g i n a
A mesma distinção também existe entre o que é livre e contingente.
Tudo o que é livre é contingente, mas não o contrário. Portanto, o que
é livre é uma espécie do contingente, como também o que é fortuito
e casual.

II. QUAL É A DISTINÇÃO QUE EXISTE ENTRE A LIBERDADE


QUE ESTÁ EM DEUS E SUAS CRIATURAS, ANJOS E HOMENS?
Existem duas coisas comuns a Deus e às criaturas racionais, pois
respeita a liberdade da vontade. O primeiro é que Deus e as criaturas
inteligentes agem por deliberação e conselho, isto é, eles escolhem ou
rejeitam objetos pelo exercício do entendimento e da vontade. A outra
é que eles escolhem ou rejeitam objetos por sua própria atividade
interna e própria, sem qualquer constrangimento, o que é o mesmo
que dizer que a vontade sendo por sua própria natureza capacitada a
desejar o oposto do que ela deseja, ou para adiar a ação, inclina-se por
conta própria para aquele curso que prefere (Salmos 104:24; 115:3;
Gênesis 3:6; Isaías 1:19, 20; Mateus 23:37).
Existem três diferenças entre a liberdade que pertence a Deus e aquela
que pertence às Suas criaturas.
O primeiro diz respeito ao entendimento. Deus vê e entende por Si
mesmo todas as coisas da forma mais perfeita, desde toda a
eternidade, sem a menor ignorância ou erro de julgamento. As
criaturas, por outro lado, nada sabem de si mesmas, nem sabem todas
as coisas, nem as mesmas coisas em todos os tempos; mas apenas
tanto de Deus, junto com Suas obras e vontade, como Ele deseja, em
momentos específicos, revelar a eles. Consequentemente, eles são
ignorantes de muitas coisas e muitas vezes erram.

155 | P á g i n a
As seguintes passagens da Escrituras confirmam esta distinção que
fizemos com respeito ao entendimento: “Daquele dia e hora ninguém
sabe, nem os anjos do céu; mas somente Meu Pai” (Mateus 24:36); “Ele dá
sabedoria aos sábios e conhecimento aos que entendem” (Daniel 2:21); “Quem
dirigiu o Espírito do Senhor?” (Isaías 40:13); “Nem há qualquer criatura que
não se manifeste à sua vista” (Hebreus 4:13); "Ele ilumina todo homem que
vem ao mundo” (João 1:9).
A segunda distinção é válida para a vontade. A vontade de Deus não é
governada por, nem dependente de qualquer coisa além ou fora de si
mesma. As vontades dos anjos e dos homens são de fato as causas de
suas próprias ações; no entanto, eles são influenciados e controlados
pelo conselho secreto e providência de Deus, na escolha ou rejeição
de objetos, seja imediatamente por Deus, ou por meio de certos
instrumentos, sejam eles bons ou maus, que Deus julga adequado
empregar. Consequentemente, é impossível para eles fazerem
qualquer coisa contrária ao conselho eterno e imutável de Deus. Daí
o termo αυτεξιυσνν (auteksyysnn) (que significa ser absolutamente Seu,
por Sua própria vontade e em Seu próprio poder), pelo qual os
teólogos gregos expressam o livre poder de escolha, pertence mais
propriamente a Deus, que está perfeita e absolutamente sob Seu
próprio controle, não estando vinculado a ninguém; enquanto o termo
εκθυσνν (ekthysnn) - que significa voluntário ou livre - é mais
corretamente usado em relação às criaturas, e é assim aplicado nas
seguintes passagens das Escrituras: Filipenses 5:14; Hebreus 10:26; 1
Pedro 5:2. Os vários argumentos e testemunhos da Palavra de Deus,
pelos quais esta distinção é estabelecida, serão apresentados
amplamente quando chegarmos à consideração da doutrina da
providência de Deus.

156 | P á g i n a
Que Deus, entretanto, é de fato a causa primeira de Seus conselhos,
essas e outras declarações semelhantes de Sua Palavra afirmam
claramente: “Ele fez tudo o que Lhe agradou” (Salmos 115:3); “Que age de
acordo com Sua própria vontade no exército dos céus e entre os habitantes da
terra” (Daniel 4:35). Que a vontade e os conselhos das criaturas
dependem da permissão e da vontade de Deus, pode ser provado pelas
seguintes passagens semelhantes da Escritura Sagrada: “O Senhor
enviará Seu Anjo diante de ti” (Gênesis 24:7), e outras passagens
semelhantes. “Vá e reúna os filhos de Israel” (Êxodo 3:16), e outras
passagens semelhantes. “Ele sendo liberto pelo determinado conselho e
presciência de Deus, vós o haveis tomado, e por mãos iníquas O crucificaste e
mataste” (Atos 2:23); “Mas Deus cumpriu essas coisas” (Atos 3:16), e outras
passagens semelhantes. “Herodes e Pôncio Pilatos, com os gentios e o povo
de Israel, estavam congregados para fazer tudo o que Tua mão e Teu conselho
determinassem que fosse feito” (Atos 4:27); “Eu sei, ó Senhor, que o caminho
do homem não está nele; não é no homem que anda dirigir os seus passos”
(Jeremias 10:23); “O coração do rei está nas mãos do Senhor” (Provérbios
21:1). A vontade, portanto, de anjos e homens, e todas as outras causas
secundárias são da mesma forma governadas por Deus, assim como
são dEle, como sua causa primeira e principal, mas a vontade de Deus
não é governada por nenhuma de Suas criaturas, porque como Ele não
tem causa eficiente fora de Si mesmo, Ele não tem causa motriz ou
inclinadora; caso contrário, Ele não seria Deus, a primeira e grande
causa de todas as Suas obras, e as criaturas seriam colocadas no lugar
de Deus. Deus não constrange e força, mas move e dirige a vontade de
Suas criaturas; em outras palavras, Ele efetivamente inclina a vontade,
apresentando objetos à mente, para ela escolher aquilo que o
entendimento na ocasião julga ser bom e rejeitar o que Ele concebe
como mau.

157 | P á g i n a
A terceira distinção se mantém no entendimento e na vontade ao
mesmo tempo. Deus, como conhece todas as coisas imutavelmente,
também as decretou desde a eternidade, e deseja imutavelmente todas
as coisas que são feitas na medida em que são boas, e as permite na
medida em que sejam pecados, mas, como as noções e os julgamentos
que as criaturas formam das coisas são mutáveis, suas vontades
também são mutáveis. Eles desejam o que antes não queriam, e se
recusam a escolher o que antes tinham prazer. E ainda mais, como
todos os conselhos de Deus são muito bons, justos e sábios, Ele nunca
os desaprova; nem os corrige ou muda, como os homens
frequentemente fazem, quando percebem que decidiram
imprudentemente sobre qualquer coisa. Estas declarações das
Escrituras estão aqui em destaque: “Deus não é homem para que minta;
nem filho do homem para que Se arrependa” (Números 23:19); “Eu sou o
Senhor, não mudo” (Malaquias 3:6); “O que aconteceria se Deus, disposto a
mostrar Sua ira e tornar Seu poder conhecido, suportasse com muita (...)”
(Romanos 9:22), e outras passagens semelhantes.
Objeção 1. Aquele que não pode mudar seu conselho não tem livre
arbítrio. Deus não pode mudar Seu conselho. Portanto, Sua vontade
não é livre. Resposta: Respondemos à primeira proposição deste
silogismo fazendo uma distinção: não é aquele que não pode mudar
seu propósito que não tem liberdade de vontade, mas aquele que não
pode mudar seu conselho, sendo impedido por alguma causa externa,
embora ele possa desejar mudar, mas Deus não muda Seu conselho,
nem pode mudá-lo; não, no entanto, por causa de qualquer
impedimento decorrente de alguma causa externa, nem por causa de
qualquer imperfeição da natureza ou habilidade, mas porque Ele não
deseja, nem pode desejar uma mudança de conselho, por causa da
retidão imutável de Sua vontade, na qual nenhum erro nem nenhuma
causa de mudança pode existir.

158 | P á g i n a
Objeção 2. Aquilo que é governado e regulado pela vontade imutável
de Deus não age livremente. A vontade dos anjos e dos homens age
livremente, portanto, não é governada, nem limitada na escolha que
faz, pela vontade imutável de Deus. Resposta: É necessário aqui
novamente, ao responder à objeção acima, fazer a seguinte distinção
com referência à proposição principal: Aquele que é governado e
controlado pela vontade de Deus a ponto de agir sem qualquer
deliberação e escolha própria, não age livremente, mas não é dessa
forma que Deus influencia a vontade dos anjos e dos homens. Ele
apresenta objetos ao entendimento e, por meio deles, efetivamente
move e inclina a vontade, de forma que, embora escolham o que Deus
deseja, eles, no entanto, o fazem por sua própria deliberação e escolha
e, portanto, agem livremente. Portanto, pode-se dizer que as criaturas
agem livremente, não quando desconsideram todas as formas de
governo e restrição, mas quando agem com deliberação, e quando a
vontade escolhe ou rejeita objetos por seu próprio exercício livre,
mesmo que possa ser excitada e controlada por outra pessoa.
Objeção 3. Se a vontade, quando Deus a muda e a dirige a outros
objetos, não consegue resistir, ela é totalmente passiva. Mas isso nos
envolve em erro. Portanto, a vontade não pode ser assim influenciada
e controlada. Resposta: A conclusão aqui retirada é incorreta, na
medida em que não há uma enumeração suficientemente completa e
distinta na proposição principal daqueles exercícios e ações de que a
vontade é capaz; pois pode não apenas resistir à influência que Deus
exerce sobre ela, mas também tem a capacidade, por sua própria
determinação, de obedecer a Deus e de concordar com as sugestões e
influências de Seu Espírito. Ao fazer isso, no entanto, ele não é apenas
passivo, mas também ativo, e executa suas próprias ações, embora o
poder de assentir e obedecer não venha de si mesmo, mas da graça do
Espírito Santo.

159 | P á g i n a
Objeção 4. Aquilo que resiste à vontade de Deus não é governado por
ela. A vontade do homem se opõe e resiste a Deus em muitas coisas,
portanto, não é governado por Ele. Resposta: Existem aqui quatro
termos. A proposição principal é verdadeira, se for entendida como
incluindo a vontade secreta e revelada de Deus; a proposição menor,
entretanto, apenas expressa a vontade de Deus expressa ou revelada,
pois os decretos secretos da vontade de Deus são sempre ratificados
e executados em todos, mesmo naqueles que resistem mais
violentamente aos mandamentos de Deus.
Objeção 5. Se todas as determinações, inclusive as dos ímpios, são
estimuladas e governadas pela vontade de Deus, e se muitas delas são
pecaminosas, então Deus aparenta ser o autor do pecado. Resposta:
Há aqui uma falácia de acidente na proposição menor, pois as
determinações dos ímpios são pecado, não na medida em que são
ordenadas e procedem da vontade de Deus (pois até agora eles são
bons e concordam com a lei divina), mas na medida em que são de
demônios e homens, que agindo ou não conhecem a vontade de Deus,
ou não a executam com o desígnio de que assim possam obedecer e
glorificar a Deus.

III. EXISTE ALGUMA LIBERDADE DA VONTADE HUMANA?


Que há no homem uma certa liberdade de vontade, é provado: 1. Do
fato de que o homem foi criado à imagem de Deus, do qual o livre
arbítrio constituiu uma porção: “Façamos o homem à Nossa imagem,
conforme a Nossa semelhança” (Gênesis 1:26); “Deus criou o homem no
princípio e o deixou nas mãos de seu conselho” (Eclesiástico 15:14). 2. Da
definição da liberdade que pertence ao homem; pois o homem age por
deliberação, sabendo livremente e desejando ou rejeitando este ou
aquele objeto. Se esta definição, corresponde à natureza do homem, a
coisa que é expressa e definida por ela também deve pertencer a ele.

160 | P á g i n a
Objeção 1. Se o homem está em posse da liberdade de escolha, a
doutrina do pecado original é derrubada; pois é uma contradição dizer
que o homem não é capaz de obedecer a Deus e afirmar, ao mesmo
tempo, que tem liberdade de vontade. Resposta: Não há oposição real
no que se afirma aqui, porque desde a queda o homem tem liberdade
de vontade apenas em parte, e não como tinha antes da queda, nem
no mesmo grau.
Objeção 2. Aquele que não deseja escolher da mesma forma o bem e
o mal, não possui livre arbítrio, mas o homem, desde a queda, não tem
vontade de escolher igualmente o bem e o mal. Portanto, ele não
possui liberdade de vontade. Resposta: Rejeitamos a proposição
principal, porque contém uma definição incorreta de liberdade, pois,
de acordo com ela, o próprio Deus não possui qualquer liberdade de
vontade.
Objeção 3. Aquilo que depende de outro não é livre. Nossa vontade
depende de outra, portanto, não é livre. Resposta: Nós respondemos à
proposição principal, fazendo a seguinte distinção: aquilo que é
dependente e governado por outro, e não por si mesmo também, não
é livre. A vontade do homem, entretanto, é governada não apenas por
outro, mas também por ela mesma, pois Deus influencia os homens
de tal forma que eles não são constrangidos e levados
involuntariamente, mas livremente, para que se diga que eles próprios
se movem. O ser ou vontade que é movido apenas por si só, pertence
somente a Deus, de quem a liberdade infinita pode mais corretamente
ser predicado, do que das criaturas. Nesse ínterim, porém, pode ser
suficiente, no que diz respeito à liberdade que pertence ao homem,
afirmar que tudo o que ele deseja, ele o deseja livremente e por sua
própria determinação.

161 | P á g i n a
Objeção 4. Aquilo que é escravizado não é livre. Nosso poder de
escolha está escravizado desde a queda, portanto, não é livre. Resposta:
O argumento completo é admitido, se por livre entendermos aquilo
que tem o poder de agradar o que é bom e agradável a Deus: pois até
agora a vontade é mantida em cativeiro, e só pode querer e escolher o
que é mau. “Eu sou carnal, vendido sob o pecado” (Romanos 7:14) e outras
passagens semelhantes, mas se por livre entendemos voluntário ou
deliberado, então a proposição principal é falsa; pois não é a sujeição,
mas a restrição da vontade que tira sua liberdade.

IV. QUE TIPO DE LIBERDADE DE VONTADE TEM O HOMEM,


OU QUANTOS GRAUS DE LIVRE-ARBÍTRO EXISTEM, DE
ACORDO COM O ESTADO QUADRÚPLO DO HOMEM?
Ainda deve ser inquirido, na discussão deste assunto - e isso também
é necessário, a fim de que possamos chegar a um conhecimento
adequado de nós mesmos - qual, e quão grande, era a liberdade de
vontade que o homem possuía antes da queda? Se houve alguma, ou
nenhuma, desde a queda? E se houver, o que é? Quer seja restaurada
em nós; de que forma e a qual medida? Portanto, é evidente que os
graus de livre arbítrio podem ser considerados e distinguidos mais
corretamente, de acordo com o estado quádruplo do homem, a saber:
como ainda não caído no pecado, como caído, como regenerado, e
como glorificado, isto é: de que tipo e quão grande era a liberdade da
vontade humana antes da queda? O que é essa liberdade desde a queda
e antes da regeneração? O que há naqueles que são regenerados? E o
que será na vida futura, em um estado de glorificação?
O primeiro grau de liberdade é aquele que pertencia ao homem antes
da queda. Isso consistia em uma mente iluminada com o
conhecimento perfeito de Deus e uma vontade que rendia total
obediência a Deus por Seu próprio ato e inclinação voluntária, e ainda
não tão confirmado neste conhecimento e obediência, mas que
poderia cair por seu próprio livre exercício, se a aparência de qualquer

162 | P á g i n a
bem fosse apresentada com o propósito de enganar e efetuar uma
queda, isto é, a vontade do homem era livre para escolher o bem e o
mal, ou pode escolher livremente o bem, mas de forma que também
possa escolher o mal: pode continuar no bem, sendo preservado por
Deus, e também pode se inclinar e cair para o mal, se abandonado por
Deus. O primeiro é confirmado por uma consideração da perfeição da
imagem de Deus na qual o homem foi criado. Este último é evidente
a partir do próprio evento e dos seguintes testemunhos da Escritura:
“Deus fez o homem reto, mas eles buscaram muitas invenções” (Eclesiastes
7:29); “Deus encerrou a todos na incredulidade, para ter misericórdia de todos”
(Romanos 11:32). Na última passagem que acabamos de citar, Paulo
testifica que Deus, com profunda sabedoria, não colocou o primeiro
homem fora do alcance de uma queda, nem lhe deu tal medida de
graça, para que não pudesse ser seduzido pela tentação do Diabo e ser
persuadido a pecar, mas Ele permitiu que fosse seduzido e caísse em
pecado e morte, para que todos aqueles que iriam ser salvos dessa
ruína geral pudessem ser salvos somente por Sua misericórdia.
Também é provado por este argumento claro: que se nada pode ser
feito sem o conselho eterno e mais sábio de Deus, então certamente a
queda de nossos primeiros pais, pelo menos de a, poderia ser excluída
disso, na medida em que Deus tinha totalmente determinado, de bem
no início, o que Ele teria feito, no que diz respeito à raça humana - a
parte mais importante da obra da criação. Essas coisas que a sabedoria
do homem está acostumada a apresentar contra o que foi aqui
apresentado, podem ser encontradas em Ursini vol. i, p. 242 e outros
trechos semelhantes.
O segundo grau de poder de escolha livre é aquele que pertence ao
homem como um ser caído, nascido de pais corruptos e não
regenerado. Nesse estado, a vontade de fato age livremente, mas está
disposta e inclinada apenas para o que é mau e não pode fazer nada
a não ser pecar. E a razão é porque a queda foi seguida por uma

163 | P á g i n a
privação do conhecimento de Deus e de todas as inclinações para a
obediência, e porque isso foi sucedido por uma ignorância e aversão a
Deus, da qual o homem não pode ser libertado a menos que seja
regenerado pelo Espírito Santo. Em suma, há no homem, desde a
queda, em seu estado não regenerado, uma tendência a escolher
apenas o que é mau. Em vista dessa ignorância e corrupção da
natureza humana desde a queda, é dito: “Todo pensamento do coração do
homem é continuamente mau” (Gênesis 6:5); “Pode o etíope mudar sua pele, e
o leopardo suas manchas” (Jeremias 13:23); “Todo homem, desde sua
juventude, é dado ao mal, e seus corações de pedra não podem se tornar carne”
(Eclesiástico 17:13)10; “Estávamos mortos em delitos e pecados; e éramos por
natureza filhos da ira” (Efésios 2:1, 3); "Uma árvore corrupta não pode dar
bons frutos” (Mateus 7:18); “Não somos capazes por nós mesmos para pensar
qualquer coisa como de nós mesmos” (2 Coríntios 3:511). Com esses
testemunhos explícitos, reunidos da palavra de Deus, a experiência de
cada homem se harmoniza plenamente: como também se pode dizer
que é verdadeiro para o senso de consciência, que declara que não
temos liberdade e inclinação de vontade para fazer o que é bom; mas
em lugar disso, uma grande propensão para fazer o que é mau,
contanto que não sejamos regenerados; como está dito: “Converte-me, e
serei convertido” (Jeremias 31:18). É, portanto, claramente evidente que
o amor de Deus não existe em ninguém por natureza, e portanto,
ninguém, neste estado, tem uma propensão ou inclinação para servir
a Deus.
Objeção 1. Não há nada mais fácil (disse Erasmo a Lutero) do que
impedir a mão de roubar. E ainda mais: Sócrates, Aristides e muitos
outros realizaram muitas coisas excelentes e foram adornados com
muitas virtudes, portanto, havia neles, antes da regeneração, um poder

10 Outro livro deuterocanônico, também conhecido por Livro de Ben Sirac.


11 Correção de referência: 2 Coríntios 3:6.

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de escolha que era livre para fazer o que era bom. Resposta: Esta é
uma definição imperfeita de liberdade de escolha e do que constitui
uma boa obra, ou da liberdade de fazer o que é bom, que é o poder de
render a obediência que seja aceitável a Deus. Isso o não regenerado
não tem. E embora eles possam se abster de roubar, no que diz
respeito ao ato externo, eles ainda são culpados por isso respeitar os
desejos e tendências do coração. E não apenas isso, mas esta
propriedade externa em si, da qual tanto se conta, deve ser atribuída
a Deus, que por Sua providência controla os corações até dos ímpios,
e os restringe daqueles surtos de pecado aos quais eles são
naturalmente inclinados. No entanto, seria errado concluir disso que
é fácil para eles começarem aquela verdadeira obediência interna que
agrada a Deus. Essa obediência só pode ser prestada por aqueles que
foram regenerados pelo Espírito Santo.
Objeção 2. As obras prescritas e ordenadas pela lei são boas. Os
pagãos realizam muitas dessas obras, portanto, suas obras são boas,
embora não tenham sido regeneradas, e, por consequência, eles devem
possuir liberdade para escolher o bem. Resposta: Respondemos a essa
objeção fazendo a seguinte distinção: As obras prescritas e ordenadas
pela lei são boas, consideradas em si mesmas, mas elas se tornam más,
por acidente, quando são cometidas por aqueles que não são
regenerados, porque eles não são feitas da forma, nem com o desígnio
que Deus requer.
Objeção 3. O que Deus deseja que façamos, temos o poder de fazer.
Deus deseja que façamos aquilo que contribui para o nosso bem-estar.
Portanto, temos a capacidade, por nós mesmos, de fazer o que é bom
e, consequentemente, não precisamos da graça e da influência do
Espírito Santo. Resposta: Há, nesse silogismo, uma incorreta cadeia de
raciocínio, decorrente da ambiguidade da palavra desejo. Na maior
parte, é usado em seu sentido comum e próprio, mas na menor, é
usado indevidamente, pois aqui se diz que Deus deseja, por meio de

165 | P á g i n a
uma figura de linguagem, pela qual Ele é representado como sendo
comovido à forma dos homens. Consequentemente, existe um tipo
diferente de afirmação na maior e na menor proposição. Deus deseja
em dois aspectos. Primeiro, com respeito a Seus mandamentos e
ofertas. Em segundo lugar, com respeito ao amor que nutre por suas
criaturas e os tormentos daqueles que perecem, mas não com respeito
à execução de Sua justiça. Resposta: Aquele que convida os outros a
fazerem o que é bom e se regozija com o que eles fazem o bem, declara
que está em seu poder fazer isso, e não no poder daquele que o
convida, mas Deus nos convida a fazer o que é bom e aprova nossa
conduta quando assim agimos, portanto, está em nosso poder fazer o
bem. Resposta: Negamos a proposição menor, porque não é suficiente
a Deus convidar. Também é necessário que nossa vontade consinta em
fazer o bem, o que eles não farão a menos que Deus os incline.
Objeção 4. Se não podemos fazer nada a não ser pecar antes de nossa
regeneração, Deus parece nos punir injustamente. Resposta: Aquele
que peca por necessidade é punido injustamente, a menos que tenha
trazido sobre si a necessidade de pecar. Somos, portanto, punidos com
justiça, porque trouxemos sobre nós mesmos, em nossos primeiros
pais, essa necessidade de pecar, e seguimos o exemplo deles fazendo
as mesmas coisas. Outras objeções, normalmente apresentadas pelos
defensores do livre arbítrio, podem ser vistas em Ursini vol. i, p. 245.
O terceiro grau de livre escolha é aquele que pertence a um homem
regenerado, mas ainda não aperfeiçoado e glorificado. Neste estado, a
vontade usa sua liberdade, não apenas para fazer o que é mau, como
é verdade para o homem antes de sua regeneração, mas aqui a vontade
faz o bem e o mal em parte. Faz o que é bom, porque o Espírito Santo,
por Sua graça especial, renovou a natureza do homem por meio da
Palavra de Deus - acendeu uma nova luz e conhecimento no
entendimento e despertou no coração e na vontade esses novos
desejos e inclinações, que estejam em harmonia com a lei divina, e

166 | P á g i n a
porque o Espírito Santo efetivamente inclina a vontade para fazer as
coisas que estão de acordo com esse conhecimento e com esses
desejos e inclinações. É assim que a vontade recupera tanto o poder
de querer o que é aceitável a Deus, quanto o uso desse poder, de forma
que passa a obedecer a Deus segundo estas declarações de sua palavra:
“O Senhor teu Deus circuncidará teu coração” (Deuteronômio 30:6); “Um
novo coração também te darei, e um novo espírito porei dentro de vós; e tirarei
o coração de pedra da sua carne, e Eu darei a vós um coração de carne”
(Êxodo 36:26); “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2 Coríntios
3:17); “Todo aquele que é nascido de Deus não comete pecado” (1 João 3:9). As
razões, por conta das quais a vontade neste terceiro grau escolhe e faz
em parte o bem e o mal, são os seguintes: 1. Porque a mente e a vontade
daqueles que são regenerados não são completa e perfeitamente
renovados nesta vida. Existem muitos vestígios de depravação que se
apegam ao melhor dos homens, contanto que continuem na carne, de
forma que as obras que realizam são imperfeitas e contaminadas com
o pecado. “Eu sei que em mim, (isto é, na minha carne) não habita nem algum”
(Romanos 7:18). 2. Porque aqueles que são regenerados nem sempre
são governados pelo Espírito Santo, mas às vezes são abandonados
por Deus por um tempo, para que ele possa, assim, tentar humilhá-
los. No entanto, embora sejam deixados sozinhos por um tempo, eles
finalmente não perecem, pois Deus, em seu próprio tempo e forma, ao
arrependimento os chama. “Não retire de mim o Teu Espírito Santo”
(Salmos 51:13); “Ó Senhor, por que nos fizeste errar em Teus caminhos, e
endureceste nosso coração contra teu temor. Volta, por amor de teu servo”
(Isaías 63:17). Em suma, depois que a regeneração é iniciada no
homem, há uma tendência a escolher em parte o bem e em parte o
mal. Há uma tendência para o bem, porque a mente e a vontade, sendo
iluminadas e transformadas, começam, em alguma medida, a se voltar
para o bem, e a iniciar uma nova obediência. Há uma tendência para
o mal, porque os santos são apenas imperfeitamente renovados nesta
vida - retêm muitas enfermidades e desejos maus, por causa do pecado

167 | P á g i n a
original, que ainda se apega a eles. Consequentemente, as boas obras
que realizam não são perfeitamente boas. Aquelas coisas que os
anabatistas, e outros de caráter semelhante, estão acostumados a
apresentar contra o que é dito aqui da imperfeição da santidade e das
boas obras dos justos, podem ser vistas na página 256 do mesmo
volume de Ursino à que nos referimos antes, e também na exposição
da 114ª questão do catecismo.
O quarto grau de livre escolha é aquele que pertence ao homem depois
desta vida, em um estado de glorificação, ou perfeitamente
regenerado. Nesse estado, a vontade do homem será livre para escolher
apenas o bem, e não o mal. Este será o grau mais alto, ou a liberdade
perfeita da vontade humana, quando obedeceremos a Deus
plenamente e para sempre. Nesse estado, não apenas não pecaremos,
mas iremos abominá-lo acima de qualquer outra coisa; sim, não
seremos mais capazes de pecar. Como prova disso, podemos
apresentar as seguintes razões: em primeiro lugar, o conhecimento
perfeito de Deus brilhará então na mente, enquanto haverá o desejo
mais forte e ardente da vontade e do coração de obedecer a Deus; de
forma que não haverá lugar para a ignorância ou dúvida, ou o menor
desprezo de Deus. Em segundo lugar, na vida por vir, os santos nunca
serão abandonados, mas serão constantemente e para sempre
governados pelo Espírito Santo, de forma que não será possível para
eles se desviarem no mínimo aspecto do que é certo. Por isso é dito:
“Eles são como os anjos de Deus no céu” (Mateus 22:30); “Devemos ser como
Ele” (1 João 3:3). Os anjos bons se inclinam apenas para o que é bom,
porque eles são bons; assim como os anjos maus, por outro lado, são
inclinados apenas para o que é mau, porque eles são maus, mas
seremos como os anjos bons. Nossa condição será, portanto, de muito
maior excelência do que a de Adão antes da queda. Adão estava, de
fato, perfeitamente conformado a Deus; mas ele tinha o poder de
desejar o bem e o mal; e, portanto, com todos os seus dons, ele tinha

168 | P á g i n a
uma certa enfermidade, a saber: a possibilidade de cair de Deus e
perder seus dons. Ele era muitíssimo bom, mas não seremos capazes
de desejar outra coisa senão o bem. Assim como os ímpios são
inclinados e levados a fazer o mal apenas, porque são ímpios; assim,
estaremos inclinados para o que é bom, e amaremos e escolheremos
apenas isso, porque seremos imutavelmente bons. Estaremos então
tão plenamente estabelecidos na justiça e conformidade com Deus,
que não será possível cairmos dele; sim, então será impossível
desejarmos qualquer coisa que seja má, porque seremos preservados
pela graça divina naquele estado de perfeita liberdade em que a
vontade escolherá apenas o bem.
Diante dessas coisas que agora dissemos em relação à liberdade
humana, é manifestamente uma calúnia infame dizer que tiramos a
liberdade da vontade. E embora aqueles que são renovados e
glorificados não sejam capazes de desejar outra coisa senão o bem,
após sua glorificação, no entanto, seu poder de escolha será então
muito mais livre do que agora, pois Deus, também, nada pode desejar
senão o bem e, no entanto, possui perfeita liberdade de vontade.
Portanto, por outro lado, não retiramos o poder de escolha dos ímpios,
ou dos não regenerados, quando afirmamos que eles não são capazes
de desejar outra coisa senão o que é mau, pois eles desejam e escolhem
o mal livremente - sim, muito livremente. Sua vontade é inclinada e
levada com a maior impetuosidade, apenas para o mal, porque eles
continuamente retêm em seus corações, ódio a Deus.
Consequentemente, todas as obras que realizam de caráter moral
externo são más aos olhos de Deus, como já mostramos em nossas
observações sobre a doutrina do pecado. Isso é tudo que será dito a
respeito do livre poder de escolha que pertence ao homem.

169 | P á g i n a
4º DIA DO SENHOR

Questão 9. Não faz Deus então injustiça ao homem, exigindo dele,


em Sua lei, o que ele não pode cumprir?
Resposta. De forma alguma: pois Deus fez o homem capaz de
realizá-lo; mas o homem, por instigação do Diabo e sua própria
desobediência deliberada, privou a si mesmo e a toda sua
posteridade desses dons divinos.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 9

Há aqui, nesta parte do catecismo, uma objeção por parte da razão


humana contra o que é dito na questão anterior: Se o homem é tão
corrupto que não pode fazer nada que seja bom antes de sua
regeneração, então Deus parece injustamente e em vão exigir dele, em
Sua lei, perfeita obediência. A objeção pode ser declarada mais
completamente assim: aquele que requer ou ordena o que é impossível,
é injusto. Deus requer obediência perfeita do homem em Sua lei, que
é impossível para ele cumprir. Portanto, Deus parece ser injusto. A
esta objeção respondemos da seguinte forma: aquele que requer o que
é impossível é injusto, a menos que primeiro tenha dado a habilidade
de realizar o que requer; em segundo lugar, a menos que o homem
cobice, e por sua própria vontade traga essa incapacidade sobre si: e,
por último, a menos que o requisito, que não é possível para o homem
cumprir, seja de tal natureza que é adaptada para levá-lo a reconhecer,
e deplorar sua incapacidade. Mas Deus, ao criar o homem à Sua
imagem, deu-lhe a capacidade de prestar aquela obediência que Ele
justamente requer em Sua lei. Portanto, se o homem, por sua própria
culpa e livre-arbítrio, rejeitou esta habilidade com que foi dotado, e se
colocou em um estado em que não pode mais prestar plena obediência
à lei divina, Deus não perdeu, por esta razão, Seu direito de exigir a

170 | P á g i n a
obediência que o homem tem o dever de prestar-Lhe. Deus, portanto,
nos pune com justiça, porque rejeitamos esse bem ao transgredir Seus
mandamentos e porque Ele ameaçou punir caso Sua lei fosse violada.
Objeção 1. Mas não trouxemos esse pecado sobre nós. Resposta:
Nossos primeiros pais, quando caíram, perderam essa capacidade para
si e para toda a sua posteridade: assim como também a receberam
para si e para sua posteridade. Se um príncipe pagasse a um nobre um
salário e ele se rebelasse contra ele, ele o perderia não apenas para si
mesmo, mas também para sua posteridade; e o príncipe não faria
injustiça para com seus filhos, não restaurando para eles o que havia
sido perdido pela rebelião de seu pai. E se Ele o restaura, é por causa
de Sua bondade e misericórdia.
Objeção 2. Aquele que ordena coisas impossíveis, ordena em vão. Deus
ordena o que é impossível para o homem realizar desde a queda.
Portanto, Ele ordena em vão. Resposta: 1. Deus não ordena em vão,
mesmo que não cumpramos o que Ele ordena, porque Seus
mandamentos têm outros fins em vista, tanto no que diz respeito aos
justos como aos ímpios. Os justos devem obedecer aos mandamentos
de Deus, 1. Para que possam reconhecer sua própria fraqueza e
incapacidade. “Pela lei vem o conhecimento do pecado” (Romanos 3:20)12. 2.
Para que saibam o que eram antes da queda. 3. Para que saibam o que
devem mais especialmente pedir a Deus, a saber, a renovação de sua
natureza. 4. Para que eles possam entender o que Cristo fez em nosso
favor: que Ele nos deu satisfação e nos regenera. 5. Para que possamos
iniciar uma nova obediência a Deus, porque a lei nos ensina como
devemos agir para com Deus, em vista dos benefícios da redenção; e o
que Deus, em troca, exige de nós. A obediência é exigida dos ímpios,
1. Para que a justiça de Deus se manifeste em sua condenação: porque,
se eles sabem o que devem fazer, mas não o fazem, são justamente

12 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

171 | P á g i n a
condenados. “O servo que conheceu a vontade do seu Senhor, e não obedeceu
a ela, será castigado com muitos açoites” (Lucas 12:47). 2. Essa propriedade
e disciplina externas podem ser preservadas. 3. Para que aqueles a
quem Deus pretende salvar possam ser convertidos. Respondemos, em
segundo lugar, à proposição principal desse silogismo fazendo a
seguinte distinção: aquele que ordena as coisas impossíveis, de fato
ordena em vão, a menos que ao mesmo tempo dê a habilidade. Mas
Deus, ao ordenar os eleitos, também lhes dá o poder de obedecer, e
começa a obediência neles pelo evangelho e, finalmente, os aperfeiçoa.
Agostinho diz: “Senhor, dê-me o que Tu ordenas, e ordenes o que Tu queres, e
Tu não ordenarás em vão” (De bono perseveratie, capítulo 10). Essa
exigência impossível é, portanto, o maior benefício; porque nos leva à
obtenção do poder pelo qual podemos cumprir o que é exigido de nós.

172 | P á g i n a
Questão 10. Deus permitirá que tal desobediência e rebelião fiquem
impunes?
Resposta: De forma alguma, mas está terrivelmente descontente
com nossos pecados originais e reais; e os punirá em Seu justo
julgamento temporal e eternamente, como Ele declarou: “Maldito
todo aquele que não permanece em todas as coisas que estão
escritas no livro da lei, para as cumprir”.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 10

Na exposição desta questão, devemos considerar o mal do castigo, que


é a outra parte da miséria do homem. Em relação a isso, somos
ensinados que Deus pune o pecado da forma mais severa, justa e certa.
Ele o pune com mais severidade, isto é, com o castigo presente e
eterno, por sua imensidão e grandeza, porque é uma ofensa ao infinito
bem. Muito justamente, porque todo pecado, mesmo a menor
transgressão, é uma violação da lei de Deus; e, portanto, de acordo
com a ordem da justiça divina, merece punição eterna e banimento de
Deus. Certamente, porque Deus é verdadeiro e não muda a sentença
que a lei denuncia: “Maldito aquele que não permanece em todas as coisas
que estão escritas no livro da lei para as cumprir” (Gálatas 3:6).
Objeção 1. Mas os ímpios frequentemente prosperam nesta vida e
fazem muitas coisas impunemente. Portanto, todos os pecados não
são punidos. Resposta: Eles serão finalmente punidos: sim, eles são
punidos até mesmo nesta vida, 1. Na consciência, por cujas picadas os
ímpios são torturados. 2. Além disso, nas coisas que usam com a maior
avidez e deleite; e quanto menos sabem, e se reconhecem como
punidos, tanto mais pesado é. 3. Também são frequentemente afetados
por outras punições graves. E, no entanto, sua punição será ainda mais
terrível na vida por vir, onde será a morte eterna.

173 | P á g i n a
Objeção 2. Deus não criou o mal e a morte. Portanto, Ele não punirá
o pecado tão severamente. Resposta: Ele, de fato, não os criou no
início; contudo, quando o pecado foi cometido, Ele infligiu a morte,
em Seu justo julgamento, aos pecadores, de acordo com a ameaça:
“Certamente morrerás”! (Gênesis 2:17). Portanto, também se diz: “Haverá
mal na cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” (Amós 3:6).
Objeção 3. Se Deus pune o pecado com punição presente e eterna,
Ele pune a mesma ofensa duas vezes e é injusto. Mas Ele não é injusto;
nem Ele pune a mesma ofensa duas vezes. Portanto, Ele não punirá
com punição presente e eterna. Resposta: Negamos a proposição
principal; pois a punição que Deus inflige aos ímpios nesta e na vida
futura é apenas uma punição, embora consista em várias partes. A
punição atual é apenas o começo da punição eterna. Nem é separado,
ou completo em si mesmo, porque não é suficiente para satisfazer a
justiça de Deus.
Objeção 4. Os pecados de caráter diferente não são punidos com a
mesma punição. Portanto, todos os pecados não são punidos com o
castigo eterno. Resposta: Há mais na conclusão do que nas premissas.
Isso é tudo o que se segue legitimamente; portanto, todos os pecados
não são punidos com punição igual, o que é verdade. Mas todos os
pecados, mesmo os menores, merecem o castigo eterno, porque todos
ofendem o bem infinito e eterno. Consequentemente, todos os
pecados são punidos igualmente quanto à duração, mas não quanto
aos graus de punição. Os grandes pecados serão punidos eternamente,
com punições severas, enquanto os menores serão punidos
eternamente, com punições mais leves.
Objeção 5. Mas se Deus punir o pecado com o castigo eterno, então
todos nós devemos morrer, ou então a justiça de Deus não será
satisfeita. Resposta: É verdade, de fato, que se Deus punisse o pecado
em nós, todos necessariamente morreríamos para sempre. Mas Ele não
pune o pecado em nós com o castigo eterno; e, no entanto, Sua justiça

174 | P á g i n a
não sofre por isso, porque Ele satisfez nossos pecados em Cristo, um
castigo equivalente ao que é eterno lhe infligindo. É assim que o
evangelho satisfaz as exigências da lei.
Objeção 6. Mas se Deus puniu nossos pecados em Cristo, Ele não
deve, se for justo, infligir mais punição sobre nós; de forma que as
aflições dos justos nesta vida são injustas. Resposta: As aflições dos
justos não devem ser consideradas uma punição ou satisfação pelo
pecado; mas eles são meramente o castigo de um pai, enviados com o
propósito de humilhá-los. Portanto, torna-se necessário para nós,
depois de termos feito uma exposição da seguinte questão do
catecismo, falar de aflições.

175 | P á g i n a
Questão 11. Mas Deus também não é misericordioso?
Resposta: Deus é realmente misericordioso, mas também justo;
portanto, Sua justiça exige que o pecado, que é cometido contra a
Altíssima Majestade de Deus, seja também punido com extrema
punição, isto é, com punição eterna, tanto do corpo como da alma.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 11

Há aqui uma objeção ao que é ensinado na questão anterior, que


afirma que Deus pune todo pecado com punição eterna. A objeção é
esta: pertence àquele que é extremamente misericordioso, não ser
muito rigoroso nas exigências de sua justiça. Deus é misericordioso
no mais alto grau; portanto, Ele não exigirá tudo o que sua extrema
justiça exige e, portanto, não punirá o pecado com o castigo eterno. À
proposição principal, portanto, respondemos: na verdade, pertence
àquele que é misericordioso ser leniente em suas demandas, mas não
de forma a prejudicar Sua justiça, se Ele for ao mesmo tempo
extremamente justo. Mas Deus é extremamente misericordioso de tal
forma que também é extremamente justo. Consequentemente, Ele
exercerá Sua misericórdia de forma a não violentar Sua justiça. Ora, a
justiça de Deus exige que o pecado, cometido contra a Sua Altíssima
Majestade, seja punido com extrema punição, isto é, com castigo
eterno, tanto de corpo como de alma, para que haja proporção entre
a ofensa e o castigo. Todo crime é grande e merecedor de punição
proporcional à majestade daquele contra quem foi cometido. A
seguinte objeção exige um aviso de passagem:
Objeção. Aquele que exige rigorosamente o seu direito, exclui toda
expectativa de clemência. Deus exige rigorosamente o Seu direito.
Portanto, com Ele não há clemência. Ou a objeção pode ser assim
declarada: aquele que não cede nada em relação aos seus direitos, não
é misericordioso, mas apenas justo. Deus não cede nada no que
respeita aos seus direitos, porque castiga todo pecado com um castigo

176 | P á g i n a
que corresponde ao seu justo merecimento. Resposta: Negamos a
proposição menor, porque Deus, embora puna o pecado com o castigo
eterno, no entanto cede tanto quanto respeita o Seu direito. Ele exibe
grande clemência, por exemplo, para com os réprobos, pois adia a
punição que eles merecem e os convida ao arrependimento por
motivos fortes e poderosos. E quanto ao castigo que Ele infligirá a eles
no mundo vindouro, será mais leve do que eles mereciam. Portanto,
Ele também exerce grande misericórdia para com os fiéis, pois Ele,
somente por Sua misericórdia, sem ser obrigado por nenhuma lei ou
mérito de nossa parte, deu Seu filho e o sujeitou ao castigo por nós.
Também negamos a proposição principal, se aplicada Àquele que é
dotado de tal sabedoria que pode descobrir um método de exercer
misericórdia sem violar Sua justiça, ou quando aplicada àquele que,
enquanto executa Sua justiça, não se regozija na destruição do
homem, mas prefere que ele seja salvo. Como juiz, quando pronuncia
sobre um ladrão a sentença de que ele merece ser torturado, mas não
sente prazer em sua punição, exibe grande equidade e clemência,
embora pareça exigir a mais rigorosa exigência do lei, então Deus é
muito mais reto13 e clemente, embora, em Seu justo julgamento, Ele
puna o pecado, pois Ele não se deleita na destruição dos ímpios
(Ezequiel 18:23; 33:11) e também tem manifestado Sua misericórdia e
compaixão para conosco, ao impor o castigo que merecíamos sobre
Seu próprio Filho.

13 Equitativo é sinônimo de justo ou imparcial.

177 | P á g i n a
COM RESPEITO ÀS AFLIÇÕES

Existem três pontos que particularmente chamam nossa atenção em


relação às aflições:
I. Quantos tipos de aflições existem?
II. Quais são as causas delas?
III. Quais confortos podem ser opostos a elas?

I. QUANTOS TIPOS DE AFLIÇÕES EXISTEM?


Existem dois tipos de aflições: as temporais e as eternas. Eternas, são
aqueles tormentos eternos de corpo e alma que constituem a porção
final dos demônios e dos ímpios que nesta vida não são convertidos a
Deus. Elas são chamadas nas Escrituras: inferno, tormentos, fogo
inextinguível, um verme que não morre e morte eterna; porque são
tormentos que serão eternos, e são experimentados pelos moribundos
que, embora estejam sempre morrendo, nunca estarão mortos. Esta
será a característica da morte eterna: sempre morrer e nunca estar
morto; ou será uma continuação da morte, com um aumento infinito
de agonias e tormentos infernais. A seguir estão algumas das
declarações das Escrituras que se referem ao castigo eterno: “O seu
verme não morrerá, nem o seu fogo se apagará” (Isaías 66:24); “Melhor é
entrar aleijado na vida, do que ter as duas mãos para ir ao inferno, ao fogo
que nunca se apaga; onde o verme não morre, e o fogo não se apaga” (Marcos
9:43-44); “Apartem-se de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o
Diabo e seus anjos” (Mateus 25:41); “Se o justo dificilmente se salva, onde
aparecerá o ímpio e o pecador” (1 Pedro 4:18). A razão que torna esta
forma de punição necessária é evidente a partir disso: aquele pecado
que é cometido contra Deus, que é infinitamente bom, exige uma
punição e uma satisfação infinitas, que não poderiam ser prestadas
pelas aflições que incidem apenas nesta vida. Isso não satisfaria a
justiça infinita e eterna de Deus.

178 | P á g i n a
Esse castigo eterno inclui tanto a alma como o corpo, é claramente
afirmado pelo próprio Cristo, quando diz: “Temei aquele que pode fazer
perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mateus 10:28). A alma é a
fonte do pecado; enquanto o corpo, como uma coisa destituída de
razão, executa o que a alma dirige. Como a alma e o corpo estão,
portanto, ambos envolvidos na comissão do pecado, sendo um o autor
e o outro o instrumento, ambos serão incluídos na punição do mesmo.
Objeção. Aquele que é misericordioso não pode contemplar os
tormentos eternos de suas criaturas, muito menos lhes infligir. A
misericórdia de Deus é infinitamente grande e excede nossos pecados;
portanto, Ele não pode infligir nem contemplar tormentos eternos em
Suas criaturas. Resposta: Esta objeção é verdadeira se ela se refere
apenas a um ser que é infinitamente misericordioso, sem ser ao
mesmo tempo infinitamente justo. Mas como esses dois atributos se
encontram no caráter de Deus, a objeção perde sua força quando
aplicada a Ele, como já mostramos, em nossas observações sobre a 11ª
questão do catecismo.
Aflições temporais, como doença, pobreza, reprovação, calúnia,
opressão, banimento, guerras e outras misérias desta vida, juntos com
a própria morte temporal, são comuns tanto aos justos quanto aos
ímpios. Essas aflições são punições ou cruz.
Os castigos que fazem parte das aflições desta vida consistem na
destruição e nos sofrimentos infligidos aos culpados do pecado. Estas
são peculiares aos réprobos, porque são infligidas a eles com o
propósito de fazer satisfação à justiça de Deus. Pois a lei exige de
todos os homens a obediência ou o castigo.

179 | P á g i n a
Objeção. Mas os males infligidos aos ímpios nesta vida não são
suficientes para satisfazer a justiça de Deus. Resposta: Eles não
constituem a punição total dos ímpios. Eles são apenas uma parte
dela, e um começo daquela satisfação plena que será exigida deles por
toda a eternidade. Assim como cada parte do ar é chamada de ar, cada
parte da punição é chamada de punição.
Existem, no entanto, graus de punição. O primeiro grau é aquele que
pertence a esta vida: pois aqui já, quando a consciência repreende e
reprova, há um começo do tormento do verme que nunca morrerá. O
segundo grau de punição é aquele que é experimentado na morte
temporal, quando os ímpios começam a sentir a ira de Deus, quando
a alma é separada do corpo e mergulhada no lugar de tormento sem
esperança. O terceiro grau de punição é aquele que será infligido no
julgamento final, quando a alma e o corpo serão lançados no inferno,
e agonias eternas se precipitarão de todos os lados, como que em
torrentes, sobre os ímpios.
A cruz compreende as aflições que são peculiares aos piedosos, que
não são propriamente punições, porque não são infligidas com o
propósito de fazer satisfação à justiça de Deus. Existem quatro tipos
de aflições incluídas na cruz e que se distinguem umas das outras por
seus fins.
O primeiro tipo de aflição compreende os castigos que Deus inflige aos
justos por seus pecados, mas que são infligidos de acordo com Sua
misericórdia, como um pai corrige seu filho com muita gentileza e
tolerância. Eles são, portanto, não propriamente punições, mas
castigos paternais, pelos quais os piedosos são admoestados de sua
impureza e de seus pecados e apostasias peculiares - são levados ao
arrependimento e, assim, trazidos de volta ao caminho do dever e da
santidade. Assim, Davi foi expulso de seu reino e banido por causa de
sua queda: pois pecados peculiares são seguidos por castigos
peculiares e severos, mesmo nos santos. Esses castigos, entretanto, não

180 | P á g i n a
devem ser considerados um galardão pelo pecado; mas são os efeitos
da justiça divina, por meio da qual Deus deseja que nós e outros
sejamos familiarizados com a retidão de Seu caráter; que Ele está
muito descontente com o pecado, e o punirá com a morte, não apenas
nesta, mas também na vida por vir, a menos que nos arrependamos e
voltemos para Ele.
A segunda forma ou tipo da cruz inclui as provas ou provas que são
feitas da fé, esperança, paciência, e outras provas semelhantes, dos
santos, a fim de que essas virtudes possam ser fortalecidas e
confirmadas neles; e também, que sua enfermidade se manifeste a eles
e aos outros. Essa era a natureza da aflição de Jó.
A terceira forma da cruz é o martírio, que inclui a confirmação e
testemunho dos santos a respeito da doutrina do evangelho, quando
eles confirmam e selam com seu sangue a doutrina que professaram,
pela qual declaram que é verdade - que eles próprios experimentam
na morte o conforto que prometeram aos outros em seus
ensinamentos, e que resta outra vida, e outro julgamento depois desta
vida.
A cruz, em último lugar, inclui o resgate, ou a obediência de Cristo:
que é uma satisfação pelos nossos pecados, e inclui toda a humilhação
de Cristo, desde o momento de Sua concepção até Sua última agonia
na cruz.

181 | P á g i n a
II. QUAIS SÃO AS CAUSAS DAS AFLIÇÕES?
As causas das punições dos ímpios são: 1. Pecado, que é a causa
impulsionadora. Eles são obrigados a sofrer, para que a satisfação
possa ser obtida por meio de uma punição justa por seus pecados. 2.
A justiça de Deus, que é a principal causa eficiente que inflige punição
pelo pecado. 3. As causas instrumentais são várias: elas são, por
exemplo, anjos e homens, bons e maus, e outras criaturas, todas as
quais estão armadas contra o pecador e lutam sob o estandarte de
Deus.
As causas da cruz, que são peculiares aos piedosos, são:
1. Pecado, que, entretanto, deve ser visto de forma diferente nos
piedosos do que é nos ímpios. Os piedosos são afligidos por causa do
pecado, não com o propósito de satisfazer a justiça de Deus, mas para
que o pecado seja reconhecido por eles e removido por meio da cruz.
Eles são punidos paternalmente, para que sejam conduzidos ao
conhecimento de suas faltas. Esses castigos são para eles um sermão
e um chamado ao arrependimento. “Quando somos julgados, somos
repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo” (1
Coríntios 11:32)14. “É bom para mim ter sido afligido (...)” (Salmo 119:71)15.
Deus, entretanto, dá rédeas soltas aos ímpios, para que se precipitem
na destruição. Ele lhes confere as bênçãos desta vida, com um curto
período de repouso e alegria, porque são Suas criaturas, para que sua
ingratidão se torne aparente e para que Ele os torne indesculpáveis.
Mas Ele corrige e melhora o caráter dos piedosos por meio da cruz.

14 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.


15 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

182 | P á g i n a
Temporais. Ímpios. E são
Aflições
Muitas delas propriamente
são:
pertencem a: chamadas de pecado.

Piedosos. Como a
Eternas. O que cruz que inclui:
inclui os
tomentos
eternos dos
Repreensões;
condenados.
Julgamentos;
Martírios;
Expiação

TABELA DAS AFLIÇÕES DOS HOMENS

2. Para que possamos aprender a odiar o pecado, o Diabo e o mundo.


“Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria os seus” (João 15:19). “Nós não
lutamos contra carne e sangue, mas contra principados e potestades” (Efésios
6:12). “Não ameis o mundo” (1 João 2:15).
3. Para que sejamos exercitados e provados, para que assim nossa fé,
esperança, paciência, oração e obediência sejam fortalecidas e
confirmadas; ou que possamos ter motivo e oportunidade para nos
exercitar e provar a nós mesmos, e que nossa fé, esperança e paciência
possam se manifestar tanto a nós mesmos quanto aos outros. Quando
todas as coisas vão bem, é fácil nos gloriarmos em nossa fé; mas na
adversidade, a graça ou beleza da virtude torna-se aparente. Aquele
que não foi tentado, o que ele conhece? “A experiência produz esperança”
(Romanos 5:4).

183 | P á g i n a
4. As falhas e deslizes peculiares dos santos. Manassés tinha defeitos
peculiares, e Josafá tinha os seus, e outros santos têm outras falhas e
pecados peculiares a eles. Consequentemente, os castigos pelos quais
Deus mostra que também está descontente com os pecados dos santos
e os vingará mais severamente, a menos que se arrependam, são vários
e distintos. “O servo que conheceu a vontade do seu Senhor, e não a obedeceu,
será castigado com muitos açoites” (Lucas 12:47).
5. A exibição e manifestação da glória de Deus na libertação da Igreja
e dos piedosos. Deus frequentemente põe Sua Igreja e Seu povo em
extremo perigo, para que a libertação que Ele efetua seja ainda mais
gloriosa, como foi o caso com a opressão dos filhos de Israel no Egito
e seu cativeiro na Babilônia, e outros eventos semelhantes. Nesses
casos, a libertação que Deus operou foi verdadeiramente gloriosa, e
deu evidência de Sua sabedoria em descobrir uma forma de escapar
onde nenhuma criatura poderia esperar por ela. “O Senhor faz descer à
sepultura e faz subir” (1 Samuel 2:6).
6. A conformidade dos membros a Cristo, Sua cabeça em aflição e
glória. “Se sofrermos com Ele, também reinaremos com Ele” (2 Timóteo 2:12).
“Aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conforme à imagem de Seu filho” (Romanos 8:29). "O servo não é maior do
que seu senhor, nem o discípulo acima de seu mestre” (Mateus 10:24).
7. Para que os santos, por Seus sofrimentos e morte, possam dar
testemunho da verdade da doutrina do evangelho: pois quando os
santos suportam toda forma de sofrimento, e até a própria morte por
causa de sua profissão de cristianismo, dão testemunho mais
satisfatório de que eles mesmos estão totalmente persuadidos da Sua
verdade, e que não podem, por qualquer consideração, ser induzidos a
renunciar a ela; e também que lhes proporciona uma consolação real
e sólida, mesmo na própria morte e, portanto, deve ser
necessariamente verdadeira. Foi profetizado a Pedro por qual morte
deveria glorificar a Deus (João 21:19).

184 | P á g i n a
8. As aflições dos piedosos são evidências de um julgamento futuro e
da vida eterna. A verdade e a justiça de Deus requerem que tudo vá
bem para os justos e mal para os ímpios. No entanto, este não é
totalmente o caso nesta vida. Portanto, deve haver outra vida depois
desta, na qual Deus retribuirá a cada um de acordo com Seus justos
méritos. “O que é um sinal manifesto do justo julgamento de Deus, para que
sejais considerados dignos do reino de Deus, pelo qual também padecem” (2
Tessalonicenses 1:5).
Tendo feito essas observações em relação às aflições dos piedosos,
podemos facilmente responder à objeção que os homens do mundo
costumam fazer contra a providência de Deus. A Igreja, dizem eles,
está oprimida em todo o mundo e pisada por todos os homens.
Portanto, não é a verdadeira Igreja e não é cuidada pela parte de Deus.
Mas isso, em vez de provar qualquer coisa contra a Igreja, é antes um
argumento a seu favor: pois se a Igreja fosse do mundo, então essa
oposição e perseguição cessariam, pois o mundo ama os seus. As
razões das aflições da Igreja são, portanto, manifestas; e o fim das
coisas vence, convence e condena o mundo.

III. QUAIS SÃO OS CONFORTOS QUE PODEMOS RESPONDER


À NOSSA AFLIÇÃO?
Existem alguns confortos sob as aflições que são peculiares à Igreja,
enquanto existem outros que são comuns tanto à Igreja quanto à
filosofia. A primeira, em conexão com a 9ª e a 10ª questões, que agora
apresentaremos, são peculiares à Igreja, enquanto as demais são
comuns, tanto à ela quanto à filosofia; e, no entanto, embora se possa
dizer que são comuns, é apenas no que diz respeito à aparência
externa, e não no que diz respeito à matéria ou substância da coisa
tratada. Esses confortos apresentaremos na seguinte ordem:

185 | P á g i n a
1. Remissão de pecados. Este é o primeiro em ordem e está na base de
todo o resto: porque se não temos certeza do perdão dos pecados e da
reconciliação com Deus, todos os outros confortos são de nenhuma
importância; pois então devemos estar sempre em dúvida se a
promessa da graça nos pertence ou não. Mas se esse conforto for bem
fundamentado e fixado, todos os outros o seguirão naturalmente; pois
se Deus for nosso Pai, podemos estar certos de que Ele não apenas
não enviará nada que nos seja prejudicial, mas também nos defenderá
de todos os males desta vida. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
(Romanos 8:31). A razão de tudo isso é que, onde a causa é retirada, o
efeito também é removido. Portanto, onde o pecado é retirado, as
punições e a morte também são eliminadas.
2. A vontade e providência de Deus, ou a necessidade de obedecer a
Deus tanto na adversidade quanto na prosperidade, porque Ele deseja
e dirige todas as coisas. A razão dessa consequência da obediência não
é apenas porque não somos capazes de resistir a Ele, mas
principalmente. 1. Porque Ele é nosso Pai. 2. Porque Ele é merecedor
desta obediência de nós a tal ponto, que devemos estar dispostos a
suportar os maiores males por sua causa. 3. Porque os males que Ele
envia são castigos paternais. Esse conforto acalma a mente, na medida
em que nos assegura que é a vontade de nosso Pai celestial que
soframos essas coisas. “Ainda que Ele me mate, ainda assim confiarei nEle”
(Jó 13:15). “O Senhor deu, e o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor” (Jó
1:21). Os filósofos nos dizem que devemos suportar com paciência o
que não podemos muda e evitar. Eles estabelecem uma necessidade
fatal, e então consideram tolice resistir a ela. Mas em suas calamidades
não se submetem a Deus, nem reconhecem Seu desagrado, nem
suportam adversidades com o propósito de obedecer a Deus; mas
porque eles não podem evitar essas coisas. Este é um conforto
miserável.

186 | P á g i n a
3. A excelência da virtude, ou obediência a Deus, que é a verdadeira
virtude, por causa da qual a mente não deve ser lançada sob a cruz.
As bênçãos temporais que Deus nos confere são grandes benefícios;
mas obediência, fé, esperança, são muito maiores. Portanto, não cabe
a nós preferir menos benefícios àqueles que são maiores, nem rejeitar
os maiores por causa de redimir a perda daqueles que são menores.
“Quem ama ao pai ou a mãe mais do que a Mim não é digno de Mim” (Mateus
10:37). “Todo aquele que quiser salvar sua vida, a perderá” (Mateus 16:25).
Os filósofos dão muito valor à dignidade da virtude, mas é com pouca
graça, visto que eles próprios estão destituídos da verdadeira virtude.
4. Uma boa consciência, que existe apenas nos piedosos, que sabem
que Deus está em paz com eles por, e por amor de Cristo, o mediador.
Agora, se Deus for favorável a nós, não podemos deixar de desfrutar
de tranquilidade mental. Os filósofos, entretanto, não confortam seus
seguidores dessa forma; pois quando estão aflitos, perguntam: Por que
a boa fortuna ou prosperidade não segue uma boa consciência? E por
isso eles reclamam e murmuram, como Catão16 e outros fizeram.
5. As causas finais, ou fins, que são: 1. A glória de Deus, que é evidente
em nossa libertação. 2. Nossa salvação. “Somos corrigidos pelo Senhor,
para que não sejamos condenados com o mundo”(1 Coríntios 11:32)17. 3. A
conversão de outros, junto com o aumento da Igreja. Os apóstolos se
alegraram por terem sido considerados dignos de sofrer vergonha pelo
nome de Jesus, para que assim outros pudessem ser convertidos e
confirmados na fé. Os filósofos nos dizem que é um bom fim quando
alguém sofre com o propósito de salvar seu país e obter glória e
renome eternos. Mas, nesse meio tempo, homens miseráveis são
levados a perguntar: de que nos beneficiarão essas coisas quando
morrermos?!

16 Político romano e defensor do estoicismo.


17 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

187 | P á g i n a
6. Uma comparação de eventos. É melhor ser castigado pelo Senhor
por um curto período do que viver na maior abundância e, por fim,
ser expulso de Deus e lançado na destruição eterna. Os filósofos,
comparando os males uns com os outros, encontram muito pouco de
bom advindo dessa comparação, embora sejam ignorantes do bem
principal, para o qual devemos estar dispostos a sofrer todos os vários
males da vida.
7. A esperança de recompensa, ou de recompensa, nesta e na outra
vida. “Grande é o seu galardão no céu” (Mateus 5:12). Sabemos que há
outras bênçãos asseguradas a nós, com as quais as aflições desta vida
não podem ser comparadas. E mesmo nesta vida os piedosos
desfrutam de maiores bênçãos do que outros homens; pois eles têm
paz com Deus e todos os outros dons espirituais. Bênçãos temporais,
embora sejam pequenas no que diz respeito aos justos, são proveitosas
para eles. “Não há nenhum homem que tenha deixado casa, ou irmãos, ou
irmãs, (...) Mas ele receberá uma centena de vezes, já neste tempo, e no mundo
vindouro a vida eterna” (Marcos 10:29, 23). “Melhor é o pouco que o justo
possui do que as riquezas de muitos ímpios” (Salmos 37:16). "Nós nos
gloriamos nas tribulações” (Romanos 5:3). A esperança da recompensa
pode proporcionar um pouco de conforto aos filósofos em aflições
leves, mas não naquelas que são graves; porque pensam que é melhor
ficar sem essa recompensa do que suportar grandes sofrimentos para
obtê-la; e também porque a consideram incerta, pequena e transitória.
8. O exemplo de Cristo e dos Seus santos. “O servo não está acima do seu
senhor” (Mateus 10:24). Deus também deseja que sejamos conformados
à imagem de Seu Filho. Então, seguimos a Cristo em reprovação e
glória. A gratidão exige isso; porque Cristo morreu por nossa salvação.
Santos mártires sofreram, nem pereceram sob suas aflições. Não
devemos pedir para nós mesmos muito mais do que os deles, pois não
somos melhores do que eles, mas muito piores. Eles sofreram e foram
libertados por Deus. Procuremos, pois, um evento semelhante, porque

188 | P á g i n a
o amor de Deus para com o seu povo é imutável. “Assim perseguiram os
profetas que existiram antes de vós” (Mateus 5:12). “Resistais com firmeza na
fé, sabendo que as mesmas aflições se cumprem em seus irmãos que estão no
mundo” (1 Pedro 5:9).
9. A presença e ajuda de Deus em nossas aflições. Deus está conosco,
pelo Seu Espírito, sob a cruz nos fortalecendo e nos confortando. Ele
não permite que sejamos tentados acima do que somos capazes de
suportar; e também, com toda tentação, abre um caminho de escape,
e sempre proporcional nossas aflições à nossa força, para que não
sejamos vencidos. “Temos os primeiros frutos do Espírito” (Romanos 8:23).
“Eu estarei com ele na aflição” (Salmos 91:15). “Ele lhes dará outro
Consolador, para que permaneça com vós para sempre (...) Se um homem me
ama, Meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele morada. (...) Eu não vos
deixarei sem conforto” (João 14:16, 18, 23). “Pode uma mulher esquecer seu
filho de peito, para que ela não tenha compaixão do filho de seu ventre? Sim,
eles podem esquecer, mas Eu não me esquecerei de ti” (Isaías 49:15).
10. A libertação completa e final é o ponto culminante de todo o resto.
O primeiro é o principal conforto e fundamento de todos os outros;
esta é a perfeição e consumação de tudo. Pois assim como existem
graus de punição, também existem graus de libertação. O primeiro
grau é nesta vida, onde temos o início da vida eterna. A segunda é na
morte física, quando a alma é carregada para o seio de Abraão. O
terceiro será na ressurreição dos mortos, e sua glorificação, quando
seremos perfeitamente felizes, tanto no corpo como na alma. “E Deus
enxugará todas as lágrimas de seus olhos” (Apocalipse 21:4).

189 | P á g i n a
A SEGUNDA DIVISÃO GERAL DO CATECISMO
5º DIA DO SENHOR

DA LIBERTAÇÃO DO HOMEM

Questão 12. Visto que, então, pelo justo julgamento de Deus, nós
merecemos punição temporal e eterna, não há nenhuma forma pela
qual podemos escapar dessa punição, e ser novamente recebidos em
graça?
Resposta: Deus terá Sua justiça satisfeita; e, portanto, devemos
fazer essa satisfação, ou por nós mesmos ou por intermédio de
outro.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 12

Tendo demonstrado, na primeira parte do catecismo, que todos os


homens estão em um estado de condenação eterna, por não terem
prestado a obediência que a lei de Deus requer, somos a seguir levados
a questionar se há, ou pode haver, alguma forma de escape ou
libertação deste estado de miséria e morte? A esta questão o catecismo
responde, que a libertação pode ser concedida, se for satisfeita a lei e
a justiça de Deus, por uma punição suficiente pelo pecado que foi
cometido. A lei compele todos, seja à obediência ou, se esta não for
cumprida, à punição; e a execução ou pagamento de qualquer um deles
é justiça perfeita, que Deus aprova em quem quer que seja encontrada.
Existem duas formas de obter satisfação com o castigo. A primeira é
por nós mesmos. Isso é o que a lei ensina e a justiça de Deus exige.
“Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas que estão escritas
na lei para cumpri-las” (Galátas 3:10). Isso é legal.

191 | P á g i n a
A outra forma de obter satisfação é por intermédio de outro. Este é o
método que o evangelho revela, e que a misericórdia de Deus permite.
“O que a lei não podia fazer, visto que era fraca por meio da carne, Deus, enviou
Seu próprio Filho (...)” (Romanos 8:3); “Deus amou o mundo de tal forma que
deu o Seu Filho unigênito (...)” (João 3:16). Isso é evangélico. Não é, de fato,
ensinado na lei; mas não é nela condenada ou excluída. Nem é
repugnante para a justiça de Deus; pois se apenas a satisfação for
alcançada pela igualdade do homem por uma punição suficiente por
sua desobediência, a lei é satisfeita, e a justiça de Deus permite que a
parte ofensora seja posta em liberdade e recebida em graça. Esta é a
totalidade e a substância.
Além disso, há duas coisas ensinadas nesta questão: a possibilidade
dessa libertação e como ela é efetuada. Para que essas coisas possam
ser melhor compreendidas, consideraremos agora:
I. O que é a libertação do homem;
II. Se tal libertação é possível;
III. Se ela é necessária e certa;
IV. Se uma libertação perfeita pode ser esperada;
V. Como ela é feita.

I. O QUE É A LIBERTAÇÃO DO HOMEM


A palavra libertação é relativa; pois toda libertação é de algo para algo,
como do cativeiro para a liberdade. Como agora todos os homens, por
natureza, são escravos do pecado, de Satanás e da morte, não podemos
entender melhor e mais corretamente o que é a libertação do homem,
do que por uma consideração de em que consiste sua miséria. A
miséria do homem consiste, primeiro, na perda da justiça e na
corrupção consanguínea ou pecado; e em segundo lugar, na punição
do pecado. Sua libertação, portanto, desta miséria, requer, primeiro, o
perdão e abolição do pecado, e uma restauração da justiça perdida: e

192 | P á g i n a
em segundo lugar, uma libertação de todo castigo e miséria. Como,
portanto, a miséria do homem consiste em duas partes - pecado e
morte - então sua libertação consiste em duas partes - uma libertação
do pecado e da morte. A libertação do pecado inclui o perdão do
pecado, para que não seja imputado a nós, e a abolição do pecado pela
renovação de nossa natureza, para que ele não reine em nós. A
libertação da morte é uma libertação do desespero e um sentimento
da ira de Deus - das calamidades e misérias desta vida; e também da
morte, tanto temporal quanto espiritual.
Dessas coisas é fácil perceber o que devemos entender pela libertação
do homem. Consiste em uma libertação perfeita de todas as misérias
do pecado e da morte, que a queda acarretou ao homem, e uma
restauração completa da justiça, santidade, vida e felicidade eterna,
por meio de Cristo; que começa em todos os fiéis nesta vida e será
totalmente aperfeiçoado na vida por vir.

II. SE TAL LIBERTAÇÃO É POSSÍVEL


Que esta libertação do homem das ruínas da queda foi possível, pode
ser inferido a partir de uma consideração: 1. Da imensa bondade e
misericórdia de Deus, que não permitiria que toda a raça humana
perecesse para sempre. 2. A infinita sabedoria de Deus nos levaria
naturalmente a esperar que Ele fosse capaz de conceber uma forma
pela qual pudesse exibir sua misericórdia para com a raça humana, e
ainda não violar Sua justiça. 3. Uma consideração do poder de Deus
pode nos levar à conclusão de que aquele que pode criar o homem do
nada à Sua imagem, também pode erguê-lo das ruínas da queda e livrá-
lo do pecado e da morte. Negar a possibilidade de libertação do
homem é, portanto, negar a bondade, sabedoria e poder de Deus. Mas
em Deus não há falta de sabedoria, bondade e poder; pois “o Senhor faz
descer à sepultura e faz subir” (1 Samuel 2:6). "A Deus, o Senhor, pertencem
os livramentos da morte” (Salmos 68:20). “A mão do Senhor não está
encolhida, para que não possa salvar” (Isaías 59:1).

193 | P á g i n a
Mas devemos inquirir, particularmente: De onde sabemos que essa
libertação é possível? Se a razão humana, sem a palavra de Deus, pode
chegar a esse conhecimento? E se Adão, após sua queda, poderia saber
ou esperar por isso?
Que nossa libertação foi possível, sabemos pelo próprio evento e pelo
evangelho, ou por aquela revelação que Deus tem o prazer de realizar.
A razão humana, no entanto, se deixada a si mesma, não poderia saber
nada dessa libertação, ou da forma pela qual poderia ser feita, embora
provavelmente pudesse conjeturar que não era impossível - o que, a
propósito, é muito duvidoso - na medida em que não é presumível que
uma criatura tão gloriosa como o homem seria criada para a miséria
eterna; ou que Deus daria uma lei que nunca pudesse ser cumprida.
Esses dois argumentos são em si mesmos convincentes, mas a razão
humana, por causa de sua corrupção, não os subscreve. Como,
portanto, aqueles que estão sem a Igreja e ignorantes do evangelho,
não podem ter conhecimento ou esperança de libertação; então Adão,
após a queda, sem uma promessa e revelação especial, não poderia
saber nem esperar por isso, pelo mero exercício de sua razão. Quando
o pecado foi cometido uma vez, a mente do homem não conseguia
pensar em nada, exceto na severa justiça de Deus, que não permite
que o pecado ficasse impune, e na verdade imutável de Deus, que
declarou: “No dia em que dele comerdes, certamente morrerás” (Gênesis 3:17).
Adão sabia muito bem que era necessário dar satisfação a essa justiça
e verdade de Deus, pela destruição eterna do pecador; e, portanto, em
seu caso não podia esperar por qualquer libertação. Ele poderia, de
fato, provavelmente ter suposto que a libertação poderia ser efetuada
se a satisfação pudesse ser feita de alguma forma, para a justiça e
verdade de Deus; mas não podia esperar por isso nem conceber como,
ou por quem poderia ser feita; sim, os próprios anjos nunca poderiam
ter inventado esse método de libertação, se Deus, por Sua infinita
sabedoria e bondade, não o tivesse concebido e tornado conhecido por
meio do evangelho.

194 | P á g i n a
Mas alguns objetam ao que é dito aqui, como segue: se a libertação
parecia impossível para Adão, por causa da justiça e verdade de Deus,
então agora, também, deve parecer impossível; pois uma violação da
justiça e verdade de Deus, não pode acontecer agora mais do que
antes. Mas o escape do pecador da punição seria uma violação desses
atributos de Deus. A isso respondemos que, se o pecador escapasse da
punição sem uma satisfação suficiente pelo pecado, isso seria, de fato,
uma violação da justiça e da verdade de Deus. Se Adão tivesse visto
uma solução satisfatória para este problema, ele teria motivos para
esperar a libertação, especialmente se ele tivesse considerado, ao
mesmo tempo, a natureza de Deus, sua infinita bondade, sabedoria e
poder, e o fim para o qual Ele criou o homem; e que não seria
consistente com o caráter de Deus, que é muito sábio, bom e poderoso,
criar um ser de poderes tão nobres como o homem, para suportar a
miséria eterna; ou que daria tal lei ao homem, que nunca poderia ser
perfeitamente obedecida. No entanto, ele não podia nutrir nenhuma
esperança certa, pois, como já observamos, antes que o evangelho fosse
anunciado, nem ele, nem qualquer outra criatura, foi capaz de ver, ou
imaginar uma forma de escapar da punição, que estivesse em
harmonia com a justiça de Deus; nem poderia qualquer forma de
escape jamais ter sido planejada, se Deus não tivesse revelado por
meio de Seu Filho.
Esta, agora, é a essência do que foi dito: o homem, estando caído, não
poderia esperar por nenhuma libertação do pecado e da morte, antes
de ouvir a promessa alegre de que a semente da mulher feriria a cabeça
da serpente; mas ainda assim ele não deveria, nem poderia
simplesmente se desesperar como se fosse totalmente impossível. Pois
embora ele não pudesse conceber qualquer razão necessária a partir
da qual pudesse concluir sobre sua futura libertação, nem entender a
forma pela qual a satisfação poderia ser feita, ainda assim não se segue
que, se uma criatura não pudesse descobrir isso, portanto Deus não

195 | P á g i n a
poderia descobrir isto. Ele deveria, portanto, ter desviado o olhar de si
mesmo para a sabedoria, bondade e poder de Deus, e não ter se
desesperado, embora tudo parecesse levá-lo ao desespero. No entanto,
se o som do evangelho não tivesse chegado a seus ouvidos, nada
poderia tê-lo confortado suficientemente sob as tentações às quais foi
exposto. Mas depois que a promessa foi feita uma vez, e ele foi levado
a entender o método de redenção por meio de Cristo, então ele não
só poderia esperar pela libertação com certeza, mas também poderia
resolver todas as dúvidas e objeções que pudessem surgir, entre as
quais podemos mencionar as seguintes:
1. A justiça de Deus não permite que aqueles que merecem a
condenação eterna fiquem impunes. Todos nós merecemos a
condenação eterna. Portanto, nossa libertação é impossível, por conta
da justiça de Deus. Resposta: Adão viu como a primeira proposição
deste silogismo poderia ser respondida, a saber: que a justiça de Deus
não absolve e inocenta aqueles que são merecedores da condenação
eterna, a menos que a satisfação seja feita por uma punição
correspondente à ofensa.
2. A justiça e a verdade de Deus são violadas quando não é feito o que
a primeira exige e a última ameaça. Mas se o castigo eterno e a morte
não forem infligidos ao homem, não será executado o que a justiça de
Deus requer, e sua verdade ameaça. Portanto, ambos são violados se o
homem não for punido, o que é impossível. Resposta: Aqui, novamente,
Adão viu que a proposição menor era verdadeira apenas no caso de
nenhuma punição ser infligida, nem sobre o próprio pecador, nem
sobre alguém que pudesse se oferecer como um substituto no quarto
e no lugar do pecador. Mas a promessa que Deus agradou revelar a
ele, o fez familiarizar-se com o fato de que Cristo, a semente da
mulher, como substituto do homem, feriria a cabeça da serpente.
3. Aquilo que a verdade e a justiça imutáveis de Deus exigem, é
necessário e imutável. Mas a verdade e a justiça imutáveis de Deus

196 | P á g i n a
exigem que o pecador seja lançado no castigo eterno. Portanto, a
rejeição do pecador é necessária e imutável. Resposta: Ele também viu
uma resposta à proposição principal desta objeção, a saber: que é
imutável que a justiça de Deus exige absolutamente, e não o que exige
condicionalmente; exigindo o castigo eterno do transgressor ou a
satisfação por meio de Cristo.
4. Que é impossível de que não temos o poder de escapar. Não temos
o poder de escapar do pecado e da morte. Portanto, é impossível
escaparmos desses males. Resposta: Mas aqui novamente Adão viu que
um escape desses males era impossível apenas no caso de Deus não
conhecer nem revelar o caminho da libertação, que era desconhecido
para a razão humana e para todos os seres criados, e que eles nunca
poderiam ter descoberto.
Essas e outras objeções semelhantes Adão foi capacitado, por meio da
promessa da semente da mulher que feriu a cabeça da serpente, a
repelir e vencer. Nós, porém, que vivemos nos dias de hoje, podemos
ver e compreender muito mais claramente a solução dessas
dificuldades, do que Adão poderia, visto que sabemos com certeza, do
evangelho e do próprio evento, bem como da nossa consciência de que
a libertação do homem não só era possível, e aconteceria em algum
tempo futuro, como o próprio Adão viu, mas também já foi feita por
Cristo. Consequentemente, a libertação do homem é, e sempre foi,
possível para Deus.

III. SE A LIBERTAÇÃO É NECESSÁRIA E CERTA


Embora Deus não tivesse a menor obrigação de livrar o homem da
miséria do pecado, estava livre para deixar todos os homens na morte
e não salvar ninguém; pois “quem primeiro lhe deu, e lhe será recompensado
novamente” (Romano 11:35); no entanto, pode-se dizer corretamente que
a libertação do homem foi e é necessária - entendendo por este termo
não uma necessidade absoluta, mas condicional, como é chamada. Isso
está provado:

197 | P á g i n a
1. Porque Deus o decretou e providenciou da forma mais livre e
imutável; e é impossível que Ele minta ou seja enganado. “Como eu vivo,
não tenho prazer na morte do ímpio, mas sim, (...)” (Ezequiel 18:23).
2. Porque Deus deseja ser louvado e glorificado para sempre pelo
homem. “Ele nos criou para o louvor da glória de Sua graça” (Efésios 1:6).
“Por que criarias todos os homens em vão?” (Salmos 89:47).
3. Porque Deus não enviou em vão Seu Filho ao mundo, nem Cristo
morreu em vão. “Eu desci do céu, não para fazer a Minha vontade, mas
a vontade daquele que Me enviou. E esta é a vontade do Pai, que Me
enviou, que de todo o que Ele Me deu, nenhum perderei (...)” (João 6:38,
39). “Eu vim chamar os pecadores ao arrependimento” (Mateus 9:13).
“Que foi entregue por nossas ofensas e ressuscitado para nossa
justificação” (Romanos 4:25). “Se a justiça vem pela lei, então Cristo
morreu em vão” (Galátas 2:21).
4. Porque Deus é mais inclinado à misericórdia do que à ira. Mas na
punição dos ímpios Sua ira se manifesta; muito mais, portanto, Ele
manifestará Sua misericórdia na salvação dos justos.
Esta libertação do homem é perfeita nesta vida, uma vez que respeita
o início dela; mas na vida por vir, será perfeita também no que respeita
a sua consumação. Agora, é perfeita em todas as suas partes, sendo
uma libertação do mal tanto da culpa quanto do castigo; então, será
perfeito também em seus graus, quando todas as lágrimas forem
enxugadas de nossos olhos, quando a imagem perfeita de Deus será
restaurada em nós, e Deus será tudo e em todos. Isso é provado:
1. Porque Deus não nos livra apenas em parte, mas salva e ama
perfeitamente todos aqueles a quem Ele salva. “O sangue de Jesus Cristo
nos purifica de todo pecado” (1 João 1:7).

198 | P á g i n a
2. Porque Deus punirá os ímpios mais severamente, para que eles
possam, por meio dessas punições, satisfazer plenamente a Sua justiça.
Ele irá, portanto, também libertar perfeitamente os piedosos, visto que
Ele é mais inclinado à misericórdia do que à ira. Nem é o benefício de
Cristo mais imperfeito, ou de menos força do que o pecado de Adão.
Este seria o caso, se Ele não nos libertasse perfeitamente porque
perdemos toda a justiça e salvação em Adão. Uma libertação perfeita
é, portanto, esperada, mas aos poucos, como foi demonstrado. Nesta
vida é perfeita; na ressurreição será mais perfeita; e na glorificação
será a mais perfeita.

IV. COMO ESTA LIBERTAÇÃO É REALIZADA


A libertação da qual falamos agora é feita: 1. Por uma satisfação plena
e suficiente pelo pecado. Essa satisfação existe quando o castigo que
é infligido por causa do pecado é equivalente ao que é eterno. 2.
Abolindo o pecado e renovando nossa natureza, o que é feito
restaurando em nós a justiça e imagem de Deus que perdemos, ou
pela regeneração perfeita de nossa natureza. Ambos são necessários
para nossa libertação.
A satisfação é necessária, porque a misericórdia de Deus, como foi
demonstrado, não viola a sua justiça, que exige satisfação. A lei impõe
tanto a obediência quanto a punição. Mas a satisfação não pode ser
alcançada por meio da obediência, porque nossa obediência passada
já está prejudicada, e a que segue não pode dar satisfação por ofensas
passadas. Somos obrigados a render obediência exata a cada momento
à lei, como uma dívida presente. Portanto, estando a obediência uma
vez prejudicada, não há outra forma de obter satisfação, exceto pela
punição, de acordo com a ameaça: “No dia em que dele comeres, certamente
morrerás” (Gênesis 2:17). Se uma punição suficiente for suportada para
satisfazer a lei, Deus se reconciliará e a libertação se tornará possível.

199 | P á g i n a
Assim, da mesma forma, a abolição do pecado e a renovação da nossa
natureza são necessárias: porque é somente com a condição de
deixarmos de ofender a Deus por nossos pecados, e sermos gratos a
Ele por nossa reconciliação, que Ele está disposto aceitar esta
satisfação. Desejar que Deus nos receba em seu favor, mas não estar
disposto a abandonar o pecado, é zombar de Deus. Mas não é possível
deixarmos e abandonar o pecado, a menos que nossa natureza seja
renovada. É assim, portanto, que a libertação do homem se torna
possível.

200 | P á g i n a
Questão 13. Podemos nós mesmos fazer essa satisfação?
Resposta: De forma nenhuma; mas, ao contrário, aumentamos
diariamente nossa dívida.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 13

Tendo dado uma explicação da forma pela qual nossa libertação é


feita, devemos agora indagar por quem essa satisfação e a abolição do
pecado podem ser efetuadas: por nós mesmos ou por outra pessoa? E
se por outra pessoa, seja por uma mera criatura? E se não por uma
mera criatura, por quem, portanto, e por que tipo de mediador? A
primeira dessas perguntas é respondida nesta 13ª questão do
catecismo. As outras duas são respondidas nas 14ª e 15ª questões do
catecismo.
Não podemos obter essa satisfação por nós mesmos, nem por
obediência nem por punição.
Não podemos fazer isso pela obediência, porque tudo o que fazemos
de bom devemos a Deus por obrigação atual. Consequentemente, é
impossível para nós satisfazer por nossas ofensas passadas por
qualquer obediência presente que possamos render à lei de Deus, pois
não podemos merecer nada das mãos de Deus no presente, muito
menos no futuro; nem pode um duplo mérito, isto é, um mérito para
o presente e o futuro, proceder de uma satisfação.
Um motivo mais comum e popular é atribuído no catecismo: porque
aumentamos diariamente a nossa dívida. Pecamos continuamente e,
ao pecar, aumentamos nossa culpa e o desprazer de Deus para
conosco. Ora, aquele que nunca cessa de ofender, não pode apaziguar
a parte ofendida, assim como o devedor que continuamente
acrescenta novas contas a créditos anteriores não pode se eximir de
dívidas.

201 | P á g i n a
Tampouco podemos dar satisfação a Deus por nossos pecados com o
castigo, porque nossa culpa, sendo infinita, merece um castigo infinito
- um que é eterno ou equivalente ao castigo eterno. O pecado sendo
uma ofensa contra o bem supremo, merece condenação eterna, ou pelo
menos uma punição temporal equivalente àquela que é eterna. Mas
não podemos obter satisfação com um castigo que é eterno, porque
então nunca deveríamos ser libertados dele. Estaríamos sempre dando
satisfação à justiça de Deus, mas ela nunca estaria totalmente
satisfeita. Nossa satisfação nunca seria perfeita - nunca seria uma
vitória completa sobre o pecado e a morte, mas continuaria imperfeita
por toda a eternidade, como a satisfação de demônios e espíritos
perversos. Nem podemos ter satisfação em suportar uma punição
temporal equivalente àquela que é eterna, necessária para que a morte
seja superada. Uma punição como essa não pode ser suportada por
qualquer criatura, por causa de muitas imperfeições, como veremos
em breve.
Como não podemos, portanto, obter satisfação por nós mesmos, é
necessário que essa satisfação seja feita por outro, se quisermos obter
a libertação de nossa miséria.
Disto podemos retornar prontamente uma resposta à seguinte
objeção, que às vezes é feita: nunca podemos cumprir a lei, nem por
punição, nem obediência. Portanto, o método de libertação por meio
da satisfação não tem importância. Resposta: Não é de pouca
importância; porque embora não possamos fazer satisfação com a
obediência, somos, no entanto, capazes de fazê-lo através da
resistência de um castigo suficiente, não em nós mesmos, mas em
Cristo, que cumpriu a lei tanto pela obediência, como pelo castigo.
Contra isso, as seguintes objeções são feitas:

202 | P á g i n a
Objeção 1. A lei exige nossa própria obediência ou punição; porque
está escrito: “Aquele que cumprir estas coisas por elas viverá”; “Maldito
aquele que não confirmar todas as palavras (...)”. Resposta: A lei, de fato,
exige nossa obediência ou punição, mas não exclusivamente, pois ela
nunca exclui ou condena a satisfação de outrem em nosso favor,
embora não a ensine e seja ignorante dela. Mas o evangelho nos revela
e mostra isso em Cristo.
Objeção 2. É injusto punir outro no lugar do culpado. Portanto, Cristo
não poderia ser punido em nosso favor e lugar. Resposta: Não é
incompatível com a justiça de Deus que outro seja punido no lugar
dos culpados, se essas condições estiverem presentes. 1. Se aquele que
é punido for inocente. 2. Se ele for da mesma natureza daqueles por
quem ele faz satisfação. 3. Se ele, por sua própria vontade, se oferecer
como uma satisfação. 4. Se ele mesmo for capaz de suportar e escapar
deste castigo. Esta é a razão pela qual os homens não podem punir
uma pessoa no lugar de outra, porque eles não podem fazer que aquele
que sofre não pereça sob o castigo. 5. Se ele olhar e obter o fim que
Cristo tinha em vista, a saber: a glória de Deus e a salvação do homem.

203 | P á g i n a
Questão 14. Pode ser encontrado em qualquer lugar alguém, que é
uma mera criatura, capaz de nos satisfazer?
Resposta: De forma nenhuma; pois, primeiro, Deus não punirá
nenhuma outra criatura pelo pecado que o homem cometeu; e, além
disso, nenhuma mera criatura pode sustentar o fardo da ira eterna
de Deus contra o pecado, a fim de libertar outros dele.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 14

A partícula exclusiva é adicionada a esta questão, para que a resposta


negativa seja verdadeira; pois era necessário que uma criatura fizesse
satisfação pelo pecado da criatura, mas não aquele que era apenas ou
apenas uma criatura, porque tal pessoa não poderia obter a satisfação
que era exigida, como se demonstrará nas observações que iremos
agora fazer.
Devemos, portanto, visto que a satisfação deve ser feita por meio de
outra pessoa, indagar se essa outra pessoa pode ser qualquer outra
criatura além do homem; e se ele pode ser uma mera criatura.
Negamos ambas as proposições. Nossa razão para negar o primeiro é
porque Deus não punirá o pecado que o homem cometeu em qualquer
outra criatura. Isso está de acordo com a ordem de Sua justiça, que
não permite que um peque e outro leve o castigo. “A alma que pecar,
essa morrerá” (Ezequiel 18:20). Esta razão prova que nenhuma criatura,
exceto o homem, poderia satisfazer para o homem: sim, Deus não
poderia ser satisfeito pelo pecado do homem pela destruição eterna
dos céus e da terra, e dos próprios anjos, e todas as outras criaturas.
Nossas razões para negar a segunda proposição são as seguintes: 1.
Porque nenhuma criatura possui tal poder que seja capaz de suportar
uma punição finita, equivalente àquela que é infinita, com o propósito
de dar satisfação pela culpa infinita do homem. Uma mera criatura
seria consumida e reduzida a nada, antes que a satisfação pudesse ser
feita a Deus desta forma: “Porque Deus é um fogo consumidor”

204 | P á g i n a
(Deuteronômio 4:24); “Se tu observares as iniquidades, ó Senhor, quem
subsistirá?” (Salmos 130:3); “Pois o que a lei não podia fazer, visto que era
fraca pela carne, Deus enviando seu próprio Filho em semelhança de carne
pecaminosa” (Romanos 8:3). Esta razão prova que nenhuma criatura em
todo o universo foi capaz de realizar satisfação a Deus pelo pecado do
homem, pelo castigo, para se livrar do mesmo, cujo escape foi
necessário para a nossa libertação. Não poderia, portanto, desta forma,
por causa da fraqueza da criatura, não haver proporção justa entre o
pecado e sua punição. 2. Porque a punição de uma mera criatura não
poderia ser um preço de dignidade e valor suficientes para nossa
redenção. 3. Porque uma mera criatura não poderia ter renovado e
santificado nossa natureza, nem poderia ter contribuído para que não
mais pecássemos, tudo aquilo que foi necessário para nosso libertador
realizar.

205 | P á g i n a
Questão 15. Que tipo de mediador e libertador, então, devemos
buscar?
Resposta: Aquele que é verdadeiro homem e perfeitamente justo; e
ainda mais poderoso do que todas as criaturas; isto é, aquele que
também é verdadeiro Deus.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 15

Visto que, então, não somos capazes de dar satisfação a Deus por
nossos pecados, mas devemos ter algum outro que faça satisfação ou
medie em nosso lugar, devemos perguntar além: que tipo de libertador
ele deve ser? A isso podemos responder que ele deve necessariamente
ser apenas uma criatura, ou apenas Deus, ou ambos. Uma mera
criatura, entretanto, ele não pode ser, pelas razões já indicadas.
Meramente Deus ele não poderia ser, porque o homem havia pecado,
e não Deus; e também porque cabia ao mediador sofrer e morrer pelos
pecados do homem. Mas Deus, em Si mesmo, não pode sofrer nem
morrer. Segue-se, portanto, que tal mediador é requerido que seja
Deus e homem. Os motivos para isso serão atribuídos nas questões
imediatamente a seguir.

206 | P á g i n a
6º DIA DO SENHOR

Questão 16. Por que Ele deve ser verdadeiro e homem, e também
perfeitamente justo?
Resposta: Porque a justiça de Deus requer que a mesma natureza
humana, que pecou, da mesma forma faça a satisfação pelo pecado;
e aquele que é pecador não pode satisfazer aos outros.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 16

Convinha a nosso mediador ser homem, e de fato verdadeiro homem,


e perfeitamente justo.
Em primeiro lugar, convinha que Ele fosse homem. 1. Porque foi o
homem que pecou. Era necessário, portanto, que o homem satisfizesse
o pecado. “Como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado
a morte (...)” (Romanos 5:12); “Visto que a morte veio por um homem, também
a ressurreição dos mortos veio por um homem” (1 Coríntios 15:21). 2. Para
que Ele pudesse morrer. Era necessário que Ele nos satisfizesse com a
Sua morte e com o derramamento do Seu sangue, porque houve foi
declarado: “Certamente morrerás” (Gênesis 2:17); “Sem derramamento de
sangue não há remissão” (Hebreus 9:22).
Em segundo lugar, convinha Ele ser verdadeiro homem, descendente
de uma mesma natureza humana que tinha pecado, e não criado a
partir do nada, ou deixar que descia do céu, mas sujeito a todas as
nossas enfermidades, exceto o pecado: 1. Porque a justiça de Deus
exigia que a mesma natureza humana que pecou, da mesma forma
satisfizesse o pecado. “A alma que pecar, essa morrerá” (Ezequiel 18:20);
“E no dia em que dele comeres, certamente morrerás” (Gênesis 2:17). Era
necessário, portanto, que aquele que faria satisfação ao homem, fosse
ele mesmo homem, tendo surgido da posteridade de Adão, que pecou.
As seguintes passagens da Escritura são aqui apontadas: “Visto que a

207 | P á g i n a
morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos
mortos” (1 Coríntios 15:21); “Porque há um só Deus e um só mediador entre
Deus e o homem, o homem Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5); “Ele tomou sobre si
a semente de Abraão; portanto convinha que em todas as coisas fosse
semelhante a seus irmãos (...)” (Hebreus 2:16, 17). Assim, o apóstolo
também diz que fomos sepultados com Cristo no batismo,
crucificados com Ele, ressuscitados com Ele, e outras coisas
semelhantes (Romanos 6:4; Colossenses 2:12). E Agostinho, em seu livro
sobre a religião verdadeira, diz: “A mesma natureza verdadeira deveria
ser assumida, a qual deveria ser libertada”. 2. Porque a verdade de Deus
o exigia. Os profetas, que falaram movidos pelo Espírito Santo, muitas
vezes descreveram nosso mediador como alguém que é pobre, fraco,
desprezado e outras coisas semelhantes. O 53º capítulo da profecia de
Isaías nos fornece um exemplo notável. 3. Por causa do nosso conforto:
porque se não soubéssemos que Ele havia surgido de Adão, não
poderíamos recebê-lo como o Messias prometido, e como nosso irmão,
visto que a promessa é: “A semente da mulher ferirá o cabeça de serpente”
(Gênesis 3:15); "Em tua descendência serão benditas todas as nações da terra”
(Gênesis 22:18). O apóstolo Paulo também diz em relação a isso: "O que
santifica e os que são santificados são todos um (isto é, da mesma natureza
humana); porque razão pela qual Ele não tem vergonha de chamá-los de
irmãos" (Hebreus 2:11). Era necessário, portanto, que ele surgisse de
Adão, para que pudesse ser nosso irmão. “Visto que os filhos são
participantes da carne e do sangue, Ele também participou do mesmo(...)”
(Hebreus 2:14). 4. Para que seja um sumo sacerdote fiel, capaz de
socorrer os que são tentados. “Portanto, convinha que em todas as coisas
fosse semelhante a Seus irmãos, para ser um sumo sacerdote misericordioso e
fiel nas coisas concernentes a Deus, para fazer a reconciliação pelos pecados
do povo. Sendo tentado, Ele é capaz de socorrer os que são tentados” (Hebreus
2:17, 18).

208 | P á g i n a
Em terceiro lugar, convinha que Ele fosse um homem perfeitamente
justo, aquele que era totalmente livre desde o menor mancha do
pecado original e atual, para que pudesse merecidamente ser nosso
salvador, e que Seu sacrifício pode ser proveitoso, não para Si, mas
para nós: pois se Ele mesmo fosse um pecador, Ele teria que se
satisfazer com Seus próprios pecados. “Meu servo justo justificará a
muitos” (Isaías 53:11). “Quem não pecou, tampouco se achou engano em Sua
boca” (1 Pedro 2:22). “Cristo também sofreu uma vez pelo pecado, o justo pelos
injustos, para nos levar a Deus” (1 Pedro 3:18).
Mas aquele que é pecador. Se o próprio mediador fosse um pecador,
ele não poderia ter escapado da ira de Deus, muito menos poderia ter
obtido para os outros a graça de Deus e isenção de punição: nem a
paixão e morte daquele que não sofreu como um homem inocente,
seja um resgate pelo pecado dos outros. Portanto, “Deus O fez pecado
por nós, (isto é, um sacrifício pelo pecado), quem não conheceu pecado, para
que pudéssemos ser feitos justiça de Deus nEle” (2 Coríntios 5:21). "Para tal
um sumo sacerdote tornou-se nós, que é santo, inocente, imaculado, separado
dos pecadores, e feito mais sublime que os céus; que não necessitasse, como os
sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, primeiramente por Seus
próprios pecados, e depois pelos do povo” (Hebreus 7:26, 27).
O homem Cristo era perfeitamente justo ou cumpriu a lei em quatro
aspectos. 1. Por Sua própria justiça. Somente Cristo cumpriu a
obediência perfeita, conforme requer a lei. 2. Suportando punição
suficiente para nossos pecados. Era necessário que este duplo
cumprimento da lei estivesse em Cristo: pois, a menos que Sua justiça
fosse plena e perfeita, Ele não poderia ter satisfeito pelos pecados dos
outros; e a menos que Ele tivesse suportado o castigo descrito, Ele não
poderia ter nos livrado do castigo eterno. O primeiro é chamado de
cumprimento da lei pela obediência, pela qual Ele próprio se
conformou a ela; o último é o cumprimento da lei pelo castigo, que
Ele sofreu por nós, para que não fiquemos sujeitos à condenação

209 | P á g i n a
eterna. 3. Cristo cumpre a lei em nós pelo Seu Espírito, quando pelo
mesmo Espírito nos regenera, e pela lei nos conduz à obediência que
nos é exigida, que é externa e interna, que começamos nesta vida, e
que devemos realizar perfeita e completamente na vida por vir. 4.
Cristo cumpre a lei ensinando-a e libertando-a de erros e
interpolações e restaurando seu verdadeiro sentido, como Ele mesmo
disse: “Não vim destruir a lei, mas cumpri-la” (Mateus 5:17).

210 | P á g i n a
Questão 17. Por que Ele em uma pessoa também deve ser verdadeiro
Deus?
Resposta: Para que Ele pudesse, pelo poder de Sua Divindade,
sustentar, em Sua natureza humana, o fardo da ira de Deus; e obter
e restaurar para nós, justiça e vida.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 17

Era necessário que nosso mediador não fosse apenas um homem, e


alguém que fosse verdadeiramente tal e perfeitamente justo; mas que
Ele também deveria ser Deus - o Deus verdadeiro e poderoso - e não
uma divindade imaginária, ou uma que foi adornada com dons
excelentes, acima dos anjos e dos homens, como os hereges supõem.
As razões para isso são as seguintes:
1. Para que Ele pudesse, pelo poder de Sua Divindade, sustentar, em
Sua natureza humana, a infinita ira de Deus contra o pecado, e
suportar uma punição que, embora fosse temporal no que diz respeito
à sua duração, era, no entanto, infinita em grandeza, dignidade e valor.
Se nosso mediador fosse apenas um homem e tivesse tomado sobre Si
o peso da ira de Deus, teria sido esmagado por seu peso. Era
necessário, portanto, que Ele possuísse força infinita, e por isso fosse
Deus, para que pudesse suportar um castigo infinito, sem afundar no
desespero ou ser esmagado por ele.
Era necessário que a punição do mediador fosse de valor infinito e
equivalente ao que é eterno, para que houvesse uma proporção entre
o pecado e sua punição. Pois não há nenhum pecado entre todos os
pecados cometidos, do princípio ao fim do mundo, tão pequeno que
não mereça a morte eterna. Todo pecado é tão pecaminoso que não
pode ser expiado pela destruição eterna de qualquer criatura.
Era apropriado, entretanto, que essa punição fosse finita com respeito
ao tempo, porque não era necessário que o mediador permanecesse
para sempre sob a morte; mas convinha que Ele ressurgisse da morte

211 | P á g i n a
para cumprir o benefício de nossa redenção, isto é, para que pudesse
merecer perfeitamente e, sendo honrado, pudesse aplicar e nos desse
a salvação que adquiriu em nosso favor. Também foi exigido de nosso
mediador que tanto desse como conferisse justiça, para que Ele
pudesse ser um salvador perfeito em mérito e eficácia. No entanto
essas coisas não poderiam ter sido feitas por um mero homem, que e
de qualquer força que ele pudesse possuir, se ele, no entanto, não
tivesse o poder de ressurgir da morte. Era necessário, portanto, que
aquele que salvaria os outros da morte, vencesse a morte por Seu
próprio poder e, primeiro, livrasse a Si mesmo, mas isso Ele não
poderia ter feito se não fosse Deus.
2. Era necessário que o resgate que o redentor pagou fosse de valor
infinito, que possuísse dignidade e mérito suficientes para a redenção
de nossas almas, e que pudesse ter proveito no julgamento de Deus,
com o propósito de expiar nossos pecados, e restaurar em nós aquela
justiça e vida que perdemos. Consequentemente, tornou-se a pessoa
que faria essa satisfação para nós, ser possuidor de dignidade infinita,
isto é, ser Deus; pois a dignidade desta satisfação, pela qual poderia
ser aceitável a Deus e de valor infinito, embora temporal, consiste em
duas coisas: na dignidade da pessoa e na grandeza do castigo.
A dignidade da pessoa que sofreu se manifesta nisto: que foi Deus, o
próprio criador, que morreu pelos pecados do mundo; que é
infinitamente mais do que a destruição de todas as criaturas, e
beneficia mais do que a santidade de todos os anjos e homens. É por
isso que os apóstolos, quando falam dos sofrimentos de Cristo, quase
sempre fazem menção à sua divindade. “Deus comprou a Igreja com zeu
sangue” (Atos 20:28). “O sangue de Jesus Cristo nos purifica de todo pecado”
(1 João 1:7). “Eis o cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo” (João
1:29). Sim, o próprio Deus, no paraíso, uniu estes dois: “A semente da
mulher lhe ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gênesis 3:15).

212 | P á g i n a
A grandeza do castigo que Cristo suportou se manifesta nisto, que Ele
suportou os terríveis tormentos do inferno e a ira de Deus contra os
pecados do mundo inteiro. “As dores do inferno se apoderaram de mim”
(Salmos 116:3). “Deus é um fogo consumidor” (Deuteronômio 4:24). “O
Senhor fez cair sobre Ele a iniquidade de todos nós” (Isaías 53:10). Disto
podemos perceber por que foi, que Cristo manifestou tais sinais de
angústia na perspectiva da morte, enquanto muitos dos mártires
encontraram a morte com a maior coragem e compostura.
Objeção. O cumprimento perfeito da lei pela obediência pode ter sido
uma satisfação por nossos pecados. Mas um mero homem, se fosse
perfeitamente justo, poderia ter cumprido a lei pela obediência.
Portanto, um mero homem, sendo perfeitamente justo, poderia ter
satisfeito nossos pecados - e, portanto, não era necessário que nosso
mediador fosse Deus. Resposta 1. Negamos a proposição principal,
porque já foi demonstrado que quando a obediência uma vez foi
comprometida, não era possível que a justiça de Deus pudesse ser
satisfeita pelo pecado, a menos que por uma punição suficiente por
conta da ameaça divina, “no dia em que comeres, certamente morrerás”
(Gênesis 2:17). 2. Embora possamos reconhecer a proposição menor,
que um mero homem, por sua obediência, poderia cumprir a lei
perfeitamente, esta obediência ainda não poderia ser uma satisfação
pelos pecados de outro, porque todos são obrigados a obedecer à lei.
Era necessário, portanto, que o mediador suportasse um castigo
suficiente por nós, e por isso estivesse armado com o poder divino;
pois os próprios demônios não são capazes de suportar o fardo da ira
de Deus contra o pecado - muito menos o poderia o homem. Se for
objetado que os demônios e os ímpios sustentam e são compelidos a
sustentar a ira eterna de Deus, respondemos que eles, de fato,
sustentam a ira de Deus, mas não para satisfazer Sua justiça, e escapar
de Sua punição; pois Sua punição durará para sempre. Mas cabia ao
mediador suportar o peso da ira de Deus, para que, tendo feito
satisfação, pudesse removê-la de Si mesmo e também de nós.

213 | P á g i n a
3. Era necessário que o mediador fosse Deus, para que pudesse revelar
a secreta vontade de Deus a respeito da redenção da humanidade, o
que Ele não poderia ter feito se fosse apenas um homem. Nenhuma
criatura poderia ter conhecido, ou descoberto, a vontade de Deus a
respeito de nossa redenção, se o Filho de Deus não a tivesse revelado.
“Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito, que está no seio do Pai, Ele o
revelou” (João 1:18).
4. Convinha que o mediador fosse Deus, para que pudesse dar o
Espírito Santo, reunir uma Igreja, estar presente com ela e dar e
preservar os benefícios adquiridos com Sua morte. Não cabia apenas
a Ele ser feito um sacrifício, livrar-se da morte de Si mesmo e
interceder por nós junto a Deus; mas cabia a Ele também garantir que
não mais ofenderíamos a Deus com nossos pecados. Isso, porém, por
causa da nossa corrupção, ninguém poderia prometer em nosso favor,
se não tivesse o poder de dar o Espírito Santo e, por meio dEle, o
poder de nos conformar à imagem de Deus. Mas dar o Espírito Santo
e, por meio dele, regenerar o coração, é peculiar somente a Deus, de
quem Ele é o Espírito. “Quem vos enviarei da parte do Pai” (João 15:26).
Somente Ele, que é o Senhor da natureza, pode reformá-la.
5. Finalmente, era necessário que o Messias fosse “O SENHOR, A NOSSA
JUSTIÇA” (Jeremias 23:6).
Objeção. A parte ofendida não pode ser mediadora. Cristo é o
mediador. Portanto, Ele não pode ser a parte ofendida, ou seja, Deus.
Resposta: A proposição principal é verdadeira apenas quando a parte
ofendida é aquela que não admite distinções pessoais; o que,
entretanto, não é o caso no que diz respeito à Divindade. Vide Ursini
vol. 1. p. 120.

214 | P á g i n a
Questão 18. Quem, então, é esse mediador, que é, em uma pessoa, o
verdadeiro Deus e um verdadeiro homem justo?
Resposta: Nosso Senhor Jesus Cristo; o qual por Deus é feito para
nós sabedoria e justiça, santificação e redenção.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 18

Agora demonstramos que tipo de mediador é necessário que


tenhamos. A próxima questão que chama nossa atenção é: quem é este
mediador? Que este mediador é Jesus Cristo, o Filho de Deus,
manifestado na carne, é provado por estas considerações:
1. Tornou-se o mediador para ser o próprio Deus, como demonstrado.
Deus, o Pai, entretanto, não poderia ser o mediador; porque Ele não
opera por Si mesmo, mas por meio do Filho e do Espírito Santo. Nem
é o Pai um mensageiro; porque Ele não é enviado por ninguém, mas
Ele mesmo envia o mediador. Nem poderia o Espírito Santo ser o
mediador; porque Ele deveria ser enviado pelo mediador aos corações
dos eleitos. Portanto, somente o Filho é este mediador.
2. Era necessário que o mediador tivesse aquilo que cabia a Ele
conferir a nós. Ele se tornou agora, para nos conferir o direito e título
dos filhos de Deus, que tinha perdido; isto é, coube a Ele levar a efeito,
que Deus pudesse, por amor de Seu Filho, como Seus filhos nos adotar.
Isso, porém, só Cristo foi capaz de realizar, porque só Ele tinha o
direito de fazê-lo. O Espírito Santo não tinha esse direito, porque Ele
não é o Filho. Nem pertencia ao Pai, pela mesma razão; e também
porque coube a Ele nos adotar entre Seus filhos, por meio do Filho.
Portanto, o Verbo, que é o Filho natural de Deus, é o único nosso
mediador, em quem, como no primogênito, somos adotados como
filhos de Deus, como se diz: “Se o Filho vos libertar, vós sereis realmente
livres” (João 8:36). “A todos quantos O receberam, a eles deu o poder de serem
chamados filhos de Deus” (João 1:12). “Para a adoção de filhos por Jesus Cristo.
Ele nos fez para sermos aceitos no Amado” (Efésios 1:5, 6).

215 | P á g i n a
3. Só o Filho é o Verbo, o embaixador do Pai, e aquele que foi enviado
à raça humana para revelar a vontade de Deus, por meio de quem o
Pai opera e dá o Espírito Santo; e por meio de quem, também, a
segunda criação é feita; pois é por meio do Filho que somos feitos
novas criaturas. As Escrituras, por esta razão, em todos os lugares
unem a primeira e a segunda criação, porque a segunda deveria ser
efetuada pela mesma pessoa por meio da qual a primeira foi feita.
“Todas as coisas foram feitas pelo Filho” (João 1:3). O mediador também
era para ser um mensageiro e pacificador, entre Deus e nós, e para nos
regenerar pelo Espírito Santo. Portanto, somente o Filho é este
mediador.
4. Cabe ao mediador enviar imediatamente o Espírito Santo. Mas é
somente o Filho que envia o Espírito Santo. O Pai, de fato, envia o
Espírito Santo, mas é por meio do Filho. O Filho envia o Espírito
imediatamente do Pai, como Ele mesmo declara: “Quem vos enviarei da
parte do Pai” (João 15:26).
5. Coube o mediador ao sofrer e morrer. Mas não foi possível para
nenhuma das pessoas da Trindade sofrer e morrer, exceto o Filho, que
assumiu nossa natureza. “Deus foi manifestado em carne” (1 Timóteo
3:16). “Cristo foi morto na carne” (1 Pedro 3:18). Portanto, o Filho é o
mediador.
6. Que o Filho é o mediador pode ser provado por uma comparação
das profecias do Antigo Testamento com seu cumprimento no Novo
Testamento.
7. As obras e milagres de Cristo estabelecem suas reivindicações ao
ofício de mediador. “As obras que faço dão testemunho de Mim, que
o Pai Me enviou” (João 5:36). “Creia nas obras” (João 10:38). “Quando
Cristo vier, Ele fará mais milagres do que estes” (João 7:31). "Vá e
mostres a João as coisas que tu ouves e vês. Os cegos recuperam a
visão (...)" (Mateus 11:4, 5).

216 | P á g i n a
8. Por estes testemunhos claros da Escritura: “Há um só mediador
entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5). “Cristo
por Deus é feito para nós, sabedoria, justiça, santificação e redenção”
(1 Coríntios 1:30); isto é, Ele é feito para nós um professor de sabedoria,
um justificador, um santificador e um redentor; o que é o mesmo que
dizer que Ele é um mediador e salvador, tanto por Seu mérito quanto
por Sua eficácia; pois nesta declaração do apóstolo, o abstrato é posto
para o concreto.
É aqui digno de nota que se diz que o mediador nos foi feito por Deus;
o que significa que Ele foi designado e dado. O mediador deveria ter
sido dado por nós e procedido de nós, porque pecamos. Mas não
fomos capazes de dar um mediador, visto que éramos todos filhos da
ira. Portanto, era necessário que Ele nos fosse dado por Deus.
É também digno de nota que a justiça e a santidade eram uma e a
mesma coisa em nós antes da queda, a saber: uma conformidade
inerente com Deus e a lei divina, visto que agora são a mesma coisa
nos santos anjos. Desde a queda, no entanto, elas não são a mesma
coisa em nós. Pois, agora, Cristo é nossa justiça; e nossa justificação
consiste na imputação de Sua justiça, pela qual somos julgados diante
de Deus. Santidade é o começo de nossa conformidade com Deus,
enquanto a santificação é a continuação dessa conformidade com
Deus, que nesta vida é imperfeita, mas que será totalmente
aperfeiçoada na vida futura; quando a justiça e a santidade serão
novamente a mesma coisa em nós, como são agora nos santos anjos.
O resumo e a substância de toda a doutrina do mediador estão
contidos no que agora se segue.

217 | P á g i n a
A RESPEITO DO MEDIADOR
A doutrina do mediador, que está intimamente ligada à glória de Deus
e ao nosso conforto, deve ser cuidadosamente considerada pelas
seguintes razões: 1. Para que possamos reconhecer e engrandecer a
misericórdia de Deus, por ter dado Seu Filho para ser nosso mediador,
e ser feito um sacrifício por nossos pecados. 2. Para que possamos
saber que Deus é justo, na medida em que Ele não desejaria, por sua
clemência, perdoar o pecado; mas ficou tão desagradado com isso que
não o perdoaria, a menos que houvesse satisfação com a morte de Seu
Filho. 3. Para que possamos ter certeza da vida eterna, por ter um
mediador que está disposto e é capaz de concedê-la a nós. 4. Porque a
doutrina do mediador é o fundamento e a substância da doutrina da
Igreja. 5. Por causa dos hereges, que em todos os tempos se opõem,
com grande amargura, a esta doutrina; e que, tendo um conhecimento
adequado dele, podemos ser capazes de defendê-lo contra todos os
seus ataques.
A doutrina do mediador parece pertencer ao artigo da justificação,
porque ali também é explicado o ofício do mediador. Mas uma coisa
é ensinar o quê e que tipo de benefício a justificação é, e como ela é
recebida, o que é feito quando a doutrina da justificação é tratada; e
outra coisa é mostrar de quem é o benefício, e por quem ela é
concedida a nós, o que apropriadamente pertence aqui.
As principais coisas a serem consideradas em relação ao mediador são
as seguintes:
I. O que é um mediador.
II. Se precisamos de um mediador.
III. Qual é o seu ofício.
IV. Que tipo de mediador ele deveria ser.
V. Quem ele é;
VI. Se pode haver mais de um mediador.

218 | P á g i n a
I. O QUE É UM MEDIADOR
Mediador, em geral, significa aquele que reconcilia duas partes em
desacordo, interpondo-se e apaziguando a parte ofendida, com súplica,
com satisfação, e dando a garantia de que a mesma ofensa não voltará
a ser cometida. Um mediador, em alemão, é ein schiedmann. Reconciliar
inclui: 1. Interceder pelo ofensor com o ofendido. 2. Para fazer
satisfação pelo dano causado. 3. Para prometer e fazer acontecer, que
o ofensor não deve repetir a ofensa. 4. Para aproximar as partes em
desacordo. Se alguma dessas condições for insuficiente, não pode
haver uma reconciliação verdadeira.
Mas em especial, e como aqui aplicado a Cristo, um mediador é uma
pessoa que reconcilia Deus, que está irado com o pecado, e a raça
humana exposta à morte eterna por causa do pecado, dando satisfação
à justiça divina por Sua morte, intercedendo pelo culpado, e aplicando,
ao mesmo tempo, Seus méritos pela fé aos que creem, regenerando-os
pelo Seu Espírito Santo, fazendo com que deixem de pecar; e
finalmente ouvindo os gemidos e orações daqueles que O invocam.
Ou, um mediador é um pacificador entre Deus e os homens,
apaziguando a ira de Deus e restaurando os homens em Sua graça,
intercedendo e satisfazendo seus pecados, levando a efeito que Deus
ama os homens, e os homens amam a Deus, para que uma paz ou
acordo constante e eterno seja efetuado entre eles.
Uma pessoa intermediária e um mediador são diferentes. O primeiro
é o nome da pessoa - o último, o nome do ofício. Cristo é ambos. Ele
é uma pessoa intermediária, porque nEle está a natureza de cada parte
- Ele tem a natureza de Deus e do homem. Ele é um mediador, porque
nos reconcilia com Deus; embora seja, em certa medida, uma pessoa
intermediária, no mesmo aspecto em que é um mediador; porque nele
os dois extremos, Deus e o homem, estão ligados.

219 | P á g i n a
Adendo. Às vezes se pergunta se Adão precisava de um mediador
antes da queda. A isso, a resposta pode ser devolvida de acordo com o
significado que atribuímos ao termo mediador. Se desejamos dizer
com isso, aquele por meio de cuja mediação, ou por quem Deus desse
Seus benefícios, e Se comunica a nós, então Adão, mesmo antes de Sua
queda, precisava de um mediador, porque Cristo sempre foi a pessoa
por meio de quem o Pai criou e preparou todas as coisas; pois “nEle
estava a vida”, tanto natural quanto espiritual, “e a vida era a luz dos
homens” (João 1:4). Mas se entendermos por um mediador, aquele que
executa essas e todas as outras funções que pertencem ao ofício, então
respondemos que Adão não precisava de um mediador antes da queda.
Devemos observar, entretanto, que as Escrituras não falam de Cristo,
como sendo o mediador antes da queda do homem.

II. SE PRECISAMOS DE UM MEDIADOR COM DEUS


Que precisamos de um mediador é evidente:
1. Porque a justiça de Deus não admite nenhuma reconciliação sem
um retorno à Sua graça. Um advogado é, portanto, necessário. Nem
podemos ser reconciliados com Deus, a menos que a intercessão seja
feita em nosso favor. Um intercessor é, portanto, necessário. Portanto,
a satisfação é exigida. Portanto, deve haver alguém para satisfazer.
Então, deve haver uma aplicação do benefício, pois é necessário que
ele seja recebido. Portanto, deve haver alguém para aplicar o benefício
da redenção. E, finalmente, sem a remoção do pecado e a restauração
da imagem de Deus em nós, não deixaremos de pecar contra Deus.
Portanto, precisamos de alguém para nos libertar do pecado e renovar
nossa natureza. Mas por nós mesmos não somos capazes de realizar
essas coisas; não podemos apaziguar Deus, que está irado; não
podemos nos tornar aceitáveis aos Seus olhos, e outras coisas
semelhantes. Precisamos, portanto, de outra pessoa para atuar como
mediador para nós, que pode realizar essas coisas em nosso nome.

220 | P á g i n a
2. Deus exigiu um mediador da parte que cometeu a ofensa. Como um
ser divino, Ele não poderia receber satisfação de Si mesmo. Sua justiça
tornou necessário que o ofensor fizesse satisfação, ou obtivesse favor
por meio de tal mediador que pudesse satisfazer perfeitamente, e
também fosse mais aceitável a Deus, para não ser expulso de Sua
presença; e que pode, por Sua influência com Deus, ser capaz de
facilmente nos reconciliar com Ele, fazendo satisfação, súplica e
intercessão em nosso favor. Tal mediador, entretanto, não pudemos
encontrar entre nós; porque éramos todos filhos da ira. Havia,
portanto, a necessidade de uma terceira pessoa entrar como mediador,
que deveria ser dado por Deus, e que seria verdadeiro homem e, ao
mesmo tempo, mais aceitável a Deus.
3. É necessário que aqueles que desejam obter a libertação satisfaçam
a justiça de Deus, por si mesmos ou por outro. Aqueles que não podem
fazer essa satisfação por si mesmos precisam de um mediador. É
requerido de nós agora, se quisermos obter a libertação do pecado,
satisfazer a justiça de Deus por nós mesmos ou por outro. Mas não
somos capazes de realizar isso por nós mesmos. Portanto, precisamos
de um mediador.
Objeção. Onde há apenas uma forma de obter satisfação, nenhuma
outra deve ser procurada ou proposta. A lei reconhece apenas um
caminho, que é por nós mesmos. Portanto, não devemos propor
nenhum outro; nem devemos dizer, seja por nós mesmos, ou por outro.
Resposta: O todo é dado, na medida em que respeita a lei: pois a lei
prescreve apenas uma forma de dar satisfação, e é em vão que
procuremos outra. Mas, embora isso seja verdade no que diz respeito
à lei, não rejeita todas as outras formas. Na verdade, diz que a
satisfação deve ser obtida por meio de nós mesmos. Mas nunca diz,
apenas através de nós mesmos. Não exclui, portanto, o método de
obter satisfação por meio de outro. E embora Deus não expressasse
este outro método na lei, ainda assim foi compreendido em Seu

221 | P á g i n a
conselho secreto e posteriormente revelado no evangelho. A lei não
explica, portanto, esse método, mas deixa que seja revelado pelo
evangelho. Tampouco há nisso qualquer conflito ou falta de acordo
entre a lei e o evangelho, visto que a lei (como acabamos de observar)
não acrescenta a partícula exclusiva, dizendo que a satisfação só pode
ser feita por nós mesmos.
4. Que precisamos de um mediador com Deus, pode ser demonstrado
por muitas outras considerações, das quais podemos mencionar o
seguinte: 1. As censuras e remorsos da consciência. 2. As punições dos
ímpios. 3. Os sacrifícios instituídos por Deus, que se referem e
refletem o sacrifício perfeito de Cristo. 4. Os sacrifícios dos pagãos e
papistas, com os quais desejavam agradar a Deus, que tinham sua
origem no sentimento ou consciência da necessidade de alguma
satisfação ser feita para nossa aceitação por Deus.

III. O QUE É O OFÍCIO DO MEDIADOR


Ele se torna um mediador tratar com ambas as partes, o ofendido e o
ofensor. Foi assim que Cristo desempenhou a função de mediador,
tratando com cada uma das partes.
Com Deus, a parte ofendida, Ele faz as seguintes coisas: 1. Ele
intercede junto ao Pai por nós e ora para que nosso pecado não seja
imputado a nós. 2. Ele se oferece como uma satisfação em nosso nome.
3. Ele faz essa satisfação morrendo por nós, e suportando um castigo
suficiente para enfrentar a nossa causa, finito na verdade quanto ao
tempo, mas infinito em dignidade e valor. 4. Ele se torna nossa
garantia de que não mais ofenderemos a Deus com nossos pecados.
Sem esta garantia, a intercessão não encontra lugar, nem mesmo com
os homens, muito menos com Deus. 5. Ele finalmente efetua esta
promessa em nós, Seu Espírito Santo nos dando e a vida eterna.
Conosco, como a parte ofensora, Ele faz o seguinte: - 1. Apresenta-se a
nós como o mensageiro do Pai, revelando esta, a Sua vontade, que se

222 | P á g i n a
apresente como nosso mediador, e que o Pai aceite a Sua satisfação. 2.
Ele faz essa satisfação, dá e aplica a nós. 3. Ele opera fé em nós, o
Espírito Santo nos dando, para que possamos abraçar, e não rejeitar
este benefício que nos é oferecido; porque não pode haver
reconciliação a menos que cada parte consinta: “Ele opera em nós tanto
o querer como o realizar” (Filipenses 2:13). 4. Ele faz acontecer pelo
mesmo Espírito que deixemos de pecar e comecemos uma nova vida.
5. Ele nos preserva neste estado de reconciliação pela fé e nova
obediência, e nos defende contra o Diabo e todos os inimigos, até
mesmo contra nós mesmos, para que não caiamos. 6. Finalmente, Ele
nos ressuscitará dos mortos e nos glorificará, ou seja, Ele aperfeiçoará
a salvação iniciada e os dons que perdemos em Adão, bem como
aqueles que Ele tinha alcançado para nós.
Todas essas coisas que Cristo faz, obtém e aperfeiçoa, não apenas por
seus méritos, mas também por sua eficácia. Ele é, portanto,
considerado um mediador, tanto em mérito quanto em eficácia;
porque Ele não adquire por nós só pelo Seu sacrifício, mas Ele
também, em virtude do Seu Espírito, efetivamente nos confere Seus
benefícios, que consistem na justiça e na vida eterna, de acordo com
o que é dito: “Eu dou a Minha vida pelas ovelhas (...) Eu dou a elas vida
eterna” (João 10:15, 28); “Assim como o Pai tem vida em Si mesmo, assim deu
ao Filho ter vida em Si mesmo (...) Assim como o Pai ressuscita os mortos e os
vivifica, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer” (João 5:21, 46).
Muitos são os benefícios compreendidos no ofício do mediador; pois
Deus o instituiu com o propósito de dar bênçãos à Igreja. Paulo
compreende essas bênçãos muito brevemente em quatro termos
gerais, quando diz: “Mas vós sois daquele que sois em Cristo Jesus, o qual,
por Deus, foi feito para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção” (1
Coríntios 1:30). Ele é feito para nós sabedoria, 1. Porque Ele é a
substância e sujeito da sabedoria que possuímos. “Decidi não saber nada
entre vós, exceto Jesus Cristo, e este crucificado” (1 Coríntios 2:2). “Nós

223 | P á g i n a
pregamos a Cristo crucificado, que é uma pedra de tropeço para os judeus, e
loucura para os gregos; mas para os que são chamados, tanto judeus como
gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1:24). 2.
Porque Ele é a causa de nossa sabedoria, e isso de três formas; porque
Ele o trouxe do seio do Pai — instituído e preserva o ministério da
Palavra, por meio do qual Ele nos instrui sobre a vontade do Pai e Seu
ofício como mediador; e, finalmente, porque Ele atua eficazmente nos
corações dos eleitos, para que eles aprovem a doutrina e sejam
renovados à imagem de Deus. Em resumo, Cristo é nossa sabedoria,
porque Ele é a substância, o autor e o meio. Ele é nossa justiça, ou
seja, nosso justificador. Nossa justiça está nEle, como na substância; e
Ele mesmo nos dá isso por Seu mérito e eficácia. Ele é nossa
santificação, isto é, santificador; porque Ele nos regenera e nos
santifica pelo Espírito Santo. Ele é nossa redenção, isto é, redentor;
porque Ele finalmente nos livra: pois a Palavra que aqui é traduzida
como redenção, não significa apenas o preço, mas também o efeito e
a consumação de nossa redenção.

IV. QUE TIPO DE MEDIADOR ELE DEVERIA SER


Este ponto está mais sabiamente conectado com o precedente; pois,
uma vez que é manifesto, que essa satisfação deve ser feita - por meio
de outro, e que deve ser com a satisfação do mediador, que já foi
descrito, devemos agora perguntar: Que tipo de mediador Ele é?
Em resposta, responderíamos que nosso mediador deve ser o homem
- verdadeiro homem, derivando Sua natureza de nossa raça e retendo-
a para sempre - um homem perfeitamente justo e verdadeiro Deus.
Em resumo, Ele deve ser uma pessoa teantrópica18, tendo as duas
naturezas, a divina e a humana, na unidade de Sua pessoa, para que
seja verdadeiramente uma pessoa intermediária e mediadora entre
Deus e os homens.

18 Teantrópico: tanto homem, como Deus.

224 | P á g i n a
As provas relativas à pessoa do mediador são retiradas de Seu ofício;
pois era necessário que Ele existisse e possuísse tudo o que estava
incluído em Seu ofício. Estas provas já foram apresentadas e
explicadas, na exposição das 15ª, 16ª e 17ª questões do catecismo, às
quais remetemos o leitor.

V. QUEM É ESTE MEDIADOR, QUEM EM UMA PESSOA É DEUS


E HOMEM
O mediador até agora tem sido chamado de Filho de Deus, nosso
Senhor Jesus Cristo, como mostramos na 18ª questão do catecismo. A
totalidade e a substância do que devemos crer em relação a este
assunto é que as Escrituras atribuem ao mesmo tempo essas três
coisas a Cristo, e somente a Ele:
Primeiro, que Ele é Deus. “A Palavra era Deus” (Atos 20:28); "Todas as
coisas foram feitas por Ele” (João 1:1); "A Igreja de Deus, que Ele comprou com
Seu próprio sangue (Atos 20:28); "Que foi declarado Filho de Deus com poder,
segundo o Espírito de santidade” (Romanos 1:4); “Há três que testificam no
céu, o Pai, a Palavra e o Espírito Santo, e estes três são um” (1 João 5:7). A
essas declarações das Escrituras, podemos acrescentar as que
atribuem a Cristo adoração divina, invocação, ouvir orações e tais
obras como são peculiares a Deus somente. Essas passagens que
atribuem a Cristo o nome de Jeová, também são relevantes (Jeremias
23:6; Zacarias 2:10; Malaquias 3:1). A mesma coisa pode ser dita da
mesma forma das declarações das Escrituras que se referem a Cristo,
as coisas ditas de Jeová no Velho Testamento (Isaías 9:6; João 12:40, e
demais).
2. Que Ele é verdadeiro homem. A humanidade de Cristo é provada
por aquelas declarações das Escrituras que afirmam que Ele era
homem, o Filho do homem, o filho de Davi, o filho de Abraão, e outras
afirmações semelhantes (1 Timóteo 2:5; Mateus 1:1; Mateus 9:6; Mateus
16:13). Também, aqueles que declaram que Ele foi gerado da semente
de Davi segundo a carne, que Ele tinha um corpo de carne, e veio em

225 | P á g i n a
carne (Romanos 1:3; Colossenses 1:22; 1 João 4:2). A mesma coisa
também é provada por aquelas passagens que atribuem a Cristo coisas
peculiares ao homem; como crescer, comer, beber, ser ignorante, ficar
cansado, descansar, ser circuncidado, ser batizado, chorar, se alegrar,
e outras coisas semelhantes.
3. Que essas duas naturezas em Cristo constituem uma pessoa. Essas
declarações das Escrituras estão aqui em discussão, que atribuem, por
meio da comunicação de propriedades, à pessoa de Cristo, aquelas
coisas que são peculiares à natureza divina ou humana. “A Palavra se
fez carne” (João 1:14); “Ele participou de carne e sangue" (Hebreus 2:14);
"Antes que Abraão existisse, EU SOU” (João 8:38); “Eu estarei com vós sempre,
até o fim do mundo” (Mateus 28:20); “Deus nos falou nestes últimos dias por
meio de Seu Filho, por quem também criou o mundo” (João 4:3); “Jesus Cristo
veio em carne” (Hebreus 1:1, 2:1). "Quem é sobre tudo, Deus bendito para
sempre" (Romanos 9:6); "Se eles soubessem, não teriam crucificado o Senhor
da Glória” (1 Coríntios 2:8).

VI. SE PODE HAVER MAIS DE UM MEDIADOR


Existe apenas um mediador entre Deus e o homem. A razão disso é
que ninguém, a não ser o Filho de Deus, pode exercer a função de
mediador; e como há apenas um Filho natural de Deus, não pode haver
mais de um mediador.
Objeção 1. Mas os santos também fazem intercessão por nós.
Portanto, eles também são mediadores. Resposta: Há uma grande
diferença entre a intercessão de Cristo e a dos santos que vivem no
mundo e fazem intercessão tanto por si mesmos como pelos outros,
mesmo os seus perseguidores e inimigos: pois os santos dependem dos
méritos de Cristo para que suas intercessões possam ter valor,
enquanto Cristo depende de Seus próprios méritos. E mais ainda, só
Cristo se ofereceu como fiador e mais satisfatório, santificando-se por
nós, isto é, apresentando-Se em nosso lugar perante o tribunal de
Deus, o que não se pode dizer dos santos.

226 | P á g i n a
Objeção 2. Onde houver muitos meios, deve haver mais de um
mediador. Mas existem muitos meios de nossa salvação. Portanto,
existem mais mediadores do que um. Resposta: Negamos a proposição
principal; pois os meios e o mediador da salvação não são a mesma
coisa.

DA ALIANÇA DE DEUS

Foi demonstrado que um mediador é aquele que reconcilia as partes


que estão em desacordo, como Deus e os homens. Essa reconciliação
é chamada nas Escrituras de pacto, que faz referência particular ao
mediador, visto que todo mediador é o mediador de alguma aliança e
o reconciliador de duas partes opostas. Portanto, a doutrina da aliança
que Deus fez com o homem está intimamente ligada à doutrina do
mediador. Os principais pontos que reclamam nossa atenção na
consideração deste assunto são as seguintes:
I. O que é este pacto?
II. Isso era possível sem um mediador?
III. É um ou mais de um?
IV. Em que concordam a Antiga e a Nova Aliança, e em que diferem?

I. O QUE É ESTA ALIANÇA?


Uma aliança em geral é um contrato mútuo, ou acordo entre duas
partes, em que uma parte se vincula à outra para realizar algo sob
certas condições, dando ou recebendo algo, que é acompanhado de
certos sinais e símbolos externos, para o efeito de ratificar
solenemente o contrato celebrado, e para o efeito da sua confirmação,
para que o compromisso seja mantido inviolável. A partir desta
definição geral de aliança, é fácil perceber o que devemos entender
pela aliança aqui falada, que podemos definir como uma promessa
mútua e acordo, entre Deus e os homens, em que Deus dá garantia

227 | P á g i n a
aos homens de que Ele será misericordioso com eles, perdoará seus
pecados, dará a Eles uma nova justiça, o Espírito Santo, e vida eterna
por e por causa de Seu Filho, nosso mediador. E, por outro lado, os
homens se unem a Deus neste pacto de que exercerão arrependimento
e fé ou receberão com verdadeira fé esse grande benefício que Deus
oferece e prestarão a obediência que lhe for aceitável. Este
compromisso mútuo entre Deus e o homem é confirmado por aqueles
sinais exteriores que chamamos de sacramentos, que são sinais
sagrados, declarando e selando para nós a boa vontade de Deus, e
nossa gratidão e obediência.
Um testamento é a última vontade de um testador, no qual Ele, em
Sua morte, declara que disposição deseja que seja feita de seus bens
ou posses.
Nas Escrituras, os termos aliança e testamento são usados no mesmo
sentido, com o propósito de explicar mais completa e claramente a
ideia desta aliança de Deus; pois ambos se referem e expressam nossa
reconciliação com Deus, ou o acordo mútuo entre Deus e os homens.
Esse pacto, ou reconciliação, é chamado de aliança, porque Deus nos
promete certas bênçãos e exige de nós em troca nossa obediência,
empregando também certas cerimônias solenes para a sua
confirmação.
É chamado de testamento, porque esta reconciliação foi feita pela
interposição da morte de Cristo, o testador, para que fosse ratificado:
ou porque Cristo obteve esta reconciliação pela Sua morte, e a deixou
para nós, como pais, em Sua morte, deixam seus pertences para seus
filhos. Esta razão é citada pelo apóstolo Paulo, em Sua epístola aos
Hebreus, onde diz: “Por esta razão Ele é o mediador do Novo Testamento,
para que por meio da morte os que são chamados recebam a promessa da
herança eterna. Pois onde há um testamento, necessariamente deve haver a
morte do testador. Pois um testamento tem força, depois que os homens morrem;
do contrário, não tem nenhuma força enquanto o testador vive” (Hebreus 9:15,

228 | P á g i n a
16, 17.) Enquanto viver, o testador tem o direito de mudar, tirar ou
acrescentar à sua vontade qualquer coisa que escolher. A palavra
hebraica berith significa apenas uma aliança, e não um testamento;
enquanto a palavra grega διαθηκη (diathiki), que é usada na epístola
aos Hebreus, significa uma aliança e um testamento, do qual se infere
(como alguns supõem) que essa epístola foi escrita não em hebraico,
mas na língua grega.
Objeção. Um testamento é feito pela morte do testador. Mas Deus
não pode morrer. Portanto, seu testamento não foi ratificado; ou esta
reconciliação não pode ser chamada de testamento. Resposta:
Negamos a proposição menor; porque é dito que Deus redimiu a Igreja
com Seu próprio sangue. Portanto, Ele deve ter morrido; mas foi em
Sua natureza humana, segundo o testemunho do apóstolo Pedro, que
fala de Cristo, o testador, que era Deus e homem, que foi morto na
carne (1 Pedro 3:18).

II. COMO PODE SER FEITA ESTA ALIANÇA ENTRE DEUS E O


HOMEM?
Esta aliança só poderia ser feita por um mediador, como se pode
inferir do fato de que nós, como uma das partes, não fomos capazes
de satisfazer a Deus por nossos pecados, de forma a ser restaurados
em Sua graça. Sim, tal era nossa condição miserável, que não teríamos
aceitado o benefício da redenção se tivesse sido comprado por outro.
Então Deus, como outra parte, não poderia, por causa de Sua justiça,
nos admitir em Sua graça sem uma satisfação suficiente. Éramos
inimigos de Deus e, portanto, não poderia haver meio de acesso a Ele,
a não ser pela intercessão de Cristo, o mediador, como foi totalmente
demonstrado nas observações que fizemos sobre o ponto: por que um
mediador era necessário? Podemos concluir, portanto, que esta
reconciliação só foi possível pela satisfação e morte de Cristo, o
mediador.

229 | P á g i n a
III. ESTA ALIANÇA É UMA ALIANÇA OU MAIS DE UMA?
Esta aliança é uma em substância, mas dupla nas circunstâncias; ou é
um, pois respeita as condições gerais sob as quais Deus entra em um
compromisso conosco e nós com Ele; e é dois porque respeita as
condições menos gerais ou, como dizem alguns, porque respeita a
forma de sua administração.
O pacto é um em substância. 1. Porque há apenas um Deus, um
mediador entre Deus e o homem, Jesus Cristo, um caminho de
reconciliação, uma fé e um caminho de salvação para todos os que são
e foram salvos desde o início. É um grande ponto, e muito debatido,
se os antigos pais foram salvos de uma forma diferente daquela em
que somos salvos, o que, a menos que seja corretamente explicado,
lança muita obscuridade e trevas ao redor do evangelho. As seguintes
passagens das Escrituras nos ensinam em que devemos crer em
relação a este assunto: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre”
(Hebreus 13:8); “E Deus o deu para ser o Cabeça sobre todas as coisas da
Igreja” (Efésios 1:22); “De quem todo o corpo adequadamente unido (...)”
(Efésios 4:16); “Ninguém jamais viu a Deus, o Filho unigênito que está no seio
do Pai, Ele o revelou” (João 1:18); “Não há nenhum outro nome sob o céu dado
pelo qual devemos ser salvos” (Atos 4:12); “Ninguém conhece o Pai, senão o
Filho, e aquele a quem (...)” (Mateus 11:27); “Ninguém vem ao Pai senão por
Mim (...) Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6); Ele quer dizer,
Eu sou o meio pelo qual até mesmo Adão obteve a salvação. “Muitos
reis e profetas desejaram ver as coisas que vedes (...)” (Lucas 10:24). “Abraão
exultou ao ver o Meu dia, e ele viu, e ficou feliz” (João 8:56). Todos aqueles,
portanto, que foram salvos, tanto os que estão sob a lei como os que
estão sob o evangelho, têm respeito por Cristo, que é o único
mediador, por meio do qual somente foram reconciliados com Deus e
salvos. Portanto, há apenas uma aliança.

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2. Há apenas uma aliança, porque as condições principais, que são
chamadas de substância da aliança, são as mesmas antes e depois da
encarnação de Cristo; pois em cada testamento Deus promete àqueles
que se arrependem e creem, a remissão de pecados; enquanto os
homens se obrigam, por outro lado, a exercer fé em Deus e a se
arrepender de Seus pecados.
Mas se diz que há duas alianças, a Velha e a Nova Aliança, pois respeita
as circunstâncias e condições menos gerais, que constituem a forma,
ou forma de administração, contribuindo para as condições
principais, para que os fiéis, por Sua ajuda, podem obter aquelas que
são gerais.

IV. EM QUE A VELHA E A NOVA ALIANÇA CONCORDAM, E EM


QUE DIFEREM?
Visto que há apenas uma aliança, e as Escrituras falam dela como se
fossem duas, devemos considerar em que particularidades a Velha e a
Nova Aliança concordam e em que diferem.
Elas concordam, 1. Em ter Deus como Seu autor e Cristo como o
mediador. Mas Moisés, alguns dizem, foi o mediador da Antiga
Aliança. A isso respondemos que foi mediador apenas como um tipo
de Cristo, que já era mediador, mas agora é o único mediador sem
qualquer tipo; pois Cristo, vindo em carne, não está mais coberto de
tipos. 2. Na promessa da graça concernente à remissão de pecados e
vida eterna concedida gratuitamente àqueles que creem por e por
causa de Cristo, promessa essa que era comum àqueles que viviam sob
a Antiga Aliança, bem como a nós; embora agora seja entregue com
mais clareza, pois Deus promete a mesma graça a todos os que creem
no mediador. “A semente da mulher ferirá a cabeça da serpente” (Gênesis
3:15); “Serei um Deus para ti e para a tua descendência” (Gênesis 17:7);
“Aquele que crê no Filho tem a vida eterna” (João 3:36); “Mas nós cremos que
pela graça do Senhor Jesus Cristo, seremos salvos assim como eles” (Atos
15:11). Aqui falamos da promessa da graça em geral, e não das

231 | P á g i n a
circunstâncias da graça em particular. 3. Na condição em relação a
nós mesmos. Em cada aliança, Deus exige dos homens fé e obediência.
“Ande diante de Mim e seja perfeito” (Gênesis 17:1); “Arrependa-se e creia no
evangelho” (Marcos 1:15). A nova aliança, portanto, concorda com a
antiga no que se refere às condições principais, tanto da parte de Deus
como da parte do homem.
Os dois pactos são diferentes, 1. Nas promessas de bênçãos temporais.
A Antiga Aliança tinha muitas promessas especiais em relação às
bênçãos de caráter temporal, como a promessa da terra de Canaã, que
seria dada à Igreja - a forma do culto cerimonial e da política mosaica,
que iriam ser preservadas na terra até o tempo do Messias - o
nascimento do Messias daquele povo, e outras coisas semelhantes.
Mas a Nova Aliança não tem tais promessas especiais de bênçãos
temporais, mas apenas as gerais, porque Deus preservará sua Igreja
até o fim, e sempre providenciará para ela um certo lugar de descanso.
2. Na circunstância da promessa da graça. Na Antiga Aliança, os fiéis
eram recebidos na graça de Deus, por causa do Messias que haveria
de vir e do sacrifício que Ele iria oferecer; na nova, a mesma bênção é
obtida por causa do Messias que já veio, e pelo sacrifício que Ele já
ofereceu em nosso favor.
3. Nos ritos, ou sinais, que são adicionados à promessa da graça. Na
Antiga Aliança, os sacramentos eram diversos e dolorosos, como a
Circuncisão, a Páscoa, oblações e sacrifícios. Na Nova Aliança, existem
apenas dois sacramentos - Batismo e Ceia do Senhor - ambos simples
e significativos.
4. Com clareza. A antiga aliança tinha tipos e sombras de coisas boas
que viriam. Tudo era típico, como os sacerdotes, sacrifícios, e outras
coisas semelhantes. Portanto, tudo era mais obscuro e ininteligível. Na
nova aliança, temos o cumprimento de todas essas modalidades, para
que tudo seja mais claro e melhor compreendido, tanto no que diz
respeito aos sacramentos como à doutrina que se revela.

232 | P á g i n a
5. Nos dons que elas conferem. No antigo, a efusão do Espírito Santo
era pequena e limitada; na nova, é grande e completa. “Eu farei uma
Nova Aliança” (Jeremias 31:31); “Se o ministério da condenação vir em glória,
muito mais (...)" (2 Coríntios 3:5); “Derramarei Meu Espírito sobre toda a
carne” (Joel 2:28).
6. Em duração. A Velha Aliança continuaria somente até a vinda do
Messias; mas a Nova Aliança continuará para sempre. “Eu farei uma
aliança eterna com eles” (Jeremias 32:40).
7. Em sua obrigação. A Antiga Aliança vinculava o povo a toda a lei,
moral, cerimonial e judicial; a Nova Aliança nos liga apenas à moral e
ao uso dos sacramentos de Cristo.
8. Em sua extensão. Na Antiga Aliança, a Igreja estava confinada à
nação judaica, à qual todos os que seriam salvos deveriam se unir. Na
Nova Aliança, a Igreja é estabelecida entre todas as nações e está
aberta a todos os que creem em todas as nações, classes, condições ou
línguas.
Observação. O Antigo Testamento, ou Velha Aliança, é usado
frequentemente nas Escrituras por uma figura de linguagem, chamada
synedoche, (em que uma parte é tomada pelo todo) para a lei, com
respeito a essa parte que é tratada especialmente. Depois na Antiga
Aliança, a lei era aplicada com mais vigor e havia muitas partes dela.
O evangelho também era mais obscuro. O Novo Testamento, ou Novo
Pacto, por outro lado, é em sua maior parte aceito pelo evangelho,
porque no novo uma grande parte da lei é revogada, e o evangelho é
aqui revelado mais claramente.

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Questão 19. Donde conheces isso?
Resposta: Do santo evangelho, que o próprio Deus revelou primeiro
no paraíso; e posteriormente anunciado pelos patriarcas e profetas,
e teve o prazer de representá-lo pelas sombras dos sacrifícios e as
outras cerimônias da lei; e por último o cumpriu com Seu Filho
unigênito.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 19

Esta questão corresponde à terceira questão do catecismo, onde é


perguntado: donde tu conheces a tua miséria? Pela lei de Deus.
Portanto, é inquirido aqui: donde conheces tua libertação? Pelo
evangelho. Tendo, portanto, falado do mediador, devemos agora falar
da doutrina que O revela, descreve e oferece a nós - que é o evangelho.
Depois de ter falado do evangelho, devemos, em seguida, falar sobre a
forma pela qual nos tornamos participantes do mediador e de Seus
benefícios - que é pela fé. Primeiro, então, devemos falar do evangelho,
que é, com grande propriedade, feito para acompanhar a doutrina do
mediador, e a aliança, 1. Porque o mediador é a substância do
evangelho, que ensina quem e que tipo de ele é um mediador. 2. Porque
Ele é o autor do evangelho. É parte do ofício do mediador revelar o
evangelho, como se diz: “O Unigênito que está no seio do Pai, Ele o revelou”
(João 1:18). 3. Porque o evangelho é parte do pacto; e muitas vezes é
tomado como a Nova Aliança.
Os principais pontos a serem discutidos, em relação ao evangelho, são
os seguintes:
I. O que é o evangelho?
II. É uma nova doutrina?
III. Em que difere da lei?
IV. Quais são seus efeitos?
V. Pelo que se manifesta que o evangelho é verdadeiro?

234 | P á g i n a
I. O QUE É O EVANGELHO?
O termo evangelho significa: 1. Uma mensagem alegre ou boas novas.
2. O sacrifício que é oferecido a Deus por essas boas novas. 3. A
recompensa que é dada àquele que anuncia essas boas novas. Aqui,
significa a doutrina, ou boas novas de Cristo manifestado na carne;
como “eis que vos trago boas novas de grande alegria, porque vos nasceu hoje
na cidade de Davi, um salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lucas 2:10, 11).
As palavras επαγγελια (epangelia) e ευαγγελια (evangelia) são de um
significado ligeiramente diferente. A primeira denota a promessa de
um mediador que estava por vir; o segundo é o anúncio de um
mediador que já veio. Essa distinção, entretanto, nem sempre é
observada; e está mais nas palavras do que na própria coisa; pois
ambos denotam os mesmos benefícios do Messias, de forma que a
distinção é apenas na circunstância do tempo, e na forma de sua
aparência, como é evidente nas seguintes declarações das Escrituras:
“Abraão viu Meu dia e se alegrou” (João 8:56); “Ninguém vem ao Pai senão
por Mim” (João 14:6). “Eu sou a porta, por Mim, se alguém (...)” (João 10:7).
"Deus O designou cabeça sobre todas as coisas da Igreja" (Efésios 1:22). "Jesus
Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre" (Hebreus 13:8).
O evangelho é, portanto, a doutrina que o Filho de Deus, nosso
mediador, revelou dos céus no paraíso, imediatamente após a queda,
e que Ele trouxe do seio do Pai Eterno; que promete e anuncia, em
vista da graça e misericórdia de Deus, a todos aqueles que se
arrependem e creem, a libertação do pecado, a morte, a condenação e
a ira de Deus; o que é o mesmo que dizer que promete e proclama a
remissão de pecados, a salvação e a vida eterna, pelo e por causa do
Filho de Deus, o mediador; e é aquele por meio do qual o Espírito
Santo opera eficazmente no coração dos fiéis, acendendo e
estimulando neles a fé, o arrependimento e o início da vida eterna. Ou
podemos, de acordo com a 18ª, 19ªe 20ª questões do catecismo, definir
o evangelho como a doutrina que Deus revelou primeiro no paraíso, e

235 | P á g i n a
depois declarada pelos Patriarcas e Profetas, que Ele teve o prazer de
representar as sombras dos sacrifícios, e as outras cerimônias da lei, e
que Ele realizou por Seu Filho unigênito; ensinando que o Filho de
Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, é feito para nós sabedoria, justiça,
santificação e redenção; o que quer dizer que Ele é um mediador
perfeito, satisfazendo os pecados da raça humana, restaurando a
justiça e a vida eterna para todos aqueles que por uma fé verdadeira
são enxertados nEle e abraçam Seus benefícios.
As seguintes passagens das Escrituras confirmam esta definição que
demos do evangelho: “Esta é a vontade dAquele que Me enviou: que
todo aquele que vir o Filho e nEle crer tenha a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia” (João 6:41); “E que o arrependimento e a
remissão de pecados sejam pregados em seu nome, entre todas as
nações, começando em Jerusalém” (Lucas 24:47); “A lei foi dada por
Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (João 1:17).

II. O EVANGELHO SEMPRE FOI CONHECIDO NA IGREJA OU É


UMA NOVA DOUTRINA?
O evangelho às vezes significa a doutrina sobre a promessa da graça
e a remissão dos pecados a ser concedida gratuitamente, por conta do
sacrifício do Messias, que ainda não tinha vindo em carne; e então,
novamente, significa a doutrina do Messias como já veio. Neste último
sentido, nem sempre foi, mas começou com o Novo Testamento. No
primeiro sentido, porém, sempre foi na Igreja; pois imediatamente
após a queda foi revelado no paraíso aos nossos primeiros pais - depois
foi publicado pelos patriarcas e profetas, e foi finalmente cumprido
plenamente e revelado pelo próprio Cristo. As provas disso são as
seguintes:
1. O testemunho dos apóstolos. Pedro diz: “dEle todos os profetas deram
testemunho de que todo aquele que nEle crer receberá a remissão de pecados
pelo Seu nome” (Atos 10:43); “A qual os profetas perguntaram e buscaram

236 | P á g i n a
diligentemente” (1 Pedro 1:10). Paulo diz a respeito do evangelho: “O que
Ele havia prometido anteriormente por Seus profetas” (Romanos 1:2). O
próprio Cristo diz: “Se tivésseis crido em Moisés, teriam crido em Mim,
porque ele escreveu a Meu respeito” (João 5:46).
2. As promessas e profecias que se relacionam com o Messias
estabelecem a mesma coisa.
Isso deve, portanto, ser cuidadosamente observado, porque Deus quer
que saibamos que houve, e há desde o início até o fim do mundo,
apenas uma doutrina, e caminho de salvação por meio de Cristo, de
acordo com o que é dito: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre”
(Hebreus 13:8); “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai
senão por Mim” (João 14:6). “Moisés escreveu sobre Mim" (João 5:46). Será
que qualquer um perguntar, como Moisés escreveu de Cristo? Nós
respondemos: 1. Enumerando as promessas que diziam respeito ao
Messias. “Em tua descendência serão benditas todas as nações da terra”
(Gênesis 12:3); “Deus levantará um profeta (...)” (Deuteronômio 10:15).
“Uma estrela surgirá de Jacó” (Números 24:17); “O cetro não se afastará de
Judá até que venha Siló” (Gênesis 49:10). 2. Ele restringiu essas promessas
a certa família da qual o Messias deveria nascer; e para o qual a
promessa foi posteriormente referida e falada com mais frequência. 3.
Todo o sacerdócio levítico e a adoração cerimonial, como sacrifícios,
oblações, o altar, o templo e outras coisas que Moisés descreveu, todos
aguardavam a Cristo. Os reis e o reino da nação judaica eram tipos de
Cristo e de Seu reino. Portanto, Moisés escreveu muitas coisas de
Cristo.
Objeção 1. Paulo declara que o evangelho foi prometido por meio dos
profetas; e Pedro diz que os profetas profetizaram da graça que deveria
vir até nós. Portanto, o evangelho nem sempre existiu. Resposta:
Admitimos que o evangelho nem sempre existiu, se entendermos por
ele a doutrina da promessa da graça como cumprida por meio da
manifestação de Cristo na carne, e como ele respeita a clareza e

237 | P á g i n a
evidência desta doutrina; pois nos tempos antigos o evangelho não
existia, mas somente foi prometido pelos profetas: 1. Quanto ao
cumprimento daquelas coisas que, no Antigo Testamento, foram
preditas a respeito do Messias. 2. Com relação ao conhecimento mais
claro da promessa da graça. 3. Com respeito ao derramamento mais
copioso dos dons do Espírito Santo; isto é, o evangelho então não era
o anúncio de Cristo já vindo, morto, ressuscitado e sentado à destra
do Pai, como está agora; mas foi uma pregação de Cristo, que em
algum tempo futuro viria e realizaria todas essas coisas. Não obstante,
havia um evangelho, isto é, havia um anúncio alegre dos benefícios do
Messias que havia de vir, suficiente para a salvação dos antigos pais,
como é dito: “Abraão viu o Meu dia e se alegrou" (João 8:56); “dEle deram
testemunho todos os profetas” (Atos 10:43); “Cristo é o fim da lei” (Romanos
10:4).
Objeção 2. O apóstolo Paulo diz que o evangelho era o mistério que
foi mantido em segredo desde o início do mundo, e que em outras
épocas não foi dado a conhecer aos filhos dos homens (Romanos 16:25;
Efésios 3:5). Resposta: Esta objeção contém uma divisão incorreta, na
medida em que separa coisas que não devem ser separadas. Pois o
apóstolo acrescenta, em conexão com o acima, como é agora; o que
não deve ser omitido, porque mostra que em tempos anteriores o
evangelho também era conhecido, embora menos claramente, e para
menos pessoas, do que agora. A objeção também é fraca, ao afirmar
que ser estritamente assim, o que só foi declarado assim em um certo
aspecto: pois não se segue, que era então totalmente desconhecido,
porque agora é mais claramente percebido, e que por muitos mais
pessoas. Era conhecido dos pais, embora não tão claramente quanto
nós. Daí a importância da distinção entre as palavras επαγγελια
(epangelia) e ευαγγελιον (evangelion), tal como expresso acima.

238 | P á g i n a
Objeção 3. A lei veio por Moisés, a graça e a verdade por Jesus Cristo.
Portanto, o evangelho nem sempre foi conhecido. Resposta: A graça e
a verdade vieram de fato por meio de Cristo, a saber, com respeito ao
cumprimento dos tipos, e a plena exibição e copiosa aplicação
daquelas coisas que foram anteriormente prometidas no Antigo
Testamento. Mas não se segue disso que os antigos pais eram
inteiramente destituídos desta graça: pois a eles também a mesma
graça foi aplicada por, e por causa de Cristo, que posteriormente se
manifestaria na carne embora fosse dada em medidas menores para
eles do que para nós. Pois, qualquer graça e verdadeiro conhecimento
de Deus já veio aos homens, veio por meio de Cristo, como é dito: “O
Filho unigênito, que está no seio do Pai, Ele o revelou” (João 1:18); “Ninguém
vem ao Pai senão por Mim” (João 14:6); "Sem Mim vós não podeis fazer nada”
(João 15:5).
Mas é dito que a lei veio por Moisés; portanto, o evangelho não foi
feito por ele. Resposta: Isso é declarado, porque era a parte principal
de seu ofício publicar a lei; no entanto, ele também ensinou o
evangelho, porque escreveu e falou de Cristo, embora de forma mais
obscura, como foi demonstrado. Mas publicar o evangelho era o ofício
peculiar de Cristo, embora Ele ao mesmo tempo ensinasse a lei, mas
não principalmente, como o fez Moisés: pois Ele tirou da lei moral as
corrupções e glórias dos falsos mestres - Ele cumpriu a lei cerimonial,
e a revogou, juntamente com a lei judicial.

III. EM QUÊ O EVANGELHO É DIFERENTE DA LEI?


O evangelho e a lei concordam nisso, que ambos são de Deus e que há
algo revelado em cada um a respeito da natureza, vontade e obras de
Deus. Existe, no entanto, uma grande diferença entre eles:
1. Nas revelações que eles contêm; ou, no que se refere à forma pela
qual a revelação peculiar a cada um é dada a conhecer. A lei foi
gravada no coração do homem em sua criação e, portanto, é conhecida
por todos naturalmente, embora nenhuma outra revelação tenha sido

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dada. “Os gentios têm a obra da lei escrita em seus corações” (Romanos 2:15).
O evangelho não é conhecido naturalmente, mas é divinamente
revelado à Igreja somente por meio de Cristo, o mediador. Pois
nenhuma criatura poderia ter visto ou esperado aquela mitigação da
lei relativa à satisfação de nossos pecados por meio de outra pessoa,
se o Filho de Deus não o tivesse revelado. “Ninguém conhece o Pai, senão
o Filho, e aquele a quem o Filho o revelar" (Mateus 11:27); “Carne e sangue
não te revelaram” (Mateus 16:17); "O Filho, que está no seio do Pai, Ele O
revelou” (João 1:18)19.
2. No tipo de doutrina, ou assunto peculiar a cada um. A lei nos ensina
o que devemos ser e o que Deus exige de nós, mas não nos dá a
capacidade de cumpri-la, nem indica o caminho pelo qual podemos
evitar o que é proibido. Mas o evangelho nos ensina de que forma
podemos ser feitos tal como a lei exige: pois nos oferece a promessa
da graça, tendo a justiça de Cristo imputada a nós pela fé, e isso de
uma forma como se fosse propriamente nossa, que somos justos
diante de Deus nos ensinando, por meio da imputação da justiça de
Cristo. A lei diz, "pagues o que tu deves” (Mateus 18:28); “Faças isso e vivas”
(Lucas 10:28). O evangelho diz: “creia somente” (Marcos 5:36).
3. Nas promessas. A lei promete vida para aqueles que são justos em
si mesmos, ou sob a condição de retidão, e perfeita obediência. “Aquele
que as pratica viverá nelas” (Levítico 18:5); “Se queres entrar na vida, guarda
os mandamentos” (Mateus 19:17). O evangelho, por outro lado, promete
vida àqueles que são justificados pela fé em Cristo, ou na condição da
justiça de Cristo, aplicada a nós pela fé. A lei e o evangelho, entretanto,
não se opõem nesses aspectos: pois embora a lei exija que guardemos
os mandamentos se desejarmos entrar na vida, não nos exclui da vida
se alguém fizer essas coisas por nós. De fato, propõe um meio de
satisfação, que é por meio de nós mesmos, mas não proíbe o outro,
como foi mostrado.

19 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

240 | P á g i n a
4. Eles diferem em seus efeitos. A lei, sem o evangelho, é a letra que
mata, e é o ministério da morte: “Porque pela lei vem o conhecimento do
pecado” (Romanos 3:20); “A lei opera a ira;” (Romanos 4:15); “a letra mata”
(2 Coríntios 3:6). A pregação externa e o mero conhecimento do que
deve ser obedecido são conhecidos pela letra: pois ela declara nosso
dever e a justiça que Deus requer; e, embora não nos dê a capacidade
de realizá-la, nem indique o caminho pelo qual pode ser alcançada, ela
critica e condena nossa justiça. Mas o evangelho é o ministério da vida
e do Espírito, ou seja, tem as operações do Espírito unidas a ele, e
vivifica os que estão mortos no pecado, porque é por meio dele que o
Espírito Santo opera a fé e vida nos eleitos. “O evangelho é o poder de
Deus para a salvação (...)" (Romanos 1:16).
Objeção. Não há preceito ou mandamento pertencente ao evangelho,
mas à lei. A pregação do arrependimento é um preceito. Portanto, a
pregação do arrependimento não pertence ao evangelho, mas à lei.
Resposta: Negamos a proposição principal, se for tomada de forma
geral; pois este preceito é peculiar ao evangelho, que nos ordena a crer,
abraçar os benefícios de Cristo e iniciar uma nova obediência, ou
aquela justiça que a lei requer. Se for contestado que a lei também nos
ordena a crer em Deus, respondemos que o faz apenas em geral,
exigindo que demos crédito a todas as promessas, preceitos e
denúncias divinas, e isso com uma ameaça de punição, a menos que
nós a cumpramos. Mas o evangelho nos ordena expressa e
particularmente a abraçar, pela fé, a promessa da graça; e também nos
exorta, pelo Espírito Santo e pela Palavra, a andarmos dignamente de
nossa vocação celestial. Isso, entretanto, ele faz apenas em geral, não
especificando nenhum dever em particular, dizendo que tu deves fazer
isso ou aquilo, mas deixa isso para a lei; como, ao contrário, não diz
em geral, creias em todas as promessas de Deus, deixando isso para a
lei; mas diz em particular, creia nesta promessa; corra para Cristo, e
seus pecados serão perdoados.

241 | P á g i n a
IV. QUAIS SÃO OS EFEITOS APROPRIADOS AO EVANGELHO?
Os efeitos apropriados ao evangelho são:
1. Fé; porque “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”
(Romanos 10:17). “O evangelho é o ministério do Espírito” (2 Coríntios
3:8); “O poder de Deus para a salvação” (Romanos 1:16).
2. Pela fé, toda a nossa conversão a Deus, justificação, regeneração e
salvação; pois pela fé recebemos a Cristo, com todos os Seus
benefícios.

V. DE QUE SE MANIFESTA A VERDADE DO EVANGELHO?


A verdade do evangelho se manifesta -
1. Pelo testemunho do Espírito Santo.
2. Das profecias que foram proferidas pelos profetas.
3. Do cumprimento dessas profecias, que aconteceu durante a
dispensação do Novo Testamento.
4. Dos milagres pelos quais a doutrina do evangelho foi confirmada.
5. Pelo testemunho do próprio evangelho; porque só ela mostra o
caminho para escapar do pecado e ministra sólido conforto à
consciência ferida.

242 | P á g i n a
7º DIA DO SENHOR

Questão 20. Todos os homens, então, como pereceram em Adão, são


salvos por Cristo?
Resposta: Não; somente aqueles que são enxertados nEle e recebem
todos os Seus benefícios por uma fé verdadeira.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 20

Tendo explicado a forma de nossa libertação por meio de Cristo,


devemos agora perguntar cuidadosamente quem é feito participante
desta libertação, e de que forma ela é efetuada; se todos, ou apenas
alguns, se tornam participantes dela. Se ninguém se torna participante
dela, ela foi feita em vão. Esta 20ª questão é, portanto, preparatória
para a doutrina da fé, sem a qual nem o mediador, nem a pregação do
evangelho teriam qualquer proveito. Ao mesmo tempo, fornece um
remédio contra a segurança carnal e uma resposta para a vil calúnia
que faz de Cristo o ministro do pecado.
A resposta a esta questão consiste em duas partes: A salvação por meio
de Cristo não é concedida a todos os que pereceram em Adão; mas
apenas sobre àqueles que, por uma fé verdadeira, são enxertados em
Cristo e recebem todos os Seus benefícios.
A primeira parte desta resposta é claramente comprovada pela
experiência e pela Palavra de Deus. “Quem não crê no Filho não verá a
vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele” (João 3:36); “Nem todo aquele
que Me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus” (João 3:3); “A não ser
que o homem nasça de novo, ele não pode ver o reino de Deus” (Mateus 7:21).
A razão pela qual nem todos são salvos por meio de Cristo, não é por
causa de qualquer insuficiência de mérito e graça nele - pois a
expiação de Cristo é pelos pecados do mundo inteiro, visto que
respeita a dignidade e suficiência da satisfação que Ele fez - mas surge

243 | P á g i n a
da incredulidade; porque os homens rejeitam os benefícios de Cristo
oferecidos no evangelho, e assim perecem por sua própria culpa, e não
por causa de qualquer insuficiência nos méritos de Cristo.
A outra parte da resposta também é evidente nas Escrituras. “Todos
quantos O receberam, lhes deu o poder de se tornarem filhos de Deus” (João
1:12); “Por Seu conhecimento Meu servo justo justificará a muitos” (Isaías
53:11). A razão pela qual somente aqueles que creem são salvos é
porque somente eles se apoderam e abraçam os benefícios de Cristo;
e porque somente neles Deus assegura o fim pelo qual Ele
graciosamente entregou Seu Filho à morte; pois somente aqueles que
creem conhecem a misericórdia e graça de Deus, e retribuem
agradecimentos adequados a Ele.
A totalidade de todo este ponto é, portanto, esta: embora a satisfação
de Cristo, o mediador de nossos pecados, seja perfeita, nem todos
obtêm a libertação por meio dela, mas apenas aqueles que creem no
evangelho e aplicam a si mesmos os méritos de Cristo por uma fé
verdadeira.
Objeção 1. A graça excede o pecado. Portanto, se todos pereceram pelo
pecado de Adão, muito mais todos deveriam ser salvos pela graça de
Cristo. Respondemos ao antecedente: A graça supera o pecado quanto
à satisfação, mas não quanto à aplicação. Que nem todos são, portanto,
salvos pela graça de Cristo, deve ser atribuído à descrença daqueles
que rejeitam a graça que é oferecida gratuitamente.
Objeção 2. Todos aqueles que devem ser recebidos em favor de cujas
ofensas uma satisfação suficiente foi feita. Cristo deu satisfação
suficiente pelas ofensas de todos os homens. Portanto, todos devem
ser recebidos em graça; e se isso não for feito, Deus é injusto com os
homens, ou então há algo desviado do mérito de Cristo. Resposta: A
proposição principal é verdadeira, a menos que alguma condição seja
adicionada à satisfação; como, que somente aqueles são salvos por
meio dEle, que o aplicam a si mesmos pela fé. Mas esta condição é

244 | P á g i n a
expressamente adicionada, onde é dito: “Deus amou o mundo de tal forma
que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que nEle crê não pereça,
mas tenha a vida eterna” (João 3:16).
Objeção 3. Adão sujeitou tudo à condenação; mas Cristo salva apenas
uma parte da raça humana. Portanto, há maior poder no pecado de
Adão para condenar, do que há na satisfação de Cristo para salvar.
Resposta: Negamos a consequência que é deduzida aqui, porque o
poder, excelência e eficácia da satisfação de Cristo, não deve ser
estimado pela multidão, ou número daqueles que são salvos por meio
dela, mas pela magnitude do próprio benefício: pois é uma obra maior
livrar mesmo um, ou alguns da morte eterna, do que todos deveriam
ser submetidos a ela pelo pecado. Novamente: que o poder daquela
eficácia que pertence ao benefício de Cristo não passa para todos os
homens, assim como o poder do pecado de Adão atinge toda a sua
posteridade, é uma falha nos próprios homens, que não aplicam os
méritos de Cristo para si mesmos pela fé, como eles cometem o pecado
de Adão por nascimento e imitação. Mas a razão pela qual todos os
homens não creem, nem aplicam esses benefícios a si mesmos, é um
ponto mais elevado e mais profundo - que não pertence propriamente
a este lugar. “Deus tem misericórdia de quem Ele quer, e quem Ele quer, Ele
endurece” (Romanos 9:18). E Ele revelará Sua misericórdia, de forma
que também exercerá Sua justiça.

245 | P á g i n a
DA FÉ

Questão 21. O que é a verdadeira fé?


Resposta: A verdadeira fé não é apenas um conhecimento correto,
pelo qual considero como verdade tudo o que Deus nos revelou em
Sua palavra, mas também uma firme confiança, que o Espírito
Santo opera pelo evangelho em meu coração; que não apenas para
os outros, mas também para mim, a remissão de pecados, a justiça
eterna e a salvação são dadas gratuitamente por Deus, meramente
pela graça, apenas por causa dos méritos de Cristo.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 21

O assunto da fé é introduzido a seguir na ordem: 1. Porque é o meio


pelo qual nos tornamos participantes do mediador. 2. Porque a
pregação do evangelho não aproveita nada sem fé. Ao falar de fé,
devemos indagar:
I. O que é fé?
II. De quantos tipos de fé as Escrituras falam?
III. Em que difere a fé da esperança?
IV. Quais são as causas eficientes de justificar a fé?
V. Quais são os efeitos da fé?
VI. Para quem é dada?

I. O QUE É FÉ?
A palavra fé, segundo Cícero, deriva de fiendo, que significa realizar,
porque aquilo que é anunciado é feito. É, segundo ele, a garantia e a
verdade dos pactos e de tudo o que pode ser anunciado, e é o
fundamento da justiça. De acordo com a definição comum, a fé é um
certo conhecimento dos fatos, ou conclusões, aos quais concordamos

246 | P á g i n a
com o testemunho de testemunhas fiéis, em quem não podemos
descrer, seja Deus, ou anjos, ou homens, ou a experiência. Mas visto
que, de acordo com a distinção mais geral, existe um tipo de fé no
divino e outro nos assuntos humanos, devemos aqui perguntar: o que
é fé nas coisas divinas ou o que é fé teológica? A definição de fé,
portanto, tomada de forma geral, deve ser dada um pouco mais
exatamente, e ainda assim deve ser tal que inclua nela todas as
diferentes formas de fé ditas nas Escrituras.
A fé, em geral, de qualquer tipo de menção feita nas Sagradas
Escrituras, é um reconhecimento ou um certo conhecimento do que
é revelado a respeito de Deus, Sua vontade, obras e graça, na qual
confiamos no testemunho divino. Ou, é reconhecer a toda palavra de
Deus entregue à Igreja, na lei e no evangelho, por conta da declaração
do próprio Deus.
A fé é, também, frequentemente tomada como a doutrina da Igreja, ou
para aquelas coisas de que a Palavra de Deus nos informa e que são
necessárias à fé, como quando é chamada de fé cristã, a fé apostólica.
É, da mesma forma, frequentemente usado para o cumprimento de
antigas promessas ou para as próprias coisas em que se crê; como:
“antes que viesse a fé, éramos guardados sob a lei, encerrados na fé que depois
deveria ser revelada” (Gálatas 3:23).

II. DE QUANTOS TIPOS DE FÉ FALAM AS ESCRITURAS?


Existem quatro tipos de fé enumerados nas Sagradas Escrituras, a
saber: histórica, temporária, a fé de fazer milagres e a fé justificadora
ou salvadora. A diferença que existe entre os diferentes tipos de fé
aqui especificados aparecerá dando uma definição adequada de cada
um.

247 | P á g i n a
Fé histórica é conhecer e crer que cada palavra de Deus é verdadeira,
que é divinamente entregue e revelada, seja pela voz ou por oráculos,
ou por visões, ou por qualquer outro método de revelação pelo qual a
vontade divina é tornada conhecida a nós, sob a autoridade e
declaração do próprio Deus. É chamado de histórica porque é
meramente um conhecimento daquelas coisas que se diz que Deus fez,
ou agora faz, ou fará no futuro. As Escrituras falam dessa fé nestas
passagens: “Se eu tiver toda a fé [necessária] para mover montanhas” (1
Coríntios 13:2); o que também pode ser entendido por todos os
diferentes tipos de fé, exceto a justificadora. “Os demônios creem e
tremem” (Tiago 2:19); “Simão também creu” (Atos 8:13), isto é: que a
doutrina de Pedro era verdadeira, mas ele não tinha fé que justificasse.
A fé temporária é um reconhecimento às doutrinas da Igreja,
acompanhada de profissão e alegria, mas não de uma alegria
verdadeira e duradoura, tal como surge da consciência de que somos
objetos do favor divino, mas de alguma outra causa, seja qual for pode
ser, de forma que perdure apenas por um tempo, e nas épocas de
aflição desapareça. Ou é concordar com a doutrina transmitida pelos
profetas e apóstolos, professá-la, gloriar-se nela e regozijar-se por um
tempo no conhecimento dela; mas não por causa de uma aplicação da
promessa a si mesma, ou por causa de um senso da graça de Deus no
coração, mas por outras causas. Essa definição é obtida do que Cristo
diz na explicação da parábola do semeador; “Aquele que recebeu a semente
em lugares pedregosos, este é o que ouve a palavra, e logo com alegria, a recebe,
mas não tem raiz em si mesmo, mas persevera por um tempo, e quando a
tribulação ou a perseguição surge por causa da Palavra, pouco a pouco ele fica
ofendido” (Mateus 13:20, 21). As causas dessa alegria são, de certa forma,
infinitas e diferentes em diferentes indivíduos; no entanto, são todas
temporárias e, quando desaparecem, a fé que é construída sobre elas
desaparece. Os hipócritas se regozijam em ouvir o evangelho, seja
porque é algo novo para eles, seja porque parece acalmar suas mentes,

248 | P á g i n a
ao mesmo tempo que os livra dos fardos que os homens, por suas
tradições, lhes impõem, assim como a doutrina da liberdade cristã,
justificação, e outras doutrinas semelhantes; ou, porque procuram, sob
sua profissão, um manto para seus pecados e esperam colher galardões
e benefícios, tanto públicos como privados, tais como riquezas, honras,
glória, e outras coisas semelhantes, que se manifestam quando são
chamados a carregar a cruz; pois então, porque eles não têm raiz em
si mesmos, eles caem. Mas os hipócritas não se regozijam como
verdadeiros crentes, por um senso da graça de Deus e por uma
aplicação a si mesmos dos benefícios oferecidos na Palavra divina, que
pode ser considerada a causa de verdadeira e substancial alegria nos
fiéis - a remoção da qual uma única causa é suficiente para tornar sua
fé temporária.
Esta fé temporária difere da histórica apenas na alegria que a
acompanha. A fé histórica não inclui nada mais do que mero
conhecimento; enquanto isto tem alegria conectada com este
conhecimento; pois esses homens que trabalham por tempo de serviço
“recebem a palavra com alegria”. Os demônios creem, historicamente, e
estremecem, mas não se alegram com o conhecimento que possuem;
mas preferiam que fosse extinto; sim, eles nem mesmo professam ser
seguidores desta doutrina, embora saibam que é verdade; mas odeiam
e se opõem a ela com mais amargura. Nos homens, entretanto, a fé
histórica às vezes está associada à profissão, às vezes não; pois os
homens frequentemente, quaisquer que sejam as causas, professam
aquela verdade e religião que odeiam. Muitos também que sabem que
a doutrina é verdadeira, ainda se opõem a ela. Sie wollten dass die Bibel
im Rhein schwimme. Esses pecam contra o Espírito Santo.

249 | P á g i n a
Objeção. Mas o Diabo muitas vezes professou a Cristo. Portanto, não
se pode dizer que ele odeia essa doutrina. Resposta: Ele, entretanto,
não professou a Cristo pelo desejo de avançar e promover Sua
doutrina, mas para que pudesse misturar com ela suas próprias
falsidades e, assim, fazer com que houvesse suspeitas. É por esta razão
que Cristo ordena ele a ficar calado, como Paulo também faz em Atos
16:18.
A fé em milagres é um dom especial de realizar alguma obra
extraordinária ou de predizer algum evento particular por revelação
divina. Ou é uma persuasão firme, produzida por alguma revelação
divina, ou promessa peculiar em relação a alguma operação milagrosa
futura, que a pessoa deseja realizar, e que ela prediz. Essa fé não pode
ser obtida, simplesmente, da palavra geral de Deus, a menos que
alguma promessa ou revelação especial esteja ligada a ela. O apóstolo
fala deste tipo de fé, quando diz: “Se eu tivesse toda a fé [necessária] para
mover montanhas (...)” (1 Coríntios 13:2). Esta declaração pode,
entretanto, ser entendida para todos os diferentes tipos de fé, exceto
justificadora, mas é falada com referência especial à fé de milagres.
Que este é um tipo distinto de fé, é provado:
1. Pela declaração de Cristo. "Se tiverdes fé como um grão de mostarda,
direis a esta montanha: Retira-te daqui para aquele lugar, e ela será removida
(...)" (Mateus 17:20). Muitos homens santos também tiveram uma fé
forte, como Abraão, Davi e outros homens semelhantes, e ainda assim
não removeram montanhas. Portanto, esta espécie de fé é distinta da
fé justificadora, que todos os verdadeiros cristãos possuem.
2. Exorcistas, como os filhos de Ceva (Atos 19:14), esforçaram-se para
expulsar demônios, quando não tinham o dom ou o poder de realizá-
lo, e que foram posteriormente punidos severamente, quando o
espírito maligno caiu sobre eles, venceu-os e os feriu.

250 | P á g i n a
3. O mago Simão disse ter crido, mas ele não era capaz de fazer
milagres; ele, portanto, desejava comprar este dom.
4. O Diabo tem conhecimento do que é histórico, mas ele não pode
fazer milagres; porque ninguém, exceto o criador, é capaz de mudar a
natureza das coisas.
5. Judas ensinou e fez milagres, como fizeram os outros apóstolos;
portanto, ele tinha uma fé histórica (talvez também temporária) e a fé
dos milagres; e ainda assim ele não tinha aquela fé que justifica; pois
Cristo disse dele: “ele é um demônio” (João 6:70).
6. Muitos dirão a Cristo: “Senhor, Senhor, não expulsamos demônios em Teu
nome?”, aos quais Ele, no entanto, responderá: “Eu nunca vos conheci”
(Mateus 7:22).
7. Por último, os outros tipos de fé se estendem a todas as coisas que
a palavra de Deus revela e exige que creiamos. A fé em milagres, no
entanto, refere-se apenas a certas obras e eventos extraordinários. É,
portanto, um tipo distinto de fé.
A fé justificadora é propriamente a que é definida no catecismo; de
acordo com essa definição, a natureza geral da fé salvadora consiste
em conhecimento e uma confiança segura; pois não pode haver fé em
uma doutrina que seja totalmente desconhecida. É apropriado para
nós, portanto, obter um conhecimento daquilo em que devemos crer,
antes de exercermos fé; do qual podemos ver o absurdo da fé implícita
dos papistas. A diferença, ou caráter formal da fé salvadora, é a
confiança e aplicação que cada um faz a si mesmo, da livre remissão
dos pecados por e por causa de Cristo. A propriedade, ou caráter
peculiar dessa fé, é a confiança e o deleite em Deus, por causa desse
grande benefício. A causa eficiente de justificar a fé é o Espírito Santo.
A causa instrumental é o evangelho, no qual também se compreende
o uso dos sacramentos. A substância desta fé é a vontade e o coração
do homem.

251 | P á g i n a
A fé justificadora ou salvadora difere, portanto, dos outros tipos de fé,
porque somente ela é aquela confiança assegurada pela qual
aplicamos a nós mesmos o mérito de Cristo, o que é feito quando
cremos firmemente que a justiça de Cristo é concedida e imputada a
nós, para que sejamos enumerados apenas aos olhos de Deus. A
confiança é um exercício ou movimento da vontade e do coração,
seguindo algo bom - descansando e regozijando-se nisso. O alemão
tem, “vertrauen, sich ganz und gar darauf verlassen”. Πιστις (pistis) e
πιστευειν (pistevein). O primeiro dos quais significa crença, e o último
a crer, são derivados de πεπεισμαι (pepeismai), que significa
fortemente persuadido; donde πιστευειν (pistevein), mesmo entre os
escritores profanos, significa tornar-se confiante ou descansar em
qualquer coisa; como lemos em Focilides: "Não creias no povo, porque a
multidão é enganosa”. E em Demóstenes, "Tu estás confiante em si mesmo
(...)”.
A fé justificadora difere da histórica, porque sempre inclui o que é
histórico. A fé histórica não é suficiente para nossa justificação. O
mesmo pode ser dito dos outros dois tipos de fé. A fé justificadora,
novamente, difere de todos os outros tipos de fé, pois é somente por
ela que obtemos a justiça e o título de herança dos santos. Pois se,
como diz o apóstolo, somos justificados pela fé, e a fé é imputada
como justiça, e pela fé é a herança, então essa fé deve ser um dos
quatro tipos de que falamos. Mas não é fé histórica; pois então os
demônios também seriam considerados justos e herdeiros da
promessa. Nem é fé temporária; pois Cristo rejeita isso. Nem é a fé de
milagres; pois, nesse caso, Judas também seria um herdeiro.
Consequentemente, é somente pela fé justificadora que obtemos
justiça e uma herança entre os santos; que as Escrituras
apropriadamente e simplesmente chamam de fé, e que também é
peculiar aos eleitos.

252 | P á g i n a
Nenhum homem, entretanto, sabe verdadeiramente o que é a fé
justificadora, exceto aquele que crê ou a possui; como aquele que
nunca viu ou provou o mel, nada sabe de sua qualidade ou sabor,
embora você possa lhe dizer muitas coisas sobre a doçura do mel. Mas
o homem que realmente crê experimenta essas coisas em si mesmo e
é capaz, também, de explicá-las a outros.
1. Ele crê que tudo o que as Escrituras contêm é verdade e vem de
Deus.
2. Ele se sente firmemente constrangido a crer e aceitar essas coisas;
pois se confessarmos que são verdadeiras e vindas de Deus, é
apropriado que concordemos com elas.
3. Ele vê, abraça, e aplica em especial, para si mesmo, a promessa de
graça, ou a remissão gratuita de pecados, a justiça e a vida eterna, pelo
e para o bem de Cristo, como é dito: “Aquele que crê no Filho tem a vida
eterna” (João 3:36).
4. Tendo essa confiança, ele confia e se regozija na graça presente de
Deus, e disso ele conclui com referência ao bem futuro: “Visto que Deus
agora me ama e me dá tão grandes bênçãos, Ele também me preservará para
a vida eterna; porque Ele é imutável e Seus dons não têm arrependimento”.
5. A alegria surge no coração, em vista de tais benefícios, alegria essa
que é acompanhada por uma paz de consciência que ultrapassa todo
o entendimento. 6. Então ele tem uma vontade e um desejo sincero
de obedecer a todos os mandamentos de Deus, sem uma única
exceção, e está disposto a suportar pacientemente tudo o que Deus
ordenar a ele. O homem, portanto, que possui uma fé justificadora, faz
o que é exigido dele, independentemente da oposição do mundo e do
Diabo. Aquele que realmente crê, experimenta todas essas coisas em
si mesmo; e aquele que experimenta essas coisas em si mesmo,
realmente crê.

253 | P á g i n a
III. EM QUE A FÉ É DIFERENTE DA ESPERANÇA?
Não devemos confundir fé justificadora com a esperança, embora
ambas tenham a ver com a mesma bênção. A fé se apodera do bem
presente, enquanto a esperança diz respeito ao futuro.
Objeção. Mas cremos na vida eterna, que é, no entanto, algo futuro.
Portanto, a fé também diz respeito ao bem futuro. Resposta: A vida
eterna é um bem futuro quanto à sua consumação; e, a este respeito,
não apenas cremos nela, mas esperamos por ela. “Pois somos salvos
pela esperança” (Romanos 8:24); "Agora somos filhos de Deus, e ainda
não se manifestou o que seremos” (1 João 3:2). Mas a vida eterna é
também um bem presente, com respeito à vontade de Deus, que nos
dá, e com respeito ao início dela, ainda nesta vida, a respeito do qual
não se espera, mas se crê, como se diz: “Quem crê no Filho de Deus
tem a vida eterna e já passou da morte para a vida” (João 5:24); “Esta é
a vida eterna, que Te conheçam, o único Deus verdadeiro (...)” (João
17:3). Pela fé, portanto, estamos persuadidos de que esses benefícios
são nossos, que ainda não temos, por causa da promessa de Deus; e
pela esperança, esperamos com confiança a plena consumação dessas
coisas. É nesse sentido que Paulo fala de fé quando diz: “A fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam” (Hebreus 11:1). Isto é, é o que
torna as coisas esperadas presentes e reais; e é a evidência daquelas
coisas que não se manifestam no que diz respeito à sua consumação.
Há alguns que fazem a seguinte distinção entre fé e esperança: a fé
abrange as promessas contidas no credo a respeito das coisas que
estão por vir; enquanto a esperança compreende as próprias coisas
que são futuras. Essa distinção, no entanto, é menos popular e não é
tão facilmente compreendida como a primeira.

254 | P á g i n a
IV. QUAIS SÃO AS CAUSAS DA FÉ?
A primeira e principal causa eficiente da fé histórica e temporária,
bem como da fé dos milagres, é o Espírito Santo, que produz esses
diferentes tipos de fé por sua influência e operação geral. É diferente,
no entanto, no que se refere à fé justificadora, que o Espírito Santo
produz por sua operação especial. “Pela graça sois salvos, por meio da
fé, e isso não vem de vós; é o dom de Deus” (Efésios 2:8).
Objeção. O Diabo tem fé histórica. Portanto, é operado nele pelo
Espírito Santo. Resposta: A fé que está nos demônios é de fato
produzida pelo Espírito Santo, mas é por Sua operação geral, como
observamos; e não por Sua influência especial, pela qual Ele opera a
fé salvadora nos eleitos, e neles somente. Pois qualquer que seja o
conhecimento que os demônios e hipócritas possuem, Deus produz
neles pelo Seu Espírito; mas não de tal forma que Ele os regenere, ou
os justifique, como no caso dos eleitos; nem de forma que eles possam
reconhecê-lO e elogiá-lO como o autor deste dom.
A causa instrumental da fé em geral é a palavra de Deus,
compreendida nos livros do Antigo e do Novo Testamento, nos quais,
ao lado da Palavra, estão contidos também muitas obras e milagres
divinos. O principal e peculiar instrumento de justificação da fé é a
pregação do evangelho. “O evangelho é o poder de Deus para a
salvação de todo aquele que crê” (Romanos 1:16). “A fé vem pelo ouvir,
e o ouvir pela palavra de Deus”. (Romanos 10:17). A fé justificadora,
portanto, não é normalmente produzida em adultos sem a pregação
do evangelho.
A causa daquela fé que opera milagres não é simplesmente a Palavra
de Deus, mas requer uma promessa especial ou revelação.
A causa formal da fé justificadora é aquela que é peculiar à fé
salvadora, que é um certo conhecimento de tudo o que Deus revelou
e uma confiança segura operada no coração.

255 | P á g i n a
O objeto da fé salvadora é Cristo e a promessa da graça.
O sujeito, ou parte do homem em que existe, é o entendimento, a
vontade e o coração.
O fim ou causa final é, primeiro, a glória de Deus, ou a manifestação
de Sua justiça, bondade e misericórdia; e, em segundo lugar, nossa
salvação.

V. QUAIS SÃO OS EFEITOS DA FÉ?


Os efeitos da fé justificadora são:
1. Nossa justificação diante de Deus. 2. Alegria e deleite em Deus, com
paz de consciência. “Sendo justificados pela fé, temos paz com Deus”
(Romanos 5:1). 3. Conversão, regeneração e obediência universal.
“Purificando seus corações pela fé” (Atos 15:9). 4. As consequências que
pertencem aos efeitos da fé, como um aumento dos dons temporais e
espirituais, e o recebimento desses dons pela fé.
O primeiro efeito, portanto, da fé justificadora, é a nossa justificação.
Depois que isso acontece, todos os outros benefícios decorrentes da
fé são transferidos para nós, benefícios esses que, cremos, nos são
dados pela fé, visto que a fé é a causa deles. Pois aquilo que é a causa
de uma causa, também é a causa do efeito. Se a fé é, portanto, a última
causa de nossa justificação, é também a causa daquelas coisas que
seguem nossa justificação. "Tua fé te salvou” (Lucas 8:48). Em uma
palavra, os efeitos da fé são justificação e regeneração que começa
nesta vida e será aperfeiçoada na vida por vir (Romanos 3:28; Romanos
10:10; Atos 13:39).

256 | P á g i n a
VI. A QUEM É DADA A FÉ?
A fé justificadora é peculiar a todos os eleitos, e somente a eles: pois
é dada a todos os eleitos, e somente a eles, incluindo até mesmo as
crianças, no que diz respeito a uma inclinação para a fé. "Ninguém pode
vir a mim, a menos que o Pai o atraia" (João 6:44); “É vos concedido conhecer
o mistério do reino dos céus; mas a eles não” (Mateus 13:11); “Todos os que
foram ordenados para a vida eterna creram” (Atos 13:48); “Aos que
predestinou, também chamou, justificou e glorificou” (Romanos 8:30); “A fé é
um dom de Deus” (Romanos 10:16); “Mas nem todos obedeceram ao
evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem creu (...)” (Ef 2:8); “Pois todos os
homens tem fé?” (2 Tessalonicenses 3:2).
A fé temporária, tal como a fé de milagres, é dada àqueles que são
membros da Igreja visível apenas, isto é, aos hipócritas. “Não fizemos
nós em Teu nome muitas obras maravilhosas: expulsamos demônios (...)?”
(Mateus 7:22). A fé em milagres, porém, que muitos na Igreja primitiva
possuíam, agora desapareceu da Igreja, visto que a doutrina do
evangelho foi suficientemente confirmada por milagres.
A fé histórica pode ser possuída mesmo por aqueles que estão fora da
Igreja e também por demônios.
Objeção 1. A fé histórica é boa obra, os demônios possuem essa fé,
portanto, eles possuem boas obras. Nós respondemos à proposição
principal assim: a fé histórica é boa obra se estiver conectada com
uma aplicação das coisas que são conhecidas, e a confiança estiver ao
mesmo tempo associada a ela. E se for dito, a título de objeção, que
esta fé é o efeito do Espírito de Deus, e assim por si mesma boa obra,
respondemos que é de fato boa obra em si mesma, mas se torna má
por acidente, em vista que os réprobos que não recebem e aplicam a
si mesmos as coisas que sabem ser verdadeiras. Consequentemente,
que os demônios tremem se diz, porque não aplicam a si mesmos o
que sabem de Deus; isto é, eles não creem que Deus é para eles o que
sabem que Ele é por Sua palavra.

257 | P á g i n a
Objeção 2. Muitos bebês estão incluídos no número dos eleitos, mas
eles não têm fé. Portanto, todos os eleitos fazem não possuem fé.
Resposta: Os bebês, de fato, não possuem fé real, como adultos, ainda
assim eles têm um poder ou inclinação para a fé que o Espírito Santo
opera neles de acordo com sua capacidade ou condição. Pois, visto que
o Espírito Santo é prometido também aos bebês, Ele não pode ser
inativo neles. Portanto, aquilo que dissemos, que a fé salvadora é
concedida a todos os eleitos, permanece verdadeira.
Acrescentamos ainda, que a fé é necessária para todos os eleitos, e não
apenas a fé, mas também uma profissão de fé para aqueles que
chegaram a anos de entendimento, e que, 1. Por ordem de Deus. “Não
tomarás o nome do Senhor Teu Deus em vão” (Êxodo 20:7); portanto
tu deves reverenciar e professar isso. “Aquele que Me confessa diante
dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai que está nos céus”
(Mateus 10:32). 2. Por causa da glória de Deus. “Deixe sua luz brilhar
diante dos homens (...)” (Mateus 5:16). 3. Porque a fé não é inativa, mas
como uma árvore frutífera, ela se manifesta pela profissão. 4. Por nossa
segurança. “Pela boca é feita confissão para a salvação” (Romanos
10:10). 5. Para que possamos trazer outros a Cristo. “Quando te
converteres, fortalece teus irmãos” (Lucas 22:32).
Podemos saber que temos fé, 1. Pelo testemunho do Espírito Santo e
pelo desejo verdadeiro e sincero que temos de abraçar e receber os
benefícios que Cristo nos oferece. Aquele que crê tem consciência da
existência de sua fé - como diz Paulo: “Eu sei em quem eu tenho crido"
(2 Timóteo 1:12); “Nós, tendo o mesmo espírito de fé, conforme está
escrito: Eu cri e, portanto, falei; nós também cremos e, portanto,
falamos” (2 Coríntios 4:13); “Aquele que crê no Filho de Deus tem o
testemunho em si mesmo” (1 João 5:10). 2. Podemos saber que temos
fé, pelas dúvidas e conflitos que experimentamos, se formos do
número dos fiéis. 3. Do efeito da fé, que é um propósito sincero, e
desejo de obedecer a todos os mandamentos de Deus.

258 | P á g i n a
Objeção 3. Aqueles que podem cair e perder a graça de Deus antes do
fim da vida, não podem ter certeza da vida eterna: porque ter certeza
de nossa salvação, e ainda não ser elevado acima da possibilidade de
perder a graça de Deus, envolve uma contradição; portanto, não
podemos ter certeza de nossa salvação, de forma que o que foi dito
sobre a fé justificadora, que é uma confiança segura de justiça e vida
eterna, é falso. Resposta 1: A proposição antecedente é verdadeira para
aqueles que finalmente caem; pois ser capaz de cair assim é
inconsistente com a certeza da salvação; mas aqueles em quem Deus
uma vez produziu a verdadeira fé, não caem finalmente.
Réplica 1. Todos aqueles que são fracos, podem finalmente cair. Todos
nós somos fracos. Portanto, podemos todos carecer da graça de Deus.
Resposta: Se os justos fossem sustentados por suas próprias forças,
eles poderiam de fato cair e perder a graça de Deus, mas são
continuamente sustentados pela graça divina. “Ainda que caia, não
será totalmente abatido, pois o Senhor o sustém com a mão” (Salmos
37:24).
Réplica 2. Deus não tem declarado em lugar nenhum que nos
preservará em Sua graça até o fim. Resposta: Sim, Ele o declarou na
passagem que acabamos de citar e em muitas outras passagens. “Eu
dou-lhes a vida eterna, e eles nunca perecerão, e nenhum homem os
arrebatará da minha mão. Meu Pai, que os deu, é maior do que todos,
e nenhum homem” (João 10:28, 29); "Estou persuadido de que nem a
vida nem a morte, nem os anjos, nem os principados” (João 10:28, 29),
e outras passagens semelhantes; "poderão separar-me do amor de Deus
que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 8:38).
Réplica 3. Mas está dito: "Aquele que pensa que está em pé, preste
atenção para que não caia” (1 Coríntios 10:12). Portanto, Deus não
promete perseverança, mas torna nossa salvação dependente de nós
mesmos, o que a torna duvidosa. Resposta: Há aqui uma falácia em
considerar uma causa que não é existente; pois Deus, por meio dessa

259 | P á g i n a
exortação, deseja nutrir, preservar e aperfeiçoar a salvação dos crentes,
exortando-os a cumprir seu dever, e não a comprometer sua
perseverança com sua própria força e vontade. Portanto, se agora
realmente cremos, certamente devemos ter a certeza de que Deus
também nos preservará no futuro; pois se deseja que tenhamos certeza
de Sua graça presente, Ele também nos dará a certeza daquilo que
ainda é futuro, pois Ele é imutável.
Réplica 4. Mas também é dito em Eclesiastes 9:1: “Ninguém conhece
o amor ou o ódio de tudo o que está diante deles”. Portanto, não
podemos ter certeza da graça presente de Deus e, consequentemente,
não podemos determinar nada em referência ao que ainda é futuro.
Nós respondemos ao antecedente: 1. Nenhum homem pode de fato
saber, ou julgar com certeza, a partir de causas secundárias, ou de
eventos sejam bons ou maus: pois a condição externa dos homens não
fornece nenhum critério seguro do favor ou da desaprovação de Deus.
2. Ele pode não saber por si mesmo e, ainda assim, se Deus quiser
revelá-lo a ele, ele pode não ser ignorante a respeito. Podemos,
portanto, ser ignorantes de nossa salvação, na medida em que depende
de causas secundárias, mas podemos conhecê-la na medida em que
Deus se agrada em revelá-la a nós por Sua Palavra e Espírito.
Réplica 5. Mas quem conheceu a mente do Senhor?" (Romanos 11:34).
Resposta: Na verdade, nenhum homem conhece a mente do Senhor
antes que ela seja revelada; mas depois que Deus o revelou, podemos
saber tudo o que for necessário para nossa salvação. "Todos nós com
rosto descoberto, refletindo como por um espelho a glória do Senhor,
somos transformados de glória em glória na mesma imagem” (2
Coríntios 3:18).

260 | P á g i n a
Objeção 4. Paulo exorta os coríntios “a não receber a graça de Deus
em vão” (2 Coríntios 6:1); e Cristo nos exorta a “vigiar e orar” (Mateus
26:41). Resposta: Isso, no entanto, é dito que proíbe a segurança carnal
e estimula os fiéis à vigilância e à oração, a fim de que a certeza de
sua salvação seja preservada (20).
Objeção 5. Saul finalmente caiu. Ele era um dos piedosos. Portanto,
os justos podem finalmente cair. Resposta: Saul não era um homem
verdadeiramente piedoso, mas um hipócrita. Consequentemente,
negamos a proposição menor. E se for dito a título de objeção que ele
tinha os dons do Espírito Santo, respondemos que ele tinha apenas os
dons que são comuns tanto aos piedosos quanto aos ímpios; mas ele
não tinha o dom de regeneração e adoção que é peculiar aos piedosos.
Objeção 6. A doutrina da perseverança e da certeza da nossa salvação
produz segurança. Resposta: Ela produz por si mesma uma segurança
espiritual nos eleitos e uma segurança carnal nos réprobos por
acidente.

20 Numeração corrigida: Objeção 5-7, para Objeção 4-6.

261 | P á g i n a
Questão 22. O que então é necessário a um cristão crer?
Resposta: Em todas as coisas prometidas a nós no evangelho, que
os artigos de nossa indubitável fé cristã católica, brevemente nos
ensinam.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 22

Tendo falado de fé, segue-se agora para que falemos do objeto da fé,
ou inquiramos qual é o resumo daquelas coisas em que devemos crer.
A fé, em geral, abrange toda a Palavra de Deus, e consente mais
plenamente a ela, como fica evidente pela definição que demos dela.
A fé justificadora, entretanto, tem um respeito particular pelas
promessas do evangelho, ou a pregação da graça por meio de Cristo.
O evangelho é, portanto, propriamente o objeto da fé justificadora. É
por esta razão, propriamente chamada de doutrina das coisas que
devem ser cridas, como a lei é propriamente a doutrina das coisas que
devem ser cumpridas.
As tradições humanas, as ordenanças dos papas e os decretos dos
concílios, portanto, estão excluídos de ser o objeto da fé, pois a fé não
pode se apoiar em nada a não ser na Palavra de Deus, como um
fundamento imóvel. Os decretos dos homens, entretanto, são incertos,
visto que todo homem é enganoso e falso. Só Deus é verdadeiro e Sua
Palavra é a verdade. Como não é, portanto, apropriado que os cristãos
enquadrem ou construam para si mesmos a matéria ou os conteúdos
da fé, também não é apropriado que eles abracem o que foi concebido
e entregue por outros. Os cristãos devem receber e crer no evangelho
sozinhos, como se diz: "Arrependei-vos e creiais no evangelho” (Marcos
1:15); “Para que a vossa fé não se apoie na sabedoria dos homens, mas no poder
de Deus” (1 Coríntios 2:5). O resumo e a substância do evangelho, ou
das coisas que devem ser cridas, é o Credo dos Apóstolos, que
apresentamos aqui.

262 | P á g i n a
O CREDO DOS APÓSTOLOS

Questão 23. O que são esses artigos?


Resposta: Eu creio em Deus Pai Todo-Poderoso, criador dos céus e
da terra: E em Jesus Cristo Seu Filho unigênito nosso Senhor: que
foi concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem Maria: Sofreu
sob Pôncio Pilatos: Foi crucificado, morto e sepultado: Ele desceu
ao inferno: Ao terceiro dia Ele ressuscitou dos mortos: Ele subiu aos
céus, e está assentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso: De lá
Ele virá para julgar os vivos e os mortos: Eu creio no Espírito Santo:
Na Santa Igreja Católica: Na comunhão dos santos: No perdão dos
pecados: Na ressurreição do corpo: E na vida eterna.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 23

O termo símbolo ou credo (symbolum) significa em geral, um sinal ou


marca pela qual uma pessoa ou coisa se distingue de outra, como um
símbolo militar é um sinal que distingue aliados de inimigos. Em
alemão: ein Feldzeichen, oder Losung. Ou, significa uma colação ou
reunião (symbola), como uma festa - zufammen schiessen. No sentido de
Igreja, significa uma forma breve e sumária de fé cristã, que distingue
a Igreja e seus membros de todas as várias seitas. Há quem pense que
este resumo de nossa fé cristã, tal como recitado, chama-se símbolo,
ou credo, porque foi cotejado ou formado pelos apóstolos, cada um
concebendo uma certa porção dele. Isso, entretanto, não pode ser
provado. É mais provável que fosse assim chamado porque esses
artigos constituem uma certa forma ou regra com a qual a fé de todos
os cristãos ortodoxos deve concordar e se conformar. É chamado
apostólico, porque contém a substância da doutrina dos apóstolos,
que os catecúmenos eram obrigados a crer e professar; ou porque os
apóstolos entregaram esta totalidade de doutrina cristã aos seus
discípulos, e a Igreja depois a recebeu deles. É chamado de católico,

263 | P á g i n a
porque é a única fé de todos os cristãos.
Devemos perguntar aqui: por que outros credos, como o niceno, o
atanásio, o efésio e o calcedônico, foram formados e recebidos na
Igreja após o Credo dos Apóstolos? A isso responderíamos que estes
não são propriamente outros credos que diferem em substância do
Credo dos Apóstolos, mas são meramente uma repetição e enunciação
mais clara de seu significado, em que algumas palavras são
adicionadas, a título de explicação, por causa dos hereges, que se
aproveitaram de sua brevidade e o corromperam. Não há, portanto,
nenhuma mudança no que diz respeito à matéria ou substância do
Credo dos Apóstolos naqueles de uma data posterior, mas apenas uma
diferença na forma em que as doutrinas são expressas.
Existem outras razões de peso que podem ter levado e compelido os
bispos e professores da Igreja antiga a formar e construir essas
fórmulas breves de confissão, especialmente quando as igrejas
estavam se multiplicando e as heresias estavam surgindo em
diferentes lugares. Entre essas razões, podemos citar as seguintes: 1.
Para que todos os jovens, bem como os de idade mais avançada,
possam recordar os pontos principais da doutrina cristã, assim
resumidos e expressos resumidamente.
2. Para que todos tenham constantemente diante dos olhos a confissão
e o conforto da sua fé, sabendo qual era a doutrina pela qual foram
chamados a sofrer perseguições. Foi dessa forma que Deus antes tinha
a substância da lei e das promessas expressas e compreendidas de uma
forma breve, para que todos pudessem ter uma certa regra de vida e
base de conforto continuamente em vista.
3. Que os fiéis possam ter um certo distintivo ou marca pela qual
possam então e em todas as eras futuras ser distinguidos dos
incrédulos e hereges, que astuciosamente corrompem os escritos dos
profetas e apóstolos. Essa também foi a razão pela qual essas
confissões foram chamadas de credos ou símbolos.

264 | P á g i n a
4. Que possa haver alguma regra perpétua, curta, simples e facilmente
compreendida por todos, de acordo com a qual toda doutrina e
interpretação das Escrituras podem ser experimentadas, para que
possam ser abraçadas e cridas quando concordarem com ela, e
rejeitadas quando diferirem disto.
Mas embora outras confissões tenham sido formadas, o Credo dos
Apóstolos supera em muito todos os outros em importância e
autoridade, e isso pelas seguintes razões: 1. Porque quase tudo é
expresso na própria linguagem das Escrituras.
2. Porque é da maior antiguidade, e foi primeiramente entregue à
Igreja por homens apostólicos, ou pelos próprios apóstolos, ou por
seus discípulos e ouvintes, e tem sido regularmente transmitida até os
dias de hoje. 3. Porque é a base e o tipo de todos os outros credos que
foram formados pelo consentimento de toda a Igreja, e aprovados
pelos sínodos gerais, com o propósito de prevenir e refutar as
perversões e corrupções dos hereges, explicando mais plenamente o
significado do Credo dos Apóstolos.
A verdade dos outros credos, no entanto, não consiste na autoridade
ou nos decretos dos homens, ou nos concílios, mas em sua
concordância perpétua com as Sagradas Escrituras e com os
ensinamentos de toda a Igreja desde o tempo dos apóstolos, retendo
e se apegando à doutrina que transmitiram, e ao mesmo tempo dando
testemunho à posteridade de que receberam esta doutrina dos
apóstolos e daqueles que os ouviram, concordância essa que é óbvia
para todos aqueles que darão ao assunto um consideração cuidadosa.
O poder de dar novas leis a respeito da adoração a Deus, ou de dar
novos artigos de fé obrigando a consciência, não pertence a nenhuma
assembleia de homens ou de anjos, mas somente a Deus.

265 | P á g i n a
Não devemos crer em Deus por causa do testemunho da Igreja, mas a
Igreja pelo testemunho de Deus. Essas coisas, em referência às causas
e autoridade dos credos, foram tiradas da Admonit Neustad de Concordia
Bergensi, escrito por Ursino, no ano de nosso Senhor 1581, onde
estudantes de teologia podem obter um conhecimento das coisas
concernentes à verdade e autoridade dos escritores eclesiásticos,
discutidas com sabedoria, das páginas 117 a 142. Uma pequena tabela
está anexada na próxima página.

266 | P á g i n a
Os escritos concernentes à Doutrina da Igreja são:

Eclesiásticos: os que
Divinos: os que são escritos são escritos pelos
pelos apóstolos e profetas, doutores da Igreja.
que foram imediatamente Eles são:
inspiradas por Deus. Sobre
esta divisão nós devemos
incluir os livros canônicos
do Antigo e Novo Privados: que são
Públicos:
Testamento. Eles sozinhos escritos no nome
que são
são simples e divinamente e pelo conselho
escritos
inspirados assim como seus privado de uma
em nome
pensamentos e palavras, e ou mais pessoas,
de toda a
sozinhos são dignos de como Pontos
Igreja. Eles
crédito. Eles são, portanto, Comuns,
são:
a regra de todos os outros Comentários,
escritos. ETC.

Católicos: incluindo
os Credos e Confissões Particulares: como as Confissões de
as quais foram escritas certas Igrejas e concílios, como
como o nome e com o Catecismos, a Confissão Agostiniana,
consentimento de toda e outros escritos semelhantes.
a Igreja ortodoxa, e as
quais sendo recebidas
e aprovadas pela Igreja, o Credo dos Apóstolos, o Credo Niceno,
como: o Credo Constantinoplano, o Credo
Atanasiano.

267 | P á g i n a
8º DIA DO SENHOR

Questão 24. Como esses artigos são divididos?


Resposta: Em três partes: a primeira é de Deus Pai e nossa criação;
a segunda de Deus Filho, e nossa redenção; o terceiro de Deus, o
Espírito Santo, e nossa santificação.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 24

Existem três partes principais incluídas no Credo dos Apóstolos:


I. O primeiro trata de Deus Pai e de nossa criação;
II. O segundo de Deus Filho, e nossa redenção;
III. O terceiro de Deus, o Espírito Santo, e nossa santificação.
Objeção 1. A criação é aqui atribuída ao Pai, a redenção ao Filho e a
santificação ao Espírito Santo. Portanto, o Filho e o Espírito Santo
não criaram os céus e a terra; nem o Pai e o Espírito Santo redimiram
a raça humana; nem o Pai e o Filho santificam os fiéis.
Resposta: Negamos a consequência que é aqui deduzida, porque o
credo atribui a criação ao Pai, a redenção ao Filho e a santificação ao
Espírito Santo, não exclusivamente, ou de forma que essas obras não
pertençam a todas as pessoas da Divindade. Pois o Pai também nos
redime, porque “entregou Seu Filho por nós” (Romanos 8:32); “enviou Seu
filho ao mundo, para que o mundo por meio dEle pudesse ser salvo” (João
3:17). O Pai também nos santifica de acordo com o que Paulo diz: “Deus
enviou o Espírito de Seu Filho aos vossos corações, clamando, Aba, Pai”
(Gálatas 4:6). “O próprio Deus de paz vos santifique totalmente” (1
Tessalonicenses 5:23). Assim, o Filho nos cria, pois “todas as coisas foram
criadas por Ele” (João 1:3). Ele também nos santifica, porque “Ele é feito
para nós por Deus, santificação (...)” (1 Coríntios 1:30). Ele “santifica e

268 | P á g i n a
purifica a Igreja com a lavagem de água, pela Palavra” (Efésios 5:26). Ele dá
o Espírito Santo, pois Ele diz: “Enviarei o Consolador (...)”; “Ele derramou
isto que vós agora vedes e ouvis” (Atos 2:33). O mesmo deve ser dito do
Espírito Santo, pois Ele também criou os céus e a terra. “O Espírito de
Deus se movia sobre as águas” (Gênesis 1:2); “Pela Palavra do Senhor foram
criados os céus, e todas as suas hostes, pelo sopro de Sua boca” (Salmos 33:6).
Ao fazer essa distinção, entretanto, não devemos negligenciar a
distinção e a ordem da obra que é peculiar às pessoas da Divindade.
A obra da criação é atribuída ao Pai, não exclusivamente, nem apenas
a Ele, mas porque Ele é a fonte da Divindade e de todas as obras
divinas e, portanto, da criação; pois Ele criou de Si mesmo todas as
coisas pelo Filho e Espírito Santo. A redenção é atribuída ao Filho,
não exclusivamente, nem apenas a Ele, mas porque o Filho é Aquele
que faz imediatamente a obra da redenção; pois somente o Filho foi
feito em resgate por nossos pecados. Foi o Filho, e não o Pai, ou o
Espírito Santo, que nos comprou por Sua morte na cruz. Da mesma
forma, a santificação é atribuída ao Espírito Santo, não
exclusivamente, nem apenas a Ele, mas porque o Espírito Santo é
aquela pessoa que imediatamente nos santifica, ou porque é por meio
dEle que nossa santificação é imediatamente feita.
Objeção 2. As obras que as pessoas da Trindade realizam por Si
mesmas, ou seja, as que realizam em relação às criaturas, são
indivisíveis, isto é, não podem ser atribuídas a nenhuma pessoa da
Trindade sem respeito às outras pessoas. Criação, redenção e
santificação são obras externas à Divindade. Portanto, elas são
indivisíveis e, consequentemente, não há necessidade dessa distinção.
Resposta: Nós respondemos à proposição principal. As obras da
Trindade são indivisíveis, mas não no sentido de destruir a ordem e a
forma de operar peculiares a cada pessoa da Divindade. Todas as
pessoas da Divindade realizam certas obras com referência às

269 | P á g i n a
criaturas, mas ainda assim esta ordem é preservada, que o Pai faz todas
as coisas por Si mesmo por meio do Filho e do Espírito Santo; o Filho
faz todas as coisas do Pai por meio do Espírito Santo; e o Espírito
Santo faz todas as coisas do Pai e do Filho por meio dEle mesmo.
Desta forma, portanto, todas as pessoas da Divindade criam, redimem
e santificam; o Pai mediatamente por meio do Filho e do Espírito
Santo; o Filho mediatamente por meio do Espírito Santo; e o Espírito
Santo imediatamente por meio de Si mesmo, mas mediatamente por
meio do Filho, visto que Ele é o mediador. Mas as obras da Divindade,
que são chamadas de obras ad extra e ad intra, serão explicadas sob a
7ª pergunta da doutrina a respeito de Deus.

270 | P á g i n a
A TRINDADE

Questão 25. Visto que há apenas uma essência divina, por que tu
falas do Pai, do Filho e do Espírito Santo?
Resposta: Porque Deus Se revelou em Sua palavra, que essas três
pessoas distintas são o único Deus verdadeiro e eterno.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 25

Nesta questão, nós temos contida a doutrina da Igreja em referência


ao único Deus verdadeiro e às três pessoas da Trindade. As principais
questões que reivindicam nossa atenção, em conexão com este
assunto, são as seguintes:
I. Do que se manifesta que existe um Deus?
II. Qual é o caráter daquele Deus a quem a Igreja reconhece e adora,
e em que Ele difere dos ídolos pagãos?
III. Ele é apenas um, e em que sentido as Escrituras chamam as
criaturas de deuses.
IV. O que significam os termos essência, pessoa e Trindade, e em que
eles diferem?
V. É apropriado reter esses nomes na Igreja?
VI. Quantas pessoas da Trindade existem?
VII. Como essas pessoas se distinguem umas das outras?
VIII. Por que é necessário que a Igreja se apegue firmemente à
doutrina da Trindade.

271 | P á g i n a
I. DO QUE SE MANIFESTA QUE EXISTE UM DEUS?
Que existe um Deus é provado por muitos argumentos comuns tanto
à filosofia quanto à teologia. Esses argumentos apresentaremos na
seguinte ordem:
1. A ordem e harmonia que observamos em todos os lugares da
natureza, dá evidência da existência de Deus. Há, como todos devem
perceber, um arranjo sábio de todas as partes da natureza e uma
sucessão constante de mudanças e operações, de acordo com certas
leis, que não poderiam existir e ser preservadas, a menos por algum
ser inteligente e todo-poderoso. As Escrituras se referem a este
argumento, de forma considerável, nas seguintes passagens: Salmos 8,
19, 104, 135, 136, 147 e 148, Romanos 1, Atos 14 e 17.
2. Uma natureza racional com alguma causa não pode existir, a menos
que proceda de algum ser inteligente, pela razão de que uma causa
não é de um caráter mais inferior do que o efeito que ela produz. A
mente humana é dotada de razão e tem alguma causa; portanto,
procedeu de algum ser inteligente, que é Deus. “Há um espírito no homem
(...)” (Jó 32:8); “No entanto, eles dizem: o Senhor não verá (...)” (Salmos 94:7);
“Nós também somos Sua descendência” (Atos 17:28).
3. As concepções ou noções de princípios gerais que são naturais para
nós, como a diferença entre coisas próprias e impróprias, e outras
coisas semelhantes, não podem ser o resultado do mero acaso, ou
procedem de uma natureza irracional, mas devem necessariamente ser
gravadas naturalmente em nossos corações por alguma causa
inteligente, que é Deus. “Os gentios mostram a obra da lei escrita em seus
corações (...)” (Romanos 2:15).

272 | P á g i n a
4. Do conhecimento ou impressão que todos nós temos de que existe
um Deus. Não existe nação, por mais bárbara ou incivilizada que seja,
mas tem alguma noção ou sistema de religião que pressupõe a crença
em algum Deus. “Aquilo que de Deus pode ser conhecido se manifesta neles
[isto é, na mente dos homens], porque Deus lhes manifestou” (Romanos 1:19).
5. As repreensões da consciência, que seguem a consumação do pecado
e atormentam as mentes dos ímpios, não podem ser infligidas por
ninguém, exceto por um ser inteligente - aquele que pode distinguir
entre o que é adequado e inadequado - que conhece os pensamentos
e os corações dos homens, e que podem fazer com que tais temores e
pressentimentos surjam na mente dos ímpios. “O verme deles não morre”
(Isaías 57:21); “Não há paz para os ímpios” (Deuteronômio 4:24); “Deus é
um fogo consumidor” (Hebreus 12:2921); “Eles manifestam a obra da lei
escrita em seus corações, acusando-os ou justificando a eles em suas
consciências” (Romanos 2:15).
Adendo. Essas reprovações da consciência, que são comuns a todos
os homens, podem ser consideradas como uma resposta suficiente à
objeção que às vezes foi levantada contra a existência de Deus, que é
um mero dispositivo sutil, inventado e publicado por filósofos e
legisladores para o propósito de restringir os homens da prática do
crime; pois se é verdade que se trata de um mero artifício, por que,
poderíamos perguntar, esses homens que parecem ter detectado essa
fraude são mais perseguidos por suas consciências por causa de sua
blasfêmia, bem como por seus outros crimes. Como, também,
podemos perguntar, poderia a mera afirmação de alguns indivíduos
ser suficiente para persuadir toda a humanidade a esta crença, e fazer
com que seja mantida em todas as épocas subsequentes? E se, para
enfraquecer a força deste argumento, for afirmado que existem
aqueles que não creem em um Deus, nem são perturbados por suas

21 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

273 | P á g i n a
consciências, respondemos que isso, que eles imaginam, é muito falso,
pois não há dos ímpios que estão livres dessas dificuldades de
consciência; pois, por mais que desprezem a Deus e toda forma de
religião, e se esforcem para reprimir seus temores, tanto mais são
atormentados e tremem a cada menção e aproximação de Deus.
Consequentemente, frequentemente vemos aqueles cujas vidas são em
sua maioria profanas e seguras morrerem em desespero quando são
oprimidos pelos julgamentos de Deus.
6. Os galardões dos justos e as punições dos ímpios como o dilúvio, a
destruição de Sodoma pelo fogo, a derrubada do Faraó no Mar
Vermelho, a queda de reinos florescentes, e outros eventos
semelhantes, são evidências da existência de um Deus; pois esses
juízos, que são infligidos a homens e nações iníquas, testificam que
deve existir algum juiz universal e onipotente em todo o mundo. “Deus
é conhecido pelos juízos que executa” (Salmo 9:16); “Em verdade, Ele é um
Deus que julga na terra” (Salmos 58:11).
Adendo. E embora os ímpios frequentemente prosperem por um
tempo, enquanto os piedosos são oprimidos, ainda assim, os exemplos
que são poucos em número não enfraquecem a regra geral com a qual
a maioria dos eventos concorda. E se fosse mesmo assim, que os
ímpios não sofrem punição tão frequentemente quanto os justos,
ainda esses mesmos exemplos, embora poucos em número, testificam
que existe um Deus, e que Ele também está descontente com as
ofensas de outros que parecem não ser tão severamente punido. Mas
não é verdade para nenhum dos ímpios que eles não sejam punidos
nesta vida, pois todos aqueles que não são convertidos são mais cedo
ou mais tarde vencidos pelo castigo; sim, geralmente morrem em
desespero, punição essa que é mais grave do que todas as outras e é o
início e o testemunho da punição eterna. E embora o castigo dos
ímpios nesta vida não seja tão grande quanto seus pecados merecem,
ainda assim, ele tem alguma correspondência com os crimes mais

274 | P á g i n a
trágicos dos ímpios, de forma que somos ensinados, pela doutrina da
Igreja, que a lenidade que Deus aqui usa para com os ímpios, e a
severidade que Ele parece mostrar aos justos, não enfraquece de forma
alguma Sua providência e justiça, mas sim, declara Sua bondade, na
medida em que Ele convida os ímpios ao arrependimento, enquanto
Ele retarda Sua punição, e aperfeiçoa a salvação dos justos
exercitando-os com cruzes e castigos.
7. Um pacto civil ou comunidade, governado sabiamente por leis justas
e salutares, não poderia ser exibido aos homens, exceto por algum ser
inteligente aprovando esta ordem; e como demônios e homens ímpios
geralmente odeiam e se opõem a essa ordem, deve ser necessariamente
Deus quem a preservou até agora. “Por Mim reinam os reis e os príncipes
decretam justiça” (Provérbios 8:15).
8. Entusiasmo heroico, ou aquela sabedoria e virtude excelente em
empreender e realizar obras que ultrapassam os poderes comuns do
homem, como a destreza e deleite de artífices habilidosos e de
governadores em descobrir e promover as artes, e em conceber vários
conselhos; também tamanha grandeza de espírito na realização de
atos de renome e na gestão de negócios, como havia em Aquiles,
Alexandre, Arquimedes, Platão, e outros exemplos semelhantes, todos
dão evidências de que deve haver alguma causa superior e onipotente
que excita e incita os homens a essas coisas. De Josué se diz: “O próprio
Senhor irá adiante de ti, Ele estará contigo” (Deuteronômio 31:8); “O Senhor
despertou o espírito de Ciro” (Esdras 1:1); “O Espírito do Senhor desceu sobre
ele” (Juízes 14:19).

275 | P á g i n a
9. A previsão de eventos futuros que não poderiam ter sido conhecidos
de antemão nem pela sagacidade humana, nem por causas ou sinais
naturais, como as profecias que diziam respeito ao dilúvio, para a
posteridade de Abraão, a vinda do Messias, e outros eventos
semelhantes, são necessariamente conhecidos apenas por ser revelado
por Aquele que tem os homens e a natureza das coisas tão
completamente em Seu poder, que sem Sua vontade nada pode ser
feito. Ele é verdadeiramente Deus, que pode predizer o que está para
acontecer. “Mostrai as coisas que hão de vir depois, para que possamos saber
que sois deuses” (Isaías 41:23).
10. O fim e o uso das coisas geralmente não são por mero acaso, nem
de um ser destituído de razão, mas procedem de uma causa que é
sábia e onipotente, que é Deus. Todas as coisas agora são sabiamente
adaptadas e ordenadas para seus próprios fins peculiares e certos.
11. A ordem de causa e efeito é finita, nem pode acontecer que a cadeia
ou curso de causas eficientes possa ser de extensão infinita. Deve
haver, portanto, alguma causa primeira que media ou imediatamente
produz e move o resto, e da qual todas as outras causas dependem;
pois em cada ordem que é finita há algo que vem primeiro e antes de
todas as outras coisas.

II. QUEM E O QUE É DEUS?


Deus não pode ser definido, porque é imenso e porque ignoramos a
Sua essência. Podemos, entretanto, descrevê-lO até certo ponto a
partir da revelação que Ele teve o prazer de fazer de Si mesmo;
contudo, ao dar uma descrição de Deus, devemos ter o cuidado de
incluir nela aqueles atributos, representações e obras peculiares, que
O distinguem de todas as falsas divindades.

276 | P á g i n a
Deus é filosoficamente descrito como uma mente ou inteligência
eterna, suficiente em Si mesmo para toda a felicidade, o melhor dos
seres e a causa do bem na natureza. Uma descrição teológica e mais
completa de Deus e aquela que a Igreja recebe, é a seguinte: Deus é
uma essência espiritual, inteligente, eterna, diferente de todas as
criaturas, incompreensível, a mais perfeita em Si mesma, imutável, de
imenso poder, sabedoria e bondade; justo, verdadeiro, puro,
misericordioso, generoso, mais livre, odeia o pecado - que é, o Pai
eterno, que desde a eternidade gerou o Filho à Sua própria imagem; o
Filho, que é a imagem coeterna do Pai; e o Espírito Santo, procedente
do Pai e do Filho, como foi divinamente revelado pela segura Palavra
entregue pelos profetas e apóstolos, e pelos testemunhos divinos; que
o Pai eterno, com o Filho e o Espírito Santo, criou os céus e a terra, e
todas as criaturas, está presente com todas as criaturas, para que Ele
possa preservá-las e governá-las por Sua providência, e produzir todas
as coisas boas nelas; e que da raça humana, feita à Sua própria imagem,
Ele escolheu e reúne para si uma Igreja eterna, por e para o bem de
Seu Filho, que pela Igreja esta única e verdadeira deidade pode, de
acordo com a Palavra revelada do céu, seja aqui conhecido e louvado,
e glorificado na vida por vir; e que Ele é o juiz dos justos e dos ímpios.
Esta descrição teológica de Deus, que a Igreja dá, difere da descrição
filosófica, 1. Na perfeição, porque contém certas coisas desconhecidas
para os homens por natureza, como a distinção que existe entre as
pessoas da Divindade, a eleição e a reunião da Igreja por meio do
Filho. Ele também explica mais completamente as coisas que são
conhecidas da natureza. 2. Em seu efeito, visto que os homens não
podem, pela mera luz da natureza, chegar a um verdadeiro
conhecimento de Deus, nem ser excitados por isso para a santidade
ou para o amor e temor de Deus.

277 | P á g i n a
Essa mesma descrição ensina que o Deus verdadeiro, a quem a Igreja
adora, pode ser distinguido dos falsos deuses de três formas: por Seus
atributos, distinções pessoais e obras. Deus declarou por Suas obras
que Ele é tal e uma natureza como seus atributos importam. Ele
também mostra que existem três pessoas em uma essência divina, uma
vez que, de acordo com Suas obras, que são obras de criação, ou de
redenção, ou santificação, Deus tem diferentes títulos atribuídos a Ele
e a cada pessoa da Divindade ali é um nome peculiar aplicado. Deus,
portanto, difere dos ídolos:
Em primeiro lugar, por Seus atributos. Fora da Igreja, nenhum
atributo de Deus pode ser correta e plenamente conhecido. Mesmo
Sua misericórdia não é devidamente conhecida por aqueles que estão
fora da Igreja, porque o Filho não é conhecido, ou a doutrina a respeito
dEle está corrompida. Nem eles conhecem Sua justiça, porque os
ímpios não creem que Deus está tão ofendido com o pecado que
qualquer satisfação foi necessária, ou que a redenção só poderia ser
efetuada com a morte de Seu Filho. Nem pode a sabedoria de Deus
ser conhecida sem a Igreja, porque a parte principal dela se encontra
em Sua palavra, que os gentios não tinham. O mesmo pode ser dito
da verdade de Deus, porque não obtemos o conhecimento de Suas
promessas da natureza; e assim de todos os atributos divinos. A Igreja,
no entanto, atribui a Deus, no mais alto grau, justiça, verdade,
bondade, misericórdia, bondade amorosa; quais atributos de Deus as
várias seitas ou são inteiramente ignorantes, ou, se eles têm algum
conhecimento dos atributos, eles os representam erroneamente.
Em segundo lugar, pelas distinções pessoais da Divindade. Os filósofos
e sectaristas pagãos não sabem nem reconhecem que existem três
pessoas em uma essência divina. A Igreja, entretanto, reconhece e
clama ao Pai, Filho e Espírito Santo, um Deus, subsistindo em três
pessoas, conforme Ele Se revelou em Sua Palavra.

278 | P á g i n a
Em terceiro lugar, por Suas obras. Aqueles que estão fora da Igreja não
têm conhecimento adequado da criação e governo de todas as coisas,
muito menos têm um conhecimento correto da obra de redenção e
santificação por meio do Filho e do Espírito Santo. O verdadeiro Deus
é, nesses aspectos, distinto dos ídolos. O conhecimento de Deus, que
Sua palavra revela à Igreja, também é diferente do que as nações têm
obtido a partir da luz da natureza.

Uma breve explicação da descrição de Deus, conforme dada pela


Igreja
Deus é uma essência, isto é, uma coisa da qual não surge e nem
depende de qualquer outra coisa, mas existe de e por Si só, e é a causa
da existência de todas as outras coisas. Por isso Deus é chamado de
Jeová, como se dissesse que existe de Si mesmo e faz com que todas
as outras coisas existam.
Espiritual: isto é, incorpóreo, invisível e imperceptível pelos sentidos;
também, vivendo ou existindo de Si mesmo, e preparando todas as
outras coisas.
Objeção 1. Mas Deus frequentemente Se manifestou aos homens;
portanto, Sua natureza não pode ser espiritual no sentido que
acabamos de explicar. Resposta: Deus, nessas manifestações,
meramente assumiu uma forma corpórea por algum tempo, sem exibir
Sua substância própria, que nenhum homem tem ou pode ver.
Objeção 2. Mas Ele foi visto face a face. Resposta: Isso, entretanto,
não significa que Deus era perceptível ao olho natural, mas que havia
uma percepção clara dEle pela mente.
Objeção 3. Mas as Escrituras frequentemente atribuem a Deus as
várias partes e membros do corpo humano. Resposta: Essas
representações de Deus devem ser entendidas figurativamente,
conforme faladas à forma dos homens.

279 | P á g i n a
Objeção 4. Mas é dito que o homem foi feito à imagem de Deus.
Portanto, Deus não pode ser espiritual, como explicado acima.
Resposta: A imagem de Deus, na qual o homem foi criado, não
consistia na forma ou na forma do corpo, mas na essência da alma,
em Seus poderes e integridade.
Inteligente. A mente humana, com as noções ou concepções gerais
que possui, que são de Deus, prova que ela é dotada desse atributo.
“Aquele que fez o ouvido, não ouvirá?” (Salmos 94:9).
Eterno: isto é, ter uma existência sem início nem fim. “De eternidade a
eternidade, Tu és Deus” (Salmos 90:2).
Diferente de todas as criaturas e coisas. Deus não é a própria
natureza, nem a matéria, nem a forma, nem qualquer parte da
natureza, mas a causa eficiente de todas as coisas; nem é Sua essência
misturada ou combinada com outras coisas; é diferente e diferente de
todas as outras coisas.
Objeção 1. Todas as coisas vêm de Deus; portanto, elas não podem ser
diferentes dEle. Resposta: Todas as coisas vêm de Deus, mas apenas
por terem sido criadas por Ele do nada.
Objeção 2. Somos descendência de Deus. Resposta: Mas apenas no
que diz respeito à semelhança de propriedades e por criação.
Objeção 3. Os santos nascem de Deus. Resposta: Isso, no entanto, é
por regeneração pelo Espírito Santo.
Objeção 4. Somos feitos participantes da natureza divina, de acordo
com o apóstolo Pedro (2 Pedro 1:4). Resposta: Isso significa nada mais
do que Deus habita em nós e que temos conformidade com Ele.
Objeção 5. Cristo é Deus e tem um corpo divino. Resposta: Mas isso
é em virtude da união hipostática e glorificação.

280 | P á g i n a
Incompreensível. Deus é incompreensível; 1. No que diz respeito aos
nossos pensamentos ou conhecimento dEle. 2. Na imensidão de Sua
essência. 3. Na comunicação de Sua essência, em número único e igual.
Mais perfeito em Si mesmo. 1. Porque só Ele tem todas as coisas
necessárias para aperfeiçoar a felicidade, de forma que nada pode ser
adicionado a Ele para aumentar Sua glória ou felicidade. 2. Porque Ele
tem todas essas coisas dentro e de Si mesmo. 3. Porque Ele também é
suficiente para a felicidade de todas as outras criaturas.
Objeção 1. Mas é dito que Deus fez todas as coisas para Si mesmo.
Resposta: Deus criou todas as coisas, não com o objetivo de beneficiar
a Si mesmo, mas com o objetivo de Se comunicar às Suas criaturas.
Objeção 2. Mas Deus emprega Suas criaturas para cumprir Seus
desígnios. Resposta: Isso Ele não faz por falta ou necessidade no caso,
mas para que possa honrar Suas criaturas, tornando-as dispensadoras
de Sua generosidade e cooperadoras de Si mesmo.
Objeção 3. Devemos adorar a Deus. Resposta: Devemos isso a Deus e
resulta em nosso bem.
Objeção 4. A quem é dado o que é devido, a Ele algo é adicionado.
Resposta: Isso, porém, não é verdade em relação ao que é devido de
acordo com a ordem da justiça e que contribui para a felicidade do
doador.
Objeção 5. Deus Se agrada em nossa obediência. Resposta: Ele o faz
na medida em que nossa obediência é um objetivo, e não na medida
em que é uma causa eficiente de alegria.
Imutável. Deus é imutável; 1. Em Sua essência. 2. Em Seu testamento.
3. Como respeita ao lugar, porque é imenso.
Objeção 1. Mas é dito que Deus se arrependeu das coisas que fez.
Resposta: Isso é dito figurativamente.

281 | P á g i n a
Objeção 2. Deus frequentemente promete e ameaça coisas que Ele
não faz. Resposta: Essas promessas e ameaças sempre foram
condicionais.
Objeção 3. Mas Deus altera Seus preceitos, observâncias e obras.
Resposta: Ele os altera de acordo com Seu decreto eterno.
Onipotente. 1. Deus pode fazer todas as coisas que deseja fazer. 2. Ele
as faz por Sua própria vontade, sem qualquer dificuldade. 3. Ele as faz,
tendo todas as coisas em Seu próprio poder. Objeção: Mas há muitas
coisas que Deus não pode fazer, como pecar, mentir, se contradizer, e
outros atos semelhantes. Resposta: Mas essas coisas são indicativas de
fraqueza e imperfeição.
De imensa sabedoria. Isso se demonstra, 1. Em ver e compreender a
Si mesmo, e todas as coisas fora de Si, com uma visão ou olhar,
perfeitamente e em todos os momentos. 2. Em ser a causa de todo
conhecimento em anjos e homens.
De imensa bondade. 1. A natureza de Deus é aquela que foi revelada
na lei e no evangelho. 2. Ele é a causa e o padrão de toda bondade em
Suas criaturas. 3. Ele é o bem supremo. 4. Ele é essencialmente bom.
Somente Deus é justo; 1. Com respeito à Sua justiça geral, desejando
e fazendo de forma imutável as coisas que Ele prescreveu em Sua lei.
2. Com respeito à Sua justiça particular, de acordo com a qual Ele
distribui recompensas e punições imutavelmente adequadas. 3. Nisso
Ele é a regra e padrão de retidão em Suas criaturas.
Objeção 1. Deus envia o mal aos justos e os bons aos ímpios. Resposta:
Este, entretanto, nem sempre será o caso: no final das contas tudo
estará bem para os justos e mal para os ímpios.
Objeção 2. Deus não pune imediatamente os ímpios. Resposta: Ele
adia a punição no caso deles por várias razões.

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Objeção 3. Nunca sucederá mal com aquele que é bom. Resposta: Não
com aqueles que são perfeitamente bons, o que não é o caso de
ninguém nesta vida.
Objeção 4. Deus faz certas coisas contrárias à lei. Resposta: Ele tira
certas coisas de Sua vontade geral por meio de Sua vontade especial,
que Ele tem o direito de fazer, visto que não está vinculado a ninguém.
Objeção 5. Deus dá galardões desiguais aos homens que são colocados
em circunstâncias semelhantes. Resposta: Ele, entretanto, não dá a
ninguém o Seu justo merecimento.
Verdadeiro. 1. Deus tem um conhecimento verdadeiro e certo de
todas as coisas. 2. Ele não deseja ou fala coisas contraditórias. 3. Ele
não dissimula nem engana. 4. Ele nunca muda de ideia. 5. Tudo o que
Ele diz, Ele faz. 6. Ele prescreve a verdade e a veracidade para todos.
Objeção 1. Mas Deus predisse coisas que não pretendia realizar.
Resposta: Essas coisas foram ditas condicionalmente. Objeção 2. Deus
enganou os profetas. Resposta: Ele, em Seu justo julgamento, ao Diabo
os entregou, para que fossem enganados.
Puro. 1. Sua natureza é a mais pura. 2. Ele ama e ordena o que é puro.
3. Ele detesta muito e pune severamente todo tipo de impureza, seja
interna ou externa. 3. Ele se distingue por esta marca notável de
demônios e espíritos iníquos. “Esta é a vontade de Deus, sim, a vossa
santificação, que vos abstenhais da fornicação; que cada um de vós possua o
seu vaso em santificação e honra” (1 Tessalonicenses 4:3, 4); “Não se
contamineis com nenhuma dessas coisas, pois em todas elas as nações estão
contaminadas” (Levítico 18:24).
Misericordioso. A misericórdia de Deus se manifesta nisto: 1. Que Ele
deseja a salvação de todos os homens. 2. Que Ele adia o castigo e
convida todos ao arrependimento. 3. Que Ele se conforma à nossa
enfermidade. 4. Que Ele redime aqueles que são chamados ao Seu
serviço. 5. Que Ele deu e entregou à morte Seu Filho unigênito. 6. Que
Ele promete e faz todas essas coisas mais livremente por Sua

283 | P á g i n a
misericórdia. 7. Que Ele confere benefícios aos Seus inimigos, e aos
que são indignos de Sua consideração. Objeção 1. Mas Deus aparenta
ter prazer em vingar-se dos ímpios. Resposta: Somente na medida em
que é a execução de Sua justiça. Objeção 2. Ele recusa misericórdia
para com os ímpios. Resposta: Somente para aqueles que não se
arrependem. Objeção 3. Ele não salva a todos quando tem o poder.
Resposta: Deus age assim para que possa exibir Sua justiça com Sua
misericórdia. Objeção 4. Ele não exerce Sua misericórdia sem uma
satisfação suficiente. Resposta: No entanto, Ele deu mais livremente o
Seu Filho, para que pudesse ter satisfação com a Sua morte.
Generoso. Deus é considerado generoso; 1. Porque Ele cria e preserva
todas as coisas. 2. Porque Ele confere benefícios a todos, até mesmo
aos iníquos. 3. Pelo amor gratuito e sem limites que Ele exerce para
com as Suas criaturas, especialmente para com o homem. 4. Por causa
do amor que nutria pela Igreja e por dar a vida eterna e glória ao Seu
povo. Objeção 1. Mas as Escrituras falam de Deus nutrindo ira.
Resposta: Ele está irado com o pecado e a depravação, mas não com
Suas criaturas. Objeção 2. Deus frequentemente inflige punição às
Suas criaturas. Resposta: Somente sobre aqueles que são impenitentes.
Mais livre. Deus é mais livre; 1. De toda culpa, miséria, obrigação,
servidão e constrangimento. 2. Ele deseja e faz da forma mais livre e
justa todas as coisas, e as deseja e faz quando e da forma que Lhe
agrada.
Objeção 1. As causas secundárias operam necessariamente, mas não
operam sem Deus. Resposta: A necessidade aqui mencionada é uma
necessidade de consequência dependendo da causa primeira.
Objeção 2. Mas Deus é imutavelmente bom. Resposta: Deus é
imutavelmente bom por uma necessidade de imutabilidade, e não de
constrangimento.
Objeção 3. Mas o que Deus uma vez decretou, Ele o deseja

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necessariamente. Resposta: Ele Os deseja imutavelmente, mas não
constrangidamente. Objeção 4. Deus nem sempre faz o que deseja,
como, “Quantas vezes Eu quis e vós não quisestes” (Mateus 23:3722).
Resposta: Essas e outras declarações semelhantes mostram em que
Deus se agrada, mas não o que Ele se propôs totalmente a fazer.
Odiar o pecado: isto é, Deus está terrivelmente insatisfeito com o
pecado e o punirá temporal e eternamente.

III. DE QUE SE MANIFESTA A UNIDADE DE DEUS?


A unidade de Deus é provada, em primeiro lugar, pelo testemunho
expresso das Escrituras. “Ouve, ó Israel, só o Senhor nosso Deus é um Deus”
(Deuteronômio 6:4); “Vede agora que Eu, Eu o sou, sou, e não há Deus além
de Mim” (Deuteronômio 32:39); “Eu sou o Primeiro e o Último, e além de
Mim não há Deus” (Isaías 44:6); “Nós sabemos que um ídolo não é nada no
mundo, e que não há outro Deus senão um” (1 Coríntios 8:4); “Há um Deus e
um mediador entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5).
Veja também Deuteronômio 4:35, Salmos 18:31, Isaías 37:16, Isaías 45:21,
Oséias 13:4, Malaquias 2:10, Marcos 12:32, Romanos 3:20, Gálatas 3:20, e
outras passagens semelhantes.
Em segundo lugar, a unidade de Deus pode ser provada por muitos
argumentos sólidos, como os seguintes:
1. Há apenas um Deus - o Deus a quem a Igreja adora, que foi revelado
por tais testemunhos incontestáveis e seguros, como milagres,
profecias e outras obras que só podem ser feitas por um ser que é
Todo-Poderoso. “E quem, como eu, devo chamar, e deve declarar isso, e colocá-
lo em ordem para mim, desde que designei o povo antigo?” (Isaías 44:7); “Entre
os Deuses, não há nenhum semelhante a Ti, ó Senhor; nem há quaisquer obras
semelhantes às Tuas obras” (Salmos 86:8).
2. Aquele que sozinho reina sobre tudo e governa todas as coisas da

22 Correção: a referência bíblica citada na obra em inglês era Lucas 13:33.

285 | P á g i n a
mesma forma, e assim possui o poder supremo e majestade, não pode
ser mais do que um. Mas não há ninguém, além de Deus, que seja tão
supremo e grande, que nenhum maior possa existir ou ser concebido.
Portanto, apenas Ele é Deus, e ao lado dEle não pode haver outro Deus.
“Eu sou o Senhor; este é o Meu nome, e Minha glória não darei a outro” (Isaías
42:8); “Agora, ao rei eterno, imortal, invisível, o único Deus sábio (...)” (1
Timóteo 1:17). “Tu és digno, ó Senhor, de receber glória e honra e poder, pois
Tu criaste todas as coisas” (Apocalipse 4:11).
3. Aquele que é perfeito no mais alto grau, pode ser apenas um; pois
só aquele que tem o todo e todas as partes é absolutamente perfeito.
Deus, agora, é assim perfeito, porque Ele é a causa de tudo o que é
bom na natureza. Portanto, nada é mais absurdo do que supor que
alguém seja Deus, que não seja supremo e perfeito, no mais alto grau.
“Ó Senhor, quem é semelhante a Ti?” (Salmos 89:8).
4. Não pode haver mais de um ser que seja onipotente, pois se
houvesse muitos, eles se impediriam e se oporiam mutuamente e,
portanto, não seriam onipotentes. É por esse argumento que a
monarquia do mundo é atribuída a um só Deus na profecia de Daniel,
onde é dito: “Ninguém pode deter Sua mão ou resistir à Sua vontade” (Daniel
4:35).
5. Se supormos que existem muitos deuses, nenhum deles seria capaz,
individualmente e sozinho, de governar todo o resto, e assim todos
seriam imperfeitos, e não deuses; ou então o resto seria em vão e
supérfluo. Mas é absurdo supor que Deus é alguém que não tem poder
suficiente para governar todas as coisas, ou que está à vontade e
ocioso. Portanto, há, necessariamente, apenas um Deus, o único que é
suficiente a todas as coisas.

286 | P á g i n a
6. Não pode existirr mais de um ser infinito ou imenso; pois se
existisse mais de um, ninguém estaria em todos os lugares.
Consequentemente, não pode haver muitos deuses, mas apenas um
Deus, o único que é infinito.
7. Só pode haver uma causa primeira para todas as coisas. Deus é a
primeira causa. Portanto, Ele é um Deus, excluindo todos os outros.
8. O maior bem pode ser apenas um; pois se houvesse além deste
também outro bem supremo, seria maior ou menor ou igual ao
primeiro. Mas se fosse maior, o primeiro não seria o mais alto e, ainda
assim, seria Deus, que seria uma vergonha para a Divindade; se fosse
menor, então não seria o bem supremo e, portanto, não seria Deus; e
se fosse igual, então nem seria o bem supremo, nem Deus.
O uso, ou benefício, desta questão é que, visto que há apenas um Deus,
não devemos adorar ou adorar ninguém além dEle; nem devemos
olhar para qualquer outro lugar senão para este único Deus para todas
as coisas boas; e ser grato a Ele somente pelo que recebemos.
Objeção. Mas as Escrituras declaram que existem muitos deuses: “Eu
disse, vós sois deuses” (Salmos 82:6); “Existem muitos deuses e muitos
senhores” (1 Coríntios 8:5). Também se diz que Moisés foi feito Deus
para Faraó (Êxodo 7:1). Sim, o Diabo é chamado de deus deste mundo
(2 Coríntios 4:4).
Resposta: A palavra deus é usada em duplo sentido. Às vezes, significa
aquele que é Deus por natureza, e não tem Seu ser de ninguém, mas
de Si mesmo. Esse ser é o Deus vivo e verdadeiro. Então, novamente,
designa alguém que tem alguma semelhança com o verdadeiro Deus
em dignidade, ofício, e outras coisas semelhantes. Essas pessoas são:
1. Magistrados e juízes, que são chamados de deuses por causa de sua
dignidade e do cargo que desempenham em nome de Deus, como se
diz: “Por Mim reinam os reis” (Provérbios 8:15). Como Deus, portanto,
administra Seu governo por meio de magistrados e juízes, como Seus

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vice-regentes e servos na terra, Ele dá a eles a honra de Seu próprio
nome, chamando-os de deuses, que aqueles sob eles podem saber que
eles têm que tratar com o próprio Deus, quer obedeçam ou resistam
ao magistrado, de acordo com o que foi dito: “Todo aquele que resiste ao
poder, resiste à ordenança de Deus” (Romanos 13:2).
2. Os anjos também são chamados de deuses, em vista da dignidade e
excelência de Sua natureza, poder e sabedoria, em que superam em
muito as outras criaturas; e por causa do ofício que exercem por
indicação divina na defesa dos piedosos e punição dos ímpios. “Tu O
fizeste um pouco menor do que os deuses” (Salmos 8:5), isto é, os anjos. “Nem
todos são espíritos ministradores” (Hebreus 1:14).
3. O Diabo é chamado de Deus deste mundo, por causa do grande
poder que tem sobre os homens e outras criaturas, de acordo com o
justo juízo de Deus.
4. Existem muitas coisas que são chamadas de deuses, na opinião dos
homens, que consideram e adoram certas coisas e criaturas como
deuses. Portanto, os ídolos são chamados de deuses, por imitação. “Os
deuses que não criaram os céus e a terra, eles mesmo morrerão da terra e de
debaixo destes céus” (Jeremias 10:11); “cujo deus é o ventre” (Filipenses 3:19).
Mas aqui a questão é em referência ao verdadeiro Deus - aquele que é
Deus por natureza, não tendo Seu poder de ninguém mais, mas de e
por Si mesmo, é apenas um.

IV. O QUE SIGNIFICAM OS TERMOS ESSÊNCIA, PESSOA E


TRINDADE, E EM QUE SE DIFEREM UM DOS OUTROS?
Essência, do grego ουσια (ousia), significa, como é usado aqui, uma
coisa que subsiste por si mesma - não é sustentada por outra, embora
possa ser comunicada a outras. Diz-se que é comunicável, ou
comunicado, o que é comum, ou que pode ser comunicado a muitos.
Isso é incomunicável, do qual nada mais pode participar. A essência
do homem é comunicável e comum a muitos homens, genericamente,

288 | P á g i n a
mas não individualmente. Mas a essência de Deus é comunicável
individualmente, porque a Divindade ou natureza de Deus é a mesma
e inteira em todas as três pessoas da Divindade.
Pessoa é aquilo que subsiste, é individual, vivo, inteligente,
incomunicável, não se sustenta em outro, e nem faz parte de outro.
Subsistir, com o que desejamos dizer que não é um acidente, ou um
pensamento, ou um decreto, ou um som que se desvanece, ou uma
qualidade ou movimento criado. Indivíduo, ou seja, não o homem
genericamente, mas individualmente, como este homem. Viver: algo
diferente do que é inanimado, como uma pedra. Inteligente: não
irracional, como o animal, que embora possa ter vida e sentimento,
não tem personalidade. Incomunicável: não pode ser comunicado,
como a essência divina, que pode estar em mais de um, e ser comum
a mais de um - a personalidade, entretanto, é incomunicável. Não
sustentada por outro, porque subsiste por si mesmo; pois a natureza
humana de Cristo é subsistente, individual, incomunicável, inteligente
e, no entanto, não é uma pessoa, porque é sustentada pela Palavra.
Portanto, a alma do homem subsiste por si mesma, é inteligente e não
é sustentada por outra, e ainda assim não é pessoa, porque é parte de
outro indivíduo subsistente. É, portanto, adicionada na definição, nem
parte de outra.
Podemos agora perceber prontamente a diferença entre a essência de
Deus e as pessoas, subsistindo na essência divina. Pelo termo essência,
devemos entender, em referência a este assunto, aquilo que o Pai, Filho
e Espírito Santo eternos são considerados, e declarados ser, única e
absolutamente em Si mesmos, e que é comum aos três. Pelo termo,
pessoa, no entanto, devemos entender aquilo que as três pessoas da
Divindade são consideradas e declaradas como individualmente e
relativamente, ou em comparação umas com as outras, e que são de
acordo com o modo de existência peculiar a cada. Ou, podemos definir
essência como o próprio ser de Deus - a própria, eterna e única

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deidade - enquanto o termo pessoa se refere ao modo, ou forma, em
que o ser de Deus, ou a essência divina, subsiste em cada um destes
três. Deus Pai é aquele ser que é de Si mesmo e não de outro. O Filho
é aquele mesmo ser, ou essência, não dele mesmo, mas do Pai. O
Espírito Santo é da mesma forma o mesmo ser, não de Si mesmo, mas
do Pai e do Filho. Assim, o ser, ou essência divina, das pessoas da
Divindade é uma e a mesma coisa em número. Mas ser de Si mesmo,
ou de outro - de um ou de dois; isto é, ter essa única essência divina
de Si próprio, ou tê-la comunicada de outro - de um ou de dois,
expressa a forma de existência que é triplo e distinto; a saber, ser de
Si mesmo, ser gerado ou gerado e prosseguir; e, portanto, as três
pessoas que são expressas pelo termo Trindade.
A suma dessa distinção entre os termos essência e pessoa, conforme
aplicados a Deus, é esta: a essência é absoluta e comunicável - a pessoa
é relativa e incomunicável. Isso pode ser ilustrado pelo seguinte
exemplo: uma coisa é ser um homem e outra é ser pai; e, no entanto,
um, e o mesmo, é homem e pai; Ele é um homem em absoluto e de
acordo com Sua natureza, e Ele é um pai em relação a outro, a saber:
a Seu Filho. Portanto, uma coisa é ser Deus, e outra ser o Pai, ou Filho,
ou Espírito Santo; e ainda um e o mesmo é Deus e o Pai, ou o Filho,
ou o Espírito Santo; isso em relação a Si mesmo, isso em relação a
outro.
Adendo. A essência de um homem que gera outro é comunicada
àquele que é gerado, mas a pessoa não é comunicada; pois aquele que
gera não dá à luz a si mesmo, mas outro distinto de si mesmo. O filho,
portanto, não é o pai, nem o pai é o filho, embora ambos sejam homens
reais Assim, da mesma forma, o Pai eterno, por geração eterna,
comunicou ao Filho Sua essência, mas não Sua pessoa - isto é, Ele
gerou não o Pai, mas o Filho; nem é o Pai o Filho, nem o Filho o Pai,
embora cada um seja o próprio Deus. No entanto, embora haja essa
semelhança, há ao mesmo tempo uma grande diferença na forma

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como a essência divina, sendo infinita, e a humana, sendo criada e
finita, são comunicadas a outro, diferença essa que deve ser
cuidadosamente observada; pois, primeiro, nos homens, no pai e no
filho, a essência é tão distinta quanto as próprias pessoas - o pai e o
filho não são apenas duas pessoas, mas também dois homens distintos
em essência. Mas em Deus as pessoas são distintas, enquanto a
essência permanece comum, e a mesma; e, portanto, não há três
deuses, mas o Filho é o mesmo Deus em número que é o Pai e o Filho.
Em segundo lugar, nas pessoas criadas, aquele que gera não comunica
toda a Sua essência àquele que é gerado, pois então ele deveria deixar
de ser um homem, mas apenas uma parte é transferida para aquele
que é gerado, e feita a essência de outro indivíduo distinto daquele
que gera. Mas nas pessoas não criadas, Aquele que gera ou inspira,
comunica toda a Sua essência Àquele que é gerado, ou que procede;
ainda assim, aquele que Se comunica, retém o mesmo e aquele todo.
A razão de ambas as diferenças é que a essência do homem é finita e
divisível, enquanto a da Deidade é infinita e indivisível. Portanto, o
eterno Pai, Filho e Espírito Santo constituem o único Deus verdadeiro;
e ainda assim o Pai não é o Filho, ou o Espírito Santo; nem é o Espírito
Santo o Filho; isto é, Eles são um Deus - não três deuses, mas três
pessoas subsistindo em uma única Divindade.
Esta distinção de essência e pessoa deve, portanto, ser observada, que
a unidade do Deus verdadeiro não pode ser prejudicada, ou a distinção
das pessoas ser retirada, ou qualquer outra coisa ser entendida pelo
termo pessoa, além da verdade de que a Palavra de Deus declara.
Portanto, esses cuidados devem ser cuidadosamente observados:
1. Essa pessoa, em relação a este assunto, nunca significa uma mera
relação, ou ofício, como os latinos costumam dizer, “principis personam
tueri”, “para preservar a pessoa do príncipe”, como outrora Sabélio23

23Sabélio (? – 215 AD) era um herege que cria que Deus se manifestava em três
formas diferentes mas era uma pessoa, apenas. Foi excomungado pelo bispo
Calixto I.

291 | P á g i n a
falsamente ensinou; muito menos significa o semblante ou forma
visível, representando a forma ou gesto de outro; nesse sentido, um
ator de teatro pode representar a pessoa de outro, como Serveto nos
últimos anos se divertia e brincava com a palavra pessoa; mas significa
uma coisa que subsiste verdadeiramente distinta de outras com quem
tem uma relação e respeito, por uma propriedade incomunicável; isto
é, significa aquilo que gera, ou é gerado, ou procede e não a dignidade
do cargo, ou posição daquele que gera, ou é gerado, ou procede.
2. Que as pessoas não constituem algo abstraído ou separado da
essência que têm em comum, nem que a essência é qualquer quarta
coisa separada das três pessoas; mas cada um deles é a mesma essência
da Divindade. Mas a diferença consiste em que as pessoas são distintas
umas das outras, enquanto a essência é comum às três.
3. No que diz respeito à palavra essência, deve-se também observar
que Deus ou a Divindade, ou a natureza divina, não tem a mesma
consideração pelas pessoas que a matéria tem para formar, pelo
motivo de que Deus não é composto de matéria e forma. Não
podemos, portanto, dizer corretamente, que as três pessoas são ou
consistem em uma essência. Nem é como um todo com respeito às
partes, porque Deus é indivisível; portanto, não podemos dizer
corretamente que a pessoa é uma parte da essência, ou que a essência
consiste em três pessoas; pois cada pessoa é toda a essência divina.
Nem é do geral ao particular, porque a essência não é o gênero das
três pessoas, nem a pessoa é uma espécie de essência. Mas Deus é um
nome mais comum, porque a essência da Divindade é comum às três
pessoas e, portanto, pode ser afirmada para cada uma delas. Mas os
nomes Pai, Filho e Espírito Santo não são aplicados da mesma forma
geral, porque as pessoas são verdadeiramente distintas, de forma que
não podemos predicar uma da outra. Podemos, portanto, dizer
corretamente: Deus ou a essência divina é o Pai, é o Filho e é o Espírito
Santo; também: as três pessoas são um Deus, ou em um Deus; da

292 | P á g i n a
mesma forma, Eles são uma e a mesma essência, natureza, Divindade,
e assim por diante; e, novamente, que Eles são de uma e mesma
essência, natureza, e assim por diante. No entanto, não se pode dizer
com propriedade que Eles são um só Deus, porque não há nenhuma
dessas pessoas que não seja Ele próprio um Deus completo e perfeito.
Portanto, a essência divina é em relação às pessoas, assim como aquilo
que é comunicado de forma extraordinária o é em relação às coisas
com as quais é comum. Não existe, entretanto, um exemplo
semelhante ou exato de comunicação em qualquer coisa criada.
Trindade, do grego τζιας (tzias), significa estas três pessoas, distintas
em três formas de ser, ou já existente em uma essência da Divindade.
Mas Trindade e triplicidade, trinal e triplo se diferem. É chamado de
triplo, o que é composto de três essências - trinal é aquele que é apenas
um em essência, tendo três forma de ser ou subsistir. Deus é, portanto,
trinal, mas não triplo, porque Ele é apenas um em essência, mas três
em pessoas, existindo da forma mais simples.

V. É ADEQUADO QUE A IGREJA DEVA RETER OS TERMOS,


ESSÊNCIA, PESSOA E TRINDADE?
Os hereges, anteriormente, já se opunham ao uso desses termos,
porque eles não são encontrados nas Escrituras. Nós, no entanto,
retemos corretamente a forma de linguagem usada pela Igreja em seus
primeiros e mais puros dias, a estes termos nos apegando:
1. Porque, embora não sejam encontradas nas Escrituras nas mesmas
sílabas, ainda assim, palavras e formas de fala de afinidade e
semelhança muito próximas, sim, como certamente significam a
mesma coisa, são encontradas nas Escrituras; como onde é dito, por
exemplo, no Exôdo 3:14: “EU SOU o que SOU: Ele disse, assim dirás: EU
SOU Me enviou a vós”. Novamente, não se pode negar que o nome Jeová
corresponde à palavra Essência. Assim, a palavra hipóstase é usada
para pessoa na Epístola aos Hebreus 1:3, “sendo a expressa imagem de
Sua pessoa”. Nem a Igreja chama as pessoas e a Trindade, em qualquer

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outro sentido além daquele em que João diz: “Há três que dão testemunho
no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo” (1 João 5:7).
2. O objeto da interpretação requer que as palavras da Escritura sejam
expostas aos menos eruditos por outras palavras significando a mesma
coisa e tiradas do uso comum; caso contrário, toda a interpretação
seria retirada, se nenhuma palavra, exceto as que são encontradas nas
Escrituras, fossem usadas. É apropriado, portanto, que a Igreja invente
e use formas de linguagem que expressem significativamente o sentido
da Escritura e seu próprio entendimento dela.
3. Porque as fraudes e sofismas dos hereges, que eles geralmente
tentam cobrir com as palavras das Escrituras, são mais facilmente
discernidos e detectados, se as mesmas coisas forem expressas em
palavras diferentes. E é por causa da brevidade e clareza dessas
palavras e frases, que os hereges não conseguem esconder suas
imposições e sofismas. Se houvesse total consentimento ou acordo
sobre a coisa em si, não haveria dificuldade quanto ao uso das
palavras. Abominamos uma logomaquia ou contendas sobre palavras.
Nem está a Igreja em controvérsia com os hereges e sectaristas
meramente em relação às palavras, mas é a respeito desta doutrina,
que o Pai Eterno, Filho e Espírito Santo são um Deus; e ainda assim
nem é o Pai ou o Filho, o Espírito Santo; nem é o Espírito Santo o Pai
ou Filho, e assim por diante. Se não fosse que os hereges sustentassem
essa doutrina com aversão, eles também admitiriam facilmente as
palavras. Mas eles se opõem ao uso das palavras porque não recebem
as coisas expressas e significadas por meio delas.
Destas coisas podemos facilmente responder a esta objeção: palavras
que não estão nas Escrituras, não devem ser usadas na Igreja. Esses
termos, como Essência e outros termos semelhantes, não estão nas
Escrituras. Portanto, eles não devem ser usados. Nós respondemos ao
principal assim: aquelas coisas que não estão nas Escrituras, nem
quanto às palavras, nem quanto ao sentido, devem ser rejeitadas. Mas

294 | P á g i n a
em relação aos termos Essência, Pessoa e Trindade, no que diz respeito
às coisas em si, eles estão nas Escrituras, como foi mostrado.
Novamente, os termos que não são encontrados nas Escrituras não
devem ser retidos, se tivermos certeza de que a omissão deles não
colocará em risco o que é expresso por eles. Mas os hereges não
procuram outra coisa senão os termos para rejeitar a doutrina, ou pelo
menos corrompê-la.
Também é objetado ao uso desses termos, que eles geram contendas.
A isso respondemos que eles fazem isso apenas por acidente e com
hereges contenciosos.

VI. QUANTAS PESSOAS EXISTEM NA DIVINDADE?


Existem três pessoas que subsistem na única essência de Deus,
realmente distintas por suas propriedades peculiares, o Pai, o Filho e
o Espírito Santo. Esses três são substanciais e coeternos - todos, e cada
um, sendo o único Deus verdadeiro e eterno.
Isso é provado, 1. Por muitas declarações expressas das Escrituras do
Antigo e do Novo Testamento. “O Espírito de Deus se movia sobre a
superfície das águas, (...) Deus disse, faça-se a luz” (Gênesis 1:3, 4); “Pela
Palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo sopro de
Sua boca” (Salmos 33:6). As Escrituras do Novo Testamento fornecem
o testemunho mais claro e satisfatório. “Ide e ensineis todas as nações,
batizando-as em nome do Pai, Filho e Espírito Santo” (Mateus 28:19). “O
Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, [isto é,
por meu intermédio e por minha causa], Ele vos ensinará todas as coisas”
(João 14:26). “Quando vier o Consolador, que eu enviarei da parte do Pai, sim,
o Espírito da Verdade, que procede do Pai, Ele testificará de mim” (João 15:26).
“Há três que testificam no céu, o Pai, a Palavra e o Espírito Santo, e estes três
são um” (1 João 5:7). “De acordo com Sua misericórdia, Ele nos salvou, pela
lavagem da regeneração e renovação do Espírito Santo; que Ele derramou
sobre nós abundantemente por meio de Jesus Cristo” (Tito 3:5, 6). “Por meio

295 | P á g i n a
dEle, [Cristo], nós dois temos acesso ao Pai por um só Espírito” (Efésios 2:18).
“A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito
Santo estejais com todos vós” (2 Coríntios 13:14); “Deus enviou o Espírito de
Seu Filho aos vossos corações” (Gálatas 4:6).
2. Essas passagens das Escrituras provam a mesma coisa, que atribuem
a esses três, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o nome de Jeová e do
Deus verdadeiro; e também aquelas passagens em que certas coisas
são faladas de Jeová, no Antigo Testamento, que no Novo, são
expressamente e sem qualquer limitação, referidas ao Filho e ao
Espírito Santo.
3. Essas passagens provam a mesma coisa que atribuem a mesma e
toda a essência divina às três pessoas da Divindade, e ensinam que o
Filho é o próprio e unigênito Filho do Pai; e que o Espírito Santo é de
tal forma o Espírito próprio do Pai e do Filho, que procedeu de ambos.
4. Esta doutrina é ainda mais confirmada por aquelas declarações das
Escrituras que atribuem a essas três pessoas da Divindade os mesmos
atributos e perfeições; tais como eternidade, imensidão, onipotência,
e outras coisas semelhantes.
5. O mesmo é verdadeiro em relação às passagens que atribuem às três
pessoas da Divindade as mesmas obras que são peculiares à Divindade,
a saber: criação, preservação e governo do mundo - também milagres,
e a libertação e preservação da Igreja.
6. O mesmo pode ser dito ser verdadeiro para aquelas passagens, que
atribuem aos três, igual honra, oração e adoração, tal como pertence
ao Deus verdadeiro somente.
A partir desse acordo do Antigo e do Novo Testamento, sabemos e
provamos que um Deus são três pessoas verdadeiramente distintas, e
que essas três pessoas são um Deus. Consequentemente, também é
correto dizer que o Pai é diferente do Filho e do Espírito Santo; e o
Espírito Santo é outro do Pai e do Filho. Mas não é correto dizer que
o Pai é outra coisa ou outra coisa do Filho, e que o Filho é outra coisa,

296 | P á g i n a
e que o Espírito Santo é outra; pois ser outro significa meramente uma
distinção de pessoas; ao passo que ser outra coisa significa diversidade
de essência.
Devemos agora provar, em referência às três pessoas da Divindade,
que elas são verdadeiramente subsistentes, contra Paulo de Samosata24
e Serveto; que Elas são subsistentes ou pessoas distintas, contra
Sabélio; que Elas são iguais contra Ário25, Eunômio26 e Macedônio27; e,
por último, que são consubstanciais ou da mesma essência contra os
mesmos hereges. Quanto à pessoa do Pai, não há controvérsia. E
quanto às objeções que foram levantadas contra a personalidade do
Filho e do Espírito Santo, nós a seguiremos notá-las em seu devido
lugar.

VII. COMO SÃO DISTINGUÍDAS AS TRÊS PESSOAS DA


TRINDADE?
Devemos aqui considerar, primeiro, o que as Escrituras atribuem
como comum às três pessoas da Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, os quais todos os três, são um Deus, mas distintos em pessoas;
em segundo lugar, o que é atribuída a cada uma individualmente,
como peculiar a Ela, e como as pessoas se distinguem umas das outras.
As coisas que são comuns às três pessoas da Divindade são, 1. Todas
as propriedades essenciais de Deus, que compreendemos no único
nome da Divindade, como eternidade, imensidão, onipotência,
sabedoria, bondade, de ter essência de Si mesmo, ou ser Deus de Si
mesmo. 2. Todas as ações ou obras externas da Divindade, comumente

24Originalmente: Samosateno. O herege que Eusébio de registra em sua “História


Eclesiástica” afirmando que: “tinha acerca de Cristo pensamentos baixos e ao nível
do chão, dizendo que por natureza foi um homem comum”.
25 Ário (256-336 AD), diácono de Alexandria.
26 Eunômio de Cízico (?-393 AD), diácono de Alexandria.
27 Macedônio I, bispo de Constantinopla.

297 | P á g i n a
chamadas de ad extra, isto é, as que Deus exerce em relação às Suas
criaturas, e nelas ou por meio delas, como criação, preservação,
governo do mundo, ajuntamento e preservação da Igreja.
Essas pessoas se distinguem de duas formas. 1. Por suas obras, ad intra.
2. Por Suas obras ou forma de operação, ad extra. As primeiras são
chamadas de obras ou operações internas da Divindade, porque as
pessoas as têm e exercem umas em relação às outras. Por essas obras
ou propriedades internas, portanto, as pessoas são primeiro
distinguidas umas das outras. Pois o Pai é e existe de Si mesmo, não
de outro. O Filho é gerado eternamente do Pai, isto é, o Filho tem Sua
essência divina comunicada a Ele do Pai de uma forma que não pode
ser explicada. O Espírito Santo procede eternamente do Pai, e o Filho,
ou seja, tem a mesma essência divina que lhe é comunicada do Pai e
do Filho, de forma inexplicável.
As provas disso são as seguintes: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava
com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1); “Vimos Sua glória, a glória como do
unigênito do Pai” (João 1:14); “O Filho unigênito que está no seio do Pai, Ele
O declarou” (João 14:18). “Quando vier o Consolador, que Eu vos enviarei da
parte do Pai” (João 15:26), e outras passagens semelhantes.
Esta é, portanto, a ordem segundo a qual as pessoas da Divindade
existem: O Pai é a primeira pessoa e, por assim dizer, a fonte da
Divindade do Filho e do Espírito Santo, porque a Divindade é
comunicada a Ele de ninguém; mas Ele comunica a Divindade ao Filho
e ao Espírito Santo. O Filho é a segunda pessoa, porque a Divindade
é comunicada a Ele pelo Pai, por geração eterna. O Espírito Santo é a
terceira pessoa, porque a Divindade é comunicada a Ele do Pai e do
Filho, por uma inspiração ou procissão eterna. Esta é a ordem na qual
as pessoas da Trindade são mencionadas nas seguintes passagens das
Escrituras: “Ide e batizeis todas as nações em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo” (Mateus 18:19). “Há três que testificam no céu, o Pai, a Palavra
e o Espírito Santo, e estes três são um” (1 João 5:7). E, no entanto, o Pai não

298 | P á g i n a
é anterior ao Filho e ao Espírito Santo; nem é o Filho antes do Espírito
Santo, mas apenas na ordem de existência; pois nenhuma pessoa da
Divindade está antes ou depois das outras em tempo, dignidade ou
grau, mas apenas de acordo com a ordem em que existem. O Pai nunca
esteve sem o Filho, nem o Filho sem o Espírito Santo, pois a Divindade
é imutável. É assim que Deus desde a eternidade existiu em Si mesmo,
e assim Se revelou em Sua palavra.
Os hereges costumam perguntar, em relação a esse assunto, o que é a
geração eterna do Filho, o que é a procissão do Espírito Santo e qual
a diferença entre Eles? E embora confessemos que a forma de geração
e procissão eterna, junto com a distinção formal e natural entre eles é
inexplicável pelo homem, o que todos os padres ortodoxos de tempos
anteriores confessaram, ainda assim as Escrituras certamente ensinam
a coisa em si, a saber: Que geração é uma comunicação da essência
divina, pela qual apenas a segunda pessoa da Divindade deriva e toma
da primeira pessoa sozinha, como um filho de um pai, a mesma
essência inteira e inteira, que o pai tem e retém; e essa procissão é
uma comunicação da essência divina pela qual a terceira pessoa da
Divindade recebe do Pai e do Filho, como o espírito daquele de quem
é o espírito, a mesma essência inteira que o Pai e o Filho têm e retêm.
Ambos diferem da criação, que implica a produção de algo do nada
pelo comando e vontade de Deus; mas ser concebido ou gerado, e
proceder ou emana, é produzir desde a eternidade alguma outra ou
outra pessoa, da substância daquele que gera, ou daquele de quem a
procissão é, de uma forma que está totalmente além de nossa
compreensão; contudo, para que o Filho tenha Sua subsistência sendo
gerada, e o Espírito Santo Sua subsistência procedendo. Assim,
portanto, percebemos a própria coisa, ou que assim seja, na medida
em que Deus achou por bem nos revelar este grande mistério, embora
não possamos chegar ao conhecimento de por que é assim.
A respeito da questão tão calorosamente controvertida pelas igrejas
grega e latina, se o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, ou

299 | P á g i n a
somente do Pai, falaremos mais adiante, quando tratarmos da
doutrina a respeito do Espírito Santo.
Devemos também notar aqui as frases ou formas de linguagem usadas
nas Escrituras e pela Igreja antiga em referência à distinção que existe
entre as próprias pessoas da Divindade. Assim, é correto dizer que
Deus gerou Deus, mas não é correto dizer que Deus gerou outro Deus,
ou gerou a Si mesmo. É correto dizer que o Pai gerou outro, mas não
que Ele gerou outro ser, ou outro Deus. É ortodoxo dizer que o Filho é
o que o Pai é, mas não que o Filho é a mesma pessoa que o Pai é. É
verdade que o Filho é gerado e o Espírito Santo procede do Pai;
também, o Filho é do ou do Pai, e o Espírito Santo é do ou do Pai e
do Filho; também, tudo o que o Filho tem, Ele tem do Pai, e o recebeu
por ser gerado; e tudo o que o Espírito Santo tem, Ele tem do Pai e do
Filho, e o recebeu procedendo; também, o Filho e o Espírito Santo têm
um princípio no que diz respeito à Sua pessoa, e têm Sua essência
comunicada de outro; mas não é verdade dizer que Eles têm um início
em relação à Sua essência, ou que recebem a essência28, ou têm Sua
essência produzida do Pai, ou de alguma outra pessoa. É ortodoxo
dizer que a primeira pessoa da Divindade gerou a segunda de Sua
própria essência, e a terceira pessoa procedeu da primeira e da
segunda, mas não que a essência divina gerou uma essência divina, ou
a pessoa que é gerada ou a pessoa que procedeu da essência. É
apropriado dizer que a essência divina é comunicada, mas não quer
dizer que a essência divina é gerada ou procede, porque ser
comunicado e ser gerado não são a mesma coisa; pois, nada que é
comunicado à pessoa gerada, é gerado nessa obra, mas é gerado naquela
pessoa que é comunicada a substância daquele que gera.

28 Adaptado de: “são essenciados”. Para melhor leitura foi substituído por “recebem
a essência”.

300 | P á g i n a
Há outra distinção entre as pessoas da Divindade, surgindo da
primeira, que consiste na ordem em que as pessoas da Divindade
operam, ad extra, que abrange aquelas ações que Elas exercem fora de
Si mesmas, para com Suas criaturas, e neles, e por eles. Essas obras
são de fato feitas pela vontade comum e poder do Pai, Filho e Espírito
Santo, mas ainda assim a mesma ordem é preservada entre as pessoas
da Divindade, na obra, que existe no que diz respeito a Sua existência.
O Pai é a fonte, tanto das pessoas quanto da obra, do Filho e do
Espírito Santo, e não faz todas as coisas por nenhum outro, isto é, não
por outro operando por meio dEle, não pela vontade de outro
impedindo Sua, ou Lhe comunicando poder ou eficácia - mas como
existindo por si mesmo, assim também conhecendo, operando, e assim
por diante, de Si mesmo. Mas o Filho e o Espírito Santo não trabalham
por Si mesmos, mas de Si mesmos, isto é, o Filho trabalha, a vontade
do Pai vai adiante; o Espírito Santo opera, a vontade do Pai e do Filho
que vem antes. O Pai trabalha pelo Filho e pelo Espírito Santo e os
envia, mas Ele mesmo não é enviado pelo Filho e pelo Espírito Santo. O
Filho atua pelo Espírito Santo, envia o Espírito Santo do Pai aos
corações dos que creem, mas Ele mesmo não é enviado pelo Espírito
Santo, mas do Pai. O Espírito Santo opera e é enviado pelo Pai e pelo
Filho - não por Si mesmo. “Todas as coisas foram feitas por Ele” (João 1:3);
“O Filho nada pode fazer por Si mesmo, a não ser o que vê o Pai fazer; pois
tudo o que Ele faz, também o Filho o faz” (João 5:19); “Eu saí e vim de Deus;
nem vim de Mim mesmo” (João 8:42); “Quem o Pai enviará em Meu nome”
(João 14:26); “Quem vos enviarei da parte do Pai” (João 15:26).
Mas quando se diz que o Filho e o Espírito Santo foram enviados, não
devemos entendê-lo no sentido de um movimento local, ou como se
isso indicasse uma mudança no próprio Deus; mas deve ser entendido
de Sua vontade eterna, e decreto para fazer algo pelo Filho e Espírito
Santo; e da execução e manifestação de Sua vontade por meio da
operação do Filho e do Espírito Santo. Portanto, o Filho diz que foi

301 | P á g i n a
enviado ao mundo pelo Pai: que desceu dos céus e, ainda assim, que
estava nos céus quando estava na terra. Portanto, o Espírito Santo,
embora já existisse antes e habitasse nos apóstolos, é dito que foi
enviado sobre eles no dia de Pentecostes. Cada uma dessas pessoas
foi, portanto, enviada ao mundo, não porque passaram a existir onde
antes não existiam; mas porque fizeram no mundo o que era a vontade
do Pai, e se mostraram presentes e eficazes segundo a vontade do Pai.
Assim se diz: “Deus enviou Seu Filho nascido de uma mulher; (...) e porque
sois filhos, Deus enviou o Espírito de Seu Filho aos vossos corações, clamando:
Aba, Pai” (Galátas 4:4, 6).

VIII. POR QUE É NECESSÁRIO QUE A IGREJA RETENHA FIRME


A DOUTRINA DA TRINDADE
Esta doutrina da Trindade deve ser ensinada e mantida na Igreja: 1.
Por causa da glória de Deus. Para que Ele possa assim ser distinguido
dos ídolos, com os quais Ele não será confundido; e que Ele possa ser
conhecido e adorado como um Deus tal um como Ele revelou ser. 2.
Por causa do nosso conforto e salvação; pois ninguém é salvo sem o
conhecimento de Deus Pai. Mas o Pai não é conhecido sem o Filho.
“Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito que está no seio do Pai, Ele o
declarou” (João 1:18); “Todo aquele que nega o Filho, esse não tem o Pai” (1
João 2:23). Novamente, ninguém é salvo sem fé no Filho de Deus, nosso
mediador. “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1 João 5:20); “Como
então invocarão aquele em quem não creram, e como crerão naquele de quem
não ouviram?” (Romanos 10:14). Da mesma forma, nenhum homem é
santificado e salvo sem o conhecimento do Espírito Santo; pois quem
não recebe o Espírito Santo não é salvo, de acordo com a declaração
das Escrituras: “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não é dEle”.
(Romanos 8:9). Mas ninguém recebe o Espírito Santo quem não o
conhece, de acordo com o que se diz: “O qual o mundo não pode receber,
porque não O vê, nem O conhece” (João 14:17). Portanto, aquele que não
conhece o Espírito Santo não pode ser salvo. É necessário, então, que

302 | P á g i n a
todos os que serão salvos tenham um conhecimento do Deus único, o
Pai eterno, o Filho coeterno e o Espírito Santo coeterno; pois a menos
que Ele seja conhecido como um Deus tal um como Ele se revelou,
Ele não se comunica a nós, nem podemos esperar a vida eterna dEle.

OBJEÇÕES DOS HERÉTICOS, CONTRA A DOUTRINA DA


TRINDADE
Objeção 1. Uma essência não é três pessoas, porque implica uma
contradição que um possa ser três. Jeová é uma essência. Portanto, não
existem três pessoas. Resposta: A proposição maior é verdadeira para
uma essência criada ou finita, que não pode ser a mesma e inteira
substância de três pessoas; mas não é verdade no que diz respeito à
essência da Divindade, que é infinita, individual e muito simples.
Resposta: A mais simples essência não pode ser a essência de três
pessoas. Deus é uma essência muito simples, como se admite na
resposta acima. Portanto, não pode ser três pessoas. Resposta: A
proposição maior é verdadeira para uma essência, uma certa parte da
qual constitui outra pessoa, ou que pode ser multiplicada em várias
pessoas; mas é falsa quando entendido de tal essência como o que é o
mesmo e íntegro em cada pessoa. A simplicidade de tal essência não
é minimamente prejudicada pelo número e distinção das pessoas.
Objeção 2. Onde há três e um, há quatro coisas distintas. Em Deus
existem três pessoas e uma essência. Portanto, existem quatro coisas
distintas em Deus, o que é um absurdo. Resposta: Onde há três e uma
única coisa realmente distinta, existem quatro coisas. Mas em Deus, as
pessoas não são realmente distintas da essência; pois as três pessoas
da Divindade são uma e a mesma essência divina. Elas diferem da
essência, e uma pessoa da outra, apenas na forma de subsistência.
Objeção 3. Atribuir três nomes a uma substância é sabelianismo. A
doutrina da Trindade atribui três nomes a uma substância. Portanto,
é a heresia de Sabélio. Resposta: Existem quatro termos neste

303 | P á g i n a
silogismo; pois o termo substância, na proposição maior, significa uma
pessoa e na proposição menor uma essência, ou então uma das
proposições é falsa.
Objeção 4. Aquele que é a Deidade completa, ao lado dele não há
pessoa, em quem toda a Deidade está, de forma semelhante. O Pai é
toda a Deidade. Portanto, toda a Deidade não está em outra pessoa.
Resposta: Negamos a proposição principal, porque a mesma
Divindade que é íntegra no Pai, também é íntegra no Filho, e no
Espírito Santo, por causa da imensidão da essência divina, da qual não
há nem mais nem menos em cada pessoa, do que em dois, ou em três.
Objeção 5. Aquelas pessoas às quais operações distintas são
atribuídas, devem ter essências distintas. Existem operações internas
distintas atribuídas ao Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto, suas
essências são distintas. Resp. A maior é verdadeira para pessoas com
essência finita, mas falsa quando compreendida como pessoas divinas.
Objeção 6. A essência divina está encarnada. As três pessoas são a
essência divina. Portanto, as três pessoas estão encarnadas, o que não
é verdade. Resposta: A proposição maior nada fala da natureza divina
em geral, porque a essência divina está encarnada apenas na pessoa
do Filho. Temos, portanto, meros particulares, dos quais nada pode ser
concluído.
Objeção 7. Jeová, ou o Deus verdadeiro, é a Trindade. O Pai é Jeová.
Portanto, Ele é a Trindade - ou seja, todas as três pessoas. Resposta:
Aqui, novamente, a proposição maior nada declara de forma geral;
pois, nem tudo o que é Jeová é a Trindade. Portanto, nada pode ser
inferido do que é dito aqui.
Objeção 8. Nenhum termo abstrato significa substância. Trindade é
um termo tão abstrato. Portanto, não significa nenhuma substância.
Resposta: A proposição principal é falsa; pois a divindade e a
humanidade também são termos abstratos e, no entanto, significam
substância.

304 | P á g i n a
9º DIA DO SENHOR

DE DEUS, O PAI

Questão 26. O que tu crês quando dizes: “Eu creio em Deus, o Pai
Todo-Poderoso, criador dos céus e da terra?”
Resposta: Que o Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo - que do
nada fez os céus e a terra, com tudo o que neles há, que igualmente
os sustenta e governa por Seu conselho e providência eternas - O é
por causa de Cristo Seu Filho, Meu Deus e Meu Pai; em Quem
confio tão inteiramente, que não tenho dúvidas, mas Ele me proverá
todas as coisas necessárias para a alma e o corpo; e, além disso,
que Ele fará com que todos os males que enviar sobre mim, neste
vale de lágrimas, resultem em meu benefício; pois Ele é capaz de
fazer isso, sendo Deus Todo-Poderoso, e desejoso, sendo um Pai fiel.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 26

Eu creio em Deus. Crer que Deus é Deus e crer em Deus são duas
coisas muito diferentes. O primeiro expressa a fé histórica; a última,
verdadeira fé ou confiança. Pois quando eu digo, eu creio que Deus é,
se eu falar corretamente, eu creio que há um Deus, e que Ele é um tal
um Deus como Ele se revelou na Sua Palavra, a saber: uma essência
espiritual, onipotente, e outros atributos semelhantes; o eterno Pai,
Filho e Espírito Santo. Quando digo: creio em Deus, quer dizer: creio
que Ele é meu Deus. Ou seja, tudo o que Ele é e tem é tudo para a
minha salvação. Ou, crer em Deus, falando corretamente, é crer que
certa pessoa é Deus, de acordo com todos os Seus atributos. Crer em
Deus é estar persuadido de que Ele tornará todas as coisas atribuídas
a Ele subservientes à minha salvação, por causa de Seu Filho.

305 | P á g i n a
Em Deus. O nome de Deus é aqui considerado essencialmente como
Deus Pai, Filho e Espírito Santo; porque a frase eu creio, com a
partícula em, se refere da mesma forma a todas as três pessoas da
Divindade; porque não cremos no Filho e no Espírito Santo menos do
que no Pai.
Pai. Quando o nome do Pai se opõe ao Filho, é tomado pessoalmente
e significa a primeira pessoa da Divindade, como aqui no credo; mas
quando se opõe às criaturas, deve ser entendido essencialmente e
significa toda a essência divina, como na Oração do Senhor: “Pai nosso
que estais nos céus”. Nesse sentido, o Filho é expressamente chamado
por Isaías de “Pai da eternidade” (Isaías 9:6). A primeira pessoa é
chamada de Pai: 1. Com respeito a Cristo, Seu Filho unigênito. 2. Com
respeito a todas as criaturas, pois Ele é o criador e preservador de
todas elas. 3. Com respeito aos eleitos, a quem Ele adotou como Seus
filhos, e a quem Ele fez aceitos em Seu Filho amado.
Crer em Deus Pai, portanto, é crer naquele Deus que é o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo; e crer que Ele também é meu Pai e, como tal, tem
uma afeição paternal por mim, por e por causa de Cristo, em quem
Ele me adotou como Seu filho. Em uma palavra, é crer: 1. Que Ele é o
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. 2. Que Ele é um Pai para mim por
amor de Cristo.
Objeção 1. Eu creio em Deus Pai. Portanto, o Filho e o Espírito Santo
não são Deus, mas somente o Pai. Resposta: Esta é uma falácia de
composição e divisão; pois a palavra Deus está unida ao Pai de tal
forma que não é separada do Filho e do Espírito Santo. Uma vírgula
deve ser colocada após as palavras em Deus, desta forma: “Eu creio em
Deus, o Pai”. Isso é provado: 1. Porque o nome Deus, como é usado aqui
no credo, significa essencialmente e abrange as três pessoas, que são,
como que por aposição, colocadas em ordem no credo: “Eu creio em
Deus, o Pai; e em Jesus Cristo Seu Filho unigênito; Eu creio no Espírito Santo”.
Pois, eu creio no único Deus verdadeiro, que é o Pai, o Filho e o

306 | P á g i n a
Espírito Santo, ainda que o Pai não seja o Filho, nem o Espírito Santo
seja o Filho ou o Pai. 2. Professamos expressamente que cremos no
Filho e no Espírito Santo, não menos do que em Deus, o Pai. E, no
entanto, não cremos em mais ninguém, exceto no único Deus
verdadeiro. 3. Muitas das cópias gregas do Credo dos Apóstolos tem: “eu
creio em um Deus, a saber, Pai, Filho e Espírito Santo”. Assim como devemos,
portanto, crer no Pai, porque Ele é Deus, também devemos crer no
Filho e no Espírito Santo, porque Eles são Deus. O nome de Deus é
colocado apenas uma vez no credo, porque Deus é um só, mas nunca
como se só o Pai fosse chamado de Deus.
Todo-Poderoso. Crer no Deus Todo-Poderoso é crer em tal Deus: 1.
Que é capaz de fazer tudo o que deseja, sim, até mesmo as coisas que
não, se não forem contrárias à Sua natureza, visto que Ele poderia ter
livrado a Cristo da morte, mas Ele não o fez. 2. Quem pode fazer todas
as coisas por sua simples ordem e sem qualquer dificuldade. 3. O único
que tem poder para fazer todas as coisas e é o dispenseiro desse poder
que está em todas as Suas criaturas. 4. Que também é Todo-Poderoso
para meu benefício, e pode e irá dirigir e tornar todas as coisas
subservientes à minha salvação.
Objeção 2. Deus não pode mentir, morrer ou desfazer o que uma vez
foi feito. Portanto, Ele não pode fazer todas as coisas. Resposta: Ele
pode fazer todas as coisas que indicam poder. Mas mentir, morrer e
outros atos semelhantes, não é sinal de poder, mas de enfermidade ou
falta de poder. Mas os defeitos estão nas criaturas, não em Deus.
Portanto, elas são contrárias à natureza de Deus. Portanto, ao inverter
a ordem do raciocínio, concluímos, portanto, que Deus não é capaz de
fazer ou querer as coisas que são indicativas de fraqueza e contrárias
à sua natureza; portanto, Ele é Todo-Poderoso.

307 | P á g i n a
Criador dos céus e da terra. Crer no criador é crer: 1. Que Ele é o
criador de todas as coisas. 2. Que Ele sustenta e governa por Sua
providência todas as coisas que Ele criou. 3. Que Ele também me criou
e fez de mim um vaso de Sua misericórdia, para que eu obtivesse a
salvação em Cristo; e que Ele, por Sua providência e graça especiais,
àquela salvação que confere a Seu povo me conduzirá. 4. Que Ele criou
todas as outras coisas para nós, para que contribuam para a salvação
da Igreja, para o louvor da Sua glória. Em suma, crer no criador é crer
que Deus me criou para que eu pudesse contribuir para a Sua glória
e que Ele criou todas as outras coisas para que fossem subservientes
à minha salvação. “Todas as coisas são Tuas, e vós sois de Cristo, e Cristo é
de Deus” (1 Coríntios 3:22, 23), como se Ele dissesse que todas as coisas
foram criadas para nós e nós para Deus.

DA CRIAÇÃO DO MUNDO

A doutrina que trata das obras de Deus é apropriadamente colocada


em ordem depois da doutrina concernente a Deus, que também é o
arranjo no credo. Existem cinco obras gerais de Deus: 1. A obra da
criação, da qual temos um relato no livro de Gênesis, onde somos
informados que foi feita em seis dias. 2. A obra de preservação, pela
qual Deus sustenta os céus e a terra, e todas as coisas que Ele criou,
para que não caiam em ruína. 3. A obra de governo, pela qual, por meio
de Sua grande sabedoria, Ele dirige e governa todas as coisas no
mundo. 4. A obra de restauração, pela qual Ele restaura, em Cristo,
todas as coisas que estão sujeitas à corrupção, por causa do pecado do
homem. 5. A obra de perfeição, ou conclusão, na qual Ele conduz todas
as coisas ao fim designado - mas, especialmente, Ele entrega e glorifica
perfeitamente sua Igreja. Devemos agora falar da obra da criação, ou
da criação do mundo, em referência à qual devemos perguntar:

308 | P á g i n a
I. Deus criou o mundo?
II. Como Ele o criou?
III. Por que, ou para que fim, Ele o criou?

I. DEUS CRIOU O MUNDO?


Devemos primeiro definir e entender o que significam os termos aqui
usados. Criar é produzir algo do nada. O termo mundo é usado nas
Escrituras em quatro significados diferentes. Significa: 1. A estrutura,
ou moldura, de todo o universo, compreendendo o céu, a terra e todas
as coisas que estão neles. “O mundo foi feito por Ele” (João 1:10) 2.
Concupiscência mundana. 3. Os ímpios ou não regenerados que estão
no mundo (João 17: 9). 4. Aqueles que são escolhidos do mundo. “Para
que o mundo creia que Tu me enviaste” (João 17:21); “Deus amou o mundo de
tal forma” (João 3:16).
Que Deus criou o mundo, sabemos: em primeiro lugar, pelo
testemunho da Sagrada Escritura, como, por exemplo, da história da
criação escrita por Moisés. Também, de outras passagens da Escritura,
e especialmente o seguinte: “Pela Palavra do Senhor foram feitos os céus, e
todas as suas hostes pelo sopro de Sua boca. (...) Ele falou, e tudo se fez; Ele
ordenou, e tudo apareceu” (Salmos 33:6, 9.) Há também outras passagens,
nos Salmos e em outros livros da Escritura, onde as obras
maravilhosas de Deus são mais amplamente mencionadas e onde as
principais partes do mundo, que Deus criou, habitavam sobre, a fim
de que possamos, por uma consideração adequada deles, ser levados a
confiar em Deus (Salmos 104, 113, 124, 136, 146). O próprio Deus
mostrou a Jó suas obras maravilhosas e inconcebíveis, conforme se
manifestam nos céus e na terra, em conexão com outras coisas que
Ele havia criado, para que pudesse declarar Sua justiça, poder e
providência (Jó 38 e 39).

309 | P á g i n a
Em segundo lugar, além do testemunho das Escrituras, há muitos
outros argumentos que provam da forma mais satisfatória que o
mundo foi criado por Deus; entre os quais podemos citar o seguinte:
1. A origem das nações, conforme dada por Moisés, mostra isso, cujo
relato não poderia ter sido inventado por Ele, quando ainda havia
algumas lembranças dEle na mente de muitos, que, no entanto, com
o passar do tempo se perdeu. 2. A novidade de todas as outras histórias
em comparação com a antiguidade da história sagrada. 3. A idade do
homem diminuindo, mostra que a princípio havia uma força maior na
natureza, e que ela diminuiu até agora, não sem uma causa primeira.
4. O curso certo do tempo desde o início do mundo até a vinda do
Messias. 5. A constituição e preservação de comunidades. 6. A ordem
das coisas na natureza, que deve, necessariamente, ter sido produzida
por alguma mente inteligente - superior a todas as coisas. 7. A
excelência da mente do homem e dos anjos. Esses seres inteligentes
têm um início. Devem, portanto, ter surgido de alguma causa
inteligente. 8. Os princípios e noções naturais que estão gravados em
nossos corações. 9. As repreensões ou reprovações da consciência dos
ímpios. 10. Os fins de todas as coisas ordenadas sabiamente. 11.
Finalmente, todos os outros argumentos que provam que Deus existe,
provam também que o mundo foi criado por Ele.
Em terceiro lugar, existem, também, argumentos filosóficos, que vão
provar que o mundo foi criado, e isso por Deus, embora não possam
provar quando foi criado. 1. Não há, na natureza, nenhum progresso
infinito de causas e efeitos; caso contrário, a natureza nunca
alcançaria seu fim. Portanto, o mundo teve um início. 2. O mundo é o
primeiro e o mais excelente de todos os efeitos. Portanto, é da causa
primeira e mais excelente, que é Deus.

310 | P á g i n a
Mas há outras questões, como, se o mundo foi criado por Deus desde
toda a eternidade, ou no tempo; isto é, se é um efeito de igual
perpetuidade com Sua própria causa, ou teve em algum momento um
início, antes do qual não existia? Além disso, se houve um tempo que
não existia o mundo, foi necessário que Deus precisava criá-lo? Além
disso, se durará para sempre; e em caso afirmativo, permanecerá o
mesmo ou será alterado? Essas e outras questões semelhantes não
podem ser decididas pela filosofia; e a razão é porque todas essas
coisas dependem da vontade do primeiro motor, que é Deus, que não
age por necessidade, mas da forma mais livre. Mas a vontade de Deus
não é conhecida por nenhuma criatura, a menos que o próprio Deus
a revele. Por isso, a encontramos somente na Igreja, enquanto os
filósofos pagãos a ignoram: pois eles não podem chegar a nenhum
conhecimento dessas coisas raciocinando a posteriori, isto é, de um
efeito continuado à sua causa. É verdade, de fato, que existe uma certa
causa para esses efeitos, mas isso não significa que esses efeitos foram
produzidos por essa causa neste ou naquele momento, ou por toda a
eternidade, porque um agente livre pode agir ou suspender sua ação,
por prazer. A suma da prova é esta: nenhum efeito, isto é, dependendo
de tal causa como atua livremente, ou contingentemente, pode ser
demonstrado por essa causa. A criação do mundo é esse efeito.
Portanto, não pode ser provado pela vontade do primeiro motor, que
é Deus, que não foi criado desde toda a eternidade, e nem teve Seu
início no tempo.
Quaisquer que sejam os argumentos que os filósofos possam,
portanto, apresentar contra a criação do mundo, é fácil ver que eles
não são obtidos da verdadeira filosofia, mas da imaginação dos
homens, se a ordem de geração e mudança das coisas que Deus
estabeleceu em natureza, ser distinguida da criação.

311 | P á g i n a
Objeção 1. É absurdo (os filósofos nos dizem) supor que Deus está
ocioso. Resposta: Na verdade, é absurdo dizer que quem governa o
mundo é ocioso. E se ainda se objetar a isso, que Ele não poderia
governar o mundo quando Ele ainda não existia, e que Ele deve,
portanto, ter estado ocioso antes da criação de todas as coisas,
respondemos negando a consequência; porque, se Deus não governou
o mundo desde a eternidade, ainda assim Ele não estava ocioso; pois
Ele nos escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, e criou o
inferno para homens iníquos e curiosos, que presunçosamente se
esforçam em se intrometer nos conselhos secretos do Altíssimo, como
Agostinho espirituosamente respondeu a um certo africano, exigindo
dele o que Deus fez antes de criar o mundo; “Ele criou o inferno”, disse
ele, “para os homens curiosos e inquiridores”.
Objeção 2. Tudo que tem um início, tem um fim. O mundo não tem
fim. Portanto, não teve início. Resposta: A proposição principal deve
ser distinguida. Cada coisa que teve um início através da geração
natural tem um fim; pois a corrupção não segue a criação, mas a
geração de uma coisa da outra, pela ordem da natureza. E o poder de
Deus é certamente suficiente, para que Ele possa preservar no mesmo
estado, ou mudar, ou reduzir a nada, tanto as coisas que formou dos
outros como as que produziu do nada.

II. COMO DEUS CRIOU O MUNDO?


1. Deus, o Pai, criou o mundo por meio do Filho e do Espírito Santo.
Do Filho, é dito: “Todas as coisas foram feitas por ele” (João 1: 3). Do
Espírito Santo, é dito: “O Espírito do Senhor Se movia sobre a superfície
das águas” (Gênesis 1:2); “O Espírito de Deus Me fez” (Jó 33:4).
2. Deus criou o mundo mais livremente, sem qualquer restrição. Não
havia necessidade no caso, mas tal como resultou do decreto de Sua
própria vontade, que, embora fosse eterno e imutável, era, no entanto,
mais livre. “Pois Ele falou, e tudo se fez” (Salmos 33:9); “Mas o nosso Deus
está nos céus, Ele fez tudo o que desejou” (Salmos 115:3).

312 | P á g i n a
3. Deus criou o mundo por Sua simples ordem, Palavra e vontade, sem
qualquer obra, fadiga ou mudança de Si mesmo, que é a forma mais
elevada de obra. Existem cinco tipos de operações ou agentes: 1.
Existem agentes naturais, que operam de acordo com a força de Sua
própria natureza, sem qualquer inteligência ou vontade; tal é a
operação do fogo, da água, das ervas medicinais, das pedras preciosas
e outras coisas semelhantes, cuja ação e operação são marcadas pela
natureza. 2. Temos outras operações, ou agências, que embora sejam
fortemente controladas pela natureza, não são, no entanto, sem algum
desejo ou vontade própria, embora o governo da razão esteja ausente.
No entanto, a ação desses agentes é de tal natureza, que muitas vezes
é forçada contra sua vontade, o que pode ser dito ser verdadeiro para
os animais. 3. São os agentes dos homens, que agem de acordo com
seus desejos e inclinações corruptos. 4. São os agentes de bons
espíritos a quem chamamos de anjos, que agem segundo a razão e de
boa vontade como os homens, mas que estão livres da corrupção. 5. O
tipo mais elevado e completo de operação é aquele que resulta de uma
compreensão e vontade mais pura e santa; que não está sujeito à
sabedoria e ao conselho de ninguém que seja superior; que é, portanto,
de todos os outros, o mais livre, sábio e bom, e que é verdadeiramente
infinito, de forma que todas as outras coisas dependem apenas dEle.
Essa somente é a operação ou agência de Deus. “Ele falou, e tudo se fez;
Ele ordenou e tudo passou a existir” (Salmos 33:6, 9). “Deus que vivifica os
mortos e chama as coisas que não são como se fossem” (Romanos 4:17).
4. Deus criou todas as coisas do nada. Não era, portanto, de qualquer
essência da Divindade, nem de qualquer matéria pré-existente coigual
a Ele, da qual Deus criou os céus e a terra. Pois se todas as coisas
foram criadas por Deus, nada está excluído, exceto o próprio criador,
de forma que todas as outras coisas foram criadas, nem mesmo
excluindo a matéria da qual foram formadas.

313 | P á g i n a
Objeção. Do nada não existe nada. Resposta: De acordo com a ordem
da natureza tal como agora é constituída, é verdade que uma coisa é
gerada ou produzida de outra. Também é verdade que nada pode ser
produzido do nada pelos homens; mas o que é impossível ao homem
é possível a Deus. Consequentemente, esta proposição, do nada há
nada, não é verdadeira quando aplicada a Deus. Nem é verdade para
a primeira criação, ou para a operação extraordinária de Deus, mas
apenas para a ordem da natureza como agora está estabelecida. Que
Deus criou todas as coisas do nada, deve contribuir para o nosso
conforto; porque se Ele criou todas as coisas do nada, Ele também é
capaz de nos preservar e restringir, sim, de reduzir a nada os conselhos
e artifícios dos iníquos.
5. Deus criou todas as coisas da forma mais sábia e muito boa, isto é,
Ele criou todas as coisas perfeitas de acordo com sua espécie e grau.
“Todas as coisas eram muito boas” (Gênesis 1:31). Todas as coisas foram
criadas livres de deformidades e pecados, e do mal sob todas as formas.
Objeção. Mas a morte é má. Resposta: Deus não criou a morte, mas a
infligiu como justa punição à criatura, por causa do pecado. Réplica:
Mas é dito: “Deus cria o mal” (Isaías 45:7); “Haverá mal na cidade, sem que
o Senhor o tenha feito?” (Amós 3:6). Resposta: Essas coisas são ditas sobre
o mal da punição e não sobre a culpa. Deus é o autor do castigo,
porque é o juiz do mundo; mas Ele não é o autor do pecado. Ele apenas
o permite.
6. Deus criou o mundo, não de repente, nem em um momento, mas
em seis dias. “No sétimo dia, Deus terminou todas as Suas obras” (Gênesis
2:2). Mas por que Deus não criou todas as coisas em um momento,
quando tinha o poder de fazer isso? Porque Ele planejou que a criação
da matéria fosse algo distinto e manifesto a partir da formação dos
corpos do mundo, que foram criados dela. 2. Porque Ele iria
demonstrar Seu poder e liberdade, em produzir tudo o que quisesse,
e sem quaisquer causas naturais. Por isso, Ele deu luz ao mundo,

314 | P á g i n a
tornou a terra frutífera e fez com que as plantas brotassem dela, antes
que o sol ou a lua fossem criados. 3. Ele desejava dar uma exibição de
Sua bondade e providência em prover para Suas criaturas, e ter
consideração por elas antes de nascerem; para isso, Ele traz animais
sobre a terra, já supridos com plantas e pasto, e apresenta o homem
ao mundo que Ele mais ricamente proveu com todas as coisas
necessárias para satisfazer suas necessidades e administrar seu
conforto. 4. Deus criou todas as coisas sucessivamente, para que não
nos mantivéssemos ociosos, mas tivéssemos a oportunidade de
considerar Suas obras e, assim, discernir Sua sabedoria, bondade e
poder.
7. Por último, Deus criou o mundo, não eternamente, mas em um
tempo certo e definido; e, portanto, no início dos tempos. “No princípio,
Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1:1). De acordo com o cálculo
comum, é agora, contando a partir deste 1616 de Cristo, 5534 anos
desde a criação do mundo. Pois, desde a criação do mundo até o
nascimento de Cristo sucedeu, conforme os cálculos de:
1. Melâncton: 3963 anos.
2. Lutero: 3960 anos.
3. Genebra: 3943 anos.
4. Beroaldo: 3929 anos.
O mundo, portanto, existiu, conforme os cálculos de:
1. Melâncton: 5579 anos.
2. Lutero: 5576 anos.
3. Genebra: 5559 anos.
4. Beroaldo: 5545 anos.

315 | P á g i n a
Esses cálculos se harmonizam suficientemente entre si nos números
maiores, embora alguns anos sejam somados ou faltam nos números
menores. De acordo com esses quatro cálculos, feitos pelos homens
mais eruditos de nosso tempo, parecerá, comparando-os entre si, que
o mundo foi criado por Deus pelo menos não muito mais de 5559 ou
5579 anos. O mundo, portanto, não foi criado desde a eternidade, mas
teve um início.

III. PARA QUAL FIM DEUS CRIOU O MUNDO?


Os fins para os quais Deus criou o mundo são, alguns gerais, e outros
especiais e subordinados.
1. O fim principal e último para o qual todas as coisas foram criadas,
especialmente os anjos e os homens, é a glória e o louvor de Deus. “O
Senhor fez todas as coisas para Si” (Provérbios 16:4); “Bendito seja o Senhor,
todas as Suas obras (...)” (Salmos 103:22). “Pois dEle, e por Ele, e para Ele são
todas as coisas” (Romanos 11:36).
2. A manifestação, conhecimento e contemplação da sabedoria divina,
poder e bondade exibidos na criação das coisas. Pois, para que Deus
fosse louvado, era necessário que Ele criasse inteligências racionais,
capazes de conhecê-lO; e que, conhecendo-O, possam louvá-lO e
honrá-lO. Era, também, necessário que Ele criasse coisas destituídas
de razão, para que pudessem fornecer matéria para louvor. “Os céus
proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as Suas obras” (Salmos
19:1).
3. O governo do mundo. Deus criou o mundo, para que Ele possa por
Sua providência sempre governar, dirigir e preservá-lo, e assim
continuamente exibir Suas obras maravilhosas, que Ele fez desde o
início do mundo, e que Ele agora faz, ou executará no futuro; mas
especialmente para que Ele pudesse governar a Igreja, composta de
anjos e homens. Este fim é subserviente ao segundo. “Elevem os olhos
ao alto e vejam Quem criou estas coisas” (Isaías 40:26).

316 | P á g i n a
4. Para que Ele possa reunir para Si mesmo, da raça humana, uma
Igreja eterna, que pode conhecê-lO e louvá-lO como o criador.
5. Para que todas as coisas possam contribuir para a felicidade,
conforto e salvação dos homens, e especialmente dos eleitos, e que
elas possam ser para eles, cada uma em sua esfera particular, como
ministros e instrumentos pelos quais Deus pode ser louvado por eles,
enquanto dá Suas bênçãos sobre eles. “Subjugai a terra e dominai os
peixes do mar, as aves dos céus e todos os seres viventes que se movem sobre a
terra” (Gênesis 1:28); “Tu o fizeste ter domínio sobre as obras das tuas mãos;
Tu puseste todas as coisas debaixo de seus pés” (Salmos 8:6); “Seja o mundo,
ou a vida, ou a morte, ou as coisas presentes ou as que virão, todos são Seus”
(1 Coríntios 3:22). Deus, portanto, criou o homem para Si mesmo; e
todas as outras coisas para o homem, para que o sirvam, e por meio
delas sirvam a Deus. Portanto, quando fazemos as criaturas ocuparem
o lugar que pertence a Deus, para fora do lugar que Deus nos designou
nos conduzimos.
O uso da doutrina da criação do mundo é: 1. Para que toda a Sua glória
seja atribuída a Deus, e que Sua sabedoria, poder e bondade sejam
conhecidos e reconhecidos pelas obras da criação. 2. Para que
possamos retirar nossa confiança de todas as coisas criadas e colocar
nossa confiança somente em Deus, o autor e doador da salvação.

317 | P á g i n a
10º DIA DO SENHOR

A PROVIDÊNCIA DE DEUS

Questão 27. O que tu queres dizer com providência de Deus?


Resposta: O poder Todo-Poderoso e onipresente de Deus; por meio
do qual, por assim dizer, sustenta e governa o céu, a terra e todas
as criaturas; de forma que ervas e relva, chuva e seca, anos
frutíferos e estéreis, comida e bebida, saúde e doença, riquezas e
pobreza; sim, todas as coisas não vêm por acaso, mas por Sua mão
paterna.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 27

Intimamente conectada com a doutrina da criação do mundo, está o


assunto da providência de Deus, que nada mais é do que uma
continuação da criação; porque o governo do mundo é a preservação
das coisas criadas por Deus. Não devemos imaginar, portanto, que a
criação do mundo é como a construção de um navio, que o arquiteto,
assim que é concluído, confia ao governo de algum piloto; mas
devemos sustentar isso como a mais certa verdade, que nada poderia
ter existido exceto pelo poder criador de Deus; portanto, é impossível
que qualquer coisa exista, mesmo por um momento, sem Seu governo
e preservação. É por esta razão que as Escrituras frequentemente
associam a preservação e administração contínua de todas as coisas
com Sua criação. Consequentemente, não podemos ter um
conhecimento completo e correto da criação a menos que, ao mesmo
tempo, abracemos a doutrina da providência divina, a respeito da qual
devemos perguntar particularmente.

318 | P á g i n a
I. Existe alguma providência de Deus?
II. O que é?
III. O que isso nos beneficia?
A primeira e a segunda dessas proposições serão consideradas nesta
questão; a terceira será considerada quando tratarmos da 28º questão
do catecismo.

I. EXISTE ALGUMA PROVIDÊNCIA DE DEUS?


Existem três opiniões dos filósofos a respeito da providência de Deus:
1. Os epicureus negam que haja qualquer providência a respeito dos
assuntos dos mortais, ou daquelas coisas que são e são feitas nas
partes inferiores do mundo. 2. Os estoicos conceberam e substituíram
a providência divina, uma necessidade absoluta de todas as coisas e
mudanças existentes na própria natureza das coisas, à qual tudo está
sujeito, incluindo o próprio Deus. Essa necessidade eles chamam de
destino ou sorte. 3. Os peripatéticos supõem que Deus realmente vê e
conhece todas as coisas, mas não as dirige e nem as governa, mas
apenas excita ou mantém os movimentos celestiais, e através deles
envia, por meio de influência, algum poder ou virtude para as partes
inferiores da natureza, enquanto as operações e movimentos tão
estimulados dependem inteiramente da matéria e da vontade do
homem.
Em oposição a esses erros, a Igreja ensina de acordo com a Palavra de
Deus, que nada existe, ou acontece em todo o mundo, a menos que
seja pelo conselho certo e definitivo, mas não obstante o mais livre e
bom conselho de Deus.
Existem dois tipos de provas pelas quais podemos estabelecer a
doutrina da providência de Deus: esses são os testemunhos das
Escrituras e a força dos argumentos.

319 | P á g i n a
O testemunho que as Escrituras fornecem em apoio a essa doutrina
está contido em passagens como as seguintes: “Ele dá a todos a vida, o
fôlego e todas as coisas; Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17:25,
28); “Não se vendem dois pardais por um centil? E um deles não cairá ao solo
sem o seu Pai; Mas os próprios cabelos da sua cabeça estão contados”
(Mateus 10:29, 30); “Deus opera todas as coisas segundo o conselho da Sua
própria vontade” (Efésios 1:11). Existem também muitos testemunhos
bíblicos semelhantes que provam a providência geral e particular de
Deus; pois dificilmente existe qualquer doutrina mais frequente e
diligentemente inculcada do que a da providência divina. Como uma
única instância, Deus raciocina no livro de Jeremias, 27:5-6, da
providência geral para a particular: isto é, da própria coisa ao exemplo.
“Eu fiz a terra, o homem e os animais que estão sobre a terra e a dei a quem
Me pareceu adequado”. E Ele imediatamente acrescenta a providência
particular, “agora Eu entreguei todas estas terras nas mãos de
Nabucodonosor, o rei da Babilônia, Meu servo”.
Os argumentos que estabelecem uma providência divina são de dois
tipos. Alguns são a posteriori, que incluem aqueles que são obtidos dos
efeitos ou obras de Deus; outros são a priori, ou seja, aqueles que são
obtidos da natureza e dos atributos de Deus. Ambos podem ser
claramente demonstrados e são comuns à filosofia e teologia, a menos
que os atributos e obras de Deus sejam melhores e mais plenamente
compreendidas pela Igreja do que pela filosofia. Os argumentos,
entretanto, que são obtidos das obras divinas são mais óbvios; pois é
pelos argumentos a posteriori que chegamos e obtemos um
conhecimento daqueles que são a priori.

320 | P á g i n a
Argumentos em prova da providência de Deus, obtidos de Suas
obras
1. A ordem não pode provir de uma causa brutal ou irracional: pois
onde há ordem, deve haver também alguém que ordena e dirige. Na
natureza das coisas existe ordem; há um arranjo mais criterioso de
todas as partes da natureza, e uma sucessão de mudanças e estações,
contribuindo para a preservação e continuação do todo. Portanto, esta
ordem existe e é preservada por alguma mente inteligente; e visto que
é mais sabiamente constituída, é necessário que aquele que assim
arranjou todas as coisas, e que as governa por Sua providência, seja o
mais sábio. “Ele faz saber o número das estrelas; Ele as chama todas pelos
seus nomes” (Salmos 147:4).
2. O homem, que é como se fosse um pequeno mundo, é governado
por uma mente e compreensão; muito mais, portanto, é o mundo
governado pela providência divina. “Aquele que fez o ouvido, não ouvirá?”
(Salmos 94:9).
3. A lei natural, o conhecimento dos princípios gerais naturais aos
homens, a diferença entre as coisas honestas e básicas, gravadas em
nossos corações, ensinam que existe uma providência: pois aquele que
gravou no coração do homem uma regra ou lei, para a regulação da
vida, tem em consideração as ações dos homens. Deus agora gravou
tal regra no coração do homem e deseja que vivamos em conformidade
com ela. Portanto, Ele também deve governar as vidas, ações e eventos
de Suas criaturas. “Os gentios mostram a obra da lei escrita em seus corações
(...)” (Romanos 2:15). Plauto diz: “Há realmente um Deus que vê e ouve o que
fazemos;” e Homero diz: “Deus tem olhos retos”.

321 | P á g i n a
4. As repreensões de consciência, que se seguem à prática do pecado
por parte dos ímpios, provam que deve haver um Deus que conhece
os segredos dos homens, pune seus pecados, de sua maldade Se vinga
e que causa tais medos interiores e presságios surgirão na mente. “A
sua consciência ao mesmo tempo testemunha, e os seus pensamentos,
entretanto acusando-os ou os defendendo” (Romanos 2:15); “Pois a ira de
Deus se revela dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens”
(Romanos 1:18).
5. Os galardões e punições que acompanham as ações dos homens,
atestam que deve haver algum executor das leis da natureza. Há
eventos mais agradáveis e favoráveis que acompanham a vida daqueles
que vivem com moderação, embora estejam sem a Igreja, do que é o
caso daqueles que vivem em devassidão e condescendência sensual;
pois crimes atrozes são geralmente seguidos de punições severas.
Portanto, deve haver algum juiz que percebe as ações dos homens e as
retribui de acordo. “O justo se regozijará quando vir a vingança; ele lavará
os seus pés no sangue dos ímpios; de forma que um homem dirá, na verdade
há uma recompensa para o justo: na verdade Ele é um Deus que julga na terra”
(Salmos 58:10); “Aquele que corrige os gentios, não corrigirá?” (Salmos 94:10).
6. Grande parte da providência de Deus consiste no estabelecimento,
preservação e transferência de reinos e impérios. Essas coisas,
entretanto, não poderiam acontecer se Deus não existisse. “Por Mim
reinam os reis e os príncipes decretam justiça” (Provérbios 8:15); “Para que
os viventes saibam que o Altíssimo tem domínio sobre os reinos dos homens e
os dá a quem quer” (Daniel 4:25) Cícero diz: “As comunidades são
governadas muito mais pelo auxílio e poder de Deus do que pela razão e
conselho dos homens”. Sempre há um número maior de ímpios do que
de bons, e mais os que desejam que a autoridade da lei seja subvertida
do os que desejam que seja preservada. No entanto, a ordem civil é
preservada; e repúblicas e reinos são perpetuados. Portanto, deve haver
alguém maior do que todos os demônios, tiranos e homens ímpios,
que sempre preserva esta ordem contra Sua ira.

322 | P á g i n a
7. As excelentes virtudes, façanhas e sucesso de heróis que ultrapassam
a capacidade comum do homem, os dons singulares e a excelência de
artífices que Deus conferiu a certos indivíduos, para o bem geral e
para a preservação da sociedade humana, e outras coisas semelhantes,
atestam que existe um Deus que cuida da raça humana. Pois essas são
coisas muito maiores do que qualquer coisa que possa advir daquilo
que é meramente sensual; e possuem uma excelência grande demais
para serem meras aquisições da indústria humana. Há, portanto, um
Deus que, quando deseja fazer grandes coisas para a segurança da raça
humana, levanta homens dotados de virtudes heroicas, inventores de
artes e conselhos; e príncipes que são bravos, bons e prudentes; e
outros instrumentos adaptados ao cumprimento de Seus propósitos.
E quando Ele deseja punir os homens por seus pecados, Ele remove o
mesmo instrumento que levantou para sua segurança. “O Senhor
despertou o espírito de Ciro” (Esdras 1:1); “O Senhor tirará o homem poderoso
e o homem de guerra, o juiz e o profeta (...)” (Isaías 3:2); “Ele dá sabedoria aos
sábios (...)” (Daniel 2:21).
8. Uma providência pode ser inferida da profecia e da predição de
eventos. Ele é Deus que pode declarar aos homens coisas que ainda
são futuras, e que não pode ser enganado em Suas predições. Portanto,
Ele não apenas prevê eventos futuros, mas também os dirige para que
aconteçam, seja por Sua efetivação ou permissão: de forma que Ele
tenha consideração pelos assuntos humanos e governe o mundo por
Sua providência. “Teria Ele dito, e não faria o bem?” (Números 23:19).
Cícero diz: “Aqueles que não proclamam coisas que estão por vir não são
deuses”.
9. Todas as coisas no mundo são dirigidas para certos fins e tendem
constantemente para esses fins. Portanto, existe um ser mais sábio e
poderoso, que constantemente dirige todas as coisas por Sua
providência, e conduz cada uma ao seu fim designado. “Nem só de pão
viverá o homem, mas de toda Palavra que procede da boca de Deus”
(Deuteronômio 8:3).

323 | P á g i n a
Argumentos obtidos da natureza e atributos de Deus
1. Existe um Deus. Portanto, existe uma providência. Isso é tão
verdadeiramente dito quanto dizer, sem Deus, sem providência: pois
supor um Deus que não governa o mundo é negar a Deus. Sim, supor
que Deus existe e não governa o mundo, está em oposição direta à Sua
natureza; pois o mundo não pode existir sem Deus mais do que
poderia ser criado sem Ele.
2. Deus é tão poderoso que não é possível que algo possa ser feito que
Ele simplesmente não deseja; nem pode ser feito de uma forma
diferente do que Ele deseja; mas tudo o que é feito deve
necessariamente ser feito de acordo com Sua vontade e direção.
Portanto, as coisas que são feitas diariamente, são feitas de acordo
com a vontade do Deus Todo-Poderoso e, portanto, por Sua
providência.
3. Cabe a um governador sábio não permitir que nada seja feito em
Seu reino sem Sua vontade e correto conselho. Deus é muito sábio e
pode estar presente em todas as coisas. Portanto, nada é feito no
mundo sem Sua providência.
4. Deus é o mais justo e, ao mesmo tempo, o juiz do mundo. Portanto,
Ele mesmo dá galardões aos bons e inflige punição aos ímpios.
5. Deus é muito bom; mas aquele que é muito bom também é muito
comunicável. Portanto, como Deus criou o mundo de Sua infinita
bondade, para que pudesse comunicar-se a Ele, da mesma forma Ele
preserva, administra e governa o mundo que criou pela mesma
bondade.
6. Os fins de todas as coisas são bons e ordenados por Deus. Portanto,
os meios também, que são necessários para atingir esses fins, são
designados por Deus desde a eternidade, tanto absolutamente, quanto
de acordo com outra coisa.
7. Deus é a causa primeira de todas as coisas. Portanto, todas as causas
secundárias dependem dEle.

324 | P á g i n a
8. Uma presciência imutável depende de uma causa imutável. Deus
conhece de antemão todas as coisas imutavelmente desde a
eternidade. Portanto, Ele conhece de antemão por uma causa imutável,
que é Seu conselho e decreto eterno. A suma de tudo é esta: Deus é
Todo-Poderoso, muitíssimo sábio, justo e bom, portanto, Ele não
ordenou e criou nada sem algum fim e propósito especial; nem cessa
de guiar e dirigir Suas obras para os fins aos quais as ordenou; nem
permite que essas coisas sejam feitas por acaso, que Ele fez e ordenou
para a manifestação de Sua própria glória. “Estas coisas fizeste e eu me
calei; pensei que eu era totalmente tal como Tu (...)” (Salmos 50:21); “Deus se
esqueceu de ser gracioso?” (Salmos 77:9); “Meu conselho permanecerá e
realizarei toda a Minha vontade” (Isaías 46:10).

II. O QUE É A PROVIDÊNCIA DE DEUS?


A presciência, a providência e a predestinação diferem umas das
outras. Por presciência entendemos o conhecimento de Deus, pelo
qual Ele previu, desde toda a eternidade, não apenas o que Ele mesmo
faria, mas também o que os outros fariam com Sua permissão, a saber:
que pecariam. Providência e predestinação, embora incluam apenas as
coisas que o próprio Deus fará, ainda assim diferem nisso, que a
providência se estende a todas as coisas e obras de Deus, enquanto a
predestinação propriamente diz respeito apenas às criaturas racionais.
Predestinação é, portanto, o decreto mais sábio, eterno e imutável de
Deus, pelo qual Ele designou e destinou todo homem, antes de ser
criado, para seu uso e fim certos, como será mostrado mais claramente
a seguir. Mas a providência é o conselho eterno, mais livre, imutável,
sábio, justo e bom de Deus, segundo o qual Ele efetua todas as coisas
boas em suas criaturas; permite também que coisas más sejam feitas
e direciona tudo, tanto o bem quanto o mal, para Sua própria glória e
a salvação de Seu povo.

325 | P á g i n a
Explicação e confirmação desta definição
Conselho. A providência divina é chamada nas Escrituras de conselho
de Deus. “O conselho do Senhor permanece para sempre” (Salmos 32:11);
“Meu conselho permanecerá” (Isaías 46:10); “Deus querendo mostrar a
imutabilidade de seu conselho;” (Hebreus 6:17). Também em: Isaías 14:26;
19:17; 28:29. Jeremias 32:19, e outras passagens semelhantemente. Destas
declarações é evidente que pelo termo providência devemos entender
não apenas o conhecimento das coisas presentes e futuras, mas
também o decreto ou vontade e operação eficaz de Deus; pois o termo
conselho compreende uma compreensão ou presciência das coisas
que devem ser feitas, ou que ainda são futuras, com as causas pelas
quais devem ou não ser feitas; e também uma vontade determinando
algo a partir de certas causas. Providência, portanto, não é a mera visão
ou conhecimento prévio de Deus, mas também inclui a vontade de
Deus, assim como πζονοια (pzonia), que traduzimos providência,
significa para os gregos, conhecimento e cuidado das coisas.
Eterno. Porque, como não pode haver ignorância, nem aumento de
conhecimento, nem mudança de vontade em Deus, é necessário que
Ele tenha conhecido e decretado todas as coisas desde a eternidade.
“O Senhor Me possuiu no início de Seus caminhos” (Provérbios 8:22);
“Declarando o fim desde o princípio, e desde os tempos antigos as coisas que
ainda não foram criadas” (Isaías 46:10); “Ele nos escolheu em Cristo antes da
fundação do mundo” (Efésios 1:4); “Falamos a sabedoria de Deus, que Ele
ordenou antes do mundo” (1 Coríntios 2:7).
Mais livre. Porque Ele assim decretou desde a eternidade, como era
agradável a Si mesmo, de acordo com Sua imensa sabedoria e
bondade; quando Ele tinha plenos poderes para providenciar Seu
conselho de outra forma, ou mesmo omiti-lo, ou para ter feito coisas
de forma diferente do que Ele determinou por Seu conselho. “Ele fez
tudo o que Lhe agradou” (Salmos 115:3); “Como o barro está nas mãos do
oleiro, vós estais nas Minhas mãos” (Jeremias 18:6).

326 | P á g i n a
Imutável. Porque nem erro nem mudança podem acontecer com
Deus; mas o que Ele uma vez decretou desde a eternidade, que sendo
muito bom e justo, Ele deseja eternamente e, por fim, leva a efeito. “Eu
sou o Senhor, não mudo” (Malaquias 3:6); “A força de Israel não mentirá, não
Se arrependerá” (1 Samuel 15:29); Também em: Números 23:19; Jó 23:13;
Salmos 33:11; Provérbios 19:21.
Muito sábio. Isso é evidente pelo maravilhoso curso de eventos e
coisas no mundo. “Com Ele está a força e a sabedoria” (Jó 12:16); “Ó
profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de
Deus” (Romanos 11:33), e também em 1 Samuel 16:7; 1 Reis 8:39; Jó 36:23;
Salmos 33:15; 119:2-6, e outras passagens semelhantemente.
Mais justo. Porque a vontade de Deus é a fonte e o modelo da justiça.
“Não há iniquidade do Senhor nosso Deus, nem acepção de pessoas” (2
Crônicas 19:7). Também Neemias 9:33; Jó 9:2; Salmos 36:7; Salmos
119:137. Daniel 9:7, 14).
Segundo o qual Ele faz todas as coisas boas. Isso é acrescentado para
que possamos saber que o conselho de Deus não é inativo, mas eficaz,
como Cristo declarou: “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho
[também]” (João 5:17).
A operação de Deus é dupla: geral e especial. A operação geral de Deus
é aquela pela qual Ele sustenta e governa todas as coisas,
especialmente a raça humana. A operação especial é aquela pela qual
Ele, nesta vida, inicia a salvação de Seu povo e a aperfeiçoa na vida
por vir. É dito em referência a ambos: “Deus é o salvador de todos os
homens, especialmente daqueles que creem” (1 Timóteo 4:10); “Todos os que
são guiados pelo Espírito de Deus, eles são os Filhos de Deus” (Romanos 8:14);
“Os olhos do Senhor estão sobre os justos” (Salmos 34:15), e outras passagens
semelhantemente. Deus trabalha de ambas as formas, imediata ou
mediatamente. Ele trabalha imediatamente quando faz o que quer,
independentemente dos meios, ou de uma forma diferente da ordem
que estabeleceu na natureza; como quando Ele sustenta a vida de uma

327 | P á g i n a
forma milagrosa. Ele atua imediatamente quando produz por meio de
criaturas, ou causa secundária, aqueles efeitos aos quais elas são
adaptadas de acordo com a ordem estabelecida da natureza, e para os
quais foram feitas, como quando Ele nos sustenta com comida e nos
cura de doenças com remédio. “Que tomem um pedaço de figos e coloquem-
no como emplastro sobre a chaga, e ele sarará” (Isaías 38:21). É dessa forma
que Deus revela a Si mesmo e Sua vontade a nós por meio das
Escrituras lidas e pregadas. “Eles têm Moisés e os profetas, que os ouçam”
(Lucas 16:29).
Essa operação mediata ou operação de Deus é feita algumas vezes por
meio de bons instrumentos, incluindo os naturais e também os
voluntários; e às vezes por meio de instrumentos maus e pecaminosos;
contudo, de tal forma que o que Deus faz neles e por meio deles, é
sempre santíssimo, justo e bom: pois a bondade das obras de Deus
não depende dos instrumentos, mas de Sua generosidade, sabedoria e
justiça. Que Deus opera por meio de bons instrumentos, geralmente é
admitido pelos piedosos. Há, no entanto, uma diversidade de
sentimentos no que diz respeito a instrumentos que são maus e
perversos. Mas se não negarmos que as provações e castigos dos justos,
bem como as punições dos iníquos, que são cumpridas por meio dos
iníquos, são justos e procedem da vontade e do poder de Deus; e a
menos que também neguemos que as virtudes e ações dos ímpios que
contribuíram para o bem-estar da raça humana são dons de Deus;
devemos admitir que Deus também executa Seus julgamentos justos
e santos e obras por instrumentos que são maus e pecaminosos. Foi
assim que Ele enviou José ao Egito, por meio de seus irmãos ímpios e
os midianitas, abençoou Israel por meio do falso profeta Balaão,
tentou o povo por meio de falsos profetas, irritou Saul por meio de
Satanás, puniu Davi por Absalão e as blasfêmias de Shemei, castigou
Salomão pela sedição de Jeroboão, Jó julgado por Satanás, levou Judá
e Jerusalém ao cativeiro pelas mãos de Nabucodonosor, e outros
testemunhos semelhantes.

328 | P á g i n a
Ele cria todas as coisas boas. Ele as cria de tal forma que nenhuma
criatura, grande ou pequena, pode existir, ou se mover, ou fazer, ou
sofrer qualquer coisa sem Sua vontade e Seu conselho: pois pelas
coisas que são boas, devemos entender as quantidades, qualidades e
movimentos das coisas, bem como sua substância, porque todas as
coisas foram criadas por Deus; e são, portanto, necessariamente
incluídos em Sua providência.
Permite que coisas más também sejam feitas. O mal é duplo: o mal
da culpa, que é todo pecado, e o mal da punição, que inclui toda
aflição, destruição ou vexação que Deus inflige a suas criaturas
racionais por causa do pecado. Temos um exemplo do mal em ambas
as formas em Jeremias 18:8: “Se aquela nação contra quem Eu Me
pronunciei, de seu mal se desviar, Eu me arrependerei do mal que pensei fazer
a eles”.
O mal da punição vem de Deus, o autor e executor dela, não apenas
na medida em que é uma determinada ação ou movimento, mas
também na medida em que é a destruição ou aflição do ímpio. Isso é
provado: 1. Porque Deus é a causa principal e eficiente de tudo que é
bom. Todo castigo agora tem a natureza de um bem moral, porque é
a declaração e execução da justiça divina. Portanto, Deus é o autor da
punição. 2. Deus é o juiz do mundo e o sustentador de Sua própria
glória e deseja ser reconhecido como tal. Portanto, Ele é o autor de
recompensas e punições. 3. Porque as Escrituras em todos as
passagens, em uma só voz, referem os castigos dos ímpios, bem como
os castigos, provas e martírios dos santos, à vontade eficaz de Deus.
“Eu, o Senhor, faço a paz e crio o mal” (Isaías 45:7); “Haverá mal (de castigo)
na cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” (Amós 3:6); “Temei antes aquele
que é capaz de destruir a alma e o corpo no inferno” (Mateus 10:28).
Os males da culpa enquanto tais, isto é, os pecados, não têm a natureza
do que é bom. Por isso Deus não irá realizá-los, nem Ele seduz os
homens a realizá-los, nem as faz ou coopera para o pecado; mas Ele

329 | P á g i n a
permite que demônios e homens os façam, ou não os proíbe de
cometê-los quando Ele tem o poder de fazê-lo. Portanto, essas coisas
realmente também estão sob a providência de Deus, mas não como se
fossem feitas por Ele, mas apenas permitidas. A palavra permitir,
portanto, não deve ser rejeitada, visto que às vezes é usada nas
Escrituras. “Portanto, Eu não te permiti tocá-la” (Gênesis 20:6); “Mas Deus
permitiu que ele não me tocasse” (Gênesis 31:7); “Ele não permitiu que
ninguém os fizesse mal” (Salmos 105:14); “que no passado permitiu que todas
as nações andassem em seus próprios caminhos” (Atos 14:16). Mas devemos
ter um entendimento correto da Palavra de Deus para não
depreciarmos de Deus uma porção considerável do governo do
mundo, e de assuntos humanos. Pois esta permissão não é uma
contemplação indiferente ou suspensão da providência e obra de Deus
no que diz respeito às ações dos ímpios, pelo que acontece que essas
ações não dependem tanto de alguma causa primeira, como da
vontade das criaturas agindo; mas é uma privação da graça divina pela
qual Deus - enquanto cumpre os decretos de Sua vontade por meio
de criaturas racionais - ou não dá a conhecer à criatura operando o
que Ele mesmo deseja que seja cumprido, ou não inclina a vontade do
criatura para Lhe render obediência, e para realizar o que é agradável
à Sua vontade. Ainda assim, Ele, entretanto, controla e influencia a
criatura tão deserta e pecadora a ponto de realizar o que Ele propôs.
Ele dirige todas as coisas, boas e más. Todas as coisas, incluindo as
que já se passaram desde a criação do mundo, as que são presentes e
as que estão por vir, por toda a eternidade. “Lembre-se das coisas antigas:
porque eu sou Deus e não há outro: eu sou Deus e não há ninguém como eu”
(Isaías 46:9, 10).
Para Sua própria glória: isto é, para o reconhecimento de Sua justiça
divina, poder, sabedoria, misericórdia e bondade.
E para a salvação de Seu povo: isto é, para a vida, alegria, justiça, glória
e felicidades eternas da Igreja. Para estes fins, a saber: para a glória de
Deus e a salvação da Igreja, todas as obras e conselhos de Deus devem,

330 | P á g i n a
sem controvérsia, ser referidos, porque todos elas dão evidência da
glória de Deus e de Sua preocupação para com a Igreja. “Os céus
declaram a glória de Deus” (Salmos 19:1); “Por amor do Meu nome, vou
retardar minha ira” (Isaías 48:9); “Nós sabemos que todas as coisas
contribuem para o bem daqueles que amam a Deus” (Romanos 8:28); “Nem
ele pecou nem seus pais, mas para que a glória de Deus se manifeste nEle”
(João 9:3).
Agora demos uma breve explicação da definição que demos da
providência de Deus, da qual surge naturalmente a seguinte questão:
ela é uma providência que inclui todas as coisas, ou que, em outras
palavras, se estende a tudo? A resposta a esta pergunta é evidente, ou
seja, que todas as coisas, mesmo as menores, estão sob a providência
de Deus, de forma que tudo o que é feito, seja bom ou mau, não
acontece por acaso, mas pelo eterno conselho de Deus, produzindo-o
se for bom e permitindo-o se for mau. Mas como há alguns que
ignoram esta doutrina, enquanto há outros que falam contra ela de
várias formas, e assim a censuram, devemos explicá-la mais
completamente e mostrar que está em perfeita harmonia com os
ensinamentos de Palavra de Deus.
Os testemunhos que provam que todas as coisas estão incluídas na
providência de Deus, são parcialmente gerais, como ensinam que
todas as coisas e eventos em geral, estão sujeitos à providência de
Deus; e em parte especiais, como provar que Deus dirige e governa
especialmente cada coisa particular. Os primeiros testemunhos afirmam
e estabelecem uma providência geral, e os últimos uma providência
especial. Os testemunhos especiais referem-se a criaturas ou a eventos
que acontecem diariamente. No que diz respeito às criaturas, elas são
irracionais, animadas ou inanimadas; ou são agentes racionais e
voluntários que fazem o que é bom ou mau. No que diz respeito aos
eventos, eles são contingentes, ou casuais ou necessários: pois as coisas
que acontecem são casuais e fortuitas, mas apenas no que diz respeito

331 | P á g i n a
a nós, que ignoramos suas verdadeiras causas; ou são contingentes em
relação às suas causas, que funcionam contingentemente; ou
necessário em relação às causas que funcionam necessariamente na
natureza. Com respeito a Deus, entretanto, não há nada que seja
casual ou contingente; mas todas as coisas são necessárias, embora
seja de uma forma diferente, uma vez que respeita as boas e más ações.

O mundo é governado pela Providência de Deus, e nele:

Todas as coisas
Cada coisa em particular, cuja
genericamente,
providência é chamada particular ou
cuja providência
especial. As coisas que são
é chamada de
especialmente dirigidas são:
universal ou
geral.

Cada criatura: Racional Cada evento

Irracional. Sem vida Casual


Sendo elas:
Viventes Contingente

Anjos Necessário
Homens
Mal Bom

Bons. Livre e voluntariamente fazendo o que é bom

Maus. Livre e voluntariamente fazendo o que é mau.


TABELA DAS COISAS QUE ESTÃO SOB A PROVIDÊNCIA DE DEUS

332 | P á g i n a
É apropriado que devemos anexar a cada parte separada ou a divisão
da tabela acima, certas provas claras e satisfatórias, de forma a não
deixar nenhuma dúvida na mente de qualquer um a respeito da
verdade do que é afirmado.
1. A providência geral de Deus é estabelecida pelos seguintes
testemunhos tomados da palavra de Deus. “Ele faz todas as coisas
segundo o conselho de Sua própria vontade” (Efésios 1:11); “Ele dá a toda
vida, e fôlego, e todas as coisas” (Atos 17:25); “Falaria e não tornaria a fazer
o bem?” (Números 23:19); “Fizeste os céus e a terra e tudo o que neles há, os
mares e tudo o que neles há, e preservaste a todos” (Neemias 9:6); “Eu formo
a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal. Eu, o Senhor, faço todas essas
coisas” (Isaías 45:7).
2. A história de José fornece uma prova notável de uma providência
especial em relação às criaturas racionais. “Não fostes vós que me
enviastes aqui, mas Deus” (Gênesis 45:8); “Vós intentastes mal contra mim,
mas Deus o intentou para o bem” (Gênesis 50:20). A história do Faraó,
conforme registrada no livro de Êxodo, estabelece a mesma coisa.
“Quem fez a boca do homem? Ou quem fez o mudo, ou surdo, ou o que vê, ou o
cego? Não sou Eu o Senhor?” (Êxodo 4:11); “E o Senhor disse a Josué: Não tenha
medo por causa deles, porque amanhã a esta hora Eu os entregarei todos
mortos diante de Israel” (Josué 11:6); “O Senhor disse a Simei: Amaldiçoai a
Davi” (2 Samuel 16:10); “E o Senhor disse: Quem persuadirá Acabe (...) E Ele
disse: Tu o persuadirás e também prevalecerás” (1 Reis 22:20); “O coração do
rei está nas mãos do Senhor, como rios de água; Ele o dirige para onde quer”
(Provérbios 21:1); “O Senhor converteu a eles o coração do rei da Assíria”
(Esdras 6:22). O Senhor também chama o rei dos assírios, “a vara de
Sua ira”, e acrescenta: “Quando o Senhor tiver feito toda a Sua obra no monte
Sião e em Jerusalém, castigarei o fruto do coração forte do rei da Assíria e a
glória de sua aparência elevada” (Isaías 10:6, 12); “Quem é aquele que diz, e
assim acontece, quando o Senhor o não ordena” (Lamentações de Jeremias
3:37); “Ele faz de acordo com Sua vontade no exército dos céus e entre os

333 | P á g i n a
habitantes da terra; e ninguém pode deter Sua mão, ou dizer-lhe: Que fazes?”
(Daniel 4:35); “Herodes e Pilatos, com os gentios e o povo de Israel, estavam
congregados para fazer tudo o que Tua mão e Teu conselho determinassem”
(Atos 4:27, 28).
3. No que diz respeito à providência de Deus sobre as criaturas
irracionais, sejam elas vivas ou destituídas de vida, as seguintes provas
podem ser expostas: “Ele guarda todos os ossos dos justos; nenhum deles se
quebra” (Salmos 44:20); “E Deus se lembrou de Noé e de todos os seres vivos,
e de todo o gado que estava com ele na arca, e Deus fez um vento passar sobre
a terra e as águas se acalmaram” (Gênesis 8:1); “Ele dá à besta seu alimento,
e aos jovens corvos que clamam” (Salmos 147:9); “Seu Pai celestial alimenta
as aves do céu“ (Mateus 6:20), e outras passagens semelhantemente. Veja
também o capítulo 37 do livro de Jó e o Salmo 104.
4. Sobre coisas fortuitas e casuais é dito: “E se um homem não ficar à
espreita, mas Deus o entregar em suas mãos, então te designarei um lugar para
onde ele fugirá” (Êxodo 21:13); “Não se vendem dois pardais por um centavo?
E um deles não cairá ao solo sem o seu Pai. Mas os próprios cabelos da sua
cabeça estão todos contados” (Números 10:29, 30); “O Senhor deu e o Senhor
tirou, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1:21); “A sorte é lançada no colo, mas
toda a sua disposição vem do Senhor” (Provérbios 16:33).
5. Dos eventos necessários, cuja necessidade depende, seja do conselho
de Deus, revelado pela Sua palavra, podemos expostos o seguinte
testemunho: “Estas coisas foram feitas para que as Escrituras se cumprissem,
nem um osso dele será quebrado” (João 19:36); “Assim está escrito, e assim
convinha que Cristo padecesse e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia”
(Lucas 24:36); “Será necessário que as ofensas venham” (Mateus 24:24); “Se
fosse possível, eles enganariam os próprios eleitos” “Minhas ovelhas nunca
perecerão, nem ninguém as arrebatará de Minhas mãos” (João 10:28). Ou se
a necessidade desses eventos depender da ordem divinamente
estabelecida na natureza, ou de causas naturais, operando por uma
necessidade natural, podemos, neste caso, expor os seguintes
testemunhos: “Ele faz brotar a erva; Ele gera o orvalho, a geada e o gelo; Ele

334 | P á g i n a
produz as constelações em sua estação; guia a Ursa e os movimentos do céu”
(Jó 38:27, 29, 32)29; “Deus troveja maravilhosamente com a Sua voz; Ele diz à
neve: esteja na terra; do mesmo forma à chuva miúda e à grande chuva da Sua
força. Do sul vem o redemoinho, e frio do norte“ (Jó 37:5-10); “Ele rega as
colinas de seus aposentos; a terra está satisfeita com o fruto de Tuas obras. Ele
faz a grama crescer para o gado, e erva para o serviço do homem” (Salmos
104:13, 14, 15).
As Escrituras provêm quase um número infinito de testemunhos de
caráter semelhante, que provam que a providência de Deus abrange
todas as coisas e todos os eventos. Estes, entretanto, são suficientes
para nosso presente propósito; pois é claramente evidente do que
agora foi dito, que todas as coisas, tanto as más como as boas, as
pequenas e as grandes, são dirigidas e governadas pela providência de
Deus; contudo, de forma que as coisas que são boas sejam feitas não
apenas de acordo com, mas também pela providência divina, como a
causa, isto é, pela vontade de Deus, ordenando e as fazendo, enquanto
aquelas que são más, na medida em que são o mal, não é feito por,
mas de acordo com a providência divina, isto é, não por Deus
desejando, ordenando, fazendo ou as promovendo; mas as permitindo
e as direcionando para os fins designados.
Os argumentos pelos quais demonstramos que a providência de Deus
abrange todas e cada uma das coisas são quase iguais àqueles pelos
quais provamos que existe uma providência.
1. Nada pode ser feito sem a vontade daquele que é Todo-Poderoso.
Portanto, é impossível que qualquer coisa possa ser feita quando Deus
simplesmente não deseja, visto que Ele é Todo-Poderoso. Mas tudo o
que é feito deve ser feito por Deus simplesmente desejando, ou feito
de acordo com Sua vontade.

29 Correção da referência: Jó 28:27, 32.

335 | P á g i n a
2. Pertence ao governador sábio não permitir que qualquer coisa que
tenha em seu poder ser feito sem sua vontade e conselho; e quanto
mais sábio ele for, mais amplo será seu governo. Mas a sabedoria de
Deus é infinita, e todas as coisas estão em Seu poder, de acordo com
Isaías 40:27. Portanto, nada é feito em todo o mundo que Deus não
deseje e decrete.
3. Todas as coisas têm certos fins, que são verdadeiramente bons. Mas
todas as coisas boas vêm de Deus, que as deseja e dirige. Portanto, Ele
deseja e dirige os fins das coisas. Mas aquele que deseja os fins, deseja
também os meios para atingir esses fins. Consequentemente, Deus
deseja os meios, e estes simplesmente se forem bons, ou de uma certa
forma ou respeito se forem maus. Vendo, portanto, que todas as coisas
que são e são feitas são ou fins ou meios para a obtenção desses fins,
segue-se que Deus deve desejar e governar todas as coisas.
4. Existe alguma causa primeira que não depende de mais nada; mas
que é a base de todas as outras coisas. Deus é a primeira causa.
Portanto, todas as causas secundárias dependem da vontade de Deus.
5. Deus conheceu de antemão todas as coisas imutavelmente desde a
eternidade, porque Ele não pode ser enganado nem errar em Sua
presciência. Portanto, o conhecimento prévio de Deus é um
conhecimento certo e infalível de todas as coisas, de forma que todas
as coisas acontecem como Deus previu que aconteceriam, e isso
porque as conheceu de antemão; pois Seu conhecimento prévio não
depende das coisas criadas, mas dEle mesmo. Por isso, todos os
eventos dependem e procedem imutavelmente do conhecimento
prévio de Deus.
6. Todas as coisas boas vêm de Deus como a causa primeira. Todas as
coisas feitas e estabelecidas na natureza, como substância, desejos,
ações e outras coisas semelhantes, desde que sejam meramente tais,
são boas. Portanto, elas vêm de Deus e são feitos por Sua providência.

336 | P á g i n a
UMA REFUTAÇÃO DE CERTAS OBJEÇÕES CONTRA A
PROVIDÊNCIA DE DEUS
A primeira objeção diz respeito à confusão ou desordens da
natureza.
As coisas que estão em um estado de confusão não são governadas por
Deus, porque Ele não é o autor de confusão. Existe muita confusão no
mundo. Portanto, ou nada, ou pelo menos todas as coisas não são
governadas pela providência divina. Resposta: 1. Embora haja muitas
coisas em um estado de confusão, há, no entanto, muitas coisas que
são sabiamente ordenadas e reguladas, como os movimentos dos
corpos celestes, a preservação das diferentes raças de homens e das
diferentes espécies de animais, a preservação da comunidade, a
punição dos ímpios, e outras coisas semelhantes. Portanto, não pode
ser concluído universalmente que nada é governado por Deus. 2. No
que diz respeito às coisas que são perturbadas ou confusas, segue-se
apenas que esta confusão que se liga a essas coisas pela malícia dos
demônios e dos homens, não é de Deus. Há, portanto, aqui também
mais na conclusão do que nas premissas. 3. Nós respondemos à
proposição principal, que aquelas coisas que são perturbadas não são
governadas por Deus no que diz respeito a esta perturbação em si;
ainda assim, elas são governadas por Ele na medida em que haja
qualquer ordem discernida em meio a essa perturbação. E não há nada
que seja, ou aconteça, no mundo que seja tão perturbado que não
deixe marcas da ordem da sabedoria divina, poder e justiça; pois no
meio da maior confusão esta ordem pode sempre ser claramente
discernida. Houve, por exemplo, grande confusão quanto às vontades
e ações dos homens, na morte do Filho de Deus, que foi crucificado
pelos judeus; a mesma coisa pode ser dita da venda de José no Egito,
da sedição de Absalão, e outros eventos semelhantes; mas ainda havia
ao mesmo tempo a maior ordem, no que diz respeito à vontade e
conselho de Deus, que entregou sua Filho à morte pelos nossos

337 | P á g i n a
pecados, enviou José ao Egito, puniu Davi e Absalão, e outros atos
semelhantes. Desta forma, pode haver no mesmo evento confusão e
ordem, apenas em um aspecto diferente. Segue-se, portanto, que as
coisas confusas não são de Deus, nem são governadas por Ele na
medida em que são perturbadas e pecaminosas; mas na medida em
que concordam com a ordem da sabedoria e justiça divinas, ambas
existem e são governadas por Deus.
A isso se objeta: aquilo que se opõe à vontade de Deus não é governado
por Deus. A vontade dos demônios e dos homens se opõe à vontade
de Deus. Portanto, não é governado por Deus. Resposta: existem aqui
quatro termos neste silogismo; pois a proposição maior é verdadeira
tanto quanto à vontade secreta quanto revelada de Deus, enquanto a
proposição menor é verdadeira quanto à vontade de Deus apenas
quando revelada e tornada conhecida.
A segunda objeção contra a providência de Deus é em referência
à causa do pecado.
Todas as ações e desejos ou movimentos são de Deus. Muitas ações
são pecaminosas. Portanto, o pecado vem de Deus e, como
consequência, a doutrina de uma providência universal torna Deus o
autor do pecado. Resposta: Existe uma falácia do acidente em menor
proporção; pois as ações dos ímpios são pecado, não em si mesmas
(per se), na medida em que são ações; mas por um acidente por causa
da falta de justiça e da perversidade da vontade dos ímpios, que não
observam isso para seguir na ação a vontade de Deus. Pois esta falta
de justiça e perversidade é um acidente da vontade e ação da criatura,
que Deus deseja que seja efetuada pela vontade corrupta.
Objeção 1. Mas muitas ações são em sua própria natureza pecados.
Portanto, eles também são pecados em si mesmos. Resposta:
Aceitamos todo o argumento, uma vez que respeita ações proibidas
por Deus e cometidas por criaturas contrárias à vontade de Deus; na
medida em que são pecaminosos; mas não na medida em que Deus os

338 | P á g i n a
deseja ou ordena que sejam feitos. Pois com respeito à vontade divina
que os estimula ou produz, eles são sempre o mais justo julgamento
de Deus; nem ficam sem manifesto desprezo por Deus sob o nome do
pecado, para que sejam compreendidos por sua classe. Portanto, o
antecedente é falso.
Objeção 2. Aquele que deseja uma ação que é pecaminosa em si
mesma, também deseja o pecado. Deus deseja ações que são
pecaminosas em si mesmas, como a venda de José no Egito, a sedição
de Absalão, a mentira de falsos profetas, a crueldade dos assírios, a
crucificação de Cristo, e assim por diante. Portanto, Ele deseja o
pecado. Resposta: A proposição maior é verdadeira para aquele que
deseja uma ação que é pecaminosa em relação à Sua vontade, ou que
deseja uma ação com o mesmo fim com que aquele que peca; mas não
daquele que deseja e faz uma obra pecaminosa em relação à vontade
de outrem, ou que deseja determinada coisa com um fim diferente, e
aquele bem, visto que está em harmonia com a natureza e a lei de
Deus. Mas as ações dos assírios e de outros pecadores que Deus quis
eficazmente, são pecados, não em relação à vontade de Deus, mas em
relação à vontade do homem pecador; pois Deus desejou todas essas
coisas com o melhor fim, enquanto os homens, por outro lado, com o
pior fim as desejaram. Para que esta resposta seja melhor
compreendida e refutada com maior força essas objeções, esta regra
geral deve ser observada, a verdade da qual se manifesta tanto na
teologia quanto na filosofia moral e natural: quando há muitas causas
de um mesmo efeito, alguns bons e outros maus, esse efeito com
respeito às boas causas, é bom, enquanto com respeito ao mal é mau
e pecaminoso; e as boas causas são em si mesmas as causas do bem,
mas por acidente elas se tornam as causas dos efeitos que são maus e
pecaminosos, ou do pecado que acontece por causa de uma certa
causa pecaminosa; e, ao contrário, as causas pecaminosas são em si
mesmas as causas do mal, mas por acidente elas se tornam a causa do

339 | P á g i n a
bem, que está no efeito. É universalmente verdade que as causas
eficientes e finais fazem a diferença nas ações. É por esta razão que a
mesma ação, como por exemplo, a venda de José ao Egito foi uma
coisa das mais perversas em relação aos seus irmãos, e ao mesmo
tempo boa em relação a Deus por causas diferentes, eficientes e finais.
E assim como a boa obra de Deus não pode ser atribuída aos irmãos
de José, suas más ações não podem ser atribuídas a Deus.
Objeção 3. Aquilo que não pode ser feito, Deus proibindo
absolutamente, pode, não obstante, ser feito quando Deus quiser. O
pecado, na medida em que é pecado, não pode ser cometido quando
Deus não o deseja expressamente, por ser onipotente. Portanto, o
pecado deve ser cometido pela vontade de Deus. Resposta: Negamos
a consequência, porque a proposição principal é defeituosa; não
contém tudo o que deve ser enumerado. Isso é falta, ou quando Ele
permite: pois o pecado pode ser cometido quando Deus não o deseja
simplesmente, mas o permite voluntariamente. Ou podemos dizer que
há uma ambiguidade na frase não querer, que às vezes significa
desaprovar e prevenir ao mesmo tempo, em cujo sentido é impossível
que algo seja feito quando Deus não o quer, caso contrário Ele não
seria onipotente; e, novamente, significa apenas desaprovar e não
impedir, mas permitir. Nesse sentido, os pecados podem ser cometidos
quando Deus não os deseja, isto é, quando Ele não os aprova; mas
ainda não restringe os ímpios a ponto de impedir sua consumação.
Objeção 4. A falta de justiça no homem vem de Deus. Essa falta de
justiça é pecado. Portanto, o pecado vem de Deus. Resposta: existem
quatro termos neste silogismo, pois na proposição principal, a falta de
justiça significa a deserção e retirada da graça ativamente, que é uma
punição mais justa para o pecado da criatura e, portanto, vem de Deus;
enquanto na proposição menor deve ser entendido passivamente,
significando uma falta daquela justiça que devemos possuir, que,
quando é voluntariamente contraída e recebida pelos homens, e existe

340 | P á g i n a
neles contrária à lei de Deus, é o pecado que é nem feito nem desejado
por Deus. Resumidamente: esta falta de justiça vem de Deus na
medida em que é uma punição; e não procede dEle na medida em que
é pecado, ou oposição à lei na criatura.
Objeção 5. Os pecadores são governados por Deus. As ações dos
pecadores são pecado. Portanto, os pecados vêm de Deus. Resposta:
Há mais proposições expostas na conclusão do que nas premissas: pois
isso é tudo o que se segue legitimamente. Portanto, os pecados são
governados por Deus, o que é verdade na medida em que são
meramente desejos e ações, e são direcionados para a glória de Deus.
Também há uma falácia de acidente na proposição menor; pois as ações
são pecado na medida em que são praticadas por homens maus,
contrários à lei, e não na medida em que Deus influencia os homens
a praticá-las. Elas são e tornam-se más, portanto, não por si mesmas,
mas por um acidente, que é a corrupção de quem as executa, assim
como a água pura se torna lamacenta e suja por fluir por um canal
impuro, ou como o melhor vinho saindo de um bom vaso, torna-se
ácido ao ser colocado em um vaso impuro, de acordo com o que
Horácio diz: “A menos que o vaso esteja limpo, aquilo que tu colocaste nele
azeda“; ou como a cavalgada de um bom cavaleiro é interrompida se o
cavalo for manco. Em todos esses e outros exemplos semelhantes, aquelas
coisas que são boas em si mesmas são corrompidas por um acidente,
de forma que temos a realização do que é chamado de falácia do
acidente, na medida em que procede da própria coisa para aquilo que
concorre com ele por um acidente desta forma. O governo de um
cavalo coxo é claramente uma parada. O cavaleiro deseja e faz o
governo do cavalo aleijado. Portanto, ele deseja e opera a parada. Ou
a venda de José por seus irmãos foi um pecado. Deus quis essa venda.
Portanto, Ele desejou o pecado.
Objeção 6. Deus é o autor das coisas que são feitas pela providência
divina. Todos os males resultam da providência divina. Portanto, Deus

341 | P á g i n a
é o autor deles. Resposta: Aceitamos todo o argumento, uma vez que
respeita o mal da punição; mas quanto ao mal da culpa, o maior deve
ser distinguido da seguinte forma. Aquelas coisas que são feitas pela
providência de Deus as efetuando, ou de tal forma que resultem dela
como uma causa eficiente, Deus é o autor delas; mas não daquelas que
resultam da providência de Deus apenas com permissão, ou que Deus
permite, determina e dirige para os melhores fins, como é o caso do
mal da culpa ou do crime. Pois os males da culpa ou dos pecados, na
medida em que são tais, não têm a natureza ou consideração do bem,
como se pode dizer que é verdadeiro no caso do mal da punição.
Consequentemente, Deus não deseja as coisas que são pecados, nem
as aprova, nem as produz, nem as promove ou deseja, mas apenas
permite que elas sejam feitas, ou não impede que sejam cometidas, em
parte para que Ele possa exercer Sua justiça naqueles que merecem
ser punidos, e em parte para que Ele possa exibir Sua misericórdia ao
perdoar os outros. “A Escritura encerrou tudo sob o pecado para que a
promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos que creem” (Gálatas 3:22);
“Mesmo para este propósito te levantei, a fim de mostrar o Meu poder em ti”
(Romanos 9:17). É por esta razão declarada na definição da doutrina
da providência divina, que Deus permite que o mal seja feito. Mas esta
permissão, como já mostramos, inclui a retirada da graça divina pela
qual Deus, 1. Não faz conhecida ao homem Sua vontade, para que ele
possa agir de acordo com ela. 2. Ele não inclina a vontade do homem
para obedecê-lO e honrá-lO, e para agir de acordo com Sua vontade
conforme revelada. “Se surgir entre vós um sonhador de sonhos, não o
ouvirás, porque o Senhor vosso Deus vos prova” (Deuteronômio 13:1, 3); “O
Senhor moveu Davi contra Israel para dizer: Vai e conta Israel e Judá” (2
Samuel 24:1). Por que Ele depois puniu Davi? Para que Davi fosse
trazido ao arrependimento. 3. Ele, no entanto, influencia e controla
aqueles que estão assim abandonados, de forma a cumprir por meio
deles Seus julgamentos justos; pois Deus faz coisas boas por meio de
instrumentos maus, não menos do que por meio dos que são bons.

342 | P á g i n a
Pois como a obra de Deus não é melhorada pela excelência do
instrumento, de forma que também não é agravada pelo mau caráter
do instrumento. Deus deseja ações que são más, mas apenas na
medida em que sejam punições dos ímpios. Todas as coisas boas vêm
de Deus. Todas as punições são justas e boas. Portanto, elas vêm de
Deus, conforme se diz: “Haverá mal [de punição] na cidade, e o Senhor não
o realizou?” (Amós 3:6). O apóstolo Tiago diz em referência ao mal da
culpa: “Ninguém, quando for tentado (isto é, quando ele é seduzido para o mal)
diga que ele é tentado por Deus“ (Tiago 1:13). Somente o mal da punição,
portanto, vem de Deus, como os castigos e o martírio dos santos, que
Ele mesmo deseja e faz. “Agora, portanto, não fiqueis tristes nem irados
consigo mesmos por me venderem aqui; porque Deus me enviou antes de vós
para preservar sua vida” (Gênesis 45:5). Mas Deus não desejou a morte.
Resposta: Ele não a desejou na medida em que é um tormento e
destruição da criatura, mas Ele a desejou na medida em que é um
castigo pelo pecado e a execução de Seu julgamento. “Apesar disso, eles
não deram ouvidos à voz de seu pai, porque o Senhor os mataria” (2 Samuel
2:25).
A terceira objeção é em relação a vontades contraditórias.
Aquele que, em seu conselho secreto, deseja e proíbe por sua lei a
mesma obra, nele há vontades contraditórias. Mas em Deus não
existem vontades contraditórias. Portanto, Ele não deseja, por Sua
secreta determinação, as coisas que proíbe em Sua lei, como roubo,
assassinato, luxúria, furto e outros atos proibidos. Resposta: 1. Aceitamos
todo o argumento na medida em que essas coisas são feitas por
criaturas contrárias à lei e são pecados. Nesse sentido, Deus não as
deseja nem as aprova, mas apenas na medida em que são certos
movimentos e punições dos ímpios. 2. Devemos fazer uma distinção
com referência à proposição principal; pois é contraditório dizer que
Ele deseja e proíbe a mesma obra no mesmo aspecto e com o mesmo
fim. Deus deseja e proíbe as mesmas coisas, mas em um aspecto

343 | P á g i n a
diferente e com um fim diferente. Ele desejou, por exemplo, a venda
de José na medida em que fosse a ocasião de sua elevação, a
preservação da família de Jacó e o cumprimento das profecias a
respeito da escravidão da semente de Abraão no Egito. Mas na medida
em que foi ordenado embora pelo ódio de seus irmãos, Ele não
desejou, mas denunciou e condenou como horrível fratricídio. E o
mesmo acontece com os outros exemplos que apresentamos.
A quarta objeção se refere à liberdade e contingência
Aquilo que é feito pelo decreto imutável de Deus não pode ser feito
contingente e livremente, mas necessariamente. Mas muitas coisas são
feitas de forma contingente e livre. Portanto, muitas coisas não são
feitas pelo decreto e providência imutáveis de Deus, ou então a
liberdade e a contingência são retiradas. Resposta: 1. Nós
respondemos à proposição principal. O que é feito pelo decreto
imutável de Deus não pode ser feito contingentemente, a saber: em
relação à causa primeira, ou em relação ao mesmo decreto divino
imutável, que ainda pode ser executado contingentemente em relação
a uma segunda e última causa operando de forma contingente ou livre.
Pois a contingência é a ordem entre uma causa mutável e seu efeito:
assim como a necessidade é a ordem entre uma causa necessária e seu
efeito. Por isso, a causa deve ser do mesmo caráter que o efeito. Mas o
mesmo efeito pode proceder de uma causa mutável e necessária em
diferentes aspectos, como é o caso com todas as coisas que Deus faz
por meio de Suas criaturas; do qual Deus e Suas criaturas são a causa.
Assim, com respeito a Deus, há uma ordem imutável entre causa e
efeito; mas com respeito às criaturas, há uma ordem mutável entre a
causa e o mesmo efeito. Portanto, em relação a Deus é necessária, mas
em relação à criatura é contingente quanto ao mesmo efeito. Portanto,
não é absurdo que o mesmo efeito deva ser dito ser necessário e
contingente em relação a diferentes causas, isto é, em relação a uma
causa primeira imutável agindo necessariamente, e em relação a uma
segunda causa mutável agindo contingentemente.

344 | P á g i n a
2. Também negamos o que é dito na maior parte, que isso não é feito,
ou pode ser feito livremente, o que é feito por decreto imutável de
Deus. Pois não é imutabilidade, mas restrição; ou não é a necessidade
de imutabilidade, mas a de constrangimento que tira a liberdade. Deus
é imutável e necessariamente bom, mas ao mesmo tempo é mais
livremente bom: os demônios são imutáveis e necessariamente maus;
no entanto, são maus e realizam o que é mau com a maior liberdade
de vontade.
A quinta objeção refere-se à inutilidade dos meios
É em vão que os meios são empregados com o propósito de impedir
ou fazer avançar as coisas que são feitas pela imutável vontade e
providência de Deus; tais são os conselhos, mandamentos, doutrinas,
exortações, promessas e ameaças de Deus; os trabalhos, esforços,
orações, e outros atos, dos santos. Mas esses meios não são empregados
em vão, porque são ordenados por Deus. Portanto, todas as coisas não
são feitas pelo conselho e providência imutáveis de Deus. Resposta:
Réplica 1. Negamos a proposição maior, porque a causa primeira e
principal sendo consideradas, não é necessário que se remova o que é
secundário e instrumental; nem o contrário. A razão é porque Deus
decretou também empregar meios e causas secundárias com o
propósito de cumprir os fins e efeitos determinados por Si mesmo, e
Ele nos mostra em Sua palavra e na ordem da natureza que deseja
usá-los, e ordena que façamos o mesmo. Portanto, não é em vão que o
sol nasça e se ponha diariamente; nem é em vão que os campos são
semeados, ou regados com chuvas, ou que nossos corpos são
refrescados com comida, embora Deus crie a luz e as trevas, faça com
que o milho brote da terra e seja a vida e a duração de nossos dias. Da
mesma forma, não é em vão que os homens são ensinados e que devam
estudar para conformar suas vidas a certos hábitos ou doutrinas,
embora as ações e eventos que promovem nosso bem-estar procedam
somente de Deus. Portanto, os meios devem ser empregados: 1. Para
que possamos prestar obediência a Deus, que ordenou os fins e os

345 | P á g i n a
meios para atingir esses fins e os prescreveu para nós; caso contrário,
tentamos a Deus por nossa conta e risco. 2. Para que possamos obter
as coisas boas que nos foram prometidas. 3. Para que tenhamos uma
boa consciência, embora nem sempre obtenhamos o que desejamos e
esperamos com o uso desses meios.
Réplica 2. Também é uma falácia declarar que isso seja verdade em
geral, o que só é verdade em um certo aspecto; pois mesmo onde nada
não é feito por meios, eles são, não obstante, proveitosos a esse
respeito, que tornam os ímpios inescusáveis.
A sexta objeção diz respeito a recompensas e punições
Aquelas coisas que são necessárias não merecem galardões ou
punições. Todas as boas obras merecem galardões, enquanto as más
obras merecem punição. Portanto, boas e más obras não acontecem
necessariamente, mas de forma mutável. Resposta: 1. Concebemos o
todo em relação às causas secundárias, das quais muitas coisas
procedem de forma mutável e que, portanto, produzem efeitos
mutáveis. 2. Negamos o que é afirmado na proposição menor, que as
boas obras merecem galardões com Deus, embora possam ser
recompensadas entre os homens, como é dito de Abraão: “Se ele foi
justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não antes Deus” (Romanos
4:2). 3. Negamos a proposição principal se for entendida como obras
más em geral; pois as obras más merecem punição, a depravação e a
vontade corrupta do homem é um testemunho suficiente, sejam elas
necessariamente feitas ou não. O próprio Aristóteles, ao tratar deste
assunto em sua obra “Ética”, afirma que o bêbado não deve ser
desculpado pelo pecado da intoxicação, e que os homens são
merecidamente punidos e repreendidos por vícios, sejam do corpo ou
da mente, dos quais eles próprios são a causa, embora eles possam não
ser capazes de evitá-los ou abandoná-los porque eles trouxeram essas
coisas sobre si mesmos, por sua própria palavra.

346 | P á g i n a
Questão 28. Que benefício temos em saber que Deus criou todas as
coisas, e Sua providência ainda as sustenta?
Resposta: Para que possamos ser pacientes na adversidade; gratos
na prosperidade; e que em todas as coisas que possam acontecer no
futuro, nós coloquemos nossa firme confiança em nosso Deus e Pai
fiel, que nada nos separará de Seu amor; visto que todas as
criaturas estão tão sob Seu controle, que sem Sua vontade elas não
podem sequer se mover.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 28

É necessário que a doutrina da criação de todas as coisas e da


providência de Deus seja conhecida e mantida:
1. Por causa da glória de Deus: pois aqueles que negam a criação e
providência de Deus, negam também Seus atributos; e ao fazer isso
eles não engrandecem nem louvam a Deus, mas O negam. Portanto, a
doutrina da providência deve ser conhecida para que possamos
atribuir a Deus a glória do poder, sabedoria, bondade e justiça que se
manifestam na criação, preservação e governo de todas as coisas.
2. Por causa de nossa consolação e salvação, para que possamos por
este meio ser conduzidos, em primeiro lugar, a exercer paciência na
adversidade; pois tudo o que acontecer pela vontade e conselho de
Deus, e for proveitoso para nós, devemos suportar pacientemente. Mas
todas as coisas, mesmo aquelas que são más, acontecem pelo conselho
e vontade de Deus e são proveitosas para nós. Portanto, devemos
suportar isso com paciência, e em todas as coisas considerar e
reconhecer a vontade paternal de Deus para conosco. Em segundo
lugar, para que na prosperidade possamos ser gratos a Deus pelos
benefícios recebidos: porque de quem recebemos todas as coisas boas,
tanto temporais como espirituais, grandes ou pequenas, a Ele devemos
ser gratos. Agora, é de Deus, o autor de todas as boas dádivas, que

347 | P á g i n a
temos tudo o que desfrutamos. Portanto, devemos ser gratos a Ele, ou
seja, devemos reconhecer e celebrar Seus benefícios. Pois a gratidão se
baseia na vontade e justiça de Deus; e, portanto, consiste em
reconhecer e celebrar Seus benefícios para conosco, e em fazer
retornos adequados pelos mesmos. Em terceiro lugar, para que
possamos nutrir uma boa esperança em relação a todas as coisas que
possam acontecer no futuro, de modo a ficarmos totalmente seguros
de que se Deus por Sua providência nos livrou até agora dos males do
passado, Ele também fará no futuro todas as coisas subservientes à
nossa salvação, e nunca nos abandone a ponto de perecermos. Em
suma, os fins da doutrina da providência divina são: a glória de Deus,
paciência na adversidade, gratidão na prosperidade e esperança em
relação às coisas futuras.
Destas coisas, parece que toda a verdade da religião e o próprio
fundamento da piedade seriam derrubados se a providência de Deus,
como foi definida e explicada, não fosse mantida: Porque, 1. Não
seríamos pacientes na adversidade se não soubéssemos que essas
coisas são enviadas sobre nós por Deus, nosso Pai. 2. Não seríamos
gratos pelos benefícios que recebemos se não soubéssemos que eles
nos são dados do alto. 3. Não teríamos uma esperança boa e certa em
relação às coisas futuras, se não estivéssemos plenamente persuadidos
de que a vontade de Deus, em relação à nossa salvação, e a de todo o
Seu povo, é imutável.

348 | P á g i n a
11º DIA DO SENHOR

DE DEUS, O FILHO

Questão 29. Por que o Filho de Deus é chamado Jesus, ou seja, um


salvador?
Resposta: Porque Ele nos salva e nos livra de nossos pecados; e da
mesma forma porque não devemos buscar, nem podemos encontrar
salvação em nenhum outro.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 29

A segunda parte do credo, que agora se segue, trata do mediador. A


doutrina do mediador consiste em duas partes: a primeira diz respeito
à pessoa do mediador; a outra do seu ofício. Esses dois artigos dizem
respeito à sua pessoa; e em Jesus Cristo Seu filho unigênito, nosso
Senhor, que foi concebido pelo Espírito Santo, nascido da virgem
Maria. Os quatro artigos seguintes, que nos levam ao artigo do
Espírito Santo, tratam do ofício do mediador. O ofício do mediador
consiste em duas partes: sua humilhação ou mérito; e sua glorificação
ou eficácia. Agora, no que diz respeito à Sua humilhação, Cristo é
meritório; no que diz respeito à Sua glorificação, Ele é eficaz. O quarto
artigo trata de Sua humilhação: “sofreu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado,
morto e sepultado; Ele desceu ao inferno”. O 5º e o 6º artigos tratam de Sua
glorificação: no terceiro dia Ele ressuscitou dos mortos; ascendeu ao
céu; senta-se à direita de Deus Pai Todo-Poderoso. O 7º artigo, que se
refere à Sua vinda para julgar o mundo, diz respeito à consumação de
Sua glória, quando Deus será tudo em todos.

349 | P á g i n a
Aparenta, pelo que agora foi dito, com que grande sabedoria os artigos
do Credo foram escritos, e quão bem eles estão arranjados em
referência à questão do mediador. A humilhação que é a primeira
parte de Seu ofício tem estes graus: “Ele sofreu, foi crucificado, morto,
sepultado e desceu ao inferno”. Descemos gradualmente de um grau a
outro até chegar ao ponto mais baixo de Sua humilhação, que se
encontra no artigo de Sua descida ao inferno. A outra parte do Seu
ofício, que é a Sua glorificação, ascende gradualmente da glória que é
menor para a que é maior até atingir o seu ponto mais alto, em Sua
exaltação à destra de Deus. A mesma ordem e sabedoria aparecem na
primeira parte do credo, e também na terceira, onde enumeramos na
mais bela ordem e sucessão, os benefícios que Cristo adquiriu e nos
aplica pelo Espírito Santo, e que é, como eram, o fruto dos artigos
anteriores. O ofício de Cristo difere de Seus benefícios como causa e
efeito, ou como antecedente e consequente. Os benefícios são as
próprias coisas que Cristo comprou para nós e que Ele nos dá, como
a remissão de pecados, a justiça eterna e a salvação. Seu ofício é obter
e dar essas coisas.
E em Jesus: isto é, “eu creio em Jesus Cristo”. As palavras, creio, devem ser
repetidas, porque assim como cremos em Deus, o Pai, também cremos
no Filho de Deus, conforme está escrito: “Vós credes em Deus, crede
também em Mim” (João 14:1); “Credes em Mim que Eu estou no Pai, e o Pai
está em Mim” (João 14:11); “Eu e meu Pai somos um” (João 10:30); “Esta é a
Palavra de Deus, para que creiais nAquele que Ele enviou” (João 6:29); “Aquele
que crê no Filho tem a vida eterna” (João 3:36); “Para que todos os homens
honrem o Filho como honram o Pai” (João 5:23). Este é um argumento
seguro e bem fundamentado em apoio à verdadeira Divindade do
Filho; pois a fé sob esta forma é adoração devida somente a Deus.

350 | P á g i n a
No tocante ao nome Jesus, que estamos aqui a considerar, não
devemos apenas perguntar sobre a etimologia dele, o que ele importa,
mas devemos considerar mais especialmente o ofício do mediador,
que é significado nele. A palavra Jesus (em grego ιησούς [Iēsous], e em
hebraico Jehoseuah ou Jesehuah) significa um salvador, ou o autor da
salvação, que o próprio Deus atribui ao mediador no Novo
Testamento. A verdadeira etimologia ou significado da palavra foi
dada pelo anjo quando ele disse: “Seu nome será Jesus, porque Ele salvará
o Seu povo dos seus pecados” (Mateus 1:21). O Filho de Deus é, portanto,
chamado Jesus, o salvador com respeito ao Seu ofício, porque Ele é
nosso mediador, e nos salva e nos livra do mal, tanto da culpa quanto
do castigo; e isso verdadeiramente, porque Ele é o único e perfeito
salvador. A salvação que Ele oferece é justiça e vida eterna. Isso se
infere do próprio nome, porque Ele não tem o nome sem o objeto do
nome, senão por conta do ofício.
Objeção. Mas muitos outros também tiveram o nome de Jesus, como
Josué, o líder dos filhos de Israel. Portanto, nada pode ser inferido e
argumentado a partir do próprio nome. Resposta: Outros receberam
esse nome porque eram salvadores típicos, prenunciando o verdadeiro
salvador. E se for objetado que os pais de Josué, quando deram este
nome a seu filho bebê, não poderiam ter esperado que a futura
libertação fosse trazida a Israel por meio dele, respondemos que Deus
sabia disso, e dirigiu suas vontades de tal forma nomeando a criança.
A diferença, entretanto, entre outros salvadores e este Jesus é grande.
1. Outros tiveram este nome dado a eles fortuitamente pela vontade
dos homens, mas este Jesus foi assim chamado pelo anjo. 2. Outros
eram típicos; este Jesus é o salvador nomeado e verdadeiro. 3. Deus
meramente conferiu bênçãos temporais a Seu povo por meio de outros
libertadores; este Jesus nos liberta não apenas dos males físicos e
temporais, mas também dos males da culpa e do castigo. 4. Outros
libertadores foram apenas instrumentos e ministros por meio dos

351 | P á g i n a
quais Deus deu essas bênçãos temporais; este Jesus é o autor não
apenas de todas as coisas boas que respeitam o corpo e esta vida, mas
também daquelas que respeitam a alma e a vida futura.
O Filho de Deus é, portanto, chamado Jesus por meio de
preeminência para indicar assim que Ele é o verdadeiro salvador.
Isso é evidente,
1. Porque Ele nos salva do duplo mal da culpa e do castigo. Que Ele
nos salva do mal da culpa é testemunhado pelo anjo que disse: “Ele
salvará o Seu povo dos Seus pecados” (Mateus 1:21)30. Que Ele nos liberta
do mal de punição pode ser inferida a partir do fato de que, se o
pecado ser tomado de longe, a punição, que é o efeito do pecado,
também devem ser tomadas, porque, se a causa ser removido o efeito
também deve ser removido. As pessoas que Jesus salva são todos
aqueles que creem, e somente eles. Ele é o salvador apenas daqueles
que creem, porque é somente neles que seu fim é alcançado. Ele
estabeleceu uma Igreja no mundo para reunir e salvar os homens; mas
com esta condição, que compreendam os benefícios que Ele oferece e
sejam gratos a Ele por causa deles.
2. Porque Ele é o único salvador. Pois assim como nosso mediador é
apenas um, Jesus também deve ser nosso único salvador, de acordo
com o que é declarado em muitas passagens da Escritura: “Não há
nenhum outro nome debaixo dos céus dado aos homens pelo qual devamos ser
salvos” (Atos 4:12); “Quem não crê já está condenado, porque não creu no
nome do unigênito Filho de Deus” (João 3:18); “Deus nos deu a vida eterna, e
esta vida está em Seu Filho” (1 João 5:11); “Porque há um só Deus e um só
mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus” (1 Timóteo 2:5); “Eu,
Eu Mesmo Sou o Senhor, e além de Mim não há salvador” (Isaías 43:11).

30 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

352 | P á g i n a
Objeção. O Pai e o Espírito Santo também nos salvam. Portanto, o
Filho não é o único salvador. Resposta: É verdade que todas as pessoas
da Trindade estão engajadas na obra de nossa salvação, mas há uma
distinção quanto à forma pela qual Elas nos salvam. O Pai nos salva
por meio do Filho como a fonte da salvação. O Espírito Santo nos
salva como sendo o agente imediato ou feitor de nossa regeneração.
O Filho nos salva pelo Seu mérito, sendo o único salvador, pagando
um resgate por nós, dando o Espírito Santo, para a vida eterna nos
regenerando e nos ressuscitando para a vida eterna. A eficácia de
nossa salvação é, portanto, comum às três pessoas da Divindade; mas
a forma é peculiar ao Filho. Novamente, o Filho é chamado de único
salvador em oposição a todas as criaturas. Ele, portanto, exclui todas
as criaturas, mas não o Pai, ou o Espírito Santo, como se diz: “Ninguém
conhece as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus” (1 Coríntios 2:11); da
qual não devemos inferir que o Pai e o Filho não Se conhecem, pois o
Espírito é aqui comparado com as criaturas, e não com o Pai e o Filho.
3. Ele é um salvador em dois aspectos, por Seu mérito e eficácia. Ele
nos salva por Seu mérito ou satisfação, porque por Sua obediência,
sofrimento, morte e intercessão, Ele mereceu para nós a remissão dos
pecados, a reconciliação com Deus, o Espírito Santo, a salvação e a
vida eterna. “Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não apenas pelos
nossos, mas pelos pecados de todo o mundo” (1 João 1:7), isto é, pelos
pecados de todos os tipos de homens, de qualquer idade, posição ou
lugar em que estejam. “O sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, de todo pecado
nos purifica” (1 João 1:7). “A quem Deus estabeleceu para ser propiciação pela
fé em Seu sangue, para declarar Sua justiça para a remissão dos pecados
passados” (Romanos 3:25); “Pela obediência de um, muitos foram feitos
justos” (Romanos 5:19). “O Senhor fez cair sobre Ele a iniquidade de todos
nós” (Isaías 53:5). Ele também nos salva por Sua eficácia, porque Ele
não só, por seus méritos, obteve para nós a remissão dos pecados, da
justiça e daquela vida que perdemos, mas Ele também dá e aplica a

353 | P á g i n a
nós todo o benefício da redenção em virtude de Seu Espírito por meio
da fé. Pois o que Ele mereceu com Sua morte, Ele não guarda apenas
para Si mesmo; mas confere sobre nós. Ele não comprou a salvação e
a vida eterna (que tinha) para Si, mas para nós, como nosso mediador.
Portanto, Ele nos revela a vontade do Pai, institui e preserva o
ministério, por meio disso dá o Espírito Santo e converte os homens,
congrega uma Igreja, dá todas as coisas boas necessárias para esta
vida, defende sua Igreja contra todos os seus inimigos, enfim
ressuscita no último dia para a vida eterna, todos aqueles que creem
nele, e os livra de todos os males, enquanto Ele lança todos os nossos
e Seus inimigos no castigo eterno. Realizar todas essas coisas é obra
do Deus verdadeiro, o único que é todo-poderoso. Em suma, sua
eficácia nos regenera por Sua palavra e Espírito nesta vida, e preserva
aqueles que são renovados, para que não caiam novamente, e por fim
os eleva à vida eterna. Essas passagens das Escrituras falam dessa
revelação e regeneração. “Ninguém sabe quem é o Filho senão o Pai, e quem
é o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho O revelar” (Mateus 11:27); “O
Filho unigênito, que está no seio do Pai, Ele O declarou” (João 1:18); “Há outro
que vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Mateus 3:11); “Eu enviarei
o Espírito Santo a vocês da parte do Pai” (João 15:26); “Quando Ele ascendeu
ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens – (...) alguns pastores e
mestres (...); Ele subiu acima de todos os céus para preencher todas as coisas”
(Efésios 4:8, 10, 11); “O Filho de Deus Se manifestou para destruir as obras
do Diabo” (1 João 3:8). Quanto à preservação dos que creem, as
seguintes passagens podem ser citadas: “Não se turbe o vosso coração;
credes em Deus, crede também em Mim (...) (João 14:1)”; “Eu estarei com vós
para sempre, até o fim do mundo (João 18:23);” “Eu não vou deixar você sem
conforto” “Eu e o Pai viremos a ele e faremos nele morada” (Mateus 18:20).
Sobre Ele nos elevar para a vida eterna, estas passagens das Escrituras
falam: “Eu o ressuscitarei no último dia” (João 6:54); “Ninguém arrancará
minhas ovelhas da minha mão, e Eu dou-lhes a vida eterna, e Eles nunca hão
de perecer” (João 10:28, 29); “Quando Ele tiver submetido todas as coisas a Si

354 | P á g i n a
mesmo, Ele apresentará diante de Deus uma Igreja gloriosa, que Ele reuniu
desde o início até o fim do mundo” (1 Coríntios 15:28); “Para a apresentar a
Si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas
santa e irrepreensível” (Efésios 5:27)31. Pelo que agora foi dito, podemos
perceber que o dom do Espírito Santo também faz parte da nossa
salvação, e que isso deve ser feito por meio do mediador; pois o
Espírito Santo renova o coração ao abolir o pecado, que sendo abolido,
a morte também deve, necessariamente, ser abolida. Foi para essa
destruição, ou abolição do pecado e da morte, que Cristo veio ao
mundo.
4. Ele nos salva plena e perfeitamente, iniciando a salvação em nós
nesta vida e, por fim, consumando-a na vida por vir. Ele a faz, porque
Seu mérito é o mais perfeito, e isso por duas razões, como já foi
explicado: primeiro, porque Ele é Deus. “Deus comprou a Igreja com Seu
próprio sangue;” (Atos 20:28). Do qual se manifesta que Sua satisfação
supera a punição e satisfação de todos os anjos; e em segundo lugar,
por causa da grandeza da punição que Ele suportou por nós. Ele
também nos salva da forma que acabamos de especificar, porque a
salvação que Ele nos confere é a mais completa e completa: “Vós sois
perfeitos nEle” (Colossenses 2:10); isto é, tendes todas as coisas que
dizem respeito a bem-aventurança eterna, e são tornados filhos
completos e felizes de Deus por e por causa de Jesus Cristo: “Porque
aprouve ao Pai que nEle habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19); “O
sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus , de todo pecado nos purifica“ (1 João
1:7); “Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus“ (Romanos
8:1); “Mas Este homem, porque permanece para sempre, tem um sacerdócio
imutável”; (Hebreus 7:24).

31 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

355 | P á g i n a
A suma de tudo o que foi dito sobre o nome de Jesus, pode ser
brevemente reduzido a estas perguntas:
1. Quem é Aquele que nos salva? O Filho de Deus é nosso Jesus ou
salvador.
2. Quem Ele salva? Seu povo, isto é, todos e somente os eleitos dados
a Ele pelo Pai.
3. De que males Ele nos salva? De todos os pecados e da punição do
pecado.
4. De que forma Ele nos salva? De duas formas; por Seu mérito e
eficácia, e em cada forma mais perfeitamente.
Agora, portanto, qual é o significado deste artigo: “eu creio em Jesus”?
Significa: 1. Eu creio que existe um certo salvador da raça humana. 2.
Creio que esta pessoa, Jesus, nascido da virgem Maria, é este salvador,
de quem o Pai declarou do céu: “Este é o Meu Filho amado em quem me
comprazo; a Ele ouvi” (Mateus 3:17). Deus, portanto, deseja que Ele seja
adorado e honrado: “Quem não honra o Filho, não honra o Pai que O enviou”
(João 5:23). 3. Eu creio que este Jesus, por Seu mérito e eficácia, de
todos os males nos livra, tanto do mal da culpa, quanto do mal da
punição, iniciando esta salvação em nós nesta vida, e a consumando
na vida por vir. 4. Eu creio que Ele não é apenas o salvador dos demais,
a quem Ele chamou para seu serviço, mas que Ele também é Meu
único e perfeito salvador, operando eficazmente em Mim aqui, e
conduzindo adiante até o dia da plena redenção a obra que Ele iniciou.

356 | P á g i n a
Questão 30. Será que creem em Jesus, o único salvador, os tais que
buscam a salvação e a felicidade nos santos, de si mesmos ou de
qualquer outro lugar?
Resposta: Eles não [creem em Jesus, o único salvador], pois embora
se gloriem dEle em palavras, ainda assim negam Jesus, o único
libertador e salvador nas [suas] obras. Pois uma dessas duas coisas
pode ser verdade: ou Jesus não é um salvador completo, ou que
aqueles que por uma fé verdadeira recebem este salvador deve
encontrar nEle todas as coisas necessárias à Sua salvação.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 30

Esta questão é proposta por causa daqueles que se gloriam no nome


de Jesus, e ainda, ao mesmo tempo, buscam sua salvação, seja total ou
parcialmente em algum outro lugar sem Ele, nos méritos dos santos,
nas indulgências do Papa, em suas próprias ofertas, obras, jejuns,
orações, esmolas, e em qualquer outra obra deles, como fazem os papistas,
os jesuítas e outros hipócritas de um caráter semelhante a estes.
Devemos, portanto, perguntar se essas pessoas creem em Jesus como
o único salvador ou não. É respondido que Eles não creem nEle, mas
em verdade O negam, por mais que se gloriem dEle em palavras. A
substância desta resposta está incluída neste silogismo, obtido da
descrição de um único e perfeito salvador: Quem é um salvador
perfeito e único, não confere a salvação por meio de outros, nem
apenas em parte. Jesus é um salvador completo e único, como
mostramos na exposição da questão anterior. Portanto, Ele não
confere salvação em conexão com outros, nem apenas em parte; mas
só Ele o confere na íntegra e da forma mais perfeita. Por isso,
concluímos com justiça que todos aqueles que buscam sua salvação
total ou parcialmente em outro lugar, na realidade negam que Ele seja
o único e perfeito salvador. Ou podemos colocar desta forma: aqueles
que buscam a salvação em outro lugar que não seja em Cristo, seja nos

357 | P á g i n a
santos, ou em si mesmos, e em outros, não creem em Jesus como o
único salvador. Os papistas e jesuítas, que consideram suas obras
meritórias, fazem isso. Portanto, eles não creem em Jesus como seu
único salvador. A proposição menor é reconhecida por eles; e quanto
à principal, é claramente evidente a partir da descrição que fizemos
de um salvador perfeito.
Objeção. Deus deseja e nos ordena que oremos uns pelos outros.
Portanto, atribuir uma parte de nossa salvação à intercessão dos
santos não impede o ofício e a glória de um único salvador. Resposta:
Há uma grande distinção a ser feita entre as intercessões de Cristo e
as dos santos. Cristo intercede por nós junto ao Pai, pela eficácia de
Sua dignidade e mérito peculiares; e é ouvido por conta de Si mesmo,
e obtém o que pede. Os santos oram e intercederam mutuamente
nesta vida, e as coisas boas que eles pedem e obtêm para si e para os
outros, eles procuram e obtêm, não por seu próprio valor, mas com
base na dignidade e mérito do mediador. Portanto, na medida em que
os papistas imaginam que os santos obtêm o favor de Deus e certas
coisas boas para os outros por causa do merecimento de seus próprios
méritos, eles claramente anulam o ofício e a glória de Jesus, e negam
que Ele seja o único salvador.

358 | P á g i n a
12º DIA DO SENHOR

SOBRE O NOME, CRISTO

Questão 31. Por que Ele é chamado de Cristo, isto é, ungido?


Resposta: Porque Ele foi ordenado por Deus Pai e ungido com o
Espírito Santo para ser nosso profeta e principal mestre; que nos
revelou totalmente o conselho secreto e a vontade de Deus a respeito
de nossa redenção, e para ser nosso único sumo sacerdote, que, pelo
único sacrifício de Seu corpo, faz intercessão contínua com o Pai
por nós e nos redimiu; e também para ser nosso rei eterno, que nos
governa por Sua palavra e Espírito, e que nos defende e preserva
na alegria daquela salvação que Ele comprou para nós.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 31

Jesus é o nome próprio do mediador; Cristo é, por assim dizer, uma


denominação adicional; pois Ele é Jesus de tal forma que também é o
Cristo, o salvador e messias prometido. Ambos os títulos designam
Seu cargo, mas não com a mesma clareza; pois, enquanto o nome Jesus
denota o ofício do mediador de uma forma geral, o de Cristo o
expressa mais completa e distintamente; pois o nome Cristo expressa
as três partes de Seu ofício, a saber: profético, sacerdotal e real. O
nome Cristo significa o ungido. Portanto, Ele é Jesus o salvador, de tal
forma que é o Cristo, ou o ungido, tendo a função de ungido, que
consiste em três partes, como acabamos de comentar. A razão pela
qual essas três coisas são compreendidas no nome de Cristo, é porque
profetas, sacerdotes e reis foram ungidos na antiguidade, o que
significava tanto uma ordenação ao ofício, quanto uma atribuição dos
dons que eram necessários para o devido cumprimento das funções
assim impostas. Portanto, concluímos assim: aquele que há de ser

359 | P á g i n a
profeta, sacerdote e rei, e é chamado o ungido, e é assim chamado por
causa desses três ofícios. Cristo foi designado para ser profeta,
sacerdote e rei, e é chamado de ungido. Portanto, Ele é chamado de
ungido, ou Cristo, por causa desses três ofícios, de forma que essas
partes do ofício do mediador são expressas no único título do messias,
o Cristo, o ungido. Ao discutir esta questão do catecismo, devemos
inquirir:
I. O que significa a unção de Cristo, não vendo as Escrituras onde
falam dEle ser ungido?
II. Qual é o ofício profético de Cristo?
III. Qual é o ofício sacerdotal de Cristo?
IV. Qual é o ofício real de Cristo?

I. O QUE É A UNÇÃO OU UNÇÃO DE CRISTO?


A unção era uma cerimônia pela qual os profetas, sacerdotes e reis
eram confirmados em seus ofícios sendo ungidos com óleo comum ou
com um tipo específico de óleo. Essa unção significava: 1. Uma
ordenação, ou chamado para o ofício para o qual foram designados. 2.
A promessa e a concessão dos dons necessários para o propósito de
sustentar aqueles a quem o encargo de qualquer um desses ofícios foi
imposto. Havia também uma analogia entre o sinal, ou a unção
externa, e a coisa significada por meio dela: porque como o óleo
fortalece, revigora, renova e torna firme os membros secos e fracos do
corpo, e os torna ativos e adequados para a execução de seu ofício;
então o Espírito Santo vivifica e renova nossa natureza, imprópria
para a realização de qualquer coisa que é boa, e lhe fornece força e
poder para fazer o que é agradável a Deus, e para cumprir
adequadamente os deveres impostos a nós no relações nas quais
somos chamados a servi-lO.

360 | P á g i n a
Além disso, aqueles que foram ungidos sob o Antigo Testamento eram
tipos de Cristo, de forma que se pode dizer que sua unção era apenas
uma sombra, e por isso imperfeita. Mas a unção de Cristo foi perfeita.
Pois “nEle habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”.
(Colossenses 2:9). Somente Ele recebeu todos os dons do Espírito em
maior número e grau. Outro ponto de diferença é visto nisto, que
nenhum dos que foram ungidos sob o Antigo Testamento recebeu
todos os dons - alguns receberam mais, outros menos; mas ninguém
recebeu tudo, nem todos os dons receberam no mesmo grau. Cristo,
porém, tinha todos esses dons no sentido mais pleno e mais elevado.
Portanto, embora essa unção fosse própria daqueles do Antigo
Testamento, bem como de Cristo, não era real e perfeita em ninguém
exceto Cristo.
Objeção. Mas nós nunca lemos sobre a unção de Cristo nas Sagradas
Escrituras. Resposta: É verdade, de fato, que não há passagem na
Escritura onde se diz que Cristo foi ungido cerimoniosamente; mas Ele
foi realmente ungido e espiritualmente, isto é, Ele recebeu a coisa
significada por meio disso, que era o Espírito Santo. “Portanto, Deus, teu
Deus te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros” (Salmos
45:7; Hebreus 1:9); “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me
ungiu” (Isaías 61:1). A unção de Cristo é, portanto, mencionada tanto
no Antigo como no Novo Testamento. Convinha que Cristo fosse, não
um profeta, sacerdote e rei típico, mas aquele que era significativo e
verdadeiro, de quem todos os outros eram apenas sombras.
Consequentemente, convinha que Ele fosse ungido, não tipicamente,
mas realmente; pois era necessário que houvesse uma analogia entre
o ofício e a unção e, por consequência, tornou-se necessário que Sua
unção não fosse sacramental, mas espiritual; não típica, mas real.
Cristo foi, então, ungido, 1. Porque foi ordenado ao ofício de mediador
pela vontade de Seu Pai Celestial. “Eu não vim de Mim mesmo, mas o Pai
Me enviou” (João 7:28); “Deus nos falou por Seu Filho, a quem constituiu

361 | P á g i n a
herdeiro de todas as coisas” (Hebreus 1:1). 2. Porque Sua natureza humana
foi dotada com os dons do Espírito Santo sem medida; de forma que
Ele tinha todos os dons e graças necessárias para restaurar, governar
e preservar Sua Igreja, e para administrar o governo de todo o mundo,
e dirigi-lo para a glória de Deus e a salvação de Seu povo. “Porque aquele
que Deus enviou fala as palavras de Deus; porque Deus não dá o Espírito por
medida” (João 3:34). Essas duas partes da unção de Cristo diferem uma
da outra nesta forma, que a concessão de dons diz respeito apenas à
natureza humana, enquanto Sua ordenação ao ofício de mediador diz
respeito a ambas as naturezas.
Por isso, uma resposta é prontamente fornecida a outra objeção que
às vezes ouvimos: Deus não pode ser ungido. Cristo é Deus. Portanto,
Ele poderia ser ungido. Resposta: Concedemos o todo se for entendido
daquela natureza na qual Cristo é Deus, que Ele não pode ser ungido,
1. Porque é impossível para nós acrescentar qualquer coisa de justiça,
sabedoria e poder à Divindade. 2. Porque o Espírito Santo, por quem
a unção foi efetuada, é o próprio Espírito de Cristo, não menos do que
do Pai. Portanto, assim como ninguém pode te dar o teu espírito que
está em ti, porque o que tens não te pode ser dado; então ninguém
pode dar o Espírito Santo a Deus, porque o Espírito Santo está nEle,
é dEle, e é o Seu próprio Espírito, e é dado a outros por Ele.
Objeção. Mas se Cristo não pôde ser ungido quanto à Sua Divindade,
então Ele é profeta, sacerdote, rei e mediador, de acordo com Sua
humanidade apenas; pois Ele é mediador de acordo com aquela
natureza somente que poderia ser ungida. Mas era possível para Ele
ser ungido apenas quanto à Sua humanidade. Portanto, Ele é mediador
de acordo com Sua humanidade somente. A proposição menor é
comprovada pela definição de unção, que é receber dons. Mas Ele
recebeu dons apenas quanto à Sua natureza humana. Portanto, foi
somente com respeito a isso que Ele foi ungido. Resposta: Negamos o
que é afirmado aqui, porque a definição que é dada da unção não é

362 | P á g i n a
suficientemente distinta nem completa; pois a unção não inclui
meramente o recebimento dos dons que pertencem apenas à
humanidade de Cristo, mas também uma ordenação ao ofício de
mediador que diz respeito a ambas as naturezas. Portanto, embora
somente a humanidade de Cristo pudesse receber o Espírito Santo,
não se segue que Sua Divindade foi excluída desta unção, na medida
em que era uma designação para o ofício de mediador. Ou podemos
apresentar o argumento mais claro, considerando-o negativamente:
Cristo não é mediador de acordo com a natureza na qual Ele não é
ungido. Ele não é ungido quanto à Sua divindade. Portanto, Ele não é
mediador em relação à Sua Divindade. Resposta: Existem aqui quatro
termos. Na maior, a unção é tomada para ambas as partes, ou para a
unção inteira - para a designação para o ofício e a concessão de dons.
Na menor, é considerado apenas em relação a uma parte da unção.
Portanto, segue-se que Cristo foi ungido de acordo com cada natureza,
embora de forma diferente, como foi mostrado. Portanto, Cristo é
profeta, sacerdote, rei e mediador, em relação a cada natureza, o que
se confirma na palavra de Deus por estas duas regras fundamentais:
1. As propriedades da natureza única do mediador, são atribuídas a
toda a pessoa em concreto, de acordo com a comunicação das
propriedades; mas com respeito àquela natureza à qual elas são
peculiares, como Deus está irado, sofreu, morreu, a saber, de acordo
com Sua humanidade. O homem Cristo é onipotente, eterno, em todos
os lugares, a saber, de acordo com Sua Divindade.
2. Os nomes, também, do cargo de mediador, são atribuídos a toda a
pessoa com respeito a ambas as naturezas, ainda preservando as
propriedades de cada natureza, e as diferenças nas obras peculiares a
cada uma; porque, tanto a natureza divina como a humana,
juntamente com as suas operações, são necessárias para o
desempenho do cargo de mediador. Para que cada uma execute o que
lhe é próprio, em conexão com a outra.

363 | P á g i n a
Irineu diz, em relação a este assunto, que esta unção deve ser
entendida como abrangendo as três pessoas da Divindade: o Pai, como
o que unge, o Filho, como o ungido, e o Espírito Santo, como o
unguento, ou a unção.

II. O QUE É O OFÍCIO PROFÉTICO DE CRISTO?


Tendo considerado o que devemos entender pela unção de Cristo,
devemos agora falar brevemente do tríplice ofício, ou das três partes
do ofício do mediador para o qual Cristo foi ungido. E para que
possamos ter uma compreensão adequada deste assunto, devemos
definir o que significam os termos profeta, sacerdote e rei, que podem
ser recolhidos das partes do ofício que essas pessoas individualmente
desempenharam.
A palavra profeta vem do grego τροφημι (trofimi), que significa:
publicar coisas que estão por vir. Em geral, um profeta é uma pessoa
chamada por Deus para declarar e explicar Sua vontade aos homens
a respeito das coisas presentes ou futuras, que de outra forma teriam
permanecido desconhecidas, visto que as verdades que ele revela são
de tal natureza que os homens, por si mesmos, nunca poderiam ter
alcançado um conhecimento delas. Um profeta é um ministro ou o
cabeça e principal dos profetas, que é Cristo. Dos profetas que eram
ministeriais, alguns eram do Antigo e alguns do Novo Testamento.
Entre os últimos, havia alguns que eram geralmente, e outros
especialmente, assim chamados.
Os profetas do Antigo Testamento eram pessoas imediatamente
chamadas e enviadas por Deus a Seu povo, para que reprovassem seus
erros e pecados, ameaçando punir os ofensores e chamando os
homens ao arrependimento; para que eles possam declarar e expor a
verdadeira doutrina e adoração a Deus, e preservá-la da falsidade e
corrupção; para que eles tornassem conhecida e ilustrassem a
promessa do Messias - os benefícios de Seu reino, e pudessem predizer

364 | P á g i n a
eventos que estavam por vir, tendo o dom de milagres e outros
testemunhos seguros e divinos para que não errassem no doutrina que
eles declararam; e, ao mesmo tempo, manter certas relações com o
Estado e cumprir deveres de caráter civil.
Um profeta do Novo Testamento especialmente assim chamado, era
uma pessoa imediatamente chamada por Deus, e provida com o dom
de profecia com o propósito de prever e predizer as coisas que virão;
tais foram Paulo, Pedro, Ágabo, e outros homens semelhantes. Quem quer
que tenha o dom de compreender, explicar e aplicar as Sagradas
Escrituras para a edificação da Igreja, e dos indivíduos, é um profeta,
geralmente assim chamado. É neste sentido que o termo é usado em
1 Coríntios 14:3, 4, 5, 29.
Cristo é o maior e principal profeta, e foi imediatamente ordenado
por Deus e enviado por Ele desde o início da Igreja no paraíso, com o
propósito de revelar a vontade de Deus à raça humana; instituindo o
ministério da palavra e dos sacramentos, e por fim manifestando-Se
na carne, e provando por Seus ensinamentos e obras divinas que Ele
é o Filho eterno e substancial do Pai, o autor da doutrina do evangelho,
dando por meio dela o Espírito Santo, acendendo a fé nos corações
dos homens, enviando apóstolos e reunindo para Si uma Igreja da raça
humana na qual possa ser obedecido, invocado e adorado.
O ofício profético de Cristo é, portanto, 1. Revelar Deus e toda a Sua
vontade aos anjos e aos homens, o que só poderia ser dado a conhecer
por meio do Filho e por uma revelação especial. “Aquele que está no seio
do Pai, esse O declarou“ (João 1:18); “Falo ao mundo o que tenho ouvido de
Meu Pai” (João 8:26). Era também função de Cristo proclamar a lei e
mantê-la livre dos erros e corrupções de homens. 2. Instituir e
preservar o ministério do evangelho; levantar e enviar profetas,
apóstolos, mestres e outros ministros da Igreja; o dom de profecia lhes
conferir e lhes dar os dons necessários para sua vocação. “E ele deu
alguns [para] apóstolos, e alguns [para] profetas, e alguns evangelistas (...)”

365 | P á g i n a
(Efésios 4:11); “Portanto, disse a sabedoria de Deus, Eu lhes enviarei profetas
e apóstolos (...)” (Lucas 11:49); “Pois eu vos darei uma boca, e sabedoria que
todos os seus adversários não poderão contradizer nem resistir“ (Lucas 21:15);
“O Espírito de Cristo falou por meio dos profetas“ (1 Pedro 1:11). 3. Pertence
ao ofício profético de Cristo que Ele seja eficaz através do Seu
ministério, no coração dos que ouvem, para ensiná-los internamente
pelo Seu Espírito, para iluminar, ensinar suas mentes e mover seus
corações à fé e obediência pelo evangelho. “Ele vos batizará com o
Espírito Santo e com fogo” (Mateus 3:11); “Então Ele abriu seus
entendimentos, para que pudessem compreender as Escrituras” (Lucas 24:45);
“Cristo Se entregou pela Igreja para santificá-la e purificá-la com a lavagem
de água pela palavra” (Efésios 5:26); “E eles saíram e pregaram por toda
parte, o Senhor cooperando com eles, e confirmando a palavra com os sinais
que se seguiram” (Marcos 16:20). “O Senhor abriu o coração de Lídia, para
que ela atendesse às coisas faladas por Paulo” (Atos 16:14); “O Senhor deu
testemunho da palavra de Sua graça” (Atos 14:3). Para resumir o todo em
poucas palavras, o ofício profético de Cristo consiste em três partes:
revelar a vontade do Pai; instituir um ministério e ensinar
internamente ou efetivamente por meio do ministério. Essas três
coisas que Cristo realizou desde o início da Igreja, e fará até o fim do
mundo, e isso por Sua autoridade, poder e eficácia. Por isso, Cristo é
chamado de Verbo, não apenas em relação ao Pai, por quem Ele foi
gerado quando contemplou a Si mesmo, e considerando a imagem de
Si mesmo, não desaparecendo, mas subsistindo, consubstancial e
coeterno com o próprio Pai; mas também com respeito a nós, porque
Ele é a pessoa que falou aos pais e trouxe a palavra viva, ou evangelho,
do seio do Pai.
Portanto, é evidente, pelo que agora foi dito, qual é a diferença entre
Cristo e outros profetas, e por que Ele é chamado de o maior mestre
e profeta e, portanto, o principal de todos os profetas. 1. Cristo é o
Filho de Deus e Senhor de tudo; os outros profetas eram apenas

366 | P á g i n a
homens e servos de Cristo. 2. Cristo trouxe e pronunciou a palavra
imediatamente do Pai aos homens; outros profetas e apóstolos são
chamados e enviados por Cristo. 3. A sabedoria profética de Cristo é
infinita; pois mesmo de acordo com Sua humanidade, Ele superou
todos os outros em todos os dons. 4. Cristo é a fonte de toda a verdade
e o autor do ministério: outros profetas apenas proclamam e revelam
o que recebem de Cristo. Portanto, é dito que Cristo falou por meio
dos profetas. Ele também não revela Sua doutrina apenas aos profetas,
mas a todos os piedosos. Por isso, é dito, “de Sua plenitude todos nós
recebemos (...)” (João 1:16). 5. Cristo prega eficazmente por meio de Seu
próprio ministério externo, e daqueles a quem Ele chama para o Seu
serviço, em virtude do Espírito Santo operando no coração dos
homens: outros profetas são os instrumentos que Cristo emprega, e
são cooperadores da obra com Ele. 6. A doutrina de Cristo é mais clara
e completa do que a de Moisés e todos os outros profetas. 7. Cristo
tinha autoridade sobre Si mesmo; outros têm sua autoridade de
Cristo. Cremos em Cristo quando Ele fala por Si mesmo, mas cremos
nos outros porque Cristo fala neles.

III. O QUE É O OFÍCIO ECLESIÁSTICO OU SACERDOTAL DE


CRISTO?
O sacerdote em geral é uma pessoa designada por Deus, com o
propósito de oferecer oblações e sacrifícios, interceder e ensinar aos
outros. Podemos distinguir aqueles que servem na qualidade de
sacerdotes, falando deles como típicos e reais. Um sacerdote típico é
uma pessoa ordenada por Deus para oferecer sacrifícios típicos, fazer
intercessões por si mesmo e pelos outros, e para ensinar o povo a
respeito da vontade de Deus e do messias que viria. Tais eram todos
os sacerdotes do Antigo Testamento, entre os quais havia um que era
o maior, geralmente chamado de sumo sacerdote; os outros eram
inferiores. Era peculiar ao sumo sacerdote, 1. Que ele sozinho entrasse
uma vez por ano no santuário, ou lugar santíssimo, e aquilo com

367 | P á g i n a
sangue que ele oferecia por si mesmo e pelo povo, queimando incenso
e fazendo incursões. 2. Ele tinha um traje mais esplêndido e lindo do
que os outros. 3. Ele foi colocado sobre o restante. 4. Ele ofereceu
sacrifício e fez intercessão por si mesmo e pelo povo. 5. Ele deveria ser
consultado em assuntos ou questões duvidosas, pesadas e obscuras, e
devolvia ao povo a resposta que Deus o instruiu a dar. Todos os demais
eram inferiores, cujo ofício era oferecer sacrifícios, ensinar a doutrina
da lei e as promessas pertencentes ao Messias e interceder por si
mesmos e pelos outros. Portanto, embora todos os sacerdotes do
Antigo Testamento fossem tipos de Cristo, o caráter típico do sumo
sacerdote era o mais notável de todos eles, porque nele havia muitas
coisas que representavam a Cristo, o verdadeiro e grande sumo
sacerdote da Igreja.
Objeção. Mas se os profetas e o sacerdote ensinam, eles não diferem
um do outro. Resposta: Na verdade, ambos ensinavam o povo, embora
fossem distintos de várias formas. Profetas foram levantados
imediatamente por Deus, de qualquer tribo, enquanto os sacerdotes
foram ordenados mediatamente da única tribo de Levi. Os profetas
ensinaram extraordinariamente, enquanto os sacerdotes tinham o
ministério ordinário. Os profetas receberam sua doutrina
imediatamente de Deus, enquanto os sacerdotes a aprenderam com a
lei. Os profetas tinham testemunho divino para que não errassem; os
sacerdotes podiam errar na doutrina e muitas vezes erraram em suas
instruções, sendo reprovados pelos profetas.

368 | P á g i n a
O significado e verdadeiro sacerdote é Cristo, o Filho de Deus, que foi
imediatamente ordenado pelo Pai, e ungido pelo Espírito Santo para
este ofício, para que, tendo assumido a natureza humana, Ele pudesse
revelar a secreta vontade e conselho de Deus para nós, e oferecer a Si
mesmo um sacrifício propiciatório por nós, intercedendo em nosso
favor, e aplicando Seu sacrifício a nós, tendo a promessa de que Ele
sempre certamente será ouvido em favor de todos aqueles por quem
intercede e obtém por eles a remissão dos pecados; e finalmente, por
meio dos ministros da Palavra e do Espírito Santo, congrega, ilumina
e santifica Sua igreja.
Existem, portanto, quatro partes principais do ofício sacerdotal de
Cristo: 1. Ensinar os homens, e de uma forma diferente de todos os
outros, que são chamados a atuar como sacerdotes; pois Ele não fala
meramente ao ouvido por Sua palavra, mas efetivamente inclina o
coração por Seu Espírito Santo. 2. Em sacríficio se oferecer em
sacrifício pelos pecados do mundo. 3. Fazer contínua intercessão e
oração por nós ao Pai, para que nos receba em Seu favor por causa de
Sua intercessão e vontade, e por causa da eficácia perpétua de Seu
sacrifício; e ter a promessa de ser ouvido em referência às coisas que
Ele pede. 4. Aplicar Seu sacrifício àqueles por quem intercede, que é
receber no favor aqueles que creem e fazer com que o Pai os receba e
que a fé seja operada em seus corações, pelos quais os méritos de
Cristo possam ser transferidos a eles, para que sejam regenerados pelo
Espírito Santo para a vida eterna.
Pelo que foi dito, podemos facilmente perceber a diferença entre
Cristo e outros sacerdotes. 1. Este último ensina apenas com a voz
externa; Cristo ensina também pela operação interior e eficaz do
Espírito Santo. 2. Os outros sacerdotes não intercedem
continuamente, nem sempre obtêm aquilo por que oram. 3. Eles não
aplicam seus próprios benefícios aos outros. 4. Eles não se oferecem
um sacrifício pelos outros; todas as coisas pertencem somente a
Cristo.

369 | P á g i n a
IV. O QUE É O REINO OU OFÍCIO REAL DE CRISTO?
Um rei é uma pessoa ordenada por Deus, para que governe um
determinado povo, segundo leis justas, para que tenha poder de
recompensar os bons e punir os maus, e que possa defender seus
súditos, não tendo nenhum superior. ou acima dele. O Rei dos reis é
Cristo, que foi imediatamente ordenado por Deus, para governar, por
Sua Palavra e Espírito, a Igreja que Ele comprou com Seu próprio
sangue, e defendê-la contra todos os Seus inimigos, a quem Ele lançará
no castigo eterno, enquanto Ele recompensará Seu povo com a vida
eterna.
O ofício real de Cristo é, portanto: 1. Governar a Igreja por Sua Palavra
e Espírito, o que Ele faz de tal forma que não apenas nos mostra o que
Ele teria feito em nós, mas também inclina e afeta o coração pelo Seu
Espírito, que somos levados a fazer o mesmo. 2. Ele nos preserva e nos
defende contra nossos inimigos, tanto externos quanto internos, o que
Ele faz nos protegendo por Seu poder onipotente, contra nossos
inimigos nos armando, para que possamos, por Seu Espírito, ser
equipados com todas as armas necessárias para resistir e vencê-los. 3.
Para conferir à Sua Igreja dons e glória; e finalmente, para libertá-la
de todos os males; controlar e subjugar todos os Seus inimigos pelo
Seu poder e, finalmente, tendo-os subjugado totalmente, lançá-los na
miséria e ruína inconcebíveis.

370 | P á g i n a
Questão 32. Mas por que tu és chamado de cristão?
Resposta: Porque sou membro de Cristo pela fé e, portanto,
participante da Sua unção, para que confesse o Seu nome e me
apresente como um sacrifício vivo de gratidão a Ele. E também,
para que com uma consciência sã e livre eu possa lutar contra o
pecado e Satanás nesta vida, e depois reinar com Ele eternamente,
sobre todas as criaturas.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 32

Nesta questão, devemos considerar a dignidade e a comunhão dos


cristãos com Cristo como Seu cabeça, junto com os ofícios que eles
mantêm como membros de Cristo. O nome cristão foi dado pela
primeira vez aos discípulos de Cristo em Antioquia, no tempo dos
apóstolos. Antes disso, eles eram chamados de irmãos e discípulos. O
nome cristão é derivado de Cristo e denota alguém que é um discípulo
de Cristo - aquele que segue Sua doutrina e vida, e que, sendo
enxertado em Cristo, tem comunhão com Ele. Existem dois tipos de
cristãos; alguns que são apenas aparentemente como tais; e outros que
o são real e verdadeiramente. Aqueles que são cristãos apenas na
aparência são aqueles que foram batizados e que estão na companhia
daqueles que são chamados e professam a fé cristã; mas estão sem
conversão, nada mais sendo do que hipócritas e dissimuladores, dos
quais se diz: “Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos” (Mateus
20:16); “Nem todo aquele que diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus (...)”
(Mateus 7:22). São verdadeiros cristãos os que não apenas são
batizados e professam a doutrina de Cristo, mas também possuem
uma fé verdadeira, e declaram isso pelos frutos do arrependimento;
ou, eles são aqueles que são membros de Cristo por uma fé verdadeira
e se tornam participantes de Sua unção. Todos os verdadeiros cristãos
são assim também na aparência, porque se diz: “Deixe sua luz brilhar
diante dos homens para que vejam a sua boa obra e glorifiquem a seu Pai que

371 | P á g i n a
está nos céus” (Mateus 5:16); “Mostra-me tua fé por tuas obras” (Tiago 2:18).
Mas não é verdade, por outro lado, que todos os que são
aparentemente cristãos também o sejam na realidade; porque será
dito de muitos: “Eu nunca te conheci” (Mateus 7:23).
Estamos aqui para falar apenas dos verdadeiros cristãos: e devemos
indagar: por que somos chamados de cristãos, isto é, ungidos? As
razões são duas: porque somos membros de Cristo pela fé e somos
participantes da Sua unção; isto é, somos chamados de cristãos,
porque nos comunicamos a pessoa, ofício e dignidade de Cristo.
Ser um membro de Cristo é ser enxertado nEle, e ser unido a Ele pelo
mesmo Espírito Santo que habita nEle e em nós, e por este Espírito
ser feito um possuidor de tal justiça e vida como está em Cristo, e
para ser aceito por Deus por causa da justiça de Cristo imputada a
nós pela fé, na medida em que essa justiça é imperfeita nesta vida.
Desta nossa comunhão com Cristo, as seguintes passagens da
Escritura falam: “Nós, sendo muitos, somos um só corpo em Cristo”
(Romanos 12:5). “Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?” (1
Coríntios 6:15); “Aquele que se une ao Senhor é um só Espírito” (1 Coríntios
12:12); “Podemos crescer nEle em todas as coisas, que é a cabeça, sim, Cristo”
(Efésios 4:15).
A relação que existe entre a cabeça e os membros do mesmo corpo é
a mais adequada e notável ilustração da íntima e indissolúvel união
entre Cristo e nós. Pois, em primeiro lugar, assim como os membros
do corpo têm uma e a mesma cabeça, por meio da qual são unidos por
tendões e ligamentos carnais, e a partir dos quais a vida e o movimento
são comunicados por todo o corpo; e assim como todos os sentidos
externos e internos estão assentados na cabeça, da qual todo o corpo
e cada membro retira sua própria vida; e como da cabeça somente a
vida é comunicada a cada membro, e não de um membro a outro,
enquanto eles permanecerem unidos com a cabeça e um com o outro;
assim, Cristo é a cabeça viva de quem o Espírito Santo é feito passar

372 | P á g i n a
para cada membro, e não de um membro para outro; de quem todos
os membros são levados a tirar sua vida, e por quem eles são
governados, desde que permaneçam unidos a Ele pelo Espírito que
habita nEle e em nós, e pela fé pela qual nos tornamos membros de
Cristo; pois é pela fé que recebemos o Espírito, por meio do qual essa
união é efetuada. Mas os membros estão unidos entre si e entre si pelo
amor mútuo, que não pode faltar se estivermos unidos à cabeça; pois
a conexão da cabeça com o corpo é a causa da união que existe entre
os próprios membros.
Em segundo lugar; assim como no corpo humano existem vários dons,
e como os membros desempenham diferentes funções, e ainda assim,
apenas uma vida os anima e move a todos, assim na Igreja, que é
apenas um corpo, existem vários dons e funções, e apenas um Espírito,
por cujo benefício e ajuda cada membro desempenha Seu ofício
apropriado.
Em terceiro lugar; assim como a cabeça é colocada em posição mais
elevada, e é, portanto, merecedora da maior honra, e é a fonte de toda
a vida, também Cristo tem o lugar mais alto na Igreja, porque nEle o
Espírito é sem medida e de Sua plenitude recebemos todas as boas
dádivas de que desfrutamos; mas nos cristãos que são membros de
Cristo há apenas uma certa medida de dons, que lhes é concedida por
Cristo, Sua única cabeça. Portanto, é claro que o Papa de Roma mente,
quando se declara o cabeça da Igreja.
Cristo é a nossa cabeça, em três aspectos: 1. No que diz respeito à
perfeição da Sua pessoa, porque é Deus e homem, superando todas as
criaturas em dons, até no que diz respeito à Sua natureza humana.
“Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade, e estais perfeitos
nEle” (Colossenses 2:9). Somente Ele dá o Espírito Santo, como é dito:
“Ele é quem vos batizará com o Espírito Santo” (Mateus 3:11). 2. Na
dignidade e ordem, glória e majestade com que Ele Se declara Rei,
Senhor e herdeiro de todas as coisas. Pois, assim como Deus criou

373 | P á g i n a
todas as coisas por meio dEle, também o fez herdeiro de todas as
coisas e governante de Sua casa. 3. Com respeito ao Seu ofício. Ele é
o redentor e santificador da Igreja - está presente com cada membro
dela - governa, dirige, vivifica, nutre e confirma para que permaneçam
unidos a Ele e ao resto dos membros, assim como o cabeça governa e
anima o todo corpo.
Também somos membros de Cristo, em três aspectos: 1. Porque, pela
fé e pelo Espírito Santo, estamos unidos a Ele, e também, unidos entre
nós, assim como os membros estão ligados com a cabeça e uns com
os outros. A união dos membros de Cristo uns com os outros e entre
si não é menos necessária para a segurança da Igreja, do que a
conjunção de todo o corpo com Cristo, o cabeça; porque, se separares
a mão do braço, também a separas do corpo, de forma que não pode
mais ter vida: “Para que Cristo habite junto a ti pela fé” (Efésios 3:17). 2.
Porque somos vivificados e governados por Cristo, e tiramos dEle,
como a fonte, todas as coisas boas, de forma que, a menos que
permaneçamos nEle, não tenhamos vida em nós, como os membros
cortam fora do corpo não podem reter nenhuma vida em si mesmas.
“Se alguém não permanecer em Mim, é lançado fora, como um ramo, e seca”
(João 15:6). 3. Porque, como no corpo existem diferentes poderes e
funções pertencentes aos membros, também existem diferentes dons
e funções pertencentes aos membros da Igreja de Cristo; e como todas
as ações das diferentes partes do corpo contribuem para sua
preservação, todos os membros de Cristo devem se referir a tudo o
que fazem para a preservação e benefício da Igreja, que é o corpo de
Cristo. “Porque, como temos muitos membros em um corpo, e todos os membros
não têm a mesma operação, nós, sendo muitos, somos um corpo em Cristo, e
cada membro um do outro” (Romanos 12:4); “Mas a manifestação do Espírito
é concedida a cada homem para o benefício de cada um” (1 Coríntios 12:7).

374 | P á g i n a
Tendo agora explicado o que é ser um membro de Cristo, e de que
forma somos Seus membros, será mais claramente visto o que é ser
um participante da unção de Cristo. A unção significa uma comunhão
dos dons e ofício de Cristo; ou é uma participação em todos os dons
de Cristo, e consiste na participação de Seu ofício real, sacerdotal e
profético. Para ser um participante da unção de Cristo, é, portanto,
para ser um participante do Espírito Santo e dos Seus dons, o Espírito
de Cristo não é ocioso ou inativo em nós, mas funciona da mesma em
nós que Ele faz em Cristo, a menos que somente Cristo tenha mais
dons do que todos nós, e estes também em maior ou maior grau. 2.
Que Cristo nos comunica Seu ofício profético, sacerdotal e real.
A dignidade profética que existe nos cristãos é uma compreensão, um
reconhecimento e uma confissão da verdadeira doutrina de Deus
necessária para a nossa salvação. Ou, nosso ofício profético é: 1.
Conhecer corretamente a Deus e Sua vontade. 2. Que cada um em seu
lugar e grau professe o mesmo, sendo corretamente compreendido,
fiel, corajoso e constantemente, para que Deus possa assim ser
celebrado, e Sua verdade revelada em Sua força e poder vivos.
“Qualquer que Me confessar diante dos homens, Eu também o confessarei
diante de Meu Pai que está nos céus” (Mateus 10:32.)
O ofício do sacerdote é ensinar, interceder e oferecer sacrifícios. Nosso
sacerdócio, portanto, é: 1. Ensinar aos outros; isto é, mostrar e
comunicar a eles o conhecimento do Deus verdadeiro. “Quando te
converteres, fortalece teus irmãos” (Lucas 22:32). 2. Invocar a Deus, tendo
um conhecimento correto dEle. 3. Para render a devida gratidão,
adoração e obediência a Deus, ou para oferecer sacrifícios de ação de
graças, agradáveis e aceitáveis a Deus, sendo santificados pelo
sacrifício de Cristo, que inclui, 1. Que nós nos oferecemos
mortificando nosso velho homem, e dando nossos membros como
instrumentos de justiça a Deus. 2. Nossas orações. “Ofereçamos
continuamente o sacrifício de louvor a Deus, isto é, o fruto dos nossos lábios,

375 | P á g i n a
dando graças ao Seu nome” (Hebreus 13:15). 3. Nossas esmolas. “Tuas
orações e tuas esmolas subiram para um memorial diante de Deus” (Atos
10:4). 4. Confissão do evangelho. “Ministrando o evangelho de Deus, para
que a oferta dos gentios seja aceitável” (Romanos 15:16). 5. A resistência
alegre e paciente da cruz e todas as várias calamidades que Deus envia
sobre nós. “Sim, e se eu for oferecido sobre o sacrifício e serviço de sua fé, eu
me alegro e me regozijo com todos vós”; (Filipenses 2:17); “Pois agora estou
pronto para ser oferecido, e o tempo de minha partida está próximo” (2
Timóteo 4:6).
Além disso, Cristo nos comunica Seu ofício sacerdotal, 1. Cumprindo
e levando a efeito que oferecemos os sacrifícios de ação de graças
mencionados acima. 2. Fazendo com que sejam aceitáveis e agradáveis
a Deus.
O sacrifício de Cristo, portanto, difere do nosso da mesma forma que
difere dos sacrifícios dos sacerdotes da antiguidade. 1. Cristo ofereceu
um sacrifício de ação de graças e propiciação, ao mesmo tempo,
oferecemos apenas sacrifícios de ação de graças. Os sacerdotes da
antiguidade também ofereciam sacrifícios de ação de graças, porque
estes pertencem a toda a Igreja, desde o início até o fim do mundo.
Os sacrifícios, aliás, que eles ofereciam, eram apenas típicos, o que não
é mais o caso, uma vez que todos os tipos e sombras foram eliminados
por Cristo, que ofereceu não um sacrifício típico, mas um que era real
- aquele que foi representado por todos os sacrifícios do Antigo
Testamento; e isso Ele fez, porque Ele não era um sacerdote típico,
mas o verdadeiro e grande sumo sacerdote da Igreja, a quem todos os
outros contemplavam. 2. O sacrifício de Cristo foi perfeito; o nosso é
imperfeito e contaminado com muitos pecados. 3. O sacrifício de
Cristo é meritório em Si mesmo, e vale diante de Deus por conta de
Si mesmo; nossos sacrifícios nada significam e agradam a Deus apenas
por causa do sacrifício de Cristo.

376 | P á g i n a
O ofício real dos cristãos é: 1. Opor-se e vencer, por meio da fé, o
Diabo, o mundo e todos os inimigos. 2. Tendo subjugado todos os
nossos inimigos, para obter finalmente, pela mesma fé, vida eterna e
glória. “Venhais, benditos de Meu Pai, herdeis o reino que está preparado para
vós desde a fundação do mundo” (Mateus 25:34). Portanto, somos reais. 1.
Porque somos senhores de todas as criaturas em Cristo; pois, diz o
apóstolo, “todas as coisas são suas” (1 Coríntios 3:21). 2. Porque vencemos
todos os nossos inimigos pela fé em Cristo, “que nos dá a vitória” ((1
Coríntios 15:57); “Esta é a vitória que vence o mundo, sim, a nossa fé” (1 João
5:4).
A realeza de Cristo, no entanto, difere da dos cristãos nisso. 1. O reino
de Cristo é hereditário, pois Ele é o Filho natural de Deus, enquanto
nós somos os filhos de Deus por adoção. “Mas Cristo como um Filho
sobre Sua própria casa” (Hebreus 3:6); “Deus nos falou por Cristo, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas” (Hebreus 1:2). 2. Só Ele é rei sobre
todas as criaturas, e especialmente sobre a Igreja; mas nós somos reis
e senhores, não dos anjos e da Igreja, mas apenas de outras criaturas.
O céu, a terra e, portanto, todas as coisas nos servirão, pois seremos
coroados de glória, majestade e a maior excelência de dons, para
condenar demônios e homens ímpios, por se submeterem alegremente
e cederem ao julgamento de Deus ao passar a sentença de condenação
sobre eles. Portanto, somos reis, não sobre a Igreja, mas sobre todas as
criaturas restantes; mas Cristo governa com pleno direito, não apenas
sobre toda a Igreja, mas também sobre todas as criaturas. “Vós vos
assentareis sobre doze tronos, julgando as doze tribos de Israel” (Mateus
19:28); “Não sabeis que os santos hão de julgar o mundo?” (1 Coríntios 6:2).
3. Cristo vence Seus inimigos por seu próprio poder, mas nós
vencemos nossos inimigos nEle e por meio dEle - por Sua graça e
assistência. “Tende bom ânimo, Eu venci o mundo“ (João 16:33). 4. Cristo
governa o mundo pelo cetro de Sua palavra e Espírito, estremecendo
nossos corações e restaurando em nós Sua imagem que estava perdida.

377 | P á g i n a
Isso é peculiar somente a Cristo; pois não podemos dar o Espírito
Santo, sendo nada mais do que ministros e administradores da palavra
exterior e ritos, como João Batista disse: “Eu realmente vos batizo com
água para o arrependimento, mas aquele que vem depois de mim é mais
poderoso do que eu, e vos batizará com o Espírito Santo e com fogo“ (Mateus
3:11); “Quem então é Paulo e quem é Apolo, senão ministros por quem crestes,
assim como o Senhor deu a cada um” (1 Coríntios 3:5).
O uso e a importância desta doutrina são grandes. 1. Para consolo,
porque pela fé somos enxertados em Cristo como membros da cabeça,
para que sejamos continuamente sustentados, governados e
vivificados por Ele; e porque Ele nos torna profetas, sacerdotes e reis
para Deus e Seu Pai, participantes de Sua unção nos tornando. Esta é
a dignidade verdadeira e indizível conferida aos cristãos. 2. Para
admoestação e exortação; pois uma vez que somos todos profetas e
mestres de Deus, devemos continuamente celebrá-lO e louvá-lO; visto
que somos sacerdotes, devemos nos oferecer inteiramente a Deus,
como sacrifícios vivos de louvor e ação de graças; e visto que somos
reis, convém que lutemos virilmente contra o pecado, o mundo e o
Diabo, para que possamos reinar com Cristo.

378 | P á g i n a
13º DIA DO SENHOR

O ÚNICO FILHO DE DEUS GERADO

Questão 33. Por que Cristo é chamado de Filho unigênito de Deus,


uma vez que também somos filhos de Deus?
Resposta: Porque somente Cristo é o Filho eterno e natural de Deus;
mas somos filhos adotados por Deus, pela graça, por causa dEle.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 33

A Divindade do Filho de Deus é ensinada nesta questão, e agora é


apropriado que consideremos ela mais completamente. Mas aqui
surge uma objeção da forma em que a questão acima é formulada, que
pode ser bom notar: aquele que é o Filho unigênito não tem irmãos;
mas Cristo tem irmãos; porque nós também somos filhos de Deus;
portanto, Ele não é o Filho unigênito de Deus. A isso respondemos,
fazendo uma distinção quanto à forma pela qual Cristo e nós somos
filhos de Deus; pois há uma diferença a esse respeito que é bom termos
em vista enquanto tratamos desse assunto. Cristo é o unigênito, o
Filho natural, próprio e eterno de Deus; mas nós somos os filhos de
Deus, adotados pelo Pai pela graça por causa de Cristo.
Para que essas coisas sejam manifestas, devemos explicar em poucas
palavras: quem são chamados de filhos, e de quantas formas este título
é usado. Então, considere, quem são e quem são chamados de filhos
de Deus.
Eles são, e são chamados de filhos, aqueles que nascem como filhos ou
são adotados como tais.

379 | P á g i n a
Eles nascem filhos que iniciam ao mesmo tempo a existir e a serem
filhos. Esses são filhos nascidos dos pais ou pela graça. Filhos nascidos
de pais são apropriadamente chamados de filhos naturais, aos quais a
essência e a natureza de seus pais são comunicadas, seja total ou
parcialmente. Agora, a essência e a natureza de nossos pais, dos quais
nascemos, são comunicadas a nós em parte; mas a essência divina é
comunicada do Pai a Cristo totalmente de acordo com Sua divindade.
Como somos, portanto, os filhos naturais de nossos pais, assim Cristo
é, de acordo com Sua natureza divina, o Filho natural e único de Deus,
da mesma essência e natureza com o Pai, de cuja substância foi gerado
desde a eternidade, em uma forma totalmente além de nossa
compreensão. “Assim como o Pai tem vida em Si mesmo, também deu ao Filho
ter vida em Si mesmo” (João 5:26). O Pai, portanto, comunicou a Ele a
vida pela qual Ele mesmo vive por Si mesmo, e pela qual Ele vivifica
todas as criaturas, vida essa que é aquela única e eterna Deidade pela
qual todas as coisas existem.
Eles são filhos pela graça, que ao mesmo tempo iniciaram a existir e a
serem filhos de Deus. Que Eles são filhos resulta, ou da graça da
criação, ou da graça da concepção pelo Espírito Santo e união com a
Palavra.
Os anjos e Adão antes da queda são Filhos de Deus pela graça da
criação; porque Deus os criou para que Ele pudesse tê-los como filhos,
e para que eles, por outro lado, como seu Pai gracioso O
reconhecessem e O louvassem. Esses são, de fato, indevidamente
chamados de filhos nascidos pela graça, mas ainda assim são na
medida em que iniciaram, ao mesmo tempo, a existir e a serem filhos.
Somente Cristo, de acordo com Sua natureza humana, é o Filho de
Deus, pela graça da concepção pelo Espírito Santo e da união com a
Palavra; porque, segundo isso, Ele era o Filho de Deus pela graça, desde
o momento em que iniciou a ser homem e a nascer; e isso porque, em
virtude do Espírito Santo, só Ele era da substância da virgem, livre de
toda mancha ou corrupção, e estava pessoalmente unido à Palavra.

380 | P á g i n a
São filhos adotivos os que não iniciam ao mesmo tempo a existir e a
ser filhos; mas que já eram antes de serem adotados, ou que já existiam
antes de sua adoção como filhos. Eles foram feitos filhos da lei e da
vontade daquele que os adotou, e lhes foi dado o direito e título de
filhos, de forma que eles ocupem o mesmo lugar como se fossem filhos
naturais. Assim, Adão, após sua queda, e todos aqueles que são
regenerados, são os filhos adotivos de Deus, recebidos no favor dEle
por causa de Seu Filho natural, Jesus Cristo. Todos esses eram filhos
da ira antes de serem adotados na família e na Igreja de Cristo.
Pelo que agora foi dito, é claro, também como somos filhos de Deus,
o que é feito por adoção, como Cristo é o Filho unigênito de Deus, isto
é, de duas formas. Primeiro, de acordo com Sua Divindade, porque no
tocante a isso Ele foi gerado desde a eternidade da substância do Pai;
“e vimos Sua glória, a glória como do unigênito do Pai” (João 1:14). E, em
segundo lugar, de acordo com Sua humanidade de alguma forma,
porque mesmo em relação a isso, Ele nasceu de uma forma como
ninguém mais nasceu, de uma virgem pura e casta pelo poder do
Espírito Santo.
Cristo também é chamado de primogênito, 1. Segundo Sua divindade,
no que diz respeito ao tempo e à dignidade. 2. Segundo a Sua
humanidade, apenas no que diz respeito à dignidade, e isso por causa
da forma milagrosa e peculiar de Sua concepção, e por causa dos dons
pelos quais Ele supera todos os outros, anjos e homens. Era direito do
primogênito ter uma porção dobrada da herança, enquanto cada um
dos demais tinha apenas uma porção. A razão disso foi por conta do
cargo que Ele, como o primogênito, desempenhou; pois Ele foi posto
sobre os demais e os governa. “Cristo é o primogênito de toda criatura:
quem é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para que em todas as coisas
tenha a preeminência” (Colossenses 1:15, 18).
E Ele também é chamado de O próprio Filho de Deus, pois foi gerado
e não adotado. “Que não poupou Seu próprio Filho” (Romanos 8:32).

381 | P á g i n a
Existem também formas de linguagem que devemos observar
cuidadosamente ao falar da filiação de Cristo e de nós. Cristo é
chamado o Filho natural de Deus de acordo com Sua divindade,
porque Ele foi gerado desde a eternidade do Pai. Mas, de acordo com
Sua humanidade, Ele não é assim chamado, mas é chamado de Filho
de Deus pela graça, e isso não é a graça da adoção, mas da concepção
pelo Espírito Santo e da união com a Palavra. A razão pela qual Cristo
não é, de acordo com Sua humanidade, o Filho natural de Deus, é
porque Ele não é gerado da essência do Pai, de acordo com Sua
humanidade. E a razão pela qual Ele não é o Filho adotivo de Deus
com respeito à Sua humanidade, é porque Ele não foi tornado filho
de nenhum filho, mas porque no mesmo momento em que iniciou a
existir, Ele também iniciou a ser um filho. Os anjos são chamados de
filhos naturais de Deus, mas é pela graça da criação, como o homem
também era antes de sua queda. Aqueles que são regenerados nesta
vida são chamados de filhos de Deus, não pela graça da criação, mas
da adoção. A graça, portanto, com respeito à adoção, é tal como a graça
geral para a graça particular; pois há três ou quatro graus, ou por assim
dizer, espécies de graça, a saber: a da criação, a da concepção pelo
Espírito Santo, a da união com a Palavra, e a da adoção, como resulta
do que dissemos.

382 | P á g i n a
Os filhos de Deus são: Adotados Por homens

Gerados Por Deus. Como Adão após a


queda e todos os regenerados

Da criação. Como os anjos e


Adão antes da queda.
De Deus
pela graça Da concepção do Espírito Santo
e união com a Palavra, tal como
Cristo conforme sua natureza
humana.
Dos pais. que são
chamados
propriamente de filhos
naturais, aos quais é
comunicado a essência Em parte. Como a essência dos
dos pais nossos pais é comunicada em
parte a nós somente.

Completamente. Como a essência do Pai é comunicada a


Cristo de acordo com a Divindade.

TABELA DOS FILHOS DE DEUS

383 | P á g i n a
Dos Filhos de Deus: Do que é natural. A Palavra
do Pai Eterno.
Todos os outros são pela
graça.

Da criação. Tal como os anjos


e Adão antes da queda.

Da concepção do Espírito
Da adoção. Tal como
Santo e união com a Palavra.
Adão após a queda, e
Tal como Cristo conforme sua
todos os regenerados.
natureza humana.

OUTRA TABELA DOS FILHOS DE DEUS

A partir dessas observações e da distinção que fizemos entre aqueles


que são filhos de Deus, a resposta à objeção mencionada acima é
aparente: aquele que tem irmãos não é o unigênito. Cristo tem irmãos.
Portanto, Ele não é o único gerado. Ao responder a esta objeção, a
proposição principal deve ser mais claramente distinguida: aquele que
tem irmãos, isto é, da mesma geração e natureza, não é o unigênito.
Mas aqueles que sustentam a relação de irmãos com Cristo não são
da mesma geração e natureza, pois eles não são gerados da substância
do Pai, mas são apenas adotados por Ele pela graça.

384 | P á g i n a
Como então, pode-se perguntar, somos irmãos de Cristo?
Respondemos que nossa irmandade ou fraternidade com Cristo
consiste nestas quatro coisas: 1. À semelhança e semelhança da
natureza humana, e porque nascemos de Adão, o pai comum de todos.
2. Em Seu amor fraterno por nós. 3. Em nossa conformidade com
Cristo, que consiste em perfeita justiça e bem-aventurança. 4. Na
consumação de Seus benefícios.
Objeção 2. Aquele que tem uma geração diferente da de outros filhos,
é dito a respeito dela, ser o unigênito. Cristo, segundo a Sua
humanidade, tem uma geração diferente da dos outros filhos, porque
só Ele foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu de uma virgem.
Portanto, Cristo é chamado o unigênito de acordo com sua
humanidade, em relação a esta geração da virgem, e não por causa de
Sua geração eterna do Pai, de acordo com Sua Divindade. Resposta: a
A proposição maior vale apenas para quem tem uma geração diferente
de toda a raça, ou seja, tanto na natureza quanto na forma de geração.
Mas Cristo, segundo a Sua humanidade, teve uma geração diferente
de nós, não segundo a Sua natureza, mas apenas segundo a forma da
Sua geração; pois, de acordo com Sua humanidade, Ele é substancial
conosco, tendo uma natureza humana igual à nossa: a diferença é
apenas quanto à forma milagrosa como Ele foi concebido e nasceu da
virgem. Portanto, embora Ele seja o unigênito em relação a esta
geração, ainda na Escritura e no credo Ele é chamado de Filho
unigênito de Deus, não de acordo com Sua natureza humana, mas de
acordo com Sua natureza divina. Agora, de acordo com Sua natureza
humana, Cristo tem irmãos; mas de acordo com Sua natureza divina,
não tem irmãos, porque Ele foi gerado desde a eternidade da essência
do Pai. De ninguém mais é dito que “o Pai deu a Ele ter vida em Si mesmo”
(João 5:26), e que “nEle habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”
(Colossenses 2:9)32. Portanto, Ele é expressamente chamado de

32 Referência bíblicas incluídas pelo tradutor para o português.

385 | P á g i n a
unigênito do Pai, e não de Sua mãe. A expressão “apenas gerado”
respeita apropriadamente Sua natureza e essência, e não Sua
concepção miraculosa; e significa Aquele que é gerado sozinho e não
aquele que é gerado de uma forma extraordinária.
Objeção. Todo filho é natural ou adotado. Cristo, de acordo com Sua
humanidade, não é o Filho natural de Deus. Portanto, Ele é adotado.
Resposta: A maior parte desse silogismo não é suficientemente
específico e claro, pois há filhos de Deus pela graça, como os anjos,
que não são filhos por adoção, como já mostramos.
Portanto, somos agora, em vista do que foi dito, levados a perguntar o
que significa este artigo: “Eu creio em Jesus Cristo, o Filho unigênito de
Deus”. Ele significa, 1. Que eu creio que Jesus é o único Filho gerado
de Deus; isto é, o Filho natural e próprio, não tendo nenhum irmão,
gerado da substância do Pai desde a eternidade, verdadeiro Deus do
próprio Deus. Mas isto não é o suficiente; pois até os demônios creem
nisso e tremem. Portanto, isso deve ser adicionado. 2. Eu creio que Ele
é o Filho unigênito de Deus para mim, e minha salvação em particular.
Ou, eu creio que Ele é o Filho de Deus, que pode me tornar um filho
por adoção, e comunicar a mim e a todos os eleitos, o direito e a
dignidade dos filhos de Deus, como se diz: “Vimos a Sua glória, a glória
do unigênito do Pai” (João 1:14); “Este é Meu Filho amado em quem Me
comprazo” (Mateus 3:17); “Ele nos tornou aceitos no Amado” (Filipenses 1:6).

386 | P á g i n a
DA DIVINDADE DE CRISTO

A doutrina concernente ao Filho unigênito de Deus é o fundamento


de nossa salvação, e tem sido corrompida e contestada por hereges em
diferentes períodos da Igreja. É importante, portanto, que devemos
aqui explicar e estabelecer esta doutrina de forma mais completa.
Existem quatro coisas que devem ser especialmente consideradas em
relação à Divindade de Cristo, o Filho de Deus:
I. Se Cristo, ao lado de Sua alma e corpo, é e foi subsistente ou uma
pessoa.
II. Se Ele é uma pessoa distinta do Pai e do Espírito Santo.
III. Se Ele é igual ao Pai e ao Espírito Santo.
IV. Se Ele é consubstancial, isto é, de uma e mesma substância como
Pai e o Espírito Santo.
Existem, portanto, tantas proposições principais a serem
demonstradas contra os diferentes hereges:
1. Que Cristo, nascido da virgem, além de sua alma e corpo, é uma
pessoa.
2. Que Ele é uma pessoa distinta do Pai e do Espírito Santo.
3. Que Ele é igual ao Pai e ao Espírito Santo.
4. Que Ele é de uma e a mesma essência, ou consubstancial.
Existem duas formas de reunir argumentos das Escrituras, em favor
da Divindade do Filho e do Espírito Santo. Uma é quando os
argumentos são reunidos de acordo com a ordem dos livros da bíblia;
este é o método mais trabalhoso e demorado. A outra, que é a forma
mais curta e fácil, porque auxilia a memória e, portanto, aquela que
seguiremos, é, de acordo com certas classes ou tipos de argumentos,
sob o qual aqueles testemunhos das Escrituras que lhes pertencem
propriamente.

387 | P á g i n a
I. O FILHO DE DEUS, A PALAVRA, É E TEM SIDO UM SER
SUBSISTENTE, OU UMA PESSOA ANTES E ALÉM DA CARNE
QUE ELE ASSUMIU
Esta proposição deve ser comprovada contra hereges antigos e
modernos, como Ebion33, Cerinto34, Paulo de Samosata, Fótino35,
Serveto e outros hereges que negam a Divindade do Filho. As diferentes
classes de argumentos pelos quais provamos a hipóstase, ou existência
pessoal da Palavra, antes e além da carne que Ele assumiu, podem ser
reduzidas a oito ou nove:
1. À primeira classe pertencem aquelas passagens das Escrituras que
expressamente ensinam e distinguem duas naturezas em Cristo, e que
afirmam da Palavra que Ele foi feito homem, na carne Se manifestou,
assumiu nossa natureza, e outras afirmações semelhantes, como: “A
palavra foi feita carne” (João 1:14); “Ele tirou dEle a semente de Abraão”
(Hebreus 2:16); “Deus foi manifesto em carne” (1 Timóteo 3:16); “Todo
espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne, não é de Deus” (1
João 4:3);. “Ninguém subiu ao céu, senão Aquele que desceu do céu, sim, o Filho
do homem que está nos céus” (João 3:13); “Para este fim nasci e para isso vim
ao mundo” (João 18:37); “Visto que os filhos são participantes da carne e do
sangue, Ele também participou dos mesmos” (Hebreus 2:14); “Antes que
Abraão existisse, Eu Sou” (João 8:58). Há, portanto, uma natureza que se
manifestou na carne, assumiu nossa natureza, desceu do céu e veio ao

33 Nota do tradutor: um herege judaizante ao qual se atribui a fundação do


movimento ebionita, que observava a lei, e tinha o apóstolo Paulo como um
apóstata da lei, que praticava a circuncisão e observava a Lei. Ver a obra de Irineu
de Lião em sua obra “Contra as Heresias” (26.2).
34Nota do tradutor: um herege da Ásia, que ensinava que o mundo não foi criado
por Deus, e por uma potência que não conhecia a Deus. Ver a obra de Irineu de
Lião em sua obra “Contra as Heresias” (26.1).
35 Bispo deSirmio, que negava a encarnação de Cristo, contra o qual foram lançados
27 anátemas. Foi excomungado e exilado, mas o imperador Juliano, o Apóstata,
permite que retorne ao ministério e apenas no governo do imperador Valentino
(364-375) que é impedido, segundo Jerônimo.

388 | P á g i n a
mundo, foi feita participante da carne e do sangue e existiu antes de
Abraão. E há também outra natureza que foi assumida, na qual Ele
veio e na qual Ele se manifestou; pois assumir a natureza e a natureza
ser assumida não são a mesma coisa. Portanto, na medida em que o
Verbo assumiu a natureza humana, Ele deve necessariamente ser
diferente dela, e deve ter tido uma existência antes daquela que Ele
assumiu, e na qual Ele não foi mudado, mas tem uma subsistência ou
hipóstase diferente e distinta da carne que Ele assumiu. O argumento
é após este tipo: aquele que assume, é antes daquilo que é assumido.
Diz-se que a Palavra, ou Filho, assumiu sobre Si a nossa natureza e se
fez carne. Portanto, Ele era antes daquilo que Ele assumiu.
Todos aqueles testemunhos da Palavra de Deus, que distinguem o
Verbo, que assumiu a nossa natureza daquela que assumiu sobre Si,
estão aqui em destaque: “Quanto ao Seu Filho, Jesus Cristo, que foi feito da
descendência de Davi segundo a carne, (...) mas declarado ser o Filho de Deus
em poder segundo o Espírito de santidade” (Romanos 1:3, 4); “Dos quais,
quanto à carne, veio Cristo, o qual é sobre todos, Deus bendito para sempre”
(Romanos 9:5); “Cristo foi morto na carne, mas vivificado pelo Espírito” (1
Pedro 3:18). Portanto, há algo em Cristo que não é da descendência de
Davi e dos pais, e que não foi morto. “Destruí este templo e em três dias
Eu o levantarei” (João 2:19). Portanto, há em Cristo uma natureza que é
destruída, e outra que levanta a que é destruída, a saber, o Verbo, que
é chamado por João de “o Filho unigênito” (João 1:18).
Objeção 1. A Palavra, que significa este pregador Jesus: “se fez carne”,
isto é, um homem mortal.
Resposta: Esta é uma corrupção ousada e manifesta do significado da
Palavra de Deus. Diz-se que a Palavra era Deus antes de assumir nossa
carne - por meio dEle todas as coisas foram feitas - para vir à sua
própria criação, para iluminar todo homem que veio ao mundo, se
fazer carne e nos comunicar toda Sua plenitude. Portanto, esta Palavra
existia antes de todos os homens. Ele foi antes do próprio Adão,

389 | P á g i n a
enquanto Abraão e Moisés foram iluminados por Ele e recebidos em
Sua plenitude. “Eu Sou o pão vivo que desceu do céu” (João 6:51); “Cristo foi
pelo Espírito nos dias de Noé e pregou aos espíritos que estavam em prisão, os
quais foram desobedientes no passado” (1 Pedro 3:19). Mas a natureza
humana desse pregador Jesus não desceu dos céus e não existia nos
tempos de Noé.
Objeção 2. Cristo, o homem, é chamado de Deus no Novo Testamento.
Portanto, aqueles que afirmam que há uma natureza invisível neste
homem, corrompem a Escritura; porque, quando afirmo que és um
erudito, não quero dizer que um erudito esteja em ti.
Resposta: 1. Cristo é chamado pelo apóstolo Filho de Deus, segundo o
Espírito. As Escrituras declaram que este homem é Deus, e que “nEle
habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” (Colossenses 2:9)36.
Cristo diz de si mesmo: “Destruí este templo” (João 2:19)37, e o autor da
epístola aos Hebreus faz menção ao tabernáculo da natureza humana,
e chama Sua carne de véu, isto é, de Sua divindade: “Ele sofreu na carne”
(1 Pedro 4:1). “O Verbo se fez carne e veio aos Seus” (João 1:14, 11). Portanto,
deve haver outra natureza na carne. 2. As Escrituras atribuem
expressamente propriedades opostas a Cristo, que não podem ser
encontradas em ninguém ao mesmo tempo. Eles também atribuem a
Ele uma natureza finita e infinita. “Antes que Abraão existisse, Eu Sou”
(João 8:58). Portanto, é necessário que isso seja compreendido de
diferentes naturezas pela comunicação de propriedades, pois Cristo
nunca é descrito como sendo um Deus tal como um criado, ou como
é eficaz no coração dos homens. por causa de Seus excelentes dons.

36 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.


37 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

390 | P á g i n a
2. Para a segunda divisão de argumentos, devem ser referidas aquelas
declarações das Escrituras nas quais Cristo é chamado o próprio Filho
de Deus, porque Ele não é adotado, mas gerado da substância do Pai.
“Que não poupou Seu próprio Filho” (Romanos 8:38). Os judeus
exclamaram contra Cristo na presença de Pilatos, “que se fez Filho de
Deus”, isto é, o Filho próprio e natural; do contrário, eles mesmos
teriam sido culpados da blasfêmia de que acusaram a Cristo, visto que
se reconheciam filhos de Deus. E isso é explicado mais claramente em
outro lugar, onde se diz que os judeus desejaram matar a Cristo,
porque Ele disse “que Deus era Seu Pai, fazendo-se igual a Deus” (João 5:18);
isto é, Seu próprio Pai e peculiar, o que se infere disso, que Ele
reivindicou para Si aquele poder de operar que é peculiar a Deus.
Portanto, concluímos das palavras dos judeus, que Cristo chamou a Si
mesmo de Filho próprio e natural de Deus, tendo o direito de Filho
por natureza, que os outros obtêm pela graça por meio dEle: porque,
se Cristo apenas chamasse a Si mesmo de Filho de Deus, seja por
adoção ou pela graça, os judeus não poderiam acusá-lo de blasfêmia;
pois assim teriam condenado a si mesmos como blasfemadores, visto
que se gloriavam de também serem filhos de Deus. E, além disso, se
isso tivesse sido uma calúnia por parte dos judeus, Cristo certamente
teria refutado, ou pelo menos repelido no que diz respeito a Ele
mesmo, mas em vez disso, Ele admitiu o que eles disseram, e mostrou
as razões pelas quais Ele era realmente o que professava ser. Cristo é,
portanto, o próprio Filho de Deus, e há necessariamente outra
natureza nele além daquela que Ele assumiu, segundo a qual Ele é o
próprio Filho de Deus.
Objeções de Serveto. 1. Cristo é chamado o próprio Filho de Deus
porque Ele foi criado por Deus, assim como a Igreja é chamada de
povo peculiar de Deus. Resposta: Isso é perversão; pois o apóstolo, na
passagem antes citada, opõe o próprio Filho de Deus a nós e aos anjos,
que não são próprios filhos de Deus; pois os anjos são filhos de Deus

391 | P á g i n a
pela graça da criação, e nós pela graça da adoção. Mas só Cristo é o
bom e o Filho natural de Deus, porque Ele foi gerado a partir da
substância do Pai. 2. Mas não é dito em nenhum lugar nas Escrituras
que Cristo é o Filho natural de Deus. Portanto, nada mais é do que
uma invenção dos homens. Resposta: É verdade, de fato, que não é
dito em nenhum lugar na bíblia que Cristo é o Filho natural de Deus,
mas existem expressões usadas de um significado semelhante e
equivalente, como, “o próprio Filho de Deus”, “o Filho unigênito” e outras
expressões de mesma natureza. E então a mesma conclusão é
necessariamente alcançada como já mostramos, pelo argumento do
apóstolo aos Romanos, e aquele dos judeus em João.
Objeção 3. A Palavra estava realmente sempre em Deus, mas não o
Filho. Cristo foi chamado de Filho com respeito à Sua futura filiação
ou filiação na carne que Ele assumiu. Portanto, Ele não é o Filho
natural de Deus. Resposta: 1. Não, Ele não foi assim chamado de Filho
de Deus, pois Sua humanidade não procede da substância do Pai. 2. O
Verbo é chamado de Filho como aquele a quem o Pai deu para ter vida
em Si mesmo. 3. Não haveria, de acordo com a objeção acima, uma
distinção pessoal entre o Pai e o Filho, porque a Palavra de acordo
com Serveto não era hipóstase ou pessoa. Portanto, o Pai teria estado
sem o Filho, ou teria sido o mesmo com o Filho, como Sabélio
erroneamente ensinou.
3. Esta classe de argumentos compreende as declarações das
Escrituras nas quais Cristo é chamado de Filho unigênito de Deus.
“Vimos a Sua glória, a glória como do unigênito do Pai” (João 1:14); “Deus
amou o mundo de tal forma que deu seu Filho unigênito” (João 3:16), e demais
passagens. Agora, Cristo é chamado de Filho unigênito porque não tem
irmãos. Mas, de acordo com Sua natureza humana, Ele tem irmãos,
como se diz: “para que em tudo seja semelhante a Seus irmãos; por isso Ele
não se envergonha de lhes chamar irmãos” (Hebreus 2:17, 11.) Portanto, há
em Cristo outra natureza, segundo a qual Ele é o Filho unigênito do
Pai, e em relação à qual Ele não tem irmãos.

392 | P á g i n a
Objeção 4. Cristo é chamado de unigênito, porque o homem Jesus é
o único nascido da virgem pelo Espírito Santo. Resposta: Esta é uma
falsa interpretação da linguagem das Escrituras, pois 1. Só Ele é o
único gerado que provem da substância do Pai. 2. Porque a geração do
Verbo do Pai e a de Cristo da Virgem se distinguem frequentemente
nas Escrituras, como se diz da sabedoria em Provérbios 8:25, “Antes que
as montanhas fossem estabelecidas, antes das colinas, fui gerado”, ou como é
traduzido de outra forma, gerado. “Vimos a Sua glória, a glória como do
unigênito do Pai” (João 1:14). E em Mateus lemos que Jesus, que se chama
Cristo, nasceu da virgem Maria. 3 O unigênito se opõe aos anjos e aos
homens, porque Cristo é o Filho, não pela graça da adoção como é
verdade para os homens, nem pela graça da criação como é verdade
para os anjos, mas por natureza. Aqui, porém, é objetado por parte de
alguns, que quando é dito: “Vimos a Sua glória”, significa a glória do
homem Jesus; mas esta é uma referência incorreta, porque não há
antecedente ao qual possamos referir apropriadamente a pessoa
falada, mas a Palavra. As palavras que precedem devem ser
cuidadosamente observadas: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós, e
vimos a Sua glória”, isto é, a glória da Palavra. Se, portanto, o Verbo é
chamado, e é o unigênito, então certamente, unigênito, nesta
passagem, não significa geração de Maria, mas do Pai desde a
eternidade.
4. A esta divisão pertencem todos aqueles testemunhos da Escritura
em que o título Filho de Deus é atribuído a Cristo quanto à sua
natureza divina, mesmo antes de ser feito carne; como, “Quem
estabeleceu todos os confins da terra? Qual é o Seu nome? e qual é o nome de
Seu Filho?” (Provérbios 30:4); “Deus nos falou por Seu Filho, por Quem
também fez o mundo” (Hebreus 1:2); “Deus não enviou Seu Filho ao mundo
para condenar o mundo” (João 3:17). O Pai enviou Seu Filho ao mundo.
Mas a natureza humana nasce no mundo. Portanto, o Filho existia
antes de ser enviado ao mundo.

393 | P á g i n a
A esta classe de argumentos, devemos também referir todas as porções
das Escrituras que atribuem obras divinas ao Filho antes de Sua
assunção da humanidade, como, “por Ele foram criadas todas as coisas
que estão nos céus e na terra” (Colossenses 1:16). “Meu Pai trabalhou até
agora e Eu trabalho também; tudo o que o Pai faz, também o Filho o faz” (João
5:17, 19). Mas a humanidade de Cristo não faz tudo o que o Pai faz,
nem efetuar qualquer coisa da mesma forma em que o Pai faz, mesmo
agora, uma vez que tem sido assumido, muito menos desde o início.
Portanto, de acordo com isso, o Filho fez todas as coisas desde o início
de acordo com Sua natureza divina, que é algo diferente da carne que
Ele assumiu. “Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai
senão o Filho, e aquele a quem o Filho o revelar” (Lucas 10:22). Se o Filho
agora revelou Deus Pai àqueles que viveram antes dEle assumir nossa
natureza, Ele deve ter existido anteriormente.
Além disso, os testemunhos que atribuem expressamente a Cristo o
nome de Deus de acordo com a Sua natureza divina, estão aqui
presentes. Estes devem ser diligentemente reunidos; porque os
inimigos da Divindade de Cristo insistem fortemente que o nome de
Deus só é atribuído a Ele no que diz respeito à Sua natureza humana.
“A Palavra era Deus” (João 1:1); “Deus foi manifestado em carne” (1 Timóteo
3:16). “Para este propósito o Filho de Deus Se manifestou para destruir as
obras do Diabo” (1 João 3:8)38. Portanto, há em Cristo uma natureza que
foi chamada de Filho de Deus antes mesmo de se fazer carne. Portanto,
os hereges não podem dizer que Cristo só agora é chamado de Filho
de Deus, desde Sua concepção miraculosa pelo Espírito Santo.
5. Sob esta classe de argumentos incluiremos aquelas passagens das
Escrituras que falam da Palavra. A Palavra, a respeito da qual fala João,
era uma pessoa à parte e antes da ascensão da humanidade. O Filho é
a Palavra. Portanto, o Filho é uma pessoa à parte e antes que assumisse

38Localização das referências bíblicas incluídas pelo tradutor ao português.

394 | P á g i n a
a carne. Todas as diferentes partes da descrição da Palavra no 1º
capítulo do evangelho de João, combinam-se para estabelecer a
verdade da maior parte do silogismo acima. Assim, que Ele estava no
início do mundo e era verdadeiramente Deus se diz, que por meio dEle
todas as criaturas foram feitas, que Ele foi o autor de toda a vida e luz
nos homens, que Ele esteve no mundo desde o início, mesmo quando
Ele não era conhecido e reconhecido, e outras afirmações semelhantes.
Ora, todas essas coisas, que só são próprias de alguém que subsiste,
vive, é inteligente e opera, sendo atribuídas ao Verbo, mais claramente
provam que Ele era uma pessoa, e que antes do homem Jesus nasceu
da virgem. A proposição menor é provada em João 1:14: “Vimos a Sua
glória” - a saber, a do Verbo encarnado - “a glória do unigênito do Pai”. Da
mesma forma, aquele que é chamado de Verbo é, no mesmo capítulo,
chamado de Filho unigênito existente no seio do Pai. E novamente,
João diz que foi por meio da Palavra, e Paulo diz que foi por meio do
Filho que Deus criou todas as coisas. Portanto, aquele que é chamado
Verbo e Filho de Deus, é uma pessoa que existia antes de Jesus nascer,
e agora habita pessoalmente na natureza humana que assumiu.
6. Sob este título, consideraremos aquelas declarações das Escrituras
Sagradas que testificam de Cristo que Ele é a sabedoria de Deus. O
argumento é este: a sabedoria de Deus, por meio da qual todas as
coisas foram feitas, é eterna. O Filho é essa sabedoria. Portanto, o Filho
é eterno e, por consequência, existia antes da ascensão da
humanidade. A proposição maior é provada do que é dito sobre a
sabedoria em Provérbios 8:22: “O Senhor me possuiu no princípio de Seus
caminhos, antes de Suas obras antigas. Quando não havia abismos, fui
criada”. A proposição menor é assim provada: 1. A sabedoria, na
passagem que acabamos de citar, é dita ter sido gerada. Mas ser
gerada, quando isso é falado de uma natureza inteligente, nada mais é
do que ser um Filho. 2. Cristo chama a Si mesmo de sabedoria de
Deus. “Portanto, também disse a sabedoria de Deus, Eu lhes enviarei profetas

395 | P á g i n a
(...)” (Lucas 11:49). 3. Paulo também chama Cristo de sabedoria de Deus.
“Pregamos Cristo, o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1:24).
4. As mesmas coisas são atribuídas por Salomão à sabedoria que as
Escrituras em outras passagens atribuem com eficácia peculiar ao
Filho, e que são mais amplamente tratados no livro da sabedoria.
Portanto a sabedoria é o Filho de Deus.
7. A esta classe pertencem os testemunhos das Escrituras a respeito
do ofício do mediador, que é congregar e preservar toda a Igreja por
Seu mérito e eficácia. Para que a Igreja pudesse ser totalmente
redimida, era necessário que houvesse um mediador, por causa de
quem e por meio de quem pudesse ser congregada e protegida. Este
mediador não é o Pai nem o Espírito Santo. Portanto, Cristo é o
mediador de toda a Igreja existente desde o início do mundo. A Igreja
da antiguidade foi recebida no favor por causa de Cristo que havia de
vir; mas isso não poderia ter sido se Ele não existisse; pois nenhum
mérito ou eficácia pode vir de alguém que não o seja. Portanto, é
claramente evidente que Cristo existia antes de Sua encarnação; pois
não é possível que pudesse ter havido amizade entre Deus e os homens
sem um mediador já existente. E, portanto, como havia um estado de
reconciliação entre Deus e os fiéis sob o Antigo Testamento, deve ter
havido algum mediador da Igreja. As Escrituras agora ensinam que há
apenas um mediador entre Deus e o homem, Jesus Cristo, o mesmo
ontem, hoje e para sempre. Portanto, Cristo deve ter existido antes de
Sua manifestação na carne. A mesma coisa pode ser inferida do ofício
do mediador, que não é apenas apaziguar o Pai por intercessão e
sacrifício, mas também conferir aos fiéis todas as coisas boas que Ele
obteve por Seu poder e eficácia, para tornar conhecida a vontade de
Deus aos homens, de instituir um ministério, de congregar e preservar
a Igreja, e tudo isso completamente. “Ninguém conhece o Pai senão o Filho,
e aquele a quem o Filho o revelar” (Lucas 10:22)39. Portanto, nem Adão nem

39 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

396 | P á g i n a
nenhum dos fiéis da antiguidade conhecia a Deus, exceto por meio do
Filho; por isso, o Filho então deve ter existido.
Esses testemunhos das Escrituras que falam da eficácia de Cristo
devem ser referidas a esta divisão, bem como aqueles que falam de Seu
mérito. Assim se diz: “Ele colocou todas as coisas debaixo de Seus pés e O
deu por cabeça sobre todas as coisas da Igreja” (Efésios 1:22). “E são
edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas; sendo o próprio Jesus
Cristo a principal pedra angular” (Efésios 1:22; 2:20). Cristo é, portanto, o
fundamento, o cabeça, o sustentador e governador da Igreja e,
portanto, existia antes que a Igreja existisse. “Eu Sou o caminho, a
verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (João 14:6); “Eu dou a
eles vida eterna” (João 10:28); “NEle estava a vida, e a vida era a luz dos
homens; Ele era a luz verdadeira, que ilumina todo homem que vem ao mundo”
(João 10:28); “Porque por Ele ambos temos acesso ao Pai em um só Espírito”
(Efésios 2:18); “Ele deu alguns apóstolos, alguns profetas e alguns pastores e
mestres” (Efésios 4:11). O apóstolo Pedro diz que o Espírito de Cristo
estava nos profetas, predizendo os sofrimentos que viriam a Cristo.
Portanto, Cristo revelou a vontade de Deus, instituiu o ministério,
estabeleceu e governa a Igreja; e por mais que Ele tenha feito tudo isso
desde o início da igreja, não há dúvida de que Ele sempre existiu. “E
esta é a vontade do Pai que Me enviou, que de todos os que Ele me deu, Eu
nenhum perderei” (João 6:39). Portanto, Ele preserva a Igreja, e sempre
foi, porque a Igreja sempre foi preservada.
Há um testemunho notável na profecia de Malaquias 3:1. “Eis que
enviarei o Meu mensageiro e Ele preparará o caminho diante de Mim; e o
Senhor, a quem vós buscais, virá de repente ao seu templo, sim, o mensageiro
da aliança, em quem vos agradais”. Isso é falado pelo próprio Cristo, por
meio do profeta, e é confirmado por este argumento: aquele para quem
está preparado um caminho é Cristo. E aquele que promete é aquele
para quem o caminho é preparado. Portanto, quem promete é Cristo.
A proposição principal é simples; não para o Pai, mas Cristo era

397 | P á g i n a
esperado, e foi Ele que veio depois de João Batista. A proposição
menor é comprovada pela passagem. “Eis que enviarei o Meu mensageiro
e Ele preparará o caminho diante de Mim”. Portanto, Cristo existia, antes
de assumir nossa natureza, porque Ele enviou Seu mensageiro João, e
era o próprio Deus antes de ser manifesto na carne; pois Ele o chama
de Seu templo, ao qual diz que estava para vir. Ninguém, exceto Deus,
construiu um templo para Sua adoração. Portanto, é blasfêmia dizer
que Cristo não existia antes de assumir a carne. Nem deve ser objetado
porque Ele fala na terceira pessoa, dizendo que o Senhor virá ao Seu
templo, pois Ele mostra claramente que é o Filho quem se entende
por aquele Senhor; “Eu, o Senhor, que enviou João antes de mim, e que
também sou o mensageiro da aliança”. Portanto, é possível que o profeta
mude a pessoa que fala, e represente o Pai falando a respeito do envio
de Seu Filho.
8. Esta classe de argumentos contém os testemunhos em relação ao
anjo que apareceu aos pais no Antigo Testamento, como o mensageiro
de Deus. “O anjo que Me redimiu de todo o mal, abençoe os rapazes (...)”.
(Gênesis 48:16). Este anjo do Senhor, de cuja aparência temos muitos
casos registrados no Antigo Testamento, a Igreja sempre confessou ter
sido o Filho de Deus, e isso por três razões: 1. Porque todas as
Escrituras ensinam que o Filho de Deus é o mensageiro do Pai para a
Igreja e que Ele exerce o ofício de mediador. “O Senhor, a quem vós
buscais, virá repentinamente ao Seu templo, sim, o mensageiro da aliança, de
quem Se agrada” (Malaquias 3:1); “Ao Filho Ele diz: teu trono, ó Deus, é para
todo o sempre (...)” (Hebreus 1:8); “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para
sempre” (Hebreus 13:8). 2. Porque, o que Moisés disse a respeito deste
anjo, é dito a respeito de Cristo por Paulo, que Ele foi tentado no
deserto pelos israelitas. A partir dessas e de coisas semelhantes,
podemos apresentar o argumento assim: o anjo, ou mensageiro do Pai,
existia antes da encarnação. Esse anjo não era nem o Pai, nem o
Espírito Santo, mas o Filho, porque somente o Filho é o mensageiro

398 | P á g i n a
do Pai e o mediador. Portanto, o Filho era uma pessoa que subsistia
antes de assumir nossa natureza.
9. Nesta última divisão estão compreendidas todas as passagens nas
Escrituras em que Cristo é expressamente chamado de Deus
verdadeiro, por nome e propriedades. “De quem, quanto à carne, veio
Cristo, que é sobre todos Deus bendito para sempre“ (Romanos 9:5); “Este é o
verdadeiro Deus e a vida eterna” (1 João 5:20). Aqui o homem Jesus Cristo
é expressamente chamado de Deus verdadeiro. Se, portanto, Ele é o
verdadeiro Deus, sempre existiu; pois o único Deus verdadeiro é desde
a eternidade. “Deus foi manifesto em carne”. Aqui Cristo é, sem dúvida,
chamado Deus.
A esta classe de argumentos também pertencem apropriadamente
todos aqueles testemunhos que atribuem a Cristo a obra da criação,
milagres, redenção, regeneração, proteção, glorificação e também o
governo de todo o mundo, para o qual infinita sabedoria, poder,
conhecimento e onipresença são necessárias, das quais já fornecemos,
em diferentes ocasiões, um grande número de provas. Destes, é
evidente que não apenas o nome, mas também as propriedades do
Deus verdadeiro, são atribuídos ao homem Cristo, o último dos quais
fornece as provas mais fortes de Sua própria divindade; pois, embora
os títulos do Deus verdadeiro que são atribuídos a Cristo possam, de
certa forma, ser expostos metaforicamente, as propriedades divinas
não podem ser distorcidas a ponto de perder seu peso apropriado. E
se nos fortalecermos com argumentos desse tipo, nossos adversários
não podem resistir, mas serão compelidos, querendo ou não, a
confessar que Cristo existia antes de Sua encarnação.

399 | P á g i n a
Esta proposição sendo estabelecida, de que o Filho subsistiu antes de
Sua manifestação na carne, devemos indagar mais: o que Ele era: o
criador, ou uma criatura? Ele era um Espírito coeterno com Deus ou
criado no tempo? Uma resposta a essas perguntas é respondida na
descrição da Palavra e da sabedoria que se encontra no primeiro
capítulo do evangelho de João e no 8º capítulo dos provérbios de
Salomão.

II. QUE O FILHO É UMA PESSOA REALMENTE DISTINTA DO


PAI E DO ESPÍRITO SANTO
Que a pessoa do Filho é distinta da do Pai, deve ser mantida e ensinada
por causa de Noeto (de Esmirna), Sabélio, e seus seguidores, que
afirmam que a essência do Pai, Filho e Espírito Santo, é da mesma
pessoa, ou que os três são uma pessoa; mas que Eles têm nomes
diferentes, como Pai, Filho e Espírito Santo, por terem diferentes
ofícios.
Para provar que o Filho é distinto do Pai, não apenas no ofício, mas
também em Sua personalidade, os seguintes argumentos são
suficientes: 1. Ninguém é filho de Si mesmo, mas todo filho é filho de
um pai, que é distinto de aquele que é gerado, ou então o pai e o filho
seriam o mesmo no mesmo aspecto, o que é um absurdo. Portanto, a
Palavra é o Filho do Pai, e não o próprio Pai.
2. As Escrituras ensinam que existem três pessoas distintas na
Divindade. “Há três que testificam no céu, o Pai, a Palavra e o Espírito Santo,
e estes três são um” (1 João 5:7); “E Deus disse: façamos o homem à nossa
imagem” (Gênesis 1:26). Ele não disse: “farei o homem”. “Eu e meu Pai somos
um” (João 10:30); “Mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai
enviará em Meu nome, Ele vos ensinará todas as coisas” (João 14:26). “Mas,
quando vier o Consolador, que Eu vos enviarei até vou do Pai, o Espírito da
verdade, que procede do Pai, Ele dará testemunho de Mim” (João 15:26);
“Ensineis todas as nações, batizando-as em nome do Pai, Filho e Espírito

400 | P á g i n a
Santo” (Mateus 28:19). O Espírito Santo também desceu na forma de
uma pomba, e o Filho foi batizado em Jordão, e a voz do Pai foi ouvida
do céu, dizendo: “Este é o Meu Filho amado em quem Me comprazo”
(Mateus 3:16).
3. Existem testemunhos expressos das Escrituras que afirmam que o
Pai é um, o Filho é um e o Espírito Santo é outra pessoa. “Há outro que
dá testemunho de Mim” (João 5:32, 37), isto é, o Pai falando do céu. “Minha
doutrina não é Minha, mas daquele que Me enviou” (João 7:16); “O Filho nada
pode fazer por Si mesmo, a não ser aquilo que vê o Pai fazer” (João 5:19); “E
Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador” (João 14:16).
4. Existem atributos distintos atribuídos às diferentes pessoas da
Divindade. O Pai gerou o Filho, e o Filho é gerado. O Pai enviou e o
Filho é enviado. Não se diz que o Pai se fez carne, mas somente o
Filho. O Filho, e não o Pai, tomou sobre Si a semente de Abraão. O
Filho foi feito um intercessor suplicante, sacerdote, profeta, rei e
mediador, e não o pai. Portanto, o Pai e o Filho são diferentes. O Pai é
de Si mesmo pelo Filho: o Filho não é de Si mesmo, nem pelo Pai, mas
por Si mesmo vindo do Pai. Finalmente, Cristo foi batizado, e não o
Pai, nem o Espírito Santo. Portanto, Cristo é distinto do Pai e do
Espírito Santo.

III. QUE O FILHO É IGUAL AO PAI E AO ESPÍRITO SANTO


Que o Filho é Deus verdadeiro, igual ao Pai e ao Espírito Santo, que
não foi feito ou criado antes de todas as criaturas, que não é Deus por
causa das qualidades e operações divinas, e que não é inferior a outras
pessoas da Divindade, como Ário, Eunômio, Paulo de Samosata,
Serveto e outros hereges de um caráter semelhante imaginam; mas
que Ele é por natureza Deus, com o Pai e o Espírito Santo, é provado:

401 | P á g i n a
1. Por testemunhos explícitos das Escrituras. “Esta é a vontade do Pai,
que todos os homens honrem o Filho como honram o Pai” (João 5:23)40; mas o
Pai deve ser honrado como o verdadeiro Deus, e não como uma
divindade imaginária; então, portanto, o Filho deve ser honrado. “Tudo
aquilo que o Pai faz, o Filho faz o mesmo” (João 5:23); “Assim como o Pai tem
vida em Si mesmo, assim deu ao Filho ter vida em Si mesmo” (João 5:19);
“Cristo é sobre tudo, Deus bendito para sempre” (João 5:26); “Este é o
verdadeiro Deus e a vida eterna” (Romanos 9:5); “O segundo homem é o
Senhor do céu” (1 João 5:20); “Todas as coisas que Ele possui são Minhas” (1
Coríntios 15:47); “Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”
(Colossenses 2:9); “Que sendo em forma de Deus, não tomou por usurpação
ser igual a Deus” (Filipenses 2:6).
2. Ele é o verdadeiro, próprio e natural Filho de Deus, gerado da
essência do Pai. E se Ele é gerado da essência de Deus, o mesmo é,
portanto, comunicado a Ele todo e completo, visto que a essência
divina é infinita, indivisível, e não comunicada em parte. Portanto, na
medida em que o Filho tem toda a essência comunicada a Ele, Ele é,
por isso, igual ao Pai e, consequentemente, verdadeiro Deus.
3. As Escrituras atribuem todas as propriedades essenciais da
Divindade ao Filho, não menos do que ao Pai, visto que Ele é eterno.
“Antes dos montes, fui gerado” (Provérbios 8:25). “No início era a Palavra”
(João 1:1). Ele é imenso: “Ninguém subiu ao céu, senão Aquele que desceu do
céu, sim, o Filho do homem que está nos céus” (João 3:13); “Para que Cristo
possa habitar em seus corações pela fé” (Efésios 3:17). Ele é onipotente: “O
que o Pai faz, o Filho o faz [também]” (João 5:19); “De acordo com o poder pela
qual Ele é capaz de submeter todas as coisas a Si mesmo” (Filipenses 3:21);
“Sustentando todas as coisas pela Palavra, pelo Seu poder” (Hebreus 1:3).
Sua sabedoria é imensa: “Seu nome será Conselheiro” (Isaías 9:6);
“Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho

40 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

402 | P á g i n a
(...)” (Lucas 10:22); “Mas Jesus não se comprometeu com eles, e não precisava
que ninguém testificasse do homem, pois Ele sabia o que havia no homem”
(João 2:24 ); “Agora estamos certos de que sabes todas as coisas” (João 16:30).
Ele é o santificador da Igreja: “Cristo também amou a Igreja e Se entregou
por ela, para a santificar e purificar com a lavagem de água pela Palavra”
(Efésios 5:25, 26). Ele é imutável: “Os céus e a terra passarão, mas as
Minhas palavras não hão de passar” (Mateus 24:35). Ele é a própria
verdade, sim, a fonte da verdade: “Embora Eu dê testemunho de Mim
mesmo, Meu testemunho é verdadeiro” (João 8:14); “Eu Sou o caminho, a
verdade e a vida” (João 14:6). Sua misericórdia é indescritível: “Assim
como também Cristo nos amou e Se entregou por nós como oferta e sacrifício
a Deus” (Efésios 5:2). Ele está irado com o pecado e pune até os pecados
cometidos em segredo: “Quem não crê no Filho não verá a vida, mas a ira
de Deus permanece sobre Ele” (João 3:36); “E disse às rochas e montanhas,
caia sobre nós e nos esconda da face dAquele que está assentado sobre o trono,
e da ira do Cordeiro” (Apocalipse 6:16). Portanto, o Filho é por natureza
Deus e igual ao Pai.
4. As Escrituras, da mesma forma, atribuem todas as obras divinas
igualmente ao Pai e ao Filho. Ele é o criador de todas as coisas, pois é
dito no evangelho de João: “Todas as coisas foram feitas por Ele” (João
1:3)41. Ele é o preservador e governador de todas as coisas: “Sustentando
todas as coisas pela Palavra do Seu poder” (Hebreus 1:3). Então são
atribuídos a Cristo aquelas coisas que pertencem especialmente à
salvação da Igreja. Ele envia profetas, apóstolos e outros ministros da
Igreja: “Assim como Meu Pai Me enviou, também Eu vos envio” (João 20:21);
“E Ele deu alguns profetas e alguns apóstolos e alguns evangelistas (...)”.
(Efésios 4:11). Ele fornece a Seus ministros os dons e graças
necessárias: “Eu vos darei boca e sabedoria, à qual todos os vossos
adversários não poderão contradizer nem resistir” (Lucas 21:15). Ele nos
revela a doutrina da salvação: “O unigênito que está no seio do Pai, Ele O

41 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

403 | P á g i n a
declarou” (João 1:18). Ele confirma essa doutrina por meio de milagres:
“E, saindo, pregaram por toda parte, o Senhor cooperando com eles e
confirmando a palavra com os sinais que se seguiram” (Marcos 16:20). Ele
instituiu os sacramentos: “Porque Eu recebi do Senhor o que também vos
entreguei” (1 Coríntios 11:23); “Batizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo” (Mateus 28:19). Ele revela o futuro: “Eu, Jesus, enviei o Meu
anjo para vos testificar estas coisas às igrejas” (Apocalipse 22:16); “Ele
receberá do que é Meu e vos mostrará” (João 16:14). Ele congrega a Igreja:
“Eu Sou o bom pastor, e conheço as Minhas ovelhas, e Eu Sou conhecido pelas
Minhas [ovelhas]; também tenho outras ovelhas que não são deste aprisco;
também devo trazê-las, e elas ouvirão a Minha voz e haverá um rebanho e um
pastor” (João 10:14, 16.) Ele ilumina o entendimento dos homens:
“Ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem O revelar” (Mateus
11:27); “Então Ele abriu seus entendimentos para que pudessem compreender
as Escrituras” (Lucas 24:45). Ele regenera e santifica: “Este é Ele que batiza
com o Espírito Santo” (João 1:33); “Que se entregou por nós para nos redimir
de toda iniquidade e purificar para Si um povo peculiar, zeloso de boas obras”
(Tito 2:14). Ele governa a vida e as ações dos piedosos: “Sem Mim nada
podeis fazer” (João 15:5). “Eu vivo, mas não [por] eu [mesmo], mas Cristo vive
em mim” (Gálatas 2:20). Ele conforta os piedosos nas tentações: “Vinde
a Mim todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei” (Mateus
11:28); “Deixo-vos a paz, a Minha paz vos dou” (João 14:27). Ele confirma e
defende os que se convertem contra as tentações do Diabo, e os
preserva por uma fé verdadeira até o fim: “Tende bom ânimo, eu venci o
mundo” (João 16:33); “As minhas ovelhas nunca perecerão, nem ninguém as
arrebatará da minha mão” (João 10:28). Ele ouve aqueles que o invocam:
“Se pedirdes alguma coisa em Meu nome, Eu o farei” (João 14:14); “Por isso
roguei ao Senhor três vezes, e Ele me disse: Minha graça te basta” (2 Coríntios
12:8). Ele perdoa pecados, justifica e nos adota como filhos de Deus:
“O conhecimento do Meu servo justo justificará a muitos” (Isaías 53:11); “Para
que saibais que o Filho do Homem tem poder na terra para perdoar pecados”
(Mateus 9:6); “Mas a todos quantos O receberam deu-lhes poder para ser

404 | P á g i n a
[chamados] filhos de Deus” (João 1:12). Ele dá a vida eterna e a salvação:
“Eu lhes dou a vida eterna” (João 10:28); “Este é o verdadeiro Deus e a vida
eterna” (1 João 5:20). Ele julgará o mundo: “Ele foi ordenado por Deus, para
ser o juiz dos vivos e dos mortos” (Atos 10:42); “Porque Ele designou um dia
no qual julgará o mundo com justiça por aquele homem a quem Ele ordenou”
(Atos 10:42). Essas obras divinas atribuídas ao Filho diferem das
propriedades divinas que também são atribuídas a Ele, pois os efeitos
diferem de suas causas.
5. Nas Escrituras, honra igual e comum e adoração também são
atribuídas ao Pai e ao Filho; cuja igualdade decorre de uma igualdade
de essência e operações. Cristo é adorado pelos anjos e pela Igreja:
“Que todos os anjos de Deus O adorem” (Hebreus 1:6); Ele mesmo disse:
“Para que todos os homens honrem o Filho, assim como honram o Pai” (João
5:23). Fé e confiança devem repousar nEle: “Credes em Deus, crede também
em mim” (João 14:1). Ele é chamado Deus absolutamente, como o Pai:
“Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna”. Ele mesmo instituiu os
sacramentos em que é adorado. Ele está assentado à direita de Deus,
no trono de Seu Pai, e governa com poder igual ao do Pai. Ele é
adorado com a mesma honra que o Pai pela Igreja triunfante. “Bênção
e honra e glória e poder sejam sobre aquele que está assentado no trono e sobre
o Cordeiro para todo o sempre” (Apocalipse 5:13). Finalmente, Ele é o
noivo, o marido, o cabeça e rei da Igreja, que é Sua casa e templo.
Objeção 1. Aquele que tem todas as coisas de outro é inferior àquele
de quem as possui. O Filho tem todas as coisas do Pai. Portanto, Ele é
inferior ao Pai. Resposta: O maior é verdadeiro apenas para aquele que
tem alguma coisa pela graça do doador; pois ele pode não ter, e é,
portanto, por natureza inferior; mas não é verdade para aquele que
tem todas as coisas por geração, ou por natureza, como o Filho de
Deus, o Verbo tem todas as coisas do Pai. “O Pai deu ao Filho ter vida em
Si mesmo, como Ele tem vida em Si mesmo” (João 5:26); “Todos os [que são]
Meus são Teus e os [que são] teus são Meus” (João 17:10).

405 | P á g i n a
Objeção 2. Aquele que faz tudo o que faz pela vontade de outro
anteriormente, é inferior àquele por cuja vontade é controlado. O
Filho opera pela vontade do Pai que vai antes dEle e O precede.
Portanto, Ele é inferior ao Pai. Resposta: A ordem de operação por
parte das pessoas da Divindade não anula Sua igualdade; pois é assim
que Deus Se revela em Sua palavra; porque o Pai faz todas as coisas
por meio do Filho e do Espírito Santo; o Filho pelo Pai, por meio do
Espírito, e assim por diante. Tampouco é uma ordem de tempo,
dignidade ou natureza, mas apenas de pessoas; de forma que o Filho
deseja e faz apenas as coisas que o Pai deseja e faz, e isso com o mesmo
poder e autoridade, que, em vez de acabar com Sua igualdade, apenas
a estabelece de forma mais plena.

IV. QUE O FILHO É CONSUBSTANCIAL, OU DA MESMA


ESSÊNCIA DO PAI E DO ESPÍRITO SANTO
Tendo estabelecido as proposições anteriores, somos agora
naturalmente levados a provar que o Filho é substancial; isto é, da
mesma essência com o Pai. Os hereges estão dispostos a confessar que
o Filho é de substância ou essência semelhante ao Pai, o que é, de fato,
verdadeiro, mas não expressa toda a verdade em relação a este assunto.
Dois homens são, também, semelhantes substancialmente, que, no
entanto, não são consubstanciais. Mas o Pai e o Filho não são apenas
semelhantes, mas um, e a mesma essência, e são um Deus; pois há
apenas uma essência divina que é a mesma e está totalmente em cada
uma das pessoas da Divindade. O Pai é, de fato, uma pessoa e o Filho
é outra; mas ainda assim o Pai não é um Deus, e o Filho outro Deus, e
assim por diante. João diz: “que há três que testificam no céu (...)”; são três
pessoas, mas não três deuses que dão testemunho; “pois estes três são
um” (1 João 5:7). Portanto, declaramos contra Ário, que Cristo não é
apenas semelhante substancial, mas também consubstancial com o
Pai, tendo a mesma essência divina com o Pai, o que é confirmado
pelos seguintes argumentos:

406 | P á g i n a
1. Porque o Filho é chamado de Jeová, que é apenas uma essência. E
não é apenas o nome, mas as propriedades, também, que pertencem
somente a Jeová, são atribuídas a Cristo: “E este é o nome pelo qual será
chamado: Senhor Justiça Nossa” (Jeremias 23:6); “Eis que este é o nosso Deus;
nós o esperamos e Ele nos salvará; este é o Senhor” (Isaías 25:9); Esse Deus
e salvador esperado é o Messias, que, no mesmo sentido, é chamado
de “o desejo de todas as nações” (Ageu 1:7). Aquelas passagens das
Escrituras também estão aqui em que o Anjo do Senhor é chamado o
próprio Jeová; e, também, aqueles que no Antigo Testamento são ditos
a respeito de Jeová, e no Novo Testamento são citados e aplicados a
Cristo: “Quando Ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e deu dons aos
homens” (Salmos 68:18; Efésios 4:8). Jeová foi tentado no deserto; o
mesmo é dito de Cristo. “E que todos os anjos de Deus O adorem” (Salmos
97:7; Hebreus 1:6); “E Tu, Senhor, no princípio lançaste os alicerces da terra,
e os céus são obra das Tuas mãos” (Salmos 102:26; Hebreus 1:10).
2. Porque Ele é chamado de Deus verdadeiro, que é apenas um, como
se diz: “Este é o Deus verdadeiro e a vida eterna” (1 João 5:20); “Quem é sobre
tudo Deus bendito para sempre” (Romanos 9:5).
3. Porque há um só e o mesmo Espírito do Pai e do Filho, procedente
de e próprio de ambos, por meio dos quais o Pai e o Filho operam.
Eles não são, portanto, distintos em essência, mas apenas em pessoas,
caso contrário, cada um teria Seu Espírito peculiar, e este diferente do
Espírito do outro.
4. Porque Cristo é o Filho unigênito e próprio do Pai, tendo Sua
essência comunicada a Ele da mesma forma e completa, na medida
em que a Divindade não pode ser multiplicada ou dividida.
A partir dessas considerações é fácil dar uma resposta aos sofismas
dos hereges, especialmente se considerarmos a fonte de onde
procedem; pois eles baseiam suas conclusões em princípios falsos; ou
transferem para o criador aquelas coisas que são peculiares às coisas
criadas; ou eles atribuem à divindade de Cristo aquelas coisas que são

407 | P á g i n a
ditas de Sua natureza humana; ou confundem o ofício do mediador
com Sua natureza ou pessoa; ou excluem o Filho e o Espírito Santo
daquelas coisas que atribuem ao Pai como a fonte de todas as obras
divinas do Filho e do Espírito Santo; ou diminuem do Filho e do
Espírito Santo as coisas pelas quais a Divindade do Pai Se distingue
das criaturas e ídolos; ou, finalmente, eles corrompem a linguagem das
Escrituras.
Regras gerais pelas quais uma resposta pode ser concedida às
principais heresias e objeções dos hereges
1. Os hereges raciocinam com base em princípios falsos quando
argumentam que, se Deus gerou um Filho, Ele poderia ter gerado mais,
e o Filho poderia ter gerado outro filho, e outras afirmações
semelhantes. Nós respondemos a essa objeção, que estabelece esta
regra, que estamos a julgar de Deus de acordo com a revelação que
Ele realizou em Sua palavra, e não de acordo com a mente dos hereges.
Portanto, como Ele se revelou em Sua palavra como alguém que
poderia ter gerado apenas um Filho, e tem e desejou ter apenas um e
não mais, devemos ficar satisfeitos com isso e não ir além do que Lhe
agradou revelar.
2. Eles presumem muitas coisas que são verdadeiras em relação às
coisas que são finitas, mas que são falsas quando se aplicam a Deus
que é infinito, como, por exemplo, quando argumentam: que três não
podem ser um; três pessoas realmente distintas não podem ser uma
essência; aquele que gera e aquele que é gerado não são a mesma
essência; uma pessoa infinita não pode gerar outra que é infinita; uma
essência não pode ser comunicada a muitos; aquele que comunica sua
própria essência, inteira e inteira a outra, não permanece o que era, e
outras afirmações semelhantes. A essas e outras objeções semelhantes
frequentemente apresentadas por aqueles que se opõem à doutrina da
Divindade do Filho e do Espírito Santo, respondemos, não
simplesmente negando o que eles afirmam, mas fazendo uma

408 | P á g i n a
distinção de acordo com esta regra: princípios que são verdadeiros no
que diz respeito uma natureza que é finita, não deve ser transferida
para a essência infinita de Deus; para quando isso é feito se tornam
falsas.
3. Quando eles argumentam de coisas peculiares à natureza humana,
como que Cristo sofreu, morreu, e outras coisas semelhantes, coisas
que não podem ser ditas de Deus; respondemos a eles fazendo uma
distinção entre as naturezas em Cristo, de acordo com esta regra: as
coisas que são próprias da natureza humana de Cristo não devem ser
transferidas para Sua natureza divina.
4. Quando eles concluem das coisas que são peculiares ao ofício do
mediador, que Deus não pode ser enviado por Deus; devemos
responder de acordo com a regra de Cirilo: o envio e a obediência não
tiram ou entram em conflito com a igualdade de poder, ou de essência;
ou, a desigualdade de ofícios não põe de lado a igualdade de natureza
ou de pessoas. É de acordo com esta regra que devemos também
explicar aquela declaração de Cristo: Meu Pai é maior do que Eu; ou
uma vez que respeita o ofício e a natureza humana do mediador, mas
não como respeita à Sua essência divina (João 14:28).
5. Quando eles concluem que o Filho não é Deus, ou que Ele é inferior
ao Pai, porque Ele às vezes nas Escrituras atribui Suas próprias obras
ao Pai, como a fonte de todas as operações divinas, como em João
14:10, “O Pai que habita em mim, Ele faz as obras”; uma resposta deve ser
respondida de acordo com esta regra. As coisas que são atribuídas ao
Pai como a fonte, não devem ser consideradas como pertencendo
exclusivamente a Ele, como se o Filho não participasse delas; pois são
comunicadas a Ele para que os tenha como Suas. Pois tudo o que o
Pai faz, o Filho isso também o faz.

409 | P á g i n a
6. Então, quando eles argumentam a partir daquelas passagens da
Escritura em que o Pai se opõe a falsas divindades que não fazem
menção do Filho, que esta omissão é uma prova manifesta de que o
Filho não é aquele Deus, uma resposta é facilmente dada de acordo
com a esta regra: quando qualquer coisa é atribuída a qualquer uma
das pessoas da Divindade que se opõe às criaturas, ou divindades
falsas, para que possa assim ser distinguido delas, as outras pessoas
não são excluídas, mas apenas aquelas coisas em relação para o qual
uma comparação é feita. Ou, quando uma pessoa divina, como o Pai,
se opõe às criaturas, ou ídolos, e glória e honra são atribuídas a ela,
não se segue que o Filho e o Espírito Santo não sejam da mesma
essência divina daquele oposto assim, e que Eles não possuem igual
honra e glória. Ou, as propriedades, operações e honra divinas são
atribuídas a qualquer uma das pessoas de tal forma que elas não são
removidas das outras pessoas da Divindade, mas apenas das criaturas.
Ou, uma forma superlativa ou exclusiva de falar em relação a uma
pessoa, não exclui as outras pessoas da Divindade; mas criaturas e
falsos deuses contra os quais o verdadeiro Deus em uma ou mais
pessoas se opõe. Como, “o Pai é maior do que todos”, isto é, todas as
criaturas, e não o Filho ou o Espírito Santo (João 10:29). “Daquele dia
ninguém conhece, senão o Pai somente”, isto é, nenhuma criatura (Mateus
24:36). Portanto, uma resposta também é fornecida à declaração: “para
que te conheçam, o único Deus verdadeiro” (João 17:3). O Filho não é por
isso excluído como se Ele não fosse verdadeira e apropriadamente
Deus, mas ídolos e falsos deuses com os quais o Pai, o Deus verdadeiro,
é comparado, são excluídos.
7. No que diz respeito às frases e linguagem das Escrituras que eles
corrompem, devemos julgá-los de acordo com as circunstâncias
relacionadas com as passagens referidas, e por uma comparação delas
com outras passagens, como “Ele entregará o reino a Deus, o Pai,” (1
Coríntios 15:24). De tal forma, sem dúvida, que Ele mesmo pode retê-

410 | P á g i n a
lo, assim como o Pai entregou o reino ao Filho de tal forma que Ele,
no entanto, O fez não perdê-lo. Portanto, “o Filho não faz nada” (João
5:19). Isto é, Ele não faz nada por Si mesmo, ou sem a vontade do Pai
anteceder a Ele, mas Ele age por Si mesmo da parte do Pai.
Regras especiais contra os sofismas dos hereges e aquelas que são
necessárias para a compreensão das Escrituras
1. Nada há de censurável na declaração de que aqueles que são iguais
em natureza podem ser desiguais no ofício.
2. Aquilo que o Pai deu ao Filho para que Ele retenha, o Pai nunca mais
tomará dEle; mas aquilo que foi dado e confiado a Ele por um certo
tempo, Ele deve necessariamente renunciar.
3. Uma consequência que é tirada daquilo que é relativo àquilo que é
absoluto não tem força.
4. Não se segue que aquele que tem sua pessoa de outro, tenha sua
essência igualmente de outro.
5. Aquilo que é próprio de uma só natureza é atribuído à pessoa em
concreto, mas não a não ser em relação à natureza a que é próprio.
6. A sabedoria é dupla: há uma espécie que está nas criaturas, que é a
ordem das coisas na natureza sabiamente constituída, e há outra
sabedoria que está em Deus, que, quando se opõe às criaturas, é a
divina a própria mente, ou o decreto eterno do Pai, Filho e Espírito
Santo em relação a esta ordem. Mas quando esta sabedoria em Deus
é distinta de Deus, então ela é apropriadamente considerada como o
Filho de Deus. A primeira sabedoria é criada, a última não criada.
7. Sempre que uma pessoa da Trindade se opõe nas Escrituras às
criaturas, ou falsos deuses, e assim se distingue deles, as outras pessoas
não são assim excluídas, mas apenas as criaturas com as quais há uma
comparação do Deus verdadeiro. O mesmo deve ser observado em
todas as declarações exclusivas e superlativas.

411 | P á g i n a
8. Quando Deus é mencionado de forma absoluta nas Escrituras, deve
sempre ser entendido como se referindo ao Deus verdadeiro.
9. Considerando que o Filho e o Espírito Santo vêm do Pai; e
considerando que o Pai opera por meio do Filho e do Espírito Santo,
e não Se humilhou como o Filho; as Escrituras, muitas vezes, e
principalmente nos discursos de Cristo, entendem pelo nome do Pai,
também o Filho e o Espírito Santo.
10. Quando Deus é considerado absolutamente, ou por Si mesmo, ou
Se opõe às criaturas, as três pessoas são compreendidas; mas quando
Ele Se opõe ao Filho, a primeira pessoa da Divindade, que é o Pai, é
compreendida.
11. As Escrituras distinguem as pessoas quando se opõem ou as
comparam umas às outras, ou quando expressam Suas propriedades
pessoais, pelo que restringem a uma das pessoas da Trindade, o nome
de Deus comum a todos Elas. Mas eles abrangem e significam todas
as pessoas da Divindade, quando os nomes opõem o Deus verdadeiro
às criaturas, ou falsos deuses, ou o consideram absolutamente de
acordo com sua natureza.
12. O Filho costuma referir-se ao Pai aquilo que tem em comum com
Ele, não fazendo qualquer menção de Si mesmo, na medida em que
fala na pessoa do mediador.
13. Diz-se que o Filho vê, aprende, ouve e opera como sendo do Pai com
respeito a ambas as naturezas, mas ainda com uma distinção justa e
apropriada; pois a vontade de Deus é dada a conhecer ao Seu
entendimento humano por revelação. Mas Sua Divindade por Si
mesma, e em Sua própria natureza, conhece e vê mais perfeitamente
desde a eternidade a vontade do Pai.
14. Se as operações externas das três pessoas fossem distintas, elas
fariam essências distintas, porque, se quando uma operasse outra
deveria descansar, haveria essências diferentes.

412 | P á g i n a
15. Quando Deus é chamado Pai de Cristo e dos fiéis, não quer dizer
que Ele seja deles e Seu Pai no mesmo nome.
16. O Pai nunca esteve sem o Filho, nem o Pai e o Filho sem o Espírito,
visto que a Divindade não pode ser aumentada, diminuída ou mudada.
Certos sofismas de hereges contra a Divindade eterna do Filho
refutaram brevemente
1. Três pessoas não são uma em essência. Jeová é uma essência.
Portanto, não pode haver três pessoas na Divindade. Resposta: A
proposição principal é válida apenas para coisas finitas e criadas; e não
da essência incriada, infinita, mais simples e individual da Divindade.
2. Aquele que tem um início não é eterno. O Filho tem um início.
Portanto, Ele não é aquele Jeová eterno que é o Pai. Resposta: Aquilo
que não é eterno tem um início de essência e tempo; mas é dito que o
Filho teve um princípio, não de essência e tempo; mas apenas da
pessoa ou da ordem e da forma de existir. Pois Ele tem uma e a mesma
essência com o Pai, não no tempo, mas pela geração eterna. “Cujas
saídas têm sido desde a antiguidade, desde a eternidade” (Miquéias 5:2); “E
agora, ó Pai, glorifica-me tu com Ti mesmo, com a glória que Eu tinha contigo
antes que o mundo existisse” (João 17:5); “Assim como o Pai tem vida em si
mesmo, assim deu ao Filho ter vida em si mesmo” (João 5:26). Se ainda for
contestado, aquele que tem um princípio de pessoa ou de origem,
como o Filho tem, não é Jeová; respondemos que, se essa proposição
for compreendida universalmente, ela é falsa; pois as Escrituras
ensinam distintamente que o Filho é Jeová e que Ele foi gerado, isto
é, teve uma origem pessoal do Pai.
3. Nossa união com Deus é um consentimento da vontade. A união do
Filho com o Pai é do mesmo caráter, como se diz, “para que sejam um
como Nós somos um” (João 17:11). Portanto, a união do Filho com o Pai
não é essencial, mas apenas um consentimento e acordo de vontade.
Resposta: Há mais proposições na conclusão do que nas premissas; pois

413 | P á g i n a
a conclusão é universal, enquanto a proposição menor é específica; pois
há, além do consentimento dos fiéis à vontade de Deus, também outra
união do Filho com o Pai, a saber, de essência; porque Eles são um só
Deus. “Eu e meu Pai somos um” (João 10:30); “Eu estou no Pai e o Pai em mim
(...) Aquele que Me vê, vê o Pai (João 14:9, 10); “Quem é a expressa imagem de
Sua pessoa” (Hebreus 1:3).
4. Além daquele em quem toda a Deidade está, não há outro em quem
seja da mesma forma. Toda a Divindade está no Pai. Portanto, a
Divindade não está no Filho. Resposta: Negamos a proposição maior,
porque a mesma essência que está no Pai, também é íntegra no Filho
e no Espírito Santo.
5. A essência divina não é gerada. Mas o Filho foi gerado. Portanto, Ele
não é a mesma essência divina que o Pai é. Resposta: Nada pode ser
concluído de meras proposições particulares; pois a proposição maior,
quando exposta geralmente, é falsa, que tudo o que é a essência divina
não é gerado.
6. Onde há operações distintas, pelo menos as internas, também há
essências distintas. Existem operações internas distintas do Pai, Filho
e Espírito Santo. Portanto, suas essências são distintas. Resposta: A
proposição maior é verdadeira para pessoas de natureza finita; mas
pode ser invertida quando entendido de pessoas com uma essência
infinita; pois onde há operações distintas ad intra, que consistem na
comunicação da essência, aí deve ser uma e a mesma, e que toda a
essência, porque é comunicada inteira a quem quer que seja feita.

414 | P á g i n a
7. Cristo é o Filho de Deus de acordo com aquela natureza, a respeito
da qual Ele é chamado de Filho nas Escrituras. Mas Ele é chamado de
Filho apenas de acordo com Sua natureza humana. Portanto, Ele é o
Filho de Deus somente de acordo com isso e, consequentemente, não
é o verdadeiro Deus. Resposta: A proposição menor é falsa, porque se
diz que o Filho desceu dos céus para estar no céu quando Sua carne
estava na terra. Diz-se que o Pai criou todas as coisas por meio do
Filho. Essas coisas não são ditas do Filho de acordo com Sua natureza
humana.
8. O Filho tem uma mente e é menor que o Pai. Portanto, Ele não é a
mesma essência com o pai. Resposta: O Filho tem uma mente a
respeito de Sua natureza humana e Seu ofício como mediador. Essas
coisas, no entanto, não diminuem nada de Sua Divindade.
9. A essência divina está encarnada. O Pai, Filho e Espírito Santo são
a essência divina. Portanto, os três estão encarnados. Resposta:
Negamos a consequência; pois nada pode ser inferido com certeza de
meros detalhes. A proposição principal não pode ser estabelecida
universalmente; pois nem tudo o que é a essência divina está
encarnada, isto é, nem toda a pessoa que nela subsiste está encarnada;
ou a essência divina não está encarnada nas três pessoas, mas apenas
em uma, e isso na pessoa do Filho.
10. O Pai só é o Deus verdadeiro, como é dito em João 17:3: “Para que te
conheçam, o único Deus verdadeiro”. Portanto, o Filho não é o verdadeiro
Deus. Resposta: 1. De acordo com a sexta regra geral, não há aqui uma
oposição do Pai, Filho e Espírito Santo; mas do verdadeiro Deus, com
ídolos e criaturas. Portanto, a partícula apenas não exclui o Filho e o
Espírito Santo da Divindade, mas apenas aqueles a quem a partícula
se opõe. 2. Há uma falácia em dividir as cláusulas de coerência mútua
e conexão necessária; pois segue na passagem acima referida, “e Jesus

415 | P á g i n a
Cristo a quem Tu enviaste” (João 17:3)42. Portanto, a vida eterna também
consiste nisto, que Jesus Cristo, enviado do Pai, possa igualmente ser
conhecido como o verdadeiro Deus, como se diz: “Este é o verdadeiro
Deus e a vida eterna” (1 João 5:20)43. 3. Também há uma falácia em referir
a partícula exclusiva apenas ao sujeito ti, ao qual ela não pertence;
mas ao predicado o Deus verdadeiro, que o artigo grego mostra
claramente; pois o sentido é que eles possam conhecer a ti, o Pai, como
aquele Deus, que é o único Deus verdadeiro.
11. Cristo se distingue do Pai dizendo: “Meu Pai é maior do que Eu” (João
14;28). Portanto, Ele não é igual e substancial com o Pai. Resposta: Ele
Se separa e Se distingue do Pai, 1. No que diz respeito à Sua natureza
humana. 2. Com relação ao ofício de mediador. O Pai, portanto, é
maior do que o Filho, não quanto à Sua essência, na qual o Filho é
igual ao Pai, mas quanto ao Seu ofício e natureza humana. É resolvido
de acordo com a quarta regra geral.
12. O mediador entre Deus e o homem não é o próprio Deus. Mas o
Filho é o mediador entre Deus e o homem. Portanto, Ele não é Deus.
Resposta: A proposição maior é falsa, porque pode resultar, pela mesma
razão, que o mediador entre Deus e o homem não é homem.
Resposta: 1. A proposição maior é assim provada. Deus não é inferior a
Si mesmo. O mediador com Deus é inferior a Ele. Portanto, Ele não é
Deus. Resposta: A proposição menor é verdadeira quanto ao ofício de
Cristo, em cujo sentido Ele é inferior a Deus; mas não é verdade
quando entendido de Sua natureza, de acordo com a quarta regra
geral: a desigualdade de ofício não tira a igualdade de natureza ou de
pessoas.

42 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.


43 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

416 | P á g i n a
2. O Filho é mediador com Jeová. Mas o Filho não é mediador consigo
mesmo. Portanto, Ele não é Jeová. Resposta: Observamos novamente
que nada pode ser inferido de meros detalhes. A proposição maior não
é geral: pois o Filho não é mediador de quem quer que seja Jeová; mas
com o Pai.
3. Então o Filho e o Espírito Santo não estão verdadeiramente
reconciliados, ou Eles são reconciliados sem um mediador. Resposta:
Negamos a consequência, porque a mesma vontade pertence às três
pessoas. Quando o Pai é apaziguado, o Filho e o Espírito Santo
também se reconciliam.
4. O Filho é mediador com aquele a quem Ele reconcilia. Mas o Filho
não reconcilia apenas o Pai, mas também a Si mesmo. Portanto, Ele é
mediador consigo mesmo, o que é um absurdo. Resposta: Nós
respondemos à proposição principal: que o Filho é propriamente dito
ser mediador com aquele a quem Ele assim apazigua por Sua
satisfação, que o decreto e propósito de expiação podem parecer ter
originalmente gerado dEle. Mas este é o Pai somente. Portanto, o Filho
não é, neste sentido, mediador consigo mesmo, mas somente com o
Pai. Novamente, não é absurdo dizer que o Filho é mediador em
direção a Ele ou com Ele mesmo; pois não é absurdo que Ele exerça
os ofícios, tanto de aceitação de Deus quanto de mediador fazendo a
reconciliação, mas em diferentes aspectos: o primeiro em razão de Sua
natureza divina; este último aspecto em razão do ofício de mediador.
É apropriado comparar essas objeções com as que são apresentadas
sob o assunto da Trindade. Pois as mesmas objeções e sofismas que
são apresentados contra a essência divina e a própria Trindade, são
apresentados contra cada pessoa da Divindade; e aqueles com os quais
alguém é atacado, são os mesmos que são trazidos contra a essência
de Deus. Além de algumas outras objeções, que foram propostas e que
são aqui mais completamente refutadas. Mais pode ser visto sobre este
assunto no primeiro volume de Ursino, das páginas 115 a 125.

417 | P á g i n a
SOBRE O NOME, SENHOR

Questão 34. Por que tu o chamas de nosso Senhor?


Resposta: Porque Ele nos redimiu, tanto a alma como o corpo, de
todos os nossos pecados, não com ouro ou prata, mas com Seu
precioso sangue, e nos livrou de todo o poder do Diabo, e assim nos
tornou Sua propriedade.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 34

Duas coisas devem ser consideradas:


I. Em que sentido Cristo é chamado de Senhor.
II. Por que causas, e de quantas formas Ele é nosso Senhor.

I. EM QUE SENTIDO CRISTO É CHAMADO SENHOR


Ser Senhor é ter direito sobre alguma coisa ou pessoa. Cristo,
portanto, é nosso Senhor e o Senhor de todos, 1. Porque Ele tem
domínio sobre nós e sobre todas as coisas. Ele se preocupa com todas
as coisas, guarda e preserva tudo, especialmente aqueles que foram
comprados e redimidos por Seu sangue. 2. Porque todas as coisas estão
sujeitas a Ele, e devemos servi-lO, de corpo e alma, para que seja
glorificado por nós.

418 | P á g i n a
O nome Senhor pertence a ambas as naturezas de Cristo, assim como
a de profeta, sacerdote e rei; pois os nomes do ofício, benefícios,
dignidade e beneficência de Cristo para conosco são afirmados de
toda a Sua pessoa, não pela comunicação de propriedades, como os
nomes das duas naturezas e atributos de Cristo, mas apropriadamente
em relação a cada uma. Pois ambas as naturezas de Cristo desejam e
asseguram nossa redenção. A natureza humana pagou o preço da
nossa redenção morrendo por nós, e a divina dá e oferece ao Pai esse
preço, e O aplica a nós pelo Espírito. Cristo é, portanto, nosso Senhor
não só no que diz respeito à Sua natureza divina, que nos criou, mas
também no que diz respeito à Sua humanidade; pois mesmo na
medida em que Ele é homem, a pessoa de Cristo é Senhor sobre todos
os anjos e homens.
II. POR QUAIS CAUSAS, E DE QUANTAS MANEIRAS ELE É
NOSSO SENHOR
Cristo é nosso Senhor, não apenas em um, mas em muitos aspectos.
1. Pelo direito de criação, sustento e governo em Seu caráter geral, bem
como o que Ele tem em comum com o Pai e o Espírito Santo. Por isso
se diz: “todos os Meus são Teus e os Teus são Meus” (João 17:10). O domínio
geral de Cristo é aquele que se estende não apenas a nós, mas a todos
os homens, até mesmo aos ímpios e aos próprios demônios, embora
não no mesmo aspecto. Para 1. Ele nos criou para a vida eterna, mas
criou os anjos para a destruição. 2. Ele tem o direito e o poder sobre
os ímpios e demônios, de fazê-los fazer o que Ele quiser, de forma que,
sem Sua vontade, eles não possam sequer se mover; e se Ele quiser,
tem poder para reduzi-los a nada, como a história que temos no
evangelho do homem possuído por demônios, suficientemente
testifica. Mas, além deste direito que Ele também tem sobre nós, Ele
também é chamado de nosso Senhor, porque Ele nos guarda como
Seu próprio povo peculiar, a quem Ele comprou com Seu sangue e
santifica por Seu Espírito; e, além disso, por este Seu Espírito, Ele nos
dirige e nos governa, e opera em nossos corações a fé e a obediência.

419 | P á g i n a
2. Pelo direito de redenção peculiar a Ele mesmo; porque só Ele é o
mediador, que nos redimiu pelo Seu sangue, do pecado e da morte, do
poder do Diabo nos libertou e nos separou para Si. A forma como
fomos redimidos é muito preciosa, porque era muito maior nos
redimir com Seu sangue do que com dinheiro. Portanto, o direito de
posse que Ele tem sobre nós também é do caráter mais forte. Mas,
visto que Ele nos redimiu, é evidente que éramos escravos. Éramos
realmente servos e escravos do Diabo, de cuja tirania Cristo nos
libertou; portanto, agora somos servos de Cristo; porque, apesar de
sermos por natureza Seus inimigos e merecedores da destruição, Ele
nos preservou e redimiu. Os escravos eram inicialmente chamados de
servi pelos romanos, que deriva de servando, o que propriamente
significa preservado, porque, sendo levados cativos por Seus inimigos,
fomos preservados, quando poderiam ter sido mortos. Este domínio
de Cristo sobre nós é especial, visto que se estende apenas à Igreja.
Objeção. Se fomos redimidos do poder do Diabo, o preço de nossa
redenção foi dado a Ele; pois de cujo poder somos redimidos, a Ele é
o resgate devido. Mas o preço de nossa redenção não foi dado a
Satanás. Portanto, não fomos redimidos de Seu poder. Resposta: O
preço de nossa libertação é devido àquele de cujo poder fomos
redimidos, desde que Ele seja o Senhor supremo e tenha o domínio
sobre nós por direito. Mas somente Deus, e não Satanás, é nosso
Senhor Supremo e tem um domínio justo sobre nós. Portanto, o preço
da nossa redenção é devido a Deus, e não ao Diabo. É verdade que
Satanás nos escravizou pelo justo julgamento de Deus, por causa do
pecado, à força nos tomando e, assim, invadindo as posses de outro.
Mas Cristo, aquele armado forte e maior, tendo feito satisfação por
nossos pecados e destruído o poder do Diabo, de Sua tirania nos
libertou. Portanto, Cristo nos redimiu em relação a Deus, porque
pagou a Ele nosso resgate, e em relação ao Diabo, Ele nos libertou,
afirmou e garantiu nossa liberdade.

420 | P á g i n a
3. Em razão de nossa preservação, Cristo é nosso Senhor; porque Ele
nos defende até o fim e nos guarda até a vida eterna, não apenas
preservando nossos corpos de lesões, mas também nossas almas do
pecado. Pois nossa preservação deve ser entendida não apenas em
relação ao nosso primeiro resgate do poder do Diabo, mas também
em relação à nossa preservação contínua e à consumação de Seus
benefícios. O próprio Cristo fala dessa preservação quando diz: “Os
que Me deste Eu guardei, e nenhum deles se perdeu” (João 17:12); “Ninguém
pode arrancá-los de Minhas mãos” (João 10:28). Ele preserva os iníquos
para a destruição, e isso apenas com uma defesa temporal.
4. Em relação à ordenação ou nomeação; porque o Pai ordenou a
Palavra, ou esta pessoa, Cristo, para que Ele pudesse por meio dEle
fazer todas as coisas nos céus e na terra. Porque Cristo é nosso Senhor,
não apenas porque nos preserva, e nos tendo resgatado do poder do
Diabo e nos tornado filhos de Deus; mas também porque o Pai nos
deu a Ele e o constituiu nosso príncipe, rei e cabeça. “Ele o constituiu
herdeiro de todas as coisas” (Hebreus 1:2); “Eram teus e Tu Me deste” (João
17:6); Todo o que o Pai Me dá virá a Mim” (João 6:37); “E pôs todas as coisas
debaixo de Seus pés, e deu-Lhe para ser o cabeça sobre todas as coisas para a
Igreja (...)” (Efésios 1:22); “Deus O exaltou com Sua destra para ser um
príncipe e um salvador para dar o arrependimento a Israel (...)”(Atos 5:31).
Visto que Cristo, portanto, é nosso Senhor de uma forma muito mais
excelente do que os outros, nós também somos muito mais fortemente
obrigados a prestar obediência a Ele; pois Ele é nosso Senhor de tal
forma que Ele pode fazer conosco o que desejar, e tem um direito
absoluto sobre nós, que Ele, entretanto, utiliza apenas para nossa
salvação, pois recebemos dele mais e infinitamente maiores benefícios
do que de alguém mais poderíamos receber. Portanto, devemos sempre
reconhecer o domínio que Cristo tem sobre nós, cujo reconhecimento
de ser completo implica 1. Uma confissão deste grande benefício, que
Cristo deveria condescender em ser nosso Senhor. 2. Uma confissão

421 | P á g i n a
de nossa obrigação e dever para com Ele, que pode ser compreendida
em servi-lO, adorá-lO e amá-lO.
Qual, portanto, é o significado deste artigo: “Eu creio em Cristo, nosso
Senhor?” Três coisas devem ser observadas: 1. Crer que Cristo é o
Senhor. Isso, entretanto, não é suficiente, pois cremos também que o
Diabo é o senhor; mas não de todos, nem de nós, pois cremos que
Cristo é o Senhor de todos nós. 2. Crer que Cristo é Senhor de todos
e de nós. Nem é tudo o que é necessário para cremos; pois os demônios
também creem que Cristo é Seu Senhor, pois é claro que Ele tem
direito e autoridade sobre eles. 3. Crer em Cristo como nosso Senhor;
isto é, crer que Ele é nosso Senhor de tal forma que possamos
depositar nossa confiança nEle.. E é nisso que somos especialmente
obrigados a crer. Quando, portanto, dizemos que cremos em nosso
Senhor, cremos: 1. Que o Filho de Deus é o criador de todas as coisas
e, portanto, tem direito sobre todas as criaturas. “Todas as coisas que o
Pai possui são minhas” (João 16:15). 2. Que Ele é de uma forma peculiar
constituído o Senhor, o defensor e preservador da Igreja, porque Ele
a redimiu com Seu sangue. 3. Que o Filho de Deus também é meu
Senhor, que sou um de Seus súditos, que Sou redimido por Seu sangue
e continuamente preservado por Ele, de forma que devo ser grato a
Ele. E, além disso, que Seu domínio sobre mim é calculado para
promover meu bem, e que sou salvo por Ele como um bem precioso,
uma compra peculiar, garantida às maiores despesas.

422 | P á g i n a
14º DIA DO SENHOR

DA CONCEPÇÃO E NASCIMENTO DE CRISTO


Questão 35. Qual é o significado dessas palavras: “Ele foi
concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria?”
Resposta: Que o Filho eterno de Deus, que é e continua verdadeiro
e eterno Deus, tomou sobre Si a própria natureza do homem, da
carne e do sangue da virgem Maria, pela operação do Espírito
Santo, para que também pudesse ser a verdadeira semente de Davi,
como seus irmãos em todas as coisas, exceto o pecado.
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 35
A exposição desta questão é necessária por causa dos hereges antigos
e modernos, que negaram, e que agora negam, que a carne de Cristo
foi gerada da substância da virgem. Os eutiquianos argumentam:
Cristo foi concebido pelo Espírito Santo; portanto, a carne de Cristo
foi gerada da substância da Divindade, ou da essência do Espírito
Santo, e por esse meio a natureza divina foi transformada na humana.
A falácia desse argumento surge de um uso incorreto de uma forma
figurativo de falar; pois os termos por, de ou do Espírito Santo não
significam uma matéria, mas uma causa eficiente, o poder, eficácia,
virtude ou operação do Espírito Santo; pois foi pela virtude ou
operação do Espírito Santo que o Filho de Deus foi concebido no
ventre da Virgem, de acordo com as palavras do anjo: “O Espírito Santo
virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá“ (Lucas 1:35). Cristo também
é chamado de semente de Abraão, o Filho de Davi. Portanto, Ele tirou
Sua carne desses pais, e não do Espírito Santo. Assim como nascemos
de Deus porque Ele nos criou, Cristo foi concebido pelo Espírito
Santo; porque foi por Sua virtude e operação que Ele foi concebido; e
não porque Ele foi formado da substância do Espírito Santo.

423 | P á g i n a
Objeção. Mas se a partícula de ou por não significa uma causa
material quando usada do Espírito Santo, então, da mesma forma, ela
não pode significar isso quando é dito de Cristo que Ele nasceu da
virgem Maria. Resposta: Os casos não são exatamente paralelos, pois
em relação ao último artigo, convinha que Cristo nascesse da semente
de Davi; mas quando é dito que Ele foi concebido, ou pelo Espírito
Santo, a partícula por não pode se referir a ou significar um caso
material, por estas razões: 1. Porque, se isso fosse verdade, então o que
segue imediatamente, isto é, que Ele nasceu da virgem Maria, não seria
verdade. 2. Porque Deus não é suscetível de qualquer mudança e,
portanto, não pode ser transformado em carne. 3. Porque a Palavra
assumiu a carne, mas não foi transformada nela.
O que, portanto, significa a concepção de Cristo pelo Espírito Santo?
Três coisas são compreendidas nele. 1. Que Cristo foi miraculosamente
concebido no ventre da Virgem, pela ação imediata, ou operação do
Espírito Santo, sem a semente e a substância do homem, de forma que
Sua natureza humana foi gerada somente de Sua mãe, ao contrário da
ordem das coisas que Deus estabeleceu na natureza, como se diz: “O
poder do Altíssimo te cobrirá com Sua sombra” (Lucas 1:35). Se for aqui
contestado, que Deus também nos formou, respondemos que fomos
gerados mediatamente, e não imediatamente como Cristo foi, a partir
do qual é evidente que os exemplos não são os mesmos.
2. O Espírito Santo milagrosamente santificou o que foi concebido e
produzido no ventre da virgem, de forma que o pecado original não
se uniu àquilo que foi assim formado; pois não se tornou a Palavra, o
Filho de Deus, assumir uma natureza poluída com o pecado, pelas
seguintes razões: 1. Para que Ele fosse um sacrifício puro; pois cabia a
Ele dar satisfação pelo pecado. 2. Para que Ele também pudesse, por
Sua pureza, santificar os demais. 3. Para que possamos saber que tudo
o que o Filho diz é verdade; pois o que é nascido da carne, o que é
pecaminoso, e não santificado, é carne, falsidade e vaidade.

424 | P á g i n a
Objeção. Mas Cristo nasceu de uma mãe pecadora. Portanto, Ele
mesmo tinha pecado. Resposta: O Espírito Santo sabe melhor
distinguir e separar o pecado da natureza do homem; pois o pecado
não é da natureza do homem, mas foi adicionado a Ele pelo Diabo.
3. Que a união hipostática das duas naturezas, a divina e a humana,
foi formada pelo mesmo Espírito Santo, no seio da virgem,
imediatamente e no momento da Sua concepção.
O significado, portanto, deste artigo, Ele foi concebido pelo Espírito
Santo, é que o Espírito Santo foi o autor imediato da concepção
miraculosa da carne de Cristo: que Ele separou toda impureza do
pecado original daquele que era assim concebida e unida a carne com
o Verbo em uma união pessoal no próprio momento da concepção.
Ele nasceu da virgem Maria. Era conveniente que o Messias nascesse
da virgem de acordo com as predições dos profetas, para que fosse um
sumo sacerdote sem pecado, e o tipo ou figura de nossa regeneração
espiritual, que não é da vontade da carne, mas de Deus. Por isso, é
acrescentado no credo, que Cristo nasceu da virgem Maria:
1. Para que a verdade da natureza humana assumida pelo Filho de
Deus seja assim significada, isto é, que Cristo foi concebido pelo poder
do Espírito Santo, e nasceu um homem verdadeiro da substância de
Maria, Sua mãe; ou, a carne de Cristo, embora milagrosamente
concebida, foi assumida e gerada da virgem.
2. Para que saibamos que Cristo desceu dos pais de quem também foi
Maria, isto é, que foi a verdadeira semente de Abraão, tendo nascido
de Sua semente, e que era o Filho de Davi, tendo nascido da filha de
Davi, de acordo com as profecias e promessas.

425 | P á g i n a
3. Para que possamos saber que se cumprem as Escrituras, que
declaram: “Eis que uma Virgem conceberá e dará à luz um filho” (Isaías 7:14);
“A semente da mulher ferirá a cabeça da serpente” (Gênesis 3:15). Deste
cumprimento da profecia, pela qual foi predito que Cristo deveria
nascer de uma virgem da família de Davi, e que por uma concepção
milagrosa, que os profetas fizeram de uma forma predita, é mais
claramente manifesto que este homem Jesus, nascido da virgem, é o
messias prometido, ou o Cristo, o redentor da raça humana.
4. Para que saibamos que Cristo foi santificado no ventre da virgem,
pelo poder do Espírito Santo, e é, portanto, puro e sem pecado.
5. Para que saibamos que existe uma analogia entre o nascimento de
Cristo e a regeneração dos fiéis; pois o nascimento de Cristo da virgem
é um sinal de nossa regeneração espiritual, que não é de sangue, nem
da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.

426 | P á g i n a
Questão 36. Que benefício recebes pela santa concepção e
nascimento de Cristo?
Resposta: Que Ele é nosso mediador, e com Sua inocência e perfeita
santidade cobre, aos olhos de Deus, Meus pecados, nos quais fui
concebido e gerado.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 36

Existem dois benefícios resultantes da santa concepção e do


nascimento de Cristo. Primeiro, a confirmação de nossa fé de que Ele
é o mediador; e, em segundo lugar, a consolação de que somos
justificados diante de Deus por meio dEle. A razão disso decorre do
fato de que não o mediador entre Deus e o homem poderia ser, quem
não é Ele mesmo, perfeitamente justo e não está unido à Palavra.
Convinha que o mediador fosse, por natureza, verdadeiro Deus e
homem, para que preservasse a salvação adquirida para nós. “Tal um
sumo sacerdote tornou-se nós, que é santo, inocente, imaculado, separado dos
pecadores, e feito mais sublime do que os céus” (Hebreus 7:26).
Qual, portanto, é o significado deste artigo: “Eu creio em Jesus Cristo, que
foi concebido pelo Espírito Santo, nascido da virgem Maria?”.
Primeiro, eu creio que este Filho natural de Deus foi feito verdadeiro
homem de uma forma miraculosa, e que Ele é um Cristo tendo duas
naturezas, a divina e a humana, unidas por uma união pessoal, e que
Ele foi santificado pelo Espírito Santo desde o ventre de Sua mãe.
Em segundo lugar, creio que Ele é o verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, mas um só Cristo, e que foi santificado desde o ventre de Sua
mãe, para que pudesse me redimir e santificar - o que Ele não poderia
fazer a menos que a santificação e a união fossem efetuadas nEle - e
que tenho o direito da adoção dos filhos de Deus, por causa deste, Seu
Filho, concebido e nascido da forma que acabamos de descrever.

427 | P á g i n a
DAS DUAS NATUREZAS EM CRISTO

O artigo da encarnação, ou das duas naturezas em Cristo, e Sua união


hipostática, deve ser considerado a seguir. As questões que devem ser
expostas um tanto amplamente são as seguintes:
I. Existem duas naturezas no mediador?
II. Essas naturezas constituem uma ou duas pessoas?
III. Se apenas uma pessoa, qual é a natureza dessa união?
IV. Por que foi necessário que a união hipostática fosse constituída?

I. EXISTEM DUAS NATUREZAS NO MEDIADOR?


Que Cristo tem uma natureza divina já foi provado. Que Ele tem uma
natureza humana foi anteriormente negado por Marcião44, e até hoje
é negado pelos swenckfeldianos45, que sustentam que Cristo é um
homem apenas no nome. É, portanto, necessário ser provado contra os
hereges, que Cristo é um homem verdadeiro e natural, consistindo de
um corpo e alma, perfeita e verdadeiramente, e sujeito a todas as
enfermidades, exceto o pecado. As provas disso são:
1. Os testemunhos das Escrituras, que ensinam que Cristo tinha todas
as partes da natureza humana e que foi feito semelhante a nós em
todas as coisas, exceto o pecado. “Pois tanto Aquele que santifica como os
que são santificados, são todos de um; e por causa disso, Ele não se envergonha
de lhes chamar irmãos, visto como os filhos participam da carne e do sangue,
também Ele participou dos mesmos. Pois, em verdade, Ele não assumiu a
natureza de anjos, mas sim a descendência de Abraão. Portanto, convinha que
em todas as coisas fosse feito semelhante a Seus irmãos, para que fosse um
sumo sacerdote misericordioso e fiel em coisas pertencentes a Deus, para fazer

44Marcião de Sinope (85-160 AD). Segundo Hipólito, era bispo na cidade Sinope
na província do Ponto, na Itália.
45Seguidores de Kaspar Schwenckfeld (1489-1561). Um herege não tão notório, que
buscou se aliar a Lutero mas depois criou sua seita e suas heresias.

428 | P á g i n a
a reconciliação pelos pecados do povo; Pois não temos um sumo sacerdote que
não possa ser tocado pelo sentimento de nossas enfermidades; mas foi tentado
em todas as coisas como nós, mas sem pecado” (Hebreus 2:11-18; 4:15). Aquelas
passagens das Escrituras são aqui igualmente relevantes, em que o
nosso próprio Senhor confirmou a verdade de Sua natureza humana
depois de Sua ressurreição, como quando disse aos discípulos: “Segurei-
me e vede; porque um espírito não tem carne e ossos como vós vedes que Eu
tenho (...)” (Lucas 24:39, 40).
Tem havido aqueles que sustentam que a Divindade de Cristo foi
constituída a alma de Seu corpo. Assim, Apolinário46 ensinou que
Cristo realmente tinha uma verdadeira natureza humana, mas que a
Palavra estava unida a Ele no lugar de uma alma. Essa heresia é
facilmente refutada pelas palavras do próprio Cristo: “Minha alma está
profundamente triste até a morte” (Mateus 27:38). O corpo agora não pode
ser considerado triste, pois não é suscetível de tristeza; nem a tristeza
pode ser atribuída à Divindade, pois ela está livre de qualquer paixão.
“Pai, nas tuas mãos entrego o Meu espírito e, tendo dito isso, Ele entregou o
fantasma” (Lucas 23:46). O espírito aqui significa a alma, e não a
Divindade, porque a Divindade nunca se afastou da natureza humana.
E, novamente, é dito por Paulo, Hebreus 2:17, “Convinha que fosse feito
semelhante a Seus irmãos”. Mas, sem alma, Ele não seria semelhante a
Seus irmãos em todas as coisas; pois Ele não seria um homem
verdadeiro. Portanto, é necessário que Cristo tenha uma alma humana.
2. A mesma doutrina também é confirmada pelas promessas e
profecias divinas; pois o Messias foi prometido ser tal que seria a
semente da mulher, a semente de Abraão, o filho de Davi, o filho de
uma virgem, e outras coisas semelhantes. “A semente da mulher ferirá a
cabeça da serpente” (Gênesis 3:15); “Eis que uma virgem conceberá e dará à
luz um filho” (Isaías 7:14); “O livro da geração de Jesus Cristo, o filho de Davi,

46 Apolinário (310-390), bispo de Constantinopla, deposto do ministério e


excomungado por crer que Jesus exaltado e glorificado não tinha mais a natureza
humana.

429 | P á g i n a
o filho de Abraão” (Mateus 1:1); “Bem-aventurado o fruto do teu ventre”
(Lucas 1:42); “A respeito de Seu Filho Jesus Cristo, que nasceu da descendência
de Davi segundo a carne” (Romanos 1:3). O argumento que se obtém
dessas declarações feitas em relação ao messias é muito convincente;
pois se a humanidade que Ele assumiu era da descendência de Abraão
e de Davi, então Ele tinha uma natureza humana real.
3. O ofício de mediador exigia em Cristo, nosso libertador, uma
verdadeira natureza humana tirada da nossa, que pecou e que devia
ser redimida por meio dEle, como mostramos na parte anterior desta
obra; pois cabia à mesma natureza que pecou, sofrer e dar satisfação
pelo pecado. Portanto, visto que nossa natureza pecou, Cristo tomou
ela sobre Si, e não uma natureza criada do nada, ou trazida do céu.
Nem meramente cabia a nosso mediador assumir nossa natureza, mas
era ainda necessário que Ele a retivesse e a guardasse para sempre;
porque o Pai nos recebe em Sua graça somente com a condição de que
permaneçamos enxertados em Seu Filho. Este consolo, também, de
que Cristo é nosso irmão, que Ele carrega nossa natureza e é osso de
nossos ossos e carne de nossa carne, é necessário para nós
continuamente, mesmo na eternidade; pois perderíamos esse consolo
se Cristo não tivesse verdadeiramente assumido nossa natureza e não
a retivesse para sempre. Sem isso Ele não seria nosso irmão.
Objeção. 1. A carne de Adão, isto é, aquela que é transferida para sua
posteridade por geração, é pecaminosa. Mas a carne de Cristo não é
pecaminosa. Portanto, não é da carne de Adão. Resposta: Há aqui uma
falácia de acidente, ao afirmar que, para a substância, é verdade que
ela só é verdadeira por acidente. Visto que a carne de Adão não é
pecaminosa em Si mesma, mas apenas por acidente, também se segue
que a carne de Cristo é, apenas em relação a esse acidente, não a carne
de Adão, mas é, conforme a substância, a mesma carne de Adão.
Portanto, o argumento deve ser modificado assim: a carne de Adão é
a verdadeira carne. A carne de Cristo é a carne de Adão. Portanto, a
carne de Cristo é a verdadeira carne.

430 | P á g i n a
Objeção 2. Cristo foi concebido pelo Espírito Santo. Portanto, Sua
carne foi gerada e propagada a partir da substância do Espírito Santo,
e por isso não é uma criatura. Resposta: Nós respondemos a isso como
fizemos à objeção levantada sob a 34ª questão do catecismo, que há
uma falácia em entender mal a figura de linguagem que é empregada;
visto que a partícula por não significa uma matéria, mas uma causa
eficiente.
Objeção 3. Em Deus não existem duas naturezas. Cristo é Deus.
Portanto, não existem duas naturezas em Cristo. Resposta: Nada pode
ser estabelecido por meras proposições particulares: pois a proposição
maior não expressa o que é universalmente verdadeiro; mas o que é
verdade somente para Deus, o Pai e o Espírito Santo, e não para o
Filho encarnado, que é Deus manifesto na carne.
Resposta 1. Mas nada pode ser acrescentado a Deus em razão de Sua
perfeição. O Filho é Deus. Portanto, não é possível acrescentar a
natureza humana à Sua Divindade. Resposta: Admitimos que nada
pode ser acrescentado a Deus por via da perfeição, de forma a
modificar ou aperfeiçoar Sua essência; mas pode haver algo
adicionado a Ele por cópula ou união; porque Ele tomou sobre Si a
semente de Abraão.
2. Deus habita em uma luz inacessível. Portanto, não é possível que a
natureza humana possa se aproximar dEle. Resposta: Admite-se que a
natureza humana não pode se aproximar de Deus, muito menos
tornar-se pessoalmente unida a Ele, a menos que Ele a atraia, assuma
ela e a una a Si mesmo.
3. É uma vergonha a Deus ser uma criatura. Resposta: Seria, de fato,
uma vergonha a Deus se Ele fosse transformado em uma criatura; mas
que Ele deve ser unido a uma natureza criada, sem mudança de Sua
própria essência, é honrado por Deus, como se Ele, por este meio,
demonstrasse para o mundo inteiro, Sua infinita sabedoria, bondade
e poder.

431 | P á g i n a
II. AS DUAS NATUREZAS DE CRISTO CONSTITUEM UMA OU
MAIS PESSOAS?
Existem duas naturezas em Cristo, íntegras e distintas; mas apenas
uma pessoa. Marcião ensinou que havia dois Cristos: um crucificado,
o outro não, e que um veio em auxílio do outro na cruz. Mas convinha
ser Cristo, porque era necessário ser mediador tanto por mérito como
por eficácia. Portanto, deve haver apenas uma pessoa.
Objeção 1. Em quem há duas coisas que constituem duas pessoas
inteiras, nEle há também duas pessoas. Em Cristo existem duas
naturezas que constituem duas pessoas inteiras; pois a Palavra é uma
pessoa completa, ao passo que o corpo e a alma também constituem
uma pessoa. Portanto, existem duas pessoas em Cristo. Resposta:
Negamos aquela parte da proposição menor que afirma que corpo e
alma, em conexão com a Palavra, constituem uma pessoa. Isso
aparenta ser falso, segundo a definição que demos de pessoa, que não
pertence à natureza humana assumida pelo Verbo; pois não subsiste
por Si mesmo, mas é sustentado em e por outro, a saber, na e pela
Palavra. Foi formado e assumido pela Palavra ao mesmo tempo, e
nunca teria existido, a menos que tivesse sido assumido pela Palavra;
nem poderia mesmo agora existir se não fosse sustentado pela Palavra.
É também uma parte de outra, a saber, do mediador. Mas uma pessoa,
de acordo com a definição que demos, é algo individual, inteligente,
que subsiste por si mesmo, não é sustentado por outro, nem parte de
outro. Portanto, é evidente que a natureza humana de Cristo não é em
si mesma uma pessoa adequada, embora se possa dizer que pertence
à substância de Cristo e é parte dEle. A Palavra, entretanto, foi e é uma
pessoa, e ainda assim tem uma relação com nossa natureza na medida
em que a assumiu. Portanto, é correto dizer: a pessoa assumiu a
natureza, e a natureza assumiu uma natureza; mas não podemos dizer
corretamente, a pessoa tomou uma pessoa, ou a natureza tomou uma
pessoa; pois a natureza humana que está em Cristo foi criada a fim de
que pudesse ser feita parte de outra, para que possamos dizer com

432 | P á g i n a
propriedade que ela é parte de outra; ainda assim, quando falamos
assim, todas as imperfeições devem ser cuidadosamente removidas.
Muitos, entretanto, evitam o uso de tal linguagem em consequência
dos perigos e abusos a que ela pode levar. Mesmo assim, Damasceno47
e outros costumam usar essa forma de falar.
Objeção 2. Mas, de acordo com isso, a Palavra não pode ser uma
pessoa, porque Ela é uma parte da pessoa; e o que é apenas uma parte
não pode ser uma pessoa. Resposta: Aquilo que é apenas parte de uma
pessoa - e aquela parte que não é uma pessoa - não é uma pessoa; ou,
aquilo que é parte de uma pessoa, não é aquela pessoa da qual faz
parte. E assim pode ser dito da Palavra, se bem entendida, que Ela não
é a pessoa completa do mediador, embora Ela seja em, e por Si mesma,
uma pessoa inteira e completa com respeito à Divindade.
Objeção 3. Deus e o homem são duas pessoas. Cristo é Deus e homem.
Portanto, existem duas pessoas nele. Resposta: A proposição maior é
verdadeira se entendermos que Deus e o homem existem
separadamente, sem qualquer união. Mas Cristo é Deus e homem em
união. Há, portanto, aqui uma falácia de composição e divisão; pois na
proposição principal Deus e o homem são considerados
disjuntivamente ou como existindo separadamente; e na proposição
menor conjuntivamente, ou como unidos.
Resposta: 1. Mas o Verbo uniu a Si corpo e alma; e, portanto, uma
pessoa. Resposta: É verdade, de fato, Ele os uniu a Si mesmo, mas foi
por uma união pessoal, de forma que o corpo e a alma que Cristo
tomou não existam por si, mas na pessoa do Verbo.
2. Mas Ele uniu a Si mesmo as partes essenciais de uma pessoa e,
portanto, deve ter unido também uma pessoa. Resposta: Isso é verdade
apenas em relação às partes que subsistem por si mesmas; mas o corpo
e a alma de Cristo não subsistem, nem poderiam ter subsistido, exceto
nesta união.

47João Damasceno (675-749 AD), bispo de Damasco.

433 | P á g i n a
III. O QUE É A UNIÃO QUE EXISTE ENTRE AS DUAS
NATUREZAS DE CRISTO, E COMO FOI FEITA?
A união que existe entre as duas naturezas em Cristo foi feita pela
operação do Espírito Santo na própria concepção, de tal forma que as
duas naturezas subsistem na única pessoa de Cristo, sem confusão,
sem mudança, indivisíveis e inseparáveis, como é expresso no Credo
Calcedoniano. É chamada de união hipostática ou pessoal, porque as
duas naturezas diferentes se unem de forma misteriosa em uma
pessoa, enquanto as propriedades essenciais de cada natureza são
retidas inteiras e completas. É por causa dessa união que Cristo é
chamado, e é verdadeiro Deus e homem em relação às distintas
naturezas de que é possuído: Ele é o próprio Deus segundo a natureza
divina, e o verdadeiro homem segundo a natureza humana. “Aquele
santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus” (Lucas 1:35); “NEle
habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” (Colossenses 2:9); “A
palavra se fez carne” (João 1:14); “Ele tomou sobre Si a semente de Abraão”
(Hebreus 2:16); “Deus foi manifesto em carne” (1 Timóteo 3:16).
IV. POR QUE É NECESSÁRIO QUE ESTA UNIÃO HIPOSTÁTICA
SEJA FEITA?
As razões que tornaram necessário que o mediador fosse um homem
verdadeiro, perfeitamente justo e, ao mesmo tempo, verdadeiro Deus,
foram apresentadas e explicadas nas 16ª e 17ª questões do catecismo,
de forma que não é necessário que devemos aqui repeti-las. Por essas
razões, era necessário que uma união pessoal fosse feita entre as
naturezas do mediador, para que Ele pudesse ser ao mesmo tempo o
próprio homem e verdadeiro Deus, que pudesse ser capaz de restaurar
e merecer para nós aquela justiça e vida que nós perdemos; pois não
tivessem essas naturezas concordado e se reunido na pessoa da
Palavra, como descrito acima, Ele não poderia ter feito a obra de nossa
redenção.

434 | P á g i n a
15º DIA DO SENHOR

OS SOFRIMENTOS DE CRISTO

Questão 37. O que tu entendes pelas palavras: “Ele sofreu?”


Resposta: Que Ele, em todo o tempo que viveu na terra, mas
especialmente no final de Sua vida, suportou no corpo e alma, a ira
de Deus contra os pecados de toda a humanidade para que por Sua
paixão, para que como único sacrifício propiciatório, pudesse
redimir nosso corpo e alma da condenação eterna; e obtivesse para
nós o favor de Deus, a justiça e a vida eterna.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 37

Temos, até agora, em nossas observações sobre a 2ª parte do credo,


falado apenas da pessoa do mediador. Passaremos agora a falar de Seu
ofício, que está incluído na parte restante da 2ª divisão do credo, que
trata de Deus, do Filho e de nossa redenção. E devemos, em primeiro
lugar, falar da humilhação de Cristo - a primeira parte de Seu ofício -
que compreendemos no 4º artigo: “Sofreu sob Pôncio Pilatos; foi
crucificado, morto e sepultado: Ele desceu ao inferno”. A paixão ou
sofrimento de Cristo é posicionado imediatamente após Sua
concepção e nascimento; 1. Porque toda a nossa salvação consiste em
Sua paixão e morte. 2. Porque toda a Sua vida foi uma cena contínua
de sofrimento e privação. Há também muitas coisas que podem e
devem ser proveitosamente observadas na história da vida que Cristo
passou na terra, escrita por aqueles que foram testemunhas oculares
dos fatos que eles registram. Pois isso não prova apenas que Ele é o
Messias prometido, na medida em que todas as predições dos profetas
se encontram e se cumprem nEle; mas é também uma consideração
da humilhação e obediência que Ele prestou a Seu pai.

435 | P á g i n a
Aquelas coisas que devem ser consideradas em relação ao sofrimento
de Cristo, apropriadamente pertencem aqui; tais como a história da
paixão de Cristo, concordando, como o faz, com tudo o que havia sido
predito a respeito dela, e os eventos maravilhosos com os quais estava
conectada: as causas e benefícios de Seu sofrimento, o exemplo que
Cristo nos deu, e nos ensinando que também devemos entrar na glória
por meio do sofrimento.
Mas, para uma exposição mais completa deste artigo, consideraremos
mais particularmente:
I. O que devemos compreender pelo termo paixão, ou o que foi que
Cristo sofreu.
II. Se Ele sofreu de acordo com ambas as naturezas.
III. Qual foi a causa motivadora de Seu sofrimento.
IV. Quais foram as causas finais e frutos de Seus sofrimentos.

I. O QUE DEVEMOS ENTENDER PELA PAIXÃO DE CRISTO, OU


O QUE CRISTO SOFREU?
Pelo termo paixão devemos entender toda a humilhação de Cristo, ou
a obediência de toda a Sua humilhação, todas as misérias,
enfermidades, sofrimentos, tormentos e ignomínias às quais Ele foi
sujeito, por nossa causa, desde o momento de Seu nascimento até a
hora de Sua morte, tanto na alma como no corpo. A parte principal
de Suas tristezas e angústias foram os tormentos da alma, nas quais
Ele sentiu e suportou a ira de Deus contra os pecados de toda a
humanidade. Pelo termo paixão, entretanto, devemos entender
principalmente a cena final, ou último ato de Sua vida, na qual Ele
sofreu tormentos extremos, tanto de corpo como de alma, por causa
de nossos pecados. “Minha alma está profundamente triste, até a morte”
(Mateus 26:38); “Meu Deus, Meu Deus, por que Me desamparaste?” (Mateus
27:46);” “Certamente Ele suportou nossas dores. Ele foi ferido por nossas
transgressões; Ainda assim, aprouve ao Senhor feri-lO” (Isaías 53:4, 5, 10).

436 | P á g i n a
O que, portanto, Cristo sofreu? 1. A privação ou destituição da mais
elevada felicidade e alegria, junto com todas as coisas boas que Ele
poderia ter desfrutado. 2. Todas as enfermidades de nossa natureza,
exceto o pecado: Ele tinha fome, tinha sede, ficou cansado, ficou aflito
com tristeza e pesar, e outras coisas semelhantes. 3. Carência e pobreza
extrema; “O Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mateus 8:20).
4. Infinitos injúrias, reprovações, calúnias, traições, invejas, calúnias,
blasfêmias, rejeições e desprezo; “Eu sou um verme, e não homem; e
opróbrio de muitos” (Salmos 22:6); “Ele não tem forma ou formosura, e
quando o vermos, não há beleza que devamos desejar” (Isaías 53:2). 5. As
tentações do Diabo: “Ele foi tentado em todas as coisas como nós, mas sem
pecado” (Hebreus 4:15). 6. A morte mais vergonhosa e ignominiosa, sim:
a morte da cruz. 7. A angústia mais aguda e amarga da alma, que é sem
dúvida uma sensação da ira de Deus contra os pecados de toda a raça
humana. Foi isso que o levou a exclamar, na cruz, em alta voz: “Deus
meu, Deus meu, por que Me desamparaste?”, como se Ele dissesse: “Por que
não afasta de mim angústias e tormentos tão severos?”. Assim, vemos o que
e quão grandemente Cristo sofreu em nosso favor.
Mas, visto que a natureza divina estava unida à humana, como é
possível que ela estivesse tão oprimida e enfraquecida a ponto de
irromper em tais exclamações de angústia; e especialmente quando
havia mártires que eram muito mais ousados e corajosos? A causa
disso surge da diferença que havia na punição que Cristo suportou e
a dos mártires. São Lourenço, deitado na grelha, não experimentou a
terrível ira de Deus, nem contra os seus próprios pecados, nem contra
os pecados da raça humana, cujo castigo total foi infligido ao Filho de
Deus, como diz Isaías: “Ele foi golpeado e ferido por Deus por nossos
pecados” (Isaías 53:5)48. Dizemos, então, que São Lourenço não sentiu a
ira de um Deus ofendido o perfurando e ferindo; mas sentiu que Deus
estava reconciliado e em paz com Ele; nem experimentou os horrores

48 Localização da referência bíblica incluída pelo tradutor para o português.

437 | P á g i n a
da morte e do inferno como Cristo experimentou, mas teve grande
consolo, porque sofreu por ter confessado o evangelho, e foi
assegurado que Seus pecados foram remidos por e por causa do Filho
de Deus, sobre a quem foram depositados, de acordo com o que é dito:
“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1:29). Portanto,
é fácil explicar por que São Lourenço parecia ter mais coragem e
presença de espírito em seu martírio do que Cristo em Sua paixão; e,
portanto, é também que a natureza humana de Cristo, embora unida
à Divindade, foi levada a suar gotas de sangue no jardim e dar vazão
à lamentação triste: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?”
(Mateus 27:46). Não que houvesse qualquer separação entre as
naturezas em Cristo; mas porque a humanidade foi por um tempo
abandonada pela Divindade, a Palavra estando em repouso, ou quieta,
como diz Irineu, e não trazendo auxílio e libertação para a
humanidade aflita até que uma paixão completamente suficiente
pudesse ser suportada e terminada.
A satisfação, portanto, que Cristo fez, ou o sofrimento que suportou,
difere dos tormentos dos outros. 1. Na forma. Cristo sentiu e suportou,
tanto no corpo quanto na alma, toda a ira de Deus, que ninguém mais
experimentou. 2. Na causa motivadora. Cristo sofreu não por Seus
próprios pecados, mas pelos pecados dos outros. 3. Na causa final, ou
fim. A paixão de Cristo é o resgate e único sacrifício propiciatório
pelos nossos pecados: os sofrimentos dos outros não participam desse
caráter, mas são meramente punições, ou provas, ou atestados da
verdade do evangelho.
Objeção 1. Segundo a ordem da justiça divina, o inocente não deve
sofrer pelo culpado: pois a justiça exige a punição do ofensor. Mas
Cristo era uma pessoa inocente. Portanto, Sua punição está em
oposição ao governo da justiça; porque, sendo Ele inocente, sofreu por
nós, que éramos culpados. Resposta: Nós respondemos à proposição
principal, que o inocente não deve sofrer pelo culpado, 1. A menos que

438 | P á g i n a
Ele voluntariamente se ofereça em favor, e no lugar do culpado. 2. A
menos que aquele que assim voluntariamente sofra, seja capaz de fazer
um resgate suficiente. 3. Para que Ele possa se recuperar desses
sofrimentos e não perecer sob eles. 4. Para que Ele possa fazer
acontecer, por aqueles por quem Ele faz satisfação, não possam no
futuro ofender a Deus. 5. E que Ele seja da mesma natureza daqueles
para quem a satisfação é feita. Se um fiador como Este pode ser
substituído no lugar do ofensor, não há nada nEle que seja contrário
à ordem da justiça divina: pois assim, tanto aquele que sofre, como
aqueles por quem é suportado, são salvos. Cristo, agora, é fiador; pois
Ele realizou todas essas coisas e não é apenas um homem da mesma
natureza que nós, mas também somos membros dEle. E é por causa
disso, nossa união com Cristo nosso cabeça, que Seu castigo é
verdadeiramente nosso, e que os apóstolos em todos as passagens
ensinam que todos nós sofremos e morremos em Cristo: pois quando
o corpo está aflito, todos os membros sofrer com isso. Este argumento,
entretanto, será ampliado, quando falarmos do artigo do perdão dos
pecados. Para resumir o todo: para que qualquer um possa dar
satisfação a outros, essas coisas devem estar presentes e harmonizar -
deve ser uma satisfação suficiente - deve ser voluntário e dar satisfação
Àquele a quem é devido; todas as condições se encontram e concorrem
na satisfação de Cristo.
Objeção 2. Deve haver uma proporção entre a satisfação e o crime.
Mas não há proporção adequada entre os sofrimentos de um homem
e os pecados de um número infinito de homens. Como, portanto, o
resgate que só Cristo pagou pode corresponder aos pecados de um
grande número de homens? Resposta: Pode, por estas duas causas:
primeiro, por conta da dignidade de Sua pessoa; e em segundo lugar,
por causa da grandeza da punição que Ele suportou; pois Ele sofreu o
que deveríamos sofrer por toda a eternidade. Sua paixão, portanto, é
equivalente ao castigo eterno, sim, Ele a excede; porque, que Deus

439 | P á g i n a
deveria sofrer, é maior do que todas as criaturas que deveriam perecer.
Este foi o maior milagre, que o Filho de Deus clamava: “Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27:46).
Réplica 1. Deus não pode sofrer e morrer. Cristo sofreu e morreu.
Portanto, Ele não é Deus. Resposta: Respondemos à proposição
principal - Deus, isto é, a pessoa que é apenas Deus, não pode sofrer
ou é impassível, de acordo com aquilo a respeito do qual Ele é Deus.
Mas Cristo não é apenas Deus, mas também homem. Ou podemos
conceber todo o argumento, se for bem entendido, pois Cristo não é
Deus, com respeito àquilo em que sofreu e morreu, isto é, com respeito
à sua natureza humana.
Réplica 2. Se Cristo não é Deus, de acordo com o que sofreu, então o
que se diz, que Deus comprou a Igreja com o Seu próprio sangue, é
falsa. Resposta: Isso é dito conforme a comunicação de propriedades,
ou de acordo com a figura de linguagem, chamada de sinédoque, que
só é verdadeira na forma concreta. Deus, isto é, aquela pessoa que é
Deus e homem, comprou a Igreja com Seu sangue, que derramou por
Sua humanidade. Por meio dessa comunicação de propriedades,
atribuímos à pessoa inteira o que é peculiar a uma natureza e apenas
à forma concreta; porque o termo concreto significa a pessoa em que
ambas as naturezas se centralizam, e a propriedade daquela natureza
da qual ela se baseia. Consequentemente, nada impede que afirmemos
a pessoa como um todo, o que é peculiar a uma natureza, desde que
essa propriedade resida na pessoa; enquanto, pelo contrário, pelo
termo abstrato, apenas as propriedades daquela natureza são
predicadas das quais são peculiares. Que isso, que é falado
incidentalmente, seja suficiente.

440 | P á g i n a
Objeção 3. Não há proporção justa entre o castigo temporal e o
castigo eterno. Cristo sofreu apenas punições temporais. Portanto, Ele
não poderia satisfazer as punições eternas. Resposta: Não há, de fato,
nenhuma proporção entre punições temporais e eternas, se for no
mesmo assunto, mas pode haver, em assuntos diferentes. O castigo
temporal do Filho de Deus excede em dignidade e valor o castigo
eterno de todo o mundo, pelas razões já explicadas.
Objeção 4. Se Cristo fez satisfação por todos, então todos deveriam
ser salvos. Mas nem todos são salvos. Portanto, Ele não deu uma
satisfação perfeita. Resposta: Cristo satisfez a todos, no que respeita à
suficiência da satisfação que Ele fez, mas não no que respeita à
aplicação da mesma; pois Ele cumpriu a lei em um aspecto duplo.
Primeiro, por Sua própria justiça; e em segundo lugar, satisfazendo
nossos pecados, cada um dos quais é o mais perfeito. Mas a satisfação
é feita nossa por uma aplicação, que também é dupla; o primeiro dos
quais é feito por Deus, quando nos justifica pelo mérito de Seu Filho,
e faz com que deixemos de pecar; o último é feito por nós por meio
da fé. Pois aplicamos a nós mesmos o mérito de Cristo quando, por
uma fé verdadeira, estamos totalmente persuadidos de que Deus, por
causa da satisfação de Seu Filho, a nossos pecados nos remete. Sem
esta aplicação, a satisfação de Cristo não tem nenhum benefício para
nós.
Objeção 5. Mas também havia sacrifícios propiciatórios sob a lei de
Moisés. Resposta: Estes não eram propriamente expiatórios, mas eram
típicos do sacrifício de Cristo, o único verdadeiramente expiatório:
“Porque não é possível que o sangue de touros e de bodes tire pecados”
(Hebreus 10:4); “O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo
pecado” (1 João 1:7); “Ele é a propiciação pelos pecados do mundo inteiro” (1
João 2:2).

441 | P á g i n a
II. CRISTO SOFREU DE ACORDO COM AMBAS AS NATUREZAS?
Cristo sofreu, não de acordo com ambas as naturezas, nem de acordo
com a Divindade, mas de acordo com a natureza humana apenas,
tanto no corpo como na alma; pois a natureza divina é imutável,
impassível, imortal e a própria vida e, portanto, não pode morrer. Mas
Ele sofreu de tal forma, de acordo com Sua humanidade, que por Sua
paixão e morte, Ele satisfez os pecados dos homens. A natureza divina
sustentou a humanidade nas tristezas e dores que suportou e
ressuscitou-a da morte para a vida. “Sendo morto na carne, mas vivificado
pelo Espírito” (1 Pedro 2:18); “Porque também Cristo padeceu uma vez pelos
pecados, o justo pelos injustos, para nos levar a Deus” (1 Pedro 4:1); “Cristo
sofreu por nós na carne” (João 2:19). “Destrua este templo, e em três dias Eu o
levantarei” (Apocalipse 1:18); “Eu SOU O que vive e estava morto, e eis que
estarei vivo para sempre” (João 10:18); “Tenho poder para sacrificar Minha
vida e tenho poder para toma-la de volta” (João 5:9). Essas declarações
testificam que havia em Cristo outra natureza, além de Sua carne, que
não sofreu e não morreu. Irineu diz: “Assim como Cristo era homem, para
que pudesse ser tentado, assim Ele era a Palavra, para que fosse glorificado; a
Palavra repousando nEle verdadeiramente, para que pudesse ser tentado,
crucificado e morrer, e ainda unido à Sua humanidade, para que pudesse
assim vencer a tentação (…)”.
Objeção. Mas é dito que Deus comprou a Igreja com Seu próprio
sangue; e, portanto, a Divindade deve ter sofrido. Resposta: Isso não
acontece, porque a forma da fala foi alterada. Quando é dito que Deus
morreu, isso é falado figurativamente por uma sinédoque, ou pela
comunicação de propriedades, como já explicamos. Mas quando se diz
que a Divindade sofreu, isso é falado sem figura, porque o assunto é
tomado de forma abstrata. Novamente, nenhuma consequência do
concreto para o abstrato tem qualquer força. O concreto: que é Deus,
significa que o sujeito tem forma; o abstrato: que é a Deidade: significa
a forma nua, ou apenas a natureza. Nessa doutrina, portanto, o

442 | P á g i n a
concreto é o nome da pessoa e o abstrato é o nome da natureza.
Consequentemente, como esta consequência não segue: o homem é
composto dos elementos e é corpórea; portanto, a alma é composta
dos elementos e é corpórea; assim também não segue, Cristo que é
Deus morreu; portanto, a Divindade de Cristo morreu.

III. QUAL FOI A CAUSA MOTIVADORA DA PAIXÃO DE CRISTO?


A causa que moveu Deus a dar Seu Filho por nós foi: 1. Seu amor pela
raça humana. “Deus amou o mundo de tal forma que deu Seu Filho unigênito”
(João 3:16). 2. A compaixão de Deus para com aqueles que caíram no
pecado e na morte. “De acordo com Sua misericórdia, Ele nos salvou” (Tito
3:5). 3. O desejo e propósito de Deus de vingar e reparar o dano do
Diabo, que, por desprezo e reprovação de Deus, do Altíssimo nos
desviou e corrompeu Sua imagem em nós.

IV. QUAIS SÃO AS CAUSAS FINAIS, OU O FRUTO DE SUA


PAIXÃO?
As causas finais e os frutos da paixão de Cristo são os mesmos, mas
em um aspecto diferente. Com respeito a Cristo que sofreu, eles são
as causas finais; mas em relação a nós, eles são os frutos. As principais
causas finais da paixão de Cristo são a revelação e manifestação do
amor, da misericórdia e da justiça de Deus, que não poupou o Seu
Filho por nós; e que Sua paixão pode ser um resgate suficiente por
nossos pecados, ou por nossa redenção. Existem, portanto, duas causas
finais principais, a glória de Deus e nossa salvação. O conhecimento
da grandeza do pecado pertence à primeira causa, para que possamos
perceber quão grande é o pecado, e o que ele merece. Nossa
justificativa pertence à última causa, no qual compreendemos todos
os benefícios. O que Cristo mereceu com a Sua morte, e que Ele nos
confere ao retornar da morte. Consequentemente, sabemos que a
morte não prejudica os piedosos e, portanto, não deve ser temida.

443 | P á g i n a
Questão 38. Por que Ele sofreu sob Pôncio Pilatos, como Seu juiz?
Resposta: Que Ele, sendo inocente, mas condenado por um juiz
temporal, poderia assim nos libertar do severo julgamento de Deus,
ao qual fomos expostos.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 38

Diz-se de Pilatos na paixão de Cristo: 1. Porque Cristo obteve deste


juiz o testemunho de Sua inocência. 2. Para que possamos saber que
Ele, embora declarado inocente por este juiz, foi condenado, e isso por
um julgamento regular. 3. Para que possamos ficar impressionados
com o cumprimento da profecia. “Eu vou derrubar, derrubar, derrubar; e
não será mais, até que venha Aquele a quem é de direito” (Ezequiel 21:27); “O
cetro não se arredará de Judá, nem o legislador dentre seus pés, até que venha
Siló” (Gênesis 49:10). O nome de Pilatos é então mencionado para que
possamos ter plena certeza de que Jesus é o Messias que havia de vir;
pois então o cetro já foi tirado, porque Ele foi condenado por um juiz
romano.
Mas por que era necessário que Cristo sofresse sob um juiz e fosse
condenado pelo curso normal da lei?
1. Para que saibamos que Ele mesmo foi condenado pelo próprio Deus,
por causa dos nossos pecados, e que, portanto, fez satisfação a Deus
por nós, para que não sejamos condenados por Seu julgamento severo,
assim como Ele sofreu a morte por nós, para que possamos ser
libertados dela. Pois aquele que dirige e preside os julgamentos
ordinários é o próprio Deus.
2. Para que Cristo pudesse obter um testemunho de Sua inocência do
próprio juiz por quem foi condenado. Portanto, não era apropriado
que Ele fosse secretamente carregado pelos judeus, nem morto em um
tumulto; mas quando houve um processo legal e um julgamento, e
uma investigação de todas as acusações feitas contra Ele, o Pai desejou,

444 | P á g i n a
primeiro: que Ele fosse examinado para que Sua inocência pudesse
assim se manifestar. Em segundo lugar, que Ele deveria ser condenado
para que pudesse se manifestar, que Ele sendo antes declarado
inocente, agora foi condenado, não pelos Seus próprios crimes, mas
pelos nossos crimes; e que assim Sua injusta sentença de morte
pudesse ocupar o lugar de nossa mais justa condenação. Em terceiro
lugar: que Ele deveria ser condenado à morte, bem como para que as
profecias se cumprissem, como também para que fosse manifesto que
tanto os judeus como os gentios foram os executores deste ato
perverso. Esta circunstância, portanto, na paixão de Cristo, deve ser
cuidadosamente considerada para que possamos saber que esse Jesus
que foi condenado por Pilatos é o Messias, e que nós, por meio dEle,
somos libertos do severo julgamento de Deus.
Portanto, somos agora levados a perguntar: o que é crer em Jesus
Cristo, que sofreu sob o governo de Pôncio Pilatos? A isso,
respondemos, que não inclui apenas uma fé histórica, mas envolve tal
crença em Cristo que nos leva a confiar em Sua paixão. É, portanto,
crer, primeiro, que Cristo, desde o momento de Seu nascimento,
suportou e suportou misérias de todo tipo; e que Ele, especialmente
no período final de Sua vida, sofreu sob Pilatos os mais severos
tormentos de corpo e alma, e que sentiu a terrível ira de Deus, ao fazer
uma satisfação pelos pecados de todo o mundo, e em apaziguar a ira
divina que havia sido despertada pelo pecado. É também crer, em
segundo lugar, que Ele suportou tudo isso em meu favor, e assim
satisfez também os meus pecados por Sua paixão, e mereceu para mim
a remissão dos pecados, o Espírito Santo e a vida eterna.

445 | P á g i n a
A MORTE E O SEPULTAMENTO DE CRISTO
Questão 39. Há algo mais em Seu ser crucificado, do que Se Ele
tivesse morrido alguma outra morte?
Resposta: Sim existe; pois assim estou certo de que Ele levou sobre
si a maldição que estava sobre mim; pois a morte na cruz foi
maldita por Deus.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 39

A morte de cruz é um agravamento da punição de Cristo e uma


confirmação de nossa fé. Pois se Cristo foi crucificado, então Ele
tomou sobre si a maldição, porque a morte da cruz foi uma figura, ou
sinal da maldição; e não apenas isso, mas também suportou a maldição
por nós, visto que era justo em si mesmo.
Deus, portanto, desejou que seu Filho suportasse o castigo de tal
morte ignominiosa, pelas razões mais satisfatórias:
1. Para que possamos saber que a maldição que foi colocada sobre Ele
foi devida por causa de nossos pecados; pois a morte de cruz foi
maldita por Deus, de acordo com o que está escrito: “Maldito todo
aquele que for pendurado no madeiro” (Deuteronômio 21:23).
2. Para que a punição se torne assim mais pesada, e que possamos,
tanto mais, ser confirmados na fé, crendo com confiança que Cristo,
por Sua morte, tomou sobre Si a nossa culpa e suportou a maldição
em nosso favor para que Ele possa nos livrar dela. Paulo ensina isso
quando diz: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-Se maldição
por nós; porque está escrito: maldito todo aquele que for pendurado no
madeiro” (Gálatas 3:13).
3. Para que possamos ser excitados com maior gratidão, considerando
que coisa detestável é o pecado, visto que não poderia ser expiado a
não ser pela morte mais amarga e ignominiosa do unigênito Filho de
Deus.

446 | P á g i n a
4. Que possa haver uma correspondência entre a verdade e os tipos.
Isso foi necessário para que possamos saber que os tipos são todos
cumpridos em Cristo. Pois os antigos sacrifícios, que refletiam o
sacrifício de Cristo, eram colocados sobre o madeiro e, antes de serem
queimados, eram elevados pelo sacerdote, para que dessa forma
pudesse ser significado que Cristo seria levantado na cruz, para que
Ele possa oferecer a Si mesmo um sacrifício santo ao Pai em nosso
favor. O mesmo foi esboçado em Isaque, que foi colocado sobre o
madeiro com o propósito de ser sacrificado por seu pai. Finalmente, a
serpente de bronze, que Moisés colocou em uma haste no deserto, era
um tipo de Cristo, como é evidente na aplicação que o próprio Cristo
fez dela quando disse: “Assim como Moisés levantou a serpente no deserto,
até assim deve o Filho do homem ser levantado“ (João 3:14); “E Eu, se for
levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (João 12:32).
O que é, portanto, crer em Cristo crucificado? É crer que Cristo foi
submetido à maldição por mim; para que Ele possa me livrar dela.

447 | P á g i n a
16º DIA DO SENHOR

Questão 40. Por que foi necessário que Cristo Se humilhasse até a
morte?
Resposta: Porque com respeito à justiça e verdade de Deus, a
satisfação por nossos pecados não poderia ser feita de outra forma
senão pela morte do Filho de Deus.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 40

Sob esta questão, devemos considerar:


I. Como se diz que Cristo esteve morto.
II. Se era necessário que Cristo morresse.
III. Por quem Ele morreu.

I. COMO SE DIZ QUE CRISTO ESTAVA MORTO


A exposição desta questão é necessária por conta de gerações que
corromperam o sentido deste artigo. Marcião negou que Cristo
realmente morreu e afirmou também que toda a dispensação da
Palavra na carne, e todas as coisas que Cristo suportou por nós eram
imaginárias, e que Ele tinha apenas a aparência de um homem, mas
não o era em realidade. Nestório separou as naturezas em Cristo, e
não admitiu que o Filho de Deus foi crucificado e morreu; mas disse
que isso era verdade apenas para o homem Cristo: “Não exulte e não se
glorie, ó judeu,” (disse ele), “não crucificaste a Deus, mas ao homem”. Os
ubiquitarianos creem que a natureza humana de Cristo, desde o
momento da encarnação, foi tão dotada de todas as propriedades da
Divindade, que a única diferença entre esta e a Divindade de Cristo, é
que a primeira tem as propriedades por acidente o que a última tem
por si só. Daí é que Eles imaginam que Cristo em Sua morte, sim,
quando Ele estava oculto no ventre da virgem, não era apenas quanto

448 | P á g i n a
à Sua Deidade, mas também quanto ao Seu corpo, no céu e em todos
os lugares. E isso é o que eles chamam de forma de Deus, a respeito
da qual Paulo fala em Filipenses 2:6.
1. Mas, em oposição a tudo isso, cremos no que é afirmado no credo,
que Cristo estava verdadeiramente morto, e que houve uma separação
real entre Sua alma e corpo, e de um caráter local real, de forma que
Sua alma e corpo não apenas não estavam juntos em todos os lugares,
mas também não estavam ao mesmo tempo no mesmo lugar; a alma
não estava onde o corpo estava, e o corpo não estava onde a alma
estava. “E Jesus, quando clamou de novo com grande voz, e entregou o espírito”
(Mateus 27:50); “E Jesus clamou em alta voz e entregou o espírito” (Marcos
15:37); “Pai em Tuas mãos entrego Meu espírito; e tendo dito isso, Ele entregou
o espírito” (Lucas 23:46); “E Ele reclinou a cabeça e entregou o espírito” (João
19:30).
Objeção 1. Mas Ele entregou o espírito apenas como virtude, isto é,
diz-se que Sua Divindade saiu dEle. Resposta: Há uma diferença aqui
que devemos observar; pois a Divindade enquanto unida à
humanidade, no entanto, operou além e sem ela, mas a alma partiu do
corpo. A razão desta diferença é que a Divindade é algo não criado e,
portanto, infinito, enquanto a alma é criada e, portanto, finita.
2. Isso também deve ser acrescentado ao que foi dito, que embora Sua
alma estivesse verdadeiramente separada de Seu corpo, a Palavra não
abandonou a alma e o corpo, mas permaneceu, embora pessoalmente
unida a cada uma; de forma que, nesta separação de alma e corpo, as
duas naturezas em Cristo não foram separadas, ou divididas.
Objeção 2. Mas se não houve tal separação entre as naturezas de
Cristo, por que Ele exclamou: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?”(Mateus 27:46)49;. Resposta: Este grito foi extorquido do
sofredor Filho de Deus, não por causa de alguma separação das duas

49 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

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naturezas, mas por causa da demora de auxílio e proteção: pois as duas
naturezas em Cristo não devem ser separadas, porque está escrito.
“Deus comprou a Igreja com Seu próprio sangue” (Atos 20:28). E era
necessário que aquele que morresse por nossos pecados fosse o Filho
de Deus, para que assim houvesse resgate suficiente. Portanto, é
também claramente manifesto que a união das naturezas em Cristo
não é ubíqua: pois Sua alma, estando separada de Seu corpo, não
estava no sepulcro com Seu corpo e, consequentemente, não em toda
parte; porque aquilo que está em toda parte nunca pode ser separado.
E ainda assim a união das naturezas permaneceu completa mesmo na
morte e na sepultura.

II. SE ERA NECESSÁRIO QUE CRISTO MORRESSE POR NÓS


Foi necessário para Cristo, para que desse satisfação pelo pecado, não
só sofrer, mas também morrer:
1. Por causa da justiça de Deus. O pecado é um mal de tal magnitude
que, segundo a ordem da justiça, merece e exige a destruição do
pecador; por isso, aquilo que é uma ofensa ao bem supremo, só pode
ser expiado com o castigo mais severo e extrema destruição do
pecador, que é por Sua morte, conforme está escrito: “o salário do
pecado é a morte“ (Romanos 6:23). Cristo agora assumiu nosso lugar e
tomou sobre Si a pessoa daqueles que haviam pecado e mereciam a
morte não apenas eterna, mas também temporal; pois havíamos
merecido aquela destruição que consiste na dissolução entre a alma e
o corpo, que uma vez feita, o próprio corpo também se dissolve, como
se diz que uma casa é destruída quando as partes são separadas umas
das outras. Era necessário, portanto, que o Filho de Deus morresse
para que um resgate suficiente pudesse ser feito, o que não poderia
ter sido efetuado por uma mera criatura.

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Objeção 1. Mas merecemos a morte eterna; portanto, nossa alma não
deve ser separada de nosso corpo, para que sofra a condenação eterna.
Resposta: Esta não é uma conclusão justa, porque nada mais pode ser
apropriadamente inferido, do que é necessário que nossas almas e
nossos corpos sejam novamente unidos para que possam sofrer a
morte eterna, que também, finalmente, acontecerá. Portanto, era
necessário que Cristo morresse por nós e que Sua alma fosse separada
de Seu corpo.
2. Por causa da verdade de Deus. Pois Deus havia declarado que
puniria o pecado com a destruição e a morte do transgressor: “No dia
em que dele comeres, certamente morrerás” (Gênesis 2:17). Era necessário
que essa ameaça de Deus fosse cumprida depois que o pecado fosse
cometido.
Objeção 2. Mas Adão não morreu imediatamente. Resposta: Ele, de
fato, não sofreu morte física instantaneamente, mas imediatamente se
tornou mortal, e aos poucos morreu, enquanto ele já experimentava o
início da morte eterna: “Eu ouvi”, disse ele, “tua voz, e estava com medo,
porque eu estava nu” (Gênesis 3:10). Houve temor e sentimento da ira de
Deus, uma luta contra a morte e uma perda de todas as boas dádivas
que Deus conferiu ao homem. E, no entanto, a lenidade e a compaixão
do evangelho não faltavam; pois Deus não havia declarado
expressamente que ele certamente morreria total e imediatamente. Se
isso fosse falta, ele teria morrido para sempre. O Filho de Deus
ofereceu e trouxe uma mitigação, e ressuscitou o homem para uma
nova vida, que, não obstante ele permanecesse sujeito à morte física,
esta não era mais prejudicial ou fatal para ele.
3. Por conta das promessas feitas aos pais, pelos profetas, como a
contida em Isaías 53:7: “Como um cordeiro é levado ao matadouro, e como
a ovelha muda perante os Seus tosquiadores, Ele não abriu a boca;” e também
por causa dos tipos e sacrifícios, pelos quais Deus significou que
Cristo deveria morrer tal morte que seria um resgate suficiente pelos

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pecados do mundo. Isso, agora, não era obra de nenhuma criatura;
mas somente do Filho de Deus. Por isso, coube a Ele sofrer uma morte
tão dolorosa em nosso favor.
4. Por último, o próprio Cristo predisse que Sua morte era necessária.
“Porque se Eu não for embora, o Consolador não virá a vós” (João 16:7); “Se
Eu não te lavar, vós não tendes parte comigo” (João 13:8); “E Eu, se for
levantado, atrairei todos os homens a mim” (João 12:32). Três coisas,
portanto, concordam nesta questão: que era necessário dar satisfação
à justiça e verdade de Deus; que essa satisfação só poderia ser feita
pela morte; e isso pela morte do Filho de Deus.
Do que agora foi dito, as seguintes conclusões podem ser obtidas: 1.
Esse pecado deve ser especialmente evitado por nós, visto que não
poderia ser expiado exceto pela intervenção da morte do Filho de
Deus. 2. Que devemos ser gratos ao Filho de Deus por este grande
benefício que Ele tem, por Sua grande bondade, conferido a nós. 3.
Para que todos os nossos pecados, por maiores, muitos e graves que
sejam, são expiados somente pela morte de Cristo.

III. CRISTO MORREU POR TODOS?


Ao responder a esta pergunta, devemos fazer uma distinção, a fim de
harmonizar aquelas passagens das Escrituras que parecem ensinar
doutrinas contraditórias. Em algumas passagens, diz-se que Cristo
morreu por todos e pelo mundo inteiro. “Ele é a propiciação pelos nossos
pecados, e não apenas pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo
inteiro” (João 2:2); “Que Ele, pela graça de Deus, provasse a morte por todo
homem” (Hebreus 2:9); “Julgamos assim que, se um morreu por todos, então
todos morreram; e que Ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam
mais para si, mas para Aquele que por Eles morreu e ressuscitou” (2 Coríntios
5;15); “Que Se deu em resgate por todos” (1Timóteo 2:6). As Escrituras, ao
contrário, afirmam em muitas passagens, que Cristo morreu, orou,
ofereceu-Se, e outras coisas semelhantes, apenas para muitos, para os

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eleitos, para Seu próprio povo, para a Igreja, para Suas ovelhas, e
outras afirmações semelhantes. “Eu oro por eles; eu não oro pelo mundo,
mas por aqueles que me deste, porque eles são Seus” (João 17:9); isto é, os
eleitos somente. “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para
servir e dar a Sua vida em resgate de muitos” (Mateus 20:28); “Não fui
enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 20:28); “Ele
salvará Seu povo de seus pecados” (Mateus 1:24); “Este é o meu sangue do
Novo Testamento, que é derramado por muitos para a remissão de pecados”
(Mateus 1:21); “Cristo foi oferecido uma vez para levar os pecados de muitos”
(Hebreus 9:28); “Com o Seu conhecimento, Meu servo justo justificará a
muitos, porque Ele levará as Suas iniquidades” (Isaías 53:11); “Cristo amou a
Igreja e Se entregou por ela” (Efésios 5:25).
O que devemos dizer em vista dessas passagens aparentemente
opostas das Escrituras? A Palavra de Deus se contradiz? De forma
nenhuma. Mas este será o caso, a menos que essas declarações, que
em algumas passagens aparentam ensinar que Cristo morreu por
todos, e em outras que Ele morreu apenas por uma parte, possam ser
reconciliadas por uma distinção adequada e satisfatória, que distinção
ou reconciliação, é duplo.
Há alguns que interpretam essas declarações gerais de todo o número
dos fiéis, ou de todos os que creem; porque as promessas do evangelho
apropriadamente pertencem a todos aqueles que creem, e porque as
Escrituras frequentemente as restringem aos que creem: “Todo aquele
que nEle crê não perecerá” (João 3:15); “A justiça de Deus, que vem pela fé em
Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que creem” (Romanos 3;22); “Para
que todo aquele que nEle crê, pelo Seu nome, receba a remissão de pecados”
(Atos 10:43)50. É dessa forma que Ambrósio interpreta aquelas
passagens que falam da morte de Cristo como se estendendo a todos:
“O povo de Deus”, diz ele, “tem sua plenitude, e embora uma grande parte dos

50Todas as localizações das referências bíblicas desse parágrafo foram incluídas


pelo tradutor ao português.

453 | P á g i n a
homens negligencie ou rejeite, a graça do salvador, mas há uma certa
universalidade especial dos eleitos, e pré-conhecida, separada e discernida
da generalidade de todos, que um mundo todo pode parecer ter sido salvo de
um mundo todo; e todos os homens podem parecem ser redimidos de todos os
homens (...)“. Desta forma, não há ofensa ou contradição; pois todos os
que creem são os muitos, as pessoas peculiares, a Igreja, as ovelhas, os
eleitos, e assim por diante, por quem Cristo morreu e Se entregou.
Outros reconciliam essas passagens aparentemente contraditórias das
Escrituras, fazendo uma distinção entre a suficiência e eficácia da
morte de Cristo. Pois há certas pessoas contenciosas, que negam que
essas declarações que falam de uma forma geral, devem ser restritas
apenas aos fiéis, isto é, eles negam que a própria carta, ou a linguagem
simples das Escrituras, assim as limita, e como prova disso, eles
apresentam aquelas passagens nas quais a salvação parece ser
atribuída, não apenas aos que creem, mas também aos hipócritas e
apóstatas, como se diz: “Negando ao Senhor que os comprou” (2 Pedro 2:1);
E, também, onde é dito que eles “se esqueceram de que foram purificados
de seus antigos pecados” (2 Pedro 1:9). Mas é manifesto que declarações
desse tipo devem ser entendidas ou concernentes à mera aparência
externa e à vã glória da redenção, ou da santificação; ou então da
suficiência e grandeza do mérito de Cristo. Que pode não ser
necessário, portanto, que contendamos muito com essas pessoas
capciosas e exigentes a respeito da restrição daquelas passagens que
falam tão geralmente (embora seja mais manifesto em si) e que aquelas
passagens que falam da redenção dos hipócritas podem ser mais
facilmente reconciliadas, alguns preferem (e não sem razão de acordo
com meu julgamento) para interpretar essas declarações, que na
aparência parecem ser contraditórias, em parte quanto à suficiência e
em parte quanto à aplicação e eficácia da morte de Cristo.

454 | P á g i n a
Eles afirmam, portanto, que Cristo morreu por todos, e que Ele não
morreu por todos; mas em diferentes aspectos. Ele morreu por todos,
no tocante à suficiência do resgate que pagou; e não para todos; mas
apenas para os eleitos, ou aqueles que creem, no que diz respeito à
aplicação e eficácia disso. A razão do primeiro reside nisto, que a
expiação de Cristo é suficiente para expiar todos os pecados de todos
os homens, ou de todo o mundo, se apenas todos os homens fizerem
aplicação disso a si mesmos pela fé. Pois não se pode dizer que é
insuficiente, a menos que aceitemos aquela horrível blasfêmia. Que
Deus nos livre! Que alguma culpa da destruição dos ímpios resulta de
um defeito no mérito do mediador. A razão deste último é porque
todos os eleitos, ou os que creem, e somente eles, aplicam a si mesmos
pela fé o mérito da morte de Cristo, junto com a eficácia dela, pela
qual obtêm justiça e vida de acordo com ela é dito: “Aquele que crê no
Filho de Deus tem a vida eterna” (João 3:36). Os demais são excluídos
desta eficácia da morte de Cristo por sua própria incredulidade, como
novamente é dito: “Quem não crê não verá a vida, mas a ira de Deus
permanece sobre ele” (João 3:36). Aqueles, portanto, a quem as Escrituras
excluem da eficácia da morte de Cristo, não podem ser considerados
incluídos no número daqueles por quem Ele morreu, uma vez que
respeita a eficácia de Sua morte, mas apenas quanto a Sua suficiência;
porque a morte de Cristo também é suficiente para Sua salvação, se
eles apenas crerem; e a única razão de sua exclusão surge de sua
incredulidade.
É da mesma forma, isto é, fazendo a mesma distinção que
respondemos àqueles que perguntam sobre o propósito de Cristo: Ele
quis morrer por todos? Pois assim como Ele morreu, Ele também
desejou morrer. Portanto, como Ele morreu por todos, com respeito à
suficiência de Seu resgate; e somente para os fiéis com respeito à
eficácia da mesma, assim também Ele desejou morrer por todos em
geral, no tocante à suficiência de Seu mérito, isto é, Ele desejou

455 | P á g i n a
merecer por Sua morte, graça, justiça e vida da forma mais abundante
para todos; porque Ele não quer que falte alguma coisa no que diz
respeito a Ele e Seus méritos, para que todos os ímpios que perecem
não tenham desculpa. Mas Ele desejou morrer somente pelos eleitos
no tocante à eficácia de Sua morte, isto é, Ele não só mereceria
suficientemente graça e vida para eles somente, mas também
efetivamente confere-as a eles, dá a fé e o Espírito Santo, e acontece
que eles aplicam a si mesmos, pela fé, os benefícios de Sua morte, e
assim obtêm para si a eficácia de Seus méritos.
Nesse sentido, é dito corretamente que Cristo morreu de uma forma
diferente por crentes e incrédulos. Nem é esta declaração
acompanhada de qualquer dificuldade ou inconveniente, visto que se
harmoniza não apenas com as Escrituras, mas também com a
experiência; pois ambos testificam que o antídoto para o pecado e a
morte é mais suficiente e abundantemente oferecido no evangelho a
todos; mas que é eficazmente aplicado e benéfico apenas para aqueles
que creem. As Escrituras, também, em todos as passagens, restringem
a eficácia da redenção apenas a certas pessoas, como às ovelhas de
Cristo, aos eleitos e aos que creem, enquanto por outro lado, exclui
claramente da graça de Cristo os réprobos e incrédulos enquanto eles
permanecem em sua incredulidade. “Que concórdia tem Cristo com Belial?
Ou que parte tem aquele que crê com o infiel?” (2 Coríntios 6:15). Veja,
também: Mateus 20:28; Mateus 26:28. Isaías 53:11; João 10:15; Mateus
15:24.

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Além disso, Cristo orou apenas pelos eleitos, incluindo os que já eram
Seus discípulos, e também aqueles que depois creriam em Seu nome.
Por isso Ele diz: “Não rogo pelo mundo, mas pelos que Me deste”. (João 17:9).
Se, portanto, Cristo não oraria pelo mundo, pelo que devemos
entender, os que não creem, muito menos morreria por eles, no que
diz respeito à eficácia de Sua morte; pois é menos orar do que morrer
por alguém. Existem também duas partes inseparáveis do sacrifício de
Cristo: intercessão e morte. E se Ele mesmo Se recusa a estender uma
parte aos ímpios, quem é aquele que ousará dar a outra parte?
Por último, os padres e escolásticos ortodoxos também distinguem e
restringem as passagens das Escrituras acima, como fizemos;
especialmente Agostinho, Cirilo e Próspero51. Lombardo52 escreve o
seguinte: “Cristo Se ofereceu a Deus, a Trindade por todos os homens, no que
diz respeito à suficiência do preço; mas apenas para os eleitos no que diz
respeito à eficácia do mesmo, porque Ele efetuou e comprou a salvação apenas
para aqueles que foram predestinados”. Tomás de Aquino53 escreve: “O
mérito de Cristo, quanto à sua suficiência, igualmente a todos se estende, mas
não quanto à sua eficácia, que acontece em parte por conta do livre arbítrio, e
em parte por causa da eleição de Deus, por meio da qual os efeitos de os méritos
de Cristo são misericordiosamente concedidos a alguns e negados a outros de
acordo com o justo julgamento de Deus“. Outros escolásticos, também,
falam da mesma forma, a partir da qual é evidente que Cristo morreu
por todos de tal forma, que os benefícios de Sua morte, no entanto,
pertencem propriamente aos que creem, a quem somente eles também
são proveitosos e acessíveis.

51Próspero da Aquitânia ou Próspero Tiro (390 – 465 AD) foi um escritor cristão e
discípulo de Agostinho de Hipona.
52 Pedro Lombardo (1100-1160 AD), filósofo escolástico e bispo de Paris. Ganhou o
título Magister Sententiarum pela obra “4 Livros de Sentenças”.
53 Tomás de Aquino (1225-1274 AD), foi um frade católico italiano da Ordem dos
Pregadores (dominicano), conhecido como "Doctor Angelicus", "Doctor Communis"
e "Doctor Universalis".

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Objeção 1. As promessas do evangelho são universais, como resultado
de declarações que convidam todos os homens a virem a Cristo, para
que tenham vida. Por isso, não se estende apenas àqueles que creem.
Resposta: A promessa é realmente universal com respeito àqueles que
se arrependem e creem; mas estendê-lo aos réprobos seria blasfêmia.
“Há”, diz Ambrósio, como acabamos de citar, “uma certa universalidade
especial dos eleitos, e conhecida de antemão, discernida e distinguida de toda
a generalidade”. Essa restrição das promessas aos que creem é
comprovada pela forma clara e explícita em que são expressas. “Para
que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16);
“A justiça de Deus, que vem pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os
que creem” (Romanos 3:22); “Vinde a Mim todos os que estais cansados e
oprimidos” (Mateus 11:28); “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será
salvo” (Atos 2:21); “Ele se tornou o autor da salvação eterna para todos os que
lhe obedecem” (Hebreus 5:9); E das palavras de Cristo: “não deis aos cães
o que é santo, nem deiteis pérolas aos porcos (...)” (Mateus 7:6).
Objeção 2. Cristo morreu por todos. Portanto, Sua morte não se
estende apenas aos que creem. Resposta: Cristo morreu por todos no
que se refere ao mérito e eficácia do resgate que Ele pagou; mas apenas
para aqueles que creem no que respeita à aplicação e eficácia de Sua
morte; visto que a morte de Cristo é aplicada somente a eles, e é
proveitosa para eles, é corretamente dito que pertence propriamente
a eles somente, como já foi mostrado.

458 | P á g i n a
Questão 41. Por que Ele também foi “sepultado”?
Resposta: Para provar, que assim, Ele estava realmente morto.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 41

Existem muitas causas pelas quais Cristo foi sepultado:


1. Ele deveria ser sepultado na confirmação de Sua morte, para que
pudesse ser manifesto que Ele estava realmente morto; porque não os
vivos, mas apenas os mortos, são sepultados. Portanto, assim como Ele
se apresentou após Sua ressurreição para ser visto, manuseado, e outros
atos semelhantes, para que houvesse evidências claras de que Seu corpo
foi ressuscitado dos mortos, então, após Sua morte, Ele se entregou
com o propósito de ser sentido e enterrado, para que se pudesse saber
que Ele era um cadáver real. Existem algumas partes da história da
morte de Cristo que se referem a isso, como que, quando Ele estava
morto, foi perfurado com uma lança, foi retirado da cruz, foi ungido,
foi envolto em linho, e outros atos semelhantes; pois estes também
demonstram a verdade de Sua morte. Estamos, portanto, por Seu
sepultamento, assegurados de que Ele estava realmente morto, e por
isso de nossa certa redenção; pois nossa salvação consiste em Sua
morte, e a prova disso é Seu sepultamento.
2. Para que a última parte de Sua humilhação pudesse ser alcançada;
pois isso - isto é, sepultamento - era uma parte da punição, maldição
e ignomínia que havíamos merecido, como se diz: “Ao pó retornarás”
(Gênesis 3:19). Um corpo morto é, de fato, destituído de sentimento e
compreensão, mas era vergonhoso que o Seu corpo fosse sepultado na
terra como outro cadáver. Portanto, como a ressurreição de Cristo do
túmulo é uma parte de Sua glória, Seu sepultamento e enterro entre
os mortos, pelo qual Ele foi colocado na mesma condição que eles, é
uma parte da humilhação e ignomínia que Ele prestou por nossa
causa; pois Ele não estava disposto a se tornar um cadáver por nossa
causa.

459 | P á g i n a
3. Ele deveria ser sepultado para que não fiquemos apavorados com a
vista do túmulo, mas saibamos que Ele santificou nossas sepulturas
com Seu próprio sepultamento, de forma que não sejam mais
sepulturas para nós, mas câmaras e locais de descanso em que
podemos repousar calma e pacificamente até que sejamos
ressuscitados novamente.
4. Ele foi sepultado para que pudesse ser aparente, em vista de Sua
ressurreição, que Ele realmente venceu a morte em Seu próprio corpo,
e que por Seu próprio poder Ele a expulsou de Si mesmo, de forma
que Sua ressurreição não foi nenhuma aparição ou coisa imaginária,
mas foi uma verdadeira ressuscitação de um cadáver reanimado.
5. Para que sejamos confirmados na esperança da ressurreição, visto
que, segundo Seu exemplo, também seremos sepultados e
ressuscitaremos por Seu poder; sabendo que Cristo, nosso cabeça, o
caminho do túmulo para a glória nos abriu.
6. Para que, estando espiritualmente mortos, possamos descansar do
pecado. “Fomos sepultados com Ele pelo batismo na morte; que, assim como
Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós devemos andar
em novidade de vida” (Romanos 6:4).
7. Para que a verdade corresponda ao tipo de Jonas, e que as profecias
sejam cumpridas em relação ao sepultamento do messias. “Não
deixarás minha alma no inferno” (Salmos 16:10); “Ele fez Sua sepultura com
os ímpios” (Isaías 53:9).

460 | P á g i n a
Questão 42. Desde que, Cristo morreu por nós, então por que
devemos também morrer?
Resposta: Nossa morte não é uma satisfação por nossos pecados,
mas apenas uma abolição do pecado e uma passagem para a vida
eterna.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 42

Esta resposta é uma explicação para a objeção que frequentemente


ouvimos feita da seguinte forma: aquele por quem outro morreu, não
deveria morrer, do contrário, Deus pareceria exigir uma satisfação
dupla por uma ofensa. Cristo agora morreu por nós, portanto, não
deveríamos morrer. Resposta: Admite-se que não deveríamos morrer
apenas para dar satisfação; mas há outras causas pelas quais é
necessário que morramos. Não morremos com o propósito de
satisfazer a justiça de Deus, mas para que possamos verdadeiramente
receber os benefícios adquiridos pela morte de outra pessoa, para que
o pecado seja abolido, e uma passagem ou transição seja feita para a
vida eterna. Nossa morte física, então, não é uma satisfação pelo
pecado; mas é,
1. Uma admoestação dos vestígios do pecado em nós.
2. Uma admoestação da grandeza do mal do pecado.
3. Uma abolição dos vestígios do pecado; e, por último, uma passagem
para a vida eterna; pois a transição dos fiéis para a vida eterna é feita
pela morte física. Resposta: Onde a causa é removida, o efeito não
pode mais permanecer em vigor. Mas a causa da morte em nós, que é
o pecado, foi removida. Portanto, o efeito, que é a morte, também deve
ser removido. Resposta: O efeito é, de fato, removido quando a causa
é totalmente removida; mas em nós a causa da morte, que diz respeito
à abolição do pecado, não é totalmente removida; embora seja

461 | P á g i n a
retirado, uma vez que respeita a remissão de pecados. Ou, podemos
responder, que o pecado, na medida em que respeita a culpa do
pecado, é removida, mas não no que diz respeito à questão do pecado
que ainda não foi totalmente abolido, mas permanece em nós, para
ser removido gradualmente, que pode nos ser necessário exercer
arrependimento e ser fervorosos em oração, até que, na vida futura,
estejamos perfeitamente libertos de todos os vestígios do pecado.

462 | P á g i n a
Questão 43. Que benefício adicional recebemos do sacrifício e
morte de Cristo na cruz?
Resposta:. Que em virtude disso nosso velho ser é crucificado, morto
e sepultado com Ele; para que as inclinações corruptas da carne
não mais reinem em nós, mas que possamos nos oferecer a Ele em
sacrifício de ação de graças.
EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 43

Esta questão diz respeito aos frutos ou benefícios da morte de Cristo.


E aqui também, como na paixão de Cristo, o fim e os frutos devem ser
considerados iguais, e apenas em um aspecto diferente: porque as
coisas que Cristo se propôs a Si mesmo como fins, são para nós os
frutos, quando recebemos ou aplicá-los a nós mesmos. É, portanto,
manifesto que os benefícios da morte de Cristo abrangem toda a obra
de nossa redenção, de cujos frutos podemos especificar o seguinte:
1. Justificação ou remissão de pecados. A justiça de Deus exige que o
pecador não seja punido duas vezes. E como Ele puniu nossos pecados
em Cristo, não irá, portanto, punir os mesmos em nós. “O sangue de
Jesus Cristo, Seu Filho, de todo pecado nos purifica”(1 João 1:9)54, tanto o
original quanto o atual, e os pecados cometidos tanto por omissão
quanto por omissão. Somos, portanto, justificados, isto é, libertos do
mal tanto da punição quanto da culpa por causa da morte de Cristo,
que é a causa desse efeito.
2. Regeneração, ou a renovação de nossa natureza pelo Espírito Santo.
Cristo, por Sua morte, mereceu para nós não apenas o perdão do
pecado, mas também Sua remoção e o recebimento do dom do Espírito
Santo. Ou podemos dizer que Ele, por Sua própria morte, obteve para
nós não apenas a remissão de pecados, mas a habitação de Deus em
nós.

54 Localização da referência bíblica incluída pelo tradutor para o português.

463 | P á g i n a
“Se Eu não partir, o Consolador não virá ter convosco; mas se Eu partir, a vós
O enviarei” (João 16:7); “E vós estais completos nEle” (Colossenses 2:10);
“Quem é tornado para nós justiça e santificação” (1 Coríntios 1:30).
Mas a morte de Cristo é, em dois aspectos, a causa eficiente, tanto de
nossa justificação quanto de nossa regeneração. 1. A respeito de Deus:
porque Ele, por causa do mérito e da morte de Cristo, aos nossos
pecados nos remete, o Espírito Santo nos dá e renova em nós a Sua
própria imagem. “Sendo justificado por Seu sangue (...) Ser reconciliado com
Deus pela morte de Seu Filho” (Romanos 5:9, 10); “Porque sois filhos, Deus
enviou o Espírito de Seu Filho aos vossos corações, clamando, Aba, Pai”
(Galátas 4:6). 2. Com respeito a nós, a morte de Cristo também é uma
causa eficiente; porque nós, que cremos que Cristo obteve para nós a
justiça e o Espírito Santo, não podemos deixar de ser gratos a Ele e
desejar sinceramente viver para que possamos honrá-lO, o que é feito
começando a andar em novidade de vida. A aplicação da morte de
Cristo, e uma consideração apropriada dela, não permitirá que
permaneçamos ingratos; mas nos constrangerá a amar a Cristo em
retribuição, e a render graças por um benefício tão grande e
inestimável. Portanto, não devemos imaginar que podemos ter
remissão de pecados sem regeneração; pois ninguém que não seja
regenerado pode obter a remissão de pecados. Aquele, portanto, que
se gloria de ter aplicado a si mesmo pela fé a morte de Cristo, mas
não deseja viver uma vida santa e piedosa para honrar o salvador,
mente e dá evidências conclusivas de que a verdade não está nele,
porque todos os justificados estão dispostos e preparados para fazer
as coisas que agradam a Deus. O desejo de obedecer a Deus nunca
pode ser separado de uma aplicação da morte de Cristo, nem pode o
benefício da regeneração ser experimentado sem o da justificação.
Todos aqueles que são justificados também são regenerados, e todos
aqueles que são regenerados são justificados.

464 | P á g i n a
Objeção. O apóstolo Pedro, em sua primeira epístola, 1 Pedro 1:3,
atribui nossa regeneração à ressurreição de Cristo. De que forma,
portanto, isso é atribuído aqui à Sua morte. Resposta: É atribuído a
ambos: à Sua morte, uma vez que respeita o mérito dela; pois por Sua
morte Ele mereceu regeneração para nós: e para Sua ressurreição, uma
vez que respeita a aplicação dela; pois ao ressuscitar dos mortos Ele
aplica a regeneração a nós, o Espírito Santo nos dando.
3. A vida eterna é outro fruto da morte de Cristo. “Deus amou o mundo
de tal forma que deu seu Filho unigênito”, isto é, à morte, “para que todo
aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16); “Deus
nos deu a vida eterna, e esta vida está em Seu Filho” (1 João 5:11).
O que é agora crer em Cristo, morto? É crer que Ele não apenas sofreu
as dores e tormentos mais excruciantes, mas também a própria morte;
e que por Sua morte Ele obteve para mim a remissão dos pecados, a
reconciliação com Deus e, por consequência, o Espírito Santo também,
que inicia em mim uma nova vida, para que eu possa ser novamente
feito templo de Deus e, por fim, alcançar vida eterna, na qual Deus
será para sempre louvado e magnificado por mim.

465 | P á g i n a
A DESCIDA DE CRISTO AO INFERNO

Questão 44. Por que é acrescentado: “Ele desceu ao inferno?”


Resposta: Para que em minhas maiores tentações, eu possa ter
certeza, e totalmente me consolar nisso, que meu Senhor Jesus
Cristo, por Sua angústia inexprimível, dores, terrores e agonias
infernais, em que foi imerso durante todos os Seus sofrimentos, mas
especialmente na cruz me livrou da angústia e dos tormentos do
inferno.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 44

Há duas coisas que devemos considerar em relação a este artigo do


credo. A primeira é: qual é o seu significado ou sentido? E a segunda:
para que serve?

I. QUAL É O VERDADEIRO SENTIDO DESTE ARTIGO DO


CREDO OU, O QUE SIGNIFICA A DESCIDA DE CRISTO AO
INFERNO?
O termo inferno é usado nas Escrituras em três sentidos diferentes. 1.
É usado para o túmulo. “Então você deve trazer meus cabelos grisalhos com
tristeza para o túmulo” (Gênesis 42:38); “Não deixarás minha alma no
inferno” (Salmos 16:10). 2. É empregado para representar o lugar dos
condenados, como na parábola do homem rico e Lázaro. “No inferno ele
ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu Abraão de longe” (Lucas 16:23).
3. É empregado para significar a mais extrema aflição e angústia. “As
dores da morte me cercaram, e as dores do inferno se apoderaram de mim”
(Salmos 116:3); “O Senhor faz descer à sepultura e faz subir” (1 Samuel 2:6),
isto é, Ele nos leva às dores mais extremas, das quais depois nos livra
novamente.

466 | P á g i n a
Neste artigo, o termo inferno deve ser entendido de acordo com o
terceiro significado. Que não pode ser tomado no sentido da sepultura
é evidente; 1. Porque já está declarado no credo: “Ele foi sepultado”. Se
alguém afirma que este último artigo é explicativo daquele que o
precede, nada afirmará; porque, sempre que se juntam duas
declarações, expressando a mesma coisa, para que uma possa explicar
a outra, é conveniente que a última seja mais clara e compreensível do
que a primeira. Mas aqui é apenas o contrário; pois descer ao inferno
é muito mais obscuro do que ser sepultado. 2. Não é provável, em uma
confissão tão breve e concisa como o credo, que o mesmo artigo seja
expresso duas vezes, ou que a mesma coisa seja reiterada em outras
palavras. Novamente, quando é dito que Cristo desceu ao inferno, isso
não pode significar o lugar dos condenados, que é o segundo
significado do termo considerado acima; como se prova desta divisão:
a Divindade não desceu, porque esta é, e estava em toda parte: nem o
Seu corpo, porque repousou na sepultura três dias, segundo o tipo de
Jonas; nem surgiu de qualquer outro lugar que não o túmulo.
Nem a alma de Cristo desceu:
1. Porque as Escrituras em nenhum lugar afirmam isso.
2. Porque Cristo disse em relação a isso quando morreu na cruz: “Pai,
em Tuas mãos entrego o Meu espírito”; e para o malfeitor, Ele disse: “Hoje
estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:46, 43). A alma de Cristo, após Sua
morte, estava, portanto, nas mãos de Seu Pai no paraíso, e não no
inferno. Tampouco tem o sofisma qualquer força, que afirma que Ele
também estava nas mãos de Seu Pai no inferno, conforme a declaração
do salmista: “Se eu fizer minha cama no inferno, eis que tu estás lá” (Salmos
139:8). Isto é, estava lá também o objeto da consideração divina, e foi
defendido que não deveria perecer: pois é primeiro dito: “Em tuas mãos
(...)”, Para que pudesse em seguida ser declarado: “Hoje estarás comigo no
paraíso” Mas a felicidade e a libertação de que se fala aqui não são
encontradas no inferno. O significado é que, nós dois, que agora

467 | P á g i n a
sofremos, estaremos neste dia no paraíso, no lugar da salvação e bem-
aventurança eterna, livre de todas essas torturas. Mas o paraíso não é
o inferno, nem está no inferno, que é o lugar do tormento. Portanto, é
evidente que Cristo falou isso ao malfeitor, não de Sua Divindade, mas
de Sua alma, que sofreu com Seu corpo; pois Sua Divindade estava
agora com o ladrão; nem sofreu, nem foi entregue de acordo com Sua
Divindade, mas de acordo com Sua alma.
3. Se Cristo desceu ao inferno (quanto à Sua alma), Ele desceu ou para
que pudesse sofrer alguma coisa, ou para que pudesse libertar os pais
daquele lugar, como afirmam os papistas. Mas Ele não desceu com o
propósito de sofrer qualquer coisa, porque quando pendurado na cruz
Ele disse. “Está consumado” (João 19:30). Nem Ele desceu para libertar
os pais: 1. Porque Ele fez isso sofrendo por eles na terra. 2. Ele fez o
mesmo pelo poder e eficácia de Sua Divindade desde o início do
mundo, e não por qualquer descida local de Seu corpo ou alma ao
inferno. 3. Os pais não estavam no inferno; portanto, eles não
poderiam ser libertados daquele lugar. As almas dos justos estão nas
mãos de Deus, nem eles sofrem qualquer dor. “Entre nós e ti existe um
grande abismo; de forma que aqueles que desejam passar daqui para ti não
podem; nem podem passar para nós os que viriam de lá” (Lucas 16:26). E
Lázaro, tendo morrido, foi levado pelos anjos ao seio de Abraão, e não
ao Limbus Patrum.
Há alguns que creem que a alma de Cristo desceu ao inferno após Sua
morte, não para sofrer, nem para libertar os pais, mas para que Ele
pudesse fazer uma exibição aberta de Sua vitória e causar terror nas
mentes dos demônios. Mas as Escrituras em nenhum lugar afirmam
que Cristo desceu ao inferno com um propósito como este.

468 | P á g i n a
Aqueles que sustentam esta visão do assunto, e que se opõem ao que
dissemos aqui com respeito à descida de Cristo ao inferno,
apresentam a passagem em 1 Pedro 3:19, como se fosse em oposição à
visão que nos apresentaram: “Pelo qual também foi, e pregou aos espíritos
na prisão, que às vezes eram desobedientes (...)”. Mas o sentido desta
passagem é diferente do que essas pessoas supõem: pois o apóstolo
diz, Cristo foi, isto é, foi enviado pelo Pai à Igreja desde o início; por
Seu Espírito, isto é, por Sua Divindade; aos espíritos que agora estão
na prisão, isto é, no inferno; Ele pregou no passado, quando Ele existia
até então, e eles eram desobedientes, isto é, antes do dilúvio: pois
então, quando eles eram desobedientes, Ele pregava para eles estando
nesta condição. Mas foi na época de Noé que eles foram
desobedientes. Portanto, foi então que Cristo pregou pelos pais,
convidando os desobedientes ao arrependimento. E ainda mais,
embora Pedro fale da descida de Cristo ao inferno, este não é o
significado daqueles a quem aqui nos opomos, mas dos papistas que
insistem que Cristo pregou aos pais no inferno e os libertou.
Eles também se opõem ao apresentar outra passagem do mesmo
apóstolo, que, em outro lugar, diz que “o evangelho foi pregado também
aos que estão mortos” (1 Pedro 4:6). Mas entender essa passagem como
eles entendem é perder de vista a figura de linguagem que é
empregada; pois o evangelho foi pregado aos mortos, isto é, àqueles
que já estão mortos, ou que estavam mortos quando Pedro escreveu
esta passagem, mas que viviam na época em que ela foi pregada a eles.
Outra passagem encontrada na epístola de Paulo aos Efésios 4:9,
também é obtido de seu significado apropriado por aqueles que
sustentam a visão acima; onde é dito, “que Cristo desceu às partes mais
baixas da terra” (Efésios 4:9)55, o que eles entendem ser o inferno. Mas
isso também é desconsiderar a figura de linguagem que é utilizada

55 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

469 | P á g i n a
aqui; pois o sentido da frase é: “Ele desceu às partes mais baixas da terra”,
isto é, à terra, que é a parte mais baixa do mundo; porque não há aqui
oposição de uma parte da terra a outra, mas da terra ao céu, pela qual
a humilhação de Cristo é representada. Isso é aparente a partir do
objeto e escopo do apóstolo, porque ele aqui faz um contraste entre a
mais alta glória e a mais profunda humilhação de Cristo. Assim, Cristo
ascendeu às partes mais altas do céu, isto é, no céu, que é a parte mais
alta do mundo.
Essas passagens, portanto, nada estabelecem em relação à descida da
alma de Cristo ao inferno, e se elas proporcionam a prova mais forte
disso, ainda assim, como já dissemos, o testemunho que elas
proporcionam não seria favorável daqueles a quem aqui nos referimos,
mas em favor dos papistas que ensinam que Cristo pregou no inferno
e libertou os pais. E se as provas reunidas nessas passagens não podem
remover as dificuldades que obstruem as visões dos papistas em
relação a este assunto, muito menos elas podem ser de algum auxílio
para essas pessoas; pois é certo que não pode ser provado por elas, que
Cristo desceu ao inferno com o propósito de causar terror na morte e
no Diabo. No entanto, esta visão, ou opinião, da descida de Cristo ao
inferno, não contém nada de impiedade e foi aprovada e sustentada
por muitos dos pais. Consequentemente, não é adequado que devemos
contender tenazmente com qualquer um a respeito disso. No entanto,
é certo, não obstante, que não pode ser obtido das Escrituras, nem
estabelecido conclusivamente por argumentos sólidos; enquanto
razões em contrário estão à mão. Pois depois de Sua morte, quando
Ele disse que estava consumado, a alma de Cristo descansou nas mãos
de Seu Pai, a quem Ele havia encomendado. E se Ele desceu ao inferno
com o propósito de triunfar sobre Seus inimigos, este artigo deveria
ser o início de Sua glorificação. Mas não é provável que a glorificação
de Cristo tenha seu início no inferno; pois todos os artigos anteriores
do credo falam dos graus da humilhação de Cristo, dos quais o mais

470 | P á g i n a
baixo e extremo é sua descida ao inferno, que também é aparente na
antítese. Portanto, nos opomos a essa visão do assunto. No entanto,
nesse meio tempo, confessamos que Cristo causou grande terror e
pavor nos demônios. Mas isso Ele realizou por Sua morte, pela qual
Ele venceu o Diabo, o pecado e a morte, e sem dúvida o Diabo viu que
ele estava totalmente desarmado e vencido pela morte de Cristo.
O que, portanto, esta descida de Cristo ao inferno significa? 1. Significa
aqueles tormentos, dores e angústias extremas que Cristo sofreu em
Sua alma, como a experiência do condenado, em parte nesta e em
parte na vida por vir. 2. Inclui também a maior e mais extrema
ignomínia que Cristo sofreu durante todo o período de Sua paixão.
Que essas coisas são significadas e compreendidas na descida de
Cristo ao inferno, os testemunhos das Escrituras que já citamos nesta
discussão suficientemente ensinam e afirmam. “As dores do inferno se
apoderaram de Mim” (Salmos 116:3); “O Senhor faz descer à sepultura e faz
subir” (1 Samuel 2:6).
Que Cristo deveria ter sofrido, e que suportou essas coisas, também é
provado por este mesmo testemunho de Davi: “As dores do inferno se
apoderaram de mim” (Salmo 116:3), que é dito de Cristo na pessoa de
Davi. Existem também outras partes das Escrituras que dão
testemunho semelhante, como: “Ao Senhor agradou moê-lO e fazê-lO
sofrer” (Isaías 53:10); “Minha alma está triste até a morte” (Mateus 26:28).
As tristezas e dores que suportou no jardim, quando suou gotas de
sangue, também demonstram o mesmo: porque “o Senhor fez cair sobre
Ele a iniquidade de todos nós“ (Isaías 53:6). E ainda mais Ele clamou na
cruz: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste” (Mateus 27:46). A
mesma coisa é provada por estes argumentos:
1. Cristo deveria redimir não apenas nossos corpos, mas também
nossas almas. Portanto, convinha que Ele sofresse não apenas no
corpo, mas também na alma.

471 | P á g i n a
2. Foi necessário que Cristo nos libertasse das angústias e dores do
inferno. Portanto, coube a Ele experimentar isso. E isso Ele fez antes
ou depois de Sua morte. Que não foi depois de Sua morte, os próprios
papistas confessam. Portanto, foi antes de Sua morte. Nem foi em Seu
corpo que Ele suportou essas coisas; pois os sofrimentos de Seu corpo
eram apenas externos. Portanto, Ele os sofreu em Sua alma.
3. É apropriado que os severos tormentos e angústias da alma (que
eram a parte mais pesada de seus sofrimentos) não passassem
despercebidos no credo. Mas eles não seriam mencionados se este
artigo da descida de Cristo ao inferno não se referisse a eles; pois os
artigos anteriores falam apenas dos sofrimentos externos do corpo,
que Cristo sofreu de fora. Não há, portanto, nenhuma dúvida de que
os sofrimentos de Sua alma são mais particularmente representados
por este artigo.
Esta é a verdadeira descida de Cristo ao inferno. Portanto, devemos
manter e defender em oposição aos papistas o que é certo, a saber, que
Cristo desceu ao inferno na forma e no sentido em que explicamos
aqui. Se alguém, entretanto, for capaz de se defender e estabelecer o
fato de que desceu em um sentido diferente, está bem. Quanto a mim,
não posso.
Objeção 1. Os artigos do credo devem ser entendidos em seu sentido
próprio e natural, e sem admitir qualquer figura. Resposta: Isso é
verdade se os artigos, quando tomados em seu significado apropriado,
não entram em conflito com outras porções das Escrituras. Mas este
artigo da descida de Cristo ao inferno, quando assim interpretado, é,
de muitas formas, oposto à declaração de Jesus na cruz, está
consumado; pois se Ele finalizou, e consumava cada parte de nossa
redenção na cruz, então não havia motivo para Ele descer ao inferno,
o lugar dos condenados.

472 | P á g i n a
Objeção 2. Os tormentos e horrores da alma que Cristo experimentou
precederam Seu sepultamento. Mas Sua descida ao inferno segue isso.
Portanto, não pode se referir e designar a angústia da alma que Cristo
suportou. Resposta: Há aqui uma falácia na proposição menor, em
fazer disso uma causa que não foi concebida como tal; pois a descida
ao inferno no credo segue o sepultamento de Cristo, não porque foi
feita após Seu sepultamento; mas porque é uma explicação do que
precede a respeito de Sua paixão, morte e sepultamento, para que nada
deva ser prejudicado; como se dissesse, Ele não sofreu apenas no
corpo: Ele não apenas morreu uma morte corpórea e não foi apenas
sepultado; mas Ele também sofreu na alma os tormentos mais
extremos e agonias infernais, como todos os ímpios suportarão para
sempre. A parte principal e mais pesada dos sofrimentos de Cristo é,
portanto, corretamente colocada em último lugar, de acordo com a
ordem do credo; pois procede das dores do corpo às da alma, e dos
sofrimentos que são visíveis aos que são invisíveis, por assim dizer, do
mais leve ao mais pesado.

II. QUAIS SÃO OS FRUTOS DA DESCIDA DE CRISTO AO


INFERNO?
Cristo desceu ao inferno: 1. Para que não descêssemos lá, e para que
Ele nos libertasse das angústias e tormentos eternos do inferno. 2. Para
que Ele possa nos levar consigo para o céu.
Portanto, crer em Cristo, que desceu ao inferno, é crer que Ele
sustentou por nós, em Sua própria alma, agonias e dores infernais, e
aquela extrema ignomínia que aguarda os ímpios no inferno, para que
nunca desçamos lá, nem sejamos compelidos a sofrer as dores e
tormentos que todos os demônios e réprobos irão sofrer para sempre
no inferno; mas, pelo contrário, podemos preferivelmente ascender
com Ele ao céu, e lá com Ele desfrutar da maior felicidade e glória por
toda a eternidade. Este é o fruto e o benefício deste artigo da descida
de Cristo ao inferno.

473 | P á g i n a
17º DIA DO SENHOR

A RESSURREIÇÃO DE CRISTO

Questão 45. O que nos beneficia a ressurreição de Cristo?


Resposta: Primeiro: por Sua ressurreição, Ele venceu a morte, para
nos tornar participantes daquela justiça que Ele comprou para nós
com Sua morte. Em segundo lugar, também somos por Seu poder
elevados a uma nova vida. E, por último, a ressurreição de Cristo é
uma garantia segura de nossa bendita ressurreição.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 45

Até agora falamos da humilhação de Cristo, que atingiu seu último


ponto no artigo de sua descida ao inferno. Devemos agora falar de Sua
glorificação, que começou com Sua ressurreição dentre os mortos no
terceiro dia. A humilhação do mediador não duraria para sempre. Era
suficiente que ele sofresse uma vez e morresse. Mas a eficácia e o
poder de Cristo, em preservar as bênçãos que emanam de sua
humilhação, durarão para sempre.
Há duas coisas que chamam particularmente nossa atenção ao tratar
do artigo da ressurreição de Cristo: Sua história e benefícios. Ao
considerar a história da ressurreição de Cristo, perguntar nos cabe: 1.
Quem foi que ressuscitou dos mortos? Foi Cristo, o Deus-homem, que
ressuscitou no mesmo corpo em que morreu. Isso a Palavra nunca
deixou de lado. 2. De que forma Ele ressuscitou? Ele, que estava
realmente morto, reviveu, trazendo Sua alma de volta ao corpo, e saiu
gloriosamente do sepulcro em que Seu corpo foi depositado no
terceiro dia, de acordo com as Escrituras; e que por Seu Pai, bem como
por Sua própria força e poder peculiares, queremos dizer, o poder não
de Sua humanidade, mas de Sua Divindade. Pois Ele foi gerado pelo

474 | P á g i n a
Pai por meio de Si mesmo; visto que o Pai opera por meio do Filho. 3.
Quais são as evidências de Sua ressurreição? As evidências da
ressurreição de Cristo são as seguintes: que Ele se manifestou
abertamente a muitas mulheres e discípulos; que o anjo testificou
sobre isso, e outros atos semelhantes. Os benefícios da ressurreição de
Cristo são enumerados na questão do catecismo agora sob
consideração, que devemos explicar mais completamente; e ao fazer
isso, as seguintes questões exigem nossa atenção particular:
I. Cristo ressuscitou dos mortos?
II. Como Ele se ressuscitou?
III. Com que propósito Ele ressuscitou?
IV. Quais são os benefícios ou frutos de sua ressurreição?

I. CRISTO RESSUSCITOU DOS MORTOS?


Os infiéis creem que Cristo morreu, mas não creem que Ele
ressuscitou dos mortos. Que Cristo, no entanto, ressuscitou dos
mortos é provado pelo testemunho de anjos, mulheres, evangelistas,
apóstolos e outros santos, que o viram, sentiram e conversaram com
Ele após Sua ressurreição. E mesmo que os apóstolos não tivessem
visto Cristo depois de Sua ressurreição, ainda devemos crer neles por
causa de Sua autoridade divina.

II. COMO CRISTO RESSUSCITOU?


As seguintes circunstâncias explicam a forma da ressurreição de
Cristo:
1. Cristo realmente ressuscitou, isto é, Sua alma realmente retornou
ao Seu corpo, do qual foi separada pela morte, e Ele realmente saiu do
sepulcro em que Seu corpo foi posto, não obstante a vigilância dos
guardas; sim, Ele até mesmo os surpreendeu e os maravilhou. 2. Ele
ressuscitou a mesma pessoa, o mesmo Jesus Cristo, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, que havia morrido; Ele ressuscitou conforme a

475 | P á g i n a
natureza em que havia sofrido, que era Sua e era verdadeira natureza
humana, a mesma que era em essência e propriedades, não deificada,
mas glorificada, tendo deixado de lado todas as enfermidades às quais
era figura. “Eis as Minhas mãos e os Meus pés, sou Eu mesmo; apalpai-Me e
vede; pois um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que Eu tenho”
(Lucas 24:39). E verdadeiramente nada diferente daquele que morreu,
poderia ressuscitar. O mesmo corpo, portanto, que havia sido vítima
de morte ressuscitou; e é isso que nos proporciona grande conforto.
Pois era necessário que Ele fosse um, e o mesmo mediador, que
merecesse para nós as bênçãos que havíamos perdido pelo pecado e
que as restaurasse para nós, a cada um individualmente as bençãos
aplicando. Sim, não tivesse a carne de Cristo ressuscitado, a nossa não
poderia ressuscitar. 3. Ele ressuscitou por Seu próprio poder, isto é,
Ele venceu a morte, de Si mesmo a despojando, vivificou Seu corpo
morto, com Sua alma a reuniu e restaurou a Si mesmo uma vida
abençoada, celestial e gloriosa, e isso por Sua própria virtude e poder
divinos. “Destrua este templo, e em três dias Eu o levantarei” (João 2:19); “Eu
tenho poder para sacrificar Minha vida e tenho poder para tomá-la
novamente” (João 10:18); “Assim como o Pai ressuscita os mortos, e os vivifica,
assim também o Filho vivifica aqueles que quer” (João 5:21).
Objeção. Mas Cristo foi ressuscitado pelo Pai, pois está escrito: “Se o
Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, habita em vós (...)”.
(Romanos 8:11). Portanto, Cristo não ressuscitou a si mesmo. Resposta:
O Pai ressuscitou o Filho por meio do próprio Filho, não como por
um instrumento, mas como por meio de outra pessoa com a mesma
essência e poder infinito, pelo qual o Pai normalmente opera. O Filho
foi ressuscitado pelo Pai por meio dEle; Ele mesmo ressuscitou a Si
memso pelo Seu Espírito. “Pois tudo o que o Pai faz, o Filho o faz [também]”
(João 5:19)56.

56 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

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4. Ele ressuscitou no terceiro dia da forma que acabamos de descrever:
1. Porque as Escrituras que contêm todas as predições e tipos relativos
ao messias, declaram que Ele ressuscitaria no terceiro dia: como o tipo
de Jonas, e outras afirmações semelhantes. 2. Porque era apropriado
que Seu corpo ressuscitasse livre de corrupção; e, no entanto, não tão
antes após Sua morte para deixar qualquer dúvida de que Ele estava
realmente morto. É por esta razão que Ele ressuscitou no terceiro dia,
e não no primeiro. A circunstância de Sua ressurreição no terceiro dia
é, portanto, adicionada no credo para que a verdade corresponda ao
tipo, e que possamos saber que Jesus é o Messias prometido aos pais,
porque Ele ressuscitou dos mortos no terceiro dia.

III. PARA QUE PROPÓSITO CRISTO RESSUSCITOU?


Cristo ressuscitou: 1. Para Sua própria glória e a de Seu pai. “Declarado
Filho de Deus, pela ressurreição dos mortos” (Romanos 1:4); “Pai, glorifica a
Teu Filho, para que também Teu Filho Te glorifique” (João 17:1). A glória do
Filho é a glória do Pai.
2. Por causa das profecias que foram proferidas em relação à morte e
ressurreição de Cristo. “Não deixarás a Minha alma no inferno, nem
permitirás que o Teu Santo veja corrupção” (Salmos 16:10; Atos 2:27);
“Quando Ele fizer de Sua alma uma oferta pelo pecado, verá Sua semente; verá
o trabalho de Sua alma e ficará satisfeito” (Isaías 53:10, 11); “Nenhum sinal
será dado a eles, mas o sinal do profeta Jonas; porque como Jonas esteve três
dias e três noites no ventre da baleia, assim estará o Filho do Homem três dias
e três noites no seio da terra“ (Mateus 12:39); “Porque ainda não conheciam
a Escritura, que era necessário que Ele ressuscitasse dentre os mortos” (João
20:9). Em vista agora dessas e de outras profecias, era necessário que
Cristo morresse, e ressuscite, para que as Escrituras possam ser
cumpridas: “Como então se cumprirá as Escrituras que assim deve ser”
(Mateus 26:54), a saber, por causa do decreto imutável de Deus que Ele
revelou nas Escrituras, do qual é dito nos Atos dos Apóstolos 4:27, 28:
“Em verdade, contra Teu santo filho Jesus, a quem ungiste, tanto Herodes como

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Pôncio Pilatos, com os gentios, e o povo de Israel estavam congregados; para
fazerem tudo o que a Tua mão e o Teu conselho antes determinassem que fosse
feito”. As predições que Cristo proferiu em relação à Sua morte e
ressurreição também podem ser citadas aqui apropriadamente. “E eles
o matarão, e no terceiro dia Ele será ressuscitado” (Mateus 17:23); “Destruí
este templo, e em três dias Eu o levantarei” (João 2:19).
3. Por causa da dignidade e poder da pessoa que ressuscitou. Foi em
vista disso que o Apóstolo Pedro declara que não era possível que
Cristo fosse mantido sob o poder da morte: 1. Porque Ele era o amado
e unigênito Filho de Deus. “O Pai ama o Filho, e todas as coisas entregou
em Suas mãos; Deus amou o mundo de tal forma que deu Seu Filho unigênito”
(João 3:35, 16). 2. Porque Cristo é o verdadeiro Deus, o autor e fonte da
vida. “Eu Sou a ressureição e a vida” (João 11:25); “O Pai deu ao Filho ter vida
em Si mesmo; Porque, assim como o Pai ressuscita os mortos, e vivificá-los,
assim também o Filho vivifica aqueles que deseja” (João 5:21, 26); “Eu dou a
eles vida eterna” (João 10:28). Se Cristo agora devia dar vida aos homens,
é absurdo supor que Ele permanecesse sob o poder da morte e não
ressuscitasse. 3. Cristo era em Si mesmo um homem justo, e por Sua
morte foi satisfeito por nossos pecados que foram imputados a Ele.
Mas onde não há pecado, a morte não reina mais. “Pois com uma só
oferta Ele aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hebreus 10:14);
“Pois naquilo que morreu, morreu para o pecado uma vez; mas, naquilo que
vive, vive para Deus” (Romanos 6:10).
4. Cristo ressuscitou para exercer a função de mediador, o que não
poderia ter feito se tivesse permanecido sob a morte.
1. Tornou-se o mediador, que era verdadeiro Deus e homem, para
reinar eternamente. “Teu trono, ó Deus, é para todo o sempre; o cetro do Teu
reino é um cetro reto” (Salmos 45: 6); “Eu estabelecerei o trono de seu reino
para sempre. Eu serei Seu Pai e Ele será Meu Filho” (2 Samuel 7:13, 14); “Uma
vez jurei por minha santidade, que não mentirei a Davi. Sua semente durará
para sempre, e seu trono será como o sol diante de Mim. Será estabelecido para
sempre, como a lua, e como uma testemunha fiel em paraíso” (Salmos 89:36,

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37, 38); “Eles serão o Meu povo e Eu serei o Seu Deus; e Davi, Meu servo, será
rei sobre eles para sempre” (Ezequiel 37:23); “E o reino, e domínio, e a
grandeza do reino sob todo o céu, serão dados ao povo dos santos do Altíssimo,
cujo reino é um reino eterno, e todos os domínios o servirão e obedecerão”
(Daniel 7:27); “Do aumento de seu governo e paz não haverá fim” (Isaías 9:7);
“E Seu reino não haverá fim” (Lucas 1:33). Era necessário, portanto, que a
natureza humana que foi feita da semente de Davi ressuscitasse dos
mortos e reinasse.
2. Era necessário que o mediador, que é nosso irmão e homem,
intercedesse continuamente por nós e comparecesse diante de Deus
em nosso nome como sacerdote eterno. “Tu és um Sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque” (Salmos 110:4); “É Cristo Jesus quem
morreu, sim, sim, que ressuscitou, que está mesmo à mão destra de Deus, que
também faz intercessão por nós” (Romanos 8:34).
3. Cabia ao mediador, que é homem verdadeiro, ser mediador tanto
por mérito quanto por eficácia. Não era suficiente para Ele
simplesmente morrer. Cabia a Ele também, por Seu poder, conferir à
Igreja, e a todos nós, os benefícios que havia comprado para nós com
Sua morte. Esses benefícios são justiça, o Espírito Santo e vida eterna
e glória. Pois pertencia ao ofício do mediador tanto para merecer
como para conferir essas bênçãos. Mas se Ele tivesse permanecido sob
o poder da morte, e não tivesse ressuscitado dos mortos, não poderia
ter conferido esses dons sobre nós, porque então Ele não teria
existência e, portanto, não poderia ter efetuado nada em nosso favor.
É também por esta razão que essas bênçãos são depositadas em Cristo
pela Divindade, para que Ele nos faça participantes delas: “E da Sua
plenitude todos nós recebemos, e graça sobre graça” (João 1:16). Tampouco
pode parecer estranho que Cristo nos conceda as mesmas bênçãos
que, por Sua morte, obteve da Divindade para nós: pois um homem
pode obter de alguém algo, e pode também o confere a outro. Um
certo homem, por exemplo, pode interceder em nome de outro, junto a
um príncipe, por um presente de mil coroas. O príncipe pode dar o

479 | P á g i n a
pedido por causa daquele que intercede, e pode também conferir o
presente a ele para que possa concedê-lo àquele por quem a
intercessão foi feita. Nesse caso, ele obtém o presente do príncipe e o
confere ao mesmo tempo. Assim é em relação a Cristo. Embora Ele
pudesse ter conferido Seus benefícios sobre nós pelo poder de Sua
Divindade, por meio da qual Ele nos regenera e nos justifica; contudo,
como Deus decretou ressuscitar os mortos pelo homem - pois pelo
homem veio também a ressurreição dos mortos, e julgar o mundo pelo
homem - então Ele também determinou dar esses mesmos dons pelo
homem Jesus, para que Ele pudesse ser e permanecer mediador,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Foi por isso também necessário
que Cristo permanecesse para sempre nosso irmão e nosso cabeça; e
que nós, por outro lado, sendo enxertados nEle por uma fé verdadeira,
podemos sempre sermos Seus membros. “Permaneçais em Mim e Eu em
vós” (João 5:4). Nossa salvação tem seu fundamento na descendência
de Davi, como está escrito: “Meu servo Davi os apascentará para sempre“
(Ezequiel 34:23). Mas se Sua natureza humana tivesse permanecido
sob o poder da morte, não teria sido nosso irmão, nem nós sido Seus
membros.
Objeção. Mas Cristo, sob o Antigo Testamento, antes de Sua
encarnação, conferiu sem Sua natureza humana aos pais as mesmas
bênçãos que Ele agora dá a nós sob o Novo Testamento; e não era
menos mediador antes de assumir nossa natureza, do que é agora,
desde que a assumiu. Portanto, não era necessário que Cristo, por essa
causa, homem se fizesse e morresse. Resposta: Mas não teria sido
possível para Cristo ter feito as coisas que fez sob o Antigo
Testamento, a menos que Ele tivesse se tornado homem
posteriormente, e a menos que Ele também permanecesse assim para
sempre, Nem poderia Ele agora fazer essas coisas se não tivesse
ressuscitado dos mortos, ou se não retivesse para sempre a nossa
natureza que assumiu. “O Pai deu-Lhe autoridade para julgar também,
porque Ele é o Filho do homem” (João 5:27).

480 | P á g i n a
5. Cristo ressuscitou para nossa salvação, e isso em três aspectos: 1.
Para nossa justificação. “Que foi entregue por nossas ofensas e ressuscitado
para nossa justificação” (Romanos 4:25). A ressurreição do mediador foi
necessária para nossa justificação, primeiro, porque Sua satisfação não
teria sido perfeita sem ela, nem a punição que Ele sofreu naquele caso
teria sido finita. E sem tal satisfação e punição não seria possível que
pudéssemos ter sido libertados da morte eterna, da qual Se tornou o
mediador para nos libertar de forma a superá-la inteiramente em nós.
Mas para que Ele pudesse vencer a morte em nós, era necessário que
Ele primeiro a superasse em Si mesmo, e assim cumprisse o que havia
sido predito: “Ó morte, onde está o teu aguilhão? Ó sepultura, onde está a tua
vitória? A morte foi tragada pela vitória” (1 Coríntios 15:55; Oséias 13:14).
Ao fazer isso, Ele confundiu Seus inimigos que o haviam injuriado
quando estava pendurado na cruz, dizendo: “Ele salvou a outros, a Si
mesmo não pode salvar” (Mateus 27:42). E ainda mais: se Ele não tivesse
vencido a morte, não poderia nos dar os benefícios que mereceu para
nós com Sua morte. Pertencia ao ofício de mediador como já
mostramos, tanto para merecer como para dar benefícios. Sim, se Ele
não tivesse ressuscitado dos mortos, não poderíamos saber que Ele
nos havia satisfeito; pois esse seria um argumento certo de que Ele
não havia dado essa satisfação, mas foi vencido pela morte e o jugo do
pecado; porque onde está a morte há pecado; ou, se Ele tivesse feito
satisfação por nós, e ainda assim permanecesse sob o poder da morte,
teria sido inconsistente com a justiça de Deus. Portanto, era necessário
que Cristo ressuscitasse, tanto para que pudesse nos dar satisfação,
quanto para que também soubéssemos que Ele a cumpriu plenamente
e mereceu benefícios para nós; e, finalmente, que Ele mesmo seja
capaz de aplicar esses benefícios a nós, ou o que é a mesma coisa, que
possamos ser perfeitamente justificados e salvos por Seus méritos e
eficácia.

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2. Cristo ressuscitou para nossa regeneração. A justificação ou a
remissão de pecados não é suficiente sem regeneração e uma nova
vida.
3. Cristo ressuscitou para a preservação dos benefícios que Ele
comprou para nós com Sua morte, e para que Ele pudesse assegurar
nossa ressurreição e glorificação. É desta forma que Deus se propôs
eternamente a nos vivificar e glorificar, para que, sendo inseridos no
corpo ou na humanidade de Seu Filho, possamos ser perpetuamente
carregados por Ele e dela obtermos nossa vida. “Por um homem veio a
morte, por um homem também veio a ressurreição dos mortos” (1 Coríntios
15:21). Era por essas razões necessário que Cristo ressuscitasse, isto é,
que Sua alma, que foi separada de Seu corpo pela morte, fosse
novamente unida a Ele; pois a ressurreição nada mais é do que uma
reunião do mesmo corpo com a mesma alma.

IV. QUAIS SÃO OS FRUTOS OU BENEFÍCIOS DA


RESSURREIÇÃO DE CRISTO?
As questões, para que propósito Cristo ressuscitou, e quais são os
frutos de Sua ressurreição, são diferentes. Pois nem todas as causas de
Sua ressurreição são frutos dela. As causas de Sua ressurreição
também são consideradas de uma forma e os frutos de outra. E, além
disso, os benefícios que Cristo garantiu para nós por Sua ressurreição
são as causas disso, na medida em que foi necessário, a fim de que Ele
pudesse conferir esses dons pelo poder de Sua ressurreição.
Os frutos da ressurreição de Cristo são, além disso, duplos, tendo
respeito por Cristo e por nós.
No que diz respeito a Cristo, Ele foi, por Sua ressurreição dentre os
mortos, declarado ser o Filho de Deus, o Filho unigênito e natural de
Deus, que também é Deus (Romanos 1:4). Pois Ele reviveu por Seu
próprio poder, que é peculiar somente a Deus. “Nele estava a vida” (João
1:4); “Assim como o Pai tem vida em Si mesmo, assim deu ao Filho ter vida em
Si mesmo” (João 5:26). E ainda mais, a natureza humana de Cristo, por

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Sua ressurreição, foi adornada com dons celestiais, com imortalidade
e com aquela glória que se torna a natureza do Filho de Deus. “Para
que saibais qual é a suprema grandeza de Seu poder para nós, os que cremos,
de acordo com a operação de Seu grande poder que Ele operou em Cristo,
quando O ressuscitou dos mortos e o colocou à Sua destra em os lugares
celestiais, muito acima de todo principado e poder e poder e domínio, e todo
nome que é nomeado, não apenas neste mundo, mas também naquele que está
por vir; e colocou todas as coisas sob Seus pés, e deu-lhe para ser o cabeça
sobre todas as coisas da Igreja“ (Efésios 1:18-23).
Os frutos da ressurreição de Cristo, que nos dizem respeito, são vários.
Falando de forma geral, pode-se dizer que todos os benefícios da
morte de Cristo são também frutos de Sua ressurreição; pois Sua
ressurreição assegura o efeito que Sua morte foi planejada para ter.
Cristo, por Sua ressurreição, aplica a nós os benefícios que Ele
mereceu para nós. Dessa forma, os benefícios de Sua morte e
ressurreição são os mesmos, a menos que tenham sido merecidos por
nós por Sua morte de forma diferente do que nos foram conferidos
por Sua ressurreição. Não era necessário que o ato de merecimento
continuasse durante todo o período da velha e da nova Igreja. Mas era
diferente com o ato de dar e aplicar esses benefícios. Isso iria
continuar para sempre. E, portanto, era necessário também que o
mediador existisse em todos os períodos da Igreja, para que pudesse
sempre conferir as bênçãos que antes merecia, e que não era possível
conferir sem um mediador. No que diz respeito à Igreja que existia
antes da encarnação de Cristo, o mediador der os benefícios de Sua
morte que ainda não havia acontecido, pelo poder e eficácia de Sua
ressurreição ainda por vir; mas agora Ele confere esses benefícios
sobre nós pelo poder de Sua ressurreição como já tendo acontecido.
Resta agora a nós especificarmos particularmente os principais frutos
que a ressurreição de Cristo nos assegura.

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1. A ressurreição de Cristo testemunha de Seu mérito, de que Ele está
perfeitamente satisfeito por nossos pecados. Um único pecado não
declarado, sob o poder da morte O teria mantido; pois Ele foi lançado
em uma prisão que tornaria inteiramente impossível para Ele escapar
de lá, exceto pagando o último centavo. Mas Ele saiu desta prisão.
Portanto, Ele deve ter pago o último centavo. Em vista agora deste Seu
mérito, temos a remissão de pecados e somos justificados diante de
Deus. A ressurreição de Cristo também nos assegura quanto à
aplicação de Seus benefícios, que Ele não poderia ter conferido se não
tivesse ressuscitado dos mortos; pois, como já mostramos, Ele se
tornou o mesmo mediador, sendo homem, tanto para merecer quanto
para dar dons e, por essa razão, ressuscitar dos mortos. Portanto, na
medida em que Ele ressuscitou, temos a certeza de que Ele não apenas
mereceu, mas também é capaz de nos dar os benefícios de Sua morte;
pois, diz o apóstolo Paulo, “Cristo ressuscitou para nossa justificação”, isto
é, para nos conferir e aplicar Sua justiça (Romanos 4:25).
2. Outro benefício resultante para nós da ressurreição de Cristo, é o
dom do Espírito Santo, por meio do qual Cristo nos regenera e nos
ressuscita para a vida eterna. Coube a Ele primeiro livrar-se da morte
de Si mesmo, e depois de nós; e é necessário que estejamos unidos a
Ele como nosso cabeça, para que o Espírito Santo possa assim vir dEle
para nós. Por isso, Ele agora obtém e nos dá, desde Sua ressurreição
dos mortos, o Espírito Santo e, por meio dEle, a Si mesmo nos une,
regenera e vivifica. É verdade que os piedosos também na Igreja da
antiguidade foram dotados e regenerados pelo Espírito Santo; no
entanto, as influências do Espírito não foram então desfrutadas na
medida em que agora estão sob o Novo Testamento, e isso pelo poder
de Sua ressurreição que ainda estava por vir. O Espírito Santo, por
cuja virtude somente somos regenerados, não poderia ser dado sem a
ressurreição e ascensão de Cristo ao céu. Por isso se diz: “O Espírito
Santo ainda não foi dado, porque Jesus ainda não foi glorificado” (João 7:39).

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3. A ressurreição de nossos corpos é outro fruto da ressurreição de
Cristo. A ressurreição de Cristo é uma promessa nossa, 1. Porque Ele
é nosso cabeça e nós somos Seus membros. Muito de Sua glória como
nosso Senhor depende e resulta da glória e dignidade de Seus
membros. É verdade que Cristo existiria e seria glorioso por Si mesmo,
mesmo que Seus membros permanecessem sob o poder da morte, mas
Ele não seria um cabeça, ou rei, e outras coisas semelhantes, tanto quanto
ninguém pode ser um cabeça sem membros, nem um rei sem um
reino. Cristo, portanto, é cabeça apenas em relação aos Seus membros.
2. Se Cristo ressuscitou, aboliu o pecado; não, entretanto, Seu próprio
pecado, pois Ele estava livre de todo tipo de pecado; mas Ele aboliu o
pecado na medida em que nos diz respeito. E se Ele aboliu nosso
pecado, também aboliu a morte; pois ao remover a causa, Ele, ao
mesmo tempo, removeu o efeito. “O salário do pecado é a morte”
(Romanos 6:23). E, além disso, se Ele aboliu a morte, e que por uma
satisfação suficiente por nossos pecados, como Sua ressurreição
testifica plenamente, então Sua ressurreição é mais seguramente uma
evidência certa e garantia de nossa ressurreição, como tanto quanto é
impossível que continuemos na morte, visto que Cristo deu uma
satisfação plena e suficiente em nosso favor. 3. Como o primeiro Adão
recebeu benefícios para si e para toda a sua posteridade, e perdeu esses
mesmos benefícios para toda a sua posteridade; assim, Cristo, o
segundo Adão, recebeu vida e glória para Si e para nós; e, portanto,
também nos comunicará esta vida e todos os Seus outros dons. 4. Que
a ressurreição de Cristo é uma garantia de nossa ressurreição, também
pode ser inferido do fato de que o mesmo Espírito que habita em nós
habita em Cristo, e também operará em nós o mesmo que operou em
Cristo nosso cabeça. O Espírito é sempre o mesmo em quem quer que
Ele habite. Ele não opera eficazmente na cabeça e dorme nos
membros. Vendo, portanto, que Cristo ressuscitou dos mortos pelo seu
Espírito, Ele também sem dúvida nos ressuscitará. “Se o Espírito dAquele
que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, Aquele que ressuscitou

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Cristo dentre os mortos também vivificará os vossos corpos mortais, pelo Seu
Espírito que habita em vós” (Romanos 8:11). 5. Cristo é nosso irmão e,
portanto, por causa de Seu terno amor e afeição, não nos deixará sob
o poder da morte, especialmente se levarmos em consideração Seu
poder e glória. Pois se Ele ressuscitou depois de morto, muito mais
será capaz de nos ressuscitar, visto que está vivo agora. E se Ele teve
o poder de ressuscitar dos mortos quando existia em um estado de
humilhação, muito mais Ele pode agora nos ressuscitar, visto que Ele
reina gloriosamente à destra do Pai.
Existem, no entanto, além desses três, outros frutos que a ressurreição
de Cristo nos assegura, tais como os seguintes:
4. A ressurreição de Cristo confirma suas reivindicações ao
messianismo, visto que há em sua ressurreição um cumprimento mais
completo e exato de várias profecias.
5. Temos a garantia da ressurreição de Cristo, que Ele agora
desempenha as diferentes partes do ofício de mediador, que Ele aplica
a nós o benefício da redenção, que Ele nos preserva constantemente
na justiça que Ele transferiu para nós, que Ele começa uma nova vida
em nós, e assim nos confirma quanto à consumação da vida eterna, o
que Ele não poderia fazer se não tivesse ressuscitado dos mortos.
6. Vendo que Cristo agora vive e reina para sempre, podemos estar
certos de que Ele preservará e defenderá sua Igreja.
7. O último, embora não menos importante, benefício resultante da
ressurreição de Cristo, é a consumação de todos os seus benefícios e
a glorificação da Igreja. Foi por esta razão que Cristo morreu,
ressuscitou e nos libertou perfeitamente do pecado, para que pudesse
nos fazer herdeiros com Ele em Seu reino e glória. “Ele é o primogênito
dos mortos” (Colossenses 1:18); “Herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo”
(Romanos 8:17). Ele nos conformará a Si mesmo, porque tanto Ele
como nós vivemos pelo mesmo Espírito. E este Espírito não é
diferente de Si mesmo. Pois “se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus

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dentre os mortos, habita em vós, Aquele que ressuscitou (...)” (Romanos 8:11);
“Voltarei e vos receberei para Mim, para que onde Eu estiver, vós também
estejais” (João 14:3).
A totalidade do que agora dissemos a respeito dos frutos da
ressurreição de Cristo é esta: vendo que Ele ressuscitou dos mortos, é
evidente que Ele é declarado Filho de Deus e que Sua humanidade é
dotada de aquela glória que se torna a natureza do Filho de Deus; e
também que Ele nos dá Sua justiça, pela influência de Seu Espírito
nos regenera e aperfeiçoará a nova vida que Ele iniciou em nós, e nos
fará participantes de Sua glória, felicidade e vida eterna.
Objeção 1. A ressurreição de Cristo, conforme o que foi dito, não pode
ser um argumento a favor da ressurreição dos ímpios, nem a causa
dela, visto que Eles não são membros de Cristo. Portanto, os ímpios
não se levantarão. Resposta: Os ímpios não ressuscitarão por causa da
ressurreição de Cristo, mas por outras causas, a saber: por causa do
julgamento justo de Deus, pelo qual serão ressuscitados dos mortos,
para que possam ser eternamente punidos. Pois pode haver em relação
à mesma coisa muitos efeitos e diferentes causas.
Objeção 2. Mas as coisas que foram especificadas são os benefícios de
Sua morte e não podem, portanto, ser consideradas como os frutos de
sua ressurreição. Resposta: Eles são benefícios de Sua morte na
medida em que Ele os mereceu com Sua morte; e eles são os frutos de
Sua ressurreição pela manifestação que Ele fez deles; pois Ele declarou
por Sua ressurreição que havia comprado esses dons para nós. Ao sair
da punição sob a qual foi colocado, Ele declarou que havia se satisfeito
totalmente por nossos pecados. E eles são ainda mais os frutos de Sua
ressurreição pela aplicação que Ele faz deles, tendo ressuscitado. Ele
sendo rico tornou-se pobre, e sendo pobre tornou-se rico novamente,
para que nos tornássemos ricos (2 Coríntios 8:9).

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Objeção 3. A causa é antes do efeito. Mas a causa desses benefícios,
que aqui se diz ser a ressurreição de Cristo, não foi antes da
justificação dos pais e da ressurreição dos santos no Antigo
Testamento. Portanto, o efeito, que abrange esses benefícios, não pode
ser anterior à própria causa. Resposta: Negamos a proposição menor;
pois embora a causa não existisse quanto à sua conclusão, existia no
conselho de Deus, e como respeita Sua eficácia e virtude, mesmo sob
a dispensação do Antigo Testamento: porque mesmo então os pais
foram recebidos no favor divino, e desfrutaram, até certo ponto, da
influência do Espírito Santo e de outros dons, para e pelo mediador,
que deveria vir ao mundo, ser glorificado e se humilhar.
Qual é então o significado deste artigo do credo: “Eu creio em Cristo, que
ressuscitou dos mortos no terceiro dia?”. Isso significa que creio: 1. Que
Cristo realmente chamou Sua alma ao corpo que estava morta, e a
vivificou. 2. Que Ele reteve uma alma e um corpo verdadeiros; e que
ambos estão agora glorificados e livres de toda enfermidade. 3. Que
ressuscitou por Sua própria virtude e poder divinos. 4. Que ressuscitou
com o propósito de nos tornar participantes da justiça, santidade e
glorificação que comprou para nós.

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18º DIA DO SENHOR

A ASCENSÃO DE CRISTO

Questão 46. Como você entende estas palavras: “Ele ascendeu ao


céu?”
Resposta: Que Cristo, à vista de Seus discípulos, foi elevado da
terra ao céu; e que Ele permanece lá para nosso proveito, até que
volte para julgar os vivos e os mortos.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 46

A ascensão de Cristo ao céu é um translado visível, local e real de Seu


corpo e alma da terra para aquele céu, que está acima de todos os céus
visíveis à destra de Deus, naquela luz que é inacessível, onde Ele está
agora, e permanece, e a partir do qual Ele virá a julgamento. Nisto,
como no artigo da ressurreição de Cristo, há duas coisas que chamam
nossa atenção principalmente: sua história e seus frutos.
Ao falar da história da ascensão de Cristo, as seguintes coisas devem
ser consideradas:
1. Quem ascendeu? A mesma pessoa que sofreu e ressuscitou.
2. De acordo com o que Ele ascendeu? De acordo com Sua natureza
humana.
3. Para onde Ele ascendeu? Até o céu, acima desses céus visíveis.
4. Por que auxílio ou meios? Pelo poder peculiar de Sua Divindade.
5. Com que propósito Ele ascendeu? Para que seja nosso cabeça e sumo
sacerdote no céu.

489 | P á g i n a
6. Como Ele ascendeu? Visivelmente, e enquanto Seus discípulos O
estavam contemplando, por uma verdadeira e local elevação ou
ascensão gradual de Seu corpo da terra ao céu.
7. Quando Ele ascendeu? No 40º dia após Sua ressurreição.
8. De que lugar Ele ascendeu? De Betânia, no Monte das Oliveiras.
Falaremos dos frutos de Sua ascensão quando tratarmos da 49º
questão do catecismo.
Todas as questões que aqui propomos em relação à ascensão de Cristo,
podem ser reduzidas ao seguinte:
I. Para onde Cristo ascendeu?
II. De que forma?
III. Para qual propósito?
IV. Em que difere a ascensão de Cristo da nossa?
V. Quais são os frutos de sua ascensão?

I. PARA ONDE CRISTO ASCENDEU?


Depois de Cristo ter dado muitas provas infalíveis aos Seus apóstolos
de Sua ressurreição dentre os mortos e de Sua verdadeira humanidade,
Ele ascendeu ao céu, aos olhos de Seus discípulos, no 40º após Sua
ressurreição, quando estava com eles em Betânia. O termo céu tem,
como é usado nas Escrituras, três significados. Significa, primeiro, o
ar. “Eis as aves do céu” (Mateus 6:26). Em segundo lugar, significa a
região etérea além, incluindo as esferas celestiais. “Quando considero os
teus céus, a obra dos Teus dedos, a lua e as estrelas (...)” (Salmos 8:3). “Ele
subiu muito acima de todos os céus” (Efésios 4:10), isto é, esses céus
visíveis. Em terceiro lugar, significa o lugar do bem-aventurado, que é
aquele espaço imenso, brilhante, claro e glorioso que está fora e acima
deste mundo, e desses céus visíveis, a morada de Deus e dos bem-
aventurados, na qual Deus se manifesta imediata e gloriosamente por
toda a eternidade, e Se comunica aos anjos e aos benditos homens, e

490 | P á g i n a
onde o assento de nossa bem-aventurança é preparado com Cristo e
espíritos santos. É neste céu que se diz que Deus habita; não que Ele
esteja contido ou circunscrito em algum lugar, mas porque é ali que
Ele especialmente se manifesta e comunica Sua glória aos anjos e aos
homens abençoados. É chamado nas Escrituras o novo mundo, o novo
céu, a Jerusalém celestial, o Paraíso, o seio de Abraão, e outros termos
semelhantes. Este céu não está em todos os lugares, mas acima, e
separado da terra e do inferno. “Entre nós e vós existe um grande abismo;
de forma que aqueles que passariam daqui para vós não conseguem, nem
podem passar para nós os que viriam de lá” (Lucas 16:26); “O céu é Meu trono,
e a terra é meu estrado” (Isaías 66:1). Foi neste céu que Elias foi levado.
A partir disso, o Espírito Santo veio no dia de Pentecostes. Paulo o
chama de terceiro céu. É neste terceiro significado que devemos
entendê-lo, quando usado para expressar o lugar ao qual Cristo
ascendeu.
Cristo ascendeu, portanto, naquele céu que é a morada dos bem-
aventurados. Isso é estabelecido por muitos e expressa testemunhos
da Palavra de Deus, como o próprio Diabo nunca, por toda a
eternidade, será capaz de perverter. “Enquanto eles viam que Ele foi
arrebatado, e uma nuvem o recebeu fora de sua vista. E enquanto eles olhavam
fixamente para o céu, enquanto Ele subia, eis que dois homens estavam ao lado
deles em trajes brancos; os quais também diziam: homens da Galileia, por que
estais olhando para o céu? Este mesmo Jesus, que vos foi elevado ao céu, virá
assim como vós o vistes ir para o céu“ (Atos 1:9, 10, 11); “Na casa de Meu Pai
há muitas moradas (...)”, isto é, muitas casas nas quais podemos morar e
habitar. “(...)Irei preparar um lugar para vós” (João 14:2); “Ele foi separado
deles e elevado ao céu” (Marcos 16:19); “Ele foi recebido no céu” (Lucas 24:51);
“Estêvão viu os céus abertos, e o Filho do homem em pé à destra de Deus” (Atos
7:56); isto é, ele viu com seus olhos corporais, aos quais foi divinamente
dada uma nova visão ou visão, além e através de todos os céus visíveis,
Cristo na mesma natureza humana na qual ele se humilhou e apareceu

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na forma de um servo. “Buscai as coisas que estão acima, onde Cristo está
assentado à direita de Deus” (Colossenses 3:1); “Ele ascendeu muito acima
de todos os céus” (Efésios 4:10); Temos um grande sumo sacerdote que foi
levado aos céus” (Hebreus 4:14); “Feito mais alto que os céus” (Hebreus 7:26);
“Cristo entrou no próprio céu, agora para aparecer na presença de Deus por
nós (Hebreus 9:24);” “Nossa cidadania está no céu, de onde também
procuramos o salvador, o Senhor Jesus” (Filipenses 3:20).
Objeção. Mas nossa cidadania, à qual se faz referência na última
passagem citada, é na terra. Portanto, o céu está na terra. Resposta:
Nossa cidadania está no céu, primeiro: na esperança e certeza que
temos dela; e em segundo lugar, no início, temos dessa vida celestial.
Neste céu, portanto, que é a morada de Deus e dos bem-aventurados,
Cristo ascendeu, e agora está lá, e virá de lá para julgar o mundo de
acordo com o testemunho da Palavra de Deus.
Deus quer que saibamos a que lugar Cristo ascendeu, 1. Para que seja
manifesto que Ele continua homem verdadeiro, e não desapareceu,
mas permanece e continuará para sempre o mesmo homem no céu. 2.
Para que possamos saber para que lugar nossos pensamentos devem
ser dirigidos e para onde devemos ir em nossas afeições a ele, a fim de
evitar todas as formas de idolatria. 3. Para que possamos conhecer
nossa casa, ou a casa para a qual Cristo nos trará e na qual
habitaremos com Ele.

II. DE QUE MANEIRA CRISTO ASCENDEU AO CÉU?


Cristo ascendeu ao céu, 1. De acordo com Sua natureza humana. “Mas
a mim, nem sempre (...)” (Mateus 26:11).
Objeção. Aquele que está sempre no céu não subiu para lá. O Filho
do homem estava no céu. Portanto, Ele não subiu para lá. Resposta:
Admitimos que Aquele que está sempre no céu não ascendeu para lá
de acordo com Sua natureza divina, pois isso já estava no céu antes
de Sua ascensão. Como quando Cristo estava na terra, Sua natureza

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divina não deixou, por isso, o céu, assim, quando Ele está agora no céu,
Sua divindade não se afasta, por isso, de nós. Cipriano diz: “O Senhor
subiu ao céu, não onde o Verbo de Deus não estava antes, porque Ele sempre
esteve no céu e permaneceu no Pai; mas onde o Verbo feito carne não se
assentou antes”. A isso se objeta: aquilo que desceu também ascendeu.
Sua Divindade desceu. Portanto, Ele também ascendeu. Resposta: A
forma de discurso aqui usada não deve ser entendida em seu sentido
próprio; pois quando se diz que Sua Divindade desceu, isso significa
que ela se manifestou localmente, onde antes não havia se
manifestado.
2. Ele ascendeu local e fisicamente, ou seja, Ele realmente passou de
um lugar para outro. Ele removeu Sua natureza humana de um lugar
inferior para um superior, mesmo no céu, por uma transferência ou
mudança que era real e apropriada; o que não teria sido possível para
Ele ter feito, se Ele estivesse em todo o corpo. Que Cristo realmente
ascendeu localmente é provado por estas declarações das Escrituras:
“Mas [quanto] a Mim, nem sempre estareis convosco” (João 12:8); “Se Eu não
for embora, o Consolador não virá até vós” (João 6:62); “Deixo o mundo e vou
para o Pai” (João 16:7); “O que, e se virdes o Filho do homem subir onde estava
antes” (João 16:28); “Buscai as coisas que estão acima, onde Cristo está
assentado à destra de Deus” (Colossenses 3:1); “Até o dia em que foi
arrebatado, e uma nuvem o recebeu fora de sua vista” (Atos 1:2, 9).
3. Cristo ascendeu ao céu visivelmente; pois a ascensão de Seu corpo
ao céu era evidente à vista de Seus discípulos, que eram testemunhas
disso. “Enquanto eles olhavam, Ele foi levado” (Atos 1:9). Ele foi arrebatado
até que não puderam mais vê-lo. Eles O viram subindo até que uma
nuvem O recebeu fora de sua vista.
4. Ele ascendeu por Seu próprio poder, isto é, por Sua Divindade, pela
qual também ressuscitou dos mortos. “Eu subo para Meu Pai” (João
20:17); “Eu prepararei um lugar para vós” (João 14:3); “Portanto, sendo
exaltado pela destra de Deus” (Atos 2:33).

493 | P á g i n a
5. Ele ascendeu no 40º após Sua ressurreição. E alguém pergunta: por
que Ele ascendeu no 40º dia? Por que não antes ou imediatamente
após Sua ressurreição? Nós respondemos que Ele retardou Sua
ascensão tanto para que pudesse nos dar provas infalíveis de Sua
ressurreição e da verdade de Sua humanidade. “A quem também se
manifestou vivo, depois de Sua paixão, por muitas provas infalíveis” (Atos
1:3). E, também, para que Ele pudesse dar instruções aos Seus
discípulos em relação ao Seu reino - relembrar à Sua memória as
coisas que Ele tinha falado a eles antes de Sua morte, e acrescentar
outras - e poderia, assim, não apenas estabelecer a eles, mas nós
também na verdade de Sua ressurreição e humanidade. “Sendo visto por
eles quarenta dias, e falando das coisas pertencentes ao reino de Deus” (Atos
1: 3.)
6. Ele ascendeu para não retornar antes do dia do julgamento. “Este
mesmo Jesus virá da mesma forma que vocês O viram entrar no céu” (Atos
1:11); “Eu voltarei e Te receberei para Mim mesmo” (João 14:8); “Vós anunciais
a morte do Senhor até que Ele venha” (1 Coríntios 11:26); “Quem os céus
devem receber até os tempos de restituição de todas as coisas” (Atos 3:21).
Objeção 1. Não há lugar além do céu. Portanto, a ascensão de Cristo
não é uma tradução local. Resposta: Além dos céus não há lugar
natural, ou como Aristóteles define ser superficies continentis cedentis
contento; mas existe um lugar metafísico, sobrenatural ou celestial; mas
o que, ou que tipo de lugar é, não somos capazes de entender pelo
conhecimento que agora temos. Porém, saber e crer que exista tal
lugar nos basta, de acordo com estas declarações da Escritura:
“Preparar-vos-ei um lugar para ti; voltarei e te receberei para mim, que onde
eu estou, aí vós também podeis estar“ (João 14:2, 3); “E para onde Eu vou, vós
sabeis” (); “Pai, desejo que também aqueles que me deste, estejam comigo onde
eu estou” (João 17:24); “Ele foi levado para cima” (Atos 1:2); “Buscai as
coisas que estão acima, onde Cristo está assentado à destra de Deus”
(Colossenses 3:1). “Nossa cidadania é no céu, de onde também buscamos o

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salvador , o Senhor Jesus” (Filipenses 3:20). Estas e outras declarações das
Escrituras ensinam que o céu para o qual Cristo ascendeu e que está
acima esses céus visíveis, é realmente um lugar; para as partículas
acima, onde e onde transmitem a ideia de lugar. Deste lugar,
entretanto, Aristóteles era ignorante, e não cria nisso, porque ele era
ignorante das Escrituras.
A isso os ubiquitarianos respondem: portanto, Cristo foi transladado
de um lugar para aquele que não é lugar. E com base nisso a seguinte
objeção: aquilo que não está em nenhum lugar está em toda parte.
Cristo não está em nenhum lugar, porque ascendeu acima e além dos
céus visíveis, além dos quais não há lugar. Portanto, Ele está em toda
parte. Resposta: Negamos a proposição principal, que afirma que estar
em todo lugar que não está em nenhum lugar; pois se isso fosse
verdade, o céu mais elevado estaria em toda parte; pois não está em
nenhum lugar; e ainda assim não está em toda parte. Novamente, a
proposição menor é verdadeira para um lugar natural; pois Cristo foi
arrebatado onde não há lugar natural, e agora não está em tal lugar
natural; mas é falso se se referir a um lugar metafísico, sobrenatural,
que de fato contém, mas não está contido em qualquer coisa pela qual
é circunscrito. É em um lugar como este, que está além dos céus
visíveis, que Cristo está agora, de acordo com as Escrituras. E ainda
mais: que a natureza humana de Cristo é finita e não em todos os
lugares, pode ser inferido do fato de que foi removida por Sua
ascensão de um lugar para outro, ou para aquele que não é lugar, por
favor, porque faz, mas pouca diferença qual termo usamos; pois estar
em toda parte e mudar de lugar envolve uma contradição. É também
por esta razão que sua Divindade, a única que é infinita, eterna e em
toda parte, não muda de lugar.

495 | P á g i n a
Mas aqui os ubiquitarianos buscam refúgio para que não sejam feridos
por este dispositivo, ou para que sua posição não seja refutada por
este argumento: aquilo que muda de lugar não está em toda parte. O
corpo de Cristo muda de lugar. Portanto, não está em todo lugar. Eles
concebem a verdade da proposição principal deste silogismo,
tomando as palavras, no entanto, em um sentido diferente daquele
que é seu significado apropriado, a saber, que o corpo de Cristo está
em toda parte, segundo a forma de majestade; e que muda de lugar à
forma de um corpo natural. Mas eles não evitam, com essa objeção, a
contradição em que sua posição os envolve. Pois quando uma
fraseologia diferente é empregada com o propósito de remover uma
contradição, ela não deve expressar a mesma coisa que aquela que é
predicada, pois se o faz, é uma mera tautologia e uma petição de
princípio; como se eu, imitando-os, dissesse: O ar é leve, pois respeita
a forma da luz; e é escuro no tocante à forma das trevas. Novamente,
ele é pobre à semelhança da pobreza; e rico à forma das riquezas. De
acordo com esta forma de discurso, a mesma coisa é afirmada da
mesma coisa; pois o tipo de pobreza não é nada diferente da pobreza,
e o estilo de riqueza nada mais é que riquezas. Portanto, agora é com
a forma de fala que os ubiquitarianos usam em relação à proposição
principal do silogismo agora sob consideração; expressa a mesma
coisa com as palavras que eles devem explicar e, portanto, não remove
a contradição. O corpo de Cristo, eles afirmam, está em toda parte
segundo a forma de majestade. Sendo questionados sobre o que eles
querem dizer com majestade, eles respondem que é onipotência e
imensidão. Dizer, portanto, que o corpo de Cristo está em toda parte,
uma vez que respeita a forma de majestade, e não como respeita a
forma de um corpo natural, nada mais é, de acordo com seu próprio
significado dos termos, do que o corpo de Cristo está em toda parte
no toante à forma da imensidão, e não está em toda parte segundo a
forma da finitude. Por meio dessa distinção, eles imaginam que
removem a contradição na qual são trazidos por sua própria falsa

496 | P á g i n a
posição; mas é um pobre triunfo o que eles alcançaram. Pois qual é a
forma da imensidão, senão a própria imensidão; de forma que
imensidão e ser imenso são predicados da mesma coisa. Por isso, como
é contraditório dizer da mesma coisa, que ela está em toda parte e
muda de lugar, ou não está em toda parte; portanto, também é uma
contradição afirmar que o mesmo corpo é imenso e finito; ou que a
imensidão e a finitude pertencem à mesma coisa; ou que o mesmo
corpo está em toda parte, ou imenso no que respeita à forma de
imensidão ou majestade; e que não está em toda parte, mas muda de
lugar e é finito, segundo a forma da finitude, ou de um corpo natural.
Isso, portanto, o que já provamos é manifesto, que Cristo ascendeu
localmente. Portanto, este artigo deve ser entendido como uma
ascensão local ao céu.
Objeção 2. Os opostos devem sempre ser explicados da mesma forma,
para que a oposição não seja perdida. Os artigos, “Ele ascendeu ao céu”
e “desceu ao inferno”, são opostos um ao outro. Portanto, como o artigo
da descida de Cristo ao inferno é considerado figurativamente, como
expressão do último grau de Sua humilhação, o artigo de Sua ascensão
deve ser entendido figurativamente, expressando a maior majestade, e
não de qualquer movimento local. Resposta: respondemos à
proposição principal fazendo uma distinção. Os opostos devem ser
explicados da mesma forma, a menos que a explicação assim dada
entre em conflito com os artigos de fé e com outras partes das
Escrituras. Mas aqui haveria tal conflito: pois as Escrituras explicam
este artigo como ensinando uma ascensão local. “Ele virá da mesma
forma que vocês o viram entrar no céu” (Atos 1:11). Mas o artigo da descida
de Cristo ao inferno, a Escritura entende uma descida espiritual, como
mostramos ao discorrer sobre isso. E não apenas isso, mas a analogia
da fé requer tal interpretação de cada artigo. Novamente, negamos a
proposição menor; pois esses dois artigos não são opostos. A ascensão
de Cristo ao céu não é o mais alto grau de Sua glória, pois Sua descida

497 | P á g i n a
ao inferno é o último grau de Sua humilhação. O mais alto grau da
glória de Cristo é Sua posição à destra do Pai. Portanto, concebemos
a verdade da proposição principal se ela for referida a Cristo sentado
à destra de Deus, o Pai; pois o artigo de Sua descida ao inferno é o
oposto disso. As Escrituras também interpretam figurativamente esses
dois artigos, da descida de Cristo ao inferno e de Sua posição à destra
do Pai. Por último, se a ascensão de Cristo deve ser entendida como
colocando Suas duas naturezas em uma igualdade, todos os outros
artigos relativos à Sua verdadeira humanidade seriam totalmente
destruídos.
Os dois outros sofismas dos ubiquitarianos contra a verdadeira
ascensão de Cristo são propostos nas seguintes questões do catecismo.
A explicação deles será, portanto, continuada, após o que os assuntos
restantes, no tocante às causas e frutos de Sua ascensão, serão
expostas.

498 | P á g i n a
Questão 47. Não está Cristo então conosco, até o fim do mundo,
como Ele prometeu?
Resposta: Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus; com
respeito à Sua natureza humana, Ele não está mais na terra; mas
com respeito a Sua divindade, majestade, graça e Espírito, Ele
nunca está ausente de nós.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 47

Essa questão antecipa uma objeção por parte dos ubiquitarianos:


Cristo prometeu que estaria sempre conosco, até o fim do mundo.
Portanto, Ele não ascendeu ao céu a ponto de não estar mais na terra
e em todos os lugares por sua humanidade. Resposta: Há aqui mais na
conclusão do que se segue legitimamente das premissas. Cristo fala
de Sua pessoa, à qual atribui aquilo que pertence com propriedade à
Divindade, assim como também disse que estava no céu antes de Sua
ascensão. Da mesma forma, Ele disse antes de Sua paixão, quando
ainda conversava com Seus discípulos na terra: “Eu e meu Pai viremos a
Ele e faremos nele morada” (João 14:23). Isso Ele falou de Sua divindade
pela qual Ele era, e está no céu e em todos os lugares, e pela qual Ele
está presente conosco da mesma forma que o Pai está. Portanto,
podemos também virar o argumento contra eles raciocinando assim:
“Eu vou embora” (João 14:28), disse Cristo. “Eu deixo o mundo” (João 16:28);
“A mim, nem sempre” (Mateus 26:11). Portanto, Ele evidentemente não
está conosco. Mas isso é atribuído em um sentido impróprio à Sua
outra natureza, Sua humanidade, que permanece conosco em virtude
daquela união pessoal que existe entre as duas naturezas de Cristo,
Sua divina e humana, união essa que consiste na misteriosa e
maravilhosa união indissolúvel juntos dessas duas naturezas em uma
pessoa, de tal forma que essas duas naturezas, assim unidas,
constituem a essência da pessoa de Cristo; de forma que uma natureza
seria destruída se separada da outra; e, no entanto, cada uma retém

499 | P á g i n a
suas propriedades peculiares, que a distinguem da outra. A explicação
que Agostinho realiza sobre este assunto é a seguinte: “Aquilo que Cristo
diz: eis que estou sempre convosco, até ao fim do mundo, segundo a Sua
majestade, providência e graça indizível se cumpre. Mas com respeito à
natureza humana que o Verbo assumiu, segundo a qual nasceu da virgem
Maria, visto pelos judeus, pregado na cruz, retirado da cruz, envolto em pano
de linho, sepultado no sepulcro, e que foi visto depois de Sua ressurreição, no
que diz respeito a esta Sua humanidade, nem sempre o tereis convosco. E por
quê? Porque, quando Ele conversou com Seus discípulos pelo espaço de
quarenta dias, estando fisicamente presente com eles, e quando eles O
acompanharam, para ver, não para segui-lo, Ele subiu ao céu, e não está mais
aqui. Pois Ele está agora no céu, sentado à destra de Deus; e está aqui quanto
à presença de Sua majestade, que não se afastou de nós. Ou, pode ser assim
expresso: Cristo está sempre presente conosco. com respeito a Sua majestade;
mas, no que se refere à presença de Sua humanidade, foi verdadeiramente dito
aos Seus discípulos: Nem sempre estarei convosco. A Igreja desfrutou de Cristo
apenas alguns dias, pois respeita a presença de Sua humanidade; agora o
contempla apenas pela fé, e não o vê com os olhos naturais”. Cristo, portanto,
está presente conosco, 1. Por Seu Espírito e Divindade. 2. Por nossa fé
e pela confiança com que o contemplamos 3. Pelo amor mútuo, porque
o amamos, e Ele nos ama de tal forma que não nos esquece. 4. Pela
união com a Sua natureza humana, pois é o mesmo Espírito que está
em nós e nEle que nos une nós a Ele. 5. Na esperança da consumação,
que é a esperança certa de ir termos para com Ele.

500 | P á g i n a
Questão 48. Mas se Sua natureza humana não está presente onde
quer que Sua divindade esteja, então essas duas naturezas em
Cristo estão separadas uma da outra?
Resposta: De forma nenhuma; pois, uma vez que a Divindade é
incompreensível e onipresente, deve necessariamente seguir-se que
a mesma não está limitada à natureza humana que Ele assumiu, e
ainda assim permanece pessoalmente unida a ela.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 48

Esta questão contém outro argumento, ou objeção, que os


ubiquitarianos costumam insistir. As duas naturezas, dizem eles, que
se encontram na pessoa de Cristo, são unidas por uma união
inseparável. Portanto, onde quer que esteja a Divindade de Cristo, a
Sua humanidade também deve necessariamente estar. Resposta: Essas
duas naturezas são unidas de tal forma que as propriedades de cada
uma permanecem distintas. Não há, portanto, nenhuma mudança de
uma para a outra, o que seria o caso, se ambas fossem infinitas e
estivessem em todos os lugares.
A esta resposta eles se opõem às seguintes objeções:
1. Onde há duas naturezas, uma das quais não está onde a outra está,
elas estão separadas uma da outra e não permanecem pessoalmente
unidas. Na pessoa de Cristo existem duas naturezas que permanecem
pessoalmente unidas. Portanto, a natureza humana de Cristo deve
necessariamente estar onde quer que sua Divindade esteja, ou então
essa união será destruída. Resposta: A proposição principal é
verdadeira se for entendida por duas naturezas que são iguais, isto é,
que são igualmente finitas, ou infinitas: mas é falsa se tiver referência
a duas naturezas que não são iguais, se uma, por exemplo, for finita e
a outra infinita. Pois uma natureza que é finita não pode estar ao
mesmo tempo em muitos lugares; mas a que é infinita pode ser inteira

501 | P á g i n a
no finita e, ao mesmo tempo, ser completa sem ela; e isso podemos
considerar como sendo o caso em relação a Cristo. Sua natureza
humana, que é finita, está em apenas um lugar; mas Sua natureza
divina, que é infinita, está em Sua natureza humana, e sem ela, e por
isso em todos os lugares.
2. Deve, no entanto, pelo menos, haver uma separação entre essas
naturezas em Cristo, onde a natureza humana não está, embora essa
separação possa não ser onde está. Resposta: De forma nenhuma;
porque a Divindade é completa, e a mesma na natureza humana, e
sem ela, de acordo com o que Gregório Nazianzeno disse: “A Palavra
está em Seu próprio templo e em todo lugar; mas está de forma especial em Seu
próprio templo”.
3. Mas se a natureza humana de Cristo não é dotada de propriedades
divinas, segue-se que não há diferença entre Ele e os santos; pois não
pode haver diferença entre Cristo e Pedro, a menos que seja na
igualdade de Sua natureza humana com Sua divina. Resposta: O
antecedente é falso, porque há uma variedade de distinções entre
Cristo e os santos, além daquela a que se faz referência aqui.
4. A diferença entre Cristo e os santos é ou na substância, ou nas
propriedades e dons. Não é em substância, porque toda a Divindade
habita tanto nos santos como em Cristo. Portanto, está em
propriedades e presentes. Resposta: Negamos que a diferença que
existe entre Cristo e os santos seja em substância, ou em propriedades
e dons; porque esta enumeração não é suficientemente completa. Há
uma terceira diferença, que não é mencionada aqui, que é a união
misteriosa e pessoal das duas naturezas, a divina e a humana, que está
em Cristo, mas não em Pedro ou em qualquer um dos santos. Em
Cristo habita corporalmente toda a plenitude da Divindade, de tal
forma que Cristo-homem é Deus e Cristo-Deus é homem; mas não se
pode dizer que a Divindade habita assim em Pedro ou em qualquer
um dos santos.

502 | P á g i n a
5. Mas é dito: “Deus Lhe deu um nome que está acima de todo nome”
(Filipenses 2:9). Resposta: Ele lhe deu este nome junto com Sua
Divindade, isto é, em virtude da união pessoal das duas naturezas que
se encontram em Cristo, e não em virtude de qualquer igualdade
dessas naturezas. Pois assim como a Divindade é dada a Cristo,
também o são as propriedades dela.
Os ubiquitarianos, que defendem essas objeções, são culpados desses
três erros mais pestilentos, ou podem, pelo menos, ser considerados
como apegados aos pontos de vista que sustentam em relação a este
assunto. 1. Com Nestório eles separam as naturezas em Cristo, na
medida em que substituem a união dessas naturezas, a igualação, ou
a operação, e operação de uma pela outra: para duas coisas, dois
espíritos e duas naturezas podem ser iguais, ou atuem mutuamente
através dos outros, mesmo sem união pessoal. 2. Com Eutíquio57 eles
confundem e combinam essas naturezas, na medida em que as tornam
iguais. 3. Eles tiram de nós os dispositivos com as quais nos opomos
e refutam as heresias ariana e sabeliana; pois eles enfraquecem as
provas de todas as porções das Escrituras que atestam a Divindade de
Cristo, tentando estabelecer a partir delas a igualdade de Sua natureza
humana com sua natureza divina.

III. PARA QUAL PROPÓSITO CRISTO ASCENDEU AO CÉU?


Cristo ascendeu ao céu para Sua própria glória e para a glória de Seu
Pai. Era apropriado e necessário que Ele tivesse um reino celestial.
Portanto, não era conveniente que permanecesse na terra. “Aquele que
desceu é também o mesmo que subiu muito acima de todos os céus, para
cumprir todas as coisas” (Efésios 4:10); “Por isso Deus também O exaltou
sobremaneira, e Lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que toda
língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai”
(Filipenses 2:9, 11). Também pertencia e era apropriado que Cristo, que

57 Bispo de Constantinopla, que foi condenado pela heresia monofisista.

503 | P á g i n a
é o cabeça, fosse glorificado com excelência e superioridade de dons
acima de todos os membros, que não poderiam ter teria sido o caso
se Ele tivesse permanecido na terra. E ainda mais, Cristo ascendeu
para nosso benefício, e isso nestes três aspectos.
1. Para que Ele pudesse fazer intercessão por nós no céu. “Quem é
mesmo à destra de Deus, que também faz intercessão por nós” (Romanos
8:34). Ele intercede por nós, primeiro, pelo valor do Seu sacrifício, já
oferecido em nosso favor, que é tão grande que o Pai deve, por isso,
em Sua graça nos receber. Em segundo lugar, por Sua própria vontade,
pela qual Ele continuamente deseja, que o Pai nos receba em graça
diante de Si e na lembrança daquele sacrifício que Ele realizou em
Seu próprio corpo. Em terceiro lugar, pelo consentimento do Pai,
aprovando a vontade e desejo do Filho, aceitando o valor de Seu
sacrifício, como uma satisfação suficiente por nossos pecados, e junto
com o Filho em Sua graça nos recebendo. É fazendo intercessão por
nós dessa forma que Cristo aplica a nós os benefícios e méritos de Sua
morte. E toda a glorificação do mediador, consistindo em Sua
ressurreição, ascensão e assentar-se à destra do Pai, foi necessária para
que esta aplicação pudesse ser feita a nós. Mas alguém pode, talvez,
estar pronto para objetar e dizer; mas Cristo já intercedeu por nós
quando estava na terra? A isso respondemos que a intercessão que
Cristo fez na terra dizia respeito ao que ainda era futuro; pois foi feito
com a condição de que o mediador, depois de haver feito Seu sacrifício
na terra, aparecesse para sempre no santuário nas alturas.

504 | P á g i n a
2. Para que também possamos ascender e ter certeza disso. O próprio
Cristo diz no evangelho de João: “Preparar-vos-ei um lugar” (João 14:3);
“Na casa de meu Pai há muitas moradas” (João 14;2)58, isto é, lugares para
se morar para sempre; pois Ele fala de nossa continuação ali. Cristo
ascendeu; portanto, nós também ascenderemos. Esta conclusão é
apropriada e convincente; porque Cristo é o cabeça e nós os membros;
Ele também é o primogênito dentre muitos irmãos.
3. Para que Ele envie o Espírito Santo e por meio dEle congregue,
console e defenda Sua Igreja, até o fim do mundo. Por isso Ele diz: “Se
Eu não for embora, o Consolador não virá até vós” (João 16:7); “Que [o
Espírito Santo] seja derramado sobre nós abundantemente por Jesus Cristo
nosso Senhor” (Tito 3:6).
Objeção. Ele deu o Espírito Santo antes e depois de Sua ressurreição.
Portanto, Ele não ascendeu com o propósito de enviá-lO. Resposta:
Ele tinha, de fato, dado o Espírito Santo antes de Sua ascensão ao céu,
mas não em efusões tão copiosas como no dia de Pentecostes. E todas
as influências do Espírito foram dadas à Igreja desde o início do
mundo, foram dadas por causa de Cristo, que deveria se manifestar na
carne, e então reinaria em Sua natureza humana, e derramou sobre
nós abundantemente o Espírito Santo. Consequentemente, o Espírito
Santo, por causa do decreto de Deus, não foi dado em tão grande
medida antes da ascensão de Cristo; porque Deus determinou efetuar
ambos pelo homem glorificado. A missão do Espírito Santo foi a parte
principal da glória de Cristo. Portanto, é dito em João 7:39: “O Espírito
Santo ainda não foi dado (...)”, isto é, o maravilhoso e copioso envio ou
derramamento do Espírito ainda não foi dado, “(..)porque Jesus ainda não
havia sido glorificado”. “Se eu partir, enviarei a vós o Consolador” (João 16:7).
Esta é a razão pela qual a missão do Espírito Santo foi retardada até
depois da ascensão de Cristo ao céu.

58Localização das citações bíblicas desse parágrafo incluídas pelo tradutor para o
português.

505 | P á g i n a
IV. EM QUE A ASCENSÃO DE CRISTO É DIFERENTE DA NOSSA?
A ascensão de Cristo e a nossa concordam, primeiro, nisto, que ambos,
Ele e nós, ascendemos ao mesmo lugar. Elas concordam, em segundo
lugar, nisso que ambos, Ele e nós, ascendemos à glória. “Pai, desejo que
também eles, que Me deste, estejam comigo onde estou, para que vejam a Minha
glória” (João 17:24).
Elas diferem no seguinte respeito: 1. Cristo ascendeu por Seu próprio
poder e virtude peculiares. “Nenhum homem ascendeu ao céu (isto é, por
sua própria virtude peculiar), mas o Filho do homem” (João 3:13). Nossa
ascensão, por outro lado, será efetuada por, e por causa de, Cristo.
“Preparar-vos-ei um lugar” (João 14:2); “Desejo que também aqueles que Me
deste estejam comigo onde Eu estou” (João 17:24). 2. Cristo ascendeu para
ser cabeça, nós ascenderemos para ser membros; Ele ascendeu para a
glória como é próprio para o cabeça, nós ascenderemos para a glória
como está se tornando aqueles que são membros; Ele ascendeu para
que pudesse se assentar à destra do Pai, nós subiremos para que
possamos nos assentar em Seu trono e no de Seu Pai, não na mesma
dignidade, mas apenas por uma participação nele. “Ao que vencer,
concederei que se assente comigo em Meu trono, assim como Eu também venci
e estou assentado com Meu Pai em Seu trono” (Apocalipse 3:21). Devemos,
portanto, ser participantes de Sua glória, uma proporção justa sendo
preservada entre os membros e a cabeça. 3. A ascensão de Cristo é a
nossa causa, mas não o contrário. 4. O Cristo completo ascendeu, mas
não tudo o que é de Cristo; porque Ele ascendeu apenas quanto à sua
natureza humana, e não no que respeita à Sua natureza divina, que
também está na terra. Mas nós devemos ascender completos, e todos
nós; porque temos apenas uma natureza finita, e esta natureza é apenas
uma.

506 | P á g i n a
Questão 49. De que proveito para nós é a ascensão de Cristo ao
céu?
Resposta: Em primeiro lugar, que Ele é nosso advogado na presença
de Seu Pai no céu: Em segundo lugar, que tenhamos a nossa carne
no céu, como garantia segura de que Ele, como cabeça, também
tomará para Si, nós Seus membros. Em terceiro lugar, que Ele nos
envia Seu Espírito, como um penhor, por cujo poder nós “buscamos
as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de
Deus, e não as coisas na terra”.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 49

V. QUAIS SÃO OS FRUTOS DA ASCENSÃO DE CRISTO?


Os frutos ou benefícios da ascensão de Cristo ao céu são
principalmente estes três:
1. Sua intercessão com o Pai em nosso favor. Isso abrange, como já
observamos, a força perpétua e a virtude do sacrifício de Cristo; a
vontade divina e humana de Cristo que nos é favorável, pela qual Ele
deseja que sejamos recebidos pelo Pai por causa de Seu sacrifício; e o
consentimento do Pai, concordando com a vontade de seu Filho e
aprovando sua satisfação como expiação suficiente por nossos
pecados. Em uma palavra, é a vontade do Pai e do Filho que o sacrifício
de Cristo possa valer para sempre em nosso favor.
Objeção. Mas a intercessão foi feita antes da ascensão de Cristo; sim,
mesmo antes de Seu advento. Portanto, não é um dos frutos de Sua
ascensão. Resposta: É verdade, de fato, que a intercessão foi feita antes
da entrada de Cristo no céu, mas dependia do que seria feito após Sua
ascensão, ou seja, foi feita com referência àquela intercessão que ainda
estava por vir, assim como foi com tudo que pertencia à recepção dos
pais, no favor de Deus desde o início do mundo. Novamente, a
intercessão que foi feita antes da ascensão de Cristo não era como a

507 | P á g i n a
que é feita agora. O mediador, sob o Antigo Testamento, fez
intercessão com referência ao valor de Seu sacrifício ainda a ser feito,
e o Pai recebeu os santos da antiguidade em Sua graça, em virtude
daquele sacrifício que ainda estava para ser oferecido; mas agora Ele
nos recebe por causa da satisfação que Cristo já deu. Assim também
na Igreja dos antigos pecados foram remidos, e o Espírito Santo foi
dado por conta de um futuro sacrifício; mas agora em vista deste
sacrifício já oferecido. Mas o valor do único sacrifício de Cristo
continua para sempre, porque “com uma só oferta aperfeiçoou para sempre
os que são santificados” (Hebreus 10:14). Nem é o fato de que Cristo não
oferece mais sacrifícios uma prova da imperfeição de Sua oferta. É
antes um argumento a favor de Seu caráter perfeito; pois se Ele
frequentemente oferecesse sacrifícios à forma dos sacerdotes levíticos,
isso seria uma evidência de que Ele não poderia, por um único
sacrifício, tornar perfeitos aqueles que viessem a Deus. Mas Ele, por
um único sacrifício, aperfeiçoou para sempre os que são santificados.
Portanto, Ele agora desempenha Seu ofício sacerdotal, não oferecendo
sacrifícios com frequência, nem merecendo favores para nós da
mesma forma, mas aplicando-se a nós, por meio do valor e dignidade
perpétua e infinita de Seu único sacrifício, graça, justiça e o Espírito
Santo, que certamente é algo muito maior, do que se Ele repetisse Seu
sacrifício.
2. Nossa glorificação resulta da ascensão de Cristo ao céu; pois se
aquele que é o nosso Senhor ascendeu, nós também, que somos Seus
membros, certamente ascenderemos. Por isso, o próprio Cristo disse:
“Preparar-vos-ei um lugar. E se Eu for e preparar um lugar para vós, voltarei
novamente e os receberei a Mim; para que onde Eu estiver, vós também
estejais” (João 14: 2, 3).

508 | P á g i n a
Objeção. Mas Elias e Enoque ascenderam antes de Cristo. Portanto, a
ascensão de Cristo não é a causa de nossa ascensão. Resposta: Eles
ascenderam em respeito e em virtude da ascensão de Cristo, que ainda
era futura. A ascensão e glorificação de Cristo não são apenas o tipo,
mas também a causa de nossa ascensão e glorificação; pois se Ele não
tivesse sido glorificado, não poderíamos ser glorificados. O Pai
decretou nos dar todas as coisas por meio do messias e colocou todas
as coisas em Suas mãos. Mas como poderia Cristo ter nos dado um
reino, se Ele mesmo, como o primogênito, não tivesse primeiro tomado
posse dele? E na medida em que Ele ascendeu e agora reina lá, Ele nos
levará, que somos cidadãos de Seu reino, para o mesmo lugar. “Onde
Eu estou, lá estará também o Meu servo” (João 12:26); “Eu vos receberei a Mim
mesmo; para que onde Eu estiver, vós também estejais” (João 14:3).
3. O terceiro fruto da ascensão de Cristo é a missão do Espírito Santo,
por meio do qual Ele congrega, conforta e defende Sua Igreja, até o
fim do mundo. O Espírito Santo foi realmente dado também sob a lei,
antes do advento e ascensão de Cristo; mas, como foi observado, era
com respeito à Sua ascensão e glorificação, que eram então ainda
futuras e não eram apenas um fruto disso, mas também uma parte
dela. E novamente, desde a glorificação de Cristo, o Espírito Santo tem
sido dado mais copiosamente, como no dia de Pentecostes, que havia
sido predito pelo profeta Joel; “E acontecerá depois, que derramarei Meu
Espírito sobre toda a carne (...)”59. É pela eficácia e influência deste
Espírito que buscamos as coisas que estão acima, porque é lá que está
o nosso tesouro, e lá estão os nossos bens, e isso porque Cristo
ascendeu com o propósito de tornar nossas essas coisas boas, que
estavam lá muito antes. Este é o argumento que o apóstolo emprega
em Colossenses 3:1.

59 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

509 | P á g i n a
Existem outros frutos que resultam da ascensão de Cristo, menos
importantes do que os que especificamos. Eles são os seguintes:
4. A ascensão de Cristo é uma prova de que a remissão dos pecados é
totalmente concedida a todos os que creem, na medida em que Ele
não poderia ter se assentado no trono de Deus, se não tivesse
suportado o castigo que nossos pecados exigiam. Pois onde está o
pecado, aí também está a morte. “Ele reprovará o mundo da justiça, porque
eu vou para Meu Pai” (João 16:10).
5. É uma prova de que Cristo é realmente vencedor da morte, do
pecado e do Diabo.
6. É uma evidência de que nunca seremos deixados sem conforto;
porque era um grande objetivo da ascensão de Cristo, que Ele pudesse
enviar o Espírito Santo. “Se Eu não partir, o Consolador não virá ter
convosco; mas se Eu partir, a vós O enviarei” (João 16:7); “Quando Ele subiu
ao alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens” (Efésios 4:8).
7. É uma garantia de que Cristo nos defenderá para sempre, pois
sabemos que Ele é o nosso cabeça sempre glorioso, e é exaltado acima
de todos os principados e potestades.
O que então devemos entender por artigo: “Eu creio em Jesus Cristo, que
ascendeu ao céu”? Isso significa, creio eu, primeiro, que Ele
verdadeiramente, e não apenas em aparência, ascendeu ao céu, e agora
está lá, e será chamado à destra de Deus, até que venha de lá para
julgar o mundo. E, em segundo lugar, que Ele ascendeu por minha e
por sua causa, e agora se manifesta na presença de Deus, faz
intercessão por nós, o Espírito Santo nos envia, e por fim nos levará
para Si, para que possamos estar com Ele onde Ele está, e reine com
Ele na glória.

510 | P á g i n a
19º DIA DO SENHOR

CRISTO ESTÁ ASSENTADO À DESTRA DO PAI

Questão 50. Por que é acrescentado: “e está assentado à destra de


Deus?”
Resposta: Porque Cristo ascendeu aos céus para este fim, para que
pudesse Se manifestar como cabeça de Sua Igreja, por quem o Pai
governa todas as coisas.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 50

Subir ao céu e assentar-se à direita de Deus não são a mesma coisa;


porque uma pode ser sem a outra. Este artigo, que se refere a Cristo
assentado à destra de Deus, difere de Sua ascensão ao céu nos três
seguintes detalhes: 1. O fim do artigo anterior é expresso nisso: porque
foi por esta razão que Cristo ascendeu ao céu, para Se assentar à destra
de Deus. 2. Cristo se assenta para sempre à destra do Pai; mas
ascendeu apenas uma vez aos céus. 3. Os anjos sobem, e nós também
subiremos ao céu; mas nem eles nem nós devemos nos assentar à
destra do Pai. “A qual dos anjos disse em qualquer momento: Assenta-te à
Minha direita, até que Eu faça dos Teus inimigos Teu estrado” (Hebreus 1:13).
Muito menos Deus disse isso a respeito de qualquer homem, exceto
Cristo.
Com relação a este sentar-se à destra de Deus, devemos considerar
mais particularmente:
I. O que a destra de Deus significa nas Escrituras;
II. O que é assentar-se à destra de Deus;
III. Se Cristo sempre se assentou à destra de Deus;
IV. Quais são os frutos de Sua posição à destra do Pai.

511 | P á g i n a
I. O QUE A DESTRA DE DEUS SIGNIFICA NAS ESCRITURAS
A destra e outros membros de nosso corpo são atribuídos a Deus de
forma imprópria. Conforme usado nas Escrituras, a frase, destra de
Deus significa duas coisas. Primeiro, o supremo poder e virtude, ou
onipotência de Deus. “Deus O exaltou com a Sua destra, para ser príncipe
e salvador” (Atos 5:31); “A destra do Senhor opera valentemente” (Salmos
118:16); “A tua destra, ó Senhor, despedaçou o inimigo” (Êxodo 15:6). E em
segundo lugar, suprema dignidade e glória, ou majestade. É neste
segundo sentido que devemos entendê-lo como aqui usado.

II. O QUE É SE ASSENTAR À DESTRA DE DEUS


Assentar-se à destra de Deus é ser uma pessoa igual a Deus em poder
e glória, pela qual o Pai opera imediatamente e governa todas as coisas.
De acordo com a definição que é comumente dada a esta frase,
significa reinar em igual poder e glória com o Pai. Isso é verdade em
relação a Cristo; pois Ele opera todas as coisas da mesma forma que
o Pai opera, e é dotado de igual poder com o Pai, que Ele também
exerce. Mas o Filho sempre reinou dessa forma. O mesmo também
pode ser dito do Espírito Santo, que, entretanto, não é dito nas
Escrituras se assentar à destra de Deus, e não se assenta lá; porque o
Pai não governa todas as coisas, e especialmente a Igreja, pelo Espírito
Santo; mas pelo Filho. Portanto, essa definição comumente aceita não
é suficiente e completa. Outros confundem sua posição com Sua
ascensão e dizem que expressam a mesma coisa. Mas já especificamos
certas propriedades particulares em que elas diferem; e é absurdo supor
que haveria tal repetição da mesma coisa em um credo tão breve e
condensado.
A frase, “assentou-se à destra de Deus”, é emprestada do costume de reis
e monarcas, que colocam aqueles que desejam homenagear à Sua
destra, e têm Seus próprios assessores, a quem confiam certos
departamentos do governo. É assim que se diz que Cristo se senta à
destra do Pai, porque o Pai governará e governará imediatamente

512 | P á g i n a
todas as coisas, tanto no céu como na terra, por Ele. Esta sessão,
portanto, é a suprema dignidade e glória que o Pai deu a Cristo depois
de Sua ascensão, ou é a mais elevada exaltação do mediador, em Seu
reino e sacerdócio. É peculiar a Cristo; porque só Ele é a pessoa
onipotente e mediador por meio do qual o Pai governa imediatamente
todas as coisas, e especialmente a Sua Igreja, que Ele defende contra
todos os Seus inimigos. Esta glória e assentamento de Cristo à destra
do Pai consiste nestas quatro coisas:
1. Na perfeição de Sua natureza divina, ou na igualdade do Verbo com
o Pai, que Ele então não recebeu, mas sempre teve. Esta Sua Divindade,
embora estivesse oculta, por assim dizer, e não observada durante todo
o tempo de Sua humilhação, depois Se revelou com poder e majestade.
2. Na perfeição e exaltação da natureza humana de Cristo, cuja
excelência consiste, primeiro, na união pessoal da natureza humana
com o Verbo. “Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”
(Colossenses 2:9). E, em segundo lugar, na excelência dos dons, como
sabedoria, poder, glória, majestade e outros que são muito maiores e
em número do que aqueles que os anjos ou os homens receberam; e
pelo qual Ele também supera grandemente todas as criaturas no céu
ou na terra. “De Sua plenitude todos nós recebemos, e graça por graça” (João
1:16); “Porque Deus não Lhe dá o Espírito por medida” (João 3:34).
3. Na perfeição e excelência do ofício de mediador, que é profético,
sacerdotal e real, que Cristo agora, como cabeça glorificada de Sua
Igreja, executa gloriosamente no céu em Sua natureza humana. Por
enquanto, Ele intercede na glória, dá o Espírito Santo e gloriosamente
preserva e defende sua Igreja. Esta excelência do ofício de Cristo é Sua
própria exaltação em Seu reino e sacerdócio, que equivale a dizer que
é deixar de lado a enfermidade de Sua natureza humana e a
consumação daquela glória que Lhe era devida, e por razão de Seu
ofício de profeta, sacerdote e rei, como pela Sua pessoa, como Deus.
“Todo o poder Me é dado no céu e na terra” (Mateus 28:18).

513 | P á g i n a
4. Na perfeição da honra, reverência e adoração, que os anjos e os
homens atribuem e dão a Cristo igualmente com o Pai; porque Ele é
reconhecido, adorado e magnificado por todos como o Senhor e
cabeça de todos. “Que todos os anjos de Deus O adorem” (Salmos 9:7); “A
qual dos anjos disse a Ele, assenta-te à Minha direita?” (Hebreus 1:6, 13);
“Deus Lhe deu um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de
Jesus todo joelho se dobre (...)” (Filipenses 2:9). Este nome, de que fala o
apóstolo aqui, consiste na excelência da pessoa e do ofício de Cristo,
e é uma declaração de ambos por Sua visível majestade, para que todos
possam reconhecer e ser constrangidos a confessar que Ele é o rei por
quem Deus governa todas as coisas. Foi assim que Estêvão O viu de
pé à destra de Deus, coroado com visível majestade e glória, e O
adorou. Cristo tinha, de fato, mesmo antes disso Sua exaltação à destra
do Pai, certas partes da excelência de Sua pessoa e ofício, mas agora
Ele atingiu a consumação de Sua glória.
Do que foi dito agora, podemos dar uma definição mais completa de
Cristo assentado à destra do Pai. É ter o mesmo poder igual ao do Pai:
superar todos os anjos e homens em Sua natureza humana, tanto no
número e excelência dos dons que lhe foram conferidos, como
também na glória e majestade visíveis. Para declarar Ele mesmo
Senhor dos anjos e dos homens, e assim de todas as coisas que são
criadas. Para governar imediatamente, em nome do Pai, Seu reino nos
céus e todo o mundo, e especialmente para governar a Igreja da
mesma forma pelo Seu poder: e, finalmente, ser reconhecido e elogiado
por cada um como Senhor e cabeça de todos. Mas como e em que
respeito Cristo é dito ser nossa cabeça, já foi explicado na exposição
da 32º questão do catecismo.
A honra, portanto, que se atribui a este sentar-se à destra de Deus não
pertence ao Pai, nem ao Espírito Santo, mas é peculiar somente a
Cristo, e é, de fato, o mais alto grau ou consumação da honra que o
Filho obteve, e isso com respeito a ambas as naturezas, mas de uma
forma peculiar a cada uma. Com respeito à Sua natureza humana, é

514 | P á g i n a
uma comunicação real dos dons celestiais, ou glória perfeita, que a
humanidade de Cristo não tinha antes de Sua ascensão. Mas, em
relação à Sua natureza divina, este sentar-se à direita de Deus não
inclui nenhuma mudança de Sua Divindade; mas é meramente deixar
de lado Sua humilhação e a manifestação daquela glória que Ele tinha
com o Pai antes da fundação do mundo, mas que Ele ocultou durante
o tempo de Sua humilhação; e o direito e título à posse livre e plena
daquilo que sua Divindade havia posto de lado, por assim dizer, ao
assumir nossa natureza. Pois assim como a Divindade Se humilhou,
foi novamente colocada à destra do Pai, isto é, foi gloriosamente
manifestada na carne. “E agora, ó Pai, glorifica-me com Ti mesmo, com a
glória que Eu tinha contigo antes que o mundo existisse” (João 17:5).
Esta exposição que agora fizemos deste artigo do credo, derruba
muitas objeções que foram apresentadas em relação a este assunto,
das quais podemos mencionar o seguinte:
Objeção 1. O Espírito Santo também é igual ao pai. Portanto, podemos
dizer corretamente que Ele também se assenta à direita do Pai.
Resposta: Negamos a conclusão aqui obtida, porque o argumento é
baseado em uma definição incorreta; pois embora o Espírito Santo,
assim como o Pai, seja Deus, Senhor e governante da Igreja, ainda não
pertence a Ele assentar-se à destra do Pai, mas somente a Cristo,
porque Ele assumiu a natureza humana, humilhou-se, morreu,
ressuscitou, ascendeu ao céu e é mediador. Novamente, o Pai opera
imediatamente por meio de Cristo somente, mas mediatamente por
meio do Espírito Santo; pois a mesma ordem que existe em relação às
pessoas da Divindade deve ser preservada em Sua operação. O Pai não
trabalha por meio de, mas por Si mesmo, porque Ele não é de ninguém.
O Filho opera por Si mesmo e não de Si mesmo, porque é gerado do
Pai. O Espírito Santo opera por Si mesmo, mas do Pai e do Filho, de
quem Ele procedeu.

515 | P á g i n a
Portanto, o Pai atua imediatamente pelo Filho, porque Ele está diante
do Espírito Santo, não porém no tempo, mas apenas na ordem de
existência, ou de operação; enquanto Ele opera mediatamente pelo
Espírito Santo. É por esta razão que o Filho, que é mediador, é
corretamente dito que se assenta à destra do Pai.
Objeção 2. Cristo sempre foi, mesmo antes de Sua ascensão, o glorioso
cabeça e rei da igreja. Portanto, Sua posição à destra do Pai foi antes
de Sua ascensão ao céu. Resposta: Temos aqui, como na objeção
anterior, uma definição incompleta, da qual o argumento é deduzido.
Cristo foi, de fato, sempre glorioso, mas nem sempre foi exaltado no
ofício de mediador, ou seja, em Seu reino e sacerdócio. A consumação
de Sua glória, que consiste na administração de Seu reino e sacerdócio
no céu, começou com Sua exaltação à destra do pai.
Objeção 3. Mas Cristo diz: “Ao que vencer, concederei que se assente comigo
no Meu trono (...)” (Apocalipse 3:21). Portanto, devemos também nos
assentar à destra de Deus. Resposta: Devemos nos assentar com Cristo
participando de Sua glória.
Admitimos também que o trono do Pai e do Filho é o mesmo. Sobre
este trono muitos se assentam; alguns em lugares mais altos, outros
em lugares mais baixos; mas não com a mesma dignidade. Muitos
conselheiros podem assentar perto do rei; mas o embaixador sozinho
está sentado à Sua destra. Cristo não dará a outro a suprema
dignidade e glória que o Pai Lhe deu.

516 | P á g i n a
III. CRISTO SEMPRE ASSENTOU À DESTRA DE DEUS?
A curiosidade do homem, que está disposto a bisbilhotar tudo, faz
com que seja necessário dizer algo em relação a esta questão. Ao falar
sobre isso, entretanto, devemos distinguir quanto à natureza de Cristo,
e então quanto ao tempo.
Primeiro, Cristo sempre se assentou à destra do Pai no que diz respeito
a Sua Divindade, se entendermos esta frase como significando que Ele
reina em igual poder com o Pai, e que Ele é dotado de igual honra e
glória; pois Sua natureza divina era desde sempre igual ao Pai em
honra e poder. A mesma coisa é verdadeira se entendermos a frase,
assentar-se à destra de Deus para significar que Cristo é o cabeça da
Igreja; pois o Filho sempre foi aquela pessoa por quem o Pai governou
todas as coisas desde o princípio, como também criou todas as coisas
por Ele. Nesse sentido, Cristo foi colocado à destra do Pai por Sua
geração eterna. Em segundo lugar, Cristo sempre esteve à destra de
Deus, de acordo com Sua divindade, em virtude de Sua nomeação para
o ofício de mediador que foi feito desde a eternidade. Esta nomeação
respeitou até mesmo Sua natureza divina desde o início. Em terceiro
lugar, o mesmo pode ser dito da Divindade de Cristo, pelo fato de que
Ele iniciou a executar e executou o ofício de mediador desde o início
do mundo.
Mas Cristo, de acordo com Sua Divindade, foi posto à destra do Pai
após Sua ascensão ao céu, na medida em que Sua Divindade então
começou a se manifestar gloriosamente em Sua natureza humana na
qual havia se ocultado, por assim dizer, durante o tempo de Sua
humilhação. Pois quando Cristo viveu na terra, Sua Divindade também
Se humilhou, não, de fato, por se tornar mais fraca, mas apenas por
velar e não se manifestar abertamente. Cristo foi, portanto, também
quanto à Sua natureza divina, colocado à destra do Pai neste sentido,
que Ele então depositou aquela humildade que havia assumido por
nós, e fez uma declaração aberta daquela glória que Ele tinha com o

517 | P á g i n a
Pai antes da fundação do mundo, mas que Ele ocultou durante o
tempo de Sua humilhação. Ele foi exaltado, dizemos, por manifestar,
e não por acrescentar qualquer coisa à Sua divindade que ela não
possuísse antes, nem por torná-la mais poderosa ou gloriosa, nem por
declará-la diante de Deus, mas diante dos homens, e por completo e
reivindicando livremente Seu próprio direito, do qual Sua Divindade
havia, por assim dizer, desistido ao assumir nossa natureza. Por isso,
Ele diz: “E agora, ó Pai, glorifica-Me tu com Ti mesmo, com a glória que Eu
tinha contigo antes que o mundo existisse” (João 17:5). Esta glória da qual
Cristo aqui fala, Ele não tinha com os homens. Ele, portanto, ora para
que, como sempre teve isso com o Pai, Ele também possa manifestar
aos homens. Isso, porém, não deve ser compreendido no sentido em
que o Verbo sofreu alguma mudança quanto à sua Divindade, mas
apenas no sentido em que já o explicamos.
Em referência, porém, à Sua humanidade, Cristo estava então de
acordo com isso, primeiro colocado à destra do Pai, quando subiu ao
céu. Foi nessa época que Ele obteve Sua glorificação, quando recebeu
aquilo que antes não tinha. “Não convinha que Cristo padecesse essas
coisas e entrasse na Sua glória” (Lucas 24:26).
Objeção 1. Aquele que se assenta à destra de Deus está em toda parte.
Cristo está assentado à destra de Deus. Portanto, Ele está em toda
parte. Resposta: Isso pode ser dado em relação à pessoa de Cristo, pela
comunicação de propriedades. Mas se alguém inferir a mesma coisa
também em relação à Sua humanidade, haverá mais na conclusão do
que nas premissas.
Objeção 2. A destra de Deus está em todo lugar. A natureza humana
de Cristo está à destra de Deus. Portanto, está em toda parte. Resposta:
Negamos a conclusão aqui obtida; pois existem quatro termos neste
silogismo. A destra de Deus. e assentar-se à Sua direita não são a
mesma coisa. A proposição menor deve ser expressa assim: a natureza
humana de Cristo é a destra de Deus. Mas, se assim for expressa, não

518 | P á g i n a
é verdade. De novo, a proposição principal não é absolutamente
verdadeira; pois uma parte da posição de Cristo à destra de Deus é
aquela glória e majestade visíveis com que Sua natureza humana é
adornada, e com a qual Estêvão O viu coroado no céu. Não está em
todo os lugares, mas apenas no lugar onde está Seu corpo.
Objeção 3. Cristo ascendeu acima de todos os céus para preencher
todas as coisas, isto é, com a presença de Sua humanidade. Resposta:
Esta é uma falsa interpretação das palavras do apóstolo em Efésios
4:10. Ele ascendeu para que pudesse preencher todas as coisas com
Seus dons e graças, mas não com Sua carne, pele e ossos, que seriam,
de fato, monstruosos e irracionais, e dariam ao Diabo ocasião para
trazer a glória de Deus em escárnio.
Objeção 4. Aquela natureza que é dotada de onipotência está em toda
parte. A humanidade de Cristo é dotada de onipotência. Portanto, está
em toda parte. Resposta: Essa natureza está, de fato, em todo lugar
que é dotada de onipotência, por uma transfusão real ou comunicação
de propriedades, mas não aquela que é dotada dela por uma união
pessoal. Há, entretanto, muitas coisas conferidas à humanidade de
Cristo por transfusão real, a saber, outras qualidades além daquelas
que Ele tinha em Sua humilhação e na cruz. Pois havia muito mais e
maiores dons conferidos à Sua natureza humana após Sua ascensão
do que os conferidos aos anjos ou aos homens. Com respeito a esta
concessão desses dons, Cristo, de acordo com Sua humanidade, foi
colocado à destra de Deus: mas de acordo com Sua Divindade, é dito
que Ele foi colocado à destra do Pai, na medida em que este foi
glorificado, e na medida em que Ele, sendo elevado ao céu, manifestou
o mesmo em Sua carne, e obteve a perfeição da glória e o mais elevado
grau de glorificação da forma já explicada.

519 | P á g i n a
Questão 51. Que proveito é esta glória de Cristo, nosso cabeça, para
nós?
Resposta: Primeiro, que por Seu Espírito Santo Ele derrama graças
celestiais sobre nós, Seus membros; e então, que por Seu poder, Ele
nos defende e preserva contra todos os Seus inimigos.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 51

IV. QUAIS SÃO OS FRUTOS DE CRISTO ASSENTADO À DIREITA


DO PAI?
Os frutos de Sua posição à destra do Pai compreendem todos os
benefícios do reino e do sacerdócio de Cristo glorificado. São eles: 1.
Intercessão por nós. 2. A congregaçã0, governo e preservação da Igreja
por Sua palavra e Espírito. 3. A defesa da Igreja contra todos os seus
inimigos. 4. A rejeição e destruição dos inimigos da Igreja. 5. A
glorificação da Igreja e a remoção de todas as enfermidades a que está
sujeita. Estes frutos de Cristo assentado à destra de Deus,
naturalmente crescem fora do ofício que Ele sustenta. Os benefícios
do reino de Cristo glorificado são, que Ele nos governa através do
ministério de Sua palavra e Espírito, que Ele preserva Seu ministério,
dá à Sua Igreja locais de descanso, torna Sua palavra eficaz na
conversão dos eleitos, os eleva em razão da morte, livra-os de todas as
suas enfermidades, glorifica-os, enxuga todas as lágrimas de seus
olhos, sobre Seu trono os coloca e os torna reis e sacerdotes para Seu
Pai. O fruto do sacerdócio de Cristo glorificado é que Ele se manifesta
e intercede vitoriosamente por nós no céu, para que o Pai não nos
negue nada por causa da virtude e da força da Sua intercessão. É em
vista disso que obtemos este precioso conforto: visto que aquele que
é nosso rei, nossa cabeça, nossa carne e irmão, está assentado à destra
do Pai; portanto, Ele ará a nós Seus membros todo bem. Ele nos dará
o Espírito Santo, para que sejamos vivificados e glorificados: Ele nos
dará dons celestiais, como o verdadeiro conhecimento de Deus, fé,

520 | P á g i n a
arrependimento e todas as virtudes cristãs, e fará tudo isso por nós,
tanto pelo amor fraterno que Ele nutre por nós, como pelo ofício que
Ele sustenta como nosso Senhor. E, porque temos tal sumo sacerdote,
que está assentado à destra do Pai, não há razão para duvidarmos da
nossa salvação, pois Ele a preservará com segurança para nós, e
finalmente a dará sobre nós. “Nem homem algum os arrebatará de Minhas
mãos” (João 10:28); “Desejo que também aqueles que Me deste, estejam comigo
onde Eu estiver” (João 17:24).
Qual é agora a aplicação que devemos fazer deste artigo relativo ao
assentamento de Cristo à destra do Pai? É o seguinte: eu creio que
Cristo, possuidor de majestade suprema e divina, intercede por mim
e por todos os eleitos, e que Ele aplica a nós Seu sacrifício, para que o
Pai, por e por Sua causa, possa Me dar a vida eterna; e que Ele também
possa governar e me defender nesta vida, contra o Diabo e todos os
perigos, e que por fim me glorificará e dará a vida eterna.

521 | P á g i n a
O RETORNO DE CRISTO AO JULGAMENTO

Questão 52. Que consolo é para ti, que “Cristo voltará para julgar
os vivos e os mortos?”
Resposta: Que em todas as minhas tristezas e perseguições, com a
cabeça levantada, procuro a mesma pessoa que antes Se ofereceu,
por minha causa, ao tribunal de Deus e removeu de mim toda
maldição, para vir como juiz do céu; que trará todos os Seus e meus
inimigos à condenação eterna, mas Me levará, com todos os Seus
escolhidos, para Si mesmo, para as alegrias e glória celestiais.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 52

A segunda vinda de Cristo, o fim do mundo e o juízo final, embora


sejam um pouco diferentes um do outro, são, no entanto, todos
compreendidos neste artigo. Devemos tratá-los em comum, na medida
em que estão intimamente ligados; ainda de forma a dar atenção
especial ao julgamento final; porque seria de pouca importância para
nós pensar e falar da segunda vinda de Cristo, se não considerássemos,
ao mesmo tempo, o fim para o qual Ele virá.

522 | P á g i n a
Os sujeitos que especialmente reivindicam a atenção em conexão com
o julgamento final, são os seguintes:
I. Se haverá um julgamento futuro.
II. O que é esse julgamento futuro.
III. Quem será o juiz.
IV. De onde virá e para onde irá o juiz.
V. A forma pela qual Ele virá.
VI. Os sujeitos deste julgamento.
VII. Qual será o caráter da sentença e a execução deste julgamento.
VIII. Os objetos deste julgamento.
IX. Quando acontecerá.
X. As razões pelas quais devemos esperá-lo.
XI. As razões pelas quais Deus deixou o tempo dele incerto.
XII. Por que é prorrogado: e,
XIII. Se pode ser desejado e procurado.

I. HAVERÁ UM FUTURO JULGAMENTO?


Essa pergunta é necessária. As Escrituras também predizem que virão,
nos últimos dias, zombadores, que considerarão este artigo nada mais
do que uma fábula: “Dizendo: Onde está a promessa da Sua vinda? Pois
desde que os pais dormiram, todas as coisas continuam como eram desde o
início da criação(...) “ (2 Pedro 3:4). É verdade, de fato, que a filosofia não
pode estabelecer plena e claramente a doutrina do juízo final: nem,
por outro lado, contém qualquer coisa que possa entrar em conflito
com ela. Toda a certeza dessa doutrina depende dos ensinamentos da
Igreja e dos oráculos de Deus. E, embora o filósofo, tendo um tênue
lampejo de luz, possa talvez dizer, e a razão também possa decidir da
mesma forma, que deve estar bem com os bons e mal com os maus, e

523 | P á g i n a
que não é provável que o homem foi criado meramente para ser
submetido aos males e misérias desta vida; todavia, o homem, tendo
perdido o conhecimento da justiça, bondade e verdade de Deus, não
poderia, quando entregue a Si mesmo, concluir com grande certeza se
haverá algum julgamento futuro, ou quando será; muito menos a
circunstância com que será atendido. Por isso, somos forçados a
apoiar a verdade desta doutrina principalmente no testemunho das
Escrituras. Os argumentos que a filosofia deduz são, de fato,
convincentes em si mesmos; mas eles não podem ser explicados ou
obtidos com qualquer clareza, a menos que sejam considerados em
conexão com a teologia, de forma que sua força só é sentida por
aqueles que desfrutam dos benefícios de uma revelação sobrenatural.
As provas que a teologia, ou a doutrina do evangelho, fornece são as
seguintes:
1. As declarações da Escritura, do Antigo e do Novo Testamento,
tocando neste assunto de forma clara e explícita, ensinam a doutrina
de um julgamento futuro. O testemunho de Daniel está aqui em
destaque: “Eu vi em visões noturnas, e eis que um como o Filho do homem veio
com as nuvens do céu, e veio ao Ancião de dias, e eles o trouxeram diante dEle.
E foi-Lhe dado domínio, e glória, e um reino, para que todas as pessoas, nações
e línguas O servissem: Seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e
Seu reino, tal que não será destruído“ (Daniel 7:13, 14). E alguns versículos
antes de dizer: “Sentou-se o Ancião de dias, cuja vestimenta era branca como
a neve, e os cabelos de Sua cabeça como lã pura. Seu trono era como a chama
de fogo, e suas rodas como o fogo ardente. O fluxo de fogo emanou e saiu de
diante dEle: milhares de milhares ministraram a Ele, e dez mil vezes dez mil
estiveram diante dEle. O julgamento foi estabelecido e os livros foram abertos.
A besta foi morta, e o corpo destruído e entregue ao fogo chama” (Daniel 7:9,
10). Assim também a profecia de Enoque, citada pelo apóstolo Judas,
dá testemunho semelhante: “Eis que o Senhor vem com dez mil dos Seus
santos, para executar julgamento sobre todos, e para convencer todos os que

524 | P á g i n a
são ímpios entre eles de todas as suas ações ímpias, que eles cometeram ímpios,
e de todas as suas palavras duras que pecadores ímpios falaram contra Ele“
(Judas 14, 15). Os discursos de Cristo são igualmente explícitos sobre
esse ponto, especialmente os capítulos 24 e 25 de Mateus. O mesmo
também pode ser dito dos escritos dos apóstolos. “Ele designou um dia
no qual julgará o mundo com justiça por aquele homem a quem Ele ordenou,
do qual deu a certeza de que O ressuscitou dentre os mortos” (Atos 17:31); “O
próprio Senhor descerá do céu, com alarido, com a voz do arcanjo e com a
trombeta de Deus; e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; então nós, que
estivermos vivos e permanecermos, seremos arrebatados juntos com eles nas
nuvens para encontrar o Senhor nos ares“ (1 Tessalonicenses 4:16); “É
designado aos homens que morram uma vez; mas depois disso o julgamento”
(Hebreus 9:27). “Eu vi um grande trono branco, e aquele que estava assentado
sobre Ele, de cuja presença a terra e os céus fugiram: e vi os mortos, pequenos
e grandes, em pé diante de Deus; e os livros foram abertos, e outro livro foi
aberto, que é o livro da vida; e os mortos foram julgados pelas coisas que foram
escritas nos livros, de acordo com suas obras“ (Apocalipse 20:11, 12). Nem a
certeza de um julgamento futuro simplesmente surge dessas e de
outras declarações explícitas da Palavra de Deus; mas também é
evidente a partir de outras porções das Escrituras, das quais podemos
deduzir essas conclusões adequadas e justas:
2. Do decreto de Deus, pelo qual Ele ordenou e determinou consigo
mesmo, desde a eternidade a ressuscitar os mortos. Este propósito
nunca pode ser modificado, pois Deus é imutável. Uma cópia ou
transcrições deste decreto podem ser encontradas no capítulo 37 de
Ezequiel, enquanto Enoque, Elias e Cristo, são exemplos disso.
3. Da onipotência de Deus, pela qual Ele é capaz de fazer coisas que
são impossíveis no juízo da razão. Cristo usa esse argumento para
refutar os saduceus. “Errais por não conhecer as Escrituras, nem o poder de
Deus” (Mateus 22:29).

525 | P á g i n a
4. Da justiça de Deus, que exige que esteja bem com os bons e mal
com os ímpios e perfeitamente. Mas isso não acontece nesta vida.
Deve haver, portanto, outra vida na qual Deus fará justiça total a cada
um. É assim que Paulo se consola, e a todos os piedosos sob as
provações a que somos expostos. “Vendo que é uma coisa justa da parte de
Deus retribuir a tribulação aos que vos perturbam; e aos atribulados repousem
conosco, quando o Senhor Jesus for revelado dos céus com os seus anjos
poderosos” (2 Tessalonicenses 1:6); “Filho, lembra-te de que recebeste as tuas
coisas boas e também Lázaro as coisas más, na tua vida, mas agora ele está
consolado e tu estás atormentado” (Lucas 16:25).
5. A partir do fim para o qual Deus criou a raça humana. O propósito
de Deus nunca é frustrado; Ele sempre obtém Seu fim. Ele criou o
homem para este propósito, para que fosse o templo em que Ele
habitaria e para que pudesse comunicar alegria e bem-aventurança ao
homem. Mas isso não acontece aqui nesta vida, nem pode acontecer
aqui; e como Deus não criaria uma criatura tão excelente quanto o
homem para a miséria perpétua, podemos inferir com certeza que
haverá uma mudança. Deus nunca fica desapontado com Seu
propósito, nem permitirá que o templo do Espírito Santo seja
entregue à corrupção perpétua. Essa felicidade também faz parte da
imagem de Deus na qual o homem foi criado; e como foi destruído
pelo Diabo, Deus, que é maior do que o Diabo, o restaurará. Portanto,
não é apenas provável, de acordo com o raciocínio dos filósofos, mas
também é mais certo que o homem não foi criado para sofrer esses
males, mas para um fim melhor, que embora não seja obtido nesta
vida por causa de vários obstáculos, será, no entanto, certamente
alcançado no final. A ressurreição e felicidade de nossos corpos
também são confirmadas por este argumento; de acordo com o que
Paulo diz: “O que?! Não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo
que está em vós” (1 Coríntios 6:19).

526 | P á g i n a
6. Da glória de Deus. Deus criou o homem para que Ele pudesse
sempre louvá-lO e glorificá-lO, o que não pode acontecer sem a
ressurreição e o julgamento. Todos os outros argumentos podem ser
referidos a estes.

II. O QUE É O JULGAMENTO FINAL


Em cada julgamento entre os homens temos o acusado, o acusador, o
juiz, o caso, o julgamento, a lei segundo a qual a decisão é proferida, a
sentença de absolvição ou condenação e a sua execução de acordo
com a lei. Por isso, um julgamento humano, em geral, é o exame de
um caso por um juiz regular de acordo com leis justas, e a aprovação
e execução da sentença absolvendo ou punindo o culpado.
Disto é fácil dar uma definição do julgamento final que Deus
executará por meio de Cristo. O juiz, neste caso, não terá necessidade
de acusadores ou testemunhas, visto que Ele mesmo fará manifestar
as obras de todos, sendo Ele próprio o esquadrinhador dos corações.
Haverá então apenas o juiz, o culpado, a lei, a sentença e sua execução.
O julgamento final é, portanto, aquele julgamento que acontecerá no
fim do mundo, quando Cristo, o juiz, descerá de forma visível dos céus
em uma nuvem na glória e majestade de seu Pai e dos santos anjos,
quando todos homens que viveram desde o início do mundo serão
ressuscitados, enquanto aqueles que então viverão serão
repentinamente transformados, e quando todos estarão perante o
tribunal de Cristo, que dará sentença a todos, e que então lançará os
ímpios com os demônios para o castigo eterno, mas receberão os
piedosos para Si, para que possam, com Ele e os anjos benditos,
desfrutar da felicidade eterna e da glória no céu. “Ele virá da mesma
forma que vós o vistes entrar no céu” (Atos 1:11). Ou podemos definir o
julgamento final em poucas palavras como a revelação de todos os
corações e a revelação de todas as coisas que foram feitas pelos
homens, e uma separação entre os justos e os iníquos, que Deus
executará por meio de Cristo, que pronunciará e executará sentença

527 | P á g i n a
sobre todos de acordo com a doutrina da lei e do evangelho, o que
resultará na libertação perfeita da Igreja e no banimento dos ímpios
e demônios para o castigo eterno.
As Sagradas Escrituras corroboram todas as diferentes partes desta
definição, como fica evidente nas passagens que iremos apresentar
aqui. 1. Haverá uma revelação e revelação de todos os pensamentos e
ações dos homens; pois os livros serão abertos, para que os segredos
do coração se tornem manifestos. (Apocalipse 20:12) 2. Haverá uma
separação entre os justos e os iníquos; pois “o juiz os separará uns dos
outros como o pastor separa as ovelhas dos bodes; e porá as ovelhas à Sua
direita, mas os bodes à esquerda” (Mateus 25:31, 33). 3. Essa separação será
feita pelo próprio Deus; e, portanto, será uma separação santíssima e
justa. “Deus é injusto? Pois então como Ele julgará o mundo?” (Romanos 3:6).
Será feito por meio de Cristo: porque “o Pai entregou todo o julgamento
ao Filho” (João 5:22); “Deus designou um dia no qual Ele julgará o mundo por
aquele homem (...)”. (Atos 17:31). 4. A sentença também será pronunciada:
“Então dirá o rei aos que estiverem à Sua direita: Vinde, benditos de Meu Pai,
herdai o reino que vos está preparado desde a fundação de o mundo; Para
aqueles à Sua esquerda, Ele dirá: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo
eterno preparado para o Diabo e seus anjos” (Mateus 25:34, 41). 5. A
execução será eterna. “E irão eles para o castigo eterno, mas os justos para
a vida eterna” (Mateus 25:46)60. 6. Os justos e os ímpios serão julgados
de acordo com a lei e o evangelho, o que significa que serão declarados
justos ou ímpios no tribunal de Cristo. A absolvição dos justos será
principalmente de acordo com o evangelho, mas será confirmada pela
lei. A condenação dos ímpios, por outro lado, será principalmente pela
lei e confirmada pelo evangelho. A sentença será dada aos ímpios de
acordo com seus próprios méritos; mas sobre os justos de acordo com
os méritos de Cristo aplicados a eles pela fé, a verdade da qual então
se manifestará por suas obras, as quais serão trazidas à luz. Os

60 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

528 | P á g i n a
próprios justos então também confessarão que sua recompensa não é
por mérito, mas por graça naquilo que serão ouvidos a dizer: “Quando
te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber?”
(Mateus 25:37). Somos, por natureza, todos sujeitos à ira de Deus.
Ainda assim, seremos por Ele declarados benditos, não, de fato, em
Adão, mas em Cristo, a semente bendita. É por esta razão que a
sentença será proferida sobre os justos de acordo com o evangelho.
Objeção. Mas cada um receberá de acordo com suas obras. Portanto,
a sentença não será proferida de acordo com o evangelho; mas apenas
de acordo com a lei. Resposta: É verdade, de fato, que Deus retribuirá
até mesmo aos eleitos de acordo com suas obras, não, porém, porque
suas obras são meritórias, mas porque são os efeitos da fé. Eles devem,
portanto, receber a sentença de acordo com suas obras, que são os
efeitos de sua fé; ou seja, eles serão julgados de acordo com sua fé, que
é o mesmo que ser julgado de acordo com o evangelho. O julgamento
atual que Cristo executará será mais de acordo com os efeitos da fé,
do que de acordo com a fé; porque Ele fará com que seja manifesto a
todos por que Ele assim julga, a fim de que o ímpio não possa
impugnar Sua justiça como se Ele desse injustamente a vida eterna
aos fiéis. Os justos provarão pelos frutos de sua fé, que era uma fé
verdadeira que eles possuíam e que eles são as pessoas a quem a vida
eterna é devida de acordo com a promessa. Cristo irá, portanto, exibir
aos ímpios as obras dos justos e apresentá-las como evidências com o
propósito de convencer os ímpios de que foi aplicaram a si mesmos
os méritos de Cristo. Deus também retribuirá aos fiéis de acordo com
suas obras, para que dela possamos nos confortar nesta vida, tendo a
certeza de que seremos colocados à sua direita.

529 | P á g i n a
III. QUEM SERÁ O JUIZ?
O juiz será Cristo, a mesma pessoa que é o mediador. “O Pai confiou ao
Filho todo o julgamento e deu-Lhe autoridade para julgar também, porque Ele
é o Filho do homem” (João 5:22, 27). Com isso, porém, não devemos
entender que o Pai e o Espírito Santo não terão parte neste
julgamento, mas está confiado a Cristo porque Ele se manifestará e
pronunciará a sentença em Sua natureza humana. Mas quando Ele
falar, Deus falará; quando Ele julgar, Deus julgará, e isso não apenas
porque Ele mesmo é Deus, mas também porque o Pai fala e julga por
meio dEle. “Ele foi ordenado por Deus para ser o Juiz dos vivos e dos mortos”
(Atos 10:42); “Ele julgará o mundo com justiça por aquele homem a quem Ele
ordenou” (Atos 17:31). Este julgamento, portanto, pertencerá a todas as
pessoas da Trindade, pois respeita Seu consentimento e autoridade;
mas para Cristo no que diz respeito à cena visível, o anúncio e a
execução da sentença; pois Cristo irá de forma visível passar e executar
sentença sobre todos. A Igreja também julgará dando sua aprovação à
decisão do juiz. É por esta razão que Cristo diz que os apóstolos
estarão sentados em doze tronos, e que eles julgarão as doze tribos de
Israel. Sim, também devemos aprovar e subscrever a sentença que
Cristo então proferirá.
As seguintes razões podem ser atribuídas para a nomeação do homem
Cristo como juiz. 1. Porque o julgamento dos homens exigirá um juiz
visível; mas Deus é invisível. 2. Porque é do agrado de Deus que o
mesmo mediador, que justificou e salvou a Igreja, também a glorifique.
“Deus julgará o mundo por aquele homem a quem Ele ordenou” (Atos 17:31);
“Eles verão o Filho do homem vindo nas nuvens dos céus com grande poder e
glória” (Mateus 24:30); “O Pai Lhe deu autoridade para julgar também porque
é o Filho do homem” (João 5:27). 3. Para que tenhamos este conforto, que
este juiz, sendo nosso redentor, nosso irmão e nosso Senhor, terá
misericórdia de nós e não condenará aqueles a quem comprou com
Seu próprio sangue e a quem Se dignou constituir Seus irmãos e

530 | P á g i n a
membros. Pode-se dizer que esse conforto consiste, primeiro, na
pessoa do juiz, que é nosso irmão e nossa carne. Depois, na promessa
do juiz, que declarou para nossa consolação: “Quem crê no Filho tem a
vida eterna” (João 3:36); “e não entrará em condenação, mas passou da morte
para a vida” (João 5:24). E, por último, o fim para o qual Ele virá, que é
libertar Sua Igreja e lançar todos os Seus e nossos inimigos na
condenação eterna. 4. É apropriado que o homem Cristo seja o juiz
por causa da justiça de Deus, que exige que aqueles que reprovaram a
Cristo e rejeitaram Seus benefícios, vejam Aquele a quem
traspassaram e se confundam ainda mais por serem compelidos a
confrontar aquele a quem Eles se opuseram fortemente.
Objeção. Mas Cristo diz que não veio para condenar o mundo. Como
então Ele deve ser o juiz? Resposta: Isso Ele diz de Sua primeira vinda,
que não foi para julgar, mas para salvar o mundo. Mas em Sua segunda
vinda, da qual falamos aqui, Ele será o juiz dos vivos e dos mortos.

IV. PARA ONDE ASCENDEU E DE ONDE ELE VIRÁ?


Esperamos que Cristo, nosso juiz, venha dos céus em uma nuvem. Ele
virá do mesmo lugar para onde os discípulos o viram subir. “O Senhor
Jesus será revelado dos céus com Seus anjos poderosos” (2 Tessalonicenses
1:7); “Daqui em diante vereis o Filho do homem assentado à direita do Poder e
vindo com as nuvens do céu” (Mateus 26:64); “Nossa cidadania é no céu; de
onde também buscamos o salvador, o Senhor Jesus” (Filipenses 3:20). Cristo,
conforme essas declarações das Escrituras, descerá em uma nuvem do
céu, onde se assenta à destra de Deus, e não do ar, do mar ou da terra.
Ele descerá dos céus de forma visível a esta região do ar, conforme Ele
ascendeu ao céu. “Ele virá da mesma forma que vós O vistes entrar no céu”
(Atos 1:11). É necessário que essas coisas sejam explicadas para que a
Igreja saiba onde procurar Seu juiz e redentor; pois assim como Cristo
quer saber para onde ascendeu, também saberá de onde voltará, para
que possamos estar certos de que Ele não deixou de lado a natureza
humana que assumiu.

531 | P á g i n a
V. DE QUE FORMA ELE VIRÁ?
Ele virá, primeiro, verdadeiramente, visivelmente e localmente, e não
imaginariamente ou aparentemente. Ele descerá da mesma forma que
subiu ao céu, que, como mostramos, era visível e local. “Eles verão o
Filho do homem vindo nas nuvens do céu” (Mateus 24:30). Eles o
reconhecerão como Deus de sua majestade visível. “Eles olharão para
Aquele a Quem traspassaram” (Zacarias 12:10). Em segundo lugar, Ele virá
revestido da glória de Seu Pai, e com divina majestade, com todos os
santos anjos, com a voz e trombeta do arcanjo, com poder divino para
ressuscitar os mortos, para separar os justos dos ímpios, para libertar
os piedosos e lançar os ímpios no castigo eterno. “O Filho do homem
virá na glória de Seu Pai, com Seus santos anjos” (Mateus 16:27). O que
significa que Ele virá com a glória que pertence somente ao Deus
verdadeiro; e glorioso em vista da comitiva de anjos com a qual Ele
será atendido. Em terceiro lugar, Ele virá repentinamente, quando o
ímpio não estiver procurando por Ele: “porque quando disserem: paz e
segurança, então repentina destruição virá sobre eles como um ladrão de noite”
(1 Tessalonicenses 5:3, 4).

VI. QUEM ELE JULGARÁ?


Ele julgará todos os homens, tanto os vivos como os mortos, os justos
e os ímpios. Ele também deve julgar os anjos maus. Os homens são
chamados de vivos ou mortos em relação ao estado que precede o
julgamento. Aqueles que permanecerem e estarão vivos no momento
do julgamento, são os vivos, enquanto todos os outros estão incluídos
nos mortos. No momento do julgamento, os mortos serão
ressuscitados, enquanto os vivos serão transformados, e mudança essa
que, no que lhes diz respeito, tomará o lugar da morte; e assim
estaremos todos perante o tribunal de Cristo.

532 | P á g i n a
Objeção. Mas está dito que aquele que crê no Filho não virá em
julgamento. Portanto, nem todos serão julgados. Resposta: Aquele que
crê no Filho de Deus não estará sob o julgamento da condenação; mas
ele ficará sujeito à absolvição. Consequentemente, todos serão
julgados, entendendo a palavra julgamento em seu sentido mais
amplo, incluindo a visão geral do julgamento, ou o julgamento de
condenação e absolvição ao mesmo tempo. O julgamento dos anjos
caídos consistirá na declaração pública e no agravamento da decisão
já proferida sobre eles.

VII. QUAL SERÁ O PROCESSO, A SENTENÇA E A EXECUÇÃO DO


JULGAMENTO FINAL
1. Os mortos serão ressuscitados pelo poder divino e virtude de Cristo,
e por Sua voz humana os chamando. “Todos os que estão nas sepulturas
ouvirão a Sua voz e sairão” (João 5:28). Os vivos serão transformados;
seus corpos mortais serão tornados imortais. 2. Cristo reunirá todos,
tanto os justos como os ímpios, dos quatro cantos da terra, e os fará
comparecer perante o Seu tribunal, por meio do ministério dos anjos.
Isso Ele fará, no entanto, não por necessidade, mas com autoridade;
não porque Ele precisará de Seu ministério, mas para que possa Se
declarar Senhor dos anjos e de todas as criaturas, e porque isso
contribuirá para Sua majestade e glória. 3. O mundo, os céus e a terra
serão dissolvidos pelo fogo: haverá uma mudança no estado atual das
coisas, mas não aniquilação. 4. Haverá uma separação entre os justos
e os ímpios, e uma sentença será dada a cada um. A sentença que será
proferida sobre os ímpios será principalmente, como mostramos
antes, de acordo com a lei, mas de forma a ser aprovada pelo
evangelho; enquanto o que será transmitido aos justos será
principalmente de acordo com o evangelho, mas para ser sancionado
pela lei. Os justos, portanto, ouvirão sua sentença do evangelho, de
acordo com que eles apreenderam dos méritos de Cristo pela fé, da
qual suas obras testificarão. “Venham, benditos, herdeiw o reino preparado

533 | P á g i n a
[para vós] (...)” (Mateus 25:34). Os ímpios, por outro lado, ouvirão a
terrível sentença da lei: “Apartai-vos, malditos, para o fogo eterno” (Mateus
25:41). 5. Haverá então a perfeita glorificação dos justos e o lançamento
dos iníquos em tormentos eternos. Cristo então levará o fiel para Si;
porque Ele disse: “Voltarei e os receberei para Mim mesmo” (João 14:3);
“Seremos arrebatados para encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos
para sempre com o Senhor” (1 Tessalonicenses 4:17). Mas os ímpios serão
lançados fora com os demônios e sentenciados ao castigo eterno.
Objeção. Mas Ele disse que os incrédulos são já estando condenados;
e que o príncipe deste mundo está julgado. Portanto, eles já estão sob
sentença de condenação e não serão novamente julgados no
julgamento final. Resposta: Os demônios e os incrédulos já estão
condenados e julgados nos seguintes aspectos: no decreto de Deus; na
Palavra de Deus, na medida em que contém uma revelação de Seu
decreto; em suas próprias consciências, e no que diz respeito ao início
de sua própria condenação. Mas no julgamento final sua condenação
será tornada pública, pois então haverá, 1. Uma manifestação do
julgamento de Deus, que aqueles que perecem são punidos com
justiça. 2. O ímpio também sofrerá punição e tormentos no corpo que
agora jaz na sepultura. 3. A punição deles será grandemente agravada,
e eles serão colocados sob tais restrições que não poderão mais
prejudicar o justo, ou desprezar a Deus e lançar reprovação sobre Sua
Igreja. O grande abismo que existe entre eles e nós os impedirá de nos
fazer mal.

VIII. POR QUE HAVERÁ UM JULGAMENTO?


A causa principal desse julgamento está no decreto de Deus. Deus
decretou e declarou que assim será. Portanto, é necessário, em vista
deste decreto, que ele aconteça. Também é necessário que Deus
obtenha o fim para o qual criou o homem e seja eternamente louvado
por Seu povo: para que possa declarar Sua grande bondade e
misericórdia para com os fiéis, que nesta vida sofrem várias provações

534 | P á g i n a
e aflições; e para que Ele possa manifestar sua justiça e verdade na
punição dos ímpios, que aqui florescem e prosperam; pois é necessário
que por fim tudo vá bem para os justos e mal para os ímpios, tanto
no corpo como na alma. Em uma palavra, o fim do julgamento final é
que Deus pode rejeitar os ímpios e libertar a Igreja, para que Ele possa
habitar em nós e ser tudo em todos.

IX. QUANDO ESTE JULGAMENTO SERÁ FEITO?


O julgamento futuro acontecerá no fim dos tempos, ou no fim do
mundo. A duração do mundo consiste em três períodos; que antes da
lei; que sob a lei; e isso sob Cristo. O período que está sob Cristo é
chamado de fim do mundo, o fim dos dias, o último tempo e a última
hora, e compreende aquela porção da história do mundo incluída
entre a primeira e a segunda vinda de Cristo. Este período não será
tão longo quanto aquele desde o início do mundo até a primeira vinda
de Cristo; pois estamos nos últimos tempos e diariamente vemos os
sinais que foram preditos em relação ao julgamento. “Filhinhos, é a
última vez; e como ouvistes que o anticristo virá, mesmo agora existem muitos
anticristos, pelos quais sabemos que é a última vez” (1 João 2:18). Mas o ano,
o mês, o dia, a hora em que acontecerá o julgamento final, ninguém
sabe, nem mesmo os anjos. O próprio Cristo o ignora, visto que
respeita sua humanidade e seu ofício como mediador, o que não exige
que Ele nos declare o tempo do julgamento. “Daquele dia e daquela hora
ninguém sabe, nem os anjos que estão nos céus, nem o Filho, mas o Pai”
(Marcos 13:32).

X. OS MOTIVOS PELOS QUE DEVEMOS PROCURAR COM


CERTEZA O JULGAMENTO
Embora ignoremos o tempo preciso do julgamento, ainda assim Deus
nos dará a certeza da certeza dele, primeiro, por causa de Sua glória,
para que possamos refutar todos aqueles que consideram a doutrina
de um julgamento futuro como uma mera fábula, e que inferem da

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aparente confusão que há no mundo, que Deus não se preocupa com
isso, ou se tem, que Ele é injusto; pois, dizem eles, deveria estar bem
com os justos, mas não é; portanto, Deus não é capaz de fazer isso ou
não é tão bom quanto Sua promessa; ou não há providência.
Respondemos a esta objeção, que na vida futura um estado diferente
de coisas sucederá ao que agora vemos nesta vida; pois visto que aqui
não está bem para os justos, será bem para eles no futuro. Em segundo
lugar, Deus deseja que conheçamos a certeza de um julgamento futuro
para nosso conforto, para que possamos ter a certeza de que, no
futuro, obteremos a libertação das misérias desta vida. Em terceiro
lugar, para que possamos nos manter no temor de Deus e no
desempenho adequado de nossos deveres, para que possamos
permanecer no julgamento. “Vigiai, portanto, e orai sempre para que sejais
considerados dignos de escapar de todas estas coisas que hão de acontecer e
de comparecer perante o Filho do homem” (Lucas 21:36); “Vendo então que
todas essas coisas serão dissolvidas, que tipo de pessoas devereis ser em toda
a sagrada conversação” (2 Pedro 3:11). Em quarto lugar, para que os
ímpios sejam despojados de toda desculpa, visto que têm sido tão
frequentemente advertidos da importância de estarem
constantemente preparados para a vinda do Filho do homem, de
forma que eles não podem dizer que foram pegos de surpresa.

XI. AS RAZÕES PELAS QUAIS DEUS NOS DEIXARÁ


IGNORANTES DO TEMPO PRECISO DO JULGAMENTO
Certo como é que haverá um julgamento futuro, o momento preciso
disso é totalmente desconhecido. “Daquele dia e daquela hora ninguém
sabe, nem os anjos que estão nos céus, nem o Filho, mas o Pai” (Marcos 13:32).
As razões pelas quais Deus terá o tempo do desconhecido julgamento
para nós são: 1. Para que Ele possa provar a nossa fé, a esperança de
uma paciência, e que nós podemos crer nEle, e perseverar na
expectativa do cumprimento de sua promessa, embora sejamos
ignorantes da época em que acontecerá nossa libertação. 2. Para que

536 | P á g i n a
Ele possa conter nossa curiosidade. 3. Para que nos guarde no Seu
temor e no cumprimento dos nossos deveres cristãos, para que não
caiamos em estado de segurança carnal, mas estejamos sempre
prontos, pois não sabemos quando virá o Senhor. 4. Para que os ímpios
não retardem o arrependimento, visto que ignoram a hora, para que
este dia não venha sobre eles despreparados. “Mas saiba disso, que se o
bom homem da casa soubesse a que relógio o ladrão viria, ele teria observado”
(Mateus 24:43); “Vigiai, portanto, porque não sabeis nem o dia nem a hora em
que o Filho do homem virá” (Mateus 25:13); “Negociais até que eu venha”
(Lucas 19:13).

XII. POR QUE ESTE JULGAMENTO É RETARDADO


O Senhor prorroga Sua vinda: 1. Para que Ele possa exercer o que é
piedoso na fé, esperança, paciência e oração. 2. Para que todos os
eleitos sejam congregados na Igreja; pois é por causa deles, e não por
causa dos ímpios, que o mundo tem permissão para subsistir. As
ordens inferiores da criação foram feitas para os filhos de Deus. Os
perversos as usam como ladrões e assaltantes. Mas quando todo o
número do povo de Deus uma vez tiver sido reunido na Igreja, então
será o fim. Deus também deseja que Seu povo seja trazido por meios
comuns; Ele fará com que ouçam Sua palavra e, por meio disso, sejam
convertidos e nascidos de novo, o que levará tempo para se cumprir.
3. Para que Ele possa dar todo o tempo necessário para o
arrependimento, como nos dias de Noé, e que Sua demora torne os
ímpios e desobedientes indesculpáveis. “Deus suportou com muito
sofrimento os vasos da ira preparados para a destruição” (Romanos 9:22);
“Não sabendo que a bondade de Deus te leva ao arrependimento” (Romanos
2:4).

537 | P á g i n a
XIII. SE O JULGAMENTO FINAL PODE SER DESEJADO
O julgamento final deve ser esperado com ansiedade, porque então
haverá uma separação entre os justos e os ímpios, que os piedosos
desejam ardentemente: pois eles continuamente clamam com Paulo:
“Quem me livrará do corpo desta morte” (Romanos 7:24); “Desejo ir e estar
com Cristo” (Filipenses 1:23). O Espírito Santo opera este desejo em seus
corações, para que digam com o Espírito e a noiva: “vem Senhor Jesus”;
e quem ouvi-lo dizer que venha. Os ímpios, por outro lado, temem e
tremem com a menção deste julgamento. Em alemão: “Denn es dienet
ihnen nicht em ihrer Bube”. Este é um certo sinal de impiedade; pois
como pode alguém dizer: vem, se não é membro da Igreja e não tem o
Espírito de Cristo, que inspira esta expressão nos piedosos.
O que então significa este artigo: “Eu creio em Cristo que virá para julgar
os vivos e os mortos?”. Significa: eu creio, 1. Que Cristo certamente virá
e que em Sua segunda vinda haverá uma renovação dos céus e da terra.
2. Que virá o mesmo Cristo que sofreu, morreu e ressuscitou por nós.
3. Que Ele virá visível e gloriosamente para libertar Sua Igreja, da qual
sou membro. 4. Que Ele virá para lançar os ímpios no castigo eterno.
A partir dessas considerações obtemos um conforto forte e sólido;
pois, vendo que o céu e a terra serão renovados, temos a confiança de
que a nossa condição no futuro será diferente e melhor do que agora:
visto que Cristo virá, temos a certeza de que nosso juiz será gracioso;
pois será a mesma pessoa que mereceu a justiça para nós, e que é
nosso irmão, redentor e defensor. Vendo que Ele virá gloriosamente,
cremos que proferirá uma sentença justa e terá poder suficiente para
nos livrar. Vendo que virá para libertar Sua Igreja, O esperaremos com
alegria: visto que virá para lançar os ímpios no castigo eterno,
suportamos pacientemente sua oposição e tirania; e finalmente, vendo
que livrará o justo e rejeitará o ímpio, também nos livrará ou rejeitará;
e, portanto, é necessário que nos arrependamos, sejamos gratos e
evitemos a segurança carnal, para que sejamos inclusos no número
daqueles a quem Ele libertará.

538 | P á g i n a
20º DIA DO SENHOR

DE DEUS, O ESPÍRITO SANTO

Questão 53. O que tu crês a respeito do Espírito Santo?


Resposta: Em primeiro lugar, que Ele é Deus verdadeiro e coeterno
com o Pai e o Filho. Em segundo lugar, que Ele também me foi dado
para me tornar, por uma fé verdadeira, um participante de Cristo
e de todos os Seus benefícios, para que Ele possa me confortar, e
permaneça comigo para sempre.

EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO 53

Existem seis artigos incluídos nesta parte do credo. O primeiro desses


trata da pessoa do Espírito Santo; o próximo da Igreja, que o Espírito
Santo congrega, confirma e preserva; enquanto a comunhão dos
santos, o perdão dos pecados, a ressurreição do corpo e a vida eterna
incluem os benefícios de Cristo, que o Espírito Santo confere à Igreja.
Ao falar do Espírito Santo, há três coisas que em particular chamam
nossa atenção, que são: Sua pessoa, Seu ofício e Seus dons, ou
operações. Para uma exposição mais completa do assunto, entretanto,
consideraremos em sua ordem as seguintes questões:
I. O que significa o termo Espírito?
II. Quem e o que é o Espírito Santo?
III. Qual é o Seu ofício?
IV. Quais são, e quão múltiplos são Seus dons?
V. De quem, e por que o Espírito Santo foi dado?
VI. A quem e em que medida Ele é dado?
VII. Quando e de que forma Ele é dado e recebido?

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VIII. Como Ele pode ser mantido?
IX. Se e como Ele pode estar perdido?
X. Por que Ele é necessário?
XI. Como podemos saber que Ele habita em nós?

I. O QUE SIGNIFICA O TERMO ESPÍRITO?


O termo espírito (de spirando) às vezes é usado para a causa, e às vezes
para o efeito. Quando considerado a causa, significa o ser ou a força
que coloca qualquer coisa em movimento, e é incriado ou criado. É
incriado no sentido em que Deus é essencialmente e pessoalmente um
Espírito, isto é, incorpóreo, indivisível, possuindo uma essência
espiritual, mas sem dimensões corporais. “Deus é um Espírito” (João
4:24). O espírito criado é imaterial, como os anjos, tanto bons quanto
maus, almas humanas, e outras coisas semelhantes. “Quem faz Seus
anjos espíritos (...) Tu lhes tiraste o fôlego e eles morrem” (Salmos 104:4, 29).
Ou é material, como o vento, vapores e outros elementos semelhantes. “O
vento sopra onde quer” (João 3:8). Quando considerado o efeito, ou o
movimento em si, significa: 1. O ar que se move. 2. O impulso e o
movimento do ar. 3. O vento e os vapores movidos de formas
diferentes. 4. Afetos espirituais e exercícios bons ou maus. É assim que
falamos do espírito de medo, de coragem, de revolução, e os demais
estados de espírito. 5. Os dons do Espírito Santo. “Não extingais o Espírito”
(1 Tessalonicenses 5:19). Como é usado aqui, o termo Espírito significa
a causa que influencia ou move, que é a terceira pessoa da Trindade,
que atua eficazmente nas mentes e vontades dos homens.
A terceira pessoa da Divindade é chamada de Espírito, 1. Porque Ele é
uma essência espiritual, imaterial e invisível. 2. Porque é inspirado pelo
Pai e pelo Filho, e é a pessoa por meio da qual o Pai e o Filho
influenciam imediatamente o coração dos eleitos, ou porque é o
agente imediato das obras divinas. 3. Porque Ele mesmo inspira e
influencia imediatamente o coração do povo de Deus, por isso é

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chamado a força do Altíssimo. 4. Porque Ele é Deus, igual e o mesmo
Deus com o Pai e o Filho; e Deus é um Espírito. Ele é chamado de
santo, 1. Porque Ele é santo em Si mesmo e em Sua própria natureza.
2. Porque Ele é o santificador, que imediatamente santifica e torna
santo o povo de Deus. O Pai e o Filho santificam por meio do Espírito
Santo; e, portanto, mediatamente.

II. QUEM E O QUE É O ESPÍRITO SANTO?


O Espírito Santo é a terceira pessoa da verdadeira e única Divindade,
procedente do Pai e do Filho, sendo coeterno, coigual e consubstancial
com o Pai e o Filho, e é enviado por ambos aos corações dos fiéis, para
que possa santificá-los e prepará-los para a vida eterna.
Para que esta descrição ou definição possa ser estabelecida contra os
hereges, as mesmas coisas devem ser provadas nas Escrituras a
respeito da Divindade do Espírito Santo que já mostramos com
respeito à Divindade do Filho; a saber: que o Espírito Santo é uma
pessoa: que Ele é distinto do Pai e do Filho; que Ele é igual a ambos;
que Ele é consubstancial com o Pai e o Filho. As seguintes declarações
do apóstolo Paulo estabelecem todas essas proposições: “As coisas de
Deus ninguém conhece, senão o Espírito de Deus. Agora não recebemos o
Espírito do mundo, mas o Espírito que é de Deus, para que conheçamos as
coisas que nos são dadas gratuitamente por Deus“ (1 Coríntios 2:11, 12);
“Todas essas obras o único e mesmíssimo Espírito, dividindo a cada homem
individualmente como deseja” (1 Coríntios 12:11). Mas devemos proceder
à prova dessas várias proposições em sua ordem.
I. Que o Espírito Santo é subsistente ou pessoa é provado, 1. A partir
dos exemplos que são registrados de ter Se manifestado em uma forma
visível. “O Espírito Santo desceu em forma corpórea, como uma pomba sobre
Ele” (Lucas 3:22); “E lhes apareceram línguas divididas, como de fogo, e
pousaram sobre cada um deles” (Atos 2:3). Mas não é possível que
nenhuma qualidade ou exercício da mente ou do coração assuma e

541 | P á g i n a
exiba uma forma corpórea; pois um acidente somente não assume
nenhuma forma particular, mas também requer algo mais ao qual
possa se unir, e na qual possa existir. Nem é o ar o assunto de
santidade, piedade, o amor de Deus e outros exercícios espirituais 2.
Que o Espírito Santo é uma pessoa é evidente pelo fato de que Ela é
chamada de Deus. “Não sabeis que sois o templo de Deus e que o Espírito de
Deus habita em vós” (1 Coríntios 3:16); “Por que Satanás encheu o teu coração
para mentir ao Espírito Santo: não mentiste aos homens, mas a Deus” (Atos
5:3, 4). Ver também Isaías 40:7, 13; Atos 28:25; Efésios 4:4, 30. Em
qualquer sentido, portanto, os hereges podem admitir que o Espírito
Santo é chamado de Deus, isso deve significar que Ele é um espírito
subsistente ou pessoa, visto que Deus tem uma existência pessoal; mas
nossa piedade, bondade, exercícios religiosos e outras afeições
espirituais não podem ser chamados de Deus. 3. O Espírito Santo é
uma pessoa, porque é o autor do nosso batismo e porque somos
batizados em Seu nome, tanto como no nome do Pai e do Filho; isto
é, por Seus mandamentos, vontade e autoridade. Mas ninguém é
batizado pela vontade e autoridade de uma coisa morta, ou de algo
que não existe, ou em nome de quaisquer dons; mas pela ordem de
Deus. 4. Que o Espírito Santo é subsistente pode ser novamente
inferido disso, que as propriedades de uma pessoa são continuamente
atribuídas a Ele. Assim se diz que Ele nos ensina, conforta e nos guia
em toda a verdade; que Ele distribui dons como deseja; que Ele chama
e envia apóstolos, e fala por eles: “O Espírito Santo vos ensinará na mesma
hora o que deveis dizer” (Lucas 12:11); “Separe-me Barnabé e Saulo” (Atos
13:2); “Eles tentaram ir para a Bitínia; mas o Espírito não os permitiu” (Atos
16:7). Portanto, é dito que Ele declara coisas que estão por vir; que Ele
predisse a morte de Simeão, a destruição de Judas, o traidor, a jornada
de Pedro a Cornélio, as cadeias e aflições pelas quais Paulo foi detido
em Jerusalém, a apostasia dos últimos tempos, o significado da
entrada do sumo sacerdote no lugar santíssimo, da nova aliança, dos
sofrimentos de Cristo e na glória que se seguiria, e outros eventos

542 | P á g i n a
semelhantes, que Ele faz intercessão por nós com gemidos que não
podem ser proferidos, que nos faça clamar: “Aba, Pai”, que Ele é tentado
por aqueles que mentem para Ele e, finalmente, que Ele dá
testemunho no céu com o Pai e o Filho. Todas essas coisas pertencem
a uma pessoa que existe, vive, deseja e age com desígnio. 5. O Espírito
Santo também se distingue claramente dos dons de Deus, o que é
outra prova de Sua personalidade. “Há diversidade de dons, mas o mesmo
Espírito; mas tudo isso opera aquele único e mesmíssimo Espírito, dividindo a
cada homem individualmente como deseja” (1 Coríntios 12:4, 11). Esses dons
diferem, portanto, muito do próprio Espírito.
Objeção. O dom de Deus não é uma pessoa. O Espírito Santo é
chamado de dom de Deus. Portanto, Ele não é uma pessoa. Resposta:
A primeira proposição é falsa se for tomada de forma geral; pois o
Filho também foi dado e é o dom de Deus e, no entanto, é uma pessoa.
Mas o Espírito Santo é chamado de dom por causa de Sua missão;
porque Ele é enviado do Pai e do Filho. “O Consolador que vos enviarei
da parte do Pai” (João 15:26). Ele é um dom que afeta e assegura o
restante de Seus dons.
II. Que o Espírito Santo é distinto do Pai e do Filho, é provado contra
os sabelianos que afirmam que Ele é subsistente do Pai: 1. Do fato de
que Ele é chamado o Espírito do Pai e do Filho. Mas ninguém é seu
próprio espírito, não mais do que ele é seu próprio pai ou filho. Por
isso, o Espírito Santo sendo o Espírito do Pai e do Filho, é distinto de
ambos. 2. O Espírito Santo é expressamente declarado nas Escrituras
como sendo distinto do Pai e do Filho. “Orarei ao Pai, e Ele Lhe dará
outro consolador” (João 14:16); “Quem vos enviarei da parte do Pai” (João
15:26); “Há três que testificam no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo” (1
João 5:7). O Espírito Santo é aqui evidentemente distinto do Pai e do
Filho. 3. Ele é dito ser enviado pelo Pai e o Filho, e deve, portanto, ser
outra pessoa; pois ninguém é enviado por si mesmo. Uma pessoa pode,
de fato, vir por sua própria vontade e por si mesma; mas ninguém

543 | P á g i n a
pode enviar a si mesmo. “Quem vos enviarei da parte do Pai” (João 15:26);
“Quem o Pai enviará em Meu nome” (João 14:26). 4. Atributos distintos são
atribuídos ao Espírito Santo. Ele somente procede do Pai e do Filho;
e Se manifestou na forma de uma pomba e na semelhança de fogo.
Cristo também foi concebido, não pelo Pai ou pelo Filho, mas pelo
Espírito Santo, ou seja, por Sua virtude e poder imediatos. “O Espírito
Santo virá sobre Ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com Sua sombra” (Lucas
1:35). Portanto, é claro que o Espírito Santo é distinto do Pai e do Filho.
Os hereges sendo convencidos por esses argumentos da Palavra de
Deus, admitem que o Espírito Santo é subsistente, mas, dizem, do Pai,
e raciocinam da seguinte forma:
Objeção 1. O poder do Pai é o próprio Pai. O Espírito Santo é
chamado de poder de Deus. Portanto, o Espírito Santo é o próprio Pai.
Resposta: Existem aqui quatro termos, porque na proposição principal
a palavra poder é considerada a natureza ou poder do Pai; mas na
proposição menor significa a pessoa por meio da qual o Pai exerce Seu
poder. Portanto, há aqui um sofisma.
Objeção 2. Aquilo que é comum a todas as pessoas da Divindade não
deve ser restrito a uma. A palavra Espírito é comum às três pessoas.
Portanto, não deve ser restrito à terceira. Resposta: Concordamos com
todo o argumento se a palavra Espírito for entendida como a essência
das pessoas da Trindade, mas não se for entendida como a ordem de
Sua existência e operação. Pois quem respira e o Espírito são
diferentes; uma é a pessoa que procede, a outra é a pessoa de quem
procede; uma é a terceira pessoa da Divindade, a outra é a primeira
ou a segunda. O Espírito Santo é chamado de terceira pessoa, não
porque haja em Deus algum primeiro ou último no tempo, mas no
que diz respeito à ordem ou de existência, porque Ele tem Sua essência
do Pai e do Filho, de quem Ele procedeu eternamente, assim como Ele
também é o Espírito de ambos. O Filho é por uma razão semelhante
chamada de segunda pessoa, porque Ele é do Pai. O Pai é chamado de
primeira pessoa porque não é de ninguém.

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III. Que o Espírito Santo é igual ao Pai e ao Filho, os seguintes
argumentos provam de forma mais conclusiva. 1. É comunicada a Ele
a essência do Pai e do Filho; porque Ele procedeu de ambos, e é o
Espírito de ambos. Mas a essência de Deus inclui tudo o que está nEle;
e visto que isto é indivisível, deve necessariamente ser comunicado a
Ele inteiro, e o mesmo como é no Pai e no Filho; pois assim como o
espírito que está no homem é da essência do homem, o Espírito que
está em Deus é da essência de Deus. Consequentemente, percebemos
prontamente o que devemos entender pela procissão do Espírito
Santo; é a comunicação da essência divina, pela qual a terceira pessoa
da Divindade recebeu do Pai e do Filho, como dAquele cujo Espírito
Ele é, a mesma e inteira essência que Eles possuem e retêm; assim
como a geração do Filho é a comunicação da essência divina, pela qual
a segunda pessoa da Divindade recebeu, como Filho do Pai, a mesma
e inteira essência que o Pai possui e retém.
Que o Espírito Santo procedeu do Filho também é estabelecido por
essas considerações. Primeiro, porque Ele também é chamado de
Espírito do Filho. “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, Ele não é Seu”
(Romanos 8:9); “Deus enviou o Espírito de Seu Filho aos vossos corações,
clamando, Aba, Pai” (Gálatas 4:6). Ele é chamado o Espírito do Filho,
não porque Ele foi dado ao Filho pelo Pai; mas porque Ele procede da
essência do Pai e do Filho igualmente, na medida em que o Filho é
igual e consubstancial com o Pai. Em segundo lugar, porque o Filho o
dá em conexão com o Pai. “Quem vos enviarei da parte do Pai” (João 15:16);
“Recebei o Espírito Santo”. (João 20:22). Terceiro, porque o Espírito Santo
recebe a sabedoria do Filho que Ele nos revela. “Ele receberá o que é Meu
e o mostrará a vós” (João 16:14). Na medida agora como o Espírito Santo
é o próprio Deus, consubstancial ao Pai e ao Filho, como veremos
rapidamente, Ele não pode receber coisa alguma, exceto dEle de cuja
substância Ele é. Consequentemente, Ele procedeu também da
substância do Filho.

545 | P á g i n a
2. Que o Espírito Santo é igual ao Pai e ao Filho é provado pelo fato
de que todos os atributos da essência divina são atribuídos a Ele.
Assim, a eternidade é atribuída a Ele; porque Ele existiu na criação de
todas as coisas, e porque Deus nunca esteve sem o Seu Espírito. “O
Espírito de Deus se movia sobre a superfície das águas” (Gênesis 1:2).
Portanto, de imensidão; porque Ele habita em todos os filhos de Deus.
“O Espírito de Deus habita em vós” (1 Coríntios 3:16). Portanto, de
onipotência; porque Ele criou e preserva todas as coisas em conexão
com o Pai e o Filho. “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus; e todo o
exército deles pelo sopro de sua boca” (Salmos 33:6); “Todas essas obras são
aquele único e o mesmo Espírito, repartindo a cada homem individualmente
como Ele deseja” (1 Coríntios 12:11). Assim, de onisciência: “O Espírito
açoita todas as coisas, sim, as coisas profundas de Deus” (1 Coríntios 2:10).
Portanto, as Escrituras atribuem ao Espírito Santo imensa bondade e
santidade, e a geração das mesmas nas criaturas. “Teu Espírito é bom;
conduza-me à terra da retidão” (Salmos 143:10); “Mas vós sois justificados
em nome do Senhor Jesus e pelo Espírito do nosso Deus” (1 Coríntios 6:11). O
mesmo pode ser dito do atributo da imutabilidade: “Esta Escritura deve
ter sido cumprida a qual o Espírito Santo falou” (Atos 1:16). Portanto, diz-
se que o Espírito Santo possui o atributo da verdade, sim, é a fonte da
verdade. “Quando vier o Consolador, sim, o Espírito da verdade” (João 15:26);
“O Espírito é a verdade” (1 João 5:6). Bondade indizível é atribuída ao
Espírito Santo: ”O amor de Deus é derramado por toda a parte em nossos
corações, pelo Espírito Santo, que nos é dado“ (Romanos 5:5); “Da mesma
forma, o Espírito também auxilia nas nossas enfermidades” (Romanos 8:26).
O mesmo se aplica ao desprazer contra o pecado: ”Eles se rebelaram, e
contrariaram Seu Espírito Santo“ (Isaías 63:10); “Não entristeçais o Espírito
Santo de Deus, pelo qual fostes selados” (Efésios 4:30); “que vós concordastes
em tentar o Espírito do Senhor“ (Atos 5:9); “A blasfêmia contra o Espírito
Santo não será perdoada aos homens” (Mateus 12:31).

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3. As mesmas obras divinas que são atribuídas ao Pai e ao Filho
também são atribuídas ao Espírito Santo: tais como a criação, a
preservação e o governo de todo o mundo. “Por Seu Espírito Ele adornou
os céus” (Jó 26:13); “O Espírito de Deus Me fez” (Jó 33:4). Assim, os milagres
são atribuídos ao Espírito Santo: “eu expulso demônios pelo Espírito de
Deus” (Mateus 12:28); “há diversidade de dons, mas o mesmo Espírito” (1
Coríntios 12:4). O mesmo é verdade para aquelas obras que pertencem
à salvação da Igreja: tais como o chamado e envio de profetas. “O
Senhor Deus e Seu Espírito Me enviou” (Isaías 48:6); “Separe-me Barnabé e
Saulo” (Atos 13:2); “Cuidem de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo
os constituiu supervisores” (Atos 20:28). O Espírito Santo confere ao
ministério os dons de que precisam para o desempenho adequado de
seus deveres: “O Espírito Santo vos ensinará o que deveis dizer” (Lucas
12:12); “A manifestação do Espírito é dada a cada homem para o benefício de
cada um” (1 Coríntios 12:7). O Espírito Santo inspirou os profetas e
apóstolos: “Os homens santos de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo”
(2 Pedro 1:21). A instituição dos sacramentos se refere ao Espírito
Santo: “Batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mateus
28:1); “o Espírito Santo, significando que o caminho para o lugar mais sagrado
de todos ainda não foi manifestado, enquanto ainda (...)” (Hebreus 9:8). A
previsão, ou a revelação das coisas por vir, é atribuída ao Espírito
Santo: “Ele irá lhes mostrar as coisas que virão” (João 16:13); “Ágabo
significou pelo Espírito que deveria haver grande escassez (...)” (Atos 11:28);
“Agora o Espírito diz expressamente que nos últimos tempos, alguns se
desviarão da fé (...)” (1 Timóteo 4:1). O Espírito Santo congrega a Igreja:
“Em quem também vós estais edificaram juntos para uma habitação de Deus
através do Espírito:” (Efésios 2:22); “Por um Espírito somos todos batizados
em um só corpo” (1 Coríntios 12:13). O Espírito Santo ilumina a mente:
“Ele vos ensinará todas as coisas” (João 14:26); “Ele irá guiá-lo em toda a
verdade” (João 16:13); “Deus deu a vós o Espírito de sabedoria e revelação no
conhecimento dEle” (Efésios 1:17). O Espírito Santo é o autor da
regeneração e santificação: “Se o homem não nascer da água e do Espírito”

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(João 3:5); “Somos transformados na mesma imagem de glória em glória, sim,
como pelo Espírito do Senhor” (2 Coríntios 3:18). O Espírito Santo governa
e controla a vida e as ações dos piedosos: “todos os que são guiados pelos
Espírito de Deus, são filhos de Deus” (Romanos 8:14); “foram proibidos pelo
Espírito Santo de pregar a Palavra na Ásia“ (Atos 16:6). O Espírito Santo
governa e controla tempos de tentação: “Mas o Consolador que é o Espírito
Santo(...)” (João 14:26); “As igrejas foram edificadas; e andando no conforto
do Espírito Santo se multiplicaram“ (Atos 9:31); “Derramarei sobre a casa de
Davi o Espírito de graça e súplica“ (Zacarias 12:10). O Espírito Santo
fortalece e preserva os piedosos até o fim contra o poder da tentação:
“O Espírito de força repousará sobre Ele” (Isaías 11:2); “Ele vos dará outro
Consolador, para que fique convosco para sempre” (João 14:16); “Selado com
o Espírito Santo da promessa” (Efésios 1:13). O Espírito Santo perdoa o
pecado e nos adota na família de Deus: “Recebestes o Espírito de adoção”
(Romanos 8:15); “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade“ (2
Coríntios 3:17); “Vós sois santificados, fostes justificados em nome do Senhor
Jesus e pelo Espírito do nosso Deus“ (1 Coríntios 6:11). O Espírito Santo dá
vida e salvação eterna: “é o Espírito que vivifica“ (João 6:63); “Se o Espírito
daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, também deve
vivificar seus corpos mortais por Seu Espírito que habita em vós” (Romanos
8:11). O Espírito Santo também julga o pecado: “Quando Ele vier,
convencerá o mundo do pecado” (João 16:8); “A blasfêmia contra o Espírito
Santo não será perdoada aos homens” (Mateus 12:31).
4. As Escrituras atribuem a mesma e igual honra ao Espírito Santo, o
que fazem ao Pai e ao Filho. Mas a honra e adoração divinas não
podem ser atribuídas a ninguém, mas somente a Deus. Por isso, o
Espírito Santo deve ser igual às outras pessoas da Divindade. “Há três
que testificam no céu, o Pai, a Palavra e o Espírito Santo, e estes três são um”
(1 João 5:7). A partir dessa passagem é claramente evidente que o Espírito
Santo é o mesmo Deus verdadeiro com o Pai e o Filho, como também
é provado pela seguinte declaração: “Vá, ensineis todas as nações,

548 | P á g i n a
batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo“ (Mateus 28:19),
do qual somos ensinados que somos batizados em nome, fé, adoração
e religião do Espírito Santo igualmente com o Pai e o Filho; e que o
Espírito Santo também é o autor do batismo e do ministério. Portanto,
também devemos crer no Espírito Santo e colocar nossa confiança
nEle: “Não se turbe o vosso coração” (João 14:1)61. “Eu rogarei ao Pai, e Ele
vos dará outro Consolador para que fique convosco para sempre “ (João
14:16). O pecado contra o Espírito Santo não é perdoado: portanto, o
pecado é cometido contra Ele. Nós somos Seus templos: “Vós sois o
templo de Deus, e o Espírito de Deus habita em vós” (1 Coríntios 3:16). Os
apóstolos em suas epístolas às diferentes igrejas desejaram-lhes graça
e paz da parte do Espírito Santo: “A comunhão do Espírito Santo seja com
todos vós” (2 Coríntios 13:14).
Objeção 1. Quem recebe de outro não é igual a quem dá. O Espírito
Santo recebe do Pai e do Filho. Portanto, Ele não é igual ao Pai e ao
Filho. Resposta: A proposição principal é verdadeira apenas no caso de
alguém receber de outra uma parte, e não o todo, ou no caso dele
receber sucessivamente o que não é verdadeiro quando aplicado ao
Espírito Santo. E quanto à segunda proposição do silogismo acima,
que o Espírito Santo recebeu do Pai e do Filho Sua ordenação e missão
para nós, para que Ele pudesse nos instruir imediatamente, ao
contrário, estabelece Sua igualdade, visto que o ensino nesta forma é
obra divina.

61 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

549 | P á g i n a
Objeção 2. Aquele que é enviado não é igual a quem envia. O Espírito
Santo é enviado pelo Pai e pelo Filho. Portanto, Ele não é igual ao Pai
e Filho. Resposta: A primeira proposição é falsa, se compreendida de
forma geral; porque Aquele que é enviado pode ser igual Àquele que
envia. Cristo foi enviado pelo Pai e, não obstante, é igual ao Pai. É,
portanto, corretamente dito por Cirilo62: “Ser enviado e render obediência,
não exclui a igualdade”.
4. Que o Espírito Santo é consubstancial, o que significa que Ele é o
mesmo Deus verdadeiro com o Pai e o Filho, é provado; 1. Porque Ele
é o Espírito do Pai e do Filho - procede de ambos - e é o Espírito de
Deus, em Deus e de Deus. Portanto, Ele tem a mesma e toda a essência
divina que pertence ao Pai e ao Filho, comunicada a Ele, na medida
em que é impossível multiplicar ou predizer a essência de Deus, ou
criar outra essência divina. 2. Só existe um Jeová. O Espírito Santo é
Jeová: pois as Escrituras se aplicam a Ele aquelas coisas que são
faladas de Jeová, como uma comparação das seguintes passagens
mostrará claramente: Levítico 16:1, 34; e Hebreus 9: 7–10. Também
Levítico 26:11, 12 e 2 Coríntios 6:16; Deuteronômio 9:24, 25; e Isaías
63:10, 11. Também Salmos 95:7 e Hebreus 3:7. Também Isaías 6:9 e Atos
28:5. 3. Existe apenas um Deus verdadeiro. O Espírito Santo é o
verdadeiro Deus, não menos do que o Pai ou o Filho, porque Ele é
Jeová, e muitas vezes é chamado de Deus em um sentido absoluto,
como quando disse de Ananias: “Não mentiste aos homens, mas a Deus”
(Atos 5:4). Portanto, Ele é consubstancial ao Pai e ao Filho.
Objeção. Quem é de outro não é consubstancial com ele, ou não é o
mesmo com aquele de quem é. O Espírito Santo é do Pai e do Filho.
Portanto, Ele não é consubstancial ao Pai e ao Filho. Resposta: A
proposição principal é verdadeira quando usada em referência a
criaturas. Há, no entanto, uma ambiguidade na expressão ser de outro.

62 Cirilo (827-869 AD), o filósofo.

550 | P á g i n a
Aquele que é de outro no sentido de não ter a mesma, nem toda a
essência não é consubstancial, o que, entretanto, não é verdade para o
Espírito Santo. Portanto, segue-se apenas que Ele não é a mesma
pessoa. Invertendo o argumento, então podemos responder: porque
Ele é do Pai e do Filho, Ele é ao mesmo tempo consubstancial.

III. QUAL É O OFÍCIO DO ESPÍRITO SANTO?


O ofício do Espírito Santo é produzir santificação no povo de Deus.
Ele faz isso imediatamente do Pai e do Filho. É por isso que Ele é
chamado de Espírito de santidade. Pode-se dizer que o ofício do
Espírito Santo abrange as seguintes coisas: instruir, regenerar, unir-se
a Cristo e a Deus, governar, confortar e nos fortalecer.
1. O Espírito Santo nos ilumina e nos ensina para que possamos saber
as coisas que devemos e entendê-las corretamente de acordo com a
promessa de Cristo: “Ele vos ensinará todas as coisas” (João 14:26); “Ele irá
guiá-los em toda a verdade” (João 16:13). Foi assim que Ele ensinou os
apóstolos no dia de Pentecostes, que antes desconheciam a doutrina
relativa à morte e ao reino de Cristo. Ele produziu uma nova luz em
suas mentes, o notável conhecimento de línguas lhes comunicou e
cumpriu a profecia de Joel. É por esta razão que o Espírito Santo é
chamado nas Escrituras de mestre da verdade, o Espírito de sabedoria,
revelação, compreensão, conselho, conhecimento e outros espíritos
semelhantes.
2. O Espírito Santo nos regenera, quando cria em nossos corações
novos sentimentos, desejos e inclinações, ou gera em nós fé e
arrependimento. “Se o homem não nascer da água e do Espírito, não pode
entrar no reino de Deus” (João 3:6); “Na verdade, Eu vos batizo com água para
o arrependimento, mas Aquele que vier depois de mim vos batizará com o
Espírito Santo e com fogo” (Mateus 3:11). Este batismo que Cristo efetua
é a própria regeneração: aquilo que foi representado pelo batismo
externo de João e outros ministros.

551 | P á g i n a
3. Ele nos une a Cristo, para que sejamos Seus membros e vivificados
por Ele, e assim sejamos participantes de todos os Seus benefícios.
“Derramarei Meu Espírito sobre toda a carne” (Joel 2:28); “Mas vós fostes
lavados, fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus e
pelo Espírito do nosso Deus; (1 Coríntios 6:11); “Pois por um Espírito somos
todos batizados em um corpo” (1Coríntios 12:13); E nisto sabemos que Ele
habita em nós, pelo Espírito que nos deu” (1 João 4:13); “Ninguém pode dizer
que Jesus é o Senhor, a não ser pelo Espírito Santo. Agora há diversidade de
dons, mas o mesmo Espírito” (1 Coríntios 12:3, 4)63.
4. Ele nos governa. Ser governado pelo Espírito Santo é ser guiado e
dirigido por Ele em todas as nossas ações, estar inclinado a seguir o
que é certo e bom, e fazer as coisas que o amor a Deus e ao próximo
exigem, o que compreende todas as virtudes cristãs da primeira e
segunda tábua. “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, são filhos
de Deus” (Romanos 8:14); “Os apóstolos começaram a falar em outras
línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem” (Atos 2:4).
5. O Espírito Santo nos consola em nossos perigos e aflições. Os
apóstolos a princípio fugiram e se esconderam por medo dos judeus;
mas quando receberam o Espírito Santo, saíram publicamente e se
alegraram quando foram chamados a sofrer, por causa de sua
profissão do evangelho. “Ele lhes dará outro Consolador, para que
permaneça com vós para sempre” (João 14:16).
6. O Espírito Santo nos fortalece e nos confirma quando estamos fracos
e vacilantes na nossa fé, e da nossa salvação nos assegura, ou o que é
a mesma coisa, Ele avance e preserva em nós os benefícios de Cristo
até o fim. Foi assim que os apóstolos, que a princípio eram tímidos e
cheios de dúvidas, ousados e corajosos se tornaram, que qualquer um
poderá ver ao comparar o sermão de Pedro no dia de Pentecostes com
a conversa dos dois discípulos em seu caminho para Emaús: “Nós

63 Correção de referências. A tradução em inglês trazia: 1 Coríntios 6:11-13; João


3:24; 1 Coríntios 12:3, 4.

552 | P á g i n a
confiamos que era Ele, que deveria ter redimido Israel (...)” (Lucas 24:21).
Cristo fala sobre isso quando diz: “Os vossos corações se alegrarão, e
ninguém vos retira a vossa alegria” (João 16:22). “Ele ficará convosco para
sempre” (João 14:16). É por esta razão que o Espírito Santo é chamado
de Espírito de ousadia e penhor de nossa herança.
As Escrituras, em vista dessas diferentes partes do ofício do Espírito
Santo, atribuem a Ele vários títulos. Assim, Ele é chamado de Espírito
de adoção, porque nos assegura a afeição paterna que Deus nutre por
nós e nos testemunha a bondade e a compaixão gratuitas com que o
Pai nos abraça em Seu Filho unigênito. É, portanto, por meio do
Espírito que somos levados a clamar: “Aba, Pai” (Romanos 8:15, 16). Ele
é chamado de selo e penhor de nossa herança, porque nos assegura
nossa salvação. “Mas aquele que noc confirma convosco em Cristo, e nos
ungiu, é Deus, o qual também nos selou e deu o penhor do Espírito em nossos
corações” (2 Coríntios 1:21); “Depois que crestes, fostes selados com o Espírito
Santo da promessa, que é o penhor da nossa herança” (Efésios 1:13, 14). Ele
é chamado de vida, ou o Espírito da vida; porque é por Ele que o velho
homem é mortificado e o novo vivificado. “Porque a lei do Espírito da vida
em Cristo Jesus me libertou da lei do pecado e da morte” (Romanos 8:2). Ele
é chamado de água (Isaías 44:3) porque Ele nos refrigera quando quase
vencidos pelo pecado, de seu poder nos livra e nos torna frutíferos em
obras de justiça. Ele também é chamado de fogo (Mateus 3:11). Porque
Ele continuamente consome as concupiscências e as paixões malignas
que ardem em nossos corações e desperta em nós o amor a Deus e ao
próximo. Ele é chamado de fonte de água viva (Apocalipse 7:17) porque
é dEle e por meio dEle que todas as riquezas e bênçãos celestiais fluem
para nós. Ele é chamado de Espírito de oração; porque Ele nos anima
e nos ensina a orar: “Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes
de Jerusalém o Espírito da graça e da súplica” (Zacarias 12:10); “O Espírito
ajuda nossas enfermidades, pois não sabemos o que devemos orar como
convém” (Romanos 8:26). Ele é chamado de óleo da alegria, porque nos

553 | P á g i n a
torna alegres, vivos e fortes. “Portanto, Deus, Teu Deus te ungiu com óleo de
alegria mais do que a Teus companheiros” (Salmos 45:7). Ele é chamado de
Consolador; porque Ele opera a fé em nós, de uma consciência má nos
livra, purifica nossos corações e nos conforta de tal forma que até
mesmo nos gloriamos em nossas aflições. Ele é chamado de advogado
ou intercessor; porque Ele intercede por nós com gemidos que não
podem ser proferidos (Romanos 8:26). E, por último, Ele é chamado o
Espírito da verdade, sabedoria, entendimento, alegria, alegria, fé,
ousadia, graça, e outras qualidades semelhantes.
Objeção 1. Mas as coisas que agora foram especificadas como
incluídas no ofício do Espírito Santo, pertencem também ao Pai e ao
Filho. Portanto, elas não devem ser atribuídas ao Espírito Santo como
se fossem peculiares apenas a Ele. Resposta: Elas pertencem ao Pai e
ao Filho mediatamente; mas ao Espírito Santo imediatamente.
Objeção 2. Mas Saul e Judas não obtiveram a herança, e ainda assim
Eles tinham o Espírito Santo. Portanto, o Espírito Santo não é o
penhor de nossa herança. Resposta: Eles tinham, de fato, alguns dos
dons do Espírito, mas não o Espírito de adoção. E se ainda for
objetado que é o mesmo Espírito, respondemos: é verdade; mas Ele
não opera as mesmas coisas em todos. É verdade que a conversão e a
adoção são feitas apenas nos eleitos. Portanto, devemos agora falar dos
dons do Espírito Santo e de suas diferenças.

IV. O QUE SÃO, E QUANTO SÃO OS DONS DO ESPÍRITO SANTO


Os dons do Espírito Santo podem ser mencionados e compreendidos
nas diferentes partes de Seu ofício já especificadas. Eles incluem a
iluminação da mente, o dom de línguas, profecia, interpretação,
milagres, fé, regeneração, oração, força, constância, e outras qualidades
semelhantes. Esses dons são duplos: aqueles que são comuns tanto aos
piedosos quanto aos ímpios; e como aos que são peculiares apenas aos
piedosos. Os primeiros são novamente divididos em duas classes, a

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primeira das quais inclui os dons que são dados a determinados
indivíduos, e em momentos específicos, como o maravilhoso poder de
falar em diferentes línguas, o dom de profecia, a fé em milagres, e
outros dons, que eram necessários para os apóstolos e a Igreja
primitiva, quando o evangelho deveria ser pregado pela primeira vez
entre as diferentes nações da terra. Esses dons foram, portanto,
conferidos a eles de forma miraculosa. A outra classe de dons comuns
tanto aos piedosos quanto aos ímpios inclui os que são necessários
em todos os momentos e para todos os membros da Igreja. Eles são
como o dom de línguas, interpretação, artes, ciências, sabedoria,
conhecimento, eloquência e outros, que pertencem à perpetuação do
ministério. Esses dons são agora dados a todos os membros de Cristo,
de acordo com a necessidade de Sua vocação, embora não da forma
milagrosa em que foram dados aos apóstolos, mas são obtidos por
meio de trabalho, diligência e estudo. Esses dons, no entanto, que são
peculiares aos piedosos incluem todos aqueles que são compreendidos
na ideia de santificação e adoção, como justificar a fé, regeneração,
oração prevalecente, amor a Deus e ao próximo, esperança, paciência,
constância e outros dons pertencentes à nossa salvação. Estes são
dados aos eleitos apenas em sua conversão. “Quem o mundo não pode
receber” (João 14:17); “O próprio Espírito dá testemunho com o nosso espírito
que somos filhos de Deus, e intercede por nós com gemidos que não podem ser
proferidos” (Romanos 8:16; 26). É por essa razão que Ele é chamado de
Espírito de adoção.
Objeção. Mas tem havido muitos fora da Igreja que tiveram um
conhecimento íntimo das ciências, línguas e outros conhecimentos
semelhantes. Portanto, esses não devem ser enumerados entre os dons
do Espírito. Resposta: Esses dons, embora possam ser encontrados
fora da Igreja, são, não obstante, o resultado da operação geral de
Deus, que pode existir sem um conhecimento correto dEle; mas na
Igreja eles são reconhecidos como dons do Espírito Santo, porque são
considerados o resultado de Sua poderosa operação.

555 | P á g i n a
Todos esses dons, como já foi observado, podem ser apropriadamente
atribuídos às diferentes partes do ofício do Espírito Santo. O
conhecimento das línguas e das ciências pode ser remetido para o
ofício de ensino; ao passo que o milagroso e maravilhoso dom de
línguas pode ser compreendido em parte no ofício de governar, pois
os apóstolos falavam como o Espírito Santo lhes concedia que
falassem, em parte no ofício de ensinar e estabelecer. Portanto, o dom
de profecia e interpretação pertencem ao ofício de ensino; pois o
Espírito ensina, tanto iluminando a mente internamente, como a
informando por meio da Palavra. A fé e a conversão se referem àquela
parte do ofício do Espírito Santo, que pertence à nossa regeneração e
união com Cristo. Que Ele é o Espírito de oração, como orar nos
ensinando, pertence à Sua função de nos guiar e governar. Da mesma
forma, todos os outros dons do Espírito podem ser referidos a algumas
partes específicas de Seu ofício.

V. POR QUEM, E POR QUE O ESPÍRITO SANTO FOI DADO


O Pai dá o Espírito Santo por meio do Filho, como as seguintes
declarações da Palavra de Deus suficientemente afirmam. “Espereis pela
promessa do Pai” (Atos 1:4); “Derramarei Meu Espírito sobre toda a carne”
(Atos 2:17); “Orarei ao Pai e Ele enviará outro Consolador” (João 14:16);
“Quem o Pai enviará em Meu nome” (João 14:26). O Filho também dá o
Espírito Santo; mas nesta ordem, que O envia do Pai, de quem Ele
mesmo é, e opera; de acordo com o que é dito: “Quem vos enviarei da
parte do Pai” (João 15:26); “Se Eu partir, vou enviá-lo a vós” (João 16:7);
“Exaltado pela destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito
Santo, Ele derramou isto que vós agora vedes e ouvis” (Atos 2:33). Disto
deduzimos um forte argumento a favor da Divindade de Cristo; pois
quem tem direito ao Espírito de Deus, e quem pode dar o Espírito,
senão Deus? O Espírito Santo, longe de ter sido enviado pela natureza
humana de Cristo, formou e santificou o Filho.

556 | P á g i n a
Esta dádiva do Espírito Santo pelo Pai e pelo Filho deve ser entendida
de tal forma que ambos operem eficazmente por meio do Espírito, e
que Ele novamente exerce Sua influência pela vontade do Pai e do
Filho que O precede. Pois a ordem de operação por parte das
diferentes pessoas da Divindade, que é a mesma que a ordem de Sua
existência, deve ser cuidadosamente observada. A vontade do Pai
precede, a vontade do Filho vem a seguir, e a do Espírito Santo
acompanha a vontade do Pai e do Filho, não no tempo, mas na ordem.
A razão pela qual Deus nos dá o Espírito Santo, deve ser atribuída à
Sua boa vontade, chamada ao exercício por causa do mérito e
intercessão de Seu Filho: “Quem nos abençoou com todas as bênçãos
espirituais nos lugares celestiais em Cristo, conforme Ele nos escolheu nEle
antes da fundação do mundo” (Efésios 1:3, 4); “Orarei ao Pai e Ele enviará
outro consolador” (João 14:16). Mas o Filho nos dá o Espírito Santo, ou
nos é dado por e por causa do Filho, porque Ele tem por seus méritos
garantidos para nós o dom do Espírito Santo, e Ele mesmo O outorga
sobre nós por meio de Suas intercessões.

VI. A QUEM E EM QUE EXTENSÃO O ESPÍRITO SANTO É DADO


Diz-se que o Espírito Santo é dado àqueles que recebem Seus dons e
O reconhecem. Ele é, portanto, dado de forma diferente de acordo
com Seus vários dons. Todos os que são membros da Igreja, sejam
verdadeiros cristãos ou hipócritas, participam mais ou menos dos
Seus dons, mas de uma forma diferente. Pois os piedosos não recebem
apenas os dons que são comuns, mas também aqueles que são
especiais e pertencem à salvação. Eles não têm meramente um
conhecimento da doutrina da Palavra de Deus, mas foram regenerados
e possuem verdadeira fé; porque o Espírito Santo, além de acender
neles o conhecimento da vontade e verdade de Deus, também os
regenera e lhes comunica a verdadeira fé e conversão. Por isso, Ele é
dado aos piedosos de tal forma que gere neles Seus dons que são para
a sua salvação, e que eles também possam saber por esses dons que o

557 | P á g i n a
Espírito habita neles. No entanto, Ele é, ao mesmo tempo, dado apenas
àqueles que O buscam e desejam recebê-lO; e, por essa razão aumenta
naqueles que perseveram. Os hipócritas, por outro lado, não recebem
nada mais do que um mero conhecimento da doutrina de Deus e dos
dons comuns. “Aquele que o mundo não pode receber, porque não O vê, nem
O conhece” (João 14:17).
Disto se manifesta qual é a diferença entre o conhecimento de línguas,
ciências e dons de um caráter semelhante conferidos aos pagãos e
aqueles que são dados à Igreja; pois aqueles que entre os pagãos se
destacavam no conhecimento de línguas, artes e outras coisas úteis,
tinham de fato os dons de Deus, mas não o Espírito Santo, a quem
ninguém recebe, mas aqueles que são santificados por Ele, e que O
reconhecem como o autor de todos os Seus dons.

VII. QUANDO E COMO O ESPÍRITO SANTO É DADO E


RECEBIDO?
O Espírito Santo é dado, como já mostramos, quando Ele comunica
Seus dons. E isso é feito tanto visivelmente, que é o caso quando Ele
dá Seus dons em conexão com certos sinais externos; ou
invisivelmente quando estes são comunicados sem esses sinais.
Ele nem sempre foi dado de forma visível, mas apenas em momentos
específicos e por certas causas; e isso mais amplamente sob o Novo
Testamento, do que antigamente sob o Antigo Testamento, de acordo
com a profecia de Joel: “Nos últimos dias derramarei do Meu Espírito”. Foi
assim que Ele foi dado visivelmente aos apóstolos e a outros na Igreja
primitiva. “E lá apareceu-lhes línguas divididas, como de fogo, e pousou sobre
cada um deles” (Atos 2:3); “O Espírito Santo desceu sobre todos eles” (João
10:44); “Eu vi o Espírito descer dos céus como uma pomba e repousar sobre
Ele” (João 1:32). Essas passagens devem ser explicadas de tal forma que
o sinal tome o nome da própria coisa, de forma que a mesma coisa
seja afirmada da coisa, a que propriamente pertence para o sinal;

558 | P á g i n a
porque o Espírito Santo dá testemunho de Sua presença e poder pelo
sinal que é empregado. Assim, João viu o Espírito descendo sobre
Cristo em forma corpórea de pomba; Ele viu a forma de uma pomba
sob a qual Deus demonstrou a presença de Seu Espírito. Isso,
entretanto, não deve ser entendido de qualquer movimento local em
Deus, mas de Sua presença e atuação na Igreja; pois o Espírito Santo
está presente em todos os lugares, enchendo os céus e a terra. E é
neste sentido que o Espírito Santo é dado, enviado, derramado, e assim
por diante, quando por Sua presença eficaz, Ele cria, instiga e
gradualmente aperfeiçoa Seus dons nos membros da Igreja. O Espírito
Santo sempre foi e é dado invisivelmente à Igreja, desde o início até o
fim do mundo; porque Ele falou por meio dos profetas. “Se alguém
agora não tem o Espírito de Cristo, Ele não é Seu” (Romanos 8:9). Não, sem
o Espírito nunca teria existido, nem poderia haver nenhuma Igreja.
A forma ordinária pela qual o Espírito Santo é dado é por meio do
ministério da palavra e do uso dos sacramentos; e que, em primeiro
lugar, a nós se manifestando por meio do estudo da doutrina do
evangelho, para ser por nós conhecido. Foi assim que Ele operou no
coração daqueles que se converteram sob a pregação de Pedro no dia
de Pentecostes; e também sobre Cornélio, e aqueles que estavam
presentes com Ele quando Pedro se dirigiu a eles. Não devemos,
entretanto, supor que o Espírito Santo opera de tal forma por meio
da Palavra e dos sacramentos a ponto de ser amarrado ou unido a eles
a ponto de tornar impossível para Ele operar de qualquer outra forma;
pois Ele não converte todos os que ouvem o evangelho, e outros
novamente são convertidos de uma forma diferente, como Paulo, em
seu caminho para Damasco, e João Batista foi santificado ou provido
com os dons do Espírito no ventre de sua mãe. Portanto, quando
dizemos que o Espírito Santo é dado por meio do ministério da
Palavra e do uso dos sacramentos, falamos de adultos e da forma
ordinária como Ele é concedido, e do envio visível do Espírito, do qual

559 | P á g i n a
é dito: “Deus enviou o Espírito de Seu Filho aos vossos corações” (Gálatas
4:6); “Se alguém não tem o Espírito de Cristo, Ele não é Seu” (Romanos 8:9).
Ele também é dado, em segundo lugar, por criar um desejo por Deus
no coração dos fiéis; pois Ele é dado àqueles que O pedem e O buscam.
(Lucas 11:13)64. Disto podemos tirar um forte argumento a favor da
Divindade do Espírito Santo; porque é peculiar a Deus trabalhar
eficazmente por meio do ministério. “Nem o que planta é, nem o que rega;
mas Deus, que dá o crescimento” (1 Coríntios 3:7); “Na verdade, eu vos batizo
com água para o arrependimento; mas aquele que vier depois de mim vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Mateus 3:11); “O evangelho é o
poder de Deus” (Romanos 1:16), porque o Espírito opera eficazmente
por meio dele; então o evangelho também é chamado de ministração
do Espírito (2 Coríntios 3:8).
Além disso, o Espírito Santo é recebido pela fé: “No qual também, depois
que crestes, fostes selados com o Espírito Santo da promessa” (Efésios 1:13)65;
“Aquele que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem O conhece“ (João
14:17).
Objeção. Mas a fé é dom e fruto do Espírito Santo: “Porque pela graça
sois salvos, por meio da fé, e não de vós; é dom de Deus” (Efésios 2:8);
“Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser pelo Espírito Santo” (1
Coríntios 12:3). Como então Ele pode ser recebido pela fé? Resposta:
A operação do Espírito Santo é anterior à fé na ordem da natureza,
mas não no tempo; porque o recebimento do Espírito Santo é o
primeiro início da fé. Mas depois que a fé é acesa no coração, o
Espírito Santo é cada vez mais recebido por meio dEle e, assim, produz
outras coisas em nós, como se diz: “Fé que opera pelo amor” (Gálatas 5:6);
“Purificando seus corações pela fé” (Atos 15:9).

64 Correção de referência: Lucas 61:13 para Lucas 11:13.


65 Localização da citação bíblica incluída pelo tradutor para o português.

560 | P á g i n a
VIII. COMO O ESPÍRITO SANTO PODE SER RETIDO?
O Espírito Santo pode ser retido da mesma forma, e pelo uso dos
mesmos meios, pelos quais Ele é dado e recebido, entre os quais
podemos citar o seguinte: 1. Na atenção diligente à palavra pregada:
“E Ele deu alguns apóstolos e alguns profetas, (...), para o aperfeiçoamento dos
santos, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos na
unidade da fé“ (Efésios 4:11, 12). 2. Meditação séria sobre a doutrina do
evangelho e um desejo sincero de avançar no seu conhecimento. “Na
sua lei medita dia e noite; e será como a árvore plantada junto a ribeiros de
águas” (Salmos 1:2, 3); “Deixeis a palavra de Cristo habitar em vós ricamente
em toda a sabedoria; ensinando e admoestando uns aos outros” (Colossenses
3:16). 3. Constante penitência e desejo sincero de evitar os pecados que
ofendem a consciência: “Todo aquele que tiver, a ele será dado” (Mateus
13:12); “Quem é justo, seja justificado” (Apocalipse 22:11); “E não entristeçais
o Espírito Santo de Deus, pelo qual fostes selados para o dia da redenção”
(Efésios 4:30). Sob esse título, podemos referir o desejo de evitar todas
as comunicações e ocasiões más ao pecado; pois aquele que deseja
evitar o pecado, também deve evitar tudo que possa atraí-lo. 4. Oração
constante e fervorosa: “Quanto mais vosso Pai celestial dará o Espírito
Santo aos que O pedirem” (Lucas 11:13); “Este demônio não vai embora, senão
com oração e jejum” (Mateus 17:21); “Não retire de mim o Teu Espírito Santo”
(Salmos 51:11). A armadura66 cristã descrita pelo apóstolo Paulo pode
ser referida a essa divisão. 5. O Espírito Santo pode ser retido pelo uso
adequado dos dons de Deus; dedicando-os à glória de Deus e à
salvação do nosso próximo. “Quando te converteres, fortalece os teus
irmãos” (Lucas 22:32); “Negociais até que eu venha” (Lucas 19:13); “A todo
aquele que tem será dado; e ao que não tem, até o que tiver será tirado dele”
(Lucas 19:26).

66Originalmente: panóplia, que quer dizer: armadura. Uma alusão à Efésios 6:11-
17.

561 | P á g i n a
IX. SE E COMO O ESPÍRITO SANTO PODE SER PERDIDO
Os hipócritas e os pecadores réprobos perdem os dons do Espírito
Santo total e finalmente, com o que desejamos dizer que o Espírito
finalmente os abandona tão completamente que Eles nunca
recuperam Seus dons ou desfrutam de qualquer uma de suas preciosas
influências. É diferente, entretanto, com aqueles que foram
verdadeiramente regenerados. Eles podem, de fato, perder muitos de
Seus dons, mas nunca os perdem totalmente; pois eles sempre retêm
alguns, como o exemplo de Davi plenamente testifica: “Restaura a mim
as alegrias da tua salvação; Não retire de mim o teu Espírito Santo” (Salmos
51:11, 12). Nem podem cair no final, porque finalmente são levados a
ver e a se arrepender de seus pecados e apostasias.
Objeção. Mas o Espírito Santo abandonou Saul, que era um dos
eleitos. Portanto, o Espírito Santo pode abandonar outros também.
Resposta: Não foi o Espírito de regeneração e adoção que abandonou
Saul, mas o espírito de profecia, de sabedoria, coragem e outros dons
de caráter semelhante com os quais ele foi dotado. Ele também não
foi escolhido para a vida eterna, mas apenas para ser rei, como Judas
foi escolhido para o apostolado. É ainda mais objetado: o Espírito de
regeneração também pode abandonar os eleitos; pois Davi orou:
“Restaura-me as alegrias da tua salvação”. A isso respondemos que os
piedosos podem, e muitas vezes perdem, muitos dos dons do Espírito
de regeneração; mas não os perdem totalmente: pois não é possível
que percam toda partícula de fé, visto que não pecam para a morte;
mas pela fraqueza da carne, não sendo perfeitamente renovada nesta
vida. Isso o apóstolo João afirma expressamente quando diz: “Todo
aquele que é nascido de Deus não comete pecado; porque a Sua semente
permanece nele; e Ele não pode pecar, porque é nascido de Deus” (1 João 3:9).
Davi, em sua queda, perdeu a alegria que sentia em sua alma, a pureza
de sua consciência e muitos outros dons pelos quais orou
fervorosamente que lhe fossem restaurados; mas ele não havia perdido

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totalmente o Espírito Santo, do contrário não teria dito: “Não retire de
mim o Teu Espírito Santo”, do que é claro que ele não havia perdido
totalmente o Espírito de Deus. “Um homem”, disse Bernardo, “nunca
permanece no mesmo estado; ele retrocede ou avança”. Esta distinção deve
ser observada com o propósito de resolver a questão; como podem os
piedosos ter certeza de sua perseverança e salvação, visto que podem
perder o Espírito Santo? isto é, que eles nunca são total e
definitivamente abandonados pelo Espírito de Deus.
Existem muitas formas pelas quais o Espírito Santo pode ser perdido.
Estas são o oposto daquelas pelos quais Ele pode ser retido. 1. Ele pode
ser perdido por um desprezo pelo ministério da Igreja. 2. Por
negligenciar o estudo da doutrina do evangelho e meditação sobre ela.
Paulo, portanto, ordenou a Timóteo que despertasse o dom de Deus
que estava nele, e também dá instruções sobre a forma pela qual ele
poderia fazer isso, a saber, à leitura se entregando, exortação e
doutrina. 3. Por segurança carnal, por mergulhar descuidadamente em
todos os tipos de maldade e por se entregar a pecados que ferem a
consciência. 4. Por negligenciar a oração. 5. Abusando dos dons do
Espírito Santo, o que acontece quando não são utilizados de forma a
promover a glória de Deus e a salvação de nossos semelhantes. “Ao que
tem, ser-lhe-á dado; e ao que não tem, dele ser-lhe-á tirado, até aquilo que tem”
(Marcos 4:25).

X. POR QUE O ESPÍRITO SANTO É NECESSÁRIO?


As passagens das Escrituras aqui citadas ensinam claramente por que,
e por quais razões, o Espírito Santo é necessário: “Se o homem não nascer
da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” (João 3:5). “Carne e
sangue não podem herdar o reino de Deus” (1 Coríntios 15:50); “Não que
sejamos suficientes por nós mesmos, para pensar qualquer coisa como de nós
mesmos; mas nossa suficiência vem de Deus” (2 Coríntios 3:5); “Se alguém
não tem o Espírito de Cristo, ele não é Seu” (Romanos 8:9). Assim , podemos

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então concluir: Ele é necessário para a nossa salvação, sem o qual não
podemos pensar, muito menos fazer qualquer coisa que seja boa, e
sem o qual não podemos ser regenerados, conhecer a Deus, obedecê-
lO ou obter a herança do reino dos céus. Mas essas coisas não podem
ser feitas em nós por causa de nossa cegueira e da corrupção de nossa
natureza, exceto pelo Espírito Santo. Portanto, o Espírito Santo é
necessário para nossa salvação.
XI. COMO PODEMOS SABER QUE O ESPÍRITO SANTO HABITA
EM NÓS?
Podemos saber se o Espírito de Deus habita em nós por Seus efeitos,
ou dons, que incluem um conhecimento correto de Deus, regeneração,
fé, paz de consciência e o início de uma nova obediência a Deus. “Sendo
justificados pela fé, temos paz com Deus; O amor de Deus é derramado em
nossos corações pelo Espírito Santo que nos é dado” (Romanos 5:1, 5).
Também podemos saber se o Espírito Santo habita em nós, pelo
testemunho que Ele dá ao nosso espírito de que somos filhos de Deus.
Da mesma forma, o conforto em meio à morte, a alegria nas aflições,
o firme propósito de perseverar na fé, gemidos inexprimíveis e orações
fervorosas, junto com uma sincera profissão de cristianismo, são
evidências e indicadores mais certos da habitação do Espírito Santo.
“Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser pelo Espírito Santo” (1
Coríntios 12:3). Em suma, podemos saber se o Espírito Santo habita
em nós, por nossa fé e arrependimento.

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