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Artigos de Teologia e Ascética e Mística
Artigos de Teologia e Ascética e Mística
Estas palavras parecem verificar-se cada vez mais, e é com prazer que citamos
os nomes das santas crianças cujas vidas foram escritas nos últimos anos: a pequena
Nellie, morta em odor de santidade, em 2 de fevereiro de 1908, na Irlanda, aos quatro
anos e meio de idade, após ter feito a primeira comunhão que tão ardentemente desejara
e após ter praticado em grau extraordinário as mais amáveis virtudes, sobretudo a
paciência para suportar as dores da cárie dos ossos 1; o pequeno Gustavo Maria Brani,
conhecido como « il piccolo serafino di Gesù sacramentato », nascido em Turim, em
1903, e morto em odor de santidade aos oitos anos, contente por sofrer pelo amor de
Nosso Senhor2; Galileo Nicolini, que partiu para o céu durante seu noviciado com os
Passionistas; Emma Mariani de Lucca, morta aos quatro anos e meio de idade, após ter
manifestado muito precocemente o vivo desejo de fazer sua primeira comunhão, que fez
à idade de três anos, e de ter mostrado, sobretudo após sua derradeira doença, uma
enorme devoção pela Paixão do Salvador3; a pequena Anne de Guigné, cuja graciosa
vida foi contada nas páginas de La Vie Spirituelle e tornaram-se tão conhecidas
depois4; Guy de Fontgalland, a quem a santa Virgem anunciou em Lourdes que
morreria jovem e que, em seguida, faria o bem largamente desde o alto do céu, o que se
verifica pelas graças abundantes obtidas por sua intercessão5; Hélène-Anne Dabrowska,
nascida de pai polonês e mãe francesa em 1912, morta em 5 de fevereiro de 1925, à
idade de doze anos e que, após ter conseguido vencer seu caráter independente e
obstinado, fechado e dado à controvérsia, tornou-se um modelo de obediência,
docilidade e esquecimento de si mesma6; Marie-Gabrielle T., nascida em Savoie, cuja
vida, escrita por Myriam de G., será publicada pela P. Lethielleux com o título
“Pequena predestinada”, na coleção Parvuli, bem como as vidas de Guglielmina e de
Hélène7. Todas estas vidas lembram a da bem-aventurada Imelda, morta de amor
durante a ação de graças de sua primeira comunhão, que fez miraculosamente com uma
hóstia que descendera do céu. Por que não citar também a vida do jovem Pier Giorgio
1
https://permanencia.org.br/drupal/revista_teologia.
Frassati, de Turim, que acaba de ser traduzida para o francês8, modelo perfeito de
energia, pureza, verdadeira piedade e devoção pelos pobres?
Nosso Senhor quer nos dizer que, aos olhos de Deus, independente do que
formos, independente de nossa ciência, de nossa autoridade, devemos sempre ser como
crianças pequeninas, pela consciência de nossa fraqueza, de nossa fragilidade, de nossa
dependência, de nossa humildade e simplicidade. Enquanto o homem torna-se, com a
idade, cada vez mais independente de seu pai e de sua mãe, o cristão, para alcançar a
união divina, prelúdio da vida eterna, deve tomar consciência cada vez maior de sua
dependência ao Pai do céu; deve ser, cada vez mais, o infante de Deus; tornar-se mais
humilde, simples, filial e abandonado; tem de chegar a não pensar, não querer, não agir,
senão por seu Pai e para Ele. É isto que se vê na vida dos santos, cuja fidelidade ao
Espírito Santo faz entrar nas vias ditas passivas: eles são, mais e mais, como crianças
aos olhos de Deus; confiam em Deus de modo absoluto e já não usam de sua atividade
própria senão para conseguir tornar-se mais dependentes d´Ele. Compreendem bem que
nossa salvação é mais certa se posta nas suas mãos que nas nossas.
Os santos também encontram meios de realizar as duas partes da palavra de S.
Paulo (1 Cor 14, 20): «Irmãos, não sejais meninos na compreensão mas sede
pequeninos na malícia.»
Foi assim que o confessor de Santo Tomás de Aquino disse que a confissão que
este grande teólogo fizera antes de morrer mostrava sua alma inocente como a de uma
criança de cinco anos. A oração de Santo Tomás devia ser também das mais simples,
das mais filiais e das mais humildes.
Os grandes santos gostam de lembrar que Jesus dizia (Mc 10, 14): «Deixai vir
a mim os pequeninos, e não os embaraceis, porque destes tais é o reino de Deus. Em
verdade vos digo: Todo o que não receber o reino de Deus como um menino, não
entrará nele. E abraçando-os, e impondo-lhes as mãos, os abençoava.»
É este mesmo ensinamento que hoje nos é dado pelo trabalho da graça nas
almas das crianças de que acabamos de falar; é com alegria que acompanhamos nelas o
desenvolvimento deste germe da vida eterna que o batismo lhes deu e que, por vezes,
tão rapidamente chega à derradeira eclosão.
Mas, ainda que esta vida da graça deva, de si mesma, durar para sempre, sem
jamais ser perdida pelo pecado mortal, que é a própria desordem, ela é recebida em um
vaso frágil, que pode se quebrar e, em muitos batizados, ela desaparece, é destruída pelo
pecado, depois é restituída pela absolvição e contrição; freqüentemente, é destruída uma
série de vezes e é uma grande misericórdia quando restituída antes da morte. Assim,
esta grande lei da graça santificante, de si feita para durar para sempre, é adulterada em
muitas vidas cristãs por interrupções que constituem tempos de morte.
Uma segunda lei da vida da graça é assim formula pelo mesmo santo doutor:
"Como a pedra tende para o centro da terra com velocidade tanto maior quanto mais
dele se aproxima, assim as almas em estado de graça devem seguir em direção a Deus
com tanto maior velocidade quanto mais Dele se aproximam e quanto mais são atraídas
por Ele"10. Em outras palavras, a alma em estado de graça deve, normalmente, pelo
élan de sua caridade ou de seu amor, tender cada vez mais fortemente em direção a
Deus, até a hora em que chegar à visão da essência divina. Por isso, em princípio, cada
uma de nossas comunhões deveria ser substancialmente mais fervente que a precedente,
posto que cada uma deve aumentar em nós a graça e a caridade e assim nos dispor a
melhor receber Nosso Senhor no dia seguinte11.
Enfim, uma terceira lei da graça, que completa as precedentes, é aquela que é
assim formulada por S. Paulo (Rm 8, 28): «todas as coisas concorrem para o bem
daqueles que amam a Deus, para o bem daqueles que, segundo o seu eterno desígnio,
foram chamados santos». Na vida dos eleitos, tudo concorre para a salvação e ao grau
da glória a que foram predestinados: todas as graças, desde a do batismo, todos os dons
naturais, as circunstâncias favoráveis da existência bem como as provações, as doenças,
a hora da morte escolhida por Deus desde toda a eternidade, sem mesmo excetuar, diz
santo Agostinho, suas faltas, pois elas foram permitidas pelo Senhor para lhes fazer
chegar a uma humildade mais verdadeira, a uma perfeita desconfiança de si mesmos e a
uma confiança em Deus ainda mais firme: « Cum enim infirmor, tunc potens sum. »
Mas, ainda uma vez, esta grande lei, assim como as duas precedentes, é
dissimulada na vida de muitos eleitos pela quantidade e gravidade de pecados
insuficientemente expiados, pelos quais muitos deverão passar por um longo e duro
purgatório, que entra assim no número de coisas que concorrem para conduzir-lhes ao
termo de seu destino.
Ora, na vida das crianças predestinadas das quais falamos, não percebemos, por
assim dizer, nada de similar. Sob o sopro da graça, tais almas voam quase sem
interrupção rumo à santidade, ao que o Senhor pede aos pequeninos, e que lhes permite
atingir, em tão pouco tempo, o grau de glória a que foram predestinados.
Verdadeiramente, em suas curtas vidas, até a hora escolhida por Deus para sua morte,
tudo concorreu para o bem; e nesse tudo, o purgatório parece não ter nenhum lugar.
O Espírito Santo os faz escutar aquilo que espera deles para que respondam à
graça de sua santificação segundo o plano divino. Estas pequenas biografias nos ajudam
a compreender um pouco o que é, no pensamento de Deus, a santidade de uma criança e
o que ela requer para render a Deus a glória que Ele espera.
Com efeito, estas almas, ainda cobertas do orvalho celeste do batismo, estas
almas que não foram respingadas pela lama da terra, não tem de passar pelo purgatório.
Ora, aquele que está, no instante de sua morte, pronto para entrar imediatamente no céu,
é santo; em sua vida, tudo concorreu para conduzi-lo a este grau de pureza e de amor de
Deus e das almas que lhe fizeram obter, imediatamente, a beatitude eterna.
« Semprei notei nela toques de recolhimento interior: era nesses momentos que
o menino Jesus lhe falava, confessava ela. Estou intimamente persuadida de que pediu
para ir ao paraíso: sentia-se isso, tudo traía esta impaciência do céu. O bom Deus a
chamava, ela o sentia; respondia a este apelo com alegria. Não falava nada disso com
sua mãe para não a entristecer, para evitar esta imensa dor, mas tinha a íntima certeza de
que não tardaria a morrer. Era impressionante no fim. Nada mais a prendia na terra. Eu
sentia que a morte não lhe custaria senão um sacrifício, o de sua mãe. »
— « Quando será? Quando Ele virá? » dizia Marie-Gabrielle T., que morreu
exprimindo seu mui vivo desejo do céu.
Roma, Angelico.
A santificação de nossa alma se encontra em uma união, cada dia, mais íntima
com Deus, união de fé, de confiança e de amor. Por isso um dos maiores meios de
santificação é o ato mais elevado da virtude de religião e do culto cristão: a participação
no sacrifício da Missa. Para toda alma interior, a Missa deve ser, cada manhã, como
a fonte eminente, de onde derivam todas as graças de que temos necessidade durante o
curso do dia, fonte de luz e de calor, semelhante na ordem espiritual, ao que é o nascer
do sol na ordem da natureza. Depois da noite e do sono que são como uma imagem da
morte, o sol reaparecendo cada manhã, dá, de alguma maneira, vida a tudo o que acorda
na superfície da terra. Se conhecêssemos profundamente o preço da missa quotidiana,
veríamos que ela é como um nascer do sol espiritual, para renovar, conservar e
aumentar em nós a vida da graça, que é a vida eterna começada. Mas muitas vezes o
habito de assistir a missa, por falta de espírito de fé, degenera em rotina e não
recebemos mais então do santo sacrifício todos os frutos que deveríamos receber.
Este então deveria ser o maior ato de nossos dias e na vida de um cristão,
sobretudo de um religioso, todos os outros atos quotidianos só deveriam ser
o acompanhamento daquele, ou seja, todas as outras orações e pequenos sacrifícios que
devemos oferecer ao Senhor durante o dia.
Lembremos aqui: 1º. o que dá valor ao sacrifício da missa, 2º qual é a relação
de seus efeitos com nossas disposições interiores, 3º como devemos nos unir ao
sacrifício eucarístico.
*
* *
Esta oblação interior sempre viva no coração do Cristo é, por assim dizer, a
alma do sacrifício da Missa. É a continuação daquela pela qual Jesus se ofereceu como
vítima entrando neste mundo e em todo o curso de sua existência terrestre, sobretudo na
Cruz.Quando o Salvador estava sobre a terra, essa oblação era meritória; agora continua
sem essa modalidade de mérito. Continua sob a forma de adoração reparadora e
de súplica, para nos aplicar os méritos passados da Cruz. Mesmo quando a última Missa
acabar no fim do mundo e que não houver mais sacrifício propriamente dito, mas sua
consumação, a oblação interior do Cristo para seu Pai durará, não mais sob a forma de
reparação e de súplica, mas sob a forma de adoração e de ação de graças. É o que nos
faz prever o Sanctus, Sanctus, Sanctus, que dá uma idéia do culto dos bem-aventurados
na eternidade.
Se nos fosse dado a conhecer, imediatamente, o amor que inspira esta oblação
interior, que dura sem cessar no coração do Cristo, “sempre vivo para interceder por
nós”, qual não seria nossa admiração!
*
* *
Segundo Santo Tomas e muitos teólogos, esses efeitos da Missa relativos a nós
são limitados apenas pela medida de nosso fervor9. A razão é que a influência de
uma causa universal só é limitada pela capacidade dos sujeitos que a recebem. Assim o
sol clareia e aquece em um só lugar tanto mil pessoas como a uma só. Ora o sacrifício
da Missa, sendo substancialmente o mesmo que o da Cruz é, por modo de reparação e
de oração, uma causa universal de graças, de luz, de atração e de força. Sua influência
sobre nós só é, pois, limitada pelas disposições ou pelo fervor daqueles que a recebem.
Assim uma única missa será tão proveitosa para um grande numero de pessoas como se
fosse oferecida para uma só entre elas; assim como o sacrifício da Cruz rendeu ao bom
ladrão tanto proveito quanto teria rendido se oferecido por ele só. Se o sol aquece, em
um só lugar, mil pessoas como a uma, a influência desta fonte de calor espiritual que é a
Missa não é menor em sua ordem. Quanto mais se assiste a Missa com fé, confiança,
religião e amor, maiores serão os frutos que dela se retira.
Tudo isso nos mostra porque os santos, à luz dos dons do Espírito Santo,
sempre tanto apreciaram o Sacrifício da Missa. Alguns, ainda que enfermos e doentes,
queriam se arrastar até a missa, porque ela vale mais do que todos os tesouros. Santa
Joana d’Arc, indo para Chinon, importunava seus companheiros de armas e obtinha
deles, a força de insistência, que assistissem a missa todos os dias. Santa Germana
Cousin era fortemente atraída para a Igreja quando escutava o sino anunciar o santo
sacrifício, deixava suas ovelhas na guarda dos anjos e corria para assistir a missa; seu
rebanho era bem guardado. O santo Cura d’Ars falava do valor da Missa com tal
convicção, que tinha obtido que todos ou quase todos os seus paroquianos a
assistissem. Inúmeros outros santos derramavam lágrimas de amor ou caíam em êxtase
durante o sacrifício eucarístico; alguns viram no lugar do celebrante o próprio Nosso
Senhor, o Sacerdote principal. Outros, na elevação do cálice, viram o precioso sangue
transbordar, escorrendo pelos braços do padre e pelo santuário e anjos virem recolhê-lo
em taças de ouro como para levá-lo por toda parte onde houvesse homens para salvar.
São Felipe de Néri recebeu graças desse gênero e se escondia para celebrar por causa
dos arrebatamentos, que muitas vezes, era tomado no altar.
Pode-se aplicar a isso o que Santo Tomás10 diz sobre a atenção na oração
vocal: “A atenção pode estar ou bem nas palavras para bem pronunciá-las, ou no sentido
das palavras, ou no fim da oração, quer dizer em Deus e naquilo pelo que se reza... Esta
ultima atenção, que os mais humildes, sem cultura podem ter, é algumas vezes tão
grande que é como se o espírito fosse elevado para Deus e se esquecesse de todo o
resto”.
Assim também para bem assistir a missa, com fé, confiança, verdadeira
piedade e amor, podemos segui-la de maneiras diferentes. Podemos estar atentos às
preces litúrgicas, geralmente tão belas e tão cheias de unção, de elevação e de
simplicidade. Podemos lembrar a Paixão e a Morte do Salvador, cuja missa é o
memorial e se considerar como estando ao pé da Cruz com Maria, João, as santas
mulheres. Podemos ainda nos aplicar a render a Deus, em união com Jesus, os quatro
deveres que são os fins do Sacrifício: adoração, reparação, pedido e ação de graças11.
Desde que se reze, mesmo recitando piedosamente seu terço, assistimos com frutos à
missa. Podemos também com grande proveito, como santa Joana de Chantal e muitos
santos, continuar com a sua oração, sobre tudo se somos levados a um puro e intenso
amor, um pouco como são João na Ceia repousando sobre o Coração de Jesus.
Mas de qualquer maneira que se siga a Missa, é preciso insistir em uma coisa
importante. É preciso sobretudo nos unirmos profundamente à oblação do Salvador, o
sacerdote principal: com ele, é preciso oferecê-lo a seu Pai, nos lembrando que esta
oblação agrada mais a Deus do que todos os pecados lhe desagradam. É preciso nos
oferecer, cada dia, mais profundamente, oferecer particularmente as penas e
contrariedades que costumamos ter e aquelas que se apresentarão durante o dia.
É assim que no ofertório o padre diz: “In spiritu humilitatis et in animo contrito
suscipiamur a te, Domine: É com espírito de humildade e coração contrito que vos
pedimos, Senhor, de nos receber”.
O autor da Imitação, I. IV, cap. VIII, insiste com razão sobre este ponto: O
Senhor diz: “ Como me ofereci voluntariamente a meu Pai por vossos pecados, na
cruz..., assim deveis todos os dias, no sacrifício da Missa, vos oferecer a mim, como
uma hóstia pura e santa, do mais profundo do vosso coração... É a vos que eu quero e
não vossos dons... Se permanecerdes em vós mesmos, se não vos abandonardes sem
reserva a minha vontade, vossa oblação não será completa e não estaremos unidos
perfeitamente”.
Roma, Angélico.
1. 1.Sessão XXII,cap.I e II
2. 2.Do mesmo modo a humanidade do Salvador fica numericamente a
mesma, mas depois de sua ressurreição ela é impassível,, enquanto que antes estava
sujeita à dor e à morte.
3. 3.“Sacrificium externum est in genere signi, ut signum interioris
sacrificii”.
4. 4.Homl.LX ao povo de Antioquia
5. 5.Livro de suas visões e instruções, cap. LXVII.
6. 6.Cf. S. Tomas, IIIa, q. 48, ª2: “Ille proprie satisfacit pro offensa, qui
exhibet offenso id quod aeque vel magis diligit, quam oderit offensam”.
7. 7.Cf. Concilio de Trento, sess. XXII, c. II: “Hujus quippe
oblationeplacatus Dominus, gratiam et domum paenitenciae concedens, crimina et
peccat etiam ingentia dimittit”.
8. 8.Ibidem
9. 9.Cf. S. Tomas, III ª q,79, a. 5 et 7 ad 2um, onde não há outro limite
indicadoa são ser aquele da medida de nossa devoção “secundum quantitatem seu
modum devotionis eorum” (id est: fidelium). Cajetan, In IIIum, q.79, a. 5. João de
Santo Tomas, In IIIum, disp.32, a. 3. Gonet, Clypeus... De Eucaristia, disp. II, a. 5.
no. 100. Salmanticenses, de Eucaristia, disp. XIII, dub. VI. Nós nos separamos
completamente do que escreveu sobre este assunto P.dela Taille, Esquisse du
mystere de la foi, Paris, 1924, p.22.
10. 10.IIa IIae, q. 82, a.13.
11. 11.A primeira parte da missa até o ofertório nos inspira sentimentos
de penitencia e contrição (confiteor, Kyrie eleison), de adoração e de
reconhecimento (Gloria in excelsis), de súplica (Colleta), de fé viva (Epitre,
Evangile, Credo), para nos preparar para o oferecimento da santa Vitima, seguida da
comunhão e da ação de graças.
12. 12.Recomendamos, para ler durante a visita ao Santíssimo
Sacramento ou para meditar como assunto de oração, Les elevations sur laPriere au
Coeur Eucharistique de Jesus, que foram publicadas pela primeira vez em
1926, Editions de laVie Spirituelle.
A força e a ternura do amor do Salvador
Das alturas da visão de Deus, o amor de Cristo desce em nossas almas e, nesse
amor de Jesus por nós, encontramos, unidas, características tão diferentes: a mais
profunda ternura e a força mais heróica.
Quanto a nós, temos facilmente uma terna afeição a raras pessoas da família ou
a um amigo: mas quase sempre essa ternura é inteiramente sensível, superficial; não
chega até a alma daqueles que amamos. Rezamos muito por eles? — Além do mais,
essa afeição é freqüentemente tão estreita quanto superficial: nós a reservamos para
alguns íntimos; como ela é fraca, perderia sua relativa intensidade se se espalhasse.
Nosso coração é pobre, avaro em sua afeição: os indiferentes ficam de fora, e com
maior razão os que nos ofenderam, feriram; somos até duros com eles e, às vezes,
impiedosos.
Um dos maiores sinais de sua vinda é este: "Os pobres são evangelizados" [2].
Eles têm, como as crianças, um lugar especial em sua afeição. Ele não teme
comprometer Sua dignidade ao admiti-los perto de si; expõe-lhes com bondade a
doutrina da salvação e até os serve. É entre os pobres e os humildes que escolhe seus
apóstolos; na Quinta-Feira Santa se humilha diante deles, lava e beija seus pés para
fazê-los entender melhor o preceito do amor fraternal. Cor Jesu, deliciae Sanctorum
omnium, miserere nobis.
O que diz Ele aos pecadores? — "Vinde a mim todos os que estão fatigados e
vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mt. 11, 28). Ele tem piedade da grande
miséria para onde o pecado os conduziu; leva-os ao arrependimento sem julgá-los com
severidade. Ele é o pai do pródigo, abraça o filho infeliz por sua falta; perdoa a mulher
adúltera que os homens se apressavam a lapidar; recebe Madalena arrependida, abre-lhe
imediatamente o mistério de Sua vida íntima; fala da vida eterna à samaritana apesar de
sua conduta; promete de imediato o céu ao bom ladrão. Realmente se realizam n'Ele as
palavras de Isaías: "Ele não quebrará a cana rachada, nem apagará a mecha que ainda
fumega." [3]
Ele sem dúvida repreende com muita veemência os fariseus que se obstinam
em seu orgulho; mas é porque quer preservar as almas, afastá-las de sua influência, e
também quer dar aos fariseus uma última advertência, que ainda os salvaria se eles não
se endurecessem em seu orgulho. Advertindo-os assim, Jesus ainda os ama; até lhes dá
uma graça que torna para eles realmente possível o cumprimento do dever.
Esse amor de Cristo não perde sua ternura, estendendo-se a todas as almas; ele
abraça todas as nações e todos os tempos. Nosso Senhor tem sem dúvida suas
preferências por um São João, por Zaqueu, pelo bom ladrão, mas permanece aberto a
todos. "Ele morreu por todos os homens", diz São Paulo (II Cor. V, 14-15). Muitos se
afastaram d'Ele, mas Ele não repele ninguém. E quando nos afastamos, Ele intercede
pelos ingratos como rezou por seus algozes. É o grau supremo da bondade e da doçura
na humildade. Ele diz a Pedro que deve-se "perdoar setenta vezes sete vezes", isto é,
sempre, e Ele é o primeiro a fazê-lo.
Ao mesmo tempo, esse amor de Jesus por nós é de uma força que faz de seu
coração o maior de todos. Cor Jesu, rex et centrum omnium cordium, miserere nobis.
Essa força, essa generosidade de seu amor por nós se manifesta cada vez mais
desde o presépio até a Cruz. "Ele me amou, diz São Paulo, até se entregar por mim" [4],
e cada um de nós pode dizer o mesmo. Os incrédulos só querem ver no Cristo
moribundo um grande homem esmagado por mediocridades ciumentas. Ele é
infinitamente mais: é a vítima voluntária que se ofereceu para nos salvar. "Ninguém tem
maior amor que aquele que dá a sua vida por seus amigos." (Jo XV, 13)
Com sua vitória sobre o pecado obtida na Cruz, Jesus é a fonte da vida e da
santidade, fonte de toda consolação, salvação dos que n'Ele esperam, esperança dos
moribundos, delícia dos santos, como diz a ladainha do Sagrado Coração. Ele nos
deixou enfim a Eucaristia para ficar conosco até o fim do mundo e se dar como alimento
a cada um de nós em particular.
Ele diz a Seus amigos privilegiados seguidores de Seu exemplo: "O que deixa
a chaga de Meu coração aberta é Meu amor. Quero provar às almas que Meu coração
não se fecha. Ao contrário, Meu maior desejo é que as almas entrem por essa chaga de
Meu coração, abismo de caridade e misericórdia. É só nesse coração de um Deus que
elas encontrarão o remédio para abrandar seus sofrimentos e fortificar sua fraqueza. Que
elas Me estendam a mão. Eu mesmo as conduzirei até lá."
Continuamos sendo egoístas, porque nosso amor é fraco demais, pobre demais,
estreito demais, e miseravelmente se volta para nós próprios. O coração de Cristo
dilatará os nossos, ensinando-nos a amar sobre todas as coisas a glória de Deus e a
salvação das almas.
Por que nos deixamos levar pelo ciúme, pela inveja? Porque nosso amor não se
eleva suficientemente até o Bem Supremo que todos nós podemos possuir juntos sem
nos atrapalharmos uns aos outros.
Em vez de nos deixar levar pelo ciúme, agradeçamos antes ao Senhor por ter
dado ao nosso próximo qualidades que não temos e alegremo-nos como a mão aproveita
do que os olhos vêem.
Por que somos fracos? Porque não amamos o suficiente, porque nosso coração
é frio; porque contamos somente com nossas forças cuja enfermidade é manifesta, e
porque não contamos suficientemente com o Coração de Jesus, com Seu amor por nós.
Cor Jesu, de cuius plenitudine omnes nos accepimus, miserere nobis. Vamos
ao Pai, por Ele, com Ele e n'Ele.
(PERMANÊNCIA nos. 214-215; trad. de "Le Sauveur et son Amour por nous",
E. Cèdre, Paris, 1951, p. 222 ss.)
A força e a ternura do amor do Salvador
Das alturas da visão de Deus, o amor de Cristo desce em nossas almas e, nesse
amor de Jesus por nós, encontramos, unidas, características tão diferentes: a mais
profunda ternura e a força mais heróica.
Quanto a nós, temos facilmente uma terna afeição a raras pessoas da família ou
a um amigo: mas quase sempre essa ternura é inteiramente sensível, superficial; não
chega até a alma daqueles que amamos. Rezamos muito por eles? — Além do mais,
essa afeição é freqüentemente tão estreita quanto superficial: nós a reservamos para
alguns íntimos; como ela é fraca, perderia sua relativa intensidade se se espalhasse.
Nosso coração é pobre, avaro em sua afeição: os indiferentes ficam de fora, e com
maior razão os que nos ofenderam, feriram; somos até duros com eles e, às vezes,
impiedosos.
Jesus é, como Ele afirma, o Pastor das almas; todas podem tornar-se ovelhas de
seu rebanho. Ele as conhece todas, chama-as nominatim, cada um por seu nome [1],
protege-as contra o inimigo, inquieta-se pelas ausentes, corre à procura delas e carrega-
as em seus ombros.
Um dos maiores sinais de sua vinda é este: "Os pobres são evangelizados" [2].
Eles têm, como as crianças, um lugar especial em sua afeição. Ele não teme
comprometer Sua dignidade ao admiti-los perto de si; expõe-lhes com bondade a
doutrina da salvação e até os serve. É entre os pobres e os humildes que escolhe seus
apóstolos; na Quinta-Feira Santa se humilha diante deles, lava e beija seus pés para
fazê-los entender melhor o preceito do amor fraternal. Cor Jesu, deliciae Sanctorum
omnium, miserere nobis.
O que diz Ele aos pecadores? — "Vinde a mim todos os que estão fatigados e
vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mt. 11, 28). Ele tem piedade da grande
miséria para onde o pecado os conduziu; leva-os ao arrependimento sem julgá-los com
severidade. Ele é o pai do pródigo, abraça o filho infeliz por sua falta; perdoa a mulher
adúltera que os homens se apressavam a lapidar; recebe Madalena arrependida, abre-lhe
imediatamente o mistério de Sua vida íntima; fala da vida eterna à samaritana apesar de
sua conduta; promete de imediato o céu ao bom ladrão. Realmente se realizam n'Ele as
palavras de Isaías: "Ele não quebrará a cana rachada, nem apagará a mecha que ainda
fumega." [3]
Ele sem dúvida repreende com muita veemência os fariseus que se obstinam
em seu orgulho; mas é porque quer preservar as almas, afastá-las de sua influência, e
também quer dar aos fariseus uma última advertência, que ainda os salvaria se eles não
se endurecessem em seu orgulho. Advertindo-os assim, Jesus ainda os ama; até lhes dá
uma graça que torna para eles realmente possível o cumprimento do dever.
Esse amor de Cristo não perde sua ternura, estendendo-se a todas as almas; ele
abraça todas as nações e todos os tempos. Nosso Senhor tem sem dúvida suas
preferências por um São João, por Zaqueu, pelo bom ladrão, mas permanece aberto a
todos. "Ele morreu por todos os homens", diz São Paulo (II Cor. V, 14-15). Muitos se
afastaram d'Ele, mas Ele não repele ninguém. E quando nos afastamos, Ele intercede
pelos ingratos como rezou por seus algozes. É o grau supremo da bondade e da doçura
na humildade. Ele diz a Pedro que deve-se "perdoar setenta vezes sete vezes", isto é,
sempre, e Ele é o primeiro a fazê-lo.
Ao mesmo tempo, esse amor de Jesus por nós é de uma força que faz de seu
coração o maior de todos. Cor Jesu, rex et centrum omnium cordium, miserere nobis.
Essa força, essa generosidade de seu amor por nós se manifesta cada vez mais
desde o presépio até a Cruz. "Ele me amou, diz São Paulo, até se entregar por mim" [4],
e cada um de nós pode dizer o mesmo. Os incrédulos só querem ver no Cristo
moribundo um grande homem esmagado por mediocridades ciumentas. Ele é
infinitamente mais: é a vítima voluntária que se ofereceu para nos salvar. "Ninguém tem
maior amor que aquele que dá a sua vida por seus amigos." (Jo XV, 13)
Ninguém nos amou e ninguém nos amará nunca como Cristo. Eis porque,
quando os fiéis de Corinto estavam divididos, um dizendo: Eu sou de Paulo! e outro: E
eu de Apollo! — E eu de Cefas! — E eu de Cristo! São Paulo lhes escreveu: "Foi Paulo
quem foi crucificado por vós?" (I Cor 1, 13)
Jesus quis para si no Getsêmani o amargo cálice de expiação de todos os
pecados, todas as imundices reunidas, para nos dar o cálice de Seu Precioso Sangue, que
é elevado todos os dias sobre o altar. Esses dois cálices representam toda a história do
mundo e das almas, são como os dois pratos da balança do bem e do mal, e é o bem que
pesa mais; o Precioso Sangue pode apagar todos os crimes se imploramos o perdão.
Com sua vitória sobre o pecado obtida na Cruz, Jesus é a fonte da vida e da
santidade, fonte de toda consolação, salvação dos que n'Ele esperam, esperança dos
moribundos, delícia dos santos, como diz a ladainha do Sagrado Coração. Ele nos
deixou enfim a Eucaristia para ficar conosco até o fim do mundo e se dar como alimento
a cada um de nós em particular.
Ele diz a Seus amigos privilegiados seguidores de Seu exemplo: "O que deixa
a chaga de Meu coração aberta é Meu amor. Quero provar às almas que Meu coração
não se fecha. Ao contrário, Meu maior desejo é que as almas entrem por essa chaga de
Meu coração, abismo de caridade e misericórdia. É só nesse coração de um Deus que
elas encontrarão o remédio para abrandar seus sofrimentos e fortificar sua fraqueza. Que
elas Me estendam a mão. Eu mesmo as conduzirei até lá."
Continuamos sendo egoístas, porque nosso amor é fraco demais, pobre demais,
estreito demais, e miseravelmente se volta para nós próprios. O coração de Cristo
dilatará os nossos, ensinando-nos a amar sobre todas as coisas a glória de Deus e a
salvação das almas.
Por que nos deixamos levar pelo ciúme, pela inveja? Porque nosso amor não se
eleva suficientemente até o Bem Supremo que todos nós podemos possuir juntos sem
nos atrapalharmos uns aos outros.
Em vez de nos deixar levar pelo ciúme, agradeçamos antes ao Senhor por ter
dado ao nosso próximo qualidades que não temos e alegremo-nos como a mão aproveita
do que os olhos vêem.
Por que somos fracos? Porque não amamos o suficiente, porque nosso coração
é frio; porque contamos somente com nossas forças cuja enfermidade é manifesta, e
porque não contamos suficientemente com o Coração de Jesus, com Seu amor por nós.
Cor Jesu, de cuius plenitudine omnes nos accepimus, miserere nobis. Vamos
ao Pai, por Ele, com Ele e n'Ele.
(PERMANÊNCIA nos. 214-215; trad. de "Le Sauveur et son Amour por nous",
E. Cèdre, Paris, 1951, p. 222 ss.)
Ninguém pode exprimir o que foi a ternura de amor filial de Jesus por seu Pai;
se ele amava ternamente a Virgem Maria, quanto mais ainda seu Pai, a quem rendia
perpétua ação de graças e adoração! Esta ternura sobrenatural se derramava e se
derrama continuamente sobre as almas, não apenas as de um certo país ou tempo ou
sobre um grupo restrito de alguns amigos, mas sobre todas as almas de todas as
gerações para lhes dar a vida eterna.
Este amor de Cristo tão terno é também mais forte que a morte, mais forte que
o pecado e que o espírito do mal. Foi ele que levou Nosso Senhor a se oferecer como
vítima para pagar em nosso lugar, para nos salvar, dando a Deus uma reparação infinita
que lhe agrada mais do que todo o desgosto causado pelos pecados: Cor Jesu, fornax
ardens caritatis -- eis todas as ternuras e todas as energias do amor admiravelmente
fundidas. O Coração de Jesus é assim o mais puro espelho da Misericórdia e da Justiça,
as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus.
Os membros do corpo místico de Cristo devem cada vez mais participar de sua
vida para se tornarem semelhantes a Ele. A santa humanidade do Salvador nos
comunica progressivamente as graças que mereceu por nós na Cruz, influxo da cabeça
do corpo místico sobre seus membros. Por este influxo Nosso Senhor quer nos
assimilar, cada vez mais, pelo batismo, absolvição, comunhão freqüente, cruzes ou
purificações necessárias a nosso avanço, até a extrema-unção e a nossa entrada no céu.
Na vida de muitos santos vê-se essa assimilação progressiva no modo pelo qual neles
são reproduzidos os mistérios da infância de Jesus, sua vida oculta, depois sua vida
apostólica e por fim sua vida dolorosa. 2
Ora, uma das grandes marcas do espírito de Jesus em uma alma, é a reprodução
nesta alma dos dois efeitos que derivam em Nosso Senhor da plenitude da graça.
"Os membros são santificados pela mesma graça, que está em Jesus como em
sua fonte universal. Ora, esta graça de Cabeça é comunicada a Jesus para a finalidade de
sua missão, para que ele pague pelos pecados dos membros à justiça rigorosa de Deus.
Por conseguinte, ele contrai a obrigação amorosa de sofrer provocando em seu espírito
uma inclinação violenta que o transporta continuamente para a Cruz. É indispensável
que esta graça incline do mesmo modo, com o mesmo rigor as almas predestinadas, a
fim de que o corpo místico não pareça um todo monstruoso na ordem da graça, onde o
espírito de Jesus seria contrário a si mesmo, sendo um nos membros e outro na Cabeça...
"Assim, porque a graça decorre da alma de Jesus como de sua fonte original
onde ela produz um impulso dirigido para o fim pelo qual Jesus se fez homem, é uma
necessidade que a graça cause esta mesma disposição naqueles que recebem a dignidade
de nela participarem". 4
Este é um efeito da graça cristã como tal. A graça, por sua essência, é uma
participação da natureza divina, mas, pelo fato de que nos é transmitida pelo Cristo, tem
uma modalidade especial que nos configura a Ele como demonstra Santo Tomás
quando pergunta se a graça sacramental, em particular a graça batismal, como tal,
acrescenta alguma coisa à graça das virtudes e dos dons como a que possuía Adão antes
do pecado (III, q. 62, a. 2).
"Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis: nula silva talem profert fronde,
flore, germine: dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinuit.
O magnum pietatis opus! Mors mortua tunc est, in ligno quanto mortua Vita
fuit.
Nos autem gloriari oportet in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Crux
benedicta, nitet Dominus qua carne pependit, atque cuore suo vulnera nostra lavit".
***
Quando vossa alma dobrar-se sob o peso, apoiai-vos sobre vosso crucifixo.
***
Concluamos com São Luiz Maria Grignion de Montfort (L' Amour de la
Divine Sagesse, 2a. P., cap. V):
"A Sabedoria Eterna fez da Cruz seu tesouro e em sua Encarnação esposou-a
com amor inefável; durante toda sua vida, que não foi mais do que uma cruz contínua,
carregou-a, pediu-a com indizível alegria... Pregada finalmente e como que colada à
cruz, com alegria morreu abraçada à sua querida Cruz como num leito de honra e
triunfo... E não pensem que depois de sua morte, para melhor triunfar, a Sabedoria
Encarnada tenha se arrancado, tenha rejeitado a Cruz... Não querendo que honra de
adoração, mesmo relativa, seja prestada a criaturas, por mais altas que sejam, como sua
santíssima Mãe, reservou esta honra para sua querida Cruz e somente a ela é devida. A
Sabedoria Encarnada, no grande dia do Juízo Final, acabará como o culto das relíquias
dos santos, mesmo as dos mais respeitáveis; mas quanto às relíquias da Cruz, enviará os
primeiros serafins e querubins pelo mundo para ajuntar os pedaços da verdadeira cruz
que, por sua amorosa onipotência, serão tão bem reunidos que não farão mais que uma
só e a mesma Cruz em que morreu, transportada assim pelos anjos... Precedida pela
Cruz, colocada sobre uma nuvem de brilho inigualável, a Sabedoria eterna julgará o
mundo com a Cruz e pela Cruz. Qual será então a alegria dos amigos da Cruz...
Esperando esse dia... a divina Sabedoria quer que a Cruz seja o sinal, o caráter, a arma
de todos os seus eleitos... Tendo encerrado tantos tesouros, tantas graças de vida na
Cruz só dá a conhecer esses tesouros aos mais escolhidos... Como é preciso ser humilde,
pequeno, mortificado, interior e menosprezado pelo mundo para conhecer o mistério da
cruz! A quem carrega e suporta essa cruz, a Sabedoria Eterna dará um peso eterno de
glória no céu".
(De "L' Amour de Dieu et la Croix de Jesus", Ed. du Cerf. 1o. vol., cap. VI,
pág. 255. Tradução de Anna Luiza Fleichman)
Fortis est ut mors dilectio: o que mais impressiona no amor de Jesus, quer por
seu Pai, quer por nossas almas, é a união maravilhosa e muito íntima da mais profunda
ternura e da força a mais heróica no sofrimento e na morte: Fortiter et suaviter.
Estas duas qualidades do amor estão, muitas vezes, separadas em nós e no
entanto só podem viver intimamente unidas. A ternura sem a força torna-se langorosa e
piegas, a força sem nenhuma suavidade, transforma-se em rudeza e amargura1.
Ninguém pode exprimir o que foi a ternura de amor filial de Jesus por seu Pai;
se ele amava ternamente a Virgem Maria, quanto mais ainda seu Pai, a quem rendia
perpétua ação de graças e adoração! Esta ternura sobrenatural se derramava e se
derrama continuamente sobre as almas, não apenas as de um certo país ou tempo ou
sobre um grupo restrito de alguns amigos, mas sobre todas as almas de todas as
gerações para lhes dar a vida eterna.
Este amor de Cristo tão terno é também mais forte que a morte, mais forte que
o pecado e que o espírito do mal. Foi ele que levou Nosso Senhor a se oferecer como
vítima para pagar em nosso lugar, para nos salvar, dando a Deus uma reparação infinita
que lhe agrada mais do que todo o desgosto causado pelos pecados: Cor Jesu, fornax
ardens caritatis -- eis todas as ternuras e todas as energias do amor admiravelmente
fundidas. O Coração de Jesus é assim o mais puro espelho da Misericórdia e da Justiça,
as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus.
Os membros do corpo místico de Cristo devem cada vez mais participar de sua
vida para se tornarem semelhantes a Ele. A santa humanidade do Salvador nos
comunica progressivamente as graças que mereceu por nós na Cruz, influxo da cabeça
do corpo místico sobre seus membros. Por este influxo Nosso Senhor quer nos
assimilar, cada vez mais, pelo batismo, absolvição, comunhão freqüente, cruzes ou
purificações necessárias a nosso avanço, até a extrema-unção e a nossa entrada no céu.
Na vida de muitos santos vê-se essa assimilação progressiva no modo pelo qual neles
são reproduzidos os mistérios da infância de Jesus, sua vida oculta, depois sua vida
apostólica e por fim sua vida dolorosa2.
Ora, uma das grandes marcas do espírito de Jesus em uma alma, é a reprodução
nesta alma dos dois efeitos que derivam em Nosso Senhor da plenitude da graça.
Primeiro, a paz, a tranqüilidade da ordenação cada vez melhor de todos os
sentimentos, de todos os quereres subordinados ao amor de Deus e das almas em Deus,
amor que cresce continuamente pela influência atual de Cristo.
"Os membros são santificados pela mesma graça, que está em Jesus como em
sua fonte universal. Ora, esta graça de Cabeça é comunicada a Jesus para a finalidade de
sua missão, para que ele pague pelos pecados dos membros à justiça rigorosa de Deus.
Por conseguinte, ele contrai a obrigação amorosa de sofrer provocando em seu espírito
uma inclinação violenta que o transporta continuamente para a Cruz. É indispensável
que esta graça incline do mesmo modo, com o mesmo rigor as almas predestinadas, a
fim de que o corpo místico não pareça um todo monstruoso na ordem da graça, onde o
espírito de Jesus seria contrário a si mesmo, sendo um nos membros e outro na Cabeça...
"Assim, porque a graça decorre da alma de Jesus como de sua fonte original
onde ela produz um impulso dirigido para o fim pelo qual Jesus se fez homem, é uma
necessidade que a graça cause esta mesma disposição naqueles que recebem a dignidade
de nela participarem"4.
Este é um efeito da graça cristã como tal. A graça, por sua essência, é uma
participação da natureza divina, mas, pelo fato de que nos é transmitida pelo Cristo, tem
uma modalidade especial que nos configura a Ele como demonstra Santo Tomás
quando pergunta se a graça sacramental, em particular a graça batismal, como tal,
acrescenta alguma coisa à graça das virtudes e dos dons como a que possuía Adão antes
do pecado (III, q. 62, a. 2).
Relendo atentamente o belo capítulo da Imitação de Cristo (1. II, cap. XI): "Do
pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus", vê-se que a marca do espírito de
Cristo é a paz e o abandono no sofrimento, no acabrunhamento da Paixão, que se
reproduz em diversos graus nas almas para as purificar e para fazê-las trabalhar na
salvação do próximo em Nosso Senhor, com Ele e por Ele, com os meios dos quais Ele
mesmo se serviu. Jesus está assim, num certo sentido, em agonia até o fim do mundo,
no seu corpo místico até que este corpo místico seja plenamente purificado e
glorificado, até que se realize perfeitamente a palavra do Mestre: "Venci o mundo", pela
vitória definitiva sobre o pecado, sobre o demônio e sobre a morte.
"Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis: nula silva talem profert fronde,
flore, germine: dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinuit.
O magnum pietatis opus! Mors mortua tunc est, in ligno quanto mortua Vita
fuit.
Nos autem gloriari oportet in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Crux
benedicta, nitet Dominus qua carne pependit, atque cuore suo vulnera nostra lavit".
***
Quando vossa alma dobrar-se sob o peso, apoiai-vos sobre vosso crucifixo.
***
(De "L' Amour de Dieu et la Croix de Jesus", Ed. du Cerf. 1o. vol., cap. VI,
pág. 255. Tradução de Anna Luiza Fleichman)
1. 1.Ver sobre isto L. Chardon, La Croix de Jesus, 3o. entretenimento,
cap. VIII, onde o autor mostra como Deus quer a ternura de suas criaturas para uni-
las a sua força, e como Ele transforma esta ternura em força divina. "Ele quer que o
amor intensivo caminhe na alma perfeita de par com o amor apreciativo e que a
ternura dos sentimentos esteja de acordo com a preferência do julgamento".
2. 2.Ver encíclica de Pio XI, junho de 1928, Miserentissimus
Redemptor, sobre a reparação devida a Deus por todos os homens.
3. 3.La Croix de Jesus, 1a. edição, pg. 119-121. Nova edição
(Lethielleux) T. I, pg. 14, 29, 43, 136; T. II, pg. 376, 450.
4. 4.Cf. São Luix Grignion de Montfort, L' Amour de la Divine
Sagesse II P., cap. VI: "Meios de se obter a sabedoria divina: 1.) desejo ardente; 2.)
prece contínua; 3.) mortificação universal; 4.) terna e verdadeira devoção à
Santíssima Virgem."
5. 5.La Croix de Jesus, ibid., pg. 125-128.
6. 6.Ibid., pg. 146-147.
7. 7.L. Chardon, ibid., no primeiro de seus três "entretenimentos",
mostra o que foi o "amor separante", princípio de Cruz, na alma de Maria e dos
apóstolos: são dez capítulos de grande profundidade sobre o martírio interior da
Santa Virgem. No terceiro de seus "entretenimentos" ele descreve admiravelmente,
à luz do mesmo princípio, os grandes ápices da vida interior de Abraão, de Elias, de
Jacob, de Benjamin, da Esposa dos Cânticos, de Marta e de Madalena. Páginas
admiráveis onde a teologia mística doutrinal aparece como o coroamento normal da
teologia toda, tal como a conceberam Santo Agostinho, Santo Tomás e todos os
grandes mestres. O capítulo sobre Elías (3o. entretenimento, cap. 25) é digno de
nota: "Moisés dizia: "Apagai-me do livro da vida"; São Paulo pedia para ser
anátema por causa de seus irmãos! Mas estes desejos não tinham outro efeito senão
testemunhar o grande amor destas almas por seus irmãos... Não é este o caso de
Elias. Há cerca de três mil anos que Elias está privado da visão de Deus, e estará
privado até o fim do mundo, para satisfazer desejos que participam da imensidade
divina... Elias está reservado... para lutar contra o Anticristo".
8. 8.Bremond, Histoire Litt. du Sentiment Religieux en France, t. VIII,
pg. 43. Não sei se Chardon leu São João da Cruz, em todo caso ele está imbuído de
Tauler de quem expõe a doutrina.
A intimidade do Cristo
O mais amado de todos os apóstolos devia ser bem perfeito, para que Nosso
Senhor experimentasse tal agrado por ele; sua pureza o encantava. Não era, no entanto,
a perfeição de João que atraía o amor de Jesus; ela foi, ao contrário, o efeito, o resultado
deste amor que encontrou agrado nessa perfeição, diz Bossuet, como o artista agrada-se
com uma obra bem feita. O amor de Deus e de Jesus por nossas almas não pressupõe a
amabilidade em nós, mas Ele a põe em nós, Ele a cria e aumenta, assemelhando-nos a
Ele. Detendo-se sobre nós, o amor divino produz em nós a vida da graça e Ele não cessa
de fazê-la crescer se não lhe opomos obstáculos1.
Vejamos como Nosso Senhor, pela sua amizade, tornou São João cada vez
mais parecido com Ele mesmo; vamos nos inspirar em Bossuet2, que assinala que o
Salvador deu ao discípulo bem amado três dons: sua cruz, sua mãe e seu coração. Mas
parece preferível seguir a ordem inversa, que é a do tempo: ele mostra melhor o
progresso da vida da graça em São João, e como o discípulo bem amado penetrou cada
vez mais na intimidade de Cristo. Na Ceia, Jesus lhe deu seu coração; pouco depois,
morrendo, deu-lhe sua Mãe; e em seguida, para fecundar seu ministério, Ele lhe deu sua
Cruz.
Que graça interior recebeu então São João? Pode-se concebê-lo lembrando que
do corpo de Jesus saía uma graça que vivificava os corações. Certamente, João recebeu
então uma graça de luz e de amor: conheceu experimentalmente que o Coração do
Salvador só vive por amor de Deus e das almas, compreendeu como a Eucaristia é, aqui
embaixo, a grande manifestação desse amor e, sob aparências muito humildes, a própria
vida de Deus sempre presente entre nós. Predestinado de toda a eternidade a ser o
grande doutor da caridade, João vem beber a caridade na sua fonte mesmo, e receber a
inspiração das palavras que os fiéis esperarão santamente até o fim dos tempos. Para
melhor falar do amor do Salvador por nós, ele vem sentir de perto o ardor desse fogo
espiritual que queima sem destruir e que quer nos transformar nEle.
Como São Paulo se lembra, ao escrever, que foi elevado ao terceiro céu, São
João se recorda que ele repousou sobre o Coração do Mestre.
E como falou a águia dos Evangelistas! Ele vincula toda a doutrina cristã a
esses pontos fundamentais: Deus é luz e amor. Ele é que, primeiro e gratuitamente, nos
amou; nosso amor deve ser uma resposta àquele que Ele nos mostrou, e a caridade
fraterna deve ser o grande sinal de nosso amor a Deus.
O próprio São João resume isto escrevendo na sua primeiro Epístola (4, 7-16):
"Meus bem-amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo
aquele que ama nasceu de Deus, e conhece Deus. Aquele que não ama não conheceu a
Deus, porque Deus é amor. Ele manifestou seu amor por nós enviando seu Filho único
ao mundo, para que nós vivamos por Ele. E este amor consiste em que não fomos nós
que amamos a Deus, mas ele que nos amou e que enviou seu Filho como vítima de
propiciação por nossos pecados. Meus bem-amados, se Deus nos amou assim,
devemos também amarmo-nos uns aos outros... Deus é amor; e aquele que permanece
no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele". É em resumo todo o dogma, e
também toda a moral cristã reduzida a seu princípio: o amor de Deus e do próximo, a
caridade que deve inspirar e animar todas as virtudes. "Nós sabemos que passamos da
morte para a vida, porque amamos nossos irmãos" (1 Jo 3, 14). É o grande sinal do
amor de Deus.
Alegremo-nos também de ver no próximo o que nos falta; longe de nos deixar
levar pela inveja, gozemos com suas qualidades, que são nossas em um sentido, pois
que somos um no Corpo Místico do Cristo. A mão pode se alegrar com o que o olho vê.
A caridade enriquece assim nossa pobreza; ela nos dá todos os bens comuns; faz nossos
em certo sentido todos os dons do Corpo Místico do Salvador, e nos faz participar desde
já em certa medida de todos os bens da cidade de Deus.
Mas, para entrar mais ainda na intimidade de Cristo, é preciso ser da escola de
Maria, que mais que nenhuma criatura penetrou nesse santuário. Por isso Jesus, no
momento em que ia morrer, confiou sua Mãe a São João.
Aqueles que vão morrer deixam aos que lhes são mais caros um testemunho de
afeição, o mais expressivo possível. No momento de morrer, o que deixará Jesus a São
João? Ele não tem mais nada; está despojado de tudo, abandonado por todos. Parece
mesmo repelido por Seu Pai, quando, vítima em nosso lugar, diz a primeira palavra do
Salmo: "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?" Nessa completa nudez, o que
deixará Jesus a São João?
Deixa-lhe uma lembrança viva, a alma Santíssima que Ele quis mais que todas
as outras juntas. Ele lhe deixa Maria: "Filho, diz Ele, eis vossa Mãe", e a Maria:
"Mulher, eis vosso filho" (Jo 19, 27). "E depois dessa hora, diz o quarto Evangelho, o
discípulo a levou para sua casa".
Esta palavra criou, entre Maria e João, por assim dizer, um laço espiritual
muito íntimo, análogo àquele que une Jesus à Sua Santa Mãe. Ela deu a Maria uma
afeição toda maternal e muito profunda que cobrirá de agora em diante a alma de João,
e ao discípulo uma ternura toda filial e respeitosa que faz dele verdadeiramente o filho
espiritual de Maria.
Nesta hora de agonia, esta palavra do Cristo moribundo entra no fundo de suas
almas como um bálsamo para suavizar seus sofrimentos e acalmar os ferimentos de seus
corações. Foi uma imensa consolação para São João, e também para Maria, por que Els,
que via as almas, descobriu no discípulo bem-amado, o que ele mesmo não via, a
imagem viva do Salvador, alter Christus, imagem que Maria foi encarregada de
aperfeiçoar, de tornar cada vez mais semelhante ao Divino Modelo.
Assim, muitas vezes na história das almas, quando Jesus parece se retirar para
provar a confiança de seus amigos, Ele lhes deixa sua Santa Mãe, confia-os a Maria.
Não se saberia dizer tudo o que São João recebeu da Virgem. Se as conversas
de Santo Agostinho e de Santa Mônica em Ostia foram tão elevadas, o que pensar
daquelas de Maria e de São João?
Pela plenitude da graça que ela tinha recebido, a Mãe de Deus era superior aos
Anjos; seu coração queimava de uma caridade cuja intensidade a arrebatava sobre a de
todos os santos reunidos; esta viva chama não cessava um instante de se elevar a Deus,
mesmo durante seu sono, onde se verificava a palavra do Cântico (5, 2): "Ego dormio,
sed cor meum vigilat..."(Eu durmo, mas meu coração vigia).
É a pureza que tinha preparado São João para viver na intimidade de Cristo; é
ela que o qualificou para herdar o amor de Cristo por Maria, que foi profundamente sua
verdadeira Mãe espiritual.
Nosso Senhor deu a São João seu Coração e sua Mãe, que lhe dará ainda para
fecundar seu ministério apostólico? Ele lhe dará sua Cruz e progressivamente o fará
compreender qual é o seu valor inestimável.
A amizade de Jesus só tem doçuras e complacências; ela é tão forte quanto
terna, tende a purificar pela provação e a se associar às almas no mistério da Redenção
pelo sofrimento.
Um dia, subindo a Jerusalém com eles, Nosso Senhor renova a profecia da sua
Paixão, de sua Crucificação, de sua Ressurreição; Ele queria gravá-la mais
profundamente no espírito de João e de seu irmão. Nesse momento, a mãe destes se
aproxima de Jesus e se prosterna como para pedir alguma coisa. Como o conta São
Mateus (20, 21), Jesus lhe diz: "O que queres?" Ela responde: "Ordene que meus dois
filhos que aqui estão se sentem um à Vossa direita, outro à Vossa esquerda, no Vosso
Reino". Jesus diz-lhes: "Vós não sabeis o que pedis. Podereis beber do cálice que Eu hei
de beber?" — "Podemos", lhe dizem eles. Ele lhes responde: "Vós bebereis com efeito
do meu cálice, quanto a estardes sentado à minha direita ou à minha esquerda, não cabe
a mim vo-lo conceder, mas será para aqueles para quem meu Pai o preparou". Desde
esse dia, Jesus deu sua Cruz a seu discípulo bem-amado.
Essa palavra do Salvador, como as duas outras ditas a São João, produziu na
alma do discípulo o que ela significava. A partir desse instante, João não procurou mais
ser o primeiro; começou a amar o sofrimento, a humilhação e este amor não cessou de
crescer em seu coração sob a influência da graça.
Jesus o tornou cada vez mais semelhante a Ele; ora, Ele veio para sofrer como
vítima da salvação, para nos salvar pela Sua agonia mais que pelos seus discursos. Ele
unirá então, cada vez mais, São João à sua vida laboriosa e crucificada. "Quando Jesus
entra em algum lugar, diz Bossuet, Ele ali entra com sua cruz e seus espinhos; Ele
concede parte nisso àqueles que O amam". Ora, João é seu apóstolo bem-amado, Ele lhe
faz então presente desta enorme graça que é o amor da Cruz.
João cria de início que, para ter um lugar escolhido no Reino do Filho de Deus,
era preciso estar sentado à sua direito e revestido de sua glória. Ele vai aprender porém
que entra-se profundamente no Reino, desde aqui embaixo, pelo sofrimento; Ele saberá
como a provação nos torna clarividentes para contemplar Jesus nas almas. A aflição lhe
abrirá os olhos, João compreenderá o sentido profundo da mais alta das bem-
aventuranças, a mais surpreendente para a razão humana: "Bem-aventurados aqueles
que sofrem perseguição pela justiça, porque é deles o Reino dos Céus". Ele é deles
desde aqui embaixo, no meio mesmo da perseguição, pela paz profunda que Jesus lhes
dá.
Qual foi a cruz de João? Vendo as coisas de fora, parece que, de todos os
apóstolos, ele tenha tido a mais leve. Só ele não foi morto nos sofrimentos do martírio.
Sofreu, no entanto, a perseguição, sob Domiciano; foi mergulhado, em Roma, num
banho de óleo fervendo. Mas este óleo se transformou em orvalho, ele saiu dali
refrescado e purificado. Foi em seguida exilado para Patmos, onde Nosso Senhor
glorificado lhe apareceu e lhe revelou seus segredos, ordenando-lhe que os escrevesse
nesse livro, o mais misterioso de todos os livros sagrados, o Apocalipse.
Vendo as coisas de fora, a cruz de São João parece ter sido mais leve que a dos
outros apóstolos. Mas como diz Bossuet6: "A cruz de São João foi a maior d todas no
interior. Consideremos o mistério, as duas cruzes de Nosso Salvador. Uma se vê no
calvário, e ela parece a mais dolorosa; a outra é aquela que Ele levou durante todo o
curso de sua vida, é a mais penosa". Jesus diz várias vezes a Santa Catarina de
Sena, esta cruz interior é aquela do desejo da salvação das almas, desejo combatido
pelo espírito do mal, pelo espírito do mundo, pela cobiça que arrasta milhares de almas
para sua perda. Na vida de Jesus segue-se o progresso da malícia daqueles que se
encarniçam contra Ele, o que torna mais ardente a sede da salvação das almas que O
queima e O consome. O martírio do coração é muitas vezes mais doloroso que o outro e
pode durar, não somente algumas horas, mas longos anos.
É sobretudo esta cruz interior do desejo da glória de Deus e da salvação das
almas que Jesus deu a São João. Ela não atingia pois os sentidos, mas estava impressa
por Deus no fundo da alma com o vivo desejo da salvação dos pecadores. Para tornar o
apóstolo capaz de carregar esta cruz interior, Jesus lhe inspirava o amor dos
sofrimentos, que avivava o desejo mas acalmando-o e impedia a alma de repousar fora
de Deus. O mesmo acontece a certas almas chamadas à santidade: se se detém de um
modo natural demais numa satisfação que vem das criaturas, logo Nosso Senhor
derrama sobre tal satisfação uma gota de amargura; e esta amargura ultrapassa de muito
o prazer experimentado; é uma graça crucificante e purificadora.
Enfim a cruz interior para São João veio sobretudo das heresias que mutilaram
a Santa Igreja negando a divindade de Jesus. Quanto esta negação deve ter torturado o
coração daquele que escreveu o quarto Evangelho, que tinha por finalidade mostrar o
Verbo feito carne em toda sua glória! Esta cruz interior vinha também das divisões que
se produziram na Igreja nascente, para grande detrimento da caridade. Assim, o
apóstolo, com oitenta anos, fazia-se levar pelos seus discípulos à Igreja de Éfeso e, não
podendo mais pregar longamente, dizia: "Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros".
Ele que, na sua juventude, por causa do seu ardor, tinha sido chamado por Nosso
Senhor, junto com seus irmãos, boarnerges, filhos do trovão, ele não sabia mais falar a
não ser da caridade fraterna, o grande sinal do amor de Deus. João não tinha perdido
nada do seu ardor, da sua sede de justiça, mas esta estava espiritualizada e era
acompanhada de uma grande doçura. E como os ouvintes lhe perguntavam por que ele
repetia sempre a mesma coisa, João respondia: "É o preceito do Senhor e se vós o
cumprirdes, é suficiente".
O Senhor no-la dá também. Há três espécies de cruz: aquelas que ficam inúteis
como a do mau ladrão; aquelas que se carrega para reparar as próprias faltas e para
merecer a salvação, como a do bom ladrão; e aquelas que fazem pensar na Cruz do
Salvador, e que se carrega para trabalhar com Ele para a salvação das almas. A cruz
bem carregada nos carrega por sua vez; ela abre os olhos e conduz à contemplação, a
ver Deus escondido nas almas. Se ela nos parece por vezes bem pesada, peçamos ao
Salvador dar-nos o amor do sofrimento, orientar-nos, pelo menos, neste caminho.
É o que Ele quer, pois que nos deu Seu Coração, o qual é um coração sofrido.
Ele nos deu também Sua Mãe, e uma das maiores graças que Nossa Senhora das Dores
possa nos obter é a de saborear a cruz que o Senhor nos impôs para nos purificar e nos
fazer trabalhar para a salvação das almas7. Isto é verdadeiramente entrar na intimidade
de Cristo e participar de sua vida escondida e dolorosa antes de termos parte na sua vida
gloriosa no Céu8.
Não menos bela é essa oração alemã cantada há muito tempo pelos fiéis:
A missa e a morte
***
Adoração
Jesus sobre a Cruz fizera de Sua morte sacrifício de adoração. Fora a mais
perfeita realização do preceito do decálogo: “Adorarás o Senhor, teu Deus, prestar-lhe-
ás o teu culto e só jurarás pelo seu nome” (Dt 6, 13). É com essa palavra divina que
Jesus respondeu a Satã, que lhe dissera: “Dar-Te-ei todos os reinos do mundo, se Tu te
prostrares perante mim para me adorares, si cadens adoraveris me”.
Adoremos Deus, em união com Nosso Senhor e sua Santa Mãe, e digamos de
todo coração, como nos insta S. S. [São] Pio X: “Senhor, meu Deus, a partir de hoje, de
coração tranqüilo e submisso, aceito de vossa mão o gênero de morte que vos agradará
me enviar, com todas as suas angústias, todas as suas penas e todas as suas dores”.
Todo aquele que, uma vez na vida e no dia de sua escolha, tiver recitado esse
ato de resignação após a confissão e a comunhão, ganhará uma indulgência plenária que
se lhe aplicará à hora da morte, conforme a pureza da consciência. Mas é recomendável
repetir a cada dia esse sacrifício, para assim nos prepararmos a fazer de nossa morte, no
instante derradeiro, em união com o sacrifício do Cristo continuado em substância sobre
o altar, um sacrifício de adoração, considerando o domínio soberano de Deus, a
majestade e a bondade Daquele “que conduz a profundos abismos e deles tira ―
Dominus mortificat et vivificar, deducit ad inferos et reducit” (Dt 32, 39; Tb 13, 2; Sb
14,13). Essa adoração de Deus, mestre da vida e da morte, se pode fazer de modos bem
diferentes, conforme as almas sejam mais ou menos esclarecidas: não é realmente
melhor unir-se desta feita, a cada dia, ao sacrifício de adoração do Salvador?
Sejamos desde agora adoradores em espírito e verdade; que a adoração seja tão
sincera e profunda que se reflita verdadeiramente em nossa vida e nos disponha àquela
que devemos possuir no coração no instante final.
Reparação
Outro fim do sacrifício é a reparação da ofensa feita a Deus pelo pecado, e a
satisfação da pena devida pelo pecado. Devemos fazer de nossa morte um sacrifício
propiciatório: a adoração dever ser, a bem dizer, reparadora.
Ele satisfez por nós, que somos os membros de Seu Corpo Místico. Mas como
a causa primeira não torna inúteis as causas segundas, o sacrifício do Salvador não torna
inútil o nosso, mas o suscita e lhe confere valor. Maria deu-nos o exemplo ao unir-se
aos sofrimentos de seu Filho; assim, satisfez por nós, a ponto de merecer o título de Co-
redentora.
Ela aceitou o martírio de seu Filho ― não apenas querido, mas legitimamente
adorado ― que amava com coração afetuosíssimo, desde que o concebera
virginalmente.
Com heroísmo ainda maior que o do patriarca Abraão, pronto a imolar seu
filho Isaac, Maria, ao oferecer seu Filho por nossa salvação, viu-o realmente morrer
com atrocíssimos sofrimentos físicos e morais. Não veio nenhum anjo para impedir a
imolação e dizer a Maria, tal como ao patriarca, em nome do Senhor: “agora Eu sei que
temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único”. (Gn 22, 12);
Maria viu realizar-se efetiva e plenamente o sacrifício reparador de Jesus, e em face ao
qual o de Isaac não era senão a figura em preâmbulo. Ela sofreu então o pecado na
medida de seu amor por Deus, a quem o pecado ofende; por seu Filho, a quem o pecado
crucificava; por nossas almas, a quem o pecado corrompe e mata. A caridade da Virgem
ultrapassava incomensuravelmente a do patriarca; e nela, ainda mais que nele,
realizaram-se as palavras que este escutara: “pois que fizeste isto, e não me recusaste
teu filho, teu filho único, Eu te abençoarei. Multiplicarei a tua posteridade como as
estrelas do céu” (Gn, 22, 16-17).
Suplicação
São Paulo escreve aos Hebreus (5, 7): “[Cristo Jesus] nos dias de sua vida
mortal, dirigiu preces e súplicas, entre clamores e lágrimas (...) e foi atendido pela sua
piedade (... ) tornou-se autor da salvação eterna para todos os que Lhe obedecem”.
Recordemo-nos da prece sacerdotal do Cristo após a Ceia e antes do sacrifício da Cruz:
Jesus então rezou por seus apóstolos e por nós... “porque vive sempre para interceder
em seu favor” (Hb 7, 25). Particularmente, durante o sacrifício da missa, onde Ele é o
principal sacerdote.
Jesus, que rogara por seus algozes, roga pelos moribundos que se recomendam
a Ele. Com Ele, a Virgem Maria intercede, recorda-se do que nós muitas vezes lhe
pedimos: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa
morte”.
Para nos dispormos desde agora a fazer esse ato de suplica na hora derradeira,
oremos com freqüência, ao assistir à Santa Missa, por aqueles que vão morrer no correr
do dia. Conforme a recomendação de S. S. Bento XV, façamos celebrar uma missa de
vez em quando para obter, através desse sacrifício de suplica de valor infinito, a graça
da boa morte ou a aplicação dos méritos do Salvador. Façamos também celebrar
algumas missas por alguns de nossos parentes e amigos que nos causaram inquietação
acerca de sua salvação, para lhes obter a graça derradeira, e por aqueles que teríamos
escandalizado e talvez distanciado do caminho de Deus.
A ação de graças
Enfim, cada qual deveria fazer de sua morte, em união com Nosso Senhor e a
Virgem Maria, um sacrifício de ação de graças, por todos os benefícios recebidos desde
o batismo, rememorando quantas absolvições e comunhões nos remiram ou guardaram
no caminho da salvação.
Jesus fizera de sua morte um sacrifício de ação de graças, ao dizer:
“Consummatum est — Está consumado” (Jo 19, 30); Maria disse o “Consummatum
est” junto com Ele. Tal forma de oração, que permanece na missa, não acabará, mesmo
quando for dita a última missa, no fim do mundo. Quando não houver mais sacrifício
propriamente dito, haverá sua consumação, e nela haverá sempre a adoração e a ação de
graças dos eleitos que, unidos ao Salvador e a Maria, cantarão o Sanctus com os anjos e
glorificarão a Deus, louvando-o.
“Expôs com muita clareza São Tomás, disse ele, a doutrina dos Padres acerca
da elevação da vida sobrenatural e das condições do progresso na graça das virtudes e
dons do Espírito Santo, cuja perfeição ou florescimento se acha na vida mística: ...ac
praterea quibus conditionibus proficiat gratia virtutum et domorum Spiritus Sancti,
quorum perfectio vita mystica continetur2.”
Escrevia Pio XI, cujo pontificado já de si tão fecundo se nos antolha em frutos
que sobejarão da promessa das flores, na bela encíclica Studiorum ducem, de 29 de
junho de 1923: “Para bem conhecer os princípios fundamentais da teologia ascética e
mística, é mister tomar São Tomás como guia e aderir ao que ele ensina sobre a
extensão do preceito do amor a Deus e o aumento da caridade e dos dons do Espírito
Santo – que lhe são conexos –, bem como sobre os diversos estados (o estado de
perfeição, a vida religiosa, o apostolado), as diferenças que os distinguem e a natureza
verdadeira de cada um deles.”
Assim resumem os Papas a espiritualidade de São Tomás com este conceito
claríssimo: a vida mística é o florescimento definitivo da vida da graça e dos dons do
Espírito Santo ou, noutros termos, é a vida sobrenatural e completa do homem que se
elevou ao estado sobrenatural.
Ora, quem recebe a natureza de outro se torna filho engendrado seu, e é por
isso que a graça é um segundo nascimento: Ex Deo nati sunt. Após o batismo, ao nos
contemplar no berço, dizem pai e mãe com suave transporte: “Regozijemos, nasceu
nosso filho!” A família celeste, a Trindade adorável, curvava-se com ainda mais ternura
sobre esse berço e dizia: nasceu-nos um deus! Ex Deo nati sunt!, como sublinha São
Tomás: “Haec generatio, quia est ex Deo, facit filios Dei; porque vem de Deus, essa
geração nos faz filhos de Deus7.” Ecoa aqui o Doutor Angélico o apóstolo São
Paulo: Genus summus Dei, somos da raça de Deus8. Eis aí nossa partícula de nobreza,
que faculta a que anunciemos com alarde: Dei, de Deus! Amam os filhos do rei levar
consigo o título esplendoroso de sua terra: de França, de Navarra, de Sabóia... Com a
graça divina, somos mais que de terra, somos de Deus! Essa é a essência acrescentada
que infunde Deus em nós e se torna como que a alma de nossa alma.
Mas, prosseguia São Tomás, não tem a Providência menos suavidade com o
sobrenatural do que com a natureza; por conseguinte, deve ela nos comunicar novas
faculdades e novas operações. Assim, o organismo divino compreende este conjunto
harmonioso: na base a graça santificante; após, as virtudes teologais, que nos capacita a
alcançar ao próprio Deus; após, as virtudes morais infusas e suas incontáveis
ramificações que nos enlaçam e devem governar nas condições normais da vida
humana; após, os dons do Espírito Santo, que são uns germens de heroísmo e nos
submete à direção do celeste Paráclito9. Coroam-se os dons com atos excelentes que se
chamam frutos do Espírito Santo, e por outras obras mais perfeitas que se
chamam beatitudes evangélicas. Insiste o Santo Doutor nessa distinção: os frutos são
atos virtuosos em que o justo experimenta deleite espiritual, já as beatitudes designam
as obras perfeitas que aperfeiçoam os trabalhos da santidade10.
Não nos basta possuir os dons divinos, pois quiséramos possuir a pessoa
mesma de Deus. Pois bem!, está feito: pela graça habita toda a Trindade em nós – “Per
gratiam tota Trinitas inhabitat in nobis11.” Com efeito a graça consagra nossa alma
com unção invisível e nela erige um templo agradável a Deus. Ora, que é a igreja senão
onde Deus fez morada? Se verdadeiramente somos templo, é mister que a divindade
esteja nele, substancialmente presente, como estão presentes o corpo e o sangue de
Nosso Senhor no Tabernáculo do altar. Ademais, a graça estabelece entre Deus e nós,
por meio da caridade, uma amizade perfeita que, para ser gozada com plenitude, requer
a união real dos amigos. Se padece a amizade humana da humana enfermidade, já a
divina tem a seu serviço um poder infinito, tanto que desejá-la já é gozá-la – Deus está
na alma, a alma está em Deus! Não obstante ser a habitação de três pessoas, quem se
apropria dela é o Espírito Santo, porque essa morada é dom e obra de amor, o que
confere certa afinidade com o que é próprio à terceira pessoa.
Eis os dois elementos que para São Tomás e sua escola caracterizam o estado
místico: um conhecimento superior de Deus e das coisas de Deus – conhecimento
eminente que não se pode dar a si o homem, embora não seja miraculoso; e um amor
intenso que nossos esforços não provocam e que o mesmo Espírito Santo nos comunica
num impulso onipotente. São esses os dois caracteres fundamentais, o mais é
acessório18. Que tenha o homem alegrias e consolações ou provações, visões e êxtases,
que experimente n’alma ou no corpo fenômenos miraculosos – é tudo secundário, pois é
esse o sobrenatural modal, supernaturale quoad modum, e não o sobrenatural
essencial, supernaturale quoad essentiam, que é a participação na vida de Deus pelos
liames do conhecimento e do amor.
Para o Aquinate não requer necessariamente a contemplação, tanto quanto a
profecia, idéias infusas. Distingue o Santo Doutor a impressão ou influência da luz
divina, impressio vel influentia luminis, e a infusão de idéias novas. Pode penetrar a luz
do alto até ao fundo dos dados adquiridos e esclarecê-los de tal modo que passem a
representar o sobrenatural, sem que tenha Deus infundido outras idéias. Decerto o
Senhor Soberano das inteligências é capaz de produzir diretamente no espírito as
espécies inteligíveis, como fê-lo para a alma de Nosso Senhor e pensamos que também
para a da Virgem Maria19, e a de certos santos favorecidos com visões intelectuais –
mas essa não passa por lei fundamental. Aqui usa Deus de dois modos: ou imprime as
idéias ou tão-só dispõe e arranja as representações existentes e as eleva por via de
iluminação: “Quandoque quidem fit per solam luminis influentiam, quandoque autem
etiam pe species de novo impressas vel aliter ordinatas20.”
Pertence o sacerdócio à essência da Igreja, porque sem ele não existiria o triplo
organismo que constitui o corpo da Igreja: o magistério visível para o ensino das
verdades sobrenaturais, o ministério visível para a santificação das almas confiadas aos
sacerdotes e o governo visível que pertence à sagrada hierarquia.
Não pertence o estado religioso simples à essência da Igreja, pois não compõe
ele o organismo fundamental, mas à integridade Dela, pois Lhe faz resplender a auréola
de perfeição e santidade. Sejamos desta ordem ou daquela particular congregação,
estamos certos de que o estado religioso há de durar tanto quanto a Igreja e há de ajudar
os crentes a dizer e cantar: Credo sanctum Ecclesiam.
Mas cumpre acrescentar com São Tomás que os bispos pertencem a um estado
de perfeição superior ao dos religiosos. Assim como o professo deve tender à perfeição,
assim deve o bispo exercer os atos perfeitos e praticar a caridade permanentemente,
devotando-se ao rebanho até ao ponto de lhe dar o supremo testemunho do sangue, se
preciso for: Bonus pastor ponit animam suam pro ovibus suis26.
Cada vez que a Igreja alça um de seus filhos aos altares, exige ela que tenham
eles praticado as virtudes em grau heróico; ao pagarem o tributo do heroísmo como
pagaram os mártires o tributo do sangue, chegam os servos de Deus às honras da
beatificação e da canonização. Dissemos que os justos trazem consigo, junto com os
dons do Espírito Santo, os germens do heroísmo, que no justo estão como o som na lira
e a flor na planta. É mister conhecer esta doutrina consoladora: quais sejam as misérias,
somos capazes de vibrar ou florescer, conquanto conservemos os dons do Espírito
Santo, aos quais remete São Tomás a virtude heróica ou divina: “Superexcellentiori
virtuti quam Philosophus vocat heroicam vel divinam, quae secundum nos videtur
pertinere ad dina Spiritus Sancti29.”
Ao receber a graça santificante com o cortejo das virtudes e dos dons, gozam
os justos a habitação do Espírito Santo; dispõe essa habitação – que comporta a amizade
perfeita – à vida mística, que é o coroamento da vida espiritual.
Ademais, podemos admirar na vida e nos escritos de São Tomás o fato de que
não era ele tão-só doutor em mística, mas místico perfeito, em que encontramos as duas
características essenciais analisadas acima: o conhecimento eminente recebido das
alturas: “Dicere solebat, conta-nos seu biógrafo, quidquid sciret non tam Studio aut
labore suo se peperisse quam divinatus traditum accepisse.”; resplandece a caridade
ardente nas efusões ante o crucifixo que se digna a lhe falar, na terna devoção ao
Sacratíssimo Sacramento e na união permanente com Deus, ao ponto de que estava
sempre reptado em êxtase, como se já assistisse aos mistérios da eternidade: “Raptus
videbatur interesse mysteriis”.
Atualmente nos é fácil contemplar em conjunto esta síntese tomista que vimos
de expor pela rama.
***
Tradução: Permanência.
Tradução: Permanência
Fonte: De Sanctificatione sacerdotum, secundum nostri temporis exigentias.
[Romae] Angelicum [1946]. 168 p., capítulo I.
1. 1.Sobre esta dificuldade, ver Suma Teológica IIa IIae, q. 184, a. 3 ad
1.
2. 2.Ibidem.
3. 3.IIa IIae, q. 184, a. 3, argumento “em contrário” e corpo do artigo.
4. 4.IIa IIae, q. 186, a. 2 ad 2.
5. 5.IIa IIae q. 24, a. 9.
6. 6.S. Tomás, Comentário à Epístola aos Efésios, 4, 6.
7. 7.IIa IIae, q. 184, a. 3 ad 2.
8. 8.Barthier, op. cit., I, 317.
9. 9.IIa IIae, q. 184, a. 3.
10. 10.Barthier, I, 279 sq.
11. 11.IIa IIae, q. 184, a. 2.
12. 12.Comm. supra Ep. I ad Phil. c. III, lect. 2 S.
13. 13.Barthier, I, 281; Santo Tomas in Ep. ad Hebr. c. VII lect. 1
14. 14.IIII, q. 184, a. 3.
15. 15.III, q. 68, a. 2
16. 16.Barthier, II, 219.
17. 17.Cfr. III, q. 108, a. 4 ad 1.
18. 18.Ep. ad Hebr X, 25.
19. 19.II-II, 183, 3
20. 20.Ia IIae, q. 108, a. 4.
Em muitas ocasiões, já o notamos, Jesus repete: “Aquele que crê em mim tem
a vida eterna” 2. Não somente ele vai tê-la mais tarde, mas, num sentido, já a tem,
porque a vida da graça é a vida eterna começada.
É, com efeito, a mesma vida em seu fundo, como o germe que está num fruto
de carvalho tem a mesma vida que o carvalho desenvolvido; como a alma espiritual da
criança pequena é a mesma que, um dia, desabrochará no homem feito.
No fundo, é a mesma vida divina, que está em germe no cristão aqui em baixo,
e que está plenamente desabrochada nos santos do céu, que são verdadeiros viventes da
vida da eternidade.
A graça santificante e a caridade, que nos unem a Deus em sua vida íntima,
são, com efeito, muito superiores às graças gratis datae e extraordinárias, como a
profecia e o dom das línguas, que são apenas sinais da intervenção divina e que por si
mesmos não nos unem intimamente a Deus. São Paulo o afirma muito claramente3, e
São Tomás o explica muitíssimo bem4.
***
Com efeito, como a graça santificante é, de si, ordenada à vida eterna, ela
também é ordenada a uma disposição próxima para receber a luz da glória logo após a
morte, sem passar pelo purgatório. Porque o purgatório é uma pena que supõe uma
falta que podia ter sido evitada, e uma insatisfação insuficiente, que podia ter sido
completa, se tivéssemos aceitado melhor as penas da vida presente. É certo, com efeito,
que alguém só será retido no purgatório pelas faltas que podia ter evitado ou pela
negligência em repará-las. Normalmente, deveria ter feito seu purgatório nesta
vida, tendo mérito, crescendo no amor, ao invés de fazê-lo depois da morte, sem ter
mérito.
Deste ponto de vista, para fazer compreender o que deve ser a vida interior,
convém compará-la com a conversa íntima que cada um de nós tem consigo mesmo.
Sob a influência da graça, se formos fiéis, essa conversa íntima tende a se elevar, a se
transformar e se tornar uma conversa com Deus. Eis aí uma observação elementar; mas
as verdades mais vitais e mais profundas são as verdades elementares em que se pensou
durante muito tempo, das quais se vive, e que acabam por tornar-se objeto de
contemplação quase contínua.
***
São Paulo diz (1 Cor 2, 11): “Pois quem dentre os homens conhece as coisas
do homem senão o espírito do homem que nele reside? Assim também as que são
de Deus ninguém as conhece senão o Espírito de Deus.”
Ele escreve aos Romanos (7, 21): “Encontro, pois, em mim esta lei: quando
quero fazer o bem, apresenta-se em mim o mal. Deleito-me na lei de Deus, segundo o
homem interior. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu
espírito.”
***
À luz dessas palavras inspiradas, que lembram tudo o que Jesus, pregando as
Beatitudes, nos prometeu e tudo o que Ele nos deu morrendo por nós, podemos definir
a vida interior:
A vida interior torna-se, assim, cada vez mais uma conversa com Deus, em que
pouco a pouco o homem se desprende do egoísmo, do amor-próprio, da sensualidade,
do orgulho.
Sto. Tomás insistiu muitas vezes neste ponto. Ele o fez particularmente em dois
capítulos importantes da Contra Gentes, 1, c. XXI, XXII, sobre os efeitos e os sinais da
habitação da Santíssima Trindade em nós.
Sejamos daqueles que O procuram, a quem está dito: “Tu não me procurarias
se já não me tivesses encontrado.”
Para melhor compreender como devemos viver o dia a dia, com confiança em
Deus, com abandono, é preciso estarmos atentos ao dever do momento presente e à
graça que nos é oferecida para realiza-la. Falaremos primeiramente do dever que se
apresenta a cada minuto, tal como os santos o compreenderam, e esclareceremos depois
a conduta destes santos pelo ensinamento da Escritura e da teologia, ensino que se
dirige a todos nós.
A Escritura diz em diversos lugares: O Senhor é quem tira a vida e a dá, leva à
habitação dos mortos e trás de volta2.
Quanto mais a ação divina faz morrer para o pecado e suas conseqüências,
mais separa de tudo o que não é Deus, mais ela vivifica. Alguém disse que a graça é, às
vezes, um carrasco, e no entanto, na obra que perfaz em nós, longe de destruir a
natureza naquilo que ela tem de bom, a aperfeiçoa, a restaura e a eleva. Dela pode-se
dizer o que se diz de Deus: mortifica e vivifica.
Além disso, o que melhor nos ensina é o que acontece conosco em particular a
cada momento, segundo o que quis ou permitiu a Providência divina. É aí que
encontramos a manifestação da vontade divina que nos diz respeito, para o momento
presente. E é aí que se forma em nós o conhecimento experimental da conduta de Deus
em relação a nós, conhecimento sem o qual não saberemos nos dirigir nas coisas
espirituais, nem fazer aos outros um bem profundo4.
Porque tendo a fonte tão próxima, vos fatigais a correr atrás dos riachos?... O
amor desconhecido! Parece que vossas maravilhas se acabaram e que só se pode copiar
vossas obras antigas, citar vossos discursos passados. Não se percebe que vossa ação
inesgotável, é uma fonte infinita de novos pensamentos, de novos sofrimentos, de novas
ações... de novos santos...” O Coração de Jesus é uma “fornalha de graças sempre
novas”.
Os santos de cada época não têm necessidade de copiar a vida nem os escritos
daqueles que os precederam, mas sim de viver em perpétuo abandono aos segredos e
inspirações de Deus; nisto é que imitam todos os que os antecederam, apesar da
diversidade das circunstâncias de cada época e de cada vida individual.
O momento presente, se soubéssemos ver nele a luz divina que contém, nos
lembraria de que tudo pode ser meio, instrumento ou ao menos ocasião de progresso
espiritual no amor de Deus a modo de provação ou de contraste. O momento presente,
segundo a ordem querida pela Providência divina, tem relação com nosso fim último,
com o único necessário: assim, cada instante do tempo que se escoa tem relação com o
instante único da imobilidade eterna.
São Paulo escreveu na I Epístola aos Coríntios, X, 31: “Ou comais ou bebais,
ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus”. — Também em
Colossenses, III, 17: “Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em
nome do Senhor Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai”.
Nosso Senhor disse, como conta São Mateus, XII, 34: “A boca fala da
abundância do coração. O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração;
e o mau tira coisas más do mau tesouro. Ora, eu digo-vos que, de qualquer palavra
ociosa que disseram, os homens darão conta no dia do Juízo”.
Santo Tomás mostra todo o sentido e o alcance desta doutrina quando ensina
(Ia IIae, q. 18, a. 9) que não há ato deliberado que, concretamente considerado, “hic e
nunc”, seja moralmente indiferente; cada um de nossos atos deliberados é ou bom ou
mau. Por quê? Porque todo ato deliberado de um ser inteligente deve ser racional ou
ordenado a um fim bom, bom em si mesmo; e todo ato deliberado de um cristão deve
ser ordenado, ao menos virtualmente, a Deus. Se for assim, será um ato bom; se não for
assim, será um ato mau. Não há meio termo. Mesmo nossas recreações, nossos
divertimentos, nossos passeios devem ter um fim bom em si. É verdade que ir passear,
considerado abstratamente, é indiferente. Também pode ser indiferente ir passear aqui
ou ali, mas o passeio deve ter um fim racional, como por exemplo, o de reparar nossas
forças, para retomarmos depois o trabalho que devemos realizar. Por isso mesmo, os
divertimentos têm um sentido moral e um valor próprio na vida do ser racional.
À primeira vista, esta doutrina parece muito rígida. Mas não é: basta uma
intenção virtual ou implícita, renovada pela manhã no momento da oração, e também
cada vez que o Espírito Santo nos faz elevar nossos corações para Deus.
Esta é, muito pelo contrário, uma doutrina consoladora, pois, segue-se daí,
que na vida do justo, todo ato deliberado é bom e meritório, seja fácil ou difícil,
pequeno ou grande.
São Francisco de Sales resumiu toda esta doutrina nestas poucas palavras:
“Cada momento que chega até nós encerra em si uma ordem de Deus, e irá mergulhar
na eternidade, permanecendo para sempre aquilo que dele fizemos”.
Por outro lado, por vezes se encontra no estudo o deleitamento natural, que
poderia ser ordenado a Deus, em espírito de fé viva, mas que não raro permanece
puramente natural, sem qualquer fruto para a alma religiosa.
Santo Tomás fala desses dois desvios na IIa IIae, q. 166, onde trata da virtude
da estudiosidade ou da aplicação aos estudos, que deve ser governada pela caridade,
contra a curiosidade desordenada e contra a preguiça, a fim de que se estude o
que convém, como convém, quando e onde convém e, sobretudo, para que se estude
com o espírito e o fim mais apropriado para melhor conhecer o próprio Deus e para a
salvação das almas.
Mas, para evitar os defeitos acima, opostos um ao outro, é bom lembrar-se
de como nosso estudo intelectual pode ser santificado, considerando, em primeiro lugar,
o que recebe a vida anterior do estudo retamente ordenado; em seguida, e por outro
lado, o que o estudo da Sagrada Teologia pode cada vez mais receber da vida interior.
Na união destas duas atividades de nossa vida, verifica-se o princípio: "Causae ad
invicem sunt causae, sed in diverso genere"; há entre elas uma relação de mútua
causalidade e de prioridade verdadeiramente admirável.
Ao contrário, nossa vida interior deve estar fundada na verdade divina. Isto, de
certo, já ocorre pela própria fé infusa, fundada na autoridade de Deus que a revela. Mas
o estudo bem ordenado em muito ajuda à bem conhecer em que propriamente consistem
as verdades da fé, independentemente de nossas disposição subjetivas. O estudo ajuda
sobretudo a formar uma reta noção sobre as perfeições de Deus, sobre Sua bondade,
misericórdia, amor, justiça e ainda sobre as virtudes infusas, sobre a verdadeira
humildade, religião e caridade, não permitindo a mistura de emoções não fundadas na
verdade. Por essa razão, Santa Teresa, como a própria afirma em seu Livro da Vida,
capítulo 13, muito recebeu das conferências dos bons teólogos, para que não se
desviasse da senda da verdade nas enormes dificuldades.
Nosso estudo bem orientado liberta nossa vida interior, não apenas do
subjetivismo, mas também do particularismo, que provém do influxo excessivo de
certas idéias, particulares de algum tempo ou região, que após uns trinta anos já se
mostrarão obsoletas. Em tempos passados, prevaleceram certas idéias ou filosofias que
hoje já não agradam; assim ocorre a cada geração; surgem sucessivas opiniões e
admirações que passam com a figura do mundo, enquanto permanece a palavra de Deus,
da qual o justo deve viver.
A vida interior, portanto, é pelo estudo preservada de muitos desvios, para que
permaneça objetiva, e verdadeiramente fundada na doutrina que sempre e em toda parte
se transmitiu. Mas há, por outro lado, um influxo da vida interior no estudo da Sacra
Teologia.
Não raro este estudo fica sem vida, quer na parte positiva, quer na especulativa
e abstrata. Muitas vezes falta nele o espírito alto e o influxo das virtudes teologais e dos
dons da inteligência e da sabedoria. Por conseqüência, o saber teológico muitas vezes
não é aquela "ciência saboreada" da qual fala Santo Tomás na primeira questão da
Suma Teológica.
Não raro nossa mente estaciona nas próprias fórmulas dogmáticas, na sua
análise conceitual, nas conclusões deduzidas, e não costuma, por essas
fórmulas, penetrar no mistério da fé, para saboreá-lo espiritualmente e para dele viver.
Convém dizer isto porque muitos santos que não puderam fazer tantos estudos
como nós, penetraram muito mais profundamente nestes mistérios da fé. Assim, São
Francisco de Assis, Santa Catarina de Sena, São Bento-José Labré e muitos outros que
certamente não fizeram de modo abstrato e especulativo a análise conceitual dos
dogmas da Encarnação, da Redenção, da Eucaristia, nem deduziram as conclusões
teológicas que conhecemos e que, no entanto, mais profundamente e com santo realismo
tiraram destes mistérios vida abundante.
Pelas fórmulas, atingiram a própria realidade divina vitalmente nas sombras da
fé. Como diz Santo Tomás (IIa IIae, q. 1, a. 2 ad 2m): "O Ato do que crê não se termina
no enunciável, mas na coisa", no mistério revelado.
Mesmo sem a grande graça da contemplação, muitos ótimos cristãos, pela via
da humildade e da abnegação, penetram, à seu modo, na profundidade destes mistérios.
E se isto se verifica nestes ótimos fiéis, por mais forte razão deve se verificar
nos religiosos e sacerdotes que verdadeiramente compreenderam a grandeza de sua
vocação. A cada dia, os sacerdotes devem celebrar o santo sacrifício com fé mais firme,
esperança mais viva e caridade mais ardente, para que sua comunhão eucarística seja,
quase todo dia, mais substancialmente fervente, e para que sua caridade não apenas se
conserve, mas cresça cada vez mais.
Muito a propósito, diz Santo Tomás no seu Comentário a Epístola aos Hebreus,
X, 25: "O movimento natural, quando mais se aproxima do fim, mais se acelera. É o
contrário do movimento violento (p. ex., uma pedra lançada para o alto). Ora, a graça
nos inclina como uma segunda natureza. Portanto (assim como a velocidade da pedra
que cai é crescente) aqueles que estão na graça, quanto mais se aproximam do fim,
tanto mais devem crescer", pois quanto mais se aproximam de Deus, mais são por Ele
movidos ou atraídos, assim como a pedra que cai é atraída pelo centro da terra.
Quando um sacerdote tem uma grande e sólida vida interior, sua teologia
sempre se torna mais vívida. E depois que este teólogo tiver descido da fé para estudar
pontos particulares da teologia, desejará retornar à fonte, ou seja, subir da teologia,
estudada em pontos particulares, para o alto cume da fé. O teólogo é como o homem
que nasceu em um monte (Monte Cassino, por exemplo) e depois desceu para o vale
para conhecer com exatidão suas particularidades; por fim, este homem quis retornar
para o seu alto monte para contemplar do alto todo o vale com um só olhar.
Existem homens que amam mais as planícies, outros, com efeito, mais amam
os montes; "mirabilis Deus in altis suis" [Sl 92, 2]
Deste modo, deve o bom teólogo respirar diariamente o ar dos montes e nutrir
a si mesmo do Símbolo dos Apóstolos e, ao final das missas, do Prólogo do Evangelho
de S. João, que é como uma síntese de toda a revelação cristã. Deve igualmente viver
todo dia, de modo mais elevado, do Pai Nosso, das beatitudes evangélicas e de todo o
Sermão da Montanha, que é como uma síntese de toda a ética cristã em sua admirável
elevação.
Quando a alma do sacerdote é, como convém, uma alma de oração, então ela é
inclinada, desde a sua vida interior, a procurar na teologia, ora dogmática, ora
moral, aquilo que é mais vívido e fecundo. Então, com efeito, sob o influxo dos dons da
inteligência e da sabedoria, a fé se torna mais penetrante e saborosa.
Igualmente, para dar outro exemplo, com o progresso da vida interior, torna-se
cada vez mais evidente a profundidade do tratado sobre a Encarnação redentora e,
sobretudo, os motivos da Encarnação do Filho de Deus, "O qual, por amor de nós, os
homens, e para nossa salvação, desceu dos Céus".
E não podemos chegar a esta plena perfeição da vida cristã sem vivermos
profundamente dos mistérios da Encarnação redentora e da Eucaristia, sem penetrar
neles e sem os saborear pela fé ilustrada pelos dons de inteligência e sabedoria. Para
isto, é de grande ajuda, com efeito, o estudo da teologia, desde que retamente ordenada,
não à nossa satisfação, mas ao maior conhecimento de Deus e à salvação das almas.
(Extr. de "De Deo Uno", Desclée de Brouwer et Cie, Paris pp. 30-34.
Tradução: PERMANÊNCIA)
Invocamos a Santíssima Trindade cada vez que fazemos o sinal da cruz, que
dizemos o Glória, o Credo. Estas são as primeiras palavras religiosas que são
pronunciadas sobre nós ao batismo, estas serão as derradeiras que nos prepararão para
passar à vida eterna.
Deus, que é o Soberano Bem, deve portanto ser soberanamente difusivo de Si,
pois a bondade é essencialmente comunicativa.
Ele, que é o princípio eminente de todas as coisas, o centro de onde sai a vida
da criação, contenta-se em dar o ser à pedra, a vida vegetativa à planta, a sensitiva ao
animal, a inteligência ao homem? Contenta-se em dar e conservar aos justos a graça,
participação de sua vida íntima?
Por que Deus não poderia comunicar além de uma participação de sua vida
íntima, toda a sua vida, toda a sua natureza infinita? Por que isto seria impossível, se o
bem é essencialmente comunicativo, e tanto mais abundante e intimamente quanto seja
de ordem mais elevada? Quem pode indicar um limite para a difusão que o Soberano
Bem pode fazer de Si mesmo?
Nossa razão e mesmo a inteligência natural do anjo mais excelso, deixadas a si,
não poderiam responder com certeza a esta questão. Não poderiam provar a
possibilidade da Trindade, menos ainda sua existência. Este mistério ultrapassa a esfera
do demonstrável ou o alcance dos princípios de nossa razão.
Mas, a Revelação divina, já no Antigo Testamento, nos fez conhecer que Deus
é Pai e que Ele diz, no instante único da imóvel eternidade: Filius meus es tu. Ego hodie
genui te. Tu es Meu filho, hoje Te engendrei 1. O prólogo de São João nos diz: No inicio
era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus 2. Ninguém jamais viu a
Deus, mas o Filho unigênito que está no seio do Pai é quem no-lo revelou 3. O próprio
Filho prometeu-nos o Espírito Santo, no-lo enviou em Pentecostes, e fomos batizados
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Por pobre que seja em nós a concepção intelectual, ela nos permite, porém,
entrever de longe, à luz da Revelação, a geração intelectual que está em Deus.
***
Porém, como nossa alma, após ter conhecido a verdade, doa-se através de um
élan do amor que tende a repousar no bem verdadeiro, assim o Pai e o Filho, por seu
mútuo amor, são o princípio do Espírito Santo, a quem comunicam toda a natureza
divina, sem a dividir, nem multiplicá-la, tão perfeitamente que não é mais perfeito ser o
princípio desta processão ou seu termo. Assim, ainda no caso do triângulo eqüilátero, o
terceiro ângulo, que procede dos dois primeiros, recebe toda sua superfície e é-lhes
perfeitamente igual.
A amizade inefável das duas primeiras pessoas tem pois um termo, assim como
o pensamento do Pai possui um termo. Este termo do amor é substancial, assim como o
Verbo, termo da concepção; ele é vivo, inteligente e amante como o Verbo, e como ele
é uma Pessoa, espírito das duas primeiras, seu vínculo, o Espírito Santo: como o Pai
pode entreter-se com Seu Verbo, ambos podem se entreterem com o Espírito de amor.
Eis a fecundidade infinita da vida de Deus desde toda eternidade antes da criação. É a
mais absoluta difusão de Si; e, como o dom do Pai a seu Filho é soberanamente perfeito,
o Filho é tão perfeito quanto o Pai e, pela mesma razão, o Espírito Santo lhes é igual 6.
O Espírito Santo não se distingue das duas primeiras pessoas, a não ser porque
procede delas. Fora destas oposições de relações mútuas, tudo lhes é comum e
indivisível. Esta é a mais íntima comunhão: a consubstancialidade, que acarreta a
unidade de pensamento e de amor.
Temos disso um vestígio longínquo, porém ainda real, no símbolo do triangulo
eqüilátero que não é suficientemente conhecido. Os três ângulos, embora possuindo a
mesma superfície, são realmente distintos uns dos outros; eles são iguais; são
essencialmente relativos uns aos outros e qualquer um dos três é tão grande quanto os
três reunidos. Entre eles há uma ordem de origem, mas não prioridade de causalidade;
do primeiro traçado procedem os outros sem que sejam causados por ele; ele
lhes comunica sua própria superfície já existente, e eles não são em nada menos
perfeitos que aquele.
Quanto mais nossa alma cresce na vida divina da graça, mais ela é
uma imagem viva da Santíssima Trindade. No começo de nossa existência, o egoísmo
faz que nós pensemos sobretudo em nós mesmos e que nos amemos referindo tudo a
nós; porém, se somos dóceis às inspirações do Alto, virá um dia em que pensaremos
sobretudo, não em nós mesmos mas em Deus e em que, a propósito de todas as coisas
agradáveis ou desagradáveis, nós o amaremos mais que a nós e desejaremos levar
constantemente as almas para Ele.
Roma, Angélico.
Santo Tomás, no final de seu tratado sobre a Santíssima Trindade, fala-nos das
missões divinas e da habitação das três Pessoas Divinas em toda alma justa. Ele dá-nos
uma certa inteligência deste mistério recordando-nos que Deus está sempre presente em
todas as coisas, especificando de qual maneira especial está realmente nos justos e quais
são os efeitos de Sua ação neles.
A Santa Escritura não nos fala somente desta presença geral de Deus em todas
as coisas, mas também duma presença especial de Deus nos justos. É dito no Antigo
Testamento, no livro da Sabedoria I, 4: A sabedoria divina não entrará numa alma
maligna, não habitará num corpo sujeito ao pecado. Seria somente a graça criada ou o
dom criado da sabedoria, que viria habitar na alma do justo?
As palavras de Nosso Senhor nos trazem uma nova luz e nos mostram que são
as próprias pessoas divinas que vêm habitar em nós: Se alguém me ama, diz, ele
observará minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele Nossa
morada (Jo 14, 23). Ao mesmo tempo Nosso Senhor promete enviar-nos o Espírito
Santo (Ibid., 26). Segundo estas palavras, quem virá? Seriam somente os efeitos criados,
a graça santificante, a caridade espalhada nos nossos corações? Não. Estes que vêm são
Aqueles que amam: Meu Pai e eu viremos a ele, e não duma maneira transitória,
mas faremos nele Nossa morada. Rogarei a meu Pai e ele vos dará um outro
consolador, para que habite em vós para sempre, o Espírito da verdade... que vos
ensinará todas as coisas e vos lembrará tudo o que eu vos disse. (Ibid., 16-26) Estas
palavras não são ditas somente aos apóstolos — eles verificaram-nas em si, no dia de
Pentecostes, que é renovado em nós pela Confirmação.
São Paulo diz o mesmo (Rm 5, 5). Enquanto a alma permanecer em estado de
graça, enquanto conservar a caridade, ela será o templo do Espírito Santo.
Em várias ocasiões, São Paulo volta a esta doutrina consoladora: Não sabeis
vós que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus em vós habita? (1 Cor 3, 16; 6,
19). Esta presença especial das três Pessoas Divinas é especialmente apropriada ao
Espírito Santo, porque ela depende da caridade — a qual nos assimila a Ele mais que ao
Pai e ao Filho, pois que Ele é o amor pessoal. Elas estão também em nós, segundo o
testemunho de Jesus, mas nós não lhes seremos perfeitamente assimilados senão
recebendo a luz da glória, que nos fará marcados pela semelhança do Verbo, que é o
esplendor do Pai. De modo equivalente fala Leão XIII em sua encíclica sobre o Espírito
Santo: “Divinum illud munus” de 9 de maio de 1897.
A Escritura ensina portanto mui explicitamente que as três Pessoas Divinas
habitam em toda alma justa, em toda alma em estado de graça. A tradição, pela voz dos
primeiros mártires, pela voz dos Padres, pelo ensino oficial da Igreja mostra, por outro
lado, que é deste modo que é preciso compreender o que diz a Escritura. 1
Ao contrário, o justo tem com Deus uma união não-substâncial, mas acidental e
moral. Em outros termos, é uma união pelo conhecimento e o amor. Contudo, esta união
é real, pois as Pessoas Divinas estão presentes no justo não só por um efeito de sua
operação, como o sol está presente sobre a terra pela luz e pelo calor que lhe envia; as
próprias Pessoas Divinas estão realmente e substancialmente presentes na alma justa
(sem lhe estar substancialmente unida como o Verbo à humanidade de Jesus). Os
teólogos normalmente dizem: “solus Deus illabitus animae”, Deus está realmente
presente na alma justa, mais intima que ela mesma, como o princípio íntimo de sua vida
interior.
Eis porque não devemos dizer que o Espírito Santo é, propriamente falando, “a
alma de nossa alma, a vida de nossa vida”, mas que é, por assim dizer, “como a alma de
nossa alma, como a vida de nossa vida”. Ele não é, de fato, o constitutivo formal dela,
mas, com o Pai e o Filho, é causa eficiente de nossa santificação, pois produz, conserva
e aumenta em nós a graça santificante e a caridade. Além disso, é a causa exemplar
dela, pois a caridade criada é uma similitude participada da caridade incriada3. Também
é o seu fim último atraindo a si soberanamente, está em nós, junto com o Pai e o Filho,
como um objeto quase experimentalmente conhecível e às vezes efetivamente
conhecido, e amado acima de tudo.
Uma vez que o Espírito Santo habita em nós e nos concede, com a caridade, os
sete dons, que estão em nós como em um barco com velas dóceis à impulsão do vento
favorável, devemos ter uma grande docilidade com relação ao Espírito Santo. Isto supõe
primeiramente o silencio em nossa alma, para que as inspirações divinas, ainda latentes,
não passem desapercebidas; é preciso silenciar as paixões mais ou menos desregradas,
as de afeições naturais, da ambição; silencio que supõe a mortificação de tudo o que há
em nós de desordenado.
Muitos vão muito lentamente e tornam-se almas atrasadas; não são mais
iniciantes, e tampouco progridem. Estas almas são, na vida espiritual, como crianças
anormais que não cresceram, e que se tornam um tanto disformes, como anões.
Como uma alma torna-se atrasada? Isso ocorre-lhe sobretudo pela negligencia
às pequenas coisas na pratica das virtudes e da piedade. Cessamos de ver o lado
grandioso das pequenas coisas no serviço de Deus e nos dispomos assim a ver só os
pequenos aspectos das grandes coisas, como a missa, a palavra de Deus, a teologia, o
ministério apostólico; dispomo-nos a enxergar somente o que é exterior. A capacidade
de julgamento decai com a vida. As pequenas coisas do serviço de Deus são pequenas
em si mesmas, mas grandes pelo fim ao qual são ordenadas e pelo espírito de fé e de
amor com o qual seria preciso cumprir-las; seriam então observadas espontaneamente,
sem precisar refletir sobre elas, como o pianista que toca bem cada nota de seu piano.
Estas pequenas coisas são a oração antes e depois do estudo, antes e depois das
refeições, a prática atenta até aos detalhes das virtudes da humildade, da paciência, da
doçura, da polidez. Em si é pouca coisa, como os cílios ou sobrancelhas de uma
fisionomia humana, que, entretanto, sem eles estaria desfigurada. Como diz Santo
Agostinho: “Minimum quidem minimum est, sed semper servare legem Dei etiam in
minimis, hoc quidem maximum est”. Aquele que é fiel nas pequenas coisas dispõe-se a
ser fiel nas grandes quando estas lhe são pedidas: Qui fidelis est in mínimo, et in majori
fidelis est. (Lc 16, 10). Assim mantém-se uma união não só habitual, mas atual com
Deus, duma maneira quase continua e, por aí, fiel à graça do momento presente e às
inspirações que ela contém.
Uma alma torna-se atrasada também pela recusa dos sacrifícios exigidos para
romper com uma afeição demasiado sensível, com o gosto de confortos, com uma certa
tendência à vaidade, ou à dominação. Tornamo-nos atrasados recusando seguir a
inspiração que nos levaria a ser mais esforçados, mais generosos no serviço de Deus,
mais atentos às necessidades da alma do próximo. Então, a vida decai cada vez mais, e o
julgamento com a vida, pois cada um julga segundo sua inclinação. É deste modo que
até mesmo almas consagradas podem se transformar em almas atrasadas; e então os
efeitos usuais da habitação da Santíssima Trindade nelas produzem-se cada vez menos.
***
É evidente que é preciso reagir, evitando a todo custo o defeito contrario que é
o da precipitação, pois então a reação seria totalmente superficial e de curta duração.
Evitemos a precipitação da criança que quer correr no começo de uma ascensão, e que,
fatigada ao final de dois quilômetros, renuncia à escalada. É necessário, como dissemos,
caminhar ao passo pequeno e resoluto do montanhês, que não se detém senão no cume.
Não se deve querer voar antes de ter asas, e não confundir o primeiro momento
de entusiasmo com o firme propósito de avançar custe o que custar. Nem confundir a
ordem da intenção, onde o fim entrevisto e desejado é o primeiro, com a ordem da
execução, onde o fim só é obtido e conquistado em último lugar, depois de se ter
empregado todos os meios, desde os menores até os mais elevados. Precisamos evitar o
sentimentalismo que está na sensibilidade, a afetação de um amor que não se tem, ou
não o bastante, na vontade. É preciso dar-se conta, com um realismo são, que existe
desde há muito tempo, tempo demais, no fundo de nossa vontade, como diz Tauler, uma
misteriosa luta, algumas vezes trágica, entre a caridade que tende a se enraizar e o
egoísmo que tende a renascer sempre como erva-daninha.
Veremos então se realizar pouco a pouco as conseqüências normais da
habitação da Santíssima Trindade em nós, aquelas notadas por Santo Tomás: (Suma
Contra Gentios. 1, IV, c. 21 e 22). Receberemos graças sempre novas de luz, de atração,
de amor, de generosidade, de força e de paciência; possuiremos cada vez mais a
presença de Deus, entreter-nos-emos constantemente com Ele, como Santo Domingos
que não sabia falar senão com Deus ou sobre Deus; encontraremos nesta conversação
íntima a paz, às vezes o júbilo, com o desejo de uma conformidade cada vez maior com
a vontade divina, e nesta conformidade desejada encontraremos a santa liberdade dos
filhos de Deus, porque a vontade divina reinará cada vez mais na nossa vontade, na
medida em que a caridade se enraizar mais profundamente nela. Compreenderemos,
então, cada vez melhor, que nossa vontade é de uma profundidade sem medida, já que
só Deus, visto face a face, pode saciá-la e atraí-la irresistivelmente.
Roma, Angélico.
Santo Tomás, no final de seu tratado sobre a Santíssima Trindade, fala-nos das
missões divinas e da habitação das três Pessoas Divinas em toda alma justa. Ele dá-nos
uma certa inteligência deste mistério recordando-nos que Deus está sempre presente em
todas as coisas, especificando de qual maneira especial está realmente nos justos e quais
são os efeitos de Sua ação neles.
A Santa Escritura não nos fala somente desta presença geral de Deus em todas
as coisas, mas também duma presença especial de Deus nos justos. É dito no Antigo
Testamento, no livro da Sabedoria I, 4: A sabedoria divina não entrará numa alma
maligna, não habitará num corpo sujeito ao pecado. Seria somente a graça criada ou o
dom criado da sabedoria, que viria habitar na alma do justo?
As palavras de Nosso Senhor nos trazem uma nova luz e nos mostram que são
as próprias pessoas divinas que vêm habitar em nós: Se alguém me ama, diz, ele
observará minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele Nossa
morada (Jo 14, 23). Ao mesmo tempo Nosso Senhor promete enviar-nos o Espírito
Santo (Ibid., 26). Segundo estas palavras, quem virá? Seriam somente os efeitos criados,
a graça santificante, a caridade espalhada nos nossos corações? Não. Estes que vêm são
Aqueles que amam: Meu Pai e eu viremos a ele, e não duma maneira transitória,
mas faremos nele Nossa morada. Rogarei a meu Pai e ele vos dará um outro
consolador, para que habite em vós para sempre, o Espírito da verdade... que vos
ensinará todas as coisas e vos lembrará tudo o que eu vos disse. (Ibid., 16-26) Estas
palavras não são ditas somente aos apóstolos — eles verificaram-nas em si, no dia de
Pentecostes, que é renovado em nós pela Confirmação.
Este testemunho do Salvador é claro, explicitando bastante o que diz o livro da
Sabedoria. São realmente as três Pessoas Divinas que vêm habitar de maneira
permanente nas almas justas.
São Paulo diz o mesmo (Rm 5, 5). Enquanto a alma permanecer em estado de
graça, enquanto conservar a caridade, ela será o templo do Espírito Santo.
Em várias ocasiões, São Paulo volta a esta doutrina consoladora: Não sabeis
vós que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus em vós habita? (1 Cor 3, 16; 6,
19). Esta presença especial das três Pessoas Divinas é especialmente apropriada ao
Espírito Santo, porque ela depende da caridade — a qual nos assimila a Ele mais que ao
Pai e ao Filho, pois que Ele é o amor pessoal. Elas estão também em nós, segundo o
testemunho de Jesus, mas nós não lhes seremos perfeitamente assimilados senão
recebendo a luz da glória, que nos fará marcados pela semelhança do Verbo, que é o
esplendor do Pai. De modo equivalente fala Leão XIII em sua encíclica sobre o Espírito
Santo: “Divinum illud munus” de 9 de maio de 1897.
Enfim, geralmente se ensina que o Espírito Santo santifica a alma justa, não
como causa formal, mas como causa eficiente e exemplar.
Eis porque não devemos dizer que o Espírito Santo é, propriamente falando, “a
alma de nossa alma, a vida de nossa vida”, mas que é, por assim dizer, “como a alma de
nossa alma, como a vida de nossa vida”. Ele não é, de fato, o constitutivo formal dela,
mas, com o Pai e o Filho, é causa eficiente de nossa santificação, pois produz, conserva
e aumenta em nós a graça santificante e a caridade. Além disso, é a causa exemplar
dela, pois a caridade criada é uma similitude participada da caridade incriada3. Também
é o seu fim último atraindo a si soberanamente, está em nós, junto com o Pai e o Filho,
como um objeto quase experimentalmente conhecível e às vezes efetivamente
conhecido, e amado acima de tudo.
Muitos vão muito lentamente e tornam-se almas atrasadas; não são mais
iniciantes, e tampouco progridem. Estas almas são, na vida espiritual, como crianças
anormais que não cresceram, e que se tornam um tanto disformes, como anões.
Como uma alma torna-se atrasada? Isso ocorre-lhe sobretudo pela negligencia
às pequenas coisas na pratica das virtudes e da piedade. Cessamos de ver o lado
grandioso das pequenas coisas no serviço de Deus e nos dispomos assim a ver só os
pequenos aspectos das grandes coisas, como a missa, a palavra de Deus, a teologia, o
ministério apostólico; dispomo-nos a enxergar somente o que é exterior. A capacidade
de julgamento decai com a vida. As pequenas coisas do serviço de Deus são pequenas
em si mesmas, mas grandes pelo fim ao qual são ordenadas e pelo espírito de fé e de
amor com o qual seria preciso cumprir-las; seriam então observadas espontaneamente,
sem precisar refletir sobre elas, como o pianista que toca bem cada nota de seu piano.
Estas pequenas coisas são a oração antes e depois do estudo, antes e depois das
refeições, a prática atenta até aos detalhes das virtudes da humildade, da paciência, da
doçura, da polidez. Em si é pouca coisa, como os cílios ou sobrancelhas de uma
fisionomia humana, que, entretanto, sem eles estaria desfigurada. Como diz Santo
Agostinho: “Minimum quidem minimum est, sed semper servare legem Dei etiam in
minimis, hoc quidem maximum est”. Aquele que é fiel nas pequenas coisas dispõe-se a
ser fiel nas grandes quando estas lhe são pedidas: Qui fidelis est in mínimo, et in majori
fidelis est. (Lc 16, 10). Assim mantém-se uma união não só habitual, mas atual com
Deus, duma maneira quase continua e, por aí, fiel à graça do momento presente e às
inspirações que ela contém.
Uma alma torna-se atrasada também pela recusa dos sacrifícios exigidos para
romper com uma afeição demasiado sensível, com o gosto de confortos, com uma certa
tendência à vaidade, ou à dominação. Tornamo-nos atrasados recusando seguir a
inspiração que nos levaria a ser mais esforçados, mais generosos no serviço de Deus,
mais atentos às necessidades da alma do próximo. Então, a vida decai cada vez mais, e o
julgamento com a vida, pois cada um julga segundo sua inclinação. É deste modo que
até mesmo almas consagradas podem se transformar em almas atrasadas; e então os
efeitos usuais da habitação da Santíssima Trindade nelas produzem-se cada vez menos.
***
É evidente que é preciso reagir, evitando a todo custo o defeito contrario que é
o da precipitação, pois então a reação seria totalmente superficial e de curta duração.
Evitemos a precipitação da criança que quer correr no começo de uma ascensão, e que,
fatigada ao final de dois quilômetros, renuncia à escalada. É necessário, como dissemos,
caminhar ao passo pequeno e resoluto do montanhês, que não se detém senão no cume.
Não se deve querer voar antes de ter asas, e não confundir o primeiro momento
de entusiasmo com o firme propósito de avançar custe o que custar. Nem confundir a
ordem da intenção, onde o fim entrevisto e desejado é o primeiro, com a ordem da
execução, onde o fim só é obtido e conquistado em último lugar, depois de se ter
empregado todos os meios, desde os menores até os mais elevados. Precisamos evitar o
sentimentalismo que está na sensibilidade, a afetação de um amor que não se tem, ou
não o bastante, na vontade. É preciso dar-se conta, com um realismo são, que existe
desde há muito tempo, tempo demais, no fundo de nossa vontade, como diz Tauler, uma
misteriosa luta, algumas vezes trágica, entre a caridade que tende a se enraizar e o
egoísmo que tende a renascer sempre como erva-daninha.
Roma, Angélico.
Nosso Senhor diz aos seus Apóstolos: Se vos não converterdes e vos não
tornardes como meninos, não entrareis no reino dos céus1. São Paulo acrescenta: o
Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus2, e nos
aconselha freqüentemente uma grande docilidade ao Espírito Santo. Esta docilidade se
encontra particularmente na via da infância espiritual, recomendada por muitos santos e,
ultimamente, por Santa Teresa do Menino Jesus. Esta via, tão fácil e proveitosa para a
vida interior, é muito pouco conhecida e seguida.
Por que pouco seguida? Porque muitos imaginam erroneamente que esta é uma
via especial, reservada às almas que se conservaram completamente puras e inocentes; e
outros, quando lhes falamos desta via, pensam em uma virtude pueril, uma espécie de
infantilidade, que não poderia lhes convir. Estas idéias são falsas. A via da infância
espiritual não é nem uma via especial nem uma via de puerilidade. A prova é que foi
Nosso Senhor, ele mesmo, quem a recomendou a todos, mesmo àqueles responsáveis
pelas almas, como os Apóstolos formados por Ele3.
***
Os moços e as moças, quando chegam à idade adulta, deixam seus pais para
viverem suas vidas; mais tarde, o homem de quarenta anos vem com bastante freqüência
visitar sua mãe, mas ele não depende dela como antes; é ele agora que a sustenta. Ao
contrário, o filho de Deus, ao crescer, se é fiel, torna-se mais e mais dependente de seu
Pai, até que nada faça sem ele, sem suas inspirações ou seus conselhos. Então, toda a
sua vida é banhada pela oração; é a melhor parte que não lhe será tirada. Santa
Teresinha de Lisieux o compreendeu assim6. Ela, após ter atravessado a noite do
espírito7, chegou desse modo à união transcendental nela.
***
Então, a alma simples, que tudo sempre considera com relação a Deus, acaba
por vê-lo nas pessoas e eventos; em tudo o que acontece, ela vê aquilo que é desejado
por Deus, ou, ao menos, que é permitido por ele para um bem superior.
HUMILDADE. Ao seguir esta via, a alma torna-se humilde. A criança tem
consciência de sua deficiência, ela depende de sua mãe para tudo, e pede
constantemente sua ajuda, ou se refugia perto dela à menor ameaça.
Do mesmo modo, o filho de Deus sente que, deixado a si mesmo, ele não é
nada; ele se lembra com freqüência das palavras de Jesus: Sem mim, não há nada que
possais fazer. E assim, ele tem uma necessidade instintiva de se esquecer de si mesmo,
de depender de Nosso Senhor, de se abandonar a Ele. A alma cessa de se estimar de
modo vão, de querer ocupar um lugar no espírito dos outros; ela desvia seu olhar de si
mesma.
Por causa disso, ela combate muito eficazmente o amor próprio. E, com o
sentimento de sua deficiência, ela experimenta a necessidade de se apoiar
constantemente em Nosso Senhor e de ser em tudo guiada e dirigida por ele. Ela se
lança em seus braços, como a criança nos braços de sua mãe. Por isso, o espírito de
oração se desenvolve muito nela.
FÉ. Assim como o filho crê sem hesitar e firmemente em tudo o que sua mãe
lhe diz, o filho de Deus, acima de todo raciocínio, de todo exame, baseia-se totalmente
na palavra de Nosso Senhor. “Jesus o disse”, seja por si mesmo, seja por sua Igreja, isto
é suficiente para que ele não tenha nenhuma dúvida em seu espírito.
Que se segue? Assim como a mãe fica feliz em poder instruir seu filho, tanto
mais quanto ele se mostrar atento, Nosso Senhor se compraz em manifestar a profunda
simplicidade dos mistérios da fé aos humildes que o escutam. Ele dizia: Eu te dou
graças, ó Pai, por ter escondido estas coisas dos prudentes e dos sábios e de as ter
revelado aos pequenos. A fé dessa alma torna-se então penetrante, saborosa,
contemplativa, radiante, prática, fonte de mil conselhos excelentes. O espírito da fé leva
a ver os mistérios revelados, as pessoas, os fatos como Deus os vê; vê-se Deus em tudo.
Mesmo que o Senhor permita a noite escura, a alma a atravessa segurando sua
mão, como o filho segura a mão de sua mãe, que a protege.
A CONFIANÇA torna-se, desde então, mais e mais firme, inteira. Por que? ...
porque ela repousa no amor de Deus por nós, em suas promessas, nos méritos infinitos
de Nosso Senhor.
Como a criança está segura de sua mãe, porque se sabe amada por ela, a alma
de que falamos está segura de Deus. Ela não pode duvidar de sua fidelidade em manter
suas promessas: pedi e recebereis. Ela não se baseia em seus próprios méritos, em sua
sorte pessoal, mas nos méritos infinitos do Salvador, que são para ela; do mesmo modo,
os bens do pai são para seus filhos que ainda não possuem bens pessoais.
É uma confiança total, mesmo nas horas mais graves. Nós nos lembramos
então do que dizia santa Teresinha: “Senhor, vós a tudo vedes, tudo podeis, e vós me
amais”.
O único temor desta alma é o de não amar o bastante a Nosso Senhor, de não se
abandonar totalmente a Ele.
A CARIDADE é o amor de Deus por ele mesmo, e das almas em Deus, para
que elas o glorifiquem no tempo e na eternidade.
A criança pequena ama sua mãe de todo seu coração, mais que os carinhos que
recebe dela; ela vive de sua mãe.
Do mesmo modo, o filho de Deus vive de Deus e o ama por si mesmo, por
causa das infinitas perfeições que nele transbordam. O que este filho de Deus ama, não
é a sua própria perfeição, mas o próprio Deus, sobre o qual ele se apóia.
A este amor ele refere tudo, é um amor delicado, simples, que inspira a piedade
filial e uma grande caridade pelo próximo, na medida em que este é amado por Deus e
chamado a o glorificar eternamente.
O filho de Deus, porém, é tão prudente como simples: simples com Deus e as
almas de Deus, ele está sob a inspiração do dom de conselho e é prudente com aqueles
em quem não podemos ter confiança.
Ele é deficiente, mas é do mesmo modo forte, pelo dom de fortaleza que se
manifestou nos mártires, e até nas jovens virgens e nos velhos.
Trataremos:
Nosso Senhor disse: «Eu sou a videira e vós as varas. O que permanece em
mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,
5). «nada», ou seja, nenhum ato salutar e, por conseguinte, nenhum ato meritório de
vida eterna. Contra o que pensavam os semipelagianos, o mesmo initium fidei é da graça
que provém de Cristo.
Semelhantemente, diz S. Paulo (Rm 6, 5): «nos tornamos uma mesma planta
com Cristo», que é como que a raiz santa, e «se é santa a raiz, também o são os
ramos» (11, 16). Noutra parte, expressa o mesmo valendo-se de outra figura: «vós sois o
corpo de Cristo e membros unidos a membro» (1 Cor 12, 27); e o repete em diversas
outras passagens.
Na Epístola aos Romanos (6, 4), afirma que pelo batismo «fomos sepultados
com Ele a fim de morrer para o pecado»; morremos e ressuscitamos com Ele. Por isso,
também diz S. Paulo: «Para mim, o viver é Cristo» (Gl 3, 27). Comenta S. Tomás: para
os caçadores, sua vida é a caça; para os militares, a milícia ou os exercícios militares;
para os estudiosos, o estudo; para os católicos e, sobretudo, para os santos, o viver é
Cristo, pois Cristo quer viver neles; e porque os santos vivem da fé, da confiança e do
amor de Cristo. E o próprio Cristo diz: «Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o
Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas, e vos recordará tudo o que
vos tenho dito» (Jo 14, 26). Ou seja: pelos dons de sabedoria, inteligência, ciência,
conselho, piedade, fortaleza e do temor, vos sugerirá tudo que eu vos disse, de maneira
que as palavras do Evangelho venham a ser para vós, «palavras de vida
eterna» porque «são espírito e vida». O testemunho de Cristo e de São Paulo é
manifesto, sobretudo nessas palavras da Epístola aos Gálatas: «E vivo, já não eu, mas é
Cristo que vive em mim» (2, 20).
No entanto, é preciso compreender de modo reto e pleno: isto não significa que
Cristo deva diminuir-se, descendo à nossa vida inferior; mas que devemos nos oferecer
a Ele, para que Ele viva em nós sua vida superior, vida que nos supera imensamente.
Por exemplo, quando rezamos, devemos nos recolher sob a grande oração de Cristo,
para que ela, de algum modo, se prolongue em nós, continue em nós.
Com Respeito à oração: A alma, então, já não reza como antes, de modo
demasiado limitado, conforme seus interesses próprios, mas sua oração torna-se
a oração de Cristo, que se estende e continua nela mesma. Então, compreende as
palavras ditas aos Apóstolos: «tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei,
para que o Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome,
eu a farei» (Jo 14, 13); «Até agora não pedistes nada em meu nome; pedi e recebereis,
para que o vosso gozo seja completo» (Jo 16, 24).
Então, a alma que segue esta via, dirige-se também à Santíssima Virgem, como
em nome de Cristo; nela encontra sua Mãe em sentido pleno, e compreende melhor as
riquezas que encerra a maternidade espiritual de Maria com respeito a todos que buscam
a salvação.
Então, a alma consegue continuar mais facilmente sua oração por todo o dia;
oferecendo, a qualquer hora, as obras do Salvador, principalmente as que meditamos no
santo Rosário e na Via Crucis. Durante a visita ao Santíssimo Sacramento, oferece a
Deus os atos do Menino Jesus, os atos de sua vida dolorosa e os de sua vida gloriosa e
eucarística. Cristo vive verdadeiramente nela. A irradiação da contemplação e do amor
do Salvador é uma realidade nesta alma.
Por isso, começa a aborrecer o amor próprio, que impede a vida de Cristo em
nós, assim como as mãos impediriam a vida do corpo, se quisessem viver ordenadas
para si mesmas, e não para o corpo.
Donde, esta alma começa a gostar das humilhações e aceitar o desprezo sem
muita tristeza. Crê que aquilo que nela é defeituoso deve ser notado, para que melhor
ressalte, por oposição, a grandeza de Cristo, que deve viver em nós.
Assim, melhor se compreende estas palavras: «Permita que eu viva em ti, e que
tu morras a ti mesmo» e estas outras: «Tua pobreza é extrema, mas eu sou rico e minhas
riquezas te bastam»; são tuas; são como que propriedade pessoal tua.
A alma termina por ter suas virtudes, muito limitadas, como coisa de pouco
valor e começa a amar, como um bem seu, as imensas perfeições do mesmo Cristo. O
que parece grandioso aos soberbos e ambiciosos, a ela parece um nada, por ter
renunciado a sua própria glória.
Com respeito à Confiança: A alma aumenta sua confiança, pois Cristo lhe
comunica a sua própria. Em sua memória, guarda as palavras do Salvador: «Eu venci o
mundo». Que é como se dissesse: «Venci o pecado, o demônio, a morte. Tende
confiança.» Esta alma pode desesperar de si mesma, de suas próprias forças; mas é
então que mais espera em Deus. Com S. Paulo dirá: «Quando estou fraco, então sou
forte» (2 Cor 12, 10). Assim trabalhava S. Felipe Neri: «Quando desconfio de mim
mesmo é que mais confio na graça de Deus». João Batista Mazella, apóstolo da
Sardenha, dizia, quando as dificuldades eram maiores: «De mim desespero, toda
esperança perco, só em Deus confio».
Assim se cumpre o que pedia o Beato Nicolau von Flue: «O Mein Herr und
mein Gott, nimm alles von mir, was mich hindert zu Dir; o mein Herr und mein Gott,
gib alles mir, was mich fördert zu Dir; o mein Herr und mein Gott, nimm mich mir und
gib mich ganz zu eigen Dir!» [Deus meu e Senhor meu, tirai-me de tudo o que me
impede de me aproximar de vós; dai-me tudo o que me conduza a vós; privai-me de
mim mesmo e concedei-me que, por inteiro, me entregue a vós].
Com respeito à aceitação da cruz: Por fim, a alma chega à uma generosa
aceitação da cruz que é permitida por Deus para que se trabalhe mais eficazmente pela
salvação das almas. É o que ocorreu com muitos santos pobres, tal como S. Bento José
Labré e ocorre ainda hoje com muitos outros. É o que ocorre com os santos enfermos,
que sofrem dia e noite sem gemer, mas, com Cristo, oferecem suas dores para a
conversão dos pecadores; e, se estes não se converterem, a paz do mundo é impossível.
Assim, Cristo foi a fortaleza dos mártires, sofrendo neles pelos três primeiros
séculos da Igreja.
Por isso, com esse espírito, muitas almas rezam assim: «Senhor, nesta hora de
crise mundial, em que se difunde o espírito da soberba, negando toda a religião e até a
existência de Deus, dai-me uma inteligência mais profunda do mistério da Encarnação
redentora e do vosso santo aniquilamento na Paixão; dai-me o desejo de participar das
vossas humilhações e dores, na medida desejada pela Providência para mim; e fazei
que neste desejo encontre paz, fortaleza e a mesma alegria, conforme o vosso
beneplácito, para erguer o meu espírito e a confiança dos demais».
Isto vale para os fiéis que aspiram à santidade e, mais ainda, para os sacerdotes,
que, em virtude de sua ordenação, devem especialmente tender à perfeição cristã, para
que possam santificar os fiéis, sobretudo nos gravíssimos erros e extravios da hora
presente, e para poder conduzir de novo à verdade e à vida cristã a quantos as tenham
abandonado.
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Alguns sinais mais raros e certos de grande aproveitamento nas virtudes – Pe.
Manuel Bernardes
13. Maior inclinação a tratar com os varões mais perfeitos do que com
os menos; e à conversação em matérias espirituais, do que à de coisas profanas, ainda
que lícitas; e aos livros santos, do que aos de história, ainda que não torpe.
14. Achar-se prontíssimo para fazer, ou deixar de fazer, qualquer
coisa que insinuar o arbítrio do Superior, sem exceção mínima.
20. Não dar por respeitos humanos, junto com liberdade de espírito,
asim para fazer o que descontenta aos imperfeitos e agrada a Deus; como para deixar de
fazer o que estes queriam se fizesse.
Esse homem, levado por temperamento a ser corajoso, não tem a virtude da
força em estado de virtude. A intemperança faz com que falte à prudência mesmo no
domínio próprio da virtude da força. A prudência, que deve guiar todas as virtudes
morais, supõe, com efeito, que nossa vontade e sensibilidade estejam habitualmente
retificadas quanto ao fim dessas virtudes. Aquele que conduz vários cavalos atrelados a
uma charrete necessita que cada um deles já esteja manso e adestrado. Ora, a prudência
é um como condutor de todas virtudes morais, «auriga virtutum», devendo tê-las, por
assim dizer, todas à mão. Uma não vai sem a outra: elas são conexas na prudência que
as dirige.
Por conseguinte, para que as verdadeiras virtudes adquiridas não estejam tão-
somente em estado de disposição pouco estável, mas em estado de virtude já sólida (in
status virtutis), faz-se mister que estejam conexas e, por isso, que o homem não mais
esteja em estado de pecado mortal, mas que sua vontade esteja retificada quanto ao fim
último. Convém que ame a Deus mais que a si ― se não um amor sentido, pelo menos
um amor de estima, real e eficaz. E isso não é possível sem o estado de graça e a
caridade3.
As virtudes morais adquiridas não bastam ao cristão para que ele queira como
convém os meios sobrenaturais ordenados à vida eterna. Há, de fato, diz Santo Tomás6,
uma diferença essencial entre a temperança adquirida, já descrita pelos moralistas
pagãos, e a temperança cristã, da qual fala o Evangelho. Aqui existe uma diferença
análoga àquela duma oitava, entre duas notas musicais de mesmo nome, separadas por
um intervalo completo.
Entre ambas as virtudes de mesmo nome, há mesmo diferença maior que uma
oitava: há diferença de ordem, tanto assim que a virtude adquirida da religião ou a da
temperança poderia sempre crescer pela repetição dos atos, sem nunca alcançar a
dignidade do menor dos graus da virtude infusa de idêntico nome. Trata-se de outra
tonalidade: o espírito que anima a letra não é mais o mesmo. De um lado, só o espírito
da reta razão; de outro, o espírito da fé, que vem de Deus.
São dois objetos formais e dois motivos de ação bem diferentes. A prudência
adquirida ignora os motivos sobrenaturais da ação; a prudência infusa os conhece:
procedendo não tão-somente pela razão, mas pela razão esclarecida pela fé infusa,
conhece a elevação infinita de nosso fim último sobrenatural, Deus visto face à face;
conhece, por conseguinte, a gravidade do pecado mortal, o valor da graça santificante e
das graças atuais ― que devemos implorar diariamente para perseverar ― o valor dos
sacramentos que recebemos. Tudo isso a prudência adquirida ignora, pois é de uma
ordem essencialmente sobrenatural.
Antes de mais nada, a facilidade dos atos virtuosos não é garantida do mesmo
modo pelas virtudes morais infusas e pelas virtudes morais adquiridas. As infusas
fornecem uma facilidade intrínseca, sem que se exclua os obstáculos extrínsecos, os
quais são afastados pela repetição dos atos que engendram as virtudes adquiridas.
Inteiramo-nos disso facilmente quando, pela absolvição, as virtudes morais
infusas, unidas à graça santificante e à caridade, são recebidas por um penitente que,
apesar de ter atrição de suas faltas, não possui as virtudes morais adquiridas. É o que
acontece, por exemplo, no caso dos que têm o hábito de irritar-se e que vêm confessar-
se, com atrição suficiente, para a Páscoa. Pela absolvição recebe, junto com a caridade,
as virtudes morais infusas, dentre as quais a temperança. Contudo, não possui a
temperança adquirida. A virtude infusa que ele recebe dá-lhe uma como facilidade
intrínseca para exercer os atos obrigatórios de sobriedade; mas essa virtude infusa não
exclui os obstáculos extrínsecos, que seriam eliminados pela repetição dos atos que
engendram a temperança adquirida10. Assim, o penitente deve vigiar-se
cuidadosamente para evitar as ocasiões que o fariam recair em seu pecado habitual.
Porém, entre os cristãos mais espirituais, o motivo explícito de ação que mais
se manifesta é o sobrenatural; nos demais, o motivo é racional, ficando o sobrenatural
um pouco latente (remissus). Da mesma forma, num pianista notamos mais a técnica,
mas pouquíssima inspiração; num outro, o inverso se dá. ― Os motivos de razão
inferior, que dizem respeito ao nosso bem estar, são mais ou menos explícitos, conforme
sejamos mais ou menos desapegados dessas preocupações; ou se, por sentirmo-nos
saudáveis, não temos porque ter tais preocupações.
Essas virtudes morais consistem num justo meio entre dois extremos, um por
excesso, outro por falta. Deste modo, a virtude da força leva-nos a guardar o justo meio
entre o medo, que nos faz fugir do perigo sem motivo razoável, e a temeridade, que nos
leva a correr perigo sem razão suficiente. Mal escutam falar deste justo meio, os
epicurianos e os tíbios crêem-se possuidores dele, mas não por amor à virtude, mas por
comodidade, para fugir dos inconvenientes dos vícios contrários. Confundem o justo
meio e a mediocridade, que se encontra não precisamente entre dois males contrários,
mas no meio do caminho entre o bem e o mal. A mediocridade ou a tibieza foge do bem
superior como a um extremo a se evitar; esconde sua preguiça sob o princípio: “o
melhor é às vezes inimigo do bem”, e termina por dizer: “o melhor é freqüentemente, se
não sempre, o inimigo do bem”. Assim, termina por confundir o bem com a
mediocridade.
Esse justo meio, que ao mesmo tempo é um pico, tende ademais a elevar-se,
sem se desviar à direita nem à esquerda, à medida que a virtude cresce. Nesse sentido, o
crescimento da virtude infusa é superior ao da virtude adquirida correspondente, pois
aquela está subordinada a uma regra superior e visa a um objeto mais elevado.
Mas, para se fazer uma justa idéia do organismo espiritual, não basta conhecer
essas virtudes, mas ver como elas se dão sob a influência da graça atual, não ignorando
as diversas formas sob as quais se apresenta o socorro divino. É o que examinaremos
em breve.
Rome, Angelico.
(La vie spirituelle, 1/12/34, no. 183. Traduzido a partir de www.salve-
regina.com)
A inclinação natural, que vem de Deus e nos faz desejar a felicidade, não é
desordenada, pois já ela impulsiona o amar a Deus, soberano bem, mais que a nós
mesmos. Demonstrou-o São Tomás: Assim, disse ele, no organismo a mão está
naturalmente inclinada para amar o todo acima de si, e caso seja necessário, para se
sacrificar. Assim a galinha, por instinto, junta os pintinhos sob as asas, como disse
Nosso Senhor, e caso seja necessário, se sacrifica para preservá-los do gavião; porque
ama inconscientemente o bem da espécie, mais que a si mesma. Essa inclinação natural
existe no homem, sob uma forma superior. Amando o bem do que é superior em si, o
homem ama mais ainda o Criador; cessar de querer a perfeição e a salvação é desviar-se
de Deus. Não há como sacrificar o desejo de salvação ou de beatitude eterna, sob o
pretexto de alta perfeição, como pensaram os quietistas.
É preciso abandonar-se a Deus com espírito de fé, acreditando que, como diz
São Paulo (Rm. 8, 28), tudo concorre para o bem na vida daqueles que amam a Deus e
que perseveram no seu amor. Este ato de fé é o mesmo do santo homem Jó, que ao ficar
privado dos bens e dos filhos, permaneceu submisso a Deus, ao declarar: O
Senhor deu, o Senhor tirou, que seja louvado o nome do Senhor (Jó 1, 21).
Foi desta forma que Abraão preparou-se para obedecer a Deus, que lhe
ordenava a imolação do filho; e foi com grande fé e boa vontade que abandonava o
devir de sua raça à vontade divina. Recorda-o São Paulo, ao escrever na Epístola aos
Hebreus 11, 17: “Pela fé ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que
recebera as promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-lhe dito: Em Isaque será
chamada a tua descendência, considerou que Deus era poderoso para até dentre os
mortos o ressuscitar”.
Claro, nossas provações são bem menores, apesar de parecer às vezes pesadas,
por causa da fraqueza.
Pelo menos, a exemplo dos santos, acreditamos que o Senhor em tudo obra o
bem, seja enviando a humilhação e a secura, seja nos cumulando de honrarias e
consolações. Como nota o pe. Piny, não há fé maior e mais viva do que acreditar que
Deus dispõe tudo para o bem das almas, mesmo que pareça destruí-las, e lhes desfazer
os melhores desejos; mesmo que permita a calúnia, a degradação irreversível da saúde
ou coisas ainda mais dolorosas. Eis uma grande fé, pois é acreditar no que parece menos
crível: que Deus eleva ao rebaixar; e não somente de modo abstrato e teórico, senão que
de modo prático e vivido. É experimentar o que diz o Evangelho: “Quem se eleva
(como o fariseu) será humilhado; quem se humilha (como o publicano) será elevado”
(Lc. 18, 14). É viver a palavra do Magnificat: “Deposuit potentes de sede, et exaltavit
humiles; esurientes implevit bonis, et divites dimisit inanes – O Senhor abateu os
orgulhosos, e elevou os humildes; encheude bens os famintos, e os ricos despediu-os
com as mãos vazias” (Lc. 1, 52). Devemos todos ser pequenos pela humildade, e
famintos dum vivo desejo pela verdade divina, que é o verdadeiro pão da alma.
Raras são almas que chegam a tal perfeição. Mas é mister tentar. São Francisco
de Sales escreve: “Nosso Senhor ama com amor delicadíssimo aqueles felizes que se
abandonam à divina providência sem divagar em considerações acerca da natureza,
aproveitável ou danosa, dos efeitos dessa providência; estão certos de que nada se
enviaria do amantíssimo coração paternal, nem que tal seria permitido acontecer, de que
não lucrassem o bem e a utilidade, uma vez que depositamos nele toda a confiança...
Quando (no cumprimento do dever cotidiano) nos abandonamos de todo à providência
divina, Nosso Senhor cuida de tudo e nos conduz... A alma está junto dele como um
menino junto à mãe; quando ela o põe no chão para caminhar, ele o faz até que sua mãe
o pegue novamente no colo; quando ela o quer carregar, ele se larga em seus braços:
não diz nada nem pensa para onde vão, mas se deixa levar ou conduzir para onde praz à
sua mãe. Igualmente para esta alma, que ama a vontade do bel prazer de Deus em tudo o
que lhe acontece, e se deixa levar, e não obstante caminha, cumprindo denodadamente o
que é da vontade de Deus positiva.” A exemplo de Nosso Senhor, pode dizer
verdadeiramente: “O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai”; é aí que ela encontra
a paz, aquela paz que já mora em nós, como vida eterna começada, “inchoatio vitae
aeternae”.
La Vie Spirituelle Septembre 1931 n°143
Tradução: Permanência
Fonte: www.salve-regina.com
1. 1.São FRANCISCO DE SALES, L'Amour de Dieu, livro VIII, cap. v,
e 1. IX, cap. I a VII.
2. 2.São FRANCISCO DE SALES, L'Amour de Dieu, loc. cit., e
Entretiens II e XV. - DE CAUSSADE, Abandon, t.11, p. 279. Apêndice, 2° p. Cf.
Dom VITAL LEHODEY. Le Saint Abandon,' Paris, Amat, 1919, 3ª parte: O
abandono no que respeita aos bens naturais do corpo (saúde e doença) e da alma
(distribuição desigual dos dons naturais), aos bens da opinião (humilhações,
perseguições), aos bens espirituais essenciais (graça e glória), às variedades
espirituais da via comum (os insucessos e as faltas, as provações, as consolações), às
variedades espirituais na via mística...
3. 3.Provações existiram que tranformaram vidas, como as que se vêem
na biografia do pe. Girard, intitulada Vinte e Dois Anos de Martírio. Após seu
diaconato, a tuberculose óssea acometeu esse santo padre, a qual o imobilizou por
vinte e dois anos sobre uma cama, onde sofrera crudelissimamente e oferecera todos
os dias tais sofrimentos aos padres de sua geração. Ele, que padecia a dor de nunca
poder celebrar a missa, unia-se deste modo, diariamente, ao sacrifício de Nosso
Senhor perpetuado no altar. A doença, em vez de destruir a vocação, transfigurou-a.
4. 4.IIa IIae Q.72 a.3, et q.73, a. 3, ad 3um
5. 5.Cf. São FRANCISCO de SALES, Amour de Dieu, t. ils:, c. v, e
B0SSUET, États d'oraison, 1. VIII, 9
Da obrigação de tender à perfeição
Em matéria tão delicada importa usar da maior exatidão possível. É certo que é
necessário e suficiente morrer em estado de graça, para ser salvo; parece, pois, que não
haverá para os fiéis outra obrigação estrita mais que a de conservar o estado de graça.
Mas, precisamente, a questão é saber se pode alguém conservar por tempo notável o
estado de graça, sem se esforçar para fazer progressos. Ora, a autoridade e a razão
iluminada pela fé mostram-nos que, no estado de natureza decaída, ninguém pode
permanecer muito tempo no estado de graça, sem fazer esforços para progredir na vida
espiritual, e praticar de vez em quando alguns dos conselhos evangélicos.
I. O argumento de autoridade
C) É isto mesmo o que se infere ainda da natureza da vida cristã que, no dizer
de Nosso Senhor Jesus Cristo e de seus discípulos, é um combate, em que a vigilância e
a oração, a mortificação e o exercício positivo das virtudes são necessários para alcançar
a vitória: “Vigiai e orai, para não entrardes em tentação: vigilate et orate ut non intretis
in tentationem”9... Tendo de lutar não somente contra a carne e o sangue, isto é, contra
a tríplice concupiscência, senão ainda contra os demônios que a atiçam em nós,
necessitamos de nos armar espiritualmente e combater com valor. Ora, numa luta
prolongada, a derrota é quase fatal para quem se conserva unicamente na defensiva; é
mister, pois, recorrer aos contra-ataques, isto é, a prática das virtudes, à vigilância, à
mortificação, ao espírito da fé e confiança.
É esta exatamente a conclusão que tira São Paulo, quando, depois de haver
descrito a luta que temos de sustentar, declara que devemos estar armados dos pés à
cabeça, como o soldado romano, os rins cingidos da verdade, revestidos da couraça da
justiça, e as sandálias nos pés, prontos a anunciar o Evangelho da paz, com o escudo da
fé, o capacete da salvação e a espada do Espírito: State ergo succinti lumbos vestros in
veritate, et induti loricam iustitae, et calceati pedes in praeparatione evangelii pacis; in
omnibus sumentes scutum fidei... et galeam saluis assumite et salutis assumite et
gladium Spiritu”10... E com isto nos mostra que, para triunfar dos nossos adversários, é
necessário fazer mais do que o estritamente prescrito.
Assim, Santo Agostinho, fazendo notar que a caridade é ativa, adverte-nos que
não devemos parar no caminho, precisamente porque, parar é recuar: retro redit qui ad
ea revolvitur unde iam necesserat”11, e o seu adversário, Pelágio, admitia o mesmo
princípio; tal é a sua evidência! E o último dos Padres, São Bernardo, expõe esta
doutrina de forma empolgante. “Não queres progredir? — Não — Queres então recuar?
— De modo nenhum. — Que queres então? — Quero viver de tal maneira que fique no
ponto aonde cheguei... — Queres o impossível, pois que neste mundo nada permanece
no mesmo estado...”12. E noutra parte acrescenta: “É absolutamente necessário subir ou
descer; se se tenta parar, cai-se infalivelmente”13. E assim o Papa Pio XI, na sua
Encíclica de 26 de janeiro de 1932, sobre São Francisco de Sales, declara
peremptoriamente que todos os cristãos, sem exceção, têm obrigação de tender à
santidade”14.
Verifica-se, pois, de todos os lados esta lei moral que para não cair em pecado,
é necessário evitar o perigo por meio de atos generosos, que não são diretamente objeto
de preceito. Por outros termos, para acertar no alvo, é mister fazer a pontaria mais alto;
e, para não perder a graça, é necessário fortificar a vontade contra as tentações perigosas
por meio de obras de super-rogaçao, numa palavra, aspirar a uma certa perfeição.
B) Por esse meio aumentam-se também cada dia os graus de graça habitual que
se possuem e os de glória a que se tem direito. Vimos, efetivamente, que todo o esforço
sobrenatural, que por Deus faz uma alma em estado de graça lhe granjeia um aumento
de méritos. Quem não se importa da perfeição e cumpre o seu dever com mais ou menos
desleixo, poucos merecimentos adquire, como dissemos, n° 24. Quem tende, porém, à
perfeição e se esforça por avançar, alcança larga cópia de merecimentos. Assim, cada
dia aumenta o capital de graça e de glória; os seus dias de méritos: cada esforço tem
como recompensa um aumento de graça na terra e mais tarde um peso imenso de glória,
“aeternum gloriae pondus operatur in nobis”16.
C) Se se quer prelibar um pouco de felicidade na terra, nada melhor que a
piedade que, como diz São Paulo, “é útil para tudo e tem promessas para a vida
presente e futura: pietas autem ad omnia utilis est, promissionem habens vitae quae
nunc est et futurae”17.
2° A glória de Deus. Nada mais nobre que procurá-la, nada mais justo, se nos
lembrarmos do que Deus fez e não cessa de fazer por nós. Ora, uma alma perfeita dá
mais glória a Deus que mil almas vulgares porque multiplica de dia para dia os seus atos
de amor, reconhecimento e reparação, orienta nesse sentido a sua vida inteira pelo
oferecimento muitas vezes renovado das suas ações ordinárias, e assim glorifica a Deus,
de manhã até a noite.
Dever de reparação
Pe. Garrigou-Lagrange, OP
“Alter alterius onera portate”.
Gl 6.
Há, pois, dupla desordem moral, que pede dupla pena. O pecador não apenas
se afasta de Deus, mas prefere algo a Deus, isto é, prefere seu gozo pessoal ao reino de
Deus; esta segunda desordem pede, também ela, uma reparação. A justiça exige que o
pecador que preferiu um bem temporal a Deus seja privado de um bem temporal ou
padeça uma pena temporal.
A missa a que assistimos ou que é dita por nós, obtém certamente a remissão
total ou parcial da pena temporal devida aos pecados já remidos.
Todos os fiéis conhecem esta doutrina de fé, que o justo pode fazer celebrar
missas e ganhar indulgências pelos defuntos, e que pode também pagar por um outro
justo a pena temporal devida aos pecados já remidos. Com efeito, diz são Paulo: “Levais
os fardos uns dos outros”5. São Tomás explica6 e nota que, se os credores humanos
admitem que uns paguem as dívidas de outros, ainda mais o admitirá o Senhor;
sobretudo se consideramos que sofrer por outrém supõe maior caridade que sofrer por si
mesmo. Sofrer por outrém grave dor de cabeça de três ou quatro horas satisfaz mais que
sofrer por si mesmo algo mais penoso.
Se é a caridade que move, o justo pode portanto satisfazer pelo seu próximo.
Aqueles que confiam a Maria tudo o que se possa comunicar nas suas boas
obras meritórias e satisfatórias e nas suas orações, encarregam-na de o distribuir a seu
gosto. Ela o faz com muito maior sabedoria do que nós, pois vê, em Deus, quais de
nossos parentes ou amigos, nessa vida ou no purgatório, mais precisam de socorro.
Se não fazemos este ato e se não designamos alguma pessoa, é provável que
Deus aplique estas satisfações àqueles que nos são mais caros.
É assim que os justos podem sofrer com proveito pelo próximo, e participam
eles mesmos nas satisfações das almas mais generosas, nas almas vítimas que, nas mais
trágicas horas, multiplicam-se pelo mundo, para pagar por seus pecados7. É o Senhor
quem as suscita, quem lhes dá esta vocação sublime, quem lhes sustenta por vinte e
trinta anos num leito de sofrimentos, como o demonstra a vida do santo padre Gérard,
da diocese de Sées, escrita por Myriam de G., intitulada “Vinte dois anos de martírio”;
este padre santo, torturado ao longo de tantos anos pela tuberculose dos ossos, oferecia
cada dia seus sofrimentos pelos padres de sua geração e de sua diocese. Levaram-no
seis vezes a Lourdes; ele compreendeu que a santa Virgem não o curaria, mas, apesar as
grandes dores que a viagem lhe causavam, desejava retornar a Lourdes mais umas seis
vezes, não para pedir sua cura, mas pela conversão dos pecadores. Almas vítimas, mais
numerosas do que pensamos, trabalham neste momento, à exemplo de Nosso Senhor e
de Maria, pela pacificação do mundo.
Os sofrimentos do justo devem assim mais e mais se assemelhar à cruz de
Jesus. Há três tipos muito diferentes de cruzes: a cruz do mau ladrão foi uma cruz
perdida; há muitos sofrimentos perdidos no mundo, pois não são padecidos
cristianamente; a cruz do bom ladrão lhe foi útil, ele pôde ouvir: “Estarás comigo esta
noite no paraíso”; a cruz de Jesus foi redentora, não para ele, mas para nós. E quanto
mais os santos se aproximam do Salvador, mais as suas cruzes assemelham-se à dele,
mais são fecundas e, nas horas de maior tribulação, como as de agora 8, são eles, por
seus sofrimentos aceitos por amor, que carregam o mundo e lhe permitem durar.
A fecundidade da vida de reparação não cessou de se manifestar nos santos
ao longo dos séculos. A exemplo de Nosso Senhor, os Apóstolos selaram seu
testemunho com seu sangue e, durante os três primeiro séculos da Igreja, o sangue dos
mártires não cessou de suscitar novos católicos.
***
Ora, o batismo nos apaga este pecado da natureza, mas permanece nos
batizados essa ferida como uma espécie de cicatriz que, por vezes, se abre por causa de
nossos pecados pessoais.
Muitos cultivam em si mesmos não o amor de Deus, mas uma excessiva estima
de si mesmos, das suas qualidades, procuram o louvor e a aprovação dos outros; não
enxergam seus próprios defeitos mas, ao contrário, exageram os defeitos dos outros,
como escritores de panfletos políticos: são, por vezes, severíssimos com os demais e
extremamente indulgentes consigo mesmos. Seria então muito bom e salutar repetir a
humilhação do salmista: «sois bom para mim, Senhor, pois me humilhastes». Este amor
desordenado de si mesmo gera a soberba, a vaidade e, não raro, a concupiscência da
carne e dos olhos e, destes, os pecados capitais, que nascem destas concupiscências, p.
ex.: preguiça, gula, impureza, inveja, ira etc.
inve
ja cegueira da
soberba ace mente, ao invés de
Do
dia uma fé viva
amor
desordenado vaid
de si ade
mesmo surge:
concupiscência avar desespero,
dos olhos eza ao invés de esperança
gula discórdia, ao
concupiscência da
carne lux invés da caridade, e
úria ódio a Deus.
esperança
fé viva
ilust
rada pelos
dons
prudência cristã e o
dom do conselho
temperança,
castidade, humildade.
Cf. nossa obra «Les trois âges de la vie intérieure», II, pág. 480.
***
S. Vicente de Paulo (como se lê na sua Vida, escrita por Domino Coste, I, 12;
III, 300) narra um fato que lhe sucedeu quando estava no colégio: «Certo dia, disseram-
me: "teu pai veio te ver" e, como meu pai era um pobre agricultor e um homem rude,
não quis ir até ele para conversar; e antes, quando meu pai me conduzia à cidade, estava
triste pela sua condição, e me envergonhava de meu pai».
***
3o. Perigo que nasce das evasões e subterfúgios usados pelo amor próprio.
Temos de conhecer e lutar contra nosso defeito dominante para obter a vitória.
O defeito dominante é como que uma caricatura da boa inclinação que deveria
prevalecer, é como que o «outro lado da moeda». Daí surge o combate entre a boa e a
má inclinação. A virtude e o vício oposto não podem existir simultaneamente em ato no
mesmo sujeito, mas podem existir simultaneamente em potência; daí surge o combate
em que prevalecerá ou a boa inclinação natural, sob a forma da virtude em ato, ou o
defeito dominante, sob a forma do vício em ato.
Assim, o defeito dominante inicial é aquilo pelo qual alguma virtude degenera
em um vício materialmente similar, mas formalmente contrário, por exemplo, a
inclinação à humildade degenera em pusilanimidade, a inclinação à magnanimidade em
soberba e ambição, a inclinação à fortaleza em amarga ironia e crueldade, inclinação à
justiça em rigorismo, inclinação à mansidão e à misericórdia em debilidade. Isto
compreende-se melhor quando se considera, por exemplo, que a humildade se opõe
mais diretamente à soberba que a pusilanimidade, que, no entanto, também lhe é
contrária, assim como a magnanimidade mais diretamente se opõe à pusilanimidade que
à soberba. E estas duas virtudes são conexas, como dois arcos da mesma ogiva.
Portanto, é necessário ver sob qual forma este amor próprio prevalece em nós,
isto é, se sob a forma de soberba, ou de vaidade ou de preguiça, ou de sensualidade, ou
de gula, ou de ira. Em outras palavras, é preciso saber qual é nosso defeito dominante,
que se manifesta nos nossos pecados mais freqüentes e que oferece alimento a nossa
fantasia.
Em alguns a soberba, por exemplo, vence a irascibilidade para conservar a
estima dos homens; em outros, a soberba é vencida pela preguiça e não cuida mais da
estima alheia.
Outros homens não tem um defeito manifestamente dominante, mas o seu amor
próprio se manifesta de diversos modos.
***
É o princípio formulado por Nosso Senhor, a saber: «toda a árvore boa dá bons
frutos, e toda a árvore má dá maus frutos. Não pode uma árvore boa dar maus frutos,
nem uma árvore má dar bons frutos. Toda a árvore, que não dá bom fruto, será cortada
e lançada no fogo. Vós os conhecereis pois pelos seus frutos» (Mt 7, 17-20).
Ora, os frutos são as virtudes, os dons do Espírito Santo e seus atos. É preciso,
pois, julgar pelas principais virtudes, ou seja, em ordem ascendente, pela castidade e
mortificação, pela humilde obediência; pela fé, esperança e caridade. É fácil aplicá-las
aos três espíritos que distingüimos acima.
Esta descrição se faz com facilidade por contraste com o espírito divino,
observando-se algumas diferenças com relação ao espírito demoníaco. Este espírito
natural é, como dissemos acima, uma tendencia para julgar, querer e agir de modo
natural e não sobrenatural. De que « natureza » se trata? Não se trata absolutamente da
natureza considerada em si mesma, que pode se elevar à ordem da graça, mas se trata
quer da natureza decaída e ainda não regenerada pela graça, quer da natureza
ainda manchada, que, apesar da presença da graça, conserva as quatro manchas
conseqüentes ao pecado original, que se agravam pelos pecados pessoais. Estas
manchas nos batizados que vivem em estado de graça estão em via de cicatrização ou
cura, mas não há cura perfeita nesta vida. 2.
Infligida à toda natureza humana pelo pecado dos primeiros pais, estas
manchas são curadas imperfeitamente no batismo, pois a concupiscência permanece
após este novo nascimento, o que nos obriga a um combate espiritual. Assim, com a
ajuda de Deus, o homem supera a concupiscência de um modo meritório, como diz S.
Tomás (III, q. 69, a. 3). E isto também era conveniente, como está dito no mesmo lugar,
para que os homens não viessem ao batismo com o intuito de escapar às penas da vida
presente antes que pela glória da vida eterna. Nós somos co-herdeiros do Cristo, « mas
isto, se sofrermos com ele, para sermos com ele glorificados ». Ora, estas quatro
manchas são agravadas pelo pecado atual que diminui a inclinação natural para a
virtude ao trazer um obstáculo: a inclinação para o mal; assim, « pelo pecado (mesmo
venial, nos justos) a razão é embotada, sobretudo na ordem da ação, a vontade se
enrigesse contra o bem, cresce a dificuldade de bem agir e a concupiscência arde com
mais força » (I-II, q. 85, a. 3).
Estas três concupiscências inclinam enfim aos sete pecados capitais, que estão
na origem de outros pecados, freqüentemente mais graves (Ia-IIae, q. 84, a. 4); os sete
pecados são: a vã glória, a inveja, a cólera, a avareza, a preguiça ou a tibieza, a gula e a
luxúria. Conforme observa S. João da Cruz (Noite escura, 1. I, início), estes sete
pecados existem mesmo em relação aos bens espirituais, por exemplo, a gula espiritual,
que é o desejo imoderado da consolação espiritual, amada por si mesma e não por Deus,
e o orgulho espiritual. Ora, os pecados capitais, aos quais o espirito da natureza inclina
primeiramente, leva a pecados mais graves, como a incredulidade, o desespero, o ódio
de Deus e do próximo. Assim considerada, a natureza manchada da qual fala S. Tomás,
não difere da que fala o livro da Imitação de Cristo (1. III, c. 54).
Mas eles falseiam este princípio : o sentido verdadeiro é que a virtude moral se
encontra num meio-termo e é um cume entre dois vícios, um por excesso, outro por
falta, como a fortaleza está entre a covardia e a audácia temerária. É evidente que este
meio-termo é, igualmente, um cume que se eleva entre e acima dos dois vícios opostos,
um ao outro. Ao contrário, o meio-termo de que fala a teoria dita acima está na base do
triângulo que figura o caminho da perfeição. Pois o meio-termo da tibieza não está entre
e acima de dois vícios opostos um ao outro, mas entre o vício e a verdadeira virtude, é o
meio-termo instável da mediocridade, entre o bem eo mal, e mais perto do mal do que
do bem, nem mesmo no meio do caminho entre os dois, como na enumeração das notas
escolares que se costuma dar às crianças : muito bom, bom, razoável, mediocre, mal,
muito mal. Esta teoria é, pois, a da mediocridade sob as aparências da virtude ; pois, se
ela foge dos vícios opostos entre si, é por causa de seus inconvenientes e em razão da
comodidade ou utilidade pessoal, não por amor do bem honesto e da virtude. Assim era
para o utilitarismo de Epicuro e de Horácio. Assim como se diz « vinho mediocre, nem
bom, nem mal », podemos dizer: espírito mediocre, obra mediocre.
***
Ademais, se o padre celebra raramente, falta com seu dever e enterra seu
talento na terra. A celebração quotidiana da Missa requer uma preparação digna.
Que fazer, em caso de dúvida, quando ignoramos se tal pessoa que devemos
dirigir é normalmente dirigida por um espírito bom ou mal ?
1. É preciso sobretudo examinar sua humildade.
2. Sua mortificação.
Para conhecer este espírito mal, é preciso portanto considerar sua influência no
que diz respeito à mortificação, à humildade e à obediência e, em seguida, no que diz
respeito às virtudes teologais. O espírito demoníaco não nos afasta sempre
da mortificação; ele difere, assim, do espírito de natureza e, por vezes, até o contraria e
conduz a uma mortificação exterior exagerada, visível a todos, que entretém o orgulho
espiritual e enfraquece a saúde. Mas não inclina à mortificação interior da imaginação,
do coração, da vontade própria e do julgamento próprio, ainda que estimule, por vezes,
inspirando escrúpulos quanto à pequenos detalhes e laxismo quanto às coisas de maior
importância, como os principais deveres de estado, por exemplo. Ele inspira assim a
hipocrisia : « Jejuo duas vezes na semana » (Lc 18, 12).
Este espírito não nos conduz à humildade, mas nos engana pouco a pouco, para
que nós nos estimemos mais do que devíamos, mais do que aos outros, com o objetivo
de nos fazer rezar ao modo do fariseu: « Graças te dou, ó Deus, porque não sou como
os outros homens : ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano » (Lc 18, 11).
Este orgulho espiritual é acompanhado de uma falsa humildade, do fato de
confessarmos um pecado pessoal, para que os outros não nos acusem de uma falta ainda
mais grave e nos considerem humildes. O espírito mal faz ainda com que confundamos
a humildade com a timidez, que é filha do orgulho e teme o desprezo. Do mesmo
modo, não engendra a obediência, mas a desobediência ou o espírito servil, conforme
as circunstâncias.
Quanto à esperança, o espírito mau trabalha para fazer com que nossa
esperança degenere em presunção ; por exemplo, quer-se chegar rapido demais à
santidade, e não pouco a pouco, subindo os degraus necessários, nem pela via da
humildade e da abnegação. Ele inspira igualmente uma certa impaciência quanto à nós
mesmos, uma vez que nossos defeitos parecem grandes demais. Por conseqüência,
produz em nós a indignação no lugar da contrição, uma indignação que é filha do
orgulho e contrária à contrição. Ora, a presunção conduz ao desespero, quando se
verifica a impossibilidade de chegar por suas próprias forças ao fim visado : o bem
árduo parece então quase inacessível – é a desesperança.
Se este homem cai em um pecado grave e manifesto que não pode esconder,
ele se deixará vencer pela confusão, indignação, desespero e, enfim, pela cegueira do
espírito e pelo endurecimento do coração. Antes desta falta, o demônio escondia as
conseqüências desencorajantes do pecado e inspirava o relachamento ; agora, após a
falta, fala da justiça inexorável de Deus, para nos conduzir ao desespero. É assim que
forma as almas à sua imagem : após o arrebatamento do orgulho, vem o desespero.
Portanto, se alguém tem uma grande devoção sensível na oração, mas sai dela
com maior amor próprio, julgando-se acima dos outros, sem obediência aos superiores,
desprovido de simplicidade no que toca seu diretor espiritual, isto é sinal da presença do
espirito mau na sua devoção sensível. A falta de humildade, obediência e caridade
fraterna é o indício de que se está privado do espírito de Deus.
COROLÁRIOS :
2. Também não é um bom espírito aquele que é dado ao paradoxo, isto é, que
julga habitualmente de modo excepcional ou que vai de encontro à apreciação comum
das pessoas prudentes, que tem algo de estranho e artificial : contém mais
grandiloqüência que virtude.
3. Também é mau espírito o que inclina a coisas extraordinárias e
fala delas abertamente, sem discrição. A razão disso é que todas as virtudes aumentam
ao mesmo tempo, pelo fato de serem conexas ; conseqüentemente, Deus não incita a
grandes coisas sem inspirar, ao mesmo tempo, uma grande humildade. Assim, a
verdadeira magnanimidade difere da impetuosidade da presunção. Ao contrário, é
próprio do demônio incitar empresas novas, curiosas, singulares, prodigiosas,
inusitadas, provocando a admiração e o estupor para obter as honras da santidade.
CONCLUSÃO
Por outro lado, a caridade fraterna é o maior sinal do amor de Deus, conforme
as palavras do Senhor (Jo 13, 35) : « Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns aos outros ». A caridade fraterna é o termômetro sensível da nossa
união com Deus ; pois é de modo bem sensível que aparece nossa caridade quando se
trata de ajudar o próximo, sobretudo se é difícil e exigente ; então, se o amamos apesar
desta dificuldade, é sinal de que nós lhes fazemos o bem por causa de Deus e que, por
conseqüência, aumenta nossa caridade para Deus mesmo. Não há duas virtudes de
caridade, uma para Deus, outra para o próximo. Não há senão uma só caridade, cujo
objeto principal é Deus e cujo objeto segundo é o próximo. O amor visível do próximo
manifesta assim o amor invisível de Deus, na medida em que se distingue do
sentimentalismo.
I. Misticismo e Loucura
Aos 19 anos Madeleine partiu para a Alemanha a fim de ser professora numa
família e... desapareceu! Durante quase um quarto de século procuram-na debalde os
parentes. Que coisa havia sucedido? Madeleine fora acometida pelo que Janet denomina
"a mania da ilha deserta". Incapaz de resolver as dificuldades inerentes à vida social,
Madeleine fugiu.
1o., a contração muscular que obrigava a doente a se ter nas pontas dos pés.
Madeleine interpretava esse fato como sendo o da "levitação" e como um começo de
"assunção"; periodicamente anunciava que os pés não mais pousavam sobre a terra e
que ela estava prestes a subir como um balão. Queria a todo o transe peregrinar a Roma
para ser elevada ao Céu em presença de Sua Santidade.
2o., o que a Madeleine denominava "estigmas" e comparava às chagas de S.
Francisco; não passavam, na verdade, de pequenas bolhas que ao arrebentar deixavam
correr um pouco de serosidade misturada com sangue.
Como interpretar esse delírio místico? Janet explica-o, como era de prever, em
função de suas teorias psicológicas. Distingue oito níveis mentais hierarquizados e
admite a passagem de um a outro seja no sentido do progresso, seja no do regresso.
Todas as deficiências e doenças mentais, explicar-se-iam quer por se ter o indivíduo
detido a nível inferior, sem progredir (p.ex. o débil mental) quer por ter decaído a um
nível mais baixo, em conseqüência de uma queda da tensão psicológica (p.ex., o
paranóico).
Só teríamos que louvar e nos instruir, estudando a obra do mestre francês, não
houvesse ele generalizado o que observara num só caso e afirmado que todo misticismo
não passa de uma das variedades de delírio psicastênico. Repetidamente comparou
Madeleine a Santa Teresa, identificando-lhe as experiências.
Rejeitamos a assimilação, não apenas como católico — pois assim deprecia os
nossos maiores santos — senão também como psicólogo — pois a teoria patológica não
corresponde à realidade dos fatos. Tão patente a diferença que foi reconhecida até por
um psicólogo notoriamente anti-religioso como Henri Delacroix. Embora tivesse ele
escrito as suas Études d'histoire et de psychologie du mysticisme no intento confessado
de encontrar uma explicação puramente naturalística do misticismo, insurgiu-se
entretanto contra a pretensão de assimilar os grandes místicos aos loucos: "Si les grands
mystiques n'ont pas échappé aux tares névropathiques qui stigmatisent les organismes
exceptionnels, il y a en eux une logique constructive, une expansion réalisatrice, un
génie, en un mot, qui est l'essentiel". Henri Bergson escreveu no mesmo sentido:
"Quand on prend à son terme l'évolution intérieure des grands mystiques, on se
demande comment ils ont pu être assimilés à des malades. Certes, nouv vivons dans un
état d'équilibre instable, et la santé moyenne de l'esprit, comme d'ailleurs celle du
corps, est chose malaisée à definir. Il y a pourtant une santé intellectuelle solidement
assise, exceptionnelle, qui se reconnait sans peine. Elle se manifeste par le gôut le
l'action, la faculté de s'adapter et de se réadapter aux circonstances, la fermeté jointe à
la souplesse, le discernement prophétique du possible et de l'impossible, un esprit de
simplicité qui triomphe des complications, enfin un bon sens supérieur. N'est-ce pas
précisément ce que nous trouvons chez les mystiques dont nous parlons? Et ne
pourraient-ils pas servir à la définition de la robustesse intelectuelle?"3 Sen os
objetassem que Delacroix e Bergson, por não serem psiquiatras, carecem de autoridade,
responderiamos que P. Quercy, psiquiatra não-católico, na sua obra L'hallucination,
publicada quatro anos após o livro de Janet, consagrou à Santa Teresa longo e exaustivo
estudo, chegando a conclusões que põem em relevo a perfeita sanidade mental da
grande mística.
Janet, sentindo quão precária era sua posição, tentou uma retirada estratégica e,
para cobri-la, valeu-se de dois expedientes. Afirmou em primeiro lugar que Santa
Teresa é personagem muito antiga e provavelmente lendária, cujos feitos e ditos não
podem controlar...
Ingenuamente perguntaremos por que Santa Teresa pertencia à história quando
Janet a classificava entre os dementes, e se tornava subitamente lendária quando se lhe
provava a sanidade mental? Retrucaremos outrossim, que fontes históricas
abundantíssimas e controladíssimas permitem reconstituir a atividade social da santa,
sem que sejamos obrigados a fazer um cego ato de fé nas declarações de Teresa.
Adita ainda Janet: "esses indivíduos místicos não passaram a vida em êxtases;
terminada a crise, puderam desenvolver uma atividade normal". Esquece-se o ilustre
mestre que tampouco Madeleine passara a vida inteira em êxtase; segundo as próprias
declarações de Janet: "les extases de Madeleine sont assez rares et n'occupent que deux
ou trois jours de tems en temps". Ora, não foi apenas por dois a três dias, "de tempos em
tempos" que Madeleine se revelou socialmente incapaz, foi durante todos os sete anos
passados na Salpêtrière, confirmado isto pelo próprio Janet repetidamente. Só retornou à
atividade social ao cessar o delírio místico. Em Santa Teresa, muito ao contrário, o
misticismo, longe de ser inativo, era fonte de ação; até mesmo as visões tinham em
grande parte a finalidade de regular e dirigir-lhe a atividade exterior. Prova sobeja
encontraremos no livro das "Fundações", no qual a Santa relata, com grande vivacidade
e abundância de detalhes, suas atividades de reformadora. É inútil multiplicar exemplos.
Tão diversas as fenomenologias do misticismo de Teresa e do delírio de Madeleine, que
parece de todo impossível afirmar-lhes a identidade substancial: demasiado profunda é a
oposição, demasiado evidente a irredutibilidade.
Não estranha pois, que mesmo um erudito como J. Baruzi haja aproximado
Plotino e João da Cruz ao ponto de não deixar entre ambos senão diferenças acidentais.
Pouco valeria a essas alturas, opor a metafísica pagã de Plotino à filosofia e à teologia
cristãs de João da Cruz. Por óbvio e patente fosse o contraste, deixaria entretanto
subsistir uma dúvida importuna: não haveria que distinguir, no misticismo, entre o
conteúdo e a expressão? Não seria idêntica vivência que ora se cristaliza em fórmulas
neo-platônicas, ora em termos cristãos?
O neo-platônico contempla aquele Uno donde lhe vem o ser, nunca o Amigo
que lhe oferta o próprio amor. E assim há um verdadeiro abismo entre o "Deus-fonte-
do-ser" de Plotino, e o "Deus-amigo-meu" de S. João da Cruz. Ao grito de desejo de
Plotino, responde o eterno silêncio! Ao passo que S. João da Cruz sabe que tem a Deus
por Amigo, porque Deus lho disse. "Con suma estimación (Dios) te ama, e igualándote
consigo, mostrándosete en estas vías de sus noticias Él mismo alegremente, con este su
rostro lleno de gracias y diciéndote en esta unión suya, no sin gran júbilo tuyo: yo soy
tuyo y para ti, y gusto de ser tal qual soy para ser tuyo y para darme a ti" (Llama de
amor viva, cancion 3, verso 1, n. 6). As metáforas de "esponsais" e de "núpcias"
místicas, patenteiam que se travam livres relações de mútuo amor. "En la unión y
transformación de amor, el uno da posesión de si al otro y cada uno se deja y da y
trueca por el otro, y asi cada uno vive en el otro y el uno es el otro y entrambos son uno
por transformacion de amor" (Cantico espiritual, canción XI (XII) verso 5).
Esse desejo de Deus que ambos desvendam no coração humano, é para Plotino
uma exigência que requer apenas para ser satisfeita, nosso esforço de purificação; para
S. João da Cruz, é somente um anseio cujo objeto está absolutamente fora do alcance da
criatura. O homem não se eleva até a vida divina, senão esta se comunica ao homem por
misericórdia. Donde a insistência do Santo sobre a purificação "passiva", obrada na
alma pelo próprio Deus.
Garrigou-Lagrange, O. P.
A comunhão precoce por vezes leva a frutos de heroísmo nas almas desses
pequeninos. A crisma traz uma nova floração de graças; por vezes se constata um belo
desabrochar dos sete dons na alma infantil, na medida em que a criança ainda não
raciocina de modo metódico e complicado, e segue diretamente para a verdade, como
que por intuição.
Nas melhores delas, nota-se uma relativa elevação das virtudes teologais.
Como a criança, consciente de sua ignorância e de sua fraqueza, é naturalmente
inclinada a acreditar no que o seu pai e a sua mãe lhe dizem, a confiar neles e a amá-los,
não apenas pelos benefícios recebidos, mas em si mesmos; do mesmo modo, ela é
movida pela graça do batismo a crer na palavra de Deus, que lhe é transmitida pela sua
mãe e, em seguida, pelo sacerdote que a instrui, ela é igualmente inclinada a confiar em
Deus e a amá-Lo por si mesmo. Ela vive à sua maneira das três virtudes teológicas,
antes de refletir sobre a necessidade das virtudes cardeais da prudência, justiça, força e
temperança. Nas orações da manhã e da noite, são atos de fé, esperança e caridade que
pedimos delas. Se ela é fiel, a cada dia fará esses atos um pouco melhor.
A Fé
Vemos como isso foi o ponto de partida da vida interior de Anne de Guigné.
Era essa a verdade fundamental que ela anotava cuidadosamente em seu caderno:
“Precisamos salvar nossa alma, ela voltará a Deus, seu Criador. Nosso corpo vem da
terra, mas nossa alma vem de Deus". Eis uma verdade elementar para todo católico, mas
à qual ela sempre retorna quando fala com Nosso Senhor. Ela escreveu no início de um
retiro em abril de 1921: "Quanto mais falo com Ele, mais Ele me responde. Jesus
fala comigo poer meio do padre, por meio dos conselhos que o padre me dá. Onde Jesus
mais fala comigo acima é no fundo da minha alma por meio da sua graça. O bom
Senhor me dirá: quero você mais obediente, não quero que seja vaidosa. Se você já é
assim na sua idade, o que será depois?"
Ela observa em outro lugar: "Devemos ter um grande respeito pela presença de
Deus. Precisamos respeitar a Deus e a nossos pais... amá-los de todo coração, prestar o
máximo de serviços possível, obedecê-los e fazer o que quiserem". Ela acolhe com
entusiasmo a idéia de ir ao catecismo para aprender as verdades da religião.
A primeira grande dor para Anne de Guigné foi a morte do seu pai. O modo
sobrenatural com que aceitou essa morte, como o seu biógrafo demonstra, representou
para sua alma o ingresso numa vida nova: pela fé, ela começou a viver do pensamento
do outro mundo e a enxergar a vida presente desde uma perspectiva superior. Desde
então, essa criança, armada de uma vontade enorme, cede, luta a cada dia e, em alguns
meses, é como que invadida pelo Espírito de luz, “doce hospedeiro da alma”. Anne se
torna cada vez mais submissa; ela que era inclinada ao ciúme, busca a partir de então só
pensar nos outros e não recusa mais nada ao bom Deus. Ao adoecer, declara: “Meu bom
Jesus, tudo o que quiserdes!” Isso é mais do que uma simples resignação, pois inspira-se
numa grande fé.
Anne, que ama muito a Santíssima Virgem sob o título de Nossa Senhora das
Dores, escreve: “De pé diante da cruz, sobre a qual seu Filho estava pregado, Maria
chorava… Dai-me a graça de chorar convosco…” — Por que chorar? — “Porque Jesus
não é amado o bastante”.
Onde encontrar uma criança que deseje a graça de chorar? A luz divina da fé
viva, esclarecida pelos dons do Espírito Santo, traçava o caminho por onde a sua alma
avançava.
A Esperança
A caridade
Isso é muito marcante em Anne de Guigné; assim, falar de seu amor de Deus é
falar, ao mesmo tempo, do seu despreendimento, da sua humildade, da sua mortificação
e obediência.
É o amor de Deus que lhe movia à prática das virtudes: “É preciso obedecer
sempre”, era um dos pontos do seu programa. E ainda que por vezes fosse bem difícil,
cumpria esse ponto admiravelmente. Fortificada pela graça da primeira comunhão, ela
se dava inteiramente aos seus pequenos deveres familiares e escolares, pequenos em si
mesmos, mas grandes para ela e para Deus, pela intenção que a movia a cumpri-los.
Aplicava-se a servir aos seus pronta e alegremente. Chegando aos nove anos de idade,
escreveu: “para mim, se faz preciso uma luta quotidiana”. Diante dos pequenos ou dos
grandes esforços, dizia: “Bom Jesus, eu os ofereço a Vós”. É a sua maneira de caminhar
para Deus, de adquirir coragem e perseverança. Não se sabe bem o quanto a mansidão
custava à sua natureza irascível: “Ó, como é exasperante… quanta vontade de brigar!”
Mas logo a graça triunfava, e a bondade dava a palavra final.
Ela compreendeu que oferecer tudo ao Senhor é um grande socorro para nós:
“Nada é difícil quando nós o amamos”. Ela despertava rapidamente todos os dias, ainda
que o sono a abatesse. Renunciava aos seus gostos, privava-se de sobremesa, comia os
pratos de que gosta menos; uma vez, raspou o corpo em ortigas para agradecer o Senhor
por ter atendido um dos seus desejos. Outro dia, tendo deslocado um músculo do joelho,
levantou-se sem dar um pio, os olhos cheios de lágrimas, inquieta por ter preocupado os
seus: “Mamãe querida, não fique assim, não é nada; fico muito triste por ter te
assustado”. Quem viveu perto dela pôde dizer: “nunca a vimos recusar um sacrifício”.
Se a graça que a atraia era bem poderosa, o ardor com que Anne lhe
correspondia era dos mais generosos. Uma derrota a deixava humilde e confiante: “Foi
porque não rezei bastante…”
Mal tinha quatro anos de idade, quando lhe aplicaram cataplasmas de mostarda
bastante dolorosos: “Arde muito… mas, ah meu Jesus, eu Vo-lo ofereço”. Os familiares
se compadeciam: “Sofres muito, Aninha?" — “Ah, não! Ainda estou aprendendo a
sofrer”. E acrescentava: “Sempre podemos sofrer alguma coisa por Nosso Senhor
porque Ele sofreu por nós”.
Com profunda convicção, aos nove anos, declarou: “Uma vida longa é uma
grande graça, porque nos permite sofrer muito por Jesus”. Vê-se aí manifestadamente
uma altíssima inspiração do Espírito Santo, inspiração concedida por sua perseverante
docilidade.
Quanta renúncia uma fidelidade tão grande exige! “Nós a vemos subir do
mesmo modo que observamos no céu o vôo de uma águiazinha”, nos disse uma alma
contemplativa que nos ajudou a conhecê-la melhor.
Esta criança tinha o zelo muito evidente da glória de Deus, estava “pronta para
suportar tudo por sua fé.” O pecado feria o seu coração: “Ó meu Deus, perdoai-lhes,
eles não sabem o que fazem…”. Percebia surgir nela a vocação do Carmelo “pela glória
de Deus”.
Ela velava, sobretudo nos primeiros sábados de cada mês, para evitar as
menores faltas, para ser agradável à Santíssima Virgem e lhe oferecer nesse dia “mil
sacrificiozinhos em reparação dos pecados cometidos contra a sua honra”. Oração,
rosário, Ave maris Stella, rejubilavam o seu coração e o uniam a Jesus por sua Mãe
Imaculada.
Entre as crianças cuja vida já foi escrita, bem poucas, aparentemente,
receberam tantas graças de recolhimento, de união com Jesus, como a pequena Anne.
Ela também sabia fazer penitência pelos pecadores, desejando fortemente “conversões
extraordinárias… para que todos reconheçam a glória de Deus.” Ela adorava
“quando lhe confiavam uma alma a ser convertida.”
Ela ainda não sabia ler, e já seguia a missa num pequeno missa com imagens,
sem perder um só gesto do padre 5.
Uns dois anos antes da sua primeira comunhão, já falava a todo hora desse dia
e pedia à sua mãe que lhe falasse a respeito 6. Ela queria a todo custo preparar “uma
bela morada no seu coração ao seu querido Menino Jesus”, e para isso não recusava
nenhum sacrifício.
No dia da sua primeira comunhão, a alegria era grandíssima; eufórica, corria de
uma a outra das suas amigas. A Madre Saint Raymond escreveu no seu depoimento que,
depois desse dia, se fosse privada da comunhão por alguma falta, choraria com todas as
forças do seu corpo 7.
Também ficou felicíssima com a primeira comunhão das suas irmãs: ela
transmitia-lhes o seu entusiasmo, vivendo com elas numa perfeita harmonia 8.
Antes de se aproximar da santa mesa de comunhão, demonstrava grande
delicadeza de consciência; um dia, perguntou à mãe: “Será que andei muito dispersa?”
Por vezes, censurava a si mesma pela negligência na oração 9.
Desde a véspera, pensava na eucaristia, por vezes tomava seu pequeno livro,
lia-o antes da Comunhão e se preparava com fervor para a grande ação do dia seguinte;
ela comunicava a sua alegria à sua preceptora 10.
Ela dizia ao irmãozinho: “Ah, como você ficará feliz quando o menino Jesus
estiver no seu coração!”. Mais tarde, enquanto brincava com ele, interrompeu de repente
e propôs com gravidade e docilidade: “e se nós fizéssemos uma curta oração para nos
prepararmos para a comunhão de amanhã?” 11 Em outro dia, nós a vemos ajoelhada
sobre o degrau de uma escada. Interrogada sobre o que fazia, respondeu: “Eu agradecia
ao bom Jesus, disse ela, por querer vir ao meu coração” 12. Seu biógrafo escreveu:
Nas suas visitas ao Santíssimo Sacramento, encontrava no tabernáculo o seu
Deus vivo e, quando a hóstia pairava sobre o altar, seu olhar se fixava sobre o ostensório
com profundidade e intensidade tão impressionantes, com uma chama tão luminosa, que
sua fé parecia tocar na visão 13.
“Para que a vida de Jesus cresça em mim, escreveu Anne, é preciso que minha
alma se alimente muito frequentemente.” “Eu quero comungar sempre que possível”,
também escreveu. “A vida da graça é muito preciosa, e seu alimento, que é Jesus Cristo,
é tão bonito que é preciso desejá-lo de todo coração."14
Ela confiou a uma das suas tias, que era religiosa: “Essa manhã, chorei porque
mamãe não me deixou comungar”; em seguida, acrescentou: “mas agora já estou bem
porque me ensinaram a fazer a comunhão espiritual."
Uma manhã, passou pela sua casa, à caminho da Missa, uma amiga da sua
mãe; a menina lhe perguntou: “A senhora poderia me levar?” e, depois de obter a
permissão da mãe, voltou tão contente que logo lhe perguntaram: “Desejas muito ir a
missa?” — “Ah, sim!, respondeu ela, amo muito ir a missa… e depois, veja, é uma
comunhão a mais.” 15
Durante o santo sacrifício, após ler o evangelho do dia, cerrava os olhos e, com
a cabeça levemente inclinada, com as mãos juntas, deixava-se absorver inteiramente por
um movimento profundo da sua alma, unindo o seu coração ao coração eucarístico de
Jesus. O ardor da sua alma deixava-se trair pelos menores gestos, e quando retornava da
santa mesa, estava “inteiramente perdida em Deus”, a ponto de ser preciso, por vezes,
guiá-la até que reencontrasse o seu lugar 16.
Um dia, perguntou à sua mãe:
— Mamãe, posso rezar sem o livro durante a missa?
— Que o amo. Em seguida, peço por você e pelos demais, para que Jesus os
torne bons. Eu lhe falo sobretudo dos pecadores.
Isso nos faz pensar no que ensinou Santo Tomás: “além da virtude comum,
[há] uma virtude heróica ou divina, que faz certos serem chamados homens
divinos“21 — devemos ver aí uma inspiração especial do Espírito Santo.
O relato dessas virtudes deve nos mover a agradecer ao Senhor que se compraz
em cumular os pequenos e a restabelecer, assim, o equilíbrio na balança do bem e do
mal; a colocar um contrapeso em tantas vilanias que a iniquidade acumula. Nós
encontramos também aí um grande exemplo e, tendo chegado ao limiar da velhice,
percebemos que ainda temos muito a aprender dos melhores dentre esses pequeninos.
Anne de Guigné não foi uma exceção. Outras crianças nos oferecem exemplos
semelhantes. Veja, em um ambiente completamente diferente, a filha de um operário
comunista. Annette 22 perdeu a sua mãe; ela possui quatorze anos e educa seus quatros
irmãos e irmãs. A caridade católica a conquistou e ela converte seus irmãos. Morre em
seguida tentando impedir que seu pai cometesse numa igreja um furto sacrílego.
O pai estava desempregado; os camaradas o convidaram a roubar os vasos
sacros da igreja… para transformá-los em lingotes de ouro e alimentar os filhos. O
honesto operário hesita, mas os outros o desafiam e o pai da Annette entra com eles no
santuário. Ela os acompanha… e se joga sobre um deles que repele este agressor
desconhecido com tanta violência que a criança desmorona no chão. O pai de Annette
corre, reconhece a sua filha e a leva consigo. Ela morre sob as benções do padre, como
uma vítima pura e radiante de alegria. O pai, tocado, retorna à religião.
Não podemos falar desse tema sem lembrar a heroicidade da pequena Nellie,
de quatro anos de idade, cuja vida foi escrita há poucos anos 23. Atormentada pela
osteíte que corroía a sua mandíbula, para suportar as dores ela apertava o crucifixo
contra o seu coração; enquanto lágrimas corriam, ela aceitava tudo, repetindo sem parar:
“Olham como o Deus santo sofreu por mim!”
Podemos mencionar a vida de Lucila de Senilhes, morta aos quinze anos de
idade, oferecendo a sua vida pela Igreja e pela sua pátria 24.
Antes de vir a pedir o sofrimento, essa menina escrevia:
"Minha natureza é tão fraca que ela se queixará — é o que temo, meu Deus, se
vós a fizerdes sofrer; mas então, Senhor, não escutai o que eu vos disser, e quando
tiverdes começado, ó Jesus, não parai mais; eu me entrego a vós; a única coisa que eu
vos demando, é de me ajudar a suportar o sofrimento… Ó meu Deus! Eu vos consagro
os meus quinze anos com todo o fervor da minha alma… Enviai-me o sofrimento…
aumentai o número dos justos que salvarão a França.”
Pouco depois, ela morreu de pneumonia, suportando heroicamente, sem um
suspiro sequer, uma punção na coluna vertebral feita com agulhas bem curtas.
Qual o peso de uma alma de criança tão heróica nas mãos de Deus?
Roma, Angélico.
Uma das palavras que mais amiúde citamos, é o "vivo ergo jam non ergo, vivit
vero in me Christus." (Gal. 2, 20). Repetição plenamente justificada, porque não existe
talvez passagem das Epístolas que expresse mais ao vivo a alma do Apóstolo e possa
também propor à nossa imitação mais sublime ideal de vida; repetição, porém, que, por
sua própria freqüência, talvez algo tenha empanado o brilho do texto e vedado o seu
significado mais profundo. Tão profundo entretanto é este significado, que vem propor
ao teólogo um dos problemas mais interessantes e mais árduos que lhe possam solicitar
a sagacidade. O teólogo com efeito — por felicidade e desdita sua! — não se contenta
de repetir as sentenças bíblicas, nem mesmo de crê-las cegamente, ele deseja entendê-
las e entendê-las o melhor possível, logo conhecer-lhes o por quê e o como. Fides
quaerens intellectum, este legado do primeiro dos grandes escolásticos, deve continuar
mesmo no século vigésimo, a ser o lema de todo teólogo digno desse nome; não é
supérfluo recordá-lo quando assistimos a tantas tentativas para transformar a ciência
teológica em uma mistura de exegese, de patrística e de história dos dogmas. Fides
quaerens intellectum... o teólogo não ignora sem dúvida que, cedo ou tarde (mais cedo
do que tarde!), será obrigado a se deter diante do mistério insondável; acredita, porém,
que um progresso na intelecção, por mínimo que seja, constitui um antegozo daquela
visão na qual conhecemos o Senhor como dEle somos conhecidos.
De acordo. Eis, porém, que esta terceira resposta vem suscitar uma nova e
embaraçante questão: como se processa, concretamente, esta transformação? À quarta
pergunta o aluno de teologia não saberia, por certo, responder e quiçá tampouco saberia
o seu professor. Felizmente um Doutor da Igreja respondeu por nós. S. João da Cruz,
com efeito, desvendou na sua vigorosa plenitude o texto de S. Paulo que nos preocupa.
Depois de explicar como a alma santa tem o seu Amado, Cristo, delineado na
inteligência pelas verdades da fé, e na vontade pelo fogo da caridade, prossegue o
Doutor Místico: "o semblante do Amado tão fiel e vivamente se retrata na vontade
quando existe união de amor, que é verdade dizer que o amado vive no amante e o
amante no amado. O amor, ao transformar os amigos, torna-os a tal ponto semelhantes
que cada qual, pode-se dizer, é o outro e ambos são um só. Com efeito, na união e
transformação de amor, um dá posse de si ao outro e assim cada um vive no outro, um é
o outro e ambos são um só pela transformação de amor. É o que quis dar a entender S.
Paulo ao dizer: "vivo autem jam no ego, vivit vero in me Christus" porque, afirmando
"vivo, porém não vivo eu", significava que apesar de viver, a sua vida não era sua, era
mais divina do que humana, já que ele estava transformado em Cristo. Por isso adianta
que não vivia ele, mas sim Cristo nele, de maneira que sua vida e a a vida de Cristo
eram uma só vida, pela união de amor." (Cântico, estrofe 11, verso 5).
Que haja transformação, não apenas metafórica mas propriamente falando, tal é
a doutrina constante de S. João da Cruz. Poderíamos aduzir, além do texto acima,
muitos outros; bastará citar mais um apenas, particularmente claro: "o matrimônio
espiritual é um estado muito superior ao desposório, porque é uma transformação total
no Amado... união pela qual a alma torna-se divina e Deus por participação, quanto é
possível nesta vida... consumado o matrimônio espiritual entre Deus e a alma, são duas
naturezas em um só espírito e amor de Deus." (Cântico, estr. 27, v. 1). Donde resulta
com evidência que o "vivo ego jam non ego" não deve ser interpretado apenas como
uma sublime exclamação proferida num arroubo de entusiasmo, mas deve ser aceito no
sentido mais próprio e mais forte das palavras, como expressão da pura verdade:
transformação da vida humana de Paulo na vida divina de Cristo, pelo perfeito amor de
Cristo por Paulo e de Paulo por Cristo. É compreensível aliás que o amor de Deus acima
de todas as coisas, primeiro e principal mandamento, seja o instrumento da nossa
deificação, o meio formal de atingirmos a maior perfeição acessível ao viageiro.
2o. É igualmente claro que o amor místico não é amor sensual nem mesmo
amor espiritual de ordem natural, como, por exemplo, a amizade virtuosa. Sem
embargo, já que Sto. Agostinho não se pejou de buscar no amor uma imagem, por
longínqua que fosse, da processão do Espírito Santo, com maioria de razão a análise da
união afetiva natural poderá ministrar-nos uma analogia — imperfeita, porém fecunda
— do amor místico. Donde, nos escritos dos autores espirituais, o freqüente recurso às
imagens nupciais, com espanto e por vezes escândalo de quem não consegue elevar-se
acima da carne e do sangue.
Por que amamos? Porque tal bem concreto nos alicia, nos seduz, nos atrai. E se
nos atrai é porque existe certa conformidade entre aquele bem e o que desejamos —
talvez secretamente — como podendo levar nosso ser a uma perfeição maior. Daí certas
simpatias súbitas e, à primeira vista, inexplicáveis. Apenas percebido, consciente ou
subconscientemente, um bem que nos convenha, este nos faz vibrar, provoca
ressonâncias em toda a nossa psique, e desperta na nossa vontade um impulso que para
ele nos inclina. Impulso, inclinação, atração (pondus amoris, dizia Sto. Agostinho) eis o
que constitui a presença do amado no amante. Como se vê, a presença afetiva muito
difere da presença das coisas na nossa inteligência. A idéia é a coisa presente em nós na
ordem representativa, isto é, como objeto de contemplação, como conquista nossa, presa
nossa. A inteligência é justamente a função que nos permite apoderar-nos dos seres para
reiterá-los em nós, fazendo-os viver em nosso espírito. Ao contrário, o ser amado está
em nós, na ordem afetiva, como princípio de uma atividade cujo termo será a união real
com a coisa e não com uma simples idéia. O mais egocêntrico dos amantes, aquele que
só almeja gozar do objeto amado, começou entretanto por ser dominado, fascinado,
subjugado pelos atrativos do bem exterior a ele. A inteligência se apodera da coisa, mas
a coisa se apodera da vontade. Pela inteligência possuímos a semelhança mental do
objeto em nós, pelo amor somos forçados a sair de nós para ir ter com o próprio objeto e
a ele nos juntar. Como bem explica S. Boaventura (I Sent., d. 10, a. 1, q. 2, sed contra 2)
esta saída de si — este "êxtase" diria o Areopagita — não deve ser entendido
fisicamente, como se o amor fosse uma espécie de fluído emanado da pessoa e indo ao
encontro do objeto. O "êxtase" consiste na inclinação imanente para um objeto real
precisamente enquanto ele existe fora de nosso espírito, a fim de a ele ulteriormente nos
unir, seja pelo dom (amor desinteressado ou "puro") seja pela posse (amor egocêntrico
ou de concupiscência)1. Num e noutro caso, quem ama vive naquele que ama. Em se
tratando do amor egocêntrico, esse viver no objeto amado significa não se contentar
com a posse superficial e exterior, mas procurar um gozo cada vez mais profundo e
total; no amor desinteressado, ao contrário, de tal modo nos identificamos com o bem
ou o mal do amigo, que no amigo gozamos e nele sofremos. (Sto. Tomás, I-II ae, q. 28, a.
2).
Todo este esforço ascético, pertinaz, heróico, persegue uma só finalidade: sair
de si para consumar o dom magnífico do amor, conformando e configurando todas as
energias da alma ao Amado, nada querendo fora de Deus, nada desejando a não ser
Deus, de nada gozando a não ser de Deus, nem mesmo pensando em querer o que Deus
não quer. O ato de caridade perde, aos poucos, este caráter isolado, espaçado, que
apresenta no comum dos fiéis; ele torna-se um incêndio imenso e devorador, que invade
a alma inteira e banha, embebe, tinge-lhe todas as atividades. Esta alma encontra-se, na
verdade, transformada em amor, e pelo amor vive em Deus. Estará,
porém, transformada em Deus? Podemos sem dúvida responder que não mais a si
pertence: é propriedade de Deus; podemos acrescentar até que, assim como vivemos
naquilo que amamos, assim esta alma (que não só tem amor por Deus mas é amor de
Deus) vive em Deus muito mais do que no próprio corpo (Cântico, estr. 8, v. 1); é
evidente, enfim, que esta vida em Deus revestirá crescente intensidade, porquanto em
cada novo ato de amor repercute o eco dos atos anteriores, para torná-lo mais profundo
e forte: o misticismo longe de ser estático é perene movimento do amor a mais amor.
Apesar de tudo, este amor, conquanto faça viver a alma em Deus, não tornará divinos os
atos humanos. Haverá por certo assimilação, imitação; não haverá, propriamente
falando, "transformação". Para isso não é suficiente que a alma viva em Deus, é ainda
necessário que Deus viva na alma. A fim pois de manter toda a sua força ao termo
empregado por S. João da Cruz, urge a intervenção de um novo fator: o amor de Deus
pela alma.
Enquanto na mística neoplatônica, a alma ama a Deus mas não sabe nem tem
meio algum de saber se Deus corresponde a este amor, na mística cristã o amor é
essencialmente mútuo. Se o Santo procura Deus com amor, Deus o procura com
infinitamente mais amor. A esta alma que Lhe deu tudo, Deus tudo dá; tudo, isto é, Ele
mesmo. Não sem motivo empregam pois os místicos as metáforas nupciais a fim de
indicar a reciprocidade do dom. A um tempo conforta a nossa fraqueza e envergonha a
nossa tibieza, o meditar sobre este amor divino que bate à porta de nosso coração
esperando apenas que nós lha abramos, para ser nosso. "Quando uma alma tudo fez
quanto dela dependia, é impossível que Deus, por seu lado, não faça o necessário para a
ela se comunicar, pelo menos no segredo do silêncio; é mesmo mais impossível do que,
ao raio de sol, não iluminar um espaço sereno onde não encontra obstáculos. O sol está
muito pronto a entrar desde a manhã em vosso aposento apenas abristes as janelas. Tal é
a conduta do Deus que vela sobre Israel; Ele não dorme, mas entra na alma
absolutamente destacada de todas as criaturas e a cumula de seus tesouros. Deus está
pois tão disposto a penetrar nas almas, como o sol num aposento". (Llama, estr. 3, v. 3,
§ 9). Apenas requer que Lhe abramos as janelas, isto é, que afastemos os obstáculos.
Pré-requisito indispensável: como poderia Deus ocupar verdadeiramente um coração
que de tudo não estivesse desprendido? Apenas, porém, removemos os obstáculos e este
Amor que estava à porta irrompe e submerge a alma qual torrente impetuosa.
A vontade, por sua vez, que dantes amava de um amor natural e rastejante,
transformada agora, adquire afetos divinos, vive do próprio amor pela qual Deus se
ama5. A memória enfim, que só guardava lembranças das criaturas, agora só recorda os
anos eternos cantados por Davi. Em uma palavra, toda a vida interior acha-se
sobreelevada, transformada, absorvida pela ação do divino amor que a atrai e chama a
si. "O entendimento da alma é entendimento de Deus, sua vontade é a vontade de Deus,
sua memória é a memória de Deus, suas delícias são as delícias de Deus. A sua
substância não é substância de Deus, porque a alma não se pode transformar
substancialmente nEle, todavia, sendo-Lhe unida, nEle estando absorvida, ela é Deus
por participação" (Llama, estr. 2, v. 6).
À alma assim harmonizada, sintonizada com Ele, Deus comunica então a sua
vida profunda, na simplicidade de seus atributos, na fecundidade de suas processões. E
qual é o meio formal, o veículo deste dom supremo? Ainda e sempre o amor, porquanto
o amor divino que tão generosamente se dá, reflete todos os atributos da divindade;
experimentando este amor, portanto, a alma experimenta os diversos atributos divinos,
ela experimenta, por exemplo, que seu Esposo é bom, porque sente que Ele a ama com
infinita bondade; ela experimenta que Ele é sábio e onipotente porque O sente amá-la
com sabedoria e poder; sabe também que Ele é santo, justo, misericordioso, forte,
delicado, puro, verdadeiro, porque descobre todas estas perfeições no amor que ela
experimenta (Llama, estr. 3, v. 1).
Através deste mesmo amor, participa a alma da vida da SS. Trindade; ela
"acha-se transformada numa chama de amor, na qual o Padre, o Filho e o Espírito Santo
lhe são comunicados"6, o que significa: neste amor que é indissoluvelmente de Deus
que o dá e da alma que o vive, oferecem-se as três pessoas divinas como objeto direto
de experiência. A caridade dos Santos atinge, pois, imediatamente, o Padre, o Filho e o
Espírito Santo.
Exclama o Doutor Místico: "Ó almas criadas para estas grandezas e para elas
chamadas, que fazeis e de que vos ocupais? Vossas pretensões são baixezas e misérias a
vossa opulência! Ó deplorável cegueira dos olhos de vossa alma! Sois cegos para
tamanha luz e surdos para tão grandes vozes; não vedes que, procurando grandezas e
glórias, permaneceis miseráveis e baixos, tornai-vos ignorantes e indignos de tantos
bens?" (Cântico, estr. 38, v. 1). E se porventura sentimo-nos a uma distância quase
infinita deste amor transformante, não nos deixemos desalentar, mas sigamos
corajosamente o conselho do santo Doutor: "é importantíssimo para a alma muito se
exercitar no amor" (Llama, estr. 1, v. 6), pois não é o conhecimento de Deus, por mais
sublime seja ele, que nos dá a posse de Deus, mas sim o amor, porquanto só o amor
chama, provoca, a visita divina. Como as águas frescas atraem o veado ferido e alterado,
assim o nosso amor se for generoso, ardente, constante, obterá com que Deus se apresse
em vir abeberar-se na fonte do nosso coração (Cântico, estr. 12, v. 5).
A Escola Francesa
O que normalmente concordamos em chamar “Escola Francesa de
Espiritualidade” refere-se ao movimento do Oratório de França, criado por Bérulle. Esse
movimento inclui os “Quatro Grandes”, quais sejam, Cardeal Pierre de Bérulle, Charles
Condren, Jean-Jacques Olier e São João Eudes. Devemos agora contar-lhes, mesmo que
só de passagem, a história e o matiz específico que trouxeram à Escola.
Dirigido por São Francisco de Sales, que o pôs em contato com o Oratório de
São Felipe Néri, e instado pelo futuro arcebispo de Paris, Henri de Gondi – Bérulle
(1575-1629) forma uma pequena comunidade de padres na Rua Saint-Jacques no centro
de Paris e próximo ao convento das Carmelitas, da qual o fizeram diretor espiritual.
Junto a cinco companheiros que pronunciaram os votos de servidão a Jesus, ele ingressa
no Oratório em 1615, ano em que se promulgam oficialmente os decretos de Trento. Os
Oratorianos deram uma especial atenção à liturgia, de molde que os fiéis com
benevolência apelidaram-nos de “os padres que cantam belos hinos”. O Oratório vai ser
um instrumento basilar da Reforma Católica, pelo fomento às missões, pela formação de
escolas e pela criação de seminários.
São João Eudes (1601-1680), após vinte anos de Oratório, deixou-o em 1643.
Assim como Bérulle, a fim de auxiliar a alma cristã a penetrar “no interior dos mistérios
de Cristo”, ele a recorda das promessas do batismo e, sob forma litúrgica, das devoções
medievais, quais sejam, o Coração de Maria e o Coração de Jesus. Para ele, precisamos
permitir que o Espírito Santo “informe Jesus em nós, prolongue a Sua vida na terra”. A
liturgia da festa do Sagrado Coração, que ele instituiu, diz: “Enquanto estivermos no
mundo, dignai-vos que vivamos em Vós... e transformai-nos num outro Jesus na terra”.
Sem dúvida, no século anterior havia livros de oração e meditação, mas o séc.
XVII testemunha um acúmulo crescente de métodos de oração, baseados na vida de
Cristo, segundo o espírito de Santa Teresa d’Ávila e dos Oratorianos. Na esteira da
Reforma Tridentina da Missa e do Breviário, Bérulle e os seus amigos desenvolvem
muitíssimo o espírito litúrgico. Esse estímulo acarreta um renovo da devoção à
Santíssima Eucaristia, em virtude da adoração recém introduzida à Real Presença, uma
nova prática estimulada pela Companhia do Santíssimo Sacramento. A devoção ao
Sacratíssimo Coração dissemina-se por toda parte, após as aparições a Santa Margarida
Maria em Paray-le-Monial, com o auxílio de Jesuítas, como São Cláudio de la
Colombière e Lallemant. Esse é um dos melhores meios de contrapor a influência
incomoda e prejudicial dos jansenistas de Port-Royal.
A leitura espiritual
é quase essencial para seu progresso, senão para sua salvação. Para nossas
mentes, essa prática está no mesmo nível de importância da oração mental e de outros
exercícios devocionais, e ela, na verdade, está tão ligada a esses outros exercícios,
especialmente o essencial de oração mental, que, sem ela – a não ser que se encontre
um substituto – não há possibilidade de avançar na vida espiritual; até mesmo a
perseverança na vida espiritual torna-se muito duvidosa (Boylan)
A leitura espiritual, portanto, pede esforço para a “assídua e atenta leitura de
livros espirituais” (cf. Antonio Royo Marín, A Teologia da Perfeição Cristã). Ela
demanda uma concentração distinta.
O maior impecilho
Os ingredientes do pensamento
De quem é a culpa?
Não temos dúvida de que provavelmente a metade, senão mais, das misérias de
nossos tempos desapareceriam rapidamente da face da terra se as pessoas,
universalmente, fossem induzidas a cumprir fielmente apenas duas condições: que elas
vivam de acordo com os ditames da razão reta e do bom senso, observando as leis
fundamentais da saúde e do bem estar, e que elas façam um esforço sincero de moldar
sua conduta moral de acordo com os Dez Mandamentos e as máximas do Evangelho
(Why Must I Suffer?)
Verdade seja dita, nossas indiscrições passadas bastam para explicar nossa
imaginação sabotada no presente. Nossas compulsões indesejadas realmente são
inexplicáveis? Será que nossas ansiedades e temores sobre o futuro não têm alguma
relação com a leitura desses sites que só anunciam desgraças? Será que nossa mania de
buscar defeitos em nós mesmos não tem a ver com fofoca e o uso de redes sociais?
Nossas fantasias com programas de TV sexualmente sugestivos? Será, ao menos, que
nossa névoa mental não tem algo a ver com um fluxo ininterrupto de mensagens de
textos?
O trauma autoinfligido decorrente de tratarmos como nossos superiores esses
dispositivos dispensadores de distrações é óbvio. Recusar-nos a modificar nosso
relacionamento com a mídia moderna é um patente abandono do dever, tanto natural
quanto sobrenatural. Se não pudermos nos desconectar da matrix completamente,
devemos ajustar nosso comportamento nela. Isso é obrigatório, um sine qua non, se
queremos adotar a prática da leitura espiritual, ou alguma outra que gerará frutos. Pois a
leitura espiritual, por si mesma, não pode abafar essa cacofonia toda. A imersão
imoderada na mídia moderna
produz um desgosto, não apenas pelas coisas que realmente importam, mas
também pelo estilo e modo nos quais essas coisas são apresentados nos livros
espirituais. O resultado é que, quando alguém, por um esforço, força a si mesmo a
abrir um livro espiritual, é necessário um esforço ainda maior para o manter aberto, e
não fechá-lo com um bocejo (Boylan)
Sacudir-nos e sair dessa inércia – na realidade, um efeito colateral da
intemperança – não é fácil. (Ah, se ao menos tivéssemos apetite por outra coisa!) Ainda
assim, a leitura espiritual, aquela atividade que, no início, achamos tão desgostosa,
contém, em si, o impulso de que necessitamos tão desesperadamente.
O antídoto
O que acontecerá?
Como era Seu costume quando pregava, Nosso Senhor vem a nós
… Nenhum homem pode servir a dois senhores” (Mt 6,24) Então o que é mais
provável que “guarde os vossos corações e os vossos espíritos em Jesus Cristo” (Fl 4,7):
o Novo Testamento, ou a Netflix? Porque não pode ser os dois.
A Missa e a morte
Mas para que se faça, desde agora, o sacrifício de nossa vida, é mister fazê-lo
em união com o sacrifício do Salvador perpetuado sacramentalmente no altar, durante a
Missa, e em união com o sacrifício de Maria, Medianeira e Co-redentora. E para bem
observar tudo o que tal oblação deve conter, convém lembrar-se aqui dos quatro fins do
sacrifício: a adoração, a reparação, a suplicação e a ação de graças. Consideramo-las
sucessivamente, examinando as lições que trazem.
Adoração
Jesus sobre a Cruz fizera de Sua morte sacrifício de adoração. Fora a mais
perfeita realização do preceito do decálogo: “Adorarás o Senhor, teu Deus, prestar-lhe-
ás o teu culto e só jurarás pelo seu nome” (Dt 6, 13). É com essa palavra divina que
Jesus respondeu a Satã, que lhe dissera: “Dar-Te-ei todos os reinos do mundo, se Tu te
prostrares perante mim para me adorares, si cadens adoraveris me”.
Adoremos Deus, em união com Nosso Senhor e sua Santa Mãe, e digamos de
todo coração, como nos insta S. S. [São] Pio X: “Senhor, meu Deus, a partir de hoje, de
coração tranqüilo e submisso, aceito de vossa mão o gênero de morte que vos agradará
me enviar, com todas as suas angústias, todas as suas penas e todas as suas dores”.
Todo aquele que, uma vez na vida e no dia de sua escolha, tiver recitado esse
ato de resignação após a confissão e a comunhão, ganhará uma indulgência plenária que
se lhe aplicará à hora da morte, conforme a pureza da consciência. Mas é recomendável
repetir a cada dia esse sacrifício, para assim nos prepararmos a fazer de nossa morte, no
instante derradeiro, em união com o sacrifício do Cristo continuado em substância sobre
o altar, um sacrifício de adoração, considerando o domínio soberano de Deus, a
majestade e a bondade Daquele “que conduz a profundos abismos e deles tira
― Dominus mortificat et vivificar, deducit ad inferos et reducit” (Dt 32, 39; Tb 13, 2;
Sb 14,13). Essa adoração de Deus, mestre da vida e da morte, se pode fazer de modos
bem diferentes, conforme as almas sejam mais ou menos esclarecidas: não é realmente
melhor unir-se desta feita, a cada dia, ao sacrifício de adoração do Salvador?
Sejamos desde agora adoradores em espírito e verdade; que a adoração seja tão
sincera e profunda que se reflita verdadeiramente em nossa vida e nos disponha àquela
que devemos possuir no coração no instante final.
Reparação
Ele satisfez por nós, que somos os membros de Seu Corpo Místico. Mas como
a causa primeira não torna inúteis as causas segundas, o sacrifício do Salvador não torna
inútil o nosso, mas o suscita e lhe confere valor. Maria deu-nos o exemplo ao unir-se
aos sofrimentos de seu Filho; assim, satisfez por nós, a ponto de merecer o título de Co-
redentora.
Ela aceitou o martírio de seu Filho ― não apenas querido, mas legitimamente
adorado ― que amava com coração afetuosíssimo, desde que o concebera
virginalmente.
Com heroísmo ainda maior que o do patriarca Abraão, pronto a imolar seu
filho Isaac, Maria, ao oferecer seu Filho por nossa salvação, viu-o realmente morrer
com atrocíssimos sofrimentos físicos e morais. Não veio nenhum anjo para impedir a
imolação e dizer a Maria, tal como ao patriarca, em nome do Senhor: “agora Eu sei que
temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único”. (Gn 22, 12);
Maria viu realizar-se efetiva e plenamente o sacrifício reparador de Jesus, e em face ao
qual o de Isaac não era senão a figura em preâmbulo. Ela sofreu então o pecado na
medida de seu amor por Deus, a quem o pecado ofende; por seu Filho, a quem o pecado
crucificava; por nossas almas, a quem o pecado corrompe e mata. A caridade da Virgem
ultrapassava incomensuravelmente a do patriarca; e nela, ainda mais que nele,
realizaram-se as palavras que este escutara: “pois que fizeste isto, e não me recusaste
teu filho, teu filho único, Eu te abençoarei. Multiplicarei a tua posteridade como as
estrelas do céu” (Gn, 22, 16-17).
Suplicação
São Paulo escreve aos Hebreus (5, 7): “[Cristo Jesus] nos dias de sua vida
mortal, dirigiu preces e súplicas, entre clamores e lágrimas (...) e foi atendido pela sua
piedade (... ) tornou-se autor da salvação eterna para todos os que Lhe
obedecem”. Recordemo-nos da prece sacerdotal do Cristo após a Ceia e antes do
sacrifício da Cruz: Jesus então rezou por seus apóstolos e por nós... “porque vive sempre
para interceder em seu favor” (Hb 7, 25). Particularmente, durante o sacrifício da
missa, onde Ele é o principal sacerdote.
Jesus, que rogara por seus algozes, roga pelos moribundos que se recomendam
a Ele. Com Ele, a Virgem Maria intercede, recorda-se do que nós muitas vezes lhe
pedimos: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa
morte”.
Para nos dispormos desde agora a fazer esse ato de suplica na hora derradeira,
oremos com freqüência, ao assistir à Santa Missa, por aqueles que vão morrer no correr
do dia. Conforme a recomendação de S. S. Bento XV, façamos celebrar uma missa de
vez em quando para obter, através desse sacrifício de suplica de valor infinito, a graça
da boa morte ou a aplicação dos méritos do Salvador. Façamos também celebrar
algumas missas por alguns de nossos parentes e amigos que nos causaram inquietação
acerca de sua salvação, para lhes obter a graça derradeira, e por aqueles que teríamos
escandalizado e talvez distanciado do caminho de Deus.
A ação de graças
Enfim, cada qual deveria fazer de sua morte, em união com Nosso Senhor e a
Virgem Maria, um sacrifício de ação de graças, por todos os benefícios recebidos desde
o batismo, rememorando quantas absolvições e comunhões nos remiram ou guardaram
no caminho da salvação.
A mortificação cristã
Nota: Todas as práticas de mortificação que reunimos aqui são recolhidas dos
exemplos dos santos, especialmente Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Santa
Teresa, São Francisco de Sales, São João Berchmans, ou são recomendadas por
reconhecidos mestres da vida espiritual, como o Venerável Louis de Blois, Rodriguez,
Scaramelli, Abade Allemand, Abade Hamon, Abade Dubois, etc.
Artigo 1 – Objeto da mortificação cristã
III) A atividade racional e livre, princípio dos pensamentos e dos juízos, e das
determinações da nossa vontade;
2º Rogue a Deus com freqüência, rogue a cada dia que lhe impeça, com sua
graça, de transpassar os limites da necessidade, ou deixar-se levar pelo atrativo do
prazer;
3º Não coma nada entre as refeições, a menos que haja alguma necessidade ou
razões de conveniência;
8º Se sente alguma ligeira indisposição, evite irritar-se com os demais por seu
mau humor; deixe aos seus irmãos o cuidado de queixar-se; pelo que lhe cabe, seja
paciente e mudo como o divino Cordeiro que levou verdadeiramente todas as nossas
enfermidades;
9º Guarde-se de pedir uma dispensa ou revogação da ordem do dia pelo
mínimo mal-estar. “Há de se fugir como da peste de toda dispensa em matéria de
regras“, escrevia São João Berchmans;
8º Prescinda de ir aquecer-se, a menos que lhe seja necessário para evitar uma
indisposição;
10º Mortifique a imaginação quando ela lhe seduz com a isca de um cargo
relevante, quando se entristece com a perspectiva de um futuro sombrio, quando se irrita
com a recordação de uma palavra ou de um ato que o ofendeu;
14º Tenha cuidado de não contrair certos costumes que, sem ser positivamente
maus, podem chegar a ser funestos, tais como o costume de leituras frívolas, dos jogos
de azar, etc.;
15º Trate de conhecer seu defeito dominante, e quando o tiver conhecido,
persiga-o até os últimos recantos. Por isso, submeta-se de boa vontade ao que poderia
haver de monótono e de aborrecido na prática do exame particular;
16º Não é proibido ter um bom coração e mostrá-lo, mas fique atento ao perigo
de exceder o justo meio. Combata energicamente os afetos demasiado naturais, as
amizades particulares, e todas as sensibilidades moles do coração.
5º Prefira escutar os demais do que falar você mesmo; mas, sem embargo, fale
quando convenha, evitando tanto o excesso de falar demais, que impede os outros de
expressar os pensamentos, como o de falar de menos, que denota indiferença ofensiva
pelo que as outras pessoas dizem;
6º Não interrompa nunca quem fala, e não corte com uma resposta precipitada
quem lhe pergunta;
7º Tenha um tom de voz sempre moderado, nunca brusco nem cortante. Evite
os “muito”, os “extremamente”, os “horrivelmente”, etc.: não seja exagerado ao falar;
13º Ame ser esquecido e tido por nada: é o conselho de São João da Cruz, é o
conselho da Imitação: não fale apenas de si mesmo nem para bem nem para mal, mas
busque pelo silêncio fazer-se esquecer;
15º Não alimente desejos frívolos: “Desejo poucas coisas, e o pouco que
desejo, o desejo pouco”, dizia São Francisco;
16º Aceite com a mais perfeita resignação as mortificações ditas da
Providência, as cruzes e os trabalhos ligados ao estado em que a Providência o pôs.
“Quanto menos há de nossa eleição, mais há de beneplácito divino”, dizia São Francisco
de Sales. Queríamos escolher nossas cruzes, ter outra diferente da nossa, levar uma cruz
pesada que tivesse ao menos algum brilho, antes que uma cruz leve que cansa pela
continuidade: ilusão! Devemos levar a nossa cruz, e não outra, e o mérito disto não se
encontra na qualidade dela, mas na perfeição com que a levamos;
17º Não se deixe turbar pelas tentações, pelos escrúpulos, pelas securas
espirituais: “O que se faz durante a aridez é mais meritório diante de Deus do que o que
se faz durante a consolação”, dizia o santo bispo de Genebra;
18º Não devemos entristecer-nos demais pelas nossas misérias, mas nos
humilhar bastante. Humilhar-se é uma coisa boa, que poucas pessoas compreendem;
inquietar-se e impacientar-se é uma coisa que todo o mundo conhece e que é má, porque
nesta espécie de inquietude e de despeito, a maior parte pertence ao amor próprio;
6º Seja modesto na compostura. Nenhum porte era tão perfeito como o de São
Francisco; tinha sempre a cabeça direita, evitando igualmente a ligeireza que a gira em
todos os sentidos, a negligência que a dobra adiante e o humor orgulhoso e altivo que a
inclina para trás. Seu rosto estava sempre tranqüilo, livre de toda preocupação, sempre
alegre, sereno e aberto, sem ter, todavia, uma jovialidade indiscreta, sem risadas
ruidosas, imoderadas ou demasiado freqüentes. Quando se encontrava só mantinha-se
em tão boa compostura como diante de uma grande assembleia. Não cruzava as pernas,
não apoiava a cabeça no encosto. Quando rezava, ficava imóvel como uma coluna.
Quando a natureza lhe sugeria gostos, não a escutava em absoluto;
2º Aguente tudo de todos e aguente até o fim e cristãmente. Não se deixe levar
jamais por essas impaciências tão orgulhosas que fazem dizer: Que posso fazer de tal ou
qual? Em que me interessa o que diz? Para que preciso do afeto, da benevolência ou da
cortesia de uma criatura qualquer, e desta em particular? Nada é mais distante de Deus
que esses desprendimentos altaneiros e essas indiferenças depreciativas; melhor seria,
certamente, uma impaciência;
4º Ame elogiar os irmãos, sobretudo aqueles a quem a sua inveja se dirige mais
naturalmente;
7º Quando lhe custar fazer um favor, ofereça-se a fazê-lo: terá duplo mérito;
Conclusão
Em geral, negue à natureza o que ela pede sem necessidade. Saiba fazê-la dar o
que nega sem razão. Seus progressos na virtude, disse o autor da Imitação de Cristo,
serão proporcionais à violência que cometa contra si.
Dizia o santo Bispo de Genebra: “Há de se morrer a fim de que Deus viva em
nós: porque é impossível chegar à união da alma com Deus por outro caminho, senão o
da mortificação. Estas palavras: Há de se morrer! são duras, mas serão seguidas de uma
grande doçura, porque não se morre a si mesmo sem se unir a Deus por essa morte”.
Quisera Deus que pudéssemos referir a nós com pleno direito as seguintes
palavras de São Paulo: “Em todas as coisas sofremos a tribulação… Trazemos sempre
em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste também em
nossos corpos” (2Cor 4, 10).
Essa pobre alma pode cair em dois extremos opostos que se originam da
mesma desordem da indolência. O primeiro é simplesmente desistir de qualquer esforço
solicitado a ele. Uma consequência é procurar consolo através do sono contínuo. Numa
parábola do Evangelho, Nosso Senhor diz que a erva daninha foi semeada no campo
enquanto os homens dormiam. A erva daninha do vício entra na alma quando ela foge
do esforço necessário para se corrigir, buscando o sono profundo da indolência
negligente. O outro extremo que tenta escapar da vontade de Deus é a atividade
excessiva. Foge-se da luta necessária para realizar a vontade de Deus em prol de um
ativismo exagerado. Em vez de se cumprir o dever de estado, considerado muito
trabalhoso, procura-se outra atividade para substitui-lo. Gasta-se muito tempo e esforço
realizando algo, que não é essencial. Essa atividade pode, por si só, ser boa, mas é uma
fuga do dever de estado. Os exemplos a seguir são frequentemente observados: Pode-se
ficar tentado a fugir da família sob o pretexto de caridade para os outros e deixar as
crianças sem os cuidados necessários. Uma mãe que não prepara as refeições para os
filhos porque quer aperfeiçoar sua espiritualidade está fugindo das suas obrigações. O
pai que passa todo o seu tempo livre no bar ou na academia está recusando seu dever
paterno.
A procura da santidade
Estas almas aflitas dos que nos lêem e nos estimam, precisam de nossas
orações. Uma das cartas que recebemos diz: “rezem por mim também pois não é fácil
resistir e permanecer quando nem à igreja se vai mais. Quem diria, Deus meu! Eu que
assistia duas missas diariamente...”
***
Se o Senhor permitiu que sofrêssemos todo o horror do que hoje nos assola —
e é sobretudo horrível ver agora uma atoarda enorme de vozes eclesiásticas, cuja
linguagem está em evidente discordância com a autêntica, antiga e perene doutrina da
Igreja sem que tal discordância pareça abalar o universo como seria de esperar — Ele
não poderia deixar de socorrer-nos, aos simples fiéis, com as graças adequadas. Tão
extraordinários como são os tempos, tão grave como é essa profundíssima e terrível
crise, pediriam, evidentemente, graças especiais, igualmente grandiosa para que nós, os
pobres e infelizes membros do corpo discente e dirigida da Igreja pudéssemos enfrentar,
cumprindo o nosso papel, as insídias do Inimigo que invadiu os nossos átrios, segundo a
expressão do próprio Paulo VI que tem sobre sua memória, indiscutivelmente, a
responsabilidade maior por todo esse descalabro, do qual restam ruínas fumegantes em
torno, para quem ainda tem olhos de ver.
Graças especiais extraordinárias, nos foram dadas. Temos diversos sinais disso
na vida de todos nós; de uns, para que, gemendo, constatem que ainda resistem, embora
a angústia e a aflição pareçam, às vezes, esmagar-lhes o peito; de outros para,
infelizmente, terem que responder um dia pelo mau uso que fizeram delas, às vezes por
rejeição imediata do socorro que lhes fora dado, com o que, ainda por cima, cometem
injúria contra Deus. Todos se lembram, certamente, o quanto era comum pensar-se e
como todos nós pensamos que assim devíamos pensar, que certas obrigações não nos
dizem respeito porque “não somos santos”, como acima mencionamos. Essa idéia
estabelecia uma divisão entre alguns homens, chamados à santidade e os demais para os
quais apenas uma espécie de lista de regras de comportamento se tinha por obrigatória.
A santidade eminente dos altares, esta, realmente, é dom de Deus apenas para algumas
almas grandes, lâmpadas ardentes, que o próprio Senhor Deus acende como farol e guia
para os outros homens. Mas estes, para os quais tais guias são propostos, que espera o
Senhor deles? Como não ver o imperativo “sede perfeito como vosso Pai celeste é
perfeito” se dirige a todos e como não compreender que para isso são acesas as
lâmpadas? A santidade não-eminente, escondida no dia-a-dia e na pequenez de nossa
condição atual, é dever de todos. É para buscá-la que estamos aqui. É por ela que Deus
nos fez. É ela a longa aprendizagem do amor divino que Deus quis para nós antes de
admitir-nos no céu. Por quê? Porque o Senhor, criador do céu e da terra, não quis tirar
do nada uma multidão inumerável de pequenos robôs, os quais, dando-se corda,
repetissem com voz de lata: “Santo, santo, santo...” O senhor não quis tirar do nada e até
tomou como sua a nossa natureza e a assumiu para vencer o pecado e o mal pela entrega
de seu próprio Filho à morte de Cruz, para que pudéssemos aprender a receber
docilmente a Sua graça e recebendo-a, e cada vez melhor, alcançássemos a santidade
que nos faz dizer, “Abba, pai”, como um filho amoroso cujo coração experimenta dor só
com a lembrança de poder de algum modo ofender ou contristar a vontade daquele que
o gerou.
No nosso caso particular, dos homens de nosso tempo, o Senhor nos deixou as
obras do grande doutor da Igreja, o Padre dominicano Reginald Garrigou-Lagrange que
tomou para si a doutrina comum de São Tomás de Aquino e de São João da Cruz, de
Santa Teresa d’Ávila, de São Francisco de Sales, de Santa Terezinha e inúmeros outros
grandes doutores dessa antiga ciência mística que o Magistério da Igreja aprovou
especificamente em inúmeros atos e pronunciamentos.
O Padre Garrigou bateu-se sobretudo pela afirmação, que hoje nos é mais fácil
compreender (e esta é outra graça extraordinária que recebemos) de que a santificação
pessoal tem uma dimensão normal, isto é, à medida do homem comum; que é obrigação
de todos procurá-la e para todos há um modelo pessoal de santificação que pode e deve
ser buscado com a ajuda da graça de Deus.
***
A psicologia do amor
Quando se trata das crianças, já de há muito que é assim. Não se pode mais
imaginar um adolescente que ame o seu estudo, como aquela obrigação amorosa que o
eleva e o forma no saber. Nem se pode dizer que é culpa deles, pois há décadas que o
estudo é sinônimo de dinheiro. Eles se arrastam até uma faculdade e são precipitados no
liquidificador do que se chama "mercado de trabalho" onde brilha a purpurina de um
futuro paradisíaco do dinheiro que tudo compra. Eles também, pobres crianças, só
pensam na sexta-feira e nas férias. Depois, é a praia, as festinhas, a liberdade. Daí a
grande revolta típica do nosso mundo "evoluido" quando os pais procuram orientar seus
filhos em alguma atividade formadora, cultural ou religiosa. Eles encaram esta tentativa
como o grande obstáculo à sua liberdade e já não temem mais enfrentar os pais e lhes
jogar em rosto uma série de insultos.
Amor ou amor
No entanto, ainda hoje, sabemos que certos fatos ocorrem, na vida das pessoas,
que contrariam essa cruel orientação subliminar que recebemos da sociedade moderna.
Falo, por exemplo, da mãe que passa a noite cuidando do filho doente ou do bebê que
chora. Igualmente, o soldado. Antigamente os soldados eram formados para dar a vida
pela Pátria. Hoje, movidos pelo espírito do "funcionário público", nossos soldados são
requisitados para combater a dengue, enquanto os marginais assassinos nos devoram e
riem-se das autoridades. Mas antigamente havia soldados que davam suas vidas pela
Pátria. Os próprios governantes, quando não são movidos pela propina fácil ou por um
sonho ideológico, se abstêm de muitas coisas para trabalhar pelo bem-comum.
E eu pergunto: o que os move a renunciar a tudo por uma obra que lhes é
imposta de fora, que não corresponde ao que eles gostariam de estar fazendo, mas que
fazem assim mesmo? O que pode ser tão forte a ponto de tornar o homem infeliz caso
não fizesse aquilo? A resposta é simples: eles são movidos pelo Amor. Já sabia disso
Camões:
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
Mas se é o Amor que os move, então o que move os homens na busca
desenfreada pelos prazeres e pela liberdade, como constatamos no início? E eu
respondo: o que move os homens a fazer somente o que lhes agrada é o amor
sentimental. Chamo assim a esta paixão da alma que nos move em busca do bem
deleitável, do bem que nos agrada. Nem sempre ele é mau, pois alguns objetos são
dignos do nosso amor sentimental. O que vai determinar a retidão desse amor é
justamente a sua afinidade com o Amor espiritual, de modo a não contrariá-lo. Esse
amor sentimental, que escrevo com letra minúscula, distingue-se, por outro lado, do
Amor maiúsculo porque este último é espiritual, ato da nossa vontade espiritual e livre,
que nos move segundo a razão, mesmo quando vai contra aquilo que nossas paixões nos
mostram como agradável e prazeiroso.
É assim que nossas obrigações são obras de um Amor mais profundo e
verdadeiro. Mesmo se não quiséramos fazer aquilo, temos uma determinação total e
certeira de que devemos fazer, e esta determinação é que caracteriza o verdadeiro
querer, o verdadeiro Amor. E este Amor é tão determinante que deixa longe para trás
todos os prazeres que gostaríamos de ter: a mãe esquece o seu sono, o pai esquece o seu
cansaço, o soldado esquece a sua vida, porque a Pátria o chama, conta com ele, para que
ele realize o seu Amor total, como um dia, ainda moço, ele sonhou poder realizar. O
fato é que o Amor de obrigação nos determina até a morte.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Virtudes e vícios
Uma vez estabelecida a existência dos dois amores em nós, um baixo e
sentimental, outro elevado e espiritual, procuremos estabelecer suas características
próprias: Enquanto o amor sentimental é todo centralizado em si mesmo, sendo fonte de
egoísmo, já o Amor espiritual projeta-se para fora de si, em busca de um objeto mais
elevado. Deus e o próximo. É amor de Caridade.
Enquanto o amor sentimental tem a tendência de nos inclinar à irritação diante
dos empecilhos para a nossa liberdade, já o Amor espiritual nos inclina à resignação, à
paciência.
Enquanto o amor sentimental é passageiro e volúvel, mudando toda hora,
levando-nos de um lado a outro, sem repouso, o Amor espiritual é constante, firme,
repousante e pacificador.
Enquanto o amor sentimental é fonte de muitas mentiras, traições e discórdias,
o Amor espiritual é fonte de verdade, de fidelidade e de amizade. E diante de realidade
tão rica e fantástica, gritará mais uma vez o Poeta:
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
O amor de sentimentos é, então, fonte de vícios; o outro, de todas as virtudes.
Este é o drama do nosso tempo. Sabemos que os homens são empurrados
desgraçadamente a viver de vícios horríveis que os impedem, cada dia mais, de ver o
abismo do inferno que se aproxima a passos largos. Com um mundo movido pelo lazer,
pelos esportes, pelo tempo livre, torna-se difícil explicar aos homens, já desatentos, que
erraram o caminho de casa, que estão se embrenhando no caminho de uma perdição
eterna. Até algumas décadas atrás, quando a influência da Igreja ainda se fazia sentir, o
mundo girava em torno dessas obrigações geradoras de virtude. Todos tinham suas
ocupações, todos tinham seus trabalhos caseiros, todos viviam para cumprir seu dever.
E isso gerava um mundo de honestidades, de retidão que, se não impedia o pecado,
tornava-o uma coisa feia e vergonhosa para quem o praticava e para quem assistia.
Alegrias ou angústias
Falta ainda considerar que o fim da vida de prazeres sentimentais é a náusea, a
depressão, reações estranhas sem explicações claras. Assim ensinava São Francisco de
Sales, bispo e príncipe de Genebra, doutor da Igreja:
O amor é suave quando se aplica a um objeto digno de ser escolhido entre mil.
Já o amor baixo e caduco, que se prende à criatura em detrimento da honra devida ao
amor do Criador, em vez de ser doce e suave, é desagradável ao extremo, pois enche o
coração de perturbações, de precipitações e de angústias. (Sermão para o 17º domingo
depois de Pentecostes - 1618)
Ou seja, uma vez passado o prazer, o amor sentimental gera na alma uma
melancolia torpe. Esta acaba projetando a alma a buscar novamente os prazeres, e cada
vez mais fortes, para evitar esses momentos de tristeza. Os sentimentos funcionam na
alma como uma droga. Pior até do que as drogas, pois são geradas e alimentadas dentro
de si. Uma usina de entorpecentes psíquicos, é a alma mergulhada nos amores
sentimentais e fazendo deles a sua vida. Usina que termina numa super-produção a
tempo integral e que destrói por dentro todos os recursos naturais e sobrenaturais
acumulados nos primeiros anos de vida, nos dias de inocência e castidade. A alma que
se abriu à satisfação de sua vontade, contamina-se, fecha-se sobre si mesma e definha
até a morte do pecado.
Mas, por outro lado, o Amor de Caridade, o Amor mais profundo, que nos
move ao sacrifício, à penitência, à tarefa árdua e necessária, dever que precisa ser
cumprido, gera na alma a alegria simples e pacífica de quem sabe que cumpriu o seu
dever. Qual a mãe que não se alegra quando vê que seu filho ficou curado? ou o pai que
não se alegra ao ver que seu trabalho é bem reconhecido e recompensado? Qual o aluno
que não se alegra com uma boa nota na prova? Ah! vá, soldado, alegra-te também
quando tiver a oportunidade de dar tua vida pelos teus irmãos. Alegra-te em morrer na
paz de Deus, porque cumpriste o maior de todos os deveres: "Não há maior ato de amor
do que dar a vida por aqueles que amamos".
Amar a Deus sobre todos os amores
Ora, esta belíssima verdade dos dois amores de nossa alma explica de modo
impressionante uma série de dúvidas acerca do Amor e restabelece a ordem das peças
desarrumadas da sociedade em que vivemos. Quantas vezes ouvimos alguém dizer que
é muito difícil cumprir o primeiro mandamento da Lei de Deus: Amar a Deus sobre
todas as coisas. As pessoas dizem isso porque confundem os dois amores. Acham que
temos de ter para com Deus o amor de sentimentos que temos, junto com o Amor
espiritual, pelas pessoas que nos são caras, os pais, os esposos, os filhos. E acham difícil
colocar Deus, que não vemos, na frente desses amores naturais, que são nobres e belos
porque iluminados pelo Amor mais elevado. Pois basta entender isso: quando vivemos
em função do Amor espiritual, sabemos que, em muitas ocasiões, renunciaremos a nós
mesmos por uma causa mais elevada, mais importante do que nós. E essa renúncia de si
mesmo já pode ser toda ela canalizada ao Amor de Deus. Os homens deveriam
compreender que é por amor de Deus que a mãe abandona o sono pelo filho, que é pelo
Amor de Deus que o pai trabalha, que a criança estuda, que o soldado dá a sua vida. E
esse Amor de Deus se manifesta em nós, pelo menos, pelo dever cumprido com
prontidão e perfeição. E a luz da verdade ilumina também a alegria de que falávamos
acima, pois antes de se alegrar pelos bons resultados dos seus deveres, os homens se
alegram pelo simples fato de cumprir seu dever e agradar a Deus. E essa alegria brota da
paz que nos vem na consciência. Veja, caro leitor, que beleza esta passagem da Epístola
de São Paulo aos Colossenses que ilustra e fundamenta esta verdade:
"Não cessamos de orar por vós e de pedir que sejais cheios do conhecimento
da vontade de Deus, em toda sabedoria e inteligência espiritual, para que andeis de um
modo digno de Deus, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra e
crescendo na ciência de Deus, confortados com toda fortaleza pelo seu poder
glorioso, para suportar tudo com paciência, longanimidade e alegria, dando graças a
Deus Pai, que nos fez dignos de participar da sorte dos santos, na luz, o Qual nos
livrou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do Filho do seu Amor, no qual,
pelo seu Sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados".
Fica assim claro que a grande doença da nossa sociedade é a falta do Primeiro
Mandamento. Os homens não querem mais amar a Deus porque não querem mais
cumprir suas mínimas obrigações, porque não entendem mais que essas obrigações são
objeto de nosso amor, o qual, quando bem orientado, nos une a Deus no cumprimento
do Mandamento do Amor. Por isso podemos dizer que seria preciso restaurar a
civilização cristã lançando bombas do verdadeiro Amor, do Amor de Deus, no meio dos
homens esquecidos Dele. E estas bombas explodiriam em atos que nada mais seriam do
que o dever cumprido, com tudo que nele se concentra. E diante do terrível quadro do
mundo moderno que Nossa Senhora veio mostrar a três criancinhas em Fátima, disse ela
a Lúcia que, nos últimos tempos, a maior penitência seria o simples cumprimento de
suas obrigações. E nisso se resume toda a Lei e os Profetas. Nisso se resume o
Evangelho de Jesus Cristo. E diríamos, para terminar, com o salmista: Initium
sapientiae timor Domini – O santo temor de Deus é o início da Sabedoria.
A tibieza
Pe. Michel André
Outras vezes, os jovens constróem ilusões sobre o porvir, sobre seus futuros
triunfos. Não estando suficientemente maduros para se afastarem do ambiente e
dominá-lo, muitos jovens se deixam dominar por ele, como a folha que o vento carrega;
isso explica o sucesso das modas – as roupas, as músicas e outras mais.
Daí vem a tibieza religiosa, admitindo-se que ainda existam cristãos pios, pois
que a vida do discípulo fervoroso de Cristo exige esforços, recolhimento, um certo
distanciamento do mundo: muitos membros da Ação Católica não entenderam isso, e
então, em vez de converter o próximo, pouco a pouco converteram-se ao mundo, por
assim dizer; um bom número dentre eles se tornaram marxistas. São os cristãos
camaleões.
2) Na madureza, é preciso assinalar como causa especial da tibieza a ambição e
a vida muito atarefada.
Muitos argentinos só têm uma ambição: ganhar mais, ter sucesso, possuir um
carro, que mais? As preocupações espirituais não ocupam mais um lugar de vulto em
suas vidas – ainda que direita e honesta – muito apegadas a esta terra.
Poderíamos ainda continuar por bastante tempo o estudo das causas da tibieza
entre cristãos pios: o orgulho, a falta da verdadeira caridade, i. é, o egoísmo etc., tudo
leva à tibieza.
Narra-se o fato seguinte da vida de São Bernardo: uma noite, estava ele no
coro, recitando o ofício divino com seus monges, quando de repente vislumbrou ao lado
de cada um deles um anjo, cada qual a escrever num livro de registro. Alguns escreviam
em letras d’ouro; outros, com letras de prata; outros ainda, só com tinta. Havia também
os que nada escreviam.
Deus, nesta visão, quis comunicar a São Bernardo a diferença de fervor entre
os vários monges: os fervorosos e os menos fervorosos; os que tão-só pronunciavam as
palavras, sem devoção; a última classe era a dos preguiçosos, que não oravam: estavam
de corpo presente, mas a alma viajava.
A lição é evidente para todos. Como rezamos? Como nos aproximamos dos
sacramentos? Como assistimos ao Santo Sacrifício da Missa? Se o puderam transformar
e distorcer tão a fundo, a ponto de não mais denominá-lo de Sacrifício, mas uma
eucaristia, uma refeição, como queria Lutero, não foi por causa de nossa tibieza
passada, da tibieza de milhões e milhões de católicos?
Estamos a imitar aquela senhora que se lastimava com Dom de la Motte, bispo
de Amiens, da duração excessiva da missa paroquial. Respondeu-lhe o prelado:
A virtude da paciência
— Excelência da paciência
A paciência nos santos
As obras da paciência
Jesus disse que o reino dos céus é o apanágio daqueles que sofrem perseguição
pela justiça.
Mais vale ser vítima do que perseguidor, pois o perseguidor só fica com o seu
crime, enquanto o mártir glorifica a Deus e recebe, após o tormento, a glória eterna.
É castigando aos que ama que Deus Todo-poderoso prova a verdade do seu
amor. Ele consola os seus com a vergasta da correção. Muito só buscariam Deus pelos
benefícios, e não por Ele mesmo, se remunerasse aos que ama com recompensas
temporais.
As Escrituras narram (Jz 3, 15) que Aod servia-se de um punhal de dois gumes.
Isso significa, ao que me parece, que sabia tirar partido tanto da prosperidade como da
adversidade. E, para dizê-lo de modo melhor, é possível que sobrevenham males aos
que sabem usar das adversidades como ocasiões de méritos, para os que sabem fazer
delas um meio de chegar ao céu? O homem paciente sabe extrair mel do próprio fel;
sabe mudar o mal em bem, saborear a amargura como se fosse um leite e dar aos que
sofrem o gosto das alegrias eternas.
— A prática da paciência
Assim, sempre devemos render graças a Deus, pelas dores como pelas alegrias:
imitemos o rouxinol, que canta não apenas o dia, mas também a noite.
Que suas alegrias sejam servir a Cristo, e seu único sofrimento seja o de se
verem afastados de Deus. Só a impaciência contra o pecado é permitida. Aos soldados
de Cristo, a vitória está em perdoar aos que os perseguem.
Graus da paciência
O homem sob o jugo da provação é como o monge que, para a tonsura, coloca-
se nas mãos de outro. É melhor que fique quietinho pois, se se mexer sob a lâmina, seus
movimentos impacientes certamente farão com que se machuque.
Que poderei dizer ainda da cólera? Olhem o homem irritado: ele queima, seu
coração palpita, profere gritos altos, não sabe mais o que diz, não reconhece seus
amigos, seu rosto se abrasa, sua língua se embaralha e seu corpo mesmo treme.
— As contrafações da paciência
Há quem se torne paciente não por um esforço pessoal, mas graças à virtude
das pessoas com que convive: essas pessoas consentem a se manter pacientes desde que
não sejam contrariadas.
Outros parecem se esquecer das injúrias, mas guarda o rancor no seu coração;
sua virtude é como o calçado cujo couro não foi amaciado pelo óleo: a rudeza protege
bem contra objetos exteriores, mas fere o pé. Esses hipócritas parecem-se com os lobos
que, como se diz, suportam facilmente os cortes e ferimentos recebidos à flor da pela,
mas são muito sensíveis às consequências das lesões internas.
Outros são pacientes para suportar as injúrias que ofendem a Deus, mas são
extremamente sensíveis às injúrias pessoais. Não se dão conta de que, se a cólera é na
maioria das vezes um vício, ela pode por vezes um zelo louvável, ela é na maioria das
vezes um vício. É zelo em nos inflamar de zelo pela defesa dos direitos divinos: uma
santa cólera que assegura recompensas. É vício irritar-se pela defesa dos seus próprios
direitos: explosão culpável merecedora de castigos.
É preciso ter cuidado: o espírito pode chegar a uma cegueira tal, que chama de
zelo esclarecido o que não passa de um furor mau. Por vezes os vícios se tingem de
aparências virtuosas e corrompem os atos que teriam sido meritórios. Assim, na
correção fraterna, a cólera dá na caridade o tiro de misericórdia, enquanto que a
caridade deveria tornar a cólera impossível.
Garrigou-Lagrange, O.P.
Esta alegria espiritual não é precisamente uma virtude, mas fruto ou efeito da
mais alta virtude, que é a caridade, ou o amor de Deus e das almas em Deus1.
O amor de Deus nos regozija, em primeiro lugar, porque Deus é Deus, a
própria Verdade, a Sabedoria, o Bem infinito, a Bondade suprema, a própria Santidade,
a perfeita Beatitude.
A caridade, enfim, nos faz possuirmos já a Deus na obscuridade da fé, pois está
escrito: “quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16).
Também o disse Nosso Senhor: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu
Pai o amará, e nós viremos a ele, e faremos nele morada” (Jo 14, 23). E, no mesmo
momento, Jesus nos prometeu o Espírito Santo, que efetivamente nos foi dado com a
graça e a caridade no batismo, e mais ainda na confirmação. A Santíssima Trindade
habita assim em toda alma em estado de graça, e ela se faz por vezes sentir como vida
de nossa vida. Em certos momentos, como o diz São Paulo, “o mesmo Espírito dá
testemunho ao nosso espírito, de que somos filhos de Deus” (Rom 8, 16). Dá
testemunho inspirando em nós uma afeição toda filial, que é causa de uma santa alegria
e nos faz dizer: “Pai!”. Não se trata de consolação sensível, nem de sentimentalismo,
mas de uma alegria verdadeiramente divina pelo seu princípio e objeto.
É tal a alegria espiritual, ao pensamento de que Deus é Deus, a Bondade
mesma, que Ele reina em nós e nos justos, que se torna a vida de nossa vida, que nos
chama a viver dele por toda eternidade. Esta alegria surge do pensamento de que,
exceção feita ao pecado, sob a direção da Providência, tudo vem do amor eterno.
Esta alegria não saberá, contudo, ser plena e perfeita como no céu, pois a
caridade aqui embaixo se entristece ela mesma com o pecado que diminui o reino de
Deus e conduz à perda das almas. Porém, apesar das tristezas da terra, os santos
conservam, com a paz, uma desejada alegria espiritual, que transmitem aos outros, sem
mesmo o perceberem.
As Sagradas Escrituras nos falam diversas vezes desta alegria espiritual. Diz
Jesus: “Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e para que a vossa
alegria seja completa” (Jo 15, 11). São João Evangelista exorta seus discípulos para que
tenham “a plenitude da alegria”, ao pensamento de que são filhos de Deus e que estão
chamados a gozar dele eternamente2. Os Salmos já diziam: “Laetamini in Domino et
exsultate justi. – Justos, alegrai-vos no Senhor e exultai nele” (Sl 21, 11). São Paulo
escreve aos Filipenses: “Gaudete in Domino semper, iterum dico vobis, gaudete –
Alegrai-vos incessantemente no Senhor; outra vez vos digo, alegrai-vos” (Fl 4, 4).
O mesmo São Paulo chegará a ponto de dizer, “estou inundado de alegria no
meio de todas as nossas tribulações” (2Cor 7, 4). Dizem os Atos dos Apóstolos de todos
eles, “contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus”
(At 5, 41).
A alegria cristã é pois a de possuir a Deus e de ser por Ele possuído. Por esta
alegria, o verdadeiro católico dá aos demais o desejo de converter-se. Convém que
repita amiúde esta palavra das Escrituras: “Eu também te ofereci alegre todas estas
coisas, na simplicidade do meu coração” (1 Pr 29, 17). A verdadeira alegria é tender
para a santidade do céu, com a certeza de que Deus, que jamais pede o impossível, nos
oferece graças incessantes para lá chegar.
Levemos algo desta alegria espiritual aos que não têm o pão, a saúde, a
vitalidade, aos detestados, aos mesquinhos, aos que não procuram Deus; façamos com
que tenham vontade de procurá-lo. Demos Deus, aos que não o têm.
Então, Jesus nos dirá no último dia, “tive fome, e destes-me de comer; tive
sede, estava enfermo, estava na prisão, e fostes visitar-me... todas as vezes que vós
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”.
Demos algo desta alegria aos amargurados, lembrando esta palavra de São João
da Cruz: “Lá, onde não há mais amor, semeai amor e colhereis amor”. Nas grandes
trevas, uma voz nos diz: “Levanta e canta teu louvor na noite”.
Então, de nossas trevas bem suportadas, luz poderá brotar para outras almas.
Como vocês são religiosas, falemos sobre a vida religiosa; comecemos pelo
começo. A vida religiosa é uma pedra angular. O padre não é um homem como outro
qualquer, mas é um super-homem, um homem divinizado. Uma religiosa como vocês
não é uma dama fina e inteligente, de forma nenhuma, mas sim uma pessoa consagrada
a Deus; vocês são esposas e rainhas do rei Jesus, não servas, e muito menos escravas.
Bem sei que vocês são insignificantes grãos de areia, mas Jesus as escolheu, de modo
que a consagração é um casamento, não porque vocês o tenham pretendido, mas porque
Jesus o quis assim. Essa união com Jesus é um casamento divino.
Certa feita uma religiosa ensinava a uma princesa a quem teve de repreender; a
princesinha, irritada, recusava-se a obedecer e encolerizada disse: “Esqueceu-se de que
sou filha do rei de França?”, ao que a religiosa respondeu: “Esqueceu-se de que sou
esposa do rei dos reis, diante de quem o seu paizinho se ajoelha?”
A quem muito foi dado, muito será cobrado: o milionário não será cobrado
como o servo. Vocês não serão julgadas como escravas mas prediletas. Cobrará o rei:
“Recebeste tesouros, por isso vem prestar contas do diadema e do manto real.” Essa
frase lhes deve provocar calafrios. A principal glória da vida religiosa é a de que vocês
são as minhas prediletas, lhes diz Jesus, minhas pombas e filhinhas do coração.
Quando morrerem, Jesus não perguntará se vocês instruíam cinqüenta alunas ou
administravam um grande hospital, mas: “Amaste-me tu como uma rainha? Agiste
como minha predileta?” Ele não dirá: “Vê as minhas mãos e os meus pés, que os
impuros, os maus e os ímpios machucaram”; não, o primeiro sofrimento lhe virá das
almas consagradas! “Tu me juraste que serias santa: que fizeste do juramento?”
Não pensamos o suficiente nessa queixa de Nosso Senhor em Paray-le-Monial.
Normalmente se reclama de que as obras não vão para frente, de que há algo de errado
com as irmãs, mas Nosso Senhor bem que poderia perguntar: “Recordas-te da tua
profissão? Prometeste ser santa e, depois de quarenta anos, ainda não és.” Profissão
significa convento e religião; por que entrei no convento? Vocês afirmam: “Para salvar
a minha alma ou salvar almas.” Salvar a minha alma? Quem lhes disse que os três votos
são necessários para ir ao céu? Então, papai e mãe vão ao inferno, pois eles não fizeram
os três votos! O batismo, a penitência e a comunhão são suficientes para que papai e
mamãe se salvem, bem como milhares de cristãos pelo mundo. Mas vocês insistem:
“Vim para salvar as almas.” Pois bem! Salvar almas é conseqüência, pois as salvarão à
medida de sua santidade.
Vocês entraram no convento para se tornarem santas: eis o princípio e o cerne
da vida religiosa. Vocês são religiosas para que sejam santas e mais nada, o resto já está
contido nisto. Ninguém está aqui para se instruir ou curar as feridas, mas para se
transformar em santo; o único ideal da vida religiosa é amar como amaram os santos,
ou seja, ser um santo com S maiúsculo a todo o custo. A pobreza, a castidade e a
obediência são os três votos que me ajudarão; diariamente, com a graça de Deus,
subirei, subirei e me tornarei santa. Se alguém já lhes disse isso, bem-aventuradas são;
se esta é a primeira vez, mãos à obra. Ninguém está aqui para brincar de teatro, música,
literatura e quejandos, mas para ser santa. Esta é a instrução que vocês devem transmitir
às noviças. Não se tornar uma pessoa má não é um ideal, mas é o mínimo; se a mulher é
religiosa apenas para evitar o pecado, está perdendo tempo.
Sim, a santidade se baseia na educação também. Não basta ser uma boa irmã e
contentar-se com isso, mas tentar imitar Teresinha. Eu lhes imploro, em nome do
Sacratíssimo Coração de Jesus, para que vocês se tornem santas, pois é este o seu único
dever, e só este.
Se vocês confiam mais na menina que tem vocação para boa mestra do que
para boa religiosa, expiarão tal erro.
Pensamento na eternidade
Certo dia um grande pregador dominicano que passava por Ávila consultara
Santa Teresa sobre o tema das pregações. “Pregue sobre o que quiser, disse-lhe ela, mas
sempre tenha o pensamento na eternidade, pois não existe missão sem pensamento na
eternidade.” Pois então, nada de retiro sem o pensamento na eternidade. Eis o que
veremos uns dez minutos antes de comparecer diante do tribunal. Durante os estertores
acontece uma batalha, uma luta: o moribundo apreende com impressionante nitidez a
sua vida inteira e, nesse momento de extraordinária lucidez, descortina-se para ele a
eternidade...
Certa vez um jovem marquês divertia-se num baile noturno, onde se reuniam
mais de quinhentas pessoas. De súbito exclamou: “Eu vejo, eu vejo! Oh, oh! ...”
Acercam-no as pessoas: “Que viu você? – Eu vi, eu vi! – Mas viu o quê? – Vi o juiz e o
tribunal; vi a eternidade. Ah, como somos loucos! Sim, loucos, pois dançamos às bordas
do abismo eterno!” Acharam que havia surtado. Ele, no entanto, exigia: “Mandem vir o
tabelião, para fazer o meu testamento! Estou morto, deem os meus bens aos jesuítas
etc.” Atenderam aos desejos dele. Pouco tempo depois ele se retirou numa gruta da
floresta, onde levava vida de bicho mas alegre como um passarinho.
Uma criança de dez anos, bastante doente, preparava-se para morrer; fui visitá-
la e lhe perguntei: “Você tem medo da morte? – Não, me respondeu ela, não tenho
medo de morrer, mas do que vem depois.” Ela tinha razão. O mistério é o depois.
Quando uma pessoa é religiosa de verdade, a morte não é assustadora. Compreendam
isso à luz do retiro: se vocês negligenciaram as orações e a vida interior, pensem no que
verão à hora da morte. Há algo de sagrado na morte, mas infelizmente somos qual o
capitão que estimula a que outros embarquem, enquanto ele fica na praia...
Havia um moço de vinte e oito anos que escalava uma montanha, subindo e
subindo a cada passo. De repente deu com o pé em falso e escorregou, caindo vertente
abaixo, apesar de em vão tentar agarrar-se às saliências da encosta. Onde foi ele parar?
Foi até às bordas do abismo! Deteve-o uma pedrinha. Alçaram-no dali com uso de
cabos, conseguindo-o tirar daquela situação. Ficou com os cabelos totalmente brancos.
Há alguns meses, uma humilde irmãzinha, serva dos pobres, morreu em grande
júbilo, cantando. Só quem é humilde e confiante morre assim. A religiosa é religiosa,
esposa e rainha para sempre. Sejam santas na vida e na morte, e a morte não será morte,
pois passarão da vida de consagradas cá embaixo à glória de prediletas lá em cima, ao
lado dele.
O grande meio
Como é reconfortante pensar que a santidade é possível para todos e
que devemos esforçar-nos para nos transformar em santos!
Mas por que caminho, rota ou meio?
O caminho? Ele é o caminho! Vocês não conseguiriam imitar João Batista, que
não come nem dorme. Por isso, siga a Ele. Seremos santos, como Santa Margarida
Maria ou Santa Teresinha, se andarmos no singelo caminho de Nazaré, na vereda banal
do dever cotidiano; a superiora, no dever de estado de superiora; a instrutora de turma,
no dever de estado de instrutora; a cozinheira, no dever de estado de cozinheira. A vida
de santidade não é uma estrada em ziguezague, mas o dever de estado, e o dever de
estado é uma simples linha reta, que se vai elevando mais e mais. O caminho da
santidade é a simplicidade de Nazaré no cumprimento do dever próprio e particular a
cada um.
É possível um homem ser um camponês paupérrimo e magnânimo; é possível
uma mulher ser humilde mas virtuosa e magnânima.
Santidade e auréola
Há muitos equívocos sobre a santidade, e talvez vocês mesmas alimentem erros
a respeito dela. Os santos seriam criaturas com auréolas! Existem muitos deles que não
possuem auréola e ainda assim são santos, pois que milagres e visões não fazem
santos1. A santidade é um milagre de fé e amor. Há santos sem auréola e auréola sem
santos. A rainha dos santos não tinha auréola nem operou milagres. Judas tinha auréola
e operou milagres, e ele não é santo. Prestem atenção: joguem no cesto as biografias
desconcertantes, que amiúde são poesia e às vezes besteira. Recusem as narrativas que
empurram a santidade para fora do caminho de Nazaré. Joguem fora as revelações de
Catarina Eymerich, de Maria de Ágreda e de outras mais! Vocês oferecem e transmitem
essas revelações ridículas, e as noviças engolem isso e ficam divagando: “Nunca fiz
milagres, nunca tive visões!” Sem divagações, por favor, e mais doutrina. Sem êxtases –
sus! – pois os nossos conventos já estão empesteados de visionárias e histéricas. Maria,
a Virgem de Nazaré, sem milagres, sem visões, era a rainha da fé; e José, um santo de
fé, sem êxtases.
Certo dia uma senhora me veio bater à porta: “Trago-lhe uma mensagem do
Sacratíssimo Coração de Jesus. – Não recebo mensagens do Sacratíssimo Coração de
Jesus, vindas de uma palhaça como você. Vá lavar o rosto (ela estava toda maquiada).”
Outra veio procurar-me: “Padre, o senhor me disse A, mas Nosso Senhor me
disse B! – Então vá se confessar com Nosso Senhor, se não dizemos a mesma coisa.”
1. A santidade é um dever;
2. O dever tem de ser cumprido na vida cotidiana;
3. A santidade é sempre amor.
Por vezes encontramos deslumbradas que são joguete do diabo: três irmãs
abandonaram a comunidade para bancarem as contemplativas; após algumas semanas
retornaram.
Tenho vocação de trapista, tenho alma de trapista, mas sou um judeu errante: é
a vontade de Deus!
Certo dia alguém me disse: “Rezo pela sua conversão – Agradeço, mas comece
pela sua!” Pois é, o diabo em tudo mete os chifres e o rabo: uma religiosa
contemplativa, que estava doente, comungava da mão de um anjo – era o diabo! Ela
estava era possuída; Roma a desligou do convento. Já vi santos e demônios; é ridículo
uma senhora diretora de padres!
Fé, amor e vontade de Deus. Nada acima da vontade de Deus, que é o supremo
amor. Ensinem às suas filhas o caminho simples, e não admitam nada extra. Se alguém
deixa de comer e dormir, perde o rumo. Não é possível ser carmelita, quando se
administra um hospital. À morte de Teresinha, uma de suas companheiras perguntou:
“Que escreveremos sobre essa irmãzinha, se nem boa religiosa foi?” Talvez quem
falava assim tivesse visões, mas não viu bem. Nenhum santo, exceto Maria, nasceu
santo. Teresa d’Ávila se tornou Santa Teresa d’Ávila. Agostinho se tornou Santo
Agostinho. Ambos nasceram gênios, mas se tornaram santos pelo esforço pessoal. E
Teresinha? Ela também não nasceu santa, porém trabalhou dia após dia a fim de ser
uma. Um homem nasce artista, mas não santo: os santos se tornaram santos trabalhando.
Transformem-se em santos aos pouquinhos, a exemplo do alvorecer do sol. José Sarto
era uma boa criança mas comum; quando se tornou padre, elevou-se; quando bispo,
continuou elevando-se; quando patriarca de Veneza, elevou-se ainda mais; quando papa
(Pio X), já era santo! Carecemos de santos.
Com uma vontade viril, tornamo-nos santos. Todos os santos tiveram defeitos:
as vidas de santos já prontos só servem para ganhar dinheiro. Nisso há muita fantasia; a
curiosidade é um doença. Que dizer da vida de Teresa Neumann 2? Os fatos são
verdadeiros, mas a Igreja não se pronunciou; então, aguardemos, pois nada nos garante
que os fatos sejam divinos.
Vocês podem ser santas tão grandiosas quanto Margarida Maria e Teresinha,
seguindo o batido caminho do dever, e o livrinho das regras e constituições: façam isso
e viverão. Não tenho reparos a fazer ao que a Igreja aprovou para cada obra; por isso,
não lhes digo para que sejam carmelitas ou outra coisa mas, onde estiverem, tornem-se
santas se valendo da regra.
Vivam a vida simples de Nazaré, com humildade e amor ao dever; e lá onde
estiverem, superiora ou irmãs conversas, imitem a trindade da terra: Jesus, Maria e José;
lá onde estiverem, amem quem tanto as amou.
1. 1.O Pe. Matéo entende aqui a palavra “auréola” em sentido extenso:
reputação exterior de santidade, carismas extraordinários (N.E.).
2. 2.Teresa Neumann: mística alemã (1898-1962) (N.E.)
Da necessidade da oração para a salvação
Parece-nos, pois, que o somatório das orações está longe, muito longe, de
corresponder à soma das necessidades; e apenas isto basta para que compreendamos
porque vemos ininterruptamente o bem se debilitar e o mal crescer.
Outrora, todos os cristãos oravam para pedir a Deus sua graça; a graça de O
conhecer, de O servir, de O amar, a graça da Fé, da Esperança e da Caridade; a graça de
observar os seus divinos mandamentos, a graça da perseverança final. A Igreja reza
ainda com esses mesmos propósitos e com as mesmas orações, porém, os cristãos, que
antigamente assimilavam a finalidade das preces da Igreja sua mãe, hoje, não entendem
mais o sentido dessas orações, pois agora eles estão imbuídos do sentido das doutrinas
modernas, largas e fáceis; tão largas e tão fáceis que, com elas, não há mais necessidade
de rezar. Como se diz, basta somente querer para ter.
Quando outrora acreditava-se com São Paulo que a Fé não é dada a todos, “non
enim omnium est fides” (2 Ts 3, 2), dava-se à Fé o devido valor e rezava-se a Deus para
lhe agradecer a graça de no-la haver dado, e rezava-se para lhe pedir a graça de a dar
àqueles que não a tinham.
Quando Santo Agostinho ensinava que “a graça não é dada a todos; e quando
ela é dada, não é dada segundo nossos méritos mas sim por pura misericórdia; e
quando a graça não é dada, isto se deve a um justo juízo de Deus”, os cristãos, que
entendiam esta doutrina, aprendiam a orar, a se humilhar e a reconhecer os dons de
Deus1
Hoje o entendimento é diferente, e se diz que Deus dá sua graça a todos, e para
recebê-la basta querer. É fácil deduzir a conseqüência destas novas opiniões: é
desnecessário pedir, uma vez que Deus dá tão generosamente.
Dando Deus sua graça tão copiosamente a todos os homens, imagina-se hoje,
não há mais necessidade de pedir a Ele a graça de querer o bem. A boa vontade
qualquer um se a dá, se lhe apraz e quando lhe agrada; aceita a graça que Deus dá a
todos, a faz por assim dizer sua, e em seguida avança e se faz a si mesmo um homem de
boa vontade. Assim sendo, não é mais necessário rezar; basta que a vontade humana se
mova.
Não era assim que os nossos pais pensavam, pois eles pediam a Deus a graça
de querer o bem.
As preces da Igreja são nossas testemunhas e são testemunhos fiéis. Dentre
todas as que nós poderíamos citar, eis aqui algumas:
- “Ó Deus, força dos que em Vós esperam, atendei com bondade as nossas
orações e, porque sem Vós nada pode a fraqueza humana, fazei que, com o auxílio da
vossa graça, Vos agrademos por vontade e por obras, no cumprimento dos vossos
mandamentos”4
Seria preciso citar todas as orações da Igreja, pois todas pedem a deus a
graça da inteligência que esclarece e a graça da vontade que fortalece.
Na última das orações que citamos acima, a Igreja pede a Deus que lhe
agrademos pela vontade e pelas obras. Portanto, a Igreja nos ensina a pedir a Deus
não apenas as graças de saber, de poder e de querer, mas também a graça especial de
fazer obras agradáveis a Deus.
Como estão longe de pensar assim muitos cristãos que imaginam que, fazer o
bem depende apenas deles e que, tendo feito qualquer coisa para Deus, se gabam a si
mesmo pelo que fizeram, como se o bem fosse obra deles e como se pudessem se
vangloriar não somente a seus próprios olhos, mas também diante do próprio Deus.
Deus não ordena coisas impossíveis, mas daí não é lícito concluir que a
oração não é necessária.
“Porém, diz um sábio autor, se alguns, mesmo pedindo, não conseguem, muito
menos conseguirão o que não pedem e que nem mesmo querem pedir, e que não
reconhecem Aquele a quem é preciso pedir”5
A ordem nos é, então, dada, para que busquemos a ajuda Daquele que nos
comanda. Daí a necessidade da oração e é uma necessidade tão grande que, sem a
prece, é impossível a um cristão resistir às tentações, obedecer aos mandamentos e se
salvar.
***
Para que as almas desviadas retornem Àquele que, único, pode salvá-las,
importa recorrer à intercessão de Maria, medianeira universal e mãe de todos os
homens. Dos pecadores que parecem ter se perdido para sempre, diz-se que é necessário
confiá-los à Maria. Assim também com os povos cristãos que se desviam.
Quando ainda estava na terra, a beatíssima Virgem Maria, aos pés da Cruz,
oferecendo seu Filho por nossa salvação e unindo-se de modo muito íntimo ao seu
sacrifício, nos mereceu, no sentido largo da palavra, tudo o que o próprio Cristo nos
mereceu em sentido estrito. Após a morte e a ressurreição do Salvador, ela intercedia
para que, pelos apóstolos, o reino de Deus e de Cristo Jesus chegasse até as
extremidades do mundo. Ela sustentava sobrenaturalmente os apóstolos em seus
trabalhos e em suas lutas e lhes obtinha graças elevadíssimas de luz, de amor e força.
Seu zelo puríssimo sustentava o deles.
Desde que Maria foi assunta ao céu, sua intercessão não é senão mais
poderosa, posto que mais iluminada, e procede de um amor de Deus e das almas que
nada pode atenuar ou interromper, ainda que por um único instante.
*
Como escrevia a madre Maria de Jesus, fundadora da Sociedades das Filhas do
Coração de Jesus3: “Posto que o inferno quer banir Jesus Cristo e sua Igreja das almas e
das sociedades, é mais que nunca hora de elevar as mãos suplicantes à incomparável
Virgem, por quem o Pai Celeste deu Jesus Cristo ao mundo; a fim de que esta doce Mãe
do Salvador, devolvendo, por assim dizer, Jesus às almas, lhes devolva a vida perdida;
que esta poderosa Protetora da Igreja, “terrível como um exército em ordem de batalha”
(Ct 6, 3), triunfe sobre seus inimigos e que esta gloriosa Rainha da hierarquia faça cair
sobre todos os membros do Clero católico bênçãos tais do Coração de Jesus que lhes
conservem sua coragem e lhes aperfeiçoem no meio das tormentas de nossa triste época,
e lhes façam brilhar como diamantes sem mancha sobre a admirável túnica da Igreja.”
A mesma serva de Deus acrescenta um pouco mais adiante4 estas palavras que
tanto convém ao nosso tempo:
“Não vivemos por nós, é preciso tudo enxergar nos desígnios de Deus; nossas
dores atuais – ainda que cheguem ao cúmulo e que nos sacrifique nesse desastre –
conquistam e preparam os triunfos futuros e certos da Igreja... A Igreja segue assim de
luta em luta, de vitória em vitória, uma sucedendo a outra até a Eternidade, que será o
triunfo definitivo.
“Foi preciso que Jesus sofresse e que assim entrasse na “sua glória” (Lc 24,
26); é preciso que a Igreja e as almas perfaçam o mesmo caminho. A Igreja não dura
apenas um dia; quando os mártires caiam como flocos de neve no inverno, não se podia
pensar que tudo estava perdido? Não, o sangue deles preparava a vitória que estava por
vir.
“Como uma Esposa que se prepara para seu Esposo, a Igreja marcha através
dos séculos rumo à perfeição do céu; ela se embeleza mais e mais; ela está pronta, mas
continuará se embelezando até o dia das núpcias eternas.
“Não temais, pois, pelos perigos da Igreja: não é a Igreja que está em perigo;
ela tem a palavra de Jesus Cristo e nada a abalará... As portas do inferno não
prevalecerão contra ela.”
*
Que a Mãe do Salvador digne-se, por sua oração, colocar as almas fiéis de
diferentes povos sob a luz desta palavra do Cristo: “Eu dei-lhes a glória que tu me
deste, para que sejam um, como também nós somos um” (Jo 17, 22).
Dirijamo-nos a ela com a maior confiança; ela foi chamada “a esperança dos
desesperados”, e dirigindo-se a ela como à melhor das Mães e à mais iluminada, iremos
à Jesus como ao nosso único e misericordioso Salvador.
Roma, Angélico.
Mas como há de ser, tão grande recompensa para tão pouca labuta! O infinito
pelo finito, qual o mistério? O Espírito Santo é amor infinito, e o céu, o reino deste
amor. Esconde-se-nos a razão de tal proporção, mas o fato é inconteste. Afiança-nos a
palavra divina, tornam-no sensível aos olhos as imagens presentes. Quem não
presenciou a bondade, a grandeza, a prodigalidade de algumas árvores? Num instante
meditado, fala-nos este espetáculo: para abrigar-se dos ardores soalheiros, aquecer o lar,
cobrir a mesa de frutos suculentos, por anos a fio, ao homem basta-lhe o sacrifício dum
só fruto, capaz quando muito da satisfação dum tênue apetite.
Aquele que multiplica, de tão espantoso modo, os frutos das árvores, prometeu-
nos multiplicar, conforme a mesma lei, o fruto das obras: Centumplum accipiet. A quem
cabe o direito de lhe duvidar da palavra, limitar-lhe o poder? Os milagres resplendentes
da ordem material são pálida imagem dos milagres que se consumam na ordem moral.
Quanto vai da diferença entre a humílima semente, plantada em terra, e a árvore
magnífica, repleta de flores e frutos, segundo a estação, vai com usura da diferença que
há entre o prazer fugaz, que sacrificamos ou cuja privação voluntária aceitamos, e as
torrentes de deleites eternos com que seremos inundados.
Ora, nasce o fruto do fruto. Nasce o fruto da vida eterna dos frutos temporais,
nossos conhecidos. Resta dizer o como cultivá-los. Há de se cultivá-los no cultivo da
árvore que os carrega: esta árvore nada mais é que o próprio Espírito Santo (S. Agost.,
Enarrat, in ps. 145 n. 11, opp. t. IV p. 2333, edit. Noviss). Como cultivá-lo? Rendendo-
lhe o merecido culto. Daí, duas perguntas: deve o mundo culto ao Espírito Santo? qual
este culto?
Decidiu se fazer homem, mas quisera sua mãe esposa do Espírito Santo.
Quisera seu corpo formado numa operação do Espírito Santo; que no dia do batismo o
mesmo Espírito descesse sobre si visivelmente, e o conduzisse ao deserto, a fim de
prepará-lo para sua missão. Durante o inteiro curso da vida mortal, mostra-se amiúde
sob a dependência do Espírito Santo, que o conduz ao Calvário. Morto, é o Espírito
Santo que o retira do sepulcro (Matth., IV, 1; XII, 18, 28; Hebr., IX, 15; Rom., VIII, 2).
São Crisóstomo: “Sem o Espírito Santo, nem os fiéis poderiam orar a Deus,
nem chamá-lo de Pai. Sem ele, não haveria ciência, nem sabedoria na Igreja, nem
pastores, nem doutores, nem santificadores. Em suma, sem ele não haveria Igreja” (In
sanct. Pentecost., hom. I, n. 4, opp. t. II, p. 543; id., t. IX, p. 296, 297).
Caso não existissem Igreja, padres, doutores, nem possibilidade de orar, nem
meio de lucrar do sangue do Calvário, como subtrair-se ao domínio do demônio? Ora,
sem o Espírito Santo, nada disso existiria. As partes do mundo civilizadas pelo
cristianismo seriam ainda como a China, as Índias, a África, o Japão, o Tibete, regiões
sob o domínio do príncipe das trevas. Este é o ensinamento tradicional dos padres da
Igreja. Existe razão mais poderosa acerca da necessidade de conhecer o Espírito Santo,
de amá-lo, de adorá-lo e de submeter-se a seu império?
Qual seja, junto com o Pai e o Filho, o objeto invariável da liturgia, deseja a
Igreja que uma festa, soleníssima, a cada ano, de geração em geração, recorde o
reconhecimento das nações batizadas, recorde aquele a quem o mundo tudo deve: luz,
caridade, liberdade, civilização no tempo, glorificação na eternidade.
A metrópole do mundo católico, Roma, está de luto. A morte, que não respeita
ninguém, abateu-se sobre seu pontífice e rei. A Pedro se deve um sucessor, ao Filho de
Deus um vicário. O Sacro Colégio está em assembléia, profundo silêncio engolfa o
santuário, onde se dará continuidade à seqüência dos pontífices. Por onde começará o
ato decisivo, quem deve depositar nas mãos dum frágil mortal o destino do mundo
civilizado? A primeira palavra que escapa dos lábios dos anciãos, prosternados diante
de Deus, é a invocação do Espírito de sabedoria, hino diversas vezes secular: Veni,
creator Spiritus.
Da mesma forma que se perpetua o pontificado, assim o sacerdócio.
Contemplem a tropa de jovens levitas que avançam modestos e tímidos em direção ao
bispo, cuja mão lhes deve consagrar padres, segundo a ordem de Melquisedeque.
Arautos da fé, modelos dos povos, missionários nas margens distantes, talvez mártires
caso se precise de grandes virtudes, o consagrante tem necessidade de muitas luzes.
Para lograr aos primeiros heroísmo, aos segundos discernimento, a quem a Igreja irá
dedicá-los? ao Espírito Santo. Na ordenação, como no conclave, o hino real eleva-se ao
céu, consagrando a augusta cerimônia desde o início: Veni, creator Spiritus. Desta
forma, desde o pontífice posto no cume da escada sagrada, até o levita assentado sobre o
último degrau, a hierarquia da Igreja perpetua-se sob os influxos do adorável Espírito
que a forma.
Sabe-o a Igreja: a sagração dos reis nada mais é que a evocação perpétua do
Espírito de força, luz, justiça e caridade. Nesta terrível consagração, declara aos reis da
terra: sois vassalos do Rei dos céus, obrigando-os a ser dele a imagem viva; para ele,
como para o último dos súditos seus, há de prestar contas da administração: são estas as
garantias para a felicidade temporal e a salvação eterna das almas! Ainda para as
dinastias, que regalo de duração! Meteoros passageiros ou torrentes sempre a correr, eis
o que foram e para sempre serão, caso se não sustentem no Espírito de Deus: Veni,
creator Spiritu.
Fazer leis e aplicá-las com discernimento, i. é, distinguir por sua vez o justo do
injusto, punir o culpado com utilidade, absolver o inocente com coragem, é tão
importante para a felicidade das nações quanto a consagração dos reis. A prosperidade
pública, a paz interna, o respeito externo, a fortuna, a honra, a liberdade, a segurança, a
vida mesma dos cidadãos estão nas mãos do legislador e do juiz. Que responsabilidade!
Não basta para a Igreja a invocação do Espírito Santo, quando dos grandes
momentos em que se deve debater o proveito geral das sociedades cristãs. Recomenda a
todos os seus filhos, pouco importa idade ou estado, recorrer a ela no começo de suas
ocupações. Assim, diversas vezes ao dia, sobre todos os pontos do globo, a criança
cristã, que estuda as ciências sagradas ou profanas, clama ao socorro de sua jovem
inteligência o Espírito de luz, coragem e pureza.
Quer dizer isso, para as jovens gerações que entram no embate da vida, receber
a terceira pessoa da Santíssima Trindade? é por isso que a Igreja multiplica os esforços
de solicitude materna. Instruções prolongadas, orações públicas e particulares,
purificação da alma pelos sacramentos, anúncio solene do pontífice: tudo é posto em
ação para de cada paróquia fazer um novo cenáculo3.
Junto com muitos outros, estes são os meios que sem cessar emprega a Igreja,
para tornar o Espírito Santo sempre presente à memória e ao coração de seus filhos. Há
como repetir com maior força a contínua necessidade que temos dele, enquanto homens
e cristãos? É permitido afastar as recomendações tão instantes da mais sábia das mães?
Não haveria ingratidão em esquecê-la? Qual dentre as criaturas possui todos seus dons?
Não haveria perigo na pretensão de seguirmos sem ele, rodeados de inimigos que
somos?
A qual dos dois pertencerá o amanhã? Quem quer sabê-lo desde agora, não
interrogue a ciência e a diplomacia, basta olhar para qual lado se voltam as nações. Eis
aí a questão. Para nós, se há algo evidente, é que o mundo atual, o infeliz suspenso por
um fio sobre o abismo, deve ao Espírito Santo, seu único libertador, o mesmo culto,
com isso querendo dizer as mesmas orações ardentes. Quem entenderá tal situação?
Quem sentirá tal necessidade? Quem cumprirá tal dever? Ninguém ou quase; mas esta
não é lá grande prova de que o que dizemos é a verdade. Terribilli et ei qui aufert
Spiritum principium.
O homem não é um ser isolado, mas social. A este título, é obrigado a prestar a
Deus um culto público. Deus, autor das famílias, dos povos e da sociedade, e também
dos indivíduos, tem direito às homenagens deste ser coletivo, como tem direito às
homenagens do ser individual. Enquanto pessoa pública, os seres coletivos só retribuem
a Deus o tributo por meio de adorações coletivas. Um povo sem culto público seria um
povo ateu; como jamais existisse um povo ateu, desde a origem do mundo e sobre todos
os pontos do globo, houve um culto público.
Acrescentemos que este culto é todo benesses para as nações, que dele tem
necessidade para viver. Um mero raciocínio é bastante para prová-lo: não há sociedade
sem religião; não há religião sem culto interior; não há culto interior sem culto exterior.
São tais proposições axiomas de geometria moral e também de leis sociais e políticas,
que época alguma, nem nação, jamais dispensou impunemente.
Não menos necessário que o culto público, o culto privado se deve manifestar
na lembrança do Espírito Santo, na oração, na imitação e no temor de ofendê-lo.
É fácil responder: a luz é dom de Deus, e como ato de amor é natural pedi-lo ao
Espírito Santo, o amor por essência e, por conseguinte, o princípio de todos os dons.
Acrescente-se que, sendo Deus, o Espírito Santo é luz, como é o próprio Filho; e que o
amor, principal atributo do Espírito Santo, é a luz verdadeira, por que são esclarecidos a
alma e o coração. Donde vem que o melhor conselheiro, o causídico mais confiável, é o
amor de Deus e do próximo, cuja fonte é o Espírito Santo.
Entretanto, não bastam as orações e adorações para que haja o verdadeiro culto
do Espírito Santo. O culto tem por fim aproximar o adorador do ser adorado.
Essencialmente, consiste esta aproximação na imitação. Imitar o Espírito Santo é parte
fundamental de seu culto.
Ajudar e socorrer o rei, na guerra ou demais ocasiões, era o grande dever dos
cavaleiros. A disposição constante ao sacrifício simbolizava-se em um nó ou um laço de
amor, em fazenda colorida, pregado sobre o peito. Acima do nó, lia-se: Se Dieu
plaist [Se praz a Deus]. Enquanto o cavaleiro não prouvesse a Deus com um assinalado
e esclarecido feito de devotamento, o nó continuava atado.
À morte dum cavaleiro, o rei celebrava um ofício solene pelo repouso de sua
alma. Presentes, os cavaleiros ali assistiam; um parente próximo ou amigo do defunto
pegava as espadas pela ponta e oferecia-as no altar, seguidos do rei e demais cavaleiros,
que o acompanhavam até o altar. Em seguida, punham-se de joelhos, rogando pela alma
do cavaleiro, e após o serviço fincavam a espada na amurada da capela. Recebida de
Deus, empregada no servido de Deus, retornava ela a Deus. Se o cavaleiro trouxesse a
flama presa ao nó, gravavam em seu sepulcro uma flama, donde saiam estas palavras:
Ele cumpriu seu quinhão de Reta Intenção, estando cada cavaleiro obrigado a oferecer-
lhe sete missas em intenção do repouso de sua alma (Helyot, ubi supra).
Dois séculos depois, a França teria também sua ordem do Espírito Santo. No
dia de Pentecostes de 1573, Henrique III foi eleito rei da Polônia, e no mesmo dia, no
ano seguinte de 1574, elevado ao trono francês. Com vontade de imortalizar o
reconhecimento para com o Espírito Santo, dera este príncipe, em 1575, uma carta de
privilégio para a instituição da ordem militar do Espírito Santo, de tantas glórias na
história da Europa. Esta carta exprime sentimentos, dos quais nos regozijamos, tanto
mais que estamos desacostumados em lhes encontrar na boca dum rei.
Estavam obrigados a recitar a cada dia um rosário de uma dezena, que deviam
levar consigo, e após o ofício do Espírito Santo, com seus hinos e orações; ou então os
sete salmos penitenciais ou, se não o recitassem, dar uma esmola ao pobres. Nos dias de
comunhão, ordenados pelos estatutos, deviam carregar o colar da ordem durante a missa
e a comunhão, em qualquer lugar em que se encontrassem.
Mas era mui pouco ter parcos alimentos curtidos em gordura, na época em que
a Igreja estava em alegria e os ermitões mais rígidos afrouxavam as austeridades.
Assim, no sábado de Páscoa distribuíam-se pão e vinho. Quando da Ascensão, em que a
geada vinha se precipitar por sobre as montanhas, distribuíam sal. Enfim, na segunda
ou terça-feira de Pentecostes, festa do patrono da confraria, distribuíam cozido, vinho e
toucinho, o que permitia aos mais pobres esquecer um instante as privações habituais.
Atualmente, as distribuições ou esmolas apoucaram-se àquelas do início da Quaresma e
do Sábado Santo.
Em favor deste culto salutar, ainda há uma última consideração, que será objeto
do capítulo vindouro.
*
* *
Por que deveria a caridade crescer nela sem parar até a morte?
Vê-se tal progresso cada vez mais célere, sobretudo na vida da Santíssima
Virgem na terra, pois nela não havia sombra de vississitude, interrupção ou morosidade,
nem delongas em coisas da terra ou em si mesma. E era tão mais intenso esse progresso
em Maria quanto maior era a velocidade inicial ou a graça primeira. Houve assim em
Maria (sobretudo se pela ciência infusa, como é provável, ela se guardara do uso da
liberdade e do mérito durante o sono) uma aceleração maravilhosa do amor a Deus,
aceleração cuja imagem longínqua é a gravitação dos corpos.
Nada a retardaria, nem as feridas do pecado original, nem o pecado venial, nem
negligência ou distração, nem imperfeição, pois que estava ela sempre presta a seguir a
inspiração dada em forma de conselho. Eis uma alma que, após o mais perfeito dos
votos, seria plenamente fiel a ele. Deveria Sant’Ana ser apossada da perfeição singular
de sua filha santa; todavia não podia ela suspeitar que se tratava da Imaculada
Conceição, nem que chamariam Maria a Mãe de Deus. Era a filha sua muitíssimo mais
amada de Deus que poderia Sant’Ana conceber. Guardadas as proporções, Deus ama
cada justo mais que poderia cada justo conceber; para sabê-lo, seria mister conhecer
plenamente o valor da graça santificante, gérmen da glória; e para conhecer o valor do
gérmen espiritual em sua inteireza, seria mister haver gozado um instante da beatitude
celeste, assim como para conhecer o valor do gérmen na pinha, é mister haver
contemplado o roble pujante, que nasce dum tão pequeno gérmen. Amiúde estão
contidas em sementes quase imperceptíveis as grandes coisas, qual um grão de mostarda
ou um rio imenso que brota dum filete tênue.
Aumenta-nos a caridade como a uma qualidade, qual o calor que se intensifica, e assim
de modos muito vários, quer pelo mérito, quer pela oração, quer pelos sacramentos.
Com maior razão fez as três coisas Maria, sem sombra de imperfeição. O ato meritório
procedente da caridade ou da virtude que a caridade inspira dá direito a uma
recompensa sobrenatural e, antes do mais, ao aumento da graça habitual e da mesma
caridade. Não produzem os atos meritórios, por si próprios e de modo direto, o aumento
da caridade, pois que não é virtude adquirida que se produza ou aumente com a
repetição dos atos, mas é virtude infusa. Como só Deus pode produzi-la, já que é
participação na Sua íntimidade, somente Ele pode aumentá-la. Por isso diz São Paulo:
(1 Cor 3, 6-9): “Eu plantei (com a pregação e o batismo), Apolo regou, mas quem faz
crescer é Deus.”; (2 Cor 9, 10): “Ele fará crescer os frutos da vossa justiça.”
Se não podem os atos de caridade produzir o aumento dessa virtude infusa, entretanto
concorrem para esse aumento de duas maneiras: moralmente, ao merecê-las; e
fisicamente, na ordem espiritual, ao nos dispor a recebê-las. Tem a alma por mérito seu
receber o crescimento que há de fazê-la amar a Deus com mais força e pureza; dispõe-se
a alma a receber tal crescimento, de molde a que os atos meritórios aprofundem e
dilatem as faculdades superiores, para que o divino possa mormente penetrá-las e,
purificando-as, elevá-las. Mas nos acontece amiúde que os atos meritórios restam
imperfeitos – remisso, dizem os teólogos, ou remitentes (tal como se diz calor remitente
ou fervor remitente), i. e., inferior ao patamar da virtude da caridade que está em nós.
Esclarecem deveras tais princípios o que foi em Maria o progresso espiritual por meio
dos méritos próprios. Nela jamais houve ato imperfeito ou remitente: seria isso
imperfeição moral ou generosidade contida ao serviço de Deus. Os teólogos, como
vimos, são todos acordes em negar a ela essa imperfeição. Por isso seus méritos obtêm
tão logo o aumento da caridade merecida. Ademais, para melhor avaliar o valor dessa
generosidade, é mister recordar – de acordo com o ensinamento comum8 – que maior é
a glória de Deus por um só ato de caridade de dez talentos que por dez atos de caridade
de um talento só. Do mesmo modo, um só justo perfeitíssimo praz mais a Deis que
muitos que reunidos permaneçam em relativa mediocridade ou tibieza.
Daí resulta que em Maria os atos deliberados eram bons e meritórios; no estado
de vigília, nela não houve ato indeliberado ou puro maquinismo que se produzisse
independente da direção da inteligência e da influência da vontade vivificada na
caridade11.
Disse ela estas palavras do Sl 26, 4 com maior propriedade que ninguém, senão
Jesus: “Unam petii a Domino hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini” “Só uma
coisa peço ao Senhor, esta solicito: é que habite na casa do Senhor todos os dias da
minha vida, para gozar da suavidade do Senhor”. Dia após dia descortinava-se a Maria a
bondade infinita de Deus para os que o buscam, e mais ainda para os que o encontram.
Antes da instituição da Eucaristia, e mesmo antes da Encarnação, em Maria houvera a
comunhão espiritual, que é a oração intimíssima da alma na vida unitiva, em que ela
regozijava de Deus nela como num templo espiritual: “Gustate et videte quoniam suavis
est Dominus – Provai e vede como o Senhor é bom” (Sl 33, 9).
Se era dito no Sl 41, 2: “Assim como suspira o cervo pelas fontes de águas,
assim suspira minh’alma por ti, ó Deus. Minh’alma tem sede de Deus, de Deus vivo”,
que houvera de ser a sede espiritual da Santíssima Virgem no instante da Concepção
Imaculada até ao da Encarnação. Não mereceu ela a maternidade divina, pois senão
mereceria por si a Encarnação; mas mereceu o grau de santidade e caridade que era a
disposição próxima à maternidade divina. Ora, se a disposição remota, que era a
plenitude inicial da graça, excedia a graça final dos santos todos reunidos, que pensar da
perfeição da disposição próxima!