Você está na página 1de 10

1

SOTER (Org.)

ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER


30º Congresso Internacional da Soter
Religião em reforma: 500 anos depois

PUC Minas, 10 a 13 de julho de 2017


Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Comunicações
Grupos Temáticos (GTs) e Fóruns Temáticos (FTs)

Edição Digital / Textos Completos

SOTER
ISSN: 2317-0506
Belo Horizonte
2017

2
ANAIS DO CONGRESSO DA SOTER
ISSN: 2317-0506

30º Congresso Internacional da Soter / 2017


Tema: Religião em reforma: 500 anos depois
Local: PUC Minas, 10 a 13 de julho de 2017
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
SOTER – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião

Os textos publicados são de responsabilidade de cada autor.

Projeto Gráfico e Diagramação: Verônica Cotta


Capa:

Publicação eletrônica:
Belo Horizonte, 2015

FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

3
Religião é linguagem: Rubem Alves e a herme-
nêutica filosófica da religião

Danilo Mendes1

RESUMO
Rubem Alves afirma nas primeiras palavras de “O suspiro dos oprimidos” que
religião é uma linguagem. Esta noção parece ser central para o desenvolvimen-
to do pensamento deste autor - que não mais discutirá os limites desta afirma-
ção, mas a terá sempre como pressuposto. A presente comunicação visa apre-
sentar a tomada radical em Rubem Alves desta noção da relação entre religião e
linguagem, delineando suas implicações no debate que ele inicia com as herme-
nêuticas críticas da religião, especialmente Feuerbach, Marx e Freud. Por fim,
algumas contribuições que esta tese levantada por Alves traz aos estudos de
religião, especificamente no campo da hermenêutica, serão expostas. Para este
autor, o processo de tomar a religião como linguagem começa no alinhamento
à virada linguística de Wittgenstein e parece ter seu limite na indicação de que
a religião não é somente uma maneira de expressão humana, mas uma manei-
ra de organização da realidade. Deste modo, mais do que servir/veicular uma
alienação do humano, a religião exprime os desejos mais íntimos da criatura
oprimida bem como organiza seu mundo de modo a viver na esperança de um
futuro de libertação. Este se dá no horizonte histórico, e não numa transcen-
dência utópica. Assim, esta comunicação, mais do que ler Alves, preocupa-se
em perceber alguns limites e possíveis contribuições desta virada para a her-
menêutica filosófica da religião.
Palavras-chave: Rubem Alves; Hermenêutica; Linguagem; Filosofia da religião.

INTRODUÇÃO

Rubem Alves normalmente é reconhecido como grande cronista e teó-


logo, que teve por objetivo principal demonstrar como o discurso sobre deuses
deve se aproximar da beleza da poesia e se afastar da linguagem científica. De
fato, ele deve ser reconhecido como tal. Entretanto, há algo para além disso que
pode ser dito dele. Em sua fase filosófico-poética (NUNES, 2007, p. 11-52), Ru-
bem parece desenvolver os pressupostos que o vão acompanhar durante toda
1 Mestrando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora com bolsa CAPES. Contato:
danilo.smendes@hotmail.com

206
sua jornada como escritor: o corpo, a esperança, a linguagem etc. Assim, para
uma leitura justa de suas obras posteriores, deve-se entender os pressupostos
que já haviam sido discutidos anteriormente.

O presente trabalho visa discutir um destes pressupostos fundamentais


que está presente no pensamento de Rubem Alves a partir de O enigma da re-
ligião (1975), O suspiro dos oprimidos (1999) e Religião e repressão (2005): a
religião como linguagem. Apresentando esta noção, pode-se compreender me-
lhor como se dá o debate/releitura que Rubem tem com três grandes pensa-
dores, a saber, Feuerbach, Marx e Freud, e suas abordagens críticas da religião.
Por fim, pode-se apresentar uma contribuição fundamental desta noção para o
estudo da religião, bem como uma limitação.

1. UM JEITO DE FALAR SOBRE O MUNDO

De forma biográfica, Antônio Vidal Nunes (2008) observa a importância


da linguagem no pensamento alvesiano: a partir de Da Esperança (1987) na
busca de construir uma nova linguagem religiosa, e em suas obras de pedagogia
na busca de uma linguagem do desaprendizado. Todavia, o fundamental de seu
pensamento sobre linguagem encontra-se em O suspiro dos oprimidos. Tendo
este texto como chave de leitura, percebe-se que “a linguagem não mais será,
para Alves, um meio de comunicação humana, mas uma condição essencial de
construção de mundo” (NUNES, 2008, p. 97). Nunes percebe, então, que é fun-
damental para Rubem Alves esta noção de linguagem que não será mais dis-
cutida pormenorizadamente, mas será pressuposta. Como exemplo, Nunes diz
que “aquilo que Kant colocava na mente, na razão, Alves coloca na linguagem.
Ela seria um a priori, não absoluto, mas participante da dinâmica da História;
portanto, sempre em mudança” (2008, p. 124).

No início de O suspiro dos oprimidos Rubem Alves diz: “Sabia que a reli-
gião é uma linguagem?/ Um jeito de falar sobre o mundo.../” (ALVES, 1999, p.
5). Este é o fio que conduzirá toda esta obra - até mesmo ao tratar de uma so-
ciologia da religião. Mas o que significa aqui falar em linguagem? Esta “rede das
palavras” é, para ele, um aspecto fundamental do ser humano, algo que constrói
o homem enquanto é construída por ele. A linguagem, para ele, é um modo que

207
o homem tem de organizar e construir o mundo: Por não ser biologicamente
determinado, como são os animais, o homem tem um futuro aberto à sua frente
e este precisa ser construído a partir de agora. Isto, para Alves, se dá por meio
da linguagem: “Os universos simbólicos, a religião, a história são expressões do
esforço humano no sentido de tornar a natureza, o tempo e o espaço em função
de si mesmo” (ALVES, 1999, p. 12).

Neste sentido, a linguagem não só é constitutiva do discurso humano,


mas do fazer, entender e construir. Para Alves, “o homem é construtor de mun-
dos” (1999, p. 18) no sentido de que “para o homem, o real é aquilo que ele
organiza” (1999, p. 18). A linguagem, então, tem essa função primordial: não só
comunicar aquilo que deseja o humano, mas entender o mundo a partir deste
desejo. Neste ponto, apesar de citar a ideia da virada linguística de Wittgenstein
como base, Rubem parece se aproximar de Heidegger, no sentido de elevar a
linguagem a um nível ontológico. Isto se dá quando este último afirma que “a
linguagem é a casa do ser” (2003, p. 127). Aqui começa a surgir a força da co-
locação inicial de Alves: a religião como linguagem é um modo de construir o
mundo em que o ser humano habita.

Esta ideia que só parece ser de fato estudada nesta obra aparece já como
pressuposto em outras obras fundamentais do autor. Em O enigma da religião,
ao falar sobre o processo de “conversão”, isto é, a aderência de alguém a uma
religiosidade, Rubem Alves fala do “caráter ‘enfeitiçante’ da lógica do cotidiano”
(1975, p. 64) na qual a linguagem da nova forma religiosa determina a cosmo-
visão do homem que a aderiu. Também em seu ensaio autobiográfico sobre o
fundamentalismo, Do paraíso ao deserto, a noção da religião como linguagem
pensada com base numa filosofia da linguagem está pressuposta. Verifica-se,
por exemplo, quando ele diz que “O mais importante não é o que o fundamen-
talista diz mas como ele diz. [...] O que importa na caracterização do fundamen-
talismo não são as idéias que ele afirma, mas o espírito com que ele as afirma”
(ALVES, 1975, p. 117).

Em Religião e repressão, esta questão da linguagem também se encontra


pressuposta e, por isto, ele pode falar de “Como o protestantismo constrói e
conhece a realidade” (2005, p. 101-154) e sobre “O mundo que os protestantes
habitam” (p. 155-200). Só por meio da linguagem o homem religioso constrói,
conhece e habita o mundo. Desta forma, parece que Rubem trai a si mesmo: a

208
religião não é um jeito de ver o mundo, mas um jeito de estar no mundo.

2. PATOLOGIA OU BUSCA POR SANIDADE?

Este pressuposto também é fundamental quando Rubem Alves se coloca


em debate com as hermenêuticas críticas da religião do fim do séc. XIX, especi-
ficamente, Feuerbach, Marx e Freud. Para Alves, estes tratam a religião sempre
como alienação - e sua crítica a estes começa por esta noção estar já pressu-
posta: se eles vão às análises já sabendo o resultado, toda a empreitada já se
encontra comprometida. Todavia, Rubem não procura discutir para apresentar
o fenômeno religioso como algo totalmente legítimo; antes, apresenta como a
própria ideia destes críticos abre caminho para uma abordagem que não é to-
talmente crítica, nem totalmente acolhedora, mas que reforça a ambiguidade
da religião. Neste sentido, Rubem concorda com os autores discordando deles.

Ora, se Feuerbach afirma que a religião ao falar de Deus, na verdade, fala


sempre do próprio homem, por que deixá-la em segundo plano como atitude
falsa? É justamente ela que tem o potencial para revelar os desejos humanos es-
condidos. Se a religião é o ópio do povo e o suspiro dos oprimidos, por que dizer
que ela será suprimida por uma sociedade justa? É exatamente ela que aponta
para a possibilidade de algo que ainda não está dado, um futuro aberto. Diz
Freud que a religião é uma patologia coletiva, uma ilusão a ser superada, mas
não poderia ser o contrário? Será que, na verdade, a sociedade que é patológica
e a religião a busca por sanidade?

[...] o absurdo não são os valores utópicos, mas a própria situação


humana donde eles emergem. Assim, parece-me que a religião, mes-
mo nas suas formas mais “alienadas”, contém uma crítica do real que
a ciência, prisioneira de sua própria metafísica, não tem condições
para transcender (ALVES, 1999, p. 100).

É neste ponto que se percebe que aquela ideia essencial está pressu-
posta neste debate: as abordagens críticas consideram sempre as linguagens
da religião, isto é, os modos como a manifestação religiosa se dá: como antro-
pologia, ópio do povo e ilusão. Rubem Alves, por outro lado, dá um passo atrás:

209
não observa as linguagens da religião, mas a própria religião como linguagem.
Por isto, ela pode ser uma ilusão em um outro sentido: ela cria outros mundos
possíveis, uma vez que a realidade (como um mundo que o sistema impõe) é
demasiadamente hostil.

3. LIMITES E CONTRIBUIÇÕES AO ESTUDO DA RELIGIÃO

Quais são os possíveis limites e contribuições deste pressuposto alve-


siano para os estudos da religião? Aceitar a noção da religião como linguagem
não é, de fato, algo novo na ciência da religião. Todavia, não é usual que se pense
a linguagem a partir da virada linguística de Wittgenstein ou do segundo Hei-
degger para esta ciência. O que isto acarreta, na prática, é o aprofundamento da
já difundida pesquisa sobre as linguagens da religião (que são, essencialmente,
mito, rito, doutrina e símbolo, mas raramente a religião em si como lingua-
gem). Apropriar-se deste pressuposto de Rubem Alves é, portanto, dar um pas-
so atrás: não só perceber como objeto de estudo as linguagens que formam o
que chamam de religião, mas perceber como, sendo uma linguagem, a religião
molda estas atitudes, bem como a maneira do ser humano religioso construir
seu mundo.

Pode-se aqui indicar um questionamento (que pode ser uma limitação)


que se encontra neste posicionamento: pressupor a religião como linguagem
pode coexistir com o campo de linguagens da religião - neste sentido anterior-
mente tratado? Se não, esta perspectiva apresenta seu limite na redução do
fenômeno religioso bem como retiraria de seu conceito próprio a questão do
símbolo - algo essencial para abordá-lo.

A principal contribuição que este pressuposto fundamental traz pode


ser, a princípio, a indicação de um caminho que sirva como base comum para
o estudo da religião. A medida em que ele suspende juízo acerca do objeto da
religiosidade, fazendo do seu objeto as construções humanas a partir desta lin-
guagem, esta noção tem o potencial de ser o pressuposto fundamental diante
da qual a ciência da religião se constrói: sem deixar de ser interdisciplinar em
seus métodos, o núcleo comum que a constituiria como ciência seria este pres-
suposto. Neste sentido, por exemplo, uma antropologia da religião a partir da
antropologia e uma antropologia da religião a partir da ciência da religião: ape-

210
sar de terem o mesmo objeto de estudo, o fenômeno religioso, a perspectiva que
baseia a realização da ciência comprometeria o estudo a ponto de serem sufi-
cientemente distintos em seus âmbitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentou-se aqui, começando pela apresentação deste pressuposto funda-


mental em Rubem Alves e mostrando como ele permeia suas obras mais funda-
mentais e seus diálogos mais profícuos, indicar como a noção de religião como
linguagem pode contribuir para a constituição de uma ciência da religião, acei-
tando também que esta noção possui seus limites. Desta forma, a presente co-
municação tem um caráter experimental de investigação, visto que busca não
somente analisar criticamente um conceito fundamental num autor considera-
velmente importante, mas já perceber algumas possíveis consequências deste
conceito nos estudos da religião. Assim, ainda existem muitas lacunas nesta pes-
quisa que apenas se inicia, todavia, isto não a torna inútil.

Por fim, deve-se indicar também a novidade que se apresenta aqui em


relação às inúmeras pesquisas que têm sido construídas nos programas de pós-
graduação em ciência(s) da(s) religião(ões) que tratam das linguagens da re-
ligião - até mesmo as mais recentes que incluem cultura visual, literatura etc.
Expõe-se aqui que a relação entre linguagem e religião pode ser colocada em
termos diferentes: não só variando as definições do que seja religião, mas do
que é linguagem. No limite, contribui-se com o campo de pesquisa das teorias da
religião, ampliando ainda mais nosso campo de pesquisa.

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. O enigma da religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975.


ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo: Loyola, 2005.
ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulus, 1999.
HEIDEGGER, Martin. A essência da linguagem. In: HEIDEGGER, M. A caminho
da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Ed. Universitária São
Francisco, 2003. p. 121-172.

211
NUNES, Antônio Vidal. Corpo, linguagem e educação dos sentidos no pensamento
de Rubem Alves. São Paulo: Paulus, 2008.
NUNES, Antônio Vidal. Etapas do itinerário reflexivo de Rubem Alves: a dança
dos símbolos. In: NUNES, A. V. (org.). O que eles pensam de Rubem Alves e de seu
humanismo na religião, na educação e na poesia. São Paulo: Paulus, 2007. p. 11-
52.

212

Você também pode gostar