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Conversando Com A Lua - Talking To The Moon
Conversando Com A Lua - Talking To The Moon
Silva
Brasil 2024
Copyright© Gaab K. Silva / Editora Calíope
Supervisão: Antony Isidoro
Revisão e Capa: Jaqueline Brito
Diagramação: Isa Feijó
Todos os direitos reservados
Ghostin
Ariana Grande
Timothy no mundo da lua
Por onde eu posso começar a contar sobre a minha vida? Não que
tenha acontecido algo surpreendente ou que eu estivesse repleto de
felicidade, na verdade, é o completo oposto.
Dia vinte e três de outubro: o dia em que minha mãe me olhou
diferente.
Mas não um “diferente” bom, foi como se eu estivesse prestes a
explodir. Bem, digamos que a situação era quase a mesma...
Com oito anos de idade eu fui diagnosticado com leucemia, não fui
uma criança “normal” desde então. Minha mãe dizia que eu era especial e
que não havia nada de errado comigo, mas na verdade tinha algo de errado
sim. Lembro-me como foi quando recebemos a notícia sobre o câncer e
como minha mãe entrou em desespero, meu pai sequer sabia que o fazer e o
doutor tentava explicar da forma mais cautelosa possível.
O que não adiantou muito.
— Mas ele só tem oito anos! Veja isso outra vez, não me parece
certo — nada estava parecendo certo naquele momento, mas os resultados
dos exames nunca estiveram tão corretos.
— Tente se acalmar Helena, vai dar tudo certo — meu pai não
tentou controlar a voz afetada pelo choro, mas tentou de tudo para acalmar
a minha mãe.
— Não! Meu filho está morrendo. — Eu era bem pequeno na época,
mas nunca vou me esquecer da forma como minha mãe tremia sem parar,
consigo ouvir sua voz completamente quebrada pelo choro até hoje.
— Vamos tentar focar no tratamento do Timothy, Sra. Lee — o
doutor finalmente disse algo depois de um tempo em silêncio. — Quanto
mais cedo a leucemia for detectada, melhor é a resposta ao tratamento e
assim aumenta as chances de cura.
Acho que notei certo alívio no olhar da mamãe, quando seus lábios
se curvaram em um pequeno sorriso eu senti muita segurança em meio a
todo aquele caos. Mas na verdade eu estava meio confuso, só tinha
entendido que estava doente e que meus pais estavam com medo. Ah, e que
eu poderia morrer.
“Morrer”, essa probabilidade não saía da minha cabeça.
A volta para casa ficamos todos em silêncio, eu podia ver lá do
banco de trás que nem por um minuto a expressão entristecida do meu pai
foi substituída por uma aliviada, diferentemente da minha mãe, que estava
mais calma. Provavelmente meu pai estava sentindo o mesmo que eu.
Em casa, meus pais evitavam falar sobre o assunto na minha frente.
Hoje eu entendo o porquê, mas na época eu estava desesperado para
entender o que estava acontecendo. Por isso decidi eu mesmo perguntar.
— Eu vou morrer, mamãe? — Minha mãe congelou por um
segundo, depois piscou várias vezes seguidas em busca de alguma resposta
reconfortante.
— É claro que não, meu amor! De onde você tirou isso?
— O papai estava chorando mais cedo, ele nunca chora — digo me
ajeitando na cama. — Você também estava chorando mamãe, o doutor disse
que estou doente e vocês dois choraram!
— Céus... Você fica cada dia mais esperto Timmy! — Deixando um
beijo no topo da minha cabeça, ela me abraça extremamente forte. — Me
escuta, Timothy, a mamãe vai precisar que você seja forte. Seu pai e eu
vamos cuidar de você, então não se preocupe, vai dar tudo certo!
— Mas você está preocupada, não está mãe?
Ver seu sorriso sumir fez com que eu me sentisse culpado.
— Vai ficar tudo bem! — dessa vez ela não estava falando comigo,
mas sim tentando acreditar em suas próprias palavras.
E sussurrou outra vez, puxando-me até que eu me alinhasse em seus
braços, aquele foi um dos abraços mais apertados que minha mãe já me deu,
nunca vou esquecer de ter ouvido seu coração acelerado ao deitar minha
cabeça em seu peito, perguntar se estava tudo bem e ela não pensar duas
vezes antes de mentir e dizer que “sim”.
Mas eu estava exausto demais para protestar contra sua mentira e
dormi ali mesmo, no abraço acolhedor de minha mãe enquanto ela estava
em puro desespero. Também não em que momento ela decidiu me colocar
em minha cama, mas sei que acordei e ela não estava mais lá.
Na verdade, quem estava me observando dormir era Samuel, meu
irmão mais velho. Que não hesitou nem um segundo antes de pular em cima
de mim, fazendo-me cair deitado na cama outra vez.
— Timmy! Como você está se sentindo? — Sam questionou, sem
me largar.
— Estou bem, mas parece que eu vou morrer — digo frustrado e
Samuel rapidamente me solta, sentando-se na ponta da cama.
— Isso não tem graça.
— Mas estou falando sério! O doutor disse que eu estou doente. —
Samuel se encolhe, parece chateado.
— Mamãe e papai me contaram — ele diz baixo, cruzando os
braços. — Mas você não pode morrer, eu sou o mais velho! Tenho que ir
antes.
— Credo, Sam, não quero que você vá, não!
— Também não quero que você vá! — Lembro que Samuel estava
bem preocupado, um sentimento terrível para uma criança sentir.
Mas como eu disse, nada de acontecimentos surpreendentes por
aqui.
O que tenho para contar sobre minha vida é como o câncer matou a
minha família lentamente. Deixando-me vivo para assistir tudo de perto,
matando-me por dentro.
O que é bem pior do que morrer por completo.
— Timmy? — Samuel me chamou uma vez, no meio da noite. —
Nunca se esqueça o quanto amamos você, ok?
— Eu também amo vocês.
Sam constantemente dizia essas palavras, o estranho era ser sempre
no meio da noite. Como se ele ensaiasse o dia inteiro para enfim dizer
durante a madrugada.
Ou seria só uma confirmação em meio ao alívio, já que mais uma
vez havia aguentado um dia inteiro sem perecer.
Algum tempo depois, percebi que pela primeira vez minha mãe
estava errada.
As coisas não estavam nada bem. O casamento dos meus pais estava
se tornando um verdadeiro caos e nada do que eles tentavam fazer para
melhorar a situação, resolvia. Sam estava o tempo todo sorrindo e me
dizendo que era apenas uma “fase”, que tudo iria melhorar logo. Mas nem
ele mesmo acreditava nas próprias palavras.
Seu sorriso persistente não escondia muito bem as lágrimas que
caíam quando presenciávamos uma discussão dos nossos pais, ou quando
eu piorava. Na verdade, Sam estava tão ferido quanto eu, a doença estava
me matando, mas o coração dele já estava quase morto.
Meu pai quase já não era mais visto em casa, o mais estranho era
como ele ainda conseguia ser presente em todo momento em que eu
precisava. Isso estava o desgastando, como uma borracha infinita. Meu
medo era de que em algum momento, toda aquela disposição chegasse ao
fim. Mamãe dedicou cada milésimo de segundo da sua vida a mim, isso foi
terrível, na verdade. Tudo aquilo era insuportavelmente terrível.
Meu cabelo começou a cair.
Samuel sempre vinha me dizer que eu estava com a aparência ótima.
Mentira! Eu podia perceber o quão horrível eu estava.
O quanto eu odiava cada detalhe meu e o quanto eu odiava cada dia
mais, não só o meu corpo estupidamente magro como meu rosto pálido e
minhas mãos ressecadas. Não era uma aparência comum para uma criança
ou para qualquer ser humano decente, eu estava feio. Estranho e me
assustava com a forma pela qual a situação só piorava.
— Timothy? — minha mãe chamou preocupada do outro lado da
porta, quando eu me tranquei no banheiro por não ter aguentado segurar o
choro que forçava sair, mesmo contra minha vontade. — Meu amor, abra a
porta.
Eu não conseguia, nem mesmo parar de chorar ou levantar do chão
para abrir a porta. Eu não conseguia fazer absolutamente nada além de
chorar.
— Eu não aguento mais — também contra minha vontade, aquelas
palavras saíram e foram a ponta do iceberg para que todo o meu corpo
respondesse àqueles sentimentos acumulados.
O choro até então silencioso se tornou tão audível quanto o som de
um trovão, o impacto disto também foi o mesmo.
— Timmy, o que é isso? — Já em desespero, minha mãe forçou a
maçaneta da porta.
Eu pude ouvir quando ela também começou a chorar, pude sentir
seu desespero porque naquele exato momento estava me faltando ar e o
banheiro parecia ficar cada vez menor. Tornando-se um cubículo
insuportável, prendendo-me contra a parede enquanto eu tentava me mexer
em pura agonia.
— Tira isso de mim, mãe! Por favor.
— Abra a porta, Timmy, eu estou aqui! — Percebi a impotência em
sua voz, hoje eu sei o quanto fiz com que minha mãe se sentisse culpada. —
Não chora, isso vai passar logo.
Eu precisava que aquilo sumisse imediatamente, não “logo”.
Lembro de ouvir a voz do meu pai de longe, chegando em casa no
pior momento,
— O que foi? — Ouço a voz distante questionar, mas não tem
resposta. — Helena?
— Ele se trancou no banheiro, Hyuk — minha mãe disse, sem parar
de tentar abrir a porta.
Meu pai não disse nada, lembro de ter ficado em silêncio por um
breve momento, até que ele voltou e abriu a porta com uma cópia da chave.
De primeira nada aconteceu, meus pais me observaram chorar por alguns
segundos, sem reação, até que minha mãe se ajoelhou no chão e tocou com
cautela em meu rosto.
— O que você está sentindo?
— Eu não sei. — Eu realmente não sabia, tudo o que eu sabia era
que estava doendo. Doendo por toda parte do meu corpo, por dentro e por
fora.
— Tudo bem, você pode chorar o quanto precisar — meu pai disse,
ajoelhando-se ao lado da minha mãe. — Isso pode te fazer bem, não precisa
se segurar.
— Mas eu prometi que seria forte!
— Chorar não é significado de fraqueza, na verdade, as pessoas
mais fortes são aquelas que não têm medo de sentir e demonstrar seus
sentimentos — minha mãe explicou, secando as próprias lágrimas. — Você
é o que tem sido mais forte entre nós, temos orgulho de você!
— Sua mãe tem razão, quando se sentir assim não precisa se trancar
no banheiro ou se esconder. Você não tem que passar por isso sozinho, nós
estamos aqui.
— Mas eu já estraguei tudo!
— Não! Claro que não meu filho. Do que você está falando?
— Eu destruí nossa família.
— Timothy, de onde você tirou isso? — meu pai perguntou,
interligando seu olhar em mim e em minha mãe.
— Vocês não se amam mais!
A forma pela qual eles se encararam naquele momento nunca vai
sair da minha cabeça, por um tempo eles apenas se olharam sem dizer uma
única palavra, meu pai parecia extremamente magoado com o que tinha
acabado de ouvir, minha mãe apenas engoliu em seco e sorriu para mim.
— Isso não é verdade.
— Mesmo que fosse, não seria culpa sua.
Eu nunca acreditei nessas palavras. Mas hoje eu entendo que essa
foi a conversa certa, mas na hora errada.
Sempre que eu tinha que fazer quimioterapia o meu dia ficava ainda
pior, parecia que o tratamento só piorava as coisas.
— Você quer comer alguma coisa? — mamãe perguntou assim que
chegamos no hospital, já esperava por isso, ela sempre perguntava.
— Não. — E sempre tinha a mesma resposta.
A reação também a mesma, um suspiro de exaustão e depois um
breve sorriso para demonstrar compreensão. Mas ela não parava de insistir
nisso até o fim do dia, fazer com que eu comesse era mais uma de suas
missões.
O câncer atrapalhava até mesmo isso.
— E beber? Posso pegar alguma coisa...
— Não, obrigado.
— Tudo bem, meu amor, mas alguma hora você vai precisar comer
alguma coisa.
O dia no hospital era sempre o mesmo, tratamento, chorar e dormir
no ombro da mamãe. Mas aquele dia foi diferente.
Por um instante...
Eu não fui um garoto com câncer, eu fui só... Um garoto.
— Sra. Lee? Podemos conversar um minuto? — o doutor chamou
no corredor, antes de começar o meu tratamento do dia.
— Claro! — Mamãe me olhou e sorriu após beijar o topo da minha
cabeça. — Espere aqui só um minutinho, tá bom?
O doutor estava sempre chamando a mamãe para conversar, ela
sempre voltava mais triste que antes. Eu não gostava disso, mas também
não tinha como evitar.
Fiquei um tempo naquele corredor, esperando. Mas estava
demorando muito e eu nunca fui paciente.
Andar sozinho pelo hospital nunca fui um costume meu, até porque
eu sequer soltava da mão da minha mãe quando ia para aquele lugar. Mas
eu estava exausto e queria muito ir para casa, por isso decidi ir atrás dela.
Andei bastante, hoje eu percebo o quão desatento eu sou a ponto de
não ter notado alguém bem atrás de mim, no mesmo instante em que decidi
voltar pelo mesmo caminho do qual eu tinha feito até ali.
Eu não só esbarrei em alguém, como também derrubei o garoto no
chão. Ele não chorou quando caiu e nem mesmo ficou com raiva, na
verdade, ele riu.
— Vai machucar alguém, se continuar andando no mundo da lua
assim — ele disse ao se levantar.
Mundo da lua?
— Eu não estava no mundo da lua!
— Ah, então você só é sem educação mesmo. — Meu queixo quase
caiu no chão naquele momento.
— Não! Eu só não tinha percebido você aqui. — Lembro que estava
desesperado para me justificar, como se tivesse sido pego em uma cena de
crime.
— Então é cego? — Ele franziu a testa. — Você é cego mesmo? —
disse aproximando o rosto para olhar em meus olhos.
— Eu não sou cego!
— Nossa, não precisa gritar.
Eu lembro de ter pegado ódio naquele garoto em menos de dois
segundos de comunicação.
— Eu só estou falando alto, não gritei.
Ele não se importou com o que disse, só ficou olhando para a minha
cara. Isso me incomodou um pouco.
— Você está fazendo o que aqui?
Que intrometido!
— Você que é sem educação! — aponto, incrédulo. — Toma conta
da sua vida.
— Eu sou filho do Doutor Choi! — ele contou, sem dar importância
para o que eu disse. — Meu pai cuida de cérebros.
— Nossa!
— Pois é, mas ele nunca me deixou ver um... — Acho que ele
realmente queria muito ver um, pela decepção em sua voz, acredito que ele
tenha insistido muito no assunto.
— Acho que isso seria terrível!
— Por quê?
— Essas coisas são nojentas, não iria querer ver isso...
— Como você sabe?
— Quê?
— Como sabe que é nojento?
Olha só, ele tinha um ótimo ponto.
— Eu imagino, sei lá.
Ele riu da minha resposta, aquele garoto estava me tratando como
um baita idiota! Se eu tivesse tamanho, com certeza daria um soco nele.
— Você com certeza vive no mundo da lua.
Eu não sabia muito bem o que dizer, mas lembro que acabei rindo
junto com ele.
Aquele foi o momento mais aleatório da minha vida, mas também a
primeira vez que tinha me esquecido que estava ali para tratar de um câncer.
Eu não sei muito bem o porquê, mas aquele garoto estranho tinha me feito
muito bem por um segundo.
— Meu nome é Jun-ho!
Jun-ho, aquele nome me parecia estranho por algum motivo.
— E o seu?
— Me chamo Timothy...
— Tim... O quê? — Aparentemente, ele também achou o meu
estranho.
— Minha mãe nasceu no Reino Unido — expliquei —, mas meu pai
é daqui da Coreia.
— Uau, você sabe inglês?
— Um pouco.
Ele me olhou de um jeito engraçado.
— Então não sabe nada.
Sinceramente...
— Você é muito abusado.
Ele riu outra vez.
— Gostei de você, Timmie. — Gostou?! — Vamos ser melhores
amigos!
— Você é doido, né?
— Você vai me amar com o tempo, minha mãe dizia que eu sou
muito especial — ele disse todo cheio de si, cruzando os braços.
— Sua mãe estava errada.
Seu olhar chocado e a boca extremamente aberta me fizeram rir, rir
mesmo! Eu não fazia isso a um bom tempo.
Quando Jun-ho respirou fundo para me dar uma boa resposta, que
eu sei até hoje que seria uma resposta bem longa, minha mãe me chamou.
— Timothy! — Lembro do pequeno susto que havia tomado
naquele momento, por um instante tinha me esquecido que estava
procurando pela minha mãe. — Meu deus, o que deu em você? Te procurei
por todo canto.
— Eu também, você demorou — resmunguei, fazendo careta.
Jun-ho riu outra vez.
— Não procurou nada, estava aqui comigo esse tempo todo!
Eu dei um belo tapa no seu braço, lembro que a reação da minha
mãe foi impagável. Jun-ho riu ainda mais.
— Não se intrometa!
— Mas é verdade, poxa.
— Timothy, fez amizade querido? — mamãe questionou se
agachando.
— Não.
— Sim!
Jun-ho e eu respondemos na mesma hora.
— Claro que sim, Timmie, você estava rindo aqui comigo!
— Estava nada, você é intrometido!
Eu estava sim.
Minha mãe observou todo aquele cenário em silêncio, Jun-ho e eu
não parávamos de discutir e quanto mais ele ria das minhas reações mais eu
ficava bravo. O melhor de tudo, é que na verdade eu estava adorando tudo
aquilo.
— Timmy, temos que ir agora querido — minha mãe interrompeu,
quando eu estava prestes a dar outro tapa no garoto. — Está na hora do seu
tratamento.
Toda a minha alegria sumiu em questão de segundos.
Jun-ho curvou a cabeça para o lado sem entender muito bem a
situação, e só então ele começou a notar mais na minha aparência. Notou na
minha touca primeiro e então encarou mais um pouco o meu rosto. Jun-ho
mal tinha me conhecido e já tinha a mania de encarar o meu rosto por muito
tempo, sem dizer nada.
Com um certo desconforto, desviei o olhar ajeitando minha touca
enquanto minha mãe se levantava para segurar minha mão. Jun-ho
finalmente suavizou o olhar e sorriu para mim, acenando lentamente com a
mão.
— Até mais, Timmie! Depois a gente se vê — ele disse caminhando
para o lado oposto, mas sem parar de olhar para mim. — Na próxima eu
trago minha câmera para a gente brincar!
Dito isso ele começou a correr, sem me dar um tempo de resposta.
Fiquei chocado, “na próxima”? Como alguém como ele iria querer
brincar com alguém como eu?
A maioria das crianças me achavam chato por não poder me
esforçar tanto, por isso eu fiquei confuso quando um garoto tão agitado
como ele disse querer brincar comigo mesmo após perceber minha situação.
— Ele parece ser legal, querido — mamãe comentou, estava mais
animada que eu.
E o pior, era que ela estava certa. No dia anterior, Jun-ho estava lá.
Ele realmente tinha uma câmera e parecia ser bom em fotografar.
Eu fiquei muito surpreso, ele parecia mais novo que eu e mesmo
assim aguentava aquela coisa na mão. Ele tirava foto de literalmente
qualquer coisa, enquanto eu só podia ficar sentado recebendo meu
tratamento. Jun-ho me fazia rir com as fotos engraçadas que havia tirado.
Acredito que ele não tenha se importado por eu ser quieto, na
verdade, ele sempre perguntava se estava me incomodando por estar muito
agitado.
Jun-ho foi meu primeiro e único amigo, Samuel e ele estavam
sempre cuidando de mim.
Até que virou um costume ter os dois comigo nos meus dias de
tratamento, Jun-ho sempre ia com seu pai ao hospital para poder me ver.
Sam saía do colégio e ia direto para hospital, sempre comendo algum doce
que comprava pelo caminho.
Foi aí que tudo começou a ficar mais suportável.
Ter Sam ao meu lado foi um grande apoio, minha mãe também ficou
mais tranquila e meus pais pararam de brigar com tanta frequência. E então
chegou o dia da minha última quimioterapia.
Jun-ho levou sua câmera para registrar tudo, meu pai não parava de
sorrir enquanto minha mãe não parava de chorar. Foi um cenário bem
caótico! Estavam todos animados, e eu, por outro lado, nem tanto.
Mas não havia muitas explicações para isto, sempre fui alguém que
esperava pela decepção.
Samuel contou para todo o colégio sobre meu último dia de
tratamento, chegou no hospital com uma grande cartolina cheia de boas
mensagens. Jun-ho ficou admirado com o ato e decidiu escrever algo na
cartolina também. Até mesmo seu pai que estava sempre ocupado apareceu
para me ver, foi um dia bem cansativo.
Após a última quimio, meus pais pensaram bastante sobre o que
seria melhor para mim e Samuel, aparentemente nossa família iria ser mais
feliz se nos mudássemos para outro país.
Sam e eu odiamos a ideia, mesmo assim a decisão foi tomada. Jun-
ho ficou arrasado quando soube que iríamos sair do país. Morar no Reino
Unido nunca me foi uma possibilidade, então também fiquei superchateado
com a mudança brusca de cenário. Estava tudo indo bem até ali.
Foram sem dúvidas os piores anos da minha vida.
Acostumar-me com o idioma foi a pior parte, mas minha mãe estava
feliz em voltar para casa depois de tanto tempo fora.
Por isso eu dizia a ela que estava tudo bem.
Samuel sabia bem que eu estava mentindo, ele também odiava tudo
aquilo. Meu pai se acostumou rápido, mesmo assim sentia falta de casa. Ele
dizia que faria de tudo por nós e pela mamãe.
Eu sempre me perguntava se o amor deles estava acabando ou
aumentando.
Tudo aquilo era bem confuso.
Hoje, eu percebo que deveria ter sido mais sincero sobre como iria
me sentir com a mudança. Se tivesse feito isso, não estaria passando pelo
mesmo sentimento outra vez.
— Eu sei que é difícil — disse minha mãe, sentando-se na ponta da
cama enquanto fazia minha mala —, mas você sabe que o doutor Ryu é o
melhor em cuidar de você.
Concordo com um único movimento em minha cabeça sem parar de
dobrar as roupas, ainda em silêncio, minha mãe começa a me ajudar
fazendo o trabalho bem melhor que eu.
— Eu também não queria isso, Timothy — confessou, sua voz
entregou a exaustão e chateação que ela sentia no momento. — Mas o
câncer voltou, não vou arriscar perder você.
Esse era problema, parecia que tudo de ruim que acontecia e éramos
obrigados a fazer, era por minha causa!
— Sinceramente? Eu prefiro viver lá — enfim, confesso e minha
mãe solta uma leve gargalhada.
— Eu também.
Viro-me em sua direção em puro choque, como assim “eu também”?
Então por que vivemos nesse lugar por todo esse tempo?
— Quando terminar de guardar suas coisas, me chama que eu e o
Sam vamos levar. — Como se soubesse a quantidade de questionamentos
que eu iria fazer naquele momento, ela se afastou do meu quarto.
— Mas meu pai não chegou ainda! — gritei, fazendo com que ela
voltasse à porta.
— Ele já está vindo.
Ah, é mesmo. Esqueci de mencionar.
Meus pais se divorciaram, já não era tão estranho de dizer isso.
Mesmo assim, eu sentia como se fosse inteiramente minha culpa.
O divórcio não impediu que eles tivessem que passar por muitas
coisas juntos, na verdade, a única mudança foi que meu pai saiu de casa.
Mas sempre estavam fazendo o que era necessário juntos, assim como
agora, meu pai não voltou para a Coreia quando houve a separação.
Na verdade, essa hipótese sequer passou pela sua cabeça, mas agora
que precisávamos voltar, ele nem questionou ou pensou duas vezes no
assunto. Foi o primeiro a concordar. Minha mãe disse que sabia que
“poderia contar com ele”, sinceramente, acredito que a nunca coisa que não
acabou entre eles, foi a confiança.
— Está ansioso para ver seu amigo? — meu pai questionou, assim
que o avião pousou no aeroporto.
Na verdade, esse era um dos motivos pelos quais eu queria voltar.
— Um pouco — as palavras não condiziam com o tamanho do
sorriso que tinha no meu rosto agora.
— “Um pouco” — Sam imita o tom da minha voz, de uma forma
grotesca. — Larga de ser mentiroso, falou do Jun-ho a viagem inteira.
— Tome conta da sua vida, Samuel!
— Não posso, vendo você mentir dessa forma... Meu papel como
irmão mais velho é impedir que você vá para o inferno — dito isso, minha
mãe deu um tapa de leve em sua nuca. — Mas é verdade...
— Ninguém aqui vai para o inferno — minha mãe disse, em meio a
uma risada.
— Sei não, hein... — e meu pai completou, sequer desviou quando o
tapa foi depositado agora, em sua nuca.
Sam e eu rimos alto da cena, meus pais estavam muito felizes em
voltar para casa, por instante nem parecia que tinham se divorciado.
O problema era o porquê de estarmos voltando.
Achei que minha situação não poderia piorar, mas estava errado.
O doutor realmente tinha razão quando recomendou as frutas
geladas, a dor que sinto quando tento comer outras coisas é insuportável. Já
as vitaminas, não ajudam em nada.
Aparentemente já estou quase morto. Bom, é assim que me sinto por
ficar o dia inteiro no hospital! Eu poderia estar em casa agora assistindo
minha série favorita ou sei lá... Morrendo na minha própria cama em vez de
estar morrendo em um quarto de hospital.
Isso torna a situação mais melancólica ainda.
Meus pais não conversam mais com o doutor na minha frente, mas
sinceramente? Prefiro assim, desta forma eu não preciso assistir as reações
dolorosas de meus pais ao ouvirem o quão rápido eu posso morrer.
— Você não vai morrer — Samuel diz de repente.
— Como?
— Essa cara de quem se culpa por tudo o que há de errado no
mundo, entrega exatamente o que está pensando no momento! — ele
explica, sem tirar os olhos de seu celular. — Você não vai morrer e o papai
e a mamãe vão ser felizes para sempre.
Isso me faz rir, não uma risada sincera e alegre, está mais para o tipo
amarga e sem vida alguma. Samuel me encara em silêncio, não o olho de
volta, mas sinto o peso de seu olhar em mim.
— Você diz como se isso fosse um conto de fadas...
— Gosto de agir como se fosse — ele diz finalmente largando o
celular. — Ou então eu enlouqueço.
Sam... Meu irmão não está bem e gosta de fingir que está, mas não
fingir para nós, ele enganar a si mesmo. Ele diz que ainda vai às sessões de
terapia, que se sente melhor, mas eu o conheço bem.
Estamos só afundando, imersos em nossas próprias ruinas. Sem ter
como voltarmos a superfície por causa do peso imensurável da água que
nos afoga, é insuportável. Morrer, mas continuar respirando, é como um
inferno sem fim.
Tem momentos em que sinto que vou explodir, outros em que acho
que meus pais vão desmoronar de vez e momentos em que tenho medo de
perder o Sam.
— Podemos enlouquecer juntos — proponho e Sam ri,
aproximando-se.
— Tentador, mas isso seria um caos.
Seria.
Sam se senta na ponta na cama e juntos ficamos observando a
paisagem pela janela, eu sempre gosto de ressaltar o quanto amo a vista
daqui, detesto o hospital e ter que ficar dias preso nesse lugar, mas o céu
visto daqui é único.
Parece que estou flutuando sobre as nuvens.
— E Jun-ho? — Sam questiona de repente.
— O que tem ele?
— Não veio esses dias, o que é estranho já que ele é todo
apaixonado. — Quase que morro quando o ouço dizer isso, foi uma reação
imediata, Sam me olha preocupado quando começo a tossir feito louco por
ter engasgado com a saliva.
— Não fala isso, Samuel! — eu exclamo completamente indignado,
quando consigo parar de tossir.
— Ah, fala sério! Jun-ho te olha igualzinho o jeito que o papai olha
para a mamãe — Sam percebe na mesma hora o que havia dito, seu sorriso
diminui e ele pigarreia meio sem jeito. — Bem, olhava...
Eu não acho que o jeito que eles se olhavam mudou, o que mudou
foi a reação a isso, como se não tivesse mais importância.
— Esquece isso — digo incomodado, deitando-me na cama. —
Preciso dormir.
Minha tática de fugir de momentos constrangedores ou complicados
como esse, geralmente funciona, mas Sam me conhece bem até demais.
— É sério, Timmy, o que você sente por ele?
— Como assim?
— Vocês não estão agindo como antes — ele diz cauteloso. —
Posso estar maluco, mas eu noto o jeito que vocês se olham.
— Ele é meu melhor amigo!
— Certo, Timothy. — Ele se levanta cruzando os braços. — Isso é
lindo, mas acho que nunca olhei daquele jeito para um amigo meu...
Ok.
É um bom argumento, tenho que confessar, não consigo pensar em
nada para dizer. A questão é que sim, eu o olho de uma forma diferente
atualmente, mas isso não significa que Jun-ho também me veja assim.
Sinceramente, acredito que algo do tipo nunca acontecerá por dois
motivos.
Primeiro: sequer tenho tempo para viver, minha missão no momento
é sobreviver e tentar não estragar de vez a vida da minha família que
claramente está cansada disso tudo.
Segundo: estou horrível, com certeza os sentimentos que alguém
possa sentir por mim seriam repulsa e pena. Jun-ho é incrível e isso não é
discutível, por isso sei que a última pessoa no mundo por quem ele poderia
se apaixonar seria eu.
Então isso meio que me machuca por dentro.
— Não quero falar sobre isso.
— Ok! Não vamos.
Samuel geralmente tenta respeitar todos os meus limites, o que eu
admiro.
— Só quero que saiba que estou aqui — ele acrescenta. — Não só
para falar sobre o quão gosta de alguém, podemos falar sobre o que quiser.
— Ótimo, porque quero muito falar sobre “Atypical...”
— Ah não! — Sam protesta, tentando se afastar o máximo possível.
Inacreditável! Quer fofocar sobre minha “vida amorosa”, mas não
quer falar sobre minha série favorita comigo. Que moleque sem vergonha.
— Mas...
— Você já me contou a série inteira de trás, para frente — ele
resmunga, voltando a se sentar ao meu lado. — Poxa, assiste outra série.
— Mas essa é a melhor...
Atypical não é só uma série, é uma lição de vida. Inclusive me deu
mais motivação para vivê-la.
O que também me choca é o fato de que meu irmão tem o mesmo
nome que o protagonista, Sam já cansou do quanto eu mencionei sobre isso,
mas realmente é algo que me surpreende. Eu amo como essa série me faz
vivenciar sentimentos inexplicáveis.
Mas Samuel está já está cansado de ouvir sobre isso.
Eu o entendo, acabei ficando obcecado e tudo eu falava com ele era
sobre a série, nada mais, acabou que ficou muito entediante para ele.
— Eu prefiro falar sobre o Jun-ho.
— Samuel! — assim que grito em desaprovação, a porta se abre e
minha mãe entra com as sobrancelhas franzidas, encarando nós dois com
certa confusão no olhar.
— O que está acontecendo aqui?
Sinceramente? Hoje estou com dezenove anos e Sam com vinte e
três, mas nossos comportamentos são iguais aos de uma criança de cinco.
Nossa mãe quase sempre precisa chamar nossa atenção ou impedir
que um mate o outro.
— Timothy precisa sair daqui! — meu irmão exclama. — Se ele não
vir o mundo, vai ficar enfurnado aqui dentro e vai se viciar ainda mais
naquela série.
Juro que minha vontade foi de dar um soco nele.
— Ele não vai ficar enfurnado aqui — minha mãe rebate,
aproximando-se para deixar a bolsa na poltrona ao lado da maca. Outra vez
a porta se abre e o doutor entrou em seguida, sempre com o seu melhor
sorriso, não consigo entender como alguém que trabalha tanto ao ponto de
não conseguir dormir direito, consegue estar sempre disposto e sem
nenhuma olheira.
Eu estou sempre deitado e sou extremamente exausto.
— Timothy! Você parece ótimo. — Mas ele é um péssimo
mentiroso. — Como está se sentindo hoje?
Não sei nem por onde começar.
— Acho que estou bem — obviamente opto pela resposta mais
simples e curta, como eu disse antes, estou exausto. — Além de estar
praticamente em coma aqui. — E claro, fazer um drama é minha marca
registrada, preciso fazer o doutor repensar pelo menos duas vezes se quer
mesmo me ajudar.
— Sempre tem a resposta na ponta da língua, não é? — ele diz
rindo, nunca fica com raiva das coisas que eu digo. — Mas eu entendo,
passou dias sem nem sair desse quarto...
— Por isso está ficando chato — Sam resmunga e eu percebo quão
perigosa é a pequena distancia em que estamos um do outro, posso matá-lo
a qualquer momento.
— Ei, Timothy — o doutor me chama quando eu estou pronto para
atacar Samuel —, o que acha de sair um pouco?
Espera, o quê?!
— Pra quê?
Geralmente, quando fico muito surpreso ou nervoso, esqueço de
praticamente todas as palavras existentes no mundo e sempre digo as piores
que vêm na minha cabeça.
— Tomar um ar, não sei... — mamãe diz com um enorme sorriso no
rosto. — Acho que te fará bem.
Com toda certeza do mundo.
— Mas estou em condições de sair? — Não faço ideia do porquê
estou fazendo esse tipo de pergunta que, com certeza, farão com que eu não
vá a lugar nenhum.
— Não exatamente, mas você pode dar uma pausa de tudo isso — o
doutor explicou.
Achei isso um pouco estranho.
— Você precisa — minha mãe completa o que o doutor havia dito.
Certo, por que eu negaria? Desde que acordei aqui estou querendo ir
embora, sair para tomar um ar é o mínimo que vou ter e com certeza por
muito tempo.
Então...
— Sim, preciso sim — concordo, sentando-me na maca. — Eu
quero muito ir, mãe.
Ela fica feliz com a minha resposta, com a ajuda dela eu troco de
roupa e escovo meus dentes, já que o gosto das vitaminas estavam me
fazendo sentir enjoo, Samuel me ajuda a andar pelos corredores, sempre
tenho a impressão de que na verdade ele está me carregando por aí.
O doutor está sempre ao lado caso eu sinta alguma coisa e minha
mãe está estranhamente entusiasmada, não estou reclamando, ver minha
mãe sorrir e sem vestígios de cansaço ou preocupação em seus olhos é
minha coisa favorita no mundo, eu amo quando ela está bem.
Acredito que seja algo recíproco, entre todos nós.
— Lá fora está um dia lindo, querido! — mamãe diz, enquanto
caminha lentamente ao meu lado junto ao Sam, que continua me ajudando.
— Você vai amar.
Ela está aprontando alguma coisa.
Sam também a encara, confuso. Minha mãe é mais do tipo de me
deixar no quarto do hospital até que eu melhore, ela tem medo de que eu
pegue outra doença ou que piore por causa do esforço. Vê-la agir dessa
forma é um pouco suspeito, embora eu esteja amando.
Já do lado de fora, todo o meu corpo acorda de um sono profundo e
finito quando o calor do Sol esquentou minha pele gelada, é como estar
nascendo outra vez, o planeta voltou a girar e tudo que para mim estava
paralisado, voltou ao normal. Viver em um quarto por dias, semanas ou
meses é uma das piores coisas que alguém pode viver, ou melhor,
sobreviver a isso, já que não há indícios algum de que estou vivendo minha
vida neste lugar.
A missão de qualquer pessoa nessas condições é apenas sobreviver,
sorte daqueles que conseguem para então poderem viver após o inferno
pessoal que tiveram que aguentar.
Não acho que serei um dos sortudos.
— Estava com saudade disso, não é? — Samuel sussurra para mim,
quando tenho o prazer de erguer meu rosto em direção ao Sol para me sentir
melhor.
— Morrendo...
Certo, falei isso no momento errado.
Mas bate com a situação atual.
Caminhamos pelo enorme gramado do hospital com calma, o doutor
sempre me dizendo para ter calma quando começava a me empolgar e andar
mais rápido.
Nem notei que estava fazendo isso.
Mas é estranho quando começamos a dar a volta no hospital, indo
para a parte mais isolada da área — como chamada pelos médicos daqui —
área da natureza, aparentemente adotaram o nome mais óbvio possível para
nomear o lugar.
— Mãe, o que estamos fazendo aqui?
— Uma pessoa quer te ver — ela diz olhando para frente, o que faz
com que eu olhe na mesma direção, e sim, novamente aquela sensação
percorre meu corpo.
A vontade de sair correndo em sua direção é enorme, mas eu não
faria isso nem curado, Jun-ho estranharia.
Um pouco mais à frente, Jun-ho está sentado sobre um enorme
lençol azul. Ele não percebe nossa presença de imediato porque está
ocupado retirando algumas coisas de uma cesta, parece bem concentrado no
que está fazendo.
— Jun-ho! — Não aguento esperar chegar mais perto, eu o chamo
bem alto, tirando sua atenção da cesta. — Meu Deus, o que é isto?
Ele então se levanta rapidamente e corre em minha direção.
Ok.
Tudo certo.
— Ei, Timmie... — ele diz assim que chega mais perto, seu sorriso é
a melhor coisa que tive a sorte de ver o dia todo. — Sentiu minha falta?
E como...
— Senti! — Ele gosta do que ouve, seu sorriso ficando maior é a
prova disto.
— Ele sentiu até demais — Samuel se intromete, recebendo um tapa
na nuca pela minha mãe. Ele a encara indignado, enquanto massageia o
lugar. — Eu estou mentindo?
— Fica quieto — ela resmunga, puxando-o para mais perto. —
Timmy, vamos entrar um pouco, tá bom? Qualquer coisa me chama e eu
veio correndo para cá!
Samuel semicerra os olhos em sua direção, estranhando seu
comportamento, os dois as vezes parecem irmãos. Minha mãe agarra Sam
que não faz movimento algum para sair do lugar e o arrasta para longe de
nós, o doutor tenta conter a risada, mas falha, Jun-ho também.
— Faço das palavras de sua mãe, as minhas — ele diz quando
esvamos só nós três. — Estamos por perto, algumas enfermeiras ficam por
aqui caso alguém passe mal, então não hesite em pedir ajuda, ok?
— Ok...
— Certo, se divirtam — ele diz caminhando para longe, até que se
vira novamente e aponta o dedo para Jun-ho. — Se comporte, ou eu expulso
você daqui.
Parece que eles também são próximos, o doutor é amigo do pai de
Jun-ho, então sempre que ele vem me ver, o doutor diz esses tipos de coisas
que não assustam nem um pouco o meu amigo, ele apenas ri das ameaças
vazias.
— Pode deixar.
O doutor sorri convencido e se afasta, eu continuo paralisado no
mesmo lugar, chocado com a cena na minha frente. Jun-ho se aproxima por
trás de mim, assistindo a minha reação enquanto analiso o que ele estava
aprontando.
— O que é tudo isso, Jun-ho?
— É um piquenique, Timmie — ele sussurra. — Então já pode
riscar isso da sua lista.
Jun-ho segura minha mão sem tirar os olhos de meu rosto, puxando-
me para que eu o seguisse e por fim nos sentamos sobre o lençol azul.
O tom é mesmo que o azul do céu.
Sinceramente, combina bem com o que estou sentindo no momento.
— Eu trouxe tudo que você pode comer no momento — ele
comenta, ajeitando o que já estava perfeitamente organizado. — E como
está muito calor, eu também trouxe sorvete.
Jun-ho não está facilitando nada para mim.
— Você sentiu minha falta? — dessa vez sou eu que pergunto, Jun-
ho tira sua atenção da comida e me encara surpreso.
— Você nem imagina o quanto...
Ah.
— Me desculpa, Timmie — ele diz de repente, chegando mais perto.
— Eu estava de repouso e não pude vir esses dias.
Ah, eu entendo perfeitamente.
— Você está aqui agora, só isso que importa.
O seu sorriso diminui, não de uma forma ruim, seus olhos
continuam brilhando quando ele outra vez me encara em silêncio, mas
dessa vez eu fiz o mesmo, não abaixo minha cabeça ou desvio o olhar para
um lugar qualquer.
Dessa vez é ele que desvia o olhar primeiro, pigarreando e outra vez
tentando organizar o que já está organizado.
Ele parece nervoso.
— Está tudo bem, Jun? — Tento acompanhar o movimento de sua
cabeça para vê-lo melhor, Jun-ho sorri, mas um daqueles sorrisos que
tentam esconder algo.
Eu o conheço bem.
— Tudo ótimo, vamos comer? — Ele também é muito bom em
mudar de assunto.
O que pode ser muito bom, dependendo da situação, ele não espera
uma resposta quando começa a comer as frutas que trouxe. Jun-ho não
costuma ser tão quieto, por isso estranho a forma como ele tenta sempre não
me incomodar, como se isso fosse possível! Jun-ho seria a última pessoa no
mundo que conseguiria me incomodar.
— Você está bem quieto...
— É que... — ele pigarreia, soltando uma risada nervosa — eu senti
mesmo a sua falta, agora não sei como agir.
Certo, tudo certo.
— Jun, eu amo quando você é simplesmente você mesmo.
Jun-ho gosta do que ouve, daquele momento em diante ele fica mais
tranquilo. As frutas que ele trouxe estão praticamente congeladas, todas as
minhas frutas favoritas, o sorvete acabou em minutos e tudo que Jun-ho fez
foi me observar como uma criança tendo seu dia mais divertido em um
parque, a situação é quase a mesma.
A verdade é que ele sempre faz com que eu me sinta curado, bem o
suficiente para ser capaz de fazer tudo aquilo que geralmente não posso
fazer, isso é loucura, eu sei. Mas esse é o efeito que ele tem sobre mim.
É quando eu fecho meus olhos, para aproveitar o Sol outra vez que
percebo o quanto está calor, ficar parado por muito tempo em que o Sol bate
perfeitamente, tem seus altos e baixos.
Mas eu só abro meus olhos quando, por algum motivo, sinto o olhar
dele em mim.
— Por que não tira um pouco a sua touca, Timmie? — finalmente
ele diz algo, o que me faz arregalar os olhos em desespero.
— O quê?
— É que você está sempre com ela — ele diz, cauteloso. — Até
mesmo quando está muito calor, na verdade nunca tirou quando estou por
perto, então...
— Jun-ho... — eu o interrompo, negando lentamente com a cabeça.
— Passei dos limites. — Ele sorri para mim, um sorriso fraco e
pouco sincero. — Desculpa.
A verdade é que não é algo terrível ou imperdoável, o problema é
que é ele! A ideia de que Jun-ho me veja como os outros veem, faz com que
eu entre em desespero, porque não é assim que eu quero que ele me veja.
Mas eu sei de uma coisa, Jun-ho é a melhor pessoa para estar ao
meu lado, nesses momentos.
— Você promete não rir?
Esse questionamento parece ser terrível, irreal no cenário em que
nos encontramos, Jun-ho me encara em silêncio por um tempo, parece
tentar ler minhas expressões de forma cautelosa, ou chateado com o fato de
que eu tenha acreditado por um minuto, que ele seria capaz de fazer tal ato.
— Eu jamais faria isso, Timothy — ele fala depois de um tempo,
sério. — Eu prometo.
Não seria tão difícil alguns dias atrás quando eu sequer tinha
entendido o que estou sentindo por ele, agora parece uma verdadeira
tortura, mas eu o faço lentamente, a touca vermelha é agarrada por minhas
mãos e tudo o que consigo fazer em seguida é encará-la em silêncio.
Jun-ho também não diz nada, ele apenas me encara, por tempo
demais, isso me deixa um pouco nervoso.
— Você está me olhando por muito tempo...
— É porque você é lindo.
Ele responde tão rápido e simplista que faz meu queixo cair, Jun-ho
costuma dizer coisas que me fazem paralisar, mas isso literalmente mexeu
comigo.
— Jun-ho, não minta para mim — eu digo, sinceramente magoado.
— Estou horrível, prova de que a doença está vencendo.
— Não diga uma coisa dessa — ele praticamente me interrompe. —
Você é a pessoa mais forte que eu já conheci! — E então ele se aproxima,
lentamente, como se não quisesse que eu percebesse, quando já estava perto
o suficiente, ele ergue suas mãos e segura meu rosto com cuidado.
Sempre tomando o máximo de cuidado possível, quando me toca.
— Eu não quero que você se enxergue dessa forma — ele
acrescenta. — Se eu pudesse fazer você se ver, como eu te vejo, perceberia
o quão impecável é! Perceberia que é a personificação de pureza e perfeição
— ele chega mais perto, deslizando com delicadeza os dedos sobre minha
pele. — Eu não acreditava em perfeição até te conhecer, mas você
ultrapassa disto.
— Jun-ho...
— Vai ficar tudo bem! — ele sussurra, sorrindo para mim. — Você
vai vencer esse câncer e quando sair daqui, vamos nos casar.
Não consigo segurar a risada, na verdade, estou sentindo tanta coisa
que estou prestes a explodir.
— Até parece que você falou sério, agora — eu digo em meio à
risada e às lágrimas que eu sequer tinha notado antes, sendo limpas pelos
dedos de Jun-ho que não para de acariciar minha pele.
— Mas é sério! — ele exclama, eu apenas assinto rindo e seguro
seus pulsos, quando ele se aproxima para beijar minha testa.
Perigoso demais a forma como ele está perto, beijando a minha testa
e arrastando seus dedos pelo meu maxilar. Jun-ho está me causando
sentimentos dos quais eu nunca imaginei que iria sentir um dia, muito
menos por ele, o garoto esquisito e maluco que eu derrubei anos atrás.
Que vive me tirando do mundo da lua.
Para que eu possa apreciar o Sol.
É quando ele toca em meu queixo e levanta minimamente o meu
rosto, que noto o que estava acontecendo. O motivo de seu nervosismo e a
forma como ele está me tocando, tudo isso é óbvio demais.
O problema é que não enxergamos muito bem quando nos sentimos
mortos.
Jun-ho não se importa nem um pouco com a presença das poucas
pessoas que estavam por ali, quando quebra a mínima distância que há entre
nós e me rouba um beijo.
Simplesmente deslizando seus lábios macios nos meus.
Um beijo singelo e cauteloso.
Do qual me fez suspirar inúmeras vezes, sentindo o calor de seus
lábios sobre os meus. Jun-ho rouba outro, e outro, até que se afasta para
beijar minha bochecha e no fim, encostar sua testa sobre a minha.
Não imagino uma forma existente ou coerente para explicar o que
estou sentindo no momento, é tudo tão surreal que minha única reação é
sorrir e me acomodar em seus braços, quando Jun-ho me puxa para que eu
deite a cabeça sobre seu ombro.
— Nós somos melhores amigos, Jun-ho — eu digo, depois de um
tempo. — E você me beijou.
— Somos melhores amigos e noivos — ele acrescenta, fazendo-me
cair na gargalhada. — Então eu posso te beijar...
Ok.
Ele pode, eu quero que ele me beije.
Por isso eu assinto imediatamente quando ele termina de falar,
somos melhores amigos e, agora, noivos. Jun-ho me beija e tudo o que eu
imaginava em minha cabeça desaparece, faz sentido a forma como ele me
olha, como me toca e como cuida de mim.
Sam tinha razão.
Amigos não se olham desse jeito, pelo que eu saiba, também não se
beijam.
— Você acha que isso foi entranho? — ele questiona depois de um
tempo, e eu nego, nego mais rápido do que as palavras que saíram de sua
boca.
Porque eu definitivamente quero beijar Jun-ho outra vez.
A lua dançando com o sol
Choi Jun-Ho
Choi Jun-ho
Timothy Lee
Choi Jun-ho
Choi Jun-ho
Samuel Lee
Timothy tinha oito anos quando abriu seus olhos em sua cama e
sorriu como nunca ao se deparar com minha presença o observando, meu
irmão não se mostrou assustado ou frágil com a descoberta do câncer,
enquanto eu sequer conseguia tirar meus olhos daquele garotinho encolhido
em sua cama, repleto de sonhos que eu jamais saberei quais eram.
Ele dormia tranquilamente.
Eu o observava com pavor.
Hoje eu apenas posso observá-lo em seu sono eterno.
Um descanso tão profundo que sequer posso senti-lo aqui, meu
irmão se foi para nunca mais voltar e me deixou completamente sozinho
nesse mundo onde nada nem ninguém consegue me entender. Solitário
nesse paraíso perdido, repleto de memórias que não me aconchegam,
machucam-me como obstáculos que me impedem de alcançá-lo e isso torna
o luto ainda mais doloroso.
Não posso negar que em vida, meu irmão teve poucos momentos em
que chamamos de “felicidade”, mas ainda assim, Timothy sempre
aparentou ser mais feliz que qualquer outro.
Como na noite em que ele sofreu as primeiras sequelas da
quimioterapia, com seu cabelo caindo e sua pele pálida como a neve,
Timothy sangrou e vomitou tudo aquilo que tinha enfim conseguido comer
no dia. Ele chorou, em silêncio, lágrimas rolavam por seu rosto sem que ele
percebesse enquanto seus lábios contrariavam os sentimentos de seus olhos,
sorrindo da forma tranquila.
Eu arfei em resposta, encarando-o com espanto eu perguntei “qual é
a graça?”, Timothy sorriu ainda mais, fechando seus olhos. “Hoje é
aniversário de casamento do papai e da mamãe, eles vão comemorar, não
é?”, ele respondeu, sem abrir os olhos.
Timothy sempre foi romântico, desde muito novo ele enxergava o
amor como a forma mais linda de viver. Amando e vivendo esse amor, sem
obstáculos ou medos.
Apenas amor.
Mesmo com todas as minhas objeções, ele se levantou e desceu
alguns degraus para que pudesse espiar o momento de nossos pais, bem,
isso quando ainda havia amor.
“Olha, olha só Sammy”, ele sussurrou agitado, presenciando o casal
dançar com lentidão no cômodo grandioso, mas que só cabiam os dois. “É
amor, não é?”
“Sim, Timmy”, segurei a risada e me agachei ao seu lado,
confirmando. “Eles se amam muito mesmo, por isso comemoram todo
ano”.
Seus olhos brilhavam com a cena, ele agarrava as grades da escada
com emoção e se inclinava ainda mais na direção, para que não perdesse
nenhum momento.
“Cuidado, Timothy!”, sussurrei com medo de vê-lo cair. “Mamãe
vai brigar se nos ver aqui”, eu tentei alertá-lo, mas fui ignorado.
“Ela está nas nuvens, Sam”, ele me olhou. “Está feliz, ela não fica
assim perto de mim”, ele sorriu, mas meu coração se despedaçou naquele
momento.
A questão era que, mesmo naqueles dias, meu pai sabia como tirar
minha mãe da realidade e fazer com que ela pudesse se divertir. Mesmo que
pudesse parecer que sua felicidade se esvaía de seu corpo na presença de
seu filho adoecido, a verdade era que o medo nunca se foi.
E Timothy associar a preocupação de minha mãe a ele mesmo, é
doloroso.
“Claro que ela fica feliz com você, bobão”, eu resmunguei,
cruzando os braços.
Timothy sorriu e voltou sua atenção para nossos pais, o silêncio se
prolongou e por um instante eu acreditei que Timothy tivesse adormecido
com sua cabeça apoiada nas grades, mas logo ouvi seu profundo suspiro e
sua voz sussurrada.
“Sammy”, ele chamou, mas não esperou minha resposta. “Um dia
quero amar e ser amado como a mamãe e o papai se amam”. Eu respirei
fundo me encolhendo por causa do ambiente frio, não foi preciso pensar
tanto a respeito.
“Você vai”, eu disse, com extrema certeza.
Timothy me encarou, foi um dos únicos momentos em que não pude
identificar sua reação.
Mas entendi que, naquele momento, meu irmão não possuía
esperança alguma de que aquilo pudesse acontecer.
“Você precisa descansar”, eu disse ao me levantar e conduzi-lo a
fazer o mesmo. “Vamos”.
Dessa vez, não houve relutância.
Ele apenas me acompanhou e se deitou em sua cama, parecia
exausto. Com calma ele se cobriu e aconchegou seu corpo em seu colchão
macio. Como de costume eu permaneci ao seu lado, para aguardar seu sono
chegar, deitado ao seu lado, observando meu irmão adormecer.
Mas quando já havia cautelosamente me levantado, prestes a sair de
seu quarto, Timothy me chamou sem nem mesmo abrir seus olhos.
“Sammy”.
“Hm?”
“Um dia quero dançar com alguém, como eles estavam dançando”,
ele sussurrou, abrindo levemente os seus olhos. “Acha que alguém vai
querer dançar comigo?”
“É claro”. Eu sorri. “Quando alguém te convidar para uma dança,
estenda sua mão e aceite na mesma hora.” Timothy sorriu, afirmando com a
cabeça.
E, sem dizer mais nada, ele adormeceu outra vez.
Timothy dormiu como se nenhuma das reações agressivas de seu
tratamento tivesse nos assustados mais cedo, naquele dia. Ele sorriu e se
animou com a felicidade de nossos pais.
Hoje eu percebi que não foi só ele.
Meus pais também encontraram paz, depois de toda a tempestade.
Apenas eu tive pesadelos durante a noite.
E hoje não consigo acordar, pois meu pesadelo se tornou realidade.
Está frio, posso sentir ainda mais quando as memórias abandonam
minha mente, a roupa escura não esquenta meu corpo, o cenário atual
também não ajuda. Cinza e vazio.
Não é possível identificar cores nesse momento.
Timothy poderia colorir esse lugar apenas com sua presença, o
problema é que as cores foram embora justamente porque ele também se
foi. Foi um pouco egoísta da parte dele ao ir embora e levar junto tudo o
que me causava sensações de felicidade, um piquenique não é mais
saboroso, assistir filmes no sofá de casa durante a tarde é entediante e não
há mais motivos algum para que eu possa fingir irritação ao mencionar
“Atypical” em qualquer assunto.
É simplesmente isso agora.
Respirar e aguardar o meu momento.
— Sua sopa vai esfriar. — Eu percebo minha alta acomodação em
meio à dissociação, quando a voz de meu pai ecoa como um distante
chamado em um enorme cenário oco, puxando-me de volta para a realidade
com cautela e me deixando completamente confuso diante de suas palavras.
—Você não está com fome?
Meus olhos cansados procuram pela sopa, a fumaça quase
impercebível alcança meu rosto e esquenta a ponta de meu nariz frio, mas
apenas o calor me faz relaxar. A fome não me incomoda no momento e meu
corpo sequer se move para alcançar os talheres.
A resposta ao último questionamento de meu pai, é um simples
movimento com meus ombros.
Ele nada diz, apenas ouço seu profundo suspiro seguido de suas
mãos pálidas que alcançaram a tigela com a sopa, acompanhando o
movimento de suas mãos, meus olhos finalmente encontram os seus. Sua
atenção na tigela e na grande colher, faz com que ele não perceba minha
breve análise em seu rosto, ele apenas assopra o caldo e estende o talher em
direção a minha boca.
— Coma antes que esfrie — ele diz ao assoprar uma última vez, ele
insiste e insiste para que eu abra a boca, não desiste e nem mesmo me
pressiona para fazê-lo. Meu pai continua oferecendo a colher de sopa até
que eu finalmente consiga aceitar, sentindo um gosto amargo e com os
olhos ardendo, eu abro minha boca o máximo que posso e meu pai me
alimenta como se eu fosse uma criança.
Ele repete o ato, de novo.
E de novo.
Sempre tomando cuidado para não me queimar, ele assopra a sopa
antes de oferecer a colher, observa-me para se certificar se eu já engoli e
então sorri em resposta. Sua mão quente alcança meu rosto e seu dedo
desliza por minha pele, enxugando lágrimas que eu sequer havia notado que
estavam caindo.
— Você precisa se alimentar bem — sem parar de encher a colher,
ele diz com a voz rouca e baixa, agindo com naturalidade diante do meu
choro silencioso —, mas quando se sentir assim, me chame e eu vou ajudar
você.
Ele me oferece outra colher de sopa.
— Você nunca vai ficar sozinho, Samuel.
Sem muita dificuldade, ele raspa os últimos resquícios de sopa na
tigela e, novamente, oferece-me a colher. Eu aceito quase em automático,
ele sorri e devolve a tigela para a mesa, sem tirar seus olhos de mim.
— Entendeu?
Eu sorrio.
Sincera e verdadeiramente.
— Entendi.
E então ele sorri também, com seus olhos tristes e sua pele marcada
pelo choro recorrente desde o ocorrido. Eu consigo ler facilmente o que o
brilho opaco em seus olhos diz: medo.
Ele perdeu um filho, está apavorado com quaisquer possibilidades
de perder outro.
— Eu vou ficar bem, pai. — Ele pressiona os lábios, pisca algumas
vezes e então respira tão profundamente que acaba alterando sua postura.
— Promete?
— Eu prometo!
Outro sorriso.
Olhos tristes.
E um abraço que eu não recebo há anos.
Um abraço de um pai que ama acima de tudo, mas que não sabe
bem como demonstrar.
Ele se preocupa com isso, mas não imagina o quanto eu consigo
sentir.
Ele acabou de me alimentar como um bebê de meses, enxugou
minhas lágrimas tomando cuidado para não arranhar minha pele e sorriu
mesmo querendo chorar.
Não posso descrever o quão me sinto amado.
— Você está tremendo — ele diz ao me apertar com força, ele se
afasta sem tirar as mãos de meus ombros e me encara por um tempo. —Não
se agasalhou antes de vir?
— Não imaginei que fosse esfriar.
Meu pai se afasta o suficiente para tirar o sobretudo que antes
esquentava seu corpo, ele não hesita quando passa o tecido ao redor do meu
corpo, jogando a peça de roupa em meus ombros.
— Eu não sinto frio. — Ajeito o sobretudo para que possa aquecer
meu corpo, ele sorri e funga ao mesmo tempo, entregando sua imensa
vontade de chorar. Não posso falar ou fazer algo que possa amenizar essa
dor, eu sei que meu pai sustenta o peso da perda só para que minha mãe não
desabe ainda mais, ele quer ser forte.
Forte diante ao luto.
A verdade é que ele treme tanto quanto eu, mas sei que não é de
frio.
— Você comeu? — dessa vez sou eu quem questiona, e sua reação
chega ser cômica.
— Ainda não senti fome.
Eu conheço meu pai melhor que qualquer um.
Saber que sua dor é tão sufocante que ele sequer cogitou a ideia de
comer, é insuportável.
— O buraco no peito incomoda mais que o vazio no estômago, não
é?
É.
Sua expressão de dor responde por ele mesmo.
Mas com facilidade, ele controla o que está sentindo e sorri outra
vez.
— O vazio no estômago pode ser preenchido.
Mas o buraco no peito não cicatriza.
Ele não precisou terminar a frase, pra que eu entendesse.
23 de março
11 de abril
Desde a minha primeira crise, a porta permaneceu
escancaradamente aberta. Tem sido cada vez mais difícil de sair do quarto,
meu pai anda muito preocupado. Ele sempre está por aqui, posso estar o
atrapalhando com o trabalho.
Permaneço transbordando vazio frio e silenciosamente barulhenta.
Não tenho sonhos durante as poucas horas de sono, mas são
seguidas de fantasias dele vindo até mim para que possamos visitar o
balanço que ele tanto ia quando mais novo, e saio da realidade com a
terrível negação que se prende a mim assim como me prendi a ele.
Eu me pergunto a cada instante, e se tivesse sido diferente? Os
planos que fizemos, teríamos posto em prática? Timothy me contaria qual o
segundo desejo que ele escreveu em sua lista? Nós poderíamos listar cada
um dos desejos que escrevi na minha, desejos dos quais eu nunca tive
oportunidade de contar.
Uma imensidão de “e se”.
São as únicas perguntas no mundo, que eu sei com toda certeza, que
jamais terão respostas.
Mas eu farei de tudo, para responder cada uma das perguntas que ele
possa ter deixado.
Porque não foi justo termos sido interrompidos assim, eu apenas
estava me apaixonando pelo mesmo homem a cada dia. Então como serei
capaz de me erguer e superar algo irreversível? Meu pai comentou uma vez
que a dor de perder a mamãe foi insuportável, eu não conseguia visualizar
bem esse sentimento. Até hoje.
Ele entende melhor que qualquer outro.
— Vocês formaram uma família linda — meu pai ousou falar um
dia, após horas apenas me observando de longe, eu não podia o ver de
costas, mas o ouvia muito bem. — Eu sei que faziam planos. Timothy era
louco por você, mas o que vocês viveram juntos nunca será tirado de você.
Eu concordei, em minha mente.
— Perder alguém é... O mesmo que se perder. — Senti o peso em
sua voz. — Você não consegue imaginar o futuro, porque na teoria ele não
existe. — Naquele momento eu duvidei se ele esteva mesmo falando de
mim. — É impossível visualizar um futuro sem a pessoa que você ama.
Permaneci em silêncio, a parede se tornou a única paisagem da qual
tem sido suportável visualizar. Meu pai havia desistido de falar, ele ficou
quieto por um bom tempo, lembro de ouvi-lo fungar e então se movimentar
no que parece meu sofá. Eu ouvi seus passos desistentes, meu rosto se virou
quase automaticamente.
Ele estava prestes a sair quando reparou minha atenção, ele
congelou no mesmo lugar e esperou.
— O que faria se a mamãe estive aqui? — Seus olhos entregaram a
surpresa diante de tal questionamento. Surpresa seguida de confusão, para
então olhos vermelhos e molhados.
— Agora?
— Sim.
Olhei para ele. Ele respirou fundo, sorriu sinceramente contido sem
impedir que algumas lágrimas gentis molhassem seu rosto.
— Eu pediria a ela que cantasse para você — sua voz entregou a
admiração. — Ela cantaria algum verso de alguma música do Paul Anka e
acabaria te puxando para dançar com ela. — Ele riu, deslumbrado.
Meu peito queimou com a imaginação da possível realidade que
teríamos.
— Ela iria nos apoiar?
— Tá brincando? — Lembro de tê-lo ouvido alterar a voz com a
indignação. — Sua mãe iria amar Timothy, assim como Helena ama você.
— Essa observação foi dolorosa, por algum motivo, foi naquele momento
que notei o porquê ainda estava ali. — Falei o que não devia? — ele
perguntou.
Balancei a cabeça.
Relutante, ele aceitou minha falsa reposta. Talvez eu tenha desligado
completamente, não lembro de tê-lo visto sair do quarto, mas me vi sozinho
em um certo momento. Não imagino por quanto tempo e sinceramente, não
me importo, mas sei que o tempo passou e fiquei preso em um único dia.
Estou ficando para trás.
É difícil alcançar pessoas que estão algumas semanas no futuro.
Meu medo é acabar desistindo.
Ou que isso já tenha acontecido.
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13 de agosto