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TEOLOGIA1

"Parvuli" - A santidade das crianças

Diz-se que S.S Pio X, solicitando as crianças a fazer a primeira comunhão a


partir da idade da razão, disse : « haverá santos entre as crianças ».

Estas palavras parecem verificar-se cada vez mais, e é com prazer que citamos
os nomes das santas crianças cujas vidas foram escritas nos últimos anos: a pequena
Nellie, morta em odor de santidade, em 2 de fevereiro de 1908, na Irlanda, aos quatro
anos e meio de idade, após ter feito a primeira comunhão que tão ardentemente desejara
e após ter praticado em grau extraordinário as mais amáveis virtudes, sobretudo a
paciência para suportar as dores da cárie dos ossos 1; o pequeno Gustavo Maria Brani,
conhecido como « il piccolo serafino di Gesù sacramentato », nascido em Turim, em
1903, e morto em odor de santidade aos oitos anos, contente por sofrer pelo amor de
Nosso Senhor2; Galileo Nicolini, que partiu para o céu durante seu noviciado com os
Passionistas; Emma Mariani de Lucca, morta aos quatro anos e meio de idade, após ter
manifestado muito precocemente o vivo desejo de fazer sua primeira comunhão, que fez
à idade de três anos, e de ter mostrado, sobretudo após sua derradeira doença, uma
enorme devoção pela Paixão do Salvador3; a pequena Anne de Guigné, cuja graciosa
vida foi contada nas páginas de La Vie Spirituelle e tornaram-se tão conhecidas
depois4; Guy de Fontgalland, a quem a santa Virgem anunciou em Lourdes que
morreria jovem e que, em seguida, faria o bem largamente desde o alto do céu, o que se
verifica pelas graças abundantes obtidas por sua intercessão5; Hélène-Anne Dabrowska,
nascida de pai polonês e mãe francesa em 1912, morta em 5 de fevereiro de 1925, à
idade de doze anos e que, após ter conseguido vencer seu caráter independente e
obstinado, fechado e dado à controvérsia, tornou-se um modelo de obediência,
docilidade e esquecimento de si mesma6; Marie-Gabrielle T., nascida em Savoie, cuja
vida, escrita por Myriam de G., será publicada pela P. Lethielleux com o título
“Pequena predestinada”, na coleção Parvuli, bem como as vidas de Guglielmina e de
Hélène7. Todas estas vidas lembram a da bem-aventurada Imelda, morta de amor
durante a ação de graças de sua primeira comunhão, que fez miraculosamente com uma
hóstia que descendera do céu. Por que não citar também a vida do jovem Pier Giorgio

1
https://permanencia.org.br/drupal/revista_teologia.
Frassati, de Turim, que acaba de ser traduzida para o francês8, modelo perfeito de
energia, pureza, verdadeira piedade e devoção pelos pobres?

Percorrendo a vida destes meninos, predestinados a conquistar tão rapidamente


o céu, podemos admirar a predileção de Nosso Senhor pelos parvuli, e a bela maneira
pela qual se verifica, na vida destes pequeninos, as grandes leis que presidem à vida de
todo predestinado.

A predileção de Nosso Senhor pelas crianças

Esta predileção exprime constantemente o Evangelho. Quando os discípulos


perguntaram ao mestre (Mt 18, 1) : « Quem é o maior no reino dos céus? », Jesus,
fazendo vir um menino, pô-lo no meio deles e disse : « Na verdade vos digo que se vos
não converterdes e vos não tornardes como meninos, não entrareis no reino dos céus.
Todo aquele, pois, que se fizer pequeno, como este menino, esse será o maior no reino
dos céus. E o que receber em meu nome um menino como este, é a mim que recebe.
Porém, o que escandalizar um destes pequeninos, que crêem em mim, melhor lhe fora
que se pendurasse ao pescoço a mó que um asno faz girar, e que o lançassem no fundo
do mar. »

Nosso Senhor quer nos dizer que, aos olhos de Deus, independente do que
formos, independente de nossa ciência, de nossa autoridade, devemos sempre ser como
crianças pequeninas, pela consciência de nossa fraqueza, de nossa fragilidade, de nossa
dependência, de nossa humildade e simplicidade. Enquanto o homem torna-se, com a
idade, cada vez mais independente de seu pai e de sua mãe, o cristão, para alcançar a
união divina, prelúdio da vida eterna, deve tomar consciência cada vez maior de sua
dependência ao Pai do céu; deve ser, cada vez mais, o infante de Deus; tornar-se mais
humilde, simples, filial e abandonado; tem de chegar a não pensar, não querer, não agir,
senão por seu Pai e para Ele. É isto que se vê na vida dos santos, cuja fidelidade ao
Espírito Santo faz entrar nas vias ditas passivas: eles são, mais e mais, como crianças
aos olhos de Deus; confiam em Deus de modo absoluto e já não usam de sua atividade
própria senão para conseguir tornar-se mais dependentes d´Ele. Compreendem bem que
nossa salvação é mais certa se posta nas suas mãos que nas nossas.
Os santos também encontram meios de realizar as duas partes da palavra de S.
Paulo (1 Cor 14, 20): «Irmãos, não sejais meninos na compreensão mas sede
pequeninos na malícia.»

Foi assim que o confessor de Santo Tomás de Aquino disse que a confissão que
este grande teólogo fizera antes de morrer mostrava sua alma inocente como a de uma
criança de cinco anos. A oração de Santo Tomás devia ser também das mais simples,
das mais filiais e das mais humildes.

Os grandes santos gostam de lembrar que Jesus dizia (Mc 10, 14): «Deixai vir
a mim os pequeninos, e não os embaraceis, porque destes tais é o reino de Deus. Em
verdade vos digo: Todo o que não receber o reino de Deus como um menino, não
entrará nele. E abraçando-os, e impondo-lhes as mãos, os abençoava.»

Enfim, pensando em todos aqueles que parecem com os pequeninos pela


maneira humilde e simples de receber a palavra divina, Jesus dizia (Mt 11, 25): «Graças
te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas dos sábios e aos
prudentes, e as revelastes aos pequeninos. Assim é, ó Pai, porque assim foi do teu
agrado.»

É este mesmo ensinamento que hoje nos é dado pelo trabalho da graça nas
almas das crianças de que acabamos de falar; é com alegria que acompanhamos nelas o
desenvolvimento deste germe da vida eterna que o batismo lhes deu e que, por vezes,
tão rapidamente chega à derradeira eclosão.

As leis da vida da graça na vida destas crianças.

O que impressiona nestas biografias, é a maneira pela qual se verificam, nestas


crianças, as grandes leis que presidem a vida de todo predestinado.

A primeira destas leis está inscrita na essência mesma da graça santificante,


germe da glória, semen gloriae. Esta vida, que nos foi dada no batismo, é a mesma, no
fundo, que a do céu, como a do germe contido em uma glande é a mesma que aparecerá
no carvalho plenamente desenvolto. É uma participação da vida íntima de Deus,
participação que desabrochará quando o vermos sem véus, diretamente, como Ele se vê,
e quando nós o amarmos como Ele se ama, sem perigo de o perder pelo pecado.

Esta vida da graça, que se desenvolve aqui em baixo na obscuridade da fé pelo


progresso da caridade, deve, portanto, de si mesma, durar para sempre e, quando a fé e a
esperança passarem para dar lugar à visão e posse de Deus, a graça santificante e a
caridade que estão em nós durarão eternamente; esta vida faz com que, desde aqui em
baixo, sejamos templos da santa Trindade.

Mas, ainda que esta vida da graça deva, de si mesma, durar para sempre, sem
jamais ser perdida pelo pecado mortal, que é a própria desordem, ela é recebida em um
vaso frágil, que pode se quebrar e, em muitos batizados, ela desaparece, é destruída pelo
pecado, depois é restituída pela absolvição e contrição; freqüentemente, é destruída uma
série de vezes e é uma grande misericórdia quando restituída antes da morte. Assim,
esta grande lei da graça santificante, de si feita para durar para sempre, é adulterada em
muitas vidas cristãs por interrupções que constituem tempos de morte.

Nas crianças das quais falamos, ao contrário, esta lei realiza-se


maravilhosamente, a inocência batismal permanece, o vaso não se quebra e a água
puríssima que contém verdadeiramente salta, como dizia Jesus à Samaritana, até a vida
eterna, assim como o mostra os últimos instantes destes pequeninos. « Vita gratiæ est
quædam inchoatio vitæ æternæ », gostava de dizer Santo Tomás9.

Uma segunda lei da vida da graça é assim formula pelo mesmo santo doutor:
"Como a pedra tende para o centro da terra com velocidade tanto maior quanto mais
dele se aproxima, assim as almas em estado de graça devem seguir em direção a Deus
com tanto maior velocidade quanto mais Dele se aproximam e quanto mais são atraídas
por Ele"10. Em outras palavras, a alma em estado de graça deve, normalmente, pelo
élan de sua caridade ou de seu amor, tender cada vez mais fortemente em direção a
Deus, até a hora em que chegar à visão da essência divina. Por isso, em princípio, cada
uma de nossas comunhões deveria ser substancialmente mais fervente que a precedente,
posto que cada uma deve aumentar em nós a graça e a caridade e assim nos dispor a
melhor receber Nosso Senhor no dia seguinte11.

Mas, o pecado venial, sobretudo se deliberado, vêm freqüentemente retardar


este élan, e obstruir esta segunda lei, como o pecado mortal, destruindo a vida da graça,
impede a efetiva realização da primeira.

Nos pequenos predestinados de que falamos, este retardo no élan do amor de


Deus, que provém sobretudo do pecado venial deliberado, é dificilmente visível;
percebemos que estas almas inocentes, como a da pequena Nellie, são tomadas por um
élan cada vez mais forte em direção ao «Deus santo», como ela dizia; em direção a
Nosso Senhor presente na Eucaristia, até que Ele lhes permita participar de sua vida
gloriosa no céu. Compreendemos assim, mais e mais, a alegria com que Jesus devia
dizer: « Deixe vir a mim os pequeninos. »

Enfim, uma terceira lei da graça, que completa as precedentes, é aquela que é
assim formulada por S. Paulo (Rm 8, 28): «todas as coisas concorrem para o bem
daqueles que amam a Deus, para o bem daqueles que, segundo o seu eterno desígnio,
foram chamados santos». Na vida dos eleitos, tudo concorre para a salvação e ao grau
da glória a que foram predestinados: todas as graças, desde a do batismo, todos os dons
naturais, as circunstâncias favoráveis da existência bem como as provações, as doenças,
a hora da morte escolhida por Deus desde toda a eternidade, sem mesmo excetuar, diz
santo Agostinho, suas faltas, pois elas foram permitidas pelo Senhor para lhes fazer
chegar a uma humildade mais verdadeira, a uma perfeita desconfiança de si mesmos e a
uma confiança em Deus ainda mais firme: « Cum enim infirmor, tunc potens sum. »

Mas, ainda uma vez, esta grande lei, assim como as duas precedentes, é
dissimulada na vida de muitos eleitos pela quantidade e gravidade de pecados
insuficientemente expiados, pelos quais muitos deverão passar por um longo e duro
purgatório, que entra assim no número de coisas que concorrem para conduzir-lhes ao
termo de seu destino.

Ora, na vida das crianças predestinadas das quais falamos, não percebemos, por
assim dizer, nada de similar. Sob o sopro da graça, tais almas voam quase sem
interrupção rumo à santidade, ao que o Senhor pede aos pequeninos, e que lhes permite
atingir, em tão pouco tempo, o grau de glória a que foram predestinados.
Verdadeiramente, em suas curtas vidas, até a hora escolhida por Deus para sua morte,
tudo concorreu para o bem; e nesse tudo, o purgatório parece não ter nenhum lugar.

O Espírito Santo os faz escutar aquilo que espera deles para que respondam à
graça de sua santificação segundo o plano divino. Estas pequenas biografias nos ajudam
a compreender um pouco o que é, no pensamento de Deus, a santidade de uma criança e
o que ela requer para render a Deus a glória que Ele espera.

Com efeito, estas almas, ainda cobertas do orvalho celeste do batismo, estas
almas que não foram respingadas pela lama da terra, não tem de passar pelo purgatório.
Ora, aquele que está, no instante de sua morte, pronto para entrar imediatamente no céu,
é santo; em sua vida, tudo concorreu para conduzi-lo a este grau de pureza e de amor de
Deus e das almas que lhe fizeram obter, imediatamente, a beatitude eterna.

Fazendo seus pequenos sacrifícios — grandes para o Senhor e para eles —


estes pequeninos parecem ir de claridade em claridade, até receber e provar Deus desde
aqui em baixo. « Eu o saboreio », dizia Guy.

Lê-se no depoimento inédito de uma religiosa auxiliadora de Cannes que


ensinou durante cinco anos o catecismo à pequena Anne de Guigné: « Por seus dons,
geraria a inveja; sem sua virtude, muitos teriam se manchado; no entanto, ela se portava
muito bem em seu lugar: por sua discrição evitava diminuir seus colegas com tão
perfeito zelo — sabia perfeitamente não se antecipar senão para prestar-lhes algum
serviço — que todos sucumbiam ao charme de sua virtude sem invejar sua excelência.
Ela sempre ficou em seu canto, em seu pequenino assento, de uma maneira que
ultrapassa até uma já grande virtude...

« Semprei notei nela toques de recolhimento interior: era nesses momentos que
o menino Jesus lhe falava, confessava ela. Estou intimamente persuadida de que pediu
para ir ao paraíso: sentia-se isso, tudo traía esta impaciência do céu. O bom Deus a
chamava, ela o sentia; respondia a este apelo com alegria. Não falava nada disso com
sua mãe para não a entristecer, para evitar esta imensa dor, mas tinha a íntima certeza de
que não tardaria a morrer. Era impressionante no fim. Nada mais a prendia na terra. Eu
sentia que a morte não lhe custaria senão um sacrifício, o de sua mãe. »

É a mesma observação que fazemos ao ler as biografias destes pequeninos


servidores de Deus.

— « Quando será? Quando Ele virá? » dizia Marie-Gabrielle T., que morreu
exprimindo seu mui vivo desejo do céu.

A pequena Gugliemina Tacchi-Marconi (1898-1909), cuja biografia também


está na coleção Parvuli, manifesta aos oito anos um amor extraordinário pelos pobres,
aos quais dá « por amor de Jesus », seu dinheiro, seu agasalho. Uma palavra que ofende
a Deus a empalidece; torna-se grave e recolhida quando se lhe fala da Eucaristia.
Sofrendo muito durante os sete meses de uma endocardite que a acomete, mostra-se
doce, resignada, sem caprichos ou impaciências, apesar da insônia; após a extrema-
unção, pede instantemente a comunhão: « Quero novamente Jesus-Hóstia, depois,
adormeço. Apressem-se! »; e, após ter seu desejo atendido, morre durante sua ação de
graças.

Conforme a mesma coleção, uma pequena nascida nos Alpes franceses,


Hélène12 (1894-1905), que aparente praticar sem esforços a virtude, a obediência, a
mortificação e se mostra diligente, aplicada, meditativa, quer pedir à Jesus a graça de
morrer no dia de sua primeira comunhão; sua mãe responde: « Deixe-o fazer como
quiser. » Depois, alguns meses após esta radiante primeira comunhão, ela convida seus
pais e irmãs para escutar uma última vez tudo o que sabe tocar no piano, e diz: « Será
que vou morrer? Parece-me que sim, foi por isso que toquei para você tudo quanto
sabia... pela última vez. » Pouco após, ela é acometida por uma meningite. Nos
extremos da dor, ela continua sempre recolhida, mãos juntas, sem impaciência. Quando
seu confessor pergunta se quer Jesus, ela recupera toda a lucidez. Recebe-o dizendo, do
fundo do seu coração: « Meu Deus, eu vos amo! » e, após a extrema-unção, morre,
como tinha pressentido.

Por vezes nos surpreendemos ao encontrar estas pequenas almas, inteiramente


abandonadas na luz, e temos a impressão que estes meninos deram à Deus tudo o que
queria deles: fidelidade aos deveres quotidianos de sua idade, fidelidade inspirada por
uma fé, uma confiança filial e por uma caridade cada vez mais vivas. Encontramos neles
um senso profundo do mistério da Cruz. O pequeno Guy de Fontgalland, com onze anos
de idade, durante as agonias que antecederam sua morte, dizia: « Oh! Como sofro! Meu
amado menino Jesus, eu vos ofereço poder sofrer assim pelo tempo que desejardes...; eu
vos amo muito, sim! » E, virando-se para sua mãe, antes de seu último suspiro, diz, para
consolá-la, lembrando o prêmio da Cruz do Salvador: « Mamãe, minha querida mamãe,
quando eu estiver lá em cima, perto do menino Jesus, eu te enviarei algumas cruzes...
será preciso aceitá-las.» Que grande lição de força o Senhor nos dá por meio desta
criança!

A perfeição da vida cristã consiste especialmente na caridade, no amor de Deus


e das almas em Deus. Se, portanto, vemos a vida de uma criança inteiramente movida
pelo amor de Deus, pela confiança em Nosso Senhor e em Maria, se nele encontramos,
com espírito de mortificação e de sacrifício, uma intimidade sempre crescente de quase
todos os instantes com Aquele que disse: « Deixai vir a mim os pequeninos », então
podemos dizer que esta criança, apesar de sua pouca idade, alcançou a perfeição da vida
cristã, e a alcançou em um grau talvez muito superior ao que atingirão muitos bons
cristãos, mesmo em idade avançada. Nós nos lembramos então a palavra de S. Pio X,
quando chamava as criancinhas à primeira comunhão: « haverá santos entre as
crianças » E a oração destes pequeninos é, por vezes, singularmente poderosa; se os
grandes da terra são muitas vezes tocados pela oração que lhes fazem os pequeninos,
quanto mais não a amará receber o próprio Senhor, Ele que a fez saltar de seus
corações!

Peçamos a eles de nos conseguir vocações sacerdotais, padres santos e, para


afugentar os perigos de uma nova guerra, fazer surgir, nos países suscetíveis de entrar
em conflito amanhã, verdadeiros amigos de Jesus, fontes de caridade e de paz.

Roma, Angelico.

Tradução: Permanência. Publicado originalmente em La Vie Spirituelle n° 137,


Fev. 1931
1. 1. Nellie, la petite violette du Saint-Sacrement, biografia e biografia
resumida, Editora Maison du Bon Pasteur, 228, blvd Perreire, Paris e, do mesmo
editor, Les petits privilégiés de Jésus-Eucharistie: A travers les lys, livro que mostra o
que pode fazer a santa comunhão na alma das crianças.
2. 2.Gustavo Maria Bruni : il piccolo Serafino di Gesù sacramentato. – Sac.
A. M. Anzini, Torino, Libreria editrice internazionale della buona Stampa. 1915. 3°
édition.
3. 3.Emma Mariani, Cenni biografici, par Francesco della Santina, 2°
edizione, Lucca, coop. Tipografica editrice, 1923.
4. 4. Anne de Guigné, pelo padre Lajeunie, O. P. Nova edição (64e mil).
Editions du Cerf, Juvisy, Seine-et-Oise.
5. 5.Une âme d’enfant, Guy de Fontgalland (1913-1925), 135e mille,
e Derniers souvenirs sur Guy de Fontgalland, Paris, Maison de la Bonne Presse. – La
personnalité surnaturelle d’un jeune garçon, por E. Dévaud, professor da Université de
Fribourg, 2aediçãoem Vitte, Lyon.
6. 6.Hélène-Anne Dabrowska, Histoire d’une fillette, pelo abade Léon
Skornicki, prefácio do padre H. Woroniecki, O. P. Poznan, 1930.
7. 7.Nesta coleção, o primeiro volume tem por título: « Le Deo gratias »
d’un tout petit : Auguste Magne, 1920-1929.
8. 8.Pier Giorgio Frassati, Testimonianze, Cojazzi. – Casa editrice
internazionale, Torino. 1929.
9. 9.IIa IIae, q. 24, a. 3, ad 2 m : « Gratia nihil aliud est quam quaedam
inchoatio gloriae in nobis. » Item Ia IIae, q. 69, a. 2, et de, Veritate, q. 14, a. 2.
10. 10.S. Thomas, In Epist. Ad Haebreos, X, 25 : « Motus naturalis quanto
plus accedit ad terminum, magis intenditur. Contrarium est de motu violento. Gratia
autem inclinat in modum naturae. Ergo, qui sunt in gratia, quanto plus accedunt ad
finem, plus debent crescere. »
11. 11.Costuma-se objetar que a Eucaristia, por ser um alimento, tem
sobretudo a função de conservar a vida da graça, como a alimentação que, todos os dias,
tomam os adultos sem por isso crescer. Mas a Eucaristia é um alimento que tem por fim
não apenas conservar, mas aumentar em nós a vida da graça, pois temos de crescer
enquanto marchamos em direção à eternidade, até por fim atingir, na idade perfeita, a
visão imediata da essência divina. Poderia mesmo ser que (é a opinião que se atribui a
Caetano), no momento de uma fervente comunhão, recebamos um aumento da caridade
devido à nossos atos de caridade imperfeitos (remissi), que não obtiveram este aumento
no momento em que foram executados.
12. 12. Esta biografia, como as duas precedentes, nos é dada pela pluma de
Myriam de G., autora do belo e bem conhecido livro "Vingt-deux ans de martyre".

A assistência à missa, fonte de santificação

A santificação de nossa alma se encontra em uma união, cada dia, mais íntima
com Deus, união de fé, de confiança e de amor. Por isso um dos maiores meios de
santificação é o ato mais elevado da virtude de religião e do culto cristão: a participação
no sacrifício da Missa. Para toda alma interior, a Missa deve ser, cada manhã, como
a fonte eminente, de onde derivam todas as graças de que temos necessidade durante o
curso do dia, fonte de luz e de calor, semelhante na ordem espiritual, ao que é o nascer
do sol na ordem da natureza. Depois da noite e do sono que são como uma imagem da
morte, o sol reaparecendo cada manhã, dá, de alguma maneira, vida a tudo o que acorda
na superfície da terra. Se conhecêssemos profundamente o preço da missa quotidiana,
veríamos que ela é como um nascer do sol espiritual, para renovar, conservar e
aumentar em nós a vida da graça, que é a vida eterna começada. Mas muitas vezes o
habito de assistir a missa, por falta de espírito de fé, degenera em rotina e não
recebemos mais então do santo sacrifício todos os frutos que deveríamos receber.

Este então deveria ser o maior ato de nossos dias e na vida de um cristão,
sobretudo de um religioso, todos os outros atos quotidianos só deveriam ser
o acompanhamento daquele, ou seja, todas as outras orações e pequenos sacrifícios que
devemos oferecer ao Senhor durante o dia.
Lembremos aqui: 1º. o que dá valor ao sacrifício da missa, 2º qual é a relação
de seus efeitos com nossas disposições interiores, 3º como devemos nos unir ao
sacrifício eucarístico.

*
* *

A oblação sempre viva do coração do Cristo

A excelência do sacrifício da Missa vem, diz o Concilio de Trento1, do fato de


ser o mesmo sacrifício em substancia que o sacrifício da Cruz, porque é o mesmo
sacerdote que continua atualmente a se oferecer por seus ministros, é a mesma
vítima, realmente presente no altar, que é realmente ofertada; só difere a maneira de
oferecer: enquanto há na Cruz uma imolação cruenta, na Missa há uma imolação
sacramental pela separação, não física, mas sacramental do corpo e do sangue do
Salvador, em virtude da dupla consagração. Assim o sangue de Jesus sem ser
fisicamente derramado é sacramentalmente derramado2.

Esta imolação sacramental é um sinal3da oblação interior de Jesus, à qual


devemos nos unir; é também o memorial da imolação cruenta do Calvário. Apesar dela
ser somente sacramental, esta imolação do Verbo de Deus feito carne, é mais
expressiva do que a imolação cruenta do cordeiro pascal e de todas as vítimas do Antigo
Testamento. Um sinal tira, com efeito, seu valor expressivo da grandeza da coisa
significada; a bandeira que nos lembra a pátria, de tecido comum, tem maior preço a
nossos olhos do que a flâmula de uma companhia ou do que a insígnia de um oficial. A
imolação cruenta das vitimas do Antigo Testamento, figura longínqua do sacrifício da
Cruz, exprimia somente os sentimentos interiores dos sacerdotes e dos fieis da antiga
Lei; enquanto que a imolação sacramental do Salvador sobre nossos altares exprime,
sobretudo, a oblação interior sempre viva do coração do “Cristo que não cessa de
interceder por nós” (Hebr., VII, 25).
Ora, essa oblação que é como a alma do sacrifício da Missa, tem um valor
infinito, que emana da pessoa divina do Verbo feito carne, sacerdote principal e vítima,
cuja imolação continua sob uma forma sacramental.

São João Crisóstomo escreveu: “Quando virem no altar o ministro sagrado


elevando para o céu a santa hóstia, não creiam que este homem seja o verdadeiro padre
(principal), mas, elevando o pensamento acima daquilo que atinge os sentidos,
considerem a mão de Jesus Cristo invisivelmente estendida”4. O padre que vemos com
nossos olhos de carne não pode penetrar em toda a profundeza desse misterio, mas
acima dele está a inteligência e a vontade de Jesus sacerdote principal. Apesar do
ministro não ser sempre o que deveria ser, o sacerdote principal é infinitamente santo; o
ministro, mesmo quando é bom, pode estar ligeiramente distraído ou ocupado com as
cerimônias exteriores do sacrifício, sem penetrar no sentido intimo, mas acima dele há
alguém de um valor infinito, uma suplica e uma ação de graças sem limite de tamanho.

Esta oblação interior sempre viva no coração do Cristo é, por assim dizer, a
alma do sacrifício da Missa. É a continuação daquela pela qual Jesus se ofereceu como
vítima entrando neste mundo e em todo o curso de sua existência terrestre, sobretudo na
Cruz.Quando o Salvador estava sobre a terra, essa oblação era meritória; agora continua
sem essa modalidade de mérito. Continua sob a forma de adoração reparadora e
de súplica, para nos aplicar os méritos passados da Cruz. Mesmo quando a última Missa
acabar no fim do mundo e que não houver mais sacrifício propriamente dito, mas sua
consumação, a oblação interior do Cristo para seu Pai durará, não mais sob a forma de
reparação e de súplica, mas sob a forma de adoração e de ação de graças. É o que nos
faz prever o Sanctus, Sanctus, Sanctus, que dá uma idéia do culto dos bem-aventurados
na eternidade.

Se nos fosse dado a conhecer, imediatamente, o amor que inspira esta oblação
interior, que dura sem cessar no coração do Cristo, “sempre vivo para interceder por
nós”, qual não seria nossa admiração!

A Bem-aventurada Ângela de Foligno nos diz5: “Não tenho um vago


pensamento, mas a certeza absoluta que, se uma alma visse e contemplasse algum dos
esplendores íntimos do sacramento do altar, incendiaria, pois veria o amor divino.
Parece-me que aqueles que oferecem o sacrifício, ou que nele tomam parte, deveriam
meditar profundamente sobre a verdade profunda do mistério três vezes santo, na
contemplação do qual deveríamos permanecer imóveis e absorvidos”.

*
* *

Os efeitos do sacrifício da missa e nossas disposições interiores.

A oblação interior do Cristo Jesus, que é a Alma do sacrifício eucarístico,


tem os mesmos fins e os mesmos efeitos que o sacrifício da Cruz, mas importa
distinguir, entre esses efeitos, aqueles que são relativos a Deus e os que nos concernem.

Os efeitos da Missa imediatamente relativos a Deus, como a adoração


reparadora e a ação de graças, se produzem sempre infalivelmente e plenamente com
seu valor infinito, mesmos sem nosso concurso, mesmo que a Missa seja celebrada por
um ministro indigno, desde que seja válida. De cada Missa se eleva, então, para Deus
uma adoração e uma ação de graças de um valor sem limites, em razão da dignidade do
Sacerdote principal que oferece e do preço da vitima ofertada. Esta oblação “agrada
mais a Deus do que todos os pecados reunidos lhe desgostam”; é isso que constitui a
própria essência do mistério da Redenção por modo de satisfação6.

Quanto aos efeitos da Missa, relativos a nós, só nos são dispensados na


medida de nossas disposições interiores.

É assim que a Missa, como sacrifício propiciatório, obtém, ex opere


operato, para os pecadores que não resistem, a graça atual que os leva a se
arrependerem e que os inspira a confessar suas faltas7. As palavras do Agnus Dei, qui
tollis peccata mundi, parce nobis Domine, produzem nesses pecadores que não põem
obstáculos aos sentimentos de contrição, o que o sacrifício da Cruz produziu na alma do
bom ladrão. Trata-se aqui, sobretudo, dos pecadores que assistem a Missa ou daqueles
por quem ela é dita.
O sacrifício da Missa, como satisfatório, apaga também, infalivelmente aos
pecadores arrependidos, ao menos uma parte da pena temporal devida pelo pecado e
isso em proporção às disposições mais ou menos perfeitas com as quais a assistem. É
por isso que o Concílio de Trento diz que o sacrifício eucarístico pode ser oferecido
também pelo sufrágio das almas do purgatório8.

Enfim como sacrifício impetratório ou de Súplica, a Missa nos obtém ex opere


operato todas as graças que temos necessidade para nos santificar. É a grande oração do
Cristo sempre vivo que continua para nós, acompanhado da oração da Igreja, Esposa do
Salvador. O efeito desta dupla oração é proporcionado ao nosso fervor e aquele que se
uni o melhor que pode, está certo de obter para ele e para aqueles que lhes são caros, as
mais abundantes graças.

Segundo Santo Tomas e muitos teólogos, esses efeitos da Missa relativos a nós
são limitados apenas pela medida de nosso fervor9. A razão é que a influência de
uma causa universal só é limitada pela capacidade dos sujeitos que a recebem. Assim o
sol clareia e aquece em um só lugar tanto mil pessoas como a uma só. Ora o sacrifício
da Missa, sendo substancialmente o mesmo que o da Cruz é, por modo de reparação e
de oração, uma causa universal de graças, de luz, de atração e de força. Sua influência
sobre nós só é, pois, limitada pelas disposições ou pelo fervor daqueles que a recebem.
Assim uma única missa será tão proveitosa para um grande numero de pessoas como se
fosse oferecida para uma só entre elas; assim como o sacrifício da Cruz rendeu ao bom
ladrão tanto proveito quanto teria rendido se oferecido por ele só. Se o sol aquece, em
um só lugar, mil pessoas como a uma, a influência desta fonte de calor espiritual que é a
Missa não é menor em sua ordem. Quanto mais se assiste a Missa com fé, confiança,
religião e amor, maiores serão os frutos que dela se retira.

Tudo isso nos mostra porque os santos, à luz dos dons do Espírito Santo,
sempre tanto apreciaram o Sacrifício da Missa. Alguns, ainda que enfermos e doentes,
queriam se arrastar até a missa, porque ela vale mais do que todos os tesouros. Santa
Joana d’Arc, indo para Chinon, importunava seus companheiros de armas e obtinha
deles, a força de insistência, que assistissem a missa todos os dias. Santa Germana
Cousin era fortemente atraída para a Igreja quando escutava o sino anunciar o santo
sacrifício, deixava suas ovelhas na guarda dos anjos e corria para assistir a missa; seu
rebanho era bem guardado. O santo Cura d’Ars falava do valor da Missa com tal
convicção, que tinha obtido que todos ou quase todos os seus paroquianos a
assistissem. Inúmeros outros santos derramavam lágrimas de amor ou caíam em êxtase
durante o sacrifício eucarístico; alguns viram no lugar do celebrante o próprio Nosso
Senhor, o Sacerdote principal. Outros, na elevação do cálice, viram o precioso sangue
transbordar, escorrendo pelos braços do padre e pelo santuário e anjos virem recolhê-lo
em taças de ouro como para levá-lo por toda parte onde houvesse homens para salvar.
São Felipe de Néri recebeu graças desse gênero e se escondia para celebrar por causa
dos arrebatamentos, que muitas vezes, era tomado no altar.

Como nos unir ao sacrifício eucarístico?

Pode-se aplicar a isso o que Santo Tomás10 diz sobre a atenção na oração
vocal: “A atenção pode estar ou bem nas palavras para bem pronunciá-las, ou no sentido
das palavras, ou no fim da oração, quer dizer em Deus e naquilo pelo que se reza... Esta
ultima atenção, que os mais humildes, sem cultura podem ter, é algumas vezes tão
grande que é como se o espírito fosse elevado para Deus e se esquecesse de todo o
resto”.

Assim também para bem assistir a missa, com fé, confiança, verdadeira
piedade e amor, podemos segui-la de maneiras diferentes. Podemos estar atentos às
preces litúrgicas, geralmente tão belas e tão cheias de unção, de elevação e de
simplicidade. Podemos lembrar a Paixão e a Morte do Salvador, cuja missa é o
memorial e se considerar como estando ao pé da Cruz com Maria, João, as santas
mulheres. Podemos ainda nos aplicar a render a Deus, em união com Jesus, os quatro
deveres que são os fins do Sacrifício: adoração, reparação, pedido e ação de graças11.
Desde que se reze, mesmo recitando piedosamente seu terço, assistimos com frutos à
missa. Podemos também com grande proveito, como santa Joana de Chantal e muitos
santos, continuar com a sua oração, sobre tudo se somos levados a um puro e intenso
amor, um pouco como são João na Ceia repousando sobre o Coração de Jesus.

Mas de qualquer maneira que se siga a Missa, é preciso insistir em uma coisa
importante. É preciso sobretudo nos unirmos profundamente à oblação do Salvador, o
sacerdote principal: com ele, é preciso oferecê-lo a seu Pai, nos lembrando que esta
oblação agrada mais a Deus do que todos os pecados lhe desagradam. É preciso nos
oferecer, cada dia, mais profundamente, oferecer particularmente as penas e
contrariedades que costumamos ter e aquelas que se apresentarão durante o dia.

É assim que no ofertório o padre diz: “In spiritu humilitatis et in animo contrito
suscipiamur a te, Domine: É com espírito de humildade e coração contrito que vos
pedimos, Senhor, de nos receber”.

O autor da Imitação, I. IV, cap. VIII, insiste com razão sobre este ponto: O
Senhor diz: “ Como me ofereci voluntariamente a meu Pai por vossos pecados, na
cruz..., assim deveis todos os dias, no sacrifício da Missa, vos oferecer a mim, como
uma hóstia pura e santa, do mais profundo do vosso coração... É a vos que eu quero e
não vossos dons... Se permanecerdes em vós mesmos, se não vos abandonardes sem
reserva a minha vontade, vossa oblação não será completa e não estaremos unidos
perfeitamente”.

No capitulo seguinte, o fiel responde: “Na simplicidade de meu coração, eu me


ofereço a vós meu Deus, para vos servir para sempre... Recebei-me com a oblação santa
de vosso precioso Corpo... Ofereço-vos também tudo o que há de bom em mim, por
mais imperfeito que seja, para que vós a torne mais digna de vós. Ofereço-vos ainda
todos os piedosos desejos das almas fieis, a oração por aqueles que me são queridos... A
súplica por aqueles que me ofenderam ou entristeceram, por aqueles também que eu
mesmo afligi, feri, escandalizei, sabendo ou não, afim de que nos perdoeis todas nossas
ofensas mútuas... e fazei que sejamos dignos de gozar aqui na terra dos vossos dons e
alcançar a vida eterna.”

A missa assim compreendida é uma fonte fecunda de santificação, de graças


sempre renovadas; por ela pode-se realizar cada vez melhor para nós a oração do
Salvador: Dei-lhes a luz que vós me destes, para que sejam um como nós somos um, Eu
neles e vós em mim, afim de que eles sejam perfeitamente um e que o mundo saiba que
vós me enviastes e que vós os amastes como vós me amais” (João, XVII, 23).

A visita ao Santíssimo Sacramento deve nos recordar a missa da manhã e


devemos pensar que no Tabernáculo, se não há sacrifício propriamente dito, que cessa
com a missa, no entanto Jesus realmente presente continua a adorar, orar e render
graças. Deveríamos nos unir a essa oblação do Salvador a qualquer hora do dia. Como
diz a oração do Coração Eucarístico: “Ele é paciente a nos esperar, apressado em nos
atender; é a sede de todas as graças sempre renovadas, o refúgio da vida escondida, o
mestre dos segredos da união divina”. Devemos junto ao Tabernáculo, “calar-nos para
escutar, e abandonar-nos para nele nos perder”12.

Roma, Angélico.

(Tradução: Permanência. Originalmente publicado em “La Vie Spirituel” n º


187, 1º - 04 – 1935)

Traduzido a partir de www.salve-regina.com

1. 1.Sessão XXII,cap.I e II
2. 2.Do mesmo modo a humanidade do Salvador fica numericamente a
mesma, mas depois de sua ressurreição ela é impassível,, enquanto que antes estava
sujeita à dor e à morte.
3. 3.“Sacrificium externum est in genere signi, ut signum interioris
sacrificii”.
4. 4.Homl.LX ao povo de Antioquia
5. 5.Livro de suas visões e instruções, cap. LXVII.
6. 6.Cf. S. Tomas, IIIa, q. 48, ª2: “Ille proprie satisfacit pro offensa, qui
exhibet offenso id quod aeque vel magis diligit, quam oderit offensam”.
7. 7.Cf. Concilio de Trento, sess. XXII, c. II: “Hujus quippe
oblationeplacatus Dominus, gratiam et domum paenitenciae concedens, crimina et
peccat etiam ingentia dimittit”.
8. 8.Ibidem
9. 9.Cf. S. Tomas, III ª q,79, a. 5 et 7 ad 2um, onde não há outro limite
indicadoa são ser aquele da medida de nossa devoção “secundum quantitatem seu
modum devotionis eorum” (id est: fidelium). Cajetan, In IIIum, q.79, a. 5. João de
Santo Tomas, In IIIum, disp.32, a. 3. Gonet, Clypeus... De Eucaristia, disp. II, a. 5.
no. 100. Salmanticenses, de Eucaristia, disp. XIII, dub. VI. Nós nos separamos
completamente do que escreveu sobre este assunto P.dela Taille, Esquisse du
mystere de la foi, Paris, 1924, p.22.
10. 10.IIa IIae, q. 82, a.13.
11. 11.A primeira parte da missa até o ofertório nos inspira sentimentos
de penitencia e contrição (confiteor, Kyrie eleison), de adoração e de
reconhecimento (Gloria in excelsis), de súplica (Colleta), de fé viva (Epitre,
Evangile, Credo), para nos preparar para o oferecimento da santa Vitima, seguida da
comunhão e da ação de graças.
12. 12.Recomendamos, para ler durante a visita ao Santíssimo
Sacramento ou para meditar como assunto de oração, Les elevations sur laPriere au
Coeur Eucharistique de Jesus, que foram publicadas pela primeira vez em
1926, Editions de laVie Spirituelle.
A força e a ternura do amor do Salvador

Das alturas da visão de Deus, o amor de Cristo desce em nossas almas e, nesse
amor de Jesus por nós, encontramos, unidas, características tão diferentes: a mais
profunda ternura e a força mais heróica.

A terna misericórdia do Salvador para com as almas não se desmente em


nenhum instante, apesar de todas as ingratidões, contradições e ódios que Ele encontrou
em Seu caminho.

Quanto a nós, temos facilmente uma terna afeição a raras pessoas da família ou
a um amigo: mas quase sempre essa ternura é inteiramente sensível, superficial; não
chega até a alma daqueles que amamos. Rezamos muito por eles? — Além do mais,
essa afeição é freqüentemente tão estreita quanto superficial: nós a reservamos para
alguns íntimos; como ela é fraca, perderia sua relativa intensidade se se espalhasse.
Nosso coração é pobre, avaro em sua afeição: os indiferentes ficam de fora, e com
maior razão os que nos ofenderam, feriram; somos até duros com eles e, às vezes,
impiedosos.

A ternura sobrenatural de Cristo pelas almas é profunda, porque visa primeiro


a alma, desejando-lhes a vida eterna; e ao mesmo tempo ela é universal, imensa, se
estendendo a todos.
Jesus é, como Ele afirma, o Pastor das almas; todas podem tornar-se ovelhas de
seu rebanho. Ele as conhece todas, chama-as nominatim, cada um por seu nome [1],
protege-as contra o inimigo, inquieta-se pelas ausentes, corre à procura delas e carrega-
as em seus ombros.

Um dos maiores sinais de sua vinda é este: "Os pobres são evangelizados" [2].
Eles têm, como as crianças, um lugar especial em sua afeição. Ele não teme
comprometer Sua dignidade ao admiti-los perto de si; expõe-lhes com bondade a
doutrina da salvação e até os serve. É entre os pobres e os humildes que escolhe seus
apóstolos; na Quinta-Feira Santa se humilha diante deles, lava e beija seus pés para
fazê-los entender melhor o preceito do amor fraternal. Cor Jesu, deliciae Sanctorum
omnium, miserere nobis.

O que diz Ele aos pecadores? — "Vinde a mim todos os que estão fatigados e
vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mt. 11, 28). Ele tem piedade da grande
miséria para onde o pecado os conduziu; leva-os ao arrependimento sem julgá-los com
severidade. Ele é o pai do pródigo, abraça o filho infeliz por sua falta; perdoa a mulher
adúltera que os homens se apressavam a lapidar; recebe Madalena arrependida, abre-lhe
imediatamente o mistério de Sua vida íntima; fala da vida eterna à samaritana apesar de
sua conduta; promete de imediato o céu ao bom ladrão. Realmente se realizam n'Ele as
palavras de Isaías: "Ele não quebrará a cana rachada, nem apagará a mecha que ainda
fumega." [3]

Ele sem dúvida repreende com muita veemência os fariseus que se obstinam
em seu orgulho; mas é porque quer preservar as almas, afastá-las de sua influência, e
também quer dar aos fariseus uma última advertência, que ainda os salvaria se eles não
se endurecessem em seu orgulho. Advertindo-os assim, Jesus ainda os ama; até lhes dá
uma graça que torna para eles realmente possível o cumprimento do dever.
Esse amor de Cristo não perde sua ternura, estendendo-se a todas as almas; ele
abraça todas as nações e todos os tempos. Nosso Senhor tem sem dúvida suas
preferências por um São João, por Zaqueu, pelo bom ladrão, mas permanece aberto a
todos. "Ele morreu por todos os homens", diz São Paulo (II Cor. V, 14-15). Muitos se
afastaram d'Ele, mas Ele não repele ninguém. E quando nos afastamos, Ele intercede
pelos ingratos como rezou por seus algozes. É o grau supremo da bondade e da doçura
na humildade. Ele diz a Pedro que deve-se "perdoar setenta vezes sete vezes", isto é,
sempre, e Ele é o primeiro a fazê-lo.

Ao mesmo tempo, esse amor de Jesus por nós é de uma força que faz de seu
coração o maior de todos. Cor Jesu, rex et centrum omnium cordium, miserere nobis.

Essa força, essa generosidade de seu amor por nós se manifesta cada vez mais
desde o presépio até a Cruz. "Ele me amou, diz São Paulo, até se entregar por mim" [4],
e cada um de nós pode dizer o mesmo. Os incrédulos só querem ver no Cristo
moribundo um grande homem esmagado por mediocridades ciumentas. Ele é
infinitamente mais: é a vítima voluntária que se ofereceu para nos salvar. "Ninguém tem
maior amor que aquele que dá a sua vida por seus amigos." (Jo XV, 13)

Almas generosas se oferecem, às vezes, como vítimas para obter a conversão


de um pecador, ou abreviar os sofrimentos do purgatório de um ente muito querido.
Jesus se ofereceu como vítima por milhares de almas, por todos sem exceção e por cada
uma em particular; e nenhum adulto está privado do benefício da redenção a não ser por
orgulho ou para satisfazer sua concupiscência. Jesus suportou a pena que cabia a cada
um de nós. Ele sofreu o pecado na medida de Seu amor por Deus, a quem o pecado
ofende, e na medida de seu amor por nossas almas, que o pecado destrói e faz
morrer. Cor Jesu, attritum propter scelera nostra, miserere nobis: Coração de Jesus,
contristado por nossos pecados, tende piedade de nós. O coração doloroso e imaculado
de Maria esteve intimamente associado a essa heróica oblação e nos ajuda a penetrar seu
ministério.
Ninguém nos amou e ninguém nos amará nunca como Cristo. Eis porque,
quando os fiéis de Corinto estavam divididos, um dizendo: Eu sou de Paulo! e outro: E
eu de Apollo! — E eu de Cefas! — E eu de Cristo! São Paulo lhes escreveu: "Foi Paulo
quem foi crucificado por vós?" (I Cor 1, 13)

Jesus quis para si no Getsêmani o amargo cálice de expiação de todos os


pecados, todas as imundices reunidas, para nos dar o cálice de Seu Precioso Sangue, que
é elevado todos os dias sobre o altar. Esses dois cálices representam toda a história do
mundo e das almas, são como os dois pratos da balança do bem e do mal, e é o bem que
pesa mais; o Precioso Sangue pode apagar todos os crimes se imploramos o perdão.

Com sua vitória sobre o pecado obtida na Cruz, Jesus é a fonte da vida e da
santidade, fonte de toda consolação, salvação dos que n'Ele esperam, esperança dos
moribundos, delícia dos santos, como diz a ladainha do Sagrado Coração. Ele nos
deixou enfim a Eucaristia para ficar conosco até o fim do mundo e se dar como alimento
a cada um de nós em particular.

Ele diz a Seus amigos privilegiados seguidores de Seu exemplo: "O que deixa
a chaga de Meu coração aberta é Meu amor. Quero provar às almas que Meu coração
não se fecha. Ao contrário, Meu maior desejo é que as almas entrem por essa chaga de
Meu coração, abismo de caridade e misericórdia. É só nesse coração de um Deus que
elas encontrarão o remédio para abrandar seus sofrimentos e fortificar sua fraqueza. Que
elas Me estendam a mão. Eu mesmo as conduzirei até lá."

Continuamos sendo egoístas, porque nosso amor é fraco demais, pobre demais,
estreito demais, e miseravelmente se volta para nós próprios. O coração de Cristo
dilatará os nossos, ensinando-nos a amar sobre todas as coisas a glória de Deus e a
salvação das almas.
Por que nos deixamos levar pelo ciúme, pela inveja? Porque nosso amor não se
eleva suficientemente até o Bem Supremo que todos nós podemos possuir juntos sem
nos atrapalharmos uns aos outros.

Em vez de nos deixar levar pelo ciúme, agradeçamos antes ao Senhor por ter
dado ao nosso próximo qualidades que não temos e alegremo-nos como a mão aproveita
do que os olhos vêem.

Por que somos fracos? Porque não amamos o suficiente, porque nosso coração
é frio; porque contamos somente com nossas forças cuja enfermidade é manifesta, e
porque não contamos suficientemente com o Coração de Jesus, com Seu amor por nós.

O Coração do Salvador pode e quer nos dar essas santas energias, as da


confiança e do amor que inspira a adoração, a ação de graças e a reparação, colocando
acima de tudo a glória de Deus.

Cor Jesu, de cuius plenitudine omnes nos accepimus, miserere nobis. Vamos
ao Pai, por Ele, com Ele e n'Ele.

(PERMANÊNCIA nos. 214-215; trad. de "Le Sauveur et son Amour por nous",
E. Cèdre, Paris, 1951, p. 222 ss.)
A força e a ternura do amor do Salvador

Das alturas da visão de Deus, o amor de Cristo desce em nossas almas e, nesse
amor de Jesus por nós, encontramos, unidas, características tão diferentes: a mais
profunda ternura e a força mais heróica.

A terna misericórdia do Salvador para com as almas não se desmente em


nenhum instante, apesar de todas as ingratidões, contradições e ódios que Ele encontrou
em Seu caminho.

Quanto a nós, temos facilmente uma terna afeição a raras pessoas da família ou
a um amigo: mas quase sempre essa ternura é inteiramente sensível, superficial; não
chega até a alma daqueles que amamos. Rezamos muito por eles? — Além do mais,
essa afeição é freqüentemente tão estreita quanto superficial: nós a reservamos para
alguns íntimos; como ela é fraca, perderia sua relativa intensidade se se espalhasse.
Nosso coração é pobre, avaro em sua afeição: os indiferentes ficam de fora, e com
maior razão os que nos ofenderam, feriram; somos até duros com eles e, às vezes,
impiedosos.

A ternura sobrenatural de Cristo pelas almas é profunda, porque visa primeiro


a alma, desejando-lhes a vida eterna; e ao mesmo tempo ela é universal, imensa, se
estendendo a todos.

Jesus é, como Ele afirma, o Pastor das almas; todas podem tornar-se ovelhas de
seu rebanho. Ele as conhece todas, chama-as nominatim, cada um por seu nome [1],
protege-as contra o inimigo, inquieta-se pelas ausentes, corre à procura delas e carrega-
as em seus ombros.
Um dos maiores sinais de sua vinda é este: "Os pobres são evangelizados" [2].
Eles têm, como as crianças, um lugar especial em sua afeição. Ele não teme
comprometer Sua dignidade ao admiti-los perto de si; expõe-lhes com bondade a
doutrina da salvação e até os serve. É entre os pobres e os humildes que escolhe seus
apóstolos; na Quinta-Feira Santa se humilha diante deles, lava e beija seus pés para
fazê-los entender melhor o preceito do amor fraternal. Cor Jesu, deliciae Sanctorum
omnium, miserere nobis.

O que diz Ele aos pecadores? — "Vinde a mim todos os que estão fatigados e
vos achais carregados, e eu vos aliviarei" (Mt. 11, 28). Ele tem piedade da grande
miséria para onde o pecado os conduziu; leva-os ao arrependimento sem julgá-los com
severidade. Ele é o pai do pródigo, abraça o filho infeliz por sua falta; perdoa a mulher
adúltera que os homens se apressavam a lapidar; recebe Madalena arrependida, abre-lhe
imediatamente o mistério de Sua vida íntima; fala da vida eterna à samaritana apesar de
sua conduta; promete de imediato o céu ao bom ladrão. Realmente se realizam n'Ele as
palavras de Isaías: "Ele não quebrará a cana rachada, nem apagará a mecha que ainda
fumega." [3]

Ele sem dúvida repreende com muita veemência os fariseus que se obstinam
em seu orgulho; mas é porque quer preservar as almas, afastá-las de sua influência, e
também quer dar aos fariseus uma última advertência, que ainda os salvaria se eles não
se endurecessem em seu orgulho. Advertindo-os assim, Jesus ainda os ama; até lhes dá
uma graça que torna para eles realmente possível o cumprimento do dever.

Esse amor de Cristo não perde sua ternura, estendendo-se a todas as almas; ele
abraça todas as nações e todos os tempos. Nosso Senhor tem sem dúvida suas
preferências por um São João, por Zaqueu, pelo bom ladrão, mas permanece aberto a
todos. "Ele morreu por todos os homens", diz São Paulo (II Cor. V, 14-15). Muitos se
afastaram d'Ele, mas Ele não repele ninguém. E quando nos afastamos, Ele intercede
pelos ingratos como rezou por seus algozes. É o grau supremo da bondade e da doçura
na humildade. Ele diz a Pedro que deve-se "perdoar setenta vezes sete vezes", isto é,
sempre, e Ele é o primeiro a fazê-lo.

Ao mesmo tempo, esse amor de Jesus por nós é de uma força que faz de seu
coração o maior de todos. Cor Jesu, rex et centrum omnium cordium, miserere nobis.

Essa força, essa generosidade de seu amor por nós se manifesta cada vez mais
desde o presépio até a Cruz. "Ele me amou, diz São Paulo, até se entregar por mim" [4],
e cada um de nós pode dizer o mesmo. Os incrédulos só querem ver no Cristo
moribundo um grande homem esmagado por mediocridades ciumentas. Ele é
infinitamente mais: é a vítima voluntária que se ofereceu para nos salvar. "Ninguém tem
maior amor que aquele que dá a sua vida por seus amigos." (Jo XV, 13)

Almas generosas se oferecem, às vezes, como vítimas para obter a conversão


de um pecador, ou abreviar os sofrimentos do purgatório de um ente muito querido.
Jesus se ofereceu como vítima por milhares de almas, por todos sem exceção e por cada
uma em particular; e nenhum adulto está privado do benefício da redenção a não ser por
orgulho ou para satisfazer sua concupiscência. Jesus suportou a pena que cabia a cada
um de nós. Ele sofreu o pecado na medida de Seu amor por Deus, a quem o pecado
ofende, e na medida de seu amor por nossas almas, que o pecado destrói e faz
morrer. Cor Jesu, attritum propter scelera nostra, miserere nobis: Coração de Jesus,
contristado por nossos pecados, tende piedade de nós. O coração doloroso e imaculado
de Maria esteve intimamente associado a essa heróica oblação e nos ajuda a penetrar seu
ministério.

Ninguém nos amou e ninguém nos amará nunca como Cristo. Eis porque,
quando os fiéis de Corinto estavam divididos, um dizendo: Eu sou de Paulo! e outro: E
eu de Apollo! — E eu de Cefas! — E eu de Cristo! São Paulo lhes escreveu: "Foi Paulo
quem foi crucificado por vós?" (I Cor 1, 13)
Jesus quis para si no Getsêmani o amargo cálice de expiação de todos os
pecados, todas as imundices reunidas, para nos dar o cálice de Seu Precioso Sangue, que
é elevado todos os dias sobre o altar. Esses dois cálices representam toda a história do
mundo e das almas, são como os dois pratos da balança do bem e do mal, e é o bem que
pesa mais; o Precioso Sangue pode apagar todos os crimes se imploramos o perdão.

Com sua vitória sobre o pecado obtida na Cruz, Jesus é a fonte da vida e da
santidade, fonte de toda consolação, salvação dos que n'Ele esperam, esperança dos
moribundos, delícia dos santos, como diz a ladainha do Sagrado Coração. Ele nos
deixou enfim a Eucaristia para ficar conosco até o fim do mundo e se dar como alimento
a cada um de nós em particular.

Ele diz a Seus amigos privilegiados seguidores de Seu exemplo: "O que deixa
a chaga de Meu coração aberta é Meu amor. Quero provar às almas que Meu coração
não se fecha. Ao contrário, Meu maior desejo é que as almas entrem por essa chaga de
Meu coração, abismo de caridade e misericórdia. É só nesse coração de um Deus que
elas encontrarão o remédio para abrandar seus sofrimentos e fortificar sua fraqueza. Que
elas Me estendam a mão. Eu mesmo as conduzirei até lá."

Continuamos sendo egoístas, porque nosso amor é fraco demais, pobre demais,
estreito demais, e miseravelmente se volta para nós próprios. O coração de Cristo
dilatará os nossos, ensinando-nos a amar sobre todas as coisas a glória de Deus e a
salvação das almas.

Por que nos deixamos levar pelo ciúme, pela inveja? Porque nosso amor não se
eleva suficientemente até o Bem Supremo que todos nós podemos possuir juntos sem
nos atrapalharmos uns aos outros.
Em vez de nos deixar levar pelo ciúme, agradeçamos antes ao Senhor por ter
dado ao nosso próximo qualidades que não temos e alegremo-nos como a mão aproveita
do que os olhos vêem.

Por que somos fracos? Porque não amamos o suficiente, porque nosso coração
é frio; porque contamos somente com nossas forças cuja enfermidade é manifesta, e
porque não contamos suficientemente com o Coração de Jesus, com Seu amor por nós.

O Coração do Salvador pode e quer nos dar essas santas energias, as da


confiança e do amor que inspira a adoração, a ação de graças e a reparação, colocando
acima de tudo a glória de Deus.

Cor Jesu, de cuius plenitudine omnes nos accepimus, miserere nobis. Vamos
ao Pai, por Ele, com Ele e n'Ele.

(PERMANÊNCIA nos. 214-215; trad. de "Le Sauveur et son Amour por nous",
E. Cèdre, Paris, 1951, p. 222 ss.)

A grande lição do Calvário


Fortis est ut mors dilectio: o que mais impressiona no amor de Jesus, quer por
seu Pai, quer por nossas almas, é a união maravilhosa e muito íntima da mais profunda
ternura e da força a mais heróica no sofrimento e na morte: Fortiter et suaviter.

Estas duas qualidades do amor estão, muitas vezes, separadas em nós e no


entanto só podem viver intimamente unidas. A ternura sem a força torna-se langorosa e
piegas, a força sem nenhuma suavidade, transforma-se em rudeza e amargura 1.

Ninguém pode exprimir o que foi a ternura de amor filial de Jesus por seu Pai;
se ele amava ternamente a Virgem Maria, quanto mais ainda seu Pai, a quem rendia
perpétua ação de graças e adoração! Esta ternura sobrenatural se derramava e se
derrama continuamente sobre as almas, não apenas as de um certo país ou tempo ou
sobre um grupo restrito de alguns amigos, mas sobre todas as almas de todas as
gerações para lhes dar a vida eterna.

Este amor de Cristo tão terno é também mais forte que a morte, mais forte que
o pecado e que o espírito do mal. Foi ele que levou Nosso Senhor a se oferecer como
vítima para pagar em nosso lugar, para nos salvar, dando a Deus uma reparação infinita
que lhe agrada mais do que todo o desgosto causado pelos pecados: Cor Jesu, fornax
ardens caritatis -- eis todas as ternuras e todas as energias do amor admiravelmente
fundidas. O Coração de Jesus é assim o mais puro espelho da Misericórdia e da Justiça,
as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus.

Os membros do corpo místico de Cristo devem cada vez mais participar de sua
vida para se tornarem semelhantes a Ele. A santa humanidade do Salvador nos
comunica progressivamente as graças que mereceu por nós na Cruz, influxo da cabeça
do corpo místico sobre seus membros. Por este influxo Nosso Senhor quer nos
assimilar, cada vez mais, pelo batismo, absolvição, comunhão freqüente, cruzes ou
purificações necessárias a nosso avanço, até a extrema-unção e a nossa entrada no céu.
Na vida de muitos santos vê-se essa assimilação progressiva no modo pelo qual neles
são reproduzidos os mistérios da infância de Jesus, sua vida oculta, depois sua vida
apostólica e por fim sua vida dolorosa. 2
Ora, uma das grandes marcas do espírito de Jesus em uma alma, é a reprodução
nesta alma dos dois efeitos que derivam em Nosso Senhor da plenitude da graça.

Primeiro, a paz, a tranqüilidade da ordenação cada vez melhor de todos os


sentimentos, de todos os quereres subordinados ao amor de Deus e das almas em Deus,
amor que cresce continuamente pela influência atual de Cristo.

Em seguida, a aceitação da cruz, para seguir o Mestre, como ele disse;


aceitação com paciência, do contrário a pena aumenta sem fruto; reconhecimento, pois
está aí uma graça escondida, vê-se melhor quando o fardo é levado
sobrenaturalmente; com amor, pois a cruz é Jesus crucificado, que vem a nós para
reproduzir em nós seus próprios traços. Este amor dá o abandono e a paz. Aí se encontra
a verdadeira soberania, a contemplação divina 3.

O austero Luiz de Chardon diz com profundidade a este respeito, comentando


São Paulo: "Depois de termos admirado a violenta e insaciável inclinação do espírito de
Jesus para a Cruz compreenderemos melhor como Ele a distribui pelas almas que lhe
pertencem pelos vínculos da graça... Entendemos igualmente porque quanto maior é a
elevação da alma em união com o espírito de Jesus tanto maior será sua obrigação
quanto ao sofrimento... Também seria uma desordem da graça e das máximas do santo
amor, se membros alimentados por confeitos estivessem ligados a uma cabeça
transpassada de espinhos...

"Os membros são santificados pela mesma graça, que está em Jesus como em
sua fonte universal. Ora, esta graça de Cabeça é comunicada a Jesus para a finalidade de
sua missão, para que ele pague pelos pecados dos membros à justiça rigorosa de Deus.
Por conseguinte, ele contrai a obrigação amorosa de sofrer provocando em seu espírito
uma inclinação violenta que o transporta continuamente para a Cruz. É indispensável
que esta graça incline do mesmo modo, com o mesmo rigor as almas predestinadas, a
fim de que o corpo místico não pareça um todo monstruoso na ordem da graça, onde o
espírito de Jesus seria contrário a si mesmo, sendo um nos membros e outro na Cabeça...

"Assim, porque a graça decorre da alma de Jesus como de sua fonte original
onde ela produz um impulso dirigido para o fim pelo qual Jesus se fez homem, é uma
necessidade que a graça cause esta mesma disposição naqueles que recebem a dignidade
de nela participarem". 4

Este é um efeito da graça cristã como tal. A graça, por sua essência, é uma
participação da natureza divina, mas, pelo fato de que nos é transmitida pelo Cristo, tem
uma modalidade especial que nos configura a Ele como demonstra Santo Tomás
quando pergunta se a graça sacramental, em particular a graça batismal, como tal,
acrescenta alguma coisa à graça das virtudes e dos dons como a que possuía Adão antes
do pecado (III, q. 62, a. 2).

Luiz de Chardon acrescenta e une assim a doutrina de um Tauler ou de um São


João da Cruz à de Santo Tomás: "E porque esta espécie de graça não pode ficar ociosa
em uma alma... é ávida para crescer e como só pode ter um crescimento considerável
com a ajuda das cruzes... na nudez da graça, da qual suspendeu os efeitos sensíveis,
Deus não abandona a alma à sua própria fraqueza. Nisto há o propósito de fazer a alma
se conhecer e se desprender de si mesma... aderindo somente a Deus... A união será
mais estreita e mais íntima quanto maior a separação de tudo mais.

"Daí que o mesmo amor é ao mesmo tempo princípio de vida e princípio de


morte...; unindo e separando... afastando e causando adesões... A santidade de Deus
comunicada a suas criaturas produz uma privação geral de tudo o que é incompatível
com sua pureza imaculada. 5

"Gloriosa morte... Rica de uma fecundidade divina... Morte entretanto mais


cruel do que aquela que é o dever comum da natureza... pois só deixa tristes desolações
nas almas! No entanto as almas bem instruídas sobre as propriedades do Amor
sagrado e do fim que a santidade de Deus pretende com todas estas provações, não
quereriam trocar nem por um instante seu rigoroso martírio pelas delícias
embriagadoras do Paraíso, nem a cruel espera de sua morte pela feliz vida da glória". [6]

É fácil ver a aplicação deste princípio na vida de Maria. 6 Como diz o


historiador que repara o esquecimento em que caiu a obra de Chardon: "Talvez, a
atividade separante, simplificante, despojadora da graça nunca tenha sido analizada com
maior penetração". 7
Relendo atentamente o belo capítulo da Imitação de Cristo (1. II, cap. XI): "Do
pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus", vê-se que a marca do espírito de
Cristo é a paz e o abandono no sofrimento, no acabrunhamento da Paixão, que se
reproduz em diversos graus nas almas para as purificar e para fazê-las trabalhar na
salvação do próximo em Nosso Senhor, com Ele e por Ele, com os meios dos quais Ele
mesmo se serviu. Jesus está assim, num certo sentido, em agonia até o fim do mundo,
no seu corpo místico até que este corpo místico seja plenamente purificado e
glorificado, até que se realize perfeitamente a palavra do Mestre: "Venci o mundo", pela
vitória definitiva sobre o pecado, sobre o demônio e sobre a morte.

Deste ponto de vista sobrenatural da fé, quando se contempla, digamos, com o


olhar de Deus o que nos diz a santa liturgia, vê-se o quanto ela ultrapassa infinitamente
os mais sublimes elans da poesia humana.

"Salve Crux sancta, salve mundi gloria,


Vera spes nostra, vera ferens gaudia,
Signum salutis, salus in periculis,
Vitale lignum vitam ferens omnium.

"Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis: nula silva talem profert fronde,
flore, germine: dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinuit.

O magnum pietatis opus! Mors mortua tunc est, in ligno quanto mortua Vita
fuit.

Nos autem gloriari oportet in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Crux
benedicta, nitet Dominus qua carne pependit, atque cuore suo vulnera nostra lavit".

***

Quando vossa alma dobrar-se sob o peso, apoiai-vos sobre vosso crucifixo.

***
Concluamos com São Luiz Maria Grignion de Montfort (L' Amour de la
Divine Sagesse, 2a. P., cap. V):

"A Sabedoria Eterna fez da Cruz seu tesouro e em sua Encarnação esposou-a
com amor inefável; durante toda sua vida, que não foi mais do que uma cruz contínua,
carregou-a, pediu-a com indizível alegria... Pregada finalmente e como que colada à
cruz, com alegria morreu abraçada à sua querida Cruz como num leito de honra e
triunfo... E não pensem que depois de sua morte, para melhor triunfar, a Sabedoria
Encarnada tenha se arrancado, tenha rejeitado a Cruz... Não querendo que honra de
adoração, mesmo relativa, seja prestada a criaturas, por mais altas que sejam, como sua
santíssima Mãe, reservou esta honra para sua querida Cruz e somente a ela é devida. A
Sabedoria Encarnada, no grande dia do Juízo Final, acabará como o culto das relíquias
dos santos, mesmo as dos mais respeitáveis; mas quanto às relíquias da Cruz, enviará os
primeiros serafins e querubins pelo mundo para ajuntar os pedaços da verdadeira cruz
que, por sua amorosa onipotência, serão tão bem reunidos que não farão mais que uma
só e a mesma Cruz em que morreu, transportada assim pelos anjos... Precedida pela
Cruz, colocada sobre uma nuvem de brilho inigualável, a Sabedoria eterna julgará o
mundo com a Cruz e pela Cruz. Qual será então a alegria dos amigos da Cruz...
Esperando esse dia... a divina Sabedoria quer que a Cruz seja o sinal, o caráter, a arma
de todos os seus eleitos... Tendo encerrado tantos tesouros, tantas graças de vida na
Cruz só dá a conhecer esses tesouros aos mais escolhidos... Como é preciso ser humilde,
pequeno, mortificado, interior e menosprezado pelo mundo para conhecer o mistério da
cruz! A quem carrega e suporta essa cruz, a Sabedoria Eterna dará um peso eterno de
glória no céu".

(De "L' Amour de Dieu et la Croix de Jesus", Ed. du Cerf. 1o. vol., cap. VI,
pág. 255. Tradução de Anna Luiza Fleichman)

1. 1.Ver sobre isto L. Chardon, La Croix de Jesus, 3o. entretenimento,


cap. VIII, onde o autor mostra como Deus quer a ternura de suas criaturas para uni-
las a sua força, e como Ele transforma esta ternura em força divina. "Ele quer que o
amor intensivo caminhe na alma perfeita de par com o amor apreciativo e que a
ternura dos sentimentos esteja de acordo com a preferência do julgamento".
2. 2.Ver encíclica de Pio XI, junho de 1928, Miserentissimus
Redemptor, sobre a reparação devida a Deus por todos os homens.
3. 3.La Croix de Jesus, 1a. edição, pg. 119-121. Nova edição
(Lethielleux) T. I, pg. 14, 29, 43, 136; T. II, pg. 376, 450.
4. 4.Cf. São Luix Grignion de Montfort, L' Amour de la Divine
Sagesse II P., cap. VI: "Meios de se obter a sabedoria divina: 1.) desejo ardente; 2.)
prece contínua; 3.) mortificação universal; 4.) terna e verdadeira devoção à
Santíssima Virgem."
5. 5.La Croix de Jesus, ibid., pg. 125-128.
6. 6.L. Chardon, ibid., no primeiro de seus três "entretenimentos",
mostra o que foi o "amor separante", princípio de Cruz, na alma de Maria e dos
apóstolos: são dez capítulos de grande profundidade sobre o martírio interior da
Santa Virgem. No terceiro de seus "entretenimentos" ele descreve admiravelmente,
à luz do mesmo princípio, os grandes ápices da vida interior de Abraão, de Elias, de
Jacob, de Benjamin, da Esposa dos Cânticos, de Marta e de Madalena. Páginas
admiráveis onde a teologia mística doutrinal aparece como o coroamento normal da
teolgoia toda, tal como a conceberam Santo Agostinho, Santo Tomás e todos os
grandes mestres. O capítulo sobre Elías (3o. entretenimento, cap. 25) é digno de
nota: "Moisés dizia: "Apagai-me do livro da vida"; São Paulo pedia para ser
anátema por causa de seus irmãos! Mas estes desejos não tinham outro efeito senão
testemunhar o grande amor destas almas por seus irmãos... Não é este o caso de
Elias. Há cerca de três mil anos que Elias está privado da visão de Deus, e estará
privado até o fim do mundo, para satisfazer desejos que participam da imensidade
divina... Elias está reservado... para lutar contra o Anticristo".
7. 7.Bremond, Histoire Litt. du Sentiment Religieux en France, t. VIII,
pg. 43. Não sei se Chardon leu São João da Cruz, em todo caso ele está imbuído de
Tauler de quem expõe a doutrina.

A grande lição do Calvário II

Fortis est ut mors dilectio: o que mais impressiona no amor de Jesus, quer por
seu Pai, quer por nossas almas, é a união maravilhosa e muito íntima da mais profunda
ternura e da força a mais heróica no sofrimento e na morte: Fortiter et suaviter.
Estas duas qualidades do amor estão, muitas vezes, separadas em nós e no
entanto só podem viver intimamente unidas. A ternura sem a força torna-se langorosa e
piegas, a força sem nenhuma suavidade, transforma-se em rudeza e amargura1.

Ninguém pode exprimir o que foi a ternura de amor filial de Jesus por seu Pai;
se ele amava ternamente a Virgem Maria, quanto mais ainda seu Pai, a quem rendia
perpétua ação de graças e adoração! Esta ternura sobrenatural se derramava e se
derrama continuamente sobre as almas, não apenas as de um certo país ou tempo ou
sobre um grupo restrito de alguns amigos, mas sobre todas as almas de todas as
gerações para lhes dar a vida eterna.

Este amor de Cristo tão terno é também mais forte que a morte, mais forte que
o pecado e que o espírito do mal. Foi ele que levou Nosso Senhor a se oferecer como
vítima para pagar em nosso lugar, para nos salvar, dando a Deus uma reparação infinita
que lhe agrada mais do que todo o desgosto causado pelos pecados: Cor Jesu, fornax
ardens caritatis -- eis todas as ternuras e todas as energias do amor admiravelmente
fundidas. O Coração de Jesus é assim o mais puro espelho da Misericórdia e da Justiça,
as duas grandes virtudes do amor incriado de Deus.

Os membros do corpo místico de Cristo devem cada vez mais participar de sua
vida para se tornarem semelhantes a Ele. A santa humanidade do Salvador nos
comunica progressivamente as graças que mereceu por nós na Cruz, influxo da cabeça
do corpo místico sobre seus membros. Por este influxo Nosso Senhor quer nos
assimilar, cada vez mais, pelo batismo, absolvição, comunhão freqüente, cruzes ou
purificações necessárias a nosso avanço, até a extrema-unção e a nossa entrada no céu.
Na vida de muitos santos vê-se essa assimilação progressiva no modo pelo qual neles
são reproduzidos os mistérios da infância de Jesus, sua vida oculta, depois sua vida
apostólica e por fim sua vida dolorosa2.

Ora, uma das grandes marcas do espírito de Jesus em uma alma, é a reprodução
nesta alma dos dois efeitos que derivam em Nosso Senhor da plenitude da graça.
Primeiro, a paz, a tranqüilidade da ordenação cada vez melhor de todos os
sentimentos, de todos os quereres subordinados ao amor de Deus e das almas em Deus,
amor que cresce continuamente pela influência atual de Cristo.

Em seguida, a aceitação da cruz, para seguir o Mestre, como ele disse;


aceitação com paciência, do contrário a pena aumenta sem fruto; reconhecimento, pois
está aí uma graça escondida, vê-se melhor quando o fardo é levado
sobrenaturalmente; com amor, pois a cruz é Jesus crucificado, que vem a nós para
reproduzir em nós seus próprios traços. Este amor dá o abandono e a paz. Aí se encontra
a verdadeira soberania, a contemplação divina3.

O austero Luiz de Chardon diz com profundidade a este respeito, comentando


São Paulo: "Depois de termos admirado a violenta e insaciável inclinação do espírito de
Jesus para a Cruz compreenderemos melhor como Ele a distribui pelas almas que lhe
pertencem pelos vínculos da graça... Entendemos igualmente porque quanto maior é a
elevação da alma em união com o espírito de Jesus tanto maior será sua obrigação
quanto ao sofrimento... Também seria uma desordem da graça e das máximas do santo
amor, se membros alimentados por confeitos estivessem ligados a uma cabeça
transpassada de espinhos...

"Os membros são santificados pela mesma graça, que está em Jesus como em
sua fonte universal. Ora, esta graça de Cabeça é comunicada a Jesus para a finalidade de
sua missão, para que ele pague pelos pecados dos membros à justiça rigorosa de Deus.
Por conseguinte, ele contrai a obrigação amorosa de sofrer provocando em seu espírito
uma inclinação violenta que o transporta continuamente para a Cruz. É indispensável
que esta graça incline do mesmo modo, com o mesmo rigor as almas predestinadas, a
fim de que o corpo místico não pareça um todo monstruoso na ordem da graça, onde o
espírito de Jesus seria contrário a si mesmo, sendo um nos membros e outro na Cabeça...

"Assim, porque a graça decorre da alma de Jesus como de sua fonte original
onde ela produz um impulso dirigido para o fim pelo qual Jesus se fez homem, é uma
necessidade que a graça cause esta mesma disposição naqueles que recebem a dignidade
de nela participarem"4.
Este é um efeito da graça cristã como tal. A graça, por sua essência, é uma
participação da natureza divina, mas, pelo fato de que nos é transmitida pelo Cristo, tem
uma modalidade especial que nos configura a Ele como demonstra Santo Tomás
quando pergunta se a graça sacramental, em particular a graça batismal, como tal,
acrescenta alguma coisa à graça das virtudes e dos dons como a que possuía Adão antes
do pecado (III, q. 62, a. 2).

Luiz de Chardon acrescenta e une assim a doutrina de um Tauler ou de um São


João da Cruz à de Santo Tomás: "E porque esta espécie de graça não pode ficar ociosa
em uma alma... é ávida para crescer e como só pode ter um crescimento considerável
com a ajuda das cruzes... na nudez da graça, da qual suspendeu os efeitos sensíveis,
Deus não abandona a alma à sua própria fraqueza. Nisto há o propósito de fazer a alma
se conhecer e se desprender de si mesma... aderindo somente a Deus... A união será
mais estreita e mais íntima quanto maior a separação de tudo mais.

"Daí que o mesmo amor é ao mesmo tempo princípio de vida e princípio de


morte...; unindo e separando... afastando e causando adesões... A santidade de Deus
comunicada a suas criaturas produz uma privação geral de tudo o que é incompatível
com sua pureza imaculada5.

"Gloriosa morte... Rica de uma fecundidade divina... Morte entretanto mais


cruel do que aquela que é o dever comum da natureza... pois só deixa tristes desolações
nas almas! No entanto as almas bem instruídas sobre as propriedades do Amor
sagrado e do fim que a santidade de Deus pretende com todas estas provações, não
quereriam trocar nem por um instante seu rigoroso martírio pelas delícias
embriagadoras do Paraíso, nem a cruel espera de sua morte pela feliz vida da glória"6.

É fácil ver a aplicação deste princípio na vida de Maria7. Como diz o


historiador que repara o esquecimento em que caiu a obra de Chardon: "Talvez, a
atividade separante, simplificante, despojadora da graça nunca tenha sido analizada com
maior penetração"8.

Relendo atentamente o belo capítulo da Imitação de Cristo (1. II, cap. XI): "Do
pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus", vê-se que a marca do espírito de
Cristo é a paz e o abandono no sofrimento, no acabrunhamento da Paixão, que se
reproduz em diversos graus nas almas para as purificar e para fazê-las trabalhar na
salvação do próximo em Nosso Senhor, com Ele e por Ele, com os meios dos quais Ele
mesmo se serviu. Jesus está assim, num certo sentido, em agonia até o fim do mundo,
no seu corpo místico até que este corpo místico seja plenamente purificado e
glorificado, até que se realize perfeitamente a palavra do Mestre: "Venci o mundo", pela
vitória definitiva sobre o pecado, sobre o demônio e sobre a morte.

Deste ponto de vista sobrenatural da fé, quando se contempla, digamos, com o


olhar de Deus o que nos diz a santa liturgia, vê-se o quanto ela ultrapassa infinitamente
os mais sublimes elans da poesia humana.

"Salve Crux sancta, salve mundi gloria,


Vera spes nostra, vera ferens gaudia,
Signum salutis, salus in periculis,
Vitale lignum vitam ferens omnium.

"Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis: nula silva talem profert fronde,
flore, germine: dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinuit.

O magnum pietatis opus! Mors mortua tunc est, in ligno quanto mortua Vita
fuit.

Nos autem gloriari oportet in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Crux
benedicta, nitet Dominus qua carne pependit, atque cuore suo vulnera nostra lavit".

***

Quando vossa alma dobrar-se sob o peso, apoiai-vos sobre vosso crucifixo.

***

Concluamos com São Luiz Maria Grignion de Montfort (L' Amour de la


Divine Sagesse, 2a. P., cap. V):
"A Sabedoria Eterna fez da Cruz seu tesouro e em sua Encarnação esposou-a
com amor inefável; durante toda sua vida, que não foi mais do que uma cruz contínua,
carregou-a, pediu-a com indizível alegria... Pregada finalmente e como que colada à
cruz, com alegria morreu abraçada à sua querida Cruz como num leito de honra e
triunfo... E não pensem que depois de sua morte, para melhor triunfar, a Sabedoria
Encarnada tenha se arrancado, tenha rejeitado a Cruz... Não querendo que honra de
adoração, mesmo relativa, seja prestada a criaturas, por mais altas que sejam, como sua
santíssima Mãe, reservou esta honra para sua querida Cruz e somente a ela é devida. A
Sabedoria Encarnada, no grande dia do Juízo Final, acabará como o culto das relíquias
dos santos, mesmo as dos mais respeitáveis; mas quanto às relíquias da Cruz, enviará os
primeiros serafins e querubins pelo mundo para ajuntar os pedaços da verdadeira cruz
que, por sua amorosa onipotência, serão tão bem reunidos que não farão mais que uma
só e a mesma Cruz em que morreu, transportada assim pelos anjos... Precedida pela
Cruz, colocada sobre uma nuvem de brilho inigualável, a Sabedoria eterna julgará o
mundo com a Cruz e pela Cruz. Qual será então a alegria dos amigos da Cruz...
Esperando esse dia... a divina Sabedoria quer que a Cruz seja o sinal, o caráter, a arma
de todos os seus eleitos... Tendo encerrado tantos tesouros, tantas graças de vida na
Cruz só dá a conhecer esses tesouros aos mais escolhidos... Como é preciso ser humilde,
pequeno, mortificado, interior e menosprezado pelo mundo para conhecer o mistério da
cruz! A quem carrega e suporta essa cruz, a Sabedoria Eterna dará um peso eterno de
glória no céu".

(De "L' Amour de Dieu et la Croix de Jesus", Ed. du Cerf. 1o. vol., cap. VI,
pág. 255. Tradução de Anna Luiza Fleichman)
1. 1.Ver sobre isto L. Chardon, La Croix de Jesus, 3o. entretenimento,
cap. VIII, onde o autor mostra como Deus quer a ternura de suas criaturas para uni-
las a sua força, e como Ele transforma esta ternura em força divina. "Ele quer que o
amor intensivo caminhe na alma perfeita de par com o amor apreciativo e que a
ternura dos sentimentos esteja de acordo com a preferência do julgamento".
2. 2.Ver encíclica de Pio XI, junho de 1928, Miserentissimus
Redemptor, sobre a reparação devida a Deus por todos os homens.
3. 3.La Croix de Jesus, 1a. edição, pg. 119-121. Nova edição
(Lethielleux) T. I, pg. 14, 29, 43, 136; T. II, pg. 376, 450.
4. 4.Cf. São Luix Grignion de Montfort, L' Amour de la Divine
Sagesse II P., cap. VI: "Meios de se obter a sabedoria divina: 1.) desejo ardente; 2.)
prece contínua; 3.) mortificação universal; 4.) terna e verdadeira devoção à
Santíssima Virgem."
5. 5.La Croix de Jesus, ibid., pg. 125-128.
6. 6.Ibid., pg. 146-147.
7. 7.L. Chardon, ibid., no primeiro de seus três "entretenimentos",
mostra o que foi o "amor separante", princípio de Cruz, na alma de Maria e dos
apóstolos: são dez capítulos de grande profundidade sobre o martírio interior da
Santa Virgem. No terceiro de seus "entretenimentos" ele descreve admiravelmente,
à luz do mesmo princípio, os grandes ápices da vida interior de Abraão, de Elias, de
Jacob, de Benjamin, da Esposa dos Cânticos, de Marta e de Madalena. Páginas
admiráveis onde a teologia mística doutrinal aparece como o coroamento normal da
teologia toda, tal como a conceberam Santo Agostinho, Santo Tomás e todos os
grandes mestres. O capítulo sobre Elías (3o. entretenimento, cap. 25) é digno de
nota: "Moisés dizia: "Apagai-me do livro da vida"; São Paulo pedia para ser
anátema por causa de seus irmãos! Mas estes desejos não tinham outro efeito senão
testemunhar o grande amor destas almas por seus irmãos... Não é este o caso de
Elias. Há cerca de três mil anos que Elias está privado da visão de Deus, e estará
privado até o fim do mundo, para satisfazer desejos que participam da imensidade
divina... Elias está reservado... para lutar contra o Anticristo".
8. 8.Bremond, Histoire Litt. du Sentiment Religieux en France, t. VIII,
pg. 43. Não sei se Chardon leu São João da Cruz, em todo caso ele está imbuído de
Tauler de quem expõe a doutrina.
A intimidade do Cristo

"Potestis bibere calicem quem ego bibiturus sum?"


"Podeis beber o cálice que hei de beber?" (Mt 20, 21)

Para melhor penetrar nas profundezas do mistério da Redenção, é preciso falar


da intimidade do Cristo ou da amizade de predileção que Ele tem por certas almas mais
fiéis e mais generosas. Entre essas almas, uma é chamada no Evangelho por essas
simples palavras: "O discípulo que Jesus amava". Se queremos compreender o valor da
amizade do Salvador, seu princípio, seu motivo, sua ternura, sua força, seus dons
inestimáveis, contemplemos aquela que Ele teve por São João.

O mais amado de todos os apóstolos devia ser bem perfeito, para que Nosso
Senhor experimentasse tal agrado por ele; sua pureza o encantava. Não era, no entanto,
a perfeição de João que atraía o amor de Jesus; ela foi, ao contrário, o efeito, o resultado
deste amor que encontrou agrado nessa perfeição, diz Bossuet, como o artista agrada-se
com uma obra bem feita. O amor de Deus e de Jesus por nossas almas não pressupõe a
amabilidade em nós, mas Ele a põe em nós, Ele a cria e aumenta, assemelhando-nos a
Ele. Detendo-se sobre nós, o amor divino produz em nós a vida da graça e Ele não cessa
de fazê-la crescer se não lhe opomos obstáculos1.

Vejamos como Nosso Senhor, pela sua amizade, tornou São João cada vez
mais parecido com Ele mesmo; vamos nos inspirar em Bossuet2, que assinala que o
Salvador deu ao discípulo bem amado três dons: sua cruz, sua mãe e seu coração. Mas
parece preferível seguir a ordem inversa, que é a do tempo: ele mostra melhor o
progresso da vida da graça em São João, e como o discípulo bem amado penetrou cada
vez mais na intimidade de Cristo. Na Ceia, Jesus lhe deu seu coração; pouco depois,
morrendo, deu-lhe sua Mãe; e em seguida, para fecundar seu ministério, Ele lhe deu sua
Cruz.

Na última Ceia Jesus dá a São João seu coração.

Todos os apóstolos, nesse momento, são ordenados padres, recebem o caráter


sacerdotal e também a Santa Comunhão. Mas João se aproxima mais do coração do
Mestre, repousa sua cabeça sobre o peito sagrado do Salvador.

No momento da instituição do sacramento que tem por fim aumentar em nós o


amor de Deus, Nosso Senhor quis que um dos seus apóstolos privilegiados sentisse mais
vivamente as batidas de seu Coração, que não cessaria agora em diante de viver na
Eucaristia, para a consolação e regeneração perfeita das almas.

Que graça interior recebeu então São João? Pode-se concebê-lo lembrando que
do corpo de Jesus saía uma graça que vivificava os corações. Certamente, João recebeu
então uma graça de luz e de amor: conheceu experimentalmente que o Coração do
Salvador só vive por amor de Deus e das almas, compreendeu como a Eucaristia é, aqui
embaixo, a grande manifestação desse amor e, sob aparências muito humildes, a própria
vida de Deus sempre presente entre nós. Predestinado de toda a eternidade a ser o
grande doutor da caridade, João vem beber a caridade na sua fonte mesmo, e receber a
inspiração das palavras que os fiéis esperarão santamente até o fim dos tempos. Para
melhor falar do amor do Salvador por nós, ele vem sentir de perto o ardor desse fogo
espiritual que queima sem destruir e que quer nos transformar nEle.
Como São Paulo se lembra, ao escrever, que foi elevado ao terceiro céu, São
João se recorda que ele repousou sobre o Coração do Mestre.

E como falou a águia dos Evangelistas! Ele vincula toda a doutrina cristã a
esses pontos fundamentais: Deus é luz e amor. Ele é que, primeiro e gratuitamente, nos
amou; nosso amor deve ser uma resposta àquele que Ele nos mostrou, e a caridade
fraterna deve ser o grande sinal de nosso amor a Deus.

O próprio São João resume isto escrevendo na sua primeiro Epístola (4, 7-16):
"Meus bem-amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo
aquele que ama nasceu de Deus, e conhece Deus. Aquele que não ama não conheceu a
Deus, porque Deus é amor. Ele manifestou seu amor por nós enviando seu Filho único
ao mundo, para que nós vivamos por Ele. E este amor consiste em que não fomos nós
que amamos a Deus, mas ele que nos amou e que enviou seu Filho como vítima de
propiciação por nossos pecados. Meus bem-amados, se Deus nos amou assim,
devemos também amarmo-nos uns aos outros... Deus é amor; e aquele que permanece
no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele". É em resumo todo o dogma, e
também toda a moral cristã reduzida a seu princípio: o amor de Deus e do próximo, a
caridade que deve inspirar e animar todas as virtudes. "Nós sabemos que passamos da
morte para a vida, porque amamos nossos irmãos" (1 Jo 3, 14). É o grande sinal do
amor de Deus.

O que João recebeu, o Coração do Mestre, nós o receberemos também. Na


Comunhão, podemos receber todos os dias o Coração Eucarístico de Jesus. E se o
recebemos, se Nele cremos, devemos imitá-lo. O Coração do Salvador se abre a todos
os fiéis, Nele somos todos reunidos, para sermos consumados na unidade. Ele não
descarta ninguém.

Para entrar na intimidade de Cristo, é preciso também, a seu exemplo, ter um


coração que não exclua ninguém, que esqueça os defeitos do próximo, um coração
sensível aos sofrimentos do outro, um coração generoso ou magnânimo, que não retenha
nada só para si, que dê sua vida aos outros e a possua, no entanto, melhor. Lembremo-
nos de que os bens de Deus se multiplicarão tanto mais quanto os dividirmos com
nossos irmãos; não se perde a verdade, a bondade, quando as damos: nós as possuímos
mais e santamente.

Alegremo-nos também de ver no próximo o que nos falta; longe de nos deixar
levar pela inveja, gozemos com suas qualidades, que são nossas em um sentido, pois
que somos um no Corpo Místico do Cristo. A mão pode se alegrar com o que o olho vê.
A caridade enriquece assim nossa pobreza; ela nos dá todos os bens comuns; faz nossos
em certo sentido todos os dons do Corpo Místico do Salvador, e nos faz participar desde
já em certa medida de todos os bens da cidade de Deus.

Mas, para entrar mais ainda na intimidade de Cristo, é preciso ser da escola de
Maria, que mais que nenhuma criatura penetrou nesse santuário. Por isso Jesus, no
momento em que ia morrer, confiou sua Mãe a São João.

Entre todos os apóstolos, só João está ao pé da cruz. Ele lá está, o coração


triturado, testemunha de todas as torturas físicas e morais do Mestre. Jesus o atraiu
invisivelmente ao pé da Cruz, para fazê-lo ouvir suas últimas palavras e para lhe dar
uma última prova de seu amor.

Aqueles que vão morrer deixam aos que lhes são mais caros um testemunho de
afeição, o mais expressivo possível. No momento de morrer, o que deixará Jesus a São
João? Ele não tem mais nada; está despojado de tudo, abandonado por todos. Parece
mesmo repelido por Seu Pai, quando, vítima em nosso lugar, diz a primeira palavra do
Salmo: "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?" Nessa completa nudez, o que
deixará Jesus a São João?

Deixa-lhe uma lembrança viva, a alma Santíssima que Ele quis mais que todas
as outras juntas. Ele lhe deixa Maria: "Filho, diz Ele, eis vossa Mãe", e a Maria:
"Mulher, eis vosso filho" (Jo 19, 27). "E depois dessa hora, diz o quarto Evangelho, o
discípulo a levou para sua casa".

Se o contato do Coração de Jesus na última Ceia vivificou espiritualmente o


coração de João, esta palavra do Salvador, dita do alto da Cruz, produz, como uma
palavra sacramental, o que ela significa. É dita por Aquele que vai morrer, mas que é
ainda bastante forte para tocar os corações e os enriquecer como lhe agrada.

Esta palavra criou, entre Maria e João, por assim dizer, um laço espiritual
muito íntimo, análogo àquele que une Jesus à Sua Santa Mãe. Ela deu a Maria uma
afeição toda maternal e muito profunda que cobrirá de agora em diante a alma de João,
e ao discípulo uma ternura toda filial e respeitosa que faz dele verdadeiramente o filho
espiritual de Maria.

Nesta hora de agonia, esta palavra do Cristo moribundo entra no fundo de suas
almas como um bálsamo para suavizar seus sofrimentos e acalmar os ferimentos de seus
corações. Foi uma imensa consolação para São João, e também para Maria, por que Els,
que via as almas, descobriu no discípulo bem-amado, o que ele mesmo não via, a
imagem viva do Salvador, alter Christus, imagem que Maria foi encarregada de
aperfeiçoar, de tornar cada vez mais semelhante ao Divino Modelo.

Assim, muitas vezes na história das almas, quando Jesus parece se retirar para
provar a confiança de seus amigos, Ele lhes deixa sua Santa Mãe, confia-os a Maria.

Não se saberia dizer tudo o que São João recebeu da Virgem. Se as conversas
de Santo Agostinho e de Santa Mônica em Ostia foram tão elevadas, o que pensar
daquelas de Maria e de São João?

Pela plenitude da graça que ela tinha recebido, a Mãe de Deus era superior aos
Anjos; seu coração queimava de uma caridade cuja intensidade a arrebatava sobre a de
todos os santos reunidos; esta viva chama não cessava um instante de se elevar a Deus,
mesmo durante seu sono, onde se verificava a palavra do Cântico (5, 2): "Ego dormio,
sed cor meum vigilat..."(Eu durmo, mas meu coração vigia).

Em semelhante intimidade sobrenatural, quanto deve ter crescido também a


caridade de São João, sobretudo quando celebrava a Santa Missa em presença de Maria,
em suas intenções, e lhe dava a comunhão! Não sabia ele que a Virgem lhe era
incomparavelmente superior pela compreensão do Sacrifício do Altar que perpetua em
substância Aquele da Cruz? Maria não tinha o caráter sacerdotal e não podia consagrar,
mas "Ela tinha recebido a plenitude do espírito do sacerdócio, que é o espírito do Cristo
Redentor" 3. Mediadora universal e Corredentora, ela não cessava de elevar a Deus a
alma do apóstolo que se encantou, assim, pela vida escondida e se tornou o modelo dos
contemplativos.

É a pureza que tinha preparado São João para viver na intimidade de Cristo; é
ela que o qualificou para herdar o amor de Cristo por Maria, que foi profundamente sua
verdadeira Mãe espiritual.

Seguindo o exemplo de São João, ponhamo-nos sob a direção imediata da


Virgem, como nos convidava S. Grignion de Montfort. Ela é nossa mediadora aos pés
de Cristo, como Ele mesmo é nosso mediador aos pés de Seu Pai. Ela será nosso
conselho e nossa força, nossa defesa contra o demônio; aumentará o valor de nossos
méritos oferecendo-os, ela mesma, a seu Filho; abandonemos a Maria o valor
satisfatório e impetratório de nossas ações, de nossas lutas, de nossas orações para que
ela consiga com isso, segundo seu agrado, benefícios para as almas que têm mais
necessidade. Despojarmo-nos assim será nos enriquecer. Sob a direção de Maria,
caminharemos mais seguramente pela via traçada pelo Verbo, que lhe obedeceu sobre a
terra; corremos assim pela via dos mandamentos de Deus, porque recebemos a graça
que dilata o coração, segundo a palavra do Salmo: "Viam mandatorum tuorum cucurri,
cum dilatasti cor meum". A bem-aventurança da Virgem nos ensinará mil coisas por
suas inspirações, como um boa mãe entrega a seu filho, com um simples olhar, sem
ruído de palavras, o tesouro de sua vida interior. Com ela e na sua intimidade faremos
mais progresso em alguns dias do que durante anos de trabalho pessoal cumprido longe
dela. Assim fala São Luiz Grignion de Montfort, verdadeiro filho espiritual de Maria,
como foi São João4
.

Nosso Senhor deu a São João seu Coração e sua Mãe, que lhe dará ainda para
fecundar seu ministério apostólico? Ele lhe dará sua Cruz e progressivamente o fará
compreender qual é o seu valor inestimável.
A amizade de Jesus só tem doçuras e complacências; ela é tão forte quanto
terna, tende a purificar pela provação e a se associar às almas no mistério da Redenção
pelo sofrimento.

Os apóstolos não compreenderam tudo de início. Como Jesus falava da


fundação do reino de Deus, os apóstolos se perguntavam um dia quem dentre eles seria
o maior nesse Reino. Então, como conta São Mateus (18, 3), "Jesus, tomando uma
criança, colocou-a no meio deles e lhes disse: Eu vos digo, em verdade, se vós não vos
converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis de modo algum no Reino
dos Céus." Muitas vezes também o Mestre havia dito: "Se alguém quiser vir atrás de
mim, que renuncie a si mesmo, carregue a sua cruz e me siga." 5 Mas os apóstolos não
compreendiam ainda todo o sentido dessa palavra: a cruz. Eles não podiam imaginar
que Jesus seria crucificado embora Ele o houvesse predito para eles várias vezes.

Um dia, subindo a Jerusalém com eles, Nosso Senhor renova a profecia da sua
Paixão, de sua Crucificação, de sua Ressurreição; Ele queria gravá-la mais
profundamente no espírito de João e de seu irmão. Nesse momento, a mãe destes se
aproxima de Jesus e se prosterna como para pedir alguma coisa. Como o conta São
Mateus (20, 21), Jesus lhe diz: "O que queres?" Ela responde: "Ordene que meus dois
filhos que aqui estão se sentem um à Vossa direita, outro à Vossa esquerda, no Vosso
Reino". Jesus diz-lhes: "Vós não sabeis o que pedis. Podereis beber do cálice que Eu hei
de beber?" — "Podemos", lhe dizem eles. Ele lhes responde: "Vós bebereis com efeito
do meu cálice, quanto a estardes sentado à minha direita ou à minha esquerda, não cabe
a mim vo-lo conceder, mas será para aqueles para quem meu Pai o preparou". Desde
esse dia, Jesus deu sua Cruz a seu discípulo bem-amado.

Essa palavra do Salvador, como as duas outras ditas a São João, produziu na
alma do discípulo o que ela significava. A partir desse instante, João não procurou mais
ser o primeiro; começou a amar o sofrimento, a humilhação e este amor não cessou de
crescer em seu coração sob a influência da graça.

Jesus o tornou cada vez mais semelhante a Ele; ora, Ele veio para sofrer como
vítima da salvação, para nos salvar pela Sua agonia mais que pelos seus discursos. Ele
unirá então, cada vez mais, São João à sua vida laboriosa e crucificada. "Quando Jesus
entra em algum lugar, diz Bossuet, Ele ali entra com sua cruz e seus espinhos; Ele
concede parte nisso àqueles que O amam". Ora, João é seu apóstolo bem-amado, Ele lhe
faz então presente desta enorme graça que é o amor da Cruz.

João cria de início que, para ter um lugar escolhido no Reino do Filho de Deus,
era preciso estar sentado à sua direito e revestido de sua glória. Ele vai aprender porém
que entra-se profundamente no Reino, desde aqui embaixo, pelo sofrimento; Ele saberá
como a provação nos torna clarividentes para contemplar Jesus nas almas. A aflição lhe
abrirá os olhos, João compreenderá o sentido profundo da mais alta das bem-
aventuranças, a mais surpreendente para a razão humana: "Bem-aventurados aqueles
que sofrem perseguição pela justiça, porque é deles o Reino dos Céus". Ele é deles
desde aqui embaixo, no meio mesmo da perseguição, pela paz profunda que Jesus lhes
dá.

Qual foi a cruz de João? Vendo as coisas de fora, parece que, de todos os
apóstolos, ele tenha tido a mais leve. Só ele não foi morto nos sofrimentos do martírio.
Sofreu, no entanto, a perseguição, sob Domiciano; foi mergulhado, em Roma, num
banho de óleo fervendo. Mas este óleo se transformou em orvalho, ele saiu dali
refrescado e purificado. Foi em seguida exilado para Patmos, onde Nosso Senhor
glorificado lhe apareceu e lhe revelou seus segredos, ordenando-lhe que os escrevesse
nesse livro, o mais misterioso de todos os livros sagrados, o Apocalipse.

Vendo as coisas de fora, a cruz de São João parece ter sido mais leve que a dos
outros apóstolos. Mas como diz Bossuet6: "A cruz de São João foi a maior d todas no
interior. Consideremos o mistério, as duas cruzes de Nosso Salvador. Uma se vê no
calvário, e ela parece a mais dolorosa; a outra é aquela que Ele levou durante todo o
curso de sua vida, é a mais penosa". Jesus diz várias vezes a Santa Catarina de
Sena, esta cruz interior é aquela do desejo da salvação das almas, desejo combatido
pelo espírito do mal, pelo espírito do mundo, pela cobiça que arrasta milhares de almas
para sua perda. Na vida de Jesus segue-se o progresso da malícia daqueles que se
encarniçam contra Ele, o que torna mais ardente a sede da salvação das almas que O
queima e O consome. O martírio do coração é muitas vezes mais doloroso que o outro e
pode durar, não somente algumas horas, mas longos anos.
É sobretudo esta cruz interior do desejo da glória de Deus e da salvação das
almas que Jesus deu a São João. Ela não atingia pois os sentidos, mas estava impressa
por Deus no fundo da alma com o vivo desejo da salvação dos pecadores. Para tornar o
apóstolo capaz de carregar esta cruz interior, Jesus lhe inspirava o amor dos
sofrimentos, que avivava o desejo mas acalmando-o e impedia a alma de repousar fora
de Deus. O mesmo acontece a certas almas chamadas à santidade: se se detém de um
modo natural demais numa satisfação que vem das criaturas, logo Nosso Senhor
derrama sobre tal satisfação uma gota de amargura; e esta amargura ultrapassa de muito
o prazer experimentado; é uma graça crucificante e purificadora.

Enfim a cruz interior para São João veio sobretudo das heresias que mutilaram
a Santa Igreja negando a divindade de Jesus. Quanto esta negação deve ter torturado o
coração daquele que escreveu o quarto Evangelho, que tinha por finalidade mostrar o
Verbo feito carne em toda sua glória! Esta cruz interior vinha também das divisões que
se produziram na Igreja nascente, para grande detrimento da caridade. Assim, o
apóstolo, com oitenta anos, fazia-se levar pelos seus discípulos à Igreja de Éfeso e, não
podendo mais pregar longamente, dizia: "Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros".
Ele que, na sua juventude, por causa do seu ardor, tinha sido chamado por Nosso
Senhor, junto com seus irmãos, boarnerges, filhos do trovão, ele não sabia mais falar a
não ser da caridade fraterna, o grande sinal do amor de Deus. João não tinha perdido
nada do seu ardor, da sua sede de justiça, mas esta estava espiritualizada e era
acompanhada de uma grande doçura. E como os ouvintes lhe perguntavam por que ele
repetia sempre a mesma coisa, João respondia: "É o preceito do Senhor e se vós o
cumprirdes, é suficiente".

Tal foi a cruz de João, sobretudo interior.

O Senhor no-la dá também. Há três espécies de cruz: aquelas que ficam inúteis
como a do mau ladrão; aquelas que se carrega para reparar as próprias faltas e para
merecer a salvação, como a do bom ladrão; e aquelas que fazem pensar na Cruz do
Salvador, e que se carrega para trabalhar com Ele para a salvação das almas. A cruz
bem carregada nos carrega por sua vez; ela abre os olhos e conduz à contemplação, a
ver Deus escondido nas almas. Se ela nos parece por vezes bem pesada, peçamos ao
Salvador dar-nos o amor do sofrimento, orientar-nos, pelo menos, neste caminho.
É o que Ele quer, pois que nos deu Seu Coração, o qual é um coração sofrido.
Ele nos deu também Sua Mãe, e uma das maiores graças que Nossa Senhora das Dores
possa nos obter é a de saborear a cruz que o Senhor nos impôs para nos purificar e nos
fazer trabalhar para a salvação das almas7. Isto é verdadeiramente entrar na intimidade
de Cristo e participar de sua vida escondida e dolorosa antes de termos parte na sua vida
gloriosa no Céu8.

1. 1.Cf. S. Tomás, I, q. 20, a. 2: "Amor Dei est infundens et creans


bonitatem in rebus". É a este princípio que S. Tomás liga todo o tratado da graça; cf.
Ia. IIae, q. 110, a. 1, c et ad 1m: "Causatur ex dilectione divina, quod est in homine
Deo gratum".
2. 2.Panegírico de S. João.
3. 3.São palavras de M. Olier.
4. 4.Ver seu "Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem",
cap. IV, a. 5; cap. V, a. 2, e o resumo que fez sob o título: "O Segredo de Maria".
5. 5.Mateus, 16, 24.
6. 6.Panegírico de S. João, primeiro ponto.
7. 7.A expressão "saborear a cruz" lembra que Nosso Senhor declarou:
"Muitos não provarão a morte antes que vejam vir o Filho do homem no seu reino"
(Mt 16, 28). Santo Tomás diz a este respeito (in Mathaeum, 16, 28): "Pecatores
absorbentur morte sed justi gustabunt mortem": Os pecadores são absorvidos, como
engolidos pela morte, os justos saboreiam a morte, que é a entrada na vida eterna.
8. 8.Para entrar na intimidade de Cristo, releiamos às vezes o hino
composto por uma abadessa beneditina do século XIV:

Jesus dulcis memoria, Doce é a lembrança de Jesus,


Dans vera cordis gaudia; Ele dá as verdadeiras alegrias do coração;
sed super mel et omnia, Mais que o mel e todas as coisas
ejus dulcis praesentia. doce é a sua presença
Nil canitur suavius, Não se canta nada mais suave
Nil auditur jucundius, nada se ouve de mais agradável
Nil cogitatur dulcius. nenhum pensamento é mais doce
quam Jesus Dei Filius. que Jesus o Filho de Deus.
Jesu, spes poenitentibus, Oh Jesus! esperança dos penitentes.
Quam pius es petentibus! como Vós sois terno para os que vos imploram
Quam bonus te quarentibus! como sois bom para os que Vos procuram
Sed quid invenientibus? mas o que não sois para os que Vos encontram!

Não menos bela é essa oração alemã cantada há muito tempo pelos fiéis:

"Ich danke dir, Herr Jesu Christ


Obrigado Senhor Jesus
Dass du für mich gestorben bist
Por terdes morrido para nos salvar
Lass dein Glut und deine Pein
Não permiti que Vosso sangue e Vossa Cruz
An mir doch nicht verloren sein
Sejam para sempre perdidos por mim
O liebe, o unendliche Liebe
Ó amor, Ó amor infinito de Deus por nós!
Gottes!

A missa e a morte

Podemos aprofundar-nos, de modo abstrato e especulativo, na doutrina cristã e


católica do sacrifício da missa; igualmente, podemos fazê-lo de modo concreto e vivido,
unindo-se à oblação do Salvador de forma pessoal e, mais particularmente, fazendo por
antecipação o sacrifício da própria vida, para obter a graça de uma morte santa.

***

Mais que ninguém, Maria associa-se ao sacrifício de seu Filho, participando de


todos os seus sofrimentos, na medida de seu amor por Ele.

Os santos ― em especial, os estigmatizados ― uniram-se extraordinariamente


aos sofrimentos e méritos do Salvador, um São Francisco de Assis, uma Catarina de
Sena, por exemplo; mas, quão profunda tenha sido tal união, fora contudo pouco em
comparação a de Maria. Por um conhecimento experimental dos mais íntimos e pela
grandeza de seu amor, Maria ao pé da Cruz penetrou as profundidades do mistério da
Redenção, mais que São João, mais que São Pedro, mais que São Paulo. Ela penetrou
ali na medida da plenitude de graça que recebera, da sua fé, do seu amor, dos dons de
inteligência e sabedoria que possuía em grau proporcionado à sua caridade.

A fim de entrarmos um pouco nesse mistério, aprendendo dele lições práticas


que nos permitam preparar-nos para uma boa morte, pensemos no sacrifício que
devemos fazer durante nossa vida, em união com Maria, ao pé da Cruz.

Freqüentemente, exortamos os moribundos a fazer o oferecimento de suas


vidas, para dar um valor de expiação, de mérito e de impetração aos seus sofrimentos
derradeiros. Freqüentemente, os Soberanos Pontífices ― em particular, [São] Pio X ―
convidaram os fiéis a oferecer por antecipação os sofrimentos ― quiçá atrozes ― do
último instante, para assim bem se disporem a oferecê-los com um coração mais
generoso à hora da morte.
Mas para que se faça, desde agora, o sacrifício de nossa vida, é mister fazê-lo
em união com o sacrifício do Salvador perpetuado sacramentalmente no altar, durante a
Missa, e em união com o sacrifício de Maria, Medianeira e Co-redentora. E para bem
observar tudo o que tal oblação deve conter, convém lembrar-se aqui dos quatro fins do
sacrifício: a adoração, a reparação, a suplicação e a ação de graças. Consideramo-las
sucessivamente, examinando as lições que trazem.

Adoração

Jesus sobre a Cruz fizera de Sua morte sacrifício de adoração. Fora a mais
perfeita realização do preceito do decálogo: “Adorarás o Senhor, teu Deus, prestar-lhe-
ás o teu culto e só jurarás pelo seu nome” (Dt 6, 13). É com essa palavra divina que
Jesus respondeu a Satã, que lhe dissera: “Dar-Te-ei todos os reinos do mundo, se Tu te
prostrares perante mim para me adorares, si cadens adoraveris me”.

A adoração é devida a Deus somente, por causa de sua excelência soberana de


Criador ― já que somente Ele é o mesmo Ser, eternamente subsistente, a mesma
Sabedoria, o mesmo Amor. A adoração que Lhe é devida há de ser, por sua vez, exterior
e interior, inspirada pelo amor; deve ser adoração em espírito e verdade.

Jesus ofereceu a Deus uma adoração de valor infinito, no Getsemani, ao


prostrar a face contra a terra, dizendo: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este
cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (Mt 26, 39). Essa
adoração reconhece pratica e profundamente a excelência soberana de Deus, mestre da
vida e da morte; de Deus que, pelo amor do Salvador, queria fazer servir a morte, pena
do pecado, à reparação do pecado e nossa salvação. Há neste decreto eterno de Deus ―
que contém toda a história do mundo ― uma excelência soberana, reconhecida pela
adoração no Getsemani.
A adoração do Salvador continua sobre a Cruz ― e Maria se associa a ela, na
medida da plenitude da graça que recebera e que não cessara de aumentar. Ao momento
da crucificação de seu Filho, ela adorara os decretos de Deus, autor da vida, que fizera
da morte de seu Filho inocente reparação do pecado, para o bem eterno das almas.

Adoremos Deus, em união com Nosso Senhor e sua Santa Mãe, e digamos de
todo coração, como nos insta S. S. [São] Pio X: “Senhor, meu Deus, a partir de hoje, de
coração tranqüilo e submisso, aceito de vossa mão o gênero de morte que vos agradará
me enviar, com todas as suas angústias, todas as suas penas e todas as suas dores”.

Todo aquele que, uma vez na vida e no dia de sua escolha, tiver recitado esse
ato de resignação após a confissão e a comunhão, ganhará uma indulgência plenária que
se lhe aplicará à hora da morte, conforme a pureza da consciência. Mas é recomendável
repetir a cada dia esse sacrifício, para assim nos prepararmos a fazer de nossa morte, no
instante derradeiro, em união com o sacrifício do Cristo continuado em substância sobre
o altar, um sacrifício de adoração, considerando o domínio soberano de Deus, a
majestade e a bondade Daquele “que conduz a profundos abismos e deles tira ―
Dominus mortificat et vivificar, deducit ad inferos et reducit” (Dt 32, 39; Tb 13, 2; Sb
14,13). Essa adoração de Deus, mestre da vida e da morte, se pode fazer de modos bem
diferentes, conforme as almas sejam mais ou menos esclarecidas: não é realmente
melhor unir-se desta feita, a cada dia, ao sacrifício de adoração do Salvador?

Sejamos desde agora adoradores em espírito e verdade; que a adoração seja tão
sincera e profunda que se reflita verdadeiramente em nossa vida e nos disponha àquela
que devemos possuir no coração no instante final.

Reparação
Outro fim do sacrifício é a reparação da ofensa feita a Deus pelo pecado, e a
satisfação da pena devida pelo pecado. Devemos fazer de nossa morte um sacrifício
propiciatório: a adoração dever ser, a bem dizer, reparadora.

Nosso Senhor satisfez de modo superabundante por nossas faltas, porque,


como diz Santo Tomás (IIIª q. 48, a. 2), ao oferecer sua vida por nós, fizera um ato de
amor que mais agradava a Deus do que o aborreciam todos os nossos pecados reunidos.
Sua caridade foi muito maior que a malícia dos algozes; possuía um valor infinito tirado
da personalidade do Verbo.

Ele satisfez por nós, que somos os membros de Seu Corpo Místico. Mas como
a causa primeira não torna inúteis as causas segundas, o sacrifício do Salvador não torna
inútil o nosso, mas o suscita e lhe confere valor. Maria deu-nos o exemplo ao unir-se
aos sofrimentos de seu Filho; assim, satisfez por nós, a ponto de merecer o título de Co-
redentora.

Ela aceitou o martírio de seu Filho ― não apenas querido, mas legitimamente
adorado ― que amava com coração afetuosíssimo, desde que o concebera
virginalmente.

Com heroísmo ainda maior que o do patriarca Abraão, pronto a imolar seu
filho Isaac, Maria, ao oferecer seu Filho por nossa salvação, viu-o realmente morrer
com atrocíssimos sofrimentos físicos e morais. Não veio nenhum anjo para impedir a
imolação e dizer a Maria, tal como ao patriarca, em nome do Senhor: “agora Eu sei que
temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único”. (Gn 22, 12);
Maria viu realizar-se efetiva e plenamente o sacrifício reparador de Jesus, e em face ao
qual o de Isaac não era senão a figura em preâmbulo. Ela sofreu então o pecado na
medida de seu amor por Deus, a quem o pecado ofende; por seu Filho, a quem o pecado
crucificava; por nossas almas, a quem o pecado corrompe e mata. A caridade da Virgem
ultrapassava incomensuravelmente a do patriarca; e nela, ainda mais que nele,
realizaram-se as palavras que este escutara: “pois que fizeste isto, e não me recusaste
teu filho, teu filho único, Eu te abençoarei. Multiplicarei a tua posteridade como as
estrelas do céu” (Gn, 22, 16-17).

Ora, como o sacrifício de Jesus e de Maria foi sacrifício de propiciação ou


reparação pelo pecado, de satisfação da pena devida pelo pecado, façamos do sacrifício
de nossa vida uma reparação de todas as nossas faltas; peçamos desde agora que nosso
último instante tenha um valor meritório e expiatório, e peçamos a graça de fazer este
sacrifício com grande amor, o que lhe dobrará o valor. Sejamos contentes de pagar essa
dívida à justiça divina para que a ordem seja-nos plenamente restabelecida. E se, com
tal espírito, nós nos unirmos intimamente às missas que se celebram todos os dias, à
oblação sempre viva ao Coração do Cristo ― oblação que é a alma dessas missas ―
então alcançaremos a graça de nos unirmos do mesmo modo no derradeiro instante. Se
essa união de amor a Cristo Jesus for cada dia mais íntima, a expiação do Purgatório nos
será claramente abreviada; poderá mesmo acontecer de recebermos a graça de fazer
nosso Purgatório totalmente sobre a terra, crescendo em amor e mérito, em vez de fazê-
lo após a morte, sem mérito.

Suplicação

O moribundo não deve fazer da morte somente um sacrifício de adoração e


reparação, mas também um sacrifício impetratório ou de suplicação, em união com
Nosso Senhor e Maria.

São Paulo escreve aos Hebreus (5, 7): “[Cristo Jesus] nos dias de sua vida
mortal, dirigiu preces e súplicas, entre clamores e lágrimas (...) e foi atendido pela sua
piedade (... ) tornou-se autor da salvação eterna para todos os que Lhe obedecem”.
Recordemo-nos da prece sacerdotal do Cristo após a Ceia e antes do sacrifício da Cruz:
Jesus então rezou por seus apóstolos e por nós... “porque vive sempre para interceder
em seu favor” (Hb 7, 25). Particularmente, durante o sacrifício da missa, onde Ele é o
principal sacerdote.

Jesus, que rogara por seus algozes, roga pelos moribundos que se recomendam
a Ele. Com Ele, a Virgem Maria intercede, recorda-se do que nós muitas vezes lhe
pedimos: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa
morte”.

O moribundo deve associar-se às missas que se celebram naquele instante


longe ou perto dele; deve solicitar por meio delas, por meio da grande oração do Cristo,
que nelas se prolonga, a graça da boa morte ou da perseverança final — a graça das
graças, a dos eleitos. Convém que se suplique não apenas para si, mas para todos os que
morrem àquele momento.

Para nos dispormos desde agora a fazer esse ato de suplica na hora derradeira,
oremos com freqüência, ao assistir à Santa Missa, por aqueles que vão morrer no correr
do dia. Conforme a recomendação de S. S. Bento XV, façamos celebrar uma missa de
vez em quando para obter, através desse sacrifício de suplica de valor infinito, a graça
da boa morte ou a aplicação dos méritos do Salvador. Façamos também celebrar
algumas missas por alguns de nossos parentes e amigos que nos causaram inquietação
acerca de sua salvação, para lhes obter a graça derradeira, e por aqueles que teríamos
escandalizado e talvez distanciado do caminho de Deus.

A ação de graças

Enfim, cada qual deveria fazer de sua morte, em união com Nosso Senhor e a
Virgem Maria, um sacrifício de ação de graças, por todos os benefícios recebidos desde
o batismo, rememorando quantas absolvições e comunhões nos remiram ou guardaram
no caminho da salvação.
Jesus fizera de sua morte um sacrifício de ação de graças, ao dizer:
“Consummatum est — Está consumado” (Jo 19, 30); Maria disse o “Consummatum
est” junto com Ele. Tal forma de oração, que permanece na missa, não acabará, mesmo
quando for dita a última missa, no fim do mundo. Quando não houver mais sacrifício
propriamente dito, haverá sua consumação, e nela haverá sempre a adoração e a ação de
graças dos eleitos que, unidos ao Salvador e a Maria, cantarão o Sanctus com os anjos e
glorificarão a Deus, louvando-o.

Essa ação de graças é admiravelmente expressa pelas palavras do ritual que o


padre profere à cabeceira dos moribundos, após dar-lhes a derradeira absolvição e o
santo viático: “Proficiscere, anima christiana, de hoc mundo...: Saí deste mundo, alma
cristã, em nome de Deus Pai Todo-poderoso, que vos criou; em nome de Jesus Cristo,
Filho de Deus vivo, que sofreu por vós; em nome da gloriosa e santa Mãe de Deus, a
Virgem Maria; em nome do bem-aventurado José, seu esposo predestinado; em nome
dos Anjos e Arcanjos; em nome dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos
Mártires; em nome de todos os Santos e Santas de Deus. Que hoje vossa habitação seja
na paz, e vossa morada na Jerusalém celeste, por Jesus Cristo Nosso Senhor”.

Concluindo, repitamos freqüentemente, a fim de lhe conferir todo seu valor, o


ato recomendado por S. S. [São] Pio X, e roguemos a Maria a graça de fazer de nossa
morte um sacrifício de adoração, de reparação, de suplicação e de ação de graças.
Quando assistirmos os moribundos, exortemo-los ao sacrifício, a associar-se às missas
que então se celebrem. E desde agora, por antecipação, façamo-lo nós mesmos,
renovemo-lo com insistência a cada dia, como se fosse o último; desta feita, disporêmo-
nos a fazê-lo habilmente no momento supremo: então saberemos que “Deus conduz a
profundos abismos e deles tira”; nossa morte será como que transfigurada; apelaremos
ao Salvador e a Sua Santa Mãe para que nos venha levar, concedendo-nos a graça
derradeira, que nos assegurará definitivamente a salvação, através de um último ato de
fé, de confiança e de amor.
(Tradução: Permanência. Originalmente publicado em La vie spirituelle nº 194,
nov. 1935 Traduzido a partir de www.salve-regina.com)
A Mística de São Tomás de Aquino

As controvérsias animadas desses últimos anos conferiram ao estudo da mística


uma nova e singular atualidade1. Muitos dos fiéis piedosos, até em meio ao mundo,
encontram com que alimentar a alma nos ensinamentos substanciosos de São Tomás;
apresentar a síntese pacificada da doutrina mística do Mestre, para além de toda a
polêmica, é prestar-lhe grande homenagem.

Para caracterizá-la, recorremos aos grandes pontífices Bento XV e Pio XI.


Bento XV, conhecido sobretudo como o Papa da Caridade e por conseguinte imortal,
segundo aquilo do Apóstolo: Charitas numquam excidit – dizíamos, Bento XV
salientou a mística de São Tomás na missiva enviada ao Pe. Bernadot, Diretor da
revista La Vie Spirituelle, a 15 de setembro de 1921:

“Expôs com muita clareza São Tomás, disse ele, a doutrina dos Padres acerca
da elevação da vida sobrenatural e das condições do progresso na graça das virtudes e
dons do Espírito Santo, cuja perfeição ou florescimento se acha na vida mística: ...ac
praterea quibus conditionibus proficiat gratia virtutum et domorum Spiritus Sancti,
quorum perfectio vita mystica continetur2.”

Escrevia Pio XI, cujo pontificado já de si tão fecundo se nos antolha em frutos
que sobejarão da promessa das flores, na bela encíclica Studiorum ducem, de 29 de
junho de 1923: “Para bem conhecer os princípios fundamentais da teologia ascética e
mística, é mister tomar São Tomás como guia e aderir ao que ele ensina sobre a
extensão do preceito do amor a Deus e o aumento da caridade e dos dons do Espírito
Santo – que lhe são conexos –, bem como sobre os diversos estados (o estado de
perfeição, a vida religiosa, o apostolado), as diferenças que os distinguem e a natureza
verdadeira de cada um deles.”
Assim resumem os Papas a espiritualidade de São Tomás com este conceito
claríssimo: a vida mística é o florescimento definitivo da vida da graça e dos dons do
Espírito Santo ou, noutros termos, é a vida sobrenatural e completa do homem que se
elevou ao estado sobrenatural.

Segundo essa definição, logo se vê que o estado místico não é fenômeno


estranho nem estrangeiro às condições normais do cristão, mas é a vida plena e intensa,
que é desejável em si e para a qual chama Deus seus verdadeiros amigos.

A mística, segundo a idéia fundamental do sistema tomista, é o


desenvolvimento supremo do organismo sobrenatural. Repete a miúdo o Aquinate que
em nós existem duas vidas: a vida natural, cujo princípio é a alma, e a vida sobrenatural,
cujo princípio é uma forma divina que nos eleva até a Deus. Não obstante seja Deus a
causa da vida, não vivifica Ele por si mesmo o corpo humano, mas por meio da alma;
por sua vez, Ele não vivifica a alma por meio da substância infinita, e sim por uma
qualidade criada que serve de intermédio entre a alma e Deus e dá-nos a participação na
vida propriamente divina3. Deriva da eficácia do amor divino a razão por que Deus nos
infunde essa qualidade ou alma nova, que sobreexcede a todos os bens da natureza. Eis
o axioma de São Tomás, de maravilhosa profundidade, que nos poderia agraciar com o
móvel das mais suaves contemplações: “Amor Dei est infundens et creans bonitatem in
rebus4.” O amor de Deus é criador e produz nos seres o bem que Ele neles ama – eis a
diferença radical entre o amor de Deus e o amor do homem. Supõem nossos melhores
afetos, enfermos e ineficazes que são, algum bem que os atraia: como o coração humano
é indigente, para que se compraza numa criatura, é preciso que perceba nela algum
encanto que o possa saciar, mesmo que só em parte. Somos atraídos em direção à beleza
e à bondade, cuja origem nos é exterior. Em nós o objeto é que provoca o amor; em
Deus o amor é que produz o objeto. Se Deus nos ama, Ele nos torna dignos dessa
ternura e nos embeleza no seio da realidade. Como é próprio ao amor regozijar no
semelhante, a graça por que nos agracia Deus nos torna, dalgum modo, iguais a Ele e
nos deifica ao comunicar a participação similaríssima da natureza divina. “Necesse est
quod solus Deus deificet, communicando consortium divinae naturae per quamdam
similitudinis participationem5.” O que explica São Tomás com termos tão expressivos,
já Santo Efraim da Síria, um Padre do séc. IV a quem Bento XV conferiu o título de
Doutor Universal da Igreja, traduzia nesta bonita linguagem: “Loco deturpatae effigiei
primi Adae, novam imprimit imaginem6, em substituição à figura manchada do primeiro
Adão, imprimiu Deus em nós uma nova imagem.”

Ora, quem recebe a natureza de outro se torna filho engendrado seu, e é por
isso que a graça é um segundo nascimento: Ex Deo nati sunt. Após o batismo, ao nos
contemplar no berço, dizem pai e mãe com suave transporte: “Regozijemos, nasceu
nosso filho!” A família celeste, a Trindade adorável, curvava-se com ainda mais ternura
sobre esse berço e dizia: nasceu-nos um deus! Ex Deo nati sunt!, como sublinha São
Tomás: “Haec generatio, quia est ex Deo, facit filios Dei; porque vem de Deus, essa
geração nos faz filhos de Deus7.” Ecoa aqui o Doutor Angélico o apóstolo São
Paulo: Genus summus Dei, somos da raça de Deus8. Eis aí nossa partícula de nobreza,
que faculta a que anunciemos com alarde: Dei, de Deus! Amam os filhos do rei levar
consigo o título esplendoroso de sua terra: de França, de Navarra, de Sabóia... Com a
graça divina, somos mais que de terra, somos de Deus! Essa é a essência acrescentada
que infunde Deus em nós e se torna como que a alma de nossa alma.

Mas, prosseguia São Tomás, não tem a Providência menos suavidade com o
sobrenatural do que com a natureza; por conseguinte, deve ela nos comunicar novas
faculdades e novas operações. Assim, o organismo divino compreende este conjunto
harmonioso: na base a graça santificante; após, as virtudes teologais, que nos capacita a
alcançar ao próprio Deus; após, as virtudes morais infusas e suas incontáveis
ramificações que nos enlaçam e devem governar nas condições normais da vida
humana; após, os dons do Espírito Santo, que são uns germens de heroísmo e nos
submete à direção do celeste Paráclito9. Coroam-se os dons com atos excelentes que se
chamam frutos do Espírito Santo, e por outras obras mais perfeitas que se
chamam beatitudes evangélicas. Insiste o Santo Doutor nessa distinção: os frutos são
atos virtuosos em que o justo experimenta deleite espiritual, já as beatitudes designam
as obras perfeitas que aperfeiçoam os trabalhos da santidade10.

Não nos basta possuir os dons divinos, pois quiséramos possuir a pessoa
mesma de Deus. Pois bem!, está feito: pela graça habita toda a Trindade em nós – “Per
gratiam tota Trinitas inhabitat in nobis11.” Com efeito a graça consagra nossa alma
com unção invisível e nela erige um templo agradável a Deus. Ora, que é a igreja senão
onde Deus fez morada? Se verdadeiramente somos templo, é mister que a divindade
esteja nele, substancialmente presente, como estão presentes o corpo e o sangue de
Nosso Senhor no Tabernáculo do altar. Ademais, a graça estabelece entre Deus e nós,
por meio da caridade, uma amizade perfeita que, para ser gozada com plenitude, requer
a união real dos amigos. Se padece a amizade humana da humana enfermidade, já a
divina tem a seu serviço um poder infinito, tanto que desejá-la já é gozá-la – Deus está
na alma, a alma está em Deus! Não obstante ser a habitação de três pessoas, quem se
apropria dela é o Espírito Santo, porque essa morada é dom e obra de amor, o que
confere certa afinidade com o que é próprio à terceira pessoa.

Com a habitação, já adentramos na vida mística e podemos constatar a


transcendência ou a elevação dela, como diz Bento XV, de elevatione vitae
supernaturalis. Segundo São Tomás, essa vida é superior ao mais espantoso milagre,
quer a ressurreição dos mortos quer a criação do céu e da terra, pois na ressurreição se
restabelece tão-somente a vida do corpo, e na criação se produz apenas o ser natural, ao
passo que na vida mística participamos da vida mesma de Deus por meio da graça
santificante, ou das operações próprias a essa vida por meio de atos de conhecimento e
amor. Daí aquela cogitação do Doutor Angélico: “Bonum gratiae unius majus est quam
bonum naturae totius universi12.” – “Ó palavras d’oiro, exultava a tal propósito
Cajetano, palavras d’oiro que se devem meditar noite e dia! Vale uma só graça mais que
o universo inteiro. Considerai o desmedido da perda dos que não sabem apreciar tal
tesouro13!”

Explicando em miúdos: a filiação adotiva diviniza o organismo, as virtudes


infusas e os dons divinizam as faculdades, os frutos e as beatitudes divinizam as
operações. Cheios do divino, temos o motor do Espírito Santo para pôr em exercício
essas riquezas todas. Aqui se torna mui interessante a teoria do Doutor Angélico, pois
uma vez que habita o Espírito Santo permanentemente em nós, e que os dons são
energias vivas que exigem a exaltação da própria atividade – não é normal que o justo,
que a pouco e pouco se purifica, sinta de quando em quando o toque do Paráclito e
obedeça a Seu impulso? A docilidade é o efeito dos dons: “Dona autem Spiritua Sancti
sumt quidam habitus quibus homo perficitur ad prompte obediendum Spiritui
Sancto14.” Dentre esses dons, há um que dispõe o ser humano à contemplação, i. e., o
dom da sabedoria infusa. Desce ela desde o alto, dá-nos o gosto das coisas divinas e por
uma espécie de instinto nos impulsiona a apreciá-las, como se nos fossem elas
conaturais. “De sursum descendens judicium rectum habet de eis secundum quamdam
connaturalitatem ad ipsas.” Quão se presta à meditação a bela expressão secundum
quamdam connaturalitatem,que como nos eleva ao nível das celestes realidades, nos
põe ao mesmo patamar de Deus e nos apresenta a Sua intimidade! Apropria-se o Doutor
do que disse o Dionísio e com ele conclui: “Est perfectus in divinis, non solum discens,
sed et patiens divina15.” Eis o dom do Espírito Santo, que aperfeiçoa o homem nas
coisas divinas, de modo a que ele as apreende e sobretudo as experimenta por si mesmo.

Pati divina é a fórmula conveniente ao estado místico. Na


vida ascética simples, desempenha a alma um papel ativo, busca a virtude por si
mesma, adquire tal perfeição por meio de ações pessoais secundadas pelo auxílio
ordinário da graça; na vida mística propriamente dita, a alma é passiva, à medida que
não logra com os próprios esforços tudo o que experimenta; por outro lado, seu ato é
vital e meritório; como se trata do apogeu da vida espiritual, essa vida é
verdadeiramente intensa e fecunda, plena de eternidade...

Um intenso amor a Deus acompanha o conhecimento superior do divino16,


pois assim como as virtudes morais são entre si conexas na prudência, assim os dons do
Espírito Santo são entre si conexos na caridade17. Quando entra em exercício o dom da
caridade e eleva-se a inteligência à contemplação, excita-se a vontade numa caridade
ardentíssima e vivíssima.

Eis os dois elementos que para São Tomás e sua escola caracterizam o estado
místico: um conhecimento superior de Deus e das coisas de Deus – conhecimento
eminente que não se pode dar a si o homem, embora não seja miraculoso; e um amor
intenso que nossos esforços não provocam e que o mesmo Espírito Santo nos comunica
num impulso onipotente. São esses os dois caracteres fundamentais, o mais é
acessório18. Que tenha o homem alegrias e consolações ou provações, visões e êxtases,
que experimente n’alma ou no corpo fenômenos miraculosos – é tudo secundário, pois é
esse o sobrenatural modal, supernaturale quoad modum, e não o sobrenatural
essencial, supernaturale quoad essentiam, que é a participação na vida de Deus pelos
liames do conhecimento e do amor.
Para o Aquinate não requer necessariamente a contemplação, tanto quanto a
profecia, idéias infusas. Distingue o Santo Doutor a impressão ou influência da luz
divina, impressio vel influentia luminis, e a infusão de idéias novas. Pode penetrar a luz
do alto até ao fundo dos dados adquiridos e esclarecê-los de tal modo que passem a
representar o sobrenatural, sem que tenha Deus infundido outras idéias. Decerto o
Senhor Soberano das inteligências é capaz de produzir diretamente no espírito as
espécies inteligíveis, como fê-lo para a alma de Nosso Senhor e pensamos que também
para a da Virgem Maria19, e a de certos santos favorecidos com visões intelectuais –
mas essa não passa por lei fundamental. Aqui usa Deus de dois modos: ou imprime as
idéias ou tão-só dispõe e arranja as representações existentes e as eleva por via de
iluminação: “Quandoque quidem fit per solam luminis influentiam, quandoque autem
etiam pe species de novo impressas vel aliter ordinatas20.”

Apartado o não-essencial, concluímos que o estado místico, segundo São


Tomás, é aquele em que a alma patitur divina, i.e., passiva aos influxos do Motor
Celeste, que é o Espírito Santo, experimenta as coisas divinas por meio do
conhecimento e do amor que nunca poderia o homem lograr para si apenas com seus
esforços, se não fossem comunicados sobrenaturalmente.

Daí que progredir na vida mística é progredir nesse conhecimento e nesse


amor, que não devem ter medida. Insiste São Tomás nesse princípio excelente, que
Bento XV e Pio XI não se esqueceram de assinalar. “Sustentava [São Tomás] como
princípio indiscutível, diz a encíclica Studiorum Ducem, que deve a caridade aumentar,
sempre em virtude do primeiro princípio: Amarás ao Senhor de todo teu coração... O
todo e o perfeito são a mesma coisa. O fim do preceito é a caridade, diz o Apóstolo (I,
Tim., 1). Ora, não é ao fim que se deve assinalar alguma medida, mas aos meios
ordenados ao fim. Por isso, a perfeição da caridade incorre no preceito, que é um fim
para o qual cada um, segundo sua condição, deve tender21.” Força será sempre repetir:
avante, mais alto, mais alto! Não cumpri inteiramente meu dever, não cheguei sequer às
lindes do preceito, não atingi ainda a medida do amor divino. Em frente, sempre em
frente! Por quê? Porque segundo a expressão doutro mestre, que era também o doutor
da caridade, São Bernardo, a medida do amor é não ter medida, é amar sem medida,
sem termo e sem fim: “Modus diligendi (Deum) sine modo diligere22.”
Disso tudo se retira que a perfeição cristã é a perfeição da caridade – eis mais
um axioma fundamental da mística de São Tomás. Para o ser, a perfeição é a
consecução do fim, que é a suprema consumação. Ora, é a caridade que nos conduz ao
fim e dá-nos a verdadeira beatitude23, unindo-nos a Deus; daí é força concluir que
consiste a perfeição essencialmente nos preceitos, porque todos se remetem à caridade a
Deus ou ao próximo. Não são os conselhos a própria perfeição, antes são
os instrumentos da perfeição, pois afastam os obstáculos que entravam o exercício da
caridade24. Eis a fonte do magnífico ensinamento do Santo Doutor acerca da economia
dos votos de religião na Igreja.

É a apologia das ordens religiosas uma das características da espiritualidade de


São Tomás25. Devem os três votos esmagar as três grandes concupiscências que
governam a humanidade, pois todo ato que se distancia do reino abençoado de Nosso
Senhor se inspira no desejo de riquezas, de prazeres ou de honras, melhor ainda, nos três
a uma só vez. Deve a santa pobreza vencer a concupiscência dos olhos; a santa
castidade, a concupiscência da carne; a santa obediência, o orgulho da vida. Eis as três
renúncias universais que se opõem aos três obstáculos universais da caridade. Por isso é
lícito afirmar que a vida religiosa bem praticada é a perfeição do amor na perfeição do
sacrifício. O estado religioso, que se assenta nos votos, é obrigação perpétua de tender à
perfeição da caridade e, por conseguinte, ao estado de perfeição, inseparável da Santa
Igreja.

Pertence o sacerdócio à essência da Igreja, porque sem ele não existiria o triplo
organismo que constitui o corpo da Igreja: o magistério visível para o ensino das
verdades sobrenaturais, o ministério visível para a santificação das almas confiadas aos
sacerdotes e o governo visível que pertence à sagrada hierarquia.

Não pertence o estado religioso simples à essência da Igreja, pois não compõe
ele o organismo fundamental, mas à integridade Dela, pois Lhe faz resplender a auréola
de perfeição e santidade. Sejamos desta ordem ou daquela particular congregação,
estamos certos de que o estado religioso há de durar tanto quanto a Igreja e há de ajudar
os crentes a dizer e cantar: Credo sanctum Ecclesiam.
Mas cumpre acrescentar com São Tomás que os bispos pertencem a um estado
de perfeição superior ao dos religiosos. Assim como o professo deve tender à perfeição,
assim deve o bispo exercer os atos perfeitos e praticar a caridade permanentemente,
devotando-se ao rebanho até ao ponto de lhe dar o supremo testemunho do sangue, se
preciso for: Bonus pastor ponit animam suam pro ovibus suis26.

Eis a razão por que devem os padres e os religiosos permanecer em comunhão


com o bispo – como as cordas na lira, segundo a expressão pitoresca de São Inácio de
Antioquia27 –, contemplá-lo como o ideal do rebanho, forma gregis28, e recorrer a ele
como a príncipe que lhes tem de aperfeiçoar; possuidor da plenitude do sacerdócio, após
o Cristo é ele a fonte principal de santidade na diocese.

Após a mística do Angélico Mestre considerar a perfeição na prática dos


mandamentos e conselhos e no exercício da caridade – quer por via religiosa quer por
ministério episcopal –, mostra-nos o coroamento dessa perfeição no heroísmo dos
santos.

Cada vez que a Igreja alça um de seus filhos aos altares, exige ela que tenham
eles praticado as virtudes em grau heróico; ao pagarem o tributo do heroísmo como
pagaram os mártires o tributo do sangue, chegam os servos de Deus às honras da
beatificação e da canonização. Dissemos que os justos trazem consigo, junto com os
dons do Espírito Santo, os germens do heroísmo, que no justo estão como o som na lira
e a flor na planta. É mister conhecer esta doutrina consoladora: quais sejam as misérias,
somos capazes de vibrar ou florescer, conquanto conservemos os dons do Espírito
Santo, aos quais remete São Tomás a virtude heróica ou divina: “Superexcellentiori
virtuti quam Philosophus vocat heroicam vel divinam, quae secundum nos videtur
pertinere ad dina Spiritus Sancti29.”

O conjunto doutrinal exposto já contém a resposta às perguntas: todos são


chamados à perfeição? convém desejar as graças místicas? Como consiste a perfeição
na caridade, e a caridade não tem limites, e o cristão deve ter caridade – deve o cristão
aspirar à perfeição como fim para o qual cada um, segundo sua condição, deve tender,
conforme nos disse o Doutor Angélico e após ele Pio XI. Logo, há um apelo à
perfeição, ao menos distante e geral, que se faz a todos30.
Se alguém objeta que nem todos podem praticar os conselhos, responde São
Tomás que deve o cristão ao menos possuir o espírito dos conselhos, ao ponto de não
amar nada nem ninguém tanto ou mais que a Deus, e nem apesar Dele: “Ut
nihil supra eum aut contra eum aut aequaliter ei diligatur31.”

Ao receber a graça santificante com o cortejo das virtudes e dos dons, gozam
os justos a habitação do Espírito Santo; dispõe essa habitação – que comporta a amizade
perfeita – à vida mística, que é o coroamento da vida espiritual.

Se fosse a vida mística miraculosa, se se acompanhasse ela necessariamente de


êxtases ou outros fenômenos estranhos, se fizesse mister de idéias infusas – seria bem
entender que haveria presunção ou temeridade no pedi-la; mas se consiste ela em
essência, conforme explicamos junto com o Mestre, numa graça eminente de
conhecimento e amor, quem hesitaria em desejá-la? Não é desejável conhecer mais e
mais a Deus com esta intimidade que já é o começo da perfeição da pátria nesta terra,
sobretudo se relembramos que a medida do amor divino é não ter medida?

Não aparece isolada a mística assim compreendida, fora do enquadramento


normal do sobrenatural, mas inserida no sobrenatural de modo que a vida espiritual não
se torna completa sem ela.

Ademais, podemos admirar na vida e nos escritos de São Tomás o fato de que
não era ele tão-só doutor em mística, mas místico perfeito, em que encontramos as duas
características essenciais analisadas acima: o conhecimento eminente recebido das
alturas: “Dicere solebat, conta-nos seu biógrafo, quidquid sciret non tam Studio aut
labore suo se peperisse quam divinatus traditum accepisse.”; resplandece a caridade
ardente nas efusões ante o crucifixo que se digna a lhe falar, na terna devoção ao
Sacratíssimo Sacramento e na união permanente com Deus, ao ponto de que estava
sempre reptado em êxtase, como se já assistisse aos mistérios da eternidade: “Raptus
videbatur interesse mysteriis”.

Aponta o soberano pontífice Pio XI, na encíclica Studiorum Ducem, como


característica da santidade do Aquinate a união das duas sabedorias e aplica a ele o que
o Doutor disse acerca da sabedoria sobrenatural, que dispõe o justo a experimentar em
si mesmo o divino naquela forma passiva e todavia plena de vida, de que já
falamos, patiens divina... Acrescenta o Papa que o santo, sobretudo na última quadra da
vida, chegara à contemplação tão intensa que só em Deus pensava e só a união divina
desejava. Ademais, é bastante passar olhos em sua biografia para se convencer que
Tomas fundiu a mística tanto em si como na Suma Teológica.

Atualmente nos é fácil contemplar em conjunto esta síntese tomista que vimos
de expor pela rama.

É a vida mística o coroamento do organismo sobrenatural. Comporta ela a


graça santificante, as virtudes, os dons, os frutos, as beatitudes e a habitação do Espírito
Santo e requer dois elementos essenciais: conhecimento superior e amor intenso, ambos
os quais a alma jamais poderia se dar a si. Esse estado de passividade das faculdades é
eminente, mas não miraculoso, e não exige necessariamente idéias infusas que, tais
quais os êxtases e as revelações, não passam do sobrenatural quoad modum. O
progresso na vida mística é o progresso na caridade, que deve sempre crescer em
virtude do primeiro preceito; portanto, a perfeição cristã é a perfeição da caridade e
consiste essencialmente nos preceitos, ao passo que os conselhos são os instrumentos da
perfeição, que permitem o livre exercício do amor divino, donde se segue que os votos
religiosos, opostos que são aos três grandes obstáculos, são necessários à realização do
estado de perfeição e que o estado religioso pertence à integridade da Igreja, de modo
que resplenda na Esposa a aureola da santidade; daí que o episcopado é o estado da
perfeição adquirida, pois que deve ser o exercício permanente da caridade.

O apogeu desse estado é o heroísmo, cujos princípio e gérmen são os dons do


Espírito Santo.

***

A conclusão evidente é a de que todos os cristãos são chamados, ao menos de


modo geral e distante, à perfeição como a um termo supremo, em direção ao qual cada
um, segundo sua condição, deve tender; de que ninguém está dispensado do espírito dos
conselhos; e enfim, de que o estado místico é graça sumamente desejável, pois quem é
amigo de Deus deve desejar tal conhecimento e amor excelente que começa desde cá
embaixo o comércio com a pátria.

Dizem alguns que, se todas as graças vêm do Salvador, são em especial


preciosas as que jorram das regiões mais divinas e amoráveis de Seu adorável coração.
Decerto é graça compreender o ensinamento do Doutor Angélico e imitar sua
prática: quae docuit intellectu conspicere et quae egit imitatione complere. Esperem os
verdadeiros discípulos e os fiéis imitadores de São Tomás abrigar-se com ele nas
regiões mais divinas e amoráveis do Sacratíssimo Coração.

HUGON, R. P. Éd., Études Sociales et Psychologiques, Ascétiques et


Mystiques, 3ª ed., Paris, 1924.

Tradução: Permanência.

1. 1.Encontrar-se-ão as oportunas informações na obra magistral do


Pe. Garrigou-Lagrange, Perfection chretienne et Contemplation.
2. 2.Act. Apost. Sed.. 1921, p. 528.
3. 3.“Deus est vita animae per modum causae efficientis, sed anima est
vita corporis per modum causae formalis.”
4. 4.I, P., q. 20, a. 2.
5. 5.Ia IIae, q. 112, a. 1.
6. 6.S. Ephrem., Hym. de virginitate, edit. Rahman, p. 23.
7. 7.S. Thom., Comment. In Evang., Joan., I, 13.
8. 8.Act., XVII, 29.
9. 9.Ia IIae, q. 68.
10. 10.Ia IIae, q 69 e 70.
11. 11.P., q. 43. A. 4, arg. 2. – Cf. De Verit., q. 27, a. 2, ad 3.
12. 12.Ia IIae, q. 113, a. 9, ad 3.
13. 13.Caietan, 1n h, 1.
14. 14.Ia IIae, q. 56, a. 2.
15. 15.IIa IIae, q. 45, a. 1, ad. 2, a. 2, c.
16. 16.“Sapientia quae est donum causam quidem habet in voluntate,
scilicet charitatem, se dessentiam habet in intelectum cujus actus est recte
judicare.” Ibid.
17. 17.“Sicut virtutes Morales connectuntur sibi invicem in prudentia, ita
dona Spiritus Sancti connectuntur sibi invicem in charitate.”
18. 18.Para um estudo completo, consultar o Sr. cônego
Saurreau, L’État mystique, e Pe. Garrigou-Lagrange, Perfection chretienne et
contemplation.
19. 19.Cf. nosso livro De Verbo Incarnato, p. 234, ss. 452.
20. 20.IIa IIae, q. 173, a. 2.
21. 21.IIa IIae, q. 184, a. 3.
22. 22.S. Bernardo, De diligendo Deo, c. I.
23. 23.IIa IIae, q. 184, a. 1.
24. 24.Ibid., a. 3.
25. 25.Cf. Opusc., De Perfectione Vitae Spiritualis, e o opusc. Contra
Impugnantes cultum Dei et Religionem; e IIa IIae, q. 184, SS.
26. 26.IIa IIae, qq. 184 e 185.
27. 27.S. Ignat. Antioch., Ephes., IV: P. G., V. 648.
28. 28.I, Pet., V, 3.
29. 29.Ia IIae, q. 159, a. 2, ad. 1.
30. 30.Ver tudo isso em detalhes no Pe. Garrigou-Lagrange, op. cit.
31. 31.IIa IIae, q. 184, a. 3, ad. 2.

A obrigação de buscar a perfeição da caridade


Pe. Garrigou-Lagrange, OP
Estado e dificuldade da questão: não se está tratando da perfeição ínfima, que
exclui apenas os pecados mortais, nem tão-somente da perfeição média, que exclui os
mortais e os veniais plenamente deliberados, mas da perfeição propriamente dita, que
exclui imperfeições deliberadas e atos imperfeitos; logo, não é meramente o convite à
perfeição propriamente dita pois, quanto a isso, não há dúvida: todos homens estão
convidados à perfeição propriamente dita.
A questão versa sobre a existência de uma obrigação geral de todos católicos
tenderem à perfeição da caridade. Não é, contudo, uma obrigação especial, cuja
violação seria um pecado especial, como no estado religioso, mas de uma obrigação
geral.
A dificuldade surge quando queremos conciliar certas sentenças de Nosso
Senhor que, num primeiro momento, parecem contradizer-se.
Por um lado, Cristo aconselha o adolescente rico (Mt 19, 21): “Se queres ser
perfeito, vai, vende o que tens, e dá aos pobres... e vem e segue-me”. Estas palavras –
“Se queres ser perfeito” – parecem exprimir um conselho, não uma obrigação. Logo,
todos os católicos não estão obrigados a buscar a perfeição; aparentemente, somente
aqueles que já prometeram seguir os conselhos evangélicos estariam obrigados a buscar
a perfeição 1.
Por outro lado, declara Cristo a todos (Mt 5, 48): “Sede pois perfeitos, como
também vosso Pai celestial é perfeito”. (continue a ler)
No Comentário a S. Mateus, São Tomás de Aquino explica essas palavras do
Senhor dizendo: “à perfeição da excelência da vida estão mais obrigados os clérigos do
que os leigos; à perfeição da caridade, porém, todos estão obrigados”, ou seja, estamos
todos obrigados a buscá-la.
Além disso, na Suma Teológica 2, São Tomás de Aquino prova que,
essencialmente, a perfeição consiste não nos conselhos evangélicos, mas nos
Mandamentos, uma vez que o primeiro mandamento não tem medida: “Amarás o
Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas
forças, e com todo o teu entendimento” (Lc 10, 27). E assim, segundo São Tomás, a
perfeição da caridade recai sob o Mandamento como a um fim que se deve perseguir.
Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e São Francisco de Sales sustentam
que todos devem buscar a perfeição da caridade, cada um segundo a sua condição.
Assim, a perfeição da caridade recai sob o Mandamento como a um fim.
Como, pois, conciliar estas palavras do Senhor: “Se queres ser perfeito” e
“Sede, pois, perfeitos”?
A resposta verdadeira à questão assim apresentada, conforme o pensamento de
São Tomás, parece foi respondida corretamente por Cajetano e Passerini na IIa IIae, q.
184, a. 3, por P. Barthier em seu livro, De la perfection chrétienne et de la perfection
religieuse, e por P. A. Weiss, O. P., Apologie des Christentums, vol. 5, índex
Vollkommenheit. Tratei dela longamente em Perfection chrétienne et contemplation, t.
I, p. 215-244; e em Les trois ages de la vie intérieure, t. I, 267 sq.
Solução: a resposta está contida em quatro proposições:
1. Todos os católicos estão estritamente obrigados a amar a Deus
apreciativamente sobre todas as coisas.
2. Todos devem buscar a perfeição da caridade, por força do supremo
Mandamento, mas cada um conforme a sua condição: este no estado de matrimônio,
aquele como irmão professo em uma ordem religiosa, e aquel’outro como sacerdote
secular.
3. Ninguém, contudo, está obrigado a possuir em ato a caridade não-
comum ou dos perfeitos.
4. Nem todos estão obrigados a buscá-la imediata e explicitamente pelo
cumprimento dos conselhos evangélicos.

Primeira proposição: Todos os católicos estão estritamente obrigados a amar


a Deus acima de tudo; é o Mandamento do Senhor (Mt 22, 37-39):”Amarás o Senhor
teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito. Este é o
máximo e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo”. Assim também em Deuterônimo 6, 5; Lucas 10, 27 e
Marcos 12, 30.
Logo, cada um está obrigado a amar a Deus pelo menos apreciativa ou
estimativamente, se não intensivamente, acima de tudo, e mais do que a si mesmo. Nas
palavras de São Tomás (IIa IIae, q. 184, a. 3 ad 2): “Não viola o preceito quem, de
algum modo, atinge a perfeição do amor divino. O grau ínfimo do amor de Deus
consiste em que não se ame nada acima, contra ou igualmente a Deus; quem faltar a este
grau de perfeição, não cumpre o preceito de modo algum”.
Como nota o Pe. Barthier, I, 218, condenam-se neste preceito as liberdades
modernas denominadas liberdade de consciência, liberdade de religião e liberdade de
opinião, que atribuem os mesmos direitos à verdade e ao erro, ao bem e ao mal, como se
Deus, que é a Verdade suprema e o Sumo Bem não tivesse direito estrito e
imprescritível ao obséquio do nosso intelecto e da nossa vontade, e a ser amado acima
de tudo. Por onde, reconhecer ou defender estas liberdades sem limite e sem
subordinação a Deus é voltar as costas a Deus e agir contra Ele. E ainda, conservar-se
neutro entre o liberalismo e o catolicismo equivale a amar algo tanto quanto a Deus. O
amor de Deus, ainda que em grau ínfimo, deve dominar sobre todos os nossos afetos,
como reza a fórmula de São Tomás de Aquino: “Não se ame nada acima, contra ou
igualmente a Deus; quem faltar a este grau de perfeição, não cumpre o preceito de modo
algum”.
Assim como se ama estimativamente a Deus acima de tudo, quando se quer
evitar todo pecado mortal, assim a boa mãe católica, mesmo que ame intensivamente
mais o seu filho que vê e toca, ama contudo estimativamente mais a Deus que ao seu
filho.

Segunda proposição: Todos devem buscar a perfeição da caridade, cada um


conforme a sua condição (Barthier, t. I, 419 e 315; cf. Passerini, De Statibus hominum,
p. 758, n. 13; in IIa IIae, q. 184, a. 3).
Esta proposição parece excessiva a muitos católicos que julgam erroneamente
que apenas os sacerdotes ou os religiosos estão obrigados a progredir na caridade. Este é
um erro muito difundido. Já outros estão prontos a admitir a veracidade desta
proposição na teoria, mas não enxergam toda sua fecundidade na prática.
Vejamos: 1º. Qual o fundamento desta proposição na Escritura; 2º. Qual sua
prova teológica.
1º. Esta proposição aparece em termos equivalentes em diversas passagens das
Sagradas Escrituras, por exemplo: “Sede pois perfeitos, como também vosso Pai
celestial é perfeito” (Mt 5, 48); “aquele que é justo, justifique-se mais” (Ap 22, 11);
assim em outros lugares do Novo Testamento, reunidos nas Concordâncias sob o
verbete “crescer”: “Crescei na graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo” (2 Pd 3, 18); “Deixando pois toda a malícia... para, por meio dele,
crescerdes para a salvação” (1 Pd 2, 2); “cresçamos em todas as coisas naquele que é
cabeça, o Cristo” (Ef 4, 15); “frutificando em toda a boa obra e crescendo na ciência
de Deus” (Cl 1, 10); “deixando de discorrer sobre os primeiro rudimentos acerca de
Cristo, elevemo-nos a coisas mais perfeitas” (Hb 6, 1).
A partir destas diversas passagens, São Tomás elaborou esta fórmula, que
expôs em seu Comentário sobre a Epístola aos Hebreus, cap. VI, 2: “No que toca o
progresso à perfeição, deve o homem sempre esforçar-se por chegar ao estado perfeito”.
E faz uma objeção a si mesmo: A perfeição consiste nos conselhos, pois, está dito nas
Escrituras: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, etc.“ (Mt 19, 21). Ora, nem
todos estão obrigados aos conselhos. Sendo assim, como diz S. Paulo: “elevemo-nos a
coisas mais perfeitas”?
São Tomás responde no mesmo lugar: “Dupla é a perfeição: uma exterior, que
consiste nos atos exteriores que são sinais das coisas interiores, como a virgindade ou a
pobreza voluntária. Esta não obriga a todos. Outra é a perfeição interior, que consiste no
amor de Deus e do próximo, segundo aquilo da Escritura: “Sobretudo, porém, tende
caridade, que é o vínculo da perfeição” (1Cl 3, 14) e a esta perfeição (isto é, à perfeição
da caridade) nem todos estão obrigados a tê-la, mas todos estão obrigados a buscá-
la, pois se alguém não quisesse amar mais a Deus, não faria o que a caridade
exige”. São Tomás cita a palavra de São Bernardo: “Na via que leva a Deus, quem não
progride, regride”.
2º. A proposição pode ser provada teologicamente de dois modos: a) tomando
como ponto de partida o preceito da caridade; b) ou o estado da caridade no homem
peregrino.a) Tomando como ponto de partida o preceito da caridade 3: Como o
primeiro Mandamento não tem medida, “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito”, segue-se que a perfeição da
caridade é preceituada como fim. Disto se deduz, diz São Tomás 4, que “todos, tanto
seculares como religiosos, estão obrigados a fazer de algum modo tudo que podem fazer
de bom; de fato, para todos vale aquela passagem: “Faze com presteza tudo quanto
pode fazer a tua mão” (Ecle 9, 10). Há um certo modo de cumprir este preceito, pelo
qual se evita o pecado: se o homem fizer o possível, conforme as exigências do seu
estado, com a condição de que não despreze a excelência em suas ações, sem a qual a
alma se levanta contra o progresso espiritual.”
Todo este artigo (art. 3 q. 184, IIa IIae) deve ser lido com grande atenção —
contém virtualmente tudo o que em seguida diremos.
b) Também se pode provar tomando como ponto de partida o estado da
caridade no homem peregrino. Ora, assim como a caridade do peregrino tende, por si
mesma, à caridade da pátria, assim a graça é a semente da glória. Diz Santo Tomás: “A
caridade, quando fortificada, aperfeiçoa-se” 5. Esta vida sobrenatural da caridade existe
primeiro em estado de infância, depois, de adolescência e, finalmente, de adulto. Esta
tendência, por si mesma, pertence à natureza da via, caso contrário, já não seria a via
para um término, mas o próprio término. Como diz o Evangelho: “Entrai pela porta
estreita, porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos
são os que entram por ela.” (Mt 7, 13). Ora, caminhar espiritualmente é progredir 6. Do
mesmo modo, no Evangelho, a caridade é comparada à semente ou grão de mostarda,
que deve crescer, ou aos talentos. E nesta última Parábola (Mt 25, 25) diz o senhor
daquele que recebera um talento e o escondera na terra: “Tirai-lhe pois o talento, e dai-o
ao que tem dez talentos. Porque ao que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao
que não tem, tirar-se-lhe-á até o que julga ter”. Ao que não dá fruto, se lhe subtrai.
Aplica-se isto de diversos modos aos iniciantes, aos aproveitados e mesmo aos
perfeitos, dos quais diz São Tomás: “quanto mais se dirigem para o fim, mais devem
crescer” (Heb. C. X, lect. 2)
Objeção. Alguém poderá objetar: esta dedução não está certa, pois São Tomás
diz: “Não é transgressor do Mandamento quem não o cumpre do melhor modo, desde
que o cumpra de algum modo” 7. Assim, nem todos católicos estão obrigados a buscar
caridade maior do que tem.
A resposta a esta objeção tira-se da própria consideração dos Mandamentos 8:
1º. A perfeição da caridade incide no Mandamento da caridade não como
matéria, mas como fim a ser perseguido; por outro lado, este Mandamento não tem
medida, por isso aquilo que é superior [ou seja, a perfeição da caridade], permaneceria
apenas como conselho, o que vai contra a fórmula do Mandamento, como demonstrado
por São Tomás 9. Logo, a perfeição da caridade é de preceito para todos, não como
imediatamente adquirida, mas como o fim ao qual cada um, conforme sua condição,
deve tender.
2º. De modo algum dispor-se ao progresso da caridade significaria faltar a todo
ato de caridade, o que seria contra o preceito, pois todos os católicos estão obrigados a
fugir de todo pecado, seja mortal seja venial; isto não pode acontecer sem atos
meritórios, com os quais a alma dispõe-se ao progresso ou mesmo cresce em caridade.
Ao menos aos domingos, todos os católicos devem assistir a Missa e praticar atos de
religião e de caridade para com Deus.

Terceira proposição: Ninguém está obrigado a possuir a caridade não-comum


ou dos perfeitos 10.
Basta que os iniciantes tendam à caridade dos aproveitados e os aproveitados, à
dos perfeitos, cada um segundo a sua condição; em qualquer idade da vida espiritual
existem muitas gradações.
Para a salvação basta certamente que se morra em estado de graça, ainda que
no seu menor grau. Isto é dito de modo muito claro por São Tomas na Suma
Teológica 11, em que se diz que a perfeição necessária à salvação é a que exclui o
pecado mortal. E noutro lugar, diz que existe “uma perfeição de supererrogação,
quando alguém adere a Deus além do estado comum, o que se faz tirando o coração das
coisas temporais” 12, isto é, observando efetivamente os três conselhos. Os conselhos
não obrigam, os preceitos obrigam.

Quarta proposição: Nem todos católicos estão obrigados a buscá-la


explicitamente, isto é, lançando mão dos meios imediatamente proporcionais à
perfeição da caridade. Nem todos são convidados a ela individual ou imediatamente 13.
Mas devem evitar todos os pecados veniais, crescer na caridade e, se assim o fizerem,
serão chamados não apenas remota, mas proximamente, de modo ainda mais eficaz, a
uma alta perfeição.
Ensina São Tomás que a perfeição da caridade recai sob o preceito, mas como
um fim ao qual é preciso tender de algum modo, crescendo na caridade14. Contudo, não
é necessário a todos e a cada um tender a ela explicitamente, usando
os meios imediatamente proporcionados à alta santidade, que suscitam a heroicidade
das virtudes, ainda que todos devamos, surgida a ocasião, aceitar o martírio antes do que
renegar a fé.
Ainda segundo São Tomás15, os dons do Espírito Santo são necessários à
salvação, mas não afirma o mesmo sobre os graus mais altos dos dons, nem da alta
contemplação infusa. Todos os cristãos devem aspirar não à prática efetiva dos três
conselhos, mas ao espírito dos conselhos – ao espírito de abnegação.

De onde, pois, fica a conclusão principal: Todos os católicos, cada um


segundo a sua condição, estão obrigados a tender a uma caridade maior, sempre agindo
conforme o motivo sobrenatural da caridade, de acordo com as palavras do Apóstolo (Cl
3, 17): “Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras (fazei) tudo em nome do Senhor
Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai.”
Todavia, os que pecam contra os preceitos não cometem um pecado especial
contra a perfeição, que é diferente dos demais pecados, pois esta obrigação é geral, e
não especial.

Porventura cada católico em particular é convidado a observar alguns dos


conselhos, conforme a sua condição? – Sempre: é muito difícil observar todos os
preceitos sem seguir ao menos alguns dos conselhos, proporcionalmente à condição de
cada um. Estes conselhos nos levam a evitar imperfeições que dispõem de modo
imediato aos pecados veniais, e a abraçar o bem que a cada um convém. Assim, além de
ouvir a Missa nos dias de domingo, que é de preceito, são muito úteis algumas orações
que não são de preceito. No dizer do padre Barthier: “É raro encontrar um católico fiel a
todos os preceitos secundários quando neglige toda prática dos conselhos
evangélicos” 16.
Porventura cada católico em particular é convidado a seguir os três
conselhos em geral. – Não. Pois nem todos são chamados a vida religiosa. Cada um
deve trabalhar, no entanto, para que tenha o espírito dos conselhos, isto é, o espírito de
abnegação. Pois disse o Cristo (Mt 19, 12): “Nem todos compreendem esta palavra, mas
(somente) aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que nasceram assim do
ventre de sua mãe; e há eunucos a quem os homens fizeram tais; e há eunucos que a si
mesmos se fizeram eunucos por amor do reino dos céus. Quem pode compreender (isto)
compreenda.” Comenta São Tomás: “que não convenha casar-se é verdadeiro para
alguns, mas não para todos, pois nem todos possuem tanta virtude para a vida de
castidade; mas foi dado a alguns, não por si mesmos, mas pelo dom graça. Como aquilo
das Escrituras (Sb 8, 21): ‘Sabia que não podia obter a sabedoria, se Deus ma não
desse’, que o homem viva na carne mas não segundo a carne, não vem do homem, mas
de Deus”17. Assim, como diz São Tomás, comentando o Evangelho de São Mateus,
todo homem está obrigado, cada um na sua condição, a buscar “o melhor pelo afeto”
(não pelos atos); “pois, quem não quisesse ser sempre melhor, não o desejaria sem
menosprezo”. Cf. Rm 6, 3-13.

De onde, pois, fica a conclusão principal: Todos os católicos, cada um


segundo a sua condição, estão obrigados a tender a uma caridade maior.
Corolários:
1º Na via de Deus, não progredir é regredir, pois há o dever de progredir: para
o menino há uma lei natural de crescimento, caso contrário, tornar-se-ia uma
homenzinho disforme; uma carroça que permanecesse demasiado nas postas se
atrasaria.
2º O progresso da caridade deve ser acelerado; como diz São Tomás: “o
movimento natural (v. g. uma pedra que cai), quanto mais se aproxima do seu término,
mais se torna veloz. Ora, a graça inclina ao modo da natureza, logo, quem vive na graça,
quanto mais se aproxima do fim, tanto mais rapidamente deve crescer” 18. (Em outra
obra, L´amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I 150-162, explicamos este corolário
longamente, aplicando-o à santa comunhão e ao progresso da caridade na vida da
Santíssima Virgem).
3º Se a caridade perfeita é o fim do preceito (ou recai sob o preceito como fim),
oferecem-se a nós graças atuais sempre maiores, proporcionadas a este fim; pois Deus
não pede o impossível. Cristo disse (Mt 5, 48): “Sede pois perfeitos, como também
vosso Pai celestial é perfeito”. Do mesmo modo, São Paulo (Ts 4, 3): “Porquanto esta é
a vontade de Deus, a vossa santificação”; (Ef 1, 4) “nos acolheu antes da criação do
mundo, por amor, para sermos santos e imaculados diante dele” – Por isso, devemos
esperar a obtenção desse fim, e jamais dizer que “a humildade nos proíbe almejar algo
tão elevado”. Assim, a caridade perfeita, a qual se dá na união transformante, como
disposição perfeita à visão beatífica, aparece como o auge do progresso normal da
caridade ou da graça batismal.
Demonstramos de modo suficiente que a perfeição cristã consiste
essencialmente nos preceitos e que a perfeição da caridade recai sob o supremo preceito,
não como matéria nem como coisa a ser imediatamente conseguida, mas como fim ao
qual todos devem tender, cada um segundo a sua condição; este no matrimônio, aquele
na vida sacerdotal ou como religioso 19.
Por isso, a perfeição cristã está apenas acidental e instrumentalmente nos
conselhos evangélicos propriamente ditos, como meios para se atingir a santidade de
maneira mais fácil e breve.. Porém, mesmo sem a prática efetiva dos conselhos, uma
pessoa no estado de matrimônio, por ex., pode ser santo, desde que tenha o espírito dos
conselhos e esteja pronto a observá-los, se necessário, v. g, para conservar a castidade
absoluta após a morte do cônjuge, e a pobreza, em caso de ruína.
Para complementar esta doutrina notamos que, quando se compara o conselho
com o preceito, diz-se que o conselho é “um bem superior”; isso não significa que seja
um bem superior à obra do preceito, pois a caridade em grau elevado recai também sob
o preceito como fim, e o martírio pode vir a ser de preceito, dada a ocasião. A expressão
“um bem superior” contrapõe-se aos atos livres, logo:
 É melhor a pobreza consagrada a Deus do que o uso legitimo das
riquezas;
 É melhor a castidade absoluta consagrada a Deus do que o uso
legítimo do matrimônio;
 É melhor a obediência religiosa do que o uso legítimo da nossa
liberdade.
Isto é confirmado pela divisão dos conselhos dada por São Tomás na Suma
Teológica 20.

Tradução: Permanência
Fonte: De Sanctificatione sacerdotum, secundum nostri temporis exigentias.
[Romae] Angelicum [1946]. 168 p., capítulo I.
1. 1.Sobre esta dificuldade, ver Suma Teológica IIa IIae, q. 184, a. 3 ad
1.
2. 2.Ibidem.
3. 3.IIa IIae, q. 184, a. 3, argumento “em contrário” e corpo do artigo.
4. 4.IIa IIae, q. 186, a. 2 ad 2.
5. 5.IIa IIae q. 24, a. 9.
6. 6.S. Tomás, Comentário à Epístola aos Efésios, 4, 6.
7. 7.IIa IIae, q. 184, a. 3 ad 2.
8. 8.Barthier, op. cit., I, 317.
9. 9.IIa IIae, q. 184, a. 3.
10. 10.Barthier, I, 279 sq.
11. 11.IIa IIae, q. 184, a. 2.
12. 12.Comm. supra Ep. I ad Phil. c. III, lect. 2 S.
13. 13.Barthier, I, 281; Santo Tomas in Ep. ad Hebr. c. VII lect. 1
14. 14.IIII, q. 184, a. 3.
15. 15.III, q. 68, a. 2
16. 16.Barthier, II, 219.
17. 17.Cfr. III, q. 108, a. 4 ad 1.
18. 18.Ep. ad Hebr X, 25.
19. 19.II-II, 183, 3
20. 20.Ia IIae, q. 108, a. 4.

A procura da vida interior

A visão imediata de Deus ultrapassa as forças naturais de toda e qualquer


inteligência criada, angélica ou humana. Uma inteligência criada pode, em sua atividade
natural, conhecer a Deus pelo reflexo de suas perfeições na ordem criada, mas não pode
vê-lo diretamente em Si mesmo como Ele se vê1.

O anjo e a alma humana só se tornam capazes de um conhecimento


sobrenatural de Deus e de um amor sobrenatural por Ele se tiverem recebido este
enxerto divino que é a graça habitual ou santificante, participação da natureza divina
ou da vida íntima de Deus. Só essa graça, recebida na essência de nossa alma como um
dom gratuito, pode torná-la radicalmente capaz de operações propriamente divinas, isto
é, de ver a Deus diretamente como Ele se vê e de O amar como Ele se ama.

Em outros termos, a deificação da inteligência, e a da vontade, supõe


uma deificação da própria alma (em sua essência), donde derivam essas faculdades.

Essa graça, quando está consumada e inamissível, se chama a glória, e dela


procedem, na inteligência dos bem-aventurados do céu, a luz sobrenatural que lhes dá
a força de ver a Deus, e, na vontade, a caridade infusa que lhes fez amá-Lo, sem que
possam daí em diante desviar-se d’Ele.

Em muitas ocasiões, já o notamos, Jesus repete: “Aquele que crê em mim tem
a vida eterna” 2. Não somente ele vai tê-la mais tarde, mas, num sentido, já a tem,
porque a vida da graça é a vida eterna começada.

É, com efeito, a mesma vida em seu fundo, como o germe que está num fruto
de carvalho tem a mesma vida que o carvalho desenvolvido; como a alma espiritual da
criança pequena é a mesma que, um dia, desabrochará no homem feito.
No fundo, é a mesma vida divina, que está em germe no cristão aqui em baixo,
e que está plenamente desabrochada nos santos do céu, que são verdadeiros viventes da
vida da eternidade.

É a mesma vida sobrenatural, a mesma graça santificante, que está no justo


aqui em baixo e nos santos do céu; é também a mesma caridade infusa, com duas
diferenças. Aqui em baixo nós conhecemos a Deus não na claridade da visão, mas na
obscuridade da fé infusa; e, além disso, ainda que esperemos possuí-Lo de modo
inamissível, aqui embaixo podemos perdê-Lo por nossa culpa.

Mas, apesar dessas duas diferenças, relativas à fé e à esperança, é a mesma


vida, porque é a mesma graça santificante e a mesma caridade; elas devem durar
eternamente.

UMA CONSEQÜÊNCIA IMPORTANTE

Segue-se, desde agora, do que acabamos de dizer, ao menos uma suposição


quanto ao caráter não extraordinário da contemplação infusa dos mistérios da fé e da
união com Deus que resulta disso. Esta suposição se confirmará mais e mais a seguir e
se tornará uma certeza.

A graça santificante e a caridade, que nos unem a Deus em sua vida íntima,
são, com efeito, muito superiores às graças gratis datae e extraordinárias, como a
profecia e o dom das línguas, que são apenas sinais da intervenção divina e que por si
mesmos não nos unem intimamente a Deus. São Paulo o afirma muito claramente3, e
São Tomás o explica muitíssimo bem4.

Ora, é da graça santificante, chamada “graça das virtudes e dos dons” 5,


recebida por todos no batismo, e não das graças gratis datae e extraordinárias, que
procede, nós o veremos, a contemplação infusa, ato da fé infusa, esclarecida pelos dons
da inteligência e da sabedoria. Nisso os teólogos geralmente estão de acordo. Há então,
desde agora, uma séria suposição de que a contemplação infusa e a união com Deus que
daí resulta não são em si extraordinárias, como a profecia ou o dom das línguas; e, se
elas não são em si extraordinárias, serão encontradas na vida normal da santidade.

***

Uma segunda razão é mais palpável ainda e deriva imediatamente do que


acabamos de dizer: a graça santificante, estando por sua própria natureza ordenada para
a vida eterna, é também ordenada de si, de modo normal, à disposição próxima
perfeita para receber logo a luz da glória.

Com efeito, como a graça santificante é, de si, ordenada à vida eterna, ela
também é ordenada a uma disposição próxima para receber a luz da glória logo após a
morte, sem passar pelo purgatório. Porque o purgatório é uma pena que supõe uma
falta que podia ter sido evitada, e uma insatisfação insuficiente, que podia ter sido
completa, se tivéssemos aceitado melhor as penas da vida presente. É certo, com efeito,
que alguém só será retido no purgatório pelas faltas que podia ter evitado ou pela
negligência em repará-las. Normalmente, deveria ter feito seu purgatório nesta
vida, tendo mérito, crescendo no amor, ao invés de fazê-lo depois da morte, sem ter
mérito.

Ora, a disposição próxima para receber a luz da glória logo após a


morte supõe uma verdadeira purificação, análoga à que se encontra nas almas que vão
sair do purgatório, e que têm um desejo ardente da visão beatífica6. Esse desejo ardente
só existe ordinariamente nesta vida na união com Deus que resulta da contemplação
infusa dos mistérios da salvação. Esta parece bem, desde agora, não ser uma graça
extraordinária, mas uma graça eminentemente na via normal da santidade.

A VIDA INTERIOR E A CONVERSA ÍNTIMA COM DEUS

Nostra conversatio in coelis est (Nossa conversação está no céu).


(Fp 3, 20)
A vida interior, dizíamos nós, supõe o estado de graça, que é o germe da vida
da eternidade. Entretanto, o estado de graça, que existe em toda criança após o batismo
e em todo penitente que tenha recebido a absolvição de suas faltas, não basta para
constituir o que se chama habitualmente a vida interior do cristão. É necessário, ainda,
uma luta contra aquilo que nos faria recair no pecado e uma tendência séria da alma
para Deus.

Deste ponto de vista, para fazer compreender o que deve ser a vida interior,
convém compará-la com a conversa íntima que cada um de nós tem consigo mesmo.
Sob a influência da graça, se formos fiéis, essa conversa íntima tende a se elevar, a se
transformar e se tornar uma conversa com Deus. Eis aí uma observação elementar; mas
as verdades mais vitais e mais profundas são as verdades elementares em que se pensou
durante muito tempo, das quais se vive, e que acabam por tornar-se objeto de
contemplação quase contínua.

Consideremos sucessivamente essas duas formas de conversa íntima, uma


humana, e outra cada vez mais divina ou sobrenatural.

A CONVERSA DE CADA UM CONSIGO MESMO

Desde que o homem cesse de se ocupar exteriormente, de falar com seus


semelhantes, desde que se encontre só, mesmo no meio do barulho de uma cidade
grande, ele começa a entreter-se consigo mesmo. Se é jovem, pensa freqüentemente em
seu futuro; se é velho, pensa no passado, e sua experiência feliz ou infeliz da vida fá-lo
habitualmente julgar de maneira muito diferente as pessoas e os acontecimentos.

Se o homem permanece essencialmente egoísta, sua conversa íntima consigo


mesmo é inspirada pela sensualidade ou pelo orgulho; ele se entretém com o objeto de
sua cupidez, de sua inveja, e, como encontra em si mesmo a tristeza, a morte, busca
fugir de si, exteriorizar-se, divertir-se para esquecer o vazio e o nada de sua vida.

Assim, a conversa íntima do egoísta consigo mesmo acaba na morte e não é,


então, uma vida interior. Seu amor de si o leva a querer fazer-se o centro de tudo, a
conduzir tudo a si, as pessoas e as coisas; e, como isso é impossível, ele freqüentemente
chega ao desencanto e ao desgosto; torna-se insuportável para ele mesmo e para os
outros e acaba por se odiar por ter querido amar-se demasiadamente; às vezes acaba por
odiar a vida por ter desejado demasiadamente aquilo que há de inferior nela7.

Apesar de tudo, nas horas de isolamento, a conversa íntima recomeça, como


que para provar ao homem que ela não pode parar. Ele gostaria de interrompê-la, mas
não pode. É o fundo da alma, que tem uma necessidade incoercível, à qual
precisamos dar uma satisfação. Mas, na realidade, somente Deus pode responder a ela, e
precisamos de qualquer modo tomar o caminho que leva a Ele. A alma tem
necessidade de se entreter com outro que não seja ela mesma. Por quê? Porque ela
não é o seu próprio fim último. Porque o seu fim é o Deus vivo, e porque ela só pode
repousar n’Ele. Como diz Sto. Agostinho: “Irrequietum est cor nostrum, Domine, donec
requiescat in te” 8.

***

São Paulo diz (1 Cor 2, 11): “Pois quem dentre os homens conhece as coisas
do homem senão o espírito do homem que nele reside? Assim também as que são
de Deus ninguém as conhece senão o Espírito de Deus.”

Mas o Espírito de Deus manifesta progressivamente às almas de boa vontade o


que Deus deseja delas e o que Ele lhes quer dar. Pudéssemos receber docilmente tudo o
que Deus nos quer dar! O Senhor diz àqueles que o procuram: “Tu não me procurarias,
se já me não tivesse encontrado.”

Essa manifestação progressiva de Deus à alma que o procura não se dá sem


luta; é necessário desembaraçar-se dos laços que são as conseqüências do pecado, e
pouco a pouco desaparece o que São Paulo chama de “homem velho” e se forma “o
homem interior”.

Ele escreve aos Romanos (7, 21): “Encontro, pois, em mim esta lei: quando
quero fazer o bem, apresenta-se em mim o mal. Deleito-me na lei de Deus, segundo o
homem interior. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu
espírito.”

O que São Paulo chama de “homem interior” é o que há de principal e mais


elevado em nós: a razão esclarecida pela fé e a vontade devem dominar a sensibilidade,
comum ao homem e ao animal.

O mesmo São Paulo diz ainda: “Não percamos a coragem; ao contrário, na


própria medida em que o homem exterior vai desaparecendo em nós, o homem interior
se renova dia a dia.” Sua juventude espiritual é constantemente renovada, como a da
águia, pelas graças que recebe todos os dias; assim como o padre que sobe ao altar pode
sempre dizer, ainda que tenha 90 anos: “Introibo ad altare Dei, ad Deum qui laetificat
juventutem meam — Eu venho ao altar de Deus, ao Deus que alegra a minha juventude”
(Sl 13, 4).

***

À luz dessas palavras inspiradas, que lembram tudo o que Jesus, pregando as
Beatitudes, nos prometeu e tudo o que Ele nos deu morrendo por nós, podemos definir
a vida interior:

É uma vida sobrenatural que, por um verdadeiro espírito de abnegação e de


oração, nos fez tender à união com Deus e a ela nos conduz.

Ela implica uma fase em que domina a purificação; outra, de iluminação


progressiva, em vista da união com Deus, como ensina toda a Tradição, que distinguiu
assim a via purificativa dos iniciantes, a via iluminativa dos que progridem e a via
unitiva dos perfeitos.

A vida interior torna-se, assim, cada vez mais uma conversa com Deus, em que
pouco a pouco o homem se desprende do egoísmo, do amor-próprio, da sensualidade,
do orgulho.
Sto. Tomás insistiu muitas vezes neste ponto. Ele o fez particularmente em dois
capítulos importantes da Contra Gentes, 1, c. XXI, XXII, sobre os efeitos e os sinais da
habitação da Santíssima Trindade em nós.

“O mais próprio da amizade parece ser o conversar na companhia do amigo.


Ora, a conversa do homem com Deus consiste em sua contemplação, como já dizia o
Apóstolo (Fp 3, 20): ‘Nossa conversação está no céu’. Logo, como o Espírito Santo nos
fez amar a Deus, conseqüentemente somos constituídos como contempladores de Deus
pelo Espírito Santo. Por isso diz o Apóstolo: ‘Mas todos temos o rosto descoberto,
refletimos, como num espelho, a glória do Senhor, e vemo-nos transformados nesta
mesma imagem, sempre mais resplandecente, pela ação do Espírito do Senhor’.”

Aqueles que meditarem esses capítulos XXI a XXII do I. IV da Contra


Gentes poderão averiguar se, para Sto. Tomás, a contemplação infusa dos mistérios da
fé está ou não na via normal da santidade. São Francisco de Sales observa em algum
lugar que, enquanto o homem, ao crescer, deve bastar-se e depende cada vez menos de
sua mãe, que se lhe torna menos necessária quando ele atinge a idade adulta, e
sobretudo a maturidade plena, o homem interior, ao contrário, toma ao crescer cada dia
maior consciência de sua filiação divina, que o faz filho de Deus, e se torna cada vez
mais criança em face d’Ele, até entrar por assim dizer no seio de Deus; os bem-
aventurados no céu permanecem sempre nesse seio de Deus.

Jesu, spes poenitentibus,


Quam pius es petentibus!
Quam bonus te quoerentibus!
Sed quid invenientibus!

Ó Jesus, esperança dos penitentes,


Quão terno sois para aqueles que vos imploram,
Bom para aqueles que vos procuram,
Mas o que não sois para aqueles que vos encontram!

Nec lingua valet dicere


Nec Littera exprimere,
Expertus potest credere
Quid sit Jesum diligere.

Nem a língua pode dizer


Nem a Escritura exprimir
O que é amar ao Salvador;
Aquele que experimentou, pode crer nisso.

Sejamos daqueles que O procuram, a quem está dito: “Tu não me procurarias
se já não me tivesses encontrado.”

(de "As Três Idades da Vida Interior". Tradução: PERMANÊNCIA. Revista


PERMANÊNCIA, nº 154/155, 1981)
1. 1.Cf. Sto. Tomás, Ia., q. 12, a. 4.
2. 2.Jo, III, 36; V, 24, 39; VI, 40, 47, 55.
3. 3.Cf. I Cor., XII, 28 ss, XIII, 1ss.
4. 4.Ia. IIa, q. 111, a. 5: “Gratia gratum faciens est multo
excellentior quam gratia gratis data”.
5. 5.Cf. Sto. Tomas, IIIa., q. 62, a. 1.
6. 6.Sto. Tomas explica muito bem esse vivo desejo de Deus que têm as
almas do purgatório (nós aí chegaremos falando mais adiante das purificações
passivas). Cf. IV Sent., d. 21, a. 1., ad tertiam. Assim, sofremos muito de fome
quando, privados de alimento por mais de um dia, estaria na ordem radical de
nosso organismo que nos restaurássemos. Está na ordem radical da vida da alma,
da economia da salvação, possuir a Deus logo após a morte. Isso, longe de ser em si
extraordinário, é a vida normal, como acontece na vida dos santos.
7. 7.Cf. Sto. Tomás, IIa IIa., q. 25, a. 7: Utrum peccatores seipsos
diligant. “Mali non recte cognoscentes seipsos, non vere diligunt seipsos; sed
diligunt id quod seipsos esse reputant. Boni autem vere cognoscentes seipsos, vere
seipsos diligunt [...] quantum ad interiorem hominem [...] et delectabiliter ad cor
proprium redeunt [...] E contrario mali non volunt conservari in integritate interioris
hominis, neque appetunt ei spiritualia bona; neque ad hoc operantur; neque
delectabile est eis secum convivere, redeundo ad cor, quia inveniunt ibi mala et
praesentia et praeterita et futura, neque etiam sibi ipsis concordant propter
conscientiam remordentem.”
8. 8.Confissões, I, 1. “Nosso coração vive inquieto, na insatisfação,
enquanto não repousa em Vós.” É a prova da existência de Deus pelo desejo natural
da felicidade, felicidade verdadeira e durável, que só se pode encontrar no Soberano
Bem, ao menos imperfeitamente conhecido e amado acima de tudo, mais do que a
nós mesmos. Desenvolvemos noutro lugar esta prova, cf. La Providence et la
Confiance en Dieu, pp. 50-64.
A Providência Divina e o dever do momento presente

“Omne quadcumque facietis in verbo aut in opere, omnia in nomine Domini


facite”
Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em nome do Senhor” (Cl 3,
17).

Para melhor compreender como devemos viver o dia a dia, com confiança em
Deus, com abandono, é preciso estarmos atentos ao dever do momento presente e à
graça que nos é oferecida para realiza-la. Falaremos primeiramente do dever que se
apresenta a cada minuto, tal como os santos o compreenderam, e esclareceremos depois
a conduta destes santos pelo ensinamento da Escritura e da teologia, ensino que se
dirige a todos nós.

O DEVER DO MOMENTO PRESENTE TAL COMO OS SANTOS O


COMPREENDERAM E A LUZ QUE ELE ENCERRA.

O dever de cada instante, debaixo de aparências muitas vezes insignificantes, é


expressão da vontade de Deus a nosso respeito e a respeito de nossa vida individual. A
Virgem Maria viveu assim na união divina, realizando no dia a dia a vontade de Deus
pelo dever quotidiano de sua vida muito simples que, na aparência, era como a vida de
todas as pessoas de sua condição. Assim viveram todos os santos, fazendo a vontade de
Deus tal como se manifesta a cada hora, sem se deixar desconcertar por contrariedades
imprevistas. O segredo dos santos era o de tornar-se, a cada instante, aquilo que a ação
divina queria fazer deles. Viam tudo o que tinham para fazer e para sofrer, todos os seus
deveres e todas as suas cruzes na vontade de Deus. Estavam persuadidos de que os
acontecimentos do presente são sinais da vontade ou da permissão de Deus, para o bem
daqueles que O procuram. A própria visão do mal, exercitando a sua paciência, lhes
mostrava, por contraste, o que deviam fazer para evitar o pecado e suas funestas
conseqüências. Os santos viam assim na seqüência de acontecimentos, um ensinamento
providencial e acreditavam que ao lado e acima da continuidade de fatos exteriores de
nossa vida, há como que uma seqüência paralela de graças atuais, que nos são
constantemente oferecidas para fazer-nos tirar destes acontecimentos, agradáveis ou
penosos, o melhor proveito espiritual. A continuidade dos acontecimentos, se
soubermos bem considerá-la, contém lições de coisas de Deus, são como que um
prolongamento da revelação ou o Evangelho aplicado, até o fim dos tempos.

Em quase todos os domínios distingue-se o ensinamento teórico e abstrato do


ensinamento aplicado e prático; O mesmo acontece na ordem das coisas espirituais. O
Senhor aí nos dá, a seu modo, esses dois ensinamentos: um no Evangelho, o outro no
curso da vida.

Esta grande verdade vital, é geralmente desprezada. Quando chegam as


contrariedades e revezes, somos todos queixas e murmúrios. Tal doença aparece logo
quando mais tínhamos o que fazer; tal coisa nos falta; tiram-nos os meios necessários,
botam obstáculos intransponíveis ao bem que devíamos realizar, ao apostolado que
devíamos exercer.

Os santos em tais circunstâncias, e mesmo em outras bem mais penosas,


dizem: Fazer cada dia a vontade de Deus é, no fundo, a única coisa necessária. O
Senhor não ordena jamais o impossível, mas há um dever que, a cada momento, ele
torna realmente possível para cada um de nós, para cuja realização ele pede nosso amor
e nossa generosidade.

Se tal acontecimento doloroso é conseqüência de nossas faltas será


uma lição providencial, que devemos receber com humildade para dela tirar proveito.
Se, sem falta de nossa parte, o Senhor permite que sejamos privados de certos bens, é
porque não são verdadeiramente necessários à nossa santificação e à nossa salvação.
Os santos acham que, em certo sentido, nada lhes falta a não ser um maior amor de
Deus. Se soubéssemos o que são os acontecimentos que chamamos obstáculos,
contrariedades, revezes, contratempos, infortúnios, fracassos, lastimaríamos a desordem
que pode existir em tais coisas (e os santos a lastimaram mais do que nós e por causa
dela sofreriam mais do que nós) mas nos repreenderíamos a nós mesmos por nossos
murmúrios, e seríamos mais atentos ao bem superior que Deus busca em tudo o que ele
quer e até em suas permissões divinas1.

A Escritura diz em diversos lugares: O Senhor é quem tira a vida e a dá, leva à
habitação dos mortos e trás de volta2.

Quanto mais a ação divina faz morrer para o pecado e suas conseqüências,
mais separa de tudo o que não é Deus, mais ela vivifica. Alguém disse que a graça é, às
vezes, um carrasco, e no entanto, na obra que perfaz em nós, longe de destruir a
natureza naquilo que ela tem de bom, a aperfeiçoa, a restaura e a eleva. Dela pode-se
dizer o que se diz de Deus: mortifica e vivifica.

Como diz o Padre de Caussade3, explicando essas vias de Providência:


“Quanto mais obscuro é o mistério mais luz contém” pois sua obscuridade vem de uma
luz intensa demais para nossos olhos.

Além disso, o que melhor nos ensina é o que acontece conosco em particular a
cada momento, segundo o que quis ou permitiu a Providência divina. É aí que
encontramos a manifestação da vontade divina que nos diz respeito, para o momento
presente. E é aí que se forma em nós o conhecimento experimental da conduta de Deus
em relação a nós, conhecimento sem o qual não saberemos nos dirigir nas coisas
espirituais, nem fazer aos outros um bem profundo4.

Na ordem das coisas espirituais, sobretudo, só sabemos bem aquilo que a


experiência nos ensina pelo sofrimento ou pela ação. Nosso Senhor, que tinha sua santa
alma, desde o primeiro instante de sua vinda a este mundo, a visão beatífica e a ciência
infusa, quis ter também o conhecimento experimental que se adquire no dia a dia, e que
faz ver as coisas, mesmo as infalivelmente previstas, sob um aspecto especial, dado pelo
contato com o real. Prevemos que um amigo querido, muito doente, vai morrer, mas sua
morte contém, se soubermos abrir os olhos, um ensinamento novo para nós, pelo qual
Deus nos fala de algum modo à medida que o tempo passa. Esta é a escola do Espírito
Santo, estas são suas lições de coisas, que nada tem de livrescas; e elas variam para
cada alma; o que é útil para esta não o será para outra. Sem querer ver,
supersticiosamente, um sentido lógico em puras coincidências sem importância,
escutemos com simplicidade o que a Providência nos diz em particular, nas lições de
coisas que nos dá. É preciso não materializar ou mecanizar esta doutrina; trata-se de um
espírito sobrenatural a ser levado em conta na consideração de todas as coisas, sem
constrangimento, sem tola presunção.

Como diz o autor que acabamos de citar: “A revelação do momento presente é


uma fonte de santidade, sempre a jorrar... Vós que tendes sede, sabei que não é preciso
buscar longe a fonte da água viva: ela jorra perto de vós, no momento presente,
apressai-vos a chegar lá.

Porque tendo a fonte tão próxima, vos fatigais a correr atrás dos riachos?... O
amor desconhecido! Parece que vossas maravilhas se acabaram e que só se pode copiar
vossas obras antigas, citar vossos discursos passados. Não se percebe que vossa ação
inesgotável, é uma fonte infinita de novos pensamentos, de novos sofrimentos, de novas
ações... de novos santos...” O Coração de Jesus é uma “fornalha de graças sempre
novas”.

Os santos de cada época não têm necessidade de copiar a vida nem os escritos
daqueles que os precederam, mas sim de viver em perpétuo abandono aos segredos e
inspirações de Deus; nisto é que imitam todos os que os antecederam, apesar da
diversidade das circunstâncias de cada época e de cada vida individual.

O momento presente, se soubéssemos ver nele a luz divina que contém, nos
lembraria de que tudo pode ser meio, instrumento ou ao menos ocasião de progresso
espiritual no amor de Deus a modo de provação ou de contraste. O momento presente,
segundo a ordem querida pela Providência divina, tem relação com nosso fim último,
com o único necessário: assim, cada instante do tempo que se escoa tem relação com o
instante único da imobilidade eterna.

Se soubéssemos ver, não seria apenas a hora da missa, a hora da oração ou da


visita ao Santíssimo Sacramento que seria santificadora para nós, mas todas as horas do
dia ganhariam seu sentido sobrenatural e nos lembrariam que estamos a caminho da
eternidade. Daí a boa prática de abençoar a hora que começa, ou pedir para ela a benção
divina. Devemos estar, a cada instante, na situação disposta por Deus: não há momento
do dia em que não tenhamos algum dever a cumprir, dever em relação a Deus ou em
relação ao próximo, dever ao menos de paciência, quando a ação exterior não é
possível. A cada minuto devemos santificar o nome de Deus, como se não tivéssemos
outra coisa a esperar no tempo; como se, no instante seguinte, devêssemos entrar na
eternidade.

Assim viveram os verdadeiros cristãos entre aqueles que, durante a última


guerra, estavam expostos aos tiros de artilharia, que recomeçava a intervalos de três
minutos; “Em um instante pode ser a morte” diziam, e viviam o minuto presente em sua
relação com a eternidade.

Assim viveram os santos. Não apenas nas circunstâncias excepcionais mas no


curso normal de suas vidas, não perdiam, por assim dizer, a presença de Deus. Ora, sua
conduta se torna compreensível em razão dos princípios do Evangelho, que se dirigem
tanto a eles como a nós.

O ENSINAMENTO DAS ESCRITURAS E DA TEOLOGIA SOBRE O


DEVER DO MOMENTO PRESENTE.

São Paulo escreveu na I Epístola aos Coríntios, X, 31: “Ou comais ou bebais,
ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus”. — Também em
Colossenses, III, 17: “Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em
nome do Senhor Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai”.

Nosso Senhor disse, como conta São Mateus, XII, 34: “A boca fala da
abundância do coração. O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração;
e o mau tira coisas más do mau tesouro. Ora, eu digo-vos que, de qualquer palavra
ociosa que disseram, os homens darão conta no dia do Juízo”.

Santo Tomás mostra todo o sentido e o alcance desta doutrina quando ensina
(Ia IIae, q. 18, a. 9) que não há ato deliberado que, concretamente considerado, “hic e
nunc”, seja moralmente indiferente; cada um de nossos atos deliberados é ou bom ou
mau. Por quê? Porque todo ato deliberado de um ser inteligente deve ser racional ou
ordenado a um fim bom, bom em si mesmo; e todo ato deliberado de um cristão deve
ser ordenado, ao menos virtualmente, a Deus. Se for assim, será um ato bom; se não for
assim, será um ato mau. Não há meio termo. Mesmo nossas recreações, nossos
divertimentos, nossos passeios devem ter um fim bom em si. É verdade que ir passear,
considerado abstratamente, é indiferente. Também pode ser indiferente ir passear aqui
ou ali, mas o passeio deve ter um fim racional, como por exemplo, o de reparar nossas
forças, para retomarmos depois o trabalho que devemos realizar. Por isso mesmo, os
divertimentos têm um sentido moral e um valor próprio na vida do ser racional.

Como diria de modo simbólico um bom pregador, todos os nossos atos


deliberados são como as gotas de chuva que caem do alto da montanha, na linha
divisória das águas; destas gotas de chuva, algumas irão para um rio e um oceano; as
outras, para outro rio e outro mar, oposto e distante. Assim também nossos atos vão
para o bem, isto é para Deus ou para o mal. Nenhum desses atos, tomados na realidade
concreta da vida, é indiferente.

À primeira vista, esta doutrina parece muito rígida. Mas não é: basta uma
intenção virtual ou implícita, renovada pela manhã no momento da oração, e também
cada vez que o Espírito Santo nos faz elevar nossos corações para Deus.

Esta é, muito pelo contrário, uma doutrina consoladora, pois, segue-se daí,
que na vida do justo, todo ato deliberado é bom e meritório, seja fácil ou difícil,
pequeno ou grande.

Esta doutrina é também santificante se a entendermos bem e a vivemos, pois


nos leva a pensar que o que Deus faz a cada momento é bem feito e cada acontecimento
é um sinal de sua vontade. Assim Jó, privado de tudo, via nessa privação uma vontade
de Deus que o provava para o santificar e em vez de maldizer aquele minuto tão penoso,
bendizia o nome do Senhor. Aprendamos pois a reconhecer, no que acontece a cada
momento, seja uma vontade positiva de Deus, seja uma permissão divina, sempre
ordenada a um bem superior. Assim, aconteça o que acontecer, sempre guardaremos a
paz.

São Francisco de Sales resumiu toda esta doutrina nestas poucas palavras:
“Cada momento que chega até nós encerra em si uma ordem de Deus, e irá mergulhar
na eternidade, permanecendo para sempre aquilo que dele fizemos”.

Este reconhecimento quase constante da vontade divina, discernida do dever do


momento presente, decorre sobretudo do dom da Sabedoria que faz ver em Deus, causa
primeira e fim último, todos os acontecimentos, tanto os penosos quanto os agradáveis.
É por isto que Santo Agostinho diz que a esse dom corresponde a bem-aventurança dos
pacíficos, quer dizer, daqueles que conservam a paz onde os outros se perturbam e que
muitas vezes levam a paz aos mais perturbados: “Beati pacifici, quia filii Dei
vocabuntur”.

(extr. de "La Providence et la Confiance en Dieu", ed. Desclée, Paris, 1932.


Permanência, Set-out. de 79. Trad.: Júlio Fleichman)

1. 1.Como se lê no Livro II dos Reis, 16, 6: “Semei, parente de Saul,


ultraja o profeta David, jogando-lhe pedras e o maldizendo. Um oficial de David
quer matar o insultante. David responde: “Deixe-o amaldiçoar! Pois se o senhor lhe
disse: Amaldiçoa David quem lhe dirá: por que ages assim?... Deixe-o maldizer...
talvez o Senhor olhe para minha aflição e me dê bens pelas maldições desse dia”.
Esta palavra faz pensar naquela de Nosso Senhor quando, durante a Paixão,
recomendando calma a Pedro, se deixa prender pelos homens armados conduzidos
por Judas e cura o soldado Malco que Pedro tinha ferido com sua espada. Quantos
fatos semelhantes a estes, na vida dos santos se realizaram, quando ocasiões
imprevistas se apresentaram.
2. 2.Dt 32, 39; 1 RS 2, 6; Tb 13, 2; Sb 16, 13.
3. 3.O Abandono à Providência, ed. abreviada, 1. II, cap. VII.
4. 4.Assim se explica o bem sobrenatural feito às almas por santos como
o Cura d’Ars, que sem grande cultura teologal, tinha o sentido da conduta de Deus
em relação às almas mais diversas. Era assim que o santo Cura dava no mesmo dia,
sem tempo para refletir, a centenas de pessoas, o conselho certo, imediatamente
aplicável, que lhes era necessário.

A relação entre estudo teológico e vida interior

Costuma-se separar demais o estudo da vida interior, e não se observa o


bastante a belíssima gradação que se encontra no cap. 48 da Regra de São Bento:
“lectio, cogitatio, studium, meditatio, oratio, contemplatio”. Santo Tomás, que recebeu
sua primeira formação dos beneditinos, conservou esta gradação admirável na sua Suma
Teológica, no lugar onde trata da vida contemplativa (IIa. IIae. q. 180, a. 3).

Ora, dessa excessiva separação entre estudo e oração, seguem-se muitos


defeitos: os sacrifícios e as dificuldades que não raro se encontram nos estudos, não são
mais considerados como uma penitência salutar, nem são adequadamente ordenados a
Deus; assim, por vezes sobrevêm fadigas e fastio, sem que delas se tire nenhum fruto
religioso.

Por outro lado, por vezes se encontra no estudo o deleitamento natural, que
poderia ser ordenado a Deus, em espírito de fé viva, mas que não raro permanece
puramente natural, sem qualquer fruto para a alma religiosa.

Santo Tomás fala desses dois desvios na IIa IIae, q. 166, onde trata da virtude
da estudiosidade ou da aplicação aos estudos, que deve ser governada pela caridade,
contra a curiosidade desordenada e contra a preguiça, a fim de que se estude o
que convém, como convém, quando e onde convém e, sobretudo, para que se estude
com o espírito e o fim mais apropriado para melhor conhecer o próprio Deus e para a
salvação das almas.
Mas, para evitar os defeitos acima, opostos um ao outro, é bom lembrar-se
de como nosso estudo intelectual pode ser santificado, considerando, em primeiro lugar,
o que recebe a vida anterior do estudo retamente ordenado; em seguida, e por outro
lado, o que o estudo da Sagrada Teologia pode cada vez mais receber da vida interior.
Na união destas duas atividades de nossa vida, verifica-se o princípio: "Causae ad
invicem sunt causae, sed in diverso genere"; há entre elas uma relação de mútua
causalidade e de prioridade verdadeiramente admirável.

O que a vida interior deve ao estudo

A vida interior, pelo estudo da teologia, é preservada sobretudo de dois graves


defeitos: subjetivismo, na piedade, e particularismo.

O subjetivismo, no que toca a piedade, hoje comumente chamado de


"sentimentalismo", é uma certa afetação de amor, desprovida do verdadeiro e profundo
amor de Deus e das almas. Este defeito provém do fato de prevalecer na oração a
inclinação natural da nossa sensibilidade, conforme a índole de cada um. Prevalece
alguma emoção da sensibilidade que, por vezes, é expressa com algum lirismo, mas que
carece do sólido fundamento da verdade. Hoje, muitos psicólogos incrédulos, como
Bergson, na França, acreditam ainda que o misticismo católico provenha da prevalência
de alguma nobre emoção que nasceria no subconsciente e que, em seguida, se
exprimiria nas idéias e nos juízos dos místicos. Mas permaneceria sempre a dúvida
sobre a verdade real destes juízos que nasceram sob a pressão do subconsciente e do
sentimento.

Ao contrário, nossa vida interior deve estar fundada na verdade divina. Isto, de
certo, já ocorre pela própria fé infusa, fundada na autoridade de Deus que a revela. Mas
o estudo bem ordenado em muito ajuda à bem conhecer em que propriamente consistem
as verdades da fé, independentemente de nossas disposição subjetivas. O estudo ajuda
sobretudo a formar uma reta noção sobre as perfeições de Deus, sobre Sua bondade,
misericórdia, amor, justiça e ainda sobre as virtudes infusas, sobre a verdadeira
humildade, religião e caridade, não permitindo a mistura de emoções não fundadas na
verdade. Por essa razão, Santa Teresa, como a própria afirma em seu Livro da Vida,
capítulo 13, muito recebeu das conferências dos bons teólogos, para que não se
desviasse da senda da verdade nas enormes dificuldades.

Nosso estudo bem orientado liberta nossa vida interior, não apenas do
subjetivismo, mas também do particularismo, que provém do influxo excessivo de
certas idéias, particulares de algum tempo ou região, que após uns trinta anos já se
mostrarão obsoletas. Em tempos passados, prevaleceram certas idéias ou filosofias que
hoje já não agradam; assim ocorre a cada geração; surgem sucessivas opiniões e
admirações que passam com a figura do mundo, enquanto permanece a palavra de Deus,
da qual o justo deve viver.

Assim, o estudo bem ordenado verdadeiramente conserva, na vida interior, a


devida objetividade, sobre todos os desvios da sensibilidade e a universalidade, fundada
naquilo que sempre e por toda a parte a Igreja ensinou. E assim, cada vez mais
percebemos que as verdades mais altas, mais profundas e mais vitais nada mais são que
as verdades elementares do Catolicismo, desde que profundamente examinadas e
tornadas objeto de quotidiana meditação e contemplação. Assim são as verdades
enunciadas no Pai Nosso, assim as da primeira linha do catecismo: "Para que fostes
criado? Para conhecer Deus, amar a Deus, servir a Deus e assim obter a vida eterna".
Assim, igualmente, cada vez mais se mostra a verdade fundamental de todo
Cristianismo: Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho unigênito.

É coisa de máxima importância viver profundamente destas verdades, sem


nenhum desvio do subjetivismo, sentimentalismo ou particularismo de qualquer tempo
ou região. Nisso, também, nossa vida interior tem muito a receber do bom estudo; e este
é o ótimo fruto da penitência que se encontra nas dificuldades do estudo, e fruto muito
mais precioso do que o deleitamento natural, que pode existir no labor intelectual não
suficientemente santificado ou ordenado a Deus. No estudo diligente, governado pela
caridade, verifica-se de modo notável esta proposição comum: se são amargas as raízes
da ciência, seus frutos são mais doces e excelentes. Não se trata aqui da ciência
que incha, mas daquela que, sob o influxo da caridade e da virtude da
estudiosidade, verdadeiramente edifica.

A vida interior, portanto, é pelo estudo preservada de muitos desvios, para que
permaneça objetiva, e verdadeiramente fundada na doutrina que sempre e em toda parte
se transmitiu. Mas há, por outro lado, um influxo da vida interior no estudo da Sacra
Teologia.

O que o estudo da teologia deve à vida interior

Não raro este estudo fica sem vida, quer na parte positiva, quer na especulativa
e abstrata. Muitas vezes falta nele o espírito alto e o influxo das virtudes teologais e dos
dons da inteligência e da sabedoria. Por conseqüência, o saber teológico muitas vezes
não é aquela "ciência saboreada" da qual fala Santo Tomás na primeira questão da
Suma Teológica.

Não raro nossa mente estaciona nas próprias fórmulas dogmáticas, na sua
análise conceitual, nas conclusões deduzidas, e não costuma, por essas
fórmulas, penetrar no mistério da fé, para saboreá-lo espiritualmente e para dele viver.

Convém dizer isto porque muitos santos que não puderam fazer tantos estudos
como nós, penetraram muito mais profundamente nestes mistérios da fé. Assim, São
Francisco de Assis, Santa Catarina de Sena, São Bento-José Labré e muitos outros que
certamente não fizeram de modo abstrato e especulativo a análise conceitual dos
dogmas da Encarnação, da Redenção, da Eucaristia, nem deduziram as conclusões
teológicas que conhecemos e que, no entanto, mais profundamente e com santo realismo
tiraram destes mistérios vida abundante.
Pelas fórmulas, atingiram a própria realidade divina vitalmente nas sombras da
fé. Como diz Santo Tomás (IIa IIae, q. 1, a. 2 ad 2m): "O Ato do que crê não se termina
no enunciável, mas na coisa", no mistério revelado.

Mesmo sem a grande graça da contemplação, muitos ótimos cristãos, pela via
da humildade e da abnegação, penetram, à seu modo, na profundidade destes mistérios.

E se isto se verifica nestes ótimos fiéis, por mais forte razão deve se verificar
nos religiosos e sacerdotes que verdadeiramente compreenderam a grandeza de sua
vocação. A cada dia, os sacerdotes devem celebrar o santo sacrifício com fé mais firme,
esperança mais viva e caridade mais ardente, para que sua comunhão eucarística seja,
quase todo dia, mais substancialmente fervente, e para que sua caridade não apenas se
conserve, mas cresça cada vez mais.

Muito a propósito, diz Santo Tomás no seu Comentário a Epístola aos Hebreus,
X, 25: "O movimento natural, quando mais se aproxima do fim, mais se acelera. É o
contrário do movimento violento (p. ex., uma pedra lançada para o alto). Ora, a graça
nos inclina como uma segunda natureza. Portanto (assim como a velocidade da pedra
que cai é crescente) aqueles que estão na graça, quanto mais se aproximam do fim,
tanto mais devem crescer", pois quanto mais se aproximam de Deus, mais são por Ele
movidos ou atraídos, assim como a pedra que cai é atraída pelo centro da terra.

Assim, se crescesse diariamente nossa vida interior, exerceria uma influência


muito fecunda em nosso estudo, que se tornaria mais vívido a cada dia.

O estudo e a vida de oração, pois, são causa um do outro em bela harmonia.


Qual é o fruto deste influxo mútuo?

Quando um sacerdote tem uma grande e sólida vida interior, sua teologia
sempre se torna mais vívida. E depois que este teólogo tiver descido da fé para estudar
pontos particulares da teologia, desejará retornar à fonte, ou seja, subir da teologia,
estudada em pontos particulares, para o alto cume da fé. O teólogo é como o homem
que nasceu em um monte (Monte Cassino, por exemplo) e depois desceu para o vale
para conhecer com exatidão suas particularidades; por fim, este homem quis retornar
para o seu alto monte para contemplar do alto todo o vale com um só olhar.

Existem homens que amam mais as planícies, outros, com efeito, mais amam
os montes; "mirabilis Deus in altis suis" [Sl 92, 2]

Deste modo, deve o bom teólogo respirar diariamente o ar dos montes e nutrir
a si mesmo do Símbolo dos Apóstolos e, ao final das missas, do Prólogo do Evangelho
de S. João, que é como uma síntese de toda a revelação cristã. Deve igualmente viver
todo dia, de modo mais elevado, do Pai Nosso, das beatitudes evangélicas e de todo o
Sermão da Montanha, que é como uma síntese de toda a ética cristã em sua admirável
elevação.

Quando a alma do sacerdote é, como convém, uma alma de oração, então ela é
inclinada, desde a sua vida interior, a procurar na teologia, ora dogmática, ora
moral, aquilo que é mais vívido e fecundo. Então, com efeito, sob o influxo dos dons da
inteligência e da sabedoria, a fé se torna mais penetrante e saborosa.

Então, na doutrina cristã aparecem as belíssimas meia-luzes, ou harmonias


entre as luzes e as sombras, que, como o claro-escuro na pintura, cativam o intelecto e
são o objeto da contemplação dos santos.
Por exemplo, todas as grandes questões sobre a graça são, pouco a pouco,
reduzidas a estes dois princípios: por um lado, "Deus não manda o impossível, mas ao
mandar, aconselha que faças o que podes e peças o que não podes", como diz S.
Agostinho, citado pelo Concílio Tridentino (Denz. 804) contra os protestantes. Por
outro lado, porém, contra os pelagianos e semipelagianos, "Quem te distingue? E o que
tens que não recebestes." 1 Cor 4, 7, ou, como diz Santo Tomás: Dado que o amor de
Deus é causa da bondade das coisas, nada seria melhor que nada, se não fosse mais
amado por Deus (Ia. q. 20, a. 3).

Estes dois princípios, considerados isoladamente, são claros e certíssimos, mas


sua conciliação íntima é sem dúvida muito obscura, pela elevada obscuridade que
provém da luz excessiva. Para enxergar esta íntima conciliação, seria necessário ver
como se conciliam intimamente, na eminência da Divindade, a infinita Justiça, a infinita
Misericórdia e a suprema Liberdade.

Igualmente, para dar outro exemplo, com o progresso da vida interior, torna-se
cada vez mais evidente a profundidade do tratado sobre a Encarnação redentora e,
sobretudo, os motivos da Encarnação do Filho de Deus, "O qual, por amor de nós, os
homens, e para nossa salvação, desceu dos Céus".

Do mesmo modo, sob o influxo da vida de oração, torna-se mais vívido o


tratado sobre a Eucaristia e, entre as várias opiniões acerca da essência do sacrifício da
Missa, cada vez mais se sobressai a doutrina do Concílio de Trento (Denz. 940): "Uma
única e a mesma é a vítima, e o que agora se oferece por meio do ministério dos
sacerdotes, é o mesmo que então se ofereceu a si mesmo na cruz, sendo unicamente
distinta a maneira de oferecer-se". Cristo mais e mais aparece como o sacerdote
principal, sempre pronto para interceder por nós, especialmente na Missa, cujo valor,
por isso, é infinito. Assim, pouco a pouco se encontram, nos Concílios, as mais
preciosas pedras adamantinas e, igualmente, na Suma Teológica, progressivamente se
manifestam os princípios capitais ou artigos mais altos, que são como as montanhas
mais elevados pelos quais se conhecem toda a cadeia de montanhas.

Se, verdadeiramente, em espírito de fé, oração e penitência, nossa mente se


dedicasse ao estudo da teologia, então a nós se aplicariam estas palavras de Santo
Tomás (IIa IIae 188, 6): "A doutrina e a pregação devem ser derivadas da plenitude da
contemplação", até certo ponto, como a pregação dos Apóstolos depois de Pentecostes.

A Teologia, assim compreendida, é de grande importância para o ministério


das almas. Ela própria forma profundamente o espírito para julgar sabiamente,
conforme a mente de Cristo e da Igreja; para exortar as almas à perfeição segundo
princípios verdadeiros, p. ex., para mostrar que, a par do preceito supremo: "Ama teu
Deus de todo o teu coração..." todos cristãos devem tender à perfeição da caridade, cada
qual conforme a medida de sua condição.

E não podemos chegar a esta plena perfeição da vida cristã sem vivermos
profundamente dos mistérios da Encarnação redentora e da Eucaristia, sem penetrar
neles e sem os saborear pela fé ilustrada pelos dons de inteligência e sabedoria. Para
isto, é de grande ajuda, com efeito, o estudo da teologia, desde que retamente ordenada,
não à nossa satisfação, mas ao maior conhecimento de Deus e à salvação das almas.

Assim, mais e mais poderão se verificar em nós aquelas belas palavras do


Concílio Vaticano (Denz. 1796), que encerram como que uma definição da Sacra
Teologia: "A razão ilustrada pela fé, quando busca cuidadosa, pia e sobriamente,
alcança, por dom de Deus, alguma inteligência, e muito frutuosa, dos mistérios, ora por
analogia do que naturalmente conhece, ora pela conexão dos mistérios mesmos entre si
e com o fim último do homem... ".
O estudo da sagrada teologia, por vezes difícil, árduo, mas frutuoso, a tal ponto
dispõe nossas mentes à luz da contemplação e da vida, que é como que uma introdução
e um certo começo da vida eterna.

(Extr. de "De Deo Uno", Desclée de Brouwer et Cie, Paris pp. 30-34.
Tradução: PERMANÊNCIA)

A Santíssima Trindade e o dom de si

Invocamos a Santíssima Trindade cada vez que fazemos o sinal da cruz, que
dizemos o Glória, o Credo. Estas são as primeiras palavras religiosas que são
pronunciadas sobre nós ao batismo, estas serão as derradeiras que nos prepararão para
passar à vida eterna.

Todavia, o dia da festa da Santíssima Trindade, instiga-nos a perguntar: porque


este mistério de um só Deus em três pessoas, que parece-nos tão abstrato e enigmático,
é o mais amado pelos contemplativos?

Santo Agostinho e Santo Tomás respondem-nos: é por este ser o mistério


supremo, que nos manifesta a vida intima de Deus em sua infinita fecundidade; é o
objeto primordial da visão do céu, e se ele nos fosse plenamente desvendado, todos os
demais mistérios, a Encarnação redentora, a Missão do Espírito Santo e a vida da Graça,
seriam iluminados do alto e vistos em plena luz. Eles são, com efeito, irradiações da
Verdade suprema e da Vida íntima de Deus três vezes santo.

I. A fecundidade infinita da Vida Divina.

Este mistério manifesta-nos primeiramente a fecundidade ilimitada de Deus


Pai, que comunica a seu Filho a natureza divina e, por seu Filho, ao Espírito Santo. É
o dom de Si, o mais perfeito que se possa conceber e a comunhão mais íntima. Ora,
temos tanta necessidade de aprender este generoso dom de Si mesmo, sobretudo nas
circunstancias dolorosas em que nos encontramos, na qual não encontramos o equilíbrio
e a paz senão doando o que podemos: a verdade que liberta do erro e a bondade de
coração que alivia os sofrimentos físicos ajudando-nos a sair da escravidão do pecado.

Se soubéssemos abrir os olhos, tudo nos convidaria ao dom de nós mesmos; na


natureza, o sol dá seu calor e sua luz, a planta adulta dá a vida a uma outra, o animal a
transmite aos seus filhotes e provê a sua subsistência; o artista que entreviu a beleza,
quer exprimi-la; o pensador, que descobriu a verdade, quer divulgá-la; o apóstolo, que
possui a santa paixão do bem, quer fazê-la nascer nos outros.

Em todos os graus da escala dos seres, vemos que o bem é por si


difusivo, bonum est essentialiter diffusivum sui, diziam os antigos. E quanto mais
elevada a sua ordem, mais se dá abundante e intimamente. Ele atrai para si, fortifica,
enriquece, repousa.

Deus, que é o Soberano Bem, deve portanto ser soberanamente difusivo de Si,
pois a bondade é essencialmente comunicativa.

Ele, que é o princípio eminente de todas as coisas, o centro de onde sai a vida
da criação, contenta-se em dar o ser à pedra, a vida vegetativa à planta, a sensitiva ao
animal, a inteligência ao homem? Contenta-se em dar e conservar aos justos a graça,
participação de sua vida íntima?

Por que Deus não poderia comunicar além de uma participação de sua vida
íntima, toda a sua vida, toda a sua natureza infinita? Por que isto seria impossível, se o
bem é essencialmente comunicativo, e tanto mais abundante e intimamente quanto seja
de ordem mais elevada? Quem pode indicar um limite para a difusão que o Soberano
Bem pode fazer de Si mesmo?

Nossa razão e mesmo a inteligência natural do anjo mais excelso, deixadas a si,
não poderiam responder com certeza a esta questão. Não poderiam provar a
possibilidade da Trindade, menos ainda sua existência. Este mistério ultrapassa a esfera
do demonstrável ou o alcance dos princípios de nossa razão.
Mas, a Revelação divina, já no Antigo Testamento, nos fez conhecer que Deus
é Pai e que Ele diz, no instante único da imóvel eternidade: Filius meus es tu. Ego hodie
genui te. Tu es Meu filho, hoje Te engendrei 1. O prólogo de São João nos diz: No inicio
era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus 2. Ninguém jamais viu a
Deus, mas o Filho unigênito que está no seio do Pai é quem no-lo revelou 3. O próprio
Filho prometeu-nos o Espírito Santo, no-lo enviou em Pentecostes, e fomos batizados
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

A Revelação divina fez-nos conhecer assim a infinita fecundidade da vida


divina através do mistério da geração eterna do Verbo, Filho de Deus, e pelo mistério da
processão do Espírito Santo.

Esta fecundidade ilimitada, nós a veremos um dia a descoberto, e podemos


entrevê-la na penumbra da fé, em nós, recordando, com Santo Agostinho, que nossa
alma conhece a verdade e se doa por amor repousando-se no bem verdadeiro. Se
purificamos de toda imperfeição esta “concepção da verdade” e este “élan do amor”,
suspeitamos de longe alguma coisa do mistério supremo.

Na indigência de nossa vida intelectual, concebemos lentamente nossas idéias


que permanecem sempre muito imperfeitas, e que são múltiplas porque cada uma delas
permanece mui limitada. A linguagem humana não carece, entretanto, de profundidade,
se falamos de concepção intelectual. A concepção é a geração inicial; mas, em nosso
espírito, a concepção intelectual carece de vigor e de fecundidade; ela não chega a ser
uma verdadeira geração. Por que? Porque cada um de nossos pensamentos sucessivos
não é senão um acidente, e acidente fugidio, uma modalidade de nosso espírito; é
preciso dizer o mesmo de nossas idéias: não são pessoas vivas como o sujeito pensante.
É por isso que estamos sós com nossas idéias, não podemos entretermo-nos com elas;
devemos, então, buscar contato com outras inteligências humanas, das quais, às vezes,
muitas incompreensões nos separam.

Em Deus, ao contrário, o ato do pensamento não poderia ser um acidente, uma


modalidade de seu Ser espiritual e infinito. Deus é o Pensamento sempre em ato, sempre
subsistente, como um clarão de gênio genial eternamente subsistente. E se, como diz a
Revelação, ele concebe um Verbo interior, o concebe não por indigência mas por
superabundância. E este Verbo interior não é tampouco um acidente, uma simples
modalidade do espírito de Deus, mas é substancial, vivo, inteligente, como o espírito
que o engendra. Aqui a concepção intelectual chega verdadeiramente a uma geração
intelectual, que é inteiramente perfeita no instante único da imóvel eternidade. Esta
geração eterna dá ao Verbo ser Luz de Luz, Deus de Deus, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro 4. Ele é o esplendor da glória do Pai e a figura de sua substância, como é
dito na Epistola aos Hebreus 5.

Este Verbo eterno, precisamente porque é soberanamente perfeito, porque


exprime adequadamente, tão luminosamente quanto possível, a natureza divina,
é único. É a imagem viva do Pai, é uma Pessoa como o Pai que lhe comunica toda a
vida divina, guardando para Si apenas sua relação de Paternidade. O Verbo é mesmo tão
perfeito, que em Deus não é mais perfeito engendrar do que ser engendrado; o ser do
Filho não é causado, mas comunicado, é o mesmo ser do Pai que Ele, o Filho, recebe
em Sua plenitude infinita. Assim, segundo uma analogia muito distante, a do triangulo
eqüilátero, o segundo ângulo construído não é menos perfeito que o primeiro, que lhe
comunica toda a sua superfície, sem se comunicar ele mesmo.

Por pobre que seja em nós a concepção intelectual, ela nos permite, porém,
entrever de longe, à luz da Revelação, a geração intelectual que está em Deus.

***

Porém, como nossa alma, após ter conhecido a verdade, doa-se através de um
élan do amor que tende a repousar no bem verdadeiro, assim o Pai e o Filho, por seu
mútuo amor, são o princípio do Espírito Santo, a quem comunicam toda a natureza
divina, sem a dividir, nem multiplicá-la, tão perfeitamente que não é mais perfeito ser o
princípio desta processão ou seu termo. Assim, ainda no caso do triângulo eqüilátero, o
terceiro ângulo, que procede dos dois primeiros, recebe toda sua superfície e é-lhes
perfeitamente igual.

A amizade inefável das duas primeiras pessoas tem pois um termo, assim como
o pensamento do Pai possui um termo. Este termo do amor é substancial, assim como o
Verbo, termo da concepção; ele é vivo, inteligente e amante como o Verbo, e como ele
é uma Pessoa, espírito das duas primeiras, seu vínculo, o Espírito Santo: como o Pai
pode entreter-se com Seu Verbo, ambos podem se entreterem com o Espírito de amor.
Eis a fecundidade infinita da vida de Deus desde toda eternidade antes da criação. É a
mais absoluta difusão de Si; e, como o dom do Pai a seu Filho é soberanamente perfeito,
o Filho é tão perfeito quanto o Pai e, pela mesma razão, o Espírito Santo lhes é igual 6.

II. A comunhão das Pessoas Divinas.

Esta soberana difusão é o princípio da mais íntima comunhão, exemplar


eminente da comunhão eucarística e mais ainda da união das duas naturezas em Jesus
Cristo.

Esta comunhão é a mais estreita união de pensamento e de amor que se possa


conceber. Três pessoas vivendo da mesma verdade infinita, não por três atos de
pensamento, mas por um só e mesmo ato de pensamento, enquanto tantas
incompreensões nos separam freqüentemente uns dos outros, porque cada um não vai ao
máximo si mesmo. Três pessoas plenamente abertas, cada uma às outras, e não se
opondo senão por suas relações mútuas, relações estas que ao mesmo tempo as une.

E, então, enquanto que tão freqüentemente se opõe o egoísmo à perfeita união


das almas aqui embaixo, em Deus são três pessoas, que vivem do mesmo Bem supremo
e infinito por um só e mesmo ato de amor, sem o menor interesse para Si. O Pai dá a seu
Filho toda a sua natureza, o Pai e o Filho comunicam-na ao Espírito Santo. O Pai não se
distingue de Seu filho senão por sua relação de paternidade, o Filho não se distingue do
Pai senão por sua relação de filiação, e isto mesmo que os distingue, os une
relacionando-os uns aos outros.

O Espírito Santo não se distingue das duas primeiras pessoas, a não ser porque
procede delas. Fora destas oposições de relações mútuas, tudo lhes é comum e
indivisível. Esta é a mais íntima comunhão: a consubstancialidade, que acarreta a
unidade de pensamento e de amor.
Temos disso um vestígio longínquo, porém ainda real, no símbolo do triangulo
eqüilátero que não é suficientemente conhecido. Os três ângulos, embora possuindo a
mesma superfície, são realmente distintos uns dos outros; eles são iguais; são
essencialmente relativos uns aos outros e qualquer um dos três é tão grande quanto os
três reunidos. Entre eles há uma ordem de origem, mas não prioridade de causalidade;
do primeiro traçado procedem os outros sem que sejam causados por ele; ele
lhes comunica sua própria superfície já existente, e eles não são em nada menos
perfeitos que aquele.

III. Este Mistério supremo esclarece do Alto todos os demais.

Se víssemos a descoberto a Santíssima Trindade, todos os demais mistérios


apareceriam em plena luz. Veríamos a pessoa do Verbo feito carne que possui
intimamente a alma e o corpo que ele tomou para nos salvar; ela os possui na unidade
de um só e mesmo ser, de um só e mesmo eu que é, sem confusão das duas naturezas,
verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem.

Veríamos derivar da pessoa do Verbo a plenitude da graça criada, que faz do


Cristo a cabeça da Igreja, a plenitude de luz, de glória, que lhe dá o mais alto grau de
visão beatifica, a plenitude de caridade que se exprimiu no valor infinito de seus atos
teândricos meritórios e satisfatórios e que se expande ainda por sua intercessão sempre
atual e na distribuição de todas as graças que nos são concedidas.

Se contemplássemos a descoberto a Santíssima Trindade, veríamos a união


admirável das duas naturezas em Cristo, união substancial, hipostática, principio da
união de suas duas inteligências e suas duas vontades, pois sua inteligência divina e sua
inteligência humana se vêem uma à outra da maneira mais imediata e porque sua
vontade divina e sua vontade humana estreitam-se na mais perfeita e indissolúvel
conformidade.

Se víssemos o mistério supremo desvendado, veríamos em conseqüência qual é


a missão invisível do Espírito Santo nas almas dos justos, como Ele os santifica e qual o
valor das inspirações que lhes concede por seus sete dons, para conduzi-los segura e
prontamente para a vida do céu.

O mistério da graça esclarecer-se-ia do mesmo modo. Nossa filiação adotiva


nos apareceria como uma similitude da filiação eterna do Verbo. Veríamos então o
sentido pleno e todo o alcance da palavra de São Paulo: Deus (nos) predestinou a ser
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que seu Filho seja o primogênito de um
grande número de irmãos 7. Deus Pai tem um Filho único, a quem comunicou toda sua
a natureza, para que ele seja “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, e quis ter filhos
adotivos, aos quais deu uma participação de sua natureza: a graça santificante, gérmen
que se desenvolverá um dia em vida eterna, em visão imediata da essência divina e
numa caridade que nada poderá mais fazer-nos perder, nem diminuir no que quer que
seja.

Então, em cada alma bem-aventurada, Deus Pai continuará no instante único da


imóvel eternidade, a engendrar seu Verbo e com Ele fazer proceder o Amor pessoal,
“esta torrente de chamas espirituais” diz Bossuet, que os une na mais íntima
comunhão 8.

Quanto mais nossa alma cresce na vida divina da graça, mais ela é
uma imagem viva da Santíssima Trindade. No começo de nossa existência, o egoísmo
faz que nós pensemos sobretudo em nós mesmos e que nos amemos referindo tudo a
nós; porém, se somos dóceis às inspirações do Alto, virá um dia em que pensaremos
sobretudo, não em nós mesmos mas em Deus e em que, a propósito de todas as coisas
agradáveis ou desagradáveis, nós o amaremos mais que a nós e desejaremos levar
constantemente as almas para Ele.

Finalmente nossa inteligência é convidada a repousar, como a de Deus, em Seu


Verbo eterno, e nossa vontade no Amor pessoal que não cessa de atrair-nos a Ele, em
meio às vicissitudes do exílio.

Mas para tal é necessário retornar sempre ao dom de Si do qual falávamos no


começo. Por ele a alma se supera. A alma do viator, do viajante para a eternidade, não
encontra seu equilíbrio e paz senão avançando, quer dizer, subindo em direção a Deus.
Estando em viagem para Ele, não podemos ficar estacionados; se a vida da alma não
ascende, ela descende; esta é uma lei para ela ascender como uma chama viva, até que
ela regresse ao seu princípio, até que retorne “ao seio do Pai” de onde ela veio. A
alegria de ser filho de Deus faz assim pressentir aquela que teremos ao vermos a
descoberto o mistério supremo, nesse instante que não passará mais, o da eternidade.

Roma, Angélico.

(Artigo publicado em La Vie Spirituelen° 265, maio de 1942. Tradução:


PERMANÊNCIA)
1. 1.Sl 2, 7.
2. 2.Jo 1, 2.
3. 3.Jo 1, 18.
4. 4.Professio fidei Tridentina.
5. 5.Heb 1, 3.
6. 6.Cf. S. Tomás, Iª. q 42, a. 6.
7. 7.Rm 8, 29.
8. 8.Não se deve confundir em Deus o Amor pessoal, que é o próprio
Espírito Santo, com o amor essencial comum entre às três pessoas, nem com o amor
nocional ou spirador que pertence somente ao Pai e ao filho. Esta confusão, feita
muitas vezes por inadvertência, terminaria por negar em Deus a existência da
terceira pessoa.

A Santíssima Trindade em nós

Santo Tomás, no final de seu tratado sobre a Santíssima Trindade, fala-nos das
missões divinas e da habitação das três Pessoas Divinas em toda alma justa. Ele dá-nos
uma certa inteligência deste mistério recordando-nos que Deus está sempre presente em
todas as coisas, especificando de qual maneira especial está realmente nos justos e quais
são os efeitos de Sua ação neles.

Presença geral de Deus em todas as criaturas.


Deus está, em primeiro lugar, presente em todas as coisas como causa
conservadora por um contato, não quantitativo mas virtual; semelhante, não ao contato
de nossa mão e do papel onde ela escreve, mas ao contato da nossa vontade e da mão
que ela move. É o contato dinâmico da Onipotência e o efeito imediato produzido por
Ela. A conservação da criatura na existência é, de fato, a seqüência do ato criador. Ora,
Deus criou sem intermediário, sem nenhum instrumento, a matéria, sujeito primeiro de
toda mudança corpórea, e produziu igualmente ex nihilo, do nada, as almas espirituais e
imortais e os espíritos puros finitos. Ele conserva, portanto, imediatamente, a matéria, as
almas, os anjos; portanto, existe um contato dinâmico da Onipotência (que não é
realmente distinta da natureza divina) com nosso ser natural. É a presença geral de Deus
em todas as coisas, dita presença de imensidade, aquela de que fala São Paulo quando
diz: O Deus que fez o mundo, sendo o Senhor do céu e da terra... não está distante de
cada um de nós, pois é Nele que temos a vida, o movimento e o ser. (At 17, 28) Deus é
como o lago donde emana a vida da criação; Ele é a força central que atrai tudo a ela,
como o diz a liturgia: “Rerum Deus tenax vigor, immotus in te permanens”.

Presença especial de Deus nos justos segundo a Escritura.

A Santa Escritura não nos fala somente desta presença geral de Deus em todas
as coisas, mas também duma presença especial de Deus nos justos. É dito no Antigo
Testamento, no livro da Sabedoria I, 4: A sabedoria divina não entrará numa alma
maligna, não habitará num corpo sujeito ao pecado. Seria somente a graça criada ou o
dom criado da sabedoria, que viria habitar na alma do justo?

As palavras de Nosso Senhor nos trazem uma nova luz e nos mostram que são
as próprias pessoas divinas que vêm habitar em nós: Se alguém me ama, diz, ele
observará minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele Nossa
morada (Jo 14, 23). Ao mesmo tempo Nosso Senhor promete enviar-nos o Espírito
Santo (Ibid., 26). Segundo estas palavras, quem virá? Seriam somente os efeitos criados,
a graça santificante, a caridade espalhada nos nossos corações? Não. Estes que vêm são
Aqueles que amam: Meu Pai e eu viremos a ele, e não duma maneira transitória,
mas faremos nele Nossa morada. Rogarei a meu Pai e ele vos dará um outro
consolador, para que habite em vós para sempre, o Espírito da verdade... que vos
ensinará todas as coisas e vos lembrará tudo o que eu vos disse. (Ibid., 16-26) Estas
palavras não são ditas somente aos apóstolos — eles verificaram-nas em si, no dia de
Pentecostes, que é renovado em nós pela Confirmação.

Este testemunho do Salvador é claro, explicitando bastante o que diz o livro da


Sabedoria. São realmente as três Pessoas Divinas que vêm habitar de maneira
permanente nas almas justas.

Deste modo o compreenderam os apóstolos. São João escreve (1 Jo 4, 9-


16): Deus é caridade... e aquele que está na caridade permanece em Deus, e Deus
nele. Ele possui Deus em seu coração, mas, mais ainda, Deus o possui e o guarda nele,
conservando, não somente a existência natural, mas a vida da graça e a caridade.

São Paulo diz o mesmo (Rm 5, 5). Enquanto a alma permanecer em estado de
graça, enquanto conservar a caridade, ela será o templo do Espírito Santo.

Em várias ocasiões, São Paulo volta a esta doutrina consoladora: Não sabeis
vós que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus em vós habita? (1 Cor 3, 16; 6,
19). Esta presença especial das três Pessoas Divinas é especialmente apropriada ao
Espírito Santo, porque ela depende da caridade — a qual nos assimila a Ele mais que ao
Pai e ao Filho, pois que Ele é o amor pessoal. Elas estão também em nós, segundo o
testemunho de Jesus, mas nós não lhes seremos perfeitamente assimilados senão
recebendo a luz da glória, que nos fará marcados pela semelhança do Verbo, que é o
esplendor do Pai. De modo equivalente fala Leão XIII em sua encíclica sobre o Espírito
Santo: “Divinum illud munus” de 9 de maio de 1897.
A Escritura ensina portanto mui explicitamente que as três Pessoas Divinas
habitam em toda alma justa, em toda alma em estado de graça. A tradição, pela voz dos
primeiros mártires, pela voz dos Padres, pelo ensino oficial da Igreja mostra, por outro
lado, que é deste modo que é preciso compreender o que diz a Escritura. 1

Qual união resulta desta habitação?

Os teólogos comumente ensinam que esta união do justo às Pessoas Divinas


difere imensamente da união hipostática da humanidade de Jesus ao Verbo; a coisa é
manifesta, pois a união hipostática é a união da natureza divina e da natureza humana
numa só e mesma pessoa, aquela do Verbo.

Ao contrário, o justo tem com Deus uma união não-substâncial, mas acidental e
moral. Em outros termos, é uma união pelo conhecimento e o amor. Contudo, esta união
é real, pois as Pessoas Divinas estão presentes no justo não só por um efeito de sua
operação, como o sol está presente sobre a terra pela luz e pelo calor que lhe envia; as
próprias Pessoas Divinas estão realmente e substancialmente presentes na alma justa
(sem lhe estar substancialmente unida como o Verbo à humanidade de Jesus). Os
teólogos normalmente dizem: “solus Deus illabitus animae”, Deus está realmente
presente na alma justa, mais intima que ela mesma, como o princípio íntimo de sua vida
interior.

Os teólogos também concordam geralmente em admitir que, como já dissemos,


a habitação das três Pessoas Divinas é própria ao Espírito Santo, pois que depende da
caridade, a qual nos assimila mais ao Espírito Santo, amor pessoal, do que a fé
esclarecida pelos dons nos assimila ao Verbo e por Ele ao Pai. A perfeita assimilação ao
Verbo e ao Pai far-se-á quando nós recebermos a luz da glória2.
Enfim, geralmente se ensina que o Espírito Santo santifica a alma justa, não
como causa formal, mas como causa eficiente e exemplar.

Eis porque não devemos dizer que o Espírito Santo é, propriamente falando, “a
alma de nossa alma, a vida de nossa vida”, mas que é, por assim dizer, “como a alma de
nossa alma, como a vida de nossa vida”. Ele não é, de fato, o constitutivo formal dela,
mas, com o Pai e o Filho, é causa eficiente de nossa santificação, pois produz, conserva
e aumenta em nós a graça santificante e a caridade. Além disso, é a causa exemplar
dela, pois a caridade criada é uma similitude participada da caridade incriada3. Também
é o seu fim último atraindo a si soberanamente, está em nós, junto com o Pai e o Filho,
como um objeto quase experimentalmente conhecível e às vezes efetivamente
conhecido, e amado acima de tudo.

Quais são as conseqüências práticas da habitação da Santíssima Trindade em


nós?

Uma vez que o Espírito Santo habita em nós e nos concede, com a caridade, os
sete dons, que estão em nós como em um barco com velas dóceis à impulsão do vento
favorável, devemos ter uma grande docilidade com relação ao Espírito Santo. Isto supõe
primeiramente o silencio em nossa alma, para que as inspirações divinas, ainda latentes,
não passem desapercebidas; é preciso silenciar as paixões mais ou menos desregradas,
as de afeições naturais, da ambição; silencio que supõe a mortificação de tudo o que há
em nós de desordenado.

A docilidade ao Espírito Santo supõe também o discernimento para distinguir


as inspirações divinas daquelas que não são boas senão aparentemente. As que vêm do
Espírito Santo nos lembram quase sempre um dever; em outras oportunidades, contêm
um conselho manifestamente conforme a nossa vocação, e ai, então, é seguro que
convém grandemente segui-los. E então as inspirações se tornam cada vez mais
numerosas e prementes. Quem pode dizer o valor de uma só inspiração verdadeiramente
conforme à nossa vocação? Não segui-la expõe-nos a vegetar durante anos, segui-la
orienta-nos docilmente à santidade.

Praticamente, não se deve ir nem muito lentamente, por falta de generosidade,


nem muito rápido, por presunção.

Muitos vão muito lentamente e tornam-se almas atrasadas; não são mais
iniciantes, e tampouco progridem. Estas almas são, na vida espiritual, como crianças
anormais que não cresceram, e que se tornam um tanto disformes, como anões.

Como uma alma torna-se atrasada? Isso ocorre-lhe sobretudo pela negligencia
às pequenas coisas na pratica das virtudes e da piedade. Cessamos de ver o lado
grandioso das pequenas coisas no serviço de Deus e nos dispomos assim a ver só os
pequenos aspectos das grandes coisas, como a missa, a palavra de Deus, a teologia, o
ministério apostólico; dispomo-nos a enxergar somente o que é exterior. A capacidade
de julgamento decai com a vida. As pequenas coisas do serviço de Deus são pequenas
em si mesmas, mas grandes pelo fim ao qual são ordenadas e pelo espírito de fé e de
amor com o qual seria preciso cumprir-las; seriam então observadas espontaneamente,
sem precisar refletir sobre elas, como o pianista que toca bem cada nota de seu piano.
Estas pequenas coisas são a oração antes e depois do estudo, antes e depois das
refeições, a prática atenta até aos detalhes das virtudes da humildade, da paciência, da
doçura, da polidez. Em si é pouca coisa, como os cílios ou sobrancelhas de uma
fisionomia humana, que, entretanto, sem eles estaria desfigurada. Como diz Santo
Agostinho: “Minimum quidem minimum est, sed semper servare legem Dei etiam in
minimis, hoc quidem maximum est”. Aquele que é fiel nas pequenas coisas dispõe-se a
ser fiel nas grandes quando estas lhe são pedidas: Qui fidelis est in mínimo, et in majori
fidelis est. (Lc 16, 10). Assim mantém-se uma união não só habitual, mas atual com
Deus, duma maneira quase continua e, por aí, fiel à graça do momento presente e às
inspirações que ela contém.

Uma alma torna-se atrasada também pela recusa dos sacrifícios exigidos para
romper com uma afeição demasiado sensível, com o gosto de confortos, com uma certa
tendência à vaidade, ou à dominação. Tornamo-nos atrasados recusando seguir a
inspiração que nos levaria a ser mais esforçados, mais generosos no serviço de Deus,
mais atentos às necessidades da alma do próximo. Então, a vida decai cada vez mais, e o
julgamento com a vida, pois cada um julga segundo sua inclinação. É deste modo que
até mesmo almas consagradas podem se transformar em almas atrasadas; e então os
efeitos usuais da habitação da Santíssima Trindade nelas produzem-se cada vez menos.

***

É evidente que é preciso reagir, evitando a todo custo o defeito contrario que é
o da precipitação, pois então a reação seria totalmente superficial e de curta duração.
Evitemos a precipitação da criança que quer correr no começo de uma ascensão, e que,
fatigada ao final de dois quilômetros, renuncia à escalada. É necessário, como dissemos,
caminhar ao passo pequeno e resoluto do montanhês, que não se detém senão no cume.

Não se deve querer voar antes de ter asas, e não confundir o primeiro momento
de entusiasmo com o firme propósito de avançar custe o que custar. Nem confundir a
ordem da intenção, onde o fim entrevisto e desejado é o primeiro, com a ordem da
execução, onde o fim só é obtido e conquistado em último lugar, depois de se ter
empregado todos os meios, desde os menores até os mais elevados. Precisamos evitar o
sentimentalismo que está na sensibilidade, a afetação de um amor que não se tem, ou
não o bastante, na vontade. É preciso dar-se conta, com um realismo são, que existe
desde há muito tempo, tempo demais, no fundo de nossa vontade, como diz Tauler, uma
misteriosa luta, algumas vezes trágica, entre a caridade que tende a se enraizar e o
egoísmo que tende a renascer sempre como erva-daninha.
Veremos então se realizar pouco a pouco as conseqüências normais da
habitação da Santíssima Trindade em nós, aquelas notadas por Santo Tomás: (Suma
Contra Gentios. 1, IV, c. 21 e 22). Receberemos graças sempre novas de luz, de atração,
de amor, de generosidade, de força e de paciência; possuiremos cada vez mais a
presença de Deus, entreter-nos-emos constantemente com Ele, como Santo Domingos
que não sabia falar senão com Deus ou sobre Deus; encontraremos nesta conversação
íntima a paz, às vezes o júbilo, com o desejo de uma conformidade cada vez maior com
a vontade divina, e nesta conformidade desejada encontraremos a santa liberdade dos
filhos de Deus, porque a vontade divina reinará cada vez mais na nossa vontade, na
medida em que a caridade se enraizar mais profundamente nela. Compreenderemos,
então, cada vez melhor, que nossa vontade é de uma profundidade sem medida, já que
só Deus, visto face a face, pode saciá-la e atraí-la irresistivelmente.

Roma, Angélico.

(La Vie Spirituelle n° 288, junho de 1944. Tradução: PERMANÊNCIA)

A Santíssima Trindade em nós

Santo Tomás, no final de seu tratado sobre a Santíssima Trindade, fala-nos das
missões divinas e da habitação das três Pessoas Divinas em toda alma justa. Ele dá-nos
uma certa inteligência deste mistério recordando-nos que Deus está sempre presente em
todas as coisas, especificando de qual maneira especial está realmente nos justos e quais
são os efeitos de Sua ação neles.

Presença geral de Deus em todas as criaturas.

Deus está, em primeiro lugar, presente em todas as coisas como causa


conservadora por um contato, não quantitativo mas virtual; semelhante, não ao contato
de nossa mão e do papel onde ela escreve, mas ao contato da nossa vontade e da mão
que ela move. É o contato dinâmico da Onipotência e o efeito imediato produzido por
Ela. A conservação da criatura na existência é, de fato, a seqüência do ato criador. Ora,
Deus criou sem intermediário, sem nenhum instrumento, a matéria, sujeito primeiro de
toda mudança corpórea, e produziu igualmente ex nihilo, do nada, as almas espirituais e
imortais e os espíritos puros finitos. Ele conserva, portanto, imediatamente, a matéria, as
almas, os anjos; portanto, existe um contato dinâmico da Onipotência (que não é
realmente distinta da natureza divina) com nosso ser natural. É a presença geral de Deus
em todas as coisas, dita presença de imensidade, aquela de que fala São Paulo quando
diz: O Deus que fez o mundo, sendo o Senhor do céu e da terra... não está distante de
cada um de nós, pois é Nele que temos a vida, o movimento e o ser. (At 17, 28) Deus é
como o lago donde emana a vida da criação; Ele é a força central que atrai tudo a ela,
como o diz a liturgia: “Rerum Deus tenax vigor, immotus in te permanens”.

Presença especial de Deus nos justos segundo a Escritura.

A Santa Escritura não nos fala somente desta presença geral de Deus em todas
as coisas, mas também duma presença especial de Deus nos justos. É dito no Antigo
Testamento, no livro da Sabedoria I, 4: A sabedoria divina não entrará numa alma
maligna, não habitará num corpo sujeito ao pecado. Seria somente a graça criada ou o
dom criado da sabedoria, que viria habitar na alma do justo?
As palavras de Nosso Senhor nos trazem uma nova luz e nos mostram que são
as próprias pessoas divinas que vêm habitar em nós: Se alguém me ama, diz, ele
observará minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e faremos nele Nossa
morada (Jo 14, 23). Ao mesmo tempo Nosso Senhor promete enviar-nos o Espírito
Santo (Ibid., 26). Segundo estas palavras, quem virá? Seriam somente os efeitos criados,
a graça santificante, a caridade espalhada nos nossos corações? Não. Estes que vêm são
Aqueles que amam: Meu Pai e eu viremos a ele, e não duma maneira transitória,
mas faremos nele Nossa morada. Rogarei a meu Pai e ele vos dará um outro
consolador, para que habite em vós para sempre, o Espírito da verdade... que vos
ensinará todas as coisas e vos lembrará tudo o que eu vos disse. (Ibid., 16-26) Estas
palavras não são ditas somente aos apóstolos — eles verificaram-nas em si, no dia de
Pentecostes, que é renovado em nós pela Confirmação.
Este testemunho do Salvador é claro, explicitando bastante o que diz o livro da
Sabedoria. São realmente as três Pessoas Divinas que vêm habitar de maneira
permanente nas almas justas.

Deste modo o compreenderam os apóstolos. São João escreve (1 Jo 4, 9-


16): Deus é caridade... e aquele que está na caridade permanece em Deus, e Deus
nele. Ele possui Deus em seu coração, mas, mais ainda, Deus o possui e o guarda nele,
conservando, não somente a existência natural, mas a vida da graça e a caridade.

São Paulo diz o mesmo (Rm 5, 5). Enquanto a alma permanecer em estado de
graça, enquanto conservar a caridade, ela será o templo do Espírito Santo.

Em várias ocasiões, São Paulo volta a esta doutrina consoladora: Não sabeis
vós que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus em vós habita? (1 Cor 3, 16; 6,
19). Esta presença especial das três Pessoas Divinas é especialmente apropriada ao
Espírito Santo, porque ela depende da caridade — a qual nos assimila a Ele mais que ao
Pai e ao Filho, pois que Ele é o amor pessoal. Elas estão também em nós, segundo o
testemunho de Jesus, mas nós não lhes seremos perfeitamente assimilados senão
recebendo a luz da glória, que nos fará marcados pela semelhança do Verbo, que é o
esplendor do Pai. De modo equivalente fala Leão XIII em sua encíclica sobre o Espírito
Santo: “Divinum illud munus” de 9 de maio de 1897.

A Escritura ensina portanto mui explicitamente que as três Pessoas Divinas


habitam em toda alma justa, em toda alma em estado de graça. A tradição, pela voz dos
primeiros mártires, pela voz dos Padres, pelo ensino oficial da Igreja mostra, por outro
lado, que é deste modo que é preciso compreender o que diz a Escritura. 1

Qual união resulta desta habitação?

Os teólogos comumente ensinam que esta união do justo às Pessoas Divinas


difere imensamente da união hipostática da humanidade de Jesus ao Verbo; a coisa é
manifesta, pois a união hipostática é a união da natureza divina e da natureza humana
numa só e mesma pessoa, aquela do Verbo.
Ao contrário, o justo tem com Deus uma união não-substâncial, mas acidental e
moral. Em outros termos, é uma união pelo conhecimento e o amor. Contudo, esta união
é real, pois as Pessoas Divinas estão presentes no justo não só por um efeito de sua
operação, como o sol está presente sobre a terra pela luz e pelo calor que lhe envia; as
próprias Pessoas Divinas estão realmente e substancialmente presentes na alma justa
(sem lhe estar substancialmente unida como o Verbo à humanidade de Jesus). Os
teólogos normalmente dizem: “solus Deus illabitus animae”, Deus está realmente
presente na alma justa, mais intima que ela mesma, como o princípio íntimo de sua vida
interior.

Os teólogos também concordam geralmente em admitir que, como já dissemos,


a habitação das três Pessoas Divinas é própria ao Espírito Santo, pois que depende da
caridade, a qual nos assimila mais ao Espírito Santo, amor pessoal, do que a fé
esclarecida pelos dons nos assimila ao Verbo e por Ele ao Pai. A perfeita assimilação ao
Verbo e ao Pai far-se-á quando nós recebermos a luz da glória2.

Enfim, geralmente se ensina que o Espírito Santo santifica a alma justa, não
como causa formal, mas como causa eficiente e exemplar.

Eis porque não devemos dizer que o Espírito Santo é, propriamente falando, “a
alma de nossa alma, a vida de nossa vida”, mas que é, por assim dizer, “como a alma de
nossa alma, como a vida de nossa vida”. Ele não é, de fato, o constitutivo formal dela,
mas, com o Pai e o Filho, é causa eficiente de nossa santificação, pois produz, conserva
e aumenta em nós a graça santificante e a caridade. Além disso, é a causa exemplar
dela, pois a caridade criada é uma similitude participada da caridade incriada3. Também
é o seu fim último atraindo a si soberanamente, está em nós, junto com o Pai e o Filho,
como um objeto quase experimentalmente conhecível e às vezes efetivamente
conhecido, e amado acima de tudo.

Quais são as conseqüências práticas da habitação da Santíssima Trindade em


nós?
Uma vez que o Espírito Santo habita em nós e nos concede, com a caridade, os
sete dons, que estão em nós como em um barco com velas dóceis à impulsão do vento
favorável, devemos ter uma grande docilidade com relação ao Espírito Santo. Isto supõe
primeiramente o silencio em nossa alma, para que as inspirações divinas, ainda latentes,
não passem desapercebidas; é preciso silenciar as paixões mais ou menos desregradas,
as de afeições naturais, da ambição; silencio que supõe a mortificação de tudo o que há
em nós de desordenado.

A docilidade ao Espírito Santo supõe também o discernimento para distinguir


as inspirações divinas daquelas que não são boas senão aparentemente. As que vêm do
Espírito Santo nos lembram quase sempre um dever; em outras oportunidades, contêm
um conselho manifestamente conforme a nossa vocação, e ai, então, é seguro que
convém grandemente segui-los. E então as inspirações se tornam cada vez mais
numerosas e prementes. Quem pode dizer o valor de uma só inspiração verdadeiramente
conforme à nossa vocação? Não segui-la expõe-nos a vegetar durante anos, segui-la
orienta-nos docilmente à santidade.

Praticamente, não se deve ir nem muito lentamente, por falta de generosidade,


nem muito rápido, por presunção.

Muitos vão muito lentamente e tornam-se almas atrasadas; não são mais
iniciantes, e tampouco progridem. Estas almas são, na vida espiritual, como crianças
anormais que não cresceram, e que se tornam um tanto disformes, como anões.

Como uma alma torna-se atrasada? Isso ocorre-lhe sobretudo pela negligencia
às pequenas coisas na pratica das virtudes e da piedade. Cessamos de ver o lado
grandioso das pequenas coisas no serviço de Deus e nos dispomos assim a ver só os
pequenos aspectos das grandes coisas, como a missa, a palavra de Deus, a teologia, o
ministério apostólico; dispomo-nos a enxergar somente o que é exterior. A capacidade
de julgamento decai com a vida. As pequenas coisas do serviço de Deus são pequenas
em si mesmas, mas grandes pelo fim ao qual são ordenadas e pelo espírito de fé e de
amor com o qual seria preciso cumprir-las; seriam então observadas espontaneamente,
sem precisar refletir sobre elas, como o pianista que toca bem cada nota de seu piano.
Estas pequenas coisas são a oração antes e depois do estudo, antes e depois das
refeições, a prática atenta até aos detalhes das virtudes da humildade, da paciência, da
doçura, da polidez. Em si é pouca coisa, como os cílios ou sobrancelhas de uma
fisionomia humana, que, entretanto, sem eles estaria desfigurada. Como diz Santo
Agostinho: “Minimum quidem minimum est, sed semper servare legem Dei etiam in
minimis, hoc quidem maximum est”. Aquele que é fiel nas pequenas coisas dispõe-se a
ser fiel nas grandes quando estas lhe são pedidas: Qui fidelis est in mínimo, et in majori
fidelis est. (Lc 16, 10). Assim mantém-se uma união não só habitual, mas atual com
Deus, duma maneira quase continua e, por aí, fiel à graça do momento presente e às
inspirações que ela contém.

Uma alma torna-se atrasada também pela recusa dos sacrifícios exigidos para
romper com uma afeição demasiado sensível, com o gosto de confortos, com uma certa
tendência à vaidade, ou à dominação. Tornamo-nos atrasados recusando seguir a
inspiração que nos levaria a ser mais esforçados, mais generosos no serviço de Deus,
mais atentos às necessidades da alma do próximo. Então, a vida decai cada vez mais, e o
julgamento com a vida, pois cada um julga segundo sua inclinação. É deste modo que
até mesmo almas consagradas podem se transformar em almas atrasadas; e então os
efeitos usuais da habitação da Santíssima Trindade nelas produzem-se cada vez menos.

***

É evidente que é preciso reagir, evitando a todo custo o defeito contrario que é
o da precipitação, pois então a reação seria totalmente superficial e de curta duração.
Evitemos a precipitação da criança que quer correr no começo de uma ascensão, e que,
fatigada ao final de dois quilômetros, renuncia à escalada. É necessário, como dissemos,
caminhar ao passo pequeno e resoluto do montanhês, que não se detém senão no cume.

Não se deve querer voar antes de ter asas, e não confundir o primeiro momento
de entusiasmo com o firme propósito de avançar custe o que custar. Nem confundir a
ordem da intenção, onde o fim entrevisto e desejado é o primeiro, com a ordem da
execução, onde o fim só é obtido e conquistado em último lugar, depois de se ter
empregado todos os meios, desde os menores até os mais elevados. Precisamos evitar o
sentimentalismo que está na sensibilidade, a afetação de um amor que não se tem, ou
não o bastante, na vontade. É preciso dar-se conta, com um realismo são, que existe
desde há muito tempo, tempo demais, no fundo de nossa vontade, como diz Tauler, uma
misteriosa luta, algumas vezes trágica, entre a caridade que tende a se enraizar e o
egoísmo que tende a renascer sempre como erva-daninha.

Veremos então se realizar pouco a pouco as conseqüências normais da


habitação da Santíssima Trindade em nós, aquelas notadas por Santo Tomás: (Suma
Contra Gentios. 1, IV, c. 21 e 22). Receberemos graças sempre novas de luz, de atração,
de amor, de generosidade, de força e de paciência; possuiremos cada vez mais a
presença de Deus, entreter-nos-emos constantemente com Ele, como Santo Domingos
que não sabia falar senão com Deus ou sobre Deus; encontraremos nesta conversação
íntima a paz, às vezes o júbilo, com o desejo de uma conformidade cada vez maior com
a vontade divina, e nesta conformidade desejada encontraremos a santa liberdade dos
filhos de Deus, porque a vontade divina reinará cada vez mais na nossa vontade, na
medida em que a caridade se enraizar mais profundamente nela. Compreenderemos,
então, cada vez melhor, que nossa vontade é de uma profundidade sem medida, já que
só Deus, visto face a face, pode saciá-la e atraí-la irresistivelmente.

Roma, Angélico.

(La Vie Spirituelle n° 288, junho de 1944. Tradução: PERMANÊNCIA)

1. 1.Cf. Rouet de Journel, Enchiridion Patristicum (in fine, index


theologicus, n° 185, 357) noticia os testemunhos de inumeros Padres gregos e
latinos. É preciso sobretudo citar Santo Inácio de Antioquia, Santo Atanásio, São
Basílio, São Cirilo de Alexandria, Santo Ambrósio e Santo Agostinho.
2. 2.Leão XIII diz em sua encíclica Divinum illud munus: “Haec
praesentia est totius Trinitatis, attamen de spiritu sancto tanquam, pecullaris
praedicatur”.
3. 3.Cf. Santo Tomás, IIIª, q. 3, a. 5, ad 2.

A via da infância espiritual

Nosso Senhor diz aos seus Apóstolos: Se vos não converterdes e vos não
tornardes como meninos, não entrareis no reino dos céus1. São Paulo acrescenta: o
Espírito Santo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus2, e nos
aconselha freqüentemente uma grande docilidade ao Espírito Santo. Esta docilidade se
encontra particularmente na via da infância espiritual, recomendada por muitos santos e,
ultimamente, por Santa Teresa do Menino Jesus. Esta via, tão fácil e proveitosa para a
vida interior, é muito pouco conhecida e seguida.
Por que pouco seguida? Porque muitos imaginam erroneamente que esta é uma
via especial, reservada às almas que se conservaram completamente puras e inocentes; e
outros, quando lhes falamos desta via, pensam em uma virtude pueril, uma espécie de
infantilidade, que não poderia lhes convir. Estas idéias são falsas. A via da infância
espiritual não é nem uma via especial nem uma via de puerilidade. A prova é que foi
Nosso Senhor, ele mesmo, quem a recomendou a todos, mesmo àqueles responsáveis
pelas almas, como os Apóstolos formados por Ele3.

***

Para se ter uma visão de conjunto da via da infância espiritual, é preciso de


início notar suas semelhanças e, em seguida, suas diferenças com a infância corporal.

As semelhanças são patentes. Quais as qualidades inatas das crianças? Em


geral, elas são simples, sem nenhuma duplicidade, são ingênuas, cândidas, não
representam, mostram-se tais como são. Ademais, têm consciência de sua deficiência,
pois precisam receber tudo de seus pais, o que as dispõe à humildade. São levadas a crer
simplesmente em tudo o que dizem as suas mães, a depositar uma confiança absoluta
nelas, e a amá-las de todo seu coração, sem cálculo.

Quais as diferenças entre a infância ordinária e a infância espiritual? — A


primeira diferença é notada por São Paulo: Não sejais meninos na compreensão, mas
sede pequeninos na malícia4. A infância espiritual se distingue da outra pela maturidade
do julgamento e de um julgamento sobrenatural inspirado por Deus.

Uma segunda grande diferença é indicada por São Francisco de Sales5: na


ordem natural, quanto mais o filho cresce, mais ele tem de se tornar auto-suficiente, pois
um dia seu pai e sua mãe lhe faltarão. Ao contrário, na ordem da graça, quanto mais o
filho de Deus cresce, mais ele compreende que não poderá jamais se bastar e que
dependerá sempre intimamente de Deus. Quanto mais ele cresce, mais ele deve viver da
inspiração especial do Espírito Santo, que vem suprir por seus dons a imperfeição de
nossas virtudes, de modo que, no fim, o filho de Deus torna-se mais passivo sob a ação
divina do que entregue à sua atividade pessoal e no fim entra no seio do Pai, onde
encontrará a beatitude por toda a eternidade.

Os moços e as moças, quando chegam à idade adulta, deixam seus pais para
viverem suas vidas; mais tarde, o homem de quarenta anos vem com bastante freqüência
visitar sua mãe, mas ele não depende dela como antes; é ele agora que a sustenta. Ao
contrário, o filho de Deus, ao crescer, se é fiel, torna-se mais e mais dependente de seu
Pai, até que nada faça sem ele, sem suas inspirações ou seus conselhos. Então, toda a
sua vida é banhada pela oração; é a melhor parte que não lhe será tirada. Santa
Teresinha de Lisieux o compreendeu assim6. Ela, após ter atravessado a noite do
espírito7, chegou desse modo à união transcendental nela.

Tais são as características gerais da infância espiritual: suas semelhanças e suas


diferenças com a infância corporal.

***

Vejamos agora as principais virtudes que se manifestam nela.

De início, a SIMPLICIDADE, a ausência total de duplicidade. Por que? ...


porque o olhar desta alma não procura senão a Deus e vai direito a ele. Assim, verifica-
se aquilo que é dito no Evangelho: O teu olho é a lucerna do teu corpo. Se teu olho for
simples todo teu corpo será luz. Mas, se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em
trevas8. Do mesmo modo, se a intenção de tua alma é simples e direta, pura e sem
duplicidade, toda a tua vida será iluminada como o rosto de uma criança.

Então, a alma simples, que tudo sempre considera com relação a Deus, acaba
por vê-lo nas pessoas e eventos; em tudo o que acontece, ela vê aquilo que é desejado
por Deus, ou, ao menos, que é permitido por ele para um bem superior.
HUMILDADE. Ao seguir esta via, a alma torna-se humilde. A criança tem
consciência de sua deficiência, ela depende de sua mãe para tudo, e pede
constantemente sua ajuda, ou se refugia perto dela à menor ameaça.

Do mesmo modo, o filho de Deus sente que, deixado a si mesmo, ele não é
nada; ele se lembra com freqüência das palavras de Jesus: Sem mim, não há nada que
possais fazer. E assim, ele tem uma necessidade instintiva de se esquecer de si mesmo,
de depender de Nosso Senhor, de se abandonar a Ele. A alma cessa de se estimar de
modo vão, de querer ocupar um lugar no espírito dos outros; ela desvia seu olhar de si
mesma.

Por causa disso, ela combate muito eficazmente o amor próprio. E, com o
sentimento de sua deficiência, ela experimenta a necessidade de se apoiar
constantemente em Nosso Senhor e de ser em tudo guiada e dirigida por ele. Ela se
lança em seus braços, como a criança nos braços de sua mãe. Por isso, o espírito de
oração se desenvolve muito nela.

FÉ. Assim como o filho crê sem hesitar e firmemente em tudo o que sua mãe
lhe diz, o filho de Deus, acima de todo raciocínio, de todo exame, baseia-se totalmente
na palavra de Nosso Senhor. “Jesus o disse”, seja por si mesmo, seja por sua Igreja, isto
é suficiente para que ele não tenha nenhuma dúvida em seu espírito.

Que se segue? Assim como a mãe fica feliz em poder instruir seu filho, tanto
mais quanto ele se mostrar atento, Nosso Senhor se compraz em manifestar a profunda
simplicidade dos mistérios da fé aos humildes que o escutam. Ele dizia: Eu te dou
graças, ó Pai, por ter escondido estas coisas dos prudentes e dos sábios e de as ter
revelado aos pequenos. A fé dessa alma torna-se então penetrante, saborosa,
contemplativa, radiante, prática, fonte de mil conselhos excelentes. O espírito da fé leva
a ver os mistérios revelados, as pessoas, os fatos como Deus os vê; vê-se Deus em tudo.

Mesmo que o Senhor permita a noite escura, a alma a atravessa segurando sua
mão, como o filho segura a mão de sua mãe, que a protege.
A CONFIANÇA torna-se, desde então, mais e mais firme, inteira. Por que? ...
porque ela repousa no amor de Deus por nós, em suas promessas, nos méritos infinitos
de Nosso Senhor.

Como a criança está segura de sua mãe, porque se sabe amada por ela, a alma
de que falamos está segura de Deus. Ela não pode duvidar de sua fidelidade em manter
suas promessas: pedi e recebereis. Ela não se baseia em seus próprios méritos, em sua
sorte pessoal, mas nos méritos infinitos do Salvador, que são para ela; do mesmo modo,
os bens do pai são para seus filhos que ainda não possuem bens pessoais.

A fragilidade a desencoraja? De modo algum. O filho não se desencoraja por


causa de sua deficiência. Ao contrário, ele sabe que é por causa de sua impotência que
sua mãe está sempre pronta para protegê-lo. Do mesmo modo, Nosso Senhor sempre
protege os pequenos e os pobres que se fiam nele. O Espírito Santo, que ele nos enviou,
é chamado “Pater pauperum”.

Esta alma não confia senão em Deus, em Nosso Senhor e na Virgem, e


naqueles que vivem de Deus, como a criança não confia senão em sua mãe e naquelas
pessoas a quem sua própria mãe o confia por um momento.

É uma confiança total, mesmo nas horas mais graves. Nós nos lembramos
então do que dizia santa Teresinha: “Senhor, vós a tudo vedes, tudo podeis, e vós me
amais”.

O único temor desta alma é o de não amar o bastante a Nosso Senhor, de não se
abandonar totalmente a Ele.

A CARIDADE é o amor de Deus por ele mesmo, e das almas em Deus, para
que elas o glorifiquem no tempo e na eternidade.

A criança pequena ama sua mãe de todo seu coração, mais que os carinhos que
recebe dela; ela vive de sua mãe.
Do mesmo modo, o filho de Deus vive de Deus e o ama por si mesmo, por
causa das infinitas perfeições que nele transbordam. O que este filho de Deus ama, não
é a sua própria perfeição, mas o próprio Deus, sobre o qual ele se apóia.

A este amor ele refere tudo, é um amor delicado, simples, que inspira a piedade
filial e uma grande caridade pelo próximo, na medida em que este é amado por Deus e
chamado a o glorificar eternamente.

O filho de Deus, porém, é tão prudente como simples: simples com Deus e as
almas de Deus, ele está sob a inspiração do dom de conselho e é prudente com aqueles
em quem não podemos ter confiança.

Ele é deficiente, mas é do mesmo modo forte, pelo dom de fortaleza que se
manifestou nos mártires, e até nas jovens virgens e nos velhos.

Um modelo impressionante de infância espiritual se encontra em uma alma


santa, que atingiu, em meio das maiores dificuldades, uma grande intimidade com
Nosso Senhor; a Venerável Madre Marie-Thérèse de Soubiran, fundadora da Sociedade
de Maria Auxiliadora. Sua vida admirável nos mostra a enorme superioridade da vida
sobrenatural plenamente abandonada a Nosso Senhor, acima da atividade natural das
pessoas melhor dotadas e mais enérgicas, que se apóiam sobre elas mesmas, que se
esquecem de pedir a benção de Deus9.

Sua vida é um comentário das palavras do Salvador: Eu te dou graças, ó Pai,


por ter escondido estas coisas dos prudentes e dos sábios e de as ter revelado aos
pequenos.

(Publicado em La vie spirituelle no. 302, dez. 1945. Tradução:


PERMANÊNCIA)
1. 1.Mt 18,3;
2. 2.Rm 8, 16;
3. 3.Mt 18, 5-4; 19, 14; Mr 9, 32;
4. 4.1 Cor 14, 20;
5. 5.Tratado do Amor de Deus, IX, e. 13,14;
6. 6.História de uma Alma; Lembranças e Conselhos, pág. 263;
7. 7.Ibid. c.9;
8. 8.Mt 6, 22;
9. 9.Maria Teresa de Soubiran (1834-1889) conoscinta dai suoi scritti,
lettere e note spirituali, publicate dal P. Monier-Vinard, S. J. Roma, 1938, 2 vol.;

A vida de Cristo em nós, enquanto Cabeça da Igreja - seu aspecto espiritual

Trataremos:

1. O Testemunho de Cristo e de São Paulo

2. Que é, em linhas gerais, a vida de Cristo em nós;

3. Conseqüências práticas e aplicação às diversas virtudes em particular.

1. O Testemunho de Cristo e de São Paulo.

Nosso Senhor disse: «Eu sou a videira e vós as varas. O que permanece em
mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque, sem mim, nada podeis fazer» (Jo 15,
5). «nada», ou seja, nenhum ato salutar e, por conseguinte, nenhum ato meritório de
vida eterna. Contra o que pensavam os semipelagianos, o mesmo initium fidei é da graça
que provém de Cristo.
Semelhantemente, diz S. Paulo (Rm 6, 5): «nos tornamos uma mesma planta
com Cristo», que é como que a raiz santa, e «se é santa a raiz, também o são os
ramos» (11, 16). Noutra parte, expressa o mesmo valendo-se de outra figura: «vós sois o
corpo de Cristo e membros unidos a membro» (1 Cor 12, 27); e o repete em diversas
outras passagens.

Na Epístola aos Romanos (6, 4), afirma que pelo batismo «fomos sepultados
com Ele a fim de morrer para o pecado»; morremos e ressuscitamos com Ele. Por isso,
também diz S. Paulo: «Para mim, o viver é Cristo» (Gl 3, 27). Comenta S. Tomás: para
os caçadores, sua vida é a caça; para os militares, a milícia ou os exercícios militares;
para os estudiosos, o estudo; para os católicos e, sobretudo, para os santos, o viver é
Cristo, pois Cristo quer viver neles; e porque os santos vivem da fé, da confiança e do
amor de Cristo. E o próprio Cristo diz: «Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o
Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas, e vos recordará tudo o que
vos tenho dito» (Jo 14, 26). Ou seja: pelos dons de sabedoria, inteligência, ciência,
conselho, piedade, fortaleza e do temor, vos sugerirá tudo que eu vos disse, de maneira
que as palavras do Evangelho venham a ser para vós, «palavras de vida
eterna» porque «são espírito e vida». O testemunho de Cristo e de São Paulo é
manifesto, sobretudo nessas palavras da Epístola aos Gálatas: «E vivo, já não eu, mas é
Cristo que vive em mim» (2, 20).

2. Que é, em linhas gerais, a vida de Cristo em nós.

Da parte de Cristo, Ele, como cabeça da Igreja, satisfez outrora e mereceu, de


condigno, todas e cada uma das graças, sejam suficientes, sejam eficazes, que
recebemos ou viremos a receber. Ademais, intercede ainda agora, no céu, por nós e
é causa instrumental física de todas e de cada uma das graças que recebemos, é
instrumento unido à divindade, enquanto são os sacramentos, na produção da graça,
instrumentos separados, cf. III, q. 62, a. 5 e q. 8.
Que é que se requer, da nossa parte, para esta vida de Cristo em nós? Em
primeiro lugar, é preciso guardar esta verdade na memória, e repetir freqüentemente
para si mesmo: «Cristo quer viver em mim, rezar, amar, agir e sofrer em mim». Se
assim fizermos, espontaneamente sepultaremos o velho homem, com seus desejos
desordenados, baixos, mesquinhos, para abrigar em nossos corações os mesmos desejos
de Cristo. É absolutamente necessário despojar-se do velho homem. Então,
paulatinamente compreenderemos as palavras de S. João Batista: «Convém que ele
cresça e que eu diminua» (Jo 3, 30). Em sentido moral, é preciso como que perder a
personalidade própria, perder no bom sentido, para viver em Cristo, como membros
que se ligam à cabeça. Ou seja, é preciso pensar, desejar, agir com Cristo e em Cristo,
como a mão que opera movida e dirigida pela cabeça.

Assim, pouco a pouco, o espírito de Cristo se substitui ao nosso próprio. Ora,


nosso espírito próprio é um determinado modo de pensar, de sentir, de julgar, de amar,
de querer e de sofrer; é uma certa mentalidade especial, bastante limitada e superficial,
que depende materialmente de nosso temperamento físico, da nossa herança, do influxo
das coisas exteriores, das idéias da nossa geração e da nossa região. Este espírito próprio
tem de ser paulatinamente substituído pelo espírito de Cristo, isto é, por seu modo de
pensar, julgar, sentir, amar, agir e sofrer; então, Cristo verdadeiramente viverá em nós.

Os santos chegaram a uma impessoalidade superior, que supera em muito a


personalidade própria natural, assim como, na ordem especulativa, Santo Tomás, jamais
falando de si mesmo, escrevendo obras sempre objetivas, tornou-se o Doutor comum da
Igreja; o mesmo ocorre, na ordem prática, com muitos santos nos quais aparece de
modo eminente a vida de Cristo, como S. João Maria Vianney; nestes santos verifica-se
plenamente estas palavras: «para mim, o viver é Cristo». Só os santos compreenderam
perfeitamente que nossa personalidade moral não se completa perfeitamente caso não se
perder, de alguma maneira, na pessoa do Cristo; assim como o rio, que só se completa
quando se precipita no mar. Por isso, os santos substituíram seus próprios juízos e
idéias pelos juízos de Cristo, recebidos pela fé; substituíram sua própria vontade, pela
vontade santíssima de Cristo; sua ação pessoal, pela sua ação santificadora; assim,
fizeram-se servos de Deus em sentido pleno, como a mão que serve à nossa vontade.
Daí, S. Paulo poder dizer: «E vivo, já não eu, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20).
E S. João Crisóstomo: «Coração de Paulo, coração de Cristo».

No entanto, é preciso compreender de modo reto e pleno: isto não significa que
Cristo deva diminuir-se, descendo à nossa vida inferior; mas que devemos nos oferecer
a Ele, para que Ele viva em nós sua vida superior, vida que nos supera imensamente.
Por exemplo, quando rezamos, devemos nos recolher sob a grande oração de Cristo,
para que ela, de algum modo, se prolongue em nós, continue em nós.

Se verdadeiramente tomássemos este caminho, não apenas seríamos melhores,


mas nossa alma abandonaria a si mesma para viver esquecida de si própria. Então
entenderíamos as palavras que Cristo disse a muitos santos: «permitte mihi in te vivere,
et tu moriaris» [Permita que eu viva em ti, e que tu morras a ti mesmo]. Assim o
fizeram S. Bento, S. Francisco, S. Domingo, S. Vicente de Paula; todos os santos que,
por este meio, chegaram à santa liberdade dos filhos de Deus. Isto, que vale para os
fiéis, vale ainda mais para os sacerdotes.

Devemos abandonar o velho homem, e «revestirmo-nos do homem


novo». Revestirmo-nos de Cristo, como diz S. Paulo (Gl 3, 27; Ef 4, 24; Rm 13, 14).

3. Conseqüências práticas e aplicação às diversas virtudes em particular.

Disso, derivam-se muitas aplicação com respeito à oração, humildade, caridade


fraterna, fé, esperança, amor de Deus e aceitação das cruzes.

Com Respeito à oração: A alma, então, já não reza como antes, de modo
demasiado limitado, conforme seus interesses próprios, mas sua oração torna-se
a oração de Cristo, que se estende e continua nela mesma. Então, compreende as
palavras ditas aos Apóstolos: «tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu o farei,
para que o Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome,
eu a farei» (Jo 14, 13); «Até agora não pedistes nada em meu nome; pedi e recebereis,
para que o vosso gozo seja completo» (Jo 16, 24).

A alma, então, principalmente durante a Missa, adora em nome de Cristo; pede


em nome do Salvador a conversão, não apenas de algumas, mas de muitas, de inúmeras
pessoas, no presente e no futuro. Do mesmo modo, é reparadora, em nome de Cristo,
pela generosa aceitação dos sofrimentos e dá graças, em nome de Jesus, pelos
benefícios particulares, e pelo universal benefício da Criação, da elevação da vida à
ordem da graça, da Encarnação, da Redenção, da Eucaristia. E, ao ver os pequeninos
recebendo o pão espiritual, diz com Cristo: «Vos dou graças, ó Senhor do céu e da
terra, porque revelastes estes mistérios aos pequeninos».

Então, a alma que segue esta via, dirige-se também à Santíssima Virgem, como
em nome de Cristo; nela encontra sua Mãe em sentido pleno, e compreende melhor as
riquezas que encerra a maternidade espiritual de Maria com respeito a todos que buscam
a salvação.

Então, a alma consegue continuar mais facilmente sua oração por todo o dia;
oferecendo, a qualquer hora, as obras do Salvador, principalmente as que meditamos no
santo Rosário e na Via Crucis. Durante a visita ao Santíssimo Sacramento, oferece a
Deus os atos do Menino Jesus, os atos de sua vida dolorosa e os de sua vida gloriosa e
eucarística. Cristo vive verdadeiramente nela. A irradiação da contemplação e do amor
do Salvador é uma realidade nesta alma.

Com Respeito à humildade: A alma começa a aborrecer a vida demasiado


pessoal, começa a desprezar a si mesma, ao comparar-se com Cristo. Compreende
melhor que todo pensamento excessivamente pessoal é limitado, estreito, inferior,
oposto à santa liberdade dos filhos de Deus. Renuncia a eles, para viver da fé, das
palavras de Cristo, que «são espírito e vida».

Por isso, começa a aborrecer o amor próprio, que impede a vida de Cristo em
nós, assim como as mãos impediriam a vida do corpo, se quisessem viver ordenadas
para si mesmas, e não para o corpo.

Donde, esta alma começa a gostar das humilhações e aceitar o desprezo sem
muita tristeza. Crê que aquilo que nela é defeituoso deve ser notado, para que melhor
ressalte, por oposição, a grandeza de Cristo, que deve viver em nós.

Assim, melhor se compreende estas palavras: «Permita que eu viva em ti, e que
tu morras a ti mesmo» e estas outras: «Tua pobreza é extrema, mas eu sou rico e minhas
riquezas te bastam»; são tuas; são como que propriedade pessoal tua.

A alma termina por ter suas virtudes, muito limitadas, como coisa de pouco
valor e começa a amar, como um bem seu, as imensas perfeições do mesmo Cristo. O
que parece grandioso aos soberbos e ambiciosos, a ela parece um nada, por ter
renunciado a sua própria glória.

Com respeito à caridade fraterna: A alma cristã considera as demais pessoas


como as consideraria o próprio Cristo e, por isso, encontra em quase todos algo de belo
e digno de imitação, assim como em qualquer florzinha silvestre encontramos alguma
beleza. Ama sobretudo os pobres, que são os membros dolorosos de Cristo, e as
crianças, por sua inocência. Os ama de modo semelhante ao que Cristo os amou. Ama
também aos velhos abandonados, que costumam ser mais sábios.
Com respeito à Fé: A fé desta alma é cada vez mais ilustrada pelos dons e
torna-se mais penetrante e saborosa; Vê as coisas mais diversas com os olhos de Cristo.
E em tudo se pergunta: Que pensa Jesus sobre isso? Assim, compreende muito mais o
valor da Missa, da Comunhão, da absolvição sacramental. Do mesmo modo, melhor
compreende o sentido espiritual dos acontecimentos quotidianos e para quais bens
superiores Deus permite o mal. Esta alma diz a si mesma: «Cristo vê este bem
superior». Ela mesma tem um certo pressentimento deles.

Com respeito à Confiança: A alma aumenta sua confiança, pois Cristo lhe
comunica a sua própria. Em sua memória, guarda as palavras do Salvador: «Eu venci o
mundo». Que é como se dissesse: «Venci o pecado, o demônio, a morte. Tende
confiança.» Esta alma pode desesperar de si mesma, de suas próprias forças; mas é
então que mais espera em Deus. Com S. Paulo dirá: «Quando estou fraco, então sou
forte» (2 Cor 12, 10). Assim trabalhava S. Felipe Neri: «Quando desconfio de mim
mesmo é que mais confio na graça de Deus». João Batista Mazella, apóstolo da
Sardenha, dizia, quando as dificuldades eram maiores: «De mim desespero, toda
esperança perco, só em Deus confio».

Com respeito ao Amor de Deus: Aumenta muito notavelmente o amor de


Deus, porque é como o amor de Cristo transfundido na alma de quem dele vive. É um
amor que começa por causar na alma um certo êxtase espiritual, não corporal, pelo qual
a alma que ama a Deus sai fora de si, é como que transportada a Deus. Enquanto o
homem natural pensa quase sempre em si mesmo e em seus próprios interesses, ainda
que de modo confuso, a alma espiritual pensa quase sempre em Deus; ama a Deus
verdadeiramente e, no mesmo Deus, ama-se a si mesma e ao próximo, para mais
glorificar a Deus estando cheia de paz e de alegria, ao menos no mais fundo de sua
alma. É então que a alma começa a confiar-se inteiramente a Deus; está na via do
perfeito abandono de si nas mãos de Deus.

Assim se cumpre o que pedia o Beato Nicolau von Flue: «O Mein Herr und
mein Gott, nimm alles von mir, was mich hindert zu Dir; o mein Herr und mein Gott,
gib alles mir, was mich fördert zu Dir; o mein Herr und mein Gott, nimm mich mir und
gib mich ganz zu eigen Dir!» [Deus meu e Senhor meu, tirai-me de tudo o que me
impede de me aproximar de vós; dai-me tudo o que me conduza a vós; privai-me de
mim mesmo e concedei-me que, por inteiro, me entregue a vós].

Com respeito à aceitação da cruz: Por fim, a alma chega à uma generosa
aceitação da cruz que é permitida por Deus para que se trabalhe mais eficazmente pela
salvação das almas. É o que ocorreu com muitos santos pobres, tal como S. Bento José
Labré e ocorre ainda hoje com muitos outros. É o que ocorre com os santos enfermos,
que sofrem dia e noite sem gemer, mas, com Cristo, oferecem suas dores para a
conversão dos pecadores; e, se estes não se converterem, a paz do mundo é impossível.

Se algumas almas generosas são movidas a se oferecer a Deus como vítima, é


porque Deus, prevendo suas dores futuras, dá a elas a inspiração de assim se
oferecerem. Daí que o mesmo Cristo as conforta como se fora Ele mesmo que nelas
sofresse. Neste sentido, Cristo prolonga sua agonia até o fim do mundo.

Assim, Cristo foi a fortaleza dos mártires, sofrendo neles pelos três primeiros
séculos da Igreja.

Por isso, com esse espírito, muitas almas rezam assim: «Senhor, nesta hora de
crise mundial, em que se difunde o espírito da soberba, negando toda a religião e até a
existência de Deus, dai-me uma inteligência mais profunda do mistério da Encarnação
redentora e do vosso santo aniquilamento na Paixão; dai-me o desejo de participar das
vossas humilhações e dores, na medida desejada pela Providência para mim; e fazei
que neste desejo encontre paz, fortaleza e a mesma alegria, conforme o vosso
beneplácito, para erguer o meu espírito e a confiança dos demais».
Isto vale para os fiéis que aspiram à santidade e, mais ainda, para os sacerdotes,
que, em virtude de sua ordenação, devem especialmente tender à perfeição cristã, para
que possam santificar os fiéis, sobretudo nos gravíssimos erros e extravios da hora
presente, e para poder conduzir de novo à verdade e à vida cristã a quantos as tenham
abandonado.

(Tradução: Permanência. extr. de "De unione sacerdotis cum Christo sacerdote


et victima" )

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Alguns sinais mais raros e certos de grande aproveitamento nas virtudes – Pe.
Manuel Bernardes

1. Cair muito raramente em pecados veniais.

2. Grande horror ao pecado e grande esforço e diligência em evitar


até as mínimas imperfeições.
3. Contínuo ou quase contínuo fervor em fazer com perfeição os
exercícios e obras quotidianas.
4. Exata paciência nas adversidades sem movimentos (ainda
primeiros) de ira, indignação, ou aversão às pessoas que as causaram.

5. Amar a Cruz e qualquer humiliação, abatimento, ou injúria


pessoal em tal grau, que quando sucedem de presente, ou quando se representam à
memória as passadas, ou futuras, logo sem repugnância (por benefício de Deus) se
levante um ardente desejo e gosto delas: do modo que nos imperfeitos se levantam
movimentos maus, quando se oferece algum olgum objeto pecaminoso.

6. Contínuo ou quase contínuo desvelo de aproveitar nas virtudes, e


fome insaciável de justiça.

7. Crescer a esperança com repentino e notável esforço, quando se


oferecem trabalhos ou dificuldades grandes.

8. Oração limpa de distrações; e então mais fervorosa, quando é


tempo de alguma perseguição pessoal; e desejo insaciável de orar.

9. Gozo nas humilhações e desprezos, junto com perseverança e


alacridade nos exercícios começados.

10. Tristeza sensível, ainda na parte inferior da alma, quando se vêem


ou ouvem graves ofensas de Deus.

11. Maior paz e tranquilidade nas tribulações que nas consolações.

12. Aversão a deleitos dos sentidos ainda lícidos, nascida de ódio


santo de si próprio, e desprezo das coisas mundanas.

13. Maior inclinação a tratar com os varões mais perfeitos do que com
os menos; e à conversação em matérias espirituais, do que à de coisas profanas, ainda
que lícitas; e aos livros santos, do que aos de história, ainda que não torpe.
14. Achar-se prontíssimo para fazer, ou deixar de fazer, qualquer
coisa que insinuar o arbítrio do Superior, sem exceção mínima.

15. Desejo ardente de padecer calúnias e opóbrios e trabalhos; e amor


sincero àqueles por cuja mão lhe vierem.

16. Fugir das comodidades e alívios do corpo e buscar as


incomodidades.

17. Extinção das tentações da carne, ou, ao menos, a notável


diminuição em idade florida; e isto ainda em ocasiões que se não procuram.

18. Nos casos adversos repentinos conservar o interior sem


pertubação, ainda involuntária.

19. Extinção total da tibieza e negligências nas obras do serviço de


Deus.

20. Não dar por respeitos humanos, junto com liberdade de espírito,
asim para fazer o que descontenta aos imperfeitos e agrada a Deus; como para deixar de
fazer o que estes queriam se fizesse.

21. Domínio sobre as paixões, especialmente da ira, temor e amor.

22. Nas humilhações públicas, ou nenhum ou notavelmente


diminuido o sentir vergonha e confusão.

23. Afetuosa união com Deus, tornada a levantar depois de qualquer


ação de seu gênero distrativa, como quando acordamos de noite várias vezes.

24. Acompanhar o trabalho de mãos, com atual devoção, e exercício


de atos pios em grau intenso.
As virtudes morais na vida interior

Para compreender como deve ser o funcionamento do organismo espiritual, é


importante saber distinguir, sob as virtudes teologais, as virtudes morais adquiridas, já
descritas pelos moralistas da antigüidade pagã e que podem existir sem o estado de
graça, das virtudes morais infusas, ignoradas dos moralistas pagãos e descritas no
Evangelho. As primeiras, como seu nome indica, adquirem-se pela repetição dos atos
sob a direção da razão natural mais ou menos desenvolvida. As segundas são ditas
infusas, porque somente Deus pode produzi-las em nós; não são o resultado da repetição
de nossos atos: recebemo-las no batismo, como partes do organismo espiritual e, se
tivermos a infelicidade de perdê-las, a absolvição no-las restitui. As virtudes morais
adquiridas, conhecidas dos pagãos, possuem um objeto acessível à razão natural; as
virtudes morais infusas possuem um objeto essencialmente sobrenatural, proporcionado
ao nosso fim sobrenatural, que seria inacessível sem a fé infusa na vida eterna, na
gravidade do pecado, no valor redentor da Paixão do Salvador, no penhor da graça e dos
sacramentos1.

Com relação à vida interior, falaremos primeiramente das virtudes morais


adquiridas, depois das virtudes morais infusas e, enfim, das relações de umas com
outras.

As virtudes morais adquiridas

Elevemo-nos progressivamente dos graus inferiores da moralidade natural


àqueles da moralidade sobrenatural. Notemos de início, com Santo Tomás, que no
homem em estado de pecado mortal costumamos encontrar falsas virtudes, como a
temperança no avaro; ele a pratica não por amor do bem honesto e razoável, não para
viver segundo a reta razão, mas por amor deste bem útil que é o dinheiro. Do mesmo
modo, se paga suas dívidas, é antes para evitar os aborrecimentos dum processo do que
por amor à justiça.

Acima dessas falsas virtudes, não é impossível encontrar, mesmo no homem


em estado de pecado mortal, verdadeiras virtudes morais adquiridas. Muitos praticam a
sobriedade para viver razoavelmente e, pelo mesmo motivo, pagam suas dívidas e
fornecem alguns bons princípios aos seus filhos.

Mas, enquanto o homem permanece em estado de pecado mortal, as


verdadeiras virtudes encontram-se em estado de disposição pouco estável (in statu
dispositionis facile mobilis), não estão ainda em estado de sólida virtude (difficile
mobilis). Por que? Porque enquanto o homem estiver em estado de pecado mortal, sua
vontade está habitualmente desviada de Deus; em vez de amá-lO acima de tudo, o
pecador se ama a si mais que a Deus, donde a grande fraqueza para realizar o bem
moral, mesmo o de ordem natural.

Ademais, as verdadeiras virtudes adquiridas que o homem em estado de pecado


mortal possuir, carecem de solidez, pois não são conexas, não estão apoiadas o
suficiente nas virtudes morais vizinhas, que muitas vezes faltam. Por exemplo, um certo
soldado, naturalmente inclinado a atos de bravura e que costuma demonstrar coragem,
também tende a enervar-se. Ora, acontece que, em certos dias, por intemperança, falta-
lhe a virtude adquirida da força, descuidando de seus deveres essenciais de soldado2.

Esse homem, levado por temperamento a ser corajoso, não tem a virtude da
força em estado de virtude. A intemperança faz com que falte à prudência mesmo no
domínio próprio da virtude da força. A prudência, que deve guiar todas as virtudes
morais, supõe, com efeito, que nossa vontade e sensibilidade estejam habitualmente
retificadas quanto ao fim dessas virtudes. Aquele que conduz vários cavalos atrelados a
uma charrete necessita que cada um deles já esteja manso e adestrado. Ora, a prudência
é um como condutor de todas virtudes morais, «auriga virtutum», devendo tê-las, por
assim dizer, todas à mão. Uma não vai sem a outra: elas são conexas na prudência que
as dirige.

Por conseguinte, para que as verdadeiras virtudes adquiridas não estejam tão-
somente em estado de disposição pouco estável, mas em estado de virtude já sólida (in
status virtutis), faz-se mister que estejam conexas e, por isso, que o homem não mais
esteja em estado de pecado mortal, mas que sua vontade esteja retificada quanto ao fim
último. Convém que ame a Deus mais que a si ― se não um amor sentido, pelo menos
um amor de estima, real e eficaz. E isso não é possível sem o estado de graça e a
caridade3.

Mas, após a justificação ou conversão, essas verdadeiras virtudes adquiridas


podem chegar a ser virtudes estáveis (in statu virtutis); podem tornar-se conexas, apoiar-
se uma nas outras. Enfim, sob o influxo da caridade infusa, elas tornam-se o princípio
de atos meritórios para a vida eterna. Alguns teólogos, como Duns Scot, por causa
disso, chegaram a pensar que não é necessário que haja em nós virtudes morais infusas.

As virtudes morais infusas

As virtudes morais adquiridas, das quais falamos, bastam, sob a influência da


caridade, para constituir o organismo espiritual das virtudes nos cristãos? É necessário
que recebamos virtudes morais infusas?

O catecismo do Concílio de Trento, conformemente à Tradição e à decisão do


papa Clemente V no Concílio de Viena4, a propósito do batismo e seus efeitos,
responde: “A graça (santificante), que o batismo comunica, é acompanhada do glorioso
cortejo de todas as virtudes que, por um dom especial de Deus, penetram na alma ao
mesmo tempo que esta”. É um admirável efeito da Paixão do Salvador, que se nos
aplica pelo sacramento da regeneração.

Nisso se manifesta grandíssima conveniência, destacada bem a propósito por


Santo Tomás5. É mister, salienta ele, que os meios sejam proporcionados ao fim. Ora,
pelas virtudes teologais infusas somos elevados e retificados quanto ao fim último
sobrenatural. Convém, pois, grandemente que sejamos elevados e retificados pelas
virtudes morais infusas quanto aos meios sobrenaturais capazes de nos conduzir ao fim
sobrenatural.

Às nossas necessidades, Deus não proveria menos na ordem da graça do que


naquela da natureza. Se nessa última Ele nos deu a capacidade de vir a praticar as
virtudes morais adquiridas, convém grandemente que, na ordem da graça, dê-nos as
virtudes morais infusas.

As virtudes morais adquiridas não bastam ao cristão para que ele queira como
convém os meios sobrenaturais ordenados à vida eterna. Há, de fato, diz Santo Tomás6,
uma diferença essencial entre a temperança adquirida, já descrita pelos moralistas
pagãos, e a temperança cristã, da qual fala o Evangelho. Aqui existe uma diferença
análoga àquela duma oitava, entre duas notas musicais de mesmo nome, separadas por
um intervalo completo.

Como destaca Santo Tomás7, a temperança adquirida possui uma regra e um


objeto formal diferentes daqueles da temperança infusa. Ela guarda o justo meio no
alimento para que se viva razoavelmente, para que se não lese a saúde nem o exercício
de nossa razão. A temperança infusa, pelo contrário, guarda o justo meio superior no
uso dos alimentos, para que se viva cristãmente, como filho de Deus, caminhando em
direção à vida sobrenatural da eternidade. A segunda também implica uma mortificação
mais severa que a primeira, pois exige, como diz São Paulo, que o homem aborreça seu
corpo e o reduza à servidão8, para tornar-se não apenas cidadão virtuoso na vida social
daqui debaixo, mas “concidadão dos santos, e membro da família de Deus”9.

Diferença semelhante existe entre a virtude adquirida da religião, pela qual se


deve prestar a Deus, autor da natureza, o culto que Lhe é devido, e a virtude infusa da
religião, pela qual se oferece a Deus, autor da graça, o sacrifício essencialmente
sobrenatural da missa, que perpetua em substância o da Cruz.

Entre ambas as virtudes de mesmo nome, há mesmo diferença maior que uma
oitava: há diferença de ordem, tanto assim que a virtude adquirida da religião ou a da
temperança poderia sempre crescer pela repetição dos atos, sem nunca alcançar a
dignidade do menor dos graus da virtude infusa de idêntico nome. Trata-se de outra
tonalidade: o espírito que anima a letra não é mais o mesmo. De um lado, só o espírito
da reta razão; de outro, o espírito da fé, que vem de Deus.

São dois objetos formais e dois motivos de ação bem diferentes. A prudência
adquirida ignora os motivos sobrenaturais da ação; a prudência infusa os conhece:
procedendo não tão-somente pela razão, mas pela razão esclarecida pela fé infusa,
conhece a elevação infinita de nosso fim último sobrenatural, Deus visto face à face;
conhece, por conseguinte, a gravidade do pecado mortal, o valor da graça santificante e
das graças atuais ― que devemos implorar diariamente para perseverar ― o valor dos
sacramentos que recebemos. Tudo isso a prudência adquirida ignora, pois é de uma
ordem essencialmente sobrenatural.

Que diferença entre a modéstia filosófica descrita por Aristóteles e a humildade


cristã, que pressupõe o conhecimento dos dois dogmas da criação ex nihilo e da
necessidade da graça atual para o menor passo no caminho da salvação!
Que distância entre a virgindade da vestal encarregada de conservar o fogo
sagrado e a da virgem cristã, que consagra corpo e coração para Deus, a fim de seguir
mais perfeitamente Nosso Senhor Jesus Cristo!

Essas virtudes morais infusas são a prudência cristã, a justiça, a força, a


temperança e aquelas que as acompanham, tais como a docilidade e a humildade. Elas
são conexas com a caridade, no sentido de que a caridade ― que nos retifica quanto ao
fim último sobrenatural ― não pode existir sem elas, sem esta múltipla retificação
quanto aos meios sobrenaturais de salvação. Ademais, aquele que por um pecado mortal
perde as virtudes infusas, perde a retificação infusa quanto aos meios proporcionados a
esse fim. Contudo, não se segue que perca a fé e a esperança, nem as virtudes
adquiridas, mas estas não lhe são mais estáveis e conexas. De fato, quem está em estado
de pecado mortal não ama mais a Deus, tendendo, por egoísmo, a faltar até com seus
deveres na ordem natural.

Relações entre as virtudes morais infusas com as virtudes morais


adquiridas

Conforme ao que precede, explicaremos as relações dessas virtudes e sua


subordinação.

Antes de mais nada, a facilidade dos atos virtuosos não é garantida do mesmo
modo pelas virtudes morais infusas e pelas virtudes morais adquiridas. As infusas
fornecem uma facilidade intrínseca, sem que se exclua os obstáculos extrínsecos, os
quais são afastados pela repetição dos atos que engendram as virtudes adquiridas.
Inteiramo-nos disso facilmente quando, pela absolvição, as virtudes morais
infusas, unidas à graça santificante e à caridade, são recebidas por um penitente que,
apesar de ter atrição de suas faltas, não possui as virtudes morais adquiridas. É o que
acontece, por exemplo, no caso dos que têm o hábito de irritar-se e que vêm confessar-
se, com atrição suficiente, para a Páscoa. Pela absolvição recebe, junto com a caridade,
as virtudes morais infusas, dentre as quais a temperança. Contudo, não possui a
temperança adquirida. A virtude infusa que ele recebe dá-lhe uma como facilidade
intrínseca para exercer os atos obrigatórios de sobriedade; mas essa virtude infusa não
exclui os obstáculos extrínsecos, que seriam eliminados pela repetição dos atos que
engendram a temperança adquirida10. Assim, o penitente deve vigiar-se
cuidadosamente para evitar as ocasiões que o fariam recair em seu pecado habitual.

Daí temos que a virtude adquirida da temperança facilita muito o exercício da


virtude infusa de mesmo nome. Como isso se dá? Elas operam simultaneamente, de tal
modo que a virtude adquirida está subordinada à virtude infusa, como uma disposição
favorável. Da mesma forma, num outro domínio, para o artista que toca harpa ou piano,
a agilidade dos dedos, adquirida pela repetição dos atos, favorece o exercício da arte
musical que está, não só nos dedos, mas na inteligência do artista. Se lhe sobrevier uma
paralisia, ele perde toda agilidade dos dedos, não podendo mais exercer sua arte, devido
a um obstáculo extrínseco. Todavia, sua arte permanece em sua inteligência prática, tal
como a vemos num músico de gênio vítima de paralisia. Normalmente, ele a possui
como duas funções subordinadas que se exercem conjuntamente. O mesmo vale para a
virtude adquirida e para a virtude infusa do mesmo nome11.

Porém, entre os cristãos mais espirituais, o motivo explícito de ação que mais
se manifesta é o sobrenatural; nos demais, o motivo é racional, ficando o sobrenatural
um pouco latente (remissus). Da mesma forma, num pianista notamos mais a técnica,
mas pouquíssima inspiração; num outro, o inverso se dá. ― Os motivos de razão
inferior, que dizem respeito ao nosso bem estar, são mais ou menos explícitos, conforme
sejamos mais ou menos desapegados dessas preocupações; ou se, por sentirmo-nos
saudáveis, não temos porque ter tais preocupações.
Essas virtudes morais consistem num justo meio entre dois extremos, um por
excesso, outro por falta. Deste modo, a virtude da força leva-nos a guardar o justo meio
entre o medo, que nos faz fugir do perigo sem motivo razoável, e a temeridade, que nos
leva a correr perigo sem razão suficiente. Mal escutam falar deste justo meio, os
epicurianos e os tíbios crêem-se possuidores dele, mas não por amor à virtude, mas por
comodidade, para fugir dos inconvenientes dos vícios contrários. Confundem o justo
meio e a mediocridade, que se encontra não precisamente entre dois males contrários,
mas no meio do caminho entre o bem e o mal. A mediocridade ou a tibieza foge do bem
superior como a um extremo a se evitar; esconde sua preguiça sob o princípio: “o
melhor é às vezes inimigo do bem”, e termina por dizer: “o melhor é freqüentemente, se
não sempre, o inimigo do bem”. Assim, termina por confundir o bem com a
mediocridade.

O justo meio verdadeiro da verdadeira virtude não é tão-somente o meio entre


dois vícios contrários, mas também um pico. Ele se eleva como um ponto culminante
entre esses desvios opostos entre si; assim, a força está acima do medo e da temeridade;
a verdadeira prudência acima da imprudência e da astúcia; a magnanimidade acima da
pusilanimidade e da presunção vã e ambiciosa; a liberalidade acima da avareza ou
mesquinharia e da prodigalidade; a verdadeira religião acima da impiedade e da
superstição.

Esse justo meio, que ao mesmo tempo é um pico, tende ademais a elevar-se,
sem se desviar à direita nem à esquerda, à medida que a virtude cresce. Nesse sentido, o
crescimento da virtude infusa é superior ao da virtude adquirida correspondente, pois
aquela está subordinada a uma regra superior e visa a um objeto mais elevado.

Notemos enfim que os autores espirituais insistem particularmente, como o


Evangelho, em certas virtudes morais que têm ligação mais especial para com Deus,
uma afinidade com as virtudes teologais. Ei-las: a religião ou a piedade sólida; a
penitência, que presta a Deus o culto e a reparação que Lhe são devidas; a mansidão,
unida à paciência; a castidade perfeita, a virgindade e a humildade, virtude fundamental
que afasta o orgulho, princípio de todo pecado. A humildade, que nos rebaixa diante
Deus para elevar-nos acima da pusilanimidade e do orgulho, e dispor-nos à
contemplação das coisas divinas, em união com Deus. Humilibus Deus dat gratiam. É
aos humildes que Deus dá Sua graça, tornado-os humildes para cumulá-los. Jesus amava
dizer: «Recebei minha doutrina, pois sou manso e humildade de coração». Somente Ele,
tão assentado em Sua verdade, podia falar em humildade sem perdê-la.

Essas são as virtudes morais (infusas e adquiridas) que, com as virtudes


teologais às quais se subordinam, constituem nosso organismo espiritual. É um conjunto
de funções de grande harmonia, ainda que o pecado venial venha meter-lhe, com maior
ou menor freqüência, falsas notas. Todas as partes de tal organismo espiritual crescem
juntas, diz Santo Tomás, como os cinco dedos da mão. É o que prova que não podemos
ter uma grande caridade sem possuirmos uma profunda humildade, assim como o galho
mais alto duma árvore se eleva ao céu à medida que sua raiz aprofunda-se cada vez mais
no solo. Na vida interior, é preciso garantir que nada venha perturbar a harmonia desse
organismo espiritual, como ocorre, infelizmente, com aqueles que, mesmo vivendo em
estado de graça, parecem mais ocupados das ciências humanas ou das relações
exteriores que do crescimento na fé, na confiança e no amor de Deus.

Mas, para se fazer uma justa idéia do organismo espiritual, não basta conhecer
essas virtudes, mas ver como elas se dão sob a influência da graça atual, não ignorando
as diversas formas sob as quais se apresenta o socorro divino. É o que examinaremos
em breve.

Rome, Angelico.
(La vie spirituelle, 1/12/34, no. 183. Traduzido a partir de www.salve-
regina.com)

1. 1.Santo Tomás, I-II, q. 63, a. 4 : “Em que as virtudes morais


adquiridas são especialmente distintas das virtudes morais infusas?”
2. 2.Cf. Santo Tomás, I-II. q. 65, a. I. Os tomistas geralmente admitem
esta proposição: “Possunt esse sine caritate verae virtutes morales acquisitae stout
fuerunt in multis gentibus, sed imperfectae”.
3. 3.Cf. Santo Tomás, I II, q. 65, a. 2. No estado atual da humanidade,
todo homem está ou em estado de pecado mortal, ou em estado de graça. Com
efeito, desde a queda, o homem não pode amar eficazmente a Deus, autor de sua
natureza, mais que a si, sem a graça que o cura ― e essa não é realmente distinta da
graça santificante que eleva. Cf. Santo Tomás, II II, q. 109, a. 3.
4. 4.Clemente V, no Concilio de Viena (Denzinger, Enchiridion nº 483),
solucionou assim esta questão colocada sob Inocêncio III (Dent., n° 410): ― Utrum
fides, caritas, aliaeque virtutes, infundantur parvulis in baptismo. Ele responde : «
Nos autem attendentes generalem efficaciam mortis Christi, quae per baptisma
applicatur pariter omnibus baptizatis, opinionem secundam, quae dicit, tum parvuiis
quam adultis conferri in baptismo informantem gratiam et virtutes, tanquam
probabiliorem, et dictis Sanctorum et doctorum modernorum theologiae, magis
consonam et concordem, sacro approbante Concilio duximus eligendam.» Ora, por
tais palavras, Clemente V entende não somente as virtudes teologais, mas as
virtudes morais, pois delas também se tratava na questão feita sob Inocêncio III.
5. 5.I II, q.63, a. 3.
6. 6.Ibid, a.4.
7. 7.Ibid.
8. 8.I Cor., IX, 27.
9. 9.Efes., II, 19.
10. 10.Daí vem que o penitente conhece por experiência muito mais os
obstáculos a vencer que a virtude infusa da temperança, que acaba de receber e que
é de ordem por demais elevada para cair sob a apreensão da experiência sensível.
11. 11.No justo, a caridade comanda ou inspira o ato da temperança
adquirida pela intermediação do ato simultâneo da temperança infusa. E, ainda que
não produzam seus atos, quando essas virtudes se unem numa mesma faculdade, a
infusa confirma a adquirida.
Caridade e bem-aventuranças
Garrigou-Lagrange, OP
Introdução
A perfeição cristã, segundo o testemunho do Evangelho e das Epístolas,
consiste especialmente na caridade que nos une a Deus1. Essa virtude corresponde ao
maior dos Mandamentos, que é o do amor de Deus. Também foi dito: “quem permanece
na caridade, permanece em Deus, e Deus nele”2. E ainda: “sobretudo, porém, tende
caridade, que é o vínculo da perfeição”3.
Os teólogos perguntaram-se sobre se, para alcançar a perfeição propriamente
dita, não a dos iniciantes, ou a das almas em progresso, mas a que caracteriza a via
unitiva, seria preciso grande caridade, ou se poderia obtê-la sem grau elevado dessa
virtude.
Alguns autores4 sustentaram que não seria preciso alto grau de caridade para a
perfeição propriamente dita, visto que, segundo Santo Tomás “a caridade, mesmo em
grau inferior, é capaz de vencer todas as tentações”5. (Continue a ler)
Ao contrário, a maioria dos teólogos responde que a perfeição propriamente
dita obtém-se após longa prática das virtudes adquiridas e infusas, prática pela qual
crescem em intensidade6. Todo homem que chega à perfeição foi, antes, um iniciante e,
depois, uma alma em progresso. Nisso, a caridade não apenas se mostrou capaz de
vencer muitas tentações, mas de fato as venceu e, por isso, cresceu de modo notável.
Não se concebe, portanto, a perfeição cristã propriamente dita, a perfeição da via
unitiva, sem grande caridade7.
Se lêssemos o contrário nas obras de um São João da Cruz, por exemplo,
pensaríamos tratar-se de delírio ou de erro de impressão. Parece inteiramente certo que,
assim como para a idade adulta é preciso força física superior à da infância (muito
embora, acidentalmente, certos adolescentes particularmente vigorosos sejam mais
fortes que alguns adultos), assim também, para os perfeitos é preciso maior caridade que
para os iniciantes (ainda que, acidentalmente, alguns santos, já no início, tenham
caridade maior que alguns perfeitos já avançados em idade).
O ensino comum dos teólogos sobre esse ponto parece fundado claramente na
pregação mesma do Senhor, sobretudo na que fala das bem-aventuranças, em São
Mateus (capítulo V). Essa página do Evangelho exprime admiravelmente toda a
elevação da perfeição cristã, a que nos chama Jesus. O Sermão da Montanha é o resumo
da doutrina cristã, solene promulgação da Nova Lei, dada para aperfeiçoar a Lei
Mosaica e expurgá-la das interpretações abusivas. As oito bem-aventuranças anunciadas
no início são o resumo desse sermão. Condensam de modo admirável tudo o que
constitui o ideal da vida cristã e mostram toda sua elevação.
A primeira palavra de Jesus no Sermão é para prometer a felicidade e indicar-
nos os meios de alcançá-la. Por que começar falando da felicidade? Porque todos os
homens desejam-na naturalmente: é o que perseguem sem cessar, em tudo que querem;
no entanto, procuram-na amiúde onde ela não está, e só encontram miséria. Escutemos o
Senhor, que nos diz onde está a verdadeira e duradoura felicidade, onde está o fim de
nossas vidas, e que nos dá os meios de alcançá-la.
O fim indica-se em cada uma das oito bem-aventuranças; ele é, sob nomes
diversos, a bem-aventurança eterna, cujas primícias podem os justos desde agora
saborear; é o reino dos céus, a terra prometida, a perfeita consolação, a realização de
todos nossos desejos legítimos e santos, a suprema misericórdia, a visão de Deus, nosso
Pai.
Os meios vão de encontro a tudo que nos dizem as máximas da sabedoria do
mundo, as quais propõem um fim completamente diferente.
A ordem dessas oito bem-aventuranças foi admiravelmente explicada por
Santo Agostinho e Santo Tomás. É uma ordem ascendente, ao contrário da ordem do
Pai Nosso, que descende da consideração da glória de Deus à das nossas necessidades
pessoais e do pão nosso de cada dia. – As três primeiras bem-aventuranças tratam da
felicidade que se encontra na fuga e na libertação do pecado, na pobreza aceita por amor
de Deus, na docilidade e nas lágrimas de contrição. – As duas bem-aventuranças
seguintes são as da vida ativa do cristão: respondem à sede de justiça e à misericórdia
exercida para com o próximo. – Em seguida vêm as da contemplação dos mistérios de
Deus: a pureza de coração que dispõe à visão de Deus, e a paz que deriva da verdadeira
sabedoria. – Enfim, a última e a mais perfeita das bem-aventuranças é a que reúne as
precedentes no meio mesmo da perseguição padecida pela justiça; são as provações
finais, condição da santidade8.
Sigamos esta ordem ascendente para formarmos justa idéia da perfeição cristã,
evitando diminuí-la. Veremos que ultrapassa os limites da ascese ou do exercício das
virtudes segundo nossa própria industria ou atividade, e que comporta o exercício
eminente dos dons do Espírito Santo, cujo modo sobrehumano, quando se torna
frequente e manifesto, caracteriza a vida mística ou de docilidade ao Espírito Santo.
Santo Tomás, seguindo Santo Agostinho, ensina que as bem-aventuranças são
atos procedentes dos dons do Espírito Santo ou de virtudes aperfeiçoadas pelos dons9.

As bem-aventuranças da libertação do pecado


Elas correspondem à vida purgativa, que é própria dos iniciantes, e da qual não
se devem desviar as almas em progresso e os perfeitos.
Enquanto o mundo diz: a felicidade está na abundância dos bens exteriores, na
riqueza, nas honras, Nosso Senhor diz, sem hesitar, com a firme calma da verdade
absoluta: bem-aventurados os pobres de espírito, pois que deles é o reino dos céus.
Cada bem-aventurança possui seus graus: felizes os que se encontram na
pobreza sem queixumes, sem impaciência, sem inveja, mesmo se o pão lhes vem a
faltar, e que, ao trabalhar, põem sua confiança em Deus. Bem-aventurados os que, mais
afortunados, não têm contudo o espírito das riquezas, o fasto, o orgulho; mas estão
desapegados dos bens da terra. Ainda mais felizes são os que tudo deixam para seguir a
Jesus, que se fazem pobres voluntariamente e vivem segundo o espírito desta vocação;
receberão o cêntuplo na terra, e possuirão a vida eterna.
Esses pobres são os que, sob a inspiração do Dom de Temor [ou tudo
minúsculo], seguem a via inicialmente estreita, que se tornará a majestosa via do céu,
onde se dilatará cada vez mais a alma – enquanto a via larga do mundo conduz à geena
e à perdição. Diz Nosso Senhor noutro lugar: “Ai de vós que estais saciados! porque
vireis a ter fome”10. Por outro lado, bem-aventurada seja a pobreza, que, como
demonstra a vida de São Francisco de Assis, abre o reino de Deus, infinitamente
superior a todas as riquezas, às miseráveis riquezas em que o mundo procura sua
felicidade.
Bem-aventurados os pobres ou humildes de coração, que não reservam para si
nem os bens do corpo, nem os do espírito, nem reputação, nem honra, e que somente
buscam o reino de Deus.
Enquanto o desejo de riquezas divide os homens, engendra querelas, litígios,
violências e até guerra entre nações, diz Jesus: “bem-aventurados os mansos, porque
possuirão a terra”. Bem-aventurados os que não se irritam contra seus irmão, que não
procuram vingar-se dos seus inimigos, dominar os demais. “se alguém te ferir na tua
face direita, apresenta-lhe também a outra” (Mt 5, 39).
Bem-aventurados os mansos, que não julgam temerariamente, que não veem no
próximo rival a superar, mas irmão a ajudar, filho do mesmo Pai celeste. É o Dom de
Piedade que nos inspira essa mansidão, com filial afeição para com Deus, nosso Pai
comum.
Os mansos não se agarram com tenacidade ao seu próprio julgamento; falam
com simplicidade “sim sim, não não”, sem precisar jurar sobre o céu por coisa alguma
(Mt 5, 27).
Para ser assim, sobrenaturalmente manso, mesmo para com quem nos
desagrada, é preciso possuir grande união com Aquele que disse: “aprendei de mim, que
sou manso e humilde de coração”, com Aquele que não quebrou a cana quase rota, nem
apagou o pavio fumegante. A cana quase rota, é por vezes, diz Bossuet, o próximo
encolerizado, quebrado por sua própria cólera; é preciso não o terminar de quebrar,
vingando-se. Jesus foi comparado ao Cordeiro que se deixa conduzir ao matadouro sem
se queixar.
A mansidão de que se trata aqui não é aquela que não faz mal a ninguém
porque tem medo de tudo, mas é virtude que pressupõe grande amor de Deus e do
próximo; é a flor da caridade, como diz São Francisco de Sales. Ela dobra o valor do
serviço prestado, e chega a tudo dizer, a dar conselhos, reprimendas, pois que aqueles
que os recebem notam que se inspiram de grande amor. Bem-aventurados os mansos,
porque possuirão a terra, a verdadeira terra prometida, e já possuem santamente os
corações que se confiam a eles.
Enquanto o mundo diz: a felicidade está nos prazeres, diz ainda Jesus: “Bem-
aventurados os que choram, porque serão consolados”. Do mesmo modo, foi dito ao
rico mau: “recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, ao contrário recebeu males;
por isso ele é agora consolado, e tu és atormentado” (Lc 16, 25).
Bem-aventurados os que, como o mendigo Lázaro, sofrem com paciência, sem
consolação dos homens; as suas lágrimas veem-nas Deus. Mais felizes ainda são os que
choram os seus pecados; os que, por inspiração do Dom de Ciência, conhecem
experimentalmente que o pecado é o maior dos males, e que, por suas lágrimas, obtêm o
perdão. Enfim, mais felizes ainda, diz Santa Catarina de Sena 11, são os que choram de
amor à vista da infinita misericórdia, da bondade do Salvador, da ternura do bom Pastor,
que se sacrifica por suas ovelhas. Estes recebem, desde aqui embaixo, consolação
infinitamente superior à que o mundo pode dar.
Tais são bem-aventuranças que se encontram na fuga e na libertação do
pecado.

As bem-aventuranças da vida ativa do cristão


Há outras santas alegrias que o justo experimenta, quando, desembaraçado do
mal, se volta de todo coração para o bem.
O homem de ação que se deixa levar pelo orgulho diz: bem-aventurado o que
vive e age como quer, que não se submete a ninguém, e se impõe aos demais.
Jesus diz: “bem-aventurado os que têm fome e sede de justiça, porque serão
saciados”. A justiça, no sentido principal da palavra, consiste, primeiro, em dar a Deus
o que se lhe deve, e, em seguida, em dar à criatura o que se lhe deve, por amor de Deus.
Como recompensa disso, o Senhor, Ele mesmo, dá-se a nós. Essa é a ordem perfeita, na
perfeita obediência, inspirada pelo amor que dilata o coração.
Bem-aventurados os que desejam essa justiça, a ponto de ter fome e sede dela.
Serão saciados em certo sentido nesta vida, tornando-se mais justos e santos.
Bem-aventurada esta sede: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. O que
crê em mim, como diz a Escritura, do seu seio correrão rios de água viva.” 12. Mas,
para guardar esta sede, quando o entusiasmo sensível diminui, para guardar esta fome
de justiça, no meio de contradições, dificuldades, desilusões, é preciso receber
docilmente as inspirações do Dom da Força, que nos impede enfraquecer ou deixar
abater, e que aumenta nossa coragem no meio das dificuldades.
“O Senhor, diz Santo Tomás, quer ver-nos famintos desta justiça a ponto de
não podermos jamais satisfazer-nos nesta vida, assim como o avaro jamais está farto de
ouro...”. Essas almas famintas “satisfar-se-ão apenas na visão eterna, e, diz ele ainda,
sobre a terra, com os bens espirituais”. Ele acrescenta: “quando os homens estão em
estado de pecado, não sentem absolutamente essa fome espiritual; quando estão puros
de todo pecado, então eles a sentem” 13.
Esta fome e sede de justiça não se devem acompanhar, na vida do cristão, de
zelo amargo contra os culpados. Jesus também diz: “Bem-aventurados os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” Na nossa vida, como em Deus,
justiça e misericórdia devem unir-se. Para sermos perfeitos, devemos partir como o bom
Samaritano em socorro do afligido, do doente. O Senhor dará o cêntuplo a quem der um
copo d’água por amor dele, a quem chamar a sua mesa os pobres, os estropiados, os
cegos, como na parábola dos convidados. O cristão deve regozijar-se mais ao dar do que
ao receber. Deve perdoar, isto é, dar ainda mais àqueles que o ofenderam. Deve
esquecer-se das injúrias e, antes de fazer oferendas perante o altar, reconciliar-se com
seu irmão. O Dom de Conselho inclina-nos à misericórdia, faz-nos atentos aos
sofrimentos dos demais, faz-nos encontrar o remédio verdadeiro, a palavra que consola
e que ergue.
Se nossas ações fossem inspiradas frequentemente por estas duas virtudes,
justiça e misericórdia, e pelos dons que lhe correspondem, nossa alma encontraria desde
aqui embaixo uma santa alegria, e verdadeiramente se disporia a entrar na intimidade de
Deus.

As bem-aventuranças da contemplação e da união a Deus.


Os filósofos pensaram que a felicidade consistiria no conhecimento da verdade,
sobretudo da verdade suprema. É o que ensinam Platão e Aristóteles. Porém, pouco
preocuparam-se com a pureza do coração, e suas vidas, em mais de um ponto,
contradisseram as suas doutrinas. Jesus disse-nos: “Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus”. Ele não disse: bem-aventurados os que receberam
poderoso intelecto, os que têm o ócio e os meios de cultivá-lo, não, mas: bem-
aventurados os puros de coração, ainda que [intelectualmente] menos dotados que
muitos outros. Se tiverem o coração puro, verão a Deus. Um coração verdadeiramente
puro é como a água límpida de um lago, em que o azul do céu se reflete, ou como um
espelho espiritual onde se reproduz a imagem de Deus.
Mas, para que o coração seja verdadeiramente puro, impõe-se generosa
mortificação. “Se o teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o para
longe de ti (...). E se tua mão direita é para ti causa de queda, corta-a e lança-a para
longe de ti.” (Mt 5, 29-30). É preciso zelar em especial pela pureza de intenção. Não dar
esmolas por ostentação, não rezar para atrair a estima dos demais; buscar apenas a
aprovação do “Pai que está no recôndito”. Então se realizará a palavra do Mestre: “Se o
teu olho for são, todo o teu corpo terá luz” (Mt 6, 22)
Desde aqui embaixo, o católico verá Deus de algum modo no próximo, mesmo
nas almas que inicialmente lhe pareciam contrárias; verá em certo sentido nas Sagradas
Escrituras, na vida da Igreja, nas circunstâncias de sua própria vida e mesmo nas
provações, em que encontrará lições da Providência, como aplicação prática do
Evangelho. Ora, é essa, sob inspiração do Dom de Inteligência, a verdadeira
contemplação que nos dispõe àquela, pela qual veremos propriamente Deus, face a face,
em sua bondade e beleza infinitas; então todos nossos desejos serão atendidos, e
estaremos como embriagados por uma torrente de delícias espirituais.
Desde aqui embaixo a contemplação de Deus deve ser fecunda; ela dá paz, e
paz radiante, como diz a sétima bem-aventurança: “Bem-aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus”. Esta bem-aventurança, dizem Santo Agostinho
e Santo Tomás, corresponde ao Dom de Sabedoria, que nos faz provar os mistérios da
salvação, e ver de algum modo todas as coisas em Deus. As inspirações do Espírito
Santo, às quais este dom nos faz dóceis, manifestam-nos, pouco a pouco, a ordem
admirável do plano providencial, mesmo lá, e por vezes sobretudo lá, onde fomos
inicialmente desconcertados, nas coisas desagradáveis e imprevistas, permitidas por
Deus em ordem a um bem superior. Ora, não seria possível entrever dessa maneira os
desígnios da Providência, que dirige nossa vida, sem experimentar a paz, que é a
tranquilidade da ordem.
A fim de não se deixar perturbar pelos acontecimentos desagradáveis e
inesperados, a fim de tudo receber da mão de Deus, como meio ou ocasião de caminhar
ao seu encontro, é preciso grande docilidade para com o Espírito Santo, que quer dar-
nos progressivamente a contemplação das coisas divinas, condição de união com Deus.
Foi para isso que recebemos no batismo o Dom de Sabedoria, que cresce em nós na
Crisma e pela comunhão frequente. As inspirações do Dom de Sabedoria dão paz
radiante, não apenas para nós, mas para o próximo; ela faz-nos pessoas pacíficas;
ajudam-nos a pacificar as almas atribuladas, a amar nossos inimigos, a encontrar
palavras de reconciliação que fazem cessar as querelas. Essa paz, que o mundo não pode
dar, é a marca dos verdadeiros filhos de Deus, que, por assim dizer, jamais afastam o
pensamento de seu Pai celeste. Santo Tomás diz ainda dessas bem-aventuranças: sunt
quaedam inchoatio imperfecta futurae beatitudinis (“elas são como o prelúdio da bem-
aventurança futura”)14.
Enfim, na oitava bem-aventurança, a mais perfeita de todas, Nosso Senhor
mostra que tudo que acaba de dizer confirma-se fortemente pela provação suportada
com amor: “bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque
deles é o reino dos céus”. Trata-se sobretudo das últimas provações, condição da
santidade.
Essa palavra surpreendente jamais fora escutada. Não apenas promete a
felicidade futura, mas diz que devemos julgar-nos felizes ainda que entre aflições e
perseguições padecidas pela justiça. Bem-aventurança absolutamente sobrenatural, que
na prática não se compreende senão pelas almas esclarecidas na fé.
Há muitos graus nesta bem-aventurança, desde o bom católico que sofre por ter
feito o bem, ou por ter dado bom exemplo, até o mártir que morre pela fé. Essa bem-
aventurança aplica-se àqueles que, convertidos a vida melhor, não encontram senão
obstáculos a seu redor; aplica-se ainda ao apóstolo cuja ação é impedida por aqueles
mesmos que quer salvar, quando não se lhe perdoa o ter proclamado muito claramente a
verdade do Evangelho. Países inteiros suportam por vezes essa perseguição, como a
Vendéia, sob a Revolução francesa; ou, em outras épocas, a Armênia, a Polônia, o
México.
Essa é a mais perfeita das bem-aventuranças. É a dos que mais se veem
marcados em seu coração por Jesus crucificado. Permanecer humilde, manso,
misericordioso em meio à perseguição, mesmo para com os próprios perseguidores, e,
nestes tormentos, não apenas conservar a paz, mas comunicá-la aos demais, é realmente
a plena perfeição de vida cristã. Ela realiza-se sobretudo nas últimas provações em que
sucumbem as almas perfeitas que Deus purifica fazendo-as trabalhar pela salvação do
próximo. Nem todos os santos foram mártires, mas, em diversas medidas, sofreram
perseguição pela justiça, e conheceram algo deste martírio de coração que fez de Maria
a Mãe das dores.
Jesus insiste sobre a recompensa prometida aos que assim padecerem pela
justiça: “Bem-aventurados sois quando vos insultarem e vos perseguirem, e disserem
falsamente todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque é
grande a vossa recompensa nos céus”.
Destas palavras nasceu na alma dos apóstolos o desejo do martírio, que
inspirou as sublimes palavras de um Santo André, de um Santo Inácio de Antioquia.
São elas que renascem em São Francisco de Assis, em São Domingos, em São Bento-
José Labre. Por isso foram “o sal da terra”, “a luz do mundo” e suas casas, construídas
não sobre a areia, mas sobre a rocha, padeceram todos os flagelos, mas não caíram.
Estas bem-aventuranças, que são, como diz Santo Tomás 15, atos superiores
dos dons ou das virtudes aperfeiçoadas pelos dons, ultrapassam a simples ascese, e são
de ordem mística. Pelo que se pode dizer que a plena perfeição da vida cristã é
normalmente de ordem mística; é o prelúdio da vida do céu, em que o cristão será
“perfeito como o Pai celestial é perfeito”, vendo-O como Ele se vê e amando-O como
Ele se ama.
Escreve Santa Teresa: “É preciso, dizem alguns livros, ter indiferença ao mal
que de nós se diz, até mesmo alegrar-se mais do que se falassem bem de nós, devemos
fazer pouco caso da honra, ser muito desapegados dos nossos próximos... e muitas
coisas da mesma natureza. Em minha opinião, tudo isso é puro dom de Deus, estes bens
são sobrenaturais” 16. Noutras palavras, ultrapassam a simples ascese ou o exercício das
virtudes segundo nossa própria industria ou atividade: são frutos de grande docilidade às
inspirações do Espírito Santo. Diz ela ainda: “Se amarmos as honrarias e os bens
temporais, debalde praticaremos anos a fio a oração, ou, para dizer melhor, a meditação,
pois jamais avançaremos muito; a perfeita oração, ao contrário, livra destas falhas” 17.
Isso significa que, sem a perfeita oração, jamais alcançaremos a plena
perfeição da vida cristã.
É isso o que diz também o autor da Imitação (livro III, cap. XXV, sobre a
verdadeira paz):
“Se alcançares o perfeito desprezo de ti mesmo, gozarás de paz tão profunda
quanto é possível nesta vida de exílio”.
É por isso que, na mesma obra (livro III, cap. XXXI), o discípulo pede a graça
superior da contemplação:
“Senhor, careço de graça maior, se devo chegar a isto de nenhuma criatura me
servir de obstáculo... aspirava a esta liberdade, aquele que disse: Oh! se eu tivesse asas
como a pomba, levantaria voo e encontraria descanso! (Sl 54, 7). Quem não está
inteiramente livre de toda criatura, não poderá aplicar-se com liberdade às coisas
divinas. Por isso é que encontramos tão poucos contemplativos, pois poucos são os que
sabem se subtrair às criaturas morredouras. Para tanto, é preciso grande graça, que erga
a alma e a roube para além de si mesma. Enquanto o homem não está assim, elevado em
espírito, livre das criaturas e todo unido a Deus, tudo o que sabe, tudo o que é, não tem
grande valor.”
Este capítulo da Imitação é com propriedade de ordem mística, e mostra que é
somente lá que se encontra a verdadeira perfeição do amor de Deus.
Santa Catarina de Sena fala do mesmo modo no seu Diálogo (capítulos 44 a
49). E é este, como vimos, o ensinamento de Nosso Senhor quando nos prega as bem-
aventuranças, tais como as compreendeu Santo Agostinho 18 e Santo Tomás, como atos
elevados dos dons do Espírito Santo ou das virtudes aperfeiçoadas pelos dons. É este
verdadeiramente o pleno desenvolvimento normal do organismo espiritual ou da “graça
das virtudes e dos dons”.

(La Vie Spirituelle no. 196, janeiro de 1936. - Tradução: Permanência)


1. 1.Cf. S. Tomás, IIa IIae, q. 184, a. 1.
2. 2.1Jo 4, 16.
3. 3.Cl 3, 14.
4. 4.Entre eles, é preciso citar Suarez, de Statu perfectionis, 1. 1, c. 4, nº.
11, 12, 20. Essa opinião invocaram alguns que não queriam admitir que a perfeição
cristã requer grande caridade e os dons do Espírito Santo em grau proporcional; em
outras palavras, que a contemplação infusa procedente da fé viva iluminada pelos
dons está na via normal da santidade e é como que o prelúdio normal da visão
beatífica.
5. 5.Cf. III Sent., d. 31, q. 1, a. 3; IIIa q. 62, a. 6, ad 3.
6. 6.Cf. S. Tomás, IIa IIae, q. 24, a. 9.
7. 7.IIa IIae, q. 184, a. 3.
8. 8.Em São Lucas, VI, 20-22, mencionam-se apenas quatro bem-
aventuranças; mas, entre elas, encontra-se a mais elevada, a daqueles que sofrem a
perseguição pela justiça; ela aparece após a dos pobres, a dos que tem fome de
justiça e a dos que choram.
9. 9.Santo Tomás, seguindo Santo Agostinho, ensina que as bem-
aventuranças são atos que procedem dos dons do Espírito Santo ou das virtudes
aperfeiçoadas pelos dons. Ia IIae, q. 69, a. 1. E também, no Comentário ao
Evangelho de São Mateus, cap. 5, 3: “Ista merita (beatitudinum) vel sunt actus
donorum, vel actus virtutum secundum quod perficiuntur a donis.” Como Santo
Agostinho, Santo Tomás indica neste Comentário qual dom corresponde a cada
bem-aventurança. Também o faz na Suma Teológica, lá onde trata de cada um dos
sete dons em particular. Resumiremos aqui esse ensinamento.
10. 10.Lc 6, 25.
11. 11.Diálogo, cap. 89.
12. 12.Jo 7, 38.
13. 13.S. Tomás, in Matth., V, 6, diz: Vult Dominus quod ita, anhelemus
ad istam justitiam, quod numquam quasi satiemur in vita ista, sicut avarus numquam
satiatur... Saturabuntur in aeterna visione... et in praesenti in bonis spiritualibus... --
Quando homines sunt in peccato, non sentiunt famem spiritualem, sed quando
dimittunt peccata, tund sentiunt.”
14. 14.Cf. Ia IIae, q. 69, a. 2.
15. 15.Ia IIae, q. 69, a. 2; in Matth., 5, 1 sq.
16. 16.Vida, cap. XXXI; Obras, t. 1, p. 257.
17. 17.Caminho de Perfeição.
18. 18.Cf. S. Agostinho: In Sermonem Domini in monte (Matth., V) --
Item De quantitate animae, l. I, c. 33; Confessiones, IX, c. 10; Soliloquia, I, c. 1, 12,
13.

Como devemos nos abandonar à Providência?

fr. Reg. Garrigou-Lagrange, O. P.

Em outro momento, disséramos porque devíamos nos confiar e abandonar à


Providência: por causa de sua sabedoria e bondade, temos de sempre nos dirigir a ela,
de corpo e alma, sob a condição do cumprimento do deveres cotidianos e da lembrança
de que, se permanecermos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça para o sermos
nas grandes.

Vejamos agora como devemos nos confiar e abandonar à Providência, segundo


a natureza dos acontecimentos que dependem ou não da vontade humana, do espírito
desse abandono e das virtudes em que se deve inspirar.

DOS DIFERENTES MODOS DE SE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA

SEGUNDO A NATUREZA DOS ACONTECIMENTOS1


Para entender esta doutrina da santa indiferença, convém notar, como amiúde o
fazem os autores espirituais2, que o abandono não se deve exercer do mesmo modo em
face dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, das injustiças dos
homens e das faltas e suas conseqüências.
Caso sejam fatos que não dependam da vontade humana, como acidentes de
impossível previsão, doenças incuráveis, o abandono nunca seria demais. Seria inútil a
resistência, e só serviria para nos infelicitar; por sua vez, a aceitação em espírito de fé,
confiança e amor conferirá grandes méritos a esses sofrimentos inevitáveis3
. Em circunstâncias dolorosas, cada vez que se diga fiat, haverá novos méritos;
a verdadeira provação tornar-se-á santificante. Mais ainda, no abandono lucraremos as
provações possíveis, que talvez não se abatam sobre nós, como lucrou Abraão ao se
preparar com perfeito abandono para a imolação do filho, a qual o Senhor depois não
mais exigiu. A prática do abandono modifica as provações atuais ou futuras em meios
de santificação, e tanto mais quanto for tal prática inspirada por um imenso amor a
Deus.
Caso sejam sofrimentos provindos da injustiça dos homens, da malícia, dos
maus atos, das calúnias, que fazer? Falando acerca das injúrias, das admoestações
imerecidas e afrontas, das detrações que atingem nossa pessoa, diz São Tomás4 que é
mister estar preparado para suportá-las com paciência, segundo as palavras de Nosso
Senhor: “Se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt. 5, 39).
Algumas vezes, acrescenta ele, convém responder, seja pelo bem de quem insulta, para
reprimir sua audácia, seja para evitar o escândalo que poderia nascer das detrações ou
calúnias. Se acreditamos no dever da resposta e assim no da resistência, façamo-lo
recomendando-nos ao Senhor para a felicidade da empresa.
Em outras palavras, devemos lamentar e reprovar tais injustiças, não porque
ferem o amor-próprio ou o orgulho, mas porque são ofensa a Deus e comprometem a
salvação de culpados e escandalizados. No que respeita a nós, devemos vislumbrar na
humana injustiça a justiça divina que nos deu ocasião de expiar outras faltas, reais, que
ninguém nos reprova. Convém considerar nessa provação a misericórdia divina, que por
isso quisera nos separar das criaturas, livrar das afeições desordenadas, do orgulho, da
tibieza, defrontando-nos com a necessidade premente de recorrer à oração de súplica
fervorosa. Por vezes, as injustiças são, no ponto de vista espiritual, como cortes de
bisturi dolorosíssimos, mas libertadores. Os sofrimentos causados devem mostrar o
preço da justiça verdadeira, para nos inclinar não apenas a praticá-la em face do
próximo, mas engendrar a beatitude nos que tem sede e fome de justiça e serão saciados
– como consta no Evangelho.
O desprezo dos homens, em lugar de produzir a perturbação ou amargura, pode
ser grandemente salutar, e revelar a vaidade da glória humana, em contraste com a
beleza da glória divina, como bem entenderam os santos. Esse é o caminho que leva à
verdadeira humildade, e faz aceitar e amar o ser tratado como pessoa digna de desprezo.

Finalmente, caso sejam inconvenientes de outros gêneros, resultados não da


alheia injustiça contra nós, mas de nossas próprias faltas, imprudências ou fraquezas,
que fazer?

Dentre as faltas e suas conseqüências, há de se distinguir o que existe de


desordenado, de culpável e de humilhação salutar. A despeito do que diga o amor-
próprio, não saberíamos penitenciar o bastante o desregramento da alma como injúria
feita contra Deus e contra a mesma alma, não raro com prejuízo da alma do próximo.
Quanto à humilhação salutar que daí resulta, devemos aceitá-la com total abandono,
como se diz no Salmo 118, 71-75: “Bonum mihi, quia humiliasti me, Domine, ut
discam justificationes tuas... Cognovi, Domine, quia aequitas judicia tua, et in veritate
tua humiliasti me... – Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus
estatutos. Melhor é para mim a lei da tua boca do que milhares de outro ou prata. As
tuas mãos me fizeram e me formaram; dá-me inteligência para entender os teus
mandamentos. Os que te temem alegraram-se quando me viram, porque tenho esperado
na tua palavra. Bem sei eu, ó Senhor, que os teus juízos são justos, e que segundo a tua
fidelidade, me afligiste”.

A humilhação que resulta das faltas é o verdadeiro remédio contra a estima


exagerada de nós mesmos, estima conservada malgrado o desapreço ou desprezo que
outrem nos manifesta. Sob a humilhação que vem de fora, podemos endurecer por
orgulho, queimar-nos o incenso que nos é recusado. É uma das formas mais sutis e
perigosas do amor-próprio e do orgulho. Quer corrigir-nos a misericórdia divina, por
meio da humilhação oriunda das próprias faltas; em sua bondade, ele as faz se
disputarem contra si, de modo a avançarmos; deste modo, enquanto nos aplicamos, é
forçoso aceitar as humilhações com abandono perfeito. Bonum mihi, quia humiliasti
me, Domine... Esta é a via que conduz à prática da palavra profunda da Imitação, tão
fecunda para quem realmente a compreende. Amare nesciri et pro nihilo reputari: Amar
ser ignorado e reputado como nada. Há de se viver dessa doutrina, segundo a natureza
dos acontecimentos, dependam eles ou não de nós.

COMO SE DEVE ABANDONAR À PROVIDÊNCIA?

Como dizem os quietistas, seria este um espírito que amesquinha a esperança


de salvação, sob pretexto de alta perfeição?

Muito ao contrário, deve este ser um grande espírito de fé, de confiança e de


amor.

A vontade de Deus, traduzida em seus mandamentos, é de que esperemos nele,


obrando com confiança a nossa salvação, quaisquer que sejam os obstáculos; essa
vontade está no domínio da obediência, e não no do abandono. A vontade de abandono
respeita ao bel prazer da vontade de Deus, com relação ao futuro incerto e aos fatos que
acontecem diariamente no curso da vida, como a saúde, a doença, o sucesso e os
infortúnios5.
Sob o pretexto da perfeição, sacrificar a salvação, a beatitude eterna, seria algo
absolutamente contrário à inclinação natural à felicidade, inclinação que, semelhante à
nossa natureza, vem de Deus. Seria contrário à esperança cristã, não apenas àquela dos
fiéis, mas a dos santos que, durante as maiores provações, heroicamente esperaram
“contra toda esperança humana”, segundo aquilo de São Paulo, quando tudo parecia
perdido. Enfim, tal sacrifício da beatitude eterna seria contrária a mesma caridade cristã,
que nos faz amar a Deus por si mesmo, e desejá-lo possuir para glorificá-lo pela
eternidade.

A inclinação natural, que vem de Deus e nos faz desejar a felicidade, não é
desordenada, pois já ela impulsiona o amar a Deus, soberano bem, mais que a nós
mesmos. Demonstrou-o São Tomás: Assim, disse ele, no organismo a mão está
naturalmente inclinada para amar o todo acima de si, e caso seja necessário, para se
sacrificar. Assim a galinha, por instinto, junta os pintinhos sob as asas, como disse
Nosso Senhor, e caso seja necessário, se sacrifica para preservá-los do gavião; porque
ama inconscientemente o bem da espécie, mais que a si mesma. Essa inclinação natural
existe no homem, sob uma forma superior. Amando o bem do que é superior em si, o
homem ama mais ainda o Criador; cessar de querer a perfeição e a salvação é desviar-se
de Deus. Não há como sacrificar o desejo de salvação ou de beatitude eterna, sob o
pretexto de alta perfeição, como pensaram os quietistas.

Longe disso, o abandono a Deus é exercício excelente das três virtudes


teologais, da fé, da esperança e da caridade, por assim dizer mescladas uma nas outras.

É verdade afirmar que Deus purifica o desejo de salvação, o amor-próprio que


nele se mescla, por meio das incertezas que ele permite nos acometam, obrigando-nos a
amá-lo mais à puridade.

É preciso abandonar-se a Deus com espírito de fé, acreditando que, como diz
São Paulo (Rm. 8, 28), tudo concorre para o bem na vida daqueles que amam a Deus e
que perseveram no seu amor. Este ato de fé é o mesmo do santo homem Jó, que ao ficar
privado dos bens e dos filhos, permaneceu submisso a Deus, ao declarar: O
Senhor deu, o Senhor tirou, que seja louvado o nome do Senhor (Jó 1, 21).

Foi desta forma que Abraão preparou-se para obedecer a Deus, que lhe
ordenava a imolação do filho; e foi com grande fé e boa vontade que abandonava o
devir de sua raça à vontade divina. Recorda-o São Paulo, ao escrever na Epístola aos
Hebreus 11, 17: “Pela fé ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado; sim, aquele que
recebera as promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-lhe dito: Em Isaque será
chamada a tua descendência, considerou que Deus era poderoso para até dentre os
mortos o ressuscitar”.

Claro, nossas provações são bem menores, apesar de parecer às vezes pesadas,
por causa da fraqueza.

Pelo menos, a exemplo dos santos, acreditamos que o Senhor em tudo obra o
bem, seja enviando a humilhação e a secura, seja nos cumulando de honrarias e
consolações. Como nota o pe. Piny, não há fé maior e mais viva do que acreditar que
Deus dispõe tudo para o bem das almas, mesmo que pareça destruí-las, e lhes desfazer
os melhores desejos; mesmo que permita a calúnia, a degradação irreversível da saúde
ou coisas ainda mais dolorosas. Eis uma grande fé, pois é acreditar no que parece menos
crível: que Deus eleva ao rebaixar; e não somente de modo abstrato e teórico, senão que
de modo prático e vivido. É experimentar o que diz o Evangelho: “Quem se eleva
(como o fariseu) será humilhado; quem se humilha (como o publicano) será elevado”
(Lc. 18, 14). É viver a palavra do Magnificat: “Deposuit potentes de sede, et exaltavit
humiles; esurientes implevit bonis, et divites dimisit inanes – O Senhor abateu os
orgulhosos, e elevou os humildes; encheude bens os famintos, e os ricos despediu-os
com as mãos vazias” (Lc. 1, 52). Devemos todos ser pequenos pela humildade, e
famintos dum vivo desejo pela verdade divina, que é o verdadeiro pão da alma.

Cumprindo os deveres cotidianos, devemos nos abandonar ao Senhor com


espírito varonil de fé. É mister fazê-lo com confiança filial em sua paternal bondade. A
confiança (fiducia ou confidentia) é, afirma São Tomás, a firme ou forte esperança que
vem da grande fé na bondade de Deus, autor da salvação. O motivo formal da esperança
é a bondade de Deus, sempre caridosa, segundo as promessas, Deus auxilians.
“Bem-aventurado, cantam os salmos, os que confiam no Senhor” (Sl. 2, 12).
“Os que confiam nele são como a montanha de Sião; ela não se abala, porque
permanece sempre sobre sua base” (Sl. 124, 1). “Conserva-me, Senhor, porque espero
em vós” (Sl. 15, 1). “Vós sois o meu refúgio, jamais serei confundido” (Sl. 30, 1).

Escrevendo sobre Abraão, que mau-grado a idade avançadíssima, acreditou na


promessa divina, de que se tornaria pai de inumeráveis nações, diz São Paulo (Rm. 40
18): “Em esperança, creu contra toda esperança; ...não duvidou da promessa de Deus
por incredulidade, mas foi fortificado na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo
de que o que ele tinha prometido também era poderoso para fazer”.

De igual modo, cumprindo nosso dever cotidiano, devemos esperar de Nosso


Senhor a realização de sua palavra: “As minhas ovelhas conhecem a minha voz, e eu
conheço-as, e elas me seguem... ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo. 10, 28).
Como nota o pe. Piny: depois de cumprir com siso o dever, o abandonar-se
confiadamente nas mãos do Senhor é ser de fato ovelha. Aquiescer sempre com suas
ordens; rezar com amor para que tenha piedade de nós; arrojar-se confiante nos braços
da misericórdia com faltas e remorsos – não é a melhor forma de escutar a voz do Bom
Pastor? Depor em seu seio todos os temores do passado e do futuro, num
santo abandono que, longe de se opor à esperança, constitui-se em sacratíssima
confiança filial, unida ao amor purificante.

Consiste o amor puríssimo no alimentar-se da vontade de Deus, a exemplo de


Nosso Senhor, que disse: O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e de
cumprir sua obra” (Jo. 4, 34). “Não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que
me enviou” (Jo. 5, 30). “Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade” (Jo. 6, 38).
Não existe modo mais nobre, mais perfeito, mais puro de amar a Deus, senão fazer da
divina vontade a minha, cumprindo sua vontade positiva e abandonando-se em seguida
a seu bel prazer. Para as almas que seguem esse caminho. Deus é tudo; no final, podem
afirmar: Deus meus et omnia. Deus é o centro, e só nele estão em paz, ao submeter
todas as aspirações a seu bel prazer, ao aceitar tranqüilamente tudo que ele faz. Nos
momentos mais difíceis, Santa Catarina de Sena recordava-se desta palavra do Mestre:
“Pensa em mim, que eu pensarei em ti”.

Raras são almas que chegam a tal perfeição. Mas é mister tentar. São Francisco
de Sales escreve: “Nosso Senhor ama com amor delicadíssimo aqueles felizes que se
abandonam à divina providência sem divagar em considerações acerca da natureza,
aproveitável ou danosa, dos efeitos dessa providência; estão certos de que nada se
enviaria do amantíssimo coração paternal, nem que tal seria permitido acontecer, de que
não lucrassem o bem e a utilidade, uma vez que depositamos nele toda a confiança...
Quando (no cumprimento do dever cotidiano) nos abandonamos de todo à providência
divina, Nosso Senhor cuida de tudo e nos conduz... A alma está junto dele como um
menino junto à mãe; quando ela o põe no chão para caminhar, ele o faz até que sua mãe
o pegue novamente no colo; quando ela o quer carregar, ele se larga em seus braços:
não diz nada nem pensa para onde vão, mas se deixa levar ou conduzir para onde praz à
sua mãe. Igualmente para esta alma, que ama a vontade do bel prazer de Deus em tudo o
que lhe acontece, e se deixa levar, e não obstante caminha, cumprindo denodadamente o
que é da vontade de Deus positiva.” A exemplo de Nosso Senhor, pode dizer
verdadeiramente: “O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai”; é aí que ela encontra
a paz, aquela paz que já mora em nós, como vida eterna começada, “inchoatio vitae
aeternae”.
La Vie Spirituelle Septembre 1931 n°143

Tradução: Permanência
Fonte: www.salve-regina.com
1. 1.São FRANCISCO DE SALES, L'Amour de Dieu, livro VIII, cap. v,
e 1. IX, cap. I a VII.
2. 2.São FRANCISCO DE SALES, L'Amour de Dieu, loc. cit., e
Entretiens II e XV. - DE CAUSSADE, Abandon, t.11, p. 279. Apêndice, 2° p. Cf.
Dom VITAL LEHODEY. Le Saint Abandon,' Paris, Amat, 1919, 3ª parte: O
abandono no que respeita aos bens naturais do corpo (saúde e doença) e da alma
(distribuição desigual dos dons naturais), aos bens da opinião (humilhações,
perseguições), aos bens espirituais essenciais (graça e glória), às variedades
espirituais da via comum (os insucessos e as faltas, as provações, as consolações), às
variedades espirituais na via mística...
3. 3.Provações existiram que tranformaram vidas, como as que se vêem
na biografia do pe. Girard, intitulada Vinte e Dois Anos de Martírio. Após seu
diaconato, a tuberculose óssea acometeu esse santo padre, a qual o imobilizou por
vinte e dois anos sobre uma cama, onde sofrera crudelissimamente e oferecera todos
os dias tais sofrimentos aos padres de sua geração. Ele, que padecia a dor de nunca
poder celebrar a missa, unia-se deste modo, diariamente, ao sacrifício de Nosso
Senhor perpetuado no altar. A doença, em vez de destruir a vocação, transfigurou-a.
4. 4.IIa IIae Q.72 a.3, et q.73, a. 3, ad 3um
5. 5.Cf. São FRANCISCO de SALES, Amour de Dieu, t. ils:, c. v, e
B0SSUET, États d'oraison, 1. VIII, 9
Da obrigação de tender à perfeição

Exposta a natureza da vida cristã e a sua perfeição, resta-nos examinar se há


para nós verdadeira obrigação de progredir nesta vida, ou se não basta guardá-la
preciosamente como se guarda um tesouro. Para responder com mais precisão,
examinaremos esta questão relativamente a três categorias de pessoas: 1° os simples
fiéis ou cristãos; 2° os religiosos; 3° os sacerdotes, insistindo neste último ponto, por
causa do fim especial que nos propomos.

ART. I Da obrigação que têm os cristãos de tender à perfeição1

Exporemos: 1° a obrigação em si mesma; 2° os motivos que tornam este dever


mais fácil.

§ I. Da obrigação propriamente dita

Em matéria tão delicada importa usar da maior exatidão possível. É certo que é
necessário e suficiente morrer em estado de graça, para ser salvo; parece, pois, que não
haverá para os fiéis outra obrigação estrita mais que a de conservar o estado de graça.
Mas, precisamente, a questão é saber se pode alguém conservar por tempo notável o
estado de graça, sem se esforçar para fazer progressos. Ora, a autoridade e a razão
iluminada pela fé mostram-nos que, no estado de natureza decaída, ninguém pode
permanecer muito tempo no estado de graça, sem fazer esforços para progredir na vida
espiritual, e praticar de vez em quando alguns dos conselhos evangélicos.

I. O argumento de autoridade

1° A Sagrada Escritura não trata diretamente esta questão: depois de assentado


o princípio geral da distinção entre os preceitos e os conselhos, não diz geralmente o
que nas exortações de Nosso Senhor Jesus Cristo, é obrigatório ou não. Mas insiste
tanto na santidade que convém aos cristãos, põe-nos diante dos olhos um ideal tão algo
de perfeição, prega tão abertamente a todos a necessidade da abnegação e da caridade,
elementos essenciais da perfeição, que, para qualquer espírito imparcial, se infere a
convicção de que, para salvar a alma, é necessário, em certos momentos fazer mais do
que o estritamente mandado, e, por conseqüência, esforçar-se por progredir.

A) Assim, Nosso Senhor apresenta-nos como ideal de santidade a mesma


perfeição do nosso Pai celestial: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é
perfeito: Estote ergo vos perfecti, sicut et Pater vester coelestis perfectus est” 2; assim
pois, todos os que têm a Deus por Pai, devem-se aproximar da perfeição divina; o que
não se pode evidentemente fazer sem algum progresso. E, em última análise, todo o
sermão do monte não é mais que o comentário, o desenvolvimento deste ideal. — o
caminho para isso é o da abnegação, da imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo e do
amor de Deus: “Se alguém vem a mim, e não odeia (isto é, não sacrifica) o seu pai, a
sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos e até mesmo a sua própria vida,
não pode ser meu discípulo: Si quis venit ad me, et non odit patrem suum et matrem et
uxorem et filios et fratres, adhuc autem et animam suam, non potest meus esse
discipulus”3. É necessário, pois, em certos casos, preferir Deus e a sua vontade ao amor
de seus pais, de sua mulher, de seus filhos, de sua própria vida e sacrificar tudo, para
seguir a Jesus: o que supõe coragem heróica, que não se possuirá no momento crítico, se
a alma se não foi preparando para isso por meio de sacrifícios de superrogação. Não há
dúvida que este caminho é estreito e dificultoso, e muitos poucos o seguem; mas Jesus
quer que se façam sérios esforços para entrar pela porta estreita “Contendite intrare per
angustam portam”4. Não será isto reclamar que tendamos à perfeição?

B) Os Apóstolos não usam de linguagem diversa; S. Paulo lembra muitas vezes


aos fiéis que foram escolhidos para serem santos: “ut essemus sancti et immaculati in
conspectu eius in caritate”5: o que certamente não podem fazer, sem se despojarem do
homem velho e revestirem do novo, isto é, sem mortificarem as tendências da natureza
perversa e sem se esmerarem em reproduzir as virtudes de Jesus Cristo. Ora isso é lhes
impossível, ajunta São Paulo, sem se esforçarem por chegar “à medida do completo
crescimento da plenitude de Cristo, donec ocurramus omnes... in virum perfectum, in
mensuram aetatis plenitudinis Christi”6; o que quer dizer que estando incorporados em
Cristo, somos seu complemento, e a nós nos cumpre pelo progresso na imitação das
suas virtudes, fazê-lo crescer, completá-lo. São Pedro quer também que todos os seus
discípulos sejam santos como aquele que os chamou à salvação: “secundum eum qui
vocavit vos Sanctum et ipsi in omni conversatione sancti sitis”7. Podem-no acaso ser, se
não progridem na prática das virtudes cristãs? São João, no último capítulo do
Apocalipse, convida os justos a não cessarem de praticar a justiça e os santos a
santificarem-se ainda mais: “Qui iustus est, iustificetur adhuc, et sanctus sanctificetur
adhuc”8.

C) É isto mesmo o que se infere ainda da natureza da vida cristã que, no dizer
de Nosso Senhor Jesus Cristo e de seus discípulos, é um combate, em que a vigilância e
a oração, a mortificação e o exercício positivo das virtudes são necessários para alcançar
a vitória: “Vigiai e orai, para não entrardes em tentação: vigilate et orate ut non intretis
in tentationem”9... Tendo de lutar não somente contra a carne e o sangue, isto é, contra
a tríplice concupiscência, senão ainda contra os demônios que a atiçam em nós,
necessitamos de nos armar espiritualmente e combater com valor. Ora, numa luta
prolongada, a derrota é quase fatal para quem se conserva unicamente na defensiva; é
mister, pois, recorrer aos contra-ataques, isto é, a prática das virtudes, à vigilância, à
mortificação, ao espírito da fé e confiança.

É esta exatamente a conclusão que tira São Paulo, quando, depois de haver
descrito a luta que temos de sustentar, declara que devemos estar armados dos pés à
cabeça, como o soldado romano, os rins cingidos da verdade, revestidos da couraça da
justiça, e as sandálias nos pés, prontos a anunciar o Evangelho da paz, com o escudo da
fé, o capacete da salvação e a espada do Espírito: State ergo succinti lumbos vestros in
veritate, et induti loricam iustitae, et calceati pedes in praeparatione evangelii pacis; in
omnibus sumentes scutum fidei... et galeam saluis assumite et salutis assumite et
gladium Spiritu”10... E com isto nos mostra que, para triunfar dos nossos adversários, é
necessário fazer mais do que o estritamente prescrito.

2° A Tradição confirma esta doutrina. Quando os Santos Padres querem insistir


sobre a necessidade da perfeição de todos, dizem-nos que no caminho que conduz a
Deus e à salvação, não se pode ficar estacionário: é forçoso avançar ou recuar: “in via
Dei non progredi, regredi est”.

Assim, Santo Agostinho, fazendo notar que a caridade é ativa, adverte-nos que
não devemos parar no caminho, precisamente porque, parar é recuar: retro redit qui ad
ea revolvitur unde iam necesserat”11, e o seu adversário, Pelágio, admitia o mesmo
princípio; tal é a sua evidência! E o último dos Padres, São Bernardo, expõe esta
doutrina de forma empolgante. “Não queres progredir? — Não — Queres então recuar?
— De modo nenhum. — Que queres então? — Quero viver de tal maneira que fique no
ponto aonde cheguei... — Queres o impossível, pois que neste mundo nada permanece
no mesmo estado...”12. E noutra parte acrescenta: “É absolutamente necessário subir ou
descer; se se tenta parar, cai-se infalivelmente”13. E assim o Papa Pio XI, na sua
Encíclica de 26 de janeiro de 1932, sobre São Francisco de Sales, declara
peremptoriamente que todos os cristãos, sem exceção, têm obrigação de tender à
santidade”14.

II. O argumento da razão

A razão fundamental, pela qual nos é necessária tender à perfeição, é sem


dúvida a que nos dão os Santos Padres.

1° Toda a vida, sendo como é um movimento, é essencialmente progressiva,


neste sentido que, quando cessa de crescer, começa a enfraquecer. E a razão disto é que
há, em todo o ser vivo, forças de desagregação que, se não são neutralizadas, acabam
por produzir a doença e a morte. O mesmo se passa em nossa vida espiritual: ao lado
das tendências que nos levam para o bem, há outras, muito ativas, que nos arrastam para
o mal; para as combater, o único meio eficaz é aumentar em nós as forças vivas, isto é,
o amor de Deus e as virtudes cristãs; então as tendências más vão enfraquecendo.
Mas, se deixamos de fazer esforços por avançar, os nossos vícios acordam,
retomam forças, atacam-nos com mais viveza e freqüência; e, se não despertamos do
nosso torpor chega o momento em que, de capitulação em capitulação, caímos no
pecado mortal15. É esta, infelizmente, a história de muitas almas, como bem o sabem os
diretores experimentados.

Uma comparação no-lo fará compreender. Para alcançarmos a salvação, temos


que vencer uma corrente mais ou menos violenta, a das nossas paixões desordenadas,
que nos levam para o mal. Enquanto fizermos esforço para impelir a nossa barca para a
frente, conseguiremos subir a corrente ou ao menos contrabalançá-la; no dia em que
cessarmos de remar, seremos arrastados pela corrente, e recuaremos para o Oceano,
onde nos esperam as tempestades, isto é, as tentações graves e talvez quedas
lamentáveis.

2° Há preceitos graves que não se podem observar em certos momentos senão


por meio de atos heróicos. Ora, em conformidade com as leis psicológicas, ninguém é
geralmente capaz de praticar atos heróicos, se não se foi antecipadamente preparando
para isso com alguns sacrifícios, ou, por outros termos, com atos de mortificação. Para
tornarmos esta verdade mais tangível, demos alguns exemplos. Tomemos o preceito da
castidade, e vejamos o que ele exige de esforços generosos, por vezes heróicos, para ser
guardado toda a vida. Até o casamento (e muitos jovens não se casam antes dos 28 ou
30 anos), é a continência absoluta que é necessário praticar sob pena de pecado mortal.
Ora, as tentações graves começam para quase todos com os anos da puberdade, às vezes
antes; para lhes resistir vitoriosamente, é preciso orar, abster-se de leituras,
representações, ou relações perigosas, penitenciar-se das menores capitulações e
aproveitar-se dos seus desfalecimentos, para se levantar imediata e generosamente, e
tudo isto durante um longo período da vida. Não supõe acaso tudo isto esforços mais
que ordinários, algumas obras de super rogação? Contraído que for o matrimonio,
ninguém fica ao abrigo das tentações graves. Há períodos em que é força praticar a
continência conjugal; ora, para o fazer, é preciso coragem heróica, que não se adquire
senão com o longo hábito da mortificação do prazer sensual, e pelo exercício constante
da oração.
Tomem-se agora as leis da justiça nas transações financeiras, comerciais e
industriais, e reflita-se no sem-número de ocasiões, que se apresentam, de a violar, na
dificuldade de praticar a honradez perfeita num meio em que a concorrência e a cobiça
fazem subir os preços além dos limites permitidos, e ver-se-á que, para um homem
permanecer simplesmente honrado, precisa duma soma de esforços e de abnegação mais
que ordinária. Será porventura capaz desses esforços quem se acostumou a não respeitar
mais que as prescrições graves, quem se permitiu com a sua consciência pactuações, a
princípio leves, depois mais sérias e por fim perturbadoras? Para evitar esse perigo, não
será necessário fazer um pouco mais do que é estritamente mandado, a fim de que a
vontade, fortificada por estes atos generosos, tenha vigor suficiente para não se deixar
arrastar a atos de injustiça?

Verifica-se, pois, de todos os lados esta lei moral que para não cair em pecado,
é necessário evitar o perigo por meio de atos generosos, que não são diretamente objeto
de preceito. Por outros termos, para acertar no alvo, é mister fazer a pontaria mais alto;
e, para não perder a graça, é necessário fortificar a vontade contra as tentações perigosas
por meio de obras de super-rogaçao, numa palavra, aspirar a uma certa perfeição.

§ II. Dos motivos que tornam este dever mais fácil

Os numerosos motivos, que podem levar os simples fiéis a tender à perfeição,


reduzem-se a três principais: 1° o bem da própria alma; 2° a glória de Deus; 3° a
edificação do próximo.

1° O bem da própria alma é, antes de tudo, a segurança da salvação, a


multiplicação dos méritos, e por fim as alegrias da consciência.
A) A grande obra que temos de levar a cabo na terra, a obra necessária, e, a
bem dizer, a única necessária, é a salvação da nossa alma. Se a salvarmos, ainda quando
percamos todos os bens da terra, parentes, amigos, reputação, riqueza, tudo fica salvo;
no céu encontraremos, centuplicado, tudo quanto perdemos, e para toda a eternidade.
Ora, o meio mais eficaz para assegurar a salvação da alma, é tender à perfeição, cada
um segundo o seu estado; quanto mais o fazemos, com discrição e constância, tanto
mais nos afastamos, por isso mesmo, do pecado mortal, única força que nos pode
condenar. E na verdade, é evidente que, quando alguém se esforça sinceramente por se
ir aperfeiçoando, desvia por isso mesmo as ocasiões de pecado, fortifica a vontade
contra as surpresas que o espiam, e, chegado o momento da tentação, a vontade, já
aguerrida pelo esforço para conseguir a perfeição, acostumada a orar para assegurar a
graça de Deus, repele com horror o pensamento do pecado grave: potius mori quam
foedari. Quem, pelo contrário, se permite a si mesmo tudo o que não é falta grave
expõe-se a cair, quando se apresentar uma violenta e longa tentação: habituado a ceder
ao prazer em coisas menos graves, é de recear que, arrastado pela paixão, termine por
sucumbir, como o homem que vai costeando continuamente o abismo acaba por se
despenhar.

Para não corrermos perigo de ofender a Deus gravemente, o melhor meio é


afastar-nos das bordas do precipício, fazendo mais do que é preceituado, esforçando-nos
por avançar para a perfeição; quanto mais a ela tendermos com prudência e humildade,
tanto mais segura teremos a salvação eterna.

B) Por esse meio aumentam-se também cada dia os graus de graça habitual que
se possuem e os de glória a que se tem direito. Vimos, efetivamente, que todo o esforço
sobrenatural, que por Deus faz uma alma em estado de graça lhe granjeia um aumento
de méritos. Quem não se importa da perfeição e cumpre o seu dever com mais ou menos
desleixo, poucos merecimentos adquire, como dissemos, n° 24. Quem tende, porém, à
perfeição e se esforça por avançar, alcança larga cópia de merecimentos. Assim, cada
dia aumenta o capital de graça e de glória; os seus dias de méritos: cada esforço tem
como recompensa um aumento de graça na terra e mais tarde um peso imenso de glória,
“aeternum gloriae pondus operatur in nobis”16.
C) Se se quer prelibar um pouco de felicidade na terra, nada melhor que a
piedade que, como diz São Paulo, “é útil para tudo e tem promessas para a vida
presente e futura: pietas autem ad omnia utilis est, promissionem habens vitae quae
nunc est et futurae”17.

A paz da alma, a alegria da boa consciência, a felicidade de estar unido a Deus,


de progredir em seu amor de chegar a maior intimidade com Nosso Senhor Jesus Cristo,
tais são algumas das recompensas com que Deus favorece desde agora os seus fiéis
servos, no meio das suas provações, com a esperança tão confortada da eterna
felicidade.

2° A glória de Deus. Nada mais nobre que procurá-la, nada mais justo, se nos
lembrarmos do que Deus fez e não cessa de fazer por nós. Ora, uma alma perfeita dá
mais glória a Deus que mil almas vulgares porque multiplica de dia para dia os seus atos
de amor, reconhecimento e reparação, orienta nesse sentido a sua vida inteira pelo
oferecimento muitas vezes renovado das suas ações ordinárias, e assim glorifica a Deus,
de manhã até a noite.

3° A edificação do próximo. Para fazer bem à roda de nós, converter alguns


pecadores ou incrédulos e confirmar no bem as almas vacilantes, não há nada mais
eficaz que os esforços que se emprega para melhor viver o Cristianismo: quanto a
mediocridade da vida atrai sobre a religião as crítica dos incrédulos, tanto a verdadeira
santidade excita a sua admiração para com uma religião que é capaz de produzir tais
efeitos: É pelo fruto que se conhece a árvore: “ex fructibus eorum cognoscetis eos”18.
A melhor apologética é a do exemplo, quando se lhe sabe juntar a prática de todos os
deveres sociais. E é também um excelente estímulo para os medíocres, que adormeciam
na indolência, se os progressos das almas fervorosas os não viessem arrancar do seu
torpor.
Muitas almas hoje em dia são acessíveis a este motivo: neste século de
proselitismo, os leigos compreendem melhor que outrora a necessidade de defender e
propagar a fé pela palavra e pelo exemplo. Compete aos sacerdotes favorecer este
movimento, formando à sua roda um escol de cristãos esforçados que, não contentes
duma vida medíocre e vulgar, se esmerem por avançar cada dia no cumprimento de
todos os seus deveres, deveres religiosos em primeiro lugar, mas também deveres
cívicos e sociais. Serão excelentes colaboradores que, penetrando em meios pouco
acessíveis a religiosos e sacerdotes, os auxiliarão eficazmente no exercício do
apostolado.

(Adolph Tanquerey, A Vida Espiritual Explicada e Comentada, cap. IV, art. I)

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1. 1.Álvarez de Paz, op. cit. L. IV-V; Le Gaudier, P. III, sect. I, c. VII-


X; Scaramelli, Guide ascétique, Traité I, art. II; Ribet, Ascétique, ch. VII-IX; Ighina,
op. cit., Introd., XX-XXX.
2. 2.Mt. 5, 48.
3. 3.Lc. 14, 26-27; cf. Mt. 10,37-38.
4. 4.Lc. 13, 24; Mt. 7, 13-14.
5. 5.Ef. 1, 4.
6. 6.Ef. 4, 10-16 Ler todo esse passo.
7. 7.I Pd1, 15.
8. 8.Ap. 22, 11.
9. 9.Mt. 26, 41.
10. 10.Ef. 6, 14-17.
11. 11.Sermo CLXIX n. 18.
12. 12.Epist. CCLIV ad abbatem Suarinum, n. 4.
13. 13.Epist. XCI ad abates Suessione congregatos, n. 3.
14. 14.“Nec vero quisquam putet ad paucos quosdam lectissimos id
pertinere, ceterisque in inferiore quodam virtutis gradu licere consistere. Tenentur
enim hac lege omnes, nullo excepto”. (A. A. S. XV, 50).
15. 15.É esta a doutrina comum dos teólogos, que assim resume
Suarez, De Religione, t. IV, L. I, c. 4, n. 12: “Vix potest moraliter contingere ut
homo etiam saecularis habbeat firmum propositum nunquam peccandi mortaliter,
quin consequenter nonnula opera supererogationis faciat, et habeat formale vel
virtuale propositum illa faciendi”.
16. 16.II Cor. 4, 17.
17. 17.I Tim. 4, 8.
18. 18.Mt. 7, 20.

Dever de reparação
Pe. Garrigou-Lagrange, OP
“Alter alterius onera portate”.

Levais os fardos uns dos outros

Gl 6.

Tratamos recentemente do dever do reconhecimento, convém falar agora do


dever de reparação. A reparação da ofensa feita a Deus é geralmente chamada em
teologia de “satisfação”. Os fiéis instruídos costumam conhecer suficientemente bem a
doutrina do mérito; porém, é menos conhecida a doutrina da satisfação ou reparação,
que, se lembra a do mérito, dela difere, contudo. Os fiéis crêem firmemente que Jesus
satisfez por nós em estrita justiça, que a Santíssima Virgem satisfez por nós de uma
satisfação de conveniência; mas conhecem menos o lugar que a satisfação deve ocupar
nas nossas vidas.

Lembremos sobre esse ponto os princípios; veremos em seguida como o


católico em estado de graça pode satisfazer ou reparar por si e pelo próximo. (Continue
a leitura)
Princípios desta doutrina

Os princípios deste ensinamento expõem-se, em teologia, quando se trata do


mistério da redenção e, em seguida, no tratado do pecado, da pena que lhe é devida e no
tratado da penitência. Estes princípios foram revelados e todo fiel adere a ele
firmemente pela fé; podemos assim resumi-los.

Se mérito é direito a recompensa, direito do justo à vida eterna, enquanto


permanece em estado de graça, e à aumento da caridade, a satisfação é reparação a uma
ofensa feita a Deus pelo pecado. Esta ofensa nada tira de Deus de sua glória essencial,
de sua beatitude, mas da sua glória exterior, de sua influência, de seu reino sobre nós.
O pecado mortal como ofensa nega na prática a dignidade infinita de Deus
como fim último ou bem soberano, posto que prefere um mísero bem finito a Ele. Foi
preciso a Incarnação do Verbo e seu ato de amor teândrico para que houvesse uma
satisfação perfeita ou adequada da ofensa feita a Deus pelo pecado mortal. Jesus satisfez
por nós em estrita justiça, oferecendo a Deus, sobre a cruz, como diz Santo Tomás: “Um
ato de amor que lhe agradasse mais do que todos pecados reunidos lhe desagradam.”
Reparou assim a ofensa feita a Deus, e aqueles a quem se aplicam seus méritos e sua
satisfação, são reconciliados, justificados, o pecado lhes é apagado, bem como a pena
eterna devida ao pecado mortal. A Santíssima Virgem satisfez por nós de uma satisfação
de conveniência, fundada na caridade ou na mui intima amizade sobrenatural que a unia
a Deus Pai e ao seu Filho. Todo bom católico conhece esta doutrina. Mas não se dá
normalmente atenção o bastante à satisfação ou reparação que deve haver na vida do
justo, a quem já foram perdoados os pecados.

O Concílio de Trento ensina, e isto está muito relacionado com a doutrina


revelada sobre o purgatório, que, mesmo quando o pecado mortal nos foi perdoado e,
com ele, a pena eterna que lhe é devida, pode restar, e frequentemente resta, uma pena
temporal que deve ser paga nesta vida ou depois desta vida, no purgatório. Se a não
pagamos nesta vida, merecendo, tirando proveito das missas e indulgências, pagaremos
no purgatório, sem mérito, sem crescer na caridade. Ademais, o purgatório é
propriamente uma pena; não pode portanto ser infringida senão por uma falta, que
poderia ser evitada e que poderia ter sido expiada na terra. Assim, os melhores católicos
fazem boa parte do seu purgatório antes de sua morte.

Esta doutrina da reparação se funda, como o mostra santo Tomás, ao tratar


da pena devida ao pecado, na definição mesma do pecado. Há no pecado, quando
mortal, dois aspectos. Primeiramente, por ele desviamo-nos de Deus, nosso fim último,
e, então, se morremos nesse estado, mereceremos ser eternamente privados de Deus. Em
outros termos: se morremos nesse estado, a desordem habitual do pecado grave dura
para sempre e a pena da privação de Deus que lhe é devida, também dura para sempre.
Se, ao contrário, o pecado mortal é perdoado pela conversão que restitui o estado de
graça, a pena eterna devida ao pecado também é perdoada!
Mas há no pecado mortal um segundo aspecto: não apenas nos desviamos de
Deus, mas nos voltamos para um bem perecível, e o preferimos a Deus.

Há, pois, dupla desordem moral, que pede dupla pena. O pecador não apenas
se afasta de Deus, mas prefere algo a Deus, isto é, prefere seu gozo pessoal ao reino de
Deus; esta segunda desordem pede, também ela, uma reparação. A justiça exige que o
pecador que preferiu um bem temporal a Deus seja privado de um bem temporal ou
padeça uma pena temporal.

O pecado venial que nos liga imoderadamente a um bem passageiro merece


também uma pena temporal do mesmo gênero, porém mais ligeira.

Tudo isso se concebe muito facilmente: a vontade que se conforma


demasiadamente consigo mesma, contra a ordem divina, deve reparar esta transgressão
de modo a reconhecer o valor da ordem divina. Do mesmo modo, a vontade que viola a
ordem da consciência é punida pelos remorsos de consciência. Ainda do mesmo modo,
a vontade que viola a ordem social e suas leis deve ser submetida a uma pena que o
magistrado guardião desta ordem social infringirá. É o que demonstra são Tomás1.
Platão também, num de seus mais belos diálogos, Górgias, após ter demonstrado que é
melhor sofrer uma injustiça que cometê-la, acrescenta que o maior dos males que pode
ocorrer a um criminoso, após seu crime, é seguir impune, uma vez que, dessa maneira,
não retorna à ordem da justiça. Ele deveria, diz Platão, vir acusar-se perante os juízes, e
demandar a pena que mereceu para assim retornar à ordem da justiça, após a ter violado.
Idéia sublime, inspirada por tradições religiosas que de longe anunciavam, por assim
dizer, o que haveria de ser a reparação no mistério da Redenção e no sacramento da
penitência.
Na vida do justo, a graça santificante possibilita satisfazer por si mesmo e
pelos outros a pena temporal devida ao pecado já perdoado; quem o faz, abrevia em
muito o seu purgatório. Ora, como pode o justo satisfazer por si mesmo, e pelos outros?

Como o justo pode satisfazer por si mesmo ?


Ele o pode fazer de dois modos: primeiro, pela penitência sacramental,
assistindo Missas, ganhando indulgências; segundo, por suas próprias boas obras (ex
opere operantis), na medida em que tenham, em graus diversos, um aspecto penoso,
necessário à satisfação, que se acrescenta ao mérito.
A penitência sacramental feita em estado de graça produz imediatamente seu
efeito santificante, mas é proporcionado ao nosso fervor e, frequentemente, uma parte
da pena temporal ainda resta a ser paga.

A missa a que assistimos ou que é dita por nós, obtém certamente a remissão
total ou parcial da pena temporal devida aos pecados já remidos.

O ganho de indulgências também é obra de satisfação, serve para pagar a


dívida da pena temporal pelos pecados perdoados. Seu principal valor vem do poder de
Chaves da Igreja.

Como podemos, ademais, satisfazer ou reparar nesta vida por meio da


prática de boas obras (ex opere operantis)?
É preciso, antes de mais nada, que estas sejam obras meritórias, ou seja,
moralmente boas, livres, feitas em estado de graça e, como peregrino, por um motivo
sobrenatural. Para que sejam satisfatórias, é preciso ainda que, além do mérito, elas
tenham um aspecto mais ou menos penoso, isto é, que impliquem numa renuncia, num
esforço, num sacrifício. Isto santo Tomás explica muito bem, quer se trate da satisfação
que se junta aos méritos de Cristo, ou aos de Maria, ou que se junta aos nossos próprios
méritos. Diz ele: “A satisfação, para reparar pelos pecados passados e obter a remissão
da pena temporal que nos é devida, deve ser penosa. O pecador subtraiu de Deus a
glória exterior que lhe é devida; a ordem e a justiça reclamam que, em troca, alguma
coisa seja subtraída do pecador, que alguma pena lhe seja imposta”2. É preciso,
portanto, para satisfazer, fazer algo de penoso, carregar sua cruz, morrer para alguma
coisa; muitos esqueceram-se disso nestes últimos anos, antes da derrota; cuidava-se até
mesmo para que a mortificação fosse reduzida estritamente ao mínimo, e até a fazer
com que desaparecesse completamente. Foi então que Nosso Senhor impôs novos
sofrimentos com a guerra: foi preciso tornar a virtude necessária, foi preciso sofrer
muito3.
Assim como a caridade, a obra mais satisfatória será a mais penosa, a que
mais se assemelhar à cruz do Salvador. Não obstante, se a diminuição da dificuldade
provém precisamente de uma maior caridade, ela não diminui o valor da satisfação;
neste caso, é uma dificuldade subjetiva que se diminui com o progresso da caridade; não
uma dificuldade objetiva; esta provém do caráter mesmo do objeto, que exige uma
grande generosidade, como ocorre no martírio.

Entre as obras penosas que a Igreja recomenda como satisfação ou


reparação, deve-se contar o jejum, a abstinência, as vigílias, a paciência nas
contrariedades e provações, suportar sofrimentos, a aceitação da morte e das angústias
que podem acompanhá-la. “Possuir sua alma na paciência”, é agir. São Tomás diz
mesmo que o ato principal da virtude da fortaleza não é a ofensiva ou o ataque, mas
suportar perseverante coisas penosas, a constância nas provações, como se vê nos
mártires.

As cruzes escondidas, suportadas em silêncio por longo tempo, muitas vezes


são mais meritórias e satisfatórias que brilhantes ações heróicas de um momento. A este
propósito, convém aconselhar a bela oração de São Pio X para a aceitação antecipada da
morte e de todos os sofrimentos físicos e morais que a precederão e acompanharão4.
As boas obras, mais ou menos penosas, diminuem nosso purgatório e, pelo
mérito que implicam, aumentam em nós a vida da graça e a felicidade do céu. Quanto a
isso, é preciso lembrar que um ato muito generoso de caridade, com o valor de dez
talentos, vale mais que dez atos fracos de um talento; com efeito, estes últimos estão
mais ou menos mesclados de tibieza; a qualidade aqui sobrepõe-se a quantidade. O
santo cura d’Ars devia merecer e reparar mais que todos seus paroquianos juntos.

Como pode o justo satisfazer pelo próximo?

Todos os fiéis conhecem esta doutrina de fé, que o justo pode fazer celebrar
missas e ganhar indulgências pelos defuntos, e que pode também pagar por um outro
justo a pena temporal devida aos pecados já remidos. Com efeito, diz são Paulo: “Levais
os fardos uns dos outros”5. São Tomás explica6 e nota que, se os credores humanos
admitem que uns paguem as dívidas de outros, ainda mais o admitirá o Senhor;
sobretudo se consideramos que sofrer por outrém supõe maior caridade que sofrer por si
mesmo. Sofrer por outrém grave dor de cabeça de três ou quatro horas satisfaz mais que
sofrer por si mesmo algo mais penoso.
Se é a caridade que move, o justo pode portanto satisfazer pelo seu próximo.

Aqueles que confiam a Maria tudo o que se possa comunicar nas suas boas
obras meritórias e satisfatórias e nas suas orações, encarregam-na de o distribuir a seu
gosto. Ela o faz com muito maior sabedoria do que nós, pois vê, em Deus, quais de
nossos parentes ou amigos, nessa vida ou no purgatório, mais precisam de socorro.

Se não fazemos este ato e se não designamos alguma pessoa, é provável que
Deus aplique estas satisfações àqueles que nos são mais caros.

É assim que os justos podem sofrer com proveito pelo próximo, e participam
eles mesmos nas satisfações das almas mais generosas, nas almas vítimas que, nas mais
trágicas horas, multiplicam-se pelo mundo, para pagar por seus pecados7. É o Senhor
quem as suscita, quem lhes dá esta vocação sublime, quem lhes sustenta por vinte e
trinta anos num leito de sofrimentos, como o demonstra a vida do santo padre Gérard,
da diocese de Sées, escrita por Myriam de G., intitulada “Vinte dois anos de martírio”;
este padre santo, torturado ao longo de tantos anos pela tuberculose dos ossos, oferecia
cada dia seus sofrimentos pelos padres de sua geração e de sua diocese. Levaram-no
seis vezes a Lourdes; ele compreendeu que a santa Virgem não o curaria, mas, apesar as
grandes dores que a viagem lhe causavam, desejava retornar a Lourdes mais umas seis
vezes, não para pedir sua cura, mas pela conversão dos pecadores. Almas vítimas, mais
numerosas do que pensamos, trabalham neste momento, à exemplo de Nosso Senhor e
de Maria, pela pacificação do mundo.
Os sofrimentos do justo devem assim mais e mais se assemelhar à cruz de
Jesus. Há três tipos muito diferentes de cruzes: a cruz do mau ladrão foi uma cruz
perdida; há muitos sofrimentos perdidos no mundo, pois não são padecidos
cristianamente; a cruz do bom ladrão lhe foi útil, ele pôde ouvir: “Estarás comigo esta
noite no paraíso”; a cruz de Jesus foi redentora, não para ele, mas para nós. E quanto
mais os santos se aproximam do Salvador, mais as suas cruzes assemelham-se à dele,
mais são fecundas e, nas horas de maior tribulação, como as de agora 8, são eles, por
seus sofrimentos aceitos por amor, que carregam o mundo e lhe permitem durar.
A fecundidade da vida de reparação não cessou de se manifestar nos santos
ao longo dos séculos. A exemplo de Nosso Senhor, os Apóstolos selaram seu
testemunho com seu sangue e, durante os três primeiro séculos da Igreja, o sangue dos
mártires não cessou de suscitar novos católicos.

Na Idade Média, são Francisco recebeu os dolorosos estigmas da Paixão do


Salvador, são Domingos se flagelava três vezes a cada noite, pelos seus próprios
pecados, pelos pecadores que iria evangelizar no dia seguinte e pelas almas do
purgatório; ele quis que, na sua Ordem, além do estudo, da oração e do apostolado,
fossem observadas práticas penitenciais.

Este mesmo espírito se verifica nos grandes reformadores do século XIV:


são Carlos Borromeu, santa Teresa, santo João da Cruz, santo Inácio. São Vicente de
Paulo, no meio de seus duros trabalhos, aceita sofrer para libertar um teólogo das
dúvidas que o tormentavam e, ele mesmo, durante quatro anos tem de superar
heroicamente uma forte tentação contra a fé, o que multiplicou suas forças e tornou sua
união com Deus ainda mais firme.

No século XVIII, são Paulo da Cruz funda a Ordem dos Passionistas,


consagrada à reparação e, ele mesmo, ainda que já tivesse atingido uma união muito
íntima com Deus com a idade de trinta anos, atravessa quarenta e cinco anos de
sofrimentos interiores ininterruptos pela conversão dos pecadores. Na mesma época, são
Geraldo Maggela, filho espiritual de santo Afonso, é prevenido, por uma inspiração, que
receberá uma oportunidade de se tornar santo, e deve estar atento para não perdê-la;
pouco após, é gravemente caluniado, o que lhe acarreta uma sanção muito severa: é
privado da comunhão; ele tudo aceita por amor de Deus. Meses depois, a calunia é
descoberta, seu superior lhe pergunta: “Por que o senhor não se defendeu?” Ele
responde: “Meu padre, está dito na sua Regra que não devemos nos escusar quando
somos injustamente repreendidos”. Na mesma época ainda, são Bento-José Labre é
modelo completo de vida reparadora.
Por vezes, são as crianças que, movidas por uma inspiração divina,
compreendem todo o preço do sofrimento aceito por amor. Nos últimos anos, em Roma,
sob Pio XI, uma criança de seis anos e meio, Antonietta Meo, cuja vida já se publicou 9,
com câncer na perna, aceita muito generosamente a amputação pelas grandes intenções
da Igreja, e diz a seu pai, após a operação, no meio de muitas dores: “Papai, a dor é
como o pano; quanto mais resistente, melhor; assim, quanto mais forte a dor, melhor se
a aceitamos com amor pela conversão dos pecadores”.
Estes elevados exemplos nos são dados de tempos em tempos para nos tirar
de nossa sonolência, e nos convidar a oferecer mais generosamente as contrariedades ou
penas que se nos apresentam para reparar as ofensas cometidas contra Deus por nossas
próprias faltas, e trabalhar pela conversão das almas, na medida em que o Senhor de
toda eternidade quis para cada um de nós 10.
(Tradução: Permanência - Fonte: La vie spirituelle 277)

1. 1.Ia IIae, Q. 87. De poena peccato debita.


2. 2.Supp., Q. 15, a. 1.
3. 3.Quanto a isso, os escoteiros da França, no dia 15 de agosto, deram
um belo exemplo, ao fazer boa parte de sua peregrinação de Puy à pé e descalços,
com uma perseverança e uma fé admirável, promissora.
4. 4.«Senhor, meu Deus, a partir de hoje, de coração tranqüilo e
submisso, aceito de vossa mão o gênero de morte que vos agradará me enviar, com
todas as suas angústias, todas as suas penas e todas as suas dores». Indulgência
plenária na hora da morte a todos os que recitarem esta oração após a santa
comunhão.
5. 5.Gl 6, 2.
6. 6.Supp., Q. 13, a. 2.
7. 7.Lembramo-nos da personagem Violaine, da peça L’annonce fait à
Marie, de Paul Claudel, virgem contaminada com a lepra, que se oferece como
vítima pela França na época do grande cisma.
8. 8.Nota do tradutor: Estava a França ocupada pela Alemanha nazista
quando foi escrito o presente artigo.
9. 9.«Fiaccola romana» por Myriam de G., editora Berutti, Torino;
prefácio do cardeal Piazza.
10. 10.Ao término de sua peregrinação a Notre-Dame du Puy, os
peregrinos diziam no seu Caminho da Cruz: “Senhor, por nossos pecados,
aceitamos, a fome, o frio, a pobreza”.
11. Dos pecados que se devem evitar, suas raízes e conseqüências.
12. Como ensina São Gregório Magno e, depois dele, Santo Tomás, os
pecados capitais de vanglória ou vaidade, preguiça, inveja, ira, gula e luxúria não são os
mais graves de todos, pois maiores são os de heresia, apostasia, desesperação e de ódio
a Deus; mas são os primeiros a que se inclina nosso coração, levando-nos a nos afastar
de Deus e a cometer outras faltas ainda mais graves. O homem não chega à perversão
absoluta de uma vez, mas pouco a pouco. Examinemos primeiro, em si mesma, a raiz
dos sete pecados capitais. Todos eles se originam no amor desordenado de si mesmo ou
egoísmo, que nos impede de amar a Deus sobre todas as coisas e inclina a nos
apartarmos dele. É evidente que pecamos, i. e., que nos desviamos de Deus e nos
afastamos dele cada vez que tendemos para um bem criado, indo contra a vontade
divina.
13. Isto é a conseqüência fatal de um amor desordenado de nós mesmos, que
vem a ser a fonte de todo pecado. Por conseguinte, não só é necessário moderar esse
amor desordenado ou egoísmo, mas também é preciso mortificá-lo, para que o amor
ordenado ocupe seu lugar. Enquanto o pecador em estado de pecado mortal se ama a si
sobre todas as coisas, praticamente antepondo-se a Deus, o justo ama a Deus mais que a
si e deve, além disso, amar-se em Deus e por Deus; amar seu corpo de tal maneira que
sirva à alma, não lhe obstando a vida superior; amar a alma convidando-a a participar
eternamente da vida divina; amar sua inteligência e vontade, de modo que participem
mais e mais da luz e do amor de Deus. Este é o sentido profundo da mortificação do
egoísmo, do amor e da vontade próprios, opostos à vontade de Deus. Além disso, não
deve permitir que a vida descenda, mas, pelo contrário, que ascenda em direção daquele
que é fonte de todo o bem e de toda a beatitude.
14.
15. O amor desordenado de nós mesmos leva à morte, como diz o Senhor:
“O que ama (desordenadamente) a sua vida perdê-la-á; e quem aborrece (ou mortifica) a
sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (João 12, 25). Desse
desordenado amor, raiz de todos os pecados, nascem as três concupiscências de que fala
São João (I João 2, 16) quando diz: “Porque tudo o que há no mundo é concupiscência
da carne, e concupiscência dos olhos, e soberba da vida; e isto não vem do Pai, mas do
mundo”.
16.
17. Observa Santo Tomás que os pecados carnais são mais vergonhosos que
os espirituais porque nos rebaixam ao nível do animal; contudo, os espirituais, os únicos
que se compartilham com o demônio, são mais graves, porque vão diretamente contra
Deus e nos afastam dele. A concupiscência da carne é o desejo desordenado do que é ou
parece útil à conservação do indivíduo ou da espécie, e deste amor sensual provêm a
gula e a luxúria. A concupiscência dos olhos é o desejo desordenado do que agrada a
vista, o luxo, as riquezas, o dinheiro que nos proporciona os bens terrenos; dela nasce a
avareza. A soberba da vida é o desordenado amor da própria excelência e de tudo aquilo
que pode ressaltá-la; quem se deixa levar pela soberba, erige-se a si em seu próprio
deus, a exemplo de Lúcifer. Daí se vê a importância da humildade, que é virtude capital,
tanto quanto o orgulho é fonte de todo pecado. São Gregório e Santo Tomás ensinam
que a soberba é mais que um pecado capital: é a raiz da qual procedem mormente quatro
pecados capitais: vaidade, preguiça espiritual, inveja e ira. A vaidade é o amor
desordenado de louvores e de honras; a preguiça espiritual se entristece pensando no
trabalho requerido para santificar-se; a ira, quando não é uma indignação justificada e
sim um pecado, é um movimento desordenado da alma que nos inclina a rechaçar
violentamente o que nos desagrada, de onde se seguem as disputas, injúrias e
vociferações. Estes pecados capitais, sobretudo a preguiça espiritual, a inveja e a ira,
engendram tristezas amargas que afligem a alma e são totalmente contrários à paz
espiritual e ao contentamento, ambos frutos da caridade. Não deve o homem apenas
contentar-se em moderar tais germes de morte, senão também mortificá-los. A prática
generosa da mortificação dispõe a alma para outra purificação mais profunda que Deus
mesmo realiza, com o fim de destruir completamente os germes de morte que ainda
subsistam em nossa sensibilidade e faculdades superiores.
18.
19. Mas não basta considerar as raízes dos sete pecados capitais; é preciso
analisar suas conseqüências. Como conseqüências do pecado se entendem geralmente as
más inclinações que os pecados deixam em nosso temperamento, mesmo depois de
apagados pela absolvição. Entretanto, também pode entender-se como conseqüências
dos pecados capitais os demais pecados que têm sua origem neles. Os pecados capitais
assim se chamam porque são um como princípio de muitos outros; temos, em primeiro,
inclinação para eles e depois, por meio deles, para outras faltas às vezes mais graves.
20.
21. É dessa forma que a vanglória gera desobediência, jactância, hipocrisia,
disputas, discórdia, afã de novidades, pertinácia. A preguiça espiritual conduz ao
desgosto das coisas espirituais e do trabalho de santificação, em razão do esforço que
exige, engendrando a malícia, o rancor ou a amargura contra o próximo, a
pusilanimidade ante o dever, o desalento, a cegueira espiritual, o esquecimento dos
preceitos, a busca do proibido. Igualmente, a inveja ou desagrado voluntário do bem
alheio, bem que temos como mal nosso, engendra o ódio, a maledicência, a calúnia, a
alegria do mal alheio e a tristeza por seus triunfos.
22.
23. Por sua vez, a gula e a sensualidade geram outros vícios e podem
conduzir à cegueira espiritual, ao endurecimento do coração, ao apego à vida presente
até à perda da esperança da vida eterna, ao amor de si mesmo até ao ódio de Deus e à
impenitência final.
24.
25. Freqüentemente, os pecados capitais são mortais. Podem existir de uma
maneira muito vulgar e baixa, como em muitas almas em pecado mortal, ou bem podem
também existir, nota São João da Cruz, em uma alma em estado de graça, como outros
tantos desvios da vida espiritual. Por isso se fala às vezes da soberba espiritual, da gula
espiritual, da sensualidade e da preguiça espiritual. A soberba espiritual inclina, por
exemplo, a fugir daqueles que nos dirigem reprimendas, ainda quando tenham
autoridade para isso e no-las dirijam justamente; também pode levar-nos a guardar-lhes
certo rancor em nosso coração. Quanto à gula espiritual, poderia fazer-nos desejar
consolos sensíveis na piedade, até o ponto de buscarmos nela mais a nós mesmos que a
Deus. É o orgulho espiritual a origem do falso misticismo. Felizmente, diferentemente
das virtudes, estes vícios não são conexos, ou seja, pode-se possuir uns sem os outros, e
muitos são até contrários entre si: assim, não é possível ser avaro e pródigo ao mesmo
tempo.
26.
27. A enumeração de todos estes tristes frutos do exagerado amor de si deve
levar-nos a um sério exame de consciência e nos ensina, ademais, que o terreno da
mortificação é muito extenso, se quisermos viver uma vida cristã profunda.
28.
29. O exame de consciência, longe de apartar-nos do pensamento de Deus,
aponta-nos para ele. Deve-se inclusive pedir-lhe luz para enxergar um pouco a alma
como o próprio Deus a vê, para enxergar o dia ou a semana que passaram como se os
víssemos escritos no livro da vida, à maneira de como os veremos no dia do Juízo Final.
Por isto temos de repassar cada noite, com humildade e contrição, as faltas cometidas de
pensamento, palavra, ação e omissão. No exame deve-se evitar a minuciosa
investigação das menores faltas, tomadas em sua materialidade, pois semelhante esforço
poderia fazer-nos cair em escrúpulos e esquecer coisas mais importantes. Trata-se
menos de uma completa enumeração das faltas veniais que da investigação e acusação
sinceras do princípio de onde geralmente procedem.
30.
31. A alma não deve se deter em demasia na consideração de si mesma,
deixando de olhar para Deus. Pelo contrário há de se perguntar, tendo os olhos fitos em
Deus: como julgará Deus este dia ou semana que agora termina? Foi este dia meu ou de
Deus? Busquei a ele ou a mim? Desse modo, sem turbação, a alma julgar-se-á desde um
plano elevado, à luz dos preceitos divinos, tal como se julgará no último dia. Mas, como
diz Santa Catarina de Sena, não separemos a consideração de nossas faltas do
pensamento da infinita misericórdia. Olhemos nossa fragilidade e miséria ao lume da
infinita bondade de Deus que nos alevanta. O exame, feito deste modo, longe de
desalentar-nos, aumentará nossa confiança em Deus.
32.
33. Por contraste, a visão de nossos pecados nos esclarece o valor da virtude.
O que melhor nos revela o valor da justiça é a dor que a injustiça produz. A imagem da
injustiça que cometemos e o pesar de tê-la cometido devem nos despertar a “fome e
sede de justiça”. Por contraste, é necessário que a fealdade da sensualidade nos revele a
beleza da pureza; que a desordem da ira e da inveja nos faça compreender o alto valor
da mansidão e da caridade; que as aberrações da soberba nos ilustrem acerca da elevada
sabedoria da humildade.
34.
35. Peçamos a Deus inspirar-nos um santo aborrecimento do pecado, que nos
separa da divina bondade, da qual tantos benefícios recebemos e esperamos para o
porvir. Esse santo ódio do pecado não é, de certa forma, senão o outro lado do amor de
Deus. É impossível amar profundamente a verdade sem detestar a mentira, amar de
coração ao bem, e o soberano Bem que é Deus, sem que por sua vez detestemos o que
nos separa de Deus.
36.
37. A maneira de evitar a soberba é pensar com freqüência nas humilhações
do Salvador e pedir a Deus a virtude da humildade. Para reprimir a inveja, temos de
rogar pelo próximo, desejando-lhe o mesmo bem que para nós desejamos. Aprendamos
igualmente a reprimir os movimentos da ira, afastando-nos dos objetos que a provocam,
trabalhando e falando com doçura. Esta mortificação é absolutamente indispensável.
Pensemos que temos que salvar nossa alma e que ao nosso redor há muito bem a se
fazer, sobretudo na ordem espiritual. Não esqueçamos que devemos trabalhar pelo bem
eterno dos demais e empregar, para consegui-lo, os meios que o Salvador nos ensinou: a
morte progressiva do pecado, mediante o progresso nas virtudes e principalmente no
amor de Deus.
38.
39. (Trecho do livro "As três idades da vida interior". Tradução:
Permanência)
40. Jesus e as diversas formas de santidade
41.
42. "Mansiones multae sunt in domo Patris mei." (Jo 14, 2)
43.
44. A intimidade de Cristo, sobre a qual já falamos, assume diferentes formas
que contribuem para a harmonia do corpo místico de Nosso Senhor, isto é, sua
variedade na sua profunda unidade. Na Igreja, a união dessas duas notas: a unidade e a
catolicidade (a unidade de fé, de esperança, de caridade, de culto, de governo, apesar da
variedade de lugares e de tempo, de raças, de línguas, de costumes, de instituições)
constitui, no meio de tantas causas de divisão, um milagre moral permanente 1. É
também a realização de uma profecia de Cristo, o qual anunciou que sua Igreja devia se
espalhar por todos os povos 2 e que, portanto, ela devia permanecer perfeitamente
una 3 para conduzir as almas de todos os países e de todos os séculos à vida eterna.
45.
46. É importante perceber bem a razão desta variedade na unidade. A
diversidade de temperamentos, de caracteres, de fisionomias espirituais, é, muitas vezes,
uma ocasião de sofrimentos salutares, mas também, ai de nós, de falta de caridade, de
irritação, de impaciência, de julgamentos temerários. Na nossa estreiteza, gostaríamos,
às vezes, que todas as almas fossem absolutamente iguais, tivessem o mesmo atrativo
dominante que nós. Graças a Deus, isto não é assim. A harmonia da Igreja, inclusive a
das Ordens Religiosas e mesmo das comunidades, exigem uma certa diversidade. Nesta
vasta planície fértil que é a Igreja se elevam várias colinas, do alto das quais se vê como
que com os olhos de um S. Bento, ou de um S. Domingos ou de um S. Francisco, ou de
um S. Inácio, ou de uma Santa Teresa. "Existem várias moradas na casa de meu Pai."
disse Nosso Senhor.
47.
48. Para nos esclarecer sobre esse ponto, convém considerar as diferentes
formas de santidade que respondem a atrativos dominantes diversos e a provações
diferentes.
49.
50. Cada uma dessas fisionomias espirituais tem a sua grandeza e a sua
beleza.
51.
52. Foi observado várias vezes que a santidade aparece sob três formas bem
distintas, que correspondem a três graças predominantes, e que tendem a se aproximar,
como os caminhos que, por vertentes opostas, conduzem ao cume de uma montanha.
Estas três formas de santidade, como veremos, são eminentemente contidas na Santa
alma de Cristo e em Maria.
53.
54. ***
55.
56. A santidade aparece sob três formas bem distintas que respondem aos
três grandes deveres para com Deus: o conhecê-lo, amá-lo, servi-lo. Todo cristão, sem
dúvida, deve observar cada um desses três deveres; mas, no corpo místico, este deve
sobressair em tal função e aquele em tal outra.
57.
58. Existem almas santas que têm por missão sobretudo amar a Deus com
ardente amor e reparar assim as ofensas de que Ele é objeto; elas recebem logo graças
de amor que transformam suas vontades e fazem delas uma força viva que não cessa de
se consumir para glória de Deus e salvação do próximo.
59.
60. Outras almas devem sobressair na contemplação de Deus, conhecê-lo,
mostrar-nos o caminho que leva a Ele; elas recebem desde o início graças de luz, que
clareiam cada vez mais suas inteligências e são como um farol para guiar os fiéis na sua
viagem para a eternidade.
61.
62. Enfim, outras almas santas têm sobretudo por missão servir a Deus pela
fidelidade ao dever quotidiano, em diferentes obras de caridade; aqui, a memória e a
atividade prática são postas incessantemente, sob o influxo das virtudes teologais, ao
serviço de Deus e do próximo.
63.
64. Contemplemos sucessivamente essas três formas de santidade, que
parecem representadas, como já se disse várias vezes, em três apóstolos privilegiados
que Nosso Senhor conduziu ao Thabor, depois a Gethsemani: Pedro, João e Tiago.
65.
66. Cada uma dessas almas sobressai naturalmente no exercício de uma
faculdade e, como a graça aperfeiçoa a natureza no que ela tem de bom, ela apreende
mais diretamente e mais vivamente esta faculdade, para se espalhar em seguida sobre as
outras que são menos ativas. A graça utiliza assim, para nossa perfeição e nossa
salvação, os recursos da nossa natureza e constitui nosso atrativo sobrenatural especial,
que devemos sempre seguir, pois é o atrativo de Deus 4. Mas, em compensação, cada
uma dessas almas tem seu defeito dominante a vencer, um obstáculo especial a evitar e
é por isto que o Senhor envia a cada uma, provações apropriadas.
67.
68. Os diretores esclarecidos reconhecem nas almas o atrativo sobrenatural
especial que Deus lhes dá e também o defeito dominante a combater. É conveniente
conhecer um e outro, o branco e o preto, para compreender a natureza das provações
que Deus nos envia, para melhor aproveitá-las e para evitar o julgamento temerário de
outras almas que vão em direção ao mesmo cume mas por uma outra vertente. Aqueles
que são naturalmente mansos, devem tornar-se fortes, e aqueles que são naturalmente
fortes devem tornar-se doces. "Alius sic, alius sic ibat", dizia Santo Agostinho; existem
caminhos diferentes que conduzem ao mesmo fim, e numa mesma estrada pode-se
andar mais devagar que um outro, sem entretanto, voltar atrás [fn]Os caracteres não têm
sua causa nas diferenças de organismos como acontece com os temperamentos;.
69.
70. O Senhor, na formação das almas, encontra um modo de tudo utilizar.
Ele não toma a alma de um homem de ação, devorado pelo zelo, de um missionário,
como a de um teólogo; de um santo Tomás, como a de um pintor; de um Angélico, de
um poeta como Dante, de um músico como Beethoven; mas Ele faz tudo servir à
expressão da Fé, da Esperança e da Caridade. Ele faz servir, no trato com um teólogo, a
lógica de Aristóteles; no trato com um artista, as harmonias bem feitas de sons e de
cores. E, em última análise, tudo, na ordem intelectual e na ordem sensível, só vale
como expressão das perfeições divinas. Existem diferentes vertentes para se elevar em
direção a este cume, mas nada pode nos interessar de uma maneira profunda e
duradoura senão aquilo que a ele nos conduz. O ofício da festa de Todos os Santos faz
notar admiravelmente todas as nuances da Santidade, entre os Apóstolos, os Mártires, os
Doutores, os Confessores, as Virgens.
71.
72. ***
73.
74. As almas nas quais domina o exercício da vontade e o ardor do amor, se
assemelham aos Serafins 5. Segundo a Revelação, estes anjos superiores são abrasados
pelo amor que o Espírito Santo lhes comunica; este é o amor que os leva a contemplar
as sublimes belezas de Deus. Sua chama espiritual é mais ardente que luminosa. Eles
cantam o cântico: "Santo, Santo, Santo, é o Senhor, Deus dos exércitos!" 6 Eles
constituem a ordem suprema da primeira hierarquia angélica, porque, naqueles que
tendem em direção a Deus, a mais alta virtude é a caridade, ou o amor divino,
incompatível, ao contrário da ciência, com o pecado mortal 7.
75.
76. Do mesmo modo, as almas ardentes são arrebatadas antes de tudo por
graças de amor; elas se dirigem ao bem com zelo e firmeza e se perguntam muitas
vezes: "O que eu farei para Deus?". Elas têm uma sede ardente de sofrer, de se
mortificar, para provar a Deus seu amor, de reparar as ofensas das quais Ele é objeto, de
salvar os pecadores. Só secundariamente elas se aplicam a melhor conhecer Deus.
77.
78. Deste grupo de almas parecem fazer parte o profeta Elias, "cheio de zelo
pelo Senhor" 8, o apóstolo Pedro crucificado de cabeça para baixo por humildade e
amor por seu Mestre, os grandes mártires: Santo Inácio de Antioquia, São Lourenço, o
seráfico Francisco de Assis, Santa Margarida Maria levada desde a sua juventude a
sofrer por amor em espírito de reparação, São Bento-José Labre, este amigo apaixonado
da Cruz. Do mesmo modo, no apostolado e devotamento ao próximo, São Carlos
Borromeu, São Vicente de Paulo e tantos outros.
79.
80. Todas essas almas são mais notáveis pela sua caridade, pelo
arrebatamento de seu coração para Deus, do que pelas suas luzes.
81.
82. Para as almas desse gênero que não fossem suficientemente dóceis ao
Espírito Santo, o perigo estaria na própria energia de sua vontade, que poderia
degenerar em rigidez, tenacidade e obstinação. Nas menos fervorosas dentre elas, é um
defeito dominante bastante visível: seu zelo não é suficientemente esclarecido, nem
bastante paciente e doce. Algumas delas podem se entregar demais a obras ativas às
custas da oração.
83.
84. A provação que o Senhor lhes envia tende sobretudo a amansar sua
vontade, muitas vezes a quebrá-la, quando ela se torna rígida demais. Ele permite
revezes manifestos, para que o ardor natural seja substituído por um zelo
verdadeiramente sobrenatural, desinteressado, paciente e manso. Ele lhes ensina a por
sua confiança não no impulso natural do coração, mas na Misericórdia divina sempre
compassiva. O Senhor humilha essas almas ardentes, permitindo também, algumas
vezes, violentas tentações, mesmo de desânimo, como aconteceu com Elias, dormindo
no deserto sob um junípero 9. Ele permite também quedas como a negação de São
Pedro.
85.
86. Ele envia ainda a essas almas grande aridez numa contemplação dolorosa
mas amorosa e muito meritória. Seus amores ardentes queimam-nas, consomem e as
fazem muito sofrer com todas as ofensas que se elevam contra Deus. Ele as estimula a
expiar ou a reparar.
87.
88. Assim se formam as almas mais ardentes que luminosas, nas quais
domina o zelo ardente da caridade, a mais alta das virtudes teologais.
89.
90. ***
91.
92. Num segundo grupo de almas, predomina o exercício, não da vontade,
mas da inteligência. A graça que começa mais diretamente e mais vivamente a elevá-las
é uma graça de luz. Elas se assemelham aos Querubins, que estão, dizem os profetas,
em torno do trono de Deus 10. Esses anjos, admiravelmente esclarecidos pela luz que
lhes comunica o Verbo Eterno, são, primeiro, arrebatados de admiração. Eles
contemplam a beleza de Deus e são levados a amá-Lo e a fazê-Lo conhecido pelos
outros 11. Sua chama espiritual é, a princípio, mais luminosa que ardente.
93.
94. Do mesmo modo, essas almas são, inicialmente, esclarecidas por graças
de iluminação; elas são levadas a se deleitar na contemplação de Deus, nas grandes
visões de conjunto que fazem o valor da sabedoria. É somente por via de conseqüência
que seu amor cresce. Elas sentem menos que as precedentes a necessidade de agir, de se
mortificar, de sofrer para reparar; mas elas são fiéis, chegam ao amor heróico por esse
Deus que as encanta.
95.
96. A esta família de almas pertencem os grandes Doutores da Igreja, um
Sto. Agostinho, um Sto. Anselmo, um Sto. Alberto, o Grande, um Santo Tomás de
Aquino, muitos outros que, ao correr dos séculos, foram como faróis que mostraram à
humanidade o caminho que leva a Deus.
97.
98. O perigo para essas almas, quando são menos perfeitas, é, muitas vezes,
de se contentar com luzes que lhes são dadas e de não conformarem bastante suas vidas
com estas luzes. Enquanto sua inteligência é fortemente esclarecida, em sua vontade,
muitas vezes, falta ardor; São Francisco de Sales gemia por isso, pedindo graças de
força.
99.
100. Não é raro que grandes provações interiores sejam enviadas a essas
almas. A noite dos sentidos e a do espírito, descritas por São João da Cruz, as conduzem
progressivamente ao desinteresse completo e à generosidade no amor. Estas provações
interiores são, no entanto, habitualmente menos dolorosas para essas almas que para as
precedentes. As luzes que elas recebem consolam-nas, elas têm uma atração maior pela
oração contemplativa; mas têm bastante tempo que gemer por sua falta de energia. Seu
amor pela verdade faz com que elas sofram particularmente com o erro, com as falsas
direções doutrinais, que extraviam as inteligências. Isto é para elas uma grande cruz e
um estímulo para trabalhar para fazer conhecer a Deus.
101.
102. Quando essas almas luminosas são purificadas pelo sofrimento e bem
fiéis às luzes que Deus lhes envia, elas aspiram cada vez mais a se unir a Ele, a
mergulhar Nele, a se perder Nele sem retorno a elas mesmas. Uma alma luminosa fiel
será mais unida a Deus que uma alma ardente infiel.
103.
104. Existem grandes santos, como São Paulo, São João, S. Bento. S.
Domingos, Sta. Gertrudes, Sta. Catarina de Sena, Sta. Teresa, S. João da Cruz, que
foram ao mesmo tempo e desde o início de sua ascensão, muito contemplativos e muito
ardentes; elas reuniram logo as qualidades desses dois primeiros grupos de almas, que
tendem, aliás, a se assemelhar ao se aproximarem do cume, para o qual todos devem se
encaminhar.
105.
106. * * *
107.
108. Enfim, existem almas que têm, sobretudo, por missão servir a Deus pela
fidelidade ao dever quotidiano. A faculdade que mais se exerce entre elas, é a memória;
sua atividade é de ordem prática. É o caso da maior parte dos cristãos. Sua memória os
torna atentos aos fatos particulares; eles são tocados pela história dos benefícios de
Deus, seja no Antigo Testamento, seja no Evangelho e na vida da Igreja. Essas almas
são facilmente tocadas por uma palavra da liturgia, um traço de vida de um santo. A
graça se adapta à sua natureza e lhes mostra claramente, nas suas múltiplas ocupações, o
dever a cumprir, Deus a glorificar, o próximo a socorrer.
109.
110. A inspiração divina lhes dá mais raramente grandes visões de conjunto,
mas ela os torna muito atentos aos diversos meios de perfeição. Por aí, essas almas, se
são fiéis e generosas, chegam a um conhecimento muito prático e vivido das coisas
divinas e a um grande amor de Deus e do próximo. Elas podem assim alcançar os mais
altos graus da santidade.
111.
112. O obstáculo aqui seria o de se apegar demais às práticas, boas nelas
mesmas, mas que não conduzem imediatamente a Deus; a certas austeridades exteriores
ou orações vocais. Corre-se o risco então de cair na minúcia, nos escrúpulos, de se
apegar sem medida a métodos, úteis no início, mas um pouco mecânicos demais; e isto
pode impedir a intimidade da união com o Senhor.
113.
114. As provações dessas almas se encontram geralmente menos na vida
interior que na prática da caridade fraterna e no exercício de seu devotamento. Elas têm
muito a sofrer com defeitos do próximo e com os obstáculos que encontram nas obras
em que se ocupam. As grandes purificações interiores aparecem nelas notavelmente
mais tarde que nas almas precedentes; no entanto, se elas são generosas, chegam, elas
também, a uma íntima união com Deus.
115.
116. Tais são as três formas de santidade que parecem manifestadas pelos três
apóstolos privilegiados, Pedro, João e Tiago, que Nosso Senhor conduziu com Ele ao
Thabor e depois a Gethsemani. Todas essas almas são chamadas, por formas variadas, à
contemplação dos mistérios da fé e à união íntima com Deus, e quanto mais elas se
aproximam do cume para o qual tendem, mais se assemelham, mais são marcadas pela
imagem do Cristo, sem perder no entanto sua fisionomia especial.
117.
118. * * *
119.
120. A santa alma de Cristo, contém eminentemente essas três formas de
santidade, sem nenhuma das imperfeições que subsistem nos santos, um pouco como a
luz branca contém as setes cores do arco-íris. É, com efeito, impossível conhecer melhor
Deus, amá-Lo melhor, servi-Lo melhor que Jesus.
121.
122. Jesus quis nos mostrar a excelência dessas três formas de santidade nos
três períodos de sua existência aqui em baixo: sua vida escondida, sua vida apostólica,
sua vida dolorosa.
123.
124. Na sua vida escondida, na solidão de Nazaré, na casa do carpinteiro, Ele
é o exemplo da fidelidade ao dever quotidiano, em atos exteriormente bem modestos,
mas enormes pelo amor que os inspira e até de um valor sem medida.
125.
126. Na sua vida apostólica, Ele aparece como a luz do mundo, e Ele nos diz
que aqueles que O seguem não andam nas trevas, mas receberão a luz da vida (Jo 8,
12). O que Ele ensina sobre a vida eterna e os meios para alcançá-la, Ele não o crê, Ele
o vê imediatamente na essência divina. Ele funda a Igreja, confia-a a Pedro e diz a seus
Apóstolos: "Vós sois a luz do mundo". (Mt 5, 4); envia-os a ensinar a todas as nações,
levar-lhes o batismo e a Eucaristia.
127.
128. Enfim, na sua vida dolorosa, Jesus nos manifesta todo o ardor de seu
amor por seu Pai e por nós. Este amor leva-O até a querer morrer por nós sobre a cruz.
Ele tem sede de sofrer para reparar os ultrajes feitos a Deus, para salvar as almas, e
consumar a obra redentora. Esta sede de sofrer é incomparavelmente maior Nele que em
um Santo André, um Santo Ignácio de Antioquia, um São Lourenço, uma Santa Teresa,
um São Bento-José Labre. O coração de Jesus é verdadeiramente uma fornalha ardente
de Caridade. Ninguém mais que Ele sofreu pelos pecados, e é de seu Coração
mortificado que derivam todas as graças que recebem as almas reparadoras, associadas
ao grande mistério da Redenção.
129.
130. Jesus possui assim eminentemente as três formas de santidade e sem
nenhuma imperfeição. Ele é atento mesmo às menores coisas do serviço de Deus, sem
nelas demorar-se. Ele goza da mais alta contemplação, mas não se perde nela como um
santo em êxtase; Jesus está acima do êxtase e sem cessar de ver as profundezas da
essência divina, Ele se entretém com seus Apóstolos sobre os próprios detalhes da vida
apostólica. Ele tem todo o ardor de amor, o mais forte zelo, mas unido à maior
paciência, à doçura, à compaixão, o que O leva a rezar por seus carrascos: "Pai, perdoa-
lhes, porque não sabem o que fazem."
131.
132. A santa alma de Cristo se manifesta assim por seus reflexos na alma dos
santos, como a luz branca pelas sete cores. Há, toda proporção guardada, qualquer coisa
de semelhante em Maria, que reunia também em si, eminentemente, todas as formas de
santidade.
133.
134. Não diminuamos a vida do Salvador, querendo explicá-la demais pela
nossa psicologia pessoal. Assim, se propôs ao mundo um Cristo jansenista e em
seguida, por reação, um Cristo liberal. Elevemo-nos para Ele, ao invés de rebaixá-Lo a
nós; Ele está incomparavelmente acima de nossos sentimentos mais generosos e Ele não
tem ilusões. Muito superior aos maiores santos, Ele permanece, apesar de sua elevação,
nosso perfeito modelo e nos oferece, incessantemente, a graça para nos dar a força de O
seguir.
135.
136. * * *
137.
138. Os mistérios da vida de Cristo devem, em certo sentido, reproduzir-se em
nós, na medida em que o Salvador quer nos assimilar a Ele e nos fazer participar da sua
vida escondida, da sua vida apostólica, da sua vida dolorosa, finalmente da sua vida
gloriosa no céu. Esta assimilação progressiva é muito visível na vida de vários santos.
E, se nós o quisermos, a meditação quotidiana dos mistérios do Rosário pode fazer-nos
avançar, com passo sempre mais firme, nessa via.
139.
140. Os mistérios gozosos da infância de Cristo, os mistérios dolorosos de sua
Paixão, e os mistérios gloriosos da Ressurreição, da Ascensão, correspondem aos 3
grandes atos da vida das almas: — Querer o fim último, a santidade e a bem-
aventurança eterna, cujo pensamento suscita a alegria e os primeiros impulsos da alma
para Deus; — Querer os meios capazes de nos fazer obter este fim, o cumprimento dos
preceitos, levando a cruz, a exemplo do Mestre e para segui-Lo; — Repousar com Ele
no fim conquistado.
141.
142. Esses mistérios da vida de Cristo devem tornar-se assim, cada vez mais,
o alimento da nossa alma, o objeto de nossa contemplação que os penetrará, os provará
e os saboreará; isto será como que uma antecipação da bem-aventurança; nós
perceberemos cada vez melhor que a graça santificante é o germe da glória, semen
gloriae inchoatio vitae aeternae 12, que a vida cristã profunda é a vida eterna
começada, segundo a palavra do Salvador, que reaparece várias vezes em S. João: "Em
verdade, em verdade, vos digo: Aquele que crê em mim tem a vida eterna, e Eu o
ressuscitarei no último dia" 13.
143.
144. (Tradução: Permanência)

O amor próprio - ou o maior impedimento à vida de Cristo em nós.


O inimigo máximo da vida interior, segundo os autores espirituais, não é o
mundo com suas tentações, nem o demônio com suas insídias, mas o amor desordenado
de si mesmo; pois se não existisse em nós este amor, as tentações do mundo e as insídias
do demônio seriam facilmente vencidas; no entanto, encontram um cúmplice neste amor
desordenado.

Com a doutrina de S. Tomás, exposta na Suma Teológica [Ia IIae q. 77 e 84),


vejamos de modo concreto e prático: 1 o. Como o amor desordenado de si mesmo se
opõe ao amor de Deus e não raro o destrói? ― 2 o. Como o amor desordenado de si
mesmo permanece latente mesmo nos melhores católicos? ― 3 o. Que devemos pensar
dos subterfúgios do amor próprio? ― 4 o. Como se pode eficazmente combater este
amor próprio? 1

***

1o. Como o amor desordenado de si mesmo se opõe ao amor de Deus e, não


raro, o destrói?

Este amor desordenado é muito insidioso e variado. Primeiro porque esconde-


se sob outros nomes, como honra, zelo do bom nome ou da própria dignidade; diz, p.
ex., «o homem ama-se naturalmente, assim como o anjo se ama a si mesmo; quer para
si o bem e nisto não há desordem. Sobretudo, pela caridade sobrenatural, devemos
amar-nos a nós mesmo ainda mais que ao próximo». Mas o amor próprio desordenado
não diz que, tanto na ordem natural, quanto na ordem sobrenatural, o amor de nós
mesmos deve ser subordinado ao amor de Deus, autor da natureza e da graça. E se nos
move a considerar esta subordinação, isto ocorre somente de modo teórico e abstrato,
nunca de modo prático e concreto. Assim, implícita e realmente, acabamos buscando
demasiadamente nosso próprio interesse.
Por conseqüência, o amor de si mesmo torna-se, pouco a pouco, desordenado;
é isto uma seqüela do pecado original.

Ora, o batismo nos apaga este pecado da natureza, mas permanece nos
batizados essa ferida como uma espécie de cicatriz que, por vezes, se abre por causa de
nossos pecados pessoais.

Por isso, o amor próprio desordenado pode, pouco a pouco, instaurar a


desordem em quase todos nossos atos, mesmo nos mais altos, se não os fizermos por
Deus, como deveríamos, mas pela satisfação de nosso apetite natural e, assim,
paulatinamente, nossa vida interior é viciada e se impede a vida de Cristo em nós. É
verdade que La Rochefoucauld, em seu livro «Les Maximes», e os jansenistas exageram
esta inclinação; mas, sob este exagero, há algo de verdadeiro, algo de demasiado
verdadeiro.

Muitos cultivam em si mesmos não o amor de Deus, mas uma excessiva estima
de si mesmos, das suas qualidades, procuram o louvor e a aprovação dos outros; não
enxergam seus próprios defeitos mas, ao contrário, exageram os defeitos dos outros,
como escritores de panfletos políticos: são, por vezes, severíssimos com os demais e
extremamente indulgentes consigo mesmos. Seria então muito bom e salutar repetir a
humilhação do salmista: «sois bom para mim, Senhor, pois me humilhastes». Este amor
desordenado de si mesmo gera a soberba, a vaidade e, não raro, a concupiscência da
carne e dos olhos e, destes, os pecados capitais, que nascem destas concupiscências, p.
ex.: preguiça, gula, impureza, inveja, ira etc.

Então se verifica a enorme oposição entre o amor de Deus e o amor


desordenado de si mesmo, pois o verdadeiro amor de Deus procura o beneplácito de
Deus, quer agradar a Deus, enquanto o amor desordenado de si mesmo procura a
satisfação pessoal, mesmo não subordinada a Deus.

O amor de Deus impele à generosidade, à tender verdadeira e praticamente à


perfeição; o amor desordenado de si mesmo tende a evitar os incômodos, a abnegação, o
trabalho, as fadigas. O amor de Deus é, cada vez mais, sem o interesse próprio
desordenado, julga que nunca faz o suficiente por Deus e pelas almas; o amor
desordenado de si mesmo pensa que sempre faz demasiado por Deus e pelo próximo. O
verdadeiro amor de Deus quer não apenas receber, mas também dar glória e honra a
Deus pelo zelo apostólico. O amor desordenado de si mesmo não quer dar, mas apenas
receber; como se o homem fosse o centro do universo, tudo trazendo a si mesmo.

Finalmente, o amor desordenado de si mesmo tende a destruição do amor de


Deus e do próximo na nossa alma, e atinge este fim quando conduz ao pecado mortal e,
sobretudo, ao pecado mortal reiterado, assim mais e mais aumenta a aversão a Deus e a
conversão ao bem comutável e ao mal amor de si mesmo: assim pode, cada vez mais,
viciar todas nossas inclinações, como ocorre com os danados. Por exemplo, no demônio
é viciada mesmo a inclinação natural de amar a Deus, autor da natureza, acima de tudo,
pois, nos danados, nasce desta inclinação o desejo desordenado de fruir de Deus, não
por amor a Deus, mas pela gula espiritual desenfreada, pois faltam todos os outros bens
e todas as outras satisfações.

Esta oposição trágica entre o amor de Deus e o amor desordenado de si mesmo,


é descrita por S. Agostinho pela oposição entre caridade e cupidez: no fim do livro 14
de A Cidade de Deus, cap. último, diz: «Dois amores fizeram duas cidades; o amor de
Deus até o desprezo de si mesmo, fez a cidade de Deus e o amor de si mesmo até o
desprezo de Deus, fez a cidade da Babilônia, ou da perdição.» S. Paulo dissera (1 Tm 6,
10): «A raiz de todos os males é a cupidez» ou o amor desordenado de si mesmo. Cf. S.
Tomás, Suma Teológica Ia IIae, q. 77 e 84, sobre a tríplice raiz dos pecados capitais,
pois da cupidez surge a soberba, a concupiscência da carne e a concupiscência dos
olhos. Isto se verifica nos maus; e, de outro modo, nos justos imperfeitos 2.
ira

inve
ja cegueira da
soberba ace mente, ao invés de
Do
dia uma fé viva
amor
desordenado vaid
de si ade
mesmo surge:
concupiscência avar desespero,
dos olhos eza ao invés de esperança

gula discórdia, ao
concupiscência da
carne lux invés da caridade, e
úria ódio a Deus.

Da As virtudes união com


graça surge: teológicas caridade Deus, confiança,
e os dons correlativos contemplação.

esperança

fé viva

ilust
rada pelos
dons
prudência cristã e o
dom do conselho

justiça, religião, dom


As virtudes de piedade
morais
e os dons correlativos fortaleza,
generosidade

temperança,
castidade, humildade.

Cf. nossa obra «Les trois âges de la vie intérieure», II, pág. 480.

***

2o. Como o amor desordenado de si mesmo permanece de modo latente mesmo


nos melhores católicos?

S. Vicente de Paulo (como se lê na sua Vida, escrita por Domino Coste, I, 12;
III, 300) narra um fato que lhe sucedeu quando estava no colégio: «Certo dia, disseram-
me: "teu pai veio te ver" e, como meu pai era um pobre agricultor e um homem rude,
não quis ir até ele para conversar; e antes, quando meu pai me conduzia à cidade, estava
triste pela sua condição, e me envergonhava de meu pai».

O mesmo santo, falando do tempo posterior da fundação da sua Congregação,


diz: «veio o filho do meu irmão me visitar no Colégio onde era superior e eu,
considerando a situação muito modesta do meu sobrinho, que se vestia rudemente,
ordenei que me fosse ele conduzido secretamente. Mas, imediatamente, mudei minha
deliberação com a resolução de reparar este primeiro movimento de amor próprio, desci
até o portão, e abracei meu sobrinho e, conduzindo-o pela mão pela sala comum onde
estavam meus confrades, disse a eles: ´Eis a pessoa mais honorável de minha família´».
Assim, S. Vicente de Paulo vencia seu amor próprio, e ainda temia que, nessa vitória, o
amor próprio se escondesse sutilmente.

***

3o. Perigo que nasce das evasões e subterfúgios usados pelo amor próprio.

Por exemplo, a oração mental se vicia pelo excessivo desejo de consolações


sensíveis, pela gula espiritual, pelo sentimentalismo. O sentimentalismo é, na
sensibilidade, uma afetação de amor de Deus e do próximo que não existe
suficientemente na vontade espiritual. Então, a alma procura a si mesma mais que a
Deus. Donde, para tirar a alma desta imperfeição, Deus purifica a alma pela aridez da
sensibilidade.

Se, verdadeiramente, a alma nesta aridez não é suficientemente generosa, cai


na preguiça espiritual, na tepidez e não mais tende suficientemente à perfeição.

Igualmente, pelo amor desordenado de si mesmo se vicia o labor intelectual ou


apostólico, pois nele buscamos satisfação pessoal, buscamos o louvor, mais do que
Deus ou a salvação das almas. Assim, o pregador pode tornar-se estéril «como um
bronze que soa ou um címbalo que tine». A alma se retarda, não é mais iniciante, não
avança ao estado dos aproveitados, permanece uma alma retardada, como um menino
que, por não crescer, não permanece menino, nem se faz adolescente ou um adulto
normal, mas um homúnculo deforme. Ocorre algo similar na ordem espiritual e isto
provém do amor próprio desordenado, do qual nasce a esterilidade da vida. 3
***

4o. Que se deve fazer contra este amor desordenado?

Temos de conhecer e lutar contra nosso defeito dominante para obter a vitória.
O defeito dominante é como que uma caricatura da boa inclinação que deveria
prevalecer, é como que o «outro lado da moeda». Daí surge o combate entre a boa e a
má inclinação. A virtude e o vício oposto não podem existir simultaneamente em ato no
mesmo sujeito, mas podem existir simultaneamente em potência; daí surge o combate
em que prevalecerá ou a boa inclinação natural, sob a forma da virtude em ato, ou o
defeito dominante, sob a forma do vício em ato.

Assim, o defeito dominante inicial é aquilo pelo qual alguma virtude degenera
em um vício materialmente similar, mas formalmente contrário, por exemplo, a
inclinação à humildade degenera em pusilanimidade, a inclinação à magnanimidade em
soberba e ambição, a inclinação à fortaleza em amarga ironia e crueldade, inclinação à
justiça em rigorismo, inclinação à mansidão e à misericórdia em debilidade. Isto
compreende-se melhor quando se considera, por exemplo, que a humildade se opõe
mais diretamente à soberba que a pusilanimidade, que, no entanto, também lhe é
contrária, assim como a magnanimidade mais diretamente se opõe à pusilanimidade que
à soberba. E estas duas virtudes são conexas, como dois arcos da mesma ogiva.

Portanto, é necessário ver sob qual forma este amor próprio prevalece em nós,
isto é, se sob a forma de soberba, ou de vaidade ou de preguiça, ou de sensualidade, ou
de gula, ou de ira. Em outras palavras, é preciso saber qual é nosso defeito dominante,
que se manifesta nos nossos pecados mais freqüentes e que oferece alimento a nossa
fantasia.
Em alguns a soberba, por exemplo, vence a irascibilidade para conservar a
estima dos homens; em outros, a soberba é vencida pela preguiça e não cuida mais da
estima alheia.

Deve-se vigiar, portanto, para refrear o defeito dominante e isto com


tenacidade e perseverança para adquirir o domínio de si mesmo, não pela estima dos
outros, mas por Deus. Isto é sempre possível no nosso caminho, ainda que seja sempre
árduo. Deus não pede o impossível, mas nos adverte a fazer tudo que podemos e pedir
tudo que não podemos, e nos ajuda para que consigamos. 4

Outros homens não tem um defeito manifestamente dominante, mas o seu amor
próprio se manifesta de diversos modos.

O amor próprio deve ser combatido de diversos modos, eliminando-se o que o


pode alimentar e agindo mais e mais por amor de Deus, para que o agrademos, primeiro
nas coisas externas e obrigatórias e fáceis de se cumprir com espírito de fé; depois nas
coisas interiores e difíceis, de modo que, paulatinamente, as três virtudes teológicas
prevaleçam em nossa vida, com seus correlativos dons.

Nesta metódica luta, três coisas se exigem: pureza de intenção, abnegação


progressiva, recolhimento habitual.

1. A pureza de intenção é de suma importância. Diz o Salvador [Lc 11, 34]: «O


teu olho é a lucerna do teu corpo. Se o teu olho for puro, todo o teu corpo terá luz; se
porém, for mau, também o teu corpo será tenebroso». S. Tomás comenta: «O olho
significa a intenção. Ora, quem quer fazer algo, tem alguma intenção. Se tua intenção
for luminosa, isto é, dirigida a Deus, todo teu corpo, ou seja, suas operações, serão
luminosas». Isto se vê em todo bom católico e em todo bom prelado que guia bem o seu
rebanho.
Esta pureza de intenção deve ser mantida primeiro nas coisas mais fáceis e
ordinárias. S. Bento formava seus religiosos, que não costumavam ser de grande cultura,
dizendo-lhes: «fazei com intenção pura, em espírito de fé, esperança e amor de Deus,
para agradar a Deus, todos os atos determinados na regra»; e os religiosos, conversos,
fazendo com este espírito e com esta pureza de intenção os atos externos da vida
religiosa, atingiam grande perfeição, união com Deus, uma grande santidade e uma
perfeita vitória sobre o amor próprio desordenado; assim, faziam um grande bem ao
próximo. Como se lê no Evangelho (Lc 16, 10): «O que é fiel no pouco, também é fiel
no muito», e será mesmo no martírio. S. Agostinho também diz: «o mínimo é, em si
mesmo, mínimo; mas ser sempre fiel, até nas coisas mínimas, isto é o máximo».

2. Deve-se manter uma abnegação progressiva, externa e interna, segundo


aquilo: «Aquele que quer seguir-me, negue-se a si mesmo». Há de se praticar sempre
que a ocasião se apresente, para que o amor de Deus e do próximo prevaleça sobre
nosso desordenado amor próprio. Isto, que é necessário aos simples fiéis que aspirem à
perfeição da caridade, expressa no primeiro preceito «amarás ao Senhor teu Deus com
todo teu coração», segundo a condição de cada um, é ainda mais necessário ao
sacerdote, sobretudo se tem almas sob seu cuidado.

3. O recolhimento habitual é necessário para conservar a união com Deus, não


somente durante a celebração da Missa, confissões ou pregação da palavra divina, mas
constantemente.

(extrato de «De unione sacerdotis cum Christo Sacerdote et victima»)

1. 1.Cf. escreveu um missionário de S. Vicente de Paulo, chamado


Paolo Provera, no livro Diamoci a Dio, Torino, 1945, p. 89: «Il nemico più terribile.
Si deve dare un buon colpo di bistori al nostro amore proprio.»
2. 2.Freqüentemente, os homens agem prontamente e com grande
energia para a satisfação da própria cupidez, soberba, vaidade; e lenta, tarda e
indolentemente, com preguiça, à obrigação incômoda, ainda que seja uma grave
responsabilidade para com Deus ou o próximo. Com efeito, grande é o poder do
amor próprio desordenado, e se não laborarmos para a sua destruição, ele destruirá
em nós o amor de Deus e do próximo.
3. 3.Cf. Mt 21, 19, sobre a figueira seca «Vendo uma figueira junto do
caminho, aproximou-se dela, e não encontrou nela senão folhas, e disse-lhe: Nunca
mais nasça fruto de ti. E, imediatamente, secou a figueira». S. Tomás comenta:
«Cristo visitou a Judéia. Esta tinha folhas, ou seja, a observância da lei, mas não
tinha fruto. Do mesmo modo, algumas pessoas tem aspecto de honestidade, no
entanto são más e perversas no interior... E veio a maldição para que Cristo
mostrasse que a Judéia seria estéril no futuro, assim como se lê em Rm 9. Assim,
por vez ocorre que a algumas pessoas, más no coração, virtuosas no exterior, o
Senhor as faz secas, para que não corrompam os demais» [In Matth. XXI, 19]. E
isto, Deus faz por amor às almas, para sua salvação.
4. 4.Cf. S. Agostinho (De natura et gratia, c. 43, n. 50), citado pelo
Concílio de Trento (Denz. 804)
O discernimento de espíritos

1. Que significa espírito nesta expressão ? Significa uma maneira especial de


julgar, amar, querer, agir; uma tendência ou mentalidade particular da alma, por
exemplo, uma inclinação à oração, à penitência ou, ao invés, à contradição; é desse
modo que falamos de um espírito de contradição ou ainda, de insubordinação.

2. Como classificamos na espiritualidade os diversos espíritos? Classificamos


geralmente em três tipos de espíritos: o divino, o diabólico e o humano.

Que é o espírito divino? É a inclinação interior da alma para julgar, amar,


querer, agir de modo sobrenatural; por isso, nos inclina a fugir do pecado pela
mortificação da carne, pela humildade, e a tender para Deus pela obediência, piedade,
fé, confiança e caridade, afetiva e efetiva. O espírito divino verifica-se particularmente
nas inspirações do Espírito Santo segundo os sete dons.

O espírito divino se encontra em estado latente nos principiantes e de modo


mais manifesto nos aproveitados e nos perfeitos, mais dóceis ao Espirito Santo. Pela
inspiração divina, há unidade numa grande variedade de virtudes, de dons, de vocações
contemplativas, ativas e apostólicas. É conforme esta variedade que distinguimos o
espírito de cada família religiosa, que declina na medida que dele se afasta e se renova,
ao contrário, quando a ele retorna.

Que é o espírito humano, ou espírito de natureza? É a inclinação para julgar,


querer e agir de modo demasiado humano, segundo a natureza decaída, que tende para
sua vantagem pessoal, para sua própria utilidade; é o espírito do egoísmo e do
individualismo. Então, a prudência é vista mais como uma virtude necessária para evitar
os inconvenientes, que como uma virtude positiva que tende ao bem honesto e dirige
retamente as virtudes morais. Por esta prudência da carne, coloca-se a mediocridade, no
sentido pejorativo do termo, no lugar do justo meio da virtude.

Esta mediocridade é um meio termo entre o bem e o mal e, inspirando-se no


utilitarismo, ela permanece no centro da base do triângulo para fugir aos inconvenientes
do vício, mas não por amor a virtude. Ao contrário, o justo meio termo da virtude é
como o cume do triângulo formado entre dois vícios opostos um ao outro. Assim, o
justo meio-termo da virtude da força está entre a covardia e a audácia temerária. Este
justo meio-termo eleva-se mais e mais com o progresso das virtudes. É mais alto na
temperança infusa que na temperança adquirida. Do mesmo modo, a mediocridade
sempre diminui a elevação das virtudes teologais, como se existissem « por si sós, em
um meio-termo », como se o homem pudesse ter demasiada fé em Deus, demasiada
esperança em Deus, demasiado amor a Deus, assim como pode amar demasiadamente a
própria pátria, amando-a mais que a Deus. O falso meio-termo da mediocridade
permanece na base e não busca jamais o cume da perfeição.
Este espírito de natureza engendra a tibieza e, enfim, o desgosto. Predispõe ao
pecado mortal pelos pecados veniais cada vez mais deliberados. No entanto, o espírito
de natureza tem, por vezes, um lirismo próprio, que se manifesta no sentimentalismo, na
afetação na sensibilidade de um amor que não existe o bastante na vontade. Mas decai
rapidamente do lirismo romântico à prudência da carne e à « loucura » da qual falava
São Paulo, que julga de todas as coisas, mesmas as mais elevadas, pelo que há de mais
baixo, segundo as satisfações da sensualidade ou do orgulho (cf. S. Tomás sobre a
prudência da carne e a loucura, IIa-IIae, q. 55, q. 46)1.

Que é o espírito demoníaco? É uma tendência para julgar, querer e agir


conforme uma inspiração perversa e diabólica. Este espírito manifesta-se claramente
nos ímpios, em seu orgulho, luxúria e arrebatamento, mas, no momento da tentação,
aparece em estado latente nos outros.

Em toda alma predomina um destes três espíritos: nos ímpios, o espírito


demoníaco, nos tíbios, o espírito de natureza; nos iniciantes que se mostram generosos
na via do Senhor, domina já o espírito de Deus, ainda que neles, por vezes, o espírito de
natureza ou mesmo o demoníaco se introduza.

Que significa, enfim, discernimento, quando falamos em discernimento dos


espíritos? É o julgamento que consiste em discernir exatamente por qual espírito é
normalmente movida tal pessoa. Ora, o discernimento pode ser adquirido ou infuso :

Se é adquirido, tem sua origem no influxo da teologia moral e na prudência


adquirida unida à prudência infusa, e é mais ou menos aperfeiçoado pela inspiração do
dom do conselho.
Se é infuso, é a graça gratis data, chamada por São Paulo (1 Cor 12, 10)
« discernimento dos espíritos ». Ela é muito rara. No entanto, um bom diretor espiritual,
piedoso, virtuoso e prudente, recebe, mui freqüentemente, graças de estado que podem,
de algum modo, pelo fato de serem de utilidade ao próximo, conduzir a uma
graça gratis data; elas aperfeiçoam sua prudência e as inspirações do dom de conselho.

***

Qual é o princípio fundamental do discernimento dos espíritos ?

É o princípio formulado por Nosso Senhor, a saber: «toda a árvore boa dá bons
frutos, e toda a árvore má dá maus frutos. Não pode uma árvore boa dar maus frutos,
nem uma árvore má dar bons frutos. Toda a árvore, que não dá bom fruto, será cortada
e lançada no fogo. Vós os conhecereis pois pelos seus frutos» (Mt 7, 17-20).

Ora, os frutos são as virtudes, os dons do Espírito Santo e seus atos. É preciso,
pois, julgar pelas principais virtudes, ou seja, em ordem ascendente, pela castidade e
mortificação, pela humilde obediência; pela fé, esperança e caridade. É fácil aplicá-las
aos três espíritos que distingüimos acima.

DESCRIÇÃO DOS SINAIS DO ESPÍRITO DE NATUREZA

Esta descrição se faz com facilidade por contraste com o espírito divino,
observando-se algumas diferenças com relação ao espírito demoníaco. Este espírito
natural é, como dissemos acima, uma tendencia para julgar, querer e agir de modo
natural e não sobrenatural. De que « natureza » se trata? Não se trata absolutamente da
natureza considerada em si mesma, que pode se elevar à ordem da graça, mas se trata
quer da natureza decaída e ainda não regenerada pela graça, quer da natureza
ainda manchada, que, apesar da presença da graça, conserva as quatro manchas
conseqüentes ao pecado original, que se agravam pelos pecados pessoais. Estas
manchas nos batizados que vivem em estado de graça estão em via de cicatrização ou
cura, mas não há cura perfeita nesta vida. 2.

Infligida à toda natureza humana pelo pecado dos primeiros pais, estas
manchas são curadas imperfeitamente no batismo, pois a concupiscência permanece
após este novo nascimento, o que nos obriga a um combate espiritual. Assim, com a
ajuda de Deus, o homem supera a concupiscência de um modo meritório, como diz S.
Tomás (III, q. 69, a. 3). E isto também era conveniente, como está dito no mesmo lugar,
para que os homens não viessem ao batismo com o intuito de escapar às penas da vida
presente antes que pela glória da vida eterna. Nós somos co-herdeiros do Cristo, « mas
isto, se sofrermos com ele, para sermos com ele glorificados ». Ora, estas quatro
manchas são agravadas pelo pecado atual que diminui a inclinação natural para a
virtude ao trazer um obstáculo: a inclinação para o mal; assim, « pelo pecado (mesmo
venial, nos justos) a razão é embotada, sobretudo na ordem da ação, a vontade se
enrigesse contra o bem, cresce a dificuldade de bem agir e a concupiscência arde com
mais força » (I-II, q. 85, a. 3).

É por isto que o espírito da natureza decaída ou manchada inclina


à concupiscência, que é o lar do pecado e, em seguida, à preguiça, à frouxidão no
irascível e, por conseqüência, à injustiça na vontade, à negligência, à imprudência ou à
astúcia na inteligência. Em resumo, é o espírito do amor próprio, do amor desordenado
de si-mesmo ou do egoismo. E este espírito de amor-próprio, como o demonstra S.
Tomás, conduz às três concupiscências, isto é, à concupiscência da carne, à
concupiscência dos olhos e ao orgulho de vida3.

Estas três concupiscências inclinam enfim aos sete pecados capitais, que estão
na origem de outros pecados, freqüentemente mais graves (Ia-IIae, q. 84, a. 4); os sete
pecados são: a vã glória, a inveja, a cólera, a avareza, a preguiça ou a tibieza, a gula e a
luxúria. Conforme observa S. João da Cruz (Noite escura, 1. I, início), estes sete
pecados existem mesmo em relação aos bens espirituais, por exemplo, a gula espiritual,
que é o desejo imoderado da consolação espiritual, amada por si mesma e não por Deus,
e o orgulho espiritual. Ora, os pecados capitais, aos quais o espirito da natureza inclina
primeiramente, leva a pecados mais graves, como a incredulidade, o desespero, o ódio
de Deus e do próximo. Assim considerada, a natureza manchada da qual fala S. Tomás,
não difere da que fala o livro da Imitação de Cristo (1. III, c. 54).

Se quisermos discrever o espírito de natureza quanto à mortificação, à


humildade, às virtudes teologais, digamos que a ele é preciso aplicar a primeira regra do
discernimento, « Vós os conhecereis pois pelos seus frutos » :

1. O espírito de natureza não inclina jamais à mortificação, nem exterior, nem


interior, nem a aceitar as humilhações. Como dizem os espirituais : a natureza não quer
morrer, mas procura o deleite nas coisas da piedade, com uma gula espiritual que se
opõe ao espírito de fé e ao verdadeiro amor de Deus. Após as primeiras dificuldades ou
asperezas, aquele que se move por este espírito de natureza não progride mais e
abandona a vida interior. Sob pretexto de apostolado, lança-se numa atividade natural
exterior, vive na superfície de sua alma; nele, nada há de profundo, confunde caridade
com filantropia, humanitarismo e liberalismo. Esta atividade natural se manifesta de três
maneiras, em ordem decrescente: 1.) o arrebatamento, o ardor natural; 2.) a precipitação
natural; 3.) o movimento natural, ou atividade natural não santificada, em nada
inspirada pelo espírito da fé ou pelo amor de Deus.

Sobrevém a contradição ou a provação, então a natureza geme, recusa carregar


a cruz e cai, pouco a pouco, no desespero. O fervor inicial não era senão um fogo de
palha subitamente extinto.

Este espírito é propriamente o egoísmo, com uma perfeita indiferença pela


glória de Deus e a salvação das almas. Não é o amor de Deus ou do próximo que detêm
o primeiro lugar na alma, mas o amor desordenado de si-mesmo.
Mas, para se justificar, este espírito de natureza tem sua teoria; o princípio é o
seguinte: não se deve exagerar em nada, devemos evitar os excessos seja na
austeridade, seja na piedade; nós não estamos obrigados a tender à perfeição mística,
isto seria misticismo. Segundo este espírito, se alguém lê reservadamente um capítulo
da Imitação de Jesus Cristo diariamente para seu progresso espiritual, já é um místico.
É preciso, como se diz, avançar pela via comum, posto que a virtude se encontra num
meio-termo.

Mas eles falseiam este princípio : o sentido verdadeiro é que a virtude moral se
encontra num meio-termo e é um cume entre dois vícios, um por excesso, outro por
falta, como a fortaleza está entre a covardia e a audácia temerária. É evidente que este
meio-termo é, igualmente, um cume que se eleva entre e acima dos dois vícios opostos,
um ao outro. Ao contrário, o meio-termo de que fala a teoria dita acima está na base do
triângulo que figura o caminho da perfeição. Pois o meio-termo da tibieza não está entre
e acima de dois vícios opostos um ao outro, mas entre o vício e a verdadeira virtude, é o
meio-termo instável da mediocridade, entre o bem eo mal, e mais perto do mal do que
do bem, nem mesmo no meio do caminho entre os dois, como na enumeração das notas
escolares que se costuma dar às crianças : muito bom, bom, razoável, mediocre, mal,
muito mal. Esta teoria é, pois, a da mediocridade sob as aparências da virtude ; pois, se
ela foge dos vícios opostos entre si, é por causa de seus inconvenientes e em razão da
comodidade ou utilidade pessoal, não por amor do bem honesto e da virtude. Assim era
para o utilitarismo de Epicuro e de Horácio. Assim como se diz « vinho mediocre, nem
bom, nem mal », podemos dizer: espírito mediocre, obra mediocre.

Ademais, esta teoria da mediocridade recusa admitir, ao menos na prática,


que as virtudes teologais não estão, por si mesmas, num meio-termo ; ela rejeita,
portanto, as palavras de S. Tomás: « Nós não podemos amar a Deus tanto quanto Ele
deve ser amado, nem crer ou esperar nele o bastante » (Ia-IIae, q. 64, a. 4). Devemos,
pois, aspirar a uma fé, a uma confiança e a uma caridade sempre maior.
Por mais forte razão, nesta categoria, negligencia-se na prática a necessidade
da docilidade às inspirações do Santo Espírito conforme os sete dons.

***

Na carta do Revmo. Pe. de Paredès, Geral da ordem dos Irmãos Pregadores,


publicada em 1926, no início da nova edição das Constituições, o espírito natural está
descrito assim (pág. 20): « Ainda que a santidade seja, para o homem, o efeito da graça
de Deus agindo em nós, ela supõe, no entanto, de nossa parte, um longo e laborioso
progresso de purificação e de transformação de tudo o que há em nós, até
alcançarmos o total abandono do velho homem, que se perverte nos desejos da carne, e
nos revestirmos do homem novo « criado segundo Deus na justiça e na santidade da
verdade ». Daí, o espírito de obediência, de abnegação e de sacrifício com o qual
devemos todos guardar estas observações com exatidão e perseverança... ».

Contudo, « Toda indulgência humana, todo espírito de pusilanimidade, toda


condescendência feita a este ponto por considerações terrestres, toda dispensa
ilegítima, sem fundamento nas próprias Constituições, podem ser consideradas como
uma prevaricação por parte dos superiores... e, por parte dos sujeitos, como
uma renúncia à obrigação de se santificar e de fazer de si instrumentos úteis para
cumprir o santo ministério. Ceder a nossa fraqueza, conforme a maneira dita acima,
seria mostrar que professamos o estado religioso, não para alcançar o fim que Deus e a
Igreja nos impuseram, mas para encontrar uma solução agradável para o problema da
vida presente, isto é, para encontrar com mais segurança no estado religioso todos os
bens necessário para a vida e ainda nos propiciar mais facilmente vantagens que talvez
não gozassemos no século.

« Mas, para que as observâncias regulares produzam em nós todos os frutos de


santidade visados pelas Constituições, não basta observá-las de modo meramente
material ou literal, nem apenas para evitar a sanção prevista pela lei ou que pode ser
imposta pelos superiores, nem para mostrar-se irrepreensível perante os superiores.
Para que nossas observâncias sejam para nós meio de santificação... (e de preparação
para o santo ministério), é preciso que sejam sobrenaturais em seu princípio e sejam
causadas pela graça divina que lhes infunde o ser sobrenatural.

« Na falta deste espírito interior, que é o centro e a fonte da vida


sobrenatural... não sobra nada em nós senão o mecânico e o material, nossa piedade
pessoal carece de energia vital « como um bronze que soa, ou como um címbalo que
tine », ela se enfraquece e perde todo o mérito e nossa ação comum fica, ela mesma,
privada de verdadeira orientação e eficácia. Trabalhamos e nos
inquietamos talvez demais em nossas atividades; mas nossa atividade não exprime a
verdadeira vida interior de fé, esperança e caridade... Ela parece apenas um esforço
provocado pela necessidade exterior de agir ou que obedecesse a razões puramente
naturais que nos guiam, conscientemente ou não, pelo fato único de favorecerem as
inclinações de nossa natureza. Na falta do espírito interior que nos permite triunfar fobre
nós mesmos e dá a nosso ministério a vitória sobre os inimigos da salvação das
almas, quanto tempo perdido e passado em vão, quantos esforços, quantos sacrifícios
estéreis, quantas atividades gastas inutilmente! »

Ao contrário, onde prospera e florece o espírito interior, produz-se os frutos de


uma santidade sólida... Então, o valor e a virtude da vocação religiosa se mostra mais
claramente... « Este espírito interior se forma em nós pela prática dos meios que a
ascese religiosa nos sugere ; ele se fortalece e se aperfeiçoa pelo progresso espiritual nas
diversas etapas da mística cristã, como ensina o Doutor angélico. A mística é, com
efeito, o complemento da ascese na ascensão das almas a Deus pelos graus da
perfeição da vida cristã. Se houve, por vezes, erros a este sujeito, se aberrações práticas
prejudicaram largamente nesse ponto a verdadeira piedade, assistimos hoje uma
restauração da verdadeira doutrina tradicional que dá às almas sedentas de vida
sobrenatural meios de conhecer as realidades místicas ». É nessa vida perfeita que se
encontra verdadeiramente o espírito de Deus que renova as almas.
O espírito natural releva-se sobretudo na maneira tíbia de celebrar a Missa, no
modo de dizer o ofício, com precipitação e como que mecanicamente, de ocupar-se dos
estudos com curiosidade e, em seguida, com preguiça, ou ainda de observar ou antes de
não observar o silêncio e outras práticas regulares, e na maneira imperfeita de obedecer,
quer incompleta, quer servilmente, como se faria para uma pessoa humana e não para
Deus, ou por desejo de obter honras e dignidades.

Notamos, em conformidade com muitos autores, que a celebração da Missa


pode ser celebrada dignamente com espírito de fé ou piedade ; também pode ser mais
lida que celebrada, como que para cumprir um dever, ao modo de um funcionário ou de
um magistrado que cumpre regularmente sua função civil ; por fim, pode
ser despachada com precipitação, em vinte minutos, por exemplo, ou mesmo em menos
tempo, sem nenhuma piedade e, por vezes, para escândalo dos fiéis. Na primeira
maneira, há o espírito de Deus ; nas duas outras, trata-se evidentemente do espírito da
natureza. É preciso pregar sobre esse assunto nos exercícios espirituais para o clero.

Que é preciso dizer contra o espírito natural na celebração da Missa4?

A celebração quotidiana é útil para todos os padres : 1) em razão do sacrifício


que por quatro fins oferecemos a Deus : adoração, súplica, reparação, ação de graças
pelos benefícios de cada dia ; 2) em razão da comunhão sacramental, em que recebemos
o pão supersubstancial de cada dia ; 3) por causa do grande proveito que daí resulta para
a Igreja universal e todos fiéis vivos ou mortos.

Ademais, se o padre celebra raramente, falta com seu dever e enterra seu
talento na terra. A celebração quotidiana da Missa requer uma preparação digna.

Que fazer, em caso de dúvida, quando ignoramos se tal pessoa que devemos
dirigir é normalmente dirigida por um espírito bom ou mal ?
1. É preciso sobretudo examinar sua humildade.

2. Sua mortificação.

3. Sua obediência ao diretor.

4. Ele mesmo deve rezar para receber a luz de Deus.

DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS SINAIS DO ESPÍRITO MAU.

Ao contrário do espírito divino, o espírito diabólico conduz à exaltação do


orgulho e, em seguida, lança a alma na confusão e no desespero, assim como ocorreu
ao demônio, que pecou por orgulho e segue no desespero eterno e no ódio de Deus.

Para conhecer este espírito mal, é preciso portanto considerar sua influência no
que diz respeito à mortificação, à humildade e à obediência e, em seguida, no que diz
respeito às virtudes teologais. O espírito demoníaco não nos afasta sempre
da mortificação; ele difere, assim, do espírito de natureza e, por vezes, até o contraria e
conduz a uma mortificação exterior exagerada, visível a todos, que entretém o orgulho
espiritual e enfraquece a saúde. Mas não inclina à mortificação interior da imaginação,
do coração, da vontade própria e do julgamento próprio, ainda que estimule, por vezes,
inspirando escrúpulos quanto à pequenos detalhes e laxismo quanto às coisas de maior
importância, como os principais deveres de estado, por exemplo. Ele inspira assim a
hipocrisia : « Jejuo duas vezes na semana » (Lc 18, 12).

Este espírito não nos conduz à humildade, mas nos engana pouco a pouco, para
que nós nos estimemos mais do que devíamos, mais do que aos outros, com o objetivo
de nos fazer rezar ao modo do fariseu: « Graças te dou, ó Deus, porque não sou como
os outros homens : ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano » (Lc 18, 11).
Este orgulho espiritual é acompanhado de uma falsa humildade, do fato de
confessarmos um pecado pessoal, para que os outros não nos acusem de uma falta ainda
mais grave e nos considerem humildes. O espírito mal faz ainda com que confundamos
a humildade com a timidez, que é filha do orgulho e teme o desprezo. Do mesmo
modo, não engendra a obediência, mas a desobediência ou o espírito servil, conforme
as circunstâncias.

Quanto à fé, o espírito mau não inclina nosso espírito a considerar no


Evangelho o que é ao mesmo tempo mais simples e mais profundo, por exemplo, não
nos faz dizer com atenção e devoção a oração dominical, meditar os mistérios do santo
rosário, mas apenas nos interessa ao que é extraordinário e favorece a ostentação, como
quando disse ao Salvador : « Se és filho de Deus, lança-te daqui abaixo ; porque está
escrito que Deus mandou aos seus anjos que te guardem, e que te sustenham em suas
mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra. ». Ao que Jesus
respondeu :« Também foi dito : Não tentarás o Senhor teu Deus ».

O espírito mau, do mesmo modo, nos incita ao que é contrário à nossa


vocação ; por exemplo, leva um monge cartuxo a querer evangelizar os infiéis ou um
missionário à vida solitária dos cartuxos. Ou ainda, no que diz respeito à devoção,
inspira a rezar à revelia da liturgia, por exemplo, rezar a sexta-feira santa como se fosse
Natal ou vice-versa. Do mesmo modo, nas coisas da fé, conduz a novidades dogmáticas,
como, por exemplo, no tempo do modernismo, a ler os livros dos protestantes liberais
sob pretexto de adaptar nossa fé ao pensamento moderno. Ou, ao contrário, se nossa
inclinação natural está em sentido oposto, nos incita a um arcaísmo imoderado, para
provocar o conflito entre católicos ; assim, levava os israelistas recém convertidos ao
Cristianismo a voltar à lei mosaica ; é contra esta tentação que foi escrita a Epístola aos
Hebreus, onde está dito (3, 13) « Exortai-vos uns aos outros todos os dias, para que
nenhum de vós se endureça, seduzido pelo pecado. ». Do mesmo modo, o espírito mau
altera os dogmas : por exemplo, o da predestinação quandosurge no calvinismo; então
se realiza o adágio : corruptio optimi pessima. A corrupção do melhor é a pior das
coisas. O demônio conhece muito bem este provérbio e trabalha para a perversão da fé
sobrenatural. Ele sabe, com efeito, que não há nada pior, nada de mais perigoso que o
cristianismo falseado, que conserva uma certa aparência de verdade, e ele age, por
vezes, como um falso Cristo antes de aparecer como Anticristo. Tal como existiu no
pensamento de Lutéro e Calvino (não nos protestantes de boa fé), o protestantismo é
então alguma coisa de pior e de mais perigoso que o naturalismo, pois é mais sedutor e
abusa ainda mais da sagrada Escritura. É verdade que aceita a Escritura, mas para um
uso depravado.

O naturalismo prático e, em seguida, teórico, provém muitas vezes do espírito


da natureza decaído, mas a perversíssima corrupção dos dogmas sobrenaturais, como no
calvinismo, vem do espírito do demônio. Alterar a fé divina é, portanto, podemos dizê-
lo, utilizar-se de uma arma de grande precisão, não contra os inimigos, mas contra os
próprios irmãos e contra si próprio – é um fratricídio e um suicidio. Assim se explica,
em grande parte, a história da pseudo-Reforma quanto ao seu espírito, ainda que muitos
protestantes estejam de boa fé, pelo fato de ignorarem o verdadeiro espírito do
protestantismo.

Quanto à esperança, o espírito mau trabalha para fazer com que nossa
esperança degenere em presunção ; por exemplo, quer-se chegar rapido demais à
santidade, e não pouco a pouco, subindo os degraus necessários, nem pela via da
humildade e da abnegação. Ele inspira igualmente uma certa impaciência quanto à nós
mesmos, uma vez que nossos defeitos parecem grandes demais. Por conseqüência,
produz em nós a indignação no lugar da contrição, uma indignação que é filha do
orgulho e contrária à contrição. Ora, a presunção conduz ao desespero, quando se
verifica a impossibilidade de chegar por suas próprias forças ao fim visado : o bem
árduo parece então quase inacessível – é a desesperança.

Quanto à caridade, o espírito mau favorece os simulacros que são como um


falso diamante ; assim, conforme as inclinações variadas e opostas de nossa natureza,
ele inclina algumas a esta falsa caridade para com o próximo que é o sentimentalismo,
com uma indulgência excessiva sob pretexto de misericórdia e de generosidade. Em
outros engendra um falso zelo : queremos sempre corrigir os outros, mas não a nós
mesmos e, vendo a aresta no olho de nosso irmão, não vemos a trave no nosso olho.
De tudo isto resulta o contrário da paz, ou seja, a discórdia. O homem
conduzido por este espírito não pode suportar a contradição, não vê senão a si mesmo
em sua ofuscante personalidade, e se coloca, inconscientemente, acima de todos os
demais, como uma estátua sobre o seu pedestal.

Se este homem cai em um pecado grave e manifesto que não pode esconder,
ele se deixará vencer pela confusão, indignação, desespero e, enfim, pela cegueira do
espírito e pelo endurecimento do coração. Antes desta falta, o demônio escondia as
conseqüências desencorajantes do pecado e inspirava o relachamento ; agora, após a
falta, fala da justiça inexorável de Deus, para nos conduzir ao desespero. É assim que
forma as almas à sua imagem : após o arrebatamento do orgulho, vem o desespero.

Portanto, se alguém tem uma grande devoção sensível na oração, mas sai dela
com maior amor próprio, julgando-se acima dos outros, sem obediência aos superiores,
desprovido de simplicidade no que toca seu diretor espiritual, isto é sinal da presença do
espirito mau na sua devoção sensível. A falta de humildade, obediência e caridade
fraterna é o indício de que se está privado do espírito de Deus.

Vamos agora aos sinais deste último.

DESCRIÇÃO DOS SINAIS DO ESPÍRITO DE DEUS

Estes sinais opõem-se aos do espírito da natureza e do espírito demoníaco. O


espírito de Deus inclina à mortificação exterior, no que difere do espírito de natureza,
mas à mortificação exterior regrada pela prudência cristã e pela obediência, e que não
atrai a atenção para nós nem enfraquece a saúde. Este espírito nos ensina, por outro
lado, que a mortificação exterior é coisa pequena, se não há, ao mesmo tempo, a
mortificação da imaginação, da memória (lembrança dos erros que cometemos), do
coração, da vontade própria e do julgamento próprio. Inspira igualmente a verdadeira
humildade, que dispõe à perfeita obediência, nos impede preferirmos a nós mesmos que
aos outros, não teme o menosprezo, guarda silêncio sobre nossas qualidades ; no
entanto, ela não os nega, se existem, mas rende glória a Deus por elas.

O espírito de Deus alimenta nossa fé com o que há de mais simples e profundo


no Evangelho, como, por exemplo, o Pai Nosso, fazendo-nos fugir às novidades pela
fidelidade à tradição. Esta verdadeira fé sobrenatural nos revela a presença de Deus nos
nossos superiores ; assim, aperfeiçoa-se o espírito de fé, porque tudo julgamos à luz
dessa virtude.

O espírito de Deus torna a esperança firme, preservando-a da presunção ; diz-


nos, por exemplo : é preciso desejar ardentemente a água viva da oração,
que conseguimos pela via da humildade, da abnegação e da cruz. Por consegüinte, dá-
nos uma santa indiferença pelo sucesso humano.

O espírito de Deus aumenta o fervor da caridade, dá o zelo pela glória de Deus


e pela salvação das almas, o esquecimento de si mesmo. Assim, pensamos antes de tudo
em Deus, depois em nosso benefício. Inclina igualmente ao amor eficaz ao próximo ;
nos ensina que a caridade fraterna é o principal indício do progresso no amor de
Deus. Impede o julgamento temerário, o escândalo sem motivo. Inspira o zelo,
certamente, mas um zelo paciente, doce e prudente, que edifica pela oração e pelo
exemplo e não se irrita pelas repreensões intempestivas. Produz uma grande paciência
nas adversidades, o amor pela cruz, o amor pelos inimigos. Propicia a paz com Deus,
com os outros, com nós mesmos e, freqüentemente, a paz interior.

Se ocorre uma queda acidental, então o espírito de Deus nos fala em


misericórdia. S. Paulo diz (Gl 5, 22-23): « O fruto do Espírito é a caridade, o gozo, a
paz, a paciência, a benignidade, a bondade, a longanimidade, a mansidão, a fidelidade,
a modéstia, a continência, a castidade. », com a humildade e a obediência.

Se se trata de um ato particular, é mais difícil discernir se provém ou não de


Deus. No entanto, se, encontrando-se antes na tristeza, a alma reza e recebe uma
consolação profunda, é o sinal da visita de Deus, se esta consolação incita à obediência
humilde e à caridade fraterna.

Mas é preciso distinguir o primeiro momento da consolação do tempo seguinte,


onde, por vezes, a alma julga por si mesma sobre esta consolação e o pode fazer
conforme seu amor próprio.

Haverá presunção se desejar graças propriamente extraordinárias, como visões


ou palavras interiores ; mas se a alma vive e persevera na humildade, abnegação e
recolhimento quase contínuo, não é raro que, em virtude dos sete dons do Espírito
Santo, ela receba inspirações pelas quais se conciliam a simplicidade e a prudência, a
humildade e o zelo, a firmeza e a doçura. Esta conciliação e esta harmonia constituem
sinal claríssimo do espírito de Deus.

O segredo, o silêncio e a cruz são absolutamente necessários àqueles a quem


Deus conduz verdadeiramente por vias extraordinárias e estes não as devem manifestar
senão ao seu pai espiritual ; caso contrário, há grande perigo de orgulho espiritual.

Particularmente perigosa é a disposição de se comprazer nas revelações, de


forma dogmática ou profética ; pois elas se acompanham facilmente de ilusões, e
mesmo se a primeira inspiração vêm de Deus, freqüentemente vêm a ela se acrescentar
uma interpretação humana, mais ou menos errônea, geralmente compreendida de modo
extramamente material. Enfim, o espírito que procura êxtases e revelações, se não
aperfeiçoa os costumes e a vida, e não faz o homem desconfiar-se de si mesmo, é um
espírito de ilusão, sobretudo se todo isto impede a realização do dever de estado e
engendra discórdias. Os sinais do espírito de Deus são, portanto, a obediência humilde,
a caridade fraterna, a paz e a alegria espiritual radiantes.

PRINCÍPIOS SECUNDÁRIOS DO DISCERNIMENTO DOS


ESPÍRITOS

1. No que se apresentaprontamente para ser feito, o espírito que anima alguém


se manifestará se, após deliberação, desconfiar-se de si mesmo. No entanto, nesta regra,
não se trata do movimento primo primus, nem do pecado de fragilidade, mas de um ato
suficientemente deliberado e grave que o hipócrita não pode esconder ; assim se revelou
o coração dos fariseus após a cura imprevista do cego de nascimento.

2. Os segredos do coração se revelam nas tribulações. Assim, os verdadeiros


amigos permanecem nos dias de tribuação, mas não os demais, como está escrito no
Eclesiastico (4, 8). Do mesmo modo, a tribulação é como uma fornalha onde Deus
prova seus eleitos, conforme outra passado do Eclesiástico (27, 6) : « O forno prova os
vasos do oleiro e a prova da tribulação, os homens justos » . Lê-se no livro da
Sabedoria (3, 5- 8) : « Deus, que os provou, achou-os dignos de si. Ele os provou como
ouro na fornalha, e aceitou-os como um holocausto. Os justos resplandecerão no tempo
da recompensa, propagar-se-ão como centelhas sobre o colmo. Julgarão as nações,
dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre. » Mas, para isso, a
tribulação era necessária ; « Numerosas são as tribulações dos justos » ; sua
longanimidade, sua humildade, sua mansidão, sua indefectível perseverança então se
manifestam.

3. O poder revela o homem ; pois, quando adquirimos poder e honras, devemos


corrigir e governar os outrros, o que importa bem mais dificuldades do que antes
fazíamos em nossa vida privada. Com efeito, é preciso mostrar sabedoria, prudência,
sem oportunismo e utilitarismo mesquinhos, caridade para com todos e justiça,
igualmente, uma firmeza que não teme corrigir os maus, enfim, bem-querer pelos bons
servidores que devem ser ajudados. Ver o Diálogo de santa Catarina de Sena, no lugar
em que trata dos bons e dos maus pastores.

REGRAS PARA CIRCUNSTÂNCIAS DIVERSAS

1. Nos momentos de desolação, não se deve fazer nenhuma alteração, mas


manter com firmeza e confiança as resoluções que já tomamos diante de Deus. Isto é
sobretudo verdadeiro caso se trate de uma desolação acachapante, que leva à uma
tristeza má onde o espírito perverso será nosso guia.

2. Nos momentos de desolação, é preciso dedicar-se ainda mais à oração, ao


exame de consciência e à penitência. Por que ? Porque a desolação, gerada pelo
desgosto nos afasta da oração, do exame de consciência e da penitência. Cura-se,
portanto, os contrários pelos contrários. Qualquer que seja a causa de que provenha, esta
desolação deve ser, para nós, ocasião de uma reação virtuosa ou de um ardor da alma
para o serviço de Deus. Ver A Imitação de Cristo, livro I, c. 12 : Vantagens da
adversidades ; lê-se o seguinte : « A adversidade lembra o homem de seu próprio
coração, de modo que se conheça em exílio e não ponha sua esperança em nenhuma
coisa desse mundo ». Assim, pouco a pouco, graças à oração, a tristeza, de maléfica que
era, torna-se boa.

3. O espírito mal nos engana atraíndo nossa alma a um bem aparente e, em


seguida, nos induz e incita ao mal. Trata-se, propriamente falando, de uma sedução, pior
ainda, o demônio se transfigura por vezes em anjo de luz : sob o pretexto de melhorar as
coisas inferiores, nos tira da via de Deus, para nos fazer desejar a comodidade antes que
a santidade. Provoca, assim, divisões, perturba a paz e semeia a discórdia.
4. Se nos entristecemos por ser menosprezados, é sinal, senão do espírito mal,
ao menos de um espírito imperfeito ; portanto, se nos descorajamos quando somos
menosprezados, é um mau sinal, sobretudo nos que passam por ser gratificados com os
maiores dons de Deus. Pois os que são verdadeiramente tais não se rejubilam apenas
destes dons e favores, mas também das adversidades e desprezos, conforme as palavras
de S. Paulo (2 Cor 12, 5, 10) : « Quanto a mim, de nada me gloriarei, senão das minhas
fraquezas... para que habite em mim o poder de Cristo. Por isso, sinto complacência
nas minhas enfermidades, nas afrontes, nas necessidades, nas perseguições, nas
angústicas por amor de Cristo ». Assim, como diz Santo Agostinho « o Apóstolo
encontrou um tesouro no menosprezo do qual corava o filósofo » (Sermão 160).

Conseqüentemente, o espírito que se recusa a ser menosprezado não é um


espírito perfeito ; do mesmo modo, aquele que deixa de renunciar a si mesmo não é de
sólida virtude. Pois, do fato de serem conexas, todas as virtudes devem aumentar ao
mesmo tempo.

COROLÁRIOS :

1. O espírito que abunda em penitências e é pobre em obediência é imperfeito


e tende ao mal de algum modo, porque está demasiado preso à vontade própria ; realiza
muitas boas obras, mas não por amor de Deus ; a prova é que não crê nesta humilde
obediência que manifesta conformidade com a vontade de Deus.

2. Também não é um bom espírito aquele que é dado ao paradoxo, isto é, que
julga habitualmente de modo excepcional ou que vai de encontro à apreciação comum
das pessoas prudentes, que tem algo de estranho e artificial : contém mais
grandiloqüência que virtude.
3. Também é mau espírito o que inclina a coisas extraordinárias e
fala delas abertamente, sem discrição. A razão disso é que todas as virtudes aumentam
ao mesmo tempo, pelo fato de serem conexas ; conseqüentemente, Deus não incita a
grandes coisas sem inspirar, ao mesmo tempo, uma grande humildade. Assim, a
verdadeira magnanimidade difere da impetuosidade da presunção. Ao contrário, é
próprio do demônio incitar empresas novas, curiosas, singulares, prodigiosas,
inusitadas, provocando a admiração e o estupor para obter as honras da santidade.

O mesmo se passa com alguém que, sem estar solidamente firmado na


humildade e obediência, inclina-se a uma vida extraordinária de oração e penitência, sob
pretexto de imitar os santos nas suas ações mais admiráveis e menos imitáveis.

A construção do edifício espiritual não pode começar pelo telhado, e o pássaro


não pode voar antes de possuir asas. Assim ocorre com a alma: se alguém se encaixa
nessa descrição e parece voar, não se trata senão de um simulacro de vôo ou de
elevação, uma vã e perigosa exaltação.

CONCLUSÃO

De tudo isto resulta claramente que o espírito de Deus manifesta-se sobretudo


na humilde obediência e na caridade fraterna, que ama o próximo por Deus com
abnegação. Pois a humilde obediência não provém do espírito da natureza que não
inclina à humildade, nem do espírito perverso, que é um espírito de orgulho e de
desobediência ; ao contrário, a humilde obediência, mesmo nos mais pequenos detalhes,
manifesta a progressiva conformidade com a vontade divina.

Por outro lado, a caridade fraterna é o maior sinal do amor de Deus, conforme
as palavras do Senhor (Jo 13, 35) : « Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns aos outros ». A caridade fraterna é o termômetro sensível da nossa
união com Deus ; pois é de modo bem sensível que aparece nossa caridade quando se
trata de ajudar o próximo, sobretudo se é difícil e exigente ; então, se o amamos apesar
desta dificuldade, é sinal de que nós lhes fazemos o bem por causa de Deus e que, por
conseqüência, aumenta nossa caridade para Deus mesmo. Não há duas virtudes de
caridade, uma para Deus, outra para o próximo. Não há senão uma só caridade, cujo
objeto principal é Deus e cujo objeto segundo é o próximo. O amor visível do próximo
manifesta assim o amor invisível de Deus, na medida em que se distingue do
sentimentalismo.

Portanto, se a humilde obediência e a caridade fraterna se conservam e


progridem numa alma ou numa comunidade, é, pois, sinal de que um verdadeiro amor
de Deus aí progride. Por consegüinte, se esta alma carece um pouco de inteligência
natural e de energia física, Deus o suplantará pelas inspirações de seus dons de conselho
e de força.

(Traduzido por Permanência a partir de www.salve-regina.com )

1. 1.Ver também : Imitação de Cristo, 1, III, cap. 4 : Os diversos


movimentos da natureza e da graça.
2. 2.Manchas [do pecado original] (Cf. Ia-IIae, q. 85, a. 3): - na razão
decaída de sua orientação para a verdade, ignorância no lugar de prudência; na
vontade, quanto ao bem em geral, malícia no lugar de justiça; no irascível, quanto
ao bem árduo, fraqueza no lugar de força; no concupiscível, quanto ao bem
deleitável regrado pela razão, concupiscência no lugar de temperança.
3. 3.Ia-IIae, q. 77, a. 4 e 5; cf. Bossuet, Tratado da concupiscência.
4. 4.Cf. Imitação de Cristo, 1, 4, c. 5: Excelência do sacramento e do
estado sacerdotal.
O discernimento filosófico da experiência mística
Não pode o filósofo digno do nome permanecer indiferente em presença do
misticismo. A mesma índole da filosofia desperta nos seus cultores profundo interesse
por todas as manifestações do espírito. Como pois ignorar esses homens cuja vida
parece retirar-se do corpo para concentrar-se no ápice dum espírito cuja chama arde e se
dilata ao ponto de consumir a própria carne?

Tudo quanto atrai, subjuga, fascina os outros homens, eles desprezam-no: a


riqueza, o prazer, a glória, a vida até. De bom grado optam por uma existência feita de
contínuas privações, não raro abraçam a pobreza, a dor, a perseguição; por vezes
preferem a morte antes que renunciar àquele mundo arcano no qual vivem. Justificam
tão estranha conduta apelando sempre a uma experiência misteriosa e divina de que
seriam favorecidos.

Iluminados, fanáticos, perseguidores de quimeras — ou então homens


privilegiados, dignos de admiração e inveja? Mais ainda. Entre os místicos, muitos há
que, renunciando a um esplêndido isolamento, trazem aos homens candente mensagem;
formam adeptos, despertam imitadores, suscitam vastos movimentos espirituais. E a
chama perdura e se renova através das vicissitudes do tempo. Sufocada aqui, ateia-se
acolá. Na França do XVII século, inebriada pelo matematismo filosófico de Descartes,
pela arte geométrica de Le Notre e de Mansard, eis que se acendem em cada província
inúmeros focos de misticismo, como fortemente documentou Henri Bremond. Mais
tarde, na mesma França sufocada pelo cientificismo que se jactava de apagar as estrelas,
bastou que em Lisieux faiscassem centelhas místicas, para que o incêndio logo se
alastrasse.

Como poderia o filósofo permanecer indiferente, quando até sólidos burgueses


sentem-se-lhes abalar o granítico materialismo? Verdade é que o filósofo quase nunca
tem alma acolhedora, em disponibilidade. Os fatos são obrigados a se amoldar à férrea
rigidez do sistema. Aos recalcitrantes nega-se até mesmo o direito de existir: são
friamente desconhecidos.

Donde as atitudes diversas — e por vezes desconcertantes — dos filósofos em


face do fenômeno místico.

Alguns, de tendência psicologista, apressam-se em identificar os místicos aos


dementes e não mais cogitam no assunto. Outros, de pendor racionalista, afetam uma
atitude protetora na qual entra não pouco desdém; na melhor das hipóteses serão os
místicos considerados qual desasados pré-filósofos procurando às apalpadelas e a muito
custo aquelas luzes que uma "filosofia do espírito" qualquer intelectualismo idealista
lhes proporcionaria sem maior esforço. Em compensação, pensadores de índole
empirista, para quem mais vale um fato do que um argumento, encaram o misticismo
com simpática e até com franca admiração; assim na América os dois filósofos de
Harvard: W. James e, sobretudo, W.E. Hocking; na Alemanha R. Otto; na França H.
Bergson.

Adotaremos aqui uma atitude de incondicional respeito aos fatos. Afigura-se-


nos quase pueril o negar ou refutar uma experiência. Sem dúvida, não basta constatar,
senão é mister interpretar. Todavia, não convém a uma interpretação correta pautar-se
por teorias pré-concebidas, nem devem os fatos sofrer um tratamento dialético que os
esvazie de toda especificidade.

O desejo de ser objetivo levará necessariamente o filósofo a empreender um


trabalho de discernimento: essas experiência denominadas místicas, que surgem no seio
de religiões tão diversas — e até, por vezes, fora de qualquer religião — em meios e
épocas tão distantes, serão porventura manifestações da mesma atividade, ou, pelo
contrário, essencialmente diferentes, apresentando embora semelhanças mais ou menos
superficiais?
Um estudo diferencial completo da experiência mística ultrapassa de muito o
âmbito dum artigo de revista. Restringiremos pois a pesquisa a dois pontos atualmente
mais controvertidos, porque mais obscuros: procuraremos discernir filosoficamente1 a
experiência mística cristã do misticismo patológico e do misticismo neo-platônico.

Com efeito, alguns alienistas incautos têm identificado certos delírios de


coloração religiosa, por eles observados, com os fenômenos místicos dos maiores santos
cristãos, do outro lado, alguns filósofos hão apresentado os nossos místicos como
adeptos — conscientes ou não — do neoplatonismo ou, pelo menos, têm sustentado que
é, de fato, a mesma experiência fundamental, que se vêm cristalizar nas fórmulas de
Plotino, e nas de S. João da Cruz. Tentaremos portanto averiguar se o delírio místico, o
misticismo filosófico, o misticismo cristão são outras tantas experiências irredutíveis ou
não. Seguiremos um método decididamente a posteriori: não partiremos de
considerações teóricas sobre a natureza e ainda menos sobre o valor dos respectivos
fenômenos; assumiremos como "hipótese de trabalho" que eles são reais — ao menos
como vivências psicológicas; indagaremos tão somente se apresentam caracteres
diferenciais, observáveis pelo filósofo.

I. Misticismo e Loucura

A índole patológica da experiência mística foi inúmeras vezes afirmada por


psicólogos e psiquiatras. Algumas dessas teorias são incontestavelmente desprovidas de
qualquer valor, por exemplo, a de James Leuba, segundo o qual o elemento constitutivo
do misticismo seria o "êxtase", que não passaria de uma queda na inconsciência,
assimilável a uma crise de epilepsia ou à embriaguez profunda. Semelhante tese só pode
ser sustentada por ignorância ou por má fé. Fosse embora o êxtase o que sustenta Leuba,
em todo o caso é absolutamente falso constituir ele o âmago do misticismo cristão.
Perderíamos tempo aduzindo testemunhas concordes de nossos místicos, tão evidente é
a questão para qualquer conhecedor dos fatos.
Igualmente desprovida de valor é a opinião corrente entre os leigos consoante a
qual o misticismo consistiria em visões, profecias, levitações, e outros fenômenos
estranhos. O doutor cristão da mística, S. João da Cruz, exarou do iluminismo sob todas
as formas, tremenda sentença condenatória, que já tivemos ocasião de resumir2 pelo que
não voltaremos aqui sobre o assunto.

Bem mais digna de nota é a teoria de Pierre Janet. Na ponderosa obra De


l'angoisse à l'extase, o mestre do Collège de France refere, com extraordinária minúcia,
a observação, prosseguida durante 22 anos, duma doente designada pelo pseudônimo de
Madeleine, que apresentava fenômenos místicos comparáveis, segundo Janet, aos da
grande Teresa de Ávila.

Reduzida a um resumo esquelético, a anamnese apresenta-se como segue.


Madeleine nasceu no norte a França, em 1852, de pai industrial, muito emotivo, utópico,
exaltado; de mãe nervosa. O casal procriou quatro filhos, vindo Madeleine em terceiro
lugar. Infância excepcionalmente doentia; gênio muito impressionável; sonhadora,
religiosíssima. Devido às doenças recebeu instrução relativamente deficiente (para
pessoa de sua classe social em França). Entretanto, exprimia-se muito bem por escrito,
lia Pascal, conhecia várias línguas, pintava agradavelmente. A partir dos onze anos
apresentou fenômenos nevropáticos caracterizados: obsessões, alucinações, escrúpulos
torturantes, períodos de depressão com absoluta imobilidade.

Aos 19 anos Madeleine partiu para a Alemanha a fim de ser professora numa
família e... desapareceu! Durante quase um quarto de século procuram-na debalde os
parentes. Que coisa havia sucedido? Madeleine fora acometida pelo que Janet denomina
"a mania da ilha deserta". Incapaz de resolver as dificuldades inerentes à vida social,
Madeleine fugiu.

Para justificar-se aos próprios olhos, pretendia seguir o ideal de S. Francisco de


Assis, e, durante 20 anos viveu não só na pobreza como na completa miséria. Mais tarde
declarava: "Se a miséria matasse, eu não existiria mais". O pouco que conseguia ganhar
(6 vinténs diários) partilhava-o ainda com outros pobres; tornou-se enfermeira benévola
de mulheres cancerosas. Tudo isso entremeado de alucinações, de idéias de perseguição.
Escreveu cartas ao Presidente da República francesa; esteve em dificuldades com a
polícia; por três vezes foi encarcerada. Por fim, venceu-a a moléstia. A dificuldade de
locomoção que desde criança sentira, agravou-se consideravelmente durante o inverno
de 1892 e 1893. Para fazer a entre de seus trabalhos de costura, via-se Madeleine
obrigada a caminhar longas horas patinhando na neve; inchavam-se-lhe os pés, durante
a noite, tornavam-se violáceos e sobremodo doídos. Com espanto percebeu que em
conseqüência da contração dos músculos, começava a caminhar sobre as pontas dos pés,
qual dançarina de Ópera. Resistiu quanto pôde, afinal capitulou: pelo espaço de quatro
anos lá foi de hospital em hospital até que enfim os facultativos declararam tratar-se de
"moléstia nervosa", já que todos os diagnósticos haviam sempre sido desencontrados...
Internaram então a Madeleine no hospício da Salpêtrière, onde entrou para o serviço do
Dr. Janet.

Ao cabo de 7 anos, tendo melhorado, regressou para junto da família, sempre


sob a fiscalização de Janet. Viveu ainda 14 anos, pobremente, muito religiosa, serviçal,
dedicando-se a uma irmã tuberculosa, e cuidando de várias crianças. Sofria das pernas,
de um desvio do tórax, de crises cardíacas, e faleceu piedosamente em 1918.

O misticismo de Madeleine compreendia fenômenos quer físicos, quer


psíquicos. As manifestações somáticas eram:

1o., a contração muscular que obrigava a doente a se ter nas pontas dos pés.
Madeleine interpretava esse fato como sendo o da "levitação" e como um começo de
"assunção"; periodicamente anunciava que os pés não mais pousavam sobre a terra e
que ela estava prestes a subir como um balão. Queria a todo o transe peregrinar a Roma
para ser elevada ao Céu em presença de Sua Santidade.
2o., o que a Madeleine denominava "estigmas" e comparava às chagas de S.
Francisco; não passavam, na verdade, de pequenas bolhas que ao arrebentar deixavam
correr um pouco de serosidade misturada com sangue.

Muito mais complexos e interessantes os fenômenos psíquicos, constitutivos do


delírio místico de Madeleine. A psicose evoluía por grandes crises apresentado fases
diversas e podendo prolongar-se por vários meses. O ponto de partida era um esta de
equilíbrio precário, de quase normalidade. Rompido esse equilíbrio, perturbada a
normalidade, Madeleine entrava no que ela denominava "estado de tentação", o mais
prolongado de todos. Dúvidas e escrúpulos de toda espécie acometiam a doente;
interrogava constantemente Janet, sem que as respostas lograssem satisfazê-la;
suplicava que lhe encontrassem um diretor de consciência o qual discerniria a
autenticidade de seu misticismo, a sobrenaturalidade de sua missão junto ao Papa e lhe
assegurasse que subiria ao céu, etc, etc. Exigia um diretor e de antemão dele duvidava.
À tentação seguia-se a secura, de menor duração. Em vez da inquietude, da dúvida, a
inércia, a apatia. Madeleine mantinha-se, então, sentada, imóvel, demonstrando
profundo abatimento; nada lograva interessá-la; sentia tédio, indiferença, tudo parecia-
lhe vazio. Sobrevinha enfim o delírio sob uma dupla forma, dolorosa e feliz. A primeira
era uma psicose melancólica ansiosa, com agitação intensa: Madeleine corria à polícia
para denunciar conspirações, profetizava catástrofes privadas e públicas, assistia pela
imaginação a cenas de assassínio e de canibalismo; acreditando-se no inferno
desesperava-se e sofria os tormentos dos réprobos.

Felizmente este estado lamentável só se prolongava pelo espaço de dois ou três


dias; seguia-se-lhe o delírio inverso: a consolação, o êxtase. (Donde o título da obra: De
l'angoisse à l'extase).

No delírio de beatitude, a ação exterior era extremamente reduzida. A extática


conservava-se em absoluta imobilidade, sem reagir aos estímulos externos. Em vão as
enfermeiras procuravam despertá-la, sacudindo-a, lançando-lhe água fira, colocando-lhe
sinapismos; Madeleine permanecia em torpor completo. Não havia, no entanto, nem
paralisia, nem anestesia, mas simplesmente desinteresse absoluto pela ação. Ao lado da
inércia motora, notava-se atividade afetiva enorme e sempre otimista. A doente vivia
uma série de romances interiores, de coloração religiosa, dos quais ela e Deus eram os
dois protagonistas. Imaginava compreender todos os mistérios da religião, ouvia
revelações estupendas, recebia inúmeras provas de amor. Acreditava-se uma grande
santa; sentia-se até divinizada: "Je suis Dieu!" exclamava. Não é de surpreender que
torrentes de júbilo, de perfeita felicidade, lhe inundassem a alma. Ao êxtase, seguia-se o
estado de consolação, que apresentava as mesmas características, embora mais
atenuadas. Pouco a pouco tudo se acalmava e Madeleine voltava ao quase equilíbrio
primitivo.

O ciclo deste misticismo patológico pode pois resumir-se em sete fases:


partindo de um estado subnormal, a doente passava por inquietações e dúvidas; caía na
inércia, na apatia, soçobrava no desespero e na tortura; repentina viravolta a soerguia,
levando-a ao êxtase beatificante; acalmava-se no otimismo da consolação; revertia ao
estado inicial, para encetar outro ciclo análogo.

Como interpretar esse delírio místico? Janet explica-o, como era de prever, em
função de suas teorias psicológicas. Distingue oito níveis mentais hierarquizados e
admite a passagem de um a outro seja no sentido do progresso, seja no do regresso.
Todas as deficiências e doenças mentais, explicar-se-iam quer por se ter o indivíduo
detido a nível inferior, sem progredir (p.ex. o débil mental) quer por ter decaído a um
nível mais baixo, em conseqüência de uma queda da tensão psicológica (p.ex., o
paranóico).

Até mesmo no mas normal dos indivíduos, produzem-se contínuas oscilações


da tensão psíquica, segundo está mais ou menos atento, ativo, etc.; durante o somo a
queda é profundo; ao despertar, porém, volta logo ao nível habitual. — Pelo contrário,
uma baixa contínua e acentuada provoca doenças mentais; estas, apesar de tão variadas,
nada seriam, segundo Janet, senão graus da mesma depressão mais ou menos profunda.
Tais graus são determinados pelo número maior das funções superiores alteradas e pelo
lugar que ocupam na hierarquia, as funções conservadas e exageradas. A aparência tão
diversa revestida pelas doenças mentais vir-lhes-ia simplesmente dessas diferenças de
nível na depressão psíquica. O ataque de epilepsia, por exemplo, seria uma regressão ao
"estágio de agitação difusa" que ocupa, segundo Janet, o grau ínfimo na escala das
tendências. Ao contrário, o delírio de interpretação é um perturbar-se das tendências
superiores. Um indivíduo que normalmente se encontra no "estágio experimental"
(vértice da hierarquia) desce um degrau e se estabiliza no "estágio racional": as funções
lógicas não só permanecem intactas como até se exageram; falta entretanto a apreciação
correta dos fatos empíricos. Na psicastenia, verifica-se a perturbação das tendências
médias, mais precisamente, das funções deliberativas. O psicastênico vive na dúvida,
atordoado pelos escrúpulos, pelas hesitações infinitas; não consegue deliberar
corretamente nem por termo à deliberação, tomando uma resolução firme; necessita de
alguém que delibere e decida por ele. Suponhamos uma baixa maior de tensão e o
"estado" psicastênico tranformar-se-á em "delírios psicastênico". Paralisa-se desta feita
toda e qualquer deliberação e reflexão; os sentimentos desencadeiam-se com
instantaneidade e força enormes, sem controle algum. Variáveis como são os fatos, as
convicções mudarão em conseqüência; e resultará uma série de afirmações absolutas e
contraditórias. Tal era o caso de Madeleine. Que desde a infância tenha vivido num
estado de psicastenia mais ou menos pronunciada, não faz a mínima dúvida: os
escrúpulos que a atormentavam, a abulia, o desejo de direção, o mórbido ascetismo que
a levava a privar-se, não por virtude, senão por incapacidade de gozar, a tendência a
fugir das dificuldades, em vez de tentar vencê-las — são outras tantas manifestações
evidentes de psicatenia. Procurava compensar esta debilidade refugiando-se num mundo
imaginário que não lhe oporia resistências. Com efeito, Madeleine dirigia a capricho
suas divagações, vivendo uma série de histórias fictícias, de romances, nos quais
representava, já se vê, um papel simpático. Sobreveio então uma nova baixa de tensão
psíquica e Madeleine caiu no que ela denominava "estado de tentação" seguida pelo
"estado de secura" que nada mais eram senão um fenômeno psicastênico acentuado,
caracterizado pela incapacidade de decisão e logo de ação, com esta diferença que, na
"tentação" esta incapacidade se revelava sob forma de ansiedade, na "secura" sob forma
de inércia. Nova queda de energia mental e Madeleine retrocedia do estado psicastênico
ao delírio psicastênico, o qual, à primeira vista, apresentava duas formas antagônicas:
tortura e beatitude; contraste afetivo que todavia não deve fazer olvidar a unidade da
psicose: é como o direito e o avesso do esmo processo; numa e noutra fase deparamos
com afirmações categóricas: "Madeleine está no Céu — Madeleine está no inferno;
Madeleine está divinizada — Madeleine está possessa"; a doente oscilava entre
sentimentos desoladores e consoladores, entre o amor desalentado e o amor satisfeito,
porque o psicastêncio, como fraco que é, procura amparao, donde a necessidade de
afeição que o crucia; precisa adorar e ser adorado, lamenta não conseguir realizar esse
ideal e não o consegue, porquanto lhe falta a tensão psíquica necessária ao
estabelecimento dessa relações afetivas. Resta-lhe apenas um recurso: a fuga.

Assim Madeleine reclamava um coração amigo no qual se expandiria,


entretanto fugiu de casa para viver solitária; posteriormente, baixando ainda mais a
tensão psíquica, fugiu novamente e asilou-se na loucura; pôde enfim realizar no delírio
as aspirações afetivas até então frustradas; viveu doravante um romance divino no qual
Deus ora a maltratava, ora a deliciava. na demência, Deus lhe aparecia já como mestre,
já como esposo; numa palavra, Madeleine conseguiu realizar, pela imaginação e a
afetividade, todas essas relações sentimentais que houvera desejado, sem ter força para
travá-las com indivíduos de carne e osso, dotados de caráter próprio, de vontade, de
inclinações, que nem sempre corresponderiam às de Madeleine, com os quais
forçosamente entraria em conflito, enquanto que ao delirar, ela dirigia, como melhor lhe
saiba, o enredo dos desvairados romances.

Pensamos em não trair o pensamento de Janet, ao resumirmos numa frase a


psicologia de Madeleine: ela sonhava e delirava, por ser demasiado débil para viver
normalmente.

Só teríamos que louvar e nos instruir, estudando a obra do mestre francês, não
houvesse ele generalizado o que observara num só caso e afirmado que todo misticismo
não passa de uma das variedades de delírio psicastênico. Repetidamente comparou
Madeleine a Santa Teresa, identificando-lhe as experiências.
Rejeitamos a assimilação, não apenas como católico — pois assim deprecia os
nossos maiores santos — senão também como psicólogo — pois a teoria patológica não
corresponde à realidade dos fatos. Tão patente a diferença que foi reconhecida até por
um psicólogo notoriamente anti-religioso como Henri Delacroix. Embora tivesse ele
escrito as suas Études d'histoire et de psychologie du mysticisme no intento confessado
de encontrar uma explicação puramente naturalística do misticismo, insurgiu-se
entretanto contra a pretensão de assimilar os grandes místicos aos loucos: "Si les grands
mystiques n'ont pas échappé aux tares névropathiques qui stigmatisent les organismes
exceptionnels, il y a en eux une logique constructive, une expansion réalisatrice, un
génie, en un mot, qui est l'essentiel". Henri Bergson escreveu no mesmo sentido:
"Quand on prend à son terme l'évolution intérieure des grands mystiques, on se
demande comment ils ont pu être assimilés à des malades. Certes, nouv vivons dans un
état d'équilibre instable, et la santé moyenne de l'esprit, comme d'ailleurs celle du
corps, est chose malaisée à definir. Il y a pourtant une santé intellectuelle solidement
assise, exceptionnelle, qui se reconnait sans peine. Elle se manifeste par le gôut le
l'action, la faculté de s'adapter et de se réadapter aux circonstances, la fermeté jointe à
la souplesse, le discernement prophétique du possible et de l'impossible, un esprit de
simplicité qui triomphe des complications, enfin un bon sens supérieur. N'est-ce pas
précisément ce que nous trouvons chez les mystiques dont nous parlons? Et ne
pourraient-ils pas servir à la définition de la robustesse intelectuelle?"3 Sen os
objetassem que Delacroix e Bergson, por não serem psiquiatras, carecem de autoridade,
responderiamos que P. Quercy, psiquiatra não-católico, na sua obra L'hallucination,
publicada quatro anos após o livro de Janet, consagrou à Santa Teresa longo e exaustivo
estudo, chegando a conclusões que põem em relevo a perfeita sanidade mental da
grande mística.

Ao nosso ver, mister é distinguir cuidadosamente três classes de fenômenos: 1 o.


as psicopatias, que parodiam o misticismo; 2 o. certos casos peculiares de misticismo
acompanhados (e não constituídos) por tal ou tal manifestação patológica4; 3o. o
misticismo em si, que nada tem a ver com a psicose.
Que certos doentes parodiem os místicos, pondera Bergson, prova tão pouco
contra os místicos, quanto as imitações patológicas de Napoleão provam contra o
grande corso. Madeleine lera a autobiografia de Santa Teresa de Ávila, como também a
obra do Padre Poulain, Les grâces d'oraison; ao delirar, reproduziu o que a
impressionara nos escritos da grande carmelita. Não devem pois surpreender certas
similitudes aparentes entre o místico e o nevropata. O único critério psicológico que nos
permitirá discernir um do outro é o exame comparativo dos respectivos
"comportamentos". Devemos confrontar as atitudes, as atividades exteriormente
constatáveis de Madeleine e de Santa Teresa, para verificar se coincidem ou se diferem.

Comparando os escritos de ambas, averiguamos em seguida o superior talento


da espanhola e a mediocridade intelectual da francesa. o que Madeleine escreve de
melhor dá a impressão do já lido, do plagiado. Entretanto, diferença de valor intelectual
não equivale a diferença quando à sanidade mental. Janet apressa-se em nos relembrar
que Auguste Comte também esteve num hospício, o que não o impediu de ser profundo
pensador. Fácil é retrucar que o Cours de Philosophie Positive não foi composto durante
o internamento do filósofo. Que saibamos, nenhuma obra de gênio saiu até agora dum
hospício. Ora, Santa Teresa escreveu todas as obras em plena "crise mística", para falar
como Janet.

Os escritos de Madeleine abundam e superabundam em incoerências, em


absurdos, em idéias indiscutivelmente delirantes (p.ex., profecias de cataclismas,
denúncias de conspirações). Nada de semelhante em Santa Teresa. — E as visões, como
explicá-las? As visões, como muito bem observou o Dr. Quercy, apresentam uma
característica notável: a finalidade; harmonizam-se sempre com as preocupações do
momento, não aparecem como parasitas ou corpos estranhos que venham perturbar ou
interromper o fluxo da vida psíquica; pelo contrário, ligam-se naturalmente ao presente,
ao passado, ao futuro; são imediatamente utilizáveis porque se unem estreitamente à
ação.5
Os devaneios de Madeleine não apresentam nenhum desses característicos, e
Janet é demasiado inteligente para não haver percebido a diferença; procura escapar à
dificuldade graças a um expediente pouco digno de tão grande psicólogo: lemos Santa
Teresa, pretende ele, em edições expurgadas, ad usum Delphini; quem sabe o que
conteriam os originais? Por nossa vez podemos perguntar: o que se não lograria provar
lançando mão de tais argumentos? Aliás, no caso de Santa Teresa, podemos justamente
fazer a prova do não expurgo. Com efeito, possuímos alguns manuscritos da santa; o
original da autobiografia, por exemplo, conserva-se na biblioteca do Escorial; foi
reproduzido fototipicamente e cada qual tem o meio de averiguar a perfeita
concordância entre o texto hodierno e o que escreveu Teresa. — Teria ela expurgardo o
próprio manuscrito antes de passá-lo a limpo? Mesmo isso seria uma prova evidente de
sanidade mental, já que só um homem normal pode discriminar entre afirmações
delirantes e as sensatas. A própria Madeleine, tendo melhorado e deixado o hospício,
quando Janet lhe fazia recordar a pretensa "assunção" de outrora, ria-se: "Est-ce
possible que c'est moi que disais des bêtises pareilles?" Espantava-se justamente porque
cessara o delírio. Por conseguinte, para que Santa Teresa pudesse ela própria expurgar
as suas obras, temos que supor que as tivesse redigido em estado delirante e corrigido
uma vez verificado o retorno à normalidade. A essa hipótese opõem-se duas razões
peremptórias. Em primeiro lugar, Teresa conhecia o misticismo mórbido; descreveu até
mesmo os falsos êxtases; perita na auto-crítica, receava a ilusão e por isso reclamava
insistentemente o controle dos sábios de seu tempo. Torna-se inacreditável que ela, tão
leal e sincera, haja friamente feito desaparecer de suas obras passagens que julgasse
delirantes. Bem ao contrário, teria sido a primeira a denunciar como ilusório o seu
misticismo. Mais, ainda. Possuímos cartas de Teresa, escritas em plena "crise mística",
como possuímos cartas de Madeleine escritas nas mesmas condições. Ora, estas lhe
refletem o delírio, já se vê: escreve ao presidente da republica denunciando conluios,
relata à própria irmã festins canibalescos aos quais haveria assistido; queixa-se de ser
perseguida pela maçonaria etc, etc. O epistolário de Santa Teresa — além de constituir
uma obra prima literária — longe de encerrar idéias delirantes, demonstra sólido bom-
senso, arguta diplomacia, humour cintilante.
Desta primeira confrontação resulta que Teresa gozava de equilíbrio intelectual
e Madeleine encontrava-se num estado de desequilíbrio patente. mas existe um outro
equilíbrio, o social, que vai tornar ainda mais claro o diagnóstico discriminativo.

Os psiquiatras insistem sobre a importância básica da conduta em sociedade,


como pedra de toque da sanidade mental. Ribot chega até a afirmar que o critério último
para distinguir o inventor de gênio daquele que sofre dum delírio de imaginação, é a
fecundidade do invento, a sua adaptabilidade às circunstâncias, ao meio. Comparemos
pois os comportamentos sociais de Madeleine e de Santa Teresa: Janet afirma que o
traço característico da atitude exterior de Madeleine é o desinteresse pela ação, a
esterilidade social. De coração ótimo, muito serviçal por natureza, a pobrezinha, durante
os anos de loucura, houve-se como arrematada egoísta. Imersa na mais completa
introversão, substituía o agir por estéril jogo de imagens e sentimentos. Recusava-se
com obstinação a prestar o mínimo serviço; não tomava a menor parte nos sofrimentos
alheios. Quando, por exemplo, lhe anunciaram a morte lamentável dum seu cunhado
que deixava a família em condições angustiosas, Madeleine externou a maior
indiferença. Agitava-se, porém, sobremodo pelo pensamento, falava de força e de amor,
predizia triunfos, proclamava a sua missão — mantinha-se entretanto na inércia
absoluta. Acreditava piamente que Deus lhe ordenava a ida a Roma para ver o Papa.
Falava, e muito, mas apesar das insistências de Janet, que cumprisse as ordens divinas,
não dava um passo nesse sentido, salvo uma vez quando de olhos fechados deitou a
correr pelo pátio do hospício, voltando logo após à enfermaria. Parecia desejar muitas,
coisas, porém logo que se tratava de passar à decisão e ainda mais à execução,
perturbava-se e se paralisava. Bastava que se lhe propusesse uma resolução a tomar para
provocar intermináveis obsessões. Sobre ste ponto Janet resume-se da seguinte maneira:
"L'observation de Madeleine nous montre de toutes les manières son impuissance
d'action sociale. On peut observer cette impuissance sociale particulière, en
remarquant que Mdeleine est restée pendant sept ans en relation constante, dans un
dortoir commum, avec un grand nombre d'autres malades; celles-ci étaient des femmes
jeunes pour la plupart, très nerveuses, très suggestibles, très faciles à influencer et je
craignais un peu au début, que Madeleine ne fut le point de départ d'une petite épidémie
de délire religieux. Il n'en a absolument rien été et Madeleine n'a jamais eu l'ombre
d'une influence sur aucune de ces pauvres femmes. Elle le reconnaìssat elle-même...
Bien mieux, j'ai remarqué que beaucoup de ces malades vivant ensemble plusieurs
mois, avaient formé entre elle des relations affectueuses quei ont survécu à leur séjour à
l'hôpital. Madeleine n'était pas dépourvue de sentiments affectuex; elle disait souvant
de ses compagnes: "Je les aime profondément, leurs misères physiques m'affectent
autant que leurs misères morales!..." Eh bien, malgré ces bonnes dispositions,
Madeleine n'a jamais eu d'amies dans la salle, et après avoir quitté l'hôpital, n'a
conservé des relations avec personne, si ce n'est avec moi. Cette impuissance des
psychasthéniques à faire des camarades et des amis, à conserver des relations avec
d'autres, est tout à fait caractéristique".

Sofresse Santa Teresa de delírio psicastênico e deveríamos nela observar


idêntico "comportamento", idêntica incapacidade de tomar iniciativas e decisões, de
formar e conservar relações, de manter uma atividade adaptada às circunstâncias, numa
palavra, observaríamos a inatividade social que em Madeleine se notara. Ora,
exatamente o contrário averiguamos. Longe de ser inerte, de fugir para a "ilha deserta" e
asilar-se no sonho, Teresa desenvolveu uma atividade fora do comum, verdadeiramente
espantosa — ainda mais para uma mulher daqueles tempos. — Reformou não só as
freiras como os frades carmelitas; fundou trinta conventos, vencendo as mais prementes
dificuldades materiais e enfrentando as mais decididas oposições. Dirigiu com tato,
diplomacia, energia, dignas de um grande estadista, negociações laboriosas e delicadas.
Viajava tanto, que afinal lhe ordenaram as autoridades eclesiásticas, se recolhesse à
solidão claustral, por não convir que estivesse sempre uma religiosa a errar por montes e
por vales. Conquistou amizades e provocou dedicações extremadas em todas as classes
sociais; exerceu profunda influência não só em meios conventuais, senão entre os mais
doutos e os mais graduados de Espanha.

Janet, sentindo quão precária era sua posição, tentou uma retirada estratégica e,
para cobri-la, valeu-se de dois expedientes. Afirmou em primeiro lugar que Santa
Teresa é personagem muito antiga e provavelmente lendária, cujos feitos e ditos não
podem controlar...
Ingenuamente perguntaremos por que Santa Teresa pertencia à história quando
Janet a classificava entre os dementes, e se tornava subitamente lendária quando se lhe
provava a sanidade mental? Retrucaremos outrossim, que fontes históricas
abundantíssimas e controladíssimas permitem reconstituir a atividade social da santa,
sem que sejamos obrigados a fazer um cego ato de fé nas declarações de Teresa.

Adita ainda Janet: "esses indivíduos místicos não passaram a vida em êxtases;
terminada a crise, puderam desenvolver uma atividade normal". Esquece-se o ilustre
mestre que tampouco Madeleine passara a vida inteira em êxtase; segundo as próprias
declarações de Janet: "les extases de Madeleine sont assez rares et n'occupent que deux
ou trois jours de tems en temps". Ora, não foi apenas por dois a três dias, "de tempos em
tempos" que Madeleine se revelou socialmente incapaz, foi durante todos os sete anos
passados na Salpêtrière, confirmado isto pelo próprio Janet repetidamente. Só retornou à
atividade social ao cessar o delírio místico. Em Santa Teresa, muito ao contrário, o
misticismo, longe de ser inativo, era fonte de ação; até mesmo as visões tinham em
grande parte a finalidade de regular e dirigir-lhe a atividade exterior. Prova sobeja
encontraremos no livro das "Fundações", no qual a Santa relata, com grande vivacidade
e abundância de detalhes, suas atividades de reformadora. É inútil multiplicar exemplos.
Tão diversas as fenomenologias do misticismo de Teresa e do delírio de Madeleine, que
parece de todo impossível afirmar-lhes a identidade substancial: demasiado profunda é a
oposição, demasiado evidente a irredutibilidade.

II. Plotino e São João da Cruz

Muitíssimo mais laborioso para o filósofo discriminar a experiência religiosa


neoplatônica do misticismo cristão. Com efeito, Plotino, longe de ser um pobre destroço
humano, foi um dos gênios que mais honraram a nossa espécie. Além de que, ambas as
vivências parecem apresentar vários pontos de contato; bem mais, os místicos cristãos
utilizaram não raras fórmulas e expressões neo-platônicas e as narrativas que nos
deixaram de suas experiências, por vezes recordam as descrições plotinianas. Sem
dúvida, a dependência literária não deve demasiado impressionar, pois o manancial, no
qual nossos místicos medievais e modernos se abeberaram, foram os escritos de um
neo-platônico, o famigerado Dionísio Aeropagita, considerado então discípulo direto de
S. Paulo, pelo que lhe assistia autoridade ímpar. Por isso a infiltração de fórmulas neo-
platônicas em nossa mística tornava-se fatal, inevitável. Nessas condições, utilizar
expressões plotinianas equivale tão pouco a desposar o plotinismo quanto o
aproveitamento das noções aristotélicas de "matéria e forma", "substância e acidente"
confere uma índole peripatética à doutrina católica dos Sacramentos.

Da pura dependência literária, poderemos deduzir no máximo, uma semelhança


indeterminada entre ambas as experiências místicas, porém nunca uma identidade.
Outros indícios, entretanto, parecem indicar afinidade mui profunda, ao ponto que
certos intérpretes são levados a considerar as diferenças como superficiais apenas. Aqui
e ali, argúem eles, observamos o despontar duma sede do Absoluto que não logram
estancar nem a contemplação longínqua através de conceitos abstratos, nem mesmo a
mera presença de Deus; anela um contato direto e vivido, exige a posse e a fruição.

O místico, aguilhoado pelo desejo de Deus, despreza todo e qualquer gozo


finito porque este, longe de aquietar-lhe as ânsias, exacerbá-las-ia ainda mais.

Aqui e ali constatamos um movimento de fuga para um mundo invisível que é


a verdadeira pátria, a morada do Pai. Aqui e ali se nos depara idêntico itinerário: o
esforço de introversão, a técnica preparatória de simplificação e de renúncia que
escoima a alma de toda impureza, levando-a ao limiar da experiência beatificante. Aqui
e ali averiguamos a existência duma intuição inefável que une o místico a Deus.

Não estranha pois, que mesmo um erudito como J. Baruzi haja aproximado
Plotino e João da Cruz ao ponto de não deixar entre ambos senão diferenças acidentais.
Pouco valeria a essas alturas, opor a metafísica pagã de Plotino à filosofia e à teologia
cristãs de João da Cruz. Por óbvio e patente fosse o contraste, deixaria entretanto
subsistir uma dúvida importuna: não haveria que distinguir, no misticismo, entre o
conteúdo e a expressão? Não seria idêntica vivência que ora se cristaliza em fórmulas
neo-platônicas, ora em termos cristãos?

Afim de reduzir tanto quanto possível a parte de conjectura e de controvérsia,


tomemos ambas as experiências, como Plotino e João da Cruz as descrevem, e
procuremos penetrar-lhes o âmago. Realizado esse esforço, percebemos que o êxtase
plotiniano é uma visão solitária e despersonalizada, fruto do humano labor, enquanto
que a união mística sanjoanense revela-se qual convívio de mútuo amor, obra da
iniciativa divina.

Não há negar o caráter profundamente intelectualista do sistema de Plotino. O


êxtase religioso que lhe serve de ápice e de coroa é uma intuição estreitamente
intelectual ou — como tantas vezes declara o próprio filósofo6 — uma "visão".
(V,3,17;V, 5,7 e 8; VI, 7,31 etc). Sem dúvida Plotino adianta que tal visão se processa
"sem pensamento" (o que levou alguns a interpretar-lhe o êxtase como queda na
inconsciência) porém essa negação atinge tão somente o pensamento que comporta
"alteridade" (VI, 9, 6) isto é, distinção explícita, vívida, de sujeito pensante e de objeto
pensado; em compensação, deixa subsistir intacto o pensamento que é pura apreensão
do objeto sem percepção do sujeito pensante. O "extase" aparece não só etimológica
senão realmente, como saída de si para perder-se no objeto (IV, 8, 1). Longe de ser
aideísmo vazio, ele tem um conteúdo positivo: é pura luz. "Abandonando todo
conhecimento racional, estende-se o pensamento até Aquele no qual existe. Carregado
então pela onda da inteligência, erguido pelo fluxo que se alteia, vê repentinamente, sem
saber como. A visão ao aproximar-se da luz não descobre um objeto diverso dela
mesma; a coisa avistada é a própria luz. Não existe então objeto visto e luz que faz ver,
como não há inteligência e inteligível: existe pura luz que dá origem à inteligência e ao
inteligível" (VI, 7,36). Plotino leva-nos pois a distinguir entre consciência, como objeto
do conhecimento de objeto, e consciência como conhecimento de si. Na segunda
acepção, o êxtase é inconsciente, na primeira, é hiperconsciente: de tal forma concentra-
se o espírito em Deus, de tal forma o apreende e assimila, que se esquece de si. "Retire-
se do mundo exterior, concentre-se totalmente no íntimo, não se volte às coisas de fora,
ignore tudo (primeiro dispondo a alma, depois repelindo, ao contemplar, toda idéia
distinta) ignore até que é ele quem contempla e, após ter-se unido a Deus e com Ele
convivido, vá anunciar aos outros o que é essa união". (VI, 9,7). "A alma vê
subitamente (Deus) nela aparecer; nenhum intermediário entre ambos; não são mais
dois, fazem um só; não há mais distinção possível enquanto Ele está presente. A alma
não mais sente o corpo... não mais diz que é homem ou ser animado ou qualquer coisa
que seja: contemplar tais objetos destruiria a uniformidade desse estado, e ela não o
pode, nem quer. Procura a Deus, sai-lhe ao encontro quando se apresenta e vê não mais
ela, senão Ele" (VI, 7, 34; cf. VI, 9,3). "Alguns, inteiramente inebriados de néctar, cuja
alma é toda inteira penetrada pela beleza, não são meros espectadores; não mais existe
aquele que vê e aquele que é visto, exteriores um ao outro; a vista aguçada penetra o
objeto em si mesmo, possui a coisa, sem saber que a possui" (V, 8, 10; cf. V, 8, 11). "O
objeto, que ele vê, não o vê no sentido de distinguí-lo de se mesmo, de representar-se
um sujeito e um objeto. O vidente tornou-se um outro, não é mais ele mesmo; em nada
contribui à contemplação. Unido inteiramente ao objeto, com ele se identificou, como se
houvesse feito coincidir o próprio centro com o centro universal", (VI, 9, 10). Temos
aqui um misticismo especulativo, recompensa do labor filosófico. Aquele Deus que é
procurado pelo sábio, através da trabalhosa ascensão dialética, e que não logra atingir
qualquer conhecimento abstrato, ele o vislumbra graças a uma iluminação repentina e
fugaz.

E o amor? O amor, sob forma de desejo, deu o primeiro impulso à ascensão e


sustenta-lhe as diversas fases. "Inflamada pelo ardor celeste, a alma cobra forças,
despertas, tem realmente asas, alteia-se, ligeira, até um objeto superior" (VI, 7, 22; cf.
VI, 7, 31). Uma vez conquistada a intuição suprema, o amor, a felicidade, o gáudio, não
têm medida. (VI, 7, 34). Mas, para Plotino, a experiência é formalmente, de ordem
intelectiva, visão da mente: "a vida ideal é ato da inteligência: por esse ato, a alma
imóvel, graça ao contato com o Uno, dá origem aos deuses, à beleza, à justiça, às
virtudes". (VI, 9,9).

O amor parece ter por ofício, a um tempo, concentrar as forças do intelecto e


distender a intuição metafísica até ultrapassar os limites do humano (VI, 7, 31 e 34).
Segundo S. João da Cruz, muito pelo contrário, na vida mística cabe ao amor
completa primazia sobre o intelecto, pois é o amor que constitui a mesma experiência.
Sabemos, de certo, que somente a fé — radicada na parte intelectiva na alma — nos
faculta atingir a Deus; sabemos portanto que a experiência surge dentro da fé, o Doutor
místico di-lo e o repete; todavia, a simples vida de fé não é ainda vida mística (assim
sendo, todos os crentes seriam místicos).

Quando o conhecimento de fé se torna experiência, convívio, posse, fruição,


deve-o tão somente ao amor, à caridade. O misticismo sanjoanense comporta, sem
dúvida, certo conhecimento de Deus, mas esse conhecimento brota do amor, ou, nas
próprias expressões do Santo, ele é "sabiduria amorosa, porque nunca da Dios
sabiduria mística sin amor, pues el mismo la infunde" (Noche oscura, lib. 2, cap. 12, n o.
2). Não deixa de ser significativo o fato de o místico grego ter preferido o simbolismo
da Luz, e o místico espanhol o simbolismo da Noite. Luminosa por essência, a
inteligência culminará na fulguração do raio; enquanto o amor é impulso cego, força
sombria, noturna; longe de captar o objeto para torná-lo translúcido e reproduzi-lo no
espírito, o amor tende a identificar-se com o objeto para nele se perder. Esse bem ao
qual se une, o amor apreende-o de certo, mas como às escuras; com ele vive, na sua
concreção individual, sem exprimi-lo ou traduzi-lo: contenta-se com tê-lo presente e
dele fruir.

O Deus de Plotino age incessantemente sobre o mundo que dele emana; no


entanto, essa atividade cósmica do Deus-criador não é aquela ação seletiva,
discriminadora que trava relações pessoais com este ou aquele homem. O Uno
plotiniano permanece não só o grande Solitário, senão o inexorável Silencioso. Donde o
êxtase é uma experiência unilateral, se assim podemos nos expressar. Galgando à custa
de penosos esforços a escala ascendente dos seres, alçando-se de purificação em
purificação, sublimando-se de simplificação em simplificação, o sábio por fim consegue
alcandorar-se no cume donde descortinará, de longe em longe e num rápido lampejo
(VI, 9,9 e 10) a visão do ser divino. Mas o Deus de Plotino não reage; permanece tão
indiferente ante o espírito que o contempla, quando o Deus de Aristóteles em face do
desejo da inteligência que movimenta o céu supremo.

Descreve belamente Plotino a exuberância dos sentimentos que alvoroçam o


visionário (I, 6,7; VI, 7, 34), não registra, porém, a mínima resposta, do Objeto de tão
ardente afeto. Seria de certo inexato asseverar que Deus não desempenha papel algum
nessa mística, pois que segundo Plotino, Deus é fonte suprema do desejo, impele o
espírito criado como primeira causa eficiente e última causa final. "A alma recebe um
influxo do alto; agita-se; o aguilhão do desejo a incita; o amor nela desponta". (VI, 7,
22). "Aquele que a alma persegue, que dá luz à inteligência, cujo mínimo vestígio
comove, não é de maravilhar se desfruta tal poder de atração para nos fazer regressar
dos caminhos erradios a fim de nele encontramos o descanso. Tudo dele vem, ele é
superior a tudo". (VI, 7, 23) "Se a alma vive é porque vida mais sublime lhe foi ao
encontro. Sobrelevada até ao cume, ali se detém, contente de se achar perto dele... Ama
o bem porque desde o início foi por Ele impelida a amá-lo" (VI, 7, 31). É de notar, sem
embargo, que tal iniciativa divina não ultrapassa o plano cósmico. Segundo Plotino,
Deus, como cria necessariamente, assim atua necessariamente, qual causa primeira,
sobre todos os seres, logo sobre todas as almas, inclusive a do místico. De modo algum
há livre intervenção, escolha, dom pessoal de Deus.

O neo-platônico contempla aquele Uno donde lhe vem o ser, nunca o Amigo
que lhe oferta o próprio amor. E assim há um verdadeiro abismo entre o "Deus-fonte-
do-ser" de Plotino, e o "Deus-amigo-meu" de S. João da Cruz. Ao grito de desejo de
Plotino, responde o eterno silêncio! Ao passo que S. João da Cruz sabe que tem a Deus
por Amigo, porque Deus lho disse. "Con suma estimación (Dios) te ama, e igualándote
consigo, mostrándosete en estas vías de sus noticias Él mismo alegremente, con este su
rostro lleno de gracias y diciéndote en esta unión suya, no sin gran júbilo tuyo: yo soy
tuyo y para ti, y gusto de ser tal qual soy para ser tuyo y para darme a ti" (Llama de
amor viva, cancion 3, verso 1, n. 6). As metáforas de "esponsais" e de "núpcias"
místicas, patenteiam que se travam livres relações de mútuo amor. "En la unión y
transformación de amor, el uno da posesión de si al otro y cada uno se deja y da y
trueca por el otro, y asi cada uno vive en el otro y el uno es el otro y entrambos son uno
por transformacion de amor" (Cantico espiritual, canción XI (XII) verso 5).

Já que a intervenção divina na experiência mística de Plotino não ultrapassa


aquela moção geral com que a causa primeira faz passar da potência ao ato todos
agentes criados, segue-se que a preparação será tão unilateral quanto a experiência
mesma. Pelo próprio esforço, guinda-se o sábio ao alto da rude encosta; sozinho ele
foge ao encontro do divino solitário (VI, 9, 11). Como que corrigindo a frase acima
citada sobre a "vinda" de Deus, Plotino ensina explicitamente que é a alma quem sobe:
Deus não vem, porquanto já está presente a todas as coisas (V, 5, 8; VI, 9, 7). Mais
significativo ainda é o fato asseverar que todos os homens podem conquistar a visão
mística; se alguém não o consegue, culpe-se a si mesmo (VI, 9, 4). A misticidade faz
parte integrante da própria natureza humana. "Fujamos para a pátria amada, eis o
verdadeiro conselho a dar... a pátria é o lugar donde viemos, ali está nosso Pai. Que é
pois essa viagem, essa fuga? Não a realizaremos com os pés: eles nos levam sempre de
uma terra a outra; tampouco há que preparar carruagem ou navio; porém é necessário
não mais olhar e, cerrados os olhos, trocar essa visão por uma outra, despertar enfim
essa faculdade que todos possuem e poucos utilizam". (I, 6, 8).

S. João da Cruz encarece igualmente o esforço pessoal de preparação; dedica-


lhe os três livros da "Subida del Monte Carmelo", onde formula exigências radicais no
tocante à purificação da alma. Nenhum autor é mais alheio ao quietismo. Mantém,
contudo, que tal purificação não basta, por mais rigorosa seja ela; nunca logrará alçar a
alma acima do estado de "começante", de místico incipiente; restarão sempre resquícios
de defeitos que labor humano algum conseguiria desarraigar. "Por más que el
principiante en mortificar en sí se ejercite todas estas suas acciones y passiones, nunca
del todo, ni con mucho, puede, hasta que Dios lo hace en el passivamente por médio de
la purgación de la dicha noche". (Noche oscura, lib. I, cap. 7, m. 5).

Ninguém conquista a experiência mística cristã; não se produz de maneira


natural e, por assim dizer, fatal , ao terminar a purificação ativa; ninguém tampouco a
ela adquire o mínimo direito: sendo convívio de mútuo amor, requer a livre iniciativa de
Deus que eleva a si quem Ele quer por amigo. Donde a absoluta gratuidade da vida
mística.

Esse desejo de Deus que ambos desvendam no coração humano, é para Plotino
uma exigência que requer apenas para ser satisfeita, nosso esforço de purificação; para
S. João da Cruz, é somente um anseio cujo objeto está absolutamente fora do alcance da
criatura. O homem não se eleva até a vida divina, senão esta se comunica ao homem por
misericórdia. Donde a insistência do Santo sobre a purificação "passiva", obrada na
alma pelo próprio Deus.

Enquanto para Plotino o êxtase beatificante é posterior à purificação, para S.


João da Cruz, a mesma purificação passiva já é experiência do divino; 7 a alma sente,
vive o trabalho divino em si mesma, sente-se invadida por Deus que a arrebata
desprendendo-lhe as atividades espirituais do respectivo objeto natural para fixá-las
sobre um objeto sobrenatural: "En esa soledad que el alma tiene de todas las cosas, en
que está sola con Dios. El la guia y mueve y levanta a las cosas divinas, conviene a
saber: su entendimento a las divinas inteligencias, porque ya está solo y desnudo de
obras contrarias y peregrinas inteligencias; y su voluntad mueve libremente al amor de
Dios, porque ja está sola y libre de otras afecciones, y lleva su memoria de divinas
noticias, porque también está ya sola y vacía de otras imaginaciones y fantasias".
(Cantico, canción 34/35 verso 3).

Donde as orientações divergentes da própria purificação ativa: esta, para


Plotino será principalmente lógica (ascensão pelos degraus do ser, deixando de parte as
diferenças) e psicológica (introversão, amortecimento da sensibilidade, unificação da
multiplicidade interna); para S. João da Cruz será antes de tudo purificação moral:
desapegar-se das coisas, do próprio eu e de suas operações, desapropriar-se, para deixar
livre caminho à invasão divina: "luego que el alma desembaraza estas potencias y las
vacia de todo lo inferior y de la propriedad de lo superior, dejando-las a sola sin ello,
inmediatamente se las emplea Dios en lo invisible y divino, y es Dios el que la guia en
esta soledad". (1.c.).

Investigando, por fim, as implicações metafísicas de ambas as experiências,


verificamos que tanto Plotino quanto João da Cruz têm um altíssimo conceito da
Transcendência divina — até Plotino acentua a doutrina ao ponto que o Uno parece
quase esvair-se em o nada. Nessa perspectiva, suscita qualquer experiência mística
dificílimo problema: infinito o caminho, como será ele transposto? que o contato
possível entre os incomensuravelmente distantes? como logrará o débil esforço humano
vencer a descontinuidade entre os seres em presença? A esses angustiosos quesitos,
cabem apenas duas respostas positivas.

A primeira ensina que Deus, num ímpeto de misericordiosa e incompreensível


condescendência, alevanta o homem até si, comunicando-lhe uma participação da vida
divina: é a solução "sobrenaturalista" cristã, que S. João da Cruz viveu
experimentalmente no seu misticismo.

Uma segunda resposta apresenta-nos o panteísmo: o homem logra atingir a


Deus porque já o tinha em si mesmo. Soçobra, na verdade, por uma estranha
contradição, a transcendência divina! Torna-se contudo concebível a mística
"naturalista". Se bem Plotino não haja explicitamente desposado o panteísmo (antes,
certos de seus textos parecem excluí-lo), todavia somente o panteísmo poderia alicerçar-
lhe a mística. O ápice do espírito humano seria, na realidade, uma centelha faiscada pelo
foco incriado de luz; centelha descaída no seio da matéria mas que, por tal, não perdeu a
natureza: aguarda, cativa, que nosso esforço a liberte. "Deus aí está, presente a quem o
pode tocar, ausente para quem disso é incapaz" (VI, 9, 7). A introversão dialética,
fazendo descobrir ao homem seu autêntico eu, fá-lo-ia simultaneamente dar com o
mesmo Deus que já ali se encontrava em estado de latência (V, 1, 11; V, 8, 11; VI 5, 12;
VI, 7, 34). A inquietude mística seria pois o refluxo natural do não menos natural fluxo
criador das coisas. No êxtase a alma retornaria à pureza inicial da emanação divina.
A confrontação do "comportamento" de Madeleine com o de Santa Teresa nos
forçou a afirmar irremediável contraste entre os respectivos psiquismos; agora, a
comparação entre as experiências místicas de Plotino e de S. João da Cruz nos leva a
constatar novamente — embora a um nível muito superior — outra heterogeneidade.
Quer perscrutando-lhes a estrutura, quer investigando-lhes a fase preparatória e as
implicações metafísicas, deparamos com diferenças tão profundas entre o êxtase
plotiniano e a união sanjoanense que só podemos concluir em favor dum rigoroso
discernimento de ambos.

1. 1.Deixaremos de parte as considerações históricas e aquelas, muito


mais preciosas, que nos ministra a teologia. Esta é conhecedora do que seja
misticismo autêntico, porque dispõe dum ponto fixo de referência. Todavia, como
um estudo teológico de Deus não inutiliza a meditação filosófica sobre o Ser
supremo, assim a teologia mística não tornará casso o investigar do filósofo, pois
que este há de considerar a experiência mística dum ângulo diverso.
2. 2.No trabalho "Misticismo e Iluminismo". (Publicação da Comissão
Permanente de ação social, S. Paulo, 1941).
3. 3.Les deux sources de la morale et de la religion, p. 243.
4. 4.Estudamos um desses casos no artigo Grâce et folie (Etudes
Carmelitaines, mars 1939).
5. 5.O fato de as visões dos santos revestirem às vezes aparências
alucinatórias não é de impressionar, porquanto nos artistas e nos inventores
apresentam-se, não raro sob um mecanismo alucinatório, idéias e descobertas que
nada têm de delirantes, pelo contrário.
6. 6.De Plotino, utilizaremos a seguinte edição: Plotin, Ennéades, texte
etabli et traduit par E. Bréhier. 7 vols. Paris, Les Belles Lettres, 1924 a 1938. Em
nossas referências os três algarismos designam respectivamente a Enéade, o tratado,
o capítulo.
7. 7.É de notar também que para Plotino a experiência é rápida,
intermitente e parece não comportar graus; para S. João da Cruz, ao contrário, ela os
comporta e pode-se tornar permanente no estádio da "união transformante". A
diferença provém de que para o primeiro o misticismo é constituído pelo êxtase
enquanto, para o segundo, o êxtase lhe é extrínseco, acidental e destinado a cessar
apenas a vida mística se aprofunde e estabilize.
8. O fim, os meios e a execução
9.
10. Muitos erros práticos na vida espiritual provêm do fato de esquecermos
de considerar que em tudo é preciso primeiramente querer o fim e que este fim só se
realiza ou se obtém em último lugar. Como diz muitas vezes Santo Tomás: “o fim é o
primeiro na ordem da intenção e último na ordem da execução” (Ia. IIae., q. 1, a. 4).
O doente quer a saúde mais do que os remédios mas só após empregar os remédios é
que recobra a saúde desejada. O arquiteto concebe a Igreja que quer construir em toda
sua altura mas ele tem, evidentemente, que começar pelas fundações e não pelas
abóbadas. Na ordem material, só os loucos é que se afastam deste bom senso elementar.
Mas na ordem espiritual é fácil se afastar dele sem se notar. Muitos parecem querer
começar pelas abóbadas e flechas e não pelos alicerces, a construção do edifício
espiritual ou, para empregar outra imagem, parecem querer voar sem ter asas.
11.
12. Desejaríamos recordar neste artigo qual é o alcance do princípio que
acabamos de lembrar, para o itinerário espiritual. Será este um modo de completar
praticamente o que muitas vezes dissemos sobre o caminho normal da santidade onde é
preciso, contrariamente aos quietistas, evitar tanto a presunção como a preguiça
espiritual, não avançando nem muito cedo nem muito tarde mas, como deseja o
Senhor, fortiter e suaviter.
13.
14. ***
15.
16. A intenção do fim deve preceder, é claro, a consideração e a escolha dos
meios e por mais forte razão a execução deles.
17.
18. Quais devem ser desde o começo da vida espiritual as qualidades desta
intenção?
19.
20. A intenção do fim deve ser reta, pura, elevada e eficaz e isto desde o
começo de nossa viagem até o fim; sem o que os atos que devem ser praticados não
teriam nem retidão nem eficácia.
21.
22. Deve ser reta, segundo a direção da reta razão, esclarecida pela fé. Em
outros termos, ela deve-se voltar com toda pureza para o fim que o próprio Senhor nos
assinala. Jesus nos diz no Sermão da Montanha (Mt 6, 22): “Se teus olhos são simples,
todo o teu coração será luminoso; mas se teus olhos forem maus, todo teu corpo será
tenebroso”. Da mesma maneira, se nossa intenção é reta e pura, toda nossa vida,
inspirada nela, terá luz.
23.
24. A intenção deve ser elevada: “Buscai em primeiro lugar o reino de Deus
e sua justiça e tudo mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 33). Nós devemos desejar
primeiro nosso fim sobrenatural, a vida da eternidade, a possessão inamissível de Deus
pela visão beatífica e a glória que deve vir dele. Nossa intenção deve ser pois
muitíssimo elevada; por meio dela devemos constantemente tender para Deus sem
limitar nossa aspiração a um determinado grau da glória pois não sabemos qual nos foi
reservado. Devemos tender também para a plena perfeição cristã, que é realizável aqui
na terra, como para o prelúdio normal da vida eterna. É por isto que Nosso Senhor
começou seu primeiro sermão da montanha falando aos homens a respeito das bem-
aventuranças. Não há objeto mais elevado e mais oposto às máximas da sabedoria
humana. “Bem-aventurados os pobres, os mansos, os que choram, os que têm fome e
sede de justiça, os misericordiosos, os de coração puro, bem-aventurados os pacíficos,
os que sofrem perseguição pela justiça”. Estas bem-aventuranças, diz Santo Tomás
depois de Santo Agostinho, são os atos mais elevados das virtudes e dos dons[1], e no
entanto Nosso Senhor fala delas desde o início de sua pregação, para mostrar às almas o
fim para o qual elas devem tender, o ideal a que elas devem aspirar. Pela mesma razão
Santo Tomás começa a exposição da teologia moral pelas questões do fim último e da
bem-aventurança no Céu. O fim, que é o último na ordem da execução deve ser, com
efeito, o primeiro na ordem da intenção.
25.
26. Em terceiro lugar a intenção deve ser eficaz e deve até se tornar cada
vez mais eficaz sem o que não empregaremos os meios, algumas vezes penosos, que são
necessários para obter esse fim; recuaremos diante da cruz. Muitos se contentam com
um amor de admiração pelo fim entrevisto, amor que não passa de uma veleidade.
Nosso Senhor nos diz sobre isto (Mt 7, 21): Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor,
entrará no reino dos céus, mas quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus . Não
basta um idealismo belo que nada realiza.
27.
28. Mas também se enganaria no sentido inverso quem, querendo ser muito
prático, dissesse: “A via purgativa me basta” e não quisesse aspirar mais alto. A via
purgativa, como a mortificação, não passa de um meio em vista à união com Deus, que
é preciso primeiramente desejar eficazmente; sem o que não teríamos a coragem de
praticar efetivamente as virtudes da via purgativa, a renúncia, com a qual
pretenderíamos contentar-nos.
29.
30. O fim sendo o primeiro na ordem da intenção, a perfeição cristã não
diminuída deve ser, desde o começo da vida espiritual, vivamente desejada, querida por
uma vontade reta, pura, elevada e eficaz e à medida que avançamos, estas qualidades de
intenção devem aumentar com a caridade que deve sempre crescer aqui na terra em
nossas almas pelos nossos méritos e pela freqüente comunhão.
31.
32. ***
33.
34. Após a intenção do fim, é preciso passar à consideração e à escolha dos
meios, e depois à execução. Esta consideração deve descer da apreciação do fim
desejado para a apreciação dos meios que lhe são subordinados, até aos meios mais
ínfimos porém indispensáveis, que devemos empregar todos os dias na prática
de nossos deveres de estado, alguns às vezes muito modestos segundo o lugar onde a
Providência nos colocou. É preciso, aqui, não negligenciar a consideração do que São
Francisco de Sales chama as pequenas virtudes que são como flores da caridade sem
as quais as relações com o próximo se tornam tensas e quase impossíveis: doçura,
afabilidade, prontidão no prestar serviço, em interpretar acontecimentos com bons
olhos, etc... É preciso não se contentar com vagas generalidades sobre o fim proposto;
não é suficiente dizer: “É preciso fazer tudo pelo amor de Deus”; é preciso ver, cada dia,
em que consistem nossos deveres de estado, que são um dos grandes meios de
santificação para nós, de conformidade com a vontade de Deus. É preciso não
negligenciar os deveres de estado por uma piedade idealista e sentimental, mal
entendida, que não passará de uma fantasia piedosa. É preciso descer portanto até o
detalhe dos meios a empregar para se santificar na vida quotidiana, pois os atos
humanos são atos contingentes e particulares, postos hic et nunc, em circunstâncias
muito determinadas. Aqui, é preciso estar atento a todas as direções da obediência, e a
prudência deve aproveitar tudo que pode assegurar a retidão de nossa marcha para
frente, no meio em que nos encontramos, no relacionamento com nossos superiores e
com nossos iguais. Deste ponto de vista não há nada de pequeno na vida cristã: os atos
mais simples, necessários para a prática dos deveres de estado mais elementares, têm
alguma coisa de grandioso em relação ao fim último sobrenatural e à caridade que nos
deve inspirar em vista deste fim. Compreende-se assim que a perfeição não consiste em
fazer coisas brilhantes, extraordinárias, mas em fazer extraordinariamente bem as coisas
ordinárias da vida cristã: assistir bem à santa missa, preparar-se seriamente para a santa
comunhão, fazer bem a ação de graças, e viver deste tesouro da vida divina, praticando
nossos deveres com uma intenção sempre mais pura e mais firme, apesar das
dificuldades e atropelos, com o que Nosso Senhor chama “fome e sede de justiça de
Deus”.
35.
36. ***
37.
38. Enfim, assim como a consideração dos meios deve descer até os meios
mais ínfimos, a execução deve-se elevar destes meios até o fim a conquistar. A
execução deve ser uma ascensão contínua que começa pelos meios inferiores
indispensáveis, que se deve ensinar aos principiantes, sob pena de comprometer-lhes o
futuro espiritual, do mesmo modo como, para ir fazer uma visita a um personagem
importante, veste-se uma roupa conveniente para a ocasião ou para reparar um
doutorado na Universidade, é preciso fazer a inscrição e seguir os cursos.
39.
40. Aqui, nesta ascensão, é preciso não se precipitar e querer chegar ao termo
mais rápido do que convém. Em nossa época de vida efervescente é muito comum levar
as inteligências e as vontades à maturidade antes da hora, como que pondo numa estufa
frutos que amadureceriam antes da estação. Mas um fruto amadurecido à força não se
conserva por muito tempo e logo estará passado.
41.
42. ***
43.
44. Que nos diz Nosso Senhor para nos curar de tal defeito? Notemos que ele
começou sua pregação pelas bem-aventuranças para nos mostrar o altíssimo fim ao qual
devemos tender: “Procurai primeiro o reino de Deus e sua justiça e todo o resto vos será
dado por acréscimo”. (Mt 6, 33) Mas quando se trata de passar a execução, de começar
a caminhada em direção a tão alto fim, entrevisto e desejado, Nosso Senhor, sobretudo
formando os Apóstolos, insiste na humildade. Nosso Senhor, que não cessa de elevar
seus corações, lhes diz também: “Se não vos tornardes semelhantes a uma
criancinha, não entrareis no reino dos céus” (Mt 18, 3) Lembremo-nos em que
ocasião estas palavras foram pronunciadas. São Marcos nos conta que Jesus,
caminhando com os apóstolos pela Galiléia, lhes anunciava uma Paixão mas os
apóstolos não compreendiam suas palavras e temiam interrogá-lo. “E chegaram a
Cafarnaum”, diz São Marcos (9, 32). Quando estavam já em casa, perguntou-lhes Jesus:
“De que faláveis vós outros pelo caminho?”. Mas eles se calaram porque pelo caminho
haviam discutido entre si qual deles seria o maior. Sentando-se, pois, ele chamou os
doze e lhes disse: “Se alguém quer ser o primeiro seja o último de todos e o servo de
todos”. Está bem clara, na linguagem simples e elevada de Jesus, a oposição entre a
ordem da intenção e a da execução: para atingir este fim tão alto que é a santidade é
preciso começar pela humildade. Quanto mais algo for o edifício espiritual, mais
profundos devem ser os alicerces. E além disso não basta cavar os alicerces de uma vez
por todas no começo da obra mas será preciso cavar mais profundamente, aqui e ali à
medida que cresce o edifício, para a humildade crescer com a caridade. É isto que Jesus
quer dizer aos Apóstolos: “E tomando um menino, diz São Marcos, pô-lo no meio
deles; depois de o abraçar, disse-lhes:— Todo aquele que recebe um desses meninos em
meu nome, a mim é que recebe; todo o que me recebe, não recebe a mim mas Àquele
que me enviou”.
45.
46. São Lucas (9, 46) conta também que os Apóstolos não compreenderam
então que Jesus lhe anunciava sua Paixão: “Veio-lhes então o pensamento de qual deles
seria o maior. Mas Jesus, conhecendo os pensamentos de seus corações, tomou um
menino, pô-lo junto de si e lhes disse: — Todo o que recebe esse menino em meu nome,
a mim recebe; e quem recebe a mim recebe Aquele que me enviou; pois quem dentre
vós todos é o menor, esse é o maior”. São Mateus (18, 4) dá-nos a explicação dessas
últimas palavras: “Todo aquele pois que se humilha como esse menino, esse será o
maior no reino dos céus”. A criancinha está isenta de orgulho, de malícia, de
concupiscência, de rancor, esquece logo o mal que lhe fazem; depois, é simples e
consciente de sua fraqueza, pede socorro a seu pai e a sua mãe.
47.
48. Assim deve ser o cristão diante de Deus para entrar no reino dos céus;
isento de orgulho, simples, consciente de sua fraqueza. É aos humildes que Deus dá a
sua graça. Assim também nós somos levados a nos inclinar para a criancinha, a ajudá-la
e dar-lhe tudo que podemos, enquanto que nos afastamos da criança pretensiosa que
perdeu sua graça e a simplicidade da infância em troca de uma vaidade ridícula.
49.
50. O cristão quando é verdadeiramente humilde, começa e continua como
deve sua viagem para a eternidade; sem precipitação alguma, ele chegará muito alto. Ele
não deseja de modo desregrado sua própria excelência, não se estima como digno de
grandes coisas; mais ele é humilde, mais ele ama a Deus e deseja glorificá-lo,
desprezando sua própria excelência, cuja procura diminuiria em si o esplendor da glória
divina.
51.
52. Este princípio de infância espiritual foi ensinado por todos os santos,
especialmente os fundadores da Ordem, na formação de seus discípulos. O Senhor, nos
últimos tempos, nos lembrou de uma maneira singularmente eloqüente e persuasiva este
espírito na pessoa de Santa Teresa do Menino Jesus. Esta necessidade se fazia sentir.
Nossa época não conhecia mais, por causa de sua presunção e de seu frenesi, estas
qualidades da verdadeira infância sem as quais não se terá nunca as qualidades da
adolescência nem as de uma idade mais avançada. Ao mesmo tempo em que ela nos
lembra a humildade, Santa Teresa do Menino Jesus nos diz toda a confiança filial que
devemos ter em Deus e tudo o que Ele está pronto a nos dar para nos prender mais
intimamente a Ele. Ela nos mostra admiravelmente as graças sempre novas de luz e de
amor que se encontram no caminho normal da santidade.
53.
54. Para isso não se trata de receber a verdade somente do modo intelectual
assim como se escuta com atenção uma conferência interessante. É preciso que a alma
inteira, inteligência e vontade, receba a verdade e o bem que lhe são propostos em uma
doutrina que, como o dom da sabedoria, [3] é ao mesmo tempo especulativa e prática,
doutrina de vida.
55.
56. É preciso recebê-la humildemente, pelos intermediários que Deus quis
que fossem os nossos e que têm a graça de estado para nos esclarecer. Receber “como
uma criancinha”, diz Nosso Senhor, com simplicidade, pondo em seguida em prática
o que nos foi dito; pois, nesse caso, é pela prática que se vai à teoria, no sentido de que
é pela prática das virtudes que nos preparamos para receber a contemplação
verdadeiramente viva e saborosa dos mistérios da salvação.
57.
58. Assim recebe aquele que entrou nesta infância espiritual da qual falava
Jesus aos seus discípulos e que é o antípoda das criancices de uma vã e tola pretensão. A
presunção, querendo-se elevar muito depressa, não atinge nem mesmo os degraus
inferiores da escala espiritual. O espírito de infância de que fala Jesus, ao contrário,
predispõe a chegar em tempo normal à verdadeira maturidade que só virá na hora
marcada por Deus.
59.
60. Há, pois, uma grande diferença entre um intelectual apressado em se
instruir e um contemplativo. Nosso Senhor alude a isto dizendo: “Eu vos dou graças,
Pai, porque escondestes estas coisas aos prudentes e sábios e as revelastes aos
pequeninos”.
61.
62. São José, que não era um intelectual foi certamente um dos maiores
contemplativos de todos os tempos; quem pode descrever o aumento de caridade, de
inteligência e de sabedoria que ele recebia do Verbo de Deus feito homem, quando, no
silêncio da casa de Nazaré, ele o contemplava com amor! O Santo Cura d’Ars que
tampouco era um intelectual, também foi, em sua aldeia, um grande contemplativo.
Nada via do imenso bem que realizava todos os dias mas via se elevar cada vez mais o
ideal do sacerdócio, e dele se julgava sempre mais afastado.
63.
64. Para ser contemplativo, é preciso não ter a alma inflada de orgulho, é
preciso ser simples e humilde em relação a Deus, como uma criança. “Deus superbis
resistit humilibus autem dat gratiam” (Tg 4, 6). É aos humildes que Deus dá sua graça e
os faz humildes para os cumular de graça. Então seu reino se estabelece
verdadeiramente nestas almas, nestas inteligências, nestas vontades, nestes corações.
65.
66. ***
67.
68. Finalmente se realiza o ideal entrevisto e desejado no primeiro dia,
segundo o princípio que citamos no começo: em tudo é preciso primeiramente
considerar e querer o fim, que só se realizará em último lugar. É preciso não
negligenciar os meios inferiores, indispensáveis para a prática cotidiana de nossos
deveres de estado, às vezes muito modestos; é preciso não saltar por cima dos degraus
mas acelerar lentamente e finalmente se chega ao fim. Com dizia um santo diretor:
“Quando trabalhamos assim para o bom Deus chegamos a fazer mais e menos do que
tínhamos sonhado”; menos porque sobram sempre lacunas que esperávamos preencher
mais ligeiro, e que o Senhor deixa para nos manter humildes; mas também avançando
seriamente, fazemos mais do que havíamos sonhado, pois o bom Deus, por sua graça,
fecunda nossos esforços além de nossas esperanças. “Deus, qui dives est in
misericordia... convivificavit nos in Christo, et conresuscitavit et conculis
supervenientibus abundantes divitias gratiæ suæ in bonitate super nos in Christo Jesu”
(Ef 2, 4). “Deus que é rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos
amou, mesmo quando estávamos mortos pelos pecados, nos convivificou em Cristo (por
cuja graças fostes salvos); e com ele nos ressuscitou e fez sentar nos céus com Cristo
Jesus, para mostrar, nos séculos futuros, a infinita riqueza da sua graça, por sua bondade
para conosco em Jesus Cristo”.
69.
70. Uma vida bela, diz-se, é um pensamento da juventude realizado na idade
madura, e realizado muitas vezes sem que saibamos, porque a alma voltada para Deus,
não se volta mais para si mesma.
71.
72. Evitamos assim dois tropeços: o dos idealistas que nada realizam, ou
fazem só a aparência do bem, e o daqueles que se dizem práticos e perdem de vista a
altura do fim a atingir.
73.
74. Os idealistas no mais das vezes, se contentam em conceber o ideal e
admirá-lo; quando procuram realizá-lo não pensam, como deviam, nos meios inferiores
e no entanto indispensáveis. Esquecem que para fazer uma bela estátua de Cristo, não é
suficiente se ter um belo modelo, é preciso também ver se a argila que se vai usar não é
nem muito úmida nem muito seca. Estando atentos apenas à forma e não à matéria,
podem muitas vezes fazer monstros, aplicando uma forma belíssima a um objeto que
está longe de ter a disposição necessária para recebe-la. Ou ainda fazem uma imitação
no campo da espiritualidade, dando aos iniciantes uma direção que convém aos
adiantados.
75.
76. Por outro lado a atenção dada aos meios às vezes ínfimos, porém
necessários, não deve nos deixar cair em minúcias, como acontece com o espírito
esmiuçador que, sob o pretexto de ser muito prático, perde de vista a elevação do fim a
atingir. Falando desses meios ínfimos, o tom e o acento devem lembrar a grandeza do
fim; é preciso sentir, na prática das virtudes morais, o sopro e o élan das virtudes
teologais que devem inspirá-las, o espírito de fé, de confiança e de amor de Deus.
77.
78. É por isso que convém ler livros ascéticos escritos por espirituais que,
como o autor da Imitação, não esquecem que a ascese é ordenada à mística, como
coroamento normal, que as almas generosas alcançarão na hora querida pelo Senhor.
79.
80. Assim são resolvidas muitas dificuldades e evitam-se muitos erros
práticos em espiritualidade. Não nos intrometemos, como os quietistas, nas vias místicas
nem simulamos, antes da hora, o repouso da contemplação. Esta é infusa e só Deus
pode dá-la. Mas Ele tem o hábito de concedê-la às almas verdadeiramente humildes e
generosas que, fazendo cada coisa a seu tempo, não negligenciaram as virtudes
pequenas, a prática exata de seus deveres de estado, e que, pela comunhão quotidiana,
cada dia mais fervorosa, pela aceitação sobrenatural da cruz, se encaminham para a
intimidade da união divina.
81.
82. Então, no crepúsculo da vida, a realização se encontra com a intenção
primeira. Esta, desde o começo, devia ser reta, pura, elevada e eficaz; essas qualidades
não cessaram de aumentar nela; ultrapassou-se o idealismo e chegou-se a um santo
realismo que não foi obtido pela diminuição do ideal mas pela fidelidade constante
Àquele único que pode, como Ele o disse, dar a vida e a dar com abundância: Veni ut
vitam habeant, et abundantius habeant (Jo 10, 10).
83.
84. (Trad: Anna Luiz Fleichman. "Perfection Chretienne et Contemplation",
págs. 779ss, vol. II. Revista Permanência, Set.-Out. 77)

O heroismo da virtude nas crianças

Garrigou-Lagrange, O. P.

Recentemente, alguns estudos muito bons foram publicados sobre a vida


interior das crianças 1. Nós gostaríamos de sublinhar aqui alguns aspectos relacionados
às virtudes heróicas nelas, tomando como exemplo a vida de Anne de Guigné 2.
De acordo com Bento XIV 3, as virtudes heróicas, para serem comprovadas,
exigem quatro condições: 1) a matéria, objeto da virtude, deve ser árdua ou difícil,
acima das forças comuns dos homens; 2) os atos devem ser realizados com prontidão e
facilidade; 3) também devem ser realizados com certa alegria, que é a de oferecer um
sacrifício ao Senhor; 4) bem como com alguma frequência, quando surge a ocasião.
A primeira dessas condições mostra que o heroísmo nas crianças é relativo à
sua idade, às suas forças, às condições que comumente possuem. Se alguns adultos são
muito pequenos [espiritualmente], há crianças que, por suas virtudes, já são bem
grandes. A escritura diz: Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem: "Da boca das
crianças e meninos de peito fizeste sair louvor” (Sl 8, 3). Foi isso que Jesus recordou
aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas indignados ao ver crianças gritarem no
templo: "Hosana ao filho de Davi" (Mt 21, 16); e se, por vezes, a fé dos pequenos serve
de exemplo para os grandes, o mesmo deve ser dito de sua confiança e amor.
Pensemos aqui o que pode e deve ser, de acordo com o pensamento e a vontade
de Deus, o heroísmo de cada um nas várias idades da vida e nas mais diferentes
condições. Deve-se tomar cuidado não apenas com o que se ensina, mas com o que se
deve ensinar para se alcançar a perfeição cristã. Devemos também nos lembrar que o
sacramento da confirmação já faz da criança um soldado de Cristo. Também não
devemos nos esquecer de como as crianças entendem o heroísmo: na maioria das vezes,
quando são heróicas, não sabem que são. A criança, quando é heróica, é simples, sem
exibição; sua simplicidade lembra a de Jesus na sagrada família de Nazaré.
Convém também assinalar que, na inocência da criança batizada, o Espírito
Santo não tem muito o que purificar antes de comunicar a sua luz de vida e sua força
atrativa. De fato, existem certas conseqüências marcantes do pecado original, que são
como feridas que curam após o batismo. Mas elas não foram agravadas pelos pecados
pessoais reiterados. A criança em estado de graça, desde que não peque pessoalmente,
está em contato direto com a Santíssima Trindade que nela habita; sua alma é como um
diamante, que ainda precisa ser lapidado, mas que praticamente não tem escórias. Das
dolorosas purificações, necessárias aos católicos pecadores na medida dos seus pecados,
o Espírito Santo dispensa a criança que é fiel à graça no cumprimento dos deveres da
sua idade. Então nós a vemos se elevar... ela se deixa levar, não mais por sua mãe, mas
pela graça do Todo-Poderoso. Certamente, ainda é preciso deixar-se levar ou conduzir.
A criança, menos cheia de coisas para sacrificar, mais livre, mais pura em suas
intenções, com frequência sofre menos que o homem.

A comunhão precoce por vezes leva a frutos de heroísmo nas almas desses
pequeninos. A crisma traz uma nova floração de graças; por vezes se constata um belo
desabrochar dos sete dons na alma infantil, na medida em que a criança ainda não
raciocina de modo metódico e complicado, e segue diretamente para a verdade, como
que por intuição.

Nas melhores delas, nota-se uma relativa elevação das virtudes teologais.
Como a criança, consciente de sua ignorância e de sua fraqueza, é naturalmente
inclinada a acreditar no que o seu pai e a sua mãe lhe dizem, a confiar neles e a amá-los,
não apenas pelos benefícios recebidos, mas em si mesmos; do mesmo modo, ela é
movida pela graça do batismo a crer na palavra de Deus, que lhe é transmitida pela sua
mãe e, em seguida, pelo sacerdote que a instrui, ela é igualmente inclinada a confiar em
Deus e a amá-Lo por si mesmo. Ela vive à sua maneira das três virtudes teológicas,
antes de refletir sobre a necessidade das virtudes cardeais da prudência, justiça, força e
temperança. Nas orações da manhã e da noite, são atos de fé, esperança e caridade que
pedimos delas. Se ela é fiel, a cada dia fará esses atos um pouco melhor.

Mais tarde, quando os sentidos despertarem, quando tiverem de entrar em


contato com os homens, compreenderão a necessidade das virtudes morais que
disciplinam as paixões e que regulam nossos relacionamentos com os outros de maneira
justa e equitativa. Então, impressionadas com a importância dessas últimas virtudes de
ordem humana, talvez dêem menos atenção às virtudes muito mais elevadas que unem
nossas almas a Deus. Ao perderem sua ingenuidade infantil, poderão perder também
algo de sua intimidade com o Senhor; não atentarão o suficiente, talvez, para o fato de
que, quanto mais avançamos, se é preciso agir menos como criança diante dos homens,
é preciso agir mais como criança diante de Deus, pelo progresso da vida de graça, pela
consciência de nossa dependência de nosso Pai Celestial, pela intimidade cada vez
maior a que Ele se digna nos chamar; finalmente, temos de entrar, por assim dizer, no
seio de Deus: os eleitos no céu estão em in sinu Dei, um pouco como o seu Unigênito
que está em sinu Patris (Jo 1, 18).
A simplicidade das crianças ajudam-nas a entrar nas alturas de Deus pela Fé,
pela Esperança e pela Caridade.

A Fé

As crianças acreditam de bom grado nas coisas do Céu, sem deixarem de


querer ver e entender o máximo que podem. Não demoram a compreender que esses
grandes mistérios não podem ser vistos aqui embaixo, que é preciso crer e, de todo o
coração, elas querem fazê-lo. Se forem dóceis, irão crer de modo cada vez mais firme.

Essa perseverança na fé é uma maravilha em algumas crianças. Somente a


graça divina pode levá-las a crer firmemente em mistérios tão elevados, invisíveis e
incompreensíveis, e dedicar-lhes não uma atenção passageira, e sim uma atenção
contínua e cada vez mais penetrante.

Vemos como isso foi o ponto de partida da vida interior de Anne de Guigné.
Era essa a verdade fundamental que ela anotava cuidadosamente em seu caderno:
“Precisamos salvar nossa alma, ela voltará a Deus, seu Criador. Nosso corpo vem da
terra, mas nossa alma vem de Deus". Eis uma verdade elementar para todo católico, mas
à qual ela sempre retorna quando fala com Nosso Senhor. Ela escreveu no início de um
retiro em abril de 1921: "Quanto mais falo com Ele, mais Ele me responde. Jesus
fala comigo poer meio do padre, por meio dos conselhos que o padre me dá. Onde Jesus
mais fala comigo acima é no fundo da minha alma por meio da sua graça. O bom
Senhor me dirá: quero você mais obediente, não quero que seja vaidosa. Se você já é
assim na sua idade, o que será depois?"

Ela observa em outro lugar: "Devemos ter um grande respeito pela presença de
Deus. Precisamos respeitar a Deus e a nossos pais... amá-los de todo coração, prestar o
máximo de serviços possível, obedecê-los e fazer o que quiserem". Ela acolhe com
entusiasmo a idéia de ir ao catecismo para aprender as verdades da religião.

A dificuldade da Fé não vem apenas da sua obscuridade, mas também do seu


caráter prático, quando, por exemplo, ela nos pede assentimento para algum sacrifício,
como a aceitação da doença ou de sofrimentos que se prolongam. Bem rápido, a criança
dirá: “Chega!”. Crer que o bom Deus deseje o seu sofrimento como uma ocasião de luta
e para promover um amor mais generoso lhe é difícil. É preciso uma vontade corajosa e,
sobretudo, a luz e a força divina para dominar-se.

A primeira grande dor para Anne de Guigné foi a morte do seu pai. O modo
sobrenatural com que aceitou essa morte, como o seu biógrafo demonstra, representou
para sua alma o ingresso numa vida nova: pela fé, ela começou a viver do pensamento
do outro mundo e a enxergar a vida presente desde uma perspectiva superior. Desde
então, essa criança, armada de uma vontade enorme, cede, luta a cada dia e, em alguns
meses, é como que invadida pelo Espírito de luz, “doce hospedeiro da alma”. Anne se
torna cada vez mais submissa; ela que era inclinada ao ciúme, busca a partir de então só
pensar nos outros e não recusa mais nada ao bom Deus. Ao adoecer, declara: “Meu bom
Jesus, tudo o que quiserdes!” Isso é mais do que uma simples resignação, pois inspira-se
numa grande fé.

Anne, que ama muito a Santíssima Virgem sob o título de Nossa Senhora das
Dores, escreve: “De pé diante da cruz, sobre a qual seu Filho estava pregado, Maria
chorava… Dai-me a graça de chorar convosco…” — Por que chorar? — “Porque Jesus
não é amado o bastante”.
Onde encontrar uma criança que deseje a graça de chorar? A luz divina da fé
viva, esclarecida pelos dons do Espírito Santo, traçava o caminho por onde a sua alma
avançava.

A Esperança

A Esperança não é menos viva que a fé numa criança profundamente católica.


Assim como confia naturalmente em seus pais, dos quais se sente amada, a graça a leva
a contar sobre o amor de Deus, a esperar o socorro da sua bondade e do seu poder. Sob
a luz divina, percebe limpidamente, mas nem sempre sem pena, as manifestações da
bondade infinita. Ela crê que a Providência dirige tudo, que nada acontece sem que
"Deus o tenha desejado ou permitido”. Ela espera o socorro divino, conta com ele.
Quando mais tarde lhe ensinarem que “o motivo formal da esperança é Deus, em quem
sempre devemos contar”, compreenderá imediatamente, pois sua experiência há muito
lhe terá instruído acerca do socorro divino.

Ao chegar a hora de fazer certos sacrifícios penosos, de renová-los com


frequência, se a criança os fizer com perseverança, serenidade e alegria, como vemos na
vida de Anne de Guigné, poderá alcançar o heroísmo, que se manifesta precisamente
nisso de que a criança guarda não apenas intacta, mas muito viva, a sua confiança
amorosa nesse Deus tão bom que lhe pede tantos sacrifícios.

No depoimento da Madre Saint Raymond sobre a vida e as virtudes de Anne de


Guigne 4, lemos:
“Foi seu espírito de fé que lhe deu essa grande confiança em Deus que tanto
admiramos nela: estava sinceramente persuadida que Deus conduz tudo, que estamos
todos em suas mãos, que nada nos acontece sem que seja desejado por Ele, que tudo é,
por conseguinte, bom. Daí a sua paz, a sua serenidade, essa alegria inalterável em todas
as contradições. Pois Anne não teve a vida fácil que se pode imaginar. Ela sentia dores
de cabeça frequentemente, precisava interromper os estudos; ela vivia um tempo aqui,
outro tempo acolá; tinha de deixar seus amigos, separar-se; tudo isso devia lhe custar
muito, mas ela via a mão da Providência nas menores coisas e, assim, tudo estava bem.
"É por isso que tanto amava as Escrituras: nelas, via à descoberto a Providência
de Deus. A história de Abraão, sobretudo, a impressionava. O Anjo vindo impedir a
imolação de Isaac, a fé de Abraão triunfante, tudo isso fazia seu coração bater mais
forte… Ela compreendeu muito bem que Deus é tudo! Ir até Ele continuamente, eis a
sua vida: ela marchava para Ele em todas as suas ações.”

As provações jamais alteraram a confiança de Anne de Guigné. Quando, em


dezembro de 1921, foi acometida de graves dores de cabeça e nas costas, o seu rosto
estava lívido, os músculos respiratórios paralisados. Ela não se queixava, mas gemia
docemente: “Meu bom Jesus, não aguento mais”. Em seguida, um sorriso revelava o
socorro divino: “Estou feliz”, dizia a pequena doente, feliz por oferecer tudo pelos
pecadores. “Sim, ainda quero sofrer muito!”. Ela já vivia alhures, os olhos fixados na
pátria celeste, no termo da viagem. Ao invés de ficar abatida com a dor, ela não apenas
demonstrava uma confiança vivíssima, mas comunicava aos demais a sua esperança —
e a pedia pelos pecadores.

A caridade

O amor de Deus em alguns predestinados aparece não apenas sob a forma da


caridade afetiva que repousa na Bondade de Deus, amado por si mesmo, mas ainda sob
a forma da caridade efetiva, que se prova pelo sacrifício e por um grande amor ao
próximo.

Isso é muito marcante em Anne de Guigné; assim, falar de seu amor de Deus é
falar, ao mesmo tempo, do seu despreendimento, da sua humildade, da sua mortificação
e obediência.

A menina possuia a generosidade de uma noviça carmelita. Bastava-lhe


compreender o que era mais perfeito para tentar fazer; foi preciso até mesmo moderar o
seu desejo de mortificação quando se tornou muito pronunciado.

É o amor de Deus que lhe movia à prática das virtudes: “É preciso obedecer
sempre”, era um dos pontos do seu programa. E ainda que por vezes fosse bem difícil,
cumpria esse ponto admiravelmente. Fortificada pela graça da primeira comunhão, ela
se dava inteiramente aos seus pequenos deveres familiares e escolares, pequenos em si
mesmos, mas grandes para ela e para Deus, pela intenção que a movia a cumpri-los.
Aplicava-se a servir aos seus pronta e alegremente. Chegando aos nove anos de idade,
escreveu: “para mim, se faz preciso uma luta quotidiana”. Diante dos pequenos ou dos
grandes esforços, dizia: “Bom Jesus, eu os ofereço a Vós”. É a sua maneira de caminhar
para Deus, de adquirir coragem e perseverança. Não se sabe bem o quanto a mansidão
custava à sua natureza irascível: “Ó, como é exasperante… quanta vontade de brigar!”
Mas logo a graça triunfava, e a bondade dava a palavra final.

Ela compreendeu que oferecer tudo ao Senhor é um grande socorro para nós:
“Nada é difícil quando nós o amamos”. Ela despertava rapidamente todos os dias, ainda
que o sono a abatesse. Renunciava aos seus gostos, privava-se de sobremesa, comia os
pratos de que gosta menos; uma vez, raspou o corpo em ortigas para agradecer o Senhor
por ter atendido um dos seus desejos. Outro dia, tendo deslocado um músculo do joelho,
levantou-se sem dar um pio, os olhos cheios de lágrimas, inquieta por ter preocupado os
seus: “Mamãe querida, não fique assim, não é nada; fico muito triste por ter te
assustado”. Quem viveu perto dela pôde dizer: “nunca a vimos recusar um sacrifício”.

A religiosa que dirigia o catecismo em Cannes nunca percebeu na pequenina


— salvo uma pequena vez, quando tinha cerca de quatro anos — a menor inclinação à
vaidade, e isso ao longo de cinco anos. Aí está um sinal de grande amor de Deus.

Ainda que fosse inclinada à censurar e mandar, Anne se apagava, fazia-se


pequena, e se contentava em ser esquecida; folgava quando lhe davam o pior e buscava
sempre reservar pequenas ajudas aos necessitados.

Se a graça que a atraia era bem poderosa, o ardor com que Anne lhe
correspondia era dos mais generosos. Uma derrota a deixava humilde e confiante: “Foi
porque não rezei bastante…”

Mal tinha quatro anos de idade, quando lhe aplicaram cataplasmas de mostarda
bastante dolorosos: “Arde muito… mas, ah meu Jesus, eu Vo-lo ofereço”. Os familiares
se compadeciam: “Sofres muito, Aninha?" — “Ah, não! Ainda estou aprendendo a
sofrer”. E acrescentava: “Sempre podemos sofrer alguma coisa por Nosso Senhor
porque Ele sofreu por nós”.

Com profunda convicção, aos nove anos, declarou: “Uma vida longa é uma
grande graça, porque nos permite sofrer muito por Jesus”. Vê-se aí manifestadamente
uma altíssima inspiração do Espírito Santo, inspiração concedida por sua perseverante
docilidade.

A sua contínua alegria e perseverança — gestos apagados, ignorados, que ela


chamava de “modos pequeninos” — sua contínua Caridade e a sua união a Jesus no
meio das suas ocupações, dos seus jogos, não é menos bela do que a sua maneira tão
natural de ser… tão sobrenatural aos dez anos.

Quanta renúncia uma fidelidade tão grande exige! “Nós a vemos subir do
mesmo modo que observamos no céu o vôo de uma águiazinha”, nos disse uma alma
contemplativa que nos ajudou a conhecê-la melhor.

Sem dúvida, a sua educação, o meio em que nasceu, favoreceram o


desenvolvimento dessa bela vida interior — o catecismo também ajuda a alma a se
refinar, se adaptar, tornar-se delicada, reservada e afável — mas mesmo num berço
privilegiado, a prática contínua dessas virtudes requer uma grande generosidade, sinal
certo do amor de Deus que não cessa de crescer.

Esta criança tinha o zelo muito evidente da glória de Deus, estava “pronta para
suportar tudo por sua fé.” O pecado feria o seu coração: “Ó meu Deus, perdoai-lhes,
eles não sabem o que fazem…”. Percebia surgir nela a vocação do Carmelo “pela glória
de Deus”.

Ela velava, sobretudo nos primeiros sábados de cada mês, para evitar as
menores faltas, para ser agradável à Santíssima Virgem e lhe oferecer nesse dia “mil
sacrificiozinhos em reparação dos pecados cometidos contra a sua honra”. Oração,
rosário, Ave maris Stella, rejubilavam o seu coração e o uniam a Jesus por sua Mãe
Imaculada.
Entre as crianças cuja vida já foi escrita, bem poucas, aparentemente,
receberam tantas graças de recolhimento, de união com Jesus, como a pequena Anne.
Ela também sabia fazer penitência pelos pecadores, desejando fortemente “conversões
extraordinárias… para que todos reconheçam a glória de Deus.” Ela adorava
“quando lhe confiavam uma alma a ser convertida.”

Nesta menina bem equilibrada, percebemos uma caridade radiante e universal,


a paz, a doçura e também a gravidade, que não impedia as brincadeiras nas horas de
recreação; não encontramos nela nada de irrefletido.

Impressiona profundamente esse grande sinal do amor de Deus e do próximo


que é o esquecimento de si mesmo. Desde os primeiros dias da sua doença, inquietava-
se mais com a fadiga dos seus do que com o seu próprio mal, e a Nosso Senhor rezava:
“Curai outros doentes”. É o ensinamento de Jesus: “Nisto conhecerão todos que sois
meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros.” (Jo 13, 35)
A vida eucarística de Anne de Guigné merece menção especial; é um outro
sinal do seu grande amor a Deus.

Ela ainda não sabia ler, e já seguia a missa num pequeno missa com imagens,
sem perder um só gesto do padre 5.
Uns dois anos antes da sua primeira comunhão, já falava a todo hora desse dia
e pedia à sua mãe que lhe falasse a respeito 6. Ela queria a todo custo preparar “uma
bela morada no seu coração ao seu querido Menino Jesus”, e para isso não recusava
nenhum sacrifício.
No dia da sua primeira comunhão, a alegria era grandíssima; eufórica, corria de
uma a outra das suas amigas. A Madre Saint Raymond escreveu no seu depoimento que,
depois desse dia, se fosse privada da comunhão por alguma falta, choraria com todas as
forças do seu corpo 7.
Também ficou felicíssima com a primeira comunhão das suas irmãs: ela
transmitia-lhes o seu entusiasmo, vivendo com elas numa perfeita harmonia 8.
Antes de se aproximar da santa mesa de comunhão, demonstrava grande
delicadeza de consciência; um dia, perguntou à mãe: “Será que andei muito dispersa?”
Por vezes, censurava a si mesma pela negligência na oração 9.
Desde a véspera, pensava na eucaristia, por vezes tomava seu pequeno livro,
lia-o antes da Comunhão e se preparava com fervor para a grande ação do dia seguinte;
ela comunicava a sua alegria à sua preceptora 10.
Ela dizia ao irmãozinho: “Ah, como você ficará feliz quando o menino Jesus
estiver no seu coração!”. Mais tarde, enquanto brincava com ele, interrompeu de repente
e propôs com gravidade e docilidade: “e se nós fizéssemos uma curta oração para nos
prepararmos para a comunhão de amanhã?” 11 Em outro dia, nós a vemos ajoelhada
sobre o degrau de uma escada. Interrogada sobre o que fazia, respondeu: “Eu agradecia
ao bom Jesus, disse ela, por querer vir ao meu coração” 12. Seu biógrafo escreveu:
Nas suas visitas ao Santíssimo Sacramento, encontrava no tabernáculo o seu
Deus vivo e, quando a hóstia pairava sobre o altar, seu olhar se fixava sobre o ostensório
com profundidade e intensidade tão impressionantes, com uma chama tão luminosa, que
sua fé parecia tocar na visão 13.
“Para que a vida de Jesus cresça em mim, escreveu Anne, é preciso que minha
alma se alimente muito frequentemente.” “Eu quero comungar sempre que possível”,
também escreveu. “A vida da graça é muito preciosa, e seu alimento, que é Jesus Cristo,
é tão bonito que é preciso desejá-lo de todo coração."14
Ela confiou a uma das suas tias, que era religiosa: “Essa manhã, chorei porque
mamãe não me deixou comungar”; em seguida, acrescentou: “mas agora já estou bem
porque me ensinaram a fazer a comunhão espiritual."

Uma manhã, passou pela sua casa, à caminho da Missa, uma amiga da sua
mãe; a menina lhe perguntou: “A senhora poderia me levar?” e, depois de obter a
permissão da mãe, voltou tão contente que logo lhe perguntaram: “Desejas muito ir a
missa?” — “Ah, sim!, respondeu ela, amo muito ir a missa… e depois, veja, é uma
comunhão a mais.” 15
Durante o santo sacrifício, após ler o evangelho do dia, cerrava os olhos e, com
a cabeça levemente inclinada, com as mãos juntas, deixava-se absorver inteiramente por
um movimento profundo da sua alma, unindo o seu coração ao coração eucarístico de
Jesus. O ardor da sua alma deixava-se trair pelos menores gestos, e quando retornava da
santa mesa, estava “inteiramente perdida em Deus”, a ponto de ser preciso, por vezes,
guiá-la até que reencontrasse o seu lugar 16.
Um dia, perguntou à sua mãe:
— Mamãe, posso rezar sem o livro durante a missa?

— Por que, minha filha?

— Eu já sei de cor todas orações do missal e muitas vezes me distraio ao ler.


Mas, quando falo com o bom Jesus, nunca me distraio; é como quando a gente conversa
com alguém, mamãe, a gente sempre sabe o que diz.

— E o que você fala ao bom Jesus?

— Que o amo. Em seguida, peço por você e pelos demais, para que Jesus os
torne bons. Eu lhe falo sobretudo dos pecadores.

E, ruborizando-se um pouco, acrescenta:

— Depois eu digo a Ele que gostaria de vê-lo 17.


Diz-se que, durante a fase final da sua vida, sua piedade tinha “algo de
celeste”. Após a comunhão, na festa de Todos os Santos, poucos meses antes da sua
morte, ela parecia transfigurada. Na igreja ela era notada, e um fiel chegou a se levantar
para “ver melhor aquele perfil que não tinha nada de humano” 18
No dia 28 de dezembro de 1921, o seu confessor lhe disse: “Quer que eu te
traga Nosso Senhor?” — “Ah, sim!” respondeu com uma voz na qual transparecia um
desejo imenso 19. Ela morreu alguns dias depois, após ter visto o seu anjo da guarda e
voltando um olhar derradeiro à sua querida mãe. Uma única palavra saia de todo os
corações: “É uma santa.” 20
Por seu amor à Eucaristia, Anne de Guigné nos faz pensar na beata Imelda
Lambertini, morta aos onze anos durante a ação de graças da sua primeira comunhão.

Ao ler a sua biografia, lembramo-nos do princípio: a prova da caridade, do


amor de Deus, são as obras das diferentes virtudes que a caridade inspira. “Pelos seus
frutos os conhecereis”. Sem querer antecipar os julgamentos da Igreja, é possível pensar
que encontramos nessa criança, também morta aos onze anos de idade, as quatro
condições requeridas por Bento XIV para julgar da heroicidade das virtudes: 1 a. a
matéria difícil, acima das forças comuns às crianças dessa idade; 2 a. a prontidão no
cumprimento dos atos virtuosos; 3a. a alegria de oferecer sacrifícios ao Senhor; 4a. a
freqüência desses atos, desde que a ocasião se apresente.

Isso nos faz pensar no que ensinou Santo Tomás: “além da virtude comum,
[há] uma virtude heróica ou divina, que faz certos serem chamados homens
divinos“21 — devemos ver aí uma inspiração especial do Espírito Santo.
O relato dessas virtudes deve nos mover a agradecer ao Senhor que se compraz
em cumular os pequenos e a restabelecer, assim, o equilíbrio na balança do bem e do
mal; a colocar um contrapeso em tantas vilanias que a iniquidade acumula. Nós
encontramos também aí um grande exemplo e, tendo chegado ao limiar da velhice,
percebemos que ainda temos muito a aprender dos melhores dentre esses pequeninos.

Outros exemplos de heroicidade manifesta

Anne de Guigné não foi uma exceção. Outras crianças nos oferecem exemplos
semelhantes. Veja, em um ambiente completamente diferente, a filha de um operário
comunista. Annette 22 perdeu a sua mãe; ela possui quatorze anos e educa seus quatros
irmãos e irmãs. A caridade católica a conquistou e ela converte seus irmãos. Morre em
seguida tentando impedir que seu pai cometesse numa igreja um furto sacrílego.
O pai estava desempregado; os camaradas o convidaram a roubar os vasos
sacros da igreja… para transformá-los em lingotes de ouro e alimentar os filhos. O
honesto operário hesita, mas os outros o desafiam e o pai da Annette entra com eles no
santuário. Ela os acompanha… e se joga sobre um deles que repele este agressor
desconhecido com tanta violência que a criança desmorona no chão. O pai de Annette
corre, reconhece a sua filha e a leva consigo. Ela morre sob as benções do padre, como
uma vítima pura e radiante de alegria. O pai, tocado, retorna à religião.

Não podemos falar desse tema sem lembrar a heroicidade da pequena Nellie,
de quatro anos de idade, cuja vida foi escrita há poucos anos 23. Atormentada pela
osteíte que corroía a sua mandíbula, para suportar as dores ela apertava o crucifixo
contra o seu coração; enquanto lágrimas corriam, ela aceitava tudo, repetindo sem parar:
“Olham como o Deus santo sofreu por mim!”
Podemos mencionar a vida de Lucila de Senilhes, morta aos quinze anos de
idade, oferecendo a sua vida pela Igreja e pela sua pátria 24.
Antes de vir a pedir o sofrimento, essa menina escrevia:

“Renunciar a si mesma; não falar assim: “eu preferiria que…” — Para


conservar a paz, é preciso obedecer quatro regras importantes: Procurar fazer antes a
vontade de outro do que a própria. Escolher sempre ter menos do que mais. Buscar em
tudo o último lugar. Desejar sempre e suplicar que a vontade de Deus se cumpra
perfeitamente em nós!”
Um dia, ela escreveu depois da comunhão:

“Procurai a minha felicidade e procurarei a tua” — Eis, meu Deus, o


pensamento que vós me enviastes essa manhã, durante a comunhão. Como eu
procurarei a vosso felicidade, ó divino Coração do meu Jesus? Eu o farei cumprindo
fielmente meu dever quotidiano, oferecendo-vos todas as minhas ações, fazendo muitos
pequenos sacrifícios por amor de vós, rogando pelos pecadores, fazendo com que o
Senhor seja amado, não resistindo jamais aos movimentos da vossa graça.”
Seguindo esta via e sob a inspiração do Espírito Santo, ela chegou a pedir o
sofrimento.

"Minha natureza é tão fraca que ela se queixará — é o que temo, meu Deus, se
vós a fizerdes sofrer; mas então, Senhor, não escutai o que eu vos disser, e quando
tiverdes começado, ó Jesus, não parai mais; eu me entrego a vós; a única coisa que eu
vos demando, é de me ajudar a suportar o sofrimento… Ó meu Deus! Eu vos consagro
os meus quinze anos com todo o fervor da minha alma… Enviai-me o sofrimento…
aumentai o número dos justos que salvarão a França.”
Pouco depois, ela morreu de pneumonia, suportando heroicamente, sem um
suspiro sequer, uma punção na coluna vertebral feita com agulhas bem curtas.

Qual o peso de uma alma de criança tão heróica nas mãos de Deus?

Em 1909 morria também heroicamente, na Itália, a pequena Guglielmina


Tacchi Marconi, conhecida em Pisa pelo seu amor extraordinário pelos pobres 25. Nas
ruas, ela os procurava para poder vir socorrê-los. À mesa, ela não conseguia comer se
algo lhes faltasse.
Ela morreu aos onze anos, torturada ao longo de sete meses por uma
endocardite; durante esses meses, não se viu um capricho sequer. Desde o primeiro dia,
ela, que não tinha mais do que uma hora de sono tranquilo, contentava-se em repetir
com muita confiança: “Tutto per amore di Gesù!” Após a sua primeira comunhão, feita
antes de morrer, permaneceu longo tempo em êxtase, e morreu dizendo: “Vinde, Jesus!
Vinde, Jesus.”
Um livro recente: Mes Benjamins 26, relata os atos heróicos realizados por
criancinhas anamitas, japonesas, das quais algumas, já conhecidas, morreram como
mártires. Para terminar, citaremos algumas.
Uma pequena anamita, Dân, que morreu martirizada aos treze anos, havia sido
aprisionada com sua família, sofreu de sede e, apesar dos maus-tratos, manteve-se
sempre inflexível, dizendo: “Eu jamais negarei o meu Deus.” Como poderia ela, sem se
queixar, suportar inúmeros golpes de rattan com que lhe fustigavam o corpo? Ela não
cessava de rezar, adorando o Senhor, o Verbo incarnado, e depois gritou: “Que me
acorrentem, que me metam na canga, que me submetam às demais torturas ou ao cruel
suplício até a morte pela fé… já me decidi: estou decidida a sofrer tudo.” —
Submeteram-lhe ao vergaste, a roda, ao cavalete; queimaram-lhe as extremidades dos
membros, arrancaram-lhe as unhas, derramaram-lhe chumbo nas orelhas. Mas ela
manteve-se inquebrantável. Sobre as suas chagas vivas, continuavam a golpeá-la! Dân
logo viu os insetos roerem seus machucados.

A criança não pôde mais se reerguer; no entanto, nenhuma queixa! E Dân


deixou assim a terra rumo ao Céu.

No mesmo livro, lê-se o relato do martírio de três meninos japoneses


canonizados por Pio IX em 1862. Eles queriam morrer como mártires, como os
católicos. Maximiniano, com onze anos de idade, pediu com lágrimas no rosto que o
mandassem para a morte. Um soldado lhe deu um golpe de espada na cabeça. —
Antônio, de trezes anos, antes de ser martirizado, soube responder ao governador que
lhe exigia a apostasia: “Quão insensato eu seria de abandonar hoje os bens certos e
eternos por bens incertos e passageiros!”— Luís Ibragi, com doze anos, era tão pequeno
que julgaram que seria fácil fazer dele um apóstata. Mas, ao contrário, durante a longa e
dolorosa viagem que teve de fazer antes de morrer, era ele que apoiava o missionário,
recebendo os golpes em seu lugar. Ele obteve do padre permissão para cantar sobre a
cruz o Laudate, pueri, Dominum. Mas o missionário, sobre a cruz, entrou em êxtase, e o
menino teve de cantar o Salmo com os outros27.
Lendo esse relato dos feitos realizados por essas crianças de dez a doze anos, e
mesmo menores, ao se lembrar das palavras sublimes pronunciadas por muitas delas
antes de morrerem, percebemos que possuem uma sabedoria incomparavelmente
superior, na sua simplicidade e na sua humildade, à complexidade normalmente
pretensiosa da ciência humana. Encontramos aqui o dom de sabedoria em grau
eminente, proporcional à caridade desses pequenos servidores de Deus, grandes pelo
testemunho heróico que deram até a morte.

Roma, Angélico.

1. 1.Cf., em particular, Etudes Carmélitaines, abril de 1934, L’enfant et


la “voie d’Enfance”, Pe. Bruno de Jésus-Marie, O.C.D.
2. 2.Anne de Guigné, Etienne-Marie Lajeunie, O.P., Éditions du Cerf,
Juvisy - La vie Spirituelle, maio de 1931, p. 177 ss, “Un témoignage sur la vie et les
vertus d’Anne de Guigné”.
3. 3.De Servorum Dei beatificatione, I. III, c. 21 e ss.
4. 4.Cf. La Vie Spirituelle, maio de 1931, pág. 184. Todos os outros
aspectos que citamos aqui foram mencionados na biografia escrita pelo P. Lajeunie.
5. 5.Vie, p. 67.
6. 6.Ibid., p. 22.
7. 7.Un témoignage (Vie Spirituelle, loc. cit.), p. 195.
8. 8.Vie Spirituelle, loc. cit., p. 196.
9. 9.Vie, p. 43.
10. 10.Ibid, p. 68.
11. 11.Ibid., p. 70.
12. 12.Ibid., p. 70.
13. 13.Ibid., p. 71.
14. 14.Ibid,. p. 71.
15. 15.Ibid., p. 67.
16. 16.Ibid., p. 68.
17. 17.Ibid., p. 73.
18. 18.Ibid., p. 104.
19. 19.Ibid., p. 111.
20. 20.Ibid., p. 119.
21. 21.Ia IIae q.68, a. 1 ad 1.
22. 22.Petite annette, por Jeanne Froehlich, Apostolat de la Prière,
Toulouse.
23. 23.Nellie, Ir. Bernard des Ronces, Maison du Bon Pasteur, Paris,
boulevard Pereire.
24. 24.Librairie Sainte Cécile, 59 ter, rue Bonaparte, Paris.
25. 25.Guglielmina, 1898-1909, por Myriam de G., Paris, Lethielleux,
tradução italiana: Berruti, Turin.
26. 26.Escrito por Myriam de G., Éditions du Foyer, Paris, 4, rue
Madame.
27. 27.Nas mesmas páginas, lê-se sobre o pequeno Chales, indiano, que,
doente e sofrendo muito, dizia ao missionário que se compadecia dos seus
sofrimentos: “Ah, padre, eu fico muito feliz quando me sinto mal, pois penso no
Senhor que tanto sofreu por mim!”— O mesmo livro cita dois meninos (prefácio de
E. Baumann) onde se fala de dois meninos que viveram frequentemente d emodo
heróico. O menor tinha sede de sofrer mais, para que a sua coroa fosse mais bela.
Sua irmã conheceu, antes de morrer, a tortura de crer que não havia feito nada pelo
bom Deus.
Transformação da alma em Deus pelo amor

Uma das palavras que mais amiúde citamos, é o "vivo ergo jam non ergo, vivit
vero in me Christus." (Gal. 2, 20). Repetição plenamente justificada, porque não existe
talvez passagem das Epístolas que expresse mais ao vivo a alma do Apóstolo e possa
também propor à nossa imitação mais sublime ideal de vida; repetição, porém, que, por
sua própria freqüência, talvez algo tenha empanado o brilho do texto e vedado o seu
significado mais profundo. Tão profundo entretanto é este significado, que vem propor
ao teólogo um dos problemas mais interessantes e mais árduos que lhe possam solicitar
a sagacidade. O teólogo com efeito — por felicidade e desdita sua! — não se contenta
de repetir as sentenças bíblicas, nem mesmo de crê-las cegamente, ele deseja entendê-
las e entendê-las o melhor possível, logo conhecer-lhes o por quê e o como. Fides
quaerens intellectum, este legado do primeiro dos grandes escolásticos, deve continuar
mesmo no século vigésimo, a ser o lema de todo teólogo digno desse nome; não é
supérfluo recordá-lo quando assistimos a tantas tentativas para transformar a ciência
teológica em uma mistura de exegese, de patrística e de história dos dogmas. Fides
quaerens intellectum... o teólogo não ignora sem dúvida que, cedo ou tarde (mais cedo
do que tarde!), será obrigado a se deter diante do mistério insondável; acredita, porém,
que um progresso na intelecção, por mínimo que seja, constitui um antegozo daquela
visão na qual conhecemos o Senhor como dEle somos conhecidos.

Interrogando, pois, um principiante em teologia sobre o sentido do "vivo jam


non ego", obteríamos sem dúvida a boa resposta seguinte: a vida é princípio intrínseco
de operações; como o corpo de Paulo vivia naturalmente pela alma de Paulo, assim a
alma do Apóstolo, por sua vez, vivia sobrenaturalmente pela graça de Cristo,
participação à vida divina que, ao movimentar-lhe as potências, tornava-se fonte de
operações divinas.

Interrogando em seguida um aluno mais adiantado no estudo da ciência


sagrada, obteríamos uma nova resposta, que tentaria aprofundar a precedente,
explicitando o "como" da participação à vida divina pela graça. Explicar-nos-ia o futuro
teólogo que participar da divindade não consiste em partilhar-lhe a essência. Deve ser
considerada pura quimera aquela partícula da natureza divina, aquela centelha incriada
que, segundo Mestre Eckart, brilharia no ápice de nossa mente, divinizando-a. A graça,
em verdade, pertence à ordem dos acidentes, sua função é elevar e ordenar nossa alma à
vida profunda de Deus, por uma relação de conhecimento e de amor, de maneira que
esta vida divina, no que tem de mais íntimo — a Trindade — torne-se objeto a ser
contemplado e possuído pela nossa inteligência e pela nossa vontade. Portanto, a
inteligência iluminada pela fé e a vontade inflamada pela caridade, nos unem desde já
— se bem incoativamente — à vida da SS. Trindade.
Todavia, nem esta segunda resposta, conquanto exata, satisfaz plenamente,
porque sendo de ordem geral, não parece aclarar o caso particular de S. Paulo. Com
efeito, o Apóstolo não alude apenas àquela união com Cristo que é comum a todos os
fiéis, mas a uma especial transformação em Cristo, mercê da qual não só Cristo nele
vivia — como vive nos demais fiéis — mas ainda Paulo não mais vivia, o que não se
verifica de todos os fiéis. Uma simples elevação ou ordenação da vida humana ao nível
do divino, não constitui, no sentido pleno da palavra, transformação da vida humana em
vida divina. Outra coisa é divinização, como participação ao divino, outra coisa
divinização como transformação do humano em divino. A esta dificuldade, responderia
sem dúvida o aprendiz teólogo que, em última análise, é a mesma vida sobrenatural que,
iniciada no batismo, atinge o seu completo desenvolvimento no cenícola. A diferença
reside tão somente no grau de intensidade. Ora, S. Paulo não era cristão ordinário, mas
cristão perfeitíssimo, no qual a vida da graça chegara ao máximo compatível com a
condição de viageiro. Não é de espantar, portanto, que a sua vida humana houvesse sido
como que transformada na vida de Cristo Deus.

De acordo. Eis, porém, que esta terceira resposta vem suscitar uma nova e
embaraçante questão: como se processa, concretamente, esta transformação? À quarta
pergunta o aluno de teologia não saberia, por certo, responder e quiçá tampouco saberia
o seu professor. Felizmente um Doutor da Igreja respondeu por nós. S. João da Cruz,
com efeito, desvendou na sua vigorosa plenitude o texto de S. Paulo que nos preocupa.
Depois de explicar como a alma santa tem o seu Amado, Cristo, delineado na
inteligência pelas verdades da fé, e na vontade pelo fogo da caridade, prossegue o
Doutor Místico: "o semblante do Amado tão fiel e vivamente se retrata na vontade
quando existe união de amor, que é verdade dizer que o amado vive no amante e o
amante no amado. O amor, ao transformar os amigos, torna-os a tal ponto semelhantes
que cada qual, pode-se dizer, é o outro e ambos são um só. Com efeito, na união e
transformação de amor, um dá posse de si ao outro e assim cada um vive no outro, um é
o outro e ambos são um só pela transformação de amor. É o que quis dar a entender S.
Paulo ao dizer: "vivo autem jam no ego, vivit vero in me Christus" porque, afirmando
"vivo, porém não vivo eu", significava que apesar de viver, a sua vida não era sua, era
mais divina do que humana, já que ele estava transformado em Cristo. Por isso adianta
que não vivia ele, mas sim Cristo nele, de maneira que sua vida e a a vida de Cristo
eram uma só vida, pela união de amor." (Cântico, estrofe 11, verso 5).

Realizamos um novo e importante progresso; à questão: "como se processa a


transformação da vida humana da alma em vida divina de Cristo", estamos agora em
medida de responder: a alma se transforma pela união de amor.

Que haja transformação, não apenas metafórica mas propriamente falando, tal é
a doutrina constante de S. João da Cruz. Poderíamos aduzir, além do texto acima,
muitos outros; bastará citar mais um apenas, particularmente claro: "o matrimônio
espiritual é um estado muito superior ao desposório, porque é uma transformação total
no Amado... união pela qual a alma torna-se divina e Deus por participação, quanto é
possível nesta vida... consumado o matrimônio espiritual entre Deus e a alma, são duas
naturezas em um só espírito e amor de Deus." (Cântico, estr. 27, v. 1). Donde resulta
com evidência que o "vivo ego jam non ego" não deve ser interpretado apenas como
uma sublime exclamação proferida num arroubo de entusiasmo, mas deve ser aceito no
sentido mais próprio e mais forte das palavras, como expressão da pura verdade:
transformação da vida humana de Paulo na vida divina de Cristo, pelo perfeito amor de
Cristo por Paulo e de Paulo por Cristo. É compreensível aliás que o amor de Deus acima
de todas as coisas, primeiro e principal mandamento, seja o instrumento da nossa
deificação, o meio formal de atingirmos a maior perfeição acessível ao viageiro.

Entretanto, a santa e insaciável curiosidade do teólogo não se dá ainda por


apagada. Surge uma quinta pergunta: admitido que a transformação da alma em Deus se
processe pelo amor, resta saber como o amor pode realizar obra tão assombrosa.
Embaraçante quesito, ao qual tentaremos esboçar uma resposta.

De início, dois pontos parecem fora de toda dúvida:


1o. É óbvio que a transformação mística não se processa sobre o plano da
essência; desaparece pois todo e qualquer perigo de panteísmo porquanto a substância
da alma não se torna divina, nem tampouco a alma e Deus se fundem em uma só
essência, permanecem "duas naturezas", o que é único é o amor ("em um só espírito e
amor de Deus") sobre cujo plano se processa a transformação, graças à união afetiva.
Logo, na medida em que lograremos perceber como o amor consegue transformar no ser
amado o ser que ama, na mesma medida vislumbraremos algo da transformação da alma
em Deus. Vislumbraremos, digo, porque os místico de todos os tempos e de todas as
escolas insistem de comum acordo sobre a inefabilidade e a transcendência de sua
experiência, afirmando que ela se encontra acima de tudo quanto dizer e pensar se
possa. Se, pois, a compreensão plena de tão elevado assunto está fora do alcance do
teólogo, todavia algo lobrigar — embora pouco e obscuro — é sempre preferível a nada
saber.

2o. É igualmente claro que o amor místico não é amor sensual nem mesmo
amor espiritual de ordem natural, como, por exemplo, a amizade virtuosa. Sem
embargo, já que Sto. Agostinho não se pejou de buscar no amor uma imagem, por
longínqua que fosse, da processão do Espírito Santo, com maioria de razão a análise da
união afetiva natural poderá ministrar-nos uma analogia — imperfeita, porém fecunda
— do amor místico. Donde, nos escritos dos autores espirituais, o freqüente recurso às
imagens nupciais, com espanto e por vezes escândalo de quem não consegue elevar-se
acima da carne e do sangue.

1. A união afetiva natural

Por que amamos? Porque tal bem concreto nos alicia, nos seduz, nos atrai. E se
nos atrai é porque existe certa conformidade entre aquele bem e o que desejamos —
talvez secretamente — como podendo levar nosso ser a uma perfeição maior. Daí certas
simpatias súbitas e, à primeira vista, inexplicáveis. Apenas percebido, consciente ou
subconscientemente, um bem que nos convenha, este nos faz vibrar, provoca
ressonâncias em toda a nossa psique, e desperta na nossa vontade um impulso que para
ele nos inclina. Impulso, inclinação, atração (pondus amoris, dizia Sto. Agostinho) eis o
que constitui a presença do amado no amante. Como se vê, a presença afetiva muito
difere da presença das coisas na nossa inteligência. A idéia é a coisa presente em nós na
ordem representativa, isto é, como objeto de contemplação, como conquista nossa, presa
nossa. A inteligência é justamente a função que nos permite apoderar-nos dos seres para
reiterá-los em nós, fazendo-os viver em nosso espírito. Ao contrário, o ser amado está
em nós, na ordem afetiva, como princípio de uma atividade cujo termo será a união real
com a coisa e não com uma simples idéia. O mais egocêntrico dos amantes, aquele que
só almeja gozar do objeto amado, começou entretanto por ser dominado, fascinado,
subjugado pelos atrativos do bem exterior a ele. A inteligência se apodera da coisa, mas
a coisa se apodera da vontade. Pela inteligência possuímos a semelhança mental do
objeto em nós, pelo amor somos forçados a sair de nós para ir ter com o próprio objeto e
a ele nos juntar. Como bem explica S. Boaventura (I Sent., d. 10, a. 1, q. 2, sed contra 2)
esta saída de si — este "êxtase" diria o Areopagita — não deve ser entendido
fisicamente, como se o amor fosse uma espécie de fluído emanado da pessoa e indo ao
encontro do objeto. O "êxtase" consiste na inclinação imanente para um objeto real
precisamente enquanto ele existe fora de nosso espírito, a fim de a ele ulteriormente nos
unir, seja pelo dom (amor desinteressado ou "puro") seja pela posse (amor egocêntrico
ou de concupiscência)1. Num e noutro caso, quem ama vive naquele que ama. Em se
tratando do amor egocêntrico, esse viver no objeto amado significa não se contentar
com a posse superficial e exterior, mas procurar um gozo cada vez mais profundo e
total; no amor desinteressado, ao contrário, de tal modo nos identificamos com o bem
ou o mal do amigo, que no amigo gozamos e nele sofremos. (Sto. Tomás, I-II ae, q. 28, a.
2).

Quais serão as conseqüências do movimento de "êxtase", em se tratando da


amizade perfeita que, por hipótese, alguém votar a uma pessoa cuja imensa
superioridade moral ele reconhecer? Será o mais absoluto dom de si, que se manifestará
pela mobilização completa de suas energias em prol do amigo, pela tendência a se
identificar de mais a mais com ele, conformando as idéias, os gostos, os quereres aos do
amigo, partilhando-lhe as alegrias e as agruras. Relembremos os grande movimentos
religiosas: em torno do profeta, do reformador, do fundador, surgem as figuras dos
discípulos que só anseiam por plasmar a sua personalidade à semelhança daqueles que
amam. Por amor pelo Mestre, adotam-lhe as concepções, os afetos, as normas de
conduta, o vestuário até. Comportam-se em tudo como se comportaria ele,
reproduzindo-lhe a vida. O que é a conversão, a não ser a transformação moral, operada
sob o influxo de uma personalidade eminente do passado ou do presente? Dois grandes
filósofos contemporâneos, Max Scheller e Henri Bergson, colocaram em especial relevo
este papel criador e renovador das personalidades de elite, na evolução moral da
humanidade. Mesmo deixando de lado o influxo desses indivíduos excepcionais,
podemos verificar a cada passo, na vida quotidiana, a força transformadora do amor.
Quantos modos de pensar e de sentir abraçamos, não já pelo seu intrínseco valor, mas
simplesmente porque são modos de sentir e de pensar daqueles que nos são caros?

Um psiquiatra americano, Samuel D. Hartwell, que se dedicou à nobre tarefa


de reeducar meninos delinqüentes, muito insiste, no volume no qual enfeixou algumas
de suas experiências, sobre a necessidade de estabelecer entre o psiquiatra e a criança
uma relação de pessoa a pessoa, e, nos casos mais graves, um contato que atinja o eu
profundo do paciente, de maneira que este aceite as concepções e as normas de conduta
que o médico lhe inculcar, não mais pelo valor objetivo que possam ter, mas por
simples sugestão ativa, porque são as concepções e norma de um amigo no qual o
menino confia. Faltando o laço afetivo, verifica-se que os mais eloqüentes apelos, os
mais impecáveis raciocínios, são tão pouco eficazes como as setas que o selvagem
atiraria contra o sol. Estabelecido este laço, obtêm-se em compensação radicais
transformações na mentalidade e na conduta socialmente inadaptadas2.

II. O amor assimilante do místico por Deus

Se tal é a força assimiladora do amor, que impele quem ama a se identificar


com o ser amado, e se a identificação é tanto mais estreita quanto mais profundo é o
amor, podemos antever que o amor místico levará ao auge esta tendência, porquanto é o
afeto mais total e veemente que conceber se possa, tendo por objeto a suma
amabilidade: Deus uno e trino. Inflamado por esta chama, o místico só anseia por sair
de si para em Deus ser perder, fazendo-lhe entrega de sua alma com todas as suas
atividades. Este "sair de si" — tão fácil de se dizer e tão árduo de se praticar — dá um
sentido positivo a tudo quanto no itinerário místico é aparentemente negativo.
Renunciar não só ao pecado que é fruto do egoísmo, como ainda desapropriar-se de
todo o criado, mesmo dos bens que mais legitimamente se possui, é certamente sair de
si para se perder no Amado, tudo Lhe reservando, ao ponto de recusar um pensamento
sequer ao que não seja para Deus, ao ponto de afugentar uma lembrança sequer que se
não refira a Deus, ao ponto de negar uma parcela sequer de amor ao que não seja Deus.
Porque, como poderia sinceramente chamar a Deus "Amado", quem não estivesse todo
inteiro nEle perdido, não tendo coração para si mesmo nem para coisa alguma fora
dEle? (Cântico, estr. 9, v. 3). Amar a Deus de verdade consiste em não se contentar com
algo que não seja Deus. Eis por que o místico embevecido de amor tornar-se alheio a
tudo quanto é terreno.

Sair de si é ainda submeter-se a um longo trabalho de simplificação interior,


visando desligar as energias psíquicas de seus objetos habituais, para mobilizá-los em
prol do amor. Assim, ao tratar com Deus, a alma deixa a meditação discursiva que lhe é
natural, em busca duma contemplação intuitiva que é atenção cheia de afeto, simples,
cândida, como quem abre os olhos a fim de olhar com amor (Llama, estr. 3, v. 3, § 6). O
que mais necessitamos para progredir é calar-nos junto de Deus quanto aos apetites e às
palavras, porque a língua que Deus melhor entende é o silêncio de amor3.

Todo este esforço ascético, pertinaz, heróico, persegue uma só finalidade: sair
de si para consumar o dom magnífico do amor, conformando e configurando todas as
energias da alma ao Amado, nada querendo fora de Deus, nada desejando a não ser
Deus, de nada gozando a não ser de Deus, nem mesmo pensando em querer o que Deus
não quer. O ato de caridade perde, aos poucos, este caráter isolado, espaçado, que
apresenta no comum dos fiéis; ele torna-se um incêndio imenso e devorador, que invade
a alma inteira e banha, embebe, tinge-lhe todas as atividades. Esta alma encontra-se, na
verdade, transformada em amor, e pelo amor vive em Deus. Estará,
porém, transformada em Deus? Podemos sem dúvida responder que não mais a si
pertence: é propriedade de Deus; podemos acrescentar até que, assim como vivemos
naquilo que amamos, assim esta alma (que não só tem amor por Deus mas é amor de
Deus) vive em Deus muito mais do que no próprio corpo (Cântico, estr. 8, v. 1); é
evidente, enfim, que esta vida em Deus revestirá crescente intensidade, porquanto em
cada novo ato de amor repercute o eco dos atos anteriores, para torná-lo mais profundo
e forte: o misticismo longe de ser estático é perene movimento do amor a mais amor.
Apesar de tudo, este amor, conquanto faça viver a alma em Deus, não tornará divinos os
atos humanos. Haverá por certo assimilação, imitação; não haverá, propriamente
falando, "transformação". Para isso não é suficiente que a alma viva em Deus, é ainda
necessário que Deus viva na alma. A fim pois de manter toda a sua força ao termo
empregado por S. João da Cruz, urge a intervenção de um novo fator: o amor de Deus
pela alma.

III. O amor transformante de Deus pelo místico

Enquanto na mística neoplatônica, a alma ama a Deus mas não sabe nem tem
meio algum de saber se Deus corresponde a este amor, na mística cristã o amor é
essencialmente mútuo. Se o Santo procura Deus com amor, Deus o procura com
infinitamente mais amor. A esta alma que Lhe deu tudo, Deus tudo dá; tudo, isto é, Ele
mesmo. Não sem motivo empregam pois os místicos as metáforas nupciais a fim de
indicar a reciprocidade do dom. A um tempo conforta a nossa fraqueza e envergonha a
nossa tibieza, o meditar sobre este amor divino que bate à porta de nosso coração
esperando apenas que nós lha abramos, para ser nosso. "Quando uma alma tudo fez
quanto dela dependia, é impossível que Deus, por seu lado, não faça o necessário para a
ela se comunicar, pelo menos no segredo do silêncio; é mesmo mais impossível do que,
ao raio de sol, não iluminar um espaço sereno onde não encontra obstáculos. O sol está
muito pronto a entrar desde a manhã em vosso aposento apenas abristes as janelas. Tal é
a conduta do Deus que vela sobre Israel; Ele não dorme, mas entra na alma
absolutamente destacada de todas as criaturas e a cumula de seus tesouros. Deus está
pois tão disposto a penetrar nas almas, como o sol num aposento". (Llama, estr. 3, v. 3,
§ 9). Apenas requer que Lhe abramos as janelas, isto é, que afastemos os obstáculos.
Pré-requisito indispensável: como poderia Deus ocupar verdadeiramente um coração
que de tudo não estivesse desprendido? Apenas, porém, removemos os obstáculos e este
Amor que estava à porta irrompe e submerge a alma qual torrente impetuosa.

Como, entretanto, indaga o insaciável teólogo, como se processa esta


transformação da criatura pelo amor divino? A resposta permanecerá, de certo, envolta
nas trevas do mistério, como sói acontecer quantas vezes a inteligência humana procura
perscrutar diretamente a ação divina. Muito mais poderemos dizer, negativamente, o
que ela não é, do que determinar positivamente o que ela é.

O princípio metafísico-teológico que domina a matéria, é a não-passividade do


amor em Deus. Tentamos expressar, em trabalho anterior, este princípio, de maneira
menos negativa, pelas seguintes palavras: "Em Deus, o amor é, por essência, ativo; ele
infunde a bondade nos objetos por ele amados: as criaturas não são queridas de Deus
porque são boas, elas são boas porque Deus lhes quer bem; é amando-as que Deus as
torna amáveis" (REB, 1942, fasc. 4, dez, p. 924). Encontramos na pena de S. João da
Cruz uma aplicação deste princípio à união mística. Nas estrofes 21 e 22 do Cântico
Espiritual, a alma narra como, pelas suas virtudes, conquistara o Esposo; temendo,
porém, que o leitor atribuísse a Deus menos do que Lhe pertence, ela, na estrofe 23,
corrige-se e afirma que, se a sua fé e o seu amor puderam cativas o Amado é por tê-la
Ele contemplando com amor, torna-a assim graciosa e agradável a Ele mesmo; o que
nela mereceu amor, foi a graça e o valor que dEle recebera. Em outras palavras: a alma
foi por Deus amada, não em virtude de sua prévia amabilidade, mas ao contrário tornou-
se amável porque Deus a amou. Aclarando ainda mais o seu pensamento, o Doutor
Místico acrescenta: Deus, como não ama coisa alguma fora de si mesmo, assim nada
ama diversamente de si, porque tudo ama para si e o amor tem razão de fim. Não ama
pois as coisas pelo que são nelas mesmas. Donde, para Deus amar a alma é colocá-la de
certo modo dentro de si mesmo, igualando-a a si. Ele ama pois a alma em si, consigo,
como o mesmo amor pelo qual se ama (Cântico, est. 23, v. 3). Concluímos que não é a
alma que se transforma, é Deus que a transforma. Também não escreveu S. Paulo que
ele vivia em Cristo, mas sim que Cristo nele vivia. O Apóstolo como que insinuava
destarte o caráter eminentemente ativo do amor divino.
Estas considerações permitem-nos dar maior exação ao nosso conceito de
união mística. Tal qual a descrevíamos até agora, parecia resultar da conjunção de dois
movimentos: um, ascendente, que é amor do homem à procura de Deus, outro,
descendente, que é amor de Deus à procura do homem. Entretanto, ao penetrar mais
fundo no problema verificamos que aquele movimento já é, na realidade, fruto deste: o
homem não ascende senão porque Deus o chama e atrai; o sair de si, o "êxtase" da alma,
é causado pela investida do amor divino que a impeliu. Esta inclinação, este pondus
amoris que o místico experimenta e que, invencível, o faz subir até Deus, procede já
duma iniciativa divina: o Senhor mostra-se primeiro e lhe sai ao encontro. "In hoc est
caritas: non quasi nos dilexerimus Deum, sed quoniam ipse prior dilexit nos" (I Jo 4,
10). Estas palavras do discípulo amado, S. João da Cruz as traduz por graciosa
comparação: se a ave de vôo baixo consegue apresar a águia real de vôo altíssimo, é
porque esta desce e quer ser cativada (Cântico, estr. 22, v. 4).

Não há, portanto, como acreditávamos, dois movimentos convergentes, há um


só movimento que parte do amor infinito, gratuito, incompreensível, da Bondade
primeira por suas miseráveis criaturas, chamando-as a partilhar sua vida. Eis porque os
místicos descrevem com tanto vigor a "passividade" da alma em face de Deus4.
Passividade todavia que nada tem a ver com a inércia dos montanistas ou dos quietistas,
segundo os quais a alma deve ser reduzida ao estado de autômata, registrando
mecanicamente a moção divina. Pelo contrário, os verdadeiros místicos insistem sobre a
cooperação da alma que age vitalmente sob o influxo da graça. Assim é que S. João da
Cruz ensina: "A alma não pode exercer as virtudes nem adquiri-las sozinhas sem a ajuda
de Deus, mas tampouco Deus as produz sozinho na alma sem ela. Conquanto seja
verdade que toda graça excelente e todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das
Luzes, no dizer de S. Tiago, sem embargo nada disso pode ser recebido sem a
capacidade e a ajuda da alma. Eis por que a esposa falando ao Esposo, nos Cantares,
disse: "trahe me, post te curremus..." para expressar que se o impulso para o bem deve
vir de Deus somente (trahe me), em compensação, o ato de correr não é privativo do
Esposo ou da esposa; mas diz: "corremos ambos" porquanto constitui obra conjunta de
Deus e da alma (Cântico, estr. 21, v. 3).
Narra a Escritura que tão estreito afeto unia Jônatas a Davi que conglutinou-
lhes as almas. Se a amizade humana pode atingir tal intensidade, qual será então a
estreiteza da união entre Deus e a alma, sobretudo que tendo Deus a iniciativa poderá a
onipotência de seu abissal amor absorver a alma com maior eficácia e força do que uma
torrente de fogo lograria fazer evaporar uma gota de orvalho da manhã (Cântico, 2a.
redação, estr. 22). Como descrever a transformação que na alma se opera, ao fazê-la
Deus reclinar sobre seu peito, cheio de paz, de ternura, de silêncio? Balbuciando,
narram os Santos as suas inefáveis experiências; o teólogo, com grande esforço lobriga
nessas sublimes trevas algumas verdades que conserva com carinho. Sendo o amor de
Deus pela criatura essencialmente generoso, podemos afirmar de início que, para Deus,
amar a alma é, e não pode deixar de ser, comunicar-lhe os seus tesouros; no caso de S.
Paulo, infundir-lhe a própria vida divina. Esta comunicação de vida parece-nos revestir
um duplo aspecto; o primeiro é como que preparatório, dispositivo; o segundo consiste
no próprio dom.

Psicologicamente, dar-se à alma significa, para Deus, identificar-lhe as


operações às suas. Assim é que a graça mística simplifica e sublima o mecanismo das
atividades psíquicas do homem, fá-las escapar ao modo humano de agir para elevá-las,
na medida do possível, ao modo divino. O entendimento, que outrora agia segundo seu
modo natural, sob a dependência da sensibilidade, doravante age pela virtude da luz
divina e, neste sentido, torna-se divino. Insistem os místicos romanos e flamengos sobre
esta transformação da inteligência movida pela graça; não só a mente ultrapassa a
ordem discursiva para se tornar intuitiva, mas esta mesma intuição se processa sem
imagens, sem idéias até, atingindo sem intermediários a realidade divina.

A vontade, por sua vez, que dantes amava de um amor natural e rastejante,
transformada agora, adquire afetos divinos, vive do próprio amor pela qual Deus se
ama5. A memória enfim, que só guardava lembranças das criaturas, agora só recorda os
anos eternos cantados por Davi. Em uma palavra, toda a vida interior acha-se
sobreelevada, transformada, absorvida pela ação do divino amor que a atrai e chama a
si. "O entendimento da alma é entendimento de Deus, sua vontade é a vontade de Deus,
sua memória é a memória de Deus, suas delícias são as delícias de Deus. A sua
substância não é substância de Deus, porque a alma não se pode transformar
substancialmente nEle, todavia, sendo-Lhe unida, nEle estando absorvida, ela é Deus
por participação" (Llama, estr. 2, v. 6).

À alma assim harmonizada, sintonizada com Ele, Deus comunica então a sua
vida profunda, na simplicidade de seus atributos, na fecundidade de suas processões. E
qual é o meio formal, o veículo deste dom supremo? Ainda e sempre o amor, porquanto
o amor divino que tão generosamente se dá, reflete todos os atributos da divindade;
experimentando este amor, portanto, a alma experimenta os diversos atributos divinos,
ela experimenta, por exemplo, que seu Esposo é bom, porque sente que Ele a ama com
infinita bondade; ela experimenta que Ele é sábio e onipotente porque O sente amá-la
com sabedoria e poder; sabe também que Ele é santo, justo, misericordioso, forte,
delicado, puro, verdadeiro, porque descobre todas estas perfeições no amor que ela
experimenta (Llama, estr. 3, v. 1).

Através deste mesmo amor, participa a alma da vida da SS. Trindade; ela
"acha-se transformada numa chama de amor, na qual o Padre, o Filho e o Espírito Santo
lhe são comunicados"6, o que significa: neste amor que é indissoluvelmente de Deus
que o dá e da alma que o vive, oferecem-se as três pessoas divinas como objeto direto
de experiência. A caridade dos Santos atinge, pois, imediatamente, o Padre, o Filho e o
Espírito Santo.

Exclama o Doutor Místico: "Ó almas criadas para estas grandezas e para elas
chamadas, que fazeis e de que vos ocupais? Vossas pretensões são baixezas e misérias a
vossa opulência! Ó deplorável cegueira dos olhos de vossa alma! Sois cegos para
tamanha luz e surdos para tão grandes vozes; não vedes que, procurando grandezas e
glórias, permaneceis miseráveis e baixos, tornai-vos ignorantes e indignos de tantos
bens?" (Cântico, estr. 38, v. 1). E se porventura sentimo-nos a uma distância quase
infinita deste amor transformante, não nos deixemos desalentar, mas sigamos
corajosamente o conselho do santo Doutor: "é importantíssimo para a alma muito se
exercitar no amor" (Llama, estr. 1, v. 6), pois não é o conhecimento de Deus, por mais
sublime seja ele, que nos dá a posse de Deus, mas sim o amor, porquanto só o amor
chama, provoca, a visita divina. Como as águas frescas atraem o veado ferido e alterado,
assim o nosso amor se for generoso, ardente, constante, obterá com que Deus se apresse
em vir abeberar-se na fonte do nosso coração (Cântico, estr. 12, v. 5).

(Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 3, fasc. 2, junho de 1943)

1. 1.Convém aliás notar que ambos os amores encerram o elemento de


posse e o elemento de dom; só a predominância de um ou de outro diferencia os dois
afetos.
2. 2.Samuel D. Hartwell, Fifty-five "bad" boys. New York, 1931.
3. 3.D. Chevallier. Les avis, sentences et maximes de Saint Jean de la
Croix docteur de l'Église. Paris, 1933, n.253.
4. 4.Sto. Tomás resume a doutrina nas seguintes palavras: "Magis in
Deum homo potest tendere per amorem passive quodammodo ab ipso Deo attractus,
quam ad hoc eum propria ratio possit ducere". (1-2ae, q. 26, a. 3, ad 4).
5. 5.Na alma mística, o amor reveste três qualidades: 1 o. a alma ama a
Deus não por ela mesma, mas por Deus mesmo, pelo Espírito Santo, como o Padre e
o Filho se amam (Que o amor com que me amaste esteja neles, e que eu também
esteja neles. Jo 17, 27); 2o. a alma ama Deus em Deus, absorvendo-se no divino
amor que se dá com soberano poder; 3 o. ama enfim a Deus pelo que é em si mesmo,
e não por mostrar-se Deus generoso para com a alma (Llama, estr. 3, v. 6).
6. 6.O panteísmo constitui o perigo máximo para o misticismo; não será
pois supérfluo frisar mais uma vez que esta dupla comunicação (dos atributos
divinos e da vida trinitária) não se processa sobre o plano entitativo, mas na ordem
experimental e do amor. Comentando as palavras de S. João (17, 23) explica o
Doutor místico que o "dilexisti eos, sicut et me dilexisti" significa: dando aos
discípulos o mesmo amor do que ao Filho, não porém duma maneira natural como
ao Filho, mas pela união e transformação do amor; do mesmo modo que dizendo:
"ut sint unum sicut et nos unum sumus", o Filho não pedia ao Pai que os santos
fossem uma só coisa essencial e naturalmente como o são o Padre e o Filho, mas
que fossem um pela união de amor, como o Padre e o Filho são um pela unidade de
amor. (Cântico, estr. 38, v. 1).
7. Unum est necessarium
8. A vida interior, todos o podem facilmente conceber, é uma forma elevada
da conversa íntima que cada um tem consigo mesmo, desde que se encontre só,
mesmo no tumulto das ruas de uma grande cidade. Quando deixa de conversar com seus
semelhantes, o homem conversa interiormente consigo mesmo sobre aquilo que o
preocupa mais. Essa conversa varia muito de acordo com as diversas idades da vida, a
do velho não é a mesma do jovem; e também varia muito se o homem é bom ou mau.
9.
10. Desde que procure seriamente a verdade e o bem, essa conversa íntima
consigo mesmo tende a tornar-se conversa com Deus, e pouco a pouco, em vez de
procurar a si mesmo em tudo, em vez de tender de modo mais ou menos consciente a
fazer de si o centro de tudo, o homem tende a buscar Deus em tudo, e a substituir o
egoísmo pelo amor de Deus e das almas n’Ele. Eis aí a vida interior; nenhum homem
sincero porá dificuldades em reconhecê-lo.
11.
12. O único necessário de que falava Jesus a Marta (Lc X, 42) e a Maria
consiste em escutar a palavra de Deus e viver dela.
13.
14. A vida interior assim concebida é em nós algo muito mais profundo e
mais necessário do que a vida intelectual ou o cultivo das ciências; do que a vida
artística e literária, do que a vida social ou política. Encontram-se grandes sábios,
matemáticos, físicos, astrônomos, que não têm, por assim dizer, nenhuma vida interior,
que se dedicam ao estudo de suas ciências como se Deus não existisse. Eles não têm,
nos momentos de solidão, nenhuma conversa íntima com Ele. Suas vidas parecem, sob
certos aspectos, ser a procura da verdade e do bem em certo domínio mais ou menos
restrito, mas elas são tão mescladas de amor-próprio e de orgulho intelectual, que nos
perguntamos se darão frutos para a eternidade. Muitos artistas, literatos e políticos não
ultrapassam esse nível de atividade puramente humana que é, em suma, exterior. O
fundo de suas almas vive de um bem superior a eles mesmos, vive de Deus? Não
parece.
15.
16. Isso mostra que a vida interior, ou vida da alma com Deus, bem merece
ser chamada o único necessário, pois é através dela que tendemos para o nosso fim
último e nos é assegurada nossa salvação, a qual não se deve separar muito da
santificação progressiva, porque esta é a própria via da salvação.
17.
18. Muitos parecem pensar: afinal, é suficiente que eu seja salvo; não é
necessário ser um santo. Não é necessário ser um santo que faça milagres e que tenha a
santidade oficialmente reconhecida pela Igreja, é bem evidente; mas, para ser salvo, é
necessário tomar o caminho da salvação, e este é ao mesmo tempo o da
santidade: Só haverá santos no céu, tenham eles lá entrado imediatamente após a
morte ou tenham tido necessidade de ser purificados no purgatório. Ninguém entra no
céu sem essa santidade que consiste em estar puro de toda falta; toda falta, mesmo
venial, deve ser apagada, e a pena devida ao pecado deve ser suportada ou remitida,
para que uma alma goze para sempre da visão de Deus, O veja como Ele se vê e O ame
como Ele se ama. Se uma alma entrasse no céu antes da remissão total de suas faltas,
não poderia ficar lá, e ela mesma se precipitaria no purgatório para ser purificada.
19.
20. A vida interior do justo que tende para Deus, e que já vive d’Ele, é o
único necessário; para ser um santo, não é, evidentemente, indispensável ter recebido
uma cultura intelectual ou ter grande atividade exterior; basta viver profundamente de
Deus. É o que vemos nos santos da Igreja primitiva, entre os quais muitos eram pobres,
e até escravos; é o que vemos num São Francisco, num São Bento José Labre, num Cura
d'Ars e em tantos outros.
21.
22. Todos compreenderam profundamente esta palavra do Salvador: “De
que serve ao homem ganhar o universo se ele vem a perder sua alma?” (Mt XVI,
26). Se se sacrificam tantas coisas para salvar a vida do corpo, que no final deve morrer,
que não deveríamos sacrificar para salvar a vida da alma, que deve durar eternamente?
O homem não deve amar mais a alma do que o corpo? “Que dará um homem em
troca de sua alma?”, acrescenta o Salvador (ibid.). — Unum est necessarium, diz
ainda Jesus (Lc X, 42): uma só coisa é necessária, escutar a palavra de Deus e viver dela
para salvar a alma. Está aí a melhor parte, que não poderia ser tirada da alma fiel, ainda
que ela perdesse todo o resto.
23.
24. ***
25.
26. Quando os homens querem passar sem Deus, o importante da vida se
desloca. Se a religião já não é coisa séria e grave, mas uma coisa de que sorriem, eles
vão buscar o importante noutro lugar. Colocam-no ou pretendem colocá-lo na ciência,
ou na atividade social; querem trabalhar religiosamente na procura da verdade
cientifica, ou no restabelecimento da justiça entre as classes e os povos. E depois de
algum tempo são obrigados a reconhecer que chegaram a uma grande confusão, e que as
relações entre os indivíduos e os povos se tornam mais e mais difíceis, se não
impossíveis. É claro, como disseram Sto. Agostinho e Sto. Tomás 1, que os mesmos
bens materiais, ao contrário dos espirituais, não podem pertencer ao mesmo tempo
integralmente a muitos. A mesma casa, a mesma terra não podem
simultaneamente pertencer totalmente a muitos homens, nem o mesmo território a
muitos povos. Donde o terrível conflito de interesses, quando os homens febrilmente
põem seu fim último nesses bens inferiores.
27.
28. ***
29.
30. Ao contrário, e Sto. Agostinho gosta de insistir nisso, os mesmos bens
espirituais podem pertencer simultaneamente e integralmente a todos e a cada um.
Sem que um incomode o outro, podemos possuir plenamente a mesma verdade, a
mesma virtude, o mesmo Deus. É por isso que Nosso Senhor nos diz: Procurai o reino
de Deus, e todo o resto vos será dado por acréscimo (Mt VI, 33).
31.
32. Não escutar essa lição é trabalhar para a ruína.
33.
34. Assim se verifica ainda uma vez a palavra do Salmo CXXVI, 1: “Nisi
Dominus aedificaverit domum, in vanum laboraverunt qui aedificant eam, nisi
Dominus custodierit civitatem, frustra vigilat qui custodit eam — Se o senhor não
edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem. Se o Senhor não guardar a
cidade, em vão vigiam as sentinelas”.
35.
36. Se o importante da vida se desloca, se já não são nossos deveres para
com Deus, mas sim a atividade científica ou social do homem; se o homem busca
constantemente a si mesmo, em lugar de buscar a Deus, seu fim último, os fatos não
tardam a mostrar-lhe que ele se embrenha por uma via impossível, que conduz não
somente ao nada, mas à desordem insuportável e à miséria. É necessário voltar a esta
palavra do Salvador: Aquele que não é por mim é contra mim; e quem não junta
comigo dispersa (Mt XII, 30). Os fatos o confirmam.
37.
38. ***
39.
40. Segue-se dai que a religião só pode dar uma
resposta eficaz, verdadeiramente realista, aos grandes problemas atuais se ela é uma
religião profundamente vivida; não somente uma religião superficial, barata, que
consistiria em algumas orações vocais, e algumas cerimônias onde a arte religiosa teria
mais lugar do que a verdadeira piedade. Não há religião profundamente vivida sem
vida interior, sem essa conversa íntima e freqüente de cada um de nós não apenas
consigo mesmo, mas com Deus.
41.
42. Th. Vallgornera O.P. divide seu tratado Mystica Theologia divi
Thomae, escrito para as almas contemplativas em 1662, em três partes :
43.
44. 1º) Da via purgativa, própria aos iniciantes, onde trata da purificação
ativa dos sentidos externos e internos, das paixões, da inteligência e da vontade, pela
mortificação, meditação, oração, e, no fim, da purificação passiva dos sentidos, que é
como uma segunda conversão, onde começa a contemplação infusa; é a transição para a
via iluminativa.
45.
46. Este último ponto é capital nessa divisão, e está bem de acordo com dois
dos mais importantes textos de São João da Cruz: (Noite Escura, 1, I, cap. VIII): “A
purificação passiva dos sentidos é comum, ela se produz na maioria dos iniciantes”;
(Noite Escura, 1. I, cap. XIV): “Os que progridem, ou avançados, se encontram na via
iluminativa, é aí que Deus alimenta e fortifica a alma pela contemplação infusa”. Esta
última começa, segundo S. João da Cruz, com a purificação passiva dos sentidos, que
marca assim a transição da via dos iniciantes para a dos avançados.
47.
48. Vallgornera conserva aqui essa doutrina, como no que se segue.
49.
50. 2º) Da via iluminativa, própria aos que progridem, onde, depois de um
capítulo preliminar sobre as divisões da contemplação, fala dos dons do Espírito
Santo, da contemplação infusa, que procede sobretudo dos dons da inteligência e da
sabedoria. Ele declara que esta contemplação é desejável por todas as almas interiores
por ser moralmente necessária para a plena perfeição da vida cristã. Esta segunda parte
da obra, depois de alguns artigos relativos às graças extraordinárias (visões, revelações,
palavras interiores), finaliza por um capítulo de nove artigos sobre a purificação
passiva do espírito, que marca a passagem à via unitiva. É ainda o que tinha dito S.
João da Cruz (Noite Escura, 1. II, cap. II, XI).
51.
52. 3º) Da via unitiva, própria dos perfeitos, onde a questão é a íntima
união da alma contemplativa com Deus e seus graus até a união transformante.
53.
54. Vallgornera considera essa divisão como tradicional, verdadeiramente
conforme à doutrina dos Santos Padres, aos princípios de Sto. Tomás e ao ensino dos
maiores místicos, que escreveram sobre as três idades da vida espiritual, mostrando
como se faz geralmente a transição de uma à outra.
55.
56. ***
57.
58. Nessa primeira parte, depois de termos falado das fontes da vida interior,
trataremos de seu fim, isto é, da perfeição cristã àqual está ordenada, e da obrigação de
tendermos a ela, cada um segundo sua condição. Em todas as coisas, é necessário
considerar de início o fim, porque ele é o primeiro na ordem da intenção, embora seja o
último na ordem da execução. De início, queremos o fim, se bem que só o obtenhamos
em último lugar. É por isso que Nosso Senhor começou sua pregação falando das
beatitudes, e é por isso que a teologia moral também começa pelo tratado do fim último,
ao qual todos os nossos atos devem estar ordenados.
59.
60.
61. A VIDA DA GRAÇA É O COMEÇO DA VIDA ETERNA
62.
63. A vida interior do cristão supõe o estado de graça, que é contrário ao
estado de pecado mortal. E, no plano atual da Providência, toda alma se encontra ou em
estado de graça, ou em estado de pecado mortal; em outros termos, ela está ou voltada
para Deus, fim último sobrenatural, ou desviada d’Ele. Nenhum homem se acha em
estado puramente natural, porque todos são chamados ao fim sobrenatural, que consiste
na visão imediata de Deus e no amor que disso resulta. É para este fim supremo que a
humanidade foi ordenada desde o dia da criação, e, depois da queda, é em direção a este
fim que nos conduz o Salvador, que se ofereceu como vítima para a salvação de todos
os homens.
64.
65. Não basta, sem dúvida, para ter uma verdadeira vida interior, estar em
estado de graça, como uma criança após o batismo, ou todo penitente após a absolvição
de suas faltas. A vida interior pede, além disso, uma luta contra tudo o que nos leva a
recair no pecado, e uma séria tendência da alma para Deus. Mas, se tivéssemos um
profundo conhecimento do que é o estado de graça, veríamos que ele não é somente o
princípio de uma verdadeira vida interior muito santa, mas o germe da vida eterna.
Importa insistir nisso desde o começo, lembrando as palavras de Sto. Tomás: “Bonum
gratiae unius majus est quam bonum naturae totius universi”: o menor grau de
graça santificante vale mais do que o bem natural de todo o universo (I ª IIae., q. 113, a. 9,
ad 2); porque a graça é o germe da vida eterna, incomparavelmente superior à vida
natural da nossa alma ou à dos anjos.
66.
67. ***
68.
69. Mais claramente ainda, antes da Paixão, Jesus disse, como está relatado
em S. João, XVII, 3: “Pai, é chegada a hora, glorifica teu Filho, para que teu Filho te
glorifique a ti. Pois lhe deste poder sobre toda a criatura, para que ele dê a vida eterna a
todos aqueles que lhe deste. Ora, a vida eterna consiste em que te conheçam a ti,
um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, que enviaste”.
70. O próprio S. João Evangelista nos explica essas palavras do Salvador,
quando escreve: “Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou
ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos
semelhantes a Deus, porquanto o veremos como Ele é” (I Jo III, 2). Nós o veremos
tal como Ele é, e já não apenas pelo reflexo de suas perfeições nas criaturas, na natureza
sensível ou nas almas dos santos, que transparece em suas palavras e em seus atos; nós
o veremos imediatamente, tal como Ele é em si mesmo.
71.
72. São Paulo acrescenta: “Hoje vemos (Deus) como por um espelho,
confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então
conhecerei totalmente, como sou conhecido eu mesmo” (I Cor XIII, 12).
73.
74. Note-se que S. Paulo não diz: eu o conhecerei como eu próprio me
conheço, como conheço o interior de minha consciência. Certamente conheço esse
interior de minha alma melhor do que os outros homens, mas ele guarda segredos para
mim, não posso medir toda a gravidade de minhas faltas, direta ou indiretamente
voluntárias. Só Deus me conhece a fundo; os segredos de meu coração só são
perfeitamente descobertos sob seu olhar.
75.
76. Ora, diz São Paulo, então eu O conhecerei como sou conhecido por
Ele. Assim como Deus conhece a essência de minha alma e minha vida íntima sem
intermediário, eu O verei sem o intermédio de nenhuma criatura, e até, acrescenta a
teologia2, sem intermédio de nenhuma idéia criada. Nenhuma idéia criada, com efeito,
pode representar, tal como ele é em si, o puro clarão intelectual eternamente subsistente
que é Deus e sua verdade infinita. Toda idéia criada é finita, ela é um conceito de tal ou
tal perfeição de Deus, de seu ser, de sua Verdade ou de sua bondade, de sua sabedoria
ou de seu amor, de sua misericórdia ou de sua justiça. Mas esses diversos conceitos das
perfeições divinas são incapazes de nos fazer conhecer, tal como é em si, a essência
divina soberanamente simples, a Deidade ou a vida íntima de Deus. Esses conceitos
múltiplos são, em relação à vida íntima de Deus, à simplicidade divina, um pouco do
que são as sete cores do arco-íris em relação à luz branca de que procedem. Aqui em
baixo, somos como homens que só teriam visto as sete cores e que desejariam ver a luz
pura, que é sua fonte eminente. E, enquanto não virmos a Deidade tal como é em si,
não chegaremos a ver a íntima conciliação das perfeições divinas, em particular da
infinita Misericórdia e da infinita Justiça. Nossas idéias criadas a respeito dos atributos
divinos são como pequenas peças de mosaico que endurecem um pouco a fisionomia
espiritual de Deus. Quando pensamos em sua justiça, ela pode nos parecer rígida
demais, e, quando pensamos nas predileções gratuitas de sua misericórdia, elas podem
nos parecer arbitrárias. Refletindo sobre isso, dizemo-nos: mas, em Deus, justiça e
misericórdia estão fundidas, não há nenhuma distinção real entre elas. É verdade,
nós o afirmamos com certeza, mas não vemos ainda a íntima harmonia dessas
perfeições divinas. Para vê-Ia, seria necessário ver imediatamente, sem a intermediação
de nenhuma idéia criada, a essência divina tal como ela é em si mesma.
77.
78. Essa visão constituirá a vida eterna. Ninguém pode exprimir que alegria e
que amor resultarão dela em nós : amor de Deus tão forte, tão absoluto, que nada poderá
daí em diante, não somente destruí-lo, mas diminuí-lo; amor pelo qual nós nos
regozijaremos, sobretudo de que Deus seja Deus, infinitamente santo, justo,
misericordioso; nós adoraremos todos os decretos de sua Providência em vista da
manifestação de sua bondade. Teremos entrado em sua beatitude segundo a própria
expressão do Salvador: “Muito bem, servo bom e fiel, já que foste fiel no pouco, eu te
confiarei muito. Vem regozijar-te em teu senhor”, “intra in gaudium Domini tui”.
Nós veremos a Deus como Ele próprio se vê imediatamente, sem, entretanto, esgotar a
profundidade de seu ser, de seu amor e de seu poder, e nós O amaremos como Ele se
ama.
79.
80. Veremos também nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador.
81.
82. Tal é, essencialmente, a bem-aventurança eterna, sem falar na alegria
acidental que teremos ao ver e amar à Virgem Maria e a todos os santos, mais
particularmente as almas que tivermos conhecido durante nossa viagem sobre a terra.
83.
84. (Revista PERMANÊNCIA, 1980, novembro/dezembro, números
144/145 - Excertos da obra Les trois ages de la vie interieure — Les Éditions du Cerf
— Paris — 1951 — Trad. de Maria Teresa Hernandez.)

A escola francesa de espiritualidade

Discorrer sobre a escola francesa de espiritualidade equivale obviamente a


ordenar as coisas num contexto muito definido e, para usar o termo de Etienne Gilson,
“individual”. Quando muito descreve a fecunda espiritualidade que se fundamentara em
certas personagens francesas bem típicas. Quiçá as palavras dum francês como as do
filósofo do séc. XX Etienne Gilson sejam uma boa maneira de introduzir este artigo. Ele
faz uma observação importante, acerca dum tópico de espiritualidade mais amplo:

“O estudo da vida espiritual lida com a vida sobrenatural da alma cristã em


relação à sociedade e à união de amizade com Deus. A indigência do fato singular e de
sua história é o não serem científicos. Todavia, o fato singular torna-se grandioso
porque existe, e a dignidade eminente da história, ainda que só como conhecimento
duma notícia, deve-se a que ela abrange a existência individual. Demais, as vidas
espirituais reais são sempre coisas individuais que existem na realidade concreta, ou, se
as observarmos no correr da história, as coisas individuais sempre existiram de modo
concreto. O objeto desse conhecimento não apenas existe mas tem um valor infinito, de
forma que os problemas que ele suscita são importantíssimos”.

Chamada de “Escola Berulliana” por alguns, a Escola Francesa de


Espiritualidade refere-se a uma corrente espiritual na França do séc. XVII que deixou
marcas profundas até aos meados do séc. XX. Antes que adentremos no cerne do
assunto (os principais chefes e os seus princípios espirituais) será de bom alvitre
trazermos algum contexto para a espiritualidade do séc. XVII, apelidado de “le grand
siècle”.

Contexto histórico e espiritual


Ao ingressar no ano de 1600, a França goza duma relativa paz, após o término
da guerra civil e religiosa entre os católicos e os calvinistas franceses, chamados
“huguenotes”. Com a exceção da região nordeste do país, que ainda padece os
tormentos da Guerra dos Trinta Anos, a França vive em profunda paz, em meio a uma
prosperidade e com uma população jamais vistas noutros países. Uma classe média
instruída – a bourgeoisie –, juntamente com a nobreza, anseia por confrontar as
questões intelectuais. O Alto Clero de ordinário ocupa-se demais em conservar a
posição social, o clero regular sufoca-se com a administração de propriedades imensas,
e os párocos são na maioria ignorantes e grosseiros. A situação oferece muitas
oportunidades de melhoria que – veremos – os reformadores hão de aproveitar em todos
os níveis, quer entre o clero católico, quer entre os leigos, de molde a levar a Reforma
Tridentina a bom termo.
Decerto, o Concílio de Trento (1554-1563) promulgara alguns decretos que
acarretaram a Reforma Católica, em oposição à Revolução Protestante, a pretensa
“Reforma”. Embora levasse quarenta anos para que o Parlamento permitisse a
implementação dos decretos tridentinos, a França experimenta – sobretudo nos
primeiros sessenta anos após o Concílio – um período de fecundidade espiritual tão
pujante quanto a dos gloriosos tempos da cristandade medieval. Crescendo em paralelo
à escola francesa, as ordens tradicionais testemunham uma notável renovação do fervor.
Os Capuchinhos e os Dominicanos rejuvenescem. Os escritos e as congregações de São
Francisco de Sales popularizam as práticas espirituais. Outras congregações também
florescem, como a dos Jesuítas.

Além dos contextos histórico e eclesiástico, podemos identificar as principais


fontes da espiritualidade francesa nas influências em jogo no século anterior. A leitura
dos livros bíblicos tornou-se uma prática comum, e os ávidos leitores nutriam
preferências entre eles. Os discípulos de Bérulle insistiam em São Paulo e São João, já
os moralistas se concentravam nos livros sapienciais. Ainda assim, todos se imbuíam do
espírito dos salmos. Pseudo-Dionísio tem muita demanda entre os mestres espirituais,
mas também os místicos do Reno, como Tauler, Ruysbroeck e Canfield. Igualmente, lê-
se muito o clássico Imitação de Cristo.
Outra importante influência estrangeira vinha da Espanha. A Sra. Acarie,
conhecida como Maria da Encarnação, entretém um “salão” frequentado por espirituais,
dentre eles São Francisco de Sales e Olier. Ao lado de seu primo, Cardeal de Bérulle,
ela promove o catolicismo barroco da Espanha e institui o Carmelo reformado na
França, o que lhe vale o título de “Mãe do Carmelo em França”. Nesse século
centralizado na devoção ao Verbo Encarnado, o espírito de Santa Teresa d’Ávila e de
São João da Cruz exercem uma influência relevante.

Além da contribuição estrangeira, há uma abertura das mentes para a vida


espiritual. À elite da sociedade atraem as mais diversas congregações: os Capuchinhos,
o Carmelo, a Visitação recebem o patronato de rainhas e da alta nobreza, e chegam a
influenciar o Parlamento de Paris. A Sra. de Saint-Beuve funda as Ursulinas, dedicadas
ao ensino das meninas. Dom Mabillon e Claude Martin, filho da Sra. Acarie, exercem
uma influência marcante desde a Abadia de Saint German de Prés. Os Cistercienses da
Trapa recorrem a Bossuet, para que lhes faça retiros.

Os centros espirituais e as outras espiritualidades


Embora pertença ao séc. XVII, São Francisco de Sales (1567-1622) apresenta
um movimento original e distinto do da Escola Francesa, que cede aos seus encantos. A
espiritualidade do santo é sobretudo eclética e pragmática, de maneira que talvez a sua
amplitude e falta de sistematização contribuem para a sua influência duradoura entre as
gerações futuras. Essa influência sentir-se-á no decorrer do século e muito além, graças
aos seus escritos e à fundação da Visitação junto com Santa Joana de Chantal.
A Introdução à Vida Devota [ou Filoteia] oferece aos leigos o que costumava ser o
privilégio da clausura. Da mesma forma, o complemento a essa obra, o Tratado do
Amor de Deus, retrata a espiritualidade e a simplicidade da oração a partir de Santa
Teresa d’Ávila. O trabalho sobre as consciências pessoais, a fim de que elas façam tudo
por aprazer a Deus, demonstra o seu magistral papel como diretor espiritual, o primeiro
duma longa série de diretores que deram à espiritualidade francesa o seu caráter
psicológico e prático.
Outro importante movimento tem por capitão outra personalidade do início do
séc. XVII, São Vicente de Paulo (1581-1660), que consegue acesso ao círculo íntimo de
Luís XIV. Ele encarna as obras de “caridade” que, no séc. XVII, são entendidas como
uma manifestação natural da fé. A sua caridade se exerce antes de tudo no cuidado dos
pobres e dos doentes, que são legião na esteira dos trinta anos de guerras religiosas que
arruínam a região da Lorena e que por tabela impelem os refugiados a se despejarem em
Paris. Ao redor do santo criam-se múltiplas iniciativas: a fundação das Filhas da
Caridade, das Filhas da Providência, da Associação das Damas de Caridade etc. Ele
também presidiu a fundação dos Lazaristas, sacerdotes que se dedicam a áreas rurais,
pregando aos leigos e reconfortando os párocos. Mesmo em Paris, ele se envolve na
renovação do clero por meio das “Conférences du Mardi” [“Conferências da Terça-
Feira”], que agem qual um fermento para a formação dum clero de elite.
São Luís de Montfort (1673-1716) também é um importante ator nas correntes
de espiritualidade que convergem nesse século. Bretão de nascença, o futuro
missionário apostólico do Poitou e da Vendeia estuda no São Sulpício de Jean-Jacques
Olier, juntamente com seu confrade Claude Poulard de Places, fundador dos Padres do
Espírito Santo [ou Espiritanos]. São Luís também cria congregações: ele é o fundador
das Filhas da Sabedoria e dos Padres de Montfort, que se dedicam a pregar missões no
interior do país. Talvez ele nos seja mais conhecido como o autor de vários livros
marianos que ganharam renome apenas no séc. XIX.

A Escola Francesa
O que normalmente concordamos em chamar “Escola Francesa de
Espiritualidade” refere-se ao movimento do Oratório de França, criado por Bérulle. Esse
movimento inclui os “Quatro Grandes”, quais sejam, Cardeal Pierre de Bérulle, Charles
Condren, Jean-Jacques Olier e São João Eudes. Devemos agora contar-lhes, mesmo que
só de passagem, a história e o matiz específico que trouxeram à Escola.

Dirigido por São Francisco de Sales, que o pôs em contato com o Oratório de
São Felipe Néri, e instado pelo futuro arcebispo de Paris, Henri de Gondi – Bérulle
(1575-1629) forma uma pequena comunidade de padres na Rua Saint-Jacques no centro
de Paris e próximo ao convento das Carmelitas, da qual o fizeram diretor espiritual.
Junto a cinco companheiros que pronunciaram os votos de servidão a Jesus, ele ingressa
no Oratório em 1615, ano em que se promulgam oficialmente os decretos de Trento. Os
Oratorianos deram uma especial atenção à liturgia, de molde que os fiéis com
benevolência apelidaram-nos de “os padres que cantam belos hinos”. O Oratório vai ser
um instrumento basilar da Reforma Católica, pelo fomento às missões, pela formação de
escolas e pela criação de seminários.

O Berullismo é uma doutrina que se concentra em Cristo enquanto Verbo


Encarnado e rejeita qualquer espiritualidade que pretenda alcançar a essência divina à
margem de Jesus Cristo. Fundado numa teologia sadia, a sua espiritualidade ensina que
a união de Homem e Deus em Cristo é indissolúvel: enquanto Deus for Deus, Ele há de
ser homem”. Nisto Deus Se revela a Si para nós. O mistério da Encarnação é Jesus que
de Deus veio a nós e é o nosso caminho para Deus. Deus tornou-se homem, para que
Deus permeasse todos os aspectos humanos. Viver a espiritualidade da Encarnação nos
é “une humanité de surcroît” – um prolongamento da Sua humanidade. Precisamos
assim “aderir” ao Cristo, conformar-nos a Ele em todos os “estados” – esse é um termo
caro a Bérulle, que significa os vários estados que Cristo assumiu na vida, na morte, na
glória e no Santíssimo Sacramento. Conclui ele que precisamos renunciar-nos em
muitas coisas, para que enfim alcancemos o grau da servidão.
O bispo Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704) disseminará entre a massa a
doutrina de Jesus Cristo com as clássicas Elevações aos Mistérios: Meditações acerca
do Evangelho. E, a exemplo dos padres, o Oratório granjeia uma alta estima à
hierarquia, que há de contribuir com grande valimento para a santificação do clero, com
a criação dos seminários Sulpiciano e Eudista. Em suma, podemos dizer que a Escola
Francesa ou Berullismo se caracteriza por uma aguda consciência da grandeza de Deus,
da importância da Encarnação, do senso de Igreja e da necessidade do trabalho
apostólico.
Juntamente com Bérulle, Charles de Condren (1588-1641) acresce ao mestre a
mística da aniquilação. “O homem é capaz de todos os crimes”, se não lhe ajudar a
graça. Ele e Bérulle criam escolas para a elite, ao passo que São João Batista de la Salle
há de abrir escolas primárias para os destituídos.

Temos de inserir nessa mesma escola de pensamento Jean-Jacques Olier (1608-


1657). Ele é menos abstrato e mais realista que Condren e, pela criação da Companhia
de São Sulpício, torna-se um dos melhores instrumentos para a infusão duma elevada
espiritualidade sacerdotal, provendo um ideal de vida e oração. Todas as grandes
escolas de espiritualidade cristã são cristocêntricas; não obstante, o caráter próprio da
Escola Francesa é o convite à alma, segundo Olier, para que ela conserve “a Jesus
diante dos olhos, a Jesus no coração, a Jesus entre as mãos”.

São João Eudes (1601-1680), após vinte anos de Oratório, deixou-o em 1643.
Assim como Bérulle, a fim de auxiliar a alma cristã a penetrar “no interior dos mistérios
de Cristo”, ele a recorda das promessas do batismo e, sob forma litúrgica, das devoções
medievais, quais sejam, o Coração de Maria e o Coração de Jesus. Para ele, precisamos
permitir que o Espírito Santo “informe Jesus em nós, prolongue a Sua vida na terra”. A
liturgia da festa do Sagrado Coração, que ele instituiu, diz: “Enquanto estivermos no
mundo, dignai-vos que vivamos em Vós... e transformai-nos num outro Jesus na terra”.
Sem dúvida, no século anterior havia livros de oração e meditação, mas o séc.
XVII testemunha um acúmulo crescente de métodos de oração, baseados na vida de
Cristo, segundo o espírito de Santa Teresa d’Ávila e dos Oratorianos. Na esteira da
Reforma Tridentina da Missa e do Breviário, Bérulle e os seus amigos desenvolvem
muitíssimo o espírito litúrgico. Esse estímulo acarreta um renovo da devoção à
Santíssima Eucaristia, em virtude da adoração recém introduzida à Real Presença, uma
nova prática estimulada pela Companhia do Santíssimo Sacramento. A devoção ao
Sacratíssimo Coração dissemina-se por toda parte, após as aparições a Santa Margarida
Maria em Paray-le-Monial, com o auxílio de Jesuítas, como São Cláudio de la
Colombière e Lallemant. Esse é um dos melhores meios de contrapor a influência
incomoda e prejudicial dos jansenistas de Port-Royal.

Nessa devoção ao Sagrado Coração, encontramos um sumário da


espiritualidade convergente à Encarnação; a insistência na devoção ao coração de carne
de Nosso Senhor, nos sofrimentos que Ele revela e impõe aos Seus adoradores, na
necessidade de reparação pelos nossos pecados, embora não fosse novidade, são objetos
duma poderosa promoção. Assim sendo, juntamente com as duradouras instituições para
o clero e as missões, estamos no pleno direito de afirmar que a Escola Francesa de
Espiritualidade do séc. XVII imprimiu uma marca indelével até aos dias atuais na vida
espiritual dos católicos, não apenas em França mas também na Europa e no novo
mundo.

(The Angelus, Março de 2020)

A leitura espiritual

Pe. Reid Hennick, FSSPX


Se há uma coisa cuja especial necessidade as condições modernas geraram, é
a prática frequente da leitura espiritual
Assim escreveu o abade cisterciense Eugene Boylan em 1946, em This
Tremendous Lover, ao analisar o colapso da infraestrutura espiritual do mundo. Embora
ler ou outra forma de instrução sempre ter sido necessário, ele prossegue:
a instrução oral, a opinião comum dos homens, o exemplo do próximo e as
tendências da vida em geral têm um papel menor na formação e instrução dos católicos
que em épocas passadas. As pessoas não vão mais ouvir sermões como antigamente;
não se fala mais sobre religião, ao menos não com seriedade; nossos próximos,
frequentemente, têm ideais longe de serem católicos – se é que eles têm algum ideal; e
há pouco ao nosso redor que seja de auxílio direto para nos incitar ou nos ajudar a
encontrar Deus
Em suma, ao deixar Deus de fora, nosso novo ambiente não é capaz de nada
além de nos afastar d'Ele. Ele é positivamente inóspito ao crescimento espiritual. De
nossa parte, portanto, “há uma necessidade urgente de fazer esforço pessoal para
restaurar o equilíbrio, mantendo as realidades da eternidade em nossas mentes”
(Boylan)

A leitura espiritual é o corretivo requerido. Na verdade, para o católico


educado,

é quase essencial para seu progresso, senão para sua salvação. Para nossas
mentes, essa prática está no mesmo nível de importância da oração mental e de outros
exercícios devocionais, e ela, na verdade, está tão ligada a esses outros exercícios,
especialmente o essencial de oração mental, que, sem ela – a não ser que se encontre
um substituto – não há possibilidade de avançar na vida espiritual; até mesmo a
perseverança na vida espiritual torna-se muito duvidosa (Boylan)
A leitura espiritual, portanto, pede esforço para a “assídua e atenta leitura de
livros espirituais” (cf. Antonio Royo Marín, A Teologia da Perfeição Cristã). Ela
demanda uma concentração distinta.

O maior impecilho

Das várias forças em questão quando se trata de nosso afastamento do divino,


algumas são particularmente corrosivas. Na visão do abade quando escrevia, tinha um
papel central nelas o jornal. Ele baseava sua análise tanto no conteúdo, quanto na
própria estrutura da mídia em si: “… uma longa série de itens que dificilmente seriam
mais eficientes para atrair atenção e concentração para este mundo e as coisas deste
mundo” Embora se possa questionar a veracidade de muito do que é publicado,
“dificilmente se pode negar que o que é publicado é apresentado de modo a capturar a
imaginação do leitor” (Boylan)

A era da informação revelou a verdadeira extensão dessa crítica. De fato, da


perspectiva do Século XXI, o poder cativante do jornal é irrelevante quando comparado
com a torrente audiovisual do WhatsApp, Twitter, Instagram, YouTube e Netflix. Não
há nada mais subversivo para a vida de recolhimento que esse aparato do Vale do
Silício. Novamente, assim como o conteúdo destruidor de almas, o próprio método de
apresentação destrói a alma.

Os ingredientes do pensamento

Para aferir adequadamente os perigos aqui, devemos estar atentos à nossa


configuração psicológica. Nesse tocante, as visões de Platão e Aristóteles são
indispensáveis.

O homem é um animal racional. Ainda nesse sentido: há uma certa dualidade


em sua natureza. Como ele é racional, sua mente lida com universais – objetos
intangíveis do pensamento; como ele é um animal, seus sentidos lidam com singulares –
impressões materiais do aqui e do agora. Independentemente disso, sua experiência
cognitiva é profundamente unificada. Seu intelecto pode transcender os meros dados
sensitivos e descobrir o sentido das coisas em si mesmas, e esse pensamento sempre
está auxiliado pelos sentidos. Aqui reside a importância da imaginação.

A imaginação alimenta o pensamento. É nosso depósito de singulares, nossa


plantação de divagações pré-articuladas. Uma imaginação ordenada e domada facilita as
investigações da mente; uma imaginação frenética e sobrecarregada as inibe. Enquanto
as experiências orgânicas, estáveis da vida deixam uma impressão benévola na
imaginação, os enredamentos constantes e artificiais da mídia moderna a estrangulam,
de modo a ficar submissa. Uma vez submetida, a imaginação – e, portanto, a mente –
torna-se um território ocupado. Sugestões impróprias e inoportunas moldam a
consciência e endurecem nossos pensamentos, inclinados a Deus por natureza, ao calor
do momento presente. Assim, tornamo-nos prisioneiros do plano dos singulares.

Qual é “a fonte de todos os males e erros da vida intelectual hoje?” (Boylan) É


a perda da habilidade de pensamento abstrato deliberado e prolongado. Isso não
significa que não pensamos mais, mas que, devido a uma imaginação superestimulada,
pensamos dentro de uma névoa de distrações. Nós somos, como T.S. Elliot dizia, “…
distraídos da distração pela distração” (.. Burnt Norton”)

De quem é a culpa?

Seria isso uma consequência inevitável de viver na era da informação? Seria


isso “a morte do espírito… o preço do progresso?” (Eric Voegelin, A Nova Ciência da
Política) Não! Nós não somos míseras vítimas infelizes das circunstâncias. O que o Pe.
Francis Remler pensava sobre o sofrimento em geral aplica-se às nossas moléstias
modernas:

Não temos dúvida de que provavelmente a metade, senão mais, das misérias de
nossos tempos desapareceriam rapidamente da face da terra se as pessoas,
universalmente, fossem induzidas a cumprir fielmente apenas duas condições: que elas
vivam de acordo com os ditames da razão reta e do bom senso, observando as leis
fundamentais da saúde e do bem estar, e que elas façam um esforço sincero de moldar
sua conduta moral de acordo com os Dez Mandamentos e as máximas do Evangelho
(Why Must I Suffer?)
Verdade seja dita, nossas indiscrições passadas bastam para explicar nossa
imaginação sabotada no presente. Nossas compulsões indesejadas realmente são
inexplicáveis? Será que nossas ansiedades e temores sobre o futuro não têm alguma
relação com a leitura desses sites que só anunciam desgraças? Será que nossa mania de
buscar defeitos em nós mesmos não tem a ver com fofoca e o uso de redes sociais?
Nossas fantasias com programas de TV sexualmente sugestivos? Será, ao menos, que
nossa névoa mental não tem algo a ver com um fluxo ininterrupto de mensagens de
textos?
O trauma autoinfligido decorrente de tratarmos como nossos superiores esses
dispositivos dispensadores de distrações é óbvio. Recusar-nos a modificar nosso
relacionamento com a mídia moderna é um patente abandono do dever, tanto natural
quanto sobrenatural. Se não pudermos nos desconectar da matrix completamente,
devemos ajustar nosso comportamento nela. Isso é obrigatório, um sine qua non, se
queremos adotar a prática da leitura espiritual, ou alguma outra que gerará frutos. Pois a
leitura espiritual, por si mesma, não pode abafar essa cacofonia toda. A imersão
imoderada na mídia moderna
produz um desgosto, não apenas pelas coisas que realmente importam, mas
também pelo estilo e modo nos quais essas coisas são apresentados nos livros
espirituais. O resultado é que, quando alguém, por um esforço, força a si mesmo a
abrir um livro espiritual, é necessário um esforço ainda maior para o manter aberto, e
não fechá-lo com um bocejo (Boylan)
Sacudir-nos e sair dessa inércia – na realidade, um efeito colateral da
intemperança – não é fácil. (Ah, se ao menos tivéssemos apetite por outra coisa!) Ainda
assim, a leitura espiritual, aquela atividade que, no início, achamos tão desgostosa,
contém, em si, o impulso de que necessitamos tão desesperadamente.

O antídoto

Santo Tomás de Aquino ensina que: “… o remédio mais eficiente contra a


intemperança é não mergulhar na consideração dos singulares” (IIa IIae, q. 142, a.3).
Portanto, devemos “focar no oposto dos singulares – nomeadamente, os universais”
(Kevin Vost, The One-Minute Aquinas). Em outras palavras, nós temos êxito em
contrabalancear nossa imaginação complacente ao cultivar, ao invés, a vida da mente.
Atingimos isso através da leitura espiritual, pois, de todas as ocupações,

aquelas de tipo intelectual são particularmente aptas a controlar a


sensualidade. A razão é que a aplicação de uma faculdade enfraquece o exercício de
outras faculdades, além do fato de que atos intelectuais removem das paixões sensuais
o objeto que as alimenta (Jordan Aumann, Spiritual Theology)
A imaginação adora os singulares. Ela adora essas recompensas imediatas
sensuais e, se desinibida, entrega-se ao nosso hábito de mergulhar cada vez mais nesses
canais de diversão. Ainda assim, esses desvios nunca levam a um destino
verdadeiramente feliz. Em contraste, embora os prazeres decorrentes da leitura
espiritual sejam, sem sombra de dúvidas, menos emocionantes, eles trazem uma
recompensa infinitamente maior. Pois eles alimentam as necessidades mais profundas
da mente. A leitura espiritual nos leva ao reino dos universais. Ela fortalece ruminações
do verdadeiro, do bom e do belo, independentemente de nossos apetites impacientes.
Ela nos ajuda a transcender o importunante momento presente e a ter todas as
experiências que apontam para a eternidade. Nós, católicos, lemos

para manter o sobrenatural em nossas mentes, para desenvolver e manter o


senso de realidade das coisas que conhecemos pela fé, para manter nossa atenção na
vida eterna de nossa alma ao invés de nossos interesses temporais, e, acima de tudo,
para manter viva, em nós, a memória e presença de Nosso Senhor, para que possamos
viver em união com Ele, falando com Ele, trabalhando com Ele, descansando com Ele,
sempre rezando a Ele e n'Ele (Boylan)

O que acontecerá?

Como Dom Boylan deu a entender fortemente há mais de 70 anos, em nossos


tempos, a leitura espiritual é uma prática mais de preceito que de conselho. Mas cumprir
esse preceito envolve mais do que ter um livro nas mãos.

Como era Seu costume quando pregava, Nosso Senhor vem a nós

Não em uma cidade ou em um fórum, mas em uma montanha e no deserto;


instruindo-nos a … separar-nos dos tumultos da vida ordinária, e isso de modo especial
quando vamos estudar a sabedoria” (São João Crisóstomo, Homilias sobre Mateus)
A leitura espiritual tanto requer quanto possibilita nossa separação do
mundano, nossa rejeição ativa de “tudo que inibe as afeições da mente de tender
integralmente a Deus” (IIa IIae, q.184, a.2) Na mesma vertente, São Paulo nos exorta:
“Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é
justo, tudo o que é santo, tudo o que é amável, tudo o que é de bom nome, qualquer
virtude, qualquer coisa digna de louvor da disciplina, seja isto o objeto dos vossos
pensamentos” (Fl 4,8)

… Nenhum homem pode servir a dois senhores” (Mt 6,24) Então o que é mais
provável que “guarde os vossos corações e os vossos espíritos em Jesus Cristo” (Fl 4,7):
o Novo Testamento, ou a Netflix? Porque não pode ser os dois.

A Missa e a morte

Podemos aprofundar-nos, de modo abstrato e especulativo, na doutrina cristã e


católica do sacrifício da missa; igualmente, podemos fazê-lo de modo concreto e vivido,
unindo-se à oblação do Salvador de forma pessoal e, mais particularmente, fazendo por
antecipação o sacrifício da própria vida, para obter a graça de uma morte santa.
***
Mais que ninguém, Maria associa-se ao sacrifício de seu Filho, participando de
todos os seus sofrimentos, na medida de seu amor por Ele.

Os santos ― em especial, os estigmatizados ― uniram-se extraordinariamente


aos sofrimentos e méritos do Salvador, um São Francisco de Assis, uma Catarina de
Sena, por exemplo; mas, quão profunda tenha sido tal união, fora contudo pouco em
comparação a de Maria. Por um conhecimento experimental dos mais íntimos e pela
grandeza de seu amor, Maria ao pé da Cruz penetrou as profundidades do mistério da
Redenção, mais que São João, mais que São Pedro, mais que São Paulo. Ela penetrou
ali na medida da plenitude de graça que recebera, da sua fé, do seu amor, dos dons de
inteligência e sabedoria que possuía em grau proporcionado à sua caridade.

A fim de entrarmos um pouco nesse mistério, aprendendo dele lições práticas


que nos permitam preparar-nos para uma boa morte, pensemos no sacrifício que
devemos fazer durante nossa vida, em união com Maria, ao pé da Cruz.

Freqüentemente, exortamos os moribundos a fazer o oferecimento de suas


vidas, para dar um valor de expiação, de mérito e de impetração aos seus sofrimentos
derradeiros. Freqüentemente, os Soberanos Pontífices ― em particular, [São] Pio X ―
convidaram os fiéis a oferecer por antecipação os sofrimentos ― quiçá atrozes ― do
último instante, para assim bem se disporem a oferecê-los com um coração mais
generoso à hora da morte.

Mas para que se faça, desde agora, o sacrifício de nossa vida, é mister fazê-lo
em união com o sacrifício do Salvador perpetuado sacramentalmente no altar, durante a
Missa, e em união com o sacrifício de Maria, Medianeira e Co-redentora. E para bem
observar tudo o que tal oblação deve conter, convém lembrar-se aqui dos quatro fins do
sacrifício: a adoração, a reparação, a suplicação e a ação de graças. Consideramo-las
sucessivamente, examinando as lições que trazem.

Adoração

Jesus sobre a Cruz fizera de Sua morte sacrifício de adoração. Fora a mais
perfeita realização do preceito do decálogo: “Adorarás o Senhor, teu Deus, prestar-lhe-
ás o teu culto e só jurarás pelo seu nome” (Dt 6, 13). É com essa palavra divina que
Jesus respondeu a Satã, que lhe dissera: “Dar-Te-ei todos os reinos do mundo, se Tu te
prostrares perante mim para me adorares, si cadens adoraveris me”.

A adoração é devida a Deus somente, por causa de sua excelência soberana de


Criador ― já que somente Ele é o mesmo Ser, eternamente subsistente, a mesma
Sabedoria, o mesmo Amor. A adoração que Lhe é devida há de ser, por sua vez, exterior
e interior, inspirada pelo amor; deve ser adoração em espírito e verdade.

Jesus ofereceu a Deus uma adoração de valor infinito, no Getsemani, ao


prostrar a face contra a terra, dizendo: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este
cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres” (Mt 26, 39). Essa
adoração reconhece pratica e profundamente a excelência soberana de Deus, mestre da
vida e da morte; de Deus que, pelo amor do Salvador, queria fazer servir a morte, pena
do pecado, à reparação do pecado e nossa salvação. Há neste decreto eterno de Deus
― que contém toda a história do mundo ― uma excelência soberana, reconhecida pela
adoração no Getsemani.
A adoração do Salvador continua sobre a Cruz ― e Maria se associa a ela, na
medida da plenitude da graça que recebera e que não cessara de aumentar. Ao momento
da crucificação de seu Filho, ela adorara os decretos de Deus, autor da vida, que fizera
da morte de seu Filho inocente reparação do pecado, para o bem eterno das almas.

Adoremos Deus, em união com Nosso Senhor e sua Santa Mãe, e digamos de
todo coração, como nos insta S. S. [São] Pio X: “Senhor, meu Deus, a partir de hoje, de
coração tranqüilo e submisso, aceito de vossa mão o gênero de morte que vos agradará
me enviar, com todas as suas angústias, todas as suas penas e todas as suas dores”.

Todo aquele que, uma vez na vida e no dia de sua escolha, tiver recitado esse
ato de resignação após a confissão e a comunhão, ganhará uma indulgência plenária que
se lhe aplicará à hora da morte, conforme a pureza da consciência. Mas é recomendável
repetir a cada dia esse sacrifício, para assim nos prepararmos a fazer de nossa morte, no
instante derradeiro, em união com o sacrifício do Cristo continuado em substância sobre
o altar, um sacrifício de adoração, considerando o domínio soberano de Deus, a
majestade e a bondade Daquele “que conduz a profundos abismos e deles tira
― Dominus mortificat et vivificar, deducit ad inferos et reducit” (Dt 32, 39; Tb 13, 2;
Sb 14,13). Essa adoração de Deus, mestre da vida e da morte, se pode fazer de modos
bem diferentes, conforme as almas sejam mais ou menos esclarecidas: não é realmente
melhor unir-se desta feita, a cada dia, ao sacrifício de adoração do Salvador?

Sejamos desde agora adoradores em espírito e verdade; que a adoração seja tão
sincera e profunda que se reflita verdadeiramente em nossa vida e nos disponha àquela
que devemos possuir no coração no instante final.

Reparação

Outro fim do sacrifício é a reparação da ofensa feita a Deus pelo pecado, e a


satisfação da pena devida pelo pecado. Devemos fazer de nossa morte um sacrifício
propiciatório: a adoração dever ser, a bem dizer, reparadora.
Nosso Senhor satisfez de modo superabundante por nossas faltas, porque,
como diz Santo Tomás (IIIª q. 48, a. 2), ao oferecer sua vida por nós, fizera um ato de
amor que mais agradava a Deus do que o aborreciam todos os nossos pecados
reunidos. Sua caridade foi muito maior que a malícia dos algozes; possuía um valor
infinito tirado da personalidade do Verbo.

Ele satisfez por nós, que somos os membros de Seu Corpo Místico. Mas como
a causa primeira não torna inúteis as causas segundas, o sacrifício do Salvador não torna
inútil o nosso, mas o suscita e lhe confere valor. Maria deu-nos o exemplo ao unir-se
aos sofrimentos de seu Filho; assim, satisfez por nós, a ponto de merecer o título de Co-
redentora.

Ela aceitou o martírio de seu Filho ― não apenas querido, mas legitimamente
adorado ― que amava com coração afetuosíssimo, desde que o concebera
virginalmente.

Com heroísmo ainda maior que o do patriarca Abraão, pronto a imolar seu
filho Isaac, Maria, ao oferecer seu Filho por nossa salvação, viu-o realmente morrer
com atrocíssimos sofrimentos físicos e morais. Não veio nenhum anjo para impedir a
imolação e dizer a Maria, tal como ao patriarca, em nome do Senhor: “agora Eu sei que
temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único”. (Gn 22, 12);
Maria viu realizar-se efetiva e plenamente o sacrifício reparador de Jesus, e em face ao
qual o de Isaac não era senão a figura em preâmbulo. Ela sofreu então o pecado na
medida de seu amor por Deus, a quem o pecado ofende; por seu Filho, a quem o pecado
crucificava; por nossas almas, a quem o pecado corrompe e mata. A caridade da Virgem
ultrapassava incomensuravelmente a do patriarca; e nela, ainda mais que nele,
realizaram-se as palavras que este escutara: “pois que fizeste isto, e não me recusaste
teu filho, teu filho único, Eu te abençoarei. Multiplicarei a tua posteridade como as
estrelas do céu” (Gn, 22, 16-17).

Ora, como o sacrifício de Jesus e de Maria foi sacrifício de propiciação ou


reparação pelo pecado, de satisfação da pena devida pelo pecado, façamos do sacrifício
de nossa vida uma reparação de todas as nossas faltas; peçamos desde agora que nosso
último instante tenha um valor meritório e expiatório, e peçamos a graça de fazer este
sacrifício com grande amor, o que lhe dobrará o valor. Sejamos contentes de pagar essa
dívida à justiça divina para que a ordem seja-nos plenamente restabelecida. E se, com
tal espírito, nós nos unirmos intimamente às missas que se celebram todos os dias, à
oblação sempre viva ao Coração do Cristo ― oblação que é a alma dessas missas ―
então alcançaremos a graça de nos unirmos do mesmo modo no derradeiro instante. Se
essa união de amor a Cristo Jesus for cada dia mais íntima, a expiação do Purgatório nos
será claramente abreviada; poderá mesmo acontecer de recebermos a graça de fazer
nosso Purgatório totalmente sobre a terra, crescendo em amor e mérito, em vez de fazê-
lo após a morte, sem mérito.

Suplicação

O moribundo não deve fazer da morte somente um sacrifício de adoração e


reparação, mas também um sacrifício impetratório ou de suplicação, em união com
Nosso Senhor e Maria.

São Paulo escreve aos Hebreus (5, 7): “[Cristo Jesus] nos dias de sua vida
mortal, dirigiu preces e súplicas, entre clamores e lágrimas (...) e foi atendido pela sua
piedade (... ) tornou-se autor da salvação eterna para todos os que Lhe
obedecem”. Recordemo-nos da prece sacerdotal do Cristo após a Ceia e antes do
sacrifício da Cruz: Jesus então rezou por seus apóstolos e por nós... “porque vive sempre
para interceder em seu favor” (Hb 7, 25). Particularmente, durante o sacrifício da
missa, onde Ele é o principal sacerdote.

Jesus, que rogara por seus algozes, roga pelos moribundos que se recomendam
a Ele. Com Ele, a Virgem Maria intercede, recorda-se do que nós muitas vezes lhe
pedimos: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa
morte”.

O moribundo deve associar-se às missas que se celebram naquele instante


longe ou perto dele; deve solicitar por meio delas, por meio da grande oração do Cristo,
que nelas se prolonga, a graça da boa morte ou da perseverança final — a graça das
graças, a dos eleitos. Convém que se suplique não apenas para si, mas para todos os que
morrem àquele momento.

Para nos dispormos desde agora a fazer esse ato de suplica na hora derradeira,
oremos com freqüência, ao assistir à Santa Missa, por aqueles que vão morrer no correr
do dia. Conforme a recomendação de S. S. Bento XV, façamos celebrar uma missa de
vez em quando para obter, através desse sacrifício de suplica de valor infinito, a graça
da boa morte ou a aplicação dos méritos do Salvador. Façamos também celebrar
algumas missas por alguns de nossos parentes e amigos que nos causaram inquietação
acerca de sua salvação, para lhes obter a graça derradeira, e por aqueles que teríamos
escandalizado e talvez distanciado do caminho de Deus.

A ação de graças

Enfim, cada qual deveria fazer de sua morte, em união com Nosso Senhor e a
Virgem Maria, um sacrifício de ação de graças, por todos os benefícios recebidos desde
o batismo, rememorando quantas absolvições e comunhões nos remiram ou guardaram
no caminho da salvação.

Jesus fizera de sua morte um sacrifício de ação de graças, ao dizer:


“Consummatum est — Está consumado” (Jo 19, 30); Maria disse o “Consummatum
est” junto com Ele. Tal forma de oração, que permanece na missa, não acabará, mesmo
quando for dita a última missa, no fim do mundo. Quando não houver mais sacrifício
propriamente dito, haverá sua consumação, e nela haverá sempre a adoração e a ação de
graças dos eleitos que, unidos ao Salvador e a Maria, cantarão o Sanctus com os anjos e
glorificarão a Deus, louvando-o.

Essa ação de graças é admiravelmente expressa pelas palavras do ritual que o


padre profere à cabeceira dos moribundos, após dar-lhes a derradeira absolvição e o
santo viático: “Proficiscere, anima christiana, de hoc mundo...: Saí deste mundo, alma
cristã, em nome de Deus Pai Todo-poderoso, que vos criou; em nome de Jesus Cristo,
Filho de Deus vivo, que sofreu por vós; em nome da gloriosa e santa Mãe de Deus, a
Virgem Maria; em nome do bem-aventurado José, seu esposo predestinado; em nome
dos Anjos e Arcanjos; em nome dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos
Mártires; em nome de todos os Santos e Santas de Deus. Que hoje vossa habitação seja
na paz, e vossa morada na Jerusalém celeste, por Jesus Cristo Nosso Senhor”.

Concluindo, repitamos freqüentemente, a fim de lhe conferir todo seu valor, o


ato recomendado por S. S. [São] Pio X, e roguemos a Maria a graça de fazer de nossa
morte um sacrifício de adoração, de reparação, de suplicação e de ação de graças.
Quando assistirmos os moribundos, exortemo-los ao sacrifício, a associar-se às missas
que então se celebrem. E desde agora, por antecipação, façamo-lo nós mesmos,
renovemo-lo com insistência a cada dia, como se fosse o último; desta feita, disporêmo-
nos a fazê-lo habilmente no momento supremo: então saberemos que “Deus conduz a
profundos abismos e deles tira”; nossa morte será como que transfigurada; apelaremos
ao Salvador e a Sua Santa Mãe para que nos venha levar, concedendo-nos a graça
derradeira, que nos assegurará definitivamente a salvação, através de um último ato de
fé, de confiança e de amor.

(Tradução: Permanência. Originalmente publicado em La vie spirituelle nº 194,


nov. 1935)
Traduzido a partir de www.salve-regina.com

A mortificação cristã

Nota: Todas as práticas de mortificação que reunimos aqui são recolhidas dos
exemplos dos santos, especialmente Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Santa
Teresa, São Francisco de Sales, São João Berchmans, ou são recomendadas por
reconhecidos mestres da vida espiritual, como o Venerável Louis de Blois, Rodriguez,
Scaramelli, Abade Allemand, Abade Hamon, Abade Dubois, etc.
Artigo 1 – Objeto da mortificação cristã

A mortificação cristã tem por fim neutralizar as influências malignas que o


pecado original ainda exerce nas nossas almas, inclusive depois que o batismo as
regenerou. Nossa regeneração em Cristo, ainda que tenha anulado completamente o
pecado em nós, nos deixa sem embargo muito longe da retidão e da paz originais. O
Concílio de Trento reconhece que a concupiscência, ou seja, o triplo apetite da carne,
dos olhos e do orgulho, se deixa sentir em nós, mesmo depois do batismo, a fim de
excitar-nos às gloriosas lutas da vida cristã (Conc. Trid., Sess. 5, Decretum de pecc.
orig.).

A Escritura logo chama esta tripla concupiscência de “homem velho“, oposto


ao “homem novo” que é Jesus que vive em nós e nós mesmos que vivemos em Jesus,
como “carne” ou natureza caída, oposta ao “espírito” ou natureza regenerada pela graça
sobrenatural. Este velho homem ou esta carne, ou seja, o homem inteiro com sua dupla
vida moral e física, deve ser, não digo aniquilado, porque é coisa impossível enquanto
dure a vida presente, mas sim mortificado, ou seja, reduzido praticamente à impotência,
à inércia e à esterilidade de um morto; há que impedir-lhe que dê seu fruto, que é o
pecado, e anular sua ação em toda a nossa vida moral.

A mortificação cristã deve, portanto, abraçar o homem inteiro, estender-se a


todas as esferas de atividade nas quais a natureza é capaz de mover-se. Tal é o objeto da
virtude de mortificação. Vamos indicar sua prática, recorrendo sucessivamente às
manifestações múltiplas de atividade em que se traduz em nós:

I) A atividade orgânica ou a vida corporal;

II) A atividade sensível, que se exerce seja sob a forma do conhecimento


sensível pelos sentidos exteriores ou pela imaginação, seja sob a forma de apetite
sensível ou de paixão;

III) A atividade racional e livre, princípio dos pensamentos e dos juízos, e das
determinações da nossa vontade;

IV) Consideraremos a manifestação exterior da vida da alma, ou as ações


exteriores;

V) E, finalmente, o intercâmbio das relações com o próximo.

Artigo 2 – Exercício da mortificação cristã


A. Mortificação do corpo

1º Limite-se, tanto quanto possa, em matéria de alimentos, ao estritamente


necessário. Medite estas palavras que Santo Agostinho dirigia a Deus: “Tu me ensinaste
a considerar os alimentos como remédios. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar
às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e
deve engrandecer teu nome” (Confissões, liv. X, cap. 31);

2º Rogue a Deus com freqüência, rogue a cada dia que lhe impeça, com sua
graça, de transpassar os limites da necessidade, ou deixar-se levar pelo atrativo do
prazer;

3º Não coma nada entre as refeições, a menos que haja alguma necessidade ou
razões de conveniência;

4º Pratique a abstinência e o jejum, mas os pratique somente sob obediência e


com discrição;

5º Não é proibido experimentar satisfação corporal, mas o faça com intenção


pura, bendizendo a Deus;

6º Regule o sono, evitando nisto toda relaxação ou moleza, sobretudo pela


manhã. Se puder, fixe uma hora para se deitar e levantar, e se obrigue a ela
energicamente;

7º Em geral, não descanse senão na medida do necessário; entregue-se


generosamente ao trabalho, e não meça esforços e penas. Tenha cuidado para não
extenuar o corpo, mas guarde-se também de agradá-lo: quando sentir que ele está
disposto a rebelar-se, por pouco que seja, trate-o como a um escravo;

8º Se sente alguma ligeira indisposição, evite irritar-se com os demais por seu
mau humor; deixe aos seus irmãos o cuidado de queixar-se; pelo que lhe cabe, seja
paciente e mudo como o divino Cordeiro que levou verdadeiramente todas as nossas
enfermidades;
9º Guarde-se de pedir uma dispensa ou revogação da ordem do dia pelo
mínimo mal-estar. “Há de se fugir como da peste de toda dispensa em matéria de
regras“, escrevia São João Berchmans;

10º Receba docilmente, e suporte com humildade, paciência e perseverança a


penosa mortificação que se chama doença.

B. Mortificação dos sentidos, da imaginação e das paixões

1º Feche os olhos, diante de tudo e sempre, a todo espetáculo perigoso, e


inclusive tenha a valentia de fechá-los a todo espetáculo vão e inútil. Veja sem olhar;
não se fixe em ninguém para discernir a beleza ou a feiura;

2º Mantenha os ouvidos fechados às palavras bajuladoras, aos louvores, às


seduções, aos maus conselhos, às maledicências, às zombarias que ferem, às
indiscrições, à crítica malévola, às notícias sobre suspeitas, a toda palavra que possa
causar o menor esfriamento entre duas almas;

3º Se o sentido do olfato tem de sofrer algo por consequência de certas doenças


ou debilidades do próximo, longe de queixar-se disso, suporte-o com uma santa alegria;

4º No que concerne à qualidade dos alimentos, tenha muito respeito pelo


conselho de Nosso Senhor: “Comei o que vos for apresentado”. “Comer o que é bom
sem comprazer-se nisto, o que é mau sem mostrar aversão, e mostrar-se indiferente
tanto em um como no outro, esta é a verdadeira mortificação”, dizia São Francisco de
Sales;

5º Ofereça a Deus as refeições, imponha-se à mesa uma pequena privação: por


exemplo, negue-se uma pitada de sal, um copo de vinho, uma guloseima, etc.; os demais
não perceberão, mas Deus levará em conta;
6º Se o que lhe apresentam excita vivamente a atração, pense no fel e no
vinagre que apresentaram a Nosso Senhor na cruz: isto não lhe impedirá de saborear o
manjar, mas servirá de contrapeso ao prazer;

7º Há de se evitar todo contato sensual, toda carícia em que se poria certa


paixão, em que se buscaria ou teria um gozo sobretudo sensível;

8º Prescinda de ir aquecer-se, a menos que lhe seja necessário para evitar uma
indisposição;

9º Suporte tudo o que aflige naturalmente a carne; especialmente o frio do


inverno, o calor do verão, a dureza da cama e todas as incomodidades do gênero. Faça
boa cara em todos os tempos, sorria a todas as temperaturas. Diga com o profeta: “Frio,
calor, chuva, bendizei ao Senhor”. Felizes somos se podemos chegar a dizer com gosto
esta frase tão familiar a São Francisco de Sales: “Nunca estou melhor do que quando
não estou bem”;

10º Mortifique a imaginação quando ela lhe seduz com a isca de um cargo
relevante, quando se entristece com a perspectiva de um futuro sombrio, quando se irrita
com a recordação de uma palavra ou de um ato que o ofendeu;

11º Se sente em você a necessidade de sonhar, mortifique-a sem piedade;

12º Mortifique-se com o maior cuidado sobre o que se refere à impaciência, à


irritação ou à ira;

13º Examine a fundo os desejos, e submeta-os ao controle da razão e da fé:


Você não deseja antes uma vida longa a uma vida santa? Prazer e bem-estar sem tristeza
nem dores, vitórias sem combates, êxitos sem contrariedades, aplausos sem críticas,
uma vida cômoda e tranquila sem cruzes de nenhum tipo, ou seja, uma vida
completamente oposta à de nosso Divino Salvador?

14º Tenha cuidado de não contrair certos costumes que, sem ser positivamente
maus, podem chegar a ser funestos, tais como o costume de leituras frívolas, dos jogos
de azar, etc.;
15º Trate de conhecer seu defeito dominante, e quando o tiver conhecido,
persiga-o até os últimos recantos. Por isso, submeta-se de boa vontade ao que poderia
haver de monótono e de aborrecido na prática do exame particular;

16º Não é proibido ter um bom coração e mostrá-lo, mas fique atento ao perigo
de exceder o justo meio. Combata energicamente os afetos demasiado naturais, as
amizades particulares, e todas as sensibilidades moles do coração.

C. Mortificação do espírito e da vontade

1º Mortifique o espírito proibindo-lhe todas as imaginações vãs, todos os


pensamentos inúteis ou alheios que fazem perder o tempo, dissipam a alma, e provocam
o desgosto do trabalho e das coisas sérias;

2º Distancie do espírito todo pensamento de tristeza e inquietude. O


pensamento do que poderá suceder no futuro não deve preocupá-lo. Quanto aos maus
pensamentos que o molestam, deve fazer deles, distanciando-os, matéria para exercer a
paciência. Se são involuntários, serão para você uma ocasião de méritos;

3º Evite a teimosia das ideias, e a obstinação dos sentimentos. Deixe prevalecer


de boa vontade o juízo dos demais, salvo quando se trate de matérias em que você tem o
dever de se pronunciar e falar;

4º Mortifique o órgão natural do espírito, ou seja, a língua. Exercite de boa


vontade o silêncio, seja porque a Regra o prescreve, seja porque você o impõe
espontaneamente;

5º Prefira escutar os demais do que falar você mesmo; mas, sem embargo, fale
quando convenha, evitando tanto o excesso de falar demais, que impede os outros de
expressar os pensamentos, como o de falar de menos, que denota indiferença ofensiva
pelo que as outras pessoas dizem;
6º Não interrompa nunca quem fala, e não corte com uma resposta precipitada
quem lhe pergunta;

7º Tenha um tom de voz sempre moderado, nunca brusco nem cortante. Evite
os “muito”, os “extremamente”, os “horrivelmente”, etc.: não seja exagerado ao falar;

8º Ame a simplicidade e a retidão. A simulação, os rodeios, os equívocos


calculados, que certas pessoas piedosas se permitem sem escrúpulo, desacreditam muito
a piedade;

9º Abstenha-se cuidadosamente de toda palavra grosseira, trivial ou inclusive


ociosa, pois Nosso Senhor nos adverte que nos pedirá conta delas no dia do Juízo;

10º Acima de tudo, mortifique a vontade; é o ponto decisivo. Sujeite-a


constantemente ao que sabe ser do beneplácito divino e da ordem da Providência, sem
ter em nenhuma conta os próprios gostos e aversões. Submeta-se até a seus inferiores
nas coisas que não interessam para a glória de Deus e os deveres de estado;

11º Considere a menor desobediência às ordens, inclusive aos desejos de seus


superiores, como dirigida a Deus;

12º Lembre-se de que praticará a maior de todas as mortificações quando amar


ser humilhado e quando tiver a mais perfeita obediência àqueles a quem Deus quer que
se submeta;

13º Ame ser esquecido e tido por nada: é o conselho de São João da Cruz, é o
conselho da Imitação: não fale apenas de si mesmo nem para bem nem para mal, mas
busque pelo silêncio fazer-se esquecer;

14º Diante de uma humilhação ou repreensão, sente-se tentado a murmurar?


Diga como Davi: “Melhor assim! É-me bom ser humilhado!”;

15º Não alimente desejos frívolos: “Desejo poucas coisas, e o pouco que
desejo, o desejo pouco”, dizia São Francisco;
16º Aceite com a mais perfeita resignação as mortificações ditas da
Providência, as cruzes e os trabalhos ligados ao estado em que a Providência o pôs.
“Quanto menos há de nossa eleição, mais há de beneplácito divino”, dizia São Francisco
de Sales. Queríamos escolher nossas cruzes, ter outra diferente da nossa, levar uma cruz
pesada que tivesse ao menos algum brilho, antes que uma cruz leve que cansa pela
continuidade: ilusão! Devemos levar a nossa cruz, e não outra, e o mérito disto não se
encontra na qualidade dela, mas na perfeição com que a levamos;

17º Não se deixe turbar pelas tentações, pelos escrúpulos, pelas securas
espirituais: “O que se faz durante a aridez é mais meritório diante de Deus do que o que
se faz durante a consolação”, dizia o santo bispo de Genebra;

18º Não devemos entristecer-nos demais pelas nossas misérias, mas nos
humilhar bastante. Humilhar-se é uma coisa boa, que poucas pessoas compreendem;
inquietar-se e impacientar-se é uma coisa que todo o mundo conhece e que é má, porque
nesta espécie de inquietude e de despeito, a maior parte pertence ao amor próprio;

19º Desconfiemos igualmente da timidez e do desânimo, que despendem as


energias, e da presunção, que nada mais é do que o orgulho em ação. Trabalhemos
como se tudo dependesse dos nossos esforços, mas permaneçamos humildes como se
nosso trabalho fosse inútil.

D. Mortificações que deve praticar nas ações exteriores

1º Deve observar a maior exatidão em todos os pontos da sua regra de vida, e


obedecer sem demora, lembrando-se de São João Berchmans, que dizia: “Minha maior
penitência é seguir a vida comum”; “Fazer o maior caso das menores coisas, esse é o
meu lema”; “Antes morrer que violar uma só de minhas regras!”;

2º No exercício de seus deveres de estado, trate de estar muito contente com


tudo o que parece feito de propósito para desagradá-lo e molestá-lo, lembrando-se
também aqui da frase de São Francisco de Sales: “Nunca estou melhor do que quando
não estou bem”;
3º Não conceda jamais um momento à preguiça; da manhã à noite, esteja
ocupado sem descanso;

4º Se dedica a sua vida, ao menos em parte, ao estudo, pratique os seguintes


conselhos de Santo Tomás de Aquino aos seus alunos: “Não se contentem em receber
superficialmente o que lêem ou escutam, mas tratem de penetrar e aprofundar o sentido.
– Não fiquem nunca com dúvidas sobre o que podem saber com certeza. – Trabalhem
com uma santa avidez em enriquecer o espírito; classifiquem com ordem na memória
todos os conhecimentos que possam adquirir. – Sem embargo, não tratem de penetrar os
mistérios que estão acima de sua inteligência”;

5º Ocupe-se unicamente da ação presente, sem voltar-se ao que precedeu nem


adiantar-se pelo pensamento ao que vem a seguir; diga com São Francisco: “Enquanto
faço isto, não estou obrigado a fazer outra coisa”; “Apressemo-nos com bondade: será
tão logo tanto quanto esteja bom”;

6º Seja modesto na compostura. Nenhum porte era tão perfeito como o de São
Francisco; tinha sempre a cabeça direita, evitando igualmente a ligeireza que a gira em
todos os sentidos, a negligência que a dobra adiante e o humor orgulhoso e altivo que a
inclina para trás. Seu rosto estava sempre tranqüilo, livre de toda preocupação, sempre
alegre, sereno e aberto, sem ter, todavia, uma jovialidade indiscreta, sem risadas
ruidosas, imoderadas ou demasiado freqüentes. Quando se encontrava só mantinha-se
em tão boa compostura como diante de uma grande assembleia. Não cruzava as pernas,
não apoiava a cabeça no encosto. Quando rezava, ficava imóvel como uma coluna.
Quando a natureza lhe sugeria gostos, não a escutava em absoluto;

7º Considere a limpeza e a ordem como uma virtude, e a sujeira e a desordem


como um vício: evite os vestidos sujos, manchados ou rasgados. Por outra parte,
considere como um vício ainda maior o luxo e o mundanismo. Faça de modo que ao lhe
verem a vestimenta e adereços, ninguém diga: está desarrumado; nem: está elegante;
mas que todo o mundo possa dizer: está decente.
E. Mortificações para praticar nas relações com o próximo

1º Aguente os defeitos do próximo: faltas de educação, de espírito, de caráter.


Aguente tudo o que nele lhe desagrada: o modo de andar, a atitude, o tom de voz, o
sotaque, e todo o resto;

2º Aguente tudo de todos e aguente até o fim e cristãmente. Não se deixe levar
jamais por essas impaciências tão orgulhosas que fazem dizer: Que posso fazer de tal ou
qual? Em que me interessa o que diz? Para que preciso do afeto, da benevolência ou da
cortesia de uma criatura qualquer, e desta em particular? Nada é mais distante de Deus
que esses desprendimentos altaneiros e essas indiferenças depreciativas; melhor seria,
certamente, uma impaciência;

3º Encontra-se tentado a irar-se? Por amor de Jesus, seja manso. De vingar-se?


Devolva bem ao mal. Diz-se que o segredo de chegar ao coração de Santa Teresa, era
fazer-lhe algum mal. De mostrar a alguém uma cara má? Sorria com bondade. De evitar
seu encontro? Busque-o por virtude. De falar mal dele? Fale bem. De falar-lhe com
dureza? Fale doce e cordialmente;

4º Ame elogiar os irmãos, sobretudo aqueles a quem a sua inveja se dirige mais
naturalmente;

5º Não diga acuidades em detrimento da caridade;

6º Se alguém se permite na sua presença palavras pouco convenientes, ou


mantém conversações próprias a danificar a reputação do próximo, poderá às vezes
repreender com doçura a quem fala, mas antes será melhor distanciar-se habilmente da
conversação ou manifestar por um gesto de descontentamento ou desatenção proposital
que o assunto o desagrada;

7º Quando lhe custar fazer um favor, ofereça-se a fazê-lo: terá duplo mérito;

8º Tenha horror de apresentar-se diante de si mesmo ou dos demais como uma


vítima. Longe de exagerar suas cargas, esforce-se em considera-las leves. Em realidade,
elas são leves, muito mais vezes do que parece, e o seriam sempre se você tivesse um
pouco mais de virtude.

Conclusão

Em geral, negue à natureza o que ela pede sem necessidade. Saiba fazê-la dar o
que nega sem razão. Seus progressos na virtude, disse o autor da Imitação de Cristo,
serão proporcionais à violência que cometa contra si.
Dizia o santo Bispo de Genebra: “Há de se morrer a fim de que Deus viva em
nós: porque é impossível chegar à união da alma com Deus por outro caminho, senão o
da mortificação. Estas palavras: Há de se morrer! são duras, mas serão seguidas de uma
grande doçura, porque não se morre a si mesmo sem se unir a Deus por essa morte”.

Quisera Deus que pudéssemos referir a nós com pleno direito as seguintes
palavras de São Paulo: “Em todas as coisas sofremos a tribulação… Trazemos sempre
em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste também em
nossos corpos” (2Cor 4, 10).

A ociosidade é inimiga da alma

Por um monge beneditino


Nossa vida espiritual é composta pela graça de Deus e nossa disposição para
com sua graça. Tudo é dom de Deus, mas devemos fazer todo o possível para dispor
nossa alma para recebê-Lo sem obstáculos em nossos corações. O maior obstáculo que
se opõe à livre ação de Deus em nossas almas é uma má atitude, uma disposição que
afaste nossos corações de Deus e de Sua vontade. São Bento em sua regra para monges
define essa atitude como ociosidade. A ociosidade é uma inimiga para nossa alma
porque é o primeiro passo para formar maus hábitos.

Ociosidade ou indolência é um tipo de negligência intencional em relação ao


nosso dever de estado. A alma torna-se lenta para realizar a vontade de Deus por causa
de uma crescente repugnância pelo esforço de vencer obstáculos que são difíceis de
superar. Quando a alma foge do esforço, procura substituir o plano de Deus por uma
opção mais fácil, recompensada por uma satisfação imediata. Todos os tipos de
desordens e pecados rastejam para dentro da vida do homem indolente. A vida familiar
se torna um fardo terrível; todos parecem ser um obstáculo à sua recém-descoberta
"liberdade". Um tipo de aversão geral invade sua a vida e tudo o que antes era
considerado sagrado por ele, agora é como uma pedra de moinho que o puxa para baixo.
Um tipo problemático de ansiedade apodera-se lentamente de sua personalidade e
aqueles que mais o amam se tornam seus piores inimigos. Ele começa a sentir que eles o
acusam à luz dos bons exemplos deles. Sua vida de trevas não pode suportar a luz das
virtudes.

Essa pobre alma pode cair em dois extremos opostos que se originam da
mesma desordem da indolência. O primeiro é simplesmente desistir de qualquer esforço
solicitado a ele. Uma consequência é procurar consolo através do sono contínuo. Numa
parábola do Evangelho, Nosso Senhor diz que a erva daninha foi semeada no campo
enquanto os homens dormiam. A erva daninha do vício entra na alma quando ela foge
do esforço necessário para se corrigir, buscando o sono profundo da indolência
negligente. O outro extremo que tenta escapar da vontade de Deus é a atividade
excessiva. Foge-se da luta necessária para realizar a vontade de Deus em prol de um
ativismo exagerado. Em vez de se cumprir o dever de estado, considerado muito
trabalhoso, procura-se outra atividade para substitui-lo. Gasta-se muito tempo e esforço
realizando algo, que não é essencial. Essa atividade pode, por si só, ser boa, mas é uma
fuga do dever de estado. Os exemplos a seguir são frequentemente observados: Pode-se
ficar tentado a fugir da família sob o pretexto de caridade para os outros e deixar as
crianças sem os cuidados necessários. Uma mãe que não prepara as refeições para os
filhos porque quer aperfeiçoar sua espiritualidade está fugindo das suas obrigações. O
pai que passa todo o seu tempo livre no bar ou na academia está recusando seu dever
paterno.

Esses meios de fuga lentamente se tornam habituais. Essa desordem habitual


do pecado é conhecida como vício na vida espiritual e leva a vícios materiais. Muitos
dos jovens de hoje lentamente tornam-se apegados à tecnologia, videogame,
pornografia, álcool e drogas porque têm repulsa pelo seu dever de estado. A razão pela
qual se encontram nessa posição geralmente é a de terem recebido muito pouco amor de
seus pais ou do vício da indolência que toma o controle de sua alma. Muitos pais
estragam as crianças, temendo o esforço que seria necessário para corrigi-las. Eles
permitem o crescimento da paixão e do vício que destruirá a vida das crianças. As
crianças imitando o exemplo de indolência dado pelos pais vão habitualmente se
esquivar de seus deveres básicos como católicas.

Os vícios vêm de uma desordem espiritual e o verdadeiro remédio é uma


reordenação espiritual. Quando escolhemos a dependência de uma criatura para
satisfazer nosso desejo de bondade, que Deus sozinho pode satisfazer, nos encontramos
escravos dessa criatura, seja a garrafa ou a Internet. A alma que tenta substituir Deus
por alguma criatura se decepciona. O verdadeiro remédio é retornar pacientemente a
Deus. Leitura espiritual, oração e prática de virtude são necessárias para superar o vício
em pecar, mas devem ser postas em prática de maneira muito vigorosa e tenaz.

Santo Ambrósio, falando do cordeiro pascal do Antigo Testamento, explica


como a refeição teve que ser tomada às pressas: “Não basta fazer o bem, devemos fazê-
lo com avidez. A Lei dada a comer com rapidez o cordeiro Pascal é porque os frutos são
muito mais abundantes quando nossa devoção é imediata.” O livro de Eclesiástico dá
conselhos semelhantes: "Em todas as tuas obras seja solícito, e nenhuma enfermidade
virá a ti." Se desejamos vencer os vícios, devemos mudar prontamente nossa má atitude
e colocar em prática nossas boas resoluções. Com a graça de Deus, perseveraremos,
correndo no caminho que leva ao Reino dos Céus. Devemos ter prontamente no coração
as palavras de São Bento.

"A ociosidade é a inimiga da alma."

(The Angelus, novembro de 2019)

A procura da santidade

A nossa circular aos assinantes de PERMANÊNCIA valeu-nos uma porção de


cartas e listas de assinaturas, pedindo ao Papa a recuperação da missa que a Igreja
sempre celebrou. Estas cartas foram enviadas a Roma apesar de sua insignificância e do
pouco que podem pesar, para influir no curso dos acontecimentos.

Mas, impressionaram-nos. São cartas comoventes, inclusive de muitos padres,


quase todas acompanhadas de palavras de encorajamento para nós da PERMANÊNCIA.
Porém, o que mais nos impressionou foram as palavras de horror que nos chegam de
todos os pontos do país, horror e angústia diante do estado a que chegou a Cristandade:
os abusos que se multiplicam, de padres e bispos a fomentar ressentimentos e a
hospitalizar o Governo o tempo todo; agentes da pastoral a influir sem cessar pela
esquerdização da mentalidade comum nos meios católicos; missas sacrílegas; profunda
estupidez em matéria de doutrina, pregada dos púlpitos, além do mais com evidente
satisfação dos pregadores consigo mesmos; descristianização cada vez maior dos
ambientes, das palavras, da atitude, das preocupações de sacerdotes e bispos em todo o
Brasil!

Estas almas aflitas dos que nos lêem e nos estimam, precisam de nossas
orações. Uma das cartas que recebemos diz: “rezem por mim também pois não é fácil
resistir e permanecer quando nem à igreja se vai mais. Quem diria, Deus meu! Eu que
assistia duas missas diariamente...”

Suplicamos ao Senhor do Céu, que nos contempla e vê e sabe, o seu socorro.


Nossa alma transborda. Que sua Mãe Santíssima proteja os seus outros filhos, cujo
sofrimento decorre do anseio de defender sua fé.

Mas a verdade — dizemo-lo pensando no bem das almas — é que esse


sofrimento que nos angustia cada vez mais, foi também ocasião de graças espantosas
que vimos recebendo nos últimos anos, mediante as quais redescobrimos a antiga
sabedoria da Igreja, tocados ao mesmo tempo por Deus com um espírito de penitência e
ardente desejo de progredir na caridade.

Só castigados é que aprendemos. Tivemos à nossa disposição durante séculos,


tanto quanto hoje, toda a imensa e riquíssima doutrina dos santos que trilharam o
caminho da santidade, mas limitávamo-nos a admirar enternecidos esta ou aquela
história de santos, este ou aquele episódio. A verdadeira face da Casa construída sobre a
pedra de Pedro ficara escondida sob o limo da mediocridade que ora atingia o
comportamento de autoridades eclesiásticas e de fiéis, em meio a escândalos como o de
Papas renascentistas ou a simonia generalizada, ora a mentalidade comum, deformada
de tal sorte, bem nos lembramos todos, que dizíamos, por exemplo: “isso não é conosco,
não somos santos”, uma espécie de atitude que implicava também em não termos nada
que ver com a santidade. É pois de espantar que na Santa Visibilidade da Igreja, hoje
difícil de perceber onde está, se tenha concentrado a Grande Crise em que tombou a
Cristandade? Crise sem igual em toda a história e cuja essência é de tal ordem que,
temos consciência disso, não pode haver tragédia pior senão em termos de grau, de
intensidade, de extensão. Em termos de natureza, não.

***

Se o Senhor permitiu que sofrêssemos todo o horror do que hoje nos assola —
e é sobretudo horrível ver agora uma atoarda enorme de vozes eclesiásticas, cuja
linguagem está em evidente discordância com a autêntica, antiga e perene doutrina da
Igreja sem que tal discordância pareça abalar o universo como seria de esperar — Ele
não poderia deixar de socorrer-nos, aos simples fiéis, com as graças adequadas. Tão
extraordinários como são os tempos, tão grave como é essa profundíssima e terrível
crise, pediriam, evidentemente, graças especiais, igualmente grandiosa para que nós, os
pobres e infelizes membros do corpo discente e dirigida da Igreja pudéssemos enfrentar,
cumprindo o nosso papel, as insídias do Inimigo que invadiu os nossos átrios, segundo a
expressão do próprio Paulo VI que tem sobre sua memória, indiscutivelmente, a
responsabilidade maior por todo esse descalabro, do qual restam ruínas fumegantes em
torno, para quem ainda tem olhos de ver.

Graças especiais extraordinárias, nos foram dadas. Temos diversos sinais disso
na vida de todos nós; de uns, para que, gemendo, constatem que ainda resistem, embora
a angústia e a aflição pareçam, às vezes, esmagar-lhes o peito; de outros para,
infelizmente, terem que responder um dia pelo mau uso que fizeram delas, às vezes por
rejeição imediata do socorro que lhes fora dado, com o que, ainda por cima, cometem
injúria contra Deus. Todos se lembram, certamente, o quanto era comum pensar-se e
como todos nós pensamos que assim devíamos pensar, que certas obrigações não nos
dizem respeito porque “não somos santos”, como acima mencionamos. Essa idéia
estabelecia uma divisão entre alguns homens, chamados à santidade e os demais para os
quais apenas uma espécie de lista de regras de comportamento se tinha por obrigatória.
A santidade eminente dos altares, esta, realmente, é dom de Deus apenas para algumas
almas grandes, lâmpadas ardentes, que o próprio Senhor Deus acende como farol e guia
para os outros homens. Mas estes, para os quais tais guias são propostos, que espera o
Senhor deles? Como não ver o imperativo “sede perfeito como vosso Pai celeste é
perfeito” se dirige a todos e como não compreender que para isso são acesas as
lâmpadas? A santidade não-eminente, escondida no dia-a-dia e na pequenez de nossa
condição atual, é dever de todos. É para buscá-la que estamos aqui. É por ela que Deus
nos fez. É ela a longa aprendizagem do amor divino que Deus quis para nós antes de
admitir-nos no céu. Por quê? Porque o Senhor, criador do céu e da terra, não quis tirar
do nada uma multidão inumerável de pequenos robôs, os quais, dando-se corda,
repetissem com voz de lata: “Santo, santo, santo...” O senhor não quis tirar do nada e até
tomou como sua a nossa natureza e a assumiu para vencer o pecado e o mal pela entrega
de seu próprio Filho à morte de Cruz, para que pudéssemos aprender a receber
docilmente a Sua graça e recebendo-a, e cada vez melhor, alcançássemos a santidade
que nos faz dizer, “Abba, pai”, como um filho amoroso cujo coração experimenta dor só
com a lembrança de poder de algum modo ofender ou contristar a vontade daquele que
o gerou.

Redescobrimos a antiga e permanente sabedoria da Igreja. Reencontramos o fio


que aproxima, sobre os séculos, o ensinamento dos mestres verdadeiros da Santa Igreja
Católica, o Magistério infalível, a experiência dos santos que este Magistério canonizou
para nosso exemplo, do júbilo interior das almas que progridem de claridade em
claridade, recebendo graças sobre graças como nos diz São Paulo.

No nosso caso particular, dos homens de nosso tempo, o Senhor nos deixou as
obras do grande doutor da Igreja, o Padre dominicano Reginald Garrigou-Lagrange que
tomou para si a doutrina comum de São Tomás de Aquino e de São João da Cruz, de
Santa Teresa d’Ávila, de São Francisco de Sales, de Santa Terezinha e inúmeros outros
grandes doutores dessa antiga ciência mística que o Magistério da Igreja aprovou
especificamente em inúmeros atos e pronunciamentos.
O Padre Garrigou bateu-se sobretudo pela afirmação, que hoje nos é mais fácil
compreender (e esta é outra graça extraordinária que recebemos) de que a santificação
pessoal tem uma dimensão normal, isto é, à medida do homem comum; que é obrigação
de todos procurá-la e para todos há um modelo pessoal de santificação que pode e deve
ser buscado com a ajuda da graça de Deus.

Em grandes livros: “Perfection Chrétienne et Contemplation”, “L’Amour de


Dieu et la croix de Jesus”; “Les trois ages de la vie interieure” e muitos outros, o prof.
Garrigou-Lagrange, que durante muitos anos foi professor de Teologia Mística no
Angelicum de Roma, é mais do que um mestre; é um diretor de almas, que devemos ler
já caminhando no caminho que nos cabe seguir; já renunciando de modo absoluto e
decisivo — primeiro passo desse caminho — a qualquer apego, a qualquer coisa que
seja pecado, quer o pecado mortal, quer o pecado venial deliberado; já procurando
discernir em nossa vida particular quais os traços específicos da nossa cruz, não a que
possamos inventar, mas a que Deus, Ele mesmo, mestre carpinteiro, talhou para nós
segundo a nossa capacidade, que só Ele conhece bem.

Dedicamos pois este número de PERMANÊNCIA aos nossos queridos leitores


afligidos em sua fé, chamando-lhes a atenção para a suavidade do amor de Deus,
bálsamo que apaziguará nossa alma. Voltemo-nos para os antigos e perenes caminhos
da Santa Igreja Católica e, deixando de lado os eclesiásticos exaltados, supliquemos a
Deus a vida de perfeição, o refrigério da Cruz, a alegria da Sua presença. Ele não quer
que queiramos outra coisa. Chamou-a, Ele mesmo, “o único necessário” (Lucas, 10, 24).
Como imaginar que nos dará pedras, se suplicamos pão? Se nós, que somos maus,
sabemos dar bons presentes a nossos filhos, quanto mais nos dará seu Espírito Santo
aquele Senhor que é a própria Bondade subsistente (Lucas 11, 11-13).

***

A redescoberta desse patrimônio e a compreensão dos grandes princípios e do


caráter fundamental da verdadeira sabedoria católica da Igreja, postas ao alcance de
pessoas comuns com nós, eis a prova maior das graças extraordinárias com que fomos
socorridos para podermos suportar a crise extraordinária que a Igreja sofre em nossos
dias. É por isso que compreendemos também que nossa bandeira não pode ser apenas o
combate pela fé, mas também levar aos nossos leitores aquela descoberta, o mesmo
senso da obrigação que temos e ainda mais, digamos sem receio e para o bem de quem
nos lê, a imensa responsabilidade que temos todos nós quanto a seguir este caminho, pôr
em prática esta doutrina, procurar o Senhor Jesus, desejar a Sua vinda. São estas últimas
as palavras com que termina a Revelação Escrita que nos foi deixada: “Maranatha, Vem
Senhor Jesus” (Apoc. 22, 20).

PERMANÊNCIA, N° 144-145, Novembro-Dezembro de 1980.

A psicologia do amor

No mundo em que vivemos é moeda corrente as pessoas só quererem fazer o


que lhes agrada. Que seja por prazer do corpo, ou pelo prazer de ter dinheiro, ou pelo
prazer de se sentir influente, livre e independente, somos formados, à nossa revelia, a
detestar as coisas árduas, maçantes, rotineiras, obrigatórias. Que elas tenham um quê de
dificuldade ninguém discute. Que a nossa tendência seja a de diminuir a dureza das suas
realizações, é compreensível. O que não pode ser é a revolta tomar conta do nosso
coração sempre que temos alguma coisa obrigatória a fazer. No fim das contas, tudo o
que é de nosso dever é feito com pressa, de qualquer maneira, sem a atenção necessária
ou pelo dinheiro que vamos receber. A revolta a que me refiro não é necessariamente
uma revolta barulhenta e explosiva. Pode ser apenas o sentimento surdo e escondido de
um ódio acumulado.
Se examinarmos com atenção o ambiente cultural em que vivemos,
constatamos, por exemplo, que os homens do nosso tempo passam a semana em função
da sexta-feira, aguardando o fim do serviço do último dia útil para, enfim, voltar a ser
"normal". O que significa ser "normal"? Para uns, passar o tempo numa festa, numa
discoteca, na porta de um botequim assando uma carninha na brasa e tocando um som
com os amigos. Para outros, o sofá e a televisão, umas latinhas de cerveja. Muitos
preferem passar duas horas num engarrafamento para ir à praia. Tudo isso, é claro,
regado com algum sexo, muita alegria, e a sensação de que não há entrave para nada,
que somos poderosos para fazer tudo, ao menos durante algumas horas, até que o
monstro da segunda-feira volte a rosnar nos obrigando a retomar a vida maçante do
trabalho. Vejam que não trato aqui do descanso merecido e legítimo, mas da busca de
uma liberdade total que é mais um posicionamento cultural – melhor seria dizer
espiritual: não enquanto coisa religiosa propriamente, mas enquanto coisa do espírito
humano.

Quando se trata das crianças, já de há muito que é assim. Não se pode mais
imaginar um adolescente que ame o seu estudo, como aquela obrigação amorosa que o
eleva e o forma no saber. Nem se pode dizer que é culpa deles, pois há décadas que o
estudo é sinônimo de dinheiro. Eles se arrastam até uma faculdade e são precipitados no
liquidificador do que se chama "mercado de trabalho" onde brilha a purpurina de um
futuro paradisíaco do dinheiro que tudo compra. Eles também, pobres crianças, só
pensam na sexta-feira e nas férias. Depois, é a praia, as festinhas, a liberdade. Daí a
grande revolta típica do nosso mundo "evoluido" quando os pais procuram orientar seus
filhos em alguma atividade formadora, cultural ou religiosa. Eles encaram esta tentativa
como o grande obstáculo à sua liberdade e já não temem mais enfrentar os pais e lhes
jogar em rosto uma série de insultos.
Amor ou amor
No entanto, ainda hoje, sabemos que certos fatos ocorrem, na vida das pessoas,
que contrariam essa cruel orientação subliminar que recebemos da sociedade moderna.
Falo, por exemplo, da mãe que passa a noite cuidando do filho doente ou do bebê que
chora. Igualmente, o soldado. Antigamente os soldados eram formados para dar a vida
pela Pátria. Hoje, movidos pelo espírito do "funcionário público", nossos soldados são
requisitados para combater a dengue, enquanto os marginais assassinos nos devoram e
riem-se das autoridades. Mas antigamente havia soldados que davam suas vidas pela
Pátria. Os próprios governantes, quando não são movidos pela propina fácil ou por um
sonho ideológico, se abstêm de muitas coisas para trabalhar pelo bem-comum.
E eu pergunto: o que os move a renunciar a tudo por uma obra que lhes é
imposta de fora, que não corresponde ao que eles gostariam de estar fazendo, mas que
fazem assim mesmo? O que pode ser tão forte a ponto de tornar o homem infeliz caso
não fizesse aquilo? A resposta é simples: eles são movidos pelo Amor. Já sabia disso
Camões:
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
Mas se é o Amor que os move, então o que move os homens na busca
desenfreada pelos prazeres e pela liberdade, como constatamos no início? E eu
respondo: o que move os homens a fazer somente o que lhes agrada é o amor
sentimental. Chamo assim a esta paixão da alma que nos move em busca do bem
deleitável, do bem que nos agrada. Nem sempre ele é mau, pois alguns objetos são
dignos do nosso amor sentimental. O que vai determinar a retidão desse amor é
justamente a sua afinidade com o Amor espiritual, de modo a não contrariá-lo. Esse
amor sentimental, que escrevo com letra minúscula, distingue-se, por outro lado, do
Amor maiúsculo porque este último é espiritual, ato da nossa vontade espiritual e livre,
que nos move segundo a razão, mesmo quando vai contra aquilo que nossas paixões nos
mostram como agradável e prazeiroso.
É assim que nossas obrigações são obras de um Amor mais profundo e
verdadeiro. Mesmo se não quiséramos fazer aquilo, temos uma determinação total e
certeira de que devemos fazer, e esta determinação é que caracteriza o verdadeiro
querer, o verdadeiro Amor. E este Amor é tão determinante que deixa longe para trás
todos os prazeres que gostaríamos de ter: a mãe esquece o seu sono, o pai esquece o seu
cansaço, o soldado esquece a sua vida, porque a Pátria o chama, conta com ele, para que
ele realize o seu Amor total, como um dia, ainda moço, ele sonhou poder realizar. O
fato é que o Amor de obrigação nos determina até a morte.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Virtudes e vícios
Uma vez estabelecida a existência dos dois amores em nós, um baixo e
sentimental, outro elevado e espiritual, procuremos estabelecer suas características
próprias: Enquanto o amor sentimental é todo centralizado em si mesmo, sendo fonte de
egoísmo, já o Amor espiritual projeta-se para fora de si, em busca de um objeto mais
elevado. Deus e o próximo. É amor de Caridade.
Enquanto o amor sentimental tem a tendência de nos inclinar à irritação diante
dos empecilhos para a nossa liberdade, já o Amor espiritual nos inclina à resignação, à
paciência.
Enquanto o amor sentimental é passageiro e volúvel, mudando toda hora,
levando-nos de um lado a outro, sem repouso, o Amor espiritual é constante, firme,
repousante e pacificador.
Enquanto o amor sentimental é fonte de muitas mentiras, traições e discórdias,
o Amor espiritual é fonte de verdade, de fidelidade e de amizade. E diante de realidade
tão rica e fantástica, gritará mais uma vez o Poeta:
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
O amor de sentimentos é, então, fonte de vícios; o outro, de todas as virtudes.
Este é o drama do nosso tempo. Sabemos que os homens são empurrados
desgraçadamente a viver de vícios horríveis que os impedem, cada dia mais, de ver o
abismo do inferno que se aproxima a passos largos. Com um mundo movido pelo lazer,
pelos esportes, pelo tempo livre, torna-se difícil explicar aos homens, já desatentos, que
erraram o caminho de casa, que estão se embrenhando no caminho de uma perdição
eterna. Até algumas décadas atrás, quando a influência da Igreja ainda se fazia sentir, o
mundo girava em torno dessas obrigações geradoras de virtude. Todos tinham suas
ocupações, todos tinham seus trabalhos caseiros, todos viviam para cumprir seu dever.
E isso gerava um mundo de honestidades, de retidão que, se não impedia o pecado,
tornava-o uma coisa feia e vergonhosa para quem o praticava e para quem assistia.
Alegrias ou angústias
Falta ainda considerar que o fim da vida de prazeres sentimentais é a náusea, a
depressão, reações estranhas sem explicações claras. Assim ensinava São Francisco de
Sales, bispo e príncipe de Genebra, doutor da Igreja:
O amor é suave quando se aplica a um objeto digno de ser escolhido entre mil.
Já o amor baixo e caduco, que se prende à criatura em detrimento da honra devida ao
amor do Criador, em vez de ser doce e suave, é desagradável ao extremo, pois enche o
coração de perturbações, de precipitações e de angústias. (Sermão para o 17º domingo
depois de Pentecostes - 1618)
Ou seja, uma vez passado o prazer, o amor sentimental gera na alma uma
melancolia torpe. Esta acaba projetando a alma a buscar novamente os prazeres, e cada
vez mais fortes, para evitar esses momentos de tristeza. Os sentimentos funcionam na
alma como uma droga. Pior até do que as drogas, pois são geradas e alimentadas dentro
de si. Uma usina de entorpecentes psíquicos, é a alma mergulhada nos amores
sentimentais e fazendo deles a sua vida. Usina que termina numa super-produção a
tempo integral e que destrói por dentro todos os recursos naturais e sobrenaturais
acumulados nos primeiros anos de vida, nos dias de inocência e castidade. A alma que
se abriu à satisfação de sua vontade, contamina-se, fecha-se sobre si mesma e definha
até a morte do pecado.
Mas, por outro lado, o Amor de Caridade, o Amor mais profundo, que nos
move ao sacrifício, à penitência, à tarefa árdua e necessária, dever que precisa ser
cumprido, gera na alma a alegria simples e pacífica de quem sabe que cumpriu o seu
dever. Qual a mãe que não se alegra quando vê que seu filho ficou curado? ou o pai que
não se alegra ao ver que seu trabalho é bem reconhecido e recompensado? Qual o aluno
que não se alegra com uma boa nota na prova? Ah! vá, soldado, alegra-te também
quando tiver a oportunidade de dar tua vida pelos teus irmãos. Alegra-te em morrer na
paz de Deus, porque cumpriste o maior de todos os deveres: "Não há maior ato de amor
do que dar a vida por aqueles que amamos".
Amar a Deus sobre todos os amores
Ora, esta belíssima verdade dos dois amores de nossa alma explica de modo
impressionante uma série de dúvidas acerca do Amor e restabelece a ordem das peças
desarrumadas da sociedade em que vivemos. Quantas vezes ouvimos alguém dizer que
é muito difícil cumprir o primeiro mandamento da Lei de Deus: Amar a Deus sobre
todas as coisas. As pessoas dizem isso porque confundem os dois amores. Acham que
temos de ter para com Deus o amor de sentimentos que temos, junto com o Amor
espiritual, pelas pessoas que nos são caras, os pais, os esposos, os filhos. E acham difícil
colocar Deus, que não vemos, na frente desses amores naturais, que são nobres e belos
porque iluminados pelo Amor mais elevado. Pois basta entender isso: quando vivemos
em função do Amor espiritual, sabemos que, em muitas ocasiões, renunciaremos a nós
mesmos por uma causa mais elevada, mais importante do que nós. E essa renúncia de si
mesmo já pode ser toda ela canalizada ao Amor de Deus. Os homens deveriam
compreender que é por amor de Deus que a mãe abandona o sono pelo filho, que é pelo
Amor de Deus que o pai trabalha, que a criança estuda, que o soldado dá a sua vida. E
esse Amor de Deus se manifesta em nós, pelo menos, pelo dever cumprido com
prontidão e perfeição. E a luz da verdade ilumina também a alegria de que falávamos
acima, pois antes de se alegrar pelos bons resultados dos seus deveres, os homens se
alegram pelo simples fato de cumprir seu dever e agradar a Deus. E essa alegria brota da
paz que nos vem na consciência. Veja, caro leitor, que beleza esta passagem da Epístola
de São Paulo aos Colossenses que ilustra e fundamenta esta verdade:
"Não cessamos de orar por vós e de pedir que sejais cheios do conhecimento
da vontade de Deus, em toda sabedoria e inteligência espiritual, para que andeis de um
modo digno de Deus, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra e
crescendo na ciência de Deus, confortados com toda fortaleza pelo seu poder
glorioso, para suportar tudo com paciência, longanimidade e alegria, dando graças a
Deus Pai, que nos fez dignos de participar da sorte dos santos, na luz, o Qual nos
livrou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do Filho do seu Amor, no qual,
pelo seu Sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados".
Fica assim claro que a grande doença da nossa sociedade é a falta do Primeiro
Mandamento. Os homens não querem mais amar a Deus porque não querem mais
cumprir suas mínimas obrigações, porque não entendem mais que essas obrigações são
objeto de nosso amor, o qual, quando bem orientado, nos une a Deus no cumprimento
do Mandamento do Amor. Por isso podemos dizer que seria preciso restaurar a
civilização cristã lançando bombas do verdadeiro Amor, do Amor de Deus, no meio dos
homens esquecidos Dele. E estas bombas explodiriam em atos que nada mais seriam do
que o dever cumprido, com tudo que nele se concentra. E diante do terrível quadro do
mundo moderno que Nossa Senhora veio mostrar a três criancinhas em Fátima, disse ela
a Lúcia que, nos últimos tempos, a maior penitência seria o simples cumprimento de
suas obrigações. E nisso se resume toda a Lei e os Profetas. Nisso se resume o
Evangelho de Jesus Cristo. E diríamos, para terminar, com o salmista: Initium
sapientiae timor Domini – O santo temor de Deus é o início da Sabedoria.
A tibieza
Pe. Michel André

“Ninguém pode servir a dois senhores: odiará a um e amará ao outro;


ou se apegará a um e desprezará o outro”. (Mt 6, 24).

A exemplo de alguns Padres da Igreja, pode-se ver em Mamon, o falso deus


sobre que fala Nosso Senhor, não apenas o dinheiro, mas também outros apegos
terrestres, materiais, que entravam o progresso espiritual.

Quero-vos falar da tibieza, doença da alma muito comum – ela contagia a


metade ou bem três quartos dos cristãos que estão em estado de graça; e isso é
realmente terrível, já que é preciso crer nas palavras da Escritura: “Deus vomita os
mornos de sua boca”, i. é, ele os expulsa para longe de si, e por conseqüência, essas
almas estão em grande perigo de cair no inferno eterno, caso não mudem de vida.
Ora, a tibieza, que afeta tanto os clérigos – i. é, os padres e os bispos – quanto
os laicos, se encontra em três tipo de pessoas:

1. Em primeiro lugar, as que saíram duma má vida, em estado de


pecado mortal, para retornar a uma vida normal, em estado de graça. Mas então,
satisfeitas consigo mesmas, cessam os esforços e não querem mais se elevar...
2. Há aquelas que, depois de atingirem uma vida fervorosa, amiúde bem
jovens, esfriam para uma vida de tibieza, de mediocridade. Deus vela para que não
despenhem para muito baixo! É o caso de inúmeros religiosos, se se levar em conta
as palavras da Imitação, e a experiência cotidiana!
3. Finalmente, há o caso dos cristãos que naturalmente são felizes: eles
nunca buscaram se tornar melhores. Deve-se pois sacudir-lhes a indolência, o torpor
– eles dormem!; mais das vezes, só de uma coisa precisam: um bom diretor
espiritual, que lhes apontará os caminhos da vida perfeita.
Mas em que consiste esta terrível doença espiritual, ignorada por tantos
cristãos, e contudo tão difundida? Quais são os sintomas, entre os “bons”
cristãos? (Contine a ler)
Pode-se distinguir pelo menos dois:

1. Confissões e comunhões rotineiras; por vezes, mais e mais espaçadas.


Orações rápidas e superficiais, sem concentração para pôr-se diante de Deus, para
entrar em contato com ele. Sem oração diária, não há verdadeiros exames de
consciência.
2. O cristão tíbio tenta evitar um pouco o pecado venial, mas conserva
os “pecadilhos”; não se submete totalmente a Deus: quem é mundano, continua
mundano; o amante dos bons vinhos e da boa vianda assim permanece; os
intrigantes, os faladores continuam a cometer faltas contra a caridade,
tranqüilamente...
Em suma, a tíbio vive ainda em estado de graça, mas de maneira languida,
preguiçosa; deixa-se levar pelas emoções do momento’, sejam elas a piedade, a cólera
ou outra paixão qualquer. Ele sente o furor de viver... está satisfeito demais consigo...
Quais são as causas desta doença da tibieza?

Convém distinguir duas fases da vida: a juventude e a madureza, ainda que no


fundo as causas profundas sejam idênticas, não importa a idade.

1) Na juventude, há-de se apontar sobretudo a dissipação e a imaginação, a


dispersão.

A dissipação é natural, diria quase normal, entre os jovens, sobretudo em


nossa época. Querem ver tudo, escutar tudo, conhecer tudo. Daí o prestígio do
audiovisual, que favorece essa tendência natural.

Ela torna difícil o recolhimento, a oração concentrada, ambos necessários para


o progresso na vida espiritual. Daí a sabedoria da Igreja ao instituir pequenos
seminários, para permitir o melhor desenvolvimento, mais rápido e seguro, da alma das
crianças.

A imaginação é a segunda causa da tibieza: às vezes a emotividade ilude, e por


vezes chega a enganar os diretores espirituais. A imaginação pode dar ares de
profundidade a um padre que, em verdade, é distraído.

Outras vezes, os jovens constróem ilusões sobre o porvir, sobre seus futuros
triunfos. Não estando suficientemente maduros para se afastarem do ambiente e
dominá-lo, muitos jovens se deixam dominar por ele, como a folha que o vento carrega;
isso explica o sucesso das modas – as roupas, as músicas e outras mais.

Daí vem a tibieza religiosa, admitindo-se que ainda existam cristãos pios, pois
que a vida do discípulo fervoroso de Cristo exige esforços, recolhimento, um certo
distanciamento do mundo: muitos membros da Ação Católica não entenderam isso, e
então, em vez de converter o próximo, pouco a pouco converteram-se ao mundo, por
assim dizer; um bom número dentre eles se tornaram marxistas. São os cristãos
camaleões.
2) Na madureza, é preciso assinalar como causa especial da tibieza a ambição e
a vida muito atarefada.

Amiúde elevam a ambição ao posto de virtude, por causa da propaganda


comercial e dos meios de comunicação. Hoje, é inadmissível que um homem aceite seu
estado de vida: ele deve subir na hierarquia social, e para isso, ganhar mais. Neste
passo, deparamo-nos com a proibição do Cristo:

“Não podeis servir a Deus e a Mamon”


E tanto pior que desta ambição excessiva e materialista decorre uma vida muito
atarefada: quantas vezes observei eu na Argentina pessoas que batalhavam em duas
trincheiras diferentes: um comércio ou representação, e mais um emprego na estrada de
ferro ou um cargo de professor...

Muitos argentinos só têm uma ambição: ganhar mais, ter sucesso, possuir um
carro, que mais? As preocupações espirituais não ocupam mais um lugar de vulto em
suas vidas – ainda que direita e honesta – muito apegadas a esta terra.

Poderíamos ainda continuar por bastante tempo o estudo das causas da tibieza
entre cristãos pios: o orgulho, a falta da verdadeira caridade, i. é, o egoísmo etc., tudo
leva à tibieza.

Os remédios também são fáceis de se indicar, mas menos fáceis de se tomar,


pois:

“O Reino de Deus padece violência, e são os violentos que entram nele”.


Antes do mais, é forçoso organizar a vida de piedade, adotar uma norma de
vida, hábitos rigorosos, se não, a vida dependerá do capricho do momento.

Por exemplo, a oração de joelhos, de manhã e à noite, com duração suficiente,


respeitosa, séria, devota. É dizer que existem cristãos, que se tem na conta de bons
cristãos, e não rezam regularmente nem de manhã nem à noite! Contudo, isso é o
mínimo que se exige... são com certeza tíbios...
O exame de consciência deve sempre estar presente na vida de piedade dum
cristão fervoroso, a cada noite; o rosário, a cada dia; e se possível for, uns quinze
minutos ou meia hora de meditação ou oração; ou então a leitura cotidiana de algumas
passagens do Novo Testamento ou dum livro de espiritualidade.

Em seguida, deve-se alimentar da Santa Missa, e da Santa Comunhão e


do sacramento da Penitência recebidos pelo menos uma vez por mês; ainda aqui,
haveria muito a se falar da tibieza inconsciente de muitos católicos tradicionalistas, que
se contentam com duas ou três confissões por ano.
Há mister de se preparar para a Santa Missa, o que é dizer chegar antes de seu
começo. Neste ponto, parece-me que os católicos ingleses são mais fervorosos; nunca os
vi atrasados... enquanto entre nós o atraso é habitual, prova inconteste de tibieza.

Geralmente, um bom retiro é o remédio definitivo para essa doença, um que


dure uns cinco dias...

Narra-se o fato seguinte da vida de São Bernardo: uma noite, estava ele no
coro, recitando o ofício divino com seus monges, quando de repente vislumbrou ao lado
de cada um deles um anjo, cada qual a escrever num livro de registro. Alguns escreviam
em letras d’ouro; outros, com letras de prata; outros ainda, só com tinta. Havia também
os que nada escreviam.

Deus, nesta visão, quis comunicar a São Bernardo a diferença de fervor entre
os vários monges: os fervorosos e os menos fervorosos; os que tão-só pronunciavam as
palavras, sem devoção; a última classe era a dos preguiçosos, que não oravam: estavam
de corpo presente, mas a alma viajava.

A lição é evidente para todos. Como rezamos? Como nos aproximamos dos
sacramentos? Como assistimos ao Santo Sacrifício da Missa? Se o puderam transformar
e distorcer tão a fundo, a ponto de não mais denominá-lo de Sacrifício, mas uma
eucaristia, uma refeição, como queria Lutero, não foi por causa de nossa tibieza
passada, da tibieza de milhões e milhões de católicos?
Estamos a imitar aquela senhora que se lastimava com Dom de la Motte, bispo
de Amiens, da duração excessiva da missa paroquial. Respondeu-lhe o prelado:

“Senhora, se achais a missa excessivamente longa, talvez seja a vossa piedade


excessivamente curta.”
Que não se repita conosco o mesmo, se quisermos crescer na vida espiritual, no
amor de Deus que pode, por si só, contentar nossa alma plenamente, neste e no outro
mundo.

(INTROIBO, nº 122 - Tradução: Permanêcia)

A virtude da paciência

— Excelência da paciência
A paciência nos santos

Armai-vos do escudo das virtudes, da paciência que tantas maravilhas produz


entre os santos e faz com que uma mocinha frágil seja capaz de vencer o mundo. Mais
que isso: ainda antes do início da luta, garante o triunfo, pois a paciência vive das
amarguras do mundo e tira as suas delícias das contrariedades. Porém eles saíam da
presença do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo
nome de Jesus (At 5, 41).
Reflitamos por um minuto e veremos que os sofrimentos dessa vida não tem
proporção com os sofrimentos de Cristo, com a gravidade dos nossos pecados, com o
horror dos tormentos do inferno e com a recompensa celeste.

Nossos Pais regozijavam com os dias de humilhação e com os tempos de


provação que o Senhor lhes enviava. É admirável o exemplo de São Domingos, que
atravessava cantando alegremente os caminhos onde sabia que assassinos o
espreitavam, ou que preferia pregar em Carcassone do que em Toulouse, pois sabia que
nessa última seria honrado enquanto na primeira, insultado.
Jó também nos dá um exemplo de paciência: Não tenho paz, nem sossego, não
tenho repouso, mas apenas perturbação (Jo 3, 26). No entanto, ele guardou a reserva a
ponto de não deixar transparecer nenhum sinal de impaciência, ele se calava com o
medo de que alguma palavra dura ou desordenada lhe escapasse, dominava as
impressões de seu coração para guardar a sua alma na paz interior.

As obras da paciência

A paciência é um diamante: por meio dela, a alma resiste a toda adversidade; é


um remédio que cura toda ferida; é um escudo que protege de todo ataque. Ninguém
jamais poderá nos atingir se antes nos lançamos a um combate interior contra nós
mesmos.

Como compreendia bem os frutos das provações, o monge que buscava


recompensar àqueles que o insultavam!

As Sagradas Escrituras nos fazem entrever os frutos da paciência no episódio


dos três jovens israelitas na fornalha ardente, cujo fogo consumia a tudo sem poder
atingi-los.

Na construção de um edifício, golpeamos, retalhamos e esculpimos a pedra


destinada a um lugar de destaque. Assim também ocorre com nós mesmos: somos
oprimidos nesse mundo a fim de entrarmos no templo celeste, onde não escutaremos
mais o som de um martelo. A alegria deverá vir após a tristeza necessária para o
pagamento dos nossos erros passados, para nossa perfeição espiritual e para o acréscimo
da nossa glória eterna. Ó, labor fecundo, ó dor preciosa, ó santas lágrimas que o
Altíssimo secará dos olhos dos seus eleitos após a provação!

Jesus disse que o reino dos céus é o apanágio daqueles que sofrem perseguição
pela justiça.

Mais vale ser vítima do que perseguidor, pois o perseguidor só fica com o seu
crime, enquanto o mártir glorifica a Deus e recebe, após o tormento, a glória eterna.
É castigando aos que ama que Deus Todo-poderoso prova a verdade do seu
amor. Ele consola os seus com a vergasta da correção. Muito só buscariam Deus pelos
benefícios, e não por Ele mesmo, se remunerasse aos que ama com recompensas
temporais.

As Escrituras narram (Jz 3, 15) que Aod servia-se de um punhal de dois gumes.
Isso significa, ao que me parece, que sabia tirar partido tanto da prosperidade como da
adversidade. E, para dizê-lo de modo melhor, é possível que sobrevenham males aos
que sabem usar das adversidades como ocasiões de méritos, para os que sabem fazer
delas um meio de chegar ao céu? O homem paciente sabe extrair mel do próprio fel;
sabe mudar o mal em bem, saborear a amargura como se fosse um leite e dar aos que
sofrem o gosto das alegrias eternas.

O homem paciente sofrerá até um certo tempo, e depois ser-lhe-á dada a


alegria (Ecl 1, 29). Pecadores que somos, não podemos chegar ao céu sem passar pela
torrente de tribulação aqui embaixo, ou pelo purgatório na outra vida. Mas a travessia
dessa torrente é mais fácil do que a do fogo. Se compreendêssemos a utilidade das
provações, nem cem anos bastariam para agradecer o Senhor de uma única doença. Era
sábio o monge, narrado na Vida dos Padres, que se lamentava e chorava porque o
Senhor o deixara um ano sem provações.

— A prática da paciência

Busquemos, pois, fazer o bem e suportar os males. Se queremos possuir a paz


do coração, consideremos não o que estamos obrigados a suportar, mas o que
infringimos aos outros; prefiramos suportar injúrias do que causá-las; aceitemos sem
murmurações as provações enviadas por Deus e, sem amargor, os males que procedem
do próximos; apliquemo-nos a apaziguar a cólera, mesmo irracional, que nosso irmão
concebe contra nós. Tomemos Davi por exemplo, que apaziguou o espírito mau de Saul
cantando com sua harpa.

Se merecemos o castigo, aceitemo-lo com contrição; se não o merecemos,


rejubilemos, pois é ainda mais doce sofrer injustamente com Cristo do que ser
justamente castigado com o ladrão, e é muito mais belo sofrer pela glória de Deus do
que por seu próprio interesse.

Assim, sempre devemos render graças a Deus, pelas dores como pelas alegrias:
imitemos o rouxinol, que canta não apenas o dia, mas também a noite.

Vivam sem querelas, caríssimos, e com harmonia. Não se queixem de ninguém


nem dêem causa para que se queixem de vocês.

Que suas alegrias sejam servir a Cristo, e seu único sofrimento seja o de se
verem afastados de Deus. Só a impaciência contra o pecado é permitida. Aos soldados
de Cristo, a vitória está em perdoar aos que os perseguem.

Tormemo-nos semelhantes às plantas aromáticas, que difundem o seu perfume


mais vigoroso quando moídas; ao ouro que a fornalha purifica sem poder consumi-lo;
ao grão de trigo que a praga liberta da sua bainha; ao navio que a tempestade impulsiona
mais rápido ao porto; à pérola que o cinzel do artista faz brilhar com mais intensidade.

Graus da paciência

Para alcançar a paciência perfeita, é preciso vencer os graus seguintes: Jamais


devolver o mal com um mal; — não resistir aos maus; — suportar as adversidades; —
apaziguar quem nos insulta; — amar nossos inimigos; — fazer o bem a quem nos fez
mal; — aceitar alegremente as injúrias; — estar pronto para sofrer mais; — agradecer a
Deus no meio das tribulações; — desejar provações, por amor de Deus.

Esqueçam a lei do talião e, sob as vagas da tempestade, permaneçam imóveis e


silenciosos como o surdo-mudo que nada percebe nem compreende.

— Os efeitos funestos da impaciência


A impaciência é uma fonte de males: ela obscurece a inteligência, priva das
delícias da paz, perturba na alma os efeitos da presença do Espírito Santo.

Costuma-se comparar a cólera a um dragão, porque suas palavras violentas


brotam da boca do impaciente como as chamas da guela do monstro.

Compara-se ainda à febre, porque ela produz movimentos desordenados no


corpo e na alma. Que digo? A cólera é pior, pois a febre não atormenta a sua vítima
mais do que uma ou duas vezes ao dia, enquanto que a cólera o faz bem mais
frequentemente.

O homem sob o jugo da provação é como o monge que, para a tonsura, coloca-
se nas mãos de outro. É melhor que fique quietinho pois, se se mexer sob a lâmina, seus
movimentos impacientes certamente farão com que se machuque.

Sempre saímos perdendo ao buscar nos vingar da pessoa de um caluniador:


abandonamos a túnica da nossa inocência por quem cobiçava apenas os vestidos da
nossa boa reputação. Ao contrário, ao confiar a Deus os cuidados da nossa defesa,
encontramos a um tempo um juiz e um vingador.

Que poderei dizer ainda da cólera? Olhem o homem irritado: ele queima, seu
coração palpita, profere gritos altos, não sabe mais o que diz, não reconhece seus
amigos, seu rosto se abrasa, sua língua se embaralha e seu corpo mesmo treme.

— As contrafações da paciência

Há quem se torne paciente não por um esforço pessoal, mas graças à virtude
das pessoas com que convive: essas pessoas consentem a se manter pacientes desde que
não sejam contrariadas.

Outros parecem se esquecer das injúrias, mas guarda o rancor no seu coração;
sua virtude é como o calçado cujo couro não foi amaciado pelo óleo: a rudeza protege
bem contra objetos exteriores, mas fere o pé. Esses hipócritas parecem-se com os lobos
que, como se diz, suportam facilmente os cortes e ferimentos recebidos à flor da pela,
mas são muito sensíveis às consequências das lesões internas.

Outros são pacientes para suportar as injúrias que ofendem a Deus, mas são
extremamente sensíveis às injúrias pessoais. Não se dão conta de que, se a cólera é na
maioria das vezes um vício, ela pode por vezes um zelo louvável, ela é na maioria das
vezes um vício. É zelo em nos inflamar de zelo pela defesa dos direitos divinos: uma
santa cólera que assegura recompensas. É vício irritar-se pela defesa dos seus próprios
direitos: explosão culpável merecedora de castigos.

É preciso ter cuidado: o espírito pode chegar a uma cegueira tal, que chama de
zelo esclarecido o que não passa de um furor mau. Por vezes os vícios se tingem de
aparências virtuosas e corrompem os atos que teriam sido meritórios. Assim, na
correção fraterna, a cólera dá na caridade o tiro de misericórdia, enquanto que a
caridade deveria tornar a cólera impossível.

Outros ainda, ao invés de se irritarem contra os vícios, irritam-se com as


pessoas. No entanto, a ordem da caridade quer que amemos a natureza, obra de Deus, ao
mesmo tempo em que detestamos os crimes, obra dos nossos instintos perversos e do
espírito diabólico.

Contudo, é permitido, em alguns casos, desejar o mal ao próximo, não por


ressentimento, mas em vistas de um bem superior. Por exemplo, se percebemos que um
homem se deixa levar pelo orgulho porque goza de boa saúde ou porque é rico, é lícito e
mesmo razoável, desejar o seu prejuízo para que se afaste dos maus sentimentos.

Para adquirir a paciência

A fim de suportar mais facilmente e com alegria as tribulações, esforcemo-nos


de ter sempre presente no espírito a Paixão do Salvador, a lembrança das consolações
que a amizade de Deus nos proporciona, as recompensas e os castigos eternos, as penas
do purgatório que as provações diminuem, os pecados que ela faz perdoar, a vida
interior que aperfeiçoa e a glória divina que procura.
É com coragem que devemos exercer a paciência, senão as provações, que são
ocasiões de graças e de glória, arriscam se tornar ocasiões de castigos mais rigorosos.
Com efeito, vemos que, sob a mesma brisa, o charco espalha o fedor e o tempero, o seu
perfume; e que num mesmo braseiro, a palha queima e o ouro brilha.

Ao agitarem a nossa preguiça, as tribulações são como um aguilhão que nos


excita ao fervor das boas obras, e como o vento propício que impulsiona nosso navio às
margens eternas.

Quando somos injustamente atacados, nós rapidamente sufocaremos os germes


do rancor se reprimirmos o menor sinal exterior de desagrado; a cólera, com efeito, se
excita com as manifestações exteriores e se extingue quando nós as abafamos.

(in L'Acampado 158 - abril de 2020)

Alegria de ser filho de Deus

Garrigou-Lagrange, O.P.

[Nota da Permanência] Quando Garrigou-Lagrange escreveu estas linhas


sobre a alegria que é preciso conservar no meio das tribulações, a sua França, “la douce
France”, havia sido derrotada e ocupada pelos nazistas. Também a nós se aplicam estas
reflexões, que vemos nossa Pátria na iminência de ser saqueada por revolucionários
bolivarianos e nossa Igreja invadida por modernistas.

“Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós,


e para que a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11)

As Sagradas Escrituras dizem-nos insistentemente que, nos tempos de


provação, o verdadeiro católico deve tanto quanto possível confortar os aflitos, levar-
lhes a paz e algo desta alegria divina que ergue os corações e lhes permite seguir viagem
contra ventos e marés até o porto da salvação.

Convém, portanto, nas tristezas presentes, falar da alegria de sermos filhos de


Deus e do dever de transmitir algo desta alegria aos que não a possuem.

Se, na tristeza comum, a alegria superficial é importuna, irritante, quando não


exasperante, a alegria cristã, ao contrário, consola. Esta deveria ser a alegria do
domingo, e o domingo a produz de fato quando, pela Missa, pela oração, torna-se
verdadeiramente o dia do Senhor; ao contrário, para muitos, pela cessação do trabalho,
torna-se o mais triste dos dias, porque não é santificado, porque não passa de um dia de
distrações, dedicado a uma alegria puramente exterior, vazia e imbecil, da qual muitos
não podem fazer parte, e que fatiga ao invés de repousar. Não sabem mais o que fazer
de seu tempo, porque não o dão a Deus; eis uma prova pelo vazio ou em baixo relevo da
necessidade de santificar o domingo.

Ao buscarmos tão-somente uma alegria inferior, nos privamos de outra


singularmente mais preciosa.

Aprendamos com as Sagradas Escrituras e com os santos o que é a verdadeira


alegria espiritual, vejamos como eles a conservaram em meio a sofrimentos, e então
saberemos melhor o que fazer para transmiti-la aos demais.

Não se trata em absoluto da procura por consolações sensíveis, nem de


sentimentalismo, que é a afetação de um amor que não se possui. O sentimentalismo
está para a alegria espiritual da qual falamos como a bijuteria para o diamante.

O que é a verdadeira alegria espiritual?

Compreenderemos sua natureza e valor se a compararmos com alegrias


legítimas menos elevadas. Experimentamos uma alegria sensível diante de uma bela
aurora ou, na primavera, diante do resplendor da natureza. Sentimos uma alegria
superior ao considerarmos que somos os filhos de um homem de bem, de uma boa mãe,
ao recordarmos as verdadeiras alegrias de uma família unida, alegria de irmãos que se
amam, contentes por trabalhar juntos e por viver das mesmas tradições, dos mesmos
pensamentos e afetos em vista de uma ação comum, verdadeiramente fecunda. Ainda
nesta ordem, a alegria de sermos franceses, em meio às tristezas atuais, e de trabalhar
para reerguer nossa pátria.

A alegria espiritual é de ordem ainda superior; é a alegria de ser filho de Deus


pelo batismo, de ser amado por Ele como filho adotivo, que recebeu uma participação
em sua vida íntima, e que tende a possuí-lo eternamente. É a alegria de estar na verdade,
na verdade divina, de viver dela, de caminhar sob a direção da Providência de Deus,
para que Ele reine cada vez mais em nós, no tempo e na eternidade.

Esta alegria espiritual não é precisamente uma virtude, mas fruto ou efeito da
mais alta virtude, que é a caridade, ou o amor de Deus e das almas em Deus1.
O amor de Deus nos regozija, em primeiro lugar, porque Deus é Deus, a
própria Verdade, a Sabedoria, o Bem infinito, a Bondade suprema, a própria Santidade,
a perfeita Beatitude.

O amor de Deus nos regozija de Deus reinar nas almas, na nossa, na do


próximo.

A caridade, enfim, nos faz possuirmos já a Deus na obscuridade da fé, pois está
escrito: “quem permanece na caridade, permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16).
Também o disse Nosso Senhor: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu
Pai o amará, e nós viremos a ele, e faremos nele morada” (Jo 14, 23). E, no mesmo
momento, Jesus nos prometeu o Espírito Santo, que efetivamente nos foi dado com a
graça e a caridade no batismo, e mais ainda na confirmação. A Santíssima Trindade
habita assim em toda alma em estado de graça, e ela se faz por vezes sentir como vida
de nossa vida. Em certos momentos, como o diz São Paulo, “o mesmo Espírito dá
testemunho ao nosso espírito, de que somos filhos de Deus” (Rom 8, 16). Dá
testemunho inspirando em nós uma afeição toda filial, que é causa de uma santa alegria
e nos faz dizer: “Pai!”. Não se trata de consolação sensível, nem de sentimentalismo,
mas de uma alegria verdadeiramente divina pelo seu princípio e objeto.
É tal a alegria espiritual, ao pensamento de que Deus é Deus, a Bondade
mesma, que Ele reina em nós e nos justos, que se torna a vida de nossa vida, que nos
chama a viver dele por toda eternidade. Esta alegria surge do pensamento de que,
exceção feita ao pecado, sob a direção da Providência, tudo vem do amor eterno.

A alegria espiritual é, de modo manifesto, fruto da caridade. Contrariamente, a


tristeza desordenada e deprimente é efeito do amor desregrado de si mesmo, procede do
egoísmo insatisfeito, do orgulho ferido, da vaidade ofendida. Quanto mais, numa alma,
a caridade domina o egoísmo, mais desaparece esta tristeza perversa, mais a ela se
substitui uma santa alegria.

Esta alegria não saberá, contudo, ser plena e perfeita como no céu, pois a
caridade aqui embaixo se entristece ela mesma com o pecado que diminui o reino de
Deus e conduz à perda das almas. Porém, apesar das tristezas da terra, os santos
conservam, com a paz, uma desejada alegria espiritual, que transmitem aos outros, sem
mesmo o perceberem.

As Sagradas Escrituras nos falam diversas vezes desta alegria espiritual. Diz
Jesus: “Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e para que a vossa
alegria seja completa” (Jo 15, 11). São João Evangelista exorta seus discípulos para que
tenham “a plenitude da alegria”, ao pensamento de que são filhos de Deus e que estão
chamados a gozar dele eternamente2. Os Salmos já diziam: “Laetamini in Domino et
exsultate justi. – Justos, alegrai-vos no Senhor e exultai nele” (Sl 21, 11). São Paulo
escreve aos Filipenses: “Gaudete in Domino semper, iterum dico vobis, gaudete –
Alegrai-vos incessantemente no Senhor; outra vez vos digo, alegrai-vos” (Fl 4, 4).
O mesmo São Paulo chegará a ponto de dizer, “estou inundado de alegria no
meio de todas as nossas tribulações” (2Cor 7, 4). Dizem os Atos dos Apóstolos de todos
eles, “contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus”
(At 5, 41).

Já se disse, como explicação destas palavras, “a alegria é o segredo gigantesco


do católico”. Com efeito, não recua diante das maiores provas, quando, lembrando-se
das promessas do seu batismo, diz a si mesmo: “Quero o que Deus Pai quer para mim,
apenas o que quer, tudo o que quer, por mais duro que seja”. O católico conversa deste
modo não consigo mesmo, mas com Deus, seu Pai e, como dizem as Escrituras, neste
colóquio não há amargura: “In conversatione Dei non est amaritudo” (Sb 8, 16).

A alegria cristã é pois a de possuir a Deus e de ser por Ele possuído. Por esta
alegria, o verdadeiro católico dá aos demais o desejo de converter-se. Convém que
repita amiúde esta palavra das Escrituras: “Eu também te ofereci alegre todas estas
coisas, na simplicidade do meu coração” (1 Pr 29, 17). A verdadeira alegria é tender
para a santidade do céu, com a certeza de que Deus, que jamais pede o impossível, nos
oferece graças incessantes para lá chegar.

Os santos guardam esta alegria espiritual, sem contudo senti-la sempre de


modo sensível, ou sequer de modo espiritual, mas guardam o bastante para transmiti-la
aos outros, mesmo nas suas provações. Por quê? Porque o Espírito Santo, pela afeição
filial que nas almas inspira por si, “dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos
de Deus”. Recorda-lhes também “que todas as coisas concorrem para o bem daqueles
que amam a Deus” (Rom 8, 28), e para o bem dos que perseveram neste amor até o fim;
tudo, mesmo as doenças, as contradições, os fracassos. Santo Agostinho acrescenta:
mesmo as faltas, à condição de nos humilharmos por tê-las cometido, como o fez São
Pedro após a terceira negação. Os santos entreveem cada vez mais nitidamente o bem
superior pelo qual a Providência permite os males da vida presente. Este bem superior,
que veremos a nu, nós o entrevemos progressivamente na medida de nossos méritos, e o
merecemos cumprindo a palavra de Deus em vez de nos contentarmos em conhecê-la e
admirá-la.

São Francisco de Assis experimentava uma santa alegria quando se via


menosprezado ou rechaçado. Também São Domingos, quando ridicularizado e
maltratado pelos hereges do Languedoc, sentia-se mais semelhante a Nosso Senhor, que
aceitou as humilhações da Paixão por amor a nós. Assim também São Bento-José
Labre, Santo Cura D’Ars ou seu amigo, o padre Chevrier de Lyon, São João Bosco, que
guardava em todas as suas provações essa santa alegria que levava às criancinhas
pobres, que não tinham nenhuma.

A irmãzinha dos pobres lhes levava esta alegria, a irmãzinha da Assunção,


todos os verdadeiros servidores e servas de Deus.
A Santíssima Virgem, nosso modelo, foi chamada “consolo dos aflitos”, “causa
de nossa alegria”, e o coração de Jesus é chamado “delícia dos santos”.

Como transmitir esta alegria aos outros?

Primeiro, é preciso cuidar de não os sobrecarregar com nossa própria tristeza e,


se estamos abatidos, não os desencorajar. Importa dominar uma certa tristeza, assim
como se resiste às tentações.

Evitemos também causar-lhes uma alegria enganosa, aprovando seus erros,


seus desvios, suas omissões, sua falta de julgamento ou de energia. Isto seria uma falsa
caridade, uma fraqueza, que lhes daria uma alegria mentirosa.

Levemos algo desta alegria espiritual aos que não têm o pão, a saúde, a
vitalidade, aos detestados, aos mesquinhos, aos que não procuram Deus; façamos com
que tenham vontade de procurá-lo. Demos Deus, aos que não o têm.

Então, Jesus nos dirá no último dia, “tive fome, e destes-me de comer; tive
sede, estava enfermo, estava na prisão, e fostes visitar-me... todas as vezes que vós
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”.

Demos algo desta alegria aos amargurados, lembrando esta palavra de São João
da Cruz: “Lá, onde não há mais amor, semeai amor e colhereis amor”. Nas grandes
trevas, uma voz nos diz: “Levanta e canta teu louvor na noite”.

Então, de nossas trevas bem suportadas, luz poderá brotar para outras almas.

O bem-aventurado Henrique Suso, no seu livro “Sobre a Sabedoria Eterna” 3,


escreveu belas páginas sobre os píncaros da alegria espiritual em meio a tribulações.
Servindo-nos de suas próprias palavras – ou antes, das que ele põe na boca de Nosso
Senhor – podemos resumi-la assim:
“Tanto mais duro o sofrimento, tanto mais doce o ter sofrido... O sofrimento,
quando bem suportado, torna o homem amável, pois o faz semelhante a mim. A alegria
do sofrimento (mesmo se não sentida, mas desejada) é tesouro escondido que jamais se
poderá merecer. Se alguém se ajoelhasse diante de mim por cem anos pedindo-me a
felicidade de sofrer, ainda não o teria merecido. De um homem terrestre, o sofrimento
(suportado por amor) faz um homem celeste. Ao que sofre, o mundo torna-se
estrangeiro, de sorte que minha ternura o envolve mais estreitamente. Os amigos do
século afastam-se das provações, enquanto minhas graças o cercam mais e mais. É que
tomo por amigos (íntimos) os que renegaram e abandonaram o mundo completamente...
O sofrimento ressoará por toda a eternidade num dulcíssimo canto, em refrãos novos
que não os poderão repetir os anjos, porque não sofreram.”

Se Deus pudesse assombrar-se e admirar-se de algo, seria com alguns de seus


filhos que, movidos por sua graça, chegam a ponto de carregar suas cruzes com alegria,
conformando-se ao Senhor Jesus.

Isto deve nos levar a considerar de modo sobrenatural as faltas de respeito e


mesmo o menosprezo a nosso respeito, se assim nos sucede4. Conviria recebê-lo com
uma alegria, se não sentida, ao menos desejada, e agradecer ao Senhor a graça que se
encontra escondida nas humilhações a serem suportadas. Esquecemos amiúde de
agradecer a Deus pelas cruzes que nos envia; são elas, contudo, bem necessárias ao
nosso progresso. Vemo-lo em algumas que nos foram tão proveitosas. Possamos nós
não desperdiçar as que virão. O mundo, infelizmente, está cheio de cruzes perdidas, que
não servem para nada, como foi a do mau ladrão. A verdadeira alegria espiritual é a de
tender efetivamente para a santidade do céu, pelo caminho que o Senhor escolheu para
nós, por penoso que seja em alguns momentos; é a alegria de tender para esta santidade
com a certeza de que Deus não nos pede jamais o impossível, que Ele nos chama à vida
eterna e que nos oferece incessantemente graças para lá chegarmos.
(La vie spirituelle nº. 262, fevereiro de 1942 - tradução: Permanência)

1. 1.Cf. S. Tomás, IIa, IIae, q. 28.


2. 2.1Jo 4.
3. 3.Ia. Parte, caps. 9 e 10 (Noutras edições e traduções, cap. 19)
4. 4.Quando São João da Cruz pedia a Nosso Senhor a recompensa “de
sofrer e ser menosprezado por Ele” (no que foi prontamente ouvido), era uma graça
muito grande a que desejava. Não é, com efeito, o menosprezo por si mesmo que
desejava, mas a graça de suportá-lo com amor. Sem esta graça, o menosprezo, em si
mesmo, não serviria em absoluto para fazê-lo crescer na caridade e glorificar a
Deus.
As sete leis superiores da vida da graça

De modo geral, não prestamos atenção suficiente às leis superiores da vida da


graça. É uma consolação espiritual conhecê-las e vivê-las.
Conhecemos as leis da energia física, as da vida vegetal, da vida animal e as
leis naturais da vida humana, mas não conhecemos o suficiente as leis da vida da graça.
Conhecemos, por exemplo, a lei da conservação da energia física, segundo a
qual a quantidade de energia física permanece a mesma em suas diferentes
transformações; assim, o movimento local produz calor, como verificamos ao
esfregarmos as mãos; o calor produzido é uma forma de energia equivalente ao
movimento que a engendrou. Quando a energia desaparece sob uma forma, reaparece
sob outra: movimento, calor, luz, eletricidade etc.
Conhecemos também a lei da degradação da energia, segundo a qual a
energia, cuja quantidade se conserva, perde qualidade ou se degrada. É por isso que a
água das fontes quentes se resfria. É ainda por isso que os astros pouco a pouco se
apagam e se resfriam. Assim também a energia dos seres vivos se torna mais lenta e se
resfria na velhice.
Todos conhecemos as leis da vida vegetal, por exemplo, as da germinação,
segundo as quais uma boa semente de trigo em uma terra boa produz uma espiga de 30
grãos, por vezes de 60 e mesmo de 100, como está dito no Evangelho (Mc 4, 8). Não
prestamos suficiente atenção a isto, é uma das maravilhas da natureza que o trigo possa
dar 60 e mesmo 100 por um.
Quem deu esta força vital, este poder germinativo ao grão de trigo? É o
Criador, o Autor da vida, e é este, diz o Evangelho, o símbolo do que a graça
santificante pode produzir e de fato produz numa alma perfeitamente fiel.
Conhecemos também as leis do desenvolvimento das faculdades naturais da
criança, de sua inteligência, de sua vontade, de tudo o que contribui para a formação do
caráter moral ou das virtudes adquiridas da prudência, previdência, justiça, coragem,
paciência, temperança. Podemos ainda facilmente conhecer as leis da geração dos
vícios que se opõem às virtudes. Assim, o amor desregrado de si mesmo ou o egoísmo,
por vezes demasiadamente acentuado, gera a concupiscência da carne, a concupiscência
dos olhos e a soberba da vida, como diz São João (1 Jo 2, 16). Em seguida, destas três
concupiscências derivam, como mostra S. Tomás (Ia IIae, q. 77, a. 4, 5; q. 84, a. 4) os
sete pecados capitais e, destes, provém pecados ainda mais graves como a apostasia, o
desespero, o ódio de Deus e do próximo.
Porém, o que é particularmente instrutivo e reconfortante, é o que ensina a
teologia quando fala das leis da vida da graça.
Quais são as principais? Eis aqui sete, das quais muitas outras resultam.
***
A primeira é que somente Deus pode produzir a vida sobrenatural da graça
santificante em nossa alma espiritual e imortal. Apenas Ele a pode produzir pois ela
é uma participação de sua vida íntima, o germe da vida eterna, pela qual nós veremos
Deus face à face, como Ele se vê, e pela qual nós o amaremos eternamente, sem que
nada possa nos fazer perdê-lo. A vida da graça — semen gloriae — é como o germe da
visão beatífica e do amor sobrenatural de Deus e dos justos, visão e amor que não
cessarão jamais.
***
A segunda lei se pode formular assim: Desta vida sobrenatural da graça
derivam em nossa alma as virtudes infusas teologais e morais e os sete dons do Espírito
Santo. É esta a razão pela qual a graça santificante ou habitual é chamada: "graça das
virtudes e dos dons" (S.T. IIIa, q. 62, a. 2). Ela é, sobretudo, o princípio radical das
virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade1. E quando a fé e a esperança
desaparecerem (para dar lugar à posse de Deus pela visão beatífica) a caridade, amor
sobrenatural de Deus e do próximo, durará eternamente.
***
Uma terceira lei que deriva das duas precedentes é assim formulada por S.
Tomás: "o menor grau da graça santificante na alma de uma pequena criança batizada
vale mais que o bem natural de todo o universo" — "bonum gratiae unius majus est
quam bonum naturae totius universi" (Ia IIae, q. 113, a. 9, ad 2). Do mesmo modo, uma
ervinha, pelo fato de ser vivente, vale mais que todo o reino mineral; a menor sensação
vale mais que todo o reino vegetal e o menor pensamento humano, que todo o reino
animal. Por mais forte razão, o menor grau da graça e o menor movimento de caridade
infusa mais valem que o bem natural de todo o universo, e até mais do que todas as
naturezas angélicas criadas e passíveis de criação tomadas em conjunto, pois as
naturezas angélicas as mais altas são muito inferiores à vida essencialmente
sobrenatural da graça, que é, propriamente falando, uma participação da vida íntima de
Deus. Os anjos, tanto quanto nós, necessitaram do dom gratuito da graça santificante
para que tivessem neles o germe da vida eterna.
***
Uma quarta lei da vida sobrenatural pode se formular assim: a graça
santificante, uma vez produzida em nossa alma pelo batismo, deveria durar para
sempre em nós, e de fato ela duraria para sempre se o pecado mortal, que nos desvia de
Deus e que é inconciliável com ela, não nos fizesse perdê-la. Esta lei nos mostra o valor
desta vida sobrenatural e a gravidade de todo pecado mortal. Em certas regiões ainda
muito cristãs, como nas melhores partes do país basco e do Canadá, não é raro,
asseguram os padres destas regiões, ver excelentes cristãos morrerem em idade
avançada com a inocência batismal. Vê-se, por isso, o valor do batismo (batismo de
água ou batismo de desejo) e também o valor da absolvição que perdoa o pecado mortal
suscitando em nós uma verdadeira contrição que supõe o amor de Deus acima de tudo.
***
Uma quinta lei da vida sobrenatural é que a graça santificante e a
caridade deveriam não apenas durar para sempre em nós, mas deveriam crescer sempre
em nós até nosso último suspiro. Elas deveriam crescer sempre pela Santa Comunhão
"ex opere operato", por nossos méritos "ex opere operantis" e também por nossas
preces. É por isso que se diz no Evangelho de São Marcos (Mc 4, 8), na parábola do
semeador: "E outra parte caiu em boa terra; e deu fruto que vingou, e cresceu e um grão
dava trinta, outro sessenta e outro cem". É isto o que nós vemos nas vidas dos santos,
em particular por sua aceitação das contrariedades quotidianas que eles oferecem
imediatamente ao Senhor, e que assim se tornam ocasião de crescer constantemente na
caridade; cada uma destas contrariedades é assim como um degrau de escada que os
aproxima de Deus.
Os Padres da Igreja dizem sobre este assunto, e esta é uma outra formula da
mesma lei, que: "Na via que leva a Deus, quem não avança, recua", pois há um dever
de avançar, e não de quedar-se estacionário in via. Do mesmo modo, a criança que não
cresce tanto quanto deveria, não continua criança, mas se torna um anão disforme. Uma
alma cristã que não avança, torna-se uma alma retardada. Assim, S. Tomás ensina que
quando nossos atos de caridade são fracos, remissos (remissi), a ponto de serem
inferiores em intensidade ao grau em que se encontra esta virtude em nós, eles não
obtêm logo o aumento de caridade que merecem; eles não o obterão a não ser que
façamos um ato mais intenso ou mais generoso (cf. IIa IIae, q. 24, a. 6, ad 1): "Quilibet
actus caritatis meretur caritatis augmentum non tamen statim augetur, sed quanto
aliquis conatur ad huiusmodi augmentum". Se temos uma caridade de cinco talentos e
durante um mês agirmos como se nós não tivéssemos senão dois talentos, nós não
obteremos tão logo um sexto talento, e nós não o obteremos senão quando, fiéis a uma
nova graça atual, fizermos um ato mais generoso.
***
Uma sexta lei é que a graça santificante e a caridade deveriam crescer em nós
de uma maneira uniformemente acelerada. É isto o que diz S. Tomás em seu
Comentário à Epístola aos Hebreus (10, 25), lá onde se diz que: "Devemos nos exortar
uns aos outros, tanto mais quanto virdes que se aproxima o dia final" — "tanto magis
quanto videritis appropinquantem diem". S. Tomás diz a este propósito: "O movimento
natural (por exemplo, o da pedra que se aproxima do centro da terra) é tanto mais
rápido quanto se aproxima de seu termo. Ora, a graça nos inclina como uma segunda
natureza. Portanto, aqueles que estão em estado de graça devem tanto
mais crescer quanto mais se aproximarem de Deus".
O Santo Doutor entreviu confusamente aqui a lei da gravitação universal e da
aceleração da queda dos corpos, e ele imediatamente a aplicou ao movimento das almas
justas que gravitam em direção de Deus: "Como a pedra tende para o centro da terra
com velocidade tanto maior quanto mais dele se aproxima, assim as almas em estado de
graça devem seguir em direção a Deus com tanto maior velocidade quanto mais Dele se
aproximam e quanto mais são atraídas por Ele". S. Tomás o confirma com estas
palavras do livro dos Provérbios (4, 18): "A vereda dos justos é como luz que
resplandece, cujo brilho cresce até o dia pleno".
Com efeito, a caridade dos santos cresce muito mais nos últimos anos de suas
vidas que nos dez ou vinte primeiros considerados em conjunto.
Esta lei do crescimento foi freqüentemente lembrada por S. Paulo, cf. Ef 4, 15;
Col 1, 10; e por S. Pedro, 1 Pd 2, 2; 3, 18. Ela se verificou perfeitamente em Maria e, de
modo menos perfeito, na vida dos santos: sua velhice os aproxima cada dia, apesar das
enfermidades de uma idade mais ou menos avançada, da juventude eterna do céu.
***
Uma sétima lei da vida da graça diz respeito ao fim de nossa vida terrestre, e
pode se formular assim: "A ordem radical da vida da graça seria a de desabrochar em
vida eterna imediatamente após a morte, se não tivéssemos pecados a expiar". A razão
é que o purgatório é uma justa pena que Deus só pode infligir em virtude de um pecado
que se poderia evitar e reparar antes da morte. Assim se explica que o principal
sofrimento das almas do purgatório não é o dos sentidos, mas o da privação da posse de
Deus visto face à face. Estas almas sofrem muito mais desta privação que durante sua
vida terrestre. Por que? Porque, imediatamente após a morte, seria da ordem radical da
vida da graça gozar imediatamente da visão beatífica. As almas do purgatório têm uma
fome e uma sede de Deus da qual não temos nenhuma experiência; elas faltaram ao
encontro com Deus e sabem bem que a culpa é delas. Nós não possuímos senão uma
débil imagem disso na experiência da fome: se não comemos há 5 ou 6 horas, não
sofremos fome; mas se não comemos há três dias, será da ordem radical da vida de
nosso organismo se restaurar pela alimentação. Há qualquer coisa de similar na fome
espiritual de Deus, uma vez chegada a hora de O ver e de O possuir para sempre.
Esta sétima lei, que é de ordem muito elevada, se realizou nos mártires, e deve
também se realizar naqueles que generosamente se submeteram ao martírio do coração
para a expiação de seus pecados e para a salvação dos pecadores. Mas não se deveria
esquecer que foi revelado à Santa Teresa que, entre todos os religiosos que ela tinha
conhecido e que estavam mortos, três apenas tinham evitado o purgatório.
***
Estas sete leis da vida da graça são esplêndidas, elas são objeto da
contemplação dos santos; existem muitas outras, que são como que corolários destas:
Pensemos nas principais:
— A vida da graça que apenas Deus pode produzir em nós, deveria sempre
durar em nós, sem jamais ser interrompida pelo pecado mortal.
— A vida da graça deveria crescer em nós como a velocidade de um
movimento natural uniformemente acelerado.
— A vida da graça, imediatamente após nossa morte, deveria desabrochar em
nós em vida eterna.
Mas há o pecado e suas tristes leis que freqüentemente impedem a aplicação
das leis da vida da graça. Por que? Porque, enquanto estamos sobre a terra "carregamos
este tesouro da vida sobrenatural em um vaso frágil". A graça santificante, participação
da vida íntima de Deus, é como uma água muito límpida que se conservaria sempre
pura, se o vaso que a contém não viesse a se rachar. Então, é preciso lutar contra nossa
natureza decaída, para não escorregar por sua ladeira; esta luta, nos dizem os santos,
deve ser inspirada pelo espírito de sacrifício que é uma das formas mais belas, mais
frutuosas, freqüentemente mais escondidas, do amor de Deus.
Uma outra lei superior da vida da graça é que, pelo progresso no amor de Deus
e do próximo, Nosso Senhor nos incorpora cada vez mais em Si mesmo, como membros
cada vez mais vivos de seu Corpo místico. Ora, por esta progressiva incorporação, Ele
nos associa primeiramente à sua infância, depois à sua vida escondida, depois à sua
vida apostólica e, enfim, à sua vida dolorosa, antes de nos associar à sua vida gloriosa
no céu. Esta oitava lei, que lembra a oitava beatitude evangélica, realiza-se na vida dos
santos e das almas muito generosas que aspiram à uma progressiva configuração ao
Cristo Jesus, crucificado por nossa salvação, que se ofereceu como vítima por amor de
seu Pai e por amor de nós.

(Angelicum 32, pp. 117-123. Tradução: PERMANÊNCIA)


1. 1.Ademais, sendo todas as virtudes infusas e os sete dons conexos
com a caridade, "crescem juntos como os cinco dedos da mão" diz S. Tomás (Ia
IIae, q. 66, a. 2 e q. 68, a. 5). Deste ponto de vista, não se pode ter uma alta
caridade (para a qual o preceito supremo do amor de Deus e do próximo nos obriga
a tender) sem ter os dons do Santo Espírito a um grau proporcionado, por ex., os
dons da inteligência, da sabedoria, da piedade, ainda que, em alguns justos,
apareçam estes dons sob uma forma mais contemplativa e em outros, sob uma forma
mais ativa.
Conferências sobre a Santidade (I)

Pe. Matéo Crawley-Boevey

Nota da Permanência: O Padre Matéo proferiu estas conferências às


superioras de diversas comunidades religiosas do Canadá, na província do Québec, em
1945. Embora endereçadas às almas consagradas, estas conferências são utilíssimas
aos leigos, havendo estes tão-somente de fazer as devidas substituições, como “almas
consagradas” por “almas batizadas”, “comunidade” por “família”, “vida religiosa”
por “vida cristã” e assim por diante.
Inclinar-se à santidade

Como vocês são religiosas, falemos sobre a vida religiosa; comecemos pelo
começo. A vida religiosa é uma pedra angular. O padre não é um homem como outro
qualquer, mas é um super-homem, um homem divinizado. Uma religiosa como vocês
não é uma dama fina e inteligente, de forma nenhuma, mas sim uma pessoa consagrada
a Deus; vocês são esposas e rainhas do rei Jesus, não servas, e muito menos escravas.
Bem sei que vocês são insignificantes grãos de areia, mas Jesus as escolheu, de modo
que a consagração é um casamento, não porque vocês o tenham pretendido, mas porque
Jesus o quis assim. Essa união com Jesus é um casamento divino.
Certa feita uma religiosa ensinava a uma princesa a quem teve de repreender; a
princesinha, irritada, recusava-se a obedecer e encolerizada disse: “Esqueceu-se de que
sou filha do rei de França?”, ao que a religiosa respondeu: “Esqueceu-se de que sou
esposa do rei dos reis, diante de quem o seu paizinho se ajoelha?”

A quem muito foi dado, muito será cobrado: o milionário não será cobrado
como o servo. Vocês não serão julgadas como escravas mas prediletas. Cobrará o rei:
“Recebeste tesouros, por isso vem prestar contas do diadema e do manto real.” Essa
frase lhes deve provocar calafrios. A principal glória da vida religiosa é a de que vocês
são as minhas prediletas, lhes diz Jesus, minhas pombas e filhinhas do coração.
Quando morrerem, Jesus não perguntará se vocês instruíam cinqüenta alunas ou
administravam um grande hospital, mas: “Amaste-me tu como uma rainha? Agiste
como minha predileta?” Ele não dirá: “Vê as minhas mãos e os meus pés, que os
impuros, os maus e os ímpios machucaram”; não, o primeiro sofrimento lhe virá das
almas consagradas! “Tu me juraste que serias santa: que fizeste do juramento?”
Não pensamos o suficiente nessa queixa de Nosso Senhor em Paray-le-Monial.
Normalmente se reclama de que as obras não vão para frente, de que há algo de errado
com as irmãs, mas Nosso Senhor bem que poderia perguntar: “Recordas-te da tua
profissão? Prometeste ser santa e, depois de quarenta anos, ainda não és.” Profissão
significa convento e religião; por que entrei no convento? Vocês afirmam: “Para salvar
a minha alma ou salvar almas.” Salvar a minha alma? Quem lhes disse que os três votos
são necessários para ir ao céu? Então, papai e mãe vão ao inferno, pois eles não fizeram
os três votos! O batismo, a penitência e a comunhão são suficientes para que papai e
mamãe se salvem, bem como milhares de cristãos pelo mundo. Mas vocês insistem:
“Vim para salvar as almas.” Pois bem! Salvar almas é conseqüência, pois as salvarão à
medida de sua santidade.
Vocês entraram no convento para se tornarem santas: eis o princípio e o cerne
da vida religiosa. Vocês são religiosas para que sejam santas e mais nada, o resto já está
contido nisto. Ninguém está aqui para se instruir ou curar as feridas, mas para se
transformar em santo; o único ideal da vida religiosa é amar como amaram os santos,
ou seja, ser um santo com S maiúsculo a todo o custo. A pobreza, a castidade e a
obediência são os três votos que me ajudarão; diariamente, com a graça de Deus,
subirei, subirei e me tornarei santa. Se alguém já lhes disse isso, bem-aventuradas são;
se esta é a primeira vez, mãos à obra. Ninguém está aqui para brincar de teatro, música,
literatura e quejandos, mas para ser santa. Esta é a instrução que vocês devem transmitir
às noviças. Não se tornar uma pessoa má não é um ideal, mas é o mínimo; se a mulher é
religiosa apenas para evitar o pecado, está perdendo tempo.

“Senhor, dai-nos a vitória”


Quando visitei o papa, ele me perguntou: “Padre, que mais o inquietou nas suas
palestras pelo mundo?” Fiquei hesitante. “– Fale, fale. – A falta de santos, a falta de
santos.” Só o céu canoniza, só ele o rei que sabe de tudo; mas onde estão os seus santos
canonizados? Agora chegou o momento: abandonem tudo o mais e se tornem santas!

Vou citar-lhes um episódio ocorrido durante a 1ª Guerra Mundial [1914-1918]:


uma boa irmã, mas não santa, que tinha dois irmãos de sangue oficiais, repetia sempre
entre gemidos: “Senhor, dai-nos a vitória! Nossa vitória, Senhor!” Certo dia escutou ela
uma voz que saia do tabernáculo: “De que vitória falas? – Da vitória das nossas forças
armadas. – Deixa isso comigo, disse Jesus; eu sou o Mestre, por isso suplique antes a
minha vitória. – Que vitória, Senhor? – Quê? Tu, que és religiosa, não sabes qual é a
minha vitória? A minha vitória é que tu sejas uma santa, pois boas irmãs como tu tenho
para dar e vender.”
Como os santos nos fazem falta, o mundo definha porque estão faltando
santos!

O primeiro dever da religiosa é santificar-se e oferecer ao próximo algo da


própria fartura santificando-o. Não sejam modernistas: é errado aceitar moças para
enfermeiras ou instrutoras. Necessitamos de noviças, assim se constitui erro grave a
falta de rigor na escolha delas. A melhor religiosa, essa será a melhor instrutora e
enfermeira; o resto vem em acréscimo. Perguntar-se-ão as religiosas: “Nós, santas? Não
passamos de um fardo de misérias.” Pobre Jesus! Quando ele as escolheu, não sabia que
eram miseráveis? Estava ele cego, sonolento, com a vista embaçada? Jesus não dorme,
pois ele é justiça e sabedoria; Jesus as enxergou tais quais eram, sabia o que eram e,
porque nunca se engana, as escolheu, para que se tornassem santas.
Acompanhando o chamado vêm as graças de estado; se a moça a quem chamei
não consegue aumentar o resplendor das estrelas, eu, Jesus, que sou o guia dela,
consigo. Ele nos concedeu milhares de graças para que sejamos santos! Quantos
grandes santos receberam menos que nós! Nasceram com três centavos e morreram
milionários; foram generosos e se tornaram sóis gloriosos. Talvez São Francisco de
Assis e Santa Margarida Maria tenham sido menos favorecidos que nós, porém foram
fidelíssimos ao capitalizar os dons de Deus! Sejam exigentes com as meninas que
acolherem; quiçá percam umas cinco ou dez, mas seriam cinco ou dez noviças em
demasia. Uma moça de dezenove anos costumava travar relações com religiosas não
santas; convidaram-na a ingressar ao convento, contudo ela respondeu: “Ser religiosa é
só isso? Vou ficar com a minha família.” Por vezes é assim que as boas almas se
afastam.

A graça, a generosidade e a educação


Antes de tudo, é a graça que faz os santos. Jesus não pede mais do que
podemos dar; mas se ele nos pede nos dá. Dá dez vezes mais que o necessário. O
purgatório ficará cheio até a boca com almas que viveram vinte, trinta, quarenta anos no
convento sem saber que a graça de Deus as ajudava e sem haver feito frutificá-la. Vocês
são capazes de serem muito maiores que a singela Teresinha, apesar de serem apenas
singelas cristãs. A santidade se baseia em graças superabundantes. Ninguém exige que
uma pedrinha voe, mas com a graça de Deus é possível.
A santidade se baseia em generosidade: elevemo-nos cada vez mais, não
fiquemos parados, nunca. Criemos asas, quais pássaros, que começam a voar aos
poucos, e nos elevemos sempre. Teresinha, que se alçou tão alto em apenas vinte e
quatro anos, dá-nos uma lição. Que fez ela? Escutem: “Nunca recusei nada ao bom
Deus, desde a idade de quatro anos.” Talvez ela tenha recebido um capital menor que o
de vocês e o meu, mas ela aumentou esse capital. Se vocês têm remorsos de haverem
recusado muitas coisas do bom Deus, bem, a partir deste retiro vocês já não recusarão
nada, progredindo no caminho de Teresinha: doação total, coração em troca de
coração. Não ingressamos nas ordens apenas para que não sejamos impuros ou maus,
porque, passado bastante tempo, conseguimos renunciar o pecado; de fato, renunciamos
coisas excelentes: o casamento, a vida de família; mas nós nos limitamos, e porque nos
limitamos, limitando a doação total, não somos totalmente de Jesus, e só dele.
A santidade se baseia na educação religiosa. Para que se formem os jovens
nessa doação total, força é lembrarem-se dos santos: é essa a sua responsabilidade. Uma
barra de ouro tem de ser purificada e cinzelada, a fim de que se transforme em cálice. O
esforço e a labuta da boa vontade, diariamente, é o que faz os santos. Vocês precisam
amar o esforço e torná-lo amável.
Um de nossos padres, provincial durante alguns anos – e morto em odor de
santidade, envolto numa atmosfera de humildade e paz –, fora um moço altivo e
orgulhoso, cheio de defeitos. Aos pouquinhos se transformou em santo, pelo esforço
cotidiano. Aquele moço colérico, que tinha enormes defeitos e qualidades enormes, ao
fim da vida se tornara um repositório de bondade e tranqüilidade, amado por todos e
lamentado com soluços pelos religiosos que lhe assistiram à partida para o céu.

Sim, a santidade se baseia na educação também. Não basta ser uma boa irmã e
contentar-se com isso, mas tentar imitar Teresinha. Eu lhes imploro, em nome do
Sacratíssimo Coração de Jesus, para que vocês se tornem santas, pois é este o seu único
dever, e só este.
Se vocês confiam mais na menina que tem vocação para boa mestra do que
para boa religiosa, expiarão tal erro.

Vivemos aos trancos e barrancos, por isso desejaríamos sempre diminuir as


exigências da religião, deixar a vida correr frouxa. Que pena! Há cem anos éramos mais
religiosos. Que fazem vocês, se não trabalham na santidade? Deste modo se perde a
glória de Deus, a de vocês e a das almas. Os padres devem ser o Cristo da paróquia,
e também vocês devem ser um pouco como ele, sendo assim muito mais religiosas.
Convençam-se em ser religiosas acima de tudo, e ainda assim considerem que talvez
não estejam entre as primeiras almas da paróquia. É impossível Jesus reinar contra mim
e vocês, pois vocês e suas comunidades são a guarda real do rei; portanto, despertem a
luz e o calor nos corações e nas comunidades... Jesus não nos exige milagres, senão o
milagre do amor, que é a ambição de ser santo custe o que custar. Quem salvará o
nosso país? Não serão os políticos mas os santos. Um Cura d’Ars é mais glorioso para a
França que mil Napoleões.
Realizaram vocês os esforços amorosos que lhes espera o rei, a exemplo de
Teresinha ou Bernadete? Nem todos podem ser artistas, mas podem ser santos. Se não
há santos nos conventos, onde encontrá-los? Se não há água nas fontes, onde bebê-la?
Se não há flores nos jardins, onde colhê-las? Se não há árvores das florestas, onde
buscá-las? Se não há estrelas no firmamento, onde fitá-las? A fonte é o convento, o
jardim é o convento, a floresta é o convento, e o céu é o convento. Catarina Tekakwitha
se elevou bastante; ela era uma pequena iroquesa; quiçá ela será considerada santa antes
de vocês, mesmo sendo uma selvagenzinha! Se Deus quiser, tomara que ela as
ultrapasse; Catarina não era religiosa, mas um passarinho da floresta. Já vocês são
estrelas do firmamento. De direito, a santidade é sua; de fato, é dela.
Deus lhes está chamando, assim tratem de se elevar com asas de águia,
pois Jesus, o rei, quer o milagre de sua santificação. O único objetivo de vocês serem
religiosas é a glória de Deus. Urge que todas e cada uma sejam santas, e eduquem as
suas filhas, pois ninguém dá o que não tem: sejam santas para transmitir a santidade.

“A missa na intenção de vocês é a minha grande pregação”


A doutrina do Sacratíssimo Coração de Jesus é uma teologia inteira por si só;
reparem bem: o amor do Cristo é o dogma, o meu amor é a moral. Essa teologia se
resume em três cenas: a manjedoura, a cruz e o altar. O quadro da missa que está neste
local é obra de um padre belga; ele suprimiu os pormenores que distrairiam o fiel da
missa: não há flores nem anjos, mas somente o sacrifício.
Suplico-lhes a esmola de uma oração ou de uma via crucis em favor das almas
pecadoras dos consagrados, que precisam de luz imensa para retornarem a Deus; depois,
durante o retiro, o Rosário da Santíssima Virgem. Celebro a missa durante a comunhão
para ajudá-las a dar graças a Nosso Senhor. A missa na intenção de vocês é a minha
grande pregação; só aí espero fazer alguma coisa pelas suas comunidades. Aqui, uso a
minha língua; mas a melhor pregação é a do Senhor na missa. Essa pregação cala mais e
melhor nos corações, pois quem lhas dá é o Sacratíssimo Coração de Jesus. Supliquem
ao Sacratíssimo Coração de Jesus para que lhes deem luzes.
(Tradução: Permanência / Revista Permanência 274)
Conferências sobre a santidade (III)

Nota da Permanência: O Padre Matéo proferiu estas conferências às


superioras de diversas comunidades religiosas do Canadá, na província do Québec, em
1945. Embora endereçadas às almas consagradas, estas conferências são utilíssimas
aos leigos, havendo estes tão-somente de fazer as devidas substituições, como “almas
consagradas” por “almas batizadas”, “comunidade” por “família”, “vida religiosa”
por “vida cristã” e assim por diante.
Pe. Matteo Crawley-Boevey

Pensamento na eternidade

Certo dia um grande pregador dominicano que passava por Ávila consultara
Santa Teresa sobre o tema das pregações. “Pregue sobre o que quiser, disse-lhe ela, mas
sempre tenha o pensamento na eternidade, pois não existe missão sem pensamento na
eternidade.” Pois então, nada de retiro sem o pensamento na eternidade. Eis o que
veremos uns dez minutos antes de comparecer diante do tribunal. Durante os estertores
acontece uma batalha, uma luta: o moribundo apreende com impressionante nitidez a
sua vida inteira e, nesse momento de extraordinária lucidez, descortina-se para ele a
eternidade...
Certa vez um jovem marquês divertia-se num baile noturno, onde se reuniam
mais de quinhentas pessoas. De súbito exclamou: “Eu vejo, eu vejo! Oh, oh! ...”
Acercam-no as pessoas: “Que viu você? – Eu vi, eu vi! – Mas viu o quê? – Vi o juiz e o
tribunal; vi a eternidade. Ah, como somos loucos! Sim, loucos, pois dançamos às bordas
do abismo eterno!” Acharam que havia surtado. Ele, no entanto, exigia: “Mandem vir o
tabelião, para fazer o meu testamento! Estou morto, deem os meus bens aos jesuítas
etc.” Atenderam aos desejos dele. Pouco tempo depois ele se retirou numa gruta da
floresta, onde levava vida de bicho mas alegre como um passarinho.

Bem-aventurados os que já estão preparados! Muitos ainda não estão prontos,


até entre as almas consagradas. Se vocês são complacentes consigo mesmas, será
dureza, mas se forem rigorosas, será leve. Julguemo-nos a nós enquanto há tempo:
vejamos a partir de agora o que veremos às portas da eternidade, na hora da agonia, dez
minutos antes de morrer. Nada melhor que repassar a nossa vida.
Apresento-lhes três pinturas ou quadros:

1º A brevidade da vida – Vocês tinham sete ou oito anos; lembrem-se da


primeira confissão, da primeira comunhão... Parece que está longe, mas na verdade foi
ontem. Neste ínterim, a vida passou como um sonho. Onde estaremos daqui a trinta
anos? Como é bom sentir-se sacudido por um pensamento cristão! Se temos medo de
acompanhar um enterro, talvez signifique que ainda não estamos prontos. Vocês
aconselham as suas filhas, mas será que estão preparadas? Ah, as ilusões da vida!
Certa feita uma moça de vinte e quatro anos, casada havia sete meses, estava
para morrer, mas ela não aceitava: “Oh, não posso morrer, não quero morrer, sou jovem
demais!” – O pensamento da morte deveria ser a nossa alegria.

Uma criança de dez anos, bastante doente, preparava-se para morrer; fui visitá-
la e lhe perguntei: “Você tem medo da morte? – Não, me respondeu ela, não tenho
medo de morrer, mas do que vem depois.” Ela tinha razão. O mistério é o depois.
Quando uma pessoa é religiosa de verdade, a morte não é assustadora. Compreendam
isso à luz do retiro: se vocês negligenciaram as orações e a vida interior, pensem no que
verão à hora da morte. Há algo de sagrado na morte, mas infelizmente somos qual o
capitão que estimula a que outros embarquem, enquanto ele fica na praia...
Havia um moço de vinte e oito anos que escalava uma montanha, subindo e
subindo a cada passo. De repente deu com o pé em falso e escorregou, caindo vertente
abaixo, apesar de em vão tentar agarrar-se às saliências da encosta. Onde foi ele parar?
Foi até às bordas do abismo! Deteve-o uma pedrinha. Alçaram-no dali com uso de
cabos, conseguindo-o tirar daquela situação. Ficou com os cabelos totalmente brancos.

2º Tudo é vaidade, exceto Deus – Renunciamos ao casamento, instituição


sagrada; renunciamos à vida de família, instituição excelente – e apegamo-nos a bibelôs
ridículos. Somos uns loucos! Vaidade é orgulhar-se do próprio talento; vaidade
orgulhar-se das próprias qualidades; vaidade orgulhar-se das alegrias sensíveis: música,
poesia, pintura; vaidade orgulhar-se de um encargo ou honraria, pois tudo passa. A pior
das mancadas é chegar à morte sem nunca haver pensado a sério em formar santas.
Quantos remorsos sentirão! Vocês são superioras; talvez já tenham sentido o leve
contentamento e o discreto perfume da elevação. Pois bem, o Juiz Supremo lhes pedirá
contas do encargo... Bem-aventurada quem enxerga claramente antes da morte! O Papa
Celestino abandonou o pontificado dizendo: “Quero ir para a solidão e salvar a minha
alma.” A única realidade da vida é a morte, só ela. Tudo passa, tudo some, tudo
foge, mas só ela permanece.
Certo moço, conde e oficial das forças armadas, casara com uma jovem
marquesa. Alguns anos depois, aquele moço, cujo casamento abençoei, pediu-me para
que se entronizasse o Sacratíssimo Coração de Jesus em seu lar. Falei algo sobre a
devoção ao Sagrado Coração e o modo de viver a entronização. Estavam todos de
joelhos: o pai, a mãe, os irmãos; as irmãs também estavam presentes. Pregava eu: “A
única realidade é o Sacratíssimo Coração de Jesus, é Ele a única realidade, a única!”
Quando menos se esperava, uma luz iluminou o conde, que escutava uma voz como a
lhe dizer: “Deixa tudo, deixa tudo”. A luz e a voz o perseguiam; depois de alguns dias, a
jovem marquesa, que já havia sonhado com o Carmelo, sentira também o chamado.
Escreveram ambos a Roma; a resposta demorou um ano. No dia 8 de dezembro de 1918
ou 1919 despediram-se e cantaram o Magnificat. Ela escolheu um Carmelo flamengo,
para que ficasse mais isolada; hoje é ela a priora de lá. Já ele é o meu superior geral.
Caso vocês conservem apegos, cortem-nos antes de morrer. Não haja em suas vidas o
menor laço.

3º O pecado – Já cometeram algum pecado mortal durante a vida? O pecado é


uma triste realidade. Para a glória do rei, temam o pecado! Transformar-se num leproso
mefítico, embora apavorante, é aceitável; já o pecado é o pior dos males para vocês e
suas filhas.

A grande prova da existência do inferno


Qual é o argumento mais poderoso para provar existência do inferno e a
eternidade dele? Algo de mais poderoso que a palavra de Nosso Senhor? O crucifixo.
Um Deus se crucifica por diversão? Não, ele morre como um bandido para nos poupar
do inferno. Nosso Senhor fala no Evangelho mais de dez vezes acerca da geena e do
fogo: “Temei a geena... sereis lançados ao fogo do inferno.” Porém, a morte do Cristo
para salvar-nos desse fogo cala ainda mais forte. Quem contradita o Eterno é louco ou
canalha. Existem livros que nos instruem sobre o inferno afirmando que todos os
demônios estão presentes à hora da morte. Por que não dizem que quem estará lá
conosco é o Salvador, o Bem-Amado, o que derramou sangue para nos salvar? Vocês
são o espólio do Senhor, assim para que escapem de Seus braços seria preciso que
fizessem força, pois Ele não as abandonará tão facilmente. O temor filial é dom, graça,
prudência e humildade. Esperem n’ Ele, confiem n’Ele sempre mais, esperem! Até os
canalhas devem esperar nele. Ele aguarda, aguarda mais um segundo, ainda outro, para
que vocês lhe declarem: “Eu Vos amo!” Os nomes de vocês estão gravados no coração
de Jesus desde o batismo, ou melhor, desde a profissão. Ninguém será capaz de apagá-
los de lá, a menos que vocês mesmas o façam. Vocês hão de enxergar tais nomes no
momento da agonia! Hão de morrer como São José, nos braços de Nosso Senhor, com a
cabeça apoiada sobre o peito dele. Não é morte morrer assim!

Há alguns meses, uma humilde irmãzinha, serva dos pobres, morreu em grande
júbilo, cantando. Só quem é humilde e confiante morre assim. A religiosa é religiosa,
esposa e rainha para sempre. Sejam santas na vida e na morte, e a morte não será morte,
pois passarão da vida de consagradas cá embaixo à glória de prediletas lá em cima, ao
lado dele.

Conferências sobre a santidade (iv)

Nota da Permanência: Pe. Matéo proferiu estas conferências às superioras de


diversas comunidades religiosas do Canadá, na província do Québec, em 1945.
Embora endereçadas às almas consagradas, estas conferências são utilíssimas aos
leigos, havendo estes tão-somente de fazer as devidas substituições, como “almas
consagradas” por “almas batizadas”, “comunidade” por “família”, “vida religiosa”
por “vida cristã” e assim por diante.
Pe. Matéo Crawley-Boevey

Santidade pela via comum

A santidade é possível a todos


É formidável que um pregador lhes incuta coragem e força durante o retiro.
Com frequência sofremos tentações de desânimo, porque não conseguimos emendar-
nos, mesmo depois de anos e anos. Viver em luta às vezes é deprimente, mormente se
percebemos as misérias, feiuras e lacunas de nossa alma. Deixem para lá os cálculos,
porque é ridículo: cálculos são para a ciência e não para a vida espiritual. A tentação do
desânimo vem do pensamento sobre a persistência das misérias pessoais após anos
dentro do convento. Escutem: a santidade é um dever, e dever sempre possível; portanto,
é possível tornar-se santo. Se não, estaríamos dizendo a Nosso Senhor: “Estais louco?
Vós ordenais o impossível!” Nada disso: a santidade não só é possível, como dever de
vocação; na verdade é o único, pois tudo se inclui nele. Assim, repito: A santidade é
possível a todas, porque é um dever da vocação de vocês.

Deus nos dá os meios para a santidade


Fizeram vocês os três votos só para não cometer pecado mortal? Ingressaram
no convento só para evitar o mal? Não, vieram aqui para se tornarem santas, pois é esta
a lei dos conselhos evangélicos. Geralmente se pergunta se isto ou aquilo é permitido, se
em determinado caso é ou não pecado. Nosso dever não é contentar-nos em evitar o
pecado. Existem coisas que são boas em si mesmas, como quem sabe os perfumes, mas
não são boas para mim nem para vocês; se querem ser boas, abandonem dez, cem coisas
belas e boas e sigam-me. Nosso Senhor não exige um grama a mais; porém, se vocês
pedirem dez quilos, ele lhes dará mais dez graças em acréscimo; se ele lhes exigir um
trabalho de gigante, dar-lhes-á uma força de gigante. Jesus é sabedoria, justiça e amor,
por isso se ele exigir dez, jamais lhes dará menos de dez; e se exigir cinqüenta, não lhes
dará menos de cinqüenta. Quiçá ele lhes peça um extra, a exemplo dos mártires; se
assim for, dar-lhes-á uma graça extra. Os mártires receberam o chamado e com ele a
graça correspondente. Quando ele lhes pede dez, dá-lhes sempre dez, quando não vinte.
A revolução na Espanha era uma guerra entre vermelhos e brancos; no fundo,
era uma guerra contra os católicos: 16.000 padres e 12 bispos foram chacinados, afora
as 200.000 pessoas mortas, e não houve nem um apóstata sequer, fosse ele padre,
religiosa, seminarista, noviço, homem ou mocinha! É este um fenômeno singular na
história da Igreja. Se há trinta anos alguém previsse: “Acontecerá daqui a alguns anos
atrocidades; vocês serão maltratados e assassinados”, teriam essas pessoas a coragem
então demonstrada?
Certo dia uma menininha de onze anos, cujo pai ia à Missa todas as manhãs,
foi detida por um revolucionário: “Escute, minha menina, se você puser com bastante
cuidado aqui (ele tinha um crucifixo na mão) só um pouquinho da lama do seu pezinho,
não vai ser trucidada”. Ela deu um grito e, de fronte erguida, declarou: “Não, nunca,
jamais”. Colocaram-na no paredão...

O grande meio
Como é reconfortante pensar que a santidade é possível para todos e
que devemos esforçar-nos para nos transformar em santos!
Mas por que caminho, rota ou meio?

O caminho? Ele é o caminho! Vocês não conseguiriam imitar João Batista, que
não come nem dorme. Por isso, siga a Ele. Seremos santos, como Santa Margarida
Maria ou Santa Teresinha, se andarmos no singelo caminho de Nazaré, na vereda banal
do dever cotidiano; a superiora, no dever de estado de superiora; a instrutora de turma,
no dever de estado de instrutora; a cozinheira, no dever de estado de cozinheira. A vida
de santidade não é uma estrada em ziguezague, mas o dever de estado, e o dever de
estado é uma simples linha reta, que se vai elevando mais e mais. O caminho da
santidade é a simplicidade de Nazaré no cumprimento do dever próprio e particular a
cada um.
É possível um homem ser um camponês paupérrimo e magnânimo; é possível
uma mulher ser humilde mas virtuosa e magnânima.

Nazaré era um cantinho do paraíso onde os três – a trindade terrestre – viveram


a vida simples e obscura, no cumprimento do dever de estado! Só eles são santos de
verdade. Aquele varão que está serrando a madeira é José; aquela mulher que com
modéstia arruma a casa é Maria; e aquela criança, incomparável criança, é Jesus. Sim,
os únicos santos, muitos mais simples e humildes que vocês e eu. Que fazem eles? A
que se dedicam? Ao governo dos povos? Não: cumprem o dever de estado, e o
cumprem durante trinta anos, escondidos, ignorados, sem glória. Quantos são os que
querem operar milagres, quando é a vida de obscuridade que nos leva à santidade! O
dever de estado de cada um é o caminho da santidade. Não existem duas categorias de
religiosas: a irmã conversa está tão obrigada à santidade quanto a superiora; mas a
superiora se santificará no cumprimento do dever de superiora, e a cozinheira no de
cozinheira. Não esqueçam que os três santos de Nazaré são maiores que todos os santos
do céu. Visitei a fonte onde Maria ia retirar água, e comecei a imaginar na simplicidade
daquela grandiosa mulher, a Virgem, que não fez milagres e nunca viveu uma só hora
de glória terrestre; imaginei também em São José, homem simples, de vida operosa e
humilde.

Santidade e auréola
Há muitos equívocos sobre a santidade, e talvez vocês mesmas alimentem erros
a respeito dela. Os santos seriam criaturas com auréolas! Existem muitos deles que não
possuem auréola e ainda assim são santos, pois que milagres e visões não fazem
santos1. A santidade é um milagre de fé e amor. Há santos sem auréola e auréola sem
santos. A rainha dos santos não tinha auréola nem operou milagres. Judas tinha auréola
e operou milagres, e ele não é santo. Prestem atenção: joguem no cesto as biografias
desconcertantes, que amiúde são poesia e às vezes besteira. Recusem as narrativas que
empurram a santidade para fora do caminho de Nazaré. Joguem fora as revelações de
Catarina Eymerich, de Maria de Ágreda e de outras mais! Vocês oferecem e transmitem
essas revelações ridículas, e as noviças engolem isso e ficam divagando: “Nunca fiz
milagres, nunca tive visões!” Sem divagações, por favor, e mais doutrina. Sem êxtases –
sus! – pois os nossos conventos já estão empesteados de visionárias e histéricas. Maria,
a Virgem de Nazaré, sem milagres, sem visões, era a rainha da fé; e José, um santo de
fé, sem êxtases.
Certo dia uma senhora me veio bater à porta: “Trago-lhe uma mensagem do
Sacratíssimo Coração de Jesus. – Não recebo mensagens do Sacratíssimo Coração de
Jesus, vindas de uma palhaça como você. Vá lavar o rosto (ela estava toda maquiada).”
Outra veio procurar-me: “Padre, o senhor me disse A, mas Nosso Senhor me
disse B! – Então vá se confessar com Nosso Senhor, se não dizemos a mesma coisa.”

Carismas não significam santidade


Nazaré, Nazaré! Caminho simples, estrada real. Francisco de Assis não é santo
porque carregava os estigmas, que são apenas um carisma. Deus pode dar carismas, ou
seja, presentes, mas carismas não significam santidade. Podemos ter o presente e não
sermos santos.
Vivemos numa época de fantasia e histeria; a guerra acentuou tais fraquezas.
Declara a Igreja: vivam da fé e amem a Deus, e não: tenham visões e façam milagres!
Deixem de lado as visões e os estigmas, que não provam nada, e andem pelo caminho
simples de Nazaré. Oh, como Nazaré é bela! Não havia êxtases, mas o batido caminho
do dever. Nazaré, a estrada real! Vocês podem ser grandes santos exatamente onde
estão.
Um médico de Milão, bom católico, morreu de súbito num vagão de trem.
Aparentemente era um médico como outro qualquer, mas que coração tinha ele! Vivia
só para Deus. Um chefe de estação italiano, que logo será beatificado, cumpriu durante
a vida inteira o seu humilde dever cotidiano, e recusava até as promoções; era um
contemplativo. Madre Cabrini, canonizada vinte e dois anos após a morte, era graciosa,
sorridente, amável, divertida; ela seguiu o caminho usual do trabalho e da oração no
cumprimento do dever de estado. Alguém pode perguntar porque tal fundador ou
fundadora não está canonizado; talvez porque a comunidade não é o que devia ser.

Um homem nasce artista, mas não santo


Na cerimônia de canonização de Teresinha, o papa declarou que a santa de
Lisieux nos deu três lições importantes:

1. A santidade é um dever;
2. O dever tem de ser cumprido na vida cotidiana;
3. A santidade é sempre amor.
Por vezes encontramos deslumbradas que são joguete do diabo: três irmãs
abandonaram a comunidade para bancarem as contemplativas; após algumas semanas
retornaram.

Tenho vocação de trapista, tenho alma de trapista, mas sou um judeu errante: é
a vontade de Deus!
Certo dia alguém me disse: “Rezo pela sua conversão – Agradeço, mas comece
pela sua!” Pois é, o diabo em tudo mete os chifres e o rabo: uma religiosa
contemplativa, que estava doente, comungava da mão de um anjo – era o diabo! Ela
estava era possuída; Roma a desligou do convento. Já vi santos e demônios; é ridículo
uma senhora diretora de padres!

Fé, amor e vontade de Deus. Nada acima da vontade de Deus, que é o supremo
amor. Ensinem às suas filhas o caminho simples, e não admitam nada extra. Se alguém
deixa de comer e dormir, perde o rumo. Não é possível ser carmelita, quando se
administra um hospital. À morte de Teresinha, uma de suas companheiras perguntou:
“Que escreveremos sobre essa irmãzinha, se nem boa religiosa foi?” Talvez quem
falava assim tivesse visões, mas não viu bem. Nenhum santo, exceto Maria, nasceu
santo. Teresa d’Ávila se tornou Santa Teresa d’Ávila. Agostinho se tornou Santo
Agostinho. Ambos nasceram gênios, mas se tornaram santos pelo esforço pessoal. E
Teresinha? Ela também não nasceu santa, porém trabalhou dia após dia a fim de ser
uma. Um homem nasce artista, mas não santo: os santos se tornaram santos trabalhando.
Transformem-se em santos aos pouquinhos, a exemplo do alvorecer do sol. José Sarto
era uma boa criança mas comum; quando se tornou padre, elevou-se; quando bispo,
continuou elevando-se; quando patriarca de Veneza, elevou-se ainda mais; quando papa
(Pio X), já era santo! Carecemos de santos.
Com uma vontade viril, tornamo-nos santos. Todos os santos tiveram defeitos:
as vidas de santos já prontos só servem para ganhar dinheiro. Nisso há muita fantasia; a
curiosidade é um doença. Que dizer da vida de Teresa Neumann 2? Os fatos são
verdadeiros, mas a Igreja não se pronunciou; então, aguardemos, pois nada nos garante
que os fatos sejam divinos.
Vocês podem ser santas tão grandiosas quanto Margarida Maria e Teresinha,
seguindo o batido caminho do dever, e o livrinho das regras e constituições: façam isso
e viverão. Não tenho reparos a fazer ao que a Igreja aprovou para cada obra; por isso,
não lhes digo para que sejam carmelitas ou outra coisa mas, onde estiverem, tornem-se
santas se valendo da regra.
Vivam a vida simples de Nazaré, com humildade e amor ao dever; e lá onde
estiverem, superiora ou irmãs conversas, imitem a trindade da terra: Jesus, Maria e José;
lá onde estiverem, amem quem tanto as amou.
1. 1.O Pe. Matéo entende aqui a palavra “auréola” em sentido extenso:
reputação exterior de santidade, carismas extraordinários (N.E.).
2. 2.Teresa Neumann: mística alemã (1898-1962) (N.E.)
Da necessidade da oração para a salvação

Quando se observa atentamente a condição em que se encontram as almas,


fica-se impressionado com a fraqueza, para não dizer coisa pior, com a fraqueza de suas
orações. Reza-se pouco, reza-se mal, ou não se reza nada.
A maior parte dos homens não reza, o que é evidente; muitos cristãos rezam
mal, seja porque o fazem ou sem fé, ou sem estar entendendo o que fazem, ou sem
desejar receber qualquer coisa de Deus.

E mesmo os que rezam, rezam muito pouco.

Parece-nos, pois, que o somatório das orações está longe, muito longe, de
corresponder à soma das necessidades; e apenas isto basta para que compreendamos
porque vemos ininterruptamente o bem se debilitar e o mal crescer.

Outrora, os cristãos rezavam mais e melhor. As igrejas eram casas de oração e


os domingos dias de orações. Hoje, nós vemos as igrejas quase desertas e os dias santos
profanados.

Será que é possível encontrar a causa de tão grande mal?

O problema é difícil, porém, vamos nos esforçar na procura da solução.

Por volta do final do século XV, foram introduzidas na Igreja muitas


novidades, e até mesmo doutrinas novas que ainda existem, e que aparentemente nada
têm a ver com a situação que nós deploramos.

Outrora, todos os cristãos oravam para pedir a Deus sua graça; a graça de O
conhecer, de O servir, de O amar, a graça da Fé, da Esperança e da Caridade; a graça de
observar os seus divinos mandamentos, a graça da perseverança final. A Igreja reza
ainda com esses mesmos propósitos e com as mesmas orações, porém, os cristãos, que
antigamente assimilavam a finalidade das preces da Igreja sua mãe, hoje, não entendem
mais o sentido dessas orações, pois agora eles estão imbuídos do sentido das doutrinas
modernas, largas e fáceis; tão largas e tão fáceis que, com elas, não há mais necessidade
de rezar. Como se diz, basta somente querer para ter.

Quando outrora acreditava-se com São Paulo que a Fé não é dada a todos, “non
enim omnium est fides” (2 Ts 3, 2), dava-se à Fé o devido valor e rezava-se a Deus para
lhe agradecer a graça de no-la haver dado, e rezava-se para lhe pedir a graça de a dar
àqueles que não a tinham.

Quando Santo Agostinho ensinava que “a graça não é dada a todos; e quando
ela é dada, não é dada segundo nossos méritos mas sim por pura misericórdia; e
quando a graça não é dada, isto se deve a um justo juízo de Deus”, os cristãos, que
entendiam esta doutrina, aprendiam a orar, a se humilhar e a reconhecer os dons de
Deus1

Hoje o entendimento é diferente, e se diz que Deus dá sua graça a todos, e para
recebê-la basta querer. É fácil deduzir a conseqüência destas novas opiniões: é
desnecessário pedir, uma vez que Deus dá tão generosamente.

Há sobretudo um ponto, e um ponto capital a partir do qual as novas opiniões


lançaram muitas almas no erro; referimo-nos à graça que é necessária para a vontade.

Dando Deus sua graça tão copiosamente a todos os homens, imagina-se hoje,
não há mais necessidade de pedir a Ele a graça de querer o bem. A boa vontade
qualquer um se a dá, se lhe apraz e quando lhe agrada; aceita a graça que Deus dá a
todos, a faz por assim dizer sua, e em seguida avança e se faz a si mesmo um homem de
boa vontade. Assim sendo, não é mais necessário rezar; basta que a vontade humana se
mova.

Não era assim que os nossos pais pensavam, pois eles pediam a Deus a graça
de querer o bem.
As preces da Igreja são nossas testemunhas e são testemunhos fiéis. Dentre
todas as que nós poderíamos citar, eis aqui algumas:

- “ Ó Deus, que unistes a diversidade das nações na confissão do vosso nome,


fazei-nos querer e poder o que Vós nos ordenais...”2

- “Ó Deus, fazeis vossos povos amar o que ordenais e desejar o que


prometeis...”3

- “Ó Deus, força dos que em Vós esperam, atendei com bondade as nossas
orações e, porque sem Vós nada pode a fraqueza humana, fazei que, com o auxílio da
vossa graça, Vos agrademos por vontade e por obras, no cumprimento dos vossos
mandamentos”4

Seria preciso citar todas as orações da Igreja, pois todas pedem a deus a
graça da inteligência que esclarece e a graça da vontade que fortalece.

Na última das orações que citamos acima, a Igreja pede a Deus que lhe
agrademos pela vontade e pelas obras. Portanto, a Igreja nos ensina a pedir a Deus
não apenas as graças de saber, de poder e de querer, mas também a graça especial de
fazer obras agradáveis a Deus.

Como estão longe de pensar assim muitos cristãos que imaginam que, fazer o
bem depende apenas deles e que, tendo feito qualquer coisa para Deus, se gabam a si
mesmo pelo que fizeram, como se o bem fosse obra deles e como se pudessem se
vangloriar não somente a seus próprios olhos, mas também diante do próprio Deus.

Deus não ordena coisas impossíveis, mas daí não é lícito concluir que a
oração não é necessária.

O Concílio de Trento diz: “Deus não ordena coisas impossíveis, mas ao


ordenar, Ele vos adverte que deveis fazer o que podeis e pedir o que não podeis, e ele
ajudará a fim de que possais” (Sess. VI, cap. XI).
O Concílio entende, pois, que nem sempre temos os meios suficientes, e aquele
que se encontra em tal situação sabe a quem pedir aquilo que lhe falta. O resultado
desta doutrina é que a oração é necessária para que os mandamentos de Deus possam
ser observados.

“Porém, diz um sábio autor, se alguns, mesmo pedindo, não conseguem, muito
menos conseguirão o que não pedem e que nem mesmo querem pedir, e que não
reconhecem Aquele a quem é preciso pedir”5

Precedendo o ensinamento do Concílio de Trento, Santo Agostinho dizia: “Os


pelagianos acreditam que fizeram uma grande descoberta, quando nos dizem que Deus
não ordenaria aquilo que Ele sabe ser impossível aos homens. Quem é que ignora isto?
Porém, ele nos ordena certas coisas que nós não podemos fazer, a fim de que nós
saibamos o que lhe devemos pedir”6

A ordem nos é, então, dada, para que busquemos a ajuda Daquele que nos
comanda. Daí a necessidade da oração e é uma necessidade tão grande que, sem a
prece, é impossível a um cristão resistir às tentações, obedecer aos mandamentos e se
salvar.

“É certo, diz ainda Santo Agostinho, que nós observamos os mandamentos se


queremos, mas, como é o Senhor que opera na vontade, é preciso lhe pedir que nós
queiramos tanto quanto é preciso, para que, querendo, façamos o que está ordenado”7

***

Oração para a salvação da nossa liberdade


A oração que se segue foi impressa em Roma em 1695, com permissão dos
superiores, com o título:

“Oração da fraqueza humana e da humildade cristã”

“Deus qui habes humanorum cordium quo tibi placet inclinandorum


omnipotentissimam potestatem; tu intus in me age; tu cor meum tene; tu cor meum
move; tuque me voluntas mea quam ipse in me operaris, ad te trahe.

Per Christum Dominum nostrum. Amen.”

“Ó Deus, que tendes o poder onipotente de fazer pender os corações dos


homens para onde desejais; agi, Senhor, em mim; tomai o meu coração; movei
Senhor, o meu coração; por minha vontade que operais em mim, atraí-me para Vós;

Por Nosso Senhor Jesus Cristo. Amén.”

1. 1.Scimus gratiam Dei Nec parvulis Nec majoribus secundum merita


nostra dari. Scimus non omnibus hominibus dari; et quibus datur, non solum
secundum merita operum dari, sed Nec secundum merita voluntatis eorum quibus
datur, quod máxime apparet in parvulis. Scimus eis quibus datur, misericórdia Dei
gratuita dari. Scimus eis quibus non datur, justo judicio Dei non dari. (S. Aug.
Epist. Ad Vitalem, cv.).
2. 2.Oração do Sábado Santo, depois da Profecia X.
3. 3.Oração do 4º. Domingo depois da Páscoa.
4. 4.Oração do 1º. Domingo depois de Pentecostes.
5. 5.Si autem petentes quidam nondum possunt, quanto minus possunt
non petentes, imo nec petere volentes, nec eum a quo petatur agnoscentes (Estius)
6. 6.Magnum aliquid Pelagiani se scire putant quando dicunt non
juberet Deus quod sciret ab homine non posse fieri. Quis hoc nesciat? Sed ideo
jubet aliqua quae non possumus, ut noverimus quid ab illo petere debeamus (De
gratia et libero arbítrio, c. XVI).
7. 7.Certum est nos mandata servare si volumus: sed qui preparatur
voluntas a Domino, ab illo petendum est ad tantum velimus quantum sufficit ut
volendo faciamus (id. ib).
Consagração do gênero humano à Maria, mãe de todos os homens

A gravidade dos acontecimentos atuais, em particular os que acabam de ocorrer


na Espanha, mostram que as almas fiéis devem, cada vez mais, recorrer a Deus pelos
grandes mediadores que Ele nos deu por causa de nossa fraqueza.

Estes acontecimentos e sua atrocidade mostram de modo singularmente


marcante o que acontece com os homens quando querem absolutamente viver sem Deus,
quando querem organizar suas vidas sem Ele, longe Dele, contra Ele. Quando, ao invés
de crer em Deus, de esperar em Deus, de amá-lo acima de tudo e de amar ao próximo
Nele, queremos crer na humanidade, esperar nela, amá-la de modo exclusivamente
terrestre, a humanidade não tarda a se apresentar a nós com suas falhas profundas, com
suas feridas abertas: o orgulho da vida, a concupiscência da carne e dos olhos, e todas as
brutalidades que a elas se seguem. Quando, ao invés de colocar seu fim último em Deus,
que pode ser simultaneamente possuído por todos, como nós todos podemos possuir,
sem nos prejudicar, a mesma verdade e a mesma virtude, coloca-se o fim último nos
bens terrestres, não se tarda a perceber que estes bens nos dividem profundamente, pois
a mesma casa e a mesma terra não podem pertencer simultaneamente e integralmente a
vários. Quanto mais a vida se torna material, mais os apetites inferiores se inflamam
sem qualquer subordinação a um amor superior, mais os conflitos entre os indivíduos,
classes e povos se exasperam; finalmente, a terra se tornará um verdadeiro inferno.
O Senhor mostra assim aos homens o que eles podem sem Ele. Tudo isso
constitui um singular comentário das palavras do Salvador: “Sem mim, nada podeis
fazer” (Jo 15, 5); “Quem não é comigo, é contra mim; e quem não junta comigo,
desperdiça” (Mt 12, 30); “Buscai pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6, 33); “Se o Senhor
não edificar a casa, é em vão que trabalham os que a edificam. Se o Senhor não
guardar a cidade, inutilmente vigia a sentinela.” (Mt 126, 1)

O perigo mais grave da hora atual é o comunismo internacional, de origem


materialista, que nega a existência de Deus e a vida futura, que destrói a dignidade da
pessoa humana, da família e da pátria. Os últimos acontecimentos de Espanha mostram
como ele procura conquistar a Europa, e como ele quer preparar uma revolução mundial
que será, como julgam, o fim do cristianismo e de toda religião, conforme o programa
da liga dos “sem Deus”.

A fim de remediar tão grande mal, os melhores, os mais zelosos entre os


católicos, nos povos divididos por tantos conflitos, sentem a necessidade de uma oração
comum que reúna perante Deus as almas profundamente cristãs das diversas nações,
para obter que o reino de Deus e de Cristo se estabeleça progressivamente no lugar do
reino do orgulho e da concupiscência.

Nesta intenção, todos os dias se oferecem missas1 e a adoração do Santo


Sacramento se difundiu em diversos países de modo tão largo e veloz que devemos ver
nisso o fruto de uma grande graça de Deus2
Não se obterá a pacificação exterior do mundo senão pela pacificação interior
das almas, reconduzindo-as a Deus, trabalhando para estabelecer nelas o reino de Cristo
no mais íntimo de suas inteligências, de seus corações, de sua vontade ativa.

Para que as almas desviadas retornem Àquele que, único, pode salvá-las,
importa recorrer à intercessão de Maria, medianeira universal e mãe de todos os
homens. Dos pecadores que parecem ter se perdido para sempre, diz-se que é necessário
confiá-los à Maria. Assim também com os povos cristãos que se desviam.

Toda a influência da bem-aventurada Virgem tem por fim conduzir as almas a


seu Filho, como toda influência do Cristo, mediador universal, tem por fim conduzi-las
a seu Pai.

A oração de Maria é universal no mais alto sentido da palavra. Como mostram


suas ladainhas, recitadas por toda Igreja, no céu ela pede por nós, pelos pecadores dos
quais ela é o refúgio, pelos aflitos dos quais é consolação, pelos fracos dos quais é
socorro, pelas virgens que preserva, pelos apóstolos que ilumina, pelos mártires que
sustenta. Ela intercede não apenas pelas almas individuais da terra e do purgatório, mas
também pelas famílias e por todos os povos que devem viver sob a luz do Evangelho,
sob a influência da Igreja.

Quando ainda estava na terra, a beatíssima Virgem Maria, aos pés da Cruz,
oferecendo seu Filho por nossa salvação e unindo-se de modo muito íntimo ao seu
sacrifício, nos mereceu, no sentido largo da palavra, tudo o que o próprio Cristo nos
mereceu em sentido estrito. Após a morte e a ressurreição do Salvador, ela intercedia
para que, pelos apóstolos, o reino de Deus e de Cristo Jesus chegasse até as
extremidades do mundo. Ela sustentava sobrenaturalmente os apóstolos em seus
trabalhos e em suas lutas e lhes obtinha graças elevadíssimas de luz, de amor e força.
Seu zelo puríssimo sustentava o deles.
Desde que Maria foi assunta ao céu, sua intercessão não é senão mais
poderosa, posto que mais iluminada, e procede de um amor de Deus e das almas que
nada pode atenuar ou interromper, ainda que por um único instante.

O amor misericordioso de Maria por todos os homens ultrapassa o de todos os


santos reunidos, assim como o poder de sua intercessão sobre o Coração de seu Filho.

É por isto que, de diversas partes, muitas almas espirituais, considerando os


grandes perigos da hora presente, sentem a necessidade de recorrer, pela intercessão de
Maria medianeira, ao Amor redentor de Cristo.

Em diversas partes, particularmente nos conventos de fervorosa vida


contemplativa, conserva-se a memória de que muitos bispos franceses reunidos em
Lourdes, no segundo Congresso mariano nacional, em 27 de julho de 1929, expressaram
ao Soberano Pontífice o desejo de uma consagração do gênero humano ao Coração
imaculado de Maria. E também que o Pe. Deschamps, S. J., em 1900, o cardeal Ricard,
arcebispo de Paris, em 1906, o Pe. Le Doré, superior geral dos Eudistas, em 1908 e
1912, o Pe. Lintelo, S. J., em 1914, iniciaram petições ao Soberano Pontífice para obter
a consagração universal do gênero humano ao Coração imaculado e misericordioso de
Maria.

Por um ato coletivo, os bispos de França, no início da guerra, dezembro de


1914, consagraram a França à Maria. O cardeal Mercier, em 1915, na sua carta pastoral
sobre Maria medianeira, saúda Maria, Mãe do gênero humano, como soberana do
mundo. O Rvdo. P. Lucas, novo superior geral dos Eudistas e a Legião do Coração
imaculado de Maria, aprovada por numerosos bispos, conseguiram em poucos meses
mais de 300.000 assinaturas para apressar, por esta consagração, a paz de Cristo no
reino de Cristo.

A força da qual temos necessidade, na confusão em que se encontra o mundo


na hora atual, a intercessão de Maria, Mãe do gênero humano, nos conseguirá do
Salvador.

Sua intercessão é poderosíssima contra o espírito de divisão que lança


indivíduos, classes e povos uns contra os outros.

A Virgem dulcíssima é terrível contra o demônio e, no dizer do bem-


aventurado Grignion de Montfort, aquele que é o orgulho personificado mais sofre por
ser vencido pela humildade de Maria, do que por ser imediatamente esmagado pela
Onipotência divina.

Se um pacto formal e plenamente consentido com o demônio pode trazer


enormes conseqüências na vida de uma alma e mesmo perdê-la para sempre, que efeito
espiritual não produzirá uma consagração a Maria, feita com verdadeiro espírito de fé e
renovada a cada dia com sempre crescente fidelidade?

É preciso lembrar que, em dezembro de 1836, o venerável cura da igreja de


Nossa Senhora das Vitórias, em Paris, ao celebrar a missa no altar da santíssima virgem,
o coração moído por pensamentos sobre a inutilidade de seu ministério, escutou estas
palavra: “Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria”. Feita a
consagração, a paróquia transformou-se.
No mesmo espírito, bispos italianos pediram a Leão XIII a autorização de
consagrar suas dioceses ao Coração puríssimo de Maria e, na França, o cardeal Couillé,
Mons. Touchet e Mons. Dadolle proclamaram Maria Rainha do universo. As ladainhas
do Loreto, que há muito a invocam como Rainha dos anjos e de todos os santos, contém
hoje, desde a última guerra, a invocação: Regina pacis, ora pro nobis.

A súplica de Maria por nós é a de uma Mãe sapientíssima, amorosíssima,


fortíssima, que vela incessantemente sobre todos seus filhos, sobre todos os
homens chamados a receber os frutos da Redenção.

Quem faz a experiência de consagrar todos os dias a Maria todos seus


trabalhos, obras espirituais e empresas, encontra fé e confiança quando tudo parece
perdido.

É o que o bem-aventurado Grignion de Montfort mostra admiravelmente no


seu Tratado da verdadeira devoção à Santa Virgem, e no resumo que dele sob o
título: O Segredo de Maria.

Ora, se a consagração individual de uma alma a Maria lhe obtém diariamente


tantas graças de luz, direção, amor e força; se Maria nos faz assim entrar cada dia mais
profundamente no mistério da Comunhão dos santos, quais não seriam os frutos de
uma consagração do gênero humano feito ao Salvador pela própria Maria, à rogos do
Pai comum dos fiéis, o Pastor supremo? Qual não seria o efeito de uma consagração
assim feita, sobretudo se os fiéis de diferentes povos se unissem e vivessem dela, numa
prece fervorosa, renovada freqüentemente durante a missa?

*
Como escrevia a madre Maria de Jesus, fundadora da Sociedades das Filhas do
Coração de Jesus3: “Posto que o inferno quer banir Jesus Cristo e sua Igreja das almas e
das sociedades, é mais que nunca hora de elevar as mãos suplicantes à incomparável
Virgem, por quem o Pai Celeste deu Jesus Cristo ao mundo; a fim de que esta doce Mãe
do Salvador, devolvendo, por assim dizer, Jesus às almas, lhes devolva a vida perdida;
que esta poderosa Protetora da Igreja, “terrível como um exército em ordem de batalha”
(Ct 6, 3), triunfe sobre seus inimigos e que esta gloriosa Rainha da hierarquia faça cair
sobre todos os membros do Clero católico bênçãos tais do Coração de Jesus que lhes
conservem sua coragem e lhes aperfeiçoem no meio das tormentas de nossa triste época,
e lhes façam brilhar como diamantes sem mancha sobre a admirável túnica da Igreja.”

A mesma serva de Deus acrescenta um pouco mais adiante4 estas palavras que
tanto convém ao nosso tempo:

“Não vivemos por nós, é preciso tudo enxergar nos desígnios de Deus; nossas
dores atuais – ainda que cheguem ao cúmulo e que nos sacrifique nesse desastre –
conquistam e preparam os triunfos futuros e certos da Igreja... A Igreja segue assim de
luta em luta, de vitória em vitória, uma sucedendo a outra até a Eternidade, que será o
triunfo definitivo.

“Foi preciso que Jesus sofresse e que assim entrasse na “sua glória” (Lc 24,
26); é preciso que a Igreja e as almas perfaçam o mesmo caminho. A Igreja não dura
apenas um dia; quando os mártires caiam como flocos de neve no inverno, não se podia
pensar que tudo estava perdido? Não, o sangue deles preparava a vitória que estava por
vir.
“Como uma Esposa que se prepara para seu Esposo, a Igreja marcha através
dos séculos rumo à perfeição do céu; ela se embeleza mais e mais; ela está pronta, mas
continuará se embelezando até o dia das núpcias eternas.

“Não temais, pois, pelos perigos da Igreja: não é a Igreja que está em perigo;
ela tem a palavra de Jesus Cristo e nada a abalará... As portas do inferno não
prevalecerão contra ela.”

No difícil período que atravessamos, a Igreja tem necessidade de almas muito


generosas, verdadeiramente santas. É Maria, Mãe da divina graça, Mãe puríssima,
Virgem prudentíssima e forte, que as formará. Por toda parte, o Senhor sugere a almas
interiores uma oração cuja forma varia, mas cuja substância é a mesma: “Neste tempo
em que um espírito de orgulho inflado até o ateísmo procura se espalhar por todos os
povos, Senhor, sede como a alma de minha alma, dai-me uma inteligência mais
profunda do mistério da Redenção e de vossos santos aniquilamentos, remédio contra
todo orgulho. Dai-me o desejo sincero de participar, na medida desejada para mim pela
Providência, nesses salutares aniquilamentos, e fazei-me encontrar neste desejo a força,
a paz e, por vezes, a alegria que é como o prelúdio ou o gosto das alegrias da
eternidade.”

Para ingressar assim na profundidade do mistério da Redenção, é preciso que


Maria, que nele ingressou mais que qualquer outra criatura, nos instrua silenciosamente
aos pés da cruz e nos faça descobrir na letra do Evangelho o espírito do qual ela mesmo
tão profundamente viveu.

*
Que a Mãe do Salvador digne-se, por sua oração, colocar as almas fiéis de
diferentes povos sob a luz desta palavra do Cristo: “Eu dei-lhes a glória que tu me
deste, para que sejam um, como também nós somos um” (Jo 17, 22).

“É da ordem das coisas, escrevia o cardeal Mercier, que as crianças exprimam


a seu Pai seus mais íntimos desejos.” Podemos esperar que um dia, quando a hora
providencial chegar, S. S. Pio XI, chamado o Papa das Missões, tomando em
consideração os votos de bispos e fiéis, consagrará o gênero humano ao Coração
imaculado e misericordioso de Maria, para que ela mesma, mais instantemente, peça por
nos a seu Filho. Isto seria uma nova afirmação da mediação universal da Santíssima
Virgem.

A intercessão mais poderosa ao Coração de Jesus é a da santa Mãe, que é


também a Mãe de todos os homens, e que mais que ninguém depois de seu Filho
conhece as imensas necessidades espirituais da hora presente.

Dirijamo-nos a ela com a maior confiança; ela foi chamada “a esperança dos
desesperados”, e dirigindo-se a ela como à melhor das Mães e à mais iluminada, iremos
à Jesus como ao nosso único e misericordioso Salvador.

Roma, Angélico.

1. 1.O culto perpétuo das missas é mantido em particular pela União


Eucarística, da qual a revista La Vie Spirituelle falou muitas vezes. Ver em
particular La Vie Spirituelle, outubro de 1934 e março 1935, pág. 314.
2. 2.Um movimento neste sentido, começado no Rio de Janeiro em
1935, atingiu rapidamente mais de oito milhões de horas de adoração para o ano de
1935.
3. 3.Pensées de la servante de Dieu, Mère Marie de Jesus, 1841-1884,
Roma, 1918, pág. 43.
4. 4.Ibidem, pág. 50.
5. Itinerário espiritual da Igreja católica - introdução
6. INTRODUÇÃO
7.
8. Em nossa extrema miséria, os membros da PERMANÊNCIA procuramos
durante muitos anos conservar algum tipo de reunião que nos aproximasse um dos
outros em razão do amor a Nosso Senhor, para que, de algum modo, encontrássemos
um ambiente em que se falasse de Deus e para Ele se voltassem nossos esforços.
9. Desaparecido o Prof. Gustavo Corção, fundador da PERMANÊNCIA,
deixamos de contar com os cursos que ele nos dava, cursos de religião ou de teologia
para leigos com que supríamos a falta de sacerdotes ou bispos que nos assistissem com
a verdadeira Fé e com a doutrina da Igreja de sempre. A situação ficou pior depois de
sua morte. A missa tradicional que tínhamos conseguido, recolhida e discreta, alegria de
nossos domingos, perdemo-la por denúncias de equivocados e zelo implacável do
Cardeal do Rio de Janeiro. Durante muito tempo, antes que os padres de Campos
pudessem vir em nosso socorro, vimo-nos obrigados a contar apenas com nossa reunião
semanal para manter entre nós algum tipo de associação que nos reunisse por causa do
amor de Deus.
10.
11. E nessas reuniões, embora conscientes da distância enorme que nos
separava do valor de um Gustavo Corção, procuramos manter o mesmo espírito das suas
aulas e as mesmas idéias, os mesmos princípios que aprendemos com ele.
12.
13. Foi com estas idéias e com estes princípios que formulamos nossos juízos
e tomamos posição diante de certas personalidades — o Papa sobretudo — e de certos
eventos, que se tinham agravado desmesuradamente depois da morte de Gustavo
Corção. O que desde então vimos e ouvimos teria causado a morte de Corção por
sufocamento, se ele não tivesse sido misericordiosamente poupado do que estava para
vir, morrendo um mês antes de Paulo VI.
14.
15. O assunto que mais nos interessou nos cursos com que tentamos seguir,
em nossas reuniões, as pegadas de quem tinha sido nosso mestre foi não uma História
da Igreja propriamente, mas uma História do itinerário espiritual da Igreja. É desses
cursos que, instados por alguns ouvintes, procuramos redigir um resumo para uso dos
moços que se aproximam de nós, terceira geração já — louvado seja Deus — que se
segue àquele grupo de homens e mulheres que se encontraram em torno de Gustavo
Corção no antigo Centro Dom Vital trinta anos atrás; os quais se casaram, muitos com
moças e rapazes que encontraram ali, e tiveram filhos que, por sua vez, se casaram (só
no nosso pequeno grupo se formaram quatro casais, moços e moças que se encontraram
em nossos cursos). Hoje vemos com alegria novos moços e moças que se aproximam de
nós, sobretudo por causa da missa tradicional, e que logo se interessam em seguir
nossos cursos e pedem ensino e explicações. Louvado seja Deus. Que para honra e
glória de Nosso Senhor e bem das almas sobretudo de tais moços possam servir estas
páginas, que são nessa intenção oferecidas. E comecemos esta tarefa como convém aos
que procuram servir a Nosso Senhor: pelo sinal da Santa Cruz, em nome do Padre e do
Filho e do Espírito Santo. Amém.
16.
17. Tomamos, para nosso percurso, três pontos de referência. São eles: em
primeiro lugar, o principal, o fundamento e fim, origem e objetivo de toda a obra de
Deus, o Cristo crucificado sobre o monte Calvário; em segundo lugar, como que um
modelo essencial da espiritualidade de uma sociedade católica, modelo de viver do
Corpo Místico de Cristo, os tempos cheios de graça descritos nos Atos dos Apóstolos;
em terceiro lugar, exemplo do máximo transbordamento dos valores, das idéias, da
mentalidade católica sobre a vida civil, os tempos dos séculos XII e XIII, a civilização
medieval cristã, em que a mentalidade comum de bons e maus era polarizada pelos fins
ensinados pela Igreja para a vida de cada um, tempos em que a unidade espiritual
nascida da Igreja prevalecia sobre contendas e rivalidades: “[...] Reis cristãos
ajoelhando, inimigos e irmãos, quando, processional, o andor passasse”, como diz,
descrevendo a Idade Média em um só verso lapidar, Fernando Pessoa (Cancioneiro,
“Passos da Cruz”, IV).
18.
19. O CRISTO CRUCIFICADO SOBRE O CALVÁRIO
20.
21. Tomemos alguns textos:
22.
23. “Ele é a imagem de Deus Invisível, o primogênito de toda a criatura;
porque n’Ele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis,
quer sejam os tronos, quer as dominações, quer os principados, quer as potestades; tudo
foi criado por Ele e para Ele [...] e Ele é a cabeça do corpo da Igreja, e é o princípio [...].
Porque foi do agrado [do Pai] que residisse n’Ele toda a plenitude, e que por Ele fossem
reconciliadas consigo todas as coisas, pacificando, pelo sangue de sua cruz, tanto as
coisas da terra como as coisas do céu” (São Paulo, Colossenses I, 15-20).
24.
25. São João, no Prólogo de seu Evangelho, também nos diz:
26.
27. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus. Ele estava no princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele
nada foi feito do que foi feito [...]. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós [...]” (I, 1-
14).
28.
29. E ainda:
30.
31. “Porque Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho
Unigênito, para que todo o que crê n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Id., III,
16).
32.
33. Todos sabemos, pelo catecismo da Santa Igreja, que a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade encarnou assumindo uma natureza humana, e que Jesus Cristo,
Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, morreu na cruz para pagar por nós
nossos pecados e desse modo obter para nós a reconciliação com o Pai, fato a que faz
alusão o texto de São Paulo acima citado. O Verbo, como Deus, é impassível, não pode
sofrer, ninguém nem nada pode atingi-lo. Mas, verdadeiro homem também, Jesus pôde
sofrer e morrer na Cruz, expiando assim todos os pecados. Verdadeiro Deus, na sua
única personalidade, pôde emprestar ao seu sofrimento e morte na Cruz um valor de
infinita reparação, redimindo por isso a todos os pecadores e podendo por isso obter
para eles aquela reconciliação. Mas o texto de São Paulo diz ainda que pelo sangue de
Cristo na Cruz foram reconciliadas com o Pai todas as coisas, pacificadas por aquele
sangue, tantos as coisas da terra como as coisas do céu. Isto é, foram reparados tanto os
pecados dos homens como os pecados dos anjos.
34.
35. Assim, toda a economia não apenas da salvação mas da própria criação
do céu e da terra depende, de algum modo, daquele Crucificado no topo do monte
Calvário. Mas ela não constitui uma espécie de “risco” que Deus teria assumido
admitindo ser ofendido pelo pecado para em seguida ver reparada a ofensa pelo
sacrifício cruento de Seu Filho.
36.
37. A presciência eterna de Deus mostra-Lhe de antemão que o universo que
começará a existir por ato seu dará ocasião ao pecado, e é desde logo o mistério da
permissão divina que se põe. A Igreja ensina que Deus só permite o mal em vista de um
bem maior, e este bem maior é o Cristo crucificado, o Verbo que encarna para oferecer
a Deus infinita reparação de todos os pecados de todos os homens e de todos os anjos
maus, e para redimir os homens, os únicos que podem ser redimidos. Assim, é porque a
reparação infinita Lhe é dada como que antecipadamente que a criação do universo se
torna possível, e que a graça santificante é dada desde logo aos anjos e a Adão no
Paraíso.
38.
39. Também a história antiga da salvação dos homens é, toda ela, uma
antecipação de graças devidas ao Calvário. É por uma antecipação que o Espírito Santo
fala pelos profetas, e as intervenções de Deus preparam um povo com antecipações de
Sua Revelação e de suas graças para que, em seu meio, nascesse o Salvador, segundo a
riqueza e a profundidade daquilo que Nosso Senhor tinha preparado para a consumação
de seu aniquilamento. Toda a vida espiritual, toda a piedade do Antigo Testamento tinha
os olhos voltados para “aquele que devia vir” e encarnava em figuras como a de Simeão
ou da profetisa Ana, que viviam no Templo à espera.
40.
41. Por outro lado, enquanto não ocorre a consumação, a economia da Graça
divina é como que limitada, parca, concedida a conta-gotas. Palavras de São Paulo
deixam claro que a “lei” não santificava (Gálatas III, 2, e Romanos I a III), mas apenas a
promessa, uma vez consumada. E vê-se que apenas alguns recebiam abundância de
graças, para preparar os outros para o Advento. Mas não a todos as graças de Deus eram
distribuídas então do modo por que o são hoje.
42.
43. E se, não obstante tal restrição, foi tamanha a glória da santidade de um
rei Davi, de profetas como Isaías e tantos outros, e de tal beleza e de tanto empenho o
cuidado de Deus em favor daquele pequeno povo, tantas vezes ingrato, o que não seria
quando do advento do Reino?
44.
45. Ainda assim, a economia da Graça vai mostrar-se restritiva e gradativa
quando da habitação de Jesus entre nós. É para uma progressiva formação dos
Apóstolos e outros discípulos que Ele vai mostrando, pouco a pouco, quem é, e para
isso vai concedendo, pouco a pouco, as graças necessárias. Ele mesmo o diz: “E, desde
os dias de João batista até agora, o Reino dos Céus adquire-se à força, e os violentos
arrebatam-no” (Mateus, XI, 12), isto é, alguns poderiam (e Santa Maria Madalena talvez
o tenha alcançado) como que “invadir” a misericórdia divina e obter desde logo a
abundância das graças. Mas, para os Apóstolos e demais discípulos, a preparação se faz
pouco a pouco.
46.
47. Na Ceia e depois, ao soprar sobre eles e começar a dar-lhes o Espírito
Santo a fim de os preparar para Pentecostes, ainda os vai formando, até o fim, e ordena-
os sacerdotes também por partes. Mas eles ainda não estavam preparados inteiramente,
porque ainda não tinham a superabundância do Espírito Santo presente em suas almas,
como irão ter no dia de Pentecostes e como temos nós a partir de então. Com efeito, em
Pentecostes, as línguas de fogo infundem toda a força do Espírito Santo nos Apóstolos e
nos demais discípulos, que agora se mostram renovados, íntegros, dispostos,
santificados e preparados para a missão que lhes fora confiada (é só ouvir como, agora,
fala com sabedoria o mesmo São Pedro que ainda nas vésperas, ao subir ao céu o
Senhor Jesus, Lhe perguntava com os demais discípulos se era então que o reino de
Israel se iria reconstituir [Atos I, 6]). E, agora, suas bocas falam da abundância do que
têm no coração (Mateus XII, 34), isto é, o Espírito Santo, as graças de Deus, que desde
então se infundem abundantemente no coração dos fiéis, chovendo sem cessar sobre
todos nós.
48.
49. O sacrifício do Calvário reabriu os céus; Jesus fez neles entrar, e só
então, os mortos santos do Antigo Testamento. Doravante, o menor dos filhos da Igreja
terá riquezas que os antigos santos desejavam ardentemente com gemidos inenarráveis,
e que os próprios anjos do céu olham com uma espécie de santa inveja, como se
depreende da Primeira Epístola de São Pedro (I, 12). Começava então a vida da Igreja, e
o regime da Graça com que começa é o da superabundância dos dons de Deus,
espalhados incessantemente sobre todos.
50.
51. NO TEMPO DOS “ATOS DOS APÓSTOLOS”
52.
53. São Paulo nos ensina (I Coríntios, XIII, 8), e também grandes teólogos
(ver, por exemplo, Garrigou-Lagrange, Les trois âges de la vie interieure, vol. II, pp.
836 ss), que só a caridade (compreendida em seu verdadeiro e profundo sentido) é que
não passará, isto é, só ela é desde já o que será no céu, para toda a eternidade: aqui,
hesitante, fraca, caminhando em meio ao claro-escuro da fé e à ansiedade da esperança;
lá, esplêndida, em seu máximo desdobramento, arrebatando cada um todo inteiro no
incêndio do amor de Deus que acompanha a visão deslumbrante d’Aquele que é.
54.
55. A caridade é, por isso, “semen gloriæ”, como dizem os teólogos. É uma
antecipação da vida da alma no céu.
56.
57. Ora, assim como, para a vida interior de cada um de nós, a vida da
caridade dá uma idéia, ainda que pálida, do que é a vida no céu, assim o Salmo
132: “Quam bonum est et quam jucundum, habitare fratres in unum”, nos dá uma
antecipação do que é a vida no céu em termos de convivência com nossos irmãos. Como
veremos mais tarde, o grande combate que o demônio move a Nosso Senhor incluirá,
em sua estratégia, seduzir os homens para uma vida pessoal e social em que o terror, e
não a caridade num mesmo espírito de fé, seja o ambiente profundo dominante. E esse
terror é uma antecipação da vida pessoal e social do inferno. É uma antecipação do
ambiente de ódio e de terror em que vivem os condenados. Como que para acostumar os
homens àquilo que muitos terão.
58.
59. Mas, voltando ao nosso tema, o versículo do Salmo 132 encontrou sua
plena realização terrena na mais comovente e mais doce parte dos Evangelhos, aquela
que conta os atos dos Apóstolos e o modo de viver dos primeiros cristãos. Comecei a
sublinhar em vermelho as passagens dos Atos em que fala da unidade de espírito, de
alegria, de consolação, de amor a Deus. E cobri meu exemplar de vermelho:
60.
61. “E todos os que criam estavam unidos [...]” (II, 44).
“[...] tomavam a comida com alegria e simplicidade de coração [...]” (II, 46).
“E a multidão dos que criam tinha um só coração e uma só alma [...]” (IV, 32).
“E todos estavam unidos num mesmo espírito no pórtico de Salomão” (V, 12).
“Porém eles saíam da presença do Conselho contentes por terem sido achados dignos de
sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (VI, 12).
“Tinha então paz a Igreja [...] e estava cheia da consolação do Espírito Santo” (IX, 31).
“Entretanto os discípulos estavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (XIII, 52).
“[...] consolaram e confortaram com muitas palavras os irmãos [...]” (XV, 32).
“[...] do que receberam grande consolação” (XX, 12).
62.
63. E muitas outras passagens.
64.
65.
66. Essa sociedade católica, que então vivia assim, banhada na alegria e na
consolação, não dispunha de nenhum dos divertimentos modernos e de modo algum
buscava divertir-se. De que viviam seus membros, ou melhor, o que é que lhes enchia a
alma e os arrebatava para as coisas de Deus?
67.
68. Vemos, ainda pela descrição dos Atos, que os Apóstolos e os que os
ajudavam trabalhavam na evangelização dos judeus, pregavam o Cristo crucificado,
batizavam os convertidos. E os fiéis, aqueles aos quais os Apóstolos pregavam,
recebiam “a palavra [de Deus] com toda a avidez, examinando todos os dias as
Escrituras para ver se estas coisas eram assim” (XVII, 11), e alegravam-se “com todos
os de sua casa de ter crido em Deus” (XVI, 34).
69.
70. E, quando Paulo e Barnabé lhes falavam na sinagoga, os fiéis rogavam à
saída “que, no sábado seguinte, lhes falassem sobre o mesmo assunto” (XIII, 42) e... “no
sábado seguinte, concorreu quase toda a cidade a ouvir a palavra de Deus” (XIII, 44).
71.
72. E, depois, cada um ia contar aos outros “quão grandes coisas Deus tinha
feito com eles” (XIV, 26 e XV, 4).
73.
74. Era nesse apaixonado interesse pelas coisas de Deus, pela pregação dos
Apóstolos, pela cooperação na obra do apostolado que estava sua razão de viver. A isso
dedicavam sua vida, seus bens. Por amor a isso irão morrer com alegria daqui a pouco.
75.
76. Nas cartas de São Paulo se vê como o Apóstolo se relaciona com pessoas
assim. Escreve a alguns, da Igreja de Roma, dos Coríntios, dos Gálatas, e suas
saudações finais, citando nomes, mandando recados, louvando a uns, reprovando a
outros, mostra-nos um pai a governar a Igreja, cuja unidade é visível.
77.
78. Mas essa unidade do Corpo Místico será posta à prova. Já nestes tempos
de paz, a perturbação começa. O primeiro mártir da Igreja, Santo Estevão, é morto pelos
judeus. Herodes, mais tarde, vai matar São Tiago, irmão de São João. E os judeus, que
os Atos dizem “movidos por seu falso zelo”, começam a amotinar as populações e a
incitar os romanos contra os cristãos.
79.
80. Finalmente, por volta do ano 64, o imperador romano Nero inaugura a
era das perseguições, que durará três séculos e meio e produzirá milhares de mártires
conhecidos e não se sabe quantos desconhecidos.
81.
82. É muito importante observar, como o fez o Cardeal Pio em notável
sermão que publicamos na revista Permanência (nº de novembro/dezembro de
1986), que os romanos não começaram por hostilizar os cristãos. Ao contrário, eles
haviam construído um panteão onde colocavam todos os deuses do mundo, cujos ídolos
seus soldados traziam, respeitosos, para Roma. Ali, no panteão, propuseram aos judeus
pôr Moisés e aos cristãos pôr Jesus. E é o grande escritor católico Chesterton que diz,
em nota também publicada na Permanência (id.), que não tem nenhuma afinidade com
o espírito do cristianismo quem não compreende que naquele tempo, às margens do
Mediterrâneo, a única religião verdadeira correu perigo mortal de perecer num festival
de “compreensões” e “fraternidades”. Mas os cristãos recusaram o convite. Para
escândalo de muitos escritores pagãos sérios e até simpáticos a eles, como Plínio, o
Jovem, os cristãos reivindicavam constituir a única religião verdadeira; isto parecia
àqueles uma absurda pretensão: era como se quisessem ser melhores que os outros. Foi
para manter a integridade de sua fé, a qual lhes testemunhava a realidade dessa mesma
fé e a unidade que nela se devia realizar, que os cristãos se submeteram, ao contrário, a
tantos séculos de martírio continuado.
83.
84. O TEMPO DOS MÁRTIRES
85.
86. Uma das coisas mais interessantes para a observação do nosso itinerário é
o estilo próprio, com sua beleza especial e particular, de cada uma das grandes etapas da
espiritualidade cristã. Aquilo que mais conhecemos, nessa perspectiva, é o ambiente
medieval, com seus castelos e catedrais, o colorido e a abundância, o espírito de apreço
pela nobreza e pela coragem que impele os cavaleiros e põe a mulher em lugar de honra,
num ambiente viril mas delicado o bastante para apreciar em alto grau a poesia e a
música, os vitrais e as belas estátuas cristãs que ornamentam as igrejas e as abadias. Se
olharmos, por exemplo, para o ambiente, os valores, os feitos e os registros escritos dos
tempos de Davi, como não reconhecer instantaneamente que este tempo foi o de uma
Idade Média judaica?
87.
88. Assim também podemos reconhecer as marcas próprias das histórias do
tempo dos mártires. As histórias de Santa Perpétua e de Santa Felicidade, de Santa Inês,
de Santa Cecília, e de Santa Catarina, que confundiu os filósofos que tentavam reduzi-la
ao silêncio, e de tantos outros que foram conduzidos aos tribunais e condenados ao
suplício em nome das leis romanas; enchem de admiração os que as lêem e têm um
colorido especial, que podemos encontrar, por exemplo, na “História de Mártir”
publicada na revista Permanência (nº 114-115). Esta história, aliás, mostra o aspecto
central da condenação dos mártires. Eles recusavam a coexistência religiosa, a
concessão de homenagens mínimas aos deuses pagãos, que era tudo de que precisavam
os juízes, às vezes condescendentes e até querendo salvar os presos, para mandá-los de
volta para casa. No caso da Santa Perpétua, ainda moça, o juiz procurava salvá-la
dizendo-lhe que atentasse para os cabelos brancos do pai em lágrimas e que bastaria ela
fazer algumas oferendas com incenso pela prosperidade do imperador. Mas ela
respondeu: “Não”. Os mártires respondiam: “Não podemos”, “Não é possível”. E
davam a vida por isto, por um nada, por alguns grãos de incenso recusados! Quando
hoje vemos o que vemos, o ecumenismo, o encontro de Assis, tantos escândalos da mais
alta hierarquia da Igreja, chegam a arrancar-nos lágrimas e urros de dor as histórias de
mártires.
89.
90.
91. Os pagãos antigos merecem muitas e severas condenações por vários
aspectos de sua conduta, mas eram inocentes perto da maldade dos neopagãos que já
conheceram o cristianismo e, não obstante, o recusaram de um ou de outro modo. E isso
é o próprio Senhor que no-lo diz: “Se eu não tivesse vindo, e não lhes tivesse falado
[...]” (João XV, 22).
92.
93. As perseguições romanas aos cristãos começaram por obra de Nero, que,
mais por uma questão de loucura e astúcia política, procurou jogar sobre esta minoria as
iras populares. Mas o pior é que Nero formulou um famoso edito, que proclamou fora
da lei a prática do cristianismo, e esse edito (que mais tarde vai ser apenas
regulamentado por Trajano) não foi revogado. Desse modo, se os sucessores de Nero,
muitas vezes, eram indiferentes aos cristãos e não os perseguiam, a ilegalidade do
cristianismo continuava de pé, e bastava, pois, um pequeno incidente ou qualquer
pretexto político para que se desse início a novas perseguições e massacres. A cólera
dos imperadores, mais tarde, vai-se exasperar ainda mais, quando começarem a aparecer
personagens importantes da casa imperial ou de nobres famílias romanas inculpados de
cristianismo.
94.
95. Mas nosso objetivo aqui, repetimos, não é fazer a história da Igreja, e sim
seguir o percurso da espiritualidade católica ao longo do tempo.
96.
97. Digamos, portanto, que a perseguição durou até o ano 315, quando, pela
graça de Deus, o imperador Constantino fez publicar o famoso Edito de Milão, pelo
qual o cristianismo não apenas era tolerado e legalmente permitido mas se tornava a
religião do Império, já que o próprio imperador se tinha convertido.
98.
99. Ao longo desses séculos de perseguição e martírio, os chamados Padres
da Igreja deixaram seus escritos, que terão sempre, para a Igreja Católica, especial
autoridade. São estes Padres discípulos dos Apóstolos, segunda e terceira geração de
bispos que se prolongam até os doutores do século IV, entre os quais doutores se
incluem Santo Agostinho, São Cipriano, São Clemente, Santo Irineu e Orígenes. Os
Padres deixaram escritos que são o começo das elaborações teológicas (depois de São
Paulo e dos demais Apóstolos), mas que também descrevem a vida dos primeiros
cristãos ou, como pela pena de São Justino, ousam defendê-los perante as autoridades
romanas ainda em plena perseguição.
100.
101. Estes tempos de perseguição foram, como é de supor, de fervente piedade
e de firmíssima perseverança; mas não de todos. Foram muitos os que fraquejaram, os
chamados lapsi, cuja reintegração no rebanho católico pareceu a muitos impossível, na
época. A penitência que se devia impor aos lapsi e as questões que se foram
apresentando como conseqüências de seu arrependimento vão constituir ocasião para
pronunciamentos da autoridade papal.
102.
103. A autoridade do bispo de Roma, aliás, já se havia mostrado imperante
desde antes do fim do primeiro século. São João, apóstolo, vivia ainda, mas é de Roma
que vem a intervenção firme e paternal do Papa São Clemente, que corta rente as
discussões em Corinto a propósito da autoridade dos presbíteros nomeados pela Igreja
de Roma. A palavra do Papa é acatada, e a paz restabelecida de tal modo, que setenta
anos mais tarde a carta de São Clemente ainda é lida nas missas de Corinto. Por volta do
fim do século II, a intervenção enérgica do Papa Vítor I acabou com as discussões que
dividiam as Igrejas orientais e a Igreja latina a propósito da maneira de fixar a data da
Páscoa. Os asiáticos, firmes na sua antiga tradição apostólica, recusavam-se a aceitar a
decisão do Papa, a qual contrariava seus hábitos, mas este não hesita em condená-los
com a pena de excomunhão. E a decisão do Papa termina por ser acatada em toda a
Igreja, embora Santo Irineu tenha considerado excessiva, mas não ilegítima, sua
severidade.
104.
105. Ainda mais interessante é a controvérsia que vai opor um santo, São
Cipriano, bispo de Cartago, ao Santo Papa Estevão I, a propósito do batismo de
convertidos por sacerdotes ou bispos heréticos. São Cipriano negava-lhe a validade,
alegando que aqueles que os haviam batizado não tinham nada para dar. A questão
trazia, em seu bojo, graves conseqüências. Hoje, quando a teologia tem já elaboradas
suas idéias, e a doutrina católica já se fixou em dogmas, aquelas conseqüências se
mostram claramente. Naquele tempo, o problema era menos claro, e o Papa não tinha à
disposição nem o pensamento teológico elaborado nem o recurso a posições dogmáticas
fixadas. Mas tinha e utilizou, com admirável simplicidade, o critério que a Igreja sempre
utilizou como parâmetro: a tradição hierárquica e apostólica, sobretudo de Roma, onde
está o depósito da fé. Assim, a conformidade com a tradição romana era e é critério de
toda e qualquer verdade religiosa, e esta belíssima e confortadora manifestação da
verdade de nossa fé vai mostrar-se, ao longo de nosso estudo, a mais tocante, a mais
pungente, a mais arrebatadora evidência de sua santidade. A Igreja sabe-se santa. Esta é
a mais profunda e mais importante e mais bela manifestação da presença do Espírito
Santo entre nós.
106.
107. E, por saber-se santa, a Igreja, esposa de Cristo, Virgem Imaculada, Mãe
Sapientíssima, olha para si mesma, olha para seu comportamento no passado, quando
precisa discernir alguma coisa, procedimentos, espíritos, interpretações, para apurar o
que lhe vem do Esposo e o que lhe é exterior. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo,
que nos mantém amparados com o Seu Espírito e nos conforta e nos guia assim.
Louvado seja. Santo Estevão responde a São Cipriano dizendo que não era como ele
pensava que se comportava a Igreja de Roma e que a norma da Igreja de Roma é que
devia prevalecer. “Se alguém vier a vós oriundo da heresia”, diz Santo Estevão com
nitidez, “vós não deveis inovar nada contrariamente à tradição em vigor. Vós vos
contentareis com lhes impor as mãos in pœnitentiam.” Ora, estávamos então no século
III. Que beleza! Louvado seja Deus. Hoje sabemos — e a doutrina dos sacramentos o
explica — que o sacramento do batismo não se renova e independe da santidade de
quem o ministra, contrariamente ao que pensava São Cipriano. Louvado seja Deus.

O culto do Espírito Santo - capítulo I

Corações ao alto: Sursum corda. Os sofrimentos do tempo presente nada são,


se comparados à glória futura que se nos há de revelar. À consideração do fruto da vida
eterna, caso ainda nos reste algum claro da luz verdadeira, algum sentimento de nobre
ambição, diremos com o Apóstolo: Para ganhar o céu, de tudo fiz palha; candidatos à
eternidade, imitemos o mercador de pérolas sobre que conta o Evangelho. Encontrara
uma pérola que, por si só, era todo um tesouro. Em vez de gastar o tempo em perseguir,
e o dinheiro em consumir outras pérolas, comprara aquela outra, vindo a ser o mais rico
e feliz dos mercadores.

Mas como há de ser, tão grande recompensa para tão pouca labuta! O infinito
pelo finito, qual o mistério? O Espírito Santo é amor infinito, e o céu, o reino deste
amor. Esconde-se-nos a razão de tal proporção, mas o fato é inconteste. Afiança-nos a
palavra divina, tornam-no sensível aos olhos as imagens presentes. Quem não
presenciou a bondade, a grandeza, a prodigalidade de algumas árvores? Num instante
meditado, fala-nos este espetáculo: para abrigar-se dos ardores soalheiros, aquecer o lar,
cobrir a mesa de frutos suculentos, por anos a fio, ao homem basta-lhe o sacrifício dum
só fruto, capaz quando muito da satisfação dum tênue apetite.

Aquele que multiplica, de tão espantoso modo, os frutos das árvores, prometeu-
nos multiplicar, conforme a mesma lei, o fruto das obras: Centumplum accipiet. A quem
cabe o direito de lhe duvidar da palavra, limitar-lhe o poder? Os milagres resplendentes
da ordem material são pálida imagem dos milagres que se consumam na ordem moral.
Quanto vai da diferença entre a humílima semente, plantada em terra, e a árvore
magnífica, repleta de flores e frutos, segundo a estação, vai com usura da diferença que
há entre o prazer fugaz, que sacrificamos ou cuja privação voluntária aceitamos, e as
torrentes de deleites eternos com que seremos inundados.

Ora, nasce o fruto do fruto. Nasce o fruto da vida eterna dos frutos temporais,
nossos conhecidos. Resta dizer o como cultivá-los. Há de se cultivá-los no cultivo da
árvore que os carrega: esta árvore nada mais é que o próprio Espírito Santo (S. Agost.,
Enarrat, in ps. 145 n. 11, opp. t. IV p. 2333, edit. Noviss). Como cultivá-lo? Rendendo-
lhe o merecido culto. Daí, duas perguntas: deve o mundo culto ao Espírito Santo? qual
este culto?

1º Deve o mundo um culto ao Espírito Santo? Quando desejo obter a resposta a


uma pergunta de história ou astronomia, interrogo os historiadores ou os astrônomos.
Para saber se o mundo deve um culto ao Espírito Santo, dirijo-me aos mestres em
ciência divina. São eles: o próprio Deus, Nosso Senhor, os Apóstolos, os Padres, a
Igreja. Desde o começo do mundo, tais mestres ensinam em uníssono, de geração a
geração, ao eterno soldado cujo nome é gênero humano: teus mais terríveis inimigos
não são aqueles que vês, os homens de carne e sangue. Para ti, a verdadeira luta é contra
o espírito do mal e suas hostes invisíveis. Quereis conhecer-lhes a natureza? é superior à
tua. O caráter? são a própria maldade. O contingente? incalculável. Os artifícios? são os
pais da mentira. O quartel? habitam o ar que respiras, investem contra ti mais ligeiros
que a ave de rapina. Só, espírito luta contra espírito, Espírito do bem contra espírito do
mal. Conservar-se escondido sob as asas do Espírito do bem, ou cair nas garras do
espírito do mal, é a inevitável condição da tua existência. (Eph, VI; Corn. A Lap., ibid;
1Petr., V, 8). Assim em uníssono ensinam os mestres da ciência. Escutemos cada qual
em particular.

Deus. A fim de tornar presença constante no homem a necessidade do culto ao


Espírito Santo, escreveu Deus dois grandes livros: o mundo e a Bíblia. Com igual
eloqüência, ambos os livros contam as glórias do Espírito Santo. O amor imperecível à
humanidade, e a indispensável assistência sua. O céu e seus sóis, a terra e suas riquezas,
o mar e suas leis, até o caos que ele ordena e fecunda, falam dele, assim como do Filho
e do Pai. Mais de cinqüenta vezes, nomeia o Antigo Testamento, bendizendo-a, a
terceira pessoa da Adorabilíssima Santíssima Trindade. Duzentas vezes prestam-lhe
homenagem dentro do Novo Testamento.

Que revela a repetição tão freqüente, senão o papel soberano e eterno do


Espírito Santo na obra da criação, do governo e da redenção do mundo? Que apregoa,
senão o dever imposto aos homens e aos anjos de sempre tê-lo consigo, junto com o Pai
e com o Filho, como objeto de seus pensamentos, orações e adorações? Adicionemos
que se há de existir alguma preferência no culto incessante, esta recairá sobre o Espírito
Santo, Amor substancial do Pai e do Filho. Ele só se revela nas mercês. Os dons da
natureza e da graça vêm diretamente dele.

Nosso Senhor. Juntam-se a voz da Bíblia e das criaturas àquela da Verdade em


pessoa, o Verbo encarnado. Nem exemplos nem palavras, nada omitiu o Salvador do
gênero humano para nos instar ao amor do Espírito Santo e puséssemos Nele toda a
confiança. O que era João Batista em relação ao Cristo, parecia Ele em relação ao
Espírito Santo. O filho de Zacarias, o maior dentre os filhos de homens, foi escolhido
precursor do Messias. O filho de Deus como que toma para si o papel de precursor do
Espírito Santo, e parece não ter outro fim, senão o de preparar o mundo para recebê-lo.

Decidiu se fazer homem, mas quisera sua mãe esposa do Espírito Santo.
Quisera seu corpo formado numa operação do Espírito Santo; que no dia do batismo o
mesmo Espírito descesse sobre si visivelmente, e o conduzisse ao deserto, a fim de
prepará-lo para sua missão. Durante o inteiro curso da vida mortal, mostra-se amiúde
sob a dependência do Espírito Santo, que o conduz ao Calvário. Morto, é o Espírito
Santo que o retira do sepulcro (Matth., IV, 1; XII, 18, 28; Hebr., IX, 15; Rom., VIII, 2).

Há mister de defender os direitos do Espírito Santo? Parece que se esquecem


deles. Pronunciara o mesmo Cristo esta sentença: quem pecar contra o Filho do
Homem, será perdoado; mas quem pecar contra o Espírito Santo, não será perdoado
nem neste século, nem no vindouro (Matth., XII, 32). Deve-se reservar um lugar para
ele dentro das almas? Jesus não hesita em separar-se de tudo quanto lhe era mais caro
no mundo, de temor que tal presença constitua-se em obstáculo ao reinado absoluto do
Espírito Santo (Joan., XVI, 7). Tais foram as palavras e condutas da segunda pessoa da
Santíssima Trindade em face da terceira pessoa. Jamais céu e terra ouviram nem ouvirão
nada tão eloqüente, acerca da excelência do Espírito Santo, do culto que lhe é devido e
da necessidade de seu reinado.

Os Apóstolos. Instruídos na escola do Verbo e formados pelo Espírito Santo,


contam os apóstolos a sua plenitude. Diante dos novos fiéis e dos perseguidores, em
seus escritos e discursos, sempre trazem o Espírito Santo sobre os lábios. Aos diáconos
o cuidado de alimentar os pobres; a eles, a missão de anunciar o Espírito Santo, de dá-lo
a saber ao mundo e proclamar por toda parte a necessidade premente de submeter-se a
seu império. Nada mais lógico. Qual sua vocação, e por que são eles apóstolos? A
vocação é uma rija luta contra o espírito do mal, satã, deus e rei do mundo. Como
apóstolos, está sua razão de ser na caça ao usurpador, fazendo reinar o Espírito do bem.
Qual nuvens salutares, soprados pelo Vento do Cenáculo, espalham-se para os
quatro cantos do céu e fazem chover sobre todas as partes da terra – é neles em que o
Espírito tem morada. Gigante desta imensa batalha, São Paulo o leva por durante trinta
anos, de Oriente a Ocidente, e de Ocidente a Oriente. Em todo lugar, exalta as glórias do
Espírito Santo, revela sua presença por meio de esclarecidos milagres, não cessa de
rogar aos judeus e aos pagãos, aos gregos e aos bárbaros: “recebei o Espírito Santo;
guardai-vos de entristecer o Espírito Santo; sobretudo, guardai-vos de expulsá-lo.
Senão, permanecereis ou caireis no império do espírito infernal. Quem nega o espírito
de Jesus Cristo, não tem parte com ele. Sem o Espírito Santo, nada podeis obrar para
vossa salvação, sequer pronunciar o nome do autor da salvação e das graças” (Eph., I,
17; IV, 30; I Thess., V, 19; Galat., V, 16, 17; Rom., VIII, 9; I Cor., XII, 3).

O que Paulo ensina em Tessalônica, Efésio, Atenas e Corinto, ensina Pedro em


Jerusalém, Antioquia, Roma; Bartolomeu na Armênia; Tomé nas Índias; André na Cítia;
Tiago na Espanha. Mateus na Etiópia. Assim os apóstolos se nos deparam como homens
do Espírito Santo. Pode-se definir o que eram suas pregações, viagens, milagres, sua
vida sublime e sua morte não menos sublime: era o Espírito Santo anunciado,
comunicado e apresentado para amor e obediência do mundo inteiro. Ora, a conservação
dos seres nada mais é que continuação de sua criação. Caso o mundo cristão, formado
pelo Espírito Santo, queira continuar a sê-lo, é imprescindível que permaneça fiel ao
princípio de sua origem. Ótimo tema para reflexões em nossa época!

Os Padres. Aos apóstolos sucederam os padres da Igreja e os doutores. Eles


viram com os olhos a mais espantosa das revoluções: satã expulso de seu império, e a
humanidade, livre da escravidão, converter-se à liberdade, à luz e às virtudes do
Evangelho. Nenhum deles ignora que o milagre da regeneração do mundo, maior que o
da criação, não começou em Belém, mas no Cenáculo, por obra do Espírito Santo.
Consumiam suas vidas na perpetuação e divulgação desta obra maravilhosa, como
consumiram os apóstolos para estabelecê-la. Desde os primeiros séculos, a história
mostra-nos os mais excelsos gênios de Oriente e Ocidente consagrando o saber e a
eloqüência na explicação das prerrogativas do Espírito Santo, na justificação da
divindade, na explicação das operações miraculosas, na demonstração da necessidade de
seu reinado, na solicitação das adorações que lhe devem o gênero humano.

A exemplo do Apóstolo, São Crisóstomo, Santo Agostinho, São Jerônimo não


se cansam de falar do Divino Paráclito. Dídimo, São Basílio, Santo Ambrósio
consagram-lhe cada qual um tratado particular. As obras imortais de São Cipriano,
Santo Atanásio, São Cirilo, São Gregório Nazianzeno, Santo Hilário, São Leão, São
Gregório o Grande, Beda o Venerável, Ruperto, Santo Tomás de Aquino, São
Boaventura, São Bernardo, Santo Antônio e duma multidão doutros são outros tantos
canais por que corre abundante o ensinamento apostólico do Espírito Santo. A todos
estes grandes homens, fundadores da sociedade cristã, nada lhes era tão caro como o
inculcar no mundo o estado de permanente necessidade deste, que se há de viver ou sob
o império do Espírito Santo ou sob o de satã.

Em nome de todos, ouçamos São Bernardo e São Crisóstomo. “Temos, diz o


primeiro, duas prendas do amor de Deus por nós: a efusão do sangue de Jesus Cristo, e a
efusão do Espírito Santo. Um de nada serve sem o outro. O Espírito Santo só se dá a
quem acredite em Jesus crucificado. Mas a fé de nada serve, se não opera na caridade.
Ora, a caridade é dom do Espírito Santo” (Epist. 107 ad Thom., Praeposit. de Beveria,
opp. t. I, p. 294. n. 8 e 9, edit. Noviss).

São Crisóstomo: “Sem o Espírito Santo, nem os fiéis poderiam orar a Deus,
nem chamá-lo de Pai. Sem ele, não haveria ciência, nem sabedoria na Igreja, nem
pastores, nem doutores, nem santificadores. Em suma, sem ele não haveria Igreja” (In
sanct. Pentecost., hom. I, n. 4, opp. t. II, p. 543; id., t. IX, p. 296, 297).

Caso não existissem Igreja, padres, doutores, nem possibilidade de orar, nem
meio de lucrar do sangue do Calvário, como subtrair-se ao domínio do demônio? Ora,
sem o Espírito Santo, nada disso existiria. As partes do mundo civilizadas pelo
cristianismo seriam ainda como a China, as Índias, a África, o Japão, o Tibete, regiões
sob o domínio do príncipe das trevas. Este é o ensinamento tradicional dos padres da
Igreja. Existe razão mais poderosa acerca da necessidade de conhecer o Espírito Santo,
de amá-lo, de adorá-lo e de submeter-se a seu império?

A Igreja. Para torná-lo indelével, tornando-o popular, a Igreja cuida de traduzir


em atos esse ensinamento fundamental. Além do sinal da cruz, cujo uso freqüente, mui
recomendado1, repisa diversas vezes ao dia às crianças o nome e a influência necessária
do celeste Consolador, emprega ela mil outros meios de mantê-lo sempre em face de
seu pensamento.

Qual seja, junto com o Pai e o Filho, o objeto invariável da liturgia, deseja a
Igreja que uma festa, soleníssima, a cada ano, de geração em geração, recorde o
reconhecimento das nações batizadas, recorde aquele a quem o mundo tudo deve: luz,
caridade, liberdade, civilização no tempo, glorificação na eternidade.

Apresenta-se ele na vida da Igreja, na vida dos povos, ou na de particulares,


nas circunstâncias em que a sabedoria do alto se torna especialmente necessária? A
Igreja nunca deixa de se dirigir ao Espírito Santo.

A metrópole do mundo católico, Roma, está de luto. A morte, que não respeita
ninguém, abateu-se sobre seu pontífice e rei. A Pedro se deve um sucessor, ao Filho de
Deus um vicário. O Sacro Colégio está em assembléia, profundo silêncio engolfa o
santuário, onde se dará continuidade à seqüência dos pontífices. Por onde começará o
ato decisivo, quem deve depositar nas mãos dum frágil mortal o destino do mundo
civilizado? A primeira palavra que escapa dos lábios dos anciãos, prosternados diante
de Deus, é a invocação do Espírito de sabedoria, hino diversas vezes secular: Veni,
creator Spiritus.
Da mesma forma que se perpetua o pontificado, assim o sacerdócio.
Contemplem a tropa de jovens levitas que avançam modestos e tímidos em direção ao
bispo, cuja mão lhes deve consagrar padres, segundo a ordem de Melquisedeque.
Arautos da fé, modelos dos povos, missionários nas margens distantes, talvez mártires
caso se precise de grandes virtudes, o consagrante tem necessidade de muitas luzes.
Para lograr aos primeiros heroísmo, aos segundos discernimento, a quem a Igreja irá
dedicá-los? ao Espírito Santo. Na ordenação, como no conclave, o hino real eleva-se ao
céu, consagrando a augusta cerimônia desde o início: Veni, creator Spiritus. Desta
forma, desde o pontífice posto no cume da escada sagrada, até o levita assentado sobre o
último degrau, a hierarquia da Igreja perpetua-se sob os influxos do adorável Espírito
que a forma.

Na incompreensível ternura para com os filhos dos homens, Deus em pessoa


digna-se habitar sobre a terra: permite que lhe erijam templos. Quem os tornará dignos,
estes templos materiais? Quem fará novos céus? É o mesmo Espírito que das castas
entranhas de Maria erigiu o santuário do Verbo eterno. Ao chamado da Igreja, descerá
até às moradas terrestres, as purificará, as ungirá com sua sagrada presença, e para
sempre as fará agradáveis a Deus e respeitáveis aos homens. A invocação solene é o
começo da imponente dedicação, que vai pedir com instância por sobre o trono o
Espírito santificante: Veni, creator Spiritus.

Consagrar-lhe-ão augustíssimos templos. Aos pobres, aos órfãos, aos doentes,


dar-se-ão padres e madres, irmãos e irmãs que lhes esposam os sofrimentos, aliviam as
necessidades, desde o berço até à tumba e mais além. Quem operara tal milagre,
desconhecido do mundo até antes do Pentecostes cristão? A partir de então, invocar-se-á
o Espírito de devoção. Como no dia do Cenáculo, ele descerá; novos corações surgirão
da ação de seu poder, e o mundo terá, nos religiosos e religiosas, contínuas gerações
redivivas de mártires e apóstolos da caridade: Veni, creator Spiritus.

Por obra de pérfidas inteligências no humano coração, o espírito do mal


conseguira aos pouquinhos franquear as muralhas da cidade do bem. A cizânia foi
semeada no campo do pai de família. À vista da defecção dalguns, da conivência e
cobardia doutros, os chefes das tropas ficaram confundidos. Tornou-se necessária uma
regeneração, parcial ou total. Então, recorre a Igreja aos excelentes instrumentos que se
chamam concílios e missões.

Recolhida, como os apóstolos no Cenáculo, começa invariavelmente na


invocação do Espírito Santo formador e que, no formar, renova de alto a baixo a face da
terra. Em favor de suas orações e cânticos, conjura-o à iluminar as inteligências; em
ditar pessoalmente as decisões de fé e as regras de costumes; em dar eficácia à palavra
do Verbo, em purificar os corações e em lhes influir, junto com a vida sobrenatural,
coragem para a luta. Sob a influência sempre antiga e sempre nova do Espírito criador,
luzes viventes derramam-se por sobre o mundo, transformações miraculosas se dão
nestes novos cenáculos: Veni, creator Spiritus.

Tanto quanto o homem cristão, o homem social precisa do Espírito Santo. Em


todas as ocasiões solenes, toma a Igreja o cuidado de recordá-lo disso. A morte que se
abate sobre os pontífices não poupa os reis. O trono está vacante, deve-se preenchê-lo.
Dar um rei a uma nação é presenteá-la com bem precioso ou funestíssimo. Bispo dos
leigos, protetor, modelo e pai dos povos são tudo nomes dos reis cristão. Nestes nomes,
quais os deveres? quem se elevará à altura da dignidade? quem lhe ensinará que o poder
é um jugo? quem os despojará de si mesmo para ser um homem de todos? Somente o
Espírito Santo opera este difícil milagre.

Sabe-o a Igreja: a sagração dos reis nada mais é que a evocação perpétua do
Espírito de força, luz, justiça e caridade. Nesta terrível consagração, declara aos reis da
terra: sois vassalos do Rei dos céus, obrigando-os a ser dele a imagem viva; para ele,
como para o último dos súditos seus, há de prestar contas da administração: são estas as
garantias para a felicidade temporal e a salvação eterna das almas! Ainda para as
dinastias, que regalo de duração! Meteoros passageiros ou torrentes sempre a correr, eis
o que foram e para sempre serão, caso se não sustentem no Espírito de Deus: Veni,
creator Spiritu.
Fazer leis e aplicá-las com discernimento, i. é, distinguir por sua vez o justo do
injusto, punir o culpado com utilidade, absolver o inocente com coragem, é tão
importante para a felicidade das nações quanto a consagração dos reis. A prosperidade
pública, a paz interna, o respeito externo, a fortuna, a honra, a liberdade, a segurança, a
vida mesma dos cidadãos estão nas mãos do legislador e do juiz. Que responsabilidade!

Nem o próprio Salomão conhecia nada de mais temível. Já o paganismo disso


não se dava conta, ou não o tinha em conta. Seus códigos testemunham que só se valiam
das regras vulgares de prudência humana, ou o dictamen vacilante da eqüidade natural:
amiúde o único deus invocado era o interesse, o capricho ou a força. Nas mesmas fontes
de direito se desalteram os povos não-cristãos e aqueles que pouco a pouco o deixaram
de ser. Daí, o escândalo das legislações e a iniqüidade das jurisprudências.

Comportam-se assim as nações nascidas no Cenáculo? de forma alguma. Quer


a Igreja que os legisladores e os magistrados cristãos busquem inspiração na fonte da
vida, tomando por regra constante a lei imaculada, de que o Espírito Santo é ao mesmo
tempo o autor e o intérprete2: Veni, creator Spiritu.

Durantes quantos anos a velha Europa não assistira assembléias políticas,


estados gerais, parlamentos, tribunais abrirem suas sessões com a invocação
compenetrada do Espírito de sabedoria e de luz, sem o quê toda legislação é defeituosa,
toda justiça cega, toda ciência perigosa ou vã? (Prov., VIII, 15. – Sap., XIII, 1). Aquela
piedade não fora estéril. Enquanto o Espírito Santo dirigia os trabalhos, os legisladores e
os magistrados não macularam os códigos modernos de quaisquer leis anticristãs, nem
os anais dos tribunais de enormidades jurídicas.

Não basta para a Igreja a invocação do Espírito Santo, quando dos grandes
momentos em que se deve debater o proveito geral das sociedades cristãs. Recomenda a
todos os seus filhos, pouco importa idade ou estado, recorrer a ela no começo de suas
ocupações. Assim, diversas vezes ao dia, sobre todos os pontos do globo, a criança
cristã, que estuda as ciências sagradas ou profanas, clama ao socorro de sua jovem
inteligência o Espírito de luz, coragem e pureza.

Quer dizer isso, para as jovens gerações que entram no embate da vida, receber
a terceira pessoa da Santíssima Trindade? é por isso que a Igreja multiplica os esforços
de solicitude materna. Instruções prolongadas, orações públicas e particulares,
purificação da alma pelos sacramentos, anúncio solene do pontífice: tudo é posto em
ação para de cada paróquia fazer um novo cenáculo3.

Junto com muitos outros, estes são os meios que sem cessar emprega a Igreja,
para tornar o Espírito Santo sempre presente à memória e ao coração de seus filhos. Há
como repetir com maior força a contínua necessidade que temos dele, enquanto homens
e cristãos? É permitido afastar as recomendações tão instantes da mais sábia das mães?
Não haveria ingratidão em esquecê-la? Qual dentre as criaturas possui todos seus dons?
Não haveria perigo na pretensão de seguirmos sem ele, rodeados de inimigos que
somos?

Não é o mesmo o perigo, tanto para os indivíduos como para as sociedades?


Podem se imiscuir da alternativa imperiosa de viver sob o império do Espírito Santo ou
sob a tirania do espírito do mal? Particularmente, nossa época goza dalguma imunidade
neste jogo? Infelizmente, para ela, bem mais que para outra, o culto do Espírito Santo é,
do ponto de vista apenas social, a mais premente necessidade do momento.

Esta época, tão confiada em ser mestra de si mesma, como se encontra?


Interroguemos seus atos e tendências. O desarvorado luxo que a devora e convida a
grandes brados a formidável reação do pobre contra o rico, o socialismo; o sacrifício
perpétuo, e a cada dia mais comum, da consciência, da honra, da inteligência, da vida
pública e privada ao culto da carne; a insurreição generalizada, inaudita, obstinada das
nações contra Deus e contra seu Cristo; as torrentes de doutrinas envenenadas, noite e
dia espalhadas pelo mundo, terríveis semeaduras, seguidas inevitavelmente por
colheitas piores ainda: é o Espírito Santo que inspira e faz todas essas coisas? Se não é o
Espírito de vida, é o de morte.

A qual dos dois pertencerá o amanhã? Quem quer sabê-lo desde agora, não
interrogue a ciência e a diplomacia, basta olhar para qual lado se voltam as nações. Eis
aí a questão. Para nós, se há algo evidente, é que o mundo atual, o infeliz suspenso por
um fio sobre o abismo, deve ao Espírito Santo, seu único libertador, o mesmo culto,
com isso querendo dizer as mesmas orações ardentes. Quem entenderá tal situação?
Quem sentirá tal necessidade? Quem cumprirá tal dever? Ninguém ou quase; mas esta
não é lá grande prova de que o que dizemos é a verdade. Terribilli et ei qui aufert
Spiritum principium.

(Retirado de O Tratado do Espírito Santo; tradução: Permanência)

1. 1.Um decreto de Pio IX anexa 50 dias de indulgência à prática deste


sinal venerável. Ver nossa obra: Le Signe de la Croix au XIX siècle.
2. 2.Nunca cessam de repetir, conforme Bossuet, que o direito romano é
a razão por escrito. Nada mais falso. A verdadeira razão por escrito é o decálogo.
Não houve nem haverá outra, jamais.
3. 3.É de lamentar ao infinito que as prudentes intenções da Igreja não
se cumpram sempre, e que, segundo um dito vulgar, a confirmação seja
escamoteada em proveito da primeira comunhão.
O culto do Espírito Santo - capítulo II

2º Qual culto deve o mundo ao Espírito Santo? Como o Pai e o Filho, o


Espírito Santo é Deus. Como o Pai e o Filho, tem direito ao culto de latria. O culto
soberano é interior e exterior, público e privado. Todos estes aspectos, obrigatórios em
relação ao Pai e ao Filho, se devem também guardar em relação ao Espírito Santo.
Ousemos acrescentar que, em desagravo do longo esquecimento, cuja culpa recai na
Europa moderna, e em razão da ameaçadora invasão do espírito do mal, a terceira
pessoa da Santíssima Trindade há de ser atualmente objeto de culto preferencial,
ardentíssimo como nenhum outro.

Consiste o culto interior na fé, na esperança e na caridade (S. Aug. Euchyrid., c.


III). Crer que o Espírito Santo é Deus, como o Pai e o Filho; como eles, pessoa distinta;
com eles, uma só natureza; neles, em tudo igual; como eles, eterno, todo-poderoso,
infinitamente bom e perfeito. Deve-se crer que é tudo o Espírito Santo, como se crê que
é o Pai e o Filho; e esperar no Espírito Santo, como se espera nas duas outras pessoas da
Adorabilíssima Trindade; e amar o Espírito Santo com amor soberano, de
complacência, de reconhecimento, de esperança, como se ama, pelos mesmos motivos,
o Filho e o Pai – eis os três atos fundamentais do culto interior que deve o mundo ao
Espírito Santo.

Dizemos: amor de complacência, por causa das infinitas amabilidades do


Espírito Santo. Amor de reconhecimento, por suas mercês. Só para falar de algumas,
deve-lhe o mundo a Santa Virgem, o Homem-Deus, a Igreja e o cristão. Amor de
esperança, por suas magníficas promessas: o céu será o reino excelente do Espírito
Santo, pois que há de ser o reino da caridade (Corn. a Lapid., in Luc., I, 35).

Como a claridade sai da fornalha, necessariamente o culto exterior sai do culto


interior, não menos obrigatório. É ao homem impossível, composto de dupla substância,
não manifestar por sinais exteriores os sentimentos que lhe agitam a alma. Melhor
ainda: todos seus atos exteriores não passam da tradução dos pensamentos e sentimentos
interiores. Além disso, deve violentar de contínuo sua natureza, para recalcar ao fundo
d’alma o que imperiosa e constantemente teima em se manifestar. Deve o homem a
Deus a homenagem dos sentidos, tanto quando lhe deve a do espírito. Assim, os atos
exteriores de adoração, as orações, o sacrifício, a ação de graças devidas ao Pai e ao
Filho, devem-nas ao Espírito Santo.

O homem não é um ser isolado, mas social. A este título, é obrigado a prestar a
Deus um culto público. Deus, autor das famílias, dos povos e da sociedade, e também
dos indivíduos, tem direito às homenagens deste ser coletivo, como tem direito às
homenagens do ser individual. Enquanto pessoa pública, os seres coletivos só retribuem
a Deus o tributo por meio de adorações coletivas. Um povo sem culto público seria um
povo ateu; como jamais existisse um povo ateu, desde a origem do mundo e sobre todos
os pontos do globo, houve um culto público.

Acrescentemos que este culto é todo benesses para as nações, que dele tem
necessidade para viver. Um mero raciocínio é bastante para prová-lo: não há sociedade
sem religião; não há religião sem culto interior; não há culto interior sem culto exterior.
São tais proposições axiomas de geometria moral e também de leis sociais e políticas,
que época alguma, nem nação, jamais dispensou impunemente.

Não menos necessário que o culto público, o culto privado se deve manifestar
na lembrança do Espírito Santo, na oração, na imitação e no temor de ofendê-lo.

A lembrança é o pulso da amizade. Enquanto bata, existe amizade. Com que


força ou freqüência não deve bater nosso coração pelo Espírito Santo? Amor
consubstancial do Pai e do Filho, amor ativo de eternidade, fonte dos bens da natureza e
da graça de que gozamos cá embaixo, é também rei do século futuro, quando santificará
os eleitos na efusão, ilimitada e infinita, dos divinos deleites.

Enquanto espera, por quantos expedientes solicita nosso amor! O ar que se


respira, a estrela que brilha no firmamento, as árvores carregadas de frutos, as ricas
colheitas, as flores tão odoríferas, variadas e belas – todas as criaturas que só tem alento
para nosso serviço, parecem gritar-nos com voz infatigável: Amai o Espírito de amor
que nos criou como a vós, e que para vós nos criou. Se escutássemos esta voz, e quem
não na escutaria! o amor do Espírito Santo extravasaria do coração nosso, como o
ribeiro da nascente. Manifestando-se o Espírito, a ação de graças, a invocação, a
adoração, as confidências íntimas, a oração em suas várias formas, tornar-se-iam um
laço de comércio habitual entre o mundo e o Espírito Santo, em que todo lucro seria
nosso.

Nas dúvidas, perplexidades, doenças d’alma ou do corpo, a quem nos dirigir


com maiores oportunidades de êxito? Sobretudo, qual defensor invocar, ao considerar as
catástrofes com que nos ameaça o espírito do mal? Somente o Espírito do bem lhe pode
obstar o progresso. O mesmo é dizer que a devoção ao Espírito Santo deve ser a favorita
dos cristãos atuais, e as orações íntimas, inspirada na fé dos avós, hão de exalar do
coração, com freqüência semelhante a do alento que nos sai dos lábios: Veni, creator
Spiritus Veni, sancte Spiritus, etc.

Aqui se apresenta uma questão: quando da necessidade de luzes, por que se


dirigir ao Espírito Santo e não ao Filho, luz do mundo: Ego lux mundi? Tal prática não
se opõe ao costume de atribuir ao Pai o poder, ao Filho a sabedoria e ao Espírito Santo a
caridade?

É fácil responder: a luz é dom de Deus, e como ato de amor é natural pedi-lo ao
Espírito Santo, o amor por essência e, por conseguinte, o princípio de todos os dons.
Acrescente-se que, sendo Deus, o Espírito Santo é luz, como é o próprio Filho; e que o
amor, principal atributo do Espírito Santo, é a luz verdadeira, por que são esclarecidos a
alma e o coração. Donde vem que o melhor conselheiro, o causídico mais confiável, é o
amor de Deus e do próximo, cuja fonte é o Espírito Santo.

Ademais, seguindo a prática secular, a Igreja limita-se a se conformar às


intenções de Nosso Senhor. Não fora ele mesmo que ensinara a guardar o Espírito Santo
como a morada da luz e oráculo da verdade? Na pessoa dos apóstolos, disse ele a sua
esposa, duma vez por todas: “Quando vier o Espírito que vos enviarei, ele vos instruirá
de toda a verdade” (Joan., XVI, 13). Assim, nada mudou: nem o papel que o Verbo feito
carne toma em face do Espírito Santo, nem a missão excelente do Espírito Santo. Luz
dos profetas do Antigo Testamento, locutos per prophetas, ele continua a inspirar a
Igreja e todos seus filhos.

Entretanto, não bastam as orações e adorações para que haja o verdadeiro culto
do Espírito Santo. O culto tem por fim aproximar o adorador do ser adorado.
Essencialmente, consiste esta aproximação na imitação. Imitar o Espírito Santo é parte
fundamental de seu culto.

Ora, a pureza e a caridade são atributos distintivos do Espírito Santo. Segue-se


que imitá-los constitui a essência do culto. A pureza de afetos, i. é, o desapego do
coração das paixões desordenadas, é tão almejada pelo Espírito Santo, que somente a
sombra de tal imperfeição o impediria de descer ao coração dos apóstolos. Já que é
assim, seria ilusão grosseira ter a pretensão de que ele escolheria por morada a alma
escrava da carne. Santificar os afetos e pensamentos é o primeiro passo a se dar na
imitação e no culto do Espírito Santo.

A caridade é o outro atributo da terceira pessoa da Santíssima Trindade. Por


um lado, tende a caridade à união, união que faz a força; por outro, a caridade se
manifesta nas obras. Esta segunda parte do culto do Espírito Santo é tão necessária
quanto a primeira. Daí, nos séculos cristãos, as ordens militares do Espírito Santo, as
numerosas associações de caridade espiritual e corporal, conhecidas sob o nome de
Confrarias do Espírito Santo. Uma palavra acerca destas instituições, cuja só existência
caracteriza o Espírito reinante sobre a velha Europa.

No século catorze, apesar da decadência dos costumes, era o Espírito Santo


popular o bastante, até nas classes altas da sociedade, para permitir aos reis honrá-lo
com cultos vistosos, com a participação da flor da nobreza. No dia de Pentecostes de
1352, Luís de Tarento instituiu, quando de sua coroação como rei de Jerusalém e de
Sicília, em honra do Espírito Santo, a quem se considerava devedor deste insigne favor,
a ordem militar do Espírito Santo da Reta Intenção.
Ele mesmo redigiu os estatutos, que começavam assim: “Estes são capítulos
feitos e engendrados pelo excelentíssimo príncipe Senhor rei Luís, pela graça de Deus,
rei de Jerusalém e de Sicília, em honra do Espírito Santo, provedor e fundador da
nobilíssima companhia do Espírito Santo da Reta Intenção, começada no dia de
Pentecostes do ano da graça de MCCCLII”.

“Nós, Luís, pela graça de Deus, rei de Jerusalém e de Sicília, em honra do


Espírito Santo, no dito dia, por sua graça, fomos coroados de nossos reinos, e por
alçamento e crescimento de sua honra, ordenamos se fizesse uma Companhia de
cavaleiros que serão chamados os cavaleiros do Espírito Santo da Reta Intenção, e os
ditos cavaleiros serão em número de trezentos; dos quais Nós, como provedor e
fundador desta Companhia, seremos príncipe; e também o devem ser todos nossos
sucessores reis de Jerusalém e de Sicília” (Ver Guisliniani Ist. di tui gli ordin. ozilit., et
Hélyot, Hist. des ordres religieux T. VIII, p. 319, edit, in-4).

Ajudar e socorrer o rei, na guerra ou demais ocasiões, era o grande dever dos
cavaleiros. A disposição constante ao sacrifício simbolizava-se em um nó ou um laço de
amor, em fazenda colorida, pregado sobre o peito. Acima do nó, lia-se: Se Dieu
plaist [Se praz a Deus]. Enquanto o cavaleiro não prouvesse a Deus com um assinalado
e esclarecido feito de devotamento, o nó continuava atado.

Se combatesse o inimigo superior em número e recebesse honrosas feridas, ou


levasse notável vantagem, desde este dia levava consigo o nó desatado, até que visitasse
o Santo Sepulcro e rendesse preito a Nosso Senhor de sua vitória. Ao retorno, o nó
estaria novamente atado, com este dístico: Ele prouve a Deus, acompanhados dum feixe
de luz ardente, a representar uma língua de fogo, memória do símbolo sob que o
Espírito Santo descera sobre os apóstolos.
Tais guerreiros, verdadeiros cristãos, jejuavam todas as quintas-feiras do ano, e
neste dia davam de comer a três pobres em honra do Espírito Santo. A cada ano,
compareciam em Nápoles no dia de Pentecostes. Encerrava-se a celebração por uma
refeição, que o rei em pessoa presidia. No centro do salão, punham uma mesa chamada
de “A Mesa Desejada”, onde comiam os cavaleiros que, durante o ano, desataram o nó.
O que carregava o nó novamente atado com a flama recebia uma coroa de louros.

À morte dum cavaleiro, o rei celebrava um ofício solene pelo repouso de sua
alma. Presentes, os cavaleiros ali assistiam; um parente próximo ou amigo do defunto
pegava as espadas pela ponta e oferecia-as no altar, seguidos do rei e demais cavaleiros,
que o acompanhavam até o altar. Em seguida, punham-se de joelhos, rogando pela alma
do cavaleiro, e após o serviço fincavam a espada na amurada da capela. Recebida de
Deus, empregada no servido de Deus, retornava ela a Deus. Se o cavaleiro trouxesse a
flama presa ao nó, gravavam em seu sepulcro uma flama, donde saiam estas palavras:
Ele cumpriu seu quinhão de Reta Intenção, estando cada cavaleiro obrigado a oferecer-
lhe sete missas em intenção do repouso de sua alma (Helyot, ubi supra).

Dois séculos depois, a França teria também sua ordem do Espírito Santo. No
dia de Pentecostes de 1573, Henrique III foi eleito rei da Polônia, e no mesmo dia, no
ano seguinte de 1574, elevado ao trono francês. Com vontade de imortalizar o
reconhecimento para com o Espírito Santo, dera este príncipe, em 1575, uma carta de
privilégio para a instituição da ordem militar do Espírito Santo, de tantas glórias na
história da Europa. Esta carta exprime sentimentos, dos quais nos regozijamos, tanto
mais que estamos desacostumados em lhes encontrar na boca dum rei.

“Depositando, disse o monarca, toda a confiança na bondade de Deus, em


quem reconhecemos a posse e o sustento de toda a felicidade desta vida, é razoável que
relembrássemos quanto nos esforçamos de lhe prestar imortais ações de graças, e quanto
testemunhamos à posteridade as grandes mercês que dele recebemos, particularmente
em meio a tantas opiniões diferentes que se embatem sobre o assunto da religião, e que
afligem a França. Ele a conservou no conhecimento de seu Santo Nome, na profissão da
fé única e católica, e na união da única Igreja apostólica e romana.

“E por isso prouveram, por inspiração do Espírito Santo, no dia de Pentecostes,


reunir-se os corações e as vontades da nobreza polonesa, o que levou todos os Estados
desse reino e do ducado de Lituânia a nos eleger rei, e depois de tal dia elevar-nos ao
governo do reino de França; por meio do qual, tanto para conservar a memória de todas
as coisas, como para fortificar e manter doravante a religião católica, e bem assim para
condecorar e honrar a nobreza do reino, Nós instituímos a ordem militar do Espírito
Santo... a qual ordem criamos e instituímos em aquele reino, a fim de que o Espírito
Santo faça-nos a graça de ver reunidos todos nossos súditos na fé e na religião católica,
e de viver para o amanhã em boa amizade e concordância uns com os outros... que é o
fim ao qual tendem nossos pensamentos e ações, e o cúmulo de nosso maior regozijo e
contentamento” (Helyot., t. VIII, p. 406 e ss).

Satã é o espírito da divisão. O Espírito Santo é o Espírito de caridade. Se há um


meio de unir novamente um reino, cruelmente cindido por guerras de religião e
discórdias civis, suas inevitáveis conseqüências, é com certeza o restabelecimento do
reino do Espírito Santo. O pensamento do príncipe é justíssimo: nada é tão apetecível
quanto a finalidade desta instituição. A sua mera existência é já um imenso serviço.
Exibindo a nobreza mais alta comprometida após o pavilhão do Espírito Santo, dá-lhe
suma importância enquanto elemento social, retardando a época do funesto
esquecimento no qual caiu a terceira pessoa da Adorabilíssima Trindade, sob os olhares
dos governos modernos.

Os estatutos da ordem eram adequados à realização dos votos do monarca.


Como guia supremo, o rei da França, no dia da sagração, prestava juramento sobre o
Evangelho: “de viver e morrer na santa fé e religião católica, apostólica e romana, e
antes morrer que dela sair; de conservar para sempre a ordem do Espírito Santo; de
nunca poder dispensar os comandantes e oficiais recebidos na ordem da comunhão e do
recebimento do precioso corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, nos dias ordenados, quais
sejam, o primeiro dia do ano e o dia de Pentecostes.”

Instituída a ordem na propagação da fé católica, e na extirpação das heresias, o


mesmo juramento de fidelidade prestavam a Deus, à Igreja, ao Espírito Santo, ao rei os
cavaleiros, no dia da recepção. Os cavaleiros eram em número de cem, todos egressos
de famílias nobres, de boa vida e costumes. Quando podiam, assistiam a missa
diariamente, e mais os dias de festa, na celebração pública do ofício divino.

Estavam obrigados a recitar a cada dia um rosário de uma dezena, que deviam
levar consigo, e após o ofício do Espírito Santo, com seus hinos e orações; ou então os
sete salmos penitenciais ou, se não o recitassem, dar uma esmola ao pobres. Nos dias de
comunhão, ordenados pelos estatutos, deviam carregar o colar da ordem durante a missa
e a comunhão, em qualquer lugar em que se encontrassem.

No dia seguinte ao da recepção, iam escutar a missa vestidos com os trajos de


cerimônia, e o rei, no ofertório, apresentava um círio engastado de tantos escudos
d’ouro quantos eram seus anos de idade. Após a missa, almoçavam com sua majestade,
e à tarde assistiam às vésperas dos mortos. No terceiro dia, assistiam ao serviço pelos
cavaleiros falecidos. O rei e os cavaleiros ofereciam cada um, no ofertório, um círio de
uma libra. Além disso, duas missas se celebravam a cada dia, no convento dos
Agostinianos, de Paris: uma pela prosperidade da ordem e dos cavaleiros vivos, outra
para os cavaleiros falecidos (Helyot., ubi supra).

Que diferença entre as ordens militares d’outrora e as ordens modernas!

Enquanto a alta nobreza praticava com tanta pompa e circunstância o culto do


Espírito Santo, o povo, ainda mais fiel às tradições, conservava-o na sua ingênua,
contudo patética e enérgica simplicidade. Parte da Europa estava coberta de associações
ou Confrarias do Espírito Santo. A alma destas instituições preciosas, cuja origem se
perde na noite dos tempos da barbárie, era a santificação de seus membros na união
fraterna e na caridade: eis o Espírito Santo em ação. É de se notar que elas existiam na
maioria das paróquias da Sabóia. Até hoje, a privilegiada diocese de Saint-Jean de
Maurienne regozija por lhes conservar muitos belos vestígios.

As refeições públicas, de que tomavam parte os confrades (os confrades eram


todos ou quase todos habitantes da mesma paróquia), nos fazem pensar que as
associações do Espírito Santo têm sua origem nos ágapes. Tais refeições se realizavam
sobre o gramado, em campo aberto. Matavam um boi para o festim. Até um tempo
atrás, quando se abatiam as enormes nogueiras, encontravam-se nos flancos das árvores
seculares o gancho de ferro que utilizavam para despedaçar o animal. Ainda existem,
nalgumas paróquias, daqueles caldeirões imensos, em que se cozia o ensopado para o
dia do ágape. Mudados os tempos, converteram-se os ágapes em esmolarias gerais, para
conservar a memória da antiga disciplina e confortar com mais eficácia os pobres
envergonhados.

Na qualidade de confrades, tinham os ricos parte nas esmolas, recebendo-as


como os pobres. Assim usava o grande e amável santo da Sabóia. Sabe-se que Francisco
de Sales carregava religiosamente, nas dobras da sotaina, as nozes que as criancinhas
lhe davam, quando apareciam para a confissão. Eles as mandava servir à mesa, dizendo
ao comer: é o trabalho de minhas mãos, estou feliz de comê-las: Labores manum
tuarum quia mandicabis, beatus es et bene tibi erit.

Mas em desagravo ao que recebiam, e para tornar mais e mais generosas as


porções dos pobres, os ricos diligenciavam em aumentar, seja por doação ou testamento,
a aporte de fundos dos confrades. Graças à liberalidade, havia em cada paróquia, até
cinco esmolarias gerais por ano.
Devido à época em que ocorriam e à natureza dos objetos distribuídos, vê-se
que as esmolas tinham por fim proporcionar aos confrades algumas alegrias inocentes,
dulcíssimas ao deserdados do mundo, ou socorros materiais necessários ao
cumprimento das leis da Igreja. Deste modo, faziam a distribuição de azeite de noz no
começo da quaresma, pois que se não podiam curtir os alimentos na manteiga. A
distribuição de toucinho era aos sábados santos, para que os fiéis pudessem preparar a
comida na gordura, durante o tempo pascal.

Mas era mui pouco ter parcos alimentos curtidos em gordura, na época em que
a Igreja estava em alegria e os ermitões mais rígidos afrouxavam as austeridades.
Assim, no sábado de Páscoa distribuíam-se pão e vinho. Quando da Ascensão, em que a
geada vinha se precipitar por sobre as montanhas, distribuíam sal. Enfim, na segunda
ou terça-feira de Pentecostes, festa do patrono da confraria, distribuíam cozido, vinho e
toucinho, o que permitia aos mais pobres esquecer um instante as privações habituais.
Atualmente, as distribuições ou esmolas apoucaram-se àquelas do início da Quaresma e
do Sábado Santo.

É isto apenas a face material da confraria. Todas as obras de caridade espiritual


possuem sua face moral. Em primeiro lugar, figura o cuidado das almas do purgatório.
Por elas se oferecem missas numerosas e obras pias e sortidas. Derramando sobre os
mortos o orvalho refrigerante e pacífico, estes testemunhos de caridade intencional
buscam para os vivos poderosas intercessões aos pés de Deus, e imortalizam os laços da
confraria. Onde se pode encontrar algo melhor?

Por que o espírito moderno andou perseguindo ou destruindo as admiráveis


associações? Nós o sabemos; mas o que impede seu restabelecimento onde outrora
existiam, e sua criação, onde não existiam então? Não o sabemos. Para que isso
aconteça, que falta?
Vontade. Vontade e sabedoria, considerando as circunstâncias de tempo e
lugar1. Vontade e perseverança, não temendo obstáculos, tendo-se em conta que o
necessário há de se fazer sempre. Cada dia vê novas confrarias se estabelecerem. São
poucas as paróquias que não possuam associação ou conferência em honra da Santa
Virgem, de Sant’Ana e dos diversos santos do paraíso. Estará só e esquecida a terceira
pessoa da Augustíssima Trindade, a quem devemos tudo, até a Santa Virgem? Qual é a
desculpa, sobretudo hoje em dia, para nossa indiferença?

Satã não se limita em capitanear o grande exército do mal. Com atividade


inaudita, alicia sob nossos olhos numerosos adeptos nas milhares de confrarias da
iniqüidade. Sabe que para destruir, como para edificar, a união faz a força. Sozinho, o
Espírito do bem vence o espírito do mal. Basta dizer, parece-nos, que a ordem do dia é,
mais que nunca, favorecer o reino do Espírito Santo.

Em favor deste culto salutar, ainda há uma última consideração, que será objeto
do capítulo vindouro.

(Retirado de O Tratado do Espírito Santo; tradução: Permanência)

1. 1.Que impediria, por exemplo, aproveitar o tempo da confirmação


para realizar o projeto?
O Progresso Espiritual em Maria

O progresso espiritual é antes de tudo o progresso da caridade, que inspira e


anima as outras virtudes – cujos atos se tornam meritórios –, de forma tal que as
virtudes infusas, que são conexas da caridade, se desenvolvem na proporção daquele
progresso, como na criança crescem ao mesmo tempo os dedos da mão1.
Convém saber o porquê e o como do desenvolvimento constante da caridade
em Maria e o ritmo dessa progressão. O método que seguimos nos obriga a insistir nos
princípios que remetem à firmeza e à elevação da Mãe de Deus, de molde a em seguida
aplicá-los com segurança à sua vida.

*
* *

A aceleração do progresso na Santíssima Virgem

Por que deveria a caridade crescer nela sem parar até a morte?

Antes do mais, porque tal crescimento é conforme à natureza da caridade no


caminho para a eternidade e também ao preceito supremo: “Amarás ao Senhor teu Deus
de todo o coração, de toda a alma, com todas as forças e com todo o entendimento”, de
acordo com a gradação ascendente expressa em Deuteronômio 6, 4 e em São Lucas 10,
27. Segundo tal preceito, soberano entre os preceitos e superior aos conselhos, os
cristãos – cada qual conforme sua condição – devem tender à perfeição da caridade e
das outras virtudes, quer no estado matrimonial, quer no estado religioso ou na vida
sacerdotal2. Nem todos são chamados à prática dos três conselhos, mas hão de aspirar
ao espírito deles, que é o espírito do desapego aos bens terrenos e a si mesmo, para que
se avulte o apego a Deus. Só em Nosso Senhor não existe tal aumento ou progresso da
graça e da caridade, pois que recebera desde o instante da concepção a plenitude
absoluta, conseqüência da união hipostática (afirma o 2º Concílio de Constatinopla que
Jesus não melhorou por meio do progresso das boas obras3, não obstante tivesse
cumprido sucessivamente os atos de virtude correspondentes às diferentes idades da
vida).
Maria, ao contrário, durante a vida terrena se tornou cada vez melhor. Mais
ainda, houve nesse progresso uma aceleração maravilhosa, segundo o princípio que
formulou S. Tomás acerca desta palavra da Epístola aos Hebreus 10, 25: “Animemos
uns aos outros, e tanto mais quanto virdes que se aproxima o dia (final).” Nesse trecho,
escreve o Doutor Angélico no Comentário à epístola: “Poderia alguém perguntar: ‘Por
que progredimos mais e mais na fé e no amor?’ A resposta é que o movimento natural
(ou conatural) se torna tanto mais rápido quando mais se aproxima do termo (do fim que
o atrai). Para o movimento violento, já é o inverso. (De fato dizemos atualmente: a
queda dos corpos tem aceleração uniforme, ao passo que o movimento inverso – o da
pedra lançada ao ar na vertical– tem desaceleração uniforme). Ora, continua S. Tomás, a
graça aperfeiçoa e inclina ao bem, segundo o caminho da natureza (à semelhança de
segunda natureza); segue-se daí que aqueles que estão em estado de graça devem
portanto crescer em caridade na medida em que se aproximam do fim último (que os
atrai). Por isso se diz na Epístola aos Hebreus 10, 25: ‘Não abandonemos as
assembléias, mas animemos uns aos outros, e tanto mais quanto virdes que se aproxima
o dia (final)’, i. e., o termo da viagem. Diz-se alhures: ‘A noite está quase passada, o dia
se aproxima’ (Rm 13, 12). ‘A vereda dos justos é como luz que resplandece, vai adiante
e cresce até ao dia pleno’ (Pr 4, 18)4.

Faz S. Tomás, antes da descoberda da lei da gravitação universal, essa


observação profunda de locução simples, quando só de modo mui imperfeito se
conhecia – sem havê-la medido – a aceleração dos corpos; ele percebera nisso um
símbolo do que havia de ser a aceleração do progresso do amor a Deus na alma dos
santos que gravitam na órbita do sol dos espíritos e da fonte de todo o bem. Quer
afirmar o santo doutor que, para os santos, na medida em que se acentua a intensidade
da vida espiritual e a presteza e a generosidade com que eles se dirigem a Deus, tanto
mais se aproximam Daquele que os vai atraindo mais e mais para Si. Eis a lei da atração
universal na ordem espiritual. Assim como se atraem os corpos na razão direta da massa
e na razão inversa do quadrado da distância, i. e., na medida em que se aproximam,
assim atrai Deus as almas dos justos, na medida em que se aproximam Dele.
Eis a razão de a trajetória do movimento espiritual da alma dos santos elevar-se
até ao zênite e daí não declinar; para eles não há crepúsculo: na velhice, só se lhes
enfraquecem o corpo e as faculdades sensíveis. Eis então o progresso do amor na vida
dos santos. Eles progridem, como é manifesto, muito mais rápido nos últimos que nos
primeiros anos de vida. Em espírito caminham a marche-marche, malgrado a pesadez da
velhice – “renova-se, como a da águia, a sua juventude” (Sl 102, 5).

Vê-se tal progresso cada vez mais célere, sobretudo na vida da Santíssima
Virgem na terra, pois nela não havia sombra de vississitude, interrupção ou morosidade,
nem delongas em coisas da terra ou em si mesma. E era tão mais intenso esse progresso
em Maria quanto maior era a velocidade inicial ou a graça primeira. Houve assim em
Maria (sobretudo se pela ciência infusa, como é provável, ela se guardara do uso da
liberdade e do mérito durante o sono) uma aceleração maravilhosa do amor a Deus,
aceleração cuja imagem longínqua é a gravitação dos corpos.

Ensina a física moderna que se a velocidade da queda dum corpo no primeiro


segundo é 20, no segundo segundo há de ser 40, no terceiro 60, no quarto 80, no quinto
100. É o movimento acelerado uniforme, símbolo do progresso espiritual da caridade na
alma que, sem óbices, se dirige tanto mais rápido a Deus, na medida em que se
aproxima Daquele que a vai atraindo para Si. Assim é normal que nessa alma cada
comunhão espiritual ou sacramental seja dum fevor mais fervoroso que o precedente e
por isso mais frutífero. Em oposição, a pedra lançada ao ar na vertical, em movimento
desacelerado uniforme até que caia, simboliza o progresso da alma tíbia, sobretudo se o
apego progressivo ao pecado venial lhe torna as comunhões cada vez menos fervorosas
ou lhe diminui dia após dia a devoção substancial da vontade.

Demonstram-nos tais princípios o que é o progresso espiritual em Maria desde


o instante da Imaculada Conceição, sobretudo se nela se interrompeu, como é provável,
o uso do livre-arbítrio já no ventre materno5. Ademais, como parece certo que a
plenitude inicial da graça em Maria já superasse a graça final dos santos todos reunidos,
a aceleração da marcha ascendente em direitura a Deus supera tudo quanto possamos
dizer6.

Nada a retardaria, nem as feridas do pecado original, nem o pecado venial, nem
negligência ou distração, nem imperfeição, pois que estava ela sempre presta a seguir a
inspiração dada em forma de conselho. Eis uma alma que, após o mais perfeito dos
votos, seria plenamente fiel a ele. Deveria Sant’Ana ser apossada da perfeição singular
de sua filha santa; todavia não podia ela suspeitar que se tratava da Imaculada
Conceição, nem que chamariam Maria a Mãe de Deus. Era a filha sua muitíssimo mais
amada de Deus que poderia Sant’Ana conceber. Guardadas as proporções, Deus ama
cada justo mais que poderia cada justo conceber; para sabê-lo, seria mister conhecer
plenamente o valor da graça santificante, gérmen da glória; e para conhecer o valor do
gérmen espiritual em sua inteireza, seria mister haver gozado um instante da beatitude
celeste, assim como para conhecer o valor do gérmen na pinha, é mister haver
contemplado o roble pujante, que nasce dum tão pequeno gérmen. Amiúde estão
contidas em sementes quase imperceptíveis as grandes coisas, qual um grão de mostarda
ou um rio imenso que brota dum filete tênue.

O progresso espiritual em Maria pelo mérito e pela oração

Devia então a caridade crescer na Santíssima Virgem sem interrupções,


conforme ao supremo preceito do amor. Mas como se deu o aumento? Por meio do
mérito, da oração e da comunhão espiritual com o Deus presente em espírito na alma de
Maria, desde o início da existência dela. Força é recordar que, antes de tudo, não
aumenta a caridade em extensão pois, ainda que em ínfimo grau, aquela virtude já ama a
Deus – com amor de estima – acima de tudo e ao próximo como a si mesmo, sem
acepção de pessoa, não obstante mais tarde a devoção estender-se de modo progressivo.
Cresce a caridade mormente em intensidade, radiculando-se mais e mais nossa vontade
adentro, ou para falar sem metáfora, determinando com maior força a inclinação da
vontade no afastar-se do mal e do menos bom e no comportar-se com generosidade ante
Deus. Há um crescimento da ordem, duma ordem que não é quantitativa, como a dum
montão de trigo, mas qualitativa, como quando se torna mais intenso o calor ou quando
a ciência, sem novas conclusões, se torna mais penetrante, profunda, unificada e certa.
Assim tende a caridade a amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo –
com maior perfeição, pureza e força – para que glorifiquemos a Deus no tempo e na
eternidade. Destarte sublinha-se, acima de todo motivo secundário ou acessório no qual
antes se detinha, o objeto formal e o motivo formal da caridade, bem como os das outras
virtudes. De ínicio se ama a Deus por conta dos benefícios recebidos e esperados, e não
tanto por Si mesmo; após, entra-se na consideração de que o benfeitor é em si um bem
melhor que os bens que Dele dimanam, merecendo o amor por Si mesmo, em razão de
Sua bondade infinita.

Aumenta-nos a caridade como a uma qualidade, qual o calor que se intensifica, e assim
de modos muito vários, quer pelo mérito, quer pela oração, quer pelos sacramentos.
Com maior razão fez as três coisas Maria, sem sombra de imperfeição. O ato meritório
procedente da caridade ou da virtude que a caridade inspira dá direito a uma
recompensa sobrenatural e, antes do mais, ao aumento da graça habitual e da mesma
caridade. Não produzem os atos meritórios, por si próprios e de modo direto, o aumento
da caridade, pois que não é virtude adquirida que se produza ou aumente com a
repetição dos atos, mas é virtude infusa. Como só Deus pode produzi-la, já que é
participação na Sua íntimidade, somente Ele pode aumentá-la. Por isso diz São Paulo:
(1 Cor 3, 6-9): “Eu plantei (com a pregação e o batismo), Apolo regou, mas quem faz
crescer é Deus.”; (2 Cor 9, 10): “Ele fará crescer os frutos da vossa justiça.”

Se não podem os atos de caridade produzir o aumento dessa virtude infusa, entretanto
concorrem para esse aumento de duas maneiras: moralmente, ao merecê-las; e
fisicamente, na ordem espiritual, ao nos dispor a recebê-las. Tem a alma por mérito seu
receber o crescimento que há de fazê-la amar a Deus com mais força e pureza; dispõe-se
a alma a receber tal crescimento, de molde a que os atos meritórios aprofundem e
dilatem as faculdades superiores, para que o divino possa mormente penetrá-las e,
purificando-as, elevá-las. Mas nos acontece amiúde que os atos meritórios restam
imperfeitos – remisso, dizem os teólogos, ou remitentes (tal como se diz calor remitente
ou fervor remitente), i. e., inferior ao patamar da virtude da caridade que está em nós.

Na posse duma caridade de três talentos, é comum acontecer de agirmos como se


apenas houvéssemos dois, qual um homem atilado que por negligência só aplicasse mui
de leve a inteligência. São ainda meritórios esses atos de caridade imperfeita ou
remitente, mas segundo S. Tomás e os antigos teólogos, não obtêm eles os aumentos de
caridade que mereceriam, pois que se não dispõem a recebê-los7. Quem tiver uma
caridade de três talentos e opera como se apenas tivesse dois, não se dispõe a contento
para receber o aumento dessa virtude até aos quatro talentos. Só há de obtê-lo à
consecução dum ato mais generoso ou intenso dessa virtude ou dessoutras virtudes
inspiradas ou governadas pela caridade.

Esclarecem deveras tais princípios o que foi em Maria o progresso espiritual por meio
dos méritos próprios. Nela jamais houve ato imperfeito ou remitente: seria isso
imperfeição moral ou generosidade contida ao serviço de Deus. Os teólogos, como
vimos, são todos acordes em negar a ela essa imperfeição. Por isso seus méritos obtêm
tão logo o aumento da caridade merecida. Ademais, para melhor avaliar o valor dessa
generosidade, é mister recordar – de acordo com o ensinamento comum8 – que maior é
a glória de Deus por um só ato de caridade de dez talentos que por dez atos de caridade
de um talento só. Do mesmo modo, um só justo perfeitíssimo praz mais a Deis que
muitos que reunidos permaneçam em relativa mediocridade ou tibieza.

Supera a qualidade à quantidade, sobretudo nesse domínio espiritual. Eram os méritos


de Maria mais que perfeitos. Seu coração puríssimo dilatava-se mais e mais e alargava-
se a capacidade divina nela, segundo a palavra so Sl 118, 32: “Correrei pelo caminho
dos teus mandamentos, quando me dilatares o coração.” Enquanto ficamos esquecediços
de que somos viajantes no caminho da eternidade e desejamos nos instalar na vida
presente como se fosse ela durar para sempre, Maria tinha os olhos fitos no fim último
da viagem, em Deus. Não perdia um minuto do tempo que lhe era concedido. Cada
instante de vida terrestre adentrava no instante único da imobilidade eterna pela via dos
méritos acumulados e cada vez mais perfeitos. Ela analisava os momentos da própria
vida, não apenas pela linha horizontal do tempo que marca o devir terrestre, mas pela
linha vertical que os remete ao instante eterno e impassável. Além disso, força é notar
que, como ensina S. Tomás, na realidade concreta da vida não existe ato deliberado
indiferente; ainda se assim fosse (i. e., moralmente nem bom nem mau), o mesmo objeto
da ação – como sair a passeio ou ensinar matemática – tornaria esse ato moralmente
bom ou mau, por conta do fim a que se propõe, pois que sempre deve um ser racional
agir por um motivo racional, um fim honesto, e não somente deleitável ou útil9. Segue-
se que numa pessoa em estado de graça o ato deliberado que não seja mau, nem pecado,
é bom; por conseguinte, está ele de modo virtual ordenado a Deus como ao fim último
do justo, logo seu ato é meritório. “In habentibus caritatem omnis actus est meritorius
vel demeritorius”10.

Daí resulta que em Maria os atos deliberados eram bons e meritórios; no estado
de vigília, nela não houve ato indeliberado ou puro maquinismo que se produzisse
independente da direção da inteligência e da influência da vontade vivificada na
caridade11.

É à luz da claridade desses princípios que se deve considerar os principais


momentos da vida terrena de Maria; como falássemos aqui daqueles lanços que
precederam a Encarnação do Verbo, pensemos na apresentação ao tempo, quando era
ela ainda uma criança, e no que fizera ao assistir às festas solenes, nas quais se liam as
profecias messiânicas – mormente as de Isaías – aumentando-lhe a fé, a esperança, o
amor a Deus e ao Messias esperado e prometido. Como ela não devia penetrar no
sentido destas palavras do profeta Isaías (Is 9, 6) acerca do Salvador vindouro: “Um
menino nasceu para nós, e um filho nos foi dado e foi posto o principado sobre o seu
ombro; e será chamado Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro,
Príncepe da paz”. A fé viva da infanta Maria, já de si tão elevada, talvez vislumbrasse a
esta palavra: “Deus forte”, mais que o mesmo Isaías jamais vislumbrara. Já penetrava
Maria na verdade que haveria de residir em plenitude de forças no seio Daquela criança
– a de que o Messias seria um rei eterno, não conheceria a corrupção e adotaria seu
povo na qualidade de pai eterno.
*
* *
Não cresce a vida da graça apenas pelo mérito, mas também pela oração, que tem força
impetratória distinta. Assim todos os dias pedimos para que nos cresça o amor a Deus,
dizendo: “Pai Nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome, venha a nós o vosso
reino (em nós, cada vez mais), seja feita a vossa vontade (que observemos vossos
preceitos cada vez melhor)”. Na missa dizemos com a Igreja: “Da nobis, Domine, fidei,
spei et caritatis augmentum” – aumentai-nos, Senhor, a fé, a esperança e a caridade”
(13º domingo depois de Pentecostes).

Após a justificação, pode o justo conseguir o crescimento da vida da graça –


como um direito à recompensa – pelo mérito, que se liga à justiça divina, e pela oração,
que se dirige à infinita misericórdia. E tanto mais eficaz é a oração quanto mais
humilde, confiante e perseverante, desde que requeira antes do mais não bens temporais,
mas o aumento das virtudes, segundo esta palavra: “Buscai antes o reino de Deus e sua
justiça, e o restante vos será dado em acréscimo”. Obtém amiúde a oração fervorosa do
justo, por sua vez impetratória e meritória, mais que merece, i. e., não tão-somente o
aumento de caridade merecido, mas aquele que se obtém por meio da força impetratória
duma oração distinta daquela meritória12.

No silêncio da noite, a oração fervorosa de imprecação e mérito consegue


instante um aumento de caridade, o que nos faz experimentar o quão imensa é a
bondade de Deus; nisso há comunhão espiritual e a certeza da existência dum salvador
de vida eterna. Ora, era a oração da infanta Maria não apenas meritória, mas duma tal
força impetratória que não há medida proporcionada à sua humildade e confiança, nem
à perseverança de sua generosidade ininterrupta e sempre em progresso. Lograva ela,
conforme a esses princípios certos, um amor puríssimo e fortíssimo a Deus. Lograva
também as graças atuais eficazes que o mérito não alcança – ao menos o mérito de
condignidade, como aquele que leva a novos atos meritórios e à inspiração especial, que
é o princípio da contemplação infusa, por meio dos dons. Era o que acontecia quando
Maria dizia em oração estas palavras do Livro da Sabedoria 7, 7: “Invoquei o Senhor e
veio sobre mim o espírito da sabedoria. E preferi-a aos reinos e aos tronos, e juguei que
as riquezas nada valiam em sua compração. Nem pus em paralelo com ela as pedras
preciosas, porque todo ouro em sua comparação é um pouco de areia, e a prata será
considerda como lodo à sua vista” Vinha o Senhor nutri-la de Si mesmo e a cada dia se
oferecia a ela com mais intimidade, levando-a a oferecer-se com perfeição.

Disse ela estas palavras do Sl 26, 4 com maior propriedade que ninguém, senão
Jesus: “Unam petii a Domino hanc requiram, ut inhabitem in domo Domini” “Só uma
coisa peço ao Senhor, esta solicito: é que habite na casa do Senhor todos os dias da
minha vida, para gozar da suavidade do Senhor”. Dia após dia descortinava-se a Maria a
bondade infinita de Deus para os que o buscam, e mais ainda para os que o encontram.
Antes da instituição da Eucaristia, e mesmo antes da Encarnação, em Maria houvera a
comunhão espiritual, que é a oração intimíssima da alma na vida unitiva, em que ela
regozijava de Deus nela como num templo espiritual: “Gustate et videte quoniam suavis
est Dominus – Provai e vede como o Senhor é bom” (Sl 33, 9).

Se era dito no Sl 41, 2: “Assim como suspira o cervo pelas fontes de águas,
assim suspira minh’alma por ti, ó Deus. Minh’alma tem sede de Deus, de Deus vivo”,
que houvera de ser a sede espiritual da Santíssima Virgem no instante da Concepção
Imaculada até ao da Encarnação. Não mereceu ela a maternidade divina, pois senão
mereceria por si a Encarnação; mas mereceu o grau de santidade e caridade que era a
disposição próxima à maternidade divina. Ora, se a disposição remota, que era a
plenitude inicial da graça, excedia a graça final dos santos todos reunidos, que pensar da
perfeição da disposição próxima!

Os anos que viveu Maria no Templo atuaram nela o desenvolvimento da “graça


das virtudes e dos dons” em proporções inimagináveis, segundo uma progressão e
aceleração tais que excedem de muito as das almas mais generosas dos maiores santos.
Pode haver exagero no atrbuir à Santíssima Virgem uma perfeição que só pertence a seu
Filho mas, nos termos do que lhe é próprio a ela, não saberíamos lobrigar a elevação do
ponto de partida do progresso espiritual em Maria, e ainda menos a elevação do ponto
de chegada. Entretanto, todo o dito até aqui nos prepara a apreender o que fora o
aumento considerável da graça e da caridade que se produziu nela no momento da
Encarnação.

[Tradução: Permanência. Originalmente publicado em La vie spirituelle n°


255, juillet 1941]

1. 1.Ia IIae, q. 65 e q. 66, a. 2.


2. 2.IIa IIae, q. 184, a. 3.
3. 3.Cf. II Concil. Constant. (Denz, 224): “Si quis defendit Christum. Ex
profectu operum melioratum.” A. S.
4. 4.Cf. S. Thomam, in Ep. Ad Hebr., X, 25: “Motus naturalis quanto
plus accedit ad terminum magis intenditur. Contratium est de (motu) violento.
Gratia autem inclinat in modum naturae. Ergo qui sunt in gratia, quanto plus
accedunt ad finem, plus crescere debent”. Ver também S. Tomás in L. I de Caelo,
cap. VIII, lect. 17 fim: “Terra (vel corpus grave) velocius movetur quanto magis
descendit”. IIa IIae, q. 35, a. 6: “Omnis motus naturalis intensior est in fine, cum
appropinquat ad terminum suae naturae convenientem, quam in principio. Quase
natura magis tendat in id quod est sibi conveniens, quam fugiat id quod est sibi
repugnans”
5. 5.Como dissemos, essa é a opinião de São Bernardino de Siena, de
Suarez, de Contenson, do Pe. Terrien e, sobretudo, de S. Francisco de Sales, que diz:
“Quanto não há de veraz de que a mãe do verdadeiro Salomão usava da razão
durante o sono!” (Tratado do Amor a Deus, l. III, c. 8, acerca das palavras do
Cântido dos Cant.: “Durmo, mas vela meu coração”.
6. 6.Fique bem entendido o que significa a expressão “supera tudo
quanto possamos dizer”. Decerto era finita ou limitada a graça consumada em
Maria; seria exagero inadmissível atribuir-lhe uma perfeição que só pertence a
Nosso Senhor. Nesse sentido, sabemos que o progresso nela não ultrapassa certos
limites; sabemos também que Maria só não pode fazer o negativo; contudo,
ignoramos positivamente o que podia fazer, bem como o grau preciso da santidade
que atingira ou de que partira. Ainda, por outro lado, sabemos negativamente o que
as forças da natureza não produzem — a ressurreição dum morto ou os efeitos
próprios a Deus — mas não sabemos positivamente até onde as forças da natureza
podem ir: ainda se descobrem forças desconhecidas, como as do rádio, cujos efeitos
são imprevistos. Do mesmo modo, não podemos saber positivamente até onde vão
as forças naturais dos anjos, mormente as dos mais elevados; todavia, é certo que o
mínimo grau da graça santificante supera as naturezas criadas, inclusive as naturezas
angélicas com suas forças naturais. Se é mister haver gozado ao menos um instante
da visão beatifica para se conhecer plenamente o valor do mínimo grau da graça —
gérmen de glória — quanto mais para se conhecer plenamente o valor da plenitude
inicial da graça em Maria.
7. 7.IIa IIae, q. 24, a. 6 ad 1a.
8. 8.Cf. Salmanticenses: de Caritate; disp. V dub. III § 7 no. 76, 80, 85,
93.
9. 9.Cf. S. Tomás Ia IIae, q. 18, a.9.
10. 10.S. Tomás, de Malo, a. 5 ad 17.
11. 11.É o justo ensinamento do Pe. E. Hugon, Marie, pleine de
Grace, 5ª. Ed., 1926, pág. 77.
12. 12.Eis como o justo pode conseguir pela oração graças não
merecidas, como a da perseverança final, que é o princípio do mérito ou o estado de
graça conservado no momento da morte, cf. Ia IIae, q. 114, a. 9. Do mesmo modo, a
graça eficaz, que preserva do pecado mortal, conserva em estado de graça e fá-la
crescer, não é merecida — mas amiúde a oração a logra; é ainda o caso da
inspiração especial — princípio da contemplação infusa — por meio dos dons da
inteligência e da sabedoria.
13. O soldado e o santo
14. Nós sabemos bem distinguir, e não confundimos de modo algum, o
heroísmo dos santos e o do soldado. (...) Sim, nós distinguimos sem dificuldade os dois
heroísmos e jamais identificamos o grito do herói tombado por uma “pátria carnal” com
o cântico do santo que expira consumido pela caridade divina. Sabemos perfeitamente
que as últimas palavras de Joana, agonizante, exprimem, acima de tudo, o heroísmo da
santidade, e suas palavras só puderam ser aquelas porque, na sua alma, o heroísmo do
chefe guerreiro estava iluminado, transformado pelo heroísmo da “Pucelle”, “filha de
Deus”.
15. Sempre ensinamos as distinções irredutíveis entre a natureza e a graça,
mas não seremos nós que as transformaremos em oposições; e, por isso, depois de
termos discorrido brevemente sobre o heroísmo dos santos, queremos agora exaltar o
heroísmo do soldado.
16.
17. Pertencem a duas ordens distintas, é certo, mas uma ordem pode penetrar
a outra, resplandecer através da outra, como a chama ardente através de um cristal.
Fazemos questão, uma vez que falamos do heroísmo dos santos, lembrar o heroísmo
guerreiro que só parecerá desprezível aos corações covardes, ou aos intelectuais
cerebrinos, tornados abomináveis em suas cogitações egoísticas e vazias. Sem o
heroísmo do soldado, a sociedade dos homens não terá recursos para discernir
praticamente, concretamente que sua instituição visa mais alto do que à produção e ao
consumo... Sem o heroísmo do soldado a sociedade entra em putrefação, e dentro dela
as almas vivas estão a cada momento ameaçadas de asfixia. Sem o heroísmo do soldado,
a sociedade, fechada sobre si mesma, torna-se semelhante, ora a uma usina colossal de
portas aferrolhadas, ora a um circo gigantesco, ameaçado de desmoronar-se entre as
chamas de um incêndio implacável.
18.
19. Não considero aqui as possibilidades e as vias pelas quais o soldado se
degrada em mercenário [ou em puro técnico, com diria Bernanos]. Bem sabemos que
essa degradação é possível. Também não me preocupa aqui a distinção entre o heroísmo
da “guerra sem ódios” e o fanatismo demoníaco de um militarismo imperialista. A
distinção se impõe. Mas o que quero assinalar, o que desejo indicar é que uma Cidade
que despreza o soldado perde o senso de honra, torna-se indigna do homem, e não sabe
mais, na prática, que o estabelecimento na terra não é o seu bem supremo. Pelo fato de
estar a vida do soldado ligada de perto à vida da alma, e à vida sobrenatural,
compreende-se que a sociedade moderna, infestada de materialismo, tenha pelo soldado
uma sólida aversão. Ouçamos o que diz Bernanos: “O Estado Moderno, simples agente
de transmissão entre a finança e a indústria, tem razão de farejar no exército uma outra
Igreja, quase tão perigosa e quase tão incompreensível. Não detêm ambas, embora
desigualmente, o segredo de formar os homens, sim, de formar os homens que um dia
farão tudo dobrar-se diante deles pela única força do espírito, já que o herói não cede o
passo senão diante do santo? Por isso, o Estado que prudentemente classifica o santo
entre os alienados, obrigado a servir-se do herói em tempos de guerra, trata de só
utilizar-se dele com medida, e com o mínimo de risco. A sociedade moderna sabe muito
bem que a simples idéia de sacrifício, introduzida sem retoques em laboriosa moral de
solidariedade, estouraria como uma bomba” — Bernanos “La Grande Peur des Bien-
Pensants”.
20.
21. Tradução de parte do artigo publicado em “Itinéraires”, janeiro de 1969.
22. Permanência n°7, Ano II, Abril de 1969.
23. Teresinha, templo de Deus
24. (No dia 11 de julho de 1937 encerrava-se em Lisieux o 11° Congresso
Eucarístico Nacional da França com a consagração da Basílica dedicada a Sta.
Teresinha.
25. O Papa Pio XI, devotíssimo da santa, tencionava pessoalmente presidir
as cerimônias. Devido ao precário estado de saúde não conseguiu realizar o seu
ardente desejo.
26. Enviou, então, como Legado Papal, o Cardeal Eugênio Pacelli, o futuro
Papa Pio XII. Da admirável alocução do Cardeal Pacelli na consagração da Basílica
destacamos o trecho onde enaltece Teresinha).
27.
28. AS ROSAS PARA PIO XI
29. No alto da nova basílica, brilha a cruz triunfante iluminada pelo sol de
junho. No alto do edifício espiritual é também a cruz que a vós se oferece na pessoa do
Papa representada, aqui, por seu humilde delegado.
30. A cruz, porque “se todos que piedosamente querem viver no Cristo
sofrem perseguição” são particularmente penosas para o coração do Pontífice atual e lhe
arrancam queixas pungentes e solenes protestos as que, em diferentes países, sofrem
seus filhos. Mas, nem a violência sacrílega das massas encegueiradas por falsos profetas
nem os sofismas dos doutores da impiedade que desejariam descristianizar a vida de
todos puderam vencer a resistência e aprisionar a palavra e a pena deste intrépido
ancião.
31. No entanto, e bem o sabeis, fazem alguns meses que a seus sofrimentos
morais somaram-se sofrimentos físicos. Nesses dias, a grande família católica por
inteiro, de um extremo a outro do mundo, voltou-se com filial ansiedade para o leito de
sofrimento do Pai comum prostrado por dores agudas suportadas com grandeza heróica
e sobrenatural, com coragem viril e cristã. Cada manhã seus olhos acompanhavam os
telegramas dos jornais; cada noite seus ouvidos abriam-se para o jornal falado difundido
pelo rádio; pela manhã e à tarde e mesmo durante a noite uma oração constante partindo
dos lábios e do coração de 300 milhões de fiéis animava o mundo a elevar-se, com o
incenso de sacrifícios, diretamente ao coração de Deus. Invocava-se esse Coração
divino pela intercessão de sua Mãe “a suplicante toda poderosa”, invocavam-se pela
intercessão dos santos e das santas, sobretudo daqueles que parecem ser os canais das
graças milagrosas. Assim foi principalmente ela a invocada, esta querida santa de
Lisieux, por quem o Papa, e se sabia, sentia tão terna e confiante devoção. E veio a
consolação depois da cruz. Quando a Igreja festejava a ressurreição do Senhor, a doença
alivia o cerco e o Pontífice como que ressuscitando para uma nova vida, surpreende o
mundo com a publicação quase simultânea de três Encíclicas.
32. Foi por um sentimento de especial gratidão para com a taumaturga de
Lisieux que, não podendo comparecer pessoalmente, como desejaria, às jornadas
festivas em sua homenagem, o Soberano Pontífice Pio XI fez-se representar por um
embaixador especial: “Legatus a latere”, diz o que traduziríamos, nesta circunstâncias,
como o mensageiro do seu coração tocado de indizível gratidão.
33. Esse embaixador que o Soberano Pontífice vos envia carregado de suas
bênçãos paternais, ele não o quer de volta com as mãos vazias: “Traga-Nos três rosas de
Lisieux, recomendou-lhe, que dizer três graças especiais que imploramos à querida
Santinha. E não é trair a confiança e revelar-vos, para que imploreis com o Supremo
Pastor, as três graças que ardentemente ele suplica. Permanecendo fiel ao gracioso
símbolo que Sua Santidade escolheu, parece-me entrever Teresa do Menino Jesus
cultivando, no Carmelo e para o Papa que a elevou aos altares, as três rosas que lhe
pede. Vamos recebê-las de suas suaves mãos para levá-las à Sua Santidade.
34. Por primeiro a rosa vermelha rodeada de espinhos. Sim, é a imagem da
primeira graça solicitada pelo Santo Padre: uma perfeita e filial conformidade com
todos os desígnios de Deus mesmo que se cumpram no sofrimento.
35. Segundo, a rosa cor-de-rosa de pétalas rijas e numerosas, a primeira a
abrir-se e a que ainda viceja nos dias de outono quando as outras já fenecem. Simboliza
o desejo do Santo Padre de recuperar as forças e o vigor físico; não para fugir à dor,
“non recuse dolorem”, mas para ainda trabalhar, “peto laborem”, com a magnífica
energia que durante tantos anos pôs a serviço de Deus e do bem das almas!
36. Terceiro a rosa branca de cálice amplo e perfumado, a que justifica o seu
título de rainha das flores, abrindo generosamente suas pétalas de veludo acariciante e
imaculado, envolvendo-se de perfume ora vivo ora suave. Com essa magnífica flor
permitimo-nos simbolizar o desejo do Santo Padre de santidade de vida e de zelo
fervoroso para o clero secular e regular, chamando à salvação das almas a partir da
própria santificação.
37.
38. TERESINHA, TEMPLO DA LEI DE DEUS
39. Há um terceiro templo, uma terceira casa de Deus entre os homens que,
certamente, não nos cabe dedicar ou consagrar Deus, já que Ele mesmo o fez, mas
exaltar e glorificar no dia de hoje. Essa casa de Deus é a alma de vossa encantadora
Santa Teresa do Menino Jesus.
40. Por humilde que fosse, por pequenina que desejasse ser, a alma da Santa
Teresa foi um imenso e magnífico templo. Assim como a basílica que hoje se eleva em
sua honra, ela abrigou, em si, a lei divina, a graça, a Eucaristia e podemos dizer, a
totalidade dos fiéis, a Igreja. Foi, portanto, a casa viva de Deus entre os homens. “Ecce
Tabernaculum Dei cum hominibus”. Já não sabemos que, segundo a doutrina do grande
apóstolo São Paulo (1 Cor. 111, 16-17), cada um de nós é o templo de Deus e que o
Espírito de Deus habita em nós? “Nescitis quia templum Dei estis et Spiritus Dei habitat
in vobis?... Templum Dei sanctum est, quod estis vos”. É esta a nossa grandeza e a
nossa mais alta dignidade. Feitos à imagem e semelhança divina, trazemos na fronte um
raio celeste que conservamos, mesmo decaídos, testemunha de nossa sublime origem e
que nos torna belos e grandes no mundo material que nos rodeia; grandeza e dignidade
que se projeta para além do tempo penetrando a eternidade; preciosa aos olhos de Deus
pois custou o sangue de um Deus. É ela que lava e purifica nosso espírito; por ela nossas
almas marcadas em íntima união com a graça e a caridade que o Espírito Santo
transborda em nossos corações tornam-se o edifício espiritual construído nos alicerces
dos apóstolos e dos profetas tendo por pedra angular o próprio Jesus Cristo:
“Superrædificati super fundamentum Apostolorum et Prophetarum, ipse summa
angulari lapide Christo Jesu” (Ephos. 11,20); sobre esta pedra fundamental todo edifício
bem projetado eleva-se como templo santo para o Senhor, sobre ela somos
transformados pelo Espírito em habitação de Deus: “In quo emnis ædificatio constructa
crescir in templum sanctum in Domine, in que et vos coædificamini in habitaculum Dei
in Spiritu” (Ephos. 11, 21-22), o Espírito de vida, de verdade de caminho para o céu.
41. Deus hoje habita em seus templos, dizíamos há pouco, não como
naqueles em que outrora repousavam insensíveis e inertes as tábuas da lei antiga – mas
pelos ministros do seu poder, pelos mandatários de sua jurisdição que em nossas igrejas
promulgam sua Lei e sancionam sua observância. Assim essa lei divina aí permanece
viva e atuante guiando as almas no caminho da retidão e da pureza fora dos quais a
natureza fraca e corrompida não conhece senão descaminhos e vergonhas.
42. A Lei de Deus assim foi, viva e ativa, na alma de Teresa. Como a
outra Virgem, de quem nos falam os Atos “que trazia sempre no peito o Evangelho do
Senhor” Teresa trazia sempre presente em sua alma e seu coração, a Lei e os conselhos
divinos de seu bem amado Jesus Cristo.
43.
44. TERESINHA, TEMPLO DA DOUTRINA DE DEUS
45. Ela lhe conhecia os segredos muito além do que aprendera pela leitura e
pelo estudo. Contudo, não descuidou de instruir-se. O mesmo Soberano Pontífice que
nos diz: “Agradou-se a Divina Bondade dotando-a e enriquecendo-a de um dom de
sabedoria excepcional” declara também: “Ela buscou fartamente nas lições de catecismo
a pura doutrina da fé; a do ascetismo no livro de ouro da Imitação de Cristo; a da
mística nos escritos de seu Pai, São João da Cruz. Sobretudo nutria seu espírito e
coração na meditação das Sagradas Escrituras; e o Espírito da verdade ensinou-lhe o
que habitualmente esconde aos sábios e aos prudentes e revela aos humildes. Ela
adquiriu uma tal ciência das coisas sobrenaturais que foi capaz de traçar para os outros
um caminho seguro de salvação”.
46. Traçar m caminho, um “caminhozinho”. Sua ciência das coisas divinas,
em parte adquirida, em parte infusa, ela não a guardou para si. Disse: “Minha missão é
de ensinar a amar a Deus como eu O amo e de entregar meu ‘caminhozinho’ às almas”.
É este um dos mais maravilhosos ângulos dessa figura tão atraente: a carmelitazinha,
que do fundo do seu convento dá lições ao mundo do nosso século tão orgulhoso de sua
ciência. Ela tem uma missão; tem uma doutrina. Mas sua doutrina, como ela mesma, é
humilde e simples; resume-se em duas palavras: “Infância espiritual” ou em sua
equivalente: “Caminhozinho”.
47. Não temos nós o Evangelho ensinando-nos há vinte séculos que “o Reino
do Céu pertence às crianças e aos que a elas se assemelham”? O mestre o disse;
doutores e santos comentaram sua palavra; mas para confirmá-lo objetivamente, como
de todos o mais claro e decisivo comentário, temos a aplicação literal e integral desse
princípio na orientação de uma vida inteira que por este “caminhozinho” elevou-se, em
poucos anos, à maior e mais alta perfeição.
48. É sobretudo por ele que Teresa ilumina e subjuga tantas almas. “Ela
fascina o mundo pela magia do seu exemplo” diz Pio XI. Porque, depois de adquirir a
ciência das coisas divinas, compreendeu o que Bossuet chama a “desgraça de toda
ciência que não termina no amor”. Sua ciência de Deus levou-a a amá-Lo
ilimitadamente do momento em que foi capaz de conhecê-Lo. Apesar de, desde os
três anos de idade jamais haver-Lhe recusado qualquer coisa. Foi sobre um ato de amor
que, despertou sua alma; foi sobre um ato de amor que se cerraram seus olhos e seu
coração quando murmurou no último suspiro: “Meu Deus, eu vos amo!” No entanto o
amor não terminava com a vida; sua mensagem e sua missão não terminariam também.
“Sinto, dizia pouco antes de morrer, que minha missão vai começar”. É impossível à
palavra humana descrever o alcance desta missão e dos seus resultados.
49. O gênio brilhante de Agostinho, a sabedoria de Tomás de Aquino,
projetaram sobre as almas raios de indestrutível clareza; por eles, o Cristo e sua doutrina
são melhor conhecidos. O poema vivido por Francisco de Assis mostrou ao mundo uma
imitação, até então inigualada da vida de Deus feito homem. Por ela legiões de homens
e mulheres aprenderam a melhor amá-Lo. Porém, uma carmelitazinha, apenas chegada à
idade adulta, conquistou, em menos de meio século, incontáveis falanges de discípulos.
Em sua escola os doutores da lei tornaram a ser crianças; o supremo Pastor a exalta e
reza a seus pés em humilde e assídua súplica; e agora mesmo, de um extremo a outro do
mundo, há milhões de almas beneficamente influenciadas pelo livrinho: A história de
uma alma.
50. Tinha muita razão dizendo a nossa querida Santa: “Sinto que minha
missão vai começar. Minha missão é dar meu ‘caminhozinho’ aos outros”.
51.
52. TERESINHA, TEMPLO DA GRAÇA
53. A alma de Teresa, templo da lei divina, luminosamente conhecida,
amorosamente observada e ardentemente ensinada aos outros, foi também a habitação
da graça, isto é, do próprio Deus.
54. Lembrávamos há pouco: todo homem nascido, privado por triste herança
das predileções divinas porém remido pela Incarnação e morte de Jesus Cristo, pode,
pelo batismo, voltar a ser filho de Deus. Torna a sê-lo mesmo depois das quedas do
pecado pessoal desde que, na sinceridade de sua vergonha e dor, recorra aos méritos
infinitos da Redenção.
55. Tudo é mistério da graça, participação real porém invisível da invisível
natureza de Deus. É o mistério dos Sacramentos, sinais sensíveis dessa graça. É o
mistério da incorporação do cristão a Jesus Cristo e da habitação, em nós, das três
pessoas divinas. Toda alma em estado de graça é a casa de Deus.
56. Ora, essa graça do batismo, não somente Teresa nunca a perdeu pelo
pecado como ainda sempre aumentou o seu tesouro por atos de amor e por mais íntima
união com Aquele que é o seu autor e seu princípio: “Meu céu, eu o encontrei na
Santíssima Trindade que mora em meu coração prisioneira do amor”.
57. Era assim que gostava de cantar.
58. Apesar dessa misteriosa união com Deus escapar às nossas avaliações e
pobres medidas humanas, sabemos que pode não somente existir ou desaparecer como
aumentar ou diminuir segundo a resposta da alma às suas sucessivas influências. Ações
poderosas mas tão suaves que são chamadas toques da graça; ações divinas mas tão
respeitosas da liberdade humana que qualificam-nas de chamados. Enfim, ações que,
mesmo atuando em nós em conseqüência de uma operação extrínseca, de um ato
realizado independente de nós mesmos (ex opere operato) terão maior ou menor eficácia
dependendo da colaboração que nossa alma lhes der.
59. É por esta razão que, se a plenitude da divindade não habitou senão em
Jesus pela união pessoal com uma natureza humana, os santos doutores sempre se
extasiaram contemplando a morada de Deus na Virgem-Mãe. Porque Ela, cheia de graça
desde o momento de sua concepção imaculada, não cessa durante toda sua vida mortal
de aumentar seu tesouro por uma conformidade perfeita do seu querer com o querer
divino, por uma correspondência absoluta e incessante a todos os chamados de Deus.
60. Sem atingir as alturas que o Filho de Deus reservou a sua Mãe, estamos
seguros que Ele permitiu uma familiaridade incomum a esta alminha de criança para a
qual jamais existiu outro prazer e outro querer que não fosse o prazer divino. Se alguém
me ama, disse Ele, guardará minha palavra e meu Pai o amará; e viremos a ele e nele
estabeleceremos a nossa morada. Ecce Tabernaculum Dei cum hominibus.
61.
62. TERESINHA, TEMPLO EUCARÍSTICO
63. Teresa foi um tabernáculo sobretudo por sua devoção eucarística. Como
no templo material onde tudo existe em função do altar e do viático, assim na alma de
Teresa, templo espiritual de Deus, o lugar de honra e de predileção sempre pertenceu a
Jesus-Hóstia.
64. Quando pequenina, querendo participar das lições de catecismo e dos
encontros piedosos de suas irmãs mais velhas dizia que “quatro anos não são demais
para preparar a primeira Comunhão”.
65. Conheceis seu cândido amor pelas procissões do Santíssimo Sacramento
quando, na alegria de atirar flores a Jesus cuidava de jogá-las bem alto para que, ao
caírem, tocassem o ostensório. Sabeis que durante a preparação próxima da Primeira
Comunhão pressentiu as alegrias secretas da vida conventual fazendo também a
experiência do sacrifício, multiplicando as orações e os atos de renúncia. Em dois meses
anotou num caderninho recebido de Carmelo o total de 818 sacrifícios e 2.773
aspirações ou atos de amor.
66. Sabeis, por fim, o que disse do seu primeiro encontro com Jesus-Hóstia:
“Sim, foi um beijo de amor! Sentia-me amada e dizia: Eu te amo, eu me entrego para
sempre! Jesus nada pediu-me, nem ao menos um sacrifício. Há muito tempo Ele e a
pequena Teresa olhavam-se e compreendiam-se. Nesse dia, nosso encontro não foi um
olhar mas uma fusão. Não éramos mais dois. Teresa desaparecera como a gota d’água
no oceano. Jesus permanecia só”.
67. Sim, hóspede único na alma de Teresa, tabernáculo de sua escolha. Quem
saberá as confidências trocadas no mistério desse tabernáculo? Eram ingênuas e ternas
pois que o alimento substancial dos que a conhecem e lutam mas também o primeiro
alimento dos pequeninos, o angélico bocado das almas de criança. Eram sérios e
profundos pois que Teresa, à sua inocente e virginal ternura, somava imenso respeito
pela Hóstia da qual procurava com o olhar as imperceptíveis parcelas na patena que
volta à sacristia envolvendo-as de homenagens e chamando outras irmãs para adorá-las
à espera do sacerdote que vinha recolhê-las. Eram sinais significativos já que numa
época em que restos de jansenismo conservavam as almas sonolentas de um falso
respeito que as distanciava da comunhão, Teresa sentia uma fome imperiosa deste pão
cotidiano e consolava-se de sua privação forçada pelo aviso profético dos decretos
salvadores que abriram para as almas o acesso à Mesa Santa. Eram íntimos e sublimes,
inacessíveis à palavra pois que, desde a sua primeira Comunhão compreendeu o poder
redentor do sofrimento humano unido ao sofrimento do Cristo e pede a Deus que
“transforme em amargura qualquer consolação terrena”. Foi magnificamente ouvida.
Seu caminhozinho, por ser coberto de rosas, foi ainda mais rico em espinhos: espinhos
das dores físicas da doença, espinhos da incompreensão e, por vezes, da contradição,
espinhos mesmo do aparente abandono do Bem Amado que, no leito de morte lhe
arrancaria esta confissão: “É agonia pura, sem sombra de consolação”.
68. Em cada uma de suas sucessivas comunhões Deus fê-la aprofundar
pouco a pouco mais o mistério da dor redentora. O amor que a devorava e sua sede de
reparação dela fizeram uma hóstia viva unida à Hóstia perpetuamente oferecida. Da
Hóstia divina parecia ter copiado a aparência exterior da brancura e fragilidade não
apenas pela candura angélica de sua alma que lhe transfigurava a fisionomia mas
também pela palidez de seus traços desfeitos. Estava no fim de suas forças, gravemente
enferma quando, um dia, arrastou-se até a capela para a missa e a comunhão; como uma
irmã apiedava-se vendo-a tão fraca replicou: “Não acho que seja muito sofrimento para
ganhar uma comunhão”.
69. Assim foi, a vida inteira, o que desejara ser quando visitara a santa casa
de Lorette: “O templo vivo de Jesus”.
70.
71. TERESINHA, TEMPLO DA IGREJA UNIVERSAL
72. Um último traço fazia da alma de Teresa a casa de Deus, Templo da lei e
da doutrina divina, templo da graça sobrenatural, tabernáculo vivo de Jesus-Hóstia, ela
era também, pela amplitude dos seus desejos, o templo da Igreja Universal; “Ecclesia
Dei”. Escutemos o que ela mesma diz de suas ações de graça:
73. “Imagino minha alma como um terreno disponível e peço à Virgem
Maria que dele remova os detritos das imperfeições; a seguir peço que Ela mesma nele
erga uma grande tenda digna do céu e a guarneça de seus enfeites. Convido os anjos e
santos para que venham cantar cânticos de amor. Parece-me, então, que Jesus fica
contente vendo-se magnificamente recebido e eu compartilho de sua alegria”.
74. Eis a Igreja triunfante descendo à alma de Teresa. Veremos nela a Igreja
padecente? Sem duvida, pois que dela não poderia Teresa desinteressar-se. Todavia,
estas almas já ao abrigo do pecado e próximas da visão beatífica pareciam-lhe mais
objeto de inveja que de pena: “Não quero, dizia ela, que peçam a Deus para me livrar
das chamas do purgatório. E Santa Teresa d’Ávila declarava às suas filhas que queriam
por ela rezar: ‘Que importa ficar, até o fim do mundo, no purgatório se por minhas
orações posso salvar uma única alma?’”.
75. A Igreja militante sempre existiu na alma de Teresa pela união de
solidariedade que une todas as almas em estado de graça, como membros de um mesmo
corpo. Porque devem ser e são inseparáveis os membros que participam de uma só e
única vida: ora, nossa vida é o Cristo, a graça de sua Redenção sangrenta tornada
sangue espiritual de nossas almas.
76. Contudo, a massa branca dos eleitos não satisfaz Teresa e o templo de
seu zelo projeta-se mais além. Porque o Cristo morreu por todos os homens ela desejaria
salvá-los, a todos. Assim como Paulo de Tarso, não podia pensar sem lágrimas de dor
que “o Cristo tem inimigos”; e como Francisco de Assis não se resignava vendo que “o
Amor não é amado”.
77. Eis porque salvar almas conduzindo-as ao conhecimento e ao amor de
Jesus Cristo foi sua mais ardente aspiração. “O amor de Deus, o amor de Jesus, dela dirá
Pio XI, inspiravam-lhe magníficos gestos de apóstolo e de mártir”.
78. Desejou o carmelo de Hanói para estar mais próxima do terreno
missionário. E sua vida passa-se em Lisieux, na oração e no silencio. Muitas vezes
nossos olhos detiveram-se sobre a sacristia aparentemente absorvida em preparar o
cálice e o missal para a missa da comunidade. Facilmente acreditaríamos que seus
horizontes espirituais limitavam-se aos muros brancos da capela ou, no máximo, aos da
clausura que limita os jardins silenciosos do convento. Como nos enganaríamos!
79. Quando no Natal de 1886 iniciou o que chamava o terceiro período de
sua vida, “o mais belo de todos, o mais cheio de graças do céu”, Jesus
maravilhosamente transforma essa vida espiritual já inteiramente votada a seu serviço,
ou fazendo de Teresa, segundo ela mesma diz, “um pescador de almas”. Na muda
contemplação das mãos divinas trespassados por nós e tantas vezes derramando seu
sangue inutilmente sobre a terra, compreendeu, um dia, a grito ansiado do Redentor:
“Tenho sede!” “Desde então, diz ela, desejei dar de beber ao Bem Amado; senti-me
devorada pela sede de almas... e quanto mais Lhe dava a beber mais aumentava a sede
de minha pobre alminha e recebia essa sede ardente como minha recompensa”.
80. Refletindo sobre o dia 8 de setembro quando, segundo suas próprias
palavras, tornou-se “a esposa do Rei dos céus” acrescentava: “Seu único objetivo era
salvar almas sobretudo almas de apóstolos. A Jesus, seu divino Esposo pedia para si
particularmente o ter uma alma apostólica. Não podendo ser sacerdote desejou que, em
seu lugar, um sacerdote recebesse os dons do Senhor e que sentisse os seus desejos”.
81. Bem sabia que, se as aspirações e desejos dos missionários podiam ser os
seus, sabia também que os meios de ação deveriam ser diferentes: “Para eles, as armas
apostólicas; para mim, a oração e o amor... Trabalhar para a salvação das almas é o
objetivo que me levou a ser carmelita. Não podendo ser missionária pela ação quis sê-lo
pelo amor e pela penitência”.
82. Começou ainda criança. Sua primeira conquista, lembrai-vos, foi um
celebre condenado à morte. Não acabou nunca de rezar e de se imolar pelas almas: sua
última comunhão, dia 19 de agosto de 1897, na festa de Santa Jacinta, foi oferecida por
um bem conhecido apóstata.
83. Entre essas duas comunhões, quantas outras almas teria salvo durante a
sua vida, pelo sacrifício e pela oração? Só Deus sabe e esta será sem dúvida, uma de
nossas maravilhosas surpresas, no céu.
84. Mas, ainda era pouco para o seu amor. “Gostaria de salvar almas mesmo
depois de minha morte... Desejaria ter no céu o mesmo que na terra: amar Jesus e fazê-
Lo amado. Espero não ficar inativa lá em cima. Meu desejo é ainda o de trabalhar pela
Igreja e pelas almas. É o que peço ao bom Deus e estou certa que me ouvirá”.
85. O que se seguiu à sua morte, canta pelo mundo inteiro o quanto Ele há
quarenta anos a ouve e ouvirá sempre. A epopéia de suas conquistas apostólicas
orquestradas pela voz das nações, ecoa de um pólo a outro; a santa Igreja, ela mesma,
modulou o tema e ritmou o compasso abreviando todos os prazos canônicos para elevar
Teresa aos altares e proclamando – a pequena contemplativa morta aos 24 anos! –
Padroeira universal das Missões.
86. Como sois grande, pequenina Santa! E numerosa é vossa família
espiritual. Sois grande, pequenina alma! Pequeno tabernáculo de Deus vivo entre nós,
tornaste-vos o refúgio da humanidade que reza, que sofre, que milita e que cada dia a
vós recorre!
87. Nos hinos que em vosso louvor se elevam parece-me ouvir um eco
daquele que cantava Isaías à glória da nova Sion: “Gritem de alegria... transbordem de
satisfação! Conquistem o espaço e ampliem muito a tenda. Não lhe neguem o aumento.
Soltem-lhe as cordas e que os piedosos as sustentem. Porque te expandirás à direita e à
esquerda; e tua posteridade tomará posse das nações e povoará as cidades desertas”.
88. Cada dia vós acolheis, ó Teresa! Legiões de crianças que vos consagram
sua inocência, virgens que vos seguem na clausura, doente a quem dais ou saúde ao
corpo ou o admirável heroísmo de vossa conformidade com o querer do Amor
misericordioso. Sois vós que sustentais os missionários nas fadigas e decepções de seu
apostolado distante; vossa imagem trouxe-lhes o sorriso na frigidez dos “isbas”, na
aridez das choupanas, na imensidão dos desertos de areia, dos oceanos e até nas nuvens
e nas alturas do firmamento.
89. Pequeno templo de Deus, sois o templo imenso de uma humanidade
conquistado por vós. Ecce tabernaculum Dei cum hominibus.
90.
91. (Tradução de Maria Helena Pinto Fraga).

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