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Gaab K.

Silva
Brasil 2024
Copyright© Gaab K. Silva / Editora Calíope
Supervisão: Antony Isidoro
Revisão e Capa: Jaqueline Brito
Diagramação: Isa Feijó
Todos os direitos reservados

É proibida a reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer


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autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184
do Código Penal.
Esta é uma obra de ficção, tanto a história quanto os nomes são de
criação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas ou
acontecimentos da vida real, são meras coincidências.
A todos que tenham tido um amor
interrompido, uma dor incurável, ou uma
cicatriz que nunca some.
Cada lágrima é um desfile de chuva do inferno
Amor, você faz isso tão bem
Você foi tão compreensivo, você foi tão bom
E estou te fazendo passar por mais coisa do que
alguém deveria
E eu estou me odiando porque você não quer
Admitir que isso te machuca

Ghostin
Ariana Grande
Timothy no mundo da lua

Por onde eu posso começar a contar sobre a minha vida? Não que
tenha acontecido algo surpreendente ou que eu estivesse repleto de
felicidade, na verdade, é o completo oposto.
Dia vinte e três de outubro: o dia em que minha mãe me olhou
diferente.
Mas não um “diferente” bom, foi como se eu estivesse prestes a
explodir. Bem, digamos que a situação era quase a mesma...
Com oito anos de idade eu fui diagnosticado com leucemia, não fui
uma criança “normal” desde então. Minha mãe dizia que eu era especial e
que não havia nada de errado comigo, mas na verdade tinha algo de errado
sim. Lembro-me como foi quando recebemos a notícia sobre o câncer e
como minha mãe entrou em desespero, meu pai sequer sabia que o fazer e o
doutor tentava explicar da forma mais cautelosa possível.
O que não adiantou muito.
— Mas ele só tem oito anos! Veja isso outra vez, não me parece
certo — nada estava parecendo certo naquele momento, mas os resultados
dos exames nunca estiveram tão corretos.
— Tente se acalmar Helena, vai dar tudo certo — meu pai não
tentou controlar a voz afetada pelo choro, mas tentou de tudo para acalmar
a minha mãe.
— Não! Meu filho está morrendo. — Eu era bem pequeno na época,
mas nunca vou me esquecer da forma como minha mãe tremia sem parar,
consigo ouvir sua voz completamente quebrada pelo choro até hoje.
— Vamos tentar focar no tratamento do Timothy, Sra. Lee — o
doutor finalmente disse algo depois de um tempo em silêncio. — Quanto
mais cedo a leucemia for detectada, melhor é a resposta ao tratamento e
assim aumenta as chances de cura.
Acho que notei certo alívio no olhar da mamãe, quando seus lábios
se curvaram em um pequeno sorriso eu senti muita segurança em meio a
todo aquele caos. Mas na verdade eu estava meio confuso, só tinha
entendido que estava doente e que meus pais estavam com medo. Ah, e que
eu poderia morrer.
“Morrer”, essa probabilidade não saía da minha cabeça.
A volta para casa ficamos todos em silêncio, eu podia ver lá do
banco de trás que nem por um minuto a expressão entristecida do meu pai
foi substituída por uma aliviada, diferentemente da minha mãe, que estava
mais calma. Provavelmente meu pai estava sentindo o mesmo que eu.
Em casa, meus pais evitavam falar sobre o assunto na minha frente.
Hoje eu entendo o porquê, mas na época eu estava desesperado para
entender o que estava acontecendo. Por isso decidi eu mesmo perguntar.
— Eu vou morrer, mamãe? — Minha mãe congelou por um
segundo, depois piscou várias vezes seguidas em busca de alguma resposta
reconfortante.
— É claro que não, meu amor! De onde você tirou isso?
— O papai estava chorando mais cedo, ele nunca chora — digo me
ajeitando na cama. — Você também estava chorando mamãe, o doutor disse
que estou doente e vocês dois choraram!
— Céus... Você fica cada dia mais esperto Timmy! — Deixando um
beijo no topo da minha cabeça, ela me abraça extremamente forte. — Me
escuta, Timothy, a mamãe vai precisar que você seja forte. Seu pai e eu
vamos cuidar de você, então não se preocupe, vai dar tudo certo!
— Mas você está preocupada, não está mãe?
Ver seu sorriso sumir fez com que eu me sentisse culpado.
— Vai ficar tudo bem! — dessa vez ela não estava falando comigo,
mas sim tentando acreditar em suas próprias palavras.
E sussurrou outra vez, puxando-me até que eu me alinhasse em seus
braços, aquele foi um dos abraços mais apertados que minha mãe já me deu,
nunca vou esquecer de ter ouvido seu coração acelerado ao deitar minha
cabeça em seu peito, perguntar se estava tudo bem e ela não pensar duas
vezes antes de mentir e dizer que “sim”.
Mas eu estava exausto demais para protestar contra sua mentira e
dormi ali mesmo, no abraço acolhedor de minha mãe enquanto ela estava
em puro desespero. Também não em que momento ela decidiu me colocar
em minha cama, mas sei que acordei e ela não estava mais lá.
Na verdade, quem estava me observando dormir era Samuel, meu
irmão mais velho. Que não hesitou nem um segundo antes de pular em cima
de mim, fazendo-me cair deitado na cama outra vez.
— Timmy! Como você está se sentindo? — Sam questionou, sem
me largar.
— Estou bem, mas parece que eu vou morrer — digo frustrado e
Samuel rapidamente me solta, sentando-se na ponta da cama.
— Isso não tem graça.
— Mas estou falando sério! O doutor disse que eu estou doente. —
Samuel se encolhe, parece chateado.
— Mamãe e papai me contaram — ele diz baixo, cruzando os
braços. — Mas você não pode morrer, eu sou o mais velho! Tenho que ir
antes.
— Credo, Sam, não quero que você vá, não!
— Também não quero que você vá! — Lembro que Samuel estava
bem preocupado, um sentimento terrível para uma criança sentir.
Mas como eu disse, nada de acontecimentos surpreendentes por
aqui.
O que tenho para contar sobre minha vida é como o câncer matou a
minha família lentamente. Deixando-me vivo para assistir tudo de perto,
matando-me por dentro.
O que é bem pior do que morrer por completo.
— Timmy? — Samuel me chamou uma vez, no meio da noite. —
Nunca se esqueça o quanto amamos você, ok?
— Eu também amo vocês.
Sam constantemente dizia essas palavras, o estranho era ser sempre
no meio da noite. Como se ele ensaiasse o dia inteiro para enfim dizer
durante a madrugada.
Ou seria só uma confirmação em meio ao alívio, já que mais uma
vez havia aguentado um dia inteiro sem perecer.

Algum tempo depois, percebi que pela primeira vez minha mãe
estava errada.
As coisas não estavam nada bem. O casamento dos meus pais estava
se tornando um verdadeiro caos e nada do que eles tentavam fazer para
melhorar a situação, resolvia. Sam estava o tempo todo sorrindo e me
dizendo que era apenas uma “fase”, que tudo iria melhorar logo. Mas nem
ele mesmo acreditava nas próprias palavras.
Seu sorriso persistente não escondia muito bem as lágrimas que
caíam quando presenciávamos uma discussão dos nossos pais, ou quando
eu piorava. Na verdade, Sam estava tão ferido quanto eu, a doença estava
me matando, mas o coração dele já estava quase morto.
Meu pai quase já não era mais visto em casa, o mais estranho era
como ele ainda conseguia ser presente em todo momento em que eu
precisava. Isso estava o desgastando, como uma borracha infinita. Meu
medo era de que em algum momento, toda aquela disposição chegasse ao
fim. Mamãe dedicou cada milésimo de segundo da sua vida a mim, isso foi
terrível, na verdade. Tudo aquilo era insuportavelmente terrível.
Meu cabelo começou a cair.
Samuel sempre vinha me dizer que eu estava com a aparência ótima.
Mentira! Eu podia perceber o quão horrível eu estava.
O quanto eu odiava cada detalhe meu e o quanto eu odiava cada dia
mais, não só o meu corpo estupidamente magro como meu rosto pálido e
minhas mãos ressecadas. Não era uma aparência comum para uma criança
ou para qualquer ser humano decente, eu estava feio. Estranho e me
assustava com a forma pela qual a situação só piorava.
— Timothy? — minha mãe chamou preocupada do outro lado da
porta, quando eu me tranquei no banheiro por não ter aguentado segurar o
choro que forçava sair, mesmo contra minha vontade. — Meu amor, abra a
porta.
Eu não conseguia, nem mesmo parar de chorar ou levantar do chão
para abrir a porta. Eu não conseguia fazer absolutamente nada além de
chorar.
— Eu não aguento mais — também contra minha vontade, aquelas
palavras saíram e foram a ponta do iceberg para que todo o meu corpo
respondesse àqueles sentimentos acumulados.
O choro até então silencioso se tornou tão audível quanto o som de
um trovão, o impacto disto também foi o mesmo.
— Timmy, o que é isso? — Já em desespero, minha mãe forçou a
maçaneta da porta.
Eu pude ouvir quando ela também começou a chorar, pude sentir
seu desespero porque naquele exato momento estava me faltando ar e o
banheiro parecia ficar cada vez menor. Tornando-se um cubículo
insuportável, prendendo-me contra a parede enquanto eu tentava me mexer
em pura agonia.
— Tira isso de mim, mãe! Por favor.
— Abra a porta, Timmy, eu estou aqui! — Percebi a impotência em
sua voz, hoje eu sei o quanto fiz com que minha mãe se sentisse culpada. —
Não chora, isso vai passar logo.
Eu precisava que aquilo sumisse imediatamente, não “logo”.
Lembro de ouvir a voz do meu pai de longe, chegando em casa no
pior momento,
— O que foi? — Ouço a voz distante questionar, mas não tem
resposta. — Helena?
— Ele se trancou no banheiro, Hyuk — minha mãe disse, sem parar
de tentar abrir a porta.
Meu pai não disse nada, lembro de ter ficado em silêncio por um
breve momento, até que ele voltou e abriu a porta com uma cópia da chave.
De primeira nada aconteceu, meus pais me observaram chorar por alguns
segundos, sem reação, até que minha mãe se ajoelhou no chão e tocou com
cautela em meu rosto.
— O que você está sentindo?
— Eu não sei. — Eu realmente não sabia, tudo o que eu sabia era
que estava doendo. Doendo por toda parte do meu corpo, por dentro e por
fora.
— Tudo bem, você pode chorar o quanto precisar — meu pai disse,
ajoelhando-se ao lado da minha mãe. — Isso pode te fazer bem, não precisa
se segurar.
— Mas eu prometi que seria forte!
— Chorar não é significado de fraqueza, na verdade, as pessoas
mais fortes são aquelas que não têm medo de sentir e demonstrar seus
sentimentos — minha mãe explicou, secando as próprias lágrimas. — Você
é o que tem sido mais forte entre nós, temos orgulho de você!
— Sua mãe tem razão, quando se sentir assim não precisa se trancar
no banheiro ou se esconder. Você não tem que passar por isso sozinho, nós
estamos aqui.
— Mas eu já estraguei tudo!
— Não! Claro que não meu filho. Do que você está falando?
— Eu destruí nossa família.
— Timothy, de onde você tirou isso? — meu pai perguntou,
interligando seu olhar em mim e em minha mãe.
— Vocês não se amam mais!
A forma pela qual eles se encararam naquele momento nunca vai
sair da minha cabeça, por um tempo eles apenas se olharam sem dizer uma
única palavra, meu pai parecia extremamente magoado com o que tinha
acabado de ouvir, minha mãe apenas engoliu em seco e sorriu para mim.
— Isso não é verdade.
— Mesmo que fosse, não seria culpa sua.
Eu nunca acreditei nessas palavras. Mas hoje eu entendo que essa
foi a conversa certa, mas na hora errada.

Sempre que eu tinha que fazer quimioterapia o meu dia ficava ainda
pior, parecia que o tratamento só piorava as coisas.
— Você quer comer alguma coisa? — mamãe perguntou assim que
chegamos no hospital, já esperava por isso, ela sempre perguntava.
— Não. — E sempre tinha a mesma resposta.
A reação também a mesma, um suspiro de exaustão e depois um
breve sorriso para demonstrar compreensão. Mas ela não parava de insistir
nisso até o fim do dia, fazer com que eu comesse era mais uma de suas
missões.
O câncer atrapalhava até mesmo isso.
— E beber? Posso pegar alguma coisa...
— Não, obrigado.
— Tudo bem, meu amor, mas alguma hora você vai precisar comer
alguma coisa.
O dia no hospital era sempre o mesmo, tratamento, chorar e dormir
no ombro da mamãe. Mas aquele dia foi diferente.
Por um instante...
Eu não fui um garoto com câncer, eu fui só... Um garoto.
— Sra. Lee? Podemos conversar um minuto? — o doutor chamou
no corredor, antes de começar o meu tratamento do dia.
— Claro! — Mamãe me olhou e sorriu após beijar o topo da minha
cabeça. — Espere aqui só um minutinho, tá bom?
O doutor estava sempre chamando a mamãe para conversar, ela
sempre voltava mais triste que antes. Eu não gostava disso, mas também
não tinha como evitar.
Fiquei um tempo naquele corredor, esperando. Mas estava
demorando muito e eu nunca fui paciente.
Andar sozinho pelo hospital nunca fui um costume meu, até porque
eu sequer soltava da mão da minha mãe quando ia para aquele lugar. Mas
eu estava exausto e queria muito ir para casa, por isso decidi ir atrás dela.
Andei bastante, hoje eu percebo o quão desatento eu sou a ponto de
não ter notado alguém bem atrás de mim, no mesmo instante em que decidi
voltar pelo mesmo caminho do qual eu tinha feito até ali.
Eu não só esbarrei em alguém, como também derrubei o garoto no
chão. Ele não chorou quando caiu e nem mesmo ficou com raiva, na
verdade, ele riu.
— Vai machucar alguém, se continuar andando no mundo da lua
assim — ele disse ao se levantar.
Mundo da lua?
— Eu não estava no mundo da lua!
— Ah, então você só é sem educação mesmo. — Meu queixo quase
caiu no chão naquele momento.
— Não! Eu só não tinha percebido você aqui. — Lembro que estava
desesperado para me justificar, como se tivesse sido pego em uma cena de
crime.
— Então é cego? — Ele franziu a testa. — Você é cego mesmo? —
disse aproximando o rosto para olhar em meus olhos.
— Eu não sou cego!
— Nossa, não precisa gritar.
Eu lembro de ter pegado ódio naquele garoto em menos de dois
segundos de comunicação.
— Eu só estou falando alto, não gritei.
Ele não se importou com o que disse, só ficou olhando para a minha
cara. Isso me incomodou um pouco.
— Você está fazendo o que aqui?
Que intrometido!
— Você que é sem educação! — aponto, incrédulo. — Toma conta
da sua vida.
— Eu sou filho do Doutor Choi! — ele contou, sem dar importância
para o que eu disse. — Meu pai cuida de cérebros.
— Nossa!
— Pois é, mas ele nunca me deixou ver um... — Acho que ele
realmente queria muito ver um, pela decepção em sua voz, acredito que ele
tenha insistido muito no assunto.
— Acho que isso seria terrível!
— Por quê?
— Essas coisas são nojentas, não iria querer ver isso...
— Como você sabe?
— Quê?
— Como sabe que é nojento?
Olha só, ele tinha um ótimo ponto.
— Eu imagino, sei lá.
Ele riu da minha resposta, aquele garoto estava me tratando como
um baita idiota! Se eu tivesse tamanho, com certeza daria um soco nele.
— Você com certeza vive no mundo da lua.
Eu não sabia muito bem o que dizer, mas lembro que acabei rindo
junto com ele.
Aquele foi o momento mais aleatório da minha vida, mas também a
primeira vez que tinha me esquecido que estava ali para tratar de um câncer.
Eu não sei muito bem o porquê, mas aquele garoto estranho tinha me feito
muito bem por um segundo.
— Meu nome é Jun-ho!
Jun-ho, aquele nome me parecia estranho por algum motivo.
— E o seu?
— Me chamo Timothy...
— Tim... O quê? — Aparentemente, ele também achou o meu
estranho.
— Minha mãe nasceu no Reino Unido — expliquei —, mas meu pai
é daqui da Coreia.
— Uau, você sabe inglês?
— Um pouco.
Ele me olhou de um jeito engraçado.
— Então não sabe nada.
Sinceramente...
— Você é muito abusado.
Ele riu outra vez.
— Gostei de você, Timmie. — Gostou?! — Vamos ser melhores
amigos!
— Você é doido, né?
— Você vai me amar com o tempo, minha mãe dizia que eu sou
muito especial — ele disse todo cheio de si, cruzando os braços.
— Sua mãe estava errada.
Seu olhar chocado e a boca extremamente aberta me fizeram rir, rir
mesmo! Eu não fazia isso a um bom tempo.
Quando Jun-ho respirou fundo para me dar uma boa resposta, que
eu sei até hoje que seria uma resposta bem longa, minha mãe me chamou.
— Timothy! — Lembro do pequeno susto que havia tomado
naquele momento, por um instante tinha me esquecido que estava
procurando pela minha mãe. — Meu deus, o que deu em você? Te procurei
por todo canto.
— Eu também, você demorou — resmunguei, fazendo careta.
Jun-ho riu outra vez.
— Não procurou nada, estava aqui comigo esse tempo todo!
Eu dei um belo tapa no seu braço, lembro que a reação da minha
mãe foi impagável. Jun-ho riu ainda mais.
— Não se intrometa!
— Mas é verdade, poxa.
— Timothy, fez amizade querido? — mamãe questionou se
agachando.
— Não.
— Sim!
Jun-ho e eu respondemos na mesma hora.
— Claro que sim, Timmie, você estava rindo aqui comigo!
— Estava nada, você é intrometido!
Eu estava sim.
Minha mãe observou todo aquele cenário em silêncio, Jun-ho e eu
não parávamos de discutir e quanto mais ele ria das minhas reações mais eu
ficava bravo. O melhor de tudo, é que na verdade eu estava adorando tudo
aquilo.
— Timmy, temos que ir agora querido — minha mãe interrompeu,
quando eu estava prestes a dar outro tapa no garoto. — Está na hora do seu
tratamento.
Toda a minha alegria sumiu em questão de segundos.
Jun-ho curvou a cabeça para o lado sem entender muito bem a
situação, e só então ele começou a notar mais na minha aparência. Notou na
minha touca primeiro e então encarou mais um pouco o meu rosto. Jun-ho
mal tinha me conhecido e já tinha a mania de encarar o meu rosto por muito
tempo, sem dizer nada.
Com um certo desconforto, desviei o olhar ajeitando minha touca
enquanto minha mãe se levantava para segurar minha mão. Jun-ho
finalmente suavizou o olhar e sorriu para mim, acenando lentamente com a
mão.
— Até mais, Timmie! Depois a gente se vê — ele disse caminhando
para o lado oposto, mas sem parar de olhar para mim. — Na próxima eu
trago minha câmera para a gente brincar!
Dito isso ele começou a correr, sem me dar um tempo de resposta.
Fiquei chocado, “na próxima”? Como alguém como ele iria querer
brincar com alguém como eu?
A maioria das crianças me achavam chato por não poder me
esforçar tanto, por isso eu fiquei confuso quando um garoto tão agitado
como ele disse querer brincar comigo mesmo após perceber minha situação.
— Ele parece ser legal, querido — mamãe comentou, estava mais
animada que eu.
E o pior, era que ela estava certa. No dia anterior, Jun-ho estava lá.
Ele realmente tinha uma câmera e parecia ser bom em fotografar.
Eu fiquei muito surpreso, ele parecia mais novo que eu e mesmo
assim aguentava aquela coisa na mão. Ele tirava foto de literalmente
qualquer coisa, enquanto eu só podia ficar sentado recebendo meu
tratamento. Jun-ho me fazia rir com as fotos engraçadas que havia tirado.
Acredito que ele não tenha se importado por eu ser quieto, na
verdade, ele sempre perguntava se estava me incomodando por estar muito
agitado.
Jun-ho foi meu primeiro e único amigo, Samuel e ele estavam
sempre cuidando de mim.
Até que virou um costume ter os dois comigo nos meus dias de
tratamento, Jun-ho sempre ia com seu pai ao hospital para poder me ver.
Sam saía do colégio e ia direto para hospital, sempre comendo algum doce
que comprava pelo caminho.
Foi aí que tudo começou a ficar mais suportável.
Ter Sam ao meu lado foi um grande apoio, minha mãe também ficou
mais tranquila e meus pais pararam de brigar com tanta frequência. E então
chegou o dia da minha última quimioterapia.
Jun-ho levou sua câmera para registrar tudo, meu pai não parava de
sorrir enquanto minha mãe não parava de chorar. Foi um cenário bem
caótico! Estavam todos animados, e eu, por outro lado, nem tanto.
Mas não havia muitas explicações para isto, sempre fui alguém que
esperava pela decepção.
Samuel contou para todo o colégio sobre meu último dia de
tratamento, chegou no hospital com uma grande cartolina cheia de boas
mensagens. Jun-ho ficou admirado com o ato e decidiu escrever algo na
cartolina também. Até mesmo seu pai que estava sempre ocupado apareceu
para me ver, foi um dia bem cansativo.
Após a última quimio, meus pais pensaram bastante sobre o que
seria melhor para mim e Samuel, aparentemente nossa família iria ser mais
feliz se nos mudássemos para outro país.
Sam e eu odiamos a ideia, mesmo assim a decisão foi tomada. Jun-
ho ficou arrasado quando soube que iríamos sair do país. Morar no Reino
Unido nunca me foi uma possibilidade, então também fiquei superchateado
com a mudança brusca de cenário. Estava tudo indo bem até ali.
Foram sem dúvidas os piores anos da minha vida.
Acostumar-me com o idioma foi a pior parte, mas minha mãe estava
feliz em voltar para casa depois de tanto tempo fora.
Por isso eu dizia a ela que estava tudo bem.
Samuel sabia bem que eu estava mentindo, ele também odiava tudo
aquilo. Meu pai se acostumou rápido, mesmo assim sentia falta de casa. Ele
dizia que faria de tudo por nós e pela mamãe.
Eu sempre me perguntava se o amor deles estava acabando ou
aumentando.
Tudo aquilo era bem confuso.

Hoje, eu percebo que deveria ter sido mais sincero sobre como iria
me sentir com a mudança. Se tivesse feito isso, não estaria passando pelo
mesmo sentimento outra vez.
— Eu sei que é difícil — disse minha mãe, sentando-se na ponta da
cama enquanto fazia minha mala —, mas você sabe que o doutor Ryu é o
melhor em cuidar de você.
Concordo com um único movimento em minha cabeça sem parar de
dobrar as roupas, ainda em silêncio, minha mãe começa a me ajudar
fazendo o trabalho bem melhor que eu.
— Eu também não queria isso, Timothy — confessou, sua voz
entregou a exaustão e chateação que ela sentia no momento. — Mas o
câncer voltou, não vou arriscar perder você.
Esse era problema, parecia que tudo de ruim que acontecia e éramos
obrigados a fazer, era por minha causa!
— Sinceramente? Eu prefiro viver lá — enfim, confesso e minha
mãe solta uma leve gargalhada.
— Eu também.
Viro-me em sua direção em puro choque, como assim “eu também”?
Então por que vivemos nesse lugar por todo esse tempo?
— Quando terminar de guardar suas coisas, me chama que eu e o
Sam vamos levar. — Como se soubesse a quantidade de questionamentos
que eu iria fazer naquele momento, ela se afastou do meu quarto.
— Mas meu pai não chegou ainda! — gritei, fazendo com que ela
voltasse à porta.
— Ele já está vindo.
Ah, é mesmo. Esqueci de mencionar.
Meus pais se divorciaram, já não era tão estranho de dizer isso.
Mesmo assim, eu sentia como se fosse inteiramente minha culpa.
O divórcio não impediu que eles tivessem que passar por muitas
coisas juntos, na verdade, a única mudança foi que meu pai saiu de casa.
Mas sempre estavam fazendo o que era necessário juntos, assim como
agora, meu pai não voltou para a Coreia quando houve a separação.
Na verdade, essa hipótese sequer passou pela sua cabeça, mas agora
que precisávamos voltar, ele nem questionou ou pensou duas vezes no
assunto. Foi o primeiro a concordar. Minha mãe disse que sabia que
“poderia contar com ele”, sinceramente, acredito que a nunca coisa que não
acabou entre eles, foi a confiança.
— Está ansioso para ver seu amigo? — meu pai questionou, assim
que o avião pousou no aeroporto.
Na verdade, esse era um dos motivos pelos quais eu queria voltar.
— Um pouco — as palavras não condiziam com o tamanho do
sorriso que tinha no meu rosto agora.
— “Um pouco” — Sam imita o tom da minha voz, de uma forma
grotesca. — Larga de ser mentiroso, falou do Jun-ho a viagem inteira.
— Tome conta da sua vida, Samuel!
— Não posso, vendo você mentir dessa forma... Meu papel como
irmão mais velho é impedir que você vá para o inferno — dito isso, minha
mãe deu um tapa de leve em sua nuca. — Mas é verdade...
— Ninguém aqui vai para o inferno — minha mãe disse, em meio a
uma risada.
— Sei não, hein... — e meu pai completou, sequer desviou quando o
tapa foi depositado agora, em sua nuca.
Sam e eu rimos alto da cena, meus pais estavam muito felizes em
voltar para casa, por instante nem parecia que tinham se divorciado.
O problema era o porquê de estarmos voltando.

— Não esqueceu nada? — minha mãe perguntou assim que entrou


no carro.
— Não, está tudo aqui.
Depois de algumas semanas, finalmente estava indo para minha
primeira quimioterapia depois da recidiva. Meus pais insistiram em voltar
para Coreia por ter total confiança no doutor Gi-hun que cuidou de mim,
quando mais novo.
Eu estava dezenove anos, meu câncer “curou” quando eu tinha doze.
Mas sequelas ficaram em meu corpo e consequentemente, a recidiva
aconteceu. Sinceramente? Eu já esperava por isso, estar curado e não se
sentir como tal era um sinal de que algo estava errado. Meus pais tiveram
quase a mesma reação que anos atrás após descobrirem sobre o retorno da
doença, Sam passou horas trancado no quarto, quando saiu, me abraçou e
disse que “eu estava proibido de morrer antes dele”.
Samuel me faz rir com palavras e momentos dos quais, eu não
poderia rir. Isso me preocupava.
— Vou falar com o doutor, me espere aqui, tá? — minha mãe
avisou, assim que chegamos ao hospital.
Eu acenei com a cabeça, mas sabia que não iria ficar parado no
lugar. Agora que havia crescido, o hospital não me parecia mais
infinitamente maior, na verdade, parecia pequeno demais. Era como se eu
nunca fosse conseguir sair dali, deixava-me sufocado.
Odiava aquele lugar.
Caminhando pelo corredor, deparo-me com crianças no mesmo
estado que eu alguns anos atrás. A sensação de medo, confusão e exaustão
que eu tanto sentia estava estampada em seus rostos.
Era como se eu estivesse em frente a um espelho.
Tentei ignorar a situação e continuei andando, até que encontrei a
melhor e única parte bonita do hospital. A grande parede de vidro, no
penúltimo andar, a sensação de olhar para o lado de fora daqui era como se
eu estivesse voando. O céu extremamente azul, com nuvens tão claras e
densas que me faziam querer ir à praia.
Eu amava aquela paisagem.
Por isso não parei de caminhar em sua direção, era como se eu
estivesse andando em direção à liberdade.
— Você vai acabar tropeçando em algum lugar, se continuar no
mundo da lua assim — ouvi alguém dizer ao meu lado, sequer me assustei
ao ouvir a voz familiar. Apenas me virei imediatamente em direção ao dono
da voz.
— Jun-ho. — Não consegui parar de sorrir.
— Desculpa, te assustei?
— Não, não me assustou! Tá tudo bem.
Ele sorriu, Jun-ho agora era mais alto que eu. Na verdade, não era
apenas sua altura que me deixava surpreso no momento, ele estava muito,
muito bonito.
— Espero que tenha vindo aqui para me ver — ele disse ao me
observar melhor. — Tenho certeza de que te vi saindo daqui curado, anos
atrás.
Jun-ho ainda não sabia o motivo do meu retorno.
— Na verdade, sim — digo, com certo tom de sarcasmo na voz. —
Eu voltei a morar na Coreia porque queria te ver.
— Eu sabia, você nunca iria conseguir viver sem mim.
Sua voz também continha sarcasmo, eu realmente senti falta de seu
péssimo humor.
— Certo, agora me fala a verdade.
Meu sorriso diminuiu um pouco, odiava ter que falar sobre isso.
— É a recidiva. — Não preciso dizer mais nada.
Jun-ho imediatamente parou de sorrir, odiava quando isso acontecia!
Quando ele se aproximou e tocou em meu braço direito, acariciando a pele
por cima do tecido, todo ar que estava despercebidamente preso em meus
pulmões, escapa por total vontade própria. Ele sorriu, não um sorriso que
indicava felicidade ou satisfação.
Era aquele sorriso que eu recebia toda vez que ele vinha me ver, um
sorriso que dava forças a aguentar tudo o que esse câncer me fez passar. Um
sorriso do qual eu sentia tanta falta.
— Você acabou com esse câncer uma vez, vamos derrubar ele de
novo — ele disse em um tom sussurrado, chegando mais perto de mim. —
Juntos.
Isso me fez rir.
— Estou falando sério! — ele disse rindo.
Eu neguei com minha cabeça, tentando conter o sorriso. Mas assim
que consigo reparar melhor em seu rosto, meu esforço para conter o sorriso
acaba se tornando a coisa mais fácil desse mundo, quando reparo um cateter
nasal em seu rosto.
Acredito que ele tenha percebido a minha preocupação, quando meu
sorriu sumiu por completo e minhas mãos tocaram seu rosto, com meus
dedos sobre o cano do cateter.
— O que é isto? — questiono, Jun-ho engole em seco e desvia o
olhar. — Jun-ho, por que você está usando isso? — insisto, acompanhando
o movimento de sua cabeça, quando tenta esconder o rosto de mim.
Por um tempo torturante, ele fica em silêncio, todo o meu corpo
entra em desespero com a demora por uma resposta. Quando decido o
observar melhor, nota uma espécie de mochila de rodinhas ao seu lado, ou
melhor, uma bolsa de oxigênio. E então encaro seu rosto outra vez, ainda
mais confuso.
— Ei... O que está acontecendo?
— Estou doente — finalmente ele conta, com mais um daqueles
sorrisos no rosto. — Tenho câncer na tireoide, com metástase no pulmão.
Até logo, irmão
Choi Jun-ho

Timothy já estava em silêncio por muito tempo, mas eu sabia que


sua cabeça estava uma bagunça. Seus olhos cheios de lágrimas e a
sobrancelha franzida comprovavam o que eu já havia dito que aconteceria,
por isso eu nunca contei a ele sobre o câncer.
— Desde quando? — ele finalmente questionou.
— Já faz um tempo...
— Quanto tempo?
— Fui diagnosticado com quinze anos.
Timothy suspirou, sei que estava se segurando para não chorar,
odiava vê-lo chorando desde que éramos pequenos. Por isso eu mantinha
meu sorriso no rosto, para mostrar que estava tudo bem e que não havia
com que se preocupar.
— Tem cura?
— Parece que sim, acho que algo como “95%” de chance — eu
disse tranquilo, para que Timothy se acalmasse. — Nada no mundo vai
fazer você se livrar de mim, Timothy Lee.
Ele sorriu, e cara, essa era a melhor coisa que eu já tinha visto na
vida.
— Aprendeu a falar meu nome — ele notou, todo orgulhoso.
— Eu já sou um homem!
Timothy soltou uma risada extremamente sincera e inesperada, até
mesmo ele parecia surpreso com a própria reação.
— Você só tem tamanho.
— E você em compensação não tem nenhum, né? — imediatamente
me arrependi do que disse, seu olhar mortal me faz parar de sorrir no
mesmo instante. — Estou brincando, é brincadeira.
Ele suavizou o olhar, mas continuou me olhando de uma forma
preocupada, sempre desviando para o cateter.
— Parece que essa coisa me persegue — ele sussurrou, após respirar
fundo. — Primeiro destruiu minha família, quase me matou e agora você...
Jun-ho eu sinto muito, mesmo!
— Não diga isso como se fosse culpa sua! — Meu corpo agiu de
forma automática quando me aproximei mais, tocando seu rosto com
cautela, Timothy não pareceu se importar, mas sua reação me surpreendeu,
era como se ele precisasse de mim tanto quanto eu precisava dele.
— Você estava bem, até me conhecer — sua voz tinha um certo tom
áspero, como se quisesse soar como uma piada, mas falhando nessa
tentativa.
— Timmie, sinceramente você não sabe de nada. — Ele me encarou
surpreso. — Para de falar essas coisas, ou vou acabar ficando chateado com
você.
Ele sorriu, concordando com a cabeça.
Não sei muito bem o porquê, mas não movi um musculo sequer do
meu corpo para soltar o rosto de Timothy, nem mesmo ele tentou se afastar.
Só percebo a quanto tempo ficamos daquela forma, sem dizer nada, quando
seu corpo se afastou bruscamente em reação ao susto que ele tomou,
quando sua mãe o chamou de repente.
— Timothy, está na hora do tratamento — ela resmungou
caminhando em nossa direção, quando o olhei, Timothy pareceu meio sem
jeito enquanto encarava o chão. — Jun-ho! Quanto tempo...
A sra. Lee me abraça, quando finalmente me nota ali.
— Timothy não parava de falar de você — ela o entregou, rindo
fraco.
— Mãe! — Timothy berra, com os olhos arregalados, quando notou
o tom da sua voz e eco que causou no corredor, ficou ainda mais
envergonhado.
— Nossa, meu filho. — Ela o encarou de cima a baixo, cruzando os
braços. — O que foi isso?
Ele me olha, provavelmente estou tão confuso com sua reação
quanto sua mãe. Depois olha para os lados e pigarreia ajeitando o cabelo.
— Nada, não foi nada. — Ele pigarreia outra vez e agarra o braço de
sua mãe. — Hora do tratamento né? Vamos lá! — Semicerrando meus olhos
e cruzando meus braços, analiso seu desespero para sair logo dali.
— Está fugindo de mim, Timmie? — Ele se vira rápido demais em
minha direção, parece que seu desespero só aumenta.
— Na-Não! — gagueja, e sua mãe o olha com a sobrancelha
arqueada. — Só estou ansioso para receber a quimioterapia.
Piorou a situação.
— Ansioso? — sua mãe questiona.
— Parece que você quer se livrar de mim.
— Aí, claro que não! — exclama. — Quer vir também? Você sabe
que pode, então chega de drama.
Tá, aí tem coisa.
Mas decido ignorar tudo isso e acompanho os dois, já faz muito
tempo desde que fiz companhia para Timothy. A última vez ele estava
extremamente contente, ver ele ter que passar por tudo isso outra vez, é
terrível.
Provavelmente é o primeiro dia, em muito tempo, isso ainda vai o
machucar tanto...
— Você cortou o cabelo? — ele questiona de repente,
aconchegando-se na poltrona.
— Você notou...
— É claro, seu cabelo era enorme!
— Você não gostou?
— Eu amei. — Ele sorri, um sorriso fraco, ele já perece estar
exausto.
Pressiono meus lábios para conter o meu sorriso, mesmo assim não
funciona, Timothy se mexe na poltrona outra vez, parecendo muito
incomodado.
— Quer vomitar? — pergunto com a voz baixa, quando ele faz uma
careta de dor.
— Não, tá tudo bem...
— Se sentir vontade, é só avisar.
A sra. Lee entra na sala com algumas coisas em mãos, analisando
bem o filho antes de continuar andando até colocar as coisas sobre a mesa.
— Eu trouxe um livro para você ler, já que não gosta de revistas —
diz sem se virar para nós. — E água, você precisa beber água.
— Não quero nada mãe... — Timmie resmunga, com a cabeça
encostada na poltrona.
— Você quer vomitar? — ela pergunta o mesmo, virando-se para
analisar Timothy outra vez.
Ele nega, tentando sorrir para tranquilizá-la.
— Você precisa comer alguma coisa — sussurro para ele, vendo seu
rosto virar em minha direção.
— Não estou com fome.
E é como se tivéssemos voltado no tempo.
Timothy sempre teve dificuldade para comer por causa do
tratamento e isso preocupava todo mundo, mas é pior quando ele está
recebendo a quimioterapia, por causa dos vômitos. Às vezes eu acredito que
ele se recusa a comer por causa disso, para não vomitar.
— Você veio aqui para fazer tratamento também? — ele chama
minha atenção, depois de um tempo.
— Sim...
— Não quer ir descansar?
— Estou descansando aqui com você.
Ele ri, tossindo em seguida.
— Pare de me fazer rir — ele sussurra.
— O mais engraçado é que eu sempre faço você rir, quando estou
falando sério — digo refletindo, Timothy segura minha mão para que eu
olhasse em sua direção.
— Você nunca fala sério.
— Isso magoou.
Ele tem razão, mas não inteiramente verdade.
Quando me movo na poltrona tentando ficar mais confortável, ouço
o som da notificação do meu celular. É meu irmão.
— Timmie, sinto muito, mas vou precisar ir agora. — Timothy se
ajeita na poltrona, olhando-me preocupado. — Meu irmão está me
chamando.
— Está tudo bem?
— Está sim, não se preocupa!
Timothy sorri, quando me levanto para ir embora, sua mãe tira a
atenção da revista que estava lendo e me encara confusa.
— Já vai? Fica mais um pouco.
— Eu preciso ir...
— Ele tem compromisso, mãe — Timothy explica, logo volta sua
atenção para mim. — Fica bem, tá? A gente se vê...
Eu tento conter o sorriso outra vez, puxando a alça da minha bolsa,
Timothy não tira os olhos de mim.
— A gente se vê, Timmie...
Quando olho, me deparo com a Sra. Lee nos observando com um
sorriso estranho nos lábios.
— Tchau, Sra. Lee.
— Tchau, querido, se cuida.
Percebi que ela não questionou sequer uma vez meu uso do cateter
nasal, mas o tom de voz que ela usou no momento indica certa
preocupação.
Deixar Timothy na quimioterapia sempre me dá uma sensação de
culpa, sei que sua mãe não o deixaria sozinho, mas também sei que ele
gosta da minha companhia naquele momento. Como uma espécie de alívio
cômico. Mas ver a mensagem de meu irmão dizendo que precisávamos
conversar me deixou preocupado, por isso fui o mais rápido que pude ao
consultório de meu pai e lá o encontrei sentado em sua cadeira.
— Tá fazendo o que aí?
— Sentado.
— Nossa, eu nem percebi — digo, colocando as mãos na cintura.
Meu irmão é mais velho que eu, um adulto, mas age como se fosse
uma criança.
— Larga de ser invejoso, você queria estar aqui isso sim!
Ele tem um ótimo ponto.
— Isso não vem ao caso — digo me sentando em frente à mesa do
meu pai, nossas fotografias estão como exposição no seu consultório. —
Têm mais fotos minhas aqui, acho que ele me ama mais.
— A verdade é que você não para de tirar fotos, né? — ele retruca,
encostando-se na cadeira. — Aí fica difícil de competir.
— Realmente, isso também significa que eu sou mais bonito —
Minho me encara com os olhos semicerrados.
— Perdeu o medo de morrer, moleque?!
Solto uma gargalhada extremamente alta, é tão espontâneo que até
me surpreende.
— Medo de morrer? — digo cruzando os braços. — Diz isso ao
meu câncer.
O sorriso de Minho some no mesmo instante, ele desvia o olhar e
toda a graça some. Ele nunca ri das minhas piadas.
— Isso não tem graça! — ele diz depois de um tempo.
— Foi mal.
— Foi péssimo — ele me corrige, levantando-se de onde estava para
se sentar na cadeira ou meu lado.
— O que foi? Do que você quer conversar? — questiono, vendo
Minho me encarar com certa chateação.
Confuso, espero até que ele diga alguma coisa. Mas o que ele faz é
tirar um papel do bolso e o sacode em minha direção, como se eu tivesse
alguma coisa a ver com aquilo.
— O que é isto? — ele questiona e eu analiso melhor.
— Um envelope. — Ele revira os olhos e bate em meu braço com o
papel, eu me encolho sem entender sua reação. — Mas foi você que
perguntou!
— Eu sei que é um envelope, idiota!
Ué.
— Ai, sinceramente... — ele resmunga irritado quando abre o
envelope, com a ajuda de seus dedos, a folha repleta de letras desliza sobre
a mesa em minha direção.
E então tudo começa a fazer sentido.
Minho foi aceito na faculdade, aquela em que ele sonhou a vida
inteira.
— Meu Deus, parabéns!
— Foi você que enviou minha inscrição? — ele não agradece, mal-
educado.
— Foi.
— Por quê?!
— Porque eu sabia que você nunca enviaria! — digo, simplista,
Minho me encara em puro choque.
Desde que eu fui diagnosticado com câncer, ele desistiu de todos os
planos que já havia feito por minha causa, isso não é nada justo.
— Não podia ter feito isso...
— Você ficou para trás, sua namorada foi e você ficou. — Eu me
levanto, incomodado com sua reação. — Até quando ela sofreu aquele
acidente, você ficou alguns dias, mas voltou para casa correndo!
Minho parece indignado, não diz sequer uma palavra.
— Sua vida não tem que parar só porque eu estou doente!
— Ela não parou!
Que mentiroso.
— Sua vida ficou um saco! — Meu irmão abre a boca com
indignação, ele me olha por muito tempo em silêncio e por fim, ameaça
jogar um dos retratos em mim.
— Que moleque pilantra, você é um sem noção!
A risada que eu dei provavelmente foi tão alta quanto a anterior,
irritar meu irmão é uma das coisas que mais me dão prazer na vida. O que
acredito que seja recíproco, já que ele não dá um pingo de paz!
— Para de graça e vá arrumar suas malas. — Dou dois tapinhas em
seu ombro e volto a me sentar. — Seattle te espera, meu nobre irmão!
Minho não ri do meu comentário, ele me encara com seriedade,
parece realmente chateado com a situação.
— Você quer que eu vá embora? — ele questiona quando se agacha
em minha frente.
— O que? Não! — respondo de imediato.
— Então por que fez isso? — Ele parece realmente confuso, Minho
não entende muito bem quando algo ou alguém lhe faz algo de bom, por
amor ou consideração, sem querer nada em troca.
— Porque você merece! Esse é seu sonho desde que me entendo por
gente — esclareço, vendo os olhos dele encherem de lagrimas.
Meu irmão não costuma chorar, principalmente em minha frente,
por isso me assusto com a situação e fico todo afobado para lhe tranquilizar.
— Você está doente, Jun-ho! — exclama. — Como eu vou ter
cabeça para ir embora do país?
— Isso é temporário! Se eu piorar eu vou te contar na mesma hora.
Ele não parece relaxar diante disto, pelo contrário, ele me abraça me
deixando ainda mais surpreso.
Minho é o tipo de irmão que gosta de passar a impressão de alguém
que não se importa com nada, nem ninguém. Mas na verdade, ele só não se
importa consigo mesmo, Minho não chorou quando teve a parte do
orçamento da sua faculdade cortada quando fui diagnosticado, ele chorou
quando soube que eu teria que ser dependente da bolsa de oxigênio. Ele não
chorou quando sua namorada foi para a faculdade dos sonhos sozinha, ele
chorou quando soube que ela teria que trancar para fazer a fisioterapia.
Na verdade, sempre que algo de ruim acontece com ele, ele aceita.
Como se merecesse aquilo, por isso eu mandei a inscrição dele para a
faculdade e nem perguntei antes se poderia.
— Hoje eu fui visitar a mamãe — ele conta de repente, sem me
soltar.
E é daí que eu entendo o motivo de seu comportamento no
momento.
Minha mãe faleceu há um tempo, e não, ela não tinha sequer um
problema de saúde! Na verdade, não havia alguém no mundo que se
cuidasse como ela. Minha mãe era dançarina, por mais puro amor a isto, ela
dançava para canalizar qualquer tipo de sentimento presente.
Saber que um carro sem controle algum a fez perder absolutamente
tudo, ainda me causa muito angústia e além de tudo, raiva.
— Por quê?
— Sinto falta dela — ele confessa, aconchegando-se mais em meio
ao abraço. — Mas nada naquele lugar me faz matar a saudade, é só uma
lapide idiota...
“Lápide idiota”, nunca imaginei ouvir essas palavras saírem da boca
de Minho.
— Ela não está lá, não está em lugar algum!
— Isso não é verdade... — resmungo, incomodado com o assunto.
Minho se afasta sem tirar as mãos de meus ombros, encarando-me com um
olhar profundo e magoado.
— Não posso perder mais ninguém, Jun-ho — ele sussurra. — Eu
estou perdendo a mamãe todos os dias, não posso perder você e o papai.
— Isso não vai acontecer! — digo com total certeza, sorrir ainda
continua sendo minha maior tática para tranquilizar alguém. — Você só vai
estudar, se formar e voltar para casa! Eu vou estar bem aqui e o pai também.
Ele parece analisar as palavras, junto do meu rosto, Minho pensa
durante um tempo até deixar escapar um breve sorriso.
— Você nunca vai me perdoar se eu ficar, não é?
— Nunca! — Nego sem parar com a cabeça. — Isso não é nem uma
opção aqui! E o papai concorda...
— O quê? Ele sabe?
— Claro que sabe, acha que o papai ficou feliz em te ver todo
deprimido?
Ele sorri mais uma vez, mas há uma certa quantidade de tristeza
neste sorriso. Eu o conheço muito bem, a vontade de ir para Seattle é maior
do que ele mesmo. Mas sei que meu iria se culpar caso algo acontecesse
comigo enquanto ele não está aqui, porém sei que não há com que se
preocupar, eu estou bem.
— Você tem que contar a Sara que está indo! — digo animado e
Minho até se assusta com a mudança do meu tom de voz. — Cara, ela vai
ficar tão feliz!
Dito isto, seus lábios se curvam no sorriso mais sincero que ele já
dera hoje.
— Acho melhor fazer surpresa...
— Claro que não — protesto, indignado com a ideia. — Imagina ela
te esperando no aeroporto e então correndo na sua direção, daí você a pega
nos braços e gira em meio a um abraço?
Minho me encara com as sobrancelhas franzidas e os olhos
semicerrados.
— Isso aqui não é um filme, moleque.
— Ah, sei lá, achei que os casais que se amam agissem assim. —
Minho solta uma gargalhada sincera ao jogar sua cabeça para trás, isso faz
com que eu me sinta um idiota.
— Certo, você não entende mesmo do assunto... — ele diz ao
recuperar o folego. — O que é estranho já que você é todo apaixonado!
Como é a história?!
— Eu? — Aponto para mim mesmo. — O que tenho a ver com
isso?
— Sim, você! — E ele também aponta para mim. — Não para de
falar de seu amigo nem por um segundo.
Olha, ele tem um ponto...
— Isso não é verdade — retruco, vendo Minho me julgar com os
olhos. — Ficamos longe por anos, como eu poderia ter me apaixonado?
— Distância não impede nada, Sara está longe de mim por meses e
eu continuo completamente apaixonado por ela — ele faz uma comparação
da qual eu acho desnecessária.
— Você é você! — Cruzo os braços, afastando-me dele. — Tome
conta da sua vida.
— Nossa você não tem educação, não?! — exclama, tentando dar
um tapa em minha nuca. — Fale direito comigo, sou seu irmão mais velho.
— Beeem mais velho mesmo! — caçoo, mas então ele me alcança e
bate em minha nuca.
— Nossa, some da minha frente! — digo falsamente irritado,
segurando sua mão que continua me ameaçando. — Vai fazer suas malas,
vai! Sua namorada tá sozinha lá, hein...
Minho me encara chocado ao ouvir o que acabei de dizer, ele se
afasta e fica me encarando em silêncio por um tempo.
— O que tá querendo insinuar com isso?
— Nada, era só pra você parar de me bater — esclareço vendo meu
irmão revirar os olhos, revirando tanto que quase não volta ao normal.
Meu sorriso não diminui nem por um segundo visto que esses
momentos de paz são extremamente raros, bem, tornaram-se após meu
diagnostico. Parece que não tivemos que lidar com algo tão difícil desde a
morte da minha mãe. Meu pai se sente culpado por ter pouco tempo para
mim por causa de seu emprego, ser cirurgião é mesmo complicado, o pior é
ele se culpar por não ser experiente no meu caso.
Nunca iríamos imaginar que algo como isso iria acontecer, por mais
que eu tivesse apresentado sintomas algumas vezes. Você acaba ficando
cego quando só tem olhos para alguém e um único problema, eu me via
como a criança mais saudável do mundo quando estava preocupado com
Timothy, meu pai sequer havia superado a morte da mamãe, então ali o
mundo dele havia acabado.
Infelizmente eu o destruí novamente.
— Você sabe que eu vou sentir muito a sua falta, não é?
É, eu sei.
Existem poucas pessoas no mundo que sentiriam minha falta, uma
delas com certeza é meu irmão! Sentirei a falta dele em dobro, estar sozinho
não é um problema, mas acaba sendo terrível quando você sabe que cada
mínimo segundo de sua vida pode ser o último.
— Ei, Jun-ho — meu irmão me chama uma vez, durante a
madrugada, quando já está saindo para pegar seu voo. — Eu te amo.
Sem me mover, apenas sorrindo observando Minho na porta de meu
quarto, com sua melhor peça de roupa e o maior sorriso do mundo no rosto.
— Te amo muito mais
Nesses momentos eu sinceramente preferiria estar dormindo, odeio
despedidas. Principalmente de quem eu amo tanto, meu irmão me olha mais
um tempo e depois fecha a porta com cuidado, não acredito que chorar seria
a melhor reação no momento. Mas acaba sendo inevitável quando ouço
seus passos cada vez mais distantes.
Logo em seguida o som do carro, o que também some aos poucos.
Eu amo o fato de ter feito com que isso acontecesse, não me
arrependo nem um pouco. Mas ainda assim não consigo evitar chorar diante
disto tudo, meu pai com certeza não queria se despedir de meu irmão tão
cedo. Mas aparentemente amar é saber quando devemos deixar a pessoa ir,
e eu nunca prenderia alguém que amo só porque não iria aguentar viver sem
ela.
— Seu irmão estava tremendo de nervoso lá no aeroporto — meu
pai contou durante o café da manhã. — Fazia tempo que não o via daquele
jeito...
O sorriso de satisfação no rosto do meu pai é impagável!
— Fazia tempo que eu não te via assim — digo, sua reação é
engraçada. Parece que ele já sabia que eu iria dizer isso.
— Não é verdade — ele nega. — Vocês dois me deixam feliz todos
os dias.
Eu não acho que isso seja mentira, mas também não é inteiramente
verdade.
Fazer alguém feliz durante um dia ou em um exato momento, não
significa que irá curar completamente tudo o que já estava machucado.
Felicidade é um processo complicado, não há como definir, geralmente
acontece da forma mais inesperada e simplista possível.
Muitas vezes só reparamos o quanto estamos felizes, em um breve
momento em que ficamos tristes.
E só reparamos o quanto estamos infelizes, quando por um instante
ficamos felizes.
Por um milésimo de segundo, que parece uma eternidade.
— Você por outro lado, tem que parar de esconder o que sente por
trás desse sorriso — meu pai diz após beber um pouco de seu café, e sem
me permitir dizer nada, ele se vira e me deixa sozinho.
O que eu sinto?
Não sei nem como identificar isso.
— Ah, vou ao hospital hoje — ele avisa, quando da meia volta no
meio da cozinha. — Quer vir junto? — Fico confuso com sua proposta, ele
me encara como seu eu fosse um idiota e suspira deixando a caneca na
bancada. — O Timothy voltou a fazer tratamento, não é? Achei que iria
gostar de ver ele.
— Claro! — respondo de prontidão. — Mas não sei se ele vai ir tão
cedo...
— Meu filho o único que começa a viver só depois das duas da
tarde, é você — ele acusa, pegando a caneca de volta. — Tome seu café
com calma, Timothy não vai sair correndo.
Só então que eu percebo a quantidade absurda de pão que eu
coloquei na boca, não estou com pressa, é só fome. Meu pai nega com a
cabeça rindo da minha cara, quando finalmente me deixa sozinho.
Mais tarde, quando chegamos ao hospital, meu pai recebe uma
chuva de tarefas enquanto seus colegas diziam coisas das quais eu não
entenderei nem em uma próxima reencarnação. É rápido vê-lo sumir entre
os outros médicos que também parecem não ter tempo nem para respirar
naquele lugar!
Por isso eu não demoro em sair para procurar Timothy, eu sinto que
não iria o encontrar já que, na minha mais humilde opinião, está cedo
demais para que qualquer ser humano vivo estivesse de pé! Mas o hospital
está lotado de pessoas, pacientes e visitantes.
Estou começando a acreditar nas palavras do meu pai, mas isso
ainda não entra na minha cabeça.
— Viajando no mundo da lua, Jun-ho?
Certo, talvez a pressa em comer o pão não seria exatamente de
fome, mas para vê-lo. Ou ouvi-lo, o efeito foi o mesmo quando ouvindo sua
voz de repente já me faz sentir uma euforia imensa.
— Na verdade, essa é uma especialidade sua! — Ele ri, quando me
aproximo, Timothy não demora em me dar um abraço. O que me deixa
brevemente paralisado.
— Como você está se sentindo hoje, Timmie?
— Eu estou bem... — ele sussurra em meio ao abraço. — Estou bem
agora.
Ele entende, por que sabe

— Timmie! — Jun-ho exclamou ao colocar sua cabeça para dentro


da sala, com seu corpo escondido atrás da porta, não era comum ter Jun-ho
me visitando em casa. Mas desde que ficamos ainda mais próximos com
suas visitas recorrentes no hospital, para acompanhar meus tratamentos.
Achei sem sentido algum vê-lo apenas naquele lugar, por isso o
chamei para me visitar em casa, e essa foi a melhor decisão, agora Jun-ho
aparece sempre que pode! É engraçado ver sua reação com a forma que
agimos em casa. Como uma guerra sem fim, ele também se surpreende toda
vez, como se fosse a primeira vez que estivesse vendo, o fato de que meus
pais moram na mesma casa, mesmo após o divórcio.
— Posso entrar? — Jun-ho perguntou parado no mesmo lugar, ainda
escondendo o corpo atrás da porta, sempre que vem ele faz a mesma
pergunta mesmo sabendo que a resposta será a mesma.
— É claro que sim! — respondo levantando-se do sofá.
— Bom dia, Sra. Lee! — minha mãe entra na sala com um grande
sorriso no rosto.
— Bom dia, Jun-ho! — ela o abraça, parece até que Jun-ho é um
terceiro filho seu.
Isso não é uma surpresa, inclusive, minha mãe o trata desta forma
desde que éramos crianças.
— Timothy, eu trouxe minha câmera!
Certo, isso me resultou em grande nostalgia.
Jun-ho a tira com cuidado da bolsa, é uma nova, maior. Ele
programa alguma coisa no objeto e depois aponta para mim, que sem reação
alguma com a ação inesperada, apenas congelo ao receber a forte luz do
flash em meu rosto.
— Jun-ho!
— Ficou ótima — ele diz sorrindo enquanto analisa a foto. — Eu
amei.
Tenho certeza absoluta de que Jun-ho precisa urgentemente de
acompanhamento no oftalmologista, porque quando vejo a foto meu queixo
quase caí no chão de tão terrível que fiquei na foto, meus olhos arregalados
e meu corpo encolhido, como se eu estivesse tomando um susto.
— Fiquei horroroso!
— Isso é impossível, Timothy.
Impossível?
Desde voltei para a Coreia percebi que Jun-ho tem me tratado de
uma forma diferente, isso é bom, gostei dessa sua nova forma de cuidar de
mim, parece que minha pessoa é importante. Ele não cuida de mim apenas
pelo óbvio que seria meu câncer, sinto que ele cuida de mim, simplesmente
porque eu sou eu.
Talvez não faça sentido algum, talvez nada disso seja verdade, mas
gosto de pensar nessa possibilidade.
Faz um tempo desde que Jun-ho começou me visitar aqui em casa,
já me acostumei com o seu aparecimento repentino, na verdade todos nós
nos acostumamos. Meu pai estranha quando ele não aparece, ficamos
preocupados até que ele mande notícias. Aparentemente, Jun-ho também se
preocupa comigo quando não pode vir.
— Vamos ficar lá fora, você precisa tomar um pouco de sol — ele
sugere, após dar mais uma olhada na foto.
Eu concordo, na verdade, eu sempre acabo topando tudo o que ele
propõe.
Mas não me arrependo, a beleza e conforto do dia me fez suspirar de
tanta satisfação ao sentir o vento cauteloso tocar a minha pele, o sol quente,
mas aconchegante, dá energia a meu corpo que já se encontrava
dolorosamente exausto.
Deitar-me na grama recém aparada e fechar os olhos, o reflexo
avermelhado causado pela luz do sol em minhas pálpebras fechadas. Tudo
isso, ou simplesmente isso.
É o que significa “aproveitar as maravilhas da vida”, para mim!
As maravilhas estão bem diante dos meus olhos, eu sequer preciso
viver eternamente ou ter uma longa vida para aproveitar tudo isso. Estou
bem aqui agora, e o que é suficiente para mim, é só poder sentir minha pele
esquentar por causa de uma estrela que ilumina meu dia.
Essa estrela não é o sol.
— Jun-ho — sussurro, sem abrir meus olhos.
— Hm?
— Você já sentiu como se estivesse aqui, por algum único motivo?
O silêncio que se prolongou após meu questionamento não foi nada
desconfortável, na verdade, foi um dos momentos silenciosos mais
reflexivo da minha vida.
— Sim — ele disse depois de um tempo, mas parecia um pouco em
dúvida sobre sua própria resposta. — Você sente?
— Não exatamente, às vezes eu me sinto como se estivesse em uma
missão. — Ouço sua risada tranquila, o que resulta em uma risada
automática saindo de meus lábios. — Sei lá, talvez seja porque eu posso
morrer a qualquer momento... — Quando termino de falar, ouço Jun-ho se
mover sobre a grama, e então abro meus olhos me deparando com Jun-ho
sentado, sua expressão entrega a decepção em ouvir minhas palavras.
— Não diga isso, você não vai a lugar algum.
— Algum dia, eu...
Jun-ho me interrompe ao se levantar apressado, ele alcança sua
bolsa e tirou dela um fone de ouvido e o celular. Quando imaginei que Jun-
ho já estava de saco cheio de me ouvir falar, ele volta em minha direção.
— Não vamos falar sobre morte, Timmie! — ele pede, conectando o
fone em seu celular. — Não gosto nem de imaginar isso, então me deixa te
mostrar a música que eu adicionei na playlist?
Ah, é mesmo! Jun-ho criou uma playlist para que possamos ouvir as
mesmas músicas todas as vezes em que ele vier me ver, seja no hospital ou
aqui em casa, ele sempre coloca. As músicas são de gêneros e cantores
diferentes, mas quase todas elas me causam o mesmo tipo de sentimento.
Tranquilidade e acolhimento.
Ele coloca a música assim que eu me sento na grama, Jun-ho está
em minha frente, o som me faz sentir como se todo o mundo estivesse
vivendo no modo câmera lenta. Brinco com a grama enquanto tento prestar
atenção na letra, quando a mão de Jun-ho aparece em meu campo de visão,
seu dedo mindinho me toca cautelosamente, como se quisesse passar
despercebido, até que ele finalmente segura minha mão. Ele brinca com as
linhas, enquanto me arrepio com o seu dedo deslizando sobre a palma da
minha mão.
A música se torna a coisa mais insignificante do mundo, paro de
tentar entender a letra e volto a fechar meus olhos, disposto apenas em
sentir a forma como seus dedos parecem ter sido feitos para acariciar minha
pele. Jun-ho parece não estar disposto a interromper o momento quando a
música para ele simplesmente continua, e eu não me movo.
Como poderia? Nunca senti tanta paz em um único toque, não é
apenas um ato bobo, eu sequer posso colocar em palavras o que estou
sentido e o significado disto, mas todo esse cenário poderia me curar! É
difícil de explicar e até meio exagerado de falar, mas a paz que esse garoto
me faz sentir quando está comigo, eu não senti nem mesmo quando estava
“curado”.
Jun-ho é uma pessoa tímida, isso não é surpresa para ninguém. Por
mais que ele possa ser um pouco confiante, às vezes quando se trata de
demonstrar aquilo que sente, ele se fecha. Mas então esses momentos de
euforia, fazem-no ultrapassar seus próprios limites.
— Meninos! — minha mãe grita de algum lugar, Jun-ho se afasta
um pouco pela surpresa, enquanto eu me assusto com a forma da qual ele
afastou sua mão da minha. — O almoço está pronto.
Jun-ho sorri em sua direção, mas consigo perceber o nervosismo em
seu olhar.
A verdade é que não estou nem um pouco diferente! Nós já tocamos
a mão um do outro quando mais novos, andávamos de mãos dadas para
todo lado, mas éramos crianças. Crianças que só se preocupavam em qual
poltrona sentar-se na hora do meu tratamento para que o Sol pegasse bem
em meu rosto, para que Jun-ho pudesse praticar fotografia. Coisa que, na
época, era apenas diversão.
A forma como ele tocou e segurou minha mão hoje, foi diferente.
Assim como o que eu senti.
— Timothy? — minha mãe me chama, já na mesa, enquanto todos
almoçam. — Querido, você nem tocou na sua comida...
— Não estou com muita fome — digo, mas sorrindo para que minha
não fique preocupada. O que é óbvio, não funciona.
— Você também não comeu muito, no café da manhã — meu pai
lembra, deixando o prato de lado para prestar mais atenção em mim.
Jun-ho e Sam me olham preocupados, ou melhor, todos estão me
olhando de forma preocupada.
Isso me deixa um pouco desconfortável.
— É a quimioterapia — Jun-ho explica, sem tirar os olhos de mim.
— Tira o apetite, e o cheiro da comida te incomoda, não é? — eu concordo.
— Não é porque o cheiro está ruim ou a comida que não está boa, a quimio
altera tudo isso, faz parecer que qualquer coisa que você comer está
estragada.
É doloroso entender o porquê dele me entender tanto a respeito
disso tudo, Jun-ho ficava ao meu lado quando mais novo, mas não entendia
muito bem como eu me sentia, agora ele sabe! O inferno pessoal que
passamos por causa de um tratamento que pode sim salvar nossas vidas,
mas causam a sensação de estar nos matando lentamente.
— A radioterapia também, não é? — questiono e Jun-ho concorda
de imediato.
O silêncio se instala na sala de jantar após nosso pequeno diálogo,
meus pais não param de se encarar com extrema preocupação no olhar. Já
Samuel, tenta ignorar todo o cenário desconfortável e volta a comer, agora,
ele come de uma forma mais desesperada.
— Sam, querido, faz mal comer tão depressa assim — minha mãe
diz tentando soar calma, Sam para de mastigar para analisar sua própria
situação, como se não tivesse percebido a forma como estava comendo. —
Está bom? — Agora com um pequeno sorriso, ela pergunta, ao acariciar o
rosto do meu irmão.
Não tenho dúvidas de que a comida está incrível, minha mãe
cozinha muito bem, mas como Jun-ho disse, até o cheiro me incomoda.
— Mãe, vou me deitar um pouco. Tá bom? — minha mãe parece
não gostar da ideia de eu ir me deitar sem ter comido quase nada, mas não
se opõem contra minha vontade.
A exaustão também é uma das muitas sequelas do tratamento, o que
na minha opinião é uma das piores partes, não importa o quanto eu
descanse, sempre vou sentir meu corpo pesado e dolorido.
Mas ainda não chegou a pior parte, a qual me deixa apavorado e me
preocupa toda vez que aquilo é injetado em mim.
Meu cabelo, toda vez que me lembro que ele irá cair outra vez a
mesma imagem do garoto confuso e assustado por estar perdendo os fios
que tanto amava, volta a minha mente outra vez.
Odeio ter que passar por isso de novo, odeio o quanto essa doença
me mata segundo por segundo.
— Timothy? — A voz de Jun-ho atravessa a porta. — Tudo bem aí?
— ele não entra, nem mesmo bate na porta ou pede para entrar, continua do
outro lado esperando uma resposta.
— Você subiu as escadas?! — questiono chocado, assim que abro a
porta.
— Subi — responde ele, simplista. Aparentemente a minha cara de
choque fica maior ainda, visto a forma como ele encara meu rosto e sorri.
Céus, Jun-ho ainda vai me matar do coração.
— Meu Deus Jun... Senta-se aqui um pouco. — Eu o puxo pelo
braço, Jun-ho me segue como uma criança, sentando-se com cuidado na
ponta da cama. — Fica à vontade.
Ele sorri ainda mais.
— Timmy?
— Hm?
Ele fica em silêncio por um tempo, talvez tempo até demais,
olhando-me. Isso já está se tornando um costume seu, o que me preocupa.
Por que ele me olha tanto?
— Desde quando não está conseguindo comer?
— Desde o café da manhã.
Outra vez o silêncio.
— Não comeu nada?
— Só tomei um chá...
Jun-ho é extremamente expressivo, é por isso que consigo ler tão
bem suas emoções. Mas sinceramente, agora não estou gostando do que eu
estou lendo.
— Vai ficar tudo bem — sussurro quando o silêncio se prolongou
por mais tempo que o comum, deixando-me aflito.
— Eu espero — ele sussurra de volta, pegando minha mão outra
vez.
Surpreendentemente, dessa vez meu coração não ameaça sair para
fora.
— Você quer ouvir música?
Sempre.
— Pega — ele me oferece um lado do fone, colocando o outro. —
Tem muitas músicas que você vai gostar...
— Me mostre todas elas então. — Jun-ho ri enquanto procura algo
em sua playlist.
— Isso duraria uma vida, Timmie, são tantas...
— Tudo bem, temos tempo. — Jun-ho finalmente tira seus olhos do
celular para olhar meu rosto.
Ele parece ter gostado do que ouviu, seus olhos brilham e um sorriso
enorme toma conta de seus lábios. E que sorriso lindo, com certeza é o
sorriso mais impecável que já tive a sorte de ver.
— É, nós temos. — E então eu sorrio de volta.
Tempo... Ele é tão precioso quanto a vida, tão necessário quanto a
água.
É tudo que preciso agora.
E Jun-ho também.
— Você tem que me emprestar sua conta do Spotify! — digo,
quando já estamos deitados em minha cama, com os pés para fora, ainda
dividindo um fone enquanto “Apocalypse” de Cigarettes After Sex toca.
— Faça a sua! — ele exclama fingindo estar chocado com meu
pedido.
— Poxa, você é rico — aponto um fato, vendo Jun-ho gargalhar
com meu péssimo argumento. — Custa nada.
— Você não presta.
— Inclusive, você que está me apresentando todas essas músicas
boas! — novamente, aponto outro fato. — Acho que é um dever seu.
Outra gargalhada, mais alta. O que faz com que eu acabe perdendo o
controle e solte uma risada alta também, ficamos por algum segundo rindo,
a música para e tudo que ouço é Jun-ho rindo, mas tentando se conter, ele
joga o antebraço por cima dos olhos e seu corpo chacoalha.
— Que lógica é essa?! — Ele finalmente me olha, seu rosto
vermelho e o sorriso que não consegue sumir.
— Faz muito sentido para mim. — Dou de ombros.
O costume recente de Jun-ho, de ficar me olhando, é 100% verídico!
Ele faz outra vez, o que não é nada saudável para o meu coração que
acelera em resposta, acredito que eu esteja viciado em seu sorriso, já que
mal posso tirar meus olhos de sua boca.
— Certo, você venceu.
— Você é o melhor amigo que eu tenho! — exclamo, aproximando-
me para abraçá-lo.
— Sou o único que você tem — Jun-ho resmunga e eu fico
extremamente chocado.
— Jun-ho, saia da minha casa! — Sua reação com a expulsão não é
como o esperado, esticando seus braços longos para cima, Jun-ho alcança
meu travesseiro e não hesita em jogá-lo em meu rosto.
Minha indignação é tanta, que tomo o travesseiro de sua mão e faço
o mesmo. Jun-ho ri em resposta e alcança o outro para revidar, de repente
estamos em uma grande batalha de travesseiros, a risada contagiante de
Jun-ho me faz rir ainda mais, minha bochecha dói em resposta. Ou pelo
sorriso que persiste em meu rosto, ou pelo travesseiro chocando contra
minha pele a cada cinco segundos.
— Jun-ho! Eu sou mais velho, me respeite — reclamo, tentando
revidar.
O problema é que sempre quando estou me divertindo, algo
acontece para estragar o momento e o pior é que dessa vez, a culpa foi
inteiramente minha. Quando finalmente tive forças para segurar o
travesseiro que Jun-ho está usando para me acertar, juntando toda força em
meu braço para revidar, o travesseiro fez com que o cateter nasal caísse do
rosto de Jun-ho, que está cansado por causa da brincadeira.
— Não, não, não! — Em extremo desespero, levanto-me indo em
sua direção para tentar ajudar, Jun-ho me olha sem dizer nada, apenas
tentando buscar ar.
Com as mãos tremendo, finalmente consigo colocá-lo de volta em
seu rosto, com suas mãos sobre a minha. Todo meu corpo parecia mole por
causa do susto.
— Me desculpa — sussurro, sem soltar o tubo do cateter, Jun-ho
acaricia minha mão enquanto recupera o folego. Deito minha testa sobre a
sua, e então nós dois ficamos em silêncio para nos acalmarmos do susto. —
Me perdoa, Jun-ho!
— Tudo bem, eu estou bem, Timmie — ele finalmente me responde,
quando o olho, percebo que estava com um leve sorriso nos lábios. — Fui
eu que comecei, não se preocupa, não foi culpa sua.
Meus Deus... Que desespero, achei que fosse desmaiar.
— Está conseguindo respirar? — sussurro outra vez, Jun-ho afirma
com a cabeça.
Toda a nossa felicidade some. Ele continua sorrindo, mas sei que é
para me acalmar e não porque ele está com vontade de sorrir.
— Nunca mais vamos fazer guerra de travesseiros! — Jun-ho ri. —
É sério.
— Se acalma, anjo, não foi nada demais. — Ele segura meu pulso, o
que me faz perceber que até agora eu não tirei as mãos de seu rosto.
E... ANJO?
Sim, Jun-ho acaba de me chamar de anjo.
Tudo bem, normal, nada de agir como um idiota por causa disso.
— Aham.
É tudo o que consigo dizer, ou melhor, murmurar.
— “Aham” — ele me imita, dando risada em seguida.
— Você parece uma criança — acuso, afastando-me dele para cruzar
os braços.
— Eu tenho dezoito, Timothy, ainda posso agir como uma. — Qual
a lógica?
— Não, não pode!
Ele ri, logo fazendo careta ao se sentar na cama e outra vez tentando
regularizar a respiração.
— Jun... Acha melhor ir ao médico?
— Não, está tudo bem.
“Tudo bem”, não está! Mas confio nele quando diz que ir ao médico
não é necessário.
Ouvimos batidas na porta e então minha mãe e meu pai entram em
seguida, parecem preocupados.
— O que aconteceu? — mamãe questiona, analisando nossos rostos.
Jun-ho e eu nos encaramos por um segundo, como se tivéssemos
sido pegos em flagrante numa uma cena de crime, ele sorri para meus pais e
se prepara para dizer algo, mas eu o corto antes.
— Sem querer eu tirei o cateter do Jun-ho — confesso arrependido,
meus pais se olham com um grande ponto de interrogação no rosto.
— Meu Deus, Timothy, como isso aconteceu? — Minha mãe
questiona, aproximando-se para verificar se está tudo bem com Jun-ho.
— Estávamos fazendo guerra de travesseiro — dessa vez é Jun-ho
quem confessa, envergonhado.
Outra olhada entre meus pais, engraçado como eles parecem
conversar sem ter que dizer uma palavra.
— Eu achei que vocês estivessem brigando — meu pai conta,
também se aproximando. — Mas não passou pela minha cabeça que seria
uma tentativa de assassinato.
Meus olhos imediatamente se arregalam, Jun-ho solta uma alta
gargalhada e meu pai pressiona os lábios para conter a risada.
— Pai!
Minha mãe revira os olhos diante do cenário desastroso e encara
meu pai que imediatamente fica mais sério, até mesmo ajeita a postura.
— Você é mais criança que as próprias crianças — acusa.
— Fala sério, foi engraçado — ele resmunga, agora é a vez da
minha mãe pressionar os lábios.
— Não foi, não! — protesto, levantando-me. — Eu fiquei
desesperado.
— Relaxa, Timmie, não foi nada — Jun-ho diz com um sorriso no
rosto, dessa vez me irritando.
— Para com isso, você podia ter morrido!
E o clima muda completamente, meus pais nos encaram outra vez,
enquanto Jun-ho e fazemos o mesmo. Ficamos em completo silêncio até
que ele sorri de novo, negando com a cabeça.
— Você nunca deixaria isso acontecer.
Aí está um ótimo ponto.
— Ai! ninguém merece, vocês vão ficar quanto tempo discutindo aí
hein?! — assustando todos, Sam exclama encostado no batente da minha
porta, parecendo estar extremamente entediado.
— Cruzes, há quanto tempo você está aí? — questiona com meu
corpo encolhido.
— Meu irmão, não faço ideia — ele diz simplista, encarando-me
sem expressão nenhuma no rosto.
— Você está usando drogas?
— Timothy! — minha mãe exclama, horrorizada, dessa vez meu pai
não se aguentou e gargalhou.
Céus, o caos.
— Olha para ele!
— Eu não uso drogas!
Minha mãe massageia as têmporas, meu pai para de rir aos poucos e
Sam invade meu quarto se sentando ao lado de Jun-ho, que com certeza está
adorando tudo isso, minha vontade é sair correndo.
— Quem quer assistir um filme? — Samuel propõe, depois de
longos segundos em silêncio. Jun-ho é o primeiro a concordar, o que não
me surpreende, ficamos todos juntos na sala enquanto assistíamos ao filme
“Interestelar”, que na minha opinião é um dos melhores filmes já feitos.
Sam come sozinho um grande balde de pipoca, mas ele sequer
cogita a ideia de deixá-lo de lado. Jun-ho está deitado ao meu lado, seus
olhos brilham assistindo ao filme, não para de elogiar a fotografia
impecável do longa. Já eu, luto contra um sono terrível que tem como
objetivo me fazer perder o filme, parece que não durmo há dias.
Preciso me remexer sobre o sofá inúmeras vezes para que o sono vá
embora, mas parece que só aumenta, junto da trilha sonora do filme, que me
enche de paz, não facilita nada para mim.
— Está cansado? — Jun-ho sussurra de repente, minha reação é
como se eu tivesse sido pego no flagra, fazendo algo de errado, não quero
dormir e deixar Jun-ho “sozinho”, ele veio para me ver.
— Não. — Nego freneticamente com a cabeça.
— Timmie, seus olhos ficam fechando toda hora — ele diz rindo. —
Você tem que descansar.
— Mas eu quero ver o filme com você — resmungo.
Jun-ho ri baixinho, aproximando-se mais de mim, para ajeitar o
cobertor em meus ombros, depois passa seu braço direito por trás de mim,
puxando-me para mais perto.
— Você pode dormir, podemos assistir ao filme que quiser depois
— ele sussurra, incentivando-me a deitar em seu ombro, mas continuo
olhando para seu rosto. — Você mesmo disse para mim hoje que temos
tempo.
Jun-ho vai me matar do coração.
— Temos.
— Então tudo bem, podemos assistir quantos filmes você quiser
juntos — outra vez ele ajeita o cobertor em meu ombro. — Mas agora você
pode descansar.
Eu concordo, afinal ele tem razão, quando deito minha cabeça em
seu ombro e relaxo o corpo, percebo o quanto estou exausto, parece pesar
uma tonelada e que todo esse peso está sendo descarregado em mim
mesmo, então acredito que tenha sido por isso que, e pelo carinho que
recebo em meu braço por Jun-ho, que adormeço tão rápido.
Desde que voltei a fazer tratamento, meu corpo passa a suportar
poucas horas do dia acordado, parece que sempre preciso me deitar ou
literalmente dormir para que ele se recomponha. Nunca é cem porcento,
mas faz diferença.
O que não é o caso no momento.
Quando recupero a consciência a primeira coisa que sinto é uma dor
insuportável em meu corpo, dor da qual eu já conheço muito bem, é tão
intensa que até dói para respirar. Ao abrir meus olhos, noto que estou em
meu quarto, está silencioso e escuro, provavelmente Jun-ho já tenha ido
embora, a única luz que impede que eu fique cego em meio a escuridão, é
do pequeno abajur.
Mas a luz é fraca.
Minha boca está seca como se eu nunca tivesse bebido um copo
d’água na vida, minha garganta arranha e coça em resposta, já minha
cabeça, parece que vai explodir, literalmente.
Quando movo meu corpo para tentar me levantar, é quando tudo
piora! Uma fisgada no peito faz com que meu corpo perca a pouca força
que me restava, meu corpo cai de volta na cama e minha respiração fica
desregulada, é horrível a sensação, meu coração acelera tanto que a
intensidade da qual ele pulsa, faz meu peito doer.
— Sam — eu chamo, tentando ao máximo gritar o mais alto que
posso no momento. — Sam?
Uma curiosidade estranha do meu irmão? Ele sempre vem quando
eu chamo, não importa o quão baixo esteja a minha voz, o que ele estava
fazendo ou o quanto estamos longe um do outro, ele sempre vem.
E dessa vez não foi diferente.
Sam entra em meu quarto completamente atordoado, cambaleando
para os lados e me olhando de forma assustada.
— Timmy? — ele questiona acendendo a luz. — O que foi?
Expulsando o ar de meu pulmão pela exaustão, eu me remexo na
cama tentando me livrar de tudo aquilo em um completo desespero.
— Sammy... Não estou me sentindo bem.
Samuel imediatamente vem até mim, agachando-se ao lado da cama
ele coloca sua mão sobre minha testa e fez uma careta de indignação e
preocupação.
— Você está ardendo em febre! — exclama se levantando, sem
esperar qualquer resposta minha. Sam entra em meu banheiro, após alguns
segundos, consigo ouvir o som do chuveiro sendo ligado, e então Samuel
volta para o quarto e me ajuda a sentar na cama. — Vamos abaixar essa
febre...
Nem se quisesse protestar contra eu não poderia, meu corpo mole
sequer ajuda quando Sam faz um esforço para tirar minha camisa. Ao
conseguir, ele me ajuda a levantar e praticamente me carrega para o
banheiro.
Em silêncio, para não acordarmos nossos pais.
— Está fria! — Eu me encolho, todo meu corpo se arrepia com o
frio e com o contato com a água gélida.
— Tudo bem, não vamos demorar! — Ele me guia de volta para
baixo da água.
— Não, não! — É um pouco humilhante de confessar, mas tudo isso
me dói como uma faca rasgando lentamente e constantemente, até que não
reste nada. Por isso não consigo evitar a voz quebrada pelo choro que
ameaça, a dor antecipada na garganta e a visão turva pelo acúmulo de
lagrimas.
— Calma, Timmy. — Ele me abraça sem se importar com a água
gelada, ele me guia outra vez para baixo da água corrente e aperta ainda
mais o abraço. — Vai ficar tudo bem, eu estou aqui.
Eu sei, Sam nunca me deixaria passar por isso sozinho.
Ele acaricia minha pele com a intenção de esquentá-la, o que não
acontece, meu corpo continua tremendo sem parar e não consigo parar de
chorar, é um grande e verdadeiro inferno.
— Está se sentindo como antes, quando era pequeno?
— Pior.
É como se eu já estivesse morto, como se meus órgãos estivessem se
movendo para mudarem de lugar, meu peito dói sempre que eu puxo o ar e
meus pulmões queimam como o inferno.
— Pior?! — Sam praticamente grita em indignação, eu apenas
assinto com a cabeça, com meus olhos fechados. — Hoje você parecia
bem...
— Eu estava — sussurro.
“Estava”, é a palavra certa, nunca estarei bem para sempre, nunca
mais terei essa possibilidade.
— Certo, você tem que se deitar — conclui após nosso curto
diálogo, guiando-me outra vez para o quarto, minha bermuda enxarcada
molha o caminho e Sam corre para me entregar a toalha. — Consegue se
trocar? Vou buscar o remédio.
Outra vez, apenas assinto.
O que não é verdade da minha parte, porque o chão gira sem parar e
minhas mãos estão sem força alguma. Mas, ao me sentar na cama, com
muita insistência, finalmente consigo vestir outra bermuda. Meu corpo cai
em seguida na cama, outra vez parece que está tudo girando.
— Timmy, levanta-se para tomar o remédio — Sam diz assim que
entra no quarto, mas minha missão de levantar falha na minha primeira
tentativa. — Tudo bem, eu ajudo. — Novamente ele corre em minha
direção, deixa o copo e o medicamento sobre a mesa de cabeceira e me
ajuda sentar-se outra vez na cama.
A sensação é terrível, como se eu estivesse sendo obrigado a
sustentar toneladas.
Após tomar o remédio, com extrema dificuldade, Sam se agacha
outra vez ao lado da minha cama e volta a tocar em minha testa, sua reação
não é nada boa.
— Temos que chamar a mamãe — ele sussurra, já se preparando
para chamá-la, mas seguro sua mão e me remexo na cama incomodado.
— Ela está muito cansada, eu vou ficar bem, deixa ela dormir.
— Timothy, você está queimando! Pelo amor de Deus, será que dá
para se preocupar consigo mesmo pelo menos uma vez? — Sam diz com os
olhos cheios de lagrimas, seu tom de voz elevado não me assusta, apenas
me deixou sem saber o que falar. — Desculpa...
— O que está acontecendo aqui? — minha mãe assusta a nós dois
quando aparece de repente na porta, olhando totalmente confusa em nossa
direção. — Sam, porque você está todo molhado, meu filho?
— Timmy está com febre — ele conta em desespero e, como Sam
agiu mais cedo, minha mãe corre em nossa direção se ajoelhando ao lado
dele.
— Meu Deus — ela arfa em choque com minha temperatura. —
Vamos te dar um banho frio...
— Eu já dei, não abaixou — Sam contou, tremendo um pouco de
frio, minha mãe o olha de uma forma muito bonita. Mesmo com os olhos
marejados e o coração ferido, ela sorri para meu irmão e deposita um beijo
em sua testa.
— Obrigada, meu amor. — Ela acaricia seu braço, como Sam fez
comigo, tentando esquentar a pele. — Vá se trocar, eu vou cuidar do seu
irmão — Sam concorda me olhando uma última vez antes de se levantar.
— Eu já volto.
Eu sorrio, sei que ele volta, mesmo que não haja necessidade.
— Querido, vamos precisar tirar esse cobertor — minha mãe diz, já
o tirando de mim, um frio terrível alcança meu corpo e é inevitável quando
meu corpo começa a tremer outra vez. — Vou chamar seu e vamos ao
hospital.
— Não! Por favor, mãe. — Outra vez o choro me pega de surpresa,
ele vem assim que ouço minha mãe falar sobre o hospital, e surpresa com
minha reação, mamãe se aproxima para me abraçar. Mesmo assim não
consigo cessar o choro. — Não quero ir para o hospital, mãe, não deixa me
levarem pra lá. Eu nunca mais vou conseguir sair daquele lugar!
— Claro que vai, meu amor! Não diz essas coisas. — Ela também
chora, mas consegue se controlar melhor que eu.
A diferença é que minha mãe se sente na obrigação de ser mais forte
que todos nós. Eu posso estar morrendo, aos poucos, mas ela morreu
inúmeras vezes bem na minha frente.
Mas não faz ideia disso.
Porque ela se levantou de novo, e de novo... Enquanto eu não paro
de cair.
O problema de verdade será se algum dia eu acabar derrubando
definitivamente alguns deles, eu nunca iria conseguir me perdoar.
Jamais.
— Gente? — Ouço distante a voz de meu pai, ele ainda caminha no
corredor, mas procura por nós.
— Estamos no quarto do Timothy! — minha mãe grita, olhando
para a porta. Meu pai não demora para aparecer e nem mesmo pergunta o
que está acontecendo quando se aproxima de nós, ele analisa a situação e
então encara a mamãe.
— Vamos ao hospital? — ele questiona e meu desespero volta.
— Não, Timmy não quer ir — ela conta, logo me olha suspirando
lentamente e hesita um pouco antes de dizer: — Mas, querido, se a febre a
não passar, nós vamos!
Ela vai, nem que eu tenha que voltar para o chuveiro.
Não posso ficar preso naquele lugar.
Meus pais trabalham juntos para fazer minha febre passar, Sam
trabalha na cozinha para tentar fazer algo para eu comer. Aparentemente, a
fraqueza é o resultado de horas sem ter colocado nada no estômago.
Obviamente não consigo comer muito da sopa que Sam fez, mas o
pouco que consigo já ajuda muito, meus pais me deram outro banho frio,
menos frio que o outra já que eu estava tremendo de uma forma
descontrolável. Ao me deitar de volta na cama, não demora nada para que
eu ficasse inconsciente outra vez. Dormir tem sido meu melhor remédio.
Não faço ideia de quantas horas dormi, mas acordo com alguém
fazendo carinho em minha cabeça, ao abrir os olhos, deparo-me com Sam
outra vez agachado ao lado da cama, já é de manhã. Uma pequena luz entra
pela fresta da janela e ilumina um pouco meu quarto.
— Bom dia, Timmy — ele sussurra, sem esperar uma resposta, ele
prossegue. — Tenho que ir para a faculdade, mas se você não quiser que eu
vá, eu não vou.
— Você tem que ir — sussurro de volta, com dificuldade. — Papai e
mamãe vão cuidar de mim.
Samuel não parece surpreso com a minha resposta, ele beija o topo
da minha cabeça e se levanta ajeitando a mochila em seu ombro.
— Te amo, eu volto logo.
— Te amo mais.
Sam não demorou em sair de casa, eu ouço cada passo seu até que
estivesse distante demais para que eu pudesse escutar. Por eu não me
preocupei em adormecer outra vez, na verdade, é a única coisa que consigo
fazer sem esforço algum no momento.
Mas a sensação estranha de ter apenas fechado meus olhos por
alguns segundos se faz presente. Quando ao longe escuto minha mãe me
chamar, ao abrir os olhos me deparo com ela sentada na ponta da cama,
tentando disfarçar sua preocupação, mas infelizmente falha. Meu quarto
agora já está mais iluminado.
— Meu amor, já está bem tarde — minha mãe conta assim que nota
que eu acordei. — Você tem que comer alguma coisa.
Faço careta em resposta, e ela suspira profundamente antes de se
curvar para beijar minha testa, demoradamente, para então se levantar e
pegar o copo que eu havia usado para tomar os remédios na noite passada.
— Vou fazer algo para você comer.
— Não estou com fome.
— Timothy, isso não é possível, meu filho! — Mamãe analisa meu
rosto com, agora, extrema preocupação estampada no rosto. — Você não
come desde ontem.
— Eu sei, mãe, desculpa...
— Não, você não tem que se desculpar. — Novamente ela suspira.
— Tem que pelo menos tentar, por favor, meu amor, que tal omelete? — ela
sugere com um sorriso no rosto, é inevitável quando eu sorrio de volta. —
Isso é um sim?
Como posso dizer “não”?
— Sim, mãe, eu vou aceitar. — Ela sorri ainda mais e outra vez se
curva para beijar minha testa.
— Já volto. — E então ela sai toda feliz.
Não faço ideia do tempo em que passei imóvel na cama, apenas
encarando o teto, mas sei que foi o suficiente para que eu sinta necessidade
de me levantar um pouco. É difícil, mas consigo sentar na cama para me
espreguiçar. Meu corpo dolorido estraga a sensação satisfatória, mas pelo
menos me sinto mais acordado.
Passo a mão em meu cabelo, jogando-o para trás, mas algo me fez
estranhar o processo e quando encaro minhas mãos, todo o meu corpo volta
a tremer, não de frio, de desespero. Desespero que também atrapalha minha
visão quando meus olhos enchem de lágrimas, elas sequer precisam cair
para que minha garganta arda, meu peito começa a doer pela forma
repentina que meu coração começa a pulsar mais rápido, como se estivesse
tentando rasgar meu peito para sair.
Minha primeira reação é encarar meu travesseiro, quando viro meu
rosto para trás, é impossível não notar a quantidade de cabelo que caiu.
— Não, não, não, não! — eu gritei, ignorando toda dor que
incomoda meu corpo no momento, eu me levantei e corri para o banheiro, o
reflexo do espelho entregou tudo o que eu mais temia no momento. A
forma como parece que eu já estou morto me assusta tanto!
Meu cabelo está caindo, levando consigo tudo o que ainda há de
vívido em mim.
— De novo não, por favor! — Não tenho palavras para descrever,
mas minhas mãos trêmulas tentando evitar o inevitável é a prova do quão
desesperado estou.
Eu não estou mais chorando, estou desabando, todo o meu rosto
queima como o inferno.
Tentar chorar em silêncio mesmo quando há uma confusão dentro de
você é como estar se afogando, a sensação é a mesma. O pulmão queima a
cada vez que tentamos puxar o ar que foge como se fôssemos um assassino,
mas é ele quem está nos matando.
Um verdadeiro inferno.
— Timmie? — É a voz de Jun-ho.
Mas sequer consigo sair do lugar, parece que ouvir sua voz piora
tudo, a sensação de insuficiência transborda em mim assim que percebo sua
presença. O desespero aumenta e eu me apoio na pia quando meu corpo
perde a força. Eu não digo nada, mas Jun-ho não demora em me encontrar
no banheiro no estado atual.
Primeiro, ele paralisa na porta.
Depois, ele caminha lentamente, como se estivesse com medo de
que eu exploda. Jun-ho analisa meu rosto em choque, não diz uma palavra
quando segura meu rosto para sustentar seu olhar em mim.
Não consigo parar de chorar.
Ele acaricia meu rosto.
Choro ainda mais.
— Eu estou aqui — sussurra. — Estou aqui!
Ele apoia sua testa na minha, parece que meu corpo vai queimar,
não é uma sensação boa, é insuportável. Dói como se eu tivesse acabado de
me cortar, mas por dentro.
Jun-ho beija minha testa, mas é quando ele me puxa para um dos
abraços mais apertados que já recebi em minha vida, que eu paro de tentar
de segurar.
Eu não tinha ideia de como nós somos capazes de gritar, de como
nós somos capazes de colocar para fora todo o caos que nos corrompe por
dentro, Jun-ho não diz nada quando caio no chão, trazendo-o comigo, ele só
me abraça mais. Não tenta me levantar de volta e nem diz para parar de
chorar.
Ele apenas... Chora comigo.
Jun-ho está chorando.
Por que ele está chorando?
Quando me afasto para encarar seu rosto, Jun-ho sorri, é o sorriso
mais triste que eu já vi.
— Está doendo? — ele perguntou.
Jun-ho sabe o que está acontecendo.
— Sim.
Sorri outra vez.
— Isso não é nada, Timothy — ele disse, negando lentamente com a
cabeça, quando eu passo a mão outra vez entre meus fios fracos.
— Eu estou ficando horrível.
— Não! — Ele segura meu rosto outra vez. — Você não tem noção
do quanto é lindo, não é?
— O quê? — Minha indignação é tanta, que eu até paro de chorar.
Ele sorri outra vez, analisa meu rosto por longos segundos e suspira.
— Eu amo seu nariz.
Eu pisco tentando entender o que está acontecendo.
— Meu nariz?
— Uhum. — Ele afirma com a cabeça. — Ele fica a coisa mais
adorável desse mundo quando você sorri, eu também amo a forma como
você franze a testa, fica uma ruguinha entre as sobrancelhas que te fazem
parecer o cara mais bravo mundo, mas daí você tem esse rosto que quase
me mata do coração, fica muito fofo. — Ele ri e eu curvo a cabeça para o
lado. — Aí! Está fazendo isso agora.
Eu relaxo meu rosto em resposta, Jun-ho massageia a pele entre
minhas sobrancelhas como se estivesse tentando me acalmar.
— Às vezes você faz tanto, que até marca a pele.
— É que você me deixa muito confuso. — Jun-ho ri outra vez.
E outra vez em silêncio, ele analisa meu rosto.
Já estou começando a me acostumar em olhá-lo, enquanto ele me
olha de volta, em silêncio.
— E — ele diz depois de um tempo, parece nervoso — sou
completamente apaixonado pelos seus olhos.
Meu coração acelera outra vez, mas a culpa é de Jun-ho. Bate tão
forte que eu consigo ouvi-lo, fico até com medo de que Jun-ho também
possa escutá-lo.
— Seu cabelo é só um detalhe em toda a extraordinária perfeição
que há em você. — Jun-ho toca meu queixo com cautela. — Você exauriu
de tudo o que eu conheço a respeito de beleza, Timothy você não sai da
minha cabeça nem por um minuto, e quando penso em você, eu não penso
no seu cabelo ou no seu corpo, eu penso no quanto eu sou feliz quando
dividimos um fone de ouvido deitados na grama.
— Você pensa em mim?
— É o único em que eu penso, nada e ninguém mais.
Jun-ho beija minha testa outra vez.
Estou tremendo e tenho quase certeza que minhas mãos estão
suando.
— Só você.
Só eu...
Cortar meu cabelo foi a mesma experiência que da primeira vez.
A diferença é que foi mais tolerável.
Jun-ho não acompanhou o processo, mas Sam estava lá. A touca que
eu tanto usei na minha vida, volta a ser usada.
Vermelha e grande, a sorte é que eu realmente gosto dela.
Depois daquela noite terrível a da febre que eu tive, as coisas não
andam nada bem, a cada vez que recebo mais quimioterapia no meu corpo,
parece que estou a um passo mais perto da morte.
Já faz uns dias que acordo do mesmo jeito, exausto e correndo para
banho para vomitar.
Vomitar o que já nem tenho direito em meu estômago.
— Timmy? — Samuel invade o banheiro, quando pela manhã outra
vez precisei correr para que não vomitasse na cama.
— Sam... Eu estou me sentindo mal. — Isso não é surpresa para
ninguém, mas hoje eu com certeza estou pior.
Samuel praticamente me carrega de volta para a cama, minha visão
vai ficando embaçada e meu corpo desidratado não para de tremer.
— Fica aqui, vou chamar a mamãe.
— Ela foi comprar meu remédio — sussurro.
— Então vou chamar o papai.
Sem que eu possa dizer algo, Samuel sai correndo do meu quarto.
Nesse meio tempo, eu me levanto três vezes para vomitar, mas nada
sai. O que é bem pior do que vomitar, a dor no estômago quando meu corpo
força algo que não tem mais jeito, não há mais nada para mim colocar pra
fora.
Quando escovo meus dentes, para que o enjoo passe, o banheiro
inteiro começa a girar. Preciso me apoiar na pia para não cair, minha cabeça
começa a doer e meu corpo formigar.
Meus dentes batem como se eu estivesse brincando na neve, mas a
luz quente do Sol entra pela minha janela entregando o calor que está lá
fora, mas por dentro estou frio como um cadáver.
Até que vem uma coceira terrível na garganta e então uma tosse
fraca, seguida de uma mais forte e então várias outras que chegam a doer
meu peito, até que sinto um gosto amargo na boca, após isso, outra tosse
mais forte. Resultando em sangue caindo sobre a pia branca, a cada tosse
mais um pouco de sangue escapa de minha boca.
Quando consigo parar de tossir e lavar minha boca, ouço o barulho
da minha porta abrindo e volto para o quarto me apoiando nas coisas que
estão pelo caminho, Jun-ho entra, mas assim que percebe minha presença e
me analisa por um tempo, ele para de sorrir.
— Timmie, o que está acontecendo?
— Eu não sei...
Tento andar, mas tudo começa a girar e por isso desisto, parando
onde estou. Jun-ho me encara por um tempo até seu olhar ficar apavorado.
Ele caminha lentamente em minha direção, enquanto meu corpo
cambaleia para trás.
— Meu Deus, Timothy, seu nariz está sangrando!
Eu toco o sangue que está escorrendo em minha pele, encaro meus
dedos manchados e cambaleio outra vez, quando levanto meu rosto rápido
demais em direção a Jun-ho. Tudo gira, minha visão escurece e meu corpo
perde completamente as forças.
As últimas que coisas que lembro, são do impacto do meu corpo de
encontro com o chão e a voz de Jun-ho me chamando em desespero, mas
sem ter uma resposta.
Pouco a pouco

Talvez eu tenha ficado tempo demais inconsciente, tempo o


suficiente para que eu acordasse em uma cama de hospital. Tudo o que eu
mais temia está acontecendo, tudo de uma vez só.
Vou acabar me sufocando desse jeito.
Samuel, minha mãe e meu pai estão dormindo. Sam tem sua cabeça
apoiada na ponta da maca, com seu corpo debruçado, ele parece exausto. Já
meus pais, estão dormindo juntos no sofá, minha mãe com a cabeça apoiada
no ombro de meu pai e ele abraçando seu ombro.
Sinceramente eu acabo me esquecendo de que estou em uma maca
de hospital assim que vejo o cenário atual em minha frente, aparentemente
já é noite, o quarto está escuro e silencioso, apenas o som do aparelho
cardíaco verificando meus sinais de que quebra o silêncio total.
— Sammy — sussurrei, meu irmão acordou no mesmo instante.
— Ei... Como está se sentindo? — ele perguntou após ter beijado
minha testa, como sempre.
— Bem — respondi sem pensar direito. — Eu acho...
Sam sorri em resposta, como uma espécie de sorriso da
compreensão. Quando passamos tempo demais em silêncio, Samuel procura
meus pais pelo quarto até encontrá-los na posição atual, é quase inevitável
quando sorrimos diante da cena.
— Estavam tão cansados, que nem perceberam quando dormiram
assim — ele comenta como se estivesse falando sozinho.
— Me desculpa.
— “Desculpa”? — Sam repetiu indignado. — Nada disso é culpa
sua, Timmy.
É sim.
— Entendeu?
— Entendi.
Essa não é uma discussão necessária no momento, ou em qualquer
outro.
Outra vez em silêncio, tento encontrar a melhor posição para que
meu corpo pare de doer. Mas obviamente nada resolve e eu só fico ainda
mais incomodado.
Até que a memória de como eu acabei parando aqui outra vez
invade minha mente, Jun-ho estava lá.
Ele estava lá e não está aqui.
— Sammy, e o Jun-ho?
— Ah, é mesmo. — Ele se remexe na poltrona quando se lembra. —
Foi ele que me avisou que você tinha desmaiado, eu estava tentando falar
com a mãe e com o pai, mas os dois não atendiam, foi quando ele chegou e
eu pedi para que fosse ver como você estava.
— Daí eu desmaiei.
— Sim, ele desceu correndo para me avisar, estava desesperado.
— Correndo?! — Minha voz sai mais alta que o normal. — Sam,
como é que ele tá agora?
— Ele está aqui no hospital, parece que ficou com dificuldade para
respirar. — Meu Deus, acho que vou desmaiar outra vez.
— Sammy, vai lá ver como ele está? — Eu me sento na cama muito
rápido, Samuel tenta impedir, mas eu já havia me sentado. — Vai lá, Sam!
Acredito que minha voz esteja realmente bem alta, já que acabo
acordando meus pais. Sam e eu ficamos imóveis quando eles se remexem
até abrirem os olhos.
— Helena, Timothy acordou — meu pai sussurra para minha mãe,
que ainda estava se espreguiçando. Eles não se importam pela posição em
que estavam dormindo, inclusive meu pai aguarda o tempo necessário para
que minha mãe saia de cima de seu ombro.
Ele nem tentou se afastar.
— Filho. — Minha mãe sorri, mesmo com os olhos inchados e as
bochechas marcadas pelas lágrimas. — Você acordou meu amor, como está
se sentindo? — Ela se senta na ponta da cama, segurou minhas mãos e
depositou alguns beijos.
— Eu estou bem mãe, não se preocupa. — Eu também tento sorrir.
— Foi só um susto.
“Susto”, eu ouvia muito isso quando era pequeno, uma forma que os
adultos encontraram para enganarem a si mesmos e a mim, agora eu estou
fazendo exatamente o mesmo.
— Jun-ho contou que você teve muito sangramento — meu pai
comentou, sentando-se ao lado de minha mãe. — Não parece um susto.
Está mais para pesadelo.
— Conta para mim, filho, o que você está sentindo de verdade? —
Meu pai se inclina um pouco em minha direção, parece querer trocar
segredos comigo. — Não minta, precisamos que você seja sincero para
possamos te ajudar...
Se eu for falar que não é o câncer quem está me matando, agora...
Eles não precisam saber, o susto vai continuar sendo um susto por
enquanto.
— Agora eu estou me sentindo bem!
A expressão do meu pai entrega o quanto ele me conhece, e o
quanto ele sabe que estou mentindo. E então o quanto minha mãe conhece
meu pai, que engole em seco e desvia o olhar, minha mãe tenta acompanhar
o movimento de seu rosto para ver como ele está, mas sua reação não é das
boas.
A verdade é não sou só eu que estou morrendo.
— Hyuk, vamos ficar bem! — Minha mãe massageia suas costas,
trocando olhares preocupados comigo e Sam.
— Pai, precisa confiar em mim. — Meu pai me encara como se
estivesse tentando resolver um enigma, é um costume seu, enquanto minha
mãe me olha como uma bomba relógio, meu pai me vê como um mistério a
ser desvendado.
Eu o compreendo, às vezes nem eu mesmo me entendo.
— Que ótimo! Estão todos aqui. — O doutor surge de repente,
sempre oferecendo seu melhor sorriso. — Como o meu paciente favorito
está se sentindo?
Ele diz isso a todos os seus pacientes, mas ainda sorrio da mesma
forma como sorri na primeira vez em que o ouvi dizer isso.
Não é pelo que ele diz, é a intenção.
— Sammy, ele está falando com você. — E é claro, eu sempre tento
escapar quando ele me faz esse tipo de pergunta.
— Há, há! Engraçadinho. — Meu irmão cruza os braços, olhando-
me com desaprovação.
Que chato.
— Você tem que parar de fugir de mim, Timothy Lee! — o doutor
diz caminhando pelo quarto, até que um suspiro alto se fez presente. O
clima muda drasticamente quando ele balança alguns papéis, provavelmente
resultado de exames que fizeram enquanto eu ainda estava inconsciente. —
Infelizmente não trago boas notícias.
— A coisa tá feia, não é? — meu questionamento faz o doutor
desviar o olhar por um instante, meus pais se encaram outra vez e Sam se
aproxima para passar seu braço pelo meu ombro, como se estivesse se
preparando para receber a má notícia.
— Antes de qualquer coisa, Timothy, lembre-se que eu farei o
possível e o impossível para cuidar de você! — o doutor enfatiza, a
primeira vez que ele olha com tanta seriedade.
— Ok...
— Doutor, nos conte o que está acontecendo — meu pai se
pronuncia, está extremamente nervoso. — Por favor — ele completa, após
de um longo suspiro.
— Certo, uhm... Os exames apontam que o câncer vem se
espalhando — ele conta, dando uma breve pausa para pensar melhor no que
dizer. — Isso faz com que o tratamento perca a eficácia e resulte nessas
reações agressivas, que causaram o desmaio.
Perca da eficácia...
Isso significa que todas as sessões de tratamento que eu fiz foram...
Por nada.
— Então isso quer dizer que... — Samuel para de falar encarando o
doutor em indignação, para então me olhar.
— Isso mesmo, significa que o corpo de Timothy praticamente não
reage mais ao tratamento — o doutor simplifica. A reação da minha mãe é
insuportavelmente dolorosa, vê-la massagear o próprio peito e tentando
buscar ar em uma óbvia e assustadora crise, faz com que eu morra um
pouco mais.
— Mãe... — eu a chamo, mas ela se vira ainda na batalha de
controlar as emoções.
— Helena? — Mas meu pai se põe em sua frente, segurando seu
rosto e respirando alto e bem fundo para que minha mãe o imitasse, o que
funciona de imediato. Minha mãe tenta respirar no mesmo ritmo que meu
pai, que mesmo com um medo estampado em seu rosto, continua tentando
tranquilizá-la. — Isso, vai ficar tudo bem!
— Mãe?! — eu a chamo outra vez, ela vira seu rosto em minha
direção e tenta sorrir.
— Estou bem, eu estou bem — ela repete para si mesma, meu pai a
segura pelos ombros e a conduz para se sentar, ela praticamente desaba na
poltrona.
— Fica tranquila, Sra. Lee, vamos pensar no melhor meio para
cuidar do seu filho — o doutor se pronuncia após um tempo, parece
comovido com o cenário atual.
— Quais meios? — meu pai questiona, agachando ao lado da
poltrona para segurar a mão da minha mãe.
— Podemos optar para algo que não vá agredir tanto o seu corpo,
por mais que ainda seja um processo complicado — o doutor sugere,
olhando para mim. — A quimioterapia oral pode ser de grande ajuda, no
momento.
— Comprimidos? — mamãe questionou.
— Exatamente.
— Quais seriam as outras opções?
— A radioterapia ou cirurgia. — O doutor se aproxima e se apoia no
ferro da maca, parecendo exausto. — Mas o problema é que as duas opções
inicialmente podem ser prejudiciais ao corpo de Timothy, ele já está bem
cansado, isso pode resultar em muitos outros efeitos colaterais.
Ah não, não aguento mais.
— Ele iria sofrer ainda mais — o doutor disse com o olhar distante,
até que piscou demoradamente e ajeitou sua postura. — Por isso, quero
evitar a radioterapia, podemos vê-la como uma opção caso o quadro dele se
agrave. Só então não teríamos escolha.
Na verdade, nunca tivemos.
Em extrema frustração eu voltei a me deitar na maca, meu corpo
ainda dói e por isso eu me remexo incomodado. Estou literalmente ouvindo
sobre as poucas “chances” que tenho de vida e das milhares de
possiblidades que tenho de morrer.
É óbvia a importância desse assunto e do quanto eu preciso me
informar para entender o que está acontecendo com o meu próprio corpo,
mas sinceramente? No momento eu não quero ouvir nada disto.
— Sammy? — eu sussurro, meu irmão tira a atenção da conversa
entre meus pais e o doutor e me encara. — Vá ver como o Jun-ho está? Por
favor...
Samuel analisa a situação primeiro e para, por fim, suspirar
profundamente e se levantar, ele pede licença e sai do quarto deixando meus
pais confusos, mas que não demoraram a voltar para a conversa.
— É comum o corpo de um paciente parar de reagir ao tratamento?
— meu pai questionou.
— Depende do caso, como Timothy que está sofrendo do
agravamento do câncer, isso pode ser bem comum. — Meu pai se levanta
para ouvi-lo melhor, mas continua ao lado da poltrona. — Nesses casos,
geralmente os pacientes sofrem da doença avançada, metastática ou...
recidiva.
Ele completou olhando para mim.
Metastática? Não gostei de ouvir isso...
— E eu também quero que você tome vitaminas — o doutor
acrescenta, lendo algo em seus papéis. — O tratamento está afetando o seu
apetite, mas sem comer você só irá regredir. Então vamos ver como seu
corpo vai se comportar a isso. Também vamos mudar um pouco a sua
alimentação, quero que você tente comer frutas em pedaços e de preferência
geladas. Será melhor para você — ele diz analisando meu rosto, faz uma
pausa para pensar um pouco e então volta a falar. — Mingau e aveia
também podem ajudar muito.
— Por que geladas?
— A quimioterapia pode causar feridas na garganta dele, isso causa
um desconforto terrível na hora de se alimentar — o doutor explica — Por
isso é recomendado até mesmo sorvete nesses casos, para aliviar as dores e
os enjoos.
Ótimo, gostei da parte do sorvete.
— Vamos ver se desta forma, você consegue se alimentar melhor. —
O doutor sorri com gentileza para mim, aproxima e dá três tapinhas de leve
em meu ombro, é mais como um carinho desajeitado. — Você vai sair dessa
— ele diz olhando para mim, mas parece que estava dizendo isso a si
mesmo.
— Eu já posso ir para casa?
Meus pais trocam olhares preocupados, a reação do doutor entrega a
resposta que eu não queria ouvir.
— Eu prefiro que você fique, para que eu possa te acompanhar de
perto — ele explica com a voz tranquila, o que me lembra a forma como
falava comigo quando eu era criança. — Se esse meio de tratamento e a
mudança de alimentação funcionarem, e o seu quadro melhorar. Eu te libero
para voltar para casa.
— Então isso vai acontecer logo, logo — minha mãe diz com os
braços cruzados, parecendo estar com frio. — Não se preocupa querido, nós
logo vamos para casa. — Eu sorrio em resposta, não porque realmente
acredito que isso possa acontecer, mas porque sei o quanto minha mãe é
positiva e acredita que sou mais forte que qualquer um, ou coisa parecida.
Se ela me conhecesse como eu me conheço, iria se assustar.
— Eu tenho que ir agora, mas volto para examinar você e ver como
está lidando com os medicamentos — o doutor anuncia depois de um
tempo, dá mais dois tapinhas em meu ombro e oferece um sorriso aos meus
pais antes de sair.
— Helena, está com frio? — meu pai pergunta quando para reparar
em minha mãe, que tenta esquentar o próprio corpo esfregando as mãos em
seus braços.
— Um pouco, esqueci de pegar um casaco — ela confessa um
pouco envergonhada.
Meu pai não demora a tirar sua jaqueta, surpreendendo não só
minha mãe como eu também, que assisto a cena em completo silêncio e não
movo um músculo sequer, sem querer atrapalhar o momento.
— Precisamos ir em casa para pegar o que for necessário — meu pai
lembra, colocando a jaqueta sobre os ombros de minha mãe. — Não
sabemos quanto tempo vamos ficar, Timothy vai precisar de roupas e de seu
cobertor, os daqui não esquentam nada.
Ele tem razão.
— É claro, também vou buscar algo para ele comer — minha mãe
acrescenta.
Quando me preparo para dizer algo, o som da porta sendo aberta
chama minha atenção. Samuel e Jun-ho entram juntos, falando sobre algo
que mal posso entender, mas cessam a conversa quando me veem.
E nossa, tudo o que eu iria dizer se dissolve de minha cabeça assim
que o vi.
Acredito que adotei sua mania de encarar minutos em silêncio, ou
segundos, não faço ideia. Só sei que por um tempo nós dois não dissemos
nada, até que ele sorri e se aproxima para então se sentar na ponta da maca.
— Como você está? — pergunto quando volto a me sentar na maca,
com a ajuda de Jun-ho.
— Eu? — Parece chocado com a minha pergunta.
— Estava preocupado com você...
— Preocupado comigo?! Timothy, você desmaiou. — Jun-ho solta
uma risada amarga. — Imagina como eu estava preocupado, você não
acordava de jeito nenhum.
— Eu estou bem! — garanto, pegando em sua mão para transmitir
segurança a minha confirmação. — Não vai se livrar de mim nem tão cedo.
Ele ri um pouco, Jun-ho não parece tão tranquilo e animado como
de costume, isso me preocupa ainda mais.
— Sam, pode ficar com ele um pouco? — A voz de minha mãe
chama a minha atenção. — Eu e o seu pai vamos buscar algumas coisas em
casa, fica de olho nele.
— É claro, mãe — Sammy responde sem nem pensar.
— Timothy, se sentir qualquer coisa estranha ou uma dorzinha só
que seja — meu pai disse pegando a chave do carro —, chame o doutor na
mesma hora! Nós não vamos demorar.
— Ok...
— Quer alguma coisa lá de casa?
— Só o meu diário, para eu escrever.
Meu diário é usado apenas quando acontece algo novo e surreal em
minha vida, então ele claramente está quase em branco. Mas de qualquer
forma, eu o carrego para todo canto.
Quando meus pais saem, Sam pega o celular e se senta na poltrona
como se estivesse procurando algo.
— O que vão querer comer? — ele questiona sem tirar seus olhos do
celular, Jun-ho e eu trocamos um olhar desconfiado e então voltamos a
encarar Sam. — A comida desse lugar é horrível.
— Não posso comer qualquer coisa, Sammy.
— E o que você pode comer?
— Frutas geladas.
Samuel tira a atenção de seu celular e me encara com as
sobrancelhas franzidas, ficando igual a um monge de cem anos. Tenho que
me segurar um pouco para não rir de sua cara, mas Jun-ho não se segura
nem um pouco.
— Você vai morrer de tristeza nesse lugar — ele diz e eu não
aguento, rir com dor no corpo é um misto de sentimentos bem estranhos,
enquanto meu corpo chacoalha por causa da gargalhada, meus músculos
doem como se eu tivesse acabado de voltar da academia.
— Tudo bem, Timmie? — Jun-ho pergunta preocupado, quando
paro de rir e faço uma careta de dor.
— Tudo bem...
— Certo. — Sam me assusta quando se levanta de repente da
poltrona, após concluir alguma coisa consigo mesmo. — Frutas geladas
para você, pizza para mim e você Jun-ho, vai querer o quê?
Uau, ele vai comer pizza.
— Eu estou bem, obrigado.
— Está nada! Estamos aqui há hoooras, estou morrendo de fome —
Samuel resmunga, Jun-ho ri mais um pouco. — Vou entender esse silêncio
como um “vou comer pizza com você, Sam” — Samuel imita ou tenta
imitar a voz de Jun-ho que ri ainda mais.
— Achei que você fosse cuidar de mim — eu o lembro, quando ele
começa a vestir a jaqueta para sair.
— Eu vou, estou indo buscar suas frutas — ele rebate, pegando a
carteira e guardando no bolso traseiro de sua calça. — E Jun-ho está aqui,
sei que ele vai cuidar bem de você.
Eu também sei.
— Eu vou correndo, qualquer coisa apertem o botão para chamar a
enfermeira — ele diz abrindo a porta, até que ele lembra de algo e se vira
rapidamente apontando o dedo na direção de Jun-ho. — Admiro sua
vontade de proteger meu irmão, mas se você correr de novo eu juro que
arranco de vez esse seu tubinho de oxigênio, para ver se você aprende a se
cuidar.
Fofo.
E assustador.
Jun-ho me encara assustado, como se estivesse pedindo para que eu
o defendesse.
— O quê? Ele tem razão! — digo e Jun-ho fica ainda mais chocado.
— Você podia ter morrido!
— Você também!
Quando estávamos prontos para iniciar uma discussão, Samuel
começa a bater palma para chamar nossa atenção, que caos!
— Chega! — ele exclama. — Um vai precisar estar vivo para cuidar
do outro, então sem correr — ele diz apontando para Jun-ho, depois aponta
para mim. — E você vai comer até as sementes das frutas quando eu
chegar.
Que horror.
Dito isso ele sai, fechando a porta e deixando Jun-ho e eu
completamente chocados com sua demonstração bizarra de carinho.
— Às vezes o seu irmão me assusta.
— Ele é maluco.
Ele ri, abaixando a cabeça.
— O que foi?
Jun-ho é um livro aberto as vezes. Ler suas expressões pode ser
difícil, mas também é fácil de identificar quando há algo de errado. Desde
que éramos crianças ele tentava esconder de mim quando estava
preocupado, frustrado ou triste.
— Acho que ainda estou um pouco assustado — ele diz forçando
um sorriso, para aliviar a tensão do assunto. — Eu te chamei tantas vezes,
que por um minuto eu achei que...
— Que eu morri? — eu o interrompo, Jun-ho desvia o olhar
pigarreando.
Credo! Não vai se livrar de mim tão cedo.
— Na verdade, eu não consigo colocar em palavras o que passou
pela minha cabeça. — Não estou acostumado em vê-lo desse jeito. —
Soube que suas febres começaram no dia em assistimos filme na sua casa,
depois que eu fui embora...
— É... Eu acordei me sentindo estranho — conto, e Jun-ho volta a
me olhar daquele jeito, mas estou começando a me acostumar com isso. —
Por que está me olhando assim?
— Não sei — ele abaixa a cabeça, deixando uma risada leve
escapar. — Eu gosto de olhar você.
É, não estava esperando por isso.
Perigoso Jun-ho estar aqui e ainda por cima dizer essas coisas, o
monitor cardíaco pode acabar me entregando.
— Mas se te incomoda eu paro — ele diz se ajeitando na maca, e eu
nego freneticamente com a cabeça.
— Não incomoda! — Droga, minha voz sai um pouco estranha.
Jun-ho curva o conto dos lábios para baixo quando vai sorrir, esse
sorriso eu nunca tinha visto antes. Mas parece que ele adora minha
demonstração de puberdade atrasada.
Que humilhação.
— E... Enfim! — gaguejar é outro tipo de humilhação. — Eu estou
bem agora, não tem com o que se preocupar.
— Estamos literalmente com câncer, Timothy — Jun-ho diz e seu
sorriso some. — É claro que tenho com o que me preocupar.
— Mas vou ficar bem!
Meu instinto faz com que eu me aproxime mais para segurar suas
mãos, inclusive, isso é minha coisa favorita no mundo, nesse momento.
Quando Jun-ho segura minhas mãos, ele me acalma, então seguro as
dele para acalmá-lo também.
Mas estou gostando disto mais do que deveria.
— E se eu não ficar, tudo bem também! — Jun-ho me olha como se
eu tivesse acabado de dizer a maior atrocidade do mundo. — Não podemos
escapar da morte, Jun. Podemos adiá-la, mas nunca escapar.
— Então vamos adiar o máximo possível!
— Vamos! — concordo, tirando um sorriso seu. — Olha, e se
fizermos uma lista do que desejamos fazer antes de morrer?
— Isso é meio mórbido, não acha?
É muito mórbido.
— Não acho, não. — Sou um ótimo mentiroso. — Mas é algo que
todos deveriam fazer, não só pacientes com câncer ou outros tipos de
doenças.
É, eu realmente acredito nisso.
— Beleza, espera aí.
Jun-ho se levanta e se abaixa para mexer em sua bolsa de oxigênio,
atrás tem um bolsinho e de lá ele tira uma caneta e um post-it.
— Eu carrego isso para fazer origami, mas faz tanto tempo que eu
não faço — ele se explica, tirando uma folha e entregando o resto do bolo
para mim.
— Faz um para mim depois?
— É claro — ele responde imediatamente. — Quantas coisas posso
colocar na lista?
— Quantas você quiser.
— Ok...
Em silêncio, ele começo a escrever, eu aguardo pacientemente
enquanto ele para pra pensar cautelosamente, sempre escondendo a folhinha
de mim quando eu tentava olhar.
Sou uma pessoa extremamente curiosa, um defeito meu.
— Acabei!
— Posso ver?
— Primeiro faça a sua — ele diz me entregando a caneta.
Mas o problema é que eu já tenho essa lista há muito tempo.
Por isso eu não demoro nada para refazê-la, Jun-ho me olha chocado
enquanto eu escrevo sem nem pensar.
— Já acabou?!
— Já.
— Uau, isso foi rápido.
— Na verdade a lista já estava feita na minha cabeça — confesso.
— É claro. — Jun-ho ri, batendo na própria testa por não ter notado
o óbvio. — Então me conta o que colocou nela.
— Primeiro de tudo, algo que eu queria desde criança e é meio
tosca: fazer um piquenique. — Jun-ho sorri curvando a cabeça para o lado,
um pouco confuso. — Eu nunca fiz um piquenique, talvez seja porque
estivemos preocupados demais com o câncer, esse tempo todo.
— Mas parece ser divertido.
— Sim! Com certeza é. — Jun-ho ri um pouco com a minha reação.
— E o segundo item da lista?
— Esse é mais importante que o primeiro — confesso e Jun-ho
ajeita a postura mediante à surpresa. — Mas esse eu ainda não vou te
contar, não.
A boca dele abre em completa indignação.
— Mas por quê?!
— Ainda não está na hora.
— Isso é um absurdo! — protesta, fingindo estar com raiva. — Sou
seu melhor amigo, isso é um direito meu.
— E você vai saber, quando eu achar que está na hora de contar.
Às vezes a forma como o Jun-ho me olha, acaba me deixando um
pouco estranho. Agora por exemplo, quase infarto.
— Certo, vou esperar — ele desiste de protestar e então dá uma
olhada em meu papel, para depois olhar para mim. — E a terceira?
— Ter um cachorro, isso foi algo que inseri na lista enquanto estava
no Reino Unido — conto, lembrando-me de como foi viver naquele lugar.
— Eu me sentia muito sozinho, eu não estava, mas me sentia. Achei que um
animal de estimação me faria companhia, mas isso foi assim que
descobrimos sobre a recidiva.
— E então voltaram para cá.
— Sim, e nessas condições... Eu nem teria tempo para cuidar.
— Mas isso vai passar logo, daí adotamos um cachorrinho juntos —
ele propõe, deixando-me um pouco surpreso.
Ok.
Jun-ho está me deixando muito estranho, o que é isto?
— Tá.
— “Tá” — Jun-ho me imita, rindo da situação.
Olha só que controverso, agora quero dar um soco nele.
— E a quarta?
— Me casar.
Outra vez me olhando daquele jeito...
— Casar?
— Sim — afirmo simplista. — Sei que a maioria não funciona,
meus pais são a prova viva disto. Mas eu confesso que ainda acredito nessa
coisa de “amor verdadeiro” e que nascemos destinados a alguém. — Jun-ho
não para de me olhar. — Não significa que irão ficar juntos, mas ainda sim
acredito nisso.
— Você é mais romântico do que imaginei...
— Não sei bem se sou, mas acredito em akai ito.
— Akai ito? — Jun-ho pergunta confuso e eu fico indignado.
— Não conhece akai ito?! — Ele nega lentamente. — É uma lenda
chinesa, diz que nascemos com um fio vermelho, do destino, amarrado no
mindinho e que une as pessoas destinadas umas as outras.
— Mas há pessoas que nunca amaram ninguém...
— Sim, a lenda diz que muitas vezes essas pessoas podem acabar se
desencontrando, mas em outras vidas podem se encontrar e ficarem juntas.
— Então além de destino, também acredita em reencarnação?
— Sim, isso é ridículo, não é?
— Claro que não — Jun-ho nega imediatamente. — Isso parece ser
verdade.
Meu Deus, pelo menos alguém que finalmente concorda comigo!
— Então você acha que nasceu destinado a alguém? — Certo, não
estava esperando por essa pergunta.
Acontece que tem momentos em que sim, eu acho, mas sou uma
pessoa destinada a ficar sozinha, já que qualquer um que se aproximar pode
acabar sofrendo.
O único que deixei se aproximar de mim foi... Jun-ho.
Isso porque eu sequer tentei evitar ele na minha vida, parece que ele
já fazia parte dela há muito, muito tempo.
— Não sei...
— Eu acho. — Meu queixo quase vai ao chão. — Eu acho que fui
destinado a alguém...
— Ah.
“Ah”? Poxa, Timothy, você poderia ter dito algo melhor.
Isso também é culpa do Jun-ho, ele tem me provado muito desde
que voltei a Coreia.
Isso está começando a mexer com a minha cabeça.
— Você quer se casar porque acha que vai morrer, ou por que
realmente quer se casar?
— Eu realmente quero me casar.
Silêncio, extremamente ensurdecedor.
Se é que isso é possível de acontecer, mas ouço meu coração
batendo freneticamente, como se estivesse com o ouvido sobre o peito de
alguém.
— Timothy?
— Hm?
— Casa comigo.
Tá, calma.
— Quê?!
Certo, não soou tão calmo como planejei.
— Ainda estamos bem novos — ele lamenta. — Mas vamos esperar
você se recuperar, quando sair daqui nós vamos nos casar.
— Jun-ho...
— Ah, e isso! — ele exclama, lembrando-se de algo. Jun-ho tira um
colar de seu bolso, com cuidado para não embolar, ele o ajeita em sua mão e
estica em minha direção. — É para você.
Eu ergo minhas mãos quando o colar cai sobre elas, é difícil não
sorrir diante do pingente de lua pendurado.
— Era da minha mãe, como ela trazia sorte por onde passava...
Acabou me ajudando no tratamento e na minha recuperação — ele explica,
sem tirar os olhos carinhosos do colar. — Eu quero que fique com você
agora.
Da mãe dele...
— Não posso aceitar, Jun-ho...
— Você pode! — ele me interrompe. — Eu preciso que você aceite.
É, a forma como ele me olha é diferente.
— Deixa eu colocar em você — ele diz pegando o colar, sem deixar
que eu pense em outro argumento válido no momento. — É a sua cara. —
Ele se levanta e eu me arrasto pela cama, para que ele possa ter mais
espaço, Jun-ho então passa a correntinha em volta de meu pescoço,
colocando-a em mim.
Ele não volta para onde estava, senta-se atrás de mim, inclusive,
bem perto de mim.
Ajeito o pingente para que eu possa vê-lo melhor, é lindo, tão
delicado que tenho medo de quebrar.
— Você gostou? — ele sussurra atrás de mim.
— Eu amei... — Ele sorri, completamente satisfeito.
Com seu rosto bem perto do meu, Jun-ho inclina um pouco o rosto
para beijar minha testa, o beijo é depositado por cima da touca.
— Você não me respondeu.
— Uhm?
— Quer casar comigo?
— Jun-ho! — eu exclame, caindo na gargalhada.
Ele me assiste rir pelo tempo que preciso, até que consigo parar, sem
tirar os olhos de mim nem por um segundo, ele se levanta e então se senta
em minha frente.
— Me responda logo, vou infartar aqui.
— Quero! — eu respondo ainda em meio a risada, até que ele
apenas sorri ainda mais e eu arregalo meus olhos, sem entender se ele está
realmente falando sério ou se essa é mais uma brincadeira de Jun-ho. —
Espera, está falando sério?
— Não — ele respondeu, mas olha para um canto fixo como se
estivesse pensando melhor na resposta. — Bem, por enquanto...
Minha reação é empurrar seu ombro, em completo desespero, mas
ele ri. Jun-ho ri de tudo o que eu faço, ou quase tudo.
Quando eu estou prestes a dizer algo, a porta abre, meus pais e
Samuel entram carregando algumas coisas, meus pais me analisam por um
segundo e então voltam a se atentar na organização de tudo o que
trouxeram.
— Ei, Timmy — Sam chama com uma caixa de pizza nas mãos. —
Quer pizza?
— Não posso comer pizza, Sam — resmungo. — Cadê minhas
frutas?
— Credo, você é chato igual o papai... — ele resmunga deixando a
caixa de pizza sobre a mesinha, para então tirar um pote de dentro da
sacola, quando me entrega eu sorrio vendo todas as frutas que mais gosto.
— Estão bem geladas mesmo! Pode até ajudar em curar o câncer, mas vai te
dar um baita de um resfriado — assim que ele termina de falar, meu pai se
estica para dar um tapa em sua nuca, mas é um tapa tão bem dado, que até
ouvi o barulho. — Nossa pai!
— Para de falar essas coisas pro seu irmão.
Jun-ho apenas ri de toda a situação.
Até que ele se levanta e corre em direção à minha mãe, que estava
forrando o sofá com uma manta, minha mãe repara em sua presença e
franze a testa sem entender nada.
— Ei, Sra. Lee, eu pedi o Timothy em casamento.
— O QUÊ?! — tanto minha mãe, quanto meu pai e Samuel gritam
em uníssono, Jun-ho nem se assusta com a reação deles, apenas sorri e
aponta para mim antes de falar:
— Ele disse sim! Bem, a resposta mesmo foi “quero” — ele imita
minha voz, fazendo as aspas com os dedos. — Mas é a mesma coisa...
Então todos me olham em choque, minha mãe sequer ajeita sua
postura, continua curvada em cima do sofá, meu pai não sabe o que dizer e
Sam fica me encarando em silêncio por muito tempo, muito mesmo.
Até que ele cai na gargalhada.
— Jun-ho, sinceramente você é maluco — ele diz, secando as
lágrimas falsas dos olhos, Sammy tem costume de fazer isso, às vezes ele
nem ri ao ponto de chorar, mesmo assim passa os dedos sobre os olhos.
— Mas é verdade!
Meu Deus.
— Não é, Timmie?
Outra vez o silêncio, esperando minha resposta óbvia Jun-ho me
encara com expectativas, como se fosse possível eu mentir nesse momento.
— É, vou me casar com Jun-ho.
E ele me olha daquele jeito outra vez, mas é diferente.
Meu coração não só acelera com a forma como ele sorri para mim,
como eu tenho a mais óbvia e incrível certeza de o porquê estar tão confuso
quando Jun-ho fica por perto.
Na verdade, não é confusão alguma.
Eu fico é todo desesperado, porque quero que ele goste de mim.
Quero que ele sinta por mim o mesmo que sinto por ele, que ele me
veja como eu o vejo, e que fique tão confortável ao meu lado como eu fico
ao lado dele.
É, eu acho que estou apaixonado por ele.
Eu estou apaixonado pelo Jun-ho.
Apenas amigos, certo?

Achei que minha situação não poderia piorar, mas estava errado.
O doutor realmente tinha razão quando recomendou as frutas
geladas, a dor que sinto quando tento comer outras coisas é insuportável. Já
as vitaminas, não ajudam em nada.
Aparentemente já estou quase morto. Bom, é assim que me sinto por
ficar o dia inteiro no hospital! Eu poderia estar em casa agora assistindo
minha série favorita ou sei lá... Morrendo na minha própria cama em vez de
estar morrendo em um quarto de hospital.
Isso torna a situação mais melancólica ainda.
Meus pais não conversam mais com o doutor na minha frente, mas
sinceramente? Prefiro assim, desta forma eu não preciso assistir as reações
dolorosas de meus pais ao ouvirem o quão rápido eu posso morrer.
— Você não vai morrer — Samuel diz de repente.
— Como?
— Essa cara de quem se culpa por tudo o que há de errado no
mundo, entrega exatamente o que está pensando no momento! — ele
explica, sem tirar os olhos de seu celular. — Você não vai morrer e o papai
e a mamãe vão ser felizes para sempre.
Isso me faz rir, não uma risada sincera e alegre, está mais para o tipo
amarga e sem vida alguma. Samuel me encara em silêncio, não o olho de
volta, mas sinto o peso de seu olhar em mim.
— Você diz como se isso fosse um conto de fadas...
— Gosto de agir como se fosse — ele diz finalmente largando o
celular. — Ou então eu enlouqueço.
Sam... Meu irmão não está bem e gosta de fingir que está, mas não
fingir para nós, ele enganar a si mesmo. Ele diz que ainda vai às sessões de
terapia, que se sente melhor, mas eu o conheço bem.
Estamos só afundando, imersos em nossas próprias ruinas. Sem ter
como voltarmos a superfície por causa do peso imensurável da água que
nos afoga, é insuportável. Morrer, mas continuar respirando, é como um
inferno sem fim.
Tem momentos em que sinto que vou explodir, outros em que acho
que meus pais vão desmoronar de vez e momentos em que tenho medo de
perder o Sam.
— Podemos enlouquecer juntos — proponho e Sam ri,
aproximando-se.
— Tentador, mas isso seria um caos.
Seria.
Sam se senta na ponta na cama e juntos ficamos observando a
paisagem pela janela, eu sempre gosto de ressaltar o quanto amo a vista
daqui, detesto o hospital e ter que ficar dias preso nesse lugar, mas o céu
visto daqui é único.
Parece que estou flutuando sobre as nuvens.
— E Jun-ho? — Sam questiona de repente.
— O que tem ele?
— Não veio esses dias, o que é estranho já que ele é todo
apaixonado. — Quase que morro quando o ouço dizer isso, foi uma reação
imediata, Sam me olha preocupado quando começo a tossir feito louco por
ter engasgado com a saliva.
— Não fala isso, Samuel! — eu exclamo completamente indignado,
quando consigo parar de tossir.
— Ah, fala sério! Jun-ho te olha igualzinho o jeito que o papai olha
para a mamãe — Sam percebe na mesma hora o que havia dito, seu sorriso
diminui e ele pigarreia meio sem jeito. — Bem, olhava...
Eu não acho que o jeito que eles se olhavam mudou, o que mudou
foi a reação a isso, como se não tivesse mais importância.
— Esquece isso — digo incomodado, deitando-me na cama. —
Preciso dormir.
Minha tática de fugir de momentos constrangedores ou complicados
como esse, geralmente funciona, mas Sam me conhece bem até demais.
— É sério, Timmy, o que você sente por ele?
— Como assim?
— Vocês não estão agindo como antes — ele diz cauteloso. —
Posso estar maluco, mas eu noto o jeito que vocês se olham.
— Ele é meu melhor amigo!
— Certo, Timothy. — Ele se levanta cruzando os braços. — Isso é
lindo, mas acho que nunca olhei daquele jeito para um amigo meu...
Ok.
É um bom argumento, tenho que confessar, não consigo pensar em
nada para dizer. A questão é que sim, eu o olho de uma forma diferente
atualmente, mas isso não significa que Jun-ho também me veja assim.
Sinceramente, acredito que algo do tipo nunca acontecerá por dois
motivos.
Primeiro: sequer tenho tempo para viver, minha missão no momento
é sobreviver e tentar não estragar de vez a vida da minha família que
claramente está cansada disso tudo.
Segundo: estou horrível, com certeza os sentimentos que alguém
possa sentir por mim seriam repulsa e pena. Jun-ho é incrível e isso não é
discutível, por isso sei que a última pessoa no mundo por quem ele poderia
se apaixonar seria eu.
Então isso meio que me machuca por dentro.
— Não quero falar sobre isso.
— Ok! Não vamos.
Samuel geralmente tenta respeitar todos os meus limites, o que eu
admiro.
— Só quero que saiba que estou aqui — ele acrescenta. — Não só
para falar sobre o quão gosta de alguém, podemos falar sobre o que quiser.
— Ótimo, porque quero muito falar sobre “Atypical...”
— Ah não! — Sam protesta, tentando se afastar o máximo possível.
Inacreditável! Quer fofocar sobre minha “vida amorosa”, mas não
quer falar sobre minha série favorita comigo. Que moleque sem vergonha.
— Mas...
— Você já me contou a série inteira de trás, para frente — ele
resmunga, voltando a se sentar ao meu lado. — Poxa, assiste outra série.
— Mas essa é a melhor...
Atypical não é só uma série, é uma lição de vida. Inclusive me deu
mais motivação para vivê-la.
O que também me choca é o fato de que meu irmão tem o mesmo
nome que o protagonista, Sam já cansou do quanto eu mencionei sobre isso,
mas realmente é algo que me surpreende. Eu amo como essa série me faz
vivenciar sentimentos inexplicáveis.
Mas Samuel está já está cansado de ouvir sobre isso.
Eu o entendo, acabei ficando obcecado e tudo eu falava com ele era
sobre a série, nada mais, acabou que ficou muito entediante para ele.
— Eu prefiro falar sobre o Jun-ho.
— Samuel! — assim que grito em desaprovação, a porta se abre e
minha mãe entra com as sobrancelhas franzidas, encarando nós dois com
certa confusão no olhar.
— O que está acontecendo aqui?
Sinceramente? Hoje estou com dezenove anos e Sam com vinte e
três, mas nossos comportamentos são iguais aos de uma criança de cinco.
Nossa mãe quase sempre precisa chamar nossa atenção ou impedir
que um mate o outro.
— Timothy precisa sair daqui! — meu irmão exclama. — Se ele não
vir o mundo, vai ficar enfurnado aqui dentro e vai se viciar ainda mais
naquela série.
Juro que minha vontade foi de dar um soco nele.
— Ele não vai ficar enfurnado aqui — minha mãe rebate,
aproximando-se para deixar a bolsa na poltrona ao lado da maca. Outra vez
a porta se abre e o doutor entrou em seguida, sempre com o seu melhor
sorriso, não consigo entender como alguém que trabalha tanto ao ponto de
não conseguir dormir direito, consegue estar sempre disposto e sem
nenhuma olheira.
Eu estou sempre deitado e sou extremamente exausto.
— Timothy! Você parece ótimo. — Mas ele é um péssimo
mentiroso. — Como está se sentindo hoje?
Não sei nem por onde começar.
— Acho que estou bem — obviamente opto pela resposta mais
simples e curta, como eu disse antes, estou exausto. — Além de estar
praticamente em coma aqui. — E claro, fazer um drama é minha marca
registrada, preciso fazer o doutor repensar pelo menos duas vezes se quer
mesmo me ajudar.
— Sempre tem a resposta na ponta da língua, não é? — ele diz
rindo, nunca fica com raiva das coisas que eu digo. — Mas eu entendo,
passou dias sem nem sair desse quarto...
— Por isso está ficando chato — Sam resmunga e eu percebo quão
perigosa é a pequena distancia em que estamos um do outro, posso matá-lo
a qualquer momento.
— Ei, Timothy — o doutor me chama quando eu estou pronto para
atacar Samuel —, o que acha de sair um pouco?
Espera, o quê?!
— Pra quê?
Geralmente, quando fico muito surpreso ou nervoso, esqueço de
praticamente todas as palavras existentes no mundo e sempre digo as piores
que vêm na minha cabeça.
— Tomar um ar, não sei... — mamãe diz com um enorme sorriso no
rosto. — Acho que te fará bem.
Com toda certeza do mundo.
— Mas estou em condições de sair? — Não faço ideia do porquê
estou fazendo esse tipo de pergunta que, com certeza, farão com que eu não
vá a lugar nenhum.
— Não exatamente, mas você pode dar uma pausa de tudo isso — o
doutor explicou.
Achei isso um pouco estranho.
— Você precisa — minha mãe completa o que o doutor havia dito.
Certo, por que eu negaria? Desde que acordei aqui estou querendo ir
embora, sair para tomar um ar é o mínimo que vou ter e com certeza por
muito tempo.
Então...
— Sim, preciso sim — concordo, sentando-me na maca. — Eu
quero muito ir, mãe.
Ela fica feliz com a minha resposta, com a ajuda dela eu troco de
roupa e escovo meus dentes, já que o gosto das vitaminas estavam me
fazendo sentir enjoo, Samuel me ajuda a andar pelos corredores, sempre
tenho a impressão de que na verdade ele está me carregando por aí.
O doutor está sempre ao lado caso eu sinta alguma coisa e minha
mãe está estranhamente entusiasmada, não estou reclamando, ver minha
mãe sorrir e sem vestígios de cansaço ou preocupação em seus olhos é
minha coisa favorita no mundo, eu amo quando ela está bem.
Acredito que seja algo recíproco, entre todos nós.
— Lá fora está um dia lindo, querido! — mamãe diz, enquanto
caminha lentamente ao meu lado junto ao Sam, que continua me ajudando.
— Você vai amar.
Ela está aprontando alguma coisa.
Sam também a encara, confuso. Minha mãe é mais do tipo de me
deixar no quarto do hospital até que eu melhore, ela tem medo de que eu
pegue outra doença ou que piore por causa do esforço. Vê-la agir dessa
forma é um pouco suspeito, embora eu esteja amando.
Já do lado de fora, todo o meu corpo acorda de um sono profundo e
finito quando o calor do Sol esquentou minha pele gelada, é como estar
nascendo outra vez, o planeta voltou a girar e tudo que para mim estava
paralisado, voltou ao normal. Viver em um quarto por dias, semanas ou
meses é uma das piores coisas que alguém pode viver, ou melhor,
sobreviver a isso, já que não há indícios algum de que estou vivendo minha
vida neste lugar.
A missão de qualquer pessoa nessas condições é apenas sobreviver,
sorte daqueles que conseguem para então poderem viver após o inferno
pessoal que tiveram que aguentar.
Não acho que serei um dos sortudos.
— Estava com saudade disso, não é? — Samuel sussurra para mim,
quando tenho o prazer de erguer meu rosto em direção ao Sol para me sentir
melhor.
— Morrendo...
Certo, falei isso no momento errado.
Mas bate com a situação atual.
Caminhamos pelo enorme gramado do hospital com calma, o doutor
sempre me dizendo para ter calma quando começava a me empolgar e andar
mais rápido.
Nem notei que estava fazendo isso.
Mas é estranho quando começamos a dar a volta no hospital, indo
para a parte mais isolada da área — como chamada pelos médicos daqui —
área da natureza, aparentemente adotaram o nome mais óbvio possível para
nomear o lugar.
— Mãe, o que estamos fazendo aqui?
— Uma pessoa quer te ver — ela diz olhando para frente, o que faz
com que eu olhe na mesma direção, e sim, novamente aquela sensação
percorre meu corpo.
A vontade de sair correndo em sua direção é enorme, mas eu não
faria isso nem curado, Jun-ho estranharia.
Um pouco mais à frente, Jun-ho está sentado sobre um enorme
lençol azul. Ele não percebe nossa presença de imediato porque está
ocupado retirando algumas coisas de uma cesta, parece bem concentrado no
que está fazendo.
— Jun-ho! — Não aguento esperar chegar mais perto, eu o chamo
bem alto, tirando sua atenção da cesta. — Meu Deus, o que é isto?
Ele então se levanta rapidamente e corre em minha direção.
Ok.
Tudo certo.
— Ei, Timmie... — ele diz assim que chega mais perto, seu sorriso é
a melhor coisa que tive a sorte de ver o dia todo. — Sentiu minha falta?
E como...
— Senti! — Ele gosta do que ouve, seu sorriso ficando maior é a
prova disto.
— Ele sentiu até demais — Samuel se intromete, recebendo um tapa
na nuca pela minha mãe. Ele a encara indignado, enquanto massageia o
lugar. — Eu estou mentindo?
— Fica quieto — ela resmunga, puxando-o para mais perto. —
Timmy, vamos entrar um pouco, tá bom? Qualquer coisa me chama e eu
veio correndo para cá!
Samuel semicerra os olhos em sua direção, estranhando seu
comportamento, os dois as vezes parecem irmãos. Minha mãe agarra Sam
que não faz movimento algum para sair do lugar e o arrasta para longe de
nós, o doutor tenta conter a risada, mas falha, Jun-ho também.
— Faço das palavras de sua mãe, as minhas — ele diz quando
esvamos só nós três. — Estamos por perto, algumas enfermeiras ficam por
aqui caso alguém passe mal, então não hesite em pedir ajuda, ok?
— Ok...
— Certo, se divirtam — ele diz caminhando para longe, até que se
vira novamente e aponta o dedo para Jun-ho. — Se comporte, ou eu expulso
você daqui.
Parece que eles também são próximos, o doutor é amigo do pai de
Jun-ho, então sempre que ele vem me ver, o doutor diz esses tipos de coisas
que não assustam nem um pouco o meu amigo, ele apenas ri das ameaças
vazias.
— Pode deixar.
O doutor sorri convencido e se afasta, eu continuo paralisado no
mesmo lugar, chocado com a cena na minha frente. Jun-ho se aproxima por
trás de mim, assistindo a minha reação enquanto analiso o que ele estava
aprontando.
— O que é tudo isso, Jun-ho?
— É um piquenique, Timmie — ele sussurra. — Então já pode
riscar isso da sua lista.
Jun-ho segura minha mão sem tirar os olhos de meu rosto, puxando-
me para que eu o seguisse e por fim nos sentamos sobre o lençol azul.
O tom é mesmo que o azul do céu.
Sinceramente, combina bem com o que estou sentindo no momento.
— Eu trouxe tudo que você pode comer no momento — ele
comenta, ajeitando o que já estava perfeitamente organizado. — E como
está muito calor, eu também trouxe sorvete.
Jun-ho não está facilitando nada para mim.
— Você sentiu minha falta? — dessa vez sou eu que pergunto, Jun-
ho tira sua atenção da comida e me encara surpreso.
— Você nem imagina o quanto...
Ah.
— Me desculpa, Timmie — ele diz de repente, chegando mais perto.
— Eu estava de repouso e não pude vir esses dias.
Ah, eu entendo perfeitamente.
— Você está aqui agora, só isso que importa.
O seu sorriso diminui, não de uma forma ruim, seus olhos
continuam brilhando quando ele outra vez me encara em silêncio, mas
dessa vez eu fiz o mesmo, não abaixo minha cabeça ou desvio o olhar para
um lugar qualquer.
Dessa vez é ele que desvia o olhar primeiro, pigarreando e outra vez
tentando organizar o que já está organizado.
Ele parece nervoso.
— Está tudo bem, Jun? — Tento acompanhar o movimento de sua
cabeça para vê-lo melhor, Jun-ho sorri, mas um daqueles sorrisos que
tentam esconder algo.
Eu o conheço bem.
— Tudo ótimo, vamos comer? — Ele também é muito bom em
mudar de assunto.
O que pode ser muito bom, dependendo da situação, ele não espera
uma resposta quando começa a comer as frutas que trouxe. Jun-ho não
costuma ser tão quieto, por isso estranho a forma como ele tenta sempre não
me incomodar, como se isso fosse possível! Jun-ho seria a última pessoa no
mundo que conseguiria me incomodar.
— Você está bem quieto...
— É que... — ele pigarreia, soltando uma risada nervosa — eu senti
mesmo a sua falta, agora não sei como agir.
Certo, tudo certo.
— Jun, eu amo quando você é simplesmente você mesmo.
Jun-ho gosta do que ouve, daquele momento em diante ele fica mais
tranquilo. As frutas que ele trouxe estão praticamente congeladas, todas as
minhas frutas favoritas, o sorvete acabou em minutos e tudo que Jun-ho fez
foi me observar como uma criança tendo seu dia mais divertido em um
parque, a situação é quase a mesma.
A verdade é que ele sempre faz com que eu me sinta curado, bem o
suficiente para ser capaz de fazer tudo aquilo que geralmente não posso
fazer, isso é loucura, eu sei. Mas esse é o efeito que ele tem sobre mim.
É quando eu fecho meus olhos, para aproveitar o Sol outra vez que
percebo o quanto está calor, ficar parado por muito tempo em que o Sol bate
perfeitamente, tem seus altos e baixos.
Mas eu só abro meus olhos quando, por algum motivo, sinto o olhar
dele em mim.
— Por que não tira um pouco a sua touca, Timmie? — finalmente
ele diz algo, o que me faz arregalar os olhos em desespero.
— O quê?
— É que você está sempre com ela — ele diz, cauteloso. — Até
mesmo quando está muito calor, na verdade nunca tirou quando estou por
perto, então...
— Jun-ho... — eu o interrompo, negando lentamente com a cabeça.
— Passei dos limites. — Ele sorri para mim, um sorriso fraco e
pouco sincero. — Desculpa.
A verdade é que não é algo terrível ou imperdoável, o problema é
que é ele! A ideia de que Jun-ho me veja como os outros veem, faz com que
eu entre em desespero, porque não é assim que eu quero que ele me veja.
Mas eu sei de uma coisa, Jun-ho é a melhor pessoa para estar ao
meu lado, nesses momentos.
— Você promete não rir?
Esse questionamento parece ser terrível, irreal no cenário em que
nos encontramos, Jun-ho me encara em silêncio por um tempo, parece
tentar ler minhas expressões de forma cautelosa, ou chateado com o fato de
que eu tenha acreditado por um minuto, que ele seria capaz de fazer tal ato.
— Eu jamais faria isso, Timothy — ele fala depois de um tempo,
sério. — Eu prometo.
Não seria tão difícil alguns dias atrás quando eu sequer tinha
entendido o que estou sentindo por ele, agora parece uma verdadeira
tortura, mas eu o faço lentamente, a touca vermelha é agarrada por minhas
mãos e tudo o que consigo fazer em seguida é encará-la em silêncio.
Jun-ho também não diz nada, ele apenas me encara, por tempo
demais, isso me deixa um pouco nervoso.
— Você está me olhando por muito tempo...
— É porque você é lindo.
Ele responde tão rápido e simplista que faz meu queixo cair, Jun-ho
costuma dizer coisas que me fazem paralisar, mas isso literalmente mexeu
comigo.
— Jun-ho, não minta para mim — eu digo, sinceramente magoado.
— Estou horrível, prova de que a doença está vencendo.
— Não diga uma coisa dessa — ele praticamente me interrompe. —
Você é a pessoa mais forte que eu já conheci! — E então ele se aproxima,
lentamente, como se não quisesse que eu percebesse, quando já estava perto
o suficiente, ele ergue suas mãos e segura meu rosto com cuidado.
Sempre tomando o máximo de cuidado possível, quando me toca.
— Eu não quero que você se enxergue dessa forma — ele
acrescenta. — Se eu pudesse fazer você se ver, como eu te vejo, perceberia
o quão impecável é! Perceberia que é a personificação de pureza e perfeição
— ele chega mais perto, deslizando com delicadeza os dedos sobre minha
pele. — Eu não acreditava em perfeição até te conhecer, mas você
ultrapassa disto.
— Jun-ho...
— Vai ficar tudo bem! — ele sussurra, sorrindo para mim. — Você
vai vencer esse câncer e quando sair daqui, vamos nos casar.
Não consigo segurar a risada, na verdade, estou sentindo tanta coisa
que estou prestes a explodir.
— Até parece que você falou sério, agora — eu digo em meio à
risada e às lágrimas que eu sequer tinha notado antes, sendo limpas pelos
dedos de Jun-ho que não para de acariciar minha pele.
— Mas é sério! — ele exclama, eu apenas assinto rindo e seguro
seus pulsos, quando ele se aproxima para beijar minha testa.
Perigoso demais a forma como ele está perto, beijando a minha testa
e arrastando seus dedos pelo meu maxilar. Jun-ho está me causando
sentimentos dos quais eu nunca imaginei que iria sentir um dia, muito
menos por ele, o garoto esquisito e maluco que eu derrubei anos atrás.
Que vive me tirando do mundo da lua.
Para que eu possa apreciar o Sol.
É quando ele toca em meu queixo e levanta minimamente o meu
rosto, que noto o que estava acontecendo. O motivo de seu nervosismo e a
forma como ele está me tocando, tudo isso é óbvio demais.
O problema é que não enxergamos muito bem quando nos sentimos
mortos.
Jun-ho não se importa nem um pouco com a presença das poucas
pessoas que estavam por ali, quando quebra a mínima distância que há entre
nós e me rouba um beijo.
Simplesmente deslizando seus lábios macios nos meus.
Um beijo singelo e cauteloso.
Do qual me fez suspirar inúmeras vezes, sentindo o calor de seus
lábios sobre os meus. Jun-ho rouba outro, e outro, até que se afasta para
beijar minha bochecha e no fim, encostar sua testa sobre a minha.
Não imagino uma forma existente ou coerente para explicar o que
estou sentindo no momento, é tudo tão surreal que minha única reação é
sorrir e me acomodar em seus braços, quando Jun-ho me puxa para que eu
deite a cabeça sobre seu ombro.
— Nós somos melhores amigos, Jun-ho — eu digo, depois de um
tempo. — E você me beijou.
— Somos melhores amigos e noivos — ele acrescenta, fazendo-me
cair na gargalhada. — Então eu posso te beijar...
Ok.
Ele pode, eu quero que ele me beije.
Por isso eu assinto imediatamente quando ele termina de falar,
somos melhores amigos e, agora, noivos. Jun-ho me beija e tudo o que eu
imaginava em minha cabeça desaparece, faz sentido a forma como ele me
olha, como me toca e como cuida de mim.
Sam tinha razão.
Amigos não se olham desse jeito, pelo que eu saiba, também não se
beijam.
— Você acha que isso foi entranho? — ele questiona depois de um
tempo, e eu nego, nego mais rápido do que as palavras que saíram de sua
boca.
Porque eu definitivamente quero beijar Jun-ho outra vez.
A lua dançando com o sol

Jun-ho literalmente melhorou meu dia.


O problema costumeiro, que sempre aparece para estragar algo,
apareceu quando eu tive que voltar para o quarto. Jun-ho precisou voltar
para casa e meu desespero após beijar meu melhor amigo começou a tomar
conta de mim, em silêncio, eu surtei de todas as formas existentes no
mundo.
Não porque beijei o Jun-ho, na verdade, o fato de que foi ele, que
me tranquiliza um pouco.
O problema, é que somos dois homens. Ou melhor, possivelmente
um problema para algumas pessoas. Óbvio que para mim isso não é
problema algum.
Eu amei, Jun-ho é como uma parte de mim.
Não teria ninguém no mundo, melhor que ele para me proporcionar
esse momento.
Mas não faço ideia de qual será a reação de meus pais.
— Timothy emagreceu muito — a voz do doutor me puxou de volta
à realidade, em seu consultório após mais uma daquelas verificações da
minha mais horrível situação. — Ele está realizando todas as refeições do
dia, normalmente?
Certo, por algum motivo desde que meu quadro piorou,
aparentemente eu também me tornei invisível e insignificante quando se
trata, adivinha? De mim mesmo.
O doutor não me pergunta mais o que eu estou sentindo e nem
mesmo conversa comigo, sobre a minha própria situação. Isso não faz
sentido algum!
— Ele não está conseguindo comer muito bem — meu pai conta,
após um longo suspiro. — Nem mesmo o que o senhor passou, frutas
geladas não ajudam mais.
E meus pais estão fazendo exatamente o mesmo.
— Sabe, eu estou bem aqui — eu digo, chamando a atenção dos três
que conversam quase em sussurros pelo consultório. — Pode perguntar
diretamente para mim o que estou sentindo, eu não sou mais uma criança.
— Timothy! — minha mãe exclama, olhando-me com certa
indignação no olhar. — Desculpe — com outro tom de voz, ela se desculpa
com o doutor, por mim.
Ok, estou me irritando com coisas irrelevantes no momento. Eu sei!
Mas ultimamente a raiva tem sido minha melhor amiga, desde o dia do
piquenique, tenho me estressado com coisas pequenas demais e isso está
preocupando a todos.
Inclusive a mim.
Mas é difícil de evitar.
— Tudo bem, Sra. Lee. — Ele sorri com gentileza. — Timothy,
aconteceu alguma coisa? Você anda muito estressado esses dias...
Não aconteceu absolutamente nada, acho que esse é o problema.
— Não é nada — respondo sinceramente.
Não é nada, sei que vai passar logo.
Eu espero.
— Estamos aqui caso você queira conversar — meu pai oferece,
isso me tranquiliza um pouco, saber que ele está aqui para me ouvir. Por
mais que eu seja um peso morto no momento.
Eu sorrio em resposta e então eles voltam a conversar, outra vez
ignorando minha presença, o doutor outra vez aconselha milhares de formas
das quais eu poderia tentar me alimentar e o quanto eu ainda preciso ficar
de repouso.
Traduzindo: estou piorando.
Lentamente.
Quando recebemos más notícias o suficiente, meus pais decidem
voltar para o quarto, com a ajuda dos dois é claro, eu caminho pelos
corredores sempre tentando ignorar qualquer resquício de situações piores
que a minha. Isso me causa um desespero colossal, se estou me sentindo
desta forma e há pessoas em condições piores que a minha, não há
possibilidade alguma de sairmos deste lugar.
E eu prefiro enganar a mim mesmo, fingir que sou o único que está
morrendo.
Bem, eu não tenho importância alguma.
Ao chegarmos no quarto, Samuel já havia chegado e se acomodado
na poltrona que, segundo todos os seres humanos do mundo, é a coisa mais
desconfortável que existe.
Ah, ele está comendo, como sempre.
— Oi, Samuel — eu o cumprimento, deitando-me na maca.
— Oi, Timmy, por que está estressado? — ele questiona, assim que
me viu.
— Eu não estou estressado!
Mesmo arqueando as sobrancelhas e claramente estranhando meu
comportamento, Samuel ignora minha reação exagerada à sua pergunta e
volta a comer, e meu pai, em silêncio, suspira outra vez, ele tem feito muito
isso.
— Você tem que comer — minha mãe diz depois de um tempo,
parada perto da porta.
Ela não está nada bem.
— Eu não quero.
— A questão aqui não é se você quer, Timothy! — Minha mãe eleva
um pouco o tom de voz, assustando-me um pouco, Samuel a encara ainda
mais indignado e meu pai franze a sobrancelha, desencostando da parede ao
tentar entender a situação. — Você está morrendo — sua voz falha. — E
não há nada que eu possa fazer, nada!
Nada...
Não podemos fazer nada.
Eu sei, mas doí mesmo saber que ela está percebendo isso agora.
A esperança em seu olhar se foi, não há mais nada ali.
— Mãe... — Samuel a chama para tentar acalmá-la, mas não adianta
muito.
— Você não vai suportar o tratamento, sem se alimentar — ela diz,
tentando impedir que o choro atrapalhe a sua voz de sair. — Está perdendo
muito peso, Timothy! Sabe o quanto isso te faz mal?
— Eu sei!
— Então por que você não reage?! — ela questiona se aproximando,
assustando todos nós com sua voz alta e falhada por causa do choro que ela
não tenta mais conter. — Você nem parece se importar mais, meu filho. —
Com a voz extremamente quebrada, os olhos vermelhos e o corpo
encolhido, ela abraça a si mesma. Minha mãe está morrendo outra vez, isso
já aconteceu várias e várias vezes antes, mas agora parece pior. — Você não
está nem tentando.
— Isso não é justo.
Não é.
Eu sei, ela está sofrendo como todos nós aqui, ou até mesmo mais.
Mas eu sei o quanto estou lutando, eu sinto as consequências disto
em meu corpo, em minha voz que fica mais lenta e sem vida, em meu
apetite que falta todos os dias, nos sangramentos que deixam um gosto
amargo em minha boca, que prende minha respiração e me impede de puxar
o ar.
Isso cansa.
E me mata da mesma forma, então por que eu continuo tentando?
— Helena, vamos tomar ar. — Meu pai se aproxima com calma,
pegando em seu antebraço para guiá-la para fora do quarto.
— Não preciso disso, Soo-hyuk, preciso que nosso filho melhore!
— Minha mãe sempre foi teimosa, muito inclusive. Mas fica ainda mais
quando se trata de momentos difíceis assim.
Meu pai precisa ter calma, aproximar-se com cautela e abraçá-la
com mais ainda para que conseguisse fazê-la sair. Mamãe não parou de
chorar, eu ouvi seu choro distante do quarto, até ficar inalcançável aos meus
ouvidos.
Samuel e eu ficamos paralisados no quarto, essa não foi uma das
piores situações que já vivemos, não mesmo! Mas não importa o quanto
acontece ou quanto tempo passe, isso nunca será fácil de suportar. Meus
pais brigavam muito quando éramos pequenos, Sam sempre tentava me
distrair para não ouvirmos as discussões que, por mais que tentassem ser
silenciosos, não conseguiam e gritavam um com o outro como dois leões
lutando.
É horrível.
Ver o amor acabar de perto, é como presenciar a morte de alguém.
— Não é sua culpa — Sam fala depois de um tempo.
Não consigo respirar.
— Está me ouvindo? — ele insiste. — Não é culpa de ninguém.
Isso não é verdade.
Se eu tivesse morrido anos atrás, eles não estariam passando por
tudo isso outra vez. Por minha causa, minha mãe não dorme, meu pai não
conta mais as suas melhores piadas na hora do almoço, Sam não consegue
se controlar e até mesmo Jun-ho, anda cabisbaixo pelos cantos.
Eu deveria ter morrido aos oito anos.
— Timmy?! — Ouço a voz de Samuel, está distante, mas ele está
bem ao meu lado. — Ei, se concentre na respiração.
Eu tento, mas o ar escapa de mim.
Tento outra vez e meu peito queima como brasa, é horrível, tudo o
que há em meu campo de visão está borrado. Minha garanta doí
insuportavelmente com o efeito do nó que se formou, é difícil empurrá-lo
para baixo, quando nem mesmo respirar eu consigo no momento.
— Tudo bem! — Ouço a voz de meu irmão outra vez. — Chora, não
se segura.
Não estou segurando, meu corpo simplesmente parou de me
obedecer.
— Você está tremendo — ele nota quando se aproxima para me
abraçar. — Está com frio? — Não, na verdade sinto meu corpo queimar no
momento. — Timothy? — Sam me chama outra vez, antes de desabar de
vez em um choro incontrolável. — Fala comigo!
Samuel não costuma perder o controle, pelo contrário, ele nos
mantém sob controle.
Mas quando desaba desta forma, é difícil ajudá-lo se levantar.
Principalmente na situação em que estamos no momento, uma enorme onda
de crise tomando conta de meu corpo, exatamente cada pequena parte de
minhas articulações doendo e o ar fugindo de mim, fica difícil de tirá-lo do
mesmo lago que também me afoga.
Por isso eu apenas aceito e retribuo o abraço que é me dado, como
um daqueles de quando éramos crianças e ele corria para meu quarto no
meio da noite, quando nossos pais estavam discutindo. Ele não vinha
porque tinha medo, vinha para me tranquilizar, abraçar-me e tentar disfarçar
o lado ruim que existe em quase 99% dos casamentos.
— Vamos ficar bem — ele consegue falar, após beijar o topo da
minha cabeça. — Eu prometo!
É a única promessa em que eu realmente acredito, em anos.
Samuel não espera uma resposta quando se deita comigo, sem me
soltar ou pedir para que eu parasse de chorar, ele me deixa esvaziar a grande
bolha inflamada de dor que havia em meu peito. Não se importa quando a
intensidade do choro aumenta, ele apenas torna o abraço mais apertado,
também não se importa quando perco as forças para chorar e passo longos
minutos em silêncio, encarando o mais belo e absoluto nada.
Ou nem mesmo se importa quando a fragilidade causada pela
vergonhosa crise me fez dormir sem aviso prévio, apenas caio em mais um
poço de exaustão mental, despencando sem parar, metros e metros sem fim.
Como Alice caindo na toca.
O problema, é que quando meu corpo choca com a superfície, eu
não me deparo com um mundo de bizarrices como ela, a realidade é bem
pior que um mundo onde há animais estranhos e rainhas más.
Porque aqui o meu maior inimigo vive em mim.
Quando minha consciência decide voltar à realidade, parece que o
tempo tinha passado na velocidade da luz. Já é noite, tenho apenas Sam
aqui comigo, ele não está dormindo. Pelo contrário, ele me analisa como
uma experiência de laboratório.
— Está a quanto tempo aí? — eu questiono, sem nem mover meu
corpo.
— Sinceramente? — ele suspira, esfregando uma mão na outra para
esquentá-las. — Não faço ideia.
Seus olhos estão inchados, isso corta meu coração, ver alguém que
anda sorrindo por todos os lados sem conseguir esboçar sentimento algum é
horrível.
— Me perdoa...
— Quem precisa te perdoar, é você mesmo.
Ele diz sem expressão alguma no rosto, mas seus olhos entregam
absolutamente tudo! Como pode alguém tão ferido não sangrar? Isso é
assustador.
— Você també...
— Não quero falar sobre isso — ele me interrompe, outra vez
suspirando profundamente quando se remexe incomodado. — Por favor,
vamos falar sobre alguma coisa boa... — ele praticamente implora, com a
agonia da situação marcando seu olhar.
Sinceramente, demora um tempo para que eu encontrasse algo de
bom para contar a ele, esses dias têm sido difíceis, nada de bom tem
acontecido e minha lista de novidades para contar a qualquer um que me
peça, está acabando.
— Como foi no piquenique com Jun-ho? — Ele realmente
demonstra interesse.
— Ele me beijou — eu conto por fim, quase em um sussurro.
Agora sua expressão fica mais impassível ainda.
Tempo demais em silêncio, apenas me encarando, o desespero
começa a crescer dentro de mim e a única coisa que consegui fazer foi
trazer meus dedos a minha boca, para roer minhas unhas já desgastadas.
— Sam?
— Meu Deus! — ele finalmente diz algo, como se tivesse saído de
um transe.
— Isso é ruim? — outra vez eu pergunto em um sussurro, Samuel
curva a cabeça para o lado, confuso com meu questionamento, ele então
suspira outra vez e se levanta para se aproximar de mim.
— Isso é incrível! — ele sussurra de volta, dessa vez, esboçando seu
sorriso mais lindo.
Eu amo meu irmão mais do que a mim mesmo, por isso vê-lo sorrir
assim facilmente me emociona.
— O que mais aconteceu?
— Bem, eu tirei minha touca na frente dele...
Sam demonstra ainda mais surpresa com a notícia, ele sabe como
isso pode ter sido difícil para mim, ele primeiro analisa meu rosto por
alguns segundos até decidir de vez se sentar na ponta da maca.
— Ele riu de você?
— Não!
— Imaginei, ele nunca faria isso.
— Sim, ele foi super fofo e...
— E?
— Ele disse que eu sou lindo...
Seu sorriso fica maior, as covinhas em suas bochechas aparecem e
me fazem sorrir também.
— Eu disse! — ele exclamou. — Ele é todo apaixonado...
Minha primeira reação foi rir, uma espécie de risada diferente, não
sei bem como identificar.
— Agora não tenho dúvidas disso...
Samuel sorriu mais, puxando-me para outro abraço, dessa vez é um
abraço aliviado. Um daqueles que damos em alguém quando não
encontramos outra forma de demonstrar o quanto estamos felizes por elas.
Um abraço que transmite paz.
É quando ele me solta e encara meu rosto por mais alguns segundos,
sem parar de sorrir, que a porta se abrie após três batidas, chamando nossas
atenções, Jun-ho entra cauteloso, sua expressão entrega o medo de
possivelmente ter interrompido algo.
— Timmie...
— Jun-ho, oi! — É o “oi” mais animado que eu já dei.
Samuel se afasta levantando-se da cama, sem tirar os olhos de Jun-
ho.
— Eu vim em uma má hora? — ele questiona, preocupado.
— Não! — Samuel é quem responde aproximando-se. — Na
verdade, é o momento perfeito! — Semicerro meu olhar em sua direção,
sem entender o que ele está tramando. — Eu tenho umas coisas para
resolver, seria muito bom se você pudesse ficar aqui com ele por um
tempinho...
Mas a cara nem treme.
Ele não tem nada para resolver.
É um desocupado.
— Posso sim! — Jun-ho não pensa duas vezes antes de responder,
ok, talvez eu tenha gostado do plano meio sem noção do meu irmão.
— Ótimo, eu volto já — ele sorriu para nós, por trás de Jun-ho e já
com a porta aberta, ele sorriu em minha direção e piscou apenas o olho
direito.
Fico indignado.
— Seu irmão é maluco — Jun-ho acusa rindo, após Sam sair do
quarto.
— Ele é bem mais que isso... — digo, ajeitando-me na maca.
Quando Jun-ho para analisar mais o meu rosto, seu sorriso diminui e
ele se aproxima rapidamente segurando meu rosto. Sempre com extrema
delicadeza.
— Você estava chorando?
Certo, não esperava por isso.
— Eu estou bem — aviso de vez, mas sua expressão não suaviza. —
Estou bem — afirmo mais uma vez, oferecendo meu melhor sorriso a ele.
— Tudo bem, se não estiver bem — ele sussurra. — Não precisa
trancar esses sentimentos aí dentro, toda vez que eu estiver por perto.
Não é bem a intenção, mas ele tem razão, sempre tento ser a pessoa
mais forte na frente de Jun-ho, não quero que ele me veja tão fragilizado
como estou no momento.
— Não quero que me ache um fracote — confesso, resmungando,
Jun-ho ri, e muito! Ele se aproxima mais e beija minha têmpora direita.
— Você não é fracote, eu sou — ele sussurra ainda rindo, em reação,
eu descanso minha testa sobre a sua e sorrio com a resposta.
— Nós somos fracotes — chego uma conclusão, finalmente.
Ele concorda com a cabeça, em silêncio, com meus olhos fechados e
minha pele descansando sobre a sua. Ele desliza suas mãos por meus
braços, é inevitável suspirar em resposta a esse toque.
Ao seu toque!
Sempre me tocando com todo o cuidado do mundo, subindo o torço
de sua mão até chegar em meu rosto, o cuidado é o mesmo, como um
remédio que me acalma, ele faz todo o pesadelo que foi este dia sumir.
Mas então ele se afasta de repente, caminha até sua bolsa deixada na
poltrona e procura por algo, até que tira lá de dentro sua câmera, ele
programa alguma coisa enquanto caminhava lentamente em minha direção.
— Posso tirar fotos suas?
— Pode! — eu respondo sem nem pensar. — Mas você não vai
mostrar a ninguém, não é?
— Se você não quiser que eu mostre, eu não mostro — ele diz já
perto o suficiente. — Eu tiro fotos suas, porque depois eu fico admirando
sua beleza.
— Jun-ho!
— Mas é verdade! — diz ele, rindo.
Ignorando minha risada, ele ajeita a lente e se afasta outra vez, os
flashs começam sem aviso prévio e tudo o que consigo fazer é paralisar. Até
que ele começa a me ajudar com as poses, fazendo com que eu sorria de
verdade e me envergonhando muito com seus elogios bregas e carinhosos.
— A última — ele diz, pensando em algo que eu poderia fazer. —
Olha para a janela.
Eu o faço, sem conseguir parar de sorrir.
Quando olho para Jun-ho, ele tem o mesmo sorriso que o meu
enquanto analisa minha foto já impressa em sua mão.
— Deixa eu ver?
A luz da lua invadindo o quarto deixou um efeito lindo na foto, a cor
da minha touca ficou mais fosca e meu sorriso está realmente bonito.
Eu fiquei... Bem, acho que fiquei bonito.
— É a melhor foto que eu já tirei — Jun-ho sussurra, quando eu o
encaro e percebo seu rosto próximo demais ao meu, ele sorri mais para a
foto e então me encara de volta. — Se eu pudesse mostraria ao mundo
inteiro.
Ele realmente sabe como me deixar sem jeito.
Mas é incrível a forma como eu tenho naturalidade e coragem de
quebrar a pouca distância que tinha entre nós dois e roubar dele o selinho
que me roubou dias atrás. Jun-ho parece ter gostado, ele sorri mais ainda e
me retribui com outro.
Isso é bom.
— Eu trouxe meu celular, quer ouvir música? — ele diz, tentando
conter seu sorriso. Eu apenas gesticulo minha cabeça em resposta, outra vez
ele se afasta e mexe em sua bolsa até encontrar o celular.
Caminhando em minha direção ele escolhe a música, não a
reconheço de lugar algum, é nova.
Ele deixa o celular sobre a mesinha de cabeceira e estende a mão em
minha direção, fico longos segundos sem entender absolutamente nada,
Jun-ho ri e se estica para alcançar minhas mãos.
— Dança comigo?
— Jun-ho — suspiro, negando com a cabeça —, mal me aguento em
pé.
Ele sorri mais, puxa minha mão em sua direção e a beija antes de me
puxar. Com cuidado, mas força o suficiente para me fazer sair da cama.
— Eu te ajudo — ele sussurra.
E então, com as mãos em minha cintura, ele me faz colocar os pés
sobre os seus, eu abraço seus ombros para não cair e suas mãos sobem para
as minhas costas, fazendo meu corpo ter um sustento. Por fim, ele começa a
mover seus pés que, automaticamente, movem os meus.
No ritmo da música, eu deito minha cabeça em seu ombro e ele
beija o topo da minha cabeça.
E ficamos assim, por um bom tempo.
Jun-ho me faz dançar por todo o quarto, tomando muito cuidado
para não me deixar cair, ele desliza suas mãos pelas minhas costas em um
carinho relaxante.
Nunca me senti tão em paz.
Após uma tempestade, meu sol ainda sim melhora o meu dia.
Mesmo quando meu corpo protesta com a dor, eu o abraço mais
forte. Não quero parar, vou aproveitar esse momento único. Esse momento
só nosso.
Porque eu estou feliz. Estou extremamente feliz, em finalmente
saber como é amar alguém.
E como é amar Jun-ho, como nunca amei alguém.
Quando você sabe, você sabe

— Hum... Atypical? — Jun-ho questiona confuso, após eu


mencionar minha série favorita em meio à nossa conversa.
Depois de termos dançado até a música acabar, ainda ficamos
abraçados por um tempo até que meu corpo protesta e Jun-ho decide me
ajudar a deitar, por isso começamos a conversar sobre diversas coisas que
temos interesse.
Como as novas músicas que Jun-ho descobriu recentemente, séries
que nunca terminamos de assistir e livros que devoramos em pelo menos
uma semana. Tudo isso flui de uma maneira inexplicável, ele me conhece
tão bem que até me assusta, mas o engraçado é o quanto eu o conheço
também.
Por isso, em um certo momento, menciono minha série favorita na
conversa não só porque eu gosto muito, mas porque eu sei o quanto ele vai
amar.
— É minha série favorita!
— E sobre o que é?
— É uma série que tem como protagonista da história, um garoto
autista — começo a contar, Jun-ho até mesmo melhora a postura para ouvir
sobre a história. — Ele busca por independência a maior parte do tempo, eu
amo como ele aprende as coisas da vida com o tempo, não porque ele é
autista e precisa aprender a ser como pessoas não autistas, simplesmente
amo porque ele é um adolescente descobrindo o mundo, como qualquer
outro.
— É muito triste a série?
— Pelo contrário, claro, vai ter alguns momentos emocionantes! —
confesso, também tentando me aconchegar melhor na maca. — Mas essa
série me transmite tanta paz, a forma como ele fala sobre pinguins é tão
delicada que até me dá vontade de descobrir mais sobre os pinguins
também.
— Ele gosta de pinguins? — Jun-ho questiona mais animado com a
história.
— Sim! Ele ama os pinguins como se fossem de sua família.
— Gostei, vou assistir! — ele conclui por fim, chegando mais perto
de mim. — O bom é que a série te acalma, não é?
— Sim, ele também tem um método de acalmar a si mesmo em
crises — eu conto, deixando que Jun-ho passe seu braço por trás de mim,
puxando-me para mais perto. — Eu acabei adotando isso também, ajuda,
mas não como ajuda ele... Talvez eu tenha que criar meu próprio método.
— Qual o método dele?
— Ele repete suas espécies de pinguins várias vezes, sempre na
mesma ordem — conto, levantando meu rosto para poder olhá-lo. — São:
Adélia, Antártico, Imperador e Gentoo.
— Ele repete quantas vezes?
— Quantas forem necessárias...
O problema é quando a crise é tanta, que nem milhares de vezes
repetindo isso, ele consegue escapar da sensação sufocante de estar
morrendo mentalmente. É horrível, eu o entendo completamente, por mais
que nossos motivos de crises e até mesmo as crises em si serem diferentes,
ainda sim somos dois garotos tentando viver normalmente como o resto do
mundo.
— Ah! E o nome dele é Samuel Gardner — conto, completamente
animado com esse fato.
— Samuel?!
— Sim!
— Nossa que incrível, é o mesmo nome do seu irmão — ele nota a
coincidência, a surpresa e agitação em seu olhar com essa curiosidade, são
completamente genuínas. — O Sam sabe disso?
— Sabe, ele não aguenta mais me ouvir falar sobre isso — eu conto,
em meio a uma risada.
— Vou chamar ele de Gardner de agora em diante — ele conta, com
o sorriso mais perturbado que já vi, lembra muito uma criança se
preparando para aprontar alguma coisa.
— Ele vai te odiar.
— Ele já me odeia.
— Isso é impossível.
Jun-ho ri da minha indignação com sua fala, ele então segura meu
rosto com uma mão e me puxa para beijar meus lábios, isso já está se
tornando um costume que, eu confesso, estou adorando. Logo depois algo
em seu celular chama sua atenção, ele apenas verifica a barra de
notificações e suspira pesadamente, desliga a tela de seu celular e me abraça
mais forte, dando outro beijo agora em minha cabeça.
— Meu anjo, eu preciso ir agora — diz ele, lamentando.
— Tudo bem... — e eu tento ao máximo não demonstrar o quanto
isso me deixa triste, sei que Jun-ho não pode ficar eternamente aqui comigo
no hospital, mas eu detesto quando ele tem que ir embora, sinto tanta
saudade dele.
— Eu prometo que não vou demorar para vir, na próxima vez — ele
promete, ao se levantar e guardar seu celular no bolso. — Vou ficar o dia
todo com você.
— Está feita a promessa então — eu resmungo, remexendo-me na
maca. — Se quebrar a promessa eu vou jogar na sua cara depois.
Ele ri, negando lentamente com a cabeça, logo depois ele se
aproxima e beija o canto de meus lábios, não é acidental. Na verdade, é bem
intencional, depois beija minha testa demoradamente e se afasta até abrir a
porta.
— Não fica no mundo da lua, Timmie — ele diz, antes de sair. —
Vá descansar.
— Você também!
— É meio difícil eu conseguir sair do mundo da lua agora... — ele
diz fingindo derrota. — Demorei muito para conseguir entrar, não saio nem
morto.
Certo, ele não está falando da lua.
Entendi.
Dito isso, sem esperar qualquer resposta minha, ele sai. Deixando a
porta minimamente aberta, e a julgar pelo silêncio dos corredores e a forma
como poucas pessoas estão passando por ele, acredito que realmente já
esteja bem tarde. Por isso Jun-ho precisou ir embora, ele precisa descansar
também.
— Esbarrei com Jun-ho lá fora — Samuel me assusta ao entrar no
quarto do nada, com uma miniporção de batatas na mão. — O coitado
estava indo embora todo encolhido, tadinho, não aguenta ficar dois minutos
longe de você.
— Samuel!
— Não estou mentindo — ele diz com a boca cheia. — E você
também, entrei e você com a maior cara de velório aí. — Ele ri apontando
para mim, parece uma criança.
— Estava ensaiando para o meu — Samuel para de rir no mesmo
instante, para também de mastigar e me encarou indignado. — Credo, é
brincadeira!
— Brincadeira sem graça! — outra vez, ele diz de boca cheia.
— Para de ser nojento!
— E você para de ser idiota!
Meu irmão não tem um pingo de maturidade, ficamos discutindo por
um bom tempo, e quando digo “discutindo”, digo que estávamos rindo feito
dois malucos enquanto gritávamos um com o outro.
— Mas o que está acontecendo aqui? — meu pai questiona,
entrando no quarto junto com a mamãe.
— Samuel é porco.
— Vou te mandar pro segundo plano já, já! — ele ameaça,
apontando o palito de pegar batata para o meu rosto.
— Samuel! — mamãe exclama, indignada.
Meu pai segura a risada e eu sequer penso em fazer isso, a ameaça
foi boa, tenho que confessar.
— Céus, o que eu fiz de errado? — minha mãe resmunga se jogando
na poltrona, meu pai se aproximou de Samuel e toma a batata de suas mãos.
— Ei!
— Você já comeu muito — esse é o argumento dele, vê se pode.
— Quem disse?
— Só tem um restinho aqui. — Ok, agora meu pai parece uma
criança.
E é assim que os dois iniciaram uma nova discussão, por causa de
uma batata, nunca vi nenhum dos dois discutindo por causa de uma salada,
inacreditável.
Mamãe ri, mas decide ignorar a cena em sua frente, ao se levantar e
caminhar em minha direção, sentando-se na ponta da maca.
— Me desculpa por ter gritado com você — ela sussurra, pegando
minha mão.
— Não gritou, não! — eu digo sinceramente, ela realmente não
chegou a gritar.
— Não importa — ela fala por fim. — De qualquer forma, não
podemos cobrar tanto assim de você, não fazemos ideia do que você está
passando no momento.
Eles sabem sim, estou causando um resultado a isso pior ainda para
eles, acredito que seja pior do que ser assassinado por uma doença.
Mas aceito seu pedido de desculpas, desnecessário, afinal eu nunca
estive magoado com a minha mãe. Ela fez de tudo por mim, o mínimo é
permitir que esses sentimentos reprimidos saiam de vez em quando, ou ela
irá explodir de uma vez só.
Por isso também, que consigo dormir mais tranquilo, eu ficaria bem
chateado se ficasse “brigado” com minha mãe por muito tempo. Então meu
corpo simplesmente aceita quaisquer derrotas e adormece tão
profundamente que nem mesmo tenho sonhos, estou realmente cansado.
Física e mentalmente.
— Você pegou no sono de repente — minha mãe comenta quando
me vê acordando. — Está se sentindo bem?
A verdade é que não existe sensação melhor no mundo do que
dormir, então sim.
— Acho que eu precisava muito disso.
Já é de manhã, meu pai trabalha em seu notebook e Sam lê algo em
seu grande livro da faculdade. Desde fui internado tudo o que
costumávamos fazer em casa, fazemos aqui. Meu pai não se dá o trabalho
de ir até seu escritório em casa para terminar o serviço, ele traz o notebook
e faz o melhor que pode.
Samuel carrega seus livros para todo canto, parece até mesmo que
está lendo algo fictício e extraordinariamente bom, mas são apenas estudos.
E me cansa só de imaginar.
— Você sentiu dor hoje, Timmy? — meu pai questiona, deixando o
notebook de lado, quando já estamos almoçando.
— Um pouco.
— Está menos estressado, agora? — minha mãe pergunta de forma
cautelosa, lembrando do meu mau humor do dia anterior.
— Estou...
— Claro, né? — Sam começa, outra vez com a boca cheia. — O
namorado dele veio aqui ontem.
Meu queixo quase cai no chão, a forma como ele simplesmente diz
isso e continua comendo como se nada tivesse acontecido, o que me irrita.
— Samuel!
— Namorado, Timothy? — Meu pai tomba a cabeça para o lado,
verdadeiramente confuso.
— Eu não tenho namorado. — Empurro a bandeja de comida,
tentando evitar o assunto.
— Tem sim!
— Não tenho, Samuel! — Sam já é um adulto, mas age como uma
criança.
Meus pais se encaram por um tempo em silêncio, enquanto eu só
falto fuzilar Samuel com meu olhar, sinceramente? Eu daria um soco nele
neste exato momento, sem pensar duas vezes.
— Mas vocês se beijaram, ué!
Quero muito bater nele.
— Timothy, de quem vocês estão falando? — minha mãe pergunta,
ainda confusa.
— De ninguém!
— Do Jun-ho.
Samuel e eu falamos em uníssono.
— Jun-ho te beijou? — minha mãe questiona, deixando a comida de
lado.
Vou morrer, meu pai amado.
— Sim... — minha voz saiu praticamente sussurrada.
— E por que você não me contou?
Como explicar aos meus pais sobre meu pequeno — não tão
pequeno assim —, medo de que eles fossem homofóbicos e fossem, sei lá,
largar-me no hospital por toda a eternidade por desgosto.
Vai saber.
Nesse mundo tem cada louco.
— Sei lá... — digo soltando todo o ar de meus pulmões. — Achei
que não fossem gostar, ou ficariam bravos comigo...
— Claro que não, Timmy! — meu pai exclama, franzindo a
sobrancelha. — De onde tirou isso?
Bem...
— Pensa comigo, sou um homem e estou apaixonado por outro
homem. — Isso já é bem autoexplicativo. — Geralmente as pessoas reagem
á isso como se fosse um crime.
Todos ficaram muito tempo em silêncio, tempo até demais.
— Meu amor, escuta — minha mãe se aproxima, sentando-se na
ponta da maca. — Não há nada neste mundo que você possa fazer, que vá
mudar o quanto eu amo você. Absolutamente nada, eu estou extremamente
feliz em saber que você está vivendo isso, com a melhor pessoa que eu
pudesse imaginar!
— Só queremos que você seja feliz — meu pai completo. — E se
Jun-ho te faz feliz, estaremos felizes também!
Certo, não estou chorando.
Não estou!
— Mesmo?
— Mesmo!
Minha mãe beija minha têmpora direita e depois me abraça com
muita força.
Ok, eu estou chorando.
— E era meio óbvio, né? — Samuel sempre estraga os momentos
emocionantes. — Se eu não contasse, eles iam continuar fingindo que não
sabiam de nada.
Como é que é?
— Espera — eu digo me afastando um pouco dela. — Vocês já
sabiam?
— Meu filho, você não sabe disfarçar — meu pai diz, encolhendo os
ombros.
Que calúnia.
Nunca me senti tão enganado antes.
— Por que já não me falaram?! — questiono, indignado. — Eu
quase morri do coração!
— Timothy, meu filho! — Minha mãe cruza os braços, também
parece indignada. — Você achou mesmo que fossemos uns monstros? Não
somos iguais a esses pais ruins que maltratam os filhos por nada!
— Eu sei, desculpa...
Por que estou me desculpando?
Toda a situação é um caos.
Por isso decido evitar o assunto outra vez e me obrigo a comer cada
grão da comida, até o último, mesmo sentindo desconforto.
Isso faz com que todos se impressionem e parem de falar sobre
minha sexualidade e minha vida amorosa. Que sinceramente, se nem eu
entendo, quem dirá eles. Minha tática de fugir do assunto funciona, sinto-
me como um daqueles personagens que sabem como manipular bem as
situações, isso é incrível!
Mas não é incrível como as coisas facilmente voltam ao “normal”,
medicamentos, incômodo na hora de comer, dores no corpo e fraqueza. Está
cada vez mais difícil de ignorar e fingir que não estou sentindo essas coisas.
Já faz um tempo que escondo dos meus pais, os sinais físicos, que entregam
o fato de que estou piorando.
Regredir em meio ao tratamento é um péssimo sinal, eu já sabia que
nada mudaria isso.
É fácil colocar um sorriso no rosto e dizer ao doutor e aos meus pais
que estou me sentindo bem, quando na verdade, estou me sentindo pior a
cada dia que passa.
O doutor sabe, é claro que sabe.
Por isso ele sempre me olha daquele jeito, como um caso perdido.
Mas ele claramente não quer perder essa guerra ao câncer, sempre
aparece com as “melhores” soluções que encontra, métodos de alimentação
e formas das quais ele acredita que eu vou aguentar tudo isso.
Eu admiro isso, nem mesmo eu estou lutando tanto pela minha vida.
— Seu namorado não vem hoje? — Samuel questiona, jogado no
sofá que fica no canto do quarto.
— Já disse que não tenho namorado — resmungo. — E eu não sei
se Jun-ho vem.
A verdade é que eu já estou com saudade, então sim, eu queria
muito vê-lo hoje.
— Por isso você está triste?
— Triste? — questiono, confuso.
— Sim, dá pra perceber que tem algo te incomodando...
“Algo”, seria bom se fosse só uma coisa.
Mas são centenas de coisas que martelam a minha cabeça sem parar.
Noite após noite.
É uma espécie de tortura psicológica.
— Não sei... Estou cansado desse tratamento — digo, sinceramente.
— O que quer dizer com isso?
Ele não iria gostar de saber, ninguém iria.
— Sei lá.
— Timothy, isso é para o seu bem! — ele se senta no sofá, ajeitando
a postura. — Se não fosse pelo tratamento, iria piorar.
— Isso está acabando comigo, Sam — confesso, sem me importar
com a minha voz falhando.
Samuel me encara por um tempo, ele não diz nada, mas sei quantas
coisas ele tem para me dizer. Mas opta por ficar em silêncio, eu gostaria
muito de saber as coisas que passam pela cabeça dele.
Quando ele levanta e se aproxima para me abraçar, percebo que
nada do que ele pudesse falar no momento, significaria tanto quanto seu
gesto significa.
Tem coisas que são impossíveis de se colocar em palavras.
Por isso ele apenas fica ao meu lado, Samuel me conhece melhor
que qualquer um, ele sabe o quanto eu me culpo por tudo o que eles tiveram
que passar e sabe que nada irá mudar isso. Então eu entendo completamente
tudo o que ele não diz, mas queria dizer, em apenas um abraço.
— O que houve? — mamãe pergunta quando entrou no quarto e se
depara com o cenário atual, não é incomum que Sam e eu demonstremos
sentimentos um ao outro, afinal sempre fomos muito próximos e
apoiávamos um ao outro, mas também é extremamente comum nos ver em
pé de guerra.
Ou estamos abraçados dizendo palavras de conforto, ou estamos nos
atacando.
— Timothy me ama demais.
Ah lá.
— Não amo, não.
Mamãe dá risada da cena, mas rapidamente ignora quando abre mais
a porta e alguém a acompanha para dentro do quarto. Meu pai e Jun-ho
entram juntos. Jun-ho tem um sorriso enorme no rosto.
— Finalmente você veio Jun-ho — Samuel diz, afastando-se de
mim. — Timothy estava muito chato.
Vou atacar ele.
— Ignora ele, Jun-ho — resmungo, imaginando meu travesseiro
voando na cara de Samuel.
— Ignora nada! Quais são suas intenções com meu irmão? — Haja
paciência.
— Para com isso, Samuel!
— Eu tenho que fazer isso! — ele diz com um sorriso no rosto,
parece estar se divertindo com a situação.
Sem noção.
— Na verdade, eu vim para falar com seus pais — Jun-ho conta, em
meio a risada.
Samuel e eu nos encaramos em silêncio, confusos e curiosos.
— Quê?
Todos nós, exceto Jun-ho, dizemos em uníssono, sem entendermos
nada.
— Preciso pedir uma coisa a vocês — ele fala todo sorridente.
Meus pais se encaram antes de acompanhar Jun-ho outra vez para
fora do quarto, a curiosidade aumenta e eu e Samuel ficamos nos encarando
em silêncio.
— O que será que ele quer, Sammy? — sussurra.
— Não faço a mínima ideia — ele encolhe os ombros. — Quer que
eu vá escutar atrás da porta?
— Céus! Não Samuel! — exclamo, repreendendo-o.
— Nossa, tá bom!
Mas no fundo, bem no fundo, acho que não seria uma má ideia.
Eles estão demorando, muito! Roer minhas unhas não ajuda a fazer
o tempo passar e muito menos repreender meu irmão mais velho toda vez
que ele chega de fininho perto da porta para ouvir a conversa.
Até que me rendo à curiosidade e permiti que meu irmão
bisbilhotasse atrás da porta, ele se aproxima e coloca o ouvido na madeira,
sua expressão não entrega nada além de mais confusão ainda.
— Não escuto nada — ele então sussurra, até que finalmente desiste
e abre a porta. — Ué, não estão aqui não!
Era só o que faltava.
— Fala baixo, anta!
— Eles nem estão aqui, não vão me ouvir!
— Quem não vai te ouvir? — O doutor aparece de repente atrás de
Samuel, que quase infarta pelo susto quando ouve a voz do médico.
Afastando-se da porta, Sam coloca a mão no peito e assiste meus
pais e Jun-ho entrarem no quarto com o doutor.
— Nossa, quase me mata do coração! — Ele faz um drama,
massageando o peito.
— Estava querendo ouvir a conversa, né? — Jun-ho acerta em
cheio, já o conhece muito bem.
— Claro que não!
Que mentiroso.
Ignorando Jun-ho e meus pais o encarando com suspeita, Samuel
volta para o sofá e se joga novamente como se nada tivesse acontecido.
Mas que cara de pau.
— Timothy? — o doutor me chama.
— Sim?
— Vou te fazer algumas perguntas e você me responde
sinceramente, ok? — ele diz se aproximando, para me analisar.
— Por quê?
— Só responde, Timmie — Jun-ho fala, todo agitado.
— Ok...
— Conseguiu almoçar hoje? — o doutor questiona e eu assinto,
sendo realmente sincero. — Sentiu dores?
— Um pouco.
— Tontura? — Eu nego. — Está difícil para respirar? — Nego outro
vez. — Como você está se sentindo nesse exato momento? Preciso de
detalhes.
— Confuso.
— Timothy... — minha mãe repreende.
— Estou bem! Não estou com dor — minto uma vez. — Nem
sentindo fraqueza no corpo — minto outra vez. — Eu comi cada grão de
comida, sem nenhuma dificuldade. — E mais uma mentira.
— Viu? Ele está bem! — Jun-ho exclamo, todo feliz.
— O que é que está acontecendo?
O doutor me encara, de braços cruzados e os olhos semicerrados.
— Não gosto quando mente para mim.
— Não estou!
É, ele me conhece muito bem.
— Aí, pelo amor de Deus! — Samuel exclama, agoniado. — O que
tá acontecendo?
— Jun-ho quer levar Timothy para sair — meu pai conta, rindo da
reação de meu irmão.
— O QUÊ?
— Mas é perigoso meu amor — mamãe diz. — Não sabemos se
você está em condições de sair sem a supervisão de uma enfermeira ou do
doutor.
— Eu estou ótimo!
Ando mentindo muito.
— Acho que estou curado!
— Timothy!
Não é nada justo me contarem isso e não me deixarem sair, todo o
meu corpo já está respondendo a essa proposta, meu coração só falta pular
para fora. Preciso sair daqui e tem que ser com ele.
— Por favor, mãe, me deixa ir com o Jun-ho — eu praticamente
imploro.
Mas minha mãe não parece gostar da ideia, eu a entendo, mas ela
também precisa me entender!
— Por favor!
Meu pai suspira, encarando-me, enquanto minha mãe parece querer
sair correndo para evitar o assunto, Jun-ho entrelaça as mãos implorando
com o olhar e Samuel se levanta outra vez, analisando a situação.
— Mas isso é possível?
— Se seu irmão estiver falando a verdade — o doutor diz,
desconfiado. — Ele pode sair por um tempo, se não for se esforçar muito.
— Eu estou!
Minha mãe anda pelo quarto, com a cabeça baixa e as mãos na
cintura, ela sempre fica extremamente séria quando faz isso. Todos no
quarto parecem esperar por sua resposta, meu pai simplesmente concordaria
com qualquer decisão sua, então também espera ansiosamente pelo seu
veredito.
— Eu vou deixar, Timothy — ele finalmente diz, parada em frente à
maca. — Mas eu quero saber exatamente aonde vocês vão, o que vão fazer
e vão me atender assim que eu ligar!
— Sim senhora! — Jun-ho aceita as condições sem nem pensar duas
vezes, está muito animado.
Acho que nunca saí sem meus pais ou Samuel, nem mesmo quando
estava em casa, eu sempre fiquei ao lado deles. Por isso não fiz muitos
amigos.
Mas Jun-ho cuida bem de mim, então não será um problema.
Por isso eu não consigo parar de sorrir nem por um momento,
mamãe até tenta disfarçar, mas não aguenta por muito tempo. Ela sorri toda
boba com a minha agitação enquanto me ajuda a trocar de roupa. Jun-ho sai
para contar ao meu pai o que havia planejado e o doutor me examina uma
última vez antes de me liberarem para sair.
— Onde está me levando? — eu questiono, já dentro do carro.
— Para minha casa.
Ele diz simplista, mas empolgado, Jun-ho sabe exatamente como me
divertir sem ter que me esforçar muito. Desde pequenos ele sempre prestou
muito atenção aos detalhes, por isso eu imagino que essa será uma das
melhores noites da minha vida.
Então eu não o questiono a respeito, apenas o acompanho para seja
lá onde for.
Eu só sei que estou extremamente feliz, finalmente saí daquele
hospital! E está sendo com Jun-ho, então nada pode mudar o que estou
sentindo no momento.
Absolutamente nada.
Na verdade, tudo melhora quando chegamos a casa de Jun-ho, é
enorme! Mas a vejo apenas por fora já que ele ignora todo o interior de sua
casa e me guia ao redor dela, até chegarmos aos fundos.
E eu juro, nada é tão lindo como a árvore que encontro bem à minha
frente.
Ela é grande e forte! Como aquelas árvores de filmes fictícios onde
existem até mesmo fadas, é impressionante vista de perto.
Principalmente pelo fato de ter uma casa no topo dela.
Uma casa na árvore.
Isso é a cara de Jun-ho.
— Eu disse que traria você para minha casa — ele diz, observando
minha reação. — Só não disse qual.
— É linda — eu digo ainda impressionado, ouço a risada sincera e
baixa de Jun-ho. — Eu amei.
— Vai amar ainda mais quando ver por dentro.
Quando finalmente consigo tirar minha atenção da árvore, observo
Jun-ho colocar sua bolsa de oxigênio nas costas. Ele ajeita a alça e suspira
dando uma olhada na árvore.
— Vamos lá — ele sorri, caminhando em direção à escada.
Que inclusive, parece ter sido equipada exatamente para ele. Jun-ho
e eu conseguimos subir tranquilamente, devagar, mas com cuidado
chegamos ao topo sem muita dificuldade.
— Por aqui — ele diz baixo, pegando minha mão e me guiando para
dentro da casa.
— Nossa! — Arfo em surpresa com a aparência da casa por dentro.
É incrível, é maior do que eu consegui imaginar. Tem tantas coisas
que me fazem ter a mais absoluta certeza de que Jun-ho passa 99% de seu
tempo aqui, tudo o que eu vejo me lembra a ele, com certeza é seu lugar
favorito no mundo.
— Eu sabia que ia gostar.
— Eu amei...
Dando uma olhada no teto, vejo várias estrelas coladas na madeira,
como uma espécie de adesivo neon. Elas brilham de uma forma sutil, é
quase imperceptível.
Mas é incrível, é quase como o céu noturno.
A diferença é que aqui elas não parecem tão distantes.
Quando desço mais um pouco o meu olhar, noto alguns detalhes
também nas paredes de madeira, Jun-ho realmente sabe como decorar um
lugar. Poderia facilmente ter ficado cheio de informações terríveis, mas ele
soube como encaixar cada detalhe seu em seu devido lugar.
Mas o que me tira o fôlego mesmo, é quando me deparo com uma
parede cheia de polaroids. Fotos minhas para ser mais específico, coladas
na parede, uma após outra.
— Você colocou minhas fotos aqui... — eu digo, com a paralisia
causada pela surpresa.
Jun-ho apenas assente, sempre observando bem minha reação, ele
me acompanha cautelosamente quando finalmente consigo me mover e me
aproximo das fotos.
Algumas eu sequer me lembro do momento em que foram
registradas.
— Eu te disse que ficava admirando suas fotos — ele lembra,
fazendo-me rir. — Você não acreditou.
— Por quê?
— Eu não sei explicar bem — ele diz se afastando, mas sem tirar os
olhos de mim. — Mas eu amo olhar para você.
Ele é maluco.
Cheguei a essa conclusão anos atrás, mas agora percebo que estava
100% certo.
Observo Jun-ho tirar sua bolsa de oxigênio das costas, para então se
sentar em um grande colchão forrado no chão, ele olha ao seu redor com
um grande carinho nos olhos, e descansa os braços sobre os joelhos.
— Você parece gostar muito daqui — eu suponho.
— Eu passo a maior parte do dia aqui — ele conta, olhando para as
estrelas. — É literalmente minha casa.
— Parece ser importante — comento, aproximando-me lentamente.
— Se tornou ainda mais, com você aqui — ele diz baixo, mas
consigo ouvir muito bem. Jun-ho suspira e desvia sua atenção para mim,
com um enorme sorriso ele faz um sinal com a cabeça, indicando o lugar
vazio ao seu lado. — Vem cá...
E eu vou, sem pensar nem uma vez.
Sento-me ao lado de Jun-ho com cuidado, a missão é ignorar o
desconforto em meu corpo até o fim! Estou feliz demais para dar atenção a
uma dorzinha idiota, por isso eu sorrio com o que vejo em minha frente.
Uma mesinha com um notebook ligado, e pequenos potes com
variações de coisas para comer.
— Eu pedi para congelarem as frutas para você — ele explica. — E
depois cortar em pedaços pequenos, para facilitar na hora de comer...
Jun-ho é inexplicável.
— E... E coloquei sua série favorita para assistirmos. — Ele de
repente parece ficar nervoso, mas passa rapidamente quando ele suspira
profundamente, ele me encara por um tempo e sorri quando se curva até
deitar o rosto em seu antebraço. Como se quisesse esconder seu sorriso,
mas também sem querer parar de olhar para mim. — Eu queria que tudo
fosse perfeito, para você.
— Você não faz ideia do quanto está.
Ele sorri ainda mais, após suspirar uma última vez, Jun-ho ajeitou a
postura e se esticou para pegar uma das vasilhas com as frutas, ele me
entrega e depois se estica novamente para dar play na série.
Não teria como esse dia ser melhor, Jun-ho realmente pensou em
tudo.
Vou assistir Atypical com minha pessoa favorita no mundo, hoje eu
sou o homem mais feliz que já existiu.
Jun-ho não parece surpreso com os acontecimentos da série, toda
vez que analiso suas reações é como se ele já soubesse que aquilo iria
acontecer, mas ignoro isso e continuo assistindo tranquilamente.
E então chega o momento em que Paige desabafa com Sam o quão
insuficiente ela se sente, com sua aparência, emprego e profissão dos
sonhos que até então, parecia estar arruinado. Mas Sam sempre encontra um
jeito de mostrar a ela, o quão incrível ela é.
O fato é que, mesmo sendo uma rápida cena de uma personagem
chegando ao seu limite, faz com que eu me identifique muito.
— Está chorando? — Jun-ho questiona pausando o episódio.
— Não!
— Você está.
É, eu estou.
— Você realmente gosta muito da série, não é? — ele conclui, com
a voz quase sussurrada.
— Ela me faz muito bem.
Ele concorda, Jun-ho desvia o olhar para algum lugar e fica em
silêncio por alguns segundos, até que finalmente se move e então fecha a
tela do notebook e se vira em minha direção.
— Eu assisti — ele confessa. — No mesmo dia que você me contou
sobre ela.
— E você gostou?
— Eu amei, é uma das melhores séries que já assisti — ele diz
sincero, o que me deixa ainda mais feliz. — Sabe, Sam tinha razão.
— Sobre o quê? — questiono confuso.
— Quando diz que as pessoas apenas sabem, quando amam alguém
— ele lembra, com um sorriso pequeno nos lábios. — Não somos nós que
decidimos se vamos amar ou não, alguém, simplesmente amamos. Ou não.
— É?
— É — ele sussurra de volta, olhando-me daquele jeito outra vez.
— Não estou falando daquelas paixões momentâneas que geralmente
confundem com amor, estou falando de amor de verdade! Aquele tipo de
amor imensurável, que nada mais no mundo importa além dessa pessoa que
você ama, acaba se tornando algo egoísta, mas é... Inevitável.
— Não sabia sobre essa perspectiva que você tem do amor, desde
quando pensa assim? — eu pergunto realmente chocado, Jun-ho sorri e
então desvia o olhar novamente.
— Desde que eu vi você desmaiando na minha frente — ele conta,
simplista, sem voltar a me encarar. — Sangrando e tremendo, eu achei que
fosse perder você.
Jun-ho parece abalado com a lembrança, tudo o que eu sei daquele
momento é que ele correu como louco para me ajudar, possivelmente, se
Jun-ho não tivesse chegado naquele momento, eu estaria morto, engasgado
no meu próprio sangue.
Por isso, sei que pode ter sido uma cena terrível e difícil de
esquecer.
Mas fico meio confuso por esse ser o motivo de sua perspectiva do
amor.
— Sam precisou fazer uma autoanálise, para descobrir se amava a
Paige — ele comenta, ignorando minha reação de choque ao que ele acabou
de dizer. — Queria saber se era nela que ele pensava assim que acordava e
quando ia dormir, ou se seu dia melhorasse a cada vez que ouvia a voz dela.
— É, ele é bem literal — comento, com um sorriso nos lábios ao me
lembrar do meu personagem favorito no mundo.
— Eu só precisei olhar para você, inconsciente, para entender que
nada no mundo me assusta como a ideia de te perder, me assusta — Jun-ho
diz, olhando-me outra vez. — Eu percebi naquele momento, mas eu já
sentia por anos.
— Então...
— Então... — ele repete, suspirando. — Eu amo você, Timothy.
— O quê? — é a única coisa que consigo dizer, ouvindo cada
pulsação de meu corpo acelerar como nunca.
Ele sorri ainda mais.
— É claro que penso em você sempre, não só quando acordo ou
quando vou dormir — ele confessa. — É sempre, você não sai da minha
cabeça.
Ok.
Ok, tudo certo.
Tudo bem.
Eu não vou entrar em estado de choque nesse momento, nem
pensar!
Mas acaba ficando um pouco difícil de falar e me mover ou sei lá!
Tudo o que consigo fazer é olhar para ele, em seus olhos, tentando achar
qualquer vestígio de incerteza ou humor, não sei... Tentando encontrar algo
que possa corromper tudo de extraordinário que estou sentindo no
momento, mas eu não encontro nada disso, é apenas o olhar sincero de Jun-
ho, que brilha como uma galáxia inteira.
Brilhando para mim.
Não há nada melhor no mundo do que descobrir que seu amor por
alguém é recíproco.
Ainda mais, quando esse alguém revela dessa forma.
— Timmy?
Jun-ho me puxa de volta para a realidade.
Com meus olhos piscando sem previsão de quando irão parar,
tentando buscar foco na situação e força para não me acabar de chorar aqui
mesmo.
— Tá tudo bem?
— Ham?
— Você ficou me olhando por muito tempo, sem dizer nada.
Bem, ele é quem está acostumado fazer isso.
— Estou bem! — Arfo, soltando o ar que nem tinha reparado
prender em meus pulmões. — Acho que nunca estive tão bem antes...
Ele sorri, aliviado, Jun-ho é uma pessoa que costuma dizer algo e
não pensar nas consequências disto, apenas quando já foi dito, ele se assusta
com as possíveis reações. Por isso ele suspira profundamente ao me ver
feliz com o que disse, bem, é meio difícil de não ficar.
— Eu amo você, Choi Jun-ho. — Ele me olhou surpreso, como se
não houvesse possibilidades no mundo, desse sentimento ser recíproco. —
E eu apenas sei, percebi assim que olhei para você.
Acho que eu nunca vi algo tão lindo no mundo como o sorriso de
Jun-ho neste momento, a forma como ele pisca para evitar que as lágrimas
caíssem, mas falhando nessa missão. Jun-ho é simplesmente a pessoa mais
impecável que eu já vi.
Ele é lindo.
É lindo como ele beija minha pálpebra lentamente e então minha
bochecha, com um certo cuidado, como se tivesse medo de que fosse
quebrar, por fim ele beija meus lábios.
Jun-ho me beija.
Mesmo.
Não como um daqueles selinhos que demos um no outro, cheio de
timidez, é um beijo de verdade.
Muito melhor que só um selinho.
Jun-ho então funga tentando disfarçar a forma como se emociona
com o momento, beija minha testa uma última vez e então abre a tela do
notebook outra vez para que possamos voltar a assistir.
— Onde paramos mesmo? — ele pergunta atordoado, tentando
achar o episódio.
— Eu não faço ideia — respondo sinceramente, essa é a primeira
vez que não sinto um pingo de vontade de assistir, só quero ficar aqui. Com
ele. — E não me importo. — Jun-ho arregala os olhos, chocado, não
consegue segurar a risada e outra vez deixa o notebook de lado para vir até
mim.
Outra vez ele me beija, beija o torço da minha mão e a ponta do meu
nariz.
— Você está se sentindo bem? — ele questiona de repente.
Agora, dependendo de qual for o sentindo da pergunta, ele teria duas
respostas.
— Eu estou ótimo — opto pela resposta boa, não posso estragar o
momento.
Não posso deixar que tudo isso acabe, por isso eu ignoro qualquer
sinal ruim em meio corpo e me deito com Jun-ho sobre o colchão, apenas
aproveitando suas mãos acariciando minha pele e sua voz cantando minha
música favorita, bem pertinho de mim.
A mais profunda e obscura, noite estrelada

Nós estamos há tempo demais em silêncio, não! Não um silêncio


desconfortável. Nós estávamos admirando as estrelas, em seu jardim,
deitados na grama sentindo a brisa suave do vento em nossas peles.
O céu noturno nunca esteve tão estrelado como nessa noite, as
estrelas brilham mais que o normal! Fazem com que eu me sinta
extremamente calmo, neste mundo tão conturbado. É impossível não ficar
fascinado pelas estrelas, o brilho delas combina exatamente com a forma
que me sinto no momento, radiante.
— Timmy? — Jun-ho me chama, depois de um certo tempo em
silêncio.
— Hm?
— Você sente que pode tocar as estrelas? — Eu o olho, Jun-ho está
com sua mão estendida para cima, como se quisesse tocar o céu. — Às
vezes elas parecem próximas o suficiente para serem tocadas.
— Você gosta das estrelas? — Ele afirma com a cabeça, sem tirar os
olhos do céu.
É claro que ele gosta das estrelas, Jun-ho ama cada pedacinho do
universo, desde muito novo. Registrar fotos de tudo o que vê pela frente não
é só falta de um modelo, é admiração pura pelo lar em que vive.
Por isso não me surpreende sua paixão pelas estrelas.
Jun-ho suspira alto, quando descansa a mão sobre seu peito e olha
para mim.
Seu olhar sempre me faz sentir como a pessoa mais amada que já
existiu.
— Mas eu prefiro a lua — ele completa, com a voz baixa.
Ele sabe como me deixar estático, com milhares de pensamentos em
confusões das quais não formulam absolutamente nada em minha mente,
faz com que meu coração queira fugir de seu posto, agitado o suficiente
para gerar uma sensação gélida em meu estômago.
Costumam dizer que são borboletas, sinceramente? Acredito que
não existam borboletas o suficiente no mundo para causar essa sensação da
qual me consome no momento. É inexplicavelmente surreal a forma como
me sinto vivo toda vez que ele me faz sentir isso, apenas me olhando.
— Eu amo a lua.
— Ela também ama você.
E em resposta, aquele sorriso que faz valer a pena aguentar e ignorar
toda a dor e cansaço que estou sentindo, só para passar esse tempo com ele.
Jun-ho se arrasta no gramado até se aproximar o suficiente para me
beijar.
Seu corpo está deitado para o lado o oposto em que o meu está, e
com seu rosto na mesma altura que o meu, assim eu posso olhar bem seus
olhos.
— Acho que precisamos voltar — Jun-ho diz de repente,
levantando-se.
Eu não faço ideia de quanto tempo passa, mas sei que para mim não
é o suficiente, com certa dificuldade eu me sento no gramado e sinto toda a
minha felicidade fugir de mim com a ideia de voltar para o hospital.
Quando meu corpo se levanta por completo, minha cabeça dói como o
inferno, toda a minha visão escurece em resposta, mas rapidamente consigo
me recuperar e ignorar a fraqueza em meu corpo.
— Não quero voltar — eu confesso, quando Jun-ho se vira em
minha direção.
— Mas sua mãe vai ficar preocupada — ele constata, mesmo que
também pareça infeliz com a situação.
— Não quero — eu nego quando ele se aproxima. — Vamos ficar
mais um pouco.
Praticamente suplico, mas Jun-ho parece não gostar da ideia de
estender, ele realmente se importa com a minha mãe e o quanto ela pode se
preocupar.
— Podemos fazer isso mais vezes, eu busco você — ele insiste,
segurando meu rosto com as duas mãos, sempre com muito cuidado.
— Você não entende, eu não — de repente, sinto dificuldade em
respirar, o que me obriga fazer uma pausa no meio da frase —, eu não tenho
mais tempo, Jun!
Outra vez o silêncio gritante, Jun-ho me encara com um turbilhão de
sentimentos em seu olhar, eu posso ler todos eles, o que faz com que eu
queira mais ainda ficar aqui. Com ele!
— Não diz essas coisas — ele implora, sua voz é em um tom de
exaustão. — Não diz, eu amo você e isso machuca.
Sei que não há nada mais chato do que alguém lembrando a cada
minuto que pode morrer, mas meu medo de voltar para o hospital e nunca
mais poder viver isso com Jun-ho, fala mais alto que a responsabilidade que
eu deveria ter no momento de voltar e confessar tudo o que venho sentindo
nesses últimos dias.
— Você não parece bem — ele percebe, segurando meu rosto com
mais firmeza. — Vamos voltar!
Eu nego outra vez, puxando seu braço para que ele fique mais perto
de mim, eu levanto meus pés e o beijo. Não para impedi-lo de me levar de
volta, mas sim porque sinto que nada no mundo pode me fazer tão bem
como ele.
Mas parece que não adianta, a mesma sensação de antes volta. Tudo
embaça e escurece.
Meu corpo cai em um buraco obscuro e sem fim, mas contínuo de
pé no mesmo lugar, com Jun-ho me segurando e dizendo coisas que sequer
consigo entender.
— Timothy? — ele me chama mais alto, pegando meu rosto outra
vez, ele me olha em desespero. — Seu nariz está sangrando...
Era só o que faltava.
— Vamos voltar! — ele diz quase chorando, Jun-ho ajeita sua bolsa
de oxigênio para que possa usar a alça de ombro e com o outro braço, puxa-
me para perto. Assim me ajudando a caminhar de volta para fora de sua
casa.
Mas tudo gira rápido demais, não consigo respirar e minha visão
escurece demais impedindo que consiga ver por onde ando.
Até que meu corpo simplesmente desiste e sem aviso prévio, ele me
deixa sem forças e meu corpo vai de encontro com o chão.
E tudo se torna um absoluto nada.
Até que em súbita o meu corpo me traz de volta, sinto uma
eletricidade horrível em meu corpo, estou sem camisa e a luz forte sobre
meu rosto faz minha cabeça doer como o inferno, há enfermeiras ao meu
redor, o doutor tenta me dizer algo, mas nada faz sentido para mim.
Estou morrendo.
Eu estou morrendo!
Tento mover minha cabeça para procurar meus pais e Sam, mas não
consigo, não consigo mover um musculo sequer. Estou chorando, sinto as
lágrimas coçarem minha pele da qual não posso tocar para aliviar a
sensação incômoda, tudo dói demais e a vontade de gritar só aumenta em
meu peito.
Júpiter, Marte, Vênus, Saturno.
Júpiter, Marte, Vênus, Saturno.
Júpiter, Marte, Vênus, Saturno.
Não funciona! Não importa quantas vezes eu repita isso em minha
cabeça, ver o doutor me chamar e me tocar, mas não sentir ou ouvir, é a pior
sensação que já fui obrigado a sentir em toda minha vida. O desespero
cresce dentro de mim a cada segundo, não consigo evitar quando começo a
chorar mais e mais.
Estou cansado, apavorado, meu corpo não responde aos meus
comandos e minha cabeça dói como nunca doeu um dia, eu procuro pela
minha mãe o máximo que posso, mas não a encontro. O medo de partir sem
me despedir aumenta, e tudo recai sobre mim me esmagando e me
sufocando de uma forma insuportável.
Eu não aguento mais.
Meu peito queima quando puxo o ar com força, até que todo meu
corpo começa a formigar e eu volto a senti-lo, e horrível, cada sensação em
meus músculos me faz gemer de dor.
Por isso eu desabo, quando meu corpo afunda no colchão da maca.
Minha garganta doí profundamente quando involuntariamente, eu
grito alto o suficiente para que todas as enfermeiras se afastem assustadas,
eu ouço o meu próprio grito, ele estava há tempo demais preso em uma
jaula cheia de dor. O problema é que o resultado disto é um corpo
totalmente exausto outra vez, sequer consigo manter meus olhos abertos.
O doutor se aproxima com cautela, abaixa-se até ficar na altura de
meu rosto deitado e sorri, com lágrimas nos olhos.
— Você voltou — ele diz com a voz tranquila. — Agora precisa
descansar, eu vou cuidar de você.
— Vou morrer — eu sussurro e o doutor nega imediatamente.
— Não vou deixar! — ele garante.
Eu sei que ele não pode impedir isso, mas decido enganar a mim
mesmo quando acredito em suas palavras e relaxo todo o meu corpo e paro
de lutar contra minhas pálpebras, que querem tanto fechar.
A última coisa que me lembro antes de ficar inconsciente, é a voz da
minha mãe ao fundo, perguntando se eu ainda estou vivo.
O problema é que nem eu sei direito.
Eu só consigo raciocinar as coisas direito quando abro os olhos
outra vez, de volta ao meu quarto, em silêncio absoluto. Esse cenário se
repete como um disco riscado, e me cansa, também me fere.
Minha mãe dorme debruçada sobre a maca, sua mão segura a minha
com força como se tivesse medo de que eu fosse embora, enquanto meu pai
dorme ao lado de Samuel no pequeno sofá. Todos parecem tão cansados,
isso me mata mais um pouco.
Eu tento me mexer, mas parece que algum medicamento impede o
processo, a dor em minha cabeça já passou e agora não há mais uma luz
forte em meu rosto.
— Mãe? — eu a chamo, minha voz está fraca, mas ela consegue
escutar.
Minha mãe se levanta depressa, assustada e já com lágrimas nos
olhos, suas mãos começaram a tremer e ela se aproximou rapidamente para
me analisar.
— Oi! Oi, meu amor. — Arfa quando percebeu que estou bem.
Minha mãe sempre teve dificuldade em segurar o choro embora ela
o tenha feito muitas, muitas vezes! O problema é que eu a conheço muito
bem e sei quando ela precisa colocar tudo para fora, mesmo assim, mesmo
que peça... ela não desabafa comigo.
— Não chora mãe! — eu imploro, também em meio às lágrimas.
A aflição é tanta, que ela sacode as mãos na tentativa de expulsar o
que sente. Sem obter seu objetivo, ela apenas esconde o rosto entre as mãos
para conter o som de seu choro. Mesmo assim, meu pai acorda e não pensa
duas vezes antes de se aproximar para tentar acalmá-la, massageando seus
braços em movimentos constantes, Samuel se levantou atordoado.
Tudo isso está se tornando um verdadeiro inferno.
— Eu fiquei apavorada! — confessa, tirando as mãos do rosto.
E meu pai intensifica o gesto, analisando sua reação ao toque, a
reação que entrega o quanto ela está cansada e desolada.
Não poder levantar e consolar minha mãe que chora sem parar é
insuportável, o quanto sou um fardo a eles nunca irá mudar, eu poderia ao
menos abraçar minha mãe e dizer o quanto sinto muito por tudo isso, mas
tenho que me contentar com o apoio que ela recebe de meu pai no
momento.
O doutor entra no quarto, após bater na porta, mesmo assim minha
mãe tem dificuldade em parar de chorar.
Apenas contém o máximo que pode.
— Com licença, desculpa interromper — ele diz cauteloso, ao
analisar a situação.
— Tudo bem — meu pai responde, sem sair do lado de minha mãe.
E lá vamos nós outra vez, receber notícias que sabemos que não são
nada boas. Como sempre, meus pais se preparam para o pior que possa
acontecer, Sam segura minha mão para me dar apoio, mas sinceramente, no
momento quem parece precisar mais é ele.
A única coisa que me importa agora é minha família, não ligo se eu
piorei ou se tenho apenas alguns segundos de vida. Eu cansei, a último
recaída foi a prova viva disto.
— Timothy, conseguiu descansar? — o doutor questiona, eu apenas
assinto. — E como está se sentindo agora? Por favor, seja sincero comigo
desta vez.
Eu quero poder falar a verdade, do quanto dói, quero falar o quanto
eu me senti impotente em todos os momentos em que meu corpo
simplesmente não respondia aos meus comandos, quero poder contar a eles
que não aguento mais, não posso continuar sentindo isso.
— Nunca estive pior.
Mas não tenho forças alguma para colocar em palavras no momento.
Minha mãe tenta conter o choro com a mão sobre os lábios, meu pai
me encara preocupado e Samuel aperta minha mão como se quisesse tirar
de mim essa doença que atormenta nossas vidas há anos, mas sem obter
sucesso no processo.
Esse é o pior cenário de todos, o doutor parece mais preocupado que
o normal.
Ele sabe que eu já tomei uma decisão, difícil e dolorosamente única
que me resta.
Mas é o que eu quero.
— Doutor? — eu o chamo, ainda receoso. Todos me olham com
atenção, o doutor apenas gesticula para que eu prossiga. — Não quero
tomar os remédios, não quero fazer radioterapia e nem mesmo transplante
de medula — eu confesso, é como retirar um enorme peso das minhas
costas, finalmente dizer algo que venha pensando a muito tempo em voz
alta.
Mas o resultado disto não é tão satisfatório quanto.
— O quê? — minha mãe questiona, incrédula.
E tudo o que eu havia sentido naquele momento, antes de apagar
completamente, volta.
Como posso explicar para minha mãe, que lutou praticamente a
minha vida inteira para que eu sobrevivesse, que eu simplesmente desisto?
Não é fácil tomar decisões das quais afetam não só a mim, como
toda a minha família, por mais que seja uma decisão sobre minha própria
vida que, aparentemente, não será mais nada além disto.
Causar sofrimento em quem eu amo.
Primeiro foi minha mãe, depois afetou até mesmo o casamento de
meus pais e então gerou traumas em Samuel, que nunca fala a respeito disto
e me preocupa ainda mais.
Agora, Jun-ho.
Não gosto nem de imaginar a forma como ele se sente culpado no
momento, conhecendo-o bem o suficiente para saber que Jun-ho se culparia
por mim ter desmaiado, simplesmente por ter me proporcionado uma das
melhores noites da minha vida.
Então, não!
Não posso viver uma vida que só fere as pessoas ao meu redor, por
mais que não seja exatamente minha culpa, isso só acaba quando eu não
estiver mais aqui.
Eu estou feliz, na verdade nunca imaginei que poderia ficar tão feliz
assim nessa situação, mas eu estou! Meus pais acreditam que estou com
depressão, isso já faz um tempo desde que estávamos no Reino Unido, a
verdade é que eu apenas estava infeliz. A depressão é complexa demais!
Mas acredito que suas vítimas na verdade, foram os meus próprios pais.
Samuel é simplesmente a pessoa mais inteligente que eu já conheci em toda
a minha vida, eu me orgulho cada dia mais, admiro muito a forma como ele
está sempre presente em minha vida e mesmo assim, consegue se dedicar ao
máximo a faculdade.
Mas eu não aguento mais.
A sensação física ainda me tortura como o inferno, por mais que eu
esteja feliz, dói a cada movimento meu, dói ainda mais saber que meus pais
sentem isso tanto física quanto mentalmente. Não aguento mais passar
noites em claro por causa das febres e os vômitos que não param, chorar de
dor toda vez que tento comer ou a minha aparência que entrega o quanto eu
estou cansado.
Odeio ver minha família se desgastar por minha causa, isso tudo me
mata todos os dias.
— Pare de falar bobagens — minha mãe diz nervosa. — Você fará o
que puder para sobreviver, Timothy!
— Não aguento mais! — Não posso esconder, já estou guardando
isso há tanto tempo, que tinha medo de explodir a qualquer momento. —
Por favor mãe, tenta me entender...
— Mas assim você vai morrer. — Minha mãe volta a chorar, agora
com a mão em seu peito.
Meu pai está paralisado, Samuel solta minha mão e me encara de
uma forma que nunca me olhou antes, eu sabia que isso ia acontecer, é
compreensível a reação conjunta de todos. Até mesmo o doutor me encara
totalmente incrédulo.
— Não posso continuar vivendo assim — eu continuo, mesmo que
vá nos ferir, eu não posso parar agora que comecei. — Está ficando
insuportável.
— Mas isso é temporário — Sam insiste, tentando achar uma
solução. — Vai acabar logo!
Não, não vai.
Essa confirmação que ele dá a si mesmo, faz com que eu queira
chorar ainda mais. Dizem que a negação é uma trilha sem fim, difícil de
conseguir sair mesmo caminhando em linha reta, é como um labirinto. Não
quero que meu irmão se perca nisso, será doloroso demais.
— Não desiste assim, por favor! — ele praticamente implora,
sussurrando. — Você pode vencer esse câncer.
— O câncer já venceu.
Dito isso, minha mãe se afasta de meu pai e começa a andar pelo
quarto, agoniada com a situação desesperadora, meu pai não consegue dizer
sequer uma palavra e o doutor não para de me encarar.
— Isso não é justo! — minha mãe diz alterada, ela vira em minha
direção bruscamente e me encara cheia de sentimentos embaralhados. Eu
vejo mágoa, tristeza, raiva, aflição, medo e... Dor.
Dor por presenciar seu filho “atirar na própria cabeça”.
— Foram anos lutando contra isso — ela diz, aumentando o tom de
voz. — E agora você simplesmente desiste assim?! Como se todo aquele
esforço não fosse nada, todo o tratamento e todos os efeitos colaterais em
seu corpo. Tudo aquilo por nada?
Isso dói.
É uma dor da qual o câncer não foi capaz de me causar, é uma dor
no peito.
Queima tanto, parece que meu coração vai colapsar e rasgar meu
peito para sair pra fora.
— Me desculpa...
— Não! — ela exclama, assustando todos nós. — Não me venha
com pedidos de desculpas, você vai se recompor e vamos ouvir o que o
doutor tem para dizer e começar de novo, você não vai desistir assim!
Eu quero que isso acabe logo.
— Doutor, o que podemos fazer? — Minha mãe se vira, ignorando-
me quando eu estava prestes a dizer algo.
— Não posso fazer nada. — Ele nos pega de surpresa. — Eu não
posso forçar ele a fazer um tratamento, que ele se recusa fazer.
É inevitável respirar fundo em alívio, ao ouvir o doutor.
— Isso não é certo!
— Senhora Lee, eu entendo que está pensando no melhor para o seu
filho. — O doutor se aproxima cautelosamente. — Mas temos que começar
a pensar nele, em como tudo isso pode estar sendo doloroso e cansativo.
Em outras palavras, o doutor também não teria soluções para me
ajudar no momento.
O caso agora é irreversível.
Caso terminal.
Eu posso ler suas expressões como um livro, ele está hesitando para
contar, mas há alguma coisa o preocupando muito.
Minha mãe me olhou em silêncio por muito tempo, ou melhor, todos
eles.
Sinto-me como um criminoso pego em flagrante.
— Preciso de ar fresco — ela então diz, sem nem pensar duas vezes
antes de sair do quarto.
O silêncio se instala no quarto assim que a porta se fecha, meu pai
caminha em minha direção e não diz nada, apenas beija o topo de minha
cabeça demoradamente.
Eu sei que ele me entende, mas também não apoia minha decisão.
— Será que eu posso conversar com o doutor a sós, por favor? —
peço ao meu pai, que parece rejeitar a ideia por um segundo, mas por fim
assente.
— É claro, vou estar por perto — ele diz com um sorriso pequeno,
mas não sincero. — Vamos, Sam.
Meu irmão não beija o topo de minha cabeça como costuma fazer,
apenas me olha por um segundo e segue meu pai para fora do quarto.
Sozinho com o doutor, eu me remexo na maca, incomodado não só
com a posição, mas também com toda a situação que precisei enfrentar.
— Você escolheu um péssimo momento para contar seus planos —
o doutor diz, caminhando pelo quarto até se sentar na poltrona ao meu lado.
— É isso mesmo o que você quer, ou está agindo assim por causa da
complicação que teve ontem?
— É isso o que eu quero!
Silêncio, outra vez.
Eu sei que ele me entende, mas precisa cumprir seu papel de me
tratar até o último segundo.
— Não está com medo?
— Morrendo — confesso.
— Acha isso vai ser o melhor para eles?
— Eu tenho certeza.
— E Jun-ho?
Ele me pega de surpresa, não imaginava que ele iria me fazer esse
questionamento. Mas continuo pensando na mesma forma, Jun-ho era a
pessoa mais feliz do mundo quando o conheci, agora ele vive preocupado e
assustado.
Parece um tipo de praga que afeta todos que se aproximam de mim.
— Será o melhor para ele também. — O doutor desvia o olhar,
parece buscar outra forma de me impedir de desistir. — Posso te fazer uma
pergunta?
— É claro — ele diz, após suspirar profundamente.
— Como funciona a ordem de não ressuscitação?
— O quê? — Ele parece não acreditar no que acabou de ouvir.
— Eu posso assinar, não é? — pergunto, esperançoso. — Andei
pesquisando a respeito.
Ainda em silêncio, o doutor pisca freneticamente e se levanta para
caminhar pelo quarto, isso parece ser bem comum em pessoas que estão
buscando alguma solução para algo.
— No meu caso, isso seria possível?
Ele fica imóvel, encarando o nada como se tivesse quebrado.
Segundos inteiros se passaram até que ele volta sua atenção para
mim, caminha em minha direção e suspira outra vez, fundo e bem alto.
— Sim — ele diz, finalmente. — Seria sim.
Finalmente, isso vai acabar.
O doutor me encara por um tempo e então solta uma risada áspera,
de total indignação.
— Quando você chegou aqui e foi diagnosticado, todos acreditavam
que um garotinho tão pequeno não iria aguentar — ele confessa, lembrando
da época. — Mas olha só para você agora, já é praticamente um adulto,
consegue tomar decisões difíceis melhor que qualquer um aqui.
— Mas eu estou desistindo.
— Não, não está — ele discorda, agora com um sorriso sincero no
rosto. — Você está aceitando a maior possibilidade do que pode acontecer,
você aguentou por anos o que ninguém aguentaria por cinco minutos.
Como sempre, ele tenta fazer com que eu não me enxergue como
um grande fracassado.
— Acha que vão me odiar para sempre?
— Nunca odiariam você.
Minha mãe me odeia no momento, e eu entendo completamente.
Afinal, desisti da vida que ela tanto lutou para salvar por anos, eu também
ficaria com raiva.
— Eu só quero que isso acabe...
— Eu sei — ele praticamente sussurra.
É, ele sabe. Nem consigo imaginar quantas pessoas ele presenciou
desistir da vida ou quantas ainda queriam muito viver, mas não resistiram.
Por isso eu não digo mais nada, ele menos ainda, eu sei que nem o
doutor e muito menos os meus pais irão desistir de mim, irão continuar
buscando formas de me ajudar e de me fazer mudar de ideia.
Mas também sei que no fundo, todos me entendem.
Eu sei, é assim que o amor funciona.
Ele nos torna egoístas, monstros capazes de fazer tudo o que for
possível por quem amamos. Eu não os julgo, estou literalmente fazendo o
mesmo por eles, desistindo da minha vida.
O doutor parece ensaiar para dizer algo, mas é interrompido quando
a porta se abre lentamente. É a primeira vez que Jun-ho não bate antes de
entrar, nem mesmo entra sorrindo como de costume, ele parece exausto.
Mas no momento, seu rosto não esboça nenhuma emoção.
— Vou deixar vocês dois a sós — o doutor diz caminhando para
fora do quarto.
Ficamos em silêncio por muito tempo.
Jun-ho encosta na parede, segura a alça de sua bolsa de oxigênio e
me olha com um tipo de olhar diferente. Parece tentar me decifrar como um
enigma, ele parece chateado, cansado e confuso.
É de partir o meu coração o ver assim.
— Não faz isso — finalmente ele diz algo, sua voz sai por um fio.
— O quê? — eu o questiono, verdadeiramente confuso.
— Sam me contou — ele explica, caminhando em minha direção.
Certo, aquele peso de mil toneladas sobre mim retorna.
É sufocante, parece que vai explodir meus pulmões e esmagar meu
peito.
— Jun-ho...
— Não posso perder você — ele diz encolhendo os ombros, nega
com a cabeça enquanto suas lágrimas não hesitam em cair. — Não quero.
Desde muito novo, quando entendi o que era o câncer e o que seria
capaz de fazer comigo. Eu aprendi muitas coisas, a quimioterapia não
agride só a mim, mas toda a minha família que sofre ao presenciar cada
etapa, a depressão atinge todos ao meu redor, sem piedade alguma e destrói
tudo o que havia de bonito em nossas vidas.
Além de que...
Morrer é o mesmo que assassinar todos aqueles que amam você.
Hoje eu matei a minha mãe, agora percebo que Jun-ho também foi
uma vítima.
— Eu não tenho escolha — é o que consigo dizer, desmoronando
em um choro que eu tentei muito, muito, impedir que viesse à tona.
Jun-ho não diz nada.
É como se todo esse cenário fosse irreal, como se minha mente não
tivesse sido despertada após a parada cardíaca e que tudo isso não passa de
um grande loop temporal, como um inferno particular.
O silêncio do quarto é quebrado unicamente pelo som de meu choro,
ele não se move e parece sequer piscar, enquanto eu tento a todo custo me
acalmar.
— Você quer morrer — ouço seu sussurro —, quer morrer por nós?
— ele questiona.
E todo o meu corpo dói.
Porque em toda a minha vida, eu nunca imaginei que ouviria essa
pergunta.
— Por mim?
É claro que é por ele.
Por meus pais.
Pelo Sam.
Por todos que eu amo, mas também estou tomando essa decisão por
mim mesmo.
— Me diz que estou errado, Timothy. — Mal consigo entendê-lo,
quando sua voz é cortada pelo choro brusco que faz seu peito subir e descer
como se houvesse um peso imensurável.
— Jun...
— Me diz.
Não consigo formular nenhuma palavra.
Meu pulmão expulsa o ar com força, arde meu peito e minha
garganta parece sangrar, doí como se eu estivesse engolindo centenas de
cacos de vidro. Jun-ho se encolhe como se estivesse em um cubículo, sendo
esmagado, seus olhos me imploram por alguma resposta.
— Eu amo você — é o que consigo dizer, mas essas três palavras
são o suficiente para que Jun-ho entenda como um “sim, estou desistindo da
minha própria vida para que você não sofra mais”. O problema é que ele
entendeu certo, mas não o motivo completo.
Mas ele não aguarda uma explicação.
Ele desaba em um choro de angústia, seu rosto fica completamente
vermelho e suas mãos tremem como se estivessem com frio.
— Ah, meu Deus — ele diz como se alguma parte de seu corpo
estivesse doendo, suas mãos massageiam seu peito com força e seu corpo
parece prestes a cair.
Ele está em crise de ansiedade.
Meu amor está em agonia por minha causa.
— Jun-ho — com certa dificuldade, eu controlo minha voz e o
chamo da forma mais tranquila possível no momento.
Ele me olha e treme ao tentar relaxar o corpo, parece tentar me pedir
ajuda, mas nenhuma palavra sai de sua boca.
— Venha aqui — eu o chamo, estendendo minha mão. — Vem cá,
amor.
Jun-ho se aproxima depressa, ele segura minha mão e chega perto o
suficiente para encostar sua testa na minha. Ele treme, então eu tento
aquecê-lo com minhas mãos quentes, meus lábios acariciam sua pele a cada
beijo que deixo para relaxar seu corpo.
O silêncio se prolonga e tudo que posso ouvir é sua respiração,
ficando mais e mais baixa.
Isso me faz suspirar em alívio.
Ele finalmente parece se acalmar, suas mãos buscam por meu rosto
e ficam por lá um bom tempo. Tempo o suficiente para que eu me assuste
com seu movimento inesperado, Jun-ho afasta seu rosto minimamente e
alcança seu cateter — e sem aviso algum, sem hesitar ou sequer me olhar
—, ele tira de seu rosto.
Sendo mais rápido que quaisquer pensamentos ou movimentos
meus.
Ele o coloca em mim.
A sensação não me é estranha, claro, já precisei usá-lo em inúmeros
momentos, mas sentir o oxigênio que mantêm o amor da minha vida, vivo
aqui comigo, entrar em meus pulmões, causa-me um imenso desespero,
minhas mãos rapidamente agarram o tubo para que posso tirá-lo de meu
rosto, mas Jun-ho me impede.
— Jun-ho, o que é isto?!
Ele abre a boca como se estivesse buscando ar, desespero-me mais,
suas mãos agarram as minhas com força e ele se aproxima outra vez para
encostar sua testa na minha.
Ele não se move.
— Preciso de você — ele sussurra, ofegante —, só de você.
— Estou aqui, meu amor — em desespero, eu respondo assim que
ele termina de falar. — Agora me solta, por favor!
— Preciso de você tanto quanto preciso de ar para respirar —
ignorando-me, ele diz ainda mais ofegante. — Tanto quanto preciso desse
cateter idiota!
O desespero toma conta do meu corpo, com força, consigo me soltar
e tirar o cateter o mais rápido possível, Jun-ho não tenta me impedir quando
o coloco em seu rosto novamente. Ele puxa o ar com força e seu peito sobe
de forma brusca.
— Nunca mais faça isso! — com raiva, eu exclamo com toda força
que tenho. — Ouviu?!
Ele assente, com os olhos fechados.
— Eu sinto muito se essa informação te pegou de surpresa —
finalmente eu consigo falar com facilidade, seus olhos buscam pelo meu
quando minha voz enfurecida alcança seus ouvidos —, mas você não pode
tentar se matar desse jeito para me provar algo que eu já sei! Você me ama,
eu sei disso, Jun-ho. — Seus olhos brilham, enquanto encara os meus. —
Eu também te amo, tanto que chega doer, mas eu estou exausto! Estou
apavorado e não sei se realmente quero partir. — Surpreendo-me com
minhas próprias palavras, que saíram sem minha autorização. — Eu não sei
se todo aquele cenário de quase morte foi horrível o suficiente para que eu
tomasse uma decisão equivocada, eu só sei que não aguento mais!
O peso sobre mim começa a sumir.
A cada palavra que eu digo, é como se elas estivessem me
sufocando.
— Eu só...
— Tudo bem — ele me interrompe, sua voz parece mais calma. —
Você pode levar o tempo que precisar pra entender o que está sentindo. —
Ele respira fundo, ajeitando o tubo do cateter no rosto. — Mas por favor,
Timothy, não desista da sua vida por minha causa — ele praticamente
implora. — Pense nisso, pense em tudo o que vem sofrendo nesses últimos
meses. É o que você realmente quer ou só está assustado depois do que
aconteceu hoje?
Uma frustação cresce dentro de mim.
Eu tomei essa decisão de repente, eu nunca diria algo assim se não
tivesse absoluta certeza do que eu quero, mas a reação de todos é dolorosa
demais, eles precisam absorver toda a informação que foi jogada sem aviso
prévio e depois de um momento horrível.
Por isso eu sorrio para ele, o melhor sorriso que eu pude dar no
momento.
E sem pensar muito, o que eu digo é:
— Vou pensar.
Jun-ho então suspira aliviado.
Ele beija minha testa mais uma vez e me abraça, sei que ele me
entende melhor que qualquer um, mas também entendo o seu lado. Eu
morreria por dentro, centenas de vezes em um segundo, se o mesmo
estivesse acontecendo com ele.
Eu o amo, sei que ele me ama também.
Mas não são muitas histórias de amor que terminam bem, a verdade
é que a realidade é torturante. Eu viveria milhares de vidas só para amar
Jun-ho, mas sei que em todas essas, poucas teriam um final feliz... É por
isso que amar é perigoso. É lindo, mas se muito intenso for esse amor, há
mais chances de matar o seu coração.
Koi no yokan

Choi Jun-Ho

Quando eu era mais novo, ouvia histórias de como meus pais se


conheceram e do quanto se amavam. Eu gostava de ouvir cada detalhe, não
tive a oportunidade de presenciar tanto amor entre duas pessoas, já que
minha mãe se foi quando eu ainda era pequeno. Mas eu imagino
perfeitamente como era a relação dos dois.
Meu pai sempre comenta o quanto era apaixonado e como ficava
fascinado, quando a via dançando. Minha mãe era uma dançarina
extraordinária, todos amavam assistir suas performances.
Ainda muito novo, meu pai me contava que, quando havia
encontrado minha mãe pela primeira vez. Aconteceu o “koi no yokan”, uma
expressão japonesa que aparentemente tem como tradução “a
inevitabilidade do amor”.
É lindo.
A palavra tem como definição o sentimento do qual nos faz perceber
que, inevitavelmente, vamos nos apaixonar por aquele certo alguém.
Ele disse que soube no exato momento, que minha mãe seria alguém
extremamente importante em sua vida.
Confesso que achava isso uma grande besteira, nunca fui de
acreditar em almas gêmeas ou frutas pela metade. Menos ainda em “koi no
yokan”.
Até que eu o conheci.
Não foi paixão o que senti, éramos tão pequenos, mas eu sabia que
Timothy seria a pessoa mais importante da minha vida, eu sabia que ele não
tinha esbarrado em mim por acaso.
E se foi, foi o acaso mais inesquecível da minha vida.
Não sei como explicar, mas sinto que a gente se pertence.
De alguma forma.
Eu nunca senti por alguém algo tão intenso, quanto o que eu sinto
por ele. Não estou reclamando, eu amo essa sensação que desperta em meu
corpo toda vez eu o vejo ou ouço sua voz. Mas no momento, isso me
assusta.
Timothy agora sabe o quanto eu o amo, não pude guardar isso por
mais tempo. O melhor de tudo, eu sei que é recíproco.
Mas sinceramente? Isso faz com que a situação atual seja ainda mais
insuportável.
Ele está desistindo.
Não de nós, dele! O que é pior, muito pior!
Timothy disse que iria pensar sobre sua decisão, mas eu o conheço
bem. Ele não pensou na possibilidade contrária, nem por um segundo. Eu
não o culpo, sinceramente eu o entendo como ninguém. Mas ainda sim dói,
não só a mim como seus pais e seu irmão.
Eu os conheço há anos e nunca os vi como estão agora.
A situação só piora e não há absolutamente nada que possamos
fazer.
Nada!
Por isso que não consigo sair do lugar, minha cama já se tornou meu
lugar favorito no mundo e não consigo encontrar forças alguma para sair
daqui. Não faço ideia de quanto tempo estou assim, só sei que não pretendo
sair.
Eu sequer consigo.
— Jun-ho? — Ouço a voz de meu pai me chamar, antes de ele abrir
a porta e entrar cautelosamente. — Você não almoçou ainda?
Eu não respondo, não consigo me mover, é como se meu corpo
estivesse amarrado a cama.
— Ei? — meu pai insiste, aproximando-se. — Não quer tirar fotos
das flores novas no jardim? — Eu nego. — Filho, está um dia lindo lá fora!
Não consigo ver nada de bonito agora, o mundo para mim está
cinza. Frio e conturbado.
— Não quero sair — finalmente consigo dizer.
— Timothy não mudou de ideia — ele diz suspirando fundo. — Não
é?
Como eu queria poder negar, dizer que ele mudou sim e que decidiu
voltar lutar pela própria vida. Mas não posso, não faço ideia de quando ele
tomou essa decisão. Mas sei que já faz um tempo, Timothy já andava bem
desanimado com o próprio tratamento.
Estava bem diante de meus olhos, eu só não quis enxergar.
— Não.
— E o que você está fazendo aqui? — meu pai questiona,
surpreendendo-me. — Timothy está cansado Jun-ho, mas esse processo só
será mais torturante e doloroso se você continuar fugindo dele assim!
O quê?!
— Não estou fugindo!
— Filho, você está trancado nesse quarto há dias. — Meu pai me
encara de uma forma estranha, quase como se estivesse suplicando por uma
reação. — Timothy precisa de você agora.
— Eu sei — digo tentando empurrar para baixo o nó que se forma
em minha garganta. — Mas está difícil e eu não posso aparecer desse jeito
na frente dele, vou piorar as coisas!
Meu pai é uma pessoa muito empática, sempre foi, talvez seja esse
um dos motivos por amar tanto a medicina e passar a maior parte de seu
tempo com seus pacientes. Por isso também eu não estranho quando meu
pai me olha com lágrimas nos olhos, que estão sendo proibidas de caírem.
Ele é empático, mas não significa que goste de mostrar os
sentimentos.
— Eu te entendo — ele quase sussurra.
— Me entende?
— Sim.
— Como?
Como?! Como ele pode me entender nessa situação?
— Sua mãe tomou a mesma decisão — meu pai diz, de repente,
fazendo-me sentar na cama de imediato em puro espanto.
— Não! — Nego freneticamente com a cabeça, acompanhado de
uma risada nervosa. — A mamãe sofreu um acidente de carro.
— É, sofreu sim — ele concorda, desviando o olhar. — Mas ela
acordou no hospital e... — Meu pai para de falar, o silêncio que se instala é
sufocante. Seu olhar agoniado lembrando do que ocorreu anos atrás é
terrivelmente doloroso.
— E?
Meu pai esfrega as mãos uma na outra, apoiando seus cotovelos em
seus joelhos.
— O acidente foi quase fatal — ele diz, virando seu rosto
minimamente em minha direção, ainda sem me olhar. — Sua mãe quase
não sobreviveu, mas... Bem, ela acordou, mas não sentia nada — meu pai
conta, arfando como se estivesse arrancando de seu próprio peito o seu
coração. — Ficou tetraplégica...
Tetraplégica?!
— O quê? — minha voz é afetada pelo espanto e pelo choro
dolorido de ouvir a verdade, saiu por um fio, quase inaudível.
— Sua mãe acordou, mas... Era como se estivesse morta — ele
confessa. — Era assim que ela dizia se sentir.
— Minho sabe disso? — questiono, chocado.
— Ele lembra, você ainda era bem pequeno — ele explica,
finalmente olhando para mim. — Jun-ho, existe uma coisa chamada de
“ordem de não ressuscitação”. É basicamente uma autorização do paciente
ou de responsáveis para a não ação de medidas de reanimação, em casos de
paradas cardiorrespiratórias — meu pai faz uma pausa, como se hesitasse
em me contar essa parte. — Sua mãe assinou, ela sabia que teria diversas
complicações em cirurgias e até mesmo na recuperação, mas ela não queria
que insistissem nisso. Por isso ela assinou essa ordem.
— Ela queria morrer — eu digo, simplista, meu pai me olhou
indignado.
— Jun-ho sua mãe se sentia incapaz — meu pai conta, magoado
com o que acabei de dizer. — Foi horrível ver o quão infeliz ela estava,
você sabe como é presenciar quem amamos nessa situação! Ela não
suportava o fato de que nunca mais poderia dançar, te pegar no colo ou
simplesmente levar você e seu irmão ao parque! — Meu pai não impede as
lágrimas de caírem. — Ela não suportava isso.
Não consigo respirar...
— Olha eu tive que entender — meu pai continua. — Mas ver o
coração dela parar e não poder fazer absolutamente nada foi o pior dia da
minha vida.
— Eu sinto muito...
Meu pai sorri, mesmo com os olhos úmidos e a bochecha marcada,
ele sorri.
— Eu sei, nós três a perdemos.
— Você a perdeu muito mais.
Meu pai pigarreia, após me encarar sem reação por alguns segundos.
— Timothy é tão forte — ele fala de repente. — Você precisa
entender, Jun-ho... Ele não está apenas doente, está cansado! Não vai
suportar a cirurgia.
Eu sei, por isso dói tanto.
Não importa o que aconteça, no fim vou acabar perdendo o amor da
minha vida.
— E você, Jun-ho — meu pai diz se levantando. — Não deveria
passar a tarde trancado no quarto, deveria estar com ele. Porque se receber a
notícia de que o pior aconteceu, o arrependimento vai ser maior que a dor
da perda.
E então ele sai.
Deixando-me sozinho com toda a agonia que percorre meu corpo
até meu peito, apertando meu coração como uma prensa, queimando como
o inferno.
Eu não posso deixar isso acontecer.
Por isso o desespero faz com que meu corpo se levante, depressa e
sem pensar direito. Apenas tomo um banho o mais rápido que posso para
despertar meu corpo e saio de casa, puxando a bolsa com o cilindro de
oxigênio como um animal de estimação.
Chegar ao hospital não é difícil, sendo filho de um cirurgião. Meu
pai se sente vitorioso a meu ver de pé na sala, pedindo uma carona, mas não
diz nada.
Difícil mesmo é encontrar com Helena no meio do corredor, parece
atordoada, cansada... Me dói muito vê-la assim, muitas vezes ela foi como
uma mãe para mim. Não posso imaginar o que ela sente no momento, sem
ter o que fazer, apenas assistindo tudo isso acontecer.
— Jun-ho! — Ela sorri assim que me vê. — Querido eu estava
preocupada...
— Preocupada comigo? — Não posso esconder minha surpresa.
— Claro, você não apareceu por dias — ela diz se aproximando,
analisando-me de cima a baixo. — Seu pai disse que você não estava muito
bem, estava pensando em passar lá para ver você.
É, como uma mãe.
— Desculpa, eu devia ter dado notícias — digo realmente
arrependido e culpado.
— Tudo bem! — ela exclama sorrindo, ao massagear meus braços
brevemente. — Fico feliz que você esteja aqui, faz muita falta sabia?
Estranho eu me sentir em casa, quando estou literalmente em um
corredor de hospital.
— Achei que não viria mais...
— É, bem... — eu pigarreio após dar uma risada nervosa. — Eu
cogitei essa possibilidade, mas... Não consigo ficar longe dele! Não posso.
Ele sorri mais.
Helena sempre gostou da minha amizade com seu filho, ficou ainda
mais feliz ao descobrir o que nós realmente tínhamos. É uma sensação
tranquilizadora saber que temos seu apoio, aconteça o que acontecer.
— Eu sempre soube o quanto vocês dois se amavam — ela conta, de
repente. — Fico tão feliz em saber que vocês só ficam cada vez mais
próximos! Isso é lindo.
— Ele me detestava — eu digo rindo, ao me lembrar de quando
éramos crianças.
— Não detestava, não — ela diz, outra vez massageando meus
braços. — Ele sempre amou você, eu conheço meu filho como ninguém! E
sei que ele nunca amou alguém como ama você.
— Com uma exceção.
— Ah! Isso não conta — ela diz rindo fraco. — Ele nos ama por
sermos a família dele, mas te ama por você ser você.
Não posso conter o sorriso, é muito bom ouvir e saber que Timothy
me ama.
Assim como eu o amo.
— Como ele está? — pergunto, realmente preocupado.
— Fisicamente? Cada dia pior — ela diz abraçando a si mesma. —
Mas, não sei... Ele parece mais tranquilo sabe? Como se já tivesse aceitado
o rumo que isso vai tomar.
Ela já aceitou.
— Pode ficar com ele um pouco? — ela pergunta de repente. — Vou
buscar algo para ele comer, Timmy cansou da comida daqui.
— É claro! — eu digo me apressando em direção à porta do quarto.
— Jun-ho? — ela me chama de repente, o que faz com que eu me
vire em sua direção outra vez. — Passe a maior parte do tempo com ele,
depois a saudade é insuportável — e dito isso, ela se vira e sai.
Deixando-me paralisado por um tempo.
A questão é que não sei como Timothy vai me receber depois de ter
sumido por dias, se ele está — compreensivelmente — chateado, com raiva
ou se sequer sentiu minha falta.
Por isso eu respiro fundo, com minha testa descansando sobre a
madeira da porta e então junto coragem o suficiente para entrar no quarto.
— Jun-ho! — Timothy exclama assim que entro, seu sorriso
continua sendo a coisa mais linda que já vi em toda a minha vida. — Oi...
— Sua voz está fraca, ele parece cansado.
Eu me aproximo sem dizer nada, Timothy apenas me observa
quando me aproximo de sua maca. Ele está em uma posição confortável,
está mais pálido que a última vez que o vi.
Isso me assusta.
— Não vai falar nada? — ele questiona, quando passo tempo
demais em silêncio.
Timothy não estranha quando eu me sento por perto e selo nossos
lábios com cautela, um único selinho, cuidadoso.
— Eu amo tanto você — sussurro quando me afasto minimamente,
mas beijando seus lábios outra vez, quando ele sorri ao me ouvir.
— Eu te amo mais.
Isso é impossível! Mas não discuto a respeito.
— Me perdoa por ter sumido...
— Não há o que perdoar — ele sorri, pegando minha mão. — Você
está aqui agora, só isso importa. — Eu sorrio, beijando sua mão até que
Timothy arregalou os olhos e sorriu ainda mais, como se tivesse lembrado
de algo. — Tenho uma coisa pra você! — Eu o encaro, surpreso. — Está na
gaveta da mesinha...
E solto sua mão devagar, esticando-me para pegar uma caixa
pequena na gaveta.
— Abre! — Ele parece animado.
Timothy sorri quando me vê abrindo a caixinha, dentro dela tem
uma corrente prata, com um pingente de Sol pendurado.
— Como você me deu a lua, eu quis te dar o Sol...
— Timmie! — Sorrio, mesmo querendo chorar. — É lindo...
— Você gostou?
— Eu amei! — respondo na mesma hora, já passando o colar pela
minha cabeça para pendurá-lo em meu pescoço. — Obrigado...
— Que bom que gostou... — ele diz, relaxando a cabeça no
travesseiro e arfando em seguida. — Eu não sabia muito bem como me
desculpar, por chatear você...
Eu o olho sem entender nada.
— O quê?
— Eu sei que estava chateado comigo.
— Não! Claro que não, meu amor! — nego o máximo que posso,
totalmente indignado. — Nada do que você faça nesse mundo, pode me
magoar! Você só me faz bem.
Timothy esboça um daqueles típicos sorrisos tristes, desvia o olhar e
analisa todo o quarto ao seu redor, sua expressão é de exaustão. Claro que
Timothy já não aguenta mais esse lugar, deve se sentir um prisioneiro
cumprindo prisão perpétua.
— Eu sumi, eu sei... — Timothy volta a me olhar, curvando a
cabeça para o lado. — Mas isso não foi porque estava chateado, na verdade,
eu estava apavorado.
— Apavorado?!
— É. — Engulo em seco, ao respirar fundo. — Tinha medo de que o
pior pudesse acontecer a qualquer momento, isso estava me deixando
desesperado...
Timothy outra vez sorri daquela forma, seus olhos estão cheios de
compaixão. Ele fica em silêncio, acaricia minha mão e respira fundo
quando volta a analisar seu a redor.
Eu sei que ele está pensando na melhor coisa que pode me dizer no
momento, Timothy irá se culpar pelo resto da vida e até mesmo além dela,
por cada lágrima que derrubarmos, eu sei, não importa o quanto eu diga a
ele que nada disto é sua culpa e que o amamos acima de tudo.
Timothy se enxerga coma uma má pessoa, quando na verdade, é a
melhor da qual eu já conheci.
— Jun-ho...
— Hm?
— Eu quero dançar...
Ele diz de repente, ainda sem me encarar.
— Quê?
— Quero dançar com você outra vez. — Finalmente ele me olha,
agora sorrindo com sinceridade, agarrando minhas mãos. — Como da
última vez.
— Você não está em condições...
— Eu preciso disso — ele me interrompe, quase suplicando com o
olhar. — Por favor! Jun, pode ser nossa segunda e última dança. — Ele
solta uma risada áspera, com os olhos marejados. — Dança comigo.
Eu sei que a possibilidade de que ele esteja certo é grande,
terrivelmente grande! Por isso eu não resisto por muito tempo e acabo
cedendo, Timothy sorri como não sorria há muito tempo quando eu o ajudo
a se levantar, ele está fraco, exausto e sequer se aguenta em pé.
Por isso faço o mesmo que fiz um tempo atrás, eu o guio para
descansar seus pés sobre os meus e abraço sua cintura com toda minha
força, Timothy se agarra a mim como se eu fosse fugir, ele me abraça com a
mesma intensidade. Deitando sua cabeça em meu ombro, sem se importar
de dançar sem que nenhuma música esteja tocando.
— Eu estou feliz, Jun — ele sussurra, depois de um tempo em
silêncio. — Não consigo demonstrar isso, mas estou! Meu corpo dói como
o inferno, mas minha mente está uma absoluta paz.
— Eu não quero que você se esforce — eu digo, ao notar sua
dificuldade em falar.
— Estou bem...
Timothy levanta o rosto e posiciona o queixo em meu ombro,
abraçando-me com mais força, dessa vez parece tentar buscar ar e conforto.
— Eu não quero que pense, que tomei essa decisão porque sou
infeliz ou insatisfeito com a minha vida — Timothy diz, de repente. — A
verdade é que eu nunca fui tão feliz, por muito tempo eu achei que não seria
e que minha vida continuaria sendo um grande caos, mas... Eu tenho você,
eu amo você e isso me conforta...
— Timmie...
— O problema, é que vocês não estão felizes — ele sussurra, outra
vez deitando a bochecha em meu ombro. — E isso é pior que qualquer
doença para mim, me mata mais rápido.
— Timothy...
— Não... Me deixe falar — ele pede, arfando ao me interromper. —
Preciso descansar, mas vocês precisam muito mais! Não estou falando do
físico, mas sim do mental. Eu só quero que vocês sejam felizes pelo resto
de suas vidas, com ou sem mim!
— É meio difícil ser feliz sem você... — eu resmungo, ouvindo o
suspiro de frustação de Timothy.
— Jun-ho! — Timothy afasta o rosto, para poder me olhar. — Você
acha que isso vai ser um adeus e que nunca mais vamos conseguir nos ver?
— Acho que sim...
— Não! — ele praticamente me interrompe. — Eu já disse, somos
conectados por um fio invisível, nada nem ninguém é capaz de cortar esse
fio! Nós vamos nos ver de novo, sou destinado a te encontrar em todas as
minhas vidas, todos os dias! — Timothy diz com toda certeza, segurando
meu rosto com suas mãos. — Eu nunca vou deixar você.
— Porque a gente se pertence — digo, vendo seu sorriso aumentar.
— De alguma forma...
— É — ele concorda, sussurrando. — Eu amo você...
— Eu sei.
— Não! Você tem que saber, Jun-ho. — Timothy me abraça outra
vez, mas se parar de me olhar. — Eu não amo você só porque cuida de
mim, fica ao meu lado e me apoia nos tratamentos — ele faz uma pausa,
respirando fundo. — Não é só por isso, isso na verdade é gratidão! Eu amo
você, porque me tirou do mundo da lua, aquele dia...
Eu fico paralisado por alguns segundos, por algum motivo, essa foi
a melhor coisa que eu já ouvi em toda a minha vida. Por isso, não impeço o
choro que já machucava minha garganta, tentando sair.
— Você é o único que me tira de lá — ele continua. — E eu amo
isso, porque volto para o seu mundo! Meu sol...
Timothy não é bom com as palavras, isso não quer dizer que ele
nunca tenha dito algo que me emocionou como agora, eu estou apaixonado
por ele porque amo a forma como ele se perde nas palavras e diz apenas
uma, em momentos como esses.
Mas agora, ele parece saber o que dizer a qualquer momento.
Sabe exatamente como me fazer chorar, mas também me acolher
para que isso se torne uma lembrança da qual eu recorra sempre, quando eu
não puder mais vê-lo.
— Fico feliz por ter derrubado você, naquele corredor — ele diz,
rindo baixo.
— Foi de propósito então! — concluo, fazendo Timothy rir mais.
Até que seu rosto demonstra sua exaustão e, provavelmente, a dor
que sente no momento. Por isso eu o seguro com o máximo de cuidado
possível e o ajudo a se deitar outra vez.
Se eu pudesse dançar com ele todos os dias, eu o faria, mas nesse
momento... Só quero vê-lo descansar, impedir que ele sofra todos os seus
dias, até o último segundo.
— Escuta... — eu o chamo, quando Timothy se remexe na maca,
tentando ficar confortável. — Quando eu era mais novo, meu pai dizia que
na primeira vez que viu minha mãe, aconteceu o “koi no yokan”.
— Koi no yokan?
— Isso. — Sento-me na ponta da maca, pegando em sua mão. — É
uma expressão japonesa que basicamente significa “a inevitabilidade”, uma
sensação que acontece assim que encontra um certo alguém e sentir que
acontecerá uma história de amor.
— Que lindo... — Timothy sussurra, fascinado.
— É mesmo — concordo. — Eu não acreditava nisso, até encontrar
você.
Ele sorri, com os olhos brilhando.
— Você se apaixonou por mim quando criança — ele caçoa. — Isso
é estranho, que criança terrível!
— Para! — eu digo rindo. — Não foi assim, eu só... Senti que você
seria muito importante para mim, sabia que aquele não seria a última vez
que eu veria você.
— É, eu também...
Outra vez, aquele típico silêncio quando ficamos nos olhando,
Timothy já se acostumou com isso, agora quem desvia o olhar primeiro sou
eu.
— Por isso eu quero que você entenda... — eu continuo. — Sempre
vai acontecer o “koi no yokan” quando nos encontrarmos, eu vou saber
assim que te ver! Que você é e sempre será o amor da minha vida!
Timothy funga alto, quando começa a chorar.
Mas sem parar de sorrir.
— Pela eternidade?
— Por toda a eternidade!
— Ok... — ele sussurra, chorando ainda mais.
Por isso eu quebro ainda mais a distância entre nós dois e me deito
ao seu lado, Timothy não espera nem um segundo antes de me abraçar e
deitar sua cabeça em meu ombro.
Ele desliza sua mão por meu braço, sinto o oxímetro em seu dedo
indicador e assim como eu, o cano do cateter nasal que agora ele também
precisa usar. Posiciono meu cilindro de oxigênio ao lado da maca, para
poder me mover sem me preocupar.
Timothy me abraça mais forte, ele treme então eu o cubro até o
ombro com a manta.
Mas acredito que não seja frio...
— Eu entendo você... — eu sussurro, depois de um bom tempo em
silêncio.
Timothy se afasta um pouco, tentando ver meu rosto.
— O quê?
— Eu te entendo — digo outra vez, olhando-o de volta. — Não
importa o que seja, o que quer que você faça, eu sempre! Sempre vou
entender e apoiar você.
— Sério? — ele questiona, novamente em meio a um choro.
— Sim, meu amor — eu afirmo, com toda a certeza do mundo. —
Eu sei que mesmo longe, você nunca vai me deixar! Assim como eu nunca
vou deixar você.
— Até meu último suspiro?
— Além disso.
Timothy para de sorrir, para dar lugar ao choro silencioso. Mas
extremamente doloroso, como se estivesse o segurando por muito tempo.
Ele suspira em alívio, passando a mão pelo próprio peito para aliviar
alguma coisa.
— Obrigado, Jun-ho — ele diz ao sorrir, segurando meu rosto. —
Eu amo você.
Sei que a compreensão não é algo que ele precise agradecer, mas eu
apenas aceito e beijo o topo de sua cabeça.
Timothy se aconchega por perto de mim, abraçando meu tronco
como um grande urso e então, lentamente, vai se acalmando cada vez mais.
Eu acaricio sua pele exposta, depois a cubro outra vez, Timothy
passa muito tempo quieto até que eu me dou conta de que ele dormiu. Eu o
abraço ainda mais forte e aconchego seu corpo mais perto do meu, para que
ele não sinta frio.
Por um tempo, eu só posso ouvir sua respiração e o som do monitor
cardíaco, verificando sem parar os seus batimentos, até que a porta se abre e
a senhora Lee adentra o quarto. Assim que nos vê, ela sorri e toma mais
cuidado para não fazer barulho. Deixando, cautelosamente, as sacolas sobre
a mesinha e se sentando sobre a poltrona que agora está um pouco mais
distante da maca.
Helena apenas nos observa por um tempo, ela realmente parece
gostar de nossa relação.
Sorri com sinceridade, toda vez que nos vê juntos.
— Você o ajudou a dormir... — ela finalmente diz algo, observando
seu filho adormecido.
— Como assim?
— Timothy não dormia bem há dias — ele conta, sem parar de olhar
para ele. — Isso já estava começando a me preocupar...
— Ele estava sentindo dor?
— Não — ela nega, agora olhando para mim. — Só ficava
pensando, muito mesmo! E quando ele pensa demais não resulta em algo
bom...
— Eu queria poder ajudar — digo, após beijar outra vez a cabeça
dele.
— Já ajudou — ela diz, aconchegando-se na poltrona. — Você o faz
feliz, deixa ele tranquilo... Tanto que agora ele até consegue descansar.
— Ele também me deixa feliz...
— Isso é bom! — ela respira fundo. — Não se esqueça disso, Jun-
ho, ele aguentou todo esse tempo por nós! Então não importa quando ele
decidir partir, iremos deixar, por ele.
É, não gostei nada de ouvir isso.
Por mais que eu entenda e concorde. Isso ainda me assusta.
Provavelmente assusta todos nós.
Mas eu decido ignorar a sensação ruim e me concentro apenas no
conforto que sinto, em ter Timothy me abraçando e o calor de seu corpo
esquentando o meu, não quero imaginar o que pode acontecer a qualquer
momento.
Com a sua respiração tranquila e o conforto que me é proporcionado
no momento, eu também acabo adormecendo, é ótima a sensação de
descansar ao lado de quem você ama.
Não, a verdade é que sinto isso por ser ele.
Porque Timothy é meu maior porto seguro.
Diminuir a profundidade da dor

Choi Jun-ho

Uma vez eu ouvi que “chorar é diminuir a profundidade da dor”.


É, isto é um fato.
Eu tenho chorado muito, ultimamente.
Resultado de presenciar Timothy vomitar assim que come algo,
depois de tanto tempo sem conseguir comer. Isso não adiantou de nada! Ele
apenas piora cada dia mais e não há absolutamente nada que possamos
fazer para ajudá-lo.
Esconder-me na cabine do banheiro do hospital toda vez que sinto
que vou desabar, já se tornou um hábito. Não quero que ele me veja assim,
vai se culpar por isso e essa é a última coisa que ele precisa sentir! Já está
sofrendo tanto, não quero que isso se agrave.
Acho que ele nem percebeu meu olhar aflito e nem mesmo quando
eu saí correndo para fora do quarto, o problema é voltar depois de tanto
tempo trancado aqui dentro. A sensação de estar o abandonando também
me atormenta, sair de perto dele nesses momentos pode tanto me aliviar
como me preocupar.
Mas, é complicado... Há dores que são impossíveis de ignorar.
A água da pia está fria como um bloco de gelo, ao lavar meu rosto
eu noto que além de extremamente abalado, também estava sonolento. Mas
a água fria me ajuda acordar e criar coragem para voltar ao quarto, meu
medo não é ser questionado sobre o porquê de ter saído e sim de ver
Timothy passar por mais alguma situação desesperadora como esta.
Eu detesto vê-lo assim.
Quando chego no quarto, vejo Timothy distraído com a paisagem
vista de sua janela. Ele sempre passa longos e longos minutos encarando o
céu azulado daqui.
Ele ama a vista daqui de cima, porque sente que está voando.
É um dos detalhes que me fazem amá-lo dia pós dia, seu simples e
inexplicável fascínio pelo céu.
— Ei — eu o chamo, ao chegar perto o suficiente para tocar sua
mão. — Está se sentindo melhor agora?
Timothy não desvia o olhar para mim, continua olhando para fora da
janela.
— Já vomitei tudo o que tinha no meu estômago — sua voz está
baixa e seu rosto impassível, como se no momento, ele não conseguisse
sentir nada. — Então não sei dizer se estou bem ou se piorei — ele continua
ao respirar fundo. — Eu só sei que... Não sinto nada, ao mesmo tempo,
sinto tanta coisa!
Timothy está bem com a decisão que tomou, ele tem certeza
absoluta disto.
Mas eu sei que é difícil para ele ver o resultado de sua decisão,
infelizmente é algo inevitável e continuará sendo assim por muito tempo.
— Meus pais foram conversar com o doutor — ele conta, depois de
um tempo em silêncio. — Eles estão desesperados e tudo isso é culpa
minha.
— Não, não é! — eu nego de imediato, aproximando-me mais. —
Timmie, seus pais te amam, não importa o que aconteça, sempre irão se
preocupar com você e com o Sam! Mesmo se vivêssemos em outra
realidade em que nada disto tivesse acontecido, eles continuariam se
preocupando com vocês.
Timothy balança a cabeça, mas parece distante demais para
compreender o que eu disse.
— As coisas ficaram horríveis depois que descobrimos o câncer —
ele diz, passando a mão por seu braço, como se tentasse esquentar a pele. —
Pior ainda, quando ele voltou... O mundo não se desabou sobre minha
cabeça, Jun-ho... Está me esmagando.
Ele não está bem.
Isso já faz muito tempo, mas quanto mais os dias se passam... Mais
deprimido ele fica, sua ansiedade ataca com frequência e prejudica todo o
seu corpo, seu apetite e seu sono.
É um pesadelo sem fim, estamos dividindo o mesmo todos os dias.
Mas Timothy não enxerga dessa forma, ele se vê como o vilão, mas
na verdade... Ele sofre mais que qualquer um de nós.
— Timothy — eu o chamo, mas ele apenas resmungou um “hm?”,
ainda sem me olhar. — Quando você tinha oito anos, antes de sentir os
sintomas, antes de descobrir todo esse pesadelo prestes a perturbar todas as
suas noites de sono — faço uma pausa, sentando-me na maca —, você
enxergava o mundo como um lugar impecável, o casamento de seus pais
como um conto de fadas e seu irmão como um herói. Isso não era sua
perspectiva das coisas só porque não havia descoberto o câncer ainda, mas
sim porque você era só uma criança... Um garotinho que amava brincar com
o irmão de esconde-esconde e ver seus pais dançando no meio da sala, um
clássico que só os dois conheciam.
Timothy abaixa o olhar, ouvindo atentamente tudo que tenho para
dizer.
— Mas infelizmente a realidade é esmagadora — continuo. — Mas
isso não significa que seus pais não se amam mais, olha só tudo o que eles
passaram juntos, um apoiando o outro dia pós dia! Isso é amor, Timothy. —
Ele me olhou, com os olhos cheios de lágrimas. — Amor não é só assinar
um papel e dividir alianças, é isso o que eles fazem aqui todos os dias, bem
diante de seus olhos.
— E se eles estiverem aguentando só por minha causa?
— Ainda sim é amor — eu mantenho minha opinião. — Você acha
que seus pais se divorciaram por que o câncer tornou as coisas difíceis?
Claro que não! Até porque isso não mudaria absolutamente nada, veja só...
Eles continuam se vendo todos os dias, divórcio nessa situação não evitaria
nada. — Timothy parece chegar a alguma conclusão ao me ouvir, abrindo
mais os olhos em surpresa. — Você melhor que ninguém deveria entender,
que as vezes, a maior prova de amor é deixar a pessoa ir...
Timothy pressiona seus lábios um no outro, tentando conter o choro.
— Você tem muito amor dentro de si — eu digo, sorrindo para que
possa tranquilizá-lo. — Mas tudo isso você só distribui para as pessoas, não
deixa nem um pouco para você mesmo... Você devia ser a pessoa que mais
ama.
Timmie encolhe os ombros, sem impedir que as lágrimas caiam.
— Mas eu só machuco as pessoas...
— Não! — Arfo, com meu peito doendo ao vê-lo chorar.
Tudo o que consigo fazer é trazê-lo para meus braços, em um abraço
apertado demonstrando todo o meu amor, empatia e o quanto quero
protegê-lo de todas essas sensações ruins que ele está sentindo agora.
Timothy chora como uma criança que feriu o joelho, mas não porque caiu e
deixou o local ardendo, chora por causa do sangue e o quanto essa
aparência estranha em sua pele o assusta.
Timothy não sente pelo quanto o câncer o feriu, pelas sequelas que a
quimioterapia deixou em seu corpo ou do quanto sua vida corre risco.
Ele sente por nós.
Nós somos o sangue que o assusta, isso faz com que ele se odeie,
como se fosse responsável por tudo isso e não uma vítima dessa doença que
sem parar, machuca tantas pessoas pelo mundo.
— Sabe, não existe uma forma coerente que eu possa dizer o quão
especial você é! O quanto eu amo você e as coisas das quais eu seria capaz
de fazer só para ver um sorriso em seu rosto. — Timothy me ouve,
acalmando-se aos poucos. — Mas não é disso que você precisa agora, você
deveria se amar acima de tudo, Timothy! Porque não há amor no mundo,
melhor que o próprio. — Ele se afasta um pouco, para me olhar. — Eu já te
disse, centenas de vezes... Você é extraordinário! Não consigo encontrar no
mundo alguém como você, por isso nos dói te ver sofrer. Isso não significa
que você tem que suportar todo esse inferno até o último segundo da sua
vida só porque nós somos egoístas o suficiente para não aceitarmos perder
você!
— Jun-ho...
— A minha vida, é melhor quando você está por perto — eu o
interrompo. — Mas ela é dolorosa demais quando eu te vejo sofrer, eu só
quero que você saiba que nada e nem ninguém vai mudar a forma como eu
te amo e te admiro! Nem a distância, nem esse câncer idiota e muito menos
a morte! — Eu seguro seu rosto, com aquele cuidado que já se tornou um
hábito. — Meu amor vai além dela, como você disse... Nada pode romper
esse fio que me liga a você, ele só se torna mais forte com o tempo.
Acho que pela primeira vez em muito tempo, Timothy não encontra
palavras para me responder, ele apenas me olha, abre e fecha a boca várias
vezes seguidas. Como se nada que viesse a sua cabeça fosse o suficiente
para demonstrar o que ele sente no momento.
— Eu adoraria ver um sorriso agora, então...
Timothy deixa uma risada escapar, acompanhada de um ar sendo
expulso com força de seu pulmão. Ele sorri secando as lágrimas que não
param de cair, é um turbilhão de sentimentos que nem mesmo ele consegue
entender.
— Eu amo você.
— Eu sei — digo sinceramente. — Mas, eu te amo muito mais!
Timothy nega com a cabeça, fazendo uma falsa expressão de raiva,
mas sem parar de sorrir. Ela costuma fazer isso quando não consegue
encontrar palavras para dizer, fica confuso, eu o conheço bem e amo isso
nele!
— Acho que poderíamos discutir isso por horas! — ele finalmente
diz.
— Claro, mas ainda assim eu venceria. — Certo, isso pode mesmo
irritar Timothy.
Ele revira os olhos e respira fundo.
Timothy se inclina um pouco e beija minha bochecha, é rápido, ele
se afasta tentando conter o sorriso e se encolhe um pouco. É uma sensação
indescritível vê-lo agir assim, tão leve em relação a nós dois.
— Obrigado por ficar do meu lado — Timothy diz com certo brilho
no olhar. — Jun-ho, não imagina o quão isso significa para mim! — ele
respira fundo, outra vez o vejo pressionar os lábios para não chorar. — Eu
sei que tem sido difícil, que você ainda sonha com o nosso casamento e que
acorda todos os dias torcendo para que eu mude de ideia. — Agora é a
minha vez de tentar conter o choro. — Mas ainda sim! Você não tocou no
assunto nenhuma vez e nem mesmo insistiu no tratamento, você... Só ficou
aqui, comigo.
É, quando me disseram que amor não era simples eu achei que
estavam pegando no meu pé! Mas agora eu sei que, mesmo doendo como
uma tortura sem fim no inferno, o amor continua sendo maior que qualquer
outra coisa, até mesmo que o egoísmo.
Eu poderia mesmo ser um egoísta, importar-me apenas com o que
eu sinto e ser capaz o suficiente para mudar a cabeça de Timothy.
Mas na real, eu não quero isso.
Só quero vê-lo assim, aliviado.
É tudo o que mais quero na vida.
— Se eu pudesse tirar você desse inferno, eu tiraria.
— Fica mais suportável quando você está aqui.
É.
Timothy sabe como me deixar sem jeito!
— Meus pais estão demorando — ele diz, mudando de assunto
muito rápido ao olhar para a porta entreaberta. — Será que aconteceu
alguma coisa?
— Eu acho que não...
— Jun-ho, minha mãe não tem se alimentado bem... — ele conta,
parece nervoso. — Ela pode ter passado mal! Imagina só, meu pai morre de
tanta preocupação.
— Não se preocupe, meu amor — eu o tranquilizo, aproximando-
me mais. — Sua mãe está bem!
Assim que termino de falar, meu celular toca, a notificação é a do
meu pai. O som de pássaros cantando foi escolhida exclusivamente para ele,
já que meu pai ama acordar cedo e ouvir os pássaros pela janela de seu
quarto.
Mas a mensagem me desanima.
— Timmie...
— Você precisa ir?
— É — eu concordo, com um aperto no peito.
Timothy curva seus lábios em um típico sorriso do qual, mesmo que
dado com sinceridade, não carrega felicidade alguma. Seus olhos me
observam profundamente, suas mãos me seguram por um tempo e então ele
respira fundo.
— Você volta amanhã?
— Com certeza!
— Promete?
— Eu prometo.
Timothy ergue seu mindinho para mim, para que possamos concluir
o ritual de promessas, ele prende seu mindinho ao meu e então me rouba
um selinho desajeitado.
— Não quebre uma promessa de mindinho! — ele diz, outra vez
com uma falsa expressão de raiva.
— Jamais.
E, com um enorme sorriso, eu deposito um beijo em sua testa e me
levanto para sair do quarto.
É difícil me despedir dele, odeio ter que fazer isso! Eu odeio desde o
dia que me despedi e passei anos sem vê-lo. Foi aí que eu percebi que
detesto despedidas, sejam elas temporárias, ou para nunca mais voltar.
Mas eu preciso me acostumar com a ideia de que vou precisar me
despedir, seja quando for.
Preciso andar pelos corredores do hospital para encontrar os pais de
Timothy, ele pode ficar sozinho no quarto agora, por isso eu os procuro até
encontrar o consultório do doutor, a porta está entreaberta e eu posso vê-los
do lado de dentro.
Helena está completamente abalada e o senhor Soo-hyuk tenta
acalmá-la, como sempre fez.
“Timothy perdeu muito peso”, ouço a voz do doutor, “ele está muito
cansado.”
“Mas ele nem consegue comer!”, diz o senhor Lee, frustrado e com
um tom de exaustão em sua voz, “Eu não sei o que mais podemos fazer, as
frutas geladas não estão ajudando e perde o apetite cada dia mais.”
“Doutor, por favor, vamos encontrar uma forma dele melhorar”, a
mãe de Timothy praticamente implora, é notável até mesmo atrás da porta,
saber o seu nível de desespero, “qualquer coisa! Só salva o meu filho, por
favor!”
A negação é uma das piores fases do luto, mas quando ele é
antecipado, acaba ficando mais difícil de lidar. Eu sei que ela já sente pela
perda do filho, deve sonhar com isso toda noite.
Assim como o senhor Lee, Samuel e eu.
Essa dor nos pegou assim que ele desistiu.
“Clinicamente, não há nada que possamos fazer no estágio que ele
está”, o doutor conta. “Sinto muito, mas tudo o que fizermos... Vai só
prolongar o sofrimento dele, nada mais.”
É possível ouvir a senhora Lee soltar um som de dor, como se
estivessem queimando sua pele, seguido de um choro exausto demais para
elevar o tom, ela praticamente chora em silêncio.
O consultório inteiro fica em silêncio.
A sensação que sinto no momento é nova, além de agonia de toda
situação. Alguma coisa em mim me faz bater na porta uma única vez, para
então abri-la completamente e pegar todos de surpresa. Inicialmente, não
soube o que dizer, ou melhor, como dizer! Todos me encaram com surpresa
e confusão enquanto eu provavelmente esboço chateação e raiva no rosto.
— Eu, eu não queria ouvir a conversa — é o que eu digo por fim —,
mas precisei vir aqui e acebei ouvindo um pouco então me desculpem!
— Tudo bem, Jun.
— Não, me escutem por favor — eu a interrompo, estou nervoso. —
Timothy está a dias naquela droga de maca nos dizendo que está cansado,
aquele quarto causa claustrofobia e já faz muito tempo que ele não sai de lá!
Ele está morrendo e tudo o que pode ver são poltronas e paredes azuis
turquesa que já estão o deixando louco.
— Jun-ho se acalma — senhor Lee pede, movimentando as mãos
para me tranquilizar, mas isso só me deixa ainda mais ansioso.
— Isso dói muito — eu digo já com a visão embaçada. —, eu sei!
Mas a dor que ele sente é indescritível e não existe ninguém no mundo que
ame mais a liberdade que o Timothy, estamos o sufocando! Tirem ele daqui,
fazem algo que ele sempre quis ou um jantar em família descente que não
acontece a meses. Qualquer coisa para que os últimos dias dele aqui não
seja praticamente morto e preso em uma caixa.
Todos ficaram em silêncio, por tempo demais, a senhora Lee parece
assustada com meu comportamento e o doutor parece concordar comigo.
Mas sem esperar resposta alguma, eu apenas me curvo minimamente em
sinal de respeito e me aproximo mais um pouco.
— Eu preciso ir, Timmie está sozinho no quarto — e então eu
explico o motivo de minha presença ali e saio do escritório, tão rápido que é
possível ouvir as rodinhas da minha bolsa rolarem depressa sobre o piso
liso e frio.
Minha respiração está descompassada, mas não acho que seja um
problema, de fato, no meu pulmão.
— Jun-ho! — Ouço a senhora Lee me chamar, quando me viro, a
vejo se aproximar rapidamente. — Querido, vá com calma, pode lhe faltar
ar.
Eu continuo calado, esperando qualquer reação sua ao que eu disse,
mas ela não me olha com desaprovação ou raiva. Sinceramente? Acho que
depois de meu pai e Timothy, ela é a pessoa que mais me olha com tanto
carinho assim.
Compreensão, isso é tudo o que vejo refletir em seu olhar.
— Eu sou egoísta, Jun-ho — ela confessa. — Tão egoísta que não
consigo enxergar as coisas como você, eu ignoro tudo isso porque não sou
forte o suficiente para aguentar essa dor!
— Não, não é egoísmo — eu nego, e esse aperto no peito só
aumenta. — É amor, ele é seu filho!
— Exatamente, meu filho — ela concorda, com um doloroso sorriso
no rosto. — E eu continuo o torturando porque não suporto a ideia de dizer
adeus, mas ainda sim! Sabendo de tudo isso, não consigo aceitar isso.
Não posso imaginar a imensidade que é sua dor.
É como ver uma pessoa sozinha em meio ao caos completo, sem ter
por onde ir ou a quem recorrer. Ela não está sozinha, eu sei, mas essa
sensação deve incomodá-la mesmo assim, vendo seu filho morrer um pouco
mais a cada dia.
— Ninguém além de você entende de verdade o lado dele — ela diz
então, contendo o choro. — Obrigada por cuidar tão bem do meu menino!
Você foi a melhor coisa que aconteceu na vida dele.
Ele foi a melhor que aconteceu na minha.
— A gente se ama, por isso se entende.
Ela sorri, agora com toda a sinceridade do mundo.
— Eu sei! — ela diz ao soltar o ar com força, pela boca. — Vamos
dar uma vida digna para ele, Jun-ho! Nem que seja minutos, não quero mais
ver meu filho chorar.
Um alívio imensurável tomou conta do meu corpo, é inevitável
evitar o ar que foge de meus pulmões, junto do choro que eu jurei a mim
mesmo, que não deixaria acontecer.
— Vamos para casa — ela diz por fim. — Aquele lugar só é nosso
lar mesmo, quando ele está lá.
É, é disso que ele precisa.
— É tudo o que ele mais quer. — Eu já nem tento mais segurar o
choro, preciso diminuir a profundidade da dor, não é?
Ela concorda, puxando-me para perto e abraçando com força.
Helena passa sua mão gentilmente no topo de minha cabeça, depois
massageia minhas costas e então se afastou para olhar meu rosto, sem parar
de sorrir.
— Vá descansar — ele disse quase sussurrando. — Você não dorme
há dias...
A verdade é que nenhum de nós estamos dormindo bem, mas ela
não se importa com a própria saúde no momento.
— Eu volto.
— Eu sei.
Eu confirmo, não só para ela, mas para mim mesmo também.
E então eu saio do hospital acompanhado do meu pai, vê-lo sair do
hospital na luz do dia é novidade, um neurocirurgião não costuma ter muito
tempo para fazer as coisas, por isso eu sempre vinha ao hospital com ele
quando criança.
Tinha medo de ficar sozinho.
Mesmo que isso não acontecesse, eu simplesmente me sentia
sozinho com meu pai muito longe.
Hoje eu aprendi lidar com a solidão.
Mas eu acho que a solidão está começando incomodar meu pai,
mesmo que ele não demonstre, eu sei que ele se sente sozinho e que isso
pode estar o magoando. Mas eu não toco no assunto, meu pai não gosta de
engatilhar sentimentos que, com certeza, não irão embora tão cedo.
Por isso eu passo todo o caminho em silêncio.
O caminho que eu percebo não conhecer, meu pai não está me
levando para casa e isso começa a me preocupar quando eu começo a ter
uma certa noção de para onde, estamos indo.
— Pai?
— É aniversário da sua mãe — ele diz por fim, após respirar fundo.
— Temos que ir vê-la.
Como eu pude me esquecer?!
Eu me remexo no assento, incomodado com a situação.
— Desculpa, eu...
— Eu sei, muita coisa na cabeça — ele diz, sem tirar os olhos da
estrada. — Não tem que se desculpar.
Não, é o completo oposto pai!
Eu tenho que me desculpar por muita coisa, mas esquecer do
aniversário da minha mãe foi a pior coisa de mundo, eu nunca visitei seu
túmulo, isso porque eu não tenho forças para fazê-lo. Desde pequeno meu
pai tenta me trazer, mas a ansiedade atacava como nunca e então ele optava
por me deixar em casa.
Hoje eu caí em uma armadilha.
— Não sei se consigo...
— Você tem que aprender lidar com isso — ele diz, olhando-me
brevemente. — Você pode perdê-lo a qualquer momento, Jun-ho, vai se
culpar o resto da vida se não conseguir fazer isso.
— Mas é a mamãe! — eu digo, já sentindo o ar fugir de mim. — E
eu esqueci do aniversário dela!
— Não esqueceu — ele protesta. — Só estava preocupado com seu
namorado que pode partir a qualquer momento, não se culpe por uma coisa
que aconteceu uma única vez.
Eu tento me concentrar na respiração.
Inspiro com calma e lentidão, expirando da mesma forma,
expulsando o ar pela boca.
— Sua mãe te ama — ele diz, estacionando o carro —, sempre vai
amar.
— Mas...
— Você precisa dar adeus, para que ela possa descansar — ele diz
então, segurando minha mão. — Ela está te esperando por anos, dê esse
presente a ela.
Ok.
Eu aceno com a cabeça, ainda tentando me recompor, meu pai sorri
para mim e acaricia minha mão.
— Quer um tempo sozinho?
— Sim — eu respondo de imediato.
Meu pai então sorri uma última vez e desce do carro, eu o vejo
caminhar pelo gramado com calma, sem olhar para trás. E então eu
finalmente deixo que meu coração se quebre, uma agonia que fez meu
corpo formigar percorre por meus braços, mesmo sacodindo as mãos em
um temendo desespero, essa sensação não passa.
Meu pulmão proíbe a entrada do ar que, por sinal, também foge de
mim.
É como o inferno, um loop de dor ardente sem fim, queimando meu
pulmão como brasa e manchando minha pele com lava. É, me sinto em
erupção, expulsando todo esse calor que queimava meu coração por dentro
a meses.
Eu bato com força em meu peito, meu punho fechado choca com
minha pele, tentando aliviar a sensação agoniante. Mas nada ameniza,
apenas deixo sair por conta própria.
É isso, quanto menor for a profundidade da dor mais eu aguento o
que está por vir.
Então não evito, eu me permito sentir cada mínimo sentimento que
estava acorrentado bem no fundo, gemendo de dor e gritando, meu corpo
fica mole e para de formigar, mas continua tremendo.
Tudo isso acontece dentro de um tempo que não consigo identificar,
mas por um tempo, eu me acalmei e tudo o que fiz foi respirar com calma
dentro do carro. É fim de tarde, o céu está laranja e visto daqui... É
simplesmente incrível.
Eu respiro fundo e então desço do carro, o vento cobre meu corpo
assim que subo a colina, vejo lápides por toda parte, ao longe. Meu pai está
em pé e com a cabeça baixa, de costas para mim e sequer posso ler o que
ele pode estar sentindo no momento.
Quando eu me aproximo o suficiente, vejo que ele está tranquilo.
Ele percebeu minha presença e se surpreende ao olhar meu rosto,
mas não diz nada, ele caminha para trás como se quisesse me dar espaço.
Eu me aproximo o suficiente para agachar em frente à lápide, está
desgastada, com seu nome cravado e o epitáfio marcado com sua memória
de que um dia já esteve aqui, está quase imperceptível.
Eu tento melhorar a aparência, passando minha mão sobre seu
nome.
Mas não adianta.
— Oi mãe — sussurro —, eu estou aqui.
Outra vez eu sacudo minhas mãos, tentando me acalmar.
— Eu nunca mais vou passar tanto tempo longe — digo, sentindo
tudo aquilo voltar. — Eu prometo! Eu... — não consigo terminar, meus
músculos pesam uma tonelada e o fundo da minha garganta dói como se eu
tivesse passado horas gritando sem parar.
— Tudo bem — meu pai massageia meu ombro, dando-me apoio.
— Está tudo bem!
Outra vez eu tento recuperar o ar.
— Nós estamos bem — ele diz, quando se senta na grama e me
puxa junto, abraçando-me com muita força, ele beija o topo da minha
cabeça e intensifica o abraço. — Você vai ficar bem!
E assim nós ficamos, por muito tempo. Na grama enquanto eu tento
me acalmar.
Até finalmente eu consigo, ouço outra vez a história de como meus
pais se conheceram e conto sobre Timothy para minha mãe. Nossa! Minha
mãe teria amado conhecê-lo, ela e Timothy se dariam tão bem.
Por isso eu passo muito tempo falando com ela, sem ter resposta
alguma além do som agressivo do vento aqui do alto, o céu começa a
escurecer e o tempo esfriar, meu pai questiona se prefiro voltar para casa.
Mas não, eu estava com tanta saudade da minha mãe e o máximo que tenho
é isso, uma conversa vazia e cheia de esperança de que, seja onde estiver,
ela está me ouvindo.
— Dei a ele o colar — eu comento, quando a lua aparece por trás
das nuvens, iluminando-me nessa escuridão. — De meia-lua, lembra? Para
ajudá-lo na recuperação, mas... Não ajudou muito, mas ele amou!
Outra vez, eu faço uma pausa como se fosse receber uma resposta.
— Enfim, ganhei um do Sol — conto, piscando algumas vezes
quando o sono começou me incomodar — E... Ele, ele me chama de sol —
eu conto, meio sem jeito. — Sabe? Acho que ele me vê como alguém
importante assim como o Sol é importante para a terra, ou... Ou para a lua.
Estou nervoso, como se estivesse o apresentando de fato para ela,
quando olho para meu pai vejo seu sorriso contido e quase imperceptível
direcionado a mim.
E eu sorrio de volta, encolhendo-me quando o frio outra vez fez com
que meus pelos arrepiassem.
Meu pai beija o topo da minha cabeça e então se levanta. Tocando
unicamente com o dedo indicador a lápide de minha mãe, ele se vira e vai
embora. Ele não diz sequer uma palavra, apenas foi.
É, ele também detesta despedidas.
E eu não posso imaginar quantas vezes ele precisou se despedir
dela.
Até que eu me lembro, uma recordação nublada e um pouco
distante. Meu pai tocando entre as sobrancelhas da minha mãe para aliviar
as rugas de expressão, fossem elas de dor, frustração, raiva ou cansaço. Ele
sempre fazia isso.
E nunca parou.
De alma, para alma

Timothy Lee

“Mãe, eu ainda estou te machucando muito?”


Eu sempre faço a mim mesmo essa pergunta, toda vez que minha
mãe cruza a porta com os olhos inchados e vermelhos após uma longa
conversa com o doutor. Ela não demora muito para aparecer depois que
Jun-ho sai, mas está quieta demais, pensativa e sequer me olha.
— Mãe? — eu a chamo, preocupado.
— Hm? — Parece que ela é arrancada de um sonho profundo e me
olha meio atordoada.
Eu respiro fundo, o máximo que posso, sorrio da melhor forma que
consigo e então me remexo na maca para encontrar mais conforto em meio
a todo esse caos.
— Podemos conversar?
— Você quer conversar? — ela questiona, verdadeiramente
surpresa.
— Sim, por favor.
Ela me analisa por um tempo e então se aproxima, sentando-se na
ponta da maca para me ouvir melhor, ultimamente eu tenho tido dificuldade
para falar então é um pouco difícil de me entender.
— Você está bem? — eu questiono, analisando seu rosto. — Por
favor, seja sincera comigo.
— Quer uma resposta sincera?
— Sim!
Minha mãe então desvia o olhar, ela alcança minha mão e a segura
como fazia quando era pequeno, parece que ainda tenho aquelas mãozinhas
quando ela segura.
— Não, eu não estou bem — por fim ela responde, olhando-me. Isso
é como uma faca quente pressionando a pele, queimando e perfurando ao
mesmo tempo. Eu tento, mas é difícil segurar a reação à sua resposta que
me fere. — Mas a culpa não é sua, nada disso é — ela continua. — Sabe,
meu amor? As coisas ficam mais fáceis quando eu vejo você, quando Sam
aparece com aquelas piadas bobas e seu pai rindo de tudo o que ele fala —
ela conta, sorrindo. — Vocês são minha força, é por isso que aguentei até
aqui.
— Vocês também são a minha!
— Eu sei — ela diz, de imediato. — É por isso que você suportou
por tanto tempo, desculpa sufocar você assim! Fui tão egoísta, não pensei
no quanto você estava sofrendo...
— Claro que não, mãe! — eu protesto. — Não existe ninguém no
mundo, que sinta absolutamente tudo que eu sinto, como você sente.
Minha mãe me olhou curvando a cabeça para o lado, tem algo em
seu olhar que faz com que eu me sinta a pessoa mais preciosa do mundo.
Chega me aconchegar como uma manta, ela se aproxima e se senta ao meu
lado, me acolhendo em seus braços como se eu ainda tivesse oito anos de
idade.
Ela beija minha cabeça, várias vezes.
— Eu só queria que você pudesse passar isso para mim — ela diz,
com a voz de choro. — Passar cada dor, cada crise de ansiedade e ataques
de pânico. Eu queria poder arrancar esse câncer de você com as minhas
mãos e colocar em mim! Eu faria o possível e o impossível para evitar que
você sentisse tudo isso, mas eu não pude... — ela beijou minha cabeça outra
vez. — Então saiba que, você e seu irmão, sempre! Sempre serão o motivo
pelo qual eu luto para sobreviver todos os dias.
— Eu sei, mãe — sem dúvida alguma, eu digo. — Foi por você que
eu cheguei até aqui.
Ela me aperta, ouço o soluço de seu choro ser abafado por causa de
seu rosto escondido.
— Eu sei, meu amor.
Ficamos em silêncio por um tempo, eu amo o silêncio que
compartilhamos... É sempre cheio de palavras não ditas, mas
compreendidas, isso desde que eu ainda era muito novo. Minha mãe sabe
como transmitir paz.
Por isso eu não me afasto nem por um segundo de seus braços,
quero morar aqui, pelo resto de meus dias, mas não quero que ela esteja
aqui quando eu tiver que partir. Ela não merece isso, já presenciou muita
dor ser sentida por mim.
Não seria justo.
Uma mãe pode estar presente no dia em que seu filho respirar pela
primeira vez, mas mãe nenhuma deveria estar presente em seu último
suspiro, é como matá-la sem aviso prévio! Eu já estou cansado de assassinar
a minha mãe.
— As coisas ficaram terríveis quando eu adoeci — ao entrar em
meio a esse poço pensante, eu digo —, não é? Você e o papai nunca mais
dançaram no meio da sala de estar.
— Não dançávamos porque não havia motivo — ela responde,
simplista. — A última vez que dançamos foi no dia da sua última sessão de
tratamento — ela contou sem parar de acariciar meu braço. — Seu pai me
pegou desprevenida em meio as escadas, me levou de volta para o centro da
sala e então colocou a música, baixa para não acordar você e seu irmão,
mas alta o suficiente para que pudéssemos ouvir... Dançamos por um bom
tempo, foi aí então que percebemos que nada no mundo poderia destruir o
que tínhamos!
Eu sorrio, fascinado com o que ouço.
Ah não ser por um único problema.
— Nada além de mim.
Minha mãe imediatamente se levanta, afastando-se de mim para que
pudesse olhar meu rosto. Ela perece estar indignada, suas sobrancelhas
franzidas e seus olhos alternando entre mim e qualquer objeto do quarto
para tentar assimilar o que eu disse.
— Por que acha que não amo mais o seu pai? — enfim ela pergunta,
parece realmente curiosa com a minha resposta. — Isso por causa do
divórcio?
— Sim, mas não só isso — eu tento me sentar, mas não aguento
levantar meu corpo. — Vocês brigavam tanto, quase todos os dias.
— É, eu sei. — Ela se afasta mais um pouco, sentando-se em minha
frente novamente para que possa conversar olhando em meu rosto. — Não
vou dizer que isso é normal, para alguns até pode ser, mas... A frequência
em que discutíamos era grande, isso assustava você e seu irmão. Me perdoa.
— Eu nego, com meu maior sorriso possível, porque eu sei bem que meus
pais nunca tiveram a intenção de nos deixar presenciar suas brigas. — O
problema nunca foi você, só não estávamos em sincronia no momento
sabe? Seu pai achava que um caminho era melhor que o outro, isso me
irritava e então entravamos em conflito. Mas, Timothy, eu jamais vou
conseguir deixar de amar o seu pai!
É, isso me pegou desprevenido.
— Ele é minha alma gêmea. O amor da minha vida e acima de
qualquer coisa, meu melhor amigo — ela conta, com um brilho impecável
no olhar. — O amor que tenho pelo seu pai não é possível ser descrito, nem
eu mesma consigo entender essa intensidade, mas é simplesmente isso,
amor!
— Como?
— Não sei. — Ela dá de ombros. — O fato de que nosso casamento
terminou, não significa que automaticamente nosso amor também acabou.
— Ela respira fundo, tentando formular a frase. — Seria incrível se vivesse
apenas de amor um relacionamento, mas isso é impossível! Amor não é
suficiente, é preciso confiança... Respeito, compreensão, intimidade, bem
não só aquela intimidade sexual, sabe? Falo da intimidade de almas, do tipo
em que aquela pessoa entende e aceita qualquer coisa que é dita por você ou
que é íntimo o suficiente para te mostrar que aquilo que foi dito, não estava
correto!
— Vocês não tinham isso?!
— Tínhamos! — ela exclama. — Mas não tínhamos a coisa mais
importante de todas!
— O quê?
— Comunicação.
Quê?
Um casamento foi destruído por falta de comunicação?!
Não posso acreditar.
— Não é o que está pensando — ela diz, como se estivesse lendo
minha mente —, claro que tínhamos, mas só o necessário para não parecer
um casal zumbi! Mas eu sei que, passe o tempo que for, sempre vou amar o
seu pai.
— Mesmo?
— Mesmo! — ela afirma, sem pensar nenhuma vez. — E eu sei que
ele também me ama, mas o amor que temos é diferente! Só que é imortal,
eu sei que sempre será ele, em todas as minhas vidas que foram e serão
vividas... É e sempre será ele!
Nossa...
— Assim como você e o Jun-ho.
— Mãe!
— O quê? — ela ri. — Olha meu filho, eu sei que por muito tempo
ele foi seu melhor amigo e que faz pouco tempo que compreenderam o
verdadeiro sentimento por trás de tudo aquilo — ela analisa. — Mas ele
realmente te ama, querido...
— Eu sei...
— Não! — Ela nega com a cabeça. — Não estou falando do tipo de
amor que dissemos a qualquer um, é amor de verdade! Ele tiraria o cateter
se te faltasse ar, sem pensar nenhuma vez! E não se arrependeria nem
mesmo enquanto estivesse sufocando, isso é amor, Timothy.
— Eu faria o mesmo por ele.
— Eu sei.
Eu a olho por um tempo, minha mãe está tão cansada. E mesmo
assim não demonstra isso nem por um segundo, ela só pensa em mim.
— Eu faria por você, mãe — digo depois de um tempo em silêncio,
ela sorri com toda a sua sinceridade e então seus olhos entregam a emoção
com o momento. — Eu daria minha vida pela sua.
— Você já está fazendo isso, Timothy.
Eu fico sem reação, não sei o que dizer.
Bem, muitas vezes eu fico sem saber o que dizer, mas agora... Eu só
quero chorar, mas nem isso eu consigo, meu corpo inteiro para de responder
aos meus comandos.
— Por todos nós — ela continua —, está dando a sua vida pela
nossa felicidade... Eu sei! — com um sorriso tão curto que pode passar
despercebido, ela diz com certo potencial em sua voz. Quer me passar total
segurança de que o ela diz é realmente o que sente e acredita.
É difícil de que acreditar que alguém como eu, que apenas atrapalha
qualquer situação, seja vista desta forma. Mas eu sei o quanto minha família
me ama, deve ser por esse motivo que todos me olham e me tratam assim.
— Eu queria tanto que eu pudesse tirar isso de você e passar para
mim — ela confessa, posso sentir a dor em sua garganta ou prender o choro
tão costumeiro nesses momentos. — Passa pra mim, filho! — outra vez ela
desaba, com suas mãos trêmulas tentando alcançar meu corpo que sequer
pode mover sozinho. — Passa!
Nem posso imaginar a sensação, dor e preocupação que ela sentiu
por todos esses anos.
Mas sei exatamente o que eu senti.
E eu jamais, nem que fosse obrigado a viver nessas condições na
vida após a morte ou em reencarnações, mesmo se pudesse... Eu nunca
permitiria que alguém que eu amo, sentisse o que estou sentindo agora.
Então não, mãe.
— Eu amo você.
É tudo o que posso dizer no momento, ela precisa saber e ouvir mais
que o suficiente o quanto eu a amo e sou grato por cada milésimo de
segundo que esteve ao meu lado. Me protegendo e salvando a minha vida.
— Mas você precisa se amar em primeiro lugar, mãe. — Ela me
encara com surpresa nos olhos. — Não se esqueça disso, ninguém será
capaz de te amar mais que você mesma, há amores que não superam o
próprio.
Mesmo com meu corpo frágil e dolorido, eu consigo esboçar o
sorriso mais sincero que já dei em meses.
E ele é direcionado a minha mãe!
— Promete pra mim que vai se cuidar! — praticamente imploro. —
Você vai sair com as suas amigas e irá comprar as melhores roupas, vai se
candidatar na melhor vaga de emprego e jantar com o Sammy todas as
sextas-feiras. E quando sentir minha falta, vai assistir minha série favorita
para sentir minha companhia ou vai tomar meu sorvete favorito e caminhar
pela praça que eu brincava quando mais novo. Mas por favor, mãe, não pisa
naquele gramado sem vida, eu não vou estar lá, vou sempre estar com
vocês!
Minha mãe apenas me encara, paralisada, nem mesmo a gota de
lágrima aceita cair nesse momento.
— Promete!
— Eu prometo! — ela chora, como dói ver minha mãe chorar.
Mas eu sei que nada que disserem a ela quando eu já não estiver
aqui, irá arrancar a dor insistente que ela vai sentir.
Talvez eu possa, pelo menos, tentar.
Minha mãe se curva em minha direção, o suficiente para me abraçar
com força. Até que ouvimos o som da porta, minha mãe não se vira para ver
quem é, mas eu posso ver meu pai e Sam entrarem. Eles não questionam em
momento algum o que está acontecendo, apenas se aproximam, Sammy
sobe na maca e se deita ao meu lado para me abraçar, já meu pai, senta-se
do outro lado e se junta ao nosso abraço.
Eu vejo quando minha mãe analisa a cena e sorri, é lindo... Seu
sorriso cura todo tipo de sensação ruim dentro de mim. Meu pai não tira os
olhos dela, e com um sussurrar cauteloso e carinhoso que ele diz:
— Eu te amo...
E sem surpresa alguma em seu olhar, ela responde:
— Eu também.
Sammy e eu não dissemos nada, mas claro que meu irmão não
consegue disfarçar a satisfação em assistir meus pais se olharem dessa
forma.
É como ela disse, o amor deles é do tipo que nunca acaba.
— Desculpa destruir o clima, família — Sammy diz de repente. —
Mas não tínhamos algo para dizer ao Timmy?
Eu me afasto lentamente, desconfiado.
Meus pais riem um pouco e se afastam do abraço, exceto Samuel,
ele continua agarrado em mim.
— O quê? — eu questiono.
— Percebemos que com o tempo, está sendo cada vez mais difícil
de suportar tudo isso — meu pai explica, ajeitando o cabelo como eu fazia
com o meu. — A depressão é inevitável nessas condições e você não parece
bem... Digo, emocionalmente... Por isso decidimos que, com auxílio
médico, é melhor irmos para casa um pouco.
Deus...
Passei a metade da minha vida imaginando sentir exatamente o que
sinto agora, com uma notícia de que venci o câncer ou que milagrosamente
foi descoberta a cura definitiva. Mas o que sinto agora, de forma
indescritível e extraordinária, é apenas porque eu irei voltar para casa.
Com a minha família...
— Mesmo?!
Meu pai sorri com a minha reação.
— Mesmo, querido — mamãe confirma, acariciando meu rosto.
Quase pulo de alegria, mas fatores bem específicos me impediram
de fazê-lo. Como por exemplo, Samuel me abraçando com extrema força ou
meu corpo que sequer se aguenta de pé.
— Vai me esmagar, Sam!
— Larga de ser dramático.
— Oh, meu Deus, meus pulmões vão explodir! — Certo, talvez eu
esteja exagerando um pouco.
Sammy revira os olhos e me afasta, como se eu fosse um boneco.
— Vai contar a novidade pro seu namorado? — ele questiona de
repente, sem me olhar.
“Namorado”.
Essa palavra ainda me soa estranha, por mais que eu sabia dos meus
reais sentimentos pelo Jun-ho e quanto quero estar com ele. Deve ser
porque eu nunca me imaginei nesta situação antes e estar com Jun-ho ainda
me parece um sonho distante e inalcançável.
Por isso eu só sorrio e confirmo com a cabeça.
Mal posso esperar para ver a reação dele!
O balanço

Choi Jun-ho

Timothy finalmente voltou para casa.


Fico tão feliz com a notícia que nem me importo com o horário em
que acordo, o que geralmente me incomoda bastante. Mas apenas desligo a
tela do celular e me apresso para ir tomar café da manhã.
Meu pai me analisa de cima a baixo e ri sozinho, isso acontece com
frequência. Digo, desde que comecei a namorar Timothy, ele sempre me
olha assim.
— O que foi? — estranho sua expressão.
— Nada, só que não é muito comum te ver por aqui a essa hora —
ele diz com certa ironia no tom de voz, o que estranha mais ainda. —
Timothy ligou, é?
— Nossa, acha que só vou me levantar cedo por causa dele?!
— Ele ligou? — insiste.
— Sim — respondo quase em um sussurro.
Meu pai ri ainda mais e segue tomando seu café.
— Aliás, Timothy foi pra casa — eu conto, sem conseguir conter o
sorriso.
Meu pai arqueia as sobrancelhas em surpresa com a notícia, agora
parece tão animado quanto eu! Mastigando depressa para que possa
comentar sobre o assunto, meu pai se ajeita sobre a cadeira como estivesse
extremamente ansioso.
— Ouvi que os pais dele estavam pensando a respeito — ele
comenta —, só não sabia que realmente teriam tomado essa decisão.
— É, parece surreal...
Eu digo ao me sentar à mesa, posicionando a bolsa de oxigênio ao
meu lado.
— Eu disse a eles que o hospital estava o adoecendo mais ainda. —
Meu pai me encara, surpreso. — Achei que pudesse tê-los ofendido com o
que disse, mas parece que levaram em consideração... Eu realmente só
estava pensando no bem dele, sabe?
— Eles sabem disso, Jun-ho. — Meu pai se levanta, levando sua
xicara com ele. — Por isso ouviram o que você tinha a dizer e perceberam
que isso realmente é o melhor para o Timothy, os pais dele gostam muito de
você, isso não é segredo para ninguém.
— Você gosta do Timmie?
— É claro, ele é o único que te faz levantar cedo!
Eu semicerro meus olhos em sua direção, meu pai não para de sorrir
nem mesmo quando toma mais um pouco de seu café, ele parece um
adolescente que só pensa em fazer piada com a situação deplorável das
pessoas.
Que absurdo.
— Nossa, que engraçado!
— Mas eu estava falando sério!
Como pode um homem desse tamanho ser tão cara de pau?
Meu pai ri da minha óbvia cara de desgosto e sai da sala de jantar,
como sempre fingindo que não apontou todos os meus pontos negativos que
eu já conheço muito bem!
— Céus, como ele pode ser cirurgião? — sussurro comigo mesmo.
— Ele deve fazer piadas sobre a diferença dos cérebros.
Existem esses momentos em que me encontro em uma preocupante
situação de diálogo solitário, apenas minhas paranoias e eu discutindo
assuntos intrigantes que, sem surpresa alguma, só intrigam a mim!
E assim se segue o meu breve café da manhã, comi o mais depressa
que pude para que pudesse ir visitar Timothy, até mesmo quando as visitas
eram no hospital, meu almoço e janta encurtavam o tempo para cinco
minutos e então eu saia praticamente correndo.
Coisa que, Timothy não pode saber de jeito nenhum!
Eu soube que planejaram outro piquenique para animar Timmie, por
isso eu peguei o que pude para ajudar, além é claro, da minha câmera e
meus fones de ouvido.
Seria um crime ir vê-lo e não tirar as fotos de costume e ouvir nossa
playlist juntos.
É como uma tradição nossa, começou quando éramos dois moleques
inocentes e que riam de qualquer piada mal contada para fingirem que
entenderam, mas sempre rindo de verdade das piadas que criamos porque
só nós dois realmente entendíamos o que o outro estava pensando.
Por isso eu guardo as coisas na minha bolsa o mais rápido possível e
me despeço do meu pai antes de sair de casa, geralmente eu não gosto e
nem posso andar muito, mas sempre que vou visitar Timothy tenho um
nível de energia enorme dentro de mim, por isso sinto a necessidade de
caminhar.
O dia não está muito quente nem mesmo frio, parece que tudo está
de acordo para que eu possa passar o dia com ele e que ela possa se divertir.
— Oi, Jun-ho! — Helena me recebe com um grande sorriso, eu amo
isso, é como se por algumas horas tudo o que Timothy precisou passar, não
fosse mais que um breve susto. — Entre, querido. — Eu deixo os sapatos na
entrada e sorrio ao entrar no cômodo, Samuel imediatamente aparece em
minha frente com um sorriso suspeito.
— Ha! — ele praticamente grita, apontando para mim. — Eu disse
que ele vinha correndo.
— Samuel! — Timothy berra de algum lugar.
— Deixe seu irmão em paz — Soohyuk diz ao entrar na sala,
batendo com um pano de prato em Samuel. — Ele não pode ficar gritando
desse jeito, tem que economizar energia.
— Ué, mas eu nem estou pedindo pra ele gritar! — Samuel protesta,
em seguida recebe um tapa na nuca. — Ai! — grita massageando o local,
enquanto sua mãe ri de sua cara.
— Não precisa gritar — ela diz, fazendo Sam revirar os olhos.
Timothy solta uma risada e isso chama minha atenção, eu o procuro
por um segundo até encontrá-lo sentado no sofá com uma manta amarela
por cima de seu corpo, ele sorri para mim e esconde a metade do rosto na
manta.
— Ei... — eu o chamo ao me sentar do seu lado. — Como você está
se sentindo hoje?
Timothy se ajeita no sofá, olhando ao seu redor.
— Eu estou tão bem... — sussurra, aproveitando o Sol sobre sua
pela ou invadir a casa pela janela. — Isso era tudo o que eu queria, minha
casa... Um jantar com a minha família e te ver fora daquele hospital!
— E agora você tem tudo isso...
— É. — Ele sorri, alcançando minha mão, para juntar com a sua. —
Obrigado!
— O quê? — Eu me desencosto do sofá, surpreso. — Por quê?
— Eu sei que foi você — ele diz, outra vez ajeitando-se no sofá —,
que falou com meus pais sobre isso.
É, talvez ele me conheça mais do que imaginei! Timothy sorri
carinhoso, eu pego sua mão com mais cuidado e beijo de forma cautelosa.
Ele sorri ainda mais.
— Samuel não para de me encher por nossa causa — ele conta, com
a voz baixa. — Fica dizendo coisas idiotas só pra me envergonhar.
— Engraçado, meu pai faz o mesmo.
Timothy solta uma pequena gargalhada e tapa sua boca quando
percebe o quão alta foi, isso chama a atenção de seus pais e irmão que o
olham com surpresa. Mas após um segundo observando Timothy, apenas
sorriem e voltam ao que estavam fazendo.
— Eles não querem agir como se essa fosse a última vez que fossem
ouvir minha risada — ele explica, com a voz ainda mais baixa. —, ou então
literalmente tudo o que eu faça! Eles estão com medo, mas não querem que
eu perceba.
— Aparentemente você já percebeu.
— É, eu conheço minha família melhor que qualquer um.
— E você?
— O quê?
— Está com medo? — Timothy engole em seco, desviando o olhar.
— Não — ele responde, simplista. — Estou com medo por eles,
sabe? Não sei como será para cada um ou como minha mãe pode reagir...
Ela diz que irá ficar tudo bem, mas nem mesmo ela pode ter certeza disso.
É claro que ela diria isso, não quer deixar Timothy ainda mais
preocupado. Eu a entendo, não posso imaginar como é ser um pai ou uma
mãe que assiste seu filho morrer cada dia mais, por anos! Helena sempre foi
para mim como uma espécie de heroína, quando mais novo, eu achava que
a qualquer momento ela iria encontrar uma solução para salvar Timothy.
Sei bem que se fosse possível, ela faria.
— Você está com medo? — ele sussurra, trazendo-me de volta à
realidade.
Medo?
Isso não é nada perto do que eu estou sentindo.
— A verdade ou a resposta mais confortável?
— A verdade.
— Estou apavorado.
Timothy pressiona os lábios, como de costume quando sente
vontade de chorar.
— Mas não chega perto do medo de que você sentiu a vida toda —
continuo, beijando sua mão outra vez —, então não se preocupa... Sinto
medo porque te amo, sempre teremos medo de perder quem amamos, não
é?
Ele assente, mesmo que não pareça muito convencido.
Timothy respira fundo e se aproxima para deitar sua cabeça em meu
ombro, eu passo meu braço ao seu redor e ajeito a manta em seu corpo. Não
está frio, mas ultimamente Timothy sente muito frio.
Isso é mais um daqueles infelizes sinais que comprovam sua
situação.
Ele se aconchega em mim, escondendo o rosto em meu pescoço e
abraçando meu corpo. Seus pais continuam na cozinha, ouço suas vozes de
longe, acredito que estejam cozinhando. Samuel sai e o vejo do lado de fora
pela janela, mas não consigo entender muito bem o que ele está fazendo.
— Você está cansado? — eu sussurro, após perceber que Timothy
está há muito tempo quieto.
— Não muito, só estava com saudade — ele confessa, o que me faz
sorrir.
Eu também estava com saudade, morrendo de saudade!
— Você pode me abraçar com mais força? — sussurra outra vez, e
eu o fiz, aperto nosso abraço, mas ainda sim com muito cuidado. Timothy
suspira em frustação. — Eu não vou quebrar, Jun-ho...
— Eu sei — digo, rindo. — Mesmo assim vou tomar cuidado.
Timothy ri baixo, negando lentamente com a cabeça até que olhou
para mim e disse:
— Você não iria tomar cuidado se nós fossemos...
— Timothy! — eu o interrompo, praticamente gritando.
— O quê? — Ele ri ainda mais com a minha reação.
— Céus... — Coloco a mão no peito, meu coração parece querer sair
para fora. — Onde está aprendendo essas coisas? Que horror, Timothy!
— Mas eu nem disse nada... — Ele força uma careta de tristeza, mas
sorrindo em seguida ao me abraçar mais forte, eu estou definitivamente
chocado.
— Você ia dizer.
— Dizer o quê? — Samuel aparece de repente.
— Nada! — Timothy o responde quase de imediato, afastando-se de
mim com certa dificuldade. — E não é da sua conta, larga de ser
intrometido!
Samuel nos encara desconfiado, ele cruza os braços e se jogo na
poltrona ao nosso lado, eu dou risada ao me dar conta de que Samuel age
como se fosse o irmão mais novo.
Não, como um adolescente! Um irmão adolescente e rebelde.
— Eu te conto tudo! — ele protesta, fingindo estar chateado.
— Meus parabéns! — Timothy diz com falsa empolgação.
Eu me sinto como uma testemunha de um crime quando os dois
estão discutindo, nunca sei quem irá disparar primeiro e ainda sim... Sinto
bem no fundo que será Timothy.
Eles discutem como duas crianças disputando o melhor brinquedo
da prateleira, Timothy mesmo sem muita força sempre parece ter as
respostas na ponta da língua, isso irrita seu irmão que tenta o deixar
constrangido me contando coisas sobre Timothy que, pela sua reação, não
gosta nada da exposição.
— Samuel! — Sua voz até engrossa ao chamar a atenção do irmão.
— Fecha a boca!
— Fecha você a sua. — Sam parece se divertir com a situação,
tentando conter o sorriso vitorioso por irritar o irmão, com coisas tão banais
que até eu preciso me conter para não rir.
— Vou ver se seus pais precisam de ajuda — digo ao Timothy,
levantando-me após beijar sua testa.
Eu caminho em direção à cozinha sem olhar para trás, mas consigo
ouvir os sussurros dos dois que continuam discutindo.
— Olha o que você fez! — Timothy sussurra, como se quisesse
mesmo gritar.
— Eu não! Foi você.
E então eu definitivamente saio da sala, ao caminhar pelo corredor
eu posso ouvir claramente as risadas de Helena e SooHyuk. Quando cruzo a
curva para entrar na cozinha, ainda sem adentrar o cômodo, vejo os dois
provocando um ao outro com os preparos da comida.
Helena esconde o rosto quando seu ex-marido espirra água em sua
face, os dois riem da brincadeira, até que SooHyuk abandona os tomates e
se aproxima de Helena, segurando suas mãos e a conduzindo a largar as
vasilhas também. Helena o encara com curiosidade, mas não se afasta
quando ele se aproxima, passando as mãos por sua cintura e movendo o
corpo de um lado para o outro.
Eles estão dançando!
Sorrindo um para o outro com muito carinho, é lindo. É como se eu
estivesse vendo uma prévia de um possível futuro com Timothy, eles não se
divorciaram porque deixaram de se amar, a verdade é que se divorciaram
porque se amam muito e não queriam destruir isso.
Fico observando com fascínio até me dar conta de que estou
atrapalhando e bisbilhotando o que eles, com certeza, não querem
compartilhar com mais ninguém. Por isso eu volto para a sala e me deparo
com Timothy emburrado no sofá e Samuel ainda jogado na poltrona, os
dois com braços cruzados e assistindo algo na televisão que não perece
nada interessante.
Mas Timothy tira sua atenção e a coloca em mim, sorrindo ao
perceber que voltei.
— E aí? — ele pergunta, agora com voz mais tranquila. — Meus
pais te dispensaram?
— Na verdade eu percebi que eles não precisam muito da minha
ajuda — eu digo a meia verdade, ao me sentar ao seu lado outra vez —,
estão se virando bem sozinhos.
— Eles amavam cozinhar juntos, antes — Sam conta,
aconchegando-se na poltrona. — Dançavam pela cozinha e sujavam tudo
com guerra de comida, era bem engraçado.
Olha só que coincidência!
— Consigo imaginar a cena perfeitamente. — Há um motivo, mas
prefiro não dizer.
Timothy volta a se aconchegar em mim, eu não o afasto é claro, na
verdade ele parece bem satisfeito quando eu retribuo seu abraço com certa
força e então afrouxo o aperto para não o machucar.
— Eu acho que seus pais são a prova real do que é amor —
sussurro, vendo Timothy me encarar com surpresa, mas compreensão. Ele
me olha por um certo tempo, sem parar de sorrir e então se inclina para
deixar um leve e rápido beijo em meus lábios.
— E nós também.
É, nós também.
Timothy é muito bom em me deixar sem palavras, acredito que os
papéis foram trocados durante esses anos e isso me surpreende muito, não
me assusta, mas sempre me choca a forma como seus olhos não tentam
escapar dos meus como costumavam fazer. Agora quem foge, sem jeito e
com as típicas bochechas quentes, sou eu.
E é exatamente quando desvio o olhar que, com muita animação,
seus pais aparecem na sala com seus rostos sujos e os lábios curvados em
sorrisos tão sinceros que acredito nunca ter visto, em anos!
— Está pronto — Helena anuncia cantarolando, ela caminha em
nossa direção e se ajoelha em frente ao sofá, para que possa olhar melhor
para seu filho. —Está com fome? — Timothy confirma com a cabeça. —
Ótimo! Vamos almoçar então. — Timothy sorri em resposta.
Eu o conheço bem, por isso percebo que, mesmo sem fome alguma,
presenciando a animação de seus pais com o primeiro almoço em família
em tanto tempo, Timothy não hesita em momento algum para se levantar.
— Mas nós não vamos comer aqui — Sammy anuncia também,
cantarolando ao se levantar. — Vamos fazer aquilo que você chama de
“sonho” em sua lista mental, e comeremos em um piquenique improvisado.
Timothy só falta pular de alegria ao ouvir a notícia que, para muitos,
não significaria tanto quanto significa para ele.
Não demora muito para que todos estejamos no jardim, sentados
sobre o grande lençol que cobre a grama verde que Timothy tanto ama, não
há nada de diferencial em nosso piquenique. Pelo contrário, todas as frutas
congeladas que já se tornou um costume para ele, os vegetais que um dia
todos nós já odiamos e as típicas sobremesas que não saem do que
chamamos de “normal” na alimentação do Timmie.
Acredito que eu nunca tenha visto, desde que ele voltou ao
tratamento e todo esse pesadelo de luta interna pela própria vida, Timothy
tão tranquilo e sorridente como está agora. Nossos momentos sozinhos
foram sim algo surreal, ele esteve a cada segundo com um sorriso e um
brilho no olhar do qual me fazia sentir o que realmente é paz,
principalmente quando pude ouvir sair de sua boca a frase “eu te amo”, com
tanta naturalidade que eu quase tive a certeza de já ter o escutado dizer
antes. Timothy não esconde o que sente, já faz um tempo.
Desde a sua confissão de já ter “desistido” de si mesmo, ler suas
emoções se tornou algo mais fácil. Por eu isso eu posso ler tão bem as suas
expressões de incômodo ao engolir a frutas, ele não as rejeita em momento
algum, mas é possível perceber o grande esforço que ele precisa lidar na
tentativa de comer aquilo que, no momento, é a única esperança vaga de
que seu quadro ainda possa melhorar. Bem, isso pelo menos na visão de
seus pais que ainda não conseguiram vencer uma luta contra a negação.
Samuel por outro lado, faz pequenas pausas para mastigar a grande
quantidade de comida que há em sua boca, enquanto ainda segura em suas
mãos o que pretende degustar em seguida.
É terrível parar o que está fazendo, durante pequenos segundos, e
notar que não há nada de comum na forma da qual Samuel se alimenta. Eu
pude notar isso há um tempo, o que mais me preocupa é o fato de que
literalmente ninguém toca no assunto.
Talvez eu esteja realmente colocando coisas em minha cabeça
paranoica, ou Sam não está nada bem, a julgar pelo detalhe assustador que é
ter seu irmão adoecendo cada dia mais, em sua frente, sem poder fazer nada
para ajudar ou amenizar o sofrimento daquele que morre lentamente.
Sam tem inúmeros motivos para sair do controle.
Perder-se na imensidão que é o desespero sem fim, como uma
cratera desmesurável.
Eu sei que esse piquenique deveria ser um daqueles típicos fins de
tarde, com o Sol alaranjado pintando nossas peles com a melhor coloração,
sua temperatura suficientemente quente e a grama esfriando cada segundo
mais. Com formigas invadindo nosso espaço para se alimentar e risadas das
quais nunca deixaremos de escutar, mas a vida esteve nos dividindo em
pedaços dia após dia! Timothy está extremamente feliz porque irá
interromper o sofrimento que vem assombrando sua família durante anos,
mas para isso, teremos que lhe dizer adeus definitivo.
Hoje tudo o que sou capaz de sentir é medo.
Medo de que esse sentimento dentro de mim tenha uma semente tão
grandiosa, que vá crescer justamente no momento errado, quando Timothy
mais precisar de mim e de meu apoio.
Helena é ótima em fazer seus filhos rirem, a cada minuto suas
piadas sem nexo algum para mim, faz com que os irmãos riam sem parar
enquanto quase caem um sobre o outro.
— Eu não entendi — confesso, frustrado ao ser o único ali que não
gargalha diante das piadas do ex-casal —, o que tem de tão engraçado?
— É uma piada interna — Timmie explica com seu olhar cansado,
mas os lábios sorridentes. — Conta uma piada, Jun!
Eu nego, vendo todos insistirem de imediato.
Timothy está praticamente me obrigando a fazer seus pais
repensarem sobre nossa relação e se eu realmente o mereço, porque
sinceramente... Minhas piadas não são nem um pouco engraçadas e o único
que consegue rir delas, sou seu!
— Conta! — Samuel grita, quase cantando para me motivar.
Isso só me faz recuar mais ainda, encolhendo meus ombros e
gesticulando com as mãos como um maluco, até que Timothy me olha da
forma que me faz sentir o homem mais cruel do mundo por não querer
contar uma piada.
Isso me faz pensar na melhor que posso contar no momento, isso já
me causa a maior crise de riso.
— Já ouviram a piada do fotógrafo? — eu questiono com seriedade,
eles não pensam bastante antes de negar, ansiosos pelo que eu poderia dizer
a seguir e o que eu digo é: — Nem eu, ela não foi revelada.
Timothy mesmo com seu sorriso deslumbrante nos lábios, revira os
olhos com a piada, sua mãe me encara impassiva enquanto seu irmão e pai
riem sem parar. Samuel gargalha com a cabeça tombada para trás até cair
deitado na grama, isso até me faz rir mais e melhorou cem por cento a
situação.
— Esse foi muito boa, Choi — Sam diz surpreendentemente
satisfeito com a piada, secando as lágrimas nos cantos de seus olhos. — De
onde tirou isso?
— Não me lembro.
— As piadas dele são as piores — Timothy me ofende sem remorso
algum.
— Se são as piores, por que pediu para ele contar? — sua mãe o
questiona, indignada.
— É engraçado como ele ri das próprias piadas — Timmie confessa,
encolhendo os ombros.
E nossa, parar e observar Timothy é como admirar uma obra de arte
da qual é intocável! Nada nem ninguém pode o tocar, é frágil e impecável
demais, tão fascinante que é simplesmente impossível escapar da hipnose
que é te admirar.
Eu não estava brincando quando disse que o admirava em minha
casa na árvore, ele é o maior motivo pelo qual eu amo fotografar, desde que
ele seja o modelo, nenhuma fotografia tirada por mim sairá feia. É
simplesmente ele, existindo e alterando toda a química que existe em meu
cérebro e só ele. Unicamente ele, ocupa meus pensamentos.
E é quando meus lábios criam vida própria e sorriem com
sinceridade, que percebo seu olhar sobre mim, esse tempo todo. Assim
como os meus só enxergam ele.
— Mãe... — ele a chama, ao quebrar o contato visual.
— Sim?
— Será que eu poderia sair uns minutinhos, para mostrar algo ao
Jun-ho? — ele pergunta esperançoso, surpreendendo não só a sua mãe,
como a mim e os outros dois presentes.
— O que você quer mostrar?
Ele sorri e gesticula para que ela se aproxima, perto o suficiente,
Timothy apenas ergue suas mãos e conta como um segredo sagrado nos
ouvidos de sua mãe, o que ele tanto quer me mostrar. Helena o encara por
alguns segundos, analisando a informação, ela me olha por certo prazo de
tempo e então suspira ao decidir
— É claro, podem ir.
— Mesmo? — Timothy sorri ainda mais.
— Sim, meu amor.
E com isso, ele me olha.
Timothy olha para mim e meu coração tenta alcançá-lo ao ameaçar
rasgar meu peito, para sair para fora. Mesmo com a sensação percorrendo
meu corpo, eu me levanto e caminho em sua direção.
— Preciso que me leve a um lugar — ele diz, quase sussurrado.
— Achei que fosse me mostrar algo — eu o provoco, ajeitando sua
touca vermelha em sua testa.
— E vou — ele sorri —, mas para isso eu preciso que você me leve
até lá. — Timothy ergue suas mãos e segura meu rosto, como uma mãe
segura o filho nos braços, cuidado e amor. — Pode fazer isso?
— Eu fui até a lua, por você — eu digo, vendo suas pupilas
dilatarem e suas pálpebras abrirem e fecharem sem pausas. — Claro que eu
te levo, onde você quer me levar, Timothy Lee?
Dito isso, ele passa as básicas instruções e então saímos de sua casa.
Apenas alguns curtos passos, guiando sua cadeira de rodas enquanto ele
aproveita o Sol esquentando sua pele, até chegarmos em uma grande praça,
não há ninguém.
Apenas as grandes árvores e os extensos bancos de madeira, as
folhas caindo de seus galhos e novas florescendo como se nada tivesse
acontecido. É lindo, é como um campo, alto e ensolarado.
— Esse era meu refúgio, quando mais novo — ele conta, admirado
com a paisagem do local.
Eu continuo o guiando, até me deparar com um grande balanço
amarrado ao galho alto e forte. Timothy logo aponta em sua direção e sem
pensar, eu caminho até ele.
E é com cuidado que suas mãos tocam o assento, ele sorri, mas seus
olhos entregam outra coisa.
— Eu nunca mais me sentei nesse balanço — ele diz, emocionado.
— Era meu lugar favorito no mundo, quando meus pais discutiam e o
ambiente em casa ficava insuportável...
— Desde quando não vem aqui?
— Dede que fui embora — ele conta, sem tirar os olhos do balanço.
— Parecia imenso quando eu era mais novo, agora... É tão pequeno.
— Quer se balançar um pouco?
Timothy ri, ele me olha indignado.
— Jun, as vezes você me faz cada pergunta...
— O quê? Acha que vou te deixar cair? — eu questiono, fingindo
indignação.
— Não imaginei que a ideia seria você me segurar — ele confessa,
rindo baixo.
— Eu sempre vou segurar você.
Timothy engole em seco ao analisar a possibilidade, olhando para o
balanço uma única vez, ele sorri e então me olha esperançoso.
— Então sim, eu quero me balançar.
E com isso eu não demoro sequer um segundo, Timothy abraça
meus ombros quando eu o seguro pela cintura, um único movimento é
necessário para que ele consiga dar alguns passos e se sentar sobre seu tão
querido balanço. Para mim, ele ainda parece pequeno nessa imensidão de
galhos e folhas sem vida.
Ele é imenso em meio a vida, porque nada no mundo é tão forte
como ele.
— Nossa, isso é incrível — ele diz, admirado.
Eu me agacho em sua frente, sem o soltar, puxo com cautela a corda
para frente e com isso, ele começa se mover lentamente. Tão pouco que é
difícil de perceber, mas ele percebe.
— Você é lindo — eu digo de repente, seus olhos emotivos
encontram os meus olhos que o idolatram. — Eu te amo.
Timothy parece não conseguir parar de sorrir, suas mãos alcançam
meu rosto mais uma vez e o toque só reforça o que eu acabei de dizer. Eu o
amo, com todo o meu coração, incondicionalmente.
É até estranho, mas acredito que ninguém tenha amado um dia,
como eu amei Timothy até hoje, amarei amanhã e continuarem amando a
cada dia da minha vida.
E então, além dela.
— Está tornando esse lugar ainda mais significativo — ele diz após
um suspiro profundo, com suas sobrancelhas minimamente franzidas. —
Você precisa parar de tornar coisas simples em coisas tão preciosas.
— Não sou quem faz isso.
E outro sorriso.
Timothy está sorrindo muito hoje.
Ele olha ao seu redor, o vento também se apaixona por ele quando
choca em sua pele o fazendo fechar os olhos para apreciar a sensação. Mas
então seus olhos buscam por mim outra vez, tão intensos que me fazem
sentir único nesse mundo tão imenso.
— Nesses últimos meses, não... Nesses últimos anos — ele começa
algo que, mesmo com uma pausa, sei que irá me ferir a vida inteira —, você
me ensinou te amar de tantas formas diferentes, existiram momentos em
que eu sequer pude descrever esse sentimento.
— Timmie...
— Não, me deixe falar — ele me interrompe, sem soltar meu rosto.
— Acho que você entende o que eu sinto, por muito tempo não entendi seus
sentimentos por mim... Isso porque eu não acreditava merecer alguém como
você, amando alguém como eu! — Timothy pressiona os lábios, que já não
sorri tanto como antes. — Mas você também mudou isso, Jun-ho! Você fez
com que eu aprendesse a amar a mim mesmo.
Meu corpo inteiro congela.
— Você me inspira, dia pós dia! E eu consegui aprender a me amar.
— Outra vez, seu sorriso atrai meu coração. — Eu sei que você me ama, eu
sei e isso só intensifica meu amor por você. Não me culpo mais pelo
divórcio dos meus pais, na verdade eu entendo e todo o peso sobre mim que
não me permitia respirar, sumiu!
— O que você quer dizer com tudo isso, Timothy? — eu questiono,
mesmo com medo da resposta.
Ele encolhe os ombros, outra vez observa ao seu redor, seus olhos
brilham pela nostalgia que é visitar o local que o acolheu durante as
discussões de seus pais.
— Só... — ele começa, mas hesita. — Não vou estar aqui por muito
tempo, Jun-ho. — E aqui está, meu pesadelo de todas as noites
consecutivas. A despedida. — Eu não quero que se culpe, quando eu partir.
— Por que me trouxe aqui? — Minha garganta arde como a palma
da minha mão que aperta a corda do balanço com toda força.
— Eu queria que conhecesse esse lugar, para que ele também se
torne o seu refúgio. Para quando se sentir sozinho, com medo ou... — ele
hesita, muito, até suspirar agressivamente. — Ou quando sentir a minha
falta.
Não sei o que dizer, nem consigo entender o que estou sentindo
agora, e sinceramente? Eu prefiro não descobrir. O que era para ser uma
sensação emocional, torna-se física e eu sequer consigo olhar para ele sem
chorar.
Timothy respeita meu silêncio, ele não interrompe quando eu apenas
abaixo minha cabeça para tentar recuperar o fôlego que parece ter decido
fugir de mim, mesmo que eu sequer tenha me movido, ele espera,
pacientemente até que eu consiga olhá-lo outra vez.
Seus dedos delicados não hesitam em secar minha pele, mas o
trabalho é em vão, nenhum de nós dois se importa, ele apenas encara meus
olhos que não fogem dos seus.
— Eu também queria me despedir desse lugar — ele confessa. — O
câncer me ensinou a me despedir das coisas e de quem eu amo, mas nunca
irei tirar vocês do meu coração.
— Então isso é uma despedida?
Timothy arregala os olhos, curvando-se ainda mais em minha
direção.
— Claro que não! — ele responde quase de imediato. — Não,
porque eu sei que você estará ao meu lado até o meu último suspiro!
Parece que o vento é capaz de me carregar por quilômetros de
distância daqui, com a intensidade da fraqueza que estou sentindo agora.
Impotente, diante do amor da minha vida que assiste todos os dias seu
corpo morrer um pouco mais e não posso fazer absolutamente nada.
— É por isso que eu amo você — ele atrapalha meus pensamentos
—, está sempre aqui melhorando o meu dia, meu sol!
E como um simples aperto no gatilho, isso me estilhaça como vidro
chocando contra o chão.
Meus lábios tremem quando meu peito expulsa um som quebrado
do peito, minhas mãos apenas abraçam sua cintura enquanto meu rosto se
esconde em seu peito. Ainda ajoelhado diante do balanço, sinto Timothy
alinhar meu cabelo seguido de um beijo demorado.
Eu levanto meu rosto para encarar o seu, mas nada vem em minha
mente agora para dizer.
Então eu o beijo, beijo o amor da minha vida como se fosse a
primeira vez. Minhas mãos não soltam seu rosto e as suas seguram as
cordas do balanço, Timothy me beija de volta com a mesma intensidade,
milhares e milhares de pensamentos colidindo uns contra os outros.
Mas Timothy outra vez me tranquiliza, sem intenção alguma, ele
trouxe paz ao meu peito corrompido pelo luto antecipado e a saudade que
nunca mais irá me deixar.
Eu posso sorrir com nosso beijo, mas não posso imaginar que seria o
último.

Três dias depois

Meus pés já estavam pedindo misericórdia, enquanto eu continuo


andando de um lado para o outro, sem saber o que fazer, apenas rezando por
notícias sejam elas quais forem.
Outra vez aqui, nesse hospital que registrou inúmeras vezes os
momentos em que todos aqui estiveram em meio ao desespero. O
verdadeiro desespero!
Ao olhar outra vez para o corredor, deparo-me com o doutor
caminhando em nossas direções, com o olhar cansado e as mãos inquietas.
Samuel na mesma hora se levanta bruscamente do banco, chamando a
atenção de seus pais que imploravam por notícias no balcão.
— Fiquem calmos...
— Onde está meu menino? — Helena o interrompe, seu corpo quase
despencando sobre o ex-marido e os olhos inchados.
— Está no quarto — pacientemente, o doutor a responde. —
Helena, conseguimos reanimar Timothy dessa vez, mas... Se ele voltar a ter
outra parada eu não — ele travou, com os olhos dolorosamente fixos nos de
Helena, lentamente, moveu-se analisando a expressão de cada um até parar
sobre mim, engolindo em seco e emudecendo os lábios ele prossegue: —
não vou poder ajudá-lo.
O chão se abre sem aviso prévio, engolindo todos nós em um buraco
escuro e sem fim, meu estômago dói com o susto de cair de forma brusca e
meu corpo volta a tremer.
Samuel está paralisado, quem não o conhece poderia até dizer que
ele não esboça absolutamente nada. Mas eu o conheço, ele está sentindo a
pior dor que já sentiu em sua vida.
Helena chora.
E como chora sob o peito de SooHyuk que não aceita o que acabou
de ouvir, sua cabeça nega a informação e seus braços confortam a ex-
esposa.
E eu?
Bem.
Não tenho controle de minhas pernas quando elas ignoram tudo ao
meu redor e caminham até ele. Até Timothy, sozinho e cansado naquele
quarto que tanto odeia, eu o vejo dormir assim que abro a porta. Um cateter
incomoda seu nariz assim como incomoda o meu, posso ouvir os bips
acompanhando seu coração.
Mas não me tranquiliza.
— Você não está e não vai ficar sozinho — eu sussurro, ao me
sentar ao seu lado e alcançar sua mão. — Vou ficar aqui com você amor,
sempre.
Até o meu último suspiro.
A lua se torna estrela

Choi Jun-ho

Honestamente não estou com um bom pressentimento recentemente,


tenho pesadelos todas as noites e a maioria delas eu sequer durmo.
Isso me preocupa, é claro que preocupa.
Os sonhos são com ele.
Meu Timothy.
Em cada um desses pesadelos, eu acabo o perdendo e como na
realidade, eu não faço absolutamente nada e vejo Timothy partir bem diante
dos meus olhos. Geralmente quando eu acordo ele é a primeira pessoa que
vejo, já que não me permiti sair do seu lado desde que foi trazido às pressas
para o hospital, quando em uma madrugada seu coração simplesmente
parou de bater.
A sensação de desespero sempre muda, nunca é igual.
Cada vez que sou obrigado a sentir o pânico, ele me sufoca de uma
forma diferente.
— Viajando no mundo da lua, Choi? — Ouço a voz de Timothy,
pronunciando meu nome de forma errada por pura intenção, despertando-
me de meus pensamentos mais inconvenientes.
— Confesso que estava sim. — Beijo sua testa ao me sentar ao seu
lado. — Como está se sentindo.
— Dá pra suportar. — Ele encolhe os ombros. — Então eu estou
legal.
— Isso não devia ser suportável — eu digo, frustrado. — Você tinha
que estar se sentindo cem por cento bem.
— Nós dois sabemos que isso não vai acontecer.
Ficamos em um silêncio desconfortável até sua mãe entrar no
quarto, Timothy pisca e muda a expressão na velocidade da luz para não
preocupar sua mãe.
— Jun-ho, seu pai está lá fora e quer te ver — ela avisa, ao se
aproximar.
Timothy me encara, tem algo em seu olhar que não sei descrever
bem, mas então eu sorrio para tranquilizá-lo e saio com pressa para vê-lo.
Do outro lado da porta, meu pai me espera com as mãos escondidas
em seu jaleco e a expressão cheia de preocupação. É nítido quando ele puxa
o ar com força ao me ver.
— Ah, oi, Jun-ho! Quanto tempo, já tem uma família? — juro que
essa é a primeira coisa que ele fala.
— Que exagero, eu só fiquei dois dias fora de casa...
— Sem contar os últimos três que eu nem via você em casa — ele
aponta, agora falando sério. — Só dormia e então saía tão cedo que nem
sentava a mesa para tomar café!
— Você continua exagerando...
— Qual foi a última vez que fez uma refeição saudável?
— Sei lá — eu resmungo, movendo meus ombros de forma
involuntária.
Meu pai suspira em frustação, suas mãos passam pelo rosto cansado
e é aí que eu posso parar e notar. Meu pai está um caco, cheio de olheiras e
o cabelo bagunçado.
— Eu sei que você que estar ao lado dele, sempre — ele diz um
pouco mais calmo. — Mas você também precisa se cuidar, ou vai piorar e
não vai ter como ficar ao lado dele.
— Piorar do quê!
— Do câncer, Jun-ho!
Ele diz alto, alto o suficiente para chamar a atenção das pessoas no
corredor.
Eu massageio minha cabeça, ela dói como se tivesse alguém
martelando, as luzes me incomodam e o barulho principalmente.
— Você não saiu nem por um segundo do lado dele, como acha que
os pais dele ficam? — Meu pai esconde as mãos no bolso do jaleco, outra
vez. — Eles também querem passar um tempo com o Timothy.
— Mas eles não disseram nada...
— São os pais dele!
Eu posso chorar de frustação agora mesmo.
Acho que estou muito sensível.
— Desculpa — peço, com a cabeça baixa —, estou tão
preocupado...
Meu pai fica um tempo em silêncio, por isso eu levanto meu rosto
para vê-lo.
— Eu te entendo — com peso na voz, ele diz. — Mas você precisa
ir para casa, vai jantar, tomar um banho e dormir direito! Amanhã você
volta.
— Melhor não... — eu recuo, apreensivo.
— Timothy vai entender, ele é a pessoa mais compreensiva desse
mundo.
Ergo meus ombros.
— Mas eu não quero ir embora, pai...
— Eu estou mandando, Choi Jun-ho! — sério e com o tom de voz
um pouco mais alto, ele ordena por fim, fazendo-me engolir em seco e
aceitar a situação. — Vá se despedir — ele aconselha, ao mover a cabeça
em direção à porta.
Eu volto ao quarto para avisá-lo, mas quando abro a porta eu me
deparo com Helena e Timothy rindo juntos, não sei exatamente o que pode
estar acontecendo, mas esse é o momento deles, eu não quero atrapalhar.
Por isso eu apenas fecho a porta e volto em direção ao meu pai.
— Já podemos ir? — ele pergunta surpreso, ao me ver voltar tão
rápido.
— Vamos.
Eu não estou com raiva, nem perto disso, mas minha voz sai um
pouco arisca.
Meu pai não parece se importar, apenas me olha de forma
compreensiva e me segue sem dizer mais nada. O caminho de volta pra casa
é silencioso na maior parte do tempo.
Meu celular desligou, então não tive como avisar Timothy ou
Helena que precisei ir embora.
— Esqueci de te avisar — meu pai quebra o silêncio, meio sem jeito
—, seu irmão está vindo hoje.
Eu o olhei indignado, quase virando meu corpo inteiro em sua
direção.
— Por que ele não me contou?
— Ele quer fazer surpresa.
— Mas você está me contando, agora — eu julgo, apertando meus
olhos.
— Não sei guardar segredos.
Percebi.
Eu sorrio, surpreendentemente eu sorrio e até deixo uma pequena
risada escapar.
— Meu Deus, pai... — ele ri ao me ouvir.
Fico genuinamente feliz com a notícia sobre meu irmão.
Faz tempo que eu não o vejo e isso fará muito bem ao meu pai que
morre de saudade do filho mais velho, ao chegar em casa eu corro para
ajeitar seu quarto e o deixo confortável, para que ele possa descansar após a
viagem.
Logo eu tomei o banho mais longo da minha vida, meu pai tinha
razão, eu precisava mesmo disso. Os costumeiros banhos em que eu me
perco na imensidão que é a solidão, desde muito pequeno eu criei o hábito
de fechar meus olhos e tapar meus ouvidos enquanto a água corrente e
morna molha meu corpo gélido e tenso.
Com o tempo, a experiência acabou se tornando um pouco mais
incômoda por causa do cateter, mas isso não me impediu nos anos
seguintes. A verdade é que tudo se tornou mais difícil depois do câncer.
Como subir na casa da árvore ou as escadas para ir ao meu quarto
que realocamos para o cômodo debaixo após eu perder totalmente o ar ao
tentar subir, com isso, meu irmão então decidiu realocar o seu para mais
perto de mim. Assim, eu não estaria sozinho.
Minho não saía do meu lado nem por um segundo e agora, ele está
vindo pra casa só para nos visitar e então terá que voltar. Não que eu esteja
reclamando, eu mesmo que enviei a carta dele para a faculdade e não me
arrependo de nada.
Mas faz quase um ano desde que o vi da última vez.
Antes de ele se mudar eu me negava a aceitar que estava apaixonado
por Timothy, hoje eu tenho a mais pura certeza de que ele é o amor da
minha vida e que muito além de estar apaixonado, eu o amo.
Muitas coisas mudaram.
E eu sei que em sua vida também teve muitas mudanças e que
Minho está cheio de coisas para me contar, esse é problema, por conta de
Timothy estar em uma péssima condição nesses últimos dias eu não consigo
apresentar e muito menos sentir absolutamente nada que não seja aflição ou
preocupação.
Eu vou precisar deixar de lado toda a preocupação com Timothy
para dar mais atenção ao meu irmão? Ou eu posso simplesmente agir como
sempre agimos, papo de alguns minutos e então cada um indo para seu
quarto para jogar videogame? Acredito que essa visita não seja algo como
quando convivíamos todos os dias, Minho está vindo sem nenhuma data
comemorativa e ainda quis me fazer uma surpresa! É, aí tem coisa.
Então a resposta é: não.
Eu vou precisar sorrir e fingir que não existe alguém mais feliz que
eu no momento.
Com um leve susto, tão leve que meu corpo sequer responde a isso,
eu olho em direção à porta, pois ouvi as três batidinhas. É como se eu não
estivesse raciocinando quais seriam minhas reações e como eu reagiria ao
vê-lo. Minha mente e corpo reagem com o total oposto do que eu havia
planejado.
Minho está aqui, encostado no batente da porta.
Assim como estava quando se despediu de mim, no dia em que foi
embora.
Minha reação surpreende até mesmo a mim.
Parado no mesmo lugar, com o corpo tremendo e choro invasivo
estragando o momento do qual eu queria que fosse perfeito. Minho já me
viu chorar centenas de vezes, mas ele não parece se acostumar com isso, ele
anda em minha direção com pressa e não pensa duas vezes antes de se
sentar ao meu lado na cama e me abraçar.
Ele não pergunta o porquê do choro.
Nem mesmo me pede para parar de chorar, ele só me abraça e beija
o topo da minha cabeça, e como uma mãe conforta seu filho, ele nos
balança lentamente como um processo de ninar a criança.
E assim se passa um tempo, não imagino quanto, mas é o suficiente
para eu me acalmar.
— Seu quarto tá um nojo — juro que é isso o que ele diz, quando
percebe que eu já me acalmei e claro, isso consegue arrancar de mim uma
risada sincera. — Não sabe o que é uma vassoura, não?
— Estava te esperando, para vir limpar — eu o provoco e de uma
forma cuidadosa, Minho me empurra sem muita força para o lado.
— Se liga.
É incrível o que ele consegue fazer diante de uma situação como
essa, no lugar dele, ao confortar alguém em uma crise, eu também entraria
em uma.
E nisso nasceria o caos.
— Pai estragou a sua surpresa — conto, secando minhas lágrimas.
— Eu já sabia que você estava vindo.
Minho nega lentamente com a cabeça, em desaprovação, enquanto
encara alguma coisa em sua frente.
— Eu imaginei que isso aconteceria — confessa, em derrota —, mas
ainda assim você reagiu de uma forma muito emocionante. — Dessa vez
sou eu quem o empurro, revirando meus olhos. — Eu não fazia ideia de que
você me ama tanto assim, Ho! — utilizando o apelido que me deu quando
ainda pequeno, Minho caçoa da minha situação deplorável.
— Cansei, já pode voltar. — Sem muita força, eu ameaço um chute
em sua direção.
— Mas que moleque indelicado. — E me julgando com o olhar, ele
segue: — Como Timothy te aguenta?!
E com isso, outra vez a onda de sentimentos ruins me afoga.
Acredito que seja nítido isso, quando instantaneamente meu irmão
parece ter se arrependido do que disse, não pelo que ele disse, mas assim
pelo que me causou.
Eu respiro fundo, várias e várias vezes para vencer a vontade de
chorar.
— Foi mal — ele diz arrependido e eu nego, em outras
circunstâncias mencionar o nome dele não me deixaria tão apreensivo, não
teria como meu irmão saber disso. — Como ele está?
— Sinceramente? — Outra vez, eu olho para meu irmão. — Acho
que Timothy já se foi há muito tempo, ele só está aguentando o tempo que
pode pela família dele. — Minho pisca atordoado, ele se move sobre o
colchão tentando assimilar a informação.
— Quando eu fui embora ele estava no início da quimio...
— Pois é.
Outra vez o silêncio, eu sei que essas coisas não são controláveis,
mas me sinto péssimo por ter estrago o momento da visita do meu irmão.
— Você o ama, muito. — Eu o olho, surpreso. — Não é?
Mas que pergunta...
— Acho que nunca amei assim, antes.
— Eu sei.
Acho que esse amor acabou passando dos limites, aparentemente
todos conseguem enxergá-lo de longe... Minho sorri diante da minha reação
e outra vez me puxa para um abraço desajeitado, eu não choro mais, mas
ficamos outra vez em silêncio por um tempo.
Até que eu ouço uma voz diferente, bem distante.
E quando eu percebo, até assusto Minho ao levantar minha cabeça.
— Sara veio com você?
Ele sorri.
Sorri como eu faço ao pensar em Timothy.
— Sim, ela veio — conta, se levantando. — Essa era a surpresa na
verdade.
E com um pequeno, mas sincero sorriso, sigo meu irmão em direção
à sala de estar e lá está ela. Minha cunhada que não vejo há muito, muito
tempo.
— Nossa, Jun-ho, você cresceu! — ela nota ao caminhar em minha
direção.
Realmente eu dei uma esticada desde a última vez que nos vimos.
— Só alguns centímetros. — Não faço disso grande coisa, mesmo
com um sorriso no rosto.
— Ainda assim, está bem maior que eu.
Meu irmão solta uma risada de seu comentário, ele sempre gostou
de fazer piada com a altura de sua namorada, isso sempre resulta em ótimas
reações dela. Fingindo que realmente se importa e dando tapinhas em seu
braço, eu sinto que para eles sempre é como quando ainda estavam se
conhecendo.
O olhar apaixonado e o sorriso contido sempre são o mesmo.
Assim como eu, com Timothy.
Meu pai interrompe o momento em que os dois iniciariam a falsa
discussão sobre a altura de Sara, para que fôssemos jantar, a mesa está
cheia, como não esteve por muito tempo. Meu pai sorri de orelha a orelha o
jantar inteiro, Minho e eu não paramos provocar um ao outro e Sara elogia a
comida a cada mastigada que dá.
Isso me faz bem, eu estava precisando...
Mas ainda assim, não consigo tirá-lo da minha cabeça.
Vou embora sem explicar, estou me sentindo péssimo com isso.
Mesmo tentando afastar esses pensamentos e focar no momento
com a minha família, eu me pego em vários momentos encarando meu
prato quase intocado e diversos pensamentos sobre Timothy naquele
hospital.
— Jun-ho? — é a voz do meu pai, quando noto, todos estão me
encarando de uma forma preocupada. — Não vai comer?
Eu inspiro profundamente, todos parecem já ter acabado de comer,
mas meu prato continua cheio.
— Desculpa, eu... — Eu? O quê? Nada vem em minha mente para
explicar minha falta de fome, além da mas óbvia e dolorosa. — Eu...
— Tudo bem, cara. — Minho pega minha mão. — Eu entendo, pode
ir ficar um pouco sozinho se quiser. — Ele sorri apertando minha mão,
como uma forma de transmitir apoio. — Mas depois você vai ter que comer
um pouco.
Pronto para responder e negar, sem querer sair e ignorar a visita de
meu irmão e minha cuinhada. Sou interrompido pelo meu celular, que toma
ao receber uma chamada de Samuel, isso faz meu corpo inteiro despencar
naquele buraco que eu já conheço bem.
Tremendo, eu seguro o celular perto de meu peito e me levanto com
pressa.
— Licença, eu volto já — eu digo e não fico para esperar uma
resposta.
Ando depressa para os fundos da casa, o desespero é grande, mas
caso haja uma má noticia a me dar, eu não quero me vejam. As rodas da
bolsa de oxigênio fazem barulho junto com o som da chamada, até que eu
me sento no gramado e largo a alça, ofegando e tremendo, aceito a ligação.
Eu não digo nada, apenas coloco o celular em meu ouvido e espero
por seja lá o que Deus quiser.
E eu sequer acredito em Deus.
— Jun-ho... — Samuel me chama.
— Hm?
— Você está bem? — ele parece preocupado, eu murmuro que sim,
ele segue: — Estávamos preocupados com você — ele conta, meio sem
jeito.
— Como Timothy está? — só isso que consigo dizer.
— Dormindo. — Em alívio, eu suspiro fechando meus olhos. —Ele
estava preocupado com você, mas acabou pegando no sono, por isso eu
estou sussurrando.
Tenho chorado muito, hoje.
Agora não é diferente, acredito que o alívio foi tão grande que
transbordou. Sam espera em silêncio enquanto eu não respondo, com a mão
em minha testa e a outra sustentando o celular ao lado do meu ouvido.
Eu olho ao meu redor, de forma aleatória, como se algo pudesse
ajudar a me acalmar agora, mas não existe nada além da bolsa de oxigênio,
a grama e... a casa na árvore.
É, isso me acalma, eu a observo daqui debaixo. Parece imensa, tão
alta e inalcançável.
Mas ainda assim, mesmo com esse cateter e essa bolsa, eu consigo
subir.
Isso que me fascina.
A forma como eu posso alcançar algo tão surreal.
— Graças a Deus — eu sussurro mais para mim, que para ele.
Mas Sam me escuta e solta uma risada ácida.
— Ele não se permitiria partir, sem você aqui — Sam diz e
voltamos ao silêncio, do qual é difícil de sair.
— Desculpa — peço, ao fungar. — Meu irmão veio me visitar então
eu precisei vir para casa — tento me explicar. — Mas eu não consegui me
despedir dele.
— Sai dessa, cara — Sam diz, e eu o ouço fungar —, nós te
entendemos.
— Eu sei.
Outra vez o silêncio.
— Minho? — ele questiona e por um segundo eu fico confuso.
— Ah, sim — confirmo —, ele mesmo.
— Nossa, faz tempo que eu não o vejo — diz, meio nostálgico.
— Quando o viu pela última vez?
— Um pouco antes de ir para o Reino Unido — ele conta ao pensar
um pouco.
Nossa! Não faz só “um tempo”, foram anos.
Minho me acompanhava algumas vezes e outras, meu pai
simplesmente o levava por medo de deixá-lo sozinho, isso fez com que ele
conhecesse Timothy e Samuel. Ele e o Sam se deram bem na mesma hora,
mas não durou muito já que ele começou a frequentar muitos cursos e mal
tinha tempo para me acompanhar no hospital.
— Faz um tempão!
— É... — Sam ri fraco.
E o silêncio retorna, Samuel e eu temos uma boa relação, graças ao
Timothy. Não entendo como em alguns momentos nós simplesmente não
sabemos o que dizer um ao outro, talvez seja medo de dizer a coisa errada e
acabar nos ferindo, ou só estamos cansados demais para falar sobre o que
vivemos todos os dias.
Eu brinco com a grama úmida do quintal, apenas ouço o som de sua
respiração até então tranquila, ao fundo, os bips que indicam que o amor da
minha vida ainda não me deixou.
É agonizante de ouvir de perto, mas assim tão longe me tranquiliza.
— Sam.
— Hm?
— Você está bem?
Silêncio.
Um suspirar longo e alto atravessa meu celular, acredito que Sam
não ouve muito disso, é até compreensível. Mas também injusto.
— Não.
Ele responde e agora é minha vez de respirar fundo, Samuel é uma
das pessoas mais sorridentes e agitadas que já conheci, ouvi-lo responder
essa pergunta sem hesitar e com tanta potência na voz, é assustador.
— Eu sei.
Mas não é uma surpresa.
— Você parou de comer — eu aponto, um detalhe que notei desde
que Timothy voltou ao hospital e foi internado na UTI. — Antes não
conseguia parar e agora... Não consegue nem começar.
Sam suspira outra vez.
— Você não sente fome? — questiono, cauteloso.
— Sinto — ele responde sem hesitar.
— Então? — insisto.
— É que... Sei lá — ouço-o se remexer, provavelmente na poltrona
—, não sei explicar.
Como alguém que não consegue comer conseguiria explicar essa
sensação? Deve ser confuso até mesmo para ele. É doloroso demais já ter
que lidar com a condição do irmão mais novo, agora seu corpo e mente
estão respondendo a tudo isso.
Cada dor, cada medo, cada susto...
Sam é forte.
Muito.
Mas até mesmo as pessoas mais fortes do mundo caem, e o Sam...
está desmoronando há anos.
— Tudo bem... — digo me deitando na grama. — Mas precisamos
pedir ajuda a alguém, ao tentarmos encontrar uma forma de te ajudar.
— Eu sei...
— Não vou contar aos seus pais — enfatizo —, você mesmo
precisar contar.
Sam solta uma risada seguida de um fungar, ele fica em silêncio por
um tempo, funga algumas outras vezes e ri baixo.
— Não acredito que meu cunhado é um dos meus melhores amigos
— ele diz, depois de um tempo. E isso me pega de surpresa, estático por
alguns segundos eu ouço Sam rir mais um pouco. — Ainda não sei como
você mesmo não curou meu irmão... Você é capaz disso Jun-ho, curar as
feridas mais infeccionadas de alguém e nem percebe. — Não sabendo bem
como reagir, apenas fico em silêncio. — Eu vou tentar resolver isso, mas se
eu perceber que não estou conseguindo... Conto aos meus pais — ele diz
com mais confiança, isso me acalma.
— Eu estou aqui, Sam...
— Eu sei, Jun.
E outra vez ouço sua risada, baixa e tranquila.
Ficamos em silêncio outra vez, mas agora é confortável.
Como se estivéssemos tirando um momento para estarmos sozinhos,
mas não sozinhos o suficiente para sentirmos coisas ruins e ter pensamentos
terríveis. Estamos sozinhos para que passamos dar apoio um ao outro, nesse
momento tão turbulento.
Ouço batidas na porta, ao me sentar na grama outra vez, vejo meu
irmão do outro lado da porta de vidro. Com um olhar preocupado, mas
basta só um sorriso meu para que ele se tranquilize.
— Minho está aqui — conto, mesmo que vejo meu irmão se
distanciando da porta.
— Manda um abraço a ele, por mim — Sam pede, nostálgico.
— É claro. — Eu esfrego a palma dia minha mão pela calça,
sentindo o clima mudar e esfriar meu corpo. — Sam, eu vou fazer
companhia ao meu irmão, tem problema?
— Claro que não! — responde de imediato. — Vá, amanhã eu
conto ao Timmy que nos falamos.
— Eu vou ir aí amanhã.
— Outra boa notícia, ele vai amar.
— Obrigado por ter ligado, Sam — agradeço, verdadeiramente feliz
com nossa curta conversa.
— Obrigado por me ouvir — ele diz, logo após o ouço bocejar. —
Até amanhã.
Eu retribuo sua despedida antes de desligar, respiro fundo com tanta
informação em minha cabeça e volto para dentro de casa. Na sala de estar,
meu irmão, Sara e meu pai riem de algo e quase não notam quando eu
apareço.
— E aí, está tudo bem? — Minho pergunta, assim que eu me jogo
no sofá.
— Está sim, Sam me ligou para ver se estou bem — eu explico. —
Aliás, ele te mandou um abraço.
Minho sorri em resposta.
— Manda outro.
Virei pombo correio.
Mas eu apenas concordo com a cabeça e me encosto no sofá.
Sem demora eles voltam ao assunto, por algum motivo eu não
consigo me entreter na conversa e apenas observo, não faço ideia do que
estão falando e sinceramente... Não tenho interesse em saber, tudo parece
distante demais para mim agora, é estranho ver pessoas bem e saudáveis,
sem medos, preocupações ou pavor na possibilidade de receber uma má
noticia a qualquer momento.
E agora, Sam também me preocupa.
Ver uma pessoa perder a vontade de fazer algo que sempre amou, é
assustador, tenho medo de que ele não consiga sair dessa. Além disso,
Helena e Soohyuk ficariam desesperados.
— Temos algo para contar a vocês — Minho conta, ao segurar a
mão de Sara, isso chama minha atenção, por isso eu me ajeito sobre o sofá.
—, Sara e eu estamos noivos.
Meu pai se levanta na mesma hora, isso faz com que Minho e Sara
também se levante, eles se abraçam. Meu pai emocionado e meu irmão
tirando a caixinha com as alianças do bolso.
É.
Isso me pegou de surpresa.
Tão surpreso que levo um tempo para me levantar e abraçar meu
irmão, Sara sorri em resposta, meu pai está mesmo muito emocionado e eu
nem me sinto presente aqui de verdade.
— Parabéns — eu sussurro em meio ao abraço.
— Obrigado...
Minho está feliz, extremamente feliz.
Esso é a única coisa que importa.
— Precisamos beber algo! — meu pai diz, já caminhando em
direção ao carrinho de bebidas.
Eu não bebo, mas ainda assim ele me pergunta o que eu vou querer.
E outra vez eu retorno para o modo automático, apenas dando
pequenas risadas quando algo é direcionado a mim durante a conversa.
Minho bebe sem parar, sei que isso não o fará bem amanhã, mas sinto que
ele precisa disso agora.
Não faço ideia de quanto tempo se passa durante meus devaneios,
mas noto que eu praticamente já não estou mais aqui e que ninguém nota.
Por isso, eu me levanto e aguardo que todos pudessem me ver, sem querer
interromper a conversa.
— Tudo bem? — meu pai pergunta.
— Uhum — eu afirmo, suspirando —, só estou cansado... Tem
problema se eu for dormir?
Meu pai me olha por um tempo, pressiona os lábios e então relaxa
os ombros.
— Claro que não...
— Obrigado — eu digo caminhando de costas. — Boa noite, gente.
— Boa noite, Jun-ho — Sara é quem responde, meu irmão e meu
pai apenas me encaram, preocupados. Até mesmo quando dou às costas a
eles para chegar logo meu quarto, consigo sentir seus olhos em mim.
Mas a sensação de estar sozinho em meu quarto é aliviadora.
Desligar-me não só do mundo, mas também da minha própria
mente. Eu até tentei assistir “Atypical” e ler minha HQ favorita, mas nada
consegue segurar minha atenção. Fico praticamente todo segundo
verificando na barra de notificação se Sam me envia alguma notícia, mas
nenhuma chega.
O que pode ser um bom e um péssimo sinal.
Por isso acabo pegando no sono quando já está muito tarde e
infelizmente não é porque eu estava entretido em filmes, séries ou vídeos do
YouTube. Meus pensamentos só o continham.
Unicamente ele.
Dormindo naquela cama de hospital desconfortável que só fere
ainda mais seu corpo já dolorido, sem poder sentir o vento em seu rosto
como ele gosta ou o amarelo de sua parede que ele mesmo pintou com os
pais, quando mais novo.
Isso tira meu sono e por isso é tão difícil dormir.
Quando amanhece, a primeira coisa que faço é tomar banho. Um
banho longo e demorado na tentativa de aliviar toda a tensão do meu corpo,
mas não, isso não ajuda. Meu pai não deixa que eu saia de casa antes do
café da manhã já que minha carona é ele.
— Dormiram bem? — meu pai questiona, ao encher sua xicara de
café.
— Sim, Sr. Choi — Sara responde, sorridente. — Obrigada!
— E você, Jun-ho?
— Muito bem — eu respondo, sem pensar muito.
— Não é o que parece — Minho diz me encarando, outra vez de
forma preocupada —, sua cara tá péssima.
— Obrigado, pela parte que me toca — eu resmungo, sem muito
ânimo.
E acredito que seja exatamente por esse motivo, que todos fingem
não se importar e mudam de assunto, mas continuam me olhando de canto e
disfarçando quando eu noto.
O problema é que eu também finjo não me importar, tomo meu café
o mais rápido possível e passo o caminho inteiro pro hospital em silêncio.
Não me entenda mal, não estou com raiva de alguém ou os culpando, o
problema é que eu não consigo me concentrar em mais nada e ninguém
sabendo como Timothy está.
Ao chegar no hospital eu quase corro para dentro, ouço meu pai
gritar para que eu vá mais devagar, mas só consigo diminuir o passo quando
já estou perto o suficiente para ver Helena e o doutor conversando, eu não
para falar com eles, apenas sigo para o quarto.
É como se eu não o visse a meses.
Isso é estranho.
Encontro Timothy dormindo, não há mais ninguém em seu quarto,
por isso eu entro com cuidado e me sento na poltrona ao seu lado. Timothy
respira tranquilamente com a ajuda do cateter e se remexe uma vez ou outra
na maca, e como se tivesse sentido minha presença aqui, Timothy aperta
suas pálpebras e então olha diretamente para mim ao despertar.
E ele sorri.
Timothy sorri para mim assim que abre os olhos.
— Meu sol — ele sussurra. Sua voz quase inaudível alcançou meus
ouvidos e congelou meu corpo, mas eu sorrio de volta, inclinando-me em
sua direção ao segurar sua mão delicada com todo cuidado.
Eu sou o sol dele.
— Desculpa, não quis te acordar — é o que eu digo ao beijar sua
mão.
— Tudo bem — Timothy diz, remexendo-se na maca —, dormi o
suficiente.
Sorrio em resposta, mas nada me vem em mente para dizer. Por isso
eu apenas o observo, em silêncio acaricio sua mão e beijo com cuidado.
— Não me olhe assim, Jun — ele pede, curvando a cabeça para o
lado, mas eu pisco em resposta diante da confusão que se formou em minha
cabeça.
— Assim como?
— Como se eu fosse explodir.
Outra vez minha mente fica em branco e não consigo pensar em
nada para dizer, isso não parece o incomodar, ele apenas me olha em
silêncio.
— Desculpa, eu...
Eu...?
Eu o quê?!
O que dizer para Timothy quando obviamente todos olham para ele
dessa forma, diante da condição em que ele se encontra?
— Quando eu disse que nós tínhamos nascido um para o outro, eu
não estava brincando — outra vez, ele quebra o silêncio. — Você acha que
vai me perder e que nunca mais vamos nos encontrar? — ele questiona e
aguarda minha resposta, que é um sincero e silêncio balançar de cabeça em
afirmação. — Você está errado, porque eu nunca vou deixar você, Jun-ho!
Sabe o porquê?
— Somos conectados por um fio invisível...
Timothy sorri ao assentir, eu me curvo ainda mais em sua direção e
beijo sua mão demoradamente. Ele suspira, seu corpo sempre respondendo
aos meus toques como o meu responde aos seus, é como uma ligação que
até então eu não acreditava fielmente. Mas Timothy tem razão e se não
tiver... Se o universo não for o responsável por ter escrito nossa história,
ligado uma ponta de um fio vermelho no mindinho um do outro, fazendo
com que nos encontrássemos — bem, então Timothy e eu criamos a história
de amor mais profunda e verdadeira que já existiu —, acredito que o
universo não seja tão criativo assim.
— “Um fio invisível conecta aqueles que estão destinados a
conhecer-se, independente do tempo, lugar ou circunstância. O fio pode
esticar ou emaranhar, mas nunca irá partir “— ele cita em um sussurro, a
frase que define bem o que é o tão admirado “akai ito” para ele. — Nosso
fio nunca irá romper, Jun-ho... Eu sempre vou estar aqui com você, de
alguma forma.
De alguma forma...
Eu apenas sorrio, sentindo meu nariz arder, acredito que chorar já
tenha se tornado um hábito para muitos aqui. E me assusta a facilidade em
que as lágrimas caem por meu rosto a cada dia que passa, em qualquer
situação ou momento.
Eu choro.
Choro pela dor da perda que não estou pronto para sentir, pelo amor
da minha vida que escolheu viver por nós e que seu último desejo foi
morrer por si mesmo.
— Não me faça um elogio fúnebre — de repente, ele sussurra com
os olhos fechados.
Talvez com medo de ver minha reação, ou simplesmente pela
exaustão.
— O quê?
— Não faça. — É como uma súplica.
Permaneço em silêncio, olhando para ele sem reação alguma e com
milhões de coisas passando em minha mente como um erro técnico que não
existe mais solução.
— Por quê? — finalmente eu consigo questionar, vendo-o abrir seus
olhos.
— É como uma última despedida — ele explica —, como se
estivesse falando a alguém pela última vez o quanto o ama. — Timothy
sorri, mas não parece sincero. — Eu não quero uma despedida, Jun-ho... Se
você se despedir de mim, significa que acredita que nunca iremos nos
encontrar de novo.
Eu nego diante da sua confissão.
— Despedidas são como um “até logo”.
— Não quando a despedida é para nunca mais voltar — ele rebate.
— Só sabemos no momento se irá ser um “até logo” ou um “adeus”.
— Eu nunca irei dizer “adeus”, a você.
Ele sorri, agora com sinceridade.
— Você não pode se prender a mim — ele praticamente pede. —
Vamos nos encontrar, mas eu espero que isso demore muito e que você viva
por muito, muito tempo!
Não é isso o que eu quero.
Mas não é o que eu digo em resposta.
Apenas sorrio em meio ao choro silêncio, assentindo com a cabeça
para transmitir toda a certeza e confiança que Timothy precisa sentir agora.
E ele se dá por satisfeito.
Ao sorrir mais e se remexer na maca para encontrar conforto, seus
pais voltam para o quarto e como sempre, todos ficam perto o suficiente de
Timothy para que possamos verificar quaisquer sinais estranhos que ele
possa dar.
Mas nada acontece.
Timothy volta a dormir pacificamente.
Como um cochilo de fim de tarde, em frente a janela para se aquecer
com o calor do Sol.
O problema é que o Sol dele, nunca se sentiu tão apagado.
Quatro dias depois

O relógio está marcando 02:24.


O quarto silencioso e escuro, sendo possível ouvir apenas o monitor
cardíaco acompanhando seus batimentos. Meu corpo dolorido e meus olhos
cansados entregando o resultado de passar dias em uma poltrona de
hospital, Samuel dorme abraçando seu próprio corpo do outro lado do
quarto, tudo muito quieto.
Chega até assustar.
Mas apenas Samuel dorme, eu me remexo sobre a poltrona diversas
vezes e Timothy me olha em silêncio, ele já está assim por um tempo. Não
consigo ler nada em seus olhos, mas não estão cansados, assustados ou
tristes.
Ele apenas me olha.
Por muito tempo.
— Lembra... Lembra o que eu te disse — ele faz uma pausa para
respirar, ou quebrar o silêncio de repente —, quando fomos ao balanço na
árvore?
Eu não respondo, apenas o encaro em silêncio.
— “Você vai estar ao meu lado, até meu último suspiro” — ele
sussurra.
Não! Não, não, não, não!
NÃO!
— Para com isso — eu peço, quando meu corpo entra em desespero.
E seus olhos, que agora entregam paz, encaram-me com mais
intensidade.
— Vem aqui — ele pede, sua voz quase não sai direto. Eu me
apresso, deito-me ao seu lado na maca e escondo meu rosto em seu peito,
tomando cuidado para não soltar todo meu peso em seu corpo. — Agora
olhe para mim. — Eu nego, nego em desespero e silêncio sem saber sua
reação. — Por favor...
Timothy tem a voz quebrada, como um choro contido.
Isso me estilhaça em bilhares de pedaços.
— Jun-ho...
— Não!
— Olhe pra mim — pede outra vez e eu nego imediatamente —,
meu amor... Por favor!
Ele chora, Timothy chora baixo e treme como se estivesse em meio
à neve.
Eu o olho, seu rosto antes pálido, agora está vermelho e molhado.
Timothy sorri para mim em meio a todo esse pesadelo, seus olhos agora
carregam dor.
E como dói.
Toda a dor que ele foi obrigado sentir esses anos, agora ele desconta
em apenas um olhar.
— Fica comigo — eu peço, arfando ao expulsar todo o ar de meu
pulmão que queima. — Não me deixa aqui, Timothy.
Eu imploro sem parar, Timothy não consegue encontrar um
momento para me interromper. Até que minha voz perde a força e dá
espaço para o som agoniante que é uma pessoa gemer pela dor interna que
está sentindo, a dor indescritível, de estar morrendo sem ao menos sangrar.
Não imagino quanto tempo se passe, em que eu abaixo minha
cabeça escondendo meu rosto em seu pescoço sem controle algum, Timothy
encontra força de algum lugar e beija minha cabeça, demoradamente.
Ele vai me deixar.
E eu não posso impedir.
— Eu amo você — escuto sua voz, como se estivesse a quilômetros
de distância, eu o agarro com mais força, sem coragem alguma de levantar
o meu rosto. — Meu sol...
Timothy arfa, profundamente quando suas mãos que me abraçam
agora começam a cair ao lado de seu corpo, ele para de tremer e eu já não
consigo mais ouvir seu choro. Eu o abraço com mais força, toda a minha
força, mas isso não o impede de partir.
O monitor entrega a mim o momento mais doloroso da minha vida,
segundos depois quando seu coração fragiliza e os bips diminuem, não
completamente. Mas o suficiente para que eu morresse junto com ele.
— Não! — eu grito, grito como nunca havia feito em toda minha
vida, isso faz com que Samuel acorde, assustado e confuso. Mas sem pensar
duas vezes antes de sair correndo pelos corredores, implorando por ajuda,
ao se deparar com o irmão quase sem vida. — Timothy! — grito, sem ter
uma resposta. — Fica comigo!
Seus olhos estão abertos, mas ele não está aqui.
Em pânico, meu corpo sobe por cima do seu e com minhas mãos
trêmulas eu faço o que posso para impedir seu coração de tirá-lo de mim,
massageio seu peito, com toda a força que me resta para reanimá-lo, mas
ele não reage.
Os gritos de Samuel podem ser ouvidos de longe, acompanhado de
passos apressados que vêm em nossa direção. Mas assim que as enfermeiras
e o doutor adentram o quarto, eles param.
E sem parar de massagear o peito de Timothy, eu olho para trás, não
posso descrever o desespero no olhar de Samuel e como seu corpo congela
diante da cena em que está presenciando, mas sinto assim que seus olhos se
deparam com os meus.
— Faz alguma coisa... — sem forças para gritar, minha voz
quebrada pelo choro sai quase em um sussurro ao suplicar por ajuda,
quando vejo o doutor.
— Meu irmão está morrendo! — Samuel por outro lado, grita,
furioso.
— Eu sinto muito — é o que ele diz, sem se mover.
Não!
Eu nego, sem desistir de trazê-lo de volta.
Ninguém tenta me impedir.
Por outro lado, acredito que todos têm a mesma esperança.
Mas o meu amor, aquele que sonhava com tantas coisas, que
prometeu se casar comigo e que salvava minha vida simplesmente ao sorrir,
estava cansado demais para me dar mais um dia ao seu lado, então os bips
param.
Samuel grita.
E Timothy se foi.
— Hora do óbito: 02:55.
É que eu ouço ao longe, mas nada me parece real quando eu tenho
meus punhos batendo com força em seu peito, desesperada e
incontrolavelmente, tentando salvar seu coração.
Ele para de respirar.
Seu rosto não está mais vermelho pelo choro e seus olhos já não tem
mais vida.
— Nós íamos nos casar — digo, segurando seu rosto. — Timothy,
você tem que acordar!
Por algum motivo, eu aguardo por uma resposta que não chega.
— Por favor...
Eu imploro, imploro aos céus e sabe-se lá quantos deuses eu
consegui lembrar no momento. Eu imploro e ninguém me ouve, Timothy se
foi, ele parte com seus olhos bonitos abertos e uma última gota de lágrima
manchando seu rosto.
É insuportável.
Agarrar seu corpo sem vida, sem ouvir seu bonito coração bater ao
colocar meu ouvido em seu peito, sem sentir ser retribuído ao abraçá-lo.
Apenas eu, implorando ao um corpo de carne e ossos que volte para mim,
um corpo sem mais nada.
Sem o amor da minha vida para me tranquilizar.
Sem ele para me ouvir.
Grito ao sentir mãos tentando nos separar, eu não ouço nada, não
enxergo ninguém e sinto tudo.
Mas não sinto ele.
Até que por fim, alguém consegue sem esforço algum me tirar de
cima de Timothy, em seguida me agarrando em um abraço. Tão forte que
mal posso respirar, é meu pai, ele me acolhe como um bebê. Segura-me em
seus braços e nos distancia da cena.
Tudo o que posso ver é Samuel no chão, sem ninguém, encolhido e
trêmulo.
Perdendo um pouco da vida com seu irmão.
Presenciando a lua, agora se tornar uma estrela.
Timothy Lee morreu aos seus 20 anos, no dia 3 de março às 02:55
da madrugada. Todos os outros morreram um pouco com ele aquele dia,
inclusive eu.
Máquina do tempo

Samuel Lee

Timothy tinha oito anos quando abriu seus olhos em sua cama e
sorriu como nunca ao se deparar com minha presença o observando, meu
irmão não se mostrou assustado ou frágil com a descoberta do câncer,
enquanto eu sequer conseguia tirar meus olhos daquele garotinho encolhido
em sua cama, repleto de sonhos que eu jamais saberei quais eram.
Ele dormia tranquilamente.
Eu o observava com pavor.
Hoje eu apenas posso observá-lo em seu sono eterno.
Um descanso tão profundo que sequer posso senti-lo aqui, meu
irmão se foi para nunca mais voltar e me deixou completamente sozinho
nesse mundo onde nada nem ninguém consegue me entender. Solitário
nesse paraíso perdido, repleto de memórias que não me aconchegam,
machucam-me como obstáculos que me impedem de alcançá-lo e isso torna
o luto ainda mais doloroso.
Não posso negar que em vida, meu irmão teve poucos momentos em
que chamamos de “felicidade”, mas ainda assim, Timothy sempre
aparentou ser mais feliz que qualquer outro.
Como na noite em que ele sofreu as primeiras sequelas da
quimioterapia, com seu cabelo caindo e sua pele pálida como a neve,
Timothy sangrou e vomitou tudo aquilo que tinha enfim conseguido comer
no dia. Ele chorou, em silêncio, lágrimas rolavam por seu rosto sem que ele
percebesse enquanto seus lábios contrariavam os sentimentos de seus olhos,
sorrindo da forma tranquila.
Eu arfei em resposta, encarando-o com espanto eu perguntei “qual é
a graça?”, Timothy sorriu ainda mais, fechando seus olhos. “Hoje é
aniversário de casamento do papai e da mamãe, eles vão comemorar, não
é?”, ele respondeu, sem abrir os olhos.
Timothy sempre foi romântico, desde muito novo ele enxergava o
amor como a forma mais linda de viver. Amando e vivendo esse amor, sem
obstáculos ou medos.
Apenas amor.
Mesmo com todas as minhas objeções, ele se levantou e desceu
alguns degraus para que pudesse espiar o momento de nossos pais, bem,
isso quando ainda havia amor.
“Olha, olha só Sammy”, ele sussurrou agitado, presenciando o casal
dançar com lentidão no cômodo grandioso, mas que só cabiam os dois. “É
amor, não é?”
“Sim, Timmy”, segurei a risada e me agachei ao seu lado,
confirmando. “Eles se amam muito mesmo, por isso comemoram todo
ano”.
Seus olhos brilhavam com a cena, ele agarrava as grades da escada
com emoção e se inclinava ainda mais na direção, para que não perdesse
nenhum momento.
“Cuidado, Timothy!”, sussurrei com medo de vê-lo cair. “Mamãe
vai brigar se nos ver aqui”, eu tentei alertá-lo, mas fui ignorado.
“Ela está nas nuvens, Sam”, ele me olhou. “Está feliz, ela não fica
assim perto de mim”, ele sorriu, mas meu coração se despedaçou naquele
momento.
A questão era que, mesmo naqueles dias, meu pai sabia como tirar
minha mãe da realidade e fazer com que ela pudesse se divertir. Mesmo que
pudesse parecer que sua felicidade se esvaía de seu corpo na presença de
seu filho adoecido, a verdade era que o medo nunca se foi.
E Timothy associar a preocupação de minha mãe a ele mesmo, é
doloroso.
“Claro que ela fica feliz com você, bobão”, eu resmunguei,
cruzando os braços.
Timothy sorriu e voltou sua atenção para nossos pais, o silêncio se
prolongou e por um instante eu acreditei que Timothy tivesse adormecido
com sua cabeça apoiada nas grades, mas logo ouvi seu profundo suspiro e
sua voz sussurrada.
“Sammy”, ele chamou, mas não esperou minha resposta. “Um dia
quero amar e ser amado como a mamãe e o papai se amam”. Eu respirei
fundo me encolhendo por causa do ambiente frio, não foi preciso pensar
tanto a respeito.
“Você vai”, eu disse, com extrema certeza.
Timothy me encarou, foi um dos únicos momentos em que não pude
identificar sua reação.
Mas entendi que, naquele momento, meu irmão não possuía
esperança alguma de que aquilo pudesse acontecer.
“Você precisa descansar”, eu disse ao me levantar e conduzi-lo a
fazer o mesmo. “Vamos”.
Dessa vez, não houve relutância.
Ele apenas me acompanhou e se deitou em sua cama, parecia
exausto. Com calma ele se cobriu e aconchegou seu corpo em seu colchão
macio. Como de costume eu permaneci ao seu lado, para aguardar seu sono
chegar, deitado ao seu lado, observando meu irmão adormecer.
Mas quando já havia cautelosamente me levantado, prestes a sair de
seu quarto, Timothy me chamou sem nem mesmo abrir seus olhos.
“Sammy”.
“Hm?”
“Um dia quero dançar com alguém, como eles estavam dançando”,
ele sussurrou, abrindo levemente os seus olhos. “Acha que alguém vai
querer dançar comigo?”
“É claro”. Eu sorri. “Quando alguém te convidar para uma dança,
estenda sua mão e aceite na mesma hora.” Timothy sorriu, afirmando com a
cabeça.
E, sem dizer mais nada, ele adormeceu outra vez.
Timothy dormiu como se nenhuma das reações agressivas de seu
tratamento tivesse nos assustados mais cedo, naquele dia. Ele sorriu e se
animou com a felicidade de nossos pais.
Hoje eu percebi que não foi só ele.
Meus pais também encontraram paz, depois de toda a tempestade.
Apenas eu tive pesadelos durante a noite.
E hoje não consigo acordar, pois meu pesadelo se tornou realidade.
Está frio, posso sentir ainda mais quando as memórias abandonam
minha mente, a roupa escura não esquenta meu corpo, o cenário atual
também não ajuda. Cinza e vazio.
Não é possível identificar cores nesse momento.
Timothy poderia colorir esse lugar apenas com sua presença, o
problema é que as cores foram embora justamente porque ele também se
foi. Foi um pouco egoísta da parte dele ao ir embora e levar junto tudo o
que me causava sensações de felicidade, um piquenique não é mais
saboroso, assistir filmes no sofá de casa durante a tarde é entediante e não
há mais motivos algum para que eu possa fingir irritação ao mencionar
“Atypical” em qualquer assunto.
É simplesmente isso agora.
Respirar e aguardar o meu momento.
— Sua sopa vai esfriar. — Eu percebo minha alta acomodação em
meio à dissociação, quando a voz de meu pai ecoa como um distante
chamado em um enorme cenário oco, puxando-me de volta para a realidade
com cautela e me deixando completamente confuso diante de suas palavras.
—Você não está com fome?
Meus olhos cansados procuram pela sopa, a fumaça quase
impercebível alcança meu rosto e esquenta a ponta de meu nariz frio, mas
apenas o calor me faz relaxar. A fome não me incomoda no momento e meu
corpo sequer se move para alcançar os talheres.
A resposta ao último questionamento de meu pai, é um simples
movimento com meus ombros.
Ele nada diz, apenas ouço seu profundo suspiro seguido de suas
mãos pálidas que alcançaram a tigela com a sopa, acompanhando o
movimento de suas mãos, meus olhos finalmente encontram os seus. Sua
atenção na tigela e na grande colher, faz com que ele não perceba minha
breve análise em seu rosto, ele apenas assopra o caldo e estende o talher em
direção a minha boca.
— Coma antes que esfrie — ele diz ao assoprar uma última vez, ele
insiste e insiste para que eu abra a boca, não desiste e nem mesmo me
pressiona para fazê-lo. Meu pai continua oferecendo a colher de sopa até
que eu finalmente consiga aceitar, sentindo um gosto amargo e com os
olhos ardendo, eu abro minha boca o máximo que posso e meu pai me
alimenta como se eu fosse uma criança.
Ele repete o ato, de novo.
E de novo.
Sempre tomando cuidado para não me queimar, ele assopra a sopa
antes de oferecer a colher, observa-me para se certificar se eu já engoli e
então sorri em resposta. Sua mão quente alcança meu rosto e seu dedo
desliza por minha pele, enxugando lágrimas que eu sequer havia notado que
estavam caindo.
— Você precisa se alimentar bem — sem parar de encher a colher,
ele diz com a voz rouca e baixa, agindo com naturalidade diante do meu
choro silencioso —, mas quando se sentir assim, me chame e eu vou ajudar
você.
Ele me oferece outra colher de sopa.
— Você nunca vai ficar sozinho, Samuel.
Sem muita dificuldade, ele raspa os últimos resquícios de sopa na
tigela e, novamente, oferece-me a colher. Eu aceito quase em automático,
ele sorri e devolve a tigela para a mesa, sem tirar seus olhos de mim.
— Entendeu?
Eu sorrio.
Sincera e verdadeiramente.
— Entendi.
E então ele sorri também, com seus olhos tristes e sua pele marcada
pelo choro recorrente desde o ocorrido. Eu consigo ler facilmente o que o
brilho opaco em seus olhos diz: medo.
Ele perdeu um filho, está apavorado com quaisquer possibilidades
de perder outro.
— Eu vou ficar bem, pai. — Ele pressiona os lábios, pisca algumas
vezes e então respira tão profundamente que acaba alterando sua postura.
— Promete?
— Eu prometo!
Outro sorriso.
Olhos tristes.
E um abraço que eu não recebo há anos.
Um abraço de um pai que ama acima de tudo, mas que não sabe
bem como demonstrar.
Ele se preocupa com isso, mas não imagina o quanto eu consigo
sentir.
Ele acabou de me alimentar como um bebê de meses, enxugou
minhas lágrimas tomando cuidado para não arranhar minha pele e sorriu
mesmo querendo chorar.
Não posso descrever o quão me sinto amado.
— Você está tremendo — ele diz ao me apertar com força, ele se
afasta sem tirar as mãos de meus ombros e me encara por um tempo. —Não
se agasalhou antes de vir?
— Não imaginei que fosse esfriar.
Meu pai se afasta o suficiente para tirar o sobretudo que antes
esquentava seu corpo, ele não hesita quando passa o tecido ao redor do meu
corpo, jogando a peça de roupa em meus ombros.
— Eu não sinto frio. — Ajeito o sobretudo para que possa aquecer
meu corpo, ele sorri e funga ao mesmo tempo, entregando sua imensa
vontade de chorar. Não posso falar ou fazer algo que possa amenizar essa
dor, eu sei que meu pai sustenta o peso da perda só para que minha mãe não
desabe ainda mais, ele quer ser forte.
Forte diante ao luto.
A verdade é que ele treme tanto quanto eu, mas sei que não é de
frio.
— Você comeu? — dessa vez sou eu quem questiona, e sua reação
chega ser cômica.
— Ainda não senti fome.
Eu conheço meu pai melhor que qualquer um.
Saber que sua dor é tão sufocante que ele sequer cogitou a ideia de
comer, é insuportável.
— O buraco no peito incomoda mais que o vazio no estômago, não
é?
É.
Sua expressão de dor responde por ele mesmo.
Mas com facilidade, ele controla o que está sentindo e sorri outra
vez.
— O vazio no estômago pode ser preenchido.
Mas o buraco no peito não cicatriza.
Ele não precisou terminar a frase, pra que eu entendesse.

Jun-ho insistiu na vida de meu irmão, até ser arrancado de lá pelo


próprio pai.
Hoje, no funeral, ele sequer apareceu.
Preocupo-me com sua ausência porque eu sei que, em hipótese
alguma, ele perderia a chance de se despedir. Timothy e Jun-ho não foram
um típico casal de adolescência sem sentimentos e diversos
desentendimentos, na verdade eu acredito nunca ter visto tanto amor antes.
Isso até mesmo antes de se tornarem o que foram ontem e o que
ainda são hoje.
É por isso que sua ausência não preocupa só a mim, como também
os meus pais.
— Sua mãe está desolada — meu pai comenta, após longos
segundos em silêncio, apenas a observando —, mesmo assim ela ainda
consegue se preocupar com Jun-ho.
— Talvez ela acredite que tê-lo aqui, faria com que ela sentisse o
Timothy. — Meu pai se virou em minha direção rapidamente, seus olhos
ainda mais cansados, abriram como uma flor desabrochando.
— Isso pode fazer sua mãe se sentir melhor — ele supõe.
— Pelo amor de Deus, pai. — Quase deixo uma risada incrédula
sair. — Isso é ridículo.
— Possa ser que seja. — Ele se põe em minha frente e segura meus
ombros. — Mas Jun-ho pode estar sofrendo e sua mãe precisa do apoio dele
aqui.
É óbvio que Jun-ho está sofrendo, ele acabou de perder o amor da
vida dele.
Nem posso imaginar como se sente.
— Vou ver como ele está — decido, já seguindo em direção à porta,
mas sou impedido por meu pai.
— Tem certeza de que consegue dirigir? — Ele analisa meu rosto, o
que com certeza não o levará a uma boa conclusão já que tenho chorado por
dias seguidos. — Posso te levar.
— Claro que não — eu recuo, olhando para minha mãe —, ela não
pode ficar sozinha. — Respiro fundo e ajeito minha postura para
tranquilizar meu pai de alguma forma. — Eu estou bem, vou ver como Jun-
ho está enquanto você fica com a mamãe. — Meu pai não costuma ser uma
pessoa “paranoica”, mas no momento ele parece se preocupar com qualquer
possibilidade em que eu possa me machucar. E eu sei que no momento, isso
é impossível.
Mas quem pode tranquilizar um pai com medo de perder outro
filho?
— Toma cuidado, Sam — ele pede, cedendo. — Por favor!
— Eu vou, prometo.
E com isso, ele solta meu braço.
Mesmo querendo me manter por perto.
Um dos incontáveis problemas em perder alguém, é o medo
insistente e angustiante que penetra em nosso peito e não solta de modo
algum! Essa é um tipo de perda que não tem volta, é perigosa.
Inevitável.
E infelizmente a única certeza que temos na vida, mas que jamais
iremos aceitar ou entender.
O medo de pai não é só que eu desabe nesse luto que me prende ao
chão, o medo é que isso acabe causando minha morte também.
Mórbido, né? Eu sei.
Mas não há escapatória, eu irei partir algum dia assim como todos
os outros.
O problema é que eu sempre desejei ser o primeiro da lista, pode ser
meio egoísta da minha parte, mas seria melhor que eu nunca sentisse essa
dor um dia. Acredito que a morte pode ser dolorosa, é insuportável a
possibilidade da dor que meu irmão possa ter sentido, mas ainda assim, essa
sensação de estar despencando a quilômetros e quilômetros de distância em
uma velocidade da qual o corpo humano não suporta... É insuportavelmente
dolorosa.
E Jun-ho pode estar sentindo o mesmo.
Sinceramente? Pela forma como ele o amava, essa dor pode ser até
mais intensa.
É por isso que me apresso o máximo que posso para alcançá-lo, não
tenho o mínimo interesse em descobrir o que o luto pode fazer com um
amor interrompido. Jun-ho não era só o amor da vida de meu irmão, ele se
tornou meu melhor amigo.
Ele precisa entender que, enquanto eu estiver aqui, ele jamais estará
sozinho.
Jamais.
— Samuel? — Uma voz familiar me alcança assim que desço do
carro, ao lado da enorme porta de madeira está Choi Minho, o irmão mais
velho de Jun-ho e o cara que não vejo há anos. — Meu Deus, o que faz
aqui?! — Ele parece preocupado, seu terno preto brilha ao entrar em
contato com a fraca luz do Sol nesse dia tão nublado. — Você está bem?
— Eu — tento buscar alguma explicação da minha visita sem aviso
prévio, mas ele se aproxima rápido o suficiente, sendo ainda mais rápido
que minha mente trabalhando para formular uma frase —, estou preocupado
com Jun-ho.
Seu olhar entristece.
— Eu já estava a caminho do... — ele faz uma pausa, analisando
minha reação — do funeral.
Uhm?
— Você vai?
— É claro, eu já estava de saída — ele esclarece, escondendo as
mãos no bolso. — Eu tentei de todo jeito trazer ele comigo, mas... — outra
vez, uma pausa e um suspirar. — Não sei, eu... Nunca vi meu irmão daquele
jeito.
Ajeitar minha postura e respirar fundo não alivia minha preocupação
e nervosismo no momento.
— Timothy era o amor da vida dele — praticamente sussurro.
— Ele é — Minho me corrige, parece realmente emocionado com a
situação. — É o amor da vida dele. E Jun-ho não para de dizer isso nem por
um segundo, mas ainda assim, ele não consegue sair de lá.
— “Lá”, onde?
— Ele disse que era “o lugar deles” e que Timothy só pôde ver uma
vez — com a expressão um tanto confusa, Minho tenta me explicar, ele
pensa por alguns segundos e então se aproxima mais. — Você pode entrar
para falar com ele? Eu sei que você tem preocupações maiores hoje, me
desculpa, mas eu realmente já não sei mais o que fazer.
— Estou aqui pra isso — respondo de imediato, disposto a passar o
tempo que for ao lado de Jun-ho até que ele se sinta melhor —, não vou a
lugar algum sem ele.
Minho suspira em alívio.
— Eu sinto muito mesmo, Samuel. — Seu olhar carrega compaixão,
ele tenta me oferecer um sorriso, mas logo sua expressão preocupada e
apreensiva toma conta de seu rosto. — Caso haja algo que eu possa fazer
para você se sentir bem, ou só precisar de um apoio, eu estou aqui.
Ah, é mesmo.
Minho e eu éramos próximos quando mais novos, esse fato sempre
acaba escapando de minhas memórias. Os irmãos mais velhos que
adoravam caçoar dos mais novos, tudo isso em um hospital, é, crianças não
enxergam mesmo o lado ruim das coisas.
— É “Sam” — eu digo de repente, Minho me encara sem entender.
— Pode me chamar de Sam.
Ele sorri, de verdade.
— Sam — ele repete —, você cresceu.
— Você também.
Ele concorda, seu sorriso some outra vez e uma expressão aflita
toma seu lugar.
— Eu não tive a oportunidade de vê-lo, depois que vocês voltaram
— consequentemente, meu sorriso também acaba sumindo. — A última
lembrança que tenho é dele indo embora com um enorme sorriso no rosto,
quando ainda era bem pequeno.
A lembrança toma conta da minha mente quase no modo
automático, ao mesmo tempo em que me faz sorrir, a vontade de chorar
volta com força e acaba sendo difícil de segurar.
— É — com uma risada fraca, quase imperfectível, eu digo. —Não
mudou muita coisa, Timothy deve ter crescido só uns dois centímetros.
Ele ri, olhando ao redor como se estivesse buscando algo para dizer.
— Ele foi muito forte.
Foi.
Ele foi.
Eu concordo, mas a missão de conter as lágrimas me impedem de
dizer algo, por isso apenas permaneço em silêncio enquanto me concentro
em respirar com calma.
— Vou esperar vocês aqui — Minho quebra o silêncio, olhando para
a casa. — Eu sei que você consegue voltar com ele.
Minho acredita no garoto que conheceu anos atrás, ele não faz ideia
da pessoa que sou hoje, mas de qualquer forma, não me oponho, Minho me
acompanha até sua casa e me indica a direção. Eu caminho com cuidado
pela enorme casa, atravesso a grande sala de estar e de longe consigo ver o
motivo de eu estar aqui.
Atrás da enorme porta de vidro, posso ver Jun-ho sentado na grama
verde, sua roupa indica o quanto ele lutou contra o próprio luto para se
despedir de meu irmão, seu cabelo parece úmido, deve ser por esse motivo
que seu corpo treme. Ele encara a grama e brinca com as pequenas flores
que estão para desabrochar, um fone de ouvido ocupa o seu lado direito,
enquanto o outro lado do fone cai ao lado de seu corpo.
Ele não tem mais alguém para dividir o lado esquerdo do seu fone.
Jun-ho não escuta quando eu abro a porta de vidro, ele também não
percebe quando me aproximo e sequer sente quando — com muito cuidado,
eu tiro o sobretudo que meu pai havia usado para me esquentar —, e cubro
o garoto que se treme sem parar.
E então, eu apenas me sento ao seu lado.
Na grama fria que, de alguma forma, consegue me aquecer.
Jun-ho continua ouvindo sua música e não parece perceber minha
presença aqui, seu olhar abaixado enxerga apenas o colar caído na grama, o
colar que conheço muito bem. O pingente de sol brilha com a luz do dia, ele
desliza seus dedos sutilmente pela corrente de prata que se perde entre as
folhas verdes.
Chega ser um tanto sufocante o silêncio que preenche o ambiente
aberto, ao olhar meu redor, deparo-me com a imensa árvore atrás de nós. A
casa da qual Timothy tanto falou é maior do que eu imaginava, escondida
entre as folhas e galhos para que o calor do Sol não estrague a cor da
madeira.
— Foi algumas horas após visitar esse lugar, que Timothy decidiu
desistir do tratamento — a voz de Jun-ho acaba me pegando de surpresa,
ele não levanta o rosto e nem mesmo para de tocar o colar. — Talvez se eu
não tivesse insistido pra que ele viesse comigo, as coisas tivessem sido
diferentes.
Desde que o conheci, notei que Jun-ho costuma colocar toda e
qualquer carga em si mesmo.
A culpa que ele carrega pelo estado em que meu irmão ficou, ou até
mesmo pela decisão que ele tomou, é ridiculamente sem sentido. Mas eu sei
que não há muito o que possamos fazer no momento, essa sensação não vai
mudar e mesmo que eu diga as palavras mais reconfortantes do mundo para
ele, a culpa ainda o corroerá por dentro.
— Ele estava sofrendo tanto naquele dia — comenta, se encolhendo
ainda mais —, mas eu estava distraído demais para notar.
— Não pense nisso, cara. Meu irmão ficou muito feliz quando você
apareceu lá disposto e levá-lo onde ele quisesse, com toda certeza foi uma
das melhores coisas que aconteceram com ele — sem hesitar, eu protesto
diante de sua culpa. — E esse lugar... — Olho em volta, a grama verde e as
flores prestes a desabrochar, as pedras que lembram pérolas e a grande
iluminação que esquenta o lugar. Tudo aqui é tão relaxante que faz com que
meu corpo deseje se deitar sobre as folhas e dormir uma tarde inteira. —
Esse lugar me faz lembrar dele.
Jun-ho finalmente me olha.
E nossa, seus olhos inchados e vermelhos comprovam o que eu mais
temia: o garoto não pregou os olhos a noite inteira. Timothy deixou claro
desde o início que jamais desejaria causar dor com a sua partida, seu medo
de que nossa mãe pudesse se entregar a temida depressão causada pelo luto,
ou à completa e inevitável ausência de nosso pai. Sem contar o
inconveniente problema que tenho enfrentado com minha alimentação, o
que apavorava meu irmão.
Eu sei, mas Timothy não tocava no assunto para não me
constranger.
Todos esses fatores que desencadeavam um extremo pavor em meu
irmão, que decidiu partir para evitar mais sofrimentos, mas que pedia aos
céus para que nada de ruim acontecesse em resultado.
Mas Jun-ho chora mesmo sem notar.
Ele treme sem sentir frio e tem dificuldade em me encarar.
— Você comeu hoje? — seu questionamento repentino me pega de
surpresa.
— O quê?
— Você conseguiu se alimentar bem? — Seu olhar preocupado se
esforça para permanecer aberto, ele seca algumas lágrimas e tenta afastá-las
para que possa enxergar melhor.
Timothy dizia que Jun-ho o deixava completamente sem palavras
em diversos momentos mesmo que fosse de forma não intencional, bem,
isso é perceptível no momento. São inúmeros momentos em que com
apenas um gesto ou uma fala, Jun-ho me deixa até sem pensamentos na
mente.
Isso não é ruim.
Mas eu sempre acabo ficando tempo demais em silêncio, sem reação
ao que me foi dito.
— Sam?
— Hm?
— E então? — ele insiste, isso faz com que eu saia do pequeno
transe em que fui colocado, Jun-ho aguarda minha resposta pacientemente.
Como uma criança que aguarda o decorrer de uma bela história de conto de
fadas, contada por uma avó serena e paciente.
O problema, é que o assunto não é um dos mais agradáveis como a
história dos Três Porquinhos ou a famigerada Chapeuzinho Vermelho.
— Eu estou bem, Jun. — Com um sorriso sincero, mas nada
convincente, eu me movo na grama para que meu corpo possa se apoiar na
imensa árvore. — E me alimentei muito bem, hoje.
— Essa é uma boa notícia. — Ele tenta me oferecer algo que,
possivelmente fosse um sorriso, mas sua boca não se curva ao ponto de
sorrir. — Fico feliz por você, Sam.
Jun-ho foi um dos primeiros a notar o que estava acontecendo, a
forma como ele reagiu me pegou de surpresa, e como havia prometido ele
não contou aos meus pais em momento algum. Embora eu saiba que meu
pai, com toda certeza, sabe que há algo de estranho.
O câncer de Timothy sempre nos assombrou, desde o momento do
diagnóstico até o último dia de quimioterapia. Esperar pelo pior de tudo foi
como um mecanismo de defesa que criei inconscientemente para quaisquer
situações que pudessem nos afetar, mas quando notei algo de errado estava
começando a acontecer comigo, não me afetou tanto quanto descobrimos
que o câncer havia voltado.
Esse é o problema do câncer, ele não te mata de forma rápida ou
indolor.
Ele te corrompe de dentro para fora.
Meu irmão não pôde aproveitar tantas coisas, quando mais novo foi
diagnosticado com uma grave doença e na adolescência precisou se
acostumar com a drástica mudança de cenário que gerou incontáveis crises
de ansiedade que o impediam até mesmo de sair de casa. Esse sim é um fato
que, propositalmente, Timothy evitava falar.
Ninguém gosta disto.
— Sinto falta do meu irmão. — Mas o problema mesmo, é que
nunca conseguimos escapar disto. Com a voz baixa e a vontade persistente
em chorar, acabo soltando algo que proibi a mim mesmo de dizer. — Quem
vai me chamar de “Sam Gardner” agora?
Jun-ho pressiona os lábios, seus olhos brilham e seu corpo encolhe.
Ele abraça o próprio corpo quando se deita na grama, encara o céu como se
toda a alta iluminação natural não machucasse seus olhos.
— Eu posso te chamar de “Sam Gardner” — ele sugere —, embora
você seja mais parecido com a Casey.
— Você assistiu?!
— Cada episódio.
Isso não me surpreende verdadeiramente, sei que Jun-ho iria muito
longe por meu irmão. Mas ainda assim fico fascinado com a descoberta,
Timothy me pedia para assistir com ele sempre que havia uma
oportunidade, mas eu raramente aceitava.
— Você era o melhor em cuidar dele — deixo escapar o pensamento
que, não é surpresa para ninguém, mas que ainda assim o surpreende. — Eu
queria tanto poder voltar o tempo e cuidar melhor do meu irmão...
Como algo como uma série da qual eu sequer tenha paciência para
assistir, pode ter feito com que eu notasse o quanto seria significativo
assistir ao lado dele, não por todo o enredo e elenco do qual Timothy era
apaixonado, mas sim por ele!
Mas Jun-ho não parece pensar o mesmo que eu, ele me encara com
suas sobrancelhas grossas tão franzidas, que chegam a um passo de se
tornarem uma só.
— Mesmo que houvesse razões para que isso acontecesse, acha que
a dor que você sente hoje seria diferente? — o questionamento me pega de
surpresa. — Sam, você cuidou tanto das outras pessoas, que nem lembrou
que precisava cuidar de você mesmo.
— Ma... Mas eu me cuido — a gagueira não transmite a quantidade
certa de convicção que eu desejava. — Era ele quem precisava de todo
cuidado.
— Eu sei — é o que ele diz, mas não parece convencido.
A sensação de sufoco só aumenta, Jun-ho ainda não demonstrou
sinal algum de que terá forças para se levantar e se despedir do amor de sua
vida, Minho permanece do lado de fora esperando que o irmão mais novo
sair pela porta de entrada a qualquer instante.
Enquanto eu... Bom, eu...
Afundo-me cada vez mais no gramado frio e úmido, assim como
ele.
Assim como o cara que sempre conseguiu se levantar, mesmo sem
ar.
— De qualquer forma — quebro outra vez o silêncio, quando o Sol
que alcançava minha pele, já não a esquenta tanto como segundos atrás. —
Uma máquina do tempo poderia me livrar dessa saudade.
— Então use ela — ele diz e isso me faz o encarar com confusão.
— Jun-ho, tá te faltando oxigênio? — pergunto seriamente
preocupado, mas isso o faz rir um pouco, o que também me surpreende. —
O que foi?
— Se pensar bem, todos nós temos máquinas do tempo.
— Eu ainda não entendi.
Ele ri outra vez.
— Podemos viajar a qualquer momento para o futuro que
desejamos, isso pode ser chamado de sonhos ou imaginação. —
Novamente, ele encara o céu, seus olhos brilham com o reflexo das
lágrimas que ainda insistem em cair, mesmo que ele nem perceba. — Mas
também podemos voltar para o passado, porém costumam chamar de
memórias.
Ah...
— A questão é que você pode voltar lá sempre que quiser, irá
reviver cada momento em terceira pessoa e verá que nada poderia ter sido
diferente. — E então ele me olha. — Timothy te amava, te ama e sempre
vai amar. Não seja tão cruel consigo mesmo, isso iria deixar ele arrasado.
Como...?
Onde ele aprende essas coisas?!
Como Timothy aguentou viver anos longe dele?
Como alguém tão puro como ele pode sofrer tanto?!
— Jun...
— Pegue essa passagem, Sam — ele me interrompe. — Sente na
classe executiva do seu próprio avião e viaje ao melhor momento em que
vocês viveram juntos, lembre e reviva cada momento em que disse “eu te
amo” para ele, veja como não poderia existir alguém melhor nesse mundo
para cuidar dele, se não fosse você!
Estou em pedaços outra vez.
Mas Jun-ho não precisa saber, ele não merece carregar a carga da
dor dos outros.
A dele já é imensurável.
— Vamos fazer isso no presente. — Seu olhar diminui, em
incerteza.
— Como...?
— Temos que nos despedir, Jun-ho.
Ele nada diz, seu rosto se move rapidamente em direção ao céu
novamente, seus ombros encolhem e suas mãos lentamente buscam apoio
na grama para que possa sustentar seu corpo que insiste em levantar.
Ele se senta, seu corpo curva para frente e a mão direita é trazida à
sua testa, junto de rastros de terra molhada que não parecem o incomodar
de forma alguma.
Ele está ocupado demais chorando, para notar.
É como se aquele garotinho de oito anos tivesse voltado.
Jun-ho esconde seu rosto com a mãe na testa, enquanto descarrega
tudo o que há para ser liberado, ele puxa o ar desastrosamente e isso resulta
em um com agonizante que foge do fundo de sua garganta, como uma dor
física, ele despenca em lágrimas que nunca acabam.
— Jun-ho...
Ele se encolhe mais, negando com a cabeça quando sua mão se
move em minha direção, gesticulando para que eu espere por algo, antes de
voltar ao seu posto para esconder o que não deve de forma alguma ser
escondida.
— Desculpa — ele pede, a voz por um fio —, desculpa! Eu não... —
Outra vez ele busca desesperadamente pelo ar. — Eu não estou bem —
confessa, seus olhos encontram os meus e me sinto completamente incapaz
de confortá-lo —, mas eu vou ficar. Não se preocupa, Sam, posso lidar com
isso sozinho.
Ele pode.
Mas não precisa.
— Eu vou — por fim, ele diz com a voz sendo interrompida pelo
soluço de um choro que não termina —, eu vou com vocês. — Ele move a
cabeça para confirmar suas próprias palavras, para si mesmo.
— Você não precisa...
— Preciso! — outra vez, ele me interrompe, esforçando-se para se
levantar e quando faz, ele me encara estendendo as mãos trêmulas em
minha direção. — Prometi que iria a até a lua por ele, isso não vai mudar
agora.
Aceito sua ajuda, me levanto com o sustento dado a ele e sem dizer
nada, apenas seguimos em silêncio por toda sua casa até a saída. Minho
permanece no mesmo lugar, ansioso, mas não se surpreende ao ver Jun-ho
caminhar em sua direção.
Ele sorri em alívio e não hesita antes de abraçar o irmão.
Por cima do ombro do meu cunhado, seu irmão me olha com
gratidão e sussurra um “obrigado” que só foi possível entender pela óbvia
leitura labial, Jun-ho se afasta e não faz menção alguma para acompanhar o
irmão no mesmo carro.
Ele aguarda até que eu destranque o meu.
E assim eu faço, o caminho de volta para o lugar mais terrível da
história é silencioso, mas não desconfortável. Sinto que finalmente posso
sentir a dor que sinto sem parecer fraco.
Eu sei que choros e gritos de dor só iriam desesperar ainda mais a
minha mãe.
Ainda não sei como lidar com o luto dela.
Como eu poderia?! Não sei descrever e sequer imaginar a
profundidade da dor é que perder um filho.
E é ao pisar novamente local onde todos se reúnem para se
despedirem de Timothy, que percebo que parte dela, já não está mais aqui...
Como se tivesse sido levada com ele, para nunca mais voltar.
— Mãe...? — eu a chamo, sem esperanças por uma resposta, mas ao
contrário disso ela me procura com os olhos vermelhos e desesperados até
me encontrar, seus lábios curvam num sorriso nada feliz e seu corpo
caminha depressa até mim.
— Sammy! — Seus braços me cobrem por inteiro, ela me abraça
como se não visse a dias ou até mesmo anos. — Meu menino, você deve
estar sofrendo tanto, meu amor... — Ela se move, automaticamente me
movendo junto, como se eu tivesse apenas alguns meses de vida e ela
estivesse tentando me acalmar de um pesadelo que interrompeu meu sono
durante a noite. Tapinhas de leve são dados em minhas costas ao mesmo
tempo que suas mãos acariciam, por cima do sobretudo.
— Você está bem, mãe?
Ela não responde, pelo menos não por muito tempo.
— Vai ficar tudo bem — e então, é o que ela diz.
Acho que é a primeira vez em que minha mãe diz algo que não é
inteiramente a verdade. Minha mãe está chorando, isso dói mais que uma
ferida infeccionada.
Doí saber que não há nada que eu possa fazer, para tirar essa dor
dela.
Minha mãe...
Eu a abraço, com toda a minha força e amor, com tudo aquilo que
ficou sob nossos ombros, por todas as noites não dormidas, por toda vez
que a vi chorar ou perder o ar pelo medo recorrente.
Por Timothy.
Por ele em vida, por ele como uma das inúmeras estrelas que um dia
admirou.

Pelo garotinho que brincava de esconde-esconde comigo, escondia-


se atrás de almofadas e acreditava fielmente que não havia esconderijos
melhores. O garotinho que passava madrugadas sentado na ponta da escada
para assistir o que ele chamava de “o amor mais puro que existe”, enquanto
nossos pais dançavam por todo o cômodo.
Isso tudo, desde o diagnóstico, o primeiro tratamento, os primeiros
fios de cabelo que caíram e então seu último suspiro. Tudo isso pelo garoto
que aguentou por anos, o que eu não suportaria por um único dia.
Meu irmão.
O filho mais novo.
O melhor amigo.
E o amor da vida de alguém.
É, tudo bem Timmy! Vamos ficar bem, você pode ir, eu te alcanço
sempre que puder. Vou apertar meu cinto e viajar anos no passado, somente
para te ver por alguns minutos.
Por enquanto, somente usando minha máquina do tempo que é
possível te ver.
Então irei usá-la, até que um dia ela não esteja funcionando mais.
Samuel está vivo

Timmy, sou eu. O papai.


Não vou te incomodar por muito tempo, mas achei que gostaria de
saber como nós estamos. O que está por vir será muito difícil de ouvir, não
se culpe, não pense no luto como o resultado de uma escolha sua. Não vou
repetir tudo o que você já cansou de ouvir, você sabe, meu garoto, o câncer
se espalhou como o verdadeiro mal esses últimos anos.
Eu queria ter tido a oportunidade de estar ao seu lado, na noite em
que você morreu, meu pequeno satélite natural. Mas eu não estava lá por
você, ou pelo Sammy.
Estou aqui agora.
É o suficiente? Continuo perguntando isso a mim mesmo.
Desde a nossa despedida não recíproca, as coisas têm sido um pouco
dolorosas. Eu continuo dizendo a mim mesmo que isso irá passar mais
rápido do que posso imaginar, nunca menti tanto a alguém.
Como você dizia ainda em vida, não existem limites ou pontos
finais para nós.
Isso seria então uma vírgula? É o que eu espero.
Hoje eu estou melhor que ontem, e assim por diante. Faz uns dias
que me levantei sem sentir culpa por tentar superar o luto, está orgulhoso de
mim? Aquele dia em que coloquei os pés no chão e caminhei sem medo de
cair, eu me lembrei que não estou sozinho aqui, Timmy.
Samuel estava de pé ao lado da janela, ele estava segurando uma
xicara de café já morno em suas mãos. Os olhos perdidos, talvez ele
estivesse em busca desse paraíso perdido que você caminha, sequer notou
minha presença ali por um tempo. Eu não queria incomodá-lo, às vezes a
tristeza parece confortável.
Eu lembro como ele não parecia se importar com o café frio, então
eu apenas preenchi outra xicara, com um café quente o suficiente para dar a
ele a energia que estava buscando naquela manhã.
— Você dormiu bem? — foi o que perguntei ao trocar seu café frio,
pelo quente. Ele balançou a cabeça, seus olhos gentis me agradeceram pelo
café, eu descansei ao seu lado a beira da janela, seu silêncio não me
incomodava, na verdade me preocupava.
Eu queria que você pudesse de alguma forma me mostrar um jeito
de trazer Sammy de volta, como eu queria ter seu dom de fazê-lo rir mesmo
em situações desesperadoras. Estou perdido, você dizia que eu sempre tinha
a solução para tudo.
Estou te decepcionando, não é?
— Sua mãe acordou? — outra tentativa, ele encolhe os ombros.
— Sinceramente — ele respirou fundo —, não acho que ela tenha
conseguido dormir.
Desejei que estivesse chovendo aquele dia, pois seria uma tarde
silenciosa, mas nenhuma gota caiu do céu. Helena, bem... Sua mãe, são saiu
do quarto em momento algum, pouco a pouco comendo algo para manter as
energias, seus olhos bonitos carregavam o que eu mais tinha medo de vê-los
refletir:
Desistência.
Não se preocupe Timmy, ela não desistiu de você ou de Samuel.
Estava desistindo se si mesma.
Oh, isso irá te preocupar ainda mais, não é? Perdoe-me, mas não se
assuste.
Só estou começando.
No início da tarde, Samuel me implorou para que eu fosse vê-la no
quarto. Eu jurei por tudo que jamais abandonaria sua mãe, Timothy. O
divórcio não mudou isso, mas, meu filho... Eu preciso confessar, entrar
naquele quarto era tão, tão difícil!
Eu bati na porta, um único toque, a porta rangeu ao abri-la, sua mãe
não checou quem estava entrando. Eu pude vê-la deitada lá, de costas,
encolhida.
— Está com frio? — foi o que consegui perguntar, mas não obtive
respostas. — Você está tremendo — notei ao me aproximar, Helena não
disse uma palavra, eu me sentei na beirada da cama. A cortina branca e fina
permitia que entrasse a quantidade necessária de luz no quarto, mas estava
frio naquele cômodo, o que é estranho já que aquele era um dia ensolarado.
— Eu estava pensando, nós podíamos pedir algo para o jantar essa noite —
proponho, ansioso. — É um dia importante, não é?
Sua mãe não respondeu, ela não negou e nem mesmo aceitou.
Ela já não chorava mais aquele ponto, o que era ainda mais
assustador.
— Acha melhor que eu prepare algo, então? — insisti, ela se
encolheu ainda mais. Então tomei isto como uma resposta, ela realmente
não se levantaria dali.
Foi doloroso, eu confesso. Espero que não seja difícil para você
ouvir tudo isso, mas eu tive medo de perder sua mãe. Para ser ainda mais
sincero, eu tinha certeza de que perderia os dois.
Samuel já não frequentava mais suas aulas, a cada dia que se
passava, ele se alimentava menos. Eu o vi emagrecer mais rápido que o
normal, poucas vezes o via mastigando alguma coisa.
“Você não sente fome?”, eu o questionei uma vez, ele encolheu os
ombros.
Muitas vezes eu cogitei vir aqui, Timothy, pedir sua ajuda. Mas seria
egoísta demais da minha parte, não é? Por isso demorei tanto, passei dia
após dia como um zumbi por aqueles cômodos, até aquela tarde. Uma
simples tarde, seria um dia comum a qualquer outro.
Mas cada segundo significou tanto.
— Sammy — eu o chamei, ele me olhou —, quer dar uma volta? —
Foi uma surpresa ele ter aceitado, não pude esconder minha felicidade ao
vê-lo se levantar e passar por aquela porta. — Sabe o que eu queria muito,
agora? — eu digo um pouco atrás dele, Sammy para e me encara por cima
do ombro. — Ir ao parque.
— O quê?
— Lembra? — Eu me aproximo. — Íamos quase todo final de
semana, quando você era mais novo.
Samuel desvia o olhar, ele pensa por um tempo e de repente um
sorriso surge no canto de seus lábios.
— Ah, nossa — ele arfou, nostálgico. — Aquele que você nunca me
deixava ir aos brinquedos perigosos? — ele questiona em um tom de
acusação.
— Esse mesmo. — Orgulho-me de tal lembrança. — Hoje eu daria
tudo para estar na primeira fileira daquela montanha russa.
Timothy, naquele momento eu senti o conforto que não sentia há um
bom tempo.
Eu me perguntei se era você.
Impossível, não é?
— Desde que eu possa ir junto — Samuel não demonstrou
relutância a minha estranha proposta repentina, isso me alegrou, então lá
estávamos nós dois. Caminhando por um vasto parque recheado de casais,
grupos de amigos e famílias.
O cheiro familiar de algodão doce me fez sorrir, Samuel voltou
alguns anos atrás, seus olhos brilhando a cada coisa nova que passava por
nós dois. Nós repetimos incontáveis vezes a adrenalina de estar na primeira
fileira da montanha russa, ele riu, seu sorriso ao sentir o frio na barriga com
as diversas curvas e a alta gargalhada ao fechar com força os olhos.
Tudo o que o Samuel não sentiu por anos, transbordando ali.
Na primeira fileira de uma montanha russa que ele sempre quis
experimentar.
Já quase no fim daquela tarde, seu irmão decidiu que iria travar uma
batalha com bonecos de papelão, no tiro ao alvo na tentativa de conquistar
ursos de pelúcia para sua mãe. Olha, Timothy, não foi fácil, os bonecos se
moviam tão rapidamente que Samuel estava quase enlouquecendo, eu por
outro lado, apenas conseguia rir de sua frustação.
Mas então, ele conseguiu.
Ele conquistou um simples urso de pelúcia.
Uma baleia, para ser mais específico. Samuel comemorou como
uma torcida inteira de um jogo de futebol, já não parecia mais aquele
mesmo garoto que bebia o café frio pela manhã.
— Sammy — eu o chamei, ele me olhou curioso —, feliz
aniversário.
Jamais vou me esquecer da reação dele, ao ouvir essas palavras, pela
primeira vez em muito tempo, Timothy. Eu vi seu irmão chorar, sem sentir
dor alguma.
Ele transmitiu alívio e seus olhos já não pareciam tão exaustos.
— Eu quase me esqueci — ele respondeu, segurando o urso contra
seu peito. — Obrigado, pai — ele me agradeceu, mas era eu quem estava
grato ali. Eu fiquei feliz, Timothy.
Verdadeiramente feliz.
Como você sempre pediu que fôssemos.
Quando o Sol já estava indo embora, nós voltamos para casa.
Samuel correu para o quarto de sua mãe, eu o acompanhei, foi como vê-lo
aos seus dez anos outra vez. Ele entrou com cautela, não acendeu a luz, nem
mesmo chamou por ela.
Ele a beijou na testa, agachou ao lado da cama e sorriu.
— Tenho uma coisa pra você — sussurrou, em seguida ergueu a
enorme pelúcia. — É uma baleia. Você pode chamá-la de “blue”, ela pode
te fazer companhia nesse momento.
Helena, moveu as mãos lentamente, alcançou a pelúcia e a tocou
com cautela.
— É sua, mãe. Pode pegar — Sammy insistiu, ele entregou a pelúcia
com carinho. Seus olhos marejados entregaram sua mudança de humor, mas
ele seguiu sorrindo. — Eu queria poder fazer muito mais que isso —
confessou, fungando —, me perdoa, mãe.
Foi naquele momento que eu notei o que estava acontecendo, aquilo
era culpa, não era? Samuel estava lá com você, ele passou a se culpar por
algo que ninguém neste mundo jamais seria o culpado.
Meu garoto...
Minha metade de alma e carne.
Ele só precisava ouvir uma coisa, uma única frase.
Mas eu sabia, que não era de mim que ele queria ouvir.
— Sam — interrompi seu pedido desnecessário de perdão —, me
faz um favor filho. Vá buscar algo para o jantar? Podemos comer o que
você quiser hoje, é seu dia. — Ele não demonstrou empolgação diante disto,
mesmo assim, optou por aceitar a sugestão e saiu de casa.
Eu caminhei por aquele quarto, por mais tempo que eu possa me
lembrar, sem dizer uma palavra sequer. Meu peito gélido e minhas mãos
tremulas não me permitiam falar, então eu continuei tentando até conseguir.
— Samuel estava te pedindo perdão — lembro, com a voz falha —,
você consegue entender o porquê? — Não tive nenhuma resposta. — Eu
também sinto falta dele, a cada segundo do meu dia, eu penso nele! —
confessei, sem tentar conter o choro. — Mas o Samuel precisa de nós dois
agora, ele está implorando por uma palavra sua, qualquer coisa.
Eu esperei.
Nada aconteceu.
Sua mãe continuou de costas, encolhida.
— Eu sei que a dor que você está sentindo é insuportável — minha
voz falhou outra vez —, mas a cada segundo que se passa, estamos
correndo o perigo de perdê-lo também. Samuel não estaria pedindo ajuda se
realmente não estivesse despedaçando, eu só estou te pedindo que dê a ele
ao menos um “boa noite” — eu não consegui nem começar a medir minhas
próprias palavras —, se fizer isso ele estará aqui pela manhã para te dar
bom dia.
Eu ouvi quando a respiração dela acelerou, mas ainda assim, ela não
se virou para mim.
— Tudo bem, nós podemos começar sem você. — Tento
tranquilizá-la, já pronto para sair do quarto. — Só não se esqueça, Helena.
Que o Samuel está vivo.
Eu fui cruel com ela, eu sei. Perdoe-me, mas você faria o mesmo
que eu, eu te conheço.
Eu me lembro que tudo o que você nos pedia, era para não ficarmos
desconfortáveis no luto. Eu tentei o máximo que pude, por isso apenas
deixei sua mãe sozinha outra vez, ela precisa daquilo. Samuel voltou com a
janta, não surpreendentemente, eram uma caixa de pizza e um balde de
frango.
Confesso que fiquei esperançoso.
Aquilo significava que ele iria comer bem? Eu não o questionei,
apenas ofereci ajuda para arrumar a mesa de centro. Samuel decidiu jantar
enquanto assistia algo, ele não contou o que tinha em mente, mas aceitei
assim mesmo.
Nós preparamos da melhor forma possível, ele não relutou em pegar
talheres e um copo para sua mãe, mesmo sem a confirmação de que ela
viria. Ele pegou o controle e naquele momento eu soube o que ele decidiu
assistir, isso me fez arrepiar, mesmo que fosse uma simples escolha de
série.
Foi importante.
— Atypical? — Eu ouvi, meu corpo rapidamente se virou em
direção a voz. E ela estava ali, de pé ao lado do sofá, abraçada na pelúcia
que havia acabado de ganhar. Eu pude ouvir a pulsação de meu coração
diretamente em meu ouvido, Samuel não soube como reagir, mas Helena
apenas caminhou com cautela para não tropeçar no cobertor, se sentou ao
meu lado no sofá e encolheu as pernas. Sem soltar a pelúcia. — Coloca
desde o início, eu não me lembro de muita coisa.
Samuel balançou a cabeça e ela sorriu.
Mesmo sido pego de surpresa, ele selecionou o episódio e idioma da
série, correu até o sofá e se espremeu entre Helena e eu, como fazia quando
criança.
Eu não consegui absorver tudo aquilo, estava em choque. Fiquei por
um bom tempo olhando para a sua mãe, e nossa, você estava tão errado em
dizer que não nos amávamos mais, Timmy.
Não existe mulher no mundo que eu ame mais.
E ela sabe disso.
Sua mãe agarrou um pedaço do frango, comeu e observou Samuel
por um tempo. Ele não tocou na comida, nós esperamos por um tempo, mas
ele não parecia mesmo motivado a comer.
— Sammy? — ouvi sua mãe o chamar.
— Hm? — ele respondeu, sem tirar os olhos da TV.
— Não foi culpa sua — ela sussurrou, meu peito gelou e Samuel a
encarou em choque. — Tenho muito orgulho de você. Sabia? Obrigada por
cuidar tão bem do nosso menino. — Ele balançou a cabeça outra vez, sem
reação, seus olhos brilhavam enquanto olhava para sua mãe. — Feliz
aniversário, meu amor, eu amo você.
E então ele desabou, um choro acompanhado de um sorriso e
palavras quase impossíveis de serem compreendidas, Samuel abraçou sua
mãe com força, beijou-a na testa outra vez e enxugou suas lágrimas.
Era tudo o que o seu irmão precisava ouvir.
Foi aí então, Timothy. Que tudo passou a ficar mais fácil, eu espero
que um dia você possa me contar como você está, onde e se pôde me ouvir
daqui.
Enquanto isso, eu prometo que vamos ficar bem. Até podermos ficar
todos juntos outra vez.
A resposta do Sol

23 de março

Quatro batidas na porta.


— Jun-ho? — A voz do meu pai me alcança mesmo com a porta
trancada entre nós, ouço até mesmo seu suspiro após a prolongação
silenciosa em espera por minha resposta. O que não lhe é dada.
Tenho a sensação de que a cama me absorve a cada segundo do dia.
Eu não consigo sair, mesmo que eu me esforce, então eu acabei me
acostumando. Ficou confortável com um certo tempo e eu acabei desistindo
de tentar, por isso eu não movo um músculo sequer.
Não sei bem quantas horas se passaram, desde que me deitei aqui
para assimilar tudo o que aconteceu. Mas meu pai aparece com frequência,
ele bate na porta e me chama uma única vez. Com a perda da mamãe, eu sei
que ele entende o sentimento.
O sentimento que eu não entendo, mas sinto com intensidade.
Não é possivelmente descritível, ele não é moderado ou
minimamente suportável. Também não é barulhento, ele não irradia para
mais nada além deste cômodo. Simplesmente se prendeu a mim e fica aqui
comigo, em meu quarto, no meu mar de... nada.
Um espaço rochoso e seco.
Mas não é quente, é frio e vazio como o vasto universo que não está
ocupado por corpos celestes. Não há nada dentro de mim, nada que eu
possa fazer, nada que eu possa impedir.
Mas o vazio também transborda.
Talvez haja alguns resquícios meus pelo caminho. Posso ter
derramado algo sem querer até chegar em meu quarto, foi essa bagunça que
preocupou tanto o meu pai?
Essa ideia foge um pouco de minha mente quando sinto dificuldade
em respirar, é como se eu tivesse me esquecido como. Mas eu tento, essa
missão acaba se tornando impossível e por alguns minutos eu sou
extremamente capaz de esquecer quaisquer sentimentos que me prendem
aqui.
Eu fico desconfortável, tento até mesmo me levantar, mas ainda há
algo me impedindo. Meu corpo expulsa o ar com agressividade, é mais
como uma tosse, e dói! Arde como uma brasa sob minhas costas.
Eu não noto quando ou como, mas uma mão forte me ajuda a sentar
na cama e em poucos minutos percebo o ar outra vez invadir meus pulmões.
Minhas mãos tremem menos, mas ainda assim entregam o efeito que me
causa a falta de ar.
— Está tudo bem — ele diz mais para si, do que para mim —,
esqueci de trocar o cilindro me desculpa. — Ele me aperta, trêmulo e
assustado. — Me desculpa...
Meus olhos fecham sem que eu precise dar comando algum, sinto
meus braços moles e tento erguê-los para tornar esse aperto, um abraço
retribuído. Mas os meus braços por outro lado, não querem se mexer.
Apenas descanso minha cabeça em seu ombro, aquilo que não senti
durante a crise, volta com agressividade e não me deixa tranquilizar meu
pai.
— Me desculpa mesmo. — Ele massageia minhas costas como fazia
quando eu era criança, meu pai não para de se desculpar nem mesmo por
um segundo.
Mas eu não consigo dar a ele uma resposta, minha mente grita
algumas coisas, mas minha boca não produz nenhum desses inúmeros
pensamentos. Eu peço incontáveis vezes em minha mente destroçada para
que tudo isso não passe de um sonho ruim, que ele não se foi, que nada
mudou e que assim que meus olhos se abrirem ele estará lá.
Vai me fazer rir, segurar meu rosto com suas mãos e juntar seus
lábios nos meus.
Para então dizer “eu te amo”.
Para que eu possa responder logo em seguida que o amo centenas de
vidas mais.
E eu viveria mais milhares de vidas somente para amar Timothy, sei
que poucas teriam um final feliz. Mas amá-lo é o único perigo que me
arrisco sem medo algum, eu nunca havia me sentido tão vivo como me senti
assim que Timothy esbarrou em mim, ele foi meu melhor amigo, meu maior
apoio.
O amor da minha vida.
Mas agora, eu me encontro outra vez deitado com meus joelhos
dobrados. Não reparo quando ou se meu pai saiu do quarto, não ouço mais
sua voz e nem mesmo posso sentir sua presença. A falta de oxigênio me deu
uma leve amostra do que é voltar para a realidade, no momento eu escolho
qualquer outra coisa.
Do que voltar para um ele não esteja.

11 de abril
Desde a minha primeira crise, a porta permaneceu
escancaradamente aberta. Tem sido cada vez mais difícil de sair do quarto,
meu pai anda muito preocupado. Ele sempre está por aqui, posso estar o
atrapalhando com o trabalho.
Permaneço transbordando vazio frio e silenciosamente barulhenta.
Não tenho sonhos durante as poucas horas de sono, mas são
seguidas de fantasias dele vindo até mim para que possamos visitar o
balanço que ele tanto ia quando mais novo, e saio da realidade com a
terrível negação que se prende a mim assim como me prendi a ele.
Eu me pergunto a cada instante, e se tivesse sido diferente? Os
planos que fizemos, teríamos posto em prática? Timothy me contaria qual o
segundo desejo que ele escreveu em sua lista? Nós poderíamos listar cada
um dos desejos que escrevi na minha, desejos dos quais eu nunca tive
oportunidade de contar.
Uma imensidão de “e se”.
São as únicas perguntas no mundo, que eu sei com toda certeza, que
jamais terão respostas.
Mas eu farei de tudo, para responder cada uma das perguntas que ele
possa ter deixado.
Porque não foi justo termos sido interrompidos assim, eu apenas
estava me apaixonando pelo mesmo homem a cada dia. Então como serei
capaz de me erguer e superar algo irreversível? Meu pai comentou uma vez
que a dor de perder a mamãe foi insuportável, eu não conseguia visualizar
bem esse sentimento. Até hoje.
Ele entende melhor que qualquer outro.
— Vocês formaram uma família linda — meu pai ousou falar um
dia, após horas apenas me observando de longe, eu não podia o ver de
costas, mas o ouvia muito bem. — Eu sei que faziam planos. Timothy era
louco por você, mas o que vocês viveram juntos nunca será tirado de você.
Eu concordei, em minha mente.
— Perder alguém é... O mesmo que se perder. — Senti o peso em
sua voz. — Você não consegue imaginar o futuro, porque na teoria ele não
existe. — Naquele momento eu duvidei se ele esteva mesmo falando de
mim. — É impossível visualizar um futuro sem a pessoa que você ama.
Permaneci em silêncio, a parede se tornou a única paisagem da qual
tem sido suportável visualizar. Meu pai havia desistido de falar, ele ficou
quieto por um bom tempo, lembro de ouvi-lo fungar e então se movimentar
no que parece meu sofá. Eu ouvi seus passos desistentes, meu rosto se virou
quase automaticamente.
Ele estava prestes a sair quando reparou minha atenção, ele
congelou no mesmo lugar e esperou.
— O que faria se a mamãe estive aqui? — Seus olhos entregaram a
surpresa diante de tal questionamento. Surpresa seguida de confusão, para
então olhos vermelhos e molhados.
— Agora?
— Sim.
Olhei para ele. Ele respirou fundo, sorriu sinceramente contido sem
impedir que algumas lágrimas gentis molhassem seu rosto.
— Eu pediria a ela que cantasse para você — sua voz entregou a
admiração. — Ela cantaria algum verso de alguma música do Paul Anka e
acabaria te puxando para dançar com ela. — Ele riu, deslumbrado.
Meu peito queimou com a imaginação da possível realidade que
teríamos.
— Ela iria nos apoiar?
— Tá brincando? — Lembro de tê-lo ouvido alterar a voz com a
indignação. — Sua mãe iria amar Timothy, assim como Helena ama você.
— Essa observação foi dolorosa, por algum motivo, foi naquele momento
que notei o porquê ainda estava ali. — Falei o que não devia? — ele
perguntou.
Balancei a cabeça.
Relutante, ele aceitou minha falsa reposta. Talvez eu tenha desligado
completamente, não lembro de tê-lo visto sair do quarto, mas me vi sozinho
em um certo momento. Não imagino por quanto tempo e sinceramente, não
me importo, mas sei que o tempo passou e fiquei preso em um único dia.
Estou ficando para trás.
É difícil alcançar pessoas que estão algumas semanas no futuro.
Meu medo é acabar desistindo.
Ou que isso já tenha acontecido.

Maio

Junho

Julho

13 de agosto

— Jun-ho?! — Ouço ao longe, ele me chama com desespero. Eu


não posso responder, mas olho em sua direção, as coisas estão embaçadas e
sua voz distante. Meu pulmão me arranca da enorme cratera que se formou
e me sugou para dentro, ele queima e não me dá tempo para pensar. —
Solta isso! — com a entonação desbalanceada, eu o ouço pedir, mas eu
aperto ainda mais o cateter entre meus dedos.
Fecho meus olhos.
Não há ar que se permita me salvar, a tentativa seria em vão. A
busca involuntária por ar se torna uma tosse seca e curta, seguidas uma da
outra com um pequeno período.
É fisicamente doloroso e inexplicavelmente libertador.
Meus dedos perdem a força e o cateter é tirado de minhas mãos, não
demorou nada para que ele fosse colocado em meu nariz. A sensação do ar
forte voltando sem permissão para meu pulmão é estranha, como se alguém
por algum motivo tivesse tentado me sufocar com toda sua força e desistido
no meio do processo.
A tosse aumenta. Meus olhos lacrimejam.
— Pelo amor de Deus — sua voz treme —, você prometeu que não
faria mais isso!
Meu corpo despenca na cama, eu sinto cada centímetro de mim
mesmo. Isso me faz rir, é uma risada nada contagiante, mas ela escapa sem
que eu possar conter.
— O que é tão engraçado? — pergunta ele, indignado.
Tento umedecer minha boca seca. Meu peito se move depressa
enquanto meus olhos ainda ameaçam lacrimejar mais. Meu pai franze a
testa, ele me olha e parece não me reconhecer.
— Eu precisava sentir — resumo.
— “Sentir”, o quê?
— Algo que me faça voltar — confesso, sentindo a fraqueza —,
sentir qualquer coisa que me faça esquecer o que aconteceu. Mesmo que
seja por alguns segundos.
— E se isso te custar tudo?
Sinto como se meu corpo fosse implodir.
— Não vou viver para sempre, pai. — Essa certeza me escapa com
uma estranha ascensão. Seus olhos agora entregam pavor, seu rosto se
afasta enquanto seu corpo se recusa sair de perto de mim. — O senhor sabe
melhor que qualquer um, não tenho uma estatística de vida longa.
Ele parece furioso.
— Talvez tenha — ele se levanta, agitado. — Isso se você parar de
tentar se matar!
Meus ossos se contraem.
A súbita acusação, sem filtro algum. Com extrema fúria e medo é
jogada em mim.
Eu me encolho. Como se de alguma forma pudesse fugir dessa
conversa.
— Não estou tentando me matar...
— Não?! — Sou interrompido em meio a minha contestação. —
Você não come — ele começa —, não vejo você se levantar para tomar um
banho há meses! Sabe quantas vezes eu tive que correr e trocar seu cilindro
no meio da noite? Sem contar as inúmeras vezes que não acordava de jeito
nenhum, desmaiado no meio da tarde porque não come nada mesmo que eu
te obrigue!
— Mas...
— Minho veio aqui incontáveis vezes. — Olho para ele. Minha testa
franze em confusão. — É, você sequer notou.
Meu estômago queima, eu facilmente confundiria com uma azia.
Mas o incomodo físico é irradiado por cada palavra dita, palavras que eu
sei. São realmente coisas que aconteceram ao meu redor, aparentemente por
meses, e eu nem notei.
— Me perdoa. — Outra vez, a estranha ascensão na entonação.
— Eu não quero que você peça perdão — rejeito. — Jun-ho eu sei,
sei exatamente o que tá acontecendo aí dentro. Passei por isso também,
continuo passando por isso todos os dias. Mas você precisa abrir os seus
olhos e se permitir viver!
— O que você quer que eu faça? — Encolho meus ombros.
— Qualquer coisa — é como se estivesse me implorando —, mas
nunca mais tire seu cateter. Não vire o rosto para parede, pare de fingir que
não tem ninguém ao seu lado e vê se come alguma coisa!
Ele pausa. Buscando algo para se sustentar, ele não encontra nada,
suas mãos pousam em sua cintura e então posso finalmente ver. O cansaço
assustador em seu rosto, ele parece não dormir há dias.
— É isso o que Timothy iria te pedir, se estivesse aqui.
Dito isso por fim, ele sai do quarto.
A azia se torna um pequeno incômodo quando meu peito aperta, não
é preciso arrancar o cateter do meu rosto para que aquela sensação volte. Eu
sinto com agressividade cada palavra dita, o bolo formado em minha
garganta é desesperadamente empurrado para baixo em prol de expulsar a
vontade de chorar.
Minhas mãos tremem.
O sentimento me esmaga e semeia cada mini partícula da terrível e
assustadora dor do luto. Eu fico sozinho no quarto por um bom tempo, meu
pai não volta, eu o espero voltar. Encaro o corredor através da porta aberta e
anseio para que ele volte, mas é inútil.
Enfraquecido. Tomado pela tontura e escuridão ao me sentar na
cama, eu sinto enfim meus pés alcançarem o chão. O ar escapa gentilmente
pela minha boca e meu corpo insiste em me levantar, eu caminho sem
pressa até a porta.
Não há ninguém.
Com cuidado, repouso minha mão na parede e acompanho a voz de
meu pai. Ele parece destroçado, sigo um pouco mais apressado. As rodas da
bolsa fazem barulho, parecem um pouco desgastadas, mesmo que tenham
ficado paradas por um bom tempo.
Finalmente o encontro.
De costas. Ele parece falar com alguém por telefone.
Ele chora, meu pai está chorando.
— Eu sei que você precisa se concentrar nas aulas — ele funga —,
mas acho que não sou capaz de tirar ele de lá. Você consegue voltar esse
mês? — Ele espera, faz uma pausa curta e então suspira aliviado
balançando a cabeça. — É... Ele fez de novo.
Dou alguns passos em sua direção.
— Eu estou com medo — confessa. Isso chega me assustar, é
aterrorizante ver meu pai dizer essas coisas —, não sei mais o que fazer.
Eu me encolho, uma corrente de ar passa por mim e isso me faz
respirar fundo. Ele ouve, com seu rosto virando rapidamente em minha
direção, parece em choque.
Praticamente amasso a alça da bolsa. De um jeito não involuntário,
eu caminho até alcançá-lo e me aconchego em um abraço não retribuído.
Ele não move um músculo, sua mão esquerda ainda sustenta o celular ao
lado de seu ouvido e de longe, consigo ouvir a voz de meu irmão o chamar,
também confuso.
— Seu irmão se levantou — ele anuncia, aperta-me com força e
pousa seu queixo no topo da minha cabeça.
— Me perdoa, pai — eu sussurro.
— Está tudo bem — ele responde quase de imediato.
Eu me apoio nele. Meu corpo entrega aquilo que já era esperado, ele
treme e ameaça cair, mas me mantenho firme. Meu pai me ajuda a andar até
a cozinha, ele me sentou com cautela na cadeira e não diz nada quando se
concentra em me preparar algo. Eu não noto quando ele desliga a ligação,
mas vejo seu celular posto na mesa.
Minho não para de enviar mensagens.
Não consigo falar muita coisa, a sensação de culpa por toda
preocupação que causei ainda me incomoda. Por isso decido ficar em
silêncio, meu pai não insiste em trocar nenhuma palavra, eu o agradeço
mentalmente.
E com dificuldade, mas sem negar, eu volto a comer. Alivio-me com
o jato de água do banho em minha pele, levanto-me pela manhã e dou bom
dia ao meu pai.
Alguns dias são melhores que os outros.
Mas eu só preciso fechar meus olhos, concentrar-me e me lembrar
que ele estaria orgulhoso de mim por cada tentativa não desistida. Por cada
gota de água que bebi.
E por nunca mais arrancar de mim mesmo, aquilo que me mantem
respirando.

16 de agosto, onze e quinze da manhã

As rodas da bolsa atravessam o gramado da entrada. Evito olhar


muito ao meu redor e me concentro em chegar até a porta, meus dedos
batem na madeira e sem demora alguma sou atendido.
— Sabia que você viria — Samuel parece orgulhoso, sem tempo
para raciocinar. Sam me abraça com força, pegando-me de surpresa, eu
retribuo, feliz com o gesto.
— Todos nós sabíamos — Soohyuk o corrige de dentro da casa,
afastando-me de Sam eu posso vê-lo caminhar com uma caixa nas mãos.
Ele a coloca no chão próxima a porta de entrada e me oferece um sorriso
sincero. — Vamos, Jun-ho, entre.
Eu agradeço, atravesso a porta sem pressa alguma e entro na casa.
Samuel não fecha a porta, pelo contrário, ele a abre ainda mais.
— Muito obrigado mesmo por ter vindo — agradece, ele. Com a
voz baixa e séria. — Isso significa muito, espero que esteja tudo bem para
você fazer isso.
Encolho meus ombros.
— É o que ele iria pedir. — Samuel concorda.
Descendo a escada com cuidado, vejo Helena carregar uma caixa
menor. Ela se atenta aos degraus e agradece quando seu ex-marido oferece
ajuda, desde a última vez que a vi, esperava encontrá-la no mesmo barco.
Mas ela parece bem, seu rosto parece um pouco mais saudável e seus olhos
não entregam mais tanto cansaço.
— Ah, meu Deus — ela ofega, olhando em minha direção. — Jun-
ho... — Caminhando com pressa, ela me alcança e segura meu rosto com
extremo cuidado. — Consegue imaginar o quanto eu estava preocupada
com você?!
— Preocupada comigo? — eu me indigno, ela franze a testa.
— Sim — afirma. — Todos nós. — Samuel e Soohyuk concordam.
— Não recebemos mais notícias suas com um certo tempo. Samuel chegou
a cogitar a possibilidade de ir te visitar.
Olho para Sam, ele encolhe os ombros e sorri.
— O importante é que estamos todos aqui. — Ela sorri, é sincero e
singelo. — Obrigada por isso...
Isso faz com que eu respire em alívio. É involuntário quando meus
lábios curvam em um sorriso, ela parece feliz com esse efeito. Samuel então
caminha a nossa frente e me encara por cima dos ombros.
— Vamos — ele chama, não demoro em acompanhá-lo. Eu subo as
escadas devagar, Samuel oferece ajuda com o cilindro, mas a gradeço e
apoio a alça em meu ombro. E então, nós adentramos o quarto.
Azul como o céu que ele admirava.
Alguns pertences seu já empacotados, outros em seus devidos
lugares.
Acabo paralisando ainda em frente a porta. Samuel permanece ao
meu lado, ele inspira e então expulsa o ar com cuidado.
— Nós já tiramos algumas coisas — ele explica, caminhando pelo
cômodo. — Minha mãe não quer apagar completamente a memória dele
aqui, mas achamos que seria importante não esquecer que ele se foi — com
certa dificuldade, ele conta. — Pensamos até em contratar especialista em
limpeza traumática — ele faz uma pausa, olhando ao redor —, mas não é
isso o que precisamos. Não temos o que limpar, é mais como um processo
lento e suportável de aceitação.
— O que vão fazer com as coisas que tirarem daqui?
— Doar? Talvez guardar. — Encolhendo os ombros. Samuel alcança
uma caixa vazia e começa o processo, sabendo exatamente o que guardar na
caixa. — Vamos ficar com o que realmente importava para ele.
— Entendi... — murmuro, apressando-me em ajudar. Eu analiso
cada detalhe de seu quarto, não é fácil, sempre sou tomado por memórias.
Mas não desisto, Sam me guia na organização e sempre verifica se está tudo
bem.
Helena não fica no quarto por muito tempo, ela carrega as caixas,
volta, olha um pouco ao redor. Seus olhos brilham. Soohyuk fica ao lado
dela, sorrateiramente.
Nós embalamos cada um de seus pertences com cuidado, sempre
escolhendo aqueles pelo qual Timothy também escolheria, quando abro seu
closet, posso encontrar diversas peças de roupas penduradas no cabide.
Devidamente organizadas como ele gostava, como ele deixou antes de ir ao
hospital. Eu sinto o tecido em meus dedos, sinto seu cheiro ainda vivo em
seu moletom favorito, é como se ele ainda estivesse aqui.
— Pode ficar, se quiser. — Eu me assusto, quando olho na direção.
Encontro Soohyuk parado atrás de mim, ele deixa novas caixas vazias em
cima da cama e sobe as mangas de sua blusa.
— Tudo bem — eu agradeço, afastando-me do moletom.
— Eu falei sério — ele insiste. — Samuel ainda não contou? —
confuso, eu nego. — Helena separou uma caixa para você, ela disse que o
que tem dentro dela pertence a você — ele aponta, quando olho na direção,
encontro uma caixa pequena, posta em cima de sua cômoda.
— Pra mim?
— Sim — afirma —, para você.
Ela sai do quarto, carregando mais duas caixas fechadas.
Paro o processo de organização e me concentro no que tem dentro
da caixa, no topo da caixa, encontro um caderno pequeno e ilustrado. É um
Sol.
Outra vez o sorriso involuntário.
— Ah, você achou — Sam chama minha atenção, ofegante por
transportar as caixas para cima e para baixo. — Pode dar um tempinho para
ler, se você quiser.
Ele propõe, eu aceito de bom grado.
Deixando a caixa exatamente onde estava, apenas pego seu caderno
e desço as escadas, não notei se Helena ou Soohyuk estavam pelo caminho.
Mas eu ando com calma, minha memória corporal me guia e eu sequer
preciso me atentar no caminho.
E é quando eu chego no balanço, que percebo o quanto me afastei
da casa.
Eu me sento onde um dia Timothy se balançou e folheio cada página
escrita, a caligrafia bonita resume cada um de seus dias, desde aquele dia.
Ele contou para seu diário quando me conheceu, explicou a profundidade
de sua dor física e seu cansaço emocional.
Ele me fez rir com as lembranças de nossos dias juntos, quando
mais novos. Éramos inseparáveis, aparentemente Helena ficava maluca com
nossas travessuras. Isso me faz lembrar do quanto eu era feliz naquela sala,
Timothy recebendo sua quimio e eu ao lado dele, nunca passou por minha
cabeça que um dia seria eu em uma daquelas poltronas.
Que um dia eu olharia em seus olhos e diria a ele o quanto o amo.
Mas eu sabia, eu tinha certeza de que jamais amaria outro alguém.
Eu folheio cuidadosamente as folhas amarronzadas. No topo de cada
página é marcada a data e a hora, algumas páginas possuem títulos, outras
não possuem nada além de rabiscos. Timothy foi inteligente quando usou
cores diferentes e especificas para falar de cada pessoa, quando escrito
sobre Samuel a cor é laranja. Sobre sua mãe, a cor é amarela e verde
quando é sobre seu pai.
Tenho a mais certeza de que as cores foram de acordo com a
preferência de cada um. Quando escrito sobre mim, Timothy usou as
canetas roxas. Diversos tons diferentes.
As páginas tituladas como “meu sol”, ficaram mais recorrentes após
o trecho em que ele descreve o momento que lhe presenteei com a lua.
Naquele exato momento, ele já planejava me devolver o sol.
Até que as páginas acabam, eu folheio e folheio e só vejo folhas em
branco.
O vento então sopra com força e decido me dar uma força, as
páginas folheiam rapidamente e param e uma específica. Não há título ou
data. Ela inicia da primeira linha e termina no último espaço restante, da
última linha da folha.
Eu noto o efeito prévio que a leitura possa causar quando meu
estômago congela, minhas mãos começam a tremer e meus olhos começam
a vagar pelo local.
É uma carta.
Uma carta escrita por Timothy. Para mim.
É isto o que Helena disse que me pertencia.
O amor incondicional que Timothy prometeu sentir até seu último
suspiro. Ele mentiu, porque esse amor é transmitido e sentido por mim a
cada palavra escrita neste diário. Não acabou quando ele respirou pela
última vez, não se foi com ele porque ele nunca me deixará realmente.
Eu não quero uma carta de despedida, ninguém quer! Esse é o real
problema do luto, não aceitamos o irreversível e não suportamos lembrar de
quem se foi.
Mas ele escreveu. Esse amor dele que depositou em cada palavra
escrita.
Simplesmente deixo meu peito sentir. Então com o seu amor
pulsando dolorosamente em meu peito, me guiando até ele, eu começo a ler.
“Choi Jun-ho,
Você melhor que qualquer um neste mundo sabe que despedidas são
para nunca mais voltar, a questão aqui, é que nós sempre voltamos um para
o outro. Já aviso que essa carta está sendo escrita por Samuel — eu falo e
ele escreve —, eu escreveria centenas de cartas para você, Jun-ho.
Inconscientemente me despedindo, temendo o inevitável e sonhando com
um mundo onde eu possa estar com você.
Não quero me despedir, você sabe.
Mas, você saiu daqui há quase uma hora. Estava deprimido e
fisicamente cansado, eu me despedi e você não percebeu. Foi a intenção.
Não queria te ver chorar outra vez.
Sei que vai doer no momento que você ler, me perdoa. Mas eu não
podia te fazer chorar hoje.
Esse é o problema da dor, não é? Ela quer ser sentida independente
da hora ou lugar. Mesmo que você leia essa carta anos após eu partir, eu sei
que você sentirá o mesmo que sentiria caso lesse um dia após. É isso o que
anda me incomodando tanto... Eu vejo a sua dor, não posso senti-la, mas...
Eu vejo. E se eu pudesse, sentira cada dor sua ao mesmo tempo, para que
você não sentisse dor alguma. Mas eu sei, é impossível, então Jun-ho... Meu
amor.
Quando sentir minha falta, feche os olhos, visite aquele balanço ou...
Olhe para a lua. Posso estar muito longe, mas sempre estarei com você. Em
cada um desses lugares ou detalhes.
Em você...
Fiquei preocupado por dias, com medo de não deixar uma marca
que possa te ajudar a lembrar de mim, com medo de me tornar a sensação
reconfortante que é quando o vento sopra gentilmente e vai embora. Mas, te
marcar eternamente até que eu te encontre novamente, seria deixar uma
imensa cicatriz em seu peito.
Não precisamos de marcas, não é, Jun-ho?
Sou do tipo de pessoa que acredita em almas gêmeas, destino e o fio
invisível.
Mas — não se assuste —, nesse momento, quando a ficha cai e eu
sei que a qualquer segundo eu posso já não estar mais aqui, a única coisa
em que acredito é que nós dois. Sem a ajuda do destino, escrevemos a
história de amor mais linda que existe. Eu registrei aqui, cada sentimento
que me foi proporcionado.
Então se é para ter alguma marca, qualquer lembrança ou o que seja.
Nós temos isso.
Nosso amor.
E isso nem a morte pode apagar.
Eu prometi que te amaria até meu último suspiro. Você respondeu
dizendo que me amaria além disso, hoje eu prometo te amar além da minha
existência no universo. Onde quer que eu esteja, Jun-ho. Então leia essa
carta quantas vezes forem necessárias, chore o quanto seu coração pedir. E
se balance o mais alto que puder, converse com a lua todas as noites que
você perder o sono.
A eternidade dura muito tempo.
Nós só estamos começando.
Prometo esperar o quanto for necessário para te encontrar de novo,
vamos listar cada um de nossos desejos escritos naquele pequeno pedaço de
papel e nunca mais ter que nos despedir de novo.
Mas e você, Jun-ho, me promete?”

— Eu prometo — involuntariamente eu respondo. Meus lábios


curvados em um sorriso sincero, sentindo o conforto de cada palavra escrita
como uma manta para me proteger do frio que sinto em meio a primavera.
Com cuidado, eu fecho seu diário me comprometendo a ler
novamente cada página, outra vez. O silêncio do parque é aconchegante, é
lindo ver quando o vento sopra empurrando as folhas que caíram na grama
para longe. Eu entendo o significado que esse lugar tinha para Timothy, a
calmaria e a paz que ele sentia quando se sentava aqui...
É o mesmo que sinto agora.
— Jun-ho? — A voz de Samuel me alcança der repente. Olho em
sua direção e o vejo com o semblante preocupado. — Desculpa vir atrás de
você. Mas você demorou um pouco, fiquei preocupado.
Ainda com o rosto molhado e os olhos ardendo pela emoção do
momento, eu fungo rapidamente para expulsar os sentimentos quando noto
que estou aqui a mais tempo que notei.
— Está tudo bem? — ele pergunta, aproximando-se.
— Sim — minha voz entrega o quão fui afetado pela carta, com
dificuldade, concentro-me em me recompor e limpo meu rosto —, estou
muito bem...
Ele não parece estar convencido da minha resposta, até me observar
melhor e encontrar o diário em minha mão. Seus olhos relaxam e ele se
aproxima tranquilamente,
— Você leu a carta — conclui.
— É — afirmo, desviando o olhar. — Eu li...
Samuel respira fundo ao observar o local. Ele sorri como se alguma
lembrança o tivesse alcançado no momento e me olha de volta.
— Eu sempre corria para cá no meio da noite, para buscar o
Timothy. — A memória o faz rir. — Ele se balançava tão alto que eu ficava
apavorado. Tinha muito medo de ele cair.
— Ele já caiu alguma vez?
— Nunca — responde rapidamente. — Com o tempo, ele passou só
a se sentar aqui e ficava observando o parque. — Encarando-me
profundamente, ele franze a testa. — Como o que você está fazendo agora.
Eu sorrio.
— Timothy e eu temos muito em comum, não é?
Ele concorda.
— Talvez essa coisa de destino que vocês tanto acreditavam, seja
real — ele supõe, isso me faz rir, ele me encara confuso. — O que foi? Não
acredita mais nessas coisas?
— Até que acredito sim — confesso. — O estranho é você acreditar.
Ele parece extremamente ofendido.
— Eu sou um cara muito romântico — defende-se, horrorizado.
Eu concordo, rindo. Sem a menor coragem de provocar Samuel
outra vez.
Ele solta uma risada disfarçada e volta observar o lugar.
Ficamos em silêncio por um tempo acolhedor, Samuel joga algumas
pedras para ver o quão longe conseguia, eu apenas observo de onde estava.
É uma tarde tranquila, não é fria e não está quente.
O vento sempre parece soprar nos momentos certos. Seu eu
estivesse em uma rede, com certeza pegaria no sono. Esse pensamento me
faz rir sozinho.
— Já está bem para voltar? — Sam verifica, cautelosamente.
— É claro — afirmo, já me preparando para me levantar. — Vamos
lá, Casey.
Samuel me olha confuso por um tempo. Quando ele entende o nome
que o chamei, quase me fuzila com seus olhos e nega lentamente com sua
cabeça. Uma decepção atroz.
Isso me faz rir ainda mais, eu me levanto do balanço e tento
equilibrar a caixa em uma mão, o livro e a alça do oxigênio na outra. Mas o
vento sopra outra vez e acaba folheando agressivamente as folhas do diário,
ele escapa de minha mão e outra folha voa pra fora dele.
— Deixa que eu pego. — Sam se apressa em buscar o diário, eu me
concentro no pequeno papel que voou para fora do caderno. Quando estou
com ele em minha mão, rapidamente noto que é o mesmo papel que usamos
para listar nossos desejos.
Um deles, Timothy nunca havia me contato.
Não até agora.
Meus olhos pousam automaticamente no segundo desejo de sua
lista, meus olhos focam desacreditados no que eu acabo de ler. Em um
instante, consigo ouvir minha pulsação em meu ouvido e fica complicado
para respirar.
— O que foi? — Sam questiona preocupado, quando se aproxima
com o diário em sua mão. — Jun-ho? — ele insiste.
Olho para ele, em choque.
— O que é isso? — Mostro a lista a ele. Sam em olha confuso.
— Ele nunca falou sobre isso com você? — Eu nego.
Rapidamente nego sua pergunta, porque Timothy jamais me contou
sobre isso. É impossível de acreditar e surrealmente difícil de assimilar a
informação.
Outra vez, eu olho para o papel.
A letra extremamente legível conta seu maior desejo, seu segredo e
algo que eu nunca poderia imaginar;

Desejo número dois (o mais importante).


Um dia poder descongelar o sêmen que foi preservado,
para que eu possa ser pai. (ou doá-lo em caso de morte).
(entregar o papel para Jun-
ho).
Ele queria que eu soubesse, ele guardou o papel e colocou no diário
para que eu pudesse ver.
— Como e quando isso aconteceu?!
Samuel se aproxima me olhando tranquilamente.
— Quando ele soube da recidiva, ficou apavorado — contou, aflito.
— Você sabe que Timothy sempre planejou ter uma família, se casar, ter
filhos... A possibilidade de a quimio deixá-lo estéril, foi o que mais
preocupou ele no início, então ele tomou essa decisão.
— Seus pais sabem?
— Foram os primeiros a saber — ele garante. — A intenção era que
ele pudesse fazer uso disso no futuro, caso a quimio realmente tivesse o
prejudicado. Mas... Você sabe, ele sempre pensou nessa possibilidade
também então, ele repensou, e deixou na responsabilidade da mamãe. Ele
também pensava bastante na doação.
É surreal.
— Eu nem sabia que isso é realmente possível. — Ando de um lado
pra o outro, tentando assimilar tudo. — Ele planejou cada detalhe do que
poderia ou não acontecer...
Samuel sorriu.
— Ele era um homem romântico e que tinha como sonho, casar e
ser pai — ele analisa. — Sem organização e planejamento, isso seria um
caos.
De forma involuntária, isso me faz rir. Ao mesmo tempo, seria
muito fácil berrar agora.
— Meu Deus... — arfo, sem saber para onde olhar.
— Eu sei.
Meu peito enche de ar e com calma e gentileza que meu pulmão
libera, não sei ao certo qual expressão estou demonstrando no momento.
Sinceramente eu não consigo identificar nem o que estou sentindo, mas
Samuel sorri para mim como se eu o olhasse da forma mais gentil do
mundo.
— É bom estar contigo nesse momento. — Ele se aproximou,
guardou o diário dentro da caixa e então apoiou sua mão direita em meu
ombro. — Ela vai gostar de saber como foi sua reação. Vou contar a ele na
próxima vez que eu o visitar.
Isso me tirou quaisquer palavras que eu pudesse articular.
— Jun-ho — ele me chama, parece admirado —, você foi a súbita
de Timothy.
— Quê? — perdido, tombo minha cabeça para o lado.
— Ouvi muito disso no hospital — ele conta. — Quando um
paciente terminal melhora, não apresenta nenhum risco e em um minuto,
simplesmente morre, da mesma doença... Chamam de “a súbita melhora”.
— Ele me olha, é quase possível observar meu reflexo de seus olhos. — É
você, a súbita que durou anos, e então meses e diminuiu para alguns dias.
Você o manteve aqui, desde quando era um garotinho esquisito.
— Samuel — eu desaprovo a ideia, sem saber como reagir.
— Sabe o que ele disse quando chegou em casa, aquele dia? —
Nego. — Ele disse que não estava sentindo dor. — Ele nota a confusão em
meu olhar. — Timothy nunca tinha dito isso. Ele sentia dor todos os dias,
mas quando chegou em casa após te conhecer, ele só queria saber de ir a
próxima sessão de quimioterapia pra te ver. — Eu o olho, sem reação
alguma. — Porque você não olhou pra ele como uma pessoa doente.
— Eu era só uma criança...
— Eu também era — ele me interrompe, encolhendo seus ombros
—, e nunca consegui livrar meu irmão da dor. Ele sentia a dor que a quimio
provocava, o cansaço e o incômodo na hora de comer. Mas já não sentia
mais a dor de ser ele mesmo.
Seus olhos entregam a emoção do momento.
— E você só precisou conversar com ele por alguns minutos no
corredor do hospital — ele conclui. — A súbita melhora.
As palavras de Samuel não saem da minha cabeça. É como se eu me
distanciasse do meu próprio corpo pelo resto do dia, quando noto, já
estamos na sua casa e terminamos de organizar cada pertence de Timothy,
escolhidos por Helena para serem doados a alguém que seja tão
extraordinário como ele.
Ainda assim, mesmo após esse processo e uma tarde inteira com os
pais de Timothy, a voz de Samuel ainda está na minha cabeça e minha alma
ainda está presente no passado tão recente, que não quis me deixar ir. Eu
volto para casa no piloto automático, ignorando o pedido de meu pai para
que eu ligasse para vir me buscar. Caminho cada rua até em casa, mas ainda
está naquele parque.
Quando me dou conta, um som de porta batendo me puxa de volta
para o presente. Olho curioso nessa direção e noto Minho descendo de seu
carro, estacionado bem em frente nossa casa. Por um instante não consigo
me mover, vê-lo depois de tanto tempo é surreal.
De repente meu corpo decidiu obedecer aos meus comandos e
caminho rapidamente em sua direção, eu largo a bolsa de oxigênio que cai
ao nosso lado no chão, seguro a caixa de Timothy com mais força e abraço
meu irmão. Ele não demora em retribuir, seus braços me apertam com força
e sua mão pousa no topo de minha cabeça.
Não sei ao certo quando, mas me assusto com o soluço causado pelo
choro. Minho massageia minhas costas em resposta, mas não me solta.
Ficamos ali por um bom tempo, sinceramente só nos afastamos quando
noto a presença de Sara conosco. Ela sorri, encolhida e comovida, Minho a
puxa levemente e a beija na cabeça. A sensação de estar em casa me
preenche, o estranho é que estive aqui por meses e em nenhum momento
tive esse sentimento. Pela primeira vez em muito tempo, todos nós nos
sentamos na mesa de jantar e comemos juntos. Rimos das piadas de Minho
e nos empolgamos com as histórias contatadas por Sara.
Meu pai se mostrou aliviado.
Não sei ao certo o que o proporcionou tal sentimento. Mas me
deixou aliviado também, é como se aquele ditado estivesse acontecendo
neste exato momento.
Como é mesmo? — a calmaria após a tempestade —, se me lembro
bem.
Após o jantar, damos boa noite e subimos cada um para seu quarto.
A sensação de distanciamento de mim mesmo está menor, mas ainda
presente.
— Jun-ho? — Minho me chama.
— Hm? — Eu o olho por cima do ombro.
— Se precisar de qualquer coisa, mesmo que seja no meio da noite.
Eu estou aqui — assegura. — Não vou a lugar algum, nunca mais.
Eu sorrio, isso me pega de surpresa.
— Eu não vou precisar — garanto —, estou bem.
— Ainda assim...
— Se eu precisar — eu o interrompo —, vou correndo até você.
Ele respira aliviado.
Sozinho em meu quarto — aquele lugar onde estive confinado por
meses —, reviro-me praticamente a noite inteira na cama. Sem sono algum
e com uma única coisa se repetindo e se repetindo em minha cabeça.
“Súbita melhora”.
Isso me faz ficar acordado a madrugada inteira, não é algo que me
incomoda, é algo que me faz pensar o quanto ele é para mim o mesmo que
fui para ele. Que isso — nós dois —, não estávamos no mesmo corredor por
acaso.
Eu estava ali por ele.
E ele estava lá por mim.
Agoniado com esse pensamento em minha cabeça, levanto-me e
apoio a alça da bolsa em meu ombro. A está casa silenciosa e escura, todos
estão dormindo. Sem hesitar nem por um segundo, bato na porta três vezes.
Minho não demora em atendê-la, ele parece sonolento, porém assustado e
preocupado.
— O que aconteceu? — questiona me analisando de cima a baixo.
— Preciso que me ajude em uma coisa — eu peço, ansioso, ele
franze a testa. — Agora.
Sem me questionar, Minho veste um casaco e sai comigo em meio a
madrugada. Ele dirige com calma, sempre perguntando se preciso de algo
ou se realmente quero isso. Ao chegarmos no cemitério, ele observa o local
ainda dentro do carro e me olha preocupado.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Quer que eu vá com você?
— Não precisa — tiro o cinto, abro a porta e sorrio para ele. —
Obrigado. Eu já volto.
Minho não diz mais nada. Distancio-me do carro, o local contém
pouca luz, mas é o necessário para que eu possa ver e chegar até ele. Com
seu nome cravado na imensa pedra, seu epitáfio abaixo e as flores azuis
colorindo sua devasta solidão.
Meus passos perdem as forças, meus joelhos dobram com cuidado.
Sinto a grama úmida através do tecido da calça, com meus dedos, limpo a
poeira que já se acumulou em sua lápide para que eu possa ver seu rosto
melhor em sua foto.
Ele está radiante, seu sorriso é capaz de trazer o Sol de volta.
A minha testa repousa na pedra fria, meus dedos contornam sua
foto. E, de alguma forma, quando o vento sopra e faz meu cabelo bagunçar,
consigo ouvir sua risada e seu suspiro longo, o mesmo que ele fazia quando
eu me aproximava assim.
Meu corpo se arrepia por completo, mas não recuo em momento
algum.
— Não estou aqui para dar um elogio fúnebre — expliquei, com a
voz baixa. — Eu jamais me despediria de você. Mas eu li sua carta hoje
mais cedo, imaginei que pudesse estar esperando por minha resposta —
involuntariamente, brinco com as pétalas das flores. — Você escreveu para
mim o que eu leria meses depois e sabia exatamente como eu iria me sentir,
isso me conforta. Sabe, eu jamais poderia imaginar que sentiria você através
de uma folha de papel. Eu senti, em cada palavra escrita. A verdade é que
meu corpo ainda arrepia quando falam de você. — Começo a chorar, a
sensação esmagadora me pega de surpresa e preciso me concentrar na
respiração para me acalmar. — Você tem razão, meu amor. A eternidade
dura muito tempo, estamos vivendo ela. Samuel disse algo hoje que não
saiu da minha cabeça, você provavelmente pensa como ele. “A súbita
melhora”, sabe o que é engraçado? Você não sentiu dor aquele dia. — O
soluço repentino me obriga a fazer uma pausa, respiro fundo e olho para a
lua. — Mas eu também não senti dor outra vez, não até o dia em que perdi
você.
O ar escapa por minha boca com agressividade, com a palma da
mão trêmula e gelada, eu tento conter a imensidão de dor que transborda do
extremo vazio que havia em mim. O choro não é silencioso por mais que eu
tente contê-lo, deslizo minha mão da minha boca até minha testa, inspiro
lentamente tentando expulsar o incômodo em minha garganta.
Olho para o céu, o azul fica claro e o Sol começa a aparecer. Ao
outro lado, ainda relutante em sair, a lua ainda é visível aos meus olhos. A
manhã começou, mas ela ainda está aqui.
— Não dói tanto como antes. Fica mais suportável quando lembro
de você, rindo pelos cantos com minhas péssimas piadas. Falando sem parar
sobre sua série favorita, quando olho para seus pais ou Minho e Sara... E eu
vejo um vislumbre nosso. — Eu toco a lápide outra vez. — Eu vou esperar
por você, meu amor. Espere por mim também. Até a eternidade.
Como se toda a dor, culpa, saudade e medo tivessem sido
depositadas em cada palavra dita. Eu me levanto com extrema facilidade
para deixar o local, ando arrastando minha bolsa pela grama, deixando o
rastro das pequenas rodas pelo caminho. Até que uma lembrança repentina
me faz parar, olho para sua foto, alguns metros de distância e sorrio.
— Eu disse que iria até a lua por você — digo, determinado. —
Prometo conversar com ela todos os dias. Até meu último suspiro.
Conversando com a lua
Três de março

Em teoria, oito anos contados do segundo em que estamos a anos à


frente, é muito tempo — bom, em teoria. Olhando para trás e vivendo o
presente do qual chamamos uma vez de futuro, percebo que oito anos à
frente está muito mais próximo que oito segundos atrás. Eu vivi minha vida
pós-Timothy sonhando com as lembranças de seu toque singelo, como se
tudo o que houvesse passado, tivesse sido a uma vida atrás. Enquanto, sem
anseio algum, o futuro parecia bem mais próximo.
E aquelas memórias recentes, tornam-se mais e mais nubladas.
Ultimamente tem sido mais fácil aceitar esse fato. É claro que dói
como uma aguda fisgada no lado esquerdo do peito — algumas vezes mais
que as outras, devo confessar —, mas... Bom, hoje é o presente do qual o
meu eu de oito anos atrás, sequer se imaginava vivo.
Mas estou aqui. E hoje é três de março.
A insistente e nada discreta data.
Helena passou o dia comigo, planejando e me auxiliando.
Verificando a cada oportunidade de tempo livro se estou bem — e devo
dizer, a resposta nunca é clara —, mas acabo sempre retribuindo o gesto.
Mesmo após oitos anos e consequentemente mudanças notórias em sua
aparência, Helena não tolera a ideia de que um dia, mesmo que
involuntariamente, possamos nos distanciar.
É por isso que acabou se tornando uma silenciosa tradição nossa
tornar do dia três de março, uma data um pouco mais suportável de
experienciar. Este ano, ofereci minha casa como apoio, seus olhos
cresceram e brilharam com a ideia. Vê-la organizar cuidadosamente lençóis
azuis pelo gramado e recusar ajuda para se levantar, ou até mesmo para
segurar o restante dos tecidos, faz-me lembrar a quem Timothy puxou.
Fico responsável pelas luzes, achamos que seria significativo reunir
todos que fossem importantes a Timothy ou, consequentemente, importante
para alguém que ele já amou. Abaixo da casa na árvore, organizamos
cuidadosamente cada mínimo detalhe. Samuel contínua do lado de dentro,
preparando a comida. Já Soohyuk está para chegar, após anos da partida de
Timothy, Helena e ele decidiram por fim se mudar. É estranho vê-los viver
sob tetos diferentes.
— A lua está tão brilhante hoje — aponta Helena. Desvio meu olhar
de sua pessoa até o céu, um mar de estrelas reluzentes acompanha o enorme
satélite natural. A lua está cheia. — Nem precisávamos de fato das luzes,
não é mesmo? — ela brinca, mas não tiro meus olhos de onde estão.
— É...
Helena não diz mais nada, não posso imaginar ou deduzir quanto
tempo me perdi naquele brilho. Mas em algum momento, assusto-me com
batidas leves na porta de vidro. No lado de dentro, Minho acena e parece
me chamar.
— Tudo bem se eu sair por um minutinho, Sra. Lee? — confirmo,
cauteloso. Ela me fuzila com o olhar.
— Deixa disto, Jun-ho — reprova ela, sei exatamente o porquê
estou levando broca. — É meio tarde para me tratar com tanta formalidade.
— Com um pouco de esforço, ela se levanta, pousa as mãos um pouco mais
atrás da cintura e me olha com ternura ao tombar a cabeça para o lado. —
Mas vá, me traga um copo d'água na volta, querido?
Assinto, confortável com a forma carinhosa que sou tratado.
Mesmo após o divórcio ser oficialmente concluído, Helena e
Soohyuk optaram por manter o sobrenome e, mesmo que não houvesse
necessidades de ser passado para Helena no casamento, também foi uma
decisão que tomaram juntos.
Bom, eles sempre serão uma família.
— O que foi? — questiono meu irmão, assim que passo pela porta.
— Samuel comentou que o Soohyuk está vindo — afirmo, meio
perdido. — E ele aproveitou o caminho para buscar a Miran e a Casey. —
Falho em esconder meu sorriso com a notícia.
— Sim, e...?
— Eu só quero me certificar de que você está bem — ele prossegue,
cauteloso. — Algumas pessoas aqui podem te fazer lembrar dele. Umas um
pouco mais que as outras. — Ele me olha nos olhos.
— Está tudo bem — garanto, verdadeiramente.
Ele me olha orgulhoso.
— Estou vendo — é como se tivesse dito involuntariamente. — De
qualquer forma, se quiser sair correndo daqui o mais rápido que seu pulmão
e o cilindro suportar. — Reviro os olhos, com falsa chateação. — Eu vou
com você.
Encolho-me, grato demais para pôr em palavras. Mas ele me
entende perfeitamente bem e demonstra com um leve soquinho em meu
ombro direito.
— Era só isso?
— Não, hm... — Ele limpa a garganta, olhando para dentro da casa.
— Samuel não faz ideia do que está fazendo naquela cozinha.
— Droga, Minho. — Eu me adianto, colocando a bolsa no chão para
puxá-la pela alça. — Por que não começou por essa parte?!
— A comida é mais importante que seus sentimentos? — Ele
encolhe os ombros, seguindo-me.
— A comida sempre é mais importante.
“Corremos” até a cozinha e assim que passo pela porta, encontro
Samuel enfiando toda a colher cheia de recheio na boca. Meu coração quase
pula para fora, Minho cai na gargalhada.
— Samuel! — Ele se assusta e deixa escapar a colher de sua mão.
Samuel olha para Minho com os olhos furiosos e joga a colher
dentro da pia.
— Você é um grande fofoqueiro — aponta, isso não intimida Minho
nem por um segundo.
— Tudo pela grande noite — ele diz, fazendo-se de bom moço.
Reviro meus olhos outra vez e me aproximo das panelas ferventes,
eu nem sei o que Samuel está inventando dessa vez. Mas o cheiro é ótimo.
Desde que Samuel contou aos seus pais o problema desesperador que estava
tendo para comer, fizeram de tudo para ajudá-lo com o que fosse possível.
Agora ele está engolindo uma colher cheia de recheio de bolo, sem
dó alguma.
— É que está demorando muito — ele confessa, reclamando como
uma criança.
— O problema é seu — digo, sem tirar os olhos das panelas, meu
estômago grita. — É você quem está cozinhando, a culpa é sua.
Minho e Samuel trocam olhares em silêncio. Sam curva os lábios
para baixo, surpreso com o que eu disse e põe a mão no peito.
— Credo, esse é você com fome? — Assinto, nada orgulhoso. — Tá
parecendo até o... — Ele para de falar na mesma hora, olha-me e então
pigarreia, apontando para Minho. — Ei, isso é uma barra de chocolate?
Meus olhos correm até meu irmão. Em resposta, ele fuzila Samuel
com os olhos e ameaça com um “você vai ver só”, Samuel nem se abala,
com os braços para cima e o outro lutando para me manter o mais longe
possível, Minho se recusa dividir comigo o seu chocolate. Mas eu não
desisto em momento algum, Samuel volta a beliscar a comida quando a
atenção foge de si.
— Minho, me dá um pedaço! — praticamente grito, irritado. Minho
dá uma risada convencida e fica ainda mais na ponta dos pés para não
dividir comigo. Até eu consigo alcançar sua mão, tomo o chocolate para
mim e me recuso e dividir o chocolate de Minho com o Minho.
Voltamos para a mesma briga, agora de forma contrária.
Samuel solta uma risada quando ameaço jogar o cilindro em meu
irmão, mas ele deveria saber que eu realmente faria.
— Pai! — A voz dócil e gentil consegue parar a briga no mesmo
instante. Minho se afasta de mim e juntos observamos a garotinha
atravessar a cozinha correndo, com um enorme sorriso no rosto. — Olha,
olha! — Casey parece ansiosa, Samuel larga a colher de lado e se apressa
para receber a filha em seus braços.
Ele se agacha e rapidamente a pega no colo, colocando-se outra vez
de pé.
— O que é isso aí? — questiona, com a voz mais tranquila sendo
direcionada à menininha.
— Hoje eu desenhei a família! — apresenta, orgulhosa. Samuel
pega de suas mãos a enorme folha de papel e sorri orgulhoso. A garotinha
bate palmas em resposta, realmente feliz com a reação de seu pai.
— É lindo, pontinho! — ele elogia, beijando a ponta de seu nariz.
“Pontinho”. Samuel e Miran apelidaram Casey quando ainda não
havia nascido, como pontinho, visto do ultrassom e com poucos meses de
vida. Casey era assim. Como um pontinho brilhante no céu noturno. O
apelido pegou e ela responde bem a ele.
— Estou orgulhoso de você — ele completa, os olhos da menina
brilham.
Casey beija seu pai na bochecha e o abraça, a cena comove a mim e
Minho, que sorri com extrema compaixão diante da interação dos dois.
Recusando-me a aceitar e confessar a Minho que, talvez, eu
realmente tenha ficado emotivo com a situação. Limpo minha garganta e
me apresso em separar uma jarra de água e um copo para Helena, que ainda
está me esperando no jardim dos fundos. Quando volto ao gramado, Helena
esboça alívio ao ver a jarra de água e se apressa em se hidratar. Dou uma
risada sincera ao vê-la encher o terceiro copo e volto para as luzes que
ainda precisava organizar.
O fio é fino o suficiente para que eu me assuste a cada vez que ele
enrosque em algo. Com cuidado, eu traço um caminho cursado e talvez um
pouco desengonçado pela grama. De costas e concentrado na minha tarefa,
não percebo como Casey se aproxima silenciosamente.
Ela apenas parece realmente interessada no que estou fazendo.
— O que está fazendo, tio? — Ela não tira os olhos.
— Quando eu ligar na tomada, esses pontinhos aqui irão brilhar
como vagalumes — explico, terminando de espalhar o fio pelo jardim. —
Quer ver? — Ela assente, agitada. Com a mesma empolgação da pequena,
conecto a luz led na extensão elétrica. Sem demora alguma, o jardim é
iluminado por um brilho azulado e forte, Casey se encolhe com surpresa e
admiração. Alguns segundos depois, a pequena começa a pular e bater
palmas.
Helena se aproxima e sorri, contente com o resultado.
— Ficou lindo — elogia, admirada.
— Eu só espalhei os fios — resmungo, com um sorriso de canto.
— Ainda assim. Ficou ótimo — insiste.
— É, se fosse eu. Teria posto fogo no mato — Samuel constata um
fato nada difícil de visualizar.
— Desde quando você está aí? — questiono verdadeiramente
assustado, com seu surgimento inesperado. Samuel não responde, apenas
faz cara de quem já não aguenta mais assustar as pessoas com a sua
chegada silenciosa e pavorosa. Casey dá risada da situação, é como se todos
os adultos fossem personagens hilariantes de um circo.
De repente, ela parece lembrar de algo e corre até Samuel —
tomando a folha de sua mão, o que o surpreende —, ela volta em minha
direção e sinaliza com a mão para que eu me abaixe.
— Te desenhei também — ela conta, orgulhosa de si mesma. Isso
me faz sorrir com sinceridade, feliz pelo avanço da pequena, aceito a folha
que ela me oferece para observar seu desenho. No centro, reconheço
Samuel e Miran, que estão próximos e abraçando Casey, claramente não há
coincidência alguma no fato de que o seu desenho é melhor de todos, ela
claramente se ama, bem atrás. Helena e Soohyuk estão juntos, os dois com
as mãos dentro de seus inexistentes bolsos. E ao lado, estou eu, o cilindro
ao lado e um enorme tubo do qual me assusto, conectado em meu cateter.
Isso me faz rir um pouco, até que tomo um pouco mais de atenção e noto
alguém ao meu lado. A touca me faz reconhecer na mesma hora, sem
acreditar mesmo que Casey o tenha desenhado, olho para a pequena e sorrio
gentilmente. Ela parece ansiosa para ouvir minha opinião.
— Casey — a chamo, virando a folha em sua direção. — Quem é
esse?
A garotinha observa atentamente seu desenho e esboça um sorriso
pequeno e curiosamente carinhoso.
— É o tio Tim! — explica, sorridente.
Ela desenhou Timothy bem ao meu lado, seus olhos são simples
traços e seus lábios esboçam um enorme sorriso. Meu rosto está virado em
sua direção, apresentando o mesmo sorriso.
— Sei que sentem a falta dele. — Meu pulmão expulsa todo o ar,
fico fascinado com o quão ela é esperta ainda tão pequena. Mas é fácil de
entender, ela claramente puxou isso dele.
Helena faltou chorar por admiração pela pequena. Abaixa-se e
segura o rostinho gordinho de Casey, beijando o topo de sua cabeça e
fazendo a garotinha sorrir tímida.
— Céus, você fica cada vez mais esperta, Casey — diz, orgulhosa.
Casey se encolhe com a observação de sua avó e corre para dentro. Helena
e eu rimos juntos da cena, ao se levantar seus olhos correram em direção ao
desenho. — Posso ver? — Rapidamente entreguei a folha em sua mão, seus
olhos brilharam, sentindo a emoção do momento. — Ele iria amar esse
desenho, se estivesse aqui.
Concordo, silenciosamente. A verdade é que não consigo associar
uma realidade em que Casey existiria caso Timothy tivesse sobrevivido.
Mas é algo que jamais saberíamos.
— Ela se parece tanto com ele — ela observa, seus olhos brilham
com intensidade. — Você não acha?
— É como se eu estivesse olhando para o Timmy criança — caçoo,
Helena se desmancha em uma risada sincera e inesperada.
— Isso me enche de alegria.
— A Casey?
— Sim, com certeza. Mas — ela limpa a garganta —, poder falar
sobre cada fase do meu menino com você e você entender perfeitamente do
que estou falando.
É, é uma ótima observação.
Timothy era um ano mais velho que eu, mas por nos conhecermos
cedo, lembro dele quando criança como se eu já tivesse a idade que tenho
hoje. Seu rosto gordinho e seus olhos fechando por causa de seu sorriso
grande, as mãos pequenas e, surpreendentemente, um estresse de dez
homens adultos.
Esse pensamento me voltar sentir algo que eu realmente não queria
sentir agora, por isso, respiro fundo e tento afastar tal pensamento de mim.
Helena sorri quando simplesmente a abraço, de repente, essa seria a
melhor resposta no momento.
Mas não falo muito para não estender o assunto. Talvez eu não seja
o melhor em superar as coisas, oito anos se passaram e eu sigo conversando
com a lua todas as noites. Então é natural que esses sentimentos venham à
tona sempre que seu nome for citado.
É um pouco autoexplicativo quando me afasto. Quando atravesso a
porta de vidro, Soohyuk vem logo em seguida. Ele me cumprimenta com
um sorriso, mas parece ansioso para falar com Helena, por isso não o
atrapalho, apenas abro espaço. Já dentro da casa, conforto-me em ver todos
interagindo casualmente.
Três de março já não é mais uma data melancólica, ou pelo menos,
tentamos não deixar.
— A casa está cheia. — Ouço meu pai se aproximando. — Ela não
fica cheia assim há anos.
— E ela já esteve tão cheia assim?
Ele sorri nostálgico, abaixando a cabeça.
— Há um tempo, sim.
Não demora para que eu entenda a que época em que ele está se
referindo. Por isso não insisto muito, volto minha atenção para Samuel
gentilmente chamando Miran para dançar algo que Minho toca no piano.
Casey bate palmas com a cena, parece feliz ao ver seus pais tão carinhosos.
Ele a gira com cuidado e os dois riem, não são os melhores na valsa,
mas é reconfortante vê-lo tão feliz. É quando ela quase tropeça que ele a
segura com cuidado e ajuda subir em seus pés, assim, eles conseguem
dançar em sincronia. É instantâneo, um sabor amargo sobe pela minha
garganta, ela se fecha e é como se um monte de lembranças se formasse em
um bolo, tento empurrá-la para baixo, mas a sensação só piora. O ar que o
cilindro me oferece, é quase dispensado.
E minha mente só o tem.
Com um suspiro alto, afasto meu olhar do casal e saio do cômodo.
Vê-los não é difícil, o difícil é saber que eu poderia estar dançando da
mesma forma com ele agora.
Assim como fizemos um dia.
Ao voltar para o jardim dos fundos, Helena sorri ao me ver.
— Eu já ia chamar todos, está tudo pronto — ela anuncia,
orgulhosa. Eu estou um pouco atordoado, preso no mesmo lugar e buscando
ar. Ela parece notar que algo tenha me afetado, então curva a cabeça para o
lado e me olha gentilmente ao se aproximar. — Precisa de um tempinho
sozinho?
Suspiro em alívio.
— Acho que seria bom...
— Tudo bem — garante, passando-me segurança ao acariciar
rapidamente meu braço. — Eu deveria mesmo ir cumprimentar seu pai, já
que ele é o anfitrião da casa. Seria muita falta de educação minha não ir
agradecer, não é mesmo?
— Vocês sempre serão bem-vindos.
— Eu sei — ela sorri, genuinamente grata —, leve o tempo que
precisar.
Dito isso, ela volta para dentro da casa.
E eu me apresso em voltar para a minha casa.
A casa na árvore permanece em ótimo estado. A cada ano que passa,
ela se torna mais importante, ultimamente é o único lugar onde consigo
relaxar de verdade. Tem sido um pouco mais difícil de subir, com os anos o
uso do cilindro e os remédios, que parecem inúteis. Mas vale a pena quando
me sento no colchonete e apenas consigo ver o céu pela janela.
Um tempo atrás, eu gostava de me sentar do lado de fora e observar
todo o jardim.
Mas o céu ficou mais interessante, é bem melhor vê-lo daqui.
Eu sinto meu corpo e minha mente agradecendo por respeitar sua
vontade de estar sozinho. Minho não poderia estar mais certo como quando
veio verificar se eu estava bem, o problema é que eu não imaginei que
realmente me afetaria por detalhes tão pequenos. É difícil lutar a cada dia
para que eu não volte ao estado inicial, de quando tudo aconteceu. Eu sinto
cada sintoma de que posso ser derrotado pela eminente sensação de estar
revivendo o momento de sua morte, talvez esse seja o maior dos problemas.
Eu estava lá. E volto para aquele momento quase todos os dias.
Constantemente me questionando do porquê não corri pelos
corredores, implorando por ajuda. Pergunto-me como eu me sentiria hoje,
caso eu não estivesse com ele.
Isso é o que me impede de me desprender do dia três de março.
Esse irritante “e se?”.
Timothy brigaria comigo agora, se pudesse. Ele me ajudaria para
que eu ficasse calmo e pediria para que eu voltasse a ficar com os outros lá
embaixo. E sinceramente, eu já não faço ideia de quanto tempo me escondi
na casa de madeira. Chego a pensar que havia cochilado, mas apenas tinha
divagado muito longe.
Respiro profundamente quando a ideia de voltar se faz presente em
minha mente, não é como se fosse um grande desafio estar lá com minha
família — a verdade é que eles são minha maior força —, mas sei que um
sentimento semeia em várias pessoas que já experimentaram dele.
Três de março não pode ser o que foi oito anos atrás.
Por isso, opto por evitar demonstrar quaisquer sentimentos que
remetem a ele, ou aquele dia.
E quando ouço uma leve batida na madeira, ao olhar da direção,
encontro Minho ainda do lado de fora. Ele me olha atentamente e parece
tranquilo.
— Tudo certo, aí?
— Acho que sim — respondo, sinceramente.
Minho me oferece um sorriso gentil.
— Posso entrar, ou precisa de mais tempo sozinho? — Levo alguns
segundos para pensar, sei que meu irmão me entende perfeitamente, por
isso só aceno com a cabeça e ele entra pacientemente. Sentando-se ao meu
lado no colchonete. — Você ficou um bom tempo aqui, achei que seria bom
verificar.
— Verificar o quê?
— Se você voltou para lá, de novo — ele é direto, isso me pega de
surpresa.
— Eu estou bem, não se preocupe — digo, ao expulsar o ar com
intensidade.
— Mas? — Ele sabe que tem um “mas”.
Sorrio melancolicamente ao perceber sua rápida observação, em tão
poucas palavras minhas.
— Eu não sei — suspiro, abaixando minha cabeça —, é só... Você
não poderia estar mais que certo. — Olho para ele, seus olhos entregam
surpresa. — É estranho, mas parece que cada detalhe, de qualquer coisa que
aconteça perto de mim me faz lembrar dele.
— O que tem de errado em lembrar dele?
— Não tem nada de errado — eu me mexo, desconfortável —, o que
tem de errado é lembrar constantemente que ele não está aqui. Mas eu sim.
— Minho pisca atordoado, parece tentar buscar as melhores palavras, mas
acaba não dizendo nada. — Passaram oito anos e estou aqui, revivendo
sempre o mesmo dia.
— Bom, quanto mais tempo passa a saudade aumenta... E quanto
mais sentir a falta dele, ainda mais vai doer — Minho praticamente
sussurra, parece cauteloso ao usar as palavras.
— Como é para você?
— Como assim? — ele questiona, verdadeiramente confuso.
— Você e Sara já estão casados há um bom tempo — digo, virando-
me em sua direção —, como é para você quando precisa vir pra cá e ela ter
que ficar lá?
Minho enruga a testa.
— Ah, Jun-ho — ele balbucia, comovido. — Não é nada comparado
ao que você está sentindo hoje e sentiu por todos esses anos. — Ele faz uma
pausa, ao limpar a garganta. — Eu sei que ela estará me esperando e ela
sabe que eu vou voltar. Não existe nada no mundo que possa ser comparado
ao que você passou.
É como um tapa, um choque de realidade. Eu sempre me perguntei o
quão era difícil um para outro, ficar quilômetros de distância, quando era
necessário que ele viesse para cá. Talvez eu estivesse procurando algo que
diminuísse o tamanho da minha dor, apoiando-me em outra.
— Timothy sempre dizia que iríamos nos encontrar — lembro de
suas palavras —, nós prometemos um ao outro. Que iríamos além da
eternidade, que isso era só um susto e que vamos ficar juntos outra vez.
— Como uma encarnação?
— Sim. —Sorrio. — Exatamente isso.
— E o que mudou?
Eu me encolho, verdadeiramente perdido.
— Ele foi, eu fiquei. — Meu nariz arde. — Eu me agarrava aquela
promessa como uma certeza absoluta, mas me esqueci que para reencontrá-
lo eu também preciso ir. E eu não faço ideia de quando isso vai acontecer.
— Escondo meu rosto com as mãos. — Eu não sei... Tenho medo de que
isso jamais vá acontecer, somos dois garotos apaixonados que não
aceitaram o fato que serem interrompidos.
— Não acredita mais? — Minho parece indignado.
— Eu já não sei em que acreditar — confesso. — Já passou tanto
tempo...
— Talvez fique mais fácil com o tempo.
— Não é isso, é só que... — Massageio minha têmpora. — Timothy
tinha certeza absoluta do que iria acontecer com ele, se despedia sempre
que possível. — Faço uma pausa, quando minha voz começa sair afetada.
— Eu por outro lado, não sabia o que realmente poderia acontecer. Se
algum milagre surgiria para que ele fizesse a cirurgia, se eu poderia ir antes,
se eu estaria com ele ou se perderia o amor da minha vida de longe — perco
ar ao desabafar. — Eu nunca tive certeza de nada.
Minho não diz nada, ele põe a mão sobre meu ombro como gesto de
apoio, seus olhos brilham pela empatia. Respiro fundo, sorrio em sua
direção e abaixo a cabeça outra vez.
— Eu sempre penso naquele Timothy, de oito anos atrás. Mas como
ele seria hoje? — Olho para suas fotos, na parede. — Samuel já está casado,
é pai...
— Bom, se Timothy estivesse aqui — Minho começa, cauteloso —,
talvez isso não teria acontecido.
— Ou sim — confirmo a possibilidade. — Está vendo? É isso que
martela em minha cabeça, a questão não é ter ele pra mim nessa realidade.
É constantemente pensar em quê ele teria se tornado, se teria se apaixonado
por outra pessoa, ou se me amaria cada dia mais. Ou se ele teria realizado o
seu maior sonho, ou se esse sonho seria passado para Samuel... Eu só queria
que ele pudesse andar pelas ruas, comer vários doces e ter dor de barriga na
manhã seguinte. — Minho ouve cada palavra, atentamente. —
Simplesmente viver.
— Então se agarre a essas inúmeras possibilidades — Minho diz,
aproximando-se. — Pergunte às estrelas ou à lua se for preciso. Um dia ele
dará as respostas, você disse que prometeram se reencontrar, não quebre
essa promessa.
Meu peito faltou queimar vendo Minho falar com a mesma
determinação da qual Timothy usava. Preparando para abrir minha boca e
agradecer por me ouvir, sou interrompido por Helena que nos chama com
urgência, seu tom de voz me assusta e instantaneamente começo a tremer.
Mesmo sem entender o porquê.
Minho e eu corremos para fora e descemos o mais rápido possível
até o gramado, meu irmão entra com pressa para dentro de casa enquanto
meu corpo parece pesar demais. Lentamente, invado o cômodo agitado.
Meu pai corre em direção ao sofá com seus equipamentos de medicina, ao
me aproximar mais, deparo-me com Casey pálida no sofá, sua roupa suja e
Samuel a segurando no colo com um semblante preocupado.
— O que houve? — Minha voz sai por um fio.
Ninguém me responde, talvez não tenham me ouvido. Casey parece
se esforçar para ficar acordada, enquanto meu pai a examina.
— É melhor levarmos ela ao hospital — ele conclui, mas com a voz
tranquila —, mas não se desesperem. Isso pode ser apenas uma intoxicação.
É imediata a movimentação de todos. Sem que Miran ou Samuel
precisem pedir, todos presentes se reúnem para acompanhá-los. Minho e eu
somos levados por nosso pai, Samuel é impedido de dirigir por Soohyuk
que se ofereceu, levando Miran, Casey e Helena.
Samuel está tão perdido que não soube o que fazer, até sua mãe
guiá-lo até o banco de passageiro. O desespero no olhar de cada um é
familiar, isso me assusta.
Chegamos o mais rápido possível no hospital, Casey adormece no
colo de sua mãe e é levada às pressas com o auxílio de meu pai.
Preocupados, ficamos na sala de espera juntamente de Helena e Soohyuk,
que apoiam um ou outro como faziam anos atrás.
Até que Miran e Samuel voltam, sozinhos. Aparentemente cansados.
— Ei... Você precisa se sentar um pouco — Helena diz, ao tocar
gentilmente o rosto de Miran.
— Precisam de alguma coisa? — ofereço, aproximando-me.
— Tudo bem, Jun-ho — ela agradece, sorrindo. — Estamos bem,
Casey precisou ficar no soro. Estava desidratada, logo irão iniciar os
exames.
— Viemos tranquilizar vocês — Samuel explica, sentando-se ao
lado de sua esposa. Vê-los mais tranquilos me faz respirar em alívio. —
Vocês não precisam ficar. Talvez demore um pouco.
Em conjunto, todos nós rejeitamos a ideia de irmos embora. Samuel
sorri agradecido, e beija a cabeça de Miran. Ela é uma pessoa reservada,
quase nunca demonstra fraqueza em público. Mas hoje, eu a vejo
exatamente como Helena oito anos atrás.
Não é preciso uma má notícia ou uma prévia para que ela fique
como está, ver sua filha daquela forma deve ter sido o maior susto de sua
vida. Sem contar, que Samuel sempre esteve em alerta, não pelo medo e
trauma pelo que viu e passou, mas sim pela óbvia possibilidade que a
genética traz.
Com o passar do tempo, ficamos sonolentos. Minho se oferece para
dar carona a quem preferir ir descansar, mas todos negam. Ele parece
aliviado, também não demonstra vontade alguma de ir embora. Após um
tempo, vejo o doutor Gi-hun atravessar a grande porta. É estranho vê-lo,
mesmo que eu acompanhe o hospital regularmente, sempre tenho a mesma
sensação ao encontrá-lo.
— Uau! Não vejo a sala de espera cheia assim desde que... — ele se
interrompe, limpando a garanta. — Bom, é bom revê-los. Gostaria que
fossem em circunstâncias melhores.
— Igualmente, doutor — Soohyuk o cumprimenta.
— Preciso coletar algumas informações adicionais, para qualquer
tipo de exame — o doutor informa, todos nós entendemos. — A não ser,
que não achem necessário.
— Achamos sim — Miran afirma, sem pensar.
— É extremamente necessário — Samuel completa. — Casey mais
que qualquer um aqui tem grande possibilidade. Gostaríamos de verificar
mais cedo, mas não houve sinais até hoje.
Gi-hun balança a cabeça, ele entende melhor que ninguém. Com as
mãos no bolso do jaleco, ele pensa por alguns segundos e então olha para
todos nós, um por um.
— Iremos iniciar os exames, não vai demorar muito — ele afirma.
— Fiquem tranquilos, trarei notícias assim que possível.
— Muito obrigado — Samuel agradece, com o olhar cansado.
Acontece que Gi-hun nunca foi o melhor em afirmar prazos, então
demorou mais do que imaginávamos. Mas com a quantidade de exames que
decidiram fazer, era óbvia a espera. O que nos afligimos é o resultado. Por
isso, quando vejo Miran um pouco mais afastada, observando a paisagem
da grande parede de vidro, aproximo-me com cuidado para verificar se está
tudo bem.
— Quer que eu busque algo para comer? — questiono, assim que
ela nota minha presença.
— Muito obrigada, Jun-ho. Mas estou sem fome agora.
— Entendo — falo sem pensar, abaixando minha cabeça.
Miran desvia o olhar e volta observar o lado de fora, aflita e
cansada.
— Fico tentando visualizar como era para todos vocês, estar aqui,
todos os dias — ela fala com cautela, sem me olhar. — Não conheci
Timothy, mas gostaria. Afinal, ele foi responsável por uma das melhores
coisas que me aconteceu. — Isso me faz sorrir. — O que me entristece, é
que ele nem sabe.
— Acho que sabe, sim — tranquilizo, vendo um sorriso se formar
em seu lábio.
Ela me olha, carinhosamente, parece tentar ler algo em meu rosto.
— Timothy deve ter sido um ótimo amigo.
Isso me faz sorrir ainda mais.
— Ele era — afirmo e então limpo minha garganta. — Mas, na
verdade. Ele era meu namorado.
Miran parece despertar de um sono, sorri meio sem graça e então
coloca a mão na testa como se tivesse esquecido de algo muito importante.
— Céus, me perdoa, Jun-ho. Eu realmente me esqueci.
— Sem problemas — digo, sinceramente. Vendo Miran sorrir
sinceramente e aparentar estar mais acordada. Não faço ideia de que horas
são agora. Mas todos nós estamos lutando contra o sono.
Não é difícil estar aqui, acredito que esse lugar tenha se tornado
bastante habitual para mim. Mas hoje é três de março — ou era, já não faço
ideia do tempo que passou —, o problema é que a alguns andares acima.
Oito anos atrás, Samuel e eu estávamos passando por a pior experiência de
nossas vidas. Quando busco por ele, entre os bancos de espera, noto que já
estava me olhando.
O mesmo olhar, aflito e amedrontado.
Talvez ele tenha tido a mesma observação que a minha, juntamente
do óbvio medo do que possa ter causado os vômitos de Casey.
Nós todos optamos por compartilhar o silêncio que os corredores
proporcionam, eu poderia ter pegado no sono, se não visse Gi-hun e meu
pai caminharem juntos em nossa direção. Suas expressões me tranquilizam
um pouco.
— A teimosia de vocês me assusta — meu pai, aponta.
— Puxamos do senhor — Minho aponta de volta, sem vergonha
alguma na cara.
Isso me faz querer rir, mas Miran espera ansiosa por notícias da
pequena. Gi-hun lê o papel em sua prancheta atentamente. Até que desvia o
olhar e sobe seus óculos até a testa.
— Casey é saudável, fiquem tranquilos — é sua primeira afirmação.
— Fizemos todos os exames, todos eles deram negativos — a reação de
todos é a mesma, Miran sorri com os olhos brilhando pelo alívio e recebe
um beijo na testa, de Samuel. — Vocês disseram que estavam reunidos
ontem, não é? — afirmamos. — Ela possivelmente ingeriu algo que não fez
bem, a reação foi imediata, é só uma intoxicação alimentar. Como o Choi
havia dito.
Olho para meu pai, orgulhoso. Sei que ele é um dos melhores
cirurgiões e que trabalha há anos, deve reconhecer casos só de bater os
olhos, mas ainda assim, sempre me orgulho ao vê-lo chegar em casa
aliviado por ter salvado mais vidas.
— Podem vê-la, se quiserem — ele anuncia, feliz.
Os pais e avós da garotinha são guiados rapidamente para vê-la,
opto por deixá-los a sós. Afinal, eles são uma família, passaram a noite
aflitos.
— Bom, acho que já vou indo então — Minho decide, vendo a hora
em seu relógio. — Você vai ficar? — ele pergunta, levo tempo demais para
decidir. Mas é claro que decido ficar. — Diz ao Samuel que pode me ligar
para o que precisar, estou aqui. — Sorrio, admirado com a amizade formada
pelos dois.
Ao se despedir, Minho deixa o hospital.
Com o pretexto de estar cansado — o que, de alguma forma, é uma
enorme verdade —, peço ao meu pai que me deixe ficar em seu escritório
um pouco. Estou cansado demais para ficar na sala de espera, mas não o
suficiente para que eu vá embora sem antes ver Casey e dizer a ela o quanto
é importante.
Bom, eu gostaria de ter ouvido isso quando mais novo.
O escritório é confortável, cresci dormindo no sofá que meu pai
colocou no canto para que eu e Minho pudéssemos dormir a noite. Ele
ainda me aconchega bem, é estranho pensar que estou aqui outra vez por
outro alguém e não por meus tratamentos. A droga que usam para atardar o
pior, deixam-me enjoado e cansado. Hoje estou sentindo o mesmo, mas por
outros motivos.
É só quando ouço passadas largas e pesadas do lado de fora, que
noto que havia dormido, até demais. A luz do Sol invade o escritório e
atinge meu rosto, esquentando-me. Meu corpo cansado e dolorido reclama
quando me forço a levantar, aparentemente, ninguém tentou atrapalhar meu
sono. O que eu agradeço muito.
O peso semelhante a um concreto em meu dorso faz com que eu
reclame ao me levantar, meus olhos fecham pelo desconforto e logo suspiro
de alívio ao conseguir me sentar. Meus ossos semelhantes aos de um
homem de idade avançada, parecem ainda mais afetados após dormir nesse
sofá que um dia já me confortou muito.
Mas eu já não sou mais uma criança.
A realidade cai como uma tempestade fria e barulhenta.
Por isso apenas chacoalho minha cabeça para afastar tais
pensamentos, o relógio indica que a manhã acaba de chegar. Mesmo que
Casey tenha “apenas” sofrido uma intoxicação alimentar, levamos a noite
inteira no hospital. Isso porque foram feito inúmeros exames na pequena.
Ela muito provavelmente esteve dormindo na maior parte do tempo.
Ainda assim, uma noite num hospital tão grande, jamais sai de uma
cabeça tão pequena.
Mesmo que ela cresça.
Com isso em mente, apresso-me em ir vê-la. Casey se apegou a mim
de uma forma inexplicável, Miran e Samuel nunca aparentaram se importar,
a verdade, eles amam quando a garota me chama de tio. Isso aquece meu
coração, sei que jamais serei pai um dia, mas saber que tive a oportunidade
de ser um tio, me faz muito feliz. Ainda mais quando ela carrega em suas
veias, o sangue de quem eu tanto amo.
Atravessando os corredores, chegando na ala médica e me
deparando com diversas macas e cortinas. Lembro que um dia eu já estive
aqui, mesmo medo, situação diferente.
— Jun-ho? — Ouço Sam me chamar, uns passos à frente, Miran
acena em minha direção. Apresso-me para alcançá-los, Casey está deitada e
parece bem melhor. — Pensei que tivesse ido embora.
— Não, não — pigarreio, ao me aproximar. — Eu estava no
escritório do meu pai.
— Que bom que ficou — Sam se aproximou, passando o braço ao
meu redor —, mas você é como um pozinho de açúcar. Devia ter ido
descansar, cabeça de vento.
— Eu descansei sim — defendo-me. — Dormi à beça lá no
escritório.
Samuel me olha desconfiado, mas logo desmancha a expressão e
solta uma risada. Como ainda não me acostumei com esse moleque? Ele
aperta o braço um pouco e então me solta, arrastando um longo suspiro até
chegar em Miran.
— Casey, ei — ela me olha atentamente —, como está se sentindo?
— Com preguiça — resmunga, fazendo bico. — Será que eu já
posso comer? — Miran solta uma risada desacreditada, aproximando-se da
filha.
— Você passou a noite aqui por ter comido algo, que seu estômago
não gosta — protesta. — Vamos tomar todo cuidado do mundo agora,
mocinha.
— Meu estômago é chato — reclama, cruzando os braços. — Eu
gosto de tudo.
Isso me faz rir, eu facilmente diria isso quando criança. A filha de
Samuel fica emburrada a cada segundo e palavra dita à sua pessoa, é
pequena, mas cabe tanto estresse. Samuel tenta esconder a vontade de rir de
suas caretas, já a mãe, conversa pacificamente com a pequena para acalmá-
la.
Um Lee com fome é um perigo eminente para todo o país,
conhecendo-os bem, Casey agora mesmo deve estar planejando fugir para
atacar o refeitório. Mesmo que isso custe seu lugar na maca, já que esse
lugar é mais concorrido que a pista vip em um show de um cantor
internacional.
Por isso, aproximo-me e cutuco o braço da garotinha para ganhar
sua atenção.
— Enquanto você espera receber alta, para ir comer. Tenho algo
para você. — Isso faz seus olhos brilharem, sorrio contente com sua reação.
Tirando de meu bolso, o colar com pingente de lua, deixado comigo oito
anos atrás. Casey abre a boca em um “O”, fascinada com o objeto. — Aqui,
é para você.
Ela juntas as mãozinhas e recebe a corrente, observa por longos
segundos. Olha na direção de sua mãe e sorri de orelha a orelha.
— É a lua! — diz, empolgada.
— Isso, a lua — afirmo. — Timothy, o seu... Bom, seu tio — limpo
minha garganta — ficaria feliz em deixar isso com você, é para te proteger.
Você pode carregar ele por todo lugar, que ele vai cuidar de você.
Ela bate palmas, empolgada.
— Me ajuda, mãe? — ela pede, Miran não demora nada em ir ajudá-
la a colocar o colar ao redor do pescoço. Com as duas comentando sobre
ele, afasto-me o suficiente para notar Samuel me encarar. Ele não diz nada,
mas seus olhos entregam muita coisa.
— Valeu, cara — finalmente, ele diz algo. — Isso significa muito.
— Eu sei — é o que eu respondo.
Após alguns minutos mais tarde, Casey recebe alta, isso faz a
pequena ficar agitada e de bom humor. Sam me pede que os acompanhe até
em casa, como fiquei até o final, o casal decide me convidar para o almoço
— que Casey aparenta estar muito ansiosa, por sinal. Nós andamos pelos
corredores. Enquanto a pequena parece querer ver cada detalhe, eu não faço
ideia do que pode ser interessante para uma criança de seis anos, em um
hospital. Mas ela parece curiosa, como se não houvesse passado a noite no
hospital, ela está disposta o suficiente para correr de repente.
— Cuidado, pontinho! — Miran aumenta a voz, enquanto a pequena
se afasta à nossa frente. Ela abre os braços e finge ser um avião, é uma
graça. Mas então ela se distrai, olha para trás para responder a mãe e então
esbarra em um garotinho. Os dois caem, nós três corremos na direção.
Ver Casey se esforçando para ajudar o pequeno se levantar, é
engraçado, ele é maior, gordinho e não parece nem um pouco assustado
com a queda. Olhando melhor, vejo sardas em suas bochechas e subindo o
olhar para verificar se ele apresenta sinais de que vai chorar ou algo do tipo.
Vejo algo semelhante até demais em seu nariz.
— Você não enxerga? — questiona ele, ajeitando seus óculos. Isso
me faz arregalar os olhos, Casey faz o mesmo. — Deveria usar óculos,
como eu.
— Eu enxergo sim! — protesta, ofendida.
— Oh — balbucia, surpreso. Olha para Casey por um tempo e então
sorri como se tivesse entendido toda a situação em um piscar de olho. —
Você é só sem educação, mesmo.
Fico estático, isso por algum motivo gela meu estômago e me traz a
imensa sensação de nostalgia.
— O quê? — Casey põe as mãos nas cinturas, está horrorizada. —
Eu tenho educação, você que ocupa o corredor inteiro!
— Casey! — gritamos em uníssono, ela nos olha por cima dos
ombros como se estivesse pedindo para ficarmos fora de sua “discussão”.
— Está fazendo o que aqui? — ela o questiona, de repente. Samuel
e eu nos olhamos horrorizados diante da cena. O garoto por outro lado,
parece tranquilo e nada intimidado. Casey espera por uma resposta e então,
algo parece despertar em sua mente. — Uou, meu tio usa um cotonete
igualzinho a esse aí! — Ela aponta em minha direção, o garoto me olha
impassível.
— Isso não é um cotonete — ele respira fundo, fechando os olhos.
— Você é tonta? — Sua voz é incrivelmente controlada, para uma criança.
Meus olhos quase saltam para fora diante da cena, olho para o lado,
Samuel tem os lábios pressionados na intenção de conter um riso e Miran
olha para os lados, atordoada.
— O que é isso? — ela não se ofende, aproxima-se ainda mais e
toca no tubo.
— Larga de ser enxerida — ele reclama, mas não se afasta.
E quando o garoto deixa escapar as palavras, minha mente viaja
outra vez para uma época da qual eu não gostaria de lembrar agora.
Imediatamente, a voz de Timothy chega aos meus ouvidos e minha pele
arrepia.
— Meu tio nem respira sem o cotonete — ela segue, Miran arregala
os olhos. — Mas ele fica bonitão com ele. Mas parece que você tá soltando
catarro.
— Casey — Miran agacha ao lado da filha —, peça desculpas!
— Tudo bem — o pequeno sorri para Miran —, é que ela foi mal-
educada.
— Ei! — Samuel finge chateação.
Casey ignora toda a interação ao seu redor e se aproxima mais,
olhando para o cilindro e o cateter conectado. Ela nunca apresentou
interesse no meu oxigênio, mas agora, olha para esse como se fosse a coisa
mais interessante que já viu.
— Posso usar?
— Filha, é claro que não! — Miran parece envergonhada.
— Tudo bem — uma mulher diz, sentada na cadeira próxima a
parede. — Ele precisa tirar a cada vinte minutos — explicou, levantando-se.
— E me perdoem, Haru está de péssimo humor hoje.
— Que coincidência, estamos lidando com a mesma coisa — Miran
confessou, levantando-se, as duas riem da situação. As crianças, nem
parecem se importar. Haru, como sua mãe o chamou, ajuda Casey a colocar
o cateter sorrateiramente.
Quando todos voltam a atenção para os dois, Miran me olha
assustada e então para a mãe do menino.
— Ele consegue ficar sem? — pergunta, verdadeiramente
preocupada. — Desculpa perguntar, é que...
— Tudo bem — a mulher o interrompe, sorrindo. — Ele teve uma
crise asmática ontem à noite. O uso do oxigênio foi recomendado por causa
da gravidade da crise, mas ele já está bem melhor.
Apenas uma crise asmática.
Certo, isso me faz respirar em alívio — isso não quer dizer que não
é difícil para ele, na verdade deve ser um saco, principalmente assim tão
novo —, mas digamos que um câncer também não seria tão agradável. Por
isso, a explicação da mulher faz com que nós três deixemos a tensão de
lado. Casey solta uma gargalhada sincera ao sentir pela primeira vez, o
oxigênio induzido invadir suas narinas. Ela me olha, seus olhos brilham,
cheios de felicidade. Fico ainda mais aliviado em vê-la assim, o completo
oposto de como chegamos aqui.
Casey e Haru continuam interagindo como cão e gato, confesso que
a cena me enche de lembranças. Mas ao contrário de ontem à noite, essa
lembrança me deixa genuinamente feliz.
Como esperado, os dois detestaram ter que se despedir. Haru
pressiona os lábios decepcionado e Casey não para de olhar para trás,
acenando para o garoto.
O resto do dia só se falava nele e como ela se divertiu, o que me
enche de perguntas — pela primeira vez —, sobre o oxigênio. Ela fica
chateada por não poder usar o meu, mas logo se distrai com outra coisa.
A garotinha de hoje, não parece nada com a de ontem.
— Preciso devolver seu desenho — digo, quando Casey espalha
seus gizes pelo chão.
— Tudo bem, tio — ela me olha, sorrindo com os olhos. — É para
você, assim pode ver o tio Tim sempre que quiser. — Isso me faz congelar
no lugar, é como se ela soubesse exatamente o que ele significava para
mim. — Vai matar a saudade, até poder ver ele de novo.
— Como assim?
— Um dia vocês vão se encontrar de novo — ela diz, simplista. —
Eu acho...
Meu peito gela, Samuel parece escutar tudo do outro lado do sofá.
Ele me encara com a mesma emoção, juntos, desviamos o olhar para outro
ponto. Sempre soubemos como evitar afundar nesse mesmo lago. Por isso,
continuamos o dia tranquilamente.
Mas o cansaço ganha de mim e logo me apresso para ir para casa,
Minho rapidamente chega para me buscar. A volta para casa é silenciosa e
calma, meu irmão me conhece suficientemente bem para saber que não é o
momento certo para me encher de perguntas.
Por isso, ao chegar em casa ele não estranha e nem mesmo pergunta
o motivo pelo qual eu caminho diretamente para a casa na árvore.
Bom, ele já sabe.
Eu me aconchego no colchonete, a manta azul é quente o suficiente
para manter a temperatura o meu corpo. O círculo aberto teto me faz ter a
visão perfeita da noite estrelada, ela é calma e iluminada. Eu contaria as
estrelas uma a uma, se não houvesse riscos de adormecer em meio ao
processo, por isso. Eu apenas observo a imensidão que me fascina todas as
noites, as nuvens quase transparentes andam em sincronia e cautela no ar,
algumas passam pela lua e escondem seu brilho.
Mas não demora para que ela apareça outra vez.
— Casey se parece tanto com você — sussurro, para a lua. —
Samuel odiaria isso, em situações diferentes. — Solto uma risada, leve e
curta. — Mas, nossa! Vocês se dariam tão bem, sabe? — Nenhuma resposta
é dada, como esperado. O silêncio se faz presente e o nó que ameaça subir
pela minha garganta, entrega que hoje não será diferente de todas as outras
noites que subi até aqui para falar com a lua.
No início, isso parecia meio bobo. Falar sozinho, olhando para a lua
por um buraco no teto e aguardar ansiosamente por respostas. Bom, é
exatamente o que eu faço.
Mas isso jamais irá mudar.
— Ainda vamos nos encontrar, Timothy — garanto, em um
sussurro. — Porque a gente se pertence, de alguma forma. Até a Casey sabe
disso.
Meus olhos pesam, as estrelas embaçam. Minhas pálpebras se
fecham lentamente e minha respiração desacelera conforme meu corpo se
entrega.
— Eu amo você. — O sono se alastra e meus olhos ficam ainda
mais pesados. É quando vejo perfeitamente, Casey correndo pelo corredor
do hospital, rindo e esbarrando em Haru. E os dois conversando exatamente
como nós fizemos anos atrás. Meu peito queima, meus olhos abrem e
lágrimas escorrem por meu rosto, mas meus lábios curvam em um sorriso
que não esboço há oito anos. — Quase me esqueci. — Respiro fundo. —
Não só eu, mas o mundo inteiro... Agradecemos o mais incrível e precioso
presente, que é parte de você, Timothy.
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