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A REVISTA CLARIDADE

Primeira Fase
A revista Claridade (nome dado por Baltasar Lopes, co-fundador) irá funcionar
como um dos marcos da cabo-verdianidade, não só pelo interesse do conteúdo,
como também pelos propósitos que a definiram e os frutos que daí advieram.
Os seus colaboradores-fundadores são: Baltasar Lopes. Jorge Barbosa e Manuel
Lopes.
De Março de 1936 a Março de 1937 saem três números com um intervalo, entre
eles, de cinco a seis meses 1 e 2, dirigidos por Manuel Lopes, e o n.° 3, por João Lopes.
O núcleo de redactores é muito pequeno e pode dizer-se que a revista deve-se ao
trabalho quase exclusivo dos escritores já referidos. Deram ainda a sua colaboração
Pedro Corsino de Azevedo e José Osório de Oliveira, este último desempenhando um
papel importante como divulgador da literatura cabo-verdiana em Portugal e no Brasil.
A revista não abria com um programa definido. Contudo, ela cumpriu-se com um
ideário que tinha como principais premissas afastar-se dos cânones portugueses e
exprimir a voz colectiva do povo cabo-verdiano. naquilo que ele possuía de mais
autêntico.
É significativo que o 1.° e o 2.° números da Claridade comecem com um poema em
crioulo. No 1.° número. «Lantuna & 2 motivos de finançom», conjunto que faz parte
dos cantares e batuques da Ilha de Santiago. No n.° 2, uma morna de Xavier da Cruz
(conhecido também como Beleza).
Claridade iniciava-se com um testemunho vivo do respeito pelos valores cabo-
verdianos, privilegiando, num lugar de destaque, a língua crioula, que durante anos de
colonialismo foi objecto de repressão. Era. assim, um desafio à autoridade, assumido
como defesa das raízes mais profundas do povo.
Baltasar Lopes dedica um longo estudo à formação do crioulo, no n.° 2. com o
título «Notas para o estudo da linguagem das ilhas».
Essencialmente literária, constando de poemas, contos, um em primeira mão, «O
galo que cantou na Baía», de Manuel Lopes, excertos de um romance (Chiquinho, de
Baltasar Lopes, nos seus vários capítulos, atestando que ele já estaria
quase terminado em 37), tem ainda artigos apontando para as características
sociais de Cabo Verde («Tomadas de Vista», de Manuel Lopes e «Apontamentos», de
João Lopes).
Estes documentos literários testemunham da parte dos claridosos uma intenção
de renovação, a partir dos valores e motivações próprios da terra cabo-verdiana.
A propósito disto, Manuel Lopes diz o seguinte:
Renovar não é criar nova alma, mas procurar reencontrá-la no aluvião dos
lugares-comuns que a inércia estratificou e adaptá-la às condições de vida do
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seu tempo. Arrancar a alma viva do acervo de experiências cristalizadas eis o que
Claridade tentou e está tentando ainda. 1
Na verdade, o contributo dos escritores da Claridade foi importante para um
novo modo de expressão, com base no entendimento das raízes do homem cabo-
-verdiano, da sua personalidade, construído a partir de elementos étnicos e na
captação do modo de agir e sentir do homem inserido no seu espaço.
São de Manuel Ferreira estas palavras:
Estes poetas, pela primeira vez na história da literatura culta de Cabo Verde, arrancam
do próprio húmus e pela primeira vez nas terras africanas de influência
portuguesa se experimenta uma poesia de raiz. Uma poesia de raiz predominantemente
telúrica e social. E, por isso, se não era directamente protestaria e militante, era com
certeza de denúncia.2
Por isso. quando, anos mais tarde, em 1963, Onésimo Silveira publica um
opúsculo intitulado Consciencialização na literatura cabo-verdiana -\ acusando
os claridosos de inautenticidade e de elitismo e afirmando que isso se devia à
formação que teriam recebido como herança do Seminário, cuja cultura mais
literária que científica não poderia oferecer-lhes a consciência necessária para
uma efectiva ligação com o povo, ele foi extremamente injusto, faltando-lhe a
perspectiva histórica no tempo e no espaço, capaz de apreender a importância
inovadora deste movimento como ponto de partida da moderna literatura cabo-
-verdiana (ver capítulo 17).
Em relação a Jorge Barbosa, a quem chama «o pontífice do evasionismo»,
excedeu-se, talvez por desconhecimento dos poemas mais significativos da sua
consciência social e política ou animado pelos movimentos de libertação que, na
então chamada Africa portuguesa, despontavam (aliás muito atrasados em
relação ao resto da Africa, onde, por essa altura, na década de 60, já se ganhavam
muitas independências), querendo ver os anos 30 à luz dos anos 60. Esquecia-se
também que dos claridosos saíram as obras mais importantes da literatura cabo-
-verdiana: Chiquinho, de Baltasar Lopes, Chuva braba, Galo cantou na baía e
Flagelados do vento leste, de Manuel Lopes, ainda hoje de grande impacto
social, além de toda a obra de Jorge Barbosa, ponto de partida para uma nova
estética poética cabo-verdiana.
E evidente que não se podem identificar totalmente os ojectivos da Claridade
com o movimento neo-realista português que nascia em 1939. de feição sócio-
-política, nem exigir à Claridade que tivesse sido idêntica. De qualquer forma,
pode dizer-se que, em Cabo Verde, houve uma antecipação, dado que os seus
propósitos se aproximavam mais desse movimento, que viria a nascer três anos
depois, do que do panorama português dessa ocasião.
1 Manuel Lopes, m I iu on im com um es< ritoi i abo
diano Manuel Lopes» (en
trevisla publicada no sema
nário de Ponta Delgada A
Ilha, em Hl- 15 de- Julho de
1950. p. 1 1.
2 Manuel Ferreira. No reina de Caliban 1. p. 88.
3 Onésimo Silveira, Consciencialização na literatura cabo-verdiana, Lisboa, CEI.
1963, e «Prise de la conscience dans la littérature du
Cap-Vert». in Présence Afri- caine, n.° 68 (1968), Paris,
pp. 107-108.
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15.1.2 A segunda fase
A Claridade da l.
a fase teve uma duração apenas de um ano. como já dissemos.
Muitas foram as dificuldades económicas que o grupo enfrentou, pois era ele
próprio a financiar a revista. A dispersão dos elementos pelas várias ilhas
contribuiu também para a paragem da revista por dez anos.
Vemos, por cartas de Jorge Barbosa a Manuel Lopes. que. durante esse hiato de
uma década, o grupo projectara elaborar outra revista, com nome diferente.
A revista pojectada nunca saiu, ou melhor, ressurgiu com o nome de Claridade,
em 1947, sob a forma de livro, com o mesmo espírito «de legenda simples e até
intencional como propaganda das nossas coisas» (segundo palavras de Jorge
Barbosa). Ela vai ter uma periodicidade muito irregular, com mais seis números,
alargando-se por um espaço de tempo de 12 anos. Em 1947. os números 4 e 5.
Em 1948. o 6.°. Em 1949. o 7.°. Há um interregno de 9 anos. Em 1958. sai o 8.°
e. em 1960. o 9.°
Em todo esse tempo, os valores da Claridade não se deterioraram, antes pelo
contrário, ganharam uma nova perspectiva, a modernidade de quem soube evoluir com a
marcha do tempo e com as novas achegas da literatura.
A colaboração é muito diversificada. Destacam-se as noveletas de António
Aurélio Gonçalves. «Recaída» e «Noite de Vento», publicadas pela primeira vez.
e ensaios seus. Artigos de etnografia e folclore, de Félix Monteiro. Estudos sobre o
crioulo, de Baltasar Lopes. Poesia, contos, de Manuel Lopes e Baltasar Lopes.
São revelados poetas como Corsino Fortes. Gabriel Mariano. Jorge Pedro
Barbosa e Sérgio Frusoni, estes três últimos com poemas em crioulo

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